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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA MESTRADO EM LINGUÍSTICA Fernando Adão de Sá Freitas O PENSAMENTO GRAMATICAL DE SANTO AGOSTINHO Juiz de fora 2016

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LINGUSTICA

    MESTRADO EM LINGUSTICA

    Fernando Ado de S Freitas

    O PENSAMENTO GRAMATICAL

    DE

    SANTO AGOSTINHO

    Juiz de fora

    2016

  • FERNANDO ADO DE S FREITAS

    O PENSAMENTO GRAMATICAL

    DE

    SANTO AGOSTINHO

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Lingustica da Faculdade de Letras da

    Universidade Federal de Juiz de Fora, como parte dos requisitos

    para a obteno do ttulo de Mestre em Lingustica.

    Orientador: Prof. Dr. Fbio da Silva Fortes

    Juiz de fora

    2016

  • Ficha catalogrfica elaborada atravs do programa de gerao automtica da Biblioteca Universitria da UFJF,

    com os dados fornecidos pelo(a) autor(a)

    Freitas, Fernando Ado de S Freitas. O pensamento gramatical de Santo Agostinho / Fernando Adode S Freitas Freitas. -- 2016. 158 f.

    Orientador: Fbio da Silva Fortes Fortes Dissertao (mestrado acadmico) - Universidade Federal deJuiz de Fora, Faculdade de Letras. Programa de Ps-Graduao emLingustica, 2016.

    1. Santo Agostinho. 2. Gramtica Antiga. 3. Ars beuiata.4. Lingustica. 5. Historiografia da Lingustica. I. Fortes,Fbio da Silva Fortes, orient. II. Ttulo.

  • iv

    BANCA EXAMINADORA

    TITULARES

    Prof. Dr. Fbio da Silva Fortes FALE/UFJF - Orientador

    Prof. Dr. Marcos Aurelio Pereira IEL/UNICAMP

    Profa. Dra. Ana Paula Grillo El-Jaick FALE/UFJF

    SUPLENTES

    Profa. Dra. Patrcia Fabiane Amaral da Cunha FALE/UFJF

    Prof. Dr. Matheus Trevizam UFMG

  • v

    AGRADECIMENTOS

    Agradeo, primeiramente, a Deus, fora divina que guia todos os passos da minha vida, minha

    me Eliza, ao meu pai Joo Fernando, que sempre me apoiaram em todas minhas decises.

    minha querida companheira Gisele, que esteve ao meu lado em todo esse percurso cheio de

    desafios.

    Gostaria de agradecer tambm:

    Ao Prof. Dr. Fbio da Silva Fortes, por aceitar orientar e, principalmente, por acreditar neste

    trabalho e depositar em mim tamanha confiana. Sem ele este trabalho no teria se concretizado.

    Suas anlises sobre os estudos da metalinguagem gramatical antiga, sem sombra de dvidas,

    fazem o repertrio que compe, no s esse trabalho, mas tambm a minha formao acadmica

    acerca da gramtica antiga;

    Ao Prof. Dr. Lus Carlos Lima Carpinetti, por compartilhar comigo suas reflexes sobre o latim

    dos cristos, disponibilizando, de forma to solcita, uma bibliografia que jamais teria

    conseguido a respeito da Patrstica Latina;

    Profa. Dra. Neiva Ferreira Pinto, com a qual aprendi muito sobre as questes do latim

    enquanto uma lngua viva do passado;

    Ao Prof. Dr. Marcos Aurelio Pereira, que aceitou, solicitamente, nosso convite para compor a

    banca examinadora deste trabalho;

    Profa. Dra. Ana Paula Grillo El-Jaick, cujas contribuies sobre meus trabalhos e projetos

    transcendem os limites desta dissertao;

    Aos meus professores e pesquisadores da UFJF que, em maior ou menor grau, contriburam

    com apontamentos tericos, bibliogrficos e metodolgicos sobre o fazer cientfico em

    Lingustica;

    A CAPES por ter financiado essa pesquisa;

  • vi

    Aos meus colegas da rea de Clssicas da UFJF.

    Gostaria, ainda, no s de agradecer, mas tambm dedicar este trabalho a toda a minha famlia

    com muito carinho.

  • vii

    O interesse atual que os linguistas demonstram pelo desenvolvimento passado e

    recente da sua cincia em si mesmo sinal da maturidade que a lingustica,

    independentemente das suas possveis aplicaes prticas, alcanou como disciplina

    acadmica.

    Robert Robins, 1979 [1967], p. xvi

    Est autem grammatica uocis articulatae custos et moderatrix: cuius professionis

    necessitate cogitur humanae linguae omnia etiam figmenta colligere, quae memoria

    litterisque mandata sunt.

    (A gramtica , porm, a guardi e a moderadora da voz articulada: cuja profisso

    necessariamente leva a reunir tambm todas as representaes da lngua humana que

    foram confiadas memria e s letras).

    Santo Agostinho. Sol., II, 11, 19

  • viii

    RESUMO

    Esta dissertao oferece uma reflexo sobre o pensamento gramatical de Santo Agostinho (sc.

    IV-V d.C.). Examinamos, nesse sentido, o tratado gramatical atribudo ao bispo de Hipona

    intitulado Ars pro fratrum mediocritate breuiata, em relao aos aspectos formais e conceituais

    do gnero gramatical das artes, que foi produzido na Antiguidade Tardia, tendo como

    contraponto, principalmente, as Artes grammaticae de Donato (sc. IV d.C.). Para exame da

    matria gramatical contida no texto agostiniano, consideramos tambm os textos filosficos de

    autoria de Santo Agostinho, i.e., o De magistro, o De ordine e o De doctrina Christiana,

    mostrando como as reflexes propriamente gramaticais presentes na Ars breuiata tambm

    aparecem refletidas nesses textos. Dessa forma, ensejamos mostrar que a metalinguagem

    gramatical que caracterizou o gnero das artes grammaticae latinas, com Agostinho, foi

    disseminada, paulatinamente, em textos de teor filosfico, no sentido de preparar e fornecer aos

    alunos/cristos uma ferramenta importante para a leitura e exegese bblica. Como concluso,

    percebemos que as fronteiras que delimitavam os ensinamentos, no que diz respeito s artes

    liberais (o chamado trivium gramtica, dialtica e retrica) no estavam, desse modo,

    totalmente dissociadas, na obra de Agostinho, mas faziam parte de uma formao propedutica

    com fins especficos para a divulgao da doutrina crist. Os pressupostos tericos e

    metodolgicos que utilizamos para a compilao do nosso trabalho so oriundos da

    Historiografia da Lingustica.

    PALAVRAS-CHAVE

    Santo Agostinho, gramtica antiga, Ars breuiata, Lingustica, Historiografia da Lingustica

  • ix

    ABSTRACT

    This work offers a reflection on the grammatical thought by St. Augustine (c. IV-V A.D.). We

    examine, in this sense, the grammatical treatise attributed to the bishop of Hippo, entitled Ars

    pro fratrum mediocritate breuiata, in relation to formal and conceptual aspects of the

    grammatical gender of the artes, which has been produced in Late Antiquity, with reference to

    the Artes grammaticae by Donatus (c. IV AD). In order to examine the grammatical substance

    from the Augustinian text, we have also considered some other aspects codified in Augustines

    philosophical texts, such as De magistro, De ordine and De doctrina Christiana, highlighting

    the way how properly grammatical concepts is in these works also reflected. Thus, we intend

    to show that the grammatical metalanguage that characterized the genre of Latin Artes

    grammaticae, with Augustine, has been disseminated gradually in his texts of philosophical

    content, as a strategy to prepare and provide his "students / Christians" with an important tool

    for reading and making biblical exegesis. In conclusion, we realize that the boundaries which

    surrounded the teachings in regard to the Liberal Arts (the so-called Trivium grammar,

    dialectic and rhetoric) has not been thereby completely dissociated, in the work of Augustine,

    but were part of a project to disseminate Christian doctrine. The theoretical and methodological

    assumptions used for the compilation of our work are from the Historiography of Linguistics.

    KEY-WORDS

    Saint Augustine, Ancient grammar, Ars breuiata, Linguistics, Historiography of Linguistics

  • x

    SUMRIO

    NDICE DE ABREVIATURAS DOS CORPORA, p. xii

    NDICE DE ABREVIATURAS DE TERMOS GRAMATICAIS, p. xiii

    NDICE DE QUADROS, p. xiv

    INTRODUO, p. 15

    PARTE I

    I HISTORIOGRAFIA DA LINGUSTICA: CONCEITOS E METODOLOGIA

    1.1 Historiografia da Lingustica: breve histria da disciplina, p. 22

    1.2 Reviso terico-metodolgica sobre a Historiografia da Lingustica, p. 25

    II CONSTRUINDO O CLIMA DE OPINIO: UMA REVISO SOBRE O LUGAR

    DA GRAMTICA NA ANTIGUIDADE TARDIA

    2.1 Um conceito em formao: Antiguidade Tardia, p. 31

    2.2 Alguns fatos histricos: a Cristandade e os pagos, p. 36

    2.3 Aurelius Augustinus: um douto na Antiguidade Tardia, p. 43

    2.4 A gramtica e os gramticos na Antiguidade Tardia, p. 51

    PARTE II

    III SANTO AGOSTINHO E A REFLEXO GRAMATICAL: O CASO DA ARS

    BREVIATA, p. 58

    3.1 Algumas notas quanto procedncia da Ars pro fratrum mediocritate breuiata, p. 58

    3.2 O gnero gramatical enquanto forma fixa: Ars breuiata, uma Schulgrammatik?, p. 67

    3.3 Uma comparao estrutural e conceptual entre a Ars breuiata de Santo Agostinho e as Artes

    grammaticae de Donato, p. 73

    3.3.1 De nomine, p. 76

    3.3.2 De pronomine, p. 81

    3.3.3 De uerbo, p. 85

  • xi

    3.3.4 De aduerbio, p. 88

    3.3.5 De participio, p. 91

    3.3.6 De coniunctione, p. 93

    3.3.7 De praepositione, p. 96

    3.3.8 De interiectione, p. 98

    IV A GRAMTICA NA FILOSOFIA AGOSTINIANA, p. 100

    4.1 A gramtica nos textos filosficos, p. 100

    4.1.1 As partes orationis: De magistro e Ars breuiata, p. 107

    4.1.2 De uitia orationis: soloecismus e barbarismus, p. 122

    4.2 A mudana de finalidade da ars agostiniana e inovaes lingusticas, p. 129

    4.2.1 Do comentrio de poetas ao comentrio das Escrituras, p. 130

    4.2.2 Inovaes lingusticas na Ars breuiata, p. 139

    CONSIDERAES FINAIS, p. 144

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS, p. 147

  • xii

    NDICE DE ABREVIATURAS DOS CORPORA:

    BA Bibliotheca Augustana

    BAC Biblioteca de Autores Cristianos

    CGL Corpus Grammaticorum Latinorum

    NBA Nuova Biblioteca Agostiniana

    GL Grammatici Latini

    GG Grammatici Graeci

    PL Patrologia Latina

  • xiii

    NDICE DE ABREVIATURAS DE TERMOS GRAMATICAIS:

    abl. - ablativo

    acus. - acusativo

    adj. - adjetivo

    adv. - advrbio

    at. voz ativa

    dat. dativo

    f. - feminino

    fut. - futuro

    gen. - genitivo

    imperf. pretrito imperfeito

    m. - masculino

    md. voz mdia

    m. q. perf. pretrito mais-que-perfeito

    n. - neutro

    nom. - nominativo

    pass. voz passiva

    pl. - plural

    pres. - presente

    pret. perf. pretrito perfeito

    s. - singular

    subst. - substantivo

    v. verbo

  • xiv

    NDICE DE QUADROS

    Quadro 1. Comparao entre Ars breuiata, Ars minor e Ars maior, p. 75

    Quadro 2. Comparao dos acidentes da Ars breuiata com a Ars minor e Ars maior, p. 80

    Quadro 3. Caractersticas dos nomes e dos verbos, p. 86

    Quadro 4. Comparao entre Ars breuiata e De magistro, p. 107 Quadro 5. Comparao estrutural dos uitia uirtutesque orationis, p. 123

  • 15

    INTRODUO

    I

    Uma disciplina alcana a sua maioridade quando contempla seriamente o seu prprio

    passado.

    (KOERNER, 2014, p. 10).

    A afirmao feita por Koerner (2014, p. 10), na epgrafe acima, faz referncia

    Lingustica, cincia esta derivada das observaes de Saussure, do sculo XIX e incio do sculo

    XX. Nesse sentido, podemos, ento, dizer que a Lingustica, enquanto disciplina orientada por

    pressupostos tericos e metodolgicos, possui pouco mais de cem anos. No entanto, antes de

    Saussure e da Lingustica, havia reflexes em torno das lnguas e da linguagem, a partir das

    quais Saussure erigiu sua importante contribuio para as cincias da linguagem1. De onde

    vieram as ideias que engendraram esse conhecimento? De que forma elas se apresentam nas

    definies de Saussure? Em que medida elas foram influenciadas por outras correntes tericas?

    Para respondermos a essas perguntas, que requerem, antes de mais nada, uma

    delimitao do objeto, seria necessrio recorrer ao conhecimento histrico, ou seja,

    precisaramos construir o clima de opinio no qual Saussure estava inserido; quais eram as

    caractersticas contextuais de sua poca e em que medida uma investigao sobre a linguagem

    fazia parte da agenda dos estudiosos naquele contexto.

    Essas so as premissas de um trabalho no mbito da Historiografia da Lingustica; tais

    so as perguntas que sustentam uma anlise que leva em considerao no s a documentao

    disponvel para acessar esse ou aquele conhecimento lingustico, mas tambm leva em

    considerao o contexto em que foram produzidas, como foram produzidas e para qu foram

    produzidas.

    Dessa forma, se o primeiro passo do amadurecimento de uma disciplina reconhecer o

    seu passado, o segundo , inevitavelmente, conhecer como podemos escrever sobre esse

    passado sem distorc-lo.

    1cf. Auroux (1992, p. 12): preciso, em particular, se render evidncia: a lingustica, que tira seu nome de um

    neologismo alemo (1777) reutilizado por J.-S. Vater em 1808 e adaptado em francs em 1812, uma forma de

    saber e de prtica terica nascida no sculo XIX em um contexto determinado, que possui objetos determinados

    (o parentesco gentico das lnguas, a explicao histrica, as lnguas nelas e por elas mesmas). Trata-se, pois, de

    uma forma de estruturao do saber eminentemente transitria, que est provavelmente em vias de desaparecer

    sob nossos olhos ( por isso que recorremos, cada vez mais, expresso plural cincias da linguagem.).

  • 16

    II

    Em nossa dissertao, procuramos apresentar, de forma geral, o que estamos chamando

    de o pensamento gramatical de Santo Agostinho2. Esse o tema que perpassa todo o nosso

    trabalho, que busca se filiar aos pressupostos tericos e metodolgicos da Historiografia da

    Lingustica, que sero apresentados frente.

    Nossa dissertao possui duas partes, subdividas cada uma em dois captulos. Na

    primeira parte, partimos da organizao e da definio do campo da Historiografia da

    Lingustica, passando pela contextualizao do perodo histrico da Antiguidade Tardia, mais

    especificamente daquele em que se insere Santo Agostinho. Na segunda parte, dedicamo-nos a

    anlises relativas aos conhecimentos gramaticais que Santo Agostinho apresenta nas obras,

    essencialmente em seu tratado gramatical intitulado Ars breuiata, considerando contrapontos

    no discurso gramatical latino coetneo (especialmente em Donato) e em outras obras de autoria

    do prprio Agostinho, tais como o De magistro, o De ordine e o De doctrina Christiana.

    No primeiro captulo, que tem carter mais metodolgico, procuramos fazer uma

    reflexo sobre a Historiografia da Lingustica, contando um pouco de sua prpria histria e

    como essa disciplina se tornou uma rea de interesse para aqueles que almejam conhecer mais

    sobre a Histria da Lingustica. Ressaltamos, alm disso, quais so suas ramificaes,

    pontuando, ainda, que, sumariamente, a diferena entre Histria da Lingustica (HoL),

    Historiografia da Lingustica (HL), Histria das ideias Lingusticas (HIL) e, por fim, Histria

    das Cincias da Linguagem (HoLC).

    Essas distines entre variaes que o estudo historiogrfico da linguagem possui se fez

    necessria, pois ela revela, antes de qualquer coisa, os problemas com os quais os historigrafos

    da lingustica tm que lidar. Alm disso, buscamos ressaltar quais so os pressupostos tericos

    e metodolgicos, oriundos da Historiografia da Lingustica, que servem de fundamento para o

    nosso trabalho. Diante disso, fizemos consideraes sobre a questo da metalinguagem ou

    problema da metalinguagem, destacando os trs princpios da pesquisa historiogrfica

    (KOERNER, 1995a; 1995c). Finalmente, destacamos tambm como essa disciplina oferece-

    nos uma interlocuo com os Estudos Clssicos; relao que se estabelece, de forma bem

    acentuada, nos trabalhos de estudiosos que se dedicaram a examinar o que os antigos gramticos

    greco-latinos escreveram sobre suas lnguas (LAW, 1984, 1985, 1986, 1987, 1995, 2003, 2005

    2 Usamos a denominao Santo Agostinho, pois est consagrada pela tradio.

  • 17

    [1990]; BARATIN 1989; BARATIN; DESBORDES; 1981, 2007; SWIGGERS, 1992, 2010).

    No captulo 2, apresentamos uma sntese do contexto social, religioso e educacional da

    Antiguidade Tardia. Fizemos um apanhado sobre a biografia de Agostinho com o intuito de

    ressaltar quais foram as doutrinas filosficas que o influenciaram antes de sua converso ao

    Cristianismo e em que medida elas contriburam para o desenvolvimento do pensamento

    agostiniano em torno da linguagem como, por exemplo, o neoplatonismo. Esse captulo se

    justificou por um motivo em especial. Ele representa a ponte que procuramos estabelecer entre

    a histria da Antiguidade Tardia e a Historiografia da Lingustica. Nesse sentido, para

    dissertarmos sobre os conhecimentos gramaticais que Agostinho apresenta em suas obras, seria

    preciso construir o clima de opinio (KOERNER, 1995, p. 11) em que ele se encontrava, ou

    seja, seria preciso conhecer o mnimo da histria geral, do autor, e do contexto de que se

    pretende narrar. Para o desenvolvimento dessa perspectiva histrica, utilizamos as observaes

    feitas por Brown (1971, 2005, 2009), Marrou (1949, 1977), Veyne (2011 [1971], 2005),

    Cameron (1993) e James (2008).

    No captulo 3, buscamos fazer uma reflexo a respeito da procedncia da Ars breuiata

    de Santo Agostinho, demonstrando quais so os problemas mais enfrentados pelos estudiosos

    que se dedicaram a abordar esse texto. Alm disso, procuramos observar se a Ars breuiata se

    enquadra no gnero Schulgrammatik (BARWICK, 1992) da mesma forma que a Ars minor e

    Ars maior de Donato. Para isso, realizamos uma breve anlise comparativa, do ponto de vista

    estrutural e conceptual, entre a Ars breuiata e as Artes grammaticae, de Donato. De forma mais

    especfica, primeiramente fizemos uma anlise da estruturao global dos textos, ou seja, quais

    so as partes ou temas gramaticais que esto presentes na Ars breuiata e nas Artes gramaticae

    de Donato, ressaltando diferenas e semelhanas. Em segundo lugar, analisamos todas as

    definies das partes orationis nas trs gramticas, observando se as caractersticas so formais

    ou semnticas para a definio de cada uma delas.

    Justificamos a comparao de Agostinho e Donato em decorrncia do carter exemplar

    e paradigmtico que a Ars grammaticae de Donato assumiu na tradio. Com efeito, Donato

    foi o gramtico mais conhecido do perodo medieval, assim como os seus textos gramaticais

    foram mais os copiados em todo ocidente. Outro fator considerado para efetuarmos essa

    comparao se encontra no fato de que Ars maior considerada o grande modelo da Ars

    grammatica latina do perodo tardio.

    No captulo 4, realizamos uma anlise dos principais conceitos gramaticais presentes em

    obras no-gramaticais de Agostinho maneira como so desenvolvidos em seu tratado

    gramatical. Especificamente, em primeiro lugar, retomamos o conceito de partes orationis da

  • 18

    doutrina gramatical latina, buscando entender suas vinculaes com a maneira como

    apropriada por Agostinho em tratados filosficos, especialmente no De magistro. Em seguida,

    buscamos apresentar como os uitia orationis designados pelos conceitos de soloecismus

    (solecismo) e barbarismus (barbarismo) so definidos e descritos por Santo Agostinho no De

    ordine e no De doctrina Christiana. Na segunda parte do captulo, apresentamos alguns

    apontamentos sobre como a gramtica de Agostinho mudou sua finalidade. Analisando o espao

    concedido citao dos poetas na Ars breuiata, mostramos como, em vez de ser um texto

    preparatrio para a leitura e comentrio dos poetas, a gramtica de Agostinho passa a servir de

    base para leitura e interpretao das Escrituras. Os dados que selecionamos para exemplificar

    essa alterao so: os exempla que esto presentes na Ars breuiata; assim como as inovaes

    lingusticas presentes no pargrafo 76 da Ars breuiata.

    III

    Em linhas gerais, nosso trabalho pretende ser uma pequena contribuio para a Histria

    da Lingustica. Ao dissertarmos sobre os princpios gramaticais presentes na Ars breuiata, assim

    como em outros textos agostinianos, esperamos, modestamente, contribuir com mais uma

    pgina da Histria da Lingustica que j longa, mas que ainda carece de uma muita

    investigao.

    De forma especfica, podemos dizer que apresentar o pensamento gramatical de Santo

    Agostinho seguir na direo contrria do que geralmente encontramos quando o tema est

    relacionado a um autor cristo. Mesmo que Law (1984, 1996, 2003) tenha publicado textos a

    respeito das reflexes gramaticais de Agostinho, ainda visvel uma carncia de investigao

    relativa a esse tema no mbito da obra desse autor. Dessa forma, nossa anlise enseja apresentar

    um Agostinho interessado em questes gramaticais, preocupado com a descrio das partes

    orationis e com os uitia orationis, ou seja, um Agostinho gramtico.

    Os corpora da Ars breuiata de Agostinho que utilizamos para compilao do nosso

    trabalho so:

    a) Aurelii Augustini Ars grammatica breviata. Edio de C. F. Weber. Marburg: Elwert, 1861.

    Esta edio foi compilada por Weber atravs dos cdices: B. = Codex Bruxellensis, M.

    = Editio Maii, P. = Codex Parisianus e V. = Vaticanus sive Palatinus. Segundo Bonnet,

  • 19

    essa edio possui vrios problemas filolgicos. Um dos problemas mais significativos,

    na opinio de Bonnet (2013), que h vrias supresses de palavras por todo o texto.

    Alm disso, a pontuao do texto latino tambm no ajuda na sua compreenso.

    Contudo, a edio de Weber a mais famosa do texto da Ars pro fratrum mediocritate

    breuitata. Nem sempre essa edio esteve em circulao como hoje. Law (1984, p. 154)

    ressalta que havia muita dificuldade de se conseguir uma cpia desse texto em sua

    poca.

    b) KEIL, Heinrich [ed.]. Grammatici Latini. Leipzig: Teubner, 1855-1880 [repub. Hildesheim: Olms, 1981].

    A edio dos grammatici latini (GL, 1868, p. 494-496,1 2) de Keil contm somente

    extratos da Ars, ou seja, s possui os pargrafos: 1, 39, 76, 88/89, 90. Isso torna sua

    utilizao limitada para fins de anlises comparativas entre a Ars breuiata e as Artes

    grammaticae de Donato. Entretanto, a edio de Keil evidncia importante dos

    problemas filolgicos encontrados, quando lidamos com edies crticas: exemplifica o

    fato de que os textos da tradio gramatical antiga, bem como os outros textos que

    chegaram ao nosso tempo atravs da tradio manuscrita greco-latina, esto

    fragmentados, copiados e at certo ponto reconstrudos, ficando, assim, praticamente

    impossvel reconhecer suas fontes em alguns casos. Alm disso, foi essa fragmentao

    da Ars breuiata expressa na edio de Keil que nos levou a utilizar, de forma mais ampla,

    a edio de Weber (1861) e a de Bermon e Bonnet (2013).

    c) St. AUGUSTIN. Abrg de la grammaire de Saint Augustin. Text tabli, Introduit & Comment por Guillaume Bonnet, Traduzido por Emmanuel Bermon & Guillaume

    Bonnet. Paris: Les Belles Lettres, 2013.

    Essa a edio crtica e a traduo mais recente que possumos da Ars breuiata. Do

    ponto de vista filolgico, trata-se tambm da mais completa de todas as edies do texto

    da Ars breuiata. Seu estudo introdutrio traz elucidaes gramaticais que incorporamos

    em grande medida nossa anlise. Por ser a edio mais completa e recente do texto da

    Ars breuiata, essa a edio do texto latino que adotamos para fazer citaes ao longo

    do nosso trabalho.

  • 20

    Alm dessas edies, h uma edio feita pela Citt Nuova, 2004, 123-181, com a

    traduo de Antonio Pieretti para o italiano. Entretanto, no conseguimos obter sua

    verso impressa, apenas tivemos acesso sua verso online, que est disponvel no site

    www.augustinus.it e que no possui nenhum aparato crtico, notas de traduo, ou

    observaes literrias. Diante disso, no podemos dizer mais coisas sobre ela.

    Alm das edies da Ars breuiata, gostaramos de apresentar, de forma separada, a edio

    de Holtz (1981) da Ars minor e Ars maior de Donato.

    a) HOLTZ, L. Donat et la tradition de lenseignement grammatical. tude sur lArs Donati

    et sa diffusion (IVe-IXe sicle) et dition critique. Paris: CNRS, 1981.

    H um motivo para apresentarmos de forma separada essa obra gramatical latina. Essa

    edio de Holtz (1981) da Ars minor e Ars maior tem sido a edio mais utilizada pelos

    estudiosos em gramticos latinos para se referirem aos textos de Donato.

    Informamos tambm que todos os textos dos Grammatici Latini (gramticos latinos)

    podem ser encontrados no banco de dados online: Corpus Grammaticorum Latinorum3 (CGL).

    Esse banco de dados oriundo, em parte, do imenso trabalho filolgico feito por H. Keil em

    1855-1880, mas tambm possui outras edies.

    De acordo com as observaes feitas por Desbordes (2000, p. 466), essa obra

    monumental divida em sete livros e um suplemento:

    I Charisius, Diomedes, Anonymus Bobiensis;

    II, III Priscianus;

    IV Probus, Donato, Servius;

    V comentadores de Donato: Cledonius, Pompeius; textos curtos: Consentius, Phocas,

    Eutyches, Augustinus, Palemon, Asper, Macrobius;

    VI mtrica: Asmonius Ars de Victorinus, Bassus, Fortunatianus, Terentianus Maurus,

    Sacerdos, Mallius Theodorus;

    VII ortografia: Scaurus, Longus, Caper, Agroecius, Cassiodore, Papirius, Beda,

    Albinus; textos curtos: Audax, Dositheus, Arusianus, Frontus.

    3 Disponvel em: http://kaali.linguist.jussieu.fr/CGL/text.jsp

    http://www.augustinus.it/http://kaali.linguist.jussieu.fr/CGL/text.jsp

  • 21

    Ainda de acordo com Desbordes (2000, p. 466), temos que: "a edio dos Grammatici

    Latini, fornecida por H. Keil e seus colegas do sculo (XIX), sempre o ponto de partida para

    qualquer investigao sobre gramticos latinos do perodo ps-clssico4.

    4 Cf. Ldition des Grammatici Latini, procure par H. Keil et ses collaborateurs au sicle dernier, est toujours

    le point de dpart de toute recherche sur les grammairiens latins de la priode post-classique. Todas as tradues

    presentes no corpo do texto so de nossa autoria, salvo aquelas indicadas em nota.

  • 22

    PARTE I

    I HISTORIOGRAFIA DA LINGUSTICA: CONCEITOS E METODOLOGIA

    1.1 Historiografia da Lingustica: breve histria da disciplina

    Introduzir-se numa disciplina cientfica qualquer significa familiarizar-se com as

    atividades desenvolvidas pelos pesquisadores daquela especificidade... Significa

    tambm conhecer a histria dessa disciplina, isto , a forma como se deu e se vem

    dando a sua construo: os pontos de maior consenso da comunidade cientfica em

    determinados momentos; as polmicas do passado e do presente; as grandes

    sistematizaes tericas ordenadoras da ao de grupos de estudiosos, e seus

    respectivos compromissos filosficos de base; os necessrios conflitos entre esses

    sistemas, as mutaes epistemolgicas, as renovaes de objeto e mtodos. Inclui-se

    aqui tambm a bibliografia bsica: os textos clssicos, os manuais de referncia, as

    fontes de informao.

    (FARACO, [1989] 2005, p. 10-11).

    As consideraes feitas por Faraco englobam os conhecimentos gerais que cada

    pesquisador precisa ter ao adotar uma teoria. Estes conhecimentos so, na maioria das vezes,

    de ordem terica, metodolgica e epistemolgica. Alm disso, Faraco tambm destaca a

    necessidade de conhecer um pouco da histria da disciplina da qual pretendemos nos filiar.

    Sendo assim, podemos iniciar nossa discusso destacando que a Historiografia da

    Lingustica uma disciplina que teve seu incio com a criao dos peridicos Historiographia

    Linguistica (1974); Histoire, pistmologie, Langage (1979); Beitrge zur Geschichte der

    Sprachwissenschaft (1991) e que desenvolveu seu campo terico-metodolgico com a

    organizao de conferncias internacionais trienais sobre a histria das cincias da linguagem.

    Alm desses trs peridicos que marcaram o processo de institucionalizao da Historiografia

    da Lingustica, gostaramos de ressaltar tambm o peridico Orbis (Supplementa). Esta uma

    antiga revista de Lingustica publicada na Blgica desde 1952. Orbis o rgo oficial do

    International Centre of General Dialectology (Centro Internacional de Dialetologia Geral). O

    primeiro editor e fundador do peridico foi Sever Pop (ed. 1952-1960), sucedido por Windekens

    (1960-1985) e por R. Bosteels, L. Isebaert & P. Swiggers (1985-)5. Destacamos esse peridico,

    pois alguns de seus ttulos foram destinados ao estudo dos textos greco-romanos, focalizando

    as reflexes que filsofos, gramticos, retricos, entre outros, destinaram linguagem de uma

    5 Para ver informaes, ttulos e temas tratados por esse importante peridico acessar: http://poj.peeters-

    leuven.be/content.php?url=journal&journal_code=ORB

    http://poj.peeters-leuven.be/content.php?url=journal&journal_code=ORBhttp://poj.peeters-leuven.be/content.php?url=journal&journal_code=ORB

  • 23

    forma geral, no mundo antigo.

    Alm dos peridicos, as conferncias realizadas em torno dessa temtica tiveram um

    papel importante no processo de organizao e institucionalizao da Historiografia da

    Lingustica (KOERNER, 2003, p. 373), fazendo assim com que ela alcanasse o status de

    disciplina. A primeira International Conference on the History of the Language Sciences

    (ICHoLS) (Conferncia Internacional sobre a Histria das Cincias da Linguagem) foi

    organizada por E. F. Konrad Koerner, em Ottawa, no ano de 1978. Esse foi o mesmo ano em

    que a Socit dHistoire et dpistmologie des Sciences du Langage (S.H.E.S.L.) foi fundada

    em Paris por membros do CNRS. Posteriormente, em Oxford, no ano de 1984, foi estabelecido

    o The Henry Sweet Society for the History of Linguistic Ideas (HSS). H outras, alm dessas

    trs, como, por exemplo, a North American Association for the History of the Language

    Sciences (NAAHoLS) fundada em 1987. (KOERNER, 2000, p. 2814; SWIGGERS, 2010, p.

    01).

    Podemos citar que um dos resultados desses projetos foi a compilao de antologias

    multiautorais sobre a histria da Lingustica. Entre as mais referendadas antologias,

    encontramos: Auroux (ed. 19892000), Auroux; Koerner; Niederehe; Versteegh (eds. 2000

    2006), Lepschy (ed. 199498), Schmitter (ed. 19872007) e Sebeok (ed. 1975) entre outros. A

    Histria da Lingustica como uma disciplina, de fato, s ocorreu depois da dcada de setenta.

    No entanto, no podemos pensar que antes da institucionalizao dessa disciplina j no

    houvesse estudiosos que se propuseram a contar essa histria. Os trabalhos do ingls Robins

    (1967), do francs Mounin (1967), do romeno Coseriu (1969, 1972) e, at mesmo, do brasileiro

    Mattoso Camara Jr. (original de 1962)6 so bons exemplos de manuais que tentaram escrever

    essa histria.

    No Brasil, a Historiografia da Lingustica teve sua insero efetiva no incio dos anos

    noventa. De acordo com o levantamento feito por Batista (2013, p.27-28), h no Brasil trs

    6 Para ver uma lista de obras sobre a Histria da Lingustica desde 1882-1976 ver Koerner (1978). De acordo

    com Koerner (2014, p. 11): verdade que podamos talvez falar de uma tradio de 200 anos de escrita da

    histria da Lingustica, talvez a comear com o Tableau des progrs de la science grammaticale (1796, cf.

    Andresen, 1978) de Franois Thurot (1768-1832), embora vrias obras anteriores j tenham sido citadas, por

    exemplo o Versuch einer Historie der deutschen Sprachkunst (1747), de Elias Caspar Reichard (1714-1791) (cf.

    Koerner, 1978c para referncias a outras obras do sculo XVIII). Porm, como sugerem as fontes (Koerner,

    1978c: 1-4), apenas a partir de finais da dcada de 1860 que surge um tipo de tratamento mais profundo da

    histria da Lingustica, do qual a Geschichte der Sprachwissenschaft (1869), de Theodor Benfey (1809-1881)

    pode ser considerada como o exemplo mais paradigmtico. Este trabalho tinha sido precedido pela obra de

    Heymann Steinthal (1823-1899), de 1863, que procurou substituir os trs volumes de Die Sprachphilosophie der

    Alten (1838-1841) de Laurenz Lersch (1811-1849), mas que s trata das contribuies da Grcia e Roma para o

    pensamento lingustico. Essas mesmas informaes so encontradas tambm em Koerner (1995, p. 03; 2000,

    p. 2803).

  • 24

    grupos com maior destaque, todos em So Paulo. O primeiro est na Universidade de So Paulo

    (USP), o Grupo de Estudos em Historiografia da Lingustica, pertencente ao Centro de

    Documentao em Historiografia da Lingustica (CEDOCH) do Departamento de Lingustica.

    Esse grupo coordenado pela Profa. Dra. Cristina Altman7. O Instituto de Pesquisas Sedes

    Sapientiae e dos cursos de Letras de ps-graduao da PUC-SP e da Universidade Presbiteriana

    Mackenzie (UPM) compe o segundo grupo. O terceiro grupo de pesquisadores se encontra na

    Universidade de Campinas (Unicamp), cujo ttulo do projeto : Histria das Ideias Lingusticas:

    tica e Polticas de Lnguas. Esse grupo coordenado pelos professores Eduardo Guimares e

    Eni P. Orlandi8.

    No Brasil, de acordo com a observao feita por Batista (2013, p. 17), parece que h

    uma distino entre grupos de pesquisas ocasionada pela nomenclatura da rea.9 Estas so as

    nomenclaturas que correspondem a esse campo de investigao: Historiografia Lingustica /

    Historiografia da Lingustica (Linguistic Historiography / Historiography of Linguistics),

    Histria das Cincias da Linguagem (History of Language Sciences), Histria das Ideias

    Lingusticas (Histoire des Ides Linguistiques).10

    O grupo de pesquisa CEDOCH parece se filiar, de forma mais direta, aos pressupostos

    tericos e metodolgicos definidos pela Historiografia da Lingustica, nomenclatura adotada

    por Koerner e Swiggers. Por outro lado, a nomenclatura Histria das Ideias Lingusticas

    (Histoire des Ides Linguistiques) parece identificar os pesquisadores que se filiam a essa

    perspectiva em outra direo.

    Segundo Batista (2013, p. 17):

    A questo da nomenclatura da rea espelha, possivelmente, uma marca de identidade

    entre grupos de pesquisa que se veem como distintos nos percursos e procedimentos

    que adotam para analisar a histria dos estudos sobre a linguagem.

    7 Para mais informaes sobre esse grupo acessar: http://linguistica.fflch.usp.br/cedoch e

    http://www.fflch.usp.br/dl/cedoch/noticias_anteriores.htm 8 Para mais informaes sobre esse grupo ver: http://www.unicamp.br/iel/hil/index.htm 9 De acordo com Batista (2013, p. 17): Na Europa, que at agora vem se firmando como o principal centro de

    produo e difuso das pesquisas historiogrficas, a distino entre Historiografia da Lingustica (Linguistic

    Historiography, Historiography of Linguistcs nos termos de sua proposio original) e Histria das Ideias

    Lingusticas (Histoire des Ides Linguistiques nos termos de sua proposio original) no parece ser to

    marcante, no sentido de que no reflete uma barreira para trocas acadmicas e intelectuais. 10 Encontra-se tambm as nomenclaturas: Histria dos Estudos da Linguagem e Histria do Conhecimento

    Lingustico. Essas parecem ainda no terem se tornado alvo de uma polarizao que representa esse ou aquele

    grupo de pesquisa no Brasil. Conforme pondera Batista, essas so nomenclaturas neutras (2013, p. 21). No

    faremos uma distino aprofundada desses termos.

    http://linguistica.fflch.usp.br/cedochhttp://www.fflch.usp.br/dl/cedoch/noticias_anteriores.htmhttp://www.unicamp.br/iel/hil/index.htm

  • 25

    No que se refere produo intelectual, relativo ao mbito nacional, podemos dizer que

    h vrios trabalhos sendo publicados na rea desde sua implementao11. Altman (1998),

    Cavaliere (2000), Ucha (2008), Batista (2013) so algumas das referncias para essa rea no

    Brasil.

    H, tambm, trabalhos como os de Dezotti (2011), Conto (2011), Fortes (2012) e Beccari

    (2013) que possuem uma aplicao terico-metodolgica dos conceitos oriundos desse ramo

    da Lingustica em textos antigos, principalmente queles autores da Antiguidade greco-romana

    que se dedicaram a compilar tratados gramaticais sobre o grego e o latim, i.e., Apolnio Dscolo

    (sculo II d.C.), Donato (sculos IV d.C.), Prisciano (sculo VI d.C.).

    Em Dezotti (2011), assim como em Fortes (2012), encontramos uma utilizao

    intercambivel entre as postulaes das Histrias das Ideias Lingusticas marcadas pelas

    reflexes de Auroux (1992), assim como referncias Histria da Lingustica e Historiografia

    da Lingustica em geral, oriundas das consideraes de Koerner (1995).12

    Em sntese, aps realizarmos essa breve histria da disciplina que norteia o nosso

    trabalho, justificamos que a escolha pela abordagem apresentada por Koerner e Swiggers

    configura-se por um motivo fundamental. Esse motivo est relacionado com o instrumental

    terico e metodolgico disponvel nas obras de Koerner (1995) e Swiggers (2010; 2012) para

    tratarmos da escrita historiogrfica de forma coerente. Nessas trs referncias, encontramos os

    princpios que regem um trabalho historiogrfico, a saber: o princpio da contextualizao e o

    princpio da imanncia (1995, p. 13), bem como definies tericas a respeito do campo e do

    estatuto epistemolgico da Historiografia da Lingustica (SWIGGERS, 2010, p. 01-02).

    1.2 Reviso terico-metodolgica sobre a Historiografia da Lingustica

    O presente item tem como finalidade apresentar uma reviso terico-metodolgica da

    Historiografia da Lingustica. Certamente, como acabamos de ver no item acima, os mais de

    quarenta anos de histria dessa disciplina impossibilitam-nos de fazer uma descrio detalhada

    de todos os seus aspectos. Diante disso, s ressaltamos, neste item, os pressupostos que

    fundamentam nosso trabalho do ponto de vista historiogrfico.

    11 H uma lista de publicaes aps a dcada de noventa no Brasil; para isso, ver Batista (2013, p. 30). 12 Fortes (2012) no faz referncia direta a Koerner, mas considera em todo o seu trabalho as questes levantadas

    por Law (1987; 1993), pesquisadora essa que tentou descrever os gramticos latinos de acordo com o contexto

    social, poltico e cultural em que se encontravam.

  • 26

    Nos primeiros questionamentos feitos por Koerner (1973 [1971]), em sua tese de

    doutoramento a respeito do pensamento Saussuriano, o autor apresenta sua verso sobre a

    necessidade de se repensar a escrita da histria da Lingustica, dizendo:

    Eu tenho achado razes suficientes para questionar a maneira na qual a Histria da

    Lingustica tem sido escrita. A Histria da Lingustica tem sido quase que

    exclusivamente preocupada com ideias relativas linguagem e sua investigao de

    forma cronolgica (isso sugere que, ao mesmo tempo, teorias contemporneas sejam

    muito mais sofisticadas, adequadas, e evidentemente superiores); em outras palavras,

    a evoluo da Lingustica retratada como um mero processo de desenvolvimento

    por acumulao. A histria do pensamento lingustico e relatos semelhantes so

    frequentemente baseados em estudos anteriores, muitas vezes confiando pesadamente

    em fontes secundrias e at mesmo tercirias. Os desenvolvimentos na Lingustica

    so tratados quase completamente em isolado: a atmosfera intelectual geral do perodo

    em questo, a sociopoltica, o background cultural do qual ideias em particular e

    concepes emergiram no tm sido levadas em considerao. Alm disso, histrias

    disponveis no presente momento no tm tentado seriamente estabelecer um quadro

    terico no qual o historiador da Lingustica deva operar.13

    (KOERNER, 1973, p. iii).

    As palavras de Koerner refletem, de forma direta, o modo como a histria da Lingustica

    estava sendo escrita. Havia um desinteresse pelos processos culturais e contextuais, uma

    predileo por teorias mais recentes, ressaltando, assim, sua superioridade em relao s que

    lhes precederam. Alm disso, a histria da Lingustica era contada quase que de forma

    cronolgica, resultando, dessa forma, em uma viso progressista, marcada pelo processo de

    acumulao.

    Diante desse quadro, que se desenhava em torno da escrita da histria da Lingustica, a

    necessidade de se criar uma teoria e um mtodo para escrev-la, com uma adequao contextual

    e fundamentada, deu origem Historiografia da Lingustica.

    Nos termos de Swiggers:

    13 Cf. I have found sufficient reason to question the manner in which the history of linguistics has been written.

    Histories of linguistics have been almost exclusively concerned with relating ideas about language and its

    investigation in a chronological fashion (suggesting at the same time that contemporary theories are much more

    sophisticated, adequate, and evidently superior); in other words, the evolution of linguistics is depicted as a mere

    process of development-by-accumulation. Histories of linguistic thought and similar accounts are frequently

    based on earlier studies, often relying heavily on secondary and even tertiary sources. Developments in

    linguistics are treated almost completely in isolation: the general intellectual atmosphere of the period in question

    and the socio-political and cultural background from which particular ideas and conceptions emerged have not

    been taken into account. Furthermore, histories available to the present day have not seriously attempted to

    establish a theoretical framework within which the historian of linguistic ideas should operate.

  • 27

    A historiografia lingustica o estudo interdisciplinar do curso evolutivo do

    conhecimento lingustico; ela engloba a descrio e a explicao, em termos de fatores

    intradisciplinares e extradisciplinares (cujo impacto pode ser positivo, i.e. estimulante,

    ou negativo, i.e. inibidores ou desestimulantes), de como o conhecimento lingustico,

    ou mais genericamente, o know-how lingustico foi obtido e implementado.

    (SWIGGERS, 2010, p. 2).

    Diante da definio de Swiggers, gostaramos de ressaltar a natureza interdisciplinar da

    Historiografia da Lingustica, segundo a qual possvel observar os pontos de interseo

    existentes entre a Lingustica e outras disciplinas como, por exemplo, a Histria, a Filosofia, a

    Sociologia da Cincia, a Retrica, a Lgica (dialtica) a Teologia etc. (SWIGGERS, 2010,

    2013). justamente nessa interseo que, ao investigarmos as ideias lingusticas presentes

    nos textos de Agostinho, lanamos mo das relaes existentes entre a gramtica e a filosofia

    (dialtica/lgica) na Antiguidade greco-romana, com nfase no perodo Tardio.

    Uma das caractersticas que podemos destacar e que, de certa forma, so compartilhadas

    entre a Historiografia da Lingustica e a Filologia Clssica, o seu objeto. Pontuamos essa

    caracterstica, pois o objeto primrio da Historiografia da Lingustica so os textos, sejam eles

    publicados ou no (SWIGGERS, 2013, p. 41). Em nosso caso, o que estamos adotando como

    textos so aqueles que a tradio filolgica atribuiu aos autores da Antiguidade greco-romana.

    No entanto, mesmo que essas duas disciplinas mantenham um objeto em comum, a

    metodologia, assim como a metalinguagem utilizada pelas duas disciplinas, , em certa medida,

    distinta. A metalinguagem utilizada pelo historigrafo da Lingustica vasta e demasiadamente

    extensa. As proposies tericas do campo s vezes so de difcil aplicao ao corpus que est

    sendo analisado. Dessa forma, para no nos perdermos no emaranhado terminolgico com o

    qual o historigrafo precisa lidar, limitamo-nos a apresentar apenas o problema da

    metalinguagem e os trs princpios da pesquisa historiogrfica, de aplicao imediata em nosso

    trabalho.

    Koerner, ao tentar descrever o problema da metalinguagem ou a questo da

    metalinguagem, pontua que:

    O uso de uma terminologia atual na descrio de fases mais pretritas no

    desenvolvimento do pensamento lingustico tem nos levado a uma variedade de

    problemas em nosso entendimento de teorias do passado.14

    (KOERNER, 1995, p. 13).

    14 Cf. The use of present-day terminology in the depiction of earlier phases in the development of linguistic

    thought has led to a variety of problems in our understanding of past theories.

  • 28

    A proposio de Koerner (1995) totalmente pertinente, pois ela toca no ponto principal de

    uma pesquisa que lida com textos que foram produzidos em um contexto diferente do atual. A

    terminologia que foi aplicada para descrever um fenmeno na lngua latina, por exemplo, no

    pode ser equiparado sem maiores explicaes nossa terminologia gramatical. Um exemplo

    que podemos dar sobre essa questo consiste em diferenciar, por exemplo, partes orationis (as

    partes da orao, um conceito antigo), de classes de palavras (um conceito moderno). Ainda

    que saibamos que uma est na base da outra, a relao estabelecida entre elas assim

    assimtrica, ou seja, no se equivalem.

    Koerner (1995, p. 13), tendo se deparado com essas questes, postulou trs princpios

    historiogrficos que ajudam na apresentao de teorias lingusticas propostas em perodos

    antigos.

    a) O primeiro princpio o da contextualizao: em linhas gerais, esse princpio pontua a

    necessidade de se construir o clima de opinio do perodo em questo, ou seja,

    descrever o quadro social etc.

    b) O segundo princpio o da imanncia: preconiza um entendimento do texto em questo,

    um entendimento crtico e, se possvel, filolgico do texto.

    c) O terceiro o princpio da adequao: de forma geral, o historigrafo pode se aventurar

    a fazer aproximaes com a terminologia atual. No entanto, uma justificativa de por que

    se est fazendo essa aproximao necessria.

    Em nossa dissertao, utilizamos mais explicitamente os dois primeiros conceitos, uma

    vez que os textos gramaticais antigos possuem uma terminologia especfica para descrever a

    lngua latina. Essa terminologia, por sua vez, faz parte da metalinguagem gramatical que elas

    possuam.

    O emprego de uma metalinguagem que trata os textos antigos de forma contextualizada

    visa a evitar o anacronismo. Nesse sentido, o Know-how lingustico obtido e implementado

    pelos gramticos da Antiguidade Tardia, como, por exemplo, o de Agostinho, deve ser

    observado de acordo com as necessidades de sua poca. O historigrafo da Lingustica, dessa

    forma, no pode estar desatento ao momento histrico em que determinada reflexo sobre a

    lngua(gem) foi feita. Ele, alm de ser um observador e leitor crtico, deve ser, tambm, um

    intrprete do curso evolucionrio do conhecimento lingustico (SWIGGERS, 2013, p. 42).

    Interpretar o conhecimento lingustico produzido ao longo dos sculos, seja por

  • 29

    gramticos, fillogos etc., contribui para que tenhamos uma viso mais ampla do passado em

    relao aos saberes lingusticos, assim como contribui para que a narrativa historiogrfica seja

    uma espcie de moderadora das teorias lingusticas, pois, como afirma Koerner:

    a histria da Lingustica pode, muito bem, servir como um alerta contra as alegaes

    exageradas, em termos de novidade, originalidade, inovao e revoluo em nossas

    (re)descobertas e, assim, levar a um tipo menos polmico de discurso cientfico, ou,

    como o falecido Paul Garvin sugeriu h muitos anos (Garvin 1970), uma moderao

    na teoria lingustica.15

    (KOERNER, 2003, p. 381).

    Partindo dessa observao, evitando, assim, um entendimento exagerado do ttulo que

    propusemos para esta dissertao, resta-nos dizer, justificando-o, contudo, que o pensamento

    gramatical de Santo Agostinho pode no tanto ser mapeado em um texto aqui ou al, ele no

    s pode, mas deve ser interpretado de acordo com as vinculaes sociais e filosficas da poca

    em que tais textos foram escritos, de acordo com o contexto especfico em que tais reflexes

    sobre a linguagem foram postuladas.

    Dessa forma, o pensamento gramatical de Santo Agostinho no , e no deve ser, um

    ttulo que retrate todas as ideias de Agostinho em torno da linguagem, mas ele merece ser um

    ttulo que demonstra certa coerncia entre algumas das ideias de Agostinho sobre a linguagem,

    de forma contextualizada e transversal, ao longo de sua obra, apesar das claras e evidentes

    limitaes que tem um trabalho no nvel de Mestrado. Portanto, o artigo definido o no expressa

    a totalidade nem dos trechos mapeados em obras diferentes para construir nosso trabalho, nem

    uma definio fechada do ponto de vista hermenutico, ou seja, esse artigo definido , na

    realidade, uma espcie de representao do corpus Agostiniano que adotamos para a construo

    da nossa dissertao.

    Assim como Koerner, em sua tese de doutoramento, apresenta quais so as ideias que

    esto por trs do pensamento saussureano em torno da linguagem no sculo XIX, ns, em nossa

    dissertao, dentro dos nossos limites, procuramos seguir os mesmos preceitos para a

    construo e nomeao do nosso trabalho.

    Finalmente, podemos esclarecer, desde j, que o mtodo adotado pelos estudiosos da

    15 Cf. The history of Linguistics may well serve as a guard against exaggerated claims in terms of novelty,

    originality, breakthrough, and revolution in our (re)discoveries and, thus, lead to a less polemic kind of scientific

    discourse, or, as the late Paul Garvin suggested many years ago (Garvin 1970), a moderation in linguistic

    theory.

  • 30

    Historiografia da Lingustica no rgido, pois, se assim o fosse, o seu carter interdisciplinar

    seria anulado. Koerner (1996, p. 56-57) ressalta que:

    os historiadores da cincia Lingustica tero de desenvolver seu prprio quadro de

    trabalho, tanto o metodolgico, quanto o filosfico. Para isto, um conhecimento

    meticuloso de teoria e da prtica em outros campos revelam-se verdadeiramente muito

    teis, mesmo se o resultado for negativo, isto , se o historiador da Lingustica

    descobrir que este ou aquele campo de investigao histrica tem de fato pouco a

    oferecer em matria de mtodo historiogrfico [...]

    (in GODOY, 2009, p. 184-185).

    As palavras de Koerner sugerem que o mtodo seja construdo pelo prprio pesquisador,

    j que o caminho percorrido por ele vai revelar quais foram as necessidades cumpridas ou no

    para a pesquisa. Swiggers (2013, p. 48) endossa essa ideia, dizendo que cada historiador

    estabelece uma metodologia pessoal, em face do objeto estudado e em consonncia com seus

    interesses, seu(s) conhecimento(s) e seu(s) objetivo(s).

  • 31

    II CONSTRUINDO O CLIMA DE OPINIO: UMA REVISO SOBRE O

    LUGAR DA GRAMTICA NA ANTIGUIDADE TARDIA

    2.1 Um conceito em formao: Antiguidade Tardia

    A histria tem a faculdade de nos confundir; ela nos confronta, incessantemente,

    com singularidades, diante das quais nossa reao mais natural a de no enxergar;

    longe de constatar que no temos a chave adequada, nem sequer percebemos que

    h uma fechadura que deve ser aberta.

    (VEYNE, 1998 [1971], p. 174).

    As palavras de Veyne expressam um sentimento que o historiador possui ao se dedicar

    escrita da histria, uma vez que a incapacidade de perceber todos os momentos que

    compem o quadro geral de um dado perodo parece ser no s uma parte do seu ofcio, mas

    tambm uma caracterstica intrnseca do seu objeto. Longe, certamente, de discutirmos o

    estatuto epistemolgico da Histria ou de fornecer uma soluo para esse problema,

    queremos apenas chamar a ateno para o fato de que, aparentemente, as chaves e fechaduras

    que encontramos para dissertar sobre o tema que propusemos nesse trabalho ora leva-nos a

    uma sala cheia de explicaes, ora a um beco sem sada.

    Com efeito, nosso intento apresentar, neste captulo, uma pequena contextualizao

    do perodo da Antiguidade Tardia, destacando alguns fatos que dizem respeito

    transformao16 do mundo clssico pago para o que ficou conhecido nos estudos

    historiogrficos como ascenso (rise) da Cristandade (BROWN, 2013 [1996]; 2006;

    JAMES 2008). Essa pequena apresentao do quadro histrico do perodo em questo serve

    para conseguirmos, pelo menos minimamente, abrir e espiar o mundo de Agostinho.

    Para versarmos acerca desse tema, dividimos o presente captulo em duas partes. Na

    primeira parte, dedicamo-nos a explicitar, do ponto de vista historiogrfico, o conceito de

    Antiguidade Tardia,17 explicando assim, por que essa terminologia sustentada em todo

    16 O termo mais utilizado no livro de Brown (1971) mudana (change) e no transformao (transformation).

    O uso desse termo nos estudos histricos a respeito da Antiguidade Tardia parece ter ganhado destaque em obras

    posteriores, como de 1996, e nos estudos traados pela coletnea de doze volumes, oriundas de um projeto com

    o ttulo The transformation of Roman World (TRW), organizada pela European Science Foundation (1993-1997). 17 A primeira referncia terminolgica a esse perodo o termo alemo Sptantike, utilizado por Wulff & Volbach

    em sua obra de 1926. Posteriormente reformulado por Peter Brown em 1971, e utilizado por Marrou em 1977.

    Para uma reviso do conceito Sptantike, ver Taurisano (2007) e James (2008). Usamos em todo o nosso trabalho

    o termo Antiguidade Tardia (Late Antiquity). No entanto, cabe ressaltar, pelos menos nesta nota, o quo difceis

    e emaranhados esses termos so para os estudiosos desse tema, uma vez que a terminologia geralmente

    encontrada para tratar do perodo em questo (150-750 d.C.) so os termos late Roman e late Antiquity.

    Esses termos so utilizados por Brown (1971) como sinnimos. Porm, no trabalho publicado em 1967, Brown

    no menciona o termo late Antiquity, mas apenas o termo late Roman. J no livro publicado por Brown em

    1971, parece haver uma distino bem sutil no uso desses dois termos para se referir a prticas polticas e

    intelectuais e religiosas especficas. Contudo, como pondera James (2008, p. 23), se existe uma distino entre

  • 32

    nosso trabalho. Destacamos tambm alguns fatos histricos que nos ajudam a entender que

    tipo de transformao ocorreu na sociedade romana do sculo II ao VI d.C.

    Na segunda parte desse captulo (itens 2.3 e 2.4), fazemos algumas consideraes

    sobre a vida e da obra de Santo Agostinho. Para esse objetivo, selecionamos aspectos

    relevantes para o desenvolvimento da nossa pesquisa, como, por exemplo, de que forma a

    gramtica e a figura de gramticos aparecem em seus escritos. Alm disso, so feitas algumas

    consideraes sobre as artes liberais, ressaltando, de forma panormica, o desenvolvimento

    das disciplinas que compem o Trivium (gramtica, dialtica e retrica) na Antiguidade

    Tardia. Adotamos essa diviso apenas metodologicamente, no necessariamente

    conceitualmente, pois os limites das disciplinas na Antiguidade Tardia, mesmo j tendo

    adquirido um modelo fixo, parece ter sofrido alteraes no perodo de Agostinho.18

    Assim, a finalidade deste captulo consiste em tentar construir o clima de opinio

    no qual o bispo de Hipona est inserido. Faz-se necessrio, para isso, colocarmos em destaque

    quais eram as teorias e as indagaes da poca de Agostinho em relao educao, ao

    aprendizado e ao ensino da gramtica.

    Alm disso, em consonncia com a nossa perspectiva terica, j explicitada no

    captulo I, no podemos nos esquecer de que, para se produzir um trabalho slido, nesse

    esses termos, elas possuem a seguinte tendncia: o termo late Roman usado por Brown para falar sobre a

    sociedade ou sobre o governo e late Antiquity quando se referia vida intelectual e religiosa. Alm de Brown,

    Cameron, em seu texto de 1993, parece oferecer-nos uma observao interessante sobre a distino existente

    entre a mudana social e a mudana religiosa desse contexto histrico. A autora faz duas consideraes

    importantes ao dizer que a sociedade romana da poca tardia, em si, estava mudando rapidamente em vrios

    aspectos importantes (1993, p. 151, grifos nossos). Um exemplo que ilustra bem essa alterao so as invases

    brbaras. Por outro lado, mais adiante, quando Cameron se refere ao processo de converso das famlias romanas

    mais clebres, ela ressalta o fato de que o processo de cristianizao foi gradual. (1993, p. 159, grifos nossos).

    Neste sentido, se a mudana social se deu de forma mais rpida e o processo de cristianizao ocorreu

    gradativamente, observamos que, mesmo sendo parte da mesma transformao, as alteraes no campo social,

    aparentemente, em algum momento desse processo, se desenvolveram separadas da cristianizao do Imprio

    Romano, configurando, assim, uma distino pequena, porm considervel, entre os dois processos. Se tais

    caractersticas, de fato, procedem, ento no por acaso que a distino feita por Brown 1971 deva ser levada em

    considerao. 18 O que estamos chamando de reformulao das disciplinas ou artes liberais, principalmente no que diz

    respeito disciplina gramatical, no nos parece ser algo novo dentro dos estudos em Histria Antiga nem dentro

    da Historiografia da Lingustica, vide a bibliografia que adotamos para compilao deste trabalho. No entanto,

    h uma questo importante a ser frisada: de que forma o historigrafo da Lingustica pode oferecer uma reflexo

    nova de fatos passados? Tal resposta parece estar contida nas consideraes feitas por Law (2003) sobre o

    processo de observao para o historigrafo da Lingustica. Law (2003, p. 277-278) endossa a seguinte

    perspectiva: a observao uma habilidade essencial que o historiador precisa praticar (e, acredite em mim,

    isso no vem sem uma imensa poro de prtica). A segunda qualidade vital, certamente para algum historiador

    intelectual, uma sensibilidade s metamorfoses e aos processos de mudana atravs do tempo. [...] A terceira

    qualidade importante que o historiador da lingustica necessita : uma percepo de quando algo novo

    aconteceu. (Observation is one vital skill that the historian needs to practice (and believe me, it doesnt come

    without a great deal of practice). The second vital quality, certainly for any intellectual historian, is a sensitivity

    to metamorphosis, to processes of change through time. [...] the third vital quality that the historian of linguistics

    needs: a sense for when something new has arrived.).

  • 33

    campo de pesquisa, deve-se ter em mente que:

    o historigrafo da Lingustica precisa, antes de tudo, ser um linguista, porque s

    munido dessa habilidade que ele poder realizar adequadamente crticas e

    anlises de trabalhos relacionados linguagem. Porm, no basta ao historigrafo

    ser um linguista ciente de aspectos tericos e prticos de sua rea; preciso tambm

    que o pesquisador conhea eventos situados na corrente histrica, ou seja, saiba

    histria geral.

    (BATISTA, 2013, p. 48).

    A reflexo feita por Batista no s sustenta a importncia do presente captulo em

    nossa dissertao, mas tambm reala a ideia de que, para chegarmos a uma discusso mais

    coerente sobre o conhecimento que alguns autores pretritos construram sobre a linguagem,

    preciso apresentarmos um pouco dessa histria geral. Certamente, esse conhecimento nos

    ajuda a eliminar certos preconceitos e anacronismos que circundam tais reflexes, seja no

    campo da Historiografia da Lingustica, seja na prpria Histria.

    Felizmente, de acordo com a perspectiva de anlise traada por ODonnell (2006,

    p.6):

    nosso conhecimento sobre o mundo de Agostinho tem se transformado desde a

    ltima gerao. Desde o trabalho de Gibbon, pelo menos, o quarto e o quinto

    sculos tinham sidos marginalizados na imaginao histrica de alguns

    especialistas. Gibbon descreveu o declnio do Imprio Romano como o triunfo do

    barbarismo e religio (em forma de Cristianismo).19

    (ODONNELL, 2006, p. 6).

    A observao feita por ODonnell pode ser entendida como uma tentativa de resgatar

    a importncia que os autores desse perodo possuem para a histria da literatura latina, bem

    como para a escrita da prpria histria. Retirar o estigma j enraizado em muitas anlises

    literrias e historiogrficas de que o Cristianismo e, por consequncia, tudo aquilo que

    derivado dele, seja o responsvel pela queda do Imprio Romano, de fato, ainda no

    tarefa fcil.

    Para que uma reflexo lcida sobre esse perodo possa ser feita, parece-nos prudente

    19 Cf. Our knowledge of Augustines world has transformed itself in the last generation. Ever since the work

    of Gibbon, at least, the fourth and fifth centuries had been marginalized in the historical imagination even of

    specialists. Gibbon described the decline of the Roman empire as the triumph of barbarism and religion (in

    the form of Christianity).

  • 34

    levarmos em considerao a afirmao do historiador francs Henri-Irne Marrou em seu

    ltimo livro, publicado em 1977. Marrou, ao refletir sobre o conceito de Late Antiquity

    (Antiguidade Tardia), que Brown havia formulado em seu trabalho de 1971, relata-nos que:

    Seria preciso, enfim, consentir a admitir que a Antiguidade Tardia no s a ltima fase de um desenvolvimento contnuo; uma outra Antiguidade, uma outra civilizao, cuja originalidade preciso aprender a reconhecer e a julgar por ela mesma, e no atravs de um cnon de pocas anteriores.20

    (MARROU, 1977, p. 13).

    As palavras de Marrou se refletem de forma direta no modo como os historiadores,

    depois da dcada de sessenta, veem esse perodo. Cada vez mais se tem ideia de que a

    Antiguidade Tardia no consistiu na queda, fim ou declnio da sociedade romana, mas

    representou um momento de transformao entre duas Antiguidades diferentes.

    Nesse sentido, Brown (1971), Marrou (1977), Cameron (1993), Veyne (2011), entre

    outros, descrevem esse perodo como Antiguidade Tardia para tentar fugir da concepo de

    declnio e queda traada no sculo XVIII pelo famoso historiador Edward Gibbon, em sua

    volumosa obra intitulada de The History of the Decline and Fall of the Roman Empire (1776-

    1788), e, assim, trazer tona uma observao mais condizente com a sociedade romana da

    poca. Contudo, mesmo com as inmeras observaes feitas por Brown (1971, 1978, 2009,

    2010, 2013 [1996]), alguns estudiosos como Grimal (2010 [2003]) ainda preferem retratar o

    sculo de Constantino como a morte de um Imprio. Ward-Parkins (2005, p. 183), por

    exemplo, contrria viso histrica defendida por Brown, ao destacar que existe um perigo

    real para os dias de hoje, em uma viso do passado que tenta explicitamente eliminar toda

    crise e todo o declnio21

    .

    A posio adotada por Ward-Parkins a respeito da Antiguidade Tardia, ainda que

    possua uma crtica importante em relao utilizao exagerada de determinados termos na

    anlise historiogrfica, est impregnada de conotaes negativas sobre os processos culturais

    que a envolvem. Nesse sentido, Ward-Parkins fornece um quadro histrico e literrio que no

    condiz com a possvel prtica intelectual da sociedade romana tardia.

    20 Cf. Il faudrait enfin consentir admettre que l'antiquit tardive n'est pas seulement l'ultime phase d'un

    veloppement continu; c'est une autre antiquit, une autre civilisation, qu'il faut apprendre reconnatre dans son

    originalit et juger pour elle-mme et non travers les canons des ges antrieurs. 21 Cf. I also think there is a real danger for the present day in a vision of the past that explicitly sets out to

    eliminate all crisis and all decline.

  • 35

    .

    James (2008, p. 27), por exemplo, pondera que:

    a Antiguidade Tardia foi um perodo de grande inovao e de atividade estimulada; ela no foi o perodo de declnio. Declnio tem sido banido do vocabulrio dos estudiosos da Antiguidade Tardia.22

    As opinies de Ward-Parkins (2010) e James (2008) em relao Antiguidade Tardia

    so antagnicas e revelam o quo delicados e inflamados so os discursos que cercam a

    anlise do referido momento histrico. No entanto, ao que nos parece, a viso sustentada por

    James (2008) parece-nos mais convincente. Para isso, basta apenas considerarmos que a

    literatura crist produzida nos sculos IV e V d.C., por autores como Agostinho, Ambrsio e

    Jernimo, pode dificilmente ser tomada, recentemente, como um fator de decadncia e, por

    isso, uma literatura de valor menor. Ao contrrio dessa perspectiva, temos que essa literatura

    foi uma forma de expresso cultural e religiosa diferente daquela que a precedeu.

    Diante, portanto, do processo metonmico que h entre o nascimento do Cristianismo

    e os grandes textos que fazem parte dessa tradio religiosa, Marrou (1977, p. 153) endossa,

    de forma clara, que:

    o Cristianismo, com efeito, uma religio acadmica. Ele no pode se separar das

    Sagradas Escrituras, a fonte de sua revelao, o lar de seus dogmas; ela exige, pelo

    menos para o seu clero, o mnimo de cultura literria: acesso aos livros sagrados,

    aos textos da liturgia agora, temos visto, codificadas , as colees de

    decises conciliares e de outras fontes do direito cannico.23

    22 Cf. Late Antiquity was a time of great innovation and excited activity; it was not a time of decline. Decline

    has been banned from the late antiquitys vocabulary. (Grifo nosso). Ward-Parkins (2005, p. 182) rebate essa

    ideia dizendo que: Eu tenho ficado cada vez mais perplexo, pois a palavra declnio tem sido to contestada na

    escrita histrica, uma vez que ascenso est sendo usado o tempo todo sem ningum pestanejar. Talvez a

    dificuldade repouse na psicologia moderna. Declnio, bem como suas conotaes fortemente negativas, talvez

    tambm morais. Ns tendemos a us-lo com um sentido de que algum pode e deve ser responsabilizado pela

    mudana, como um 'declnio nos padres educacionais'. Eu tenho utilizado declnio neste livro em seu sentido

    negativo, muito explicitamente, porque eu acredito que uma grande parte foi perdida com o fim da antiga

    sofisticao; mas eu espero que eu no esteja culpando ningum, deliberadamente, por ter causado o declnio

    que tenho traado [...] Hoje em dia, os historiadores parecem se sentir mais confortveis, discutindo a ascenso

    disto ou daquilo, porque no h nenhum risco neste vocabulrio de algum ser criticado ou fazer um juzo de

    valor negativo...(I have indeed become increasingly puzzled that the word decline should be so contested in

    historical writing, when rise is used all the time, without anyone ever batting an eyelid. Perhaps the difficulty

    lies in modern psychology. Decline, as well as its strongly negative connotations, perhaps also has moral ones.

    We tend to use it with a sense that somebody can and should be blamed for the changeas with a decline in

    educational standards. I have used decline in this book in its negative sense, very explicitly, because I believe

    a great deal was lost with the end of ancient sophistication; but I hope that I am not blaming anyone for

    deliberately causing the decline that I have charted [] Present-day historians seem to feel more comfortable

    discussing the rise of this or that, because there is absolutely no risk in this vocabulary of anyone being criticized

    or any negative value judgement being made). 23 Cf. Le christianisme en effet est une religion savante. Il ne peut se sparer de l'criture sainte, source de sa

    rvlation, foyer de sa dogmatique; il exige, au moins pour son clerg, un minimum de culture lettre: accs aux

    Livres saints, aux textes de la liturgie dsormais, on l'a vu, codifie , aux recueils des dcisions conciliaires

  • 36

    (MARROU, 1977, p. 153).

    nesse ponto que podemos dizer que a observao feita por Gibbon e seguida por

    outros historiadores como Ward-Parkins no possui consistncia. Conte (1994, p. 621), por

    exemplo, atravs das suas anlises sobre a histria da Literatura Latina, possui a mesma

    posio adotada por Brown (1971), Cameron (1993) e Marrou (1977), dizendo que:

    Se o terceiro sculo marcou um dos perodos mais difceis para os Romanos, o quarto sculo testemunhou um impressionante renascimento [...] um florescimento literrio que um dos mais impressionantes na histria de Roma.24

    (CONTE, 1999, p. 621).

    A ponderao feita por Conte, bem como aquelas apresentadas pelos historiadores que vimos

    acima, abrem uma brecha para que possamos considerar que, se houve um declnio da

    sociedade romana dita clssica, tal afirmao est de acordo com uma perspectiva histrica

    mais preocupada em resgatar, nostalgicamente, os dias ureos de uma Repblica de Ccero ou,

    ento, as glrias de alguns dos Csares. Contudo, se, por outro lado, a histria que se pretende

    narrar procura investigar, de fato, os sculos III, IV e V d.C., e os acontecimentos que

    marcaram esse perodo, deve-se empreender, portanto, uma anlise da literatura crist, da

    Igreja, dos chamados brbaros, sejam eles cristos ou no, do Imprio de Constantino e

    Teodsio, em sntese, da Antiguidade Tardia.

    2.2 Alguns fatos histricos: a Cristandade e os pagos

    O dito de Milo (conhecido tambm como dito da Tolerncia, contido na obra de

    Lactncio, De mort., pers., 48, 2), sancionado pelo ento imperador do ocidente, Constantino

    (312337 d.C.), e por Licnio, o imperador da parte oriental, em 313 d.C., representa um dos

    marcos mais importantes para histria do Cristianismo. Seu contedo diz respeito ao pacto

    criado pelos dois imperadores, com o intuito de conterem a intolerncia existente entre pagos

    et autres sources du droit canon. 24 Cf. The great cultural Renaissance. If the third century marked one of the most difficult periods for Latin

    culture, the fourth witnesses an impressive revival [...] a literary flourishing that is one of the most impressive in

    the history of Rome.

  • 37

    e cristos. Um ano antes do dito de Milo, Constantino j havia recuperado a Itlia das mos

    de Maxncio, derrotando-o na batalha da Ponte Mlvio.

    Na resenha feita por Veyne (2011), a respeito desses acontecimentos, temos que:

    No decnio seguinte, em 324, a religio crist assumia, com um golpe nico, uma

    dimenso "mundial", e Constantino estaria alado estatura histrica que dali em

    diante seria a sua: ele acabava de esmagar Licnio no Oriente, outro pretenso

    perseguidor, e, assim, restabelecia sob seu domnio a unidade do Imprio

    Romano, reunindo as duas metades sob o seu cetro cristo. O Cristianismo dispunha

    da em diante desse imenso imprio que era o centro do mundo e que se considerava

    com a mesma extenso da civilizao. Aquilo a que se chamar por longos sculos

    de Imprio Cristo, sim, a Cristandade, acabava de nascer. Constantino apressou-

    se a sossegar seus novos sditos e lhes prometer, invertendo os termos de 312, que

    os pagos do Oriente seriam tratados em p de igualdade com os cristos: que

    permanecessem insensatamente pagos, "que possussem, se assim o desejassem,

    seus templos de mentira", templos que, assim, no deviam ser destrudos. O tempo

    avanara: em 312 a religio tolerada era o Cristianismo, em 324, era o paganismo.

    (VEYNE, 2011, p. 8-9).

    Essas sries de eventos transformaram o mundo antigo, em definitivo. A atitude

    tomada por Constantino alterou o lugar que pagos e cristos ocupavam naquele momento

    dentro da sociedade romana. Constantino promete tratar de forma igualitria os pagos, pois

    seus templos de mentira no representam mais uma ameaa para o cetro cristo. Alm

    disso, observa-se que essa mudana teve outros fatores importantes, como, por exemplo, os

    pagos convertidos no queriam mais retornar ao paganismo, bem como tiveram o apoio

    incondicional da maioria dos Csares, tornados cristos ao longo do sculo IV d.C.

    (VEYNE, 2011, p. 5).

    Nesse sentido, essa transio no pode ser entendida e nem interpretada como uma

    mera mudana de hbitos e prticas religiosas, mas deve ser observada como uma profunda

    mudana social, poltica e, principalmente, religiosa, que teve inmeras consequncias.

    Dentre elas, podemos citar uma alterao no modelo educacional romano. Daremos nfase,

    em nossa pesquisa, ao papel que a gramtica passou a exercer na Antiguidade Tardia. Porm,

    mais do que isso, Agostinho, por exemplo, colocou o estudo da dialtica em um lugar de

    destaque, sendo esta a segunda etapa do processo educacional proposto por ele em seu livro

    De ordine.25

    25 Parafraseando Luhtala (2005, p. 69), podemos fazer um adendo ao dizer que a dialtica no era uma disciplina

    proeminente no esquema traado por Ccero, mas que na Antiguidade Tardia seu papel ganhou destaque por se

    tornar uma ferramenta importante para todo tipo de aprendizado. Agostinho se dedicou a escrever um texto sobre

    o tema, seu De dialectica, que parece ser um bom exemplo de sua preocupao com esse ensinamento.

  • 38

    importante tambm frisar que as mudanas da poca de Constantino no foram

    repentinas; tratava-se, antes, de mudanas de mentalidade que ocorreram de modo lento. Com

    efeito, uma espcie de crtica, mesmo que sutil, a respeito dos hbitos religiosos da sociedade

    romana, encontrava-se j disseminada em relatos de autores considerados pagos.26 No

    Satyricon, Petrnio (sculo I-II d.C.), atravs da escrava Quirila, faz uma crtica ao sistema

    politesta romano, ao dizer que: a nossa terra est to atulhada com a abundncia de

    divindades que mais fcil encontrar um deus do que um homem.27 Mesmo que o relato de

    Petrnio esteja comprometido com um discurso diferente daquele encontrado nos autores

    cristos, esse relato um indcio de que o sistema religioso romano j enfrentava problemas

    bem especficos havia bastante tempo.28

    No por acaso, portanto, que os cristos, mais tarde, utilizaram-se dessa

    abundncia de divindades presentes nos cultos politestas para firmarem sua posio em

    relao a esse assunto, pregando que s h um Deus.29 Santo Agostinho fornece-nos bons

    exemplos sobre o tema. No De uera religione (I, 1, 1), ele diz:

    O caminho de toda vida boa e feliz encontra-se na verdadeira religio. Por ela,

    adorado o nico Deus, com piedade muito pura. E ele reconhecido como o

    princpio de todos os seres, origem, aperfeioamento e coeso de todo o universo.

    Assim, por a que se manifesta o erro dos pagos. Em vez de adorarem o nico

    verdadeiro Deus, Senhor de tudo, preferiram adorar muitos deuses.30

    (AGOSTINHO, De uer. relig., I, 1, 1).

    Alm dessa passagem, presente no De uera religione, na qual Agostinho expe sua

    26 Tcito, Ann., XIII, 32; Suetnio De vit., Caes., XVI, 64; XXV, 4; Plnio, o Jovem, Ep., X, 96. 27 Traduo de Aquati (2008, p. 30). 28 Nesse ponto, temos que apresentar os fatos sob outra perspectiva, ou seja, a histria da religio romana antes

    do advento do Cristianismo no colocada como sendo falsa ou invlida. Se assim agssemos, estaramos

    cometendo o erro de historiadores pretritos que preferiram desqualificar um segmento religioso (o Cristianismo)

    em prol de uma anlise unilateral do passado. Diante disso, colocamos como contraponto a opinio de Leppin

    (2007, p. 96-97) sobre a transformao da religio romana ao dizer que: a histria religiosa daqueles anos parece

    estar marcada por uma evoluo clara e simples: a religio crist, que tinha sido oprimida e perseguida em incio,

    nomeadamente, por Decius, Valeriano e Diocleciano, vence o paganismo; a converso de Constantino causa a

    adoo do Cristianismo como a religio oficial do Imprio Romano. Se ns seguirmos esta viso, ns seremos

    vtimas da interpretao crist da histria com estes conceitos antagnicos de religies verdadeiras ou falsas.

    No entanto, a histria mais complexa. O paganismo uma noo judaico-crist. (The religious history of

    those years seems to be marked by a clear and simple development: the Christian religion, which had been

    oppressed and persecuted in the beginning, namely by Decius, Valerian, and Diocletian, triumphs over paganism;

    Constantines conversion brings about the adoption of Christianity as the religion of the Roman empire. If we

    follow this line, we fall victim to the Christian interpretation of history with its antagonistic concept of true

    and false religions. But history is more complex. Paganism is a Judeo- Christian notion.). 29 O famoso discurso de Paulo aos atenienses (Atos, 17: 18-32) tem como motivo precisamente a pregao da

    existncia de um nico Deus, cristo, sobre a pluralidade dos deuses pagos, conhecidos e at mesmo

    desconhecidos. 30 Traduo de Oliveira (2007 [2002], p. 26).

  • 39

    inquietao relativa aos deuses pagos, o ento bispo de Hipona, em seu Sermo 81 I, 9,

    parece tambm fazer uma crtica bem forte ao politesmo romano ao afirmar que:

    Os deuses em que os romanos puseram a sua esperana, precisamente os deuses

    romanos, em que os pagos romanos puseram a sua esperana, vieram de Troia,

    que se consumia em chamas, para fundar Roma. Os deuses romanos foram os

    primeiros deuses troianos. Ardeu Troia e Eneias levou consigo os deuses fugitivos.

    Ou melhor, fugindo, levou consigo as imagens inertes dos seus deuses. Estes

    apenas puderam ser levados, pois, por um fugitivo, que por si s no teriam podido

    fugir. E como ele veio para Itlia com esses mesmos deuses, foi com deuses falsos

    que fundou Roma.31

    (AGOSTINHO, Serm., 81 I, 9).

    De acordo com os dois relatos de Agostinho, o erro dos pagos est contido na

    adorao a vrios deuses. Deuses esses que vieram de Troia e s chegaram ao Lcio, porque

    foram carregados por um fugitivo, fundando, assim, uma religio falsa. O argumento

    apresentado por Agostinho fundamenta sua viso de que o Cristianismo orientado por um

    Deus que no se transforma por causa das adversidades mundanas, mas que permanece

    eterno.32

    Essa, de fato, foi uma das mudanas religiosas mais complicadas do mundo antigo e

    que no isenta de consequncias para o entendimento da histria da Igreja e do Imprio

    Romano tardio, cujo exame, no entanto, extrapola o escopo deste estudo. O elo existente

    entre pagos e cristos transcendeu, porm, a esfera religiosa. Brown informa-nos que por

    volta de 120 d.C.:

    em Roma, a Igreja mantida por ricos protetores, cujos contatos com a comunidade

    pag em seu conjunto lhe valeram proteo e prestgio. Conforme se podia prever,

    o corao dos cristos influentes est dividido entre as exigncias de solidariedade

    e intercmbios sinceros entre cristos e a preocupao com os negcios, e, pois, de

    seus contatos com os amigos pagos. A opulncia de sua casa e o futuro de seus

    filhos os preocupam.

    (BROWN, 2009, p. 233).

    Um exemplo dessa relao estabelecida entre os cristos e pagos encontra-se no texto

    Contra Academicos de Agostinho. Nesse pequeno dilogo, observamos que Agostinho tinha

    31 Traduo de Urbano (2010, p. 80). 32 Na Grcia Antiga, os deuses representados pela figura central do panteo de Zeus no deu origem a todas as

    coisas. Zeus foi criado por outro deus, ele possua irmos. Sua figura representa tambm um filho que se rebelou

    contra o pai e o matou. No Cristianismo, por outro lado, temos um deus que deu origem a todas as coisas. Teve

    um filho que se sacrificou pela humanidade.

  • 40

    .

    um amigo pago, que no somente lhe havia confiado o financiamento dos seus estudos em

    Roma, mas tambm entregue aos seus cuidados a iniciao de seu filho disciplina filosfica.

    Romaniano33 essa figura na vida de Agostinho, ao qual, como forma de agradecimento,

    dedicou essa obra. Em uma das passagens do Contra Academicos temos:

    No retribuirei os teus favores? Por acaso pouco o que te devo? Quando, pobre

    adolescente, fui estudar em outra cidade, acolheste-me em tua casa, s tuas custas,

    e o que mais, no teu corao. Quando perdi meu pai, consolaste-me com a tua

    amizade, animaste-me com teus conselhos, ajudaste-me com teus recursos. Em

    nosso prprio municpio, teus favores, tua amizade, a partilha de teu lar

    tornou-me quase to ilustre e notvel como tu.34

    (AGOSTINHO, Cont. Acad., II, 3).

    Ao proferir seu agradecimento a Romaniano, Agostinho pode ser considerado como

    um dos romanos que tiveram seu futuro assegurado graas amizade de um homem pago.

    Chin (2008, p. 69) faz meno heterogeneidade desse processo, que forma uma espcie de

    identidade cultural especfica, marcada por esses dois lados: o pago e o cristo. Sua

    constituio deu-se da unio de homogeneidades diferentes: a Igreja de Cristo e o culto

    dos dolos.35

    Alm do avano do Cristianismo, outro fato importante para a transformao da

    sociedade imperial tardia est relacionada s invases brbaras (CAMERON, 1993, p. 151).36

    Se somarmos, ento, estes fatores: o nascimento do Cristianismo em convivncia com os

    costumes pagos, mais as invases dos povos brbaros em vrias partes do Imprio Romano

    o quadro cultural que teremos mltiplo.

    O multiculturalismo (JAMES, 2008, p. 29) seria, portanto, uma marca da

    Antiguidade Tardia, uma vez que as invases brbaras, ao mesmo tempo que representaram

    uma ameaa estabilidade do Imprio, tambm o enriqueceram, de certa forma, com o

    contato estabelecido entre os brbaros e os romanos. Historiadores, como, por exemplo,

    Wallace-Hadrill (1962, p. 21), reconhecem que os povos brbaros representados,

    33 Romaniano era um maniquesta que, provavelmente, se converteu em 408 d.C., pai de Licncio um dos

    discpulos de Agostinho. Ele foi o preceptor de Agostinho, financiando os seus estudos em Cartago. Para um

    estudo detalhado sobre o papel de Romaniano na vida de Agostinho, ver BERMON, sd, pp. 1798-1810. 34 Traduo de Belmonte (2008, p.71) 35 Cf. the heterogeneities that constitute it into two single homogeneities, the church of Christ and the

    worship of idols. 36 Para entender a inveno do brbaro na Grcia antiga, ver Hartog (1999). Historiadores da Grcia antiga

    como Herdoto e Tcides j faziam distines entre os que eram, ou melhor, poderiam ser considerados helnicos

    e os outros povos. Os romanos parecem ter seguido essa distino em grande parte

  • 41

    principalmente, pelos Godos, Ostrogodos, Vndalos, Hunos, eram povos antigos, mas no

    selvagens, pois eles tinham um conjunto de hbitos e uma cultura complexa37.

    Dessa forma, podemos observar, modernamente, do ponto de vista histrico, que a

    participao dos povos brbaros no processo de transformao poltico-cultural do Imprio

    Romano um fator essencial, porm, no sem consequncias mtuas entre esses povos.

    Esse multiculturalismo fez com que a organizao entre pagos, cristos e brbaros fosse

    alterada.

    Santo Agostinho, em sua Cidade de Deus, fornece-nos um bom exemplo desse

    fenmeno, ao dizer que:

    Mas de facto os ferozes brbaros pouparam-lhes a vida contra os costumes normais

    das guerras, por amor ao nome de Cristo, quer em outros lugares quaisquer, quer

    nos recintos consagrados ao seu culto, e, para que a compaixo se tornasse mais

    extensiva, escolheram os mais amplos destinados a recolher multides. Deviam

    atribuir isto ao Cristianismo. Era a ocasio propcia para que dessem graas a

    Deus e recorressem ao seu nome com sinceridade, evitando assim as penas do fogo

    eterno, aqueles que em grande nmero escaparam s presentes calamidades usando

    hipocritamente desse mesmo nome. Porque muitos dos que vs agora insultar com

    petulncia e sem vergonha os servos de Cristo, no teriam escapado quela

    carnificina e quele flagelo se no tivessem fingido que eram servidores de Cristo.

    E agora ingrata soberba e mpia loucura! de corao perverso resistem ao

    seu nome; ao qual se recolheram um dia para gozarem da vida temporal, tornando-

    se rus das trevas eternas.38

    (AGOSTINHO, De Ciui. Dei, I, 1, 3 grifo nosso).

    A passagem contida no relato de Agostinho remonta ao saque de Roma feito por

    Alarico, o Godo, no ano de 410 d.C. Agostinho, assim, utiliza-se de um momento de temor

    para exaltar o Cristianismo e atribuir-lhe o fato de Roma ter sido salva da destruio.

    Em seu De excidio urbs, bem como em outros sermes (81, 105, 113/A, 296),

    Agostinho ressalta esse momento que abalou as estruturas do Imprio Romano. No De

    excidio urbs I, 2, 2, ele relata que: da cidade de Roma, porm, quantos fugiram e ho-de

    voltar, quantos ficaram e se salvaram, quantos, nos lugares sagrados, no foram atingidos!

    Os lugares sagrados a que Agostinho se refere so as baslicas de So Paulo e So Pedro.

    Urbano nos informa que:

    37 Wallace-Hadrill (1962, p. 21): [(eles) eram povos antigos, (eles) tinham um conjunto de hbitos e tradies

    complexas; brbaros, mas no selvagens.] (They were old peoples, of set habits and complex traditions;

    barbarians, but not savages.). 38 Traduo de Dias Pereira (1996, p. 102).

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    Por ordem expressa do invasor brbaro Alarico, que, embora herege, era cristo, as

    baslicas de S. Pedro e S. Paulo foram poupadas ao saque e designadas lugar de

    refgio. Muitos que se recolheram nestes templos, foram poupados violncia.

    (URBANO, 2010, p. 44).

    A disputa travada por brbaros e cristos pelo territrio romano fez com que os

    conflitos diretos entre pagos e cristos ficassem menos acentuados. No entanto, como

    apresenta Cameron (1993, p. 163), o final do sculo IV d.C., mesmo no possuindo um

    embate direto entre pagos e cristos, representou um perodo tenso nas relaes sociais.39

    Como tentamos demonstra