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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA UFBA INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E CULTURA MICHEL SILVA GUIMARÃES UMA ODISSEIA BOLIVIANA: RAPSÓDIA, ÊXODO E IDENTIDADE NO TEXTO DRAMÁTICO LA ODISEA, DE CÉSAR BRIE Salvador 2015

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA UFBA

    INSTITUTO DE LETRAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LITERATURA E CULTURA

    MICHEL SILVA GUIMARES

    UMA ODISSEIA BOLIVIANA:

    RAPSDIA, XODO E IDENTIDADE NO TEXTO DRAMTICO LA ODISEA,

    DE CSAR BRIE

    Salvador

    2015

    http://www.ufba.br/

  • 2

    MICHEL SILVA GUIMARES

    UMA ODISSEIA BOLIVIANA:

    RAPSDIA, XODO E IDENTIDADE NO TEXTO DRAMTICO LA ODISEA,

    DE CSAR BRIE

    Dissertao apresentada ao Programa de

    Ps-Graduao em Literatura e Cultura da

    Universidade Federal da Bahia como

    requisito parcial para obteno do ttulo de

    Mestre.

    Orientadora: Profa. Dra. Luciene Lages

    Silva.

    Salvador

    2015

  • 3

    MICHEL SILVA GUIMARES

    UMA ODISSEIA BOLIVIANA:

    RAPSDIA, XODO E IDENTIDADE NO TEXTO DRAMTICO LA ODISEA,

    DE CSAR BRIE

    Dissertao apresentada ao Programa de

    Ps-Graduao em Literatura e Cultura da

    Universidade Federal da Bahia, como

    requisito para obteno do grau de Mestre

    em Literatura e Cultura.

    rea de concentrao: Estudos de Teorias e

    Representaes Literrias e Culturais.

    Data de aprovao:

    Salvador, 19 de maro de 2015.

    Componentes da Banca Examinadora:

    _______________________________________________

    Profa. Dra. Luciene Lages Silva (UFBA/XXXX)

    (Orientadora)

    _______________________________________________

    Prof. Dr. Mrcio Ricardo Coelho Muniz (UFBA)

    (Membro)

    _______________________________________________

    Profa. Dra. Sara del Carmen Rojo de la Rosa (UFMG)

    (Membro)

  • 4

    Aos meus pais, Ida e Manoel, pelo amor e pelo incentivo para

    seguir em frente, mesmo diante de todas as adversidades.

    As minhas amigas-irms, Cludia Santos de Jesus e Viviane de Jesus

    Ferreira, cujo apoio e companheirismo incondicionais, em todas as

    horas, facilitaram a minha caminhada e cuja fraternidade me livra da

    solido de ser filho nico.

    Ao meu melhor e mais antigo amigo, Adilson Santos de Souza, por

    dividir comigo os sonhos e os pesadelos desta vida.

    Ao Csar Brie cuja Odisseia me levou a navegar por uma

    maravilhosa aventura.

  • 5

    AGRADECIMENTOS

    A Deus, por ter me sustentado nos momentos mais difceis da minha vida.

    A minha amada Orientadora, Profa. Dra. Luciene Lages Silva, por ter compartilhado

    deste sonho comigo e me ensinado a levar uma vida acadmica de forma leve.

    As minhas amigas, Amanda Reis, Ana Paula Andrade, Carolina Ferreira, lide Elen

    Santana, Ellen Figueiredo, Elzia Bencio, Fernanda Machado e Talita Rocha e Thiara

    de Deus, pela amizade e companheirismo dentro e fora da vida acadmica.

    A linda famlia que a vida me deu, Dona Elizabete, Eliana, Jeferson e Jamile, pelo amor

    e pela cumplicidade que compartilhamos.

    As minhas companheiras de mestrado, Gabriela Andrade, Diandra Souza, Lucila Vieira

    e Pmela Moura, pelo carinho e companhia nos momentos de riso e de desespero.

    As minhas prozinhas do AliB, Profa. Me. Ana Regina Teles, Profa. Dra. Jacyra Mota,

    Profa. Dra. Marcela Paim, Profa. Dra. Silvana Ribeiro e Profa. Dra. Suzana Cardoso por

    terem me dado rgua e compasso para seguir minha vida acadmica

    Profa. Dra. Mrcia Paraquett pela paciente orientao enquanto tutora na disciplina

    Estgio Supervisionado e por todas as orientaes que levarei ao longo de minha vida

    profissional.

    s professoras Dras. Cleise Mendes, Florentina de Souza e Mrcia Paraquett cujas

    disciplinas me ajudaram a tecer minha dissertao.

    Profa. Dra. Cssia Dolores Lopes por me encaminhar nas veredas do drama.

    Profa. Dra. Jlia Morena Silva da Costa por resgatar em meu corao o amor ao

    ensina e a pesquisa em lngua espanhola e por ter me apresentado, metonimicamente, ao

    Csar Brie.

    Ao Programa de Ps-Graduao em Literatura e Cultura, principalmente aos

    funcionrios Ricardo Luiz dos Santos Jnior e Thiago Rodrigues, que pacientemente

    atendiam s minhas solicitaes e forneciam as orientaes acadmicas.

    Aos professores do programa de Ps-Graduao em Literatura e Cultura, pela

    aprendizagem competente.

    A todos os aqui citados e aos no citados que de alguma forma, direta ou indiretamente,

    colaboraram para que o meu sonho de cursar o Mestrado fosse alcanado.

    Obrigado!

  • 6

    Tenho vinte e cinco anos

    De sonho e de sangue

    E de Amrica do Sul

    Por fora deste destino

    Um tango argentino

    Me vai bem melhor que um blues

    (BELCHIOR. A Palo Seco)

  • 7

    RESUMO

    Esta dissertao, atravs do cotejo de trs edies do texto dramtico La Odisea (2007,

    2009, 2013), de autoria do dramaturgo Csar Brie (1954 ), analisa dentro do texto

    dramtico as temticas do american dream e das migraes dos latinos americanos

    rumo aos Estados Unidos, das relaes identitrias estabelecidas e de como a eleio da

    Odisseia homrica e de seu heri, Ulisses, contribuem para explorao dessas temticas.

    As anlises foram realizadas, sobretudo, a partir do operador de leitura rapsdia, teoria

    criada por Jean-Pierrre Sarrazac, terico do drama, na dcada de 1980. Junto ao cotejo

    estabelecido com a Odisseia, foram analisadas as incluses e excluses de cenas e

    passagens operadas no texto aps o evento de 24 de maio de 2008 ocorridos em Sucre,

    Bolvia, no qual camponeses que vo cidade recepcionar o presidente Evo Morales,

    em um ato racista, foram hostilizados pela populao local, tendo o dramaturgo

    participado ativamente do evento, fazendo e recolhendo gravaes que resultaram em

    um filme documentrio de sua autoria, Humillados y Ofendido (2008), tambm trazido

    nessa dissertao para o enriquecimento das anlises. Dessa forma, examinamos, ainda,

    a atuao poltica do dramaturgo atravs de seu texto dramtico e como esta atuao

    corrobora para suas eleies estticas e temticas.

    Palavras-chave: La Odisea. Rapsdia. xodo. Identidade. Bolvia

  • 8

    RESUMEN

    Esta disertacin, a travs del cotejo de tres ediciones del texto dramtico La Odisea

    (2007, 2009, 2013), del dramaturgo Csar Brie (1954 -), analiza en el texto dramtico

    los temas del sueo americano y la migracin de latinoamericanos hacia los Estados

    Unidos, las relaciones de identidad establecidas y cmo la eleccin de la Odisea

    homrica y su hroe, Ulises, contribuye para el desarrollo de estos temas. Los anlisis se

    realizaron principalmente bajo el operador de lectura rapsodia, teora creada por Jean-

    Pierrre Sarrazac, terico del drama, en la dcada de 1980. Con el cotejo con la Odisea

    homrica, se analizaron las inclusiones y exclusiones de escenas y pasajes operadas en

    el texto despus del ocurrido en 24 de mayo 2008, en la ciudad de Sucre, Bolivia, donde

    los campesinos que acuden a la ciudad para recibir el presidente Evo Morales, sufren un

    acto racista, el dramaturgo participa activamente en el evento, haciendo y recogiendo

    grabaciones que dieron lugar a un documental de su autora, Humillados y ofendidos

    (2008). Por lo tanto, se examin tambin la actividad poltica del dramaturgo a travs de

    su texto dramtico y cmo esta actuacin contribuye para sus elecciones estticas y

    temticas.

    Palabras-clave: La Odisea. Rapsodia. xodo. Identidad. Bolivia

  • 9

    SUMRIO

    1 INTRODUO 10

    2 ENTRE RETALHOS E COSTURAS: O RAPSDO E O

    HBRIDO EM BRIE

    35

    2.1 CSAR BRIE: O AUTOR-RAPSODO 35

    2.2 ATENA: A DEUSA PICA 48

    2.3 ULISSES: O HERI CMICO 58

    3 ENTRE MONSTROS E AMORES: A PARTIDA E O

    RETORNO DE ULISSES

    68

    3.1 ULISSES E A NOSTALGIA: XODO E EXLIO 68

    3.2 A TERRA DOS LOTFAGOS: XODO RUMO AO AMERICAN

    DREAM E NOSTALGIA

    80

    3.3 PENELOPEIA E TELEMAQUIA: XODO E AMERICAN

    DREAM NOS QUE PERMANECEM

    96

    4 4 ENTRE HUMILHADOS E OFENDIDOS: QUESTES DE

    IDENTIDADE

    107

    4.1 TACA, SUCRE OU LA PAZ: A CAPITAL E A CRISE DA

    IDENTIDADE

    107

    4.2 ULISSES MAMANI, MORALES, CHOQUE E QUISPE: A

    IDENTIDADE, A DIFERENA E A MEMRIA

    119

    4.3 TACA, SUCRE E E.U.A.: A VIOLNCIA DOS LETRIGES 127

    5 CONSIDERAES FINAIS 135

    REFERNCIAS 139

  • 10

    1 INTRODUO

    1.1 UM CAMINHO TERICO: LITERATURA COMPARADA E RAPSDIA

    Este estudo insere-se na linha de pesquisa Estudos de Teorias e Representaes

    Literrias e Culturais. Constituiu-se, principalmente, de pesquisa bibliogrfica, partindo

    de anlise crtica e interdisciplinar de textos literrios e tericos que contriburam com a

    anlise da obra La Odisea (2007b1, 2009

    2, 2013b), de autoria do dramaturgo Csar Brie,

    a partir da relao que esta pode estabelecer com a representao do xodo do homem

    boliviano e latino-americano, sobretudo com as teorias dos estudos ps-coloniais,

    estudos culturais e representaes literrias no que diz respeito construo da

    identidade.

    Nosso modus operandi se realizou sob a metodologia da Literatura Comparada,

    atravs da qual obtivemos subsdios para estabelecer o cotejo entre a Odisseia homrica

    e a Odisseia de Csar Brie, corroborando para os estudos que tentam dar conta da

    pluralidade da Amrica Latina e diminuir nosso mltiplo desconhecimento a respeito de

    nossas culturas e produes. Desta forma, nos propomos a conhecer um pouco mais da

    Bolvia, pas fronteirio, atravs do Ulisses nascido da imaginao de Brie em

    comparao ao da Antiguidade Clssica, sendo ele agora um sujeito de identidade

    plural, que vive processos de desterritorializao nacionais e internacionais, pondo em

    circulao problemticas novas, prprias do que se convencionou chamar de

    modernidade tardia (FIGUEIREDO, 2010).

    Para Hutcheson M. Posnett (2011 [1886], p.23), a mais desbotada preposio da

    lgica ou a afirmao ou negao de uma comparao, sendo A igual ou diferente

    de B, operando subjetivamente, assim, toda razo ou imaginao. Neste vis, como se

    ver ao longo desta dissertao, as personagens de Brie ora se aproximam e ora se

    afastam das personagens forjadas por Homero, com uma perspectiva histrica

    plenamente adaptada ao contexto das contemporneas disporas latino-americanas,

    metaforizadas na migrao de um tero da populao boliviana para fora do pas,

    1 A edio de La Odisea (BRIE, 2007b) pode ser descarregada no link por ns levantado em:

    . 2 A edio de La Odisea (2009) pode ser descarregada no link por ns levantado em:

    .

  • 11

    sobretudo para os Estados Unidos da Amrica doravante E.U.A. Para Posnett, a

    linguagem uma forma de ver a evoluo e a influncia entre povos, e neste campo,

    valendo-se das evolues e influncias proporcionadas pela literatura homrica, que

    Brie nos apresenta a sua taca: Bolvia.

    De acordo com Marius Franois Guyard (2011 [1951]) faz parte do

    equipamento do comparativista a leitura em diversas lnguas, a construo de uma

    bibliografia e a historicizao das literaturas e relaes literrias. Sendo o nosso objeto,

    La Odisea, escrito em lngua espanhola, optamos por traduzir todas as citaes do texto

    para o portugus, para dinamizar a leitura e permitir que ela seja realizada, tambm, por

    no leitores da lngua espanhola, contudo, transcrevemos o texto original em nota de

    rodap. Foi necessria, ainda, a reviso de uma bibliografia em lngua espanhola3 para

    dar conta de historicizar o teatro boliviano e a insero de Csar Brie nele, outro dos

    equipamentos do comparativista como afirma Guyard, assim como para compreender

    os fenmenos polticos e sociais cujas temticas despontam no texto. Da mesma forma,

    a exceo de algumas citaes no recuadas e/ou trechos que preferimos manter no

    original, optamos pela traduo do texto e trouxemos em rodap o texto original. Ainda

    segundo Guyard (2011, p.108):

    A literatura comparada a histria das relaes literrias internacionais. O

    comparativista se encontra nas fronteiras, lingusticas ou nacionais, e

    acompanha as mudanas de temas, de ideias, de livros ou de sentimentos

    entre duas ou mais literaturas. Seu mtodo de trabalho deve-se adaptar

    diversidade de suas pesquisas.

    Assim atuamos em nossa pesquisa, para qual trouxemos tambm o filme

    documentrio Humillados y Ofendidos (2008)45

    , de autoria de Csar Brie, para

    compreendermos as temticas por ele elencadas no texto de La Odisea, assim como as

    mudanas incrementadas, aps o hiato na montagem da pea para produo do

    documentrio. Dentro do elenco de tericos escolhidos para abordarmos as migraes

    na Bolvia, por exemplo, optamos tambm pelo mesmo terico boliviano estudado pelo

    dramaturgo, que, para tratar das migraes em sua traduo da Odisseia, leu No Llores,

    Prenda, Pronto Volver de Leonardo de La Torre vila (2006).

    3Todas as tradues de La Odisea so nossas, assim como as tradues da bibliografia lida diretamente da

    lngua espanhola, por isso, tendo aqui avisado, no inclumos a indicao de traduo nossa nas

    citaes, objetivando no cansar o leitor . 4 Documentrio Disponvel em: . Acesso em

    28/07/2014. 5 Trouxemos como apndice desta dissertao uma transcrio e traduo nossa do filme documentrio.

  • 12

    Com isso, queremos dizer que seguimos os prprios caminhos que nos foram

    dados pelo objeto e que, por uma posio marcadamente poltica em busca de uma

    epistemologia do Sul, buscamos privilegiar, sempre que possvel, tericos latino-

    americanos e/ou que pensam a Amrica Latina, sem com isso ter excludo quaisquer

    outros tericos que corroboraram com nossas anlises.

    Logo, em consonncia ao pensamento de Guyard (2011), analisamos as escolhas

    do dramaturgo e o destino dado por ele aos temas e ideias, assim como suas fontes

    muitas das quais declaradas em entrevistas e prlogos tirando prova dos emprstimos

    diretos e indiretos feitos por ele da Odisseia homrica. Neste vis, nos deparamos com

    uma pesquisa interdisciplinar para a qual trouxemos, em colaborao a metodologia

    adotada, teorias pertencentes aos estudos culturais e ps-coloniais, um dilogo

    necessrio, pois;

    [...] pesquisas so movidas pelo mltiplo e pelo diverso, incidindo sobre

    vrios discursos, vozes, disciplinas, tradies, objetos; o quanto elas do

    nfase aos jogos, confluncias, trnsitos, deslocamentos, intervalos de

    cultura; o quanto investem em releituras de formaes nacionais, na escuta de

    dilogos entre nacionalidade, classe, gnero, etnicidade (MARQUES, 1999,

    p.58).

    Em La Odisea, Brie pe em cheque discursos hegemnicos internos e externos

    Bolvia, o american dream estadunidense e a pretensa superioridade tnica e cultural

    dos bolivianos sucrenses, ao mesmo tempo em que luta para que as artes no pas sejam

    reconhecidas e apoiadas, e o faz, alm dos textos e dos palcos, na Assembleia

    Legislativa boliviana demonstrando que as suas artes, a literatura e o teatro, fazem parte

    de um todo, a cultura. Para o dramaturgo:

    Esse trabalho [o de criar um pblico] tem a ver com organizao cultural,

    com curiosidade poltica, com viajar e trabalhar em lugares nos quais,

    normalmente, o teatro no trabalha. uma ao fsica no territrio da

    Bolvia, e no apenas um pensamento esttico ou uma eleio de temas. Nos

    consideramos como artistas partes do mundo e, se uma parte do nosso

    trabalho tem como base nossa sensibilidade, essa outra se sustenta em nossa

    responsabilidade6 (2007a, p.32)

    6 Ese trabajo tiene que ver con organizacin cultural, con curiosidad poltica, con viajar y trabajar en

    lugares en los que normalmente el teatro no trabaja. Es una accin fsica en el territorio de Bolivia, y no

    solamente un pensamiento esttico o una eleccin de temas. Nos consideramos como artistas parte del

    mundo y si una porcin de nuestro trabajo tiene como base nuestra sensibilidad esta otra se sustenta en

    nuestra responsabilidad.

  • 13

    Logo, dada tamanha interdisplinaridade e vis poltico cultural do dramaturgo e

    de nosso objeto, no vimos outro caminho a seguir que no o do dilogo tambm

    interdisciplinar entre a literatura comparada e os estudos culturais, j adotado por outras

    pesquisas no pas.

    A presente pesquisa teve a sua gnese ainda na iniciao cientfica realizada na

    Universidade Federal da Bahia no Projeto NALPE - Ncleo de Antiguidade, Literatura

    e Performance, no qual, paralelo ao desenvolvimento do Projeto Cine-mito nas escolas

    pblicas de Salvador, pesquisvamos interlocues entre a Antiguidade Clssica e a

    literatura contempornea.

    O projeto foi construdo em 2012 com a edio do texto levantada no CELCIT

    Centro Latinoamericano de Creacin e Investigacin Teatral7, Brie (2009), no entanto,

    aps o cumprimento dos crditos e da realizao de uma viagem a Buenos Aires,

    Argentina, obteve-se acesso a uma edio publicada em 2013, Brie (2013b), ao optar

    por realizar as anlises com essa ltima edio do texto, estabelecemos contato com o

    dramaturgo e nos foi enviada uma edio de 2007, Brie (2007b), semelhante ltima,

    mas, tambm, apresentando diferenas.

    Tal fenmeno muito comum no Teatro, no qual a cada montagem pode-se

    modificar no texto dramtico o que no deu certo, ou pode-se testar coisas novas.

    Acreditamos, tambm, que eventos polticos apresentados no documentrio

    Humillados y Ofendidos tenham fomentado as mudanas e, ao eleger a ltima edio,

    Brie (2013b), como o objeto das anlises, por sua organizao e acabamento, tambm, a

    cotejamos com as outras duas verses, Brie (2007b, 2009), o que no nos foi muito

    laborioso dada pequena extenso dos textos e das mudanas, apesar de significativas.

    Ryngaert (1996, p.IX), j em seu prefcio, afirma que no se faz necessrio

    invocar o palco para explicar ou justificar o texto, e assim operamos. A presente

    investigao diz respeito ao texto dramtico de La Odisea e no a sua montagem cnica,

    a qual no tivemos acesso. Mendes (1995), em seu texto terico, que trata das relaes

    entre o texto e a encenao, brinca intitulando-o de A Convivncia Dramtica, isto

    porque, para a autora, em consonncia com as teorias modernas do drama, o casamento

    entre o drama (texto dramtico) e o teatro conheceu o divrcio revelando a autonomia

    dessas artes. Segundo Mendes (1995, p.38):

    7 http://www.celcit.org.ar/

  • 14

    O texto dramtico vive num espao de interseo, e esta circunstncia tem

    impedido os estudiosos de perceberem sua autonomia como obra literria,

    pois, se por um lado um objeto constitudo de linguagem verbal, pode vir a

    integrar, junto a outras artes (msica, interpretao, figurino), o sistema

    significante da arte do teatro.

    Logo, por percebermos a autonomia do texto dramtico como obra literria,

    investigamos La Odisea luz da teoria da literatura, sem nos desculpar por tratar o texto

    apenas como literatura, aps procedermos uma breve apologia ao teatro, como em

    geral o fazem os crticos (MENDES, 1995, p.23) .

    Dada a uma certa confuso lexical que h na rea dramtica, apresentando, em

    certos contextos, fronteiras tnues entre as expresses texto dramtico, texto para

    teatro, e, ainda, texto teatral, incorreremos, aqui, em breves explicaes, nas quais

    esclareceremos nossa opo pelo termo texto dramtico, por acreditarmos ser o mais

    coerente nesta pesquisa na qual o reconhecemos, ao texto dramtico, como literatura.

    Obviamente, no criticamos aos que no fazem tais distines pertencentes ao lxico do

    drama, j que o seu Modus Faciend, assim como o do cinema e de outras artes, s

    interessa aos pesquisadores, muitos dos que vo ao teatro, ou leem textos dramticos,

    em geral, no tm esse interesse, na Antiguidade Clssica por exemplo, Aristteles

    (1991) em sua Potica j afirma que mesmo a tragdia grega tendo seis elementos,

    sondo o mito para ele o mais importante, o que mais agrada ao pblico o espetculo.

    Voltando a Antiguidade Clssica, os tragedigrafos e comedigrafos clssicos

    no tinham outra opo para os seus textos que no o espetculo, isto , as

    possibilidades encontradas na modernidade, como a dramaturgia para televiso,

    propaganda, jogos eletrnicos, era impensvel. E isso continuou durante sculos o que

    acrescido dificuldade de circulao dos textos escritos, pela ausncia da imprensa,

    colaborava ainda mais com a espetacularizao para poder divulgar a pea criando um

    casamento, que nas livrarias, ainda hoje, se reflete no teatro de Dias Gomes, de Nelson

    Rodrigues, de Csar Brie (mesmo em textos como, por exemplo, os de Sneca e

    Machado de Assis, que aparentam terem sido pensados para leitura), pois as editoras

    continuam chamando o texto escrito de teatro, o que um equvoco, pois o que h ali

    a dramaturgia. A edio em livro na qual se insere La Odisea, por exemplo, est

    nomeada de Csar Brie: Teatro II (2013b).

    A palavra drama, de origem grega, designa ao, processo, o produto de uma

    atividade. Em sua etimologia dramtico sinnimo de performao. J teatro,

  • 15

    etimologicamente, significa lugar onde se v, lugar para a viso. Enquanto

    dramaturgia, reunindo as palavras gregas para ao e o ato de fazer, erguer, construir,

    significa construo da ao. J a expresso texto teatral abstrusa, o mais correto

    seria texto para teatro, demonstrando a inteno que quem escreveu tinha para aquele

    texto.

    No sculo XX, com a emergncia de novas mdias, comea a existir alternativas

    para os dramaturgos, como o rdio, o cinema, a televiso e mais recentemente a internet

    e o celular, permitindo que aqueles que usam a forma de narrativa a que chamamos

    dramtica possam optar. No coincidentemente, o sculo XX tambm o palco da

    gradativa libertao do teatro, do cnico, em relao ao texto.

    O teatro s se d no tempo e espao presencial, o que tambm j tem sido

    abalado pela gravao em tempo real em distintos lugares, o chamado teledramtico,

    no qual h desde pr-gravaes postas no palco at gravaes ao vivo. Logo, tornou-se

    cada vez mais claro que drama e teatro so coisas diferentes. O teatro, hoje, se relaciona

    com todo tipo de texto, depois de ter se relacionado com nenhum, a literatofobia ps

    1950, contemporaneamente se relaciona com todos, como o faz Brie ao dramatizar a

    epopeia homrica.

    Logo, no poderamos optar por outra denominao que no texto dramtico,

    que indica ser esse tipo de texto, a partir das palavras que fundam uma realidade

    potica, possuidor de sua prpria dimenso cnica. Essa posio contrape a de muitos

    tericos, que creem que separar a pgina do palco tornaria o texto dramtico

    incompleto, para Mendes, contudo, essa crena injusta, dada a autonomia do texto

    dramtico enquanto literatura, j o teatro apenas outra obra, outra realidade artstica,

    construda por outros signos, ou, em termos aristotlicos, por outros meios de imitao

    (1995, p.24).

    Para Mendes (1995), dada defesa do ponto de vista anterior, pela

    possibilidade de teorizar apenas o texto que se pode estabelecer um comparatismo

    entre Rei Lear, de Shakespeare, e o Ubu Rei, de Peter Brook, assim como (s)

    Antgona(s), de Sfocles, de Anouilh, de Brecht, de Rafael Snchez, leituras produtivas

    e produtoras de um mesmo mito (p.24), como fazemos aqui com as Odisseias, de

    Homero e de Brie.

    Para o cotejo entre as duas Odisseias, iniciamos as anlises desta dissertao, j

    em sua primeira sesso, com os pressupostos tericos propostos por Sarrazac (2002) em

    O Futuro do Drama, que nos acompanhar ao longo de toda a dissertao, sobretudo, a

  • 16

    noo de autor rapsodo. Sarrazac (2002, p.31) utiliza como epgrafe verbetes de

    dicionrios com os quais comea a definir sua visada terica. Alexandra Moreira da

    Silva, tradutora da obra citada para o portugus europeu, opta por no traduzir os

    verbetes da epgrafe, duas entradas de dicionrio, esclarecendo que as palavras

    francesas rhapsoder e rhapsodage remetem para os conceitos de remendo e

    remendar e que no portugus h apenas as palavras rapsdia, rapsodo e

    rapsdico:

    Rhapsodage Action de rhapsoder, de mal raccommoder.

    Rhapsode Terme dantiquit grecque. Nom donn ceux qui allaient de

    ville en ville chanter des posies et surtout des morceaux dtachs de lIliade

    et de lOdysse...

    Rhapsoder Terme vieilli. Mal raccommoder, mal arranger.

    Rhapsodique Qui est form de lambeaux, de fragments.

    Littr

    Rhapsodie 1. Suite de morceaux piques recites par les rhapsodes. 2.

    Piceinstrumentale de composition trs libre...

    Petit Robert

    Remendo Ao de remendar, de costurar mal.

    Rapsodo Termo da antiguidade grega. Nome dado queles que iam de

    cidade em cidade cantar poesias e, sobretudo, recitar trechos da Ilada e da

    Odisseia...

    Remendar Termo antigo. Mal costurado, mal organizado.

    Rapsdico Que formado de retalhos, de fragmentos

    Dicionrio Littr

    Rapsdia 1. Sequncia de trechos picos recitados por rapsodos. 2. Pea

    instrumental de composio bastante livre

    Dicionrio Petit Robert8

    Nos verbetes trazidos por Sarrazac, percebemos uma variedade de sentidos que

    vo desde a costura de tecidos at os trabalhos artsticos, como a composio musical

    livre e a forma de recitar a obra homrica na Antiguidade. Ao adentrarmos no texto,

    percebemos que a escolha dessa epgrafe se justifica pelo desejo de Sarrazac de

    reconhecer o drama como to livre e reinventivo quanto o romance, gnero da

    reinveno e da liberdade por excelncia, incluindo ao seu domnio a polifonia

    bakhitiniana, na qual h miscelnea, pluralidade, heterogeneidade, inverso de gneros e

    de vozes.

    Sarrazac demonstra como no drama contemporneo h um caleidoscpio dos

    modos dramtico, pico e lrico, assim como uma inverso constante do alto e do baixo,

    8 Traduo nossa.

  • 17

    do trgico e do cmico, como veremos que h em La Odisa, em uma polifonia trazida

    ao texto pelas mos do autor rapsodo forma teatral com a estrutura de uma montagem

    dinmica da qual surge uma voz rapsdica que , ao mesmo tempo, narradora e

    questionadora (SARRAZAC, 2012).

    Bakhtin, ao se debruar sobre a teoria do romance atribui a ele a inerncia da

    polifonia e do dialogismo, o que o tornaria distinto de todos os gneros diretos, do

    poema pico, da lrica e do drama em senso estrito (1998, p. 371), negando assim a

    existncia de polifonia no drama, tendo as investigaes com o conceito de dialogismo

    prevalecido no romance e com pouca ocorrncia no drama, o que no impede Sarrazac

    de tomar os pressupostos tericos bakhtinianos para, atravs da rapsdia como operador

    de anlise, defender que h, sim, liberdade de inveno, reformulao continua,

    variao e renovao no drama contemporneo:

    A aspirao primordial das escritas dramticas contemporneas no ,

    precisamente, a obteno da mesma latitude na inveno formal que o

    romance, gnero livre por excelncia?... Mas o preconceito obstinado:

    enquanto que se admite, sem reticncias, a vocao do gnero romanesco

    para se reformular continuamente, para variar e renovar as suas estruturas,

    persiste-se em recusar, em nome da ptca teatral a da sacrossanta construo

    dramtica, esta possibilidade a uma obra escrita para cena. (SARRAZAC,

    2002, p.35)

    A sacrossanta construo dramtica, sobre a qual discorre Sarrazac, diz

    respeito, justamente, a frustrada e frustrante tentativa, que existiu por sculos, de

    defender o drama como um gnero puro, livre de intervenes, livre de hibridaes, o

    perfeito belo animal aristotlico, que ser ferido na modernidade pela epicizao do

    texto dramtico e pelo reconhecimento dos estudiosos da impureza de todo e qualquer

    gnero. Ainda que a pureza ainda seja uma cobrana do senso comum, felizmente, so

    essas hibridaes que se v no texto dramtico de La Odisea, cujas anlises trouxemos

    aqui e em nossa segunda sesso: Entre retalhos e costuras: o rapsdo e o hbrido em

    brie.

  • 18

    1.2 UM CAMINHO PARA LA ODISEA: HIBRIDAES

    Indubitavelmente, a caracterstica mais marcante de La Odisea enquanto texto

    dramtico so as hibridaes nele propostas pelo seu autor. Em um s texto, Brie se

    prope a dialogar o passado e o presente, ao mesclar a Antiguidade Clssica e a Bolvia

    contempornea; o local e o global, pois explorar alguns dos fenmenos manifestos em

    um mundo que se quer globalizado, e, estruturalmente, construir um drama pico

    valendo-se de toda a sua potencialidade, pincelando-o ainda com lirismo e comicidade.

    Por isso, para abarcar tantas hibridaes, iremos nos nortear atravs das teorias de

    Sarrazac (2002) em O Futuro do Drama, Hall (2011a) em A Identidade Cultural na

    Ps-modernidade e Canclini (2013) em Culturas Hbridas.

    Elegemos esses trs tericos por suas singulares contribuies s nossas

    investigaes, em Sarrazac, terico do drama, nos deparamos com o autor-rapsodo

    que nos ajudar a destrinchar o riqussimo tecido textual cosido por Brie na potica de

    La Odisea como um texto monstruoso, texto hbrido, patchwork, um texto

    diferencial e utpico concebido no como um modelo, mas sim como uma quimera,

    como uma criatura efmera destinada a fazer-nos sonhar (SARRAZAC, 2002, p.24).

    J Hall (2011a) e Canclini (2013) colaboraram com as anlises da representao

    de uma cultura hbrida feita por Brie em La Odisea, na qual territrios equidistantes no

    tempo e espao como taca, Bolvia e E.U.A se encontraram e produzem Ulisses

    tambm hbridos, cujas demandas ora se assemelham e ora se distanciam, cujos dramas

    to contemporneos so representados por um heri secular.

    Comearemos, aqui, com a apresentao de um breve histrico do teatro

    nacional boliviano, cuja relevncia internacional recente e para qual muito colaborou a

    dramaturgia de Csar Brie. Para Saavedra Garfias (2006), cinco projetos configuram o

    processo do teatro boliviano.

    O primeiro, o teatro popular costumbrista, tem incio com o escritor, diretor e

    ator Ral Salmn, dele derivam o teatro das comdias livres e o teatro de stira poltica,

    cria-se, contudo, uma escola e uma tradio que no provocam reflexo, mas que

    sobrevivem no tempo mediante uma frmula que assegura risada vulgar, histrias

    melodramticas, mensagens moralistas, e com isso a fidelidade do pblico.

    O segundo, o teatro universitrio, ao contrrio do primeiro, no consegue

    assegurar um pblico prprio, trabalham nele autores europeus e estadunidenses em

  • 19

    uma tentativa inicial de se opor ao teatro costumbrista, no entanto veem suas ambies

    ceifadas pelo golpe de estado do General Hugo Banzer Surez.

    O terceiro, datado da dcada de 1970, traz um aparente auge teatral com o

    regresso de atores bolivianos que decidiram estudar arte dramtica no exterior pela falta

    de centros de formao no pas, neste aparente auge, h montagens no palco de autores

    vanguardistas, organizao de festivais interestaduais e concursos de dramaturgia,

    contudo, ainda que no princpio esse movimento surja respaldado por um pblico, com

    o passar do tempo, as novidades se tornaram rotina.

    O quarto projeto, datado pela autora na dcada de 1990, marcado pela apario

    de grupos independentes, que, diferente dos grupos de elencos, busca cobrir a ausncia

    de centros de formao teatral com oficinas, laboratrios e seminrios, preocupando-se

    com a reflexo sobre o fazer teatral, a ausncia de pblicos, a tica e a esttica no teatro.

    justamente nele que se inserem Csar Brie e El Teatro de Los Andes.

    No quinto projeto, que no se segue aos outros cronologicamente, esto os

    teatros que surgem margem da histria oficial, grupos cujas formas teatrais poderiam

    ter marcado outro destino ao teatro boliviano; contudo, polticos e militares impediram

    o desenvolvimento desse teatro, como, por exemplo, a primeira tentativa de teatro

    indgena e o primeiro projeto de coletivo teatral que ocorreu entre os anos 1960 e 1970.

    Csar Brie, na dcada de 1990, j tendo uma vida profissional que o permitia

    escolher onde trabalhar, opta pela Bolvia como espao e inspirao para o seu trabalho,

    quando perguntado o porqu de ter escolhido a Bolvia para atuar como dramaturgo,

    ator e diretor, responde:

    Queria ir a um lugar onde fosse impossvel viver do teatro, onde o teatro que

    construsse tivesse que se relacionar com um pblico, onde houvesse uma

    cultura tradicional notvel, onde deveria tratar de unir o inconcilivel:

    vanguarda e teatro popular. Tradio e inovao. [...] Alguns afirmam que

    mudei algo do teatro boliviano. Agora que esse ciclo chegou ao fim, posso

    afirmar que foi a Bolvia que mudou minha forma de trabalhar9 (BRIE,

    2013b, p. 188).

    Ao tratar de unir o inconcilivel, como vanguarda e teatro popular, tradio

    e inovao, Brie age como um dramaturgo-rapsodo, como o pensa Sarrazac (2002,

    9 Quera irme a un lugar donde fuera imposible vivir del teatro, donde el teatro que construyera tuviera

    que relacionarse con un pblico, donde hubiera una cultura notable, donde debera tratar de unir lo

    inconciliable: vanguardia y teatro popular: Tradicin y bsqueda. Algunos afirman que cambi algo del

    teatro boliviano. Ahora que ese ciclo lleg a su fin, puedo afirmar que fui Bolivia a cambiar mi forma de

    trabajar.

  • 20

    p.36), para o qual: a modernidade da escrita dramtica decide-se num movimento

    duplo que consiste, por um lado, em abrir, desconstruir, problematizar as formas antigas

    e, por outro, em criar novas. da tentativa de unio do inconcilivel que o autor agir

    como o arquiteto da parbola forjada por Sarrazac, na qual:

    O escritor de teatro no trabalha nem pensa em termos de grandes unidades

    estruturais. Porque toda a sua ateno est concentrada no detalhe da escrita,

    na escrita do detalhe. E o detalhe, como sabido, significa originariamente

    diviso, converter em pedaos. Logo, escritor-rapsodo (rhaptein em grego

    significa coser), que junta o que previamente despedaou e, no mesmo

    instante, despedaa o que acabou de unir. A metfora antiga no deixar de

    nos surpreender com as suas ressonncias modernas. (2002, p.36-37)

    Atravs dos detalhes Brie costura em La Odisea um texto hbrido que se

    prope a intervir tanto artstica quanto politicamente no pas que mudou sua forma de

    trabalhar no teatro, ao mesmo tempo em que ele mudou algo no teatro boliviano. Csar

    Brie escolheu o desafio e conseguiu dar relevncia internacional ao teatro da Bolvia,

    que, para Saavedra Garfias (2006), oscila entre uma prolongada gestao e um eterno

    restart, o que se deve justamente ao fato dos problemas que enfrentam os grupos, dentre

    eles, problemas econmicos, acontecimentos polticos, ausncia de polticas culturais e,

    em muitos casos, a ausncia de um pblico que faa o teatro necessrio.

    Infelizmente, justamente em decorrncia de acontecimentos polticos, a pea La

    Odisea marcou o fim da relao de Brie com El Teatro de los Andes, sendo assim

    ele mesmo como Ulisses, um pai que deixa uma famlia, seu grupo teatral, e parte em

    busca de novas possibilidades.

    Os acontecimentos polticos fomentadores da separao do dramaturgo da

    criatura por ele criada, como ele mesmo se refere ao Teatro de Los Andes em

    entrevistas, tiveram incio em 24 de maio de 2008 quando ocorreu em Sucre, Bolvia, a

    hostilizao de camponeses, de origem indgena, que foram cidade recepcionar o

    presidente Evo Morales, o dramaturgo participou ativamente do evento, fazendo e

    recolhendo gravaes sobre os ataques racistas aos camponeses que resultaram no filme

    documentrio de sua autoria, Humillados y Ofendidos (2008), sobre o qual trataremos

    amplamente em nossa quarta seo: Entre humilhados e ofendidos: questes de

    identidade.

    Aps a publicizao das imagens transformadas em documentrio, cuja

    realizao interrompeu a montagem de La Odisea, sua ltima pea junto ao Teatro de

    Los Andes, o dramaturgo sofreu represlias de grupos locais, o que resultou em seu

  • 21

    afastamento da companhia que fundou, na qual esteve vinculado por dezoito anos, e em

    sua partida para Itlia, marcando na dcada passada mais um triste episdio na histria

    do teatro boliviano.

    A construo e montagem de La Odisea demonstram uma nova etapa nos

    projetos da dramaturgia boliviana, que, em geral, sempre careceu de grupos e de uma

    dramaturgia local. El Teatro de Los Andes operacionalizou mudanas e transformaes,

    para Saavedra Garfias (2006), ele inspirou grupos novos e os levou a tentarem ser

    profissionais na arte teatral, como exemplos bem sucedidos disso, a autora elenca o

    Teatro Duende, Kikin-teatro, Adelaide Chau e Ojo Morado.

    Destacamos, ainda, a companhia teatral Teatro La Tropilla, criada em 2010,

    como dito por eles mesmos, no seio do Teatro de Los Andes10

    , cuja primeira

    montagem justamente de um texto dramtico de Brie, El Cclope. Ou seja, alm das

    companhias indiretamente influenciadas por Brie e o Teatro de Los Andes, h tambm

    grupos criados diretamente aps o contato com a companhia boliviana, comprovando,

    assim, o legado do Teatro de Los Andes.

    Nessa perspectiva, a perda de um dramaturgo to atuante e influente mostra

    como a Bolvia segue com conflitos quanto s polticas para sua arte teatral, h, hoje,

    polticas governamentais, que, no entanto, esbarram em agendas de lideranas locais

    que visam o silenciamento daqueles que possam vir a incomod-los. O Teatro de Los

    Andes, liderado por Brie, inscreveu-se de forma extremamente positiva na historiografia

    do teatro boliviano, esteve, por exemplo, no primeiro festival internacional boliviano,

    no qual encenou Las Abarcas del Tiempo e chamou a ateno da crtica internacional.

    justamente a operao de denncias do que ocorre a nvel local a um pblico

    internacional, como em La Odisea, que incomoda aqueles que detm e querem manter o

    poder, traando projetos polticos que tentam impedir a ascenso dos menos favorecidos

    e privilegiando, em geral, aquilo que vem de fora, desde as formas de arte, como o

    teatro nacional, at o capital. Saavedra Garfias (2006) afirma que o teatro boliviano tem

    sido ninguneado ao longo de sua existncia, isto , esse teatro tem sido negado e

    invisibilizado (estado do que invisvel, inviabilizado, invivel), para a autora, em

    muito, pela falta de boas produes que ele oferece.

    Brie marca a diferena nesse quesito e a prova disso a fortuna crtica sobre a

    obra do dramaturgo, que, apesar de poucos, j conta com relevantes estudos no Brasil

    10

    Disponvel em: . Acesso em 20/07/2014.

  • 22

    como a dissertao de Mestrado defendida por Raquel Frana Abdanur, La Ilada por

    Csar Brie: um canto de memria, luto e histria, na Faculdade de Letras da

    Universidade Federal de Minas Gerais, em 2009 a existncia destes estudos demonstra

    que com boas produes, com uma dramaturgia nacional de qualidade, nenhum teatro

    pode ser ignorado.

    Da mesma forma, a dramaturgia de Brie, e por tabela a dramaturgia boliviana,

    segue recebendo reconhecimento internacional. Em 2010, por exemplo, na srie

    intitulada Dramaturgia Latino-Americana publicao da Editora Universitria da

    UFBA (EDUFBA) de tradues de textos dramticos latino-americanos lanada,

    como volume n. 4, a traduo do texto dramtico En un sol amarillo/Em um sol

    amarelo, de autoria de Csar Brie, levado aos palcos em 2004. Demonstrando, mais

    uma vez, que Brie obteve, sim, xito no seu intento de inscrever a dramaturgia boliviana

    na cena internacional.

    Sobre La Odisea, aps nossas investigaes, encontramos dois significantes

    artigos sobre a pea. O primeiro intitulado La Odisea de Cesar Brie: Ulises en tiempos

    de globalizacin, de autoria de Maria Atienza, presente no livro De Ayer a hoy:

    influencias clsicas en la literatura (2010) coordenado por Aurora Lpez, Andrs

    Pocia e Maria de Ftima Silva e editado em Portugal pelo Centro de Estudos Clssicos

    e Humansticos da Universidade de Coimbra e o segundo intitulado Imagen,

    Imaginacin, Historia: La Odisea de Csar Brie, de autoria de Sara Rojo, presente no

    livro Imagem e Memria, organizado por Elisa Vieira, Elcio Cornelsen e Mrcio

    Seligmann-Silva.

    Como se pode observar pelas temticas desses dois artigos11

    que abordam o

    texto dramtico La Odisea, Brie constri um texto inquietante com amplas

    possibilidades de leitura, logrando seu intento de colaborar para inscrio do teatro

    boliviano no hall internacional da dramaturgia e da crtica, nos levando a navegar em

    um mar infinito e nunca totalmente explorado de leituras e rapsdias.

    Sobre estudos da obra do dramaturgo no Brasil destacamos ainda, de autoria e

    coautoria de Sara Rojo, O teatro de Csar Brie e a apropriao dos mitos da morte

    (2009) e, A traduo de Slo los giles mueren de amor, de Csar Brie (2009), com

    11

    Os dois livros aqui referenciados, nos quais contam artigos sobre La Odisea de Csar Brie, podem ser

    descarregados em pdf nos seguintes links:

    1.https://bdigital.sib.uc.pt/jspui/bitstream/123456789/137/1/de_ayer_a_hoy.pdf

    2. http://www.letras.ufmg.br/site/e-livros/imagem%20e%20memoria.pdf

  • 23

    coautoria com Raquel Frana Abnadur. Completando, aqui, a fortuna crtica brasileira

    sobre o dramaturgo utilizada nessa dissertao.

    Tanto no filme documentrio, Humillados y Ofendidos (2008), quanto em sua

    ltima pea com o Teatro de Los Andes La Odisea Brie opera a denncia de que na

    periferia do mundo globalizado, boa parte do povo boliviano sobretudo o indgena,

    campons e autctone do qual o dramaturgo declara abertamente tomar partido j no

    possui suas terras, que lhes foram tomadas no perodo de colonizao, salvo uma

    pequena parcela abonada da populao, pois se v esmagado por uma situao

    neocolonial, na qual, muitas vezes, no tem subsdios nem para sobrevivncia.

    O territrio, do qual essa populao autctone, passou a pertencer a

    latifundirios, que o usa para gerar capital e progresso, ainda que custa de naes

    indgenas e massas de vulnerveis, criando imensas comunidades de sem terra, que

    veem, dentre outras sadas, na migrao para os E.U.A. a soluo. Neste vis, Brie

    representa em seu texto dramtico o que para Hall (2011a), ao tratar da globalizao,

    seja talvez um dos fenmenos mais importantes da reteno da dominao global

    ocidental: o fenmeno da migrao. Para Hall (2011a, p.81,82): as pessoas mais pobres

    do globo, em grande nmero, acabam por acreditar na mensagem do consumismo

    global e se mudam para os locais de onde vm os bens e onde as chances de

    sobrevivncia so maiores.

    Em La Odisea , sobretudo, esse fenmeno, o da migrao e suas implicaes,

    que o dramaturgo representar na figura de Ulisses. O heri homrico ser a

    personagem-funo pela qual ser exposta a sada de 1/3 da populao boliviana do pas

    populao estimada em 10 milhes de habitantes pelo ltimo censo 3 milhes de

    pessoas que migram, principalmente, rumo aos E.U.A, Europa e Argentina.

    atravs da migrao que a grande tenso contempornea entre local e

    global ser explorada pelo autor ao longo do texto dramtico de La Odisea, sobretudo

    no que tange as relaes estabelecidas com os E.U.A, na pea, principal destino das

    personagens e com os quais diversas situaes de conflito sero estabelecidas, por

    diferenas culturais, lingusticas, em suma, diferenas identitrias.

    Eneida Maria de Souza traa uma cartografia do projeto imperialista dos E.U.A,

    iniciado nos anos 40, cujo objetivo era substituir, aos poucos, a hegemonia europeia,

    para isso desenvolveram um programa de controle poltico e econmico com o interesse

    de promover o esquecimento das diferenas locais da Amrica Latina, criando

    identidades coletivas (SOUZA, 2007). A criao de tais identidades visava e visa,

  • 24

    obviamente, o domnio poltico e cultural dos E.U.A sobre o resto da Amrica e a

    expanso de seu mercado consumidor, difundindo os pases ricos do Ocidente o

    consumismo, seja como realidade ou como sonho (HALL, 2011a), tal difuso ocorre

    nos pases em desenvolvimento, como o Brasil, e mesmo nos pases pobres, a ideologia

    da mercadoria impera, seja na aquisio delas pela posio ou na imposio delas por

    meio de acordos com seus governos.

    a sua difuso como sonho, mais precisamente como o american dream, que o

    dramaturgo explora em La Odisea, indo de encontro a este projeto dos E.U.A, de

    criao de identidades coletivas, e tomando as distintas culturas, etnias e povos da

    Amrica Latina como potncia para coser um texto idiossincrtico, em um fazer teatral

    que rompe com a quarta parede e que quer no seu pblico uma assembleia de pessoas

    interessadas, cujas demandas precisam ser satisfeitas, como advoga Benjamim sobre o

    teatro pico brechitiano (1985, p.79), construindo, assim, um teatro de vis

    extremamente poltico, como dito pelo prprio dramaturgo em um lugar onde o teatro

    que construsse tivesse que se relacionar com um pblico (BRIE, 2013b, p. 188).

    Brie faz explodir um apelo poltico atravs da criatividade dramatrgica

    expondo as feridas da Bolvia ao mesmo tempo em que trabalha para incluir o pas na

    cena teatral latino-americana e internacional e representa um colorido, uma

    pluralidade de identidades tambm hbridas, como o prprio texto.

    O dramaturgo hibridiza o seu texto com o texto homrico, o que ocorre desde a

    Antiguidade, pois a Odisseia homrica, mesmo na distante Antiguidade Clssica, j era

    reconhecida pelos helenos como de grande importncia para sua dramaturgia. Serra

    (2012, p.9), afirma que: Os gregos diziam, com certo exagero, que seus poetas trgicos

    aproveitaram as sobras do festim de Homero. (A frase se deve majestosa modstia de

    squilo). Na Antiguidade Clssica, as narrativas homricas, as epopeias a Ilada e a

    Odisseia, que narram, respectivamente, a clera de Aquiles e o retorno de Ulisses, so

    intercaladas por micronarrativas, cujos mitos tornaram-se as sobras as quais Serra

    (2012) faz referncia.

    Logo, a obra homrica segue sendo aproveitada, matando a fome e agradando ao

    paladar de diversos autores e leitores, desde a Antiguidade at os contemporneos. O

    texto dramtico de La Odisea, de Brie, e a montagem cnica de El Teatro de los Andes,

    demonstram a fora representativa da obra de Homero j retomada por grandes obras

    da literatura mundial como A Eneida de Virglio, I a. C., e Ulysses de Joyce, publicado

    em 1922, obras com as quais, em um fazer rapsdico, Brie diz tambm dialogar.

  • 25

    Dessa forma, a eleio da Odisseia por Csar Brie no aleatria, como trazido

    por Franois Hartog (2004), o seu heri, Ulisses, um homem-fronteira, um

    homem-memria e a sua odisseia o prottipo das narrativas de viagem,

    indubitavelmente, da se origina a escolha da Odisseia por Brie para representao da

    migrao do homem latino-americano, tambm, convertido em homem-fronteira e

    homem-memria nas ltimas dcadas marcadas por fortes levas migratrias. O

    dramaturgo cria o seu prprio Ulisses para representar as fronteiras, visveis e

    invisveis, que o homem latino-americano atravessar, as memrias que levar consigo

    e que, havendo retorno, das novas memrias que trar de volta.

    Ao escolher dramatizar as viagens ulissianas, optando mais uma vez por

    Homero, como j o fizeram muitos outros autores, Brie demostra com sua Odisseia

    boliviana que vivemos, tambm, uma permanncia da Antiguidade Clssica que

    perpassa os nossos mais diversos bens culturais: a lngua, o teatro, a literatura.

    Benjamim (1985, p.244) afirma que: A verdadeira imagem do passado

    perpassa, veloz. O passado s se deixa fixar, como imagem que relampeja

    irreversivelmente, no momento em que reconhecido, com isso, inferimos que muitas

    manifestaes contemporneas nos fazem rememorar o passado na tentativa de

    reconstruir a histria. So constataes como estas que nos levam de volta ao clssico,

    revisitando-o e empregando-lhe novas representaes, nesse contexto est La Odisea,

    levada a cena em 2008. Brie revisita a Antiguidade Clssica, ainda, em outros dois

    momentos: La Ilada, encenada em 2000, e El Cclope, em 2002.

    Estas escolhas representam a viso que Brie tem de tradio: a tradio o

    antigo que ainda nos faz falta (2013b, p.188). A Odisseia, neste sentido, no tomada

    para ser desconstruda, como podem advogar alguns crticos, mas para potencializar o

    que tradicional na prpria Bolvia, metamorfoseada em taca, e catapultar os anseios

    de Ulisses contemporneos, que so to terrenos e humanos quanto os do Ulisses

    clssico: envelhecer bem na presena da famlia. Atravs desse heri, Brie cria um texto

    plural, intercultural e hbrido.

    Quando questionado sobre o que pensa da recepo de sua traduo dos textos

    homricos pelos jovens, o dramaturgo responde que um clssico tem sentido quando

    nos diz algo agora, isto , ele acredita que o texto homrico se atualize por si mesmo,

    o que de fato o faz, ainda que ele tambm o modernize criei pontes com nosso presente

    e com o passado prximo (BRIE, 2013b, p.191).

  • 26

    Desse modo, Brie se apropria daquela que uma das obras fundacionais da

    literatura ocidental para (re) apresentar o mundo boliviano e latino-americano. Em sua

    rapsdia narra no somente uma navegao de retorno, mas tambm uma navegao de

    xodo rumo ao american dream, ideal que nos chega atravs do capitalismo global,

    cujos tentculos atingem a praticamente todas as instituies sociais, modo de vida dos

    cidados, comportamentos sociais, agarrando-os ou sufocando-os, impondo assim seu

    regime cultural e civilizatrio, no qual quase no h espao para a afirmao de outras

    prticas, que no o american way of life.

  • 27

    1.3 UM CAMINHO PARA O LEITOR: BRIE E El TEATRO DE LOS ANDES

    Csar Brie dramaturgo, diretor e ator, nascido em 1954, em Buenos Aires,

    Argentina, est em atividade desde 1971, quando inicia sua carreira como co-fundador

    da Coluna Baires, com a qual participa da luta contra a ditadura, o que, com a represso

    do governo militar, leva parte do grupo a exilar-se na Itlia, em 1974, Brie fica na

    argentina, reunindo-se com o grupo meses mais tarde, para separar-se dele,

    definitivamente, em 1975, quando funda, ainda na Itlia, o teatro Tupac Amaru.

    Neste perodo, estuda artes marciais, tcnicas de clown, acrobacia, dana

    contempornea, tcnicas vocais e teatro de rua, que colaboram com toda a sua prtica

    teatral desde ento. Em 1980, muda para Dinamarca, onde passa a integrar o Odin

    Teatret, sob a direo de Iben Nagel Rasmussen, considerada por ele como uma grande

    professora, cuja disciplina do ofcio e a reflexo filosfica sobre a arte ainda o

    seguem (BRIE, 2013a, p.194). tambm nesse perodo da dcada de 1980 que trabalha

    com Eugnio Barba, chegando a ser seu assistente de direo. Para Rojo (2009), axial

    na dramaturgia de Brie a importncia desse contato com a Antropologia Teatral de

    Barba12

    .

    Em 1991, Csar Brie se separa de sua antiga companhia teatral Odin Teatret,

    na Dinamarca , e com as peas El mar en el bolsillo (1989) e Romeo y Julieta (1991)

    chega a Bolvia, onde funda em agosto de 1991, junto com Naira Gonzlez e Paolo

    Nalli, o Teatro de Los Andes. As duas peas supra citadas so as primeiras a receberem

    montagem do grupo, apesar de terem nascido antes de que sequer decidisse ir

    Bolvia13

    , diz Brie (2013a, p. 195).

    Radica-se em Yatola, cidade prxima a Sucre, no estado de Chuquisaca, onde

    criam a fazenda-teatro, e, em 1992, j nos primeiros textos escritos na Bolvia, o

    dramaturgo demonstra que esta, a Bolvia, sempre ter importncia nas temticas da

    companhia, com as peas Coln e El pueblo que perdi el mar, que referenciam,

    respectivamente, um dos primeiros conquistadores da Amrica e o episdio de 1979 no

    qual a Bolvia perde para o Chile o seu nico territrio com sada para o mar, tornando-

    12

    Eugenio Barba (Brindisi, 29 de outubro de 1936). Dramaturgo italiano, pesquisador e diretor de teatro.

    o fundador e diretor do Odin Teatret, integrado por Brie na dcada de 1980, e criador do conceito da

    Antropologia Teatral, ainda fundador e diretor do Theatrum Mundi Ensemble, e criador da ISTA

    (International School of Theatre Anthropology). 13

    a pesar de que haban nacido antes de que decidiera siquiera ir a Bolivia.

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Brindisihttp://pt.wikipedia.org/wiki/29_de_outubrohttp://pt.wikipedia.org/wiki/1936http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Odin_Teatret&action=edit&redlink=1http://pt.wikipedia.org/wiki/International_School_of_Theatre_Anthropology

  • 28

    se, ao lado do Paraguai, um dos dois nicos pases encravados de todo continente

    americano. Para Abnadur e Rojo (2009, p.13-14):

    Brie sabe que a escolha por esse pas [Bolvia] como local de trabalho lhe

    dar sempre o status de imigran

    te, de estrangeiro. Mas o papel social do teatro definido pela escolha de um

    lugar com pouca tradio cnica em termos ocidentais, mas com muitas

    crenas populares parece que foi mais relevante em sua deciso. O Teatro

    de los Andes produz, em Yatola, um lugar de encontro e trabalho com atores

    e diretores do mundo inteiro.

    Alm de receber aos profissionais de teatro em seu teatro-fazenda, o Teatro de

    los Andes tambm excursiona por toda Amrica Latina, com apresentaes em

    universidades, praas, bairros, povoados, locais de trabalho, comunidades, pois, para

    eles, a relao com o pblico que determina a sua prtica teatral14

    .

    Abnadur e Rojo (2009) opinam ainda que na dramaturgia de Brie h um dilogo

    entre a sua histria pessoal e a macro-histria, tomam como exemplo o texto dramtico,

    de 1993, Slo los giles mueren de amor, inspirado no velrio de um amigo suicida, no

    qual a personagem-protagonista, em um monlogo, leva a cena a prpria morte,

    relembra os tempos juvenis, a iniciao sexual e o trabalho do artista dentro do contexto

    da ditadura militar dos anos de 1970. Em La Odisea, a histria pessoal do autor tambm

    compe a macro-histria, sendo ele mesmo um exilado, um emigrante, um Ulisses que

    reencontra Telmaco; ao conhecer j adulto, na montagem de La Odisea, o sobrinho,

    Pablo Brie. O dramaturgo, assim, um Ulisses que deixa taca; j que La Odisea o seu

    ltimo trabalho com o grupo.

    As mesmas autoras tambm ratificam a ideia de que a mitologia clssica uma

    das suas fontes (p.15), como j aludimos, trs dos textos dramticos do autor tm

    relao direta com a Antiguidade: La Iliada, encenada pela primeira vez em 2000, El

    Cclope encenada pela primeira vez em 2002, e La Odisea encenada pela primeira vez

    em 2008.

    Logo, neste trabalho, o de levar o teatro ao pblico em geral, utilizando,

    tambm, os temas da mitologia clssica, Brie e El Teatro de los Andes dialogam como o

    que acredita Said (2004, p.21): na positividade da leitura dos clssicos Homero,

    Herdoto, squilo, Eurpides, por exemplo no s em uma educao no nvel

    superior, como tambm em defender a importncia de sua leitura para o mundo em

    14

    Disponvel em: < http://www.teatrolosandes.com/sp/acerca.asp>. Acesso em 07/04/2012.

  • 29

    geral. o que fazem ao e, levando-o as pessoas onde elas estiverem e levando at elas

    saberes da Antiguidade Clssica, fonte de nossa formao cultural.

    O dramaturgo deixa de dirigir a companhia, definitivamente, em 201015

    .

    Contudo, sua semente nela continua a germinar vvida e forte, atualmente, eles encenam

    Hamlet, de los Andes, com o diretor convidado Diego Aramburo. Enquanto Brie vive,

    novamente, entre a Argentina e a Itlia, encenando os textos escritos na sua antiga

    companhia e uma nova adaptao sua de 2011, Karamazov, de Fedor Dostoievski,

    levada ao palco em 2012.

    Cremos relevante ressaltar, ainda, a importncia de fontes literrias para o

    trabalho de criao de Brie e do Teatro de los Andes, alm da trilogia temtica com a

    Antiguidade Clssica, que marca a ltima dcada do diretor e dramaturgo com o grupo

    (La Iliada, El Cclope e La Odisea), ambos levaram ao palco, tambm, a j referida

    Romeu y Julieta, de 1991, adaptao do texto dramtico homnimo de William

    Shakespeare.

    Em 1994, duas adaptaes do texto literrio Crnica de una muerta anunciada,

    de Gabriel Garca Marquez, foram montadas, uma homnima e La muerte de Jess

    Mamani, adaptao do ltimo captulo do mesmo romance, com adaptao, direo e

    atuao de Gonzalo Callejas.

    Ub en Bolvia, tambm de 1994, adaptao do texto dramtico Ubu Roi, do

    francs Alfred Jarry. Juan Darien, de 1995, adaptado do conto homnimo de Horcio

    Quironga. De 1998, En la cueva del lobo que possui uma montagem anterior, de Brie

    com o grupo dinamarqus FARFA, com uma posterior montagem boliviana , adaptao

    do conto O Lobo Feroz, de Boris Van.

    E, de 2008, La Mujer de Anteojos, uma adaptao do conto La Historia del

    Lagarto que Tena La Costumbre de Cenar a sus Mujeres, de Eduardo Galeano, com

    adaptao e atuao de Alice Guimares, dirigida por Csar Brie.

    Infelizmente, com exceo de La Iliada e La Odisea, nenhum desses textos est

    editado ou disponvel para descarregar16

    . Paradoxalmente, ao passo que adaptam textos

    15

    Atualmente, integram o grupo Giampaolo Nalli (produtor e administrador), Gonzalo Callejas (ator,

    cengrafo e diretor artstico), Lucas Achirico (ator e diretor musical) e Alice Guimaraes (atriz e

    coordenadora pedaggica). 16

    O dramaturgo possui publicado na Argentina duas Antologias, Teatro I (BRIE, 2013a) e Teatro II

    (BRIE, 2013b.). Nelas esto publicados os textos dramticos: La Iliada, Las Abarcas del Tiempo, En un

    sol amarillo, otra vez Marcelo (Teatro I). E La Odisea, Te duele?, Solo los giles mueren de amor, El

    mar en el bolsillo, El grito de Alcorta (Teatro II). Levantados no site do CELCIT podem ser

    descarregados os textos de En un sol amarillo, Frgil, Graffiti, La Odisea, Las Abarcas del Tiempo, Solo

    los giles mueren de amor e Te duele?.

  • 30

    literrios, demonstrando que o grupo no faz parte daqueles que defendem uma

    literatufobia, o fato de muitos dos textos produzidos pelo grupo, sobretudo os mais

    antigos, no estarem editados e serem de difcil resgate demonstram tambm uma certa

    luta contra o textocentrismo. Sobre seus textos, Brie cr que no so essenciais para

    a encenao, o principal que deem margem para serem interrogados e, s vezes,

    forados a algumas mudanas (BRIE apud ABNADUR & ROJO, 2009, p.15).

    Deixando claro que o texto no tem ascendncia dominante sobre a encenao,

    reconhecendo-os, assim, como independentes.

    Como j se pode perceber, a produo de Brie junto ao Teatro de los Andes foi

    intensa e perene17

    e, como j aludido, colaborou para inscrio do teatro boliviano na

    cena internacional, ao mesmo tempo em que contribuiu para o fortalecimento de um

    teatro nacional que os tornou referncia na Amrica Latina. Com um teatro de vis

    extremamente politico, o dramaturgo comeou a se envolver cada vez mais com os

    acontecimentos polticos bolivianos, atuando alm dos palcos, inscrevendo em sua

    biografia o j referenciado filme documentrio Humillados y Ofendidos (2008) e

    tambm outro filme documentrio, Morir en Pando18

    (2010), sobre o massacre de

    camponeses em Povenir, no estado boliviano de Pando, que origina o ttulo do

    documentrio, ocorrido em 11 de setembro de 2008.

    Prova do reconhecimento que recebe como dramaturgo ainda que uma minoria

    poltica boliviana, pertencente elite, o tenha levado a um segundo exlio foi o

    encargo que recebeu, em 2012, do Instituto Nacional del Teatro Argentino (INT) para

    dramatizar o Grito de Alcorta, publicado em Csar Brie: Teatro II (2013b) revolta

    agrria de pequenos e mdios produtores rurais, que em 1912 abalou o sul da provncia

    de Santa F, Argentina, e logo se expandiu por toda a regio dos Pampas, se centrando

    na cidade de Alcorta , no centenrio da data cvica, gerando um espetculo

    homnimo. Tambm com o patrocnio do INT excursionou pela Argentina com

    Karamazov e El mar en el bolsillo.

    Trazemos, aqui, essas informaes com o objetivo de contextualizar a produo

    do texto dramtico de La Odisea para o nosso leitor, assim como, apresentar um pouco

    17

    Reproduzimos aqui a cronologia dos 22 textos dramticos escritos e montados por Brie em sua atuao

    como dramaturgo e diretor do Teatro de los Andes: 1991 El mar en el bolsillo, Romeu y Julieta. 1992

    Coln, La leyenda del pueblo que perdi el mal, Cancionero del mundo. 1993 Slo los giles mueren de

    amor. 1994 Crnica de una muerte anunciada, La muerte de Jess Mamani, Ub en Bolivia, Desde

    lejos. 1995 Las abarcas del tiempo. 1996 Juan Darien. 1998 En la cueva del lobo, Graffiti. 2000

    La Iliada. 2002 El Cclope. 2003 Frgil. 2005 Otra vez Marcelo. 2006 120 kilos de jazz. 2007 -

    Te duele?. 2008 La Odisea. 18

    Documentrio disponvel em .

  • 31

    de Csar Brie e do Teatro de los Andes, que, apesar de terem estado lado a lado,

    dramaturgo e companhia, por quase vinte anos de 1991 a 2010 so instituies, hoje,

    com projetos distintos, que foram, em geral, convergentes at a sua ltima produo

    juntos: La Odisea.

    importante ressaltar, tambm, que, alm de fundador, Brie foi dramaturgo,

    diretor e ator do grupo, papeis que segue desempenhando em sua carreira. Mesmo sendo

    notria sua liderana, tanto na direo quanto na dramaturgia, cabe mencionar que ele

    no era o nico a exercer esses papeis. Como nos esclareceu Alice Guimaraes19

    , atriz do

    grupo desde 1998, e, hoje, tambm coordenadora pedaggica, Brie foi fundador e parte

    importante do grupo, edificou os pilares artsticos do trabalho que continuamos

    fazendo at hoje, diz ela.

    Ressalta, ainda, que mesmo nesses quase vinte anos, exerceu atividades com

    outros grupos que no dizem nenhum respeito ao Teatro de Los Andes como a

    montagem de Zio Vanja, texto de Anton Tchekhov, na Itlia, em 2006 , sendo o grupo

    hoje, repetimos, uma instituio totalmente apartada e independente de seu fundador,

    cuja importncia, para o grupo, to significativa quanto a de outros membros que

    deixaram ou seguem na companhia, para Alice Guimaraes, ainda que Brie, como diretor

    e dramaturgo, seja importantssimo, o aporte dos membros que fizeram e fazem parte

    ainda do grupo no menor.

    Recebemos esses esclarecimentos nos contatos que mantivemos tanto com o

    grupo quanto com o dramaturgo em busca de outros suportes que enriquecessem as

    nossas leituras, assim como de materiais para confeco de um projeto de doutorado, no

    qual se pretende seguir com a investigao de textos dramticos de Brie e/ou do Teatro

    de Los Andes. Ao menos nesta subseo, em que contextualizamos a ambos, faremos

    esta distino o que no ocorrer doravante, quando nossas anlises versaro apenas

    sobre La Odisea , haja vista, como dissemos, no ser Brie o nico a dirigir, escrever e

    adaptar textos no grupo.

    J havia nos ocorrido a necessidade de problematizar a autoria coletiva nas artes

    cnicas, mesmo estando clara nossa metodologia, e filiao terica na crena da

    independncia do texto dramtico com a clara concepo de sua montagem cnica como

    uma outra obra, que angaria para si outros signos e elementos e, obviamente, em

    nossas referncias estar a creditao de La Odisea (2013b) a Brie. A necessidade dessa

    19

    Correspondncia eletrnica trocada com Alice Guimares em 29 de julho de 2014.

  • 32

    discusso foi ratificada pela fala de Alice Guimares, j que at ento, s conhecamos a

    voz do dramaturgo. Na fala da atriz: considero importante mencionar que o que sempre

    caracterizou e caracteriza o trabalho do Teatro de Los Andes o trabalho de criao

    coletiva. No prescindimos da figura do diretor, mas ele mais um no processo criativo

    junto com os atores, cengrafo, msicos, etc20

    .

    Sabemos que este um terreno movedio, tanto que em um outro contato

    oportuno, com a professora e tambm dramaturga Cleise Mendes, recebemos dela o seu

    texto, at ento ainda indito, que em breve seria publicado, Dramaturgia e autoria em

    obras cnicas (2014)21

    , com o qual podemos esclarecer nossas dvidas.

    No que tange ao texto, na cronologia de Csar Brie, trazida por Marita Foix (In.:

    BRIE, 2013a), e por ns revisada com o auxlio do dramaturgo e de Alice Guimares, o

    nico texto ao qual creditada criao coletiva Desde lejos, de 1994, aos outros so

    creditados um ou dois autores, nem sempre Brie, como j aludido. Logo, a montagem,

    sim, de autoria coletiva, mas muitos dos textos incluindo o nosso objeto tem a

    assinatura de Brie, obviamente que com possveis e provveis contribuies, mas com a

    assinatura dele, como segue sendo editado (BRIE, 2013a, 2013b). Quanto a esta

    questo, Mendes (2014, p. 29) defende que:

    As artes cnicas, em suas vrias modalidades, tm em comum o fato de sua

    autoria ser, inescapavelmente, coletiva. Qualquer criao no campo das artes

    cnicas implica a co-participao de profissionais das mais variadas funes

    e formaes, tais como diretores, atores, cengrafos, aderecistas, figurinistas,

    sonoplastas, iluminadores. A obra-evento [...] engendrada por um processo

    colaborativo que no pode ser seno o resultado de uma autoria mltipla.

    Quando uma montagem chega a sua forma final final no sentido de que

    est pronta para ser apresentada ao pblico, j que uma obra viva, em

    mutao constante, portanto no h, para falar com rigor, forma final

    torna-se impossvel separar as participaes autorais.

    Logo, embasados no que diz Mendes, qualquer arte cnica de autoria,

    inescapavelmente, coletiva, estejam os participantes dela cientes ou no, e, sendo essa

    uma filosofia de trabalho, a coletividade ainda mais inquestionvel, se que possvel.

    Para a terica, cuja temtica extremamente interessante por ser ela mesma dramaturga,

    20

    Correspondncia eletrnica trocada com Alice Guimares em 29 de julho de 2014. 21

    O texto de Mendes foi o desenvolvimento de sua fala proferida durante o Painel Direito Autoral,

    Propriedade Intelectual e Plgio, uma realizao do Instituto de Cincia da Informao da UFBA e da

    Academia de Letras Jurdicas da Bahia, em 15 de setembro de 2011. J se encontra publicado, como

    referenciado nessa dissertao, e o livro completo, homnimo ao painel, cuja organizao de Rubens

    Ribeiro Gonalves da Silva, se encontra disponvel para descarga no repositrio da UFBA no link:

    .

  • 33

    a obra cnica, aquela que se realizar no palco, viva, estando mais para evento do que

    para obra, j que no estvel, fixa, imutvel, terminada.

    Mendes esclarece que, dentre as distintas querelas sobre autoria ou autorias

    nas artes cnicas, a mais antiga, porm extremamente atual, a que diz respeito s

    relaes de dependncia ou autonomia entre o texto e a encenao, o que j discutimos

    com base na prpria autora, ao decidirmos trabalhar apenas o texto.

    No que tange a esta questo, como desde o princpio deixamos evidente a nossa

    viso do texto dramtico enquanto obra literria e independente da encenao, Mendes

    (2014), mais uma vez, nos dar os pressupostos para creditar o texto dramtico aos seus

    respectivos autores dentro da companhia, como Brie, em La Odisea, Gonzalo Callejas,

    em La Muerte de Jess Mamani, e a prpria Alice Guimares, em La Mujer de

    Anteojos, para a terica e dramaturga:

    No caso do dramaturgo, pode-se dizer que ele o nico dentre os

    profissionais envolvidos que possui uma obra autnoma, que tem existncia

    independente, pois seu texto pode ser lido antes e depois do espetculo

    produzido. Pelo menos no caso de processos mais tradicionais de montagem,

    a pea teatral, o texto, j existe antes da encenao (MENDES, 2014, p.30).

    Assim sendo, dentro da reviso que fizemos de Marita Foix da cronologia de

    Brie e do Teatro de los Andes, cabe mencionar, tambm, os casos de Fragil, de 2003,

    120 Kilos de Jazz, de 2006, e Te Duele, de 2007, estando os dois primeiros editados na

    Bolvia e o ltimo na Argentina (Brie, 2013b). Destes trs textos, na cronologia traada

    por Foix, apenas Fragil mencionado com co-autoria, sendo seus autores Brie e Mara

    Teresa del Pero, os outros dois trazem como autor apenas Brie. Contudo, Alice

    Guimares relata que estes trs textos:

    120 Kilos De Jazz, Fragil e Te Duele foram espetculos atpicos dentro da

    dinmica do grupo porque foram projetos nascidos de iniciativas e

    necessidades individuais de alguns atores que propuseram ao grupo a

    realizao de determinados projetos. 120 Kilos foi um projeto do ator Daniel

    Aguirre, Fragil, de Maria Teresa Dal Pero e Te Duele de Lucas Achirico e

    Danuta Zarzyka que fizeram uma exaustiva investigao sobre o tema da

    violncia domstica na Bolvia e na Amrica Latina22

    .

    Como dito pela atriz e coordenadora pedaggica do Teatro de los Andes, os

    espetculos foram atpicos dada a iniciativa individual dos atores por realiz-los e a

    pesquisa que empreenderam , mas, aps toda discusso com base em Mendes, e

    22

    Correspondncia eletrnica trocada com Alice Guimares em 29 de julho de 2014.

  • 34

    estando creditada a assinatura de Mara Tereza del Pero em Fragil, s podemos pensar

    na coerncia da cronologia trazida por Foix e na existncia, sim, de possveis e

    provveis contribuies nos textos dramticos de Brie, mas cujas autorias so dele.

    Dada nossa Introduo, discorreremos a partir de agora, nas trs seguintes sees

    que desenvolvem nossa dissertao Entre retalhos e costuras: o rapsdo e o hbrido

    em Brie, Entre monstros e amores: a partida e o retorno de Ulisses, Entre humilhados e

    ofendidos: questes de identidade , os conceitos-chave aqui apresentados e a anlise

    minuciosa de La Odisea em sua insero cultural, poltica e literria na Bolvia e na

    Amrica Latina.

  • 35

    2 ENTRE RETALHOS E COSTURAS: O RAPSDO E O HBRIDO EM BRIE

    2.1 CSAR BRIE: O AUTOR-RAPSODO

    No cnone da literatura nacional brasileira encontramos como exemplo de

    rapsdia a obra Macunama (2007), assim definida pelo seu prprio autor, Mrio de

    Andrade, que a definiu tomando o termo rapsdia emprestado da msica, rea na qual

    tambm atuava, na qual a rapsdia define o verso livre, sem excluir, obviamente, toda

    potencialidade do termo, que inclui, desde que ele foi cunhado na Antiguidade Clssica,

    a hibridizao de gneros e textos, a narrativa oral, a narrativa de lendas.

    A evocao a obra quase centenria 86 anos de Mrio de Andrade justifica-

    se para refletirmos que o operador de leitura proposto pelo terico francs Jean-Pierre

    Sarrazac para o texto dramtico, na dcada de 1980, tambm se faz presente na

    literatura latino-americana, de forma explcita ou no, diramos, alis, que na Amrica

    Latina a rapsdia um dos constituintes no s de nossas artes, como de nossas

    identidades. No Lxico do Drama Moderno, cuja organizao do prprio Sarrazac, o

    operador de leitura rapsdia como forjada por ele est definido como:

    Conceito criado e desenvolvido por Jean-Pierre Sarrazac em O futuro do

    drama, no incio dos anos 1980, a rapsdia corresponde ao gesto do rapsodo,

    do autor-rapsodo, que, no sentido etimolgico literal rhaptein significa

    costuras , costura ou ajusta cnticos. [...] a noo de rapsdia aparece,

    portanto, ligada de sada ao domnio pico: o dos cantos de narrao

    homricos, ao mesmo tempo que a procedimentos de escrita tais como a

    montagem, a hibridizao, a colagem, a coralidade. (HERSANT;

    NAUGRETTE, 2012, p.152)

    A rapsdia como operador de leitura traz em si outros operadores que so ricos

    s anlises literrias contemporneas, dentre eles hibridizao/hibridismo e

    intertextualidade, operadores potentes para o cotejo de duas Odisseias, e, como se pode

    perceber, ao manter o nome do hipertexto homrico, em espanhol La Odisea, o

    dramaturgo optou por evidenciar e, diramos at, potencializar o seu fazer rapsdico,

    isto porque, segundo o prprio Csar Brie: a Odisseia infinita. Suscitou muitssimas

    obras de arte. Ler, ler, ler, comparar (BRIE, 2007b, p.4).

    Logo, ele segue outros rastros alm dos de Homero, como os de Joyce, Borges,

    Dante, realizando outras intertextualidades para costurar um texto hbrido no qual

  • 36

    pudesse expor a perda de um tero dos cidados bolivianos para a emigrao rumo a

    territrios estrangeiros, sobretudo, E.U.A., Argentina e Europa.

    No ano de 2008, mais precisamente em 24 de maio, durante a montagem da

    pea, ocorreu na cidade de Sucre cidade prxima a cidade na qual localiza-se a

    fazenda da companhia, Yotala um ato de violncia e racismo contra os indgenas do

    interior, praticado pela populao universitria, servidora pblica e classe mdia da

    cidade, que, em geral, tambm de ascendncia indgena. O ato levou o dramaturgo a

    parar a montagem e, como j foi dito, iniciar um documentrio posteriormente,

    internacionalmente reconhecido chamado Humillados y Ofendidos (2008).

    Aps produzir e publicizar o documentrio, o dramaturgo passou a ser

    hostilizado pelas lideranas locais, deixando de ser o artista conceituado para ser o

    argentino de merda23

    , como relata em entrevistas. Em suas peas, a poltica e a

    denncia contra o que sofrem os camponeses e vulnerveis sempre estiveram presentes,

    contudo, quando esse ato poltico, mas ficcional, saiu dos palcos, do mbito metafrico,

    para a realidade e se tornou transparente para o poder ele foi imediatamente repelido.

    Verifica-se que esse ato explicitamente poltico de Csar Brie, a filmagem do

    evento e a sua participao nele, o levou a modificar o rumo do seu texto, excluindo e

    incluindo cenas, pensando e repensando a forma, em um fazer rapsdico de coser e

    descoser o texto homrico e o seu prprio texto.

    Em La Odisea, Brie aproxima-se do teatro brechitiano em sua forma e inteno,

    isto , atravs de recursos picos convida a Bolvia a repensar sua condio, ao mesmo

    tempo em que a expe fora das fronteiras nacionais. Como dito por Sarrazac, a rapsdia

    est ligada de sada ao domnio pico, aos cantos de narrao homricos, aos

    procedimentos de escrita de colagem, caractersticas que Brie faz explodir ao descoser e

    recoser um canto homrico em si, a Odisseia.

    H, como j foi apontado anteriormente, trs verses do texto dramtico La

    Odisea disponveis para leitura. A primeira (BRIE, 2007b) est impressa e editada pelo

    Teatro de Los Andes na Bolvia e, ainda que apresente significativas diferenas, se

    assemelha muito a ltima verso editada em uma antologia de textos dramticos do

    autor junto ao Teatro de Los Andes publicada na Argentina (BRIE, 2013b), esta verso

    apresenta mais didasclias e maior edio nas cenas (como o acrscimo de uma fala

    23

    Entrevista disponvel em: < http://www.youtube.com/watch?v=X_ug3IqVW9c> . Acesso em 07/02/14.

  • 37

    ltima cena), alm de ter recebido correo ortogrfica e textual nos erros presentes na

    de 2007.

    A verso de 2009 encontra-se disponvel para download no site do CELCIT

    Centro Latinoamericano de Creacin e Investigacin Teatral, sob o nmero 316, com o

    ano de 2009 indicado como data de postagem, a datao presente nos dois artigos

    encontrados que referenciam o texto datam o acesso entre 2010 e 2011, logo, esta

    verso, estaria entre a primeira e a terceira. Primeira (BRIE, 2007b), segunda (BRIE,

    2009) e terceira (BRIE, 2013b).

    Nesta verso levantada no CELCIT h uma relevante cena, a primeira, que foi

    posteriormente excluda, no estando presente no texto de 2013, esta verso, alm de

    possuir cenas excludas, possui a organizao de suas falas e cenas tambm distinta dos

    textos de 2007 e 2013, por isso est cena ser o primeiro objeto de nossa anlise, esta

    verso, (BRIE, 2009), possui, tambm, menos indicaes cnicas ou possui indicaes

    diferentes das outras verses e apresenta um final tambm diferente, o trmino do texto

    de Brie, alis, distinto nas trs verses.

    Essa primeira cena excluda corresponderia no texto homrico assembleia dos

    deuses, que, justamente, em Homero, ocorre duas vezes, a primeira assembleia como

    cena de abertura da Odisseia e daquela que os tericos chamam de Telemaquia,

    resultando na descida de Atena para ajudar Telmaco os quatro primeiros cantos que

    narram a busca de Telmaco por Ulisses (sobre a Telemaquia especificamente

    trataremos na terceira seo) e a segunda assembleia na ida de Hermes a ilha de

    Calipso para inform-la que deve liberar Ulisses.

    Para muitos tericos, como Jaqueline de Romilly, ocorre que as duas

    assembleias so, um pouco, uma repetio escusada (2001, p.48), assim sendo, ao

    excluir da verso de 2013 uma das assembleias presente na verso de 2009, Brie estaria

    dialogando tambm com os comentaristas da Odisseia.

    Como j mencionado, aps os eventos de 24 de maio de 2008 na cidade de

    Sucre, na Bolvia, o dramaturgo, que at ento montava La Odisea, parou a montagem

    para participar dos eventos vividos em 24 de maio e registr-los em um documentrio,

    intitulado Humillados y Ofendidos. Acreditamos que, tambm por isso, a relevante

    primeira cena que est presente na verso disponvel no CELCIT, intitulada Primer

    Acto: Escena 1: Asamblea de los dioses (Assembleia dos Deuses) tenha sido editada,

    acrescentada e, posteriormente, descartada da verso publicada em 2013. Para que

    compreendamos melhor, seguem alguns excertos da cena:

  • 38

    Praia. Zeus deitado em uma cadeira de praia. Atena chega com uma

    sombrinha e se deita na areia. Hermes camareiro serve a Zeus champanhe.

    Afrodite faz massagem em Zeus. Na praia h sapatos masculinos e femininos

    trazidos pela mar. Hermes recebe uma ligao. Hermes: Al, sim, Ulisses?

    Ulisses Choque?Voc est na Espanha, no aeroporto? Chama-se Barajas?

    Qual o probleminha? O de migraes, um tal de Polifemo? Voc no tem

    visto, querem lhe deportar, no lhe deixam passar? [...] Afrodite: Al,

    Ulisses Quispe? No est em Ushuaia? Em Londres... Mxico... No Paso?

    No escuto... H latidos. Os ces de guarda da polcia de Escila e Caribdis?24

    .

    (BRIE, 2009, p.1, 3)

    A relevncia e importncia dessa cena, includa e depois excluda, est

    justamente em seus traos rapsdicos. Aps a indicao cnica, o texto j comea com

    uma narrao, isto , epicizado, Hermes, em uma ligao telefnica relata o que ocorre

    com Ulisses do outro lado do Atlntico. A presena de Afrodite tambm indica o canto

    rapsdico do dramaturgo, j que essa personagem em Homero s se faz presente na

    Ilada, sem ocorrncias suas na Odisseia, a deusa do amor, aqui, demarca o retalho e a

    costura de outro tecido textual. Apesar da excluso dessa primeira cena (BRIE, 2009),

    na cena 5, Calipso, da edio publicada em livro (BRIE, 2013b, p.26) mantem-se a

    personagem de Afrodite, que aparece no segundo quadro, Los consejos de Afrodita, para

    aconselhar a ninfa de ricas tranas. Na verso do CELCIT essa a 6 cena do primeiro

    ato.

    A rapsodagem ocorrida com Afrodite se passa, de outra forma, com Ulisses,

    que ao receber sobrenomes, Choque e Quispe, traz tona as reais personas de Salustio

    Choque e Felipe Quispe Huanca, este recebeu o ttulo de o mallku, em aimar, o condor,

    ttulo que designa os chefes de tribos, um ativista indgena e poltico boliviano da

    etnia aimar mesma do presidente Evo Morales , lder do Movimento Indgena

    Pachakuti (MIP), fundado em 2000, e lder sindical, foi ainda o secretrio geral

    da Confederacin Sindical nica de Trabajadores Campesinos de Bolivia (CSUTCB),

    aquele, Salustio Choque, foi integrante do Grupo guerrilheiro de Che Guevara na

    Bolvia, detido pelo exrcito, torturado, condenado a trinta anos de priso e anistiado

    em 1970.

    24

    Playa. Zeus acostado en una silla playera. Atenea llega con una sombrilla y se acuesta en la playa. Hermes camarero sirve a Zeus champagna. Afrodita le hace masajes. En la playa hay zapatos de hombres

    y mujeres llegados con las olas. Hermes recibe una llamada. Hermes: Al, si, Ulises? Ulises Choque?

    Ests en Espaa, en el aeropuerto? Barajas se llama? Qu problemita? El de migraciones, un tal

    Polifemo? Te falta la visa, quieren deportarte, no te hacen pasar? [] Afrodita: Al, Ulises Quispe?

    No ests en Ushuaia? En Londres... Mxico... en el Paso? No escucho... Hay ladridos Los perros

    guardianes de la polica de Escila y Caribdis?

  • 39

    O dramaturgo, assim, traz cena figuras importantes na luta por direitos

    igualitrios na Bolvia, Choque remete a um passado prximo de guerrilha, enquanto

    Quispe a um presente de lutas democrticas, ambas com intenes de livrar os

    campesinos indgenas da opresso e de uma situao de vulnerabilidade

    socioeconmica, o autor, mais uma vez, encontra uma estratgia para atualizar o texto

    homrico.

    Na interpretao de Alicia Mara Atienza, a mescla, no texto, do nome Ulisses

    com os sobrenomes peruanos Choque e Quispe ressignificariam o estatuto da

    personagem aproximando-a de um roll tipificado, o de qualquer imigrante (ATIENZA,

    2010, p.55). No exclumos esta interpretao, j que esses sobrenomes indgenas,

    assim como outros que surgiram ao logo do texto, realmente so comuns na Bolvia,

    como o so Silva e Souza no Brasil. Contudo, acreditamos na possibilidade de

    coexistncia das duas interpretaes j que tais sobrenomes suscitam no leitor/pblico,

    sobretudo, no boliviano, figuras relevantes na histria do pas, como Silva que no

    Brasil representaria a qualquer um, mas que pronunciado em um contexto internacional,

    suscitaria ao primeiro presidente oriundo da classe Trabalhadora que teve o pas Luis

    Incio Lula da Silva o que ocorrer na pea com a meno, tambm, ao sobrenome

    Morales25

    . Interessa-nos, tambm, perceber como a verso do texto disponibilizado no

    CELCIT a que mais possui fortuna crtica at o momento, obviamente, porque, apesar

    do status que o texto impresso ainda possui, a verso on-line possui um alcance

    infinitamente maior e essa a verso analisada e referenciada pela autora.

    Ainda com relao a essa primeira cena, temos a seguinte passagem que acima

    elipsamos:

    Zeus: (Mostra-lhe um sapato) Atena, veja que beleza. Quem o ter calado?

    Atena: Zeus Pai, onde o encontrou?

    Zeus: O encontrei na praia, em sete de agosto de mil novecentos e oitenta.

    No sculo passado...

    Atena: Eu conheo o dono. Se chama Ulisss, faz muito tempo que foi

    guerra e nunca voltou26

    (BRIE, 2009, p.1).

    25

    Podemos establecer nessa estratgia de Brie um pararelo com a comdia na Antiguidade Clssica, a

    exemplo de Aristfanes, comedigrafo grego, que nomeava seus personagens com nomes de polticos e

    generais atenienses. Melhor exemplo disso a pea Os Acarnenses. A comdia antiga, a comdia de

    Aristfanes, poltica. A comdia serve como crtica a sociedade ateniense da poca, um sculo depois,

    j est consolidada a comdia nova, com Menandro, que escreveu comdia de costumes, como O

    Misantropo. 26

    ZEUS: (Le muestra un zapato)/Atenea, mira qu belleza. Quin lo habra calzado?/ ATENEA: Padre

    Zeus Dnde lo encontraste?/ZEUS: Lo encontr en la playa el siete de agosto de mil nueve ochenta. El

    siglo pasado.../ [] ATENEA: Yo conozco al dueo./ Ulises se llama, hace mucho tiempo que se fue a

    la guerra y nunca volvi.

  • 40

    O calado aqui um objeto cnico que surge como gatilho para as memrias de

    ambos os envolvidos na cena, Zeus, Atena e, por meno, Ulisses. a partir dele que

    Zeus rememora, com preciso divina, a data, o ms e o ano em que o encontrou e

    demarca ter sido no sculo passado.

    O sapato de Ulisses o pontap inicial para que a pea comece a narrar as

    memrias de um heri boliviano, andino, que erra pelo mundo em narrativa tambm de

    exlio e no mais apenas de retorno. Faz-se necessrio que rememoremos, tambm, que

    os Andinos da regio que hoje conhecemos como a Bolvia foram dominados e

    explorados durante o Imprio dos Incas, para os quais, segundo Stallybrass (2012, p.

    13), a roupa possua enorme significado, ao incorporarem uma nova comunidade para o

    seu reino, por exemplo, concediam aos novos cidados roupas para vestir. Dentre as

    diversas rapsdi