chico science: a rapsódia afrociberdélica - moisés neto

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CHICO SCIENCE  A RAPSÓDIA AFROCIBERDÉLICA M O I S É S N E T O  V E R S Ã O ELET R Ô N I C A

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O livro de Moisés Neto "Chico Science – A Rapsódia Afrociberdélica" é uma análise da obra do músico pernambucano falecido em 1997 e foi lançado pelas Edições Ilusionistas, um dos braços da Ilusionistas Corporação Artística, produtora cultural fundada em 1983 e responsável pelas montagens teatrais dos textos de Moisés Neto, entre os quais "Para 1 Amor No Recife", encenado em 1999/2000."A Rapsódia" teve origem como sua monografia de pós-graduação em Literatura. A orientadora de Moisés, a professora e poetisa Lucila Nogueira, ficou entusiasmada com a escolha do tema e com o resultado do trabalho. Incentivado por ela, Moisés resolveu suavizar os aspectos mais acadêmicos do texto - sem, contudo, eliminar seu caráter didático - e editar o trabalho em livro.

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  • CHICO SCIENCEA RAPSDIA AFROCIBERDLICAM O I S S N E T O

    V E R S O E L E T R N I C A

  • Chico ScienceA Rapsdia Afrociberdlica

    por Moiss Neto

    Recife2007

  • Copyright 2007 by Moiss Neto

    Reviso, Diagramao e Produo para PDF:Ricardo Valena

    Direitosreservados :ILUSIONISTAS CORPORAO ARTSTICAFones: (81) 9961.3422

    www.moisesneto.com.br

    moises@ moisesneto.com.br

    Editora LivroRpido ElogicaRua Dr. Joo Tavares de Moura, 57/99 PeixinhosOlinda-PE CEP: 53230-290Fone: (81) 2121.5300 Fax: (81) 2121.5333

    www.livrorapido.com.br

    N469c Neto,Moiss,ChicoScience:rapsdiaafrociberdlica/MoissNeto.

    Recife,2001:EdiesIlusionistas,20001.SCIENCE,CHICO,1966-1997

    CRTICAEINTERPRETAO.2.MOVIMENTOMANGUEBEAT,1990PERNAMBUCO.

    I.Ttulo.II.Srie:EdiesIlusionistas:2.PeR-BPEPCB CDU869.0(81).09

    N469c Neto,Moiss,ChicoScience:rapsdiaafrociberdlica/MoissNeto.

    Recife,2001:EdiesIlusionistas,20001.SCIENCE,CHICO,1966-1997

    CRTICAEINTERPRETAO.2.MOVIMENTOMANGUEBEAT,1990PERNAMBUCO.

    I.Ttulo.II.Srie:EdiesIlusionistas:2.PeR-BPEPCB CDU869.0(81).09

  • Agradecimentos

    AgradeoaSimoneFigueiredo,RicardoValena,RolandWalter, Alfredo Cordiviola, Paulo Cunha, enfim, a todos os que compemoProgramadePs-GraduaoemLetrasdaUFPE,Luzil,Yaracylda,SoniaRamalho,LourivalHolanda,Joachim, Diva, a Roslia Calsavara, a Garniz, Larcio, Lucila Nogueira, Jomard Muniz de Brito, Diomar e Therezinha de Belli pelo suporte, Tarcsio Pereira, Regina Coeli, Maria do Carmo de Oliveira, Elcy Oliveira, Marcelo Pereira, Jos Teles e a CAPES pela bolsa de estudos.

  • Aos que ardem...

  • Estelivrobuscasuscitarointeressenoaprofundamentodenovas abordagens da poesia recifense que ofeream subsdios paraestudosculturaiseusacomoeixoreferencialumasociedadeondeospoetasforamatingidosdiretamentepeloprocesso de globalizao. Procura resgatar o que houve de literrionoMovimentoMangueounaCenaRecifensedosanos 90, movimento de vanguarda que aconteceu no Recife, eaestruturaodestelegadoculturalcomotendncia.Nossotexto usar a performance e a poesia do lder do Manguebeat, Chico Science, como fio condutor, elemento catalisador, para esmiuar uma potica diluda em letras de msica, shows, filmes, manifestoseentrevistas.Problematizandoadiversidadecultural no Nordeste brasileiro j ressaltada por Gilberto Freyre, pelos escritores regionalistas da dcada de 30, por Ariano Suassuna e o Movimento Armorial e pelo Tropicalismo no fim dos anos 60, escreveremos sobre a gerao Manguebeat (A Cena Recifense dos anos 90), que se formou mesclando o global s tradies locais. Nosso estudo cultural usar as teorias desenvolvidas por Stuart Hall, Homi Bhabha, dentre outros, na tentativa de oferecer possibilidades de interpretao das letras e dos manifestos de Science e de grupos como Mundo Livre S/A e Faces do Subrbio, para trabalhar as questes de identidade e diferena e, principalmente, a representao da cidade do Recife na obra desses msicos poetas.

  • Watchingthepeoplegetlairy/itsnotveryprettyItell thee / walking through town is quite scary I predict a riot

  • Apresentao

    Moiss Neto explora o ps-modernismo na obra de Chico Science e mergulha na Cena Recifense / Pernambucana na virada do terceiro milnio destacando a relao entre o popular e o erudito, o negro e o ndio, a metrpole e o mangue.

    DocaranguejoglobalizadoaoMaracatuatmico,oProjetoMangue buscou a universalizao das nossas razes, fenmeno da dcada de noventa a mostrar que ainda vivel defender-se um idealemPernambuco,levantaraauto-estimadesse povo atravs do artista morto em 1997 aos trinta e um anos em completa resistncia pasmaceira e despersonalizao em um Nordeste que desde a Geografia da Fome de Josu de Castro exibe os seus moradores de palafitas a comer sururu, da lama ao caos, alternativa contra o marasmo cuja evoluo e principais caractersticas aqui surgem expressas por Neto de modo dinmico e de agradvel leitura, obra primeira a merecer ateno do pblico especializado.

    Lucila Nogueira

  • SUMRIO

    Prefcio .................................................................21

    A Obra de Chico Science e a Cultura Popular .......23Admirvel Pernambuco Novo ...............................30O caranguejo globalizado e o maracatu atmico ...31Ps-modernismo e Experimentalismo na obra de Chico Science ...................................36A fora da terra ......................................................41A voz pernambucana .............................................42A rapsdia afrociberdlica ....................................43O cangao e o mangue ..........................................47A Manguetown desconstruda ...............................52Arte longa, vida curta ............................................55Morte de malungo .................................................58O duplo no CSNZ Scream Poetry .........................65Formas de expresso artstica do Mangue ............68Estudos comparativos: o popular versus o erudito......................71Roda Viva ..............................................................77Recife 1999 Ecos do Mangue ...............................79A festa da Lavadeira ..............................................81Mangue do mundo ................................................83Da Soparia ao Pina de Copabacana ......................84A laranja mecnica ................................................86O dia seguinte .......................................................92Pela Internet ..........................................................95Como nasceu o grupo Chico Science & Nao Zumbi ....................................97O manifesto do manguebeat .. ......................... .....100

  • Depoimentos variados .........................................102I .........................................................102II ........................................................102III .......................................................103IV ......................................................103Cad Roger? ......................................104 mais, mais, mais alm ..............104

    Julho de 1999: O caranguejo na praia das virtudes.. ........................107

    Saga Zumbi .......................................................... 110Assim falou Zeroquatro ....................................... 112RecBeat 2000 ....................................................... 114Experincia .......................................................... 116Abril 2000! ........................................................... 119Rdio S.amb.a ......................................................122A ltima dana ....................................................1232003 2007: FUTURANDO ..............................126

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    PREFCIO

    Por que escrever sobre Chico Science? Primeiro, porque ele referncia nacional. Minha atrao por este tema veio talvez do fato de ver em Chico um domador da inveja recifense e construtor, aos trancos e barrancos, de uma obra conceitual, isto , ambientou sua produo num s tema: o Manguebeat. Ele domesticou o instinto, de certa forma destruidor da bela e perversa Recife.

    O Manguebeat um osis de originalidade no meio da cultura brasileira que vomitava brega, pagode, msica sertaneja e ax em ritmo alucinante, enlouquecedor e o povo pernambucano, que estava acostumado a importar seus dolos e ter seus direitos desrespeitados na demncia do cativeiro e na domesticao, percebeu nas cores e luzes de Science e seu grupo a metamorfose do horror em estranha beleza superficial, na sintonia do nosso desequilbrio, o reflexo do desequilbrio do mundo.

    Fui tomado por um mpeto e escrevi centenas de pginas sobre o Manguebeat, que se mostrou inesperadamente complexo na sua proposta de misturar rock, folclore, contracultura, ciberntica e tantas outras coisas num caldeiro que pouco a pouco se delineava na composio do meu quadro. O povo preenchia seu vazio enfeitando-se para animar os outros prisioneiros do sistema e nesta gaiola chamada injustia social que o Brasil, o poeta-caranguejo props comicamente, com um riso e posturas que lhe eram peculiares, a inveno do brasileiro que, mesmo abandonado sua prpria sorte nos anos 80 e 90 (como sempre), reagiu transformando desgraa em diverso musical onde a linguagem, num vai-e-volta, exibia uma fala dura e vulgar que no temia o ridculo e se tornava extasiante, ritualstica e convidava a tripudiar sobre as instituies como numa histria em quadrinhos, numa travessura adorvel que intuitivamente louvava a liberdade em todas as suas formas

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    de satisfao, mantendo-se longe da religiosidade medieval que mascara nossa realidade grotesca de cidados sem direito a nada. O malungo manteve a clareza mental intacta no meio do turbilho pernambucano e navegou no caudaloso rio que nossa histrica cultura, no se deixando abater pela atrocidade externa e sabendo reconhecer os demnios castradores, eliminando-os, combatendo-os como um vingador caboclo psicodlico que veio do povo, que atravessou o limite do caos do Recife e sintonizou-se, dobrando a crueldade com sua lana. Um contador de histrias que tratava o tempo como um brinquedo e tentou expressar sua mensagem atravs de uma linguagem corporal, de expresses faciais e versos bem dinmicos. Tornou-se mito: dolo pop, estrela, mestre, por pura astcia e foi coroado de louros pelo povo.

    Tudo isso gerou em mim a fome de entend-lo, de oferecer uma viso dentre as vrias possveis para uma leitura desta lenda chamada Chico Science.

    Moiss Neto

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    A OBRA DE CHICO SCIENCE E A CULTURA POPULAR

    Eu j me disse uma vez / minha jangada vai voar / ouvi isso uma vez / eu vou morar depois do mar /

    eu vou morar / deixo a saudade para vocsPixel 3000 em Joo Galafuz

    Quando abordamos o tema Cultura Popular, logo contrapomos ao mesmo a chamada cultura erudita. Convencionou-se que uma feita pelo povo e a outra, pelos estudiosos de gabinete, de Academias. A obra de Chico Science avanou no sentido de rejuvenescer o que, por descaso ou comodismo, estava merecendo uma ateno maior dos jovens: nossa cultura popular, nosso jeito, a maneira de ser do Recife, da cultura quatrocentona de Pernambuco. Passado e presente unem-se atravs de loas (recursos para captar simpatia e participao do pblico; apologia; cantigas populares) e remixagens costurando vrias informaes, exaltando um novo modo de agir das camadas subalternas, uma atitude, um estilo - ditado por seus avs populares, porm questionador e futurista.

    Como intrprete, Chico Science apresenta os traos pernambucanos com sua poesia popular. Conseguindo driblar a degradao, ele empurra-a at o ridculo. No h, como sugerem alguns, uma deturpao das tradies; em vez disso, a obra scienceana redescobre, reinventa, documenta, testemunha e indica os novos rumos da arte popular, usando para isso a mdia (jornais, computador, tv, etc.) que exercida pela camada intelectualizada e controlada pela lei da compra e venda, a lei do marketing.

    A codificao (mensagem) em Science tem caractersticas peculiares. Uma delas a contextualizao (o conceito) da problemtica do homem pobre e esquecido pelo sistema: o jovem da periferia que tem de demonstrar esprito de luta, esperteza fora do comum e aproveitar a sabedoria dos mais velhos, dos mestres de capoeira dos terreiros, dos pescadores, dos guerreiros (a Nao) e

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    das figuras picarescas da nossa cultura, como o camel interpretado por Chico na msica Mac. Os malungos, os brincalhes, aqueles que vivem margem pelas ruas do Recife, formam o que chamo de ruptura com a dicotomia rural / urbano - onde nem sempre so bvios os pontos de ligao. Tudo isso no meio de uma cultura to diversa e rica como a de Pernambuco.

    Recife evocada em Science como uma cidade mtica, cenrio de muitas aventuras. Como num bem marcado movimento da dana do maracatu que lhe visita ou nos vcios do falar nordestino. Recurso que tambm foi destacado pela professora Teresa Otranto (1998), ao se referir obra do pernambucano Capiba: Na performance oral, a travessia do discurso pela memria propicia o percurso por um caminho desviante e enganoso, gerador de uma constante recriao do j dito. O autor est sempre (re)atualizando algo que ouviu de outros e sai costurando a sua criatividade com pedaos j existentes no domnio popular criando um envolvimento textual (...) O texto criado adquire novo sentido, pois pressupe um outro criador com toda a sua memria cultural, onde os lugares comuns, os provrbios e os ditos embelezam de sobremaneira a ambos Teresa tambm aponta para algo que comum nas composies capibianas e nas de Chico Science: Nos sales onde reina a msica de Capiba, no se encontram pierrs, colombinas e arlequins, vestgios dos carnavais venezianos, parisienses.

    Se Graciliano Ramos buscou auscultar a alma do ser rude e quase primitivo do serto e observar seu esprito rude diante do mundo exterior, Chico faz o mesmo, em plena confuso urbana recifense. S que, ao contrrio de Graciliano, que enfatiza as limitaes do retirante sertanejo Fabiano e sua famlia em Vidas Secas, Chico enfatiza a sabedoria prtica das camadas mais populares. a resistncia dos vencidos, indicando novas possibilidades de luta.

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    Como sugere Adolfo Colombres, quanto ao relacionamento de um povo com a sua linguagem, a palavra em Chico tem a mesma rima que tem na boca do povo, a fala e a arte em improvisaes. A expresso da palavra de um povo surge ento como a Dramatizacin del relato, distinta combinacin de los elementos vocales, gestuales y ritmicos, la expressin corporal y el uso signativo del espacio, los modos de interaccin con el pblico, las circustancias de lugar y tiempo del relato, la intervencin de la musica y la danza y el uso de indumentaria y objetos especiales (...) El estilo personal ser mais variable quanto mayor sea el grado de libertad que la cultura conceda al interprete. Esta libertad nunca ser total en la cultura popular. Caben la experimentacin innovadora y la mayor riqueza formal. Pero no la negacin, la desvirtuacin de los mitos.

    Chico reverencia tradies como o maracatu, com seus

    personagens peculiares e vai atrs tambm do cidado comum, do popular, lembrando a gravao de relatos orales y pasarlos a la escritura sin modificacin alguna porque en sociedades que conceden amplia liberdad creativa al interprete fornece-se una multple ruptura de las leyes del jego o mesmo que acontece, por exemplo, com os espetculos montados pela Trupe do Barulho, grupo teatral recifense que dinamizou o fazer teatral nos anos 90 com o fenmeno de bilheteria Cinderela, a histria que sua me no contou. J o gestual de Science tem muito a ver com o velho do pastoril profano, algo que outro pernambucano, o Chacrinha (Abelardo Barbosa), tambm aproveitou muito ao compor seu tipo na TV.

    Se consideramos a primeira fase do movimento mangue - ou da cena recifense / pernambucana, como alguns preferem - como indo do lanamento do CD Da Lama ao Caos do CSNZ at a morte de Science, teremos reaes polarizadas a respeito do que estava acontecendo. Por exemplo, enquanto a mdia se deliciava com o

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    prato feito pelos mangueboys, Ariano Suassuna viu naquele sucesso repentino, no ideal daqueles rapazes, uma espcie de alienao, uma influncia excessiva da cultura norte-americana misturando-se perigosamente s nossas razes. Ariano dizia que o rock diminua o maracatu. Colombres define o posicionamento radical / conservador desse tipo de intelectuais assim: Se comportan como celosos guardianes de la integridad de esos textos codificados frente a los escritores y poetas de la sociedad nacional Era um jogo de dubiedades, sabemos, bem ao gosto do Mestre Suassuna que, como Shakespeare, soube recontar muitas obras literrias populares. Por sinal, em 2007 Ariano voltou a Secretaria de Cultura do Estado de Pernambuco com as mesmas propostas.

    Quanto a esta questo de Ariano e Chico apropriarem-se da Cultura Popular, podemos citar novamente Colombres: la oralidad a diferencia de la escritura y los medios, no es unidirecional en la medida en que no expropria al pueblo su creatividad y el control cultural de sus relatos para cederlos a un grupo de especialistas comprometidos com las elites No queremos com isto desvirtuar a nobreza e a genialidade de um Suassuna, nem dizer que Chico contestou o establishment de forma corrosiva. Ambos cultuam reis e rainhas, da frica ou da Pennsula Ibrica, isso no importa. Nem podemos, de maneira alguma, esquecer o contexto histrico que envolveu a ascenso de Suassuna: dcada de 50, renovao da cena teatral nacional, construo de Braslia, valorizao de idias esquerdistas. E o de Science: Miguel Arraes, cearense, governador de Pernambuco; Ariano Suassuna, paraibano, Secretrio de Cultura; o romancista pernambucano Raimundo Carrero (vencedor do maior prmio literrio do Brasil, o Prmio Jabuti), presidente da FUNDARPE - Fundao do Patrimnio Histrico e Artstco de Pernambuco; lanamento do Plano Real, fim da Era Collor, fracasso da cincia em descobrir a cura de um vrus mortal (o HIV), substituio dos antigos discos de vinil por CDs, a exploso da informtica, a onda de euforia e expectativa em relao ao ento recm-empossado presidente da Repblica, um ex-esquerdista

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    (FHC). Foi o momento propcio: a conjuno perfeita, la noche, y en especial una noche calma que siga a un da calmo, en la que todo se preste a evocacin recreadora de los hechos mticos, ala invocacin y conjuracin de los espiritus () Donde existe un mito de opressin, no tarda en surgir un mito de liberacin. Las tensiones producdas por la desigualdad social son la principal fuente de la innovacin y la ruptura: E a poesia de Chico como una pintura consignando en forma cronolgica los acontecimintos histricos o mitolgicos.

    O uso do computador e sua extrema popularizao nos anos 90 mudaram a divulgao das novas produes (como foram os CDs Da Lama Ao Caos e Afrociberdelia - os dois primeiros do CSNZ). Obviamente, o videoclipe funcionou como tima divulgao do trabalho musical nos anos 80 e 90, assim como o rdio nos meados do sculo XX. Porm, o computador permitiu um registro e uma transmisso expressa, dinmica, interativa. O som e o objeto visual ganharam o espao. Isso levou Chico a ser o primeiro artista brasileiro cuja base de lanamento nacional / mundial mais decisiva foi o computador: Computadores fazem arte / Artistas fazem dinheiro / Computadores avanam / Artistas pegam carona / Cientistas criam o novo / Artistas levam a fama. (Fred 04 em Computadores fazem arte, CD Da Lama Ao Caos).

    No por acaso que encontramos semelhanas entre Chico Science e autores que retratam a Cultura Popular, como Guimares Rosa e Graciliano Ramos. E como deixar de lado a literatura de cordel, com seu cunho pico / popular? Ou ainda, o realismo mgico de um Garca Marquez? Os mestres da literatura enveredaram por caminhos diversos, muito alm do que se poderia chamar literatura semiculta ou semipopular, disfarando-se de cultura do povo. Na metade dos anos 90, a msica popular exaltava o instinto e as atitudes fsicas, atravs do ax music e do pagode. Chico contraps uma esttica opcional que sugeria a reflexo: A responsabilidade do tocar seu pandeiro / da responsabilidade de voc manter-se

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    inteiro / (...) Cerebral, assim que tem que ser / maioral, assim que . bom da cabea e um foguete no p. (Science em Samba Makossa, do CD Da Lama Ao Caos).

    Ou o simples picaresco numa situao engraada:

    Peguei o balaio, fui na feira roubar tomate e cebola / L passando uma via, pegou a minha cenoura / Ai, minha via, deixa a cenoura aqui / Com a barriga vazia / No consigo dormir. (ln Da lama ao caos)

    Chico era o poeta de origem popular, ligado a modelos que lembram os cantadores das feiras do Nordeste brasileiro, numa espcie de teatro popular, criao coletiva. No caso, a parceria com os companheiros ( malungos ) de grupo e do movimento mangue como um todo, que inclua artes plsticas, moda e cinema. O cerne de muitas de suas letras, perfomances e depoimentos o riso (para destruir a opresso): El ridculo mata, y desataria rsa pblica sobre alguin. Equivale a un asesinato simblico. Por medio de la risa el pueblo aprende a pensar; a ejercer la libertad de conciencia y ojar la replica.

    Conceituar literatura, seja ela cannica ou marginal, sempre caminhar por uma estrada escorregadia, diz Teresa Otranto, e continua: provvel que, num dado momento, se possa considerar um autor, uma obra, um gnero, um ritmo, num estado de marginalidade plausvel, inclusive de ser transitrio, efmero, pois, no instante seguinte, tudo poder parecer muito com o gosto dominante. Literrios ou no, os textos fornecem munio crtica ou s diversas abordagens crticas possveis. Um bom exemplo seria Chico Science, marginal em Pernambuco, at que jornais e publicaes especializadas o colocassem como vencedor de festivais na Europa e nos Estados Unidos, enfatiza Otranto. O artista como espelho da sociedade um velho mote dos intelectuais, porm a crtica, no raro subjetiva, emite opinies no necessariamente coincidentes com aquelas percebidas por outro apreciador da obra, relembra Teresa, que acrescenta: A naturalidade com que os artistas populares representam o tema mostra como as coisas do povo se completam com gestos pequenos

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    do cotidiano. A felicidade etrea, busca de apelos intelectuais, no so objetos de preocupaes do homem simples, cujo papel arrastar o bloco da alegria.

    No encontraremos pierrs, arlequins ou colombinas em Capiba e em Chico Science. Em lugar disso, Science brinda-nos com Mateus (figura / personagem do Bumba-Meu-Boi), bandidos suburbanos, catadores de lixo: Fui no mato catar lixo / falar com caranguejo / conversar com urubu. Superficial ou no, sua viso da organizao social no Recife dos anos 90 marcou poca, serviu de termmetro, lanou parmetros inesquecveis e seguiu na trilha junguiana, onde passado, presente e futuro compem a mesma estrada da Sincronicidade (A teoria de Jung que diz que toda a Histria coexiste. Uma espcie de Tudo ao mesmo tempo agora, como foi proposto pelo grupo de rock Tits).

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    ADMIRVEL PERNAMBUCO NOVO

    No era novidade, muitos propuseram at cozinhar feijoada com raio laser. Mas Chico ultradimensiona a arte popular, assimilando-a, como fez Ariano Suassuna com a literatura de cordel e a cultura ibrica, copiando-a, relativizando-a, intertextualizando-a, cruzando vrios textos. Science levou em frente o sonho de liberdade, de experincia:

    Eu vi, eu vi /A minha boneca vodu / Subir e descer no espao / Na hora da coroao, disse referindo-se ao ritual religioso centrado na boneca do maracatu. Na mesma letra (de O Cidado do Mundo), ele anuncia que, ao fugir do canavial:Corri (..) seno ia me lasc / Segui na beira do rio! Vim par na capit / Quando vi na parede um pinico / Anunci / liquidao total / Elefante anunciou / Ih, t liquidado! O pivete pensou. So letras que radiografam, surrealizam (usam imagens do inconsciente), dadazam (apelam para o absurdo, o nada), estilhaam a sociedade que nos rodeia: A engenharia cai sobre as pedras / um curupira j tem seu tnis importado / No conseguimos acompanhar o motor da histria / Mas, somos batizados pelo batuque e / Apreciamos a agricultura celeste / Mas, enquanto o mundo explode / Ns dormimos no silncio do bairro / Fechando os olhos e mordendo os lbios / Sinto vontade de fazer muita coisa (Chico em Enquanto o Mundo Explode).

    Ao citar o Curupira (entidade fantstica que, segundo a crendice popular, um ndio que habita as matas e cujos ps apresentam o calcanhar para frente e os dedos para trs) com um par de tnis importado, o poeta retrata a globalizao que no acompanha o motor da histria regional. E qual seria este motor? A expresso! O exprimir-se. Ao exclamar a engenharia cai sobre as pedras, Chico aponta a falibilidade da cincia (a engenharia) e a certeza da realidade prxima (as pedras). Restam o batuque e a crena numa agricultura celeste, a busca do cosmolgico contra a inrcia, a expanso da conscincia para agir logo e na linguagem de Chico que se configura o real, na sua exaltao do parecer, no humor, no seu realismo fantstico que, apresentando as metforas do homem-caranguejo, mangue / urbe, apontou para um novo jeito de narrar a saga pernambucana.

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    O CARANGUEJO GLOBALIZADOE O MARACATU ATMICO

    A questo do maracatu influenciando toda a obra de Science e da Nao Zumbi inevitvel. O maracatu vem da tradio dos reis negros que se perpetua desde a Europa do sculo XV e no Brasil desde o sculo XVII. No Recife, havia apresentaes na frente da Igreja do Rosrio dos Pretos. Divididos em naes cada uma tinha seu rei (como Chico era parte da Nao Zumbi) O rei do Congo sobrepunha-se aos outros. Acompanhavam instrumentos de percusso. Antes, maracatu se chamava nao. Depois, maracatu passou a designar ajuntamento de negros. Uma nao mandava mensagens para a outra. Depois da abolio da escravatura e a proclamao da repblica no Brasil, os babalorixs passaram a comandar o maracatu, numa espcie de fuso do poder poltico com o religioso e o maracatu reafirmou-se nas festas carnavalescas, em cortejos que ficavam em torno de 150 pessoas.

    BAQUE VIRADO Assim chama-se este tipo de maracatu e s instrumentos de percusso formam sua orquestra: tarol, gongu, caixas-de-guerra, zabumbas. Ressoam os repiques e as baianas respondem em coro. Ao soar o apito da Rainha, a msica pra ou retorna.

    BAQUE SOLTO Pouco se sabe sobre a poesia dos seus mestres e seus brincantes ou a religiosidade que acompanha seus rituais, como diz Pedro Amrico de Farias no encarte cultural Brincantes, do Jornal do Commercio (Recife, 1998). Esse tipo de maracatu tambm chamado Maracatu Orquestra ou Maracatu Rural. uma mistura das culturas afro-indgenas, combinando pastoril, baianas, cavalo-marinho, caboclinho e folia de reis. Essa fuso aconteceu tanto no interior do estado quanto no Recife, incorporando elementos do Maracatu Nao. Inicialmente, os integrantes eram s masculinos e apresentavam-se no interior da Paraba e em Pernambuco. Seus caboclos desfilam protegidos pela magia da Jurema, manifestados. Na quarta-feira de cinzas, desmancha-se o ponto. Sua apresentao acontece em clima de muita agitao.

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    Chico Science soube muito bem aproveitar-se da fora criativa do maracatu para expressar sua arte. Principalmente os elementos sonoros, mas tambm a teatralidade do Mateus, um brincalho, espcie de heri pcaro do Maracatu.

    Mateus, Catirina, Burra, Babau e Caador so seguidos por caboclos de lana em duas filas. Depois, vem o smbolo (leo, guia, peixe, barco - Chico e a Nao Zumbi escolheram o caranguejo). No meio de tudo vm a bandeira, o rei, a rainha, o valete e a dama, o mestre das toadas, os msicos (caixa, surdo, gongu, cuca, sopros) e a diretoria. O brinquedo est pronto. uma dana frentica, guerreira. Nele, o mestre cantador quem comanda com apito a orquestra. Como nela s h uma zabumba (ao contrrio do Nao, com trs), o baque (toque) solto. Ele canta sua marcha (quatro versos) ou samba curto (quatro, cinco, seis versos), comprido (dez, doze, catorze, dezesseis, dezoito ou vinte versos) e galope (seis versos). Os caboclos agitam o surro (chocalhos amarrados na madeira enfeitada). O caboclo que sai manifestado usa uma flor na boca ou um galho de arruda.

    Compare esta toada de maracatu com a letra Mateus Enter, de Chico Science:

    Bom dia, seu Amauri / T Galdino aqui de novo / Pra fazer seu carnaval / Pra o senhor e pra o seu povo.

    Eu vim com a Nao Zumbi / aos seus ouvidos falar / quero ver a poeira subir / e muita fumaa no ar.

    O projeto mangue foi a universalizao de nossas razes. Quanto ao smbolo caranguejo, disseram Jean Chevalier e Alain Gheerbrant: O caranguejo, como outros inmeros animais aquticos, est ligado paradoxalmente aos mitos da seca e da lua. Na China, ele associado ao mito de NiuTch, que foi queimado pelo sol. Os caranguejos so o alimento dos espritos da seca. Seu crescimento liga-se s fases da lua. No Sio, so associados aos

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    ritos de obteno da chuva. Para os tailandeses, os caranguejos assistem ao guardio do fim das guas, entrada da caverna csmica. Entre as populaes do Camboja, o caranguejo smbolo benfico. Obter um caranguejo em sonhos ver todos os desejos realizados. Dava-se ele o nome de esperto, na China, sem dvida em razo do seu deslocamento lateral e s pinas rpidas. Na tradio dos Mundo de Bengala, o caranguejo foi enviado pelo sol, deus supremo, esposo da lua, para trazer a terra do fundo do oceano. Noutra lenda antiga, o primeiro homem e a primeira mulher se transformaram em caranguejos. O caranguejo um avatar das foras transcendentes, o que permite incluir este animal entre os grandes cosmforos, tais como a tartaruga, o crocodilo e o elefante. O caranguejo smbolo lunar tal como a lagosta, figurando na carta Lua do tar porque estes animais marcham como a lua, para a frente e para trs. A arte mochila da frica usa o caranguejo para simbolizar o mal ou o demnio do mal.

    O boom do consumismo promovido pelo ento presidente Fernando Henrique Cardoso ajudou o movimento mangue, pelo menos a princpio. A promoo das bandas pernambucanas, as gravaes de CDs, as produes culturais, eram coisas impossveis de se realizar durante a crise dos anos 80.

    Recife uma cidade marcada pelo calor, pela falta de gua, pelo analfabetismo, pela baguna generalizada nas ruas, pelo comrcio desordenado dos camels que enchem a vista com brilhos e cores, gritos e cheiros que de certa forma enfeitiam os passantes. O caos no Recife tem um ritmo, uma ordem. Barraqueiros invadem quaisquer reas pblicas, como caladas, parques e praas. Urina-se e defeca-se nas ruas sem pudor. Nas praias, a sensualidade borbulha num jogo de olhares e misrias existenciais. A populao, principalmente a mais pobre, cresce num pique de catstrofe, com o desemprego na mesma proporo: O sol nasce e ilumina as pedras evoludas / Que cresceram com a fora de pedreiros suicidas / Cavaleiros circulavam vigiando as pessoas / No importa se so ruins nem importa se so boas / E a cidade se apresenta centro das ambies / Pra mendigos ou ricos e outras armaes / Coletivos, automveis, motos e metrs / Trabalhadores, patres, policiais e camels / A cidade no pra, a cidade s cresce / O de cima sobe e o de baixo desce / A cidade se encontra prostituda / Por aqueles que a usaram em busca de sada / llusora de pessoas de outros

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    lugares /A cidade e sua fama vai alm dos mares / No meio da esperteza internacional / A cidade at que no est to mal / E a situao sempre mais ou menos / Sempre uns com mais e outros com menos / Eu vou fazer uma embolada, um samba, um maracatu / Tudo bem envenenado, bom pra mim e bom pra tu / Pra gente sair da lama e enfrentar os urubu / Num dia de sol Recife acordou / Com a mesma fedentina do dia anterior. ( A Cidade, letra e msica de Chico Science)

    Mais uma vez, o poeta contextualiza o caos urbano de maneira progressiva e ritmada, exibindo ao mesmo tempo a desgraa, a propulso da vida recifense e a necessidade de brincar, lutar, gingar, globalizar-se, unir-se numa identidade festiva e combatente. a lana do caboclo contra a mquina social inconseqente e caduca. Natureza e cincia em busca da unificao. Vale observar tambm a linguagem popular das ruas do Recife, to bem captada por Science e o tratamento na segunda pessoa, tu, muito comum nesse caso. Destaque para a elipse do s nas palavras que deveriam, pela concordncia, estar no plural - muitos atribuem este vcio de linguagem herana latina.

    A tcnica de composio de Chico (e de outros integrantes do movimento mangue) justape imagens do Recife formando um painel que sugere uma razo para o caos. Ao contextualizar-se a dinmica recifense na dinmica csmica, o poeta concretiza a promessa da mdia que transformar fatos e fotos em coisas (ou informaes) descartveis, desfrutveis.

    Num dia de sol Recife acordou / Com a mesma fedentina do dia anterior. No mormao de uma globalizao intil, os mangueboys propem um passeio pelo mundo livre. Livre do tdio? S se for no viver por viver, numa espcie de cronocentrismo (seu tempo o mais importante) e geocentrismo (o lugar em destaque). O Recife precisava de poetas assim para curar seu orgulho pulverizado. Tanto que o manguebeat coincidiu com o processo de revitalizao da cidade do Recife promovida pela sua prefeitura na dcada de 90.

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    A obra de Chico tem um qu de contra-protesto. Seus versos reproduzem o burburinho de uma feira imensa e parecem roteiros para videoclipes, assimilando com animao o frenesi urbano - como fizeram os rappers norte-americanos. Numa espcie de subverso contracultural, as imagens do Recife (o lar) extrapolam o bvio e vo buscar a fora dos pobres, em um ritmo que exige atitude e postura. As slabas do mangue galopam como nas cantorias do Nordeste brasileiro.

    Cidades como o Recife esto ligadas por redes que as tornam virtuais. Recife e sua engenharia simblica. Por exemplo: O orgulho de ser nordestino. O que est por trs deste slogan criado pela agncia publicitria talo Bianchi para o Grupo Bompreo a apresentao de um produto aos consumidores como sendo genuinamente local, numa apropriao de smbolos que fascina e encanta. No Manguebeat, estes referenciais surgiram quase ao acaso.

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    PS-MODERNISMO E EXPERIMENTALISMO NA OBRA DE CHICO SCIENCE

    Ps-modernismo uma expresso polmica. utilizada por alguns tericos para designar o fim das utopias da modernidade. J o termo experimentalismo remete-nos a experincias que, no Brasil, levaram ao concretismo, ao poema-produto: objeto til (que usa mltiplos recursos).

    A exausto ou insatisfao pode conduzir o artista contemporneo disposto mudana ao que se chama ps-modernismo. Essa tendncia, inicialmente aplicada apenas Arquitetura, significa, entre outras coisas, a Dialtica entre a Superorganizao e a Desorganizao, como bem nos explica Jos Guilherme Merquior: Se o artista se organiza, ele pode desorganizar as regras do sistema e lanar o novo.

    O ps-modernismo na cultura recifense dos anos 90, ou o experimentalismo pop, ficou marcado por Chico Science, garoto do subrbio, msico de rua, articulador de um movimento chamado MANGUEBEAT (ou Manguebit: beat, que significa batida, pulsao em ingls e bit, a menor parte de uma informao digital). Manguebeat que props descaradamente o exerccio da ironia, na inquieta busca de uma conscincia transcendental, fazendo o Brasil e o mundo viajarem em um produto conceitual (o Universo no existe em si mesmo, uma construo do esprito), destruindo o projeto romntico e impulsionando a contracultura - a cultura alternativa. Essa sociedade alternativa - no caso, o Manguebeat - usou paradoxalmente a arte popular e substituiu a tradio arcaica por uma cultura dinmica, pondo fim ao divrcio entre a arte e a vida ao sujeitar compulsoriamente a totalidade da vida a valores radicalmente poticos, como surgere Merquior (1990).

    Por certo Chico tinha vcios e virtudes (ps) modernistas (o fim do psicolgico, do introspectivo, do intimismo e, buscando o fantstico, o inusitado, questionar a liberdade e zombar da dor). Porm, sua energia dionisaca (prazer) e sua vitalidade metamrfica (vontade de mudar) fizeram-no ultrapassar suas

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    influncias. A liberdade proposta por suas palavras ritmadas serve como metfora da liberao social e cria um novo universo conceitual uma espcie de padro, utilizando smbolos conhecidos para lanar uma nova viso. Sua impressionante obra surge da lama, sua metfora maior. O caos o recomeo e os seres esto a girar.

    A obra de Chico Science um verdadeiro laboratrio e seu experimentalismo comea em 1991 na cidade do Recife, tendo como articulador o jornalista / escritor Xico S e mentores o jornalista / msico Fred 04 e o DJ Renato L.

    No poderamos definir claramente ainda at que ponto a esttica criada por eles ser marcante na cultura popular recifense (brasileira). O fato que, pelo menos por algum tempo, o Mangue invadiu a mdia de maneira avassaladora, eclipsando dolos pop nacionais e internacionais. Se Alceu Valena havia trazido o maracatu e muito do acervo cultural pernambucano tona, os mangueboys colocaram nossos valores em moldes mais adequados ao que chamamos aqui ps-modernismo, revolucionando a arte recifense atravs de textos que mesclam o horror comdia e mostram a forma como Chico abriu caminho para uma gerao que tinha tudo para morrer no anonimato.

    Chico cantou Recife e suas impressionantes esculturas

    de lama desde o primeiro instante do movimento: Da lama ao caos / do caos lama / um homem roubado nunca se engana. A idia do caranguejo como smbolo teve o apoio dos artistas grficos Hilton Lacerda e Hlder Arago (DJ Dolores), que sugeriram o motivo para o Movimento Mangue: uma fbrica de cerveja feita com gua do mangue espalhara um vrus que, ingerido, provocaria a mutao dos seres humanos em caranguejos. Era uma forma de tomar a proposta do grupo mais inteligvel, apelando para conceitos que lembram histrias em quadrinhos, desenho animado, fico cientfica em geral e remete-nos a escritores como Ionesco, cuja pea Os Rinocerontes retrata homens-mutantes, ou Kafka, em cujo romance A Metamorfose, o personagem principal transforma-se da noite para o dia em um inseto. Lembrando ainda o msico paulista Arrigo Barnab e suas obras Clara Crocodilo, Tubares Voadores e Gigante Nego, todas tendo como base a mutao humana no contraste do urbanide com o selvagem.

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    Em Chico, a liberdade pessoal e o triunfo no esforo constante por um pensamento original levam a uma linguagem que um exerccio de construo em abismo (mise en abyme), onde artista e obra confundem-se em perspectivas infinitas.

    bem verdade que o movimento mangue surge como uma espcie de Deus ex machina (soluo divina). Porm, em vez de deuses, temos um jovem do subrbio a falar com um vocabulrio inusitado que deixava em dvida os intelectuais questionadores do vazio da cena cultural dos anos 90 no Brasil.

    Como Gilberto Freyre, Chico tambm fez o elogio ao mocambo - defesa dos valores plebeus e no apenas dos elegantes e eruditos; separao do regionalizado em contraposio aos esnobismos tradicionalistas do Nordeste brasileiro. Mas a obra de Science uma obra de ruptura. Seu poder de unir / relacionar imagens e palavras transcende os valores literrios e musicais, aponta para uma diversidade que em tudo sugere um desvio de padro do signo lingstico em seus componentes indissolveis: forma / contedo. Outras vezes, a estrutura radicalmente emaranhada, no h como acompanhar logicamente a empreitada do narrador. Vrias letras de Science apresentam um eu-lrico nos moldes de Joo Cabral de Melo Neto.

    Uma voz que reclama uma reao enrgica. Voz que eclipsa o assunto, que quase engolido pelo discurso. E a histria, que devamos acompanhar ou compreender, perde seus referenciais. que se redimensionam, transmutam-se e a maneira de dizer supera o que dito.

    A massa urbana da cidade-lama, Recife, apresenta-se ao buscar sua salvao no jogo injusto da sociedade nordestina, onde o de cima sobe, o de baixo desce: assim cantou o malungo, fundindo tempo e espao e mergulhando numa espcie de sonho, conectando coerncia e absurdo, sugando elementos da cultura psicodlica (anos 60) e da ps-modernidade ciberntica (anos 80 e 90), unindo valores virtuais (Computadores fazem arte, diz Fred 04) a valores artsticos (Artistas fazem dinheiro).

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    H uma fuso da palavra com o pictrico no Novimento Mangue, em seus shows, nos videoclipes, na indumentria, nos cenrios, nos encartes, que atrai nossa ateno. provocante, desproporcional, desconstri a realidade a partir do bvio, como props o cineasta Glauber Rocha (Cinema Novo). Se compararmos a proposta de Science com o que atualmente veiculado na mdia, encontraremos o jogo da fragmentao (Cubismo) explcito em estilhaos de uma juventude sufocada por programas governamentais falidos, presos numa cidade sufocada (Recife), que no final do segundo milnio ganhava ares de globalizao e ainda apresentava a herana da desgraa dos flagelados, descamisados, analfabetos, cangaceiros, novos coronis, machistas e fascistas.

    Os decpodes (caranguejos), feitos semelhana do homem na obra do artista do Mangue, lembram algo das terrveis cantigas brasileiras de roda: Caranguejo no peixe / Caranguejo peixe / Caranguejo s peixe na enchente da mar / Samba crioula que vem da Bahia / Pega a criana e joga na bacia. Ou ento: Boi, boi, boi/ boi da cara preta / vem pegar menino / que tem medo de careta. Ou simplesmente: Atirei o pau no gato / mas o gato no morreu / Dona Chica admirou-se / Do berro, do berro que o gato deu e a clssica Pai Francisco entrou na roda / tocando seu violo / quando ele vem se requebrando parece um boneco se desmanchando...

    Que boi? Que pavo? Que gato? Que pai Francisco? o homem-caranguejo no emaranhado da metrpole que era seu bero, tmulo, espelho e anttese. Perna Cabeluda, Biu do Olho Verde, Cinderela, a Folha de Pernambuco com seus cadveres insepultos e multicoloridos, o Recife globalizado desde o programa de rdio Bandeira 2 e suas histrias perversas nas primeiras horas da manh, a TV fazendo da violncia um show glamourizando assassinos, a novela mexicana, o filme de Hollywood - tudo se acoplando a uma linguagem cotidiana cheia de metforas e metonmias atravs das quais a maior parte dos recifenses lidam, impossibilitados de reflexes mais profundas sobre as temticas humanistas ou simblicas. Eles aparecem no movimento mangue como humanides: metade homem, metade bicho / coisa, camels do imaginrio coletivo, numa espcie de deseducao pela pedra, para usar um termo do filsofo recifense Jomard Muniz de Britto, parodiando Joo Cabral.

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    Muito alm do zoomorfismo, o que testemunhamos em Science so os efeitos da tecnologia na arte popular, um primeiro mutante cosmolgico (universo em expanso) e ciberntico da gerao que despertou no final dos anos 80 em Recife. De carter auto-reflexivo, sua obra transpe fatos e instala o caos multidimensional. Fico e realidade se misturam, justificando o termo fico ps-clssica (misturando verdade e mentira) ou para-realista (contradio, permutao, descontinuidade, progresso fortuita, excesso, curto-circuito), num exemplo tpico de perverso moderna e ps-moderna de duas figuras cardeais, como j dissemos anteriormente: metfora e metonmia, tomadas juntas ou separadamente.

    Science parodiou e estilizou, dando forma ao artista da fome, modificando seu mundo exterior, reestruturando tempo e espao, exibindo o homem-caranguejo, o heri pcaro. Com esta proposta, promoveu a focalizao do cotidiano e, conseqentemente, uma reflexo sobre o anti- heri.

    Jomard Muniz de Britto declarou: Chico no era apenas um indivduo, um artista. Ele era um agenciador de subjetivaes. Fez de si uma fonte / ponte para a coletividade, do Eu singular, para o Eu coletivo. Experimentalismo seria a liberdade total de expresso, o exerccio permanente de uma obra em processo. No ps-modernismo existem pelo menos trs tendncias: uma o Anti-moderno: o arqueolgico o Armorial, por exemplo, que anti-moderno na medida que investe nas razes culturais. Outra a viso do Sincretismo ou Ecletismo, a mistura de tudo, por exemplo o artista e escritor Francisco Brennand. Por fim, temos os artistas que assumem a radicalidade da experimentao modernista ou moderna. Aqui podemos situar Chico Science, a Vanguarda Popular, expresso criada pelo paraibano Pedro Osmar, onde incluo o romance Morcego Cego do pernambucano Gilvan Lemos. Nele encontramos marcas anlogas com a poeticidade manguebeat. A sintonia de Chico com o movimento ecolgico, a indignao diante da pesquisa norte-americana que apontou Recife como a 4 pior cidade do mundo, tudo isso incrementou o lanamento de Chico, que acima de tudo retomou o processo de criao coletiva atravs da teatralidade do cotidiano musical.

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    A FORA DA TERRA

    Temos que saber o que fomos e o que somos para saber o que seremos, sentencia o educador Paulo Freire. De uma afirmao to simples, extramos o princpio do movimento Mangue: era a emancipao do Homem, o domnio do saber dando vazo aos instintos, uma atitude freudiana de falar tudo, de assumir o natural, o elemental (no sentido das figuras simblicas da natureza). A voz de uma outra me (a me ctnica da terra, foras da natureza) se faz ouvir. Como escreveu Clarice Lispector, que morou durante anos no Recife, em seu romance gua Viva: Como se arrancasse das profundezas da terra as nodosas razes da rvore descomunal, assim que te escrevo, e essas razes, como se fossem poderosos tentculos, como volumosos corpos nus. Envolvidos em serpentes e em carnais desejos de realizao e tudo isso uma prece em missa negra, um pedido rastejante de amm porque aquilo que ruim est desprotegido e precisa da anuncia de Deus: eis a criao.

    O Mangue preencheu o vazio espiritual de uma cultura dominada pelo americanismo ou pela europeizao catlico-protestante. At nossa influncia africana recebeu nova roupagem. Recife ergueu-se como leitmotiv da controversa obra / projeto de Science, representao em prosopopia / personificao da realidade coletiva de uma cidade, em uma potica de expresso que se posicionava criticamente na interpretao do que a cercava, misturada ao poder de vidncia atribudo aos artistas, dom que o nosso poeta possua.

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    A VOZ PERNAMBUCANA

    Em 1984, o Brasil foi sacudido pela abertura poltica e, com mensagens frenticas, a mentalidade feudal de alguns artistas pernambucanos foi sacudida, enquanto o Sudeste assistia exploso de bandas como Legio Urbana, Kid Abelha, Ultraje a Rigor, Baro Vermelho, Lobo e Tits. Pernambuco, terra dos altos coqueiros, ainda vivia sombra da cultura inventada pela gerao 60 no Recife. Nos anos 70, Lenine iniciou um processo que tinha Alceu Valena como similar: a fuso do folclore com a msica pop / rock / afro.

    Caula de quatro filhos, o malungo nasceu no bairro de Santo Amaro, em Recife, mas logo a famlia mudou-se para Paulista, num local onde havia um manguezal. Chico tinha 6 anos quando houve nova mudana - dessa vez para Rio Doce, um bairro de Olinda muito tranqilo naquele tempo. Ele, bem pequeno, saa e brincava com os colegas nos mangues, pegando caranguejo, siri, at mesmo camaro. No que parece, uma infncia feliz - tirando as crises de asma, algumas pesadas, que o afligiram at os oito anos, levando-o algumas vezes ao hospital.

    Chico leu Josu de Castro, ouviu a msica dos americanos pobres (funk, hip-hop, jazz e blues), danou break, curtiu Bezerra da Silva poeta e msico pernambucano radicado no Rio de Janeiro que mostrava como uma cidade pode ser aproveitada por quem tem ginga. Chico representou sua metrpole, recolocando-a no mapa-mundi dos anos 90 de forma festeira, pulsante, inquisitiva, polmica, resgatando o sentido de Unio (passado-presente, rico-pobre, preto-branco, desenvolvimento-subdesenvolvimento). Uma nova celebrao da voz pernambucana. Era a arte facilitando a vida das pessoas atravs de obras fceis de se captar mas que, paradoxalmente, estavam carregadas de cdigo que, quando devidamente divulgadas pela mdia, ultrapassaram o brilho do lugar comum e derrubaram preconceitos, transformaram o cotidiano dos mangueboys em obra de arte.

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    A RAPSDIA AFROCIBERDLICA

    Rapsdia, na antiga Grcia, era palavra que identificava cada trecho cantado de um poema pico. Em msica, segundo Mestre Aurlio, uma fantasia instrumental que utiliza melodias tiradas dos cantos tradicionais ou populares. A rapsdia de Chico Science humaniza o racional e o mecnico integrando a emoo, o imaginrio, o devaneio, o ldico a eventos considerados anedticos; nela, nada frvolo, nada secundrio. Em seu projeto de ps-modernidade, Science valorizou a comunicao, a emoo coletiva. Muito alm de Marx ou Freud, encontramos o empirismo, a vida cotidiana, uma espcie de hedonismo - o prazer imediato como nico bem possvel - a valorizao das camadas populares, do presentesmo, uma sociologia acariciante que no violenta a realidade ao investigar a decadncia, afirmando o presente e grudando os olhos na imensido.

    Chico Science ganhou este apelido de Renato Lins, mentor

    do movimento mangue, por experimentar demais no campo da msica. Chico tambm fez de seu corpo um instrumento poderoso e veloz. Valorizando o visual comprado nos camels, culos chamativos, chapu de palha sem aba, camisa de chita, anis, Chico reconhecia a importncia da imagem que o poeta cria de si mesmo, a teatralidade, o jogo de aparncias, a corporalidade: De bamba nada / s queres barbada / Tu t de terno amarelo porque t fazendo sol / Olha s que cara desarrumado / De chapu torto / E culos enfeitado / (...) tu s quer mamata (Em Mac, parceria com Jorge D Peixe - Mac uma brincadeira de Chico que, certa vez, vendo de longe uns caras fumando escondidos na Soparia, imaginou que num futuro prximo tudo seria liberado e os camels anunciariam um chip contendo a tal Mac que os caras estavam se escondendo para curtir).

    Na rapsdia de Chico, a lira muitas vezes ferina. Como em Etnia, onde transparece uma crtica possvel aos secretrios de cultura: hip hop na minha embolada / o povo na arte / a arte no povo/ e no o povo na arte de quem/ Faz arte com o povo/ maracatu psicodlico / capoeira da pesada / bumba meu rdio / berimbau eltrico. H em suas letras uma herana barroca na exuberncia das figuras de linguagem, uma perspectiva holstica na busca em integrar a parte com o todo, o Homem com o Meio.

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    Outras influncias tambm esto embutidas em seus versos:

    Molambo eu, molambo tu, sentenciou em seu primeiro CD Da Lama Ao Caos. Chico ouviu falar da teoria do caos, onde a simetria em escala torna-se imprevisvel nas suas reparties, mudando seu comportamento ao longo do tempo, os fractais no-lineares. Poderamos tambm fazer uma leitura de Chico atravs da fsica quntica, que descreve as interaes entre matria e energia, me da eletrnica moderna, eletrnica com a qual Chico brincava (ajudado pelos companheiros), quer fosse a Internet que ele viu elitista mas que foi amplamente utilizada pelo Movimento Mangue, quer fosse no seu som, que transmitia com voz metlica as palavras da nova ordem, a fico e a cincia numa mistura que provocou letras como O Encontro de Isaac Asimov com Santos Dumont, em parceria com Jorge D Peixe: Nada como o frmamento / para trazer ao pensamento / a certeza de que estou slido em toda a rea que ocupo / e a imensido area / ter o espao do firmamento no pensamento / e acreditar em voar algum dia.

    Nestes versos, Jorge D Peixe expressa o lado ldico que o CSNZ props. A cano est no segundo CD Afrociberdelia, que saiu tambm em CD-ROM incluindo clipes, entrevistas, histrias e parte da apresentao no Summer Stage, no Central Park, NY, em 1995.

    Como um pssaro, o tempo voa / procura do exato momento / como o que voc pode fazer fosse agora / com as roupas sujas de lama / porque o barro arrudeia o mundo / e a TV no tem olhos pra ver / eu sou como aquele boneco (...) que controla seu prprio satlite / andando por cima da terra (CSNZ em Um satlite na cabea - bitnik generation).

    Afrociberdelia a mutao quantitativa em relao ao passado recente (ou, ainda, uma mistura de elementos tribais e high-tech, como sugeriu Brulio Tavares), unindo fico e histria num ttulo que pastiche de africano, ciberntico e psicodlico, numa busca de devorar valores estrangeiros, mesclando-os ao carter nacional. A obra questiona o progresso que se mistura na sua eletrnica poesia, onde o recifense de impulsos contraditrios flagrado em uma arapuca de instituies que j tm a modernidade

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    presa nas galerias do poder. O novo poema do CSNZ prope a renovao social atravs do amor prprio:

    Eu vim com a Nao Zumbi / Ao seu ouvido falar / Quero ver a poeira subir / E muita fumaa no ar / Cheguei com meu universo / E aterrisso no seu pensamento / Trago as luzes dos postes nos olhos / Rios e pontes no corao / Pernambuco embaixo dos ps / E minha mente na imensido (Em Mateus Enter).

    A cidade com suas pontes e seus rios recebe o Mateus / Chico / clown do Bumba-Meu-Boi, folguedo que, como o maracatu, transformou-se em pilar central da lira scienceana. Nosso bardo se integra com o Recife e d sua verso sobre a histria oficial e a lngua do povo na reinveno da realidade. Chega a citar famosos bandidos recifenses na letra de Banditismo Por Uma Questo de Classe.

    O Coque uma favela do centro do Recife marcada pela violncia e Galeguinho foi um dos mais famosos bandidos de l. Chico tambm experimentou misturar realidade lenda da Perna Cabeluda, espcie de apario no imaginrio popular recifense nos anos 70. Galeguinho no tinha medo de besteira, o que poderamos concluir. Como tambm Biu do Olho Verde, outro marginal que dava duro na polcia: Galeguinho do Coque no tinha medo / no tinha medo da Perna Cabeluda/ Biu do Olho Verde fazia sexo / fazia sexo com seu alicate / oi sobe morro ladeira crrego, beco, favela / a polcia atrs deles e eles no rabo dela / acontece hoje, acontecia no serto / quando um bando de macaco perseguia Lampio/ (...) E quem era inocente hoje j virou bandido / pra poder comer um pedao de po todo fodido / banditismo por pura maldade, banditismo por necessidade / Banditismo por uma questo de classe. (Banditismo Por uma Questo de Classe, letra de Science).

    Esta questo do redimensionamento do papel do marginal na sociedade viria novamente tona com o filme pernambucano O Rap do Pequeno Prncipe Contra as Almas Sebosas (2000), de Paulo Caldas e Marcelo Luna, apresentado pela primeira vez no 4 Festival de Cinema do Recife. A obra foge dos filmes histricos e da estilizao do cotidiano urbano. Segundo o crtico Klber Mendona Filho, mostra um Recife sem maquiagem temtica num

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    registro indito e abrangente. So dois personagens da periferia: o msico Garniz (ex-integrante da banda pernambucana Faces do Subrbio) e Helinho, um matador de almas sebosas (pessoas ms) que atuava na cidade de Camaragibe, regio metropolitana do Recife. Sobre o filme falou Paulo Caldas: O Rap sobre dois tipos de personagens que nos mostram trs tipos de justia: a oficial, imposta e regida pelas leis do Estado, uma segunda justia, feita com as prprias mos, no caso, as mos dos matadores, e uma terceira, a de Deus, na qual acreditam as mes. Acho que o Rap do Pequeno Prncipe ser o verdadeiro docu-drama, pois ser um quase documentrio no momento em que assumimos a interferncia no tema.

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    O CANGAO E O MANGUE

    De tiro certeiro, de tiro certeiro / Como bala que j cheira a sangue / Quando o gatilho to frio / Quando quem t na mira o morto / Eh, foi certeiro - Oh se foi / O sol de ao, a bala escaldante / Tem gente que como o barro / Que ao toque de uma se quebra / Outros no / Ainda conseguem abrir os olhos/ (...) as balas j no mais atendem ao gatilho / J no mais atendem ao gatilho / J no mais atendem. (Maracatu de Tiro Certeiro, de Science e Jorge d Peixe).

    Bandido e heri se confundem na histria e na arte. O diretor Hector Babenco filmou Lcio Flvio, O Passageiro da Agonia polemizando o joguete de polcia e marginais. Mariel Maryscotte foi um policial que virou bandido e virou filme tambm, Repblica dos Assassinos. Alm disso, a mdia encarrega-se de transformar criminosos em popstars, como no caso do traficante Escadinha e sua fuga cinematogrfica da priso num helicptero, nos anos 80. O artista plstico Hlio Oiticica utilizou o facnora Cara de Cavalo como modelo para uma escultura. No ano 2000, o cineasta Joo Moreira Sales ajudou a projetar o nome do traficante carioca Marcinho VP atravs de um documentrio sobre sua vida. Marcinho foi aquele que autorizou o cantor americano Michael Jackson a gravar um videoclipe (They dont care about us) na Favela Dona Marta, no Rio de Janeiro.

    Nos anos 90 polemizou-se a figura histrica de Lampio, chamado de Rei do Cangao. Heri ou Bandido? Com muita ironia este nordestino reverenciado no filme pernambucano O Baile Perfumado, de Lrio Ferreira e Paulo Caldas. Se a fragmentao da nossa histria quase nos levou perda da noo de comunidade e praticamente nos obrigou a uma indigncia em relao ao poder cultural brasileiro centrado no eixo Rio-So Paulo, esse filme, que faz parte do renascimento cultural pernambucano, traz-nos de volta uma dignidade que j fora anteriormente reivindicada como estandarte pelo Movimento Armorial (Ariano Suassuna, irmos Madureira, Antnio Carlos Nbrega e outros) nos anos 70 e por Science que, adequadamente, comps com a Nao Zumbi a trilha sonora que conta com outras personalidades da assim chamada Cena Recifense / Pernambucana.

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    O que vemos neste processo de Renascena, no qual o Movimento Mangue apenas um dos frutos, a integrao de Pernambuco a uma rede ps-moderna, uma ruptura com uma modernidade que nem sequer chegou a ser vivenciada. Instala-se nos anos 90 em Recife uma rede de sincronicidade. Uma espcie de revitalizao da potica, como sugeriu no passado o poeta recifense Manuel Bandeira:

    Estou farto do lirismo comedido / do lirismo bem comportado / Do lirismo funcionrio pblico com livro de ponto, expediente e manifestaes de apreo ao senhor diretor / Estou farto do lirismo que pra e vai averiguar no dcinrio / (...) Quero antes o lirismo dos loucos / O lirismo dos bbados / O lirismo difcil e pungente dos bbados / O lirismo dos clowns de Shakespeare / No quero mais saber do lirismo que no libertao (em Potica).

    As letras que compem as msicas da trilha sonora do

    Baile seguem a possibilidade de xtase proposta por Bandeira. O tema do cangao visto ento por outra tica. O cangaceiro pernambucano Lampio, nascido Virgulino Ferreira, em Vila Bela (atual Serra Talhada) em 1900, entrou na marginalidade aos dezesseis anos, quando seus pais morreram a mando de um tal coronel Nogueira. Lampio, alm da fama de Robin Hood do cangao, era exibido. Foi chamado de cruel e violento. Atuou da Bahia ao Cear. Atendendo a um pedido de Padre Ccero, ajudou o Governo (!) a combater o comunismo, conseguindo com isso armas para seu bando. Na fazenda de Angicos, no serto de Sergipe, em 1938, ano que Getlio Vargas azeitou o Estado Novo e concretizou sua ditadura, foram assassinados Lampio, sua mulher Maria Bonita e mais onze cangaceiros. Suas cabeas cortadas passaram trinta anos em exposio na Bahia.

    O Baile Perfumado resgata o mito de Lampio, Maria Bonita e seu bando de maneira pop, se entendermos este termo como universalizao de microcosmos cotidianos. Foi lanado em 1997, pouco mais de um ms aps a morte de Chico (Sua morte frustrou os planos do msico Antnio Nbrega de unir o Armorial

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    com o Mangue em um show no Recife). Todos os presentes no cinema So Luiz comoveram-se com a pelcula, que representava a tica do mangue e revivia Chico Science, colando sua voz a imagens fantsticas. Duas msicas de Chico na trilha trazem nas letras a mensagem de desconstruo, reinveno e pluralizao do nosso subdesenvolvimento atvico, uma superao de nossa infeliz letargia. A inspirao veio dos emboladores, poetas do improviso, das feiras s praias.

    Nas primeiras cenas do Baile Perfumado vemos o Recife na dcada de 20, pelas imagens de A Filha do Advogado (1926), filme do cineasta pernambucano Jota Soares. que Lampio e Maria Bonita esto assistindo ao filme. O dilogo posterior da dupla impagvel e os atores Luiz Carlos Vasconcelos e Zuleika Ferreira interpretam o texto de Hilton Lacerda, Paulo Caldas e Lrio Ferreira:

    MARIA BONITA Mas, Lampio, Recife muito do bonito. No ? Tu no queria ver?

    LAMPIO Prefiro coisa que se aviste.MARIA BONITA Pois me agradava muito de conhecer.

    Tu no tem gosto mesmo. N?LAMPIO Isso vontade de gente moa.

    Lampio e Maria Bonita bebem usque White Horse e usam perfume francs. A cmera do filme brinca com travelings, primeiros-planos, contre-plonges e funciona quase como uma participao mais ativa da platia. uma cmera-espectador assumida. Lampio o governador do serto, cruel e apotetico. Na cena final, a polcia s encontra um frasco de perfume e a imagem de Lampio solitrio sobre os penhascos do rio So Francisco ganha uma tomada area inesquecvel.

    Para os crditos finais, em preto e branco, entra a msica-

    tema do filme composta por Fred 04, um tango interpretado por Stela Campos: Veneno faz o mundo girar / Um calafrio de medo

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    / Eu no posso evitar. / Quando ela espalha o seu doce perfume / Sinto no peito a paixo e o terror! / Se algum soubesse o que me passa / Ao v-la alegre danando / Me invade um cheiro de morte / Sinto loucura no ar (...) No h razo nem virtude / S o seu sabor Fleur DAmour...

    Com uma decupagem criativa, uma cmera que serpenteia rasante pelos canyons do So Francisco, tendo ao fundo a msica de Science, o que vemos a universalizao, a recriao. Todo o filme gira ao redor de um leitmotiv simples: a reconstituio de um passado herico de resistncia, de paixo e terror. A grandiosidade, a energia que a arte pode proporcionar, canaliza-se para orgulho dos pernambucanos.

    Uma estudiosa dinamarquesa que em 98/99 exibiu no MoMa de Nova Iorque (Museu de Arte Moderna) os 60 melhores filmes do Cinema Novo e outros, no incluiu o Baile Perfumado por ach-lo desconcertante. Era como se o ps-modernismo estivesse proibido. Buscava-se naquela seleo uma coerncia que no tinha nada a ver com o experimentalismo do nosso Baile. Ela no entendeu nada. A cena recifense passou batida.

    Lrio Ferreira e Paulo Caldas, diretores do filme, afirmam no encarte da trilha sonora: A mistura de estilos, linguagens e ritmos o paralelo comum que existe entre a msica (Manguebeat) e o cinema (rido movie) que se faz no Recife. A msica jamais sublima algum plano. Ao contrrio disso, ela serve como uma espcie de dilogo entre o popular e o pop, entre o regional e o universal. Na essncia, aquilo que se convencionou chamar Pernambuco Falando para o Mundo(antigo slogan da Rdio Jornal do Commercio). Um detalhe: Fred 04 representa um reprter em Baile Perfumado.

    Se o modernismo resultou no conformismo, Chico propunha a prevalncia do impulso e da espontaneidade sobre a razo. Numa das msicas da trilha do filme, Sangue de Bairro (de Chico e Ortinho), j lanada no Afrociberdelia, est escrito: Quando degolaram minha cabea / passei mais de dois minutos vendo o / meu corpo tremer / e no sabia o que fazer / morrer, viver, morrer, viver!

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    O enredo de Baile Perfumado trata das filmagens do grupo de Lampio: o cineasta libans Benjamin Abraho, homem de confiana do Padre Ccero at o dia da morte do religioso, parte de Juazeiro e vai filmar o rei do cangao e seu bando. Rabeca, usque e perfume importados compem este roteiro inusitado. A juno Lampio - Vnus - Foguetes cria um clima que, usando um ritmo tipicamente pernambucano, detona os passadismos e afrociberdeliza a nossa histria:

    Seu doutor no lhe dou ouvido / minha cabea t cheia de idias / O prefume que eu uso / no como o seu / Sai daqui da minha terra / Vou-me embora / Vou andando / No me posso demorar / Eu t indo pra Vnus / Encontrar Maria / No posso me atrasar / Meu foguete / J t chegando / melhor sair da / Vai soltar raio laser / Pr alumiar / As terras do Cariri (Chico Science e Lcio Maia em Angicos).

    * * * * * *

    T enfiado na Lama / um bairro sujo / onde os urubus tm casas / e eu no tenho asas (..) andando por entre os becos / andando em coletivos / ningum foge ao cheiro sujo / da lama da manguetown (..) Esta noite sairei! / vou beber com meus amigos / e com as asas que os urubus me deram / ao dia / eu voarei por toda a periferia (...) a mulher vai andar / na lama do meu quintal (Science in Manguetown). O papel da mulher na obra scienciana , de certa forma, passivo. como se ela fosse afastada ou, pelo menos, transformada em objeto: Que menina bonitinha / pra poder ficar comigo / tem que saber de cozinha. (Mac, de Chico e Jorge D Peixe). A parceria - brodagem - entre os mangueboys no tecer de suas idias remete-nos milenar prtica de cumplicidade entre os homens que exclui a mulher de certas diverses. Se, por um lado, o mito de Maria Bonita masculiniza a figura da mulher nordestina, por outro lado a mantm submissa ao homem. O mangue, de maneira casual, revisita o passado machista pernambucano.

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    A MANGUETOWN DESCONSTRUDA

    Quando citamos a fsica quntica, apontamos para a desconstruo at no se reconhecer o fragmento como parte do todo, o que nos leva a outra teoria cientfica, a teoria do caos. Detectamos resqucios deste recurso em literatura e exemplificamos com uma composio de Chico, de inspirao, digamos assim, tambm ps-concretista intitulada Coco Dub, do CD Afrociberdelia: Cascos, cascos, cascos / Multicoloridos, crebros, multicoloridos / Sintonizam, emitem, longe / Cascos, cascos, cascos /Multicoloridos, homens, multicoloridos / Andam, sentem, amam / Acima, embaixo do mundo / Cascos, caos, cascos caos / Sem previsibilidade de comportamento / O leito no-linear segue / Pra dentro do universo / Msica quntica?

    A conexo casco e crebro multicolorido - sintonia e emisso - anda, sente e ama - imprevisibilidade (no-linearidade) e o universo conclui-se de maneira paradoxal na proposta da fsica quntica que apontou para a energia transmitida em quantidade (sintonizam - emitem). Um tomo quntico (Chico saltando do real para o crculo das metforas ritmadas) tem seus eltrons livres, pulando para outro nvel e depois voltando ao seu nvel original (Pernambuco embaixo dos ps e minha mente na imensido- letra de Mateus Enter, que abre o CD Afrociberdelia. Haver continuidade ou ruptura nessa cerveja antes do almoo?

    Na alterao da ordem oferecida e na imposio de um novo conceito, o ps-modernismo funciona como continuao das vanguardas europias do incio do sculo XX, como bem destacou Jos Guilherme Merquior em 1990. As foras da aventura rompem a camada conservadora e tentam redescobrir o mundo atravs da redescoberta da linguagem esttica. Recusam-se os temas poticos j gastos, as estruturas vigentes na potica ultrapassada. Os objetos no-estticos e o mundo cotidiano em sua vertiginosa e multiforme dimenso entram na arte: recusa-se o cdigo lingstico convencional e, sob o signo da inveno, surge a linguagem da desarticulao (que rompe o nexo sinttico - cascos, caos, cascos, caos - da metfora, como na introduo que Chico faz a Maracatu

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    de Tiro Certeiro. L, ele diz Urubuservando a situao), do hermetismo de um universo fechado em si prprio - pois de raiz intuitiva ou psicolgica e no-lgica, como nos lembra Nelly Novaes Coelho (1994): O ambiente construdo de maneira ntida sobre uma imagem coerente, slida do mundo e sobre problemas do ser no espao.

    Chico construiu um admirvel Pernambuco novo, metamorfoseando-o em Manguetown - que o Recife reconstrudo numa fico sociolgica - onde os caranguejos tm crebros e misturam-se com os humanos, no fugindo do mundo e sim, integrando-se a ele, exorcizando o caos pela poesia urbana. Chico usou o maracatu como trampolim, da mesma forma que Jos de Alencar usou o indianismo, retocando-o, readaptando-o s suas necessidades e interesses fundamentais. O caos pede uma reorganizao, uma volta unidade construda para que a vida possa prosseguir (Nelly Novaes Coelho). A tradio do maracatu, por exemplo, aparece com gestos novos, chegando ao inslito atravs da investigao do real:

    O medo d origem ao mal / O homem coletivo sente a necessidade de lutar / O orgulho, a arrogncia, a glria / Enchem a imaginao de domnio / So demnios que destroem o poder bravio da humanidade (Chico, em Monlogo ao P do Ouvido).

    As letras de Chico tm, em sua maioria, como diz o poeta dos morros cariocas Luiz Melodia, o auxlio luxuoso do pandeiro; no caso, os tambores do maracatu, a cozinha da Nao Zumbi. Estranhas guitarras e baixos acentuam o clima proftico e Chico emite as palavras num tom imperativo. Ele como um rei, na farsa da coroao dos negros no maracatu. E soam os tambores. Da mesma forma que Janis Joplin, Chico cantava com o corpo todo.

    Se apenas a cincia, a filosofia ou a histria oficial pudessem falar a verdade, o que restaria ao escritor dizer? A partir dos estilhaos desta reflexo modernista surge o experimentalismo. Fora-se uma nova concepo do mundo e da condio humana, como j ressaltamos. Como o fez o escritor irlands James Joyce

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    (1882-1941), Chico fundiu simbolismo e naturalismo (Eu vi, eu vi, a minha boneca vodu - em Cidado do Mundo, ou ainda: Recife cidade do mangue / Incrustada na lama dos manguezais / Onde esto os homens-caranguejo, em Antene-se). A palavra em Chico como a do poema de Drummond (Procura da poesia): Cada uma / Tem mil faces secretas sob a face neutra / E te pergunta, sem interesse pela resposta / Pobre ou terrvel que lhe deres / Trouxeste a chave? E a resposta para a palavra de Chico est nos ritmos da cultura pernambucana. As slabas separam-se, juntam-se numa pulsao vigorosa que leva o ouvinte a uma espcie de transe. Ao provocar o relacionamento do maracatu com o rock, Chico causou polmica. Ao mesclar a msica dos afro-brasileiros com a dos afro-americanos, exibiu um atrevimento que ns, pernambucanos, precisvamos, O CSNZ reuniu a frica com as Amricas. E a lira amorosa de Science mescla de camaradagem, profecia, sociologia, fico, redescoberta do mundo, busca de uma vivncia mais autntica, independente do convencional e do estereotipado, num mundo sem fronteiras, onde o amor coletivo e submetido fragmentao cubista, delrio surrealista, acaso calculado do dadasmo, agressividade futurista, intertextualizao e impulso ertico para a brincadeira, levando o homem a uma nova confiana em sua condio humana.

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    ARTE LONGA, VIDA CURTA

    A morte, tanto quanto a vida, material para a arte. Em seu livro Os Limites da Interpretao, o professor italiano Umberto Eco traa paralelos entre criao e morte: Segundo alguns, na fase de putrefao (morte) que se libertam os dois agentes primordiais da obra: o enxofre (quente, seco e masculino) e o mercrio (frio, mido e feminino). A fuso destes dois princpios tambm simbolizada pelo rei e pela rainha.

    Chico exps seu corao ao amor desrtico do Recife, abrasando-se nos estertores da metrpole pernambucana, superando o tdio com o lema vamos organizar as idias, atendo-se a desconstruo da realidade em fragmentos caleidoscpicos. A vida congelou-se num produto da fama: a idolatria.

    Em vida, Chico lanou apenas dois CDs: Da Lama Ao Caos (1994) e Afrociberdelia (1996), ambos com boa recepo no Brasil e no exterior. Juntou gneros tpicos de Pernambuco: coco, caboclinho, cano praieira e, claro, maracatu e ciranda, mixando-os ao rap, funk e rock. Alguns comparam o poder do malungo ao de Che Guevara ou de Bob Marley, revolucionrios da poltica e da msica, respectivamente. A morte nos d asas onde tnhamos ombros, disse Jim Morrison, lder da banda The Doors.

    Os fs pouco querem entender o que foi substituir bumbo e caixa da bateria por tambores ou no usar as divises comuns do rock, levando o tempo quatro por quatro para o maracatu. A performance e a atitude do CSNZ eram impositivas. Os tambores impulsionaram a mensagem, propondo o retorno ao tribal. Na poca de seu lanamento, Da Lama ao Caos entrou para a lista dos melhores discos pelo The New York Times e o Manguebeat foi definido como o movimento mais amplo desde a Tropiclia.

    Em praticamente todos os ramos da arte, a esttica do mangue efetivou-se num determinado momento e virou referncia. Em Caranguejo Dance, letra de Moraes Moreira, est: E a novidade me possui / Dano e me vejo / Um caranguejo que na pista evolui.

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    No existe o ritmo manguebit e sim uma fuso de vrios ritmos. O som de CSNZ diferente das outras do movimento / cena mangue. Chico no era um expert em ciberntica - uns dizem que Chico era vidrado em computao, outros que ele no sabia sequer mandar um e-mail.

    Que som esse que vem de Pernambuco? At onde chegam os ecos do passado? Apertem os cintos e no fumem que ns vamos decolar, disparava Science na apresentao do Hollywood Rock, em janeiro de 1996, dando depoimentos como: Fazemos uma msica catica. Desde 84, quando inventei uma gangue de rua, que a gente curtia La Ursa. fcil imaginar Chico metido no meio de uma apresentao de urso. O ritmo e a apresentao do urso com seu caador, homem da mala e tantas outras figuras desta manifestao tm a ver com o malungo irreverente. Era o Recife, presena constante em sua obra: O Recife est comigo. Recife satlite, raiz, braos da cultura. Minha me queria que eu fosse padre, mas eu sempre gostei de cantar. Cantava muito no banheiro. Sempre adorei ir para as rodas de cranda, durante o So Joo ou em Dona Duda, na praia do Janga.

    A mensagem do CSNZ fala para o mundo: Esses brasileiros devem ser a mais ritmicamente avanada banda que j existiu, afirmou a conceituada revista americana SPIN, especializada em msica e comportamento pop alternativos: Entreguei ao Recife a minha emoo e a Pernambuco o meu amor, declarou Chico. Tudo parecia correr as mil maravilhas. Era uma msica dionisaca, sombria, grandiosa, com razes no culto africano.

    A intelectual fashion americana Camille Paglia afirma: A masculinidade agressiva, instvel combustvel. A postura do CSNZ era contra a atitude que mantm o oprimido numa condio infantil, conformista. No podemos ter um mundo onde todos so vtmas, diz Camille. Somos de fato formados por traumas que nos aconteceram. Mas depois, voc tem de assumir o comando: voc responsvel. E prossegue: Era a fora da terra (elemento feminino) mais a fora do homem (Eros, masculino), e as leis da sociedade (Tnatos). Surge o heri dionisaco ou, como prefiro

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    cham-lo, o ctnico - o poder bruto, da terra (..) O prazer-dor (o grosseiro continuum da natureza), a subordinao de tudo que vivo necessidade biolgica. Afirmo que nenhuma forma de arte, nem mesmo a tragdia grega do Teatro de Dionsio, em Atenas, jamais deu voz plena ao dionisaco at o rock, um spero desenvolvimento do Romantismo (...) A notria violncia a constante erupo do primitivismo, do individualismo anrquico (...), sonho (...) incendirio, trabalho psicodlico da guitarra (...), efeitos de sons brutos elementais, de terra, ar, gua e fogo, falava tanto terra quanto cultura e portanto apequenou o pensamento obcecado com a sociedade. As desconstrues do psicodelismo destruram o seguro e o conhecido com um objetivo: expandir a viso (...), multiplicidade de perspectiva de vida.

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    MORTE DE MALUNGO

    Francisco de Assis Frana nasceu em 13 de maro de 1966 e morreu em 2 de fevereiro de 1997. Se as FMs do Brasil no souberam aproveit-lo, o povo o fez. Os jovens do Recife cultuaram o Mestre Chico e o coroaram, estranha coroa com folhas do mangue, os louros de Pernambuco. Chico traou uma espcie de pico feito s pressas, meio de improviso. Seus contatos com a contracultura certamente ampliaram, aprofundaram o aspecto cosmopolita e universal do seu projeto. Suas referncias culturais como o maracatu, caboclinho, ciranda, coco, fizeram com que ele inserisse o velho dentro do novo e narrasse ao mesmo tempo seqncias temporais opostas, sobrepondo-as e de certa forma unificando-as.

    No domingo tarde, Chico almoou sushi com coca-cola. J tinha ido a Olinda e no encontrara Jorge d Peixe. A confuso do desfile das Virgens fez com que ele desistisse. Voltou para casa. Ligou para o artista plstico Flix Farfan vrias vezes. Ligou ento para o escultor Evncio, que estava terminando um trabalho e no podia sair naquele momento. Chico, ento, escolheu uma roupa branca e um chapu preto. Se arrumou ouvindo msica e demorou conta sua irm Gorete. Ao sair, resolveu no usar o seu Galaxie Landau 79 cinza com cap preto; o Fiat da irm era mais fcil de estacionar. Dirigia-se para a casa de Jorge D Peixe, em Olinda. Em seguida, assistiriam na cidade a uma apresentao de maracatu, A Cabralada. Se estivesse com o Landau, talvez no tivesse morrido, disse Farfan ao jornal Folha de So Paulo.

    talo Calvino escreveu: Entre as mltiplas virtudes de Chuang-Ts estava a habilidade para desenhar. O rei pediu-lhe que desenhasse um caranguejo. Chuang-Ts disse que para faz-lo precisaria de cinco anos e uma casa com doze empregados.

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    Passados cinco anos, no havia sequer comeado o desenho e disse ao rei: Preciso de outros cinco anos. O rei concordou. Ao completar-se o dcimo ano, Chuang-Ts pegou o pincel e num instante, com um nico gesto, desenhou um caranguejo, o mais perfeito caranguejo que jamais se viu.

    Velocidade ou lentido, ambos so importantes e a mente humana questiona o mundo, fragmentando-o. Os estilhaos ps-modernos misturaram-se com a pr-histria das idias. No fatdico domingo, a velocidade fez com que o Fat Mille placa KHH 7486 dirigido por Chico desse um giro de 180 ao descer do viaduto que liga Recife a Olinda, atrs do shopping Tacaruna, e colidisse contra o poste e a cerca do Memorial Arcoverde. Traumatismo craniano, duas costelas direitas quebradas, o pulmo direito perfurado e fraturas nos ossos da face. Moraes Moreira, estampado num outdoor bem prximo do local, com os dizeres: Quer morrer, F.D.P? (propaganda do DETRAN na poca do acidente). Ironia do destino.

    O soldado da Polcia Militar Marcos Ramos do Nascimento estava no nibus que fazia a linha de Recife-Pau Amarelo (praia do litoral norte de Pernambuco), quando ouviu o som do carro de Chico batendo no poste do Complexo de Salgadinho. Ele desceu do nibus, foi at o local, retirou Chico das ferragens, parou uma caminhonete D-20 e levou-o para o Hospital da Restaurao, no Derby (centro do Recife):Ele estava sangrando muito pela boca e pelo nariz e no parava de gemer quando eu fechava a boca dele, o sangue saa pelos ouvidos. Ele morreu quando cruzamos o viaduto. Parou de respirar e seu corao silenciou s 19h 10m.

    No edifcio Salathiel, onde Chico morava, no bairro do Espinheiro, a comoo foi geral. Um ex-vizinho localizado pela

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    polcia contactou Paulo Andr, o empresrio do CSNZ, que a princpio pensou se tratar de um trote. O caleidoscpio mexia-se. A infncia de Chico na rua Girassol, em Rio Doce: brincadeiras como catar caranguejos e aratus. Estilhaos de uma vida estamparam-se nos jornais com a tragdia.

    Na poca do acidente, o Movimento Mangue estava a todo vapor. 1997 seria o ano da exploso do Manguebeat: a criao de uma fundao cultural no Recife, o Antromangue, planos de uma novela na internet, chamada os Os 12 Caranguejos do Apocalipse: o personagem principal da novela era um lder que combatia a massificao cultural e pesquisava a expanso qumica da mente. Ainda nos planos, a trilha sonora para o filme de Ktia Mesel Recife de Dentro para Fora, baseado em textos do poeta recifense Joo Cabral de Melo Neto.

    Chico teve cortejo fnebre cheio de honrarias. Uma bandeira de Pernambuco foi colocada sobre seu caixo. Pelo menos seis mil pessoas foram ao velrio no Centro de Convenes e ao enterro no cemitrio de Santo Amaro. Contou-se, inclusive, com a presena do ento Governador Miguel Arraes, que decretou luto oficial por trs dias, e de Ariano Suassuna. Foram recebidas no funeral quase uma centena de coroas de flores. Mensagens de amigos, polticos e msicos de todo o pas. Os caboclos de lana do Maracatu Piaba de Ouro, do mestre Salustiano, prestaram homenagem sem tambores, apenas com chocalhos a repicar a perda do lder dos caranguejos com crebro. Outros maracatus se apresentaram, a Nao Estrela Brilhante e o Maracatu Indiano, marcando o ritmo no funeral.

    O escritor Raimundo Carrero declarou naquele momento: Costuma-se dizer que melhor morrer mais velho, no sei. Deveramos estar acostumados com a presena da morte. Mas o artista no morre, deixa sua obra. Marcelo Frommer, dos Tits, disse: Estou chocado com essa fatalidade. Chico e o Manguebeat

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    trouxeram novidade em meio banalizao da msica baiana. Ele fez uma releitura de cultura do Nordeste.

    A atriz Ivonete Melo, Presidente do Sindicato dos Artistas e Tcnicos em Espetculos de Diverso em Pernambuco (SATED), abalada com a tragdia, desabafou: Na catacumba n 1 da rua Esprito Santo, ala norte do Cemitrio de Santo Amaro, dorme uma esperana. Trik de Souza, do Jornal do Brasil, escreveu: A equao dos tambores tonitruantes e eletrnica de ponta criada por Science soou indigesta para a dieta rala das FMs. No Brasil, claro. Porque l fora os circuitos da world music farejaram o precioso achado.O porta-voz de sua gerao, foi como o crtico do Estado de So Paulo Maurcio Dias definiu-o.

    Fazia mais de dez anos que o Cemitrio de Santo Amaro

    no recebia tanta gente, estampou o Jornal do Commercio. Sessenta homens do Batalho de Choque foram insuficientes para orientar milhares de pessoas que estavam l.

    Nos jornais, a imagem da filha de Science, Louise Tain Brando de Frana. O primeiro nome fora dado pela me Ana Luiza Beltro; o segundo - que significa estrela em tupi - dado pelo pai. Nascida em 1990, Tain conviveu pouco com Chico, pois este viajava muito. Porm, quando estava no Recife ia busc-la em casa de Ana Luza e passavam o dia juntos. Ana Luza e Chico comearam a namorar em um colgio de Olinda onde ele fazia cursinho, mas antes do nascimento de Tain j estavam separados.

    Toda a performance de Chico tinha um pouco do ritual dessas tribos antigas. Um pouco de Dionsio. At seu funeral e enterro foram de xtase, s que ali a alegria foi eclipsada pela angstia, pela agonia. Ele foi enterrado usando seu chapu de palha. Quando a sepultura foi fechada, s 17h10m, o pblico entoou o Hino Nacional. Uma amiga do cantor tocou rabeca e havia at um homem engolindo fogo! Fs tambm colocaram dois caranguejos na cova do artista antes do sepultamento.

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    Na letra do poeta do mangue para a campanha promocional Pernambuco, aqui o meu lugar, ele diz:Entreguei ao Recife minha emoo e a Pernambuco o meu corao.

    Interessante o discurso do ento senador JoeI de Hollanda no Senado Federal. O senador assumiu a sua consternao pela morte daquele que resistiu pasmaceira cultural e despersonalizao da produo artstica, regional e nacional. Joel continuou elogiando Chico, que, segundo ele, queria, com a imagem das parablicas fincadas no mangue, estimular os artistas e a comunidade de uma forma geral a se manterem antenados ao que acontece mundo afora, sem contudo perderem as razes. (...) O povo brasileiro no se recuperara ainda da perda do escritor e imortal Antonio Callado, quando sobrevieram as mortes de Chico Science, do jornalista Paulo Francis, do ex-ministro Mrio Henrique Simonsen e do nosso saudoso colega, senador Darcy Ribeiro. O tom do senador empolgado quando ele toca na questo da justia social ou de uma ordem social excludente e freqentemente injusta, contra a qual Chico resistiu inconformado. E continua: Funcionrio (arquivista) da Empresa Municipal de Processamento Eletrnico (EMPREL), o filho do enfermeiro Sr Francisco Frana e de Dona Rita Frana, em 1991 quis dedicar-se msica e agora comoveu as senhoras e senhores senadores com sua sbita morte beira do mangue.

    Para um rapaz que estudara em escola pblica e tinha trabalhado como auxiliar de servios gerais na Clnica Radiolgica do Recife - aos dezoito, o pai disse que ele arranjasse dinheiro - esse foi mais um momento de consagrao.

    O senador concluiu seu discurso com as seguintes palavras: Chico e ser lembrado como o artista que repudiava a msica ruim, que abriu novos caminhos para a arte brasileira e que revolucionou a esttica, com uma obra de vanguarda que respeitava as razes, que no se deixou despersonalizar mas ser lembrado, sobretudo como um artista que amava a arte, o povo do mangue, de Pernambuco, do Brasil!

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    Os elogios obra de Chico pulularam: em vrios jornais, revistas, programas de TV, Internet, shows, discos.

    A utopia do Manguebeat chocou-se com o seu iceberg titnico, s vsperas de um carnaval. Um dos carnavais mais estranhos que Recife e Olinda j tiveram. Todos estavam emocionados e as msicas de Chico com a Nao Zumbi ecoavam. Era como se ele estivesse ali. Todos o amaram intensamente. Foi assim que ele viveu. Velocidade. O marketing. A mdia. Chico, Renato L, Fred 04, Nao Zumbi e Mundo Livre aproveitaram-se dos computadores e espalharam a msica do Recife no mundo todo. Uma farra. Propuseram um movimento frentico. E Chico foi um catalizador eficaz e mltiplo. Como no pensar em Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, Lampio, Renato Russo, Antnio Conselheiro, Frei Caneca? Foram anos de efervescncia onde o futuro existiu no Recife, ganhou novo sentido. Chico transformou o bvio ululante, como outro pernambucano, o escritor Nlson Rodrigues, tambm fizera. Chico era o Mick Jagger do Manguebeat. Ele tinha consistncia. O Manguebeat foi importantssimo para a msica, literatura, cinema e jornalismo, declarou a cantora carioca Fernanda Abreu, com quem ele havia gravado a msica Rio 40 Graus.

    O vereador Pedro Mendes conseguiu aprovao por unanimidade na Cmara Municipal de Olinda, propondo que o Memorial Arcoverde ou o Centro de Convenes ou ainda a Casa da Cultura se chamasse Chico Science em homenagem pstuma. A sugesto foi encaminhada a Arraes, mas caiu no esquecimento. Voltou tona em 2000, com a sugesto aceita do nome do poeta para batizar um novo tnel no Recife, prximo ao Sport Club, alm de uma avenida em Olinda.

    Povo de Rio Doce / Vote com confiana / Para vereador / Vote em Luiz de Frana.. Este slogan poltico foi usado na campanha de seu Francisco Luiz de Frana a vereador de Olinda, em 1983. A autoria de seu filho Francisco de Assis Frana, ou melhor, Chico Science. Quando comeou a campanha, Chico chegou um dia ao trabalho do pai e disse: O senhor est ocupado,

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    me empreste o carro. E saiu pelo bairro, fazendo campanha. O pai foi eleito e exerceu o mandato de 1984 a 1988. Em 2006, Seu Francisco estava aposentado, mas ainda trabalhava como enfermeiro no Espao Cincia, no Memorial Arcoverde.

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    O DUPLO NO CSNZ: SCREAM POETRY

    De mortuis nil nisi bonum no se fale dos mortos a no ser para dizer o bem, diziam os antigos.

    Na mesma semana da morte de Chico, morreu tambm o polmico intelectual Paulo Francis que, inclusive, havia dado nome a uma das bandas do movimento mangue, a Paulo Francis Vai Pro Cu - uma ironia para neutralizar aquele que menosprezava o Nordeste. O mesmo Nordeste que aparece em Geografia da Fome (1946), do socilogo Josu de Castro, como to miservel que os moradores das palafitas comiam sururu (um molusco) mal lavado e com bastante lodo. No por falta de higiene, mas para compensar a deficincia de ferro na alimentao.

    Mesmo com a adversidade batendo na cara, Chico escreve Scream Poetry, espcie de poema-testamento que seria posteriormente gravado pelo Paralamas do Sucesso, cujo lder o paraibano Herbert Viana: Eu posso sentir o que a paixo faz em segundos / Eu posso sentir o que o amor fez / Depois de anos / Eu gosto de sentar nos telhados! Pra ouvir o que as casas dizem ao meu redor! Eu gosto de subir nos telhados / Porque eu consigo ver o mundo! Grite poesias que eu te amarei/ At a minha ida, grite poesias / Que o mundo tem / A palavra que voc pode escrever / Grite poesias.

    A gravao desta letra de Chico contou com a especial participao de Jorge Mautner, uma lenda viva da contracultura brasileira. Um homem que toca violino, foi influenciado por Nietzsche, escreveu vrios livros e canes, entre as quais Maracatu Atmico, o maior sucesso de CSNZ.

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    Na leitura de Scream Poetry, vemos surgir outra vez uma imagem recorrente em toda a obra do poeta do mangue: a imagem do cara que senta num canto sozinho e filosofa. Bem nos moldes de Z Ramalho e Mautner, menestris do grande mistrio, avatares do grande mercado pop. Scream Poetry nos traz um Chico buscando ouvir o que as casas dizem, subindo nos telhados para ver o mundo. Temos os enigmticos versos at a minha ida, grite poesias / A palavra que voc pode escrever. Estas linhas, de modo simples, descrevem o carter lrico que a essncia de sua arte.

    O quebra-cabea scienciano fragmentado em: telhados / anos / segundos / casas /poesias; o sujeito plural encontra um alvo nico: a palavra, palavra que voc pode escrever: Os versos no rimam entre si, uma constante nas letras do mangueboy.

    Outra referncia o ttulo Scream Poetry: Chico foi repudiado por incrementar suas atitudes usando o idioma ingls, o mesmo acontecendo em letras como Sobremesa (com Jorge d Peixe e Renato Lins): Walking in the morning sun / My pockets are empty now / I dont have anything / Only dirty black boots / And a little flower in my hands / Looking to the city / Cabs, buildings, people / A rocket blows in the sky / My mind flies. Novamente, a imagem do sujeito p na estrada, que viaja, vaga. Errante navegante, diria Caetano Veloso em Terra: Como se eu fosse o saudoso poeta e fosses a Paraba. O surrealismo abraa a simplicidade nos mesmos versos de Sobremesa, que continua: Borboletas se equilibram no espao / Um muro velho em minha face / Uma cadeira flutua num espiral / Flores em minha camisa numa tarde no bairro / E enquanto caminho nas ruas da cidade / Lembro que uma sobremesa me espera em casa.

    Ingenuidade, simplificao da vida, retorno tribo. Reintegra-o ao bvio. Conceitos ps-mod