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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO GABRIEL RODRIGUES LEAL CURRÍCULO CULTURAL UMA AUTOETNOGRAFIA NA ACADEMIA DE POLÍCIA MILITAR COSTA VERDE CUIABÁ-MT 2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

GABRIEL RODRIGUES LEAL

CURRÍCULO CULTURAL

UMA AUTOETNOGRAFIA NA ACADEMIA DE POLÍCIA MILITAR COSTA

VERDE

CUIABÁ-MT

2011

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GABRIEL RODRIGUES LEAL

CURRÍCULO CULTURAL

UMA AUTOETNOGRAFIA NA ACADEMIA DE POLÍCIA MILITAR COSTA

VERDE

Orientador: Prof. Dr. Luiz Augusto Passos

CUIABÁ-MT

2011

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Educação no Instituto

de Educação da Universidade Federal de

Mato Grosso como requisito para a

obtenção do título de Mestre em

Educação na Área de Concentração

Educação, Cultura e Sociedade, Linha de

Pesquisa Movimentos Sociais, Política e

Educação Popular

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Dados Internacionais de Catalogação na Fonte

Catalogação na fonte: Maurício S.de Oliveira CRB/1-1860.

L435c Leal, Gabriel Rodrigues.

Currículo cultural: uma autoetnografia na academia de Polícia Militar

Costa Verde / Gabriel Rodrigues Leal. -- 2011.

151 f. ; 30 cm

Orientador: Profº. Dr. Luiz Augusto Passos

Dissertação (mestrado) -- Universidade Federal de Mato Grosso,

Instituto de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, 2011.

Bibliografia: f. 147-151

1. Fenomenologia. 2. Autoetnografia. 3. Currículo. 4. Polícia Militar – Mato Grosso. I. Título.

CDU 371.214:351:75(817.2)

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GABRIEL RODRIGUES LEAL

CURRÍCULO CULTURAL

UMA AUTOETNOGRAFIA NA ACADEMIA DE POLÍCIA MILITAR COSTA

VERDE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação no Instituto de

Educação da Universidade Federal de Mato Grosso como requisito para a obtenção do

título de Mestre em Educação na Área de Concentração Educação, Cultura e Sociedade,

Linha de Pesquisa Movimentos Sociais, Política e Educação Popular.

Banca examinadora

___________________________________________________

Prof. Dr. Luiz Augusto Passos – UFMT

___________________________________________________

Profa. Dra. Suely Castilho – UFMT

___________________________________________________

Prof. Dr. Saulo de Tarso Rodrigues – UFMT

___________________________________________________

Prof. Dr. Ronilson de Souza Luiz – PUCSP

Conceito_______________________________________________________

Cuiabá, ______de maio de 2011.

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Agradecimentos

Ao Sr. Jesus Cristo que veio ao mundo e habitou entre nós.

À Turma “Expedicionários” da Academia de Polícia Militar Costa Verde da PMMT.

À minha esposa Mayka que suportou os reveses de centenas de horas roubadas do

nosso convívio ao longo dos últimos 30 meses de Mestrado.Obrigado.

À meu orientador Professor Doutor Luiz Augusto Passos que além de oportunizar

saberes reorientou minha escala de valores com seu exemplo de vida.

À Edson Benedito Rondon, meu mentor e por consequencia mentor dessa dissertação; a

quem dou-me a liberdade hoje de escrever o nome sem o posto... E isso diz tudo.

Ao Capitão da PMESP e Professor Ronilson pelo exemplo de vida que é; pelo incentivo

e estímulo a esse trabalho.

À todos os professores do PPGE-UFMT que foram faróis do caminho que trilhei.

À meus pais, meu pai Sr. João Leal Filho e Sra. Nirse Rodrigues Leal a quem devo o

que sou; a meu irmão caçula Bruno Godinho e amigos em geral.

À Polícia Militar de Mato Grosso, Instituição que aprendi amar...

À pessoa do Sr. Ten Cel PM Paredes que agora (2011) também passa por ecdise

intelectual.

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RESUMO

Este trabalho apresenta uma descrição autoetnográfica realizada na Academia de

Polícia Militar Costa Verde da Polícia Militar de Mato Grosso, PMMT. Trata-se de uma

autoetnografia na perspectiva fenomenológica merleau-pontyana que busca

redimensionar a relação do ser com o mundo, sobretudo, à partir da própria suspenção

deste próprio movimento de relação, evitando o olhar contaminado pelo senso comum

ou pelos saberes e práticas tematizadas que apresentam as coisas de uma forma evidente

que os olhares não se questionam do que é dado. Por isso acordado a dialética

fenomenológica fazemos surgir as coisas que nos passam despercebidas, um exercício

de despertamento para essas coisas será possível se nos abstivermos delas por um

instante, se as suspendermos, fazendo uma redução que recompõe o mundo vivido. Esse

olhar é lançado as experiências vividas nos três anos de formação no Curso de

Formação de Oficiais da PMMT. O objetivo deste trabalho é fomentar

redirecionamentos na cultura organizacional da Instituição investigada, evitando assim

possíveis prejuízos à voga humanística e ao Estado Democrático de Direito. Também

visa subsidiar uma proposta de currículo que traga para seu bojo questões como

alteridade, flexibilidade, sensibilidade, dialogicidade e emancipação ao aluno oficial.

Palavras – Chave: fenomenologia. Autoetnografia. Currículo. Polícia Militar.

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ABSTRACT

This paper presents a description autoetnografia held at the Academy of Military Police

Military Police Costa Verde de Mato Grosso, PMMT. This is a phenomenological

perspective in autoetnografia Merleau-pontyan seeking resize the relationship of the

world, particularly the suspension from the very movement itself of this relationship,

avoiding the gaze contaminated by common sense or the knowledge and practices that

themed present things in a way that looks not clear if the question is given. So we

agreed to come phenomenological dialectic things that go unnoticed in an exercise in

awakening to these things will be possible if we refrain them for a moment, if we

suspend, causing a reduction which rearranges the world lived. This look is released her

experiences in three years of training in the Training Course for Officers PMMT. The

objective is to foster redirects the organizational culture of the institution studied, thus

avoiding possible damage to the fashionable humanistic and democratic state. It also

aims to support a proposal for a curriculum that brings its core issues such as alterity,

flexibility, sensitivity, dialog and emancipation to the student officer.

Word-Key: phenomenology. Autoetnografia. Curriculum. Military Police.

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SUMÁRIO

Introdução................................................................................................................08

PARTE I

ETNOGRAFIA VIVIDA: experenciações e fenomenologia na APMCV

1. Um filme em 24 horas: A etnografia da rotina em três partes......................24

1.1 A etnografia da rotina parte I..........................................................................25

1.1.1 Um método fenomenológico........................................................................27

1.2 A etnografia da rotina parte II.........................................................................29

1.2.1 A fenomenologia do sentido.........................................................................35

1.3 A etnografia da rotina parte III.......................................................................35

1.3.1 Do fenômeno do vivido ...............................................................................50

1.4 “Aluno não anda no pátio”: retratos do Bicho em três partes......................52

1.4.1 A etnografia do CFO I parte I........................................................................54

1.4.2 Interlúdio culturalista.....................................................................................67

1.4.3 A etnografia do CFO I parte II: a festa do bicho.........................................82

1.4.4 A etnografia do CFO I parte III: 29 de setembro de 2004...........................84

1.5 “De pedra à vidraça”: recortes do Bicho-melhorado.....................................85

1.6 “Às portas do aspirantado”: imagens do terceiro-anista em duas partes....90

PARTE II

MÉTODO, RUDIMENTOS DE HISTÓRIA E CONSIDERAÇÕES NA

EDUCAÇÃO

2. Etnofenomenologia..............................................................................................92

2.1 O rito e seu alcance na construção do aspirante à oficial..............................95

2.2 Cultura policial e poder. Um remate histórico-sociológico..........................100

2.2.1 Contra quem? A cultura policial como aparelho ideológico do Estado......114

3. Uma “história” marginal..................................................................................116

3.1 Vestígios de uma organização burocrática....................................................117

3.1.1 Aristocracia, espada e ruptura.....................................................................118

3.2 Polícia e política: universos imbricados.........................................................123

4. Um choque de pedagogias.................................................................................125

4.1 Elementos de compreensão sociológica do tema..............................................131

4.2 Alguns insights do currículo cultural................................................................ 134

5. Considerações de prosseguimento....................................................................146

Referências Bibliográficas....................................................................................147

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Introdução

Ainda causa estranhamento encontrar policiais militares nos corredores da

academia cursando mestrados e doutorados. Para ser sincero: no início eu me sentia um

estranho naquele lugar, daí meu comentário que abre o parágrafo... Não por qualquer

hostilidade sofrida, mas, por uma ausência de cumplicidade compartilhada intra grupo,

um vácuo, uma espécie de dissonância muito forte de cenários vivenciais. Era como se

eu chegasse de Marte todos os dias, aterrissasse abruptamente numa daquelas salas do

PPGE1 da UFMT e co-habitasse por algumas horas com alienígenas. Meu mundo era

outro — não sei se ainda é... —.

Saindo muitas vezes de serviço noturno de 12 (doze) horas ininterruptas

engajado em cercos, buscas, ocorrências e soluções de problemas-mil, eu mergulhava

naquela selva de comunistas em discussões abstratas que buscavam compreender o

sentido da diáspora em Stuart Hall, o apriorismo em Kant, o fenômeno em Husserl, a

epoché em Merleau-Ponty, o tédio em Sartre ou, o que foi mais engenhoso e traumático:

o dasein em Heidegger.

Diante disso eu me perguntava se meu objetivo ali ainda era possível: ajudar

minha Instituição produzindo uma nova alternativa de fato humanística para a formação

policial. Hoje acredito que, mesmo o dasein, direta ou indiretamente, contribuiu para

esse sonhado objetivo — bem como para meu ingresso na graduação em filosofia da

UFMT... —. Meu silêncio obsequioso na sala de aula, minha atenção diligente, meus

gestos quase imperceptíveis, cimentaram uma idéia difusa de mim, que se concentrava

numa única particularidade: “aquele cara calado da PM que senta perto da porta e que

estuda com a gente”. Não demorou muito para essa idéia difusa de meus colegas de

turma — e mesmo a particularidade... — transformarem-se numa disposição comum de

diálogos fecundos e possibilidades abertas, tanto que hoje em dia já não saberia dizer,

entre eu e eles, quem se tornou ou deixou de ser comunista2.

Foi com disposição que enfrentei as bibliografias sugeridas, de sorte que, não

foram nem uma, duas ou três vezes que amanheci fichando livros — ou conversando

sozinho no chuveiro... —, antes de vestir a farda e ir cumprir minha missão diária. E

nesse diálogo exaustivo descobri a etnografia e a fenomenologia pelas mãos de um anjo

1 Programa de Pós-Graduação em Educação da UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso, Campus

Cuiabá) 2 Utilizamos o termo em latente licença poética.

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— anjo esse que o PPGE me informou no ato da matrícula em 2009 chamar-se Luiz

Augusto Passos, meu orientador, a mim, entretanto, ele não engana: é um anjo —.

Daí, dialogando mais comigo mesmo nessa solidão dual que me é tão

necessária, não medi esforços em descrever a partir de um “eu” “encarnado-

distanciado” o que é a experiência da formação de um oficial de polícia na Academia de

Polícia Militar Costa Verde (APMCV), da nossa gloriosa Polícia Militar de Mato

Grosso (PMMT). Essa tal descrição é o que os antropólogos chamam de “etnografia” —

pelo menos foi o que descobri lendo Geertz, Lévi-Strauss, Malinowski, Mead, DaMatta,

Florestan... —. A descrição etnográfica possui, como (qualquer) outra metodologia,

uma série de supedâneos lógicos, um cabedal de rigores cuja observação por parte do

pesquisador é o mote de sua inteireza enquanto método de pesquisa. Iremos, com o

avançar das linhas, oferecer mais pistas desse caminho metodológico que é o próprio

cerne do texto dissertativo empenhado aqui.

A que vim então? Defini logo no início da pesquisa que, o que eu quero com a

descrição etnográfica é dizer a polícia do ponto de vista da polícia. Dizer também que

em determinada medida, uma explanação deliberadamente sociologizante,

juridicizante?! — das quais tanto colhi em meu processo criativo — muito pouco

ratifica o mundo vivido dentro dos quartéis, ou do mundo partilhado dentro das viaturas

em patrulhamento. Sair da interpretação do discurso e penetrar o discurso. Quem fala?

De onde fala? Com que cicatrizes lidam? Quais as feridas que ainda exigem cuidados?

Narrar as suas “desordens”... Em suma:

“Meu assunto por enquanto é a desordem

O que se nega

à fala

o que escapa

ao acurado apuro

do dizer

a borra

a sobra

a escória

a incúria

o não caber”

(Ferreira Gullar)

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Entendo, sobretudo, após a pesquisa que os episódios violentos por parte de

policiais que vemos nas ruas ou na mídia e, que deflagram a face cruenta do aparelho

preventivo-repressivo do Estado, tem sua explicação originária mais coerente dentro das

Academias de oficiais e das escolas ou centros de formação de praças (genericamente o

círculo global dos militares divide-se em oficiais no nível de comando, e praças no nível

de execução). Dizer quem o policial é — ou parece ser... —, em seus próprios termos,

navegar em suas próprias relações sociais da caserna.

Esse é o nosso caminho. Essa trajetória será escrita com sangue (Nietzsche), —

como só nos interessa —, adianto, pois, só assim se dará a dimensão dos cortes abertos

que estão à superfície, esperando a solução que os estanque. Do que me cabe em seu

tratamento, vou lhes acalmando soturno e angustiado, pousado no teclado,

transformando cada gota em verbo, pinçando do colorido sanguíneo mais exposto a

palavra mais certa.

Alguns paradigmas vão soçobrar — eu prefiro a palavra “explodir”, porém, o

eufemismo é necessário aqui... — diante do revelar do cotidiano de uma Academia de

Polícia e, o tom manifestado em muitas passagens conotando revolta ou denúncia, é

apenas arranjo estilístico que encontrei para (tentar) ferir de morte alguns mitos

construídos para dar singeleza à truculência da formação policial que ainda se tem

notícia neste país.

Uma das tais singelezas que retoricamente são prostituídas na práxis como a

sonhada transversalidade da temática dos direitos humanos, da suposta

interdisciplinaridade curricular, da matriz humanística etc. — Me permitam a oralidade

agora: quer saber a real? Sonho com um humanismo-humano dentro das polícias e,

acredite isso não é um pleonasmo —. Essa frieza que pode parecer um escárnio a temas

tão relevantes, é apenas o diagnóstico “sutil” de quem descobriu que não é com

vitamina C que iremos curar esse câncer.

Quero sair da singeleza desse matiz teórico e invadir as tramas culturais que são

uma espécie de “chão de alicerce”, como diriam os estruturalistas, ou, como diria Capra

uma “teia”, uma “rede autocriadora”. Maturana por sua vez, a chamaria de “Sistema

Autopoiético”, enfim, a sociologia espicaça o tema à seus muitos recursos —

diametralmente opostos como os de Strauss e Maturana, mas, fundamentalmente

ligados a meu ver num centro semântico comum....—. A fuga da singeleza é para cair

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no ser humano engendrado em policial, em todo um problema humano instalado e

estruturante do policial-militar, condicionante de visões de mundo, de missão social,

símbolos, signos, ritos e valores da atividade do “policial de rua” (e mesmo do

comandante em seu gabinete).

Para ser mais visceral, sendo mais freireano nessas horas, o que me interessa é o

fundo universal pré-objetivo que é comungado nesse “transe místico” das experiências

humanas do dia-a-dia nas Academias de polícia, nos quartéis, nas viaturas, na

madrugada solitária onde o pára-brisa embaçado pela garoa fina desenha a imagem de

quem somos: um emaranhado disforme de gotas (representações...), que se acumulam

entrecortando-se no melhor acomodamento que lhes faça correr para um destino

inexorável: ser quem somos.

Uma escusa é necessária antes de continuarmos... Perdoe-me o tom dialogal

empregado, ainda justo a você que lê este texto, tão acostumado com argumentos de

autoridade recheando as linhas com justificações, agora vê por aqui de tudo, menos um

empreendimento vigoroso dessa natureza, tão incensado na “casa dos saberes” — o

espaço acadêmico como nos diz Rubem Alves —, cabe dizer que o saber que lido é uma

coisa que investigo... Em suma, o ser humano policial-militar posto na sua mundanidade

cotidiana. Quero dizer o meu tempo, e é isso.

É a engenhoca organísmica anti-nexo de Geertz. É aquele triz entre a pronúncia

e a mudez, o interregno inaudito... A desordem de Gullar. É a isso que viemos aqui,

agora, neste quarto às 02h40 da madrugada de um janeiro de 2010... Creio que estamos

avançando rápido demais — para uma “introdução” — sobretudo, no percurso

(in)conclusivo dos temas, sem antes, claro, dar-lhes ao menos um arquétipo constitutivo

teórico na ótica do autor (eu...) ou, ainda, sem desenhar um mapa global onde se

inscreve o caminho percorrido, especialmente diante dos dois grandes referenciais

teóricos citados: a etnografia e a fenomenologia.

Antes de prosseguir gostaria de dialogar um pouco mais com o martelo

(Nietzsche), informando o que me parece fundamental e sociologicamente repisado nas

pesquisas: inicialmente que, a minha escrita caracterizada por açoites e vociferações

lítero-teóricas, são de minha exclusiva (i)rresponsabilidade. Não é uma deixa para um

suposto perfil do que vêm se chamando atualmente, como nos diz Ponde, de exposição

à voga de um “jantar inteligente”, um dos bibelôs da pós-modernidade... Ou, ainda, da

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tal hipermodernidade como quer Lipovetsky. Nada disso, pois, acredito não me

enquadrar nesse perfil — aliás, não acredito em enquadramentos, exceto os do RDPM

(Regulamento disciplinar da PM) que conheço tão bem —.

Devo dizer que o sangue que viceja entre uma fratura e outra, resultado dos

laivos salientes de minhas cicatrizes, é arremessado para a escrita. É simplesmente

jogado no texto — sem muita amarra, confesso... — como numa síncope, num surto

criativo deliberado de primeira mão, onde a reflexão secundária fere a originalidade da

explosão imaginativa inicial, marca inconteste de um estilo pessoal adotado por mim

para essa empreita — Logo, perdoe-me a ausência de cartesianismo, pois, repito, o que

sair daqui, é de completa (i)rresponsabilidade do autor...

Voltando, quero começar falando da etnografia que tenho empregado na

pesquisa, e para falar de etnografia preciso explicar — mais precauções a você nobre

leitor...— o termo a que me auto-referi linhas acima: um eu escritor encarnado-

distanciado.

Falar das experiências que vivi na APMCV remetem a alguns pilares de

sustentação discursiva, diante dos quais uma marca de referência é obvia — ao menos

para mim... —, isto é, a absoluta dependência de perspectiva pessoal dos relatos. Isso

tem alguns desdobramentos, o principal deles é que as narrativas vão sempre gravitar

em torno de um eixo semântico, no caso em tela, um corpo de hipóteses que sugeri para

essa pesquisa.

Claro, que em algumas histórias que me vinham à memória o eixo que articulava

decisivamente para inscrevê-la dentro de um quadro teórico de referência não fazia

parte do que eu propugnava como hipótese, houve casos onde o sangue vertido durante

a formação rememorada — agora literalmente falando... — estava mais associado a um

processo de humanização dos afetos que propriamente a um projeto político-ideológico

hierarquizante (uma das hipóteses...).

O problema se agravava ainda mais, quando os relatos inscritos dentro dessa

perspectiva animada por minhas pressuposições, pareciam soltos, desconexos, em

muitos casos distantes de qualquer representação que algum dos participantes da

experiência pudesse assinar em baixo. Era uma conclusão solitária animada por um

projeto abstruso que não correspondia ao sujeito... Mas, o sujeito, em questão, era eu!

Como então decidir pela melhor representação das experiências?

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O problema instalado não se tratava de coerência metodológica, sobretudo,

porque o desencadeamento da narrativa descritiva de cada momento meu na APMCV,

contido no texto, estava ligado a um enfoque, a uma perspectiva projetada, a um modelo

sinalizador para uma conclusão sugestionada, o texto assim como o escritor encarnado-

distanciado sou eu, de sorte que, o problema puro e simples era de polarização

dimensional de ânimos dos viventes das experiências, ou, para ser mais prosaico: o

nível de aceitação ou discórdia gerada a partir da perspectiva criada por mim com as

descrições...

Penso que esse problema para a descrição, vai depender do panorama ideológico

institucional desejado a formação do oficial, mas, cabalmente pela grande empresa

humana que é lidar com segurança pública. Portanto, caso um ilustre oficial oriundo da

APMCV e contemporâneo a nossa pesquisa redimensionar todo o nicho de descrições,

para o campo simbólico da possível coerência pedagógica e mesmo filosófica, onde os

relatos tidos como desumanos, degradantes, estúpidos e nocivos a dignidade sejam

piamente ajustados a uma dinâmica antropológica perfeitamente explicável e,

eventualmente lancem em descrédito nosso trabalho, basta-me informá-lo que a

distorção não é de imagens vistas, mas, de olhares... O problema da representação então

parece ter ficado no campo de uma espécie de “alteridade científica” — ou, do danem-

se os outros... —.

Falando agora da etnografia, penso que o nascimento de uma possibilidade de

etnografia, ou, “pior dizendo” — como nos diria mais uma vez Ferreira Gullar —, a

condição para uma descrição etnográfica; seria a própria sociedade humana e seus

significantes e significados. Assim sendo, penso que nada tem significado antes da

emissão de um significante — algo que ficou tão claro após a linguistic turn da filosofia

—, pois, penso ainda que o “nada absoluto” é simplesmente (espantosamente) o nada!

Um nada de sentido e significado, e o nada, por sua vez, (dentro do que ensejo) está

mais bem representado em A Náusea de Sartre, e no conceito de angústia de

Kierkegaard. Um misto de aflição, temor e assombro perscrutados em um dia comum,

uma comiseração circular do espírito em torno do vazio, uma dobra anômica, um “sei lá

o quê”... Em nossa referência é a sociedade a condição necessária da etnografia, não há

significado sem significante, não há ente e nada, — como não poderia

parecer/fenômenon mais óbvio —.

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Por conseguinte, em havendo sociedade, vem à tona o que nos diz Berger “toda

sociedade humana é um empreendimento de construção do mundo” (2004, p.15) — para

nós da etnografia um empreendimento de investigação... — elevando-se o pensamento

ao índice da sociedade acadêmica de nossa investigada APMCV, podemos dizer que

temos uma “cosmovisão” complexa e fascinante oriunda daquela sociedade humana, um

“empreendimento humano bivalente” (de significados e significantes)... Mas, de que

forma isso se sustentaria numa explicação teórica? Teorizações muito elegantes foram

dedicadas a esse tema, entre elas a que mais se aninha para iniciar essa tentativa e, que

sintonizou-se à freqüência da minha experiência na APMCV, foi o empreendimento

chamado de “grupos primários”, pensado pioneiramente pelo sociólogo estadunidense

Charles Cooley.

Cooley inicia assim sua profusão teórica sobre o tema:

São caracterizados por íntima associação e cooperação face a face.

São primários em diversos sentidos, mas principalmente por serem

fundamentais na formação da natureza e dos ideais sociais do indivíduo.

Psicologicamente, o resultado da associação íntima é uma fusão de

individualidade num todo comum, de sorte que o próprio eu da pessoa,

ao menos para muitos propósitos, é a vida comum e o propósito comum

do grupo. Talvez a maneira mais simples de descrever essa totalidade seja

dizer que se trata de um ‘nós’; envolva uma espécie de solidariedade e

identificação mútua para a qual o ‘nós’ é uma expressão natural. A pessoa

vive no sentimento do todo e encontra os principais objetivos de sua

vontade nesse sentimento. Não se deve supor que a unidade do grupo

primário seja uma unidade de simples harmonia e amor. É sempre uma

unidade diferenciada e habitualmente competidora, que justifica a auto-

afirmação e várias paixões apropriadoras; mas essas paixões são

socializadas pela solidariedade e caem ou tendem a cair sob a disciplina

de um espírito comum. O indivíduo será ambicioso, mas o principal objeto

de sua ambição será um lugar desejado no pensamento dos outros, e ele

será fiel a padrões comuns de lealdade (Chinoy apud Cooley, 2006, p. 177)

[grifo nosso].

O microcosmo existente na APMCV é o motor da cosmovisão que sugerimos

acima. Cosmovisão essa que é a “cultura” de grupo. Esse “sentimento do todo”, a

“disciplina de um espírito comum” e a “fusão de individualidades” bem poderiam ser o

diagnóstico do nascimento de uma cultura de grupo. Para entendermos todo esse

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mecanismo cultural que Cooley nos apresenta acima, e que nós delineamos para a nossa

empresa como a experiência comum da cultura de um grupo primário experenciada na

APMCV, cuja fotografia iremos apresentar aqui, é necessário passarmos por um

momento prévio na consecução do “tornar-se pessoa” (Rogers), em nosso caso, tornar-

se aluno oficial e, por sua vez, policial-militar.

O ser humano possui uma impronunciável capacidade de se adaptar aos mais

distintos meios. Daí, pensarmos em adaptação como circunstância de nova orientação

existencial, nos remete a um reexame da própria natureza ôntica do indivíduo no mundo

das coisas. Seja numa estação de metrô, na empresa onde trabalho, em nossa família,

num presídio ou numa academia militar o ser humano, no que lhe há de mais instintual e

selvagem, irá se aportar de um modus adaptado, conveniente e perfeitamente plausível

aquela realidade. Berger suscita uma análise perspicaz que usaremos no exemplo em

seguida:

À diferença de outros mamíferos superiores o homo sapiens é

inacabado ao nascer. Passos essenciais do processo de ‘acabamento’ do

desenvolvimento do homem, que já se verificaram no período fetal para os

outros mamíferos, ocorrem no caso do homem, durante o primeiro ano após o

nascimento (...) estes últimos desenvolvimentos não são mutações estranhas

sobrepostas ao desenvolvimento biológico do homem, mas, ao contrário,

fundam-se nele (1985, p.17).

Logo, não é de se admirar que por completarem seu “acabamento fisiológico” já

em sociedade, até mesmo os neonatos de seres humanos sofrem com uma orientação

social, determinada pelo ambiente e pela cultura do grupo que o acolhe, como cita

Berger. Por exemplo, podemos citar dentro do cenário acima a própria experiência

revelada pela seleção natural darwinista acerca dos neonatos de seres humanos...

Estes quando selecionados à melhor maneira de se sobreviver em culturas

severamente tribalistas-patriarcais, nasciam mais assemelhados aos pais do que as mães,

isso porque, segundo os darwinistas, ao longo da marcha evolutiva os bebês mais

assemelhados às mães resistiam menos à “machista” (se é que podemos usar esse termo

sem sermos anacrônicos) cultura patriarcalista dominante — consequência do abandono

ante o desprezo do pai, que não trazia (ou diminuía) a caça à mãe que produzia (menos)

leite ao recém nascido, cuja raquidez ocasionada pesava negativamente em sua

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sobrevivência saudável e, disputa em paridade de condições com os assemelhados aos

pais —.

Observando-se, entretanto, com o passar do tempo e o aumento sucessivo de

apreço e resiliência paterna, os bebês gradualmente ganhavam os traços que também

herdavam das mães, em alguns casos invertendo notoriamente os “traços” iniciais

predominantes do pai, — Dawkins também deve saber o porquê...— traços tais,

inicialmente mascarados por combinações fenotípicas (por que não genéticas?)

moldadas seletivamente por muitos séculos pela aríete do ambiente físico, social e

cultural dominante (neste caso, de patente machismo); proporcionando assim a forja

milimetricamente acordada ao mundo vivido. Uma “genética” seletiva, que assegurava

uma primeira infância acostada ao genitor que oferecia maiores possibilidades de

sobrevivência.

Tudo isso parece trivial à seleção natural, porém, o ajuste dos seres

contingenciados nas matrizes que lhes ofereçam sentido e condição de sobrevivência é o

que nos moverá daqui para frente. É mais o caminho que o resultado, o que nos

interessará nessa dissertação, isto é, em derradeiro o que nos faz parecer mais com

nossos pais... E, sobretudo, quem são esses pais aos quais nos assemelhamos por

sobrevivência... Ou seriam em nosso caso (polícias militares) padrastos? Mitos?

Talvez... Ou, metáforas-guia? Que alimentam o ethos do guerreiro de faca nos dentes e

sangue nos olhos... Ritos? Que dão sentido ao imaginário dos recém nascidos policiais

militares, e do qual estão todos presos pela força de uma história de opressão? Quem

são nossos pais?

Esse “sentimento do todo”, a que se refere Cooley, sugestionado a partir da

formação de grupos primários nos faz aproximar da idéia matriz que almejo: o

empreendimento de construção de mundo da sociedade acadêmica da APMCV. Essa

construção de mundo cujo cimento é a própria interação do grupo, enquanto irradiador

de uma semântica coletiva particular possui (movido e ajustado a condição inexorável

de adaptação pessoal de seus membros) uma espécie de “cosmogonia mítica”, que se

instala na cultura criada como um fundo residual pré-perceptivo.

Preciso voltar a primeira pessoa. Dar uma guisa de introdução a cosmogonia

made in APMCV citada acima, e falar sobre o problema do mito na construção da

cultura. Pensando na minha experiência pessoal de formação para o oficialato policial e

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refletindo hoje (2010), sobre os saberes técnicos que um profissional dessa envergadura,

deve cativar e cultivar na sua lida diária pela/para segurança pública, chego a conclusão,

meio canhestra admito, de que os saberes são extremamente difusos e indomáveis ante a

uma prática linear de ação técnica, isto é, o policial em sua rotina prescinde de critérios

rígidos de ação, tornando-o por contingência mais discricionário do que deveria ser.

Ademais, acabo por sugerir que a falta de doma à protocolos de ação criteriosos, isto é,

procedimentais — que qualquer profissional, digno desse nome, possui...— não são

uma falha pessoal e subjetiva de minha (nossa...) parte, é sobretudo o resultado de um

saber dimensionado na perspectiva mítica do herói de farda.

Essa representação é tão latente que em certa ocasião na unidade policial militar

(UPM) onde sirvo (2010), diga-se, Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças

(CFAP), solicitei a um sargento que escolhesse dizeres, lemas, frases a serem expostas

num banner que seria utilizado como ferramenta de promoção da imagem institucional

do CFAP aos novos alunos a soldado. Uma das frases sugeridas pelo sargento para o

banner era “CFAP: escola de heróis sociais”.

Na hora em que li aquela sugestão já transportada para um modelo em

computador, pensei na necessidade de fundamentar essa questão nesta pesquisa,

sobretudo, no que se refere ao desdobramento que esse tipo de pensamento, essa forma

ideológica de se enxergar, tem efeitos sobre a atividade prática e de que maneira são

introjetadas na formação.

Isso se deve ao fato de ao se entrar em uma academia militar, o neófito não

vislumbra um conjunto de saberes procedimentais que o tornará um profissional que

trabalha segundo critérios objetivos de eficiência e famigerada eficácia. A “carreira das

armas”, isto é, os militares na sua primeira acepção enquanto tais e, sobretudo, dignos

desse nome — é bom reforçarmos... —, de tudo que entendem por uma carreira

“profissional” em seus primeiros meses na academia, alcançam no máximo o momento

prévio de uma suposta destinação a uma vida devotada à missão, à pátria, à sociedade...

Isto é, “mesmo com o sacrifício da própria vida” como se juramentava.

Existe um projeto engajado de fortalecimento dessa idéia-maior em que o aluno

oficial não se vê, nem se conforma com um destino trivial e contemporâneo. Na sua

cabeça em contrapartida era o que justamente tinha abandonado para dedicar sua vida a

missão que agora quer encarnar carregando o fardo da farda. Fuga essa que o tirou do

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escritório, do terno-e-gravata, do salário... E o conduziu a uma vida de emoções, que o

conduziu necessariamente ao quartel (como fortaleza), a farda (de quem carrega o

fardo) e ao soldo (do soldado). Uma realidade inverossímil na prática da maioria das

pessoas, mas que encontra sentido em um dispositivo de construção do guerreiro,

daquele que como dizem na Academia “é superior ao tempo”.

Pode ser levantada a questão, de que essa suposta idéia-maior caiu em desuso e

encontra-se falida nas academias, especificamente no imaginário dos ingressantes à

carreira das armas, de sorte que, idéias ou ideais de desprendimento da vida e amor a

causa miliciana, diluíram-se no maciço assédio que o capitalismo impôs as ideologias

juvenis, transformando-as, no caso narrado, em pontes vulgares a cabides de emprego e

“trampolins” a ascensões profissionais de maior status social e remuneração. Esse

argumento pode suscitar o fato de chegarmos atrasado a nossa discussão.

É bom salientar a despeito desse fato inarredável, penso, que mesmo a levante

de usar a instituição como trampolim ou usá-la tão somente como um mero emprego,

não é necessariamente uma generalidade o fato descrito, tampouco, uma quase

generalidade, visto que os ideais apregoados — acreditem — nas academias de polícia

continuam sendo os mesmos e, não há nenhum estímulo institucional a esses contra-

valores (no caso da APMCV o projeto paralelo de uma profissão post Academia era

intolerável) que vão de encontro à economia ética do herói fardado — preservada em

alguns casos raros com o manto da hipocrisia de um mercenário fardado —.

O argumento da morte dos “ideais” que apontam como um dedo em riste,

decisivamente ao aluno (cadete) mercenário e mesmo ao tenente mercenário, está ligado

a uma nostalgia velhaca, especificamente daquela que emprega aos acontecimentos

coletivo-profissionais de seu tempo o dado impreterível da singularidade... Para estes

velhacos (e suas demagogias), tudo em seu tempo respondia a uma idealidade mais pura

e legítima, em detrimento da “torpeza dos ideais” dos dias atuais. Falta uma

historicidade temporal nesse argumento — que mais se parece um desagravo ao viço da

jovialidade que tudo demole, e ao velhaco constrange... —. Para tais as crianças,

sobretudo as moças, eram à sua época mais comportadas, as esposas mais dedicadas aos

lares, os políticos mais sérios, o homem mais viril, etc... O tema “idéia-maior” — em

que pese sua possível degeneração... — pode parecer pueril e mesmo romântica, mas as

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conseqüências dessa suposta idéia-maior de destinação a uma via sacra e sublime, nos

apontam um dos pilares da outra ponta que sustenta a cultura que estudamos.

Pode parecer uma infantilidade isso, mas devo confessar que em nenhum

momento dos meus três anos de formação na APMCV e, mesmo nos primeiros meses

após a formatura, meu ideal de profissão não era prestar um serviço eficiente a

segurança pública do meu Estado. Meu negócio era mudar o mundo. Resolver todos os

problemas sociais com o viço do poder que me permitia acreditar possuir, claro,

acostado naquela metafísica estrela amarelinha no ombro... — poder tal que de fato

nunca passou de uma ilusão... —. Ilusão essa projetada embrionariamente na própria

Canção da APMCV “(...) Vemos ao longe brilhar nossa estrela, vamos prosseguir,

quando se é jovem não se pode desistir! Ser mais que humanos, queremos todos

conquistar a nossa meta até o fim (...)”. A responsabilidade de “ser mais que humano”

diz muito sobre essa debilidade profissional de cunho infantil...

O mais dramático desse processo de construção profissional coletiva do recém

oficial de polícia, não é a singularidade de um ponto de vista pessoal, dessa escolha

monástica, sacerdotal, digamos exclusivamente de minha parte, o grande problema de

todo esse auto-engodo era de que a sua exceção, isto é, do profissional que se pretende

num currículo acadêmico, significava justamente o ponto de vista da instituição ao

oficial marginalizado, ao destituído de per si da legitimidade que vestia a figura do

profissional. Um paradoxo chocante.

A instituição não quer(ia) profissionais competentes trabalhando dentro de

protocolos humanísticos e regras de ações técnicas-rígidas... A instituição desejava o

“herói social”, — aquele que iria atravessar 24 horas ininterruptas de uma escala de

serviço sem reclamar das condições de trabalho —, muito menos da quantidade de horas

trabalhada... aquele, justamente, que iria “caçar o bandido à unha”, que ia (desejoso)

colocar-se de testa ao enfrentamento do perigo, como na canção que entoávamos “essa

noite eu vou sair e quero encontrar/ uma quadrilha de bandido pra poder matar/ e eu

quero que eles venham de fuzil na mão/ eu vou matar, eu vou comer seu coração...”;

enfim, o alimento institucional era, além do citado, sobretudo aquele que iria por meio

de uma disciplina tirânica entre superiores e subordinados, cavar ainda mais o fosso que

separava a cúpula da base, produzindo um silêncio inter-círculos que impedia qualquer

possibilidade de emancipação e produção do diálogo.

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Todos nós aspirantes a oficiais (formados após três anos de academia)

queríamos transformar o mundo pelas próprias mãos, uns mais afoitamente, outros de

forma lancinante e suicida, outros ainda noutra ponta (aos olhos da instituição)

covardemente assumindo “apenas” o objeto de sua missão, ou seja, “trabalhar com os

estatutos legais disponíveis”, porém, todos calcados nos mesmos ideais. Àqueles não

marginalizados pela cultura institucional, isto é, a grande maioria — dos quais me incluí

por tempos... — respondiam com suas “ações heróicas”, se é que podemos usar essa

expressão sem pieguice e fraude, apenas ao desejo institucional.

Pensando ainda numa introdução é importante situarmos um lugar de fala.

Bauman em sua obra “vida em fragmentos” destaca a retomada pelo ser humano do

poder primordial que envolve sua faculdade de responsabilizar-se por seus próprios

atos. À revelia de um “Sistema Único de Ética”, que disciplina as condutas e promove a

gratificação do pecado por meio do arrependimento e da culpa, o ser humano se viu

liberto por uma série de vivências abertas pela “modernidade líquida”. Por conseguinte,

“responsável pela responsabilidade de escolher” o ser humano se viu diante da

endêmica solidão da escolha moral que o obriga a ser, à despeito de qualquer sistema

ético e moral absolutos, responsável direto por sua condição humana.

Esse atuar com base na responsabilidade devolveu ao ser humano sua condição

de ator e, para Bauman isso significa que esse “ator [o ser humano livre] é responsável

não pelos conteúdos com que a responsabilidade é preenchida, mas pela escolha de um

código de ética dentre muitos, cada qual como “o” aval de especialistas (2011, p.14)”.

Com efeito, viver no mundo na modernidade-tardia, ou, na modernidade líquida, como

quer Baumann ao aludir da fluidez das relações... Isto é, estar, viver na pós-

modernidade é, sobretudo, estatuir a motu próprio as diretrizes existenciais que compõe

a ação no mundo. Pertencer ao mundo pós-moderno é situar-se na tensão contratual das

vontades sob um parâmetro ético fluido, vazio, sem um significado transcendental que

absolutize um catálogo “X” de valores. Nesse cenário a perspectiva ao ser humano não

emancipado parece aterradora e perigosa.

Perplexados com o insolúvel desígnio pessoal da consciência pessoal do mundo

dos valores o ser humano tem colocado suas concepções diretivas, outrora geridas por

uma unidade centralizada de ética, numa ética relacional onde o ambiente multifacetado

pela tecnologia, pela arte, pela mídia e por seu grupo cultural, acaba por dar substância

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àquele conteúdo que preenche de sentido os vetores da ação. Não é sem tempo que a

implicação relacional das mídias, especialmente, da internet na vida cotidiana das

pessoas, são mais observáveis que as ocasionadas pelas encíclicas católicas. A ciência,

do contrário, ainda prenhe da razão absoluta — que não consegue parir — já não pode

mais ferir de morte os universais metafísicos que tanto lhes contrastaram no campo da

ética e da filosofia em geral. Eles se fundiram na economia dos afetos, nas trocas diárias

entre as pessoas. Transformaram-se em programas de auditório, em expiação ao vivo de

demônios...

Assim, uma lógica pé-no-chão se dissemina na busca de sentidos existenciais e

começa dialogar a possibilidade de alargamento das condições de descrição do mundo e

das relações ético-negociais entre as pessoas. Um alargamento tal que chega para

questionar severamente as condições impostas pela ciência dura, de amortização afetiva

do sujeito e subjetiva do mundo, bem como das percepções intencionais que se têm

dele.

Esse campo de interpretação do fenômeno humano sob o império de um

materialismo que incorpora a subjetividade humana, e respeita a ética que relaciona a

cultura de um grupo a sua forma de conduzir uma tomada de decisão, revela condenar a

ciência da pura objetividade e do puro distanciamento do eu a uma proposta utópica

estritamente despreocupada com a vida em si.

A pesquisa que levo a curso leva algo dessa proposta descrita por Bauman, isto

é, “a responsabilidade por empreender uma escolha responsável e consciente do mundo

em que se vive”; em suma: falarei aqui de vivências. Histórias aparentemente banais e

insuspeitas pelas quais movimentei a descrição de um mundo que está antes de mim, me

faz, a faço e, que de forma incisiva chamo de cultura.

Para dar conta dessa perspectiva de “autonomia de olhar” que adotamos no

texto, iremos basicamente empreender um estudo autoetnográfico desenvolvido na

perspectiva fenomenológica Merleau-Pontyana. Chego, enfim, a ousadia de ensaiar

uma etnofenomenologia que ainda me renderá muitos rodapés na vida acadêmica...

A autoetnogafia que será exposta faz referência às vivências do autor entre os

anos de 2004 e 2006, período em que se deu a formação para o oficialato na Academia

de Polícia Militar Costa Verde, Unidade de Ensino da Polícia Militar de Mato Grosso.

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A formação experenciada ocorre por meio do Curso de Formação de Oficiais (CFO) e

se processa ao longo de 03 (três) anos, isto é, CFOI, II e III.

Não entraremos em pormenores contingentes a estruturação formal da Academia

no plano técnico-jurídico, tampouco empreenderemos análises fundadas em dados

quantitativos recolhidos, documentos taxativos ou normas positivadas pela Instituição

— não é nossa intenção... — . O que se pretende no cume das aspirações é deflagrar um

debate na perspectiva ôntica, ou seja, do ente — que sou eu neste caso —, em interação

com o universo institucional particularizado pelas pessoas.

No que diz respeito à autoetnografia enquanto método, podemos logo de partida

utilizar as palavras de Versiani para propormos em linhas gerais a que se empenha:

Todos conhecimentos herdados de determinadas tradições teóricas

que o pesquisador, em dado momento de sua trajetória, passou a subscrever e

que, em contextos de pesquisa heterogêneos, pluralistas e multiculturais, já

não precisam, ou talvez já não devam, permanecer escondidos sob uma

suposta neutralidade ou distanciamento (...).

O método autoetnográfico é, assim, um modo de atuação do

pesquisador preocupado em explicitar seu próprio lugar de fala, a

cultura na qual se sente inserido, as teorias e critérios estéticos que

subscreve. É a explicitação constante e contínua dos óculos através dos

quais vê o mundo (2008, p.12-13) [grifo nosso].

No que se refere a fenomenologia daremos pistas ao longo da dissertação do

emprego do método com vistas as pesquisas de Husserl e Merleau-Ponty.

Em muitos aspectos, o que será exposto nos capítulos que se seguem são

momentos onde todo um potencial criador de ação se engendra sob a forma de

acontecimentos insuspeitos, porém, em certa monta tradicionais na APMCV. No

capítulo 1 iremos traçar o grande escopo dessa empreita, que é a descrição etnográfica.

Em um primeiro momento a descrição é feita no prisma da rotina, e sequencialmente

atinge a etnografia dos anos de formação. O referencial fenomenológico circula

basicamente todas as descrições.

No capítulo 2 fazemos uma breve demonstração de como os referenciais teóricos

se encontram ajustados no texto e na ótica do autor e, sobretudo, encampam o olhar

auto-etnográfico exposto no primeiro capítulo. A fenomenologia Merleau-Pontyana é

exposta segundo elementos de compreensão ontológica, especialmente onde

partilhamos os estudos da profa. Dulce Critelli e do Prof. Marcus Sacrini Ferraz. Ainda

no capítulo 2 procedemos uma exposição sobre os ritos na formação, referenciando

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Peter L. Berger com fulcro nas obras “A construção social da realidade” e “Dossel

Sagrado”. A antropologia interpretativista de Clifford Geertz também toma assento no

capítulo 2 nos tópicos 2.2 e 2.2.1. Encerrando o capítulo excursionamos no pensamento

de Marcuse e Freud, trabalhando a idéia de uma possível correspondência com a auto-

etnografia.

No capítulo 3 expomos de forma bastante sucinta a “história marginal” das

polícias militares sob o ponto de vista do jurista e historiador Raimundo Faoro, expresso

em “Os donos do poder”; cooperando ainda no capítulo a obra provocante do Jornalista

Leandro Narloch “história politicamente incorreta do Brasil”. A ponte para a realidade

mato-grossense vem com artigos e obra do historiador Oswaldo Machado Filho.

No capítulo 4 discorremos uma discussão sobre o tema currículo, com base na

obra da profa. Elisabeth Macedo da UFRJ; a partir da teoria fazemos um breve passeio

na Matriz Curricular Senasp/MJ e sua efetividade quando em conflito com as culturas

acadêmicas, especificamente, da APMCV.

Encerrando a dissertação fechamos com o capítulo 5, nas considerações de

andamento, os contributos provisórios da pesquisa e que não se propõem a fechar o

debate, senão anunciá-lo em seu caminho aberto.

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PARTE I

ETNOGRAFIA VIVIDA: EXPEREENCIAÇÕES E FENOMENOLOGIA NA

APMCV

1. Um filme em 24 horas: a autoetnografia da rotina em três partes

É claro que se houver um parafuso

Mesmo pequeno

E se souberes onde ele está

Claro, se não estiver enferrujado

Nem quebrado

Claro, se tiveres uma chave

Do Tamanho certo

Claro, se souberes deter a máquina

Para chegar ao parafuso

Claro, se souberes como fazer

Re-apertá-lo, soltá-lo, limá-lo, retirá-lo

Para obstruir a mecânica

Ou talvez bloqueá-lo

Quiçá destruí-lo

Explodi-lo

Claro,

Depois é fácil

(Georges Labica)

Confesso, minhas 24 horas nunca mais foram as mesmas desde o início desse

processo de fazer-se policial. Pois, todos os dias sou chamado a escrever por

necessidade moral. Designar o tempo em que vivo. Esse grito silencioso traduzido pela

escrita tem se tornado uma rota de fuga. A invariante do processo de gratificação dessa,

digamos, “pulsão literária” já não corre a trilha que respeita o que vem da mente, é,

contudo, devido à supressão lenta e continuada, o estômago que acaba ditando as ordens

às mãos pousadas no teclado e, no fim, o que tinge o papel em preto times new romam

acaba misturado às minhas frustrações, como um efeito colateral indesejado.

Tenho certeza que essa pulsão é uma espécie de “impostura ética” diante de

alguma injustiça presenciada no cotidiano da prática policial ou no interior da caserna.

Talvez nobre leitor policial, sobretudo você, partilhe comigo essa mesma “impostura” e

a acalme como eu, só que do lado de fora desse papel,— vejo daqui vosso sorriso

amarelo de assentimento...—.

Essa catarse gástrica-moral que escolhe as madrugadas para vir à tona é uma

cura momentânea, uma agulhada tranqüilizadora atacando um problema crônico,

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continuado... repito, um mero paliativo, uma pílula que vai me salvar até a próxima

precipitação ao verbo.

Entre novas idéias, devo dizer sem pudores, permaneço no velho radicalismo

de sempre. Marxista? Enfim... O que me interessa é continuar a marcha atrás do

parafuso que vai frear esse sistema desumano e odioso, desmontando o discurso que

mareia como espuma o limbo diário que preenche o ócio de nossos anti-intelectuais-

orgânicos; pré-ocupados com chás, pró-secos e fofoca, — não devem ter tempo para

idéias que salvem o que resta dos valores que aprendi a seguir na APMCV,

parafraseando Kant, valores tais como uma lei moral dentro de mim.

1.1 A etnografia da rotina parte I

Quando a curva é feita, de longe já se vê o letreiro luminoso da Academia de

Polícia Militar Costa Verde3. Abruptamente uma nuvem pesada cala um pensamento

corrente na mente, desencadeando um sobressalto físico que o corpo traduz num

calafrio passageiro. O motor do carro arrefece — para aqueles que os têm... —, a

vigilância aumenta, e já em ponto-morto ao se aproximar do corpo da guarda pode-se

observar ao fundo, ainda com pouca claridade, alguém correndo no pátio com balde e

vassoura nas mãos.

O farol do carro se apaga, as luzes internas se acendem denunciando quem se

apresenta para entrar, tudo mais por simbolismo que por segurança, as correntes se

abaixam e a velocidade de ingresso deve ser milimetricamente mensurada na passagem.

No estacionamento previsto para os alunos, já existe um posicionamento específico para

os carros, leia-se posicionamento! — e não vagas —, os carros posicionam-se de acordo

com a voga estabelecida à época, neste caso, perpendicularmente à guia da calçada. As

motocicletas, idem, nos seus respectivos espaços.

Muitos chegam de carros, outros vêm de ônibus de linha (circulares), — o que

de per si já torna o opróbrio mais penoso, dado a sentença da madrugada martelar um

3 Academia de Polícia Militar Costa Verde (APMCV) é a Instituição de Ensino Superior da Polícia

Militar de Mato Grosso, responsável pela formação e aperfeiçoamento de oficiais, através do CFO (Curso

de Formação de Oficiais, para ingresso na Instituição, de nível superior, com duração de três anos em

turno integral, com períodos de internato) e CAO (Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais, destinado a

capitães, nível de especialização, com duração média de 06 (seis) meses) respectivamente. A APMCV

Fora criada formalmente (legalmente) no ano de 1987 e ativada no ano de 1993. Os oficiais formados

anteriormente a ativação da Academia, eram enviados a Academias de outros estados onde faziam a

formação.

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“pouco” mais cedo, para os que desafiam tal meio de se chegar a Academia —. Muitos,

contudo, permanecem na própria Academia e se tornam “laranjeiras”, isto é, àqueles

que moram na Academia.

Lembro-me do Manja4, um companheiro de turma que no início do primeiro ano

ainda não possuía veículo, e chegava até a Academia de ônibus, de sorte que, como não

havia parada de ônibus próximo a Academia, costumava descer a cerca de três

quilômetros de distância e, não foram raras às vezes em que o Manja chegava suado até

o corpo da guarda vindo correndo de onde saltava para não se atrasar, conta-se

inclusive, que alguns alunos no início do curso o viam correndo pela avenida na

madrugada, mas que não paravam para lhe dar carona — você deve estar se

perguntando o porquê do epíteto “manja”, essa é outra história —.

À descida do carro na Academia, ou após a chegada, seja de que forma fosse,

segue-se, necessariamente, a devida apresentação pessoal ao aluno-de-dia (terceiro-

anista que comanda o serviço), para que o mesmo dentre outras coisas se cientifique da

presença de quem chega e já na esteira o anote5 (ou não), com vistas a uma punição

posterior, ou o puna logo de imediato com algum castigo físico que vai desde dez, vinte,

trinta... flexões de braço ao solo ou a cinco, dez, quinze... voltas no pátio com fuzil

cruzado ao peito, ou qualquer outro mecanismo mais criativo de “punição” imediata,

isso caso observe (ou não, “o critério é não ter critério” — ouvi exatamente isso, de um

aluno uma vez...) alguma irregularidade na “apresentação pessoal” — o que não é

muito difícil.

4 Os nomes dos alunos oficiais citados ao longo do texto, foram oportunamente substituídos pelos seus

respectivos apelidos. Em relação ao primeiro apelido citado no texto, trata-se de um grande companheiro

de turma do autor (11° Turma da APMCV, Turma Expedicionários) que uma vez fora falsamente

(segundo ele...) flagrado observando detidamente — que maldade...— outro colega em privacidade, daí

a alcunha jocosamente imputada a ele. Em verdade — se é que podemos lançar mão desta palavra sem

suspeitas filosóficas... — esta acusação ao querido manja é mais um gesto pilhérico de camaradagem, do

que a alusão a um fato real. 5 À intelecção do termo anotação dá-se conta de uma caderneta, bloco de anotações ou mesmo pequenos

rascunhos, onde o aluno oficial anota as alterações (e demais ordens e apontamentos) observadas,

sobretudo, nos demais alunos sob seu comando. Tais anotações são realizadas com o sentido de apurar a

disciplina, quanto à observância de todos os regulamentos, e serve também como rol que dá margem a

sanções disciplinares aos anotados. Quando um aluno mais antigo (em nosso caso, aquele que tem uma

precedência em relação a outro de outra turma), anota o mais moderno (este assim chamado dado à

referência que se tem do primeiro: o “mais antigo”) sabe-se, fatalmente que esta anotação gerará uma

sanção disciplinar formal ou informal.

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1.1.1 Um “método fenomenológico”?

Uma dissertação com mais perguntas que respostas. Um texto que se movimenta

como um filme... Algo arredio a sistematização dura e, sobretudo precária como o é o

ser humano. “Realmente [em nosso texto], não se busca submeter à dúvida tão-somente

o conhecimento, e sim o próprio sentido da existência humana — da existência concreta

apanhada em seu cotidiano [...] desprovido de significado coletivo (2007, p.16)”.

A vontade decorrente daí, é ensacar a realidade e despejá-la através do verbo a

quem lê. Porém, que demarcação6 científica poderia haver tal empreita? Afinal, estamos

aos umbrais da academia e seus rigores “acadêmicos” nos exigem postura distanciada e,

metodologicamente competente. Neutra? Só se alguém neutralizar-me numa camisa-de-

força ou, se roubarem de mim quem sou, calando-me ou impedindo que o prelo desse

trabalho seja conhecido.

Metodologicamente me descanso em Merleau-Ponty, de maneira que, ainda

percebo o salto do sapato preto envernizado sendo corroído pelo concreto quente do

meio dia ou do serenado pela madrugada, dos passos apressados e, se for primeiro-

anista... é correndo! Bicho7 não anda no pátio, apenas corre, bicho não anda sozinho na

Academia, só anda em bando, sempre com sono e com fome, logo, no deslocamento

para a apresentação ao aluno-de-dia ele o faz em acelerado, se apresenta e está pronto

para o dia. Todo esse “contato ingênuo” com o mundo da caserna poderá nos conduzir a

uma facticidade inequívoca de um possível estatuto filosófico para as questões que a

etnografia venha denunciar, pois:

A fenomenologia é também uma filosofia que repõe as essências

na existência, e não pensa que se possa compreender o homem e o mundo de

outra maneira senão a partir de sua “facticidade”. É uma filosofia

transcendental que coloca em suspenso, para compreendê-las, as afirmações

6 A locução “demarcação científica” e a própria sequência da frase é uma provocação ao leitor, de sorte

que, ao falarmos em fenomenologia não há que se falar em “rigor científico” (mas, em rigores...), pois, o

rigor está em aberto na fenomenologia, dado a sua natureza humana, logo, precária, até mesmo

convencionalizada! Ainda acerca da demarcação, convém falarmos que a antropologia que se esboça em

pano de fundo no texto, é a antropologia social ou cultural, sobretudo, na perspectiva interpretativista de

Clifford Geertz. 7 O termo bicho é a designação dada ao aluno do primeiro ano do CFO (CFO I). Com efeito, não é uma

designação formalmente empregada, entretanto, poderíamos dizer que trata-se de um termo peculiar,

próprio da tecnologia cultural das Academias de Polícia. Semanticamente (respeitando a polissemia do

termo), carrega conteúdos que informam que o neófito é um “selvagem não adestrado”. Alguém que

ainda não fora “moldado conforme a cultura do grupo”, literalmente visto como... bicho.

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da atitude natural, mas é também uma filosofia para a qual o mundo já está

sempre “ali”, antes da reflexão, como uma presença inalienável, e cujo

esforço todo consiste em reencontrar este contanto ingênuo com o

mundo, para dar-lhe enfim um estatuto filosófico (2006, p.02) [grifo

nosso].

Cabe esclarecer, já neste momento, a abordagem metodológica da percepção

(em Merleau-Ponty), que será encampada por boa parte deste texto dissertativo-

etnográfico. Inicialmente para que tal empreita seja realizada com um mínimo de

plausibilidade (Berger); e o que podemos chamar de plausível (dentro de uma leitura

etnográfica de um grupo de alunos oficiais confinados numa formação militar)? Seria

para nós a desmistificação promovida pela abordagem em tela.

Ora, saber que os alunos oficiais são educados, polidos no trato, católicos

praticantes ou protestantes fervorosos, irretocáveis na postura e aptos a dar o melhor

futuro possível às debutantes, são leituras que queremos demolir aqui. Berger nos

clareia a questão:

A auto-imagem do corretor de seguros como um afetuoso

conselheiro de casais jovens, ou da strip-teaser de cabaré como artista, ou do

publicitário como perito em comunicação, ou do carrasco como servidor

público — todas essas ideias constituem não só abrandamentos individuais de

culpa ou expressão de anseio de status, como representam também as auto-

interpretações oficiais de grupos sociais inteiros, a que seus membros estão

obrigados sob pena de excomunhão (...) o motivo desmistificador está nessa

penetração de cortinas de fumaça verbais, e pelas quais se atinge as fontes

não admitidas e muitas vezes desagradáveis da ação (2007, p.52).

É preciso então desvelar o método (se é que ele existe enquanto tal!) em seus

nuances mais simples, ainda que: “em nada simplificado-esquematizado”. O que

chamamos de desvelamento está vivificado na seguinte exposição da profa. Dulce

Critelli:

Para que fossem expostos à luz do mundo e aí se desenvolvessem,

foi preciso que alguém se desse conta, por exemplo, da energia contida na

força da água; da madeira contida no tronco das árvores; do alimento contido

nas frutas; do amor contido no beijo; da generosidade contida num gesto; da

justiça contida numa lei, ou num sistema político etc. Enquanto não fossem

“vistos” como tais, o tronco da árvore, permaneceria apenas sendo um tronco

de árvore, e a queda d’água, apenas uma queda d’água. Mas, depois que a

madeira e a energia foram desveladas, podemos falar que elas estão ali na

árvore e na água, mostrando-se a princípio no modo de um velamento (2006,

p.76).

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29

Ademais, o que poderia ser esperado se disséssemos, neste instante, que a

abordagem será fenomenológica? O impacto inicial, sobretudo, aos não habituados com

o tema (e ao próprio termo), seria a tarefa comum (e inicial) de pronunciar corretamente

o próprio termo fenomenologia. Em segundo lugar, é preciso ter em mente o problema

sob o qual se erige a fenomenologia, para que no passo seguinte ela se concretize

enquanto possibilidade de leitura de mundo. E qual(is) problema(s) temos aqui?

1.2 A etnografia da rotina parte II

Com o cotovelo ainda esfolado pelo rastejo8 da noite anterior, do sono não

dormido, da cãibra, da tendinite aguçada, ainda assim, ele está pronto para o dia. Como

silenciar tudo isso? E mais, como demarcar cientificamente todo esse processo? Por

enquanto cuidemos apenas de nossas vivas impressões, travestidas de memória, isto é,

“pálidas impressões humeanas”; pintadas como associação de inúmeras idéias simples

colhidas ao longo do feixe de representações diário. Como licença poética à

fenomenologia de Merleau-Ponty, podemos citar Hume:

Todas as cores da poesia, por esplêndidas que sejam, não serão

jamais capazes de retratar os objetos de tal maneira que se torne a descrição

por uma paisagem real, e o mais vívido pensamento será sempre inferior à

mais obtusa das sensações (...) um acesso de fúria é afetado de maneira muito

diferente de um outro que apenas pensa nessa emoção (2004, p.33).

Desse momento então, não há dia ou noite que nos separe do imponderável e da

fragilidade a que estamos submetidos, somos um corpo pronto a ser vergado à vontade

do obreiro, sem questionamentos9 ou adendos a serem feitos. Um grupo longe —

consciente longe dos prazeres da vida civil... tais quais descritas na canção que

entoávamos:

8 Processo técnico de maneabilidade militar no terreno.

9 Existia a nossa época uma locução muitíssima utilizada enquanto veículo de repressão de

questionamentos. Tratava-se da frase em forma de pergunta: “Você está ponderando aluno?” sempre que

um superior hierárquico, em especial um próprio aluno “mais antigo” se dirigia assim a (outro) aluno, isso

significava, necessariamente, uma violenta represália-censura (imediata!) ao questionamento, pois,

“ordem não se discute, ordem se cumpre!”. As implicações psicológicas e, mesmo a fenomenologia que

envolve as implicações dessa prática anti-dialógica (Freire), incrustam-se no caráter (como ethos) do

aluno e lhe imprime no íntimo um senso de “subserviência natural”.

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30

Eu queria estar agora/ Bem na mesa de um barzinho/ Tomando uma coca-cola/ Ou

um chopp geladinho/ Chopp, chopp no verão/ Só faz bem ao coração/ Chopp, chopp no

inverno/ Leva a gente para o inferno...

De fora10

, as semanas passam em quinzenas de dias, ou em meses ininterruptos,

ao passo que de dentro, os dias se avolumam e parecem nunca acabar, desde o soar da

sirene da alvorada ao fora de forma do pernoite, tudo acontece num ritmo intenso,

porém, à conta gotas. E nessa jornada, ainda estamos as 5h15 da manhã. A concepção

de “tempo” segue uma lógica complexa na perspectiva do sujeito, pois, dissocia fatos

temporais (ou biográficos) de lapsos temporais, em muitos casos, causando no sujeito

uma impressão de fato temporal com ausência de lapso e vice versa.

As experiências são tão contundentes em determinada esfera de vivência que

ganham status de longevidade, e o sujeito passa a se apropriar de um caráter que só foi

marcado pelo fato temporal legitimante, que pode se representar por exemplo, na

conquista do uso da farda. Em suma, nesse período só existe na cabeça do sujeito um

traço marcante de temporalidade, que inexoravelmente já está incrustado em sua

biografia sem que ao menos se dê conta de que um curto lapso de tempo existiu dado a

intensidade do processo, em contrapartida, a execução temporal desse fato não permite

vislumbre de qualquer possibilidade de conquista, seja da farda ou de qualquer outro

epíteto, dado que, o sujeito nesses “instantes eternos”, só se apodera do lapso, dos

minutos, dos segundos, sem se dar conta do fato temporal que só perceberá quase que

num ato de surpresa. Bergson filosoficamente dá conta desse fenômeno da consciência

do ser humano em relação ao tempo, na passagem:

Que o deixemos em nós ou que o coloquemos fora de nós, o

tempo que dura não é mensurável. A medida que não é puramente

convencional implica em efeito divisão e superposição. Ora não se poderia

superpor durações sucessivas para verificar se elas são iguais ou desiguais;

por hipótese, uma não é mais quando a outra aparece; a idéia de igualdade

constatável perde aqui toda significação. Por outro lado, se a duração real

torna-se divisível como veremos, pela solidariedade que se estabelece entre

10

Acerca da noção “de fora”, vale o comentário de um oficial formado nos primórdios da APMCV, que

me informou que após sua apresentação na Academia, iniciou-se a quarentena (período de formação

militar intensa, onde o aluno é colocado em internato e cedido totalmente a cultura militar) os sentinelas

(alunos mais antigos) impediam até que os bichos se aproximassem do muro para ver a rua. A

“quarentena” desse oficial durou 06 (seis) meses.

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ela e a linha que a simboliza, ela consiste ela própria em um progresso

indivisível e global. (1972, p.102) [grifo nosso].

Certamente os referenciais permitem tal hipótese, de sorte que, não é de se

duvidar que o mesmo minuto, passado na praia na companhia de amigos seja

radicalmente diferente, de um minuto passado numa sessão de tortura. A formação que

estudamos, coloca o sujeito num liquidificador, e o impõe a dinâmica do operador que

supera qualquer outro referencial, quer seja as estações do ano, o calendário público ou

privado, nada, salvo a própria lógica do “operador do liquidificador”, constitui eixo de

existência de quem se submete a tal experiência.

Após a apresentação seguíamos até a galáxia de nosso universo. O alojamento.

Ao adentrar àquele campo de força, exigia-se um passaporte procedimental11

muito

cerimonioso... “Com licença senhor aluno mais antigo, Aluno Oficial PM, permissão

para entrar no recinto!” tudo feito em níveis audíveis satisfatórios, para que o mais

desavisado aluno mais antigo ouvisse de onde estivesse, mas, para entender esse campo

de força, galáxia do universo chamado Academia a qual dá-se o nome de alojamento

precisamos fazer algumas considerações.

Dado a timidez estrutural da Academia de Polícia Militar Costa Verde, alunos

oficiais do 1º e 2º anos dividiam o mesmo espaço físico, porém, separados por uma

coluna de armários de aço que delimitavam as fronteiras. Tratava-se de um espaço físico

consideravelmente pequeno para comportar à época quarenta e oito homens, trinta e

dois do primeiro ano (CFOI) e dezesseis do segundo ano (CFOII).

Compreendia uma construção retangular, em que se acopla um banheiro sofrível,

com alguns chuveiros que nem atreveremos a dizer em números quantos eram, e

sobretudo, em que condições operavam, pois, quando muito variavam de três a quatro

em pleno funcionamento, uns com duchas, outros com apenas o filete d’água que,

aliado aos sanitários, girando na faixa de um a dois, em uso, davam uma atmosfera

agonizante ao ambiente, em que pese preservados ininterruptamente higienizados.

Diferentemente da nossa galáxia Via Láctea que pouco conhecemos, nosso

alojamento era conhecido em cada mínimo detalhe, em cada porção ou faixa de

11

O Regulamento de Honras e Continências Militares era — e, cremos ainda o é! —, extremamente

cultivado na APMCV, tal Regulamento dispõe de ritos de protocolo que tornam o comportamento do

aluno oficial em especial, um minucioso exercício de significação do mundo em que vive. Sempre que se

expressa, o militar (podemos levar o contexto à generalização) identifica seu campo simbólico, pois, é

com seus símbolos que lida.

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existência física, tanto na matéria quanto na significância de cada pormenor, tal local

retratava uma faceta biográfica da vida de cada aluno; ali se expressava o “submundo”

do submundo, um nicho de profunda aceleração espiritual dado o constante confronto

da fé com a desesperança, ideal transcendental de quem se aventurava à busca pela paz

naquele campo de guerra. Esse horizonte Heraclitiano de luta entre os contrários era a

tensão necessária à existência em si mesma, exatamente como a conhecíamos naquele

microcosmo.

De tão automatizado o vermelhão do piso, muitíssimo esfregado, chegava a nos

pedir reverência, já acostumado a notar quem tantas vezes se curvou para limpá-lo. Tão

emblemático, que não basta passar a memória em revista para nos asseverar desse ou

daquele canto esquecido, de tão nobre importância sentimental. Cabe-nos olhar para

dentro de si e ver na amplidão dos sintomas, o valor de tão grandiosos significados, seja

à luz do sol ou, na calada da madrugada, cada hora infere uma descoberta precisa de um

achado surpreendente.

Quando chegávamos pela manhã e o cerimonial era religiosamente feito às

soleiras da porta de acesso, adentrávamos no nosso espaço de significância já deparando

com um ou outro companheiro que por lá já se encontrava ou que lá pernoitara, não

havia cumprimentos ou manifestações de cortesia direta toados num bom dia...

Estávamos em uma atmosfera medieval de sentimentos e, um leve olhar sobre o outro

que se correspondia, era suficiente para criar uma teia de respostas que incrivelmente

prescindia da palavra falada para se expressar, um gesto obsequioso, uma fala

interrompida, geralmente conduzia aos encontros diários dos amigos, dos com-

panheiros (daqueles que comungavam o pão).

Aos exasperados a fala era inevitável e a cordialidade caminhava junto a

fanfarronagem, despertando em quem ainda pulara da cama — para aqueles que lá

pernoitavam... —, um misto de raiva e afeto, correspondido quase sempre pelo silêncio

camarada. De tudo isso, não há que se falar em amizade no plano puramente conceitual

para daí trazermos a vivência, é justamente a vivência mediatizada pela com-vivência

entre os companheiros que dá o tom do significado da vida — sobretudo, da

linguagem...—. Profa. Dulce Critelli confere, através de uma prosa fenomenológica, o

que pretendemos acima.

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O ser das coisas (o que são, como são) não está consumado na sua

conceituação, mas também não está incrustado nas próprias coisas,

ensimesmadas. Está no lidar dos homens com elas e no falar, entre si, dessas

coisas e dos modos de se lidar com elas. Está entre os homens e as coisas;

está numa trama de significados que os homens vão tecendo entre si mesmos

e através da qual vão se referindo e lidando com as coisas e com tudo o que

há. Os homens não se dirigem direta e simplesmente às coisas em sua mera

presentidade, mas mediados por essa trama de significados em que as coisas

vão podendo aparecer. Quando as coisas mudam, é porque mudaram nossas

ideias a seu respeito, mudou a serventia que tinham para nós, nosso interesse

por elas, nossos modos de nos referirmos a nós mesmos e uns aos outros

(2006, p.18).

Para cada aluno o alojamento provocava uma afecção diferente, afecções tais

que só se correspondia nas generalidades comuns a todos. A mim diversas experiências

rivalizam-se em significado e importância.

A experiência mais cansativa — exaustiva... —, por exemplo, é a da noite em

que estando de serviço quando primeiro-anista fui empenhado, assim como meus

companheiros de serviço, para esfregar o chão com cera própria para lustrar, utilizando-

se somente um pequeno pano e as mãos.

Ademais, como tratava-se da noite, mais especificamente após o pernoite12

, a luz

era essencial, entretanto, podíamos utilizar tão somente lanternas, logo, com o pano

encerávamos com uma das mãos e, com a outra, iluminávamos o que limpávamos. Tudo

isso sem contar no banheiro e da esponja de aço, azulejo por azulejo. Com efeito, do

alojamento restam, sobretudo, experiências “divertidas”, como os rituais do “relógio

cuco”, do “fantasminha camarada”, do “boliche” e do “basquete”, ritos de passagem13

feitos com os alunos do primeiro ano.

12

O pernoite é o momento onde a atividade da Unidade Militar é encerrada, momento onde “as luzes são

apagadas” e do “silêncio” propriamente dito. A partir de então, após as devidas ordens, todos cônscios de

suas missões, uns partem para seus postos de trabalho (quando escalados para o serviço diário) outros

para o descanso (quando não escalados para o serviço). O pernoite é um ato formal, uma atividade ritual

que possui todo um cerimonial procedimental articulado em torno das orientações que o comandante do

serviço tem para todos os pernoitandos, sejam aqueles de serviço ou não. O pernoite era realizado na

APMCV sempre após as manutenções (leia-se: faxina) e iniciavam (ao arrepio do Regulamento) por volta

das 23h (somente para o efetivo do primeiro ano!) e se estendiam madrugada à dentro sob comando do

aluno mais antigo. O motivo do ultraje ao Regulamento no que tange e alcança, especificamente, ao

efetivo do primeiro ano, tem sentido no contexto de formação que a turma do primeiro ano (CFO I) a essa

altura recebe. Com efeito, são nessas ocasiões (onde as sombras imperam...) onde a relação de maior

proximidade entre alunos ocorre sem intermediários, é o momento que necessariamente, o martelo forja

com mais incisividade a diferenciação das “hierarquias” de turma (a “turma líder”: CFO III) entre as

demais turmas (CFO I e II). É o momento onde alunos mais antigos podem exacerbar o poder de mando,

o rigor exigido nas tarefas e, assediar moralmente, através de aflições físicas punitivas (flexões, corridas,

repetições de tarefas...), os alunos do primeiro ano que se encontram de serviço e/ou de internato. 13

São celebrações que marcam mudanças de status de uma pessoa no seio de seu grupo.

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34

O “relógio cuco” consistia-se no despertador do alojamento, geralmente era

feito no horário de almoço quando ao alvedrio de algum aluno ou aluna (é importante

ressaltar) do segundo ano ou do terceiro, escalava-se um primeiro-anista, a quem se

queria imputar algum “castigo”, isto é, uma celebração da caserna. Determinava-se que

ele se deitasse em cima de um armário (±1,8m de altura). Em determinado horário

avençado, o aluno-cuco deveria despertar os alunos mais antigos com um sonoro: cuco!

O “fantasminha camarada” era aquele aluno (primeiro-anista), que tinha a

incumbência de assustar os demais alunos de sua turma durante a noite, vestia-se com

um lençol branco ou máscaras, causava surpresa aos inadvertidos, que dormindo no

alojamento — ou em seus postos fazendo a guarda... —, recebiam a visita de figuras do

além14

. No “boliche” se escalava um aluno (primeiro-anista), e o fazia rolar em

cambalhotas até acertar um grupo de alunos (primeiro-anistas também...) que ficavam

na condição de “pinos”. Dependendo da intenção de quem comandava a “bola” exigia-

se diversos movimentos como: “efeito”, “quiques” e etc. No “basquete” o aluno (nem

precisa dizer quem...), era a bola e os demais eram as cestas. Com a mão sobre a cabeça

da “bola”, que ficava saltitando, ao repassá-la (a “bola”) a um jogador (terceiro-anista)

melhor colocado no jogo, a “bola” ia rolando em cambalhotas, até voltar à posição de

cócoras e continuar a saltitar, sob as mãos do condutor, incríveis malabarismos eram

exigidos da “bola” até o arremesso a cesta.

Essas “brincadeiras15

” eram feitas no alojamento. Passei (em todas as condições)

por elas não só no alojamento, mas, também no lamaçal e em outros pontos da

Academia — o que é um pouco mais desagradável —, especialmente na condição de

“vítima”.

14

Na APMCV inúmeras “lendas do além” povoavam o imaginário do alunal (coletivo policial-miltar de

aluno). Uma delas é a do Cabo Curado, policial-militar que supostamente teria sido enterrado nos fundos

da APMCV e que após o pernoite dos alunos costumava fazer rondas e chamar os plantonistas. Outra

lenda corrente em minha época era a do cachorro Boca-preta que durante o pernoite entrava em forma

com os demais alunos e religiosamente antes de dormir puxava um período de serviço na Guarda. Temos

ainda notícias de viaturas que ligavam sozinhas durante a madrugada, chuveiros que ligavam-se sozinhos

— e depois desligavam-se também... —. 15

É preciso sintonizar as experiências na Academia, a algumas exigências metodológicas da formação

militar. Uma delas é a construção de percepções comuns de anti-alteridade, isto é, de percepções de não-

reconhecimento do outro enquanto identidade distinta, mas, como massa moldável ao caráter do grupo.

Quando falamos em brincadeiras falamos em supressão das individualidades em benefício da criação de

um espírito de corpo. É o que Goffman chama de conversão (ver pág. 77).

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1.2.1 A fenomenologia do sentido

Até que ponto essas experiências encontram sentido na formação de um oficial

de polícia? Obviamente, que a primeira leitura a se fazer é a que beira a contramão de

um processo de educação humanista, de sorte que, tais procedimentos fundados na

“tradição de grupos primários”, se perpetuam, forjando dessa forma, dentro daquele

circulo hermético de alunos, identidades distintas, porém, características ao grupo.

Desde o primeiro-anista, devoto fiel a todas as missões que lhes são incumbidas, até o

terceiro-anista que, manejando o poder (hierárquico-não formal) sobre os demais, tem o

condão de utilizá-lo como queira dentro daquele universo, muitos utilizando-lo, mesmo

na Academia, dando instruções preciosas aos primeiro-anistas (hipótese); outros,

entretanto, gastando tempo em comportamentos como os que apresentamos.

De fato, o alojamento nem deverá ser um templo da ignorância infanto-juvenil,

nem um espaço politicamente correto, onde garotos residem (bem como, com-vivem) e

guardam seus pertences. Porém, como dissemos acima embasados em um “obviamente”

é preciso dizer, sobretudo, que “tudo” que é óbvio... mente, exigindo de nós

investigações mais profundas (Nóvoa), como as que se exigem em terreno

fenomenológico, onde respostas prontas e a pré-análise, são descalabros imperdoáveis.

1.3 A etnografia da rotina parte III

No alojamento, logo após a chegada, alguns — sempre os mesmos nos três

anos... — checando seu material, notavam que esqueciam de algo imprescindível para a

rotina diária, um par de meias brancas, um short, as vezes o próprio tênis...era aí que a

feira livre começava, e não raramente com um grito que cobria o alojamento,

perguntando se algum prudente tinha em excesso para emprestar, a isso seguia-se as

barganhas e, as contingências decorrentes dos empréstimos — hoje sou eu, amanhã é

você e por aí vai... — .

O fardamento era trocado rapidamente, pois, o fardamento com que se

ingressava na Academia era o comumente (regulamentar) chamado de grafite (3ºA, ou

passeio), ao passo que, diante da primeira atividade diária ser a educação física militar,

necessário era trajar o 5ºA, ou o vulgarmente chamado na Academia de uniforme de

educação física.

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Cena inesquecível se deu quando um determinado companheiro de turma, o Pai-

Tchupa16

, chegou atrasado à Academia. Cruzara o Corpo da Guarda no momento em

que todo o corpo de alunos já fazia o alongamento que antecede a educação física.

Apresentou-se assim, ao Capitão que comandava o alongamento, ainda de uniforme de

passeio. O capitão inconformado com o atraso do relapso então determinou que outro

aluno buscasse uma mangueira e mandou ligar a torneira, assim (trocadilho com o nome

do Capitão...), no exato momento em que o Pai-Tchupa se apresentava a ele, o capitão

determinou que este ficasse na posição de flexão de braço e, com a mangueira já ligada,

introduziu-a por sua gola na parte de trás da farda, fazendo com que a água o molhasse

por completo. Permaneceu assim o Pai-Tchupa, nessa condição vexatória, com a água

jorrando em seu corpo por quase meia-hora...

Às pressas, antes de ir para o dispositivo da primeira formatura do dia —

destinada a educação física —, todos iam se aprontando e, quem terminava já saía do

alojamento para se “amoitar” e aguardar a sirene, não sem antes dar aquela preciosa

gabaritada no tênis preto com bastante cera — uma boa apresentação pessoal era

fundamental —. Em meio a toda aquela turba, as vozes ganhavam volume e cada um já

encampava um assunto que geralmente girava em torno da última cagada-de-pau17

, de

algum companheiro. Qualquer fato observado que destoava do rito exigível era motivo

de exageros, com efeito, a voz da coletividade quando em confinamento é um

imperativo muito forte. Na formação se um aluno erra todos pagam. Aprendemos a

cultivar um espírito de corpo cuja compreensão demandaria uma obra inteira de

explanações, porém, tentaremos levantar algumas questões.

Na ânsia de sair do alojamento rapidamente, os armários iam-se batendo

freneticamente e, o som das vozes, misturado ao aço tilintando, ainda ecoa nos ouvidos

de quem tanto lhes ouviu bater. Na Academia há tempo fixado para tudo, rigorosamente

todas as atividades possuem um horário específico e um determinado tempo para início

e término, pela manhã o horário de apresentação na primeira formatura matinal era as

16 Este aluno, estatisticamente, pode-se dizer; fora o mais punido de toda a minha turma. Não por falhas ou faltas

disciplinares que maculassem sua conduta profissional, porém, por um sentimento profundo de insubserviência que

ele carregava ideologicamente. O motivo do apelido se deve a suposta compleição física do mesmo que era, repito,

supostamente similar ao de um pai-de-santo, claro, ponderamos, sem qualquer correspondência fática, salvo, aquela

proveniente da sanha dos demais alunos em encontrar um epíteto depreciativo aos olhos do apelidado. 17

Podemos considerar na generalidade este termo como um desvio de conduta. Quando se infere este

termo diz-se, na maioria dos casos, que o militar cometeu uma “besteira”, uma “burrada”, uma

“mancada”.

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5h50, a educação física seguia-se das 6h as 7h20 quando tínhamos aula as 7h40, quando

a primeira aula iniciava-se as 8h20, íamos com a educação física até as 8h00, daí por

diante, seguia o que chamávamos de QTS (quadro de trabalho semanal), que não era

assim muito fidedigno a realidade do dia a dia, dado aos claros e falhas que ocorriam,

mas, que facilitava sobremaneira nossa organização escolar.

Quando conseguíamos sair do alojamento seguíamos um rito emblemático que

diz muito sobre a vida na Academia, os primeiro-anistas saíam do alojamento em

disparada, em “bando” (ou bandão como se chamava) sempre correndo rumo ao

dispositivo de formatura, os segundo-anistas iam a passos largos, e em “grupos”, e os

terceiro-anistas dependendo de quem receberia o corpo de alunos naquela primeira

formatura, nem se davam ao trabalho de irem, permanecendo uns no alojamento

complementando o sono cortado da noite, outros nos computadores que tínhamos a

época, no denominado Diretório Acadêmico Tiradentes (DAT), e os mais sagazes que

se davam ao trabalho de ir ao dispositivo de formatura, iam tão somente para fustigar os

alunos mais modernos com missões a determinar, piadinhas irônicas, esculhambações

etc. Cabe fazer uma ressalva, de que os terceiro-anistas iam sim a primeira formatura da

manhã, caso houvesse um oficial a frente do dispositivo de formatura — e olhe lá, que

dependendo do oficial, também nem iam... —

Ao chegar no dispositivo defronte ao pavilhão das bandeiras estavam a nos

recepcionar, isto é, recepcionar a Academia, o grupamento de serviço que entrava

naquele turno, composto por um aluno do terceiro ano (aluno-de-dia) ou,

excepcionalmente algum oficial da Academia, bem como os demais auxiliares dos

comandantes de pelotão (primeiro, segundo e terceiro ano) que não necessariamente

estariam de serviço naquele dia, cada auxiliar (terceiro-anista) ficava responsável por

um determinado pelotão (turma) durante as formaturas e a ele cabia a fiscalização e

acompanhamento dos alunos da turma que co-comandava juntamente com o tenente18

.

18

É necessário entender a seguinte dinâmica organizacional militar: o tenente é o oficial responsável por

comandar 01 (um) pelotão (30 homens), em nosso caso, uma determinada turma de alunos oficiais. A

composição das três turmas compõe o que se chama de companhia (03 pelotões), que é de

responsabilidade de comando de um capitão, superior hierárquico do tenente. Na APMCV tínhamos três

pelotões (CFO I, II e III) que variavam entre 20 (vinte) e 36 (trinta e seis alunos) à época, assim, para

cada pelotão tínhamos um tenente que os comandava e, que por sua vez, são comandados por um capitão

que comanda a companhia de alunos, em nosso caso, tal companhia recebe a denominação de EsFO

(Escola de Formação de Oficiais), que está diretamente subordinada ao Comando da Academia, de

competência de comando de um Oficial Superior do posto de tenente-coronel.

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Na formatura o alinhamento19

da tropa formada deve ser exato e, a cobertura da

testa da tropa impecável, isto é, falando evidentemente de uma tropa comum, não a de

alunos oficiais, da qual se exige além do habitual o imperativo da perfeição, acrescido

do garbo e elegância.

Durante a formatura para a educação física as vozes de comando eram

transmitidas enquanto cada aluno buscava seu “ninho”. Entre o primeiro-ano o que se

espera é mais vibração, entusiasmo e atitude, afinal, como se diz por lá “aluno tem que

vibrar, bicho então...” assim o primeiro-ano jamais, sob qualquer alegação poderia

entrar em forma após as duas turmas mais antigas, se isso ocorresse a ordem natural do

cosmo estaria rompida e até a lei da gravidade estaria revogada.

Após o “sentido!” a imobilidade era exigência e qualquer movimento poderia

culminar na perda de um fim de semana — anotado por mexer em forma! Por

movimento do globo ocular, dispersão e curiosidade são atributos femininos, anota

xerife, por favor... —, isso mesmo, pasmem, acontecia frequentemente durante as

disposições em forma, ademais, concluirmos por ilação lógica a necessidade da

imobilidade em forma.

Sem me esforçar muito, posso sentir ainda as mínimas fustigações que fazem de

pequenos instantes, momentos singulares de resistência físico-psicológica, como o suor

salgado nos olhos, da polução lenta da pele misturando tecido e pele durante a sudorese,

do vento sorrateiro, ou, daquela formiga ou inseto maldito correndo sobre a pele

plasmada pela necessidade da imobilidade, tal afetação, é tão marcante que a resistência

à fustigação, é atributo louvável no meio militar, sendo expressos nas canções como:

“Tenho a força de um urso, a coragem de um leão, olhos de lince veneno de

escorpião, em minhas veias corre sangue frio como o gelo, sou indiferente a qualquer

fustigação, não sentimos o cansaço nem do corpo e nem da mente, na academia só tem

combatente e podem preparando as estrelas de metal ou faça logo as honras para o

nosso funeral....”.

19 A noção de alinhamento e cobertura está ligado diretamente ao dispositivo matricial de formatura militar. A

representação desta matriz bem pode se assemelhar a um bloco composto dois a dois (dois na linha de frente

posicionados em duas colunas), três a três, quatro a quatro... sempre na mesma dinâmica matricial. Quando falamos

em alinhamento sugerimos as linhas da matriz, quando falamos em cobertura, falamos nas colunas. Colunas e linhas

devem estar milimetricamente posicionadas de modo a esconder os componentes subseqüentes.

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39

Dessa forma, estar em forma20

é abstrair do mundo em prol da cega obediência

ao comandante.

— O “bloquinho de anotações” do Xerife é sacado, daí por diante qualquer

objetivação é puro subjetivismo, e a sorte é a melhor companheira —, uma anotação é o

equivalente grosseiro de uma sentença, a diferença é que dessa se pode recorrer, já

daquela... tal sentença no mundo da Academia consistia em privação de liberdade ou no

nosso linguajar peculiar, “licença cassada21

”(LC), nos momentos de folga.

A leitura do obituário, leia-se, dos “aditamentos à EsfO (Escola de Formação de

Oficiais)” ou o vulgarmente chamado “LCdário22

” era feito às sextas-feiras — a noite,

após o término de todas as aulas e, sobretudo (impreterivelmente) depois de um...

“rala23

” daqueles! e, sempre após as 21h — essa translação para o papel, da prévia para

liberação do fim de semana, é digno de uma exposição sagaz dado a representatividade

biográfica, na oportunidade, contudo, fiquemos com a primeira revista do dia, a

realizada na formatura para a educação física.

O auxiliar do comandante de pelotão (terceiro-anista) caminha tendo à sombra o

Xerife24

(representante da turma na semana) que acompanha a revista realizada um a

um, da testa a retaguarda as turmas do segundo e primeiro ano são medidas em diversas

20 A condição do militar em forma revela caracteres preciosos para uma boa descrição etnográfica. Pois, através da

imobilidade da formação, da retidão ergonômica dos corpos, dos olhares ao horizonte e todo um conjunto

sincronizado de atitudes “comportamentais”, pode-se, sobretudo, no que tange a “moral militar” e o nível

de “adestramento” verificar se uma tropa em forma é mais militarizada que outra. O que representam

esses signos? São setas que condicionam interpretações que reforçam um objetivo preconizado. Skinner e

sua engenharia comportamental bem explicam esse fenômeno, de sorte que, “estar em forma” é, dentro

deste escopo, reforçar positivamente ideais estatuídos que alcançando a matéria da conduta acabam por

materializá-la sob a forma de comportamentos. 21

O que é uma licença cassada? Nada mais é do que uma sanção não formalizada em “ficha/histórico

profissional” (em que pese, subsidiar formalmente uma sanção formal servindo de fonte indireta!

Poderíamos dizer que, “o” “LC” é uma prova-testamento da vida da caserna do aluno oficial). Tem o

condão de servir como referência para controle da conduta do sancionado, pois, o rol que a culmina tem

correlatos com minúcias do cotidiano militar como: debastar-se, portar-se com garbo, não mexer-se

quando em forma, manter o coturno lustrado, manter a farda bem passada, cumprir os horários do quadro

de trabalho semanal, ser urbano. Na APMCV (como em várias outras Academias...) o livro de LC’s era

conhecido como “caveirinha”. 22

Ou, “caveirinha”. 23

A figura do “rala” ou “ralo” cabe uma tese doutoral per se. Contudo, tentaremos dar uma luz a esse

grande buraco negro — certamente sendo tragados por ele...—. O “rala(o)” é um momento/circunstância

onde os alunos passam por uma prova de vivacidade física, através de exercícios técnicos oriundos da

técnica militar, aliados a condições de trote. O rala é uma prévia a uma conquista ou, uma reprimenda

direta por uma falha... sempre, na APMCV, antecedia a férias e liberações (como as de sexta-feira...). 24

O Xerife era o “chefe de turma” da semana. Cabia a ele passar todas as ordens advindas da EsFO, dos

alunos mais antigos (de outras turmas), observar as alterações dos companheiros durante as revistas

realizadas por alunos mais antigos. Cabia ainda ao Xerife apresentar a turma em todas as ocasiões de

tropa em forma. O Xerifado é uma função, passava-se na APMCV tal função, semana a semana.

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alterações, dentre elas: “barba por fazer”, “vinco duplo na calça ou no short”, “calça,

short, camiseta ou gandola (parte de cima da farda de instrução ou 4ºA) amassada ou

suja”, “gorro sujo”, “coturno ou tênis mal engraxado”, “falta de vibração na tomada de

posição para a revista”, “meias fora do padrão, “amarração de coturno fora do padrão”,

“ausência de material para anotação”, “ausência do Código de Honra do Cadete”, “unha

suja”, “pé-do-cabelo mal feito” e, mais algumas outras alterações ao alvedrio do

fiscalizador.

A fiscalização durante a revista, embora jungida a determinados critérios fixos e

determináveis, tem em critérios discricionários do fiscalizador, seu peso mais forte e

evidente, de maneira que, o conjunto das atitudes, gestos e posturas adquiridas e

observadas do aluno fiscalizado, diz mais do que a própria revista, na medida em que

tais fatos observados, no conjunto global da vida na Academia, pode, sobretudo, nas

revistas, aumentar ou diminuir o crivo do fiscalizador.

Com efeito, na Academia a vigilância25

é ininterrupta e, a revista apenas um

termômetro do status quo adquirido pelo aluno oficial frente aos alunos mais antigos, de

sorte que, o aluno padrão sempre adquire o respeito de seus pares e superiores,

traduzido quase sempre, na pouca quantidade de punições, o que não significa que este

aluno tenha mais liberdade ou, contabilize mais fins de semana ou pernoites com seus

familiares em não sendo anotado e, consequentemente punido, do contrário, recebe mais

missões, angaria mais funções e quase se atola de afazeres.

Todos, um a um, são medidos detalhadamente, e o momento da revista pessoal

exerce o presságio de como será o dia, de maneira que, ainda posso perscrutar o rodeio

silencioso de meu fiscalizador a minha volta e, o misto de sensações que isso

provocava, quase sempre falseado numa tranqüilidade aparente e, numa circunspeção

inabalável, aquela de quem nada pode temer diante de seu algoz.

Havia uma frase na Academia muito corrente que dizia “Está bom porque está

ruim, estaria melhor se fosse pior”, ou seja, “desgraça” pouca é lucro, muita “desgraça”

forja a glória. O “Pai-Tchupa”, meu grande companheiro, indiscutivelmente foi o aluno

mais punido da turma, quase não retornava para sua casa, estava sempre preso e, quando

25

Quero entender vigilância aqui na “leitura foucaultiana [que] objetiva efetuar uma investigação mais

pontual e analítica onde a relação entre poder político e sociedade desenrola-se sob a forma de técnicas de

vigilância e controle voltadas para os indivíduos [vigilância que se vê na APMCV]. Técnicas estas que

têm como objetivo conduzi-los de maneira contínua e permanente (o que não significa total desvinculação

dos métodos de governo político estatal)” (santos, 2009, p.03).

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digo sempre é sempre inexoravelmente, de sorte que, sua cama era cativa no

alojamento.

Naquele ambiente hostil, dado a fiscalização excessiva, ele campeava ora na

insubordinação passiva, ora na contradição ideológica, ora na pura má vontade com o

“sistema26

”. Literalmente “cagava e andava” ou “cagava mole” (como se diz numa

Academia Militar) para as revistas pessoais e as missões27

, ante as quais não tinha

possibilidade cumpri-las logicamente — dizemos logicamente porque as missões

incumbidas a alunos sempre pairam num ideal que beira o limite do possível.

Se alguém queria “jogar basquete” com ele, se recusava passivamente, logo, era

punido, se o mandavam pela terceira vez limpar o mesmo ambiente ele protelava e era

punido, se o mandavam capinar de madrugada ele dava um jeito de se imiscuir da

missão ou sabotá-la e, dessa forma, era punido novamente... ficou famoso na Academia

por sua peculiar resposta aos superiores (somente alunos superiores) quando afrontando

por pedidos de explicações, nessas ocasiões dizia: — Senhor, não tem explicação.

Indubitavelmente, sua carapaça era mais resistente que da dos demais, de forma que,

soube refletir e agir mesmo diante de situações-limite, daquelas em que o

esmorecimento físico-mental se apodera de todos os cantos do ser, desinstalando toda a

autonomia e firmeza de quem tenta se libertar.

Após a primeira revista do dia, seguia necessariamente o “alongamento” ou

“preparatória” para a educação física militar; a conversa era peremptoriamente proibida,

exceto a dos terceiro-anistas, salvo, se houvesse oficial à frente. A escolha do que se

faria durante a educação física não seguia um critério, digamos, objetivo, ademais

ficava quase sempre ao sabor de quem comandava o corpo de alunos naquela ocasião,

ocorrendo, assim que, dependendo do perfil do comandante tínhamos essa ou aquela

atividade. Com efeito, poderíamos saber o que teríamos logo no início da manhã apenas

por saber quem estaria à frente das atividades. O comum, em que pese a subjetividade

26

O “sistema militar”, em especial, os das Academias, são extremamente “cerceadores de potência”, faz-

se o máximo possível para que o aluno seja milimetricamente fiscalizado, pois, são tantas as regras a

serem cumpridas, tantos códigos de conduta, que é praticamente impossível não ser punido ou censurado.

O sistema de controle (Foucault) nas Academias mina a individualidade abruptamente e de forma

violenta, fazendo com que o aluno torne-se contingenciado pelo ethos da correção, da extrema disciplina,

da moral ideal, como que carregando sobre si todos os valores da Instituição. 27

Uma missão é o equivalente a uma tarefa exigida. Ao receber uma tarefa a ser cumprida o militar a

nomeia de missão. Há diversas modalidades de missões. Na APMCV as mais trabalhosas (ou, sem

nexo...) eram chamadas de missões serra-fox (apanhar mangas para os alunos mais antigos, por ex.).

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da escolha, eram as intermináveis corridas sempre seguidas por uma atividade esportiva,

leia-se: futebol e/ou vôlei.

É necessário a essa altura superar alguns mitos atinentes ao “condicionamento

físico do aluno oficial”, que gravitam em três ordens genéricas: 1) o aluno não é um

atleta, sequer em potencial; 2) o aluno não é um desportista e 3) alunos da APMCV não

possuem biótipo atlético. Esses três mitos — esqueça as definições de mito em Mircea

Eleade, Cassirer... falamos em mito de forma jocosa, quase vulgar, apenas enquanto

esforço da mente humana em estereotipar determinado ser que desconhece — .

Quanto ao primeiro ponto é oportuno informar que a atividade física na PMMT

não é pedra de toque, basta notar a ausência de atividades regulares e acompanhadas

com os efetivos nos batalhões afora, muitos, quiçá com alguma atividade regular de

prática esportiva no cotidiano, na APMCV a situação melhora um pouco, a atividade

física é eixo decisivo28

, de sorte que, o que se exige do aluno requer um mínimo de

condicionamento físico, entretanto, na perspectiva quase exclusiva da resistência a

fadiga.

De fato, um aluno oficial é um “ser humano”, cuja resistência a fadiga

impressiona mesmo um atleta, dado que este situa-se em condições de alimentação e

treinamento adequado, ao passo em que aquele adquire esse perfil, resultado de sua

rotina extenuante e agressiva.

Ademais, podemos dizer que não é possível um comparativo do atleta, digno

desse nome, e o aluno oficial que é considerado no corpo de alunos como atleta e não

um atleta29

, porque, justamente não é preparado para tal e nem se titulariza para essa

potencialidade visto que aproxima-se mais de um perfil decadencial de rendimento, que

um de crescimento contínuo e gradativo, como o observado em atletas. É mais um

corpo vergado a lida que um corpo preparado para o rendimento.

Acerca do segundo mito, convém dizer que não temos, especialmente entre meus

contemporâneos, um histórico notável de atletas e nem existe na Academia uma

28 Em que pese a educação física militar curricular fosse realizada com um quadro fixo de carga horária, na APMCV

atravessávamos o ano inteiro de atividades com educação física em quase todos os dias impreterivelmente. 29

A condição de aluno atleta nas academias militares reflete uma posição privilegiada em relação aos demais. O atleta é aquele

aluno que representa a sua academia entre as outras academias, é ele o responsável, em muitos casos, de demonstrar com seus

resultados e perfomances o respeito dado ao condicionamento físico pela academia que representa bem como com sua atitude

guerreira — de se jamais entregar... — mostrar a todos a força moral de todo um corpo de alunos. Na APMCV os atletas não tinham nenhuma vantagem formal em relação aos demais, possuíam, contudo, o dever de lutar e de se “entregar” com todo empenho na

busca pela vitória, por conta disso, na maioria dos casos eram atletas os alunos mais aguerridos, “mais bravos” pode-se dizer, visto

que a técnica e o apoio logístico aos treinos eram remotos e negligentes.

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tradição dessa natureza. Numa turma de vinte alunos, quatro ou cinco alcançavam “dez”

no TAF (teste de aptidão física) que dentro daquela margem de treinamento e suporte

que nos era ofertado, tratava-se até de um bom índice, contudo, dado a aspectos

culturais e de tradição da instituição que não cultivava esse mister, a Academia não

recebia atletas ou desportistas profissionais, no máximo acomodava em seus quadros

alguns semi-profissionais do vôlei, do basquete e do futebol, sempre em minoria frente

aos demais, que quase exclusivamente eram amantes do futebol de várzea, daquela

“bolinha” de fim de tarde, jogado na areia, na chuva ou no concreto, por pura satisfação

pessoal.

Lembro-me de um companheiro de turma, o “Pregoraro”, exímio jogador de

futebol — de várzea é claro... —, habilidoso, refinado nos passes e nas finalizações,

querido pelos demais e o primeiro a ser escolhido para as partidas, lacônico, porém, foi

sua saída da Academia ainda no segundo ano quando fora flagrado “colando” — fato

negado pelo Pregoraro — antes do procedimento para a exclusão, pedira baixa

(desligamento). Três anos depois de sua saída ainda não tinha retornado a

universidade... Na esteira oposta tínhamos o “congão” um legitimo “perna-de-pau”, nas

ocasiões em que o futebol era obrigatório suas exibições beiravam o tragicômico.

Quanto ao derradeiro terceiro aspecto levantado falaremos empiricamente. Na

condição de terceiro-anista tive como bicho (primeiro-anista) um aluno cujo biótipo era

de um obeso, — sim, obeso — era gordo, como diria um determinado capitão da

Academia, “gorrrrdão”. Entretanto, como também se dizia por lá, esse aluno-obeso

“bancava” (superava) seus TAF’s e tarefas físicas — eu particularmente nunca estive

presente em nenhuma delas, para asseverar, mas... —.

Continuando o quadro cronológico de uma rotina típica, quando a corrida era a

voga, —.... Que se quebrem os fracos —, era sempre de oito a dez quilômetros,

inexoravelmente. Biograficamente participei de “corridões” i-nes-que-cí-veis! Onde se

corria por duas horas e meia, ininterruptamente — o que para nossos padrões era

extremamente considerável —, entretanto, o comum eram as corridas de cinqüenta

minutos que coincidiam quase sempre com os oito quilômetros; com o pulmão à carga

máxima e o diafragma impoluto, as canções de guerra ou, nos dizeres de um antigo

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comandante, “canções de morte, sangue e destruição30

” eram entoadas à saciedade e

com entusiasmo viril, de maneira que, o tempo passava e o chão ficava para trás sem se

notar.

Quando eu morrer quero ir de FAL [fuzil] e de BERETA [pistola]

Chegar no inferno dando tiro no capeta....

E o diabo vai gritar muito assustado:

— Meu Deus do céu, tira daqui esse soldado!

Quando eu morrer quero ir de camuflado

De barba feita e coturno engraxado...

Quando eu morrer eu quero espaço no caixão

Pra ir pagando canguru e flexão

Quando eu morrer, eu tenho um último desejo

Ser enterrado numa pista de rastejo

E o coveiro tem que ser um bom guerreiro

Abrir a cova com granada de morteiro

Quem ficava pelo caminho era “resgatado” ou, dependendo do animus quo do

comandante, já empenhava esforço numa escala de serviço extra como forma de

punição. “Congão” era o “resgatador” oficial da turma, de modo que, não foi nem uma

ou duas vezes que o vi arrastando pelo braço, ou mesmo carregando nas costas, outro

aluno que ficava pelo caminho esgarçado pelo cansaço.

Na chegada a tenacidade se revigorava com o alento da água gelada ou quando

muito com o “bate bola” coletivo, se havia tempo o futebol era regra. Quando a

educação física terminava o tempo para se aprontar para a parada diária era de cinco a

dez minutos. Sem qualquer possibilidade de tolerância.

Já a postos na parada diária defronte aos pavilhões novamente estávamos

expostos à revista, a segunda do dia, — formalmente falando —. Todos checando os

petrechos que iriam ser observados atentamente pelos fiscalizadores (blocos de

anotação, identidade militar, caneta, código de honra...).

As ordens para o dia eram lidas e todas as orientações eram-nos transmitidas

repetidas vezes em alto e bom som. Feita a segunda revista, entoávamos os hinos

regulamentares e nos dirigíamos em coluna (fila indiana) até a sala de instrução.

30

Eis uma dessas canções: “tem a faca de combate e a pedra de amolar/ mantenha a faca afiada/ para o

inimigo degolar/ eu já fui lá no inferno/ e cheguei a conclusão/ no inferno não tem fogo/ lá tem muita

água e enche meu pulmão/ a fé remove montanhas/ mas não flutua afogados... Entoávamos dezenas delas

durante as corridas — me arrepio ao lembrá-las...—.

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Cabe fazer uma pausa pitoresca31

. Em uma determinada formatura militar, no

início de nossa formação na Academia, reunido todo o corpo de alunos o comandante da

EsfO (Escola de Formação de Oficiais, que compreendia o conjunto das três turmas ou

pelotões que compunham a companhia escola) determinou que um aluno-oficial

(primeiro-anista), companheiro de turma, fosse até a frente e entoasse sozinho o Hino

Nacional, o dito aluno, nosso querido “Paca”, lentamente saiu de seu pelotão e

caminhou até a frente do dispositivo recebendo então o microfone das mãos do

comandante, pegou-o, deu uma folga no cabo, empunhou-o e iniciou .... “ouviram pátria

amada esperança”, titubeou, silenciou e pigarreou, em seguida olhou para o comandante

atônito que o mandava prosseguir, novamente levou o microfone à boca e... “ouviram

do Ipiranga pátria amada Brasil!”, emudeceu novamente.

O Paca lentamente afastou o microfone da boca e, com uma das mãos

caprichosamente deu três tapinhas na garganta e com a outra fez sinal de negativo com

o polegar invertido para o comandante. Bastou para a Academia quase explodir de

gargalhadas, silenciadas, contudo, pelo pudor da “data/hora/local”, de maneira que, o

Paca não sabendo entoar o Hino Nacional falseou marotamente uma rouquidão que o

impedia de cantar o Hino. Era hilário ver o comandante desesperar-se ao arrancar o

microfone das mãos do Paca, determinando que o aluno apresentasse a ele um caderno

de duzentas folhas com a transcrição à punho do Hino Nacional do início ao fim do

caderno bem como permanecesse preso na Academia até que se esquecesse dele.

Era comum durante as formaturas ou paradas diárias que o comandante

circulasse pela tropa observando, durante os hinos, quem cantava e quem falseava, de

sorte que, não foram raras as vezes que um ou outro menos prudente com o decorar dos

hinos fosse plotado em meio aos demais, quando isso acontecia, o vexame era

inevitável, além é claro da punição. Em algumas situações um hino era-nos transmitido

31

Diversas “pausas pitorescas” rivalizam-se, porém, cabe aqui relatar ao menos uma a mais daquela que

se lê acima aludindo paradas matinais. Numa das paradas matinais o Sub-Comandante (Sub-Cmt) veio até

a tropa de alunos e começou a esbravejar pela presença de um alinhamento nas tropas que “não”

observava — apenas uma desculpa para uma boa chamada de atenção — nessas idas do Sub-Cmt até a

tropa pela manhã ele escolhia um aluno para falar sobre a importância da data, tais ocasiões eram

“hilárias”, pois, o aluno quase sempre “colava as placas” ao se intimidar pela figura do Sub-Cmt da

APMCV, numa delas o aluno adquiriu uma gagueira que só foi curada depois de muitas sessões no

fonoaudiólogo. Frases como: “Seu monstro, você está igual elefante na chapa quente!”, “sua mãe trepada

lá na vara e você aqui cagando o pau! Cadê o respeito” sempre eram utilizadas para “acelerar a

desinibição” do aluno.... — cabe ressaltar que, a “mãe” no chamamento era a bandeira nacional que

ficava presa no topo do mastro... daí a tosca analogia.

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pela manhã e ao final do dia em revista só conseguia-se a liberação após criteriosa

tomada do hino, individualmente.

Superado o momento lúdico, estamos agora na sala de instrução onde

sentávamos religiosamente dentro da antiguidade, ou seja, obedecendo a classificação32

dos alunos, as maiores notas (mais antigos) a frente e assim sucessivamente até o dito

“zero-último” ou “zero-bunda”. As mesas possuíam os nomes dos alunos devidamente

etiquetados conforme o modelo-padrão da época, no canto direito uma bandeira da

Academia em miniatura e no esquerdo uma placa de aço com o nome do aluno e a

turma pertencente. Na parte inferior da mesa havia a disposição padrão dos materiais

previamente elaborada, sendo passível de sanção sua não observância, cadernos a

esquerda, livros e manuais a direita e estojo e papéis avulsos ao centro. Tudo muito

discreto e organizado. O alinhamento das mesas era preciso. Quando o instrutor entrava

na sala de aula, independente de quem fosse, militar ou civil, era comandado o

“atenção” pelo primeiro aluno que o visse adentrar, instante em que todos ficavam em

pé e o Xerife da semana ia até a frente de onde comandava a apresentação da turma para

32

Imperioso falarmos na categoria “classificação” no contexto referenciado no texto. Os alunos oficiais

em seu sistema escolar são escalonados intelectualmente a partir do critério de classificação. O que isso

representa? Isso nos informa que as notas ou graus obtidos por ele durante a formação são catalogados e

servem de suporte ao cômputo de sua classificação final, mas, há algo muito além disso, pois, do que se

disse pode-se sugerir rapidamente que a “classificação” dos alunos oficiais é apenas a média aritmética de

suas notas nas provas e avaliações das disciplinas curriculares, entretanto, repitamos, a categoria

classificação indica algo muito além dessa sumária descrição quantizada. Ora, a classificação representa

ao aluno o seu próprio lugar existencial dentro da turma e da Instituição como um todo. A classificação o

medeia num campo semântico e lhe caracteriza politicamente. A classificação é a diretriz que regulará

toda a carreira do oficial, pois, no sistema militar é a classificação na turma que indica a disposição da

antiguidade entre os oficiais de mesma turma, isto é, por ex. numa turma de 20 (vinte) alunos o dito “01”

(zero-um), é aquele que receberá as deferências militares nas circunstâncias em que todos (de sua turma)

estiverem reunidos num determinado ambiente, ainda, é aquele que no aspecto da meritocracia será —

filosoficamente falando...— contingentemente o melhor avaliado as promoções e, no critério antiguidade,

será necessariamente o primeiro a ser promovido perante os seus colegas de turma. Levando-se em

consideração que há apenas duas formas de ascensão na carreira (por antiguidade e merecimento) os

melhores classificados serão aqueles que galgarão os postos mais elevados (mais rapidamente) e terão por

benefício, a deferência hierárquica concedida pela ascensão, mesmo que frente a seus próprios colegas de

turma. Podemos dizer que a classificação é pedra de toque no sistema escolar militar, de sorte que, é ela a

definidora de uma série de circunstâncias profissionais na vida do oficial, não obstante a isso, representa

no campo ideológico para cada um o perfil ideal-estilizado, que embute no profissional a exata noção

depreendida pela observação de seu lugar (sua classificação) na turma. Diversas fundamentações de senso

comum da caserna são cristalizadas à partir da classificação, pois, a “simples” medida que informa o

mérito intelectual de seu possuidor, revela, sobretudo, quem ele é — em tese! — como ser-moral-militar.

Por se tratar de uma categoria basilar de interpretação da condição existencial militar, a classificação

quando preterida, ultrajada ou deixada de lado, (para juízos de valor próprios ao próprio sistema militar)

gera uma quebra, um rompimento de difícil apreensão por parte especialmente dos oficiais classificados.

A alteração do quadro de antiguidade de uma turma deflagra a suspeita do sistema, deflagra um contra-

senso-bom-senso! Que diz que o sistema de classificação, que tem o mote de gerir um universo

fenomênico humano, não faz senão, apenas... marcar gados com o ferro da idiossincrasia.

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o instrutor, tudo formalizado de acordo com o Regulamento de Continências adotado

pela Instituição. Muitos instrutores civis constrangiam-se nesse momento, alguns

desautorizavam os Xerifes a assim proceder, entretanto, boa parte deles até queixavam-

se do tempo de espera para a apresentação, da falta de imobilidade de um ou outro aluno

durante a apresentação procedendo dessa forma como se militares fossem.

Evidente que as aulas com professores civis eram as melhores aulas. Tinha-se

uma maior liberdade de ser, sentir e pensar, ademais que, em diversas situações foram

os melhores momentos em que nos curávamos da fadiga intensa debruçados sobre as

mesas babando em sono pesado, — é claro, sempre após um obsequioso pedido ao

instrutor para que fossem fechadas as persianas de maneira bastante sutil... — dado que,

um oficial sempre circulava pelos corredores olhando para dentro da sala de aula à

espreita de quem tentasse dormir. Certa vez, um aluno fora flagrado dormindo pelo

oficial...

O oficial bateu a porta da sala de aula e cavalheiramente pediu ao professor que

liberasse o aluno identificado, o professor sem saber que estava entregando a ovelha ao

lobo, gentilmente liberou-o, segundos após o professor já não se concentrava em

ministrar a aula ao ver o aluno que liberara, correndo incessantemente em voltas pelo

pavilhão segurando um fuzil. Após “algumas” voltas o aluno regressou a sala de

instrução, um pouco suado (eufemismo), porém, bem mais desperto.

Ressalvados esses casos singulares, na maioria das vezes os alunos se safavam,

desconfio até que alguns deles não estiveram em boa parte do curso de formação de

oficiais quando em sala de aula. De tão comum (não freqüente!) a prática, que na

instrução com militares quando o sono atacava, conscientemente, o aluno se obrigava a

ficar de pé no fundo da sala de aula, alguns quase tombaram em determinadas situações.

O sono em sala de aula não era regra. Nunca se apresentou como regra nas aulas.

O sono guerreava com o corpo e nas vezes em que vencia, de fato existia, contudo,

jamais era chamado a baixar espontaneamente, de maneira que, a regra era a extrema

atenção durante as aulas dado que se tratava de uma satisfação explicita dos instrutores

ministrar aulas na Academia, onde o respeito, a reverência, a educação polida e a

presteza na tarefa de aprender eram fluentes. Se um texto deveria ser lido e fichado,

assim o era. Se uma resenha, relatório ou qualquer trabalho similar deveria ser feito ele

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o era realizado com absoluta dedicação. Vê-se a tradução disto nas médias33

dos alunos

oficiais que sempre circulavam de oitenta a noventa por cento de aproveitamento — o

que insufla uma análise mais acurada e profunda desse fenômeno de eficiência —.

As aulas seguiam-se e o tempo se exauria lentamente. Freqüentemente éramos

obrigados a permanecer em sala de aula por longas horas sem a presença de instrutores,

tão somente com tarefas a cumprir, nas condições objetivas que possuíamos sempre

eram cumpridas num curto espaço de tempo restando o excedente para o bate papo e o

xadrez. Nessas ocasiões surgia a figura do “pudim”, um observador e humorista nato,

pois, conseguia capturar nos mínimos detalhes os trejeitos de quem quer que fosse,

transformando em imitação fidedigna qualquer relance despercebido na conduta das

pessoas. Era o nosso imitador. Imitava os oficiais, os instrutores, os companheiros de

turma, todos invariavelmente. Por seu crivo nada escapava e um momento único

perpetuava-se.

Na hora do almoço, após o término da última aula do período matutino,

novamente todos entram em forma defronte aos pavilhões. E turma a turma deslocam-se

em marcha até a entrada do rancho (refeitório). Por questões afetas ao militarismo,

adentram, entre os alunos, para o almoço, inicialmente o terceiro ano e assim

sucessivamente.

Na APMCV, como o rancho não comportava as três turmas concomitantemente

na linha de servir, era necessário esperar que uma turma se servisse e “efetuasse o

código” (se alimentasse) para só depois a subseqüente adentrar; o que causava no

primeiro ano uma terrível constatação diária: dado que, o término do período de almoço

era fixado com a entrada no dispositivo de formatura para as aulas do período

vespertino, certas ocasiões, esse horário coincidia praticamente com o término do

almoço do último aluno do primeiro ano que adentrava ao rancho, o que o impedia de

realizar outra atividade nesse período senão almoçar. Salienta-se ainda que, enquanto

uma turma mais precedente se alimentava as demais marchavam pelo pátio no sol do

meio dia entoando as boas e velhas canções militares.

As aulas da tarde avançavam e o fim do dia era anunciado pela janela com um

entardecer esplendido, pareciam tocar-se no horizonte, firmamento e planície

33

Lembre-se que a média remete a classificação que desencadeia todo o processo descrito na nota

anterior. Vale dizer ainda que, apostilas, anotações de aula e cadernos “desapareciam” durante a época

das provas tamanha a disputa pelas melhores classificações.

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49

confundido-se no limite da visão, analogamente, como na ilusão de retas paralelas

cruzando-se no universo curvo de Einstein.

Novamente a sirene contrasta a calmaria e se apresenta, os alunos entram no

dispositivo34

... Os detidos, é claro, permanecem na Academia. O grupo de alunos

oficiais escalado para o serviço diário se aparta dos demais e assume suas funções.

Terceiro ano: Oficial de dia ou Aluno de dia e seu Adjunto; segundo ano: Comandante

da Guarda e seus auxiliares, de dois a três e, o primeiro ano: os plantonistas, de seis a

nove integrantes. Na regra geral o terceiro ano, à exceção do serviço e dos punidos, é

liberado primeiro e assim por diante. No caso estudado, sob cláusula pétrea, o primeiro

ano jamais poderia ser liberado caso o terceiro ano ainda se encontrasse na Academia,

em certas situações o terceiro ano assistia aulas no período noturno, o que rendia aos

alunos do segundo e primeiro ano sempre missões extras para forjar pretextos na

finalidade de impedir que fossem liberados antes dos semideuses. Geralmente após as

20h os alunos do terceiro e segundo ano, ressalvados os citados como exceção, já

estavam em deslocamento para suas casas (ou não...) e os do primeiro ano permaneciam

cumprindo seu internato forçado. Por este fato, comumente o número de alunos do

primeiro ano que assumiam o serviço era bem maior, pois, impreterivelmente o serviço

do primeiro ano quase sempre dobrava (por “n” motivos) cumulando assim novos

componentes dia após dia.

O serviço se reunia no pátio dentro do dispositivo de formatura e as missões

eram distribuídas pelo Oficial de dia. Ao segundo ano já se dividia a escala ou como

chamávamos o “quarto de hora” para cada segundo-anista, onde dois alunos armados

de fuzil responsabilizavam-se pela guarda da Academia, revezando-se a cada duas

horas. O comandante da guarda, que era um segundo-anista, iniciava a assunção da

Guarda, momento em que todas as alterações eram passadas em revista e todo o

material da carga da guarda era inspecionado de acordo com o funesto livro do

comandante da guarda, todos os armamentos eram conferidos, as munições e demais 34

Quando falo em dispositivo me movimento em dois cenários mais amplos: 1) teoricamente em

Foucault, como um mecanismo de poder que funciona como estratégia de poder e que pode ser percebida,

por exemplo, no panopticon (sistema de controle-vigilância). Ainda, pode-se pensar que: “toda a forma é

um composto de relacionamentos de forças” (Deleuze, 1987, p. 167) e 2) No pensamento de Poulantzas

(em O Estado, o poder e o socialismo) como manifestação na via prática de uma “violência física

monopolizada pelo Estado [que] sustenta permanentemente as técnicas do poder e os mecanismos do

consentimento, [que] está inscrita na trama dos dispositivos disciplinares e ideológicos, e molda a

materialidade do corpo social sobre o qual age o domínio, mesmo quando essa violência não se exerce

diretamente” (2000, p.79).

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materiais criteriosamente observados, — a assunção da guarda poderia demorar duas

horas dependendo do rigor de quem a assumia —. O primeiro ano recebia as suas

missões, em suma, proceder a manutenção do quartel, leia-se, faxina.

A faxina iniciava-se geralmente às 21h e entrava noite adentro chegando a

terminar pela madrugada, quando todos novamente se reuniam agora na guarda para o

pernoite,momento em que se faziam as deliberações finais do serviço e se liberava para

o descanso, tecnicamente o pernoite situava-se na faixa da 22h conforme o regulamento,

entretanto, esse horário era extrapolado para a 1h ou 2h da madrugada. Após o pernoite

à exaustão cada primeiro-anista, após a divisão de seu quarto de hora e armado de

cassetete assumia a guarda de seus postos, em pontos estratégicos: nos fundos do

rancho, nos pavilhões das salas de aula, nos pavilhões do alojamento e no campo de

futebol. Em ritmo de revezamento os alunos cumpriam mais essa etapa até as 06h da

manhã, onde tudo começava novamente.

1.3.1 Do fenômeno vivido

Descrever não é uma tarefa simples, — em que pese na memória se alongue os

braços da realidade —, não é possível traduzir sentimentos e sensações nas suas exatas

apreensões. Nem se pode comover o espírito com o mesmo impacto do real, apenas

relembrando-se; tampouco, transladar toda uma atmosfera existencial do ser para um

conjunto bem concatenado de palavras articuladas num texto fino.

Pode-se, sobretudo, sendo mais fiel ao ser em si do que competente

metodologicamente, ver por trás da penumbra e, por entre a fumaça turva da

imperfeição que se sabe, mas, que fica guardado na mente sem correspondente na fala, o

resultado do esforço imenso, daqueles que se faz pela manhã tentando se lembrar de um

sonho recortado, buscando sentir novamente o sentido e vislumbrar o vislumbrado,

sempre juntando pedaços esgarçados pelo fenômeno da experiência única, da impressão

real.

Resgatar sensações é desvelar a realidade noutro plano, vendo de cima, domando

perenemente a brutal experiência de se viver em um mundo que não admite reflexão.

Onde pessoas escamoteadas no turbilhão de interações desmedidas vivem uma

totalidade de trocas mutuas e impensadas. O real acaba não sendo imanente, nem

poderia, pois, não o admitimos como tal, jungidos a nós mesmos, filiado a quem somos.

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Criamos mecanismos de automatização da vida. A rotina, o tempo e toda uma

gama de hábitos, que nos são compelidos e sem se notar o real-intrínseco de cada

instante desprende-se da reflexão que envolve todo ato de pensamento, criando assim,

uma neblina densa, dando-nos falsas noções sobre o tempo, a rotina, o cotidiano e na

esfera do sentir chegamos a desconhecer afeto, carinho, fraternidade e amor nas relações

humanas.

Logo, automatizados não dividimos sentimentos, ajustando-os as esferas do

sentir nem os promovemos, afinal, sequer o conhecemos aprisionado na neblina densa

que os separa de nós. Não falamos inglês por não possuir o software adequado no

cérebro, não o falamos porque não o conhecemos, não o re-conhecemos nas relações

humanas e, no cotidiano não o ouvimos, tampouco, possui significado, ademais, jamais

poderá ser falado. Assim é com o amor, a tolerância, a fraternidade...

Newton precisou desvelar o real dissipando essa neblina densa que as

automatizações imbricam nas coisas, só assim pôde “enxergar” a Gravidade. A

maquinaria matemática (metodológica) que o fez provar o que seu “nirvana”

demonstrara só veio depois, como um enquadramento rigoroso daquilo que estava posto

na natureza. Einstein enxergou a dimensão do tempo, Voltaire a dimensão política nas

relações de poder, Cesar Lattes o Meson-pí dentro do átomo, Husserl a essência da coisa

em si na fenomenologia e, assim temos muitos exemplos em diante.

Não precisamos, em contrapartida, necessariamente, captar o real pela

descoberta surpreendente de algo nunca visto. Apreendê-lo em seus nuances tidos

banais, corriqueiros e insuspeitos, é um exercício de re-descoberta tão surpreendente

quanto. Visitar com novo olhar uma velha maneira de se fazer algo ou simplesmente

expressar-se na exata denotação do ser, seja por meio de um sentimento pulverizado

pela modernidade, manifestado, quem sabe, num simples gesto de gentileza.

O real nos escapa e, ficamos obrigados a coletá-lo com métodos que, vistos

exclusivamente de um ponto, são somente caricaturas de um mundo inventado,

devidamente convencionado pela ciência. Quem escapará dessa não imanência do

mundo em nós mesmos? Talvez a poesia que não encontra sentido na razão do homem.

Precisar-me como primeiro-anista na Academia é arrancar da tessitura interna

dos sentidos a perfeita sinonímia com as palavras expressadas, possibilitando uma via

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de compreensão que não se aloca na realidade vivida, e sim na marca impressa na alma

chamada a tomar o assento do escritor para a tarefa da escrita.

Um segundo plano nos incomoda também, este por sua vez, não por estar

situado no eixo que se figura no encontro da consciência com o mundo, mas, do

encontro da consciência com outras consciências. Nesse ato de encontro — que mais se

aparece como enfrentamento — é que situa-se o âmbito político da escrita. Não

podemos falar em neutralidade política. (O animal político de Aristóteles e a utopia da

neutralidade são reduções úteis para essa circunstância).

Se um aluno aprende na academia (e não me refiro especificamente a Academia)

a suportar a injustiça à custa de sua autonomia enquanto ser livremente determinado, é

porque esse destroçamento da justiça respeita um projeto político com vistas a alguém.

Quem é esse alguém? Esse alguém é um complexo articulado de práticas, uma plêiade

de humores descentralizados que se conjugam para a preservação de velhas mordaças,

velhas lógicas. É um grupo que não se define como tal. É um emaranhado de ideias

comuns, cristalizadas num discurso secreto rotulado de suposta tradição, suposto valor

em benefício da perenidade institucional.

A formação do jovem oficial está a serviço de alguém. Esse alguém-demiurgo.

Essa “causa instrumental aristotélica” faz da formação do oficial da PMMT, um

encadeamento de aparentes normas e regulamentos que se mimetizam para a

sobrevivência de um projeto paralelo autônomo de fertilização de cópias. Replicação de

métodos, práticas e apreciações comuns. O aprendizado se dá no que tange a

objetivação e não a objetividade. São dois planos que se sobrepõe sem se

entrecruzarem.

1.4 “Aluno não anda no pátio”: retratos do Bicho em três partes

São 3h da manhã e o vento beija o rosto do plantonista como um deus pedindo

guarida... Enfeitiçando os sentidos pelo desejo auspicioso do repouso, esse deus vai se

apoderando do corpo como numa hipnose. Morfeu, o deus grego dos sonhos atua sem

clemência. Lentamente começa a abraçar os bichos durante o quarto-de-hora do serviço

noturno — vulgarmente chamado de “quarto” na APMCV... — afinal, os bichos têm

menor “resistência” ao sono. São eles os mais suscetíveis aos ditames de Morfeu.

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O “manja” encontrava-se de serviço na função de plantonista e, durante o

intervalo para descanso, dormia profundamente; 3h40 fora persuadido a acordar para

assumir o seu “quarto”. Sua fama de dorminhoco angustiava aquele que iria lhe passar o

serviço de plantão, pois, como de praxe, poderia atrasar-se e, na alta madrugada,

qualquer minuto de sono é precioso. Três tapas firmes nas costas e o chamamento

habitual — Oh manja... manja... Oh manja r...! —. O manja se inquieta no colchão mas

não desperta... é chamado novamente, novamente... até que acorda, se levanta e se

equipa com o “cinto de guarnição” (visto que o serviço descansa fardado e calçado com

o coturno). Os procedimentos são todos adotados. Um cerimonial de passagem de todos

os postos de serviço da Academia é realizado. Todos os plantonistas que assumem o

próximo “quarto”, entram em forma e marcham até os postos onde receberão o serviço

daqueles que lá se encontram. O Manja assume o serviço “sem alterações”. O

plantonista que deixa o quarto-de-hora recebe a permissão para descansar do sentinela

(aluno do segundo ano que fiscaliza a “rendição dos postos”) e o Manja agora

permanecerá em rondas no posto até as 6h da manhã.

Muitos pensamentos ganham um colorido vivo durante o quarto-de-hora.

Misturado ao sono inebriante acabam contornando realidade e fantasia como

continuidades numa mesma perspectiva e, invencíveis que se tornam terminam por

enredar o sujeito da ação vivida ao fenômeno do sonho... nessa ocasião o plantonista já

se encontra encostado em algum canto de parede, ou árvore e, tendo muita sorte, poderá

passar desapercebido dos fiscalizadores.

4h30 da manhã e o sentinela responsável pela fiscalização dos postos percebe

que o Manja não se encontra lá. Percorre todo o posto, de lanterna em punho o chama

detidamente uma, duas vezes, pergunta aos demais plantonistas... Logo, entra no

alojamento a passos largos e de forma voraz procura a cama do Manja, para sua revolta,

lá está ele... Subjugado por Morfeu, espamarrado em babas de sono profundo...

Acordado à silvos de apito Manja se assusta e levanta atordoado. As explicações para o

episódio eu reproduzo abaixo...

— Oh... seu-aluno [referência ao sentinela do segundo ano] eu

tava no posto, mas, aí eu vi um sapo grande, um sapão que tava indo pro

alojamento. Aí eu fui atrás dele pra pegar e, eu fui correndo e o sapo

conseguiu entrar no alojamento e foi correndo muito rápido. Mas, ele corria

muito seu-aluno. E quando eu fui pegar ele... ele pulou em cima da minha

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cama e eu caí em cima dele na minha cama... aí eu acabei pegando no sono

[transcrição da fala do manja em 2004].

Depois dessa explicação extremamente coerente do Manja, todos os alunos do

primeiro ano — os desgraçados plantonistas...— foram acordados e prosseguiram

madrugada a dentro catando folhas e lavando banheiros. Tudo por causa de um sapo.

Maldito sapo.

1.4.1 A etnografia do CFO I parte I

No dia da apresentação os sorrisos foram comedidos. As falas eram cortadas

pelo decoro reverente que o ambiente exigia. Assim nos conhecemos, os futuros oficiais

da Polícia Militar do Estado de Mato Grosso. Todos “timidamente eufóricos”, prontos

para o sacrifício querido da formação. Cheguei a Academia com um companheiro de

turma (“Chiquinho Scarpa”) já conhecido. Para minha surpresa alguns se encontravam

já devidamente paramentados de camiseta branca, jeans e tênis preto (popularmente

conhecido no meio policial militar como “bichoforme35

”), outros (como eu e o

Chiquinho) ainda estávamos à paisana36

. Reuniram-nos na sala em que permanecemos

curiosamente os três anos seguintes tendo instruções, todos acabrunhados e temerosos

sem saber os próximos passos.

Naqueles momentos dávamos sinais externos estranhos, de pouca intimidade

com os mais simples atos da vida social, como se sentar, levantar-se ou mesmo dizer um

“olá” para o colega do lado, a anestesia era geral, o campo minado amortizava tudo que

não fosse singular a captura das sensações que cada um se via obrigado a registrar em

prol da sobrevivência naquele local, era preciso “sentir o clima”, daí, talvez, abstrair das

impressões desnecessárias pouparia o esforço dos sentidos, já canalizados para uma

tarefa específica. Em certo momento um determinado oficial entrou na sala de instrução,

todos silenciaram, se dirigiu até a lousa e escreveu com giz branco “quarentena”, em

seguida, nos olhou candidamente, apontou o dedo sobre a escrita e sorriu. Eu,

35

O “bichoforme” possui uma semântica interessante: a camiseta branca que o aluno neófito utiliza

demonstra uma “folha em branco”, uma “tabula rosa”; alguém que precisa ser modelado, construído,

forjado, ou seja, a camiseta branca infere a incipiência de uma folha em branco aguardando as cores bem

como remete pureza e candura. 36

O termo “a paisana” no seu emprego dentro da tecnologia cultural da PMMT refere-se além das vestes

utilizadas, também a própria figura pessoal de quem não é militar, isto é, o cidadão civil é nomeado nesse

contexto como “o paisano”. Além dessa expressão muitíssimo utilizada no recorte referenciado da

pesquisa, há também a figura do “corró” que nomeia, assim como, paisano, o cidadão civil.

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particularmente, pouco impactei-me com isso, talvez por não imaginar o que “isso”

representaria.

Alguns terceiro-anistas (os mais sagazes) como abutres circulavam ao redor da

sala esgueirando-se pelas janelas na expectativa de algum gracejo, alguma falha de

postura de qualquer neófito. Em certo momento adentra à sala o comandante da EsfO,

senta-se a frente, abre um envelope e passa a fazer a chamada dos presentes de acordo

com uma lista, eu fui o primeiro a ser chamado (tivera sido o primeiro colocado no

concurso) e assim sucessivamente todos tiveram suas faltas vistas, a posteriori, nos

apresentaram as dependências da Academia e na mesma ocasião houve um oficina de

demonstração de tiro e algumas técnicas policiais.

Na segunda convocação após essa amistosa apresentação pude notar ao longo de

um curto período na caserna (proveniente da empiria dura...) o quão importante é a

ferramenta da “ordem unida” para o “adestramento” de um grupo de alunos todos

desengonçados e sem postura adequada aos moldes militares. Falamos em ferramenta,

ordem unida e adestramento, expliquemo-nos. A primeira etapa da formação policial

militar do aluno oficial do primeiro ano do CFO da PMMT de acordo com o período

pesquisado e a experiência vivida dá conta do aprendizado, sobretudo, da ordem unida

inicialmente.

Dentro de todo escopo que se empreita a ordem unida possui finalidades muito

abrangentes, de sorte que, num primeiro momento serve para cultivar padrões de

marcha e deslocamento em formatura bem como de modo mais amplo incutir um

caráter de disciplina, de culto a valores cívicos de toda ordem, de respeito hierárquico e

de vigilância extrema. O nascedouro de uma cultura policial militar na APMCV passa

impreterivelmente pela ordem unida, ademais, é nessa ocasião em que o aluno é

mergulhado numa atmosfera que lhe compete assumir como um novo ser que nasce, um

ser que vem a ser (Merleau-Ponty) adquirindo como expressão corporal uma repetição

de movimentos marciais que lhe determina a agir sob ordem, a ter extrema atenção, a

fortalecer seu enlace com o grupo bem como se reconhecer promotor de todos os

valores apregoados, sempre na esteira de se re-afirmar enquanto ser que nasce.

Basicamente, o primeiro mês da formação do aluno oficial consiste em que ele

mergulhe nessa nova atmosfera do ser e isso acontece de maneira brusca e de forma

abrupta, que sequer proporciona ao neófito a possibilidade de conscientemente, e

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utilizando-se de uma razão sensível, determinar cada instante vivido. Ele se enxerga,

mas não se vê como consciência de si, encontra-se num turbilhão e o filme da vida

começa a acelerar-se a velocidade em que as cenas vividas tornam-se indiferenciadas na

percepção. Não se sabe as horas do dia nem o calendário do mês, tampouco existe um

mundo além dos muros da Academia.

E o passo inicial dessa ruptura abrupta ocorre entrementes a intensas instruções

de ordem unida, que a esta altura representa ao aluno oficial o que a linha infere ao

alfaiate, é com ela que se desenha um modelito novo e se constrói em pano de fundo

uma própria personalidade impingido-a na própria obra por meio do estilo. Dessa

forma, a ordem unida se transforma numa ferramenta que esculpi severamente o corpo,

por meio do adestramento para uma nova forma de se colocar no mundo enquanto

policial militar. Quando se fala em primeiro ano do CFO a conversa tem que girar em

torno de alguns eixos específicos, porém, inexoravelmente em torno da ordem unida,

pois a sua prática é extremamente repetida e cultivada.

Interessante a correspondência teórica com o pensamento de Deleuze e Gattari

proposto Lazzardo:

Também inspirado na leitura de mil platôs e de a revolução

molecular de Félix Guattari (...) reafirmo ser a sujeição social [aqui entendida

como a vida na Academia] e a servidão maquínica [corpo normativo-legal,

gesto corporal e técnico da atividade policial] duas modalidades diferentes de

produção de subjetividade no capitalismo (...) a sujeição social mobiliza

semióticas significantes, em especial a linguagem [conforme observado no

linguajar do aluno oficial], que se dirige à consciência e às representações

com vistas a construir um sujeito individuado [aluno oficila] (2011, p. 220).

Assim, a primeira instrução aos novos alunos é a disciplina de ordem unida. Não

como modelo formal com carga horária específica. Mas como meio de proporcionar ao

aluno neófito (bicho) já o início do período básico (período de adaptação) na formação

do aluno oficial para o recebimento do espadim Tiradentes na data de 21 de Abril

(término do período básico), de maneira que, existe no currículo da APMCV a

disciplina ordem unida, entretanto, a que nos referimos nesse momento é aquela que

preenche os períodos de estadia dos alunos anteriores ao início das aulas. Essa

instrução, especificamente, é cominada sem caráter curricular propriamente dito, pois,

se assim o fosse seria concomitante as aulas, com instrutor específico e períodos

delimitados durante e entre aulas diversas, fato que notoriamente não ocorre(u) em

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virtude até dos instrutores, no caso, terceiro-anistas da Academia que se

responsabilizavam por esses períodos de instruções, como meio de adaptar os novos

alunos às atividades da Academia, sobretudo, no que tangia as marchas e a postura

militar afetas a disciplina de ordem unida.

De fato, essas convocações anteriores ao período letivo nada mais eram do que

momentos em que éramos acelerados para o ritmo e as exigências da atividade

profissional de aluno oficial que, além do estudo acadêmico e dos policiamentos

eventuais tinha os desfiles e formaturas militares a cumprir.

A primeira instrução de ordem unida é algo singular na vida de um militar. O

desentranhamento de uma nova personalidade não é lá muito simples e requer algum

despertar “viril”. Dentre os “despertares” o de toda uma adequação sensório motora (um

manjar para qualquer pesquisador do corpo) das percepções de espaço e dimensão, num

jogo articulado de eixo corporal, direção e sentido.

Todo o corpo se concatena e mistura harmoniosamente na pisada firme um

equilíbrio altamente uniforme de mãos, braços e tronco, pés, joelhos e quadril; tudo

sincronizado e belo. Essa figura imponente do militar em marcha é forjada à repetição, à

dor e ao prazer de se querer ser policial militar. O aluno vai aos poucos se entregando ao

ritmo e ao ritual que encerra uma finalidade ideológica criando assim uma identidade

particular a partir da robustez de seus movimentos marciais e de seu grau de

marcialidade.

Com efeito, ressalvado o caráter instrumental da ordem unida representa ela um

início suntuoso da aproximação entre os alunos oficiais até então estranhos um ao outro.

A época da formação estudada o corpo de alunos era inicialmente treinado

individualmente, embora na presença de todos os demais e, utilizando de mecanismos

simples, um a um fazia-se os movimentos mínimos para que do individual se fizesse o

coletivo básico, que era a formação de tropa em forma, em suma, todos unidos num

bloco matricial compacto composto do aluno mais alto (testa) perfilando-se da direita

para a esquerda na primeira linha ao mais baixo em estatura (retaguarda) no mesmo

sentido e na última linha. O objetivo inicial era colocar a todos em forma e, com

movimentos simples já preestabelecidos, que todos pudessem executar comandos de

maneira uniforme respondendo-os com o passo ordinário de marcha. Logo, temos que

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para chegar a esse mínimo necessário era treinar individualmente, depois dois a dois,

três a três... Até alcançar o corpo total de alunos.

Todos à exaustão se entregavam aos treinamentos superando qualquer

intempérie do tempo e do corpo, seja na chuva, no sol ou com cãibra até no músculo da

face, cada aluno se doava religiosamente. De tudo isso ficava bem menos o aprendizado

técnico que a própria interação travada entre os alunos, ademais que, cada um passava a

depender do outro para atender uma perspectiva coletiva, dando sentido ao nós em

detrimento do eu.

Os alunos eram separados dois a dois (cangados) e, repetiam uma bateria de

movimentos dos quais deveriam retirar o que se pretendia e, a “metodologia”

empregada funcionava de modo a saturar individualidades beneficiando o grupo, — não

bastava que determinado aluno soubesse ordem unida, o importante era que o grupo

soubesse —, suplantando assim qualquer particularidade, ademais que, tais divisões

estabeleciam uma unidade coerente onde “se um erra todos pagam”. A coletividade era

um imperativo.

Já no início da formação, e logo na segunda convocação, passei a ter como

canga (parceiro de ordem unida, assim denominado na Academia) o “mamelão”. Por

sermos, ambos egressos do mundo civil, os erros eram inevitáveis e independente de

quem errasse o “dado era jogado”. — Mamelão ainda no primeiro ano, pediu “baixa” da

Academia, e no ano seguinte foi para USP (Universidade de São Paulo), estudar Física e

pouco tempo depois desistiu do curso, ingressando na AMAN (Academia Militar das

Agulhas Negras) posteriormente —.

O famigerado dado constituía-se num corolário de “penalidades” onde cada face

representava uma determinada “sanção”. Em uma das faces podia-se ler “dez flexões”,

ou “trinta polichinelos”, ou o mais temido “fazer exercícios de todas as faces”... o

“dadinho” como amigavelmente era chamado, representava bem mais um indicativo, de

que a eficiência deveria ser atingida a qualquer preço, que propriamente um cabedal

penoso de aflições físicas. Em certos momentos, os alunos até se divertiam com os erros

alheios — e quando isso acontecia, sempre havia um terceiro-anista observando, que

sarcasticamente perguntava ao risonho: “ta rindo de quê aluno? aproveite e já jogue o

dado também”—, mas comumente, eram obrigados a pagar (somente), a dupla toda vez

que um ou outro (cangas) errava. Determinado terceiro-anista, durante nossa formação,

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era chamado por nós de homem-dado, pois, onde se via ele lá estava o dadinho debaixo

do braço, sempre atrás de um primeiro-anista.

Dependendo do ânimo de quem confeccionava o dado, ele era impingido com

aflições um pouco mais pesadas, e dessa forma acabava perdendo a finalidade de

“domesticação dos sentidos ainda selvagens do aluno relapso e disperso” (uma tese

Foucaultiana...) para a atenção em benefício de uma atividade na ordem unida, por

exemplo; transformando-se num perverso mecanismo de controle e afirmação da

autoridade hierárquica de uma turma mais antiga sobre uma menos precedente.

Cabe fazer uma pausa digressiva aqui, para falarmos sobre o “Ernst”,

companheiro de turma que foi o último a aprender a marchar, e a praticar com regular

grau de satisfatoriedade os movimentos marciais exigidos para a ordem unida. Lembro-

me que o Ernst, teve o canga trocado várias vezes pelos instrutores, pois “não

agüentavam mais pagar por ele” tamanha sua inaptidão para os movimentos. Chegou a

marchar segurando ripas de madeira, tendo o canga a frente na finalidade de lhe

conduzir,— assim como se faz com marionetes —; o clarividente para conduzi-lo na

missão de ajudá-lo era o “pudim”— logo quem... —. Ernst sofreu um pouco, de

maneira que, não foram poucas as madrugadas no internato em que de meu beliche pela

janela o via marchando sozinho pelo pátio da Academia.

Os dias vão se passando antes de se iniciarem as aulas e, continuamente os

alunos chegam a Academia, para essas instruções básicas, cada dia mais cedo e

retornam para suas casas cada dia mais tarde, até que em dado ápice são colocados em

internato sem previsão de término, retornando para os lares somente às sextas-feiras

(isso, contudo senão estiver punido, o que é muito difícil de não ocorrer).

A união do grupo vai crescendo e, de forma muito rápida garotos começam a se

comportar de maneira diferente, dentro de uma vigilância constante. Havia olhos por

todos os lados e cada fração de atitude era julgada severamente. Para ilustrar a

necessidade da vigilância sobre as “afetações” comuns como carinho, solidariedade,

raiva, justiça ou injustiça necessário recorrermos a uma experiência singular. Durante o

período básico fora realizado na Academia um torneio de futebol inter-turmas, o que eu

não sabia porém era que o torneio tinha um campeão antecipado, o terceiro ano do CFO.

Iniciou-se o torneio e a turma do primeiro ano (minha turma então...) em disputa com o

segundo ano saiu-se vencedora — o que por si só já é um ultraje —, na partida contra o

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terceiro ano iniciamos a partida e logo no início fizemos um gol, daí por diante o

cronômetro parou e qualquer bola dividida era bola dada para o terceiro ano, qualquer

falta a nosso favor nem em pensamento se cogitava marcação e o árbitro da partida não

se melindrava em um só instante quando fraudava a partida, até que em certo instante na

minha sonora ingenuidade passei a dizer aos semideuses do terceiro ano que a partida já

era deles e que podiam inclusive terminá-la e erguer a taça sem que para isso

precisassem vencer daquela forma tão vergonhosa.

A partida foi interrompida imediatamente. E a “equipe” inteira do terceiro ano

veio em minha direção aos berros e quando dei por mim já estava em posição de flexão

com várias vozes no ouvido proferindo amabilidades. Em dado momento o Comandante

da EsfO determinou que a algazarra parasse e mandou que eu fosse a sua presença,

quando cheguei até ele me perguntou se a equipe do terceiro ano estava fraudando a

partida — ele sabia tanto quanto eu que sim — E eu respondi que... Não, a vitória era

justa e que havia me equivocado (talvez se eu dissesse que sim todos nós estaríamos

poupados dessa dissertação hoje). Durante aproximadamente três semanas

obrigatoriamente tive que comparecer no horário de almoço ao alojamento do terceiro

ano para quitar essa dívida, que foi devidamente paga por mim ao preço de muita

renúncia espiritual. Comecei a partir de então entender de fato em que circunstâncias eu

havia me colocado voluntariamente e muito me perguntava da honra e da moral tão

apregoada na vida militar.

O primeiro ano é um período de re-descobertas existenciais que provocam certos

decentramentos37

no ser em si, causando uma espécie de quebra de signos construídos

em detrimento da criação de outros. Seria como ossos quebrando à força dando espaço

para uma nova ossatura que cresce sob o esfacelamento do antigo esqueleto. Dói,

escamoteia, choca e agoniza o ser durante o processo. Pouco a pouco vê-se quebrado o

que fora construído, triturado e assim compelido por uma nova constituição. O ser passa

a se portar segundo um novo torque dentro dessa nova engrenagem e o que era já não é 37

Interessante à correspondência com Guattari “de certo modo ocorreu um decentramento da

subjetividade. E hoje me parece interessante voltar a uma concepção, eu diria, animista da subjetividade,

repensar o Objeto, o Outro como podendo ser portador de dimensões de subjetividade parcial: se for o

caso, através de fenômenos neuróticos, rituais religiosos [podemos falar em rituais militares?] ou

fenômenos estéticos por exemplo. De minha parte, não preconizo um puro e simples retorno a um

irracionalismo. Mas me parece essencial compreender como a subjetividade pode participar de invariantes

de escala, ou seja, como ela pode ser singular, singularizada no individuo, num grupo de indivíduos, mas

também ser suportada por agenciamentos espaciais, arquitetônicos, plásticos um agenciamento cósmico

inteiramente outro.” (2011, p.07)

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mais e uma relativização moral e intelectual profunda vai tomando corpo, formando um

caráter estranho mais necessário a sobrevivência.

Devo confessar que me consternei diversas vezes, por injustiças sofridas por

companheiros de turma e, devo confessar também, que em nenhuma dessas vezes à

época, tive vontade de repeti-las quando “minha hora” chegasse como terceiro-anista, é

evidente, entretanto, que um motor só fazendo vento para determinado lado é difícil

fazer marola no sentido oposto às ondas, pois faça o que se fizer, a água sempre vai

quebrar na rocha da praia, de maneira que, honestamente não foi uma ou duas vezes,

que repeti procedimentos que repudiei enquanto primeiro-anista.

Quando o “Manja” se apresentava aos terceiro-anistas como aluno soldado, por

força do hábito, (era aluno soldado antes da aprovação para a Academia) ao invés de

pronunciar a locução aluno oficial e como conseqüência o faziam subir e descer pelas

dezenas de beliches do alojamento, nessa ocasião ficava tentado a ver até onde meu

orgulho alcançaria forças para aceitar e, fazer com vibração e entusiasmo, toda uma

gama de submissões morais, de tanto trote sem sentido aparente. De fato nunca pensei

em deixar a Academia, e mesmo diante de algumas agruras o lastro que me segurava era

mais teimosia moral, que ideologia militar.

É preciso fazer considerações no escopo de afirmar que, a censura de uma

postura observável ou de um trote inconseqüente (mas ideologicamente embasado) não

é o mote de uma possível crise de formação instalada. Seja o trote que vier a ser, não há

um único apenas que se paute em fundamento diverso do “da construção de um ser que

renuncia a si mesmo em prol de um objetivo, de um status na esteira de determinado

culto”. Os epítetos são colocados e o seu alcance passa a ser uma trilha sinuosa e difícil,

— ninguém questiona o padre pela submissão ao celibato e sequer interroga a Igreja

pela sua imposição que é dada sob fundamento transcendental —, Guardada às devidas

proporções, quer se queira ostentar uma insígnia ou mesmo envergar uma farda

centenária é necessário corroborar tal conquista com o espírito que se assenhora daquilo

que fundamenta todo um sentido de ser daquele “totem” erigido. A pergunta a se fazer

não é se lançar mão de tais práticas é errado ou não, conveniente ou não... é preciso

redimensionar os senhores que cultuamos e perguntar se ainda os são compatíveis com

nossas missões do cotidiano presente e, enfim decidirmos se já não está na hora de

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demolirmos uma imagem que por força de seu culto faz de nós quem supostamente não

queremos ser.

Poderíamos dizer que o primeiro ano do CFO é um quebramento nada comum

aos parâmetros correlatos na sociedade, ou seja, não é nada parecido ao ingresso na

faculdade ou mesmo no serviço militar obrigatório; é em si mesmo, uma experiência

singular, em que pese, necessariamente; vestir-se sob a aparência de uma simples

formação profissional, é, sim, o Curso de Formação de Oficiais uma máquina “re-

dimensionadora”, um processo abrupto e contínuo de formação de novos espíritos.

As circunstâncias em que esse redimensionamento se processa são

interessantíssimas na exata em medida em que nos deixa pistas do que é ou não é a

Academia de Polícia Militar Costa Verde, enfim, dentro dessa caminhada às avessas na

busca de pistas pouco visíveis, é que construiremos o que possivelmente vem a ser uma

ou outra forma de se educar alguém para ser oficial de polícia.

Depois de nos adequar à ordem unida de forma desejável e ao padrão do que se

espera de um aluno oficial, novos signos vão se estabelecendo e, um a um vão

construindo, a seu tempo, dentro de uma atmosfera de sinonímia com seu elo inspirador

o que pretendem estabelecer. Dessa forma somos apresentados ao que eu costumava

chamar à época de degradação. Consistia basicamente em muita, mas muita, faxina.

O elo inspirador da “degradação” dentro do qual passei várias madrugadas

limpando o chão do meu alojamento, quem sabe seria, uma dose de humildade, de

compromisso com meu espaço físico, de respeito com a higiene... entretanto, disso tudo,

só construí ojeriza ao que mais fiz durante o primeiro ano do curso.

Tecnicamente, submeter-se a manutenção do ambiente em que se vive no ideal

de manter-lhe abstêmio à sujeira e à imundícia é um mote diante da qual não se admite

formação que se faça militarizada. Claro. Não há o que obstar. Ideologicamente, no

entanto, a coisa caminha em outra esteira, pois, se criava dentro daquele link de

correspondência com ideais inspiradores, um mecanismo cruel de produção e

fiscalização de serviço e metodização de costumes culturais inalcançáveis.

Por conseguinte, ao primeiro-anista cabia a manutenção da Academia, em suma,

a limpeza das instalações, daí e dessa forma a missão encerrava-se em si mesma, de

maneira que, tornava-se um fim em si mesmo. Porém, tal missão não era tomada com

esse fundamento, de sorte que, buscava-se com a faxina uma manutenção da hierarquia

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entre as turmas, da busca incessante pela perfeição e a pior, uma forma animalesca de

punição. Exigia-se mais do que podia se esperar de uma ferramenta tão tosca de

construção de caráter, de modo que, menos se aprendia com isso a medida em que se

afastava de sua finalidade básica, que era de produzir uma atmosfera de ordem e higiene

dentro de determinado ambiente.

A priorização da faxina tomava o rumo que chegava ao limite da insensatez

quando cativávamos a informação de que limpar, limpar e limpar era melhor que

estudar, estudar e estudar. Essa insensatez revestia-se ainda mais com o distanciamento

de sua finalidade e o encontro com o próprio desrespeito aos símbolos que se

pretendiam valorados. Fazia-se faxina fardado, com insígnias que institucionalmente já

guardavam proporções de comandamento na tropa, fomentando dessa forma um

desprezo “epistemológicamente correto” com a “cultura humanista da sala de aula”, mas

legitimado pela cultura da Academia, pois, para o aluno oficial essa era uma atividade

legal e embasada mesmo que ideologicamente viciada.

Tal vício erigido nessas equivalências com outros símbolos acabavam por

ocultar valores diante dos quais a instituição ante a sua perda, cada dia mais parecia

padecer. Cada vez que eu era obrigado a lavar sanitários além do mínimo “higiênico-

ordeiro”, me sentia desrespeitado como profissional e desrespeitando minha instituição;

como homem, entretanto, acobertado pelo manto do dever de grupo me sentia

solidarizado entre meus pares e quase sempre sorrindo diante de algum chiste e não raro

cantarolando com vassouras nas mãos.

Frequentemente a Academia sofria manutenções gerais e da mínima limpeza

dos ambientes graduávamos até a capinação do mato, a pintura das instalações etc.

quando muito, passávamos o final de semana inteiro nesse intento. As fiscalizações

rigorosíssimas seguiam-se numa escala de valores que não guardavam qualquer

proporção com o possível e viável, daí, era comum, que os alunos dobrassem a escala de

serviço ou fossem anotados e punidos com a perda da liberdade. Por conseguinte,

imagina-se a essa altura que isso é um panorama geral entre alunos, pelo que

ressaltamos definitivamente que não é. Somente primeiro-anistas faziam faxina.

Às impressões sensíveis salutar buscar na memória duas ocasiões na experiência

vivida. A primeira delas quando tive a palma da mão corroída com um produto a base

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de soda caustica após ter de limpar azulejos do banheiro. Sempre que olhava minha mão

enquanto sarava me indignava com o fato de ter suportar calado tais circunstâncias.

Lembro-me de um primeiro-anista, à época em que já me encontrava no segundo

ano, que fora flagrado por um terceiro-anista limpando o suor do rosto enquanto

esfregava o piso do banheiro, interpretado pelo terceiro-anista como que “cabulando a

faxina” ou como falávamos “acochambrando”, fora mandado a pagar flexões de braço,

até quando seu corpo já não suportava mais e a cana do braço trêmula. Daí, fora

mandado levantar-se e fazer polichinelos, quando cessou a contagem do terceiro-anista,

parou, olhou languido, escamoteado e sem forças e abruptamente desabou no chão

desmaiado.

A preocupação do terceiro-anista foi alarmada imediatamente em reaver os

sentidos do desfalecido e, foram aumentando na medida em que o aluno não respondia

mais, até que com muito esforço (e água gelada no rosto) ir voltando bem devagar, sob

os olhares otimistas do terceiro-anista que ia vendo sua carreira naufragar ante a

consumação de uma desgraça maior. O aluno foi voltando do desmaio até sentar-se e

posteriormente levantar-se.

Tempos depois, já Oficiais e com algum tempo longe da Academia esse então

terceiro-anista, ressuscitou essa história enquanto conversávamos, me disse da sua

imprudência, da sua irresponsabilidade e da “bondade de Deus” para com ele não

permitindo que um mal maior tivesse acontecido naquela ocasião. O primeiro-anista

veio a pedir baixa pouco tempo depois desse fato, não suportou a voga da Academia.

Certas caracterizações de um primeiro-anista, em especial, as coletadas pelo

autor não segue a linearidade cartesiana. Desse modo evidente dizer do sistemismo

empregado quanto a descrição obrada, da ruptura com uma descrição que polarizasse

uma interpretação cronológica temporal em detrimento de um transbordamento

inusitado de eventos singulares. Esse intento tipicamente global e multifacetado tem a

fisionomia de um corpo a ser visto a partir de suas múltiplas funções durante a atividade

e não como um somatório de partes independentes. Nossa visão é caracterizar o aluno

oficial, primeiro-anista, nessa ocasião, à voga sistêmica para compreendê-lo a frente

enquanto oficial mantenedor de uma cultura particular, resultado composto e

interdependente a uma multiplicidade de experiências vividas nos três anos de

formação.

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Esse cômputo dos três anos e suas devidas caracterizações cremos não seja de

soma zero. Em suma, as raízes dessa equação de três variáveis, não encontra respaldo na

unilateralidade dos anos por si só. É justamente a conspiração profusa desse caldo

cultural que dá noções do ser em investigação. Vê-lo (o aluno oficial) sob o óbice

mecanicista é mais uma metodologia conservadora adotada por nós do que uma

estratégia para a compreensão. Infelizmente a academia não está preparada para fazer de

uma prosa antropológica um tratado científico e vice versa.

Falando ainda do primeiro-anista imprescindível tocarmos em ritos simbólicos

de aguda importância na caracterização do “bicho” na APMCV. O primeiro é o

recebimento do “Espadim Tiradentes” o segundo é a “Festa do Bicho”.

Quanto ao primeiro evento representa, sem sombra de duvidas, o ápice da

missão desempenhada pelo primeiro-anista na Academia. É o momento em que é

definitivamente declarado como aluno oficial da PM. Representa ainda o encerramento

do período básico de formação e o primeiro contato do neófito com o comando da

instituição, a comunidade e a tropa. A formatura militar de 21 de Abril em alusão ao

patrono das polícias militares desencadeia todo um predicado na formação do aluno

oficial, pois, marca o recebimento do símbolo do aluno oficial. O Espadim Tiradentes.

Desde que o passo ordinário é realizado ao padrão do exigível para um aluno

oficial o primeiro-anista começa o treinamento para a formatura de recebimento do

espadim. O suor descendo sob o “bichoforme” enquanto o sol queimava a pele, a boca

seca ansiando a água bradando o grito de guerra já automatizado pela repetição, o som

de passos firmes e o cheiro do desodorante barato misturado na turba de garotos, assim,

a ordem unida para “o espadim” saía da manhã entrava pela tarde avançava a noite e

terminava pela madrugada.

Certos movimentos eram feitos sem comandos de voz. O que exigia toda uma

performance nova ao primeiro-anista. Cada turma tinha a sua “ordem unida sem

comando” e cada uma tinha a missão de conferir ano a ano, maior grau de dificuldade

aos movimentos novos ou, dar aos já existentes mais marcialidade. O treino para o

espadim é um imperativo duríssimo na APMCV.

Na formatura de recebimento não se pode errar. É durante esse evento que os

olhos da PM se voltarão aos futuros oficiais. Momento em que muitas conclusões são

sacadas a partir de mínimos detalhes, como uma farda mal envergada, uma postura

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inadequada ou em grau de elevada gravidade, se durante os movimentos algum aluno

erra.

Tudo deve ser calculado, tudo deve ser levado ao exagero das minúcias, seja um

olhar, um giro de cabeça ou a posição de um dos dedos sob o espadim. Cada ponto é

checado e, cada um merece uma atenção especial. Treinava-se o tempo de execução de

cada movimento, e a partir daí, a padronização era um referencial para a qualidade dos

movimentos.

Durante o treinamento os alunos munidos da medida do espadim, cerravam

cabos de vassoura para utilizarem durante os ensaios — evitando os desgastes eventuais

no “espadim original”, gerado em ocasiões de treinamento na chuva, garoa e do próprio

suor ou exposição ao sol —, o nome era gravado nos “espadins” e, durante meses era

com eles que treinávamos. Algumas vezes tais “espadins” eram esquecidos pela

Academia e, quando achados por um terceiro-anista custavam alguns pernoites.

A essa altura, o corpo de alunos do primeiro ano já possui um mínimo de

identidade e espírito de corpo. Certos epítetos já encontram-se estabelecidos, em

especial o linguajar, e uma nova voga nasce dia-a-dia sob os limites de novas fronteiras

simbólicas. Tais fronteiras não se destinam a dar opções de escolha ao aluno em aderir

ou não a determinados referenciais, se situam como grades que compelem a uma ação.

Não se nota quando ou de que forma passa-se a adquirir um novo vocabulário,

tampouco se opta em aderi-lo, ou, não. Gradualmente o primeiro-anista vai se

assenhoreando de um novo status, diante do qual se exige relevante papel a ser

cumprido, especialmente, dentro dos muros da Academia.

Quando os referenciais de linguagem são estabelecidos um profundo senso de

intimidade passa a ser compartilhado entre os alunos, de sorte que, o novo circulo social

é como uma passarela ao novo mundo.

É o momento por meio do qual o aluno vai se vendo, e passa a ver de fato como

a atmosfera está sendo pintada. Abre-se o leque para além dos sentidos, na perspectiva

de perceber como o desenrolar do contato face a face se expressa, antes, tão somente

captado enquanto vibrações sinestésicas genéricas.

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1.4.2 interlúdio culturalista

Os contornos subjacentes a este dispositivo de interação social, que se

particulariza numa “fala singular” ou, num “jeito de falar”, extrapolam a necessidade do

adquirente (primeiro-anista) em situar-se noutro plano social. Deságua, sobretudo, num

caudaloso sistema, intricado de relações que se entrecruzam em vários contextos. Ao

falar, respeitando uma “identidade nova”, o aluno oficial, pouco a pouco passa a

negligenciar velhas maneiras de falar ou, até mesmo gesticular diante daquele mesmo

cenário. Quando esse aluno passa a falar como aluno oficial, passa a trazer consigo não

só um novo dispositivo de fala, carrega, arrasta; todo um aparato engajado à fala e

dissocia de si o que lhe contradita ideologicamente, veladamente. Cercam-se, amiúde, o

neófito de características singulares, que no fim possuem o condão de não só o fazê-lo

parecer ser policial militar, mas, a pensar como tal e, peremptoriamente, assumir

prescrições morais e éticas que o habilitem ritualisticamente a ser quem, eventualmente,

ainda não é.

Quando passo a me comportar como aluno oficial desenho, através dos ritos a

que sou submetido, a caricatura do que vem a ser o que se propugna para que eu seja!

Em suma, vejo-me no espelho que são meus próprios superiores e, por eles me ajusto,

me enquadro e, assumo de forma mais evidente quando falo um estereótipo, cujo valor

agregado, supera uma simples maneira de falar. Traz consigo todo um ato político.

Por conseguinte, se nomeio o cidadão civil de “corró” através do linguajar

“policial militar”, não o faço apenas de forma jocosa. Além do “chiste”, existe

fomentado na raiz todo um simbolismo sem o qual não há motivos para se ilustrar o que

entendemos por “cidadão civil”. Há um grau de ideologia subjacente que habilita o

falante a pronunciar o correspondente e, nesse contexto quando o aluno oficial passa a

se comportar como policial militar, sem notar (inicialmente) passa a ser uma pessoa

ideologicamente comprometida. Num dado momento limite o parecer ser e o ser

harmonizam-se, dando ao sujeito o caráter uno. Um conjunto de habitus se assenhora da

pessoa, isto é, vejo-me como policial, penso como policial e sou policial. Essas etapas

são construídas e os ganhos culturais são cumulativos, a ponto de tornarem-se um

caminho sem volta ao individuo.

Mas qual o fundamento engajado na fala? Nos epítetos construídos? Nas formas

de expressão?

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Essas são as questões a debruçarmos, caso queiramos de fato fazer-nos entender.

É desse ponto clímax que poderemos construir os alicerces do desvio cultural presente,

da qualidade particular que diferencia o aluno oficial — e por que não o próprio policial

militar? — dos demais membros da sociedade. Antes de regressarmos ao recebimento

do Espadim Tiradentes e entrarmos na Festa do Bicho é bom que se frise, o que

nomeamos como uma digressão esclarecedora, a noção de desvio (ou tipo desviante38

).

Comecemos por um dos aspectos mais sensíveis da discussão, a diferença, e a

necessidade de assim o ser.

Falaremos a frente sobre a noção de autoridade do policial militar. Iremos,

calcados nessa construção (a de autoridade na visão do policial militar), pontuar alguns

posicionamentos tidos por conseqüentes lógicos dessa perspectiva agregada a outros

fatores sociais, contingenciais para o policial. Porém, por agora, necessário entendermos

a autoridade (facultada ao policial pelo Estado), tão somente como grau formal que

diferencia um cidadão civil de um policial e, a partir disso, cotejar algumas notas.

Sentir-se distinto dos demais membros da sociedade é uma exigência prévia.

Quando o policial passa a ser policial, tem de estabelecer para si mesmo uma série de

supedâneos que dão conta em última instância de que “não é melhor, nem pior que

ninguém, apenas diferente”. Essa máxima do senso comum de caserna, por assim o ser,

já internaliza para ele, diante de um cenário absolutamente insuspeito, de que é diferente

do cidadão civil e, isso o compromete a ter e assumir, determinadas posturas que vão

além daquelas que, na formalidade da expressão comum, já assinalaria o porquê da

assertiva. Em suma, não basta o desprendimento da própria vida para diferenciar

policiais de cidadão civis, o que pinta o cenário da diferencia é o plus que a cultura

policial constrói na finalidade de colocar o cidadão civil, numa posição de somenos

38

Becker caracteriza de forma poderosa a noção de desvio em seu livro outsiders, conforme aponta:

“quando uma regra é imposta, a pessoa que presumivelmente a infringiu pode ser vista como um tipo

especial, alguém de quem não se espera viver de acordo com as regras estipuladas pelo grupo [podemos

fazer alusão ao mundo normativo/legal que norteia a ação policial]. Essa pessoa é encarada como um

outsider (...) o desvio não é uma qualidade que a pessoa comete, mas uma conseqüência da aplicação por

outros de regras e sanções a um “infrator”. O desviante é alguém a quem esse rótulo foi aplicado com

sucesso (...) além de reconhecer que o desvio é criado pelas reações das pessoas a tipos particulares de

comportamento [comportamento tal gerado pela cultura de grupo], pela rotulação desse comportamento

como desviante, devemos também ter em mente que as regras criadas e mantidas por essa rotulação não

são universalmente aceitas [motivo reforçado dentro da “cultura marginal” ao grupo que rotula]. Ao

contrário, constituem objeto de conflito e divergência, parte do processo político da sociedade (2008,

p.17-28).

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importância, em detrimento dos desprendidos homens da lei, aqueles que enfrentam a

morte e toda sorte de perigos em benefício da sociedade.

A noção de autoridade dá a deixa para a legitimação da diferença, em

contrapartida, seu caráter mais pesado fica no eixo que enquadra o policial como um ser

que encara todo um sistema social vigente, como inadequado para sua forma de apreciar

o mundo ou, de como toda essa ordem social estabelecida é feita desrespeitando seu

caráter distintivo. As regras sociais numa leitura mais radical estariam em suspenso para

o policial, que as vê como um mote necessário a sociedade, mas, em muitos casos

intangível a sua personalidade e modo de vida.

Essa habilidade de compreensão gerada, dentre outros fatores, por aplicar em

seu estado mais primitivo o poder da coerção, da força bruta, dá-lhe em determinada

dimensão a necessidade e, por conseguinte, a autonomia, para aplicá-la segundo

critérios que, entende plausíveis, para outra determinada circunstância vivida na

atividade. Quando na função, o policial se desprende de regras sociais estabelecidas e

formalizadas e, por entendê-las como negligentes a realidade que apalpa em seu estado

mais cruento, dá cabo de uma dinâmica própria de atividade, ele diz de forma bastante

clara: “olha essa é a minha cultura”. É a pura estilização técnica de quem ele é como

ser-policial. Não se trata de ser profissional. Trata-se de ser policial. Aquele que está no

front, que está a ver o branco do olho do “inimigo” social. É o fio da navalha. Dois

contextos são construídos: aquele em que um milímetro de fuga a essa pretensa “moral”

do ser-policial, e, se irrompe a barbárie, a comiseração dos direitos humanos, e a

controversa relativização moral da violência e da corrupção.

Na outra ponta, enquanto estabelecimento de sua cultura, talvez seja a face que

se apresente mais fecunda a demonstração de uma cultura, e talvez a que mais choca.

Para o aluno oficial esse enfrentamento paradigmático demora três anos (o período de

sua formação) e, quando à hora chega está pronto a digeri-la. Continuando, gostaríamos

de falar mais sobre o “senso comum da caserna39

” que reforça o condão da diferença

através da noção de cultura.

39

A noção de senso comum de Geertz é a diretriz para a nossa apropriação, conforme ele aponta em “saber local” onde exatamente

está a diferença [cultural]? A questão não é se existe uma forma elementar de ciência a ser descoberta nas Trobiand ou uma forma

elementar de direito entre os Drotses, ou se o totemismo é “mesmo” uma religião (...) trata-se, sim, de saber até que ponto, nesses

vários lugares, os aspectos da cultura foram sistematizados [como] ciência, religião, ou direito (...) quero voltar-me [em contrapartida] para uma dimensão da cultura que não é normalmente considerada um de seus compartimentos organizados, como

acontece com estes setores mais conhecidos da alma. Refiro-me ao senso comum. (...) tudo isto reflete esta tendência a buscar as

respostas para os mistérios mais profundos da existência na estrutura do pensamento corriqueiro, pé-na-terra, trivial (2009, p.112).

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70

Quando um aluno chama o outro de “caga-pau”, “mocorongo” ou, “bisonho”.

Cria-se não somente uma liga direta de comunicação objetiva; tem-se, além, toda uma

construção subjetiva engajada, diante da qual se opera a construção de símbolos no

mundo dos valores.

É comum, com efeito, ser chamado de “caga-pau” enquanto primeiro-anista, mas

não o é enquanto oficial, quiçá receber o emprego dessa expressão sendo oficial

superior... esse estreitamento lingüístico entre os participantes dá conta de que estão

sintonizados num mesmo canal de freqüência, imbuídos na mantença do canal e

convictos de sua nova natureza. Não é um sinal extrínseco que toma forma a partir de

determinados contextos é mais um sinal adquirido, um ganho, um acréscimo sensível na

tomada de uma nova aspiração ideológica de quem até mesmo já se olha como

“diferente”.

Quando um primeiro-anista se dirige a alguém como “serra fox” ou “801” temos

aí, preliminarmente uma dupla constatação: a) o aluno não se constrange em assumir-se

de posse de um novo vocabulário e, b) faz isso sem consciência reflexiva, apenas

empresta um significado congênere para algo que já conhece. “Serra Fox” no ideário

lingüístico policial militar dá conta de algo ou alguém... “sem futuro”. Usam-se as letras

S e F do alfabeto fonético utilizado para as comunicações via rádio, “Sierra” e “Fox”,

para abreviar o que seria a locução “sem futuro”, ou seja, “serra fox”. Comumente já na

maximização do emprego se ouve nos nichos policiais militares as expressões “mas

você é bem serra hein!”, ou, “você é serra fox dobrado!”.

Já o numeral “801” encontra significação na pessoa desajustada mentalmente, na

pessoa desequilibrada, débil, louca... Encontra origem num antigo código de ocorrências

policiais cujo numeral “801” dava conta de procedimentos adotados para o atendimento

de ocorrências com loucos. Ouve-se, em relação a esse termo no cotidiano, “fulano é

oito dobrado” ou, “sicrano é oitocentos”. Existem, entretanto, inúmeras formas de

expressão que caracterizam um típico linguajar policial, para sermos mais precisos é

imperioso inclusive dizer que certos nichos de convivência além das generalidades dos

usos e costumes da “língua policial”, a extrapolam criando novas expressões, novas

analogias e particularidades lingüísticas que são compartilhadas quase como

“regionalismos” de batalhões para batalhões. Poderíamos dizer que o “falar” e as

simbologias mais correntes na PMMT e via de regra na Academia, não os sejam nos

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demais batalhões Brasil à fora, embora facilmente compreendidos entre si. É possível

ainda, que mesmo no universo policial da PMMT, tenhamos várias formas de emprego

corrente do uso e costume empregado no linguajar cotidiano que caracteriza o policial.

Dessa forma, temos assim uma variedade de máximas e modelos de projeção do diálogo

e suas respectivas semânticas, mais filiadas a um determinismo de grupo do que a uma

cultura genérica.

Quando o aluno adota um vocabulário especifico toma posse de uma nova

perspectiva e se assemelha a quem assim procede. É um dos ganhos culturais mais

palpáveis que se possa fazer constatar: a presença de uma nova projeção no diálogo

acordada a um dinamismo grupal particular.

Claro, estamos todos imbuídos da tarefa de representar um papel na sociedade. E

de certa forma assim como o padre, o médico ou o taxista, cada um de nós dentro do

que caracteriza o status profissional adquirido, possui um compromisso (muitas vezes

imperceptível) para com uma ordem social vigente que determina o estereótipo padrão

de seu grupo. Pesando-se os prós e contras, desse ponto de vista, nada mais coerente

que o bandido caracterizar-se por um jeito peculiar de ser. Inexoravelmente todos

possuem uma máscara atrás da qual externalizam representações que a sociedade

constrói a partir de impressões históricas. Gilberto Velho faz uma admirável síntese do

tema quando expõe:

O fato importante é que estamos lidando com um conjunto de

símbolos que vão ser utilizados pelas pessoas nas suas interações e opções

cotidianas, num processo criativo ininterrupto havendo alguns mais eficazes e

duradouros do que outros. A relação entre o desempenho de papéis e esses

conjuntos de símbolos constitui uma questão estratégica para a antropologia

social (2008, p.15)

Esse tal compromisso com a representação que se faz do grupo bem como a

impressão histórica que a sociedade constrói das carreiras é o ponto sensível do debate.

Portanto, falar em profissão é falar antes de tudo em status social e de um papel

assumido. Evidentemente que, não são exclusivos na determinação de uma conduta

social, especialmente, porque quando falamos em status social o fixamos na única

perspectiva que se deseja para a análise em voga, em suma, aquela que se instala no

âmbito profissional do sujeito, de sorte que, podemos ter uma inegável liderança militar

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dentro do quartel dando-se amigavelmente à subserviência em seu lar, obedecendo

categoricamente aos ditames da(o) esposa(o).

Vê-se, dessa forma que, a lógica operante na construção de um status social vem

de fora para dentro, compelindo, encapsulando quem se habilita a vestir determinada

capa profissional, promovendo a compressão das individualidades no que aprendemos a

nomear como “papel social”. Logo, o status nada mais é que: “generalizações sociais

sobre o profissional, baseadas no senso comum!”, ao passo que o papel social vem ser a

resposta do indivíduo a tais generalizações, sempre confortando-as através de um

conjunto de características.

Indo ao que interessa, salientamos que, para construção de um status profissional

do policial precisamos dizer inicialmente que nas sociedades capitalistas o que a

determina sobremaneira é o poder do capital. Em suma, pleiteamos que na determinação

do status social a influência da variável capital prepondera sobre as demais,

conquistando do meio social, numa ordem direta, o nível de tolerância, o nível de estima

e os níveis de deferência e valor moral compatíveis à quantidade de capital abarcado

pelos membros desse grupo. Assim, tanto mais terei a tolerância, a estima e o respeito

da sociedade quanto mais capital manejar. O segundo ponto preponderante seria a

impressão histórica imanente ao grupo, seja profissional, étnico etc.

Historicamente posso concluir que os negros são discriminados ou, ainda que, os

orientais sejam disciplinados, os políticos corruptos, os nordestinos rudes e os

gaúchos... sistemáticos. Defendemos que o capital é a única variável que prepondera

sobre uma impressão histórica, assim, mesmo um negro rico pode sofrer preconceito o

que, em contrapartida, é drasticamente mais previsível caso ele seja pobre, quem sabe

ainda, até mesmo o político pode comprar um “ar de probidade” e angariar votos, um

bronco nordestino, mas rico! ser aceito na society e até o mais sistemático dos gaúchos

transparecer a mansidão e a longaminidade dos homens serenos. Os símbolos

construídos socialmente, respeitando os caracteres preponderantes à nossa visão, inter-

relacionam-se em diferentes medidas, mas, obedecendo alguns critérios, como clareia

mais uma vez Gilberto Velho:

O problema, mais uma vez, é verificar o peso relativo dessa

experiência em confronto com outras como a identidade étnica, a origem

regional, a crença religiosa e a ideologia política. Uma questão interessante

em antropologia é, justamente, a procura de localizar experiências

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suficientemente significativas para criar fronteiras simbólicas. A gramática e

lógica do desempenho de papéis pode ser discrepante dentro de uma

subcultura e perfeitamente razoável em outra (2008, p.16).

Esse conjunto de “estigmas” perpetuados ao longo do tempo situa-se na tênue

linha que une o imaginário popular acerca do grupo, dos fatos mais impactantes

realizados por esse mesmo grupo no contexto social. Por conseguinte, cria-se assim

dentro dessa perspectiva (linha) imbricada, um ideário cuja roupagem idealizada, adere

ao sujeito vislumbrado conferindo-lhe estampas ora advindas dos saberes populares

(senso comum), muitas vezes “viciados”, ora de um conjunto bem ordenado de fatos

que dão aparente lógica a essa palpitaria. Ficando, assim, o estigma gerando impressões

nesse campo de forças. Daí presume-se então, segundo critérios pouco objetivos, um

modo específico de ser e agir aos grupos e, não são raras as vezes que tal presunção

naufraga diante da mais simples descrição científica.

Para o policial pesa uma impressão histórica extremamente detrimentosa de mais

de três séculos, somados os períodos antidemocráticos do Brasil ao longo de mais de

500 anos. Aliado a esse fator agrega-se o sonoro desprestígio oriundo da completa falta

de poder de barganha na sociedade, leia-se, — poder de compra —, pelo policial. Com

efeito, surge nesse cenário uma impressão de policial construída pela sociedade que

reflete no digno e atual soldado, o feitor do período colonial, o jagunço da república

velha, o pistoleiro do estado novo, o agente do DOPS ou como conhecemos na

atualidade pela alcunha de Cap Nascimento. Lembrando-se que para esse mesmo

público não fora dado o poder de se comprar posição, deferência e prestígio, nesse

nobre cabaré chamado sociedade, onde isso, obviamente, custa muito caro.

Essa construção adquirida como “representação” bem mais se parece com uma

síndrome. Ademais, quando incorporada pelo policial passa a exigir a retroalimentação

do sistema, procedido da seguinte forma: “você diz quem eu sou – eu passo a assim ser

– você me identifica com o modelo e diz quem eu sou – eu passo a assim ser...”;

obedecendo a um critério externo pouco afeto a profundidade ontológica do ser-policial.

Aliás, isso sequer vem ao caso.

Criado esse domínio internalizam-se as conjecturas sociais, particularizam-se os

atores e acabam por beneficiarem-se de relações mutuas de camaradagem e

solidariedade. Um ponto, entretanto, é de importantíssima elucidação. Trata-se, que a

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representação social é uma classificação imposta. É apenas um molde diante do qual se

forja a matéria bruta, levando-se em consideração tão somente a perspectiva plural da

sociedade classificadora.

Em contrapartida, tal representação nos domínios culturais do sujeito

“classificado” possui flexibilizações que em certos contextos mais distam que

assemelham ao modelo informado socialmente. Literalmente diríamos que a

representação social que informa o status e o papel social, nada interessam aos

princípios (Kant falaria em imperativos...) categóricos que definem o que porventura

venho a ser enquanto profissional. Pese o fato de que mesmo contrastando ao que

realmente entendo como sendo minha caracterização mais próxima, não vá, por pura

contingência, a assim desempenhar tal papel.

Essas tessituras externas modelam tramas (internas) que por si só dão escopos,

em muitos casos, distintos a veste que se estampa superficialmente. Suscitamos como

exemplo diversos grupos desviantes, como os usuários de drogas, na maioria das

circunstâncias fazendo de si imagem amplamente distinta do imaginário popular sem,

contudo, dissociarem-se da representação social que deles se faz. Isso se dá ao ponto de

que, mesmo um viciado não será assim nomeado senão representar determinado papel

que a sociedade entenda necessário para caracterizá-lo.

Em andanças fenomenológicas tenho construído, através de descritivos

inquéritos (epoché), que exista um “caos ordenador” cultural. Que é subterrâneo ao

ambiente cultural sensível e que lhe é causa direta e conseqüente. Uma espécie de

estrato pré-perceptual das relações humanas, aonde o ininterrupto vir a ser da cultura

resida sob a forma de uma experiência ainda intangível à experiência imanência, etapa

que é imediatamente anterior à imanência que outrora ocultada, aparece para nós como

cultura.

Penso que, este estrato de perceptos humanos é o local onde as múltiplas

colisões humanizadas pela teia social estabelecida, espraiam-se a todo instante,

recombinando-se numa nova circunstância vivencial, mais mundanizada, isto é, mais

em sintonia com o mundo das coisas do cotidiano, com o mundo que simplesmente

aparece para nós, de maneira que, à medida que se ajusta a um mínimo de corporeidade,

sobretudo, através da linguagem, expressam-se como cultura. Com efeito, acabam por

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acontecer em forma de eventos partilhados, sentido e comungado coletivamente. Chamo

este “evento” de eventos críticos, e retornaremos a ele linhas à frente.

A idéia de um caos no “intestino” — essa palavra é proposital... — das relações

sociais pode parecer um logos adaptado às contingências do presente século — mais

especificamente, da presente teoria... — entretanto, os sintomas que invocam essa

suposição quase análoga — bem recorrente na filosofia grega... — são bem maiores que

a licença de plágio que a história da filosofia, eventualmente poderia nos conceder

através do essencialismo helênico, ou, do que séculos depois Lévi-Strauss poderia nos

oferecer com o nome de estruturalismo.

Em contrapartida, se pensarmos o dito “caos ordenador” como Logos no sentido

que Heidegger o cunhou em Ser e Tempo, isto é, derivado do verbo legein que quer

dizer recolher e expressar o que se mostra; poderíamos agora, filiados à idéia de logos,

confessar uma identidade de idéias: caos ordenador e logos Heideggeriano.

Aprofundando um pouco mais nossa metáfora do caos ordenador, citamos o trecho da

lavra da profa. Dulce Mára Critelli:

O que as coisas são não está nelas mesmas, em si mesmas, mas

nesta relação inextirpável entre um olhar e a coisa. Os entes manifestam-se

em seu ser através do Logos (...) Logos é, também, a segunda expressão

donde a fenomenologia retira sua denominação. O olhar (logos) não

individual, exclusivo de um indivíduo concreto que olha e vê, seu olhar é

composto por todo o referencial das relações significativas do mundo em que

habita (2006, p.62).

Por conseguinte, partimos da idéia de “caos ordenador” como um contínuo

acréscimo de relações que ao tomarem força nos símbolos de sua partilhação coletiva

adquirem, usando-se da linguagem como meio, o grau de uma cultura minimamente

definida e traduzida ao coletivo que se insere. A cultura enquanto ente pode fazer com

que a idéia, seja transladada de um estado transcendental (aqui chamado de imanência

em ocultamento!) para um estado material. Não obstante, os infortúnios do

deslocamento das vivências para o plano teórico — perdido em boa medida já de início,

por conta da completa e funesta ausência de oralidade e vida nas palavras, isto é,

perdido naquele poder inexplicável que as palavras possuem: em matar exatamente o

que designam... — a cultura traz do campo do espírito os emblemas idiomáticos das

letras cunhadas pelo pensamento comum ao grupo. E que emblemas são esses? São

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todos os aspectos vivenciais que pelo seu grau de mundanização e diálogo coletivo

adquirem força imperativa de replicação naquele grupo.

Esses aspectos vivenciais são estados de graça — ou, (des)graça —, lampejos do

espírito criativo coletivo que, sintonizados pela linguagem numa veste densa e

pluriforme, são traduzidos em múltiplas facetas culturais, por exemplo, por um leve

sobressalto tônico e semântico nas frases e orações, dando origem as gírias — as

neofrases, neoorações... —, são traduzidos também num símile arquetípico de animal

na postura, dando origem ora a uma luta marcial — como o Kung Fu — ou a uma forma

de dança típica, são traduzidos ainda por um jeito típico de andar, cruzar as pernas ou

simplesmente fumar um cigarro, dando pechas de um perfil cultural adequado àquela

entidade imaterial então presente na idéia, ora cunhada no corpo como signo de

malandragem, por exemplo...

Certos eventos em si, os eventos críticos aos quais aludi no início, são como

explosões estelares. Emana vida. Se pensarmos que o caos intra-grupo em determinados

contextos explodem em benefício de uma “coisa” articulada coletivamente, podemos

nomear essa “coisa” como a cultura dessas rochas colapsadas pela colisão — ou seres

humanos... em múltiplas colisões —, podemos dizer ainda que o acúmulo de contato,

interação ou multi-interação entre as partes, isto é, entre os seres — ou entre as estrelas

— é a energia necessária para dali forjar um espaço de identidade humana entre as

partes. Portanto, fica fácil constatar que a fórmula de uma cultura é a interação entre os

seres! Assim como, para a possibilidade de vida a explosão de estrelas, pois, como já

nos dizia Nietzsche “é necessário ter o caos cá dentro para gerar uma estrela”.

Essa teoria parece ser trivial, porém, é só o que aparece. Pois, o contato e a

exposição desse(s) evento(s) crítico(s) de criação — da imanência oculta, suposta

“transcendência” até a imanência aparente, revelada nas coisas —, requer condições

singulares de possibilidade. No contexto humano, espaços ideologicamente construídos,

isto é, coletivos ambientados em condições de engenharia comportamental não forjam

senão a força motriz do engenho que lhes proporciona o labirinto, salvo, quando

conscientes da domesticação imposta.

Continuando com nossa metáfora-guia, podemos ilustrar ainda que após a

colisão estelar uma nuvem de poeira cósmica engendra o que, após o reagrupamento, dá

a tona de uma condição de possível mudança “ontológica”, ademais, se uma explosão

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estelar ocorre, parece justamente ocorrer para que uma mudança ontológica se anuncie,

isto é, dentro de uma margem especulativa seria dizer que, quando a nebulosa se forma

a faz com o mote de proporcionar uma condição de não-ser para uma condição de ser!

De uma condição de aparente negação absoluta para uma condição de real asserção

absoluta.

Perceba que o iter cultural, sua “natureza revelada”, a “peculiaridade sentida” de

um coletivo cultural precariamente definível, está longe de ganhar a estrada que aponte

que: ela saia do imanente para o transcendente (imanência oculta). Penso que é

justamente o caminho oposto que ela siga, saindo do oculto e ganhando a imanência

revelada — como num corte feito até o nível do estrato que o caos das relações

humanas engendra, gera, cria, revela! —. O mundo social como Durkheim entendia —

ou “definia”... — como sendo um “pré-existente total que dá a moldura aos

indivíduos” é o ponto que queremos tratar aqui.

Vamos imaginar — é o método que melhor se presta à empreita — um conjunto

de garotos confinados num ambiente de aceleração moral ininterrupta. Onde o estresse

mental e a fadiga física e toda uma gama plural de afetações na esfera do ser, do querer

e do pensar, são os elos que fortalecem a robustez de uma identidade do grupo.

Imaginemos ainda, um conjunto de ações: movimentos, associações, retrações,

disjunções... em torno da: a) vontade de potência, b) do signo comum de poder, ambos

na perspectiva de se formar — para os militares... formar, adestrando-se — tudo na

perspectiva de se (im)por enquanto/como líder!

Agora vamos proceder a um segundo exercício de imaginação. E por alguns

instantes vamos percorrer os corredores de um presídio. Sim, de um presídio...

Iniciemos pelo portão de acesso e as filas em um dia de visita. Mulheres em frenesi

angustiante, outras debulhando caladas, seus respectivos rosários de aflições, outras

ainda em aparente harmonia com o contexto, seguindo a mesma sorte de quem se

encontra em cativeiro, outras mais quem sabe imperscrutáveis mesmo aos olhares

etnográficos mais mordazes.

Tomemos os olhos dessas mulheres e adentremos ao presídio, e rapidamente

com o espírito agudo podemos notar todo um território devidamente regulamentado,

onde, as atividades em todos os níveis se processam especificamente respeitando a um

cronograma definido, a um roteiro estabelecido tacitamente — todos sem qualquer

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interferência da autoridade burocrática estatal —. Notamos ainda, condições

particulares de um possível paralelo conceitual do que conhecemos por isonomia,

condições de privilégio no status, de desprivilegio no status, podemos perceber,

sobretudo, uma sombra que recolhe a individualidade em benefício de um credo único,

de uma perspectiva atendida na égide de um querer irradiado do “alto”. De um caos

interior ao grupo, que quando vivenciado à saciedade extrema, explode e ganha corpo

na fala e se traduz no mínimo gesto, no mais inaudito comportamento expressado...

Em 2006 uma onda de ataques à polícia paulista alcançou todos os grandes

noticiários nacionais. Bases da PM eram metralhadas, patrulhas policiais eram

emboscadas e uma série de outros atentados foram levados a cabo pela organização que

passamos a conhecer desde ali, mais publicamente como “PCC” (Primeiro Comando da

Capital).

Definido como “organização criminosa”, o PCC nasceu nos presídios paulistas

no ano de 1993 (Biondi), e foi conseqüência, dentre outros inúmeros fatores, de um

conjunto maciço de supressões aos direitos humanos daqueles primeiros reeducandos,

fundadores da Organização que, a partir de então, na tônica de “defenderem-se” do cruel

sistema de ultraje à própria dignidade do coletivo penitenciário, engajaram-se

mutuamente em prol de um entendimento comum... em torno de um habitus próprio, de

um caráter comum, de um ethos de enfrentamento combativo, isto é, de uma cultura

existencial coletivamente sintonizada. A noção de habitus, aqui empregada segue a

linha descrita por Pierre Bourdieu:

O habitus, como indica a palavra, é um conhecimento adquirido e

também um haver, um capital (de um sujeito transcendental na tradição

idealista) o habitus, a hexis, indica a disposição incorporada, quase postural

—, mas sim o de um agente em ação: tratava-se de chamar a atenção para ‘o

primado da razão prática’ de que falava Fichte, retomando ao idealismo,

como Marx sugeria (...) (2010, p.63).

Não iremos tergiversar ao ponto de mensurar casuisticamente o enredo vivido

por esse coletivo humano. São experiências das mais “estupefantes”. São circunstâncias

existenciais de grau inimaginável na esfera racional, compulsadas quando muito por

uma boa metafísica ou, uma boa poesia... O que queremos, em contrapartida, é mostrar

como o primeiro aspecto da abordagem, que é a tese da aglutinação interativa e

comunhão espiritual como nascedouro da matéria chamada cultura acontece — a

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explosão estelar... — que produz a realidade cultural que, num primeiro momento,

somente pré-existe como força totalizante (Durkheim), cujo sinal transcendente é

capturado pelo espírito humano e traduzido na ação coletiva.

No ano de 2007 a USP (Universidade de São Paulo), através do Instituto de

Estudos Avançados pelas lavras dos sociólogos Sérgio Adorno e Fernando Salla,

produziu um estudo denominado “Dossiê Crime Organizado”, que em linhas gerais

apresentava no comentário da antropóloga Karina Biondi, algumas sustentações teóricas

tais quais a de que:

Os sucessos destes acontecimentos foi garantido pela estrutura

organizacional do PCC, “mantida por um quadro hierarquizado de

funcionários, disciplinados e obedientes, capazes de executar ordens sem

questioná-las” (2007:9), mas também porque a confecção de leis e políticas

não acompanhava as mudanças da sociedade. Além disso, para eles, a

estrutura do PCC só pôde se consolidar em função do frouxo controle e da

falta de rigor na coibição de suas práticas por parte do poder público. Por

outro lado, contrariando muitos outros analistas, afirmam que “há fortes

evidências de que o encarceramento em massa associado ao propósito de

contenção rigorosa das lideranças dos grupos criminosos organizados

tem produzido efeitos adversos”, como os ataques de maio de 2006,

classificados por eles como momentos de “efervescência cultural” (2010,

p.76). [grifo nosso]

Dois pontos são persuasivos e tem o condão de reforçar o que vínhamos

defendendo. O primeiro é a referência ao “quadro hierarquizado de funcionários,

disciplinados e obedientes (...)”, o segundo tópico são as “fortes evidências de que o

encarceramento em massa associado ao propósito de contenção rigorosa das

lideranças (...) tem produzido efeitos adversos”. A primeira referência dá

inteligibilidade no plano da imanência — o mundo concreto e real da cultura já

estabelecida... —, o segundo excerto em grifo, representa a condição de possibilidade, a

causa conseqüente, da primeira referência, em suma, a colisão múltipla de “n” contextos

vivenciais extremos, que emergindo a um nicho fora do plano da imanência colapsada,

transcende e ganha autonomia de ser convencionada num segundo momento por alguém

que a capture de volta, estabelecendo assim o quadro sintomático que no exemplo

citado, é a disposição “administrativa” do PCC. Para finalizar o alcance da teoria

proposta é bom ressaltar a locução “efervescência cultural” de Adorno e Salla, que não

dista muito do que metaforizamos como explosão estelar.

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É preciso a essa altura dizer que tanto o transcendente como o imanente são

apenas níveis de ilusões a serem decodificadas pelos sujeitos, são campos ou estratos

que aparecem e ocultam-se, não sendo, de nenhuma forma, um corte dual entre dois

mundos possíveis, o que provoca sem querermos, a compreensão de um mundo real da

cultura do grupo e, o nível ideal de outra em gestação, em absoluto... Não se trata disso.

Por isso, é preciso recorrermos a Merleau Ponty para um maior grau de clarividência do

tema:

Pois quando se dissipa uma ilusão, quando se rompe subitamente

uma aparência, é sempre em proveito de uma nova aparência que retoma, por

sua própria conta, a função ontológica da primeira (...) a des-ilusão é a perda

de uma evidência unicamente porque é a aquisição de outra evidência (...)

não há Schein sem Ershcheinung, toda Schein tem por contrapartida uma

Erscheinung (2009, p. 42).

Fechado então o primeiro aspecto que queria ressaltar, gostaria como me propus

acima, ainda de explorar com mais um exemplo, um pouco mais o contexto

antropológico das penitenciárias, do mundo social carcerário brasileiro. Dessa vez, irei

utilizar a noção etnográfica do “salve” utilizado pelo PCC.

Com o primeiro exemplo mostramos como interação pode (também!) gerar

cultura. Apontamos como se dá o caminho que sai da transcendência e cai na imanência

em forma de cultura de grupo. Agora vamos proceder com um segundo caminho mais

incisivo acordado a mesma noção teórica geral já proposta.

Vamos imaginar um coletivo humano particular, isolado geograficamente e

preterido drasticamente de suas condições básicas de dignidade, imaginemos também

que a simples associação coletiva comum deste grupo dá margem, por si só, a existência

de um ato criminoso, detrimentoso a todos enquanto grupo instituído. Agora,

imaginemos este mesmo coletivo agindo em prol de uma luta comum de seus membros

e, com a responsabilidade de ser efetivo em suas ações. Subtraindo todos os aspectos

ideológicos e morais das ações envolvidas, resta-nos decompor em níveis inteligíveis ao

senso comum, como este grupo criará em forma de “elo articulado” o conjunto de

valores, símbolos e ritos que na sua semântica desafie o poder contrário, chamado

Estado, não demonstrando essa tal inteligibilidade semântica.

Friamente, trata-se de construir um mecanismo cultural que transforme a

linguagem, o gesto, a expressão corporal em um modo de ser percebido — ou de

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aparecer! — somente por/para seus iguais... Trata-se, sobretudo, de criar, engendrar

uma cultura onde só se entende quem a ela se integra. Até este ponto nada de muito

novo....

Bem, sabemos neste momento que o presídio é uma máquina produtora de

cultura, sabemos também que existe um grupo constituído (marginalmente à sociedade

de classes) que, operando neste acelerador espiritual sublima suas pré-ações... chegamos

então ao “salve”. O salve é o exemplo mais direto da cultura da transcendência até a

imanência.

Comecemos com a pergunta: é o salve uma ordem dos líderes do PCC? Não, o

salve é uma idéia! é um ato reflexivo do grupo que busca a compreensão de uma

situação-problema. O salve é uma nuvem conceitual que é gestada nos corredores,

ganha corpo nas discussões, é depurada e se amortiza numa espécie de nível de

consciência geral. Quando se nomeia o PCC de “organização criminosa” partimos de

uma idéia cultural corrente para o senso comum e, que tenta enquadrar um nicho social

que não se subordina a essa dita cultura corrente... É pedir para embrulhar em papel um

litro de gás, é como pedir ao garçom dois metros de pinga... Nestas circunstâncias

existenciais não é pela nossa tela que se projeta a imagem nítida, o exercício requer uma

troca de lentes... Algo — melhor dizendo... conceito etnográfico — que Malinowski nos

anos vinte do século XX já vaticinava, e hoje é mais que pacífico em antropologia.

Após sublimar suas ações em forma da idéia do salve... Estes são emitidos,

ganham as ruas e solidificam-se em ações concretas. Um exemplo de salve do PCC seria

como nos informa o antropólogo Adalton Marques: “manter a paz entre os ladrões e

bater de frente com a polícia”

É caso de dizermos então, que é o ambiente que produz a cultura? Se pensarmos

no ambiente tão somente, isto é, apenas em seu aspecto georeferenciado, dizendo-nos

que pré-existe ao homem em suas definições atitudinais poderíamos dizer taxativamente

que não, de sorte que, o que pré-existe, na enormidade dos casos, aos primeiros

membros do PCC, especificamente, era um ambiente muito além do campo

georeferenciado, onde a “sombra transcendente” (de interesses como os: Quem? Para

quem? e Contra quem?) exigia uma correspondência dos corpos no mundo real, que o

eterno vir a ser da cultura já sondava e se articulava numa dimensão (até então)

insondável aos membros.

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O que pré-definiu a cultura nascente não foi simplesmente o ambiente

estagnado, com vetores, índices e fluxogramas apontando para uma tendência. O que

provocou o nascimento dessa cultura foi justamente a mundanização do(s) homem(s),

isto é, um momento — ou melhor, a somatória destes... — pré-existente, onde a

necessidade de uma maior sintonia com o mundo das coisas do cotidiano, com o mundo

que simplesmente aparece para nós, era a novíssima condição básica de sobrevivência...

Poderíamos a essa altura dizer sem rodeios, que a cultura é um vir a ser

constante onde o ser-aí (membro do coletivo humano) se torna e se faz continuamente,

ao provocar e ser provocado por um determinado nível de consciência intencional geral

que recebe junto ao ser-para nós (os coletivos humanos em grupo), através dos

fenômenos perceptivos. Isto te lembra a fenomenologia de Merleau-Ponty? Qualquer

semelhança é mera coincidência.

1.4.3 A etnografia do CFO I parte II: a festa do bicho

Continuando nosso enredo etnográfico é oportuno dizer que a sintonia íntima

dos alunos entre si, e destes com seus respectivos superiores hierárquicos, gera pouco a

pouco uma maior evidência de traços personalíssimos de cada um, especialmente, no

que se refere ao comportamento gestual, da fala, dos jeitos e trejeitos daqueles que

comungam a experiência da Academia. É o fechamento para o mundo exterior e o

dobrar sobre si mesmo numa totalidade comum de afetos e sujeições que nos dizeres de

Goffman caracterizam o que denominou de instituição total

Uma instituição total pode ser definida como um local de

residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação

semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de

tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada (1974 p.11).

A festa do bicho é um momento da formação onde o aluno oficial extravasa as

situações limite de seu cotidiano na Academia. É seu momento de “desafogo” moral.

Constitui-se numa festa, digna desse nome, onde alunos de todas as turmas satirizam

episódios de seu cotidiano com paródias e peças teatrais.

Tecnicamente, poderíamos dizer que a festa do bicho enquadra-se em uma das

táticas de adaptação descritas por Erwin Goffman e sistematizadas por Kunze, tais

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quais: a) “afastamento da situação” desatenção e abstenção aos acontecimentos de

interações (o aluno fica disperso à formação e se amortiza num distanciamento do “eu”

construído na vida civil na tentativa de reconstruir-se no novo cenário, com uma postura

nova, um vocabulário novo etc.); b) “intransigência” não cooperação e desafio à

instituição (perdas e ganhos são ponderados pelo aluno e passa nesse instante a ponderar

a (re)ssocialização); c) “colonização”, consideração da vida institucional como

desejável em relação às experiências ruins no mundo externo (formação de elo afetivo e

correspondência de símbolos pelo aluno); d) “conversão”, aceitação da interpretação

oficial e representação do papel de “internado perfeito”; e) “viração”, combinação de

várias táticas visando evitar sofrimentos físicos e psicológicos e f) “imunização”, o

mundo da instituição passa a ser um mundo habitual sem novidades .

A festa do bicho situava-se no plano da colonização, pois, no momento em que o

aluno execrava o aluno mais antigo com paródias e peças teatrais de puro achincalhe40

— em muitos casos em vingança a eventuais assédios sofridos outrora — ele absorvia

em seu íntimo, agora de forma equilibrada e ponderada, isto é, digerida, toda a gama de

sujeições morais até então suportadas. Para o aluno mais antigo que é achincalhado,

ridicularizado... restava o convencimento de que sua superficial condição de comando e

determinações era extremamente frágil.

40

O aluno “pudim” era o principal “ator” da APMCV durante nossa permanência. Com seu fino humor e

extrema capacidade cênica conseguia deixar em patente constrangimento seu algoz durante a

apresentação. Em nossa época determinado superior costumava vir a tropa cobrar alinhamento durante as

formaturas, nessas ocasiões utilizava-se de uma fala peculiar, intimidativa e provocativa, em algumas

ocasiões fazendo gracejos com os alunos em forma. Na Festa do Bicho o pudim se vingou dele com uma

caracterização perfeita. Sob o falsete da comicidade o pudim literalmente o esculachou com a perfomance

teatral. A charge cênica apresentada foi tão cômica que a platéia riu-se não do ator, mas, do superior

“desnudado”, com gestos e comportamentos duvidosos perante todos. Esse extravasamento pode custar

caro, porém, sintoniza o algoz de sua postura inadequada. Vale lembrar que o referido superior em raras

ocasiões retornou à suas antigas práticas.

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1.4.4 A etnografia do CFO I parte III: 29 de setembro de 2004

Motim

Art. 149. Reunirem-se militares ou assemelhados:

I - agindo contra a ordem recebida de superior, ou negando-se a

cumpri-la;

II - recusando obediência a superior, quando estejam agindo sem ordem

ou praticando violência;

III - assentindo em recusa conjunta de obediência, ou em resistência

ou violência, em comum, contra superior;

(...)

Pena - reclusão, de quatro a oito anos, com aumento de um terço para os

cabeças (Código Penal Militar brasileiro, Decreto-Lei n°1001de 1969) [grifo

nosso].

Os alunos do primeiro ano após a educação física receberam longevos 5 minutos

para estarem devidamente prontos para a próxima aula em sala. Para isso precisavam

utilizar o banheiro para o banho. Ao chegar no alojamento os 32 alunos do primeiro ano

são barrados e impedidos por alunos do segundo ano de usarem os chuveiros. Motivo:

determinado aluno do segundo ano não queria dividir o espaço com os bichos... Em que

pese, sobrarem chuveiros para serem compartilhados. A situação de urgência para a

próxima aula foi informada ao aluno mais antigo por um aluno do primeiro ano, aquele,

por sua vez, sequer dignou-se a ouvir.

Todos os alunos do primeiro encarneraram-se defronte ao espaço dos chuveiros

onde, apenas um era utilizado pelo aluno mais antigo. O tempo corria e o prazo dado

por um oficial estava se esgotando... a ordem dada, em contrapartida, pelo aluno mais

antigo foi clara. “ninguém entra, antes de eu terminar...”

Os ânimos foram se aflorando até o instante que um primeiro-anista tomou o

espaço e ligou o chuveiro... o aluno mais antigo, determina rispidamente que ele saia

imediatamente, o primeiro-anista o olha-o com desdém e lhe sugere: “o Sr. Pode vir me

tirar daqui se quiser...”, outro aluno invade o espaço e diz ao mais antigo “daqui

ninguém me tira” — o agravante foi o braço cruzado e a cara feia... — um a um vários

entram também no banheiro — este que vos “fala” também... —.

O aluno mais antigo vê-se desmoralizado. Destituído por completo de sua

superioridade. Ele sai rapidamente do banheiro e os bichos tomam conta do espaço.

Outros alunos mais antigos ficam perplexos com o fato observado e correm até os

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superiores. Um deles chega ao alojamento e a essa altura todos já tinham se banhado.

Ameaças são feitas... promessas de revide do regulamento são ditas...

Segundo o Código Penal Militar a conduta dos primeiro-anistas parece ser clara.

Motim. O enquadramento, porém, necessita do estudo do contexto e, como vimos, é

claro não se aplicaria ao caso. Havia uma contra-ordem de um superior... Entretanto, na

APMCV vige a regra do submundo dos alojamentos e, dessa forma, o primeiro ano foi

punido severamente, especialmente, pelos alunos mais antigos. Dois dias sem dormir...

muito “rala”... prisão disciplinar aos cabeças... Mas, sobretudo, a alma lavada.

Literalmente...

1.5 “De pedra à vidraça”: recortes do bicho-melhorado

Uma aspiração de poder sobe a garganta e toma forma na postura. Inquieto e

contingenciado de um lado, pela pecha de lorde e, de outro, pela aparência de um

ditadorzinho sem trono, ele caminha a passos obsequiosos pelos pavilhões à busca dos

detalhes puníveis que lhes são tão familiares. Ele fustiga seus subordinados e assume

como seu patrimônio o mais singelo sinal de vontade e potência destes. Empresta agora

o mesmo sentido aos afetos outrora tão odiosos, recebidos em seu desfavor meses atrás

com revolta. Agora os domando à força na memória e, exorcizando-os pelos poros

quando os reproduz com os bichos durante os “ralas”. Quando grita com eles (primeiro-

anistas) ou, quando inocula seu veneno insidioso para a discórdia entre bichos e

terceiro-anistas. O segundo-anista é o próprio veneno da formação, quando dosado

imuniza, quando excedido causa males.

Esconde-se pelas sombras da Academia. É tido por “moita”. Àquele que escapa

com maior facilidade aos olhos dos oficiais e dos próprios terceiro-anistas; àquele que

sorrateiramente cumpre suas missões com a discrição que a faz sempre pouco

censurável, pois, não está na linha de tiro, não é protagonista do processo de formação e

a essa altura é mero coadjuvante. Não disputa com os bichos esta posição, aliás, tudo

que almeja é nela permanecer durante todo o ano, às sombras e de forma bastante

imperceptível.

O aluno “sem apelido” de tão moita que era sequer possuía apelido. Não falava,

não gesticulava, não se exprimia ao ponto de ser notado. Era tão moita que nas

contagens habituais do efetivo da turma era sempre esquecido. Não tinha amigos na

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turma e tampouco buscava ter, preferia o ostracismo do anonimato. Quando chamado

erguia a mão e abaixava a cabeça, sua voz de comando parecia sair na exata proporção

dos que lhe necessitavam ouvir. Lembro-me do “sem apelido” com uma ponta de

responsabilidade pela não conquista de sua amizade, pois, no campo em que nos

sujeitávamos a existir, nunca me permiti silenciar a palavra dita para comungar com ele

o olhar esclarecedor que prescinde de toda palavra falada.

Engana-se que o grau de experianciação na Paidéia policial seja menos drástica

ao ator segundo-anista. Com efeito, mesmo negligenciado na cena principal é o

segundo-anista que se responsabiliza por uma das etapas fundamentais do

amadurecimento profissional. É ele quem comanda o Corpo da Guarda e, neste espectro

de compromisso, já tem sob seus olhares e ordens, um conjunto bem delineado de

atribuições imprescindíveis à fruição do serviço na Academia.

À época pesquisada constituía-se o comando do segundo-anista, o serviço de

guarda e reserva de armamentos do quartel da Academia, de maneira que, era ele o

responsável direto por executar todos os atos e normas regulamentares atinentes a esta

função.

Essas regras a serem seguidas baseavam-se, sobretudo, no RISG (regulamento

interno de serviços gerais do Exército). Além do RISG, existiam ainda as de cunho

interno expedidas com o nome de “Normas Gerais de Ação”, que disciplinavam maiores

especificidades do serviço, determinando em minúcias todos os deveres. Há de se

perceber que a vida profissional do segundo-anista passa longe do ideário plantonista

feito à saciedade durante todo o primeiro-ano. Diferentemente do plantão do primeiro-

anista o serviço de responsabilidade do segundo-anista tem concepções diretas de uma

ascendente profissional da espécie que credita funções rigorosíssimas.

Mesmo com todo o rigor exigido do segundo-anista não foram poucas as

situações de sensível teor biográfico no campo das “experiências não presumíveis” que

vivemos ali. A guarda do quartel é o acesso direto ao mundo exterior e, dessa forma, a

porta para toda uma gama de possibilidades. Certa vez fui acordado na alta madrugada

para chamar um companheiro de turma que, mesmo escalado de serviço na guarda,

durante seu turno evadiu-se do serviço para ir atrás de uma “namorada” que morava nas

proximidades da Academia. Ao acordar-me o companheiro que tirava o mesmo turno

com o “evadido” pediu para que eu fosse chamá-lo urgentemente, pois, a qualquer

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momento o terceiro-anista poderia aparecer na guarda e dar falta da presença do

garanhão. Mesmo contrariado fui até a residência — onde o garanhão se encontrava —

e ao chegar lá encontrei meu companheiro bem à vontade e sem a mínima intenção de

regressar... Fui obrigado a arrastá-lo de lá... — ainda hoje este nobre oficial me cobra o

excesso de prudência em tê-lo buscado... —.

O sonho do primeiro-anista não é ser oficial de polícia. O sonho do primeiro-

anista é sentar-se na cadeira do Comando da Guarda da APMCV — Epíteto do poder

alcançável —. Presumido dessa forma, enquanto sonho, este objetivo era ansiado todas

as vezes quando do lamaçal misturado a epiderme, via-se ao longe, incólume à luz

lúgubre da Guarda, o limpo e respeitado segundo-anista. Particularmente sempre achei,

— na condição de primeiro-anista —, que o segundo ano do CFO seria a uva que eu ia

chupar. Doce ilusão.

A começar pela carga horária curricular extenuante (a maior dos três anos) que

extravasava noites e fins de semana, dos policiamentos agendados em última hora e de

toda a exigência do serviço, o segundo ano do CFO é uma provação com a mesma

envergadura dos demais anos. O fato antropológico determinante em contrapartida não

são os fatores mensurados, é justamente o quinhão de experiências que tendem ajustar

todo o profissionalismo agregado com a formação do ser-policial. É durante o segundo-

ano que as amizades se solidificam — e se liquidificam também —. Durante o segundo

ano as mascaras caem definitivamente, e vão dando formas a rostos transformados pelas

experiências. É durante o segundo ano que se descobre o que existe por dentro da farda,

do outro lado dos muros da Academia. A criticidade sai da quarentena, toma corpo e

ganha plausibilidade.

O coturno passa a brilhar com menos esforço dado à simpatia gerada pelos

atalhos proporcionado pela técnica artesanal de grupo, comumente chamada na

Academia de bizus. Corre-se mais cansando-se menos, vibra-se menos aparentando

vibrar-se mais. O segundo-anista tem no seu caderno existencial um rol de atividades

típicas da Academia e sua respectiva maneira de lhe compor sentido adequado. Ele

conhece os meandros e o jeito certo para que as circunstâncias se adaptem ao curso

natural das coisas dentro do seu pequeno espaço de poder.

A rotina de um segundo-anista em nada difere da de um primeiro-anista ou de

um terceiro-anista, são as atribuições e tarefas diárias que se diferenciam, já o horário de

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chegada ou partida são rigorosamente os mesmos. O rigor da fiscalização sofrida pelo

segundo-anista nas revistas diárias é menor que as sofridas pelos alunos do primeiro

ano, contudo, o grau de animosidade entre terceiro-anistas e segundo-anistas se acirra ao

limite da tensão, de sorte que, as duas turmas rivalizam-se abertamente na disputa pelo

comando do corpo de alunos. Os terceiro-anistas por dever de ofício são obrigados a dar

o ritmo das atividades de exigência e cobrança aos demais alunos quanto às normas,

tradições e ritos, cabendo ao segundo-anista de forma passiva e capciosa frear este

ímpeto, excepcionalmente — e perigosamente — na via direta face a face.

A exposição anterior pode soar do ponto de vista metodológico até mesmo um

tanto quanto irresponsável, na medida em que deflagra todo um contexto semântico que

demanda alguns conhecimentos anteriores, especialmente, sobre as minúcias

regulamentares da instituição, dos regulamentos militares e até do funcionamento da

própria APMCV. Com efeito, nossa intenção era acelerar uma exposição que deveria ser

lida da mesma forma que foi escrita, em suma, com um só fôlego. Irresponsável ou não,

o intento fora uma descrição literária quase que nostálgica. Prometemos, entretanto,

sermos daqui para frente menos imprudentes e mais obsequiosos com os leitores.

A disciplina, enquanto fiel acatamento às normas e regulamentos e, a hierarquia

enquanto a devoção máxima ao cumprimento das ordens emanadas dentro da

observância das prerrogativas dos postos recebem, ambas, uma aura de significado

tremendo durante a formação, por um único e excludente motivo: a vigilância e a

punição. Na Academia grande parte (para não dizer tudo) do que estava escrito nos

regulamentos era cobrado e, se fosse apenas dessa forma, seria ideal, de sorte que,

observa-se na prática uma cobrança em níveis altíssimos, cobra-se com rigor, muito

rigor e mais, cobra-se o que não existe com o fito de quebrar, deglutir, dizimar o aluno

ante qualquer possibilidade de ruptura da norma e das ordens. Dentro dessa perspectiva

não há qualquer possibilidade de “vida humana” fora da bolha da coletividade, visto ser

ela o único meio de mascarar qualquer forma de conduta marginal ao regulamento da

severa vigilância, a coletividade camufla, protege, acoberta, mimetiza a presa diante de

seu predador, ademais, acaba se transformando num corpo uno, indivisível e resistente.

A noção de coletividade na Academia é um dos momentos limites da socialização do

aluno oficial, é um mecanismo que deve ser descoberto o quanto antes pelo particular e

pelo todo, de sorte que, sua compreensão requer doação.

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Este pode-se dizer, fenômeno intra-social denominado “coletividade”, é

sugestionado pela própria natureza da formação, que exige como prática diária tarefas

em grupo, de maneira que a sua realização não se concretiza se não houver uma perfeita

sintonia entre todos na medida em que cada componente é parte fundamental da mesma

tarefa. Seja um movimento marcial de ordem unida ou uma faxina cada parte do todo é

responsável pelo mesmo e único fundamento. O cumprimento da missão. Essa

condensação de vários indivíduos num só remonta algumas particularidades curiosas: a)

une os membros do grupo; b) forja uma simbologia de grupo; c) estabiliza uma política

de ação própria do grupo; e d) constrói uma hermenêutica própria de grupo.

Explicitemos os tópicos.

Quando falamos em “união de grupo” na Academia, necessariamente estamos

falando em união entre membros de uma mesma turma. Com efeito, temos que na

formação do curso de formação de oficiais da PMMT os alunos são divididos em três

turmas perfazendo cada turma um ano da formação que dura três anos, logo, temos os

alunos do primeiro ano (bicho ou primeiro-anistas), os do segundo ano ou segundo-

anistas e os semideuses terceiro-anistas; essa divisão entre alunos que embora se situem

no mesmo plano hierárquico na graduação de aluno oficial, recebe na Academia uma

sectarização de hierarquia, não de direito, mas de fato.

Falar que o terceiro-anista é mais precedente que os demais seria minimizar na

teoria o que é cabalmente desmentido na prática, pois, o terceiro-anista dentro daquele

nicho simbólico denominado Academia é de fato superior hierárquico dos demais

alunos. Tal sectarização segue apontando o lógico, a precedência hierárquica dos

segundo-anistas sobre os bichos. O que isso significa? A profundidade da resposta exige

pormenores.

Na Academia cada ano que se passa indica para o aluno uma graduação

funcional e simbológica, ou seja, no primeiro ano temos o aluno exercendo funções de

execução como às de cabo e soldado, no segundo ele progredi para a função e

responsabilidade de sargento e no terceiro ano exerce a função de oficial; tudo no

contexto escolar, de sorte que, na via prática-formal do regulamento institucional o

aluno já ingressa na Academia com precedência hierárquica sobre o Sub-Tenente,

abaixo tão somente do Aspirante – a – oficial. Essa funcionalidade gradual na Academia

infere que ao oficial cabe o conhecimento das atividades inerentes a todos os postos e

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graduações para que reconheça na prática de seu futuro como oficial qualquer

eventualidade, demanda ou contingência que seus subordinados terão quando sob seu

comando.

Na forma traduzida do que chamamos de funcionalidade dentro do contexto de

formação temos o primeiro-anista realizando as funções de execução, em suma, funções

de somenos importância como seu único serviço no âmbito interno (dentro da

APMCV), fora das atividades acadêmicas: o serviço de plantão. Esse serviço (Pensei

em colocar aspas no termo serviço, dado a sua pouca expressividade prática, porém,

lembrei-me de algumas madrugadas enquanto plantonista) consiste basicamente na dita

manutenção do quartel, que basicamente nada mais é do que a limpeza dos espaços

físicos e na vigilância das instalações da Academia. Bom frisarmos que este serviço não

se encontra dentro do currículo da formação do oficial da PMMT.

1.6 “Às portas do aspirantado: imagens do terceiro-anista

O terceiro-anista está convencido de que é um deus. É ele quem comanda a

rotina vivida na Academia e, consequentemente todo o corpo de alunos do segundo e

primeiro ano do CFO. É ele o responsável pelo planejamento das atividades, da escala

de serviço dos alunos e, sobretudo, controla o nível de estresse repassado as demais

turmas. É o terceiro-anista o aluno responsável em transmitir toda a cultura da

Academia às demais turmas, é ele também o responsável em preservar as tradições e

conservar todos os ritos. Estão em pleno foco durante o terceiro-ano, pois, são eles os

futuros aspirantes e tenentes. São, por isso, o termômetro do comandante da Academia

e, da própria Polícia Militar em um todo, na medida em que, representam o nível de

comprometimento institucional que adquiriram e passam a revelar com suas atitudes,

bem como o vigor do regulamento e da moral que apregoam.

O terceiro-anista é o elemento central para o redimensionamento da cultura na

APMCV, de sorte que, é ele que absorve a enorme responsabilidade de doutrinar os

bichos e asseverar na prática supostas tradições construídas, assim como criá-las

também. Com todo o poder hierárquico não formal que detém em relação aos demais

alunos, o terceiro-anista é a precisa projeção de um simulacro que ele mesmo passou a

introjectar como sendo o ideal de auto-afirmação da hierarquia, da virilidade e da força.

Com suas atitudes e formas de comandamento, economia das ordens e rotinas de

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convivência nos alojamentos, é o terceiro-anista a auto-imagem do que ele representou

para si como sendo o oficial de polícia médio. Após desenhar durante dois anos quem é

o jovem oficial que se pretende na Instituição na via prática, isto é, seu conjunto de

comportamentos habituais na vida na caserna e na vida social como um todo, ele

arregimenta para si esse modelo e o absorve.

O terceiro-anista é o protótipo da Instituição em miniatura. É a face de um todo

disforme por múltiplos personagens representado na postura militar e social de um

aluno em seu último grau de alienação.

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PARTE II

MÉTODO, RUDIMENTOS DE HISTÓRIA E CONSIDERAÇÕES NA

EDUCAÇÃO

2. Etnofenomenologia

Eu sei que o que vou escrever no início deste tópico não cabe no contexto em

que se inscreve. Sei, sobretudo, que em um texto dessa natureza as hipóteses definidoras

que chegam antes da pesquisa, pouco ou nada importam no resultado final do trabalho,

assim sendo, pule para o próximo tópico e me deixe aqui acompanhado por um ou outro

de carne e osso como eu, que, acima de qualquer perfumaria acadêmica, sente antes de

pensar e tem a desalentadora consciência de decidir necessariamente, ainda que, — hoje

me é claro... —, se dê à mentira tranqüilizadora de dizer ao mundo que dentre dois

caminhos distintos, escolheu livremente aquele que julgou mais aprazível. Acredito,

porém, que a responsabilidade pela escolha pessoal livre e consciente fira de morte

qualquer necessidade causal..

Por tudo isso é preciso dizer dessas águas em que naveguei. Do caminho que

correu em mim na fenomenologia e outras pedras e rochas nesse leito de “Rio Merleau-

pontyano”. Rio tal em que naveguei enquanto gota d’água, ora ajuizando ser espiral

num redemoinho, ora espuma na superfície, ora ter saltado nos choques, ora ter molhado

a seca, ora ter sido sorvido pela terra, chegando a ousadia de pensar que tudo isso em

dado momento fora escolhido por vontade própria ao longo do percurso, ledo engano

que a mentira tranqüilizadora impõe, mas, que a saúde responsável de um sujeito

emancipado restabelece!

O caminho já estava traçado pela geografia da percepção, por esse leito de rio

que a tudo define esquadrinhando em essências, rio esse do qual sou apenas a previsível

gota d’água em meio a pedras e rochas, choques, redemoinhos e espumas. Ao que pode

parecer, contudo, não falo em determinismo ou em fatalismo puro; estou falando na

“real profecia freireana” da Pedagogia da Indignação, onde o “futuro não é inexorável,

é problemático”, pois, ainda como nos diz Freire, “uma das bonitezas do anúncio

profético está em que não anuncia o que virá necessariamente, mas o que pode vir, ou

não” (2000, p.119); falo também da perspectiva de Bauman de responsabilidade pessoal

na escolha do mundo ético a ser seguido. Para a gota d’água a necessidade do mundo

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das coisas é a problemática da vida diária, é a profecia que se anuncia na próxima curva

do rio. Ou no próximo toque do celular, mudança do semáforo...

Empreendi essa navegação porque precisava de um reencontro com a existência.

— nada oriundo de fossa, depressão... — foi por pura honestidade intelectual, perguntas

e mais perguntas, que por si sós, ainda são aparentemente trágicas a um homem feito de

26 anos — A desilusão do poder, o desmando dos homens maus, a febre que a injustiça

me causa, o incômodo que a inteligência provoca quando besuntada de engodos, o enojo

do palavrório, o enjôo de toda forma de ser sem se compreender, o fixismo

sobrenatural, o ponto arquimédico do mundo... Tudo fora convalescendo lento e

poderosamente, e mesmo o que crescia com viço de saúde intelectual estava

apodrecendo pelo efeito colateral das suspeições plantadas ao lado. As infiltrações entre

os vasos foram severas demais. E o ceticismo ético que a amoralidade impõe é

acompanhado da ruína do que há por dentro das sendas forjadas: Um mundo metafísico

que precisava ser (re)pensado.

Como conseqüência, mesmo a matéria do corpo perde razão pela dúvida da

realidade — e inelutavelmente o peso aumenta e a coluna começa a padecer... —, o

outro vira simulacro de um sistema que o alimenta sem que se perceba, nesse momento,

a verve de um pensador responsável sobre seu caminho, enerva-se num sentido circular

que volta sobre si sob a forma de desespero... Angústia! O encontro com a

fenomenologia foi decisivo — e mais uma vez necessário —.

Começando nos erros e acertos de um currículo acadêmico, de um curso de

formação de oficiais, o império da suspeição chegou ao patamar de: Por que tudo e não

antes nada? Com ela veio a agonia que Kierkegaard chamou de angústia (citada com o

mesmo sentido também linhas acima...).

Martelaram-me a angústia à exaustão, na medida em que os “credos seguros”

diminuíam a força para resistir às dores de um juízo de possibilidade de uma vida vivida

possivelmente em erro de perspectiva. À força, pelo aríete da razão, como um

chimpanzé domesticado (o mesmo de Diamond) fui saindo da jaula lentamente,

cansado, desconfiado, um pouco trôpego, retirando, eu próprio, as correntes que agora

via ao meu redor aprisionando outros macacos, que como eu noutros tempos, gastava o

tempo em disputas por saber quais delas brilhavam mais.

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Mas o que é essa tal a fenomenologia então? primeiro posso dizer sem floreios

ou desgastes de compreensão que a fenomenologia é uma interpretação do real

(Critelli). Segundo, que a fenomenologia é um método filosófico, isto é, uma orientação

de visada do real com foco na perspectiva. Terceiro, que a fenomenologia incide no

estudo da relação entre o mundo da física e a consciência do sujeito (Ferraz). Que ela

questiona como se dá a absorção do real pela consciência, discutindo o que é a verdade

e o que é o ser. Merleau-Ponty no prefácio da obra “fenomenologia da percepção” em

certa altura resume bem os ideais, “[a fenomenologia] é a ambição de uma filosofia que

seja uma ‘ciência exata’, mas é também um relato do espaço, do tempo, do mundo

‘vividos’. É a tentativa de uma descrição direta de nossa experiência tal como ela é

(2006, p.1)”.

O debate ocasionado pela sua marca se instaura justamente neste ponto de

tensão: verdade e ser. Tensão tal que encontra seu apogeu no duelo severo com a

metafísica, pois, como a história da filosofia ratifica com auge em Hegel, só há uma

verdade e, há inexoravelmente o absoluto transcendental; isto é, o uno, eterno e

incorruptível do Platão reciclado... Em contrapartida na fenomenologia o que existe são

perceptos, perspectivas com alto grau de provisoriedade, mutabilidade e relatividade de

verdade (Critelli). O Próprio rigor e verdade são campos de força indefinidos na

fenomenologia.... — Pela demasia de termos, é hora de retomarmos pontos nevrálgicos

(sendo cartesiano o suficiente...) para elucidação do que fora apresentado acima.

A fenomenologia é um olhar sobre o mundo, ainda como disse acima: uma

visada no real com foco na perspectiva do sujeito. Um método filosófico por

excelência. E por que essa mediação circular em torno da natureza da fenomenologia?

Tudo isso porque o pensar do século XX foi o extremo decisivo de três grandes formas

de pensamento, a saber, o pensamento oriundo do senso comum, o pensamento

filosófico e o pensamento científico. Esses três grandes troncos de captação do real

foram supostamente (con)validados, em benefício de um tão somente, isto é, pelo pensar

científico. Devo dizer que outras formas de pensar foram literalmente inscritas e

dogmatizadas dentro do pensar científico, sob seus alicerces ajustadas, colocadas no

limite do discurso anti-filosófico como etapas prévias, degraus, órgãos vestigiais de uma

suposta constituição do pensar verdadeiro, isto é, do legítimo pensar científico, daquele

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pensar que em última instância levou o homem a Lua e nos deu as máquinas de que

tanto precisamos.

As formas de pensar que não estivessem dentro dos limitados critérios de

cientificidade, ganharam um status pejorativo como a alquimia atualmente está para a

química, a astrologia para a astronomia etc. O plano de busca do real e, sobretudo, de

captação do real tornou-se uma briga pela posse do melhor discurso e, a essa altura,

todos sabemos qual deles sagrou-se vitorioso. A fenomenologia nasce como uma

alternativa sóbria e apartada nesse “jogo de poder” pela posse do discurso da verdade e

do ser; se estabelece como uma crítica a essa visão metafísica e científica, mas,

sobretudo, encampa uma lancinante compreensão do real.

Assim, a fenomenologia foi se constituindo como crítica à ciência

(mais especificamente à metafísica, considerada como a postura

epistemológica que a fundamenta) e, consequentemente, também a técnica

moderna (...) a crítica destas questões não consiste, evidentemente, apenas

em formulações negativas, mas na formulação de outros modos de se

compreender tudo o que existe e que já tinha sido significado pelo olhar

metafísico, tal como as noções de homem, mundo, corpo, percepção, história

(2006, p.08).

Esse apelo a um novo campo de olhar sobre o mundo, esse horizonte que se abre

com o lançar da perspectiva, além de ser uma fuga do mundo visto pelo olhar metafísico

bem como pelo próprio olhar científico é uma demonstração de que a realidade,

especialmente, a realidade social “não pode ser acolhida metodologicamente como fator

perturbante, que não deveria existir. O homem é ator, não consegue observar-se

neutramente e estabelece uma relação muito mais complexa que a da ciência” (Demo,

2007, p. 250).

2.1 O rito e seu alcance na construção do ser

Açucarar o amargo da exposição anterior, ou, dar-lhe sentido dentro de um

arcabouço teórico bem elaborado. Talvez, seja essa a intenção doravante. Se iremos

perder o enfoque prazeroso da leitura etno-literária, à custa das pausas digressivas dos

textos científicos correlacionados, é um ônus que teremos de arcar.

Pois, entender o rito a essa altura, não dá sinais de uma eventual falha na

cronologia da exposição, em contrapartida, terá justamente o mote de concatenar ao

plano “lógico”, possíveis estupefações apresentadas — e más digeridas — em pratos,

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por ora, mais palatáveis. Ao mesmo tempo, corre-se o risco de criar tensão suficiente a

ponto de reforçar, posicionamentos já conquistados com a leitura anterior.

Todo rito tem um sentido de ser, possui uma explicação minimamente adequada

às origens de sua causa, de maneira que, acabam por moldar uma determinada ordem

social, ainda que intra corporis. Na esteira de Peter Berger teríamos a “explicação

minimamente adequada” como legitimação do controle social e, o dito “controle social”

representaria o sistema sob o qual o rito encontra sustentação de sentido.

O controle social procura conter as resistências individuais ou de

grupo dentro de limites toleráveis. Existe ainda outro processo centralmente

importante que serve para escorar o oscilante edifício da ordem social. É o

processo de legitimação (...) as legitimações podem, além disso, ser de

caráter cognoscitivo e normativo. Não se limitam a dizer as pessoas o que

devem ser. Não raro apenas propõem o que é (2004, p. 42).

Com efeito, ás exposições que aqui são — e foram, até o momento — narradas

constituem-se a maioria delas em ritos. Um rito de passagem, de acolhimento a um

grupo e de rompimentos afetivo-emocionais substanciais na esfera do ser, do sentir e do

pensar; já as causas originais, sobretudo, as de que trataremos com mais detença ainda

não temos qualquer mecanismo científico que as possa imiscuir ao sabor do aceitável,

crível e, solidário a conjecturas paralelas plenamente verificáveis, de sorte que, não há

teoria, em qualquer modalidade, que acolha como método de formação uma gama de,

por exemplo, assédio moral (humilhações), ultrajes físicos etc.

A grande tarefa em que nos debelamos quiçá seja investigar o processo de uma

possível, contra-educação na Academia de Polícia Militar Costa Verde (APMCV) em si

e por si só, entretanto, tal evento não é a coisa em si, propriamente dita, caricaturizada

na raiz de uma má ou boa conseqüência, precisamos antes submetê-la a um corpo de

hipóteses, variáveis que o rigor metodológico impõe, pois, a mera opinião não carece de

uma confiança transformadora do que está posto, mas, apenas suscita um leve

sobressalto, um calafrio ou um espanto — e não foi para isto que nos propomos —.

A fadiga física ou a execração mental não são um fim em si mesmo, são apenas

o meio termo entre um e outro degrau a ser alcançado por quem lança mão de tais

ferramentas, daí, não sairá a crítica pela crítica ou a singela constatação de uma

evidencia, de sorte que, responsabilidade maior não é colocar o dedo em riste da

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condenação aos ordenadores do processo, mas, os apontá-los para uma nova maneira de

enxergá-los, inventando assim, uma nova concepção de formação profissional.

Quando essa pesquisa sair do prelo talvez não seja notado que um aluno oficial

da APMCV continue apanhando folhas pela madrugada, limpando azulejos por horas a

fio, sendo castigado “pagando flexões”, rastejando no concreto quente ou sendo privado

de sua liberdade nos momentos de lazer. Quem sabe até mesmo tais exemplificações

nem sejam dadas como anátemas da formação, e sim, chagas que o tempo, que tudo

abole, ainda não libertou o autor do passado que não mais existe.

Quando alguém bebe sangue de galinha ou enquanto dorme é acordado com uma

granada de luz e som explodindo, — como eu e meus companheiros fomos acordados

inúmeras vezes —, é preciso averiguar se eventos dessa natureza resultam de uma

criteriosa análise de relação causa-efeito (o que ainda, per se seria temerário) sobre o

sujeito que sofre essa experiência; dado que, isso supostamente já fora experimentado

outras vezes em circunstancias similares com resultados plenamente verificados a

posteriori — Evidentemente, não? Absolutamente não.

Ainda que, uma explicação submeta tais experiências a uma determinada ordem

de legitimidade científica estaria longe de colocar um ponto final no problema, afinal,

papel aceita tudo; e o que nos cabe é expor de maneira responsável o que ocorre (ou

ocorreu) além da fronteira do currículo e, nesse ínterim avocar a possibilidade de

paralelamente dizer quem são os policiais militares diante desse cenário. Ainda não

estou convencido de qual tarefa seja mais importante.

Sobre o rito, poderíamos dizer de início que todos nós sabemos que, o fiel que

fustiga o corpo não almeja recompensa material ou, que quem sobe Everest não quer

retorno financeiro por seu ato, entretanto, cremos que a formação básica do oficial de

polícia deve soar no acorde da missão de garantir a democracia e a expressão da

cidadania de um povo livre, de sorte que, o preço a pagar por tal exigência é a

construção de um profissional que acredite na humanidade que assegurará, fundado no

respeito que observa da instituição quando lida com sua própria dignidade, uma das

principais maneiras de as agregar valor.

Assim, a humanidade de outrem encontrará sentido se for achada no interior de

quem tem o dever de assegurá-la; para tal mister imperioso perguntarmos se é preciso

fustigar o corpo, subir ao Everest, ou, esfregar o chão por horas, catar folhas ou marchar

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sob o sol do meio-dia... para assegurar tal nobre missão. Não seria necessário, em

contramão a tais ritos, dar ao ser humano o fundamento de sua existência que é a

mantença e promoção de sua dignidade inata? (Freire).

Dotar o encontro a que se submete o ser humano na formação básica de oficial

de polícia, de uma aura simbólica — metafísica — não seria confundir as finalidades a

serem alcançadas?

Se, para salvar uma vida e preservar a lei seja preciso a submissão do ser

humano a tarefas intangíveis logicamente, como flutuar equipado por horas num lago,

ser submetido a aflições físicas... Para outras, no entanto, tais processos são

desnecessários e, em muitos casos até nocivos.

O parâmetro que deve vincular o processo de formação do policial do amanhã já

não pode ser visto como lemas intocáveis, dado que o tempo passa aceleradamente e os

desafios que as polícias se deparam já não são mais os mesmos de um ano atrás ou,

quiçá de dez, quinze ou vinte anos atrás quando nossos coronéis ainda estavam sendo

gestados em suas Academias, sobretudo, porque vivemos uma era de transformações

sociais que se sucedem quase que simultaneamente a eventos de natureza distinta, ou

seja, é a alta do dólar que impele a economia nacional que verte a política de ações do

executivo que balança as diretrizes legais dos parlamentos que propugnam outras

exigências sociais através das leis que refletem um novo estereotipo de adolescente, que

exige uma nova ação frente a dinâmica das mudanças por partes dos aparelhos

repressivos... Tudo, absolutamente tudo é sistêmico e conexo a múltiplas facetas que

deságuam na realidade social, objeto de trabalho do policial.

A cidade cresce e com ela as periferias e por sua vez a violência, a população

economicamente ativa se expande e com ela uma massa de desempregados,

despossuídos e bestializados pelo sistema que só faz excluir, excluir e excluir cada vez

mais.... assim, todas essas contingências agrupadas em série e, instantaneamente

reproduzem-se na brutal competição entre as pessoas, no consumismo desenfreado, no

esfacelamento das relações éticas que são violências consensuais dentro da sociedade.

E, para aquelas violências — não consensuais — sobre as quais os homens se digladiam

na forma do que o código penal chama de “crime”, temos uma instituição que se

responsabiliza pela sua prevenção e repressão imediata, as polícias militares, formadas

por seres humanos que são demandas dessa mesma sociedade.

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Talvez essa exposição devesse ser anterior a qualquer fala que se preste a negar

uma formação de policial que não seja humanizante em sua essência, uma possibilidade

de revolução, de ruptura dessa engrenagem maldita que só repete as contingências de

suas demandas num ciclo ad eternum.

Embora todo este processo de “aparente” contra-educação se constitua

“aparentemente” num rito que já não se esquadrinha aos desafios de nossa missão é

preciso fazer um contraponto necessário, daqueles que só um sujeito participante pode

se titularizar para defender, uma defesa que excede o entendimento formal e transborda

na paixão, essa arrebatadora emoção em estado crônico, essa perturbação afetiva

continua em torno de uma idéia fixa: amor a farda.

Quando encontro o aluno oficial que fui através das experiências que vivi, que

ainda sente o suor a espreitar os olhos nas corridas rumo ao “infinito”, que ainda

enxerga as mãos, joelhos e cotovelos em carne viva, que ainda sente o peso das

pálpebras durante as intermináveis noites em claro, dos longos minutos na posição de

flexão, dos finais de semana enclausurado, do fuzil cruzado ao peito no “olho de

tandera” durante o frio de julho no corpo da guarda, da alegria das liberações, do

sentimento de injustiça nas detenções... Todo esse processo extra-curriculo

indubitavelmente me fez ser quem sou.

Quem sabe só assim pude perceber a bênção de uma noite dormida sob um

colchão macio, bem agasalhado e protegido, só assim pude sentir o valor da liberdade,

da amizade sincera, do comprometimento e da responsabilidade que somente com toda

essa aceleração poderia fazer de meninos homens feitos, líderes de homens e mulheres

livres.

Talvez a pior dificuldade que terei nessa pesquisa seja precisar a diferença do

que é útil e necessário à formação do caráter do líder oficial de polícia do que seja uma

possível contra-educação, que venha a ser nociva por assim o ser ou por sê-la na medida

em que se torna um excesso da boa formação. Ademais, tal fato constituir-se num

escopo sem um quadro de referência conclusivo ou, posto a prova. Esta dificuldade se

revela a medida que a mesma experiência quantizada como negativa (traumática) para

determinado sujeito pode não o ser para outrem, por representar numa certa escala de

valores personalíssimos a tomada de uma posição de enfrentamento a um paradigma

moral travestido na superação de um limite pessoal, que, obviamente cauteriza a dor

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com o timbre da vitória, da conquista, da própria superação em si, seria a contemplação

do sacro a subida a um degrau mais elevado da experiência espiritual.

O que nos habilita, entretanto, a pormenorizar tal dificuldade é analisar o

sucesso dos conseqüentes lógicos de um ou outro parâmetro de formação, de sorte que,

se para A ou B ser castigado fisicamente pode ter uma conotação diversa, positiva ou

negativa, é na esteira dos efeitos na atividade policial que veremos se tal parâmetro

“educativo” de que fora lançada mão é ou não necessário, muito embora seja aceitável

por A ou B, ou, por ambos. Tal problemática assente as ciências sociais evidencia-se

primorosamente na fala de Peter Berger em Perspectivas Sociológicas:

O quadro de referência do sociólogo será bastante diferente. Para

começar, sua perspectiva não pode ser o produto de códigos ou precedentes.

Seu interesse nas relações humanas existentes numa transação comercial não

tem qualquer relação com a validade legal de contratos assinados, da mesma

forma uma aberração sexual sociologicamente interessante pode não ser

passível de classificação numa dada categoria legal. Do ponto de vista do

advogado, a investigação do sociólogo é estranho a seu quadro de referência.

poder-se-ia dizer que, com referência ao edifício conceitual do Direito, a

atividade do sociólogo seja de caráter subterrâneo (2007, p. 38).

Esse “extraordinário construído pela e para a sociedade em oposição aos

acontecimentos que igualmente suspendem a rotina do cotidiano, mas são marcados

pela imprevisibilidade” (DaMatta, 1997:47) bem poderia representar o que se constituía

a vida “ritualística submundana” na APMCV. Pois, distintamente do que já era uma

ritualística por si só, em suma, envergar a farda, desfilar na parada militar, cultuar o

pavilhão nacional... havia, além disso, o que também se revestia de uma aura de ritual,

mas, diferentemente, não carregava o condão da previsibilidade e formalidade técnica.

Revestia-se, mais de um rosário imprescindível de etapas-rituais, sem as quais seria

imerecido ser aluno oficial. Essas etapas-rituais campeavam dentro de um calendário

completamente imprevisível, mas, não menos extraordinário. Nos dizeres de DaMatta é

o que chamaríamos de rituais formais e informais.

2.2 Cultura policial e poder. Um remate histórico-sociológico

Não tenho notícia de um texto (dito) científico que dê conta da exposição de uma

possível descrição etnográfica (e num referencial fenomenológico) do ser-policial

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militar, se fosse publicado, ainda sim, venderia pouco... — é verdade e, além disso,

empoeirar-se-ia perdido numa prateleira qualquer.

É caso, diante desse cenário de escrever num ideal menos ambicioso, na

expectativa, quiçá, de que um herdeiro saudoso, vez ou outra, a contemple em visões de

sobrevôo, folheando-a displicentemente, nesses sábados chuvosos de fim de ano.

Objetivar-se a essa altura, lavrando com a escrita, o que entendemos como o espírito

que move o policial militar, ou seja, calçando-lhe os passos, vestindo-o; sugere menos

uma necessidade acadêmica na busca de um título, que uma responsabilidade de dizer

quem somos, ou, quem “fui-sendo” durante a vida.

Envergar a farda, é vestir-se de si mesmo. Difícil ver-se fora desse espectro

quem habituou-se com o tempo, a se ver tão somente dessa maneira e, a responder

socialmente de uma forma peculiar. Obviamente, que minha tarefa tornar-se-ia bem

menos onerosa, se tivesse sido o policial militar de trinta anos atrás, onde tal espectro

(aparentemente) era bem mais vivo, atualmente, entretanto, é preciso ser mais sagaz

para contribuir com tal descrição, o que revela, dentre outros fatores, uma contínua

transformação que, caminha à nossa visão, para o que chamo de uma refundação das

polícias militares.

Dando sequencia a viabilidade de tradução desse espectro, fundamental que

continuemos com o prisma da autoridade. Não há que se considerar ao longo da história

o que chamaríamos de “autoridade formal”, aquela restrita a uma ordem estatal

definida por normas legais e conhecida socialmente por todos. A autoridade a que nos

referimos é a construída sob o monopólio — legítimo — da força que as polícias

sempre tiveram como ferramentas de manutenção do poder que detinham, isto é,

representavam por uma classe. Daí salientar que, as polícias militares no andar da

história regularmente se converteram em autoridades sociais sob a égide da força bruta,

respaldado pelo estado policial e antidemocrático — em que pese os esforços

democráticos pós Constituição, essa é a gênese que a história remete as polícias (ver,

Fernandes 1988, 1995, 2001). A despeito dos cultos que mantinham e dos valores que o

sistema militar apregoava na disposição hierárquica dos postos, ou na disciplina interna,

jamais fizeram frente ao aspecto mais característico das policias militares ao longo da

história: a força bruta.

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No intestino desse país não se conheceu autoridade mais vivaz senão aquela que

era forjada no cano da garrucha à sombra do bigode do Cabo ou do Sargento. Contumaz

ainda dizer que, as polícias ao longo da história desse país construíram-se na perspectiva

da força em primeiro lugar e, apropriando-se de uma ordem social hierarquizada que

espoliava o pobre e discriminava o negro, o índio e o mulato; não fora uma opção das

polícias, fora uma contingência da colonização.

No início se caçava índios para a escravização e, com o surgimento das vilas tais

corpos foram cooptados por uma ordem pensante devidamente institucionalizada pela

monarquia que recortou do quadro do Exército Português, nobres oficiais que segundo

um modelo europeu comandaria tais “corpos”.

A autoridade do policial nasceu sob dois signos, um institucional com os oficiais

e outro menos prosaico e mais duro com o que chamaríamos de praças posteriormente.

O treinamento, a roupagem ideológica a destreza militar e uma aura de “nobreza-de-

origem” deram aos oficiais de “gendarmeria” ou “lusófonos”, a representatividade de

homens em “quem se podiam confiar o destino dessas terras”, de maneira que, aos

corpos de execução, oriundos da ralé social (Souza), vitimizados por um sistema de

recrutamento protopenal eram os nada mais, nada menos degradados e “ébrios habituais

rudes”.

Na sociedade brasileira escravista e de classes bem definidas, esse protótipo caía

como uma luva, servindo aos coronéis do sertão, à nobreza de “sangue” e garantindo,

sobretudo, ao clero português a expansão do jesuitismo no Brasil; num ideal no mínimo

ocidentalizante. Superestimar o holocausto judeu na Segunda Guerra em detrimento do

extermínio indígena na América portuguesa e espanhola, é sermos incoerentes com a

história, como tão bem nos apontou Narloch em suas pesquisas; apontar ainda que, boa

parte do sanguinarismo das polícias advém desse histórico — o que de forma tão sutil

nos expõe Galeano em “As Veias Abertas da América Latina”, é colocar em discussão

uma hemorragia que não estanca e pouca gente está disposta a conter.

(Com)-preender o policial como um ser dissolvido em seu meio social não é

tarefa a que nos recorreremos para individualizá-lo enquanto ser humano, é justamente

o caminho inverso que trilharemos, dando sentido ao escopo das matrizes que

determinam seu comportamento peculiar dentro da sociedade pertencente. Não se trata,

todavia, de um reducionismo desbotado e infiel ao objeto pesquisado, trata-se sim, de

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uma “especialização justa”, como nos aponta Geertz no excerto abaixo — Que retira (ou

isola) o policial do contexto onde qualquer estudo padeceria de substância fidedigna a

realidade.

É justamente a essa redução do conceito (...) a uma dimensão justa,

que realmente assegure a sua importância continuada em vez de debilitá-lo

(...) em prol de um conceito de cultura mais limitado, mais especializado e,

imagino mais poderoso, para substituir o todo mais complexo de E. B. Tylor

que (...) confunde mais do que esclarece (2008, p. 03).

A analogia querida não beira a sedução das notáveis e fabulosas aparências

superficiais, especialmente, quando aprumamos a lupa sobre o objeto. Ademais, parece

ser o próprio oposto, o luminar preciso (ainda que inconcluso) deflagrando das sombras

ás luzes das “verdades” mais intrínsecas do objeto pesquisado. Logo, assumimos uma

postura eminentemente Weberiana, na exata medida em que as leis que demandam

resultados, apreciações, formulações... são concebidas diante de circunstâncias ideais (e

não muito raro, únicas) durante a investigação, o que garante apenas (ao menos para

nós) “verdades” sacadas à partir de realidades artificiais o que deságua na mera

artificialização da “verdade”, de sorte que, uma visão Weberiana, na esteira

diametralmente oposta, mede a “verdade” (embora de uma “ciência inexata”, como diria

Gadamer) a partir do estudo das “teias de significação que o homem teceu” (Weber

apud Geertz, 2008, p. 04).

O recorte desse fluxo cultural, cuja fotografia aponta o policial como ente

individualizado deve ser analisado com detença, de maneira que, a partir de seus

mínimos detalhes possamos perscrutar os elementos constitutivos de sua existência

enquanto reprodutor de uma cultura particular. Essa singularidade não é evidente

somente teoricamente. Demonstraremos a frente que a singularidade existe, o que já é

um bom início para esta pesquisa. Entender a cultura como algo estático pode conflitar

com o que temos (no caso pesquisado) por noção de cultura, fruto de uma empiria

vivida e sagazmente descrita. Com efeito, a dinamicidade newtoniana, em contrapartida

nos encampa a possibilidade de um entendimento desse ciclo, de sorte que, traz consigo

a mudança dialética que evolui “através das colisões conceptuais entre os seres no

cotidiano”.

O evidenciado para nós é o recorte desse fluxo dialético que é o flash preciso

dentro de determinado espaço-tempo naquele sujeito, ou grupo de sujeitos em plena

ebulição cultural, ou seja, em pleno choque cultural com seus afins. Exemplificando,

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poderíamos dizer que o oficial de polícia que se formou há vinte anos (1989) não é a

caracterização suficientemente adequada em relação aos oficiais que temos atualmente,

o que desbanca qualquer presunção estática no caráter de significação do sujeito no

âmbito de sua cultura social ou de grupo, a sugestão seria a dinâmica histórico-dialética

do processo de produção de cultura, que fatalmente seria a melhor resposta, pois,

inexoravelmente esse oficial de polícia do século XXI, em que pese com toda uma carga

de significação revista e, investido até de uma formação simbólica diversa, ainda tem

entrincheirado em suas concepções valorativas, sejam profissionais ou, até mesmo

éticas, fundamentos de uma cultura oriunda de outro cenário hitórico, que em certa

medida pode advir de seu currículo cultural, de seu cotidiano na caserna, ou de toda

uma gama de fatores combinados, expressos de uma maneira diversa travestindo a

mesma química numa nova fórmula.

Daí termos, oficiais de policia espraiando uma carga de significações vivenciais

histórico-político, traduzidos no reducionismo chulo: “bandido bom é bandido morto”,

bem como em posições ético-jurídicas do Estado Policial como: in dúbio pro societate,

presunção de culpabilidade, processo inquisitorial e etc.

Isso nos aponta, recorrendo-nos a Hegel, que o processo dinâmico engloba a

síntese de um movimento ternário que, ao se construir como tese já é, ipso facto, a

antítese de uma nova tese em formação que, nesses choques de contradição se aniquilam

dando origem ao novo, de maneira que, conforme apontamos, não se ajustam a cultura

policial plenamente, e sim numa “potencialidade ao revés”.

Ademais, o que colocamos sob análise para explicar a “cultura policial” à luz da

proposta de Hegel, é essa corrente contínua denominada “fluxo histórico”, que agrega e

num momento seguinte repudia, ao longo de um processo dialético-fenomenológico,

toda apreciação formadora do que comumente chamamos cultura do que é, ou, do que

foi, retratando o sendo como entrecorte do passado enquanto lembrança, do presente

enquanto pre-sença e do futuro como possibilidade; é esse ternário que define o

movimento da cultura no contexto em que podemos aliá-la a dialética hegeliana.

Um retrato unívoco de uma circunstância cultural que na qualidade de fluxo

representa a verdade de um momento, em sua evidente provisoriedade, ou como

preferimos um momento onde podemos enxergar a verdade em uma cultura, dentro de

um espaço-tempo.

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Mas até onde o policial alcança o sendo além da farda? E, em que intensidade?

Acreditamos que, em que pese o policial encontrar-se dissolvido no seio social

representando papéis, ora o policial, ora o pai de família, ora o religioso... Calha sobre

as suas teias de enlace social, uma pesada correspondência da sua esfera de

pertencimento profissional e, nesse momento dialético, passa a desenvolver aspectos

comportamentais que o distingui dos demais, ainda que, nas mais díspares

circunstâncias sociais, sendo possível notar que mesmo na representação do pai de

família a prudência altiva do militar (quando escolhe o itinerário mais seguro para seu

filho ir a escola, ou quando escolhe um lugar a mesa em um restaurante ao ar livre) tudo

acordado a uma lógica cultural pré-consciente (Searle) estabelecida pela cultura policial.

Desse ponto de vista o policial sai do quartel, mas o quartel não sai do policial.

Essas vivências tendem a demonstrar um limite bem definido, entre a determinação da

consciência social do homem individualizado pela farda e do homem socialmente

construído através de várias tramas sociais, ademais que, o golpe cognoscitivo no ser

humano de farda seja mais impactante à medida que reverbera de forma mais acentuada

em outros papéis vividos pelo ser.

É comum ouvirmos de familiares — você mudou bastante desde que ingressou

na Polícia Militar... —. Alguns são mais incisivos, ou mais sinceros quando nos dizem

— você não era assim... —. Isso, necessariamente implica algumas observações que

inferem que a experiência sofrida deu ao ser um novo eixo de significações socialmente

convencionadas, de maneira que, é notável a mudança de quem passa a ter, por

exemplo, um vocabulário próprio.

Quando falamos em ente dissolvido em determinado meio social nos ocorre a

idéia de homogeneidade, referente a fatores singulares de cultura de grupo; ora, não nos

proporemos a particularizar o policial a ponto de não situá-lo em padrões de

correspondência com seus com-terrâneos e contemporâneos sociais; — Em que pese

isto ser perfeitamente possível.

Os estudos culturais, nesse ponto, podem trazer alguns esclarecimentos sendo

necessário dizer que a tal “cultura de grupo” reflete um novo estereótipo de descrição

antropológica do policial, dando assim a quem se aventura em seu desenlace social a

oportunidade de desvelar o novelo de toda uma estrutura significante, singela, no

entanto, particular.

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Cabe neste ponto fazer uma oportuna digressão teórica acerca do termo cultura

de grupo, dado que, há quem afirme e, sustente que a dissonância social observada no

comportamento do policial não o titulariza como detentor de uma cultura particular ante

os seus conterrâneos.

Tal sustentação funda-se em algumas concepções equivocadas, vejamos: a) de

que o ser-militar é uma opção puramente profissional e b) de que o policial sequer

possui uma identidade militar, daí não ter status ôntico do ser-militar.

Falando do profissional em si, é oportuno informar que a experiência das

polícias militares no desafio da segurança pública, ao contrário do que alguns estudiosos

imaginam, é bastante recente41

, de sorte que, o maior mister dessas instituições ao longo

de suas histórias fora servir ao Estado na defesa interna através da repressão armada,

travestida na eufemística “manutenção da ordem pública”, durante longos anos fomos

relegados a busca e captura de escravos (colônia, período regencial etc..) a repressão de

levantes civis (república velha... canudos, cabanagem etc...) e nos especializamos no

que de mais intenso fizemos ao longo da história, desde Getúlio até Figueiredo em

1985, a famigerada polícia política, através do codinome getulista “Força Pública”.

Corroborando a mesma idéia temos as palavras singulares da profª. Jacqueline Muniz da

UFRJ:

Mesmo levando em consideração os distintos percursos históricos

das PMs de cada estado brasileiro, pode-se afirmar que, até os dias atuais,

foram poucos os períodos em que, de fato, elas puderam atuar como polícias

urbanas e ostensivas. Tomando de empréstimo a fala crítica dos segmentos

policiais identificados como "progressistas", pode-se dizer que "as PMs

foram muito mais uma corporação militar do que uma organização policial",

sendo, ao longo de suas histórias particulares, mais empregadas para os fins

de segurança interna e de defesa nacional, do que para as funções de

segurança pública (MUNIZ, 2001, p. 03).

Com efeito, é difícil crer que uma natureza de ordem não militar imporia

tamanha subserviência a uma instituição frente a “notoriedade” de serviços prestados ao

estado.

41

Para termos uma noção dos períodos antidemocráticos na história do Brasil: 1500-1822, Brasil Colônia (322 anos),

1822-1889, Império (68 anos), 1889-1937 “república” velha até 1930 e gov. provisório de Vargas até 34 e de 34-27

gov. “Constitucional” de Vargas, 1937-1945 Estado Novo (09 anos), ditadura militar 1964-1985 (22 anos):

Resumindo dos 508 anos de história temos 421 anos de períodos antidemocráticos ou seja quase 83% da história sob

julgo arbitrário e tirânico.

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As polícias militares são essencialmente militares, pois, em seu bojo constitutivo

existe uma forte expressão de valores, ritos e particularidades que são peculiares aos

grupos militares e os são não por “opção gerencial-legal”, os são, porque em essência

assim se apresentam na tábua de seus representantes, policiais militares; quando se fala

em crise de identidade a tônica empregada é de que as polícias militares ainda não

sabem se são mais “polícias” do que “militares”, ora! Um grande paradigma foi

rompido com a constituição de 1988 e doravante as polícias militares passaram a operar

com novo fulcro, logo, a crise dita “crise de identidade” nada mais é que o ruído de uma

lenta e capenga adaptação das polícias militares a ideais democráticos e humanísticos

apregoados na Constituição; propor de sobressalto que as polícias militares antes da CF

de 1988 vestiam-se de paz na festa da guerra é sugerir uma falácia diante de uma

verdade notável: as polícias militares eram antes de 1988 uma versão moralmente legal

do ideal da proteção do estado, da proteção irrestrita a ordem pública e a sua mantença a

qualquer preço, à partir 1988 temos a lógica que passou a operar na via de proteção ao

cidadão e aos anseios da sociedade, desafio esse que ainda não foi entendido, no seu

caráter mais amplo, por muitas policias militares.

Ademais, todos estes fatores comuns temos ainda a singularidade dos universos

de cada instituição, nas mais diferentes unidades da federação brasileira que nos

colocam, em muitos casos, em pé de guerra com nossas próprias argumentações,

fragmentadas pelos contrastes que observamos nos diferentes modos de interpretar a

atividade policial; assim, certos caracteres se preservam em canto uníssono, dentro do

silêncio que extrapola a omissão, quase que afirmando que somos todos iguais ainda

em/com nossas diferenças; e isto, cabalmente me estremece. A banalização da tortura, a

demonização da corrupção, a brutalidade do processo de formação, o corporativismo

negligente... são todos satélites que gravitam na mesma órbita, às amarras de seu centro:

atividade policial.

Indicaremos a flexibilização de certos valores na proporção em que se dissociam

do trivial e do aceitável no plano jurídico-moral-cristão, dentro daquele espaço-tempo a

que pertence o policial. Nosso objetivo aqui é eliminar a perplexidade (ou abrandá-la)

diante de determinadas condutas que serão expostas, de sorte que, ao passo em que se

constrói o ser ao mundo o mundo passa a ser íntimo ao ser que se constrói, mesmo que,

se estarreça perante um ou outro modelo não muito ortodoxo a sua cultura particular.

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Afinal, não é de se chocar (muito menos de incitar revolta) qualquer modelo

social que se edifique no prisma de uma cultura particular e exclusiva. A melhor

pergunta a se fazer diante dessa esfinge misteriosa não é se este ou aquele processo está

viciado, mas, se seus reflexos a exteriori, na atividade propriamente dita, atendem aos

fins que se destinam, independente se a voga empregada nos processos intra corporis

são, de fato, legítimos, o que numa análise fria é extremamente improvável. Trata-se de

uma moral utilitarista... Em última análise de um liberalismo no campo da conduta. O

ser-policial militar não é um fim em si mesmo, é apenas um vetor da busca pela

afirmação da democracia, dos direitos e garantias fundamentais do ser humano em

nossa época. Entretanto, algo nos prende a um passado não muito distante, ou, pergunto:

será que o ideal de cidadania é apenas um discurso?

Este posicionamento não é menos complexo do que aquele que coloca o policial

na simetria do homem vestido da cultura de seu meio social (aquele onde é pai, esposo,

munícipe...), postura que pode ocasionar resultados, apreciações e estudos distorcidos

sobre o policial enquanto profissional, dado que, antes disso é ser humano atingido por

uma formação de significação cultural distinta das dos demais, nesse diapasão,

compreender o policial significa capturá-lo dentro de sua esfera de formação, atividade

e, durante suas vivências no circulo comum (momentos em que responde aos diversos

vetores que informam seu modo de agir e sua maneira de pensar) e dissecá-lo

regressivamente até ao limite dos símbolos e signos que apregoam as matrizes de sua

existência.

Para tanto, torna-se essencial, num primeiro momento diagnosticar as

individualidades para depois fazer as devidas correspondências. Com efeito, o policial

exerce suas ações dentro de determinada lógica ou significação cultural que, via-de-

regra, operacionalizam suas ações ou verdades próprias, logo, trazer a tona essa veia

semiótica e destroçá-la é visualizar o policial no espectro do possível e do exigível a

alguém que sofrendo as amarras de suas tradições e valores responde de forma

particular a determinado estímulo; o policial assim, nada mais é do que um ente

formado da mesma substância, porém em dosagens diversas, que qualquer outro ser

humano, mas que, inexoravelmente, se apresenta como ser (particular) diferente dos

demais.

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É momento de fazermos um contraponto. A abordagem expositiva a que me

proponho nesta pesquisa (talvez...) careça um pouco de isenção, de sorte que, o

desejável aqui é apresentar o policial ao mundo na visão de alguém que vê o mundo,

contudo, o mundo representado por nós nesse contexto, por ora, está contaminado pelo

policial (que nos torna particular) e não pelo ente do mundo que entrou na realidade

policial, para entendê-los e expô-los aos seus semelhantes. Complexo?

A contaminação é inequívoca; resta-nos debelar ao espelho a vertigem do ser-

policial exarada da própria experiência real de assim o ser. Cabe surpreendermo-nos

com o banal, indignar-nos com o superficial/trivial e marginalizar o que é tão correto

aos nossos olhos, banhando de selvageria o que é civilizadamente esculpido por uma

cortina de valores centenários; quiçá, mentir a si mesmo, na tentativa ingênua de

mostrar o real sob a neblina do irreal; colocar-nos no papel de algoz e vítima, traçando

uma exposição etnográfica de primeira mão sobre o universo em que se aprofunda. Por

ser humana a ciência em tela, égide desse estudo, ficamos com a resposta que o contato

por si só desencadeia a contaminação e o inverso, então, não faz pudico o texto, senão, o

torna mais cândido por assim humano ser.

Uma abordagem de fora pra dentro demove o pesquisador a entrar num universo

que não pertence e se vestir para um cenário que está a interpretar, em nosso caso,

somos uma voz em meio ao conluio de que fazemos parte. É como um xavante

apresentar a drástica impressão de suas liturgias a um cidadão comum da baixada, como

é possível causar a impressão (estupefante) ao interlocutor de algo que lhe é natural?

O “universo policial” é um cosmo complexo. Mesmo entidades transcendentais

são forjadas no campo de um folclore primitivo, a realidade de certos contextos do

mundo-policia. Esse “universo” Possui trincheiras culturais que ofertam caracteres

(armas argumentativas) individuais aos seus membros dando-lhes (munição) conteúdos

embasadores a situações descabidas (em muitos casos ilegais) fora daquele

microcosmo. O contexto, na via da interpretação, dificilmente se iguala quando

situamos o policial e os demais membros de sua sociedade; — Como que ter prazer na

prática da tortura e legitimá-la sabe-se como... (eu sei) numa “lógica” coerente e

moralmente aceitável para ele (o policial).

Quem sabe seja essa a nossa tarefa neste trabalho: apresentar as possibilidades

interpretativas desse comportamento desviante em que o resultado ser-policial saca

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diante dos mais variados estímulos que sofre na atividade. Uma interpretação cingida

especialmente na cultura de grupo e na formação; tudo para destrinchar as chamadas

atrocidades, absurdos... numa análise direta seria “explicar” o errado pelo certo ou vice

versa... Respeitando a análise que se faz pela interpretação amiúde das variantes que

sente e, que quase religiosamente tem o dever de responder ao sabor de uma ótica que

apresentamos.

Ninguém aqui quer legitimar, em último grau, a violência policial. Ninguém se

daria a esse trabalho em sã consciência; o que se pretende é legitimar (do ponto de vista

das ciências humanas) os motivos que levam o policial a assim se determinar, e estes

são fatalmente defensíveis! Até porque, como cobrar meiguice de um cão treinado para

matar? Literalmente um cão de guerra, como na canção que entoávamos a plenos

pulmões na Academia,“sou um maldito cão de guerra, treinado para matar, mesmo que

custe a minha vida a missão será cumprida...”.

Sinteticamente podemos dizer que o primeiro contato do policial com a prática

ilegal é o encontro com a violência. Esse contato acontece bruscamente,

paradoxalmente ao seu processo explicativo que requer alguns entendimentos e

elucidações prévias, como: a) o poder na ótica do policial, b) o exercício do poder e c)

uso da força como meio de imposição do poder. Para compreendermos essas três

questões precisamos destrinchá-las no âmago de suas concepções sociológicas, antes,

porém, de explicarmos a ótica do policial (visão) expliquemos o estrabismo ocasionador

da ótica distorcida.

Em sociologia entende-se (embora, os conflitos teóricos sejam deveras robustos)

que o surgimento da sociedade prescinde de alguns requisitos sem os quais a “com-

vivência” (vida em comunhão) entre os homens se tornaria impraticável, de sorte que,

tais requisitos são os sustentáculos da sociedade, princípios aceitos pela pluralidade

como estacas demarcadoras do certo e do errado. Rousseau, o grande pensador suíço,

baseou-se em uma dessas estacas para encampar o pensamento de algumas de suas

obras, erigindo a propriedade como fundamento mater da injustiça social ou mais

especificamente como o motivo gerador da desigualdade entre os homens, vê-se uma

relação “causa-efeito” singular no curso da história das ciências sociais em que um

pensador dinamizou uma problemática à partir da gênese da questão, concluída por

Rousseau como sendo a propriedade a força motriz da desigualdade entre os homens.

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Para boa parte dos cientistas sociais uma sociedade depende para existir basicamente de

normas, regras, códigos éticos-morais e leis que unifiquem o limite do exercício da

atividade dos homens, buscando-se assim a dita “com-vivência” harmoniosa, tais

regulamentos a curto, especialmente o modo de produção vigente, culmina a médio ou

longo prazo (não por si só, mas pela complexa teia de interação homem-norma-

economia-política) diversos fenômenos como a miséria, a violência bem como a própria

desigualdade em sentido latu (desigualdade de bens, de capital, de moral, de valores

etc.) tão pormenorizada por Rousseau.

Dado a essa desigualdade desencadeadora de fenômenos sociais é que temos à

margem da aceitação plurilateral do poder constituído movimentos, podemos assim

dizer, teóricos (também chamados de utópicos) que informam uma vida desapegada a

qualquer regra de convivência, uma vida sem qualquer convenção social, sem limites de

expressão da vontade humana, ou seja, uma vida eminentemente presa, única é

exclusivamente, à obediência a natureza livre do homem, para tais movimentos fora

dado o nome de anarquismo que no curso da história teve concepções ideológicas

diversas, originando-se na Grécia de V a VI AC com os Cínicos e os Estóicos,

posteriormente frutificou-se no Cristianismo e seus grandes teóricos (Santo Agostinho)

e chegou ao apogeu ganhando formas diversas desde o extremismo (Bakunin) ao meio

termo, (Proudhon) do radicalismo (Stirner) ao consenso partidário (Marx).

Essa negação do poder, em parte, explica sua má utilização, pois, temos ao longo

das mais diversas experiências sociais conhecidas não o uso do poder, mas seu abuso,

constituindo na maioria dos casos uma relação de exploração-dominação de homens

sobre homens, o que, via de regra, não deveria ocorrer. Entender esse ponto em ciências

sociais é lançar mão de um leque de teorias que buscam dentre outras coisas explicar de

forma fundamentada as inúmeras matizes do termo poder, daí buscarmos tão somente o

entendimento que subsidie ao leitor compreender porque o policial encara o poder como

uma ferramenta de dominação e exploração de seu próximo e não como um dever

adquirido, uma responsabilidade a ser desfrutada. Por isso, quando se fala em

anarquismo têm-se a primeira impressão de “contra-sistema” de “anti-sistema”, sendo o

anarquismo (Teórico científico) nessa pesquisa mostrado apenas como uma manobra

intelectual e política em resposta a alienação do poder, a alienação do capital e da

propriedade.

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A noção de Estado carrega a idéia de soberania (Dallari), e não há como fugir

disso, e não são raras as ocasiões em que ouvimos as locuções “Estado Soberano” ou a

“soberania do Estado” trazendo em seu bojo essa conotação, daí compreender que

àqueles que dessa estrutura são partes viventes dispõe para o exercício de suas

atividades de determinado poder de mando não é nenhuma novidade, entretanto, o poder

que informa a legitimidade do “mando” é que torna o estudo mais aprofundado, dado

que, para determinados Agentes do Estado esse poder representa bem mais que um

respaldo sobre determinada ação, mas, um respaldo para a repressão, para a coerção,

para a restrição em muitos casos absoluta de Direitos das pessoas em geral (Meirelles).

Com efeito, é possível dizer que o poder que informa a atividade policial é

absorvido e cultivado como um poder deveras mistificado, um poder com fisionomia

tirânica o que conseqüentemente ao mal formado policial denota em muitos casos no

modelo que veste sua aspiração mais despótica. Mas o que há de errado com o “poder

de polícia”? Tecnicamente não há nada de errado com ele, sua compleição jurídica atual

o transformou num razoável e aquilatado poder — facultas — do Estado frente aos

interesses particulares em beneficio do interesse público, dessa forma, não há que se

olvidar de sua feição técnico-jurídica, em que pese ocorrer um sério problema na

nomenclatura já contestada por alguns juristas.

O que vem ao caso para o policial em sua noção de poder, não é nem nunca foi a

magnitude ou a compleição jurídica do poder de polícia, de sorte que, raríssimos

policiais poderiam, sem titubear, dizer quais são os atributos do poder de polícia ou

dizer ao menos o que é, ou, para que serve o dito poder de maneira técnica ou ao menos

convincente; — Não, definitivamente não é esse o problema. O problema que cabe

ressaltar faz referência ao binômio tão cultuado pelo capitalismo: Exploração-

dominação, esse é o cerne da questão, pois, a busca do oprimido em sair dessa condição

o transforma, inexoravelmente, num novo opressor em maior ou menor grau (Freire),

independente da sua vontade, pois, essa é a lógica do capitalismo.

Agora, o que podemos discutir são as formas de como o poder é interpretado ou,

os meios pelos quais são absorvidos pelo policial, pois, vejamos: um policial armado

não está para o cidadão numa relação direta de imposição de autoridade e sim para

defendê-lo caso algo ou alguém obste a execução de seus direitos; não há poder, mas,

sim um dever; continuemos: um policial não determina que o seu veículo pare porque

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tem poder para tal, mas, sim porque alguém em um carro semelhante ao seu (abordado)

poderá impedir que o você continue a trafegar sem problemas; há uma relação de

servidão (servir) do policial para com a sociedade, para com as pessoas que em último

caso com a própria vida deverá defender.

O policial em tese tem ciência desses conceitos, entretanto, o seu contato na

realidade prática o faz enxergar um poder demasiadamente limitado a demonstração

abusiva da força e da coerção, como explicaremos a seguir.

O ambiente da caserna policial reflete as tradições adquiridas pela tropa ao longo

da história. Mitos são construídos e, verdadeiras lendas nascem e são repassadas aos

novos policiais perfazendo um ciclo que cultiva e promove valores simbólicos dentro da

corporação que acabam por constituir no curso da história a cultura do grupo. O

Sociólogo R. Linton pesquisou a fundo em seu livro The study of man a estreita relação

existente entre a personalidade de um indivíduo e a cultura do meio ao qual pertence:

A cultura na medida em que representa algo mais do que uma

abstração construída, só existe no espírito dos indivíduos que formam uma

sociedade. As características que possui advêm-lhe das personalidades

desses indivíduos e da interação dessas personalidades. Inversamente, a

personalidade de cada indivíduo é elaborada e funciona em permanente

associação com a cultura da sociedade. (1968, p.491) [grifo nosso].

Ademais que as teorias por si só fundamentam a realidade observacional,

infelizmente nas polícias os “heróis” (personalidades que geram cultura, segundo

Linton) geralmente são aqueles que mais ceifaram vidas em combate, são aqueles que

mais promoveram em sua respectiva esfera de ação, mais temor!Devido a imposição da

crueldade e do medo.

São honrados os policiais que abatiam pardais disparando canhões, eufemismo

do que seria executar a sangue frio criminosos capturados e rendidos. No interregno

dessa constatação é bom lembrar que exemplos elevados de humanidade também são

cultuados, entretanto, na grande maioria não com a mesma magia simbológica. Esse

raciocínio levará a uma pergunta cuja resposta é inconteste, qual polícia não tem um

“assassino fardado” cuja lenda é motivo de orgulho dado sua representatividade social e

institucional?

Logo, o poder na ótica do policial é cultivado na exegese da brutalidade, da

truculência e do temor. Ocorre uma encarnação pelo policial desse modelo cativado,

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como no protótipo de Wittgenstein, que em seu livro Investigações Filosóficas nos

informa com o exemplo das peças de xadrez que são “investidas de poder aos olhos do

jogador que as enxerga como uma encarnação viva das regras do jogo”, assim o é o

policial, uma encarnação viva dos “mitos” que absorve em seu íntimo como estereótipos

ideais, pois, pela tropa são cultuados. O valor realmente adquirido é aquele que

determina em primeiro momento uma ação rude e agressiva num plano inicial ao

criminoso e com o passar do tempo o critério torna-se elástico, chegando atingir ao

próprio cidadão.

Dessa forma, olhando intencionalmente dessa perspectiva, é difícil esperar outra

maneira de exercício do poder senão o ilegal, o desprovido de técnica e

proporcionalidade. Assim diante de qualquer cena de ação o policial tem em sua mente

somente o espectro da imposição de autoridade, da afirmação da supremacia que

supostamente possui em detrimento do cidadão. Consentâneo a isso carreia o uso ilegal

da força que é a violência em seu estado puro.

Acreditar na coerência desse processo de inserção a violência é crer que o

próprio termo “coerência” não pode ser o principal teste de validade de uma descrição

cultural. Os sistemas culturais têm que ter um grau mínimo de coerência, do contrário

não o chamaríamos sistemas, e por meio da observação vemos que normalmente eles

têm muito mais que coerência, possuem toda uma engrenagem “justificadora”

determinante de cada mecanismo de transmissão de cultura.

2.2.1 Contra quem? A cultura policial como aparelho ideológico do Estado

Quero reduzir aqui um pensamento de Marx propondo que a existência sócio-

cultural é uma produção material do ser humano. Acautelo-me, por motivos de fôlego

na leitura marxiana, a acompanhar o pensamento integral de Marx que diz, que “a

própria existência é uma produção material do homem” (Collin apud Marx, 2008,

p.86). Mas, para o que pretendo a redução proposta parece ser pertinente quando

alicerçada aos pontos: 1) porque o ser humano é um ser natural; 2) porque não vive fora

da história; 3) porque homens e mulheres produzem seus espaços e, sobretudo, como

nos aponta Braudel o cultivo do arroz ou trigo dará duas civilizações diferentes...

Fundamentemos os pontos na perspectiva de desenhar uma tese ao fim.

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O tema central cujo conteúdo envolve o primeiro ponto: o homem como um ser

natural, remete diretamente ao pensamento freudiano cujo escopo teórico encontra-se

diluído em diversas obras, especialmente, em “Totem e Tabu” e “O mal-estar na

civilização”; tais obras em conexão direta com o marxismo de Herbert Marcuse exposto

em “Eros e Civilização” dão o devido o tom ao argumento que sustenta nossa tese.

Marcuse inicia “Eros e Civilização” com uma descrição aterradora logo no

início do livro:

O conceito de homem que emerge da teoria freudiana é a

mais irrefutável acusação a civilização ocidental — e, ao mesmo

tempo, a mais inabalável defesa dessa civilização. Segundo Freud, a

história do homem é a história de sua repressão. A cultura coage

tanto a sua existência social como a biológica, não só partes do ser

humano, mas também sua própria estrutura instintiva. Contudo,

essa coação é a própria precondição do progresso (1999, p.33)

[grifo nosso].

O que Marcuse nos reporta na passagem acima é perturbador, pois,

aparentemente deflagra um cenário de desolação a humanidade civilizada, de sorte que,

ao centrar o progresso na contramão da re-afirmação do ser humano enquanto ser

natural e, naturalmente jungido à seus instintos, deixa claro que progresso e natureza

humana civilizada são universos incompatíveis. Tal “choque de acordos”, para

Marcuse, tem sentido porque a cultura não pode consentir a gratificação de forças

destrutivas entre si e diz mais, “a civilização começa quando o objetivo primário — isto

é, a satisfação integral das necessidades — é abandonado” (1999, p.33).

Freud chega à conclusão da qual Marcuse alude, de que: civilização e natureza

humana são implicações destrutivas entre si; quando, em “O mal-estar na civilização”

pergunta acerca da finalidade e intenção da vida humana, dizendo “o que [os homens]

pedem da vida e desejam nela alcançar?” (2010, p.29). A resposta vem logo em seguida,

“eles buscam a felicidade”.

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3. Uma história marginal

Quem se habituou a estudar “polícia”, já fica nauseado ao ler, logo no início das

pesquisas monográficas quando, versando sobre história, os monografistas começam:

“As polícias, do grego polis, surgiram com o advento da própria concepção de

Estado...”. Nessa repisada “cosmovisão”, engalfinham-se “historiadores” de ocasião, na

tutela de quem foi mais longe na linha do tempo, na incessante busca em encontrar

vestígios do que eventualmente seriam, os rudimentos mais longínquos, do que quem

sabe, seria a versão atual de “polícia”.

Cobrem a história-crítica, com conotações paralelas remotíssimas, muitas delas

bem pitorescas por sinal, algumas egípcias, outras gregas, babilônicas... Tudo, na sanha

de “explicar”, o marco histórico dos corpos policiais, sempre — com emprego de

termos em latim obviamente... — e cada vez mais, tornando o texto hermético.

Esse lugar-comum, em que solenemente repousa boa parte da historiografia-

monográfica-policial-brasileira, onde as exposições históricas beiram um

encadeamento lógico causal do tipo tijolo a tijolo, vindo do alicerce à superfície, tem o

condão exclusivo — ainda que inconsciente à certos pesquisadores — de reafirmar um

dogma positivista, que neste contexto, enxerga a sociedade — e as instituições — como

um grande organismo, onde cada instituição tem sua função e, opera segundo uma

determinada finalidade. Em última suspeita desconfio de um discurso oficial engajado.

Assim, tais historiadores funcionais-positivas, coligem roteiros de investigação

desconexos da dinâmica sócio-cultural vigente à época, calculando em suas análises,

fatos sociais e políticos pretendidos como históricos, como que absolutamente

insuspeitos à atmosfera política e social circundante. Por conseguinte, atendendo a um

rol de quesitos inquisitivos, interpretam a realidade histórica de forma organizada, linear

e fundamentalmente auto-evidente.

Quando o Estado português42

foi, literalmente, escorraçado de seu solo, acuado

ante à aríete napoleônica, vindo para o Brasil em 1808, já funcionava por aqui uma

articulada máquina burocrática. Ademais, além de fixar-se no Brasil, sobretudo, fixava a

42 “A obra de consolidação da monarquia portuguesa, condicionada pelo capitalismo político, chegará ao seu ponto

culminante por meio de uma revolução, a mais profunda e a mais permanente de todas as revoluções que varreram a

história do pequeno reino (...) na segunda metade do séc. XIV, uma velha camada, a aristocracia territorial,

subitamente fortalecida, procurava afirmar, com exclusividade, seu domínio político. De outro lado, a categoria mais

rica, a burguesia comercial, longamente associada a Coroa (...) o dilaceramento dessas duas facções deu origem ao

Estado Português conquistador, com o perecimento da dinastia afonsina e assunção da dinastia de avis.” (Faoro,

2001, p.45)

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corte por aqui o contínuo esforço para legitimar a conquista portuguesa em todos os

campos, sejam eles, econômico, social, político ou ideológico e, em absolutamente

todos estes aspectos, possuía a mente absolutista do monarca português, o viés de

amortizar nestas terras, qualquer fundamento original para uma possível soberania.

Agindo assim, via de regra, como um ente dominador bem aos moldes do absolutismo

europeu do séc. XVI.

3.1 Vestígios de uma organização burocrática

Em 1808, já existia também por aqui funcionando a plenos pulmões, uma

divisão administrativa regular, dividida em três ramos básicos: a militar, a de fisco e a

de justiça. A que nos interessa, neste momento, é a militar, de sorte que, para

caracterizá-la, não basta tão somente, entendê-la como cópia fiel dos regimentos

militares que existiam em Portugal baseados no modelo francês desde 1760, nomeadas

aqui no Brasil como tropas de “primeira linha”. Compostas em sua maioria por militares

portugueses, especialmente nas funções de comando.

Tais tropas — chamadas de primeira linha —, eram completadas através de um

recrutamento violento, com um contingente de párias brasileiros, especificamente de

cor branca em sua esmagadora maioria. Conforme Rosemberg:

O recrutamento, além de prover as forças armadas com mão-de-

obra, era empregado como instrumento de punição, correção e controle

social, uma vez que o exército e a marinha foram o sumidouro de

milhares de indivíduos considerados “indesejáveis”. O exército, inclusive,

teria funcionado como uma “instituição protopenal”, em substituição a

instancias judiciárias, para se ocupar, de um lado, de desordeiros e

perturbadores da ordem pública — através do recrutamento — (...) em

paralelo as campanhas de recrutamento eram violentíssimas e expunham um

sistema odioso de barganhas, privilégios e compromissos, de que não apenas

o Estado, mas todo o corpo social, e mesmo a população pobre, portanto

alvejada pela conscrição forçada, se valiam para punir inimigos e facilitar o

escape dos aliados (Rosemberg, 2008, p. 54) [ grifo nosso]

Ainda, dentro da organização administrativa militar do Brasil colônia, tínhamos

as milícias e as ordenanças. As milícias eram as ditas tropas auxiliares, seu

recrutamento era menos seletivo, porém, forçado e, o serviço obrigatório e não-

remunerado, predominantemente nessas tropas havia a grande massa de espoliados do

regime, miseráveis em sua quase totalidade. As ordenanças nada mais eram no contexto

do Brasil colônia, do que todo o contingente masculino entre dezoito e sessenta anos,

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exceto os padres, que excepcionalmente deveriam ser convocados diante de uma

celeuma da ordem nas províncias. Em Mato Grosso as ordenanças constituíram o

prelúdio formal da atividade própria aos corpos policiais do séc. XIX e XX

Com a recém criada Capitania de Mato Grosso, desmembrada de

São Paulo, Dom Antônio Rolim de Moura, 1º Governador, criou e organizou,

em 1.753, a segurança pública na capital Vila Bela, com o nome de

COMPANHIA DE ORDENANÇAS, com 80 (oitenta) homens. Dezesseis

anos mais tarde (1.769), no governo do Capitão-General Luiz P. de Souza

Coutinho, é transformada em FORÇA PÚBLICA, com o efetivo de 620

(seiscentos e vinte) homens, dos quais mais da metade da Companhia de

Ordenanças (1).

Durante todo o Brasil colônia constituíam as forças armadas ou, tropas de

primeira linha, a própria encarnação da aristocracia portuguesa, vejamos nas palavras de

Raymundo Faoro:

Na fase colonial e na fase autônoma (...) constitui a força armada

um ramo da aristocracia — o ramo mais, relevante, definido na supremacia

da guerra, coetânea à formação do reino — responsável pela disciplina e pelo

conteúdo português da unidade territorial do apêndice brasileiro. O oficial,

preparado para a guerra nas escolas somente abertas à nobreza, não se

especializava em atividades militares, servindo em todas as funções de

comando político. Não era ele recrutado nas camadas dos senhores

territoriais, despidos, muito cedo, de seus poderes pretensamente derivados

do feudalismo, mas na categoria dos descendentes dos servidores

monárquicos. Bastava para legitimar ao título de cadete, o sangue ilustre,

abrandada a exigência, no curso do tempo, para a ocupação nobilitadora do

pai, equiparados os títulos universitários à nobreza (Faoro, 2008, p. 535)

[grifo nosso].

3.1.1 Aristocracia, espada e ruptura

Esse cenário, que dava conta de um Exército eminentemente aristocrático,

possuidor de uma “singular nobreza de origem”, refletia a própria conjuntara social

estabelecida à época, onde pertencer ao oficialato do Exército era pertencer à própria

nobreza. Para asseverarmos ainda mais o papel no contexto sócio-político vigente

durante o período colonial, interessante citar Boris Fausto na passagem:

Entre as figuras de cúpula, destacavam-se os governadores de

capitania, especialmente os das mais importantes. Acima deles, ficava o

governador geral (...) a partir de 1763, quando a sede do governo foi

transferida da Bahia para o Rio de Janeiro, tornou-se comum a outorga ao

governador-geral, pelo Rei, do título de Vice-Rei e Capitão-General de Mar

e Terra do Estado do Brasil (Fausto, 2008, p.143). [grifo nosso]

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Esse estreitamento de significados entre a nobreza e as forças armadas,

explicitadas no contexto português, demonstra-nos claramente que durante todo o

período que antecedeu a independência do Brasil (e continuou seu curso

posteriormente), constituiu as forças armadas e, especificamente o Exército, num co-

responsável direto pela mantença (e manutenção) dos ideais monárquicos, ademais, na

mais evidente manifestação de poder político nos limites da coroa.

A citar pelo número de cargos ocupados em nível de comando, ou, pela outorga

de títulos hierárquicos a nobreza — através das prestigiadas escolas militares, abertas

somente a fina flor do Império — enquanto alta honraria, podemos dizer que a

monarquia no Brasil usava espada. Corroborando tal raciocínio, assevera Raymundo

Faoro:

O oficial, preparado para a guerra nas escolas abertas somente a

nobreza, não se especializava em atividades militares, servindo em todas as

funções de comando político. Não era ele recrutado nas camadas dos

senhores territoriais, despidos, muito cedo, de seus poderes pretensamente

derivados do feudalismo, mas na categoria dos descendentes dos servidores

monárquicos. Bastava, para legitimar-se ao título de cadete, o sangue ilustre,

abrandada a exigência, no curso do tempo, para a ocupação nobilitadora do

pai, equiparados os títulos universitários à nobreza (Faoro, 2001, p. 535) [

grifo nosso].

Esse, digamos, prestígio da carreira militar era condizente com numerosos

exemplos históricos, grandes personalidades do Império que, alijados à monarquia pela

estreita porta que dava acesso ao Exército notabilizavam-se por seus postos e títulos.

Como o Duque de Saldanha general aos vinte e oito anos, o Marquês de Barbacena

general aos trinta e nove anos e Caxias, general aos trinta. Cite-se ainda, os marqueses:

de Maracaju, de Herval — mais conhecido como General Osório — e o Barão do Rio

Apa, todos oficiais do Exército.

A história por sua vez, bem como todo seu aparato conglobante (política,

sociedade, economia, cultura etc.) em contraste ao passado, determinaram uma gradual

suavização dos elementos aristocráticos do Exército, culminando no que podemos

nomear como uma ruptura do Exército com a nobreza propriamente dita. Ao longo de

um século (1800-1900) esse fenômeno se esgarçou, conforme se lê:

A cooptação aristocrática atenua-se a partir de 1824 com a

necessidade de concurso de capacidade, para que o cadete passe a oficial (...)

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no meado do século, uma mudança fundamental: os recrutados à força ou os

voluntários, depois de permanecerem algum tempo nas fileiras, podiam

matricular-se na escola militar, galgando o oficialato. “isso significou” —

esclarece um estudioso do assunto — “um poderoso fator de diferenciação

para a sociedade daquele tempo. (...) a população livre desprovida de

recursos estava emparedada, de um lado, pela classe dos senhores rurais, de

outro pelos escravos, sem maiores meios portanto de ascensão social. Agora,

enquanto os moços das famílias abastadas em regra davam preferência às

profissões liberais, indo se formar bacharéis na Universidade de Coimbra ou

em outras capitais do velho mundo e retornando de espírito mais arejado para

a compreensão dos problemas políticos e sociais, os moços pobres, os

mulatos procuravam as fileiras do Exército, para se fazerem oficiais (Faoro

apud Costa, 2001, p. 536).

Mas como entender essa pretensa ruptura? Como avaliar esse divórcio histórico

sem entender a motivação do enredo? Para tanto é preciso esforçarmo-nos para a

seguinte compreensão: a forja da independência do Brasil, a constituinte de 1824 e o

sete de Abril de 1831.

Dentro dos limites em que me permito palpitar cientificamente, o advento da

independência do Brasil, apoiado no que se permite entender pelo nome de “contexto”

vislumbrado à época, constituiu-se numa piada de mau gosto. Por conseguinte,

entrementes ao tema proposto por nós, a pergunta à esta altura com a leitura do texto é:

o que isso tem haver com a história da PMMT? Basicamente, tudo.

Com a independência e o sete de Abril (abdicação do trono por D. Pedro I), as

idéias ilustradas ganharam florescimento máximo no Brasil, de sorte que, a ilação

posterior mais lógica é a de que, tendo o Exército a própria natureza da monarquia

ilegitimada enquanto poder e, já superada pela voga das Luzes de Rousseau e

companhia; teria sido o Exército colocado a escanteio, longe das tomadas de decisão.

Tudo mentira.

No cenário estudado, caracterizam-se o iluminismo, a independência, a

constituição de 1824 e a abdicação de D. Pedro I em estratagemas conjunturais que

serviram de suporte a projetos de poder. Imbuídos na escala ao poder, um artificioso

projeto liberal deu a um grupo de intelectuais (José Clemente Pereira, Gonçalves Ledo,

Januário da Cunha Barros, Diogo Feijó, Bernardo Vieira de Vasconcelos, Evaristo da

Veiga e praticamente toda a maçonaria carioca) e altos funcionários da época, o condão

de redimensionar os valores de uma nova pátria a um modelo que garantisse a unidade

moral do povo brasileiro. Obviamente que todo esse redimensionamento daria-se a

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contragosto do Império que, dando sinais de absoluta aura portuguesa, insistia em

silenciar o sentimento de um povo que já tinha elementos eminentemente nacionais.

Claro, o nativismo dos intelectuais por mais bonito que seja nesse jogo de poder,

em nome de um suposto sentimento nacional, não era o eixo fundamental da

insatisfação com o Império, possuía sim também seu preço, partido político e interesses

particulares.

Tocado pela filosofia da corrente liberal, porém bem mais sensível as suas

próprias conclusões internas, a ideologia do Exército, absurdamente espoliado pelas

campanhas platinas, teve sua inversão conceptual ideológica a partir da dissolução da

Constituinte democrática que D. Pedro I ameaçado mandara dissolver com o braço forte

da primeira linha, talvez o último ato de fidelidade da “tropa de sangue real” com o

imperador. Tropa essa, ainda comandada por generais portugueses, que ancorados num

monarquismo falido não participavam dos combates, onde, brasileiros aos frangalhos,

adquiriam com o preço da vida um caráter nacionalista.

A inversão ideológica foi inevitável. O Exército assim aspirou e conspirou para a

queda do Império despótico, leia-se, o Exército de brasileiros, recrutados com violência

nas capitais e no intestino das matas do Brasil. Em todo esse cenário os únicos

genuinamente comprometidos com a possibilidade de democracia e, os mais ávidos por

ela.

O exército não era mais o instrumento obediente ao imperador,

como nos dias de novembro de 1823 (...) a campanha do sul infundira-lhe

espírito de corporação e lhe comunicara espírito patriótico, nacional, pronto a

participar, pelo nativismo, das causas propostas contra o portuguesismo de

camarilha real. Seus oficiais superiores não eram apenas os chefes

hierárquicos, mais lideres ressentidos com a assistência negligente que lhes

pretara o grupo político dominante, nas árduas jornadas do Prata. A

intervenção tuteladora do exército ocupou um lugar vazio, o do estamento

não reconstituído pelo imperador, estamento composto de aristocratas de tinta

e papel e dos realistas vinculados à tradição portuguesa. A presença da tropa,

comandada pelos três Lima e Silva – Francisco, José Joaquim e Manoel da

Fonseca – embotou o ideário liberal extremado, ideário federalista e próximo

da república (Faoro, 2001, p. 324).

O império agonizava e com ele sua ineficiente administração trina (fisco, justiça

e militar). Agregue agora a esse sentimento nacional (e antiluso!) o sangue e a comoção

gerada pela morte, de grandes lideres populares como Frei Caneca, Ratcliff e o Major

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Agostinho, executados pelo Império em revide a Confederação do Equador (movimento

nacionalista pernambucano em 1824).

Para se ter idéia do caráter generalista do sentimento nacional de apoio as idéias

emancipatórias e liberais, o próprio carrasco recusou-se a realizar o enforcamento de

Frei Caneca, tendo dessa forma, sido fuzilado junto ao Frei Joaquim do Amor Divino,

que por vender canecas nas ruas do Recife quando menino, passou a ser conhecido

como Frei Caneca. Todos esses fatores foram determinantes para o sete de abril e, o

advento da Regência.

O último ato desse casamento Exército-Império é o que chamamos de a própria

feição do poder enquanto poder. Ao abdicar do trono D. Pedro I deixa seu filho ainda

garotinho por aqui, este por sua vez nascido em terras brasileiras, adquiriu duas

conotações: a) de restaurar a unidade e dissipar a desordem pela legitimidade de origem

(versão mais divulgada pela historiografia tradicional) e b) servir de fantoche a

burguesia comercial nascente, leia-se, intelectuais (ricos) e maçonaria.

Da segunda alternativa nasce com força tirânica o grupo... liberal, àquele cuja

missão e supostos valores era ser o portador da bandeira da democracia. Capitaneado

por Feijó que, traindo suas próprias idéias — ou demagogias, a serviço do projeto de

poder de seu grupo — destrói o liberalismo e a democracia em benefício da autonomia

da ordem à qualquer custo. Nesse contexto — e com a Lei de 18 de Agosto de 1831 do

padre Feijó — nascem os corpos policiais nas províncias, filiados a imagem da Guarda

Nacional e, paradoxais à ideologia do Exército do povo. Movidos, unicamente pelo

ânimo da burguesia nascente em perpetuar o poder e, suplantar ideais iluministas.

Os liberais no poder convertem-se em conservadores, em

guardiões do país contra a anarquia. Este o primeiro ato do drama do

liberalismo brasileiro, ideologia de oposição, demolitório, incapaz de

governar de acordo com seu programa, transformado, no poder, em

conservador com os mesmo vícios, com igual despotismo ao do partido

substituído. Feijó refletirá bem este espírito: seduzido, na oposição, com a

liberdade, torna-se, na cadeira ministerial, a mão de ferro implacável

contra a turbulência gerada de idéias que foram suas. A primeira tarefa

do sete de abril será a de organizar a autoridade, repentina e inesperadamente

desaparecida com a abdicação (...)

À força regular do exército, o sócio mais ativo do 7 de abril, opôs

Feijó, ministro da justiça da regência, a guarda nacional. Luta o governo

contra a ameaça da anarquia militar com um instrumento que levaria aos

sertões e às cidades um elemento conservador e civil. Ao exército deliberante

e político, arma a regência uma força governamental e, inicialmente, sob o

controle das influências locais, aderentes da ordem liberal. Volta-se, sob

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inspirações de outra índole, a uma velha idéia da política portuguesa, com as

milícias e ordenanças fiéis aos capitães-generais e à coroa lusitana (...) antes

de 1831 o exército consumia dois terços do orçamento e se compunha de

trinta mil homens. Logo depois do 7 de abril, os efetivos se reduziram à

metade, com o máximo legal de dez mil em 3 de agosto de 1831. No ano

seguinte, praticamente desaparece, no Rio de Janeiro, a força de

primeira linha, com oficiais sem soldados. Ao tempo que desarmava o

exército, o enérgico padre Diogo Antonio Feijó, descendente bastardo de

família territorial de São Paulo, cria a “nação em armas” (...) concentrando

nas milícias cívicas e remanescentes coloniais — milícia destinada a

custodiar o exército — (Faoro, 2001, p. 346-349). [grifo nosso]

Pode parecer que a linha metodológica adotada neste texto seja a

desconstrucionista. Porém, nem tudo que parece é, de fato. Desconstrucionista sim é (ou

parece ser...) a história tradicional cunhada pelo elemento ideológico do grupo

dominante que apregoa mesmo a fatos históricos, conteúdo engajado na luta política,

seja na defesa, na tomada ou fomento de um projeto de poder, por conseguinte, é capaz

a “história” de por uma cara cristã em um herói (como Tiradentes), de colocar a pecha

de herói abolicionista a quem possuía, como indicam várias evidências, escravos como

patrimônio (como Zumbi dos Palmares), de atribuir conquistas a homens que nunca as

tiveram (como Dumont em relação ao avião), de chamar de “banditismo social e de

revolta”, grupos de homicidas a serviço dos coronéis da república velha (como o

cangaço).

Por todos estes fenômenos construídos, absolutamente insuspeitos ao leitor de

almanaque, é imprescindível que chequemos os fatos: por que um governo dito liberal

importaria o modelo gendármico para as polícias? Modelo tal, eminentemente militar.

Você, acostumado à leitura do receituário monográfico que versa sobre o tema em tela,

deve saber que o modelo organizacional das polícias militares do Brasil segue, com

mínimas distinções entre os Estados, o modelo napoleônico de gendarmeria. Mas, por

que seguem? Como seguem? E com que finalidade?

3.2 Polícia e política: universos imbricados

Gostaria de dar ao mito agora a dignidade de seu alcance conceitual. Até aqui

desenvolvemos circunstâncias de interpretação do mito na esteira da antropologia

interpretativista de Geertz, de um brevíssimo sobrevôo sobre as ventilações

bibliográficas do tema, bem como de meu próprio olhar acostado na metodologia

autoetnográfica, baseado nisto poderemos empreender a seguinte tese: os mitos

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fundadores das instituições, são condições primárias de entendimento do funcionamento

e significado da instituição em si mesma. O que proponho é que as instituições são

interpretadas segundo a lógica idealizada pelo seu mito de origem. Indo um pouco mais

longe... que uma determinada tradição, costume ou mesmo estereótipo está veiculada

pelos seus “mitos ancestrais”. Essa idéia fora levantada linhas atrás acostado em Linton,

de maneira que, agora procederemos mais responsavelmente na fundição da idéia ao

conteúdo exarado.

Devemos iniciar mencionando que o estudo do mito — latinizado mythus —

diverge em dois pontos decisivos, a saber, o que aponta para algo ilógico, infantil, falso,

arcaico e démodé e, aquele que informa que o mito é algo do campo do sagrado, algo

fascinante e compulsivamente digno para a explicação das tradições culturais herdadas.

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4. Um choque de pedagogias

Falando em “pedagogias” e no caso mais específico em que iremos tratar a

frente, isto é, o currículo, devo dizer que a luta pelo discurso dominante em torno da

área, seja entre atores e/ou instituições, enseja o que Bourdieu denominou como formas

de poder específicos a determinada área em questão. O contexto em que essa idéia de

Bourdieu é sacada vem do excerto:

A estrutura do campo científico se define, a cada momento, pelo

estado das relações de força entre os protagonistas em luta, agentes ou

instituições, isto é, pela estrutura da distribuição do capital específico,

resultado das lutas anteriores que se encontra objetivado nas instituições e

nas disposições e que comanda as estratégias e as chances objetivas dos

diferentes agentes ou instituições (1983, p.133).

Pressupondo essa análise podemos dizer que a teorização no campo em tela é um

campo de força as voltas pelo embate entre seus atores. Em busca de legitimação do

discurso concepções teóricas são construídas sob a égide da autoridade na área. Em

suma, como a maioria dos negócios humanos, um jogo pelo poder. Segundo Lopes e

Macedo:

O campo intelectual do currículo é um campo produtor de teorias

sobre currículos, legitimadas como tais pelas lutas concorrenciais nesse

mesmo campo. As produções do campo do currículo configuram, assim, um

capital cultural objetivado do campo. Dessa forma, entendemos que analisar a

produção do campo do currículo inclui tomar como objeto o conhecimento

produzido por sujeitos investidos da legitimidade de falar sobre currículo. Tal

legitimidade é conferida por sua presença em instâncias institucionalizadas,

tais como: as instituições de ensino e pesquisa, nas quais atuam como

professores, pesquisadores e orientadores; agências de fomento, em que são

pareceristas e definem que tipos de estudos serão financiados; os fóruns de

pesquisadores (...) (2005, p.18).

Existem pesquisadores de toda monta possível, entre antropólogos seria difícil

não imaginar as mais diferentes vocações e, nesse diapasão limito-me a parar por aqui,

para não enumerar toda uma gama de pesquisa que eventualmente vem se fazendo

mundo a fora. Em antropologia, uma descrição por si só é um evento esclarecedor,

especialmente para o público leigo, que se vê aturdido com tamanho rigor descritivo

obtendo impressões quase reais do que lê à partir daquilo que fora pesquisado. No

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entanto, boa parte dos estudos etnográficos descamba para o que costumo chamar de

“estudos caricaturais”.

Tais estudos consistem na captação do mundo pesquisado como parâmetro de

correlação a terceiros e, aqui faço um adendo. Quando falamos em um sujeito de

pesquisa é preciso distinguir até onde permanece o sujeito pesquisado e onde começa a

dicotomia com terceiros, quando elas porventura venham a existir. Esse corte

dicotômico a que nos referimos, da idéia da diferenciação provocada entre o grupo

estudado e o grupo de pertencimento do pesquisador, ou mesmo do público alvo da

obra, ademais, é necessário que se aponte que um estudo caricatural visa construir o

próprio modelo social em que se submete o sujeito de pesquisa oferecendo ao leitor

uma apreensão nítida da distinção com seu grupo.

Em contrapartida, o que se pretende aqui é construir um modelo que seja

interpretado à partir da semelhança que o leitor terá com o sujeito de pesquisa quando

eventualmente se ver compelido por variáveis que o norteiam (como a formação

descrita no tópico 1 do cap.I), sendo assim, construiremos a diferença a partir da

semelhança inicial, o que é justamente o contrário de um estudo caricatural que trabalha

na perspectiva da semelhança (com seu grupo particular) a partir das diferenças (com

outros grupos), em suma quando vemos como exemplo que, em determinada aldeia

todos se casam em que pese os moldes da constituição do matrimônio sejam deveras

distintos das freqüentes ao mundo ocidental, do que se depreende um fenômeno comum

a partir de supostas diferenças sócio-culturais inter-grupos, aqui, entretanto,

caminharemos de fenômenos comuns, como a formação profissional e a convivência em

grupo por exemplo, para daí construir diferenças geradas por variáveis independentes

que acidentam o que seria uma trilha natural, tudo na ótica intra-grupos.

Esse caminho metodológico não é um floreio desnecessário da qual poderíamos

abrir mão, de maneira que, entender determinado comportamento incomum a partir de

etapas comuns de constituição do indivíduo em sua profissão é no mínimo intrigante.

Constatar, contudo, que embora em certa aldeia uma moça permaneça um ou dois anos

presa em sua casa antes do casamento, enfim, já não é uma tarefa muito árdua de

entender — em que pese impactante —, pois, afinal, elas se casam como qualquer

ocidental, logo, é preciso inverter a lógica dessa descrição etnográfica partindo do

comum ao incomum, e para compreender o mais interessante: que os aspectos comuns,

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não são tão comuns como se apresentam e o dito incomum em última instância pode

não ser nada além de um conseqüente lógico.

O impacto que se tem de uma descrição “do comum” (ao leitor) quando

entrementes ligado a caracteres que as particularize torna o exercício da interpretação

cultural algo tecnicamente mais denso e inibe em contrapartida eventual pré-conceito de

partida.

Uma descrição antropológica do policial militar de Mato Grosso, Aluno oficial

de polícia, oriundo da Academia de Polícia Militar Costa Verde. Esse é o parâmetro

inicial. O segundo parâmetro é menos taxativo e requer demonstrações: existe um

currículo cultural na APMCV, com implicações na formação do oficial de polícia.

Mas que metodologia antropológica daria conta de uma empreita que visa

descortinar o universo cultural embutido no currículo e na vida do ser-policial? Linhas à

frente, com o desvelar das teorias inerentes as diversas formas de construção do

pensamento teórico acerca do tema cultura, poderemos apreciar através de diferentes

lentes como poderemos submeter metodologicamente o primeiro capítulo, entretanto,

com os óbices que serão levantados paralelamente às construções, ficará claro,

sobretudo, aos que apreciarem a metodologia defendida que uma leitura etnográfica

neste caso específico bem se adéqua à compreensão.

E o que seria essa leitura etnográfica? Recorreremos a uma sucinta descrição da

etnometodologia.

Uma busca incessante pela prática revela um mínimo que atualmente já não é o

ideal das pesquisas neste campo. Qualquer pesquisador em nosso tempo sabe que uma

boa descrição, daquelas em que o “pensamento selvagem” vem à tona através de um

cuidadoso panorama analógico, sabendo ainda que, leva o leitor muitas vezes a uma

posição durante a leitura de maior ou menor importância... inferindo que se imagine que

dentro do que ele preceitua como cultura, encontra-se em uma escala civilizatória em

posição mais ou menos elevada.

Esta gama de pesquisadores parece ter evoluído e hoje já sabem que a via da

interpretação crítica mais que um supedâneo alternativo (um modismo geertziano...) de

pesquisa transformou-se na contemporaneidade requisito indispensável da informação

antropológica que esclarece, que desnuda, uma verdadeira engenhoca aparentemente

sem nexo, mas, extremamente científica.

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Portanto, não basta dizer quem o aluno oficial é (se é que ele é...), porque em si

mesma essa explicação tijolo a tijolo, causalista... para o fim de que tratamos não é o

melhor azimute, de sorte que, a busca por este tipo de explicação hoje nada mais é que

uma alegoria em que nos apoiamos para tratar de índios extintos... Basta-nos, sobretudo,

a esse mundo das formas necessárias e contingentes, construído à saciedade pelo

funcional-positivismo, dialogar visando a compreensão interpretativa das consciências

de grupo.

Podemos começar buscando essa tal compreensão, compreendendo de início a

“lógica do ocidente”. Tal lógica nos fez durante muito tempo cultivar uma sonora

pretensão ante os demais moradores do planeta terra, seja na hora de definir valores ou

impor questões éticas, essa dita lógica ocidental vem caracterizar o que costumo nomear

como uma afirmação impoluta da hegemonia do ocidente frente ao mundo como um

todo, lógica esta comumente culminada quando nos colocamos no centro do mundo,

onde os demais são todos bárbaros a serem civilizados, adestrados, instruídos,

catequizados, evangelizados... Os antropólogos chamam isso de etnocentrismo —

descobri essa centenária explicação técnica, bem depois de a ter intuído diretamente da

natureza fenomenal...—.

Assim, quando falamos em etnologia, essa colocação comum rapidamente é

suscitada e ganha o nome de etnocentrismo. A dúvida que temos a essa altura é se

operando nós na lógica ocidental dos valores, quais seriam então nossos referenciais?

Essa é uma pergunta que poderá mover as mentes a acreditar que a lógica

ocidental, seja ela a dos valores, dos costumes ou aquela que dita à moda, é a lógica

diante da qual sensibilizamos todos os nossos freios morais, sempre no ímpeto de lhes

ser fiéis ou, numa palavra mais em voga, mais globalizados — Mais uma intuição à la

Popper —.

Então, claro está que a universalização da cultura é a homogeneidade dos

costumes. — E todos sintonizados na mesma freqüência entoamos juntos a ode ao

etnocentrismo do pavilhão nacional, do clube de futebol, do gueto, da rua, do boteco do

se Zé, sempre, o melhor pavilhão, o melhor clube, o melhor gueto, a melhor rua, o

melhor boteco... Pasmem... Etnocentrismo que impõe o pré-conceito sob o que lhes é

absurdamente estranho, fenômeno este causação do hegemônico universo cultural

sistematizado por um fenômeno mundial conhecido como globalização —.

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A bandeira da globalização não pede uma nação que a determine, ela

simplesmente exige uma “transvaloração” de todos os valores em seu nome! E não

precisamos falar das estrelas e das listras desse pavilhão, — Tampouco, do ultraje a

Nietzsche...—.

Essa visão macro do fenômeno etnocêntrico ocidental modela uma visão de

mundo muito aquém da pretendida cientificamente. Vejamos as seguintes torções,

quando falamos, em contrapartida da etnometodologia:

A preocupação central da etnometodologia é buscar abordar as

atividades práticas, as circunstâncias práticas e o raciocínio sociológico

prático desenvolvido pelos atores no curso de suas atividades cotidianas,

sejam estas atividades ordinárias ou extraordinárias, partindo de um

raciocínio profissional ou não. Considera que a realidade social é construída

na prática do dia-a-dia pelos atores sociais em interação; não é um dado pré-

existente (Votre & Figueiredo, 2003, p. 4). Evidencia-se uma nova

preocupação para a sociologia, a recuperação e a análise do “senso comum”,

que para a sociologia clássica, desde Durkheim, devia ser evitado como um

problema. Ao contrário, os etnometodólogos procuram descobrir no senso

comum os verdadeiros sentidos que os atores dão às suas ações e esperam

desvendar o raciocínio prático que orienta as ações sociais. A

etnometodologia analisa as crenças e os comportamentos de senso comum

como os constituintes necessários de “todo comportamento socialmente

organizado”

Esta nova perspectiva exige uma mudança dos métodos e das

técnicas de coleta de dados, bem como da construção teórica. Já não é mais

possível trabalhar com a hipótese de que exista a priori um sistema de normas

estável que dá significação ao mundo social, mas é preciso considerar que os

fenômenos cotidianos estão em constante criação, transformação, e extinção.

Tais fenômenos são criados pelos atores para dar significação às suas ações e

permitir uma compreensão das ações empreendidas pelos demais atores que

coexistem com ele num mesmo contexto. Ao contrário da sociologia

tradicional que considerava possível determinar as “leis sociais” que regem

os comportamentos e as ações sociais, a etnometodologia entende que as

ações desenvolvidas pelos atores é guiada pelo seu raciocínio prático, fruto

dos momentos particulares vivenciados e experimentados a cada ato

interacional (Coulon, 1995a, p. 30).

Poderíamos ficar por horas a fio aqui descortinando o sonho do umbigo como

centro do mundo, porém, seriamos pedantes demais ao retomar assuntos por vezes tão

bem esclarecidos. Começando pelo nascimento europeu da filosofia — negando-se

assim, babilônicos, sumérios, persas... Incrível como ninguém na Europa fala que Tales

só começou a filosofar depois de uma viagem ao Egito...— , poderíamos debulhar o

universo do etnocentrismo à saciedade do ouvinte... Mas, não é o caso.

Então, o que seria o “currículo cultural”, dentro dessa tal etno...? E qual seu

limiar de alcance na tomada de postura social do jovem Aluno oficial, ou, se ao menos

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implica na atividade social. No conjunto da obra, qual seu percentual de contribuição na

construção de um caráter profissional-policial militar?

São temas dificílimos, entre os quais poderemos soçobrar. Primeiro, caso não

consigamos ajuizar posicionamentos científicos de que esse dito currículo cultural

exista de fato. Segundo, se não conseguirmos manifestar que este currículo cultural é

que dará sentido a uma etapa de construção paralela de identidade, de modo que,

conforme o aluno se preenche de um lado, com o que apregoa a diretriz de seu currículo

formal, na outra ponta também preenche-se, através de um ganho cultural por interação

com seu grupo e a história de seu grupo, somando-se é claro, a afetação de “n” variáveis

que o determinam a proceder enquanto sujeito em construção; tal etapa, paralela a

“formação formal” é o que vamos chamar de currículo cultural que daremos corpo ao

longo dessa exposição. Até onde esse duplo preenchimento coabita, até onde é auto-

excludente, são temas que iremos tratar nos “finalmente” desta pesquisa...

Talvez possa parecer estranho empreender com cuidado e, sobretudo com rigor

metodológico, todo o sentido que se acha nas interações sociais de um aluno oficial da

APMCV. O que nos baseamos para fornecer uma visão do currículo cultural desse

sujeito em investigação, não será certamente um conjunto bem articulado de correlações

que se colocam como em linha reta para definir na linha de chegada o que podemos

entender como cultura de grupo... Ou, como um caixinha bem estruturada selada com o

nome de “currículo cultural”.

Esse ganho cultural a que nos referimos e que se projeta na existência do aluno

como um enquadramento simbólico daquilo que passa a reconhecer em suas relações

cotidianas, nada mais são que expressões, formas tomadas arbitrariamente que

submetem o sujeito a uma nova colocação existencial.

Para dar uma visão mais objetiva podemos recorrer a uma análise simples —

truques para a compreensão serão freqüentes daqui em diante —. A constituição

biológica de um indivíduo é determinada geneticamente. Claro, todos sabemos que

caracteres do ambiente exercem profundas alterações no dispositivo dessa constituição

biológica, especialmente, quando em última instância caracteres do ambiente são

traduzidos ao código genético, que por sua vez reagrupa as combinações cromossômicas

na finalidade de melhor adequar biologicamente o indivíduo às influências de seu

ambiente. É essa interação que torna os seres humanos preparados às intempéries de sua

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existência no mundo físico... Uma análise grosseira diria: muito sol, muita melanina,

pouco sol, pouca melanina...

“Quando se trata de caracteres culturais as coisas parecem não ser muito

diferentes”, porém, é preciso limpar o cenário do que foi escrito entre aspas para

produzir uma boa interpretação. Todos sabemos que caracteres culturais não são

transportados nos genes, tampouco, estudiosos sérios propor-se-iam a testar epítetos

culturais amparados a determinações geradas pelo histórico genético das pessoas ou

pelo espaço geográfico em que habitam — embora já tenham tentado —. Tais fatores

preponderam — desconfio muito... — como variáveis dependentes, mas, remotamente

como determinações de culturas.

A contrapartida, porém, é que independente dos fatores genético e geográfico

existe um código cultural que é perpetuado geração a geração e que não está ligado nem

a um ou outro fator de cunho objetivamente demonstrável (genética ou geografia), mas

que viabiliza a segurança de uma hereditariedade segundo o qual as pessoas mudam

mas, as dimensões de significação não... Onde o grupo posterior adquire todo um

aparato cultural que mais se parece a uma caixa de ferramentas herdada, passada de pai

para filho, que traz sempre um ideal sombrio... “querido filho...use essas ferramentas,

aprenda a utilizá-las com eficiência e maestria e, se realize profissionalmente e seja bem

visto por seus camaradas...”

4.1 Elementos de compreensão sociológica

Contumaz falarmos já em linhas de pré-requisito à nossa exposição de alguns

temas que darão suporte lógico-científico ao tema a ser desenrolado, são eles: (1) teoria

da cultura, (2) antropologia cultural, (3) grupos sociais e construção social da realidade

e (4) comportamento humano. O engendrar desses quatro temas fornecerão o suporte

para entendermos a perspectiva de um currículo cultural com vistas a inferir que no caso

estudado, interfere na atividade profissional (prática cotidiana) do jovem oficial oriundo

da APMCV.

Em “a interpretação das culturas”, Clifford Geertz inicia a discussão já nas

paginas iniciais sobre a definição de cultura apontando através de modelos conceituais

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de outros autores o que seria o seu próprio modelo para uma definição, fazendo assim

um encontro do conceito por eliminação. Quando afirma que seu conceito é:

Essencialmente semiótico (...) que o homem é um animal

amarrado a teias de significação que ele mesmo teceu, assumo a cultura como

sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência

experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à

procura do significado. É justamente uma explicação que eu procuro, ao

construir expressões sociais enigmáticas na sua superfície. Todavia essa

afirmativa, uma doutrina numa cláusula, requer por si mesma uma explicação

(Geertz, 2008, p.04).

Comumente em ciência, ao se expor determinado rol metodicamente

construído sob os altares do rigor cientifico a primeira coisa — na maioria das

vezes...— que se faz, é construí-lo de modo hermético, de forma que, se correlacione

ideologicamente com determinado circulo onde a correspondência deve girar.

Esse círculo por sua vez instrumentaliza esses conceitos sob rubricas

vastíssimas... diante das quais a simplicidade do tema debatido perde-se num sem fim

misterioso de supedâneos previamente elaborados que mais confundem que explicam a

coisa (a priori kantiano...) propriamente dita. Não queremos aqui imolar a foice para a

cepa de determinados tipos de cientistas, entretanto, neste caso específico, precisamos

de um conceito que operacionalize um entendimento que tijolo a tijolo vem sendo

construído no ideal de elaboração de uma tese.

Ademais que, para esse fim ou estrada que escolhemos, o farol deve focar a

trilha em detrimento da floresta, logo, evitaremos mistérios da “floresta cientifica” —

ainda que, vez ou outra venhamos a nos embrenhar nela por força da caminhada —.

Talvez seja esse (foco) o motivo central da escolha de Geertz para esse

referencial que encampa na sagacidade de um pensamento cirúrgico o que a cultura é a

partir do que os homens fazem dela, um corolário, uma agenda de tarefas, um ritual,

para o qual precisam nortear seus domínios de atuação.

Dizermos ainda, conforme Clyde Kluckhonhn que a cultura é “modo de vida

global de um povo”, “o legado social que o indivíduo adquire de seu grupo”, “uma

forma de pensar, sentir e acreditar”, “uma abstração do comportamento”, “uma teoria

elaborada pelo antropólogo, sobre a forma pela qual um grupo de pessoas se comporta

realmente”, um celeiro de aprendizagem em comum”, “um conjunto de orientações

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padronizadas para os problemas recorrentes”, “comportamento apreendido”, “um

mecanismo para a regulamentação normativa do comportamento”, “um conjunto de

técnicas para se ajustar tanto ao ambiente externo como em relação aos outros homens”

ou um “precipitado da história” não resolvem nosso problema se não tivéssemos

agregado a todas essas definições uma notação simples de Ward Goodenough citada por

Geertz, quando fala que cultura “consiste no que quer que seja que alguém tem que

saber ou acreditar a fim de agir de uma forma aceita pelos seus membros” (Geertz,

2008, p.04).

Falarmos ainda segundo Simmel que a cultura é “a provisão de espiritualidade

tornada objetiva pela espécie humana no decurso da história” (Reale apud Simmel,

2007, p.185) ou conforme Miguel Reale que “a cultura é o cabedal de bens adquiridos

pelo espírito humano, na realização de seus fins específicos” (Reale, 2007, p.185) nos

ajuda a transformar uma abstração genérica e sem sentido aparente numa definição mais

ligada a nossa problemática e devidamente lapidada ao escopo de uma pesquisa

antropológica:

A cultura consiste em estruturas de significado socialmente

estabelecidas, nos termos das quais as pessoas fazem certas coisas como sinais

de conspiração e se aliam ou percebem os insultos e respondem a eles, não é

mais dizer que esse é um fenômeno psicológico, uma característica da mente,

da personalidade, da estrutura cognitiva de alguém, ou o que quer que seja, ou

ainda dizer o que é tantrismo, a genética, a forma progressiva do verbo, a

classificação dos vinhos, a Common Law...(Geertz, 2008, p. 10).

“Aquilo que resta, quando se esqueceu de tudo”. A boa fórmula de Ionesco

para definir cultura é um excelente parâmetro para afirmar que a cultura está além de

um cabedal de conhecimentos adquiridos e rituais comuns a rotina cotidiana; a cultura é

todo um contexto social dentro do qual posso dizer de forma inteligível quem é quem.

Em suma poderíamos dizer — ou mesmo gritar sem professar uma única palavra — que

somos aquilo que realmente somos mesmo não sabendo de fato quem ocasionalmente

somos. Uma top model experimentada em anos de passarela mesmo sofrendo de

amnésia completa poderia confessar sem se dar conta, através de mínimos

comportamentos sociais, como andar ou sentar-se, quem de fato era. A cultura denuncia.

Pois, para nós, a cultura é o laço social que nos une através do comportamento e da

interpretação simbólica ao universo de que somos originários.

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Aceitando tal definição poderíamos dizer que a cultura só existe dentro do

universo social? Sim. Isso não quer dizer, porém, que somente homens produzem

cultura, pois, isso seria uma meia verdade, assumindo como exemplo que um quadro de

Picasso, um fóssil ou uma nota de dólar, por si só produzam toda uma atmosfera

cultural. Precisamos dizer completando o raciocínio incongruente que “somente os

homens produzem símbolos e somente eles têm o condão de reinterpretá-los segundo

outros símbolos familiares”.

No intuito de qualificar indivíduos seguindo suas diferenças culturais é preciso

que de antemão se aponte fissuras sociais que o habilite a reconhecer determinadas

homogeneidades sociais a partir de notações particulares, prova inconteste da criação de

domínios valorativos diversos.

Militamos, dessa forma, que quanto mais surpreendente as experiências e

quanto mais afastadas de uma suposta lógica vigente, mais abriremos o fosso da

diferença. Essa medida discrepante, lócus onde opera-se a divergência valorativa não

encontra sentido numa aparente frouxidão ou desapego a epítetos estabelecidos,

demonstra mais a segura categorização de um grupo social específico.

Mas que experiências dariam crédito a uma cultura particular? ou, qual desvio

seria significativo para marginalizar um grupo e/ou particularizar uma forma de

compreender valores? O que constrói uma irmandade? O que lhe dá sentido? Qual o

limite que define nossas diferenças? Em que momento se bifurcaram?

Essa lente chamada cultura que nos faz enxergar o mundo de acordo a um

simulacro estabelecido nos encampa pelo menos duas assertivas a serem aprofundadas:

a) visões de mundo homogêneas são correlatas a aparelhos culturais semelhantes e b)

que sistemas de padrões de comportamento transmitidos em grupos culturais são

leituras comuns somente a seus membros.

4.2 Alguns “insights” do currículo cultural

Podemos iniciar nossa caminhada usando um exemplo simples — Mais um

truque... —. Pensemos então em um policial brasileiro do século XX e o subordinemos

a alguns contextos que nos ajudem a sintetizá-lo enquanto homem e enquanto

profissional — lembre-se dos costumes sociais da época, da geografia das cidades, da

convivência prosaica das pessoas —. Facilitando ainda mais a leitura deste ser,

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inicialmente ponderemos três etapas imediatas que nos são dadas independentemente de

qualquer outro fator que seja também adequado a caracterização. Em suma: tempo,

espaço e causalidade — exercício esse realizado por Hannah Arendt em “A vida do

Espírito” —.

Assim, para melhor caracterizarmos primeiro partimos do tempo vivido por

este ser, segundo, o espaço que lhe é contingente e terceiro as causas que o constrangem

a agir. Daí surge para nós o primeiro modelo de apreciar cultura, que é vislumbrá-la

como “sistema adaptativo”, em que o ser dentro de determinado espaço-tempo é a

causação adequada de todo um conjunto de afetações determinantes.

A ilação consecutiva é entender o ganho cultural como uma espécie de

darwinismo cultural, onde o ser humano nada mais é do que o somatório de

experiências concretas, onde o mais adaptado à realidade do mundo predomina e

determina assim um sistema de padrões de comportamento as gerações futuras. São

certos seres melhores adaptados a um espaço-tempo histórico e, que lêem o mundo

vivido satisfatoriamente em beneficio próprio e, com prejuízo dos não adaptados... os

seres que determinam o padrão de comportamento a ser seguido.

Com efeito, podemos dizer que determinado policial do século XX que

ascendesse na carreira através de uma função ou comportamento cujo valor intrínseco

inexistia até então para o grupo — ou era até mesmo considerado uma transgressão...—,

teria necessariamente o padrão de comportamento mais determinante na criação de um

símbolo a ser seguido e cultuado.

Tal símbolo representa nada mais que um arquétipo construído pelo grupo, ora

sugestionado como regra — outrora, possivelmente até sugestionado como desonra... —

ante a qual enquanto cultura se impõe. Quando falamos do exemplo do policial do

século XX podemos dizer, para essa teoria, que existe, em absoluto, uma cultura do

ontem, do hoje e do amanhã, sempre aguardando a melhor e mais adaptada solução para

os problemas da vida cotidiana — ou da ascensão na carreira... —.

Vamos superar essa teoria — não sem antes entendê-la à la Hegel, para o qual

a refutação nada mais é que uma mudança de aspecto sobre a mesma teoria... — Em que

medida a tradição encontra sentido, em um modelo teórico de cultura, que negligencia a

todo momento o passado? Constitui a tradição neste modelo um sistema agregado às

mudanças de cultura, cuja representação na vida humana é redimensionada

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continuamente, determinando assim não seu distanciamento da esfera de afetação nos

grupos, mas, seu eterno descortinar sempre alimentado por demandas novas.

Essa reinterpretação histórica das tradições é o propulsor que torna possível o

diálogo (para os evolucionistas culturais) entre o status de permanência ligado a

tradição do fluxo contínuo que está ligado a cultura. Uma pergunta capital ao debate

seria, até que ponto a reinterpretação das tradições são perigosas as próprias tradições?

Decerto que, a possibilidade de uma releitura da tradição é o paradigma diante do qual a

tradição deixa de existir para ser outra coisa, nos dizeres de Hobsbawm, uma tradição

inventada.

A mudança cultural seria então o equivalente da seleção natural, onde a relação

adaptativa com o meio social circundante é imposta praticamente pelas mesmas regras

que governam a adaptação biológica. Procedendo com tal concepção é ilustrativo traçar

um paralelo.

Quando o alimento é obtido somente na copa das árvores imperioso falar em

evolução de animais de estatura elevada, de pescoço comprido ou aptos a escalada.

Quando analogamos alimento à poder, condição de sobrevivência em muitas

instituições, é imperioso elencar quais os caminhos e os melhores acessos a conquistá-lo

e, dessa forma, dizer no contexto qual a conduta mais adequada a se perpetuar como

cultura, entendendo, sobretudo, que os caminhos que levam ao poder estão em

contínuas mudanças e alterações, assim como a própria cultura.

Com efeito, sobreviverá àquele cujo projeto de poder for alcançado com pleno

sucesso. Logo, não é sem sentido que empresas adotem o empreendedorismo como uma

“cultura organizacional”.

Essa analise evolucionista da cultura nos informa que o seu caráter

preponderante, é a maneira pela qual o conjunto de seres humanos em grupo

desenvolvem seus epítetos, seus ídolos e, principalmente julgam a mais adequada forma

de viver aos padrões da contemporaneidade, via de regra, ao longo do tempo se tornam

seres mais “civilizados”, sobretudo, mais aptos a viver em sociedade. Peguemos um

clássico texto de Tylor:

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Cultura ou Civilização, tomada em seu mais amplo sentido

etnográfico, é aquele todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte,

moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo

homem na condição de membro da sociedade. A situação da cultura entre as

várias sociedades da humanidade, na medida em que possa ser investigada

segundo princípios gerais, é um tema adequado para o estudo de leis do

pensamento e da ação humana. De um lado, a uniformidade que tão

amplamente permeia a civilização pode ser atribuída, em grande medida, à

ação uniforme de causas uniformes; de outro, seus vários graus podem ser

vistos como estágios de desenvolvimento ou evolução, cada um

resultando da história prévia e pronto para desempenhar seu próprio

papel na modelagem da história do futuro. A investigação desses dois

grandes princípios em vários departamentos da etnografia, com atenção

especial à civilização das tribos inferiores como relacionada com a

civilização das nações mais elevadas, está dedicado este livro.

Nossos modernos investigadores das ciências da natureza

inorgânica são os primeiros a reconhecer, tanto dentro quanto fora de seus

campos especializados de trabalho, a unidade da natureza, a fixidez de suas

leis, a seqüência definida de causa e efeito ao longo da qual todo fato

depende do que se passou antes dele e atua sobre o que vem depois. (Tylor,

2005, pág. 31).

O contraponto — eufemismo de refutação... não se esqueça... à la Hegel —

mais contumaz a esta visão se baseia na análise de que para entender a cultura sob esse

prisma, é preciso compreender que os epítetos são construções muitas vezes alheias a

vontade de seu adquirente, que os ídolos ao longo do tempo são alienações

detrimentosas à autonomia do ser humano e, que o padrão de vida da

contemporaneidade se resume (e dessa forma bem explica), no “mundo capitalista”, ao

consumismo desenfreado, ao materialismo vicioso e a artificialização da realidade

vivida.

Sabendo disso — Ou, pressupondo isso... — podemos nos perguntar até onde a

evolução da cultura no mundo está numa relação desproposital aos veículos que a

definem. Seria mesmo uma seleção natural da melhor e mais adequada maneira de ver e

cultuar um símbolo? Ou, estaria a serviço de quem controla os veículos definidores

enquanto projeto de poder desfiliado da verdade aparente?

Tomemos um exemplo bastante simples. A opinião pública sem a menor

dúvida é um critério definidor de cultura para a teoria que a aponta como que estando

em uma relação direta, entre a vida tomada na generalidade da contemporaneidade

(tecnologia, sistema econômico de produção, elementos jurídicos e educacionais de

organização social, relações de trabalho etc...) e à mudança ou, construção cultural.

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Dessa forma, obedecendo a critérios vinculados aos fatores genéricos da vida

contemporânea, certos grupos em prejuízo de outros “evoluem” o olhar sobre uma gama

imponderável de valores, ritos e símbolos perfazendo assim novos padrões de

comportamento disseminados com a pecha de opinião pública.

Mas, vejamos o seguinte aspecto. Jean Jacques Rousseau disse certa feita em

carta ao Filósofo D’Alembert que o “homem moderno vive quase sempre alheio de si

mesmo” (1998, p.234). Ao limite da intelecção da frase de Rousseau temos que em

sociedade vive-se muitas vezes sob a ditadura invisível da opinião alheia. Para

Rousseau, os nossos gostos para comida, roupa, religião e até parceiros matrimoniais

nunca levam em consideração o nosso mais profundo e verdadeiro afeto (Barros Filho).

Seria como dizer que a verdade sobre si mesmo para o homem-social

contemporâneo não tem a menor importância. Dessa forma, podemos dizer que a

opinião pública determina o nosso querer e muitas vezes nosso próprio sentir.

É a aprovação dos outros o parâmetro garantidor do que é bom ou ruim para

nossas vidas. Rousseau, afirma ainda, “é a opinião pública, que define se nós realmente

somos felizes” (1998, p.235). Diderot quando do lançamento da Enciclopédia afirmou

acerca do tema que, com o advento dos panfletos e jornais percebera que as verdades

cientificas, contidas nos artigos, tinham pouco impacto em comparação aos preconceitos

disseminados pelos jornais de sua época. Afinal, é mais provável que o cidadão leia

diariamente um jornal que um artigo científico.

Com efeito, a relação de um meio que não tem nenhuma preocupação em

oferecer uma influência legítima e segura ao público com outro, cujo objetivo primevo é

doar credibilidade e transparência através da menos conspurcada teoria científica é

notório nos tempos modernos. Tal relação encontra-se em absurdo prejuízo à dita

verdade científica que, em que pese os problemas de demarcação, é menos detrimentosa

que aquela obtida através da mídia.

Alargando o raciocínio poderíamos afirmar sem temer, que o ganho cultural

proposto pelo darwinismo cultural muitas vezes atende a alienação do mundo em que se

vive, atende ainda ao estranhamento mais cruel da vida que se vive para com o sujeito

que pretende pensar por si só. Logo, pensar em uma cultura evoluída não é

necessariamente pensar na melhor maneira de viver, ou, na mais adaptada ao meio...

aquela que melhor vise encontrar o alimento e garantir a prole.

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A cultura dita evoluída, em que pese, cultura, é posta! Um fenômeno

desprovido de fundamento intra-grupos que a supõe, enfim, que a simbolize... é apenas

uma ilusão de ótica, um espelho refletindo uma falsa imagem, um modismo construído,

um ídolo forjado segundo interesses escusos...

O segundo grande corpo de conhecimentos que nos permite vislumbrar a

questão da cultura é o que comumente se chama em antropologia de “sistema cognitivo”

atribuído, segundo Laraia, aos “novos etnógrafos”. Tal sistema pode ser melhor

visualizado se pensássemos cultura como um idioma particular, uma linguagem comum

a um determinado grupo. Vejamos.

Suponha o mesmo policial do século XX e faça uma previsão comparativa com

o atual linguajar (cotejado no cap. I) do policial deste século e reflita sobre as

similaridades e dicotomias entre as possíveis falas. É bem possível que ocorram poucos

nuances comuns, onde um em relação ao outro, sejam tomados sob a mesma

classificação lingüística (ainda se falarmos do mesmo idioma), poderíamos dizer que as

similaridades não serão assim tão evidentes.

Isso remete a um evolucionismo cultural onde tempo e espaço continuam a

afetar a cultura, obviamente que sim, entretanto, para o sistema cognitivo tanto a fala de

um como de outro necessitam de conhecimentos comuns para se manifestar, ou melhor,

naquilo que tanto um quanto outro precisa conhecer ou acreditar para operar de maneira

aceitável dentro daquele universo lingüístico particular e atemporal.

Teríamos assim que proceder imaginando que por trás da aparência

complexada e caótica dos dialetos tanto de um quanto de outro subsistiria abaixo das

aparências uma ordem interna coerente, comum e imutável — estamos dando pistas

desta teoria... —. Na ordem direta a tal pensamento poderíamos suscitar um rio cuja

superfície é visivelmente tranqüila (ordem coerente), quieta e ordeira, ao passo que,

abaixo de sua linha d’água subsistiria toda uma gama de complexidades espraiadas em

vários contextos de fauna e flora (aparência complexada).

Prolongando um pouco mais a análise seria dizer, como Lévi-Strauss:

Que define cultura como um sistema simbólico que é uma criação

acumulativa da mente humana. O seu trabalho tem sido o de descobrir na

estrutura dos domínios culturais – mito, arte, parentesco e linguagem – os

princípios da mente que geram essas elaborações culturais (Laraia apud

Strauss, 2009, p.61).

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Assim, embora dinâmica (evolutiva) em sua natureza mais evidente, a cultura

encontra nas entrelinhas mais insuspeitas uma estrutura comum e universal ao longo do

tempo. Podemos conjecturar ainda, que a tradição em muitos aspectos tende a ser o

caractere invariante do processo cultural. Esse “algo comum” a ambos policiais (do

ontem e do hoje) ao longo da marcha histórica, mesmo que arredia a parâmetros que a

definam, possui na tradição o mote de perpetuar-se como paradigma, ainda que toda

sua natureza circundante presuma outro olhar.

Este posicionamento teórico remonta de um ideal que podemos esmiuçar ao

dizer que a história e seu curso ininterrupto, a cada momento em que se estabelece como

sucessão determina um modo de existência aos sujeitos em suas livres trocas de

experiências. Cada choque ou cada encontro entre os sujeitos encontra um

correspondente de vida cultural nova para ambos e que, em contrapartida, afirma, isto é,

ratifica, a característica ou constante supratemporal que viabiliza e torna o choque

possível.

Por conseguinte, nessas inúmeras afetações multilaterais a história se

materializa dentro da sucessão denominado tempo, promovendo mudança cultural

ancorado em características imutáveis como a própria tradição. Volta-se então a análise

em tela para a perspectiva de que há funções estruturantes subjacentes à sociedade,

além das tradições e que, sobretudo, se tornam vigentes em todo o grupo humano, como

normas, valores que representam em parte o lastro da própria cultura que se

redimensiona, mas que não se descaracteriza.

Mas quais são essas funções? E que constante supratemporal é essa? Vamos

recorrer a um exemplo simples, mastigando a ideia ao limite da demência...

Suponhamos que você acompanhe uma telenovela desde o início de sua execução e a

dez dias de seu último capítulo você se pergunte sobre o destino dos personagens sob

dois aspectos: 1) quanto à situação do enredo até aquele momento e, 2) quanto ao

enredo de uma telenovela em si mesma.

No primeiro aspecto múltiplos fatores são ponderados e diante desse cenário

uma plêiade de possibilidades articulam-se, causando um frisson descomunal em quem

se habilita a qualquer previsão, tudo é aparentemente muito imprevisível, pois, a

somatória de contextos e variâncias que cada personagem a essa altura está submetido

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permite só e tão somente naquele momento dizer a quem assiste que o melhor a se fazer

é esperar atento ao término da trama. No segundo aspecto toda a complexidade é

reduzida a pó, de sorte que, todos, em que pese, cônscios da ilusão a que nos

submetemos, nos deixamos levar pela aparente complexidade do enredo que ao final

terá a imprevisibilidade reduzida a um ponto invariante, nas telenovelas como nos

contos de fada onde o mocinho casa com a mocinha na igreja, o (a) vilã (ão) morre ou, é

preso ou, quando muito, foge.

Com efeito, toda variabilidade corrente e sugerida resume-se a um supedâneo

interior cujo estrado assenta a invariância. Poderíamos dizer que para os contos de fada,

ainda que, completamente insuspeitos ao fim previamente determinado pela invariância,

possuem em seu bojo caracteres que a fazem ser quem é não podendo ser outra coisa.

Uma leitura mais perspicaz poderia colocar em paralelo a condição do sujeito

desta pesquisa, enquanto fenômeno ligado ao modo que ora apreciamos de fazer teoria

da cultura. A partir daí, é possível dizer que há fundamentos sob os quais o ser-policial

militar constitui, mesmo diante das mudanças, um traço particular que o identifica, caso

não seja traço de identidade, seria então uma mesma afetação que lhe é constante.

Por conseguinte, de forma vulgar poderíamos então dizer que causas internas

ou externas determinam em nível elementar uma invariância ao longo da história.

Recorreremos às causas externas (ainda que múltiplas) para a explicitação.

Uma ilustração é bem vinda. As escolas de idiomas, cuja finalidade é

proporcionar, sobretudo, a seus alunos o aprendizado da fala de línguas estrangeiras,

possuem como técnica a repetida conversação no idioma pretendido. Nas escolas

convencionais onde o idioma estrangeiro é colocado como matéria do currículo escolar,

a metodologia é distinta, pois, se privilegia a gramática, a escrita e a leitura do idioma.

Contrastando os dois modelos poderíamos dizer que dois ou três anos de

contínua conversação são mais salutares ao aprendizado da fala do que longos anos

dedicados a gramática da língua. E o que nos interessa saber? Em primeiro lugar: que a

pura fala de uma língua não exige nenhum conhecimento de sua gramática e,

consequentemente que toda a complexidade instrumental que fundamenta a experiência

da fala, não é capaz, contudo de proporcionar, ainda que minimamente, o desígnio que

se habilita a desvendar, em suma, estruturar cuidadosamente os componentes da fala.

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O “x” da questão, entretanto, ainda não atingido. Pois, em segundo lugar,

considerando a língua enquanto agente dinâmico e em contínua transformação e a

gramática como retrato temporal formal da fala. O que podemos inferir é que a língua

como parte da cultura representa assim seu caráter mais revelador, em contrapartida a

gramática nada mais é que a formalização atrasada desse movimento ininterrupto. Uma

fotografia. Ademais, tanto a cultura como a linguagem ao se transformarem renunciam

(em parte) seu instrumental de aporte, revisitando os paradigmas construídos, ao passo

que em si mesmo é traduzido a quem, independente do instrumental, compartilhe sua

face mais contundente.

O que queremos dizer com isso? Que não são as estruturas internas os

mecanismos que constrangem a variância e as tornam invariáveis. A decomposição

analítica sugerida por Lévi-Strauss é incompatível a visão da realidade que ratifica a

todo instante um fluxo perpétuo onde “n” causas afetam incessantemente o produto final

chamado cultura, produto este, alterado pela lógica dura da sucessão que a recria a todo

intervalo de tempo.

Para Lévi-Strauss quando as ciências sociais se ligam à visão pretensamente

dinâmica é que surge o problema da história, dessa forma, tende a subjetivar

exageradamente a percepção do objeto, povoando-o de atores conscientes e destruindo a

expectativa de leis que regem o fenômeno social. A passagem a seguir é extremamente

singular:

Nosso objetivo permanece o mesmo. A partir da experiência

etnográfica, trata-se sempre de organizar um inventário de esferas mentais, de

reduzir dados suplementares arbitrários a uma ordem, de encontrar um nível

em que uma necessidade se revela imanente às ilusões da liberdade. Por trás

da contingencia superficial e diversidade incoerente, aparentemente, das

regras do matrimônio, desenvolvemos em structures um pequeno número de

princípios simples, pela intervenção dos quais um conjunto muito complexo

de usos e costumes, à primeira vista absurdos (e geralmente julgados como

tais), acham-se integrados a um sistema significativo (Demo apud Strauss,

2007, pág. 174).

Pode ser que a empreita de estruturar as relações de matrimônio sugira uma

ordem subjacente ou, que se reduzam dentro da experenciação de Strauss a um conjunto

de princípios. Daí, generalizar essa circunstância já não seria muito prudente se

contarmos que toda a diversidade quando reduzida a termos é simplesmente jogada fora.

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O que dizer da experiência interpretativa de um dialeto quando verificamos que o que

nos interessa para desvendá-lo são apenas alguns axiomas singulares?

O campo do sensível foge a possibilidade da demarcação e o máximo a se fazer

é dialogar dentro das fronteiras estabelecidas pelas interações humanas. Reconhecer um

significado não significa entendê-lo, como expressão cultural de um grupo... Significa,

antes de mais nada, capturar dentro daquele único e exclusivo cenário social um

símbolo cuja expressão cultural para aquele referencial é partilhado como experiência

cultural de um grupo.

Quando um antropólogo sorri de uma piada contada por aborígenes em uma

roda de aborígenes, não significa que tem em suas mãos um símbolo cultural do humor,

cuja expressão garanta o que todo o grupo (além daquela roda) cultue através de uma

boa gargalhada. Em certos contextos particularizados pela vasta cultura daquele mesmo

grupo a risada do antropólogo diante do mesmo símbolo (piada) pode representar uma

grande inconveniência, onde todos ao invés de gargalharem, sintam-se constrangidos

com a risada fora de hora.

Para nós o trabalho em cultura então gira em torno do que bem diz Geertz:

Trabalhamos (...) combinando histórias de mil anos com massacres

de três semanas, conflitos internacionais com ecologias municipais. A

economia de arroz ou de azeitonas, a política da etnicidade ou da religião, a

operação da língua ou da guerra, devem, em certa medida, ser soldadas na

construção final. Assim também a geografia, o comércio, a arte e a

tecnologia. O resultado, inevitavelmente, é insatisfatório, trôpego,

desconjunturado e malformado: uma grande engenhoca. O antropólogo, ou

pelo menos aquele que deseja complicar suas engenhocas, não as fechar

sobre si mesmas, é um remendão maníaco à deriva com sua razão (2007,

p.27).

Essa incessante construção de “engenhocas” subsidia uma boa descrição

cultural em detrimento do malsinado uso de fórmulas prontas. Qual é essa engenhoca

que tentamos produzir aqui? Quando no capitulo I demos inúmeros exemplos do

cotidiano na APMCV a sugestão que se fazia — implicitamente, creio...— era de propor

uma conversação entre o leitor e o próprio aluno oficial.

Com efeito, buscar um continente cultural que situe todo emaranhado cultural

que engloba a própria vivência do aluno oficial é uma ilusão cujo risco poderia, em

última instância, ser transformado em dogma. Pois, se entendermos a cultura do aluno

— ou qualquer aparato cultural vivo — com um elemento de contínua transformação e,

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até mesmo naquilo que Leibniz chamava de mônadas, entendemos não somente que

uma sistematização é perigosa, mas, sobretudo, que a sistematização e o catálogo de

experiências ligadas a axiomas lógicos invariavelmente vão contribuir para a confusão

em detrimento do esclarecimento.

A palavra de ordem seria simplesmente “interpretação”. Seria tomar todas as

conjecturas exponenciadas à partir dos relatos “puros”, para transformar o dito no que

chamo de concebível ou compreensível. Se agrego ao relato da faxina o grau subversivo

que o expoente da humilhação afetou-me, o que busco com isso é reportar a um campo

de compreensão genérico que faxina em demasiado, remete humilhação e, a implicação

disso em conjunto, dentro de uma contra-lógica de formação que as abriga, sugere que o

aluno oficial caminhe em favor do que lhe atinge com maior “intensidade de verdade”,

se é que podemos usar essa expressão. Façamos uma rápida excursão pelos domínios

das manutenções (no que tange as limpezas, ditas “faxinas” no cap. I, do ambiente de

trabalho) no quartel, afetas aos alunos oficiais, especialmente, durante o período inicial

de formação.

O que elas (as faxinas) designam em seus respectivos alcances

“metodológicos” para os praticantes? Ora, se existe uma auto-imagem construída sob o

signo do rigor do militar com seu ambiente físico, nos seus múltiplos aspectos,

sobretudo organizacionais, onde a higiene é preponderante, há que se falar também, em

contrapartida, na sujeição posta ao falso preço dessa suposta imagem, onde o aluno é

obrigado a esfregar, por exemplo, como simples aflição, indignidade e quebrantamento

moral por horas a fio o sanitário de seu alojamento. De um lado uma construção

dialógica em torno de um valor estabelecido e de outro, uma segunda construção, que

cultua outro valor — paradoxal, inclusive... —, logo, em que plano se dá o diálogo com

um aluno oficial no que tange a reverência com a higiene em seu ambiente de comando

e/ou vivência?

Posso dizer que não é a conversa pelo rigor no respeito ao ambiente, que

eventualmente sugere as similaridades culturais entre militares que aprenderam a

cultivar o respeito pelo ambiente organizado — como, por exemplo, um diálogo com os

cadetes do Exército brasileiro —, não é esse tópico cultural supostamente

interseccionado com o cadete do Exército que modelam suas semelhanças, é, contudo,

justamente algo totalmente distinto, um signo que apenas pretende-se comum, mas, que

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contribui mais para as distinções que aproximações culturais, isto é, para o cadete — e

até mesmo alunos oficiais das demais academias...— o epíteto da organização, do

apreço a inteireza dos detalhes, remetem ao fundamento sugerido pelo valor que

acoberta aquele neófito que realizou a faxina, para o aluno oficial que pesquisamos isso

sugere a imposição da cultura da penalização — você faz isso porque é bicho! —, da

força repressora da hierarquia dos mais antigos para os mais modernos (uma

redundância necessária), da intolerância com o lógico e, principalmente com o

desrespeito ao valor estatuído, falsamente utilizado como referência.

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5. Considerações de prosseguimento

Avaliando a obra à partir de um olhar distanciado — se possível, claro... —

posso dizer que a cultura policial-militar, especialmente, a cultura organizacional reflete

a imagem de cada um de seus membros. Com a pesquisa pude observar que a trajetória

de um currículo acadêmico está umbilicalmente ligado ao que eventualmente se fará

dele na prática. Não falamos na questão atinente ao empreendimento técnico de gestão

escolar e diretrizes humanísticas que está se pondo a prova, contudo, é a própria

condição discursiva dominante cujo enredo de poder modela o currículo acadêmico às

tramas de uma vontade alheada da teoria. Isso sim nos preocupa.

Em nenhum momento, gostaria de frisar agora, houve um pessimismo as

mudanças de currículo em virtude da prática observada que, convenhamos, foge a

teoria. O que quero aludir com as dezenas de ressalvas espalhadas pelo texto no que se

refere a formação do oficial de polícia se deve, sobretudo, a um possível engajamento

entre a teoria da Matriz e a cultura fomentada no cotidiano da APMCV. Só mudaremos

os rumos da polícia militar se mudarmos nossa cultura de grupo que ainda se

fundamenta na disputa insana por espaços de poder e jogos de vaidade pessoal.

A interferência que pontuamos ser preponderante para a mudança dos

resultados funda-se no culto a novos valores tais como: compreensão das diferenças

entre os atores, valorização das capacidades individuais, atualização ininterrupta das

técnicas, autonomia do sujeito cognoscente, respeito ao mérito e a carreira.

Do que resta, posso dizer novamente, nem conclusão, nem finalização. As

certezas claudicaram durante o percurso. Não pretendo também agora derradeiramente

resumir o que foi dito ou, pegar todas as pontas soltas e junta-las num grand finale. Essa

tarefa é de todos nós. Posso, porém, divagar em mais uma reflexão que nada são do que

posturas recorrentes:

1) Integrar-se ao mundo tal como ele é. Sujeitar-se a força imperativa da

realidade e imobilizar-se tranquilamente nas espumas do cotidiano.

2) Mudar o mundo. Transformá-lo. Revolucionar o mundo que nos

desagrada e dia-a-dia nos humanizar mais ainda a cada novo fracasso, sempre na busca,

no movimento ininterrupto pela ação que poderá mudar o mundo...

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