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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
GABRIEL RODRIGUES LEAL
CURRÍCULO CULTURAL
UMA AUTOETNOGRAFIA NA ACADEMIA DE POLÍCIA MILITAR COSTA
VERDE
CUIABÁ-MT
2011
ii
GABRIEL RODRIGUES LEAL
CURRÍCULO CULTURAL
UMA AUTOETNOGRAFIA NA ACADEMIA DE POLÍCIA MILITAR COSTA
VERDE
Orientador: Prof. Dr. Luiz Augusto Passos
CUIABÁ-MT
2011
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Educação no Instituto
de Educação da Universidade Federal de
Mato Grosso como requisito para a
obtenção do título de Mestre em
Educação na Área de Concentração
Educação, Cultura e Sociedade, Linha de
Pesquisa Movimentos Sociais, Política e
Educação Popular
Dados Internacionais de Catalogação na Fonte
Catalogação na fonte: Maurício S.de Oliveira CRB/1-1860.
L435c Leal, Gabriel Rodrigues.
Currículo cultural: uma autoetnografia na academia de Polícia Militar
Costa Verde / Gabriel Rodrigues Leal. -- 2011.
151 f. ; 30 cm
Orientador: Profº. Dr. Luiz Augusto Passos
Dissertação (mestrado) -- Universidade Federal de Mato Grosso,
Instituto de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, 2011.
Bibliografia: f. 147-151
1. Fenomenologia. 2. Autoetnografia. 3. Currículo. 4. Polícia Militar – Mato Grosso. I. Título.
CDU 371.214:351:75(817.2)
iii
GABRIEL RODRIGUES LEAL
CURRÍCULO CULTURAL
UMA AUTOETNOGRAFIA NA ACADEMIA DE POLÍCIA MILITAR COSTA
VERDE
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação no Instituto de
Educação da Universidade Federal de Mato Grosso como requisito para a obtenção do
título de Mestre em Educação na Área de Concentração Educação, Cultura e Sociedade,
Linha de Pesquisa Movimentos Sociais, Política e Educação Popular.
Banca examinadora
___________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Augusto Passos – UFMT
___________________________________________________
Profa. Dra. Suely Castilho – UFMT
___________________________________________________
Prof. Dr. Saulo de Tarso Rodrigues – UFMT
___________________________________________________
Prof. Dr. Ronilson de Souza Luiz – PUCSP
Conceito_______________________________________________________
Cuiabá, ______de maio de 2011.
iv
Agradecimentos
Ao Sr. Jesus Cristo que veio ao mundo e habitou entre nós.
À Turma “Expedicionários” da Academia de Polícia Militar Costa Verde da PMMT.
À minha esposa Mayka que suportou os reveses de centenas de horas roubadas do
nosso convívio ao longo dos últimos 30 meses de Mestrado.Obrigado.
À meu orientador Professor Doutor Luiz Augusto Passos que além de oportunizar
saberes reorientou minha escala de valores com seu exemplo de vida.
À Edson Benedito Rondon, meu mentor e por consequencia mentor dessa dissertação; a
quem dou-me a liberdade hoje de escrever o nome sem o posto... E isso diz tudo.
Ao Capitão da PMESP e Professor Ronilson pelo exemplo de vida que é; pelo incentivo
e estímulo a esse trabalho.
À todos os professores do PPGE-UFMT que foram faróis do caminho que trilhei.
À meus pais, meu pai Sr. João Leal Filho e Sra. Nirse Rodrigues Leal a quem devo o
que sou; a meu irmão caçula Bruno Godinho e amigos em geral.
À Polícia Militar de Mato Grosso, Instituição que aprendi amar...
À pessoa do Sr. Ten Cel PM Paredes que agora (2011) também passa por ecdise
intelectual.
v
RESUMO
Este trabalho apresenta uma descrição autoetnográfica realizada na Academia de
Polícia Militar Costa Verde da Polícia Militar de Mato Grosso, PMMT. Trata-se de uma
autoetnografia na perspectiva fenomenológica merleau-pontyana que busca
redimensionar a relação do ser com o mundo, sobretudo, à partir da própria suspenção
deste próprio movimento de relação, evitando o olhar contaminado pelo senso comum
ou pelos saberes e práticas tematizadas que apresentam as coisas de uma forma evidente
que os olhares não se questionam do que é dado. Por isso acordado a dialética
fenomenológica fazemos surgir as coisas que nos passam despercebidas, um exercício
de despertamento para essas coisas será possível se nos abstivermos delas por um
instante, se as suspendermos, fazendo uma redução que recompõe o mundo vivido. Esse
olhar é lançado as experiências vividas nos três anos de formação no Curso de
Formação de Oficiais da PMMT. O objetivo deste trabalho é fomentar
redirecionamentos na cultura organizacional da Instituição investigada, evitando assim
possíveis prejuízos à voga humanística e ao Estado Democrático de Direito. Também
visa subsidiar uma proposta de currículo que traga para seu bojo questões como
alteridade, flexibilidade, sensibilidade, dialogicidade e emancipação ao aluno oficial.
Palavras – Chave: fenomenologia. Autoetnografia. Currículo. Polícia Militar.
vi
ABSTRACT
This paper presents a description autoetnografia held at the Academy of Military Police
Military Police Costa Verde de Mato Grosso, PMMT. This is a phenomenological
perspective in autoetnografia Merleau-pontyan seeking resize the relationship of the
world, particularly the suspension from the very movement itself of this relationship,
avoiding the gaze contaminated by common sense or the knowledge and practices that
themed present things in a way that looks not clear if the question is given. So we
agreed to come phenomenological dialectic things that go unnoticed in an exercise in
awakening to these things will be possible if we refrain them for a moment, if we
suspend, causing a reduction which rearranges the world lived. This look is released her
experiences in three years of training in the Training Course for Officers PMMT. The
objective is to foster redirects the organizational culture of the institution studied, thus
avoiding possible damage to the fashionable humanistic and democratic state. It also
aims to support a proposal for a curriculum that brings its core issues such as alterity,
flexibility, sensitivity, dialog and emancipation to the student officer.
Word-Key: phenomenology. Autoetnografia. Curriculum. Military Police.
vii
SUMÁRIO
Introdução................................................................................................................08
PARTE I
ETNOGRAFIA VIVIDA: experenciações e fenomenologia na APMCV
1. Um filme em 24 horas: A etnografia da rotina em três partes......................24
1.1 A etnografia da rotina parte I..........................................................................25
1.1.1 Um método fenomenológico........................................................................27
1.2 A etnografia da rotina parte II.........................................................................29
1.2.1 A fenomenologia do sentido.........................................................................35
1.3 A etnografia da rotina parte III.......................................................................35
1.3.1 Do fenômeno do vivido ...............................................................................50
1.4 “Aluno não anda no pátio”: retratos do Bicho em três partes......................52
1.4.1 A etnografia do CFO I parte I........................................................................54
1.4.2 Interlúdio culturalista.....................................................................................67
1.4.3 A etnografia do CFO I parte II: a festa do bicho.........................................82
1.4.4 A etnografia do CFO I parte III: 29 de setembro de 2004...........................84
1.5 “De pedra à vidraça”: recortes do Bicho-melhorado.....................................85
1.6 “Às portas do aspirantado”: imagens do terceiro-anista em duas partes....90
PARTE II
MÉTODO, RUDIMENTOS DE HISTÓRIA E CONSIDERAÇÕES NA
EDUCAÇÃO
2. Etnofenomenologia..............................................................................................92
2.1 O rito e seu alcance na construção do aspirante à oficial..............................95
2.2 Cultura policial e poder. Um remate histórico-sociológico..........................100
2.2.1 Contra quem? A cultura policial como aparelho ideológico do Estado......114
3. Uma “história” marginal..................................................................................116
3.1 Vestígios de uma organização burocrática....................................................117
3.1.1 Aristocracia, espada e ruptura.....................................................................118
3.2 Polícia e política: universos imbricados.........................................................123
4. Um choque de pedagogias.................................................................................125
4.1 Elementos de compreensão sociológica do tema..............................................131
4.2 Alguns insights do currículo cultural................................................................ 134
5. Considerações de prosseguimento....................................................................146
Referências Bibliográficas....................................................................................147
8
Introdução
Ainda causa estranhamento encontrar policiais militares nos corredores da
academia cursando mestrados e doutorados. Para ser sincero: no início eu me sentia um
estranho naquele lugar, daí meu comentário que abre o parágrafo... Não por qualquer
hostilidade sofrida, mas, por uma ausência de cumplicidade compartilhada intra grupo,
um vácuo, uma espécie de dissonância muito forte de cenários vivenciais. Era como se
eu chegasse de Marte todos os dias, aterrissasse abruptamente numa daquelas salas do
PPGE1 da UFMT e co-habitasse por algumas horas com alienígenas. Meu mundo era
outro — não sei se ainda é... —.
Saindo muitas vezes de serviço noturno de 12 (doze) horas ininterruptas
engajado em cercos, buscas, ocorrências e soluções de problemas-mil, eu mergulhava
naquela selva de comunistas em discussões abstratas que buscavam compreender o
sentido da diáspora em Stuart Hall, o apriorismo em Kant, o fenômeno em Husserl, a
epoché em Merleau-Ponty, o tédio em Sartre ou, o que foi mais engenhoso e traumático:
o dasein em Heidegger.
Diante disso eu me perguntava se meu objetivo ali ainda era possível: ajudar
minha Instituição produzindo uma nova alternativa de fato humanística para a formação
policial. Hoje acredito que, mesmo o dasein, direta ou indiretamente, contribuiu para
esse sonhado objetivo — bem como para meu ingresso na graduação em filosofia da
UFMT... —. Meu silêncio obsequioso na sala de aula, minha atenção diligente, meus
gestos quase imperceptíveis, cimentaram uma idéia difusa de mim, que se concentrava
numa única particularidade: “aquele cara calado da PM que senta perto da porta e que
estuda com a gente”. Não demorou muito para essa idéia difusa de meus colegas de
turma — e mesmo a particularidade... — transformarem-se numa disposição comum de
diálogos fecundos e possibilidades abertas, tanto que hoje em dia já não saberia dizer,
entre eu e eles, quem se tornou ou deixou de ser comunista2.
Foi com disposição que enfrentei as bibliografias sugeridas, de sorte que, não
foram nem uma, duas ou três vezes que amanheci fichando livros — ou conversando
sozinho no chuveiro... —, antes de vestir a farda e ir cumprir minha missão diária. E
nesse diálogo exaustivo descobri a etnografia e a fenomenologia pelas mãos de um anjo
1 Programa de Pós-Graduação em Educação da UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso, Campus
Cuiabá) 2 Utilizamos o termo em latente licença poética.
9
— anjo esse que o PPGE me informou no ato da matrícula em 2009 chamar-se Luiz
Augusto Passos, meu orientador, a mim, entretanto, ele não engana: é um anjo —.
Daí, dialogando mais comigo mesmo nessa solidão dual que me é tão
necessária, não medi esforços em descrever a partir de um “eu” “encarnado-
distanciado” o que é a experiência da formação de um oficial de polícia na Academia de
Polícia Militar Costa Verde (APMCV), da nossa gloriosa Polícia Militar de Mato
Grosso (PMMT). Essa tal descrição é o que os antropólogos chamam de “etnografia” —
pelo menos foi o que descobri lendo Geertz, Lévi-Strauss, Malinowski, Mead, DaMatta,
Florestan... —. A descrição etnográfica possui, como (qualquer) outra metodologia,
uma série de supedâneos lógicos, um cabedal de rigores cuja observação por parte do
pesquisador é o mote de sua inteireza enquanto método de pesquisa. Iremos, com o
avançar das linhas, oferecer mais pistas desse caminho metodológico que é o próprio
cerne do texto dissertativo empenhado aqui.
A que vim então? Defini logo no início da pesquisa que, o que eu quero com a
descrição etnográfica é dizer a polícia do ponto de vista da polícia. Dizer também que
em determinada medida, uma explanação deliberadamente sociologizante,
juridicizante?! — das quais tanto colhi em meu processo criativo — muito pouco
ratifica o mundo vivido dentro dos quartéis, ou do mundo partilhado dentro das viaturas
em patrulhamento. Sair da interpretação do discurso e penetrar o discurso. Quem fala?
De onde fala? Com que cicatrizes lidam? Quais as feridas que ainda exigem cuidados?
Narrar as suas “desordens”... Em suma:
“Meu assunto por enquanto é a desordem
O que se nega
à fala
o que escapa
ao acurado apuro
do dizer
a borra
a sobra
a escória
a incúria
o não caber”
(Ferreira Gullar)
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Entendo, sobretudo, após a pesquisa que os episódios violentos por parte de
policiais que vemos nas ruas ou na mídia e, que deflagram a face cruenta do aparelho
preventivo-repressivo do Estado, tem sua explicação originária mais coerente dentro das
Academias de oficiais e das escolas ou centros de formação de praças (genericamente o
círculo global dos militares divide-se em oficiais no nível de comando, e praças no nível
de execução). Dizer quem o policial é — ou parece ser... —, em seus próprios termos,
navegar em suas próprias relações sociais da caserna.
Esse é o nosso caminho. Essa trajetória será escrita com sangue (Nietzsche), —
como só nos interessa —, adianto, pois, só assim se dará a dimensão dos cortes abertos
que estão à superfície, esperando a solução que os estanque. Do que me cabe em seu
tratamento, vou lhes acalmando soturno e angustiado, pousado no teclado,
transformando cada gota em verbo, pinçando do colorido sanguíneo mais exposto a
palavra mais certa.
Alguns paradigmas vão soçobrar — eu prefiro a palavra “explodir”, porém, o
eufemismo é necessário aqui... — diante do revelar do cotidiano de uma Academia de
Polícia e, o tom manifestado em muitas passagens conotando revolta ou denúncia, é
apenas arranjo estilístico que encontrei para (tentar) ferir de morte alguns mitos
construídos para dar singeleza à truculência da formação policial que ainda se tem
notícia neste país.
Uma das tais singelezas que retoricamente são prostituídas na práxis como a
sonhada transversalidade da temática dos direitos humanos, da suposta
interdisciplinaridade curricular, da matriz humanística etc. — Me permitam a oralidade
agora: quer saber a real? Sonho com um humanismo-humano dentro das polícias e,
acredite isso não é um pleonasmo —. Essa frieza que pode parecer um escárnio a temas
tão relevantes, é apenas o diagnóstico “sutil” de quem descobriu que não é com
vitamina C que iremos curar esse câncer.
Quero sair da singeleza desse matiz teórico e invadir as tramas culturais que são
uma espécie de “chão de alicerce”, como diriam os estruturalistas, ou, como diria Capra
uma “teia”, uma “rede autocriadora”. Maturana por sua vez, a chamaria de “Sistema
Autopoiético”, enfim, a sociologia espicaça o tema à seus muitos recursos —
diametralmente opostos como os de Strauss e Maturana, mas, fundamentalmente
ligados a meu ver num centro semântico comum....—. A fuga da singeleza é para cair
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no ser humano engendrado em policial, em todo um problema humano instalado e
estruturante do policial-militar, condicionante de visões de mundo, de missão social,
símbolos, signos, ritos e valores da atividade do “policial de rua” (e mesmo do
comandante em seu gabinete).
Para ser mais visceral, sendo mais freireano nessas horas, o que me interessa é o
fundo universal pré-objetivo que é comungado nesse “transe místico” das experiências
humanas do dia-a-dia nas Academias de polícia, nos quartéis, nas viaturas, na
madrugada solitária onde o pára-brisa embaçado pela garoa fina desenha a imagem de
quem somos: um emaranhado disforme de gotas (representações...), que se acumulam
entrecortando-se no melhor acomodamento que lhes faça correr para um destino
inexorável: ser quem somos.
Uma escusa é necessária antes de continuarmos... Perdoe-me o tom dialogal
empregado, ainda justo a você que lê este texto, tão acostumado com argumentos de
autoridade recheando as linhas com justificações, agora vê por aqui de tudo, menos um
empreendimento vigoroso dessa natureza, tão incensado na “casa dos saberes” — o
espaço acadêmico como nos diz Rubem Alves —, cabe dizer que o saber que lido é uma
coisa que investigo... Em suma, o ser humano policial-militar posto na sua mundanidade
cotidiana. Quero dizer o meu tempo, e é isso.
É a engenhoca organísmica anti-nexo de Geertz. É aquele triz entre a pronúncia
e a mudez, o interregno inaudito... A desordem de Gullar. É a isso que viemos aqui,
agora, neste quarto às 02h40 da madrugada de um janeiro de 2010... Creio que estamos
avançando rápido demais — para uma “introdução” — sobretudo, no percurso
(in)conclusivo dos temas, sem antes, claro, dar-lhes ao menos um arquétipo constitutivo
teórico na ótica do autor (eu...) ou, ainda, sem desenhar um mapa global onde se
inscreve o caminho percorrido, especialmente diante dos dois grandes referenciais
teóricos citados: a etnografia e a fenomenologia.
Antes de prosseguir gostaria de dialogar um pouco mais com o martelo
(Nietzsche), informando o que me parece fundamental e sociologicamente repisado nas
pesquisas: inicialmente que, a minha escrita caracterizada por açoites e vociferações
lítero-teóricas, são de minha exclusiva (i)rresponsabilidade. Não é uma deixa para um
suposto perfil do que vêm se chamando atualmente, como nos diz Ponde, de exposição
à voga de um “jantar inteligente”, um dos bibelôs da pós-modernidade... Ou, ainda, da
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tal hipermodernidade como quer Lipovetsky. Nada disso, pois, acredito não me
enquadrar nesse perfil — aliás, não acredito em enquadramentos, exceto os do RDPM
(Regulamento disciplinar da PM) que conheço tão bem —.
Devo dizer que o sangue que viceja entre uma fratura e outra, resultado dos
laivos salientes de minhas cicatrizes, é arremessado para a escrita. É simplesmente
jogado no texto — sem muita amarra, confesso... — como numa síncope, num surto
criativo deliberado de primeira mão, onde a reflexão secundária fere a originalidade da
explosão imaginativa inicial, marca inconteste de um estilo pessoal adotado por mim
para essa empreita — Logo, perdoe-me a ausência de cartesianismo, pois, repito, o que
sair daqui, é de completa (i)rresponsabilidade do autor...
Voltando, quero começar falando da etnografia que tenho empregado na
pesquisa, e para falar de etnografia preciso explicar — mais precauções a você nobre
leitor...— o termo a que me auto-referi linhas acima: um eu escritor encarnado-
distanciado.
Falar das experiências que vivi na APMCV remetem a alguns pilares de
sustentação discursiva, diante dos quais uma marca de referência é obvia — ao menos
para mim... —, isto é, a absoluta dependência de perspectiva pessoal dos relatos. Isso
tem alguns desdobramentos, o principal deles é que as narrativas vão sempre gravitar
em torno de um eixo semântico, no caso em tela, um corpo de hipóteses que sugeri para
essa pesquisa.
Claro, que em algumas histórias que me vinham à memória o eixo que articulava
decisivamente para inscrevê-la dentro de um quadro teórico de referência não fazia
parte do que eu propugnava como hipótese, houve casos onde o sangue vertido durante
a formação rememorada — agora literalmente falando... — estava mais associado a um
processo de humanização dos afetos que propriamente a um projeto político-ideológico
hierarquizante (uma das hipóteses...).
O problema se agravava ainda mais, quando os relatos inscritos dentro dessa
perspectiva animada por minhas pressuposições, pareciam soltos, desconexos, em
muitos casos distantes de qualquer representação que algum dos participantes da
experiência pudesse assinar em baixo. Era uma conclusão solitária animada por um
projeto abstruso que não correspondia ao sujeito... Mas, o sujeito, em questão, era eu!
Como então decidir pela melhor representação das experiências?
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O problema instalado não se tratava de coerência metodológica, sobretudo,
porque o desencadeamento da narrativa descritiva de cada momento meu na APMCV,
contido no texto, estava ligado a um enfoque, a uma perspectiva projetada, a um modelo
sinalizador para uma conclusão sugestionada, o texto assim como o escritor encarnado-
distanciado sou eu, de sorte que, o problema puro e simples era de polarização
dimensional de ânimos dos viventes das experiências, ou, para ser mais prosaico: o
nível de aceitação ou discórdia gerada a partir da perspectiva criada por mim com as
descrições...
Penso que esse problema para a descrição, vai depender do panorama ideológico
institucional desejado a formação do oficial, mas, cabalmente pela grande empresa
humana que é lidar com segurança pública. Portanto, caso um ilustre oficial oriundo da
APMCV e contemporâneo a nossa pesquisa redimensionar todo o nicho de descrições,
para o campo simbólico da possível coerência pedagógica e mesmo filosófica, onde os
relatos tidos como desumanos, degradantes, estúpidos e nocivos a dignidade sejam
piamente ajustados a uma dinâmica antropológica perfeitamente explicável e,
eventualmente lancem em descrédito nosso trabalho, basta-me informá-lo que a
distorção não é de imagens vistas, mas, de olhares... O problema da representação então
parece ter ficado no campo de uma espécie de “alteridade científica” — ou, do danem-
se os outros... —.
Falando agora da etnografia, penso que o nascimento de uma possibilidade de
etnografia, ou, “pior dizendo” — como nos diria mais uma vez Ferreira Gullar —, a
condição para uma descrição etnográfica; seria a própria sociedade humana e seus
significantes e significados. Assim sendo, penso que nada tem significado antes da
emissão de um significante — algo que ficou tão claro após a linguistic turn da filosofia
—, pois, penso ainda que o “nada absoluto” é simplesmente (espantosamente) o nada!
Um nada de sentido e significado, e o nada, por sua vez, (dentro do que ensejo) está
mais bem representado em A Náusea de Sartre, e no conceito de angústia de
Kierkegaard. Um misto de aflição, temor e assombro perscrutados em um dia comum,
uma comiseração circular do espírito em torno do vazio, uma dobra anômica, um “sei lá
o quê”... Em nossa referência é a sociedade a condição necessária da etnografia, não há
significado sem significante, não há ente e nada, — como não poderia
parecer/fenômenon mais óbvio —.
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Por conseguinte, em havendo sociedade, vem à tona o que nos diz Berger “toda
sociedade humana é um empreendimento de construção do mundo” (2004, p.15) — para
nós da etnografia um empreendimento de investigação... — elevando-se o pensamento
ao índice da sociedade acadêmica de nossa investigada APMCV, podemos dizer que
temos uma “cosmovisão” complexa e fascinante oriunda daquela sociedade humana, um
“empreendimento humano bivalente” (de significados e significantes)... Mas, de que
forma isso se sustentaria numa explicação teórica? Teorizações muito elegantes foram
dedicadas a esse tema, entre elas a que mais se aninha para iniciar essa tentativa e, que
sintonizou-se à freqüência da minha experiência na APMCV, foi o empreendimento
chamado de “grupos primários”, pensado pioneiramente pelo sociólogo estadunidense
Charles Cooley.
Cooley inicia assim sua profusão teórica sobre o tema:
São caracterizados por íntima associação e cooperação face a face.
São primários em diversos sentidos, mas principalmente por serem
fundamentais na formação da natureza e dos ideais sociais do indivíduo.
Psicologicamente, o resultado da associação íntima é uma fusão de
individualidade num todo comum, de sorte que o próprio eu da pessoa,
ao menos para muitos propósitos, é a vida comum e o propósito comum
do grupo. Talvez a maneira mais simples de descrever essa totalidade seja
dizer que se trata de um ‘nós’; envolva uma espécie de solidariedade e
identificação mútua para a qual o ‘nós’ é uma expressão natural. A pessoa
vive no sentimento do todo e encontra os principais objetivos de sua
vontade nesse sentimento. Não se deve supor que a unidade do grupo
primário seja uma unidade de simples harmonia e amor. É sempre uma
unidade diferenciada e habitualmente competidora, que justifica a auto-
afirmação e várias paixões apropriadoras; mas essas paixões são
socializadas pela solidariedade e caem ou tendem a cair sob a disciplina
de um espírito comum. O indivíduo será ambicioso, mas o principal objeto
de sua ambição será um lugar desejado no pensamento dos outros, e ele
será fiel a padrões comuns de lealdade (Chinoy apud Cooley, 2006, p. 177)
[grifo nosso].
O microcosmo existente na APMCV é o motor da cosmovisão que sugerimos
acima. Cosmovisão essa que é a “cultura” de grupo. Esse “sentimento do todo”, a
“disciplina de um espírito comum” e a “fusão de individualidades” bem poderiam ser o
diagnóstico do nascimento de uma cultura de grupo. Para entendermos todo esse
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mecanismo cultural que Cooley nos apresenta acima, e que nós delineamos para a nossa
empresa como a experiência comum da cultura de um grupo primário experenciada na
APMCV, cuja fotografia iremos apresentar aqui, é necessário passarmos por um
momento prévio na consecução do “tornar-se pessoa” (Rogers), em nosso caso, tornar-
se aluno oficial e, por sua vez, policial-militar.
O ser humano possui uma impronunciável capacidade de se adaptar aos mais
distintos meios. Daí, pensarmos em adaptação como circunstância de nova orientação
existencial, nos remete a um reexame da própria natureza ôntica do indivíduo no mundo
das coisas. Seja numa estação de metrô, na empresa onde trabalho, em nossa família,
num presídio ou numa academia militar o ser humano, no que lhe há de mais instintual e
selvagem, irá se aportar de um modus adaptado, conveniente e perfeitamente plausível
aquela realidade. Berger suscita uma análise perspicaz que usaremos no exemplo em
seguida:
À diferença de outros mamíferos superiores o homo sapiens é
inacabado ao nascer. Passos essenciais do processo de ‘acabamento’ do
desenvolvimento do homem, que já se verificaram no período fetal para os
outros mamíferos, ocorrem no caso do homem, durante o primeiro ano após o
nascimento (...) estes últimos desenvolvimentos não são mutações estranhas
sobrepostas ao desenvolvimento biológico do homem, mas, ao contrário,
fundam-se nele (1985, p.17).
Logo, não é de se admirar que por completarem seu “acabamento fisiológico” já
em sociedade, até mesmo os neonatos de seres humanos sofrem com uma orientação
social, determinada pelo ambiente e pela cultura do grupo que o acolhe, como cita
Berger. Por exemplo, podemos citar dentro do cenário acima a própria experiência
revelada pela seleção natural darwinista acerca dos neonatos de seres humanos...
Estes quando selecionados à melhor maneira de se sobreviver em culturas
severamente tribalistas-patriarcais, nasciam mais assemelhados aos pais do que as mães,
isso porque, segundo os darwinistas, ao longo da marcha evolutiva os bebês mais
assemelhados às mães resistiam menos à “machista” (se é que podemos usar esse termo
sem sermos anacrônicos) cultura patriarcalista dominante — consequência do abandono
ante o desprezo do pai, que não trazia (ou diminuía) a caça à mãe que produzia (menos)
leite ao recém nascido, cuja raquidez ocasionada pesava negativamente em sua
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sobrevivência saudável e, disputa em paridade de condições com os assemelhados aos
pais —.
Observando-se, entretanto, com o passar do tempo e o aumento sucessivo de
apreço e resiliência paterna, os bebês gradualmente ganhavam os traços que também
herdavam das mães, em alguns casos invertendo notoriamente os “traços” iniciais
predominantes do pai, — Dawkins também deve saber o porquê...— traços tais,
inicialmente mascarados por combinações fenotípicas (por que não genéticas?)
moldadas seletivamente por muitos séculos pela aríete do ambiente físico, social e
cultural dominante (neste caso, de patente machismo); proporcionando assim a forja
milimetricamente acordada ao mundo vivido. Uma “genética” seletiva, que assegurava
uma primeira infância acostada ao genitor que oferecia maiores possibilidades de
sobrevivência.
Tudo isso parece trivial à seleção natural, porém, o ajuste dos seres
contingenciados nas matrizes que lhes ofereçam sentido e condição de sobrevivência é o
que nos moverá daqui para frente. É mais o caminho que o resultado, o que nos
interessará nessa dissertação, isto é, em derradeiro o que nos faz parecer mais com
nossos pais... E, sobretudo, quem são esses pais aos quais nos assemelhamos por
sobrevivência... Ou seriam em nosso caso (polícias militares) padrastos? Mitos?
Talvez... Ou, metáforas-guia? Que alimentam o ethos do guerreiro de faca nos dentes e
sangue nos olhos... Ritos? Que dão sentido ao imaginário dos recém nascidos policiais
militares, e do qual estão todos presos pela força de uma história de opressão? Quem
são nossos pais?
Esse “sentimento do todo”, a que se refere Cooley, sugestionado a partir da
formação de grupos primários nos faz aproximar da idéia matriz que almejo: o
empreendimento de construção de mundo da sociedade acadêmica da APMCV. Essa
construção de mundo cujo cimento é a própria interação do grupo, enquanto irradiador
de uma semântica coletiva particular possui (movido e ajustado a condição inexorável
de adaptação pessoal de seus membros) uma espécie de “cosmogonia mítica”, que se
instala na cultura criada como um fundo residual pré-perceptivo.
Preciso voltar a primeira pessoa. Dar uma guisa de introdução a cosmogonia
made in APMCV citada acima, e falar sobre o problema do mito na construção da
cultura. Pensando na minha experiência pessoal de formação para o oficialato policial e
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refletindo hoje (2010), sobre os saberes técnicos que um profissional dessa envergadura,
deve cativar e cultivar na sua lida diária pela/para segurança pública, chego a conclusão,
meio canhestra admito, de que os saberes são extremamente difusos e indomáveis ante a
uma prática linear de ação técnica, isto é, o policial em sua rotina prescinde de critérios
rígidos de ação, tornando-o por contingência mais discricionário do que deveria ser.
Ademais, acabo por sugerir que a falta de doma à protocolos de ação criteriosos, isto é,
procedimentais — que qualquer profissional, digno desse nome, possui...— não são
uma falha pessoal e subjetiva de minha (nossa...) parte, é sobretudo o resultado de um
saber dimensionado na perspectiva mítica do herói de farda.
Essa representação é tão latente que em certa ocasião na unidade policial militar
(UPM) onde sirvo (2010), diga-se, Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças
(CFAP), solicitei a um sargento que escolhesse dizeres, lemas, frases a serem expostas
num banner que seria utilizado como ferramenta de promoção da imagem institucional
do CFAP aos novos alunos a soldado. Uma das frases sugeridas pelo sargento para o
banner era “CFAP: escola de heróis sociais”.
Na hora em que li aquela sugestão já transportada para um modelo em
computador, pensei na necessidade de fundamentar essa questão nesta pesquisa,
sobretudo, no que se refere ao desdobramento que esse tipo de pensamento, essa forma
ideológica de se enxergar, tem efeitos sobre a atividade prática e de que maneira são
introjetadas na formação.
Isso se deve ao fato de ao se entrar em uma academia militar, o neófito não
vislumbra um conjunto de saberes procedimentais que o tornará um profissional que
trabalha segundo critérios objetivos de eficiência e famigerada eficácia. A “carreira das
armas”, isto é, os militares na sua primeira acepção enquanto tais e, sobretudo, dignos
desse nome — é bom reforçarmos... —, de tudo que entendem por uma carreira
“profissional” em seus primeiros meses na academia, alcançam no máximo o momento
prévio de uma suposta destinação a uma vida devotada à missão, à pátria, à sociedade...
Isto é, “mesmo com o sacrifício da própria vida” como se juramentava.
Existe um projeto engajado de fortalecimento dessa idéia-maior em que o aluno
oficial não se vê, nem se conforma com um destino trivial e contemporâneo. Na sua
cabeça em contrapartida era o que justamente tinha abandonado para dedicar sua vida a
missão que agora quer encarnar carregando o fardo da farda. Fuga essa que o tirou do
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escritório, do terno-e-gravata, do salário... E o conduziu a uma vida de emoções, que o
conduziu necessariamente ao quartel (como fortaleza), a farda (de quem carrega o
fardo) e ao soldo (do soldado). Uma realidade inverossímil na prática da maioria das
pessoas, mas que encontra sentido em um dispositivo de construção do guerreiro,
daquele que como dizem na Academia “é superior ao tempo”.
Pode ser levantada a questão, de que essa suposta idéia-maior caiu em desuso e
encontra-se falida nas academias, especificamente no imaginário dos ingressantes à
carreira das armas, de sorte que, idéias ou ideais de desprendimento da vida e amor a
causa miliciana, diluíram-se no maciço assédio que o capitalismo impôs as ideologias
juvenis, transformando-as, no caso narrado, em pontes vulgares a cabides de emprego e
“trampolins” a ascensões profissionais de maior status social e remuneração. Esse
argumento pode suscitar o fato de chegarmos atrasado a nossa discussão.
É bom salientar a despeito desse fato inarredável, penso, que mesmo a levante
de usar a instituição como trampolim ou usá-la tão somente como um mero emprego,
não é necessariamente uma generalidade o fato descrito, tampouco, uma quase
generalidade, visto que os ideais apregoados — acreditem — nas academias de polícia
continuam sendo os mesmos e, não há nenhum estímulo institucional a esses contra-
valores (no caso da APMCV o projeto paralelo de uma profissão post Academia era
intolerável) que vão de encontro à economia ética do herói fardado — preservada em
alguns casos raros com o manto da hipocrisia de um mercenário fardado —.
O argumento da morte dos “ideais” que apontam como um dedo em riste,
decisivamente ao aluno (cadete) mercenário e mesmo ao tenente mercenário, está ligado
a uma nostalgia velhaca, especificamente daquela que emprega aos acontecimentos
coletivo-profissionais de seu tempo o dado impreterível da singularidade... Para estes
velhacos (e suas demagogias), tudo em seu tempo respondia a uma idealidade mais pura
e legítima, em detrimento da “torpeza dos ideais” dos dias atuais. Falta uma
historicidade temporal nesse argumento — que mais se parece um desagravo ao viço da
jovialidade que tudo demole, e ao velhaco constrange... —. Para tais as crianças,
sobretudo as moças, eram à sua época mais comportadas, as esposas mais dedicadas aos
lares, os políticos mais sérios, o homem mais viril, etc... O tema “idéia-maior” — em
que pese sua possível degeneração... — pode parecer pueril e mesmo romântica, mas as
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conseqüências dessa suposta idéia-maior de destinação a uma via sacra e sublime, nos
apontam um dos pilares da outra ponta que sustenta a cultura que estudamos.
Pode parecer uma infantilidade isso, mas devo confessar que em nenhum
momento dos meus três anos de formação na APMCV e, mesmo nos primeiros meses
após a formatura, meu ideal de profissão não era prestar um serviço eficiente a
segurança pública do meu Estado. Meu negócio era mudar o mundo. Resolver todos os
problemas sociais com o viço do poder que me permitia acreditar possuir, claro,
acostado naquela metafísica estrela amarelinha no ombro... — poder tal que de fato
nunca passou de uma ilusão... —. Ilusão essa projetada embrionariamente na própria
Canção da APMCV “(...) Vemos ao longe brilhar nossa estrela, vamos prosseguir,
quando se é jovem não se pode desistir! Ser mais que humanos, queremos todos
conquistar a nossa meta até o fim (...)”. A responsabilidade de “ser mais que humano”
diz muito sobre essa debilidade profissional de cunho infantil...
O mais dramático desse processo de construção profissional coletiva do recém
oficial de polícia, não é a singularidade de um ponto de vista pessoal, dessa escolha
monástica, sacerdotal, digamos exclusivamente de minha parte, o grande problema de
todo esse auto-engodo era de que a sua exceção, isto é, do profissional que se pretende
num currículo acadêmico, significava justamente o ponto de vista da instituição ao
oficial marginalizado, ao destituído de per si da legitimidade que vestia a figura do
profissional. Um paradoxo chocante.
A instituição não quer(ia) profissionais competentes trabalhando dentro de
protocolos humanísticos e regras de ações técnicas-rígidas... A instituição desejava o
“herói social”, — aquele que iria atravessar 24 horas ininterruptas de uma escala de
serviço sem reclamar das condições de trabalho —, muito menos da quantidade de horas
trabalhada... aquele, justamente, que iria “caçar o bandido à unha”, que ia (desejoso)
colocar-se de testa ao enfrentamento do perigo, como na canção que entoávamos “essa
noite eu vou sair e quero encontrar/ uma quadrilha de bandido pra poder matar/ e eu
quero que eles venham de fuzil na mão/ eu vou matar, eu vou comer seu coração...”;
enfim, o alimento institucional era, além do citado, sobretudo aquele que iria por meio
de uma disciplina tirânica entre superiores e subordinados, cavar ainda mais o fosso que
separava a cúpula da base, produzindo um silêncio inter-círculos que impedia qualquer
possibilidade de emancipação e produção do diálogo.
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Todos nós aspirantes a oficiais (formados após três anos de academia)
queríamos transformar o mundo pelas próprias mãos, uns mais afoitamente, outros de
forma lancinante e suicida, outros ainda noutra ponta (aos olhos da instituição)
covardemente assumindo “apenas” o objeto de sua missão, ou seja, “trabalhar com os
estatutos legais disponíveis”, porém, todos calcados nos mesmos ideais. Àqueles não
marginalizados pela cultura institucional, isto é, a grande maioria — dos quais me incluí
por tempos... — respondiam com suas “ações heróicas”, se é que podemos usar essa
expressão sem pieguice e fraude, apenas ao desejo institucional.
Pensando ainda numa introdução é importante situarmos um lugar de fala.
Bauman em sua obra “vida em fragmentos” destaca a retomada pelo ser humano do
poder primordial que envolve sua faculdade de responsabilizar-se por seus próprios
atos. À revelia de um “Sistema Único de Ética”, que disciplina as condutas e promove a
gratificação do pecado por meio do arrependimento e da culpa, o ser humano se viu
liberto por uma série de vivências abertas pela “modernidade líquida”. Por conseguinte,
“responsável pela responsabilidade de escolher” o ser humano se viu diante da
endêmica solidão da escolha moral que o obriga a ser, à despeito de qualquer sistema
ético e moral absolutos, responsável direto por sua condição humana.
Esse atuar com base na responsabilidade devolveu ao ser humano sua condição
de ator e, para Bauman isso significa que esse “ator [o ser humano livre] é responsável
não pelos conteúdos com que a responsabilidade é preenchida, mas pela escolha de um
código de ética dentre muitos, cada qual como “o” aval de especialistas (2011, p.14)”.
Com efeito, viver no mundo na modernidade-tardia, ou, na modernidade líquida, como
quer Baumann ao aludir da fluidez das relações... Isto é, estar, viver na pós-
modernidade é, sobretudo, estatuir a motu próprio as diretrizes existenciais que compõe
a ação no mundo. Pertencer ao mundo pós-moderno é situar-se na tensão contratual das
vontades sob um parâmetro ético fluido, vazio, sem um significado transcendental que
absolutize um catálogo “X” de valores. Nesse cenário a perspectiva ao ser humano não
emancipado parece aterradora e perigosa.
Perplexados com o insolúvel desígnio pessoal da consciência pessoal do mundo
dos valores o ser humano tem colocado suas concepções diretivas, outrora geridas por
uma unidade centralizada de ética, numa ética relacional onde o ambiente multifacetado
pela tecnologia, pela arte, pela mídia e por seu grupo cultural, acaba por dar substância
21
àquele conteúdo que preenche de sentido os vetores da ação. Não é sem tempo que a
implicação relacional das mídias, especialmente, da internet na vida cotidiana das
pessoas, são mais observáveis que as ocasionadas pelas encíclicas católicas. A ciência,
do contrário, ainda prenhe da razão absoluta — que não consegue parir — já não pode
mais ferir de morte os universais metafísicos que tanto lhes contrastaram no campo da
ética e da filosofia em geral. Eles se fundiram na economia dos afetos, nas trocas diárias
entre as pessoas. Transformaram-se em programas de auditório, em expiação ao vivo de
demônios...
Assim, uma lógica pé-no-chão se dissemina na busca de sentidos existenciais e
começa dialogar a possibilidade de alargamento das condições de descrição do mundo e
das relações ético-negociais entre as pessoas. Um alargamento tal que chega para
questionar severamente as condições impostas pela ciência dura, de amortização afetiva
do sujeito e subjetiva do mundo, bem como das percepções intencionais que se têm
dele.
Esse campo de interpretação do fenômeno humano sob o império de um
materialismo que incorpora a subjetividade humana, e respeita a ética que relaciona a
cultura de um grupo a sua forma de conduzir uma tomada de decisão, revela condenar a
ciência da pura objetividade e do puro distanciamento do eu a uma proposta utópica
estritamente despreocupada com a vida em si.
A pesquisa que levo a curso leva algo dessa proposta descrita por Bauman, isto
é, “a responsabilidade por empreender uma escolha responsável e consciente do mundo
em que se vive”; em suma: falarei aqui de vivências. Histórias aparentemente banais e
insuspeitas pelas quais movimentei a descrição de um mundo que está antes de mim, me
faz, a faço e, que de forma incisiva chamo de cultura.
Para dar conta dessa perspectiva de “autonomia de olhar” que adotamos no
texto, iremos basicamente empreender um estudo autoetnográfico desenvolvido na
perspectiva fenomenológica Merleau-Pontyana. Chego, enfim, a ousadia de ensaiar
uma etnofenomenologia que ainda me renderá muitos rodapés na vida acadêmica...
A autoetnogafia que será exposta faz referência às vivências do autor entre os
anos de 2004 e 2006, período em que se deu a formação para o oficialato na Academia
de Polícia Militar Costa Verde, Unidade de Ensino da Polícia Militar de Mato Grosso.
22
A formação experenciada ocorre por meio do Curso de Formação de Oficiais (CFO) e
se processa ao longo de 03 (três) anos, isto é, CFOI, II e III.
Não entraremos em pormenores contingentes a estruturação formal da Academia
no plano técnico-jurídico, tampouco empreenderemos análises fundadas em dados
quantitativos recolhidos, documentos taxativos ou normas positivadas pela Instituição
— não é nossa intenção... — . O que se pretende no cume das aspirações é deflagrar um
debate na perspectiva ôntica, ou seja, do ente — que sou eu neste caso —, em interação
com o universo institucional particularizado pelas pessoas.
No que diz respeito à autoetnografia enquanto método, podemos logo de partida
utilizar as palavras de Versiani para propormos em linhas gerais a que se empenha:
Todos conhecimentos herdados de determinadas tradições teóricas
que o pesquisador, em dado momento de sua trajetória, passou a subscrever e
que, em contextos de pesquisa heterogêneos, pluralistas e multiculturais, já
não precisam, ou talvez já não devam, permanecer escondidos sob uma
suposta neutralidade ou distanciamento (...).
O método autoetnográfico é, assim, um modo de atuação do
pesquisador preocupado em explicitar seu próprio lugar de fala, a
cultura na qual se sente inserido, as teorias e critérios estéticos que
subscreve. É a explicitação constante e contínua dos óculos através dos
quais vê o mundo (2008, p.12-13) [grifo nosso].
No que se refere a fenomenologia daremos pistas ao longo da dissertação do
emprego do método com vistas as pesquisas de Husserl e Merleau-Ponty.
Em muitos aspectos, o que será exposto nos capítulos que se seguem são
momentos onde todo um potencial criador de ação se engendra sob a forma de
acontecimentos insuspeitos, porém, em certa monta tradicionais na APMCV. No
capítulo 1 iremos traçar o grande escopo dessa empreita, que é a descrição etnográfica.
Em um primeiro momento a descrição é feita no prisma da rotina, e sequencialmente
atinge a etnografia dos anos de formação. O referencial fenomenológico circula
basicamente todas as descrições.
No capítulo 2 fazemos uma breve demonstração de como os referenciais teóricos
se encontram ajustados no texto e na ótica do autor e, sobretudo, encampam o olhar
auto-etnográfico exposto no primeiro capítulo. A fenomenologia Merleau-Pontyana é
exposta segundo elementos de compreensão ontológica, especialmente onde
partilhamos os estudos da profa. Dulce Critelli e do Prof. Marcus Sacrini Ferraz. Ainda
no capítulo 2 procedemos uma exposição sobre os ritos na formação, referenciando
23
Peter L. Berger com fulcro nas obras “A construção social da realidade” e “Dossel
Sagrado”. A antropologia interpretativista de Clifford Geertz também toma assento no
capítulo 2 nos tópicos 2.2 e 2.2.1. Encerrando o capítulo excursionamos no pensamento
de Marcuse e Freud, trabalhando a idéia de uma possível correspondência com a auto-
etnografia.
No capítulo 3 expomos de forma bastante sucinta a “história marginal” das
polícias militares sob o ponto de vista do jurista e historiador Raimundo Faoro, expresso
em “Os donos do poder”; cooperando ainda no capítulo a obra provocante do Jornalista
Leandro Narloch “história politicamente incorreta do Brasil”. A ponte para a realidade
mato-grossense vem com artigos e obra do historiador Oswaldo Machado Filho.
No capítulo 4 discorremos uma discussão sobre o tema currículo, com base na
obra da profa. Elisabeth Macedo da UFRJ; a partir da teoria fazemos um breve passeio
na Matriz Curricular Senasp/MJ e sua efetividade quando em conflito com as culturas
acadêmicas, especificamente, da APMCV.
Encerrando a dissertação fechamos com o capítulo 5, nas considerações de
andamento, os contributos provisórios da pesquisa e que não se propõem a fechar o
debate, senão anunciá-lo em seu caminho aberto.
24
PARTE I
ETNOGRAFIA VIVIDA: EXPEREENCIAÇÕES E FENOMENOLOGIA NA
APMCV
1. Um filme em 24 horas: a autoetnografia da rotina em três partes
É claro que se houver um parafuso
Mesmo pequeno
E se souberes onde ele está
Claro, se não estiver enferrujado
Nem quebrado
Claro, se tiveres uma chave
Do Tamanho certo
Claro, se souberes deter a máquina
Para chegar ao parafuso
Claro, se souberes como fazer
Re-apertá-lo, soltá-lo, limá-lo, retirá-lo
Para obstruir a mecânica
Ou talvez bloqueá-lo
Quiçá destruí-lo
Explodi-lo
Claro,
Depois é fácil
(Georges Labica)
Confesso, minhas 24 horas nunca mais foram as mesmas desde o início desse
processo de fazer-se policial. Pois, todos os dias sou chamado a escrever por
necessidade moral. Designar o tempo em que vivo. Esse grito silencioso traduzido pela
escrita tem se tornado uma rota de fuga. A invariante do processo de gratificação dessa,
digamos, “pulsão literária” já não corre a trilha que respeita o que vem da mente, é,
contudo, devido à supressão lenta e continuada, o estômago que acaba ditando as ordens
às mãos pousadas no teclado e, no fim, o que tinge o papel em preto times new romam
acaba misturado às minhas frustrações, como um efeito colateral indesejado.
Tenho certeza que essa pulsão é uma espécie de “impostura ética” diante de
alguma injustiça presenciada no cotidiano da prática policial ou no interior da caserna.
Talvez nobre leitor policial, sobretudo você, partilhe comigo essa mesma “impostura” e
a acalme como eu, só que do lado de fora desse papel,— vejo daqui vosso sorriso
amarelo de assentimento...—.
Essa catarse gástrica-moral que escolhe as madrugadas para vir à tona é uma
cura momentânea, uma agulhada tranqüilizadora atacando um problema crônico,
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continuado... repito, um mero paliativo, uma pílula que vai me salvar até a próxima
precipitação ao verbo.
Entre novas idéias, devo dizer sem pudores, permaneço no velho radicalismo
de sempre. Marxista? Enfim... O que me interessa é continuar a marcha atrás do
parafuso que vai frear esse sistema desumano e odioso, desmontando o discurso que
mareia como espuma o limbo diário que preenche o ócio de nossos anti-intelectuais-
orgânicos; pré-ocupados com chás, pró-secos e fofoca, — não devem ter tempo para
idéias que salvem o que resta dos valores que aprendi a seguir na APMCV,
parafraseando Kant, valores tais como uma lei moral dentro de mim.
1.1 A etnografia da rotina parte I
Quando a curva é feita, de longe já se vê o letreiro luminoso da Academia de
Polícia Militar Costa Verde3. Abruptamente uma nuvem pesada cala um pensamento
corrente na mente, desencadeando um sobressalto físico que o corpo traduz num
calafrio passageiro. O motor do carro arrefece — para aqueles que os têm... —, a
vigilância aumenta, e já em ponto-morto ao se aproximar do corpo da guarda pode-se
observar ao fundo, ainda com pouca claridade, alguém correndo no pátio com balde e
vassoura nas mãos.
O farol do carro se apaga, as luzes internas se acendem denunciando quem se
apresenta para entrar, tudo mais por simbolismo que por segurança, as correntes se
abaixam e a velocidade de ingresso deve ser milimetricamente mensurada na passagem.
No estacionamento previsto para os alunos, já existe um posicionamento específico para
os carros, leia-se posicionamento! — e não vagas —, os carros posicionam-se de acordo
com a voga estabelecida à época, neste caso, perpendicularmente à guia da calçada. As
motocicletas, idem, nos seus respectivos espaços.
Muitos chegam de carros, outros vêm de ônibus de linha (circulares), — o que
de per si já torna o opróbrio mais penoso, dado a sentença da madrugada martelar um
3 Academia de Polícia Militar Costa Verde (APMCV) é a Instituição de Ensino Superior da Polícia
Militar de Mato Grosso, responsável pela formação e aperfeiçoamento de oficiais, através do CFO (Curso
de Formação de Oficiais, para ingresso na Instituição, de nível superior, com duração de três anos em
turno integral, com períodos de internato) e CAO (Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais, destinado a
capitães, nível de especialização, com duração média de 06 (seis) meses) respectivamente. A APMCV
Fora criada formalmente (legalmente) no ano de 1987 e ativada no ano de 1993. Os oficiais formados
anteriormente a ativação da Academia, eram enviados a Academias de outros estados onde faziam a
formação.
26
“pouco” mais cedo, para os que desafiam tal meio de se chegar a Academia —. Muitos,
contudo, permanecem na própria Academia e se tornam “laranjeiras”, isto é, àqueles
que moram na Academia.
Lembro-me do Manja4, um companheiro de turma que no início do primeiro ano
ainda não possuía veículo, e chegava até a Academia de ônibus, de sorte que, como não
havia parada de ônibus próximo a Academia, costumava descer a cerca de três
quilômetros de distância e, não foram raras às vezes em que o Manja chegava suado até
o corpo da guarda vindo correndo de onde saltava para não se atrasar, conta-se
inclusive, que alguns alunos no início do curso o viam correndo pela avenida na
madrugada, mas que não paravam para lhe dar carona — você deve estar se
perguntando o porquê do epíteto “manja”, essa é outra história —.
À descida do carro na Academia, ou após a chegada, seja de que forma fosse,
segue-se, necessariamente, a devida apresentação pessoal ao aluno-de-dia (terceiro-
anista que comanda o serviço), para que o mesmo dentre outras coisas se cientifique da
presença de quem chega e já na esteira o anote5 (ou não), com vistas a uma punição
posterior, ou o puna logo de imediato com algum castigo físico que vai desde dez, vinte,
trinta... flexões de braço ao solo ou a cinco, dez, quinze... voltas no pátio com fuzil
cruzado ao peito, ou qualquer outro mecanismo mais criativo de “punição” imediata,
isso caso observe (ou não, “o critério é não ter critério” — ouvi exatamente isso, de um
aluno uma vez...) alguma irregularidade na “apresentação pessoal” — o que não é
muito difícil.
4 Os nomes dos alunos oficiais citados ao longo do texto, foram oportunamente substituídos pelos seus
respectivos apelidos. Em relação ao primeiro apelido citado no texto, trata-se de um grande companheiro
de turma do autor (11° Turma da APMCV, Turma Expedicionários) que uma vez fora falsamente
(segundo ele...) flagrado observando detidamente — que maldade...— outro colega em privacidade, daí
a alcunha jocosamente imputada a ele. Em verdade — se é que podemos lançar mão desta palavra sem
suspeitas filosóficas... — esta acusação ao querido manja é mais um gesto pilhérico de camaradagem, do
que a alusão a um fato real. 5 À intelecção do termo anotação dá-se conta de uma caderneta, bloco de anotações ou mesmo pequenos
rascunhos, onde o aluno oficial anota as alterações (e demais ordens e apontamentos) observadas,
sobretudo, nos demais alunos sob seu comando. Tais anotações são realizadas com o sentido de apurar a
disciplina, quanto à observância de todos os regulamentos, e serve também como rol que dá margem a
sanções disciplinares aos anotados. Quando um aluno mais antigo (em nosso caso, aquele que tem uma
precedência em relação a outro de outra turma), anota o mais moderno (este assim chamado dado à
referência que se tem do primeiro: o “mais antigo”) sabe-se, fatalmente que esta anotação gerará uma
sanção disciplinar formal ou informal.
27
1.1.1 Um “método fenomenológico”?
Uma dissertação com mais perguntas que respostas. Um texto que se movimenta
como um filme... Algo arredio a sistematização dura e, sobretudo precária como o é o
ser humano. “Realmente [em nosso texto], não se busca submeter à dúvida tão-somente
o conhecimento, e sim o próprio sentido da existência humana — da existência concreta
apanhada em seu cotidiano [...] desprovido de significado coletivo (2007, p.16)”.
A vontade decorrente daí, é ensacar a realidade e despejá-la através do verbo a
quem lê. Porém, que demarcação6 científica poderia haver tal empreita? Afinal, estamos
aos umbrais da academia e seus rigores “acadêmicos” nos exigem postura distanciada e,
metodologicamente competente. Neutra? Só se alguém neutralizar-me numa camisa-de-
força ou, se roubarem de mim quem sou, calando-me ou impedindo que o prelo desse
trabalho seja conhecido.
Metodologicamente me descanso em Merleau-Ponty, de maneira que, ainda
percebo o salto do sapato preto envernizado sendo corroído pelo concreto quente do
meio dia ou do serenado pela madrugada, dos passos apressados e, se for primeiro-
anista... é correndo! Bicho7 não anda no pátio, apenas corre, bicho não anda sozinho na
Academia, só anda em bando, sempre com sono e com fome, logo, no deslocamento
para a apresentação ao aluno-de-dia ele o faz em acelerado, se apresenta e está pronto
para o dia. Todo esse “contato ingênuo” com o mundo da caserna poderá nos conduzir a
uma facticidade inequívoca de um possível estatuto filosófico para as questões que a
etnografia venha denunciar, pois:
A fenomenologia é também uma filosofia que repõe as essências
na existência, e não pensa que se possa compreender o homem e o mundo de
outra maneira senão a partir de sua “facticidade”. É uma filosofia
transcendental que coloca em suspenso, para compreendê-las, as afirmações
6 A locução “demarcação científica” e a própria sequência da frase é uma provocação ao leitor, de sorte
que, ao falarmos em fenomenologia não há que se falar em “rigor científico” (mas, em rigores...), pois, o
rigor está em aberto na fenomenologia, dado a sua natureza humana, logo, precária, até mesmo
convencionalizada! Ainda acerca da demarcação, convém falarmos que a antropologia que se esboça em
pano de fundo no texto, é a antropologia social ou cultural, sobretudo, na perspectiva interpretativista de
Clifford Geertz. 7 O termo bicho é a designação dada ao aluno do primeiro ano do CFO (CFO I). Com efeito, não é uma
designação formalmente empregada, entretanto, poderíamos dizer que trata-se de um termo peculiar,
próprio da tecnologia cultural das Academias de Polícia. Semanticamente (respeitando a polissemia do
termo), carrega conteúdos que informam que o neófito é um “selvagem não adestrado”. Alguém que
ainda não fora “moldado conforme a cultura do grupo”, literalmente visto como... bicho.
28
da atitude natural, mas é também uma filosofia para a qual o mundo já está
sempre “ali”, antes da reflexão, como uma presença inalienável, e cujo
esforço todo consiste em reencontrar este contanto ingênuo com o
mundo, para dar-lhe enfim um estatuto filosófico (2006, p.02) [grifo
nosso].
Cabe esclarecer, já neste momento, a abordagem metodológica da percepção
(em Merleau-Ponty), que será encampada por boa parte deste texto dissertativo-
etnográfico. Inicialmente para que tal empreita seja realizada com um mínimo de
plausibilidade (Berger); e o que podemos chamar de plausível (dentro de uma leitura
etnográfica de um grupo de alunos oficiais confinados numa formação militar)? Seria
para nós a desmistificação promovida pela abordagem em tela.
Ora, saber que os alunos oficiais são educados, polidos no trato, católicos
praticantes ou protestantes fervorosos, irretocáveis na postura e aptos a dar o melhor
futuro possível às debutantes, são leituras que queremos demolir aqui. Berger nos
clareia a questão:
A auto-imagem do corretor de seguros como um afetuoso
conselheiro de casais jovens, ou da strip-teaser de cabaré como artista, ou do
publicitário como perito em comunicação, ou do carrasco como servidor
público — todas essas ideias constituem não só abrandamentos individuais de
culpa ou expressão de anseio de status, como representam também as auto-
interpretações oficiais de grupos sociais inteiros, a que seus membros estão
obrigados sob pena de excomunhão (...) o motivo desmistificador está nessa
penetração de cortinas de fumaça verbais, e pelas quais se atinge as fontes
não admitidas e muitas vezes desagradáveis da ação (2007, p.52).
É preciso então desvelar o método (se é que ele existe enquanto tal!) em seus
nuances mais simples, ainda que: “em nada simplificado-esquematizado”. O que
chamamos de desvelamento está vivificado na seguinte exposição da profa. Dulce
Critelli:
Para que fossem expostos à luz do mundo e aí se desenvolvessem,
foi preciso que alguém se desse conta, por exemplo, da energia contida na
força da água; da madeira contida no tronco das árvores; do alimento contido
nas frutas; do amor contido no beijo; da generosidade contida num gesto; da
justiça contida numa lei, ou num sistema político etc. Enquanto não fossem
“vistos” como tais, o tronco da árvore, permaneceria apenas sendo um tronco
de árvore, e a queda d’água, apenas uma queda d’água. Mas, depois que a
madeira e a energia foram desveladas, podemos falar que elas estão ali na
árvore e na água, mostrando-se a princípio no modo de um velamento (2006,
p.76).
29
Ademais, o que poderia ser esperado se disséssemos, neste instante, que a
abordagem será fenomenológica? O impacto inicial, sobretudo, aos não habituados com
o tema (e ao próprio termo), seria a tarefa comum (e inicial) de pronunciar corretamente
o próprio termo fenomenologia. Em segundo lugar, é preciso ter em mente o problema
sob o qual se erige a fenomenologia, para que no passo seguinte ela se concretize
enquanto possibilidade de leitura de mundo. E qual(is) problema(s) temos aqui?
1.2 A etnografia da rotina parte II
Com o cotovelo ainda esfolado pelo rastejo8 da noite anterior, do sono não
dormido, da cãibra, da tendinite aguçada, ainda assim, ele está pronto para o dia. Como
silenciar tudo isso? E mais, como demarcar cientificamente todo esse processo? Por
enquanto cuidemos apenas de nossas vivas impressões, travestidas de memória, isto é,
“pálidas impressões humeanas”; pintadas como associação de inúmeras idéias simples
colhidas ao longo do feixe de representações diário. Como licença poética à
fenomenologia de Merleau-Ponty, podemos citar Hume:
Todas as cores da poesia, por esplêndidas que sejam, não serão
jamais capazes de retratar os objetos de tal maneira que se torne a descrição
por uma paisagem real, e o mais vívido pensamento será sempre inferior à
mais obtusa das sensações (...) um acesso de fúria é afetado de maneira muito
diferente de um outro que apenas pensa nessa emoção (2004, p.33).
Desse momento então, não há dia ou noite que nos separe do imponderável e da
fragilidade a que estamos submetidos, somos um corpo pronto a ser vergado à vontade
do obreiro, sem questionamentos9 ou adendos a serem feitos. Um grupo longe —
consciente longe dos prazeres da vida civil... tais quais descritas na canção que
entoávamos:
8 Processo técnico de maneabilidade militar no terreno.
9 Existia a nossa época uma locução muitíssima utilizada enquanto veículo de repressão de
questionamentos. Tratava-se da frase em forma de pergunta: “Você está ponderando aluno?” sempre que
um superior hierárquico, em especial um próprio aluno “mais antigo” se dirigia assim a (outro) aluno, isso
significava, necessariamente, uma violenta represália-censura (imediata!) ao questionamento, pois,
“ordem não se discute, ordem se cumpre!”. As implicações psicológicas e, mesmo a fenomenologia que
envolve as implicações dessa prática anti-dialógica (Freire), incrustam-se no caráter (como ethos) do
aluno e lhe imprime no íntimo um senso de “subserviência natural”.
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Eu queria estar agora/ Bem na mesa de um barzinho/ Tomando uma coca-cola/ Ou
um chopp geladinho/ Chopp, chopp no verão/ Só faz bem ao coração/ Chopp, chopp no
inverno/ Leva a gente para o inferno...
De fora10
, as semanas passam em quinzenas de dias, ou em meses ininterruptos,
ao passo que de dentro, os dias se avolumam e parecem nunca acabar, desde o soar da
sirene da alvorada ao fora de forma do pernoite, tudo acontece num ritmo intenso,
porém, à conta gotas. E nessa jornada, ainda estamos as 5h15 da manhã. A concepção
de “tempo” segue uma lógica complexa na perspectiva do sujeito, pois, dissocia fatos
temporais (ou biográficos) de lapsos temporais, em muitos casos, causando no sujeito
uma impressão de fato temporal com ausência de lapso e vice versa.
As experiências são tão contundentes em determinada esfera de vivência que
ganham status de longevidade, e o sujeito passa a se apropriar de um caráter que só foi
marcado pelo fato temporal legitimante, que pode se representar por exemplo, na
conquista do uso da farda. Em suma, nesse período só existe na cabeça do sujeito um
traço marcante de temporalidade, que inexoravelmente já está incrustado em sua
biografia sem que ao menos se dê conta de que um curto lapso de tempo existiu dado a
intensidade do processo, em contrapartida, a execução temporal desse fato não permite
vislumbre de qualquer possibilidade de conquista, seja da farda ou de qualquer outro
epíteto, dado que, o sujeito nesses “instantes eternos”, só se apodera do lapso, dos
minutos, dos segundos, sem se dar conta do fato temporal que só perceberá quase que
num ato de surpresa. Bergson filosoficamente dá conta desse fenômeno da consciência
do ser humano em relação ao tempo, na passagem:
Que o deixemos em nós ou que o coloquemos fora de nós, o
tempo que dura não é mensurável. A medida que não é puramente
convencional implica em efeito divisão e superposição. Ora não se poderia
superpor durações sucessivas para verificar se elas são iguais ou desiguais;
por hipótese, uma não é mais quando a outra aparece; a idéia de igualdade
constatável perde aqui toda significação. Por outro lado, se a duração real
torna-se divisível como veremos, pela solidariedade que se estabelece entre
10
Acerca da noção “de fora”, vale o comentário de um oficial formado nos primórdios da APMCV, que
me informou que após sua apresentação na Academia, iniciou-se a quarentena (período de formação
militar intensa, onde o aluno é colocado em internato e cedido totalmente a cultura militar) os sentinelas
(alunos mais antigos) impediam até que os bichos se aproximassem do muro para ver a rua. A
“quarentena” desse oficial durou 06 (seis) meses.
31
ela e a linha que a simboliza, ela consiste ela própria em um progresso
indivisível e global. (1972, p.102) [grifo nosso].
Certamente os referenciais permitem tal hipótese, de sorte que, não é de se
duvidar que o mesmo minuto, passado na praia na companhia de amigos seja
radicalmente diferente, de um minuto passado numa sessão de tortura. A formação que
estudamos, coloca o sujeito num liquidificador, e o impõe a dinâmica do operador que
supera qualquer outro referencial, quer seja as estações do ano, o calendário público ou
privado, nada, salvo a própria lógica do “operador do liquidificador”, constitui eixo de
existência de quem se submete a tal experiência.
Após a apresentação seguíamos até a galáxia de nosso universo. O alojamento.
Ao adentrar àquele campo de força, exigia-se um passaporte procedimental11
muito
cerimonioso... “Com licença senhor aluno mais antigo, Aluno Oficial PM, permissão
para entrar no recinto!” tudo feito em níveis audíveis satisfatórios, para que o mais
desavisado aluno mais antigo ouvisse de onde estivesse, mas, para entender esse campo
de força, galáxia do universo chamado Academia a qual dá-se o nome de alojamento
precisamos fazer algumas considerações.
Dado a timidez estrutural da Academia de Polícia Militar Costa Verde, alunos
oficiais do 1º e 2º anos dividiam o mesmo espaço físico, porém, separados por uma
coluna de armários de aço que delimitavam as fronteiras. Tratava-se de um espaço físico
consideravelmente pequeno para comportar à época quarenta e oito homens, trinta e
dois do primeiro ano (CFOI) e dezesseis do segundo ano (CFOII).
Compreendia uma construção retangular, em que se acopla um banheiro sofrível,
com alguns chuveiros que nem atreveremos a dizer em números quantos eram, e
sobretudo, em que condições operavam, pois, quando muito variavam de três a quatro
em pleno funcionamento, uns com duchas, outros com apenas o filete d’água que,
aliado aos sanitários, girando na faixa de um a dois, em uso, davam uma atmosfera
agonizante ao ambiente, em que pese preservados ininterruptamente higienizados.
Diferentemente da nossa galáxia Via Láctea que pouco conhecemos, nosso
alojamento era conhecido em cada mínimo detalhe, em cada porção ou faixa de
11
O Regulamento de Honras e Continências Militares era — e, cremos ainda o é! —, extremamente
cultivado na APMCV, tal Regulamento dispõe de ritos de protocolo que tornam o comportamento do
aluno oficial em especial, um minucioso exercício de significação do mundo em que vive. Sempre que se
expressa, o militar (podemos levar o contexto à generalização) identifica seu campo simbólico, pois, é
com seus símbolos que lida.
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existência física, tanto na matéria quanto na significância de cada pormenor, tal local
retratava uma faceta biográfica da vida de cada aluno; ali se expressava o “submundo”
do submundo, um nicho de profunda aceleração espiritual dado o constante confronto
da fé com a desesperança, ideal transcendental de quem se aventurava à busca pela paz
naquele campo de guerra. Esse horizonte Heraclitiano de luta entre os contrários era a
tensão necessária à existência em si mesma, exatamente como a conhecíamos naquele
microcosmo.
De tão automatizado o vermelhão do piso, muitíssimo esfregado, chegava a nos
pedir reverência, já acostumado a notar quem tantas vezes se curvou para limpá-lo. Tão
emblemático, que não basta passar a memória em revista para nos asseverar desse ou
daquele canto esquecido, de tão nobre importância sentimental. Cabe-nos olhar para
dentro de si e ver na amplidão dos sintomas, o valor de tão grandiosos significados, seja
à luz do sol ou, na calada da madrugada, cada hora infere uma descoberta precisa de um
achado surpreendente.
Quando chegávamos pela manhã e o cerimonial era religiosamente feito às
soleiras da porta de acesso, adentrávamos no nosso espaço de significância já deparando
com um ou outro companheiro que por lá já se encontrava ou que lá pernoitara, não
havia cumprimentos ou manifestações de cortesia direta toados num bom dia...
Estávamos em uma atmosfera medieval de sentimentos e, um leve olhar sobre o outro
que se correspondia, era suficiente para criar uma teia de respostas que incrivelmente
prescindia da palavra falada para se expressar, um gesto obsequioso, uma fala
interrompida, geralmente conduzia aos encontros diários dos amigos, dos com-
panheiros (daqueles que comungavam o pão).
Aos exasperados a fala era inevitável e a cordialidade caminhava junto a
fanfarronagem, despertando em quem ainda pulara da cama — para aqueles que lá
pernoitavam... —, um misto de raiva e afeto, correspondido quase sempre pelo silêncio
camarada. De tudo isso, não há que se falar em amizade no plano puramente conceitual
para daí trazermos a vivência, é justamente a vivência mediatizada pela com-vivência
entre os companheiros que dá o tom do significado da vida — sobretudo, da
linguagem...—. Profa. Dulce Critelli confere, através de uma prosa fenomenológica, o
que pretendemos acima.
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O ser das coisas (o que são, como são) não está consumado na sua
conceituação, mas também não está incrustado nas próprias coisas,
ensimesmadas. Está no lidar dos homens com elas e no falar, entre si, dessas
coisas e dos modos de se lidar com elas. Está entre os homens e as coisas;
está numa trama de significados que os homens vão tecendo entre si mesmos
e através da qual vão se referindo e lidando com as coisas e com tudo o que
há. Os homens não se dirigem direta e simplesmente às coisas em sua mera
presentidade, mas mediados por essa trama de significados em que as coisas
vão podendo aparecer. Quando as coisas mudam, é porque mudaram nossas
ideias a seu respeito, mudou a serventia que tinham para nós, nosso interesse
por elas, nossos modos de nos referirmos a nós mesmos e uns aos outros
(2006, p.18).
Para cada aluno o alojamento provocava uma afecção diferente, afecções tais
que só se correspondia nas generalidades comuns a todos. A mim diversas experiências
rivalizam-se em significado e importância.
A experiência mais cansativa — exaustiva... —, por exemplo, é a da noite em
que estando de serviço quando primeiro-anista fui empenhado, assim como meus
companheiros de serviço, para esfregar o chão com cera própria para lustrar, utilizando-
se somente um pequeno pano e as mãos.
Ademais, como tratava-se da noite, mais especificamente após o pernoite12
, a luz
era essencial, entretanto, podíamos utilizar tão somente lanternas, logo, com o pano
encerávamos com uma das mãos e, com a outra, iluminávamos o que limpávamos. Tudo
isso sem contar no banheiro e da esponja de aço, azulejo por azulejo. Com efeito, do
alojamento restam, sobretudo, experiências “divertidas”, como os rituais do “relógio
cuco”, do “fantasminha camarada”, do “boliche” e do “basquete”, ritos de passagem13
feitos com os alunos do primeiro ano.
12
O pernoite é o momento onde a atividade da Unidade Militar é encerrada, momento onde “as luzes são
apagadas” e do “silêncio” propriamente dito. A partir de então, após as devidas ordens, todos cônscios de
suas missões, uns partem para seus postos de trabalho (quando escalados para o serviço diário) outros
para o descanso (quando não escalados para o serviço). O pernoite é um ato formal, uma atividade ritual
que possui todo um cerimonial procedimental articulado em torno das orientações que o comandante do
serviço tem para todos os pernoitandos, sejam aqueles de serviço ou não. O pernoite era realizado na
APMCV sempre após as manutenções (leia-se: faxina) e iniciavam (ao arrepio do Regulamento) por volta
das 23h (somente para o efetivo do primeiro ano!) e se estendiam madrugada à dentro sob comando do
aluno mais antigo. O motivo do ultraje ao Regulamento no que tange e alcança, especificamente, ao
efetivo do primeiro ano, tem sentido no contexto de formação que a turma do primeiro ano (CFO I) a essa
altura recebe. Com efeito, são nessas ocasiões (onde as sombras imperam...) onde a relação de maior
proximidade entre alunos ocorre sem intermediários, é o momento que necessariamente, o martelo forja
com mais incisividade a diferenciação das “hierarquias” de turma (a “turma líder”: CFO III) entre as
demais turmas (CFO I e II). É o momento onde alunos mais antigos podem exacerbar o poder de mando,
o rigor exigido nas tarefas e, assediar moralmente, através de aflições físicas punitivas (flexões, corridas,
repetições de tarefas...), os alunos do primeiro ano que se encontram de serviço e/ou de internato. 13
São celebrações que marcam mudanças de status de uma pessoa no seio de seu grupo.
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O “relógio cuco” consistia-se no despertador do alojamento, geralmente era
feito no horário de almoço quando ao alvedrio de algum aluno ou aluna (é importante
ressaltar) do segundo ano ou do terceiro, escalava-se um primeiro-anista, a quem se
queria imputar algum “castigo”, isto é, uma celebração da caserna. Determinava-se que
ele se deitasse em cima de um armário (±1,8m de altura). Em determinado horário
avençado, o aluno-cuco deveria despertar os alunos mais antigos com um sonoro: cuco!
O “fantasminha camarada” era aquele aluno (primeiro-anista), que tinha a
incumbência de assustar os demais alunos de sua turma durante a noite, vestia-se com
um lençol branco ou máscaras, causava surpresa aos inadvertidos, que dormindo no
alojamento — ou em seus postos fazendo a guarda... —, recebiam a visita de figuras do
além14
. No “boliche” se escalava um aluno (primeiro-anista), e o fazia rolar em
cambalhotas até acertar um grupo de alunos (primeiro-anistas também...) que ficavam
na condição de “pinos”. Dependendo da intenção de quem comandava a “bola” exigia-
se diversos movimentos como: “efeito”, “quiques” e etc. No “basquete” o aluno (nem
precisa dizer quem...), era a bola e os demais eram as cestas. Com a mão sobre a cabeça
da “bola”, que ficava saltitando, ao repassá-la (a “bola”) a um jogador (terceiro-anista)
melhor colocado no jogo, a “bola” ia rolando em cambalhotas, até voltar à posição de
cócoras e continuar a saltitar, sob as mãos do condutor, incríveis malabarismos eram
exigidos da “bola” até o arremesso a cesta.
Essas “brincadeiras15
” eram feitas no alojamento. Passei (em todas as condições)
por elas não só no alojamento, mas, também no lamaçal e em outros pontos da
Academia — o que é um pouco mais desagradável —, especialmente na condição de
“vítima”.
14
Na APMCV inúmeras “lendas do além” povoavam o imaginário do alunal (coletivo policial-miltar de
aluno). Uma delas é a do Cabo Curado, policial-militar que supostamente teria sido enterrado nos fundos
da APMCV e que após o pernoite dos alunos costumava fazer rondas e chamar os plantonistas. Outra
lenda corrente em minha época era a do cachorro Boca-preta que durante o pernoite entrava em forma
com os demais alunos e religiosamente antes de dormir puxava um período de serviço na Guarda. Temos
ainda notícias de viaturas que ligavam sozinhas durante a madrugada, chuveiros que ligavam-se sozinhos
— e depois desligavam-se também... —. 15
É preciso sintonizar as experiências na Academia, a algumas exigências metodológicas da formação
militar. Uma delas é a construção de percepções comuns de anti-alteridade, isto é, de percepções de não-
reconhecimento do outro enquanto identidade distinta, mas, como massa moldável ao caráter do grupo.
Quando falamos em brincadeiras falamos em supressão das individualidades em benefício da criação de
um espírito de corpo. É o que Goffman chama de conversão (ver pág. 77).
35
1.2.1 A fenomenologia do sentido
Até que ponto essas experiências encontram sentido na formação de um oficial
de polícia? Obviamente, que a primeira leitura a se fazer é a que beira a contramão de
um processo de educação humanista, de sorte que, tais procedimentos fundados na
“tradição de grupos primários”, se perpetuam, forjando dessa forma, dentro daquele
circulo hermético de alunos, identidades distintas, porém, características ao grupo.
Desde o primeiro-anista, devoto fiel a todas as missões que lhes são incumbidas, até o
terceiro-anista que, manejando o poder (hierárquico-não formal) sobre os demais, tem o
condão de utilizá-lo como queira dentro daquele universo, muitos utilizando-lo, mesmo
na Academia, dando instruções preciosas aos primeiro-anistas (hipótese); outros,
entretanto, gastando tempo em comportamentos como os que apresentamos.
De fato, o alojamento nem deverá ser um templo da ignorância infanto-juvenil,
nem um espaço politicamente correto, onde garotos residem (bem como, com-vivem) e
guardam seus pertences. Porém, como dissemos acima embasados em um “obviamente”
é preciso dizer, sobretudo, que “tudo” que é óbvio... mente, exigindo de nós
investigações mais profundas (Nóvoa), como as que se exigem em terreno
fenomenológico, onde respostas prontas e a pré-análise, são descalabros imperdoáveis.
1.3 A etnografia da rotina parte III
No alojamento, logo após a chegada, alguns — sempre os mesmos nos três
anos... — checando seu material, notavam que esqueciam de algo imprescindível para a
rotina diária, um par de meias brancas, um short, as vezes o próprio tênis...era aí que a
feira livre começava, e não raramente com um grito que cobria o alojamento,
perguntando se algum prudente tinha em excesso para emprestar, a isso seguia-se as
barganhas e, as contingências decorrentes dos empréstimos — hoje sou eu, amanhã é
você e por aí vai... — .
O fardamento era trocado rapidamente, pois, o fardamento com que se
ingressava na Academia era o comumente (regulamentar) chamado de grafite (3ºA, ou
passeio), ao passo que, diante da primeira atividade diária ser a educação física militar,
necessário era trajar o 5ºA, ou o vulgarmente chamado na Academia de uniforme de
educação física.
36
Cena inesquecível se deu quando um determinado companheiro de turma, o Pai-
Tchupa16
, chegou atrasado à Academia. Cruzara o Corpo da Guarda no momento em
que todo o corpo de alunos já fazia o alongamento que antecede a educação física.
Apresentou-se assim, ao Capitão que comandava o alongamento, ainda de uniforme de
passeio. O capitão inconformado com o atraso do relapso então determinou que outro
aluno buscasse uma mangueira e mandou ligar a torneira, assim (trocadilho com o nome
do Capitão...), no exato momento em que o Pai-Tchupa se apresentava a ele, o capitão
determinou que este ficasse na posição de flexão de braço e, com a mangueira já ligada,
introduziu-a por sua gola na parte de trás da farda, fazendo com que a água o molhasse
por completo. Permaneceu assim o Pai-Tchupa, nessa condição vexatória, com a água
jorrando em seu corpo por quase meia-hora...
Às pressas, antes de ir para o dispositivo da primeira formatura do dia —
destinada a educação física —, todos iam se aprontando e, quem terminava já saía do
alojamento para se “amoitar” e aguardar a sirene, não sem antes dar aquela preciosa
gabaritada no tênis preto com bastante cera — uma boa apresentação pessoal era
fundamental —. Em meio a toda aquela turba, as vozes ganhavam volume e cada um já
encampava um assunto que geralmente girava em torno da última cagada-de-pau17
, de
algum companheiro. Qualquer fato observado que destoava do rito exigível era motivo
de exageros, com efeito, a voz da coletividade quando em confinamento é um
imperativo muito forte. Na formação se um aluno erra todos pagam. Aprendemos a
cultivar um espírito de corpo cuja compreensão demandaria uma obra inteira de
explanações, porém, tentaremos levantar algumas questões.
Na ânsia de sair do alojamento rapidamente, os armários iam-se batendo
freneticamente e, o som das vozes, misturado ao aço tilintando, ainda ecoa nos ouvidos
de quem tanto lhes ouviu bater. Na Academia há tempo fixado para tudo, rigorosamente
todas as atividades possuem um horário específico e um determinado tempo para início
e término, pela manhã o horário de apresentação na primeira formatura matinal era as
16 Este aluno, estatisticamente, pode-se dizer; fora o mais punido de toda a minha turma. Não por falhas ou faltas
disciplinares que maculassem sua conduta profissional, porém, por um sentimento profundo de insubserviência que
ele carregava ideologicamente. O motivo do apelido se deve a suposta compleição física do mesmo que era, repito,
supostamente similar ao de um pai-de-santo, claro, ponderamos, sem qualquer correspondência fática, salvo, aquela
proveniente da sanha dos demais alunos em encontrar um epíteto depreciativo aos olhos do apelidado. 17
Podemos considerar na generalidade este termo como um desvio de conduta. Quando se infere este
termo diz-se, na maioria dos casos, que o militar cometeu uma “besteira”, uma “burrada”, uma
“mancada”.
37
5h50, a educação física seguia-se das 6h as 7h20 quando tínhamos aula as 7h40, quando
a primeira aula iniciava-se as 8h20, íamos com a educação física até as 8h00, daí por
diante, seguia o que chamávamos de QTS (quadro de trabalho semanal), que não era
assim muito fidedigno a realidade do dia a dia, dado aos claros e falhas que ocorriam,
mas, que facilitava sobremaneira nossa organização escolar.
Quando conseguíamos sair do alojamento seguíamos um rito emblemático que
diz muito sobre a vida na Academia, os primeiro-anistas saíam do alojamento em
disparada, em “bando” (ou bandão como se chamava) sempre correndo rumo ao
dispositivo de formatura, os segundo-anistas iam a passos largos, e em “grupos”, e os
terceiro-anistas dependendo de quem receberia o corpo de alunos naquela primeira
formatura, nem se davam ao trabalho de irem, permanecendo uns no alojamento
complementando o sono cortado da noite, outros nos computadores que tínhamos a
época, no denominado Diretório Acadêmico Tiradentes (DAT), e os mais sagazes que
se davam ao trabalho de ir ao dispositivo de formatura, iam tão somente para fustigar os
alunos mais modernos com missões a determinar, piadinhas irônicas, esculhambações
etc. Cabe fazer uma ressalva, de que os terceiro-anistas iam sim a primeira formatura da
manhã, caso houvesse um oficial a frente do dispositivo de formatura — e olhe lá, que
dependendo do oficial, também nem iam... —
Ao chegar no dispositivo defronte ao pavilhão das bandeiras estavam a nos
recepcionar, isto é, recepcionar a Academia, o grupamento de serviço que entrava
naquele turno, composto por um aluno do terceiro ano (aluno-de-dia) ou,
excepcionalmente algum oficial da Academia, bem como os demais auxiliares dos
comandantes de pelotão (primeiro, segundo e terceiro ano) que não necessariamente
estariam de serviço naquele dia, cada auxiliar (terceiro-anista) ficava responsável por
um determinado pelotão (turma) durante as formaturas e a ele cabia a fiscalização e
acompanhamento dos alunos da turma que co-comandava juntamente com o tenente18
.
18
É necessário entender a seguinte dinâmica organizacional militar: o tenente é o oficial responsável por
comandar 01 (um) pelotão (30 homens), em nosso caso, uma determinada turma de alunos oficiais. A
composição das três turmas compõe o que se chama de companhia (03 pelotões), que é de
responsabilidade de comando de um capitão, superior hierárquico do tenente. Na APMCV tínhamos três
pelotões (CFO I, II e III) que variavam entre 20 (vinte) e 36 (trinta e seis alunos) à época, assim, para
cada pelotão tínhamos um tenente que os comandava e, que por sua vez, são comandados por um capitão
que comanda a companhia de alunos, em nosso caso, tal companhia recebe a denominação de EsFO
(Escola de Formação de Oficiais), que está diretamente subordinada ao Comando da Academia, de
competência de comando de um Oficial Superior do posto de tenente-coronel.
38
Na formatura o alinhamento19
da tropa formada deve ser exato e, a cobertura da
testa da tropa impecável, isto é, falando evidentemente de uma tropa comum, não a de
alunos oficiais, da qual se exige além do habitual o imperativo da perfeição, acrescido
do garbo e elegância.
Durante a formatura para a educação física as vozes de comando eram
transmitidas enquanto cada aluno buscava seu “ninho”. Entre o primeiro-ano o que se
espera é mais vibração, entusiasmo e atitude, afinal, como se diz por lá “aluno tem que
vibrar, bicho então...” assim o primeiro-ano jamais, sob qualquer alegação poderia
entrar em forma após as duas turmas mais antigas, se isso ocorresse a ordem natural do
cosmo estaria rompida e até a lei da gravidade estaria revogada.
Após o “sentido!” a imobilidade era exigência e qualquer movimento poderia
culminar na perda de um fim de semana — anotado por mexer em forma! Por
movimento do globo ocular, dispersão e curiosidade são atributos femininos, anota
xerife, por favor... —, isso mesmo, pasmem, acontecia frequentemente durante as
disposições em forma, ademais, concluirmos por ilação lógica a necessidade da
imobilidade em forma.
Sem me esforçar muito, posso sentir ainda as mínimas fustigações que fazem de
pequenos instantes, momentos singulares de resistência físico-psicológica, como o suor
salgado nos olhos, da polução lenta da pele misturando tecido e pele durante a sudorese,
do vento sorrateiro, ou, daquela formiga ou inseto maldito correndo sobre a pele
plasmada pela necessidade da imobilidade, tal afetação, é tão marcante que a resistência
à fustigação, é atributo louvável no meio militar, sendo expressos nas canções como:
“Tenho a força de um urso, a coragem de um leão, olhos de lince veneno de
escorpião, em minhas veias corre sangue frio como o gelo, sou indiferente a qualquer
fustigação, não sentimos o cansaço nem do corpo e nem da mente, na academia só tem
combatente e podem preparando as estrelas de metal ou faça logo as honras para o
nosso funeral....”.
19 A noção de alinhamento e cobertura está ligado diretamente ao dispositivo matricial de formatura militar. A
representação desta matriz bem pode se assemelhar a um bloco composto dois a dois (dois na linha de frente
posicionados em duas colunas), três a três, quatro a quatro... sempre na mesma dinâmica matricial. Quando falamos
em alinhamento sugerimos as linhas da matriz, quando falamos em cobertura, falamos nas colunas. Colunas e linhas
devem estar milimetricamente posicionadas de modo a esconder os componentes subseqüentes.
39
Dessa forma, estar em forma20
é abstrair do mundo em prol da cega obediência
ao comandante.
— O “bloquinho de anotações” do Xerife é sacado, daí por diante qualquer
objetivação é puro subjetivismo, e a sorte é a melhor companheira —, uma anotação é o
equivalente grosseiro de uma sentença, a diferença é que dessa se pode recorrer, já
daquela... tal sentença no mundo da Academia consistia em privação de liberdade ou no
nosso linguajar peculiar, “licença cassada21
”(LC), nos momentos de folga.
A leitura do obituário, leia-se, dos “aditamentos à EsfO (Escola de Formação de
Oficiais)” ou o vulgarmente chamado “LCdário22
” era feito às sextas-feiras — a noite,
após o término de todas as aulas e, sobretudo (impreterivelmente) depois de um...
“rala23
” daqueles! e, sempre após as 21h — essa translação para o papel, da prévia para
liberação do fim de semana, é digno de uma exposição sagaz dado a representatividade
biográfica, na oportunidade, contudo, fiquemos com a primeira revista do dia, a
realizada na formatura para a educação física.
O auxiliar do comandante de pelotão (terceiro-anista) caminha tendo à sombra o
Xerife24
(representante da turma na semana) que acompanha a revista realizada um a
um, da testa a retaguarda as turmas do segundo e primeiro ano são medidas em diversas
20 A condição do militar em forma revela caracteres preciosos para uma boa descrição etnográfica. Pois, através da
imobilidade da formação, da retidão ergonômica dos corpos, dos olhares ao horizonte e todo um conjunto
sincronizado de atitudes “comportamentais”, pode-se, sobretudo, no que tange a “moral militar” e o nível
de “adestramento” verificar se uma tropa em forma é mais militarizada que outra. O que representam
esses signos? São setas que condicionam interpretações que reforçam um objetivo preconizado. Skinner e
sua engenharia comportamental bem explicam esse fenômeno, de sorte que, “estar em forma” é, dentro
deste escopo, reforçar positivamente ideais estatuídos que alcançando a matéria da conduta acabam por
materializá-la sob a forma de comportamentos. 21
O que é uma licença cassada? Nada mais é do que uma sanção não formalizada em “ficha/histórico
profissional” (em que pese, subsidiar formalmente uma sanção formal servindo de fonte indireta!
Poderíamos dizer que, “o” “LC” é uma prova-testamento da vida da caserna do aluno oficial). Tem o
condão de servir como referência para controle da conduta do sancionado, pois, o rol que a culmina tem
correlatos com minúcias do cotidiano militar como: debastar-se, portar-se com garbo, não mexer-se
quando em forma, manter o coturno lustrado, manter a farda bem passada, cumprir os horários do quadro
de trabalho semanal, ser urbano. Na APMCV (como em várias outras Academias...) o livro de LC’s era
conhecido como “caveirinha”. 22
Ou, “caveirinha”. 23
A figura do “rala” ou “ralo” cabe uma tese doutoral per se. Contudo, tentaremos dar uma luz a esse
grande buraco negro — certamente sendo tragados por ele...—. O “rala(o)” é um momento/circunstância
onde os alunos passam por uma prova de vivacidade física, através de exercícios técnicos oriundos da
técnica militar, aliados a condições de trote. O rala é uma prévia a uma conquista ou, uma reprimenda
direta por uma falha... sempre, na APMCV, antecedia a férias e liberações (como as de sexta-feira...). 24
O Xerife era o “chefe de turma” da semana. Cabia a ele passar todas as ordens advindas da EsFO, dos
alunos mais antigos (de outras turmas), observar as alterações dos companheiros durante as revistas
realizadas por alunos mais antigos. Cabia ainda ao Xerife apresentar a turma em todas as ocasiões de
tropa em forma. O Xerifado é uma função, passava-se na APMCV tal função, semana a semana.
40
alterações, dentre elas: “barba por fazer”, “vinco duplo na calça ou no short”, “calça,
short, camiseta ou gandola (parte de cima da farda de instrução ou 4ºA) amassada ou
suja”, “gorro sujo”, “coturno ou tênis mal engraxado”, “falta de vibração na tomada de
posição para a revista”, “meias fora do padrão, “amarração de coturno fora do padrão”,
“ausência de material para anotação”, “ausência do Código de Honra do Cadete”, “unha
suja”, “pé-do-cabelo mal feito” e, mais algumas outras alterações ao alvedrio do
fiscalizador.
A fiscalização durante a revista, embora jungida a determinados critérios fixos e
determináveis, tem em critérios discricionários do fiscalizador, seu peso mais forte e
evidente, de maneira que, o conjunto das atitudes, gestos e posturas adquiridas e
observadas do aluno fiscalizado, diz mais do que a própria revista, na medida em que
tais fatos observados, no conjunto global da vida na Academia, pode, sobretudo, nas
revistas, aumentar ou diminuir o crivo do fiscalizador.
Com efeito, na Academia a vigilância25
é ininterrupta e, a revista apenas um
termômetro do status quo adquirido pelo aluno oficial frente aos alunos mais antigos, de
sorte que, o aluno padrão sempre adquire o respeito de seus pares e superiores,
traduzido quase sempre, na pouca quantidade de punições, o que não significa que este
aluno tenha mais liberdade ou, contabilize mais fins de semana ou pernoites com seus
familiares em não sendo anotado e, consequentemente punido, do contrário, recebe mais
missões, angaria mais funções e quase se atola de afazeres.
Todos, um a um, são medidos detalhadamente, e o momento da revista pessoal
exerce o presságio de como será o dia, de maneira que, ainda posso perscrutar o rodeio
silencioso de meu fiscalizador a minha volta e, o misto de sensações que isso
provocava, quase sempre falseado numa tranqüilidade aparente e, numa circunspeção
inabalável, aquela de quem nada pode temer diante de seu algoz.
Havia uma frase na Academia muito corrente que dizia “Está bom porque está
ruim, estaria melhor se fosse pior”, ou seja, “desgraça” pouca é lucro, muita “desgraça”
forja a glória. O “Pai-Tchupa”, meu grande companheiro, indiscutivelmente foi o aluno
mais punido da turma, quase não retornava para sua casa, estava sempre preso e, quando
25
Quero entender vigilância aqui na “leitura foucaultiana [que] objetiva efetuar uma investigação mais
pontual e analítica onde a relação entre poder político e sociedade desenrola-se sob a forma de técnicas de
vigilância e controle voltadas para os indivíduos [vigilância que se vê na APMCV]. Técnicas estas que
têm como objetivo conduzi-los de maneira contínua e permanente (o que não significa total desvinculação
dos métodos de governo político estatal)” (santos, 2009, p.03).
41
digo sempre é sempre inexoravelmente, de sorte que, sua cama era cativa no
alojamento.
Naquele ambiente hostil, dado a fiscalização excessiva, ele campeava ora na
insubordinação passiva, ora na contradição ideológica, ora na pura má vontade com o
“sistema26
”. Literalmente “cagava e andava” ou “cagava mole” (como se diz numa
Academia Militar) para as revistas pessoais e as missões27
, ante as quais não tinha
possibilidade cumpri-las logicamente — dizemos logicamente porque as missões
incumbidas a alunos sempre pairam num ideal que beira o limite do possível.
Se alguém queria “jogar basquete” com ele, se recusava passivamente, logo, era
punido, se o mandavam pela terceira vez limpar o mesmo ambiente ele protelava e era
punido, se o mandavam capinar de madrugada ele dava um jeito de se imiscuir da
missão ou sabotá-la e, dessa forma, era punido novamente... ficou famoso na Academia
por sua peculiar resposta aos superiores (somente alunos superiores) quando afrontando
por pedidos de explicações, nessas ocasiões dizia: — Senhor, não tem explicação.
Indubitavelmente, sua carapaça era mais resistente que da dos demais, de forma que,
soube refletir e agir mesmo diante de situações-limite, daquelas em que o
esmorecimento físico-mental se apodera de todos os cantos do ser, desinstalando toda a
autonomia e firmeza de quem tenta se libertar.
Após a primeira revista do dia, seguia necessariamente o “alongamento” ou
“preparatória” para a educação física militar; a conversa era peremptoriamente proibida,
exceto a dos terceiro-anistas, salvo, se houvesse oficial à frente. A escolha do que se
faria durante a educação física não seguia um critério, digamos, objetivo, ademais
ficava quase sempre ao sabor de quem comandava o corpo de alunos naquela ocasião,
ocorrendo, assim que, dependendo do perfil do comandante tínhamos essa ou aquela
atividade. Com efeito, poderíamos saber o que teríamos logo no início da manhã apenas
por saber quem estaria à frente das atividades. O comum, em que pese a subjetividade
26
O “sistema militar”, em especial, os das Academias, são extremamente “cerceadores de potência”, faz-
se o máximo possível para que o aluno seja milimetricamente fiscalizado, pois, são tantas as regras a
serem cumpridas, tantos códigos de conduta, que é praticamente impossível não ser punido ou censurado.
O sistema de controle (Foucault) nas Academias mina a individualidade abruptamente e de forma
violenta, fazendo com que o aluno torne-se contingenciado pelo ethos da correção, da extrema disciplina,
da moral ideal, como que carregando sobre si todos os valores da Instituição. 27
Uma missão é o equivalente a uma tarefa exigida. Ao receber uma tarefa a ser cumprida o militar a
nomeia de missão. Há diversas modalidades de missões. Na APMCV as mais trabalhosas (ou, sem
nexo...) eram chamadas de missões serra-fox (apanhar mangas para os alunos mais antigos, por ex.).
42
da escolha, eram as intermináveis corridas sempre seguidas por uma atividade esportiva,
leia-se: futebol e/ou vôlei.
É necessário a essa altura superar alguns mitos atinentes ao “condicionamento
físico do aluno oficial”, que gravitam em três ordens genéricas: 1) o aluno não é um
atleta, sequer em potencial; 2) o aluno não é um desportista e 3) alunos da APMCV não
possuem biótipo atlético. Esses três mitos — esqueça as definições de mito em Mircea
Eleade, Cassirer... falamos em mito de forma jocosa, quase vulgar, apenas enquanto
esforço da mente humana em estereotipar determinado ser que desconhece — .
Quanto ao primeiro ponto é oportuno informar que a atividade física na PMMT
não é pedra de toque, basta notar a ausência de atividades regulares e acompanhadas
com os efetivos nos batalhões afora, muitos, quiçá com alguma atividade regular de
prática esportiva no cotidiano, na APMCV a situação melhora um pouco, a atividade
física é eixo decisivo28
, de sorte que, o que se exige do aluno requer um mínimo de
condicionamento físico, entretanto, na perspectiva quase exclusiva da resistência a
fadiga.
De fato, um aluno oficial é um “ser humano”, cuja resistência a fadiga
impressiona mesmo um atleta, dado que este situa-se em condições de alimentação e
treinamento adequado, ao passo em que aquele adquire esse perfil, resultado de sua
rotina extenuante e agressiva.
Ademais, podemos dizer que não é possível um comparativo do atleta, digno
desse nome, e o aluno oficial que é considerado no corpo de alunos como atleta e não
um atleta29
, porque, justamente não é preparado para tal e nem se titulariza para essa
potencialidade visto que aproxima-se mais de um perfil decadencial de rendimento, que
um de crescimento contínuo e gradativo, como o observado em atletas. É mais um
corpo vergado a lida que um corpo preparado para o rendimento.
Acerca do segundo mito, convém dizer que não temos, especialmente entre meus
contemporâneos, um histórico notável de atletas e nem existe na Academia uma
28 Em que pese a educação física militar curricular fosse realizada com um quadro fixo de carga horária, na APMCV
atravessávamos o ano inteiro de atividades com educação física em quase todos os dias impreterivelmente. 29
A condição de aluno atleta nas academias militares reflete uma posição privilegiada em relação aos demais. O atleta é aquele
aluno que representa a sua academia entre as outras academias, é ele o responsável, em muitos casos, de demonstrar com seus
resultados e perfomances o respeito dado ao condicionamento físico pela academia que representa bem como com sua atitude
guerreira — de se jamais entregar... — mostrar a todos a força moral de todo um corpo de alunos. Na APMCV os atletas não tinham nenhuma vantagem formal em relação aos demais, possuíam, contudo, o dever de lutar e de se “entregar” com todo empenho na
busca pela vitória, por conta disso, na maioria dos casos eram atletas os alunos mais aguerridos, “mais bravos” pode-se dizer, visto
que a técnica e o apoio logístico aos treinos eram remotos e negligentes.
43
tradição dessa natureza. Numa turma de vinte alunos, quatro ou cinco alcançavam “dez”
no TAF (teste de aptidão física) que dentro daquela margem de treinamento e suporte
que nos era ofertado, tratava-se até de um bom índice, contudo, dado a aspectos
culturais e de tradição da instituição que não cultivava esse mister, a Academia não
recebia atletas ou desportistas profissionais, no máximo acomodava em seus quadros
alguns semi-profissionais do vôlei, do basquete e do futebol, sempre em minoria frente
aos demais, que quase exclusivamente eram amantes do futebol de várzea, daquela
“bolinha” de fim de tarde, jogado na areia, na chuva ou no concreto, por pura satisfação
pessoal.
Lembro-me de um companheiro de turma, o “Pregoraro”, exímio jogador de
futebol — de várzea é claro... —, habilidoso, refinado nos passes e nas finalizações,
querido pelos demais e o primeiro a ser escolhido para as partidas, lacônico, porém, foi
sua saída da Academia ainda no segundo ano quando fora flagrado “colando” — fato
negado pelo Pregoraro — antes do procedimento para a exclusão, pedira baixa
(desligamento). Três anos depois de sua saída ainda não tinha retornado a
universidade... Na esteira oposta tínhamos o “congão” um legitimo “perna-de-pau”, nas
ocasiões em que o futebol era obrigatório suas exibições beiravam o tragicômico.
Quanto ao derradeiro terceiro aspecto levantado falaremos empiricamente. Na
condição de terceiro-anista tive como bicho (primeiro-anista) um aluno cujo biótipo era
de um obeso, — sim, obeso — era gordo, como diria um determinado capitão da
Academia, “gorrrrdão”. Entretanto, como também se dizia por lá, esse aluno-obeso
“bancava” (superava) seus TAF’s e tarefas físicas — eu particularmente nunca estive
presente em nenhuma delas, para asseverar, mas... —.
Continuando o quadro cronológico de uma rotina típica, quando a corrida era a
voga, —.... Que se quebrem os fracos —, era sempre de oito a dez quilômetros,
inexoravelmente. Biograficamente participei de “corridões” i-nes-que-cí-veis! Onde se
corria por duas horas e meia, ininterruptamente — o que para nossos padrões era
extremamente considerável —, entretanto, o comum eram as corridas de cinqüenta
minutos que coincidiam quase sempre com os oito quilômetros; com o pulmão à carga
máxima e o diafragma impoluto, as canções de guerra ou, nos dizeres de um antigo
44
comandante, “canções de morte, sangue e destruição30
” eram entoadas à saciedade e
com entusiasmo viril, de maneira que, o tempo passava e o chão ficava para trás sem se
notar.
Quando eu morrer quero ir de FAL [fuzil] e de BERETA [pistola]
Chegar no inferno dando tiro no capeta....
E o diabo vai gritar muito assustado:
— Meu Deus do céu, tira daqui esse soldado!
Quando eu morrer quero ir de camuflado
De barba feita e coturno engraxado...
Quando eu morrer eu quero espaço no caixão
Pra ir pagando canguru e flexão
Quando eu morrer, eu tenho um último desejo
Ser enterrado numa pista de rastejo
E o coveiro tem que ser um bom guerreiro
Abrir a cova com granada de morteiro
Quem ficava pelo caminho era “resgatado” ou, dependendo do animus quo do
comandante, já empenhava esforço numa escala de serviço extra como forma de
punição. “Congão” era o “resgatador” oficial da turma, de modo que, não foi nem uma
ou duas vezes que o vi arrastando pelo braço, ou mesmo carregando nas costas, outro
aluno que ficava pelo caminho esgarçado pelo cansaço.
Na chegada a tenacidade se revigorava com o alento da água gelada ou quando
muito com o “bate bola” coletivo, se havia tempo o futebol era regra. Quando a
educação física terminava o tempo para se aprontar para a parada diária era de cinco a
dez minutos. Sem qualquer possibilidade de tolerância.
Já a postos na parada diária defronte aos pavilhões novamente estávamos
expostos à revista, a segunda do dia, — formalmente falando —. Todos checando os
petrechos que iriam ser observados atentamente pelos fiscalizadores (blocos de
anotação, identidade militar, caneta, código de honra...).
As ordens para o dia eram lidas e todas as orientações eram-nos transmitidas
repetidas vezes em alto e bom som. Feita a segunda revista, entoávamos os hinos
regulamentares e nos dirigíamos em coluna (fila indiana) até a sala de instrução.
30
Eis uma dessas canções: “tem a faca de combate e a pedra de amolar/ mantenha a faca afiada/ para o
inimigo degolar/ eu já fui lá no inferno/ e cheguei a conclusão/ no inferno não tem fogo/ lá tem muita
água e enche meu pulmão/ a fé remove montanhas/ mas não flutua afogados... Entoávamos dezenas delas
durante as corridas — me arrepio ao lembrá-las...—.
45
Cabe fazer uma pausa pitoresca31
. Em uma determinada formatura militar, no
início de nossa formação na Academia, reunido todo o corpo de alunos o comandante da
EsfO (Escola de Formação de Oficiais, que compreendia o conjunto das três turmas ou
pelotões que compunham a companhia escola) determinou que um aluno-oficial
(primeiro-anista), companheiro de turma, fosse até a frente e entoasse sozinho o Hino
Nacional, o dito aluno, nosso querido “Paca”, lentamente saiu de seu pelotão e
caminhou até a frente do dispositivo recebendo então o microfone das mãos do
comandante, pegou-o, deu uma folga no cabo, empunhou-o e iniciou .... “ouviram pátria
amada esperança”, titubeou, silenciou e pigarreou, em seguida olhou para o comandante
atônito que o mandava prosseguir, novamente levou o microfone à boca e... “ouviram
do Ipiranga pátria amada Brasil!”, emudeceu novamente.
O Paca lentamente afastou o microfone da boca e, com uma das mãos
caprichosamente deu três tapinhas na garganta e com a outra fez sinal de negativo com
o polegar invertido para o comandante. Bastou para a Academia quase explodir de
gargalhadas, silenciadas, contudo, pelo pudor da “data/hora/local”, de maneira que, o
Paca não sabendo entoar o Hino Nacional falseou marotamente uma rouquidão que o
impedia de cantar o Hino. Era hilário ver o comandante desesperar-se ao arrancar o
microfone das mãos do Paca, determinando que o aluno apresentasse a ele um caderno
de duzentas folhas com a transcrição à punho do Hino Nacional do início ao fim do
caderno bem como permanecesse preso na Academia até que se esquecesse dele.
Era comum durante as formaturas ou paradas diárias que o comandante
circulasse pela tropa observando, durante os hinos, quem cantava e quem falseava, de
sorte que, não foram raras as vezes que um ou outro menos prudente com o decorar dos
hinos fosse plotado em meio aos demais, quando isso acontecia, o vexame era
inevitável, além é claro da punição. Em algumas situações um hino era-nos transmitido
31
Diversas “pausas pitorescas” rivalizam-se, porém, cabe aqui relatar ao menos uma a mais daquela que
se lê acima aludindo paradas matinais. Numa das paradas matinais o Sub-Comandante (Sub-Cmt) veio até
a tropa de alunos e começou a esbravejar pela presença de um alinhamento nas tropas que “não”
observava — apenas uma desculpa para uma boa chamada de atenção — nessas idas do Sub-Cmt até a
tropa pela manhã ele escolhia um aluno para falar sobre a importância da data, tais ocasiões eram
“hilárias”, pois, o aluno quase sempre “colava as placas” ao se intimidar pela figura do Sub-Cmt da
APMCV, numa delas o aluno adquiriu uma gagueira que só foi curada depois de muitas sessões no
fonoaudiólogo. Frases como: “Seu monstro, você está igual elefante na chapa quente!”, “sua mãe trepada
lá na vara e você aqui cagando o pau! Cadê o respeito” sempre eram utilizadas para “acelerar a
desinibição” do aluno.... — cabe ressaltar que, a “mãe” no chamamento era a bandeira nacional que
ficava presa no topo do mastro... daí a tosca analogia.
46
pela manhã e ao final do dia em revista só conseguia-se a liberação após criteriosa
tomada do hino, individualmente.
Superado o momento lúdico, estamos agora na sala de instrução onde
sentávamos religiosamente dentro da antiguidade, ou seja, obedecendo a classificação32
dos alunos, as maiores notas (mais antigos) a frente e assim sucessivamente até o dito
“zero-último” ou “zero-bunda”. As mesas possuíam os nomes dos alunos devidamente
etiquetados conforme o modelo-padrão da época, no canto direito uma bandeira da
Academia em miniatura e no esquerdo uma placa de aço com o nome do aluno e a
turma pertencente. Na parte inferior da mesa havia a disposição padrão dos materiais
previamente elaborada, sendo passível de sanção sua não observância, cadernos a
esquerda, livros e manuais a direita e estojo e papéis avulsos ao centro. Tudo muito
discreto e organizado. O alinhamento das mesas era preciso. Quando o instrutor entrava
na sala de aula, independente de quem fosse, militar ou civil, era comandado o
“atenção” pelo primeiro aluno que o visse adentrar, instante em que todos ficavam em
pé e o Xerife da semana ia até a frente de onde comandava a apresentação da turma para
32
Imperioso falarmos na categoria “classificação” no contexto referenciado no texto. Os alunos oficiais
em seu sistema escolar são escalonados intelectualmente a partir do critério de classificação. O que isso
representa? Isso nos informa que as notas ou graus obtidos por ele durante a formação são catalogados e
servem de suporte ao cômputo de sua classificação final, mas, há algo muito além disso, pois, do que se
disse pode-se sugerir rapidamente que a “classificação” dos alunos oficiais é apenas a média aritmética de
suas notas nas provas e avaliações das disciplinas curriculares, entretanto, repitamos, a categoria
classificação indica algo muito além dessa sumária descrição quantizada. Ora, a classificação representa
ao aluno o seu próprio lugar existencial dentro da turma e da Instituição como um todo. A classificação o
medeia num campo semântico e lhe caracteriza politicamente. A classificação é a diretriz que regulará
toda a carreira do oficial, pois, no sistema militar é a classificação na turma que indica a disposição da
antiguidade entre os oficiais de mesma turma, isto é, por ex. numa turma de 20 (vinte) alunos o dito “01”
(zero-um), é aquele que receberá as deferências militares nas circunstâncias em que todos (de sua turma)
estiverem reunidos num determinado ambiente, ainda, é aquele que no aspecto da meritocracia será —
filosoficamente falando...— contingentemente o melhor avaliado as promoções e, no critério antiguidade,
será necessariamente o primeiro a ser promovido perante os seus colegas de turma. Levando-se em
consideração que há apenas duas formas de ascensão na carreira (por antiguidade e merecimento) os
melhores classificados serão aqueles que galgarão os postos mais elevados (mais rapidamente) e terão por
benefício, a deferência hierárquica concedida pela ascensão, mesmo que frente a seus próprios colegas de
turma. Podemos dizer que a classificação é pedra de toque no sistema escolar militar, de sorte que, é ela a
definidora de uma série de circunstâncias profissionais na vida do oficial, não obstante a isso, representa
no campo ideológico para cada um o perfil ideal-estilizado, que embute no profissional a exata noção
depreendida pela observação de seu lugar (sua classificação) na turma. Diversas fundamentações de senso
comum da caserna são cristalizadas à partir da classificação, pois, a “simples” medida que informa o
mérito intelectual de seu possuidor, revela, sobretudo, quem ele é — em tese! — como ser-moral-militar.
Por se tratar de uma categoria basilar de interpretação da condição existencial militar, a classificação
quando preterida, ultrajada ou deixada de lado, (para juízos de valor próprios ao próprio sistema militar)
gera uma quebra, um rompimento de difícil apreensão por parte especialmente dos oficiais classificados.
A alteração do quadro de antiguidade de uma turma deflagra a suspeita do sistema, deflagra um contra-
senso-bom-senso! Que diz que o sistema de classificação, que tem o mote de gerir um universo
fenomênico humano, não faz senão, apenas... marcar gados com o ferro da idiossincrasia.
47
o instrutor, tudo formalizado de acordo com o Regulamento de Continências adotado
pela Instituição. Muitos instrutores civis constrangiam-se nesse momento, alguns
desautorizavam os Xerifes a assim proceder, entretanto, boa parte deles até queixavam-
se do tempo de espera para a apresentação, da falta de imobilidade de um ou outro aluno
durante a apresentação procedendo dessa forma como se militares fossem.
Evidente que as aulas com professores civis eram as melhores aulas. Tinha-se
uma maior liberdade de ser, sentir e pensar, ademais que, em diversas situações foram
os melhores momentos em que nos curávamos da fadiga intensa debruçados sobre as
mesas babando em sono pesado, — é claro, sempre após um obsequioso pedido ao
instrutor para que fossem fechadas as persianas de maneira bastante sutil... — dado que,
um oficial sempre circulava pelos corredores olhando para dentro da sala de aula à
espreita de quem tentasse dormir. Certa vez, um aluno fora flagrado dormindo pelo
oficial...
O oficial bateu a porta da sala de aula e cavalheiramente pediu ao professor que
liberasse o aluno identificado, o professor sem saber que estava entregando a ovelha ao
lobo, gentilmente liberou-o, segundos após o professor já não se concentrava em
ministrar a aula ao ver o aluno que liberara, correndo incessantemente em voltas pelo
pavilhão segurando um fuzil. Após “algumas” voltas o aluno regressou a sala de
instrução, um pouco suado (eufemismo), porém, bem mais desperto.
Ressalvados esses casos singulares, na maioria das vezes os alunos se safavam,
desconfio até que alguns deles não estiveram em boa parte do curso de formação de
oficiais quando em sala de aula. De tão comum (não freqüente!) a prática, que na
instrução com militares quando o sono atacava, conscientemente, o aluno se obrigava a
ficar de pé no fundo da sala de aula, alguns quase tombaram em determinadas situações.
O sono em sala de aula não era regra. Nunca se apresentou como regra nas aulas.
O sono guerreava com o corpo e nas vezes em que vencia, de fato existia, contudo,
jamais era chamado a baixar espontaneamente, de maneira que, a regra era a extrema
atenção durante as aulas dado que se tratava de uma satisfação explicita dos instrutores
ministrar aulas na Academia, onde o respeito, a reverência, a educação polida e a
presteza na tarefa de aprender eram fluentes. Se um texto deveria ser lido e fichado,
assim o era. Se uma resenha, relatório ou qualquer trabalho similar deveria ser feito ele
48
o era realizado com absoluta dedicação. Vê-se a tradução disto nas médias33
dos alunos
oficiais que sempre circulavam de oitenta a noventa por cento de aproveitamento — o
que insufla uma análise mais acurada e profunda desse fenômeno de eficiência —.
As aulas seguiam-se e o tempo se exauria lentamente. Freqüentemente éramos
obrigados a permanecer em sala de aula por longas horas sem a presença de instrutores,
tão somente com tarefas a cumprir, nas condições objetivas que possuíamos sempre
eram cumpridas num curto espaço de tempo restando o excedente para o bate papo e o
xadrez. Nessas ocasiões surgia a figura do “pudim”, um observador e humorista nato,
pois, conseguia capturar nos mínimos detalhes os trejeitos de quem quer que fosse,
transformando em imitação fidedigna qualquer relance despercebido na conduta das
pessoas. Era o nosso imitador. Imitava os oficiais, os instrutores, os companheiros de
turma, todos invariavelmente. Por seu crivo nada escapava e um momento único
perpetuava-se.
Na hora do almoço, após o término da última aula do período matutino,
novamente todos entram em forma defronte aos pavilhões. E turma a turma deslocam-se
em marcha até a entrada do rancho (refeitório). Por questões afetas ao militarismo,
adentram, entre os alunos, para o almoço, inicialmente o terceiro ano e assim
sucessivamente.
Na APMCV, como o rancho não comportava as três turmas concomitantemente
na linha de servir, era necessário esperar que uma turma se servisse e “efetuasse o
código” (se alimentasse) para só depois a subseqüente adentrar; o que causava no
primeiro ano uma terrível constatação diária: dado que, o término do período de almoço
era fixado com a entrada no dispositivo de formatura para as aulas do período
vespertino, certas ocasiões, esse horário coincidia praticamente com o término do
almoço do último aluno do primeiro ano que adentrava ao rancho, o que o impedia de
realizar outra atividade nesse período senão almoçar. Salienta-se ainda que, enquanto
uma turma mais precedente se alimentava as demais marchavam pelo pátio no sol do
meio dia entoando as boas e velhas canções militares.
As aulas da tarde avançavam e o fim do dia era anunciado pela janela com um
entardecer esplendido, pareciam tocar-se no horizonte, firmamento e planície
33
Lembre-se que a média remete a classificação que desencadeia todo o processo descrito na nota
anterior. Vale dizer ainda que, apostilas, anotações de aula e cadernos “desapareciam” durante a época
das provas tamanha a disputa pelas melhores classificações.
49
confundido-se no limite da visão, analogamente, como na ilusão de retas paralelas
cruzando-se no universo curvo de Einstein.
Novamente a sirene contrasta a calmaria e se apresenta, os alunos entram no
dispositivo34
... Os detidos, é claro, permanecem na Academia. O grupo de alunos
oficiais escalado para o serviço diário se aparta dos demais e assume suas funções.
Terceiro ano: Oficial de dia ou Aluno de dia e seu Adjunto; segundo ano: Comandante
da Guarda e seus auxiliares, de dois a três e, o primeiro ano: os plantonistas, de seis a
nove integrantes. Na regra geral o terceiro ano, à exceção do serviço e dos punidos, é
liberado primeiro e assim por diante. No caso estudado, sob cláusula pétrea, o primeiro
ano jamais poderia ser liberado caso o terceiro ano ainda se encontrasse na Academia,
em certas situações o terceiro ano assistia aulas no período noturno, o que rendia aos
alunos do segundo e primeiro ano sempre missões extras para forjar pretextos na
finalidade de impedir que fossem liberados antes dos semideuses. Geralmente após as
20h os alunos do terceiro e segundo ano, ressalvados os citados como exceção, já
estavam em deslocamento para suas casas (ou não...) e os do primeiro ano permaneciam
cumprindo seu internato forçado. Por este fato, comumente o número de alunos do
primeiro ano que assumiam o serviço era bem maior, pois, impreterivelmente o serviço
do primeiro ano quase sempre dobrava (por “n” motivos) cumulando assim novos
componentes dia após dia.
O serviço se reunia no pátio dentro do dispositivo de formatura e as missões
eram distribuídas pelo Oficial de dia. Ao segundo ano já se dividia a escala ou como
chamávamos o “quarto de hora” para cada segundo-anista, onde dois alunos armados
de fuzil responsabilizavam-se pela guarda da Academia, revezando-se a cada duas
horas. O comandante da guarda, que era um segundo-anista, iniciava a assunção da
Guarda, momento em que todas as alterações eram passadas em revista e todo o
material da carga da guarda era inspecionado de acordo com o funesto livro do
comandante da guarda, todos os armamentos eram conferidos, as munições e demais 34
Quando falo em dispositivo me movimento em dois cenários mais amplos: 1) teoricamente em
Foucault, como um mecanismo de poder que funciona como estratégia de poder e que pode ser percebida,
por exemplo, no panopticon (sistema de controle-vigilância). Ainda, pode-se pensar que: “toda a forma é
um composto de relacionamentos de forças” (Deleuze, 1987, p. 167) e 2) No pensamento de Poulantzas
(em O Estado, o poder e o socialismo) como manifestação na via prática de uma “violência física
monopolizada pelo Estado [que] sustenta permanentemente as técnicas do poder e os mecanismos do
consentimento, [que] está inscrita na trama dos dispositivos disciplinares e ideológicos, e molda a
materialidade do corpo social sobre o qual age o domínio, mesmo quando essa violência não se exerce
diretamente” (2000, p.79).
50
materiais criteriosamente observados, — a assunção da guarda poderia demorar duas
horas dependendo do rigor de quem a assumia —. O primeiro ano recebia as suas
missões, em suma, proceder a manutenção do quartel, leia-se, faxina.
A faxina iniciava-se geralmente às 21h e entrava noite adentro chegando a
terminar pela madrugada, quando todos novamente se reuniam agora na guarda para o
pernoite,momento em que se faziam as deliberações finais do serviço e se liberava para
o descanso, tecnicamente o pernoite situava-se na faixa da 22h conforme o regulamento,
entretanto, esse horário era extrapolado para a 1h ou 2h da madrugada. Após o pernoite
à exaustão cada primeiro-anista, após a divisão de seu quarto de hora e armado de
cassetete assumia a guarda de seus postos, em pontos estratégicos: nos fundos do
rancho, nos pavilhões das salas de aula, nos pavilhões do alojamento e no campo de
futebol. Em ritmo de revezamento os alunos cumpriam mais essa etapa até as 06h da
manhã, onde tudo começava novamente.
1.3.1 Do fenômeno vivido
Descrever não é uma tarefa simples, — em que pese na memória se alongue os
braços da realidade —, não é possível traduzir sentimentos e sensações nas suas exatas
apreensões. Nem se pode comover o espírito com o mesmo impacto do real, apenas
relembrando-se; tampouco, transladar toda uma atmosfera existencial do ser para um
conjunto bem concatenado de palavras articuladas num texto fino.
Pode-se, sobretudo, sendo mais fiel ao ser em si do que competente
metodologicamente, ver por trás da penumbra e, por entre a fumaça turva da
imperfeição que se sabe, mas, que fica guardado na mente sem correspondente na fala, o
resultado do esforço imenso, daqueles que se faz pela manhã tentando se lembrar de um
sonho recortado, buscando sentir novamente o sentido e vislumbrar o vislumbrado,
sempre juntando pedaços esgarçados pelo fenômeno da experiência única, da impressão
real.
Resgatar sensações é desvelar a realidade noutro plano, vendo de cima, domando
perenemente a brutal experiência de se viver em um mundo que não admite reflexão.
Onde pessoas escamoteadas no turbilhão de interações desmedidas vivem uma
totalidade de trocas mutuas e impensadas. O real acaba não sendo imanente, nem
poderia, pois, não o admitimos como tal, jungidos a nós mesmos, filiado a quem somos.
51
Criamos mecanismos de automatização da vida. A rotina, o tempo e toda uma
gama de hábitos, que nos são compelidos e sem se notar o real-intrínseco de cada
instante desprende-se da reflexão que envolve todo ato de pensamento, criando assim,
uma neblina densa, dando-nos falsas noções sobre o tempo, a rotina, o cotidiano e na
esfera do sentir chegamos a desconhecer afeto, carinho, fraternidade e amor nas relações
humanas.
Logo, automatizados não dividimos sentimentos, ajustando-os as esferas do
sentir nem os promovemos, afinal, sequer o conhecemos aprisionado na neblina densa
que os separa de nós. Não falamos inglês por não possuir o software adequado no
cérebro, não o falamos porque não o conhecemos, não o re-conhecemos nas relações
humanas e, no cotidiano não o ouvimos, tampouco, possui significado, ademais, jamais
poderá ser falado. Assim é com o amor, a tolerância, a fraternidade...
Newton precisou desvelar o real dissipando essa neblina densa que as
automatizações imbricam nas coisas, só assim pôde “enxergar” a Gravidade. A
maquinaria matemática (metodológica) que o fez provar o que seu “nirvana”
demonstrara só veio depois, como um enquadramento rigoroso daquilo que estava posto
na natureza. Einstein enxergou a dimensão do tempo, Voltaire a dimensão política nas
relações de poder, Cesar Lattes o Meson-pí dentro do átomo, Husserl a essência da coisa
em si na fenomenologia e, assim temos muitos exemplos em diante.
Não precisamos, em contrapartida, necessariamente, captar o real pela
descoberta surpreendente de algo nunca visto. Apreendê-lo em seus nuances tidos
banais, corriqueiros e insuspeitos, é um exercício de re-descoberta tão surpreendente
quanto. Visitar com novo olhar uma velha maneira de se fazer algo ou simplesmente
expressar-se na exata denotação do ser, seja por meio de um sentimento pulverizado
pela modernidade, manifestado, quem sabe, num simples gesto de gentileza.
O real nos escapa e, ficamos obrigados a coletá-lo com métodos que, vistos
exclusivamente de um ponto, são somente caricaturas de um mundo inventado,
devidamente convencionado pela ciência. Quem escapará dessa não imanência do
mundo em nós mesmos? Talvez a poesia que não encontra sentido na razão do homem.
Precisar-me como primeiro-anista na Academia é arrancar da tessitura interna
dos sentidos a perfeita sinonímia com as palavras expressadas, possibilitando uma via
52
de compreensão que não se aloca na realidade vivida, e sim na marca impressa na alma
chamada a tomar o assento do escritor para a tarefa da escrita.
Um segundo plano nos incomoda também, este por sua vez, não por estar
situado no eixo que se figura no encontro da consciência com o mundo, mas, do
encontro da consciência com outras consciências. Nesse ato de encontro — que mais se
aparece como enfrentamento — é que situa-se o âmbito político da escrita. Não
podemos falar em neutralidade política. (O animal político de Aristóteles e a utopia da
neutralidade são reduções úteis para essa circunstância).
Se um aluno aprende na academia (e não me refiro especificamente a Academia)
a suportar a injustiça à custa de sua autonomia enquanto ser livremente determinado, é
porque esse destroçamento da justiça respeita um projeto político com vistas a alguém.
Quem é esse alguém? Esse alguém é um complexo articulado de práticas, uma plêiade
de humores descentralizados que se conjugam para a preservação de velhas mordaças,
velhas lógicas. É um grupo que não se define como tal. É um emaranhado de ideias
comuns, cristalizadas num discurso secreto rotulado de suposta tradição, suposto valor
em benefício da perenidade institucional.
A formação do jovem oficial está a serviço de alguém. Esse alguém-demiurgo.
Essa “causa instrumental aristotélica” faz da formação do oficial da PMMT, um
encadeamento de aparentes normas e regulamentos que se mimetizam para a
sobrevivência de um projeto paralelo autônomo de fertilização de cópias. Replicação de
métodos, práticas e apreciações comuns. O aprendizado se dá no que tange a
objetivação e não a objetividade. São dois planos que se sobrepõe sem se
entrecruzarem.
1.4 “Aluno não anda no pátio”: retratos do Bicho em três partes
São 3h da manhã e o vento beija o rosto do plantonista como um deus pedindo
guarida... Enfeitiçando os sentidos pelo desejo auspicioso do repouso, esse deus vai se
apoderando do corpo como numa hipnose. Morfeu, o deus grego dos sonhos atua sem
clemência. Lentamente começa a abraçar os bichos durante o quarto-de-hora do serviço
noturno — vulgarmente chamado de “quarto” na APMCV... — afinal, os bichos têm
menor “resistência” ao sono. São eles os mais suscetíveis aos ditames de Morfeu.
53
O “manja” encontrava-se de serviço na função de plantonista e, durante o
intervalo para descanso, dormia profundamente; 3h40 fora persuadido a acordar para
assumir o seu “quarto”. Sua fama de dorminhoco angustiava aquele que iria lhe passar o
serviço de plantão, pois, como de praxe, poderia atrasar-se e, na alta madrugada,
qualquer minuto de sono é precioso. Três tapas firmes nas costas e o chamamento
habitual — Oh manja... manja... Oh manja r...! —. O manja se inquieta no colchão mas
não desperta... é chamado novamente, novamente... até que acorda, se levanta e se
equipa com o “cinto de guarnição” (visto que o serviço descansa fardado e calçado com
o coturno). Os procedimentos são todos adotados. Um cerimonial de passagem de todos
os postos de serviço da Academia é realizado. Todos os plantonistas que assumem o
próximo “quarto”, entram em forma e marcham até os postos onde receberão o serviço
daqueles que lá se encontram. O Manja assume o serviço “sem alterações”. O
plantonista que deixa o quarto-de-hora recebe a permissão para descansar do sentinela
(aluno do segundo ano que fiscaliza a “rendição dos postos”) e o Manja agora
permanecerá em rondas no posto até as 6h da manhã.
Muitos pensamentos ganham um colorido vivo durante o quarto-de-hora.
Misturado ao sono inebriante acabam contornando realidade e fantasia como
continuidades numa mesma perspectiva e, invencíveis que se tornam terminam por
enredar o sujeito da ação vivida ao fenômeno do sonho... nessa ocasião o plantonista já
se encontra encostado em algum canto de parede, ou árvore e, tendo muita sorte, poderá
passar desapercebido dos fiscalizadores.
4h30 da manhã e o sentinela responsável pela fiscalização dos postos percebe
que o Manja não se encontra lá. Percorre todo o posto, de lanterna em punho o chama
detidamente uma, duas vezes, pergunta aos demais plantonistas... Logo, entra no
alojamento a passos largos e de forma voraz procura a cama do Manja, para sua revolta,
lá está ele... Subjugado por Morfeu, espamarrado em babas de sono profundo...
Acordado à silvos de apito Manja se assusta e levanta atordoado. As explicações para o
episódio eu reproduzo abaixo...
— Oh... seu-aluno [referência ao sentinela do segundo ano] eu
tava no posto, mas, aí eu vi um sapo grande, um sapão que tava indo pro
alojamento. Aí eu fui atrás dele pra pegar e, eu fui correndo e o sapo
conseguiu entrar no alojamento e foi correndo muito rápido. Mas, ele corria
muito seu-aluno. E quando eu fui pegar ele... ele pulou em cima da minha
54
cama e eu caí em cima dele na minha cama... aí eu acabei pegando no sono
[transcrição da fala do manja em 2004].
Depois dessa explicação extremamente coerente do Manja, todos os alunos do
primeiro ano — os desgraçados plantonistas...— foram acordados e prosseguiram
madrugada a dentro catando folhas e lavando banheiros. Tudo por causa de um sapo.
Maldito sapo.
1.4.1 A etnografia do CFO I parte I
No dia da apresentação os sorrisos foram comedidos. As falas eram cortadas
pelo decoro reverente que o ambiente exigia. Assim nos conhecemos, os futuros oficiais
da Polícia Militar do Estado de Mato Grosso. Todos “timidamente eufóricos”, prontos
para o sacrifício querido da formação. Cheguei a Academia com um companheiro de
turma (“Chiquinho Scarpa”) já conhecido. Para minha surpresa alguns se encontravam
já devidamente paramentados de camiseta branca, jeans e tênis preto (popularmente
conhecido no meio policial militar como “bichoforme35
”), outros (como eu e o
Chiquinho) ainda estávamos à paisana36
. Reuniram-nos na sala em que permanecemos
curiosamente os três anos seguintes tendo instruções, todos acabrunhados e temerosos
sem saber os próximos passos.
Naqueles momentos dávamos sinais externos estranhos, de pouca intimidade
com os mais simples atos da vida social, como se sentar, levantar-se ou mesmo dizer um
“olá” para o colega do lado, a anestesia era geral, o campo minado amortizava tudo que
não fosse singular a captura das sensações que cada um se via obrigado a registrar em
prol da sobrevivência naquele local, era preciso “sentir o clima”, daí, talvez, abstrair das
impressões desnecessárias pouparia o esforço dos sentidos, já canalizados para uma
tarefa específica. Em certo momento um determinado oficial entrou na sala de instrução,
todos silenciaram, se dirigiu até a lousa e escreveu com giz branco “quarentena”, em
seguida, nos olhou candidamente, apontou o dedo sobre a escrita e sorriu. Eu,
35
O “bichoforme” possui uma semântica interessante: a camiseta branca que o aluno neófito utiliza
demonstra uma “folha em branco”, uma “tabula rosa”; alguém que precisa ser modelado, construído,
forjado, ou seja, a camiseta branca infere a incipiência de uma folha em branco aguardando as cores bem
como remete pureza e candura. 36
O termo “a paisana” no seu emprego dentro da tecnologia cultural da PMMT refere-se além das vestes
utilizadas, também a própria figura pessoal de quem não é militar, isto é, o cidadão civil é nomeado nesse
contexto como “o paisano”. Além dessa expressão muitíssimo utilizada no recorte referenciado da
pesquisa, há também a figura do “corró” que nomeia, assim como, paisano, o cidadão civil.
55
particularmente, pouco impactei-me com isso, talvez por não imaginar o que “isso”
representaria.
Alguns terceiro-anistas (os mais sagazes) como abutres circulavam ao redor da
sala esgueirando-se pelas janelas na expectativa de algum gracejo, alguma falha de
postura de qualquer neófito. Em certo momento adentra à sala o comandante da EsfO,
senta-se a frente, abre um envelope e passa a fazer a chamada dos presentes de acordo
com uma lista, eu fui o primeiro a ser chamado (tivera sido o primeiro colocado no
concurso) e assim sucessivamente todos tiveram suas faltas vistas, a posteriori, nos
apresentaram as dependências da Academia e na mesma ocasião houve um oficina de
demonstração de tiro e algumas técnicas policiais.
Na segunda convocação após essa amistosa apresentação pude notar ao longo de
um curto período na caserna (proveniente da empiria dura...) o quão importante é a
ferramenta da “ordem unida” para o “adestramento” de um grupo de alunos todos
desengonçados e sem postura adequada aos moldes militares. Falamos em ferramenta,
ordem unida e adestramento, expliquemo-nos. A primeira etapa da formação policial
militar do aluno oficial do primeiro ano do CFO da PMMT de acordo com o período
pesquisado e a experiência vivida dá conta do aprendizado, sobretudo, da ordem unida
inicialmente.
Dentro de todo escopo que se empreita a ordem unida possui finalidades muito
abrangentes, de sorte que, num primeiro momento serve para cultivar padrões de
marcha e deslocamento em formatura bem como de modo mais amplo incutir um
caráter de disciplina, de culto a valores cívicos de toda ordem, de respeito hierárquico e
de vigilância extrema. O nascedouro de uma cultura policial militar na APMCV passa
impreterivelmente pela ordem unida, ademais, é nessa ocasião em que o aluno é
mergulhado numa atmosfera que lhe compete assumir como um novo ser que nasce, um
ser que vem a ser (Merleau-Ponty) adquirindo como expressão corporal uma repetição
de movimentos marciais que lhe determina a agir sob ordem, a ter extrema atenção, a
fortalecer seu enlace com o grupo bem como se reconhecer promotor de todos os
valores apregoados, sempre na esteira de se re-afirmar enquanto ser que nasce.
Basicamente, o primeiro mês da formação do aluno oficial consiste em que ele
mergulhe nessa nova atmosfera do ser e isso acontece de maneira brusca e de forma
abrupta, que sequer proporciona ao neófito a possibilidade de conscientemente, e
56
utilizando-se de uma razão sensível, determinar cada instante vivido. Ele se enxerga,
mas não se vê como consciência de si, encontra-se num turbilhão e o filme da vida
começa a acelerar-se a velocidade em que as cenas vividas tornam-se indiferenciadas na
percepção. Não se sabe as horas do dia nem o calendário do mês, tampouco existe um
mundo além dos muros da Academia.
E o passo inicial dessa ruptura abrupta ocorre entrementes a intensas instruções
de ordem unida, que a esta altura representa ao aluno oficial o que a linha infere ao
alfaiate, é com ela que se desenha um modelito novo e se constrói em pano de fundo
uma própria personalidade impingido-a na própria obra por meio do estilo. Dessa
forma, a ordem unida se transforma numa ferramenta que esculpi severamente o corpo,
por meio do adestramento para uma nova forma de se colocar no mundo enquanto
policial militar. Quando se fala em primeiro ano do CFO a conversa tem que girar em
torno de alguns eixos específicos, porém, inexoravelmente em torno da ordem unida,
pois a sua prática é extremamente repetida e cultivada.
Interessante a correspondência teórica com o pensamento de Deleuze e Gattari
proposto Lazzardo:
Também inspirado na leitura de mil platôs e de a revolução
molecular de Félix Guattari (...) reafirmo ser a sujeição social [aqui entendida
como a vida na Academia] e a servidão maquínica [corpo normativo-legal,
gesto corporal e técnico da atividade policial] duas modalidades diferentes de
produção de subjetividade no capitalismo (...) a sujeição social mobiliza
semióticas significantes, em especial a linguagem [conforme observado no
linguajar do aluno oficial], que se dirige à consciência e às representações
com vistas a construir um sujeito individuado [aluno oficila] (2011, p. 220).
Assim, a primeira instrução aos novos alunos é a disciplina de ordem unida. Não
como modelo formal com carga horária específica. Mas como meio de proporcionar ao
aluno neófito (bicho) já o início do período básico (período de adaptação) na formação
do aluno oficial para o recebimento do espadim Tiradentes na data de 21 de Abril
(término do período básico), de maneira que, existe no currículo da APMCV a
disciplina ordem unida, entretanto, a que nos referimos nesse momento é aquela que
preenche os períodos de estadia dos alunos anteriores ao início das aulas. Essa
instrução, especificamente, é cominada sem caráter curricular propriamente dito, pois,
se assim o fosse seria concomitante as aulas, com instrutor específico e períodos
delimitados durante e entre aulas diversas, fato que notoriamente não ocorre(u) em
57
virtude até dos instrutores, no caso, terceiro-anistas da Academia que se
responsabilizavam por esses períodos de instruções, como meio de adaptar os novos
alunos às atividades da Academia, sobretudo, no que tangia as marchas e a postura
militar afetas a disciplina de ordem unida.
De fato, essas convocações anteriores ao período letivo nada mais eram do que
momentos em que éramos acelerados para o ritmo e as exigências da atividade
profissional de aluno oficial que, além do estudo acadêmico e dos policiamentos
eventuais tinha os desfiles e formaturas militares a cumprir.
A primeira instrução de ordem unida é algo singular na vida de um militar. O
desentranhamento de uma nova personalidade não é lá muito simples e requer algum
despertar “viril”. Dentre os “despertares” o de toda uma adequação sensório motora (um
manjar para qualquer pesquisador do corpo) das percepções de espaço e dimensão, num
jogo articulado de eixo corporal, direção e sentido.
Todo o corpo se concatena e mistura harmoniosamente na pisada firme um
equilíbrio altamente uniforme de mãos, braços e tronco, pés, joelhos e quadril; tudo
sincronizado e belo. Essa figura imponente do militar em marcha é forjada à repetição, à
dor e ao prazer de se querer ser policial militar. O aluno vai aos poucos se entregando ao
ritmo e ao ritual que encerra uma finalidade ideológica criando assim uma identidade
particular a partir da robustez de seus movimentos marciais e de seu grau de
marcialidade.
Com efeito, ressalvado o caráter instrumental da ordem unida representa ela um
início suntuoso da aproximação entre os alunos oficiais até então estranhos um ao outro.
A época da formação estudada o corpo de alunos era inicialmente treinado
individualmente, embora na presença de todos os demais e, utilizando de mecanismos
simples, um a um fazia-se os movimentos mínimos para que do individual se fizesse o
coletivo básico, que era a formação de tropa em forma, em suma, todos unidos num
bloco matricial compacto composto do aluno mais alto (testa) perfilando-se da direita
para a esquerda na primeira linha ao mais baixo em estatura (retaguarda) no mesmo
sentido e na última linha. O objetivo inicial era colocar a todos em forma e, com
movimentos simples já preestabelecidos, que todos pudessem executar comandos de
maneira uniforme respondendo-os com o passo ordinário de marcha. Logo, temos que
58
para chegar a esse mínimo necessário era treinar individualmente, depois dois a dois,
três a três... Até alcançar o corpo total de alunos.
Todos à exaustão se entregavam aos treinamentos superando qualquer
intempérie do tempo e do corpo, seja na chuva, no sol ou com cãibra até no músculo da
face, cada aluno se doava religiosamente. De tudo isso ficava bem menos o aprendizado
técnico que a própria interação travada entre os alunos, ademais que, cada um passava a
depender do outro para atender uma perspectiva coletiva, dando sentido ao nós em
detrimento do eu.
Os alunos eram separados dois a dois (cangados) e, repetiam uma bateria de
movimentos dos quais deveriam retirar o que se pretendia e, a “metodologia”
empregada funcionava de modo a saturar individualidades beneficiando o grupo, — não
bastava que determinado aluno soubesse ordem unida, o importante era que o grupo
soubesse —, suplantando assim qualquer particularidade, ademais que, tais divisões
estabeleciam uma unidade coerente onde “se um erra todos pagam”. A coletividade era
um imperativo.
Já no início da formação, e logo na segunda convocação, passei a ter como
canga (parceiro de ordem unida, assim denominado na Academia) o “mamelão”. Por
sermos, ambos egressos do mundo civil, os erros eram inevitáveis e independente de
quem errasse o “dado era jogado”. — Mamelão ainda no primeiro ano, pediu “baixa” da
Academia, e no ano seguinte foi para USP (Universidade de São Paulo), estudar Física e
pouco tempo depois desistiu do curso, ingressando na AMAN (Academia Militar das
Agulhas Negras) posteriormente —.
O famigerado dado constituía-se num corolário de “penalidades” onde cada face
representava uma determinada “sanção”. Em uma das faces podia-se ler “dez flexões”,
ou “trinta polichinelos”, ou o mais temido “fazer exercícios de todas as faces”... o
“dadinho” como amigavelmente era chamado, representava bem mais um indicativo, de
que a eficiência deveria ser atingida a qualquer preço, que propriamente um cabedal
penoso de aflições físicas. Em certos momentos, os alunos até se divertiam com os erros
alheios — e quando isso acontecia, sempre havia um terceiro-anista observando, que
sarcasticamente perguntava ao risonho: “ta rindo de quê aluno? aproveite e já jogue o
dado também”—, mas comumente, eram obrigados a pagar (somente), a dupla toda vez
que um ou outro (cangas) errava. Determinado terceiro-anista, durante nossa formação,
59
era chamado por nós de homem-dado, pois, onde se via ele lá estava o dadinho debaixo
do braço, sempre atrás de um primeiro-anista.
Dependendo do ânimo de quem confeccionava o dado, ele era impingido com
aflições um pouco mais pesadas, e dessa forma acabava perdendo a finalidade de
“domesticação dos sentidos ainda selvagens do aluno relapso e disperso” (uma tese
Foucaultiana...) para a atenção em benefício de uma atividade na ordem unida, por
exemplo; transformando-se num perverso mecanismo de controle e afirmação da
autoridade hierárquica de uma turma mais antiga sobre uma menos precedente.
Cabe fazer uma pausa digressiva aqui, para falarmos sobre o “Ernst”,
companheiro de turma que foi o último a aprender a marchar, e a praticar com regular
grau de satisfatoriedade os movimentos marciais exigidos para a ordem unida. Lembro-
me que o Ernst, teve o canga trocado várias vezes pelos instrutores, pois “não
agüentavam mais pagar por ele” tamanha sua inaptidão para os movimentos. Chegou a
marchar segurando ripas de madeira, tendo o canga a frente na finalidade de lhe
conduzir,— assim como se faz com marionetes —; o clarividente para conduzi-lo na
missão de ajudá-lo era o “pudim”— logo quem... —. Ernst sofreu um pouco, de
maneira que, não foram poucas as madrugadas no internato em que de meu beliche pela
janela o via marchando sozinho pelo pátio da Academia.
Os dias vão se passando antes de se iniciarem as aulas e, continuamente os
alunos chegam a Academia, para essas instruções básicas, cada dia mais cedo e
retornam para suas casas cada dia mais tarde, até que em dado ápice são colocados em
internato sem previsão de término, retornando para os lares somente às sextas-feiras
(isso, contudo senão estiver punido, o que é muito difícil de não ocorrer).
A união do grupo vai crescendo e, de forma muito rápida garotos começam a se
comportar de maneira diferente, dentro de uma vigilância constante. Havia olhos por
todos os lados e cada fração de atitude era julgada severamente. Para ilustrar a
necessidade da vigilância sobre as “afetações” comuns como carinho, solidariedade,
raiva, justiça ou injustiça necessário recorrermos a uma experiência singular. Durante o
período básico fora realizado na Academia um torneio de futebol inter-turmas, o que eu
não sabia porém era que o torneio tinha um campeão antecipado, o terceiro ano do CFO.
Iniciou-se o torneio e a turma do primeiro ano (minha turma então...) em disputa com o
segundo ano saiu-se vencedora — o que por si só já é um ultraje —, na partida contra o
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terceiro ano iniciamos a partida e logo no início fizemos um gol, daí por diante o
cronômetro parou e qualquer bola dividida era bola dada para o terceiro ano, qualquer
falta a nosso favor nem em pensamento se cogitava marcação e o árbitro da partida não
se melindrava em um só instante quando fraudava a partida, até que em certo instante na
minha sonora ingenuidade passei a dizer aos semideuses do terceiro ano que a partida já
era deles e que podiam inclusive terminá-la e erguer a taça sem que para isso
precisassem vencer daquela forma tão vergonhosa.
A partida foi interrompida imediatamente. E a “equipe” inteira do terceiro ano
veio em minha direção aos berros e quando dei por mim já estava em posição de flexão
com várias vozes no ouvido proferindo amabilidades. Em dado momento o Comandante
da EsfO determinou que a algazarra parasse e mandou que eu fosse a sua presença,
quando cheguei até ele me perguntou se a equipe do terceiro ano estava fraudando a
partida — ele sabia tanto quanto eu que sim — E eu respondi que... Não, a vitória era
justa e que havia me equivocado (talvez se eu dissesse que sim todos nós estaríamos
poupados dessa dissertação hoje). Durante aproximadamente três semanas
obrigatoriamente tive que comparecer no horário de almoço ao alojamento do terceiro
ano para quitar essa dívida, que foi devidamente paga por mim ao preço de muita
renúncia espiritual. Comecei a partir de então entender de fato em que circunstâncias eu
havia me colocado voluntariamente e muito me perguntava da honra e da moral tão
apregoada na vida militar.
O primeiro ano é um período de re-descobertas existenciais que provocam certos
decentramentos37
no ser em si, causando uma espécie de quebra de signos construídos
em detrimento da criação de outros. Seria como ossos quebrando à força dando espaço
para uma nova ossatura que cresce sob o esfacelamento do antigo esqueleto. Dói,
escamoteia, choca e agoniza o ser durante o processo. Pouco a pouco vê-se quebrado o
que fora construído, triturado e assim compelido por uma nova constituição. O ser passa
a se portar segundo um novo torque dentro dessa nova engrenagem e o que era já não é 37
Interessante à correspondência com Guattari “de certo modo ocorreu um decentramento da
subjetividade. E hoje me parece interessante voltar a uma concepção, eu diria, animista da subjetividade,
repensar o Objeto, o Outro como podendo ser portador de dimensões de subjetividade parcial: se for o
caso, através de fenômenos neuróticos, rituais religiosos [podemos falar em rituais militares?] ou
fenômenos estéticos por exemplo. De minha parte, não preconizo um puro e simples retorno a um
irracionalismo. Mas me parece essencial compreender como a subjetividade pode participar de invariantes
de escala, ou seja, como ela pode ser singular, singularizada no individuo, num grupo de indivíduos, mas
também ser suportada por agenciamentos espaciais, arquitetônicos, plásticos um agenciamento cósmico
inteiramente outro.” (2011, p.07)
61
mais e uma relativização moral e intelectual profunda vai tomando corpo, formando um
caráter estranho mais necessário a sobrevivência.
Devo confessar que me consternei diversas vezes, por injustiças sofridas por
companheiros de turma e, devo confessar também, que em nenhuma dessas vezes à
época, tive vontade de repeti-las quando “minha hora” chegasse como terceiro-anista, é
evidente, entretanto, que um motor só fazendo vento para determinado lado é difícil
fazer marola no sentido oposto às ondas, pois faça o que se fizer, a água sempre vai
quebrar na rocha da praia, de maneira que, honestamente não foi uma ou duas vezes,
que repeti procedimentos que repudiei enquanto primeiro-anista.
Quando o “Manja” se apresentava aos terceiro-anistas como aluno soldado, por
força do hábito, (era aluno soldado antes da aprovação para a Academia) ao invés de
pronunciar a locução aluno oficial e como conseqüência o faziam subir e descer pelas
dezenas de beliches do alojamento, nessa ocasião ficava tentado a ver até onde meu
orgulho alcançaria forças para aceitar e, fazer com vibração e entusiasmo, toda uma
gama de submissões morais, de tanto trote sem sentido aparente. De fato nunca pensei
em deixar a Academia, e mesmo diante de algumas agruras o lastro que me segurava era
mais teimosia moral, que ideologia militar.
É preciso fazer considerações no escopo de afirmar que, a censura de uma
postura observável ou de um trote inconseqüente (mas ideologicamente embasado) não
é o mote de uma possível crise de formação instalada. Seja o trote que vier a ser, não há
um único apenas que se paute em fundamento diverso do “da construção de um ser que
renuncia a si mesmo em prol de um objetivo, de um status na esteira de determinado
culto”. Os epítetos são colocados e o seu alcance passa a ser uma trilha sinuosa e difícil,
— ninguém questiona o padre pela submissão ao celibato e sequer interroga a Igreja
pela sua imposição que é dada sob fundamento transcendental —, Guardada às devidas
proporções, quer se queira ostentar uma insígnia ou mesmo envergar uma farda
centenária é necessário corroborar tal conquista com o espírito que se assenhora daquilo
que fundamenta todo um sentido de ser daquele “totem” erigido. A pergunta a se fazer
não é se lançar mão de tais práticas é errado ou não, conveniente ou não... é preciso
redimensionar os senhores que cultuamos e perguntar se ainda os são compatíveis com
nossas missões do cotidiano presente e, enfim decidirmos se já não está na hora de
62
demolirmos uma imagem que por força de seu culto faz de nós quem supostamente não
queremos ser.
Poderíamos dizer que o primeiro ano do CFO é um quebramento nada comum
aos parâmetros correlatos na sociedade, ou seja, não é nada parecido ao ingresso na
faculdade ou mesmo no serviço militar obrigatório; é em si mesmo, uma experiência
singular, em que pese, necessariamente; vestir-se sob a aparência de uma simples
formação profissional, é, sim, o Curso de Formação de Oficiais uma máquina “re-
dimensionadora”, um processo abrupto e contínuo de formação de novos espíritos.
As circunstâncias em que esse redimensionamento se processa são
interessantíssimas na exata em medida em que nos deixa pistas do que é ou não é a
Academia de Polícia Militar Costa Verde, enfim, dentro dessa caminhada às avessas na
busca de pistas pouco visíveis, é que construiremos o que possivelmente vem a ser uma
ou outra forma de se educar alguém para ser oficial de polícia.
Depois de nos adequar à ordem unida de forma desejável e ao padrão do que se
espera de um aluno oficial, novos signos vão se estabelecendo e, um a um vão
construindo, a seu tempo, dentro de uma atmosfera de sinonímia com seu elo inspirador
o que pretendem estabelecer. Dessa forma somos apresentados ao que eu costumava
chamar à época de degradação. Consistia basicamente em muita, mas muita, faxina.
O elo inspirador da “degradação” dentro do qual passei várias madrugadas
limpando o chão do meu alojamento, quem sabe seria, uma dose de humildade, de
compromisso com meu espaço físico, de respeito com a higiene... entretanto, disso tudo,
só construí ojeriza ao que mais fiz durante o primeiro ano do curso.
Tecnicamente, submeter-se a manutenção do ambiente em que se vive no ideal
de manter-lhe abstêmio à sujeira e à imundícia é um mote diante da qual não se admite
formação que se faça militarizada. Claro. Não há o que obstar. Ideologicamente, no
entanto, a coisa caminha em outra esteira, pois, se criava dentro daquele link de
correspondência com ideais inspiradores, um mecanismo cruel de produção e
fiscalização de serviço e metodização de costumes culturais inalcançáveis.
Por conseguinte, ao primeiro-anista cabia a manutenção da Academia, em suma,
a limpeza das instalações, daí e dessa forma a missão encerrava-se em si mesma, de
maneira que, tornava-se um fim em si mesmo. Porém, tal missão não era tomada com
esse fundamento, de sorte que, buscava-se com a faxina uma manutenção da hierarquia
63
entre as turmas, da busca incessante pela perfeição e a pior, uma forma animalesca de
punição. Exigia-se mais do que podia se esperar de uma ferramenta tão tosca de
construção de caráter, de modo que, menos se aprendia com isso a medida em que se
afastava de sua finalidade básica, que era de produzir uma atmosfera de ordem e higiene
dentro de determinado ambiente.
A priorização da faxina tomava o rumo que chegava ao limite da insensatez
quando cativávamos a informação de que limpar, limpar e limpar era melhor que
estudar, estudar e estudar. Essa insensatez revestia-se ainda mais com o distanciamento
de sua finalidade e o encontro com o próprio desrespeito aos símbolos que se
pretendiam valorados. Fazia-se faxina fardado, com insígnias que institucionalmente já
guardavam proporções de comandamento na tropa, fomentando dessa forma um
desprezo “epistemológicamente correto” com a “cultura humanista da sala de aula”, mas
legitimado pela cultura da Academia, pois, para o aluno oficial essa era uma atividade
legal e embasada mesmo que ideologicamente viciada.
Tal vício erigido nessas equivalências com outros símbolos acabavam por
ocultar valores diante dos quais a instituição ante a sua perda, cada dia mais parecia
padecer. Cada vez que eu era obrigado a lavar sanitários além do mínimo “higiênico-
ordeiro”, me sentia desrespeitado como profissional e desrespeitando minha instituição;
como homem, entretanto, acobertado pelo manto do dever de grupo me sentia
solidarizado entre meus pares e quase sempre sorrindo diante de algum chiste e não raro
cantarolando com vassouras nas mãos.
Frequentemente a Academia sofria manutenções gerais e da mínima limpeza
dos ambientes graduávamos até a capinação do mato, a pintura das instalações etc.
quando muito, passávamos o final de semana inteiro nesse intento. As fiscalizações
rigorosíssimas seguiam-se numa escala de valores que não guardavam qualquer
proporção com o possível e viável, daí, era comum, que os alunos dobrassem a escala de
serviço ou fossem anotados e punidos com a perda da liberdade. Por conseguinte,
imagina-se a essa altura que isso é um panorama geral entre alunos, pelo que
ressaltamos definitivamente que não é. Somente primeiro-anistas faziam faxina.
Às impressões sensíveis salutar buscar na memória duas ocasiões na experiência
vivida. A primeira delas quando tive a palma da mão corroída com um produto a base
64
de soda caustica após ter de limpar azulejos do banheiro. Sempre que olhava minha mão
enquanto sarava me indignava com o fato de ter suportar calado tais circunstâncias.
Lembro-me de um primeiro-anista, à época em que já me encontrava no segundo
ano, que fora flagrado por um terceiro-anista limpando o suor do rosto enquanto
esfregava o piso do banheiro, interpretado pelo terceiro-anista como que “cabulando a
faxina” ou como falávamos “acochambrando”, fora mandado a pagar flexões de braço,
até quando seu corpo já não suportava mais e a cana do braço trêmula. Daí, fora
mandado levantar-se e fazer polichinelos, quando cessou a contagem do terceiro-anista,
parou, olhou languido, escamoteado e sem forças e abruptamente desabou no chão
desmaiado.
A preocupação do terceiro-anista foi alarmada imediatamente em reaver os
sentidos do desfalecido e, foram aumentando na medida em que o aluno não respondia
mais, até que com muito esforço (e água gelada no rosto) ir voltando bem devagar, sob
os olhares otimistas do terceiro-anista que ia vendo sua carreira naufragar ante a
consumação de uma desgraça maior. O aluno foi voltando do desmaio até sentar-se e
posteriormente levantar-se.
Tempos depois, já Oficiais e com algum tempo longe da Academia esse então
terceiro-anista, ressuscitou essa história enquanto conversávamos, me disse da sua
imprudência, da sua irresponsabilidade e da “bondade de Deus” para com ele não
permitindo que um mal maior tivesse acontecido naquela ocasião. O primeiro-anista
veio a pedir baixa pouco tempo depois desse fato, não suportou a voga da Academia.
Certas caracterizações de um primeiro-anista, em especial, as coletadas pelo
autor não segue a linearidade cartesiana. Desse modo evidente dizer do sistemismo
empregado quanto a descrição obrada, da ruptura com uma descrição que polarizasse
uma interpretação cronológica temporal em detrimento de um transbordamento
inusitado de eventos singulares. Esse intento tipicamente global e multifacetado tem a
fisionomia de um corpo a ser visto a partir de suas múltiplas funções durante a atividade
e não como um somatório de partes independentes. Nossa visão é caracterizar o aluno
oficial, primeiro-anista, nessa ocasião, à voga sistêmica para compreendê-lo a frente
enquanto oficial mantenedor de uma cultura particular, resultado composto e
interdependente a uma multiplicidade de experiências vividas nos três anos de
formação.
65
Esse cômputo dos três anos e suas devidas caracterizações cremos não seja de
soma zero. Em suma, as raízes dessa equação de três variáveis, não encontra respaldo na
unilateralidade dos anos por si só. É justamente a conspiração profusa desse caldo
cultural que dá noções do ser em investigação. Vê-lo (o aluno oficial) sob o óbice
mecanicista é mais uma metodologia conservadora adotada por nós do que uma
estratégia para a compreensão. Infelizmente a academia não está preparada para fazer de
uma prosa antropológica um tratado científico e vice versa.
Falando ainda do primeiro-anista imprescindível tocarmos em ritos simbólicos
de aguda importância na caracterização do “bicho” na APMCV. O primeiro é o
recebimento do “Espadim Tiradentes” o segundo é a “Festa do Bicho”.
Quanto ao primeiro evento representa, sem sombra de duvidas, o ápice da
missão desempenhada pelo primeiro-anista na Academia. É o momento em que é
definitivamente declarado como aluno oficial da PM. Representa ainda o encerramento
do período básico de formação e o primeiro contato do neófito com o comando da
instituição, a comunidade e a tropa. A formatura militar de 21 de Abril em alusão ao
patrono das polícias militares desencadeia todo um predicado na formação do aluno
oficial, pois, marca o recebimento do símbolo do aluno oficial. O Espadim Tiradentes.
Desde que o passo ordinário é realizado ao padrão do exigível para um aluno
oficial o primeiro-anista começa o treinamento para a formatura de recebimento do
espadim. O suor descendo sob o “bichoforme” enquanto o sol queimava a pele, a boca
seca ansiando a água bradando o grito de guerra já automatizado pela repetição, o som
de passos firmes e o cheiro do desodorante barato misturado na turba de garotos, assim,
a ordem unida para “o espadim” saía da manhã entrava pela tarde avançava a noite e
terminava pela madrugada.
Certos movimentos eram feitos sem comandos de voz. O que exigia toda uma
performance nova ao primeiro-anista. Cada turma tinha a sua “ordem unida sem
comando” e cada uma tinha a missão de conferir ano a ano, maior grau de dificuldade
aos movimentos novos ou, dar aos já existentes mais marcialidade. O treino para o
espadim é um imperativo duríssimo na APMCV.
Na formatura de recebimento não se pode errar. É durante esse evento que os
olhos da PM se voltarão aos futuros oficiais. Momento em que muitas conclusões são
sacadas a partir de mínimos detalhes, como uma farda mal envergada, uma postura
66
inadequada ou em grau de elevada gravidade, se durante os movimentos algum aluno
erra.
Tudo deve ser calculado, tudo deve ser levado ao exagero das minúcias, seja um
olhar, um giro de cabeça ou a posição de um dos dedos sob o espadim. Cada ponto é
checado e, cada um merece uma atenção especial. Treinava-se o tempo de execução de
cada movimento, e a partir daí, a padronização era um referencial para a qualidade dos
movimentos.
Durante o treinamento os alunos munidos da medida do espadim, cerravam
cabos de vassoura para utilizarem durante os ensaios — evitando os desgastes eventuais
no “espadim original”, gerado em ocasiões de treinamento na chuva, garoa e do próprio
suor ou exposição ao sol —, o nome era gravado nos “espadins” e, durante meses era
com eles que treinávamos. Algumas vezes tais “espadins” eram esquecidos pela
Academia e, quando achados por um terceiro-anista custavam alguns pernoites.
A essa altura, o corpo de alunos do primeiro ano já possui um mínimo de
identidade e espírito de corpo. Certos epítetos já encontram-se estabelecidos, em
especial o linguajar, e uma nova voga nasce dia-a-dia sob os limites de novas fronteiras
simbólicas. Tais fronteiras não se destinam a dar opções de escolha ao aluno em aderir
ou não a determinados referenciais, se situam como grades que compelem a uma ação.
Não se nota quando ou de que forma passa-se a adquirir um novo vocabulário,
tampouco se opta em aderi-lo, ou, não. Gradualmente o primeiro-anista vai se
assenhoreando de um novo status, diante do qual se exige relevante papel a ser
cumprido, especialmente, dentro dos muros da Academia.
Quando os referenciais de linguagem são estabelecidos um profundo senso de
intimidade passa a ser compartilhado entre os alunos, de sorte que, o novo circulo social
é como uma passarela ao novo mundo.
É o momento por meio do qual o aluno vai se vendo, e passa a ver de fato como
a atmosfera está sendo pintada. Abre-se o leque para além dos sentidos, na perspectiva
de perceber como o desenrolar do contato face a face se expressa, antes, tão somente
captado enquanto vibrações sinestésicas genéricas.
67
1.4.2 interlúdio culturalista
Os contornos subjacentes a este dispositivo de interação social, que se
particulariza numa “fala singular” ou, num “jeito de falar”, extrapolam a necessidade do
adquirente (primeiro-anista) em situar-se noutro plano social. Deságua, sobretudo, num
caudaloso sistema, intricado de relações que se entrecruzam em vários contextos. Ao
falar, respeitando uma “identidade nova”, o aluno oficial, pouco a pouco passa a
negligenciar velhas maneiras de falar ou, até mesmo gesticular diante daquele mesmo
cenário. Quando esse aluno passa a falar como aluno oficial, passa a trazer consigo não
só um novo dispositivo de fala, carrega, arrasta; todo um aparato engajado à fala e
dissocia de si o que lhe contradita ideologicamente, veladamente. Cercam-se, amiúde, o
neófito de características singulares, que no fim possuem o condão de não só o fazê-lo
parecer ser policial militar, mas, a pensar como tal e, peremptoriamente, assumir
prescrições morais e éticas que o habilitem ritualisticamente a ser quem, eventualmente,
ainda não é.
Quando passo a me comportar como aluno oficial desenho, através dos ritos a
que sou submetido, a caricatura do que vem a ser o que se propugna para que eu seja!
Em suma, vejo-me no espelho que são meus próprios superiores e, por eles me ajusto,
me enquadro e, assumo de forma mais evidente quando falo um estereótipo, cujo valor
agregado, supera uma simples maneira de falar. Traz consigo todo um ato político.
Por conseguinte, se nomeio o cidadão civil de “corró” através do linguajar
“policial militar”, não o faço apenas de forma jocosa. Além do “chiste”, existe
fomentado na raiz todo um simbolismo sem o qual não há motivos para se ilustrar o que
entendemos por “cidadão civil”. Há um grau de ideologia subjacente que habilita o
falante a pronunciar o correspondente e, nesse contexto quando o aluno oficial passa a
se comportar como policial militar, sem notar (inicialmente) passa a ser uma pessoa
ideologicamente comprometida. Num dado momento limite o parecer ser e o ser
harmonizam-se, dando ao sujeito o caráter uno. Um conjunto de habitus se assenhora da
pessoa, isto é, vejo-me como policial, penso como policial e sou policial. Essas etapas
são construídas e os ganhos culturais são cumulativos, a ponto de tornarem-se um
caminho sem volta ao individuo.
Mas qual o fundamento engajado na fala? Nos epítetos construídos? Nas formas
de expressão?
68
Essas são as questões a debruçarmos, caso queiramos de fato fazer-nos entender.
É desse ponto clímax que poderemos construir os alicerces do desvio cultural presente,
da qualidade particular que diferencia o aluno oficial — e por que não o próprio policial
militar? — dos demais membros da sociedade. Antes de regressarmos ao recebimento
do Espadim Tiradentes e entrarmos na Festa do Bicho é bom que se frise, o que
nomeamos como uma digressão esclarecedora, a noção de desvio (ou tipo desviante38
).
Comecemos por um dos aspectos mais sensíveis da discussão, a diferença, e a
necessidade de assim o ser.
Falaremos a frente sobre a noção de autoridade do policial militar. Iremos,
calcados nessa construção (a de autoridade na visão do policial militar), pontuar alguns
posicionamentos tidos por conseqüentes lógicos dessa perspectiva agregada a outros
fatores sociais, contingenciais para o policial. Porém, por agora, necessário entendermos
a autoridade (facultada ao policial pelo Estado), tão somente como grau formal que
diferencia um cidadão civil de um policial e, a partir disso, cotejar algumas notas.
Sentir-se distinto dos demais membros da sociedade é uma exigência prévia.
Quando o policial passa a ser policial, tem de estabelecer para si mesmo uma série de
supedâneos que dão conta em última instância de que “não é melhor, nem pior que
ninguém, apenas diferente”. Essa máxima do senso comum de caserna, por assim o ser,
já internaliza para ele, diante de um cenário absolutamente insuspeito, de que é diferente
do cidadão civil e, isso o compromete a ter e assumir, determinadas posturas que vão
além daquelas que, na formalidade da expressão comum, já assinalaria o porquê da
assertiva. Em suma, não basta o desprendimento da própria vida para diferenciar
policiais de cidadão civis, o que pinta o cenário da diferencia é o plus que a cultura
policial constrói na finalidade de colocar o cidadão civil, numa posição de somenos
38
Becker caracteriza de forma poderosa a noção de desvio em seu livro outsiders, conforme aponta:
“quando uma regra é imposta, a pessoa que presumivelmente a infringiu pode ser vista como um tipo
especial, alguém de quem não se espera viver de acordo com as regras estipuladas pelo grupo [podemos
fazer alusão ao mundo normativo/legal que norteia a ação policial]. Essa pessoa é encarada como um
outsider (...) o desvio não é uma qualidade que a pessoa comete, mas uma conseqüência da aplicação por
outros de regras e sanções a um “infrator”. O desviante é alguém a quem esse rótulo foi aplicado com
sucesso (...) além de reconhecer que o desvio é criado pelas reações das pessoas a tipos particulares de
comportamento [comportamento tal gerado pela cultura de grupo], pela rotulação desse comportamento
como desviante, devemos também ter em mente que as regras criadas e mantidas por essa rotulação não
são universalmente aceitas [motivo reforçado dentro da “cultura marginal” ao grupo que rotula]. Ao
contrário, constituem objeto de conflito e divergência, parte do processo político da sociedade (2008,
p.17-28).
69
importância, em detrimento dos desprendidos homens da lei, aqueles que enfrentam a
morte e toda sorte de perigos em benefício da sociedade.
A noção de autoridade dá a deixa para a legitimação da diferença, em
contrapartida, seu caráter mais pesado fica no eixo que enquadra o policial como um ser
que encara todo um sistema social vigente, como inadequado para sua forma de apreciar
o mundo ou, de como toda essa ordem social estabelecida é feita desrespeitando seu
caráter distintivo. As regras sociais numa leitura mais radical estariam em suspenso para
o policial, que as vê como um mote necessário a sociedade, mas, em muitos casos
intangível a sua personalidade e modo de vida.
Essa habilidade de compreensão gerada, dentre outros fatores, por aplicar em
seu estado mais primitivo o poder da coerção, da força bruta, dá-lhe em determinada
dimensão a necessidade e, por conseguinte, a autonomia, para aplicá-la segundo
critérios que, entende plausíveis, para outra determinada circunstância vivida na
atividade. Quando na função, o policial se desprende de regras sociais estabelecidas e
formalizadas e, por entendê-las como negligentes a realidade que apalpa em seu estado
mais cruento, dá cabo de uma dinâmica própria de atividade, ele diz de forma bastante
clara: “olha essa é a minha cultura”. É a pura estilização técnica de quem ele é como
ser-policial. Não se trata de ser profissional. Trata-se de ser policial. Aquele que está no
front, que está a ver o branco do olho do “inimigo” social. É o fio da navalha. Dois
contextos são construídos: aquele em que um milímetro de fuga a essa pretensa “moral”
do ser-policial, e, se irrompe a barbárie, a comiseração dos direitos humanos, e a
controversa relativização moral da violência e da corrupção.
Na outra ponta, enquanto estabelecimento de sua cultura, talvez seja a face que
se apresente mais fecunda a demonstração de uma cultura, e talvez a que mais choca.
Para o aluno oficial esse enfrentamento paradigmático demora três anos (o período de
sua formação) e, quando à hora chega está pronto a digeri-la. Continuando, gostaríamos
de falar mais sobre o “senso comum da caserna39
” que reforça o condão da diferença
através da noção de cultura.
39
A noção de senso comum de Geertz é a diretriz para a nossa apropriação, conforme ele aponta em “saber local” onde exatamente
está a diferença [cultural]? A questão não é se existe uma forma elementar de ciência a ser descoberta nas Trobiand ou uma forma
elementar de direito entre os Drotses, ou se o totemismo é “mesmo” uma religião (...) trata-se, sim, de saber até que ponto, nesses
vários lugares, os aspectos da cultura foram sistematizados [como] ciência, religião, ou direito (...) quero voltar-me [em contrapartida] para uma dimensão da cultura que não é normalmente considerada um de seus compartimentos organizados, como
acontece com estes setores mais conhecidos da alma. Refiro-me ao senso comum. (...) tudo isto reflete esta tendência a buscar as
respostas para os mistérios mais profundos da existência na estrutura do pensamento corriqueiro, pé-na-terra, trivial (2009, p.112).
70
Quando um aluno chama o outro de “caga-pau”, “mocorongo” ou, “bisonho”.
Cria-se não somente uma liga direta de comunicação objetiva; tem-se, além, toda uma
construção subjetiva engajada, diante da qual se opera a construção de símbolos no
mundo dos valores.
É comum, com efeito, ser chamado de “caga-pau” enquanto primeiro-anista, mas
não o é enquanto oficial, quiçá receber o emprego dessa expressão sendo oficial
superior... esse estreitamento lingüístico entre os participantes dá conta de que estão
sintonizados num mesmo canal de freqüência, imbuídos na mantença do canal e
convictos de sua nova natureza. Não é um sinal extrínseco que toma forma a partir de
determinados contextos é mais um sinal adquirido, um ganho, um acréscimo sensível na
tomada de uma nova aspiração ideológica de quem até mesmo já se olha como
“diferente”.
Quando um primeiro-anista se dirige a alguém como “serra fox” ou “801” temos
aí, preliminarmente uma dupla constatação: a) o aluno não se constrange em assumir-se
de posse de um novo vocabulário e, b) faz isso sem consciência reflexiva, apenas
empresta um significado congênere para algo que já conhece. “Serra Fox” no ideário
lingüístico policial militar dá conta de algo ou alguém... “sem futuro”. Usam-se as letras
S e F do alfabeto fonético utilizado para as comunicações via rádio, “Sierra” e “Fox”,
para abreviar o que seria a locução “sem futuro”, ou seja, “serra fox”. Comumente já na
maximização do emprego se ouve nos nichos policiais militares as expressões “mas
você é bem serra hein!”, ou, “você é serra fox dobrado!”.
Já o numeral “801” encontra significação na pessoa desajustada mentalmente, na
pessoa desequilibrada, débil, louca... Encontra origem num antigo código de ocorrências
policiais cujo numeral “801” dava conta de procedimentos adotados para o atendimento
de ocorrências com loucos. Ouve-se, em relação a esse termo no cotidiano, “fulano é
oito dobrado” ou, “sicrano é oitocentos”. Existem, entretanto, inúmeras formas de
expressão que caracterizam um típico linguajar policial, para sermos mais precisos é
imperioso inclusive dizer que certos nichos de convivência além das generalidades dos
usos e costumes da “língua policial”, a extrapolam criando novas expressões, novas
analogias e particularidades lingüísticas que são compartilhadas quase como
“regionalismos” de batalhões para batalhões. Poderíamos dizer que o “falar” e as
simbologias mais correntes na PMMT e via de regra na Academia, não os sejam nos
71
demais batalhões Brasil à fora, embora facilmente compreendidos entre si. É possível
ainda, que mesmo no universo policial da PMMT, tenhamos várias formas de emprego
corrente do uso e costume empregado no linguajar cotidiano que caracteriza o policial.
Dessa forma, temos assim uma variedade de máximas e modelos de projeção do diálogo
e suas respectivas semânticas, mais filiadas a um determinismo de grupo do que a uma
cultura genérica.
Quando o aluno adota um vocabulário especifico toma posse de uma nova
perspectiva e se assemelha a quem assim procede. É um dos ganhos culturais mais
palpáveis que se possa fazer constatar: a presença de uma nova projeção no diálogo
acordada a um dinamismo grupal particular.
Claro, estamos todos imbuídos da tarefa de representar um papel na sociedade. E
de certa forma assim como o padre, o médico ou o taxista, cada um de nós dentro do
que caracteriza o status profissional adquirido, possui um compromisso (muitas vezes
imperceptível) para com uma ordem social vigente que determina o estereótipo padrão
de seu grupo. Pesando-se os prós e contras, desse ponto de vista, nada mais coerente
que o bandido caracterizar-se por um jeito peculiar de ser. Inexoravelmente todos
possuem uma máscara atrás da qual externalizam representações que a sociedade
constrói a partir de impressões históricas. Gilberto Velho faz uma admirável síntese do
tema quando expõe:
O fato importante é que estamos lidando com um conjunto de
símbolos que vão ser utilizados pelas pessoas nas suas interações e opções
cotidianas, num processo criativo ininterrupto havendo alguns mais eficazes e
duradouros do que outros. A relação entre o desempenho de papéis e esses
conjuntos de símbolos constitui uma questão estratégica para a antropologia
social (2008, p.15)
Esse tal compromisso com a representação que se faz do grupo bem como a
impressão histórica que a sociedade constrói das carreiras é o ponto sensível do debate.
Portanto, falar em profissão é falar antes de tudo em status social e de um papel
assumido. Evidentemente que, não são exclusivos na determinação de uma conduta
social, especialmente, porque quando falamos em status social o fixamos na única
perspectiva que se deseja para a análise em voga, em suma, aquela que se instala no
âmbito profissional do sujeito, de sorte que, podemos ter uma inegável liderança militar
72
dentro do quartel dando-se amigavelmente à subserviência em seu lar, obedecendo
categoricamente aos ditames da(o) esposa(o).
Vê-se, dessa forma que, a lógica operante na construção de um status social vem
de fora para dentro, compelindo, encapsulando quem se habilita a vestir determinada
capa profissional, promovendo a compressão das individualidades no que aprendemos a
nomear como “papel social”. Logo, o status nada mais é que: “generalizações sociais
sobre o profissional, baseadas no senso comum!”, ao passo que o papel social vem ser a
resposta do indivíduo a tais generalizações, sempre confortando-as através de um
conjunto de características.
Indo ao que interessa, salientamos que, para construção de um status profissional
do policial precisamos dizer inicialmente que nas sociedades capitalistas o que a
determina sobremaneira é o poder do capital. Em suma, pleiteamos que na determinação
do status social a influência da variável capital prepondera sobre as demais,
conquistando do meio social, numa ordem direta, o nível de tolerância, o nível de estima
e os níveis de deferência e valor moral compatíveis à quantidade de capital abarcado
pelos membros desse grupo. Assim, tanto mais terei a tolerância, a estima e o respeito
da sociedade quanto mais capital manejar. O segundo ponto preponderante seria a
impressão histórica imanente ao grupo, seja profissional, étnico etc.
Historicamente posso concluir que os negros são discriminados ou, ainda que, os
orientais sejam disciplinados, os políticos corruptos, os nordestinos rudes e os
gaúchos... sistemáticos. Defendemos que o capital é a única variável que prepondera
sobre uma impressão histórica, assim, mesmo um negro rico pode sofrer preconceito o
que, em contrapartida, é drasticamente mais previsível caso ele seja pobre, quem sabe
ainda, até mesmo o político pode comprar um “ar de probidade” e angariar votos, um
bronco nordestino, mas rico! ser aceito na society e até o mais sistemático dos gaúchos
transparecer a mansidão e a longaminidade dos homens serenos. Os símbolos
construídos socialmente, respeitando os caracteres preponderantes à nossa visão, inter-
relacionam-se em diferentes medidas, mas, obedecendo alguns critérios, como clareia
mais uma vez Gilberto Velho:
O problema, mais uma vez, é verificar o peso relativo dessa
experiência em confronto com outras como a identidade étnica, a origem
regional, a crença religiosa e a ideologia política. Uma questão interessante
em antropologia é, justamente, a procura de localizar experiências
73
suficientemente significativas para criar fronteiras simbólicas. A gramática e
lógica do desempenho de papéis pode ser discrepante dentro de uma
subcultura e perfeitamente razoável em outra (2008, p.16).
Esse conjunto de “estigmas” perpetuados ao longo do tempo situa-se na tênue
linha que une o imaginário popular acerca do grupo, dos fatos mais impactantes
realizados por esse mesmo grupo no contexto social. Por conseguinte, cria-se assim
dentro dessa perspectiva (linha) imbricada, um ideário cuja roupagem idealizada, adere
ao sujeito vislumbrado conferindo-lhe estampas ora advindas dos saberes populares
(senso comum), muitas vezes “viciados”, ora de um conjunto bem ordenado de fatos
que dão aparente lógica a essa palpitaria. Ficando, assim, o estigma gerando impressões
nesse campo de forças. Daí presume-se então, segundo critérios pouco objetivos, um
modo específico de ser e agir aos grupos e, não são raras as vezes que tal presunção
naufraga diante da mais simples descrição científica.
Para o policial pesa uma impressão histórica extremamente detrimentosa de mais
de três séculos, somados os períodos antidemocráticos do Brasil ao longo de mais de
500 anos. Aliado a esse fator agrega-se o sonoro desprestígio oriundo da completa falta
de poder de barganha na sociedade, leia-se, — poder de compra —, pelo policial. Com
efeito, surge nesse cenário uma impressão de policial construída pela sociedade que
reflete no digno e atual soldado, o feitor do período colonial, o jagunço da república
velha, o pistoleiro do estado novo, o agente do DOPS ou como conhecemos na
atualidade pela alcunha de Cap Nascimento. Lembrando-se que para esse mesmo
público não fora dado o poder de se comprar posição, deferência e prestígio, nesse
nobre cabaré chamado sociedade, onde isso, obviamente, custa muito caro.
Essa construção adquirida como “representação” bem mais se parece com uma
síndrome. Ademais, quando incorporada pelo policial passa a exigir a retroalimentação
do sistema, procedido da seguinte forma: “você diz quem eu sou – eu passo a assim ser
– você me identifica com o modelo e diz quem eu sou – eu passo a assim ser...”;
obedecendo a um critério externo pouco afeto a profundidade ontológica do ser-policial.
Aliás, isso sequer vem ao caso.
Criado esse domínio internalizam-se as conjecturas sociais, particularizam-se os
atores e acabam por beneficiarem-se de relações mutuas de camaradagem e
solidariedade. Um ponto, entretanto, é de importantíssima elucidação. Trata-se, que a
74
representação social é uma classificação imposta. É apenas um molde diante do qual se
forja a matéria bruta, levando-se em consideração tão somente a perspectiva plural da
sociedade classificadora.
Em contrapartida, tal representação nos domínios culturais do sujeito
“classificado” possui flexibilizações que em certos contextos mais distam que
assemelham ao modelo informado socialmente. Literalmente diríamos que a
representação social que informa o status e o papel social, nada interessam aos
princípios (Kant falaria em imperativos...) categóricos que definem o que porventura
venho a ser enquanto profissional. Pese o fato de que mesmo contrastando ao que
realmente entendo como sendo minha caracterização mais próxima, não vá, por pura
contingência, a assim desempenhar tal papel.
Essas tessituras externas modelam tramas (internas) que por si só dão escopos,
em muitos casos, distintos a veste que se estampa superficialmente. Suscitamos como
exemplo diversos grupos desviantes, como os usuários de drogas, na maioria das
circunstâncias fazendo de si imagem amplamente distinta do imaginário popular sem,
contudo, dissociarem-se da representação social que deles se faz. Isso se dá ao ponto de
que, mesmo um viciado não será assim nomeado senão representar determinado papel
que a sociedade entenda necessário para caracterizá-lo.
Em andanças fenomenológicas tenho construído, através de descritivos
inquéritos (epoché), que exista um “caos ordenador” cultural. Que é subterrâneo ao
ambiente cultural sensível e que lhe é causa direta e conseqüente. Uma espécie de
estrato pré-perceptual das relações humanas, aonde o ininterrupto vir a ser da cultura
resida sob a forma de uma experiência ainda intangível à experiência imanência, etapa
que é imediatamente anterior à imanência que outrora ocultada, aparece para nós como
cultura.
Penso que, este estrato de perceptos humanos é o local onde as múltiplas
colisões humanizadas pela teia social estabelecida, espraiam-se a todo instante,
recombinando-se numa nova circunstância vivencial, mais mundanizada, isto é, mais
em sintonia com o mundo das coisas do cotidiano, com o mundo que simplesmente
aparece para nós, de maneira que, à medida que se ajusta a um mínimo de corporeidade,
sobretudo, através da linguagem, expressam-se como cultura. Com efeito, acabam por
75
acontecer em forma de eventos partilhados, sentido e comungado coletivamente. Chamo
este “evento” de eventos críticos, e retornaremos a ele linhas à frente.
A idéia de um caos no “intestino” — essa palavra é proposital... — das relações
sociais pode parecer um logos adaptado às contingências do presente século — mais
especificamente, da presente teoria... — entretanto, os sintomas que invocam essa
suposição quase análoga — bem recorrente na filosofia grega... — são bem maiores que
a licença de plágio que a história da filosofia, eventualmente poderia nos conceder
através do essencialismo helênico, ou, do que séculos depois Lévi-Strauss poderia nos
oferecer com o nome de estruturalismo.
Em contrapartida, se pensarmos o dito “caos ordenador” como Logos no sentido
que Heidegger o cunhou em Ser e Tempo, isto é, derivado do verbo legein que quer
dizer recolher e expressar o que se mostra; poderíamos agora, filiados à idéia de logos,
confessar uma identidade de idéias: caos ordenador e logos Heideggeriano.
Aprofundando um pouco mais nossa metáfora do caos ordenador, citamos o trecho da
lavra da profa. Dulce Mára Critelli:
O que as coisas são não está nelas mesmas, em si mesmas, mas
nesta relação inextirpável entre um olhar e a coisa. Os entes manifestam-se
em seu ser através do Logos (...) Logos é, também, a segunda expressão
donde a fenomenologia retira sua denominação. O olhar (logos) não
individual, exclusivo de um indivíduo concreto que olha e vê, seu olhar é
composto por todo o referencial das relações significativas do mundo em que
habita (2006, p.62).
Por conseguinte, partimos da idéia de “caos ordenador” como um contínuo
acréscimo de relações que ao tomarem força nos símbolos de sua partilhação coletiva
adquirem, usando-se da linguagem como meio, o grau de uma cultura minimamente
definida e traduzida ao coletivo que se insere. A cultura enquanto ente pode fazer com
que a idéia, seja transladada de um estado transcendental (aqui chamado de imanência
em ocultamento!) para um estado material. Não obstante, os infortúnios do
deslocamento das vivências para o plano teórico — perdido em boa medida já de início,
por conta da completa e funesta ausência de oralidade e vida nas palavras, isto é,
perdido naquele poder inexplicável que as palavras possuem: em matar exatamente o
que designam... — a cultura traz do campo do espírito os emblemas idiomáticos das
letras cunhadas pelo pensamento comum ao grupo. E que emblemas são esses? São
76
todos os aspectos vivenciais que pelo seu grau de mundanização e diálogo coletivo
adquirem força imperativa de replicação naquele grupo.
Esses aspectos vivenciais são estados de graça — ou, (des)graça —, lampejos do
espírito criativo coletivo que, sintonizados pela linguagem numa veste densa e
pluriforme, são traduzidos em múltiplas facetas culturais, por exemplo, por um leve
sobressalto tônico e semântico nas frases e orações, dando origem as gírias — as
neofrases, neoorações... —, são traduzidos também num símile arquetípico de animal
na postura, dando origem ora a uma luta marcial — como o Kung Fu — ou a uma forma
de dança típica, são traduzidos ainda por um jeito típico de andar, cruzar as pernas ou
simplesmente fumar um cigarro, dando pechas de um perfil cultural adequado àquela
entidade imaterial então presente na idéia, ora cunhada no corpo como signo de
malandragem, por exemplo...
Certos eventos em si, os eventos críticos aos quais aludi no início, são como
explosões estelares. Emana vida. Se pensarmos que o caos intra-grupo em determinados
contextos explodem em benefício de uma “coisa” articulada coletivamente, podemos
nomear essa “coisa” como a cultura dessas rochas colapsadas pela colisão — ou seres
humanos... em múltiplas colisões —, podemos dizer ainda que o acúmulo de contato,
interação ou multi-interação entre as partes, isto é, entre os seres — ou entre as estrelas
— é a energia necessária para dali forjar um espaço de identidade humana entre as
partes. Portanto, fica fácil constatar que a fórmula de uma cultura é a interação entre os
seres! Assim como, para a possibilidade de vida a explosão de estrelas, pois, como já
nos dizia Nietzsche “é necessário ter o caos cá dentro para gerar uma estrela”.
Essa teoria parece ser trivial, porém, é só o que aparece. Pois, o contato e a
exposição desse(s) evento(s) crítico(s) de criação — da imanência oculta, suposta
“transcendência” até a imanência aparente, revelada nas coisas —, requer condições
singulares de possibilidade. No contexto humano, espaços ideologicamente construídos,
isto é, coletivos ambientados em condições de engenharia comportamental não forjam
senão a força motriz do engenho que lhes proporciona o labirinto, salvo, quando
conscientes da domesticação imposta.
Continuando com nossa metáfora-guia, podemos ilustrar ainda que após a
colisão estelar uma nuvem de poeira cósmica engendra o que, após o reagrupamento, dá
a tona de uma condição de possível mudança “ontológica”, ademais, se uma explosão
77
estelar ocorre, parece justamente ocorrer para que uma mudança ontológica se anuncie,
isto é, dentro de uma margem especulativa seria dizer que, quando a nebulosa se forma
a faz com o mote de proporcionar uma condição de não-ser para uma condição de ser!
De uma condição de aparente negação absoluta para uma condição de real asserção
absoluta.
Perceba que o iter cultural, sua “natureza revelada”, a “peculiaridade sentida” de
um coletivo cultural precariamente definível, está longe de ganhar a estrada que aponte
que: ela saia do imanente para o transcendente (imanência oculta). Penso que é
justamente o caminho oposto que ela siga, saindo do oculto e ganhando a imanência
revelada — como num corte feito até o nível do estrato que o caos das relações
humanas engendra, gera, cria, revela! —. O mundo social como Durkheim entendia —
ou “definia”... — como sendo um “pré-existente total que dá a moldura aos
indivíduos” é o ponto que queremos tratar aqui.
Vamos imaginar — é o método que melhor se presta à empreita — um conjunto
de garotos confinados num ambiente de aceleração moral ininterrupta. Onde o estresse
mental e a fadiga física e toda uma gama plural de afetações na esfera do ser, do querer
e do pensar, são os elos que fortalecem a robustez de uma identidade do grupo.
Imaginemos ainda, um conjunto de ações: movimentos, associações, retrações,
disjunções... em torno da: a) vontade de potência, b) do signo comum de poder, ambos
na perspectiva de se formar — para os militares... formar, adestrando-se — tudo na
perspectiva de se (im)por enquanto/como líder!
Agora vamos proceder a um segundo exercício de imaginação. E por alguns
instantes vamos percorrer os corredores de um presídio. Sim, de um presídio...
Iniciemos pelo portão de acesso e as filas em um dia de visita. Mulheres em frenesi
angustiante, outras debulhando caladas, seus respectivos rosários de aflições, outras
ainda em aparente harmonia com o contexto, seguindo a mesma sorte de quem se
encontra em cativeiro, outras mais quem sabe imperscrutáveis mesmo aos olhares
etnográficos mais mordazes.
Tomemos os olhos dessas mulheres e adentremos ao presídio, e rapidamente
com o espírito agudo podemos notar todo um território devidamente regulamentado,
onde, as atividades em todos os níveis se processam especificamente respeitando a um
cronograma definido, a um roteiro estabelecido tacitamente — todos sem qualquer
78
interferência da autoridade burocrática estatal —. Notamos ainda, condições
particulares de um possível paralelo conceitual do que conhecemos por isonomia,
condições de privilégio no status, de desprivilegio no status, podemos perceber,
sobretudo, uma sombra que recolhe a individualidade em benefício de um credo único,
de uma perspectiva atendida na égide de um querer irradiado do “alto”. De um caos
interior ao grupo, que quando vivenciado à saciedade extrema, explode e ganha corpo
na fala e se traduz no mínimo gesto, no mais inaudito comportamento expressado...
Em 2006 uma onda de ataques à polícia paulista alcançou todos os grandes
noticiários nacionais. Bases da PM eram metralhadas, patrulhas policiais eram
emboscadas e uma série de outros atentados foram levados a cabo pela organização que
passamos a conhecer desde ali, mais publicamente como “PCC” (Primeiro Comando da
Capital).
Definido como “organização criminosa”, o PCC nasceu nos presídios paulistas
no ano de 1993 (Biondi), e foi conseqüência, dentre outros inúmeros fatores, de um
conjunto maciço de supressões aos direitos humanos daqueles primeiros reeducandos,
fundadores da Organização que, a partir de então, na tônica de “defenderem-se” do cruel
sistema de ultraje à própria dignidade do coletivo penitenciário, engajaram-se
mutuamente em prol de um entendimento comum... em torno de um habitus próprio, de
um caráter comum, de um ethos de enfrentamento combativo, isto é, de uma cultura
existencial coletivamente sintonizada. A noção de habitus, aqui empregada segue a
linha descrita por Pierre Bourdieu:
O habitus, como indica a palavra, é um conhecimento adquirido e
também um haver, um capital (de um sujeito transcendental na tradição
idealista) o habitus, a hexis, indica a disposição incorporada, quase postural
—, mas sim o de um agente em ação: tratava-se de chamar a atenção para ‘o
primado da razão prática’ de que falava Fichte, retomando ao idealismo,
como Marx sugeria (...) (2010, p.63).
Não iremos tergiversar ao ponto de mensurar casuisticamente o enredo vivido
por esse coletivo humano. São experiências das mais “estupefantes”. São circunstâncias
existenciais de grau inimaginável na esfera racional, compulsadas quando muito por
uma boa metafísica ou, uma boa poesia... O que queremos, em contrapartida, é mostrar
como o primeiro aspecto da abordagem, que é a tese da aglutinação interativa e
comunhão espiritual como nascedouro da matéria chamada cultura acontece — a
79
explosão estelar... — que produz a realidade cultural que, num primeiro momento,
somente pré-existe como força totalizante (Durkheim), cujo sinal transcendente é
capturado pelo espírito humano e traduzido na ação coletiva.
No ano de 2007 a USP (Universidade de São Paulo), através do Instituto de
Estudos Avançados pelas lavras dos sociólogos Sérgio Adorno e Fernando Salla,
produziu um estudo denominado “Dossiê Crime Organizado”, que em linhas gerais
apresentava no comentário da antropóloga Karina Biondi, algumas sustentações teóricas
tais quais a de que:
Os sucessos destes acontecimentos foi garantido pela estrutura
organizacional do PCC, “mantida por um quadro hierarquizado de
funcionários, disciplinados e obedientes, capazes de executar ordens sem
questioná-las” (2007:9), mas também porque a confecção de leis e políticas
não acompanhava as mudanças da sociedade. Além disso, para eles, a
estrutura do PCC só pôde se consolidar em função do frouxo controle e da
falta de rigor na coibição de suas práticas por parte do poder público. Por
outro lado, contrariando muitos outros analistas, afirmam que “há fortes
evidências de que o encarceramento em massa associado ao propósito de
contenção rigorosa das lideranças dos grupos criminosos organizados
tem produzido efeitos adversos”, como os ataques de maio de 2006,
classificados por eles como momentos de “efervescência cultural” (2010,
p.76). [grifo nosso]
Dois pontos são persuasivos e tem o condão de reforçar o que vínhamos
defendendo. O primeiro é a referência ao “quadro hierarquizado de funcionários,
disciplinados e obedientes (...)”, o segundo tópico são as “fortes evidências de que o
encarceramento em massa associado ao propósito de contenção rigorosa das
lideranças (...) tem produzido efeitos adversos”. A primeira referência dá
inteligibilidade no plano da imanência — o mundo concreto e real da cultura já
estabelecida... —, o segundo excerto em grifo, representa a condição de possibilidade, a
causa conseqüente, da primeira referência, em suma, a colisão múltipla de “n” contextos
vivenciais extremos, que emergindo a um nicho fora do plano da imanência colapsada,
transcende e ganha autonomia de ser convencionada num segundo momento por alguém
que a capture de volta, estabelecendo assim o quadro sintomático que no exemplo
citado, é a disposição “administrativa” do PCC. Para finalizar o alcance da teoria
proposta é bom ressaltar a locução “efervescência cultural” de Adorno e Salla, que não
dista muito do que metaforizamos como explosão estelar.
80
É preciso a essa altura dizer que tanto o transcendente como o imanente são
apenas níveis de ilusões a serem decodificadas pelos sujeitos, são campos ou estratos
que aparecem e ocultam-se, não sendo, de nenhuma forma, um corte dual entre dois
mundos possíveis, o que provoca sem querermos, a compreensão de um mundo real da
cultura do grupo e, o nível ideal de outra em gestação, em absoluto... Não se trata disso.
Por isso, é preciso recorrermos a Merleau Ponty para um maior grau de clarividência do
tema:
Pois quando se dissipa uma ilusão, quando se rompe subitamente
uma aparência, é sempre em proveito de uma nova aparência que retoma, por
sua própria conta, a função ontológica da primeira (...) a des-ilusão é a perda
de uma evidência unicamente porque é a aquisição de outra evidência (...)
não há Schein sem Ershcheinung, toda Schein tem por contrapartida uma
Erscheinung (2009, p. 42).
Fechado então o primeiro aspecto que queria ressaltar, gostaria como me propus
acima, ainda de explorar com mais um exemplo, um pouco mais o contexto
antropológico das penitenciárias, do mundo social carcerário brasileiro. Dessa vez, irei
utilizar a noção etnográfica do “salve” utilizado pelo PCC.
Com o primeiro exemplo mostramos como interação pode (também!) gerar
cultura. Apontamos como se dá o caminho que sai da transcendência e cai na imanência
em forma de cultura de grupo. Agora vamos proceder com um segundo caminho mais
incisivo acordado a mesma noção teórica geral já proposta.
Vamos imaginar um coletivo humano particular, isolado geograficamente e
preterido drasticamente de suas condições básicas de dignidade, imaginemos também
que a simples associação coletiva comum deste grupo dá margem, por si só, a existência
de um ato criminoso, detrimentoso a todos enquanto grupo instituído. Agora,
imaginemos este mesmo coletivo agindo em prol de uma luta comum de seus membros
e, com a responsabilidade de ser efetivo em suas ações. Subtraindo todos os aspectos
ideológicos e morais das ações envolvidas, resta-nos decompor em níveis inteligíveis ao
senso comum, como este grupo criará em forma de “elo articulado” o conjunto de
valores, símbolos e ritos que na sua semântica desafie o poder contrário, chamado
Estado, não demonstrando essa tal inteligibilidade semântica.
Friamente, trata-se de construir um mecanismo cultural que transforme a
linguagem, o gesto, a expressão corporal em um modo de ser percebido — ou de
81
aparecer! — somente por/para seus iguais... Trata-se, sobretudo, de criar, engendrar
uma cultura onde só se entende quem a ela se integra. Até este ponto nada de muito
novo....
Bem, sabemos neste momento que o presídio é uma máquina produtora de
cultura, sabemos também que existe um grupo constituído (marginalmente à sociedade
de classes) que, operando neste acelerador espiritual sublima suas pré-ações... chegamos
então ao “salve”. O salve é o exemplo mais direto da cultura da transcendência até a
imanência.
Comecemos com a pergunta: é o salve uma ordem dos líderes do PCC? Não, o
salve é uma idéia! é um ato reflexivo do grupo que busca a compreensão de uma
situação-problema. O salve é uma nuvem conceitual que é gestada nos corredores,
ganha corpo nas discussões, é depurada e se amortiza numa espécie de nível de
consciência geral. Quando se nomeia o PCC de “organização criminosa” partimos de
uma idéia cultural corrente para o senso comum e, que tenta enquadrar um nicho social
que não se subordina a essa dita cultura corrente... É pedir para embrulhar em papel um
litro de gás, é como pedir ao garçom dois metros de pinga... Nestas circunstâncias
existenciais não é pela nossa tela que se projeta a imagem nítida, o exercício requer uma
troca de lentes... Algo — melhor dizendo... conceito etnográfico — que Malinowski nos
anos vinte do século XX já vaticinava, e hoje é mais que pacífico em antropologia.
Após sublimar suas ações em forma da idéia do salve... Estes são emitidos,
ganham as ruas e solidificam-se em ações concretas. Um exemplo de salve do PCC seria
como nos informa o antropólogo Adalton Marques: “manter a paz entre os ladrões e
bater de frente com a polícia”
É caso de dizermos então, que é o ambiente que produz a cultura? Se pensarmos
no ambiente tão somente, isto é, apenas em seu aspecto georeferenciado, dizendo-nos
que pré-existe ao homem em suas definições atitudinais poderíamos dizer taxativamente
que não, de sorte que, o que pré-existe, na enormidade dos casos, aos primeiros
membros do PCC, especificamente, era um ambiente muito além do campo
georeferenciado, onde a “sombra transcendente” (de interesses como os: Quem? Para
quem? e Contra quem?) exigia uma correspondência dos corpos no mundo real, que o
eterno vir a ser da cultura já sondava e se articulava numa dimensão (até então)
insondável aos membros.
82
O que pré-definiu a cultura nascente não foi simplesmente o ambiente
estagnado, com vetores, índices e fluxogramas apontando para uma tendência. O que
provocou o nascimento dessa cultura foi justamente a mundanização do(s) homem(s),
isto é, um momento — ou melhor, a somatória destes... — pré-existente, onde a
necessidade de uma maior sintonia com o mundo das coisas do cotidiano, com o mundo
que simplesmente aparece para nós, era a novíssima condição básica de sobrevivência...
Poderíamos a essa altura dizer sem rodeios, que a cultura é um vir a ser
constante onde o ser-aí (membro do coletivo humano) se torna e se faz continuamente,
ao provocar e ser provocado por um determinado nível de consciência intencional geral
que recebe junto ao ser-para nós (os coletivos humanos em grupo), através dos
fenômenos perceptivos. Isto te lembra a fenomenologia de Merleau-Ponty? Qualquer
semelhança é mera coincidência.
1.4.3 A etnografia do CFO I parte II: a festa do bicho
Continuando nosso enredo etnográfico é oportuno dizer que a sintonia íntima
dos alunos entre si, e destes com seus respectivos superiores hierárquicos, gera pouco a
pouco uma maior evidência de traços personalíssimos de cada um, especialmente, no
que se refere ao comportamento gestual, da fala, dos jeitos e trejeitos daqueles que
comungam a experiência da Academia. É o fechamento para o mundo exterior e o
dobrar sobre si mesmo numa totalidade comum de afetos e sujeições que nos dizeres de
Goffman caracterizam o que denominou de instituição total
Uma instituição total pode ser definida como um local de
residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação
semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de
tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada (1974 p.11).
A festa do bicho é um momento da formação onde o aluno oficial extravasa as
situações limite de seu cotidiano na Academia. É seu momento de “desafogo” moral.
Constitui-se numa festa, digna desse nome, onde alunos de todas as turmas satirizam
episódios de seu cotidiano com paródias e peças teatrais.
Tecnicamente, poderíamos dizer que a festa do bicho enquadra-se em uma das
táticas de adaptação descritas por Erwin Goffman e sistematizadas por Kunze, tais
83
quais: a) “afastamento da situação” desatenção e abstenção aos acontecimentos de
interações (o aluno fica disperso à formação e se amortiza num distanciamento do “eu”
construído na vida civil na tentativa de reconstruir-se no novo cenário, com uma postura
nova, um vocabulário novo etc.); b) “intransigência” não cooperação e desafio à
instituição (perdas e ganhos são ponderados pelo aluno e passa nesse instante a ponderar
a (re)ssocialização); c) “colonização”, consideração da vida institucional como
desejável em relação às experiências ruins no mundo externo (formação de elo afetivo e
correspondência de símbolos pelo aluno); d) “conversão”, aceitação da interpretação
oficial e representação do papel de “internado perfeito”; e) “viração”, combinação de
várias táticas visando evitar sofrimentos físicos e psicológicos e f) “imunização”, o
mundo da instituição passa a ser um mundo habitual sem novidades .
A festa do bicho situava-se no plano da colonização, pois, no momento em que o
aluno execrava o aluno mais antigo com paródias e peças teatrais de puro achincalhe40
— em muitos casos em vingança a eventuais assédios sofridos outrora — ele absorvia
em seu íntimo, agora de forma equilibrada e ponderada, isto é, digerida, toda a gama de
sujeições morais até então suportadas. Para o aluno mais antigo que é achincalhado,
ridicularizado... restava o convencimento de que sua superficial condição de comando e
determinações era extremamente frágil.
40
O aluno “pudim” era o principal “ator” da APMCV durante nossa permanência. Com seu fino humor e
extrema capacidade cênica conseguia deixar em patente constrangimento seu algoz durante a
apresentação. Em nossa época determinado superior costumava vir a tropa cobrar alinhamento durante as
formaturas, nessas ocasiões utilizava-se de uma fala peculiar, intimidativa e provocativa, em algumas
ocasiões fazendo gracejos com os alunos em forma. Na Festa do Bicho o pudim se vingou dele com uma
caracterização perfeita. Sob o falsete da comicidade o pudim literalmente o esculachou com a perfomance
teatral. A charge cênica apresentada foi tão cômica que a platéia riu-se não do ator, mas, do superior
“desnudado”, com gestos e comportamentos duvidosos perante todos. Esse extravasamento pode custar
caro, porém, sintoniza o algoz de sua postura inadequada. Vale lembrar que o referido superior em raras
ocasiões retornou à suas antigas práticas.
84
1.4.4 A etnografia do CFO I parte III: 29 de setembro de 2004
Motim
Art. 149. Reunirem-se militares ou assemelhados:
I - agindo contra a ordem recebida de superior, ou negando-se a
cumpri-la;
II - recusando obediência a superior, quando estejam agindo sem ordem
ou praticando violência;
III - assentindo em recusa conjunta de obediência, ou em resistência
ou violência, em comum, contra superior;
(...)
Pena - reclusão, de quatro a oito anos, com aumento de um terço para os
cabeças (Código Penal Militar brasileiro, Decreto-Lei n°1001de 1969) [grifo
nosso].
Os alunos do primeiro ano após a educação física receberam longevos 5 minutos
para estarem devidamente prontos para a próxima aula em sala. Para isso precisavam
utilizar o banheiro para o banho. Ao chegar no alojamento os 32 alunos do primeiro ano
são barrados e impedidos por alunos do segundo ano de usarem os chuveiros. Motivo:
determinado aluno do segundo ano não queria dividir o espaço com os bichos... Em que
pese, sobrarem chuveiros para serem compartilhados. A situação de urgência para a
próxima aula foi informada ao aluno mais antigo por um aluno do primeiro ano, aquele,
por sua vez, sequer dignou-se a ouvir.
Todos os alunos do primeiro encarneraram-se defronte ao espaço dos chuveiros
onde, apenas um era utilizado pelo aluno mais antigo. O tempo corria e o prazo dado
por um oficial estava se esgotando... a ordem dada, em contrapartida, pelo aluno mais
antigo foi clara. “ninguém entra, antes de eu terminar...”
Os ânimos foram se aflorando até o instante que um primeiro-anista tomou o
espaço e ligou o chuveiro... o aluno mais antigo, determina rispidamente que ele saia
imediatamente, o primeiro-anista o olha-o com desdém e lhe sugere: “o Sr. Pode vir me
tirar daqui se quiser...”, outro aluno invade o espaço e diz ao mais antigo “daqui
ninguém me tira” — o agravante foi o braço cruzado e a cara feia... — um a um vários
entram também no banheiro — este que vos “fala” também... —.
O aluno mais antigo vê-se desmoralizado. Destituído por completo de sua
superioridade. Ele sai rapidamente do banheiro e os bichos tomam conta do espaço.
Outros alunos mais antigos ficam perplexos com o fato observado e correm até os
85
superiores. Um deles chega ao alojamento e a essa altura todos já tinham se banhado.
Ameaças são feitas... promessas de revide do regulamento são ditas...
Segundo o Código Penal Militar a conduta dos primeiro-anistas parece ser clara.
Motim. O enquadramento, porém, necessita do estudo do contexto e, como vimos, é
claro não se aplicaria ao caso. Havia uma contra-ordem de um superior... Entretanto, na
APMCV vige a regra do submundo dos alojamentos e, dessa forma, o primeiro ano foi
punido severamente, especialmente, pelos alunos mais antigos. Dois dias sem dormir...
muito “rala”... prisão disciplinar aos cabeças... Mas, sobretudo, a alma lavada.
Literalmente...
1.5 “De pedra à vidraça”: recortes do bicho-melhorado
Uma aspiração de poder sobe a garganta e toma forma na postura. Inquieto e
contingenciado de um lado, pela pecha de lorde e, de outro, pela aparência de um
ditadorzinho sem trono, ele caminha a passos obsequiosos pelos pavilhões à busca dos
detalhes puníveis que lhes são tão familiares. Ele fustiga seus subordinados e assume
como seu patrimônio o mais singelo sinal de vontade e potência destes. Empresta agora
o mesmo sentido aos afetos outrora tão odiosos, recebidos em seu desfavor meses atrás
com revolta. Agora os domando à força na memória e, exorcizando-os pelos poros
quando os reproduz com os bichos durante os “ralas”. Quando grita com eles (primeiro-
anistas) ou, quando inocula seu veneno insidioso para a discórdia entre bichos e
terceiro-anistas. O segundo-anista é o próprio veneno da formação, quando dosado
imuniza, quando excedido causa males.
Esconde-se pelas sombras da Academia. É tido por “moita”. Àquele que escapa
com maior facilidade aos olhos dos oficiais e dos próprios terceiro-anistas; àquele que
sorrateiramente cumpre suas missões com a discrição que a faz sempre pouco
censurável, pois, não está na linha de tiro, não é protagonista do processo de formação e
a essa altura é mero coadjuvante. Não disputa com os bichos esta posição, aliás, tudo
que almeja é nela permanecer durante todo o ano, às sombras e de forma bastante
imperceptível.
O aluno “sem apelido” de tão moita que era sequer possuía apelido. Não falava,
não gesticulava, não se exprimia ao ponto de ser notado. Era tão moita que nas
contagens habituais do efetivo da turma era sempre esquecido. Não tinha amigos na
86
turma e tampouco buscava ter, preferia o ostracismo do anonimato. Quando chamado
erguia a mão e abaixava a cabeça, sua voz de comando parecia sair na exata proporção
dos que lhe necessitavam ouvir. Lembro-me do “sem apelido” com uma ponta de
responsabilidade pela não conquista de sua amizade, pois, no campo em que nos
sujeitávamos a existir, nunca me permiti silenciar a palavra dita para comungar com ele
o olhar esclarecedor que prescinde de toda palavra falada.
Engana-se que o grau de experianciação na Paidéia policial seja menos drástica
ao ator segundo-anista. Com efeito, mesmo negligenciado na cena principal é o
segundo-anista que se responsabiliza por uma das etapas fundamentais do
amadurecimento profissional. É ele quem comanda o Corpo da Guarda e, neste espectro
de compromisso, já tem sob seus olhares e ordens, um conjunto bem delineado de
atribuições imprescindíveis à fruição do serviço na Academia.
À época pesquisada constituía-se o comando do segundo-anista, o serviço de
guarda e reserva de armamentos do quartel da Academia, de maneira que, era ele o
responsável direto por executar todos os atos e normas regulamentares atinentes a esta
função.
Essas regras a serem seguidas baseavam-se, sobretudo, no RISG (regulamento
interno de serviços gerais do Exército). Além do RISG, existiam ainda as de cunho
interno expedidas com o nome de “Normas Gerais de Ação”, que disciplinavam maiores
especificidades do serviço, determinando em minúcias todos os deveres. Há de se
perceber que a vida profissional do segundo-anista passa longe do ideário plantonista
feito à saciedade durante todo o primeiro-ano. Diferentemente do plantão do primeiro-
anista o serviço de responsabilidade do segundo-anista tem concepções diretas de uma
ascendente profissional da espécie que credita funções rigorosíssimas.
Mesmo com todo o rigor exigido do segundo-anista não foram poucas as
situações de sensível teor biográfico no campo das “experiências não presumíveis” que
vivemos ali. A guarda do quartel é o acesso direto ao mundo exterior e, dessa forma, a
porta para toda uma gama de possibilidades. Certa vez fui acordado na alta madrugada
para chamar um companheiro de turma que, mesmo escalado de serviço na guarda,
durante seu turno evadiu-se do serviço para ir atrás de uma “namorada” que morava nas
proximidades da Academia. Ao acordar-me o companheiro que tirava o mesmo turno
com o “evadido” pediu para que eu fosse chamá-lo urgentemente, pois, a qualquer
87
momento o terceiro-anista poderia aparecer na guarda e dar falta da presença do
garanhão. Mesmo contrariado fui até a residência — onde o garanhão se encontrava —
e ao chegar lá encontrei meu companheiro bem à vontade e sem a mínima intenção de
regressar... Fui obrigado a arrastá-lo de lá... — ainda hoje este nobre oficial me cobra o
excesso de prudência em tê-lo buscado... —.
O sonho do primeiro-anista não é ser oficial de polícia. O sonho do primeiro-
anista é sentar-se na cadeira do Comando da Guarda da APMCV — Epíteto do poder
alcançável —. Presumido dessa forma, enquanto sonho, este objetivo era ansiado todas
as vezes quando do lamaçal misturado a epiderme, via-se ao longe, incólume à luz
lúgubre da Guarda, o limpo e respeitado segundo-anista. Particularmente sempre achei,
— na condição de primeiro-anista —, que o segundo ano do CFO seria a uva que eu ia
chupar. Doce ilusão.
A começar pela carga horária curricular extenuante (a maior dos três anos) que
extravasava noites e fins de semana, dos policiamentos agendados em última hora e de
toda a exigência do serviço, o segundo ano do CFO é uma provação com a mesma
envergadura dos demais anos. O fato antropológico determinante em contrapartida não
são os fatores mensurados, é justamente o quinhão de experiências que tendem ajustar
todo o profissionalismo agregado com a formação do ser-policial. É durante o segundo-
ano que as amizades se solidificam — e se liquidificam também —. Durante o segundo
ano as mascaras caem definitivamente, e vão dando formas a rostos transformados pelas
experiências. É durante o segundo ano que se descobre o que existe por dentro da farda,
do outro lado dos muros da Academia. A criticidade sai da quarentena, toma corpo e
ganha plausibilidade.
O coturno passa a brilhar com menos esforço dado à simpatia gerada pelos
atalhos proporcionado pela técnica artesanal de grupo, comumente chamada na
Academia de bizus. Corre-se mais cansando-se menos, vibra-se menos aparentando
vibrar-se mais. O segundo-anista tem no seu caderno existencial um rol de atividades
típicas da Academia e sua respectiva maneira de lhe compor sentido adequado. Ele
conhece os meandros e o jeito certo para que as circunstâncias se adaptem ao curso
natural das coisas dentro do seu pequeno espaço de poder.
A rotina de um segundo-anista em nada difere da de um primeiro-anista ou de
um terceiro-anista, são as atribuições e tarefas diárias que se diferenciam, já o horário de
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chegada ou partida são rigorosamente os mesmos. O rigor da fiscalização sofrida pelo
segundo-anista nas revistas diárias é menor que as sofridas pelos alunos do primeiro
ano, contudo, o grau de animosidade entre terceiro-anistas e segundo-anistas se acirra ao
limite da tensão, de sorte que, as duas turmas rivalizam-se abertamente na disputa pelo
comando do corpo de alunos. Os terceiro-anistas por dever de ofício são obrigados a dar
o ritmo das atividades de exigência e cobrança aos demais alunos quanto às normas,
tradições e ritos, cabendo ao segundo-anista de forma passiva e capciosa frear este
ímpeto, excepcionalmente — e perigosamente — na via direta face a face.
A exposição anterior pode soar do ponto de vista metodológico até mesmo um
tanto quanto irresponsável, na medida em que deflagra todo um contexto semântico que
demanda alguns conhecimentos anteriores, especialmente, sobre as minúcias
regulamentares da instituição, dos regulamentos militares e até do funcionamento da
própria APMCV. Com efeito, nossa intenção era acelerar uma exposição que deveria ser
lida da mesma forma que foi escrita, em suma, com um só fôlego. Irresponsável ou não,
o intento fora uma descrição literária quase que nostálgica. Prometemos, entretanto,
sermos daqui para frente menos imprudentes e mais obsequiosos com os leitores.
A disciplina, enquanto fiel acatamento às normas e regulamentos e, a hierarquia
enquanto a devoção máxima ao cumprimento das ordens emanadas dentro da
observância das prerrogativas dos postos recebem, ambas, uma aura de significado
tremendo durante a formação, por um único e excludente motivo: a vigilância e a
punição. Na Academia grande parte (para não dizer tudo) do que estava escrito nos
regulamentos era cobrado e, se fosse apenas dessa forma, seria ideal, de sorte que,
observa-se na prática uma cobrança em níveis altíssimos, cobra-se com rigor, muito
rigor e mais, cobra-se o que não existe com o fito de quebrar, deglutir, dizimar o aluno
ante qualquer possibilidade de ruptura da norma e das ordens. Dentro dessa perspectiva
não há qualquer possibilidade de “vida humana” fora da bolha da coletividade, visto ser
ela o único meio de mascarar qualquer forma de conduta marginal ao regulamento da
severa vigilância, a coletividade camufla, protege, acoberta, mimetiza a presa diante de
seu predador, ademais, acaba se transformando num corpo uno, indivisível e resistente.
A noção de coletividade na Academia é um dos momentos limites da socialização do
aluno oficial, é um mecanismo que deve ser descoberto o quanto antes pelo particular e
pelo todo, de sorte que, sua compreensão requer doação.
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Este pode-se dizer, fenômeno intra-social denominado “coletividade”, é
sugestionado pela própria natureza da formação, que exige como prática diária tarefas
em grupo, de maneira que a sua realização não se concretiza se não houver uma perfeita
sintonia entre todos na medida em que cada componente é parte fundamental da mesma
tarefa. Seja um movimento marcial de ordem unida ou uma faxina cada parte do todo é
responsável pelo mesmo e único fundamento. O cumprimento da missão. Essa
condensação de vários indivíduos num só remonta algumas particularidades curiosas: a)
une os membros do grupo; b) forja uma simbologia de grupo; c) estabiliza uma política
de ação própria do grupo; e d) constrói uma hermenêutica própria de grupo.
Explicitemos os tópicos.
Quando falamos em “união de grupo” na Academia, necessariamente estamos
falando em união entre membros de uma mesma turma. Com efeito, temos que na
formação do curso de formação de oficiais da PMMT os alunos são divididos em três
turmas perfazendo cada turma um ano da formação que dura três anos, logo, temos os
alunos do primeiro ano (bicho ou primeiro-anistas), os do segundo ano ou segundo-
anistas e os semideuses terceiro-anistas; essa divisão entre alunos que embora se situem
no mesmo plano hierárquico na graduação de aluno oficial, recebe na Academia uma
sectarização de hierarquia, não de direito, mas de fato.
Falar que o terceiro-anista é mais precedente que os demais seria minimizar na
teoria o que é cabalmente desmentido na prática, pois, o terceiro-anista dentro daquele
nicho simbólico denominado Academia é de fato superior hierárquico dos demais
alunos. Tal sectarização segue apontando o lógico, a precedência hierárquica dos
segundo-anistas sobre os bichos. O que isso significa? A profundidade da resposta exige
pormenores.
Na Academia cada ano que se passa indica para o aluno uma graduação
funcional e simbológica, ou seja, no primeiro ano temos o aluno exercendo funções de
execução como às de cabo e soldado, no segundo ele progredi para a função e
responsabilidade de sargento e no terceiro ano exerce a função de oficial; tudo no
contexto escolar, de sorte que, na via prática-formal do regulamento institucional o
aluno já ingressa na Academia com precedência hierárquica sobre o Sub-Tenente,
abaixo tão somente do Aspirante – a – oficial. Essa funcionalidade gradual na Academia
infere que ao oficial cabe o conhecimento das atividades inerentes a todos os postos e
90
graduações para que reconheça na prática de seu futuro como oficial qualquer
eventualidade, demanda ou contingência que seus subordinados terão quando sob seu
comando.
Na forma traduzida do que chamamos de funcionalidade dentro do contexto de
formação temos o primeiro-anista realizando as funções de execução, em suma, funções
de somenos importância como seu único serviço no âmbito interno (dentro da
APMCV), fora das atividades acadêmicas: o serviço de plantão. Esse serviço (Pensei
em colocar aspas no termo serviço, dado a sua pouca expressividade prática, porém,
lembrei-me de algumas madrugadas enquanto plantonista) consiste basicamente na dita
manutenção do quartel, que basicamente nada mais é do que a limpeza dos espaços
físicos e na vigilância das instalações da Academia. Bom frisarmos que este serviço não
se encontra dentro do currículo da formação do oficial da PMMT.
1.6 “Às portas do aspirantado: imagens do terceiro-anista
O terceiro-anista está convencido de que é um deus. É ele quem comanda a
rotina vivida na Academia e, consequentemente todo o corpo de alunos do segundo e
primeiro ano do CFO. É ele o responsável pelo planejamento das atividades, da escala
de serviço dos alunos e, sobretudo, controla o nível de estresse repassado as demais
turmas. É o terceiro-anista o aluno responsável em transmitir toda a cultura da
Academia às demais turmas, é ele também o responsável em preservar as tradições e
conservar todos os ritos. Estão em pleno foco durante o terceiro-ano, pois, são eles os
futuros aspirantes e tenentes. São, por isso, o termômetro do comandante da Academia
e, da própria Polícia Militar em um todo, na medida em que, representam o nível de
comprometimento institucional que adquiriram e passam a revelar com suas atitudes,
bem como o vigor do regulamento e da moral que apregoam.
O terceiro-anista é o elemento central para o redimensionamento da cultura na
APMCV, de sorte que, é ele que absorve a enorme responsabilidade de doutrinar os
bichos e asseverar na prática supostas tradições construídas, assim como criá-las
também. Com todo o poder hierárquico não formal que detém em relação aos demais
alunos, o terceiro-anista é a precisa projeção de um simulacro que ele mesmo passou a
introjectar como sendo o ideal de auto-afirmação da hierarquia, da virilidade e da força.
Com suas atitudes e formas de comandamento, economia das ordens e rotinas de
91
convivência nos alojamentos, é o terceiro-anista a auto-imagem do que ele representou
para si como sendo o oficial de polícia médio. Após desenhar durante dois anos quem é
o jovem oficial que se pretende na Instituição na via prática, isto é, seu conjunto de
comportamentos habituais na vida na caserna e na vida social como um todo, ele
arregimenta para si esse modelo e o absorve.
O terceiro-anista é o protótipo da Instituição em miniatura. É a face de um todo
disforme por múltiplos personagens representado na postura militar e social de um
aluno em seu último grau de alienação.
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PARTE II
MÉTODO, RUDIMENTOS DE HISTÓRIA E CONSIDERAÇÕES NA
EDUCAÇÃO
2. Etnofenomenologia
Eu sei que o que vou escrever no início deste tópico não cabe no contexto em
que se inscreve. Sei, sobretudo, que em um texto dessa natureza as hipóteses definidoras
que chegam antes da pesquisa, pouco ou nada importam no resultado final do trabalho,
assim sendo, pule para o próximo tópico e me deixe aqui acompanhado por um ou outro
de carne e osso como eu, que, acima de qualquer perfumaria acadêmica, sente antes de
pensar e tem a desalentadora consciência de decidir necessariamente, ainda que, — hoje
me é claro... —, se dê à mentira tranqüilizadora de dizer ao mundo que dentre dois
caminhos distintos, escolheu livremente aquele que julgou mais aprazível. Acredito,
porém, que a responsabilidade pela escolha pessoal livre e consciente fira de morte
qualquer necessidade causal..
Por tudo isso é preciso dizer dessas águas em que naveguei. Do caminho que
correu em mim na fenomenologia e outras pedras e rochas nesse leito de “Rio Merleau-
pontyano”. Rio tal em que naveguei enquanto gota d’água, ora ajuizando ser espiral
num redemoinho, ora espuma na superfície, ora ter saltado nos choques, ora ter molhado
a seca, ora ter sido sorvido pela terra, chegando a ousadia de pensar que tudo isso em
dado momento fora escolhido por vontade própria ao longo do percurso, ledo engano
que a mentira tranqüilizadora impõe, mas, que a saúde responsável de um sujeito
emancipado restabelece!
O caminho já estava traçado pela geografia da percepção, por esse leito de rio
que a tudo define esquadrinhando em essências, rio esse do qual sou apenas a previsível
gota d’água em meio a pedras e rochas, choques, redemoinhos e espumas. Ao que pode
parecer, contudo, não falo em determinismo ou em fatalismo puro; estou falando na
“real profecia freireana” da Pedagogia da Indignação, onde o “futuro não é inexorável,
é problemático”, pois, ainda como nos diz Freire, “uma das bonitezas do anúncio
profético está em que não anuncia o que virá necessariamente, mas o que pode vir, ou
não” (2000, p.119); falo também da perspectiva de Bauman de responsabilidade pessoal
na escolha do mundo ético a ser seguido. Para a gota d’água a necessidade do mundo
93
das coisas é a problemática da vida diária, é a profecia que se anuncia na próxima curva
do rio. Ou no próximo toque do celular, mudança do semáforo...
Empreendi essa navegação porque precisava de um reencontro com a existência.
— nada oriundo de fossa, depressão... — foi por pura honestidade intelectual, perguntas
e mais perguntas, que por si sós, ainda são aparentemente trágicas a um homem feito de
26 anos — A desilusão do poder, o desmando dos homens maus, a febre que a injustiça
me causa, o incômodo que a inteligência provoca quando besuntada de engodos, o enojo
do palavrório, o enjôo de toda forma de ser sem se compreender, o fixismo
sobrenatural, o ponto arquimédico do mundo... Tudo fora convalescendo lento e
poderosamente, e mesmo o que crescia com viço de saúde intelectual estava
apodrecendo pelo efeito colateral das suspeições plantadas ao lado. As infiltrações entre
os vasos foram severas demais. E o ceticismo ético que a amoralidade impõe é
acompanhado da ruína do que há por dentro das sendas forjadas: Um mundo metafísico
que precisava ser (re)pensado.
Como conseqüência, mesmo a matéria do corpo perde razão pela dúvida da
realidade — e inelutavelmente o peso aumenta e a coluna começa a padecer... —, o
outro vira simulacro de um sistema que o alimenta sem que se perceba, nesse momento,
a verve de um pensador responsável sobre seu caminho, enerva-se num sentido circular
que volta sobre si sob a forma de desespero... Angústia! O encontro com a
fenomenologia foi decisivo — e mais uma vez necessário —.
Começando nos erros e acertos de um currículo acadêmico, de um curso de
formação de oficiais, o império da suspeição chegou ao patamar de: Por que tudo e não
antes nada? Com ela veio a agonia que Kierkegaard chamou de angústia (citada com o
mesmo sentido também linhas acima...).
Martelaram-me a angústia à exaustão, na medida em que os “credos seguros”
diminuíam a força para resistir às dores de um juízo de possibilidade de uma vida vivida
possivelmente em erro de perspectiva. À força, pelo aríete da razão, como um
chimpanzé domesticado (o mesmo de Diamond) fui saindo da jaula lentamente,
cansado, desconfiado, um pouco trôpego, retirando, eu próprio, as correntes que agora
via ao meu redor aprisionando outros macacos, que como eu noutros tempos, gastava o
tempo em disputas por saber quais delas brilhavam mais.
94
Mas o que é essa tal a fenomenologia então? primeiro posso dizer sem floreios
ou desgastes de compreensão que a fenomenologia é uma interpretação do real
(Critelli). Segundo, que a fenomenologia é um método filosófico, isto é, uma orientação
de visada do real com foco na perspectiva. Terceiro, que a fenomenologia incide no
estudo da relação entre o mundo da física e a consciência do sujeito (Ferraz). Que ela
questiona como se dá a absorção do real pela consciência, discutindo o que é a verdade
e o que é o ser. Merleau-Ponty no prefácio da obra “fenomenologia da percepção” em
certa altura resume bem os ideais, “[a fenomenologia] é a ambição de uma filosofia que
seja uma ‘ciência exata’, mas é também um relato do espaço, do tempo, do mundo
‘vividos’. É a tentativa de uma descrição direta de nossa experiência tal como ela é
(2006, p.1)”.
O debate ocasionado pela sua marca se instaura justamente neste ponto de
tensão: verdade e ser. Tensão tal que encontra seu apogeu no duelo severo com a
metafísica, pois, como a história da filosofia ratifica com auge em Hegel, só há uma
verdade e, há inexoravelmente o absoluto transcendental; isto é, o uno, eterno e
incorruptível do Platão reciclado... Em contrapartida na fenomenologia o que existe são
perceptos, perspectivas com alto grau de provisoriedade, mutabilidade e relatividade de
verdade (Critelli). O Próprio rigor e verdade são campos de força indefinidos na
fenomenologia.... — Pela demasia de termos, é hora de retomarmos pontos nevrálgicos
(sendo cartesiano o suficiente...) para elucidação do que fora apresentado acima.
A fenomenologia é um olhar sobre o mundo, ainda como disse acima: uma
visada no real com foco na perspectiva do sujeito. Um método filosófico por
excelência. E por que essa mediação circular em torno da natureza da fenomenologia?
Tudo isso porque o pensar do século XX foi o extremo decisivo de três grandes formas
de pensamento, a saber, o pensamento oriundo do senso comum, o pensamento
filosófico e o pensamento científico. Esses três grandes troncos de captação do real
foram supostamente (con)validados, em benefício de um tão somente, isto é, pelo pensar
científico. Devo dizer que outras formas de pensar foram literalmente inscritas e
dogmatizadas dentro do pensar científico, sob seus alicerces ajustadas, colocadas no
limite do discurso anti-filosófico como etapas prévias, degraus, órgãos vestigiais de uma
suposta constituição do pensar verdadeiro, isto é, do legítimo pensar científico, daquele
95
pensar que em última instância levou o homem a Lua e nos deu as máquinas de que
tanto precisamos.
As formas de pensar que não estivessem dentro dos limitados critérios de
cientificidade, ganharam um status pejorativo como a alquimia atualmente está para a
química, a astrologia para a astronomia etc. O plano de busca do real e, sobretudo, de
captação do real tornou-se uma briga pela posse do melhor discurso e, a essa altura,
todos sabemos qual deles sagrou-se vitorioso. A fenomenologia nasce como uma
alternativa sóbria e apartada nesse “jogo de poder” pela posse do discurso da verdade e
do ser; se estabelece como uma crítica a essa visão metafísica e científica, mas,
sobretudo, encampa uma lancinante compreensão do real.
Assim, a fenomenologia foi se constituindo como crítica à ciência
(mais especificamente à metafísica, considerada como a postura
epistemológica que a fundamenta) e, consequentemente, também a técnica
moderna (...) a crítica destas questões não consiste, evidentemente, apenas
em formulações negativas, mas na formulação de outros modos de se
compreender tudo o que existe e que já tinha sido significado pelo olhar
metafísico, tal como as noções de homem, mundo, corpo, percepção, história
(2006, p.08).
Esse apelo a um novo campo de olhar sobre o mundo, esse horizonte que se abre
com o lançar da perspectiva, além de ser uma fuga do mundo visto pelo olhar metafísico
bem como pelo próprio olhar científico é uma demonstração de que a realidade,
especialmente, a realidade social “não pode ser acolhida metodologicamente como fator
perturbante, que não deveria existir. O homem é ator, não consegue observar-se
neutramente e estabelece uma relação muito mais complexa que a da ciência” (Demo,
2007, p. 250).
2.1 O rito e seu alcance na construção do ser
Açucarar o amargo da exposição anterior, ou, dar-lhe sentido dentro de um
arcabouço teórico bem elaborado. Talvez, seja essa a intenção doravante. Se iremos
perder o enfoque prazeroso da leitura etno-literária, à custa das pausas digressivas dos
textos científicos correlacionados, é um ônus que teremos de arcar.
Pois, entender o rito a essa altura, não dá sinais de uma eventual falha na
cronologia da exposição, em contrapartida, terá justamente o mote de concatenar ao
plano “lógico”, possíveis estupefações apresentadas — e más digeridas — em pratos,
96
por ora, mais palatáveis. Ao mesmo tempo, corre-se o risco de criar tensão suficiente a
ponto de reforçar, posicionamentos já conquistados com a leitura anterior.
Todo rito tem um sentido de ser, possui uma explicação minimamente adequada
às origens de sua causa, de maneira que, acabam por moldar uma determinada ordem
social, ainda que intra corporis. Na esteira de Peter Berger teríamos a “explicação
minimamente adequada” como legitimação do controle social e, o dito “controle social”
representaria o sistema sob o qual o rito encontra sustentação de sentido.
O controle social procura conter as resistências individuais ou de
grupo dentro de limites toleráveis. Existe ainda outro processo centralmente
importante que serve para escorar o oscilante edifício da ordem social. É o
processo de legitimação (...) as legitimações podem, além disso, ser de
caráter cognoscitivo e normativo. Não se limitam a dizer as pessoas o que
devem ser. Não raro apenas propõem o que é (2004, p. 42).
Com efeito, ás exposições que aqui são — e foram, até o momento — narradas
constituem-se a maioria delas em ritos. Um rito de passagem, de acolhimento a um
grupo e de rompimentos afetivo-emocionais substanciais na esfera do ser, do sentir e do
pensar; já as causas originais, sobretudo, as de que trataremos com mais detença ainda
não temos qualquer mecanismo científico que as possa imiscuir ao sabor do aceitável,
crível e, solidário a conjecturas paralelas plenamente verificáveis, de sorte que, não há
teoria, em qualquer modalidade, que acolha como método de formação uma gama de,
por exemplo, assédio moral (humilhações), ultrajes físicos etc.
A grande tarefa em que nos debelamos quiçá seja investigar o processo de uma
possível, contra-educação na Academia de Polícia Militar Costa Verde (APMCV) em si
e por si só, entretanto, tal evento não é a coisa em si, propriamente dita, caricaturizada
na raiz de uma má ou boa conseqüência, precisamos antes submetê-la a um corpo de
hipóteses, variáveis que o rigor metodológico impõe, pois, a mera opinião não carece de
uma confiança transformadora do que está posto, mas, apenas suscita um leve
sobressalto, um calafrio ou um espanto — e não foi para isto que nos propomos —.
A fadiga física ou a execração mental não são um fim em si mesmo, são apenas
o meio termo entre um e outro degrau a ser alcançado por quem lança mão de tais
ferramentas, daí, não sairá a crítica pela crítica ou a singela constatação de uma
evidencia, de sorte que, responsabilidade maior não é colocar o dedo em riste da
97
condenação aos ordenadores do processo, mas, os apontá-los para uma nova maneira de
enxergá-los, inventando assim, uma nova concepção de formação profissional.
Quando essa pesquisa sair do prelo talvez não seja notado que um aluno oficial
da APMCV continue apanhando folhas pela madrugada, limpando azulejos por horas a
fio, sendo castigado “pagando flexões”, rastejando no concreto quente ou sendo privado
de sua liberdade nos momentos de lazer. Quem sabe até mesmo tais exemplificações
nem sejam dadas como anátemas da formação, e sim, chagas que o tempo, que tudo
abole, ainda não libertou o autor do passado que não mais existe.
Quando alguém bebe sangue de galinha ou enquanto dorme é acordado com uma
granada de luz e som explodindo, — como eu e meus companheiros fomos acordados
inúmeras vezes —, é preciso averiguar se eventos dessa natureza resultam de uma
criteriosa análise de relação causa-efeito (o que ainda, per se seria temerário) sobre o
sujeito que sofre essa experiência; dado que, isso supostamente já fora experimentado
outras vezes em circunstancias similares com resultados plenamente verificados a
posteriori — Evidentemente, não? Absolutamente não.
Ainda que, uma explicação submeta tais experiências a uma determinada ordem
de legitimidade científica estaria longe de colocar um ponto final no problema, afinal,
papel aceita tudo; e o que nos cabe é expor de maneira responsável o que ocorre (ou
ocorreu) além da fronteira do currículo e, nesse ínterim avocar a possibilidade de
paralelamente dizer quem são os policiais militares diante desse cenário. Ainda não
estou convencido de qual tarefa seja mais importante.
Sobre o rito, poderíamos dizer de início que todos nós sabemos que, o fiel que
fustiga o corpo não almeja recompensa material ou, que quem sobe Everest não quer
retorno financeiro por seu ato, entretanto, cremos que a formação básica do oficial de
polícia deve soar no acorde da missão de garantir a democracia e a expressão da
cidadania de um povo livre, de sorte que, o preço a pagar por tal exigência é a
construção de um profissional que acredite na humanidade que assegurará, fundado no
respeito que observa da instituição quando lida com sua própria dignidade, uma das
principais maneiras de as agregar valor.
Assim, a humanidade de outrem encontrará sentido se for achada no interior de
quem tem o dever de assegurá-la; para tal mister imperioso perguntarmos se é preciso
fustigar o corpo, subir ao Everest, ou, esfregar o chão por horas, catar folhas ou marchar
98
sob o sol do meio-dia... para assegurar tal nobre missão. Não seria necessário, em
contramão a tais ritos, dar ao ser humano o fundamento de sua existência que é a
mantença e promoção de sua dignidade inata? (Freire).
Dotar o encontro a que se submete o ser humano na formação básica de oficial
de polícia, de uma aura simbólica — metafísica — não seria confundir as finalidades a
serem alcançadas?
Se, para salvar uma vida e preservar a lei seja preciso a submissão do ser
humano a tarefas intangíveis logicamente, como flutuar equipado por horas num lago,
ser submetido a aflições físicas... Para outras, no entanto, tais processos são
desnecessários e, em muitos casos até nocivos.
O parâmetro que deve vincular o processo de formação do policial do amanhã já
não pode ser visto como lemas intocáveis, dado que o tempo passa aceleradamente e os
desafios que as polícias se deparam já não são mais os mesmos de um ano atrás ou,
quiçá de dez, quinze ou vinte anos atrás quando nossos coronéis ainda estavam sendo
gestados em suas Academias, sobretudo, porque vivemos uma era de transformações
sociais que se sucedem quase que simultaneamente a eventos de natureza distinta, ou
seja, é a alta do dólar que impele a economia nacional que verte a política de ações do
executivo que balança as diretrizes legais dos parlamentos que propugnam outras
exigências sociais através das leis que refletem um novo estereotipo de adolescente, que
exige uma nova ação frente a dinâmica das mudanças por partes dos aparelhos
repressivos... Tudo, absolutamente tudo é sistêmico e conexo a múltiplas facetas que
deságuam na realidade social, objeto de trabalho do policial.
A cidade cresce e com ela as periferias e por sua vez a violência, a população
economicamente ativa se expande e com ela uma massa de desempregados,
despossuídos e bestializados pelo sistema que só faz excluir, excluir e excluir cada vez
mais.... assim, todas essas contingências agrupadas em série e, instantaneamente
reproduzem-se na brutal competição entre as pessoas, no consumismo desenfreado, no
esfacelamento das relações éticas que são violências consensuais dentro da sociedade.
E, para aquelas violências — não consensuais — sobre as quais os homens se digladiam
na forma do que o código penal chama de “crime”, temos uma instituição que se
responsabiliza pela sua prevenção e repressão imediata, as polícias militares, formadas
por seres humanos que são demandas dessa mesma sociedade.
99
Talvez essa exposição devesse ser anterior a qualquer fala que se preste a negar
uma formação de policial que não seja humanizante em sua essência, uma possibilidade
de revolução, de ruptura dessa engrenagem maldita que só repete as contingências de
suas demandas num ciclo ad eternum.
Embora todo este processo de “aparente” contra-educação se constitua
“aparentemente” num rito que já não se esquadrinha aos desafios de nossa missão é
preciso fazer um contraponto necessário, daqueles que só um sujeito participante pode
se titularizar para defender, uma defesa que excede o entendimento formal e transborda
na paixão, essa arrebatadora emoção em estado crônico, essa perturbação afetiva
continua em torno de uma idéia fixa: amor a farda.
Quando encontro o aluno oficial que fui através das experiências que vivi, que
ainda sente o suor a espreitar os olhos nas corridas rumo ao “infinito”, que ainda
enxerga as mãos, joelhos e cotovelos em carne viva, que ainda sente o peso das
pálpebras durante as intermináveis noites em claro, dos longos minutos na posição de
flexão, dos finais de semana enclausurado, do fuzil cruzado ao peito no “olho de
tandera” durante o frio de julho no corpo da guarda, da alegria das liberações, do
sentimento de injustiça nas detenções... Todo esse processo extra-curriculo
indubitavelmente me fez ser quem sou.
Quem sabe só assim pude perceber a bênção de uma noite dormida sob um
colchão macio, bem agasalhado e protegido, só assim pude sentir o valor da liberdade,
da amizade sincera, do comprometimento e da responsabilidade que somente com toda
essa aceleração poderia fazer de meninos homens feitos, líderes de homens e mulheres
livres.
Talvez a pior dificuldade que terei nessa pesquisa seja precisar a diferença do
que é útil e necessário à formação do caráter do líder oficial de polícia do que seja uma
possível contra-educação, que venha a ser nociva por assim o ser ou por sê-la na medida
em que se torna um excesso da boa formação. Ademais, tal fato constituir-se num
escopo sem um quadro de referência conclusivo ou, posto a prova. Esta dificuldade se
revela a medida que a mesma experiência quantizada como negativa (traumática) para
determinado sujeito pode não o ser para outrem, por representar numa certa escala de
valores personalíssimos a tomada de uma posição de enfrentamento a um paradigma
moral travestido na superação de um limite pessoal, que, obviamente cauteriza a dor
100
com o timbre da vitória, da conquista, da própria superação em si, seria a contemplação
do sacro a subida a um degrau mais elevado da experiência espiritual.
O que nos habilita, entretanto, a pormenorizar tal dificuldade é analisar o
sucesso dos conseqüentes lógicos de um ou outro parâmetro de formação, de sorte que,
se para A ou B ser castigado fisicamente pode ter uma conotação diversa, positiva ou
negativa, é na esteira dos efeitos na atividade policial que veremos se tal parâmetro
“educativo” de que fora lançada mão é ou não necessário, muito embora seja aceitável
por A ou B, ou, por ambos. Tal problemática assente as ciências sociais evidencia-se
primorosamente na fala de Peter Berger em Perspectivas Sociológicas:
O quadro de referência do sociólogo será bastante diferente. Para
começar, sua perspectiva não pode ser o produto de códigos ou precedentes.
Seu interesse nas relações humanas existentes numa transação comercial não
tem qualquer relação com a validade legal de contratos assinados, da mesma
forma uma aberração sexual sociologicamente interessante pode não ser
passível de classificação numa dada categoria legal. Do ponto de vista do
advogado, a investigação do sociólogo é estranho a seu quadro de referência.
poder-se-ia dizer que, com referência ao edifício conceitual do Direito, a
atividade do sociólogo seja de caráter subterrâneo (2007, p. 38).
Esse “extraordinário construído pela e para a sociedade em oposição aos
acontecimentos que igualmente suspendem a rotina do cotidiano, mas são marcados
pela imprevisibilidade” (DaMatta, 1997:47) bem poderia representar o que se constituía
a vida “ritualística submundana” na APMCV. Pois, distintamente do que já era uma
ritualística por si só, em suma, envergar a farda, desfilar na parada militar, cultuar o
pavilhão nacional... havia, além disso, o que também se revestia de uma aura de ritual,
mas, diferentemente, não carregava o condão da previsibilidade e formalidade técnica.
Revestia-se, mais de um rosário imprescindível de etapas-rituais, sem as quais seria
imerecido ser aluno oficial. Essas etapas-rituais campeavam dentro de um calendário
completamente imprevisível, mas, não menos extraordinário. Nos dizeres de DaMatta é
o que chamaríamos de rituais formais e informais.
2.2 Cultura policial e poder. Um remate histórico-sociológico
Não tenho notícia de um texto (dito) científico que dê conta da exposição de uma
possível descrição etnográfica (e num referencial fenomenológico) do ser-policial
101
militar, se fosse publicado, ainda sim, venderia pouco... — é verdade e, além disso,
empoeirar-se-ia perdido numa prateleira qualquer.
É caso, diante desse cenário de escrever num ideal menos ambicioso, na
expectativa, quiçá, de que um herdeiro saudoso, vez ou outra, a contemple em visões de
sobrevôo, folheando-a displicentemente, nesses sábados chuvosos de fim de ano.
Objetivar-se a essa altura, lavrando com a escrita, o que entendemos como o espírito
que move o policial militar, ou seja, calçando-lhe os passos, vestindo-o; sugere menos
uma necessidade acadêmica na busca de um título, que uma responsabilidade de dizer
quem somos, ou, quem “fui-sendo” durante a vida.
Envergar a farda, é vestir-se de si mesmo. Difícil ver-se fora desse espectro
quem habituou-se com o tempo, a se ver tão somente dessa maneira e, a responder
socialmente de uma forma peculiar. Obviamente, que minha tarefa tornar-se-ia bem
menos onerosa, se tivesse sido o policial militar de trinta anos atrás, onde tal espectro
(aparentemente) era bem mais vivo, atualmente, entretanto, é preciso ser mais sagaz
para contribuir com tal descrição, o que revela, dentre outros fatores, uma contínua
transformação que, caminha à nossa visão, para o que chamo de uma refundação das
polícias militares.
Dando sequencia a viabilidade de tradução desse espectro, fundamental que
continuemos com o prisma da autoridade. Não há que se considerar ao longo da história
o que chamaríamos de “autoridade formal”, aquela restrita a uma ordem estatal
definida por normas legais e conhecida socialmente por todos. A autoridade a que nos
referimos é a construída sob o monopólio — legítimo — da força que as polícias
sempre tiveram como ferramentas de manutenção do poder que detinham, isto é,
representavam por uma classe. Daí salientar que, as polícias militares no andar da
história regularmente se converteram em autoridades sociais sob a égide da força bruta,
respaldado pelo estado policial e antidemocrático — em que pese os esforços
democráticos pós Constituição, essa é a gênese que a história remete as polícias (ver,
Fernandes 1988, 1995, 2001). A despeito dos cultos que mantinham e dos valores que o
sistema militar apregoava na disposição hierárquica dos postos, ou na disciplina interna,
jamais fizeram frente ao aspecto mais característico das policias militares ao longo da
história: a força bruta.
102
No intestino desse país não se conheceu autoridade mais vivaz senão aquela que
era forjada no cano da garrucha à sombra do bigode do Cabo ou do Sargento. Contumaz
ainda dizer que, as polícias ao longo da história desse país construíram-se na perspectiva
da força em primeiro lugar e, apropriando-se de uma ordem social hierarquizada que
espoliava o pobre e discriminava o negro, o índio e o mulato; não fora uma opção das
polícias, fora uma contingência da colonização.
No início se caçava índios para a escravização e, com o surgimento das vilas tais
corpos foram cooptados por uma ordem pensante devidamente institucionalizada pela
monarquia que recortou do quadro do Exército Português, nobres oficiais que segundo
um modelo europeu comandaria tais “corpos”.
A autoridade do policial nasceu sob dois signos, um institucional com os oficiais
e outro menos prosaico e mais duro com o que chamaríamos de praças posteriormente.
O treinamento, a roupagem ideológica a destreza militar e uma aura de “nobreza-de-
origem” deram aos oficiais de “gendarmeria” ou “lusófonos”, a representatividade de
homens em “quem se podiam confiar o destino dessas terras”, de maneira que, aos
corpos de execução, oriundos da ralé social (Souza), vitimizados por um sistema de
recrutamento protopenal eram os nada mais, nada menos degradados e “ébrios habituais
rudes”.
Na sociedade brasileira escravista e de classes bem definidas, esse protótipo caía
como uma luva, servindo aos coronéis do sertão, à nobreza de “sangue” e garantindo,
sobretudo, ao clero português a expansão do jesuitismo no Brasil; num ideal no mínimo
ocidentalizante. Superestimar o holocausto judeu na Segunda Guerra em detrimento do
extermínio indígena na América portuguesa e espanhola, é sermos incoerentes com a
história, como tão bem nos apontou Narloch em suas pesquisas; apontar ainda que, boa
parte do sanguinarismo das polícias advém desse histórico — o que de forma tão sutil
nos expõe Galeano em “As Veias Abertas da América Latina”, é colocar em discussão
uma hemorragia que não estanca e pouca gente está disposta a conter.
(Com)-preender o policial como um ser dissolvido em seu meio social não é
tarefa a que nos recorreremos para individualizá-lo enquanto ser humano, é justamente
o caminho inverso que trilharemos, dando sentido ao escopo das matrizes que
determinam seu comportamento peculiar dentro da sociedade pertencente. Não se trata,
todavia, de um reducionismo desbotado e infiel ao objeto pesquisado, trata-se sim, de
103
uma “especialização justa”, como nos aponta Geertz no excerto abaixo — Que retira (ou
isola) o policial do contexto onde qualquer estudo padeceria de substância fidedigna a
realidade.
É justamente a essa redução do conceito (...) a uma dimensão justa,
que realmente assegure a sua importância continuada em vez de debilitá-lo
(...) em prol de um conceito de cultura mais limitado, mais especializado e,
imagino mais poderoso, para substituir o todo mais complexo de E. B. Tylor
que (...) confunde mais do que esclarece (2008, p. 03).
A analogia querida não beira a sedução das notáveis e fabulosas aparências
superficiais, especialmente, quando aprumamos a lupa sobre o objeto. Ademais, parece
ser o próprio oposto, o luminar preciso (ainda que inconcluso) deflagrando das sombras
ás luzes das “verdades” mais intrínsecas do objeto pesquisado. Logo, assumimos uma
postura eminentemente Weberiana, na exata medida em que as leis que demandam
resultados, apreciações, formulações... são concebidas diante de circunstâncias ideais (e
não muito raro, únicas) durante a investigação, o que garante apenas (ao menos para
nós) “verdades” sacadas à partir de realidades artificiais o que deságua na mera
artificialização da “verdade”, de sorte que, uma visão Weberiana, na esteira
diametralmente oposta, mede a “verdade” (embora de uma “ciência inexata”, como diria
Gadamer) a partir do estudo das “teias de significação que o homem teceu” (Weber
apud Geertz, 2008, p. 04).
O recorte desse fluxo cultural, cuja fotografia aponta o policial como ente
individualizado deve ser analisado com detença, de maneira que, a partir de seus
mínimos detalhes possamos perscrutar os elementos constitutivos de sua existência
enquanto reprodutor de uma cultura particular. Essa singularidade não é evidente
somente teoricamente. Demonstraremos a frente que a singularidade existe, o que já é
um bom início para esta pesquisa. Entender a cultura como algo estático pode conflitar
com o que temos (no caso pesquisado) por noção de cultura, fruto de uma empiria
vivida e sagazmente descrita. Com efeito, a dinamicidade newtoniana, em contrapartida
nos encampa a possibilidade de um entendimento desse ciclo, de sorte que, traz consigo
a mudança dialética que evolui “através das colisões conceptuais entre os seres no
cotidiano”.
O evidenciado para nós é o recorte desse fluxo dialético que é o flash preciso
dentro de determinado espaço-tempo naquele sujeito, ou grupo de sujeitos em plena
ebulição cultural, ou seja, em pleno choque cultural com seus afins. Exemplificando,
104
poderíamos dizer que o oficial de polícia que se formou há vinte anos (1989) não é a
caracterização suficientemente adequada em relação aos oficiais que temos atualmente,
o que desbanca qualquer presunção estática no caráter de significação do sujeito no
âmbito de sua cultura social ou de grupo, a sugestão seria a dinâmica histórico-dialética
do processo de produção de cultura, que fatalmente seria a melhor resposta, pois,
inexoravelmente esse oficial de polícia do século XXI, em que pese com toda uma carga
de significação revista e, investido até de uma formação simbólica diversa, ainda tem
entrincheirado em suas concepções valorativas, sejam profissionais ou, até mesmo
éticas, fundamentos de uma cultura oriunda de outro cenário hitórico, que em certa
medida pode advir de seu currículo cultural, de seu cotidiano na caserna, ou de toda
uma gama de fatores combinados, expressos de uma maneira diversa travestindo a
mesma química numa nova fórmula.
Daí termos, oficiais de policia espraiando uma carga de significações vivenciais
histórico-político, traduzidos no reducionismo chulo: “bandido bom é bandido morto”,
bem como em posições ético-jurídicas do Estado Policial como: in dúbio pro societate,
presunção de culpabilidade, processo inquisitorial e etc.
Isso nos aponta, recorrendo-nos a Hegel, que o processo dinâmico engloba a
síntese de um movimento ternário que, ao se construir como tese já é, ipso facto, a
antítese de uma nova tese em formação que, nesses choques de contradição se aniquilam
dando origem ao novo, de maneira que, conforme apontamos, não se ajustam a cultura
policial plenamente, e sim numa “potencialidade ao revés”.
Ademais, o que colocamos sob análise para explicar a “cultura policial” à luz da
proposta de Hegel, é essa corrente contínua denominada “fluxo histórico”, que agrega e
num momento seguinte repudia, ao longo de um processo dialético-fenomenológico,
toda apreciação formadora do que comumente chamamos cultura do que é, ou, do que
foi, retratando o sendo como entrecorte do passado enquanto lembrança, do presente
enquanto pre-sença e do futuro como possibilidade; é esse ternário que define o
movimento da cultura no contexto em que podemos aliá-la a dialética hegeliana.
Um retrato unívoco de uma circunstância cultural que na qualidade de fluxo
representa a verdade de um momento, em sua evidente provisoriedade, ou como
preferimos um momento onde podemos enxergar a verdade em uma cultura, dentro de
um espaço-tempo.
105
Mas até onde o policial alcança o sendo além da farda? E, em que intensidade?
Acreditamos que, em que pese o policial encontrar-se dissolvido no seio social
representando papéis, ora o policial, ora o pai de família, ora o religioso... Calha sobre
as suas teias de enlace social, uma pesada correspondência da sua esfera de
pertencimento profissional e, nesse momento dialético, passa a desenvolver aspectos
comportamentais que o distingui dos demais, ainda que, nas mais díspares
circunstâncias sociais, sendo possível notar que mesmo na representação do pai de
família a prudência altiva do militar (quando escolhe o itinerário mais seguro para seu
filho ir a escola, ou quando escolhe um lugar a mesa em um restaurante ao ar livre) tudo
acordado a uma lógica cultural pré-consciente (Searle) estabelecida pela cultura policial.
Desse ponto de vista o policial sai do quartel, mas o quartel não sai do policial.
Essas vivências tendem a demonstrar um limite bem definido, entre a determinação da
consciência social do homem individualizado pela farda e do homem socialmente
construído através de várias tramas sociais, ademais que, o golpe cognoscitivo no ser
humano de farda seja mais impactante à medida que reverbera de forma mais acentuada
em outros papéis vividos pelo ser.
É comum ouvirmos de familiares — você mudou bastante desde que ingressou
na Polícia Militar... —. Alguns são mais incisivos, ou mais sinceros quando nos dizem
— você não era assim... —. Isso, necessariamente implica algumas observações que
inferem que a experiência sofrida deu ao ser um novo eixo de significações socialmente
convencionadas, de maneira que, é notável a mudança de quem passa a ter, por
exemplo, um vocabulário próprio.
Quando falamos em ente dissolvido em determinado meio social nos ocorre a
idéia de homogeneidade, referente a fatores singulares de cultura de grupo; ora, não nos
proporemos a particularizar o policial a ponto de não situá-lo em padrões de
correspondência com seus com-terrâneos e contemporâneos sociais; — Em que pese
isto ser perfeitamente possível.
Os estudos culturais, nesse ponto, podem trazer alguns esclarecimentos sendo
necessário dizer que a tal “cultura de grupo” reflete um novo estereótipo de descrição
antropológica do policial, dando assim a quem se aventura em seu desenlace social a
oportunidade de desvelar o novelo de toda uma estrutura significante, singela, no
entanto, particular.
106
Cabe neste ponto fazer uma oportuna digressão teórica acerca do termo cultura
de grupo, dado que, há quem afirme e, sustente que a dissonância social observada no
comportamento do policial não o titulariza como detentor de uma cultura particular ante
os seus conterrâneos.
Tal sustentação funda-se em algumas concepções equivocadas, vejamos: a) de
que o ser-militar é uma opção puramente profissional e b) de que o policial sequer
possui uma identidade militar, daí não ter status ôntico do ser-militar.
Falando do profissional em si, é oportuno informar que a experiência das
polícias militares no desafio da segurança pública, ao contrário do que alguns estudiosos
imaginam, é bastante recente41
, de sorte que, o maior mister dessas instituições ao longo
de suas histórias fora servir ao Estado na defesa interna através da repressão armada,
travestida na eufemística “manutenção da ordem pública”, durante longos anos fomos
relegados a busca e captura de escravos (colônia, período regencial etc..) a repressão de
levantes civis (república velha... canudos, cabanagem etc...) e nos especializamos no
que de mais intenso fizemos ao longo da história, desde Getúlio até Figueiredo em
1985, a famigerada polícia política, através do codinome getulista “Força Pública”.
Corroborando a mesma idéia temos as palavras singulares da profª. Jacqueline Muniz da
UFRJ:
Mesmo levando em consideração os distintos percursos históricos
das PMs de cada estado brasileiro, pode-se afirmar que, até os dias atuais,
foram poucos os períodos em que, de fato, elas puderam atuar como polícias
urbanas e ostensivas. Tomando de empréstimo a fala crítica dos segmentos
policiais identificados como "progressistas", pode-se dizer que "as PMs
foram muito mais uma corporação militar do que uma organização policial",
sendo, ao longo de suas histórias particulares, mais empregadas para os fins
de segurança interna e de defesa nacional, do que para as funções de
segurança pública (MUNIZ, 2001, p. 03).
Com efeito, é difícil crer que uma natureza de ordem não militar imporia
tamanha subserviência a uma instituição frente a “notoriedade” de serviços prestados ao
estado.
41
Para termos uma noção dos períodos antidemocráticos na história do Brasil: 1500-1822, Brasil Colônia (322 anos),
1822-1889, Império (68 anos), 1889-1937 “república” velha até 1930 e gov. provisório de Vargas até 34 e de 34-27
gov. “Constitucional” de Vargas, 1937-1945 Estado Novo (09 anos), ditadura militar 1964-1985 (22 anos):
Resumindo dos 508 anos de história temos 421 anos de períodos antidemocráticos ou seja quase 83% da história sob
julgo arbitrário e tirânico.
107
As polícias militares são essencialmente militares, pois, em seu bojo constitutivo
existe uma forte expressão de valores, ritos e particularidades que são peculiares aos
grupos militares e os são não por “opção gerencial-legal”, os são, porque em essência
assim se apresentam na tábua de seus representantes, policiais militares; quando se fala
em crise de identidade a tônica empregada é de que as polícias militares ainda não
sabem se são mais “polícias” do que “militares”, ora! Um grande paradigma foi
rompido com a constituição de 1988 e doravante as polícias militares passaram a operar
com novo fulcro, logo, a crise dita “crise de identidade” nada mais é que o ruído de uma
lenta e capenga adaptação das polícias militares a ideais democráticos e humanísticos
apregoados na Constituição; propor de sobressalto que as polícias militares antes da CF
de 1988 vestiam-se de paz na festa da guerra é sugerir uma falácia diante de uma
verdade notável: as polícias militares eram antes de 1988 uma versão moralmente legal
do ideal da proteção do estado, da proteção irrestrita a ordem pública e a sua mantença a
qualquer preço, à partir 1988 temos a lógica que passou a operar na via de proteção ao
cidadão e aos anseios da sociedade, desafio esse que ainda não foi entendido, no seu
caráter mais amplo, por muitas policias militares.
Ademais, todos estes fatores comuns temos ainda a singularidade dos universos
de cada instituição, nas mais diferentes unidades da federação brasileira que nos
colocam, em muitos casos, em pé de guerra com nossas próprias argumentações,
fragmentadas pelos contrastes que observamos nos diferentes modos de interpretar a
atividade policial; assim, certos caracteres se preservam em canto uníssono, dentro do
silêncio que extrapola a omissão, quase que afirmando que somos todos iguais ainda
em/com nossas diferenças; e isto, cabalmente me estremece. A banalização da tortura, a
demonização da corrupção, a brutalidade do processo de formação, o corporativismo
negligente... são todos satélites que gravitam na mesma órbita, às amarras de seu centro:
atividade policial.
Indicaremos a flexibilização de certos valores na proporção em que se dissociam
do trivial e do aceitável no plano jurídico-moral-cristão, dentro daquele espaço-tempo a
que pertence o policial. Nosso objetivo aqui é eliminar a perplexidade (ou abrandá-la)
diante de determinadas condutas que serão expostas, de sorte que, ao passo em que se
constrói o ser ao mundo o mundo passa a ser íntimo ao ser que se constrói, mesmo que,
se estarreça perante um ou outro modelo não muito ortodoxo a sua cultura particular.
108
Afinal, não é de se chocar (muito menos de incitar revolta) qualquer modelo
social que se edifique no prisma de uma cultura particular e exclusiva. A melhor
pergunta a se fazer diante dessa esfinge misteriosa não é se este ou aquele processo está
viciado, mas, se seus reflexos a exteriori, na atividade propriamente dita, atendem aos
fins que se destinam, independente se a voga empregada nos processos intra corporis
são, de fato, legítimos, o que numa análise fria é extremamente improvável. Trata-se de
uma moral utilitarista... Em última análise de um liberalismo no campo da conduta. O
ser-policial militar não é um fim em si mesmo, é apenas um vetor da busca pela
afirmação da democracia, dos direitos e garantias fundamentais do ser humano em
nossa época. Entretanto, algo nos prende a um passado não muito distante, ou, pergunto:
será que o ideal de cidadania é apenas um discurso?
Este posicionamento não é menos complexo do que aquele que coloca o policial
na simetria do homem vestido da cultura de seu meio social (aquele onde é pai, esposo,
munícipe...), postura que pode ocasionar resultados, apreciações e estudos distorcidos
sobre o policial enquanto profissional, dado que, antes disso é ser humano atingido por
uma formação de significação cultural distinta das dos demais, nesse diapasão,
compreender o policial significa capturá-lo dentro de sua esfera de formação, atividade
e, durante suas vivências no circulo comum (momentos em que responde aos diversos
vetores que informam seu modo de agir e sua maneira de pensar) e dissecá-lo
regressivamente até ao limite dos símbolos e signos que apregoam as matrizes de sua
existência.
Para tanto, torna-se essencial, num primeiro momento diagnosticar as
individualidades para depois fazer as devidas correspondências. Com efeito, o policial
exerce suas ações dentro de determinada lógica ou significação cultural que, via-de-
regra, operacionalizam suas ações ou verdades próprias, logo, trazer a tona essa veia
semiótica e destroçá-la é visualizar o policial no espectro do possível e do exigível a
alguém que sofrendo as amarras de suas tradições e valores responde de forma
particular a determinado estímulo; o policial assim, nada mais é do que um ente
formado da mesma substância, porém em dosagens diversas, que qualquer outro ser
humano, mas que, inexoravelmente, se apresenta como ser (particular) diferente dos
demais.
109
É momento de fazermos um contraponto. A abordagem expositiva a que me
proponho nesta pesquisa (talvez...) careça um pouco de isenção, de sorte que, o
desejável aqui é apresentar o policial ao mundo na visão de alguém que vê o mundo,
contudo, o mundo representado por nós nesse contexto, por ora, está contaminado pelo
policial (que nos torna particular) e não pelo ente do mundo que entrou na realidade
policial, para entendê-los e expô-los aos seus semelhantes. Complexo?
A contaminação é inequívoca; resta-nos debelar ao espelho a vertigem do ser-
policial exarada da própria experiência real de assim o ser. Cabe surpreendermo-nos
com o banal, indignar-nos com o superficial/trivial e marginalizar o que é tão correto
aos nossos olhos, banhando de selvageria o que é civilizadamente esculpido por uma
cortina de valores centenários; quiçá, mentir a si mesmo, na tentativa ingênua de
mostrar o real sob a neblina do irreal; colocar-nos no papel de algoz e vítima, traçando
uma exposição etnográfica de primeira mão sobre o universo em que se aprofunda. Por
ser humana a ciência em tela, égide desse estudo, ficamos com a resposta que o contato
por si só desencadeia a contaminação e o inverso, então, não faz pudico o texto, senão, o
torna mais cândido por assim humano ser.
Uma abordagem de fora pra dentro demove o pesquisador a entrar num universo
que não pertence e se vestir para um cenário que está a interpretar, em nosso caso,
somos uma voz em meio ao conluio de que fazemos parte. É como um xavante
apresentar a drástica impressão de suas liturgias a um cidadão comum da baixada, como
é possível causar a impressão (estupefante) ao interlocutor de algo que lhe é natural?
O “universo policial” é um cosmo complexo. Mesmo entidades transcendentais
são forjadas no campo de um folclore primitivo, a realidade de certos contextos do
mundo-policia. Esse “universo” Possui trincheiras culturais que ofertam caracteres
(armas argumentativas) individuais aos seus membros dando-lhes (munição) conteúdos
embasadores a situações descabidas (em muitos casos ilegais) fora daquele
microcosmo. O contexto, na via da interpretação, dificilmente se iguala quando
situamos o policial e os demais membros de sua sociedade; — Como que ter prazer na
prática da tortura e legitimá-la sabe-se como... (eu sei) numa “lógica” coerente e
moralmente aceitável para ele (o policial).
Quem sabe seja essa a nossa tarefa neste trabalho: apresentar as possibilidades
interpretativas desse comportamento desviante em que o resultado ser-policial saca
110
diante dos mais variados estímulos que sofre na atividade. Uma interpretação cingida
especialmente na cultura de grupo e na formação; tudo para destrinchar as chamadas
atrocidades, absurdos... numa análise direta seria “explicar” o errado pelo certo ou vice
versa... Respeitando a análise que se faz pela interpretação amiúde das variantes que
sente e, que quase religiosamente tem o dever de responder ao sabor de uma ótica que
apresentamos.
Ninguém aqui quer legitimar, em último grau, a violência policial. Ninguém se
daria a esse trabalho em sã consciência; o que se pretende é legitimar (do ponto de vista
das ciências humanas) os motivos que levam o policial a assim se determinar, e estes
são fatalmente defensíveis! Até porque, como cobrar meiguice de um cão treinado para
matar? Literalmente um cão de guerra, como na canção que entoávamos a plenos
pulmões na Academia,“sou um maldito cão de guerra, treinado para matar, mesmo que
custe a minha vida a missão será cumprida...”.
Sinteticamente podemos dizer que o primeiro contato do policial com a prática
ilegal é o encontro com a violência. Esse contato acontece bruscamente,
paradoxalmente ao seu processo explicativo que requer alguns entendimentos e
elucidações prévias, como: a) o poder na ótica do policial, b) o exercício do poder e c)
uso da força como meio de imposição do poder. Para compreendermos essas três
questões precisamos destrinchá-las no âmago de suas concepções sociológicas, antes,
porém, de explicarmos a ótica do policial (visão) expliquemos o estrabismo ocasionador
da ótica distorcida.
Em sociologia entende-se (embora, os conflitos teóricos sejam deveras robustos)
que o surgimento da sociedade prescinde de alguns requisitos sem os quais a “com-
vivência” (vida em comunhão) entre os homens se tornaria impraticável, de sorte que,
tais requisitos são os sustentáculos da sociedade, princípios aceitos pela pluralidade
como estacas demarcadoras do certo e do errado. Rousseau, o grande pensador suíço,
baseou-se em uma dessas estacas para encampar o pensamento de algumas de suas
obras, erigindo a propriedade como fundamento mater da injustiça social ou mais
especificamente como o motivo gerador da desigualdade entre os homens, vê-se uma
relação “causa-efeito” singular no curso da história das ciências sociais em que um
pensador dinamizou uma problemática à partir da gênese da questão, concluída por
Rousseau como sendo a propriedade a força motriz da desigualdade entre os homens.
111
Para boa parte dos cientistas sociais uma sociedade depende para existir basicamente de
normas, regras, códigos éticos-morais e leis que unifiquem o limite do exercício da
atividade dos homens, buscando-se assim a dita “com-vivência” harmoniosa, tais
regulamentos a curto, especialmente o modo de produção vigente, culmina a médio ou
longo prazo (não por si só, mas pela complexa teia de interação homem-norma-
economia-política) diversos fenômenos como a miséria, a violência bem como a própria
desigualdade em sentido latu (desigualdade de bens, de capital, de moral, de valores
etc.) tão pormenorizada por Rousseau.
Dado a essa desigualdade desencadeadora de fenômenos sociais é que temos à
margem da aceitação plurilateral do poder constituído movimentos, podemos assim
dizer, teóricos (também chamados de utópicos) que informam uma vida desapegada a
qualquer regra de convivência, uma vida sem qualquer convenção social, sem limites de
expressão da vontade humana, ou seja, uma vida eminentemente presa, única é
exclusivamente, à obediência a natureza livre do homem, para tais movimentos fora
dado o nome de anarquismo que no curso da história teve concepções ideológicas
diversas, originando-se na Grécia de V a VI AC com os Cínicos e os Estóicos,
posteriormente frutificou-se no Cristianismo e seus grandes teóricos (Santo Agostinho)
e chegou ao apogeu ganhando formas diversas desde o extremismo (Bakunin) ao meio
termo, (Proudhon) do radicalismo (Stirner) ao consenso partidário (Marx).
Essa negação do poder, em parte, explica sua má utilização, pois, temos ao longo
das mais diversas experiências sociais conhecidas não o uso do poder, mas seu abuso,
constituindo na maioria dos casos uma relação de exploração-dominação de homens
sobre homens, o que, via de regra, não deveria ocorrer. Entender esse ponto em ciências
sociais é lançar mão de um leque de teorias que buscam dentre outras coisas explicar de
forma fundamentada as inúmeras matizes do termo poder, daí buscarmos tão somente o
entendimento que subsidie ao leitor compreender porque o policial encara o poder como
uma ferramenta de dominação e exploração de seu próximo e não como um dever
adquirido, uma responsabilidade a ser desfrutada. Por isso, quando se fala em
anarquismo têm-se a primeira impressão de “contra-sistema” de “anti-sistema”, sendo o
anarquismo (Teórico científico) nessa pesquisa mostrado apenas como uma manobra
intelectual e política em resposta a alienação do poder, a alienação do capital e da
propriedade.
112
A noção de Estado carrega a idéia de soberania (Dallari), e não há como fugir
disso, e não são raras as ocasiões em que ouvimos as locuções “Estado Soberano” ou a
“soberania do Estado” trazendo em seu bojo essa conotação, daí compreender que
àqueles que dessa estrutura são partes viventes dispõe para o exercício de suas
atividades de determinado poder de mando não é nenhuma novidade, entretanto, o poder
que informa a legitimidade do “mando” é que torna o estudo mais aprofundado, dado
que, para determinados Agentes do Estado esse poder representa bem mais que um
respaldo sobre determinada ação, mas, um respaldo para a repressão, para a coerção,
para a restrição em muitos casos absoluta de Direitos das pessoas em geral (Meirelles).
Com efeito, é possível dizer que o poder que informa a atividade policial é
absorvido e cultivado como um poder deveras mistificado, um poder com fisionomia
tirânica o que conseqüentemente ao mal formado policial denota em muitos casos no
modelo que veste sua aspiração mais despótica. Mas o que há de errado com o “poder
de polícia”? Tecnicamente não há nada de errado com ele, sua compleição jurídica atual
o transformou num razoável e aquilatado poder — facultas — do Estado frente aos
interesses particulares em beneficio do interesse público, dessa forma, não há que se
olvidar de sua feição técnico-jurídica, em que pese ocorrer um sério problema na
nomenclatura já contestada por alguns juristas.
O que vem ao caso para o policial em sua noção de poder, não é nem nunca foi a
magnitude ou a compleição jurídica do poder de polícia, de sorte que, raríssimos
policiais poderiam, sem titubear, dizer quais são os atributos do poder de polícia ou
dizer ao menos o que é, ou, para que serve o dito poder de maneira técnica ou ao menos
convincente; — Não, definitivamente não é esse o problema. O problema que cabe
ressaltar faz referência ao binômio tão cultuado pelo capitalismo: Exploração-
dominação, esse é o cerne da questão, pois, a busca do oprimido em sair dessa condição
o transforma, inexoravelmente, num novo opressor em maior ou menor grau (Freire),
independente da sua vontade, pois, essa é a lógica do capitalismo.
Agora, o que podemos discutir são as formas de como o poder é interpretado ou,
os meios pelos quais são absorvidos pelo policial, pois, vejamos: um policial armado
não está para o cidadão numa relação direta de imposição de autoridade e sim para
defendê-lo caso algo ou alguém obste a execução de seus direitos; não há poder, mas,
sim um dever; continuemos: um policial não determina que o seu veículo pare porque
113
tem poder para tal, mas, sim porque alguém em um carro semelhante ao seu (abordado)
poderá impedir que o você continue a trafegar sem problemas; há uma relação de
servidão (servir) do policial para com a sociedade, para com as pessoas que em último
caso com a própria vida deverá defender.
O policial em tese tem ciência desses conceitos, entretanto, o seu contato na
realidade prática o faz enxergar um poder demasiadamente limitado a demonstração
abusiva da força e da coerção, como explicaremos a seguir.
O ambiente da caserna policial reflete as tradições adquiridas pela tropa ao longo
da história. Mitos são construídos e, verdadeiras lendas nascem e são repassadas aos
novos policiais perfazendo um ciclo que cultiva e promove valores simbólicos dentro da
corporação que acabam por constituir no curso da história a cultura do grupo. O
Sociólogo R. Linton pesquisou a fundo em seu livro The study of man a estreita relação
existente entre a personalidade de um indivíduo e a cultura do meio ao qual pertence:
A cultura na medida em que representa algo mais do que uma
abstração construída, só existe no espírito dos indivíduos que formam uma
sociedade. As características que possui advêm-lhe das personalidades
desses indivíduos e da interação dessas personalidades. Inversamente, a
personalidade de cada indivíduo é elaborada e funciona em permanente
associação com a cultura da sociedade. (1968, p.491) [grifo nosso].
Ademais que as teorias por si só fundamentam a realidade observacional,
infelizmente nas polícias os “heróis” (personalidades que geram cultura, segundo
Linton) geralmente são aqueles que mais ceifaram vidas em combate, são aqueles que
mais promoveram em sua respectiva esfera de ação, mais temor!Devido a imposição da
crueldade e do medo.
São honrados os policiais que abatiam pardais disparando canhões, eufemismo
do que seria executar a sangue frio criminosos capturados e rendidos. No interregno
dessa constatação é bom lembrar que exemplos elevados de humanidade também são
cultuados, entretanto, na grande maioria não com a mesma magia simbológica. Esse
raciocínio levará a uma pergunta cuja resposta é inconteste, qual polícia não tem um
“assassino fardado” cuja lenda é motivo de orgulho dado sua representatividade social e
institucional?
Logo, o poder na ótica do policial é cultivado na exegese da brutalidade, da
truculência e do temor. Ocorre uma encarnação pelo policial desse modelo cativado,
114
como no protótipo de Wittgenstein, que em seu livro Investigações Filosóficas nos
informa com o exemplo das peças de xadrez que são “investidas de poder aos olhos do
jogador que as enxerga como uma encarnação viva das regras do jogo”, assim o é o
policial, uma encarnação viva dos “mitos” que absorve em seu íntimo como estereótipos
ideais, pois, pela tropa são cultuados. O valor realmente adquirido é aquele que
determina em primeiro momento uma ação rude e agressiva num plano inicial ao
criminoso e com o passar do tempo o critério torna-se elástico, chegando atingir ao
próprio cidadão.
Dessa forma, olhando intencionalmente dessa perspectiva, é difícil esperar outra
maneira de exercício do poder senão o ilegal, o desprovido de técnica e
proporcionalidade. Assim diante de qualquer cena de ação o policial tem em sua mente
somente o espectro da imposição de autoridade, da afirmação da supremacia que
supostamente possui em detrimento do cidadão. Consentâneo a isso carreia o uso ilegal
da força que é a violência em seu estado puro.
Acreditar na coerência desse processo de inserção a violência é crer que o
próprio termo “coerência” não pode ser o principal teste de validade de uma descrição
cultural. Os sistemas culturais têm que ter um grau mínimo de coerência, do contrário
não o chamaríamos sistemas, e por meio da observação vemos que normalmente eles
têm muito mais que coerência, possuem toda uma engrenagem “justificadora”
determinante de cada mecanismo de transmissão de cultura.
2.2.1 Contra quem? A cultura policial como aparelho ideológico do Estado
Quero reduzir aqui um pensamento de Marx propondo que a existência sócio-
cultural é uma produção material do ser humano. Acautelo-me, por motivos de fôlego
na leitura marxiana, a acompanhar o pensamento integral de Marx que diz, que “a
própria existência é uma produção material do homem” (Collin apud Marx, 2008,
p.86). Mas, para o que pretendo a redução proposta parece ser pertinente quando
alicerçada aos pontos: 1) porque o ser humano é um ser natural; 2) porque não vive fora
da história; 3) porque homens e mulheres produzem seus espaços e, sobretudo, como
nos aponta Braudel o cultivo do arroz ou trigo dará duas civilizações diferentes...
Fundamentemos os pontos na perspectiva de desenhar uma tese ao fim.
115
O tema central cujo conteúdo envolve o primeiro ponto: o homem como um ser
natural, remete diretamente ao pensamento freudiano cujo escopo teórico encontra-se
diluído em diversas obras, especialmente, em “Totem e Tabu” e “O mal-estar na
civilização”; tais obras em conexão direta com o marxismo de Herbert Marcuse exposto
em “Eros e Civilização” dão o devido o tom ao argumento que sustenta nossa tese.
Marcuse inicia “Eros e Civilização” com uma descrição aterradora logo no
início do livro:
O conceito de homem que emerge da teoria freudiana é a
mais irrefutável acusação a civilização ocidental — e, ao mesmo
tempo, a mais inabalável defesa dessa civilização. Segundo Freud, a
história do homem é a história de sua repressão. A cultura coage
tanto a sua existência social como a biológica, não só partes do ser
humano, mas também sua própria estrutura instintiva. Contudo,
essa coação é a própria precondição do progresso (1999, p.33)
[grifo nosso].
O que Marcuse nos reporta na passagem acima é perturbador, pois,
aparentemente deflagra um cenário de desolação a humanidade civilizada, de sorte que,
ao centrar o progresso na contramão da re-afirmação do ser humano enquanto ser
natural e, naturalmente jungido à seus instintos, deixa claro que progresso e natureza
humana civilizada são universos incompatíveis. Tal “choque de acordos”, para
Marcuse, tem sentido porque a cultura não pode consentir a gratificação de forças
destrutivas entre si e diz mais, “a civilização começa quando o objetivo primário — isto
é, a satisfação integral das necessidades — é abandonado” (1999, p.33).
Freud chega à conclusão da qual Marcuse alude, de que: civilização e natureza
humana são implicações destrutivas entre si; quando, em “O mal-estar na civilização”
pergunta acerca da finalidade e intenção da vida humana, dizendo “o que [os homens]
pedem da vida e desejam nela alcançar?” (2010, p.29). A resposta vem logo em seguida,
“eles buscam a felicidade”.
116
3. Uma história marginal
Quem se habituou a estudar “polícia”, já fica nauseado ao ler, logo no início das
pesquisas monográficas quando, versando sobre história, os monografistas começam:
“As polícias, do grego polis, surgiram com o advento da própria concepção de
Estado...”. Nessa repisada “cosmovisão”, engalfinham-se “historiadores” de ocasião, na
tutela de quem foi mais longe na linha do tempo, na incessante busca em encontrar
vestígios do que eventualmente seriam, os rudimentos mais longínquos, do que quem
sabe, seria a versão atual de “polícia”.
Cobrem a história-crítica, com conotações paralelas remotíssimas, muitas delas
bem pitorescas por sinal, algumas egípcias, outras gregas, babilônicas... Tudo, na sanha
de “explicar”, o marco histórico dos corpos policiais, sempre — com emprego de
termos em latim obviamente... — e cada vez mais, tornando o texto hermético.
Esse lugar-comum, em que solenemente repousa boa parte da historiografia-
monográfica-policial-brasileira, onde as exposições históricas beiram um
encadeamento lógico causal do tipo tijolo a tijolo, vindo do alicerce à superfície, tem o
condão exclusivo — ainda que inconsciente à certos pesquisadores — de reafirmar um
dogma positivista, que neste contexto, enxerga a sociedade — e as instituições — como
um grande organismo, onde cada instituição tem sua função e, opera segundo uma
determinada finalidade. Em última suspeita desconfio de um discurso oficial engajado.
Assim, tais historiadores funcionais-positivas, coligem roteiros de investigação
desconexos da dinâmica sócio-cultural vigente à época, calculando em suas análises,
fatos sociais e políticos pretendidos como históricos, como que absolutamente
insuspeitos à atmosfera política e social circundante. Por conseguinte, atendendo a um
rol de quesitos inquisitivos, interpretam a realidade histórica de forma organizada, linear
e fundamentalmente auto-evidente.
Quando o Estado português42
foi, literalmente, escorraçado de seu solo, acuado
ante à aríete napoleônica, vindo para o Brasil em 1808, já funcionava por aqui uma
articulada máquina burocrática. Ademais, além de fixar-se no Brasil, sobretudo, fixava a
42 “A obra de consolidação da monarquia portuguesa, condicionada pelo capitalismo político, chegará ao seu ponto
culminante por meio de uma revolução, a mais profunda e a mais permanente de todas as revoluções que varreram a
história do pequeno reino (...) na segunda metade do séc. XIV, uma velha camada, a aristocracia territorial,
subitamente fortalecida, procurava afirmar, com exclusividade, seu domínio político. De outro lado, a categoria mais
rica, a burguesia comercial, longamente associada a Coroa (...) o dilaceramento dessas duas facções deu origem ao
Estado Português conquistador, com o perecimento da dinastia afonsina e assunção da dinastia de avis.” (Faoro,
2001, p.45)
117
corte por aqui o contínuo esforço para legitimar a conquista portuguesa em todos os
campos, sejam eles, econômico, social, político ou ideológico e, em absolutamente
todos estes aspectos, possuía a mente absolutista do monarca português, o viés de
amortizar nestas terras, qualquer fundamento original para uma possível soberania.
Agindo assim, via de regra, como um ente dominador bem aos moldes do absolutismo
europeu do séc. XVI.
3.1 Vestígios de uma organização burocrática
Em 1808, já existia também por aqui funcionando a plenos pulmões, uma
divisão administrativa regular, dividida em três ramos básicos: a militar, a de fisco e a
de justiça. A que nos interessa, neste momento, é a militar, de sorte que, para
caracterizá-la, não basta tão somente, entendê-la como cópia fiel dos regimentos
militares que existiam em Portugal baseados no modelo francês desde 1760, nomeadas
aqui no Brasil como tropas de “primeira linha”. Compostas em sua maioria por militares
portugueses, especialmente nas funções de comando.
Tais tropas — chamadas de primeira linha —, eram completadas através de um
recrutamento violento, com um contingente de párias brasileiros, especificamente de
cor branca em sua esmagadora maioria. Conforme Rosemberg:
O recrutamento, além de prover as forças armadas com mão-de-
obra, era empregado como instrumento de punição, correção e controle
social, uma vez que o exército e a marinha foram o sumidouro de
milhares de indivíduos considerados “indesejáveis”. O exército, inclusive,
teria funcionado como uma “instituição protopenal”, em substituição a
instancias judiciárias, para se ocupar, de um lado, de desordeiros e
perturbadores da ordem pública — através do recrutamento — (...) em
paralelo as campanhas de recrutamento eram violentíssimas e expunham um
sistema odioso de barganhas, privilégios e compromissos, de que não apenas
o Estado, mas todo o corpo social, e mesmo a população pobre, portanto
alvejada pela conscrição forçada, se valiam para punir inimigos e facilitar o
escape dos aliados (Rosemberg, 2008, p. 54) [ grifo nosso]
Ainda, dentro da organização administrativa militar do Brasil colônia, tínhamos
as milícias e as ordenanças. As milícias eram as ditas tropas auxiliares, seu
recrutamento era menos seletivo, porém, forçado e, o serviço obrigatório e não-
remunerado, predominantemente nessas tropas havia a grande massa de espoliados do
regime, miseráveis em sua quase totalidade. As ordenanças nada mais eram no contexto
do Brasil colônia, do que todo o contingente masculino entre dezoito e sessenta anos,
118
exceto os padres, que excepcionalmente deveriam ser convocados diante de uma
celeuma da ordem nas províncias. Em Mato Grosso as ordenanças constituíram o
prelúdio formal da atividade própria aos corpos policiais do séc. XIX e XX
Com a recém criada Capitania de Mato Grosso, desmembrada de
São Paulo, Dom Antônio Rolim de Moura, 1º Governador, criou e organizou,
em 1.753, a segurança pública na capital Vila Bela, com o nome de
COMPANHIA DE ORDENANÇAS, com 80 (oitenta) homens. Dezesseis
anos mais tarde (1.769), no governo do Capitão-General Luiz P. de Souza
Coutinho, é transformada em FORÇA PÚBLICA, com o efetivo de 620
(seiscentos e vinte) homens, dos quais mais da metade da Companhia de
Ordenanças (1).
Durante todo o Brasil colônia constituíam as forças armadas ou, tropas de
primeira linha, a própria encarnação da aristocracia portuguesa, vejamos nas palavras de
Raymundo Faoro:
Na fase colonial e na fase autônoma (...) constitui a força armada
um ramo da aristocracia — o ramo mais, relevante, definido na supremacia
da guerra, coetânea à formação do reino — responsável pela disciplina e pelo
conteúdo português da unidade territorial do apêndice brasileiro. O oficial,
preparado para a guerra nas escolas somente abertas à nobreza, não se
especializava em atividades militares, servindo em todas as funções de
comando político. Não era ele recrutado nas camadas dos senhores
territoriais, despidos, muito cedo, de seus poderes pretensamente derivados
do feudalismo, mas na categoria dos descendentes dos servidores
monárquicos. Bastava para legitimar ao título de cadete, o sangue ilustre,
abrandada a exigência, no curso do tempo, para a ocupação nobilitadora do
pai, equiparados os títulos universitários à nobreza (Faoro, 2008, p. 535)
[grifo nosso].
3.1.1 Aristocracia, espada e ruptura
Esse cenário, que dava conta de um Exército eminentemente aristocrático,
possuidor de uma “singular nobreza de origem”, refletia a própria conjuntara social
estabelecida à época, onde pertencer ao oficialato do Exército era pertencer à própria
nobreza. Para asseverarmos ainda mais o papel no contexto sócio-político vigente
durante o período colonial, interessante citar Boris Fausto na passagem:
Entre as figuras de cúpula, destacavam-se os governadores de
capitania, especialmente os das mais importantes. Acima deles, ficava o
governador geral (...) a partir de 1763, quando a sede do governo foi
transferida da Bahia para o Rio de Janeiro, tornou-se comum a outorga ao
governador-geral, pelo Rei, do título de Vice-Rei e Capitão-General de Mar
e Terra do Estado do Brasil (Fausto, 2008, p.143). [grifo nosso]
119
Esse estreitamento de significados entre a nobreza e as forças armadas,
explicitadas no contexto português, demonstra-nos claramente que durante todo o
período que antecedeu a independência do Brasil (e continuou seu curso
posteriormente), constituiu as forças armadas e, especificamente o Exército, num co-
responsável direto pela mantença (e manutenção) dos ideais monárquicos, ademais, na
mais evidente manifestação de poder político nos limites da coroa.
A citar pelo número de cargos ocupados em nível de comando, ou, pela outorga
de títulos hierárquicos a nobreza — através das prestigiadas escolas militares, abertas
somente a fina flor do Império — enquanto alta honraria, podemos dizer que a
monarquia no Brasil usava espada. Corroborando tal raciocínio, assevera Raymundo
Faoro:
O oficial, preparado para a guerra nas escolas abertas somente a
nobreza, não se especializava em atividades militares, servindo em todas as
funções de comando político. Não era ele recrutado nas camadas dos
senhores territoriais, despidos, muito cedo, de seus poderes pretensamente
derivados do feudalismo, mas na categoria dos descendentes dos servidores
monárquicos. Bastava, para legitimar-se ao título de cadete, o sangue ilustre,
abrandada a exigência, no curso do tempo, para a ocupação nobilitadora do
pai, equiparados os títulos universitários à nobreza (Faoro, 2001, p. 535) [
grifo nosso].
Esse, digamos, prestígio da carreira militar era condizente com numerosos
exemplos históricos, grandes personalidades do Império que, alijados à monarquia pela
estreita porta que dava acesso ao Exército notabilizavam-se por seus postos e títulos.
Como o Duque de Saldanha general aos vinte e oito anos, o Marquês de Barbacena
general aos trinta e nove anos e Caxias, general aos trinta. Cite-se ainda, os marqueses:
de Maracaju, de Herval — mais conhecido como General Osório — e o Barão do Rio
Apa, todos oficiais do Exército.
A história por sua vez, bem como todo seu aparato conglobante (política,
sociedade, economia, cultura etc.) em contraste ao passado, determinaram uma gradual
suavização dos elementos aristocráticos do Exército, culminando no que podemos
nomear como uma ruptura do Exército com a nobreza propriamente dita. Ao longo de
um século (1800-1900) esse fenômeno se esgarçou, conforme se lê:
A cooptação aristocrática atenua-se a partir de 1824 com a
necessidade de concurso de capacidade, para que o cadete passe a oficial (...)
120
no meado do século, uma mudança fundamental: os recrutados à força ou os
voluntários, depois de permanecerem algum tempo nas fileiras, podiam
matricular-se na escola militar, galgando o oficialato. “isso significou” —
esclarece um estudioso do assunto — “um poderoso fator de diferenciação
para a sociedade daquele tempo. (...) a população livre desprovida de
recursos estava emparedada, de um lado, pela classe dos senhores rurais, de
outro pelos escravos, sem maiores meios portanto de ascensão social. Agora,
enquanto os moços das famílias abastadas em regra davam preferência às
profissões liberais, indo se formar bacharéis na Universidade de Coimbra ou
em outras capitais do velho mundo e retornando de espírito mais arejado para
a compreensão dos problemas políticos e sociais, os moços pobres, os
mulatos procuravam as fileiras do Exército, para se fazerem oficiais (Faoro
apud Costa, 2001, p. 536).
Mas como entender essa pretensa ruptura? Como avaliar esse divórcio histórico
sem entender a motivação do enredo? Para tanto é preciso esforçarmo-nos para a
seguinte compreensão: a forja da independência do Brasil, a constituinte de 1824 e o
sete de Abril de 1831.
Dentro dos limites em que me permito palpitar cientificamente, o advento da
independência do Brasil, apoiado no que se permite entender pelo nome de “contexto”
vislumbrado à época, constituiu-se numa piada de mau gosto. Por conseguinte,
entrementes ao tema proposto por nós, a pergunta à esta altura com a leitura do texto é:
o que isso tem haver com a história da PMMT? Basicamente, tudo.
Com a independência e o sete de Abril (abdicação do trono por D. Pedro I), as
idéias ilustradas ganharam florescimento máximo no Brasil, de sorte que, a ilação
posterior mais lógica é a de que, tendo o Exército a própria natureza da monarquia
ilegitimada enquanto poder e, já superada pela voga das Luzes de Rousseau e
companhia; teria sido o Exército colocado a escanteio, longe das tomadas de decisão.
Tudo mentira.
No cenário estudado, caracterizam-se o iluminismo, a independência, a
constituição de 1824 e a abdicação de D. Pedro I em estratagemas conjunturais que
serviram de suporte a projetos de poder. Imbuídos na escala ao poder, um artificioso
projeto liberal deu a um grupo de intelectuais (José Clemente Pereira, Gonçalves Ledo,
Januário da Cunha Barros, Diogo Feijó, Bernardo Vieira de Vasconcelos, Evaristo da
Veiga e praticamente toda a maçonaria carioca) e altos funcionários da época, o condão
de redimensionar os valores de uma nova pátria a um modelo que garantisse a unidade
moral do povo brasileiro. Obviamente que todo esse redimensionamento daria-se a
121
contragosto do Império que, dando sinais de absoluta aura portuguesa, insistia em
silenciar o sentimento de um povo que já tinha elementos eminentemente nacionais.
Claro, o nativismo dos intelectuais por mais bonito que seja nesse jogo de poder,
em nome de um suposto sentimento nacional, não era o eixo fundamental da
insatisfação com o Império, possuía sim também seu preço, partido político e interesses
particulares.
Tocado pela filosofia da corrente liberal, porém bem mais sensível as suas
próprias conclusões internas, a ideologia do Exército, absurdamente espoliado pelas
campanhas platinas, teve sua inversão conceptual ideológica a partir da dissolução da
Constituinte democrática que D. Pedro I ameaçado mandara dissolver com o braço forte
da primeira linha, talvez o último ato de fidelidade da “tropa de sangue real” com o
imperador. Tropa essa, ainda comandada por generais portugueses, que ancorados num
monarquismo falido não participavam dos combates, onde, brasileiros aos frangalhos,
adquiriam com o preço da vida um caráter nacionalista.
A inversão ideológica foi inevitável. O Exército assim aspirou e conspirou para a
queda do Império despótico, leia-se, o Exército de brasileiros, recrutados com violência
nas capitais e no intestino das matas do Brasil. Em todo esse cenário os únicos
genuinamente comprometidos com a possibilidade de democracia e, os mais ávidos por
ela.
O exército não era mais o instrumento obediente ao imperador,
como nos dias de novembro de 1823 (...) a campanha do sul infundira-lhe
espírito de corporação e lhe comunicara espírito patriótico, nacional, pronto a
participar, pelo nativismo, das causas propostas contra o portuguesismo de
camarilha real. Seus oficiais superiores não eram apenas os chefes
hierárquicos, mais lideres ressentidos com a assistência negligente que lhes
pretara o grupo político dominante, nas árduas jornadas do Prata. A
intervenção tuteladora do exército ocupou um lugar vazio, o do estamento
não reconstituído pelo imperador, estamento composto de aristocratas de tinta
e papel e dos realistas vinculados à tradição portuguesa. A presença da tropa,
comandada pelos três Lima e Silva – Francisco, José Joaquim e Manoel da
Fonseca – embotou o ideário liberal extremado, ideário federalista e próximo
da república (Faoro, 2001, p. 324).
O império agonizava e com ele sua ineficiente administração trina (fisco, justiça
e militar). Agregue agora a esse sentimento nacional (e antiluso!) o sangue e a comoção
gerada pela morte, de grandes lideres populares como Frei Caneca, Ratcliff e o Major
122
Agostinho, executados pelo Império em revide a Confederação do Equador (movimento
nacionalista pernambucano em 1824).
Para se ter idéia do caráter generalista do sentimento nacional de apoio as idéias
emancipatórias e liberais, o próprio carrasco recusou-se a realizar o enforcamento de
Frei Caneca, tendo dessa forma, sido fuzilado junto ao Frei Joaquim do Amor Divino,
que por vender canecas nas ruas do Recife quando menino, passou a ser conhecido
como Frei Caneca. Todos esses fatores foram determinantes para o sete de abril e, o
advento da Regência.
O último ato desse casamento Exército-Império é o que chamamos de a própria
feição do poder enquanto poder. Ao abdicar do trono D. Pedro I deixa seu filho ainda
garotinho por aqui, este por sua vez nascido em terras brasileiras, adquiriu duas
conotações: a) de restaurar a unidade e dissipar a desordem pela legitimidade de origem
(versão mais divulgada pela historiografia tradicional) e b) servir de fantoche a
burguesia comercial nascente, leia-se, intelectuais (ricos) e maçonaria.
Da segunda alternativa nasce com força tirânica o grupo... liberal, àquele cuja
missão e supostos valores era ser o portador da bandeira da democracia. Capitaneado
por Feijó que, traindo suas próprias idéias — ou demagogias, a serviço do projeto de
poder de seu grupo — destrói o liberalismo e a democracia em benefício da autonomia
da ordem à qualquer custo. Nesse contexto — e com a Lei de 18 de Agosto de 1831 do
padre Feijó — nascem os corpos policiais nas províncias, filiados a imagem da Guarda
Nacional e, paradoxais à ideologia do Exército do povo. Movidos, unicamente pelo
ânimo da burguesia nascente em perpetuar o poder e, suplantar ideais iluministas.
Os liberais no poder convertem-se em conservadores, em
guardiões do país contra a anarquia. Este o primeiro ato do drama do
liberalismo brasileiro, ideologia de oposição, demolitório, incapaz de
governar de acordo com seu programa, transformado, no poder, em
conservador com os mesmo vícios, com igual despotismo ao do partido
substituído. Feijó refletirá bem este espírito: seduzido, na oposição, com a
liberdade, torna-se, na cadeira ministerial, a mão de ferro implacável
contra a turbulência gerada de idéias que foram suas. A primeira tarefa
do sete de abril será a de organizar a autoridade, repentina e inesperadamente
desaparecida com a abdicação (...)
À força regular do exército, o sócio mais ativo do 7 de abril, opôs
Feijó, ministro da justiça da regência, a guarda nacional. Luta o governo
contra a ameaça da anarquia militar com um instrumento que levaria aos
sertões e às cidades um elemento conservador e civil. Ao exército deliberante
e político, arma a regência uma força governamental e, inicialmente, sob o
controle das influências locais, aderentes da ordem liberal. Volta-se, sob
123
inspirações de outra índole, a uma velha idéia da política portuguesa, com as
milícias e ordenanças fiéis aos capitães-generais e à coroa lusitana (...) antes
de 1831 o exército consumia dois terços do orçamento e se compunha de
trinta mil homens. Logo depois do 7 de abril, os efetivos se reduziram à
metade, com o máximo legal de dez mil em 3 de agosto de 1831. No ano
seguinte, praticamente desaparece, no Rio de Janeiro, a força de
primeira linha, com oficiais sem soldados. Ao tempo que desarmava o
exército, o enérgico padre Diogo Antonio Feijó, descendente bastardo de
família territorial de São Paulo, cria a “nação em armas” (...) concentrando
nas milícias cívicas e remanescentes coloniais — milícia destinada a
custodiar o exército — (Faoro, 2001, p. 346-349). [grifo nosso]
Pode parecer que a linha metodológica adotada neste texto seja a
desconstrucionista. Porém, nem tudo que parece é, de fato. Desconstrucionista sim é (ou
parece ser...) a história tradicional cunhada pelo elemento ideológico do grupo
dominante que apregoa mesmo a fatos históricos, conteúdo engajado na luta política,
seja na defesa, na tomada ou fomento de um projeto de poder, por conseguinte, é capaz
a “história” de por uma cara cristã em um herói (como Tiradentes), de colocar a pecha
de herói abolicionista a quem possuía, como indicam várias evidências, escravos como
patrimônio (como Zumbi dos Palmares), de atribuir conquistas a homens que nunca as
tiveram (como Dumont em relação ao avião), de chamar de “banditismo social e de
revolta”, grupos de homicidas a serviço dos coronéis da república velha (como o
cangaço).
Por todos estes fenômenos construídos, absolutamente insuspeitos ao leitor de
almanaque, é imprescindível que chequemos os fatos: por que um governo dito liberal
importaria o modelo gendármico para as polícias? Modelo tal, eminentemente militar.
Você, acostumado à leitura do receituário monográfico que versa sobre o tema em tela,
deve saber que o modelo organizacional das polícias militares do Brasil segue, com
mínimas distinções entre os Estados, o modelo napoleônico de gendarmeria. Mas, por
que seguem? Como seguem? E com que finalidade?
3.2 Polícia e política: universos imbricados
Gostaria de dar ao mito agora a dignidade de seu alcance conceitual. Até aqui
desenvolvemos circunstâncias de interpretação do mito na esteira da antropologia
interpretativista de Geertz, de um brevíssimo sobrevôo sobre as ventilações
bibliográficas do tema, bem como de meu próprio olhar acostado na metodologia
autoetnográfica, baseado nisto poderemos empreender a seguinte tese: os mitos
124
fundadores das instituições, são condições primárias de entendimento do funcionamento
e significado da instituição em si mesma. O que proponho é que as instituições são
interpretadas segundo a lógica idealizada pelo seu mito de origem. Indo um pouco mais
longe... que uma determinada tradição, costume ou mesmo estereótipo está veiculada
pelos seus “mitos ancestrais”. Essa idéia fora levantada linhas atrás acostado em Linton,
de maneira que, agora procederemos mais responsavelmente na fundição da idéia ao
conteúdo exarado.
Devemos iniciar mencionando que o estudo do mito — latinizado mythus —
diverge em dois pontos decisivos, a saber, o que aponta para algo ilógico, infantil, falso,
arcaico e démodé e, aquele que informa que o mito é algo do campo do sagrado, algo
fascinante e compulsivamente digno para a explicação das tradições culturais herdadas.
125
4. Um choque de pedagogias
Falando em “pedagogias” e no caso mais específico em que iremos tratar a
frente, isto é, o currículo, devo dizer que a luta pelo discurso dominante em torno da
área, seja entre atores e/ou instituições, enseja o que Bourdieu denominou como formas
de poder específicos a determinada área em questão. O contexto em que essa idéia de
Bourdieu é sacada vem do excerto:
A estrutura do campo científico se define, a cada momento, pelo
estado das relações de força entre os protagonistas em luta, agentes ou
instituições, isto é, pela estrutura da distribuição do capital específico,
resultado das lutas anteriores que se encontra objetivado nas instituições e
nas disposições e que comanda as estratégias e as chances objetivas dos
diferentes agentes ou instituições (1983, p.133).
Pressupondo essa análise podemos dizer que a teorização no campo em tela é um
campo de força as voltas pelo embate entre seus atores. Em busca de legitimação do
discurso concepções teóricas são construídas sob a égide da autoridade na área. Em
suma, como a maioria dos negócios humanos, um jogo pelo poder. Segundo Lopes e
Macedo:
O campo intelectual do currículo é um campo produtor de teorias
sobre currículos, legitimadas como tais pelas lutas concorrenciais nesse
mesmo campo. As produções do campo do currículo configuram, assim, um
capital cultural objetivado do campo. Dessa forma, entendemos que analisar a
produção do campo do currículo inclui tomar como objeto o conhecimento
produzido por sujeitos investidos da legitimidade de falar sobre currículo. Tal
legitimidade é conferida por sua presença em instâncias institucionalizadas,
tais como: as instituições de ensino e pesquisa, nas quais atuam como
professores, pesquisadores e orientadores; agências de fomento, em que são
pareceristas e definem que tipos de estudos serão financiados; os fóruns de
pesquisadores (...) (2005, p.18).
Existem pesquisadores de toda monta possível, entre antropólogos seria difícil
não imaginar as mais diferentes vocações e, nesse diapasão limito-me a parar por aqui,
para não enumerar toda uma gama de pesquisa que eventualmente vem se fazendo
mundo a fora. Em antropologia, uma descrição por si só é um evento esclarecedor,
especialmente para o público leigo, que se vê aturdido com tamanho rigor descritivo
obtendo impressões quase reais do que lê à partir daquilo que fora pesquisado. No
126
entanto, boa parte dos estudos etnográficos descamba para o que costumo chamar de
“estudos caricaturais”.
Tais estudos consistem na captação do mundo pesquisado como parâmetro de
correlação a terceiros e, aqui faço um adendo. Quando falamos em um sujeito de
pesquisa é preciso distinguir até onde permanece o sujeito pesquisado e onde começa a
dicotomia com terceiros, quando elas porventura venham a existir. Esse corte
dicotômico a que nos referimos, da idéia da diferenciação provocada entre o grupo
estudado e o grupo de pertencimento do pesquisador, ou mesmo do público alvo da
obra, ademais, é necessário que se aponte que um estudo caricatural visa construir o
próprio modelo social em que se submete o sujeito de pesquisa oferecendo ao leitor
uma apreensão nítida da distinção com seu grupo.
Em contrapartida, o que se pretende aqui é construir um modelo que seja
interpretado à partir da semelhança que o leitor terá com o sujeito de pesquisa quando
eventualmente se ver compelido por variáveis que o norteiam (como a formação
descrita no tópico 1 do cap.I), sendo assim, construiremos a diferença a partir da
semelhança inicial, o que é justamente o contrário de um estudo caricatural que trabalha
na perspectiva da semelhança (com seu grupo particular) a partir das diferenças (com
outros grupos), em suma quando vemos como exemplo que, em determinada aldeia
todos se casam em que pese os moldes da constituição do matrimônio sejam deveras
distintos das freqüentes ao mundo ocidental, do que se depreende um fenômeno comum
a partir de supostas diferenças sócio-culturais inter-grupos, aqui, entretanto,
caminharemos de fenômenos comuns, como a formação profissional e a convivência em
grupo por exemplo, para daí construir diferenças geradas por variáveis independentes
que acidentam o que seria uma trilha natural, tudo na ótica intra-grupos.
Esse caminho metodológico não é um floreio desnecessário da qual poderíamos
abrir mão, de maneira que, entender determinado comportamento incomum a partir de
etapas comuns de constituição do indivíduo em sua profissão é no mínimo intrigante.
Constatar, contudo, que embora em certa aldeia uma moça permaneça um ou dois anos
presa em sua casa antes do casamento, enfim, já não é uma tarefa muito árdua de
entender — em que pese impactante —, pois, afinal, elas se casam como qualquer
ocidental, logo, é preciso inverter a lógica dessa descrição etnográfica partindo do
comum ao incomum, e para compreender o mais interessante: que os aspectos comuns,
127
não são tão comuns como se apresentam e o dito incomum em última instância pode
não ser nada além de um conseqüente lógico.
O impacto que se tem de uma descrição “do comum” (ao leitor) quando
entrementes ligado a caracteres que as particularize torna o exercício da interpretação
cultural algo tecnicamente mais denso e inibe em contrapartida eventual pré-conceito de
partida.
Uma descrição antropológica do policial militar de Mato Grosso, Aluno oficial
de polícia, oriundo da Academia de Polícia Militar Costa Verde. Esse é o parâmetro
inicial. O segundo parâmetro é menos taxativo e requer demonstrações: existe um
currículo cultural na APMCV, com implicações na formação do oficial de polícia.
Mas que metodologia antropológica daria conta de uma empreita que visa
descortinar o universo cultural embutido no currículo e na vida do ser-policial? Linhas à
frente, com o desvelar das teorias inerentes as diversas formas de construção do
pensamento teórico acerca do tema cultura, poderemos apreciar através de diferentes
lentes como poderemos submeter metodologicamente o primeiro capítulo, entretanto,
com os óbices que serão levantados paralelamente às construções, ficará claro,
sobretudo, aos que apreciarem a metodologia defendida que uma leitura etnográfica
neste caso específico bem se adéqua à compreensão.
E o que seria essa leitura etnográfica? Recorreremos a uma sucinta descrição da
etnometodologia.
Uma busca incessante pela prática revela um mínimo que atualmente já não é o
ideal das pesquisas neste campo. Qualquer pesquisador em nosso tempo sabe que uma
boa descrição, daquelas em que o “pensamento selvagem” vem à tona através de um
cuidadoso panorama analógico, sabendo ainda que, leva o leitor muitas vezes a uma
posição durante a leitura de maior ou menor importância... inferindo que se imagine que
dentro do que ele preceitua como cultura, encontra-se em uma escala civilizatória em
posição mais ou menos elevada.
Esta gama de pesquisadores parece ter evoluído e hoje já sabem que a via da
interpretação crítica mais que um supedâneo alternativo (um modismo geertziano...) de
pesquisa transformou-se na contemporaneidade requisito indispensável da informação
antropológica que esclarece, que desnuda, uma verdadeira engenhoca aparentemente
sem nexo, mas, extremamente científica.
128
Portanto, não basta dizer quem o aluno oficial é (se é que ele é...), porque em si
mesma essa explicação tijolo a tijolo, causalista... para o fim de que tratamos não é o
melhor azimute, de sorte que, a busca por este tipo de explicação hoje nada mais é que
uma alegoria em que nos apoiamos para tratar de índios extintos... Basta-nos, sobretudo,
a esse mundo das formas necessárias e contingentes, construído à saciedade pelo
funcional-positivismo, dialogar visando a compreensão interpretativa das consciências
de grupo.
Podemos começar buscando essa tal compreensão, compreendendo de início a
“lógica do ocidente”. Tal lógica nos fez durante muito tempo cultivar uma sonora
pretensão ante os demais moradores do planeta terra, seja na hora de definir valores ou
impor questões éticas, essa dita lógica ocidental vem caracterizar o que costumo nomear
como uma afirmação impoluta da hegemonia do ocidente frente ao mundo como um
todo, lógica esta comumente culminada quando nos colocamos no centro do mundo,
onde os demais são todos bárbaros a serem civilizados, adestrados, instruídos,
catequizados, evangelizados... Os antropólogos chamam isso de etnocentrismo —
descobri essa centenária explicação técnica, bem depois de a ter intuído diretamente da
natureza fenomenal...—.
Assim, quando falamos em etnologia, essa colocação comum rapidamente é
suscitada e ganha o nome de etnocentrismo. A dúvida que temos a essa altura é se
operando nós na lógica ocidental dos valores, quais seriam então nossos referenciais?
Essa é uma pergunta que poderá mover as mentes a acreditar que a lógica
ocidental, seja ela a dos valores, dos costumes ou aquela que dita à moda, é a lógica
diante da qual sensibilizamos todos os nossos freios morais, sempre no ímpeto de lhes
ser fiéis ou, numa palavra mais em voga, mais globalizados — Mais uma intuição à la
Popper —.
Então, claro está que a universalização da cultura é a homogeneidade dos
costumes. — E todos sintonizados na mesma freqüência entoamos juntos a ode ao
etnocentrismo do pavilhão nacional, do clube de futebol, do gueto, da rua, do boteco do
se Zé, sempre, o melhor pavilhão, o melhor clube, o melhor gueto, a melhor rua, o
melhor boteco... Pasmem... Etnocentrismo que impõe o pré-conceito sob o que lhes é
absurdamente estranho, fenômeno este causação do hegemônico universo cultural
sistematizado por um fenômeno mundial conhecido como globalização —.
129
A bandeira da globalização não pede uma nação que a determine, ela
simplesmente exige uma “transvaloração” de todos os valores em seu nome! E não
precisamos falar das estrelas e das listras desse pavilhão, — Tampouco, do ultraje a
Nietzsche...—.
Essa visão macro do fenômeno etnocêntrico ocidental modela uma visão de
mundo muito aquém da pretendida cientificamente. Vejamos as seguintes torções,
quando falamos, em contrapartida da etnometodologia:
A preocupação central da etnometodologia é buscar abordar as
atividades práticas, as circunstâncias práticas e o raciocínio sociológico
prático desenvolvido pelos atores no curso de suas atividades cotidianas,
sejam estas atividades ordinárias ou extraordinárias, partindo de um
raciocínio profissional ou não. Considera que a realidade social é construída
na prática do dia-a-dia pelos atores sociais em interação; não é um dado pré-
existente (Votre & Figueiredo, 2003, p. 4). Evidencia-se uma nova
preocupação para a sociologia, a recuperação e a análise do “senso comum”,
que para a sociologia clássica, desde Durkheim, devia ser evitado como um
problema. Ao contrário, os etnometodólogos procuram descobrir no senso
comum os verdadeiros sentidos que os atores dão às suas ações e esperam
desvendar o raciocínio prático que orienta as ações sociais. A
etnometodologia analisa as crenças e os comportamentos de senso comum
como os constituintes necessários de “todo comportamento socialmente
organizado”
Esta nova perspectiva exige uma mudança dos métodos e das
técnicas de coleta de dados, bem como da construção teórica. Já não é mais
possível trabalhar com a hipótese de que exista a priori um sistema de normas
estável que dá significação ao mundo social, mas é preciso considerar que os
fenômenos cotidianos estão em constante criação, transformação, e extinção.
Tais fenômenos são criados pelos atores para dar significação às suas ações e
permitir uma compreensão das ações empreendidas pelos demais atores que
coexistem com ele num mesmo contexto. Ao contrário da sociologia
tradicional que considerava possível determinar as “leis sociais” que regem
os comportamentos e as ações sociais, a etnometodologia entende que as
ações desenvolvidas pelos atores é guiada pelo seu raciocínio prático, fruto
dos momentos particulares vivenciados e experimentados a cada ato
interacional (Coulon, 1995a, p. 30).
Poderíamos ficar por horas a fio aqui descortinando o sonho do umbigo como
centro do mundo, porém, seriamos pedantes demais ao retomar assuntos por vezes tão
bem esclarecidos. Começando pelo nascimento europeu da filosofia — negando-se
assim, babilônicos, sumérios, persas... Incrível como ninguém na Europa fala que Tales
só começou a filosofar depois de uma viagem ao Egito...— , poderíamos debulhar o
universo do etnocentrismo à saciedade do ouvinte... Mas, não é o caso.
Então, o que seria o “currículo cultural”, dentro dessa tal etno...? E qual seu
limiar de alcance na tomada de postura social do jovem Aluno oficial, ou, se ao menos
130
implica na atividade social. No conjunto da obra, qual seu percentual de contribuição na
construção de um caráter profissional-policial militar?
São temas dificílimos, entre os quais poderemos soçobrar. Primeiro, caso não
consigamos ajuizar posicionamentos científicos de que esse dito currículo cultural
exista de fato. Segundo, se não conseguirmos manifestar que este currículo cultural é
que dará sentido a uma etapa de construção paralela de identidade, de modo que,
conforme o aluno se preenche de um lado, com o que apregoa a diretriz de seu currículo
formal, na outra ponta também preenche-se, através de um ganho cultural por interação
com seu grupo e a história de seu grupo, somando-se é claro, a afetação de “n” variáveis
que o determinam a proceder enquanto sujeito em construção; tal etapa, paralela a
“formação formal” é o que vamos chamar de currículo cultural que daremos corpo ao
longo dessa exposição. Até onde esse duplo preenchimento coabita, até onde é auto-
excludente, são temas que iremos tratar nos “finalmente” desta pesquisa...
Talvez possa parecer estranho empreender com cuidado e, sobretudo com rigor
metodológico, todo o sentido que se acha nas interações sociais de um aluno oficial da
APMCV. O que nos baseamos para fornecer uma visão do currículo cultural desse
sujeito em investigação, não será certamente um conjunto bem articulado de correlações
que se colocam como em linha reta para definir na linha de chegada o que podemos
entender como cultura de grupo... Ou, como um caixinha bem estruturada selada com o
nome de “currículo cultural”.
Esse ganho cultural a que nos referimos e que se projeta na existência do aluno
como um enquadramento simbólico daquilo que passa a reconhecer em suas relações
cotidianas, nada mais são que expressões, formas tomadas arbitrariamente que
submetem o sujeito a uma nova colocação existencial.
Para dar uma visão mais objetiva podemos recorrer a uma análise simples —
truques para a compreensão serão freqüentes daqui em diante —. A constituição
biológica de um indivíduo é determinada geneticamente. Claro, todos sabemos que
caracteres do ambiente exercem profundas alterações no dispositivo dessa constituição
biológica, especialmente, quando em última instância caracteres do ambiente são
traduzidos ao código genético, que por sua vez reagrupa as combinações cromossômicas
na finalidade de melhor adequar biologicamente o indivíduo às influências de seu
ambiente. É essa interação que torna os seres humanos preparados às intempéries de sua
131
existência no mundo físico... Uma análise grosseira diria: muito sol, muita melanina,
pouco sol, pouca melanina...
“Quando se trata de caracteres culturais as coisas parecem não ser muito
diferentes”, porém, é preciso limpar o cenário do que foi escrito entre aspas para
produzir uma boa interpretação. Todos sabemos que caracteres culturais não são
transportados nos genes, tampouco, estudiosos sérios propor-se-iam a testar epítetos
culturais amparados a determinações geradas pelo histórico genético das pessoas ou
pelo espaço geográfico em que habitam — embora já tenham tentado —. Tais fatores
preponderam — desconfio muito... — como variáveis dependentes, mas, remotamente
como determinações de culturas.
A contrapartida, porém, é que independente dos fatores genético e geográfico
existe um código cultural que é perpetuado geração a geração e que não está ligado nem
a um ou outro fator de cunho objetivamente demonstrável (genética ou geografia), mas
que viabiliza a segurança de uma hereditariedade segundo o qual as pessoas mudam
mas, as dimensões de significação não... Onde o grupo posterior adquire todo um
aparato cultural que mais se parece a uma caixa de ferramentas herdada, passada de pai
para filho, que traz sempre um ideal sombrio... “querido filho...use essas ferramentas,
aprenda a utilizá-las com eficiência e maestria e, se realize profissionalmente e seja bem
visto por seus camaradas...”
4.1 Elementos de compreensão sociológica
Contumaz falarmos já em linhas de pré-requisito à nossa exposição de alguns
temas que darão suporte lógico-científico ao tema a ser desenrolado, são eles: (1) teoria
da cultura, (2) antropologia cultural, (3) grupos sociais e construção social da realidade
e (4) comportamento humano. O engendrar desses quatro temas fornecerão o suporte
para entendermos a perspectiva de um currículo cultural com vistas a inferir que no caso
estudado, interfere na atividade profissional (prática cotidiana) do jovem oficial oriundo
da APMCV.
Em “a interpretação das culturas”, Clifford Geertz inicia a discussão já nas
paginas iniciais sobre a definição de cultura apontando através de modelos conceituais
132
de outros autores o que seria o seu próprio modelo para uma definição, fazendo assim
um encontro do conceito por eliminação. Quando afirma que seu conceito é:
Essencialmente semiótico (...) que o homem é um animal
amarrado a teias de significação que ele mesmo teceu, assumo a cultura como
sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência
experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à
procura do significado. É justamente uma explicação que eu procuro, ao
construir expressões sociais enigmáticas na sua superfície. Todavia essa
afirmativa, uma doutrina numa cláusula, requer por si mesma uma explicação
(Geertz, 2008, p.04).
Comumente em ciência, ao se expor determinado rol metodicamente
construído sob os altares do rigor cientifico a primeira coisa — na maioria das
vezes...— que se faz, é construí-lo de modo hermético, de forma que, se correlacione
ideologicamente com determinado circulo onde a correspondência deve girar.
Esse círculo por sua vez instrumentaliza esses conceitos sob rubricas
vastíssimas... diante das quais a simplicidade do tema debatido perde-se num sem fim
misterioso de supedâneos previamente elaborados que mais confundem que explicam a
coisa (a priori kantiano...) propriamente dita. Não queremos aqui imolar a foice para a
cepa de determinados tipos de cientistas, entretanto, neste caso específico, precisamos
de um conceito que operacionalize um entendimento que tijolo a tijolo vem sendo
construído no ideal de elaboração de uma tese.
Ademais que, para esse fim ou estrada que escolhemos, o farol deve focar a
trilha em detrimento da floresta, logo, evitaremos mistérios da “floresta cientifica” —
ainda que, vez ou outra venhamos a nos embrenhar nela por força da caminhada —.
Talvez seja esse (foco) o motivo central da escolha de Geertz para esse
referencial que encampa na sagacidade de um pensamento cirúrgico o que a cultura é a
partir do que os homens fazem dela, um corolário, uma agenda de tarefas, um ritual,
para o qual precisam nortear seus domínios de atuação.
Dizermos ainda, conforme Clyde Kluckhonhn que a cultura é “modo de vida
global de um povo”, “o legado social que o indivíduo adquire de seu grupo”, “uma
forma de pensar, sentir e acreditar”, “uma abstração do comportamento”, “uma teoria
elaborada pelo antropólogo, sobre a forma pela qual um grupo de pessoas se comporta
realmente”, um celeiro de aprendizagem em comum”, “um conjunto de orientações
133
padronizadas para os problemas recorrentes”, “comportamento apreendido”, “um
mecanismo para a regulamentação normativa do comportamento”, “um conjunto de
técnicas para se ajustar tanto ao ambiente externo como em relação aos outros homens”
ou um “precipitado da história” não resolvem nosso problema se não tivéssemos
agregado a todas essas definições uma notação simples de Ward Goodenough citada por
Geertz, quando fala que cultura “consiste no que quer que seja que alguém tem que
saber ou acreditar a fim de agir de uma forma aceita pelos seus membros” (Geertz,
2008, p.04).
Falarmos ainda segundo Simmel que a cultura é “a provisão de espiritualidade
tornada objetiva pela espécie humana no decurso da história” (Reale apud Simmel,
2007, p.185) ou conforme Miguel Reale que “a cultura é o cabedal de bens adquiridos
pelo espírito humano, na realização de seus fins específicos” (Reale, 2007, p.185) nos
ajuda a transformar uma abstração genérica e sem sentido aparente numa definição mais
ligada a nossa problemática e devidamente lapidada ao escopo de uma pesquisa
antropológica:
A cultura consiste em estruturas de significado socialmente
estabelecidas, nos termos das quais as pessoas fazem certas coisas como sinais
de conspiração e se aliam ou percebem os insultos e respondem a eles, não é
mais dizer que esse é um fenômeno psicológico, uma característica da mente,
da personalidade, da estrutura cognitiva de alguém, ou o que quer que seja, ou
ainda dizer o que é tantrismo, a genética, a forma progressiva do verbo, a
classificação dos vinhos, a Common Law...(Geertz, 2008, p. 10).
“Aquilo que resta, quando se esqueceu de tudo”. A boa fórmula de Ionesco
para definir cultura é um excelente parâmetro para afirmar que a cultura está além de
um cabedal de conhecimentos adquiridos e rituais comuns a rotina cotidiana; a cultura é
todo um contexto social dentro do qual posso dizer de forma inteligível quem é quem.
Em suma poderíamos dizer — ou mesmo gritar sem professar uma única palavra — que
somos aquilo que realmente somos mesmo não sabendo de fato quem ocasionalmente
somos. Uma top model experimentada em anos de passarela mesmo sofrendo de
amnésia completa poderia confessar sem se dar conta, através de mínimos
comportamentos sociais, como andar ou sentar-se, quem de fato era. A cultura denuncia.
Pois, para nós, a cultura é o laço social que nos une através do comportamento e da
interpretação simbólica ao universo de que somos originários.
134
Aceitando tal definição poderíamos dizer que a cultura só existe dentro do
universo social? Sim. Isso não quer dizer, porém, que somente homens produzem
cultura, pois, isso seria uma meia verdade, assumindo como exemplo que um quadro de
Picasso, um fóssil ou uma nota de dólar, por si só produzam toda uma atmosfera
cultural. Precisamos dizer completando o raciocínio incongruente que “somente os
homens produzem símbolos e somente eles têm o condão de reinterpretá-los segundo
outros símbolos familiares”.
No intuito de qualificar indivíduos seguindo suas diferenças culturais é preciso
que de antemão se aponte fissuras sociais que o habilite a reconhecer determinadas
homogeneidades sociais a partir de notações particulares, prova inconteste da criação de
domínios valorativos diversos.
Militamos, dessa forma, que quanto mais surpreendente as experiências e
quanto mais afastadas de uma suposta lógica vigente, mais abriremos o fosso da
diferença. Essa medida discrepante, lócus onde opera-se a divergência valorativa não
encontra sentido numa aparente frouxidão ou desapego a epítetos estabelecidos,
demonstra mais a segura categorização de um grupo social específico.
Mas que experiências dariam crédito a uma cultura particular? ou, qual desvio
seria significativo para marginalizar um grupo e/ou particularizar uma forma de
compreender valores? O que constrói uma irmandade? O que lhe dá sentido? Qual o
limite que define nossas diferenças? Em que momento se bifurcaram?
Essa lente chamada cultura que nos faz enxergar o mundo de acordo a um
simulacro estabelecido nos encampa pelo menos duas assertivas a serem aprofundadas:
a) visões de mundo homogêneas são correlatas a aparelhos culturais semelhantes e b)
que sistemas de padrões de comportamento transmitidos em grupos culturais são
leituras comuns somente a seus membros.
4.2 Alguns “insights” do currículo cultural
Podemos iniciar nossa caminhada usando um exemplo simples — Mais um
truque... —. Pensemos então em um policial brasileiro do século XX e o subordinemos
a alguns contextos que nos ajudem a sintetizá-lo enquanto homem e enquanto
profissional — lembre-se dos costumes sociais da época, da geografia das cidades, da
convivência prosaica das pessoas —. Facilitando ainda mais a leitura deste ser,
135
inicialmente ponderemos três etapas imediatas que nos são dadas independentemente de
qualquer outro fator que seja também adequado a caracterização. Em suma: tempo,
espaço e causalidade — exercício esse realizado por Hannah Arendt em “A vida do
Espírito” —.
Assim, para melhor caracterizarmos primeiro partimos do tempo vivido por
este ser, segundo, o espaço que lhe é contingente e terceiro as causas que o constrangem
a agir. Daí surge para nós o primeiro modelo de apreciar cultura, que é vislumbrá-la
como “sistema adaptativo”, em que o ser dentro de determinado espaço-tempo é a
causação adequada de todo um conjunto de afetações determinantes.
A ilação consecutiva é entender o ganho cultural como uma espécie de
darwinismo cultural, onde o ser humano nada mais é do que o somatório de
experiências concretas, onde o mais adaptado à realidade do mundo predomina e
determina assim um sistema de padrões de comportamento as gerações futuras. São
certos seres melhores adaptados a um espaço-tempo histórico e, que lêem o mundo
vivido satisfatoriamente em beneficio próprio e, com prejuízo dos não adaptados... os
seres que determinam o padrão de comportamento a ser seguido.
Com efeito, podemos dizer que determinado policial do século XX que
ascendesse na carreira através de uma função ou comportamento cujo valor intrínseco
inexistia até então para o grupo — ou era até mesmo considerado uma transgressão...—,
teria necessariamente o padrão de comportamento mais determinante na criação de um
símbolo a ser seguido e cultuado.
Tal símbolo representa nada mais que um arquétipo construído pelo grupo, ora
sugestionado como regra — outrora, possivelmente até sugestionado como desonra... —
ante a qual enquanto cultura se impõe. Quando falamos do exemplo do policial do
século XX podemos dizer, para essa teoria, que existe, em absoluto, uma cultura do
ontem, do hoje e do amanhã, sempre aguardando a melhor e mais adaptada solução para
os problemas da vida cotidiana — ou da ascensão na carreira... —.
Vamos superar essa teoria — não sem antes entendê-la à la Hegel, para o qual
a refutação nada mais é que uma mudança de aspecto sobre a mesma teoria... — Em que
medida a tradição encontra sentido, em um modelo teórico de cultura, que negligencia a
todo momento o passado? Constitui a tradição neste modelo um sistema agregado às
mudanças de cultura, cuja representação na vida humana é redimensionada
136
continuamente, determinando assim não seu distanciamento da esfera de afetação nos
grupos, mas, seu eterno descortinar sempre alimentado por demandas novas.
Essa reinterpretação histórica das tradições é o propulsor que torna possível o
diálogo (para os evolucionistas culturais) entre o status de permanência ligado a
tradição do fluxo contínuo que está ligado a cultura. Uma pergunta capital ao debate
seria, até que ponto a reinterpretação das tradições são perigosas as próprias tradições?
Decerto que, a possibilidade de uma releitura da tradição é o paradigma diante do qual a
tradição deixa de existir para ser outra coisa, nos dizeres de Hobsbawm, uma tradição
inventada.
A mudança cultural seria então o equivalente da seleção natural, onde a relação
adaptativa com o meio social circundante é imposta praticamente pelas mesmas regras
que governam a adaptação biológica. Procedendo com tal concepção é ilustrativo traçar
um paralelo.
Quando o alimento é obtido somente na copa das árvores imperioso falar em
evolução de animais de estatura elevada, de pescoço comprido ou aptos a escalada.
Quando analogamos alimento à poder, condição de sobrevivência em muitas
instituições, é imperioso elencar quais os caminhos e os melhores acessos a conquistá-lo
e, dessa forma, dizer no contexto qual a conduta mais adequada a se perpetuar como
cultura, entendendo, sobretudo, que os caminhos que levam ao poder estão em
contínuas mudanças e alterações, assim como a própria cultura.
Com efeito, sobreviverá àquele cujo projeto de poder for alcançado com pleno
sucesso. Logo, não é sem sentido que empresas adotem o empreendedorismo como uma
“cultura organizacional”.
Essa analise evolucionista da cultura nos informa que o seu caráter
preponderante, é a maneira pela qual o conjunto de seres humanos em grupo
desenvolvem seus epítetos, seus ídolos e, principalmente julgam a mais adequada forma
de viver aos padrões da contemporaneidade, via de regra, ao longo do tempo se tornam
seres mais “civilizados”, sobretudo, mais aptos a viver em sociedade. Peguemos um
clássico texto de Tylor:
137
Cultura ou Civilização, tomada em seu mais amplo sentido
etnográfico, é aquele todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte,
moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo
homem na condição de membro da sociedade. A situação da cultura entre as
várias sociedades da humanidade, na medida em que possa ser investigada
segundo princípios gerais, é um tema adequado para o estudo de leis do
pensamento e da ação humana. De um lado, a uniformidade que tão
amplamente permeia a civilização pode ser atribuída, em grande medida, à
ação uniforme de causas uniformes; de outro, seus vários graus podem ser
vistos como estágios de desenvolvimento ou evolução, cada um
resultando da história prévia e pronto para desempenhar seu próprio
papel na modelagem da história do futuro. A investigação desses dois
grandes princípios em vários departamentos da etnografia, com atenção
especial à civilização das tribos inferiores como relacionada com a
civilização das nações mais elevadas, está dedicado este livro.
Nossos modernos investigadores das ciências da natureza
inorgânica são os primeiros a reconhecer, tanto dentro quanto fora de seus
campos especializados de trabalho, a unidade da natureza, a fixidez de suas
leis, a seqüência definida de causa e efeito ao longo da qual todo fato
depende do que se passou antes dele e atua sobre o que vem depois. (Tylor,
2005, pág. 31).
O contraponto — eufemismo de refutação... não se esqueça... à la Hegel —
mais contumaz a esta visão se baseia na análise de que para entender a cultura sob esse
prisma, é preciso compreender que os epítetos são construções muitas vezes alheias a
vontade de seu adquirente, que os ídolos ao longo do tempo são alienações
detrimentosas à autonomia do ser humano e, que o padrão de vida da
contemporaneidade se resume (e dessa forma bem explica), no “mundo capitalista”, ao
consumismo desenfreado, ao materialismo vicioso e a artificialização da realidade
vivida.
Sabendo disso — Ou, pressupondo isso... — podemos nos perguntar até onde a
evolução da cultura no mundo está numa relação desproposital aos veículos que a
definem. Seria mesmo uma seleção natural da melhor e mais adequada maneira de ver e
cultuar um símbolo? Ou, estaria a serviço de quem controla os veículos definidores
enquanto projeto de poder desfiliado da verdade aparente?
Tomemos um exemplo bastante simples. A opinião pública sem a menor
dúvida é um critério definidor de cultura para a teoria que a aponta como que estando
em uma relação direta, entre a vida tomada na generalidade da contemporaneidade
(tecnologia, sistema econômico de produção, elementos jurídicos e educacionais de
organização social, relações de trabalho etc...) e à mudança ou, construção cultural.
138
Dessa forma, obedecendo a critérios vinculados aos fatores genéricos da vida
contemporânea, certos grupos em prejuízo de outros “evoluem” o olhar sobre uma gama
imponderável de valores, ritos e símbolos perfazendo assim novos padrões de
comportamento disseminados com a pecha de opinião pública.
Mas, vejamos o seguinte aspecto. Jean Jacques Rousseau disse certa feita em
carta ao Filósofo D’Alembert que o “homem moderno vive quase sempre alheio de si
mesmo” (1998, p.234). Ao limite da intelecção da frase de Rousseau temos que em
sociedade vive-se muitas vezes sob a ditadura invisível da opinião alheia. Para
Rousseau, os nossos gostos para comida, roupa, religião e até parceiros matrimoniais
nunca levam em consideração o nosso mais profundo e verdadeiro afeto (Barros Filho).
Seria como dizer que a verdade sobre si mesmo para o homem-social
contemporâneo não tem a menor importância. Dessa forma, podemos dizer que a
opinião pública determina o nosso querer e muitas vezes nosso próprio sentir.
É a aprovação dos outros o parâmetro garantidor do que é bom ou ruim para
nossas vidas. Rousseau, afirma ainda, “é a opinião pública, que define se nós realmente
somos felizes” (1998, p.235). Diderot quando do lançamento da Enciclopédia afirmou
acerca do tema que, com o advento dos panfletos e jornais percebera que as verdades
cientificas, contidas nos artigos, tinham pouco impacto em comparação aos preconceitos
disseminados pelos jornais de sua época. Afinal, é mais provável que o cidadão leia
diariamente um jornal que um artigo científico.
Com efeito, a relação de um meio que não tem nenhuma preocupação em
oferecer uma influência legítima e segura ao público com outro, cujo objetivo primevo é
doar credibilidade e transparência através da menos conspurcada teoria científica é
notório nos tempos modernos. Tal relação encontra-se em absurdo prejuízo à dita
verdade científica que, em que pese os problemas de demarcação, é menos detrimentosa
que aquela obtida através da mídia.
Alargando o raciocínio poderíamos afirmar sem temer, que o ganho cultural
proposto pelo darwinismo cultural muitas vezes atende a alienação do mundo em que se
vive, atende ainda ao estranhamento mais cruel da vida que se vive para com o sujeito
que pretende pensar por si só. Logo, pensar em uma cultura evoluída não é
necessariamente pensar na melhor maneira de viver, ou, na mais adaptada ao meio...
aquela que melhor vise encontrar o alimento e garantir a prole.
139
A cultura dita evoluída, em que pese, cultura, é posta! Um fenômeno
desprovido de fundamento intra-grupos que a supõe, enfim, que a simbolize... é apenas
uma ilusão de ótica, um espelho refletindo uma falsa imagem, um modismo construído,
um ídolo forjado segundo interesses escusos...
O segundo grande corpo de conhecimentos que nos permite vislumbrar a
questão da cultura é o que comumente se chama em antropologia de “sistema cognitivo”
atribuído, segundo Laraia, aos “novos etnógrafos”. Tal sistema pode ser melhor
visualizado se pensássemos cultura como um idioma particular, uma linguagem comum
a um determinado grupo. Vejamos.
Suponha o mesmo policial do século XX e faça uma previsão comparativa com
o atual linguajar (cotejado no cap. I) do policial deste século e reflita sobre as
similaridades e dicotomias entre as possíveis falas. É bem possível que ocorram poucos
nuances comuns, onde um em relação ao outro, sejam tomados sob a mesma
classificação lingüística (ainda se falarmos do mesmo idioma), poderíamos dizer que as
similaridades não serão assim tão evidentes.
Isso remete a um evolucionismo cultural onde tempo e espaço continuam a
afetar a cultura, obviamente que sim, entretanto, para o sistema cognitivo tanto a fala de
um como de outro necessitam de conhecimentos comuns para se manifestar, ou melhor,
naquilo que tanto um quanto outro precisa conhecer ou acreditar para operar de maneira
aceitável dentro daquele universo lingüístico particular e atemporal.
Teríamos assim que proceder imaginando que por trás da aparência
complexada e caótica dos dialetos tanto de um quanto de outro subsistiria abaixo das
aparências uma ordem interna coerente, comum e imutável — estamos dando pistas
desta teoria... —. Na ordem direta a tal pensamento poderíamos suscitar um rio cuja
superfície é visivelmente tranqüila (ordem coerente), quieta e ordeira, ao passo que,
abaixo de sua linha d’água subsistiria toda uma gama de complexidades espraiadas em
vários contextos de fauna e flora (aparência complexada).
Prolongando um pouco mais a análise seria dizer, como Lévi-Strauss:
Que define cultura como um sistema simbólico que é uma criação
acumulativa da mente humana. O seu trabalho tem sido o de descobrir na
estrutura dos domínios culturais – mito, arte, parentesco e linguagem – os
princípios da mente que geram essas elaborações culturais (Laraia apud
Strauss, 2009, p.61).
140
Assim, embora dinâmica (evolutiva) em sua natureza mais evidente, a cultura
encontra nas entrelinhas mais insuspeitas uma estrutura comum e universal ao longo do
tempo. Podemos conjecturar ainda, que a tradição em muitos aspectos tende a ser o
caractere invariante do processo cultural. Esse “algo comum” a ambos policiais (do
ontem e do hoje) ao longo da marcha histórica, mesmo que arredia a parâmetros que a
definam, possui na tradição o mote de perpetuar-se como paradigma, ainda que toda
sua natureza circundante presuma outro olhar.
Este posicionamento teórico remonta de um ideal que podemos esmiuçar ao
dizer que a história e seu curso ininterrupto, a cada momento em que se estabelece como
sucessão determina um modo de existência aos sujeitos em suas livres trocas de
experiências. Cada choque ou cada encontro entre os sujeitos encontra um
correspondente de vida cultural nova para ambos e que, em contrapartida, afirma, isto é,
ratifica, a característica ou constante supratemporal que viabiliza e torna o choque
possível.
Por conseguinte, nessas inúmeras afetações multilaterais a história se
materializa dentro da sucessão denominado tempo, promovendo mudança cultural
ancorado em características imutáveis como a própria tradição. Volta-se então a análise
em tela para a perspectiva de que há funções estruturantes subjacentes à sociedade,
além das tradições e que, sobretudo, se tornam vigentes em todo o grupo humano, como
normas, valores que representam em parte o lastro da própria cultura que se
redimensiona, mas que não se descaracteriza.
Mas quais são essas funções? E que constante supratemporal é essa? Vamos
recorrer a um exemplo simples, mastigando a ideia ao limite da demência...
Suponhamos que você acompanhe uma telenovela desde o início de sua execução e a
dez dias de seu último capítulo você se pergunte sobre o destino dos personagens sob
dois aspectos: 1) quanto à situação do enredo até aquele momento e, 2) quanto ao
enredo de uma telenovela em si mesma.
No primeiro aspecto múltiplos fatores são ponderados e diante desse cenário
uma plêiade de possibilidades articulam-se, causando um frisson descomunal em quem
se habilita a qualquer previsão, tudo é aparentemente muito imprevisível, pois, a
somatória de contextos e variâncias que cada personagem a essa altura está submetido
141
permite só e tão somente naquele momento dizer a quem assiste que o melhor a se fazer
é esperar atento ao término da trama. No segundo aspecto toda a complexidade é
reduzida a pó, de sorte que, todos, em que pese, cônscios da ilusão a que nos
submetemos, nos deixamos levar pela aparente complexidade do enredo que ao final
terá a imprevisibilidade reduzida a um ponto invariante, nas telenovelas como nos
contos de fada onde o mocinho casa com a mocinha na igreja, o (a) vilã (ão) morre ou, é
preso ou, quando muito, foge.
Com efeito, toda variabilidade corrente e sugerida resume-se a um supedâneo
interior cujo estrado assenta a invariância. Poderíamos dizer que para os contos de fada,
ainda que, completamente insuspeitos ao fim previamente determinado pela invariância,
possuem em seu bojo caracteres que a fazem ser quem é não podendo ser outra coisa.
Uma leitura mais perspicaz poderia colocar em paralelo a condição do sujeito
desta pesquisa, enquanto fenômeno ligado ao modo que ora apreciamos de fazer teoria
da cultura. A partir daí, é possível dizer que há fundamentos sob os quais o ser-policial
militar constitui, mesmo diante das mudanças, um traço particular que o identifica, caso
não seja traço de identidade, seria então uma mesma afetação que lhe é constante.
Por conseguinte, de forma vulgar poderíamos então dizer que causas internas
ou externas determinam em nível elementar uma invariância ao longo da história.
Recorreremos às causas externas (ainda que múltiplas) para a explicitação.
Uma ilustração é bem vinda. As escolas de idiomas, cuja finalidade é
proporcionar, sobretudo, a seus alunos o aprendizado da fala de línguas estrangeiras,
possuem como técnica a repetida conversação no idioma pretendido. Nas escolas
convencionais onde o idioma estrangeiro é colocado como matéria do currículo escolar,
a metodologia é distinta, pois, se privilegia a gramática, a escrita e a leitura do idioma.
Contrastando os dois modelos poderíamos dizer que dois ou três anos de
contínua conversação são mais salutares ao aprendizado da fala do que longos anos
dedicados a gramática da língua. E o que nos interessa saber? Em primeiro lugar: que a
pura fala de uma língua não exige nenhum conhecimento de sua gramática e,
consequentemente que toda a complexidade instrumental que fundamenta a experiência
da fala, não é capaz, contudo de proporcionar, ainda que minimamente, o desígnio que
se habilita a desvendar, em suma, estruturar cuidadosamente os componentes da fala.
142
O “x” da questão, entretanto, ainda não atingido. Pois, em segundo lugar,
considerando a língua enquanto agente dinâmico e em contínua transformação e a
gramática como retrato temporal formal da fala. O que podemos inferir é que a língua
como parte da cultura representa assim seu caráter mais revelador, em contrapartida a
gramática nada mais é que a formalização atrasada desse movimento ininterrupto. Uma
fotografia. Ademais, tanto a cultura como a linguagem ao se transformarem renunciam
(em parte) seu instrumental de aporte, revisitando os paradigmas construídos, ao passo
que em si mesmo é traduzido a quem, independente do instrumental, compartilhe sua
face mais contundente.
O que queremos dizer com isso? Que não são as estruturas internas os
mecanismos que constrangem a variância e as tornam invariáveis. A decomposição
analítica sugerida por Lévi-Strauss é incompatível a visão da realidade que ratifica a
todo instante um fluxo perpétuo onde “n” causas afetam incessantemente o produto final
chamado cultura, produto este, alterado pela lógica dura da sucessão que a recria a todo
intervalo de tempo.
Para Lévi-Strauss quando as ciências sociais se ligam à visão pretensamente
dinâmica é que surge o problema da história, dessa forma, tende a subjetivar
exageradamente a percepção do objeto, povoando-o de atores conscientes e destruindo a
expectativa de leis que regem o fenômeno social. A passagem a seguir é extremamente
singular:
Nosso objetivo permanece o mesmo. A partir da experiência
etnográfica, trata-se sempre de organizar um inventário de esferas mentais, de
reduzir dados suplementares arbitrários a uma ordem, de encontrar um nível
em que uma necessidade se revela imanente às ilusões da liberdade. Por trás
da contingencia superficial e diversidade incoerente, aparentemente, das
regras do matrimônio, desenvolvemos em structures um pequeno número de
princípios simples, pela intervenção dos quais um conjunto muito complexo
de usos e costumes, à primeira vista absurdos (e geralmente julgados como
tais), acham-se integrados a um sistema significativo (Demo apud Strauss,
2007, pág. 174).
Pode ser que a empreita de estruturar as relações de matrimônio sugira uma
ordem subjacente ou, que se reduzam dentro da experenciação de Strauss a um conjunto
de princípios. Daí, generalizar essa circunstância já não seria muito prudente se
contarmos que toda a diversidade quando reduzida a termos é simplesmente jogada fora.
143
O que dizer da experiência interpretativa de um dialeto quando verificamos que o que
nos interessa para desvendá-lo são apenas alguns axiomas singulares?
O campo do sensível foge a possibilidade da demarcação e o máximo a se fazer
é dialogar dentro das fronteiras estabelecidas pelas interações humanas. Reconhecer um
significado não significa entendê-lo, como expressão cultural de um grupo... Significa,
antes de mais nada, capturar dentro daquele único e exclusivo cenário social um
símbolo cuja expressão cultural para aquele referencial é partilhado como experiência
cultural de um grupo.
Quando um antropólogo sorri de uma piada contada por aborígenes em uma
roda de aborígenes, não significa que tem em suas mãos um símbolo cultural do humor,
cuja expressão garanta o que todo o grupo (além daquela roda) cultue através de uma
boa gargalhada. Em certos contextos particularizados pela vasta cultura daquele mesmo
grupo a risada do antropólogo diante do mesmo símbolo (piada) pode representar uma
grande inconveniência, onde todos ao invés de gargalharem, sintam-se constrangidos
com a risada fora de hora.
Para nós o trabalho em cultura então gira em torno do que bem diz Geertz:
Trabalhamos (...) combinando histórias de mil anos com massacres
de três semanas, conflitos internacionais com ecologias municipais. A
economia de arroz ou de azeitonas, a política da etnicidade ou da religião, a
operação da língua ou da guerra, devem, em certa medida, ser soldadas na
construção final. Assim também a geografia, o comércio, a arte e a
tecnologia. O resultado, inevitavelmente, é insatisfatório, trôpego,
desconjunturado e malformado: uma grande engenhoca. O antropólogo, ou
pelo menos aquele que deseja complicar suas engenhocas, não as fechar
sobre si mesmas, é um remendão maníaco à deriva com sua razão (2007,
p.27).
Essa incessante construção de “engenhocas” subsidia uma boa descrição
cultural em detrimento do malsinado uso de fórmulas prontas. Qual é essa engenhoca
que tentamos produzir aqui? Quando no capitulo I demos inúmeros exemplos do
cotidiano na APMCV a sugestão que se fazia — implicitamente, creio...— era de propor
uma conversação entre o leitor e o próprio aluno oficial.
Com efeito, buscar um continente cultural que situe todo emaranhado cultural
que engloba a própria vivência do aluno oficial é uma ilusão cujo risco poderia, em
última instância, ser transformado em dogma. Pois, se entendermos a cultura do aluno
— ou qualquer aparato cultural vivo — com um elemento de contínua transformação e,
144
até mesmo naquilo que Leibniz chamava de mônadas, entendemos não somente que
uma sistematização é perigosa, mas, sobretudo, que a sistematização e o catálogo de
experiências ligadas a axiomas lógicos invariavelmente vão contribuir para a confusão
em detrimento do esclarecimento.
A palavra de ordem seria simplesmente “interpretação”. Seria tomar todas as
conjecturas exponenciadas à partir dos relatos “puros”, para transformar o dito no que
chamo de concebível ou compreensível. Se agrego ao relato da faxina o grau subversivo
que o expoente da humilhação afetou-me, o que busco com isso é reportar a um campo
de compreensão genérico que faxina em demasiado, remete humilhação e, a implicação
disso em conjunto, dentro de uma contra-lógica de formação que as abriga, sugere que o
aluno oficial caminhe em favor do que lhe atinge com maior “intensidade de verdade”,
se é que podemos usar essa expressão. Façamos uma rápida excursão pelos domínios
das manutenções (no que tange as limpezas, ditas “faxinas” no cap. I, do ambiente de
trabalho) no quartel, afetas aos alunos oficiais, especialmente, durante o período inicial
de formação.
O que elas (as faxinas) designam em seus respectivos alcances
“metodológicos” para os praticantes? Ora, se existe uma auto-imagem construída sob o
signo do rigor do militar com seu ambiente físico, nos seus múltiplos aspectos,
sobretudo organizacionais, onde a higiene é preponderante, há que se falar também, em
contrapartida, na sujeição posta ao falso preço dessa suposta imagem, onde o aluno é
obrigado a esfregar, por exemplo, como simples aflição, indignidade e quebrantamento
moral por horas a fio o sanitário de seu alojamento. De um lado uma construção
dialógica em torno de um valor estabelecido e de outro, uma segunda construção, que
cultua outro valor — paradoxal, inclusive... —, logo, em que plano se dá o diálogo com
um aluno oficial no que tange a reverência com a higiene em seu ambiente de comando
e/ou vivência?
Posso dizer que não é a conversa pelo rigor no respeito ao ambiente, que
eventualmente sugere as similaridades culturais entre militares que aprenderam a
cultivar o respeito pelo ambiente organizado — como, por exemplo, um diálogo com os
cadetes do Exército brasileiro —, não é esse tópico cultural supostamente
interseccionado com o cadete do Exército que modelam suas semelhanças, é, contudo,
justamente algo totalmente distinto, um signo que apenas pretende-se comum, mas, que
145
contribui mais para as distinções que aproximações culturais, isto é, para o cadete — e
até mesmo alunos oficiais das demais academias...— o epíteto da organização, do
apreço a inteireza dos detalhes, remetem ao fundamento sugerido pelo valor que
acoberta aquele neófito que realizou a faxina, para o aluno oficial que pesquisamos isso
sugere a imposição da cultura da penalização — você faz isso porque é bicho! —, da
força repressora da hierarquia dos mais antigos para os mais modernos (uma
redundância necessária), da intolerância com o lógico e, principalmente com o
desrespeito ao valor estatuído, falsamente utilizado como referência.
146
5. Considerações de prosseguimento
Avaliando a obra à partir de um olhar distanciado — se possível, claro... —
posso dizer que a cultura policial-militar, especialmente, a cultura organizacional reflete
a imagem de cada um de seus membros. Com a pesquisa pude observar que a trajetória
de um currículo acadêmico está umbilicalmente ligado ao que eventualmente se fará
dele na prática. Não falamos na questão atinente ao empreendimento técnico de gestão
escolar e diretrizes humanísticas que está se pondo a prova, contudo, é a própria
condição discursiva dominante cujo enredo de poder modela o currículo acadêmico às
tramas de uma vontade alheada da teoria. Isso sim nos preocupa.
Em nenhum momento, gostaria de frisar agora, houve um pessimismo as
mudanças de currículo em virtude da prática observada que, convenhamos, foge a
teoria. O que quero aludir com as dezenas de ressalvas espalhadas pelo texto no que se
refere a formação do oficial de polícia se deve, sobretudo, a um possível engajamento
entre a teoria da Matriz e a cultura fomentada no cotidiano da APMCV. Só mudaremos
os rumos da polícia militar se mudarmos nossa cultura de grupo que ainda se
fundamenta na disputa insana por espaços de poder e jogos de vaidade pessoal.
A interferência que pontuamos ser preponderante para a mudança dos
resultados funda-se no culto a novos valores tais como: compreensão das diferenças
entre os atores, valorização das capacidades individuais, atualização ininterrupta das
técnicas, autonomia do sujeito cognoscente, respeito ao mérito e a carreira.
Do que resta, posso dizer novamente, nem conclusão, nem finalização. As
certezas claudicaram durante o percurso. Não pretendo também agora derradeiramente
resumir o que foi dito ou, pegar todas as pontas soltas e junta-las num grand finale. Essa
tarefa é de todos nós. Posso, porém, divagar em mais uma reflexão que nada são do que
posturas recorrentes:
1) Integrar-se ao mundo tal como ele é. Sujeitar-se a força imperativa da
realidade e imobilizar-se tranquilamente nas espumas do cotidiano.
2) Mudar o mundo. Transformá-lo. Revolucionar o mundo que nos
desagrada e dia-a-dia nos humanizar mais ainda a cada novo fracasso, sempre na busca,
no movimento ininterrupto pela ação que poderá mudar o mundo...
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