universidade federal de juiz de fora programa de … · ... que esteve ao meu lado em todo esse...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LINGUSTICA
MESTRADO EM LINGUSTICA
Fernando Ado de S Freitas
O PENSAMENTO GRAMATICAL
DE
SANTO AGOSTINHO
Juiz de fora
2016
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FERNANDO ADO DE S FREITAS
O PENSAMENTO GRAMATICAL
DE
SANTO AGOSTINHO
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Lingustica da Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Juiz de Fora, como parte dos requisitos
para a obteno do ttulo de Mestre em Lingustica.
Orientador: Prof. Dr. Fbio da Silva Fortes
Juiz de fora
2016
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Ficha catalogrfica elaborada atravs do programa de gerao automtica da Biblioteca Universitria da UFJF,
com os dados fornecidos pelo(a) autor(a)
Freitas, Fernando Ado de S Freitas. O pensamento gramatical de Santo Agostinho / Fernando Adode S Freitas Freitas. -- 2016. 158 f.
Orientador: Fbio da Silva Fortes Fortes Dissertao (mestrado acadmico) - Universidade Federal deJuiz de Fora, Faculdade de Letras. Programa de Ps-Graduao emLingustica, 2016.
1. Santo Agostinho. 2. Gramtica Antiga. 3. Ars beuiata.4. Lingustica. 5. Historiografia da Lingustica. I. Fortes,Fbio da Silva Fortes, orient. II. Ttulo.
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BANCA EXAMINADORA
TITULARES
Prof. Dr. Fbio da Silva Fortes FALE/UFJF - Orientador
Prof. Dr. Marcos Aurelio Pereira IEL/UNICAMP
Profa. Dra. Ana Paula Grillo El-Jaick FALE/UFJF
SUPLENTES
Profa. Dra. Patrcia Fabiane Amaral da Cunha FALE/UFJF
Prof. Dr. Matheus Trevizam UFMG
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AGRADECIMENTOS
Agradeo, primeiramente, a Deus, fora divina que guia todos os passos da minha vida, minha
me Eliza, ao meu pai Joo Fernando, que sempre me apoiaram em todas minhas decises.
minha querida companheira Gisele, que esteve ao meu lado em todo esse percurso cheio de
desafios.
Gostaria de agradecer tambm:
Ao Prof. Dr. Fbio da Silva Fortes, por aceitar orientar e, principalmente, por acreditar neste
trabalho e depositar em mim tamanha confiana. Sem ele este trabalho no teria se concretizado.
Suas anlises sobre os estudos da metalinguagem gramatical antiga, sem sombra de dvidas,
fazem o repertrio que compe, no s esse trabalho, mas tambm a minha formao acadmica
acerca da gramtica antiga;
Ao Prof. Dr. Lus Carlos Lima Carpinetti, por compartilhar comigo suas reflexes sobre o latim
dos cristos, disponibilizando, de forma to solcita, uma bibliografia que jamais teria
conseguido a respeito da Patrstica Latina;
Profa. Dra. Neiva Ferreira Pinto, com a qual aprendi muito sobre as questes do latim
enquanto uma lngua viva do passado;
Ao Prof. Dr. Marcos Aurelio Pereira, que aceitou, solicitamente, nosso convite para compor a
banca examinadora deste trabalho;
Profa. Dra. Ana Paula Grillo El-Jaick, cujas contribuies sobre meus trabalhos e projetos
transcendem os limites desta dissertao;
Aos meus professores e pesquisadores da UFJF que, em maior ou menor grau, contriburam
com apontamentos tericos, bibliogrficos e metodolgicos sobre o fazer cientfico em
Lingustica;
A CAPES por ter financiado essa pesquisa;
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Aos meus colegas da rea de Clssicas da UFJF.
Gostaria, ainda, no s de agradecer, mas tambm dedicar este trabalho a toda a minha famlia
com muito carinho.
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O interesse atual que os linguistas demonstram pelo desenvolvimento passado e
recente da sua cincia em si mesmo sinal da maturidade que a lingustica,
independentemente das suas possveis aplicaes prticas, alcanou como disciplina
acadmica.
Robert Robins, 1979 [1967], p. xvi
Est autem grammatica uocis articulatae custos et moderatrix: cuius professionis
necessitate cogitur humanae linguae omnia etiam figmenta colligere, quae memoria
litterisque mandata sunt.
(A gramtica , porm, a guardi e a moderadora da voz articulada: cuja profisso
necessariamente leva a reunir tambm todas as representaes da lngua humana que
foram confiadas memria e s letras).
Santo Agostinho. Sol., II, 11, 19
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RESUMO
Esta dissertao oferece uma reflexo sobre o pensamento gramatical de Santo Agostinho (sc.
IV-V d.C.). Examinamos, nesse sentido, o tratado gramatical atribudo ao bispo de Hipona
intitulado Ars pro fratrum mediocritate breuiata, em relao aos aspectos formais e conceituais
do gnero gramatical das artes, que foi produzido na Antiguidade Tardia, tendo como
contraponto, principalmente, as Artes grammaticae de Donato (sc. IV d.C.). Para exame da
matria gramatical contida no texto agostiniano, consideramos tambm os textos filosficos de
autoria de Santo Agostinho, i.e., o De magistro, o De ordine e o De doctrina Christiana,
mostrando como as reflexes propriamente gramaticais presentes na Ars breuiata tambm
aparecem refletidas nesses textos. Dessa forma, ensejamos mostrar que a metalinguagem
gramatical que caracterizou o gnero das artes grammaticae latinas, com Agostinho, foi
disseminada, paulatinamente, em textos de teor filosfico, no sentido de preparar e fornecer aos
alunos/cristos uma ferramenta importante para a leitura e exegese bblica. Como concluso,
percebemos que as fronteiras que delimitavam os ensinamentos, no que diz respeito s artes
liberais (o chamado trivium gramtica, dialtica e retrica) no estavam, desse modo,
totalmente dissociadas, na obra de Agostinho, mas faziam parte de uma formao propedutica
com fins especficos para a divulgao da doutrina crist. Os pressupostos tericos e
metodolgicos que utilizamos para a compilao do nosso trabalho so oriundos da
Historiografia da Lingustica.
PALAVRAS-CHAVE
Santo Agostinho, gramtica antiga, Ars breuiata, Lingustica, Historiografia da Lingustica
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ABSTRACT
This work offers a reflection on the grammatical thought by St. Augustine (c. IV-V A.D.). We
examine, in this sense, the grammatical treatise attributed to the bishop of Hippo, entitled Ars
pro fratrum mediocritate breuiata, in relation to formal and conceptual aspects of the
grammatical gender of the artes, which has been produced in Late Antiquity, with reference to
the Artes grammaticae by Donatus (c. IV AD). In order to examine the grammatical substance
from the Augustinian text, we have also considered some other aspects codified in Augustines
philosophical texts, such as De magistro, De ordine and De doctrina Christiana, highlighting
the way how properly grammatical concepts is in these works also reflected. Thus, we intend
to show that the grammatical metalanguage that characterized the genre of Latin Artes
grammaticae, with Augustine, has been disseminated gradually in his texts of philosophical
content, as a strategy to prepare and provide his "students / Christians" with an important tool
for reading and making biblical exegesis. In conclusion, we realize that the boundaries which
surrounded the teachings in regard to the Liberal Arts (the so-called Trivium grammar,
dialectic and rhetoric) has not been thereby completely dissociated, in the work of Augustine,
but were part of a project to disseminate Christian doctrine. The theoretical and methodological
assumptions used for the compilation of our work are from the Historiography of Linguistics.
KEY-WORDS
Saint Augustine, Ancient grammar, Ars breuiata, Linguistics, Historiography of Linguistics
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SUMRIO
NDICE DE ABREVIATURAS DOS CORPORA, p. xii
NDICE DE ABREVIATURAS DE TERMOS GRAMATICAIS, p. xiii
NDICE DE QUADROS, p. xiv
INTRODUO, p. 15
PARTE I
I HISTORIOGRAFIA DA LINGUSTICA: CONCEITOS E METODOLOGIA
1.1 Historiografia da Lingustica: breve histria da disciplina, p. 22
1.2 Reviso terico-metodolgica sobre a Historiografia da Lingustica, p. 25
II CONSTRUINDO O CLIMA DE OPINIO: UMA REVISO SOBRE O LUGAR
DA GRAMTICA NA ANTIGUIDADE TARDIA
2.1 Um conceito em formao: Antiguidade Tardia, p. 31
2.2 Alguns fatos histricos: a Cristandade e os pagos, p. 36
2.3 Aurelius Augustinus: um douto na Antiguidade Tardia, p. 43
2.4 A gramtica e os gramticos na Antiguidade Tardia, p. 51
PARTE II
III SANTO AGOSTINHO E A REFLEXO GRAMATICAL: O CASO DA ARS
BREVIATA, p. 58
3.1 Algumas notas quanto procedncia da Ars pro fratrum mediocritate breuiata, p. 58
3.2 O gnero gramatical enquanto forma fixa: Ars breuiata, uma Schulgrammatik?, p. 67
3.3 Uma comparao estrutural e conceptual entre a Ars breuiata de Santo Agostinho e as Artes
grammaticae de Donato, p. 73
3.3.1 De nomine, p. 76
3.3.2 De pronomine, p. 81
3.3.3 De uerbo, p. 85
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3.3.4 De aduerbio, p. 88
3.3.5 De participio, p. 91
3.3.6 De coniunctione, p. 93
3.3.7 De praepositione, p. 96
3.3.8 De interiectione, p. 98
IV A GRAMTICA NA FILOSOFIA AGOSTINIANA, p. 100
4.1 A gramtica nos textos filosficos, p. 100
4.1.1 As partes orationis: De magistro e Ars breuiata, p. 107
4.1.2 De uitia orationis: soloecismus e barbarismus, p. 122
4.2 A mudana de finalidade da ars agostiniana e inovaes lingusticas, p. 129
4.2.1 Do comentrio de poetas ao comentrio das Escrituras, p. 130
4.2.2 Inovaes lingusticas na Ars breuiata, p. 139
CONSIDERAES FINAIS, p. 144
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS, p. 147
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xii
NDICE DE ABREVIATURAS DOS CORPORA:
BA Bibliotheca Augustana
BAC Biblioteca de Autores Cristianos
CGL Corpus Grammaticorum Latinorum
NBA Nuova Biblioteca Agostiniana
GL Grammatici Latini
GG Grammatici Graeci
PL Patrologia Latina
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xiii
NDICE DE ABREVIATURAS DE TERMOS GRAMATICAIS:
abl. - ablativo
acus. - acusativo
adj. - adjetivo
adv. - advrbio
at. voz ativa
dat. dativo
f. - feminino
fut. - futuro
gen. - genitivo
imperf. pretrito imperfeito
m. - masculino
md. voz mdia
m. q. perf. pretrito mais-que-perfeito
n. - neutro
nom. - nominativo
pass. voz passiva
pl. - plural
pres. - presente
pret. perf. pretrito perfeito
s. - singular
subst. - substantivo
v. verbo
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xiv
NDICE DE QUADROS
Quadro 1. Comparao entre Ars breuiata, Ars minor e Ars maior, p. 75
Quadro 2. Comparao dos acidentes da Ars breuiata com a Ars minor e Ars maior, p. 80
Quadro 3. Caractersticas dos nomes e dos verbos, p. 86
Quadro 4. Comparao entre Ars breuiata e De magistro, p. 107 Quadro 5. Comparao estrutural dos uitia uirtutesque orationis, p. 123
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INTRODUO
I
Uma disciplina alcana a sua maioridade quando contempla seriamente o seu prprio
passado.
(KOERNER, 2014, p. 10).
A afirmao feita por Koerner (2014, p. 10), na epgrafe acima, faz referncia
Lingustica, cincia esta derivada das observaes de Saussure, do sculo XIX e incio do sculo
XX. Nesse sentido, podemos, ento, dizer que a Lingustica, enquanto disciplina orientada por
pressupostos tericos e metodolgicos, possui pouco mais de cem anos. No entanto, antes de
Saussure e da Lingustica, havia reflexes em torno das lnguas e da linguagem, a partir das
quais Saussure erigiu sua importante contribuio para as cincias da linguagem1. De onde
vieram as ideias que engendraram esse conhecimento? De que forma elas se apresentam nas
definies de Saussure? Em que medida elas foram influenciadas por outras correntes tericas?
Para respondermos a essas perguntas, que requerem, antes de mais nada, uma
delimitao do objeto, seria necessrio recorrer ao conhecimento histrico, ou seja,
precisaramos construir o clima de opinio no qual Saussure estava inserido; quais eram as
caractersticas contextuais de sua poca e em que medida uma investigao sobre a linguagem
fazia parte da agenda dos estudiosos naquele contexto.
Essas so as premissas de um trabalho no mbito da Historiografia da Lingustica; tais
so as perguntas que sustentam uma anlise que leva em considerao no s a documentao
disponvel para acessar esse ou aquele conhecimento lingustico, mas tambm leva em
considerao o contexto em que foram produzidas, como foram produzidas e para qu foram
produzidas.
Dessa forma, se o primeiro passo do amadurecimento de uma disciplina reconhecer o
seu passado, o segundo , inevitavelmente, conhecer como podemos escrever sobre esse
passado sem distorc-lo.
1cf. Auroux (1992, p. 12): preciso, em particular, se render evidncia: a lingustica, que tira seu nome de um
neologismo alemo (1777) reutilizado por J.-S. Vater em 1808 e adaptado em francs em 1812, uma forma de
saber e de prtica terica nascida no sculo XIX em um contexto determinado, que possui objetos determinados
(o parentesco gentico das lnguas, a explicao histrica, as lnguas nelas e por elas mesmas). Trata-se, pois, de
uma forma de estruturao do saber eminentemente transitria, que est provavelmente em vias de desaparecer
sob nossos olhos ( por isso que recorremos, cada vez mais, expresso plural cincias da linguagem.).
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II
Em nossa dissertao, procuramos apresentar, de forma geral, o que estamos chamando
de o pensamento gramatical de Santo Agostinho2. Esse o tema que perpassa todo o nosso
trabalho, que busca se filiar aos pressupostos tericos e metodolgicos da Historiografia da
Lingustica, que sero apresentados frente.
Nossa dissertao possui duas partes, subdividas cada uma em dois captulos. Na
primeira parte, partimos da organizao e da definio do campo da Historiografia da
Lingustica, passando pela contextualizao do perodo histrico da Antiguidade Tardia, mais
especificamente daquele em que se insere Santo Agostinho. Na segunda parte, dedicamo-nos a
anlises relativas aos conhecimentos gramaticais que Santo Agostinho apresenta nas obras,
essencialmente em seu tratado gramatical intitulado Ars breuiata, considerando contrapontos
no discurso gramatical latino coetneo (especialmente em Donato) e em outras obras de autoria
do prprio Agostinho, tais como o De magistro, o De ordine e o De doctrina Christiana.
No primeiro captulo, que tem carter mais metodolgico, procuramos fazer uma
reflexo sobre a Historiografia da Lingustica, contando um pouco de sua prpria histria e
como essa disciplina se tornou uma rea de interesse para aqueles que almejam conhecer mais
sobre a Histria da Lingustica. Ressaltamos, alm disso, quais so suas ramificaes,
pontuando, ainda, que, sumariamente, a diferena entre Histria da Lingustica (HoL),
Historiografia da Lingustica (HL), Histria das ideias Lingusticas (HIL) e, por fim, Histria
das Cincias da Linguagem (HoLC).
Essas distines entre variaes que o estudo historiogrfico da linguagem possui se fez
necessria, pois ela revela, antes de qualquer coisa, os problemas com os quais os historigrafos
da lingustica tm que lidar. Alm disso, buscamos ressaltar quais so os pressupostos tericos
e metodolgicos, oriundos da Historiografia da Lingustica, que servem de fundamento para o
nosso trabalho. Diante disso, fizemos consideraes sobre a questo da metalinguagem ou
problema da metalinguagem, destacando os trs princpios da pesquisa historiogrfica
(KOERNER, 1995a; 1995c). Finalmente, destacamos tambm como essa disciplina oferece-
nos uma interlocuo com os Estudos Clssicos; relao que se estabelece, de forma bem
acentuada, nos trabalhos de estudiosos que se dedicaram a examinar o que os antigos gramticos
greco-latinos escreveram sobre suas lnguas (LAW, 1984, 1985, 1986, 1987, 1995, 2003, 2005
2 Usamos a denominao Santo Agostinho, pois est consagrada pela tradio.
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[1990]; BARATIN 1989; BARATIN; DESBORDES; 1981, 2007; SWIGGERS, 1992, 2010).
No captulo 2, apresentamos uma sntese do contexto social, religioso e educacional da
Antiguidade Tardia. Fizemos um apanhado sobre a biografia de Agostinho com o intuito de
ressaltar quais foram as doutrinas filosficas que o influenciaram antes de sua converso ao
Cristianismo e em que medida elas contriburam para o desenvolvimento do pensamento
agostiniano em torno da linguagem como, por exemplo, o neoplatonismo. Esse captulo se
justificou por um motivo em especial. Ele representa a ponte que procuramos estabelecer entre
a histria da Antiguidade Tardia e a Historiografia da Lingustica. Nesse sentido, para
dissertarmos sobre os conhecimentos gramaticais que Agostinho apresenta em suas obras, seria
preciso construir o clima de opinio (KOERNER, 1995, p. 11) em que ele se encontrava, ou
seja, seria preciso conhecer o mnimo da histria geral, do autor, e do contexto de que se
pretende narrar. Para o desenvolvimento dessa perspectiva histrica, utilizamos as observaes
feitas por Brown (1971, 2005, 2009), Marrou (1949, 1977), Veyne (2011 [1971], 2005),
Cameron (1993) e James (2008).
No captulo 3, buscamos fazer uma reflexo a respeito da procedncia da Ars breuiata
de Santo Agostinho, demonstrando quais so os problemas mais enfrentados pelos estudiosos
que se dedicaram a abordar esse texto. Alm disso, procuramos observar se a Ars breuiata se
enquadra no gnero Schulgrammatik (BARWICK, 1992) da mesma forma que a Ars minor e
Ars maior de Donato. Para isso, realizamos uma breve anlise comparativa, do ponto de vista
estrutural e conceptual, entre a Ars breuiata e as Artes grammaticae, de Donato. De forma mais
especfica, primeiramente fizemos uma anlise da estruturao global dos textos, ou seja, quais
so as partes ou temas gramaticais que esto presentes na Ars breuiata e nas Artes gramaticae
de Donato, ressaltando diferenas e semelhanas. Em segundo lugar, analisamos todas as
definies das partes orationis nas trs gramticas, observando se as caractersticas so formais
ou semnticas para a definio de cada uma delas.
Justificamos a comparao de Agostinho e Donato em decorrncia do carter exemplar
e paradigmtico que a Ars grammaticae de Donato assumiu na tradio. Com efeito, Donato
foi o gramtico mais conhecido do perodo medieval, assim como os seus textos gramaticais
foram mais os copiados em todo ocidente. Outro fator considerado para efetuarmos essa
comparao se encontra no fato de que Ars maior considerada o grande modelo da Ars
grammatica latina do perodo tardio.
No captulo 4, realizamos uma anlise dos principais conceitos gramaticais presentes em
obras no-gramaticais de Agostinho maneira como so desenvolvidos em seu tratado
gramatical. Especificamente, em primeiro lugar, retomamos o conceito de partes orationis da
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doutrina gramatical latina, buscando entender suas vinculaes com a maneira como
apropriada por Agostinho em tratados filosficos, especialmente no De magistro. Em seguida,
buscamos apresentar como os uitia orationis designados pelos conceitos de soloecismus
(solecismo) e barbarismus (barbarismo) so definidos e descritos por Santo Agostinho no De
ordine e no De doctrina Christiana. Na segunda parte do captulo, apresentamos alguns
apontamentos sobre como a gramtica de Agostinho mudou sua finalidade. Analisando o espao
concedido citao dos poetas na Ars breuiata, mostramos como, em vez de ser um texto
preparatrio para a leitura e comentrio dos poetas, a gramtica de Agostinho passa a servir de
base para leitura e interpretao das Escrituras. Os dados que selecionamos para exemplificar
essa alterao so: os exempla que esto presentes na Ars breuiata; assim como as inovaes
lingusticas presentes no pargrafo 76 da Ars breuiata.
III
Em linhas gerais, nosso trabalho pretende ser uma pequena contribuio para a Histria
da Lingustica. Ao dissertarmos sobre os princpios gramaticais presentes na Ars breuiata, assim
como em outros textos agostinianos, esperamos, modestamente, contribuir com mais uma
pgina da Histria da Lingustica que j longa, mas que ainda carece de uma muita
investigao.
De forma especfica, podemos dizer que apresentar o pensamento gramatical de Santo
Agostinho seguir na direo contrria do que geralmente encontramos quando o tema est
relacionado a um autor cristo. Mesmo que Law (1984, 1996, 2003) tenha publicado textos a
respeito das reflexes gramaticais de Agostinho, ainda visvel uma carncia de investigao
relativa a esse tema no mbito da obra desse autor. Dessa forma, nossa anlise enseja apresentar
um Agostinho interessado em questes gramaticais, preocupado com a descrio das partes
orationis e com os uitia orationis, ou seja, um Agostinho gramtico.
Os corpora da Ars breuiata de Agostinho que utilizamos para compilao do nosso
trabalho so:
a) Aurelii Augustini Ars grammatica breviata. Edio de C. F. Weber. Marburg: Elwert, 1861.
Esta edio foi compilada por Weber atravs dos cdices: B. = Codex Bruxellensis, M.
= Editio Maii, P. = Codex Parisianus e V. = Vaticanus sive Palatinus. Segundo Bonnet,
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essa edio possui vrios problemas filolgicos. Um dos problemas mais significativos,
na opinio de Bonnet (2013), que h vrias supresses de palavras por todo o texto.
Alm disso, a pontuao do texto latino tambm no ajuda na sua compreenso.
Contudo, a edio de Weber a mais famosa do texto da Ars pro fratrum mediocritate
breuitata. Nem sempre essa edio esteve em circulao como hoje. Law (1984, p. 154)
ressalta que havia muita dificuldade de se conseguir uma cpia desse texto em sua
poca.
b) KEIL, Heinrich [ed.]. Grammatici Latini. Leipzig: Teubner, 1855-1880 [repub. Hildesheim: Olms, 1981].
A edio dos grammatici latini (GL, 1868, p. 494-496,1 2) de Keil contm somente
extratos da Ars, ou seja, s possui os pargrafos: 1, 39, 76, 88/89, 90. Isso torna sua
utilizao limitada para fins de anlises comparativas entre a Ars breuiata e as Artes
grammaticae de Donato. Entretanto, a edio de Keil evidncia importante dos
problemas filolgicos encontrados, quando lidamos com edies crticas: exemplifica o
fato de que os textos da tradio gramatical antiga, bem como os outros textos que
chegaram ao nosso tempo atravs da tradio manuscrita greco-latina, esto
fragmentados, copiados e at certo ponto reconstrudos, ficando, assim, praticamente
impossvel reconhecer suas fontes em alguns casos. Alm disso, foi essa fragmentao
da Ars breuiata expressa na edio de Keil que nos levou a utilizar, de forma mais ampla,
a edio de Weber (1861) e a de Bermon e Bonnet (2013).
c) St. AUGUSTIN. Abrg de la grammaire de Saint Augustin. Text tabli, Introduit & Comment por Guillaume Bonnet, Traduzido por Emmanuel Bermon & Guillaume
Bonnet. Paris: Les Belles Lettres, 2013.
Essa a edio crtica e a traduo mais recente que possumos da Ars breuiata. Do
ponto de vista filolgico, trata-se tambm da mais completa de todas as edies do texto
da Ars breuiata. Seu estudo introdutrio traz elucidaes gramaticais que incorporamos
em grande medida nossa anlise. Por ser a edio mais completa e recente do texto da
Ars breuiata, essa a edio do texto latino que adotamos para fazer citaes ao longo
do nosso trabalho.
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Alm dessas edies, h uma edio feita pela Citt Nuova, 2004, 123-181, com a
traduo de Antonio Pieretti para o italiano. Entretanto, no conseguimos obter sua
verso impressa, apenas tivemos acesso sua verso online, que est disponvel no site
www.augustinus.it e que no possui nenhum aparato crtico, notas de traduo, ou
observaes literrias. Diante disso, no podemos dizer mais coisas sobre ela.
Alm das edies da Ars breuiata, gostaramos de apresentar, de forma separada, a edio
de Holtz (1981) da Ars minor e Ars maior de Donato.
a) HOLTZ, L. Donat et la tradition de lenseignement grammatical. tude sur lArs Donati
et sa diffusion (IVe-IXe sicle) et dition critique. Paris: CNRS, 1981.
H um motivo para apresentarmos de forma separada essa obra gramatical latina. Essa
edio de Holtz (1981) da Ars minor e Ars maior tem sido a edio mais utilizada pelos
estudiosos em gramticos latinos para se referirem aos textos de Donato.
Informamos tambm que todos os textos dos Grammatici Latini (gramticos latinos)
podem ser encontrados no banco de dados online: Corpus Grammaticorum Latinorum3 (CGL).
Esse banco de dados oriundo, em parte, do imenso trabalho filolgico feito por H. Keil em
1855-1880, mas tambm possui outras edies.
De acordo com as observaes feitas por Desbordes (2000, p. 466), essa obra
monumental divida em sete livros e um suplemento:
I Charisius, Diomedes, Anonymus Bobiensis;
II, III Priscianus;
IV Probus, Donato, Servius;
V comentadores de Donato: Cledonius, Pompeius; textos curtos: Consentius, Phocas,
Eutyches, Augustinus, Palemon, Asper, Macrobius;
VI mtrica: Asmonius Ars de Victorinus, Bassus, Fortunatianus, Terentianus Maurus,
Sacerdos, Mallius Theodorus;
VII ortografia: Scaurus, Longus, Caper, Agroecius, Cassiodore, Papirius, Beda,
Albinus; textos curtos: Audax, Dositheus, Arusianus, Frontus.
3 Disponvel em: http://kaali.linguist.jussieu.fr/CGL/text.jsp
http://www.augustinus.it/http://kaali.linguist.jussieu.fr/CGL/text.jsp
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Ainda de acordo com Desbordes (2000, p. 466), temos que: "a edio dos Grammatici
Latini, fornecida por H. Keil e seus colegas do sculo (XIX), sempre o ponto de partida para
qualquer investigao sobre gramticos latinos do perodo ps-clssico4.
4 Cf. Ldition des Grammatici Latini, procure par H. Keil et ses collaborateurs au sicle dernier, est toujours
le point de dpart de toute recherche sur les grammairiens latins de la priode post-classique. Todas as tradues
presentes no corpo do texto so de nossa autoria, salvo aquelas indicadas em nota.
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PARTE I
I HISTORIOGRAFIA DA LINGUSTICA: CONCEITOS E METODOLOGIA
1.1 Historiografia da Lingustica: breve histria da disciplina
Introduzir-se numa disciplina cientfica qualquer significa familiarizar-se com as
atividades desenvolvidas pelos pesquisadores daquela especificidade... Significa
tambm conhecer a histria dessa disciplina, isto , a forma como se deu e se vem
dando a sua construo: os pontos de maior consenso da comunidade cientfica em
determinados momentos; as polmicas do passado e do presente; as grandes
sistematizaes tericas ordenadoras da ao de grupos de estudiosos, e seus
respectivos compromissos filosficos de base; os necessrios conflitos entre esses
sistemas, as mutaes epistemolgicas, as renovaes de objeto e mtodos. Inclui-se
aqui tambm a bibliografia bsica: os textos clssicos, os manuais de referncia, as
fontes de informao.
(FARACO, [1989] 2005, p. 10-11).
As consideraes feitas por Faraco englobam os conhecimentos gerais que cada
pesquisador precisa ter ao adotar uma teoria. Estes conhecimentos so, na maioria das vezes,
de ordem terica, metodolgica e epistemolgica. Alm disso, Faraco tambm destaca a
necessidade de conhecer um pouco da histria da disciplina da qual pretendemos nos filiar.
Sendo assim, podemos iniciar nossa discusso destacando que a Historiografia da
Lingustica uma disciplina que teve seu incio com a criao dos peridicos Historiographia
Linguistica (1974); Histoire, pistmologie, Langage (1979); Beitrge zur Geschichte der
Sprachwissenschaft (1991) e que desenvolveu seu campo terico-metodolgico com a
organizao de conferncias internacionais trienais sobre a histria das cincias da linguagem.
Alm desses trs peridicos que marcaram o processo de institucionalizao da Historiografia
da Lingustica, gostaramos de ressaltar tambm o peridico Orbis (Supplementa). Esta uma
antiga revista de Lingustica publicada na Blgica desde 1952. Orbis o rgo oficial do
International Centre of General Dialectology (Centro Internacional de Dialetologia Geral). O
primeiro editor e fundador do peridico foi Sever Pop (ed. 1952-1960), sucedido por Windekens
(1960-1985) e por R. Bosteels, L. Isebaert & P. Swiggers (1985-)5. Destacamos esse peridico,
pois alguns de seus ttulos foram destinados ao estudo dos textos greco-romanos, focalizando
as reflexes que filsofos, gramticos, retricos, entre outros, destinaram linguagem de uma
5 Para ver informaes, ttulos e temas tratados por esse importante peridico acessar: http://poj.peeters-
leuven.be/content.php?url=journal&journal_code=ORB
http://poj.peeters-leuven.be/content.php?url=journal&journal_code=ORBhttp://poj.peeters-leuven.be/content.php?url=journal&journal_code=ORB
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forma geral, no mundo antigo.
Alm dos peridicos, as conferncias realizadas em torno dessa temtica tiveram um
papel importante no processo de organizao e institucionalizao da Historiografia da
Lingustica (KOERNER, 2003, p. 373), fazendo assim com que ela alcanasse o status de
disciplina. A primeira International Conference on the History of the Language Sciences
(ICHoLS) (Conferncia Internacional sobre a Histria das Cincias da Linguagem) foi
organizada por E. F. Konrad Koerner, em Ottawa, no ano de 1978. Esse foi o mesmo ano em
que a Socit dHistoire et dpistmologie des Sciences du Langage (S.H.E.S.L.) foi fundada
em Paris por membros do CNRS. Posteriormente, em Oxford, no ano de 1984, foi estabelecido
o The Henry Sweet Society for the History of Linguistic Ideas (HSS). H outras, alm dessas
trs, como, por exemplo, a North American Association for the History of the Language
Sciences (NAAHoLS) fundada em 1987. (KOERNER, 2000, p. 2814; SWIGGERS, 2010, p.
01).
Podemos citar que um dos resultados desses projetos foi a compilao de antologias
multiautorais sobre a histria da Lingustica. Entre as mais referendadas antologias,
encontramos: Auroux (ed. 19892000), Auroux; Koerner; Niederehe; Versteegh (eds. 2000
2006), Lepschy (ed. 199498), Schmitter (ed. 19872007) e Sebeok (ed. 1975) entre outros. A
Histria da Lingustica como uma disciplina, de fato, s ocorreu depois da dcada de setenta.
No entanto, no podemos pensar que antes da institucionalizao dessa disciplina j no
houvesse estudiosos que se propuseram a contar essa histria. Os trabalhos do ingls Robins
(1967), do francs Mounin (1967), do romeno Coseriu (1969, 1972) e, at mesmo, do brasileiro
Mattoso Camara Jr. (original de 1962)6 so bons exemplos de manuais que tentaram escrever
essa histria.
No Brasil, a Historiografia da Lingustica teve sua insero efetiva no incio dos anos
noventa. De acordo com o levantamento feito por Batista (2013, p.27-28), h no Brasil trs
6 Para ver uma lista de obras sobre a Histria da Lingustica desde 1882-1976 ver Koerner (1978). De acordo
com Koerner (2014, p. 11): verdade que podamos talvez falar de uma tradio de 200 anos de escrita da
histria da Lingustica, talvez a comear com o Tableau des progrs de la science grammaticale (1796, cf.
Andresen, 1978) de Franois Thurot (1768-1832), embora vrias obras anteriores j tenham sido citadas, por
exemplo o Versuch einer Historie der deutschen Sprachkunst (1747), de Elias Caspar Reichard (1714-1791) (cf.
Koerner, 1978c para referncias a outras obras do sculo XVIII). Porm, como sugerem as fontes (Koerner,
1978c: 1-4), apenas a partir de finais da dcada de 1860 que surge um tipo de tratamento mais profundo da
histria da Lingustica, do qual a Geschichte der Sprachwissenschaft (1869), de Theodor Benfey (1809-1881)
pode ser considerada como o exemplo mais paradigmtico. Este trabalho tinha sido precedido pela obra de
Heymann Steinthal (1823-1899), de 1863, que procurou substituir os trs volumes de Die Sprachphilosophie der
Alten (1838-1841) de Laurenz Lersch (1811-1849), mas que s trata das contribuies da Grcia e Roma para o
pensamento lingustico. Essas mesmas informaes so encontradas tambm em Koerner (1995, p. 03; 2000,
p. 2803).
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grupos com maior destaque, todos em So Paulo. O primeiro est na Universidade de So Paulo
(USP), o Grupo de Estudos em Historiografia da Lingustica, pertencente ao Centro de
Documentao em Historiografia da Lingustica (CEDOCH) do Departamento de Lingustica.
Esse grupo coordenado pela Profa. Dra. Cristina Altman7. O Instituto de Pesquisas Sedes
Sapientiae e dos cursos de Letras de ps-graduao da PUC-SP e da Universidade Presbiteriana
Mackenzie (UPM) compe o segundo grupo. O terceiro grupo de pesquisadores se encontra na
Universidade de Campinas (Unicamp), cujo ttulo do projeto : Histria das Ideias Lingusticas:
tica e Polticas de Lnguas. Esse grupo coordenado pelos professores Eduardo Guimares e
Eni P. Orlandi8.
No Brasil, de acordo com a observao feita por Batista (2013, p. 17), parece que h
uma distino entre grupos de pesquisas ocasionada pela nomenclatura da rea.9 Estas so as
nomenclaturas que correspondem a esse campo de investigao: Historiografia Lingustica /
Historiografia da Lingustica (Linguistic Historiography / Historiography of Linguistics),
Histria das Cincias da Linguagem (History of Language Sciences), Histria das Ideias
Lingusticas (Histoire des Ides Linguistiques).10
O grupo de pesquisa CEDOCH parece se filiar, de forma mais direta, aos pressupostos
tericos e metodolgicos definidos pela Historiografia da Lingustica, nomenclatura adotada
por Koerner e Swiggers. Por outro lado, a nomenclatura Histria das Ideias Lingusticas
(Histoire des Ides Linguistiques) parece identificar os pesquisadores que se filiam a essa
perspectiva em outra direo.
Segundo Batista (2013, p. 17):
A questo da nomenclatura da rea espelha, possivelmente, uma marca de identidade
entre grupos de pesquisa que se veem como distintos nos percursos e procedimentos
que adotam para analisar a histria dos estudos sobre a linguagem.
7 Para mais informaes sobre esse grupo acessar: http://linguistica.fflch.usp.br/cedoch e
http://www.fflch.usp.br/dl/cedoch/noticias_anteriores.htm 8 Para mais informaes sobre esse grupo ver: http://www.unicamp.br/iel/hil/index.htm 9 De acordo com Batista (2013, p. 17): Na Europa, que at agora vem se firmando como o principal centro de
produo e difuso das pesquisas historiogrficas, a distino entre Historiografia da Lingustica (Linguistic
Historiography, Historiography of Linguistcs nos termos de sua proposio original) e Histria das Ideias
Lingusticas (Histoire des Ides Linguistiques nos termos de sua proposio original) no parece ser to
marcante, no sentido de que no reflete uma barreira para trocas acadmicas e intelectuais. 10 Encontra-se tambm as nomenclaturas: Histria dos Estudos da Linguagem e Histria do Conhecimento
Lingustico. Essas parecem ainda no terem se tornado alvo de uma polarizao que representa esse ou aquele
grupo de pesquisa no Brasil. Conforme pondera Batista, essas so nomenclaturas neutras (2013, p. 21). No
faremos uma distino aprofundada desses termos.
http://linguistica.fflch.usp.br/cedochhttp://www.fflch.usp.br/dl/cedoch/noticias_anteriores.htmhttp://www.unicamp.br/iel/hil/index.htm
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No que se refere produo intelectual, relativo ao mbito nacional, podemos dizer que
h vrios trabalhos sendo publicados na rea desde sua implementao11. Altman (1998),
Cavaliere (2000), Ucha (2008), Batista (2013) so algumas das referncias para essa rea no
Brasil.
H, tambm, trabalhos como os de Dezotti (2011), Conto (2011), Fortes (2012) e Beccari
(2013) que possuem uma aplicao terico-metodolgica dos conceitos oriundos desse ramo
da Lingustica em textos antigos, principalmente queles autores da Antiguidade greco-romana
que se dedicaram a compilar tratados gramaticais sobre o grego e o latim, i.e., Apolnio Dscolo
(sculo II d.C.), Donato (sculos IV d.C.), Prisciano (sculo VI d.C.).
Em Dezotti (2011), assim como em Fortes (2012), encontramos uma utilizao
intercambivel entre as postulaes das Histrias das Ideias Lingusticas marcadas pelas
reflexes de Auroux (1992), assim como referncias Histria da Lingustica e Historiografia
da Lingustica em geral, oriundas das consideraes de Koerner (1995).12
Em sntese, aps realizarmos essa breve histria da disciplina que norteia o nosso
trabalho, justificamos que a escolha pela abordagem apresentada por Koerner e Swiggers
configura-se por um motivo fundamental. Esse motivo est relacionado com o instrumental
terico e metodolgico disponvel nas obras de Koerner (1995) e Swiggers (2010; 2012) para
tratarmos da escrita historiogrfica de forma coerente. Nessas trs referncias, encontramos os
princpios que regem um trabalho historiogrfico, a saber: o princpio da contextualizao e o
princpio da imanncia (1995, p. 13), bem como definies tericas a respeito do campo e do
estatuto epistemolgico da Historiografia da Lingustica (SWIGGERS, 2010, p. 01-02).
1.2 Reviso terico-metodolgica sobre a Historiografia da Lingustica
O presente item tem como finalidade apresentar uma reviso terico-metodolgica da
Historiografia da Lingustica. Certamente, como acabamos de ver no item acima, os mais de
quarenta anos de histria dessa disciplina impossibilitam-nos de fazer uma descrio detalhada
de todos os seus aspectos. Diante disso, s ressaltamos, neste item, os pressupostos que
fundamentam nosso trabalho do ponto de vista historiogrfico.
11 H uma lista de publicaes aps a dcada de noventa no Brasil; para isso, ver Batista (2013, p. 30). 12 Fortes (2012) no faz referncia direta a Koerner, mas considera em todo o seu trabalho as questes levantadas
por Law (1987; 1993), pesquisadora essa que tentou descrever os gramticos latinos de acordo com o contexto
social, poltico e cultural em que se encontravam.
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Nos primeiros questionamentos feitos por Koerner (1973 [1971]), em sua tese de
doutoramento a respeito do pensamento Saussuriano, o autor apresenta sua verso sobre a
necessidade de se repensar a escrita da histria da Lingustica, dizendo:
Eu tenho achado razes suficientes para questionar a maneira na qual a Histria da
Lingustica tem sido escrita. A Histria da Lingustica tem sido quase que
exclusivamente preocupada com ideias relativas linguagem e sua investigao de
forma cronolgica (isso sugere que, ao mesmo tempo, teorias contemporneas sejam
muito mais sofisticadas, adequadas, e evidentemente superiores); em outras palavras,
a evoluo da Lingustica retratada como um mero processo de desenvolvimento
por acumulao. A histria do pensamento lingustico e relatos semelhantes so
frequentemente baseados em estudos anteriores, muitas vezes confiando pesadamente
em fontes secundrias e at mesmo tercirias. Os desenvolvimentos na Lingustica
so tratados quase completamente em isolado: a atmosfera intelectual geral do perodo
em questo, a sociopoltica, o background cultural do qual ideias em particular e
concepes emergiram no tm sido levadas em considerao. Alm disso, histrias
disponveis no presente momento no tm tentado seriamente estabelecer um quadro
terico no qual o historiador da Lingustica deva operar.13
(KOERNER, 1973, p. iii).
As palavras de Koerner refletem, de forma direta, o modo como a histria da Lingustica
estava sendo escrita. Havia um desinteresse pelos processos culturais e contextuais, uma
predileo por teorias mais recentes, ressaltando, assim, sua superioridade em relao s que
lhes precederam. Alm disso, a histria da Lingustica era contada quase que de forma
cronolgica, resultando, dessa forma, em uma viso progressista, marcada pelo processo de
acumulao.
Diante desse quadro, que se desenhava em torno da escrita da histria da Lingustica, a
necessidade de se criar uma teoria e um mtodo para escrev-la, com uma adequao contextual
e fundamentada, deu origem Historiografia da Lingustica.
Nos termos de Swiggers:
13 Cf. I have found sufficient reason to question the manner in which the history of linguistics has been written.
Histories of linguistics have been almost exclusively concerned with relating ideas about language and its
investigation in a chronological fashion (suggesting at the same time that contemporary theories are much more
sophisticated, adequate, and evidently superior); in other words, the evolution of linguistics is depicted as a mere
process of development-by-accumulation. Histories of linguistic thought and similar accounts are frequently
based on earlier studies, often relying heavily on secondary and even tertiary sources. Developments in
linguistics are treated almost completely in isolation: the general intellectual atmosphere of the period in question
and the socio-political and cultural background from which particular ideas and conceptions emerged have not
been taken into account. Furthermore, histories available to the present day have not seriously attempted to
establish a theoretical framework within which the historian of linguistic ideas should operate.
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A historiografia lingustica o estudo interdisciplinar do curso evolutivo do
conhecimento lingustico; ela engloba a descrio e a explicao, em termos de fatores
intradisciplinares e extradisciplinares (cujo impacto pode ser positivo, i.e. estimulante,
ou negativo, i.e. inibidores ou desestimulantes), de como o conhecimento lingustico,
ou mais genericamente, o know-how lingustico foi obtido e implementado.
(SWIGGERS, 2010, p. 2).
Diante da definio de Swiggers, gostaramos de ressaltar a natureza interdisciplinar da
Historiografia da Lingustica, segundo a qual possvel observar os pontos de interseo
existentes entre a Lingustica e outras disciplinas como, por exemplo, a Histria, a Filosofia, a
Sociologia da Cincia, a Retrica, a Lgica (dialtica) a Teologia etc. (SWIGGERS, 2010,
2013). justamente nessa interseo que, ao investigarmos as ideias lingusticas presentes
nos textos de Agostinho, lanamos mo das relaes existentes entre a gramtica e a filosofia
(dialtica/lgica) na Antiguidade greco-romana, com nfase no perodo Tardio.
Uma das caractersticas que podemos destacar e que, de certa forma, so compartilhadas
entre a Historiografia da Lingustica e a Filologia Clssica, o seu objeto. Pontuamos essa
caracterstica, pois o objeto primrio da Historiografia da Lingustica so os textos, sejam eles
publicados ou no (SWIGGERS, 2013, p. 41). Em nosso caso, o que estamos adotando como
textos so aqueles que a tradio filolgica atribuiu aos autores da Antiguidade greco-romana.
No entanto, mesmo que essas duas disciplinas mantenham um objeto em comum, a
metodologia, assim como a metalinguagem utilizada pelas duas disciplinas, , em certa medida,
distinta. A metalinguagem utilizada pelo historigrafo da Lingustica vasta e demasiadamente
extensa. As proposies tericas do campo s vezes so de difcil aplicao ao corpus que est
sendo analisado. Dessa forma, para no nos perdermos no emaranhado terminolgico com o
qual o historigrafo precisa lidar, limitamo-nos a apresentar apenas o problema da
metalinguagem e os trs princpios da pesquisa historiogrfica, de aplicao imediata em nosso
trabalho.
Koerner, ao tentar descrever o problema da metalinguagem ou a questo da
metalinguagem, pontua que:
O uso de uma terminologia atual na descrio de fases mais pretritas no
desenvolvimento do pensamento lingustico tem nos levado a uma variedade de
problemas em nosso entendimento de teorias do passado.14
(KOERNER, 1995, p. 13).
14 Cf. The use of present-day terminology in the depiction of earlier phases in the development of linguistic
thought has led to a variety of problems in our understanding of past theories.
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A proposio de Koerner (1995) totalmente pertinente, pois ela toca no ponto principal de
uma pesquisa que lida com textos que foram produzidos em um contexto diferente do atual. A
terminologia que foi aplicada para descrever um fenmeno na lngua latina, por exemplo, no
pode ser equiparado sem maiores explicaes nossa terminologia gramatical. Um exemplo
que podemos dar sobre essa questo consiste em diferenciar, por exemplo, partes orationis (as
partes da orao, um conceito antigo), de classes de palavras (um conceito moderno). Ainda
que saibamos que uma est na base da outra, a relao estabelecida entre elas assim
assimtrica, ou seja, no se equivalem.
Koerner (1995, p. 13), tendo se deparado com essas questes, postulou trs princpios
historiogrficos que ajudam na apresentao de teorias lingusticas propostas em perodos
antigos.
a) O primeiro princpio o da contextualizao: em linhas gerais, esse princpio pontua a
necessidade de se construir o clima de opinio do perodo em questo, ou seja,
descrever o quadro social etc.
b) O segundo princpio o da imanncia: preconiza um entendimento do texto em questo,
um entendimento crtico e, se possvel, filolgico do texto.
c) O terceiro o princpio da adequao: de forma geral, o historigrafo pode se aventurar
a fazer aproximaes com a terminologia atual. No entanto, uma justificativa de por que
se est fazendo essa aproximao necessria.
Em nossa dissertao, utilizamos mais explicitamente os dois primeiros conceitos, uma
vez que os textos gramaticais antigos possuem uma terminologia especfica para descrever a
lngua latina. Essa terminologia, por sua vez, faz parte da metalinguagem gramatical que elas
possuam.
O emprego de uma metalinguagem que trata os textos antigos de forma contextualizada
visa a evitar o anacronismo. Nesse sentido, o Know-how lingustico obtido e implementado
pelos gramticos da Antiguidade Tardia, como, por exemplo, o de Agostinho, deve ser
observado de acordo com as necessidades de sua poca. O historigrafo da Lingustica, dessa
forma, no pode estar desatento ao momento histrico em que determinada reflexo sobre a
lngua(gem) foi feita. Ele, alm de ser um observador e leitor crtico, deve ser, tambm, um
intrprete do curso evolucionrio do conhecimento lingustico (SWIGGERS, 2013, p. 42).
Interpretar o conhecimento lingustico produzido ao longo dos sculos, seja por
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gramticos, fillogos etc., contribui para que tenhamos uma viso mais ampla do passado em
relao aos saberes lingusticos, assim como contribui para que a narrativa historiogrfica seja
uma espcie de moderadora das teorias lingusticas, pois, como afirma Koerner:
a histria da Lingustica pode, muito bem, servir como um alerta contra as alegaes
exageradas, em termos de novidade, originalidade, inovao e revoluo em nossas
(re)descobertas e, assim, levar a um tipo menos polmico de discurso cientfico, ou,
como o falecido Paul Garvin sugeriu h muitos anos (Garvin 1970), uma moderao
na teoria lingustica.15
(KOERNER, 2003, p. 381).
Partindo dessa observao, evitando, assim, um entendimento exagerado do ttulo que
propusemos para esta dissertao, resta-nos dizer, justificando-o, contudo, que o pensamento
gramatical de Santo Agostinho pode no tanto ser mapeado em um texto aqui ou al, ele no
s pode, mas deve ser interpretado de acordo com as vinculaes sociais e filosficas da poca
em que tais textos foram escritos, de acordo com o contexto especfico em que tais reflexes
sobre a linguagem foram postuladas.
Dessa forma, o pensamento gramatical de Santo Agostinho no , e no deve ser, um
ttulo que retrate todas as ideias de Agostinho em torno da linguagem, mas ele merece ser um
ttulo que demonstra certa coerncia entre algumas das ideias de Agostinho sobre a linguagem,
de forma contextualizada e transversal, ao longo de sua obra, apesar das claras e evidentes
limitaes que tem um trabalho no nvel de Mestrado. Portanto, o artigo definido o no expressa
a totalidade nem dos trechos mapeados em obras diferentes para construir nosso trabalho, nem
uma definio fechada do ponto de vista hermenutico, ou seja, esse artigo definido , na
realidade, uma espcie de representao do corpus Agostiniano que adotamos para a construo
da nossa dissertao.
Assim como Koerner, em sua tese de doutoramento, apresenta quais so as ideias que
esto por trs do pensamento saussureano em torno da linguagem no sculo XIX, ns, em nossa
dissertao, dentro dos nossos limites, procuramos seguir os mesmos preceitos para a
construo e nomeao do nosso trabalho.
Finalmente, podemos esclarecer, desde j, que o mtodo adotado pelos estudiosos da
15 Cf. The history of Linguistics may well serve as a guard against exaggerated claims in terms of novelty,
originality, breakthrough, and revolution in our (re)discoveries and, thus, lead to a less polemic kind of scientific
discourse, or, as the late Paul Garvin suggested many years ago (Garvin 1970), a moderation in linguistic
theory.
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Historiografia da Lingustica no rgido, pois, se assim o fosse, o seu carter interdisciplinar
seria anulado. Koerner (1996, p. 56-57) ressalta que:
os historiadores da cincia Lingustica tero de desenvolver seu prprio quadro de
trabalho, tanto o metodolgico, quanto o filosfico. Para isto, um conhecimento
meticuloso de teoria e da prtica em outros campos revelam-se verdadeiramente muito
teis, mesmo se o resultado for negativo, isto , se o historiador da Lingustica
descobrir que este ou aquele campo de investigao histrica tem de fato pouco a
oferecer em matria de mtodo historiogrfico [...]
(in GODOY, 2009, p. 184-185).
As palavras de Koerner sugerem que o mtodo seja construdo pelo prprio pesquisador,
j que o caminho percorrido por ele vai revelar quais foram as necessidades cumpridas ou no
para a pesquisa. Swiggers (2013, p. 48) endossa essa ideia, dizendo que cada historiador
estabelece uma metodologia pessoal, em face do objeto estudado e em consonncia com seus
interesses, seu(s) conhecimento(s) e seu(s) objetivo(s).
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II CONSTRUINDO O CLIMA DE OPINIO: UMA REVISO SOBRE O
LUGAR DA GRAMTICA NA ANTIGUIDADE TARDIA
2.1 Um conceito em formao: Antiguidade Tardia
A histria tem a faculdade de nos confundir; ela nos confronta, incessantemente,
com singularidades, diante das quais nossa reao mais natural a de no enxergar;
longe de constatar que no temos a chave adequada, nem sequer percebemos que
h uma fechadura que deve ser aberta.
(VEYNE, 1998 [1971], p. 174).
As palavras de Veyne expressam um sentimento que o historiador possui ao se dedicar
escrita da histria, uma vez que a incapacidade de perceber todos os momentos que
compem o quadro geral de um dado perodo parece ser no s uma parte do seu ofcio, mas
tambm uma caracterstica intrnseca do seu objeto. Longe, certamente, de discutirmos o
estatuto epistemolgico da Histria ou de fornecer uma soluo para esse problema,
queremos apenas chamar a ateno para o fato de que, aparentemente, as chaves e fechaduras
que encontramos para dissertar sobre o tema que propusemos nesse trabalho ora leva-nos a
uma sala cheia de explicaes, ora a um beco sem sada.
Com efeito, nosso intento apresentar, neste captulo, uma pequena contextualizao
do perodo da Antiguidade Tardia, destacando alguns fatos que dizem respeito
transformao16 do mundo clssico pago para o que ficou conhecido nos estudos
historiogrficos como ascenso (rise) da Cristandade (BROWN, 2013 [1996]; 2006;
JAMES 2008). Essa pequena apresentao do quadro histrico do perodo em questo serve
para conseguirmos, pelo menos minimamente, abrir e espiar o mundo de Agostinho.
Para versarmos acerca desse tema, dividimos o presente captulo em duas partes. Na
primeira parte, dedicamo-nos a explicitar, do ponto de vista historiogrfico, o conceito de
Antiguidade Tardia,17 explicando assim, por que essa terminologia sustentada em todo
16 O termo mais utilizado no livro de Brown (1971) mudana (change) e no transformao (transformation).
O uso desse termo nos estudos histricos a respeito da Antiguidade Tardia parece ter ganhado destaque em obras
posteriores, como de 1996, e nos estudos traados pela coletnea de doze volumes, oriundas de um projeto com
o ttulo The transformation of Roman World (TRW), organizada pela European Science Foundation (1993-1997). 17 A primeira referncia terminolgica a esse perodo o termo alemo Sptantike, utilizado por Wulff & Volbach
em sua obra de 1926. Posteriormente reformulado por Peter Brown em 1971, e utilizado por Marrou em 1977.
Para uma reviso do conceito Sptantike, ver Taurisano (2007) e James (2008). Usamos em todo o nosso trabalho
o termo Antiguidade Tardia (Late Antiquity). No entanto, cabe ressaltar, pelos menos nesta nota, o quo difceis
e emaranhados esses termos so para os estudiosos desse tema, uma vez que a terminologia geralmente
encontrada para tratar do perodo em questo (150-750 d.C.) so os termos late Roman e late Antiquity.
Esses termos so utilizados por Brown (1971) como sinnimos. Porm, no trabalho publicado em 1967, Brown
no menciona o termo late Antiquity, mas apenas o termo late Roman. J no livro publicado por Brown em
1971, parece haver uma distino bem sutil no uso desses dois termos para se referir a prticas polticas e
intelectuais e religiosas especficas. Contudo, como pondera James (2008, p. 23), se existe uma distino entre
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nosso trabalho. Destacamos tambm alguns fatos histricos que nos ajudam a entender que
tipo de transformao ocorreu na sociedade romana do sculo II ao VI d.C.
Na segunda parte desse captulo (itens 2.3 e 2.4), fazemos algumas consideraes
sobre a vida e da obra de Santo Agostinho. Para esse objetivo, selecionamos aspectos
relevantes para o desenvolvimento da nossa pesquisa, como, por exemplo, de que forma a
gramtica e a figura de gramticos aparecem em seus escritos. Alm disso, so feitas algumas
consideraes sobre as artes liberais, ressaltando, de forma panormica, o desenvolvimento
das disciplinas que compem o Trivium (gramtica, dialtica e retrica) na Antiguidade
Tardia. Adotamos essa diviso apenas metodologicamente, no necessariamente
conceitualmente, pois os limites das disciplinas na Antiguidade Tardia, mesmo j tendo
adquirido um modelo fixo, parece ter sofrido alteraes no perodo de Agostinho.18
Assim, a finalidade deste captulo consiste em tentar construir o clima de opinio
no qual o bispo de Hipona est inserido. Faz-se necessrio, para isso, colocarmos em destaque
quais eram as teorias e as indagaes da poca de Agostinho em relao educao, ao
aprendizado e ao ensino da gramtica.
Alm disso, em consonncia com a nossa perspectiva terica, j explicitada no
captulo I, no podemos nos esquecer de que, para se produzir um trabalho slido, nesse
esses termos, elas possuem a seguinte tendncia: o termo late Roman usado por Brown para falar sobre a
sociedade ou sobre o governo e late Antiquity quando se referia vida intelectual e religiosa. Alm de Brown,
Cameron, em seu texto de 1993, parece oferecer-nos uma observao interessante sobre a distino existente
entre a mudana social e a mudana religiosa desse contexto histrico. A autora faz duas consideraes
importantes ao dizer que a sociedade romana da poca tardia, em si, estava mudando rapidamente em vrios
aspectos importantes (1993, p. 151, grifos nossos). Um exemplo que ilustra bem essa alterao so as invases
brbaras. Por outro lado, mais adiante, quando Cameron se refere ao processo de converso das famlias romanas
mais clebres, ela ressalta o fato de que o processo de cristianizao foi gradual. (1993, p. 159, grifos nossos).
Neste sentido, se a mudana social se deu de forma mais rpida e o processo de cristianizao ocorreu
gradativamente, observamos que, mesmo sendo parte da mesma transformao, as alteraes no campo social,
aparentemente, em algum momento desse processo, se desenvolveram separadas da cristianizao do Imprio
Romano, configurando, assim, uma distino pequena, porm considervel, entre os dois processos. Se tais
caractersticas, de fato, procedem, ento no por acaso que a distino feita por Brown 1971 deva ser levada em
considerao. 18 O que estamos chamando de reformulao das disciplinas ou artes liberais, principalmente no que diz
respeito disciplina gramatical, no nos parece ser algo novo dentro dos estudos em Histria Antiga nem dentro
da Historiografia da Lingustica, vide a bibliografia que adotamos para compilao deste trabalho. No entanto,
h uma questo importante a ser frisada: de que forma o historigrafo da Lingustica pode oferecer uma reflexo
nova de fatos passados? Tal resposta parece estar contida nas consideraes feitas por Law (2003) sobre o
processo de observao para o historigrafo da Lingustica. Law (2003, p. 277-278) endossa a seguinte
perspectiva: a observao uma habilidade essencial que o historiador precisa praticar (e, acredite em mim,
isso no vem sem uma imensa poro de prtica). A segunda qualidade vital, certamente para algum historiador
intelectual, uma sensibilidade s metamorfoses e aos processos de mudana atravs do tempo. [...] A terceira
qualidade importante que o historiador da lingustica necessita : uma percepo de quando algo novo
aconteceu. (Observation is one vital skill that the historian needs to practice (and believe me, it doesnt come
without a great deal of practice). The second vital quality, certainly for any intellectual historian, is a sensitivity
to metamorphosis, to processes of change through time. [...] the third vital quality that the historian of linguistics
needs: a sense for when something new has arrived.).
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campo de pesquisa, deve-se ter em mente que:
o historigrafo da Lingustica precisa, antes de tudo, ser um linguista, porque s
munido dessa habilidade que ele poder realizar adequadamente crticas e
anlises de trabalhos relacionados linguagem. Porm, no basta ao historigrafo
ser um linguista ciente de aspectos tericos e prticos de sua rea; preciso tambm
que o pesquisador conhea eventos situados na corrente histrica, ou seja, saiba
histria geral.
(BATISTA, 2013, p. 48).
A reflexo feita por Batista no s sustenta a importncia do presente captulo em
nossa dissertao, mas tambm reala a ideia de que, para chegarmos a uma discusso mais
coerente sobre o conhecimento que alguns autores pretritos construram sobre a linguagem,
preciso apresentarmos um pouco dessa histria geral. Certamente, esse conhecimento nos
ajuda a eliminar certos preconceitos e anacronismos que circundam tais reflexes, seja no
campo da Historiografia da Lingustica, seja na prpria Histria.
Felizmente, de acordo com a perspectiva de anlise traada por ODonnell (2006,
p.6):
nosso conhecimento sobre o mundo de Agostinho tem se transformado desde a
ltima gerao. Desde o trabalho de Gibbon, pelo menos, o quarto e o quinto
sculos tinham sidos marginalizados na imaginao histrica de alguns
especialistas. Gibbon descreveu o declnio do Imprio Romano como o triunfo do
barbarismo e religio (em forma de Cristianismo).19
(ODONNELL, 2006, p. 6).
A observao feita por ODonnell pode ser entendida como uma tentativa de resgatar
a importncia que os autores desse perodo possuem para a histria da literatura latina, bem
como para a escrita da prpria histria. Retirar o estigma j enraizado em muitas anlises
literrias e historiogrficas de que o Cristianismo e, por consequncia, tudo aquilo que
derivado dele, seja o responsvel pela queda do Imprio Romano, de fato, ainda no
tarefa fcil.
Para que uma reflexo lcida sobre esse perodo possa ser feita, parece-nos prudente
19 Cf. Our knowledge of Augustines world has transformed itself in the last generation. Ever since the work
of Gibbon, at least, the fourth and fifth centuries had been marginalized in the historical imagination even of
specialists. Gibbon described the decline of the Roman empire as the triumph of barbarism and religion (in
the form of Christianity).
-
34
levarmos em considerao a afirmao do historiador francs Henri-Irne Marrou em seu
ltimo livro, publicado em 1977. Marrou, ao refletir sobre o conceito de Late Antiquity
(Antiguidade Tardia), que Brown havia formulado em seu trabalho de 1971, relata-nos que:
Seria preciso, enfim, consentir a admitir que a Antiguidade Tardia no s a ltima fase de um desenvolvimento contnuo; uma outra Antiguidade, uma outra civilizao, cuja originalidade preciso aprender a reconhecer e a julgar por ela mesma, e no atravs de um cnon de pocas anteriores.20
(MARROU, 1977, p. 13).
As palavras de Marrou se refletem de forma direta no modo como os historiadores,
depois da dcada de sessenta, veem esse perodo. Cada vez mais se tem ideia de que a
Antiguidade Tardia no consistiu na queda, fim ou declnio da sociedade romana, mas
representou um momento de transformao entre duas Antiguidades diferentes.
Nesse sentido, Brown (1971), Marrou (1977), Cameron (1993), Veyne (2011), entre
outros, descrevem esse perodo como Antiguidade Tardia para tentar fugir da concepo de
declnio e queda traada no sculo XVIII pelo famoso historiador Edward Gibbon, em sua
volumosa obra intitulada de The History of the Decline and Fall of the Roman Empire (1776-
1788), e, assim, trazer tona uma observao mais condizente com a sociedade romana da
poca. Contudo, mesmo com as inmeras observaes feitas por Brown (1971, 1978, 2009,
2010, 2013 [1996]), alguns estudiosos como Grimal (2010 [2003]) ainda preferem retratar o
sculo de Constantino como a morte de um Imprio. Ward-Parkins (2005, p. 183), por
exemplo, contrria viso histrica defendida por Brown, ao destacar que existe um perigo
real para os dias de hoje, em uma viso do passado que tenta explicitamente eliminar toda
crise e todo o declnio21
.
A posio adotada por Ward-Parkins a respeito da Antiguidade Tardia, ainda que
possua uma crtica importante em relao utilizao exagerada de determinados termos na
anlise historiogrfica, est impregnada de conotaes negativas sobre os processos culturais
que a envolvem. Nesse sentido, Ward-Parkins fornece um quadro histrico e literrio que no
condiz com a possvel prtica intelectual da sociedade romana tardia.
20 Cf. Il faudrait enfin consentir admettre que l'antiquit tardive n'est pas seulement l'ultime phase d'un
veloppement continu; c'est une autre antiquit, une autre civilisation, qu'il faut apprendre reconnatre dans son
originalit et juger pour elle-mme et non travers les canons des ges antrieurs. 21 Cf. I also think there is a real danger for the present day in a vision of the past that explicitly sets out to
eliminate all crisis and all decline.
-
35
.
James (2008, p. 27), por exemplo, pondera que:
a Antiguidade Tardia foi um perodo de grande inovao e de atividade estimulada; ela no foi o perodo de declnio. Declnio tem sido banido do vocabulrio dos estudiosos da Antiguidade Tardia.22
As opinies de Ward-Parkins (2010) e James (2008) em relao Antiguidade Tardia
so antagnicas e revelam o quo delicados e inflamados so os discursos que cercam a
anlise do referido momento histrico. No entanto, ao que nos parece, a viso sustentada por
James (2008) parece-nos mais convincente. Para isso, basta apenas considerarmos que a
literatura crist produzida nos sculos IV e V d.C., por autores como Agostinho, Ambrsio e
Jernimo, pode dificilmente ser tomada, recentemente, como um fator de decadncia e, por
isso, uma literatura de valor menor. Ao contrrio dessa perspectiva, temos que essa literatura
foi uma forma de expresso cultural e religiosa diferente daquela que a precedeu.
Diante, portanto, do processo metonmico que h entre o nascimento do Cristianismo
e os grandes textos que fazem parte dessa tradio religiosa, Marrou (1977, p. 153) endossa,
de forma clara, que:
o Cristianismo, com efeito, uma religio acadmica. Ele no pode se separar das
Sagradas Escrituras, a fonte de sua revelao, o lar de seus dogmas; ela exige, pelo
menos para o seu clero, o mnimo de cultura literria: acesso aos livros sagrados,
aos textos da liturgia agora, temos visto, codificadas , as colees de
decises conciliares e de outras fontes do direito cannico.23
22 Cf. Late Antiquity was a time of great innovation and excited activity; it was not a time of decline. Decline
has been banned from the late antiquitys vocabulary. (Grifo nosso). Ward-Parkins (2005, p. 182) rebate essa
ideia dizendo que: Eu tenho ficado cada vez mais perplexo, pois a palavra declnio tem sido to contestada na
escrita histrica, uma vez que ascenso est sendo usado o tempo todo sem ningum pestanejar. Talvez a
dificuldade repouse na psicologia moderna. Declnio, bem como suas conotaes fortemente negativas, talvez
tambm morais. Ns tendemos a us-lo com um sentido de que algum pode e deve ser responsabilizado pela
mudana, como um 'declnio nos padres educacionais'. Eu tenho utilizado declnio neste livro em seu sentido
negativo, muito explicitamente, porque eu acredito que uma grande parte foi perdida com o fim da antiga
sofisticao; mas eu espero que eu no esteja culpando ningum, deliberadamente, por ter causado o declnio
que tenho traado [...] Hoje em dia, os historiadores parecem se sentir mais confortveis, discutindo a ascenso
disto ou daquilo, porque no h nenhum risco neste vocabulrio de algum ser criticado ou fazer um juzo de
valor negativo...(I have indeed become increasingly puzzled that the word decline should be so contested in
historical writing, when rise is used all the time, without anyone ever batting an eyelid. Perhaps the difficulty
lies in modern psychology. Decline, as well as its strongly negative connotations, perhaps also has moral ones.
We tend to use it with a sense that somebody can and should be blamed for the changeas with a decline in
educational standards. I have used decline in this book in its negative sense, very explicitly, because I believe
a great deal was lost with the end of ancient sophistication; but I hope that I am not blaming anyone for
deliberately causing the decline that I have charted [] Present-day historians seem to feel more comfortable
discussing the rise of this or that, because there is absolutely no risk in this vocabulary of anyone being criticized
or any negative value judgement being made). 23 Cf. Le christianisme en effet est une religion savante. Il ne peut se sparer de l'criture sainte, source de sa
rvlation, foyer de sa dogmatique; il exige, au moins pour son clerg, un minimum de culture lettre: accs aux
Livres saints, aux textes de la liturgie dsormais, on l'a vu, codifie , aux recueils des dcisions conciliaires
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36
(MARROU, 1977, p. 153).
nesse ponto que podemos dizer que a observao feita por Gibbon e seguida por
outros historiadores como Ward-Parkins no possui consistncia. Conte (1994, p. 621), por
exemplo, atravs das suas anlises sobre a histria da Literatura Latina, possui a mesma
posio adotada por Brown (1971), Cameron (1993) e Marrou (1977), dizendo que:
Se o terceiro sculo marcou um dos perodos mais difceis para os Romanos, o quarto sculo testemunhou um impressionante renascimento [...] um florescimento literrio que um dos mais impressionantes na histria de Roma.24
(CONTE, 1999, p. 621).
A ponderao feita por Conte, bem como aquelas apresentadas pelos historiadores que vimos
acima, abrem uma brecha para que possamos considerar que, se houve um declnio da
sociedade romana dita clssica, tal afirmao est de acordo com uma perspectiva histrica
mais preocupada em resgatar, nostalgicamente, os dias ureos de uma Repblica de Ccero ou,
ento, as glrias de alguns dos Csares. Contudo, se, por outro lado, a histria que se pretende
narrar procura investigar, de fato, os sculos III, IV e V d.C., e os acontecimentos que
marcaram esse perodo, deve-se empreender, portanto, uma anlise da literatura crist, da
Igreja, dos chamados brbaros, sejam eles cristos ou no, do Imprio de Constantino e
Teodsio, em sntese, da Antiguidade Tardia.
2.2 Alguns fatos histricos: a Cristandade e os pagos
O dito de Milo (conhecido tambm como dito da Tolerncia, contido na obra de
Lactncio, De mort., pers., 48, 2), sancionado pelo ento imperador do ocidente, Constantino
(312337 d.C.), e por Licnio, o imperador da parte oriental, em 313 d.C., representa um dos
marcos mais importantes para histria do Cristianismo. Seu contedo diz respeito ao pacto
criado pelos dois imperadores, com o intuito de conterem a intolerncia existente entre pagos
et autres sources du droit canon. 24 Cf. The great cultural Renaissance. If the third century marked one of the most difficult periods for Latin
culture, the fourth witnesses an impressive revival [...] a literary flourishing that is one of the most impressive in
the history of Rome.
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37
e cristos. Um ano antes do dito de Milo, Constantino j havia recuperado a Itlia das mos
de Maxncio, derrotando-o na batalha da Ponte Mlvio.
Na resenha feita por Veyne (2011), a respeito desses acontecimentos, temos que:
No decnio seguinte, em 324, a religio crist assumia, com um golpe nico, uma
dimenso "mundial", e Constantino estaria alado estatura histrica que dali em
diante seria a sua: ele acabava de esmagar Licnio no Oriente, outro pretenso
perseguidor, e, assim, restabelecia sob seu domnio a unidade do Imprio
Romano, reunindo as duas metades sob o seu cetro cristo. O Cristianismo dispunha
da em diante desse imenso imprio que era o centro do mundo e que se considerava
com a mesma extenso da civilizao. Aquilo a que se chamar por longos sculos
de Imprio Cristo, sim, a Cristandade, acabava de nascer. Constantino apressou-
se a sossegar seus novos sditos e lhes prometer, invertendo os termos de 312, que
os pagos do Oriente seriam tratados em p de igualdade com os cristos: que
permanecessem insensatamente pagos, "que possussem, se assim o desejassem,
seus templos de mentira", templos que, assim, no deviam ser destrudos. O tempo
avanara: em 312 a religio tolerada era o Cristianismo, em 324, era o paganismo.
(VEYNE, 2011, p. 8-9).
Essas sries de eventos transformaram o mundo antigo, em definitivo. A atitude
tomada por Constantino alterou o lugar que pagos e cristos ocupavam naquele momento
dentro da sociedade romana. Constantino promete tratar de forma igualitria os pagos, pois
seus templos de mentira no representam mais uma ameaa para o cetro cristo. Alm
disso, observa-se que essa mudana teve outros fatores importantes, como, por exemplo, os
pagos convertidos no queriam mais retornar ao paganismo, bem como tiveram o apoio
incondicional da maioria dos Csares, tornados cristos ao longo do sculo IV d.C.
(VEYNE, 2011, p. 5).
Nesse sentido, essa transio no pode ser entendida e nem interpretada como uma
mera mudana de hbitos e prticas religiosas, mas deve ser observada como uma profunda
mudana social, poltica e, principalmente, religiosa, que teve inmeras consequncias.
Dentre elas, podemos citar uma alterao no modelo educacional romano. Daremos nfase,
em nossa pesquisa, ao papel que a gramtica passou a exercer na Antiguidade Tardia. Porm,
mais do que isso, Agostinho, por exemplo, colocou o estudo da dialtica em um lugar de
destaque, sendo esta a segunda etapa do processo educacional proposto por ele em seu livro
De ordine.25
25 Parafraseando Luhtala (2005, p. 69), podemos fazer um adendo ao dizer que a dialtica no era uma disciplina
proeminente no esquema traado por Ccero, mas que na Antiguidade Tardia seu papel ganhou destaque por se
tornar uma ferramenta importante para todo tipo de aprendizado. Agostinho se dedicou a escrever um texto sobre
o tema, seu De dialectica, que parece ser um bom exemplo de sua preocupao com esse ensinamento.
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importante tambm frisar que as mudanas da poca de Constantino no foram
repentinas; tratava-se, antes, de mudanas de mentalidade que ocorreram de modo lento. Com
efeito, uma espcie de crtica, mesmo que sutil, a respeito dos hbitos religiosos da sociedade
romana, encontrava-se j disseminada em relatos de autores considerados pagos.26 No
Satyricon, Petrnio (sculo I-II d.C.), atravs da escrava Quirila, faz uma crtica ao sistema
politesta romano, ao dizer que: a nossa terra est to atulhada com a abundncia de
divindades que mais fcil encontrar um deus do que um homem.27 Mesmo que o relato de
Petrnio esteja comprometido com um discurso diferente daquele encontrado nos autores
cristos, esse relato um indcio de que o sistema religioso romano j enfrentava problemas
bem especficos havia bastante tempo.28
No por acaso, portanto, que os cristos, mais tarde, utilizaram-se dessa
abundncia de divindades presentes nos cultos politestas para firmarem sua posio em
relao a esse assunto, pregando que s h um Deus.29 Santo Agostinho fornece-nos bons
exemplos sobre o tema. No De uera religione (I, 1, 1), ele diz:
O caminho de toda vida boa e feliz encontra-se na verdadeira religio. Por ela,
adorado o nico Deus, com piedade muito pura. E ele reconhecido como o
princpio de todos os seres, origem, aperfeioamento e coeso de todo o universo.
Assim, por a que se manifesta o erro dos pagos. Em vez de adorarem o nico
verdadeiro Deus, Senhor de tudo, preferiram adorar muitos deuses.30
(AGOSTINHO, De uer. relig., I, 1, 1).
Alm dessa passagem, presente no De uera religione, na qual Agostinho expe sua
26 Tcito, Ann., XIII, 32; Suetnio De vit., Caes., XVI, 64; XXV, 4; Plnio, o Jovem, Ep., X, 96. 27 Traduo de Aquati (2008, p. 30). 28 Nesse ponto, temos que apresentar os fatos sob outra perspectiva, ou seja, a histria da religio romana antes
do advento do Cristianismo no colocada como sendo falsa ou invlida. Se assim agssemos, estaramos
cometendo o erro de historiadores pretritos que preferiram desqualificar um segmento religioso (o Cristianismo)
em prol de uma anlise unilateral do passado. Diante disso, colocamos como contraponto a opinio de Leppin
(2007, p. 96-97) sobre a transformao da religio romana ao dizer que: a histria religiosa daqueles anos parece
estar marcada por uma evoluo clara e simples: a religio crist, que tinha sido oprimida e perseguida em incio,
nomeadamente, por Decius, Valeriano e Diocleciano, vence o paganismo; a converso de Constantino causa a
adoo do Cristianismo como a religio oficial do Imprio Romano. Se ns seguirmos esta viso, ns seremos
vtimas da interpretao crist da histria com estes conceitos antagnicos de religies verdadeiras ou falsas.
No entanto, a histria mais complexa. O paganismo uma noo judaico-crist. (The religious history of
those years seems to be marked by a clear and simple development: the Christian religion, which had been
oppressed and persecuted in the beginning, namely by Decius, Valerian, and Diocletian, triumphs over paganism;
Constantines conversion brings about the adoption of Christianity as the religion of the Roman empire. If we
follow this line, we fall victim to the Christian interpretation of history with its antagonistic concept of true
and false religions. But history is more complex. Paganism is a Judeo- Christian notion.). 29 O famoso discurso de Paulo aos atenienses (Atos, 17: 18-32) tem como motivo precisamente a pregao da
existncia de um nico Deus, cristo, sobre a pluralidade dos deuses pagos, conhecidos e at mesmo
desconhecidos. 30 Traduo de Oliveira (2007 [2002], p. 26).
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39
inquietao relativa aos deuses pagos, o ento bispo de Hipona, em seu Sermo 81 I, 9,
parece tambm fazer uma crtica bem forte ao politesmo romano ao afirmar que:
Os deuses em que os romanos puseram a sua esperana, precisamente os deuses
romanos, em que os pagos romanos puseram a sua esperana, vieram de Troia,
que se consumia em chamas, para fundar Roma. Os deuses romanos foram os
primeiros deuses troianos. Ardeu Troia e Eneias levou consigo os deuses fugitivos.
Ou melhor, fugindo, levou consigo as imagens inertes dos seus deuses. Estes
apenas puderam ser levados, pois, por um fugitivo, que por si s no teriam podido
fugir. E como ele veio para Itlia com esses mesmos deuses, foi com deuses falsos
que fundou Roma.31
(AGOSTINHO, Serm., 81 I, 9).
De acordo com os dois relatos de Agostinho, o erro dos pagos est contido na
adorao a vrios deuses. Deuses esses que vieram de Troia e s chegaram ao Lcio, porque
foram carregados por um fugitivo, fundando, assim, uma religio falsa. O argumento
apresentado por Agostinho fundamenta sua viso de que o Cristianismo orientado por um
Deus que no se transforma por causa das adversidades mundanas, mas que permanece
eterno.32
Essa, de fato, foi uma das mudanas religiosas mais complicadas do mundo antigo e
que no isenta de consequncias para o entendimento da histria da Igreja e do Imprio
Romano tardio, cujo exame, no entanto, extrapola o escopo deste estudo. O elo existente
entre pagos e cristos transcendeu, porm, a esfera religiosa. Brown informa-nos que por
volta de 120 d.C.:
em Roma, a Igreja mantida por ricos protetores, cujos contatos com a comunidade
pag em seu conjunto lhe valeram proteo e prestgio. Conforme se podia prever,
o corao dos cristos influentes est dividido entre as exigncias de solidariedade
e intercmbios sinceros entre cristos e a preocupao com os negcios, e, pois, de
seus contatos com os amigos pagos. A opulncia de sua casa e o futuro de seus
filhos os preocupam.
(BROWN, 2009, p. 233).
Um exemplo dessa relao estabelecida entre os cristos e pagos encontra-se no texto
Contra Academicos de Agostinho. Nesse pequeno dilogo, observamos que Agostinho tinha
31 Traduo de Urbano (2010, p. 80). 32 Na Grcia Antiga, os deuses representados pela figura central do panteo de Zeus no deu origem a todas as
coisas. Zeus foi criado por outro deus, ele possua irmos. Sua figura representa tambm um filho que se rebelou
contra o pai e o matou. No Cristianismo, por outro lado, temos um deus que deu origem a todas as coisas. Teve
um filho que se sacrificou pela humanidade.
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um amigo pago, que no somente lhe havia confiado o financiamento dos seus estudos em
Roma, mas tambm entregue aos seus cuidados a iniciao de seu filho disciplina filosfica.
Romaniano33 essa figura na vida de Agostinho, ao qual, como forma de agradecimento,
dedicou essa obra. Em uma das passagens do Contra Academicos temos:
No retribuirei os teus favores? Por acaso pouco o que te devo? Quando, pobre
adolescente, fui estudar em outra cidade, acolheste-me em tua casa, s tuas custas,
e o que mais, no teu corao. Quando perdi meu pai, consolaste-me com a tua
amizade, animaste-me com teus conselhos, ajudaste-me com teus recursos. Em
nosso prprio municpio, teus favores, tua amizade, a partilha de teu lar
tornou-me quase to ilustre e notvel como tu.34
(AGOSTINHO, Cont. Acad., II, 3).
Ao proferir seu agradecimento a Romaniano, Agostinho pode ser considerado como
um dos romanos que tiveram seu futuro assegurado graas amizade de um homem pago.
Chin (2008, p. 69) faz meno heterogeneidade desse processo, que forma uma espcie de
identidade cultural especfica, marcada por esses dois lados: o pago e o cristo. Sua
constituio deu-se da unio de homogeneidades diferentes: a Igreja de Cristo e o culto
dos dolos.35
Alm do avano do Cristianismo, outro fato importante para a transformao da
sociedade imperial tardia est relacionada s invases brbaras (CAMERON, 1993, p. 151).36
Se somarmos, ento, estes fatores: o nascimento do Cristianismo em convivncia com os
costumes pagos, mais as invases dos povos brbaros em vrias partes do Imprio Romano
o quadro cultural que teremos mltiplo.
O multiculturalismo (JAMES, 2008, p. 29) seria, portanto, uma marca da
Antiguidade Tardia, uma vez que as invases brbaras, ao mesmo tempo que representaram
uma ameaa estabilidade do Imprio, tambm o enriqueceram, de certa forma, com o
contato estabelecido entre os brbaros e os romanos. Historiadores, como, por exemplo,
Wallace-Hadrill (1962, p. 21), reconhecem que os povos brbaros representados,
33 Romaniano era um maniquesta que, provavelmente, se converteu em 408 d.C., pai de Licncio um dos
discpulos de Agostinho. Ele foi o preceptor de Agostinho, financiando os seus estudos em Cartago. Para um
estudo detalhado sobre o papel de Romaniano na vida de Agostinho, ver BERMON, sd, pp. 1798-1810. 34 Traduo de Belmonte (2008, p.71) 35 Cf. the heterogeneities that constitute it into two single homogeneities, the church of Christ and the
worship of idols. 36 Para entender a inveno do brbaro na Grcia antiga, ver Hartog (1999). Historiadores da Grcia antiga
como Herdoto e Tcides j faziam distines entre os que eram, ou melhor, poderiam ser considerados helnicos
e os outros povos. Os romanos parecem ter seguido essa distino em grande parte
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principalmente, pelos Godos, Ostrogodos, Vndalos, Hunos, eram povos antigos, mas no
selvagens, pois eles tinham um conjunto de hbitos e uma cultura complexa37.
Dessa forma, podemos observar, modernamente, do ponto de vista histrico, que a
participao dos povos brbaros no processo de transformao poltico-cultural do Imprio
Romano um fator essencial, porm, no sem consequncias mtuas entre esses povos.
Esse multiculturalismo fez com que a organizao entre pagos, cristos e brbaros fosse
alterada.
Santo Agostinho, em sua Cidade de Deus, fornece-nos um bom exemplo desse
fenmeno, ao dizer que:
Mas de facto os ferozes brbaros pouparam-lhes a vida contra os costumes normais
das guerras, por amor ao nome de Cristo, quer em outros lugares quaisquer, quer
nos recintos consagrados ao seu culto, e, para que a compaixo se tornasse mais
extensiva, escolheram os mais amplos destinados a recolher multides. Deviam
atribuir isto ao Cristianismo. Era a ocasio propcia para que dessem graas a
Deus e recorressem ao seu nome com sinceridade, evitando assim as penas do fogo
eterno, aqueles que em grande nmero escaparam s presentes calamidades usando
hipocritamente desse mesmo nome. Porque muitos dos que vs agora insultar com
petulncia e sem vergonha os servos de Cristo, no teriam escapado quela
carnificina e quele flagelo se no tivessem fingido que eram servidores de Cristo.
E agora ingrata soberba e mpia loucura! de corao perverso resistem ao
seu nome; ao qual se recolheram um dia para gozarem da vida temporal, tornando-
se rus das trevas eternas.38
(AGOSTINHO, De Ciui. Dei, I, 1, 3 grifo nosso).
A passagem contida no relato de Agostinho remonta ao saque de Roma feito por
Alarico, o Godo, no ano de 410 d.C. Agostinho, assim, utiliza-se de um momento de temor
para exaltar o Cristianismo e atribuir-lhe o fato de Roma ter sido salva da destruio.
Em seu De excidio urbs, bem como em outros sermes (81, 105, 113/A, 296),
Agostinho ressalta esse momento que abalou as estruturas do Imprio Romano. No De
excidio urbs I, 2, 2, ele relata que: da cidade de Roma, porm, quantos fugiram e ho-de
voltar, quantos ficaram e se salvaram, quantos, nos lugares sagrados, no foram atingidos!
Os lugares sagrados a que Agostinho se refere so as baslicas de So Paulo e So Pedro.
Urbano nos informa que:
37 Wallace-Hadrill (1962, p. 21): [(eles) eram povos antigos, (eles) tinham um conjunto de hbitos e tradies
complexas; brbaros, mas no selvagens.] (They were old peoples, of set habits and complex traditions;
barbarians, but not savages.). 38 Traduo de Dias Pereira (1996, p. 102).
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Por ordem expressa do invasor brbaro Alarico, que, embora herege, era cristo, as
baslicas de S. Pedro e S. Paulo foram poupadas ao saque e designadas lugar de
refgio. Muitos que se recolheram nestes templos, foram poupados violncia.
(URBANO, 2010, p. 44).
A disputa travada por brbaros e cristos pelo territrio romano fez com que os
conflitos diretos entre pagos e cristos ficassem menos acentuados. No entanto, como
apresenta Cameron (1993, p. 163), o final do sculo IV d.C., mesmo no possuindo um
embate direto entre pagos e cristos, representou um perodo tenso nas relaes sociais.39
Como tentamos demonstra