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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
FACULDADE DE COMUNICAO SOCIAL
Rafael Otvio Dias Rezende
O NEGRO NAS NARRATIVAS DAS ESCOLAS DE SAMBA CARIOCAS:
Um estudo de Kizomba (1988), Orfeu (1998), Candaces (2007) e Angola (2012).
Juiz de Fora
2017
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Rafael Otvio Dias Rezende
O NEGRO NAS NARRATIVAS DAS ESCOLAS DE SAMBA CARIOCAS:
Um estudo de Kizomba (1988), Orfeu (1998), Candaces (2007) e Angola (2012).
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Comunicao da Universidade
Federal de Juiz de Fora, como requisito parcial
para a obteno do ttulo de Mestre.
Orientadora: Prof. Dr. Teresa Cristina da
Costa Neves.
Juiz de Fora
Fevereiro de 2017
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Ficha catalogrfica elaborada atravs do programa de gerao automtica da Biblioteca Universitria da UFJF,
com os dados fornecidos pelo(a) autor(a)
Rezende, Rafael Otvio Dias. O negro nas narrativas das escolas de samba cariocas : Umestudo de Kizomba (1988), Orfeu (1998), Candaces (2007) e Angola(2012). / Rafael Otvio Dias Rezende. -- 2017. 200 f. : il.
Orientadora: Teresa Cristina da Costa Neves Dissertao (mestrado acadmico) - Universidade Federal deJuiz de Fora, Faculdade de Comunicao Social. Programa de PsGraduao em Comunicao, 2017.
1. Narrativa. 2. Enredo. 3. Memria. 4. Escola de Samba. 5.Carnaval. I. Neves, Teresa Cristina da Costa, orient. II. Ttulo.
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Rafael Otvio Dias Rezende
O negro nas narrativas das escolas de samba cariocas:
Um estudo de Kizomba (1988), Orfeu (1998), Candaces (2007) e Angola (2012).
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Comunicao da Universidade
Federal de Juiz de Fora, como requisito parcial
para a obteno do ttulo de Mestre.
rea de Concentrao: Comunicao e
Sociedade.
Linha de Pesquisa: Cultura, Narrativas e
Produo de Sentido.
Orientadora: Prof. Dr. Teresa Cristina da
Costa Neves, PPGCOM/UFJF.
Aprovado (a) pela banca composta pelos seguintes membros:
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Teresa Cristina da Costa Neves (UFJF) orientadora
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Mrcio de Oliveira Guerra (UFJF) convidado
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Frederico Augusto Liberalli de Ges (UFRJ) convidado
Conceito Obtido:_________________________________________________________
Juiz de Fora, ______de_______________ de 20______
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AGRADECIMENTOS
professora Teresa Neves, por sua contribuio e
dedicao, essenciais para o resultado da pesquisa.
Aos professores da banca, Mrcio Guerra e Fred
Ges, por terem aceitado o convite e pelas
sugestes que colaboraram com a dissertao.
minha irm, Vanessa; meus pais, Sara e Paulo; e
meus amigos, incansveis incentivadores. Muito
orgulho t-los comigo.
Ao Jnior Caj, que me atura falando de carnaval o
ano inteiro e acompanha nas sesses-pipocas
carnavalescas. Parceiro de muitas avenidas.
Ao Srgio Rodrigues, pela troca de figurinhas;
Joo Gustavo Melo, guardio das Candaces;
Vincius Natal, quilombola de Kizomba; Marcelo
Guireli, por disponibilizar seu rico acervo de
imagens das escolas de samba; Wigder Frota, que
registra com sua lente fotogrfica momentos
preciosos da folia; Brbara Paolucci, pela reviso
do ingls, e todos os amigos que compartilham
comigo a paixo, os questionamentos e os
conhecimentos sobre carnaval.
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RESUMO
A pesquisa tem como tema as narrativas sobre o negro nos desfiles das escolas de samba do
Grupo Especial do Rio de Janeiro e est dividida em trs partes. A primeira se prope a
investigar a origem e o conceito de carnaval, bem como o desenvolvimento desta festa no
Brasil. So observados particularmente os aspectos peculiares que tornaram as agremiaes
cariocas to importantes e a forma como dialogam com a sociedade. A segunda parte
dedicada ao estudo da contribuio do negro para a cultura brasileira e de sua insero no
processo de construo da identidade nacional. Este tpico aborda ainda a participao da
etnia na formao e consolidao das escolas de samba, a maneira como a temtica afro-
brasileira foi desenvolvida nos enredos ao longo do tempo e de que forma estes enredos se
configuram como narrativas, que elaboram uma memria e reelaboram memrias traumticas.
Por fim, realiza-se a anlise de quatro enredos, um de cada dcada, a partir da criao do
Sambdromo, em 1984. So eles: Kizomba, a festa da raa (Vila Isabel, 1988), Orfeu, o
negro do carnaval (Viradouro, 1998), Candaces (Salgueiro, 2007) e Voc semba l... Que eu
sambo c! O canto livre de Angola (Vila Isabel, 2012). Com o emprego da anlise de
contedo, toma-se como objeto a composio do enredo, tanto no que se refere a seus
elementos textuais sinopse e letra dos sambas-enredo quanto visuais fantasias, alegorias
e encenaes , estes ltimos observados, sobretudo, por intermdio das transmisses
televisivas, alm de materiais complementares. Parte-se da hiptese de que a elaborao
desses enredos sofre a influncia da conjuntura a ela correspondente, ao passo que cada
desfile tambm influencia o contexto social no qual se insere. Em sntese, os resultados
alcanados indicam que, apesar de suas evidentes particularidades, as narrativas investigadas
no se esquivam de dramas e problemas sociais histricos. Prevalece, porm, o otimismo, a
esperana, a exaltao da vida como forma de enfrentar a morte e a busca pela elevao da
autoestima do negro.
Palavras-chave: Narrativa. Enredo. Memria. Escola de Samba. Carnaval.
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ABSTRACT
The research has as its theme the narratives about black in the parades of the samba schools of
the Special Group of Rio de Janeiro and it is divided into three parts. The first one proposes to
investigate the origin and the concept of carnival, as well as the development of this party in
Brazil. Particularly observed are the peculiar aspects that have made Rio's associations so
important and how they dialogue with society. The second part is dedicated to the study of the
black's contribution to Brazilian culture and its insertion in the process of building national
identity. This topic also addresses the participation of ethnicity in the formation and
consolidation of samba schools, the way Afro-Brazilian themes have been developed over
time and how these plots are configured as narratives that elaborate a memory and
reformulate traumatic memories. Finally, it is made an analysis of four plots, one of each
decade, from the creation of Sambdromo, in 1984. These are: Kizomba, a festa da raa (Vila
Isabel, 1988), Orfeu, o negro do carnaval (Viradouro, 1998), Candaces (Salgueiro, 2007) and
Voc semba l... Que eu sambo c! O canto livre de Angola (Vila Isabel, 2012). Using the
content analysis, the composition of the plot is taken as an object, both as regards its textual
elements synopsis and lyrics of the sambas-plot as well as visual fantasies, allegories
and staging , the latter observed, especially through television broadcasts, as well as
complementary materials. It starts from the hypothesis that the elaboration of these plots is
influenced by the conjuncture corresponding to it, whereas each parade also influences the
social context in which it is inserted. In summary, the results indicate that despite their
evident peculiarities, the narratives investigated do not avoid historical dramas and social
problems. Optimism, hope, the exaltation of life as a way of facing death and the search
for the elevation of the self-esteem of the black prevail.
Keywords: Narrative. Plot. Memory. Samba school. Carnival.
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PREFCIO
Quando a Vila Isabel apresentou um dos mais famosos enredos afro-brasileiros da
histria do carnaval carioca, em 1988, faltava um ano para o meu nascimento. Mas desde o
meu primeiro contato com o desfile das escolas de samba, em 1997, a Kizomba se tornou
recorrente. Surgia nas coletneas de samba-enredo que comprava ou rememorada nas
reportagens de jornais e revistas s vsperas da folia. Kizomba faz parte do imaginrio da
festa, e passou a integrar tambm a minha imaginao, que idealizava o quo fantstico
deveria ter sido, pelos relatos que surgiram e pelo seu hino, j tornado um clssico.
H cerca de cinco anos, quando tive a oportunidade de adquirir DVDs de
carnavais antigos, foi um dos primeiros que assisti. Num momento inicial, fiquei um pouco
frustrado. Era radicalmente diferente dos desfiles atuais, as alegorias pequenas,
exponencialmente mais simples. A comisso de frente e o casal de mestre-sala e porta-
bandeira certamente teriam notas muito baixas se fossem levadas a julgamento hoje. Por outro
lado, a harmonia, a evoluo, a cadncia do samba e a fora do enredo encantavam. Ver os
componentes brincando dentro da ala com tanta liberdade surpreendeu. Era empolgante,
emocionante e formava um movimento bonito de se ver. Compreendi depois que um desfile
pertence a seu tempo, no cabendo comparaes com os carnavais de outros perodos.
1998 foi o segundo ano em que assisti transmisso televisiva do espetculo. Aos
nove anos, j adorava a festa, mas ainda havia muito que aprender sobre ela. A Unidos do
Viradouro tinha vencido a Mocidade Independente no carnaval anterior, escola para a qual
decidi torcer quando a beleza e o colorido de suas fantasias e alegorias superaram, em meu
gosto de criana, o impacto do abre-alas negro da agremiao campe. Por isso, quando a
Viradouro entrou na avenida em 1998, eu torcia contra. Comemorei a queda do chapu da
porta-bandeira grvida. Tudo da boca para fora. No meu ntimo, lamentava o incidente com
a porta-bandeira e me encantava com o maravilhoso desfile criado por Joosinho Trinta. A
birra passou, e inclusive fiz questo de assistir ao filme Orfeu (1999), de Cac Diegues, por
possuir cenas da apresentao da escola.
Quando o Salgueiro desfilou com Candaces (2007), j estava na adolescncia e
minha relao com o carnaval era outra. Comprava o CD de samba-enredo, colecionava
jornais e revistas, me inteirava das notcias nos recm-surgidos sites especializados,
participava de longas discusses nos fruns de debate na internet onde fiz bons amigos.
Ento, acompanhei todo o ciclo de preparao do desfile salgueirense, lendo a sinopse,
ouvindo o samba escolhido com meses de antecedncia, vendo fotos das alegorias em
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construo na Cidade do Samba. A expectativa era alta, e a escola cumpriu o que prometeu,
fazendo uma apresentao emocionante, de extrema beleza e sensibilidade, a qual assisti mais
uma vez pela televiso. O inacreditvel stimo lugar se tornou uma das maiores injustias no
julgamento na era Sambdromo.
De 2009 em diante, abandonei o sof e a televiso de casa para passar os
carnavais no Sambdromo do Rio de Janeiro. Do alto do Setor 1, a primeira arquibancada da
avenida, vi a Vila Isabel desfilar, ao amanhecer, sua homenagem Angola. A escola no tinha
o samba mais badalado do ano samba, alis, que nem era meu predileto entre os
concorrentes de sua disputa interna , nem o enredo de maior expectativa. As alegorias
geravam dvidas a quem as via na Cidade do Samba, dando margem a comentrios
pessimistas nos fruns de carnaval. Eu mesmo, vendo de longe um desses carros alegricos na
rea de concentrao, ainda durante a tarde de domingo, tive dvidas quanto ao seu resultado.
A alegoria trazia uma grande rvore o imbondeiro , ornada com tecidos estampados, que
horas mais tarde encantaria a multido.
O fato que o desfile da Vila Isabel foi surpreendente. As paradinhas da bateria
em ritmo de kuduro chegavam a arrepiar os pelos dos braos; o samba se encaixou com
perfeio escola contribuindo decisivamente para que acordasse rouco no dia seguinte e
hoje considerado um dos melhores do sculo XXI. A comisso de frente tambm poderia ser
includa em qualquer lista das melhores, de qualquer dcada ou tempo. A carnavalesca Rosa
Magalhes utilizou toda a sua experincia e talento para realizar uma esttica impactante, no
pelo luxo, pois era perceptvel que o oramento da escola no era dos maiores, mas pela
originalidade. Tantas fricas j haviam atravessado a avenida ao longo de vrias dcadas,
mas Rosa criou uma frica nica, sem comparaes com as demais. Em pleno 2012, nem
imaginava que isso ainda seria possvel. Pblico e componentes saram felizes do
Sambdromo naquela manh, certamente um dos melhores desfiles que tive a oportunidade de
presenciar. A Vila, quando incorpora as suas kizombas, entende com perfeio a misso das
escolas de samba de associar rituais ancestrais ao presente para vislumbrar o futuro.
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LISTA DE ILUSTRAES
Figura 1 ................................................................................................................................. 133
Figura 2 ................................................................................................................................. 134
Figura 3 ................................................................................................................................. 135
Figura 4 ................................................................................................................................. 136
Figura 5 ................................................................................................................................. 136
Figura 6 ................................................................................................................................. 137
Figura 7 ................................................................................................................................. 138
Figura 8 ................................................................................................................................. 138
Figura 9 ................................................................................................................................. 139
Figura 10 ............................................................................................................................... 139
Figura 11 ............................................................................................................................... 140
Figura 12 ............................................................................................................................... 142
Figura 13 ............................................................................................................................... 145
Figura 14 ............................................................................................................................... 145
Figura 15 ............................................................................................................................... 152
Figura 16 ............................................................................................................................... 153
Figura 17 ............................................................................................................................... 153
Figura 18 ............................................................................................................................... 153
Figura 19 ............................................................................................................................... 153
Figura 20 ............................................................................................................................... 154
Figura 21 ............................................................................................................................... 154
Figura 22 ............................................................................................................................... 155
Figura 23 ............................................................................................................................... 156
Figura 24 ............................................................................................................................... 156
Figura 25 ............................................................................................................................... 157
Figura 26 ............................................................................................................................... 157
Figura 27 ............................................................................................................................... 158
Figura 28 ............................................................................................................................... 158
Figura 29 ............................................................................................................................... 159
Figura 30 ............................................................................................................................... 166
Figura 31 ............................................................................................................................... 166
Figura 32 ............................................................................................................................... 167
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Figura 33 ............................................................................................................................... 167
Figura 34 ............................................................................................................................... 168
Figura 35 ............................................................................................................................... 169
Figura 36 ............................................................................................................................... 170
Figura 37 ............................................................................................................................... 170
Figura 38 ............................................................................................................................... 170
Figura 39 ............................................................................................................................... 172
Figura 40 ............................................................................................................................... 172
Figura 41 ............................................................................................................................... 172
Figura 42 ............................................................................................................................... 172
Figura 43 ............................................................................................................................... 173
Figura 44 ............................................................................................................................... 173
Figura 45 ............................................................................................................................... 178
Figura 46 ............................................................................................................................... 178
Figura 47 ............................................................................................................................... 179
Figura 48 ............................................................................................................................... 180
Figura 49 ............................................................................................................................... 180
Figura 50 ............................................................................................................................... 181
Figura 51 ............................................................................................................................... 182
Figura 52 ............................................................................................................................... 183
Figura 53 ............................................................................................................................... 184
Figura 54 ............................................................................................................................... 184
Figura 55 ............................................................................................................................... 185
Figura 56 ............................................................................................................................... 186
Figura 57 ............................................................................................................................... 186
Figura 58 ............................................................................................................................... 187
Figura 59 ............................................................................................................................... 187
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SUMRIO
1 INTRODUO .................................................................................................................. 14
2 CARNAVAL EM PERSPECTIVA .................................................................................. 19
2.1 ORIGEM E CONCEITO .................................................................................................. 19
2.2 A FOLIA BRASILEIRA .................................................................................................. 33
2.3 O DIONISACO, O APOLNEO E AS ESCOLAS DE SAMBA .................................... 50
3 A NARRATIVA NEGRA NA AVENIDA ....................................................................... 62
3.1 MEMRIA, TRAUMA E ESCRAVIDO ...................................................................... 62
3.2 VNCULOS CULTURAIS AFRO-BRASILEIROS ........................................................ 78
3.2.1 Protagonismo carioca ........................................................................................................... 83
3.2.2 Processos de negociao de uma identidade brasileira .......................................... 93
3.3 UMA NARRATIVA ENCENADA ................................................................................ 104
3.3.1 A narrativa carnavalesca ........................................................................................... 104
3.3.2 Os enredos negros ................................................................................................................ 114
4 SAMBDROMO CARIOCA: O PALCO NEGRO ..................................................... 128
4.1 DCADAS DE 1980 E 1990 .......................................................................................... 129
4.1.1 Kizomba, festa da raa ....................................................................................................... 130
4.1.2 Orfeu, o negro do carnaval ........................................................................................ 147
4.2 DCADAS DE 2000 E 2010 .......................................................................................... 163
4.2.1 Candaces ................................................................................................................................ 165
4.2.2 Voc semba l... Que eu sambo c! O canto livre de Angola ..................................... 176
5 CONCLUSO .................................................................................................................. 190
6 REFERNCIAS ............................................................................................................... 195
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[Carnaval], para aqueles que se queixam tanto/
Para aqueles que s criticam/ Para aqueles que nos
separam/ Para aqueles que usam armas/ Para
aqueles que fazem a guerra/ Para aqueles que
discriminam/ Para aqueles que nos maltratam/ Para
aqueles que no sabem amar.
(Victor Daniel e Tais Nader)
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1 INTRODUO
Conhecer mais sobre o carnaval carioca desbravar um pedao importante da
cultura brasileira. Por estar em constante transformao, esse assunto no se esgota. Pelo
contrrio, os estudos esto sempre em busca de atualizaes. So fundamentais, em primeiro
lugar, para desfazer a imagem equivocada e reducionista do evento apenas como espao para
disseminao do pecado, de tudo que profano no pior sentido do termo e da exaltao do
corpo seminu como objeto de desejo e promoo. Carnaval tambm isso, mas bem mais.
O brasileiro, com sua autoestima tradicionalmente pouco elevada aquilo que
Nelson Rodrigues chamaria de complexo de vira-latas1 , tende a desmerecer suas riquezas
culturais, em prol de uma cultura importada dos pases do Primeiro Mundo especialmente
dos Estados Unidos e do continente europeu considerada superior, como se tudo que viesse
de fora fosse melhor do que o que pode ser produzido no Brasil.
Diante de tantas mazelas que assolam o pas, com a fome, a falta de sade, a
educao ineficiente e a violncia ocupando o centro dos debates polticos como os principais
anseios da nao, as manifestaes culturais so vistas como menos relevantes, muitas vezes
confundidas como meras diverses, indignas de merecer preocupao e investimento do
Estado. No entanto, fazendo-se uma analogia com o ser humano, poder-se-ia dizer que, se o
territrio do pas o seu corpo fsico, a cultura a sua alma. o que lhe d vida,
personalidade, o que lhe torna nico, dinmico, pulsante. o que lhe d identidade,
elemento essencial para a elevao da autoestima do povo, sem a qual ficamos vulnerveis e
temos todo o processo de amadurecimento e desenvolvimento comprometido.
Neste contexto, o carnaval elemento essencial na formao da identidade
nacional, ao promover a interao de diferentes camadas sociais e interesses econmicos em
volta de um espetculo que mistura e absorve mltiplas fontes de arte e cultura. Os enredos
so um modo agradvel e eficaz de aprender mais sobre o Brasil e o mundo, atravs da
msica, da dana e da beleza inebriante das alegorias e fantasias.
Assim, as escolas constituem e transmitem mensagens para uma multido
multiplicada na transmisso televisiva , elaboradas como narrativas, tornando-se espaos de
comunicao. Porm, diferentemente das mensagens vinculadas nos meios de comunicao
tradicionais comandados por poucos grupos e conduzidos conforme seus interesses as
escolas de samba tm como contexto de produo as comunidades ao redor das quais se
1 A crnica na qual o autor cunha esta expresso est disponvel em:
. Acesso em 21 jan. 2017.
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estabelecem, constitudas por uma maioria de negros de baixa renda. Embora sofram diversas
influncias de poderes polticos e econmicos, elas no deixam de ser um ambiente de
negociao entre essas foras e as comunidades. Reiteradamente representados na mdia como
espaos marcados pelo trfico de drogas, pela pobreza e pela violncia, esses bairros cariocas
encontram no carnaval um dos raros momentos em que podem elevar o orgulho e a
autoestima de seus moradores.
Da mesma forma, os enredos negros servem como um importante espao para
exaltarem a histria e a cultura de muitos desses participantes que, sendo descendentes de
africanos escravizados, ainda convivem com uma realidade marcada pelo preconceito e por
um cenrio econmico desfavorvel. um meio pelo qual podem contar uma histria
diferente daquela exibida cotidianamente nos jornais e, inclusive, atravs dessa
possibilidade que se inserem positivamente na transmisso televisiva. Em um perodo em que
a sociedade discute e repensa suas relaes e tenses, relevante observar as narrativas do
negro elaboradas pelas escolas de samba.
Alm dos cerca de 80 minutos de exibio na avenida, os enredos se alastram por
diversas formas e meios antes e depois do carnaval. A divulgao das sinopses, a escolha do
samba-enredo, a apresentao das fantasias comunidade evento que j foi mais recorrente
em dcadas passadas permitem que os sambistas possam conhecer aos poucos o tema e seu
desenvolvimento ao longo do ano de preparao do desfile. Nas semanas que antecedem e
sucedem a festa, perodo de maior visibilidade para as escolas de samba, uma grande
quantidade de matrias ocupa espao em jornais impressos, sites, programas de rdio e de
televiso, algumas delas dando enfoque s narrativas. Um exemplo a srie Enredo e Samba,
atualmente apresentada pelo carnavalesco e comentarista Milton Cunha no RJTV, telejornal
local da Rede Globo exibido na capital fluminense.
O pblico que vai ao Sambdromo tem ainda acesso a uma revista com o roteiro
bilngue em portugus e ingls dos desfiles, enquanto os telespectadores so orientados
pelos ncoras da transmisso televisiva. Aps o carnaval, as apresentaes podem ser
relembradas em fotos na internet, vdeos no site Youtube e atravs dos sambas-enredo
registrados em CDs que, conforme o sucesso alcanado, embalam festas, blocos e ensaios das
agremiaes. Ou seja, apesar do aspecto efmero do espetculo, cuja preparao de quase um
ano se esgota em poucos minutos, os enredos, sambas, imagens e memrias dos desfiles
escapam ao tempo e espao aos quais estavam circunscritos.
O presente estudo visa dar continuidade monografia apresentada em 2012,
intitulada A transmisso dos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro pela Rede
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Globo. O trabalho de concluso do curso de Comunicao Social da UFJF abordou a histria
do carnaval brasileiro e das escolas de samba cariocas; a transmisso de eventos culturais
pelas emissoras de televiso, com enfoque na histria da cobertura dos desfiles de escola de
samba; por fim, foi realizada uma anlise da transmisso da Rede Globo, no perodo
compreendido entre 2009 e 2012.
Em 2015, ano em que o projeto de pesquisa foi desenvolvido, trs agremiaes do
grupo principal abordaram a temtica afro-brasileira: Unidos do Viradouro, Imperatriz
Leopoldinense e a campe Beija-Flor de Nilpolis. A partir da observao da sucessiva
ocorrncia de enredos sobre tal assunto, coube uma reflexo a respeito do motivo, da
importncia e, principalmente, de como a histria do negro ressignificada nos desfiles
cariocas.
Em um levantamento quantitativo, foram identificados 64 enredos2 que tiveram
como temtica principal o negro seja um personagem, um episdio histrico, uma
localidade ou aspecto cultural no Grupo Especial do Rio de Janeiro, desde o surgimento da
competio, h 85 anos. Oito3 deles se sagraram campees, enquanto vrios outros
permaneceram vivos na memria popular. Em dezenas de outros enredos, referncias
histria ou tradio negra esto presentes em ao menos um de seus captulos muitas vezes
com nfase a essa passagem , de modo que nem sempre possvel classificar tais narrativas
como afro-brasileiras ou no, devido caracterstica hbrida de muitas delas.
A pesquisa foi dividida em dois captulos tericos e um terceiro de anlise. O
primeiro se prope a investigar a origem do carnaval, buscando a conceituao do termo e a
histria dessa festa no Brasil. Observa-se, ainda, os aspectos dionisacos e apolneos que
residem nos desfiles das escolas de samba, permitindo perceber o espetculo como uma
verso brasileira contempornea da tragdia grega, a partir das reflexes de Nietzsche.
O segundo captulo ocupa-se da memria traumtica da escravido, pretendendo-
se refletir de que forma a sua reelaborao atravs dos enredos carnavalescos pode indicar um
esforo para a superao desse trauma. Em seguida, so abordados os vnculos culturais afro-
brasileiros, que resultaram na formao das escolas de samba e contriburam para a promoo
das mesmas em smbolos da identidade nacional. Por fim, compreende-se como os enredos se
2 A contagem inclui os desfiles do ano de 2017.
3 So eles: Quilombo dos Palmares (Salgueiro, 1960), Chica da Silva (Salgueiro, 1963), Festa para um rei negro
(Salgueiro, 1971), A criao do mundo na tradio nag (Beija-Flor, 1978), A grande constelao das estrelas
negras (Beija-Flor, 1983), Kizomba, a festa da raa (Vila Isabel, 1988), fricas, do bero real corte brasiliana
(Beija-Flor, 2007), Um gri conta a histria: um olhar sobre a frica e o despontar da Guin Equatorial.
Caminhemos sobre a trilha de nossa felicidade (Beija-Flor, 2015). Considerando que a pesquisa foi concluda
antes do carnaval 2017, o resultado deste ano no foi acrescentado na contagem.
http://www.galeriadosamba.com.br/carnavais/beija-flor-de-nilopolis/2015/5/http://www.galeriadosamba.com.br/carnavais/beija-flor-de-nilopolis/2015/5/
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configuram como narrativas, traando ainda a trajetria da temtica negra nos desfiles das
agremiaes cariocas.
A anlise se deter em quatro desfiles, sendo um por dcada, a partir da criao do
Sambdromo, na Avenida Marqus de Sapuca, no Rio de Janeiro, em 1984. So eles:
Kizomba, a festa da raa (Vila Isabel, 1988), Orfeu, o negro do carnaval (Viradouro, 1998),
Candaces (Salgueiro, 2007) e Voc semba l... Que eu sambo c! O canto livre de Angola
(Vila Isabel, 2012). Como manifestaes artsticas que so, as escolas de samba absorvem e
refletem em seus enredos os momentos sociais, culturais, econmicos e polticos em que esto
inseridas. Assim, a anlise diacrnica dos enredos pode revelar pensamentos e tendncias de
cada perodo, evidenciando inclusive as modificaes ou reincidncias nas narrativas afro-
brasileiras ao longo do tempo.
Considerando que o julgamento oficial dos desfiles muitas vezes contestado, e
que um belo tema pode no ser o campeo em razo de outros fatores (ou quesitos), a seleo
das apresentaes no se preocupou com o resultado apurado com base no julgamento oficial,
mas sim com o impacto e repercusso que alcanaram, sendo sucesso entre opinio pblica e
crtica especializada. Ainda que a avaliao do jri tenha o seu peso na histria do carnaval,
muitas escolas se sagram campes morais, fixando-se com mais fora na memria da festa
popular do que aquelas que foram consagradas pelo critrio tcnico. Assim, a seleo
contempla tanto o desfile vitorioso da Vila Isabel (1988), quanto outros que, apesar de
realizarem apresentaes emblemticas, obtiveram, oficialmente, colocaes inferiores, caso
de Viradouro (1998, 5 lugar), Salgueiro (2007, 7 lugar) e Vila Isabel (2012, 3 lugar). Num
caso como no outro, o objetivo do estudo alcanar o significado de cada um destes enredos.
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Preta festa santa/ Santa f pag/ A alegria dana
at de manh/ Luminosa arte, cria de Olorum/ Se o
amor se reparte, somos todos um/ [...] Carnaval,
pra gente sobreviver.
(Will Adams, Herry Clestin, Jerry Duplessis,
Wyclef Jean, Roberto Martino, Daniela Mercury
e Marcelo Quintanilha)
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2 CARNAVAL EM PERSPECTIVA
O primeiro passo a ser dado na investigao proposta ser o estudo da origem e do
conceito de carnaval, partindo-se dos primrdios da festa em direo s manifestaes
populares que se desenvolveram na frtil cultura brasileira. Tais expresses festivas
assumiram aspectos peculiares no pas e ganharam contornos ainda mais genunos ao se
organizarem como agremiaes no Rio de Janeiro, assimilando caractersticas prprias da
sociedade carioca.
O resgate das noes de dionisaco e apolneo, coletadas no pensamento original
de Nietzsche e de seus estudiosos, serve de base terica compreenso do carnaval como uma
encenao trgica. Espetculo que, em sua verso contempornea, apresenta-se ao pblico
como desfile de escolas de samba.
2.1 ORIGEM E CONCEITO
As manifestaes de cultura popular so muitas vezes tidas como inferiores dentre
as reas do conhecimento humano. Opondo-se rigidez da cincia exata, aos relatos da
histria oficial que valoriza alguns personagens em detrimento de outras , seriedade com
a qual o homem procura elevar sua racionalidade, s condutas sociais estabelecidas e s
normas morais determinadas pelas instituies religiosas, as festividades de ruptura com
padres impostos no cotidiano podem causar certa resistncia, at entre estudiosos como em
setores da sociedade.
Este pensamento corroborado pelo filsofo Renato Bittencourt (2015, p. 53), ao
afirmar que a tradio filosfica em sua expresso metafsica relegou para um plano inferior
a questo da festividade, imputando-a como algo incompatvel com a seriedade prpria do
homem asctico.
Ainda que pesem certos preconceitos e falta de informao, estudiosos
trabalharam para reverter este quadro, jogando luz sobre o tema. Um dos mais reverenciados
o filsofo russo Mikhail Bakhtin, segundo o qual as festividades tiveram sempre um
contedo essencial, um sentido profundo, exprimiram sempre uma concepo do mundo
(1987, p. 7). Segundo o autor (1987, p. 419), a cultura popular reflete cada poca da histria
mundial.
Ponto de vista semelhante defendido pelo socilogo francs Michel Maffesoli:
para aqum e para alm das formas institudas, que sempre existem e que, s vezes, so
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dominantes, existe uma centralidade subterrnea informal que assegura a perdurncia da vida
em sociedade (MAFFESOLI, 1987, p. 5). Talvez, pela percepo dos autores citados, a
sabedoria contida nas expresses populares seja to profunda ou subterrnea que muitos
pesquisadores desconhecem os seus caminhos.
Na condio de um dos mais expressivos exemplos dessa cultura, o carnaval est
longe de ser um fenmeno simples e de sentido nico (BAKHTIN, 1987, p. 190). Cabe,
portanto, uma melhor explanao sobre a festa.
Segundo o pesquisador Felipe Ferreira (2004, p. 18), as primeiras manifestaes
festivas carnavalizadas, ou seja, com excessos, mascaradas e bebedeiras, de que se tem
notcia razoavelmente segura so as das antigas civilizaes, como a greco-romana e a
mesopotmica. Em Esparta, por exemplo, o treinamento de meninos para se tornarem
cidados se encerrava em uma celebrao em que tinham atitudes invertidas quelas que
deveriam seguir quando adultos: fantasiados de mulher, de velho ou de stiro, os rapazes
realizavam encenaes obscenas ou humorsticas, com muita bebedeira e cantorias
(FERREIRA, F., 2004, p. 18).
J na Era Crist, outros divertimentos populares se fizeram famosos, como o culto
deusa sis e ao boi pis, no Antigo Egito, e as sacias, na Babilnia.
A celebrao das sacias babilnicas [...] durava cinco dias, nos quais, segundo
relatos da poca, a sociedade invertia seus valores, com os escravos dando ordens a
seus donos e um prisioneiro sendo escolhido para substituir o rei. Durante o perodo
festivo, o novo rei exibia-se no trono, comia as mais finas iguarias e dormia com
as esposas reais. No ltimo dia o escolhido era despojado de suas roupas, chicoteado
e, por fim, enforcado. Um triste fim que marcava o retorno da sociedade s regras de
conduta (FERREIRA, F., 2004, p. 20).
Conforme relata Felipe Ferreira (2004, p. 19-20), outras festas da Antiguidade
greco-romana que se destacaram foram as dionisacas, as lupercais e as saturnais. As
dionisacas ocorriam em maro, quando mascarados cobertos com peles e galhos, disfarados
de animais, desfilavam em procisso celebrando o deus Dionsio. As lupercais aconteciam em
fevereiro, em homenagem ao deus protetor dos rebanhos, chamado de P ou Luperco. Nelas,
sacerdotes do deus corriam pela cidade com pouca roupa, batendo com ganhos de rvores em
quem estivesse em seu caminho, acreditando assim trazer fecundidade s mulheres mais
jovens e facilitar o parto das grvidas. Um grande cortejo com grupos de mascarados e
charretes enfeitadas dava prosseguimento ao evento. J as saturnais eram dedicadas ao deus
da agricultura e das sementes, Saturno. Comemorava-se em dezembro, com direito a trocas de
presentes, cantos e danas, tudo regado a muita bebida e comida. Os participantes
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acreditavam que o momento permitia regressar, ainda que por um momento, idealizada
idade do ouro, um retorno mtico a essa poca feliz e desaparecida, poca de igualdade, de
abundncia, de felicidade (MINOIS, 2003, p. 97). F. Ferreira (2004, p. 20) acrescenta:
No por mera coincidncia que essas festas que se davam aos deuses Saturno,
Luperco e Dionsio aconteciam entre dezembro e maro, perodo em que hoje
brincamos o Carnaval, visto que os dias em torno da passagem do ano sempre foram
considerados propcios a vrios tipos de festejos por seu carter limtrofe e ambguo,
marcando o final de um ciclo solar e o incio de um novo tempo.
Entretanto, o autor (FERREIRA, F., 2004, p. 16-17) contesta a viso de que tais
festejos seriam as primeiras celebraes do carnaval, apesar das semelhanas e de possveis
contribuies formatao da folia tal como ficou conhecida.
No d pra se afirmar que j existia Carnaval no Egito Antigo ou nas civilizaes
greco-romanas, como muita gente boa j escreveu por a. Explicando melhor: As
festas em homenagem deusa sis egpcia ou ao deus Baco romano, entre outras
tantas, no so festas carnavalescas nem percussoras somente do Carnaval, mas sim
de todos os tipos de festas pblicas populares que o mundo conheceu depois delas,
incluindo as festas juninas, os rodeios e at mesmo o Natal ou o Halloween. Ou seja,
muitas dessas festas possuem uma origem em comum mas no so necessariamente
Carnavais.
Segundo o historiador Andr Diniz (2008, p. 15-16), o carnaval surgiu, de fato,
como uma criao indireta da Igreja Catlica.
No ano 604, o papa Gregrio I ordenou que, durante um determinado perodo, os fiis
deixassem de lado as satisfaes, a vidinha cotidiana de pecados e prazeres do corpo e
se dedicassem ao enriquecimento do esprito. O perodo de abdicao, chamado
Quaresma, duraria 40 dias lembrando os 40 dias de jejum e privaes passados por
Jesus no deserto. Sculos depois, mais especificamente no ano de 1091, a Igreja
resolveu precisar a data da Quaresma. Como havia o costume de se marcar a testa dos
fiis com as cinzas de uma fogueira em sinal de penitncia, deu-se o nome de Quarta-
feira de Cinzas ao incio do perodo do abandono dos prazeres, um ciclo de meditao
sobre Jesus e sua ressurreio que seria festejada 40 dias depois, no domingo de
Pscoa. Ora, a perspectiva de ficar muitos dias sem comer carnes e gorduras, visto
que durante a Quaresma os fiis deveriam comer apenas peixes, fez com que a
sociedade catlica se organizasse para aproveitar ao mximo os ltimos dias de
prazeres mundanos antes de dar adeus carne ou, em italiano, carnevale. Ao criar
a Quaresma, a Igreja catlica instituiu o carnaval.
Com os anos, as festas realizadas no perodo do adeus carne foram adquirindo
contornos cada vez mais exagerados e descontrolados. A populao aproveitava para fazer
no apenas o que era proibido durante a Quaresma, mas tambm o que no devia ou podia
fazer no resto do ano.
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As pessoas aproveitavam-se dos dias de Carnaval para revelar seus desejos ocultos,
acertar as contas com os vizinhos, ridicularizar os inimigos, declarar seu amor
secreto por algum e todas essas coisas que fazemos quando perdemos o controle e a
censura da vida diria (FERREIRA, F., 2004, p. 27-28).
Diante da rigidez e da autoridade da Igreja Catlica durante a Idade Mdia, a
viso cmica no tinha espao dentro do espao sagrado da religio, encontrando, entretanto,
terreno frtil para se desenvolver sob domnio popular. Graas a isso, a cultura do riso
distinguiu-se por seu radicalismo e sua liberdade excepcionais, por sua impiedosa lucidez.
(MINOIS, 2003, p. 156).
Apesar da quebra radical de regras impostas pela religio, a Igreja percebeu a
importncia de, mesmo que extra-oficialmente, apoiar o carnaval. A instituio entendeu que
as liberdades carnavalescas eram o furo no barril de vinho que permitia sarem os gases e
evitava sua exploso (FERREIRA, F., 2004, p. 30), ou seja, uma vlvula de escape
necessria para a populao suportar a penria de uma vida repleta de provaes. Mostrando-
se compreensiva aos excessos durante os dias de carnaval, a Igreja poderia exigir com maior
rigor o bom comportamento de seus fiis no restante do ano, conforme atesta carta circular da
Faculdade de Teologia de Paris, de maro de 1444.
[...] a fim de que a tolice (a bufonaria), que a nossa segunda natureza e parece inata
ao homem, possa ao menos uma vez por ano manifestar-se livremente. Os tonis de
vinho explodiriam se de vez em quando no fossem destapados, se no se deixasse
penetrar um pouco de ar. Ns, os homens, somos tonis mal-ajustados que o vinho
da sabedoria faria explodir, se se encontrasse sempre na incessante fermentao da
piedade e do temor divino. preciso dar-lhe ar, a fim de que no se estrague. Por
isso permitimo-nos alguns dias de bufonaria (a tolice) para em seguida regressar
com duplicado zelo ao servio do Senhor (BAKHTIN, 1987, p. 65).
O prprio Papa Leo XIII escreveria uma declarao, demonstrando a aceitao
da Igreja Catlica: considerando que a Igreja constituda por um elemento divino e outro
humano, devemos expressar a este ltimo com a maior franqueza e honestidade possvel, pois,
como diz o livro de Jeov, Deus no tem a menor necessidade da nossa hipocrisia
(BAKHTIN, 1987, p. 66).
A atitude do Papa ajudava a evitar algum tipo de revolta popular contra as leis
impostas pela Igreja, afinal a prpria desordem absoluta do carnaval desperta na populao a
conscincia da necessidade de uma ordem.
Na Idade Mdia, o riso carnavalesco antes um fator de coeso social que de
revolta. Derriso ritualizada, o Carnaval a necessria expresso cmica de uma
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alternativa improvvel, literalmente louca, o inverso burlesco que s faz confirmar a
importncia de valores e hierarquias estabelecidos (MINOIS, 2003, p. 168).
Com o consentimento da Igreja, o carnaval estava livre para se desenvolver em
diversas brincadeiras no perodo medieval. Entre elas, a curiosa batalha entre o gordo
bonacho Senhor Carnaval e a magra e triste Dona Quaresma. Conforme conta Felipe
Ferreira (2004, p. 32-33), sua disputa era um verdadeiro smbolo do significado associado s
festas do carne vale que comeavam a se organizar na Idade Mdia.
Na obra A cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento, Bakhtin analisa,
atravs da obra do escritor francs Franois Rabelais, as manifestaes populares que
surgiram nas ruas nesta poca.
Estabelecendo comparaes, o autor descreve as caractersticas da festa,
considerando que o carnaval a segunda vida do povo, sua vida festiva, apoiada sobre o
princpio do riso.
Os espectadores no assistem ao carnaval, eles o vivem, uma vez que o carnaval pela
sua prpria natureza existe para todo o povo. Enquanto dura o carnaval, no se
conhece outra vida seno a do carnaval. [...] a prpria vida que representa, e por
um certo tempo o jogo se transforma em vida real. Essa a natureza especfica do
carnaval, seu modo particular de existncia (BAKHTIN, 1987, p. 7).
Havia uma distino clara entre a festa oficial, responsvel por reforar a ordem
vigente e a festa popular, que se constitua como uma pardia dessa mesma ordem, revirando
pelo avesso o mundo e suas regras preestabelecidas.
[...] a festa oficial olhava apenas para trs, para o passado de que se servia para
consagrar tal ordem social presente [...]: hierarquias, valores, normas, tabus
religiosos, polticos e morais correntes. A festa era o triunfo da verdade pr-
fabricada, vitoriosa, dominante, que assumia a aparncia de uma verdade eterna,
imutvel e peremptria. Por isso, o principio da festa s poderia ser da serenidade
sem falha, e o princpio cmico lhe era estranho. Ao contrrio da festa oficial, o
carnaval era o triunfo de uma espcie de liberao temporria da verdade dominante
e do regime vigente, de abolio provisria de todas as relaes hierrquicas,
privilgios, regras e tabus. Era a autntica festa do tempo, a do futuro, das
alternncias e renovaes. Opunha-se a toda perpetuao, a todo aperfeioamento e
regulamentao, apontava para um futuro ainda incompleto (BAKHTIN, 1987, p. 8-
9).
Assim, o povo se inclui no mundo em evoluo, tornando-se agente ativo de uma
histria em que frequentemente relegado ao posto de coadjuvante, quando no de mero
figurante. Faz tudo isso sem pegar em armas, mas atravs do poderoso artifcio do riso,
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matria primria do carnaval, que tem o poder de degradar, rebaixar e ridicularizar toda
verdade inquestionvel e a rigidez das normas e condutas.
O riso carnavalesco em primeiro lugar patrimnio do povo [...]; todos riem, o riso
geral; em segundo lugar, universal, atinge a todas as coisas e pessoas
(inclusive as que participam no carnaval); o mundo inteiro parece cmico e
percebido e considerado no seu aspecto jocoso, no seu alegre relativismo; por
ltimo, esse riso ambivalente: alegre e cheio de alvoroo, mas ao mesmo tempo
burlador e sarcstico, nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente
(BAKHTIN, 1987, p. 10).
So muitos os elementos que fazem emergir o riso no carnaval: a licena, a
inverso, a mscara, o vinho. [...] O riso retira o indivduo do seu cotidiano, transgride os
limites e as regras, [...] aniquila o mundo real, anula o tempo (MINOIS, 2003, p. 99).
Bittencourt (2015, p. 57) relembra que essa quebra de barreiras exige uma coragem que o
povo adquire em conjunto, afinal agir com alegria em uma sociedade que valoriza o srio
pode se tornar [...] uma afronta aos pretensos bons costumes, especialmente quando revela a
hipocrisia daqueles que clamam por pureza, enquanto escondem suas misrias e escrias
existenciais.
Para Michel Maffesoli (1987, p. 37), a unio tecida pela multido nas ruas, que
lhe d respaldo para rir e, assim, se livrar de seus fantasmas, seria a resposta animal, no
consciente do querer viver social. Espcie de vitalismo que sabe, atravs do saber
incorporado, que a unicidade a melhor resposta ao domnio da morte. Diante da certeza da
morte inevitvel, o que resta ao indivduo reafirmar a vida no presente, atravs do riso. E ao
fazer isso em conjunto, vence a prpria morte. A imortalidade do povo garante o triunfo do
futuro (BAKHTIN, 1987, p. 223).
De acordo com Bakhtin (1987), vida e morte no se opem, sendo apenas
diferentes estgios de um mesmo conjunto vital. A morte necessria para que haja novo
nascimento, essencial para a renovao da vida. Em ltima instncia, o prprio mundo que
morre e, em seguida, d luz. Por isso, no realismo grotesco, a morte no possui um carter
negativo e no implica medo.
Assim como a morte, tudo o que temvel transforma-se num alegre
espantalho (BAKHTIN, 1987, p. 79), sugerindo uma superao deste sentimento.
Considerando que o medo era instrumento fortemente presente na vida do homem medieval
seja o medo gerado pelas foras da natureza, seja o do poder divino, ou das autoridades
polticas e religiosas , essa vitria era bastante significativa.
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Ao derrotar esse medo, o riso esclarecia a conscincia do homem, revelava-lhe um
novo mundo. Na verdade, essa vitria efmera s durava o perodo da festa e era
logo seguida por dias ordinrios de medo e de opresso; mas graas aos clares que
a conscincia humana assim entrevia, ela podia formar para si uma verdade
diferente, no oficial, sobre o mundo e o homem, que preparava a nova
autoconscincia do Renascimento (BAKHTIN, 1987, p. 78).
Bakhtin (1987, p. 183) e Maffesoli (1987, p. 76) concordam que o tempo alegre
do carnaval no alheio aos episdios, aes e questes que promovem o terror e o
sofrimento, sendo o trgico elemento relevante dentro da festa. Bittencourt (2015, p. 55)
observa essa confluncia:
Desprovida da celebrao festiva, a vida humana correria o risco de sucumbir ao
pessimismo prtico, ao amargor da existncia desprovida de sentido tico, pois a
constatao de que tudo caminha para a inevitvel finitude pode gerar tanto o
desespero como a passividade do homem; nessas condies, a experincia da festa
no se configura como um desvio de olhar em relao aos problemas inevitveis da
condio humana, mas a capacidade criativa de se integrar essas situaes adversas
na alegria efusiva da celebrao, inclusive ironizando-as como circunstncias
naturais com as quais devemos aprender a conviver para que sejamos mais felizes.
Por conseguinte, o festivo de maneira alguma alheio ao esprito trgico, sendo
talvez uma das suas ramificaes.
A importncia do riso seria tamanha que leva Bakhtin (1987, p. 59) a refletir que
o riso, dom de Deus, unicamente ao homem concedido, aproximado do poder do homem
sobre a terra, da razo e do esprito que apenas ele possui. O riso, portanto, purifica o srio,
liberta a conscincia, o pensamento e a imaginao, permitindo ao indivduo enxergar outras
possibilidades de mundo e de vida e se tornando um forte instrumento contra a ignorncia, a
mentira e o medo. Da que uma certa carnavalizao da conscincia precede e prepara
sempre as grandes transformaes, mesmo no domnio cientfico (BAKHTIN, 1987, p. 43).
Para Bakhtin (1987, p. 9), o abandono das hierarquias tpico deste movimento
gerou na praa pblica um tipo particular de comunicao, com vocabulrio e gestual
peculiares, francos e sem restries, que aboliam toda a distncia entre os indivduos em
comunicao, liberados das normas correntes de etiqueta e decncia. Rabelais teria se
baseado nessa linguagem original, intitulada realismo grotesco por Bakhtin, para desenvolver
seus livros.
Uma das principais caractersticas do realismo grotesco o destaque positivo
dado aos elementos material e corporal, e a percepo destes como uma grande massa popular
indivisvel, csmica, universal e repleta de vida.
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O porta-voz do princpio material e corporal no aqui nem o ser biolgico isolado
nem o egosta indivduo burgus, mas o povo, um povo que na sua evoluo cresce e
se renova constantemente. Por isso, o elemento corporal to magnfico, exagerado
e infinito. Esse exagero tem carter positivo e afirmativo. O centro capital de todas
essas imagens da vida corporal e material so a fertilidade, o crescimento e a
superabundncia. [...] A abundncia e a universalidade determinam por sua vez o
carter alegre e festivo (no cotidiano) das imagens referentes vida material e
corporal. O princpio material e corporal o princpio da festa, do banquete, da
alegria, da festana (BAKHTIN, 1987, p. 17).
O aspecto corporal consiste na valorizao dos rgos sexuais, do ventre e dos
orifcios, relacionando-os satisfao das necessidades biolgicas e aos mecanismos que
interligam o indivduo natureza: o sexo, a gravidez, o parto, os atos de comer e beber. O
corpo humano apresenta-se sempre como incompleto, necessitando se integrar ao ambiente
externo na busca por sua completude (BAKHTIN, 1987, p. 23).
O comer e o beber so uma das manifestaes mais importantes da vida do corpo
grotesco. As caractersticas especiais desse corpo so que ele aberto, inacabado,
em interao com o mundo. no comer que essas particularidades se manifestam da
maneira mais tangvel e mais concreta: o corpo escapa s suas fronteiras, ele engole,
devora, despedaa o mundo, f-lo entrar dentro de si, enriquece-se e cresce s suas
custas. [...] O homem degusta o mundo, sente o gosto do mundo, o introduz no seu
corpo, faz dele uma parte de si. [...] Esse encontro com o mundo na absoro de
alimento era alegre e triunfante. O homem triunfava do mundo, engolia-o em vez de
ser engolido por ele: a fronteira entre o homem e o mundo apagava-se num sentido
que lhe era favorvel (BAKHTIN, 1987, p. 245).
J a valorizao do material, em detrimento das aspiraes espirituais, denota
outro trao marcante do grotesco carnavalesco, o rebaixamento. Com ele, tudo o que
superior, elevado, ideal e abstrato aproximado da terra, das coisas comuns, das hierarquias
inferiores, da parte de baixo do corpo. A degradao que provoca esse rebaixamento,
colocando tudo em igual patamar, tem sentido regenerador e positivo. Isso porque tal
fenmeno oferece outro olhar sobre o mundo, abre perspectiva para outras possibilidades e
realidades. Revela um universo ambivalente e contraditrio, repleto de relatividade, que
habitualmente est encoberto pela capa da imutabilidade e de certezas fabricadas. O tempo,
assim, admite o carter de evoluo, contra a atemporalidade prevalecente na Idade Mdia,
que resistia a qualquer forma de mudana no pensamento.
Por outro lado, so exatamente aos fins superiores da existncia que se direcionam
as festas carnavalescas, tais como a igualdade, a liberdade, universalidade e abundncia
(MINOIS, 1987, p. 156-157). Ou seja, rebaixa-se a superioridade moral, elaborada pela ordem
vigente, enquanto se elevam os fins essencialmente ticos e humanos.
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Ainda dentro dessa perspectiva, a festa carnavalesca promove a reconciliao da
natureza com seu filho perdido, o homem (BITTENCOURT, 2015, p. 55). Isso porque o
indivduo se descola do comportamento social imposto, atrs do seu elo originrio.
Conectado ideia de rebaixamento, est tambm a caracterstica de inverso que
frequentemente se faz presente nas manifestaes carnavalescas.
Outro elemento de grande importncia era a permutao do superior e do inferior
hierrquicos: o bufo era o sagrado rei; durante a festa dos loucos, procedia-se
eleio de um abade, de um bispo e de um arcebispo para rir, e nas igrejas sob a
autoridade direta do papa, de um papa para rir. Esses dignatrios celebravam uma
missa solene; eram numerosas as festas nas quais se elegiam obrigatoriamente reis e
rainhas efmeros (por um dia), por exemplo o dia da festa de Reis ou de So
Valentim. A eleio desses reis para rir era particularmente difundida na Frana
onde quase toda festividade tinha seu rei e sua rainha. A mesma lgica topogrfica
presidia ideia de pr as roupas do avesso, as calas na cabea, e eleio de reis e
papas para rir: era preciso inverter o superior e o inferior, precipitar tudo que era
elevado e antigo, tudo que estava perfeito e acabado, nos infernos do baixo
material e corporal, a fim de que nascesse novamente depois da morte (BAKHTIN,
1987, p. 7).
A inverso, o rebaixamento e o riso, entre outros aspectos da carnavalizao e do
realismo grotesco, so realizados com o auxlio de recursos, tais como a caricatura, a pardia,
a fantasia e o uso de mscaras. A fantasia responsvel pela renovao no apenas da
vestimenta, mas tambm do personagem social (BAKHTIN, 1987, p. 7). Aquele que se
caracteriza para um novo papel sente-se vontade para represent-lo, criando o clima
necessrio para que o novo personagem seja incorporado, comandando suas atitudes a partir
de ento. interessante observar que, tradicionalmente, a fantasia simboliza uma realidade
bem diferente daquela que o folio possui no restante do ano. Afinal, um dos sentidos do
carnaval exatamente poder ser aquilo que no se , e comportar-se como no se pode
comportar na vida prosaica (BITTENCOURT, 2015, p. 54).
Cumprindo papel semelhante, a mscara favorece na incorporao do jogo de
identidades, onde as identidades pessoais e sociais se confundem, se misturam e se dissolvem
(DUARTE, 2015). Ao mesmo tempo em que esconde o rosto do folio, a mscara pode
revelar sentimentos e aspiraes, ou seja, enquanto encobre o fsico, os aspectos mais
profundos do homem podem ser evidenciados pela misteriosa mscara.
A mscara traduz a alegria das alternncias e das reencarnaes, a alegre
relatividade, a alegre negao da identidade e do sentido nico, a negao da
conscincia estpida consigo mesmo; a mscara a expresso das transferncias,
das metamorfoses, das violaes das fronteiras naturais, da ridicularizao, dos
apelidos; a mscara encarna o princpio de jogo da vida, est baseada numa peculiar
inter-relao da realidade e da imagem, caracterstica das formas mais antigas dos
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ritos e espetculos. O complexo simbolismo das mscaras inesgotvel. Basta
lembrar que manifestaes como a pardia, a caricatura, a careta, as contores e as
macaquices so derivadas da mscara. na mscara que se revela com clareza a
essncia profunda do grotesco (BAKHTIN, 1987, p. 35).
De acordo com Bakhtin, a mscara auxilia na elaborao da caricatura e da
pardia. Segundo Carlos Ceia (2015a), caricaturar sinnimo de exagerar e distorcer com o
fim de obter um efeito cmico ou parodstico. As imagens diferenciam-se da esttica
acabada, preestabelecida e perfeita da vida cotidiana para assumir contornos disformes,
ambivalentes, por vezes monstruosos, mas sem nunca abrir mo de provocar o riso, e no o
medo. A pardia, por sua vez, a imitao deformada de algo, com a inteno de ridicularizar
e subverter o sentido original (CEIA, 2015b). No carnaval, a prpria vida e o mundo oficial
que so parodiados, conforme Minois (1987, p. 156) e Bakhtin (1987, p. 35).
O consumo alcolico auxilia o celebrante a sair de si para ser possudo pelo
personagem que assume no transe carnavalesco. Passa-se, assim, por um processo de
despersonalizao. Ao se perder a sua antiga funo social e adquirir nova representao, em
conformidade com o aspecto coletivo da festa popular, tambm se sofre um processo de
desindividualizao (MAFFESOLI, 1987, p. 9).
Maffesoli considera a desindividualizao uma etapa essencial para o tribalismo,
que se constitui em um modo de socialidade. A tribo a que ele se refere so agrupamentos
humanos que formam comunidades emocionais, cujos membros percebem a relevncia de
cada um dentro dessa estrutura, gerando um forte elo de solidariedade. Constitui-se como tal
muito mais pela contaminao do imaginrio coletivo do que por uma forma racional de
persuaso.
[...] a emoo partilhada e a comunalizao aberta que suscita essa multiplicidade
de grupos, que chegam a constituir uma forma de lao social, no fim das contas, bem
slido. [...] Permanncia e instabilidade sero os dois plos em torno dos quais se
articular o emocional (MAFFESOLI, 1987, p. 18).
Misto de objetividade e subjetividade, a sensibilidade entronizada no grupo
produz no uma histria, mas um mito, que possui potencial de agregao e exprime o gnio
coletivo. Torna-se, pois, uma forma de conhecimento.
Com efeito, podemos dizer que [o imaginrio coletivo] toma as mais diversas
formas. s vezes se manifesta de maneira macroscpica e informa os grandes
movimentos de massa, as diversas cruzadas, revoltas pontuais, ou revolues
polticas e econmicas. s vezes, pelo contrrio, ele se cristaliza de maneira
microscpica e vai irrigar em profundidade a vida de uma multiplicidade de grupos
sociais. s vezes, finalmente, ocorre uma continuidade entre este ltimo processo
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(esotrico) e as manifestaes gerais (exotricas) antes indicadas (MAFFESOLI,
1987, p. 28).
O carter aberto, dinmico e instvel da comunidade emocional oscilando entre
a vivacidade e o conformismo, alienao e resistncia, banalidade e exceo, morosidade e
excitao, efervescncia e repouso tende a desvalorizar este conhecimento, diante da ordem
moral que privilegia a racionalidade. Tal conhecimento elabora, pois, uma espcie de
moralidade diferente, que Maffesoli define como uma experincia tica. Segundo ele, a
histria vai dignificar uma moral (uma poltica): o espao, por sua vez, vai favorecer uma
esttica e produzir uma tica (MAFFESOLI, 1987, p. 22).
O espao, no caso do carnaval, so essencialmente as ruas, em todo canto onde as
pessoas se aglomeram e promovem a festa. A tica se constitui da experincia vivida em
comum, incorporando os mais variados elementos da vida humana, inclusive o trgico, que
serve de subsdio para o surgimento da solidariedade. Maffesoli considera que a esse
fenmeno popular se deve a perdurncia societal, que consiste na capacidade de resistncia
das massas.
Esta capacidade, decerto no consciente. Existe incorporada. [...] Eu arriscaria
dizer que existe no povo um saber de fonte segura, uma direo certa, [...] que
faz dele uma entidade natural. [...] Viso meio mstica, mas a nica que permite
explicar que atravs das carnificinas e das guerras, das migraes e das
desaparies, dos esplendores e das decadncias, o animal humano continue a
prosperar (MAFFESOLI, 1987, p. 50).
A polissemia e, como diria Bakhtin, a relatividade e a ambivalncia, presentes nas
manifestaes da multido nas ruas serviriam de adubo para o futuro. A efervescncia
desordenada, incompleta, inconsciente e at ingnua tm um carter positivo: S a
imperfeio sinal de vida. A perfeio sinnimo de morte (MAFFESOLI, 1987, p. 56).
Mais ainda, a multiplicidade de sentidos que se espalham pela tribo carnavalesca
podem servir como um ensaio, uma antecipao para o que vir adiante ganhar corpo na
sociedade como uma nova realidade.
[...] so os valores tribuais que, em certos momentos, caracterizam uma poca. Com
efeito, estes valores podem cristalizar por atacado o que em seguida vai difractar-se
no conjunto do corpo social. O momento tribal pode ser comparado ao perodo de
gestao: alguma coisa aperfeioada, provada, experimentada, antes de decolar
para uma expanso maior. [...] o vivido e a experincia partilhada podem ser o fogo
depurador do processo alqumico que permite a transmutao (MEFFESOLI, 1987,
p. 29-30).
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Maffesoli (1987, p. 41) cita o Japo e o Brasil como exemplos de pases que
possuem uma destacada vitalidade por no fazerem do individualismo um fundamento para o
seu desenvolvimento. Embora possuam caractersticas bastante distintas, as duas naes
seriam polos de atrao do imaginrio coletivo. Da mesma forma, o antroplogo Roberto
DaMatta (1997, p. 18) observa o comportamento diferenciado entre brasileiros e americanos.
Questiona o porqu da sociedade americana ter como ideologia iguais, mas separados,
enquanto os brasileiros escolhem ser diferentes, porm juntos. Tambm indaga por que
temos uma sociedade to rica em leis e decretos racionais, mas que espera pelo seu D.
Sebastio4 (1997, p. 17).
Os valores tribais apresentados por Maffesoli so realados, fortalecidos e
perpetuados em rituais. O ritual serve como forma poderosa de reforar, reproduzir, atualizar
ou inverter as estruturas de uma sociedade. Estabelecendo uma dialtica entre o cotidiano e o
extraordinrio, ele responde s necessidades humanas primrias e sugere o surgimento de uma
cultura. O mito e o ritual seriam, deste modo, dramatizaes ou maneiras cruciais de chamar
ateno para certos aspectos da realidade social, facetas que, normalmente, esto submersas
pelas rotinas, interesses e complicaes do cotidiano (DAMATTA, 1997, p. 42).
O ritual se estabelece como uma potente forma de tomada de conscincia do
mundo, transformando um elemento natural em um fenmeno social. Roberto DaMatta (1997,
p. 18-29) define os rituais como zonas de encontro e mediao.
[...] zonas onde o tempo fica suspenso e uma nova rotina deve ser repetida ou
inovada, onde os problemas so esquecidos ou enfrentados; pois aqui suspensos
entre a rotina automtica e a festa que reconstri o mundo tocamos o reino da
liberdade e do essencialmente humano. nessas regies que renasce o poder do
sistema, mas tambm aqui que se pode forjar a esperana de ver o mundo de cabea
para baixo. Em outros termos, o domnio dos ritos e das formas paradigmticas que
inventam e sustentam personagens culturais a esfera daquilo que gostaramos que
estivesse situado ao longo ou mesmo fora do tempo. Da por que os rituais servem,
sobretudo na sociedade complexa, para promover a identidade social e construir seu
carter. como se o domnio ritual fosse uma regio privilegiada para se penetrar no
corao cultural de uma sociedade, na sua ideologia dominante e no seu sistema de
valores.
A antroploga Maria Laura Cavalcanti (1999, p. 77) denomina o tempo do ritual
carnavalesco como tempo estrutural, que tem como caracterstica ser sincrnico, repetitivo,
4 D. Sebastio foi rei de Portugal entre 1568 e 1578, quando desapareceu na batalha de Alccer-Quibir, em
Marrocos. O posterior domnio de Espanha em Portugal gerou o sebastianismo, o mito de que o rei voltaria
para libertar o povo portugus. Essa crena chegou ao Brasil, manifestando-se na cultura popular em diversas
regies do pas, at mesmo no Arraial de Canudos, onde seus moradores acreditavam na volta de D. Sebastio
para derrubar a Repblica. O mito e suas lendas foram retratados em vrios enredos das escolas de samba, como
na Mangueira (1995), Grande Rio (2002), Mocidade (2008) e Beija-Flor (2012).
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com contedos cognitivos e afetivos. um tempo social, fortemente ligado experincia vital
e viso de mundo de uma sociedade ou civilizao. A percepo deste tempo insere o ritual
no calendrio seguido por determinada civilizao e se diferencia claramente dos outros
momentos do ano por sua atividade social concreta.
H seqncias repetitivas e estereotipadas; e h tambm, mesmo nessa dimenso
invariante que padroniza o rito, componentes variveis, abertos a sentidos
contextuais. Por isso, todo ritual tem muitos nveis de sentidos superpostos, e requer
mltiplos planos de anlise. Ao valorizar a dimenso formal padronizada,
articulando-a a contextos culturais e histricos, essa formulao instigante
(CAVALCANTI, 1999, p. 80).
Maffesoli ressalta tambm o carter repetitivo do ritual, considerando que tanto o
evento como o grupo que o constitui asseguram assim a sua permanncia.
Como sabemos, [o ritual] no , propriamente, teolgico, isto , orientado para um
fim, pelo contrrio, ele repetitivo e, por isso mesmo, d segurana. Sua nica
funo reafirmar o sentimento que um dado grupo tem de si mesmo. [...] O ritual
exprime o retorno do mesmo [...] lembra comunidade que ela um corpo. [...] a
comunidade esgota sua energia na sua prpria criao. O ritual, na sua repetitividade
o indcio mais seguro desse esgotamento. Mas, fazendo isto, assegura a
perdurncia do grupo (MEFFESOLI, 1987, p. 25).
Portanto, misturando-se multido nas ruas, o homem adquire outro papel social.
O contato com pessoas de origens, classe, crenas e idades variadas mais que nunca lhe
parece natural, afinal ali todos representam outros personagens, ao mesmo tempo em que em
nenhum outro lugar revelam com tanta clareza suas verdades. Tudo possvel nesse jogo de
identidades, jogado e brincado em coletividade. Passa ento a ser e se sentir parte do todo, do
povo, essa entidade que garante a imortalidade e, com ela, o futuro. A bebida, o transe e o
ritual revelam outra percepo do mundo, insanamente lcido. O conhecimento popular torna
a moral risvel e tira a tica humana das profundezas da terra, onde est guardada a essncia
da vida.
Entretanto, dentro de seu conceito de carnaval, Bakhtin considera que a essncia
da festa foi rigorosamente modificada, especialmente pelas elites e pela burguesia, que a
transformaram conforme seus gostos e interesses, retirando dela a natureza espontnea e a
formatando com intenes artsticas e finalidades precisas.
Ao evoluir para as mascaradas de corte e ao ligar-se a outras tradies, essas formas
iniciam [...] uma degenerescncia estilstica: primeiro aparecem aspectos puramente
decorativos e alegricos abstratos que lhe so estranhos; a obscenidade ambivalente,
derivada do baixo material e corporal, degenera em uma frivolidade ertica e
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superficial. O esprito popular e utpico, a nova sensao histrica comeam a
desaparecer (Bakhtin, 1987, p. 89).
O autor considera, porm, que a festa pode se desnaturalizar, empobrecer, mas
no desaparecer: o princpio da festa popular do carnaval indestrutvel (BATKHTIN,
2004, p. 30). Acrescenta que o carnaval revela-nos o elemento mais antigo da festa popular,
e pode-se afirmar sem risco de erro que o fragmento mais bem conservado desse mundo to
imenso quanto rico (BAKHTIN, 1987, p. 189).
Para Felipe Ferreira, Bakhtin teria misturando os conceitos de carnaval e o de
carnavalizao, ao se importar menos com a data determinada a partir do calendrio cristo
e mais com as caractersticas tpicas das brincadeiras populares da Idade Mdia, denominando
carnaval as manifestaes que inclussem grosserias, inverses sociais, mudana de papel,
exageros e outras liberdades.
O esprito da carnavalizao, estudado por Bakhtin, pode se manifestar em qualquer
poca do ano e em qualquer lugar, seja nas comemoraes do final da Segunda
Guerra Mundial na Europa ou na festa do Purim entre os judeus. J o Carnaval
uma coisa diferente e se apresenta como uma festa com data determinada [...] Em
suma, no Carnaval existe carnavalizao, mas nem toda carnavalizao um
Carnaval (FERREIRA, F., 2004, p. 24).
F. Ferreira considera que o termo carnaval se relaciona ao perodo do ano em que
a festa acontece e no s suas caractersticas a partir do consenso dos diversos grupos
sociais com o estabelecimento do momento festivo. Assim, desfaz a ideia de que existe um
modelo e sentido nico para a folia anual.
O Carnaval no deve ser considerado apenas como tempo da inverso, mas sim
como uma tenso criadora que acontece num momento especialmente reservado
para esse tipo de disputa. Abrem-se as portas da folia para tradies e novidades,
para antigos formatos e novas propostas, para a velha baiana e os novos repiques,
para os antigos deboches numa praa medieval europia e para os sons eltricos dos
trios nas ruas de Salvador. Isenta da obrigao de ter um sentido preestabelecido, a
festa carnavalesca ocupa livremente as ruas e os sales daqueles centros urbanos que
podem exibir a felicidade de se entregar folia uma vez por ano (FERREIRA, F., 2004, p. 71).
Assim, as vrias modificaes e variaes no modo de brincar o carnaval no
representam exatamente o seu fim ou uma deturpao de sua essncia, uma vez que no existe
uma regra exata a ser seguida. F. Ferreira (2004, p. 69) reala ainda a relevncia do conflito
que se estabeleceu ao longo do tempo entre as diferentes classes sociais e expresses culturais
pelo domnio da festa, o que, segundo o autor, seria o que oferece o seu sentido.
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O fato que as mltiplas tribos carnavalescas que se consolidaram nas mais
diferentes pocas e sociedades do uma amostra clara de como uma manifestao popular
como o carnaval , sem exagero, uma necessidade do homem. Desfeito o vu do preconceito,
da condenao moral e religiosa, da simplificao e da ignorncia, cabe observar em seguida
como a festa chegou ao Brasil e aqui se desenvolveu, a ponto de nos tornarmos conhecidos
como o pas do carnaval.
2.2 A FOLIA BRASILEIRA
Diz o antroplogo Hermano Vianna (2007 apud DINIZ, 2008, p. 11) que o
carnaval [...] uma obra aberta, voraz, em sua incansvel vontade de carnavalizar o resto do
mundo. Dominado por essa fora sedutora, o Brasil tambm se permitiu carnavalizar, como
assinala o estudioso Fred Ges (2016, p. 1).
O carnaval est to fortemente ligado gente brasileira que, no exagerado
afirmar, ser ele um dos nossos mais marcantes traos de identificao. No que
tenha se originado aqui, mas, sem dvida, foi por ns reinventado e de maneira
plural. So muitos os carnavais do Brasil, mltiplas as formas de expresso que
revelam, exemplarmente, a nossa diversidade cultural.
Felipe Ferreira tambm assinala a pluralidade como marca desta festa no pas.
Aquilo que se conhece atualmente como Carnaval brasileiro na verdade o
produto de diversos discursos que, ao longo dos ltimos 150 anos, vem sendo
lentamente elaborado atravs de variadas disputas de poder. Elite, povo, governo,
folcloristas, jornais, rdios, gravadoras, televiso, capitais, periferias, Rio de Janeiro,
Salvador, escolas de samba, trios eltricos, Recife, So Paulo e frevos so alguns
dos muitos atores envolvidos na construo de um significado para a grande festa
nacional (FERREIRA, F., 2004, p. 12).
Como sugerido pelos autores, o carnaval brasileiro passou por muitas
transformaes ao longo do tempo, em dilogo constante com a sociedade de cada poca,
contrapondo-se ideia de uma frmula acabada e fixa.
[...] os primeiros colonos portugueses que chegaram em terras brasileiras trouxeram
consigo no somente seus pertences, mas tambm seus hbitos e costumes.
Considerando o poder exercido pela Igreja na poca do Descobrimento do Brasil,
podemos imaginar, com uma certa dose de facilidade, que as festas e feriados
religiosos lusos fossem rigorosamente obedecidos na Colnia. A Quaresma seria um
bom exemplo [...] (FERREIRA, F., 2004, p. 79).
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Uma vez instituda a Quaresma, no demoraria para que os novos moradores da
colnia institussem o carnaval. A forma de brincar seria tambm importada de Portugal, com
o entrudo, palavra que em terra lusitana significa pessoa ridcula ou muito gorda (FERREIRA,
F., 2004, p. 77). Segundo Andr Diniz (2008, p. 17), o primeiro relato do entrudo no Brasil
foi em Pernambuco, no ano de 1553.
Trazido para c por imigrantes portugueses, ele caracterizado pela brincadeira de
sujar uns aos outros com polvilho, p-de-sapato ou farinha de trigo e de atirar
limes-de-cheiro (limes recheados de gua, urina ou outras coisas) em familiares e
vizinhos. Rapidamente, o entrudo virou sinnimo de carnaval pelo Brasil.
Aos poucos, o entrudo brasileiro foi se modificando e adquirindo caractersticas
prprias (FERREIRA, F., 2004, p. 80). De acordo com F. Ferreira (2004), havia no pas duas
diferentes modalidades de entrudo: o familiar e o popular. O primeiro era brincado dentro das
casas entre amigos e membros da mesma famlia, geralmente pertencentes classe mdia ou
elite, exigindo de todos os participantes certa dose de bom humor ao serem vtimas dos
ataques entrudsticos. Havia certo respeito s hierarquias e divises sociais, uma vez que os
senhores tinham total licena para lanarem os artefatos nos escravos, mas o contrrio jamais
deveria acontecer.
O segundo tipo, o entrudo popular, ocupava as ruas, reunindo majoritariamente
escravos e pobres.
[...] divertimento muito mais brutal e violento [...] que reunia grande parte dos
marginalizados da sociedade e que permitia a eles alguns momentos de diverso.
Mas uma diverso to desbragada que dava a impresso de que, naqueles dias, eram
os marginalizados que controlavam a sociedade, o que obviamente estava longe de
ser verdade. [...] grande parte das famlias ficavam em suas casas [...] o que fazia
com que nos dias do Entrudo os logradouros da cidade se encontrassem, mais do que
nunca, entregues aos negros escravos e pobres em geral (FERREIRA, F., 2004, p. 89).
Conforme Felipe Ferreira (2004, p. 92), o entrudo familiar era mais agressivo e
espontneo, valendo-se de qualquer tipo de lquido ou p como munio. gua suja da
sarjeta, restos de comida, areia, fragmentos de estuque cados das paredes, em suma, o que
estivesse mo. At mesmo fezes e urinas poderiam ser usadas, especialmente se algum
folio desse o azar de cruzar com os tigres, escravos encarregados de transportar os
excrementos das casas de seus senhores at o mar. Sair s ruas durante os trs dias que
antecediam a Quaresma nas cidades coloniais brasileiras era um ato de extrema imprudncia
ou de expressiva ignorncia.
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A elite brasileira se incomodava com a desordem que dominava as ruas durante o
perodo, especialmente devido sensao de intolervel inverso de valores e de insegurana
propiciadas pelo Entrudo Popular (FERREIRA, F., 2004, p. 98). Naturalmente, no ficava
confortvel diante da ameaa de descontrole que rondava a festa, ainda que por uns dias.
No entanto, o que permitiu vida longa ao entrudo era o fato da prpria elite ter
sido cativada pela festa. Brincavam o escravo, o fazendeiro, os lavradores, o padre [...] At
os imperadores Pedro I e Pedro II eram adeptos dos limes-de-cheiro e das farinhas, conta
Diniz (2008, p. 17). Ou seja, ainda que tentassem censurar e controlar a participao popular,
a elite no queria abrir mo de seu carnaval.
Uma possibilidade de soluo seria encontrada pela burguesia, classe em ascenso
que procurava seu lugar na sociedade na dcada de 1830. De inspirao parisiense, a nova
moda eram os bailes fantasia, o que no impediu que o entrudo continuasse existindo e
influenciando o carnaval nacional por muitas dcadas.
O jornalista Srgio Cabral (2011, p. 16) assinala a relevncia do Rio de Janeiro
durante a gestao do carnaval brasileiro, um verdadeiro caldeiro cultural que propiciou
terreno frtil para o nascimento da nossa folia.
Capital do pas desde 1763, o Rio de Janeiro era o destino de levas de brasileiros
livres e escravos, alm de africanos vindos diretamente de seus pases de origem,
transformando a cidade numa espcie de sntese da cultura popular do pas.
Somando-se a tudo isso o fato de chegarem ao Rio, em primeira mo e maior
volume, as novidades europeias, incluindo-se a msica, seria natural que surgissem
em territrio carioca as primeiras manifestaes brasileiras de msica urbana.
A recente conquista da independncia fazia com que a sociedade brasileira
passasse a rejeitar toda a influncia portuguesa, inclusive seu carnaval. Tudo o que fosse
ligado ao passado lusitano era visto como atrasado e ultrapassado. A Frana representava um
farol de liberdade e modernidade que deveriam ser almejadas e copiadas (FERREIRA, F.,
2004, p. 105).
Segundo F. Ferreira (2004), o primeiro baile de mscara, ou bal masqu, realizado
no Brasil foi em 1835. Inspirava-se no Baile da pera, sediado na capital francesa, que se
tornou o mais famoso e imitado no sculo XIX. Eram eventos disputados, sofisticados e
caros, onde famlias se divertiam em nmeros musicais e danas, por vezes antecipadamente
ensaiadas. A programao alternava ritmos mais comportados, como trechos de peras e
valsas, com outros mais frenticos, incluindo o canc, as polcas e, anos mais tarde, o maxixe e
as marchinhas. No entanto, a msica era apenas uma das atraes: bailados jocosos eram
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danados, jogos, como corridas de sacos, eram disputados pelos participantes (FERREIRA,
F., 2004, p. 122). Mas nada podia sair do controle, uma vez que as regras de comportamento
eram preestabelecidas e deveriam ser rigorosamente respeitadas.
O Brasil importaria dos bailes parisienses tambm os modelos de fantasia, que
eram copiados pelos folies que ocupavam as ruas e adaptadas s suas limitaes financeiras.
Por outro lado, os bals masqus tambm se deixavam influenciar pelo divertimento popular,
tornando-se eventos cada vez menos sofisticados e mais descontrados. Apesar da disputa
travada pelo verdadeiro carnaval entre povo, elite e burguesia, o entrudo e os nobres bailes
ofereciam elementos que seriam decisivos na consolidao do carnaval autenticamente
brasileiro. No fundo, exatamente nessa conversa entre as diferentes formas de se brincar
que vai residir a principal caracterstica da nossa folia (FERREIRA, F., 2004, p. 138).
Na fronteira entre essas manifestaes, surgiram os bailes pblicos, muitos
deles organizados pelas sociedades carnavalescas.
Os primeiros passeios de grupos de pessoas fantasiadas pelas ruas das cidades se
deram [...] com as sociedades organizadoras de bailes carnavalescos que decidiram
reunir seus scios em suas sedes para que todos seguissem juntos at os locais das
festas. [...] os membros das sociedades estabeleceram uma espcie de itinerrio,
fixado antecipadamente, que partia da sede da entidade em direo ao teatro onde o
baile teria lugar. Bastante simples, esses roteiros serviam para manter uma certa
ordem de deslocamento, facilitando o trabalho da polcia e evitando a disperso dos
scios que, juntos, tinham muito menor probabilidade de sofrer algum ataque
entrudstico, ou que teriam, ao menos, mais condio de reagir coletivamente
investida (FERREIRA, F., 2004, p. 139).
Surgidas em 1855, as sociedades eram grupos fantasiados com requinte, que
desfilavam pela cidade com carruagens decoradas e patrulhados pela cavalaria municipal. A
herana barroca e a inspirao nas festas parisienses teriam resultado na adoo dos carros de
triunfo, tambm chamados de carros de ideias ou de crticas, que nada mais eram que