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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS Felipe dos Santos Almeida TRANSTEXTUALIDADE ENTRE SÓFOCLES E OVÍDIO: virtude e ira na caracterização de Ájax João Pessoa 2017

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA

    CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS

    Felipe dos Santos Almeida

    TRANSTEXTUALIDADE ENTRE SFOCLES E OVDIO:

    virtude e ira na caracterizao de jax

    Joo Pessoa 2017

  • 1

    Felipe dos Santos Almeida

    TRANSTEXTUALIDADE ENTRE SFOCLES E OVDIO:

    virtude e ira na caracterizao de jax

    Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em Letras, da Universidade Federal da Paraba, como requisito para obteno do ttulo de Doutor em Letras. rea de concentrao: Linguagens e Cultura. Orientador: Prof. Dr. Milton Marques Jnior

    Joo Pessoa 2017

  • A447t Almeida, Felipe dos Santos. Transtextualidade entre Sfocles e Ovdio: virtude e ira na caracterizao de jax / Felipe dos Santos Almeida. - Joo Pessoa, 2017. 210 f. : il.

    Orientao: Milton Marques Jnior. Tese (Doutorado) - UFPB/CCHLA.

    1. Literatura comparada. 2. Literatura clssica. 3. Ovdio-Sfocles. I. Marques Jnior, Milton. II. Ttulo.

    UFPB/BC

    Catalogao na publicaoSeo de Catalogao e Classificao

  • 2

    Felipe dos Santos Almeida

    TRANSTEXTUALIDADE ENTRE SFOCLES E OVDIO:

    virtude e ira na caracterizao de jax

    Tese submetida ao Programa de Ps-graduao em Letras, da Universidade Federal da Paraba, como requisito para obteno do ttulo de Doutor em Letras, e aprovada pela seguinte banca examinadora:

    ____________________________________________________________

    Prof. Dr. Milton Marques Jnior (Orientador) Universidade Federal da Paraba

    ____________________________________________________________

    Prof. Dr. Juvino Alves Maia Jnior Universidade Federal da Paraba

    ____________________________________________________________

    Prof. Dr. Marco Valrio Classe Colonnelli Universidade Federal da Paraba

    ____________________________________________________________

    Prof. Dr. Johnni Langer Universidade Federal da Paraba

    ____________________________________________________________

    Prof. Dr. David Pessoa de Lira Universidade Federal de Pernambuco

    Joo Pessoa 2017

  • 3

    Dedico este trabalho aos meus pais, responsveis maiores pela minha educao.

  • 4

    AGRADECIMENTOS

    Aos meus amados pais, por toda dedicao, afeto, esforo e pacincia.

    minha Preta, Rara, pela companhia, amizade, apoio, carinho e amor, e especialmente por Rebeca.

    Aos professores Milton e Juvino, pela confiana, pela orientao em minha vida profissional e pessoal, e pela amizade.

    s minhas queridas irms, pela boa ris.

    A Andr, Cassiano, Diego, Fbios (Cabea e Xuxa), Falco, Guigo, Gregrio, Jorge, Jlio, Vitor, Joffison, Bela, Magno, Dudu e Paulinho pela longa amizade construda nesses anos e pelos domingos compartilhados.

    A Moacir, Digenes, Hermes, Marco, Alcione e Anderson pela amizade.

    Aos demais familiares, amigos e professores por terem me ajudado e orientado na construo de meus conhecimentos profissionais e pessoais.

    A Gary Gygax e Dave Arneson, pela imaginao e pela inspirao.

    Aos deuses, pela vida.

  • 5

    RESUMO

    O objetivo deste trabalho estudar a intertextualidade entre a obra Metamorfoses, de Ovdio,

    autor latino, e a pea Aias, de Sfocles, tragedigrafo grego. Esse estudo de Literatura

    Comparada tem como foco a caracterizao do personagem jax. Entretanto, a nossa anlise

    restringe tal caracterizao a dois elementos recorrentes em heris da Literatura Clssica: a

    virtude, sobretudo, guerreira, e o sentimento de ira. Para alcanar tais objetivos,

    primeiramente, apontamos como tais elementos esto presentes na tradio da literatura grega

    arcaica do heri em questo, em especial, nos poemas homricos, os quais j apresentam, de

    forma pioneira, uma caracterizao singular. Nessas obras homricas, esse personagem j

    notvel pela sua virtude guerreira e pela sua grave clera. Em seguida, analisamos

    isoladamente as obras de Ovdio e Sfocles com o objetivo de reconhecer a importncia

    desses dois elementos na composio do carter desse personagem e no propsito semntico

    dos episdios de cada uma delas. Por fim, apresentamos a teoria de Genette sobre

    intertextualidade, a qual nomeia de transtextualidade, e na qual delimita uma tipologia a fim

    de precisar suas variadas prticas. Baseados nessa teoria, apontamos as operaes realizadas

    pelo autor latino que comprovam o aspecto transtextual de sua obra, particularmente, em

    relao ao tragedigrafo grego, contudo, restritas forma pela qual tais transformaes so

    utilizadas para delinear o carter guerreiro e iracundo do heri jax. Para melhor

    compreenso das obras estudadas e da consequente anlise, dispomos uma traduo

    instrumental do corpus citado no trabalho.

    Palavras-chave: Literatura Comparada; Literatura Clssica; Ovdio; Sfocles; caracterizao

    literria; jax.

  • 6

    ABSTRACT

    This work aims at studying the intertextuality between Ovids Metamorphosis and

    Sophocless play, Aias. This work of Comparative Literature focus on the characterization of

    the hero Ajax. However, our analysis limits this characterization to two issues, present on

    Classical Literature heroes: the virtue, especially, belligerent, and the wrath. To achieving

    such purpose, firstly, we point how those issues are present on the archaic Greek literature

    tradition of the studied hero, particularly, in Homeric poems, which introduce, in a pioneer

    way, a singular characterization. In these Homeric works, this character is already remarkable

    by his warrior virtue and by his intense wrath. Secondly, we analyze Ovid and Sophocles

    literary works separately aiming at understanding the consequence of those two issues in the

    characterization of such hero and in the semantic purpose of episodes in each work. At last,

    we introduce Genettes theory about intertextuality, which he names transtextuality, and in

    which he bounds a tipology to restrict its many types of operations. Based on that theory, we

    present the operations, fulfilled by the latin author, that verify such transtextual issue in his

    epic poem, specially, related to Sophocles play. Nevertheless, they are restricted to the way

    such operations act to compose the characterization of the belligerent and fiery hero Ajax. To

    understanding the literary works and the following analysis better, we present a general

    translation from the corpus mentioned on the present work.

    Keywords: Comparative Literature; Classical Literature; Ovid; Sophocles; literary

    characterization; Ajax.

  • 7

    SUMRIO

    INTRODUO ........................................................................................................................ 8

    1 A TRADIO LITERRIA DO MITO DE JAX .......... ............................................ 12

    1. 1 A TRADIO ARCAICA E OS POEMAS HOMRICOS ....................................................... 12

    1. 2 A TRADIO CLSSICA .................................................................................................. 34

    1. 2. 1 Aias de Sfocles .......................................................................................................... 35

    1. 2. 2 Metamorfoses de Ovdio ............................................................................................ 45

    2 ESTUDO ISOLADO DA CARACTERIZAO DO HERI ..... ................................ 59

    2. 1 A VERSO DE SFOCLES ................................................................................................ 60

    2. 1. 1 : a virtude do heri na perspectiva grega ..................................................... 62

    2. 1. 2 : a ira do heri na perspectiva grega ............................................................. 78

    2. 2 A VERSO DE OVDIO ................................................................................................... 104

    2. 2. 1 Virtus: a virtude do heri na perspectiva latina ................................................... 107

    2. 2. 2 Ira : a ira do heri na perspectiva latina ................................................................ 125

    3. ESTUDO TRANSTEXTUAL DA CARACTERIZAO DO HERI . ..................... 143

    3. 1 TRANSTEXTUALIDADE: A CONCEPO DE GENETTE .................................................... 143

    3. 1. 1 Prticas hipertextuais: transformaes quantitativas, pragmticas e modais .. 148

    3. 2 O EPISDIO TRANSTEXTUAL DE OVDIO ...................................................................... 164

    3. 2. 1 A virtude transtextual do heri .............................................................................. 169

    3. 2. 2 A ira transtextual do heri ...................................................................................... 182

    CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................... 199

    REFERNCIAS ................................................................................................................... 204

  • 8

    INTRODUO

    H muito se procura por um conceito que defina Mito, mas todas as tentativas

    convergem eventualmente para uma mesma particularidade, a narrativa, no sentido de histria

    elaborada pelo ato de narrar. Mrio Vegetti nos mostra ao menos um parmetro para discernir

    as narrativas mticas dos gneros literrios como pica, lrica e tragdia entre os povos

    antigos, ainda, que, atualmente, tal perspectiva seja considerada dentro de certos limites. Para

    este autor, as narrativas mticas em torno das divindades e das foras invisveis e

    sobrenaturais, que esto presentes no universo e que tambm o governam, so relatos

    annimos, repetidos, passados de gerao em gerao que funcionam como "uma espcie de

    catlogo do imaginrio religioso" (1994, p. 37), ganhando fora exatamente devido ao seu

    aspecto coletivo e impessoal, que, de carter sagrado, remonta s origens de seu povo

    atravessando o tempo e o espao. Com efeito, devemos ainda evidenciar que o mito uma

    narrativa aplicada como verbalizao de dados complexos, supra-individuais, coletivamente

    importantes (BURKERT, 1991, p. 18), e isso significa dizer que ele o saber atravs de

    histrias. Esse conhecimento guardado nas narrativas era fundamental, sobretudo, para os

    gregos e romanos da Antiguidade, no entanto, o imaginrio que o detinha era, de certa

    maneira, desordenado e catico. a interveno da literatura, sobretudo da pica, que produz

    uma seleo e um ordenamento capaz de reforar a conservao do carter fundamental

    desses relatos, o modo narrativo com o qual um determinado povo comunica e transmite o

    conhecimento presente em sua cultura (VEGETTI, 1994, p. 37).

    Naturalmente dessas narrativas mticas se desdobra, em seu mbito literrio, uma

    transcendncia textual, nomeada costumeiramente de intertextualidade, no sentido de que os

    poetas se referem aos anteriores articulando um texto, uma trama, ora respondendo-lhes, ora

    acrescentando-lhes, mas permanecendo sempre a ideia de um dilogo com as geraes

    anteriores. Isso tem como consequncia a percepo de que Homero o texto matriz absoluto

    (GRAF, 2006, p. 110), especialmente acerca da mitologia greco-latina, pois evidente a sua

    forte presena nas literaturas grega e latina. Com efeito, por mais que sejam variadas as

    verses de autores acerca de determinados mitos, h para os poetas uma liberdade limitada.

    Recorre-se tradio mtica, ao menos para se evitar causar um grande estranhamento ao

    pblico, cujo imaginrio mitolgico lhe serve como base para a compreenso da literatura e

    da arte em geral (VERNANT, 2006, p. 25).

    Inseridas nessa realidade de transcendncia textual, as narrativas acerca do mito do

    heri grego jax se convergem nas literaturas grega e latina clssicas, na tragdia Aias, de

  • 9

    Sfocles, e no Livro XIII da obra de Ovdio, Metamorfoses. Se estabelecemos como as

    primeiras obras que tm registro dos relatos sobre esse heri de Salamina, a Ilada e a

    Odisseia de Homero, podemos indicar essa intertextualidade de Sfocles e Ovdio

    respondendo a Homero. Contudo, seria possvel um dilogo mais slido entre a obras de

    Sfocles e de Ovdio, no que diz respeito ao mito desse personagem? Certamente, o

    argumento de suas obras remonta a um episdio importante da lenda desse heri: a contenda

    pelas armas de Aquiles, presente em Metamorfoses, cujo desdobramento natural, aps a

    vitria de Odisseu, a ira e o suicdio do heri derrotado, presente na tragdia daquele. A

    partir dessa relao evidente, at que ponto a obra de Ovdio se articula com a de Sfocles,

    que lhe anterior. Quais elementos literrios de Sfocles so reforados e reiterados por

    Ovdio em sua obra? At onde a obra de Ovdio possibilita uma nova leitura da tragdia de

    Sfocles ou uma leitura conjunta?

    Diante de todos esses questionamentos, tentamos chegar a uma concluso a partir de

    uma categoria analtica que se afigura inerente literatura greco-latina: a intertextualidade.

    Contudo, nosso objetivo guiado sob a perspectiva da caracterizao desse heri grego que

    parece ganhar nfase no corpus por ns definido: os 1.420 versos da obra de Sfocles e os

    versos 1 a 398 do Livro XIII da obra de Ovdio. Em nosso recorte, podemos observar a

    relevncia das concepes de virtude e de ira, pois parecem alicerar de algum modo o carter

    desse personagem dentro das obras escolhidas. Assim, de forma mais especfica, convm-nos

    analisar como atravs desses dois traos do heri as obras em questo se relacionam entre si.

    Dessa forma, tentaremos reconhecer at que ponto a caracterizao de jax, desenvolvida

    pelo autor grego, retomada pelo latino. Para isso, h de se considerar duas coisas. A

    primeira considerar como base dos traos do personagem marcas que remetam s noes de

    virtude e de ira, presentes na sua imagem lendria, sobretudo em Homero que figura a

    iniciao disso na tradio literria. A segunda comparar tambm ponderando o papel

    estrutural dessas duas noes ao argumento e unidade tanto de Aias quanto do Livro XIII, de

    Metamorfoses.

    Devido a tal finalidade, a intertextualidade, tomada como categoria analtica do nosso

    estudo, considerada fundamental em nossa metodologia, e por isso, a ela est reservada uma

    seo prpria, no ltimo captulo. O marco terico que guia esse trabalho sobretudo a teoria

    de Grard Genette sobre tal concepo, nas quais esse estudioso dispe ordenadamente toda

  • 10

    uma tipologia de variados nveis de referncia intertextual, unidos entre si sob uma

    perspectiva mais geral e abrangente, nomeada transtextualidade1 pelo autor.

    Para alcanarmos esse fim de forma vlida, analisamos as obras individualmente e

    comparadas, considerando diretamente a lngua original de cada uma: o grego e o latim

    clssicos. Em decorrncia disso, so imprescindveis para a nossa metodologia algumas

    disposies, especialmente tericas, as quais, no constituindo diretamente a categoria

    proposta no trabalho, no exercem o mesmo papel no nosso estudo como a intertextualidade,

    e, por isso, so apresentadas de forma sinttica ou em notas explicativas e de rodap.

    Tentamos dessa maneira evitar a sobrecarga textual, sobretudo a terica, que tanto interrompa

    a sequncia lgica da leitura quanto tangencie nosso objetivo, de forma digressiva, com

    contedo de relevncia indireta aos nossos propsitos. As principais informaes dispostas

    dessa maneira so trs, mas outras minoritrias, seguem os mesmos critrios.

    A primeira a caracterizao, para a qual vrios estudos especficos sobre o carter do

    personagem so dispostos suprindo tal escolha mencionada acima. Com efeito, segundo esse

    procedimento, utilizamos o lato entendimento da concepo de Carlos Reis e de Ana Cristina

    Lopes acerca de caracterizao, ou seja: ela representa, dentro do um plano narrativo, os

    atributos fundamentais de um personagem, que, estruturados em um conjunto de unidade

    identificvel e entrelaados a outros componentes diegticos, executam um papel saliente no

    desenvolver da trama e reforam o eixo semntico do argumento do texto (1988, p. 193-195).

    Considera-se tambm que a proficuidade desse elemento no estudo de uma obra depende

    frequentemente da posio relativa que um determinado personagem ocupe na composio do

    enredo. Mencionamos tambm alguns elementos literrios oriundos da Potica de Aristteles,

    os quais auxiliam grandemente as anlises de caracteres.

    A segunda disposio a ser considerada o esclarecimento de determinados valores

    religiosos, ticos, morais, sociais etc., constantes no lxico e no vocabulrio dessas obras,

    uma vez que trataremos de textos que remontam uma cultura antiga, e que, por isso,

    pressupem uma mnima contextualizao histrica. Autores que abordem tais assuntos como

    Jean-Pierre Vernant, mile Benveniste, Marcel Detienne etc. so fundamentais.

    A terceira, uma traduo instrumental que vise auxiliar a leitura do texto original,

    fornecendo para isso um reflexo morfossinttico, e por vezes etimolgico, uma vez que o

    contedo dos fragmentos estudados e suas nuances significativas para o estudo sero expostos

    1 Ressaltamos que por todo o trabalho tambm usaremos a grafia em itlico para identificar quaisquer

    terminologias tericas, com o propsito, por exemplo, de distinguir o sentido mais abrangente de uma palavra, como em intertextualidade, do sentido especfico fomentado ou no por um determinado autor, como em intextextualidade, a qual se refere a um tipo determinado da transtextualidade formulada por Genette.

  • 11

    atravs da prpria anlise que segue s citaes. Por isso, seu tratamento menos semntico e

    mais sinttico. Atentamos para esse propsito as reflexes de Paulo Rnai, John Milton e

    Susan Bassnett, Umberto Eco entre outros, os quais ponderam os objetivos de uma traduo.

    Alm disso, destacamos que os textos originais das obras Metamorfoses, de Ovdio, e Aias, de

    Sfocles, utilizados em nosso trabalho, foram estabelecidos de forma filolgica,

    respectivamente, por Georges Lafaye e por Paul Mazon em edies da Les Belles Lettres, e

    esto presentes nas referncias.

    De acordo com todos esses critrios, estruturamos esse trabalho em trs captulos. O

    primeiro, sob a perspectiva da caracterizao do mito de jax, contextualiza e apresenta a

    tradio arcaica, centrada em Homero, bem como as obras que compem o nosso corpus.

    Com essa contextualizao das obras, fornecemos subsdios para delimitar os seus limites e

    para discernir na obra de Ovdio o que dilogo com Homero e o que referncia a Sfocles,

    se a ela houver. Autores como Maria Helena da Rocha Pereira, Jacqueline de Romilly, Robert

    Aubreton etc. e alguns estudos especficos, acompanhados de nossas observaes compem

    essa primeira parte. O segundo captulo dispe uma anlise per se das obras do corpus,

    considerando-se o papel exercido pela caracterizao do heri na unidade e no argumento das

    mesmas, percebendo-a sob o ponto de vista das noes de virtude e de ira. Estudos especficos

    e tradutores das obras em questo tambm so considerados em nossa anlise. O terceiro

    expe os princpios intertextuais de Grard Genette, os quais nomeia transtextualidade, e

    pelos quais comparamos, ainda neste momento, os resultados obtidos, a partir do captulo

    anterior, para chegarmos a alguma concluso acerca dos nveis de influncia de Sfocles em

    Ovdio. importante ressaltar que a teoria desse crtico francs aborda em especial aspectos

    temticos e estilsticos, e ns tentaremos adequar tais premissas ao estudo da caracterizao.

  • 12

    1 A TRADIO LITERRIA DO MITO DE JAX

    Propomo-nos, aqui, a contextualizar as obras Aias, de Sfocles e Metamorfoses, de

    Ovdio, sobretudo seu Livro XIII, convergindo os estudos deste captulo para a caracterizao

    do personagem jax, sob o vis das noes de ira e de virtude, e considerando a influncia da

    tradio arcaica da literatura grega, sobretudo nas obras dos autores aqui estudados. Com

    efeito, para estudarmos mais validamente a intertextualidade entre a caracterizao desse

    heri nas obras de Ovdio e de Sfocles, que figuram uma tradio clssica, devemos

    reconhecer quando, no processo de retomada do mito, h uma influncia de autores que lhe

    so anteriores e que consolidaram a imagem que temos dessas figuras mitolgicas.

    Entendemos como base de representao dessa tradio arcaica as epopeias homricas, Ilada

    e Odisseia, uma vez que seus modelos influenciam diretamente toda a cultura literria greco-

    latina posterior.

    Neste captulo, observando-se a composio estrutural das obras estudadas,

    ressaltaremos os procedimentos literrios e os traos estilsticos que contribuam para a nossa

    anlise e possibilitem uma melhor contemplao do nosso objetivo. Para isso, servimo-nos de

    vrios estudos que tanto estabelecem linhas gerais de interpretao das obras,

    contextualizando-as, quanto, dentro do possvel, apresentam material relacionado ao tema

    proposto por ns como base para intertextualidade, situando-o sob a perspectiva do nosso

    objetivo. Contudo, vejamos antes a caracterizao do personagem escolhido para estudo,

    dentro das obras arcaicas.

    1. 1 A TRADIO ARCAICA E OS POEMAS HOMRICOS

    Homero o herdeiro da memria de um povo de cultura oral e teria elaborado suas

    narrativas a partir de antigos mitos de base religiosa (AUBRETON, 1968, p. 154-155). Essa

    mitologia grega contribui acima de tudo para uma longa tradio artstica da Grcia arcaica,

    da qual, com exceo de Homero, utilizaremos nesta seo, de maneira pontual apenas

    Pndaro, poeta lrico grego do perodo arcaico, por contribuir para o nosso propsito.

    Com efeito, a partir de informaes centradas nas obras de Homero, dispostas aqui,

    tentaremos ressaltar como vrios elementos constituintes do estilo e da linguagem homricos

    contribuem para a profcua caracterizao de seus personagens, tornando pertinente um

    estudo mais profundo dos mesmos, sobretudo em poetas posteriores, os quais retomam essa

  • 13

    tradio arcaica. Assim, ser possvel compreender como se apresenta o contorno das vrias

    figuras dos heris mticos presentes nessas epopeias, e entre estes a de jax, foco deste

    estudo. Para isso, tambm recorreremos a anlises e estudos de alguns crticos que subsidiaro

    a complexidade das caracterizaes homricas, delineando o perfil desses heris, atestada pela

    conscincia de linguagem do autor e pela sua maturidade artstica, prprias de toda grande

    literatura.

    Antes, contudo, importante justificar, mesmo que brevemente, essa preferncia por

    Homero, determinante do objetivo desta seo. Para alcanarmos tal finalidade, deve-se

    reconhecer a enorme influncia da tradio literria da Grcia arcaica na literatura clssica,

    seja grega ou latina, sobretudo da homrica. A influncia das epopeias homricas sobre os

    gregos est presente desde o sculo VII a. C., tornando-se literariamente preponderante no

    sculo V a. C. (AUBRETON, 1968, p. 328), a exemplo maior dos tragedigrafos, e da

    concepo aristotlica de literatura, contida na Potica, que representa primeira teorizao

    literria manifestada no Ocidente.

    Homero, que se torna o grande educador grego devido ao alcance de sua obra, nos

    sculos que lhe so posteriores, marcadamente imitado, seu vocabulrio fixado como lngua,

    e sua obra se torna base para o aprendizado de vrios contedos, sejam morais, sociais,

    histricos etc. Sua concepo divina ainda exerce autoridade, inclusive, sobre a religio

    helnica, o que faz por exemplo, Plato, fomentando uma nova reflexo sobre as divindades,

    censurar, na Repblica, alguns de seus episdios. Esse prestgio o faz at mesmo inaugurar a

    literatura latina atravs da traduo da Odisseia por Lvio Andrnico, transformando-se em

    obra base para o aprendizado da leitura das crianas romanas (Ibidem, p. 329). Esse fato de

    tal forma contundente que favorece a compreenso da fora que essas epopeias exercem

    diretamente na literatura latina, cuja maior expresso pica a Eneida de Virglio, reflexo

    direto dos moldes homricos. Disso tambm podemos conjecturar a fora exercida dentro da

    prpria literatura grega.

    Tal influncia, manifestada pelo dilogo constante de uma gerao com as que lhe so

    anteriores, ora concordante de ideias, ora divergente, no se revela apenas na evoluo

    literria, e por isso entendemos todas renovaes de contedo, de forma, etc., que se

    desenvolvem ao longo do tempo. Apesar de sua natureza predominantemente pica, podemos

    citar, por exemplo, elementos literrios, mesmo que de forma embrionria, presentes nessas

    obras, os quais posteriormente sero desenvolvidos e atribudos por vrios estudiosos aos

    gneros lrico e trgico como suas marcas distintivas. No entanto, afastando-nos dessas

    disposies mais gerais, ns frisamos, aqui, um elemento mais especfico e adequado ao

  • 14

    nosso estudo de caso: a evoluo dos mitos que apresentam a figura dos heris lendrios da

    Grcia.

    Para entender melhor a evoluo desses mitos e sobretudo o papel de Homero sobre

    ela, necessrio entender que a construo individual de um poeta acerca de uma figura

    mtica no uma elaborao completamente livre da tradio. Segundo Jean-Pierre Vernant,

    as mais variadas verses dos mitos apresentam uma determinada limitao, pois por mais

    inovadoras que sejam, elas esto inscritas em uma tradio na qual se apoiam e qual se

    referem, sobretudo se considerarmos o pleno entendimento pelo pblico (2006, p. 25). Louis

    Gernet sobre isso j havia afirmado que os poetas respeitavam uma espcie de imaginao

    lendria, e isso implicava uma coerncia estrutural e funcional, qual os autores de alguma

    maneira se submetiam (apud VERNANT, 2006, p. 25).

    Para o nosso trabalho, as obras homricas so essenciais, especialmente por dois

    motivos. O primeiro devido a seu carter literrio inicitico dos caracteres desses heris

    mticos contidos no ciclo da guerra de Troia, ou seja, essas epopeias representam o ponto de

    partida literrio dos traos distintivos dos personagens includos nessas narrativas. O segundo

    motivo devido ao seu papel fundamental no entendimento dos vrios contornos que esses

    personagens da mitologia grega recebem na literatura clssica, a partir do dilogo com os

    textos homricos, comprovadamente atestado por vrios estudos. Em ambos os motivos, isso

    inclui jax, foco de nosso estudo, e sua concepo pelos autores posteriores a Homero. A

    Ilada e a Odisseia nos revelam, assim, os pontos significativos das qualidades individuais do

    heri em questo, tanto no mito, de uma forma geral, quanto no episdio que envolve a

    disputa pelas armas de Aquiles, evento indispensvel na fabulao da obra Aias, de Sfocles,

    e da Metamorfoses, de Ovdio.

    Colocando de lado questes de justificativa, passemos a observar as obras homricas a

    partir de informaes pertinentes ao estudo da caracterizao, que o cerne da nossa

    comparao intertextual proposta.

    Os heris das obras homricas so frequentemente reis de linhagem divina. E apesar

    da presena de outras figuras mais simples, especialmente na Odisseia, estas orbitam o

    universo de personagens pertencentes a uma espcie de nobreza, a priori, composta de

    homens superiores. Explicando melhor esse contexto, Jacqueline de Romilly afirma que a

    epopeia homrica reflete ento um mundo aristocrtico, cujas virtudes so igualmente

    aristocrticas (1984, p. 37). E a moral heroica presente nas obras, assegura Claude Moss,

    tem como base valores que correspondem aos de uma aristocracia guerreira, os quais se

    manifestam em combates, representativos de um mundo de guerras da Grcia arcaica, o que

  • 15

    justifica a constante busca pela glria guerreira que tornar heri imortal (1989, p. 46).

    Inserido em uma civilizao de natureza guerreira, esse representante aristocrtico impelido

    por dois aspectos da glria: o kdos () e a klos (). O primeiro, de origem divina,

    representa um favorecimento momentneo dos deuses, com o qual os heris executam seus

    grandes feitos; o segundo, de origem humana, a fama que desenvolve de boca em boca

    atravs de vrias geraes, o que destaca sobretudo, no papel do poeta para a cultura arcaica, a

    sustentao dessa glria alcanada (DETIENNE, 2013, p. 21)

    Contudo, salutar destacar, esses ainda so marcadamente homens, ou seja, embora

    tais personagens possuam uma estirpe particular e, por meio de atributos decorrentes dessa

    origem, executem muitas vezes proezas fora do comum, eles ainda cultivam virtudes

    essencialmente humanas (ROMILLY, 1984, p. 37). Por isso manifestam emoes

    impulsionadas pelas tenses internas do enredo, decorrentes das situaes de conflito nas

    quais esto inseridos, desse modo, revelando-nos e lhes conferindo uma identidade

    inerentemente humana.

    Os personagens homricos no so analisados pelo autor, mas so mostrados em plena

    ao, na guerra, nos rituais, no mar, no mago do ambiente familiar. Tambm a esses Homero

    concede a palavra, por meio do discurso direto, um recurso extremamente recorrente em sua

    obra (Ibidem, p. 40). Essa mescla de estilos compe tanto a Ilada quanto a Odisseia, ora de

    base oratria, ora narrativa, ora descritiva, servindo para se ressaltarem marcadamente tais

    aes dos personagens. E isso parece ter como consequncia um reforo no delineamento do

    carter dessas figuras, fato evidente nas obras em questo.

    Segundo Walter Donlan, a construo de personagens mais reais um ndice de

    maturidade artstica, e uma literatura madura se faz quando a mesma capaz de produzir

    caracterizaes complexas dessa maneira (1970, p. 259). A Ilada, por exemplo, mesmo

    representando o marco inicial da literatura ocidental, no pode ser vista de maneira alguma

    como um trabalho primitivo. Sua genialidade no tratamento da caracterizao distinta dos

    personagens um dos motivos que lhe concede o grau de grande obra literria, inserindo a

    produo literria da Grcia arcaica dentro dessa concepo de literatura madura. Isso parece

    ocorrer, conforme Donlan, contrariamente ao modelo que se estrutura em uma determinada

    quantidade de arqutipos, como o grande guerreiro, o venervel rei ou o velho sbio,

    dispostos em uma tipologia variada de situaes, como o combate singular, a jornada para

    casa etc., muito evidentes tambm nos mitos e contos folclricos de quaisquer culturas,

    sobretudo, as orais. Com efeito, os marcadamente personagens principais por esse autor, a

  • 16

    saber, Aquiles, Agammnon e Heitor, esto bastante longe de ser um estoque de arqutipos

    em um estoque de situaes (Ibidem, p. 261).

    Evidentemente, h personagens que acabam se tornando mais prximos a esses

    arqutipos, de maneira que no crescem, e, em contrapartida, s cumprem uma funo

    determinada, embora, afirma Donlan, seja possvel observar ainda uma sofisticada variao

    desses modelos nos heris homricos, quando da representao dessas figuras menores.

    Contudo, mais ou menos elaborados, os personagens de Homero so bem delineados e

    consistentes, afastando de si a tipologia primria e se mostrando indivduos distintos entre si

    (Ibidem, p. 263).

    Com efeito, a caracterizao homrica faz com que determinados traos de

    personalidade emerjam, quando os personagens so dispostos em situaes de conflito que

    demandem uma ao consonante com suas caractersticas individuais. Isso permite que eles

    desenvolvam entidades psicolgicas, e alguns com elaborao extremamente singular. Na

    Ilada, como exemplo destes ltimos, Aquiles sofre, aprende, toma decises dolorosas e,

    assim, mostra-se possuidor de uma verdadeira personalidade. Outros, menos elaborados

    devido a uma participao mais funcional na obra, tm ainda a caracterizao plenamente

    formada e potencialmente desenvolvida, mas no manifestada e evoluda dentre de

    circunstncias propcias para os vermos crescer, tal qual, exemplifica Donlan, Odisseu e jax,

    os quais s concretizaro tal potencial, como comum a muitos personagens homricos, em

    outras obras, respectivamente, a Odisseia, do mesmo autor, e Aias, de Sfocles (Ibidem, p.

    265-266).

    Por isso, a psicologia elaborada entre vrios heris , ento, completamente distinta, e,

    corroborando o que foi exposto acima, s vezes em plena evoluo (AUBRETON, 1968, p.

    289). Ainda segundo Robert Aubreton, por meio de todos esses recursos, Homero teria

    vivificado os personagens de forma particular, tornando-os profundamente humanos e dotados

    de uma personalidade prpria (Ibidem, p. 289).

    Para este autor, um estudo pertinente dos caracteres homricos deve recorrer ao jogo

    de correspondncias promovidos dentro das obras. Dois pontos so notadamente pontuados

    dentro dessa perspectiva. O primeiro corresponde oposio de carter, pelo qual possvel,

    de forma antittica, delinear o que pode ser atribudo preponderantemente a um e a outro

    personagem. O segundo, recorrncia de traos reiterados por toda a obra, os quais formam

    uma coerente unidade de caracterizao dos vrios heris (Ibidem, p. 258).

    Dentro do estilo homrico, como j dissemos, ora narrativo, ora descritivo, vasto o

    nmero de recursos oratrios e outros lingusticos que reforam esse jogo de

  • 17

    correspondncias. Segundo Maria Helena da Rocha Pereira (2012, p. 72-73), entres eles, a

    analepse, a apstrofe, a anfora, a metfora, o smile, o epteto, e outras. Convm

    evidenciarmos os ltimos dois, pois parecem-nos as mais aparentemente profcuas

    ferramentas pelas quais Homero salienta e refora as marcas que delineiam o carter dos

    personagens, sobretudo, segundo o pensamento supracitado de Robert Aubreton.

    O primeiro, o smile, segundo Geoffrey Kirk, uma das glrias da Ilada, deixando o

    contedo mais perto do entendimento do ouvinte (apud Ibidem, p. 73), ou segundo Hermann

    Frnkel, refreia de maneira significativa a ao em curso, para intercalar uma imagem de

    conjunto da situao (apud Ibidem, p. 74). Com efeito, esse recurso marca mais

    propriamente o contorno dos personagens, uma vez que, tendo geralmente como origem

    fenmenos e elementos da natureza, vrias atividades humanas e dos animais, sobretudo a do

    pastor e dos animais de rapina, acaba por atribuir traos recorrentes e singulares aos heris,

    permitindo-nos perceber determinadas unidades na sua caracterizao. Esse recurso to

    eficiente na Ilada que no houve epopeia posterior que no a imitasse, afirma Rocha Pereira

    (Ibidem, p. 76).

    O segundo, o epteto, converge para o mesmo propsito, intensificando-se quando, a

    partir da diviso de Milman Parry (apud Idem, 1984, p. 4), reconhecemos os nomeados

    genricos, aplicveis a qualquer heri; e os distintivos, aplicveis a poucos ou a somente um.

    Por mais que o epteto seja uma frmula de mecanismo mnemnico das culturas orais, e por

    isso revelando uma relao intrnseca com o esquema mtrico da epopeia, ora ocupando um

    hemistquio, ora, mais complexo, compreendendo vrios versos, para Rocha Pereira estes

    ltimos, os distintivos, vo alm disso, pois contribuem sob um vis literrio para a melhor

    caracterizao do personagem, adequando-se, assim, ao contexto uma qualidade especfica, e

    permitindo-se uma melhor compreenso do momento no qual esto inseridos (Ibidem, p. 5).

    Vejamos agora como estes elementos contribuem para o estudo de caso desta seo: a

    caracterizao do personagem jax dentro das obras homricas.

    No fugindo regra, o heri em questo pertence aristocracia: filho de Tlamon, o

    rei de Salamina e descendente de Zeus, segundo a mitologia grega que constitui as narrativas

    do ciclo da guerra de Troia (GRIMAL, 2005, p. 16). Com efeito, seguindo os parmetros de

    Robert Aubreton, mencionados acima, esse personagem tende a ser visto sob duas

    perspectivas mais gerais, que se estabelecem a partir da dinmica de correspondncias: a

    primeira definida a partir de uma relao comparativa com Aquiles e com Odisseu, conduzida

    especialmente tanto pela Ilada e quando pela Odisseia, e a segunda, igualmente importante

  • 18

    para o nosso estudo, a partir de suas reiteradas caractersticas prprias, marcadamente

    reconhecidas nessas obras.

    Comecemos pela primeira viso mais geral acerca da caracterizao desse

    personagem. Essa apreciao tende sempre a destacar traos desse heri a partir da

    comparao com outro heri grego, Aquiles, especialmente porque esse procedimento ocorre

    inclusive dentro da obra homrica. Se por um lado o Pelida considerado o melhor dos

    Aqueus, por outro o Telamnio tratado como o melhor depois de Aquiles. Isso se reala no

    Canto II da Ilada, sobretudo devido retirada da batalha por este, ainda no Canto I. Quatro

    menes a essa denominao so vistas nas obras homricas: duas na Ilada, uma no Canto II

    e outra no XVII; e duas na Odisseia, ambas no Canto XI; alm de pelo menos uma outra

    aparecer, ainda na considerada tradio arcaica, nas Odes Nemeias, VII, de Pndaro.

    Especialmente na primeira obra, essas menes parecem ser bem significativas, enquanto

    frmulas homricas, para o nosso estudo. Por serem precisamente os eptetos distintivos, j

    elucidado anteriormente, contextualizando o momento e contribuindo para o argumento do

    Canto, tornam-se essenciais para nossa exposio.

    No Canto II, trata-se do catlogo das naus. Esse momento tem como argumento a

    enumerao dos heris gregos que foram guerra de Troia. neste ponto em que se faz a

    primeira referncia a primazia do heri.

    ' 760 ' ' , ' .

    [...] ' ' , ' .2 770

    (Ilada, II, v. 760-763;768-770)

    importante ressaltar que todos, inclusive os mortos e o momentaneamente ausente

    Aquiles so descritos, contudo, o narrador invoca a musa para lhe revelar quem seria o melhor

    guerreiro dos Aqueus: naquele momento , nomeadamente, jax. Essa uma frmula

    bastante repetida, a qual apresenta a superioridade desse heri relacionada ausncia de

    Aquiles, quando do episdio de sua desonra e consequente retirada. Ocupando um verso e

    meio, em uma clara disposio formular, o epteto se concentra no sintagma formado por 2 Estes eram dos Dnaos os condutores e chefes (v. 760) / Tu, musa, dize-me qual era o melhor deles /os quais

    seguiram os Atridas, como tambm o de seus cavalos. [...] O melhor dos heris era o ingente jax Telamnio, / enquanto Aquiles se enfurecia: pois este era o mais bravo / e tambm [eram] os cavalos que carregavam o excelente Pelida (v. 770).

  • 19

    superlativo, melhor dos heris, , que distingue sua superioridade dos demais.

    Tambm bvio apontar que isso se assemelha ao epteto atribudo ao Pelida, pois tem como

    base o mesmo superlativo.

    O Canto XVII se refere ao episdio da morte de Ptrocles. A cena disposta abaixo,

    extremamente relevante para compreendermos a figura de jax, encontra-se logo aps a

    morte daquele heri. o episdio dos combates pelo seu cadver.

    [...] ' , , ' ' .3

    (Ilada, XVII, v. 277-279)

    Nesse ponto, mais uma vez se atribui ao heri a primazia guerreira, devido ausncia

    de Aquiles. Uma vez que este no pode proteger o corpo do amigo dileto, o Telamnio que

    o cumpre, inclusive liderando os gregos para o retornar aos combates em defesa do cadver

    do grego morto. A frmula dessa passagem, de estrutura menos bvia, abrange dois versos

    inteiros. Concentra seu significado no verbo techo, , que sobretudo na obra homrica

    tem o sentido de elevar-se. Esse epteto aparecer outra vez na Odisseia, como veremos mais

    frente, tal qual disposto nesses versos.

    A Odisseia tambm faz duas referncias a essa qualidade distinta do heri. As duas

    esto inseridas no Canto XI, quando da descida de Odisseu ao Hades. Os fragmentos abaixo

    referem-se ao encontro de Odisseu com as sobras de Agammnon, de Aquiles e do prprio

    personagem estudado. Como esse Canto compe a analepse do narrador autodiegtico,

    necessrio entender que, diferentemente da Ilada, aqui, os eptetos no so mencionados pelo

    narrador externo, mas pelo prprio Odisseu, fato que corrobora marcadamente o

    reconhecimento pelos demais gregos do valor do heri.

    ' ', ' .4 470

    (Odisseia, XI, v. 467-470)

    3 Pois, muito rapidamente os [gregos] fez voltar / jax, que em relao tanto ao aspecto quanto aos trabalhos

    eleva-se / dos outros Dnaos, depois do excelente Pelida. 4 Chegou, a seguir, a alma do Pelida Aquiles / e de Ptrocles, e do excelente Antloco / e tambm a de jax, que

    era o melhor, em relao tanto ao aspecto quanto ao porte, / dos outros Dnaos depois do excelente Aquiles (v. 470).

  • 20

    Nesse fragmento, a frmula ocupa dois versos inteiros, em uma variao j apontada

    no recorte anterior. Novamente, o epteto se fortalece com o superlativo melhor, ,

    reiterado significativamente para salientar a qualidade distintiva do heri. A frmula

    atributiva deste de alguma maneira se contrape expressivamente ao resultado da disputa

    pelas armas de Aquiles. Pois, uma vez que jax no recebe como prmio as armas do Pelida,

    mesmo ressaltando-se ser ele o melhor entre os dnaos, depois de Aquiles, isso parece gerar

    uma aparente contradio e at provocar ou exigir nos ouvintes ou leitores da obra a simpatia

    do Telamnio, intensificando-se o teor lrico e trgico da passagem, uma vez que seu

    profundo rancor no s justificvel, mas tambm coerente, sobretudo se considerando o

    reconhecimento elevado do prprio valor do heri, como veremos mais frente.

    Vejamos mais uma passagem significativa, ainda presente no Canto XI da Odisseia.

    ' , ', , ' 550 ' .5

    (Odisseia, XI, v. 549-551)

    Nesses versos, vemos o mesmo epteto presente no Canto XVII da Ilada. Mais uma

    vez a primazia do heri referida pelo verbo . Esse o momento em que Odisseu

    encontra a alma de jax, e este lhe recusa a reconciliao. Mais uma oposio se faz: o

    epteto se contrape imagem do heri. Esta ltima descrevendo o personagem coberto pela

    terra, referncia ao seu suicdio, morte indigna na perspectiva guerreira do heri grego. A

    oposio se constri sobretudo pela distino superior de sua aparncia e de seu aspecto,

    , referidos no epteto, imagem suja e maculada pela qual se apresenta. Com efeito, uma

    sugesto bvia, ao menos na perspectiva do heri, de sua honra manchada e conspurcada.

    Logo, mais uma vez se adensa sua supremacia guerreira de sua figura mtica, contrastando-se

    a isso o potencial lrico e trgico da passagem.

    Na sua Ode Nemeia VII, Pndaro, poeta lrico inserido no fim o perodo arcaico grego,

    retrata o heri de acordo com essa mesma concepo, configurada por eptetos claramente

    homricos. A narrativa mtica inserida nesse epincio, segundo um dos traos do prprio

    poeta, ou seja, no constituindo o prprio cerne das odes, mas visando dar sustentao aos

    elogios aos vencedores nelas celebrados, frequentemente, apoiando as mximas, exigentes de

    um modelo moral e religioso adequado, nas quais o poeta alicera admoestaes dirigidas aos

    5 Pois, por causa destas, terra cobria sua cabea, / jax, que em relao tanto ao aspecto quanto aos trabalhos

    eleva-se (v. 550) / dos outros Dnaos, depois do excelente Pelida.

  • 21

    interlocutores do eu-lrico (RAGUSA, 2013, p. 243). Com efeito, a supremacia guerreira do

    personagem, para alm da adequao na ode de Pndaro, serve-nos para reforar essa

    recorrente caracterstica do heri.

    [...] ' . 25 , 6 30

    (Nemeias, VII, v. 24-30)

    Notadamente, a concepo dessa primazia retomada pelo sintagma, o melhor no

    combate, com exceo de Aquiles, . Primeiramente, podemos

    ver que se reitera a sua supremacia relativa ao Pelida, segundo os moldes homricos. Em

    segundo lugar, sobretudo, a retomada da forma do superlativo , que remonta a

    Homero, apesar de manifestar um termo distinto, funciona tambm como superlativo de

    , da mesma forma que (RAGON, 2012, p. 59).

    A partir de todos esses qualificativos, expressos pelos superlativos , ,

    ou pelo verbo , vlido instituir figura de jax a concepo de segundo heri

    supremo entre os Aqueus, ou como visto nas obras gregas, o melhor ou o mais forte depois

    de Aquiles, uma vez que repetidamente a tradio arcaica refora esse perfil mtico do

    personagem.

    Contudo, h quem aponte uma proeminncia guerreira de Diomedes, filho de Tideu,

    sobre aquele heri, apesar de todos os eptetos supracitados, como o caso da anlise de Van

    der Valk. Este convm ser aqui disposto, pois ajudar grandemente a esclarecer a

    compreenso corrente de uma virtude defensiva do Telamnio, como ser vista no decorrer da

    seo.

    Segundo Van der Valk, um estudo cuidadoso da Ilada apresentaria como resultado a

    supremacia guerreira de Diomedes, filho de Tideu, e no do heri de Salamina, quando da

    retirada de Aquiles. O primeiro se torna o heri mais relevante nos Cantos V, VI e VII, e o

    segundo nos VII, que trata do combate singular com Heitor, e nos XIII, XIV e XV, quando da

    retirada dos Aqueus diante do avano Troiano. O autor esclarece seu pensamento 6 Tem cego / o corao a numerosa tropa dos homens. Pois, se lhe fosse (v. 25) / possvel ver a verdade, no

    teria, encolerizado por causa das armas, / o firme jax cravado no corao / a afiada espada: que, sendo o mais forte no combate, com exceo a Aquiles, / levariam com o loiro Menelau para trazer a esposa em ligeiras / naus os impulsos do bom condutor Zfiro (v. 30).

  • 22

    evidenciando que o Tidida combate os deuses, pe em perigo a posio de Troia, rejeita o

    conselho de Agammnon em deixar lion e reagrupa os chefes gregos feridos (VAN DER

    VALK, 1952, p. 269).

    Acrescenta a isso sobretudo os jogos fnebres do Canto XXIII, dos quais participam

    ambos os heris a contender entre si. O combate armado entre os dois no gera resultado

    decisivo, contudo, Diomedes parece receber um prmio distintivo, o que para o autor revela o

    favorecimento de Homero a este heri em detrimento do Telamnio. Isso lhe parece ilustrar a

    proeminncia do primeiro. Tal fato seria um eco da ideia de parcialidade dada aos heris de

    origem jnica ou que a essa regio se relacione, pois, essa a origem de Homero, e assim, os

    personagens oriundos das tribos da Grcia Central majoritariamente seriam colocados em

    posies menos importantes. Contudo, h ressalvas nessa tendncia observada, entre estas,

    obviamente o caso do heri estudado por ns, apesar de ainda inferior a Diomedes (Ibidem, p.

    270).

    Essa tendncia, por exemplo, justificaria, a liderana de jax na retirada dos Aqueus.

    Vista como uma atitude inglria, no foi atribuda a um dos heris favorecidos na obra, uma

    vez que estavam feridos, ou, como no caso de Diomedes, foi impelida por augrios de Zeus.

    Comparando-se o Tidida e o Telamnio, ao primeiro se relacionam aes em momentos nos

    quais os gregos so vitoriosos, j ao segundo, aes de heroica defesa (Ibidem, p. 271-277),

    para ns, inseridas em momentos crticos de avano dos troianos, devido precisamente

    ausncia de Aquiles. Evidentemente, esse contexto das aes dos heris deve ser pesado na

    comparao de ambos, contudo, a viso de Van der Valk nos serve para configurar uma

    imagem muito comum associada a jax, a sua predisposio defensiva, que ser salientada

    ainda nessa seo.

    Prossigamos, ento, ainda tratando dessa mesma perspectiva de caracterizao do

    heri em questo, ou seja, a compreenso de seus atributos a partir da comparao com outro

    heri, mas agora, em relao a Odisseu, nomeado Ulisses na tradio latina.

    Nessa concepo, contrapem-se o Telamnio e Odisseu. De tal oposio, temos o

    primeiro associado ideia de homem do qual se sobrelevam as aes, e o segundo, marcado

    pela proeminncia dos discursos. Um estudo sob tal perspectiva j foi desenvolvido por

    Werner Jaeger em sua obra Paideia, a propor a seguinte atribuio a tais heris: Odisseu e

    jax seriam, respectivamente, mestre da palavra, e [...] o homem da ao (2003, p. 29-30),

    corroborando o que dissemos.

    Para chegar a essa concluso, que destaca uma ntida oposio entre as caractersticas

    desses personagens mticos, esse estudioso se utiliza especialmente do discurso de Fnix,

  • 23

    quando da embaixada a Aquiles, no canto IX da Ilada. A passagem serve especialmente para

    alicerar a base dupla do conceito de aret, , a virtude grega. Vejamos os versos

    correspondentes ao discurso direto de Fnix.

    [...] ' ' ' 540 ' , ' . , ' .7

    (Ilada, IX, v. 538-543)

    A partir desses versos, Jaeger pde afirmar que tais noes, ao e palavra, conjugadas

    representavam o verdadeiro objetivo da educao da nobreza grega primitiva, e logo, ambas

    estariam, ento, em um patamar de igualdade. Assim, ele pde concluir que, ao lado da ao,

    o domnio da palavra legitimava a nobreza do esprito (Ibidem, p. 29-30). Ainda em sua obra,

    esse autor tenta reforar que essa seria a viso dos gregos.

    Com efeito, junto a Fnix na embaixada que objetivava demover Aquiles, estavam

    Odisseu e jax. Para Jaeger, isso fundamental para a estrutura do Canto IX, pois a prpria

    presena destes ilustrava um, a ao, e o outro, a palavra, de modo que a delegao enviada

    reflete precisamente essa dupla virtude grega apresentada pelo tutor de Aquiles. As palavras

    de Fnix, segundo esse estudioso, contrapem os dois conselheiros com o propsito

    especfico de delinear a figura de Aquiles, pois se um personifica a ao, e o outro, a

    palavra; a ambos, ento, ope-se o Pelida, uma vez que s se unem ambas em Aquiles, que

    realiza em si a autntica harmonia do mais alto vigor de esprito e ao (Ibidem, p. 50).

    Isso nos serve para observar os traos peculiares do heri em questo, partindo-se de

    uma perspectiva comparativa, na qual Odisseu elemento imprescindvel. Contudo, esse

    episdio ainda nos d outros indcios dessa caracterizao.

    Homero expe os discursos de Odisseu, de Fnix e de jax, nessa respectiva ordem,

    sem sucesso para comover Aquiles a retornar guerra. No entanto, pode-se observar, de

    forma clara, um elemento significativamente diferente entre os discursos de jax e de

    Odisseu: a extenso. Para o primeiro, Homero dedicou oitenta dois (82) versos (v. 225-306),

    para o segundo, dezenove (19) versos (v. 642-642). Isso nos mostra que, na verso homrica,

    7 O velho Peleu, condutor de cavalos enviou-me a ti / no dia em que enviava para Agammnon, / jovem ainda

    no conhecedor igualmente da guerra (v. 540)/ e das assembleias, uma vez que nisto os homens so notveis. / Por essa razo enviou-me antecipadamente para instruir tudo isso, / a ser tanto orador de discursos quanto executor de aes.

  • 24

    o discurso de Odisseu ao menos quatro vezes maior do que o de jax, caracterizando aquele

    como no mnimo mais prolixo e este, mais direto.

    Com efeito, essa diferena evidenciada por Jaeger parece salutar na tradio arcaica,

    seja oriunda do mito ou das obras homricas. Pndaro, por exemplo, na Ode Nemeia VIII,

    apresenta, textualmente, esse heri caracterizado como fraco orador por um lado, mas bravo

    por outro. Compondo as narrativas mticas que formam a base do argumento do poeta, jax

    chamado de sem-lngua, aglosso (, v. 24), cujo desdobramento figurado de sentido

    expressa precisamente a falta de eloquncia. Mas, ao mesmo tempo, seu corao bravo

    ( ' , v. 24). Esse adjetivo lkimos expressa, segundo mile Benveniste, a

    coragem de enfrentar o perigo sem nunca recuar, no ceder aos assaltos, manter-se com

    firmeza nos combates (1995, v. 2, p. 73). Esse atributo referido na Ilada a vrios

    personagens, inclusive a este heri, contudo, nessa passagem da ode, faz-se evidente a

    contraposio de virtude e fraqueza, ou seja, a enaltecida bravura do heri, prpria da

    associao ao; e sobretudo a eloquncia diminuda, conforme o modelo comparativo dele

    e de Odisseu, apregoado por Jaeger anteriormente.

    A partir desse entendimento do Canto IX da Ilada, reforado pela ode pindrica,

    coerente instituir caracterizao do Telamnio a imagem de um heri que se sobressai pelas

    aes, nitidamente guerreiras, mas a quem escasseia a eloquncia excedente em Odisseu.

    A segunda perspectiva, de certa tradio crtica, e aparentemente reiterada nos estudos

    da obra homrica, compreende o personagem como caracterizado pela robusta compleio

    fsica e pelo fraco intelecto, segundo dispem e rebatem os estudos de Richard Trapp (1961,

    p. 271). Corroborando essa premissa, Rocha Pereira o descreve da seguinte maneira:

    guerreiro forte e persistente, mas que s vale pela fora fsica; o prprio escudo que traz, alto como uma torre, o singulariza como um homem de armas primitivo; o baluarte do Aqueus, que caminha para a luta com um sorriso no seu rosto aterrorizador (2012, p. 76).

    Essa interpretao corrente se faz porque na tradio homrica, esse heri

    caracterizado sobretudo pela sua virtude guerreira, que abrange desde seu porte fsico, pois

    representado como enorme e gigantesco, at a sua habilidade blica. No por menos ele

    referido na obra como o melhor dos aqueus, depois de Aquiles. No entanto, dois aspectos

    dessa virtude guerreira do heri parecem patentes: a rudeza intelectual e a qualidade

    defensiva, depreendidas dos episdios homricos que evidenciam sua preponderncia fsica.

    O primeiro aspecto, j exposto acima, parece evidente, segundo Rocha Pereira e

    muitos estudiosos (apud TRAPP, 1961, p. 271). O segundo j foi pontuado por Agatha

  • 25

    Bacelar (2004) e tambm por Trapp, ainda que com algumas reservas (1961, p. 273). Na

    Ilada, o personagem se torna mais proeminente no primeiro aspecto, devido tanto

    constituio especfica de seu escudo, que sugere um valor mais primitivo, de origem

    marcadamente arcaica e micnica (PEREIRA, 2012, p. 76; VAN DER VALK, 1951, p. 273),

    quanto s interpretaes de alguns smiles que caracterizam o personagem (TRAPP, 1961, p.

    272); e, mais marcante quanto ao segundo, a princpio, porque a retirada de Aquiles da guerra

    acarreta o seu grande, mas no nico, papel de defensor dos gregos, contendo os troianos e

    sobretudo Heitor, quando do combate singular no Canto VII da Ilada, e quando da batalha

    junto s naus nos Cantos XIII, XIV e XV.

    Novamente, as frmulas picas homricas parecem convergir especialmente para esse

    atributo defensivo e protetor, por meio de eptetos e traos caractersticos, que jax possui

    para conter os ataques dos inimigos. Nos Cantos e mais propriamente nas passagens em que

    esto inseridos, conforme os ditames de Rocha Pereira (1984, p. 5), os seus eptetos

    apresentam uma adequao ao contexto e uma melhor caracterizao do heri, indo alm da

    relao com o esquema mtrico e com decorrente hemistquio.

    O primeiro epteto significativo que coaduna essa qualidade muralha dos aqueus,

    , referido, por exemplo, quando Helena ao longe dispe os heris gregos para

    Pramo (Ilada, III, v. 229), ou, sobretudo, quando do combate singular com Heitor (Ilada,

    VII, v. 211). A palavra pode apresentar sentidos concretos, como barreira, muralha, e

    abstratos, como defesa, mas que se inserem dentro de um mesmo campo semntico. Na

    relao com esse heri, tal epteto parece salientar a sua virtude defensiva, uma vez que,

    momentaneamente, para os gregos ele a proteo contra o Heitor que causa inmeras mortes

    ao aqueus.

    Essa caracterstica se faz perceber no texto homrico tambm pelas suas armas das

    quais se sobressai o seu escudo, que se relaciona mais uma vez ao prprio epteto supracitado.

    Seu escudo assemelha-se a uma torre, (Ilada, VII, v. 219; XI, v. 485;

    XVII, v. 128). A comparao no se d apenas para apresentar a arma de jax com um

    formato diferente, ela refora a sua potncia defensiva e, pela sua singularidade, o seu

    possvel valor primitivo. A tradio homrica pe uma caracterstica essencial ao escudo do

    heri, pois h nele bronze e sete camadas, (Ilada, VII, v. 220), e essas

    camadas so de couro taurino, (Ilada, VII, v. 222-223). Essa

    singularidade do escudo parece acentuar os dois aspectos comuns atribudos virtude

    guerreira de jax, tanto o seu valor primitivo, configurando o personagem como brusco, e da

  • 26

    inculto; quanto sua excelncia defensiva e protetora, ambos salientados pela constituio

    robusta e nica de seu escudo.

    Essa compreenso validade ao considerarmos o que diz Jean-Pierre Vernant, quando

    aponta o papel executado pelas armas na figura do heri: em combate, o personagem se faz

    distinto pelas armas, uma vez que o esplendor que dimana do corpo do heri no resulta

    tanto do cativante fascnio da sua juventude, vem antes do fulgor do bronze de que se reveste,

    do seu capacete (apud MOSS, 1989, p. 48). Assim, torna-se bvio que toda a descrio

    singular do escudo de jax reaa seu valor guerreiro, ademais sua opulncia fsica e sua

    qualidade defensiva na conteno dos troianos.

    O epteto de muralha dos aqueus tambm frequentemente vem acompanhado de um

    outro qualificador, que lhe acentua o valor primitivo e defensivo. , ou seja, ingente,

    monstruoso em tamanho (Ilada, III, v. 229; VII, v. 211), corroborando, assim, um segundo

    epteto significativo para isso. Essa qualidade do heri que geralmente acompanha o epteto

    de muralha, transfere-lhe tambm essa propriedade, construindo a imagem de uma magna

    muralha. E tanto quanto o heri imenso, robusto seu escudo: coaduna-se, assim, a partir do

    exposto, o carter defensivo, da, protetor; e o primitivo, da, brusco.

    Um episdio significativo que ope fora bruta e inteligncia est inserido no Canto

    XXIII da Ilada: a disputa entre o personagem em questo e Odisseu. Inserida nos jogos

    fnebres em honra a Ptrocles, a contenda realizada em uma luta sem armas, e sobretudo

    relevante, no apenas por contrastar duas noes opostas, mas por evidenci-las a partir de

    seus maiores representantes. Exatamente por isso o Telamnio caracterizado por enorme,

    mgas (, v. 708; 722) e o Laertida, seu adversrio, por muito inteligente, polmetis

    (, v.709) e por muito artificioso, polymchanos (, v. 723). A contenda

    termina em empate, pela preocupao de Aquiles de que ambos possam acabar machucados,

    prejudicando a expedio grega. Contudo, Odisseu parece ter se sobreposto

    momentaneamente ao seu adversrio, como aponta Hopkinson (2000, p. 12), pois mesmo em

    se tratando de uma disputa fsica, somente Odisseu foi capaz de derrubar o seu oponente. E

    isso foi alcanado atravs de uma astcia, dlos (, v. 725), de um golpe atrs do joelho

    que fez o adversrio ingente se dobrar e cair. Esse fato parece, por um lado, realar a

    soberania da inteligncia sobre a fora, e por outro antecipar at a vitria de Odisseu sobre seu

    adversrio na disputa pelas armas de Aquiles. Ento, ao relacionarem o Telamnio pura

    fora fsica, e considerando-se outros elementos j mencionados, muitos crticos acabam

    atribuindo a este a imagem de brusco ou de primitivo.

  • 27

    Em relao a essa ideia, Trapp discorda veementemente, pelo menos quanto

    interpretao dos smiles evidenciados por alguns estudiosos como determinantes da rudeza

    intelectual do heri. Esse autor em seu estudo elenca quatro crticos literrios que seguem esse

    pensamento: C. M. Bowra, que afirmou jax ser nada mais que um homem de ao, com

    inteligncia abaixo do padro heroico; Gilbert Highet que declarou Homero ter atribudo a

    este personagem a comicidade; Sidney Hook que acredita existir um espao reservado no

    circo para esse heri; e M. W. Mansur que o caracterizou como fraco acima dos ombros

    (1961, p. 271).

    Os dois smiles mais ressaltados por esses estudiosos para tal conjuntura se encontra

    no Canto XI, versos 540-574, da Ilada, quando do recuo do heri frente aos troianos,

    promovido por ao de Zeus. Esse chefe grego de Salamina, quando atacado pelos troianos

    nesse episdio, comparado a um leo afugentado por fazendeiros e ces, e a um asno

    teimoso acossado por crianas que dano algum conseguem infligir. Desses smiles, no

    atentando ao contexto, ao menos dois dos quatro autores depreendem a mesma interpretao

    acerca da caracterizao do personagem em questo: bravo como um leo e estpido como

    um asno. Preferimos concordar com a anlise de Trapp, sobretudo quanto ao segundo smile.

    A imagem do asno destaca um trao peculiar do heri: a resistncia na batalha, inclusive,

    porque os troianos no conseguem feri-lo de forma efetiva, mesmo quando ele est s frente

    dos gregos (Ibidem, p. 272). Permitimo-nos desdobrar esse sentido. Parece-nos que essa

    caracterizao tambm serve para contribuir para a qualidade defensiva, exposta por ns

    anteriormente, pois para uma efetiva conteno dos troianos, Homero conferiu ao heri a

    resistncia e a coragem singulares de manter-se firme em combate. O prprio papel do escudo

    dentro desse episdio reitera esse entendimento, o qual, mencionado duas vezes no fragmento

    (v. 565; 572), impede as lanas troianas de encontrarem seu objetivo, e resguardam seu corpo,

    ileso. Diferentemente de vrios importantes heris, jax no chega a ser ferido por nenhum

    troiano.

    Ademais, esse trao defensivo se adensa a partir de uma perspectiva coletiva,

    observado em seu discurso proferido a Aquiles no Canto IX da Ilada. No episdio em

    questo, o Telamnio tenta convencer o Pelida, comovendo-o por argumentos baseados na

    philtes, , na amizade grega, tanto aos outros gregos, (v. 630),

    quanto em relao aos membros da embaixada, marcadamente mais estimados, (v.

    642). Isso fica claro, segundo Benveniste, que define esse sentimento como as relaes

    interpessoais de parentes, aliados, amigos e todos os que esto imbudos, de maneira

    indissocivel, de disposies recprocas vinculados ao respeito, ou ao pudor, ou reverncia,

  • 28

    ados, , e ou at ao afeto, que se tornam singulares dentro de um grupo especfico, como

    na famlia, ou no exrcito, ou em uma comunidade maior, quer na relao entre pares ou entre

    superiores e inferiores, inspirando sentimentos de misericrdia, piedade, lealdade, decoro

    coletivo etc. (1995, v. 1, p. 46). Esse sentimento do heri, expresso nesse episdio, parece-nos

    genuno, sobretudo ao considerarmos seus esforos em defesa das naus gregas quando, do

    cadver de Patrcles, assim, sob o ponto de vista dos que lhe so iguais e tambm inferiores.

    Marcadamente podemos coadunar a isso, sob as devidas circunstncias, uma qualidade

    defensiva.

    Com efeito, possvel conferir caracterizao de jax a imagem de um heri

    defensivo, considerando outras circunstncias presentes na Ilada. Os relevantes episdios,

    como o combate singular com Heitor (Canto VII), a defesa das naus gregas (Cantos XII-XV),

    a proteo ao corpo de Ptrocles (Canto XVII), parecem evidenciar aes defensivas,

    sobretudo, se considerarmos seu estatuto de melhor depois de Aquiles, o que acarreta um

    papel proeminente na conteno dos avanos troianos, quando da ausncia do Pelida. No

    entanto, entenda-se que essa percepo no deve reduzir o personagem a um papel

    exclusivamente protetor, mas que, a partir do desenlace dos episdios, isso corrobore para

    uma visvel predisposio de virtude defensiva, proeminente para um heri que mais se faz

    valer, quando do avano ininterrupto dos troianos.

    Contudo, quando tratamos o personagem dentro da perspectiva do episdio da disputa

    pelas armas de Aquiles, alm do que foi mencionado, podemos evidenciar um trao essencial

    na sua caracterizao: a ira. Esse elemento recorrente na tradio de mito do Telamnio,

    pois apesar de referido brevemente na Odisseia, retomado por Pndaro, e sobretudo por

    Sfocles e Ovdio, cerne do estudo de caso a que nos propomos. Tal marcada caracterstica,

    inserida no contexto do episdio em questo, exerce nele um papel crucial, pois impulsiona

    todas as aes do heri, como veremos nas sees seguintes.

    A ira de jax se estrutura coerentemente dentro do contexto agonstico das obras

    homricas, uma vez que emula de forma ntida e sob circunstncias semelhantes a prpria

    fria de Aquiles, argumento maior da Ilada. No caso do Pelida, a honra lhe conspurcada a

    partir da tomada de Briseida por Agammnon, o que representava a sua desvalorizao como

    heri devido privao de sua honraria. No caso do heri de Salamina, o texto homrico

    parece sugerir uma situao semelhante, mesmo no apresentando o lxico preciso, com a

    exceo de que a honraria representada pelas armas de Aquiles e que no lhe foi tomada,

    mas lhe foi negada, o que na perspectiva do heri deprecia seu valor guerreiro.

  • 29

    Contudo, essa interpretao parece vlida, uma vez que essa ser a perspectiva de

    alguns autores ps-homricos. Ao associar-se a situao do heri de Aquiles temos que

    entender como a ira se manifesta a partir de uma honra tida como conspurcada. Esta ltima se

    alicera em conjunto de outros fatores8, mas, no caso em questo, sobretudo na reconhecida e

    patente virtude guerreira do heri, constituda de todos os atributos estudados e mencionados

    anteriormente.

    Observemos, ento, o seguinte: a concepo de honra para os gregos do perodo

    arcaico ainda estruturada sobre duas noes: a honraria, gras (), e a honra, tim

    (). Acerca disso nos esclarece Benveniste: a primeira, mais restrita epopeia, representa

    uma vantagem material atribuda pelos homens, tanto como privilgio de uma condio

    social, quanto como recompensa de um grande feito; a segunda, utilizada abundantemente em

    vrias pocas distintas, representa a dignidade de uma determinada condio social, de origem

    divina e conferida ao acaso, constitutiva de seu quinho pessoal concedido pelo destino (1995,

    v. 2, p. 43-52). Tudo isso nos permite depreender o seguinte entendimento: inserido no

    contexto da Ilada, o ato de reconhecer o valor de um heri, seja por meio de honrarias e

    recompensas, ou dos prprios respeito e reverncia, legitimar a sua honra e as virtudes

    constitutivas dela. Assim, ferir a honra de um heri significa desprezar o seu valor, e

    sobretudo na obra homrica, isso significa negar-lhe a sua condio inata, conferida pelos

    deuses. Aristteles nos abona tal ideia, a desonra algo de desmedido, e o desonrante

    desestima, pois o que tem nenhum valor possui nenhuma honra ( , '

    , Retrica, 1378b, 29-30).

    Como ser melhor explicado adiante, ao nosso ver, o episdio da disputa pelas armas

    de Aquiles parece se estruturar em dois elementos-base, virtude e ira, em que aquela sustenta

    a honra. Estes se articulam de forma a no deixar possvel a apreciao de um sem a

    compreenso do outro, e, por decorrncia, a apreenso de sua unidade textual. Contudo, a

    disposio dos componentes virtude e ira parece ainda se desdobrar, a partir dos mesmos, em

    outras duas noes complementares, de dor e de sofrimento, que constroem com aquelas a

    organicidade semntica do texto.

    Trataremos agora da ira uma vez que juntamente com o elemento, virtude, est

    presente na caracterizao do personagem estudado, na tradio do mito que trata do episdio 8 Segundo Vernant, a honra, a tim grega, designa o valor que reconhecido a um indivduo, ou seja, ao

    mesmo tempo, as marcas sociais de sua identidade: seu nome, sua filiao, sua origem, seu estatuto no grupo com as honras que lhe so ligadas, os privilgios e a considerao que tem direito de exigir, a sua excelncia pessoal, o conjunto das qualidades e dos mritos beleza, vigor, coragem, nobreza do comportamento, domnio sobre si que, em seu rosto, em suas vestimentas, em seu comportamento, manifestam aos olhos de todos seu pertenciamento elite dos kalo kagatho, os belos-e-bons, dos ristoi, os excelentes (2009, p. 184).

  • 30

    da disputa pelas armas de Aquiles. Sobre a virtude, tudo o que foi mencionado anteriormente

    j se mostra suficiente para a nossa elucidao.

    Prossigamos com a ira. Esse sentimento evidente tanto no lxico expresso nos textos,

    e em seus correlatos semnticos, quanto no comportamento do personagem, disposto nos

    prprios temas desenvolvidos, quando da caracterizao de jax nas obras apontadas por ns

    como referncia da tradio, Pndaro e sobretudo Homero.

    Com efeito, Homero j o representava tomado de ira. Ainda no Canto XI da Odisseia,

    quando da narrativa de Odisseu que descreve o seu encontro com jax no Hades, podemos

    observar esse sentimento representado explicitamente pelo verbo . Esse verbo que

    significa excitar a bile, encolerizar, por duas vezes usado para se referir a jax, por meio de

    seu particpio perfeito na voz mdia, ao nosso ver, e no passiva. Faz-se necessrio ressaltar

    que a voz mdia traz uma nova carga semntica ao verbo, e por consequncia em sua forma

    nominal, revelando que aquele que pratica a ao, pratica-a para si mesmo, em seu interesse,

    ou a ao se exerce na esfera do sujeito, que est envolvido subjetivamente nela, (RAGON,

    2011, p. 206). A relao desse verbo com , bile, e por extenso clera, ira, ressalta o

    aspecto fsico do ato de irar-se, e a voz mdia enfatiza que o heri se encoleriza para si

    mesmo, ou a partir de si, desenvolvendo-se em seu interesse, uma vez que o faz a partir de um

    julgamento sobre seu valor, um pensamento que lhe prprio. Vejamos a primeira passagem.

    ' , , 545 ' , .9

    (Odisseia, XI, v. 543-547)

    O primeiro particpio aparece no verso 544, referindo-se a alma de jax,

    , encolerizada por causa da vitria. Isso nos revela tambm o motivo pelo qual a

    clera se desenvolve, a vitria de Odisseu sobre o Telamnio, injusta na perspectiva do

    ltimo, justificando a voz mdia devido participao do derrotado na ao de se enfurecer.

    Assim, tal entendimento nos impede de retirar da ao o seu envolvimento pessoal, e o seu

    possvel julgamento acerca de tal resultado em oposio ao dos juzes referidos por Odisseu,

    entre os quais figura a deusa Atena. Isso significa dizer que jax se encoleriza, uma vez que

    9 Somente a alma de jax Telamnio /ficara ao longe afastada, encolerizada por causa da vitria, que eu

    conquistei sendo julgado junto aos navios, (v. 545) / por causa das armas de Aquiles: a me veneranda disps, / julgaram os filhos dos Troas e Palas Atena.

  • 31

    reconhece atribuir a si a supremacia guerreira, expressa textualmente no seu recorrente epteto

    de melhor do Aqueus, depois de Aquiles. Seu julgamento seria considerar a honraria, as armas

    do Pelida, como constituinte de sua honra. Isso fica mais evidente quando agregamos isso aos

    versos de Pndaro que descrevem as armas de Aquiles como a maior honraria (

    , Nemeias, VIII, v. 25), uma vez que provm do melhor guerreiro. Certamente, h uma

    coerncia no pensamento de jax em se ver desonrado, pois o superlativo que define a

    grandeza das armas se adequa aos superlativos e que retratam a excelncia

    do heri. Evidentemente que o ultraje lhe percebido ao no se reconhecer seu valor

    condizente honraria, e dessa forma, depreciando-o, o que justifica seu estado colrico.

    Vejamos a segunda meno a esse estado:

    , , ' 555 ' , , ' . 560 ' , , ' . , ' , ' . ' , 565 .10

    (Odisseia, XI, v. 553-567)

    O segundo particpio aparece no verso 565, referindo-se a jax, ,

    evidenciando seu estado, quando se dirige ao rebo, depois da investida de Odisseu, negando

    a este a reconciliao. Essa ira, que se apresenta como um rancor profundo, um trao to

    marcante na caracterizao de jax, que at Odisseu, nos versos 554 e 555, ressalta-o como

    capaz de permanecer no heri, mesmo aps a sua prpria morte. Para isso, evidencia-se o

    estado do heri reiterando junto ao particpio, encolerizado, o termo, ira ( v. 554). Mais

    10

    jax, filho do excelente Tlamon, no estavas disposto, / nem tendo morrido, a haver de esquecer-te do rancor por mim por causa das armas / funestas: os deuses impuseram as desgraas aos Argivos (v. 555), pois, tu, torre para estes, pereceste. Os Acaios por ti, / tal qual por Aquiles Pelida, / tendo morrido, afligiram-se completamente. Nenhum outro / responsvel, seno Zeus que detestou o exrcito dos Dnaos /lanceiros, terrivelmente, e imps sobre ti [tal] destino (v. 560). / Mas avana at aqui, chefe, a fim de que palavra e nossa histria / escutes, doma o esprito e a o mpeto muito viril. / Assim falava, e a mim nada respondeu, caminhou entre as outras / almas em direo ao rebo de corpos mortos. / E ali, mesmo que encolerizado, dirigiria a palavra, ou eu a ele (v. 565). Mas para mim o corao no peito querido desejou / ver as almas de outros mortos.

  • 32

    uma vez podemos reforar tal caracterstica ao compararmos esses fragmentos ao verso 25 da

    Ode Nemeia, de Pndaro, que tambm delineia o estado colrico com um particpio do mesmo

    verbo , contudo, no aspecto aoristo: encolerizado por causa das armas (

    ) (Cf. p. 20). Agrega-se a isso, o apelo de Odisseu ao heri de Salamina, no verso

    562, que reitera essa noo e amplifica as caractersticas da ndole de jax, delineando-o

    possivelmente at como orgulhoso de sua supremacia guerreira uma vez que na expresso,

    traduzida de forma mais etimolgica, mpeto muito viril, agnora thymn ( ), o

    adjetivo pode se relacionar tambm, por extenso de sentido, s noes de orgulho, altivez e

    arrogncia. Essa presuno de uma virtude reconhecidamente superior, na perspectiva do

    personagem, acarreta exatamente o sentimento de ira, que decorre da percepo da aparente

    injustia no julgamento das armas de Aquiles.

    No descabido observar esse orgulho sugerido, pois alguns episdios parecem

    reiterar tal possibilidade de ndole ao Telamnio. Trapp (1961, p. 4) aponta como uma das

    suas proeminentes caractersticas a confiana em si mesmo, observada tanto em sua

    declarao de coragem e de esperada vitria sobre Heitor (Ilada, VII, v. 191-199), quanto em

    seu sorriso diante do adversrio, expresso durante o combate singular com Heitor (Ibidem,

    VII, v. 211-213). A isso acrescenta-se o fato que de sua virtude guerreira o permitiu muitas

    vezes combater sozinho, sobretudo, na defesa dos gregos, o que corrobora a ideia,

    disseminada por muitos escoliastas, de que jax fosse inclusive pouco ajudado pelos deuses,

    se o compararmos a Diomedes, por exemplo, um dos grandes heris cuja excelncia

    tambm desenvolvida na Ilada (VAN DER VALK, 1952, p. 271)

    O aspecto trgico do episdio homrico se faz valer especialmente a partir da funo

    complementar ocupada pelos sentimentos de dor e de sofrimento que depreendemos sentir o

    heri. A ligao entre ira e dor no incomum, ao menos se tomamos como referncia o caso

    de Aquiles, em sua querela com Agammnon no Canto I da Ilada, e a compreenso de

    Aristteles quanto s emoes, na Retrica. Vejamos nos versos abaixo a descrio dos

    sentimentos de Aquiles, fundamental para nosso estudo, uma vez que a situao desse heri

    perante a deciso de Agammnon modelo, como j percebemos, para o caso de Telamnio:

    : , , 190 , , . ,

  • 33

    , [...] 11 (Ilada, I, v. 188-194)

    A primeira coisa a se observar a participao do sentimento de dor, (v. 188),

    como emoo inicial e desencadeadora das aes que a sucedem. por meio da dor que

    Aquiles internamente se agita. Esse conflito interno o faz cogitar executar duas aes

    distintas: a primeira a de levantar as armas e matar Agammnon; a segunda, a de cessar a

    ira e dominar o seu mpeto. A princpio essas aes esto no mbito da possibilidade,

    primeiro, por estarem sinttica e semanticamente ligadas ao verbo , ponderar,

    segundo, pelo prprio modo expresso, o optativo. V-se a relao direta, na passagem, entre

    e , pois a dor nasceu e, por consequncia, agora, o heri pensa em suster a ira.

    Assim, a dor, se no for tomada junta ira como componente de um mesmo conjunto, implica

    esse prprio sentimento de clera. O texto parece estruturar esse sentido coadunando esses

    dois elementos.

    Um outro ponto convm ser aprofundado. Se antes tnhamos o ato de erguer as armas

    e matar Atrida como um fato possvel, ponderado por Aquiles, nos versos seguintes vemos

    sua realizao parcial a partir do modo indicativo do verbo . Pois durante o ato de sacar

    ainda inacabado que Atena chega at Aquiles para impedi-lo de executar aquilo sobre o qual

    ele havia refletido. A deusa mesma revela essa informao, eu cheguei, havendo de cessar

    teu mpeto ( , v. 207). Um mesmo verbo usado na

    ponderao de Aquiles e nas palavras de Atena, o verbo , que tem o sentido de reter,

    fazer cessar, usado na primeira meno no optativo, e na segunda em sua forma nominal do

    particpio futuro.

    Assim, no caso de Aquiles, ele mesmo no conteve a ira gerada pela dor, e que

    resultaria em uma ao violenta e significativa, prpria do heri: erguer as armas e utiliz-las

    para seu propsito primeiro. Em especial ao caso de Aquiles, a deusa que o contm,

    evitando-se que o heri cometesse um erro. Como sabemos pelo contedo do Canto XIX da

    Ilada, o erro, em verdade, ser atribudo a Agammnon e, em parte, admitido por ele,

    referindo-se privao dos prmios do Pelida (v. 89-89, XIX). No entanto, o chefe dos gregos

    confere esse ato interferncia de uma divindade grega que personifica o prprio erro: te

    (). Como divindade responsvel pela ao contra o Pelida, ela referida ao menos uma

    11

    Assim falou. A dor nasceu no Pelida, e dentro dele o corao, / no peito hirsuto, pesou duas coisas, / ou, precisamente, tendo retirado sua aguda espada de junto da / coxa, ergueria as armas e mataria o Atrida, / ou cessaria a ira e conteria o nimo. / Enquanto pensava em tudo no esprito e no nimo / E sacava da bainha a grande espada, Atena chegou [...]

  • 34

    vez no discurso de Agammon (, v. 91, XIX). Como um ato de erro, ela referida outra

    vez (, v. 88). Com efeito, para a literatura grega do perodo arcaico, a te definida,

    segundo Richard Doyle, como uma espcie de cegueira, paixo ou desatino que prejudica o

    bom senso e a racionalidade (1970, p. 295). Certamente, Atena impede o Pelida de cometer

    um potencial erro do heri, impulsionado por uma paixo que sustenta a relao significativa

    e clara que existe entre dor e ira, as quais agem como desencadeadores das aes dos

    personagens.

    Aristteles novamente nos abona esse entendimento, especialmente se considerarmos

    a retomada desse episdio das armas de Aquiles pela posterior literatura clssica. Mesmo que

    Aristteles se utilize de outro lxico, que, contudo, est ainda inserido no campo semntico

    dos vocbulos homricos, podemos ver um paralelismo traado entre dor e ira: ira um

    desejo de vingana explcita com a participao do sentimento de dor por causa de explcita

    desestima ( [] ,

    Retrica, 1378a, 30-31).

    Validamente, pudemos observar a relevncia dessa ira manifestada na figura de jax,

    dentro do contexto da Odisseia, que em seu Canto XI trata brevemente do episdio da disputa

    pelas armas de Aquiles. Essa caracterizao do heri exige o entendimento de honra

    vinculada virtude grega arcaica. Desta ltima, jax se sobressai pelas qualidades de um

    heri defensivo, sob certas circunstncias, servindo-lhe para isso sua singular resistncia e

    firmeza em combate, e tambm de uma primazia guerreira entre os gregos superada apenas

    por Aquiles.

    1. 2 A TRADIO CLSSICA

    Nesta seo, contextualizaremos as obras Aias, de Sfocles e Metamorfoses, de

    Ovdio, sobretudo seu Livro XIII, com o objetivo de reconhecer na caracterizao do

    personagem jax, sob a perspectiva das noes de ira e de virtude, elementos tanto novos

    quanto retomados da tradio arcaica. Com essa finalidade, apresentaremos estudos que

    exponham as linhas gerais de interpretao das obras, especialmente, aqueles que de alguma

    maneira contribuam para a nossa pesquisa com assunto relacionado caracterizao do

    personagem estudado, ou intertextualidade entre as obras analisadas e a tradio arcaica.

  • 35

    1. 2. 1 Aias de Sfocles

    A pea, Aias, foi escrita por Sfocles no perodo Clssico da literatura grega, que

    ocorre entre os sculos V e IV a. C, ou mais precisamente no primeiro destes, o chamado

    sculo de Pricles. Isso implica dizer que nessa poca se insere o maior nvel da produo

    artstica e intelectual da cultura grega dentro da nomeada Antiguidade Clssica. nesse

    momento em que: a escrita encontra seu apogeu, exercendo fora sobre oralidade arcaica; a

    tirania d lugar democracia; a filosofia desenvolveu-se iniciando uma nova era; a literatura

    de ento encontra seu auge no teatro trgico; e a cidade grega, a , se torna o palco dessas

    transformaes, e a mais proeminente delas foi, sobretudo, Atenas (MARQUES JNIOR,

    2008, p. 12).

    Com efeito, a literatura dessa poca parece direcionada para a cidade, especialmente

    devido ao estabelecimento de uma vida poltica organizada e assentada aps a vitria sobre os

    persas (ROMILLY, 1984, p. 73). A participao na vida poltica, crescente desde meados do

    perodo arcaico, cristaliza-se aps o confronto entre gregos e persas, e acaba fomentando nos

    poetas uma maior conscincia do seu lugar na cidade A influncia desse fato pode ser

    ilustrada pelos grandes gneros produzidos na poca: na lrica, os muitos poemas de

    Simnides, considerado cantor nacional; na tragdia, Os Persas, de squilo; na histria,

    Histrias, de Herdoto.

    Essa conscincia poltica, no sentido estritamente grego, ou seja, ligada cidade,

    tambm preponderante na tragdia, acima de tudo porque as peas que compunham esse

    gnero eram encenadas em concursos que ocorriam durante os festivais dionisacos, logo,

    inserindo-se em um rol de cerimnias de carter religioso e tambm cvico. Em decorrncia

    de todos esses fatos, R. Janko afirma que o teatro tambm seria um lugar, onde os cidados

    podiam refletir sobre questes polticas, e no qual muitos poetas problematizavam modelos de

    cunho moral, social e religioso, atualizando-os ao seu tempo (apud PEREIRA, 2012, p. 394-

    395). Ao trazer cena um heri mtico, que encarna as tradies de um passado, no qual se

    insere, diante de novas formas de pensamento, a tragdia questiona e pe em discusso os

    valores heroicos e suas representaes religiosas antigas a partir do evidente contraste que se

    eleva desse confronto entre o passado e o presente (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 2011, p.

    4-10).

    Contudo, acima de seu carter religioso e cvico, sobressai-se seu valor literrio cuja

    base se sustenta principalmente na carga esttica que a obra executa. A tragdia grega,

    segundo Aristteles (Potica), teria como finalidade primeira causar catarse, , uma

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    ideia de purgao ou purificao esttica, por meio de duas emoes necessrias para isso: a

    piedade ou compaixo, leos (), e o temor, phbos (). Ainda prossegue em sua

    obra expondo que isso seria efetivamente alcanado a partir de alguns recursos desenvolvidos

    pelo prprio autor, entre os mais relevantes, quando a ao representada fosse completa, de

    unidade estruturada e desenvolvida por personagens que passariam, sobretudo, da felicidade

    infelicidade, atravs de um erro, hamarta (), que decorre no de um vcio de carter,

    mas, segundo a interpretao de alguns estudiosos (PEREIRA, 2012, p. 402), de um

    desconhecimento, agnia ().

    Coerente com muito desses conceitos aristotlicos que lhes so posteriores, os autores

    trgicos que mais obtiveram xito nas apresentaes desses festivais, e por isso mais

    renomados, so squilo, Sfocles e Eurpides, de quem detemos obras ainda completas. Alm

    desse fato, seu talento permite discernir seus estilos prprios que nos ajuda a contrastar a

    forma como compunham suas obras. Dentre esses, interessa-nos Sfocles, objeto de estudo

    desta seo.

    Apesar de esse autor ter produzido vrias peas das quais temos apenas fragmentos ou

    ttulos mencionados em obras de outrem, sobreviveram apenas sete peas trgicas inteiras, e

    nas quais, inclusive, possvel reconhecer um padro estilstico recorrente: jax (),

    aparentemente a mais antiga, Antgona (), As Traqunias (), dipo Tirano

    ( ), eleita a tragdia mais bela por Aristteles, segundo os seus critrios

    adotados, Electra (), Filoctetes () e dipo em Colono (

    ).

    Apesar de muitos serem os tratamentos literrios prprios de Sfocles, a predisposio

    a uma construo mais marcante do carter dos personagens geralmente ressaltada por

    vrios estudiosos. Junito de Souza Brando, por exemplo, afirma que enquanto squilo

    elabora suas personagens em funo da fbula, Sfocles elabora a fbula em funo das

    personagens, de modo especial da personagem central, o protagonists (2007, p. 43). Na

    perspectiva desse estudioso isso demonstra o papel significativo da caracterizao das figuras

    na compreenso das obras desse autor. A isso Rocha Pereira acrescenta que contrariamente ao

    que faz squilo, por exemplo, que prefere apresentar situaes trgicas, Sfocles o autor que

    concen