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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE LINGUAGENS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM
ISAÍAS CAMINHA E O MAL-ESTAR NA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA NO
LIMIAR DO SÉCULO XX
Mestranda: Izabel Cristina Cavalcanti da Cruz
Orientador: Prof. Dr. Fausto Calaça
CUIABÁ-MT
2013
ii
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE LINGUAGENS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM
ISAÍAS CAMINHA E O MAL-ESTAR NA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA NO
LIMIAR DO SÉCULO XX
Dissertação apresentada ao Programa de
Mestrado em Estudos de Linguagem da
Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT,
como exigência parcial para a obtenção do título
de Mestre em Estudos de Linguagem, sob a
orientação do professor Dr. Fausto Calaça.
CUIABÁ-MT
2013
iv
DEDICATÓRIA
Ainda que eu falasse
A língua dos homens
E falasse a língua dos anjos,
Sem amor eu nada seria.
É só o amor! É só o amor
Que conhece o que é verdade.
O amor é bom, não quer o mal,
Não sente inveja ou se
envaidece.
(Renato Russo, Monte Castelo, 1989)
A meus filhos, Rodrigo, Marcelo e Gabriela que são a razão de ser de minha existência, luzes de meu
caminho, portos seguros de minha vida, consolo e amparo.
À minha mãe, exemplo de determinação e coragem
A meu irmão, professor Dr. Mauro J. Cavalcanti, exemplo do intelectual em sua mais pura essência.
À minha nora Isabel Pereira Lara de Moura e à minha netinha Cecilia.
À minha avó (in memorian) Maria de Lourdes Fernandes Volpi pelo exemplo de vida, pelo caráter
ilibado, pela dignidade e pela contribuição inestimável em minha formação.
A meu paizinho querido (in memorian).
A meu marido (in memorian) na certeza de que, no espaço etéreo em que se encontra, compartilha
comigo desse momento de vitória.
v
AGRADECIMENTOS
Amigo é coisa pra se guardar
No lado esquerdo do peito
Mesmo que o tempo e a distância digam “não”.
(Milton Nascimento, Canção da América, 1980)
Esse momento de prestar os agradecimentos em que, finalmente, encerro os trabalhos de
minha pesquisa revela-se como uma das mais importantes etapas dessa trajetória repleta de dores,
lágrimas, sofrimentos, vigílias intermináveis, suor, esforço, ansiedade, cansaços, descobertas, alegrias,
vitórias e luz, muita luz... Tal importância a que me referi acima consiste no fato de que, apesar de
todas as dificuldades enfrentadas, em momento algum, senti-me solitária em face do caminho sinuoso
em que me lancei ao decidir realizar o mestrado. Muitos estiveram ao meu lado, ainda que, muitas
vezes, em pensamento, mas um pensamento positivo que irradiava faíscas de apoio. Além disso,
muitos foram os abraços calorosos (que começaram a ser ofertados quando da divulgação do resultado
de minha aprovação), as palavras de apoio; tempos depois, mãos amigas confortando uma mestranda
exausta... e os olhares que indicavam um “não desanime” que revigorava e fazia crer no que, por
determinados momentos parecia quase impossível de ser realizado. Tudo passou tão rápido... e, hoje,
sinto uma felicidade cheia de nostalgia dos momentos sublimes que vivi, ao longo do tempo, em que
realizei o mestrado. Esses momentos ficaram irremediavelmente no passado, porém, as pessoas que
estiveram ao meu lado estão cada vez mais próximas de meu coração e a todos ofereço meu carinho e
meu reconhecimento pelo companheirismo demonstrado, ao longo dessa minha trajetória. Assim,
gostaria de dedicar algumas palavras a todos os que fazendo parte desse momento tão especial de
minha vida, adentraram, definitivamente em minha história de vida, assim, agradeço:
À Secretaria de Educação do Estado do Mato Grosso, aqui representada pela professora Ms. Márcia
Furtado que envidou todos os esforços para a concessão de minha ansiada licença, o que garantiu que
eu pudesse mergulhar nas leituras, participar das atividades propostas pela universidade, assistir às
disciplinas, elaborar minha dissertação.
Ao meu orientador, professor Dr. Fausto Calaça pela compreensão ao desculpar minhas falhas ao
longo do desenvolvimento de minha pesquisa, por acolher minha ideia de trabalhar com a obra de
Lima Barreto, por haver me iniciado nos caminhos instigantes da Psicanálise freudiana.
À professora Dra. Sylvia Cyntrão, da UnB, não só pelas valiosas contribuições enquanto membro
externo de minha banca, mas, também, pela enorme simpatia da carioca e pelo sentimento de “banzo”
que compartilhamos ao nos lembrar de nossa terra natal.
À professora Dra. Marinei Almeida, da UNEMAT, pela dedicação com que se entregou à leitura de
minha pesquisa, apontando caminhos essenciais para a continuidade de meu trajeto. Jamais esquecerei
a importância de suas contribuições enquanto membro interno de minha banca de mestrado.
vi
Ao professor Ezemar Mourão, diretor do CEFAPRO e ao coordenador professor Ms. Kleber
Gonçalves Bignarde, chefes-companheiros que sempre incentivaram e apoiaram o meu sonho de
realizar o mestrado.
Às profissionais da Superintendência de Formação da Secretaria de Educação do Estado do Mato
Grosso, Professora Ms Márcia Furtado e Professora Aidir Auxiliadora Arruda pela doçura com que
desempenham seu papel de formadoras entre os profissionais do CEFAPRO.
À professora Dra. Divanize Carbonieri, coordenadora do Departamento de Pós- Graduação em
Estudos de Linguagem, pelo apoio que oferece a todos os mestrandos.
À professora Dra. Célia Maria Domingues da Rocha Reis pelo magnífico trabalho enquanto esteve à
frente da coordenação do MeEL, mas, sobretudo, por sua presença iluminada durante as aulas de sua
disciplina e pela oportunidade que me proporcionou de mergulhar no mundo da poesia.
À professora Dra. Rhina Landos Martínez André, pelo apoio incondicional que me prestou ao longo
do mestrado e pelos conhecimentos valiosos que compartilhou durante as aulas do mestrado.
À professora Dra. Sirlei Silveira, pelas aulas maravilhosas em que possibilitou diálogos profícuos
entre as Ciências Sociais e a Literatura, apontando perspectivas instigantes para a realização de minha
pesquisa.
Ao professor Dr. Henrique de Oliveira Lee, por haver gentilmente aceito, dirigir os trabalhos no
momento de minha defesa.
Aos professores do MeEL, Dra. Franceli Aparecida da Silva Melo, Dra. Sheila Dias Maciel, Dra.
Maria Rosa Petroni, Dra. Claudia Graziano Paes de Barros, Dra. Simone de Jesus Padilha, Dr. Dánie
Marcelo de Jesus, Dr. Romair Alves de Andrade, Prof. Dr. Aguinaldo Gonçalves, pela significativa
contribuição em meu processo de aquisição de conhecimento.
Aos meus colegas de trabalho, formadores de professores, bravos guerreiros da educação que me vêm
orientando dia a dia pelos caminhos da profissionalidade: Maria Lucia, Luzinéia, Gerson, Antonia,
Elen, Pedro, Sirlei, Elizete, Edileuza, Eliane, Jorci, Felipe, Sonia, Joelson, Kelly, Soely, Maurecilde,
Jocaf, Katia... Muito obrigada pelo carinho e respeito com que sempre me brindaram ao longo desses
anos em que atuamos juntos.
Aos colegas que por razões várias partiram em busca dos sonhos “guardados” em outras “aventuras”
profissionais, mas a quem muito devo pelos sorrisos afáveis que sempre me ofertaram: Cláudia,
Edson, Elena, Benedita, Adriana, Lirian, Admílson, Graziane, Marly, Rogério, Solange Benetti,
Selton, Silviane, Roberjane, Diman, Maryvalda, Cleomara, Valtrícia, Leonardo, Luciane, Aldina,
Mainara, Itamara, Maristela Ledur, Dagoberto e o nosso jamais esquecido Carlos Eduardo.
A todos os membros da administração do CEFAPRO: Leani, Cristina, Joel, Rita, Lílian, Márcia e
Dolores.
Aos funcionários do Departamento de Pós Graduação em Estudos de Linguagem - MeEL: Nelson,
Juliane, Uine, Rita, Andrea, Gabriela pela capacidade com que sempre desempenharam suas funções e
pela colaboração na instância administrativa.
Às amigas, Romênia e Marília por haverem acreditado em meu potencial.
À professora doutoranda Ana Carolina por haver me transmitido o entusiasmo pela vida acadêmica.
Ao meu amigo querido professor doutorando Gino Buzatto, geógrafo-jardineiro que sempre semeou
flores em meu coração.
vii
À amiga, companheira e eterna incentivadora professora doutoranda Vânia da Silva que sempre esteve
ao meu lado e de quem ouvi a notícia de que eu houvera sido aprovada no mestrado. Bons augúrios...
Depois... Muitos festejos e a presença forte a me acompanhar à igreja para agradecermos, juntas, pela
minha conquista. Amiga, sou eterna devedora da amizade que me devotou e do apoio irrestrito que me
concedeu, em todos os momentos.
À professora Ms e Jornalista Solange Wollenhaupt, minha amiga, “meu guru” e mestre de vida, dona
de uma sabedoria sem igual com quem aprendi a ser uma profissional mais completa.
À professora Ms Leila Figueiredo de Barros, pela amizade e apoio desde os tempos em que
trabalhamos juntas na Escola Estadual Pascoal Ramos.
Aos companheiros de Mestrado Lucimeire, João Paulo e, especialmente à Marcela e Mírian, pelos
diálogos enriquecedores, pelos importantes textos compartilhados e pela companhia no cafezinho após
as aulas e, também, a Loraine, Vanessa, Iara, Iuanys, Simone, Leidiane, Érica, presenças mais do que
especiais nas disciplinas que cursaram em minha turma.
Aos meus filhos Rodrigo, Marcelo, Gabriela por compreenderem pacientemente as minhas ausências e
dificuldades.
Um agradecimento especial ao meu filho Marcelo que me incentivou diuturnamente, lendo e
estudando comigo.
A meu irmão professor Dr. Mauro por haver me ensinado, desde nossa infância, a importância do
conhecimento para a construção de um mundo melhor e pela elaboração do Abstract.
viii
RESUMO
Isaías Caminha e o mal-estar na civilização brasileira no limiar do século XX
Esta pesquisa tem como principal objetivo dialogar com diferentes saberes,
estabelecendo, sobretudo, uma relação entre Literatura e Psicanálise para proceder à análise
da obra Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909) da autoria do intelectual Lima
Barreto. Ainda que sem perder o foco da Literatura, este estudo visa reconhecer de que modo
se manifesta, na estrutura do texto, o mal-estar freudiano experimentado pelo protagonista
Isaías face às circunstâncias engendradas pela civilização brasileira do início do século XX.
Na presente pesquisa, reiteramos nossa hipótese inicial de que, como consequência às
injustiças às quais Isaías julga haver sofrido, ao longo de toda a ação romanesca, revela-se
como determinante da estética do romance, uma instância denominada como ressentimento, o
qual, segundo Maria Rita Kehl (2010) é uma categoria pertencente ao senso comum e pode
ser conceituado como uma constelação afetiva composta por diversos sentimentos negativos
como o ódio, o rancor e a inveja. No ensaio O Mal Estar na Civilização (1930), Freud afirma
que o processo civilizatório seria responsável por restringir a tendência humana de obter
felicidade, impondo, contrariamente, a frustração e a dor advindas, sobretudo, dos
relacionamentos entre os seres humanos. No entanto, o psicanalista aponta o caminho da
sublimação como forma de compensação, controle e combate à ameaça da frustração, sempre
presente no embate com a realidade. Destarte, supomos que a dor e o desamparo vivenciados
por Isaías Caminha, ao longo da narrativa, foram sublimados, e, portanto, canalizados para
tarefa artística de recompor a sua trajetória de vida por meio da reelaboração de suas
memórias. A literatura emerge assim, como uma fonte de consolo para o desamparo a que
Isaías se vê relegado face à hostilidade advinda da realidade com a qual depara na metrópole
carioca. Concebendo o Rio de Janeiro como uma metonímia da civilização, visamos observar
o contexto histórico do romance e o ambiente da Primeira República brasileira, assim como
perscrutar de que modo a transição Monarquia / República e as tensões e contradições
inerentes a esse evento, colaboraram para o mal-estar que, instalado na sociedade, reflete em
Isaías Caminha, em forma de ressentimento. Finalmente nos propomos analisar em que
medida o bovarismo que domina a cena carioca nesse momento de transição política,
relaciona-se ao complexo de inferioridade nacional, ao fenômeno do mimetismo cultural e à
“cordialidade”, aspectos esses que se insinuam no enredo e na subjetividade dos personagens
da trama do romance em estudo.
PALAVRAS-CHAVE: Isaías Caminha, mal-estar, civilização, ressentimento, sublimação,
República, Lima Barreto, Bovarismo.
ix
ABSTRACT
Isaías Caminha and the ill in brazilian civilization on the verge of 20th century
This research has as its main goal to dialog with different forms of knowledge
establishing, above all, a relationship between Literature and Psychoanalysis to perform the
analysis of the work Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909) by the intellectual
Lima Barreto. Although not losing its focus on Literature, this study aims at recognizing in
which way the Freudian illness experienced by the Isaías character manifests itself in the face
of the circumstances sired by Brazilian civilization in the beginning of the 20th century. In the
present research, we reiterate our initial hypothesis that, as a consequence of the injustices
that Isaías deem to have suffered along all the novelistic action, it appears as a determinant of
the novel aesthetics an instance designated as resentment, which, after Maria Rita Kehl
(2010), is a category belonging to common sense and conceptualized as an affection
constellation comprised of several negative feelings as hate, rancor, and envy. In the essay
Civilization and Its Discontents (1930), Freud asserts that the civilization's process would be
responsible for restraining the human tendency to achieve happiness, by imposing, to the
contrary, frustration and pain to the human being, what arises, above all, from the
relationships among human beings. However, the way of sublimation is pointed out as a form
of compensation, control, and fight against the menace of frustration, always present in the
contact with reality. Therefore, we suppose that the pain and despair experienced by Isaías
Caminha, along the narrative, were sublimated and, therefore, channelled to the artistic task of
remaking his life's trajectory by means of a re-elaboration of his memories. Literature thus
emerges as a source of consolation to the despair to which Isaías sees relegated on the face of
the hostility coming from the reality with which the young Isaías stumbles upon in the Rio de
Janeiro metropolis. Conceiving Rio de Janeiro as a metonymy of civilization, we aim at
observing the historical context of the novel and the environment of the republican capital
during the First Brazilian Republic, as well as to scrutinize how the transition Monarchy /
Republic and the tensions and contradictions inherent to that event collaborated to cause the
illness which afflicted the character Isaías Caminha, in the form of resentment. Finally, we
propose to analyse in which measure the bovarism which dominates the Rio de Janeiro
scenery in this moment of political transition relates to the national inferiority complex, to the
phenomenon of cultural mimicry and to the “cordiality”, aspects that insinuate in the story
line and the subjectivity of the characters in the plot of the novel under study.
KEYWORDS: Isaías Caminha, resentment, sublimation, Brazilian Republic, Lima Barreto,
bovarism.
x
Sumário
RESUMO ................................................................................................................................. viii
ABSTRACT ............................................................................................................................... ix
INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 11
CAPÍTULO 01 - O Brasil da Primeira República: caldeirão da civilização .................... 20
1.1. E fez-se a civilização... ................................................................................................ 33
1.2. Luzes e sombras na Belle Époque brasileira ........................................................... 42
1.3. Da Literatura e da Civilização ................................................................................... 50
1.4. A Civilização, segundo Freud .................................................................................... 57
1.5. Isaías Caminha e os descaminhos da civilização .................................................... 62
1.6. Um romance da civilização........................................................................................ 85
1.7. Lima Barreto: pena afiada para a transgressão ...................................................... 90
CAPÍTULO 02 – Ressentimento: o mal-estar do capitalismo moderno ........................ 99
2.1. O ressentimento, segundo a Psicanálise ................................................................ 104
2.2. Recordações magoadas de um escrivão ressentido ............................................. 108
2.3. Isaías, um sonhador - entre o saber e a sedução.................................................. 126
2.4. (Re) sentimentos e recordações: as voltas que o coração dá.............................. 140
2.5. Bovarismo à brasileira: Ser o outro ou ser eu? Eis a questão... ......................... 151
CONCLUSÃO ....................................................................................................................... 172
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................. 182
11
INTRODUÇÃO
Fazendo-nos tudo compreender; entrando no
segredo das vidas e das cousas, a Literatura reforça o
nosso natural sentimento de solidariedade com os
nossos semelhantes, explicando-lhes os defeitos,
realçando-lhes as qualidades e zombando dos fúteis
motivos que nos separam uns dos outros. Ela tende a
obrigar a todos nós a nos tolerarmos e a nos
compreendermos; e, por aí, nós chegaremos a amar mais
perfeitamente na superfície do planeta que rola pelos
espaços sem fim. O Amor sabe governar com sabedoria,
e acerto, e não é à toa que Dante diz que ele move o
Céu e a alta Estrela. (Lima Barreto, Impressões de
Leitura, 1956)
Lima Barreto produziu sua obra no momento em que o Brasil se via profundamente
marcado por graves transformações políticas, econômicas e sociais promovidas pela recém
instaurada República que, na esteira da modernidade, visava se fortalecer pelas promessas de
progresso e da regeneração urbana. Em face da mutação promovida no cenário nacional, esse
período caracteriza-se também pela aceleração do processo civilizatório no país. É notório que
diversas foram as interferências realizadas nos diversos setores da vida país em prol da
edificação de uma civilização e, entre essas, emerge a radical remodelação operada na cidade
do Rio de Janeiro. Deriva dessa ação radical adotada pelos homens que pensavam o país,
variados transtornos no meio social o que importa na ocorrência de danos à subjetividade de
seus habitantes, tocados pelo desequilíbrio causado pela brusca mudança do espaço que
habitavam. Lima Barreto observa com olhos críticos o processo de urbanização da cidade e
logo identifica que ao projeto aparentemente bem intencionado, vincula-se a presença hostil
de um verdadeiro mimetismo cultural cuja base europeia definiu a segregação e a opressão
das classes sociais não elitizadas o que comprovaria o quanto os “arquitetos da modernidade”
encontravam-se alheados das verdadeiras necessidades da metrópole carioca e de sua
população, guiando seus empreendimentos reformistas pela racionalidade cega do capital que
a tudo ignora em sua ânsia de multiplicação. Partidário dos ideais do bem comum, além de
defensor extremado da integridade cultural do povo brasileiro, Lima Barreto cria uma galeria
de personagens cujas ações permitem, ainda que de modo indireto, uma análise dos valores
positivos e negativos que, segundo o autor permeiam às instituições componentes do
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empreendimento humano nomeado como civilização. Desse modo, é por meio da potência
dos seres fictícios criados pela imaginação do escritor carioca que reconheceremos a ideologia
que permeia e estimula o romance – Recordações do escrivão Isaías Caminha, bem como
serão os “seres de papel” que habitam essa narrativa os responsáveis por suscitar reflexões
acerca dos percalços que tangenciam a existência humana, no seio da civilização. Assim,
recorremos a Antonio Candido (2009) para lembrar que “o enredo existe através das
personagens; as personagens vivem no enredo. Enredo e personagem exprimem, ligados, os
intuitos do romance, a visão da vida que decorre dele, os significados e valores que o animam
(p.53-54).
Com o objetivo de destacar fatores determinantes de nossa civilização os quais se
insinuam, também no enredo “das Recordações”, situamos o ano de 1888 que registra a
ocorrência da Abolição da escravidão, advento que determinará de modo decisivo a entrada
do Brasil na modernidade. Pelo desequilíbrio econômico causado no país, a partir da extinção
formal do trabalho servil, tem início o declínio de um mundo que vivia à margem da paisagem
urbana, antes determinando seus contornos do que sendo modelado por eles. O país que até
então vivera sob o domínio exclusivo do mundo rural de base agrícola e patriarcal, vê-se
abruptamente atravessado pelas demandas de um mundo no qual começam a se impor, a
passos largos, os interesses do capital, da industrialização, da velocidade acelerada e da
tecnologia.
A eclosão da República brasileira ocorre no momento em que grandes e intensas
transformações varriam o mundo e, não é por coincidência que o Brasil, sobretudo sua capital,
o Rio de Janeiro, assistirá a sua total remodelação. Em nome da urgência do progresso era
preciso modernizar e fundar, finalmente, “a civilização”. E para tanto, era preciso abafar os
rumores dos tempos passados que exalavam atraso e tradição. Para atingir tal intento,
derrubaram-se casas, construíram-se prédios modernos, abriram-se avenidas, sanearam,
vacinaram e finalmente expulsaram aquela parcela da população que não se adequava ao novo
cenário que se estruturava devido a sua precária condição social.
Atavios à parte, todas as mudanças que se processaram no limiar do século XX na face
da capital brasileira, basearam-se em um modelo europeu, especificamente naquele delineado
na França, país eleito pela cobiça dos dirigentes para servir de molde para a nação brasileira.
Mediante o futuro que despontava, urgia aproximar-se das grandes civilizações, nutrindo-se
do manancial inesgotável advindo de culturas prósperas e edificantes que, uma vez absorvidas
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pelo país, determinariam o triunfo do progresso e da prosperidade nacional. Em face da
maciça presença de ingredientes franceses no cenário, destacamos que nos princípios do
século XX, o Brasil encena o que passou à história com o epíteto de Belle Époque.
Todo ideal cosmopolita que a elite dirigente lograva alcançar concretiza-se com
façanha da construção das modernas avenidas que após a Reforma de Pereira Passos passam a
cortar as ruas do centro carioca, presenciando com deslumbramento, o farfalhar das sedas dos
vestidos vindos diretamente da França, os fraques elegantes, as cartolas pretas luzidias, as
elegantes construções em estilo art nouveau:
A atmosfera cosmopolita que desceu sobre a cidade renovada era tal que, às
vésperas da Primeira Guerra Mundial, as pessoas ao se cruzarem no grande bulevar
não se cumprimentavam mais à brasileira, mas repetiam uns aos outros: “Vive La
France!”. Como corolário, as pessoas que não pudessem se trajar decentemente, o
que implicava, para os homens, calçados, meias, calças, camisa, colarinho, casaco e
chapéu, tinha seu acesso proibido ao centro da cidade (SEVCENKO, 2012, P.26).
De modo contraditório, em meio aos ímpetos modernizadores da face urbana do país,
a cena literária brasileira do momento registra a permanência quase intacta das tendências
parnasianas cujo cunho conservador imobilizava a criação literária do país nos píncaros do
ideal helênico, denunciando que, apesar da modernidade que espreitava a paisagem brasileira,
a cena cultural mantinha-se atrelada a valores incompatíveis com o propagado progresso que
o país alcançara:
Vivendo em um mundo cada vez mais aberto a inquietações de toda ordem,
representava, sem dúvida, indício de pobreza cultural ou de insensibilidade às
angústias do próprio tempo aquele fechar-se na gaiola dourada dos catorze versos e
cultivar um descritivismo requintado ou um lirismo de curto fôlego (BOSI, 1966,
p.20).
Assim, no plano cultural, acompanhando a postura falaz adotada pela elite dirigente
despontam obras cujo ufanismo enviesado e inerte em relação à descaracterização que assola
o cenário do país insiste em exaltar os avanços conquistados pelo projeto civilizatório
nacional. Sem sombra de dúvida, esse momento pode ser caracterizado pelo que Antônio
Cândido (1989) nomeou como “fase de consciência amena de atraso” (p.141) na medida em
que o país, agora impregnado da certeza de que o progresso surgia no horizonte, cultiva ideais
semelhantes àqueles semeados pela independência política quando também se formulou a
ideia de uma nata aptidão do país para um futuro brilhante que o aguardava na forma de
progresso e desenvolvimento.
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Contudo, toda a pujança, sofisticação e luxo vinculados a uma minoria elitizada
encobriam as verdadeiras condições da população carente, reduzida à marginalidade quando
decretado o projeto de modernização urbana, viu-se obrigada a isolar-se nas regiões
periféricas da cidade carioca. Engendrava-se a civilização do progresso, porém, com a mácula
do desencanto e da insatisfação.
Essa realidade difusa, certamente não poderia ser ignorada pelas manifestações
artísticas da época e, certamente, todo esse contexto desarmônico produzirá, sobretudo na
Literatura, manifestações de repúdio que se revelarão tanto na forma, quanto no conteúdo dos
romances, contos e crônicas que se voltam para a realidade brasileira, buscando avaliá-la em
uma perspectiva crítica e necessária aos desafios impostos à parcela da intelectualidade avessa
à descaracterização da vida cultural do país.
O momento que assiste à irrupção, no início do século XX, de uma abordagem crítica
da realidade brasileira e, portanto, mais propícia à necessária denúncia da alienação cultural
em que o país mergulhara, desponta na história literária com o nome de Pré-Modernismo,
tendência estética que gestou a verdadeira renovação artística que se efetivará com o
Modernismo de 22. Porém, há que ressaltar que a visão crítica com que os autores pré-
modernistas abordam a realidade brasileira não se revela inédita, pois que no século XIX o
viés mordaz da crítica já se manifestara na prosa de Aluísio de Azevedo e de Machado de
Assis.
O Pré-Modernismo empunhou em seu bojo prosadores como Euclides da Cunha,
Monteiro Lobato, Graça Aranha e Lima Barreto, todos esses engajados e comprometidos com
ideais mais pertinentes a um país que clamava por transformações de fato e não arremedos
miméticos de realidades estrangeiras alheias a nossos problemas e necessidades. Tais autores
destacam-se no panorama da Literatura brasileira pelo conteúdo crítico e questionador de suas
produções. Cientes da falsa prosperidade que emanava das transformações da zona urbana e
da economia de base cafeeira que guiavam os interesses da elite e os destinos do Brasil do
início do século XX não tardou ocasião para que a literatura produzida por essa ala
renovadora de escritores denunciasse os contrastes marcantes da realidade brasileira,
escondidos sob o ilusório e superficial padrão europeu imposto à revelia da população, no
espaço urbano da capital. A obra edificada pelo engajamento desses determinados escritores
da fase pré-moderna da literatura brasileira desvela as tensões inerentes a um momento em
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que o país tendia a distanciar-se de suas mais genuínas características, aniquilando, assim, sua
identidade.
Em face da sensibilidade e lucidez com que interpretou, valorizou e defendeu a
cultura brasileira enquanto arcabouço essencial à edificação da civilização que se erguia,
decidimos dedicar especial atenção à obra de Lima Barreto. Toda a produção do autor carioca
dá-se em meio à efervescência das transformações que agitavam a capital do país, assim o
inegável protagonismo da cidade do Rio de Janeiro em sua produção literária, além de revelar
a intensidade do afeto que o escritor nutria pela sua cidade-natal, funcionará, sobretudo como
um meio de representar os problemas peculiares ao país como um todo. A produção ficcional
limiana aponta para as profundas transformações políticas, econômicas e sociais, promovidas
pela recém instaurada República que, na esteira da modernidade, fortaleceu-se pelas
promessas de progresso e regeneração urbana fomentadas por uma elite econômica que visava
alcançar o ideal de felicidade e bem estar, considerados como inerentes à civilização. Tal
crença será considerada errônea por Sigmund Freud que a destronará ao denunciar a presença
de um constante e inevitável mal-estar na existência civilizada, conforme apontaremos mais
adiante.
Lima Barreto sempre esteve preocupado com os problemas que, ainda que ocultos
pela capa do discurso do progresso assolavam a população brasileira e por isso não aprecia os
excessos que permeiam a fase mimética que envolve sua cidade, transformando-a em na Belle
Époque brasileira. Com sua pena afiada pela sinceridade que sempre o acompanhou, denuncia
o mimetismo cultural, os desmandos dos mandarins da República, a artificialidade dos
literatos de então, as desigualdades e as injustiças que proliferavam nos bastidores do país,
elementos que o escritor considerava nefastos, além do que colaboravam para a derrocada da
civilização. No entanto, essa postura moderna, irreverente, combativa e honesta o levou ao
ostracismo e a um “esquecimento” que sepultou, por muito tempo, as qualidades do grande
escritor que foi.
Foi também Lima Barreto, um homem que dedicou toda a sua vida à Literatura.
Sofrido, amargurado, considerado como o mais sincero escritor brasileiro, fez de sua
Literatura uma arma de combate aos desmandos da sociedade de seu tempo. A produção
artística desse autor carioca revela uma necessidade declarada de transmitir da forma mais
direta possível seus sentimentos e ideias. Acreditava o agônico escritor que, assim, poderia
estimular a reflexão, a luta e a consequente libertação da consciência do ser humano e, por
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conseguinte, melhorar a sociedade na qual estava inserido. Sua obra é a completa tradução das
angústias de um homem preocupado em denunciar, pela palavra, os sofrimentos da parcela
dilacerada da sociedade por aspectos como a pobreza e o preconceito racial. De acordo com
Antonio Candido, “Lima Barreto é um autor vivo e penetrante, uma inteligência voltada com
lucidez para o desmascaramento da sociedade e para a análise das próprias emoções, por meio
de uma linguagem cheia de calor” (CANDIDO, 1989, p.39-40).
Em 1909, Lima Barreto faz sua estreia como escritor a partir da publicação do
romance intitulado como Recordações do Escrivão Isaías Caminha. A narrativa por meio da
qual são evocadas as lembranças do narrador personagem, apresenta-se como uma verdadeira
aventura do homem frente às agruras presentes na civilização. O romance produzido ao modo
de uma confissão traz a público, pelo narrador do discurso, as desventuras experimentadas em
sua juventude de rapaz interiorano e mestiço que ignorando sua origem humilde e sua cor,
decide fazer-se doutor e, para tanto, parte para a o espaço urbano em busca de oportunidades
para a realização de seu ideal. A narrativa se desenvolve no contexto da Primeira República,
na capital do Rio de Janeiro, em plena Belle Époque. A trajetória do ingênuo e sonhador
Isaías revela-se problemática, pois, logo, o rapaz se desilude ao deparar com a dura e hostil
realidade da “cidade grande” onde reconhecerá a desigualdade, a indiferença, o preconceito
racial, a injustiça, aspectos que revelam toda a força tirânica que alicerça a civilização,
sobretudo para alguém como ele, sem influência ou apoio algum. Após sucessivas
dificuldades, Isaías abandona do sonho de doutorar-se e emprega-se como contínuo em um
jornal de grande importância na capital do país. Nesse espaço testemunhará a existência de
componentes humanos como a corrupção, o arrivismo, a dissimulação a caracterizar as
relações da política e da imprensa brasileiras, instituições que, um dia, julgara, ingenuamente,
como emblemas da moralidade e da distinção. Passados alguns anos e já desgostoso em face
de seus destinos, o desiludido Isaías retorna ao interior do país para exercer a função de
escrivão. Anos após seu retorno, já maduro e resignado à solidão de sua existência roceira,
Isaías mergulha em seu passado e compõe suas memórias literárias, por meio das quais
confessará todo o desencanto advindo dos insucessos que colecionou ao longo de sua
trajetória na capital. O narrador que habita o presente da narrativa é um homem que sofre por
julgar-se injustiçado e vitimado pela sociedade preconceituosa e será pela escrita de suas
memórias que buscará a redenção para os sofrimentos que experimentou e, ainda experimenta
em sua existência. Porém, frente ao indiscutível mal-estar experimentado por Isaias, ao longo
de seu passado, por engenho das diferentes facetas reveladas pela realidade, intuímos que a
17
principal fonte dos sofrimentos experimentados pelo jovem Isaías advém da hostilidade
oriunda do seu relacionamento com os demais personagens presentes na narrativa, os
habitantes da civilização. Em face das mágoas provocadas pelos embates oriundos de sua
relação com os personagens-símbolos da civilização e de sua covardia em face dos desafios
que se apresentaram durante sua juventude, Isaías chega à maturidade como um homem
ressentido, vítima, portanto, de sua própria impotência e fraqueza moral.
Tendo em vista que esse conjunto de fatores negativos impede que Isaías avance rumo
à finalidade primordial comum a todo ser humano, finalidade essa que no sentido freudiano
corresponde à busca da felicidade, propusemos, nesse estudo, investigar as relações que
permeiam a existência de Isaías, no seio da sociedade brasileira, no limiar do século XX, bem
como pretendemos observar as consequências que se impõem à consciência desse sujeito que
vê seus sonhos juvenis serem pouco a pouco esmagados pelas forças engendradas pela
civilização sem, no entanto, investir em formas de superação.
A fim de compor o painel instigante em que a obra de Lima Barreto se encerra
estruturamos esse estudo em três capítulos, que a seguir descrevemos:
No primeiro capítulo, procuramos traçar um painel da capital da Primeira República,
em seus aspectos políticos, econômicos e culturais. Ainda que o período histórico ao qual nos
atemos já tenha sido matéria de muitas reflexões, acreditamos na importância desse
delineamento, para estabelecer uma relação metonímica que aproxima a capital do Brasil
republicano do início do século XX e a civilização, enquanto ideia universal. Nesse capítulo,
ainda, nos remetemos à obra O mal-estar na civilização (2010) de Sigmund Freud, a fim de
propor reflexões que contribuam para a compreensão da trajetória de Isaías bem como,
buscamos, analisar, a atuação de Isaías no seio da sociedade/civilização. Finalmente, também,
nesse capítulo, traçamos um perfil brevíssimo da vida, obra e estilo do escritor Lima Barreto.
No segundo capítulo, nos propusemos a verificar a presença do afeto nomeado como
ressentimento no personagem Isaías, buscando perceber de que modo esse mal-estar se
apodera do protagonista ao longo da narrativa, assim como, em que medida a hostilidade
presente nos agentes sociais colaboram para o nascimento e para a cristalização de afetos
negativos e geradores de ressentimento. Para tanto, nos embasamos no estudo da psicanalista
Maria Rita Kehl, intitulado como Ressentimento (2004) no qual o afeto do ressentimento é
definido como uma constelação maligna composta de sentimentos nocivos como o ódio, o
rancor, a raiva, a inveja, o ciúme, a maldade, a malícia e o desejo de vingança. O
18
ressentimento também nomeia a impossibilidade de esquecer ou superar uma ofensa, na
medida em que o ressentido está sempre adiando a vingança que o libertaria do intenso
sofrimento desencadeado por um agravo que ele insiste em não querer esquecer. Assim, nesse
capítulo, estabelecemos um franco diálogo com a Psicanálise, vereda que trilhamos em busca
da presença do “mal-estar” freudiano e do ressentimento, no personagem Isaías.
Esse capítulo também procederá a uma análise de alguns personagens como Isaías
Caminha e Floc, bem como da sociedade brasileira do limiar do século XX, sob a perspectiva
do Bovarismo.
O Bovarismo é uma condição psicológica que acomete um indivíduo ou até mesmo
uma sociedade e consiste em uma distorção da realidade que conduz o indivíduo a acreditar
que é alguém que realmente não é. O criador desse termo é Jules de Gaultier que empreendeu
em 1892 um estudo da personagem Madame Bovary, protagonista da obra homônima de
Gustave Flaubert.
O Bovarismo foi matéria de estudo para Lima Barreto que nomeou o distúrbio como
“Mal do Pensamento” em crônica dedicada ao assunto cujo título “Casos de Bovarismo”
consta no volume intitulado como Bagatelas (1956b). O sujeito bovárico é um eterno
insatisfeito devido à defasagem que mantém distantes as ilusões que acalenta e a realidade.
No que concerne às possíveis características bováricas presentes nas Recordações do
escrivão Isaías Caminha acreditamos que a perseguição de Isaías ao sonho de doutorar-se é
um modo de expressão do bovarismo, pois que a fixação do doutorismo em sua juventude
advinha de uma ideia ilusória que o impedia de perceber a realidade mediante os limites que
se impõe no contraponto com o real. Isaías, um simplório rapaz do interior, decide evadir-se
de sua condição real para assumir uma personalidade que houvera idealizado. Falhado o
sonho, expôs-se a fragilidade de sua quimera. Cremos que o insucesso do protagonista revela-
se como uma metáfora do projeto civilizatório inaugurado na Primeira República que trajou o
país com a fantasia parisiense, mas, no entanto, não configurou um real desenvolvimento da
nação. Ser europeu era um sonho inviável para uma nação cujas raízes mestiças mesclavam-se
às representações da cultura nacional.
Ao longo de nosso trajeto, além dos pensadores Freud e Maria Rita Kehl e suas teorias
psicanalíticas e dos pensadores ligados estritamente ao campo da Literatura como Antonio
Candido, Alfredo Bosi e Antonio Arnoni Prado, entre outros importantes nomes da crítica
19
literária; convidamos, também, ao diálogo, diversos pensadores e saberes múltiplos que nos
proporcionaram uma percepção mais aguçada de nosso objeto. Nesse momento, saberes
oriundos do campo da História, Sociologia, Ciências Sociais e das Artes, incorporaram-se às
nossas reflexões, permitindo “um olhar” abrangente acerca das questões suscitadas pelo texto
literário. Assim, nomes como os de Ernest Gombrich, Sérgio Buarque de Holanda, Leila
Perrone Moysés, Nicolau Sevcenko, Maria Zilda Cury, Osman Lins, Edward Said, Carlos
Lessa, Boris Fausto, Elias Norbert, Machado de Assis, entre outros importantes nomes da
crítica literária, sociológica e historiográfica despontam em nossa pesquisa, enquanto
colaboradores inestimáveis na realização deste estudo.
20
CAPÍTULO 01 - O Brasil da Primeira República:
caldeirão da civilização
O que caracteriza uma civilização são suas
ideias, os seus preceitos, as suas instituições e os seus
sentimentos; e por acaso, as ideias, os preceitos, as
instituições que governam a Europa, são diversos dos
que nos governam.
(Lima Barreto, Feiras e Mafuás, 1956)
O momento histórico brasileiro delimitado entre os anos finais do século XIX e as
duas primeiras décadas do século XX destaca-se pela ânsia com a qual a elite dirigente do
país ensejou ultrapassar os limites impostos pelo mundo monárquico e tudo o que esse
modelo pressupunha de tradicional e, ao mesmo tempo, ultrapassado, ao olhar dos arquitetos
da modernidade. O progresso ansiado é, nesse contexto de euforia, uma versão homóloga do
conceito de civilização, fundamento considerado imprescindível para nações periféricas,
porém ansiosas por inaugurar uma forma de existência adequada aos padrões exigidos pelo
mundo das máquinas, da tecnologia, da velocidade e do capital. Em face desse ideal, impera
nesse momento brasileiro o lema que afirmava que era preciso civilizar o país! E para tanto se
fazia urgente erigir monumentos que consagrassem a vitória do ideal de civilização, cuja fonte
inspiradora situava-se no distante continente europeu – solo fecundo para a germinação da
beleza, luxo e bem estar; valores que eram julgados como essenciais para a fundação de
tempos de harmonia e felicidade jamais vistos. Primeira capital republicana e
estrategicamente posicionada, a cidade do Rio de Janeiro funcionou como vórtice da notável
metamorfose que transfigurou a cena política, econômica, cultural e social do país. Assim, o
Brasil despede-se do anacronismo abominado pelos cosmopolitas da nova geração e adentra a
modernidade, porém, a sanha avassaladora que guiou as ações dos dirigentes instaura
inevitáveis conflitos advindos do modelo civilizacional implementado pelos construtores
ideológicos do país.
21
Assim, fez-se marca significativa do momento histórico em que se instala a República
a preponderância da cidade do Rio de Janeiro em relação aos demais estados que compunham
a República Federativa do Brasil. É inegável que tal proeminência deve-se não só ao fato de
ser a cidade carioca a sede do Governo Federal, mas, também deriva de sua potencialidade em
funcionar como palco de eventos decisivos para a vida nacional. Constata-se que desde o
acirramento da Campanha Abolicionista, em 1870, passando pela Abolição da Escravidão, em
1888, Proclamação da República em 1889, e até o início do século XX, a capital brasileira de
então figurou com grande destaque em face das profundas transformações políticas,
econômicas, sociais e culturais que se delinearam em seu solo.
Essa preponderância da capital brasileira tem, sem dúvida, fortes raízes fincadas em
seu passado colonial e nos eventos ocorridos durante os longos anos de permanência da sede
da Monarquia e seu monarca maior, D. Pedro II; porém, é nos anos imediatos à Proclamação
da República que se define a posição hegemônica do Rio de Janeiro no país, enquanto centro
irradiador de tendências não só políticas e econômicas, como também culturais. O Rio de
Janeiro era, enfim, o espaço privilegiado e fecundo para o avanço do progresso e, logo para a
construção da civilização ideal, segundo os moldes europeus.
Porém, o processo de reajuste político e econômico que tem início com a instituição
do regime republicano e que, em breve tempo, conduzirá o Rio de Janeiro a exercer a função
de vitrine do país não ocorre de modo simples e natural. Para assentar a cidade carioca no
trono de cidade-espelho da nação e marco da civilização, o governo republicano precisou
transpor uma série de obstáculos que, no limite, desencadeou uma espécie de seleção que
expulsou da cena política tanto os opositores do novo regime quanto aqueles intelectuais
republicanos oriundos da Geração de 1870 e seus fervorosos compromissos com uma
República idealizada e alinhada aos anseios populares. No rastro das transformações
prodigiosas operadas a partir da formulação do novo ideário civilizacional, no entanto, o
moderno Rio de Janeiro figurará como espaço de desencanto entre esses intelectuais que,
havendo idealizado uma República sem máculas, concebendo-a a partir de caros valores
cívicos e princípios éticos, veem-se apartados da “nova realidade” definida pela instituição
republicana que se firmava à custa da especulação financeira e das artimanhas do arrivismo
social.
Assim, a partir do advento republicano, importantes intelectuais brasileiros sucumbem
no cenário nacional em face das intensas disputas pelo poder que impulsionavam republicanos
oportunistas à busca de altos cargos. À força da retaliação política inibidora da construção de
uma república de fato, uniram-se medidas econômicas que desencadearam a transferência de
22
fortunas pertencentes à burguesia monárquica para as mãos de arrivistas especuladores
enriquecidos subitamente por meio de negociatas suspeitas por intermédio das quais novos
grupos econômicos eram “magicamente” alçados a postos de poder e prestígio social.
O pesquisador Nicolau Sevcenko (2009) sintetiza o desconcerto que preponderou entre
os republicanos que herdaram os ideais da Geração de 70 em face da concepção adotada pelos
“novos homens” que assumiram os postos-chave na hierarquia republicana como
beneficiários diretos dos arranjos políticos propiciados pela nova instituição governamental:
Se os conflitos políticos tendiam a decantar os agentes cuja qualidade maior
fosse a moderação no anseio das reformas, as agitações econômicas, por seu lado,
apuravam os elementos predispostos à “fome do ouro, à sede de riqueza, à
sofreguidão do luxo, da posse, do desperdício da ostentação, do triunfo”.
Conciliando essa duas características, o conservadorismo arejado e a cupidez
material, pode-se conceber a imagem acabada do tipo social representativo por
excelência do novo regime. (SEVCENKO, 2009, p.37)
As interferências que se faziam necessárias ao cenário citadino carioca em face dos
novos rumos impostos pela política econômica objetivavam a construção de uma imagem que
revelasse a capital do país como um espaço progressista. Tal ideal deveria propagar-se por
toda a nação contribuindo, assim para o fortalecimento do prestígio da capital. Logo, as
medidas governamentais efetivam-se e a capital republicana ganha ares cada vez mais
cosmopolitas na medida em que as ações empreendidas se voltam para os padrões ditados
pela moda europeia, para a remodelação de hábitos e intensificação dos cuidados pessoais e,
finalmente para a reconstrução da cidade, talhada por logradouros e edificações com a forma
de Paris. A riqueza que parecia proliferar na capital, oriunda das transações comerciais, no
entanto, concentrava-se, cada vez mais, nas mãos de membros da burguesia republicana e
assim o cotidiano dessa nova elite brasileira ia-se tecendo pelos fios da ilusão que a fazia crer
em uma miraculosa miragem de prestígio e poder perenes; “essa atitude cosmopolita
desvairada adentra por quase todo esse período, exercendo placidamente a sua soberania sobre
as imaginações. Pelo menos até o fim da Primeira Guerra Mundial não há quem conteste a lei
natural que fez de Paris “o coração do mundo” (SEVCENKO, 2009, p.51-52).
É fato que ao instalar-se no país, o modelo republicano visa a modificar de modo
radical as relações políticas e econômicas, bem como tenciona uma verdadeira e determinante
transformação da sociedade que se configurava, ainda, pelos moldes do modelo imperial.
Desse modo, a missão dos governantes vinculava-se a uma necessária e inadiável reforma
23
que, uma vez realizada, conduziria o país a um amplo e irrefreável desenvolvimento o qual,
sem dúvida, acreditavam os progressistas da República, proporcionaria a superação do
pretenso estágio de “barbárie” em que se encontrava o país, após o longo domínio da
Monarquia. A fim de atingir esse objetivo, elege-se o modelo francês. No entanto, os tempos
da Nova República assistem à criação de medidas que visavam regular o comportamento dos
indivíduos, lançando-os à adoção de condutas concernentes aos caminhos que conduziriam à
civilização que se pretendia erguer, fato que distancia o Brasil da tendência verdadeiramente
renovadora operada no país europeu, fonte da inspiração.
Sentimentos semelhantes advindos do sonho de modernidade foram experimentados
com grande ênfase pela França, em 1774, momento em que membros progressistas da corte
ansiavam por reformas econômicas no Antigo Regime liderado por Luís XVI. Porém, na
França, conforme nos aponta Norbert Elias em obra intitulada O Processo Civilizador
publicada em 1939, o ideal de civilização constitui a possibilidade de avanço a um estágio
superior de sociedade:
Mas os povos não estão ainda suficientemente civilizados, dizem os homens
do movimento de reforma de corte/classe média. A civilização não é apenas um
estado, mas um processo que deve prosseguir. Este é o novo elemento manifesto no
termo civilisation. Ele absorve muito do que sempre fez a corte acreditar ser - em
comparação com os que vivem de maneira mais simples, mais incivilizada ou mais
bárbara - um tipo mais elevado de sociedade: a ideia de um padrão de moral e
costumes, isto é, tato social, consideração pelo próximo, e numerosos complexos
semelhantes. Nas mãos da classe média em ascensão, na boca dos membros do
movimento reformista, é ampliada a ideia sobre o que é necessário para tornar
civilizada uma sociedade. O processo de civilização do Estado, a Constituição, a
educação e, por conseguinte, os segmentos mais numerosos da população, a
eliminação de tudo o que era ainda bárbaro ou irracional nas condições vigentes,
fossem as penalidades legais, as restrições de classe burguesa ou as barreiras que
impediam o desenvolvimento do comércio - este processo civilizador devia seguir-se
ao refinamento de maneiras e pacificação interna do país pelos reis (ELIAS, 1994a,
p.62)
Assim, a ênfase conferida ao padrão de vida europeu pela elite dirigente advém do
fascínio que o sucesso da civilização europeia já houvera alcançado ao longo dos séculos. O
mundo europeu parisiense irradiava ideias progressistas que fortaleciam os anseios oficiais
por transformar o espaço carioca em sede da Civilização Brasileira. Há, porém, algumas
peculiaridades que precisamos apontar no sentido de perceber que significados inerentes ao
24
conceito de civilização firmaram-se na consciência da elite em face de seu deslumbre
progressista. O sociólogo alemão Norbert Elias (1994a), eminente estudioso dos fenômenos
sociais, define a ideia de “civilização”:
O conceito de civilização refere-se a uma grande variedade de fatos: ao
nível da tecnologia, ao tipo de maneiras, ao desenvolvimento dos conhecimentos
científicos, as ideias religiosas e aos costumes. Pode se referir ao tipo de habitações
ou a maneira como homens e mulheres vivem juntos, à forma de punição
determinada pelo sistema judiciário ou ao modo como são preparados os a1imentos.
(ELIAS, 1994a, p.23).
O mesmo pensador amplia o conceito do termo “civilização” entrelaçando-o ao
desenvolvimento dos povos ocidentais:
Mas se examinamos a que realmente constitui a função geral do conceito de
civilização, e que qualidade comum leva todas essas várias atitudes e atividades
humanas a serem descritas como civilizadas, partimos de uma descoberta muito
simples: este conceito expressa a consciência que o Ocidente tem de si mesmo.
Poderíamos até dizer: a consciência nacional. Ele resume tudo em que a sociedade
ocidental dos últimos dois ou três séculos se julga superior a sociedades mais antigas
ou a sociedades contemporâneas "mais primitivas". Com essa palavra, a sociedade
ocidental procura descrever o que lhe constitui o caráter especial e aquilo de que se
orgulha: a nível de sua tecnologia, a natureza de suas maneiras, desenvolvimento de
sua cultura cientifica sua visão do mundo, e muito mais.. (ELIAS, 1994a, p.23).
Norbert Elias foi um dos estudiosos que se detiveram com mais ênfase no estudo dos
processos de civilização do mundo ocidental. Produto de uma pesquisa minuciosa acerca do
comportamento do homem civilizado, a obra O processo Civilizador (1994a) expõe a teoria
do pesquisador cujo objetivo é desvendar os princípios da civilização, mediante a
compreensão de que as alterações experimentadas pela personalidade dos indivíduos
encontram-se fortemente vinculadas às transformações que se operam nas estruturas sociais.
Norbert Elias enfatiza o caráter processual que circunda a constituição da civilização ao
afirmar que a organização civilizacional resulta de “um processo ou parte de um processo em
que nós mesmos estamos envolvidos” (ELIAS, 1994a, p.21). O pesquisador alemão alude,
ainda, a uma grande diferença de uso do termo civilização por franceses e ingleses de um lado
e alemães, de outro:
25
Para os primeiros, a conceito resume em uma única palavra seu orgulho
pela importância de suas nações para o progresso do Ocidente e da humanidade. Já
no emprego que Ihe é dado pelos alemães Zivilisation, significa algo de fato útil,
mas, apesar disso, apenas um valor de segunda classe, compreendendo apenas a
aparência externa de seres humanos, a superfície da existência humana. A palavra
pela qual os alemães se interpretam, que mais do que qualquer outra expressa-lhes o
orgulho em suas próprias realizações e no próprio ser, é Kultur (ELIAS, 1994a,
p.24).
Norbert Elias (1994a) aponta ainda para o fato de que, enquanto o alemão confere
ênfase às realizações humanas relegando a um segundo plano questões ligadas apenas ao
“comportamento”; “o conceito francês e inglês de civilização pode se referir a realizações,
mas também a atitudes ou "comportamento" de pessoas, pouco importando se realizaram ou
não alguma coisa” (p.24). Assim, ao voltarmos o olhar para o modo como se deu o processo
civilizatório na cidade do Rio de Janeiro, somos incitados a perceber que, no instante em que
nascia o século XX e apesar de todo o ideário de modernidade que o momento pressupunha o
país ainda se encontrava em processo de maturação de sua identidade e no seu afã de
progresso busca alinhar-se aos padrões europeus, elegendo o modelo francês para construir a
sociedade burguesa e elitista característica da época. De fato, é nítida a importância conferida
à aparência da população ou à superfície da existência humana por aqueles missionários da
civilização tomados pela febre da novidade e do consumismo a erigir um verdadeiro culto ao
refinamento do vestuário, à obediência à sofisticação da moda parisiense e à elegância partir
da qual os indivíduos eram previamente qualificados e previamente julgados.
O pesquisador Norbert Elias (1994a) revela aspectos da função civilizadora que
notadamente colabora para que possamos perceber que, na busca por uma cultura
cosmopolita, o Brasil que “renascia” com o século XX ignorava as peculiaridades nacionais e
a identidade dos diversos grupos sociais para adotar um modelo de civilização alheio às
tradições e valores próprios da cultura brasileira. Desse modo, o panorama do momento
funcionava à semelhança de uma pantomima, na medida em que, visando conformar-se aos
valores característicos da civilização francesa, refletia de modo inerte, ideais próprios de uma
nação forjada por outros caminhos e “histórias”. Logo, é possível aquilatar o grau de
descontentamento, bem como dimensionar como a maioria da classe popular brasileira e,
sobretudo a carioca (relegada ao abandono, discriminada em sua pobreza e desrespeitada em
sua cultura) posicionou-se em relação ao novo modelo de sociedade que se erguia nos anos
26
iniciais do século XX. Norbert Elias (1994a) alerta para o fato de que as ideias embutidas na
palavra “civilização”
Assumem forma na base de experiências comuns. Crescem e mudam com o
grupo do qual são expressão. Situação e história do grupo refletem-se nelas. E
permanecem incolores, nunca se tornam plenamente vivas para aqueles que não
compartilham tais experiências, que não falam a partir da mesma tradição e da
mesma situação (ELIAS, 1994a, p.26).
Assim, mediante o pensamento de Norbert Elias (1994a) percebemos que o ideário de
civilização implementado no país, no auge do cosmopolitismo, vem à tona sob o auspício da
instabilidade e da insatisfação social da grande maioria da população, que não comungava do
ideário vigente que forjava a construção de um país artificial. Excluída dos benefícios
oriundos do progresso e do padrão de vida burguês, essa parcela da sociedade não aceitou
brandamente a justificativa ideológica formulada pela elite e concretizada por um discurso
vigoroso que apelava para a imperiosa necessidade de fundar uma civilização brasileira cuja
matriz, no entanto, situava-se na Europa.
A clivagem que em nome do projeto civilizatório se processou no seio da sociedade
carioca nesse tempo marcado por grandes e agudas mudanças, fez-se presente, também, no
cenário cultural do momento, espaço privilegiado para o debate que, em face das
transformações históricas revelou-se fecundo no que concerne à definição do papel social do
artista. Pela função estratégica que a capital carioca desempenhou na constituição do que se
consagrou nomear como “civilização”, percebemos que ao lançar um breve olhar sobre o
conjunto da produção literária que se desenvolveu ao longo da fase inaugural da Primeira
República, verifica-se sem maiores dificuldades que a cidade do Rio de Janeiro, capital do
novo regime, ocupou um espaço privilegiado também como elemento temático na
composição das obras produzidas pelos escritores de então.
Assim, referente ao campo literário, as características da Literatura brasileira
produzida no entrecruzar dos séculos e nos anos imediatamente posteriores revelam, também,
a face oblíqua e em certo aspecto, estagnada, do momento. Os tempos da Nova República
apontam para o fato de que as ilusões e o sentimentalismo presentes no ápice do movimento
romântico haviam se diluído nas diversas correntes que surgiram na esteira dos novos tempos
e nas constantes demandas por formas de expressões literárias que viessem ao encontro da
ânsia dos literatos em expressar pela via estética, os estados profundos da alma ante a
realidade que os circundava e muitas vezes os oprimia. Assim, apesar da transformação
27
impostas pelo novo século que raiava, escolas estéticas como o Realismo, o Naturalismo, o
Simbolismo e o Parnasianismo são correntes que vigoraram quase paralelamente no cenário
cultural do momento. Ao afastar a possibilidade de formação de um movimento único, a
coexistência dessas escolas literárias facultou, entretanto, a possibilidade de um diálogo, ainda
que tímido, entre escritores cujas tendências situavam-se no que Antonio Candido (2000)
nomeou como dialética do “localismo e do cosmopolitismo” (p.101):
Se fosse possível estabelecer uma lei de evolução da nossa vida espiritual,
poderíamos dizer que toda ela se rege pela dialética do localismo e do
cosmopolitismo, manifestada pelos modos mais diversos. Ora a afirmação
premeditada e por vezes violenta do nacionalismo literário, com veleidades de criar
até uma língua diversa; ora o declarado conformismo, a imitação consciente dos
padrões europeus (CANDIDO, 2000, p.101).
De acordo com Antonio Candido, é fato que a obra dos literatos que produziram em
meio ao turbulento período situado entre os anos de 1900 a 1922 não se constitui como uma
literatura inovadora, pois que em sua maioria a produção literária do momento configura-se
como “literatura de permanência, pois conserva e elabora os traços desenvolvidos depois do
Romantismo, sem dar origem a desenvolvimentos novos; e, o que é mais, parece acomodar-se
com prazer nesta conservação” (CANDIDO, 2000, p.104).
Não obstante os fatos aludidos pelo eminente professor Antonio Candido que acima
expressamos e que são imprescindíveis para o conhecimento do momento cultural do qual nos
ocupamos, acreditamos, porém, que alguns escritores adicionaram ingredientes inovadores ao
academismo que prosperava, sobretudo, sob o símbolo da estética parnasiana. Entre esses,
destacamos o escritor Euclides da Cunha e seu vigoroso discurso capaz de expor os conflitos
de um Brasil invisível aos olhos dos poderosos, em um tempo em que a capacidade de
originalidade temática limitava-se a retomar os preceitos Neoclássicos, concebendo “a poesia
como “linguagem ornada”, segundo padrões já consagrados que garantam o bom gosto da
imitação” (BOSI, 1966, p.19).
Entre os literatos que produzem a partir de uma perspectiva modernizadora, Lima
Barreto emerge não só como o escritor que se preocupou em revelar a face deslumbrante da
capital, cuja beleza dos cenários naturais era transfigurada pela ação civilizadora que lhes
impingia tons parisienses; mas, sobretudo, como aquele que imprimiu em sua obra um tom
crítico frente a uma cidade que, a par de sua característica beleza e cosmopolitismo, guardava
28
em suas entranhas graves problemas de ordem política, econômica e social. Beatriz Resende
apresenta a intensidade da relação que Lima Barreto mantém com a cidade carioca:
O Rio de Janeiro das crônicas de Lima Barreto é cidade de contrastes, das
revoltas, das ruínas sob o vento sob progresso, mas é antes de mais nada a expressão
de uma paixão tão forte que a outras, mais humanas, não deixa espaço. Sozinho na
multidão, de ninguém pode se aproximar realmente, por estar tomado de um
sentimento excessivo de proximidade com toda a cidade que só a literatura pode
expressar. (RESENDE, 1993, p.100)
Recordações do Escrivão Isaías Caminha inserido que está no conjunto da obra
limiana, também dedica, ao longo de seus catorze capítulos, um espaço privilegiado para a
cidade carioca que, ao modo de um personagem, surge na narrativa impregnando de vida os
hábitos, os costumes, os lugares representativos de sua história e de sua vida cultural, bem
como o comportamento de toda uma sociedade que no raiar do século XX buscava adaptar-se
a um novo regime político, inaugurado pela Proclamação da República, e a uma nova ordem
social, decretada pela Abolição da Escravidão. É reconhecido por toda a crítica o valor
documental da obra de Lima Barreto para aqueles que se interessam pelos fatos que marcaram
o Brasil da Velha República e da Belle Époque. Sem dúvida, a Literatura produzida por Lima
Barreto permite um raro conhecimento do contexto no qual viceja; porém, a presença da
cidade em seus romances não se resume a uma sucessão de descrições mortiças de ruas,
praças ou dos hábitos citadinos da população fluminense. Em Lima Barreto, a cidade do Rio
de Janeiro, antes de funcionar como um simples cenário onde os personagens se movimentam,
revela-se como agente que atua de modo dinâmico na composição da estrutura do romance,
funcionando como ingrediente estético da obra.
Logo, faz-se oportuno refletir quanto ao modo como são estabelecidas as relações
entre a obra literária e o contexto no qual ela viceja. As relações que permeiam o contexto e o
texto literário revelaram-se como motivo de embate entre os teóricos do fenômeno literário.
Contudo, segundo reflexões que Antonio Candido realiza em Literatura e Sociedade (2000),
estudos desenvolvidos na contemporaneidade revelam que importantes estudiosos vêm se
interessando em compreender os fatores sociais e psíquicos inerentes a um fato literário,
visando compreendê-los enquanto “agentes da estrutura” (p.07) da obra, distanciando-se,
assim, da visão limitadora que via o ambiente e o componente social apenas como “moldura”
para a encenação das ações do romance.
29
Ao longo do tempo, a crítica literária sempre esteve atenta às possíveis correlações
entre literatura e sociedade como meio para a compreensão do fenômeno literário. Assim,
compreendemos com Antonio Candido (2000) que das questões ligadas ao modo como se
vinculam obra literária e realidade, derivam diversas teorias que ora conferem destaque
demasiado à matéria social de uma obra, em detrimento da estrutura que a conforma; ora
centraliza-se na valoração única da forma, desconsiderando a importância do contexto do qual
a obra emerge. Assim, Candido (2000) reflete sobre essa dicotomia para em modo de síntese
apresentar a tendência adotada pela crítica literária moderna:
Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões
dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa
interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que
explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a
estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do
processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa,
não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um
certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno (CANDIDO,
2000, p.05).
Com base nessas ideias disseminadas por Antonio Candido, nos propomos investigar
de que modo se estruturam na arquitetura das Recordações do Escrivão Isaías Caminha, os
elementos constituintes da sociedade carioca tal qual ela estava organizada no limiar do
século XX, momento histórico em que transcorre a narrativa. Adiantamos que em nosso
estudo compreendemos a sociedade carioca como uma metonímia da civilização e, logo,
espaço no qual prolifera o “mal-estar”, espécie de tensão que, de acordo com Sigmund Freud
(2010) é inerente à vida do homem civilizado em seu eterno conflito com a realidade a qual se
apresenta sempre apta a lembrar que a satisfação humana está interditada pelas limitações
biológicas que impediriam o ser humano de atingir a plenitude da felicidade, gerando,
portanto, esse profundo e contínuo descontentamento no mundo civilizado, nomeado como
“mal-estar”.
Assim, mediante a necessidade de observar de que modo os fatores sociais e psíquicos,
aparentemente extrínsecos à obra se inter-relacionam com o plano formal para compor o
plano estético do romance, julgamos necessário traçar um breve painel do período histórico
sob o qual vicejou o enredo de Recordações do Escrivão Isaías Caminha – nosso objeto de
30
pesquisa. A seguir, passaremos a uma breve abordagem desse momento histórico que
testemunhou a publicação do citado romance.
Em 14 e julho de 1889, enquanto a Europa comemorava o centenário da Revolução
Francesa, movimento que forjou no ideal de Liberdade, Igualdade e Fraternidade um novo
conceito de nação, o Brasil despedia-se do regime monárquico para adotar o modelo
republicano. Já houvera corrido dezenove dias do mês de novembro de 1889, quando o líder
militar Marechal Deodoro da Fonseca, incitado por um grupo de positivistas inflamados,
proclamou a República, no país. O advento da República brasileira em seu início encerra um
grande paradoxo, originado em seu caráter moderno e ao mesmo tempo passadista. Nicolau
Sevcenko (2009) busca compreender a grande crise histórica que marcou a entrada do Brasil
na modernidade, no momento imediatamente posterior à Abolição da Escravidão no ano de
1888 e ao advento da República, em 89. Ao observar os enlaces políticos, econômicos e
sociais característicos desse período histórico do Brasil e por extensão, do Rio de Janeiro, o
pesquisador aponta para o afluxo de vultosos capitais externos, para a presença maciça dos
emigrantes, bem como para a formação do mercado de trabalho remunerado que se intensifica
mediante os inícios da industrialização. No mesmo estudo, o pesquisador destaca, ainda, o
tímido desenvolvimento da atividade industrial, na medida em que grande parte do projeto de
industrialização foi abortada e as mazelas desse insucesso se tornaram entraves ao ingresso do
país em uma segunda etapa de seu projeto de modernização. Entre os fatores que contribuíram
para baixo desempenho da indústria brasileira encontra-se, de acordo com Boris Fausto
(1995) a carência de uma indústria de base (máquinas, equipamentos, ferro, aço e cimento)
que concorresse para um uso efetivo do capital estrangeiro que, na ocasião, expandia suas
fronteiras em busca de mercado consumidor. A ênfase conferida ao mercado agroexportador
pelo Estado brasileiro foi sem dúvida um fator importante entre as dificuldades enfrentadas
pelo setor industrial. Acresce a essa difícil realidade os transtornos causados pela adoção de
medidas governamentais relativas às políticas de juros e àquelas relativas à política cambial,
conforme nos informa Boris Fausto:
Em alguns casos, o Estado concedeu empréstimos e isenção de impostos
para a instalação de indústrias de base. Por outro lado, a tendência de longo prazo
das finanças brasileiras no sentido da queda da taxa de câmbio tinha efeitos
contraditórios com relação à indústria. A desvalorização da moeda encarecia a
importação dos bens de consumo e, portanto, estimulava a indústria nacional, mas
ao mesmo tempo, tornava mais cara a importação de máquinas de que o parque
industrial dependia.
31
Resumindo, se o Estado não foi um adversário da indústria, esteve longe de
promover uma política deliberada de desenvolvimento industrial (BORIS FAUSTO,
1995, p.289).
Inicialmente comandada pelos militares e sua ideologia positivista baseada na “Ordem
e Progresso”, a jovem República brasileira conheceu, em seguida, sucessivos presidentes
civis. Estes líderes da nação buscaram implementar políticas que revigorassem o panorama
econômico do Brasil, na medida em que, segundo Boris Fausto (1995), no plano financeiro, a
grave situação que vinha dos tempos da monarquia tornou-se dramática. O governo
republicano herdara do Império uma dívida externa que consumia as divisas do país. A essa
questão acrescentam-se as diversas revoltas populares, com destaque para a Revolta de
Canudos, deflagrada em 1896, durante o governo de Prudente de Morais, primeiro presidente
civil da República e; brutalmente reprimida pelas forças militares. Este episódio será objeto
da obra máxima de Euclides da Cunha – Os Sertões (1902). Acerca de Canudos, Boris Fausto
(1995) registra que as tropas enviadas para combater os rebeldes da região baiana e seu líder
Antonio Conselheiro só conseguiram arrasar o Arraial após um mês e meio de lutas. Os
sertanejos, defensores do Arraial de Canudos, resistiram por longo tempo, mas foram
derrotados em combate. Tal episódio, retratado ao modo de epopeia por Euclides expõe as
chagas que maculavam o sertão do país, até então “invisíveis” em face da preponderância da
região litorânea do Brasil.
Em 1898 tem início o governo de Campos Sales, segundo presidente civil da
República brasileira. Entre as ações que o novo líder da nação desenvolveu durante sua gestão
encontra-se a instalação do sistema oligárquico no país. A fim de implementar essa medida,
funda a chamada “política dos governadores”, estratégia baseada em alianças e troca de
favores políticos que, visando à manutenção da elite cafeeira no poder, garantia, sobretudo a
centralização do Estado regional que, por essa via, assegurava a preservação de seus
interesses econômicos. Acerca da República oligárquica, Emília Viotti nos informa que,
Depois de um curto domínio da espada, as oligarquias cafeicultoras afirmaram-se no
poder garantidas por uma base econômica aparentemente sólida oferecida pela
crescente produção cafeeira. O agitado período governamental do paulista Prudente
de Morais foi sucedido pelo governo do também paulista Campos Salles, que
conseguiu impor uma relativa calma ao cenário político, ideando a “política dos
governadores”. Entregou os estados ao domínio das oligarquias locais, concedendo-
lhes plena autonomia na direção dos assuntos regionais, e recebendo delas, em troca,
32
o apoio de que necessitava na esfera federal. A fraude eleitoral campeava por toda
parte, favorecida pelo voto a descoberto e pela falta de independência do eleitorado.
Nos pleitos, a oposição era sistematicamente sacrificada (VIOTI, p.397, 1999).
Esse modo de condução da política nacional exercido no período de consolidação do
regime republicano, vinculado ao fortalecimento do poder regional, garantiu um continuísmo
político e, logo, a perpetuação do monopólio das elites agrárias no poder. Essa centralização
regional que garantia uma autonomia às regiões economicamente mais prósperas do país não
se limitou, porém, às classes sociais mais elevadas, mas abarcou amplos setores da classe
média, que encontrou uma forma de obter “lucros” face à necessidade dos governadores em
obter apoio, e logo fortalecimento.
A esse respeito nos esclarece Maria Zilda Cury:
À classe dominante, em determinada fase da Primeira República (“política dos
governadores”), interessava a centralização do Estado regional [...] para a defesa de
seus interesses na área econômica [...]. Essa centralização absorve largos setores das
classes médias, que passam apoiar politicamente o grupo dominante em troca de
emprego público. Isto principalmente com o grupo dominante ligado ao café, que
formou uma infra-estrutura de serviços de exportação nas cidades, infra-estrutura
essa ocupada, nos seus altos escalões, pelos antigos proprietários empobrecidos.
Esses últimos têm como padrão ideal, os grupos aristocratas tradicionais com os
quais se identificam quer nas relações de parentesco, quer por vínculos sociais
(CURY, p.126, 1981).
Em face desse cenário de degradação de valores concretizados por um modelo político
arrivista, nepotista e pouco afeito a perceber as reais necessidades da população, constatamos
que uma parcela importante da sociedade carioca que vivenciou os primeiros arroubos da
República ressentia-se diante dos acordos estabelecidos entre as elites que, fomentadoras das
oligarquias, negligenciavam os reais problemas da maioria da população. A República que se
sonhara naufragava face às negociatas e especulações financeiras. Assim, oriundas das
expectativas frustradas da população, explodem diversas manifestações populares,
verdadeiras agitações, frutos do descontentamento de setores sociais que se posicionavam na
contramão do modo como eram conduzidos os destinos do país, tanto no plano político,
quanto no econômico. O mal-estar era crescente nas camadas populares que, revoltadas contra
a crescente inflação dos preços das mercadorias e com os privilégios econômicos e políticos
33
dos barões da República, expunham com firmeza sua oposição à corrupção que minava a
estrutura política e econômica do país.
1.1. E fez-se a civilização...
A vida do homem e o progresso da humanidade
pedem mais do que dinheiro, caixas fortes atestadas de
moedas, casarões imbecis com lambrequins vulgares.
Pedem sonho, pedem arte, pedem cultura, pedem
caridade, piedade, pedem amor, pedem felicidade; e
esta, a não ser que se seja um burguês burro intoxicado
de ganância, ninguém pode ter, quanto se vê cercado da
fome, da dor, da moléstia, da miséria, de quase toda
uma grande população. (Lima Barreto, Bagatelas, 1956)
Estudiosos do contexto histórico do Brasil da República Velha, como Pesavento
(2002) e Svecenko (2009) afirmam que à instauração da República, seguiu-se uma veemente
necessidade de soterrar tudo aquilo que lembrasse o passado monárquico. Justificam-se assim
as ações do Poder Central que, ao conduzir o país agora liberto de um modelo considerado
como atrasado pela cúpula republicana, buscou adequar o país ao compasso da modernidade
que já predominava, há muito, no cenário do mundo europeu. Assim, nos primeiros anos do
século XX, entre 1903 e 1906, o Rio de Janeiro, então capital da jovem república brasileira,
sofrerá uma verdadeira metamorfose que determinará não só a completa renovação de seu
espaço urbano que, doravante, representará um pedaço da capital francesa, como também,
promoverá uma profunda transformação dos valores que, a partir de então, dominarão o
espírito da elite burguesa. Ressaltamos que essa transformação processada no espaço citadino
da capital do país e, por conseguinte, na mentalidade da elite carioca, encerra no discurso de
modernidade e progresso algo de contraditório e ilusório, na medida em que, distante do
verdadeiro progresso social alcançado na capital parisiense, inspiração para a reforma do Rio
de Janeiro, as mudanças orquestradas na capital carioca não atingiram a totalidade dos bairros
e tampouco, da população, mantendo-se restrita aos bairros nobres do nascente Rio-Paris.
34
Convém assinalar que esse contexto de mimetização que preponderava nos primórdios
de nossa nacionalidade republicana também abarcou uma parcela da intelectualidade, atingida
em seu cerne pelo que Antonio Candido (1989) nomeou como “consciência amena de atraso”
(p.142). Tal epíteto informa o crítico, refere-se a uma concepção que predominou no
imaginário do país até aproximadamente a década de 30. A partir da ideia embutida nesse
conceito, o Brasil desponta fulgurante, fundamentado na “noção de “país novo” que ainda não
pudera realizar-se, mas que atribuía a si mesmo grandes possibilidades de progresso futuro”
(p.141). Tal assertiva nos ajuda a detectar alguns indícios acerca da motivação que animou a
elite dominante do início do século a lançar-se, de modo tão arrojado e perspicaz, ao projeto
de erigir uma civilização no estrito sentido que o termo sugere, dizimando de forma
avassaladora um passado que exala a ideia de atraso e degeneração.
Tais ideias apontam, também, para a recorrência da imagem artificial do intelectual
prolixo e sua costumeira utilização de chavões e das frases de efeito tão típicas do
personagem culto que habita os salões sofisticados a desfilar sua sabedoria por entre as elites
intelectualizadas do país. Empossado do prestígio que a posição de intelectual confere,
sobretudo, em um país cujo analfabetismo e a tenuidade cultural preponderam, essa parcela da
intelectualidade alheia-se dos problemas reais ou de um possível engajamento que visasse à
transformação. Do mesmo modo que a elite dirigente aparta-se dos ideais populares, o
intelectual de elite encastela-se em suas próprias “virtudes”. Com efeito, Candido também nos
orienta nessa questão ao apontar que
No tempo da que chamei de consciência amena de atraso, o escritor
partilhava da ideologia ilustrada, segundo a qual a instrução traz automaticamente
todos os benefícios que permitem a humanização do homem e o progresso da
sociedade. A princípio, instrução preconizada apenas para os cidadãos, a minoria
onde se recrutavam os que partilhavam das vantagens econômicas e políticas;
depois, para todo o povo, entrevisto de longe e vagamente, menos como realidade do
que como conceito liberal (CANDIDO, 1989, p.148).
No alvorecer do século XX, novos valores conduzem a sociedade brasileira. A
ocorrência do novo regime republicano transforma drasticamente o cenário econômico por
meio da política do Encilhamento. De acordo com Sevcenko (2009), a adoção dessa política
possibilitou a transferência de fortunas seculares para as mãos de agentes especuladores que,
enriquecidos, passam a ocupar cargos importantes no cenário político brasileiro. Assim,
continua o estudioso “[...] serão esses Homens Novos, vindos à tona com a nova situação, que
35
darão o tom geral à ordem que se criava, marcando o novo sistema de governo com o timbre
definitivo do arrivismo sôfrego e incontido [...]” (p.37).
A essa nova dinâmica do capital econômico, seguiu-se a busca pelo fortalecimento da
capital carioca no cenário mundial e, gradualmente as potências da economia europeia passam
a ambicionar o mercado nacional brasileiro, sobretudo no que concerne às perspectivas
promissoras apontadas pelo volume de comércio, fato que, por si só, garantia uma confortável
posição do Brasil no continente americano. Era, porém, necessário ajustar o comportamento
dos indivíduos, a fim de que se fortalecessem as estruturas da civilização que se erguia.
Assim, subitamente, a parcela mais elitizada da população do Rio de Janeiro depara-se
com um novo modelo de sociedade a exigir a “[...] remodelação de hábitos sociais e cuidados
pessoais [...]” (Sevcenko, 2009, p.40). Porém, acreditavam os detentores do poder que, apesar
da nova ordem social fundada por meio dos sucessos alcançados pelo arrojado plano
econômico e que impeliam a burguesia carioca a adotar hábitos consumistas/civilizados
segundo o padrão europeu; pesava, ainda, sobre a capital do país, a mácula do atraso e da
obsolescência, o que se verificava na ocorrência constante de doenças que proliferavam por
entre a arcaica paisagem urbana, testemunha dos tempos imperiais. Logo, constatou-se que
para acompanhar as tendências preconizadas pelo progresso que já irrompia em todo o
mundo, seria necessário desterrar as lembranças do passado imperial da memória brasileira e,
para tanto, urgia a necessidade de erguer uma nova civilização, com base nas mais modernas e
arrojadas conquistas arquitetônicas; além disso, a metrópole remodelada operaria como um
atrativo aos olhos dos investidores estrangeiros, até então reticentes em negociar com o Brasil.
O descrédito do Brasil pelo mercado internacional que resistia em investir seu capital
em nosso país é matéria de reflexão de Sérgio Buarque de Holanda, na obra Raízes do Brasil.
Nessa obra fundamental do pensamento brasileiro, o sociólogo traça as peculiaridades de um
Brasil que, desde os tempos coloniais encontra-se atrelado à dicotomia rural – urbano. Tal
ambivalência, no entanto, revelou, ao longo dos tempos, pendores para o modo ruralista, na
medida em que essa forma de vida aponta para a permanência das autarquias orgulhosas as
quais sempre se beneficiaram com generosas fatias de poder, no país. Porém, tal impostura
política gerava desconforto às demais nações do Primeiro Mundo:
A incompreensão manifestada por mais de um estrangeiro em face de
algumas peculiaridades de nosso maquinismo político provém, sem dúvida, da
incompatibilidade fundamental que, apesar de muitas aparências em contrário,
subsistia entre esses sistemas e os que regiam outros países mais fundamente
36
marcados pela Revolução Industrial, em particular os países anglo-saxões.
(HOLANDA, 2013, p. 79-80).
Entretanto, de acordo com Sevcenko (2002) contrariamente às expectativas daqueles
interessados em transformar a capital em uma vitrine do país, a cidade carioca era assolada
por uma série de doenças fatais para a população e, sobretudo, para os estrangeiros, vítimas
indefesas frente aos males tropicais que os acometiam.
O pesquisador Sevcenko (2008) aponta também para o fato de que no ano de 1902 o
paulista Rodrigues Alves ascende à presidência da República com a missão de construir e
consolidar a imagem de um país triunfante, por meio da qual o regime republicano se
fortaleceria diante do mundo. Assim, ainda segundo Svecenko (2008), o presidente lançou-se
à formulação de um plano arrojado no qual constava interferências determinantes na paisagem
citadina do Rio de Janeiro, visando a sua total transformação. O olhar arguto de Rodrigues
Alves reconhecia o potencial da capital, que à época revelava-se como principal núcleo
econômico do país, pois, além de destacar-se como um grande centro comercial, a cidade
carioca destacava-se, ainda, pela posição geográfica que ocupava: era como um escoadouro
da produção agrícola, e, portanto, deveria oferecer condições propícias para o
desenvolvimento de seu potencial. Deriva dessa constatação a urgente necessidade de
remodelar e sanear a zona urbana do Rio de Janeiro. Entre as realizações pretendidas por esse
governo destacam-se os projetos de saneamento básico e a transformação arquitetônica da
cidade, sede da capital do país, bem como a modernização das instalações portuárias às quais
em sua obsolescência, revelavam-se como um entrave a grande demanda das transações
comerciais. Tais empreendimentos justificavam-se pela necessidade de acompanhar o
progresso, o que só ocorreria com a multiplicação do capital econômico, o que, em última
análise, só seria viabilizado mediante a radical remodelação urbana que é arquitetada, no
entanto, pela oligarquia compostas pelos poderosos fazendeiros do café e o leite e, logo,
pouco afeitos às necessidades exigidas pela urbanização e “como esperar transformações
profundas em país onde eram mantidos os fundamentos tradicionais da situação que se quer
ultrapassar?” (HOLANDA, 2013, p.78).
Contudo, segundo Pesavento (2002), para atingir o objetivo de transformar a capital da
República em uma espécie de vitrine para o mundo europeu, fazia-se necessário mobilizar
todos os esforços, a fim de combater as precárias condições de higiene nas quais a cidade
encontrava-se imersa. Diante desse cenário, vemos que aos olhos dos governantes a
ambiência da cidade revelava-se hostil. Seu cenário erguido nos tempos da Colônia
37
configurava-se ao modo de ruelas estreitas, tortuosas e sujas, infestadas de cortiços, onde uma
grande parcela da população se amontoava. Além disso, como já constatamos, o Rio de
Janeiro assistia à proliferação de doenças como a varíola e a febre amarela, condição que
freava a entrada da mão de obra imigrante, recurso essencial para o desenvolvimento da
indústria que, então, buscava fortalecer-se no país. Ademais, nos informa Sevcenko (2009), o
medo da doença, somado ao receio da comunidade mestiça que, como herança da escravidão,
habitava o Centro carioca, eram aspectos que surgiam como fantasmas a intimidar os
europeus que resistiam a aplicar seus capitais e técnicas no mercado brasileiro, freando o
desenvolvimento da industrialização.
Esse conjunto configurador da precariedade do espaço urbano da capital torna
evidente para os governantes a necessidade de extinguir a ultrapassada estrutura que sustentou
a cidade ao longo dos anos imperiais. As condições em que se encontrava a urbe carioca
revelam que é imperioso proceder a uma eficaz política de saneamento a fim de garantir o
sucesso das demandas da modernidade que se anunciava no horizonte, cada vez mais
capitalista da nação brasileira. Urgia, portanto, oferecer ao civilizado mundo europeu uma
imagem de credibilidade que contribuísse para drenar para o Brasil parte da fartura e
prosperidade em que já chafurdava a parcela da população enriquecida da Europa secular.
Assim, os mandatários da política brasileira concluem que,
[...] Era preciso findar com a imagem da cidade insalubre e insegura, com uma
enorme população de gente rude plantada bem no seu âmago, vivendo no maior
desconforto, imundície, pronta para armar em barricadas as vielas estreitas do
Centro ao som do primeiro grito de motim (SEVCENKO, 2009, p. 41).
São ainda analistas da Primeira República brasileira como Sevcenko (2008, 2009) e
Pesavento (2002) que indicam a grande preocupação da classe dirigente do país com a
crescente demanda pelo progresso e revelam que, no caso da elite que conduzia os destinos do
Brasil, prosperar significava equiparar-se aos padrões ditados pela Europa, especificamente,
pela França, que já se prenunciara na predileção dos republicanos, sob o ideal do Positivismo
comtiano, inscrito no bojo da República brasileira. Assim, a imagem do mundo europeu,
espécie de versão prática do ideal de civilização, será avidamente ansiada pelo poder
hegemônico que concentrará suas forças no ideal de europeizar o Brasil, inserindo-o,
compulsoriamente, nos padrões que vigoravam na França. Decreta-se, assim, o início de um
período de verdadeiro mimetismo cultural que, embora iniciado logo após o advento da
38
Proclamação da República, adensa-se no início do século XX. Esse momento, dominado pelo
luxo e pela pompa, em que se alteram os costumes e o cotidiano da cidade, denomina-se como
Belle Époque brasileira por seu caráter estereotipado face aos padrões adotados em Paris,
cidade doravante mitificada pelos dirigentes do Brasil republicano.
No momento que o presente estudo contextualiza, prosperava no país um alto grau de
analfabetismo e incultura ao que é acrescido um alto nível de dependência cultural gerada em
face da “alienação ao desejo do Outro - no nosso caso, representado pelo estrangeiro do
mundo desenvolvido - faz com que não nos apoderemos da história como sujeito” (KEHL,
2004, p.237). Esse contexto no qual vigora uma cultura dilacerada, marcada pela
preponderância da presença de um Outro julgado superior, “eleva” o Brasil e por
disseminação o Rio de Janeiro do luxo e do requinte à condição de país subdesenvolvido.
Porém, acerca dessa condição subdesenvolvida presente no “ser brasileiro”, aponta-se
ainda para uma perspectiva que elucida e arrefece possíveis máculas em nosso orgulho
nacional. Em relação ao subdesenvolvimento e sua imediata representante, a dependência
cultural, Candido se manifesta, apontando os caminhos trilhados pelos escritores brasileiros,
frutos, também, da colonização, fenômeno de longa duração e de diversos efeitos para a
construção do caráter nacional:
Este é um fator por assim dizer natural, dada a nossa situação de povos
colonizados que, ou descendem do colonizador, ou sofreram a imposição de sua
civilização; mas fato que complica em aspectos positivos e negativos. A própria
penúria cultural fazia os escritores se voltarem necessariamente para os padrões
metropolitanos e europeus em geral, formando um agrupamento de certo modo
aristocrático em relação ao homem inculto (CANDIDO, 1989, p.148).
A tendência para a crítica acerca do desempenho político e cultural característico do
período que abrange os primeiros vinte anos da República Velha é recorrente. Porém, guiados
pela luz da crítica justa e lúcida como as entrevistas nos estudos de Antonio Candido (1989)
somos conduzidos a perceber que o contexto inculto do país à época é o responsável pelo
redirecionamento espacial do diálogo entre o escritor e seu público. Da incultura reinante
deriva o fato do escritor se voltar ao público europeu – consagrado como público ideal, capaz
de acolher com proveito as vozes da intelectualidade. Essa ênfase no público alheio ao país,
no entanto, importa no afastamento processual das peculiaridades próprias ao que é nacional o
que contribuiu para o “nascimento de obras que os autores e leitores consideravam altamente
requintadas, porque assimilavam as formas e valores da moda europeia” (CANDIDO, 1989,
39
p. 148). Assim, observamos que os literatos também não percebiam que sua posição de
superioridade em relação ao povo inculto era ilusória, pois ao afastar-se do que lhes era
próprio, excluíam-se a si mesmos do contexto nacional. O não engajamento dos intelectuais
nos problemas concernentes ao país revela a força do construto ideológico que permeou o
momento, contribuindo para o continuísmo da condição subdesenvolvida do povo brasileiro
que, anos mais tarde, seria arrebanhado pela cultura massificada veiculada pelos meios de
comunicação em massa.
Voltando ao momento inicial da República, observamos que a Historiografia aponta
para o fato de que os novos valores cultuados necessitavam de um cenário compatível aos
arroubos parisienses da elite. Assim, nos primeiros anos do século XX, no período que abarca
os anos de 1903 a 1906, o Rio de Janeiro assiste a uma reformulação urbanística e saneadora
sem precedentes em sua história. Porém, a sanha modernizadora não percebia “os fenômenos
do subdesenvolvimento e desigualdades” (Sevcenko, 2012, p.27) que nasciam atrelados aos
sucessos do novo regime e seu potencial poder de degeneração da grande instituição chamada
civilização.
A grande reforma urbana e saneadora orquestrada pela batuta do presidente Rodrigues
Alves contou com o apoio de nomes como o de Pereira Passos, então prefeito do Rio de
Janeiro, de Oswaldo Cruz - médico sanitarista e do engenheiro Lauro Muller, agentes
responsáveis pelas demandas requeridas pelo projeto modernizador. Raiava o século XX,
quando em meio aos destroços das antigas construções, a população, perplexa, assistiu à
aparição de uma nova cidade que, exalando ares de modernidade, projetou-se nos vazios
propiciados pela demolição em massa de casas e cortiços. Desse modo, dos escombros de um
Rio imperial, surgem amplos espaços, onde passam a vicejar largas avenidas inspiradas
naquelas que já ornavam a paisagem da inspiradora Cidade Luz. O maior emblema da reforma
urbanística no Brasil concretiza-se pela inauguração, em 1904, da Avenida Central idealizada,
inicialmente para servir de elo entre os principais logradouros do centro da cidade, tem, no
entanto, seu sentido ampliado, passando a despontar como expressão da modernidade,
passarela para o desfile das últimas tendências parisienses e, logo, exemplo do que seria uma
verdadeira civilização.
Alcunhada como “bota abaixo” pelos habitantes da capital em face da onda de
destruição que, sob os auspícios do progresso, dizimou as construções na área central da
cidade, a devastadora reforma empurrou para a periferia uma multidão de desvalidos que,
despejados e sem alternativas, “[...] alojam-se nas encostas íngremes dos morros que cercam a
cidade [...] (SVECENKO, 2008, p.23). A “nova cidade”, moderna e triunfantemente erguida,
40
reservava-se, porém, apenas àquela porção da sociedade que, adequada aos padrões de higiene
e civilidade, encontrava-se apta a pagar pelas luxuosas residências que se edificavam
impolutas no centro urbano da capital. A reurbanização foi saudada por seus idealizadores
com a denominação de a “Regeneração”. Essa verdadeira revolução, fartamente festejada pela
parcela da elite beneficiária direta do novo arranjo citadino, desenvolveu-se sob a inspiração
da reforma urbana ocorrida na capital parisiense, no crepúsculo do século XIX, pela ação do
barão Georges Eugène Haussmann. A citação a seguir ilumina, de modo instigante, os
caminhos percorridos pela elite carioca que vivenciou a Belle Époque brasileira:
Até as primeiras décadas da República Velha prevaleceram o paradigma
europeu e o esforço por deslumbrar a Europa. A reforma urbanística e arquitetônica
do Rio de Janeiro de Pereira Passos e Oswaldo Cruz ilustra essa dimensão. O
principal teatro foi uma réplica da L’Opéra de Paris; os primeiros edifícios da
principal avenida tinham telhados projetados para deslizar neve; os ricos cultos iam
ao teatro com fraques e cartolas e suas damas com peles de animais em pleno verão
carioca. Nada é mais ilustrativo que o esforço de Pereira Passos para reproduzir
jardins “impecavelmente parisienses” o levasse a importar pardais, que se
converteram em uma praga dos trópicos. Ao mesmo tempo em que o Rio da
Primeira República se orgulhava de ter mais pontos de iluminação pública que a
capital francesa, os pobres da cidade foram expelidos para subúrbios distantes e para
os morros e pântanos sem infra-estrutura, dando origem às favelas cariocas. Tudo foi
feito para que o Rio fosse “a Paris dos trópicos” (LESSA, 2008, p.248).
Diante desse contexto de acirramento de fatores econômicos e de dissonante
mitificação europeia, atestamos que o urbanismo, vinculado à ideia de progresso e bem estar,
revelou-se como negativo, na medida em que contribuiu para que se acirrassem as
desigualdades sociais constatadas pela expulsão da população pobre dos espaços privilegiados
da cidade, impedindo, assim, que essa parcela da sociedade usufruísse das possíveis
benfeitorias realizadas, bem como, “[...] verifica-se em todo esse período um curioso processo
de passagem da vigência social dos valores interiores, valores morais essenciais, ideais, para
os exteriores, materiais, superficiais, mercantis [...]” (SVECENKO, 2009, p.121).
Assim, compreendemos que no limiar do século XX, a mercantilização atinge não só
as práticas econômicas que se acirram como também orienta as ações cotidianas dos
indivíduos, que passam a valorizar cada vez mais as aparências em detrimento do cultivo de
valores essenciais à parcela humana do ser. Essa tendência a valorizar de modo extremo o
aspecto exterior transforma-se em hino da elite hedonista. É devido à necessidade de manter a
41
aparência que “a vestimenta torna-se o primeiro requisito para a definição do status, e não se
trata somente do luxo, mas, sobretudo da atualização impecável com a moda.” (SVECENKO,
2009, p.121).
A preponderância desses voláteis valores, sobretudo nos anos iniciais da República
Velha mostrou-se como um fator a desencadear um profundo mal-estar social, entre aqueles
que não se ajustaram à conjuntura inaugurada pelo novo regime político e, portanto,
permaneceram à deriva, frente ao sucesso vinculado a esse cenário de luxo e pompa, donde
advém um franco acirramento das desigualdades sociais. A vigência desse mal-estar na base
psicológica dos indivíduos reverte no desajuste desses mesmos indivíduos em face das forças
que conduzem a civilização – aqui metonimizada pelo espaço urbano do Rio de Janeiro –
principal testemunha dos fatos ligados à implantação da Primeira República. Desse modo,
intuímos que os caminhos percorridos pelo indivíduo rumo ao ideal de conquista da
felicidade, instaurado pelo binômio progresso-civilização, conduziram tão somente à
ambição, ao egoísmo, ao sofrimento, à dor, ao tédio e, no limite, ao desencanto; logo,
concluímos que as ideias de civilização e progresso injetados na sociedade pelos discursos
oficiais revelaram-se inócuos, na medida em que não contribuíram para o aperfeiçoamento
interior do indivíduo, relegando-o a um sentimento de impotência que culminou com o fim da
ilusão que acreditava que o progresso configuraria um atalho para o alcance da felicidade e do
bem estar de todos. Essa dicotomia que opõe valores humanos e materialistas traduz o modo
como foi concebido o ideal de modernidade do país no início do século passado quando o
predomínio da fria racionalidade capitalista massacra o ser humano, bem como o uso
inadequado da ciência que, nesse momento, distancia-se de seu papel de propiciar o bem estar
social para fortalecer discursos eugenistas discriminatórios e, logo, propagadores do
sofrimento humano.
Na esteira desse processo “enviesado” do projeto civilizatório, inicia-se, também com
a fase inaugural do Brasil republicano o culto mimético da cultura europeia, levado às últimas
consequências no período histórico aqui delineado. De acordo com RobertoVecchi (1998):
É justamente na fase republicana, ou seja, num momento crítico de
transformação das elites, que as contradições se aguçam, na transição confusa de
uma ordem tradicional para uma outra ordem possivelmente moderna, ou seja,
sincronizada sobre os modelos de progresso e modernização civilizacionais
europeus (VECCHI, 1998, P.115).
42
A recorrência do culto ao Outro, consubstanciado no estrangeiro, tem suas raízes
fincadas em um paradigma que habitava com fervor o imaginário nacional do momento
histórico que assistiu ao nascimento da República: acreditava-se, então, que o Brasil estaria
destinado a um crescimento vertiginoso, condição que já houvera sido intuída por nomes
ilustres como o do Padre Antônio Vieira – o qual nos idos do século XVII já aconselhara a
transferência da Corte Portuguesa para o Brasil, potencial sede do Quinto Império Português,
segundo o religioso. Imbuídos dessas crenças fervorosas, muitos foram os descaminhos em
que se perderam a elite dirigente e, até mesmo, o núcleo composto por uma grande parcela da
intelectualidade. Essas classes, ainda que exposta a fatos incontestáveis – somos frutos do
colonizador e guardamos em germe características dessa condição – furtavam-se a uma
avaliação que viesse a desnudar o grau de inconsciência crítica, falta de maturidade e
subserviência por parte dos setores mais avançados da população.
O contexto em que se erigiu a República brasileira revela a tentativa de edificar a
civilização brasileira, porém, sob moldes europeus. Como marca significativa desse momento
encontra-se a prepotência da elite dirigente, principal beneficiária do modelo de civilização
implementado que em nome da necessidade de superar o atraso não se furta a promover o
apagamento de grande parte da população carente, edulcorando a violência latente de seus
atos na forma do discurso em prol da modernidade. Essa retórica da elite, no entanto, aponta
para o fascínio do mundo europeu e para um ideário de segregação do “Brasil pobre e do
Brasil negro” (CARVALHO, 2011, p.41).
1.2. Luzes e sombras na Belle Époque brasileira
Apesar do luxo tosco, bárbaro e branco dos palácios e
“perspectivas” cenográficas, a vida das cidades era
triste, de provocar lágrimas [...] (Lima Barreto,
Histórias e sonhos, 1956)
Segundo Brito Broca (1975), nos anos inaugurais do século XX, sobretudo no Rio de
Janeiro da Belle Époque, a vida da burguesia matizava-se em cor de rosa. A onda de
progresso que inundava a cidade e a transformava em um pedaço da Europa gerou, por
43
exemplo, a proliferação de lojas elegantes, onde se expunham as requintadas mercadorias
vindas da França, e de confeitarias luxuosas, nas quais se reunia a aristocracia reinante. Nos
espaços centrais da cidade vigoravam o luxo e a sofisticação das damas que desfilavam sua
elegância, trajando roupas encomendadas a costureiras de renome. A aristocracia envaidecida
pela sua riqueza e prestígio marcava encontro no cinematógrafo, momento ideal para a
exibição das últimas tendências da moda europeia.
Porém, ainda que o país houvesse penetrado na “modernidade” pela inserção
compulsória nos padrões europeus de civilização, o brilho dessa conquista estava garantido
para o país, na medida em que, segundo a opinião dos implementadores da renovação tanto da
cidade quanto de seus costumes, estava determinado o fim da barbárie pelo alvorecer do
progresso que se precipitava nas largas avenidas que rasgavam a cidade, nas suntuosas
construções erigidas sob a inspiração do lapidado estilo art nouveau, nas belas vitrines que
ditavam a moda francesa e na inovadora iluminação elétrica que ampliou o tempo de
circulação da população no espaço urbano da capital.
Esse momento de apogeu, no entanto, não conseguia negar a verdadeira realidade
oculta por trás do cenário de luxo e riqueza conferido à porção central da cidade, haja vista a
proliferação, em seu entorno, da pobreza e da desigualdade, agravadas pela especulação
imobiliária que expulsava os moradores dos locais considerados como prioridade para o
processo de urbanização-europeização da cidade. Segundo Brito Broca (1975), essa febre de
modernidade que domina a metrópole carioca reflete-se, também, nas relações literárias:
Os escritores superestimavam essa modernização da cidade, atribuindo ao
Rio, em contos e crônicas, ambientes e tipos que na realidade aqui não existiam. E
os requintes de civilização, prevalecendo na parte urbana da metrópole, iam fazendo
naturalmente com que os velhos costumes recuassem para a zona suburbana.
Começaria a acentuar-se, um certo antagonismo entre “a cidade, os bairros
aristocráticos, de gente fina, dos supercivilizados, e o subúrbio com sua pequena
burguesia, de costumes simples – antagonismo de que a obra de Lima Barreto
constituiria uma admirável ilustração (BRITO BROCA, 1975, p.5-6).
Revela-se assim, mais uma faceta negativa do processo civilizatório que, ao
marginalizar uma parcela da população, expõe as agruras impostas pelo modelo econômico
implantado no país, modelo esse que, concentrado nas atividades agrícolas e pecuárias
(política do café com leite), impedia o efetivo desenvolvimento da industrialização, o que
gerava desemprego e, logo, carência de meios para obter domicílio e demais recursos
44
necessários à subsistência no meio urbano por aqueles excluídos do cenário forjado em nome
dos ideais de civilidade. Essa situação caótica levou a parcela desvalida da população, cuja
grande maioria era formada pelos egressos da escravidão e, portanto, segundo a opinião da
elite, inadequada à civilização que se erguera, a se refugiar nas áreas periféricas da cidade e
nos morros que a cercavam. Nicolau Sevcenko (2009) sintetiza os ideais que orientam o poder
hegemônico da elite, durante a vigência da Belle Époque, ao revelar que
[...] o novo grupo social hegemônico poderá exibir os primeiros
monumentos votados à sagração de seu triunfo e de seus ideais. O primeiro deles se
revela em 1904, com a inauguração da Avenida Central e a promulgação da lei da
vacina obrigatória. Tais atos são o marco inicial da transfiguração urbana da cidade
do Rio de Janeiro. Era a “regeneração” da cidade e, por extensão, do país, na
linguagem dos cronistas da época. Nela são demolidos os imensos casarões coloniais
e imperiais do centro da cidade, transformados que estavam em pardieiros em que se
abarrotava grande parte da população pobre, a fim de que as ruelas acanhadas se
transformassem em amplas avenidas, praças e jardins, decorados com palácios de
mármore e cristal e pontilhados de estátuas importadas da Europa. A nova classe
conservadora ergue um décor urbano à altura de sua empáfia (SEVCENKO, 2009,
p.43).
A observação dessas coordenadas históricas nos remete à compreensão de que o Rio
de Janeiro que vivenciou os anos iniciais da República guardava em seu bojo a marca dos
contrastes advindos de uma grave cesura social, que opunha de um lado uma burguesia cativa
dos interesses mercantilistas e de outro a grande maioria da população que, enxotada para a
periferia, viu-se alijada das vantagens apregoadas pelo avanço da modernização que atingia a
capital carioca. Constatamos que com o advento da “Regeneração” surgem duas cidades, ou
melhor, dois Rios de Janeiro, marcados pelo antagonismo e pela contradição, constituindo,
por um lado, uma cidade próspera, símbolo de uma bela época, resplandecente e luminosa,
símbolo de poder, força e determinação humanos; e, por outro, uma cidade empobrecida e
relegada às sombras da desigualdade e da discriminação. Assim, torna-se flagrante o fato de a
transformação operada no Rio de Janeiro durante os anos dourados da Primeira República não
afetar apenas o cenário citadino, transformado pela ambição, mas também as relações sociais,
que se deterioram face à preponderância dos interesses econômicos. Sucumbem, assim, as
expectativas daqueles que ansiavam pela construção de uma sociedade fundada sob os ideais
da justiça, pois a esperança de que tempos felizes seriam inaugurados encontrou na face da
45
nova cidade que se ergueu a exclusão e a marginalização de uma fatia considerável da
população.
Desse contexto histórico antagônico sob o qual se edificara uma estrutura política que,
paradoxalmente, revelava-se tanto republicana quanto oligárquica, derivam efeitos igualmente
contraditórios sobre o panorama cultural da época. Em um tempo em que as aparências ditam
as normas culturais mediante as transformações operadas no ambiente urbano, é natural que
também encontremos, no cerne da Primeira República, a arte como um sucedâneo do padrão
urbanístico que se orquestrava então. É por essa via que nos deparamos com a ascensão de um
fazer artístico voltado para a consolidação de ideais “elevados” e, tanto quanto possível,
concernentes com o projeto civilizatório. Assim, objetivando conquistar o respeito (e o
crédito...) irrestrito dos europeus, impõe-se uma busca por expressões artísticas como a Art
Nouveau, único estilo capaz de expressar, por meio de suas curvas sinuosas no ferro forjadas,
os ideais “que se harmonizavam perfeitamente com os requisitos modernos” (GOMBRICH,
1999, p.536). Tais ideais significavam, no momento histórico da Primeira República, a
capacidade de adequar os padrões da miraculosa existência do moderno mundo europeu à
vida nacional:
[...] esse desdobramento [...] da cultura europeia forçava no sentido de uma
europeização das consciências e gozava da vantagem de ser o único padrão de
pensamento compatível com a nova ordem econômica unificada, fornecendo, pois, o
subsídio para as iniciativas de modernização das sociedades tradicionais. O caso
brasileiro e típico (SEVCENKO, 2009, p.102).
Porém, alguns setores da intelectualidade brasileira sentiam-se descontentes com os
rumos tomados pela arte ao longo da Belle Époque e revelam uma profunda descrença na
finalidade artística daquele momento a qual parecia visar apenas à concretização e o
fortalecimento dos ideais preconizados por uma elite que se empenhava em edificar uma
civilização que, no entanto, já nascia irremediavelmente doente. As transformações históricas
que marcaram o despertar do século XX imprimem a sua marca, também, no que tange
especificamente à Literatura, que se vê à mercê dos interesses de literatos arrivistas e obrigada
a adequar-se à realidade das ambições mercantilistas que a circundavam. Contra “[...] a
homogeneização das consciências pelo padrão burguês universal da Belle Époque [...]”
(SEVCENKO, 2009) e, logo, avessos à banalização do fazer literário, insurgem-se escritores
como Lima Barreto e sua literatura, cujo traço renovador consiste na abordagem da realidade
46
a partir de um ponto de vista crítico, até então inexistente sob o prisma da literatura de salão
que reinava no cenário cultural brasileiro do momento, no despertar do século XX.
Há, contudo, que dialogar, também, com autores que se proponham iluminar esse
difuso panorama que, como já constatado, foi uma realidade em determinado período de nossa
história literária. Excessos foram cometidos ao longo dos tempos, ora em face dos arroubos
nacionalistas que limitavam possíveis contribuições estrangeiras, ora em face da
preponderância do elemento estrangeiro a propor a obra literária nacional como uma espécie
de arremedo das Literaturas de outras nações.
No estudo intitulado como Literatura e Subdesenvolvimento (1989), Antonio Candido
dissemina ideias que nos permitem visualizar a situação de produção que conduziu os literatos
da Belle Époque brasileira. Como vimos, a maioria da produção literária que se desenvolveu
ao longo das duas décadas iniciais do século XX é matéria impregnada não somente dos
ideais europeus, como também, revelava-se frequente a presença de obras da literatura
brasileira produzidas em outros idiomas. Candido (1989) posiciona-se em face desse aspecto
ao apontar para o fato de que ao utilizar o vernáculo estrangeiro na composição de obra
nacional, corre-se o risco de recair em uma alienação cultural ditada por textos vazios que se
apresentam como frutos da descontextualização da matéria narrada ou poetizada.
Porém, para compreender a grande influência que o estrangeiro exerceu em nossa
cultura como um todo, bem como para perceber os rumos tomados pela criação literária no
Brasil do limiar do século XX faz-se necessário o reconhecimento da marcante relação entre
subdesenvolvimento e cultura que permeou o país.
Ainda referente a esse ensaio escrito em 1989, Antonio Candido aponta ainda que, em
determinado momento da História brasileira vigorou “a noção de “país novo” que ainda não
pudera realizar-se, mas que atribuía a si mesmo grandes possibilidades de progresso futuro”
(p.141) Tal abordagem esteve em voga até o ano de 1930 e propagou-se por um grande
período da vida nacional, originando o que o crítico paulista nomeou como “consciência
amena de atraso” (p. 142). A literatura que se realizou então, não ficou imune a esse ideário
de “país novo” e produziu obras que conferiram grande destaque ao esplendor das belezas
naturais brasileiras, contribuindo decisivamente para o fortalecimento da ideologia que
intentava relacionar o ideal de pátria às magnitudes encontradas na natureza. O crítico
esclarece, ainda que “a ideia de país novo produz na literatura algumas atitudes fundamentais
derivadas da surpresa, do interesse pelo exótico, de um certo respeito pelo grandioso e da
esperança quanto às possibilidades” (1989, p.140).
47
Candido (1989) afirma que no século XIX, quando o Brasil se livra das amarras de
sua metrópole, tem início um surto de nacionalismo no país. Em face da necessidade de
fortalecer uma identidade genuinamente nacional, a beleza exuberante da natureza brasileira é
exaltada pelos literatos românticos que reelaboram esse poderoso ingrediente de nossa cultura
para transformá-lo “em instrumentos de afirmação nacional e justificativa ideológica” (p.140).
Assim, Candido nos esclarece que mediante a ideologia reinante:
A literatura se fez linguagem de celebração e terno apego, favorecida pelo
Romantismo, com apoio na hipérbole e na transformação do exotismo em estado de
alma. O nosso céu era mais azul, as nossas flores mais viçosas, a nossa paisagem
mais inspiradora que a de outros lugares, como se lê num poema que sob este
aspecto vale como paradigma, a "Canção do exílio", de Gonçalves Dias (...)
(CANDIDO, 1989, p.140).
O crítico também frisa que é flagrante, no contexto da época, enquanto forte apelo ao
nacionalismo ufanista que imperava então, a manifestação de uma ideia de pátria vinculada à
de natureza de onde deriva “uma literatura que compensava o atraso material e a debilidade
das instituições por meio da supervalorização dos aspectos regionais, fazendo do exotismo
razão de otimismo social”. (CANDIDO, 1989, p.140).
Porém, no mesmo estudo, Candido (1989) aponta para o fim da euforia e consequente
mudança de perspectiva que se dá frente ao reconhecimento dos grandes contrastes que
marcavam a realidade do brasileiro. A partir da conscientização da farsa que engendrava o
“encanto pitoresco” (p.141) desfaz-se o ideário que apontava que a pujança da natureza era
responsável pela grandeza da pátria. Assim, continua o crítico, sem que nenhum fato
determinante operasse o deslocamento da consciência e, ainda que mantida a distância que
sempre nos apartou dos países ricos deu-se um súbito reconhecimento da imperante falta de
desenvolvimento da nação, fenômeno que o crítico nomeou como “consciência do
subdesenvolvimento”. Evidencia-se, nesse momento “a realidade dos solos pobres, das
técnicas arcaicas, da miséria pasmosa das populações, da sua incultura paralisante” (p.141)
saber esse que abala definitivamente o ufanismo que até então imperava na cena nacional.
Dessa conscientização, deriva a oposição aos valores arcaicos fundamentados na farsa que
construíra o país do futuro. Ao perceber as condições de atraso em que o Brasil,
distraidamente, mergulhara enquanto cantava odes à natureza mitificada, os intelectuais se
arremessam ao combate e nesse momento a ideia de subdesenvolvimento surge como que
matéria fermentadora para o desencadear de um fazer artístico mais voltado às reais
48
necessidades de um país onde o acesso aos bens culturais esteve sempre voltado ao apetite das
elites caprichosas e distantes da maioria da população inculta e analfabeta. A ideia da nação
como um “país do futuro”, naquele momento, começara a ruir.
Assim, em face desse contexto de incultura que aqui prosperava podemos visualizar de
que modo a influência estrangeira e suas manifestações no cenário literário do início do
século preponderara na sociedade da época. Ocorre que o restrito ambiente cultural advinha
de uma “ideologia ilustrada, segundo a qual a instrução traz automaticamente todos os
benefícios que permitem a humanização do homem e o progresso da sociedade” (CANDIDO,
1989, p.144). De posse dessa ideologia alguns membros de nossa intelectualidade
consideraram-se superiores e em face do predomínio da incultura, assumem posturas de
superioridade e se voltam para a Europa, o que revela uma postura de alheamento em face das
necessidades culturais da população, haja vista a própria ideologia que pregavam. Em relação
a esses “seletos” intelectuais, Candido nos esclarece ainda que na medida em que esse grupo
de intelectuais não encontrava público o bastante no Brasil, voltava-se para a Europa
“tomando-a inconscientemente como ponto de referência e escala de valores; e considerando-
se equivalentes ao que havia lá de melhor” (p.145). Deriva dessa postura o movimento
Parnasiano e sua postura helenizante que ao afastar o artista da realidade brasileira, punha em
foco todo o requinte das formas e valores europeus. “Eu sou o último heleno!” (p. 145) disse,
um dia, Coelho Neto do alto de sua aristocrática presença na Literatura Brasileira do século
XX.
As reflexões disseminadas por Candido em “Literatura e subdesenvolvimento” (1989)
revelam uma clara intertextualidade com o pensamento produzido por Machado de Assis em
crítica nomeada como “Instinto de nacionalidade” (1959), pois é perceptível tanto na voz
machadiana que ecoa do século XIX, quanto na do crítico paulista, ouvida na atualidade, a
presença do comedimento crítico no que se refere ao destaque de valores ligados ao
nacionalismo, porém tal postura não impede que os citados pensadores apontem as vertentes
oriundas da matriz estrangeira que pulsa latente na identidade do escritor brasileiro, pois diz
Candido,
As nossas literaturas latino-americanas, como também as da América do
Norte, são basicamente galhos das metropolitanas. E se afastarmos os melindres do
orgulho nacional, veremos que, apesar da autonomia que foram adquirindo em
relação a estas, ainda são em parte reflexas. No caso dos países de fala espanhola e
portuguesa, o processo de autonomia consistiu, numa boa parte, em transferir a
dependência, de modo que outras literaturas europeias não-metropolitanas,
49
sobretudo a francesa, foram se tornando modelo a partir do século XIX, o que aliás
ocorreu também nas antigas metrópoles, intensamente afrancesadas. Atualmente é
preciso levar em conta a literatura norte-americana, que constitui um novo foco de
atração. Esta é a que se poderia chamar de influência inevitável, sociologicamente
vinculada à nossa dependência, desde a própria colonização e do transplante por
vezes brutalmente forçado das culturas (CANDIDO, 1989, p.151)
Machado de Assis passou à história da Literatura brasileira como um poderoso
escritor, capaz de se mover nos graves caminhos da crítica social de modo elegante e quase
imperceptível ao leitor desatento. Enquanto criador prestigiado de personagens, percebemos
que a galeria de seres que habitam a sua obra surge revestida de um sopro de vida pouco
explorado por autores de todas as épocas, mas, sobretudo, sua competência como literato,
sobressai-se entre os contemporâneos do tempo em que Machado de Assis escrevia seus
romances, contos, poesias, crônicas e peças teatrais. Ocorre que o mais festejado dos
escritores brasileiros também realizou em seu tempo o exercício da crítica literária e, não
causará espanto a seu leitor perceber que também nessa matéria foi um realizador eficiente, e
porque não afirmar, perfeito. Sua crítica, ele a realizou com a arguta capacidade de síntese e
lucidez que caracterizou sua produção literária ao longo de todo seu percurso produtivo.
Entre os diversos textos dedicados à crítica literária, desponta o excelente estudo
intitulado Instinto de Nacionalidade, datado de 1873. Os pensamentos expressos por
Machado de Assis nesse instigante instrumento colaboram para o entendimento das
peculiaridades próprias ao fazer literário do século XIX e permite uma análise abrangente
relativa à preponderância do papel conferido à nacionalidade no contexto da obra literária. Tal
discussão, ainda que situada no século XIX oferece matéria para a elucidação das questões
que tangem à Literatura produzida por alguns escritores ao longo das duas décadas posteriores
à Primeira República. Conforme apontamos anteriormente, ao longo dos decênios iniciais do
século XX dá-se a prevalência de um fazer literário devotado aos ideais europeus e, portanto,
apartado do nacionalismo tão pujante no século anterior. Machado de Assis ilumina o teor
nacionalista que vigorava no plano literário de seu tempo:
Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como
primeiro traço, certo instinto de nacionalidade. Poesia, romance, todas as formas
literárias do pensamento buscam vestir-se com as cores do país, e não há negar que
semelhante preocupação é sintoma de vitalidade e abono de futuro. As tradições de
Gonçalves Dias, Porto Alegre e Magalhães são assim continuadas pela geração já
feita e pela que ainda agora madruga, como aqueles continuaram as de José Basílio
50
da Gama e Santa Rita Durão. Escusado é dizer a vantagem deste universal acordo.
Interrogando a vida brasileira e a natureza americana, prosadores e poetas acharão
ali farto manancial de inspiração e irão dando fisionomia própria ao pensamento
nacional. (MACHADO DE ASSIS, 1959, P.129).
Assim, é pertinente considerar que as críticas lançadas a um fazer literário que
vise à reprodução de modelos estrangeiros devem funcionar como contraponto à
análise dos textos literários que se nos apresentam, pois ao ouvir os conselhos
admoestadores dos críticos percebemos o quanto se faz necessária uma análise
minuciosa com vistas à percepção do modo como a obra está estruturada e de que
forma se realiza o diálogo com as vozes oriundas de universos diversos, a fim de que
possamos detectar o que de real advém da “influência inevitável, sociologicamente
vinculada a nossa dependência, desde a própria colonização e do transplante por vezes
brutalmente forçado das culturas” (CANDIDO, 1989, p.147) do que se produziu
apenas como forma de acompanhar os “modismos” trazidos pela onda de europeização
que invadiu o cenário do país no limiar do século XX.
1.3. Da Literatura e da Civilização
Parece-me que o nosso dever de escritores sinceros e
honestos é deixar de lado todas as velhas regras, toda a
disciplina exterior dos gêneros, e aproveitar de cada um
deles o que puder e procurar, conforme a inspiração
própria, para tentar reformar certas usanças, sugerir
dúvidas, levantar julgamentos adormecidos, difundir as
nossas grandes e altas emoções em face do mundo e do
sofrimento dos homens, para soldar, ligar a humanidade
em uma maior, em que caibam todas, pela revelação das
almas individuais e do que elas têm em comum e
dependente entre si. (Lima Barreto, Amplius, 1956)
51
Segundo Lúcia Miguel Pereira (1994), o século XX começou mal para as letras
nacionais porque começou igualmente mal para o Brasil. O país fora atingido pelas medidas
políticas e econômicas empreendidas pelo impopular governo de Campos Sales, as quais
determinaram, entre outros efeitos desastrosos, o aumento de impostos e a concessão de
privilégios a grupos oligárquicos, bem como propiciou a ocorrência de um vazio ideológico,
configurado pela quase total ausência de partidos de oposição atuantes, o que ocasionava
desagrado entre os verdadeiros intelectuais, contrários à ideologia de fachada que
acompanhava o contexto social e político.
No que concerne ao campo cultural, Nelson Werneck Sodré (2002) esclarece que o
mal que assolava a arte literária produzida no início do século XX advinha da imitação,
significativo expediente adotado em uma época, prossegue o crítico, em que se tornam
escassas a originalidade, o vigor da criatividade e o teor nacional.
Analistas do momento histórico e dos eventos literários peculiares à Primeira
República brasileira como Alfredo Bosi (1966) e Sodré (2002), argumentam que, devido à
nossa tardia independência, ideais europeizados mantiveram-se presentes no cenário cultural
do Brasil e, apesar dos esforços empreendidos pelo movimento romântico que pretendera, mal
nascera o século XIX, fundar e fortalecer o nacionalismo no país pode-se constatar que ao
raiar o século XX o panorama literário, acompanhando o que ocorria no plano político e
econômico brasileiro, ainda convivia com ideais divorciados das verdadeiras necessidades
vinculadas à realidade social do Brasil. Diante dessa assertiva, não titubeamos em concluir
que a Literatura de fraque e cartola próspera no contexto do raiar do século e que se
consagrava sob os moldes das formas helênicas – diretamente importadas da Europa, porém
apartadas dos relevantes aspectos relativos à forma e valores das tendências europeias –
contemplava de modo exemplar o gosto da elite frívola e descomprometida. Desse modo, em
diversas ocasiões prosperava no cenário cultural do país uma literatura ornamental cujo
princípio era o da “Arte pela Arte”. Essa teoria inspira-se na concepção estética do poeta
francês Théophile Gautier e sustenta-se no distanciamento do alicerce subjetivo, repelindo
aspectos sociais para coroar apenas a beleza contida na perfeição formal.
Porém, conforme já apontamos em momento anterior, paralelamente à estagnação da
cultura letrada, ares de renovação começam a agitar a atmosfera de alienação e mesmice, a
partir da publicação de obras que lançam um novo olhar para as peculiaridades do país e
injetam no fazer literário, por meio de uma abordagem crítica e, portanto, renovadora,
aspectos de uma realidade adversa que extrapolava os limites do nacionalismo “caseiro” para
tratar do perene sofrimento humano, eterno agregado da realidade social. Esse modo de
52
abordagem dos aspectos sociais pela literatura aspirava a uma renovação das letras nacionais e
configurava-se como retomada de uma tendência que já houvera encontrado fortuna na obra
de escritores como Machado de Assis e Aluísio de Azevedo.
O século XIX chegava ao fim quando em 1890 surge no cenário das letras o romance
O Cortiço, de Aluísio de Azevedo. A obra tornar-se-ia a mais importante realização do autor
maranhense ao portar em seu bojo a marca do novo na forma de abordagem dos personagens
que habitavam um cortiço do Rio de Janeiro. João Romão, Bertoleza, Rita Baiana e o
português Jerônimo, personagens da trama, são “surpreendidos” em seu dia a dia, na realidade
que os circundam. Assim, tanto estes personagens como os demais são retratados a partir de
suas características humanas cujas existências extrapolam o simples narrar o cotidiano de suas
vidas para representar de modo universal os conflitos próprios a todos os seres humanos em
qualquer tempo e espaço do mundo real. Ligado à escola naturalista, o escritor Aluísio de
Azevedo não se restringe em seu romance a revelar o homem a partir de seus mais ínfimos
instintos como é próprio às típicas narrativas dessa estética literária. A viva trama de O
cortiço extrapola os restritos limites da realidade para revelar o que é intangível entre o
mundo visível e aquele que somente pela literatura se pode penetrar. Antonio Candido
apresenta a importância desse romance enquanto contribuição renovadora:
Em nenhum outro romance do Brasil tinha aparecido semelhante
coexistência de todos os nossos tipos raciais, justificada na medida que assim eram
os cortiços e o nosso povo, é claro que visto numa perspectiva pessimista, como a
dos naturalistas em geral e a de Aluízio em particular. Deste modo o cortiço ganha
significado diferente do que tinha em Zola, pois em vez de representar apenas o
modo de vida do operário, passa a representar, através dele, aspectos que definem o
país todo. E como solução literária foi excelente, porque graças a ele o coletivo
exprime a generalidade do social (CANDIDO, 2004, p 117).
Prenuncio da radical transformação que se efetivará no Modernismo dos anos 20, a
Literatura Brasileira que se produz no último quartel do século XIX conforme já intentamos
demonstrar ao focalizar a obra de Aluísio de Azevedo e Machado de Assis já revela a
presença de férteis ingredientes de renovação literária no que tange à forma e ao conteúdo,
refletindo a transfiguração de temáticas nacionalistas e regionais. Assim, tanto a obra de
Aluísio de Azevedo quanto aquela típica do criador de Capitu representa o ritmo dos tempos
modernos ao propor a adoção de novas fórmulas estéticas para a abordagem dos textos
53
literários sem, contudo, abandonar as questões concernentes a nossa nacionalidade. Desse
modo, podemos compreender
Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve
principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região, mas não
estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do
escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e
do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço
(MACHADO DE ASSIS, 1959, p.135)
Notadamente, o Modernismo é o movimento cultural que ocupa, ao lado do
Romantismo, um dos mais importantes espaços no cenário cultural brasileiro. De acordo com
Antonio Candido,
A Semana de Arte Moderna foi realmente o catalisador da nova literatura,
coordenando, graças ao seu dinamismo e à ousadia de alguns de protagonistas, as
tendências mais vivas e capazes de renovação, na poesia, no ensaio, na música, nas
artes plásticas (CANDIDO, 2000, p. 108).
No entanto, o Pré-Modernismo revelou-se, também, como um momento fundamental
do processo de fermentação de toda a inovação estética alcançada pelo Movimento
Modernista de 22. Alfredo Bosi (1966) aponta para o fato de que, embora as tendências
literárias operadas no Pré-Modernismo ainda revelem por meio da produção de alguns
escritores um caráter conservador, indicando o prosseguimento e a estilização de
características anteriormente cultivadas pelas escolas naturalista, parnasiana e de certo modo,
pela realista, erige-se, no seio da estética pré-modernista, a presença fecunda de um elemento
renovador presente no modo como são abordados os problemas sociais e morais do país.
Antevemos que pela nova abordagem adotada por alguns autores pré-modernos frente ao
texto literário, criam-se possibilidades para uma reflexão acerca dos conflitos experimentados
pelos indivíduos imersos na civilização, pois ao injetarem o aspecto crítico, ao se revelarem
avessos às regras puristas, ornamentais e amenas que conduziam a literatura da época, aqueles
escritores que militavam na linha progressista anteviam, nos artifícios da retórica, uma
armadilha a concorrer para o aprofundamento do conflito oriundo da intricada interação entre
os indivíduos e a civilização. Havemos que levar em consideração também o elevado índice
de analfabetismo que assolava o país, condição que impedia o maior acesso à produção
escrita, sobretudo se esta se concentra no esforço de se fazer elitista e, portanto,
54
discriminadora. O alerta para a grande quantidade de iletrados revelados pelas estatísticas
oficiais foi dado pelo crítico José Veríssimo o qual, de acordo com Sevcenko (VERÍSSIMO
apud SEVCENKO, 2009) atentava já em 1900 para os perigos da erudição, cujo potencial
caráter elitista e indiferente não se adequava a um país presumidamente civilizado.
Isso posto, seria inevitável que mediante o avançar dos anos não tardassem a surgir,
por parte dos artistas comprometidos com a realidade na qual se encontravam inseridos,
manifestações de resistência contra os males que, incrustados na sociedade, resvalavam para o
plano literário. Desse modo, intelectuais avessos à estilização cultivada pela estética
dominante, representada pela escola parnasiana, representante máxima do ideário da elite, se
rebelam contra os ditames dessa orientação estilística, cultora do artificialismo e alheia às
questões sociais e decidem enfrentar o desafio que consistia em abordar criticamente o
contexto social, visando à projeção de uma arte mais sintonizada com a realidade nacional,
porém com vistas à universalidade dos contornos humanos. Desse modo, ao longo da vigência
do Pré-Modernismo é patente a busca por modos de expressar esteticamente as tensões que
caracterizam o cotidiano do momento, bem como as angústias que acometem o indivíduo,
habitante de um “mundo” que, ao civilizar-se, impõe embates e sacrifícios constantes. No que
concerne, especificamente, ao fazer literário, tem início a problematização da realidade social
e cultural, inaugurada pela parcela de escritores inconformados com a mumificação da
cultura, lançam-se contra o estilo europeizado e ornamental que imperava na realidade e, por
conseguinte, na literatura produzida no país. Diante do discurso oficial e sua tendência a
apagar as contradições que se disseminavam no país, o momento revelava-se propício à
denúncia dos males que assolavam a realidade brasileira. Assim, movimenta-se a saga dos
escritores que, visando demolir a redoma de idealização sob a qual vicejava a literatura de
então, entregam-se ao ideal do engajamento social. Entre estes despontam Euclides da Cunha,
que revela ao país a até então obscura face do interior da nação, Monteiro Lobato, a revelar
em modo de denúncia os males do Brasil oligárquico fortalecidos pela Primeira República,
porém camuflados pela fachada do academicismo parnasiano e, como já apontamos linhas
acima, Lima Barreto, autor que se lançou com empenho ao projeto de fazer de sua obra um
instrumento de ação contra os desmandos que proliferavam na realidade, visando, assim, por
meio de sua literatura, apontar os obstáculos que se erigiam nessa mesma realidade. Assim,
entre os vários autores que empreenderam caminhos de crítica à modernidade:
Lima Barreto é o que mais se aproxima do que poderíamos chamar de um
romantismo revolucionário, isto é, um protesto contra a racionalidade fria e
55
instrumental da modernidade capitalista, em nome de valores sociais ou culturais
pré-modernos, mas que não aspira a um impossível – e indesejável – retorno ao
passado, e sim a um futuro utópico, socialista (LOWY, 1998, p.139).
De acordo com as reflexões de Alfredo Bosi no estudo intitulado como O pré-
modernismo (1966), o espírito crítico de Lima Barreto não se sobressai apenas no campo
ideológico, mas, também, no estilístico. A reconhecida renovação imposta pela linguagem
limiana encarada como fruto dos “deslizes” linguísticos do autor Lima Barreto, continua Bosi,
não guarda em si algo de espontâneo e instintivo, na medida em que, antes, revela uma
profunda consciência e um nítido desejo de polemizar. Desse modo, conclui o crítico, o
aspecto modernizante da escrita de Lima Barreto revela-se na ação consciente e lúcida do
autor carioca frente aos problemas de sua época. Essa concepção de literatura de Lima Barreto
pode ser averiguada no texto “O destino da Literatura” (1921) no qual o autor informa que:
[...] a importância da obra literária que se quer bela sem desprezar os
atributos externos de perfeição de forma, de estilo, de correção gramatical, de ritmo
vocabular, de jogo e equilíbrio das partes em vista de um fim, de obter unidade na
variedade; uma tal importância dizia eu, deve residir na exteriorização de um certo
pensamento de interesse humano, que fale do problema angustioso do nosso destino
em face do Infinito e do Mistério que nos cerca, e aluda às questões de nossa
conduta na vida ( LIMA BARRETO,1956g, p.58-59).
No mesmo texto, baseado no pensamento de Taine, Lima Barreto esclarece:
A Beleza, para Taine, é a manifestação, por meio dos elementos artísticos e
literários, do caráter essencial de uma ideia mais completamente do que ela se acha
expressa nos fatos reais.
Portanto, ela já não está na forma, no encanto plástico, na proporção e
harmonia das partes, como querem os helenizantes de última hora e dentro de cuja
concepção muitas vezes não cabem as grandes obras modernas, e, mesmo, muito
antigas (LIMA BARRETO, 1956g, p.58).
Assim, podemos compreender que a transgressão linguística tão própria da obra de
Lima Barreto advém de seu anseio em abalar as corroídas estruturas em que se sustentavam a
Literatura elitizada que, então, se propagava. Face à pesquisa que empreendemos acerca da
obra legada pelo autor carioca, acreditamos que sua produção estética revela o intuito de
problematizar os conflitos inerentes à sociedade e ao homem de sua época. A presença da
56
capital carioca em sua obra é inegável, no entanto suas reflexões acerca da essência humana
extrapolam os estritos limites da cidade do Rio de Janeiro para esboçar, em um sentido amplo,
a conflituosa relação do ser humano frente a sua maior aquisição, ao longo dos tempos, a
saber, a civilização.
Os obstáculos impostos pela civilização, bem como as dificuldades advindas do
embate empreendido pelos indivíduos em sua trajetória no universo civilizado, supostamente
representada pela capital carioca, no limiar do século XX, se farão presentes na literatura
produzida por Lima Barreto que, avesso à concepção idealizada da realidade, expressará em
seus textos, por meio de seus personagens, o quanto as forças do mundo civilizado são
potencialmente capazes de gerar dor e sofrimento ao indivíduo que, impotente, entrega-se ao
desencanto e à desilusão. Assim, os personagens que se destacam na obra limiana são sempre
seres estraçalhados pelo sofrimento imposto por um mundo hostil, verdadeiras vítimas da
civilização opressora que os marginalizam e aprisionam. As obras elaboradas sob essa
perspectiva são produzidas por um autor inconformado com o status quo da época, o que se
impõe no tom de crítica e denúncia sob o qual se constroem as obras limianas. Desse modo,
no universo da literatura de Lima Barreto, o fazer literário aponta para novas perspectivas
tanto no que concerne à forma, que buscará expressões correntes na linguagem cotidiana
nacional, quanto no tocante ao conteúdo, através da focalização dos males oriundos da
realidade perversa.
Concebemos que, dentre aqueles autores pré-modernistas que se notabilizaram pela
constância na aplicação de propostas inovadoras de construção literária, aquele cujo
arrebatamento lançou as luzes mais intensas sobre o cenário literário de então foi Lima
Barreto. De acordo com Bosi (1966) o momento pré-modernista na literatura convoca a
realidade brasileira para o foco das discussões. Artífice desse momento de renovação estética,
Lima Barreto injeta o novo em suas obras ao retratar os problemas sociais e morais de sua
época. Por isso, sua literatura surge comprometida com a necessidade de apontar as angústias
sofridas pelo homem que, inserido na civilização, vê-se obrigado, ao longo de sua existência,
a reconhecer os limites de sua fragilidade, frente à atrocidade inerente ao meio social. Diante
dessa constatação, nos propomos a realizar uma leitura do romance Recordações do Escrivão
Isaías Caminha, acreditando que essa obra precursora de Lima Barreto possibilita uma
reflexão acerca do conflito experimentado pelo homem “civilizado”, cujas bases encontram-se
delineadas nas páginas escritas pelo psicanalista Sigmund Freud, no ensaio intitulado como O
Mal-estar na civilização (1929).
57
1.4. A Civilização, segundo Freud
[...] boa parte de nossa miséria vem do que é chamado de nossa civilização.
(Freud, O Mal-estar na Civilização, 2010)
Em 1930, Sigmund Freud publica o ensaio O Mal Estar na Civilização no qual expõe
de modo realista uma ideia avassaladora acerca do percurso empreendido pelo homem em sua
longa trajetória existencial abalando uma verdade até então sagrada e, portanto, absolutamente
incontestável. Tal verdade diz respeito à afirmação de que nossa civilização, tal qual está
constituída, concretizaria a maior conquista do homem o qual, sob seus fundamentos,
conseguira superar o estado primitivo e selvagem em que vivera durante milhões de anos para
emergir vitorioso como fundador de instituições essenciais à preservação de sua existência na
face terrena. Como afirmamos acima, Freud não concorda com essa verdade absoluta, própria
das mentes mais idealistas e afirma que “[...] boa parte da culpa por nossa miséria vem do que
é chamado de nossa civilização; seríamos bem mais felizes se a abandonássemos e
retrocedêssemos a condições primitivas [...]” (FREUD, 2010, p.44).
Essa instigante afirmação inerente à teoria freudiana destaca as condições que se
interpõem entre o ser humano e a civilização. Esta, construída pelo próprio homem, lhe
garantiu um quase total domínio da natureza, porém, negou-lhe o acesso à felicidade, na
medida em que exigiu, além da renúncia de seus mais valiosos instintos, uma série de
ajustamentos em seu comportamento sem os quais seria impossível perpetuar a civilização.
Freud dá destaque à vulnerabilidade do ser humano em face de constantes ameaças de
sofrimento a se abater sobre ele. Em seu ensaio, Freud afirma que o sofrimento ameaça o ser
humano e seu projeto de felicidade constantemente. De acordo com o psicanalista, a
recorrência deste ameaçador e pujante sofrer derivaria de três fontes distintas, contudo
determinantes da preponderância da infelicidade na existência humana. Assim, segundo
Freud, a felicidade revela-se como algo episódico para o ser humano, porém, em contrapartida
É bem menos difícil experimentar a infelicidade. O sofrer nos ameaça a
partir de três lados: do próprio corpo que, fadado ao declínio e à dissolução, não
pode sequer dispensar a dor e o medo, como sinais de advertência; do mundo
externo, que pode se abater sobre nós com forças poderosíssimas, inexoráveis,
destruidoras; e, por fim, das relações com os outros seres humanos. O sofrimento
58
que se origina desta fonte nós experimentamos talvez mais dolorosamente que
qualquer outro; tendemos a considerá-lo um acréscimo um tanto supérfluo, ainda
que possa ser tão fatidicamente inevitável quanto o sofrimento de outra origem.
(FREUD, 2010, P.31)
Segundo Freud (2010), “[...] é simplesmente o programa do princípio do prazer que
estabelece a finalidade da vida [...]” (p.30), na medida em que é por meio desse poderoso
artifício psíquico que o ser humano logra alcançar a plena satisfação de suas necessidades.
Porém, acentua Freud, o ideal de civilização exige a renúncia ao princípio do prazer. Assim,
mediante os freios impostos pelo processo civilizatório/cultural à atividade das pulsões, surge
o mal-estar na civilização, fruto do embate que divide em polos opostos as necessidades do
“eu” e as da vida em sociedade. Ainda na opinião de Freud, tal conflito é responsável pela
inegável ideia de que a civilização constitui-se como um palco de dores e sofrimentos. Logo,
a fim de possibilitar uma existência associada entre os indivíduos, é preciso regular os
relacionamentos sociais, pois a existência da civilização só é viável quando uma maioria mais
forte impõe seu poder sobre o indivíduo que, uma vez inserido na sociedade, deve abdicar de
sua liberdade individual em prol da vontade maior, oriunda da comunidade. A discordância
dessa regra básica prenunciaria resquícios da face primitiva do ser humano. É por essa via que
o indivíduo civilizado cede às determinações advindas de um poder maior, o qual ao garantir
a segurança comum, exige, no entanto, em troca, a repressão de suas pulsões e, logo, de sua
felicidade plena. O pai da psicanálise atinge o cerne do problema ao revelar que
[...] É pouco provável que mediante alguma influência possamos levar o homem a
transformar sua natureza na de uma térmite; ele sempre defenderá sua exigência de
liberdade individual. Boa parte da peleja da humanidade se concentra em torno da
tarefa de achar um equilíbrio adequado, isto é, que traga felicidade, entre tais
exigências individuais e aquelas do grupo, culturais; é um dos problemas que
concernem ao seu próprio destino, a questão de se este equilíbrio é alcançável
mediante uma determinada configuração cultural ou se o conflito é insolúvel
(FREUD, 2010, p.58).
Vemos, assim, que a civilização só pode ser concebida a partir do sacrifício das
pulsões humanas o que corresponde a ideia de que civilizar é apagar possíveis resquícios do
ser primitivo que outrora habitou o espírito humano. Entre esses dotes pulsionais, Freud
destaca a agressividade, como um fator de desintegração entre os membros de uma
comunidade. Na realidade, para o psicanalista vienense
59
[...] o ser humano não é uma criatura branda, ávida de amor, que no máximo pode se
defender, quando atacado, mas sim que ele deve incluir entre seus dotes instintuais,
também um forte quinhão de agressividade. Em consequência disso, para ele o
próximo não constitui, apenas um colaborador e objeto sexual, mas também uma
tentação para satisfazer a tendência à agressão, para explorar o seu trabalho sem
recompensá-lo, para dele se utilizar sexualmente contra sua vontade, para usurpar
seu patrimônio, pra humilhá-lo, para infligir-lhe dor, pra torturá-lo e matá-lo. Homo
homini lúpus [...] (FREUD, 2010, p. 76-7).
Diante dessa reflexão, vemos que frente à necessidade do ser humano de inserir-se na
sociedade, impõe-se o domínio dessa pulsão de agressividade, a qual, de acordo com Freud
(2010), revela-se como um perigoso obstáculo à civilização. Desse modo, no seio da
civilização surgem tendências a atenuar esse intenso sentimento agressivo:
A civilização tem de recorrer a tudo para pôr limites aos instintos
agressivos do homem, para manter em xeque suas manifestações, através de
formações psíquicas reativas. Daí, portanto o uso de métodos que devem instigar as
pessoas a estabelecer identificações [...] e também o mandamento ideal de amar o
próximo como a si mesmo, que verdadeiramente se justifica pelo fato de nada ser
mais contrário à natureza humana original. Com todas as suas lidas, esse empenho
da civilização não alcançou muito até agora. (FREUD, 2010, p.78).
A inclinação para a agressão geradora da fatal permanência da hostilidade entre os
membros de uma sociedade acirra os conflitos sociais, gerando um fenômeno que Freud
batizou como “narcisismo das pequenas diferenças”, espécie de contenda que se interpõe
entre membros de comunidades vizinhas e semelhantes em alguns aspectos. Acreditamos que
tal fenômeno, aparentemente inócuo, revela-se potencialmente perigoso, na medida em que
abriga em seu cerne sementes da intolerância em face da diversidade social, étnica e religiosa.
Freud prossegue sua argumentação visando a demonstrar que frente às necessidades
exigidas pelo processo civilizatório, que impelem o ser humano a sacrificar suas pulsões
inatas compreende-se por que é tão difícil ser feliz na civilização. Tais sacrifícios tornam-se
ainda mais dolorosos quando se referem às questões ligadas à liberdade individual do ser
humano. A vida em sociedade exige restrições à liberdade do indivíduo em prol do bem de
toda uma coletividade e estas restrições geram um conflito entre os interesses individuais e
aqueles necessários à vida em comunidade. Essa exigência, sem dúvida, seria um fator de
60
acréscimo a difícil trajetória do homem em busca da felicidade. A fim de tornar a vida
compatível com os ideais da civilização, o ser humano deve conter seus impulsos inatos à
liberdade, condicionando-se às regras impostas pela comunidade. Freud afirma que o ser
humano sempre defenderá sua liberdade individual em detrimento da vontade do grupo,
conforme nos esclarece a seguir:
Assim como um planeta circula em volta do seu eixo central além de rodar
em torno de seu próprio eixo, também um ser humano participa do curso do
desenvolvimento da humanidade, enquanto segue o seu caminho de vida. Para
nossos olhos obtusos, no entanto, o jogo de forças nos céus parece fixado numa
ordem imutável; na vida orgânica, vemos ainda como as forças lutam entre si, e os
resultados do conflito mudam constantemente. Assim também as duas tendências, a
de felicidade individual e a de união com os outros seres, têm de lutar uma com a
outra no interior cada indivíduo; assim os dois processos de evolução individual e
cultural, precisam defrontar-se e disputar um ao o outro o terreno [...] (FREUD,
2010, p.115-116).
Apesar do tom sombrio com que analisa o processo civilizatório frente à presença do
instinto de agressão e seu representante imediato, o instinto de morte, Freud (2010) aponta
uma centelha positiva ao afirmar a presença de Eros enquanto elo fundamental entre os
homens e o projeto de vida associada. Assim, o Amor, representado pela figura do deus Eros é
apontado por Freud como “um fundamento da cultura” (p.64) e força ativa no mundo
civilizado, na medida em que se torna capaz de impor laços potentes de união quando o desejo
de edificar a civilização pelo trabalho coletivo não se revela um fator suficientemente
persuasivo para promover a união entre os seres humanos. Após deter-se por largo tempo na
observação do fenômeno que constitui a evolução da cultura, ou seja, a civilização, Sigmund
Freud sintetiza a batalha fundamental empreendida pela espécie humana, ao longo de sua
existência milenar:
O pendor à agressão é uma disposição de instinto original e autônoma do
ser humano, e retorna ao que afirmei antes, que a civilização tem aí o seu mais
poderoso obstáculo. No curso dessa investigação, impôs-se-nos a ideia de que a
cultura é um processo especial que se desenrola na humanidade, e nós continuamos
sob o influxo desta ideia. Acrescentemos que é um processo a serviço de Eros, que
pretende juntar indivíduos isolados, famílias, depois etnias, povos e nações numa
grande unidade, a da humanidade. Por que isso tem de ocorrer não sabemos; é
simplesmente obra de Eros. Essas multidões humanas devem ser ligadas
61
libidinalmente entre si; a necessidade apenas, as vantagens do trabalho em comum
não as manterão juntas. Mas a esse programa da cultura se opõe o instinto natural de
agressão dos seres humanos, a hostilidade de um contra todos e de todos contra um.
Esse instinto de agressão é o derivado e representante maior do instinto de morte,
que encontramos ao lado de Eros e que partilha com ele o domínio do mundo
(FREUD, 2010, p.90)
Mediante as ideias de Freud, podemos perceber que o modo que engendrou a
civilização brasileira no período da Velha República traz em seu bojo obstáculos hostis,
porém inerentes ao processo civilizatório de todos os tempos. Assim, inferimos que a
civilização de base oligárquica republicana é herdeira do mal-estar que acomete o ser humano
em sua mais remota experiência na face da Terra. No início do século XX a cidade carioca é
como um palco onde os habitantes travam um duro embate em face da incessante busca de
conciliar suas pulsões mais remotas com as tarefas exigidas pelo projeto civilizatório operado
no espaço urbano da capital. Nesse momento de efervescência política configurado pela
instauração do novo regime de governo em que se contrapõem os anseios de determinada
camada social inferiorizada e os ditames autoritários da esfera elitizada, expõem-se o eterno
conflito entre os anseios individuais e os sacrifícios exigidos para a edificação de uma
civilização.
Acresce ao sofrimento imposto ao indivíduo ante o conflito inerente à repressão do
princípio do prazer, a tendência para a agressividade, fator que nos meandros da República se
insinuou, sutilmente, em forma de preconceito em relação à imagem do Outro. No momento
em que o país se civiliza, pobres e negros surgem como ameaça ao espaço narcísico da elite, o
que compromete o fundamento que rege a ideia de civilização, na medida em que civilizar
pressupõe união e solidariedade.
Lima Barreto percebia a potencialidade do termo “civilizar” e, para tanto voltava suas
ações para metas positivas que potencializassem aspectos necessários à construção de uma
sociedade justa e igualitária. A visão freudiana, no entanto, apontava para o eterno embate
estabelecido entre a forte presença do “instinto de morte” (FREUD, 2010, p.86) a trabalhar
silenciosamente nos porões da alma humana e Eros, potente antagonista desse instinto
destruidor. Lima Barreto intuía a tendência expansiva de Eros e, por isso sua obra é uma
apologia à fraternidade e à união entre os indivíduos, ideia comprovada mediante a leitura do
excerto que se segue, extraído de O destino da Literatura (1921):
62
Portanto meus senhores, quanto mais esse poder de associação for mais
perfeito; quanto mais compreenderemos os outros que nos parecem, à primeira vista,
mais diferentes, mais intensa será a ligação entre os homens, e mais nos amaremos
mutuamente, ganhando com isso a nossa Inteligência, não só a coletiva como a
individual. A arte, tendo o poder de transmitir sentimentos e ideias, sob a forma de
sentimentos, trabalha pela união da espécie; assim trabalhando, concorre portanto,
para o seu acréscimo de inteligência e de felicidade. (LIMA BARRETO, 1956g,
p.67).
Uma reflexão acerca das ideias de Lima Barreto aponta para o fato positivo de que o
autor acreditava no poder persuasivo da palavra e na força da arte enquanto meios de união
das gerações em torno de um mesmo ideal de progresso e desenvolvimento individual e
social.
1.5. Isaías Caminha e os descaminhos da civilização
Dizem que o amor faz grandes obras. O ódio também
poderá fazê-las; mas, para isso, como no caso do amor,
é preciso conter-se. (Lima Barreto, Diário íntimo, 1956)
Quando Lima Barreto publicou, em 1909, a obra Recordações do Escrivão Isaías
Caminha, certamente não supunha que o romance que deu vida ao solitário herói Isaías,
estava vestindo com os trajes da fantasia uma ideia muito próxima daquela que viria a ser
elaborada, anos mais tarde, pelo criador da psicanálise, Sigmund Freud, em seu revelador
ensaio intitulado como O Mal Estar na Civilização (1930), no qual são apontadas as
circunstâncias que engendraram a “epopeia” empreendida pelo ser humano em prol da
edificação e manutenção da suprema obra que se denomina como civilização.
A obra Recordações do escrivão Isaías Caminha é fruto da experiência vivenciada por
Isaías Caminha durante o tempo em que viveu na cidade do Rio de Janeiro. Assim, a partir de
um encontro consigo mesmo, Isaías revive por meio de suas lembranças, as vicissitudes
experimentadas em sua juventude. A trajetória de vida deste personagem que se inicia pela
63
busca da felicidade se desenvolverá, entre fracassos e vitórias, nos anos iniciais da Primeira
República brasileira, momento marcado por profundas transformações políticas, econômicas,
sociais e culturais a determinar a vida dos indivíduos. Inseridos no ambiente da cidade do Rio
de Janeiro que então, “civilizava-se” pela ação canhestra da elite oligárquica que
preponderava no cenário do país, Isaías, repleto de solidão e angústia, empreenderá um
percurso, ao longo de sua estada na então capital do país. Tais sentimentos se apoderam do
íntimo de Isaías na medida em que o jovem percebe a farsa embutida nos discursos oficiais,
afinal ele houvera se deslocado de seu distante rincão natal com a certeza de que os ideais
democráticos pregados pela Constituição Republicana eram praticados pelos dirigentes da
nação. A crença em tais ideais, presentes nos discursos vigentes estimularam Isaías a acreditar
que a despeito de origem e cor, a sociedade proporcionaria condições de igualdade a todos os
brasileiros. Porém, logo o rapaz se decepciona e em face de seu desengano com as promessas
oficiais abandona os projetos que arquitetara a fim de alcançar um posto de sucesso e
prestígio social. De origem pobre e com a marca étnica impressa na pele o jovem idealista
passa a encarar a sociedade como um espaço hostil, hospedeira de preconceitos que
desvalorizam e silenciam uma grande fatia de desvalidos sociais.
Maria Lúcia Dal Farra, estudiosa dos efeitos mnemônicos na narrativa literária, realiza
um estudo da vertente memorialística do escritor português, Virgílio Ferreira. No estudo
intitulado Manhã submersa: um narrador nas jazidas do tempo (2012) a pesquisadora
investiga o personagem-narrador que habita a trama do romance Manhã Submersa (1954), de
autoria do citado autor português, sob a perspectiva romanesca da memória e encontra nesse
aspecto da estrutura do romance instigantes caminhos para a elucidação de eventos referentes
aos romances narrados em primeira pessoa. O caso específico do romance focalizado por Dal
Farra nos instigou de modo relevante, em face de algumas semelhanças que aproximam os
romances Recordações do escrivão Isaías Caminha e Manhã Submersa Referente a esse
aspecto apontamos o fato de que nas duas obras, dois jovens personagens, a saber Isaías
Caminha e Borralho, encontram-se em um momento crucial de suas existências, assim “o
adolescente é trazido à cena para metaforizar, na sua condição especial de mobilidade
psicológica, a trajetória de indecisões, desencantos e de penúria a que está sujeita a classe
social menos favorecida” (MARIA LÚCIA DAL FARRA, 2012, p.166).
Baseados nas reflexões após a leitura do estudo do romance português, adentramos o
ambiente em que transcorre a matéria fictícia das Recordações que conforme já apontamos é a
capital carioca do alvorecer do século XX, cenário que guarda aspectos que interferem na
composição de um personagem que se encontra em pleno processo de formação da
64
personalidade e dos valores que nortearão a sua existência. Cumpre frisar que no momento em
que aporta no meio urbano, Isaías encontra-se em processo de maturação entre a vida juvenil
e a maturidade.
A fim de penetrar no cerne da obra, definindo-a como um texto memorialístico, situo o
fato de que impera na obra a voz de um narrador maduro que manipula a narrativa e que se
encontra distante no tempo e no espaço em relação aos fatos que rememora. É também
pertinente apontar que é por meio do tempo presente do narrador, dos valores que o norteiam
e direcionam no presente, da soma das experiências que no momento da enunciação
constituem a sua personalidade e da maturidade adquirida à medida que a narra os fatos
vividos e de certo modo, os revive, é enfim, por todas essas circunstâncias que o narrador
adquire autoridade para interferir na matéria narrada. Desse modo, do presente da narrativa
deriva a ideologia do personagem narrador que a registra por meio da escrita, concretizando-a
por meio do discurso. Logo, podemos afirmar que nas Recordações do escrivão Isaías
Caminha, o presente só adquire existência concreta, na medida em que tal instância temporal
vê-se estimulada pela memória e pelo seu registro, conforme aferimos no seguinte evento
rememorado por Isaías “É esta passagem do xadrez que me faz vir estes pensamentos
amargos...” (LIMA BARRETO, 1956a, p.124).
Ocorre que a narrativa memorialística se realiza em um momento em que o drama
humano de Isaías se manifesta de modo muito intenso. Suas lembranças ainda o atormentam,
pois o simples passar do tempo não foi capaz de curar as feridas deixadas em seu íntimo.
Como um explícito procedimento de sublimação, o narrador lança mão do recurso literário,
tentando, assim, dissipar o sofrer oriundo das tristezas que, embora ligadas ao tempo passado
ainda ecoam no presente. O procedimento de revisão do passado pela memória torna-se um
importante elemento: relembrar é não permitir que os fatos se percam na impotência do
esquecimento, pois pela rememoração é possível impedir que os danos sofridos se
sedimentem no “eu” como um dano perpétuo.
Assim, ao longo da narrativa, Isaías se manterá firme no propósito de perscrutar o seu
passado em busca de compreender os intrincados caminhos que o conduziram à solidão do
presente. Concomitante à rememoração de sua juventude vivida, Isaías traz à tona todas as
humilhações, agravos, decepções, desencantos e dissabores vividos durante sua trajetória no
espaço urbano da capital, espaço civilizado e cruel... Assim, o narrador nos informa ao
relembrar o modo como se sentia em face da hostilidade dos habitantes e da cidade: “Eu não
tinha nem a simpatia com que se olham as árvores; o meu sofrimento e as minhas dores não
encontravam eco fora de mim” (LIMA BARRETO, 1956a, p.129).
65
O ato de evocar o passado, no entanto, não se exprime apenas na forma de sofrimento
e mágoa, pois:
A evocação permite, por sua vez, um aprendizado analítico sobre o
passado, graças à distância com que o presente o apreende. Através dela, o discurso
se abre num espaço de considerações sobre os fatos narrados, de conjecturas
nascidas graças às ações da narrativa, de pura lembrança da emoção sentida. (DAL
FARRA, 2012,p.170)
Aponto, a fim de esclarecer esse viés evocativo da rememoração, uma passagem em
que Isaías, do alto de sua maturidade lembra-se, ternamente, da figura do pai, vigário da
região:
Vinha a noite aos poucos e eu continuava a pensar, acariciando cismas,
excitando recordações, rememorando a minha infância, as fisionomias que ela viu e
os fatos que presenciou. Meu pai, o seu corpo anguloso, seco, a sua dor contida, que
se escapava no seu olhar e na sua fisionomia transtornada. Via-os às tardes, nos dias
de bom humor, mudá-la de chofre, fazer-se risonho, vir para mim, sentar-se à mesa,
e, à luz do lampião de querosene, explicar-me pitorescamente as lições do dia
seguinte. Ou então, da cadeira de balanço, contar-me as maravilhosas coisas do
movimento da Terra, dos antípodas, da gravitação universal, e, enleado, minha
pergunta se Deus podia parar a Terra, responder com hesitação - Pode, sim. (LIMA
BARRETO, 1956a, p.91).
De acordo com as reflexões de Dal Farra (2012), o espaço do discurso, ou seja, o
tempo do presente do narrador revela-se como um lugar estratégico da narrativa, pois é desse
lugar privilegiado que o narrador do discurso poderá realizar antecipações narrativas,
suposições e confissões de qualquer ordem, sobretudo, acreditamos que é desse lugar que o
“eu” do indivíduo se despoja de artifícios retóricos de dissimulação para apresentar de modo
explícito os seus mais recônditos segredos. Mediante essa reflexão, eis aqui, um exemplo do
desmascaramento humano propiciado pelo discurso de um narrador que se confessa sem
pudores ao recordar o episódio do grave estado de saúde de sua mãe, a quem não via e
tampouco remetia notícias, há anos. Congelada em sua memória em face da distância no
tempo e no espaço, a lembrança da mãe irrompe abruptamente na memória de Isaías que se
mortifica ao perceber que o ente querido houvera perecido sob o total esquecimento de seu
filho. Essa tomada de consciência abala Isaías que nesse momento se enternece, apesar da
dureza do coração do jovem já marcado pelo sofrimento e pelas decepções. Ocorre então um
66
forte abalo em suas emoções e Isaías expõe abertamente os mais íntimos sentimentos que
habitam sua alma machucada e endurecida:
Morria minha mãe! E via-a logo morta, muito magra, os círios, o crucifixo,
o choro... Passou-me pelos olhos a sua triste vida, humilde e humilhada, sempre
atirada a um canto como um móvel velho, sem alegria, sem fortuna, sem amizade e
sem amor...
Durante aqueles meses de ausência, eu pouco me detive na sua recordação;
mas agora elas eram freqüentes e a sua figura flutuava a meus olhos: magra,
esquálida, com o corpo premido pelos trabalhos e tendo pelas faces aquelas manchas
que pareciam de fumaça entranhada... Eu quis envolver essa recordação com o que
havia em mim de mais terno e também as outras que me vieram: a volta do colégio,
o abraço que eu lhe dava; a minha doença, como ela me dava remédios... E tudo
vinha com pressa do fundo de mim mesmo, subia uma recordação que expulsava
outra; por fim, tudo se baralhou, tornou-se confuso e os meus olhos se orvalharam
de pranto. (LIMA BARRETO, 1956a, p.149-148).
Nesse instante em que a dor atinge profundamente seu coração, Isaías adquire a
consciência de que os dissabores que experimentara, não só haviam lhe causado um intenso
sofrimento interior, mas também havia alterado seus afetos e sentimentos para com o
próximo. Percebe, então, que em face das lutas empreendidas desde sua chegada no Rio de
Janeiro, adentrara em um processo de desumanização.
Mediante a profunda dor que se manifesta por meio desse recordar, resta ao
desiludido Isaías, resgatar suas doloridas lembranças, reunindo-as na obra que produz em sua
maturidade. Podemos inferir que a função da memória na obra de Isaías é suscitar lembranças
de acontecimentos passados e não completamente superados. A memória resgatada será,
então, um móvel a contribuir para a reelaboração dos acontecimentos que, embora situados
em um tempo distante, ainda geram sofrimento devido à dimensão da dor que encerram. O
romance de Isaías é, assim, o produto advindo da dor causada no enfrentamento com o
passado que é sublimado pelo artista em uma tentativa de reelaborar o sofrimento ainda
presente em seu íntimo no momento em que escreve suas recordações. Compreendemos que
as mágoas arraigadas no íntimo do narrador do discurso o impedem de trilhar um caminho de
busca rumo a uma existência mais serena e feliz. Assim, o empenho de Isaías em compor sua
autobiografia surge como uma tentativa desesperada desse narrador do discurso que espera
encontrar na revivescência das agruras sofridas, um modo de libertar-se dos danos causados
em seu ser em determinado momento de sua existência ou, poderíamos afirmar, sua escrita
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revela-se como uma tentativa de superar o trauma advindo dos sofrimentos experimentados
no contato com a civilização. Recordações de um período da existência de Isaías vêm à tona
pelas lembranças recolhidas no tempo, porém, o Isaías que contempla o passado já não é o
mesmo que, um dia, desembarcara assustado no porto da cidade carioca, na medida em que o
atravessa agora, uma sucessão de fatos e experiências que o impossibilitam a uma percepção
autêntica da realidade vivida. É impossível captar o passado em sua totalidade. Isaías
reconhecia essa dimensão do tempo e sua importância para a análise do acontecido:
Hoje, agora, depois não sei de quantos pontapés destes e outros mais
brutais, sou outro, insensível e cínico, mais forte talvez; aos meus olhos, porém,
muito diminuído de mim próprio, do meu primitivo ideal, caído dos meus sonhos,
sujo, imperfeito, deformado, mutilado e lodoso. Não sei a que me compare, não sei
mesmo se poderia ter sido inteiriço até ao fim da vida [...] (LIMA BARRETO,
1956a, p.110)
A trajetória empreendida por Isaías lhe impõe grandes infortúnios. A dor que se
manifesta quando da recordação dos fatos vivenciados em seu passado, apodera-se do
iniciante escritor durante o processo de construção de seu romance. Um sentimento de
angústia o leva a questionar a validade de seu empreendimento literário:
[...] Penso – não sei porque – que é este meu livro que me está fazendo
mal...... E quem sabe se excitar recordações de sofrimentos, avivar as imagens de
que nasceram não é fazer com que, obscura e confusamente, me venham as
sensações dolorosas já semimortas? Talvez mesmo seja angústia de escritor, porque
vivo cheio de dúvidas, e hesito de dia pra dia em continuar a escrevê-lo. Não é o seu
valor literário que me preocupa; é a sua utilidade para o fim que almejo (LIMA
BARRETO, 1956 a, p.119).
Entendemos que em face do imenso sofrimento experimentado por Isaías em sua
juventude, a reelaboração escrita de suas recordações revela-se, conforme já afirmamos em
momento anterior, como um produto da sublimação, poderosa técnica utilizada pelo ser
humano que desse modo procura amenizar sua impotência face às dores provocadas em sua
alma, pelo mundo hostil. Assim, amargurado pelas frustrações e atormentado pelas
lembranças que o perseguem, Isaías busca no devaneio artístico uma compensação para a
felicidade que o mundo civilizado lhe negou. De acordo com as reflexões freudianas, a
sublimação:
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[...] consiste em deslocar de tal forma a meta dos instintos, que eles não
podem ser atingidos pela frustração a partir do mundo externo [...] o melhor
resultado é obtido quando se consegue elevar suficientemente o ganho de prazer a
partir das fontes de trabalho psíquico e intelectual (FREUD, 2010, p.35).
Intuímos que a escrita das memórias funciona como um método catártico com que se
configura a depuração da dor, assim Isaías investe na produção das “Recordações” como
forma de expurgar os males que experimentou ao longo de sua trajetória no seio da civilização
e o faz de maneira a apelar à solidariedade humana. Acerca do projeto de solidariedade que
dirigiu a fatura de seu romance autobiográfico há que ressaltar a condição racial gravada na
pele do memorialista Isaías. É preciso destacar que a origem étnica africana representava um
fator dissonante na civilização ocidental de matriz europeia representada pela cidade do Rio
de Janeiro do início do século XX. Assim, intuímos que ao recorrer ao atributo da
solidariedade, lançando um apelo aos seus semelhantes, Isaías objetiva atacar a violência
concretizada pelo racismo que, em seu aspecto irracional e bárbaro, desconsiderava fatores
morais e éticos, elementos essenciais para o fortalecimento do projeto civilizatório de união
entre os homens. Assim, Isaías revela os motivos que o conduziram a escrever suas memórias:
[...] com elas, queria modificar a opinião dos meus concidadãos, obrigá-los a pensar
de outro modo, quando encontrarem na vida um rapaz como eu e com os desejos que
eu tinha a dez anos passados não se encherem de hostilidade e má vontade [...]
(LIMA BARRETO, 1956 a, p.120).
Porém, seus esforços não se revelam eficazes, na medida em que a sensação de alívio
buscada pela escrita do texto literário revela-se fugaz. Ao recolher suas memórias, Isaías
pretende expurgar os danos oriundos das perdas colecionadas ao longo de sua existência.
Busca, assim, o consolo prometido pela arte. Porém, pelo seu caráter ilusório, a arte não se
revela capaz de assegurar a felicidade duradoura ansiada pelo protagonista Isaías. É o que
expressam as palavras de Sigmund Freud (2010), mediante o reconhecimento da intensa
relação do ser humano com a arte:
O âmbito de que se originam tais ilusões é aquele da fantasia; quando
ocorreu o desenvolvimento do sentido da realidade, ele foi expressamente poupado
do teste da realidade e ficou destinado à satisfação de desejos dificilmente
concretizáveis. Entre essas satisfações pela fantasia se destaca a fruição de obras de
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arte, que por intermédio do artista se torna acessível também aos que não são eles
mesmos criadores. Quem é receptivo à influência da arte nunca a estima
demasiadamente como fonte de prazer e consolo para a vida (FREUD, 2010, p.37)
Conforme já apontamos, ao decidir escrever suas memórias Isaías está em busca de
satisfação e consolo para as suas tristezas e mágoas. A fim de deslocar sua insatisfação perene
para a meta da felicidade, aciona o mecanismo da sublimação, verdadeira fonte de aquisição
de prazer por meio da qual Isaías acredita ser possível canalizar as angústias e carências
oriundas da insatisfação imposta pelo mundo e pelos seres humanos que o habitam. Entre as
formas de sublimação encontra-se a renovadora fonte do trabalho intelectual cujas qualidades
podem estar relacionadas ao prazer derivado da contemplação do “belo”. Desse modo, será
pela via da criação artística que Isaías Caminha encontrará um modo de satisfação capaz de
levá-lo à superação de dor.
Segundo Freud (2010), “quem é receptivo à influência da arte, nunca a estima
demasiadamente como fonte de prazer” (p.37). Tal assertiva justificaria a angústia de Isaías
que ao longo do processo de composição de suas memórias sente-se profundamente inquieto e
insatisfeito, quando reflete: “hesito de dia para dia em continuar a escrevê-lo...”
(LIMA BARRETO, 1956a, p.119)
Assim deduzimos que a sublimação pela via da fantasia não é suficiente para afastar
todo o sofrimento contido no seio do ex-contínuo e, tampouco colabora para a conquista da
paz e da felicidade desejadas. Verifica-se, então, o quanto é difícil expurgar, ainda que pela
via da sublimação artística, a mágoa que corrói o narrador, o que nos induz a concordar com o
apontamento freudiano que informa que a conquista da felicidade constitui-se como um
empreendimento irrealizável em sua totalidade, mediante o conflito instaurado no aparelho
psíquico do ser humano. Tal sugestão se projeta em Isaías: o ato da escrita, em determinados
momentos, transforma-se em uma verdadeira tortura, porém o empenho em busca da meta da
felicidade imposta pelo princípio do prazer freudiano, jamais abandona o psiquismo do ser e é
essa condição que impulsiona o narrador a persistir em seu objetivo. É o que Isaías nos revela:
De forma que não tenho por onde aferir se as minhas Recordações
preenchem o fim a que as destino; se a minha inabilidade literária está prejudicando
completamente o seu pensamento. Que tortura! E não é só isso: envergonho-me por
esta ou aquela passagem em que me acho, em que me dispo em frente de
desconhecidos, como uma mulher pública... Sofro assim de tantos modos, por causa
desta obra, que julgo que esse mal-estar, com que às vezes acordo, vem dela,
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unicamente dela. Quero abandoná-la; mas não posso absolutamente. De manhã, ao
almoço, na coletoria, na botica, jantando, banhando-me, só penso nela. À noite,
quando todos em casa se vão recolhendo, insensivelmente aproximo-me da mesa e
escrevo furiosamente (LIMA BARRETO, 1956a, p.121).
A teoria literária aponta um caminho instigante para a compreensão do processo de
reelaboração do real insatisfatório pela arte. Assim como se dá na teoria de Freud, as teorias
literárias também se deparam com a insatisfação do artista e do leitor em face das agruras
contidas no mundo. Logo, o poderoso recurso da fantasia que o psicanalista entrevê como
forma de fuga do real, surge aqui (no campo da teoria da literatura) para afirmar que a
imaginação, “arte” tão exercitada pelo ser humano “pode funcionar como fuga ou
compensação, como prêmio de prazer” (MOISÉS, 2006 p.104).
O empenho com que Isaías se atirou à reelaboração das experiências de seu passado
representa a ânsia de todos os seres humanos que ao longo dos tempos buscaram maneiras de
refazer o real, a fim de conviver com o vazio existencial. De acordo com Leyla Perrone
(2005) tais maneiras remetem a formas ligadas à religião, a ações sociais ou à imaginação.
Isaías optou pela imaginação, valendo-se para tanto da literatura, pois “nas histórias
inventadas podemos, eventualmente, encontrar um mundo preferível àquele em que vivemos”
pelo simples fato de que o “indizível sofrimento” pode ser reelaborado pela forma ideal, bem
como o sofrimento re – sentido verifica “o que deveria ser e não é” (p.104).
Isaías deseja superar as marcas de um tempo de dor e para tanto empreende uma
“viagem” aos recônditos de seu passado, acreditando que esse reencontro lhe proporcionaria a
chance de perceber que fatos ou ações definiram no passado, os insucessos e infortúnios com
os quais convive amargurado em seu presente. O ato de produção escrita revela-se a Isaías
como um “fio de Ariadne” capaz de conduzir o herói ao labirinto das memórias calcificadas.
Porém, ao empreender sua viagem ao passado, nosso herói percebe que sua história fora
transpassada por acontecimentos e experiências que fragmentam suas lembranças. Seu
rememorar transforma-se, então, em “romance” de uma vida, na medida em que a linguagem
sempre convida a imaginação para recompor o real:
A linguagem tem uma função referencial e uma pretensão representativa.
Entretanto o mundo criado pela linguagem nunca está totalmente adequado ao real.
Narrar uma história, mesmo que ela tenha realmente ocorrido, é reinventá-la. Duas
pessoas nunca contam o mesmo fato da mesma forma: a simples escolha dos
pormenores a serem narrados, a ordenação dos fatos e o ângulo de que eles são
71
encarados, tudo isso cria a possibilidade de mil e uma histórias, das quais nenhuma
será a “real”. Sempre estará faltando, na história, algo do real; e muitas vezes se
estará criando, na história, algo do real; e muitas vezes se estará criando, na história,
algo que faltava ao real, ou melhor, algo que, ao se produzir na história, revela uma
imperdoável falha no real. (MOISÉS, 2006, p.105)
Inserido no meio urbano da capital, a trajetória empreendida por Isaías simboliza o
drama de muitos indivíduos que, na esteira da modernidade, acreditaram na utopia da
igualdade ao julgar que o “sol brilha para todos”, independente da condição financeira ou
racial. Porém, Isaías como tantos outros em sua condição, estava inserido na civilização e,
portanto, em face da limitação de sua liberdade só lhe restava revoltar-se contra a insensatez
presente no meio social.
A odisseia de Isaías inicia-se no momento em que, ainda jovem e idealista, sonha em
doutorar-se. Para o modesto Isaías, o ser doutor garantiria a posse permanente de um estado
de felicidade. Esse desejo irrompe na narrativa em seu momento inicial quando deparamos
com o protagonista mobilizado pelo que Freud (2010) denomina como princípio do prazer.
Assim, com o firme propósito de atingir sua meta de vida, Isaías parte para a idealizada
cidade do Rio de Janeiro, então capital do país, acreditando que o progresso e a modernização
que à época ali avançavam vertiginosamente propiciariam a realização de sua maior ambição:
a conquista do título de doutor, desejo expresso com otimismo pelo próprio Isaías, pouco
tempo antes de sua partida rumo à busca do almejado título, deferência que uma vez
adquirida, acreditava o jovem crédulo, favoreceria a vivência de fortes prazeres e, logo, a
conquista eterna da felicidade:
Ah! Seria doutor! Resgataria o pecado original do meu nascimento
humilde, amaciaria o suplício premente, cruciante e omnímodo de minha cor... [...]
Seguro do respeito à minha majestade de homem, andaria com ela mais firme pela
vida em fora. Não titubearia, não hesitaria, livremente poderia falar, dizer bem alto
os pensamentos que se estorciam no meu cérebro.
O flanco, que a minha pessoa, na batalha da vida, oferecia logo aos ataques
dos bons e dos maus, ficaria mascarado, disfarçado... (LIMA BARRETO, 1956a
p.53).
Esta confissão proferida pelo protagonista revela que Isaías encontra-se, nesse
momento, em um eventual estado de felicidade, na medida em que julga estar próximo da
realização do sonho do doutorismo. Assim, em face da perspectiva de obtenção do título a
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vaidade do rapaz era alimentada, levando-o a experimentar intensas sensações de prazer, as
quais rapidamente “se intimidaram” no confronto com a realidade adversa. Isaías fracassa em
seu empreendimento, esvai-se o sonho do título almejado.
Mediante o momento histórico e a condição social de Isaías, estabelecemos um
contraponto com o discurso sociológico que aponta para a obsessão da burguesia pelo
prestigiado cargo de “doutor” condição que circula no ambiente nacional desde os tempos do
Brasil colônia. Desse modo o predomínio e o prestígio das atividades intelectuais revelam-se
como possíveis resquícios da decadência do mundo escravocrata colonial. A ruína do mundo
patriarcal levou a vaidosa elite composta por ex-senhores de escravos a buscar na vida
citadina, cargos que correspondessem à importância que detinham em seu mundo rural. Em
Raízes do Brasil (2013) encontramos a seguinte reflexão, a qual pode apontar possíveis razões
para que Isaías relacione a conquistada felicidade à carreira de “doutor”:
Numa sociedade como a nossa, em que certas virtudes senhoriais ainda
merecem largo crédito, as qualidades do espírito substituem, não raro, os títulos
honoríficos, e alguns dos seus distintivos materiais como o anel de grau e a carta de
bacharel, podem equivaler a autênticos brasões de nobreza. Aliás, o exercício dessas
qualidades que ocupam a inteligência sem ocupar os braços tinha sido, já em outras
épocas, como pertinente aos homens nobres e livres, de onde, segundo parece, o
nome de liberais dado a determinadas artes, e, oposição às mecânicas, que
pertencem às classes servis. (HOLANDA, 2013, p.83)
O fato de não haver conseguido realizar esse sonho fez com que Isaías, em sua
maturidade se lançasse ao empenho de compor suas recordações, canalizando, assim, sua
frustração que se vê atenuada face ao ganho de prazer obtido pela via do trabalho artístico.
Assim, reiteramos a ideia de que Isaías investe no poder da sublimação como forma de evitar
a dor que acomete sua existência.
Entre as ideias disseminadas pelo ensaio O Mal Estar na Civilização (1930) de
Sigmund Freud, encontra-se uma reflexão acerca do sentido conferido à existência pelos seres
humanos que visa enfatizar a ideia de que a felicidade configura-se como a meta principal da
existência humana:
[...] o que se revela a própria conduta dos homens, acercada finalidade e
intenção de sua vida, o que pedem eles da vida e desejam nela alcançar? É difícil
não acertar a resposta: eles buscam a felicidade, querem se tornar e permanecer
felizes. Essa busca tem dois lados, uma meta positiva e uma negativa; quer a
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ausência de dor e desprazer e, por outro lado, à vivência de fortes prazeres. No
sentido mais restrito da palavra, “felicidade” se refere apenas à segunda.
Correspondendo a essa divisão das metas, a atividade dos homens se desdobra em
duas direções, segundo procure realizar uma ou outra dessas metas –
predominantemente ou mesmo exclusivamente (FREUD, 2010, p.29-30).
Desse modo, Freud (2010) nos revela que o que estabelece a finalidade da vida do ser
humano é o programa do princípio do prazer, o qual domina seu aparelho psíquico ao longo
de todo o seu desenvolvimento. Porém, assevera o psicanalista que apesar da total adequação
desse princípio às necessidades humanas, o programa do princípio do prazer contraria “todo o
arranjo do Universo” (FREUD, 2010, p.30) fato que inviabiliza a completa adesão às “leis”
que regem o pleno desenvolvimento do princípio do prazer. Assim, revela-se como
improvável o ideal humano de conquistar de forma definitiva e perpétua um estado de
felicidade plena advinda da satisfação irrestrita, pois como afirma Freud (2010) a própria
constituição do ser humano funciona como um importante elemento de restrição aos anseios
de felicidade e bem-estar.
Por que motivo o homem experimenta a infelicidade com tamanha frequência, já que
seu maior anseio e objetivo é a posse da felicidade? De acordo com Freud, (2010, p.30) a
felicidade não se encontra no plano da Criação. O psicanalista, afirma que a felicidade,
sentimento tão perseguido pelo ser humano seria tão somente como que um espasmo advindo
de nossas necessidades represadas, porém sempre prontas a se manifestar, ainda que de modo
fugaz e episódico. No momento em que o princípio do prazer desencadeia-se, diante de uma
determinada situação, o que nos invade é, no máximo, uma sensação intensa, porém breve,
como, a seguir, nos confirma Freud:
Quando uma situação desejada pelo princípio do prazer tem
prosseguimento isto resulta apenas em um morno bem estar; somos feitos de modo a
poder fruir intensamente só o contraste, muito pouco o estado. Logo, nossas
possibilidades de felicidades são restringidas por nossa constituição. É bem menos
difícil experimentar a infelicidade. O sofrer nos ameaça a partir de três lados: do
próprio corpo que, fadado ao declínio e à dissolução, não pode sequer dispensar a
dor e o medo, como sinais de advertência; do mundo externo, que pode se abater
sobre nós com forças poderosíssimas, inexoráveis, destruidoras; e, por fim, das
relações com outros seres humanos (FREUD, 2010, p.31).
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As ideias embutidas nas teorias freudianas nos permitem ponderar acerca dos ideais
que estimulavam Isaías Caminha. O jovem reconhecia sua condição social: era mulato (em
uma sociedade em que, apesar do fim oficial da escravidão trazia arraigados em seu bojo, a
discriminação e o preconceito), de origem pobre, filho ilegítimo de um sacerdote. A
consciência de sua condição marginal incentivava no jovem Isaías o desejo de redirecionar o
seu destino em busca de uma felicidade a qual acreditava ter direito. Lograva ser feliz
livrando-se do estigma de sua pobreza e do preconceito de sua cor e, para tanto, desejava o
título de doutor. O sonho do doutorismo, concretização da felicidade pretendida, culminaria
com o fim do sofrimento ou, como acreditava Isaías “amaciaria o suplício premente, cruciante
e omnímodo de minha cor...” (LIMA BARRETO, 1956ª, p.53) e, sobretudo, oportunizaria a
“vivência de fortes prazeres” (FREUD, 2010, p.30). Assim, reafirmamos que, no momento
inicial da narrativa os desejos que moviam a existência de Isaías estavam vinculados ao
programa que Freud denominou como “princípio do prazer”, pois a “fuga” de Isaías para a
“cidade grande” (onde acreditava ser possível realizar o sonho de doutoramento) tinha como
meta primordial o alcance da felicidade e logo, revelava-se como uma oportunidade para “a
vivência de fortes prazeres” (FREUD, 2010, p.30). No entanto, em sua juventude inocente,
fase situada em momento anterior ao de sua partida para a capital, Isaías ainda desconhecia o
fato de que, diante da “conspiração” engendrada pelo universo, seria impossível se furtar ao
sofrimento que o mundo civilizado iria lhe impor. E embalado pela ilusão juvenil, idealiza o
seu destino:
Acentuaram-se-me tendências; pus-me a colimar glórias extraordinárias, sem lhes
avaliar ao certo a significação e a utilidade. Houve na minha alma um tumultuar de
desejos, de aspirações indefinidas. Para mim era como se o mundo me estivesse
esperando para continuar a evoluir [...] (LIMA BARRETO, 1956a, p.46).
O mundo civilizado, representado no romance pela metrópole carioca no limiar do
século XX, revela-se como um palco para as grandes dores, decepções e desencantos que
marcarão todo o percurso do idealista Isaías, desde sua chegada à capital, passando pelos
personagens que conhece na cidade até sua colocação no cargo de contínuo em uma redação
de jornal, função que, aliás, só aceita por mostrar-se como a única alternativa capaz de
garantir sua sobrevivência naquele momento. Retornando, anos depois, a sua cidade natal,
quando, já marcado pela frustração das primeiras esperanças, decide escrever as suas
recordações. Isaías não se forma em doutor. Ironicamente, o ideal de sucesso e felicidade
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preconizado pela cidade grande, metonímia da civilização, esbarra, antes, nos intrincados
caminhos dessa mesma civilização, revelada como punitiva e preconceituosa, portadora,
portanto, de infelicidade. Assim, a fim de se adequar aos parâmetros civilizacionais, Isaías
submete-se às condições que, ao mesmo tempo em que o capacitam a viver em sociedade, o
distanciam do seu ideal de felicidade.
O enredo do romance em estudo, aparentemente simples, no entanto, reveste,
esteticamente, a ideia de que a humanidade em sua errância padece de um profundo mal-estar,
na medida em que se encontra aprisionada nos estritos limites impostos pelas funções
biológicas, pelo mundo físico e pela sociedade que impões severas restrições aos indivíduos.
Esses poderosos e indestrutíveis obstáculos impedem a concretização de um estado pleno de
felicidade, devido ao irreconciliável conflito que se estabelece no relacionamento do
indivíduo com a civilização:
[...] boa parte da culpa por nossa miséria vem do que é chamado de nossa
civilização; seríamos bem mais felizes se a abandonássemos e retrocedêssemos a
condições primitivas. A asserção me parece espantosa porque é fato estabelecido –
como quer que se defina o conceito de civilização – que tudo aquilo com que nos
protegemos da ameaça das fontes do sofrer é parte da civilização (FREUD, 2010
p.44).
Nossa leitura nos conduz a compreender que as ações narrativas que estruturam a obra
Recordações do Escrivão Isaías Caminha expressam esse pensamento do psicanalista. No
romance, o personagem Isaías revela-se um aluno aplicado e devoto aos estudos, pois
acreditava que mediante a conquista do saber, garantiria a posse e a perpetuação da felicidade,
na medida em que seria digno do respeito das pessoas, e da consideração por toda gente.
Enfim, para Isaías, o saber ao engrandecer o ser humano, além de possibilitar também, a
inserção dos indivíduos nas estâncias mais adiantadas da civilização. Tal crença adivinha do
relacionamento com seu pai, vigário da paróquia, cuja capacidade intelectual deslumbrou os
sentidos do menino Isaías, em oposição às restrições intelectuais detectadas em sua mãe,
como se nota, no trecho a seguir:
O espetáculo de saber do meu pai, realçado pela ignorância de minha mãe e
de outros parentes dela, surgiu aos meus olhos de criança, como um
deslumbramento. Pareceu-me então que aquela sua faculdade de explicar tudo,
aquele seu desembaraço de linguagem, a sua capacidade de ler línguas diversas e
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compreendê-las, constituíam, não só uma razão de ser de felicidade, de abundância e
riqueza, mas também um título para o superior respeito dos homens e para a superior
consideração de toda a gente (LIMA BARRETO, 1956a, p.19).
Porém, o percurso empreendido por Isaías, ao longo da narrativa, revelará que a posse
de bens culturais não será suficientemente capaz de promover a felicidade do personagem que
experimentará muitos dissabores, apesar do saber livresco que acreditava possuir, no
confronto com a civilização carioca.
E importante compreender que Isaías vinha do meio rural, onde a posse da cultura
livresca e o título de bacharel conferiam grande dignidade a seu detentor. O título, além de
conferir prestígio social difundia ainda, a ideia que relaciona inteligência e talento e eleva
substancialmente a posição do indivíduo em seu meio social. Isaías pressentia a importância
do conhecimento para a classe a qual ansiava ascender: “Quantas prerrogativas, quantos
direitos especiais, quantos privilégios esse título dava!” (LIMA BARRETO, 1956a, p.55),
Esse era o ideal almejado por Isaías quando se imaginava vitorioso e com um diploma nas
mãos. Essa crença de Isaías coincide com a crença corrente na sociedade de sua época,
momento marcado pelo declínio da lavoura e pela modernização das cidades, fatores que
lançavam a elite agrária à demanda de outras atividades pecuniárias:
O prestígio universal do “talento”, com o timbre particular que recebe essa
palavra nas regiões, sobretudo, sobretudo onde deixou vinco mais forte a lavoura
colonial e escravocrata, como o são eminentemente, as do Nordeste do Brasil,
provém, sem dúvida do maior decoro que parece conferir a qualquer indivíduo o
simples exercício da inteligência, em contraste com as atividades que requerem
algum esforço físico. (HOLANDA, 2013, p.83).
Certo de que a cidade pequena não comportava a sua genialidade, Isaías decide partir,
porém, atormentava-o uma dúvida que o impedia de concretizar seu ideal. Isaías sente receio
frente ao desconhecido representado pelo espaço da cidade grande. Assim, parecia pressentir
a fatalidade que se abateria sobre sua existência futura:
Então, durante horas, através das minhas ocupações quotidianas, punha-me a medir
as dificuldades, a considerar que o Rio era uma cidade grande, cheia de riqueza,
abarrotada de egoísmo, onde eu não tinha conhecimentos, relações, protetores que
me pudessem valer...
77
Que faria lá, só, a contar com as minhas próprias forças? Nada... Havia de ser como
uma palha no redemoinho da vida – levado daqui, tocado para ali, afinal engolido no
sorvedouro... ladrão... bêbado... tísico e quem sabe mais? Hesitava. De manhã, a
minha resolução era quase inabalável, mas, já à tarde, eu me acobardava diante dos
perigos que antevia (LIMA BARRETO, 1956a, p.20).
Porém, o desejo de explorar as possibilidades oferecidas pela capital moderna e
próspera que habitava o imaginário de Isaías venceu a batalha empreendida em seu interior e
o jovem interiorano muda-se para o Rio de Janeiro.
Durante o percurso da viagem, realizado por via férrea, apresentam-se, por meio da
voz do narrador protagonista, imagens de uma paisagem deslumbrante. Os sentidos de Isaías
captavam os matizes que coloriam o ambiente e consagravam ao cenário, beleza e esplendor.
Não obstante, a beleza manifesta na natureza já prenunciava o desconcerto que se
operava entre a visão idealizada do narrador e a realidade que o esperava. A descrição da
paisagem, estruturada em três pequenos parágrafos, é marcada pela presença de substantivos e
adjetivos que confluem para a mesma realidade de contrastes que Isaías conhecerá a partir de
sua inserção no ambiente citadino da capital. Assim, inferimos que os termos que encerram
cada um dos parágrafos destinados à descrição da paisagem, a saber, “esforço”, “vontade”,
“desigual”, “vida”, “doente” sintetizam o modo como a realidade se configura na civilização,
como podemos observar a seguir:
Eram as mesmas charnecas úmidas ao sopé de morros de porte médio, revestidos de
um mato ralo, anêmico, verde-escuro, onde, por vezes, uma árvore de mais vulto se
erguia soberbamente, como se o conseguisse pelo esforço de uma vontade própria.
O sol coava-se com dificuldade por entre grossos novelos de nuvens erradias,
distribuindo, sobre as coisas que eu ia vendo, uma luz amarelada e desigual.
Pelo declive suave de uma encosta, o tapete escuro do mato aparecia mosqueado,
com as manchas arredondadas, claras e escuras, salpicadas com relativa
regularidade. Por aqui, por ali, trechos foscos e baços contrastavam com tufos vivos,
profusamente iluminados – rebentos de vida numa pele doente... (LIMA
BARRETO, 1956a, p.59). (grifos nossos)
Ocorre que ao chegar à capital do país, Isaías se depara com diversos obstáculos que,
próprios da civilização, pouco a pouco, vão lhe destituindo dos sonhos e ilusões juvenis. A
fim de compreender os porquês do precoce desencanto que se apossou do íntimo de Isaías
logo nos inícios do empreendimento que o levou até a capital do país será necessário
retroceder ao momento em que, coração disparado diante do novo, Isaías aporta na cidade
78
carioca. Como sabemos o ambiente preponderante em que Isaías se move ao longo do
romance é o Rio de Janeiro que avançava freneticamente para um futuro que a população
acreditava promissor. No entanto, apesar da atmosfera de modernidade que pairava sobre a
cidade o que a princípio se concertava com as expectativas de Isaías; sua chegada apresenta-
se como um episódio inerte cuja impressão que se desprende da cena é a da solidão do jovem
provinciano mediante a indiferença com que o espaço citadino o recebeu. Em face da
sensação de estranhamento que se apossou de Isaías, a cena de sua chegada recende à inércia
e esterilidade. Isaías vê-se “ilhado” no coração econômico do país. O local que um dia servira
aos sonhos febris de idealização do jovem promissor revelou-se no momento imediato de sua
chegada como um fulgurante “avesso” do ideal almejado. O sentimento de angústia que se
instaura então no íntimo de Isaías perdurará por toda a narrativa como a apontar o abismo que
o separa do universo citadino. Diante da concretude de um espaço avesso ao que sonhara,
Isaías revela com desalento:
Quando saltei e me pus em plena cidade, na praça para onde dava a estação,
tive uma decepção. Aquela praça inesperadamente feia, fechada em frente por um
edifício sem gosto, ofendeu-me como se levasse uma bofetada. Enganaram-me os
que me representavam a cidade bela e majestosa. Nas ruas, havia muito pouca gente
e, do bonde em que as ia atravessando, pareciam-me feias, estreitas, lamacentas,
marginadas de casas sujas e sem beleza alguma (LIMA BARRETO, 1956a, p.62-3).
No entanto, logo após sua chegada à capital, a civilização que habitava o imaginário
de Isaías surge a seus olhos quando se aventurando pela Rua do Ouvidor, logradouro símbolo
da civilização que se erguera na cidade carioca, percebe as vitrines a exibir os cobiçados bens
produzidos pela moderna civilização. Porém, advém em seu íntimo, sentimentos difusos que
oscilam entre o fascínio pelo progresso e pela beleza e a força esmagadora de uma civilização
que é destinada àquela diminuta parcela que pode usufruir de sua avassaladora magia. É
tomado por esse conflito que Isaías contempla as belas vitrines da via carioca:
Eu parava diante de uma e de outra, fascinado por aquelas coisas frágeis e caras. As
botinas, os chapéus petulantes, as linhas das roupas brancas, as gravatas ligeiras,
pareciam dizer-me: Veste-me, ó idiota! nós somos a civilização, a honestidade, a
consideração, a beleza e o saber. Sem nós não há nada disso; nós somos, além de
tudo, a majestade e o domínio! (LIMA BARRETO, 1956a, p.83).
79
Tais eventos, repletos do dissabor da desilusão fazem com que a chegada de Isaías à
cidade seja marcada pela decepção do jovem sonhador. Contrária à idealização que antevia a
cidade grande como o espaço do esplendor, a realidade que se apresenta ao jovem, revela-se
feia, hostil e discriminadora. Assim, Isaías sente-se frustrado diante desse primeiro contato
com o espaço onde, até então, estavam depositadas todas as esperanças de um futuro
promissor.
Após a decepção dos primeiros contatos com a cidade, as ações que se seguem ao
longo da narrativa continuam revelando o esfacelar dos sonhos de sucesso e felicidade
acalentados pelo protagonista Isaías nos momentos iniciais da narrativa. No confronto
cotidiano com a metrópole, a face obscura da civilização que se erguia nas avenidas da capital
como a revelar seu fascínio e poder frente aos indivíduos, sufoca cada vez mais o jovem
sonhador. Vivendo em tempos de clientelismo político, Isaías houvera se dirigido para a
capital de posse da certeza de que obteria, em breve tempo, um emprego, o que lhe
proporcionaria iniciar seus estudos superiores. Afinal, carregava consigo uma carta de
apresentação, porta aberta por um político de sua cidade natal para a conquista fácil de uma
colocação remunerada. Porém, frustrados esses planos, acirram-se os sofrimentos de Isaías
que se vê na solidão, indefeso e amargurado, abandonado à própria sorte em meio a um
espaço hostil. Assim, metaforiza seu estado de alma, utilizando, para tanto, elementos da
natureza:
Foram de imensa angústia esses meus primeiros dias no Rio de Janeiro. Eu era como
uma árvore cuja raiz não encontra mais terra em que se apóie e donde tire vida; era
como um molusco que perdeu a concha protetora e que se vê a toda a hora esmagado
pela menor pressão.
Oprimido com uma antevisão de misérias a passar, de humilhações a tragar, o meu
espírito deformava tudo que via [...] (LIMA BARRETO, 1956a, p.87).
Desde a chegada de Isaías à capital carioca, sua vida transforma-se em um incessante
acúmulo de frustrações: o emprego negado pelo Deputado Castro; a relação com os membros
da simplória pensão onde passou a habitar, cujo representante máximo, Laje da Silva,
revelava uma contradição suspeita em seus modos gentis e a humilhante experiência frente a
“desejada” função de padeiro, ostensivamente negada. Porém, entre as reminiscências do
narrador do discurso, a que se apresenta como o golpe mais doloroso, ocorre quando é
acusado de cometer um roubo na pensão e é humilhado pelo delegado que o nomeia como “o
tal mulatinho”. Essa contenda termina com um saldo negativo para Isaías que é conduzido à
80
prisão. Acerca desse triste fato, afirma na narrativa de suas memórias: “[...] É esta passagem
do xadrez que me faz vir estes pensamentos amargos [...]” (LIMA BARRETO, 1956a, p.122).
Diante desse acontecimento, Isaías reflete sobre a condição humana e sobre os limites
impostos pela vida em sociedade. Conclui, então, que deveria concentrar suas forças e impõe
a si mesmo a tarefa de construir a sua felicidade, donde assevera:
[...] As condições de minha felicidade não deviam repousar senão em mim mesmo –
concluí... Mas não era só isso que eu via. O que me fazia combalido, o que me
desanimava eram as malhas de desdém, de escárnio, de condenação em que me
sentia preso [...] como que percebia que estava proibido de viver e fosse qual fosse o
fim da minha vida os esforços haviam de ser titânicos [...] (LIMA BARRETO,
1956a, p.124).
Assim, Isaías concentrará suas forças em deslocar sua meta inicial de vida, qual seja a
busca da felicidade, por meio da “[...] vivência de fortes prazeres [...]” (FREUD, 2010, p.30),
partindo rumo a uma meta mais modesta. Isaías dirige-se a “[...] uma meta negativa; nesse
momento quer, apenas, a ausência de dor e desprazer [...]” (FREUD, 2010, p.30). Inserido no
espaço da civilização e percebendo-se cada vez mais distante de seu ideal, busca, no entanto,
atenuar sua inevitável frustração. A distância temporal que distancia o jovem Isaías do
narrador maduro permite a confissão:
Havia dias que notava com surpresa a indiferença que tinha então pelos meus
destinos. Aquele meu fervor primeiro, tinha sido substituído por uma apatia superior
a mim. Tudo me parecia acima de minhas forças, tudo me parecia impossível; e que
não era eu propriamente que não podia fazer isso ou aquilo, mas eram todos os
outros que não queriam, contra a vontade dos quais a minha era insuficiente e débil.
A minha individualidade não reagia; portava-se em presença do querer dos outros
como um corpo neutro; adormecera, encolhera-se timidamente acobardada (LIMA
BARRETO, 1956a, p.131).
Acreditamos que os embates com a civilização se farão mais presentes no momento
em que a narrativa passa a se concentrar na redação do jornal O Globo, no qual Isaías é
empregado para exercer a função de contínuo. Nesse espaço, aos poucos, Isaías perceberá que
a luta pela sobrevivência não é própria apenas de mundo aculturado, pois que se revela
contígua ao desenvolvimento da humanidade dita civilizada...
81
Cada qual mais queria, ninguém se queria submeter nem esperar; todos
lutavam desesperadamente como se estivessem num naufrágio. Nada de cerimônias,
nada de piedade; era para a frente, para as posições rendosas e para os privilégios e
concessões. Era um galope para a riqueza, em que se atropelava a todos, os amigos e
inimigos, parentes e estranhos. (LIMA BARRETO, 1956a, p.190)
A partir de sua inserção como funcionário da redação do jornal, o jovem Isaías,
aparentemente, acalma-se em relação à situação de penúria que conhecera desde que chegara
à capital – “Eu tinha cem mil-réis por mês. Vivia satisfeito e as minhas ambições pareciam
assentes” (LIMA BARRETO, 1956a, p.176). Porém, apesar da aparente tranquilidade que o
emprego lhe proporciona, Isaías perceberá o quanto o sofrimento pode ser potencializado na
relação com os semelhantes. Assim descreve as relações com os colegas:
Os meus primeiros conhecimentos foram-se paulatinamente afastando de mim. Laje
da Silva, desde que me vira de botas rotas e esfomeado, passara a cumprimentar-me
friamente, superiormente; Leiva tratava-me bem ainda, mas marcando distância,
desde que se fizera repórter; e o próprio Michaelowsky esquecera-se da maneira que
nos conhecêramos e tratava-me com a brandura que usava com todos os inferiores
(LIMA BARRETO, 1956a, p.199).
Segundo Freud (2010), entre os fatores que impossibilitariam uma completa harmonia
entre os interesses do indivíduo e aqueles do grupo (civilização) destaca-se um pendor
nomeado como pendor de agressão. Freud prossegue, apontando que segundo as leis que
regem esse princípio pulsional, os indivíduos não são criaturas passivas que atacam somente
quando atacadas, bem como adverte que o semelhante não representa a figura de um aliado
cuja função seja colaborar para a construção e manutenção do edifício civilizatório. Assim,
compreendemos que o ser humano, muitas vezes, funciona como alvo, como uma espécie de
escoadouro da agressividade em suas diversas formas como a maldade, a discriminação, o
egoísmo, a hostilidade e a acusação, por exemplo. Tal pendor para a agressividade seria o
fator apontado por Freud (2010) como aquele “[...] que perturba nossa relação com o próximo
e obriga a civilização a seus grandes dispêndios [...]” (p.77).
Entrevemos na obra sobre a qual nos debruçamos no presente trabalho, uma presença
patente desse pendor agressivo nas malhas do tecido textual.
Isaías é um rapaz sonhador que decide fazer-se “doutor”. Imagina que tal
empreendimento encontraria campo fecundo na capital do país, para onde se dirige. Porém,
logo se vê surpreendido pela potencial agressividade que macula a cidade, erigida sob o luxo
82
e a pompa pelos governantes em uma época em que a felicidade, consistia em mimetizar
formas europeias. A condição de mulato e pobre que caracteriza o personagem Isaías o fez
alvo do preconceito e da discriminação o que, no limite, denota que restos das pulsões de
agressão, próprios da fase incivilizada do ser e jamais debelados, mantêm-se atrelados às
zonas mais remotas da consciência humana. Assim, bastaria uma pequena fagulha para que
todo o potencial agressivo do indivíduo viesse à tona.
Isaías padecia de uma solidão no plano físico e psicológico. Em diversas ocasiões viu-
se como que uma presa da humilhação, do desprezo, da discriminação como no episódio em
que, abatido pelos percalços e dissabores viu negarem-se a ele oportunidades de alcance a
uma atividade remunerada que lhe garantisse prosseguir sua caminhada. Isaías assume então,
sua impotência diante da força da civilização e dos instintos de agressão nela embutidos.
Amedrontado pela crueldade que surge no espaço e nos indivíduos que povoam a civilização,
Isaías pensa em extinguir sua existência:
Tive ímpetos de descer a escada, de entrar corajosamente pelas águas adentro,
seguro de que ia passar a uma outra vida melhor, afagado e beijado constantemente
por aquele monstro que era triste como eu. Os elétricos subiam vazios e desciam
cheios. Ingleses de chapéus de palha cintados de fitas multicores, com pretensões à
originalidade, enchiam-nos. Fumavam com desdém e iam convencidos na sua
ignorância assombrosa que a língua incompreensível escondia de nós, que davam
espetáculo a essa gente mais ou menos negra, de uma energia sobre-humana e de
uma inteligência sem medida. Os bondes continuavam a passar muito cheios,
tilintando e dançando sobre os trilhos. Se acaso um dos viajantes dava comigo,
afastava logo o olhar com desgosto. Eu não tinha nem a simpatia com que se olham
as árvores; o meu sofrimento e as minhas dores não encontravam o menor eco fora
de mim. As plumas dos chapéus das senhoras e as bengalas dos homens pareceram-
me ser enfeites de selvagens, a cuja terra eu tivesse sido atirado por um naufrágio.
Nós não nos entendíamos; as suas alegrias não eram as minhas; as minhas dores não
eram sequer percebidas... Por força, pensei, devia haver gente boa aí... Talvez
tivesse sido destronada, presa e perseguida; mas devia haver... Havia por isso tanta
repulsa nos seus olhos, tanta paixão baixa, tanta ferocidade que eu me cri entre
yahoos e tive ímpetos de fugir antes de ser devorado... Só o mar me contemplava
com piedade, sugestionando-me e prometendo-me grandes satisfações no meio de
sua imensa massa líquida... (LIMA BARRETO, 1956a, p.129).
83
Após o ingresso na redação do jornal, muitas serão as oportunidades em que Isaías
reconhecerá a tendência para a agressividade humana, bem como rápido aprenderá que o
mandamento que aconselha: “amai-vos uns aos outros” nem sempre prepondera na
humanidade. A respeito da negação do preceito cristão em relação à presença afirmativa da
agressividade, Freud alerta:
A existência desse pendor à agressão, que podemos sentir em nós mesmos e
justificadamente pressupor nos demais, é o fator que perturba nossa relação com o
próximo e obriga a civilização a seus grandes dispêndios (FREUD, 2010, p.77)
Isaías logo percebe o potencial agressivo do ser humano. Tal constatação ocorria no
dia a dia da redação do jornal como, por exemplo, no diálogo que Isaías trava com o crítico
literário – o Floc – do jornal O Globo, após a visita de um jovem poeta desconhecido da
imprensa jornalística, à redação do jornal. Nesse momento o racismo do afamado crítico vem
à tona e Isaías sente-se agredido. Ao refletir sobre esse potencial de agressividade humana
Freud revela que “devido a essa hostilidade primária entre os homens, a sociedade é
permanentemente ameaçada de desintegração” (FREUD, 2010, p.78).
Observemos o modo agressivo, porém velado, por meio do qual o crítico Floc se refere
a um modesto poeta que procura a redação de O Globo, provocando uma reação de
indignação por parte de Isaías:
- Que nome! Félix da Costa! Parece até enjeitado! É algum mulatinho?
- Não. É mais branco que o Sr. É louro e tem olhos azuis.
- Homem, você hoje está zangado...
Ele não compreendia que eu também sentisse e sofresse.
(LIMA BARRETO, 1956a, p.240)
Mediante o diálogo travado entre Isaías e o crítico Floc, podemos inferir o quanto a
evolução cultural encontra entraves mediante a potencial agressividade do homem. Entre as
manifestações que se originam dessa fonte, o racismo desponta como um grande aliado da
agressividade e de sua perpetuação. Os anos que assistem o acirramento do processo
civilizatório no país veem fermentar-se, igualmente, a preponderância da segregação racista.
É o momento em que, em nome da Ciência, justifica-se a cruel discriminação de etnias
oriundas de África. Isaías sente a presença dessa verdade racista incontestável que frutifica
nos discursos vigentes e decepciona-se ainda mais com a humanidade. A perda das ilusões é
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inerente a todos os que convivem em meio à civilização, conforme Freud nos alerta: “cada um
de nós vive o momento em que deixa de lado, como ilusões, as esperanças que na juventude
depositava nos semelhantes, e aprende o quanto a vida pode ser dificultada e atormentada por
sua malevolência...” (FREUD, 2010, p. 78)
Há ainda, um importante dado a considerar quanto à relação que Isaías mantêm com
espaço civilizado, sobretudo, o ambiente frio com o qual depara no ambiente da imprensa
carioca, local cujas marcas da agressividade encontram-se intensamente flagrantes. É fato que
a sociedade brasileira via o crescimento acelerado da preponderância do capital sobre as
relações de fraternidade que marcavam a romântica realidade imperial. Tal influência
capitalista afeta a estrutura da sociedade, gravando marcas definitivas nas relações que se
estabelecem entre o indivíduo e os meios de produção. Isaías adentra o mundo civilizado e
emprega-se em um espaço no qual as relações humanas encontram-se deterioradas pela
supremacia do capital e pela valorização daqueles que possuem fortuna e posição social de
destaque. Configura-se por esse panorama mais uma face da violência que prepondera na
civilização, mediante a agressividade que perpassa as relações comerciais a esterilizar os
sentimentos e escravizar tanto aqueles que não possuem bens materiais, quanto os que os
possuindo em abundância, tornam-se, igualmente escravos do consumo, do luxo fácil e do
lucro desmedido:
Foi o moderno sistema industrial que, separando os empregadores e os
empregados nos processos de manufatura e diferenciando cada vez mais suas
funções, suprimiu a atmosfera de intimidade que reinava entre uns e outros e
estimulou os antagonismos de classe. O novo regime tornava mais fácil, além disso,
ao capitalista, explorar o trabalho de seus empregados, a troco de salários ínfimos.
(HOLANDA, 2013, p.143).
Alguns membros do jornal O Globo representam com exatidão as relações que regem
o mundo capitalizado da civilização, entre esses desponta Pranzini, o gerente das finanças do
jornal acerca de quem Isaías Caminha delineia um crítico perfil:
Pranzini era o cão de fila do diretor. O cofre e a economia do jornal
estavam-lhe inteiramente entregues. Ele pagava e recebia, depositava dinheiro,
arbitrava os preços da matéria paga. Todos estavam debaixo da sua tirania;
precisavam adulá-lo, animá-lo, e ele abusava extraordinariamente dos grandes
poderes de que estava investido. (LIMA BARRETO, 1956, p.193)
85
1.6. Um romance da civilização
De acordo com críticos que avaliaram as Recordações de Lima Barreto, tal romance
revelaria uma tentativa de conceber uma obra adequada à modernidade. Assim, Carlos Nelson
Coutinho (1974) destaca como negativa a medida adotada pelo escritor, pois a aventura
literária limiana que fixou uma composição estrutural mais adequada aos novos tempos,
resultou em uma “fratura interna” responsável por acrescentar mais um item ao insucesso do
romance à época de sua publicação. De acordo com o crítico, tal “fratura” desemboca em uma
narrativa dividida em duas partes, ao que é adicionada uma mudança do foco narrativo, a
partir da segunda parte do romance. Nelson Coutinho afirma ainda, que o ponto de vista do
narrador-protagonista que campeia nos primeiros capítulos dissolve-se em determinado
momento da narrativa, quando sua ação imobiliza-se em um discurso testemunhal.
Acreditamos, no entanto, que a via da “fratura” atribuída à estrutura do romance, foi
elaborada de modo consciente por Lima Barreto que por meio desse expediente convida o
leitor a perceber a redação do jornal O Globo como representação da sociedade, ampliada pela
ação de uma espécie de “lupa”. Assim, Lima Barreto restringe os amplos limites da
civilização e seu potencial poder propagador de mal-estar para representá-la por meio do
mundo diminuto da redação do jornal, reunindo nesse ambiente, as mazelas que, sendo
próprias de toda sociedade manifestam-se, por obra de sua pena, no mundo da redação
jornalística. Transformado em Isaías - contínuo, expõe-se a fragilidade do homem em face das
forças da civilização que lhe são superiores, como atesta Freud (2010): “[...] então o poder
dessa comunidade se estabelece como “direito”, em oposição ao poder do indivíduo
condenado como ‘força bruta’ [...]” (p.57).
Finalmente, acreditamos que a miniaturização que se dá na espacialidade do romance,
expõe com maior ênfase, a angústia da personagem, sentimento que adquire amplas
proporções no ambiente fechado do jornal. Assim, corroboramos com a afirmação de
Massaud Moisés (2003) ao nos revelar que “basta que o ponto de vista seja o do narrador –
personagem (e no caso personagem central) para que a perquirição do próprio ‘eu’ e do ‘eu’
alheio revele tristes cores de amargura e desânimo” (p.288).
No que concerne ao aspecto estilístico do romance, a partir do ingresso de Isaías no
jornal ocorrerá um adensamento da função do protagonista que fica relegado à solidão dos
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humildes, ilhado em seu mundo interior pela impossibilidade de comunicação compatível
com os elementos componentes da conjuntura social que antes o oprime e o impede de
compartilhar saberes no espaço restrito que pode ocupar na sociedade. Tal invisibilidade
imposta ao personagem narrado Isaías, pressupõe que o destino dos indivíduos cuja condição
racial, social e econômica está aquém do que preconiza o mundo civilizado está fadado ao
insucesso e ao fracasso.
Ao se referir à categoria espacial da narrativa, o escritor Osman Lins (1976) afirma
que o espaço é “tudo aquilo que, intencionalmente disposto, tanto pode ser absorvido como
acrescentado pela personagem” (p.72) o que nos possibilita perceber que espaço e
personagem interagem ativamente nas ações do romance.
De acordo, ainda com Osman Lins (1976) ao que se refere ao estudo do espaço
romanesco, sua função caracterizadora se prefigura como uma das mais importantes para a
constituição do sentido da obra. Vejamos como se caracteriza a primeira impressão de Isaías
do ambiente da redação do jornal O Globo:
Era uma sala pequena, mais comprida que larga, com duas filas paralelas de
minúsculas mesas, em que se sentavam os redatores e repórteres, escrevendo em
mangas de camisa. Pairava no ar um forte cheiro de tabaco; os bicos de gás
queimavam baixo e eram muitos (LIMA BARRETO, 1956 a, p.151)
Lembremos que quando Isaías adentra o espaço do jornal sua situação era precária em
face das agruras que vinha sofrendo na cidade do Rio de Janeiro, aninha-se a essa premissa o
fato de que Isaías sentia-se discriminado na cidade que parecia repelir seu estado de pobreza e
a negritude de sua etnia e, nos ficará claro que o modo como Isaías descreve o ambiente (“sala
pequena mais comprida que larga”) destacando seu aspecto diminuto e abafado nos
encaminha para a situação de aprisionamento e opressão que domina a narrativa.
Tais motivos são amplamente destacados em Degradação do espaço (2004), estudo
por meio do qual Antonio Candido procede a uma análise narrativa da obra L’Assommoir
(1877) da autoria de Émile Zola. Nesse estudo, Candido aponta a correlação funcional entre
ambientes, as coisas e o comportamento humano para apontar de que modo esses elementos
atuam na estrutura do romance para conferir-lhe significados plenos e coadunados aos
objetivos estéticos. De fato, o romance do mestre naturalista francês, de acordo com a análise
de Candido encontra no ambiente da Paris do século XIX todos os ingredientes necessários
para que o leitor perceba os embates que se travaram no mundo capitalista da França entre
87
operariado e classe burguesa, revelando o aspecto trágico das existências subtraídas de sua
humanização, devoradas pela sanha do capital e do lucro.
Candido dá destaque no estudo que mencionamos acima, ao modo como a vida
operária se define simbolicamente no restrito espaço de um bairro operário da Paris do século
XIX. Em Recordações do Escrivão Isaías Caminha acresce também a importância da
descrição dos ambientes que se revelam fundamentais para a economia do romance, na
medida em que a cidade do Rio de Janeiro e o ambiente do jornal carioca que compõem os
principais cenários da narrativa não funcionam como apêndices vazios de sentido e
significado, mas exercem importância fundamental para a reconstituição das ideias, valores e
desigualdades que conduziam a vida política, econômica e social da cidade carioca dos
tempos da Primeira República Brasileira.
Vejamos no trecho abaixo de que modo a descrição do interior das ruínas do palacete
imperial, instalado no subúrbio carioca e transformado em cortiço insinua a pujança e a
imponência do Império que findou o que remete a uma valoração positiva do antigo regime
por parte do narrador Isaías que ocupa um dos quartos do prédio:
A casa pertencera talvez a um oficial de marinha, um chefe de esquadra.
Havia ainda no teto do salão principal um Netuno com todos os atributos. O salão
estava dividido ao meio por um tabique; os cavalos-marinhos e uma parte da concha
ficaram de um lado e o Deus do outro, com um pedaço do tridente, cercado de
tritões e nereidas. (LIMA BARRETO, 1956a, p.222)
Como contraponto ao mundo imperial, a descrição da deterioração do palacete
também parece apontar para a decadência do regime republicano no qual prepondera a fome,
a miséria, o desamparo da população carente em oposição ao luxo que vigora nos logradouros
e edificações dos bairros nobres:
À noite, quando entravam aqueles cocheiros de grandes pés, aqueles
carregadores suados, o soalho gemia, gemia particularmente, dolorosamente,
angustiadamente... Que saudades não havia nesses gemidos dos breves pés das
meninas quebradiças que o tinham palmilhado tanto tempo! (LIMA BARRETO,
1956 a, p.222)
No que tange à categoria “personagem”, percebemos que Isaías adquire no contexto
da obra ares de personagem-testemunha, na medida em que, colocado no jornal, surge como
um sujeito destituído de voz e de ação na narrativa que, mergulhado em seu interior, apenas
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conta-nos os fatos, por meio das memórias do narrador do discurso (o próprio Isaías escritor
de suas recordações).
A posição subalterna da função confina o personagem a um silencioso anonimato no
espaço da redação do jornal, em face dos demais personagens que ganham destaque cênico
em razão da “superioridade social” que a classe jornalística detinha no momento histórico do
qual o romance emerge. O silêncio ao qual Isaías é remetido desde o início da narrativa e que
é acirrado no momento em passa a exercer a função subalterna de contínuo é revelador da
ideologia que alicerça a estrutura do romance. Esse “silêncio” que prepondera em Isaías
revela-se paradoxalmente como uma potente forma de comunicar os limites impostos a
determinado segmento social e étnico da sociedade. Assim, o silenciar da personagem remete
à denúncia do preconceito e da fragilidade de cidadãos impedidos de ascender socialmente
por força da discriminação. Assim, o profundo silêncio e a consequente invisibilidade de
Isaías nas ações da cena romanesca contribuem para a construção da lógica da personagem
em face da discriminação imposta pela civilização carioca do início do século XX. Assim,
essa hábil construção da narrativa colabora para a compreensão de que:
Na vida, estabelecemos uma interpretação de cada pessoa, a fim de
podermos conferir certa unidade à sua diversificação essencial, à sucessão dos seus
modos-de- -ser. No romance, o escritor estabelece algo mais coeso, menos variável,
que é a lógica da personagem. A nossa interpretação dos seres vivos é mais fluida,
variando de acôrdo com o tempo ou as condições da conduta. No romance, podemos
variar relativamente a nossa interpretação da personagem; mas o escritor lhe deu,
desde logo, uma linha de coerência fixada para sempre, delimitando a curva da sua
existência e a natureza do seu modo-de-ser. Daí ser ela relativamente mais lógica,
mais fixa do que nós. E isto não quer dizer que seja menos profunda; mas que a sua
profundidade é um universo cujos dados estão todos à mostra, foram pré-
estabelecidos pelo seu criador, que os selecionou e limitou em busca de lógica [...]
(CANDIDO, 2009, p.58-59).
Por meio dos diálogos vamos conhecendo, pouco a pouco, os demais personagens da
trama através de suas próprias palavras. É mediante à observação dos sentidos impregnados
nos diálogos que ocorrem entre os personagens que passam pela redação do jornal que
podemos observar questionamentos acerca da civilização e dos preceitos que a conduzem:
– Esta sociedade está muito corrupta.
89
Michaelowsky entrava e ainda ouviu as palavras do secretário. Parou um
instante, concertou os óculos de aros de ouro e exclamou com malícia:
– Oh! Catão!
– Não sou Catão, mas o que há por aí, pelos bastidores, causa espanto. A
sociedade, ao que parece, despenha-se...
– Sempre houve quem dissesse isso, objetou o russo. Se examinares os
satíricos de todos os tempos, eles te revelarão a sociedade sempre corrupta e
desbocada... Eu julgo a moral impossível!
– Por quê?
– Porque é feita para diminuir em nós o que é de mais estrutural e de mais
profundo: a individualidade, o prazer e os instintos!
– Mas a sociedade precisa repousar nela; senão... disse Leporace.
– Não há dúvida!
– Então concordas que, em face da própria sociedade, nós nos devemos
esforçar por justificar as regras morais, manter sempre de pé os seus preceitos.
– Mas se têm sido inúteis todos os esforços das religiões – a força mais
poderosa para uma modificação inteira do indivíduo, como havemos de consegui-lo?
Demais... demais para quê?
– Para eternidade da espécie, falou com ênfase Leporace.
– Valeria a pena? retrucou Michaelowsky.
E todos se calaram sem achar de pronto uma resposta cabal.
(LIMA BARRETO, 1956a, P.197-8).
Mediante esse diálogo podemos perceber como se apresenta a questão fundamental da
civilização, qual seja o conflito gerado pela oposição que se opera entre o impulso da
liberdade individual, inerente à espécie humana e a vontade preponderante do grupo, citado
por Freud em O Mal Estar na Civilização:
A meu ver, a questão decisiva para a espécie humana é saber se, e em que
medida, sua evolução cultural poderá controlar as perturbações trazidas à vida em
comum pelos instintos humanos de agressão e autodestruição. Precisamente quanto
a isso, a época de hoje merecerá talvez um interesse especial. Atualmente os seres
humanos atingiram um tal controle sobre as forças da natureza, que, não lhes é
difícil recorrerem a elas para se exterminarem até o último homem. Eles sabem
disso; daí, em boa parte, o seu atual desassossego, sua infelicidade e seu medo. Cabe
agora esperar que a outra das duas “potências celestiais”, o eterno Eros, empreenda
um esforço para afirmar-se na luta contra o adversário igualmente mortal. Mas quem
pode prever o sucesso e o desenlace? (FREUD, 2010, p.121-122)
90
Diante das vicissitudes experimentadas por Isaías, ao longo do enredo, vemos que a
narrativa das Recordações do Escrivão Isaías Caminha desenvolve-se em um espaço
promotor de insatisfação. Ambientado no Brasil da primeira década do século XX, o romance
guarda em si os rastros deixados nos indivíduos que presenciaram as transformações ocorridas
na cena brasileira de então: a abolição da escravatura e o advento da queda do antigo regime
monárquico, substituído pelo regime republicano. Porém, o espaço onde se desenrola a trama,
a saber, o Rio de Janeiro da Belle Époque, apesar de mostrar-se como polo irradiador de
progresso e modernidade, surge aos olhos do protagonista Isaías como um palco de ilusões a
mascarar as mazelas de um regime onde prosperavam a injustiça e a desigualdade social.
Imerso nesse contexto, Isaías sente-se, no entanto, impotente diante do poder das forças
sociais. É o prenúncio da desilusão do personagem em face da constatação de que a
civilização, contrária à realização de ideais de felicidade e satisfação, antes condena o
indivíduo a uma vida de muitos esforços e sofrimentos.
Em face das constantes frustrações a que Isaías é exposto, acreditamos ver, nesse
personagem, a deflagração do ressentimento, afeto que, segundo Maria Rita Kehl (2004) é
“[...] característico dos impasses gerados nas democracias modernas, que acenam para os
indivíduos com a promessa de uma igualdade social que não se cumpre” (p.18). O
ressentimento, afirma ainda Kehl (2004), é uma estratégia psíquica que “faria parte das
formações reativas necessárias [...] para manter as severas exigências de renúncia pulsional
que a modernidade cobrava de homens e mulheres no século XIX e XX” (p.25).
Consideramos que Isaías Caminha é um representante do mal-estar que prospera na
civilização – no contexto da Belle Époque carioca – e, assim, com o objetivo de perceber de
que modo a organização do romance orienta a subjetividade do personagem protagonista em
face do confronto com a realidade circundante, símbolo da civilização, abordaremos, no
capítulo dois o tema do ressentimento.
1.7. Lima Barreto: pena afiada para a transgressão
Se toda a humanidade desse passeios ao Leme,
teria mais felicidade. (Lima Barreto, Diário íntimo,
1956)
91
Ao longo de nossa pesquisa, constatamos a unanimidade da crítica quanto ao caráter
transgressor da produção escrita de Lima Barreto. Os diversos estudiosos da obra produzida
pelo autor do Policarpo Quaresma como Osman Lins (1976), Régis de Morais (1983),
Carmem Lúcia Negreiros (1995), concordam ao afirmar que a importância da obra legada por
Lima Barreto concentra-se na lucidez com a qual apontou e denunciou as profundas
contradições em que se fundava o cenário político e cultural brasileiro do entre séculos. A
despeito do momento e das circunstâncias ditadas pela tradição, constatamos que a voz do
autor carioca se opõe ao discurso vigente de sua época, o qual sob a capa do ideal de
progresso e modernização velava pela perpetuação da ordem vigente.
No alvorecer do século XX, o panorama nacional exalava um aroma de progresso e
estabilidade que era concretizado pelas políticas de incentivo à democratização do crédito, o
que proporcionava uma pseudo-situação de opulência e prosperidade ao país. A elite política e
intelectual embarcava euforicamente na ilusão de que as mudanças empreendidas pela nova
política econômica inauguravam definitivamente um Estado Moderno, cuja eficácia a
capacitaria para o enfrentamento dos desafios impostos por um mundo que se modernizava
rapidamente. Assim, poucos eram os que conseguiam avaliar com lucidez e equilíbrio a
verdadeira configuração econômica mediante a orgia monetária que, aos poucos, dizimava os
cofres da nação. Em face desse contexto, segundo o crítico Arnoni Prado (1989) não tardou
para que Lima Barreto pressentisse o quanto os discursos dominantes derivavam da
“aproximação entre a deformação retórica e o artificialismo ideológico” (p. 14). Imerso nesse
cenário do Rio cosmopolita e bem sucedido, coube a Lima Barreto o poder de captar a farsa
que se engendrava por meio das políticas demagógicas que eram implementadas no país e que
garantiam por seu poder ilusório a dominação ideológica da população para, em seguida,
arremeter-se, por meio de sua produção escrita, contra os desatinos políticos e os prejuízos
causados pelas ações equivocadas dos dirigentes dos destinos do país.
Nesse sentido, Lima Barreto pode ser caracterizado com um intelectual no sentido que
Gramsci atribuía ao termo, pois de acordo com o intelectual italiano “todos os homens são
intelectuais, embora se possa dizer: mas nem todos os homens desempenham na sociedade a
função de intelectuais (GRAMSCI APUD ALI, 2005, p.19). O intelectual do qual Gramsci
nos informa em seus Cadernos do Cárcere (produzidos entre 1936 e 1937) é aquele que dá
vida ao conceito de intelectual orgânico - um indivíduo capaz de comprometer-se com os
ideais revolucionários e que mediante esse comprometimento possa formular, divulgar e
92
estimular ideias transformadoras do status quo. Mediante essa conceituação gramsciana,
visualizamos Lima Barreto como um intelectual orgânico, pois o escritor carioca sempre
esteve voltado para sua responsabilidade social e por isso sempre denunciou os desmandos
das elites dominantes, estimulando a tomada de consciência por meio de sua literatura.
Avesso à postura artificial que determinava o pensamento da elite brasileira, Lima
Barreto posicionou-se ativamente em face daquilo que considerava injusto na sociedade de
seu tempo. Sua voz fará coro com o clamor dos desvalidos lançados à margem da sociedade
pelo modelo político e econômico que conduzia as ações governamentais de sua época para
ressoar vigorosa em forma de denúncia contra todo tipo de injustiça e opressão. Rebelde,
contestador e comprometido com o ideal de uma sociedade formulada na base da justiça e da
igualdade, a produção intelectual de Lima Barreto funcionou como um poderoso instrumento
em prol da disseminação de propostas pela transformação social e, logo, pela busca incessante
de formação da consciência de seus compatriotas acerca da necessidade de reformulação da
estrutura vigente e, nesse ponto, é possível depreender que a literatura limiana exerce sua
função ideológica, no sentido apontado por Antonio Candido (2000), na medida em que toda
a obra de Lima Barreto deriva de um empenhado e consciente desejo de reformar a sociedade
vigente, intenção ambiciosa que, embora advinda da “ilusão do autor” (p.42) é acolhida por
leitores que compartilham do ideal social e moral defendido pelo autor carioca.
No entanto, todo o clamor presente na obra de Lima Barreto, desenvolvido em forma
de artigos, crônicas e romances, incomodará aos detentores do poder da época, o que
contribuirá para a marginalização do criador de Isaías Caminha, estigmatizado enquanto um
autor maldito. Esses obstáculos, porém, não são capazes de interromper a caminhada do
intelectual, antes acirraram sua visão crítica e sua personalidade combativa; e apesar da
oposição e dos intensos embates com os quais conviverá ao longo de sua carreira de literato
consciente e intelectual comprometido com ideais de bem estar social, o rebelde Lima Barreto
não silenciará e, em face desse contexto adverso, permanecerá fiel à sua luta, prosseguindo
determinado em sua missão de porta-voz dos anseios populares e de crítico dos desarranjos
sociais e políticos de seu país. Essa postura de corajosa obstinação característica da
personalidade de Lima Barreto conduz a um possível contraponto com aquilo que Julien
Benda julgava determinante na formulação do conceito de intelectual:
Os verdadeiros intelectuais devem correr o risco de ser queimados na
fogueira, crucificados ou condenados ao ostracismo. São personagens simbólicos
marcados por sua distância obstinada em relação a problemas práticos. Por isso, não
93
podem ser numerosos, nem desenvolver-se de modo rotineiro. Têm de ser
indivíduos completos, dotados de personalidade poderosa e, sobretudo, têm de estar
no estado de quase permanente oposição ao status quo (EDWARD SAID, 2005,
p.22).
Faz-se importante destacar que o entendimento de Lima Barreto acerca do valor da
Literatura remete à função social da arte no que esta designa de interação entre a ideologia
que se deseja transmitir e o impacto desta, causado no leitor.
[...] quanto mais compreendermos os outros que nos parecem, à primeira
vista, mais diferentes, mais intensa será a ligação entre os homens, e mais nos
amaremos mutuamente, ganhando com isso a nossa inteligência, não só coletiva
como a individual. A arte, tendo o poder de transmitir sentimentos, trabalha pela
união da espécie; assim trabalhando, concorre portanto, para o seu acréscimo de
inteligência e de felicidade. (LIMA BARRETO, 1956g, p.67)
Avesso aos privilégios adquiridos pela burguesia e seus infrenes ideais capitalistas,
bem como à prática do arrivismo e das políticas de favoritismo e proteção que prosperava nas
esferas políticas, econômicas e sociais de seu tempo, na crônica intitulada como Sobre o
Maximalismo (1923) apela para a necessidade de uma “convulsão” social que dizimasse a
confraria da elite instalada no poder:
Se a convulsão não trouxer ao mundo o reino da felicidade, pelo menos
substituirá a camada podre, ruim, má, exploradora, sem ideal, sem gosto, perversa,
sem inteligência, inimiga do saber, desleal, vesga que nos governa, por uma outra
até agora recalcada, que virá com outras ideias, com outra visão de vida, com outros
sentimentos para com os homens, expulsando esses Shylocks que estão ai, com seus
bancos, casas de penhores e umas trapalhadas financeiras, para engazopar o povo. A
vida do homem e o progresso da humanidade pedem mais do que dinheiro, caixas-
fortes atestadas de moedas, casarões imbecis com lambrequins vulgares. Pedem
sonho, pedem arte, pedem cultura, pedem caridade, piedade, pedem amor, pedem
felicidade; e esta, a não ser que se seja um burguês burro e intoxicado de ganância,
ninguém pode ter, quando se vê cercado da fome, da dor, da moléstia, da miséria de
quase toda uma grande população (LIMA BARRETO 1956b, p.164).
De acordo com Edward Said (2005), “o objetivo da atividade intelectual é promover a
liberdade humana e o conhecimento” (p.31); assim, ao rejeitar a literatura consagrada pelos
emblemáticos literatos de sua época, Lima Barreto revela o sentido do “ser intelectual”, pois
94
as formas cristalizadas que estimulavam a literatura de salão soavam vazias para o autor que
só encontrava sentido em uma forma de arte comprometida com a sociedade e os valores
humanos que a compõem. Assim, nutrido pelo anseio de sacudir o marasmo que preponderava
no panorama literário em que se movia a elite intelectual letrada, Lima Barreto revela na
crônica Amplius! (1920) que:
Não desejamos mais uma literatura contemplativa, o que raramente ela foi;
não é mais a beleza plástica que queremos, a encontrar beleza em deuses para
sempre mortos, manequins atualmente, pois a alma que os animava, já se evolou
com a morte dos que os adoravam (LIMA BARRETO, 1956d, p.34).
Afirmações como essas geraram inúmeras controvérsias por parte dos detentores da
literatura dominante do momento cultural do início do século XX. Autores como Coelho Neto
e Afrânio Peixoto, ilustres cultores dos ideais helênicos, eram duramente atacados por Lima
Barreto, o que contribuía de modo severo para o processo crescente de seu afastamento em
relação à elite ilustrada do país. O escritor, porém, não se intimida com essa realidade e
prossegue firme em seu combate ao academismo até o fim de sua existência, o que comprova
que por entre a existência insular e contestadora de Lima Barreto habita aquela “figura do
intelectual como um ser colocado à parte, alguém capaz de falar a verdade ao poder, um
indivíduo ríspido, eloquente e corajoso e revoltado, para quem nenhum poder é demasiado
grande e imponente para ser criticado e questionado de forma incisiva” (BENDA apud SAID,
2005, p.23).
Segundo Alfredo Bosi (1966), o espírito crítico de Lima Barreto extrapola o campo
ideológico, resvalando, também, para o campo estilístico. Bosi assevera, ainda que os desvios
linguísticos tão comuns na prosa de Lima Barreto, comumente interpretados como ato
espontâneo e instintivo, derivam de um ato consciente do autor. Acreditamos que as
transgressões das regras gramaticais, tão próprias da escrita limiana, objetivavam denunciar o
gramaticalismo parnasiano, que fazia da língua portuguesa uma verdadeira camisa de força a
deter a criatividade dos escritores. De acordo com Luíz Ricardo Leitão (2006), o polêmico,
crítico, controverso, mordaz, estigmatizado e, muitas vezes ignorado Lima Barreto, no
entanto, jamais se deteve diante das questões relativas às mazelas incrustadas na realidade
nacional e, portanto, expôs com ousadia e coragem os desarranjos nacionais, por meio de sua
estética literária.
95
Durante o levantamento da fortuna crítica da obra limiana, verificamos o quanto foram
recorrentes em sua produção intelectual temas como o preconceito racial, a fragilidade das
estruturas em que se alicerçavam a organização política e econômica do país, a crise da ética,
a questão da reforma agrária, a corrupção, o arrivismo, o jornalismo sensacionalista, o
aburguesamento da cidade, aspectos sempre focalizados e denunciados pela pena do
transgressor Lima Barreto. A abordagem dessas circunstâncias que, apesar do distanciamento
temporal, ainda hoje rondam a paisagem humana do país, revela a atualidade do autor de
Policarpo Quaresma.
De acordo com o crítico Antonio Candido (2000) “a obra depende estritamente do
artista e das condições sociais que determinam sua posição” (p.27). Assim, é possível
vislumbrar a importância do contexto histórico relativo à construção das formas literárias
limianas. Lima Barreto foi testemunha ocular dos tempos inaugurais da República, porém, o
conhecimento extraído de seu trato cotidiano e contumaz com a cidade e com as
transformações de sua época não se manteve presente em sua obra como simples referência
histórica e social, mas, foi reelaborado por sua subjetividade, surgindo intrincado à estrutura
interna de suas obras, contribuindo, assim, para revelar a visão de mundo de Lima Barreto,
bem como forma de valoração estética de seus escritos. O interesse suscitado pelas narrativas
limianas extrapola os limites do tempo de sua produção para vigorar com toda a sua
atualidade ainda nos tempos que correm. Essa assertiva aponta para a função total da literatura
a qual, segundo Candido (2000) “depende de sua intemporalidade e universalidade” (p.41).
Foi por essa via que os fatos históricos inspiraram Lima Barreto a produzir sua obra ficcional,
denunciando as mazelas que assolavam a massa popular a qual, aglomerada na capital carioca,
ainda não pressentia a extensão da ruína que se engendrava no país, pela ação inerte das
oligarquias dominantes, sob o discurso do projeto civilizatório. Desse modo, como fruto da
sensibilidade de Lima Barreto,
O temário de sua obra inclui: movimentos históricos, relações sociais e
raciais, transformações sociais, políticas, econômicas e culturais; ideais sociais,
políticos e econômicos; crítica social, moral e cultural, discussões filosóficas e
científicas referências ao presente imediato, recente e ao futuro próximo; ao
cotidiano urbano e suburbano, à política nacional e internacional, à burocracia,
dados biográficos, realidade do sertão, descrições geológicas e geográficas
(fragmentos) e análises históricas [...] e todos esses temas são refletidos de tal forma
enovelados em seus textos, que não se pode dissociá-los ou isolar algum deles sob
pena de se comprometer o efeito grandioso propiciado pelo seu concerto. Tudo
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concorre para compor um imenso mosaico, rude e turbulento, que despoja a Belle
Époque de seus atavios de opulência e frivolidade (SEVCENKO, 2009, p.191).
A presença de Lima Barreto no cenário brasileiro delimita-se entre o Brasil
finissecular, que assiste atônito à passagem do Império à República, até 1922, ano de sua
morte, momento em que os frágeis alicerces sobre os quais a elite endinheirada modelou a
jovem sociedade republicana começavam a fenecer em face do desencanto com o até então
próspero modelo europeu. Os escombros sob os quais jazia a propalada nação europeia, após
a Primeira Guerra Mundial, soterraram, também, a crença nos ideais de civilização, enquanto
fomentadora de paz e prosperidade. No que concerne ao mundo cultural, no ano de 1922 dá-
se a Semana de Arte Moderna, inaugurando um movimento que visava renovar o panorama
das artes brasileiras pelos novos ideais estéticos, demolindo, para tanto, o academicismo que
ainda vigorava no cenário artístico de então.
Lima Barreto não vive a renovação cultural promovida pela “Semana”. Assim, toda a
sua produção está inserida no contexto do Brasil republicano da Belle Époque. Profundo
conhecedor da realidade e detentor de um grave poder de análise, o autor carioca reconhece os
grandes problemas advindos da política desenvolvida pelos barões da República oligárquica,
contra a qual se opunha, em favor de um ideal de sociedade mais justa e igualitária. Oriundo
de uma matriz negra, Lima Barreto revolta-se ao sentir na pele o preconceito que emanava do
seio de uma parcela elitizada da sociedade que conhecera e se beneficiara com a escravidão
do negro. Sua obra será como libelo contra o sofrimento da porção mais humilde da
sociedade, composta, em sua maioria, por descendentes da escravidão que, banidos para a
periferia e totalmente destituídos de “voz”, não poderiam manifestar seus infortúnios. Assim,
o mais polêmico dos intelectuais da Velha República transforma-se em arauto dos oprimidos,
utilizando a sua pena como arma de combate contra as desigualdades deflagradas pelo regime
republicano, o qual era julgado por Lima Barreto como elitista e medíocre por funcionar como
um agente promotor da incapacidade e da imoralidade em detrimento de valores como a
honestidade, a verdade e, sobretudo, a sinceridade. A veia crítica que pulsa incessantemente
face ao confronto com a realidade será uma espécie de guia para as reflexões e opiniões
refletidas na vasta obra produzida, ao longo de toda a sua breve, porém fecunda vida. Em
Lima Barreto, a igualdade social será sempre um ideal buscado incansavelmente. O autor
acreditava no poder da solidariedade humana pela qual ansiava no plano pessoal e estético.
Segundo as concepções desse escritor de origem humilde, a verdadeira literatura seria aquela
97
que contribuísse para unir os homens em torno da paz. Assim, não via sentido em produzir
livros que somente reproduzissem os costumes frívolos da elite republicana.
O desejo de lançar-se como escritor de romances, em Lima Barreto, era superior às
barreiras impostas pela elite intelectual que dominava o panorama beletrista da época. A certa
altura de sua existência, o autor de Clara dos Anjos já produzia crônicas e pequenas
reportagens para a imprensa jornalística, canal em que Lima Barreto atuava de modo ativo e
recorrente; contudo, desejava expressar-se pelo plano literário, tornando-se literato, pois
provavelmente intuía que “a simples denúncia pela linguagem, do que ia mal no mundo, não
possuía a eficácia conquistada pelo trabalho literário. Os artifícios do escritor revelam, ao
mesmo tempo, o que falta no mundo e aquilo que nele deveria estar” (MOISÉS, 2005, p.107).
De acordo com a biografia A vida de Lima Barreto (2002) escrita por Francisco de
Assis Barbosa, Lima Barreto ansiava pela carreira literária, revelando-se determinado a atingir
esse intento, ainda que sofresse em face das sucessivas recusas de editores brasileiros que se
negavam a publicar os seus escritos. Assim, continua Barbosa, ao narrar a trajetória de seu
biografado, percebendo que não conseguiria editor para sua obra, Lima Barreto decide enviar
uma cópia daquele que seria o seu primeiro romance, Recordações do Escrivão Isaías
Caminha, para Portugal, por intermédio de um amigo, Antonio Noronha Santos que, em
viagem à Europa, entregaria os originais da obra ao editor português, o Senhor A. M.
Teixeira. Conduzidos à prova da citada obra a Portugal, Lima Barreto não imaginava,
inicialmente, o quanto sofreria com a espera e a ansiedade face à publicação de seu primeiro
romance. Muitos meses de angústia e dúvida se passariam até que, em fins de 1909, surge nas
livrarias a primeira edição da obra.
A publicação das Recordações atingiu como uma bomba o cenário das letras cariocas
do início do século XX. Vicejava, então, a estética Parnasiana, cultora da forma e do ideal da
arte pela arte. Ocorre que a obra de estreia de Lima Barreto não estava comprometida com o
ideal da forma rígida, pregado pelos cultores do Parnaso e, do ponto de vista ideológico,
exprimia uma visão anti-ufanista ao narrar as desventuras do jovem provinciano Isaías que,
por revelar-se muito estudioso e sonhador, parte para a capital do país em busca das
oportunidades apregoadas pelo discurso dos pseudo-democratas que construíram a República.
Assim, ao aportar na capital do país, Isaías trazia em sua bagagem a crença nas promessas de
igualdade social bafejadas pelo ideal republicano, acreditando que somente o ambiente
citadino da capital, no qual prosperava o progresso e o desenvolvimento, seria capaz de
proporcionar o alcance do sucesso e da glória. Mas, contrariando as expectativas do rapaz
idealista, o que se reconhece nesse espaço é tão somente, injustiças, trapaças, dissimulações,
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humilhações que, uma vez detectadas e sofridas, o conduzem à amargura, à desilusão e ao
abandono do projeto idealizado de obter sucesso. A trajetória marcada pelo insucesso e
decepção percorrida pelo Isaías que se acreditava predestinado à glória revela que serão as
vicissitudes que experimentará no contato com a capital que marcarão a sua existência e a sua
relação com a civilização. Assim, conquistará a duras penas um cargo na redação do jornal O
Globo, ambiente no qual conviverá e acerca do qual traçará um duro perfil dos jornalistas,
intelectuais e políticos, denunciando não só as mazelas da poderosa imprensa carioca, como
também, arremeterá uma forte crítica ao preconceito, à hipocrisia, às negociatas e ao
arrivismo que proliferavam nas instituições consagradas pelo regime republicano, entre estas,
a imprensa.
99
CAPÍTULO 02 – Ressentimento: o mal-estar do capitalismo moderno
A república soltou de dentro das nossas almas toda uma
grande pressão de apetites de luxo, de fêmeas, de brilho social. O
nosso império decorativo tinha virtudes de torneira. O Encilhamento,
com aquelas fortunas de mil e uma noites, deu-nos o gosto pelo
esplendor, pelo milhão, pela elegância, e nós atiramo-nos à indústria
das indenizações. Depois, esgotado, vieram os arranjos, as gordas
negociatas sob todos os disfarces, os desfalques, sobretudo a indústria
política, a mais segura e a mais honesta. Sem a grande indústria, sem a
grande agricultura, com o grosso comércio nas mãos dos estrangeiros,
cada um de nós, sentindo-se solicitado por um ferver de desejos caros
e satisfações opulentas, começou a imaginar meios de fazer dinheiro à
margem do código e a detestar os detentores do poder que tinham a
feérica vara legal capaz de fornecê-lo a rodo. (Lima Barreto,
Recordações do escrivão Isaías Caminha, 1956)
É lícito afirmar que no decorrer dos tempos ocorrem mudanças radicais nos modos de
organização social, bem como, no que concerne a aspectos econômicos, políticos e culturais
de uma determinada sociedade. Desse processo de transformações tão naturais e essenciais à
renovação dos valores em seu eterno movimento rumo ao novo, gravitam, no entanto,
sentimentos que tanto concretizam a alegria dos vitoriosos, quanto consagram a impotência
dos perdedores: o ressentimento é um deles. Tal sentimento se fará muito presente no Brasil
de fins do século XIX e início do século XX. Momento marcado por intensas e extremas
mudanças, os anos que testemunham a transição do Império para a República são conturbados
e instáveis, nos quais sobram promessas e esperanças e faltam garantias e atos concretos. A
população que habitava a capital carioca nesse período, em sua maioria composta pelas
classes populares, analfabetos, negros e mestiços, assiste à chegada dos novos tempos quase
sem entusiasmo. Sobrepunha-se a possíveis manifestações de alegria certa dose de nostalgia
com o mundo imperial definitivamente exterminado pela espada republicana.
100
Assim, no limiar do século XX, o Brasil assiste à transição de uma organização
política monárquica e centralizadora para um novo regime - o republicano – o qual, nascendo
sob a égide dos princípios liberais e democráticos, preconiza em sua Carta Magna a ascensão
dos mais caros ideais de igualdade social. Ideais, aliás, que são vistos com reserva por uma
população já acostumada à longa experiência da escravidão.
Proclamada em 1889, a República brasileira, no entanto, não tardou a revelar nas suas
jovens entranhas a fragilidade de suas instituições políticas e econômicas. A cidade do Rio de
Janeiro será o palco onde se encenarão com mais vigor as profundas transformações que
definirão o século nascente.
Entre as dificuldades enfrentadas pelo novo modelo administrativo, surgem
necessidades advindas de transformações radicais herdadas do regime anterior, tais quais
aquelas desencadeadas pela Abolição da Escravidão. Ainda que a libertação dos escravos
tenha se operado quando a gestão da monarquia de D. Pedro II dava seus últimos suspiros,
esse evento determinou de modo contundente, a emergência de uma administração
republicana mais dinâmica e eficaz, apta, portanto, a suprir as demandas da mão de obra
escrava que, já liberta do cativeiro, necessitava, doravante, de trabalho assalariado, de
moradia e saneamento básico. Fermenta a estatística de infortúnios da jovem capital da
república, a ira dos cafeicultores que se vendo obrigados a pagar a mão de obra trabalhadora,
pressionam o governo que, desejoso da simpatia desses grupos oligárquicos, libera a emissão
desenfreada de moeda nacional, gerando a especulação financeira e, no limite, uma grande
inflação. O momento revela dificuldades, sobretudo, pelo aumento do custo de vida derivado
dessa política fomentada pelos ricos banqueiros. Acresce o fato de a população carioca
padecer com o reduzido número de postos de trabalho devido ao afluxo da população
imigrante que inchava o escasso mercado brasileiro de trabalho.
Um aspecto desastroso ligado à República brasileira diz respeito à atitude da política
em relação à elite intelectual. De acordo com José Murilo de Carvalho (2011), toda uma elite
intelectual composta por nomes do quilate de José do Patrocínio, Olavo Bilac e Raul Pompéia
compartilhou do sonho republicano, enviando um manifesto de apoio ao governo provisório
republicano, referindo-se “à aliança entre os homens de letra e o povo. A pátria, dizia o
manifesto, abrira as asas rumo ao progresso e “a literatura vai desprender também o voo para
acompanhá-la de perto” (p.25). Ainda de acordo com o pesquisador, os excessos da política
republicana impuseram um duro golpe a esses idealistas das letras, pois
101
[...] o entusiasmo durou até o governo Floriano, quando se deu um cisma
entre o intelectuais, e alguns dos antigos entusiastas da República tiveram que fugir
da capital para evitar a prisão. Como exemplo de perseverança e de fé, já agora
obcecada, nos ideais de um republicanismo jacobino, restaria apenas Raul Pompéia.
Seu suicídio em 1895, alguns meses após a morte de Floriano, foi o trágico símbolo
do fracasso de uma alternativa política, assim como a fuga de Bilac, Guimarães
Passos e outros indicava que não seria tão fácil estabelecer os parâmetros para uma
convivência pacífica entre a República da política e a República das letras. A
convivência se daria mais tarde em termos algo distintos dos imaginados
inicialmente. (CARVALHO, 2011, p.26).
Conforme pretendemos demonstrar até aqui e como verificamos nas afirmações do
estudioso José Murilo de Carvalho, a promessa sacramentada pelo novo regime que afirmava
haver instaurado um país democrático com base nos ideais de liberdade, igualdade e
fraternidade não tardaram a revelar sua face obscura diante de uma realidade excludente que,
consagrada pela insensibilidade da elite que compunha o regime republicano, frustrava o
sonho de concretização de reformas democratizantes que uma parcela da intelectualidade
acreditava haver alcançado por meio da oficialização da República no país. Tal situação
acabou por gerar um desencanto em alguns importantes intelectuais idealistas, que se
refugiaram em postos burocráticos sem expressão política, concentrando-se na literatura.
Domesticados politicamente, esses literatos aproveitam-se da febre europeizante que àquela
altura invadia o Rio de Janeiro para dedicar-se com afinco a transportar para a sua literatura as
características da literatura europeia, sobretudo aquela advinda da França. Estamos em plena
Belle Époque, quando “o chique era mesmo ignorar o Brasil e delirar por Paris [...]” (BRITO
BROCA, 1975, p.92), o que pressupomos funcionar como uma espécie de desforra para a
parcela da intelectualidade que, frustrada em suas expectativas iniciais, busca compensação
para o golpe imposto pelo poder do novo regime.
Antes mesmo da Proclamação da República, os defensores do novo regime já
disseminavam ideias relacionadas aos direitos de igualdade e cidadania para todos, inclusive
para negros e mestiços, cidadãos de fato e de direito, desde 1888, por obra da Lei Áurea, mas
que continuavam à margem da sociedade, em face da escassez de políticas que os inserissem,
verdadeiramente, no contexto sócio-político e econômico do país. Porém, ocorrido o advento
oficial da República “[...] a euforia inicial, a sensação de que se abriam caminhos novos de
participação parece não ter atingido este setor da população [...]” (CARVALHO, 2011, p.29),
102
pois o que se verifica é que o novo regime político não favorece como prometera o acesso da
população oriunda das senzalas imperiais a postos mais importantes na hierarquia social.
Lilia Moritz Schwarcz (2010) destaca o impasse do novo regime em face das
necessidades dos egressos da escravidão, cujo destino foi a exclusão, pois, afinal, nos informa
a autora, apesar da escravidão já haver sido abolida, ainda não havia regras que definissem
questões referentes ao trabalho livre, o que não assegurou que essa parcela remanescente do
trabalho servil conquistasse postos de trabalho em igualdade de condições com outros grupos
da população, por exemplo, com o grupo dos brancos:
Por fim a violência da escravidão era agora desautorizada legal e
oficialmente, permanecia um certo rebaixamento em relação ao trabalho manual,
ainda associado ao trabalho cativo. Criava-se, assim, uma espécie de interregno,
caracterizado pela falta de regras claras, mas, também por excessos de arranjos de
ordem pessoal. Isto é, destacavam-se os manejos pessoais e pouco ortodoxos no
estabelecimento das condições de mão de obra, agora assalariada. Não se cumpriam,
pois, as promessas de incorporação da população negra e escrava, assim como não
se regulamentavam publicamente os contratos de trabalhos e serviços. Ao contrário,
reforçavam-se as relações clientelísticas, expandiam-se os laços de compadrio.
(SCHWARCZ, 2010, p. 19).
Há dados agravantes nos meandros da República brasileira que é preciso salientar,
entre os quais o fato de o momento político haver imposto obstáculos às oportunidades de
mobilidade social, o que se configurava como um paradoxo, mediante as promessas de
igualdade propagadas pelos ideais republicanos cuja base se alicerça na democracia e na
justiça social. Assim, a negação de direitos revelou-se como um fator gerador de um grande
mal-estar entre aqueles que se consideravam alijados do projeto de democracia moderna.
Desse modo, ultrapassados os primeiros anos do novo regime, muitos eram os
descontentamentos experimentados pela população, bem como por parte da intelectualidade
que percebia a natureza oligárquica e elitista do novo regime. Esse cenário destinado a poucos
se mostrava ainda mais restrito aos negros e mestiços instruídos que ultrapassando as barreiras
impostas pelo preconceito que vigorava, haviam conseguido frequentar com sucesso os
bancos escolares. Tal conquista, contudo, não garantiu o fácil ingresso desses vitoriosos no
mundo da burguesia elitizada. As limitações impostas a diversos setores e classes sociais
geraram um grande mal-estar à população que se sente sufocada pelos limites que seu país
impõe. Afinal, onde estaria a liberdade e o bem estar social enquanto ideais de cidadania
prometidos pelo regime republicano? Frente às inúmeras decepções experimentadas pelos
103
grupos excluídos do progresso social, instalam-se sentimentos de amargura e desencanto. A
situação agravava-se dia a dia. A civilização revela seu lado mais cruel e logo os efeitos de
seus malefícios irão se manifestar.
Entre as formas de canalização do mal-estar crescente que vigora no espaço da
civilização, encontra-se o afeto do ressentimento, espécie de conjunção de sentimentos
negativos que imobilizam e impedem o indivíduo de operar transformações na realidade. Na
sociedade republicana do início do século XX, o ressentimento que floresceu na sociedade
republicana entre aqueles que se sentiam prejudicados pode ser encarado como um sintoma do
desconcerto social, na medida em que
O ressentimento social manifesta a insatisfação dos grupos ou classes para
quem as promessas de igualdade de direitos entre todos os sujeitos nascidos na
modernidade não se cumpriram como era esperado; só que a atitude ressentida, de
passividade queixosa, torna os sujeitos impotentes como agentes da transformação
política que lhe interessa. (KEHL, 2004, p.206)
Como um fator complicador, agrega-se aos ressentimentos derivados do
estranhamento que se instalava na face transformada da capital, agregam-se “modernas”
teorias eugênicas que em nome da ciência justificavam a inferioridade do negro e o seu
destino de perversão e degeneração, na medida em que, de acordo com tais teorias
deterministas e evolutivas em voga, algumas “raças” deveriam ser saneadas a fim de garantir
o equilíbrio da sociedade. Esse contexto marcado por discursos segregadores apresenta-se
propenso à proliferação do ressentimento social, sobretudo em determinados extratos da
sociedade brasileira a exemplo da população de negros e mestiços que se sentiam
“maltratados enquanto classe social” (KEHL, 2004, p.207). Afinal, o imenso contingente de
egressos da escravidão que habitava o país aguardava que os direitos garantidos pela Abolição
e ratificados pelo regime republicano fossem de fato concretizados, promessas que como
sabemos não se efetivaram. De acordo com Kehl (2004), esse ressentimento social presente na
sociedade “teria origem nos caso em que a desigualdade é sentida como injusta diante de uma
ordem simbólica fundada sobre o pressuposto da igualdade” (p.207).
As teorias raciais, correntes à época, potencializam a injustiça e a desigualdade que já
proliferavam entre os representantes da etnia negra, conforme aponta Lilia Schwarcz:
Nesse contexto, determinismos de toda ordem – sobretudo o racial e o geográfico -
tornavam-se grande moda no Brasil, e de alguma maneira anulavam ou desfaziam os
ganhos obtidos com a República. Cientistas como Nina Rodrigues, Sílvio Romero,
104
João Batista Lacerda e tantos outros encastelados em suas instituições (como as
faculdades de direito, de medicina, os museus de etnografia e os institutos históricos
e geográficos), transformavam a igualdade em balela, e encontravam no cruzamento
racial e na mestiçagem o nosso maior e mais profundo infortúnio. (SCHWARCZ,
2010, p.22).
Acreditamos que a obra Recordações do Escrivão Isaías Caminha testemunha por
meio do olhar estético de Lima Barreto os eventos marcantes do personagem Isaías no
universo dissonante da cidade carioca do início do século XX. Porém esse testemunho não
funciona ao modo de um documento sociológico, mas [...] abre as portas do sujeito e sonda os
efeitos devastadores de um gesto talvez automático de preconceito. (ALFREDO BOSI, 2002,
p.192).
Assim, no presente estudo, buscaremos recuperar possíveis rastros de ressentimento
deixados no romance intitulado como Recordações do escrivão Isaías Caminha, sobretudo
aqueles delineados no personagem Isaías, visando perceber de que modo esse sentimento se
apresenta na subjetividade do protagonista, bem como perceber como esse afeto se configura
esteticamente na construção do citado romance. É também nosso objetivo perceber de que
maneira os fatores ligados aos preconceitos raciais, presentes no Brasil pós-escravidão,
contribuem para a instalação do ressentimento no protagonista Isaías Caminha, na medida em
que intuímos que a sociedade elitista estimula por meio de suas ações equivocadas a aderência
de ressentimentos na população.
2.1. O ressentimento, segundo a psicanálise
Cada um de nós vive o momento em que deixa de lado,
como ilusões, as esperanças que depositava nos
semelhantes, e aprende o quanto a vida lhe pode ser
dificultada e atormentada por sua malevolência (Freud,
O Mal Estar na Civilização,2010)
105
Em sentido freudiano, a existência humana se fundamenta na busca pela felicidade e,
em sua trajetória rumo à meta primordial de ser feliz eternamente, experimenta uma
alternância de sentimentos que tanto se manifestam em forma de alegria e felicidade, quanto
de tristeza, mágoa, sofrimento e dor. Tais vicissitudes tão próprias à vida são determinadas
por nosso aparelho psíquico que limita o projeto humano de ser feliz, na medida em que o
caráter fugaz e passageiro da felicidade abre caminho para que a infelicidade instale-se com
mais frequência do que seria desejado. Porém, não cabe somente a nossa constituição psíquica
a responsabilidade por nossas infelicidades, pois que estas se encontram potencializadas pelo
relacionamento entre as pessoas fator que se revela tanto como uma fonte inesgotável do
desencanto da humanidade por garantir um requinte ao quinhão de dor já presente no universo
da psiquê humana como se mostra como algo necessário à evolução e perpetuação do ser.
Assim, podemos afirmar que ninguém é sempre alegre, assim como, ninguém é triste o tempo
inteiro, donde aferimos que o prolongamento incessante de um sentimento pode funcionar
como um alerta de que algo não vai bem. O afeto do ressentimento é um desses sentimentos
que impregnam de modo determinante a subjetividade dos indivíduos e, uma vez instalado,
revela-se como um distúrbio a desequilibrar a afetividade de seus portadores.
Em estudo intitulado como Ressentimento (2004) a psicanalista Maria Rita Kehl
reflete sobre o caráter perene do sentimento que dá título a sua obra, visando reconhecer as
peculiaridades desse afeto que, ao instalar-se, impõe sempre um grande e tenaz sofrimento
psíquico aos indivíduos. De acordo com a psicanalista, o ressentimento não pode ser
conceituado como um sentimento único e sim como uma “constelação afetiva” (p.11),
composta por sentimentos como a raiva, a mágoa, a inveja, o rancor e o desejo de vingança.
O afeto do ressentimento há muito já habita o vocabulário do senso comum para
nomear a impossibilidade de esquecimento e superação de uma mágoa. Um dos traços
semânticos que caracterizam o prefixo “RE” é o da repetição. Desse modo o substantivo
“ressentimento” guarda em si o caráter de um sentimento que se repete ou retorna
constantemente. O ato de ressentir-se diz respeito a uma mágoa que é evocada reiteradamente
por alguém que, na condição de ofendido, se recusa a superar um agravo sofrido. Cabe
ressaltar que o ressentimento encontra eco no narcisismo daquele que, impotente moralmente,
prefere acomodar-se no conforto da covardia. A pesquisa empreendida por Maria Rita Kehl
amplia o conceito presente no senso comum e define a condição do ressentido ao esclarecer
que o ressentimento é
106
[...] uma repetição mantida ativamente por aquele que foi ofendido. O
ressentido não é alguém incapaz de se esquecer ou de perdoar; é um que não quer se
esquecer, ou que quer não se esquecer, não perdoar, não deixar barato o mal que o
vitimou. (KEHL, 2004, p.12)
O ressentido pode ser caracterizado como um fraco que, diante de sua incapacidade
em assumir a responsabilidade pelos atos cometidos, delega a culpa pelos seus insucessos e
fracassos a um outro. É, também, próprio ao portador do afeto do ressentimento interpretar a
falta como um prejuízo imposto pelo suposto responsável pelas perdas sofridas. Este sim, diz
a lógica do ressentido, revela-se como o verdadeiro responsável pelos males que se abateram
sobre sua “frágil” existência. Assim como se isenta da parcela de responsabilidade que lhe
cabe, em face das derrotas sofridas, o ressentido tampouco tem interesse em investigar em que
momento ou onde errou. De acordo a psicanalista Maria Rita Kehl (2004), o ressentimento
possui um brilho narcísico que eleva os detentores desse afeto ao papel de vítimas em face de
um culpado imaginário, assim, o ressentido jamais assume a responsabilidade que lhe cabe
pelos seus insucessos, limitando-se a interpretar como prejuízo o mal que supostamente o
vitimou. A fim de defender sua integridade narcísica, o ressentido lança-se a uma catadupa de
acusações dirigidas ao pretenso causador de seu fracasso, que se concretizam por meio de
queixas e acusações repetidas e persistentes. Diante do jogo de perdas e ganhos que
caracteriza a existência humana, o ressentido revela-se como um ser passivo que recusa
assumir a responsabilidade que lhe cabe por suas escolhas, reelaborando suas derrotas no
cadinho da vitimização. O ressentido é aquele que desiste da luta antes mesmo de empunhar
as armas. É um covarde que não se implica com sua própria derrota e é esta condição que o
diferencia daqueles que, apesar de derrotados, lançam-se à luta, assumindo com coragem,
honestidade e brio as perdas sofridas. Portanto,
Talvez seja possível afirmar que o derrotado só se torna um ressentido quando ele
deixa de se identificar como derrotado e passa a se identificar como vítima,
sobretudo de vítima inocente de um vencedor que, nesses termos, passa a ocupar o
lugar de culpado. É no lugar da vítima que se instala o ressentido, cujas queixas e
acusações dirigidas silenciosamente a um outro funcionam para reassegurar sua
inocência e para manter sua passividade. A manutenção ativa do ressentimento faz
par com a posição passiva que ele ocupa diante do Outro; com isto, a suposta vítima
obtém o ganho secundário de desincumbir-se moralmente de qualquer
responsabilidade pela situação que o ofendeu. (KEHL, 2004, p.19).
107
Em seu estudo sobre o ressentimento, Maria Rita Kehl (2004) afirma que o
ressentimento deriva de uma mágoa nunca superada ou esquecida. Diante de um agravo, seja
real ou não, o ressentido investe em uma vingança imaginária, a qual sendo sempre adiada
colabora para a preservação de sua inocência e para a manutenção de sua passividade. Assim,
revestido da certeza de sua superioridade moral e de sua grande sensibilidade, deflagra-se o
processo de vitimização do ressentido que passa a sofrer silenciosamente, transformando sua
vida em uma eterna ruminação dos agravos sofridos. Impotente diante de seu agressor, “[...] o
ofendido não se atreve, ou não se permite, responder à altura da ofensa recebida [...]” (KEHL,
2004, p. 12-13). O ressentido não deseja vingança e, sim, a justiça, pois a certeza de sua
pureza moral o impede de assumir ou se comprazer com um desejo de vingança. O sentimento
de vingança necessita de um tempo de gestação no qual se fermentam afetos como a raiva e o
rancor que explodirão por meio da concretização da vingança, impedindo desse modo que o
ressentimento se instale no coração do paciente da agressão. O ato de vingar-se é uma reação
necessária à depuração da mágoa. A vingança, concretização saudável de um impulso de
reação em face de um agravo recebido, dissolveria o processo de culpabilização e acusação do
outro, enquanto pretenso responsável pelo mal que se abateu na vida do ressentido; porém, o
ressentimento é o afeto próprio daquele que nunca se vinga e por isso mesmo a chama do
ressentimento permanece sempre acesa, alimentada pelo combustível do ódio secreto e
profundo que nunca se dissolve, manifestando-se na forma de lamentos e lamúrias sem fim
pelo “grande injustiçado” que o ressentido acredita ser. Importa destacar, entretanto, que os
prejuízos de que o ressentido sente-se vítima guardam em si marcas da parcela de
responsabilidade que lhe cabe. Assim:
[...] as manifestações de ressentimento referem-se a um prejuízo pelo qual o sujeito
foi co-responsável – no mínimo por ter cedido a um outro, sem lutar, sobre algo que
dizia respeito a seu desejo [...] o ressentimento seria nesse caso, o avesso do
arrependimento; [...] uma cobrança indireta de um bem cedido a outro por
submissão ou covardia. Instalado no lugar de queixoso, o ressentido não se
arrepende: acusa. Sua reivindicação não é clara: ele não luta para recuperar aquilo
que cedeu e sim para que o outro reconheça o mal que lhe fez. No entanto, não
espera uma reparação: o que ele quer é uma espécie de vingança. Uma vingança
imaginária [...] uma vingança sempre adiada, que ele prefere gozar na fantasia a
executar. (KEHL, 2004, p.19).
O termo “ressentimento” não foi citado por Freud em seus estudos psicanalíticos, no
entanto, a pesquisa de Kehl (2004) encontrou no termo “covardia moral” (p.58), utilizado pela
108
psicanálise freudiana, traços de equivalência com as manifestações que se desencadeiam no
indivíduo ressentido. A covardia moral opõe-se ao que Freud designa como “coragem moral”,
pois, enquanto esta designa a coragem de arcar com a responsabilidade por aquilo que deseja,
aquela desvela a renúncia voluntária “a boa parte do elenco dos pequenos e grandes prazeres à
disposição das pulsões de vida” (KEHL, 2004, p.61). Essa submissão voluntária à abdicação
das satisfações funcionaria como um estopim para a proliferação de ressentimentos, na
medida em que supõe um não comprometimento com o desejo que, apesar de existir, é
sistematicamente reprimido; e, nesse caso, o ressentimento manifesta-se [...] em face do
prazer desfrutado pelos outros, que o sujeito condena amargamente porque lhe apresenta as
“tentações” a que ele, voluntariamente, renunciou, mas que não cessam de lhe atormentar
(KEHL, 2004, p.61).
2.2. Recordações magoadas de um escrivão ressentido
Não é meu propósito também fazer uma obra
de ódio; de revolta enfim; mas uma defesa a acusações
deduzidas superficialmente de aparências cuja essência
explicadora, as mais das vezes, está na sociedade e não
no indivíduo desprovido de tudo, de família, de afetos,
de simpatias, de fortuna, isolado contra inimigos que o
rodeiam armados da velocidade da bala e da insídia do
veneno. (Lima Barreto, Recordações do Escrivão Isaías
Caminha, 1956).
A seguir, perscrutaremos o ressentimento na obra Recordações do Escrivão Isaías
Caminha. Julgamos necessário proceder, primeiramente, a uma distinção importante para
análise da personagem Isaías, que é a existência de “três Isaías” a se mover no romance.
Por tratar-se de um romance de cunho memorialístico, tem-se que a narrativa é
conduzida por um narrador-personagem que recorda fatos de sua vida passada e que pode ou
109
não adotar no momento em que escreve uma concepção de vida diferente daquela que possui
o personagem lembrado.
Assim, compreendemos que na narrativa de Isaías se enlaçam pensamentos e ideias do
primeiro Isaías, o jovem, àqueles próprios ao Isaías maduro, o escritor de suas próprias
memórias.
O prefácio intitulado como Breve Notícia surge quando da publicação da segunda
edição de Recordações do Escrivão Isaías Caminha e é neste momento que reconhecemos a
figura do terceiro Isaías, o qual nos é apresentado por Lima Barreto, seu editor e amigo. Lima
Barreto nos dá notícia de Isaías, que após anos de desventura desiste definitivamente de seus
ideais para figurar como um bem sucedido político, alheio às agruras do passado e ao próprio
romance memorialístico que compôs.
Assim, este prefácio define-se de modo curioso, pois nele Lima Barreto transforma-se
em personagem da própria obra ao inserir uma nota explicativa ao prefácio, já produzido pelo
próprio escrivão, narrador das recordações.
Partindo da existência desses três Isaías, faz-se necessário analisar cada um deles com
o propósito de reconhecer a existência, em algum ou em todos, da presença do Ressentimento,
tal qual caracterizado por Maria Rita Kehl (2004) no estudo sobre o afeto que envenena a
alma humana.
Com o objetivo de facilitar a interpretação da obra, visamos perceber que sentimentos
habitam o protagonista no decurso de sua vida, bem como ensejamos observar a visão de
mundo que norteia desde a sua juventude – o Isaías jovem –, passando pelo momento do
Isaías adulto, escritor de suas memórias – homem marcado pelo desengano que reconhece o
caráter frustrante das suas expectativas iniciais – até surpreender o Isaías como homem bem
sucedido política e financeiramente, tal qual como descrito por Lima Barreto na Breve
Notícia. Cabe destacar que o foco da narrativa, produzida em primeira pessoa, põe em relevo
a subjetividade do narrador, assim como é por meio de seu ponto de vista que tomamos
conhecimento do que ocorre na narrativa. Esse modo de presença conferido ao narrador é
particularmente importante para a sondagem necessária ao reconhecimento do modo como
Isaías interpreta o mundo que o rodeia.
As primeiras páginas das Recordações do escrivão Isaías Caminha flagram o
personagem Isaías, um mulato, fruto da miscigenação das raças, em sua infância e juventude
110
roceira, porém, repleta de esperanças e sonhos dourados, e o acompanha em sua chegada à
capital carioca, local que serve de palco às terríveis decepções e necessidades com as quais
defrontará até sua inserção como contínuo na redação de um prestigiado jornal da época,
momento em que Isaías conquista um razoável equilíbrio financeiro, o que lhe garante obter
meios para sua sobrevivência, até então comprometida pela iminência da miséria total. É,
ainda, por intermédio da diegese acompanharemos Isaías ao longo dos anos em que ele passa
no jornal, ocupando uma posição subalterna e bem oposta àquela que acreditava ser
merecedor, o seguiremos em sua inusitada ascensão ao posto de jornalista, bem como
assistiremos seu tristonho e desiludido retorno, anos mais tarde, para o interior do país. Toda a
sua trajetória vem à tona por meio do próprio Isaías que, em plena maturidade, decide resgatar
sua história e escreve um livro no qual reúne as doídas reminiscências do seu passado de
frustração e desencanto. Diante das circunstâncias em que se estruturam o romance
autobiográfico do escrivão Isaías, encontra-se em um primeiro plano o maduro narrador
Isaías, que se propõe a relembrar episódios de seu passado, o que se dá a partir do
extravasamento dos sentimentos que, até então, abrigavam-se nos espaços mais recônditos de
seu ser, bem como, delineia-se, em um segundo plano, a presença do jovem Isaías,
personagem surpreendido em sua trajetória de vida, em busca do sucesso. O tempo que afasta
esses dois protagonistas provoca diferenças no processo de subjetivação de cada um deles – o
narrador e o narrado. Assim, inferimos que o eu que narra os fatos passados já não é o mesmo
que viveu os fatos narrados. Nesse processo marcado pela fragmentação da subjetividade do
personagem, intuímos que as experiências adquiridas pelos “dois” Isaías, ao longo do tempo,
suscitem, também, a presença de diferentes sentimentos no íntimo de cada um deles. Assim,
objetivamos inquirir a presença ou não de ressentimento não só em cada um desses Isaías,
bem como, no “terceiro” Isaías concretizado no “Breve Prefácio” e em que medida esse afeto,
caso ele exista, relaciona-se à condição racial ou ao contexto social em que Isaías se insere ao
mudar-se para a capital.
Acreditamos que o ressentimento é uma das formas de expressão do mal-estar que
espreita a civilização em sua insuperável demanda pela renúncia do indivíduo, em nome do
bem estar coletivo. Diante da necessária submissão às imposições da sociedade, o indivíduo
vê-se obrigado a limitar sua busca pela felicidade e pelo bem-estar. Esse conflito, sempre
presente na vida do civilizado, ou esse mal-estar cultural “trata-se da impossibilidade de
encontrar e ocupar um lugar plenamente satisfatório onde reinaria a absoluta harmonia e a
completa satisfação” (SOUSA, ENDO, 2008, p.104). Da impossibilidade de alcançar esse
111
espaço utópico, nasce o ressentimento, o qual, de acordo com Maria Rita Kehl ( 2004), pode
ser compreendido como uma constelação psíquica “que faria parte das formações reativas
necessárias para manter a severas exigências de renúncia pulsional” (p.25).
Desse modo, perscrutaremos as Recordações de Isaías, a fim de detectar a presença
dessa faceta do mal-estar, a saber, o ressentimento. Para tanto, adotaremos um artifício
didático, por meio do qual empreenderemos, inicialmente, uma análise acerca dos vários
momentos protagonizados ao longo da narrativa romanesca pelo Isaías jovem ou Isaías
narrado. Em seguida espreitaremos a possível presença de afetos próprios do ressentimento na
subjetividade do Isaías maduro ou Isaías narrador-memorialista e, finalmente, delinearemos a
figura do Isaías pós-memorialista ou Isaías deputado, que surge no prefácio do romance,
buscando perceber que afetos estão presentes nesse seres que se opondo entre si revelam-se
opostos ao Isaías que ilustra as primeiras cenas do romance.
A nota pungente do drama narrado nas Recordações deriva da intensidade com que o
Isaías da maturidade ilumina seu passado ao evocar as lembranças de sua juventude e o
conflito instaurado a partir de sua ida para a cidade do Rio de Janeiro, momento em que sua
identidade fortalecida pelos sucessos nos estudos é abandonada frente às demandas da
realidade com a qual depara na capital.
A aventura do protagonista tem início em uma localidade do interior do Brasil, quando
o pequeno Isaías se vê fascinado pelo saber que seu pai revela possuir, saber esse que o
menino interiorano passa a relacionar com a felicidade e o bem estar, bem como com a
aquisição de prestígio e respeito. Opostamente percebe a ignorância patente em sua mãe e nos
parentes dela, relacionando essa obscuridade cognitiva à tristeza e à pobreza, condições que
são repelidas pelo idealista Isaías. Conforme as suas próprias palavras expressam, seu meio
familiar é marcado por grandes diferenças, as quais advêm da superioridade de seu pai,
homem sábio e detentor do saber livresco, em detrimento da inferioridade de sua mãe. Assim,
Isaías confessa as impressões estampadas em sua meninice, em face do fascínio exercido
pelos méritos intelectuais do pai,
Meu pai, o seu corpo anguloso, seco, a sua dor contida, que se escapava no
seu olhar e na sua fisionomia transtornada. Via-o às tardes, nos dias de bom humor,
mudá-la de chofre, fazer-se risonho, vir para mim, sentar-se à mesa, e, à luz do
lampião de querosene, explicar-me pitorescamente as lições do dia seguinte. Ou
então, da cadeira de balanço, contar-me as maravilhosas cousas do movimento da
terra, dos antípodas, da gravitação universal, e, enleado, à minha pergunta se Deus
112
podia parar a terra, responder com hesitação - Pode, sim. (LIMA BARRETO, 1956a,
p.91)
Essa valorização da cultura assume amplas dimensões a partir dos sucessos que Isaías
obtém em sua vida escolar. Assim, crê cada vez mais no poder do saber enquanto garantia de
um futuro promissor. Tais ideias são reforçadas a partir da leitura do Poder da Vontade, livro
que presenteado pela primeira professora passa a servir como um guia para a sua vida. O
íntimo contato com as ideias disseminadas nessa obra fortalece seu ideal e a certeza de que
pela posse do conhecimento alcançaria o lugar reservado àqueles destinados ao sucesso,
conforme podemos observar na passagem a seguir, extraída da obra Poder da Vontade,
Qual é a condição indispensável para podermos vencer na vida? A resposta
única é esta: adquirir a educação mais completa possível. Não haverá coisa tão
eficaz para entrar com êxito no caminho da vida como é ter uma mente equilibrada e
um corpo são. Quem assim se preparar será um valor social onde quer que se
encontre. Em qualquer campo da atividade humana a educação é o segredo da
prosperidade. (O.S.MARDEN, 1950, p. 117).
As grandes possibilidades advindas do saber adquirido pelos estudos revelam-se como
um manancial inesgotável para os sonhos de Isaías, que passa a ambicionar o título de doutor,
acreditando que, mediante sua posse, alcançaria os mais altos patamares da vida, além de que
estaria protegido pelo escudo que o título oferecia. Poderosa armadura capaz de conferir-lhe
um prestígio ilimitado, bem como “a consideração de toda gente” (1956, p.53), apesar de sua
cor,
Ah! Doutor! Doutor!... Era mágico o título, tinha poderes e alcances
múltiplos, vários, polifórmicos... Era um pallium, era alguma coisa como clâmide
sagrada, tecida com um fio tênue e quase imponderável, mas a cujo encontro os
elementos, os maus olhares, os exorcismos se quebravam. De posse dela, as gotas de
chuva afastar-se-iam transidas do meu corpo, não se animariam a tocar-me nas
roupas, no calçado sequer. O invisível distribuidor dos raios solares escolheria os
mais meigos para me aquecer, e gastaria os fortes, os inexoráveis, com o comum dos
homens que não é doutor. Oh! Ser formado, de anel no dedo, sobrecasaca e cartola,
inflado e grosso, como um sapo-entanha antes de ferir a martelada à beira do brejo;
andar assim pelas ruas, pelas praças, pelas estradas, pelas salas, recebendo
cumprimentos: Doutor, como passou? Como está, doutor? Era sobre-humano!...
(LIMA BARRETO, 1956a, p.54).
Em busca da realização de seus sonhos, parte para o Rio de Janeiro. Em sua bagagem,
além dos poucos pertences que a sua condição humilde permitia, carrega, também, a ingênua
113
premissa de que seu futuro estaria garantido, não só pelo saber que acumulara durante anos de
profícuo estudo, bem como, pelo poder contido na carta de recomendação que leva consigo e
que funciona, nesse contexto como símbolo da política de favores que regia as relações
políticas da época. Tal missiva escrita pelo prestigiado coronel Belmiro era endereçada ao
Doutor Castro, iminente deputado do Distrito Federal o qual, no entanto, devia a sua eleição
aos arranjos políticos orquestrados por Belmiro, líder da comunidade em que vivia Isaías.
Vivendo em tempos de “coronelismo”, Isaías acreditava no poder miraculoso dessa carta,
enquanto mais um reforço para o empreendimento ao qual se lançava em busca da conquista
do futuro brilhante a que julgava ter direito em face de seu preparo intelectual: “[...] não sou
rapaz ilustrado? Não tenho todo o curso de preparatórios? [...]” (LIMA BARRETO, 1956a,
p.49) questionava, quando da oposição da tia a sua partida. Isaías está, nesse momento, seguro
de sua superioridade intelectual, bem como estava certo de que essa condição que o distinguia
dos demais seria como que uma credencial para o triunfo que o aguardava na cidade grande e,
com essa disposição, parte para o Rio de Janeiro. Sua mãe, no entanto, vê o empreendimento
ao qual o filho se lança com os olhos da realidade. Imagina as dificuldades que seu Isaías
enfrentaria ao longo do desenvolvimento do projeto de doutoramento e, por isso “[...] cada
palavra e cada olhar da mãe pressagiam aquele fardo escuro que o filho, no ato da partida,
desejaria esconder para sempre [...]” (BOSI, 2002, p.191). Negra, pobre, excluída da
sociedade elitista, reconhece o lugar do negro no projeto social e é com essa sabedoria que
fala a Isaías na hora de sua partida para a capital: “- Vai, meu filho, disse-me ela afinal!
Adeus!... E não te mostres muito, porque nós... [...]” (LIMA BARRETO, 1956a, p.57). O uso
das reticências permitirá que Isaías interprete as surpresas que o mundo vai impor a sua jovem
e inocente existência, na medida em que elas irrompem frente a seus olhos nublados pelo
encantamento do sonho de sucesso.
Essa partida de Isaías, segundo os fatos que expõe, em confissão, ao leitor de suas
memórias, determinará o início das transformações da imagem que fazia de si mesmo desde
sua infância. Nesse momento, “o eu do desejo e da imaginação com suas fantasias de
grandeza intelectual e prestígio social” (BOSI, 2002, p.191) fenecerá diante do “eu do
cotidiano, deprimido e sempre à beira da humilhação” (idem). O seu dia-a-dia em meio à
cidade grande, dará vida, ao longo da narrativa, ao novo Isaías, forjado na lida com os
obstáculos que irão se interpor em seu caminho de modo incessante.
O percurso inicial da viagem que ocorre pela via férrea dá-se com tranquilidade.
Isaías, embalado pela emoção, abandona-se ao movimento do trem. O futuro de glórias se
114
aproxima e, nesse momento, seus pensamentos estão atrelados à expectativa da iminente
chegada à capital. Diante de um movimento mais brusco, aguça sua atenção, detendo-se por
momentos à paisagem que “corria” pela janela. Conforme observamos no capítulo anterior, o
espetáculo oferecido pela natureza revela-se como uma metáfora do espaço citadino para onde
Isaías se dirige. As suas ideias, nesse momento, parecem se concretizar por meio do ambiente
que observa. Na natureza como no meio social, as oportunidades são acessíveis ao que se
sobressai “pelo esforço da própria vontade”. A árvore que se apresenta de modo altivo,
destacando-se em meio à vegetação mortiça, assemelha-se a Isaías, que se considera superior
à maioria, em face do saber que detém e do poder de sua vontade na busca pelo ideal
almejado. Vê- se, assim, que a subjetividade daquele que narra se expressa pelo modo
esteticamente elaborado com o qual a natureza é descrita. Destacamos aqui o caráter
metafórico conferido ao ambiente natural no romance em que nos detemos, conforme
considerações feitas no primeiro capítulo desse estudo.
Consideramos que no primeiro capítulo do romance, bem como, nas ideias
disseminadas nos momentos iniciais do segundo capítulo, configuram um Isaías sonhador,
orgulhoso de seus sucessos escolares. Dono, segundo sua própria descrição, de uma “moral
inflexível” (LIMA BARRETO, 1956, p. 50) é, porém, seduzido pelas promessas de felicidade
embutidas na apropriação do saber, acreditando que por meio do doutoramento alcançaria o
cume da glória, do sucesso, do poder e da bem-aventurança, bem como, antevia que sua
condição racial se apagaria em face do poder emanado pelo título sagrado de doutor. De
acordo com Maria Rita Kehl (2004), “[...] a sedução cria uma situação propícia ao
ressentimento. O seduzido não sente que agiu por conta de seu desejo, mas por efeito dos
poderes de encantamento do sedutor [...]” (p.21). O seduzido, em sua inocência, deposita sua
fé naquele ou naquilo que o seduz, porém, se abandonado à própria sorte pelo sedutor, brota a
mágoa e abre-se o caminho para que o ressentimento se instale. Mas, para se tornar um
ressentido, o seduzido deverá perpetuar essa mágoa e assumir a posição de vítima inocente,
negando-se a assumir a parte da responsabilidade que lhe cabe, no jogo da sedução. Assim, no
que tange aos momentos iniciais do romance, não pudemos perceber a presença de
ressentimento em Isaías, haja vista que o investimento ao qual se lança seduzido pelos
poderes do saber ainda não havia revelado seu aspecto negativo e, logo, Isaías, até então, não
deparara com a face sombria da decepção.
Porém, as ideias ingênuas de Isaías serão habilmente esmagadas, em pouco tempo,
por forças incontroláveis que atravessarão seus caminhos e arrefecerão o ímpeto desse
115
entusiasta do saber. Os ataques dos quais supunha estar protegido, frente à carapaça do
conhecimento que acumulara, têm início ainda na viagem que empreende para o Rio de
Janeiro e continuarão a se manifestar, ora de modo ostensivo, ora, veladamente, ao longo da
narrativa.
Ocorre que em uma das estações de parada do trem, Isaías decide fazer uma pequena
refeição, e, para tanto, dirige-se a um estabelecimento, onde conhecerá o primeiro dos
diversos dissabores que experimentará, conforme ele próprio narra:
O trem parara e eu abstinha-me de saltar. Uma vez, porém, o fiz; não sei
mesmo em que estação. Tive fome e dirigi-me ao pequeno balcão onde havia café e
bolos. Encontravam-se lá muitos passageiros. Servi-me e dei uma pequena nota para
pagar. Como se demorassem em trazer-me o troco reclamei: “Oh! fez o caixeiro
indignado e em tom desabrido. Que pressa tem você?! Aqui não se rouba, fique
sabendo!” Ao mesmo tempo a meu lado, um rapazola alourado, reclamava o dele,
que lhe foi prazenteiramente entregue. O contraste feriu-me, e com os olhares que os
presentes me lançaram, mais cresceu a minha indignação. Curti durante segundos,
uma raiva muda, e por pouco ela não rebentou em pranto. Trôpego e tonto
embarquei e tentei decifrar a razão da diferença dos dois tratamentos [...] (LIMA
BARRETO, 1956a, p.60)
Mediante esse acontecimento, Isaías revela suas impressões acerca do tratamento que
recebeu ao leitor de suas memórias. A focalização do fato pelo ponto de vista de Isaías aliada
à potência do discurso que utiliza para descrever o episódio solicita a adesão do leitor, que
passa a compartilhar do processo de vitimização que se desenvolve em Isaías. O lugar de
vítima que passa a desempenhar nesse momento advém do preconceito que a sensibilidade de
rapaz ilustrado julga surgir atrelado ao discurso do balconista. Nesse aspecto, a oposição que
percebeu entre o tratamento oferecido ao rapaz branco e aquele destinado a ele, Isaías, é
potencializada pelo uso do advérbio “prazenteiramente”, o qual demonstra o tom conferido
pela subjetividade do narrador à ação do caixeiro. A forma como Isaías recebeu o agravo
revela que seus sentimentos sofreram um abalo. Afinal, sentiu-se ofendido pelo contraste
entre os tratamentos conferidos a ele a ao outro freguês e, não compreendendo a razão da
hostilidade sofrida, limita-se a remoer em silêncio a ofensa recebida: “[...] Curti durante
segundos, uma raiva muda, e por pouco ela não rebentou em pranto. [...]” (LIMA BARRETO,
1956a, p.60).
116
Sentindo-se repelido, Isaías, no entanto, não nomeia o preconceito racista como
fundador da hostilidade sofrida, antes, procede a uma análise de sua própria pessoa, tentando
decifrar possíveis motivos para a diferença de tratamentos:
Não atinei; em vão passei em revista a minha roupa e a minha pessoa... Os
meus dezenove anos eram sadios e poupados, e o meu corpo regularmente talhado.
Tinha os ombros largos e os membros ágeis e elásticos. As minhas mãos fidalgas
com dedos afilados e esguios eram herança de minha mãe, que as tinha tão
valentemente bonitas que se mantiveram assim, apesar do trabalho manual a que a
sua condição a obrigava. Mesmo de rosto, se bem que os meus traços não fossem
extraordinariamente regulares, eu não era hediondo nem repugnante. Tinha-o
perfeitamente oval, e a tez de cor pronunciadamente azeitonada. (LIMA BARRETO,
1956a, p.60)
Isaías estava certo das qualidades que possuía. Acreditava, ingenuamente, que os
arcabouços de conhecimentos que reunira ao longo da vida de estudante exemplar e dedicado
se revelariam abertamente aos olhos de todos [...] demais a emanação da minha pessoa, os
desprendimentos de minha alma, deveriam ser de mansuetude, de timidez e bondade... [...]
(LIMA BARRETO, 1956a, p.60). A certeza das qualidades que entrevia em seu caráter e os
bons sentimentos que julgava fluir de sua pessoa nos fornece a razão da indignação sentida
por Isaías que desejava ser respeitado por seus valores interiores e não pela sua aparência, cor
da pele ou quaisquer outros atributos superficiais, ao que sucede o questionamento: “Por que
seria então, meu Deus?” (LIMA BARRETO, 1956a, p. 60)
Após esse episódio, outros se sucederão para revelar as decepções que, pouco a pouco,
serão a tônica na vida de Isaías, sobretudo nos momentos iniciais da narrativa em oposição às
suas ilusões. Assim, podemos perceber a sua decepção ao aportar no Rio de Janeiro, espaço
idealizado pelo jovem que, no entanto, se decepciona com o que vê, pois a cidade “bela e
majestosa” que habitava o seu imaginário revela-se “inesperadamente feia” e “sem gosto” e
até mesmo o mais famoso logradouro da cidade não oferece prazer aos seus olhos: “a rua do
Ouvidor, que vi de longe, iluminada e transitada, em pouco diminuiu a má impressão que me
fez a cidade.” (LIMA BARRETO, 1956a, 63).
Outros episódios se acumulam na narrativa para concretizar as inúmeras decepções
que o jovem sonhador e idealista experimentará. Assim, assistiremos ao seu desgosto frente à
classe política, à força armada, ao mundo da civilização que, exposto nas vitrines luxuosas, se
mostrava inacessível à sua condição de rapaz pobre e humilde e, também, às pessoas que
117
habitavam o mundo citadino que, a exemplo de Laje da Silva – hóspede do modesto hotel em
que Isaías se hospedara - mostravam-se suspeitas e pouco confiáveis. Diante das primeiras
decepções, porém, não esmorece. As dificuldades enfrentadas desde sua chegada à capital
eram superadas em face da esperança da entrega de uma carta de apresentação ao deputado
Castro, político oriundo da região de Isaías.
No entanto, passados os primeiros dias de sua chegada, as dificuldades para encontrar
o deputado se enumeravam e Isaías antevia a miséria que se aproximava. O rapaz mostrava-se
obcecado pela necessidade de encontrar seu “protetor” e, assim, obter o emprego tão ansiado,
mediante o qual teria garantido os meios para seu sustento, e para a continuação de seus
estudos. Isaías depositava suas esperanças no poder político do coronel Belmiro, fazendeiro
forte de sua região e no deputado Castro que por sua vez devia “favores” ao coronel. A
“carta” dirigida ao prestigiado político funcionava como uma garantia que mantinha acesa a
sua esperança, porém, imobilizava suas ações, impedindo-o de atuar como sujeito de seu
destino, o que pode prenunciar a presença de ressentimento:
A minha situação obcecava-me. Se não arranjasse o emprego, que faria?
Vinha-me sempre essa pergunta, depois afigurava-se-me impossível a sua
condicional. Não era a carta de pessoa influente? Por que não havia de obter o
emprego? Se até então eu não lograra falar ao deputado, a culpa era minha: não lhe
indagara os costumes; não sabia ao certo a que horas se recolhia ou saía. Devia tê-lo
feito com cuidado e não limitar-me a ir lá todos os dias, às mesmas horas, como
estava fazendo há tantos dias. E logo concluí: amanhã, ao acordar-me, posto-me à
porta do hotel; ficarei lá o dia inteiro até vê-lo sair ou entrar, e então, cheio de
decisão, abordá-lo-ei como o meu estado exige. Fiquei admirado de que um alvitre
tão simples só me tivesse lembrado tantos dias depois. Deitado, tive uma imensa
alegria, de quem acaba de descobrir a solução de um problema, que preocupa a
atenção de quatro gerações de sábios. Dormi satisfeito, de um sono profundo e sem
sonhos. Pela manhã, prescindi o café e pus-me a caminho. (LIMA BARRETO,
1956a, p.96)
Após dias de angústia, o tão ansiado encontro com o deputado se efetiva. Isaías
entrega a carta ao político e revela a necessidade de empregar-se rapidamente, porém, não sai
da entrevista com boas impressões acerca do deputado e, ainda que este o houvesse recebido
com polidez, além do que acenara para a possibilidade do emprego pretendido, recomendando
a Isaías “que o procurasse no escritório, que havia de ver...” (LIMA BARRETO, 1956a,
p.101), o encontro revelou-se contrário às expectativas do jovem, conforme observamos pelas
reflexões que faz ao despedir-se de Castro:
118
Se bem que me tivesse acolhido com polidez, senti que o coronel nada
decidia no ânimo do deputado. Julguei que mais do que pela carta o seu acolhimento
fora ditado por uma frouxidão de caráter, por certa preguiça de vontade e desejo de
mentir a si mesmo. A sua fisionomia empastada, o seu olhar morto e a sua economia
de movimentos deram-me essa impressão. Demais aquela ruga na testa quando deu
comigo... (LIMA BARRETO, 1956a, p.101)
Porém, a decepção com as promessas do político não tardou a se revelar. Logo após o
encontro, no caminho de volta ao hotel, Isaías depara com uma triste revelação:
No bonde, comprei um jornal [...] num dado momento, na segunda página,
dei com esta notícia: “Parte hoje para São Paulo, onde vai estudar a cultura do café,
o Dr. H. de Castro Pedreira, deputado federal. S. Ex.ª demorar-se-á...”(LIMA
BARRETO, 1956a, p. 101).
Ao choque pela notícia recebida, seguiu-se a indignação do jovem que vê,
subitamente, seus sonhos se esfacelarem. Estranhos e confusos sentimentos de raiva e ódio
brotam pela primeira vez em Isaías. Todo o seu ser estremece em convulsão pela derrota
sofrida. Em sua revolta, surge o desejo de vingança contra aqueles que impediam a realização
de seus sonhos juvenis, porém, diante da força inexpugnável do mundo, acovarda-se.
Deixemos que o próprio Isaías revele os conflituosos sentimentos que dele se apossaram no
momento em que, estando no bonde, lê a notícia da partida de Castro. Tal fato funciona como
estopim para o despontar de sua revolta:
Patife! Patife! A minha indignação veio encontrar os palestradores no
máximo de entusiasmo. O meu ódio, brotando naquele meio de satisfação, ganhou
mais força. Num relâmpago, passaram-me pelos olhos todas as misérias que me
esperavam, a minha irremediável derrota, a minha queda aos poucos - até onde? até
onde? E ficava assombrado que aquela gente não notasse o meu desespero, não
sentisse a minha angústia... Imbecis! pensei eu. Idiotas que vão pela vida sem
examinar, vivendo quase por obrigação, acorrentados às suas misérias como
galerianos à calceta! Gente miserável que dá sanção aos deputados, que os respeita e
prestigia! Por que não lhes examinam as ações, o que fazem e para que servem? Se o
fizessem... Ah! se o fizessem! Que surpresa! Riem-se, enquanto do suor, da
resignação de vocês, das privações de todos tiram ócios de nababo e uma vida de
sultão... Veio-me um assomo de ódio, de raiva má, assassina e destruidora; um baixo
desejo de matar, de matar muita gente, para ter assim o critério da minha existência
de fato. (LIMA BARRETO, 1956a, p.101-102)
119
Identificamos, nesse momento, a germinação do ressentimento no personagem Isaías.
Ao ver-se ludibriado pelo deputado, Isaías sente-se tomado pela ira; porém, incapaz de uma
reação efetiva contra aquele que supostamente o ofendeu, investe em um sentimento de
vingança imaginária: “veio-me um assomo de ódio, de raiva má assassina e destruidora, um
baixo desejo de desejo de matar, de matar muita gente” (LIMA BARRETO, 1956a, p.102).
Semelhante ao que ocorre no ressentimento, Isaías, na posição do “[...] ofendido não se
atreve, ou não se permite, responder à altura da ofensa recebida [...]” (KEHL, 2004, p.12-13)
preferindo ruminar sua mágoa e seu ódio, solitariamente, envenenando-se por tais sentimentos
negativos que não consegue expulsar de si mesmo, e que, assim, convertem-se em queixas e
acusações contra o outro, o suposto agressor, considerado por Isaías como o responsável pelos
seus infortúnios.
Porém, para que os sentimentos negativos que habitam o seu coração se cristalizem na
forma de ressentimento, ainda é preciso considerar que, para que o ressentimento “[...] se
instale, é preciso que a vítima não se sinta a altura de responder ao agressor; que se sinta
fraca, ou inferior a ele [...]” (KEHL, 2004, p.14). Nesse aspecto é preciso considerar, também,
a condição de “estrangeiro” de Isaías. Recém chegado à “cidade grande”, Isaías depara com
uma realidade avessa a qual sua experiência roceira estava habituada e, assim, sente-se
ameaçado e amedrontado. Seu “eu’’ acuado aciona meios de defesa, porém, um sentimento de
inferioridade o domina e o impede de reagir em um espaço que, por ser desconhecido, revela-
se a ele como o lugar do medo e dos perigos contra os quais não se sente capaz de reagir.
Enfraquecido diante das forças oriundas da sociedade que o esmagam, o ressentimento seria a
única manifestação possível para Isaías, um fraco, subjugado ao opressor, supostamente mais
forte e poderoso do que ele. Assim, após a explosão de ódio ocorrida no seu íntimo quando da
decepção com o deputado, Isaías assume sua inferioridade e impotência frente ao Outro
(Castro e a sociedade) que o oprime e imobiliza:
Depois dessa violenta sensação na minha natureza, invadiu-me uma grande
covardia e um pavor sem nome: fiquei amedrontado em face das cordas, das
roldanas, dos contrapesos da sociedade; senti-os por toda a parte, graduando os meus
atos, anulando os meus esforços; senti-os insuperáveis e destinados a esmagar-me,
reduzir-me ao mínimo, a achatar-me completamente... (LIMA BARRETO, 1956a,
p.102)
Acreditamos, também, na existência de mais um importante aspecto a colaborar para
instalação do ressentimento, qual seja, a condição racial e social de Isaías, um mulato pobre,
120
inferiorizado pela segregação secular que, obviamente, ainda é recorrente na capital
republicana, recém instalada sobre as ruínas do Império escravocrata. Isaías, portanto, não
possuía “armas” para lutar contra seu agressor, o prestigiado deputado Castro. Segundo o
próprio Isaías da maturidade, a educação esmerada e o cultivo de elevados ideais moldaram-
lhe de forma a torná-lo orgulhoso de sua inteligência e saber, sensível, gentil e, logo, incapaz
de se defender quando em face da crueldade do mundo; some-se a isso a condição humilde do
meio em que viveu em seus primeiros anos de vida.
Ademais, a negação de Castro revela-se a Isaías como uma traição às promessas de
igualdade preconizadas pelo ideal republicano, o qual garantia, ainda que no plano simbólico,
oportunidades iguais para todos, ricos ou pobres; brancos ou negros. Pressupomos que o mal-
estar sentido por Isaías, em relação à ação de Castro, pode ser um sintoma do ressentimento
social, pois de acordo com Maria Rita Kehl,
[...] este é o afeto característico dos impasses gerados nas democracias
liberais modernas, que acenam para os indivíduos com a promessa de uma igualdade
social que não se cumpre, pelo menos nos termos em que foi simbolicamente
antecipada [...] é preciso que exista um pressuposto simbólico de igualdade entre
opressor e oprimido, entre rico e pobre, poderoso e despossuído, para que os que se
sentem inferiorizados se ressintam. (KEHL, 2004, p.18).
Semelhante questão é focalizada no capítulo V quando do episódio em que Isaías
depara com o poder judiciário do país. Aí, também, o desconcerto entre a essência e a
aparência das “leis” se faz presente.
O citado capítulo V se inicia quando Isaías é intimado como um dos suspeitos de um
roubo ocorrido nas dependências do modesto Hotel Jenikalé, no qual estava hospedado. Isaías
comparece à delegacia e, diante do confronto que aí se estabelece entre ele e o delegado,
representante da justiça, se somará mais uma decepção ao currículo do jovem protagonista. As
cenas que se passam no ambiente da delegacia configuram o clímax da narrativa, momento
que determinará o início da derrocada das ilusões e das idealizações que lhe dirigiam as ações
até então, pois a partir do epíteto de “mulatinho” com o qual é nomeado pelo hostil delegado,
Isaias defrontará com a realidade que seus olhos ingênuos ainda não haviam desejado
reconhecer. Ao resgatar as lembranças terríveis dos momentos em que permaneceu na
delegacia, Isaías convida a natureza para compartilhar de sua dor e, por meio de analogias
configura as convulsões de seu tormento interior, conforme podemos observar a seguir:
121
De repente a treva fez-se mais espessa. Na sala da delegacia acenderam as
luzes, ao tempo que um relâmpago veio iluminá-la instantaneamente. Ouviu-se um
estalido agudo, um ronco de trovão e, estremecendo, sentimos nós todos que um raio
caíra nas proximidades. A chuva começou a cair fracamente, sem a violência que o
rigor do céu ameaçava, quando a poderosa autoridade entrou. Passava das seis horas;
a opressão da atmosfera diminuíra muito e o calor abrandara razoavelmente (LIMA
BARRETO, 1956a, p.115).
Esse acontecimento que muito fere seu orgulho de rapaz inteligente, no entanto,
marca, apenas, o início das humilhações que, doravante experimentará naquele ambiente.
Interrogado, sente o desdém do delegado, que o acusa de malandro e gatuno o que, segundo
Isaías, revelava “[...] o sentimento geral da minha inferioridade, decretada a priori [...]. Isaías
ainda conheceria, naquele mesmo dia, o grande infortúnio de ser conduzido ao xadrez, por
revidar às injustas acusações que o delegado fazia a sua pessoa. É com o sentimento de uma
imensa revolta e, somente quando atinge o ápice da indignação, frente aos insultos recebidos,
que Isaías se rebela e nomeia o delegado de “imbecil”. Este ato de “bravura”, porém, lhe
custaria a humilhação da prisão.
Este fato, resgatado pela memória do narrador já maduro, traduz a dor sentida em
sua juventude frente à instituição que, antes de cumprir o seu papel de proteção ao cidadão, se
revelava cruel e preconceituosa pela ação de um delegado que o agredia e ofendia
injustamente, baseado, segundo a interpretação de Isaías, em desprezíveis critérios raciais que
ignoravam os atributos de sua inteligência e humanidade. O epíteto depreciativo com o qual
foi nomeado permaneceu gravado em sua alma e será evocado no momento em que, já adulto,
elabora suas Recordações,
O que mais me feriu, foi que ele partisse de um funcionário, de um
representante do governo, da administração que devia ter tão perfeitamente, como
eu, a consciência jurídica dos meus direitos ao Brasil e como tal merecia dele um
tratamento respeitoso. (LIMA BARRETO, 1956a, p.111)
Não obstante tais aspectos que parecem corroborar a instalação silenciosa do
ressentimento na personagem, há características no jovem Isaías que podem afastá-lo do
estereótipo do ressentido. Diferente daquele típico ressentido que jamais se acusa e nunca
assume a sua responsabilidade em face da perda sofrida, Isaías Caminha reconhece a parcela
de culpa que lhe cabe em seus insucessos. Refletindo sobre o caráter inexpugnável dos
caminhos da vida (sociedade) e a postura adotada em face dos desafios aos quais se propôs,
pondera:
122
O caminho na vida parecia-me fechado completamente, por mãos mais
fortes que as dos homens. Não eram eles que não me queriam deixar passar, era o
meu sangue covarde, era a minha doçura, eram os defeitos de meu caráter que não
sabiam abrir um. Eu mesmo amontoava obstáculos à minha carreira; não eram eles...
Não seria tolice, pusilanimidade escondida fazer repousar a minha felicidade na
presteza com que um qualquer deputado atendesse um pedido de emprego? Era
possível tê-los sempre à mão para os dar ao primeiro que aparecesse? As condições
de minha felicidade não deviam repousar senão em mim mesmo - concluí... (LIMA
BARRETO, 1956a, p124)
As cenas que se seguem àquelas vividas na delegacia surpreendem um Isaías que,
conquanto dilacerado em seu íntimo, ainda conserva resquícios do sonhador ingênuo e
autoconfiante de sua superioridade moral; e é com esse ânimo que decide procurar um
emprego,
Trabalharia - em quê? em tudo. E, enquanto considerava a delicadeza das
minhas mãos e a fragilidade dos meus músculos, adormeci placidamente, satisfeito
comigo e com a minha coragem e firme na resolução de procurar no dia seguinte
qualquer ocupação, por mais humilde que ela fosse. (LIMA BARRETO, 1956a,
p.125)
A busca pelo emprego irá se transformar em mais um golpe no percurso empreendido
por Isaías. A leitura da seção “precisa-se”, no jornal, conduziu-o a um anúncio por ele
considerado aceitável: “[...] Tratava-se de um rapaz, de conduta afiançada para acompanhar
um cesto de pão [...]” (LIMA BARRETO, 1956, p.126). Segundo nos relata, foi contente à
presença do anunciante; porém, este repeliu o rapaz, sem maiores explicações, assim que
deparou com o jovem. O padeiro diz não à condição étnica de Isaías, que se vê marginalizado
por ser diferente. Isaías destoa do padrão exigido pela sociedade e, assim, é visto como “o
outro” em relação ao padrão idealizado pela parcela “branca” e narcísica da sociedade
brasileira. Segundo uma parcela da elite ex-escravocrata, não havia espaço para pobres e
mestiços no seio da capital urbanizada. Isaías revela as circunstâncias em que ocorreu o
encontro com seu pretenso empregador:
- Foi o senhor que anunciou um rapaz para...
- Foi; é o senhor? respondeu-me logo sem me dar tempo de acabar.
- Sou, pois não.
123
O gordo proprietário esteve um instante a considerar, agitou os pequenos
olhos perdidos no grande rosto, examinou-me convenientemente e disse por fim,
voltando-me as costas com mau humor:
- Não me serve.
- Por quê? atrevi-me eu.
- Porque não me serve.
E veio vagarosamente até uma das portas da rua, enquanto eu saía
literalmente esmagado. (LIMA BARRETO, 1956a, p.127)
A partir desse acontecimento, Isaías vê-se perseguido, cercado por uma série de
obstáculos que não consegue superar, apesar de seus esforços. Sente-se desgostoso por
perceber que os valores que o animavam não eram reconhecidos. Diante da recusa do padeiro,
ressurge o ódio já experimentado na relação frustrada com o deputado Castro. Isaías ressente-
se de sua condição marginal na sociedade que percebe tão oposta àquela que imaginara.
Assim, frustrado, impotente, vê-se injustiçado diante da desigualdade que se manifesta no
meio social ao perceber que a oposição do padeiro não estava vinculada somente a esse
homem, mas, “[...] era uma simples manifestação de um sentimento geral, e era contra esse
sentimento, aos poucos descoberto por mim, que eu me revoltava [...]” (LIMA BARRETO,
1956a, p.128). Diante da revolta que o invade e enche seu coração de mágoa, Isaías assume
uma postura passiva diante da vida. Revela que, apesar da apatia que o dominou, desde que
percebeu os escrúpulos de todos contra a sua nobre pessoa “[...] houve duas ou três crises de
vontade que me obrigaram a procurar emprego [...]” (LIMA BARRETO, 1956a, p.133),
tentativas essas que foram mal sucedidas, em face da indolência com que se lançava a elas.
Isaías retira-se do hotel Jenikalé e aluga um modestíssimo quarto em uma casa de cômodos.
Imobilizado em sua condição de jovem estudioso e inteligente, no entanto, assume a postura
de vítima de uma sociedade desigual e injusta, passa a perambular pelas ruas, despendendo o
seu tempo nos trajetos de bonde pelos bairros cariocas. Conhece a Biblioteca Nacional e passa
a frequentá-la. A falta de recursos que o obrigava a alimentar-se esporadicamente encontra
recompensa no saber extraído das obras de escritores, donde podemos aferir que, apesar do
empobrecimento de sua autoestima, em face do estigma que o perseguia e lhe impunha
terríveis privações, Isaías, nesse momento, ainda investe, embora timidamente, em seu projeto
inicial, não se desvinculando do narcisismo que o move desde os tempos marcados pelos
êxitos escolares. Isaías é um pretensioso que, apesar de não concordar com a ordem imposta,
se submete de modo passivo às restrições que a civilização impõe. O que ele não reconhece é
124
a necessidade de investir em um modo concreto de reverter a sua situação de penúria, de
aceitar suas falhas, buscando, assim, uma resolução para os insultos que julga haver sofrido.
Isaías, enfim, não percebe que se aprofunda, a cada momento, a mágoa que, reiterada em seu
ser, contribui para a instalação do ressentimento, pois:
[...] O que produz ressentimento são as tentativas de estabelecer uma
solução de compromisso entre os sentimentos de revolta/ insatisfação e a
subordinação às condições impostas pelo poder. É o caso em que aqueles que se
sentem prejudicados não ousam alterar os termos da ordem imposta pelo Estado
protetor [...] (KHEL, 2004, p.209)
Isaías se conservará na passividade, ao longo dos meses em que reside nesse quarto da
casa de cômodos. Nesse espaço, trava conhecimento com Abelardo Leiva, poeta e
revolucionário que será seu cicerone e principal responsável por apresentar a cidade ao
interiorano: “Foi Leiva o meu iniciador no Rio de Janeiro” (LIMA BARRETO, 1956, p.141)
assim como Isaías, Leiva é um personagem cuja meta é vencer na vida. Esse momento da
narrativa revela que Isaías só consegue sobreviver através dos parcos meios adquiridos com
aulas particulares que ministra a um antigo colega que reencontra no Rio de Janeiro:
Agostinho Marques. A vaidade de seu companheiro Leiva não permitia que ele oferecesse a
menor ajuda a Isaías; assim, o seu ânimo esmorece a cada dia: estava indiferente à miséria que
o assolava, alimentava-se de quando em quando, mas não se movia em face dessas extremas
dificuldades, pois Isaías as considerava superiores ao poder de sua vontade:
Foi uma grande época de fome e sofrimentos na minha vida. Leiva era
incapaz do menor obséquio; nada lhe fazia retirar um tostão dos seus perfumes e das
suas roupas. Vendi as melhores roupas que tinha, tudo que tinha valor vendi, e,
quando nada mais tinha que vender, passei dias inteiros sem tomar café. Lá chegava
uma ocasião que alguém, um quase desconhecido, uma fisionomia encontrada
momentaneamente, me convidava a tomar café ou a jantar; e se não fossem eles, eu
talvez tivesse morrido de inanição ou furtado bolos às confeitarias. (LIMA
BARRETO, 1956a, p.149)
Isaías sente-se angustiado. Nesse momento não consegue compreender se seu
sofrimento é fruto do mundo exterior ou advém de sua própria falência interior, concretizada
pela incapacidade de reagir contra as limitações impostas por sua personalidade fraca e
submissa. A postura adotada por Isaías denota a condição resignada da derrota. Sentindo-se
injustiçado, não mobiliza forças para reagir contra o agravo do qual se julga vitimado, antes,
deixa-se abater passivamente, assumindo, por sua própria vontade, a condição humilhante que
125
acreditava imposta por uma sociedade preconceituosa. O coração de Isaías é, cada vez mais, o
recipiente onde se fermentam a mágoa, a revolta, o ódio e o rancor. Essa reiteração de suas
dores ou, simplesmente, o ressentimento que daí pode derivar, no entanto,
[...] não é a consequência necessária da condição do derrotado. Ele tem
mais a ver com a rendição voluntária do que com a derrota. A reação adiada que
produz o ressentimento é aquela a que a pessoa se impediu por conta própria [...]
(KEHL, 2004, p. 17).
Nos momentos em que se vê obrigado a aceitar suas limitações, aciona mecanismos
de defesa que possam salvaguardá-lo dos sofrimentos que o acometem em face de seus
fracassos. A angústia que domina Isaías é o sintoma que substitui a dura realidade – Isaías não
é a imagem da perfeição – verdade essa de que, em sua covardia, insiste em não tomar
conhecimento. Nesse momento, intuímos que Isaías é dominado pela “covardia moral”. De
acordo com Maria Rita Kehl (2004), a covardia moral é própria daqueles que insistem em não
comprometer-se com seu desejo. O covarde do qual a psicanalista nos dá notícia é o indivíduo
fraco que não possui a coragem necessária para arcar com a responsabilidade por seu desejo,
assumindo os riscos e as perdas advindas de seus insucessos. Assim, ao não conseguir aceitar
sua parcela de responsabilidade no fracasso de seus projetos juvenis, Isaías busca proteger-se,
relegando as culpas que lhe cabem exclusivamente para realidade que o circunda e para os
preconceitos raciais que, longe de não existirem, jamais poderiam funcionar para que se
instalasse no lugar de vítima. Isolado em sua solidão, enreda-se, pouco a pouco, nas teias da
insatisfação por não assumir uma postura combativa em face da vida e de seus desejos; tal
conduta propicia a instalação do ressentimento, afeto que “[...] expressa a tentativa do eu de
evitar confrontar-se com sua própria covardia e com os prejuízos que ela lhe causou” (KHEL,
2004, p.59). Dessa maneira, Isaías mantém-se no confortável lugar do eterno injustiçado,
vítima inocente e indefesa face à iniquidade do mundo.
Enquanto testemunhas do sofrimento de Isaías, os leitores são convocados pelo
narrador do romance a compartilhar da dor e do sofrimento do personagem. É a um leitor
virtual que se dirigem as queixas de Isaías. Ao expor os lances decisivos de sua vida de
mulato injustiçado, busca prender o seu leitor em uma armadilha astutamente delineada sob a
forma de um romance autobiográfico, cujo foco narrativo em primeira pessoa focaliza apenas
o ponto de vista do autor, ou seja, o de Isaías, que se julga marginalizado e indefeso frente à
força da sociedade aniquiladora. É por essa via que,
126
O personagem ressentido atrai simpatias, pois parece revestido de uma
superioridade moral inquestionável. É o personagem sensível, passivo, acusador
silencioso de um outro mais forte diante do qual ele se apresenta “coberto de
razões”. A ele se atribui uma sensibilidade especial, que o torna incapaz de se
adequar à dureza da vida em sociedade. O personagem ressentido é eficiente para
mobilizar tanto a identificação (do leitor, do espectador, etc.), quanto a má
consciência [...] (KEHL, 2004, p.29)
2.3. Isaías, um sonhador - entre o saber e a sedução
Os meus desejos de vingança fazem-me agora sorrir e não sei por
que, do fundo da minha memória, com essas recordações todas, chega-me
também a imagem de uma pesada carroça, com um grande lajedo suspenso
por fortes correntes de ferro, vagarosamente arrastada sobre o calçamento de
granito, por uma junta de bois enormes, que o carreteiro fazia andar com
gritos e ferroadas desapiedadas... (Lima Barreto, Recordações do escrivão
Isaias Caminha, 1956)
A partir do capítulo VIII, considerado como início da segunda parte do romance,
aponta-se para uma nova perspectiva. Despontam, na superfície da narrativa, os bastidores do
jornal O Globo, palco onde se encenará, aos olhos de Isaías, uma pungente representação de
uma parcela do mundo ainda desconhecida pelo jovem. A figura de rapaz interiorano e letrado
cujo “eu” houvera se fortalecido pelos sonhos de grandeza surge, “medroso e esfomeado”, nas
dependências da redação do jornal já despido de seu orgulho de estudante lapidado pelo saber
livresco. Está em busca do emprego prometido, espécie de “tábua de salvação” para a situação
de miséria em que chegara, após percorrer um caminho marcado pelas agruras e infortúnios
que a fragilidade de sua consciência não conseguira combater. Os primeiros momentos
passados no ambiente do jornal revelam-se tensos. Face à expectativa do emprego necessário
à sua sobrevivência, Isaías sente-se ansioso, sobretudo porque naquele momento sua situação
127
de penúria houvera atingido o ápice: [...] eu não tinha mais onde dormir, havia dois dias que
não comia [...] (LIMA BARRETO, 1956a, p.151), relembra com pesar, o narrador maduro.
A inserção de Isaías na função de contínuo da redação do prestigiado periódico carioca
implica na abdicação de seu sonho de doutorar-se. Nesse momento, liquida-se o sonhador e
delineia-se, cada vez mais, a trajetória de Isaías rumo ao ressentimento, pois os anos que
transcorrerão no interior da redação jornal aprofundarão as fissuras na sensibilidade do jovem,
por onde penetrarão amargos sentimentos os quais, no entanto, mantendo-se cristalizados em
seu peito, ecoarão, anos mais tarde, na lembrança do ressentido narrador das memórias.
Os capítulos oito ao treze são destinados ao período em que Isaias atua como contínuo
na redação de O Globo. Nesse momento, distancia-se de sua função de agente da narrativa
para assumir a postura de observador dos fatos que transcorrem no dia a dia da imprensa. Ao
longo desses capítulos, o Isaías já maduro conduzirá a narrativa, expondo os fatos relativos à
atividade jornalística, bem como, delineará as figuras que gravitam nesse ambiente. Será sob
esse ponto de vista unilateral que os fatos serão narrados. Assim, por meio de um “olhar” que
contempla o próprio passado, porém com os olhos já maculados pelas experiências vividas,
que se revelará, no discurso do Isaías maduro, o travo da amarga ironia, quando da
apresentação do universo do jornal O Globo.
Já distante no tempo, o narrador apresenta o ambiente do mais prestigiado jornal da
época pela janela da ficção, o que permitirá que os profissionais da imprensa que gravitam na
redação revelem-se em toda sua arrogância e presunção; verdadeiros “medíocres de caráter e
inteligência” (LIMA BARRETO, 1956a, p.154), pintados, sobretudo, como seres vaidosos em
face da distinção social que o cargo lhes reservava. Em pouco tempo, Isaías percebe que uma
espécie de aura de poder e um imenso prestígio garantiam aos homens da imprensa o papel de
semideuses, apesar de sua conduta pouco ética em face do sensacionalismo que promoviam,
mediante a distorção dos fatos noticiados e de sua falta de criatividade e originalidade no que
concerne ao uso da palavra. Porém, apesar de seu caráter dúbio, O Globo adquire uma posição
privilegiada, a qual fora conquistada pelo modo arrojado com o qual atacava a elite dominante
e os governantes da República Velha, fato que, aliado a um poderoso e dissimulado discurso
de “austeridade e independência” (LIMA BARRETO, 1956a, P.153) elevou e consagrou o
jornal, garantindo ao periódico o posto de arauto da moral e grande inimigo da improbidade
pública. Considerados como “entidades superiores”, em sua face pública desfilavam seus
status de notáveis e respeitáveis cidadãos; no entanto, pela ótica do narrador experiente, o que
128
de fato caracterizava esses profissionais da palavra eram “qualidades” como a hipocrisia, a
rapinagem, a presunção, a desonestidade e um potente pendor para o arrivismo, para a
mediocridade e para a subserviência aos mandatários do poder. O templo onde pairavam e
prosperavam tão insignes cidadãos era o jornal O Globo: “[...] jornal independente, órgão do
povo e dos sofredores, pesadelo dos ministros, espada de Dâmocles suspensa sobre a tríade
política e administrativa da República [...]” (LIMA BARRETO, 1956a, p.187).
Isaías revela o modo como os textos jornalísticos eram produzidos pelos jornalistas de
O Globo, considerados excelentes pela população da cidade carioca:
Quem tivesse perfeitamente o dom de inventar, de arquitetar
instantaneamente o artigo e escrevê-lo com sabor literário, movimento brilhante,
vigoroso, orgânico, não havia. Losque, muito mais fraco do que Meneses, fingia-se
de posse desse dom sagrado. Faltava-lhe novidade, invenção, força no dizer; tinha
uns certos períodos, um constante arranjo de frases que ele adaptava ao assunto do
momento, com as variantes necessárias. (Lima Barreto, 1956, p.241)
Ao que podemos acrescentar, a fim de elucidar esse aspecto específico do caráter
nacional, a reflexão de Sérgio Buarque de Holanda acerca da sedução exercida sobre o
brasileiro pela palavra vazia, pela frase improvisada e pelo brilho dos discursos eloquentes:
Um amor pronunciado pelas formas fixas e pelas leis genéricas, que
circunscrevem a realidade complexa e difícil dentro do âmbito dos nossos desejos, é
dos aspectos mais constantes e significativos do caráter brasileiro [...] o prestígio da
palavra escrita, da frase lapidar, do pensamento inflexível, o horror ao vago, ao
hesitante, ao fluido, que obrigam à colaboração, ao esforço e, por conseguinte, a
certa dependência e mesmo abdicação da personalidade, têm determinado
assiduamente nossa formação espiritual. Tudo quanto dispense qualquer trabalho
mental aturado e fatigante, as ideias claras, lúcidas, definitivas, que favorecem uma
espécie de atonia da inteligência, parecem-nos constituir a verdadeira essência da
sabedoria. (HOLANDA, 2013, P.157-158)
Esse saber intuído por Isaías, ainda durante sua estada na redação do jornal, colabora
para a proliferação de sentimentos negativos, os quais permanecerão depositados no coração
do jovem para explodir em forma de ressentimento na consciência do homem maduro. A
percepção dos fatos não o impele a uma reação efetiva, pois enquanto atua como contínuo, as
suas escolhas estavam submetidas às pressões sociais. Abatido moralmente em face da
miséria que se encontrava a um passo de sua existência, Isaías não se posiciona, de modo
concreto contrariamente à degradação do meio em que vivia, deixando-se abater
129
passivamente, aos poucos, desumaniza-se, permitindo que sua natureza seja corrompida pelo
meio em que vive, conforme relembra o narrador, repleto da mágoa que sopitara ao longo dos
anos:
Ainda não tinha coordenado todos os elementos que mais tarde vieram
encher-me de profundo desgosto e a minha inteligência e a minha sensibilidade não
tinham ainda organizado bem e disposto convenientemente o grande stock de
observações e de emoções que eu vinha fazendo e sentindo dia a dia. Vinham uma a
uma, invadindo-me a personalidade insidiosamente para saturar-me mais tarde até ao
aborrecimento e ao desgosto de viver. Vivia, então, satisfeito, gozando a
temperatura, com almoço e jantar, ignóbilmente esquecido do que sonhara e
desejara. (LIMA BARRETO, 1956a, p.245-246).
O contato com ideias inicialmente tão contrárias àquelas que, um dia, defendera, torna
o jovem Isaías cruel, amargo e indiferente ao sofrimento alheio. Julga-se superior a todos e,
frente ao processo de forte desenraizamento que tem início a partir de sua inserção no jornal,
renega suas origens – ao lembrar-se de sua mãe, afirma: “eu, seu filho, julgava-me a meus
próprios olhos muito diverso dela, saído de outra estirpe, de outro sangue e de outra carne”
(LIMA BARRETO,1956a, p.245).
Conforme registramos no primeiro capítulo, a sociedade brasileira do início do século
é marcada por desequilíbrios advindos do malogro do regime republicano que não conseguira
concretizar de fato o prometido ideal de democracia moderna naquilo que o termo abarca em
termos de igualdade e justiça. Revela-se, também, como um fator do desequilíbrio do país a
grande demanda pela cultura europeia que, no limite, gera a mimetização do padrão europeu.
Tal condição gerou um grande descontentamento popular, expresso em forma de um
ressentimento que proliferou subjacente ao desenvolvimento do Brasil da República Velha.
Nesse sentido, o jornal O Globo seria o responsável por aplacar os agravos sofridos pela
parcela da sociedade que se sentia injustiçada em face da nova ordem social, bem como
favorecia oportunidade de vingança àqueles que experimentavam o mal-estar das
transformações operadas no país. Ao dar voz e vez para os desvalidos do regime, o jornal
oferece a oportunidade de reação àqueles que se sentem ofendidos. Isaías Caminha revela que
o jornal onde trabalhava “[...] era o jornal dos desgostosos, dos pequenos empregados, dos
ratés de todas as profissões e também dos ricos que não podem ganhar mais e dos destronados
das posições e das honras” (LIMA BARRETO, 1956a, p 188). Enfim, O Globo era o jornal
dos ressentidos.
130
Diferente do Isaías eufórico que se despede de seu recôncavo para fazer-se doutor na
capital, o Isaías que adentra a redação do jornal é, agora, um homem perplexo. A realidade
com a qual se defrontara desde sua chegada à capital revelara-se adversa, hostil e
preconceituosa em face da pobreza e da pele negra do jovem interiorano, aspectos que lhe
sendo intrínsecos, ele jamais suspeitara que pudessem vigorar como um obstáculo para a sua
ascensão em uma sociedade cujo sistema político apontava para a igualdade democrática. O
impasse de Isaías consiste no choque ocorrido em face do contato com o “mundo” real e,
logo, destoante daquele fictício, construído sob as ilusões de êxito certo que seu ímpeto
juvenil consagrara. Essa utópica representação do mundo será a fonte do dolorido desencanto
de Isaías, cuja consciência subitamente estremece diante da realidade, quando esta se
apresenta incompatível com a imagem que fazia do mundo, bem como com aquela que fazia
de si mesmo:
[...] Eu saíra do colégio, vivera sempre num ambiente artificial de
consideração, de respeito, de atenções comigo; a minha sensibilidade, portanto,
estava cultivada e tinha uma delicadeza extrema que se juntava ao meu orgulho de
inteligente e estudioso, para me dar não sei que exaltada representação de mim
mesmo, espécie de homem diferente do que era na realidade, ente superior e digno
[...] (LIMA BARRETO, 1956a, p.110).
O ingresso na redação do jornal representa mais um passo no processo de maturação
de Isaías, pois esse espaço exercerá a função de uma escola em cuja cartilha o jovem
interiorano reconhecerá duras lições de desengano e decepção. Seu “eu” dilatado pelo fascínio
da glória a que julgava ser merecedor encolhe-se diante da posição subalterna que doravante
exerce. Humilhado e ofendido submete-se, por necessidade, a uma posição muito inferior
àquela que a ilusão de jovem vaidoso elegera como a única possibilidade para alguém dotado
das capacidades extraordinárias que julgava possuir. Apesar de funcionar como uma dura
prova no percurso de Isaías, sua inserção no meio jornalístico lhe proporcionará uma ampla
visão acerca das relações de poder que sustentam a política do país, o que, consequentemente,
afetará sua consciência e promoverá uma transformação em seu íntimo, conforme Alfredo
Bosi aponta na obra Literatura e resistência (2002):
O jornal é a porta em que Isaías vai bater quando a fome ronda a sua vida
esquálida de migrante sem rumo. A sala de redação é o habitat onde ele pôde
conhecer, sem maiores riscos, os bastidores suspeitos da comédia política e os
balcões do mercado literário já em pleno funcionamento na capital modernizada da
República Velha. No jornal ele descobrirá a sabotagem mais torpe sob a retórica da
131
liberdade de imprensa; o arbítrio mais duro sob a máscara da divisão de funções; a
meia cultura com todas as suas distorções sob a linguagem das ideias gerais; o estilo
pífio ou pretensioso escudado na gramatiquice dessa época áurea de manuais de bem
escrever [...] (BOSI, 2002, p.199-200).
Ainda que em posição inferior àquela pretendida em seus inícios, o emprego será um
abrigo seguro em face das dificuldades que enfrentara desde sua chegada ao Rio de Janeiro; e,
mais do que isso, funcionará como um local privilegiado, onde o sofrido rapaz se sentirá
protegido dos perigos inerentes à miséria em que estava imerso, até que as portas do jornal se
abrissem para abrigá-lo da pobreza total,
Aos poucos, me esqueci dos dias de fome passados a deambular pelas ruas
da cidade. Tinha já um quarto, cama e um lavatório de ferro, pensão de almoço e
jantar; e, ainda, do ordenado, me sobravam sempre alguns mil-réis para comprar, de
quando em quando, umas botinas de abotoar ou um chapéu de palha mais catita [...]
(LIMA BARRETO, 1956a, p.175).
Ao longo do tempo que permanece na função de contínuo no jornal, a “voz” Isaías
pouco se manifesta, na superfície do texto, enquanto personagem presente no tempo e no
espaço. Tal fato advém da posição subalterna que ocupa nessa fase do romance, pois se o
emprego conseguido revela um aspecto positivo ao tê-lo livrado da miséria total, a posição
que ele passa a ocupar na hierarquia do jornal violenta a consciência do jovem que, um dia,
lograra ser doutor, mas que, no entanto, acaba relegado ao silêncio que sua humilde função
permite. Apesar do conflito que começa a prenunciar-se no íntimo de Isaías, esse momento,
porém, revela que a chama da esperança ainda tremula em seu seio, pois ainda acredita que
sua atual condição pode ser superada por um esforço de vontade. E assim, confessa a seu
leitor: “no começo, custei a conformar-me com a posição de contínuo, mas consolei-me logo,
ao lembrar-me dos meus heróis do Poder da Vontade [...]” (1956a, p.175).
Desse modo, apesar de inserido no espaço urbano da capital e em face dos percalços
que já enfrentara Isaías não se abate e prossegue em sua determinação inicial: “Aceitaria
qualquer coisa, qualquer emprego... Recordei-me das minhas leituras, daquele Poder da
Vontade, das suas biografias heróicas: Palissy, Watt, Franklin... Sorri satisfeito, orgulhoso;
havia de fazer como eles” (LIMA BARRETO, 1956a, p.102).
Ao introduzir a obra O Poder da Vontade, da autoria de O. S. Marden, no romance
Recordações de escrivão Isaías Caminha, Lima Barreto dialoga com um autor cujo sucesso
era notável no Brasil da Primeira República. Considerado como um dos primeiros manuais de
132
autoajuda já publicados, a obra é produzida na perspectiva da cultura de massas nascente no
momento em que o país adentrava a modernidade. O livro transpira um certo liberalismo que
animou entusiastas do capitalismo nascente como o fora Isaías Caminha.
Verifica-se, assim, uma intensa intertextualidade entre Lima Barreto e a obra de O. S.
Marden apontada nas entrelinhas das Recordações. A presença de O Poder da Vontade no
romance faz-se presente já em suas páginas iniciais. Isaías recebe o livro de sua professora
Ester como prêmio pelo seu bom desempenho escolar ao longo ao longo dos estudos
preparatórios: “Daí a um ano, saí do colégio, dando-me ela como recordação, um exemplar do
“Poder da Vontade”, luxuosamente encadernado, com uma dedicatória afetuosa e lisonjeira.
Foi o meu livro de cabeceira.” (LIMA BARRETO, 1956a, p.47)
No contexto da vida de Isaías, o livro O poder da vontade funcionará como uma
espécie de conselheiro para as aflições e momentos de desânimo de Isaías. Essa ligação com
uma obra cujas intenções são duvidosas atesta a presença de certa mediocridade em Isaías,
que conduzia a sua existência a partir de obras populistas que induziam o desenvolvimento
pessoal enfatizando que a educação e o saber, por si só, funcionam como escadas de poder. O
jovem provinciano não percebia que esse modelo de sucesso oferecido por Marden, oriundo
de país norte-americano – e capitalista ao extremo, vendia “uma ideia ilusória cujo
ingrediente “saber + esforço = riqueza” constituía uma verdadeira armadilha ideológica para
pessoas ingênuas como Isaías Caminha que não percebia que a riqueza, o poder e o sucesso
não se realizam pela fórmula matemática a partir da qual dois e dois são quatro e, sim, por
uma lógica capitalista que encobre a verdade de que o enriquecimento se dá, muitas vezes,
mediante práticas criminosas baseadas na exploração do semelhante.
No entanto, em pouco tempo Isaías perceberia o potencial sofisma que se engendrava
nas páginas de seu livro de cabeceira. Empregado como contínuo, o Isaías que se dedicara a
seguir os preceitos dos heróis descritos por Orison Swett Marden percebe conteúdo fantasioso
dos ideais postos em O Poder da Vontade pouco tempo depois de assumir o cargo de contínuo
na redação do jornal. Instalado no cargo que, agora, lhe cabia, Isaías limita-se ao silêncio ao
qual sua posição subalterna prescrevia condição que, porém, não impedia que sua consciência
acovardada pudesse comprazer-se em face da nova situação, afinal, “eu tinha cem mil-réis por
mês. Vivia satisfeito e as minhas ambições pareciam assentes [...]” (LIMA BARRETO 1956a,
p.176) confessa o memorialista, ao deslocar para o foco da narrativa a voz do jovem Isaías, a
desvelar os sentimentos que sustentavam sua fragilidade resignada.
133
Apesar da bonança que o novo emprego suscitou em sua vida de privações, a mágoa
derivada dos embates com a sociedade ressoava insistente no coração do contínuo. Isaías
sofre ao sentir-se vitimado pela injustiça do mundo, porém, resigna-se diante de sua covardia,
o que denuncia uma atitude própria do ressentido. A mágoa embotada reverbera em seu
coração, o que mantêm vivas as lembranças dos danos sofridos e justifica a dificuldade em
perdoar as injúrias. Esse contexto de dores parece condenar Isaías ao ressentimento:
[...] Não fora só a miséria passada que assim me fizera; fora também a
ambiência hostil, a certeza de que um passo para diante me custava grandes dores,
fortes humilhações, ofensas terríveis. Relembrava-me da minha vida anterior; sentia
ainda muito abertos os ferimentos que aquele choque com o mundo me causara. Sem
os achar, em consciência, justos, acovardava-me diante da perspectiva de novas
dores e apavorei-me diante da imagem de novas torturas. Considerei-me feliz no
lugar de contínuo da redação do O Globo [...] (LIMA BARRETO, 1956a, p.176).
A confissão do jovem surge manifestada no discurso metafórico para revelar sua
resignação em face dos limites impostos pelos estigmas raciais que impediram o despontar de
suas potencialidades e, por consequência, sua ascensão social. É o que o jovem Isaías
confessa:
Eu tinha atravessado um grande braço de mar, agarrara-me a um ilhéu e não
tinha coragem de nadar de novo para a terra firme que barrava o horizonte a algumas
centenas de metros. Os mariscos bastavam-me e os insetos já se me tinham feito
grossa a pele... (LIMA BARRETO, 1956a, p.176).
Apesar do franco processo de maturação iniciada desde os primeiros obstáculos
interpostos em sua trajetória na capital, o Isaías que reinicia sua vida na humilde posição de
contínuo ainda conserva fortes laços com aquele jovem interiorano, cheio de ingenuidade que
desembarca na cidade grande, repleto de sonhos e crédulo na virtude humana. Assim, apesar
da ambiência de amoralidade que imperava na redação do jornal, Isaías mostra-se, sobretudo
em seus primeiros momentos, iludido e até mesmo seduzido pelo poder emanado daquela
instituição. Ilhado em sua função subalterna, no entanto, reconhecerá o lado torpe dos
profissionais do jornalismo: seus gestos mecânicos, suas opiniões inconsistentes, seu cinismo
mirabolante, seus atos pouco louváveis, sua hipocrisia, bem como sua completa falta de ética
no trato com o fato real frente ao modo de produzir a notícia. Isaías percebia o modo como as
notícias eram distorcidas pelos jornalistas, na redação:
134
Se havia um atentado anarquista ou um terremoto na Europa e o telegrama
era por demais conciso, Adelermo tinha o encargo de desenvolvê-lo, de explicá-lo,
de reconstruir a cena para o gosto público. Às vezes, pediam-se-lhe mais detalhes; o
diretor queria a descrição do complot, a cena da “sorte”, à lôbrega luz de uma
mansarda. Adelermo era obediente e fazia. Intimamente desgostava-se com aquele
papel de mentiroso; mas temia ser despedido, posto na rua. (LIMA BARRETO,
1956a, p.210).
Em diversos momentos, Isaías revela sua perplexidade diante da desfaçatez e
amoralidade que vigoravam entre os colegas do jornal:
Foi sempre coisa que me surpreendeu ver que amigos, homens que se
abraçavam efusivamente, com as maiores mostras de amigos, vinham ao jornal
denunciar-se uns aos outros. Nisso é que se alicerçou o O Globo; foi nessa divisão
infinitesimal de interesses, em uma forte diminuição de todos os laços morais. (
LIMA BARRETO, 1956a,p.190)
Conquanto tais apreciações se manifestem em face do ambiente distorcido do jornal,
Isaías permitirá sua cooptação pela “omnipotente Imprensa, o quarto poder fora da
Constituição!” (LIMA BARRETO, 1956a, P.174).
Insinua-se nesse Isaías tão oposto àquele sonhador e determinado jovem interiorano a
existência de uma espécie de pacto com a mediocridade que, prosperando vigorosamente no
meio jornalístico, alastra-se na consciência do contínuo que, além de se resignar à condição
imposta pela vida, inicia um processo de identificação com os “valores” reinantes no meio
jornalístico. Isaías crê que sua modesta função “[...] basta para satisfazer às suas carências
imediatas além de enfuná-lo com uma hora de vaidade quando é visto como “jornalista”, e até
“o doutor [...]” (BOSI, 2002, p.200).
Na medida em que se distancia do abismo da miséria, começa a sentir-se inebriado
pelo prestígio que observara ser próprio daqueles que atuavam no meio jornalístico e,
reconhecendo-se em condição inferior na hierarquia do jornal, sublima a si próprio e constrói
uma identidade que não condiz com a realidade da função subalterna que lá exercia.
Pressentindo a ameaça que rondava o seu narcisismo, Isaías investe, ainda que de modo
inconsciente, na criação de uma espécie de “personagem”, a fim de garantir formas de
sobreviver ao esfacelamento de seu orgulho ferido, bem como, por esse subterfúgio, garante
um abrigo para esse “eu” vulnerável em face das demandas de uma sociedade injusta,
135
preconceituosa e discriminadora. O seu instinto de preservação é acionado e, em meio ao
dilaceramento de seu “eu”, revela-se vaidoso e feliz em sua própria mediocridade:
De tal maneira é forte o poder de nos iludirmos, que um ano depois cheguei
a ter até orgulho da minha posição. Senti-me muito mais que um contínuo qualquer,
mesmo mais que um contínuo de ministro [...] participar de uma redação de jornal
era algo extraordinário, superior, acima das forças comuns dos mortais; e eu tive a
confirmação disso quando, certa vez, na casa de cômodos em que morava, dizendo-o
ao encarregado que trabalhava na redação do O Globo, vi o pobre homem
esbugalhar muito os olhos, olhar-me de alto a baixo, tomar-se de grande espanto
como se estivesse diante de um ente extraordinário. As raparigas que residiam junto
a mim, lavadeiras e costureiras, criadas de servir apelidaram-me “o jornalista”, e
mesmo quando vieram a ter exato conhecimento da minha real situação no jornal,
continuei a ser por esse apelido conhecido, respeitado e debochado. (LIMA
BARRETO, 1956a, p.177).
Em meio a seu conflito interior, seu instinto de preservação é acionado. Isaías torna-se
mesquinho, prepotente e arrogante. Percebe-se, nesse momento, a presença de sentimentos
como o orgulho, a inveja e o rancor a proliferar no íntimo de Isaías, todos oriundos da atitude
passiva do jovem. Isaías considera-se bom demais para se vingar e, por isso, continua
experimentando o sabor amargo do sofrimento. Isaías não se defende pela agressividade, mas
se transforma em uma pessoa invejosa, conforme podemos observar por meio do seguinte
comentário: “Fiquei enervado de orgulho pueril, tratando toda a gente com um desdém
sobranceiro, sentindo-me tocado, atingido por um pouco de grandeza que cabia ao Dr.
Loberant, ao Losque e ao inimitável Floc”. (LIMA BARRETO, 1956a, p.177).
Apesar da felicidade que revela sentir em face de sua condição de funcionário do
prestigiado periódico, Isaías é um homem atormentado. Derrotado frente à batalha que
empreendera em vão, instala-se na posição de vítima da brutalidade da sociedade que o
rejeitou. A fim de se proteger de possíveis ataques, veste a capa da soberba; porém, essa
conduta visa a encobrir uma grande angústia, resquício doloroso da rejeição sistematicamente
sofrida e da renúncia ao sonho de diplomar-se. Dominado pela covardia, consola-se por meio
da figura de profissional bem sucedido protegendo, assim, sua “integridade narcísica”
(KEHL, 2002, p.11).
Conforme as suas próprias palavras, a adaptação ao cargo de contínuo não ocorreu
rapidamente. A natureza sobranceira e vaidosa do prestigiado aluno do interior reagia à
posição humilde que o cargo ensejava. Desprovido de coragem para assumir os riscos
136
necessários à sua plena realização, resta-lhe a conformação amargurada e, no limite, a
sensação de proteção que o emprego oferecia a seu “eu” castigado pela hostilidade do mundo.
A relação com um Outro (o mundo jornalístico) que se apresentou tão avesso a ética, é um
fator desestabilizador na consciência de Isaías, pois, ainda que ao ingressar no novo ofício ele
já houvesse desenvolvido, nos embates com a realidade, um tímido e precário “olhar crítico”
que lhe permitira, em raros momentos de lucidez, perceber o modo avesso pelo qual se
estruturava a empresa jornalística, ele se verá esmagado pela desordem moral que fareja nas
ações implementadas pela classe jornalística.
Porém, com o tempo e com a convivência no meio jornalístico, o poder e o prestígio
que dele emanavam contaminam o jovem que, aos poucos, perde suas referências culturais e
morais; em breve tempo as suas ideias vão se transformando e, na medida em que se acirram
os embates, suscitam-se também diferentes tomadas de posição. Isaías vai se modelando ao
meio, que, por sua vez, plasma sentimentos cada vez mais medíocres em seu íntimo.
Aniquila-se, assim, o seu já fragilizado “eu crítico” e Isaías imiscui-se na mediocridade
reinante no jornal, adotando a mesma postura de soberba e empáfia que caracterizava os
demais membros do jornal O Globo. A apresentação desta “página” de sua vida é feita pelo
memorialista – o Isaías da maturidade –, que narra com uma forte dose de autoironia a sua
capitulação ao status de funcionário do jornal mais importante do Rio de Janeiro. Assim, em
suas memórias, apresenta de que modo manteve-se iludido por um ilusório prestígio que à
época julgava haver conquistado por fazer parte de tão importante instituição e, assim,
confessa:
Em menos de ano e tanto, tinha já construído uma pequena consciência
jornalística para meu uso. Julguei-me superior ao resto da humanidade que não pisa
familiarmente no interior das redações e cheio de inteligência e de talento, só porque
levara tinta aos tinteiros dos repórteres e dos redatores e participava assim de um
jornal, onde todos têm gênio. (LIMA BARRETO, 1956a, p.177).
Ao longo do percurso empreendido no jornal mais prestigiado da capital, despoja-se
de seus sonhos, ao mesmo tempo em que vai anestesiando a sua alma. Torna-se insensível,
cria uma espécie de escudo de proteção contra o mundo. Abandona os hábitos que até então
“nutriam” sua alma. Abandona-se ao sabor do destino e da vontade alheia e, o pior, abandona-
se a si mesmo. Reconhece que não quer mais estudar, ler ou fazer cálculos. Isaías havia
decaído moralmente – era, agora, um covarde...
137
Houve mesmo um dia em que quis avaliar ainda o que sabia. Tentei repetir
a lista dos Césares – não sabia; quis resolver um problema de regra de três
composta, não sabia; tentei escrever a fórmula da área da esfera, não sabia. E notei
essa ruína dos meus primeiros estudos cheio de indiferença, sem desgosto,
lembrando-me daquilo tudo como impressões de uma festa a que fora e a que não
devia voltar mais. Nada me afastava da delícia de almoçar e jantar por sessenta mil-
réis mensais (LIMA BARRETO, 1956a, p.246).
Porém, o lance decisivo da juventude de Isaías ocorrerá quando de sua promoção no
âmbito da redação do jornal. Alguns anos separam o ingresso como contínuo no jornal e a sua
ascensão à prestigiada posição de jornalista. Essa elevação profissional, ocorrida não por
mérito, mas por um golpe do acaso, lança-o em uma nova etapa de sua vida: Floc, o
prestigiado crítico literário do jornal, suicidara-se, em meio a uma crise de escritor em débito
com sua consciência. Enviado ao diretor do jornal para avisá-lo do triste acontecimento, Isaías
flagra o patrão em uma situação delicada, em meio a mulheres, em um bordel. Essa situação
colabora para que Loberant, o poderoso diretor do O Globo, que não desejava que seus
segredos viessem a público, favoreça a promoção do contínuo ao cargo de jornalista na
redação de seu jornal.
O pesquisador Carlos Erivany Fantinati em sua obra O Profeta e o Escrivão (1978)
apresenta o modo como Isaías sucumbe à pequenez espiritual ao investir-se do cargo de
jornalista. Nesse momento já não há resquício do jovem sonhador, pois o Isaías que
conquista o sucesso transformara-se em um antípoda de si mesmo:
O processo de transformação no seu contrário atinge o ponto estremo com
seu empenho em condensar em si todos os elementos que caracterizam as figuras
triunfantes no meio urbano. N’O Globo esforça-se por assimilar as técnicas e
procedimentos rotineiros que utilizam (FANTINATI, 1978, p.94)
Tal postura denuncia a presença do ressentimento em Isaías, na medida em que de
acordo com Maria Rita Kehl (2004), é próprio ao sujeito ressentido desdenhar aquilo que não
tem: “queria-me um homem do mundo, sabendo jogar, vestir-se, falar às mulheres” (1956a,
p.282) Isaías criticava a conduta de seus companheiros de trabalho, porém na primeira
oportunidade adota as mesmas posturas que tanto desdenhou nos demais, fato que comprova
que, finalmente Isaías aspirava à vida cosmopolita, bem sucedida e semelhante a dos colegas
do jornal. Isaias desejava, enfim ser um homem urbano. Assim que assume o cargo de
jornalista Isaías sofre a metamorfose da mediocridade:
138
Aprendi com o Losque a servir-me dos outros jornais, a receber inspirações
deles, a calcar os meus artigos nos seus. Como Losque, norteei-me para as revistas
obscuras, dessas que ninguém lê nem os jornais dão notícia. Havia nelas uma
pequena ideia, eu desenvolvia-a, enxertava umas considerações quaisquer. Não foi
Losque quem me ensinou, foi a minha sagacidade que descobriu e tirou, dela os
ensinamentos. Quando deixava na mesa a sua biblioteca ambulante, eu corria um e
outro jornal e cotejava os seus artigos, as suas pilhérias, com o que escrevia no
jornal. Ele não lia senão jornais. Aprendia finanças, economia política, estatística
nos periódicos de França, de Portugal e da Argentina; neles, colhia citações de
autores célebres, poetas, filósofos e sociólogos. (LIMA BARRETO, 1956a, p.277)
Já investido na posição de repórter, desfruta das benesses que o cargo lhe faculta:
passa a ser adulado e prestigiado pelas altas autoridades, requisitado pelos que fazem da
imprensa um trampolim para a glória, prestigiado pelos poderosos da imprensa. Isaías,
inicialmente, sente-se confortável diante da radical transformação operada em sua existência
após a investidura no cargo de jornalista; no entanto, consciente das falácias que sustentam
seu poder no jornal, reflete acerca da essência do ser humano:
Nos meus primeiros meses de reportagem foi quando amei mais ativamente
a vida. Não porque me visse adulado pelos almirantes e capitães-de-mar-e-guerra,
mas porque senti bem a variedade omnímoda da existência, a fraqueza dos grandes,
a instabilidade das coisas e o seu fácil deslizar para os extremos mais opostos. Dois
meses antes era simples contínuo, limpava mesas, ia a recados de todos; agora,
poderosas autoridades queriam as minhas relações e a minha boa vontade. (LIMA
BARRETO, 1956a, p.273)
Porém, apesar da conquista profissional funcionar como uma espécie de reparação às
dores sofridas ao longo de sua trajetória, após a elevação de seu status no jornal, surge um
travo de amargura no íntimo de Isaías o qual creditamos a um “espasmo” de integridade que,
ao se instalar na consciência do jovem, o impediu de desfrutar plenamente da vitória
“conquistada”. Afinal, houvera ignorado a mãe moribunda, tornara-se indiferente e frívolo,
covarde e mesquinho, e aceitara um emprego de pacotilha que não houvera conquistado pelos
seus próprios méritos; enfim corrompera-se pelo poder e pelos luxos confortáveis. Essa dura
verdade pesava na consciência do ex-contínuo que se atormenta pela sua fraqueza e falta de
perseverança. É o que entrevemos nas reflexões de Isaías:
Eu sentia bem o falso da minha posição, a minha exceção naquele mundo;
sentia também que não me parecia com nenhum outro, que não era capaz de me
139
soldar a nenhum e que, desajeitado para me adaptar, era incapaz de tomar posição,
importância e nome. (LIMA BARRETO, 1956a, p.282)
A decisão partir do Rio de Janeiro para uma província distante do interior do país
advém do conflito instaurado no homem Isaías, dividido entre a identidade perdida e aquela
conquistada de modo falso e diverso daqueles ideais que o guiavam, quando da busca por
objetivos iniciais. Reconhece que fora cooptado pelo poder que sempre desejara possuir, no
entanto, diante dessa inescapável verdade, ressurgem os valores morais abandonados durante
o convívio com os agentes corruptores que encarnavam a imprensa do país e a sociedade
como um todo. Assim, acionam-se mecanismos de defesa em Isaías que pudessem sustentar
sua integridade moral que se perdera ao longo do processo de modelagem a que fora
submetido, durante o convívio com o mundo real. Ainda que usufrua dos privilégios
garantidos pela posição alcançada, Isaías reconhece que, em nenhum momento, ao longo de
sua caminhada, elevou-se moralmente, antes sucumbindo à imoralidade reinante no meio.
Esse “eu” conflituoso agoniza diante do reconhecimento da vida desperdiçada e dos erros
cometidos, de onde surge o questionamento fatal: “Que tinha eu feito? Que emprego dera à
minha inteligência e à minha atividade?” (LIMA BARRETO, 1956a, P.287), indaga-se o
angustiado Isaías.
Essas dúvidas suscitadas no coração de Isaías são seguidas por lembranças que
atualizam o sentimento de derrota que o acometera, quando do abandono dos sonhos que,
acalentados em sua primeira juventude, foram esmagados, peremptoriamente, por sua
covardia
Lembrava-me... Lembrava-me de que deixara toda a minha vida ao acaso e
que a não pusera ao estudo e ao trabalho de que era capaz. Sentia-me repelente,
repelente de fraqueza, de falta de decisão... (LIMA BARRETO, 1956a, p.287).
É com pesar que lamenta o destino que deu à sua vida, frustrada em seu início
promissor. A passividade embota o entusiasmo, frustra o sonhador que confessa a si mesmo:
“às minhas aspirações, àquele forte sonhar da minha mocidade e eu não tinha dado as
satisfações devidas” (LIMA BARRETO, 1956a, p.288).
Diante dessa confissão, podemos perceber que Isaías foi tomado pelo arrependimento.
Nesse momento, Isaías é capaz de assumir a responsabilidade pelo que falhou em sua vida, o
que revela não ter perdido totalmente a lucidez, bem como se manifesta uma disponibilidade
psíquica para o esquecimento da mágoa.
140
Porém, essa lucidez em Isaías mostra-se fugaz, na medida em que sua pseudo mea
culpa é atravessada pela certeza narcísica que insiste em endereçar a um Outro (a sociedade
preconceituosa) a culpa pelos seus fracassos, o que revela “que o arrependimento pode, às
vezes, se transformar em lamento sem fim” (KEHL, 2006, p.23).
A má vontade geral, a excomunhão dos outros tinham-me amedrontado,
atemorizado, feito adormecer em mim o Orgulho, com seu cortejo de grandeza e de
força. Rebaixara-me, tendo medo de fantasmas e não obedecera ao seu império
(LIMA BARRETO, 1956a, p.288)
Assim, para além do arrependimento, Isaías se mostra fiel ao sofrimento que lhe fora
imposto devido à sua condição racial e social. Não faz concessões a si mesmo, tampouco às
suas possíveis necessidades. Encena, desse modo, uma espécie de autopunição. Sua decisão
de partir da capital para assumir a função de escrivão em um distante rincão do país revela sua
rejeição ao “prêmio” de consolação que a projeção profissional lhe conferira. Era necessário
refazer seu caminho a fim de desvendar os motivos que o desviaram de seus sonhos
inaugurais. Assim, Isaías perpetua-se no papel de vítima inocente, concentrando-se na
ruminação das mágoas advindas dos embates com a sociedade, com o racismo e com a
discriminação aos quais creditava a responsabilidade por seus fracassos. Isaías parte do Rio,
mas leva com ele um “eu” empobrecido, ferido pelas mágoas que não consegue esquecer,
sentindo-se prejudicado pela sociedade que não o acolheu, antes esmagando seus fervorosos
sonhos juvenis; e é essa incapacidade de superação e de comprometimento com a cota de
responsabilidade que lhe cabe que faz do Isaías maduro um homem do ressentimento, pois
“[...] o ressentido traduz a falta como prejuízo cuja responsabilidade é sempre de um outro
contra quem ele dirige insistentemente um rosário de queixas e de acusações [...]” ( KEHL,
2004, p.33).
2.4. (Re) sentimentos e recordações: as voltas que o coração dá
Qualquer coisa muito obscura na minha estrutura
mental, talvez mesmo o sentimento da lógica da
141
hostilidade de que me via cercado, impedia-me de reagir
ativa ou passivamente. Agachava-me por detrás do meu
espírito e então bebia em largos prantos o fogo claro,
claro que enche os límpidos espaços e, por instantes era
feliz [...] (Lima Barreto, Histórias e sonhos, 1956)
O mote para o projeto literário empreendido pelo escrivão Isaías Caminha tem por
objetivo combater a tese que, estampada em uma revista nacional, afirmava ser o fracasso do
negro devido a uma incapacidade intelectual própria a todos os indivíduos dessa etnia. No
prefácio de sua obra, denuncia o que lera na citada revista:
Nela um de seus colaboradores fazia multiplicadas considerações desfavoráveis à
natureza da inteligência das pessoas do meu nascimento, notando a sua brilhante
pujança nas primeiras idades, desmentida mais tarde, na madureza, com a fraqueza
dos produtos, quando os havia, ou em regra geral, pela ausência deles (LIMA
BARRETO, 1956a, p.40).
O teor da matéria impressa indigna Isaías, que experimenta sentimentos de ódio em
face do que considerava injusto e preconceituoso. O desejo de combater as acusações
gravadas nas páginas da revista o induz a mergulhar em seu passado, visando a extrair dele
elementos que fornecessem argumentos favoráveis à refutação das abomináveis ideias lidas.
Porém, no breve balanço que faz inicialmente, as conclusões não se revelariam promissoras...
Mentalmente comparei os meus extraordinários inícios nos mistérios das letras e das
ciências e os prognósticos dos meus professores de então, com este meu triste e
bastardo fim de escrivão de coletoria de uma localidade esquecida.
Por instantes, dei razão ao autor do escrito (LIMA BARRETO, 1956a, p.41).
A conclusão advinda dessa comparação apresenta-se terrivelmente cruel aos olhos de
Isaías e o conduz a refletir detidamente acerca dos fatos ligados à sua vida pregressa, o que
faz brotar um sentimento melancólico em seu coração, pois ele começa a perceber que o
percurso de sua existência condiz com as reflexões postas no artigo:
Verifiquei, que, até ao curso secundário as minhas manifestações,
quaisquer, de inteligência e trabalho, de desejos e ambições, tinham sido recebidas,
senão com aplauso ou aprovação, ao menos como coisa justa e do meu direito; e que
daí por diante, dês que me dispus a tomar na vida o lugar que parecia ser de meu
142
dever ocupar, não sei que hostilidade encontrei, não sei que estúpida má vontade me
veio ao encontro, que me fui abatendo, decaindo de mim mesmo, sentindo fugir-me
toda aquela soma de ideias e crenças que me alentaram na minha adolescência e
puerícia (LIMA BARRETO, 1956 a, p.41).
Em face do espelho de seu passado, Isaías avista a imagem do fracasso a se insinuar
em sua existência...
Não sei bem o que cri; mas achei tão cerrado o cipoal, tão intrincada a
trama contra a qual me fui debater, que a representação da minha personalidade na
minha consciência, se fez outra, ou antes esfacelou-se a que tinha construído.
(LIMA BARRETO, 1956a, p.41)
Ao longo da retomada de seu passado, Isaías engendra o fatos, encaminhando a causa
dos infortúnios sofridos a agentes externos a sua vontade. As causas de seu sofrimento e do
fracasso que imputa a si mesmo, testemunha sua memória, não estariam atreladas à sua
responsabilidade, mas à sociedade e a sua brutal capacidade de esmagar aqueles que não
atendem aos padrões por ela exigidos, padrões que funcionam como uma espécie de
passaporte para a felicidade e o bem estar.
Insinua-se, nesse momento, a presença do ressentimento no personagem Isaías, o qual
em sua maturidade procura negar a sua participação nos fracassos de sua vida. Sua memória
ativada pelas tristes lembranças encontra no meio social um alvo a quem direcionar as suas
queixas. A culpa por seus fracassos é delegada, sobretudo, ao preconceito racial que,
preponderando na sociedade elitista, o teria impedido de alcançar o sucesso tão ansiado. Mas
nem só a face racista se expõe no meio hostil da sociedade: há, também, as políticas de
privilégios e de apadrinhamento a interditar o avanço dos pobres e desprotegidos; e é munido
dessas certezas que Isaías inscreve no prefácio de seu livro a definitiva razão que o moveu a
produzir a sua biografia
E foram tantos os casos dos quais essa minha conclusão ressaltava, que
resolvi narrar trechos de minha vida, sem reservas nem perífrases, para de algum
modo mostrar ao tal autor do artigo, que, sendo verdadeiras as suas observações, a
sentença geral que tirava, não estava em nós, na nossa carne e nosso sangue, mas
fora de nós, na sociedade que nos cercava, as causas de tão feios fins de tão belos
começos (LIMA BARRETO, 1956a, p42).
Isaías não se vê como um perdedor, mas como um “prejudicado”; e é com a certeza de
que fatores externos à sua vontade o prejudicaram que escreve, ainda, em seu prefácio:
143
Não é meu propósito também fazer uma obra de ódio; de revolta enfim;
mas uma defesa a acusações deduzidas superficialmente de aparências cuja essência
explicadora, as mais das vezes, está na sociedade e não no indivíduo desprovido de
tudo, de família, de afetos, de simpatias, de fortuna, isolado contra inimigos que o
rodeiam, armados da velocidade da bala e da insídia do veneno (LIMA BARRETO,
1956a, p.42).
Ao elaborar o inventário de suas memórias, o Isaías da maturidade recupera a história
de sua vida, evocando de modo plangente os conflitos inerentes à sua trajetória na capital,
bem como as transformações que se operaram em seu íntimo, em face dos sofrimentos
experimentados. Cabe ressaltar que, no momento em que revisita seu passado, o narrador, já
desenganado, sabe que suas esperanças irão sucumbir, o que, no contraponto entre a amargura
do adulto e a ingenuidade do jovem, garante o tom merencório de sua narrativa.
O Isaías que traz à tona as lembranças que marcaram a sua vida é um homem
ressentido. Distante no tempo e no espaço do cenário onde se orquestrou a sua trajetória
frustrada rumina em sua solidão a mágoa fecundada em seu coração ao longo da juventude.
Assim, seu ressentimento é tanto a expressão do mal-estar frente ao fracasso de seus
primitivos anseios de grandeza em comparação com o que foi efetivamente conquistado ao
longo dos anos em que permaneceu na capital do país como contínuo, quanto um produto da
hostilidade social da qual julgava haver sido vítima. No ato da escrita das memórias, as
lembranças de Isaías surgem como um lamento: “escrevendo estas linhas, com que saudades
me não recordo desse heroico anseio dos meus dezoito anos esmagados e pisados!” (LIMA
BARRETO, 1956a, p.103).
Isaías dá destaque ao fato de que, desde a sua chegada à capital, muitos foram os
infortúnios que se abateram sobre ele. Houvera sido ludibriado pelo deputado Castro,
caluniado como suposto autor do roubo ocorrido no hotel em que vivia, e repelido pelo
simples fato de habitar uma pele negra. Além disso, havia ainda a prevenção do padeiro e as
atormentadoras lembranças da ofensa e do desrespeito por parte da autoridade policial, que
além de denominá-lo pelo epíteto de “mulatinho”, ainda o conduz ao xadrez...
Fui para o xadrez convenientemente escoltado. Pelo caminho, tudo aquilo me
pareceu um pesadelo [...] detido como um reles vagabundo num xadrez degradante.
Entrei aos empurrões; desnecessários aliás, porque não opus a menor resistência. As
lágrimas correram-me e eu pensei comigo: A pátria! (Lima Barreto, 1956a, p.118).
144
Em face desses obstáculos, adota uma postura de conformação, impedindo-se à
saudável capacidade de reagir, para assim salvar-se do ressentimento. Entretanto, se Isaías não
se revela capaz de reagir aos agravos sofridos, o que lhe permitiria o esquecimento e um
posterior redirecionamento da sua existência, restou-lhe, apenas, ressentir.
E de que o Isaías da maturidade se ressente? Contra tudo o que lhe fora negado em sua
juventude. Ressente-se pelos sonhos interrompidos precocemente, ressente-se da sociedade
cujos preconceitos que, ora velados, ora de modo flagrante, manifestaram-se relegando sua
existência a uma posição marginal em face daquela a que um dia almejara por acreditar na
utopia moderna de que o “sol da liberdade” brilhava para todos, independentemente da cor de
sua pele ou posição social e econômica, ressente-se de sua inferioridade e de sua fraqueza e,
sobretudo, ressente-se de si mesmo. Sua fraqueza o impedira de lutar pela conquista de seus
ideais. Fora submisso, não protestara, calara sua indignação, deixara-se modelar pela
sociedade, tornando-se egoísta, presunçoso e desumano. Em sua maturidade, ressoam ainda os
desgostos que se instalaram em seu ser quando declina suprimido pela constatação da própria
mediocridade...
Sentia-me sempre desgostoso por não ter tirado de mim nada de grande, de
forte e ter consentido em ser um vulgar assecla e apaniguado de um outro qualquer.
Tinha outros desgostos, mas esse era o principal. Por que o tinha sido? Um pouco
pelos outros e um pouco por mim. (LIMA BARRETO, 1956a, p.288)
Relembra que no ápice de seu narcisismo renegara sua mãe, a grande referência da
condição racial que estava na sua origem, a quem negara por pura covardia e desumanidade.
Isaías havia se reificado, adotando uma personalidade em tudo oposta àquela que determinara
sua individualidade no momento em que decide partir para a capital, conforme no aponta ao
compor suas memórias:
Embora minha mãe tivesse afinal morrido havia dois meses, eu não tinha
sentido senão uma leve e ligeira dor. Depois de empregado no jornal, pouco lhe
escrevi. Sabia-a muito doente, arrastando a vida com esforço. Não me preocupava...
Os ditos do Floc, as pilhérias de Losque, as sentenças do jovem Deodoro Ramalho,
tinham feito chegar a mim uma espécie de vergonha pelo meu nascimento, e esse
vexame não me veio diminuir em muito a amizade e a ternura com que sempre
envolvi a sua lembrança. Sentia-me separado dela. Enquanto a julgava a espécie de
besta de carga e máquina de gracejos com aqueles idiotas a abrangiam no seu
pensamento genuíno eu, seu filho, julgava-me a meus próprios olhos muito diverso
145
dela, saído de outra estirpe, de outro sangue e de outra carne (LIMA BARRETO,
1956a, p.245).
No momento em que escreve suas memórias, Isaías já não é mais o jovem que
desembarcara na cidade grande com o coração a pulsar diante do futuro promissor que se
descortinava aos seus olhos ingênuos de sonhador, mas o escrivão Isaías Caminha, homem
maduro, porém, ferido em seu íntimo pelo sofrimento e pelo desencanto, advindos da
destruição dos sonhos que o embalaram em sua juventude e o conduziram a partir para a
capital do país para “vencer na vida”.
Vivendo quase em total solidão, como o próprio Isaías afirma “vivo só, isto é, sem
relações intelectuais de qualquer ordem” (LIMA BARRETO, 1956a, p.120-121), revela não
falar a ninguém sobre suas lucubrações mentais. Apenas lembra e ao lançar-se à ação da
escrita, ao difícil trajeto de volta ao passado que suas lembranças percorrem, entre o coração e
a palavra escrita, Isaías vê-se possuído por um grande sofrimento. Ao modo romântico,
confessa não encontrar palavras para se expressar:
É esta passagem do xadrez que me faz vir estes pensamentos amargos.
Imagino como um escritor hábil não saberia dizer o que eu senti lá dentro. Eu que
sofri e pensei não o sei narrar. Já por duas vezes, tentei escrever; mas relendo a
página, achei-a incolor, comum, e, sobretudo, pouco expressiva do que eu de fato
tinha sentido. Estive no xadrez mais de três horas, depois fui de novo à presença do
delegado (LIMA BARRETO, 1956a, p.122)
Isaías reafirma o porquê de seu empreendimento literário e suas queixas reiteradas
atualizam a mágoa silenciada ao longo dos anos diante da injustiça sofrida. A hostilidade e o
descaso com que fora tratado são dores que Isaías não se permite esquecer:
Quem sabe se ele me não vai saindo um puro falatório?! Eu não sou
literato, detesto com toda a paixão essa espécie de animal. O que observei neles, no
tempo em que estive na redação do O Globo, foi o bastante para não os amar, nem
os imitar. São em geral de uma lastimável limitação de ideias, cheios de fórmulas,
de receitas, só capazes de colher fatos detalhados e impotentes para generalizar,
curvados aos fortes e às ideias vencedoras, e antigas, adstritos a um infantil
fetichismo do estilo e guiados por conceitos e um pueril e errôneo critério de beleza.
Se me esforço por fazê-lo literário é para que ele possa ser lido, pois quero falar das
minhas dores e dos meus sofrimentos ao espírito geral e no seu interesse, com a
linguagem acessível a ele. É esse o meu propósito, o meu único propósito (LIMA
BARRETO, 1956a, p.119).
146
Talvez seja possível afirmar que Isaías se compraz com a dor sentida, ou melhor,
sente-se bem ao expor ao mundo sua posição de vencido em face dos inimigos imbatíveis com
os quais deparou. Enfim, é a grande vítima que se empenha em produzir um libelo contra as
injustiças que imperam no meio social, a fim de livrar os demais indivíduos, da mesma sorte
de infortúnios que conheceu em sua juventude. É o que afirma quando destaca seu empenho
em produzir sua obra confessional:
Se me esforço por fazê-lo literário é para que possa ser lido, pois quero
falar de minhas dores e dos meus sofrimentos ao espírito geral e no seu interesse,
com a linguagem acessível a ele. É este meu propósito, o meu único propósito.
(LIMA BARRETO, 1956a, p.120).
Não obstante essa postura, aparentemente ética, encontra-se a sombra do
ressentimento de um homem que se sentindo vencido, nega-se, no entanto, a assumir sua
parcela de responsabilidade nos eventos que o levaram à derrota. Maria Rita Kehl (2004)
aponta a relação entre a ética e o ressentimento:
Embora o ressentido se coloque sempre em posição de vítima inocente e
uma injustiça, uma ofensa, um complô, sua posição não é tão ética quanto ele
pretende, pela simples razão de que ela sustenta a recusa do sujeito em
responsabilizar-se por suas escolhas. O que o ressentido não arrisca, acima de tudo,
é seu narcisismo [...] (KEHL, 2004, p.22).
Durante o processo de reelaboração de suas memórias, Isaías fareja os rastros deixados
pelo jovem Isaías na sua vida adulta. O que teria ocorrido com a personalidade do rapaz
lutador e perseverante? Em que momento sua covardia havia tomado o lugar de seus sonhos?
Essas respostas, porém, Isaías não possuía. Ao escrever, contempla seu passado e reencontra o
jovem contínuo. Observa sua posição submissa, seu sentimento de inferioridade e sua
consciência corrompida pela vaidade em face da posição que conquistara. Seu modo irônico
em face do sucesso que acreditava haver conquistado é um índice de que o Isaías maduro e
derrotado pela sua própria covardia está conseguindo superar, por meio da escrita, o
ressentimento que o dominava desde o momento em que, ainda como jornalista bem
sucedido, decide retornar ao interior para exercer a função de escrivão. A atitude irônica que
adota ao lembrar-se de si mesmo é o modo pelo qual Isaías demonstra a mediocridade em que
chafurdou no passado; assim, seu é tom irônico quando reflete:
Depois de acobardado, tornei-me superior e enervado e não tentei mais
mudar de situação, julgando que não havia no Rio de Janeiro lugar mais digno para
147
o genial aluno de Dr. Ester que o de contínuo numa redação sagrada. Não estudei
mais, não mais abri livro. Só a leitura d’O Globo me agradava, me dava prazer
(LIMA BARRETO, 1956a, p.177).
Ao rememorar o passado, com os olhos da sabedoria adquirida pelos anos, Isaías
reflete sobre os rumos que sua vida tomara e vê-se obrigado a ponderar acerca dos frágeis
limites do ser humano em sua trajetória na civilização. A escrita das memórias põe em
confronto o Isaías adulto e o jovem Isaías e abre o caminho para a cura do ressentimento que
ocorre pela compreensão de que o mundo nem sempre garante a premiação dos melhores. Ao
trilhar ou “caminhar” por seu passado, o Isaías da maturidade reencontra-se consigo mesmo.
Assim, sua cura começa a delinear-se, a partir da compreensão de que o mundo não é o
espaço do bem e da solidariedade, funcionando, antes, como um palco de dores e amarguras,
sobretudo para aqueles que, assim como ele, apostavam no ideal individualista de vencer,
sozinho, pelos próprios méritos. Isaías percebe que sua trajetória redundara em fracasso.
Reconhece que, havendo introjetado em seu ser valores captados do ideário da elite, sonhara
em beneficiar-se dos valores que julgava serem inerentes a todos os cidadãos brasileiros,
quando, na realidade, determinados valores encontram-se vetados àqueles que não
compartilham do minoritário grupo formado pela elite endinheirada. Essa tomada de
consciência leva-o a retirar a máscara de indivíduo moralmente superior e ensina-o a jogar o
jogo da vida, sempre arriscado, mas que se revela como a única forma de alcançar o sucesso e
o poder e, finalmente, a felicidade. Isaías não quer mais ser um perdedor e sim romper com a
interdição que a sociedade impõe aos indivíduos de seu nascimento. Dessa nova concepção
surge o “terceiro” Isaías, homem pacificado em face do martírio de seu passado, apartado de
seu projeto literário, porém cônscio de que a igualdade desejada só será alcançada na medida
em que ele empreender forças para conquistá-la o que faz lançando-se à carreira política.
As notícias de “novo Isaías” surgem pela boca de Lima Barreto, amigo e editor das
“Recordações” que se manifesta no prólogo intitulado como “Breve Prefácio” para revelar o
destino de Isaías, após a produção de sua obra literária.
A Breve Notícia tem oferecido matéria para discordância entre os críticos do autor
Lima Barreto que envidaram esforços ao longo dos tempos para compreender o intricado
caminho que o autor carioca traçou nesse momento da trama.
Tais discordâncias advêm das diversas “dissimulações” que atreladas ao conteúdo do
prefácio funcionam ao modo de uma armadilha para o leitor. Inicialmente, algo já nos alerta
148
quanto ao caráter ambíguo do prefácio: a presença de dois narradores quais sejam, Isaías
personagem e o próprio Lima Barreto, situados, no entanto, em tempos distantes. As notas
escritas por Caminha datam de 1905, enquanto que aquelas produzidas por Lima Barreto,
amigo e prefaciador de Isaías situam-se no ano de 1916. É importante lembrar, porém que a
primeira edição da obra, datada de 1909 não inclui a Breve Notícia. Contudo, na edição
incompleta das “Recordações”, publicadas na Revista Floreal, em 1907, contava a parte do
prefácio cuja “voz” do Isaías escrivão se manifesta. Convém ainda destacar que o prefácio
completo, ou seja, aquele que é composto pelo discurso de Isaías, personagem fictício e pelo
de Lima Barreto, autor “real”, só figurará na segunda edição do romance, momento em que a
edição é revista e aumentada. O que nos leva a questionar: o que desejaria Lima Barreto com
tamanha artimanha?
Estudioso da obra Recordações do escrivão Isaías Caminha, Carlos Fantinati (1978)
aponta que Lima Barreto possuía uma grande expectativa em relação à publicação de seu
primeiro romance, ocorrida no ano de 1909. No entanto, a expectativa transformou-se em
frustração, pois a crítica viu no romance apenas uma construção à clef, cujo único intuito seria
o de espicaçar a prestigiada cena jornalística da época ao expor deliberadamente, conhecidos
jornalistas da imprensa carioca. Em face da recepção negativa de seu romance, Lima Barreto
decide incluir o prefácio completo, tal qual é concebido nas edições atualizadas, apenas em
1917, quando da publicação da segunda edição da obra. O pesquisador manifesta-se acerca do
prefácio opinando sobre a dúvida que a Breve Notícia suscita:
Cremos estar vinculada ao intuito de se propor uma leitura pertinente da obra,
que teria sido decodificada de um modo parcial e intencional pelos críticos que se
pronunciaram sobre ela, após sua primeira aparição em 1909. Detiveram-se eles
quase que exclusivamente sobre o aspecto “à clef” do romance, escapando-lhes a
percepção da obra como realização estética global. Esse interesse da crítica [...]
sobre a faceta “h” da obra desagradou Lima Barreto que viu suas expectativas
frustradas com essa parcialidade. (FANTINATI, 1978, p.51).
Frente à oposição e mal-estar causados quando da publicação da primeira edição das
“Recordações” podemos compreender os porquês da inclusão do prefácio na segunda edição e
ao mesmo tempo responder a nossa dúvida. Ocorre que ao publicar o prefácio definitivo com
as notas produzidas por Caminha, bem como aquelas produzidas pelo próprio Lima Barreto,
no momento transformado em personagem – o editor e amigo de Isaías; buscava a
consolidação do argumento principal contido no romance e que ninguém observou, devido ao
149
foco que a crítica conferiu à perspectiva à clef. Por isso o tom agressivo, observado por
Fantinati do prefaciador Lima Barreto. Vejamos o que o pesquisador nos informa acerca do
que Lima Barreto desejou comunicar pela presença de Isaías no prefácio das memórias do
escrivão Isaías:
Nessas notas, acrescidas como introdução e conclusão ao escrito de 1905,
não passa despercebido um nítido tom agressivo por parte de Lima Barreto. Isaías
Caminha que encontrara na literatura um caminho para opor-se à sociedade
opressora e agressora, colocada como obstáculo a sua trajetória existencial, aparece
aí como alguém que renega suas críticas ásperas contra o meio social, para
acomodar-se a ele e ascender como político. De uma ou outra perspectiva, ainda,
pode-se observar que Lima Barreto, ao ajustar socialmente a personagem, torna-o
como matéria de crítica, envolvendo indiretamente na censura que lhe faz, a
sociedade que o recebeu, assumindo, ele próprio e, abertamente, papel do pseudo-
narrador, como que para não ficar nenhuma dúvida com relação a sua postura em
face dela. (FANTINATI, 1978, p. 58-59).
Pelas ações empreendidas pelo escrivão após o abandono do projeto literário,
compreendemos que, ao cabo dos anos, Isaías reconsidera seus valores e rende-se às pressões
sociais para assumir, triunfante, uma nova posição no estrato social. Descartados os pruridos
de consciência que o impeliram a abandonar tanto o prestigiado cargo de jornalista na capital,
quanto o status que a posse desse cargo garantia, Isaías passa a compactuar com os meios que
a sociedade oferece para aqueles que desejam alcançar o sucesso e o poder. Tal postura
denota uma franca adesão aos mesmos valores corrompidos que ele combatera em sua vida
pregressa:
[...] após dez anos, tantos são os que vão da composição das Recordações
aos dias que correm, o meu amigo perdeu muito da sua amargura, tem passeado pelo
Rio com belas fatiotas, já foi ao Municipal, freqüenta as casas de chá; e, segundo me
escreveu, vai deixar de ser representante do Espírito Santo, na Assembléia Estadual,
para ser, na próxima legislatura, deputado federal. Ele não se incomoda mais com o
livro; tomou outro rumo. Hei de vê-lo em breve entre as encantadoras, fazendo o tal
footing domingueiro, no Flamengo, e figurando nas notícias elegantes dos jornais.
Isaías deixou de ser escrivão. Enviuvou sem filhos, enriqueceu e será deputado.
Basta. (LIMA BARRETO, 1956a, p.43).
Esse Isaías que surge triunfante, a desfilar seu sucesso pelo mesmo espaço em que
ruminara anos de fracasso, já não é um homem ressentido, apesar de seu cinismo latente. A
obra que Isaías produz funciona ao modo de uma vingança, o que favorece a dissolução dos
150
sentimentos negativos que o impediam de reformular sua vida e, assim, prosseguir em direção
à conquista de seus ideais. Por meio da escrita de seu livro, “exorciza” os males que o
acometeram ao longo de sua existência. Assim, sua obra pode ser compreendida como uma
mola propulsora para a cura de seu ressentimento. No entanto, o fato de haver se curado do
ressentimento não proporciona a elevação moral de Isaías, na medida em que as confissões e
tomadas de consciência não o impediram de compactuar com o mundo de ambições e glória
que tanto criticara.
Lima Barreto expõe, no prefácio, sua opinião acerca da conduta adotada por Isaías,
denunciando em seu comentário uma ponta de desgosto pela sorte lamentável do amigo que,
ao que tudo indicava, deixara-se “sequestrar” pela armadilha da artificialidade reinante na
sociedade:
Deus escreve direito por linhas tortas, dizem. Será mesmo isso ou será de
lamentar que a felicidade vulgar tenha afogado, asfixiado um espírito tão singular?
Quem sabe lá? (LIMA BARRETO, 1956a, p.43).
A conclusão que Lima Barreto prefaciador do romance e, logo personagem de si
mesmo, oferece ao leitor, por meio das últimas palavras inscritas no prefácio, aponta para o
caráter trágico da existência de Isaías. A elevação social do mulato que nascera pobre, mas
que, no entanto, vencera na vida, comprovava, de modo definitivo, que a tese que motivara o
investimento literário estava equivocada, pois contrariando a ideia que fundamentava a cruel
sentença, nem sempre “os belos começos” derivam em “feios fins” – e Isaías era a prova
concreta dessa assertiva. Porém, a sua adesão consciente ao modo de vida alienado que a
frivolidade da sociedade consagrara, traz em seu cerne a marca da fatalidade que, imposta
pelo destino, arremete a consciência de Isaías para o eterno degredo no qual está vetada a
entrada da virtude e da plenitude moral.
A escrita da obra literária prenunciava-se como uma ascese, como uma oportunidade
para o aperfeiçoamento moral do vaidoso Isaías Caminha; no entanto, relegada ao abandono
pelo seu artífice, que opta por uma vida de luxos e banalidades, acaba por funcionar como
uma sentença da morte de seu autor, o homem que poderia ter sido... Mas que não foi...
Ao final do prefácio Breve Notícia, o editor Lima Barreto pressente o fatalismo da
existência de Isaías e conclui: “Para mim, no entanto, sem acreditar na intervenção de
nenhuma Dejanira, sou de opinião que ele está vestindo a túnica de Néssus da Sociedade”
(LIMA BARRETO, 1956a, p.43).
151
A adesão de Isaías às facilidades da vida urbana representada pela carreira política
retira-o do estado de vítima ingênua da civilização para atirá-lo ao rol dos infratores os quais,
no entanto, saboreiam a felicidade prometida pela civilização moderna, a felicidade líquida
que se esvai na ambição desmedida pelos bens materiais. Isaías transformara-se em um
burguês cônscio de que a felicidade está atrelada à posse do capital, porém, apesar do
caminho tortuoso que empreende para assegurar a felicidade ansiada é fato que o Isaías
político mostra-se curado do ressentimento, na medida em que o encontro com a felicidade
ansiada funcionou como uma vingança frente aos agravos sofridos ao longo dos anos em que
ruminou sozinho, decepções e mágoas. Assim, Isaías adota uma postura irônica diante da
vida, postura essa que provou ser a única capaz de propiciar meios de sobrevivência no
espaço da civilização.
É a redenção do herói...
2.5. Bovarismo à brasileira: Ser o outro ou ser eu? Eis a questão...
O brasileiro é um tipo que não pode se afastar
do modelo. Em todas as suas manifestações tem de
copiar. Vê-se nas suas conversas sobre qualquer assunto
de inteligência como é feita a sua crítica, tendo sempre
presente a autoridade: fulano, dizem uns, errou porque
Haldane ensina assim; o livro de beltrano é defeituoso,
pois Anatole France nunca arquitetou um romance
dessa maneira.
(Lima Barreto, Bagatelas, 1956)
O ano de 1908 marca o fim da Revista Floreal, semanário fundado pouco tempo antes,
em 1907, por Lima Barreto e alguns partidários da causa social. Ao se empenhar na
publicação da citada revista literária o escritor carioca e seus correligionários logravam
adentrar o fechado mercado das letras nacionais, espaço que à época era reservado apenas aos
que podiam publicar suas obras na imponente Livraria e Editora Garnier.
152
Julgou o intelectual carioca que por essa via fosse possível sacudir o marasmo que
reinava na vida literária brasileira e discutir temas que, embora ligados à Literatura, apelavam
a uma crítica social engajada no que se referia à sociedade, em detrimento da frivolidade e
diletantismo que preponderava na cena jornalística do país. O semanário não conseguiu o
sucesso que seus fundadores desejavam, sobrevivendo pelo tempo suficiente à publicação de
quatro exemplares apenas. A meteórica atividade da Revista Floreal, no entanto, plantou
sementes na vida cultural da capital carioca que germinaram no positivo comentário do
atuante e respeitado crítico literário da época, José Veríssimo. Após a publicação do terceiro
número da revista, em breves, porém, animadoras palavras, o afamado crítico insufla ares de
otimismo nos redatores da modesta Revista Floreal ao citar a produção de alguns
colaboradores da revista, entre essas os primeiros capítulos do que viria a ser o romance de
estreia de Lima Barreto:
Ai de mim, se fosse a “revistar” aqui quanta revistinha por aí aparece com
presunção de literária, artística e científica.
Não teria mãos a medir e descontentaria a quase todos; pois a máxima parte
delas me parecem sem o menor valor, por qualquer lado que as encaremos. Abro
uma justa exceção, que não desejo fique como precedente, para uma magra
brochurazinha que com o nome esperançoso de Floreal veio ultimamente a público,
e onde li um artigo “Spencerismo e Anarquia”, do Senhor M. Ribeiro de Almeida, e
o começo de uma novela Recordações do escrivão Isaías Caminha, pelo Senhor
Lima Barreto, nos quais creio descobrir alguma cousa. E escritos com uma
simplicidade e sobriedade, e já tal qual sentimento de estilo que corroboram essa
impressão (Veríssimo, apud Barbosa, p.177, 2002)
Apesar da euforia desencadeada entre os ideólogos da revista, as palavras de
Veríssimo não foram suficientes para sustentar a continuidade do projeto literário de Lima
Barreto que em muito diferia da maioria das publicações ilustradas e coloridas cujo intuito
detinha-se na expressão das frivolidades que preponderavam na vida urbana da capital. De
modo contrário, a Floreal revelava empenho em cumprir missão mais relevante. Os textos
publicados em suas páginas detinham-se na importância de seu conteúdo e assim, sem cores
ou luxuosos papéis brilhantes brotavam da simplória diagramação longas críticas literárias e
textos de fundo filosófico cuja função se detinha no ideal maior de emancipação por meio da
leitura e no combate à alienação propagada pelas demais revistas voltadas ao gosto da elite
dominante.
153
A Revista Floreal encerra de modo nostálgico seu expediente, porém, não seria
errôneo afirmar que apesar da diminuta presença da revista no cenário cultural carioca, foi por
meio dessa publicação que Lima Barreto alcança seu ideal de publicar os seus escritos e,
sobretudo, foi por essa via que faz sua estreia literária ao publicar ao modo de folhetim, os
primeiros capítulos das Recordações do escrivão Isaías Caminha o qual, composto com as
tintas da realidade e da sinceridade, advinha segundo as próprias palavras de seu criador, da
necessidade de escandalizar, desagradar, enfim, “estrear com barulho, ser discutido,
analisado, criticado, atacado, numa palavra ser notado, ser alguém.” (Barbosa, 2002, p.186).
Entre os ideais que concorreram para a fundação da Revista Floreal encontra-se o
preponderante desejo de oportunizar ao público leitor momentos de intensa reflexão a partir
do poder emanado pela palavra criadora que recria a verdade do real. Foi, provavelmente, no
rastro dessa ideia, que Lima Barreto decidiu publicar, em modo de folhetim, os primeiros
capítulos das Recordações, romance que passou para os anais da História Literária como a
mais polêmica e dissonante criação literária do autor carioca.
Porém, há um aspecto que se revela importante para a contextualização da revista,
apontado por Beatriz Resende (1993) que esclarece as razões relativas ao caráter utópico que
o projeto da Revista Floreal revelou desde o seu primeiro número e que, por certo, constitui-
se como um dos componentes principais de seu rápido declínio e posterior desaparecimento:
Somente o ecletismo da vida cultural desta época de definições literárias
pouco nítidas e o sentimento de bovarismo, tal como entendia o cronista – o poder
partilhado no homem de se conceber um outro que não é, poderiam fazer com que
Lima Barreto e alguns companheiros fundassem a pobríssima Floreal (Beatriz
Resende, 1993, p.32).
A expressão “bovarismo” foi diversas vezes citado por Lima Barreto para explicar um
estado de espírito denominado como “mal do pensamento” que entrevisto no caráter do povo
brasileiro, contaminava, também, o estado moral do escritor carioca.
Lima Barreto considerava que o bovarismo era uma teoria valiosíssima por oferecer
uma explicação acerca de estados psicológicos distorcidos e incompatíveis com a realidade e
de posse desse instrumento, avaliava a si mesmo como um sujeito bovárico em busca de sua
própria personalidade mal adaptada ao meio e entrincheirada na pobreza do subúrbio carioca
onde residia a contra gosto: custava-lhe adaptar-se aos costumes roceiros da gente suburbana.
Era um literato e apesar de sua simpatia pela gente humilde, percebia-se superior, estranhando
154
a convivência com os mais pobres. O escritor que em sua maturidade lançará brados contra o
procedimento burlesco característico da elite engalanada, já em sua juventude inquieta não
aceitava brandamente a posição humilde que ocupava na repartição pública onde trabalhava.
Lima Barreto exercia ali a modesta função de amanuense o que considerava ser mais um fator
a contribuir para a exposição de sua humilde condição social. Lima Barreto reconhecia suas
qualidades enquanto autêntico intelectual, bem como valorizava os méritos de aluno excelente
da Escola Politécnica que sempre fora, sentindo-se orgulhoso pelas suas conquistas em
relação à mediocridade reinante no ambiente acadêmico que, aliás, pouco tempo frequentou, o
que impediu de que se formasse em engenheiro. Esse insucesso, no entanto, não esmorece o
ânimo do escritor e em seu diário Lima Barreto tece considerações acerca da crença que
possuía em sua própria capacidade de superação:
“Último dia do mês em que, com certa regularidade, venho tomando notas
diárias da minha vida, que a quero grande, nobre, plena de força e de elevação. É um
modo do meu “bovarismo”, que, para realizá-lo, sobra-me a crítica e tenho alguma
energia. Levá-la-ei ao fim, movido por esse ideal interessado e, se as circunstâncias
exteriores não me forem adversas, tenho em mim que cumprir-me-ei” (LIMA
BARRETO, 1956c, p.96).
Não havia dúvida! Lima Barreto havia sido contaminado pelo tipo agudo de
bovarismo Superados, porém, os primeiros arroubos da juventude, o “cantor dos subúrbios”
controlaria o mal que o atingira na mocidade para se transformar no intelectual orgânico que
Gramsci, anos mais tarde, consagrou.
Em Bagatelas (1956) obra que compila textos produzidos por Lima Barreto, encontra-
se uma crônica cujo curioso título configura a sintonia que o ligava às teorias que estavam em
voga na Europa do início do século XX e, portanto eram suas contemporâneas. A crônica a
que nos referimos denomina-se “Casos de Bovarismo” que se destaca pelo pioneirismo do
autor carioca que soube aproveitar a teoria do Bovarismo formulada por Jules de Gaultier,
enquanto elemento de análise literária. A partir da leitura dessa teoria, Lima Barreto formulará
sua própria concepção desse mal que acomete o pensamento ao definir que “o bovarismo é o
poder que é dado ao homem de se conceber como outro que ele não é, e de encaminhar para
esse outro, todas as energias de que é capaz” além do que ampliará o conceito desenvolvido
por Gaultier ao indicar que o “ser bovárico” pode ser mensurado a partir de um “índice
bovárico – medida que se incumbe de aferir a extensão do afastamento entre o indivíduo real
e o imaginário, entre o que ele é e o que ele acredita ser” ( Lima Barreto, 1956b,p.93).
155
Filósofo francês, Jules de Gaultier publica no ano de 1892, em Paris, uma obra
intitulada La Philosophie du Bovarysme a qual foi elaborada após o estudo que empreendeu
do romance Madame Bovary da autoria de Gustave Flaubert. A presença de determinadas
características percebidas por Gaultier na personagem protagonista Emma Bovary,
impulsionaram esse estudioso a formular uma teoria segundo a qual a infelicidade da heroína
estaria ligada a uma insatisfação perene que adviria de sua total incompatibilidade com a
realidade circundante. Esse descontentamento seria a causa principal da evasão da
personagem central do romance de Flaubert que assume uma personalidade emprestada das
heroínas dos romances que lia e com as quais se identificava.
No romance Madame Bovary, Flaubert apresenta a trajetória vazia de Emma que se
relacionava com o mundo por meio da leitura de romances e projetava a sua existência no
universo das heroínas que habitavam as narrativas românticas que a fútil protagonista
consumira ao longo de sua juventude. Ao casar-se com o medíocre Charles dá-se o confronto
entre Emma e a realidade o que deriva na fatal percepção de que a vida real não é igual ao
universo de um mundo romanesco. Enfraquecida psicologicamente diante das ideias que as
leituras sugeriam e impulsionada pela falsa expectativa de que sua vida se configuraria como
a das mocinhas dos romances, desencadeia-se, então, o desencanto da ambiciosa e sonhadora
Emma Bovary que sucumbirá diante dos infortúnios que a realidade lhe reserva. Acometida
por uma grande amargura e depressão, oriundas do desajuste entre o mundo real e o mundo da
ficção, Emma suicida-se. A morte da personagem serve de alerta a todos aqueles que ao se
consumirem na fantasia de se conceber como um outro, delegam a esse arremedo de si
mesmos todas as energias que o animam. Por intermédio do comentário abaixo, Lima Barreto
aponta para a embriaguez que absorveu a alma atormentada da personagem flaubertiana
Emma em sua obcecada fuga para um mundo de ilusões:
É inútil lembrar a heroína de Flaubert. Toda a gente a conhece. Emma
Bovary, pequena burguesa, educada num estabelecimento aristocrático, casada com
um estúpido médico, ou coisa que o valha, faz de si um retrato de grande dama,
talhada para altas cavalarias e satisfações, desenvolvendo para se aproximar de tal
imagem todo o vigor de sua natureza violenta. O reflexo dessa imagem sobre a sua
consciência faz que ela deforme toda a realidade, criando dentro de si um princípio
de insaciabilidade, de ruptura que impede sempre o equilíbrio com o mundo externo.
Sua vida é assim constantemente perturbada. A realidade não a satisfaz. Mal casada
com o medíocre Charles, desgosta-se, despreza-o, abomina-o. Sonha amantes.
Retrata-os carinhosamente na sua imaginação; idealiza-os suprimindo
156
inconscientemente os perigos do adultério. Desvia-se da calma conjugal e
estonteamento que o sonho de irregularidade leva à sua alma, arrasta-a a falsificar a
firma de seu marido, o que, descoberto a impele ao suicídio. (LIMA BARRETO,
p.56-57b, 1956b).
Apesar de haver compreendido o conceito que Gaultier formulou sobre o bovarismo,
bem como sua relação com o mundo idealizado para o qual Madame Bovary evade, Lima
Barreto relaciona as ideias colhidas no conceito do mestre francês à realidade do Brasil e a
partir daí, empreende uma reflexão que aproxima bovarismo e identidade nacional.
Impregnado pelo conceito oriundo das leituras da obra de Gaultier, Lima Barreto, no entanto,
revela que o ser bovárico nacional, longe do ideal romanesco romântico que move a
personagem francesa, manifesta-se nos brasileiros por meio do caráter desencantado de um
povo que se acredita ser outro por inferioridade ou mesmo por vaidade. Tal pensamento pode
ser ilustrado no trecho extraído de Casos de Bovarismo:
É no trem, trem de subúrbios; vem cheio. Entra o recebedor pela porta da
frente. No segundo ou terceiro banco, alguém diz:
__ Sou delegado, tenho passe.
O condutor afastou-se. Continua o auxiliar a receber os bilhetes de passagens
pacientemente. Quase ao chegar à portinhola do vagão, espera que um retardatário
lhe mostre o seu. Ei-lo que olha o pequeno papel; é um ministro de Estado que o
apresenta ordinariamente. (LIMA BARRETO, 1956b, p.58)
A aguda sensibilidade Lima Barreto intuiu, décadas antes de muitos estudiosos que
pensaram o Brasil ao longo do século XX, o potencial bovárico do brasileiro que formado a
partir de uma matriz europeia alheia a sua realidade, tem sua identidade forjada a partir de
padrões ancorados em um “Outro” o que denuncia uma forte dependência política, econômica
e cultural do Brasil ao mundo europeu.
Lima Barreto compreendia o contexto do Brasil da Primeira República como um
espaço fértil para a proliferação de germes nefastos que cindiam o país, instalando de um lado
os interesses da população carente, desvalida e iludida por um discurso que apontava o
caminho do progresso; e em outro, a burguesia bovárica, feliz, sadia e beneficiária direta do
dos arranjos que irrompiam no cenário citadino e que as levavam a crer que o país elevara-se
à categoria de um desenvolvimento miraculoso
157
Diversas transformações se operaram na face do Brasil durante a vigência dos
primeiros anos de nossa República, mas o Rio de Janeiro foi, sem dúvida, a cidade que
conheceu as mais profundas e radicais mudanças em seu aspecto. Sua função de sede do
Governo Federal colaborou para que fosse privilegiada, em face das demais cidades
brasileiras, pelas melhorias implementadas em sua paisagem, ainda que diversos fatores se
impusessem para o excepcional avanço econômico ocorrido na capital, conforme detalhamos
em nosso primeiro capítulo. Diante de toda a prosperidade econômica alcançada, o Brasil
adota novos modelos de comportamento, visando aproximar-se de um padrão mais moderno e
desenvolvido, concernente, portanto com o protótipo de civilização. A França, como sabemos,
é o modelo eleito e em nome do ideal de transformar o espaço carioca na Paris dos Trópicos,
ruas e fachadas das construções e, logo, mentalidades, sofrem grandes remodelações. Urgia
alinhar-se aos padrões da vida europeia. Assim,
Nada a estranhar, portanto, se para harmonizar com os pardais, símbolos de
Paris, que o prefeito Passos importara para a cidade, se enchessem as novas praças e
jardins com estátuas igualmente encomendadas na França ou eventualmente em
outras capitais europeias (SEVCENKO, 2009, p.52).
O ápice do bovarismo será alcançado, no momento em que se imprime no Rio de
Janeiro a face da cidade luz. Em nome da necessidade de sanear o país, encena-se a
“Regeneração”, nome dado à política de embelezamento à francesa da cidade carioca, o que
transfigura o cenário da cidade. Nesse momento, uma grande febre de consumo domina o
espírito da burguesia carioca afrancesada alheia aos verdadeiros problemas do país. Em meio
a essa frenética agitação, a população pobre e marginalizada é expulsa do centro da capital,
refugiando-se nos morros e periferias, habitando construções rudimentares e inóspitas. Todas
essas alterações no modo de vida da população foram executadas pelos dirigentes políticos,
pois de acordo com esses membros da elite era preciso expulsar da cena tudo aquilo que
impedisse a identificação do país com o a beleza, a limpeza, com o luxo, enfim com os
fundamentos próprios à civilização que se desejava erguer.
À medida que o Rio de Janeiro civilizava-se, aproximava-se cada vez mais do
estereótipo francês. Em face da metamorfose que se realizava, o bovarismo também avançava
de modo infrene. A transformação que se efetivou no cenário carioca soava artificial, pois que
baseada em um ideal de beleza helênico distante de nossa realidade o que, finalmente
colaborava para a perpetuação de preconceitos dirigidos à parcela da população que não se
adequava aos padrões exigidos pela cultura e moda europeias. Esse período da História
158
brasileira revela-se como um momento marcado por um intenso combate da elite que se
insurge contra os costumes e tradições nacionais. Para essa elite que habitava as áreas mais
desenvolvidas da cidade era necessário forjar uma nação à imagem dos mais nobres e
elevados padrões humanísticos europeus. Era preciso ser “outro, ser, enfim um estrangeiro
dentro do próprio país. Tal conduta é característica marcante no Brasil nas duas décadas
iniciais do século XX.
A psicanalista Maria Rita Kehl tece alguns comentários que contribuem para a
compreensão da sociedade desse período da história brasileira ao afirmar que:
Nas sociedades da periferia do capitalismo, que se modernizaram tomando
como referência as revoluções industrial e burguesa europeias sem, no entanto,
realizar nem uma nem outra, a relação com os ideais passa forçosamente pela
fantasia de “tornar-se um outro”. Só que esse outro é, por definição, inatingível, na
medida em que o momento histórico que favoreceu a modernização, a expansão e o
enriquecimento dos impérios coloniais não se repetirá. O bovarismo dos países
periféricos não conduz à sua modernização; pelo contrário, inibe e obscurece a busca
de caminhos próprios, emancipatórios, que respondam às contradições próprias de
sua posição no cenário internacional – a começar pela dependência em relação aos
mais ricos. (KEHL, 2000, p. 225)
Além do mimetismo cultural bovárico que atingia o Rio de Janeiro no início do século
XX, fenômeno que logo fora observado e revelado por Lima Barreto sob a forma literária, a
sociedade burguesa também concretiza outros modos de expressão de bovarismo, típicos de
um povo que se nega a aceitar sua verdadeira e original vocação. Atingido pelo espírito
bovárico e no afã de ser outro, o brasileiro adota, nesse momento, posturas que revelam uma
inconcebível intolerância social em face do que é genuinamente nacional, conforme podemos
perceber pelo discurso que a História registrou:
Ao contrário do período da Independência em que as elites buscavam uma
identificação com os grupos nativos, particularmente índios e mamelucos – esse era
o tema do indianismo –, e manifestavam “um desejo de ser brasileiros”, no período
estudado, essa relação se torna oposição, e o que é manifestado, podemos dizer que
é “um desejo de ser estrangeiro” (SEVCENKO,2009, p.51)
Por meio da crônica que desnuda a vida cotidiana do brasileiro que presenciou os
primeiros arroubos da República, também podemos perceber o modo como os indivíduos ao
se conceberem como alguém que não são, revelam, por meio de sua vaidade, sintomas
patentes de bovarismo. A fim de apontar essa inquestionável realidade, Lima Barreto descreve
159
um humilde funcionário público que por ter sua caligrafia constantemente elogiada, ilude-se
pela crença de que o capricho da caligrafia era diretamente proporcional às potencialidades de
um escritor talentoso:
O meu amigo H, velho funcionário público com tantos e tantos anos
de serviço, sem uma licença, está atingido de bovarismo. Aquele contato
diário com a pena, com o papel e tinteiro; o constante elogio dos diretores
pela sua caligrafia, pelos seus ofícios, despertaram-lhe n’alma uma curiosa
imagem. Acreditou-se escritor, literato; e o humilde escriba para quem o talhe
da letra era a única preocupação, pôs-se febrilmente a escrever versos,
romances, contos e, há dias – coitado! – veio me dizer:
- Você sabe? Tenho uma grande obra.
- Qual é?
- A Comédia do Pó.
- ?
- É melhor do que a Divina Comédia e um pouco superior ao Dom Quixote.
(LIMA BARRETO, 1956b, p.59-60).
O romance Recordações do escrivão Isaías Caminha também pode ser observado sob
a perspectiva do bovarismo, mal que ao lado do ressentimento revela-se recorrente na
sociedade, no alvorecer do século XX. Isaías é um representante típico do bovarismo: sua
existência baseia-se em um eterno confronto entre um mundo por ele idealizado e o
inconformismo ante a realidade palpável com a qual depara ao chegar à capital do país,
espaço tão diverso daquele ambiente aconchegante em que se criara e que até então vivera,
sob a proteção familiar. Em determinado momento da narrativa, Isaías confessa que “a minha
ignorância de viver e falta de experiência quase deixavam transparecer a natureza de minhas
preocupações” (LIMA BARRETO, 1956a, p.86) ou ainda, ao referir-se à reação de sua mãe,
no momento de sua partida para a cidade grande:
Supus que adivinhava os perigos que eu tinha de passar; sofrimentos e
dores que a educação e inteligência, qualidades a mais na minha frágil consistência
social, haviam de atrair fatalmente. Não sei que de raro, excepcional e delicado, e ao
mesmo tempo perigoso, ela via em mim, para me deitar aqueles olhares de amor e
espanto, de piedade e orgulho. (LIMA BARRETO, 1956a, p.56)
160
A maneira como se configurava a relação de Isaías e sua mãe denuncia o porquê da
fragilidade íntima do jovem provinciano e nos conduz a intuir que o modo ilusório com que
Isaías concebia sua própria existência e o mundo, limitou sua capacidade de relacionar-se
adequadamente na sociedade urbana que, forjada pela modernidade, preconizava a necessária
independência do indivíduo enquanto fator imprescindível para sua adaptação social. Em face
das relações que o ligavam ao meio familiar, Isaías não se adapta à sociedade individualista
que a capital carioca configura. Inexperiente e indefeso, Isaías torna-se, então, um desajustado
social. Na atualidade, uma importante contribuição sociológica pode evidenciar tal aspecto,
contribuindo para ampliar a compreensão das dificuldades enfrentadas por Isaías perante a si
mesmo e a sua ingênua concepção de vida no confronto com a moderna e individualista
civilização moderna:
A crise de adaptação dos indivíduos ao mecanismo social é, assim,
especialmente sensível no nosso tempo devido ao decisivo triunfo de certas virtudes
antifamiliares por excelência, como o são, sem dúvida, aquelas que repousam no
espírito de iniciativa pessoal e na concorrência entre os cidadãos. (HOLANDA,
2013, p.144)
Assim, mediante as ideias postas na obra sociológica Raízes do Brasil (1936) faz-se
possível visualizar que já nos tempos do Brasil imperial, vigorava a opinião de que os
vínculos familiares limitam o desenvolvimento da personalidade do indivíduo no meio social
e, portanto, os jovens que se deslocavam para regiões distantes para realizar estudos
superiores possuíam enorme chance de tornarem-se homens públicos bem sucedidos, na
medida em que se libertando dos laços caseiros, viam-se obrigados a “viver por si”:
A personalidade social do estudante, moldada em tradições acentuadamente
particularistas, tradições que, como se sabe, costumam ser decisivas e imperativas
durante os primeiros quatro ou cinco anos de vida da criança, era forçada a ajustar-
se, nesses casos, a novas situações e a novas relações sociais que importavam na
necessidade de uma revisão, por vezes radical, dos interesses atividades, valores,
sentimentos, atitudes e crenças adquiridas no convívio da família. (HOLANDA,
2013, p.144)
Conforme já afirmamos, Lima Barreto possuía um senso de observação aguçado e via
memória do Escrivão Isaías apresenta uma galeria de personagens tomados pelo desejo de ser
outro. As razões do bovarismo de seus personagens estão atreladas a sentimentos como a
vaidade, o orgulho, a inveja, a ambição e o ressentimento. O sujeito bovárico é facilmente
reconhecível: Sua “pose” o compromete.
161
Protagonista do romance, Isaías irrompe na narrativa com o desejo de ser “doutor”.
Condição da qual se julgava merecedor em face da inteligência superior que julgava possuir:
Um dia, porém, li no “Diário de * * *” que o Felício, meu antigo
condiscípulo, se formara em Farmácia, tendo recebido por isso uma estrondosa,
dizia o “Diário”, manifestação dos seus colegas.
Ora o Felício! pensei de mim para mim. O Felício! Tão burro! Tinha
vitórias no Rio! Porque não as havia eu de ter também - eu que lhe ensinara, na aula
de português, de uma vez para sempre, diferença entre o adjunto atributivo e o
adverbial? Por quê!? (LIMA BARRETO, 1956a, p.48)
Orgulhoso pelas conquistas escolares e elogios das professoras, o estudante bem
sucedido do interior, passa a conceber-se como alguém muito superior, prova de que o jovem
ingênuo deformou a realidade: “Para mim era como se o mundo me estivesse esperando para
continuar a evoluir” (LIMA BARRETO, 1956a, p.46). Aquilo que derivou de seu bom
desempenho escolar ele creditou a si mesmo como um valor incomensurável e digno de
poucos.
Isaías julgava-se um gênio. E o que ele deveu a atenção da professora dedicada,
creditou a sua capacidade superior. A imagem irreal que fazia de si mesmo conduz o jovem
Isaías a imaginar que todos o julgavam superior à maioria dos mortais, inclusive sua mestra
Ester: “De si para si (suspeito eu hoje), ela imaginou que lhe passava pelas mãos um gênio”
(LIMA BARRETO, 1956a, p.46), reflete o Isaías narrador do discurso com uma forte dose de
ironia em face da ingenuidade com que analisava a realidade, em sua juventude.
Após conhecer as adversidades que o meio hostil da cidade favorece, Isaías Caminha
aceita a função de contínuo. Seu bovarismo havia sido atingido ao longo do percurso que
empreendera na capital: miséria, fome, humilhações havia atenuado o ímpeto do jovem. O
confronto com a realidade ocorrido Rio de Janeiro, obriga Isaías a aceitar os limites que sua
condição impõe. Deriva dessa aceitação forçada da realidade e de si mesmo, um profundo
ressentimento no íntimo de Isaías: “o começo, custei a conformar-me com a posição de
contínuo...” (LIMA BARRETO, 1956a, p.175).
Porém, em breve tempo, Isaías reanimará o bovarismo que o representa. Instalado na
redação do jornal e superadas as aflições que o acometeram após sua chegada, o jovem
revelará a força que o “mal do pensamento” impõe à consciência do indivíduo ao afirmar que:
“de tal maneira é forte a força de nos iludirmos...” (LIMA BARRETO, 1956a, p.177).
162
O personagem Abelardo Leiva é mais um dos sujeitos bováricos que invadem a cena
do romance. O narrador Isaías descreve as primeiras impressões que obtém do rapaz que para
delinear o caráter ambíguo de Leiva:
Abelardo Leiva, o meu recente conhecimento, era poeta e revolucionário.
Como poeta tinha a mais sincera admiração pela beleza das meninas e senhoras do
Botafogo. Não faltava às regatas, às quermesses, às tômbolas, a todos os lugares em
que elas apareciam em massa...
Como revolucionário, dizia-se socialista adiantado, apoiando-se nas
prédicas e brochuras do Sr. Teixeira Mendes, lendo também formidáveis folhetos de
capa vermelha, e era secretário do Centro de Resistência dos Varredores de Rua.
Vivia pobremente, curtindo misérias e lendo, entre duas refeições afastadas, as suas
obras prediletas e enchendo a cidade com os longos passos de homem de grandes
pernas (LIMA BARRETO, 1956a, p.134)
Na medida em que Isaías se aproxima de Leiva, mais amplia o poder do “binóculo
bovárico” (LIMA BARRETO, 1956b, p.58) do jovem provinciano que detecta as minúcias da
personalidade do companheiro em seu desejo de aparentar ser o que ele realmente não é.
Leiva passava duras privações em sua vida privada, a fim de investir em sua aparência
ostentando, assim, uma grandeza material que não possuía, conforme podemos observar na
citação abaixo:
Era um namorador temível. No seu quarto, além da mesa e alguns volumes
com que preparava as arengas revolucionárias, tinha uma cama-de-vento, nua e órfã
de lençóis e travesseiros com fronhas, uma grande mala cheia de camisas,
colarinhos, punhos, gravatas e perfumes. Ganhava noventa mil-réis no Centro dos
Varredores, gastava vinte e cinco no quarto e o que sobrava era mais para as coisas
de toilette do que para a sua alimentação. Freqüentava os lugares elegantes, ou tidos
como tal, e uma noite levou-me ao Parque Fluminense [...] (LIMA BARRETO,
1956a, p.136-137)
Ao construir o personagem Leiva, Lima Barreto nos revela, também, uma faceta do
caráter ressentido do brasileiro. O rapaz que se dizia revolucionário, lutava pela igualdade
social e contra a burguesia enquanto aguardava uma oportunidade de ascender à classe mais
confortável. Isaías percebia a ânsia pelo luxo que Abelardo Leiva tentava disfarçar com seu
discurso acusador, bovárico e ressentido. O grande desejo de Leiva, no entanto, era alcançar o
lugar da burguesia endinheirada. Isaías até simpatizava com o temperamento entusiasta do
jovem socialista, mas percebia a artificialidade de seu discurso transgressor:
163
No entanto, Leiva parecia-me mais sincero na sua poesia palaciana e de
modista do que nas ideias revolucionárias. Não o julgava perfeitamente hipócrita;
era a sua situação que lhe determinava aquelas opiniões; o seu fundo era cético e
amoroso das comodidades que a riqueza dá. Cessassem as suas dificuldades, elas
desapareceriam e surgiria então o verdadeiro Leiva, indiferente aos destinos da
turba, dando uma esmola em dia de mau humor e preocupado com uma ruga no
fraque novo que viera do alfaiate. (LIMA BARRETO, 1956, P.136)
O ambiente do jornal O Globo era farto quanto a representantes do bovarismo, porém,
cabe a Floc o posto de honra, por seu caráter amaneirado, elegante e, sobretudo pouco natural,
Frederico Lourenço do Couto – o Floc era o crítico literário do jornal e seu estilo bovárico de
ser foi captado logo no primeiro contato que Isaías mantivera com o crítico aristocrata,
quando percebe o ar de superioridade com que este se movia no ambiente do jornal. A cena a
seguir remete à impressão de Isaías quando do primeiro encontro com o presunçoso jornalista,
nas dependências da redação do jornal O Globo:
Esperava-se o dr. Loberant, mas entrou o fino, o elegante, o diplomático, o
macio Frederico Lourenço do Couto, coma sua linda barba perfumada e o seu
grande queixo erguido e atirado para adiante como um aríete de couraçado. Vinha
todo perfumado, de olhar lustroso, desprendendo essências, com o peitilho da
camisa a brilhar imaculadamente e um grande botão de coral ao centro, rodeado de
brilhantes. Trazia o sobretudo debaixo do braço e entrou pisando forte, dando
amáveis boas-noites. Vim a conhecê-lo melhor e a minha antipatia não diminuiu.
(LIMA BARRETO, 1956a, p.162).
Toda a antipatia que a presença do crítico incitou em Isaías no instante em que o viu
pela primeira vez se confirmou com a convivência diária entre ambos. Isaias percebe que a
farsa do homem que afirmava ser um crítico literário autônomo não se limitava ao figurino
elegante de jovem dândi, mas alastrava-se por seus pensamentos e ideias vazias e
desconectadas dos verdadeiros valores da Arte. Floc era um personagem construído pelo
próprio Frederico. Transpirava uma artificialidade em seus trejeitos e, além disso, era
preconceituoso e carreirista. Julgava-se um eminente crítico literário, porém, Isaias percebe a
farsa que se engendrava sob a máscara de dândi intelectual com que Floc escondia a sua
mediocridade e condensa as características bováricas do crítico literário, conforme Isaías nos
informa, ao rememorar a figura ardilosa de Floc:
Floc era contra a Academia, contra os novos, contra os poetas, contra os
prosadores; só admitia, além dele, com a sua obra subjacente, que se juntassem e
fizessem versos, certos rapazes de sua amizade, bem-nascidos, limpinhos e
164
candidatos à diplomacia. Confundia arte, literatura, pensamento com distrações de
salão; não lhes sentia o grande fundo natural, o que pode haver de grandioso na
função da Arte. Para ele, arte era recitar versos nas salas, requestar atrizes e pintar
umas aquarelas lambidas, falsamente melancólicas. (LIMA BARRETO, 1956a,
p.182)
Movido pela vaidade cega, Floc, entretanto, consegue persuadir sua própria
consciência o que o faz crer na miragem de intelectual que convencia, não só a si mesmo
como à multidão de pessoas que se iludiam com as maneiras aristocratas do pseudo-
intelectual:
Na crítica, tinha-se na convicção de um fazedor de poetas, um consagrador
de reputações; com aquele endosso da firma burlesca - Floc - o autor que lhe
recebesse elogios, passava imediatamente para o Larousse. Ignorante, insciente, com
uma leitura de pacotilha, não se animava a desenvolver qualquer teoria, a ter um
ponto de vista qualquer; bordava umas banalidades - “uns deliciosos momentos de
gozo estético deu-nos, etc.; a sua alma vibra e palpita, etc.” (LIMA BARRETO,
1956a, p.182-183)
Ao longo da convivência com o crítico literário, Isaías reconhece o verdadeiro caráter
do jovem que apesar de oriundo de um meio humilde, distancia-se de seu “ser” original para
transformar-se no requintado crítico literário. Isaías percebe que o requinte de Floc
consubstanciava-se apenas em sua imagem, pois apesar da fidalguia que exalava de seus trajes
impecáveis, não havia nele um mínimo de verdade intelectual. Assim, Isaías descreve o modo
como Floc conduz seu trabalho de crítica literária:
A sua crítica não obedecia a nenhum sistema; não seguia escola alguma. O
único critério eram as suas relações com o autor, as recomendações recebidas, os
títulos universitários, o nascimento e a condição social. Elogiava nefelibatas, se
eram de sua amizade, se eram “limpos”; detratava se não eram. Tinha, além, dois
princípios: a aristocracia da arte e a fulminação dos nulos. Entendia a seu modo
aristocracia da arte, isto é, arte feita pelos aristocratas como ele, cujo pai tivera na
primeira mocidade uma taverna em Barra Mansa. (LIMA BARRETO, 1956a, p.183)
Frederico Lourenço do Couto – o Floc é um exemplo perfeito do dândi, típico
personagem da Belle Époque carioca. Elegante e frívolo, o esse personagem ocupa seu tempo
com os lazeres fúteis próprios da elite e o ar intelectualizado que adota é garantia certa de
adesão das classes abastadas a sua imagem. De acordo com Fausto Calaça (2010), na tese
Dandismo e cuidado de si: ensaios de subjetivação em Balzac, “a palavra dândi é de origem
165
inglesa” (p. 49) e seus “precursores são os maraconis: jovens cosmopolitas, refinados e
extravagantes nas vestimentas” (ibid.). Apesar de sua origem inglesa, foi o modelo do dandy
francês que se fortaleceu na subjetividade do brasileiro do início do século XX, graças ao
cosmopolitismo que dominava o país naquele momento e fazia prosperar por aqui os
modismos da França.
Floc era um personagem construído pelo próprio Frederico. Transpirava uma
artificialidade em seus trejeitos e, além disso, era preconceituoso e carreirista. Julgava-se um
eminente crítico literário, porém, Isaias percebe a farsa que se engendrava sob a máscara de
dândi intelectual com que Floc escondia a sua mediocridade e condensa as características
bováricas do crítico literário:
Floc era contra a Academia, contra os novos, contra os poetas, contra os
prosadores; só admitia, além dele, com a sua obra subjacente, que se juntassem e
fizessem versos, certos rapazes de sua amizade, bem-nascidos, limpinhos e
candidatos à diplomacia. Confundia arte, literatura, pensamento com distrações de
salão; não lhes sentia o grande fundo natural, o que pode haver de grandioso na
função da Arte. Para ele, arte era recitar versos nas salas, requestar atrizes e pintar
umas aquarelas lambidas, falsamente melancólicas. (LIMA BARRETO, 1956a,
p.182)
Há outro personagem atuante na cena carioca que muito impressionou os sentidos de
Isaías. Trata-se de Raul de Gusmão, importante jornalista que se sobressai na cena carioca a
desfilar sua superioridade por entre os seres, entre estes, os demais jornalistas, que ele julgava
inferiores, em face de sua brilhante reputação jornalística. Isaías se impressiona vivamente
com a imagem desse homem, no entanto, o sentimento que prepondera em relação ao
afamado jornalista é o de repugnância diante de seus gestos afetados e de sua imponência
agressiva:
Diante dele, dos seus gestos, das suas palavras, a impressão das mulheres,
da agitação do teatro, apagou-se-me completamente. Ele resumiu-me o teatro, e
fiquei com este encontro tão indelevelmente gravado que ainda agora, ao traçar estas
linhas, estou a vê-lo erguer-se da cadeira com visível esforço, ficar um instante
parado junto a nós, com o alentado corpanzil encostado à bengala vergada, dizer
cheio de profundo aborrecimento - como isto é feio! - para então se afastar por fim,
vagarosamente... (LIMA BARRETO, 1956a p.69)
Todos os personagens que elencamos nesse capítulo são representantes do bovarismo,
conforme Lima Barreto concebeu esse fenômeno da mente humana, enquanto elemento
166
constitutivo da arquitetura de seus romances, contos e crônicas. A concepção limiana do
bovarismo está atrelada a questões intimamente relacionadas à realidade brasileira,
perspectivada a partir do Rio de Janeiro, pois intrigava o autor carioca o fato da elite
fluminense, haver sido cooptada por valores oriundos de outras culturas em uma franca
atitude de dependência cultural. Questões referentes ao bovarismo permeiam a obra do
escritor Lima Barreto, despontando em personagens como Policarpo Quaresma e também
Isaias Caminha, pois enquanto este ao ver naufragar seu navio de ilusões, adota uma postura
transgressora para sobreviver no meio social; aquele perece diante da decepção com um país
totalmente avesso ao que seu ideal patriótico idealizara. Identificados com a imagem que
faziam de si mesmos, esses personagens refletiram suas ilusões na realidade, tornando-se
desencantados quando percebem que o mundo real ao comporta suas idealizações.
Em crônica contida em Coisas do Reino de Jambon, datada de 1920, Lima Barreto
expõe o seu descontentamento com a descaracterização da cidade que ocorrendo pelas ânsias
de reforma, transfigurava-lhe a feição mestiça para encetar-lhe a máscara europeia, ainda que
essa não se coadunasse com o caráter da nação brasileira.
Tal crônica intitulada como Megalomania aponta para a perspectiva segundo a qual
Lima Barreto “olha” para a capital e percebe os indivíduos atacados por uma espécie de mania
de grandeza que os relega à condição de seres destituídos de originalidade e personalidade.
Ao denunciar a mania de grandeza que domina o brasileiro Lima Barreto remete o leitor
perceber a incidência de uma espécie de mal que atinge a consciência do ser, aprisionando-o a
um outro, considerado como supostamente melhor, ou seja, o escritor aponta a forte ligação
que aproxima bovarismo e identidade nacional. No entanto, apesar da crítica mordaz, Lima
Barreto não exclui sua própria pessoa da radical observação: a memória nacional do brasileiro
encontra-se mutilada em face do mimetismo cultural que apaga o passado, inebria o presente e
impede a construção do futuro do país:
Tudo delira e todos nós estamos atacados de megalomania. De quando em
quando, dá-nos essa moléstia e nós nos esquecemos de obras vistas, de utilidade
geral e social, para pensar só nesses arremedos parisienses, nessas fachadas e ilusões
cenográficas. (LIMA BARRETO, 1956f, p.124)
Assim como Lima Barreto o fizera no início do século XX, intelectuais que pensaram
o Brasil já em nossa contemporaneidade também encontraram no fenômeno do Bovarismo um
possível contraponto para a compreensão do modo como se formou a identidade sempre apta
167
do brasileiro a aquiescer às demandas do que advém do Outro. Entre os intelectuais que
pretenderam empreender a aventura de decifrar as origens do povo brasileiro, destaca-se
Sérgio Buarque de Holanda e sua monumental obra publicada em 1936, nomeada como
Raízes do Brasil. Nesse texto de fôlego, Sergio Buarque visa reconhecer a formação da
sociedade brasileira e, para tanto parte da análise de suas raízes fortemente atreladas à Europa,
especificamente à Península Ibérica, berço de Portugal, nosso colonizador. A fim de delinear
os aspectos subjacentes a nossa estrutura social, o estudioso empreende um método que,
baseado em dicotomias, estabelece relações entre Portugal e Espanha, seus representantes
pátrios – o trabalhador e o aventureiro, bem como aponta a oposição entre o mundo rural e o
urbano e sua imponderável candência na constituição de nossa identidade.
Em Raízes do Brasil (2013), o termo “bovarismo” surge nas páginas finais do capítulo
“Novos Tempos” quando Sérgio Buarque refere-se a “uma espécie de bovarismo grotesco e
sensaborão” (p.166) que atravessaria a consciência brasileira desde os tempos da monarquia
alcançando incólume a sociedade republicana. De fato, quando a República foi instaurada,
acreditou-se que o novo regime proporcionaria a conquista definitiva dos valores necessários
à formação de nossa nacionalidade, porém, o que ocorreu foi a mais desencantada capitulação
ao Outro,
Foi, ainda, um incitamento negador o que animou os propagandistas: o
Brasil devia entrar em novo rumo, porque “se envergonhava” de si mesmo, de sua
natureza biológica. Aqueles que pugnaram por uma vida nova representavam, talvez,
ainda mais do que seus antecessores, a ideia de que o país não pode crescer pelas
suas próprias forças naturais: deve formar-se de fora para dentro, deve merecer a
aprovação de um outro.” (HOLANDA, 2013, p.166)
Os efeitos do bovarismo na consciência nacional induzem a uma busca do
reconhecimento de nosso valor em culturas que consideramos mais avançadas e, portanto
superiores a nossa. Maria Rita Kehl (2004) também verifica a presença dessas ideia a se
insinuar na sociedade brasileira e aponta que a construção da identidade do brasileiro se
perde, na medida em que, facilmente se descarta a originalidade em prol da adoção de valores
que possam ser reconhecidos pelas nações mais poderosas. Tal (im) postura impõe, no
entanto, sérias consequências para a autonomia do povo brasileiro, entre estas a proliferação
do germe do ressentimento:
A busca de reconhecimento reproduz a submissão diante do mais forte,
submissão que é condição do nosso ressentimento, nosso “complexo de
168
inferioridade nacional, O que é que o brasileiro não enxerga em sua cultura, ou no
conjunto de suas subculturas, que tem de pedir a um outro que o reconheça (KEHL,
2004, p.238)
Ao traçar o perfil do “homem cordial” Sérgio Buarque de Holanda (2013) aponta que
entre as características desse verdadeiro arquétipo brasileiro, encontra-se “o predomínio
constante das vontades particulares e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal” (p. 146),
o que impediria a construção de um sistema administrativo coeso e voltado ao bem comum.
Tal premissa se fundamenta no fato da preponderância da vida doméstica que foi sempre
inspiração e modelo para a formação de quaisquer composições sociais no país de onde
advém que em terras brasileiras, as fronteiras que demarcam o domínio do público e do
privado são praticamente inexistentes. As reflexões que perscrutam a personalidade do
brasileiro nos oferecem uma pista para que possamos compreender as relações que
permeavam a conduta dos personagens que habitam a cena das Recordações. O diálogo entre
o tio de Isaías – Valentim – e o Coronel Belmiro revela o modo particularista que, no Brasil,
rege as relações dos indivíduos em uma comunidade. Diante da necessidade do emprego
almejado prepondera o interesse particular, pouco importando a capacidade do candidato.
Assim, a indicação de Isaías para o exercício de função pública, deu-se mediante a confiança
que o coronel Belmiro depositava em Valentim o que comprova a presença de um forte
vínculo doméstico, em detrimento dos interesses objetivos do Estado Democrático:
- Eu queria que Vossa Senhoria, senhor Coronel, gaguejou o tio Valentim,
recomendasse o rapaz ao doutor Castro.
O coronel esteve a pensar. Mirou-me de alto a baixo, finalmente falou:
- Você tem direito, Seu Valentim... É... Você trabalhou pelo Castro... Aqui
para nós: se ele está eleito, deve-o a mim e aos defuntos, e você que desenterrou
alguns.
Riu-se muito, cheio de satisfação por ter repetido tão velha pilhéria e
perguntou amavelmente em seguida:
- O que é que você quer que lhe peça?
- Vossa Senhoria podia dizer na carta que o Isaías ia ao Rio estudar, tendo
já todos os preparatórios, e precisava, por ser pobre, que o doutor lhe arranjasse um
emprego. (LIMA BARRETO, 1956a, p.52)
169
Podemos fazer um contraponto entre os conceitos de bovarismo e o de “cordialidade”
apresentado por Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, na medida em que essas
duas típicas expressões do caráter brasileiro se completam e se afirmam no que tange ao
vínculo que mantêm com o “Outro”. Tanto o indivíduo bovárico quanto o homem cordial
precisam da figura do “outro”, medida perfeita para a “libertação do pavor que ele sente em
viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência”
(HOLANDA, 2013, p.147) assim, é lícito supor que o “homem cordial” não pode suportar a
solidão de viver consigo mesmo, pois sua personalidade não suporta olhar para seu interior
em busca do substrato mais puro de seu ser e, por isso busca por meio de práticas cordiais e
polidas, o que equivale a afirmar que a polidez que distingue o distingue “equivale a um
disfarce que permitirá a cada qual preservar intactas sua sensibilidade e suas emoções.”
(Holanda, 2013, P.147)
Sérgio Buarque (2013) nos informa que, em face da aversão a uma formação social
fundada em práticas impessoais e objetivas, a “cordialidade” supõe que as formas de convívio
social devem basear-se em uma ética que considere as emoções e os sentimentos do
indivíduo. Para tanto, faz-se necessário o estabelecimento de laços de intimidade que possam
fortalecer a existência do indivíduo no mundo. Com efeito, o “homem cordial” não é
necessariamente bom, ainda que suas ações estejam sempre voltadas para o campo da
afetividade. Uma das formas de manifestação dessa característica consiste na dificuldade em
obedecer às normas da hierarquia por meio funda-se a figura do superior hierárquico ou o
“chefe”, pois o temperamento sectário do “homem cordial” não admite ritualismos sociais
fundados na reverência a um ente superior, a menos que esta prefigure a possibilidade de que
relações amigáveis e semelhantes aqueles que se concretizam no convívio familiar.
Em Recordações do escrivão Isaías Caminha tal assertiva pode ser comprovada. De
fato, enquanto as relações de Isaías, na redação do jornal, mantiveram-se restritas ao
desempenho de sua função, ou seja, enquanto o convívio com os demais colegas foi
marcadamente voltado à impessoalidade burocrática que seu cargo exigia, Isaías Caminha sua
existência conheceu crises severas de descontentamento, desamparo e solidão, ressentindo-se
de sua condição subalterna e inferior. No entanto, a partir do incidente que o arremeteu ao
cargo de jornalista, estreitaram-se, também, os laços de intimidade, não só em relação os
colegas de profissão, mas, sobretudo, ao patrão, o até então, terrível Ricardo Loberant que se
tornou amável, companheiro e “amigo” inseparável do ex-contínuo. A intimidade que se
170
seguiu aos anos de anonimato conferiu alegria a Isaías Caminha que passou a sentir-se
acolhido e importante em face das demonstrações fraternas de seu superior:
Eu e ele éramos agora dois amigos íntimos, companheiros de pândegas e
noitadas. Sentindo-me realmente educado e sofrivelmente instruído, o doutor
Loberant como que sentia remorsos de não ter adivinhado isso e permitido que eu
ficasse um ano e tanto como contínuo de sua redação. Enchia-me de atenções e
dinheiro. Levava-me a toda a parte, gabando-me o talento e o caráter [...] (LIMA
BARRETO, 1956a, p.281).
Em face de uma narrativa que se propõe a delinear e enfrentar os desafios impostos ao
indivíduo pela modernidade prepondera a figura do herói, indivíduo comum que, no entanto,
acreditou na possibilidade de transformar sua história de vida em matéria de romance. Entre
conflitos e desenganos esse herói moderno mergulha no cotidiano de um mundo caótico para
representar, por meio dos fatos corriqueiros de sua existência, a aventura que todos os
indivíduos que, de uma forma ou de outra, empreendem a fascinante aventura de “romancear”
sua existência de desamparo e solidão com a linha das experiências vividas. Em meio ao
mundo hostil, determinado pelos fatores civilizadores, o herói do romance moderno, tanto
pode fracassar, perecendo em face das potentes forças que emanam da realidade, quanto pode
triunfar sobre os percalços que se impõe em sua trajetória, ainda que essa vitória pressuponha
um pacto com as formas deletérias da civilização.
Acerca da experiência moderna e de sua realização pela forma narrativa do romance,
Maria Rita Kehl (2001) nos informa:
O solo comum da experiência moderna é formado justamente por aquilo que
o sujeito moderno [...] tenta recalcar para representar a si mesmo como “indivíduo”:
sua imensa nostalgia da memória (fantasiosa) de uma vida comunitária, a angústia
de imaginar-se responsável por seu próprio destino, seu desgarramento, sua solidão.
A perda do sentido da vida, nas sociedades em que cada um deve inventar a própria
vida, é justamente a experiência compartilhada por todos os sujeitos modernos. É
dela que tratam os romances; é o sentimento de não pertencer ao mundo abstrato ao
qual, supostamente, todos os outros pertencem, que alimenta os personagens
romanescos e possibilita a identificação dos leitores, que tentam “aquecer suas vidas
geladas” na história dessas vidas literárias. (KEHL, 2001, p.87)
Nos momentos finais da narrativa, Isaías Caminha confessa toda a sua angústia em
face das incertezas que a existência incita. A noite estava calma e o coração de Isaías estava
agitado. Ele vencera, ainda que por caminhos espinhosos e tortuosos e, assim, todo o
171
reconhecimento que obtivera advinha da capitulação aos corrompidos valores sociais. Quisera
Isaías, por um momento, retomar os valores semeados em sua juventude ingênua?
Antes de entrar, olhei ainda o céu muito negro, muito estrelado, esquecido
de que a nossa humanidade já não sabe ler nos astros os destinos e os
acontecimentos. As cogitações não me passaram... (LIMA BARRETO, 1956a,
p.289)
172
CONCLUSÃO
Bacon e Decartes, Spencer ou Schopenhauer narram,
como Shakespeare ou Racine as aventuras de um herói e
de um príncipe que somos nós mesmos e esta nossa
misteriosa alma de homens; e que não há uma página de
seus livros em que o leitor não pare para levantar a
cabeça e refletir sobre o seu destino, com os olhos vagos
e o coração perturbado. Paremos.
(Lima Barreto, Bagatelas, 1956)
De acordo com Freud (2010) o mal-estar que prepondera em nossa civilização é o
tributo que o indivíduo paga, por meio da repressão de suas pulsões inatas de sexualidade e
agressividade, para viver na sociedade civilizada. Advém desse conceito psicanalítico o
reconhecimento de que o mal-estar se constitui na base estrutural do psiquismo humano o que
condenaria o indivíduo à eterna nostalgia de um tempo remoto em que sua existência podia
dar-se ao luxo de reger-se, apenas, pelas leis da natureza. Assim, a felicidade pura, oriunda da
satisfação dos mais tenros instintos humanos estaria definitivamente impossibilitada de
manifestar-se no meio social, tendo em vista que o mundo civilizado exige do indivíduo,
obediência às regras e o recalque de suas pulsões mais caras, únicos meios capazes de
viabilizar a associação harmônica entre os herdeiros humanos dos instintos agressivos quais
sejam, os homens civilizados.
A busca permanente pela felicidade é um determinante da existência humana. Porém,
ao longo dessa busca, alerta Freud (2010), muitos limites se impõem, o que acarreta na
preponderância da infelicidade. Muitas são as ameaças que confluem para a derrocada do
projeto de felicidade do ser: a natureza e sua força convulsa, a fragilidade do corpo humano e
as relações que os seres estabelecem entre si, sendo essa última a mais dolorida do que as
demais, funcionando, então, como um requintado “bônus” ao sofrimento que já prepondera na
humanidade. E, nesse aspecto deparamos com a grande contradição de nossa civilização: a
união entre os indivíduos que deveria funcionar como um bálsamo para os infortúnios
impostos pela vida; antes revela toda a sua tirania ao limitar a liberdade do homem, impondo,
desse modo, sofrimento e dor. Desse modo, as relações humanas precisam estar em constante
173
monitoramento, pois apesar de que a permanência humana no mundo dependa da adesão ao
modo coletivo de vida, essa proximidade tem gerado conflitos recíprocos cujas graves
consequências confirmam que prospera um grande mal-estar nos consórcios humanos. De
acordo com o psicanalista Freud (2010), o homem é um ser agressivo e é justamente essa
característica que impõe constantes ameaças à integridade da civilização.
Ao longo de nossa pesquisa, o contato mais amiúde com o pensamento de Freud nos
levou a compreender que, segundo a psicanálise, impõe-se a presença de um certo fatalismo à
existência humana que é imposto pela própria constituição psíquica do ser. Desse modo o
mal-estar que vigora no mundo independe das estruturas externas sociais e, por isso, nenhuma
forma de organização social adotada pelo homem será capaz de promover condições
suficientes para que o ser humano conquiste o bem-estar, na medida em que a limitações
impostas pelo psiquismo humano se sobrepõem às tentativas racionais de fundar uma
sociedade onde pairem a paz, a harmonia e a alegria entre os homens. Assim, a civilização se
constitui em uma busca constante pelo equilíbrio entre as exigências impostas por nosso
mundo psíquico e aquelas necessárias à vida em coletividade.
Em face dessas severas ideias científicas que uma vez disseminadas relegaram a
condição humana a um desamparo sem limites, indagamos: Possuiria as concepções
psicanalíticas, um teor niilista de fundo político? Toda e qualquer tentativa de organização
cultural estaria fadada a fracassar? Em face da certeza dos limites impostos ao ser pelo seu
próprio psiquismo, a civilização está condenada a ser, eternamente um palco de contradições e
embates? A agressividade internalizada pelo ser funciona como mais um fator dissonante a
torturar a humanidade? Sendo o indivíduo, um ser agressivo por natureza, é possível que a paz
e a fraternidade prosperem no mundo civilizado? Afinal, todas as tentativas que o mundo
civilizado possa realizar em prol da felicidade humana estão fadadas ao fracasso?
Acreditamos que, apesar do mal-estar que cicia no íntimo de cada ser humano pela
eternidade dos tempos, é possível contornar sua ação negativa sobre a civilização – prodigioso
construto do engenho humano. Assim, a fim de que as instituições criadas pelo próprio
homem possam vir a assegurar condições que permitam, senão a superação definitiva dos
conflitos que o atormentam, mas um avançar gradual rumo ao seu desenvolvimento interior
faz-se necessário a criação de mecanismos culturais que contribuam para a humanização do
ser, afastando-o por, essa via, das trevas da ignorância, fator que, sem dúvida, revela-se
refratário ao progresso e, logo, ao sucesso do empreendimento civilizacional.
174
Em O Direito à Literatura (1995), Antonio Candido menciona o fato de que a
Literatura “é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua
humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente
“(p.175). Sem dúvida, insiste o crítico, a fruição da Literatura é garantia de integridade
espiritual e de equilíbrio da sociedade. A fim de esclarecer a sua concepção acerca do que
considera ser objeto da Literatura, Candido aponta que:
Chamarei de Literatura, da maneira mais ampla possível, todas as criações
de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em
todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as
formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações.
(CANDIDO, 1995, p. 174)
Ainda, de acordo com o crítico paulista, a literatura pode ser designada como “o sonho
acordado das civilizações” (CANDIDO, 1995, p.175) na medida em que, assim como o ser
humano durante os momentos do sonho penetra no universo fabuloso, durante a vigília é pela
criação literária que adentramos no universo fabulado, tão necessário à manutenção do
equilíbrio de nossa realidade emocional e psíquica.
Candido (1985) aponta, também, que o conteúdo atua graças à forma constituindo
“com ela um par indissolúvel que redunda em certa modalidade de conhecimento” (p.179) e,
logo remete à importância da “maneira pela qual a mensagem é construída”, destacando que
advém do modo como o texto é elaborado, o primordial poder humanizador do texto literário:
De fato, quando elaboram uma estrutura, o poeta ou o narrador nos
propõem um modelo de coerência, gerado pela força da palavra organizada. Se fosse
possível abstrair o sentido e pensar nas palavras como tijolos de uma construção, eu
diria que esses tijolos representam um modo de organizar a matéria, e que enquanto
organização eles exercem papel ordenador sobre a nossa mente. Quer percebamos
claramente ou não, o caráter de coisa organizada da obra literária torna-se um fator
que nos deixa mais capazes de ordenar a nossa própria mente e sentimentos; e, em
conseqüência, mais capazes de organizar a visão que temos do mundo. (CANDIDO,
1995, P. 177)
Os apontamentos do crítico literário se coadunam com as ideias de Freud que também
dedica atenção à importância das manifestações artísticas, enquanto um meio de contornar a
intensa “dor de viver” que a existência humana encerra. No ensaio Escritores criativos e
devaneio, publicado em 1908, Sigmund Freud chama a atenção para o papel da produção
literária enquanto uma ferramenta de auxílio à amenização do sofrimento causado pelo eterno
175
conflito em que o ser humano se esbate para adequar-se ao imponderável desconcerto que
mantém em lados opostos, a ânsia pelo prazer e a necessária repressão de suas pulsões:
A irrealidade do mundo imaginativo do escritor tem, porém, conseqüências
importantes para a técnica de sua arte, pois muita coisa que, se fosse real, não
causaria prazer, pode proporcioná-lo como jogo de fantasia, e muitos excitamentos
que em si são realmente penosos, podem tornar-se uma fonte de prazer para os
ouvintes e espectadores na representação da obra de um escritor. (FREUD, 1976, p.
150)
Assim podemos perceber que por meio da fruição do objeto estético é possível
transpor as barreiras que o aparelho psíquico impõe ao indivíduo, pois que, por essa via
facultam-se momentos de liberdade de pensamentos e desejos para o deleite do psiquismo
aprisionado do ser. O conceito de sublimação elaborado por Freud (2010) se revela como um
poderoso artifício para a aquisição de prazer ansiado pelo homem, porém, negado pelas vias
do psiquismo. Podemos, então, conceber que a arte é a expressão sublimada daquilo que o
indivíduo não pode realizar no embate com as imposições constantes, oriundas tanto de seu
mundo interior (psíquico) adverso, quanto da realidade exterior sempre pronta a manifestar
sua hostilidade pela ação dos indivíduos que habitam a civilização.
Os dilemas que marcam o universo interior do homem civilizado e a conturbada
relação entre os homens nesse mesmo “espaço” têm se revelado um potente substrato para a
produção de romances, gênero que, nascido com a modernidade insufla de vida os confrontos
interiores e exteriores próprios da condição humana, contribuindo, assim, para um constante
reconhecimento de “si mesmo”. Em face do empenho que a humanidade vem empreendendo
com o objetivo de controlar os conflitos que a assolam, tanto de ordem individual, quanto
coletiva, a arte desempenha um papel essencial para a continuidade da vida humana. Assim
como se dá com as diversas manifestações artísticas, “a literatura desenvolve em nós a quota
de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a
sociedade, o semelhante”. (CANDIDO, 1985, p.180) colaborando, assim para uma possível
superação do desencanto que prospera na existência humana.
Ao tratar da importância da linguagem poética, Octávio Paz aponta a importância da
linguagem artística para o estabelecimento de uma
“[...] sociedade universal em que as relações entre os homens, longe do ser
uma imposição da necessidade exterior, fossem como um tecido vivo, feito da
fatalidade de cada um ao enlaçar-se com a liberdade de todos. Esta sociedade seria
176
livre porque, dona de si mesma, nada exceto ela mesma poderia determiná-la; e
solidária porque a atividade humana não consistiria, como ocorre hoje, no domínio
de uns sobre os outros (ou na rebelião contra esse domínio) e sim procuraria o
reconhecimento de cada um por seus iguais, ou melhor, por seus semelhantes.
(OCTÁVIO PAZ, 2009, p.96).
Cônscios das vicissitudes que se impõem à vida humana e acreditando no poder
transcendente da arte, nos voltamos para a análise do universo imaginário construído por
Lima Barreto por meio do romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha o qual nos
permite visualizar a representação literária do mal-estar que acomete o homem civilizado. Tal
representação se dá, mediante o relato de cunho memorialístico da trajetória de Isaías
Caminha, um homem comum entre tantos, mas que, no entanto, atinge a maturidade com sua
alma marcada por fissuras profundas, oriundas dos embates travados consigo mesmo e com os
diversos obstáculos que se impõem na moderna sociedade carioca do limiar do século XX. A
narrativa põe em foco a existência de um jovem sonhador e interiorano que se desloca para a
capital, em busca de realização pessoal e profissional, porém seus empenhos serão habilmente
esmagados pela ação destruidora das imposições impostas pela vida civilizada, concretizadas
no citado romance pela forte segregação que os demais personagens impõem ao já
desamparado Isaías. Tal dualidade manifesta-se no cerne, tanto do personagem narrado
quanto no do narrador, apresentando-se com mais evidência nos episódios representativos da
vida do Isaías jovem, episódios esses que são relaborados, anos mais tarde, por um Isaías mais
maduro e conhecedor da crueldade do mundo.
Provido de um cunho denunciador o romance retrata a falência da organização social
brasileira, ao mesmo tempo em que destaca o potencial agressivo dos indivíduos que se
movimentam nessa sociedade que, apesar de se acreditar culturalmente evoluída, produz um
imenso mal-estar pela constância de preconceitos que prosperam em seu meio. A narrativa se
desenvolve nos anos que se sucederam ao advento da República no Brasil momento que
marca, não só a sanha de progresso, baseada na ideia corrente que apontava para a
necessidade de forjar uma sociedade civilizada, quanto o seu contraponto: uma intensa
necessidade de suprimir a evocação das raízes históricas e culturais ligadas a tempos e
valores que a nova elite dirigente julgava como perniciosos para o Brasil. Segundo esses
novos mandatários o tempo de reinado havia sido o responsável pelo atraso em que o país
houvera mergulhado ao longo dos tempos.
177
A partir dessa constatação elitista que negava a complexa teia em que se enredava a
realidade sociocultural brasileira, o país transforma-se em objeto de um empreendimento
monumental que objetiva reformar de modo drástico, o espaço da capital carioca a fim de
proporcionar ao mundo europeu uma imagem de progresso. As dificuldades nascidas dessa
atitude nos incitam a estabelecer uma relação direta, a modos de uma metonímia, por meio da
qual o difuso espaço do Rio de Janeiro dos primeiros anos da República, relaciona-se por
contiguidade à civilização, vista como um espaço propenso à agressividade, a sacrifícios
constantes e à proliferação do mal-estar entre os homens.
Com efeito, a renovação do centro da cidade carioca foi uma façanha extraordinária:
todo o cenário citadino se transfigurou pela ação radical do governo. A cidade é insuflada por
ares parisienses que exalavam dos prédios, ruas, teatros, vitrines, praças, entre outras
interferências fundamentais para a instalação de “uma parte de Paris” nos trópicos brasileiros.
Não obstante essa mágica recriação, a parte pobre da população, configurada por operários,
negros egressos da escravidão, pequenos comerciantes, viram-se, à margem das benfeitorias,
na medida em que lhe eram vetadas oportunidades de inserção nessa sociedade “construída”
pela e para a elite burguesa.
Mediante a leitura da obra elaborada pela pena transgressora de Lima Barreto
percebemos que os esforços que o ser humano vem empreendendo na busca pela satisfação
plena não têm se revelado capazes de demover os obstáculos que impedem que o modo de
vida civilizado alcance o equilíbrio desejado. O homem decididamente não consegue sufocar
suas pulsões primitivas, mediante o contato com o seu semelhante, pois apesar do desejo de
ser feliz que o impulsiona, a humanidade se revela egoísta e discriminadora, fator gerador de
afetos nocivos à sociedade, entre esses, o ressentimento.
Ao iniciar nossa pesquisa, apenas pressupúnhamos que Isaías, protagonista do
romance em estudo sofria de ressentimento, espécie de desdobramento do mal-estar que
acomete os seres em seu percurso na civilização. Assim, consideramos profícuo estabelecer
um diálogo com a psicanalista Maria Rita Khel, na medida em que as reflexões desta
pensadora se apresentaram como valioso subsídio para a constatação da presença do
ressentimento, no fulcro da obra em estudo. Assim, podemos confirmar, após as leituras
empreendidas, que detectamos em Isaías, uma forte presença da “constelação afetiva”
(KEHL, 2004, p.11), ou seja, de ressentimento, apesar do “disfarce” de rapaz inocente com
que o personagem se camufla. O ressentimento de Isaías é diluído em características como a
178
humildade e perseverança, porém Isaías é de fato um ressentido, na medida em que além de
sopitar sentimentos como a mágoa, a inveja, a cobiça e a empáfia; nega-se, sistematicamente,
a assumir sua responsabilidade, sua parcela de culpa pelos danos que causou à própria vida.
Também farejamos a instalação desse afeto negativo na sociedade carioca do início
do século XX, como um todo, também à luz dos conceitos de Maria Rita Kehl e constatamos
a presença de um forte ressentimento naquele espaço citadino. Para essa análise, também
buscamos a contribuição do pensamento de Antonio Candido, pois o contato com seus ensaios
trouxeram à tona aspectos imprescindíveis para o desenvolvimento de nossa pesquisa. Desse
modo, foi a partir das infinitas leituras do célebre ensaio Literatura e Subdesenvolvimento que
pudemos refletir acerca das razões e da ênfase conferida ao cosmopolitismo reinante no Rio
de Janeiro do início do século XX, momento em que formas miméticas da cultura francesa
dominaram o cenário cultural do Brasil. De acordo com Candido (1989), o fator que mais se
destaca nesse processo de identificação do brasileiro com outras culturas que se deu de modo
intenso no raiar do século passado, advém da incultura que prolifera em países
subdesenvolvidos como o são aqueles que compõem a América Latina, inclusive o Brasil.
Assim, na falta de um público receptivo e culto, o artista brasileiro “evade” para o mundo
europeu o qual ele julga estar apto para acolher sua capacidade intelectual. Tal procedimento
foi intensamente vivenciado nos tempos inaugurais da República brasileira momento marcado
pelo desenvolvimento de um verdadeiro culto ao modo francês de ser. É fato que o fenômeno
do subdesenvolvimento demorou-se a penetrar na consciência da elite republicana e, essa
lacuna gerou a ilusão de que o simples arremedo do progresso seria suficiente para levar à
superação dos problemas que maculavam o país pelas marcas indeléveis gravadas na
sociedade brasileira por obra da colonização e da escravidão.
Nossa pesquisa nos conduziu a detectar, também, nas linhas do romance, a presença
do bovarismo, outro mal que, como o ressentimento atingia a consciência da sociedade
brasileira do limiar do século XX. Foi a condição bovárica que exaltou a ânsia de transformar
o Brasil em um espaço cosmopolita e insuflou a elite a construir para si mesma uma imagem
que não condizia com o modo de ser brasileiro. Desejando ser um Outro, o país foi como que
tomado por uma embriaguez que conduzia sua população elitizada, e tributária das reformas e
do modo francês de ser a um subserviência instaurada pela situação de impotência diante do
opressor, aqui representado peãs potências europeias. Maria Ria Kehl (2004) reflete acerca
dessa questão:
179
A alienação ao desejo do Outro - no nosso caso, representado pelo
estrangeiro do mundo “desenvolvido” – faz com que não nos apoderemos da história
como sujeitos. Não passamos nada a limpo, não elaboramos nossos traumas, nem
valorizamos nossas conquistas. Por isso mesmo, nós, brasileiros não nos
reconhecemos no discurso que produzimos e sim no que o estrangeiro produz sobre
nós. Por essa mesma razão estamos sempre em dívida para com uma identidade
perdida. (KEHL, 2004, p. 237).
O bovarismo está presente em muitos personagens do romance, assim podemos
observar Floc, Leiva, Raul Gusmão, legítimos representantes do bovarismo nacional na
perspectiva das mais legítimas manifestações desse mal que acomete o homem, destituindo-
lhe do poder da autonomia de ser original: todos os personagens que apontamos se
caracterizam pela preocupação com o “Outro”, situando na aparência exterior suas mais altas
qualidades de onde advém a extrema vaidade do trio de personagens, sempre aptos para o
“jogo social”, onde quem vence é aquele que mais apresenta qualidades exteriores,
independentemente do valor humano que possa ou não possuir e, referente a esse aspecto,
percebemos a presença, nesses personagens, de características atribuídas ao “homem cordial”,
enfocado por Sérgio Buarque de Holanda, em “Raízes do Brasil”. O homem cordial cultua a
polidez devido à extrema necessidade de preservar sua verdadeira personalidade, porém:
“Nossa forma de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da
polidez. Ela pode iludir na aparência – e isso se explica pelo fato de a atitude polida
consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que
são espontâneas no “homem cordial”: é a forma natural e viva que se converteu em
fórmula. Além disso a polidez é, de algum modo, organização de defesa ante a
sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica do indivíduo, podendo mesmo
servir, quando necessário de peça de resistência. (HOLANDA, 2013, p.147)
Lima Barreto é considerado um escritor pré – modernista e notadamente crítico da
sociedade de seu momento histórico, atuando na cena literária brasileira de modo avassalador.
Ao longo do tempo em que produziu sua arte literária nunca se acovardou diante de grandes
cultores da época e arremessou-se contra todos aqueles que ele julgava descomprometidos
com o papel social e transformador que cada cidadão deve desempenhar. Deriva de sua
constância em assumir a Literatura como missão, seu caráter transgressor e muito próximo do
que Gramsci nomeou como “intelectual orgânico”.
180
Como apontamos ao longo de nossa pesquisa, Lima Barreto era um intelectual
engajado e, portanto utilizava sua literatura como “arma” na luta contra os vícios presentes na
sociedade de seu tempo. Lima Barreto foi um criador eficiente de personagens e foi por esse
meio que alcançou produzir uma literatura voltada para a denúncia daquilo que considerava
injusto e amoral e foi com um modo sincero, pulsante e simples de ser que alcançou a
posteridade, vigorando, hoje, como um escritor que sempre valorizou as camadas
desatendidas da sociedade burguesa.
Na obra Recordação do escrivão Isaías Caminha. O espaço revelou-se de grande
importância para a estrutura do romance. Refletindo acerca da materialidade que a descrição
do ambiente nos informa, percebemos que o ambiente do jornal se configura como uma
miniaturização da sociedade/ civilização reunindo em seu diminuto e abafado espaço todos os
conflitos que o mundo civilizado encerra. Ao recriar o ambiente do jornal como uma
metonímia do mundo conturbado da civilização, no qual imperam as mesquinharias, injúrias e
traições, Lima Barreto expõe alguns dos afetos daninhos ligados à civilização. Ao recriar, por
meio da representação romanesca as relações de hostilidade que permeiam o ambiente do
jornal O Globo, o autor nos permite uma visão apurada acerca dos valores que conformam
nossas relações, crenças e verdades e, ao mesmo tempo, instiga uma reflexão acerca dos
males que acometem os homens ditos “civilizados”, estimulando uma revisão e postura em
face do mundo caótico.
Assim, à guisa de concluir nossas reflexões, afirmamos que, conforme nos
propusemos inicialmente, empreendemos uma análise do romance Recordações do escrivão
Isaías Caminha (1909) que embora, apenas tangencie a psicanálise, discute as questões
suscitadas por Sigmund Freud no ensaio O mal-estar na civilização (1930). A partir da
realidade transfigurada pelo discurso literário que reconstrói, pela ficção, o mundo civilizado
que emerge da forma romanesca das Recordações do escrivão Isaías Caminha, acreditamos
oferecer uma reflexão acerca de nossa própria fragilidade diante da forca intrínseca que move
as instituições que reunidas configuram a nossa civilização A partir de uma hipótese inicial,
pela qual intuíamos que a trama do romance é a representação literária da vigência da ideia
freudiana de “mal-estar da civilização”, pudemos visualizar que mergulhado no espaço social,
marcado por conflitos e dores, Isaías reconhecerá o quão cruel é o mundo e expressará o
estado de mal-estar que acomete os homens civilizados. Nesse momento, convém afirmar, dá-
se um terrível desencanto no personagem Isaías.
181
Finalmente, encerramos nosso percurso ao afirmar que, por meio das Recordações do
escrivão Isaías Caminha Lima Barreto, o autor pôs em cena a história de vida do “seu Isaías”
e, ao mesmo tempo, convocou o seu leitor a ser testemunha da trajetória do personagem e de
seu sofrimento, bem como propôs uma reflexão sobre aspectos de nossa sociedade, que não
podiam ficar “calados”, contidos ou velados – as questões ligadas ao preconceito racial. As
ideias que são detonadas pelo romance, estimulam reflexões sobre o passado e colaboram
para que aspectos daninhos como o preconceito e a discriminação não sejam perpetuados
indefinidamente, o que, sem dúvida, é um motivo gerador de um imenso mal-estar entre os
seres humanos.
182
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