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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA INSTITUTO DE HUMANIDADES, ARTES E CIÊNCIAS
PROFESSOR MILTON SANTOS - IHAC PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
CULTURA E SOCIEDADE – PÓS-CULT
MORGANA GAMA DE LIMA
SINGULARIDADES EVANGÉLICAS:
UMA REFLEXÃO SOBRE PERSONAGENS RELIGIOSAS
NO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO
Salvador
2014
MORGANA GAMA DE LIMA
SINGULARIDADES EVANGÉLICAS:
UMA REFLEXÃO SOBRE PERSONAGENS RELIGIOSAS
NO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO
Dissertação apresentada ao Programa Multidisciplinar
de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade do Instituto
de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton
Santos da Universidade Federal da Bahia como parte
dos requisitos para obtenção do grau de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Maurício Matos dos Santos
Pereira
Salvador
2014
Àquele que nos faz iguais...
...nas diferenças.
AGRADECIMENTOS
A Deus, com quem aprendi a me relacionar além dos ritos e a quem devo a inspiração e
sensibilidade para observar as questões discutidas nesse trabalho,
Ao Professor Dr. Maurício Matos que acreditou no desenvolvimento do projeto, até o último
instante, contribuindo de forma ímpar com a indicação de referências e se tornando, ele
próprio, uma grande referência pra minha trajetória acadêmica,
À Professora Dra. Marinyze Prates, a quem primeiramente conheci através das páginas de um
livro e que, posteriormente, veio se tornar uma das grandes incentivadoras para o
investimento nessa pesquisa,
Às professoras Clarissa Braga (UFBA) e Maria do Socorro Carvalho (UNEB) que,
gentilmente aceitaram ao convite para compor a banca examinadora,
Ao Pós-Cultura/ UFBA, por acolher o meu projeto e dar autonomia para explorar os diversos
campos de estudos em Cultura,
Ao Coordenador do Pós-Cultura, Professor Adalberto e ao corpo técnico-administrativo do
Programa no suporte oferecido,
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) por financiar o
desenvolvimento da pesquisa,
Aos amigos que me acompanharam nessa jornada, especialmente Janine, André, Fred, Geise,
com quem pude vivenciar, desde a entrada, a emoção de cada uma das etapas do processo de
pesquisa,
Ao Grupo de Pesquisa em Cultura e Subalternidades (CULT/UFBA), por me proporcionar o
amadurecimento na vida acadêmica e me presentear com as belas amizades de Chico, Manu e
Vânia,
A mainha, minha mãe Sandra Regina, grande incentivadora de meus projetos e exemplo de fé
e perseverança,
A minha irmã Nara, que sempre torceu pela minha felicidade e sucesso profissional,
A meu pai Everaldo, engenheiro, professor e pesquisador apaixonado que, mesmo sem saber,
me impulsionou a seguir a carreira acadêmica,
A você, que ao ler o meu texto, valoriza a pesquisa e a produção científica em nosso país.
LIMA, Morgana Gama de. Singularidades evangélicas: uma reflexão sobre personagens
religiosas no cinema brasileiro contemporâneo. 178 f. il. 2014. Dissertação (Mestrado) –
Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Universidade Federal da
Bahia, Salvador, 2014.
RESUMO
A ascensão do segmento evangélico no campo religioso do Brasil é notória. Com o
crescimento do número das igrejas cristãs protestantes e a repercussão da sua doutrina nos
meios de comunicação, produções da cultura, como o cinema, começaram a trazer
representações do que seria o ser evangélico no contexto brasileiro. São personagens trajando
roupas compridas, pronunciando jargões como amém, aleluia, glória a Deus, e que ao
caracterizarem adeptos de um segmento religioso específico, ultrapassam a narrativa ficcional
em que são produzidos e oferecem elementos que contribuem para uma compreensão das
relações de poder que se engendram na cultura brasileira. Partindo, pois, da perspectiva do
cinema enquanto um discurso, a presente pesquisa propõe um estudo investigativo acerca dos
mecanismos envolvidos na construção de personagens evangélicas no cinema brasileiro
contemporâneo, produzido principalmente nos anos 2000, e, a partir de suas diferentes
significações, analisar a emergência de personagens como Teodoro, do filme Contra Todos
(Roberto Moreira, 2004) e Dinho, de Linha de Passe (Walter Salles e Daniela Thomas, 2008)
construções que, enquanto singularidades, abrem caminho para uma reflexão mais complexa
acerca desse tipo de personagem no histórico do cinema brasileiro e sobre os processos de
subjetivação na contemporaneidade.
Palavras-chave: cinema brasileiro – religiosidade – evangélicos
LIMA, Morgana Gama de. Evangelical Oddities: reflections about religious characters in the
contemporary Brazilian cinema. 178 f. il. 2014. Thesis (Master) - Institute of Humanities,
Arts and Sciences Teacher Milton Santos, Federal University of Bahia, Salvador, 2014.
ABSTRACT
The rise of evangelical segment in the religious field in Brazil is notorious. With the growing
number of Protestant Christian churches and the repercussions of his doctrine in the mass
media, productions of culture, such as cinema, started bringing representations of the Gospel
would be in the Brazilian context. Characters are dressed in long robes, uttering jargons like
amen, hallelujah, glory to God, and to characterize supporters of a specific religious segment,
beyond the fictional narrative in which they are produced and offer elements that contribute to
an understanding of power relations that engender in Brazilian culture. Leaving, therefore,
from the perspective of cinema as a discourse, this research proposes an investigative study on
the mechanisms involved in the construction of evangelical characters in contemporary
Brazilian cinema, mainly produced in the 2000s, and as their different meanings, considering
the emergence of characters like Teodoro, by the film Contra Todos (Against All, Roberto
Moreira, 2004) and Dinho, by Linha de Passe (The Pass Line, Walter Salles and Daniela
Thomas, 2008) buildings , look like oddities, that open the way to a more complex reflection
on this type of character in the history of cinema Brazil and about the processes of
subjectivity in contemporary .
Keywords: brazilian movie – religiosity – evangelical groups
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MORGANA GAMA DE LIMA
SINGULARIDADES EVANGÉLICAS:
UMA REFLEXÃO SOBRE PERSONAGENS RELIGIOSAS
NO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO
Dissertação apresentada ao Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade do
Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos da Universidade Federal da Bahia
como parte dos requisitos para obtenção do grau de Mestre.
Aprovada em 24 de abril de 2014.
Banca Examinadora
Maurício Matos dos Santos Pereira – Orientadora _____________________________________
Doutor em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia
Universidade Federal da Bahia
Clarissa Bittencourt de Pinho e Braga__________________________________________________
Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia
Universidade Federal da Bahia
Maria do Socorro Silva Carvalho______________________________________________________
Doutora História Social pela Universidade de São Paulo
Universidade do Estado da Bahia
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 Cena de Manuel em Deus e o diabo na terra do sol.........................................35
Figura 2 Devoto anônimo com pedra na cabeça em cena de Central do Brasil..............35
Figura 3 Peixeira com a Bíblia e uma imagem do Cristo na mão direita........................44
Figura 4 Érica e a imagem de Jesus Cristo......................................................................44
Figura 5 Personagem evangélica no filme Superoutro....................................................87
Figura 6 Evangélico Inácio pelo enquadramento da janela.............................................90
Figura 7 Detalhes do caminhão de César.........................................................................92
Figura 8 Peixeira observa o culto evangélico no presídio...............................................97
Figura 9 Personagem de Meu Nome não é Johnny que se converte após ser presa.......99
Figura 10 Detalhes de uma das celas do filme Carandirú...............................................99
Figura 11 Kika durante o culto na Igreja.........................................................................107
Figura 12 Fachada da igreja evangélica em Amarelo Manga..........................................108
Figura 13 Diretor fala ao ouvido da personagem.............................................................108
Figura 14 As duas faces de Teodoro: evangélico e matador...........................................115
Figura 15 Teodoro se revela para Terezinha....................................................................118
Figura 16 Dinho, após a agressão, com o rosto obscurecido...........................................124
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 12
2 RELIGIOSIDADE NO CINEMA BRASILEIRO......................................................................... 23
2.1 DA RELIGIOSIDADE COMO TEMA .......................................................................................... 24
2.2 SIGNIFICAÇÕES DA RELIGIÃO NO CINEMA BRASILEIRO ................................................ 31
2.3 CULTURA E RELIGIÃO NA CONSTITUIÇÃO De SUBJETIVIDADES .................................. 40
2.4. QUE EVANGÉLICO? PILARES PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA PERSONAGEM
RELIGIOSA .......................................................................................................................................... 58
3 EVANGÉLICOS NO CINEMA: REPETIÇÃO COMO DIFERENÇA? ................................... 68
3.1 A DEVOÇÃO QUE SE INDIVIDUALIZA: DA TRADIÇÃO COLETIVA AO SUJEITO PÓS-
MODERNO ........................................................................................................................................... 70
3.2 DA CONSTRUÇÃO DE PERSONAGENS NO CINEMA ............................................................ 76
3.3 PERSONAGENS EVANGÉLICAS NO CINEMA CONTEMPORÂNEO ................................... 80
3.3.1 Desenhando estereótipos, encenando o mesmo ........................................................... 82
3.3.2 Desenhando rasuras, encenando conflitos ................................................................... 94
3.3.2.1 Conflito 1: Entre a Bíblia e arma .............................................................................................. 95
3.3.2.2 Conflito 2: Afirmação de poder: quando a minoria se quer maioria ....................................... 102
3.3.2.3 Conflito 3: A (des)ordem moral .............................................................................................. 105
4 EVANGÉLICOS EM INVENÇÃO .............................................................................................. 111
4.1 TEODORO DE CONTRA TODOS (2004) .................................................................................... 112
4.2 DINHO DE LINHA DE PASSE (2008) ......................................................................................... 119
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................ 126
REFERÊNCIAS ................................................................................................................................ 130
APÊNDICE A - Decupagem de filmes com personagens evangélicos .............................................. 138
APÊNDICE B - Lista de filmes brasileiros com personagens evangélicas ....................................... 169
12
1 INTRODUÇÃO
É uma sessão de filme brasileiro. Na cena, o rosto em primeiro plano de uma mulher
deixa entrever, ao fundo, um salão que lembra o templo de uma igreja evangélica. Ela, de
olhos fechados, tem a sua fala resumida a um jargão religioso pronunciado, repetidas vezes.
Em outro filme, é um jovem rapaz que desta vez entoa um cântico religioso. Sua voz em coro
com tantas outras, se mistura, e seu rosto, ocupando toda a tela, expressa um semblante
contrito. Estas são apenas descrições de duas imagens do cinema brasileiro contemporâneo
que tentam construir, na ficção, a face de um novo personagem que emerge no cenário
religioso do Brasil e a quem, popularmente, se atribui o nome de evangélico.
Antes mesmo de chegar às emissoras de televisão, aos programas de auditório, ou
mesmo a produções culturais como telenovelas e filmes, esse pertencimento religioso se
declara nas praças, se apresenta no transporte coletivo, no cenário político, e em contextos
que, definitivamente, ultrapassam as fronteiras de uma comunidade religiosa cristã chamada
igreja.
Ao apresentar esse projeto, de alguma maneira, também integramos esse processo de
expansão da religiosidade, porém, antes de trazê-la como possibilidade de pertencimento a um
grupo e eixo constituinte de novas identidades na sociedade contemporânea, preferimos
submetê-la a um processo de reflexão a partir da análise de uma das formas como a sociedade
brasileira apreende o fenômeno religioso: através de personagens do cinema. Um possível
indício de como se processa essa apreensão pôde ser deduzida, por exemplo, de algumas
ocasiões em que ao se apresentar o objeto desta pesquisa a reação primeira do ouvinte era
lançar a pergunta: você é evangélica?.
Tal questionamento, antes de ser uma curiosidade do interlocutor pela biografia da
pesquisadora, parece partir de uma hipótese de que só é possível reconhecer o outro por um
processo de identificação, visto que as diferenças tem a tendência de serem apresentadas
como a negação ou a inferiorização desse outro. Ao invés de uma resposta simples, que com
um sim ou não, pudesse corroborar ou refutar a hipótese de identificação, foi dada preferência
a uma réplica: o que você entende por ser evangélico? e assim dar possibilidade ao
interlocutor de pensar sobre suas próprias concepções referentes a esse pertencimento
religioso.
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Como forma de escapar à pura subjetividade e trazer uma referência mais localizada, em
uma breve consulta a dicionários de língua portuguesa, é possível observar as diferentes
significações atribuídas ao termo:
Evangélico:
(Do gr. euangelikós, pelo lat. evangelicu.) Rel. Adjetivo. 1. Relativo ao Evangelho (1 e
2), ou conforme aos seus ditames. 2. Relativo ou pertencente a certos grupos religiosos,
não ligados ao protestantismo histórico, que afirmam seguir os Evangelhos com especial
rigor e fidelidade (...). (Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 2000, grifo
nosso).
adj. 1. Do Evangelho; conforme manda o Evangelho; que segue a lei de Cristo. 2.
Protestante (em oposição a católico romano). (Dicionário Priberam de Língua
Portuguesa, 2012, grifo nosso).
Como se pode ver, a primeira acepção atribuída ao termo evangélico está relacionada ao
Evangelho, os livros dispostos no Novo Testamento da Bíblia. Em seguida, o significado se
torna mais específico ao contexto brasileiro e se dirige a “certos grupos religiosos não ligados
ao protestantismo histórico”. Aqui, o acréscimo do adjetivo “certos” parece refletir uma
indefinição quanto à natureza de tais grupos religiosos, sentido que se ratifica com a
continuação do texto: “não ligados ao protestantismo histórico”.
Visto que o protestantismo histórico se refere às doutrinas originárias da Europa por
ocasião da Reforma Protestante, o texto do dicionário leva a entender que evangélico se refere
às igrejas protestantes mais recentes, derivadas de desmembramentos posteriores e que, ao
contrário dos protestantes históricos, alcançaram maior popularidade no Brasil.
Mas o que está em questão nessa pesquisa não é o esforço de entender a fundo a
natureza e a constituição de tais comunidades religiosas. Antes, o desafio que se impõe é
observar como o cinema brasileiro – enquanto esse local em que a religiosidade pode ser
representada e reapresentada – constrói personagens religiosas, especialmente nas produções
realizadas no cinema brasileiro a partir dos anos 2000, e como a análise de tais construções
contribuem para o desenvolvimento de um pensamento crítico sobre o próprio cinema
produzido em nosso país.
Integrando o processo de análise das personagens, a proposta da nossa pesquisa é por
em pauta as imagens que permeiam o imaginário coletivo e que foram construídas,
paulatinamente, ao longo da história, através da relação entre cultura e religião, e que
repercutem sobre a produção audiovisual recente.
Para chegar a tal procedimento, partimos do pressuposto de que nos últimos 20 anos, o
Brasil assistiu a mudanças significativas na sua configuração religiosa e, além de estar entre
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os países mais religiosos do hemisfério sul, agora também agrega o maior número de
evangélicos pentecostais1 da América Latina. Simultaneamente a esse processo de mudança, o
cinema brasileiro, desde a década de 1990, começou a apresentar em suas narrativas,
personagens que são referências diretas a esse outro discurso religioso.
Não por acaso, foi nesse mesmo período, que dois fatos importantes marcaram a
visibilidade do segmento evangélico na cultura brasileira. O primeiro se relaciona com a
consolidação da “bancada evangélica” no Senado, durante o processo de transição
democrática brasileira (1989), e o segundo com a concessão da Rede Record para membros da
Igreja Universal do Reino de Deus, denominação evangélica constituída na década de 1970 e
que já mobilizava multidões.
Em meio à diversidade de gêneros cinematográficos e possibilidades de abordar a
experiência do sagrado no cinema, a escolha por um olhar específico e direcionado a
personagens que ocupam um determinado lugar social nasce, em um primeiro momento, do
interesse em realizar uma avaliação crítica de construções identitárias relacionadas ao
pertencimento religioso, sobretudo, em produções ficcionais do cinema.
Por sua natureza simbólica, a presença da religião no âmbito da cultura é um fato e o
seu tratamento como tema não é uma novidade no cinema brasileiro, sendo explorado
principalmente na produção documental, mas também presente na ficção, atravessando
diferentes abordagens e significações.
Ainda nos primórdios da cinematografia brasileira, no início do século XX, a
religiosidade marcou sua influência em diversas produções a partir de filmes inspirados na
biografia de santos católicos como Nossa Senhora e Santo Antônio. Posteriormente, em
meados da década de 1950 e 1960, associado a um projeto político de conscientização das
massas, os filmes passam a apresentar uma abordagem crítica da religião, situando-a como um
elemento prejudicial ao engajamento político do sujeito e o consequente processo de
transformação social. Com o Golpe de 1964 e a frustração acerca do projeto de
conscientização coletiva das massas, os filmes mudam o posicionamento em relação às
religiosidades, tratando-a não mais como fonte de alienação, mas como um fenômeno
1 Embora não faça parte do enfoque desse trabalho compreender o fenômeno de crescimento das igrejas
protestantes em suas especificidades internas, tal denominação (evangélicos pentecostais) é adotada por diversos
institutos de pesquisa (IBGE, 2012; NERI, 2011) para fazer referência a uma modalidade específica no interior
do segmento evangélico. Mesmo que tal detalhe não venha a fazer diferença fora do contexto religioso, torna-se
de uso necessário como forma de ratificar a diversidade no interior desse segmento e, assim, esclarecer possíveis
diferenças entre uma igreja e outra.
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antropológico a ser conhecido e explorado como potencial agente de mobilização
comunitária.
Mesmo em uma perspectiva mais favorável ao conhecimento das religiosidades
brasileiras, de modo geral, a abordagem permaneceu restrita ao enfoque de manifestações
historicamente tradicionais, seja a católica, seja a de matriz africana. Possivelmente pela
aproximação de tais matrizes religiosas com discussões sobre a cultura popular e
nacionalidade. Apenas no final da década de 1980, é que o cinema brasileiro de ficção retorna
a um discurso mais crítico acerca do pertencimento religioso, desta vez, associado às diversas
mudanças correntes na configuração religiosa do país e sua repercussão na cultura, bem como,
na esfera pública.
É justamente nesse período que surge a primeira personagem evangélica. Em uma
sequência do filme Superoutro (1989), do cineasta baiano Edgard Navarro, somos
apresentados a uma mulher de Bíblia em punho, com roupas formais, que se destaca de uma
multidão de anônimos para proferir um discurso em defesa do herói, protagonista da história.
Ao confrontar tal personagem com o momento no qual o filme foi produzido, percebe-se que
a referência religiosa não se trata de uma mera coincidência visto que, no mesmo período, o
Brasil assistia ao crescimento numérico de igrejas evangélicas, entre elas a Igreja Universal
do Reino de Deus, atualmente a maior igreja evangélica neopentecostal2 do país.
A presença dessa personagem também leva a pensar sobre o próprio modo como a
religião se insere na cultura, revestida sob os moldes da tradição. A influência da tradição
religiosa hegemônica, de base católica, de algum modo se faz presente, mesmo na ficção,
quando ao encenar ritos de passagem, como celebrações ao nascimento, uniões conjugais e
funerais, somos apresentados à familiar figura de um padre no papel de regente da cerimônia.
Assim, o que seria a expressão de uma liturgia religiosa, específica a um segmento,
acaba por se tornar, pela via da tradição, o parâmetro convencional para tais momentos, senão
a única. Uma tradição, reforçada mediante uma maioria católica da população brasileira, mas
que, diante da atual diversidade religiosa no Brasil, merece ser pensada.
Antes de se tratar de uma escolha individual, as práticas dos rituais da religião católica,
bem como os valores que as fundamentam, precisam ser vistos à luz do processo histórico de
colonização portuguesa e sua utilização naquele contexto. É em função de tais circunstâncias
2 Apesar de não entrarmos em detalhes sobre as denominações evangélicas existentes no Brasil como parte do
conteúdo desta pesquisa, consideramos importante sinalizar a denominação atribuída a essa instituição como
forma de demonstrar a diversidade no interior desse segmento religioso.
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– anteriores à produção cinematográfica brasileira – que o registro de um ritual referente à
outra religião minoritária no cinema esteve situado em uma zona de risco: a apresentação da
diferença em disposições estereotipadas sob o signo da peculiaridade ou do exotismo.
Sob esse aspecto, observa-se que a religião católica é uma expressão hegemônica no
campo religioso brasileiro, não só em nível estatístico, mas qualitativo, visto que atravessa
nossos costumes e, por consequência, estrutura nosso ponto de vista a partir de um
determinado repertório de valores. É, pois, a partir dessa observação inicial, da condição
minoritária das Igrejas Evangélicas em relação à Igreja Católica, que a nossa investigação
apresenta o personagem evangélico como esse outro que já emerge no cinema brasileiro em
processo de invenção, construído como efeito do discurso da religião imperial na formação de
uma matriz da cultura brasileira.
Mediante a pluralidade3 de manifestações religiosas no Brasil, esse trabalho se dedica
especialmente à observação da chamada Igreja Evangélica, a princípio, por duas razões: por
ser uma matriz religiosa moderna – no sentido de mais recente – em relação ao catolicismo,
cuja força se constitui por ser um acontecimento resultante de uma releitura do discurso
religioso dormente e pela diferença em relação às religiões de matriz africana, se
apresentando como um elemento de alteridade4 na configuração religiosa brasileira, e pelo
impacto das suas práticas sobre a organização das relações sociais e sobre a produção cultural
do país, considerada aqui na perspectiva da produção cinematográfica.
Apesar da imprecisão do termo, o uso da palavra evangélico será empregado ao longo
do trabalho para identificar as personagens, articuladas ao pertencimento de uma comunidade
religiosa que, agora, é repetida e inventada no cinema. Por essa repetição entende-se a
desterritorialização desses lugares de fala engendrados nas comunidades, que antecedem as
3 Não há consenso quanto a essa pluralidade, visto que a religião católica abrange cerca de 64,6% da população
brasileira, não haveria campo para o exercício de uma pluralidade. Mas o termo aqui, se refere à diversidade de
manifestações religiosas no Brasil que, mesmo quando invisibilizadas, encontram adeptos para a sua realização.
Disponível em: <http://saladeimprensa.ibge.gov.br/noticias?view=noticia&id=1&busca=1&idnoticia=2170>.
Acesso em 30 de abr. de 2013. 4 Essa relação de alteridade se refere mais uma relação temporal do que doutrinária ou ideológica, pois ainda que
as igrejas evangélicas no Brasil sejam modernas e de matriz protestante, logo, de uma linha diferente da igreja
católica, ela advém de uma matriz comum à Igreja Católica que é a cultura cristã ocidental. Essa relação, entre
semelhanças e diferenças, permite que a igreja evangélica efetue articulações em favor do seu discurso, ora se
aproximando dos valores da Igreja Católica – que pela tradição já é predominante na cultura brasileira – ora se
afastando no sentido de se auto-legitimar pela diferença.
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diversas tramas dos filmes, que ao ser acompanhado de um processo simultâneo de
reterritorialização5 ressignifica esse pertencimento através da construção audiovisual.
Partindo dessas definições e sistemas de fronteiras entre as diversidades das religiões na
contemporaneidade, especialmente da evangélica em relação à católica, o trabalho pretende
abordar a religião no Brasil de forma associada ao conceito de comunidade6 religiosa e como
essa comunidade se estrutura antes de ser apropriada pelo cinema.
O nosso interesse não está em avaliar a verossimilhança das personagens, mas pensar
nas condições que tornaram possíveis a sua aparição no cinema brasileiro contemporâneo e
atentar para as leituras que sua construção ficcional nos oferece. Trata-se de olhar que vagueia
por entre as personagens procurando observar não necessariamente as marcas que aproximam
sua constituição de forma associada a um estereótipo religioso, mas por meio das
características apresentadas, flagrar as condições sociais de seu surgimento.
Partindo da perspectiva de que a personagem evangélica no cinema brasileiro dialoga
com a possibilidade da religião enquanto um eixo identitário, o nosso trabalho de análise vai
se debruçar sobre a construção de personagens presentes em filmes recentes do cinema
brasileiro produzido a partir dos anos 2000, por se referirem ao período histórico de expansão
das igrejas evangélicas no Brasil, desencadeada, sobretudo, pelo aumento de sua visibilidade
nos meios de comunicação.
Entre as diversos personagens apresentadas pelo cinema, cujo perfil remete a adeptos de
religiões cristãs protestantes, para efeitos de análise será dado destaque a apenas duas:
Teodoro, do filme Contra Todos (Roberto Moreira, 2004) e Dinho, de Linha de Passe (Walter
Salles e Daniela Thomas, 2008).
A escolha de tais personagens se deve tanto pelo destaque de suas construções na
narrativa quanto pela possibilidade, de adotando um olhar crítico de caráter comparatista,
articular semelhanças e diferenças, bem como mapear o conjunto de relações, e como esse
conjunto – sempre aberto – que compõe o personagem religioso no cinema envolve um
processo mais amplo de investigação relacionado à construção de subjetividade na
contemporaneidade sobre a própria invenção do povo no cinema brasileiro.
5 Os termos desterritorialização e reterritorialização se referem a conceitos apresentados por Gilles Deleuze e
Félix Guatarri (HASBAERT, 2014) e que serão explicitados ao longo do trabalho. 6 Comunidade aqui é entendida na acepção que lhe dá Marilena Chauí ao apresentar os fatores que
desencadearam o desenvolvimento da sociedade moderna. Assim, nos termos da filósofa, comunidade é “(...)
uma realidade orgânica, divinizada, naturalizada e praticamente imóvel ou imutável, dirigida por forças que lhe
são transcendentes” (CHAUÍ, 2006, p.89).
18
Em função desse conjunto aberto de relações que, por sua vez, se modificam ao longo
das narrativas pesquisadas, a análise dessas duas personagens será precedida por uma
observação de personagens evangélicas provenientes de outras produções, mas que ao serem
constituídas por uma rede de relações diversificada – construída na interação com outras
personagens presentes na trama – e contribui para a interpretação do corpus de pesquisa.
Por outro lado, essa rede de relações que cerca e constitui a personagem, ao ser
identificada e discutida, não tem a pretensão de encerrar um sentido único, antes a sua
identificação visa compreender as possibilidades de movimento da personagem, a sua abertura
para o devir7.
Partindo desse pressuposto, o pertencimento religioso nestas personagens não está
restrito à concepção de representação – como uma imagem que pretende ser aproximar da
realidade – nem de identidade, como a busca de uma unidade ou modelo totalizador a ser
seguido pelo sujeito, antes está relacionado à ideia de singularidades, formas de produção de
subjetividade que, ao recusar modos de codificação pré-estabelecidos, surge como potência
para compreender sujeitos fragmentados, constituídos por múltiplos pertencimentos e cuja
existência vai além de construções identitárias.
Pelo caráter do corpus selecionado para essa pesquisa, o procedimento metodológico
para observar tais personagens, ao invés de uma análise imanente ou reduzida ao texto
fílmico, se caracteriza mais como um exercício de crítica que, tomando por base as discussões
sobre os processos de construções da subjetividade, elege o cinema como lugar de observação
privilegiado, ou como campo de trabalho, a partir do qual se pretende visualizar o conjunto de
relações que constituem as personagens no filme e como esse processo se configura enquanto
uma repetição, em outras bases, do conjunto das relações possíveis no registro comunitário
extrafílmico.
Por outro lado, a proposta de análise deu preferência a personagens da produção do
cinema ficcional – ao invés de documentário – por se observar, na trajetória do cinema
brasileiro contemporâneo, criações que se aproximam de discussões sociais e pela liberdade
que esse tipo de produção dispõe para apresentar as mais diversas formas de interpretar e
atribuir significados aos fenômenos culturais.
7 Conceito tributário do filósofo Heráclito apresentada na obra do escritor Félix Guatarri (GUATTARI &
ROLNIK, 1996) e que também serve como alternativa teórica para pensar as minorias sociais na
contemporaneidade.
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Assim, embora exista uma tendência no corpo da análise em se enfatizar elementos
externos ao filme, concernentes ao contexto que contornam a sua produção, o caráter
inventivo das personagens ficcionais demanda uma investigação que também considere a
forma como o discurso cinematográfico se organiza e como a articulação dos elementos que o
constituem contribui para o processo de construção das personagens.
Em busca de um equilíbrio entre a análise do texto fílmico e seu contexto, parte da
análise fílmica estará baseada na metodologia proposta por Francis Vanoye e Anne Goliot-
Lété (2012) em que são considerados dois contextos: o contexto sócio-histórico-cultural, que
busca avaliar a emergência da personagem evangélica no cinema a partir de informações do
momento em que o filme foi produzido, e o contexto fílmico entendido aqui como a
construção narrativa se aproxima de determinadas tradições ou formas fílmicas.
A investigação a partir desses dois contextos não pretende definir um conceito acerca do
objeto – personagem evangélico – mas se apresenta como forma de mapear as relações que
tais personagens estabelecem ao longo da narrativa e, assim, operar um exercício de
interpretação sobre elas, tanto em relação à trama dos acontecimentos inseridos nas narrativas
de ficção, quanto a partir de um confronto com os valores predominantes na cultura e na
sociedade em que ele emerge.
Pela necessidade de confronto com esses valores é que também consideramos
importante compreender o contexto sócio-histórico, não somente pelos fatos associados ao
crescimento do número de igrejas evangélicas no Brasil, mas a partir dos valores que
permeiam esse processo. Assim, na medida em que a pesquisa busca refletir sobre a forma
como a religião interfere na conformação de novos pertencimentos e esses contribuem para
compreender representações religiosas no cinema brasileiro, ela se aproxima de uma crítica
cinematográfica dentro da perspectiva dos chamados Estudos Culturais que, diferente de uma
análise semiótica, concentrada nos códigos cinematográficos, se preocupa mais em situar o
cinema como meio inserido em um determinado contexto histórico e cultural, marcado por
conflitos e negociações provenientes de formações sociais dominadas pelo poder, e no qual a
subjetividade também é construída (STAM, 2013).
Visto que a personagem evangélica, foco desta pesquisa, é identificada a partir da
religião como um eixo constituinte de subjetividades – o pertencimento religioso –,
compreender sua construção no cinema também requer uma investigação mínima acerca dos
sentidos atribuídos à denominação evangélico. Pois assim como através da linguagem é
20
possível designar algo, também por meio dela se constroem interpretações de grupos sociais
específicos, neste caso, religiosos. Compreender o uso da denominação evangélico também é
uma forma de se ter acesso às significações que recaem sobre a personagem apresentada por
esse termo, ou assim reconhecida por outras personagens, e verificar, ainda que parcialmente
e sem possibilidade de totalização, as concepções circulantes no imaginário coletivo.
Ao se tratar da construção de sujeitos religiosos, é preciso pensar que o discurso que
constitui a identidade desse sujeito, assim como a própria cultura, é algo que precede o
indivíduo. Trata-se de um discurso engendrado no interior da comunidade religiosa, as igrejas,
e que nos leva a apresentar, ainda que de forma breve, as principais características associadas
à Igreja Evangélica no Brasil.
Considerando a visibilidade alcançada pelos evangélicos no Brasil, sobretudo nos meios
de comunicação, nossa pesquisa, inicialmente, faz uma breve revisão teórica acerca das
relações entre religião e cultura visando contemplar duas frentes de pensamento: entender
como a noção de comunidade religiosa estabelece os vínculos necessários ao estabelecimento
de identidade do sujeito, enquanto alguém que participa de forma compartilhada de uma
determinada visão de mundo, e como o cinema brasileiro torna possível a repetição (como
diferença) de tal modelo de sociabilidade, posto em movimento pelo personagem evangélico
no conjunto das narrativas escolhidas para compor o corpus dessa investigação.
Compondo esse percurso, as personagens não serão mera ilustração desse fenômeno
social, antes, a sua construção mesma é um registro das negociações simbólicas operadas no
contexto de produção. Por esse motivo, a primeira seção intitulada Religiosidade no cinema
brasileiro será voltada para dissertar sobre as primeiras produções audiovisuais que trouxeram
a religiosidade popular como tema no cinema brasileiro, traçando um breve panorama da
questão no cinema, de modo a apurar as significações presentes em diferentes períodos, a
exemplo das décadas de 1960 e 1970, quando a temática ganhou destaque, e fazer um paralelo
com as significações mais recentes.
Na seção seguinte, Evangélicos no cinema: repetição como diferença?, o objetivo é
levar tais discussões para o cinema brasileiro contemporâneo, com apresentação das primeiras
personagens evangélicas, que surgem ainda no período da retomada, com destaque para as
produções realizadas nos anos 2000. Aqui, busca-se compreender a construção de tais
personagens, primeiramente a partir de uma argumentação sobre o papel da personagem na
narrativa cinematográfica, seguido de uma descrição das principais personagens evangélicas
21
apresentadas no cinema brasileiro de ficção em suas diferentes estruturas, desde o modelo
caricatural às formas mais inventivas.
A pergunta que se anuncia na chamada desse capítulo se refere a duas formas de
repetição que podem se apresentar como diferença. A primeira delas implica observar até que
ponto as personagens evangélicas – entendidas, a partir do panorama construído no cinema
brasileiro, como estruturas pré-consolidadas e fruto de uma desterritorialização do
pertencimento religioso forjado nas comunidades reais – configuram uma repetição no
sentido de re-territorializar esse pertencimento religioso a partir de suas falas e performances.
A outra forma de repetição diz respeito à possibilidade das personagens evangélicas
ecoarem, ou refletirem, na contemporaneidade, vestígios de um tratamento dado à
religiosidade em outros períodos do cinema brasileiro. São essas personagens que compõem a
primeira parte desse mapeamento e que deflagram o início de uma estereotipização da
personagem no cinema.
Por se tratar de um trabalho pioneiro no que se refere à análise de personagens
evangélicas no cinema brasileiro, a terceira parte desta seção é dedicada a um breve
levantamento das personagens apresentadas em filmes brasileiros, desde o seu primeiro
registro, em 1989, até as produções mais recentes, datadas da primeira década dos anos 2000.
Até o momento de conclusão desta pesquisa foi registrado um total de 24 filmes com tais
personagens, algumas delas são comentadas no corpo do trabalho e 20 notificadas no
Apêndice B.
Diante do volume de personagens e da diversidade entre as construções, o levantamento
se divide em duas partes: a primeira voltada para as personagens mais pontuais e que se
aproximam de representações do que seria o evangélico na sociedade brasileira (Desenhando
estereótipos, encenando o mesmo) e a segunda (Desenhando rasuras, encenando conflitos)
amplia a reflexão para as personagens que, ao serem constituídas por novas redes de relação e
conflitos de pertencimento, acabam por configurar construções mais complexas, das quais não
é possível se ter uma afirmação precisa acerca de sua identidade religiosa. São por essas redes
que se delineiam variações dentro desse mesmo tipo de personagem e que proporcionam uma
abertura para o seu processo de invenção no cinema.
Dessas variações, duas personagens emergem para constituir o corpus da pesquisa:
Teodoro, do filme Contra Todos (Roberto Moreira, 2004) e Dinho, de Linha de Passe (Walter
Salles e Daniela Thomas, 2008), cujos conflitos se aproximam mais do processo de
22
singularização (GUATARRI & ROLNIK, 1996). A partir da análise dessas personagens é
que se constitui a quarta e última seção do trabalho intitulada Evangélicos em invenção com
uma discussão voltada para os significados postos em movimento nas relações que constituem
as personagens.
Personagens, cuja constituição multifacetada expressa singularidades no cinema
brasileiro e que ao se constituírem no interior das relações, oferecem uma compreensão mais
alargada das personagens evangélicas. Não necessariamente como a representação ou
imitação de uma referência social ou midiática, mas como alegorias que o cinema brasileiro
dispõe para pensar diversas questões, entre elas, a influência que os discursos hegemônicos
exercem sobre a produção cultural, especialmente o cinema, e as complexidades que
contornam a discussão sobre a constituição de subjetividades no mundo contemporâneo.
23
2 RELIGIOSIDADE NO CINEMA BRASILEIRO
[...] a crítica da religião é o pressuposto de toda crítica.
(MARX, 2010, p. 145)
São diversas as possibilidades de se interpretar a interface cinema-religião, como já teria
dito o crítico de cinema Jean-Claude Bernadet em palestra sobre o tema (XAVIER, 1996). A
questão da personagem evangélica desponta apenas como uma, entre as mais recentes
criações relacionadas a interpretações da religiosidade, mas que exige uma retrospectiva sobre
as formas como o próprio cinema brasileiro realizou conexões com essa temática.
Em se tratando da religião como tema no cinema, são necessários alguns
esclarecimentos quanto às abordagens apresentadas desde então. Uma primeira distinção a
fazer é separar filmes religiosos, de filmes sobre religião, ou que tratam da religião
relacionada com outros temas. Na primeira modalidade – filmes religiosos – a abordagem do
tema religião versa em torno de motivações específicas, regidas em conformidade com um
determinado sistema simbólico religioso. Já a segunda modalidade de filmes, se caracteriza
por apresentar a religião como parte de um contexto mais amplo, relacionado à expressão de
um determinado grupo social ou à composição de um período histórico.
Consideramos relevante trazer essa distinção, não só com o fim de observar as
diferenças de abordagem do tema, mas por perceber que em vários momentos da
cinematografia brasileira essas modalidades aparecem de forma indistinta, sobretudo, ao
levar-se em consideração a forte influência da religiosidade na cultura brasileira e, por
consequência, na formação dos próprios realizadores dos filmes.
Por outro lado, além da interpretação particular que cada um dos realizadores conferiu
ao tema, o cinema também submeteu a religião a diferentes significações em conformidade
com o período de realização dos filmes, em fina sintonia com o contexto sociopolítico. Por
essa razão, é possível perceber ao longo da história uma oscilação na abordagem do tema: ora
com um discurso favorável, e até religioso, ora sob a influência de um olhar sócio-
antropológico sobre os ritos religiosos e, não raro, preconceituoso em suas interpretações.
Uma interpretação em que os realizadores mais pareciam reproduzir a subserviência a uma
tradição religiosa hegemônica – da qual se fizeram herdeiros tendo em vista a formação
24
colonial do país – do que uma disposição em dar visibilidade às diferentes expressões
religiosas.
Atualmente o tema religião se encontra disperso. Outras religiosidades ganharam
visibilidade no Brasil, indo além dos referenciais simbólicos, até então, oferecidos pelas
religiões tradicionais (católica e de matriz africana). Os ideais políticos, que impulsionaram
no cinema um discurso crítico sobre a religião, bem como, a qualquer outra fonte de
alienação, também se dissolveram. Já não era possível ter certezas sobre as formas como as
camadas populares se apropriavam e se articulavam com a religião.
Com tais mudanças, a religiosidade nas narrativas cinematográficas deixou de estar
necessariamente relacionada à identidade de um grupo subalternizado para se misturar a uma
abordagem mais particular e subjetiva, articulada à trajetória não de um grupo, mas de um
sujeito, uma personagem. Um processo de afunilamento do discurso religioso, cuja
performance, na medida em que é reduzida à história de um sujeito, inversamente, se amplia
em complexidade, visto que exposta e confrontada com outras variáveis que constituem o
sujeito. Sujeito cada vez mais múltiplo e fragmentado e que encontra na personagem
cinematográfica suas formas de invenção.
Entre a devoção e a crítica, da identificação de um grupo ao percurso de um sujeito, o
tratamento do tema religião no cinema está sujeito às mais diferentes abordagens conforme as
possibilidades, aqui, rapidamente apresentadas. É a partir da ênfase a algumas dessas
possibilidades que pretendemos compor um breve panorama das imagens e discursos que
construíram o pertencimento religioso na produção audiovisual brasileira e, assim,
compreender as condições que permitiram no cinema contemporâneo a retomada da questão
religiosa a partir das personagens evangélicas.
2.1 DA RELIGIOSIDADE COMO TEMA
O pertencimento religioso no Brasil, em sua manifestação plural e composta por
sincretismos, já foi abordada de diferentes maneiras por cineastas brasileiros, sobretudo,
quanto à influência dos mitos religiosos na dinâmica social, na conduta dos sujeitos
encenados pelas personagens e as implicações da devoção religiosa nos processos de
engajamento político.
Das várias matrizes religiosas já representadas no universo da ficção cinematográfica
brasileira, as que chamam mais a atenção, entre as produções contemporâneas, são as alusivas
25
às religiões de matriz cristã protestante, popularmente conhecida como evangélica, e que se
tornam evidentes, sobretudo, a partir dos anos 2000 com o lançamento de filmes como Ó pai
ó (Monique Gardenberg, 2007) e a aparição de personagens como Dona Joana, a evangélica.
A personagem, interpretada pela atriz Luciana Souza, é síndica em um cortiço no
Pelourinho, em Salvador, e não é muito bem vista pelos demais moradores do prédio por ter
atitudes consideradas autoritárias e inconvenientes como suspender a distribuição de água
para os inquilinos inadimplentes e bisbilhotar a vida alheia pelas frestas de sua casa. O tom de
comédia do filme acaba por dar estaque à personagem que, mesmo não sendo a primeira a
fazer referência aos evangélicos no cinema, acaba se tornando um parâmetro para a
construção das personagens posteriores. Antes, porém vejamos os antecedentes desse tipo de
personagem.
O surgimento de personagens caracterizados como evangélicos no cinema brasileiro, em
um primeiro momento, está fortemente associada a um fato social: o crescimento percentual
do número de pessoas adeptas a igrejas cristãs protestantes na configuração religiosa do país.
De acordo com o Censo IBGE de 2010, o número de pessoas que se declaram como
evangélicas, no Brasil, já chega ao índice de 22,2%, dos quais 60% correspondem ao
segmento denominado pentecostal cuja maior instituição representante é a Igreja Assembleia
de Deus.
Entretanto, antes de ser uma repercussão desse fato, a emergência dessa personagem
merece atenção sob dois aspectos: pelas significações da religiosidade no histórico de
produções do cinema feito no Brasil e pela possibilidade de observar o pertencimento
religioso enquanto recorte identitário na construção de personagens da ficção.
Nas primeiras produções audiovisuais brasileiras, a relação com o tema religiosidade foi
marcado pela presença de filmes religiosos, em sua maioria, pautados em narrativas
biográficas de divindades católicas. Já em um momento posterior, as expressões religiosas se
desvincularam de discursos institucionalizados e apareceram como parte do universo mais
amplo da cultura popular – principalmente em documentários – e consideradas dignas de uma
investigação mais acurada na medida em que possibilitavam a descoberta da própria cultura
brasileira. Vejamos as principais diferenças entre esses dois perfis de produção.
Nos filmes religiosos há uma apropriação dos valores simbólicos de um determinado
sistema religioso regendo todo o processo de produção fílmica. Desde a escolha da história,
voltada para a apresentação de algum relato sobrenatural ou apresentação da trajetória
26
biográfica de mitos religiosos; a organização da narrativa, uma forma de contar a história em
que ao final fique subentendida a afirmação de um valor moral ou a norma a ser seguida; a
utilização de recursos da linguagem cinematográfica com vistas a dar concretude ou
materialidade àquilo que somente pela crença seria possível imaginar.
De acordo com Luiz Vadico (2009), pesquisador brasileiro empenhado na organização
de uma metodologia de análise de filmes religiosos, embora tais produções disponham de
características específicas, em conjunto, elas constituem um espectro variado e subdividido
em diferentes sub-gêneros como os Épicos Bíblicos Hollywoodianos – a exemplo do clássico
Os Dez Mandamentos (Cecil B. DeMille, 1956) – melodramas produzidos para a TV, entre
outros formatos que não permitem afirmar a existência de uma categoria única, de estética e
narratividade para tais filmes.
A principal definição para filmes religiosos advém de Melanie J. Wright, escritora do
livro Religion and Film. An Introduction (WRIGHT 2007 apud VADICO, 2009), que resume
a caracterização desses filmes por aspectos como: uso de temas ou narrativas religiosas,
inserção no contexto das comunidades religiosas e relação com personagens religiosos.
Aspectos que servem como parâmetro, mas logo demonstram suas limitações por enfatizar
apenas o caráter narrativo das produções, não explorando o elemento estético, também
fundamental para o empreendimento analítico.
Como alternativa para a resolução desse impasse, Vadico (VADICO, 2009), inspirado
no conceito de campo em Pierre Bourdieu, propõe o estudo de tais filmes a partir da hipótese
da existência de um Campo do Filme Religioso, uma proposta analítica mais abrangente e que
considera relevante para o estudo de filmes religiosos aspectos como: o reconhecimento
prévio, por parte da sociedade, do filme como religioso; a busca desses filmes em despertar
emoções ligadas ao mundo religioso (compaixão, arrependimento, etc); vinculação com
pressupostos teológicos, seja através de consultores, seja por meio de instituições religiosas e
o caráter militante de tais produções.
Sobre o primeiro aspecto, percebe-se o quanto os filmes religiosos dependem de uma
atuação das instituições religiosas na sociedade com o fim de serem reconhecidos como tais.
De modo que um filme sobre Budha, por exemplo, de acordo com o contexto cultural de sua
recepção, pode muito bem ser considerado apenas um filme biográfico, ao invés de
hagiográfico – relato referente uma figura sagrada.
27
Em caso de religiões minoritárias, a falta de reconhecimento social, na condição de
filme religioso, tende a ser mais comum e até favorável à difusão do filme, na medida em que
amplia a sua margem de exibição para diferentes públicos, não necessariamente vinculados ao
nicho específico do qual se originou.
A questão, porém, é que, apesar dessa abertura a diversas possibilidades de
interpretação conforme o contexto há uma característica predominante nos filmes religiosos:
“São objetos midiáticos feitos com uma finalidade religiosa, e também através de uma
mentalidade e comportamentos religiosos, sejam estes assumidos ou, até mesmo,
fragmentários, remanescentes de uma cultura de outrora” (VADICO, 2009, p. 5, grifo nosso).
Nesse sentido, um exemplo emblemático de filme religioso no cinema mundial é a
existência de várias versões para dar vida à história de Jesus Cristo. O jornalista Laércio
Torres de Góes apresenta uma boa parte delas no seu livro O mito cristão no cinema: o verbo
se fez luz e se projetou entre nós (Edufba, 2010) e conclui que:
[O cinema] Ao retratá-lo de diferentes modos, ao invés de desmitifica-lo, mitifica-o
ainda mais. [...] Em todos os filmes analisados, mesmo aqueles que tentaram fugir da
visão tradicional de Cristo, de certa forma a sua essência religiosa permanece. [...] Os
homens da sociedade ocidental não conseguem se desvencilhar dos séculos de cultura
judaico-cristã, da sua moral, de seus ideais. (GÓES, 2010, p. 151)
Se considerarmos a influência religiosa sobre a própria formação do pensamento
ocidental, certamente as interfaces entre cinema e religião vão além da mera referência a
símbolos e ritos institucionalizados, mas estão diluídos na moral, nos ideais, como o autor
pontua. Uma discussão que certamente exige uma investigação mais ampla. Por ora, o que nos
interessa é observar como a produção audiovisual brasileira se articula com essa temática.
No que se refere a filmes religiosos, recentemente o Brasil tem apresentado um grande
número de produções com esse perfil, em sua maioria, relacionadas à religião católica –
representando assim a maior parte da população brasileira – e de temática espírita ou
espiritualista que, embora não seja majoritária nas estatísticas de religião – apenas 2% da
população (IBGE, 2010) –, possui um conjunto de fatores que pode favorecer a sua inserção e
influência nos meios de produção cultural do país.
De acordo com o Censo do IBGE (2010), os espíritas apresentam os mais elevados
indicadores de educação e de rendimentos, e entre seus adeptos, 31,5% de pessoas possuem
nível superior, 19,7% tem renda superior a cinco salários mínimos e 68,7% são brancos –
percentual que, inclusive, supera a participação deste grupo de cor no total da população
(47,5%).
28
Além desses dados, que podem dar indicativos da inserção de filmes espíritas na recente
produção cinematográfica brasileira, muitas dessas produções contam com a co-produção e a
logística da Globo Filmes1, contribuindo para sua distribuição em salas de cinema de todo o
país e para uma falsa impressão de majoritariedade no que se refere à religião espírita.
Entre os filmes de procedência católica, mais recentes, produzidos após os anos 2000,
pode-se citar Maria, mãe do filho de Deus (2003) e Irmãos de fé (2004). Ambos são do
diretor de cinema e de teatro Moacyr Góes e se aproximam por relatar acontecimentos
extraídos das narrativas bíblicas, porém, mediados pelo Padre Marcelo Rossi, autoridade
religiosa de reconhecida popularidade midiática no Brasil e que apresenta uma versão da
história em conformidade com os parâmetros de leitura da Igreja Católica.
Já na vertente espírita, pode-se mencionar os filmes inspirados em obras publicadas
como Nosso Lar (Wagner de Assis, 2010) e produções baseadas em relatos biográficos de
ícones como Bezerra de Menezes – diário de um espírito (Glauber Filho, 2008), Chico Xavier
– o filme (Daniel Filho, 2010) e As mães de Chico Xavier (Glauber Filho e Holder Gomes,
2011)2.
A presença de personagens religiosos nestes filmes está implicada tanto no seu processo
de produção quanto no tecido narrativo e sua construção é direcionada a um público mais
específico, situado entre adeptos e simpatizantes da doutrina ou filosofia em questão.
Obviamente, a exibição de tais produções não está vedada à apreciação de um espectador
alheio à religião abordada, entretanto, pelo fato de sua construção estar respaldada em
discursos religiosos instituídos, a compreensão de seus valores pressupõe um engajamento e
afinidade do espectador com tais narrativas.
Em suma, os filmes religiosos se caracterizam mais por uma ilustração de temas e
acontecimentos pertinentes a um determinado repertório simbólico, do que uma leitura crítica
sobre a influência da devoção religiosa na vida em sociedade. Amparados pelo universo
ficcional que o cinema enquanto linguagem permite construir, esses filmes tratam de fé,
apoiados, sobretudo, na inteligibilidade que o discurso religioso confere aos acontecimentos
encenados na tela.
Nesse sentido, pode-se considerar que através desses filmes há uma repetição, nas
mesmas bases, de um discurso religioso pré-existente. Além da representação de histórias,
1 É possível fazer consulta aos filmes apoiados pela Globo Filmes no site: http://globofilmes.globo.com/.
2 Para mais informações sobre a produção brasileira de filmes sobre essa temática ver artigo “Notas para pensar a
onda dos filmes espíritas no Brasil” (CÀNEPA, 2013).
29
procura-se ter através desses filmes uma experiência que, reafirmando a existência dos mitos,
proporcione uma aproximação e o fortalecimento do discurso religioso.
De acordo com a antropóloga Patrícia Monte-Mor (2005), a temática religiosa está
presente no cinema brasileiro desde seus primórdios, quando os irmãos italianos Paschoal e
Afonso Segretto, ainda no século XIX, fizeram registros da “[...] construção de templos,
rituais funerários e festas religiosas populares do Rio de Janeiro” (MONTE-MOR, 2005, p.
136). Entre os primeiros filmes de longa-metragem religiosos, estão, por exemplo, Procissão
de Nossa Senhora dos Navegantes (Diomedes Gramacho, 1912), feito na cidade de Salvador
(BA) e Milagres de Santo Antônio (Antônio Serra, 1912) filmado no Rio de Janeiro, ambos
relacionados a divindades do catolicismo. Ainda uma década depois, tiveram destaque os
filmes religiosos Os milagres de Nossa Senhora da Penha (1923) e Anchieta entre o amor e a
religião (1931), dirigidos por Arturo Carrari, primeiro paulista a ter carreira de diretor no
Brasil.
Por outro lado, a influência católica dos primeiros anos não esteve apenas em filmes
explicitamente religiosos, mas também nos chamados filmes masculinos ou pornográficos,
cuja caracterização embora divergente de uma construção religiosa, é tributária de uma
formação religiosa colonial e, juntamente com os filmes religiosos, assegurava a permanência
dos valores implantados: seja pela valorização de uma moral católica através da narrativa de
seus santos, seja pelo reforço e difusão dos costumes patriarcais com a produção de filmes
para adultos. Tanto os filmes religiosos, quanto os filmes masculinos o quanto a formação
cultural-religiosa herdada pelo colonialismo afetou – e afeta – as percepções e a produção
ficcional no cinema brasileiro.
Anos mais tarde, com a industrialização do cinema, na década de 1930, seguida de sua
institucionalização em meados da década de 1950, a temática religiosa foi revestida de uma
nova perspectiva, não mais restrita a filmes religiosos, mas retomada e inserida como um
elemento presente na cultura popular brasileira e que merecia uma abordagem crítica
enquanto fenômeno do social.
Essa mudança de tratamento temático da religião também se vincula com as primeiras
produções do cinema moderno brasileiro que, de acordo com Ismail Xavier (2001), teve seu
início com as produções de Nelson Pereira dos Santos e uma aproximação com a literatura,
tanto pelo trabalho de adaptações de obras para o cinema, quanto por uma preocupação com
30
“[...] certos temas da ciência social brasileira, ligados à questão da identidade e às
interpretações conflitantes do Brasil como formação social” (XAVIER, 2001, p. 19).
O mergulho sobre a cultura popular também permitiu perceber a influência do
pertencimento religioso sobre costumes e comportamentos das pessoas, e com isso, um
tratamento mais crítico sobre a crença religiosa, principalmente a crença tradicionais no Brasil
como o catolicismo e as religiões de matriz africana.
Se nas produções de outrora a religião se apresentava por meio de narrativas biográficas
de santos católicos, servindo até como reforço para o sistema simbólico difundido pela matriz
católica, em filmes produzidos a partir dos anos 1960, o pertencimento religioso é exposto ao
debate e seus efeitos sobre o comportamento são apontados como um dos principais fatores
para a alienação de grupos provenientes das camadas populares e sua falta de engajamento
nos processos de decisão política. A considerar esse contexto, a religiosidade ao tempo em
que mostrava uma faceta das tradições populares, também servia como argumento para
justificar a permissividade do povo diante da exploração.
Na produção ficcional, um dos filmes produzidos nesse período em que a referência
religiosa ganhou destaque pelos contornos críticos foi em Barravento (Glauber Rocha3, 1961).
A religiosidade, além de ser apresentada como um elemento peculiar aos costumes da
comunidade, também surge como um escape, um socorro em meio à adversidade, capaz de
mudar o rumo de uma comunidade de pescadores oprimida e explorada. Eis a história
necessária para fazer emergir na narrativa fílmica o argumento em torno da alienação, em que
os pescadores aparecem submetidos à exploração pela sua suposta incapacidade de refletir
sobre a sua própria condição social.
Considerando apenas o nicho de filmes que trazem a religiosidade como um tema, esta
parte da pesquisa se dedica em relacionar as produções audiovisuais que problematizaram o
pertencimento religioso em suas narrativas, começando pelas produções das décadas de 1960-
70, chegando às mais contemporâneas, atentando para as diferentes circunstâncias históricas
nas quais foram realizadas com o fim de compreender as significações atribuídas ao tema e
seus possíveis impactos nas produções mais recentes.
3 A questão religiosa será tema recorrente em diversas produções do cineasta, fato que pode ser aludido à sua
formação religiosa no protestantismo associada a uma militância política. A considerar essa característica, as
obras mencionadas nesta pesquisa não esgotam a abordagem do tema na trajetória do cineasta, mas serão
mencionadas na medida em que fornecerem subsídios para a compreensão do panorama que aqui se desenvolve.
31
2.2 SIGNIFICAÇÕES DA RELIGIÃO NO CINEMA BRASILEIRO
Como se pôde observar em alguns filmes citados, o tema religião não é recente no
cinema brasileiro e já foi abordado de diferentes maneiras. Ao lançar o olhar para filmes
produzidos na década de 1960, percebe-se que esse tema esteve presente, em um primeiro
momento, relacionado ao conceito de alienação do povo4, para, posteriormente, em meados da
década de 1970, se revestir de um valor quase oposto. Um momento em que a religiosidade ao
invés de ser considerada como um fator que condiciona mentes e oblitera o desenvolvimento,
ressurge nas novas produções cinematográficas através de uma abordagem mais favorável em
que o pertencimento religioso passa a ser visto como possível agente de mobilização e
resistência popular.
Percebe-se assim, que a apresentação da religiosidade no cinema brasileiro, estava em
sintonia com os diferentes modos de leitura que os realizadores conferiam ao tema,
acompanhada de sua inevitável associação com as classes populares. Ao tempo em que
associar o pertencimento religioso com a alienação das classes populares ressoa como uma
possível influência do pensamento marxista, a leitura da religião no cinema sob uma
perspectiva mais revolucionária e como gancho para a mobilização popular, aparece como
uma possível influência da “teologia da libertação”5, movimento que eclodiu no interior da
Igreja Católica, em meados da década de 1970/80, especialmente em alguns países da
América Latina sob regimes políticos autoritários.
Em artigo sobre religiosidade e messianismo no cinema brasileiro, o historiador Wolney
Malafaia (1999) afirma que no Cinema Novo a religiosidade popular estava relacionada às
concepções de nacional e popular e uma busca em representar uma suposta identidade
nacional. Para Jean-Claude Bernadet (1996), o tema teria ganhado relevância em algumas
produções dos anos 1960 devido à importância do conceito de alienação para o movimento
político da época.
Sobre o conceito de alienação associado à religiosidade, um filme que ganhou destaque
foi Barravento (Glauber Rocha, 1961). Na narrativa, uma comunidade de pescadores busca
superar as dificuldades através de ritos religiosos, e o letreiro da cartela de apresentação do
4 A ideia de alienação mais difundida, especialmente nesse período, advém da noção de ideologia do Marxismo e
sua compreensão como um “[...] fenômeno pelo qual as ideias e representações que os homens elaboram a
respeito de suas realidades são tomadas como sendo o próprio real” (ALVES, 1999). É nesse contexto de
pensamento que a religião é considerada como o “ópio do povo”, algo que lhe impede de ter uma consciência
crítica sobre sua própria condição social. 5 De acordo com Patrícia Montes (2000, p. 329) essa Teologia estava baseada na ideia de que era preciso
conscientizar politicamente as camadas populares para operar uma transformação social da realidade.
32
filme, antecipa uma interpretação sobre o elemento religioso, conforme trecho transcrito por
Xavier (2007, p. 23): “No litoral da Bahia vivem os negros pescadores de „xaréu‟ [...].
Permanecem até hoje o culto aos deuses africanos e todo esse povo é dominado por um
misticismo trágico e fatalista” (grifo nosso).
Em meio a um cenário descrito pelo domínio de um misticismo trágico e fatalista, surge
como elemento de ruptura com o conformismo instalado na comunidade a figura de Firmino
(Antônio Pitanga), malandro que, vindo da cidade, questiona os valores e métodos até então
utilizados para driblar com as dificuldades e provoca a comunidade a sair da condição de
explorados. Ao se distanciar da comunidade, a personagem teria se revestido de uma tal
lucidez política que já não era necessário recorrer aos ritos religiosos para uma superação.
De algum modo, a figura do malandro da cidade personifica na ficção o posicionamento
político de um cineasta que, como outros de sua época, almejava por um despertamento
político e uma revolução proveniente das camadas populares. Era, em outras palavras, uma
forma que dos cineastas apresentarem a si mesmos, como esse alguém que tem uma
identificação com as classes populares e que, portanto, tem propriedade para alertá-los do
iminente perigo que a devoção religiosa indicava.
Segundo Ismail Xavier (2007), o discurso de Firmino ganha legitimidade justamente
pela forma como a narrativa evidencia os mecanismos de exploração da comunidade.
Entretanto, há o que o autor chama de uma “série de vaivéns no jogo de relações” nas ações
de Firmino que tornam problemático o posicionamento da personagem. Mesmo se opondo às
práticas religiosas da comunidade, apresentadas no contexto do filme como fonte de
alienação, há um momento em que a personagem recorre a um despacho para superar uma
situação limite. “Se não tem fé, porque recorre ao despacho?”, provoca Xavier em sua análise.
Questionamento que leva o próprio crítico à apresentação de uma hipótese:
As oscilações de Firmino podem surpreender, às vezes, mas não trazem perplexidade.
Sua prática e certos pontos obscuros de sua fala podem ficar por conta de uma
assimilação confusa de novos valores dentro de condições impostas pela sua vida
supostamente violenta na cidade. [...] sua revolta se organiza a partir de uma
consciência que, em termos de uma leitura realista, reuniria de modo sincrético
diferentes fragmentos da experiência urbana e da experiência mais antiga de
Buraquinho (XAVIER, 2007, p. 32-33, grifo nosso).
Mesmo que, inicialmente, a intenção do filme fosse apresentar uma crítica aos erros de
uma consciência religiosa, com a disposição desse novo elemento associada aos
procedimentos de narração do filme, emerge uma leitura mais complexa sobre o sistema
33
religioso dos pescadores a partir da própria personagem Firmino, apresentada como anti-
religiosa.
Tal construção na narrativa, antes de ser considerada contraditória – visto que não se
poderia criticar o sistema religioso com uma personagem que cede aos seus rituais – apresenta
o sistema religioso daquela comunidade como um potencial para a explicação da lógica dos
fatos narrados e, mais que isso, de acordo com Xavier tal combinação de elementos pode até
mesmo ser considerada “[...] uma atitude de adesão [do narrador] aos valores religiosos das
personagens, numa reiteração das próprias explicações mágicas” (XAVIER, 2007, p. 48).
Segundo Ismail Xavier, que fez uma minuciosa análise sobre Barravento em sua obra
Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome (2007), a obra de Glauber Rocha, nesse
aspecto, é uma “equação insolúvel”, pois ora parece se opor ao pertencimento religioso, ora
lhe parece favorável ao lhe dar uma visibilidade renegada em outras produções.
Outro filme desse período que traz o elemento religioso, recortando a constituição de
suas personagens, é O pagador de promessas (1962). Filme de Anselmo Duarte, baseado na
peça de Dias Gomes a narrativa traz como tema principal a ortodoxia da igreja católica –
ligada às classes dominantes – em contraste com o candomblé, religião de matriz africana
difundida entre as classes populares.
O protagonista da história é Zé do Burro, homem humilde que vai para a cidade grande
cumprir uma promessa feita à Santa Bárbara, divindade cultuada na tradição do catolicismo.
O padre da igreja ao tomar conhecimento de que Zé fizera a promessa em um terreiro de
candomblé – matriz religiosa discriminada e perseguida pela sua relação com os negros
escravos – se opõe veementemente ao pagamento da promessa. Aqui, a devoção religiosa não
está necessariamente ligada ao argumento da alienação que subjuga as massas, mas, ao
contrário, descortina a possibilidade de um sujeito autônomo e capaz de articular os diferentes
simbolismos do universo religioso sem levar em conta o seu status social.
Dois anos depois, em 1964, novamente Glauber Rocha fará menção à religiosidade
popular, no filme Deus e o Diabo na Terra do Sol. Dessa vez, não mais no litoral, como em
Barravento (1961), mas no sertão brasileiro. A escassez de víveres, proveniente da seca,
conjugada a um ambiente de opressão política, servem de cenário e de mola propulsora para
que as personagens busquem refúgio em ritos religiosos. No mesmo ano Os fuzis (Ruy
Guerra, 1964) também trará a discussão ao apresentar a personagem de um beato mantém
uma multidão de pessoas esfomeadas.
34
Entre os documentários, Viramundo (Geraldo Sarno, 1965)6 apresenta histórias de
operários nordestinos que migram para São Paulo e que, em meio ao quadro de desemprego,
muitas vezes recorrem a ritos religiosos, neste caso, além do candomblé a um culto
pentecostal em praça pública. Imagens e composições cinematográficas que ratificam o
comentário feito por Jean-Claude Bernadet (1996) sobre a questão religiosa no cinema dos
anos 1960-70: “As pessoas deságuam num comportamento religioso resultado de uma
situação social alienante e produtora de alienação” (BERNADET, 1996, p.187).
Assim, amparados em uma crítica de fundo marxista, os intelectuais de esquerda
consideravam a religião como o ópio do povo, sendo eles, naquele contexto, os agentes
responsáveis por ações de conscientização desse povo, suposto alienado. Nesse sentido, o
conceito de alienação no cinema servia como argumento para reforçar a necessidade da ação
de uma classe intelectual conscientizadora e catalisadora do projeto revolucionário. E foi no
afã de representar o povo, e falar por ele, que muitas manifestações populares, incluindo a
religiosidade, foram subestimadas em sua importância cultural e de mobilização política.
Os filmes produzidos nesse período estão repletos de figuras e alegorias que remetem ao
posicionamento político dos cineastas em relação à religiosidade popular. Em Deus e o diabo
na terra do sol (Glauber Rocha, 1964), por exemplo, em meio à precariedade do sertão surge
a figura messiânica do beato Sebastião que atrai a uma multidão de pessoas com promessas
vindouras, inclusive Manuel e Rosa. Acreditando estar diante da solução para os problemas da
seca e da falta de víveres no sertão, a multidão é apresentada em momentos de transe e
realização de sacrifícios como a cena clássica em que Manuel caminha de joelhos com a pedra
sobre a cabeça (Figura 1).
Com isso, o cineasta mostrava o estado de transe religioso das personagens, proveniente
de uma crise resultante da situação social precária na qual as personagens viviam. De acordo
com Maurício Matos (2010), em pesquisa sobre a significação da violência no cinema
brasileiro, esse encontro do vaqueiro Manoel com o beato não consiste, necessariamente, na
transformação deste pela incorporação de um mito, mas “[...] a possibilidade de voar para um
Brasil do porvir alcançando a efetivação das melhorias das condições de vida” (MATOS,
2010, p. 61).
6 Além de Viramundo, o pertencimento religioso das classes populares também aparece em outros documentários
produzidos projeto que ficou conhecido na cinematografia brasileira como Caravana Farkas, idealizado pelo
fotógrafo Thomas Farkas e que ao longo de duas décadas (1960-1980) produziu cerca de 30 títulos abordando a
religiosidade brasileira.
35
Essa imagem de uma devoção religiosa em que o gesto sacrificial aparece como via para
a superação das intempéries é retomada no cinema contemporâneo em uma das cenas do filme
Central do Brasil (Walter Salles, 1996) quando um homem em meio às romarias que
acontecem no município de Bom Jesus da Lapa (BA) aparece rezando com uma pedra na
cabeça (Figura 2). O filme dá a entender que, apesar das quatro décadas de interstício entre
uma produção e outra, essa espécie de devoção ainda sobrevive no sertão do Brasil.
Fonte: Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964, Copacabana Filmes)
Figura 1 – Cena de Manuel em Deus e o diabo na terra do sol.
Figura 2 – Devoto anônimo com pedra na cabeça em cena de Central do Brasil.
Fonte: Central do Brasil (Walter Salles Jr., 1998, Videofilmes)
36
O momento em que essa corrente se rompe é justamente quando o beato, em gesto
violento, diante de Manoel e sua mulher Rosa, atravessa um punhal sobre o corpo de um bebê.
Tamanha atrocidade, como se despertasse Rosa do seu estado de transe, faz com que ela
pegue o punhal e atravesse nas costas do religioso quando este está de frente para o santuário.
A morte do beato aponta para um combate ao discurso religioso como meio de alcançar a
libertação diante de um quadro de escassez. Um assassinato que antecipa a própria ação de
Antônio das Mortes, matador da região comissionado a exterminar o líder religioso,
mostrando como que a destruição da religiosidade deveria ser uma inciativa do próprio povo.
Entretanto, após o Golpe de 1964 e a instauração da ditadura militar, o intelectual cai do
pedestal (BERNADET, 1994, p. 107) e, mediante a frustração quanto ao projeto de
conscientizar as massas, percebe-se nas produções posteriores a esse período uma mudança.
Enquanto em um momento anterior ao Golpe havia um movimento de mobilização e grande
expectativa para uma revolução, após a tomada de poder pelos militares, a discussão sobre a
mentalidade do oprimido se tornou ainda mais urgente, pois segundo Ismail Xavier “[...] era
preciso entender a relutância do povo em assumir a tarefa da Revolução” (2001, p. 19).
Talvez este ainda seja um questionamento que persegue os críticos e cineastas
brasileiros contemporâneos. Não mais no sentido de entender os fatores que impedem uma
conscientização e engajamento políticos, mas entender, justamente, as razões pelas quais
esses mecanismos sociais podem vir a funcionar.
Com a criação da Embrafilme, em 1969, as produções politicamente engajadas cedem
espaço para uma compreensão da cultura brasileira, incluindo suas manifestações religiosas,
no sentido de assimilar para difundir. A representação que o intelectual – e aqui consideramos
também os cineastas – tinha de si mesmo também já não era a mesma e, com isso, modifica-se
também o olhar dele sobre o povo (outro). Povo que, enquanto termo se refere às classes
populares, mas definitivamente não poderia ser visto como uma categoria pré-constituída ou
apresentado como unidade no cinema brasileiro.
Essa crise em relação à ideia de povo é, inclusive, observada pelo filósofo Gilles
Deleuze (2005), que evidencia como uma das principais características do cinema chamado de
Terceiro Mundo7, justamente a crise de uma identidade coletiva em seu discurso. O povo é
7 Segundo Robert Stam (2013) o cinema de Terceiro Mundo ou Terceiro Cinema se refere a uma política
relacionada ao cinema produzido em países da América Latina, Ásia e África e que ganha coesão em meados da
década de 1950, revestida por preocupações nacionalistas. O seu nome vem da expressão “terceiro mundo” que à
época “[...] designava as nações, „minorias‟ colonizadas, neocolonizadas ou descolonizadas do mundo cujas
37
uma presença marcada pela ausência. Uma ausência que não implica em vazio ou
inexistência, mas indefinição. Uma indefinição que traz consigo o gérmen de uma nova
possibilidade: a invenção desse povo no cinema.
Esse novo olhar do cineasta em relação ao povo também está relacionado ao que Gilles
Deleuze, em conversa com Michel Foucault (FOUCAULT, 1993), apontou como nova forma
de viver a relação entre a teoria e a prática. A partir de um exercício de auto-crítica de sua
produção, o intelectual reconhece que sua teoria não é suficiente para representar o outro
sujeito, tanto porque a teoria é parcial e restrita em relação ao domínio e extensão da prática,
quanto pela própria vinculação desse intelectual ao sistema de poder que combate:
Os próprios intelectuais fazem parte deste sistema de poder, a ideia de que eles são
agentes da “consciência” e do discurso também faz parte desse sistema. O papel do
intelectual não é mais o de se colocar “um pouco na frente ou um pouco do lado” para
dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder
exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber,
da “verdade”, da “consciência”, do discurso. (FOUCAULT, 1993, p.42)
Assim, na década de 1970, no lugar de uma abordagem crítica da religião, como algo
alienante e que impedia a conscientização política e mobilização das massas, o cinema
brasileiro começa a apresentar filmes com um posicionamento mais favorável às
manifestações religiosas. Como exemplo, surge a produção de documentários como Iaô
(Geraldo Sarno, 1974), em que o cineasta registra e participa de ritual do candomblé. Vale,
aqui, sinalizar a trajetória de Geraldo Sarno nessa transição.
Em Viramundo (1965), o olhar do cineasta apresentava a crença religiosa como parte de
um contexto de opressão vivenciado pela classe operária na zona urbana paulista, já em Iaô
(1974), além de se abordar uma religiosidade específica – o candomblé –, a relação do autor é
diferenciada, a começar pelo próprio envolvimento do cineasta no ritual religioso8. Há assim
uma transição entre um registro molar, baseado em uma estrutura de dominação, para um
registro molecular em que o próprio realizador se abre para o devir propiciado pela
experiência religiosa do outro9.
O documentário, ao apresentar um ritual de iniciação em um terreiro com detalhes,
confere ao rito religioso uma nova possibilidade de significação do povo:
estruturas políticas e econômicas foram formadas e deformadas pelo processo colonial” (p.112). O caminho para
o terceiro cinema na América Latina foi preparado pela popularidade do neo-realismo italiano. 8 Para Jean-Claude Bernadet, o plano em que o filme apresenta o cineasta participando do ritual é ambíguo, pois:
“Por um lado, o documentarista praticaria um ritual em que acredita, ou seja, estaria realmente fazendo a limpeza
do corpo. Por outro, estaria se submetendo a um ritual em que não acredita, necessariamente, para obter dos
sacerdotes a autorização de filmar cenas proibidas ao olhar leigo” (XAVIER, 1996, p. 181). 9 Os conceitos de molar e molecular são usados conforme a argumentação desenvolvida em texto de Maurizio
Lazzarato (2004).
38
A imagem do povo é construída a partir de seu imaginário, o povo é visto como
produtor de valores, religiosos ou musicais, enquanto o povo alienado não podia ser
produtor de valor algum. (BERNADET, 1994, p. 110)
No cinema de ficção, no mesmo período, se destacam filmes como Uirá, um índio em
busca de Deus (Gustavo Dahl, 1973) e O amuleto de Ogum (Nelson Pereira dos Santos,
1974). O primeiro, inspirado em um ensaio de Darcy Ribeiro (Uirá vai em busca de Maíra),
é pioneiro ao retratar a religiosidade indígena em uma perspectiva cunhada de “ficção
antropológica” (AZEREDO, 2009, p. 204).
Já no segundo filme, o cineasta surpreende ao trazer, no interior da narrativa, relações
entre umbandistas e seus ritos de fé, através da história de um menino que, ao sair imune de
um tiroteio, interpreta o acontecimento como uma demonstração de que tem o corpo fechado
e passa a frequentar um terreiro. A representação à época de seu lançamento foi elogiada por
significar “alguns dos mais belos momentos do filme” (AZEREDO, 2009, p. 174), mas
também foi criticada por trazer uma “visão extremamente positiva da umbanda”
(BERNADET, 1994, p. 103), comentários que podem ser relativizados pelo distanciamento
adotado pelo diretor do filme que preferiu explorar a religião através de uma história de ficção
– aspecto que o diferenciava das produções anteriores – e uma narrativa indireta, na medida
em que usa a voz de um personagem para conduzir a trama.
Uma avaliação que resume bem as significações presentes no cinema brasileiro é
apresentada por Ismail Xavier (2007) ao distinguir duas formas distintas pelas quais a
personagem popular é construída e compreendida. Nos anos 1960, segundo o autor, a
produção se caracteriza por uma crítica dialética da cultura popular, sendo a alienação um dos
fatores para a falta de mobilização política, já nos anos 1970 a tônica das narrativas caminha
para uma compreensão antropológica da religiosidade popular, em que o cineasta abre mão
de seus valores marxistas para apresentar a filiação religiosa como potencial de resistência e
mobilização das massas:
Abre-se espaço para uma política de adesão que privilegia, nas representações dadas,
uma positividade quase absoluta, que as torna intocáveis porque o testemunho da
resistência cultural frente à dominação e afirmação essencial de identidade
(BERNADET, 2007, p.25).
Com essas produções, os realizadores, pareciam buscar uma espécie de “redenção”
diante de alguns equívocos cometidos nas produções anteriores – em que a religiosidade era
refém do conceito de alienação – e, ao mesmo tempo, abriam portas para novas formas de
interpretar as manifestações religiosas no Brasil, não mais sob uma visão unilateral e
39
hegemônica fornecida pelos referenciais da religião colonial, mas na articulação dessas
manifestações com a cultura popular e seu potencial enquanto agente político mobilizador.
Invertem-se os polos. Se antes a religião era um elemento danoso e alienante, na
geração posterior, era um objeto digno de conhecimento, como via de conhecer mais da
cultura popular e da própria cultura brasileira. Apesar da mudança, em ambos os casos, a
religiosidade ainda era vista, em maior parte das produções, sob a perspectiva de um sujeito
coletivo, o povo. Uma evidência de que o discurso cinematográfico da época ainda estava
fortemente vinculado a determinados ideais políticos.
Posteriormente, após um longo intervalo, a discussão sobre pertencimento religioso
reaparece no cinema brasileiro em meados da década de 1990, com uma diferença
significativa. Mais uma vez, o documentário servirá como meio para trazer a religiosidade em
uma perspectiva crítica, porém relacionada à emergência e afirmação de novos
pertencimentos em sociedade, sendo a religiosidade apenas uma das formas pelas quais o
sujeito poderia se auto-afirmar. Desse período, a produção que se destaca é Santo Forte
(Eduardo Coutinho, 1996).
Documentário feito basicamente por depoimentos de pessoas anônimas, devotas de
diferentes religiões, o filme traz a religiosidade a partir do sincretismo afro-católico que
acontece no Brasil – nesse sentido, lembrando a discussão sugerida por filmes como
Barravento (Glauber Rocha, 1961) e O Pagador de Promessas (Anselmo Duarte, 1962) – e
um contexto privado na qual “admite-se a eficácia mágica e a presença e intervenção de
espíritos no cotidiano” (MESQUITA, 2009, p. 24). O que está em foco não são as grandes
instituições religiosas, ou mesmo seus líderes e representantes, mas a forma como o sujeito se
apropria e interage com a experiência religiosa.
Segundo Cláudia Mesquita (2009), pesquisadora que fez uma análise profunda do
documentário, o filme também traz o diferencial de romper com certa tradição no cinema
brasileiro em apresentar manifestações da religião protestante à uma “[...] posição
desprestigiada, de „corpos estranhos‟ ou opções exógenas em meio à sincrética (e muitas
vezes celebrada) matriz afro-católica brasileira (esta sim, tematizada em diversas frentes, e
não apenas no documentário)” (MESQUITA, 2009, p. 21).
Com o pluralismo religioso, crescimento das igrejas evangélicas pentecostais, declínio
da hegemonia católica associada ao trânsito religioso, o pertencimento religioso retorna como
um problema social e nestas produções audiovisuais mais recentes começa a ser avaliado sob
40
uma nova perspectiva: do ponto de vista do sujeito. O que está em questão não é
necessariamente como esse pertencimento ou devoção religiosa interfere nos rumos políticos
do país, mas como elas podem ser compreendidas tomando como ponto de partida a
declaração de fé do sujeito, no sentido de compreender os trânsitos que sucediam no campo
religioso.
Embora nos filmes produzidos na década de 1990 seja possível vislumbrar um processo
de continuidade da tendência esboçada nos anos 1970, nota-se nas produções mais recentes
um estreitamento na abordagem do pertencimento religioso. Antes de ser um elemento
referente a uma identificação coletiva, de um grupo ou comunidade, a religião é apresentada a
partir de uma valorização da experiência do sujeito.
Com isso, surge o seguinte questionamento: se no Cinema Novo a religião era vista sob
a perspectiva da alienação, depois como potencialidade de mobilização, como ela pode ser
interpretada nas recentes produções do cinema brasileiro? Sob quais aspectos, a presença de
personagens evangélicas no cinema evocam e (re)significam a discussão entre religião e poder
já presente em outros períodos do cinema?
E é nesse sentido que a presença de uma personagem cuja identificação ocorre por meio
da religiosidade adquire uma importância ainda maior na produção cinematográfica
contemporânea. Porém, antes de uma incursão nas personagens evangélicas apresentadas nos
filmes mais recentes, consideramos necessário compreender como a religião, antes de ser
construída na ficção, se configura na cultura brasileira, e como ela interfere no processo de
constituição de subjetividades, antes de ser encenada pelas personagens.
2.3 CULTURA E RELIGIÃO NA CONSTITUIÇÃO DE SUBJETIVIDADES
Toda religião é um lugar de memória e de identidade. Ao congregar as pessoas, ela
lhes fornece um terreno e um referente comum no qual a identidade do grupo pode se
exprimir. (grifo nosso, ORTIZ, 2001, p. 66)
Quando se abordavam questões relacionadas à religiosidade brasileira no cinema,
possivelmente as referências imediatas seriam manifestações tradicionais como o catolicismo
e as religiões de matriz africana. Entretanto, o intenso processo de diversificação no campo
religioso brasileiro, combinado com a afirmação de novas formas de pertencimento em escala
global, a relação entre cultura e religião se tornou ainda mais complexa, e mesmo com a
41
influência de determinados credos seja incontestável na cultura brasileira, os seus meios de
operação precisam ser confrontados e (re)interpretados à luz desse novo ambiente permeado
por diversas religiosidades minoritárias em relação à hegemonia católica.
De acordo com estudo do IBGE (2010), 89% da população brasileira concorda que a
religião é algo importante, sobretudo, para as mulheres (93%). Em concordância com a tese
weberiana de que a culpa do catolicismo impediria o acúmulo de capital e a divisão do
trabalho, a religião católica estaria sendo trocada por outras opções em consonância com a
emancipação feminina. De acordo com pesquisa realizada por Marcelo Neri (2011), intitulada
Novo Mapa das Religiões, no Brasil, a preferência religiosa também varia conforme a
proximidade com a zona urbana:
[...] identificamos com clareza a emergência de grupos pentecostais e dos sem religião
entre os grupos perdedores da crise econômica e, em particular, no que tange ao
aspecto metropolitano da mesma. Os dados demonstram claramente que a velha
pobreza brasileira (e.g. áreas rurais do nordeste, mais assistida por programas sociais)
continua católica, enquanto a nova pobreza (e.g. periferia das grandes cidades, mais
desassistida) estaria migrando para as novas igrejas pentecostais e para os chamados
segmentos sem religião.” (NERI, 2011, p. 44, grifo nosso)
Em um comparativo dos índices de religião no Brasil, desde o primeiro censo de âmbito
nacional, realizado na década de 1970, a filiação à religião católica apostólica romana é
predominante devido o histórico de colonização e por ter sido a religião oficial do Estado até
a constituição da República em 1891. A partir da década de 1990, a estatísticas apontam não
só o declínio de católicos, como crescimento de evangélicos, principalmente os denominados
pentecostais.
Tal tendência que se acentua ainda mais nos anos 2000, de modo que no Censo
realizado em 2010 a presença de católicos no campo religioso declinou para o índice de
64,6%, enquanto os evangélicos já chegaram a 22,2% da população. Deste percentual, a
maioria é composta por mulheres e, comparada à religião católica, observa-se entre os
evangélicos apresentam uma maior proporção de jovens e adolescentes.
No que se refere aos aspectos socioeconômicos, dentre os evangélicos, pentecostais
estão entre aqueles que concentram o menor índice de alfabetização (91,4% são
alfabetizados), mas são superados pelos católicos que ainda possuem o menor índice de todos
(89,4%). Os evangélicos pentecostais também é o grupo religioso que apresenta maior índice
de pessoas que recebem até um salário mínimo.
Tais índices são válidos para entender a razão pela qual a religiosidade católica é tão
presente em filmes que retratam a vida no sertão brasileiro e, ao mesmo tempo, os dados
42
socioeconômicos relacionados aos evangélicos também serve para compreender o motivo
pelo qual a tese de religião como instrumento de alienação ainda é tão presente na
representação da religiosidade popular, mesmo em produções mais recentes.
Embora as religiões estejam inseridas na cultura e se constituam a partir dela, é preciso
fazer um percurso em separado para entender como o sistema simbólico religioso se constitui
e interfere sobre a cultura de modo geral. Em sua natureza, a religião de acordo com James
Beckford (1996), se caracteriza pelo interesse em dar significações a perguntas da ordem da
existência humana como qual é o sentido da vida, do sofrimento, da morte, e é a perpetuação
desses questionamentos ao longo da história que agrega valor e legitimidade às respostas
apresentadas pelos diferentes discursos religiosos.
Embora o significado dado à religião possa variar de acordo com a cultura, a religião
pode ter um alcance além da cultura na qual se constituiu. É o que Renato Ortiz (2013) define
como religiões universais em contraponto às religiões particulares. As primeiras, por não
serem ancoradas na tradição local, de onde surgiram, apresentam uma tendência à mobilidade
e adaptação em diferentes culturas, entre elas está o cristianismo. São religiões propícias à
ética da modernidade em que o indivíduo é quem escolhe com maior ou menor grau de
autoconsciência o caminho de sua “salvação”. Já as religiões particulares se caracterizam pelo
seu enraizamento à cultura do seu local de surgimento, como seria o caso das religiões de
matriz africana10
. Uma diferenciação de onde se torna possível deduzir a expansão do
cristianismo na cultura ocidental e sua adaptação às mudanças advindas com a modernidade.
Já do ponto de vista do antropólogo norte-americano, Clifford Geertz (2008), a partir de
um conceito de cultura baseado na antropologia enquanto uma ciência interpretativa da
experiência de campo, a religião se caracteriza como um sistema cultural autônomo que, sob a
regência de símbolos, oferece ao homem um novo mundo para viver. Tal como a cultura, a
religião é uma produção humana com efeito sobre o próprio homem. Para Pierre Sanchis
(1997), a religião não só oferece ao ser social uma visão de mundo, tornando-o intelectual e
emocionalmente apreensível, mas também envolve o manejo de categorias que afetam a
subjetividade do indivíduo, orientando e qualificando o seu comportamento.
10
Essa tendência ao enraizamento tem mudado nas religiões de matriz afro. Ao invés de valorizar a etnicidade,
elas buscam a universalização de seus ensinamentos, também nomeado como processo de dessincretização.
(PRANDI, 1991; SILVA;1995 apud CAMURÇA)
43
Assim, os símbolos11, quando inseridos no contexto da religião, sintetizam a ética do
grupo. Em algumas religiões, sobretudo as chamadas tradicionais, essa simbologia é mais
evidente, visto que pelo seu caráter pré-moderno tais religiões se baseiam na entrega de
oferendas para a obtenção de segurança e proteção. Já no caso das religiões cristãs, de cunho
protestante, pela sua origem moderna, a influência da racionalidade nos ritos apresenta uma
simbologia menos aparente, muitas vezes, esmiuçada na prática e comportamentos de seus
membros, ou seja, na sua ética.
Embora essa característica pareça clara, os filmes que apresentam personagens
evangélicas continuam a trazer tais personagens a partir de elementos baseados em uma
simbologia mais evidente cujos parâmetros advém de tradições peculiares à religiosidade
hegemônica no Brasil, o catolicismo. Por isso, a necessidade em construir a personagem
evangélica pela ênfase a determinados atributos visuais como trajes formais, o uso da Bíblia
como acessório permanente junto ao peito, e até uma devoção associada ao uso de imagens do
Cristo.
Tais elementos são familiares à tradição católica, entretanto divergem, em princípio, de
qualquer religião de matriz protestante – considerando que estas, ao contrário da religião
católica, não aprovam o uso de ícones ou imagens em suas liturgias – mas são empregados na
caracterização das personagens, pois a referência de cristianismo predominante na cultura
brasileira é tributária da herança colonial cujos ritos são marcados pelo uso de objetos e
adereços que tornam o simbolismo religioso mais evidente.
Em alguns personagens de filmes contemporâneos, esse tratamento fica mais evidente.
É o caso da personagem Peixeira, do filme Carandirú (Hector Babenco, 2002), presidiário
que se torna evangélico e, na cena de sua morte, é flagrado por alguns segundos em um plano
médio que mostra não só os novos trajes – camisa de manga comprida e calça de tecido – mas
também dois objetos emblemáticos em cada uma de suas mãos: na direita um pequeno quadro
com uma imagem que seria a representação de Jesus Cristo e na esquerda uma Bíblia (Figura
3).
Tais objetos, na medida em que não correspondem aos costumeiramente utilizados por
adeptos de religiões cristãs protestantes, destoam da liturgia proposta por tais comunidades e
apresentam uma religiosidade para além dos quadros tradicionais ou instituídos no contexto
exterior ao filme e, nesse sentido, inventada pelo cinema.
11
Geertz (2008) apresenta uma noção simplificada de símbolo como atitudes e ações que significam algo no
contexto religioso.
44
Essa projeção da simbologia católica sobre personagens evangélicas também se
apresenta na personagem Érica, de O homem do ano (José Henrique Fonseca, 2004), quando
após a sua conversão a uma religião evangélica, aparece em casa segurando um quadro com
uma imagem do Cristo (Figura 4) e pergunta para Máiquel (Murilo Benício) se ele não a
achava parecida com o homem da pintura. As cenas em que a personagem aparece na igreja
não há indícios de que se trata de uma igreja católica, visto que o líder é representado pela
figura de um pastor e o salão onde acontecem os cultos não apresenta o uso de ícones ou
imagens sacras.
Por essas características, é possível deduzir que a experiência do sagrado em Érica,
associada a uma imagem, revela-se mais pelo caráter inventivo das personagens evangélicas
no cinema contemporâneo e de como seus realizadores lidam uma expressão religiosa
diferente sob os moldes das religiosidades tradicionais. Inventa-se com as personagens da
ficção um novo pertencimento religioso, nominalmente apresentado como evangélico, mas
perpassado pela forte influência religião católica que permeia a formação cultural brasileira.
Figura 3 - Peixeira com a Bíblia e uma imagem do Cristo na mão
direita.
Fonte: Carandirú (Hector Babenco, 2002, HB Filmes, Globo
Filmes e Columbia Tristar do Brasil)
Fonte: O homem do ano (José Henrique Andrade, 2004, Conspiração
Filmes)
Figura 4 - Érica e a imagem de Jesus Cristo.
45
A divergência dos parâmetros utilizados pelos realizadores para construir as
personagens de uma religiosidade diferente das tradições culturais, exemplifica uma
constatação proveniente da antropologia, segundo a qual, muito da simbologia religiosa só
pode ser compreendida a partir do comportamento de seus adeptos ou praticantes. Nas
palavras do antropólogo norte-americano Clifford Geertz:
[...] a essência da ação religiosa constitui [...] imbuir um certo complexo específico de
símbolos – da metafísica que formulam e do estilo de vida que recomendam – de uma
autoridade persuasiva (GEERTZ, 2008, p. 82).
Por esse comentário, fica esclarecido que a relação com os símbolos religiosos não é
meramente material, mas pressupõe uma compreensão da metafísica associada a ele em
determinado contexto religioso. Ao desconhecer ou ignorar esse valor metafísico, a ficção
foge da possibilidade de uma representação do real e cria personagens ambíguas e
conflituosas em seu pertencimento religioso.
Nessa perspectiva, a interpretação de uma experiência religiosa também implica
compreender o “estilo de vida” imbricado nos símbolos. Para um visitante, os ritos religiosos
se resumem a apresentações religiosas, “podendo ser apreciadas esteticamente ou dissecadas
cientificamente”. Já para um participante, integrante da comunidade, os ritos são
materializações, a forma pela qual a religião se realiza e extrapola as fronteiras do mero ritual,
se incorporando também no cotidiano:
Ninguém, nem mesmo um santo, vive todo o tempo no mundo que os símbolos
religiosos formulam [...]. As disposições que os rituais religiosos induzem têm um
impacto mais importante – do ponto de vista humano – fora dos limites do próprio
ritual, na medida em que refletem de volta, colorindo a concepção individual do
mundo estabelecido como um fato (GEERTZ, 2008, p.87).
As personagens evangélicas apresentadas pelo cinema brasileiro contemporâneo, na
proporção em que não correspondem à experiência vivenciada ou relatada pelos adeptos da
religião a que se referem, convidam o espectador ou analista a investigar os possíveis
referenciais que serviram de influência ou parâmetro para a construção – invenção – dessas
personagens pelos seus respectivos realizadores.
O antropólogo Gianni Vattimo (2010), em discussão sobre as influências do
cristianismo na cultura ocidental, afirma que o processo de secularização, por exemplo, não
consiste em um abandono do sagrado, como o uso convencional do termo pode induzir a
pensar. Antes, se refere a uma “integral aplicação da tradição sacra a determinados fenômenos
humanos” (GIRARD; VATTIMO, 2010, p. 28), sendo um dos exemplos, a forma como o
protestantismo influenciou a ascensão e consolidação da sociedade capitalista.
46
Diante dessa afirmação é possível perceber, sutilmente, os vestígios desse processo de
secularização nas personagens evangélicas do cinema contemporâneo, pois na medida em que
tradições sacras hegemônicas foram incorporadas à cultura brasileira a relação com outras
religiosidades – entre elas, as igrejas evangélicas – passa a ser conduzida conforme os
parâmetros herdados por essas tradições.
Em uma investigação sobre o campo religioso brasileiro, Paula Montero (2000)
apresenta o conceito de secularização como parte de “um processo histórico específico, no
qual setores da sociedade e da cultura são subtraídos à autoridade das instituições e símbolos
religiosos” (MONTERO, 2000, p. 325). Entretanto, o desejado isolamento da religião para a
vida privada, com a consequente dessacralização da vida pública, no Brasil, ocorreu apenas
em níveis formais, pois de acordo com a pesquisadora, visto que o modelo de Estado liberal
não se realizou plenamente no país, as religiões continuam a ter uma importância na
estruturação da vida pública.
No contexto brasileiro, a igreja evangélica, ao se apresentar como diferença frente às
religiões tradicionais, também incita um movimento de releitura da nossa própria formação
religiosa e o impacto dela sobre a nossa cultura. Na medida em que se é confrontado com uma
manifestação religiosa diferente, o lugar da tradição e suas representações precisa ser relido
como forma de tornar visíveis significados e valores postos em movimento por ele.
Após a separação entre Estado e religião – oficialmente instituída no Brasil pelo texto
constitucional de 1891 – de maneira formal se assegurou a prática de uma liberdade religiosa,
entretanto, as mudanças culturais, nesse aspecto, tendem a ser mais lentas que a instituição
legal. Por isso, mesmo diante da formalização de um Estado laico, a Constituição de 1934
assegurou o ensino religioso nas escolas públicas, bem como a assistência religiosa às Forças
Armadas (MONTERO, 2000, p. 327). Além disso, as repartições públicas continuaram a
trazer crucifixos pendurados, o calendário continuou sob a regência de feriados e festividades
da religião católica. Assim é que:
[...] embora a liberdade de culto fosse constitucionalmente garantida, inúmeras formas
populares de expressão religiosa foram criminalmente penalizadas: o modelo legítimo
de reconhecimento da religião pautado no cristianismo era incapaz de reconhecer, nas
formas religiosas populares, confissões a serem respeitadas (MONTERO, 2000, p.
328).
O campo religioso brasileiro, embora permeado por uma pluralidade de manifestações -
fato que para o pesquisador Pierre Sanchis (1997), seria a constatação do fim da hegemonia
católica –, em termos quantitativos, dispõe de uma maioria católica (68,43% da população,
47
IBGE, 2010). Uma maioria que mesmo em situação de declínio ainda é um forte referencial
na cultura brasileira, sobretudo, na forma de lidar com outras expressões religiosas.
Por esse aspecto de influência valorativa no repertório cultural brasileiro, damos
preferência ao conceito de campo religioso desenvolvido por Pierre Bourdieu e bem
apresentado nas palavras de Arnaldo Huff Júnior (2009):
O campo religioso brasileiro é, nesse sentido, aqueles em que os bens religiosos estão
em jogo, havendo nele lutas pelas maneiras de desempenhar os papéis determinados
no próprio jogo. Nele, manipulam-se visões de mundo, palavras princípios de
construção da realidade. A religião tem, nessa perspectiva, um caráter de linguagem.
É um sistema simbólico de comunicação e pensamento. (HUFF JÚNIOR, 2009, p.6,
grifo nosso)
Assim, qualquer investida relacionada ao campo religioso brasileiro, precisa considerar
os agentes e os elementos presentes nesse jogo, como forma de flagrar as disputas que
contornam a existência das religiões e como elas influenciam no processo de significação
engendrado por produtos da cultura, como o cinema.
No contexto brasileiro, o catolicismo e as religiões de matriz africana, embora diferentes
sob muitos aspectos, reservam entre si a semelhança de serem religiosidades caracterizadas
historicamente como tradicionais e que, mesmo com a sua saída de outro cenário cultural,
tiveram a capacidade de se reelaborar no Brasil (SANCHIS, 1997). A questão, contudo, é que
na interação de uma religião com outras, há o iminente risco de, com a mistura, as diferenças
e os conflitos subjacentes a elas serem considerados em segundo plano, ou mesmo
desconsiderados.
Não se pode esquecer que pela via do sincretismo entre as religiões tradicionais, as
inquisições da Igreja Católica foram atenuadas no seu histórico e as manifestações das
religiões de matriz africana foram ressignificadas, aproximando as duas manifestações
religiosas em uma relação, aparentemente, pacífica e sem conflitos. Tal homogeneidade
religiosa é apresentada da seguinte forma:
O meio religioso brasileiro, sobretudo popular, mas não exclusivamente, vive num
certo clima espiritualista que parece compartilhado por várias mentalidades no Brasil
[...]. Orixás para alguns, mortos, santos ou entidades para outros [...] Tal
intercomunicação entre os sistemas simbólicos permite reinterpretações e inversões
valorativas, as mesmas que doravante irão qualificar as relações no interior do campo
religioso: orixás viram santos, anjos viram demônios, santos ídolos, o Espírito uma
entidade, entre outros. (SANCHIS, 1997, p.33)
Em meio a essa “relativa homogeneização”, os evangélicos parecem não se ajustar,
posicionamento que as personagens demonstram ao trazer julgamentos sobre outras
religiosidades diferentes da sua. Um posicionamento, muitas vezes, lido sob o discurso de
48
intolerância religiosa, mas que também pode significar uma ação de afirmação pela
resistência. Sobretudo, se considerados fatores como a origem recente dessas religiosidades e
a existência de um mercado religioso.
Assim, embora o conceito de sincretismo possibilite o trânsito entre diferentes
manifestações religiosas, adotá-lo como elemento característico da religiosidade brasileira é,
por outro lado, uma tentativa de atenuar os conflitos presentes nesse trânsito pela ocultação
das diferenças e das relações de poder que, historicamente, permeiam a convivência entre as
religiões.
Como Tomaz Tadeu (2000) afirma: “[...] os processos de hibridização analisados pela
teoria cultural contemporânea nascem de relações conflituosas entre diferentes grupos
nacionais, raciais ou étnicos [...]”. Sem a problematização dessas diferenças, pode ocorrer o
que o mesmo autor chama de “novas dicotomias”, como a que ocorre com a definição de
evangélico em oposição ao católico. Por isso, vamos nos dedicar um pouco em pensar quais
os fatores que possibilitaram o crescimento de igrejas evangélicas no Brasil, a despeito de sua
diferença com as matrizes religiosas tradicionais.
Considerando que no Brasil a emergência histórica da religião católica está associada ao
processo de colonização, a filiação a uma religião de base protestante poderia representar uma
nova perspectiva e até emancipação em relação ao controle exercido por pelas tradições
coloniais. Entretanto, mesmo que a chegada e consolidação do protestantismo no Brasil
tenham coincidido com o período no qual as ideias iluministas e abolicionistas ganharam
evidência entre os intelectuais, não se pode afirmar que ele tenha proporcionado exatamente
uma mudança no que diz respeito à influência da religião sobre o comportamento dos
indivíduos. Assim como na Europa, “a Reforma não implicou a eliminação do controle da
Igreja sobre a vida cotidiana, mas a sua substituição por uma nova forma de controle”
(WEBER, 2003, p. 38).
Com a modernidade tardia, como postula Stuart Hall (2006), surge a necessidade de
novos parâmetros para definir o sujeito. É preciso ressaltar, entretanto, que assim como nas
correntes do protestantismo não havia a pretensão de instaurar uma reforma ética – sendo as
consequências da Reforma inesperadas pelos seus representantes e até em opostas ao que eles
buscavam como resultado –; assim não é possível avaliar a doutrina das instituições religiosas
como uma forma de suprir essa demanda por uma identidade, embora elas acabem servindo
para isso.
49
As mudanças apresentadas na composição religiosa brasileira, nos anos mais recentes,
se caracterizam, predominantemente, por um declínio de adeptos da igreja católica e
crescimento do número de pessoas pertencentes a igrejas protestantes, principalmente as
chamadas pentecostais e neopentecostais. Para considerar a influência da cultura religiosa
proveniente da popularidade e ascensão desses segmentos na cultura brasileira, é necessário
observar dois aspectos: a religião como variável socioeconômica que apresenta mais
mudanças em relação a outros índices e a filiação religiosa, como parte de um conjunto de
mudanças espaço-temporais ocasionadas pelos efeitos da pós-modernidade.
Mesmo que tais mudanças estatísticas não signifiquem a perda da hegemonia da Igreja
Católica na cultura brasileira, o advento de igrejas evangélicas traz alterações na dinâmica do
cenário religioso. Se outrora, este cenário era marcado por religiões tradicionais e a concepção
de filiação religiosa associada a valores como garantia de proteção, atualmente tal filiação se
baseia na livre escolha (do indivíduo) através da consciência com a consequente fixação do
princípio de identidade, uma tendência moderna (CAMURÇA, 2009, p. 176).
Em países com histórico de colonização, como o Brasil, a abordagem da religião como
parte da constituição identitária, vai além da escolha do sujeito. Basta lembrar que a
implantação do catolicismo romano como religião oficial do Brasil esteve associado ao
processo de domesticação da população local conforme os interesses da metrópole. Nesse
sentido, a religião deve ser compreendida, tanto sob o aspecto subjetivo, de necessidade de
identificação do indivíduo, quanto pela sua articulação com outros interesses, como a
dominação.
Mesmo em um contexto de liberdade religiosa, advindo formalmente com a instituição
do Estado laico, ainda é possível observar no Brasil reminiscências do discurso dominante na
religião, como assinala Joer Rieger (2008): “[...] até nas situações onde o colonialismo
acabou, permanecem vários níveis de dependência que precisam ser reconhecidos antes de
poderem ser finalmente superados” (RIEGER, 2008, p. 88). Ainda que separada do Estado e
ligada diretamente a Roma, a Igreja Católica continuou a exercer influência sobre a ordem
pública e sobre as produções culturais relacionadas, seja de uma forma institucionalizada
através do calendário de festividades, seja de forma sub-reptícia, nos costumes, valores,
representações. Nesse contexto, se a opção pelo catolicismo está associada a uma herança
colonial, que elementos discursivos permitiram inicialmente a aceitação do protestantismo no
Brasil?
50
Partindo de uma mesma matriz religiosa do colonizador – cristã ocidental – a doutrina
das religiões protestantes, quando na sua chegada ao Brasil, no início do século XIX, se
contrapunha aos valores determinados pela religião tradicional. Isso não quer dizer que tais
instituições religiosas não envolvessem outros interesses, entretanto, de algum modo a sua
proposta convergia com o desejo de emancipação da colônia (Brasil) em relação à metrópole
(Portugal). E se a proposta doutrinária das igrejas reformadas convergia com o desejo de
independência política da colônia, essa independência também significava a exploração do
mercado consumidor do Brasil por outros países da Europa, não por acaso, os mesmos que
difundiram a ética protestante.
Assim como os ideais provenientes do Iluminismo europeu exerceram influência sobre
a mentalidade da burguesia brasileira no aspecto político, a reforma protestante, no âmbito
religioso, se apresentava como um projeto revolucionário. Max Weber (2003), em seu estudo
pioneiro acerca da relação da ética protestante com o desenvolvimento capitalista, constatou
que maior parte dos empresários era de religião protestante e a sua mão-de-obra era
qualificada. Concluiu que por uma mesma ética – a protestante – os empresários não se
sentiam culpados pelo acúmulo de capital – antes condenado pela Igreja Católica - e os
operários viam no seu trabalho um cumprimento da sua própria vocação, por isso a busca pela
excelência.
Anos mais tarde, em meados do século XX, com as mudanças provenientes dos
fenômenos de urbanização e o aprofundamento das desigualdades sociais nas grandes cidades,
as religiões protestantes, também ganharam preferência entre as camadas mais pobres da
população, principalmente pelo seu discurso:
Mas seu sucesso proselitista não depende da existência de tais problemas em si
mesmos, e sim, justamente de sua elevada capacidade de explorá-los, oferecendo
recursos simbólicos e comunitários para seus fieis e potenciais fieis lidarem com eles.
(MARIANO, 2008, p. 71).
Aqui, o sociólogo Ricardo Mariano se refere especificamente ao crescimento das igrejas
pentecostais no Brasil, mas, compondo esses recursos simbólicos, é possível lembrar como o
uso de trechos da Bíblia como “é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do
que entrar um rico no reino de Deus” (Mateus 19:24) e “os derradeiros serão os primeiros”
(Mateus 19:30), servem para reinterpretar problemas, a exemplo da pobreza, a partir da
perspectiva religiosa. O negativo transforma-se em positivo e um meio para alcançar a
51
redenção12
. A pobreza, nesse contexto, aparece como afirmação desses indivíduos
subalternizados diante da sociedade dos ricos e contribui para uma aceitação dessa religião
entre as camadas mais populares.
Embora, muitas vezes, utilizada como justificativa arbitrária para as mazelas que
sucedem aos indivíduos, a religião aqui se converte em um valor de superioridade espiritual e
autoafirmação. A subalternidade ressoa mais do que diferença, mas tem valor de autoridade.
Neste sentido, a invenção da personagem evangélica no cinema brasileiro dos anos 2000 é um
processo que “escapa dos esquemas mobilizados pelos poderes instituídos das minorias como
forma de controle” (MATOS, 2010, p. 161).
As igrejas evangélicas se popularizam ao ponto de se tornarem peças indispensáveis à
constituição espacial de quem habita a margem da sociedade. Como o próprio diretor do filme
Contra Todos (2004) afirma: “não dá pra gente falar hoje das periferias sem falar da força das
religiões, em especial dos evangélicos”.
O vínculo das religiões protestantes com pessoas de baixa renda também promove uma
mudança de perspectiva acerca da imagem de seus adeptos. Assim como as religiões de
matriz africana foram por muito tempo associadas ao negro escravo, e discriminadas por isso,
os membros de igrejas evangélicas, independentemente da sua formação ou posicionamento
social, são automaticamente caracterizados como um habitante da periferia e todas as
generalizações que esse pertencimento territorial pode implicar na construção social do
estereótipo do sujeito, como alguém desprovido de consciência crítica, sucumbido pelas
contingências do seu entorno.
Como se não bastasse a discriminação sócio-econômica, a atribuição de “evangélico” se
apresenta para o morador das periferias como a possibilidade de uma discriminação
complementar. Seja como evangélico, seja como criminoso, essa sobrecarga simbólica opera
como mais um argumento para justificar a estagnação e o pertencimento do sujeito àquele
território. Um exercício de legitimação. Apesar das implicações negativas que essa sobrecarga
simbólica pode gerar, os elementos simbólicos motivam as classes populares a correrem o
“risco” de aderirem às igrejas evangélicas.
12
O culto em torno da pobreza e a releitura dos problemas por uma “ótica religiosa” não é característica
exclusiva de igrejas protestantes, mas são destacados aqui apenas no sentido de entender como o discurso propõe
uma nova ética sobre a vida dos indivíduos. Além de se tratar de uma informação genérica, pois dentro segmento
protestante, há denominações que enfatizam justamente o contrário: a riqueza material como consequência da
vida religiosa (Teologia da Prosperidade).
52
No processo de disseminação das doutrinas das igrejas evangélicas, há a influência de
elementos mais “visíveis”, como a larga utilização dos meios de comunicação, principalmente
pelas igrejas protestantes pentecostais. Por influência de missionários norte-americanos – os
pioneiros na utilização dessas estratégias – as igrejas evangélicas a partir do final da década
de 1970 começaram a buscar espaços nas emissoras de rádio e televisão como forma de
expandir a sua doutrina.
Devido ao alto custo dos horários na televisão, os primeiros programas foram
temporários. Essa situação só começa a mudar na década de 1980 com a organização das
primeiras igrejas neopentecostais13
e a compra da TV Record pela Igreja Universal do Reino
de Deus (IURD). Sem dúvida, a expansão midiática dos evangélicos, associada aos fatores
históricos e sociais já mencionados, contribuiu para a popularização desse segmento religioso
na cultura brasileira a repercussão da sua “ética” em outras esferas.
A disposição desses fatores, de modo algum, encerra os motivos que ocasionaram o
crescimento das igrejas evangélicas nas periferias das grandes cidades, mas apenas servem
como ponto de partida para compreender a dinâmica dessa “nova ordem” que se estabelece
através da religião, antes de analisar a sua construção em uma personagem cinematográfica.
A diferença da igreja evangélica em relação às religiões tradicionais é um movimento
análogo à releitura de identidades na pós-modernidade, construções outrora estáveis, mas que
mediante a afirmação de novos pertencimentos se apresenta de forma fragmentada e múltipla.
De alguma forma, a religião também se tornou um dos referenciais para esse sujeito “em
crise” consigo mesmo, além de ser uma possibilidade de reencontrar valores gregários que se
perderam com a modernização das grandes cidades e o isolamento entre os indivíduos.
Tendo em vista que a formação cultural brasileira é fruto do processo de colonização
com desdobramentos nos costumes populares, a ascensão de uma nova religiosidade popular –
como as igrejas evangélicas – interfere sobre essa formação primeira e engendra novos
processos de constituição de subjetividades.
Partindo das reflexões de Stuart Hall (2006; 2007) sobre o processo de fragmentação
das identidades na pós-modernidade, a constituição do sujeito não pode ser vista dentro de
perspectiva essencialista, mas sim estratégica e posicional, tendo como pressuposto a noção
13
Entre as principais representantes desse segmento estão, além da IURD: Igreja Internacional da Graça de Deus
(liderada por R. R. Soares); Igreja Renascer em Cristo (Apóstolo Estevam Hernandes); Igreja Mundial do Poder
de Deus (Apóstolo Valdemiro Santiago). Mesmo se tratando de apenas um segmento das igrejas protestantes,
adquiriram maior popularidade em virtude da visibilidade midiática. Atualmente todas possuem uma emissora
própria na televisão.
53
de que as identidades nunca são unificadas, antes cada vez mais fragmentadas, fraturadas, e
tampouco são singulares, mas sim construídas ao longo de discursos, práticas e posições que
podem se cruzar ou serem antagônicas.
Por isso, em lugar de uma lógica baseada em binarismos, as mudanças que o campo
religioso oferecem no Brasil demandam uma forma de pensar que contemple múltiplas
combinações, sem, no entanto, paralisar ou encerrar esse processo de constituição em uma
estrutura fixa. Uma alternativa para se pensar a constituição de subjetividades na
contemporaneidade – compreendida na pesquisa através da construção de personagens
evangélicas no cinema brasileiro – pode ser extraída do conceito apresentado por Félix
Guatarri (1996) de “modos de subjetivação singulares” ou “processos de singularização”
definido como:
[...] uma maneira de recusar todos os modos de encodificação preestabelecidos, todos
esses modos de manipulação e de telecomando, recusá-los para construir, de certa
forma, modos de sensibilidade, modos de relação com o outro, modos de produção,
modos de criatividade que produzam uma subjetividade singular. (grifo nosso,
GUATARRI & ROLNIK, 1996, p. 17)
Nesse sentido, a interpretação dessas personagens religiosas no cinema passa pelo
desafio de compreendê-las através de uma concepção de sujeito que vá além da noção de
identidade, considerada na perspectiva do autor como entidade, um espaço com pretensões
totalitárias e que, portanto, pode ser comparado à ideia de território conforme o trecho
abaixo:
O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele
é o conjunto de projetos e representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente,
toda uma série de comportamentos, investimentos. (grifo nosso, GUATARRI &
ROLNILK, 1996, p. 323)
Como parte do processo de construção de subjetividades, é preciso considerar que tais
territórios são constituídos pelo que os autores denominam de agenciamentos coletivos de
enunciação, ou seja, uma subjetividade cujo sentido não se encontra no interior do indivíduo,
mas é resultante de um processo coletivo, proveniente do conjunto de relações que se
efetivam no próprio socius.
Assim, ao observar as personagens na narrativa, apesar de sua apresentação aparecer
relacionada a um pertencimento religioso, sua construção é delineada pela rede de relações
que esta estabelece com outras personagens, com o ambiente no qual sua performance se
desenvolve, entre outras relações.
No caso específico das personagens evangélicas no cinema brasileiro, uma das
possibilidades de agenciamento para a sua constituição enquanto território está, justamente, na
54
associação do pertencimento religioso com um determinado lugar social: a periferia. Ao
mesmo tempo em que esta ligação reforça o lugar “social” da religião no Brasil, permite olhar
o pertencimento religioso como uma possibilidade de afirmação do subalterno.
Uma auto-afirmação buscada pelo sujeito que, tal como a criminalidade, envolve jogos
simbólicos e se desenvolve à revelia de qualquer reconhecimento social ou intervenção do
Estado. Aqui, serão pinçadas algumas características do pertencimento evangélico e como
este pertencimento constrói um esteio simbólico que serve de base para a criação de
personagens no cinema.
Percebe-se nos estudos sociológicos relacionados aos evangélicos no Brasil uma
preocupação taxonômica em definir origem, a distinção entre os grupos, destacar valores e
comportamentos adotados por cada doutrina protestante em uma tentativa de compreender o
fenômeno pela definição de categorias que, definitivamente, não abarcam a existência
múltipla e dinâmica dos fenômenos religiosos. Para fins enciclopédicos, este pode ser um
exercício produtivo, principalmente se considerada a velocidade com que surgem novas
igrejas evangélicas a cada ano no Brasil14
, entretanto, para os fins desta pesquisa, a
compreensão do que seja evangélico servirá na medida em que contribua para assimilar os
diferentes sentidos postos em movimento pelos personagens no cinema.
Não se trata de observar sua construção por uma lógica de correspondência entre a
personagem e o perfil do membro de uma determinada instituição religiosa, mas sim verificar
como essa construção é resultante de agenciamentos, apresentados no cinema por meio de
uma rede de relações estruturadas na narrativa e, em segundo plano, como essa personagem
constitui um efeito discursivo, resultante da repercussão desse fenômeno religioso na
produção cultura do país e fortemente relacionado à construção de grupos sociais periféricos
na ficção.
Entretanto, para se pensar a personagem evangélica no cinema é preciso acompanhar
também a trajetória de sentido desse pertencimento religioso. A noção de pertencimento do
sujeito a uma instituição religiosa, de natureza comunitária, baseada no consentimento de
determinadas regras, passa por um processo contemporâneo de deslocamento que afeta o
sentido de pertencimento local. Ocasionada por fatores como a globalização (ORTIZ, 2001) e
a larga midiatização do discurso religioso, a dinâmica de funcionamento da comunidade
14
De acordo com pesquisa feita no Brasil entre os anos de 1990 e 1992, a partir de registros do Diário Oficial,
uma nova igreja era construída para cada dia do ano (MAFRA, 2011, p. 51).
55
religiosa, nessa nova configuração, extrapola as fronteiras do local na qual foi engendrada e
desencadeia mudanças no processo de subjetivação.
Assim, se outrora, o pertencimento religioso poderia ser entendido como um território,
composto por determinados agenciamentos previstos no interior da comunidade religiosa, na
medida em que essa comunidade se expande para outros locais – sobretudo, através dos meios
de comunicação – observa-se um movimento de desterritorialização, ou seja, de abandono do
território anterior e a absorção de novos agenciamentos que operam, simultaneamente ao
movimento de desterritorialização, uma reterritorialização.
Assim, pode-se dizer que há um trânsito da comunidade religiosa, que não implica só
em um deslocamento físico, proveniente da expansão de templos e igrejas, mas em um
trânsito simbólico que se realiza a partir de sua repetição, como efeito discursivo, nas
produções audiovisuais, entre eles, o cinema.
A partir do momento em que as comunidades religiosas ganham visibilidade nos meios
de comunicação, principalmente através ação de programas ou emissoras vinculados a
instituições religiosas, há uma reterritorialização do discurso religioso pelos meios de
comunicação e produções da cultura – entre eles o cinema – multiplicando as possibilidades
de recepção e interpretação acerca do crescimento de igrejas evangélicas, não mais como
apenas uma opção religiosa dentre muitas, mas como um fenômeno social, na medida em que
opera influências sobre comportamento e opiniões.
Pensar esse processo de trânsito de sentido, da comunidade religiosa que se desloca,
repercute na construção das personagens evangélicas no cinema, pois as narrativas nas quais
são construídas tais personagens constituem esse deslocamento de sentido fundamental para a
nossa pesquisa. Acompanhar esse deslocamento, do qual o cinema brasileiro contemporâneo é
produto, bem como suas diferentes significações, ganha relevo não pelo movimento em si
mesmo, mas pela possibilidade de, a partir desse movimento, descobrir estruturas, discursos
que se consolidaram em nossa cultura por meio desses registros. Como um elemento dessa
estrutura está a relação da religiosidade com personagens habitantes das periferias urbanas.
Essa relação – religiosidade e personagens populares – não é um elemento peculiar ao
cinema contemporâneo, mas foi explorada nos primórdios do cinema moderno brasileiro,
sobretudo, em filmes do Cinema Novo, por se tratar de uma interface que possibilitava
discutir sobre questões sociais da realidade brasileira, entre eles, a alienação e a falta de
mobilização política. A grande diferença é que no cinema moderno a personagem periférica
56
evocava a uma coletividade, a classe à qual pertencia. Tratava-se, portanto, de personagens
coletivos e que, na maioria das vezes, ao trazer a religiosidade como parte de sua constituição
estavam vinculadas às classes populares15
.
Visto que essa personagem coletiva já não é possível no cinema contemporâneo – diante
da multiplicidade de pertencimentos do sujeito – a localização territorial, neste caso, a
periferia, ao tempo em que soa como resquício dessa relação anterior (religiosidade como
algo próprio às classes populares), apresenta-se como estratégia de retomar a religiosidade
enquanto questão social a ser problematizada. Uma retomada em que a religiosidade da
personagem não remete a um coletivo, antes figura como um elemento que compõe o
território no qual ela emerge – a periferia – e que, por consequência, perpassa a sua
constituição enquanto representação de um sujeito. E é pela associação de tais personagens
com os territórios periféricos, que nos aproximamos dos estudos sobre subalternidade.
O conceito de subalternidade ganha evidência com o uso do termo subalterno,
inicialmente em substituição a proletário – escolha feita por Gramsci para driblar a censura –,
e depois, com uma significação mais abrangente, em referência aos indivíduos marginalizados
e que não possuem representatividade política, nem a condição de fazê-lo por conta própria.
Mais do que alguém impedido de acessar os bens materiais de produção – em uma perspectiva
marxista – o subalterno se caracteriza por uma exclusão discursiva, entendida aqui como uma
subtração operada, circunstancialmente, pelo discurso hegemônico como forma de
invisibilizar o discurso do outro em suas diferenças e possíveis “ameaças” para a vigência da
hegemonia.
O contexto de surgimento desses estudos advém de discussões relacionadas ao pós-
colonialismo na Índia e a necessidade de fazer emergir o que foi escamoteado, menosprezado
pelo discurso hegemônico colonial. Entre os nomes de destaque, desta fase inicial do grupo,
está Gayatri Spivak, cuja obra mais conhecida é Pode o subalterno falar? (UFMG, 2010),
juntamente com Homi Bhabha e outros cujas reflexões vão além das circunstâncias referentes
ao contexto pós-colonial e contribuem para um pensamento crítico sobre o papel do
intelectual frente às questões que aborda, sobretudo, da intervenção deste para a afirmação de
grupos minoritários.
15
A exceção desse período, de acordo com Jean-Claude Bernadet (2003) é o documentário A opinião pública
(1967), realizado por Arnaldo Jabor, em que a religiosidade é abordada a partir do cotidiano de segmentos da
classe média.
57
No interior do grupo, um dos pesquisadores que analisa processos de subalternização
associado ao vínculo religioso é Partha Chartejee, que, a partir de comentários de Gramsci
sobre filosofia, entende a religião como “[...] uma fábrica comum partilhada pela elite e
semelhantemente pelo subalterno, reestruturada, até mesmo invertida pelo subalterno no
sentido de marcar a intenção da insurgência” (CHARTEJEE apud NOVETZKE, 2006, p.
104)16
.
Essa perspectiva em que a religião para o subalterno pode ser considerada uma
potencialidade de insurgência é incomum diante das primeiras personagens religiosas
apresentadas no cinema brasileiro, mas faz certo sentido quando se percebe que o campo
religioso desfruta de certa autonomia em relação a outros, pois não necessita da política, da
economia, cultura ou sociedade para se auto-legitimar ou explicar o sentido de suas
atividades.
Assim, as representações de religiosidade no cinema brasileiro apesar de passarem por
diferentes processos de significação – como se pode observar em alguns exemplos da década
de 1960 e 1970 – guarda como característica predominante em sua construção a tentativa de
representar o segmento mais pobre da população. E mesmo que o pertencimento religioso
reserve em si a potencialidade de uma insurgência, a personagem evangélica continua sendo
fruto de uma construção baseada no discurso hegemônico, o qual avalia um pertencimento
religioso como algo peculiar aos sujeitos periféricos. Um mecanismo que exemplifica como
sucedem processos de subalternização, visto que produzidas no interior no discurso
hegemônico, e que oblitera a emergência de outros discursos, reforçando a permanência
dessas personagens em uma condição de marginalidade.
Diante disso, a questão que se apresenta, contudo, é que o povo, apesar da reiteração de
discursos a seu respeito, não existe enquanto unidade no cinema brasileiro, pois a presença do
povo na narrativa fílmica é justamente marcada por uma ausência, que não é resultante de um
vazio existencial, mas é o fruto de um constante movimento, aberto ao devir, de modo que
não é possível flagrar o povo em um sentido unívoco ou em um determinado instante.
Nesse sentido, a mudança de olhar nos filmes da década de 1970, serviu para mostrar
que o povo não estava configurado enquanto instância política, homogênea e monolítica, mas
sob a forma de fragmentos. Uma discussão que no cinema contemporâneo se torna ainda mais
16
A argumentação de Chaterjee sobre esse assunto foi desenvolvida, originalmente, no texto Caste and
Subaltern Cosnciousness (Subaltern Studies VI, ed. Ranajit Guha, 1989, p. 169).
58
abrangente quando se considera a crise de identidade na pós-modernidade (HALL, 2006) e a
impossibilidade de se definir o sujeito a partir de um único viés ou parâmetro.
E é em virtude dessa complexidade, que a personagem evangélica no cinema não pode
ser analisada como mera representação de uma religiosidade popular, mas como uma criação
integrada a esses fragmentos do povo na produção cinematográfica brasileira e que deve ser
observada, também, a partir de uma compreensão sociológica e filosófica acerca dos efeitos
que esse novo pertencimento religioso opera sobre a construção de subjetividades e que, por
consequência, influenciam na composição de personagens ficcionais.
2.4. QUE EVANGÉLICO? PILARES PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA PERSONAGEM
RELIGIOSA
Geralmente, os estudos relacionados à religião na sociedade partem de uma matriz
comum de referências, baseadas no pensamento de Durkheim, Marx e Weber. Uma
constatação também apontada por Geertz17
e que pode ser entendida na medida em que a
religião tinha uma centralidade na cultura ocidental, na organização dos grupos comunitários,
na ação social do indivíduo, e que foi diminuindo à proporção que o progresso científico
dirimiu algumas das incertezas que justificavam a busca pelo divino.
Para o pensamento marxista a adesão religiosa pressupõe um processo de alienação que
impossibilita uma revolução da classe trabalhadora (LOIOLA, 2011). A religião, nessa
perspectiva, é definida sob os predicados de falsa consciência e ópio do povo. Já para Weber,
o pertencimento religioso pode ser compreendido pela transmissão de determinados princípios
de conduta que configuram uma ética – a ética protestante – que, em meados do século XVIII,
possibilitou em alguns países da Europa o desenvolvimento do capitalismo.
Embora se perceba no pensamento de Max Weber a influência do universalismo
kantiano – a cultura ocidental como a culminância de um processo evolutivo da civilização –
a sua investigação apresenta uma perspectiva diferente do pensamento marxista no quesito
religião, pois vai além da crítica baseada na luta de classes, mas busca compreender o
17
“No trabalho antropológico sobre religião levado a efeito a partir da II Guerra Mundial [...] continua a extrair
os conceitos que utiliza de uma tradição intelectual estreitamente definida. Existem Durkheim, Weber, Freud ou
Malinowski [...]. Praticamente ninguém pensa em procurar ideias analíticas em outro lugar – na filosofia, na
história, no direito, na literatura ou em ciências mais „exatas‟ – como esses homens fizeram”. (GEERTZ, 2008,
p. 65).
59
fenômeno de adesão religiosa além dos grupos, mas pelo viés do indivíduo, sem deixar de ter
implicações políticas.
Com essa concepção não se dispensa a existência de um sistema religioso baseado na
estrutura comunitária, entretanto, é na ação social18
do indivíduo que está o seu potencial para
o processo de transformação subjetiva e intervenção objetiva na dinâmica social.
Como qualquer religião, as instituições evangélicas também apresentam um padrão de
conduta que visa legitimar a sua doutrina. Um padrão que, mesmo não sendo normatizado e
consensual entre as diferentes igrejas, se manifesta através de seus adeptos e interfere na
relação destes com outros âmbitos da sociedade, como nos posicionamentos políticos.
O efeito da religião sobre outros segmentos da vida social foi apresentada por Weber,
em seu livro A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (2003), quando demonstrou que
a adesão ao protestantismo, entre empresários e trabalhadores dos países da Europa, foi
fundamental para uma mudança de mentalidade acerca da realização do trabalho e repercutiu
sobre o desenvolvimento do capitalismo.
Uma das maiores contribuições da sua obra está em observar como a ética protestante –
principalmente a difundida pelo calvinismo – apresenta uma representação acerca do trabalho
que favoreceu o espírito do capitalismo. Sob essa ética, a atividade laboral quando associada
ao conceito de vocação (beruf) adquire um novo significado para os adeptos da religião e
transforma-se em forma de prestar culto e ação de graças a Deus. A questão que se observa,
entretanto, é que, embora o conceito tenha surgido em um contexto religioso, a sua implicação
sobre a conduta do indivíduo produzia resultados que contribuíam para a manutenção do
sistema capitalista.
Assim, é preciso considerar que as ações do sujeito orientadas por princípios religiosos
tem um impacto vai além de quem a executa e permite uma compreensão mais complexa do
fenômeno religioso quanto às suas possibilidades de articulação com o tecido social. De modo
que, se a pergunta que inquietou Weber foi a de entender como a conduta religiosa havia
contribuído para o desenvolvimento do capitalismo, a nossa pergunta hoje é de até que ponto
a ética apresentada pela religião influencia na conformação de subjetividades.
18
Conceito utilizado por Weber e que se refere às ações que, quanto ao seu sentido, se baseiam na ação do outro
indivíduo, sendo necessário investigar as relações e conexões presentes para compreender os fenômenos sociais
(OLIVEIRA, 2008).
60
Saindo do contexto europeu e trazendo essa discussão para Brasil, pesquisas indicam
que a popularidade dos evangélicos no país é relativamente recente e remete, sobretudo, ao
final da década de 1980, período no qual a chamada bancada evangélica, constituída por
representantes políticos de diferentes denominações cristãs, ganha visibilidade juntamente
com os programas evangelísticos transmitidos através de meios de comunicação (MAFRA,
2001; MONTEIRO, 2012).
Dados do censo do IBGE (2010) apontam que as igrejas protestantes são as que
apresentaram maior crescimento ao longo dos últimos anos e constituem a segunda maior
religião em número de representantes. Apesar do crescimento numérico, a parcela de
evangélicos que pertencem à classe média é mínima e das pessoas que recebem até um salário
mínimo (63,7%), se declaram como evangélicos pentecostais.
O cruzamento dessas duas informações – a segunda maior religião país, mas cuja
maioria é proveniente de classes sociais periféricas – se revela fundamental para compreender
a forma como esse segmento religioso é reconhecido socialmente, pois mesmo
numericamente expressivo, a condição social da maioria de seus adeptos contribui para que
esse grupo social permaneça à margem de determinados processos de deliberação política e se
configure como uma minoria. E, nesse sentido, vale lembrar a definição qualitativa de
minoria, conforme apresentada por Lazzarato (2004):
A maioria em todos esses casos, não designa uma quantidade maior, mas antes um
padrão em relação ao qual as outras quantidades serão ditas menores. [...] Minoria, ao
contrário, designa antes um desejo, quer dizer, um movimento de um grupo que, seja
qual for o seu número, está excluído pela maioria, ou então incluído, mas como fração
subordinada em relação a um padrão de medida que faz a lei e fixa a maioria
(LAZZARATO, 2004, p. 149).
É também a partir desses dados sociais, que a própria religião protestante é
reconfigurada e, em detrimento do seu caráter de busca do divino, torna-se uma expressão
atribuída a um determinado perfil sócio-econômico – os pobres – situado em determinadas
localizações geográficas – as periferias. Com isso, o discurso da religião como um “suspiro da
criatura oprimida” diante da miséria real, e o “ópio do povo”, conforme o pensamento
marxista (MARX, 2010, p. 145), ganha legitimidade e acaba servindo como argumento para a
manutenção do discurso hegemônico.
O que está em questão, portanto, não é a situação da personagem evangélica como
representante de uma religião minoritária em confronto com outras religiões. Mas, a forma
como o sistema simbólico difundido pelas igrejas engendra novas subjetividades e gera
61
conflitos em relação às regras predominantes no seu entorno, neste caso, as periferias das
grandes cidades.
São nesses ambientes marcados pela omissão do Estado – e que serão reconstruídos pela
maior parte dos filmes produzidos no cinema brasileiro contemporâneo – que surge o desafio
de compreender, por exemplo, o conflito dessas religiosidades populares com o avanço da
criminalidade. São duas formas de pertencimento que partilham as precariedades de um
mesmo território, e que, no entanto, configuram ordens diametralmente opostas: de um lado o
“mundo do tráfico”, com suas regras, formas de adesão, lógica de funcionamento, e o de outro
o “mundo da religião”, com suas simbologias e promessas. Ambos, sob a regência de
símbolos, códigos específicos, se apresentando como possíveis alternativas de afirmação do
sujeito subalternizado no contexto das periferias urbanas.
Em uma análise das significações da violência no cinema brasileiro, Maurício Matos
(2010) destaca que no filme Falcão, meninos do tráfico (2006), como parte do contexto do
tráfico e do conjunto de relações que operam na construção da subalternidade, a posse da
arma está além da sua funcionalidade como instrumento de execução do outro, mas “significa
cumulativamente a possibilidade de matar o inimigo e de conseguir algumas meninas no baile
organizado pela facção” (grifo nosso, p. 23). De forma análoga, a exposição da Bíblia como
parte da caracterização de personagens evangélicos não remete a um status de
intelectualidade, mas remete a um hábito associado aos adeptos de uma determinada religião.
São símbolos, usados como marcas identitárias. Se para a sociedade, a formação desses
sujeitos é marcada por características específicas, compatíveis com as informações
disseminadas pelos meios de comunicação e indicadas pelas estatísticas, é através do cinema
brasileiro dos anos 2000 que essas personagens subalternas mostram que, apesar de ser um
fenômeno predominante nas periferias, a identificação com o evangélico não pode ser
definida pela via da mera representação, mas está em processo de invenção contínua, aberta a
múltiplas possibilidades.
Do ponto de vista socioeconômico, uma pesquisa empírica, realizada em meados da
década de 1990 e publicada no livro Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no
Brasil (2012), do sociólogo Ricardo Mariano, afirma que a geração de igrejas de formação
mais recente no Brasil é composta por protestantes pentecostais e neopentecostais, os quais,
juntamente, se concentram nos estratos mais pobres da população. Entre as igrejas
62
neopentecostais, a de maior visibilidade é a Igreja Universal do Reino de Deus, fundada ainda
na década de 1960, e dirigida pelo bispo Edir Macedo.
Apesar das semelhanças com outras denominações evangélicas, os neopentecostais se
distinguem em relação às demais igrejas do segmento por abandonar certos traços sectários e
ascéticos, até então, habituais de adeptos do protestantismo e tem um perfil que pode ser
resumido nas seguintes características: 1) ênfase na guerra espiritual contra o diabo; 2)
pregação enfática na teologia da prosperidade e 3) liberalização de usos e costumes.
Tais características não chegam a consolidar um quadro homogêneo que sirva de
referencial para compreender o comportamento dos evangélicos no Brasil, mas pelo fato de
estarem relacionadas às igrejas de maior visibilidade e apelo popular, são elementos que, de
uma forma ou de outra, são representados e reiterados através das personagens criadas na
ficção.
Além desse referencial proveniente da cultura predominante das igrejas protestantes
pentecostais e neopentecostais, outro pilar que pode servir de fonte para a construção de
personagens evangélicas na ficção advém da forma como a própria língua formal define esse
grupo religioso. Como exemplo, destacamos a definição que o Novo Dicionário Aurélio de
Língua Portuguesa (2000) traz sobre os termos protestante e católico:
Protestante:
(Do lat. protestante.) Adjetivo de dois gêneros. 1. Que protesta. 2. Relativo ao, ou
próprio do protestantismo. 3. Diz-se de partidários da Reforma que protestaram contra a
decisão da Dieta de Espira (1529). 4. Diz-se de membros de seitas não católicas da
religião cristã, com exceção dos ortodoxos (v. ortodoxo (5)). Substantivo de dois
gêneros. 5. Partidário da Reforma. 6. P. ext. Indivíduo protestante (4). (Cf. huguenote.
Sin., bras., pop. (nesta acepç.): crente, evangelista, nova-seita, missa-seca, bíblia, bode,
come-santo, frei-bode.) (Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 2000, grifo
nosso).
Católico:
(Do lat. ecles. catholicu < gr. katholikós, „universal‟.) Adjetivo. 1. Universal (1). 2.
Que pertence ao, ou professa o catolicismo: país católico. 3. Fig. Perfeito, certo, exato:
Defendeu-se de forma não muito católica, deixando dúvidas quanto à sua inocência. 4.
Fig. Bem-disposto; bem de saúde: Há tempo que ele não anda muito católico. (Us., em
geral, negativamente.). (...) Bras. Pop. 1. Não ser ou não estar de bom humor. 2. Não
ser tradicional, no comportamento, pensamento, etc. (Novo Dicionário Aurélio da
Língua Portuguesa, 2000, grifo nosso).
Como se pode observar, católico aparece como sinônimo de “universal”, além de
receber associações com “perfeito” e “bem-disposto”. No que diz respeito ao primeiro
atributo, percebe-se um contraponto entre universal e a imprecisão na origem do termo
evangélico. Nesse sentido, a predominância de atribuições positivas ao catolicismo não é de
causar estranhamento, antes nos reporta ao histórico dessa instituição no Brasil como parte do
63
processo de dominação da colônia e também do estabelecimento do que o filósofo Michel
Foucault (1993) diria ser um “regime de verdade”:
Cada sociedade tem seu regime de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe
e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem
distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como sanciona uns e
outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da
verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como
verdadeiro. (FOUCAULT, 1993, p. 10)
Por outro lado, para o protestantismo parecem restar acepções negativas como seitas19
,
visto ser seu oposto. Ao observar tais definições, percebe-se como os valores (dominantes)
incidem sobre a linguagem criando uma distinção hierárquica entre as diferentes
religiosidades.
Em alguns filmes do cinema brasileiro contemporâneo essa diferenciação pode ser
percebida discretamente. No filme Tapete Vermelho (Luiz Alberto Pereira, 2006), ao
acompanharmos o matuto Quinzinho (Matheus Natchgaerle), em sua busca pelas cópias dos
filmes de Mazzaropi, nota-se um contraste quando se compara a cena em que a personagem
entra em um templo evangélico e a cena de quando ele entra na Igreja de Nossa Senhora.
Enquanto na primeira, a ênfase está sobre a figura de um pastor que amedronta a personagem
ao afirmar que o cinema era do diabo, na segunda cena há outra espécie de dramaticidade em
que se vê a personagem acender uma vela e fazer o sinal da cruz, com semblante reverente,
sob a melodia do hino da santa. Por essa diferença de tratamento, fica demonstrada a
influência dos valores pressupostos nos referenciais apresentados.
Num jogo de esquecimento e lembrança das informações, a linguagem se apresenta
como um campo de disputa pelo poder usada em favor de um determinado discurso
hegemônico, como bem exemplifica os escritos de Nietzsche (1999, p. 19) em sua
“Genealogia da Moral”: “o juízo „bom‟ não provém daqueles aos quais se fez „bem‟! Foram
os „bons‟ mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento que
sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons”.
Fica exposto, assim, que o termo evangélico no Brasil não é compreendido a partir de
uma caracterização própria (diferença), mas em oposição ao catolicismo, enquanto religião
dominante. Por isso, surgem concepções caricatas de evangélicos baseadas, tão somente, em
aspectos da aparência, como o uso de um determinado tipo de roupa, a repetição de
19
De acordo com Ricardo Mariano (2012), a própria Igreja Católica em Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB) rejeitou o uso do termo para designar outras religiões “por considerá-lo pejorativo, ofensivo,
prejudicial ao movimento ecumênico” (MARIANO, 2012, p. 13).
64
determinados jargões – como aleluia, amém, glória a Deus – e comportamentos moldados por
uma forte conotação política de imposição de uma ideologia e sujeição de corpos.
A pesquisadora Maria Montes em seu livro A figuração do sagrado (2012) apresenta as
transformações do campo religioso brasileiro e reconhece a dificuldade em se definir o
segmento evangélico, tamanha a diversidade organizacional, teológica e litúrgica entre as
igrejas:
Assim, „evangélico‟ torna-se antes uma categoria „nativa‟, um rótulo identitário por
meio do qual, no grupo disperso, se demarcam fronteiras, incluindo-se ou não
determinados segmentos no interior do grupo de acordo com aquele que dele se
utiliza, no constante processo pelo qual se desconstroem e se refazem identidades
(MONTES, 2012, p. 30).
Considerando que a maior inserção de igrejas evangélicas no Brasil acontece nas
periferias e a criação de novas igrejas é descentralizada, independente da autorização de uma
organização maior, pode-se considerar que tais instituições, ainda que possuam divisões ou
fronteiras internas, não obedecem a uma rígida organização burocrática. Tal fator, ao mesmo
tempo em que repercute na rápida multiplicação de instituições, permite, no campo religioso,
um movimento de apropriação e releitura das tradições cristãs das classes populares.
Duas personagens evangélicas podem servir de exemplo para ilustrar esse processo de
descentralização das lideranças nas igrejas evangélicas. Uma delas é o Pastor Hernani do
filme Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios (Beto Brant, 2012), que assume a
liderança de uma instituição religiosa com base em suas próprias experiências pessoais com o
sagrado, e outra é a bispa Marisa, do filme Família Vende Tudo (Alain Fresnot, 2009), em que
a atriz Marisa Orth interpreta a si mesma, como se houvesse se convertido ao evangelho e se
tornado uma autoridade no segmento cristão.
Em contrapartida a essa flexibilidade na sua constituição formal, enquanto instituição,
as igrejas evangélicas se caracterizam por um forte entranhamento comunitário, se
disseminando rapidamente em bairros periféricos da zona urbana, antes mesmo de sua
expansão por meios de comunicação como rádio e televisão. Diante de uma sociedade
marcada pelo recrudescimento de valores comunitários, tais instituições religiosas tiveram,
então, a oportunidade de se apresentar como um resgate desses valores e uma alternativa a
esse esgarçamento de vínculos no tecido social, acabando por influenciar também na
constituição de novos pertencimentos e produção de novas subjetividades.
Como assinala Félix Guattari (2010), o fenômeno religioso atualmente não se trata
apenas de uma ideologia, mas de um:
65
[...] processo de constituição da subjetividade coletiva, que não é resultado da
somatória de subjetividades individuais, mas sim do confronto com as maneiras com
que, hoje, se fabrica a subjetividade. (GUATARRI & ROLNIK, 2010, p. 37)
Tais características entram em contraste com o conceito moderno de sociedade em que
se tem por referência indivíduos que vivem isolados uns dos outros e cujas relações são
mediadas não pela partilha de bem comum, mas por contratos sociais. Esse é um dos motivos
pelos quais as instituições religiosas tornam-se ambientes de resgate desses valores
comunitários que, provenientes de uma tradição recentemente constituída, combate o processo
de secularização na cultura e, ao mesmo tempo, oferece ao sujeito das grandes cidades um
amparo que o Estado, muitas vezes, não é capaz de lhe dar.
Ao considerar a religião também enquanto fonte de valores para o indivíduo é preciso
observar o fenômeno não só sob a perspectiva sociológica, mas filosófica. Nesse aspecto,
Georg Simmel (2009) apresenta a distinção entre os conceitos de religião e religiosidade.
Enquanto o primeiro seria um estado mental imanente, produto intencional da consciência, o
segundo seria uma predisposição da pessoa que exprime sua decisiva atitude espiritual diante
do mundo, também definido pelas seguintes palavras: “[...] uma pessoa que é religiosa por
natureza tem certas características inerentes que a fazem experimentar e dar forma à vida de
maneira diferente de alguém não religioso” (SIMMEL, 2009, p. 12).
Essas notas são importantes para assinalar a religião não somente como um sistema
simbólico, exterior ao sujeito, mas como constituinte de subjetividades na medida em que
condiciona o sujeito a “experimentar e dar forma à vida de maneira diferente”. Trata-se de ver
a religião além de uma perspectiva sociológica – em um contexto e comunidades específicas –
mas enquanto um pertencimento que afeta as convicções desse sujeito e tem o potencial de
intervir sobre suas ações individuais.
Mais uma vez, o que está em foco na discussão não é o interesse em desvendar os
mistérios, particularidades ou razões da fé cristã de base protestante, mas sim discernir as
condições históricas de organização do racionalismo ocidental (em sua forma moderna) e seu
impacto no desenvolvimento econômico e no processo de formação de valores.
Para nós, após séculos da Reforma Protestante, o desafio é entender como um segmento
religioso em ascensão no Brasil pode ser pensado como um novo eixo para a delimitação de
pertencimentos, formas de pensar e agir. Além das condições materiais de produção – numa
perspectiva marxista – como parte do processo de desenvolvimento dessa racionalidade, é
66
preciso admitir que sobre a conduta humana também pode haver a influência de forças
mágicas e religiosas:
As forças mágicas e religiosas e as ideias de dever nelas baseadas têm estado sempre,
no passado, entre as mais importantes influências formativas de conduta. Nos estudos
aqui coletados nos ocuparemos de tais forças (WEBER, 2003, p. 32).
Inclusive, foi a partir desse pensamento que intelectuais de esquerda no Brasil
fundamentaram o seu discurso político sobre o povo na década de 1960. Sobretudo em
produções do Cinema Novo, a crítica à Igreja Católica e outras religiões era acompanhada de
uma crença de que a filiação religiosa era um entrave para uma revolução popular e o próprio
desenvolvimento do país. Via-se no cinema um recurso para denunciar a condição alienante
das massas e favorecer com isso uma maior conscientização política.
Apesar do esforço, após a frustração do Golpe de 1964, os intelectuais foram levados a
rever tal posicionamento em relação às camadas populares e desafiados as suas
potencialidades, inclusive, em suas expressões religiosas.
Mesmo partindo de uma matriz comum ao catolicismo – religião cristã ocidental – as
religiões de matriz protestante emergem em um momento em que a Igreja – instituição
religiosa – perdeu a centralidade em relação ao Estado no sentido de regular as regras sociais
e, consequentemente, o vazio deixado por esta perda de centralidade leva a uma diminuição –
não o desaparecimento – de seu impacto sobre a organização social.
Como se pôde observar, as implicações que a religião exerce sobre o sujeito, a começar
pela sua vinculação a uma comunidade local, seu ajustamento às normas de um sistema
simbólico, não se encerram à dinâmica do campo religioso, antes também estão submetidas
aos processos de desterritorialização/reterritorização, confrontos com valores oriundos da
matriz religiosa hegemônica, etc.
Em meio a esse imenso e complexo tecido de relações é que emerge no cinema
brasileiro um tipo de personagem que, embora com referências diretas a um determinado
segmento religioso, permite acessar os diferentes modos pelos quais se engendram as camadas
populares no cinema contemporâneo e como a religião, articulada inicialmente como
elemento de identificação da personagem, territorializante, pode ser atravessada por múltiplos
agenciamentos, desterritorializando esse pertencimento e (re)significando-o.
Seja em uma composição mais estereotipada, seja em uma configuração paradoxal e
complexa, é partir do exame do conflito de algumas dessas personagens que pretendemos
67
lançar reflexões sobre modos de pertencimento e suas contribuições para compreender os
processos de identificação e construção de novas subjetividades.
68
3 EVANGÉLICOS NO CINEMA: REPETIÇÃO COMO DIFERENÇA?
Tendo como ponto de partida uma reflexão sobre a religiosidade no cinema brasileiro,
intercalada por uma discussão sobre as possíveis relações do sistema religioso com a cultura,
retornamos a argumentação para pensar o cinema brasileiro, entretanto procurando observar
como a religião, forjada e disseminada em comunidades locais, é apropriada e repetida, em
outras bases, por essa narrativa.
Não se trata de avaliar a verossimilhança das personagens evangélicas com as
representações midiáticas desse segmento religioso, mas a partir das condições que tornaram
possíveis a sua aparição no cinema brasileiro contemporâneo – conforme os aspectos
apresentados no capítulo anterior – atentar para as diferenças e novas possibilidades de
interpretação que sua construção ficcional nos oferece.
Um primeiro aspecto que nos chama a atenção nessa personagem é a sua apresentação a
partir de características relativas a uma comunidade religiosa específica. Por esse aspecto,
fomos levados a investigar os meios pelos quais o cinema brasileiro inseriu a questão religiosa
em parte de sua cinematografia. Um percurso que apontou para narrativas de abordagem
crítica e baseadas em personagens coletivos – também dicotômicos, se considerado como
pressuposto a predominância de um discurso político pautado na oposição de classes (povo x
elite).
Com as transformações políticos, as personagens coletivas no cinema brasileiro de
ficção deram lugar a personagens múltiplas, com referências mais segmentadas e articuladas a
determinados nichos e grupos sociais. Os problemas da sociedade abordados sob um contexto
de ascensão das minorias em suas novas formas de agremiação e pertencimento. Assim, as
personagens evangélicas se inserem nas narrativas contemporâneas como forma de encenar a
problemática religiosa no Brasil e os efeitos que a ascensão de uma nova comunidade
religiosa – neste caso, um novo sujeito figurado através da personagem – pode repercutir na
sociedade.
O seu reconhecimento na ficção cinematográfica acontece de forma sutil nas primeiras
produções, mas com uma presença mais evidente com o próprio processo de crescimento e
expansão das igrejas evangélicas entre as camadas populares.
69
Desde 1989 – ano de surgimento da primeira personagem no filme Superoutro (Edgar
Navarro) – até o período de realização dessa pesquisa foram constatados mais de vinte filmes
com personagens (que aqui consideramos como) evangélicas. Por isso, a descrição de
determinadas características ao tempo em que se faz necessária para que situemos o objeto de
pesquisa, também compromete um olhar mais abrangente, pois reduz perspectivas e
possibilidades de interpretar tal construção ficcional. Como forma de lidar com esse impasse,
adotou-se como parâmetro a disposição de determinados elementos conforme a sua reiteração
ou repetição nas diferentes personagens.
Em linhas gerais, foi possível observar que as personagens evangélicas apresentadas nos
filmes brasileiros se distinguem das demais personagens da narrativa pelas seguintes
características: 1) Utilização de trajes formais e o porte da Bíblia como acessório obrigatório;
2) Participação em reuniões com outros adeptos da religião (em uma ou mais cenas); 3)
Ênfase no discurso (fala) da personagem.
São características que perpassam as personagens em diferentes filmes – fato que
permite a sua identificação como evangélica – mas que também interagem com outros
elementos fornecidos pela narrativa ou por meio de outras personagens não-evangélicas.
Considerando essa permeabilidade da personagem em assumir diferentes contornos, mas
sendo identificada como a mesma em diferentes narrativas, a metodologia de análise terá
como ponto de partida a inspiração em dois conceitos apresentados por Gilles Deleuze:
diferença e repetição.
O uso do termo repetição, primeiramente, implica observar até que ponto as
personagens evangélicas – entendidas, a partir do panorama construído sobre a religiosidade
no cinema brasileiro são resultantes de um processo de desterritorialização do pertencimento
religioso forjado nas comunidades reais e reterritorializadas no cinema, um deslocamento
que ressignifica esse pertencimento religioso a partir de suas falas e performances.
Por outro lado, a repetição diz respeito à possibilidade das personagens evangélicas
ecoarem, ou refletirem, na contemporaneidade, vestígios de um tratamento dado à
religiosidade em outros períodos do cinema brasileiro. E é desse aspecto que surge o
questionamento: até que ponto essa repetição, deflagrada pelas personagens em relação às
comunidades religiosas, compõe uma diferença, no sentido de permitir a manifestação desse
outro? Mesmo se tratando de uma personagem religiosa que retrata uma diferença, a
predominância de estruturas, formas de pensar a religiosidade no cinema brasileiro segundo
70
determinados parâmetros acaba, muitas vezes, por limitar a manifestação dessa diferença.
Assim, o que seria uma repetição em outras bases, se torna repetição das mesmas estruturas
através de personagens cuja diferença é apenas uma variação contemporânea.
Assim, se por um lado a personagem evangélica no cinema brasileiro contemporâneo
pode ser pensada pelo viés da diferença – considerando os elementos e características que as
distingue de outras personagens – ao ser confrontada com o tratamento conferido ao tema
religiosidade em filmes brasileiros de outros períodos, também pode ser avaliada como
repetição dessas abordagens, na medida em que retoma elementos, como por exemplo, a
associação do pertencimento religioso com sujeitos provenientes das classes populares1.
Essa parte da pesquisa, portanto, se debruça sobre o processo de transição, ocorrida no
cinema, em decorrência de mudanças no campo religioso brasileiro e a influência deste sobre
a constituição de subjetividades, partindo, primeiramente de um mapeamento das principais
personagens evangélicas registradas no cinema brasileiro contemporâneo para, em seguida,
observar como estas, em sintonia com essas mudanças, também passaram por transformações
dando corpo a personagens conflituosas, fraturadas que, mesmo repetindo estruturas
relacionadas à própria formação cultural brasileira, se consolidavam como diferença.
Diferença, não somente por promover rupturas às construções estereotípicas, mas por
posicionar o cinema brasileiro como um campo de experimentação narrativa cujas invenções
permitem refletir acerca de fenômenos sociais complexos ainda em processo na sociedade
brasileira.
3.1 A DEVOÇÃO QUE SE INDIVIDUALIZA: DA TRADIÇÃO COLETIVA AO SUJEITO
PÓS-MODERNO
Embora as diferentes formas de religiosidade convivam simultaneamente, percebe-se na
trajetória do cinema brasileiro uma abordagem das manifestações populares a partir da forte
influência ideológico-política do período em que os filmes foram realizados. Enquanto os
filmes dos anos 1960-70 traziam o pertencimento religioso associado a um vínculo
comunitário – em sintonia com um certo ideal político de revolução social a partir de um
1 Segundo a pesquisadora Dra. Maria do Socorro Carvalho – na ocasião de defesa dessa dissertação – esse
processo de retomada de elementos que o cinema brasileiro contemporâneo apresenta também talvez seja porque
a periferia urbana, hoje, cumpra um papel semelhante (como tema e espaço cultural) ao Nordeste no Cinema
Novo.
71
processo democrático de conscientização generalizada – nos filmes posteriores, após o
período da retomada, o vínculo religioso se personaliza passando a ser a causa de um
indivíduo, não mais de um coletivo. Embora imageticamente tenhamos a igreja e os seus
membros, o que está em questão não é mais a escolha do sujeito apontando para uma
coletividade, mas para uma trajetória particular, específica.
Tal mudança, além de ser reflexo de uma relativa perda de ideais políticos coletivos –
um sintoma que interage diretamente com as circunstâncias históricas nas quais os filmes são
produzidos –, também é proveniente de um processo de fragmentação das identidades, de
modo que mesmo que um indivíduo declare determinada religião, já não se pode afirmar que
ele é alienado, pois o seu pertencimento está aberto à multiplicidade. Com essa abordagem
pretende-se justificar o porquê de não encaminhar a análise pelo viés da “representação” –
embora a reprodução de estereótipos conduza a isso – mas sim por uma análise crítica de
personagens contemporâneas criadas pelo cinema de ficção e da possibilidade que elas
oferecem de lançar um olhar múltiplo acerca do pertencimento religioso, para além do
demarcado discurso de “ópio do povo” e fruto de alienação.
Para refletir sobre esse processo de individualização da devoção religiosa no cinema,
vamos lançar mão de alguns conceitos que permitem pensar sobre a constituição de
pertencimentos do sujeito na contemporaneidade, entre eles o conceito de translocalidade.
Partindo da noção de pertencimento a um território, Arjun Appadurai (1997) apresenta esse
conceito como parte da discussão sobre a crise vivenciada pelo Estado-Nação quando, no
advento da modernidade, este não foi capaz de acompanhar mudanças relativas à apropriação
e significação do território. Tal crise advinha justamente do fato de o Estado valorizar o
território por parâmetros de estabilidade e fixidez – por essa razão, as leis, os impostos, a
necessidade da ordem – enquanto para o sujeito o território envolvia o direito ao “movimento,
ao abrigo e à subsistência” (APPADURAI, 1997, p.37).
Essa divergência se se torna mais clara a partir de novas formas de se produzir e
compreender a localidade no contemporâneo a qual se relaciona à ideia de: “[...] mundos de
vida constituídos por associações relativamente estáveis, histórias relativamente conhecidas e
compartilhadas e esferas e lugares reconhecíveis e coletivamente ocupadas” (APPADURAI,
1997, p. 34). Por essa razão, o contexto globalizado, desafia a ordem do Estado-Nação e gera
o que o autor denomina de translocalidades, ou seja, localidades que, embora pertencentes ao
território de um determinado Estado-Nação, não se ajustam às suas ordenanças, pois são
72
constituídas por populações circulantes, pessoas de diferentes procedências, são “zonas de
fronteira”. Locais que abrigam trânsitos.
[...] todo grande campo de refugiados, albergue de imigrantes ou bairro de exilados e
trabalhadores de imigrantes é uma translocalidade. Muitas cidades estão se tornando
translocalidades, substantivamente divorciadas de seus contextos nacionais. (grifo
nosso, APPADURAI, 1997, p.36)
Embora construído a partir de uma perspectiva geográfica de território, o conceito ao ser
trazido para a nossa discussão visa empreender uma nova compreensão acerca da constituição
de subjetividades no contemporâneo. Sendo os sujeitos territórios em potencial, o conceito de
translocalidade serve aqui como metáfora para entender que a disposição das personagens
evangélicas no cinema brasileiro contemporâneo não são localidades estáveis, projetos de
identidade referente a uma religiosidade popular, mas são translocalidades, pois embora
constituídas a partir de características de uma localidade específica – uma comunidade
religiosa que as identifica – são compostas pelo conjunto de relações que estabelecem na
narrativa.
É assim que a personagem evangélica Teodoro (Contra Todos, Roberto Moreira, 2004),
ao mesmo tempo em que pertence a um sistema de valores tradicionais, locais, comunitários,
apresenta características que transpõem esse localismo, enquanto produto da indústria
cultural. É a partir dessa dupla perspectiva, de sujeitos habitantes de uma zona fronteiriça, que
se pretende observar a performance e construção dessas personagens no cinema brasileiro.
Mesmo fora da ficção, o pertencimento religioso é uma localidade instável. Para
Sanchis (1997), o ator religioso contemporâneo é marcado por uma relativização das certezas,
o que tornaria a busca religiosa mais suscetível a experiências, testemunho, do que por
motivações racionais. Diante disso, o indivíduo passa a se relacionar com o campo religioso
na expectativa de “compor um universo-para-si” e não está disposto a se vincular a nenhuma
instituição, mas a partir da diversidade que o campo (ou mercado?) lhe oferece, construir ele
mesmo um universo de significação.
No que tange a esse deslocamento do pertencimento religioso, a sua translocalidade
também se manifesta por mudanças paradigmáticas no próprio campo religioso. Assim,
embora a pós-modernidade confirme valores da modernidade a partir da valorização da
autonomia do indivíduo – escolha pessoal – ela reapresenta “paradigmas pré-modernos” como
“afetividade, participação, encantamento, magia”. Nesse movimento dialético, a influência da
razão moderna é apresentada como algo danoso ao campo religioso, pois motivaria uma
corrente “anti-sincrética”. Segundo Sanchis, essa modernidade entre os evangélicos
73
pentecostais se daria por “adesões pessoais feitas de rupturas de um status quo ambivalente” e
nas religiões afro com o “abandono da ideia de religião étnica e transformação do candomblé
em religião universal, dessincretização [...]” (SANCHIS, 1997, p.40). Tais posicionamentos
são atribuídos ao pensamento moderno, mas de forma específica, não seria uma reação à
concorrência que se instalou no campo/mercado religioso?
Por outro lado, essa modernidade também se articula com a tradição, pois mesmo
quando o indivíduo assume um novo posicionamento religioso – neste caso protestante – ele
já pode ter tido uma trajetória em uma religião tradicional. Um exemplo institucional dessa
articulação é a Igreja Universal do Reino de Deus que reprova o uso de imagens em seus
rituais, mas apresenta o sal grosso como amuleto. Assim, onde se esperaria uma ruptura ou
abandono, há uma apropriação, ressignificação, uma articulação entre valores pré-modernos
(tradicionais), modernos (escolha pessoal) e pós-modernos (busca de bem-estar e
prosperidade).
Engajada na missão de difundir a mensagem religiosa, as igrejas evangélicas também
veem nos meios de comunicação a possibilidade de conquistar novos membros. Entretanto, a
cobertura midiática promove mais do que uma extensão da igreja além das suas fronteiras
físicas, mas um deslocamento da experiência com o sagrado.
Em estudo feito a partir dos diferentes formatos de permanência da religião na esfera
pública, Antônio Fausto Neto (2004) pontua que: “As „velhas igrejas‟ deslocam-se [...] do seu
habitat para ambientes em que a cultura midiática serve como referência para a organização
das novas estratégias e táticas das igrejas, hoje” (NETO, 2004, p. 141).
Na concepção do analista, os programas televisivos dirigidos por instituições religiosas
contribuem para novas formas de permanência da religião na esfera pública, além de dar
corpo à constituição de um novo conceito de comunidade, organizada via processo midiático
e que se instaura em novos processos de disputa de sentido, agora, além do campo religioso.
Deste modo, observa-se que, assim como o campo religioso incorpora elementos da cultura
para sua atualização, até como estratégia para conquista de novos membros; a cultura também
incorpora o campo religioso, em suas disputas simbólicas, a partir desse processo de
midiatização.
Ainda sobre a inserção religiosa nos meios de comunicação, Hoover (apud NETO,
2004, p.143) assinala que “na vida contemporânea, os modos de ser religioso estão saindo da
esfera protegida da instituição religiosa e da tradição, e se dirigindo para o solo aberto do
74
mercado simbólico”. É dessa forma que pensar a constituição do sujeito a partir do vínculo
religioso se amplia e ultrapassa o território das comunidades religiosas instituídas e se abrem
para o universo de significações disponíveis através das diferentes produções midiáticas,
religiosas e não-religiosas.
É a esse processo de expansão que denominamos como um trânsito do local – das
comunidades instituídas – para o translocal – das novas comunidades religiosas engendradas
pelos meios de comunicação e que influenciam na construção discursiva das personagens
evangélicas apresentadas no cinema a partir da disponibilização de novas imagens do
evangélico nesse mercado simbólico. Esse translocal religioso também pode ser
compreendido a partir do conceito de “pós-religião” apresentado por Maurício Matos (2012)
nos seguintes termos:
O pós-religioso relaciona-se com a construção globalizante do culto religioso na/pela
televisão no Brasil e em toda a América Latina, cuja característica é a emergência de
um sistema mediático de produção de representações de imagens sacralizadas, que
ultrapassa as territorialidades de suas tradições e protocolos de funcionamento,
expandido o discurso religioso simultaneamente a diferentes lugares (MATOS, 2012,
p. 169)
A partir desse contexto da religião mediatizada, processo ao qual o cinema dá
continuidade através das personagens, “a autonomia do local é redimensionada pelo consumo
de mercadorias provenientes dos mais diversos lugares, pelas imagens televisivas” (LOPES,
2012).
A pesquisadora Maria Montes (2000) dá uma válida contribuição para entender a
expansão das igrejas evangélicas no Brasil ao recordar alguns episódios midiáticos ocorridos
a partir da década de 1990, como: o “chute na santa” (pastor Sérgio Von Helde da IURD),
reportagens sobre os métodos de recrutamento de pastores na Universal, a minissérie da TV
Globo retratando o pastor evangélico, e resume tais acontecimentos como um “rearranjo
global do campo religioso no Brasil” desencadeado por uma nova visibilidade no interior do
protestantismo histórico proveniente das chamadas igrejas evangélicas (MONTES, 2000, p.
12). Na perspectiva da autora, tais eventos são efeitos das “ambivalências da modernidade”
que atingiram o universo religioso e se evidencia pela ampliação e diversificação do “mercado
de bens de salvação” e também incidem sobre o indivíduo e as escolhas morais que realiza.
Por outro lado, se as ambivalências da modernidade se processam dessa maneira no
campo religioso brasileiro é porque a sua constituição eminentemente simbólica possibilita a
sua ancoragem à cultura e à vida social influenciando práticas, valores, regras de conduta, etc.
compondo um “sistema” geralmente acionado em resposta a situações limites.
75
Com a saída formal da esfera pública, a Igreja Católica se viu diante da necessidade de
realizar transformações em sua estratégia de ação, aderindo ao discurso de “opção pelos
pobres”, organização das Comunidades Eclesiais de Base e ações baseadas na Teologia da
Libertação, movimento que eclodiu no interior da Igreja Católica, em meados da década de
1970/80, que defendia a necessidade de conscientizar politicamente as camadas populares
para operar uma transformação social. Apesar desse esforço, a autora aponta que:
[...] uma grossa massa de fiéis, ricos assim como pobres, não mais se reconheceria
nessa nova Igreja, vista por muitos como incapaz de lhes fornecer respostas quando
as exigências da fé não encontravam uma equivalência no plano da política, como ao
precisar de conforto diante das agruras da dor íntima, da perda pessoal ou da carência
espiritual, no âmbito da vida privada. Sentindo-se abandonados à própria sorte, muitos
deles se bandearam para o lado do protestantismo então em plena expansão, e das
religiões afro-brasileiras, que enfim conquistavam reconhecimento e legitimidade no
campo religioso no Brasil (grifo nosso, MONTES, 2009, p. 22).
Por fatores como esse, o protestantismo se tornara uma “ameaça” ao catolicismo no
Brasil, no começo do século XX, com a chegada das igrejas pentecostais. Com essa nova
modalidade de protestantismo, há mudanças importantes como a ênfase na mensagem da
“cura divina” - dirigindo a atenção para a dimensão privada da vida individual - a utilização
dos meios de comunicação de massa como instrumento de evangelização e uma organização
administrativa não hierarquizada em que os próprios fiéis poderiam ser porta-vozes da
mensagem de salvação.
Ao tempo em que a “cura divina” ia de encontro aos valores tradicionais dos migrantes
presentes nas periferias das grandes cidades, estas instituições também reconstituiam “laços
de solidariedade primária”, que se perderam com a migração, “dando-lhes enfim o sentimento
de pertença que lhes falta na grande cidade, absorvendo-os numa comunidade” (MONTES,
2000, p. 27). Nessa perspectiva, a autora entende que a filiação a essas igrejas pentecostais
seria para os fiéis uma forma de “subversão simbólica da estrutura tradicional de poder”, por
rejeitar os vínculos e a hierarquia tradicionais do catolicismo, religião dominante.
Na década de 1970, surgem as igrejas neopentecostais (IURD, Internacional da Graça e
Renascer, as mais conhecidas) que reservam como principal característica o uso “extensivo e
agressivo” dos meios de comunicação (rádio e TV) gerando as “igrejas eletrônicas”.
Considerando que as igrejas pentecostais e neopentecostais têm presença significativa
nas grandes periferias urbanas, é preciso considerar que estes lugares apresentam diferentes
“redes de sociabilidade”/ formas de agenciamento que definem diferentes sentidos a este
pertencimento. Nesses contextos, marcados fortemente pela violência, a autora sinaliza que as
igrejas protestantes são menos abertas à alteridade; por outro lado, o uso das mídias multiplica
76
de forma muito mais eficaz o seu proselitismo. Assim, embora as instituições sejam as
responsáveis pela sistematização e transmissão de crenças, elas convivem com outros
sistemas de valores e práticas ritualizadas engendrados nas mais diversas dimensões da vida
social.
A partir dessa interação é que se constituem as “comunidades de sentido”, lugar a partir
do qual a experiência do mundo se torna interpretável e define o lugar da religião. A adesão
religiosa não é apenas uma escolha individual, mas é a pressão da comunidade ou a procura
da comunidade que vai influenciar sua escolha religiosa incidindo, também, sobre o
comportamento do sujeito:
[...] se mudam às vezes de forma radical alguns hábitos e formas de conduta dos fiéis
pela adesão à mensagem difundida pelas igrejas do pentecostalismo de conversão
„neoclássico‟ – as vestimentas sóbrias padronizadas para homens e mulheres no culto
dominical, o corte de cabelo e o penteado que passam a se conformar a um mesmo
estilo uniforme, estranho às modas do momento, ou a recusa de participar de redes de
sociabilidade que davam ocasião a divertimentos profanos e deixar-se influenciar
pelos meios de comunicação de massa que os difundem [...]. (MONTES, 2000, p.100)
Munidos de tais pressupostos é que a construção das personagens evangélicas no
cinema, não podem ser consideradas como mera representação, cópia, ou reflexo desses
processos, mas como uma maneira que a ficção encontra, pela linguagem cinematográfica, de
apresentar, através de subjetivadas figuradas pelas personagens, interpretações e possíveis
leituras acerca desses fatos.
3.2 DA CONSTRUÇÃO DE PERSONAGENS NO CINEMA
Para analisar as personagens no cinema, é necessário trazer algumas considerações
referentes aos conceitos relacionados ao estudo de personagens na tradição da crítica. Um dos
primeiros a pensar na personagem foi Aristóteles. Ao discutir a poesia lírica, épica e
dramática, o filósofo em suas reflexões se preocupava não só com o que era imitado em um
poema, mas como a forma de lê-lo e os próprios meios utilizados pelo poeta interferiam na
sua expressão. Dele vem uma compreensão ético-representativa da personagem, enquanto
uma construção que é, ao mesmo tempo, uma criação regida pelas leis particulares do texto,
mas também um reflexo da pessoa humana. Assim, a encarnação de papéis na cena teatral,
por um ator ou uma atriz é uma perspectiva herdeira da concepção aristotélica.
Em sua obra mais conhecida Poética, Aristóteles chega a comparar a figura do poeta
com a de um historiador, pela habilidade em narrar acontecimentos com o diferencial de que o
poeta não teria o compromisso de narrar o que acontece, mas o que poderia acontecer, a partir
77
de uma composição das possibilidades. Por extensão desse conceito, a personagem seria um
“ente composto pelo poeta a partir de uma seleção do que a realidade oferece, cuja unidade e
natureza só podem ser conseguidas a partir dos recursos utilizados na criação” (grifo nosso,
BRAIT, 1985, p. 24).
De forma semelhante, embora o cinema transmita a impressão de realidade através da
caracterização verossímil de suas personagens, a narrativa apresentada nada mais é que uma
seleção – entre várias possíveis – de elementos da realidade. No caso das personagens
evangélicas, mesmo reservando semelhanças com a realidade como a forma de vestir, a
pronúncia de jargões e até mesmo os valores não passam de uma combinação de elementos
selecionados. Isto posto, valeria então investigar quais fatores que interferem nesse processo
de seleção que constitui a personagem e porque o emprego de um determinado conjunto de
elementos se torna predominante em detrimento de outras possibilidades.
Uma primeira pista para pensar em tais critérios foi oferecida por Horácio, ao ver a
personagem além do conceito aristotélico de imitação, mas atentar para o papel moralizante
das construções ficcionais. Deste modo, as personagens na Idade Média, por exemplo,
poderiam até imitar pessoas da época, mas traziam consigo modelos humanos baseados nos
ideais cristãos. Tal compreensão, marcada pelo período histórico no qual foi concebida, ainda
pode ser observada em diversas narrativas contemporâneas, entre elas, a produção
cinematográfica erigida sob a influência da cultura ocidental e seus valores.
A partir de metade do século XVIII, em meio aos romances voltados para o público
burguês e a construção de seres fictícios como projeções do escritor, surge uma visão
psicologizante da personagem enquanto uma representação do universo psicológico do seu
criador. Já no início do século XX, graças a contribuições dos estudos de Gyürgy Lukács
(1920) e E. M. Foster (1927), a personagem a partir do sistema da obra ganha a classificação
em tipologias como personagens planas (flat), construídas com base em uma única ideia ou
qualidade e personagens redondas (round), definidas pela sua complexidade.
Em 1955, chega ao Ocidente outra tendência de estudo da personagem, influenciada
pelo formalismo russo de Victor Erlich, que ficou conhecida como concepção semiológica da
personagem, por compreender a personagem como um signo dentro de um sistema de signos
que constitui a própria trama. É dessa linha de pesquisa que surgem novas denominações
como personagens referenciais, cuja interpretação depende do grau de participação do “leitor”
na cultura; personagens embrayeurs, adquirem sentido na relação com outros elementos da
78
narrativa e personagens anáforas, apreendidas a partir da rede de relações mobilizadas pela
obra.
Tais informações são apresentadas por Beth Brait em livro intitulado A personagem
(1985) e ao tempo em que consolidam um breve histórico das teorias relacionadas à
personagem de ficção, também permitem uma compreensão mais alargada de suas
possibilidades na ficção cinematográfica. Partindo de uma referência especializada e mais
contextualizada com o universo literário, a autora resgata do Dicionário Enciclopédico de
Ciências da Linguagem (Oswald Ducrot e Tzertan Todorov) a definição da personagem como
um problema linguístico, inexistente fora da linguagem.
Pode-se resumir, portanto, que há dois fatores que amarram a personagem: a sua
aproximação com a figura humana, pessoa, e a sua dependência em relação à linguagem.
Transportando essas considerações para o universo cinematográfico, entendemos que não é
possível dissociar a construção da personagem de uma figura humana que a incorpore, neste
caso, o ator ou a atriz, tampouco desconsiderar os efeitos dos recursos da linguagem
cinematográfica, como os movimentos de câmera, angulação, montagem, entre outros, sobre a
construção da personagem. Com isso, a personagem da ficção ao mesmo tempo em que é
reprodução – imita a realidade – é invenção, na medida em que “percorre as dobras e o viés
dessa relação e aí situa a sua existência”. (BRAIT, 1985, p.10).
Como exemplo dessa reprodução-invenção de seres humanos, a autora faz um breve
comentário sobre a obra Retirantes (1944), de Cândido Portinari, obra em que o pintor ao
distorcer a realidade do sertanejo, não representando-a de forma mimética, acentua a
gravidade da escassez no sertão nordestino. Uma invenção que “faz explodir múltiplos
ângulos dessa realidade” (BRAIT, 1985, p.13). Nesse sentido, embora seja necessário admitir
que a personagem tenha como parte de sua definição o caráter representacional, nesta
pesquisa privilegiamos a construção das personagens evangélicas no cinema brasileiro
contemporâneo atentando para o que lhes sobressai de elemento inventivo.
A despeito da semelhança de tais personagens com os evangélicos presentes nas
emissoras de televisão ou, até mesmo, nas comunidades onde as igrejas se estabelecem, tais
personagens são, antes de tudo, invenções do cinema brasileiro contemporâneo que, através da
linguagem cinematográfica, fazem explodir diferentes ângulos acerca da realidade brasileira.
De acordo com Bernadet (2007, p. 181), uma das formas de entender a personagem no
cinema é “através de sua ação ou de suas reações ao mundo exterior que se traduzem em
79
gestos e ação”. Em meados da década de 1960, época em que esse texto foi originalmente
escrito, as personagens eram revestidas de uma forte estrutura que possibilitava a sua
identificação dentro de um tipo social. Entretanto, com a pulverização de temas e estilos do
cinema brasileiro contemporâneo torna-se difícil flagrar tais estruturas.
A aparição de tais personagens no cinema também integra um processo de repetição da
comunidade religiosa como diferença, no sentido que lhe foi atribuído no pós-estruturalismo
de Jacques Derrida (SANTIAGO, 1976). Para Derrida, um dos principais nomes da corrente
pós-estruturalista, a diferença (escrita pelo autor como differance, em uma modificação
deliberada da palavra em francês, difference) se constitui a partir da linguagem na medida em
que esta se apresenta diferida do que representa no tempo e no espaço. Embora o autor se
refira à palavra escrita – em distinção com a palavra falada, que é marcada pela presença –
julgamos o conceito como válido a considerar que o cinema se organiza por uma escrita
própria, a linguagem cinematográfica, e esta relação de disparidade, inevitavelmente percorre
a constituição das personagens em relação ao que representam.
Como um espelho estilhaçado, cuja imagem refletida está mais próxima de uma
distorção do referente, a comunidade religiosa no cinema, representada através de
personagens, atualiza-se como repetição da diferença em relação ao modelo da comunidade
local, no que tange a alguns valores difundidos pelo discurso religioso das igrejas.
Assim, ao mesmo tempo em que a representação cinematográfica repete a diferença,
enquanto uma criação artística dispõe de autonomia para apresentar uma construção que não
corresponda necessariamente à concepção tradicional, comunitária, de ser evangélico, e pelo
viés da invenção abrir novas perspectivas de pensar o fenômeno de emergência dessa
personagem para além das fronteiras da ficção. É a criação cinematográfica servindo como
metáfora para se pensar o sujeito da contemporaneidade em suas múltiplas formas de
pertencimento.
Em um primeiro momento, serão apresentadas personagens evangélicas que compõem
um histórico na cinematografia brasileira e que pela reiteração de determinadas características
comuns consolidam estruturas. Em seguida, já de posse dessas estruturas, sedimentadas ao
longo dos anos, faremos um breve percurso sobre as personagens que no interior dessa
trajetória iniciam um processo de fissura dessas estruturas e permitem pensar a personagem
evangélica no cinema brasileiro em uma perspectiva mais complexa, em um movimento de
80
transição da noção de identidade – que tais personagens, em princípio, parecem representar –
para um processo de fragmentação das estruturas e construção de novas singularidades.
3.3 PERSONAGENS EVANGÉLICAS NO CINEMA CONTEMPORÂNEO
Com base em Francis Vanoye (2012), analisar um filme é decompô-lo em elementos
constitutivos, procedimento que se concretiza primeiro com uma descrição pautada nos
elementos obtidos a partir da desconstrução da obra, seguido de uma interpretação, ou seja, a
reconstrução da obra a partir de determinados parâmetros.
Um desses parâmetros se refere ao entorno social, cultural, histórico nos quais os filmes
são produzidos e que influenciam na escolha de determinados temas e abordagens. Entretanto,
outro parâmetro, não menos importante para a análise fílmica, está relacionado ao próprio
universo cinematográfico, o que o mesmo autor denomina de contexto fílmico.
Tal contexto se refere à tradição ou forma fílmica a que o filme se vincula ou é herdeiro,
bem como, características de estilo que predominam em um dado período ou como parte da
produção de um diretor específico, informações que auxiliam no exercício analítico, na
medida em que oferecem pistas para compreender a construção narrativa apresentada.
Nesse sentido, os filmes brasileiros contemporâneos são herdeiros de um estilo que se
convencionou chamar de cinema moderno (DELEUZE, 2005; STAM, 2003; XAVIER, 2001),
que tem como referencial os filmes neo-realistas italianos produzidos no período pós-guerra,
nos quais “[...] a intriga importa menos do que a descrição da sociedade (subdesenvolvimento
econômico, desemprego, problema dos campos, condição dos velhos, das mulheres, das
crianças)” (VANOYE, 2012, p.32).
Para Ismail Xavier (2001, p. 10), o cinema moderno no Brasil tem inicio na década de
1950 a partir de um diálogo não só com o neo-realismo italiano, mas também com escritores
brasileiros, se tornando a referência mais rica na história da cinematografia brasileira pela sua
capacidade em abrigar uma pluralidade de tendências. Tal característica permanece mesmo
décadas depois, quando, após a retomada na década de 1990, a variedade de estilos entre os
filmes produzidos não permitia a caracterização de uma personalidade para o cinema
brasileiro. Isso também se dava em virtude de mudanças na auto-imagem dos próprios
realizadores como assinala Xavier no seguinte comentário:
Não vivemos mais o tempo em que o cineasta se via como portador de um mandato
[...] Conhecemos os rumos da cultura e da política nos últimos anos que resultaram,
81
para o cineasta brasileiro, nesse sentimento de perda de mandato, de fim daquela
utopia de cinema moderno. Como decorrência há um deslocamento da própria auto-
imagem dos autores que vivem ainda a política de uma identidade nacional, da
necessidade de um cinema brasileiro, mas não traduzem em seus filmes a mesma
convicção de serem porta-vozes de uma coletividade (XAVIER, 2001, p. 43-44).
O que poderia ser uma característica formal para o cinema brasileiro, pautada em um
projeto político, declinou. Entretanto, mesmo com esse movimento de dispersão entre os
realizadores e, como consequência, a dificuldade em demarcar um estilo predominante na
produção cinematográfica brasileira, não se pode afirmar que há uma ausência de estilo. Entre
outras características formais a serem consideradas nos filmes brasileiros é a presença de
personagens menos nítidos, em crise; propensão à reflexividade e “narrativas frouxas”
(questões não resolvidas, finais abertos, ambíguos).
Quanto a esse último aspecto, para Jean-Claude Bernadet (2007) a falta de uma
conclusão nas narrativas nos filmes brasileiros tem uma razão específica de ser. Além de ser
uma finalização que encerra com uma expectativa, também tem uma justificativa de
abordagem temática pelo fato dos filmes apresentarem problemas que “[...] ultrapassam as
personagens e atingem toda a sociedade. As personagens não resolvem e não podem resolver
tais problemas, logo o filme coloca em conclusão: que vai ser dessa gente?” (BERNADET,
2007, p. 177). Embora esta seja uma análise que o crítico tenha feito se referindo à produção
de outro período (década de 1970), continuamos considerando essa tese válida para as
produções mais recentes.
Outro recurso que reforça essa abertura ao final é “a ida, a marcha, a corrida. Para onde?
Para um futuro ou um lugar desconhecido onde poderão ser resolvidos os problemas, ou para
viver exatamente os mesmos problemas” (BERNADET, 2007, p. 178). Ainda segundo o
autor, uma chave para compreender o cinema brasileiro, tanto em sua forma quanto em seu
conteúdo, está na cultura burguesa:
[...] é evidentemente na cultura burguesa, e não na popular, que se inscreve o cinema
brasileiro. Se, por volta de 1960, as obras resultam frequentemente de um projeto
político consciente, nem sempre lúcido, e os cineastas colocam todas as sua intenções
no nível do conteúdo, aos poucos, por um processo de sedimentação, grande parte do
significado deixou de ser tão consciente e passou para a estrutura. [...] esse processo
não se dá apenas em relação à obra de um diretor, mas em relação a um conjunto de
diretores, ao cinema como obra coletiva (BERNADET, 2007, p.171).
Como tais estruturas são resultantes de um trabalho coletivo dos cineastas brasileiros, ao
longo dos anos, a análise dos filmes e das personagens necessariamente se aproxima de uma
crítica cinematográfica sócio-histórica, visto que a própria forma do filme expressa a inscrição
de seus realizadores como parte de uma estrutura social.
82
Embora a vinculação da religiosidade com as classes populares permaneça em diversas
produções, a construção das personagens evangélicas vai além da associação da religião como
“ópio do povo”, mas, à semelhança de um método dedutivo tem o ponto de partida no sujeito,
e suas escolhas individuais diante da dinâmica social, para inserir, então, o pertencimento
religioso.
3.3.1 Desenhando estereótipos, encenando o mesmo
Oremos irmãos, por esse nosso irmão que foi tocado pela graça!
(Fala da personagem evangélica no filme Superoutro, de Edgar Navarro, 1989)
Não há como não associar uma fala dessa natureza com uma religiosidade específica em
ascensão no Brasil. Extraída da cena do filme Superoutro (1989), dirigido pelo cineasta
baiano Edgard Navarro, tal expressão ao permitir a associação e o reconhecimento de um
segmento religioso específico indicam a eficácia da utilização de estereótipos na criação de
personagens evangélicas na ficção. E é justamente por esse processo de representação, o
estereótipo, que são construídas as primeiras personagens evangélicas apresentadas pelo
cinema brasileiro.
Considerando que a ideia de estereótipo pode ser compreendida como uma forma de
“[...] exagerar, simplificar, desistorizar e fixar a diferença de quem não pertence a um grupo”
(SOVIK apud FILHO, 2009, p. 127), as primeiras personagens evangélicas que surgiram no
cinema brasileiro tinham como principal eixo de diferenciação características visuais, a
começar pelas vestimentas, geralmente seguindo uma tendência mais formal e conservadora –
a exemplo de saias compridas para personagens femininas, camisas de tecido com paletó para
as personagens masculinas – e completando o visual, um livro de capa preta que facilmente se
deduz ser a Bíblia, sendo este acessório indispensável carregado junto ao peito.
Embora essas características sejam percebidas em outras personagens religiosas da
ficção – não necessariamente indicadoras do segmento evangélico – a caracterização de
evangélicos no cinema se diferencia pela falta de elementos tangíveis, como amuletos,
miniaturas de santo, crucifixos, colares, por vezes, comuns quando na representação de
manifestações religiosas tradicionais. E isso ocorre, naturalmente, porque as igrejas de origem
cristã protestante como as evangélicas, em sua maioria, não dispõem em seus ritos do recurso
83
a símbolos ou adereços materiais, restando apenas a utilização desses recursos como forma de
suprir a necessidade de atribuir elementos visuais à caracterização dessas personagens
religiosas.
Em complemento ao aspecto visual, um segundo elemento importante se refere ao
tratamento conferido ao discurso apresentado por essas personagens. São falas, geralmente,
motivadas por uma avaliação moral do comportamento ou atitude de outras personagens e
que, ao mesmo tempo, tem a sua legitimidade atribuída ao regime de valores defendidos pela
religião.
Compondo essa trajetória inicial, serão apresentadas personagens de filmes produzidos
no período da retomada do cinema brasileiro, ainda em meados da década de 1990. Apesar de
tais produções consistirem em um recuo temporal em relação às personagens contemporâneas,
consideramos importante a sua apresentação em um primeiro momento, pois, as construções
estereotipadas são justamente aquelas que irão constituir um parâmetro sobre o qual a
personagem evangélica – enquanto estrutura – será organizada no cinema brasileiro. Assim,
desse período, serão destacadas as personagens apresentadas nos filmes Superoutro (Edgar
Navarro, 1989), Orfeu (Cacá Diegues, 1999) e Central do Brasil (Walter Salles, 1998) e sob
quais perspectivas elas simplificam, desistorizam e fixam a diferença desse segmento
religioso no cinema (SOVIK, 2009).
No âmbito do cinema de ficção, o primeiro registro de personagem evangélica remonta
ao final da década de 1980, com o filme Superoutro (1989), do cineasta baiano Edgard
Navarro2. Em sintonia com o clima político do período, a narrativa do filme retrata o
sentimento de certa desilusão política, fruto de frustrações alimentadas pelo fracasso do
projeto de conscientização popular. Em meio a este cenário político que o filme traz como
protagonista a figura alegórica do “outro”, homem marginalizado, desprezado pela sociedade
e que em sua suposta insanidade, emerge como um potencial de conscientização. Por isso, ele,
mais do que um outro é o Superoutro, um herói que a despeito da sua origem marginal, faz a
todos um apelo ao despertamento ao gritar pelas ruas da cidade: “Acorda humanidade!”
2 Segundo a profª. Dra. Maria do Socorro Carvalho Edgard Navarro é um cineasta dos anos 1970 e como tal
buscou em sua obra a liberdade, tanto poética, quanto de comportamento, “prometida” nos anos 1960. Ao final
dos anos 1980 o cinema brasileiro, após a ditadura militar, estava em profunda crise, ocasionada, entre outros
fatores, pela transformação das salas de cinema com o advento dos centros comerciais (Shopping Center‟s) e o
fim da Embrafilme. Em 1989, Superoutro é um dos filmes apresentado no Festival de Gramado que juntamente
com Ilha das Flores (Jorge Furtado) dá indícios da retomada que viria ao cinema brasileiro.
84
É bem verdade que muitas são as possibilidades de interpretação de um filme dessa
natureza, sobretudo, pela coleção de figuras alegóricas, a começar pelo próprio nome do
protagonista. Entretanto, para efeitos dessa pesquisa, o nosso interesse se volta para as
alegorias relacionadas ao universo religioso e, até que ponto, elas constituem um ambiente
para a apresentação da personagem caracterizada como evangélica, enquanto representação de
uma religiosidade.
Na cartela de abertura, o filme já prenuncia a inserção do elemento religioso com uma
afirmação irônica: “Conservai, Senhor, o meu senso de humor!”. A frase, ao lançar mão de
um texto baseado em discurso hegemônico – o religioso – mimetiza-o como forma de
convocar o espectador a manter a criatividade mesmo em momentos politicamente áridos,
sem perspectivas de mudanças significativas. Com esse recurso, o filme opera uma releitura
do discurso religioso cristão que, tamanha a sua popularidade na cultura brasileira, aparece ao
longo do filme sempre revestido de um sentido metafórico como uma estratégia a partir da
qual o diretor construirá a sua crítica sobre o momento sócio-cultural de então.
Além das referências verbais a textos bíblicos, o filme também traz com a personagem
protagonista a incorporação da figura messiânica, já referenciada em filmes como Deus e o
diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964), através do beato que arrasta uma multidão pelo
sertão, e que eventualmente é retomada pela personagem Superoutro como forma de
articulação com outros discursos.
São dois os momentos em que isso ocorre. Quando os policiais chegam para tentar
prendê-lo, a personagem anuncia em tom profético: “Se eu não vigiar, o mar vai invadir a
cidade [...] Eu vigio para que todos durmam em paz...vigiai e orai”. A expressão, anunciada
com a voz empostada como de um visionário, é dita quando a força policial ameaça prender o
outro que protestava pelas ruas. É dessa forma, que diante da representação maior da força
disciplinar do Estado, a personagem se vale de palavras como vigiai e orai trazendo à tona
uma forma de enunciação peculiar ao discurso religioso.
Apesar do discurso, a personagem acaba sendo presa e levada para um hospital
psiquiátrico, onde novamente somos apresentados a uma referência religiosa quando, em
primeiro plano, a porta da instituição revela o texto escrito: “Arrependei-vos e crede no
evangelho”. Frase bíblica posteriormente ressignificada pelo herói quando, diante do cortejo
cívico em comemoração à Independência da Bahia, brada em alta voz: “Arrependei-vos!
Arrependei-vos!”. Aqui, obviamente não como um convite de conversão ao evangelho, mas
85
como forma de chamar a atenção das pessoas para um posicionamento diante dos fatos e uma
mudança de rumo, como o termo literalmente propõe.
Em determinado momento, quando a personagem vê o mar lembra-se ser Dia de
Iemanjá, celebrado na Bahia no dia 2 de fevereiro. A fim de ofertar para divindade, o herói
entra em uma Igreja Católica, e apesar da imagem do Cristo parecer lhe observar – situação
retratada em câmera baixa, indicando a superioridade da imagem divinizada em relação ao
que a observa – ele entra numa missa e rouba o colar de uma devota que entoa um hino ao
Senhor do Bonfim, divindade católica também popular na cidade.
É nessa passagem que o diretor faz uma crítica semelhante à apresentada no filme O
pagador de promessas (Anselmo Duarte, 1962): a religião católica como uma devoção das
elites em contraste com a popularidade das religiões de matriz africana. É assim que na
sequência seguinte, o colar roubado é apresentado como oferta para Iemanjá – representada
por uma imagem de gesso que repousa sobre a pedra na praia – e é logo arrastado pelas ondas
do mar em sinal de aceitação pela divindade. Com essa referência, o filme apresenta a
religiosidade de matriz africana como uma manifestação acolhedora à situação do subalterno,
pois aceita a oferta, mesmo sendo roubada, contrastando assim com a elite representada na
missa católica.
Essa aproximação da religiosidade de matriz africana com um segmento marginalizado
na população também se repete na sequência em que ocorre a transformação do outro em
Superoutro. Quando ele decide se tornar um herói, uma baiana de acarajé presencia a cena e
logo se levanta do tabuleiro para realizar uma espécie de ritual de consagração com uma
pomba branca, momento em que a imagem da personagem se transfigura na imagem de um
homem negro que dança fantasiado com a roupa de um orixá.
Após esse ritual, a personagem sofre uma transformação e, graças a um recurso de
montagem, aparece vestido com uma capa de super-herói com um “S” de Super-Homem
invertido no peito (uma possível crítica à indústria cinematográfica norte-americana que
começava a dominar as salas de cinema no país). Juntamente com a capa, a personagem
também se reveste de um discurso revolucionário que será proclamado na Praça Castro Alves
diante da plateia de curiosos que o assiste. Seu discurso prossegue até o momento em que
ameaça se jogar do alto do Elevador Lacerda, quando então é interrompido pela voz de uma
mulher que se destaca na multidão:
- Oremos irmãos, por esse nosso irmão que foi tocado pela graça! (ao fundo, vozes
entoam um hino cristão: “Nosso irmão será abençoado porque o Senhor derramará
86
do seu amor”). Oremos para que o Senhor na sua infinita glória conceda esse milagre
pela conversão dos infiéis (aponta para o Superoutro), pois a Ele nada é impossível. Se
ele assim o fizer poderá mandar uma legião de anjos que não permitirão que nosso
irmão caia no abismo, pois está escrito (fala batendo na Bíblia)!.
Superoutro: Meu reino não é deste mundo...(incorpora novamente a divindade
messiânica)
- Aquele que tem fé poderá até mesmo caminhar por sobre as águas e não afundará
como fez o seu amado Filho nosso Senhor...
De cabelo presos à cabeça, camisa abotoada até o pescoço, é assim que se apresenta a
mulher que se compadece com a causa do herói marginal. Em sua fala, o herói destemido se
converte em mais uma vítima da sociedade, alguém que precisa de ajuda e, neste caso, uma
ajuda de ordem divina, pois ainda que se lance do alto do Elevador Lacerda, “uma legião de
anjos” não permitiria que ele caísse.
Com isso, o filme abre uma clara discussão para o processo de crescimento do número
de igrejas evangélicas no Brasil e de como o seu discurso intervém sobre as causas sociais que
afetam os indivíduos, apresentando às vítimas uma solução baseada na crença religiosa. Trata-
se de uma forma de apresentar a personagem ainda tributária de outro período da
cinematografia brasileira – anos 1960 e 1970 – em que algumas manifestações da
religiosidade cristã estavam relacionadas ao processo de alienação e fanatismo.
De forma diversa, a religiosidade de matriz africana é apresentada com simpatia no
momento de transformação do outro em super-herói, revelando também uma herança do
tratamento dado a essa religiosidade no cinema brasileiro produzido a partir da década 1970,
em que a religiosidade de matriz africana não é mais representada sob o argumento da
alienação, mas pela sua capacidade mobilizadora e até de transformação do outro em um
superoutro como o filme de Navarro parece ilustrar.
Ainda lançando olhar para essa personagem, observamos em uma de suas mãos um
livro de capa preta – que lembra a Bíblia – segurado ao peito com um guarda-chuva e, ao seu
lado, sustentado pela outra mão, um menino que segura um símbolo cívico: uma bandeirola
do Brasil (Figura 5). Ao tempo em que o livro preto serve para ratificar o pertencimento
daquela personagem a um determinado nicho religioso, a criança, ao carregar um símbolo de
nacionalidade, pode ser vista como uma imagem que aponta para uma nação politicamente
infante e que ainda se deixa ser conduzida por um discurso fanático-religioso.
87
Antes que a fala da mulher termine, desta vez um homem barbudo se destaca da
multidão, e chamando os outros de “companheiros” – ao invés de irmãos –, traz um discurso
contrário ao da religiosa afirmando que se o herói se jogar do alto do Elevador, fatalmente
morrerá. Aqui temos um belo exemplo de um discurso baseado no materialismo marxista que
influenciou a ala de esquerda na política brasileira e também se apresentou no final da década
de 1980 – através da visibilidade de lideranças políticas como o sindicalista Luiz Inácio Lula
da Silva – como a solução para as mazelas sociais. A fala dessa personagem, tal qual o
discurso anterior, encerra sem obter a aprovação ou desaprovação da multidão, de modo que
embora divergentes em suas propostas, os discursos se equalizam por tentar traduzir os
anseios populares, sem, no entanto, lhe dar o lugar de fala. A multidão assiste indiferente.
Por ser uma aparição breve, a personagem evangélica surge e desaparece da narrativa no
anonimato, mas o seu discurso não só constitui um contraponto ao discurso político de
esquerda, também vigente no final da década de 1980, como também é uma referência direta
ao discurso apresentado pelas igrejas evangélicas pentecostais, que começavam a crescer em
número e em popularidade no país.
Nos anos 1990, o filme que retorna com esse registro é Orfeu (Cacá Diegues, 1999).
Filme que ganhou popularidade nos cinemas por trazer como protagonista o cantor Toni
Garrido no papel de Orfeu, a história apresentada tem como pano de fundo o Morro que, tal
como as favelas do Rio de Janeiro em outros filmes, têm como elemento representativo,
constantes confrontos entre a polícia e os traficantes e também a religiosidade evangélica,
representada no filme por Inácio (Milton Gonçalves), o pai de Orfeu. Porém, antes de entrar
em detalhes acerca da construção dessa personagem, é importante trazer questões
relacionadas à história na qual o filme é inspirado.
Figura 5 – Personagem evangélica no filme Superoutro.
Fonte: Superoutro (Edgar Navarro, 1989, Youtube)
88
O filme de Cacá Diegues tem seu roteiro baseado na peça Orfeu da Conceição (1956),
escrita por Vinicius de Morais, em uma adaptação da tragédia grega para a realidade dos
morros cariocas, e que marcou época ao ser a primeira montagem a trazer atores negros para o
palco do Teatro Municipal (Rio de Janeiro). Ainda nesse mesmo período, a história ganhou a
sua primeira adaptação para o cinema com o filme Orfeu Negro (Orphée Noir, 1959), dirigido
por Marcel Camus em uma parceria entre França, Itália e Brasil.
Apesar do interstício temporal de 40 anos entre as duas obras cinematográficas – uma
foi lançada em 1959 e a outra em 1999 – as produções guardam similaridades como a
ambientação em um morro do Rio de Janeiro, e a paixão arrebatadora do sambista Orfeu por
Eurídice, uma jovem recém-chegada do interior. Na versão de Cacá Diegues, Orfeu, apesar de
morar no morro, é famoso pelo seu trabalho e é filho de Conceição (Zezé Mota), uma mestre-
sala de escola de samba, e Inácio (Milton Gonçalves), ex-mestre de bateria que deixou a
escola de samba para se tornar evangélico. Na primeira versão, embora não se tenha
referências relacionadas à religiosidade do pai de Orfeu, o elemento religioso aparece quando
após o assassinato de Eurídice, Orfeu participa de uma cerimônia em um terreiro de
candomblé na tentativa de fazer contato com sua amada que estava morta.
Enquanto na década de 1950, a religiosidade popular estava mais próxima de
representantes de religiões de matriz africana, na versão contemporânea de Cacá Diegues, a
presença de uma personagem evangélica na narrativa aparece como um elemento, entre
outros, que se tornou característico de periferias urbanas como as favelas do Rio de Janeiro.
Além da personagem, há imagens que caracterizam isso, como em uma das cenas em que
Orfeu conversa com um traficante da redondeza e pode ser observado quando, em plano de
fundo, se avista uma casa com uma placa indicando Igreja Evangélica do Morro Carioca.
Assim, a existência de uma personagem como Inácio compõe a tentativa de construir uma
representação que se aproxime do perfil da população habitante nas favelas, entre sambistas,
traficantes e recentemente, inclusive, evangélicos.
A forma como o filme constrói a personagem Inácio, desde o primeiro momento, não
deixa dúvidas de sua vinculação religiosa, quando na sua primeira aparição ele está sentado na
cama com a mulher e tem sobre o seu colo uma Bíblia. Em outra cena, durante a refeição é
novamente exposto com o livro em uma das mãos, enquanto segura o garfo com a outra.
Nesse momento, ao ser questionado pelo filho sobre o que lia, responde falando da história de
Caim e Abel. Fica assim, evidente a sua intimidade com os escritos da Bíblia.
89
Além de Inácio outra personagem que aparece como parte desse cenário religioso que se
constrói na periferia urbana representada no filme é a própria amada de Orfeu: Eurídice
(Patrícia França). Em uma das noites de Carnaval, ela passa em frente à igreja evangélica
frequentada por Inácio. Nesse momento a câmera não focaliza nenhum rosto, mas registra o
ambiente em plano geral, mostrando as pessoas sentadas em bancos de madeira dentro de uma
pequena sala. Ao final da sequência, o rosto de Inácio surge em close e, de mãos erguidas
enquanto a música é cantada, ele sorri ao perceber a chegada de Eurídice. Trata-se de uma
cena breve, sem diálogos, sem indicação de líderes religiosos, mas que se assemelha ao modo
de encenação de um culto evangélico e a forma como as pessoas se comportam durante sua
realização.
Em outra sequência, enquanto Inácio e Eurídice sobem as escadarias do Morro,
retornando da igreja, há a seguinte conversa:
Eurídice: O senhor sempre foi religioso?
Inácio: A palavra de Jesus expulsou o demônio do meu coração e a igreja me salvou
da vida boêmia e da bebida que estavam acabando comigo.
A partir desse breve diálogo, se toma conhecimento de como Inácio se tornou
evangélico. Um depoimento que revela que ele levava uma vida bem diferente – “vida boêmia
e da bebida” – e que sofreu uma mudança a partir do momento em que a “palavra de Jesus
expulsou o demônio” do seu coração. Com essa fala, Inácio mais uma vez, ratifica a sua
construção como personagem evangélica, desta vez, apresentando uma avaliação moral sobre
seu próprio comportamento antes de se tornar religioso.
Durante toda a narrativa, percebe-se que a personagem Inácio é construída de forma
linear, sem exprimir contradições, e convive pacificamente com sua mulher mesmo esta sendo
participante de uma escola de samba e apresentando uma crença diferente. Uma imagem que
sintetiza bem essa situação ocorre quando, em pleno dia de Carnaval Inácio assiste pela
televisão a imagem de sua esposa, D. Conceição, desfilando na Escola de Samba. Em
contraste com a alegria e espontaneidade da mulher, Inácio tem o semblante sóbrio e observa
a imagem da televisão, abraçado com a Bíblia, pelo enquadramento da janela da casa de
Eurídice (Figura 6).
O enquadramento da janela, aqui, pode ser interpretado como uma metáfora sobre a
situação de “enquadramento moral” na qual a personagem se encontra por efeito de seu
pertencimento religioso e que, ao mesmo tempo, não lhe permite compartilhar do mesmo
sentimento de sua mulher. Ao fim da cena, a personagem deixa sair um sorriso discreto, como
90
a significar que apesar do distanciamento no qual se encontra ainda é capaz de apreciar a
beleza de um desfile de bloco carnavalesco.
Em meio às dificuldades de produção que marcaram o cinema brasileiro na passagem
para a década de 1990, com a extinção da Embrafilme, o ressurgimento de personagens
evangélicos ocorrerá gradativamente e com uma abordagem mais ampliada na narrativa dos
filmes. De personagens anônimos, reféns de um discurso meramente religioso, o cinema abre
passagem para a insurgência de personagens nominais, cuja identidade é forjada para revelar
os traços de complexidade que conduzem o pertencimento religioso no Brasil.
Ainda antes dos anos 2000, outro filme com personagem evangélica foi Central do
Brasil (Walter Salles, 1998). A personagem evangélica é pontual, mas tamanho o destaque
que o filme ganhou para a reinserção do Brasil no cenário da indústria cinematográfica,
consideramos válido mencionar.
O nome do filme, além de uma referência à estação de trens metropolitanos do Rio de
Janeiro, também retrata a busca por uma redescoberta do Brasil. O mesmo Brasil que, com
seus sertões, servira de referência para a locação de filmes do Cinema Novo como Deus e o
diabo na terra do Sol (Glauber Rocha, 1964), agora é revisitado como um elo perdido da
identidade nacional. Sem dúvida, uma grande homenagem aos tempos áureos do cinema
brasileiro, mas com uma nova perspectiva acerca da precariedade do interior do Nordeste. O
tom de crítica apresentado sob os moldes da estética da fome cede espaço para o que vai ser
Figura 6 – Evangélico Inácio pelo enquadramento da janela.
Fonte: Orfeu (Cacá Diegues, 1999, Globo Filmes/Rio Vermelho
Filmes)
91
chamado de cosmética da fome por Ivana Bentes (2007), ou seja, a imagem da miséria tratada
de forma asséptica e romantizada3.
Na história, Josué, um menino que acaba de perder sua mãe atropelada por um ônibus,
tem como única esperança reencontrar o pai que mora no sertão do Nordeste. Perdido na
grande estação, o único vínculo que possui é com a escritora de cartas que, poucos minutos
antes do acidente, transcreveu uma carta ditada por sua mãe. Seu nome é Dora e, longe da
imagem dócil de sua mãe falecida, é uma mulher ríspida, com afetos enrijecidos pelo tempo e
pela rotina de escrever cartas na estação.
O menino, sem muitas alternativas, retorna para a escritora de cartas, de onde lhe resta
ainda a esperança de, escrevendo uma carta para o pai desconhecido, ter uma nova vida.
Reconhecendo a situação de abandono do menino, Dora tenta tirar proveito planejando a
entrega da criança para adoção, entretanto, desiste da ideia ao descobrir que os interceptadores
eram traficantes de órgãos, e resolve tomar o menino consigo para uma viagem em busca
daquele que seria o seu pai.
Uma viagem que sai do litoral para o interior que, ao mesmo tempo em que inverte uma
trajetória simbólica recorrente a filmes do Cinema Novo – do interior subdesenvolvido para o
litoral desenvolvido –, também é uma viagem ao interior das personagens. Simultaneamente
ao deslocamento geográfico, há um deslocamento de afetos, emoções, sobretudo na
personagem de Dora que, acaba sendo co-movida (sic.) pela busca do menino e desafiada a
descobrir o interior de si mesma.
Em um momento da viagem, quando os recursos para pegar um transporte acabam,
Dora e Josué pedem carona a um caminhão no meio da estrada. Então, somos apresentados ao
personagem evangélico da trama. César, um caminhoneiro de Vitória da Conquista (BA)4 que
parte em direção a Bom Jesus da Lapa (BA) e oferece carona aos dois. Apesar de ser uma
personagem secundária na narrativa do filme, a produção do filme traz uma descrição que
abre campo para pensar a natureza conflituosa do pertencimento religioso que se engendra nas
personagens evangélicas criadas no cinema brasileiro:
3 Sobre o filme a autora faz a seguinte análise: “Central do Brasil se diferencia por retratar não o sertão violento
e insuportável do Cinema Novo, mas um sertão lúdico, rude, porém inocente e puro, como os irmãos que
acolhem o menino Josué (...) Central é o filme do sertão romântico, da volta idealizada à “origem”, ao realismo
estetizado, e a elementos e cenários do Cinema Novo, e que sustenta uma aposta utópica sem reservas
(BENTES, 2007, p. 245). 4 Para Lúcia Nagib (A utopia no cinema brasileiro,2009), a personagem de César é uma dupla homenagem de
Walter Salles ao cineasta Glauber Rocha, tanto pelo ator Othon Bastos que marcou o filme Deus e o diabo na
terra do sol ao interpretar Corisco, quanto por declarar uma origem comum ao cineasta baiano que também
nasceu em Vitória da Conquista.
92
Assim como Dora, César é basicamente um solitário que chega aos sessenta anos com
uma vida passada em branco. Evangelista, César desconhece o mundo afora da
estrada. Por trás da fala mansa e dos modos gentis e cândidos há inquietações de um
caminhoneiro de meia idade que ainda desconhece os próprios caminhos da
sexualidade e da afetividade5.
Ao contrário das personagens anteriores, César não apresenta características explícitas
acerca da sua religiosidade. Traja roupas convencionais para o clima do sertão baiano e não
traz nenhuma Bíblia consigo. As marcas deixadas pelo diretor de onde pode se denotar a sua
fé, são apresentadas por algumas frases que o caminhoneiro traz no carro como Tudo é força
só Deus é poder e Com Deus sigo meu destino, conforme se observa na Figura 7.
Ao parar em um restaurante de beira de estrada, César pergunta ao menino e a Dora o
que eles vão comer e beber. Ele pede uma água mineral, enquanto Dora pede uma cerveja e
pergunta se ele a acompanha. Diante dessa pergunta, o personagem dá o primeiro indício
claro sobre seu pertencimento religioso: “Não, não, eu não posso beber porque sou
evangélico” (grifo nosso). Mais uma vez, a tônica do discurso da personagem pressupõe a
obediência a uma determinada ética, a qual não lhe permite beber.
Ao chegar a garrafa de cerveja, Dora refaz o convite enchendo o copo dela e o dele com
a bebida alcóolica. O motorista, contrariando o que afirmara antes, ingere o copo de cerveja
de uma só vez. Tal mudança repentina de atitude demonstra que, embora esse pertencimento
religioso ocorra a partir de um regime disciplinar sobre a vontade do sujeito – “...eu não
posso...” – é fragilizado pelas circunstâncias e pela própria cultura, muitas vezes adversa às
normas desse pertencimento. E é justamente aqui que a personagem denuncia o conflito.
5 Descrição extraída dos Extras DVD do filme Central do Brasil na opção Os personagens (Videlofilmes, 1998).
Figura 7 – Detalhes do caminhão de César.
Fonte: Central do Brasil (Walter Salles, 1998, Videofilmes)
93
Sabe-se que aquele que se declara como evangélico segue determinados padrões de
conduta como não ingerir bebidas alcoólicas ou furtar, por exemplo. Tais condutas acabam
por se tornar parâmetros de identificação social entre aquele que é ou não é evangélico. Desse
modo, a ruptura desses costumes através da ação da personagem pode sugerir ao espectador
outras chaves interpretativas. Uma delas é a de que o “padrão evangélico de ser” antes de ser
uma prática, uma forma de conduta, é um discurso religioso cujos preceitos, não
necessariamente, são acolhidos e acomodados pelo sujeito – como a tese de alienação poderia
induzir a pensar. Antes, o confronto desses novos valores com a cultura, geram conflitos
discerníveis à medida que se conhece, ainda que parcialmente, a influência da formação
cultural sobre o pertencimento religioso, como a parte inicial dessa pesquisa se propôs em
apresentar.
Após esse gesto do caminhoneiro, Dora se retira para ir ao banheiro. Ao fundo, ouve-se
o som diegético de um cântico religioso. Ainda no banheiro, observa uma mulher que passa
batom em frente ao espelho. Dora que, até esse momento do filme, não trazia qualquer traço
de maquiagem no rosto, em poucos instantes está também diante do espelho passando o
batom vermelho que logo sobressai em seu rosto outrora pálido e sóbrio. Uma sensibilidade
despertada pela atitude de César e a esperança de um desenlace amoroso.
No entanto, ao retornar, em lugar de encontrá-lo à mesa, ouve ao fundo o ronco de um
caminhão. Era César indo embora sem dar maiores explicações e deixando implícito que,
diante de uma ameaça à sua ética cristã, seria melhor fugir. O seu conflito não está resolvido.
Ao observar o caminhão de partida pelas frestas de uma janela, Dora, a escritora de cartas
insensível e interesseira, chora pela primeira vez demarcando uma mudança significativa do
perfil da personagem na narrativa.
Embora a personagem de César seja pontual na narrativa e de pouca visibilidade,
merece destaque para a nossa argumentação em virtude do conflito que anuncia como parte da
caracterização da personagem evangélica. Enquanto a personagem do filme Superoutro – até
então, a primeira personagem evangélica na cinematografia brasileira – se aproximava do
estereótipo de religiosa fanática, em Orfeu, o papel de Inácio já aparece de forma menos
caricata e não esboça conflitos no que diz respeito ao seu pertencimento e a relação com
outras personagens.
Nesse sentido, percebe-se que a personagem de César tem uma função inaugural para
esse tipo de personagem, pois ao mostrar o pertencimento religioso da personagem sob a
94
marca do conflito e da instabilidade – tanto sentimental, por ser um caminhoneiro solitário,
quanto religiosa – acaba contribuindo para promover uma ruptura com modelos
estereotipados e possibilita uma abertura maior para observar a própria conjuntura de
acontecimentos e pertencimentos que constituem a subjetividade da personagem.
3.3.2 Desenhando rasuras, encenando conflitos
A partir dos anos 2000, alguns filmes brasileiros trazem como parte de suas narrativas a
tentativa de representar a realidade das periferias urbanas, em seus conflitos sociais, a
desigualdade diante de outras zonas da cidade, a negligência do poder público, a violência,
etc. Dentro dessa espécie de microcosmo, surgem também as personagens religiosas,
sobretudo as de religião evangélica que, mesmo não fugindo às características próprias do
estereótipo nas produções precedentes, burlam as expectativas trazendo novos elementos que,
em associação com o pertencimento religioso, abrem campo para uma complexificação desse
tipo de personagem.
Visto que tais personagens promovem rupturas ainda baseadas no modelo reproduzido
anteriormente, sua construção se aproxima da noção de rasura desenvolvida por Jacques
Derrida (SANTIAGO, 1976; HALL, 2007). Trata-se de uma estratégia desconstrutora em que
alguns conceitos são colocados sob rasura – graficamente ilustrado pela sobreposição de um
traço em uma palavra – indicando que, embora aquele conceito não sirva mais para “pensar”,
em sua forma original, o fato de não existirem conceitos novos que possam substituí-lo
demanda que continuemos a pensar com eles “[...] agora em suas formas destotalizadas e
desconstruídas, não se trabalhando mais no paradigma no qual eles foram gerados” (HALL,
2007, p. 104).
É deste modo que tais personagens iniciam um momento de passagem no processo de
construção da personagem evangélica no cinema brasileiro contemporâneo. Pois, ainda que
fortemente marcadas por traços estereotipados, a sua constituição é perpassada por outras
redes de relação, permitindo rupturas na estrutura anterior, mas sem destruí-la por completo.
São personagens que trazem à tona conflitos que as primeiras personagens ocultavam ou
não exploravam, visto que se preocupavam apenas em ser uma repetição ou reforço das
representações convencionais. Diante da diversidade de combinação de redes de relação que
constituem essas novas personagens, elas serão apresentadas em blocos temáticos,
95
organizados em conformidade com as características predominantes em sua composição e a
contiguidade dos conflitos que encenam suas trajetórias.
Nesse breve percurso, serão considerados os filmes brasileiros produzidos a partir dos
anos 2000, atentando principalmente para as redes de relações ou agenciamentos que
constituem as personagens no interior da trama e em quais aspectos as rasuras são manifestas.
A criação de subcategorias não visa enquadrar ou classificar as personagens, mas tem o
objetivo de mapear as possibilidades de agenciamento que o cinema brasileiro opera, e assim
melhor compreender como tais personagens articulam movimentos na “estrutura” ou
estereótipo do seu lugar social.
3.3.2.1 Conflito 1: Entre a Bíblia e arma
A começar de Cidade de Deus (2002), filme dirigido por Fernando Meirelles em que a
periferia do Rio de Janeiro se torna cenário para cenas de violência nas grandes telas, é
possível perceber a existência de personagens evangélicas. Neste cenário, a personagem tem
sua trajetória apresentada a partir de uma transição entre o mundo do crime e o mundo da
igreja, como um par antagônico que paira sobre o mesmo universo periférico e estabelece – de
forma diversa – uma ordem nesses ambientes marcados por diversos tipos de violência, além
da ausência ou ineficácia das políticas de Estado.
A partir desse período é apresentada, como parte do processo de construção da
personagem, a ideia de que não é possível uma conciliação entre as duas ordens (mundo do
crime e mundo da igreja), pois embora elas tenham uma convivência tão próxima e realizem
uma articulação com os mesmos elementos (valores, pertencimento a uma comunidade, etc),
as narrativas sugerem a escolha da personagem por uma dessas ordens. Uma escolha,
geralmente, encenada através de mudanças de atitudes nos relacionamentos ou no modo de se
vestir, enquanto indícios de sua conversão religiosa.
O primeiro filme a apresentar uma personagem baseada nesse conflito é Cidade de Deus
(Fernando Meirelles, 2002). O filme conta a história da Cidade de Deus, um conjunto
habitacional criado pelo governo do Rio de Janeiro, em meados da década de 1970, para
abrigar famílias de comunidade carentes e que, à medida que o governo se torna mais ausente,
vai criando leis próprias de sobrevivência, que passam pela violência, como assalto coletivo a
carros de botijão de gás e ações que acabam por estruturar um ambiente propício para o
desenvolvimento da criminalidade.
96
Como parte desse contexto, se forma o chamado “Trio Ternura” integrado por
Cabeleira, Marreco e Alicate, um grupo que realizava pequenos atos criminosos na região e
que se desintegra após uma perseguição policial. Ainda na rota de fuga, os membros do Trio
se escondem no meio de uma mata fechada, quando Alicate, escondido em uma árvore e
temendo ser capturado pela polícia, confessa para o seu comparsa: “Quer saber Marreco? Vou
sair dessa vida senão vou amanhecer com a boca cheia de formiga. Vida de bicho solto é pra
maluco, não pra mim. [...] Vou voltar pra igreja (grifo nosso)”.
Ao dizer isso, Alicate desce da árvore, e no plano seguinte ressurge em uma caminhada
obstinada pelas ruas da Cidade de Deus, assumindo com isso o risco de ser capturado a
qualquer momento pela força policial. Apesar do efeito inicial de tensão e expectativa gerada
pela imagem, a cena é acrescida de uma dose de serenidade quando em off ouve-se a própria
voz de Alicate recitar:
Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, à sombra do Onipotente descansará
[...] nem mortandade que assole ao meio dia. Pois aquele que habita no esconderijo do
Altíssimo à sombra do presente descansará. (grifo nosso)
Nesse momento, o inesperado acontece. A polícia passa por Alicate e, não o
reconhecendo, acaba capturando outro rapaz que passava no mesmo instante. A fala de
Alicate refere-se a uma adaptação do Salmo 91 e que confirma a decisão que a personagem
acabara de tomar. Subsequente a essa narração, que indica ser a voz consciente da
personagem, segue-se outra, dessa vez, dirigida pelo narrador principal da história, que
anuncia o fim do “Trio Ternura”, informando que cada integrante teve um destino e o
“destino entregou Alicate nas mãos de Deus”.
Em tais cenas não há uma menção direta da igreja para a qual Alicate supostamente
teria retornado, mas considerando o período retratado no filme e a própria ideia de “retorno” à
igreja, depreende-se que seja uma instituição cristã. Além disso, como já foi citado, é
justamente no ano de 1977 em que há o surgimento de uma das maiores igrejas do segmento
neopentecostal: a Igreja Universal do Reino de Deus. Desde então, a visibilidade sobre as
igrejas evangélicas, de um modo geral, tornou-se crescente e a sua inserção nos bairros
periféricos já era notória.
Então, mostrar que um dos componentes do “Trio Ternura” volta para a igreja é
constatar a influência da religião em lugares como Cidade de Deus e mostrar que nem todo
bandido está fadado a um destino de criminalidade. A religião aparece como uma das
alternativas de vida oferecidas naquele contexto social. Para ilustrar isso é conferido a cada
97
personagem um destino diferente, ainda que todos tenham permanecido à margem da
sociedade.
No mesmo ano de produção de Cidade de Deus, Hector Babenco apresenta o filme
Carandiru (2002), filme baseado nos fatos reais ocorridos no Complexo Penitenciário do
Carandirú, em São Paulo, que tem como narrador o Dr. Dráuzio Varela, médico da
penitenciária e que também representa no filme o escritor do livro que inspirou o filme.
O momento trágico da chacina, fato que marcaria a história da penitenciária, é
precedido no filme pelo depoimento de vários detentos, revelando através de diferentes
personagens as particularidades de se viver em um presídio brasileiro e, ao mesmo tempo,
aumentando a dramaticidade para a representação da chacina nos momentos finais do filme.
Entre uma história e outra dos detentos, os conflitos de “Peixeira” ganham relevo.
Conhecido como um homem violento na prisão, Peixeira coleciona uma série de
assassinatos dentro e fora da cadeia. Apesar disso, há momentos em que a personagem
aparece caminhando sozinha pelo pátio da penitenciária e em pleno dia de visita, parece ser
um dos poucos que não tem família. Certo dia, assustado por um pesadelo, Peixeira começa a
pensar em quantas pessoas havia matado na vida e procura o Dr. Varela para um desabafo. O
arrependimento pelos crimes cometidos – “eu derramei tanto sangue, doutor [...]” – já
prenunciava a decisão futura da personagem.
Na sequência seguinte, Peixeira, em mais uma de suas caminhadas solitárias, se
aproxima de um salão, dentro do presídio, onde acontecia um culto evangélico. Na parte
superior da entrada a placa Ressureição Evangélica (Figura 8) não deixa dúvidas do caráter
religioso da reunião.
Figura 8 – Peixeira observa o culto evangélico no presídio.
Fonte: Carandirú (Hector Babenco, 220, HB Filmes, Globo Filmes e
Columbia Tristar do Brasil).
98
Nessa cena, enquanto ele caminha, ouve-se, em off, vozes cantando uma música cristã.
A câmera, em plano geral, mostra uma sala no interior do presídio onde se encontram várias
pessoas sentadas e, à frente, em um púlpito está um homem falando. Este, quando avista
Peixeira, ainda longe, vai caminhando em sua direção dando início ao seguinte diálogo:
Pastor: Entra, irmão! Vem! Vem! Você sabe que o Senhor tem um plano pra
você? Vem! Esta é a tua casa. Você está perdido. Você não sabe, mas foi Ele
quem te trouxe aqui.
Peixeira: Ele quem, pastor?
Pastor: Jesus! (fala olhando para os fiéis em redor). Ele sabe que você não
dorme se faz mal a alguém. Que você perde o sono todas as noites senão
consegue fazer alguém tropeçar. Me diga se não foi assim todos os seus dias!
Vamos! Vamos! Não tem sido assim todos os seus dias?
Em close, o rosto pregador aparece em contraplano ao rosto de Peixeira que, ajoelhado,
chora initerruptamente. Esse tipo de representação, trazida pelo filme, tem seus fundamentos
em um fato corrente nas prisões e penitenciárias: a conversão de presos. Na personagem de
Peixeira, o pertencimento religioso não chega a configurar um conflito, pois desde o momento
em que ocorre a cena de sua conversão, o filme não dá mais indícios de que ele teria retornado
a cometer os crimes de antes. Um desfecho similar ao da personagem Alicate (Cidade de
Deus) que, depois de ficar livre da polícia, não se tem mais informação sobre o seu
envolvimento com a gangue. No caso de Peixeira, a última imagem da personagem no filme é
justamente na chacina, quando a polícia de choque invade a cela e ele está de pé segurando
uma Bíblia com uma das mãos e um quadro com a imagem de Jesus Cristo em outra, em uma
postura que, pela abertura dos braços, traz à memória a própria crucificação do mito cristão.
Por outro lado, o conflito começa a emergir em algumas personagens quando a
conversão religiosa se torna uma estratégia para obter redenção pelos delitos cometidos.
Sendo o sistema religioso regido por normas que incidem sobre o comportamento do sujeito,
a adesão religiosa pode ser motivada, tão somente para a obtenção de favorecimentos como a
diminuição da pena, como é ilustrado no filme Meu nome não é Johnny (Mauro Lima, 2008),
em que uma das componentes da gangue, pouco tempo depois de ser presa, reaparece no
tribunal com uma Bíblia na mão, contrastando com a sua rotina de usuária de drogas
construída ao longo do filme (Figura 9).
Segundo artigo de Ana Maria Quiroga (2008), ao mesmo tempo em que a sociedade
brasileira se desinteressa pela realidade prisional, o número de instituições religiosas que
buscam os presídios para exercer atividades de assistência espiritual é crescente. Uma
assistência, outrora de responsabilidade exclusiva da Igreja Católica, foi sendo ocupada por
99
outras religiões a partir da separação entre Igreja e Estado. Ainda sobre a inserção dos
evangélicos no contexto das prisões:
[...] os evangélicos que estão dentro das prisões em suas inúmeras denominações
históricas e pentecostais, são sempre olhados de maneira ambivalente. Ora produzem
grande desconfiança, ora provocam sentimento de alívio. A desconfiança, sobretudo,
de seu afã evangelizador, da explícita concorrência por fiéis. Mas, vem também, da
falta de uma instituição central que tenha autoridade pra responder por todos aqueles
que se apresentam como pastores, pastoras e leigos evangélicos [...] Por outro lado, o
sentimento de alívio vem das repercussões das conversões que, no interior das
instituições carcerárias, resultam em agregação e „pacificação. (QUIROGA, 2005, p.
9, grifo nosso)
A partir dessa referência, percebe-se que a inserção de uma personagem que se torna
evangélica no presídio Carandirú não é aleatória, mas busca se aproximar do cenário de
influência da religião nas zonas prisionais. Além de Peixeira, o filme traz outras alusões ao
universo religioso. Na sequência final da chacina, há um plano em que se mostra um detento
dentro de uma sala com diversas imagens e velas acesas (Figura 10) dando a entender de que
no presídio – assim como na sociedade – há a convivência de diversas crenças religiosas,
além da evangélica.
Fonte: Carandirú (Hector Babenco, 2002, HB Filmes, Globo
Filmes e Columbia Tristar do Brasil)
Figura 10 – Detalhe de uma das celas do filme Carandirú.
Figura 9 – Personagem de Meu Nome não é Johnny que se converte após ser presa.
Fonte: Meu Nome não é Johnny (Mauro Lima, 2008, Atitude
Produções).
100
Outra referência religiosa, que ocorre já nos minutos finais do filme, acontece quando
um dos presos lê uma carta recebida pela mãe com o seguinte texto:
OFF (voz feminina): Davilson, meu filho querido, a mãe chora quando lembra de ti
pequenininho, rindo no fundo dos meus olhos, sei que você nunca acreditou no meu
Deus, mas hoje quando peguei a Bíblia, parecia que te tinha de novo no meu colo.
Meu coração ficou miúdo quando abri no Salmo 91, olha só que bonita a palavra: Mil
cairão ao teu lado, dez mil à tua direita, mas tu não serás atingido, nada chegará à
tua tenda.
Enquanto a carta é narrada, a câmera abre em plano geral, mostrando o desastroso
resultado da chacina ocorrida na prisão. Entre os cadáveres, o preso surge como um dos
poucos sobreviventes, formando uma associação direta com o conteúdo da carta que diz: “Mil
cairão ao teu lado, dez mil à tua direita, mas tú não serás atingido [...]”.
O conflito entre a criminalidade e a religião vai se delinear nas personagens de forma
mais clara quando o pertencimento religioso e a rotina do crime passam a conviver
simultaneamente na constituição da personagem. Se, nos exemplos anteriores, a decisão
religiosa pressupunha um abandono de atos delituosos, nas personagens posteriores as
escolhas não estão bem delineadas. E a convivência com duas ordens, em princípio distintas
antes de constituir uma contradição, deflagra a abertura dessas personagens para uma
singularidade, atravessada e constituída por diferentes influências, até mesmo antagônicas.
A primeira dessas personagens é Devanildo, interpretado por Vinicius de Oliveira
(Central do Brasil, 1998; Linha de Passe, 2008) no filme Assalto ao Banco Central (Marcos
Paulo, 2010). Como o título do filme já informa, a trama é inspirada no assalto realizado ao
Banco Central e Devanildo é convidado pela irmã – mulher do chefe da quadrilha – para
trabalhar em uma falsa empresa de grama sintética que servia para ocultar a escavação de um
túnel. A vinculação religiosa da personagem é apresentada no momento em que Devanildo
aparece lendo a Bíblia, e o conflito emerge quando ele descobre não se tratar de uma empresa
e sim um plano de assalto.
Com um comportamento melindroso e atrapalhado – sempre se esquece de pagar as
contas de telefone, luz – Devanildo chega a ser apelidado por um dos personagens como
“branca de neve”, trazendo com isso a possibilidade de agregar um novo conflito à
personagem, neste caso, relacionado à sua sexualidade. Quanto ao seu envolvimento com o
crime, Devanildo tenta fugir, ao descobrir que se tratava de um empreendimento criminoso,
mas é logo ameaçado de morte pelo Barão: “Você prefere ser um pecador rico ou um santo
morto?” e prossegue até o desfecho do assalto.
101
Ao receber sua parte do assalto, procura o pastor e fala sobre a vontade em dar uma
oferta à Igreja. O pastor, interpretado por Milton Gonçalves – ator que já fez um personagem
evangélico em Orfeu (Cacá Diegues, 1996) – o aconselha a doar tudo para a Igreja. Devanildo
faz a oferta, porém, em contrariedade ao conselho que recebeu, separa uma parte para ele
mesmo. Com isso, a personagem dá indícios de vivenciar um conflito e não estar plenamente
submissa às normas da religião.
Em O homem do ano (José Henrique Fonseca, 2010), é uma mulher que dessa vez
transita entre o mundo do crime e a Igreja. Seu nome é Érica (Natália Lage), uma adolescente
que após sofrer uma decepção amorosa com Máiquel (Murilo Benício), resolve frequentar
uma igreja evangélica dirigida pelo pastor Marleno (André Barros).
O envolvimento de Érica com a criminalidade ocorre de forma indireta, na medida em
que é cúmplice do assassinato que Máiquel cometeu contra a própria esposa. Já a sua
vinculação com a igreja ocorre de forma rápida e, em pouco tempo, ela assume funções na
igreja, como carimbar a carteira de fieis, ensaiar pregações no templo, etc. Aqui, o filme
apresenta uma analogia, ainda que de forma sutil, entre a organização do sistema religioso e a
organização do mundo do crime. Assim como, através do envolvimento com atos criminosos,
Máiquel adquiriu um emprego, uma identidade e uma importância para os empresários da
comunidade, Érica também rapidamente foi inserida no sistema religioso.
São sistemas que regulam as redes de relações das personagens na comunidade. No caso
de Máiquel, a associação com o crime foi obra do acaso, já em Érica, a adesão religiosa a uma
igreja evangélica aparece relacionada a fatores como falta de maturidade, carência e
abandono. E, ao contrário de Máiquel que, assume o papel de agente no interior do sistema
criminoso, Érica é apresentada como alguém que se deixou seduzir pelo discurso religioso.
Construção que o filme traduz ao flagrar em close o rosto fascinado da personagem ao ouvir a
pregação e quando ela mesma, em conversa com Máiquel, repete discursos proferidos pelo
pastor.
O conflito da personagem surge quando, ao compartilhar do crime que foi testemunha
com o pastor, este a aconselha a confessar e se entregar para a polícia. Diante da
impossibilidade de realizar tal feito, a personagem convive com os dois sistemas.
102
3.3.2.2 Conflito 2: Afirmação de poder: quando a minoria se quer maioria
Partindo do pressuposto de que o pertencimento a igrejas evangélicas está associado ao
universo das periferias urbanas, como já foi observado pela caracterização de algumas
personagens, esse conflito se configura a partir do discurso das personagens, quando através
dos preceitos e valores religiosos, tentam exercer poder e autoridade. Tal discurso de
imposição aparece, na maioria das vezes, revestido de uma intolerância religiosa sobre outras
manifestações religiosas ou em forma de julgamento moral da conduta alheia. Nesse sentido,
a personagem recorre ao discurso religioso – um discurso cujos códigos se referem a um
sistema simbólico específico da religião – tanto para afirmar sua diferença em relação ao
outro, quanto para se estabelecer em uma posição diferenciada de poder, visto que articula
códigos referentes ao campo religioso – logo, da ordem do divino, do sobrenatural, e
relativamente autônomos quanto a uma avaliação racional.
Visto que proveniente de um grupo minoritário, no aspecto socioeconômico, geralmente
tais personagens são construídas em uma narrativa de gênero cômico, pois o fato de se
acharem espiritualmente superiores às demais, estando no mesmo patamar de inferioridade
social, soa, no mínimo, como contrassenso. É dessa forma que no filme Tapete Vermelho
(Luis Alberto Pereira, 2005), como parte da viagem do caipira Quinzinho (Matheus
Natchgaerle) em busca do filme de Mazzaropi, somos apresentados à figura de um pastor da
Igreja Global do Amor Divino.
Logo da entrada, Quinzinho ouve a voz de alguém falando ao microfone e é atraído a
entrar. Em seguida, a câmera mostra a parte interna do templo em plano geral, ora mostrando
o pregador à distância, ora focalizando o rosto apático de Quinzinho. Este, sentado ao banco,
quase dorme com o discurso do pregador, despertando no momento em que este diz: “Esta é
mais uma casa de Deus que conseguimos erguer com muito sacrifício. Já foi do
diabo...quando aqui funcionava o cinema, amém?”. O rosto do pregador está em close e o seu
rosto se contorce a cada palavra. Fica evidente na fala do pregador a tentativa de impor seu
discurso a partir de uma interpretação do espaço anterior, o cinema, como algo do “demônio”.
Associado à crítica da ocupação desordenada de antigos espaços culturais por igrejas
evangélicas, o filme apresenta com a personagem do pastor o mecanismo muitas vezes
empregado pelo discurso religioso para exercer domínio sobre a cultura local.
A crítica do filme, no quesito religião, parece se direcionar especificamente às igrejas
evangélicas, pois quando Quinzinho se vê angustiado por ter se perdido do seu filho e busca
103
consolo em uma Igreja Católica, a sequência se destaca por ser um dos raros momentos de
dramaticidade em um filme de comédia. O caipira ao entrar na Igreja, já parece afeiçoado com
os rituais e juntamente com outras pessoas acende velas. Em seguida, a câmera mostra seu
rosto, em lágrimas, fazendo uma promessa para a imagem de Nossa Senhora. Ao fundo a letra
da canção Romaria embala a experiência religiosa da personagem, preservando assim, o lugar
reservado às religiões tradicionais no país.
Se em Tapete Vermelho, a presença do pastor é pontual, no filme Ó Paí ó (Monique
Gardenberg, 2007), a crente Dona Joana (Luciana Souza) não passa despercebida. Baseada
em uma peça homônima do bando de teatro Olodum, a história do filme se passa durante o
Carnaval, em Salvador, e retrata o cotidiano dos moradores de um cortiço no Pelourinho.
Nesse ambiente, Dona Joana é a síndica, caracterizada como uma evangélica fervorosa,
bisbilhoteira e rígida com os filhos em relação as suas convicções religiosas.
Em seu discurso, há sempre uma avaliação moral do comportamento de outras
personagens como forma de demonstrar superioridade em relação a elas, mesmo residindo no
mesmo cortiço. Além de Dona Joana, há também a personagem de Dalva – vendedora de
castanha – e a apresentação de um pastor que “expulsa o demônio do corpo de uma „irmã‟”.
Apesar do rigor com que segue a religião, a construção da personagem também se molda a
uma tônica de sincretismo que atravessa o filme. Essa tendência é construída ao longo do
filme a partir da presença de elementos como: a letra da música de abertura do filme em que é
anunciada a frase “nessa terra todo mundo é d‟Oxum” – em referência a uma suposta devoção
coletiva a um dos orixás da religião de matriz africana e os nomes dos filhos de D. Joana –
Cosme e Damião –, em uma referência clara aos santos católicos.
Tais elementos, embora sugiram uma convivência pacífica entre os diferentes credos
que compõem a cultura baiana, representada na narrativa, acabam por nivelar as
particularidades desses pertencimentos através de um discurso pautado na tradição e que
homogeneiza a todos como parte de uma mesma identidade. Essa construção adquire sentido
quando ao final do filme D. Joana, no desespero de encontrar seus filhos desaparecidos
durante o Carnaval, recorre ao jogo de búzios da Mãe de Santo. Assim, mesmo usando da sua
fé para exercer autoridade sobre a vida alheia, o desfecho da personagem acaba por reforçar o
discurso de sincretismo, pondo em xeque a ética religiosa da qual era defensora e
denunciando o seu conflito.
104
Outra personagem que usa da religião como forma de exercer autoridade é apresentada
no filme Última Parada - 174 (Bruno Barreto, 2008). A produção sucede ao documentário
Ônibus 174 (2002) e traz uma versão ficcional da história de Sandro, um rapaz de 22 anos que
ficou nacionalmente conhecido por assaltar e fazer reféns os passageiros da linha de ônibus
174 no Rio de Janeiro. Nesta versão, há duas personagens evangélicas: Marisa (Cris Viana),
como mãe de Sandro, e o pastor Jaziel (Tay Lopes), com quem é casada.
Logo nos primeiros minutos de filme, o pastor Jaziel aparece cantando em um
microfone à frente de um grupo de pessoas em um local cuja organização lembra a de uma
igreja. Ao final de cena, a câmera se distancia mostrando, em plano geral, uma construção de
alvenaria, semelhante a uma garagem, com uma faixa onde está escrito Assembléia de Deus. E
pela precariedade da construção, mais uma vez, a presença de uma igreja evangélica serve
como elemento para compor o contexto das periferias urbanas.
Em uma das cenas, Jaziel está em casa com Marisa e tenta convencê-la de que não é
mais necessário ela trabalhar como empregada doméstica. Para justificar o pedido, Jaziel pega
uma mala e ao mostrar a soma de dinheiro complementa: “Nossa igreja tá prosperando”. Com
essa atitude da personagem, reforça-se a concepção da igreja como um empreendimento, em
que os fins comerciais subjugam os fins espirituais e o discurso religioso é um meio para
obter prosperidade financeira.
O discurso de prosperidade por meio da religião também é apresentado nas personagens
evangélicas do filme Família vende tudo (Alain Fresnot, 2011) em que uma família faz de
tudo para sobreviver e ganhar uns trocados e o sonho de uma das filhas é engravidar do
famoso cantor Ivan Carlos (Caco Ciocler) para garantir uma pensão. Em tom de comédia, um
dos filhos é evangélico, e ao chegar para um culto na igreja, assiste a um testemunho da bispa
Marisa, interpretada pela atriz Marisa Orth que interpreta a si mesma, porém com o discurso
de que teria uma nova vida, longe do teatro e do cinema.
Ao longo do filme, após diversas tentativas frustradas de ter uma vida próspera, a
família acaba encontrando como alternativa investir em uma igreja, onde o filho evangélico
assume o papel de pastor, o irmão mais novo dá testemunho e o cantor famoso, outrora
famoso, encontra oportunidade para continuar a carreira, dessa vez, como cantor gospel.
De forma semelhante à atuação do pastor Jaziel (Última parada 174), o desfecho das
personagens em Família Vende Tudo aponta para uma nova estratégia de se exercer poder em
uma sociedade cada vez mais excludente: o domínio de códigos religiosos. Ao fazer isso,
105
acompanhado de uma inserção comunitária, o pertencimento religioso nestas produções
aparece sob o signo do oportunismo e como atalho para obter prosperidade em um contexto
situado à margem da sociedade.
Em continuidade a esse perfil de personagem evangélica, depois da repercussão da
personagem de Dona Joana, em Ó paí ó, mais dois filmes, de cineastas baianos, irão
apresentar personagens religiosas. O primeiro deles é Jardim das Folhas Sagradas (Póla
Ribeiro, 2010), em que Bonfim, um homem negro que tenta organizar um terreiro na cidade, é
casado com Ângela, uma evangélica que tenta convencer o marido para ir à igreja. Além da
oposição desta personagem, há também Dona Queca, uma senhora evangélica que, ao
descobrir a organização do terreiro perto de sua casa, avança e agride verbalmente os adeptos.
O segundo filme é Trampolim do Forte (João Rodrigo Mattos, 2010), produção que traz
como temática central a importância da infância, através da história de meninos que se
encontram no Trampolim do Forte, na praia do Porto da Barra, em Salvador (BA). Entre os
meninos, está Felizardo, garoto de dez anos que vende picolé na praia para cobrir as despesas
de casa e, sob exigência da mãe, dar oferta na igreja. Sua mãe, Dona do Céu (Marcelia
Cartaxo) frequenta a Igreja da Segunda Misericórdia, dirigida pelo Reverendo Magalhães
(Luiz Miranda), e usa o discurso religioso como estratégia para educar o menino e exercer
domínio sobre ele. Contudo, o desfecho do filme acaba por lançar a hipótese de pertencimento
religioso como mero oportunismo, pois a D. Cartaxo, em contraste com a opressão que
exercia sobre o filho, tinha encontros escondidos com o Reverendo da Igreja e este acaba
sendo descoberto como o bandido mais procurado das redondezas e que abusava sexualmente
das crianças que frequentavam o Trampolim do Forte. Com tais acontecimentos, fica exposto
o conflito de tais personagens para as quais a religião servia apenas como meio de exercer
autoridade.
3.3.2.3 Conflito 3: A (des)ordem moral
Enquanto o conflito anterior é proveniente de uma tentativa da personagem escamotear
atos delituosos, através do discurso religioso, nesta modalidade de conflito, a personagem
oscila entre as normas da religião e o desejo. Apesar de apresentar uma filiação religiosa e
assumir, ao longo do filme, atitudes que demonstram a sua busca por adequação às normas, o
comportamento da personagem é colocado sob suspeita quanto à sua estabilidade e
correspondência à ética pressuposta em sua religião.
106
O sistema religioso, embora presente no discurso dessas personagens e por isso
representado, de alguma forma, ao longo da narrativa se dilui em meio a práticas e
comportamentos da personagem que divergem do discurso inicialmente apresentado. A
questão, porém, é que embora tais divergências se caracterizem por meio de mudanças súbitas
de comportamento, elas resultam de uma escolha deliberada das personagens. Em tais
personagens, o vínculo religioso não retirou a potência do sujeito em promover rupturas e
operar novos processos de territorialização.
É assim que surge a personagem Kika (Dira Paes) em Amarelo Manga (Cláudio Assis,
2003). Em uma narrativa composta pelo desdobramento de histórias paralelas que acabam se
entrecruzando, a primeira personagem apresentada é Lígia (Leona Cavalli), a dona de um bar
frustrada por ser desejada por muitos e não viver com ninguém. Um dos freqüentadores do
seu bar é Isaac (Jonas Bloch) que, além de necrófilo, mora no Hotel Texas, um lugar escuro,
semelhante a um cortiço. Esse Hotel é administrado por Dunga (Matheus Nachtergaele), que é
apaixonado por Wellington, açougueiro casado com Kika, uma dona de casa evangélica que é
a responsável pelo desfecho central da história. Tal desfecho é revelado desde o início do
filme, quando o rádio do carro dirigido por Isaac anuncia:
E agora, vamos às nossas notícias matinais: Dona de casa muito respeitável, encontrou
seu marido com amante e aí a coisa ficou preta. Ela, uma evangélica, partiu pra cima
da fulana e foi um tal de “Deus nos acuda”. Resultado: amante no hospital ferida e a
cor ninguém sabe, ninguém viu (grifo nosso).
Na sua caracterização Kika tem cabelos presos, blusa abotoada ao pescoço e saia
comprida, à semelhança da personagem apresentada no filme Superoutro (Edgard Navarro). A
construção da personagem evangélica nesse filme surpreende por dois fatores: a tentativa de
trazer uma representação verossímil de um culto evangélico, se aproximando do
documentário, e uma desconstrução da expectativa criada para esse tipo de personagem a
partir do histórico de produções anteriores. Diferentemente dos personagens anteriores, não
sabemos o passado de Kika e não há nada que nos induza a pensar em quais fatores teriam
proporcionado a sua adesão à religiosidade. Na primeira cena em que aparece, ela está em
culto na igreja.
A sequência do culto é iniciada pela imagem da mão de um DJ mixando um vinil que,
simultaneamente, distorce a voz do pastor que aparece em seguida. Em primeiro plano, o
homem de paletó, suado, ergue as mãos e convoca os irmãos a louvarem ao Senhor. A câmera
intercala entre planos abertos, que mostram o volume de pessoas no salão, e planos fechados
107
em rostos contritos, emocionados, dos fieis na igreja, entre eles, o rosto de Kika de quem é
possível ouvir a voz balbuciando uma oração (Figura 11).
Geralmente, as igrejas nos filmes de ficção, embora disponham de diversos elementos
que possibilitam a sua identificação como evangélica, são apresentadas com nomes fictícios.
Um recurso que confere aos realizadores maior liberdade na sua representação e evita
acusações posteriores, sobretudo, em se tratando de um segmento religioso com igrejas tão
diversificadas umas em relação às outras. Tal procedimento, contudo, não é adotado nesse
filme. A igreja apresentada por Cláudio Assis existe dentro e fora da ficção, detalhe que fica
visível quando Wellington, marido de Kika, vai procura-la na igreja (Figura 12) e aparece
uma placa com a identificação: Igreja do Evangelho Quadrangular6.
Após a apresentação de Kika, a desconstrução da personagem é antecipada pela fala de
alguns personagens com frases como: “As crentes são as mais safadas” e “O pudor é a forma
mais inteligente de perversão”, esta última pronunciada ao ouvido da personagem pelo
próprio diretor, Cláudio Assis (Figura 13). Frases que ao serem dirigidas para uma
personagem evangélica soam, a princípio, como acusações descabidas, mas acabam
adquirindo coerência com o desfecho da história e abrindo campo para a reviravolta da
personagem.
6 Nos créditos do filme é possível observar, na parte de agradecimentos, uma referência à Igreja do Evangelho
Quadrangular com a descrição: Fiéis do Templo I - Comunidade de Brasília Teimosa e Fiéis de Templo II -
Comunidade Alto José do Pinho, atestando assim que as imagens veiculadas no filme tiveram o consentimento
da instituição.
Fonte: Amarelo Manga (Cláudio Assis, 2003, Olho de
Cão Produções)
Figura 11 – Kika durante o culto na Igreja.
108
Fora do ambiente da igreja, Kika dá continuidade à construção de evangélica e, mesmo
em conversa informal com o marido, deixa claro a sua ordem moral pelo seu posicionamento
diante de uma traição: “[...] Tem uma coisa, Wellington, uma coisa que eu não tolero, não
tolero, não: traição. Tolero, não. Assassinato, roubo, violência, tudo isso eu perdoo. Traição,
não. Adúltera é repugnante. Adúltero também. Com ferro fere, com ferro será ferido”.
Apesar de ser uma esposa fiel e dedicada, Kika ao descobrir que o marido a traía, sofre
uma transformação em uma trajetória invertida. Flagrar o marido em uma relação sexual com
a amante a faz reagir de forma inesperada: Kika avança sobre a outra mulher e morde sua
orelha contrastando assim com a imagem da mulher que sentia náuseas ao tratar a carne na
cozinha. Com a boca ainda ensanguentada pelo sangue da outra, na sequência seguinte, Kika
caminha, à noite, pelas ruas com os cabelos soltos e as roupas levemente desabotoadas,
revelando uma sedução desconhecida, até por ela, que mal conseguia se olhar no espelho de
sutiã. Na rua, surge Isaac, sujeito relativamente mal visto nas redondezas, oferecendo uma
carona que é prontamente aceita. Na cena seguinte o envolvimento sexual entre eles deflagra a
transformação de Kika expondo assim o conflito prenunciado por outras personagens a seu
respeito e dialogando diretamente com o mote do filme que anuncia: o ser humano é
estômago e sexo.
Além da apresentação da personagem evangélica, o filme também traz outras
referências ao universo religioso através do personagem do padre. Freqüentador do Hotel
Texas, o padre é responsável por uma igreja vazia de fiéis em que seus amigos mais próximos
Figura 12 – Fachada da igreja evangélica em
Amarelo Manga.
Figura 13 – Diretor fala ao ouvido da personagem.
Fonte: Amarelo Manga (Cláudio Assis, 2003, Olho de Cão Produções)
109
se resumem a alguns cachorros que ficam ao pé da decrépita capela. É por uma de suas falas
que temos acesso à espécie de crítica que o filme traz para o discurso religioso:
OFF (voz do Padre): Ninguém é inocente. Há muito tempo se perdeu a esperança nos
homens. O castigo hoje que grita aos sete cantos, os humanistas de beira de púlpito se
apiedam, pois que se apiedem de suas próprias almas, pois é justamente no orgulho
da bondade que reside o maior de todos os pecados. O homem morre, o mundo se
extingue e as chamas se consomem, mas a soberba acompanha o vácuo.
Uma fala inserida enquanto o padre caminha em direção à igreja e que pode ser
referência indireta ao possível conflito simbólico entre a igreja católica e outras religiões
como em: os humanistas de beira de púlpito se apiedam como em alusão a pregadores.
Outra personagem que transita entre a moral apresentada pela ética religiosa e o desejo é
Lavínia de Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios (Beto Brant e Renato Ciasca,
2012). Casada com o Pastor Ernani (Zécarlos Machado), Lavínia (Camila Pitanga) traz um
passado de abuso sexual na infância, prostituição e uso de drogas. Quando ainda se prostituía
nas ruas, Ernani a leva para sua casa e inicia uma conversa em que compartilha como através
de uma experiência sobrenatural com o divino o levou a superar o seu vício com as drogas.
Após ouvir o depoimento de Ernani, Lavínia também compartilha seus traumas e aceita
a proposta de ter sua vida transformada. É nesse momento que há uma longa sequência em
que Ernani põe uma Bíblia sobre a cabeça de Lavínia e faz uma espécie de oração, enquanto
essa tem um acesso de vômitos. A partir daí, a personagem sofre uma mudança de
comportamento: deixa de se prostituir nas ruas, passa a frequentar as reuniões dirigidas por
Ernani e, em pouco tempo, se torna também a mulher dele.
Apesar das cenas dedicadas à encenação de rituais religiosos, a religiosidade das
personagens é apresentada de forma difusa no filme. Não é possível discernir a que tipo de
religião o discurso de Ernani se filia7, nem afirmar se Lavínia de fato se tornou evangélica,
mesmo com a sua presença nas reuniões. A sua personagem não se define. E é dessa forma
que, ao viajar para o norte do país com o marido, Lavínia acaba se envolvendo com Cauby
(Gustavo Machado) um fotógrafo da cidade.
Nos encontros com Cauby, Lavínia não é a mulher do pastor, nem a garota que se
prostituía nas ruas. É um trânsito entre as duas que nem mesmo as fotografias de seu amante
são capazes de capturar. Com um olhar distante, Lavínia é um ser fractal, que oscila entre a
7 Em uma das reuniões dirigidas por Ernani ele entoa hinos a São Miguel, entretanto, trata-se de uma divindade
reverenciada por diferentes religiões no Brasil. Se for levada em conta a locação do filme – gravado na região
norte do Brasil – poderia ser uma referência à doutrina do Santo Daime, manifestação religiosa de origem
amazônica que tem como principal característica o uso de uma bebida alucinógena (ahayusca) e reúne a
influência de diferentes matrizes religiosas.
110
mulher que era e a mulher que se tornou. E mesmo dispondo de autonomia para reger o seu
destino, responde ao convite de fuga do amante com um ambíguo: Eu não posso, eu não
quero. Insinuando assim, que a norma religiosa, à qual estava submissa através do marido, se
impunha sobre o seu desejo.
Ainda nessa modalidade de conflito, se situam as duas personagens que serão objeto de
análise: Teodoro, de Contra Todos (Roberto Moreira, 2004) e Dinho, de Linha de Passe
(2008), pois tanto um quanto o outro tentam, ao seu modo, seguir as normas instituídas pelo
sistema religioso, entretanto, a convivência com outras redes de relações ocasionam conflitos
com essa ordem religiosa.
O motivo pelo qual optamos tratar essas personagens, em separado, é justificado por
duas razões. Primeiro, pelo fato de tais personagens trazerem em sua constituição elementos
relacionados aos três tipos de conflito mencionados até aqui: o conflito entre a Bíblia e a
arma, a busca por afirmação de poder e pela instabilidade moral resultante do impasse entre
ordem religiosa que reverenciam e seu próprio desejo. A outra razão está relacionada à
ausência de um desfecho definido na trajetória dessas duas personagens. A complexidade do
contexto de violência que tece a existência dessas subjetividades não permite identificar uma
escolha ou momento de decisão entre a ordem religiosa ou outra ordem. Tal indefinição, ao
tempo em que contribui para um exame mais atento dos agenciamentos que constituem tais
personagens, viabiliza uma rasura nos estereótipos de evangélicos apresentados até então e
uma compreensão mais alargada da composição dessas subjetividades no cinema brasileiro
contemporâneo.
111
4 EVANGÉLICOS EM INVENÇÃO
As duas personagens escolhidas para constituir o corpus de pesquisa são marcadas por
algumas semelhanças: residem na periferia paulistana, apresentam uma trajetória marcada por
um regime de busca (a busca de ser outro através do pertencimento religioso e assim fugir das
intempéries impostas por suas duras realidades na periferia); não tem um desfecho definido de
seus conflitos; operam trânsitos (entradas e saídas do universo simbólico da religião); usam
do universo simbólico da religião como meio de operar articulações com o seu contexto.
Tais aspectos, ao tempo em que permeiam as ações dessas duas personagens, resultam
em uma construção distinta das personagens apresentadas anteriormente, fugindo aos modelos
instituídos no interior da própria cinematografia brasileira e contribuindo tanto para compor
um olhar mais complexo desse tipo de personagem, quanto para ampliar a discussão acerca
das formas de interpretação do pertencimento religioso.
Apesar de reservarem semelhanças – em suas diferenças – as duas personagens também
apresentam diferenças uma em relação à outra. A um lado, Teodoro (Giulio Lopes) reproduz
o discurso religioso na convicção de que assim pode ser outro e obter respeito no nicho das
relações familiares e afetivas. Subverte a relação de mero refém do discurso religioso e "joga"
com ele de acordo com seus interesses.
De outro lado, Dinho (José Geraldo Rodrigues) reproduz o discurso religioso no desejo
e esperança de ser outro (que ele ainda não é) diferente das expectativas criadas ao seu
respeito na comunidade, superando as possíveis tendências e contingências do lugar onde
mora. A relação de Dinho com a religião vai além de um desejo circunstancial em se tornar
“outro”, mas se apresenta como um novo projeto de vida. Apesar da sua confiança no discurso
religioso, isso não o torna imune a dúvidas em momentos de crise e questionamentos sobre
sua própria fé.
Trata-se aqui de uma abordagem do pertencimento religioso, além do misticismo
mágico e dos interesses escusos, mas como resultante de uma escolha consciente por parte das
personagens. Nesse sentido, as duas personagens apresentam uma nova “face” do vínculo
religioso, enquanto potência de subverter previsões, abrindo a vertente para a discussão de
novos tipos de pertencimentos, instáveis, móveis, dos quais a religiosidade constitui apenas
um eixo, entre outros disponíveis, para a construção do sujeito na contemporaneidade.
112
São personagens que, embora fazendo parte de um contexto marcado por atos de
violência como os das periferias urbanas, são apresentadas de modo diferenciado ao adotar
determinados comportamentos religiosos como parte do seu cotidiano e, muitas vezes, são
convocadas a se posicionarem entre duas propostas divergentes: aderir ao mundo da
criminalidade ou se render aos ritos religiosos.
Embora o processo de estabelecimento e ascensão dessas duas ordens – o mundo do
tráfico e a religião – não seja institucionalizado, nem determinante para a constituição da
subjetividade daquele que habita as periferias, exerce influência sobre a forma como esses
indivíduos são representados nas produções cinematográficas favorecendo a construção de
estereótipos, alguns já mencionados através das personagens anteriores.
Diante dessas duas personagens para as quais o conflito entre a criminalidade e a
religião está mais evidente na narrativa, surge então, o desafio de compreender como esses
sujeitos, a partir da desconstrução dos elementos religiosos que foram oferecidos a seu
respeito, promover novas formas de articulação com o contexto engendrando personagens
evangélicas marcados pela singularidade.
4.1 TEODORO DE CONTRA TODOS (2004)
Será que eu não tenho direito a perdão?
Tá lá na sua Bíblia que todo mundo tem direito a perdão...
(Fala da personagem Teodoro no filme Contra Todos, 2004, Roberto Moreira)
Nas imagens, Aricanduva, região periférica da grande São Paulo é o pano de fundo
escolhido para tratar de conflitos sociais que se tornaram comuns em filmes brasileiros que
retratam as periferias urbanas, entre eles, questões de violência, juventude e religião. No
entanto, além dessas imagens, de algum modo já apresentadas em diversas produções da
cinematografia brasileira contemporânea, o que chama a atenção na obra da qual iremos tratar
aqui se refere aos conflitos tácitos, de ordem subjetiva, como a solidão que permeia as
relações familiares nesse contexto periférico.
Trata-se do filme Contra Todos (2004), obra com roteiro e direção de Roberto Moreira,
produzido com a mesma equipe técnica do filme Cidade de Deus (2000) – incluindo Fernando
Meirelles – e que a despeito das semelhanças com outras obras feitas no mesmo período, traz
113
escolhas estéticas que o aproximam do cinema produzido em países da Europa. Com a
filmagem em vídeo digital, a exploração de poucos recursos técnicos e a busca de referências
em produções como Festa de Família do cineasta dinamarquês Thomas Vintenberg (1998)1, o
filme também apresenta fortes influências do movimento cinematográfico Dogma 952. Assim
mesmo tendo como ponto de partida a abordagem de um tema que então se tornara familiar ao
cinema brasileiro, Moreira inova ao trazer uma nova forma de construir a narrativa que,
priorizando uma “poética do improviso”, confere mais relevo à composição de cada
personagem.
Além disso, câmera também tem uma participação importante na realização do filme,
pois atua como outro personagem que, interagindo com as cenas enquadradas, ora apresenta o
rosto dos atores em close, ora explora o extra-campo em planos incompletos. Como o próprio
diretor afirma: “Contra Todos é filmado como um documentário. É uma câmera parecida com
uma câmera de MTV, ela é muito moderna, ela persegue os personagens, ela gruda, ela está
junto com os atores contando a história”3.
Entretanto, como parte do discurso crítico do filme, há uma desconstrução constante das
personagens como um jogo de tirar as “essências” para descobrir as “perspectivas”, conforme
anuncia as legendas do trailer: “Olhe esta família, olhe seus amigos. Agora pare de olhar e
comece a enxergar a realidade”. Mas, como sinaliza Gilles Deleuze (1974), em seu texto
Platão e o simulacro a dialética platônica não é marcada pela contradição, nem pela
contrariedade, mas por uma rivalidade entre o verdadeiro e o falso. “Enxergar a realidade”,
portanto, nessa chamada, sugere apresentar um caminho para descobrir a suposta verdade por
detrás da primeira impressão de cada personagem.
Logo na primeira cena do filme, uma família está reunida à mesa para uma refeição, em
companhia de amigos, e Teodoro (Giulio Lopes), a figura do pai da família, pede licença a
todos para orar antes de comer: “Senhor eu vos agradeço por esse alimento e eu vos peço que
nunca nos falte. Amém.” A reação é diversificada. Uns respeitam, outros riem, mas a oração é
feita. A reação das outras personagens já é um indicio de que mesmo a religião sendo uma
escolha pessoal ela tem o potencial de se infiltrar nos costumes e nas relações.
1 Segundo colunista da Folha de São Paulo, José Couto, este filme foi uma das referências que o diretor tinha em
mente durante a produção do filme. 2 Movimento iniciado na Dinamarca pelos cineastas Thomas Vinterberg (Festa de família, 1998) e Lars Von
Trier (Dançando no escuro, 2000) que em protesto à industrialização do cinema estabeleceu dez regras, também
conhecidas como “voto de castidade”, que defendendo a utilização de menos recursos também proporcionou um
barateamento das produções. 3 Depoimento extraído do menu extras do DVD (Contra Todos, 2004, Conspiração Filmes) .
114
A partir das primeiras ações de cada personagem, há a tendência em se construir um
perfil de cada um deles. No caso de Teodoro, o ato de orar o apresenta como um homem
religioso e as reações das outras personagens, diante do seu gesto, são indicativas do conflito
suscitado pelo discurso religioso. Entretanto, o filme, além de ter como proposta um discurso
crítico acerca de determinados fatos do contexto das periferias brasileiras, também realiza um
exercício de desconstrução das personagens. Se nos primeiros momentos, Teodoro é
apresentado como homem equilibrado e religioso que ora antes das refeições, lê a Bíblia,
frequenta cultos de oração; contudo, ao longo da trama, são reveladas outras facetas de sua
personalidade.
Em outro momento de refeição, diante da mesma mesa, Teodoro convida sua filha a
orar, ela se recusa. A partir daí se inicia uma discussão em que o pai não só chama a filha de
“putinha” como lhe dá uma sucessão de tapas e pontapés no quarto. Sem uma aparente
reconciliação, logo em seguida, Teodoro volta para a mesa da refeição e começa a beijar a
esposa que acabara de sentar ao seu colo como se nada tivesse acontecido. Assim, se ao
princípio, violência e religião pareciam elementos contrastantes, na perspectiva da
personagem de Teodoro, elas não só fazem parte do mesmo território – periferia urbana de
uma grande cidade – como integram a complexa construção de sua própria subjetividade.
Aos poucos, a narrativa também revela a profissão de Teodoro. Sem o conhecimento da
família, Teodoro trabalha como matador de aluguel, função na qual demonstra habilidade e
compartilha tarefas apenas com o amigo Valdomiro (Aílton Graça), seu colega de profissão.
Em uma de suas saídas noturnas Teodoro, sob a companhia de seu comparsa, chega a uma
residência e, em poucos minutos, alveja com vários tiros todas as pessoas presentes. Ao
terminar o “serviço”, os dois dão continuidade a uma conversa corriqueira sobre a dúvida de
Valdomiro entre comprar um carro ou um imóvel. A violência não passa de uma profissão.
Aqui, o elemento religioso parece minoritário diante dos atos de violência e se apresenta
como uma máscara usada circunstancialmente para ocultar os delitos do matador. Entretanto,
o que a narrativa nos leva a entender é que não se trata de descobrir a essência por detrás da
aparência da personagem, pois no cinema moderno a relação do homem com o mundo não é
regida por categorias instituídas, mas por uma indefinição, o devir:
Não se trata de um corpo que vagueia pelo mundo, mas seu movimento advém de
forças que o constituem [...]. Não há entidades, tudo se tornou devir, é preciso
reinventar. O movimento não se localiza no movimento de entidades já constituídas,
mas nas suas dinâmicas históricas de constituição (MATOS, 2010, p. 47).
115
Esse trânsito entre o vínculo religioso e a criminalidade em Teodoro (Figura 14)
inicialmente induz a pensar que a religiosidade continua sendo apresentada como um refúgio
ou possibilidade de ocultar a prática delituosa, tal como nas personagens do primeiro conflito
(3.3.2.1 Entre a bíblia e arma). Entretanto, tal busca pela religiosidade nesta personagem não
é motivada necessariamente por um conflito de ordem socioeconômica, pois o trabalho que
desempenha lhe proporciona o sustento necessário, mas uma crise subjetiva. Se em um
primeiro momento, as práticas da personagem parecem conflitantes entre si, ao longo da
narrativa, elas não só adquirem coerência como se tornam uma estratégia de sobrevivência do
sujeito em um contexto atravessado por ordens distintas.
Não é a situação de desemprego ou exploração que conduz Teodoro a buscar uma
religião, mas o desejo de ser outro, sendo o mesmo. Ser outro, neste caso, se associa com a
possibilidade de uma vida nova com a sua namorada evangélica, Terezinha (Marta Meola),
morando no interior, distante da violência da periferia urbana. A religiosidade aqui é a
promessa de ser um outro não-violento. Não se trata exatamente de uma alienação, pois
Teodoro tem consciência de sua condição, mas de uma estratégia de sobrevivência de um
sujeito fragmentado, mas que vive em uma sociedade organizada por ordens e instituições em
que a prática da criminalidade está condicionada à punição e a devoção religiosa é
apresentada como atalho para a redenção moral.
A religião, nesse contexto, acaba se tornando uma “arma” utilizada para driblar outra
espécie de violência a que o sujeito se encontra submetido. Não a violência física, mas uma
violência subjetiva, efeito do discurso dominante sobre o sujeito. Visto que sua profissão
como matador de aluguel é criminalmente penalizada – embora requisitada e valorizada por
aqueles da comunidade que querem fazer justiça sem o auxílio da força policial –, o
pertencimento religioso escamoteia possíveis suspeitas a respeito de sua conduta, tornando a
Figura 14 – As duas faces de Teodoro: evangélico e matador.
Fonte – Contra Todos (Roberto Moreira, 2004, Videofilmes).
116
sua posição de personagem evangélica complexa, ambígua. A religião, aqui, serve como uma
arma que se vale da alienação alheia – aqueles que acreditam que religiosos não possuem
falhas – para operar trânsitos e subversões.
Da mesma forma que o discurso do Estado afirma o assassinato como crime passível de
punição, o discurso da religião afirma que seus adeptos estão isentos de cometer gestos de
violência. Teodoro aglutina esses dois discursos em si mesmo, denunciando a fragilidade de
tais convenções e, ao mesmo tempo, mostrando como a construção de subjetividades pode ser
complexa.
O interessante de observar nessa ruptura é que entre os dois modos de vida, o violento e
o religioso, o que demonstra ter maior predominância sobre a personagem é o primeiro. Uma
constatação que, a princípio, parece fazer ruir todo conceito de evangélico construído sobre a
personagem, como se a religião fosse apenas uma mera máscara usada circunstancialmente
para ocultar os delitos humanos.
Além do relacionamento conturbado com a filha, Teodoro, que é casado, também tem
uma amante: Terezinha, uma mulher da igreja. O fato de Teodoro ser casado, por vezes,
violento com filha, e matador de aluguel profissional, são informações desconhecidas por ela.
Sob sua perspectiva, ele é apenas um alguém que se converteu, tornou-se adepto da igreja, e
que a pediu em noivado. E é protegido pela inocência de Terezinha que Teodoro parece
finalmente estar diante da possibilidade de assumir outra vida.
A personagem de Terezinha, desde a primeira aparição, apresenta elementos que a
caracterizam como adepta de uma religião cristã. O seu modo de se vestir com roupas
simples, rosto sem maquiagem e cabelos presos se assemelham à representação mais popular
do evangélico. Na sua primeira fala, em que agradece a Teodoro por tê-la ajudado com a
organização da casa nova, suas palavras confirmam a representação visual construída:
“Teodoro eu quero te agradecer, em nome de Jesus, tudo o que você tem feito por mim” (grifo
nosso). Assim, Terezinha aparece como outra espécie de personagem evangélica: uma mulher
ingênua e alheia ao contexto de violência que busca apenas ser fiel aos preceitos de sua
religião.
Nesse sentido, a personagem de Teodoro se caracteriza por jogar com o estereótipo de
evangélico apresentando uma personagem fluida, habitante da periferia paulistana que transita
entre a adequação aos preceitos da religião e a sedução da criminalidade, não pertencendo
totalmente a nenhum dos dois. É a partir das rupturas e desvios dessa personagem que
117
percebe-se que a construção da subalternidade no cinema brasileiro pode subverter a lógica
dos binarismos identitários difundidos nas representações sociais e possibilitar um olhar das
identidades, não apenas pela diferença que as constitui, mas sob a perspectiva de uma
subjetividade múltipla e aberta ao constante processo de transformação, em invenção.
A instabilidade da personagem de Teodoro é parte da sua própria constituição. Ele não é
nem um evangélico, nem um criminoso de forma definitiva, mas ele transita entre essas duas
disposições. A atuação de Teodoro funciona como uma metáfora que aponta tanto para os
antagonismos presentes no universo das periferias quanto para pensar a construção múltipla
do evangélico em devir no cinema contemporâneo. Não há uma identificação com uma
ordem, uma instituição. “Com efeito, trata-se de instituições paradoxais, pois elas devem ser
tão moventes, abertas, esburacadas, excêntricas, fraturadas quanto o devir lhes cabe
favorecer” (LAZZARATO, 2004, p. 148).
Quanto ao aspecto religioso, Teodoro se caracteriza como um simulacro de evangélico.
Um simulacro, pois reserva uma semelhança de hábitos que, sob determinada perspectiva,
permitem identificá-lo como um homem religioso, mas é uma imagem em constante processo
de subversão:
Em suma, há no simulacro um devir-louco [...] um devir sempre outro, um devir
subversivo das profundidades, hábil a esquivar o igual, o limite, o mesmo ou o
semelhante: sempre mais ou menos ao mesmo tempo, mas nunca igual (DELEUZE,
1974, p. 264)
Descobre-se em seu personagem uma personalidade múltipla. Contudo, ao longo do
desenvolvimento da trama, o cordão de isolamento entre os distintos modos de vida se rompe.
Terezinha descobre que Teodoro era casado e, ao reencontrá-lo, lhe dá o título de demônio. E
depois de amordaçar Terezinha, Teodoro com o rosto obscurecido, em segundo plano (Figura
15), confessa:
Você tem razão, Terezinha, sou o demônio mesmo... Eu tentei mudar. Eu queria seguir
com você, Terezinha, o caminho de Deus, fazer tudo direitinho, mas você não me
ajudou nada, você não quis nem me ouvir, Terezinha. Será que eu não tenho direito a
perdão? Tá lá na sua Bíblia que todo mundo tem direito a perdão. Deus teve ter me
perdoado, mas você não me perdoou, Terezinha. Então você vai conhecer o Teodoro,
você vai me conhecer Terezinha.
118
A negação do Teodoro evangélico se consolida pela afirmação: sou o demônio. Assim, a
construção da personagem evangélica no filme Contra Todos é submetida a uma rasura
enquanto identidade, existindo apenas como simulacro. É assim que, após a morte de
Teodoro, já na cena final do filme, Valdomiro ocupa o papel de noivo de Terezinha, mesmo
escondendo sob o terno uma arma.
A aparição de uma personagem que apresenta características comuns aos evangélicos,
como é o caso de Teodoro, não indica necessariamente o seu reconhecimento social – posto
que subalterno – mas trata-se de oferecer mais uma das peças que hão de constituir o
complexo quebra-cabeça do devir-povo brasileiro, compreendido como o povo brasileiro não
enquanto uma entidade estabilizada, mas em processo de invenção (MATOS, 2010, p. 11).
Teodoro busca a sobrevivência a partir dos modelos que lhe são oferecidos, mas sem
assumir um lugar definido. Tendo a violência é a sua fonte de renda e a religião como o
caminho para a regeneração e busca da felicidade, ele executa o movimento entre modelos
simulacros, não constituídos, e que não pressupõe a sua superação ou autonomia em relação a
eles, antes caracteriza um posicionamento ambíguo de entre-lugar, “entre a prisão e a
transgressão, entre a submissão ao código e a agressão” (SANTIAGO, 1978, p. 26).
Nem Bíblia, nem arma. Assassinado pela própria mulher com um golpe de faca,
Teodoro não consegue se definir entre uma vida religiosa e uma vida ligada ao crime. O seu
fim, embora trágico, assegura a permanência do conflito, de maneira que mesmo após a sua
morte, o processo de singularização não cessa. Prova disso é o desfecho da personagem
Valdomiro. Também matador de aluguel e comparsa de Teodoro, Valdomiro acaba se
casando com a evangélica Terezinha e no dia de celebração do matrimônio é ele que, dessa
Figura 15 – Teodoro se revela para Terezinha.
Fonte: Contra Todos (Roberto Moreira, 2004, Videofilmes).
119
vez, vagueia entre o gesto de cheirar pó escondido no banheiro com o futuro cunhado e entoar
cânticos religiosos com os irmãos da igreja convidados para a festa de casamento.
Nesse sentido, como assinala Guatarri (1996), a respeito do processo de singularização:
“[...] um ponto de singularização pode ser orientado no sentido de uma estratificação que o
anule completamente, mas também pode entrar em uma micropolítica que fará dele um
processo de singularização.” (grifo nosso, GUATARRI & ROLNIK, 1996, p. 51).
Assim, embora no trailer do filme seja anunciada a proposta de “enxergar a realidade”,
as rupturas que o filme realiza através das suas personagens, especialmente Teodoro, são
importantes para pensar a constituição e desconstrução de lugares/estruturas precedentes sob
um viés pós-estruturalista em que a ambiguidade e a indeterminação possibilitam novas
leituras sobre os discursos mobilizados pelo sistema dominante.
O desafio que se apresenta diante da proliferação de igrejas evangélicas nas periferias
brasileiras é observar a construção dessas personagens como um processo de invenção. Ir
além dos elementos que são oferecidos como características no cinema, mas reconhecer a sua
complexidade, a sua contextualização histórica na configuração religiosa do Brasil, suas
formas de representação nos meios de comunicação e, a partir das relações que estabelecem,
desconstruir o discurso hegemônico em seus resquícios.
4.2 DINHO DE LINHA DE PASSE (2008)
Até quando te esquecerás de mim, Senhor?
Até quando esconderás de mim o teu rosto?
(Fala do personagem Dinho no filme Linha de Passe, 2008, Walter Salles)
Cidade-Líder, periferia de São Paulo, é o cenário onde se apresenta uma típica família
brasileira: uma mãe solteira com quatro filhos para criar e grávida de mais um. Seu nome é
Cleuza (Sandra Coverloni) e cada um de seus filhos tenta driblar as dificuldades que a
situação social lhes impõe. Reginaldo (Kaique de Jesus Santos) não conhece o pai, mas sabe
que ele é um motorista de ônibus, razão que o faz acompanhar o mesmo motorista quase todos
os dias. Dênis (João Baldasserini) trabalha como motoboy e já pensa em outras formas de
melhorar de vida. Dario (Vinicius de Oliveira) joga futebol e tem o sonho de ser escolhido por
120
um olheiro. Dinho (José Geraldo Rodrigues) trabalha como frentista em um posto de gasolina
e frequenta uma igreja evangélica.
Linha de Passe, filme dirigido por Walter Salles, em parceria com Daniela Thomas,
personifica através da trajetória de cada um dos filhos de Cleuza os diversos dramas
vivenciados por habitantes de uma periferia paulistana e, à semelhança de outras produções
do diretor – como Central do Brasil (1998) e O primeiro dia (1998) – demonstra
sensibilidade com a questão religiosa que atravessa a formação e a cultura da sociedade
brasileira. Enquanto nos filmes anteriores, a presença da personagem evangélica é sutil, em
Linha de Passe, a discussão acerca das implicações do pertencimento religioso ganha
importância ao figurar como característica principal de um dos protagonistas da trama: Dinho.
No entanto, a questão religiosa de Dinho, bem como, o drama vivenciado pelas outras
personagens está envolto por uma espécie de narrativa alegórica que, reforçado em planos e
enquadramentos, remete à ideia de uma nação em gestação. É assim que logo no início do
filme, Cleusa aparece sentada de perfil em sua cama e, já com a respiração ofegante pelo
estágio avançado da gravidez, olha para a luz que entra pela janela do quarto, enquanto alisa a
barriga. Logo em seguida, o plano é interrompido pela imagem de mãos se agitando sob a
bandeira de uma torcida de futebol. O tecido que envolve os torcedores na arquibancada
lembra um grande útero agitado pelas mãos da torcida. Em paralelo a essa sequência, as mãos
erguidas da torcida no estádio esmaecem, lentamente, dando lugar no plano seguinte às mãos
erguidas de fieis em uma igreja.
A partir desses elementos comuns – as mãos erguidas, os rostos contritos – o filme
parece sugerir um comparativo entre os dois contextos. Não vem ao caso afirmar que isso
teria a intenção de dizer que as partidas de futebol se converteram em ritos religiosos, mas sim
pelo poder arrebatador que essas duas manifestações exercem sobre as multidões. E é sob
essas imagens que a discussão sobre religiosidade ganha espaço para uma reflexão mais
profunda em conexão com questões mais abrangentes de pertencimento como a formação da
nacionalidade.
Também, nesta sequência, rostos contritos são flagrados em primeiro plano, com
olhares erguidos ao alto como também a buscar algo. O sentimento expresso no rosto dos fieis
no templo se confunde com a tensão e expectativa de rostos da torcida no campo de futebol.
Jogo de homologias e correspondências, insinuando através das imagens a busca dessas mãos
por algo que dê um sentido à existência, uma razão pela qual lutar.
121
A busca de si, de uma razão maior, também aparece associada a um sentido de pertença
a uma coletividade. Como se trata de uma busca que envolve a construção do sujeito, sua
condição é um contínuo processo de “vir a ser”, devir. Uma sequência que traduz esse desejo
é a imagem da torcida no campeonato de futebol, sob a cobertura de um mesmo tecido. E é no
jogo de futebol que todos parecem pertencer a um mesmo grupo e compartilhar de um mesmo
sentimento: a vitória do time.
Dinho personifica o crescimento de adeptos de igrejas evangélicas nos bairros
periféricos; já Dario é o jovem que tenta uma ascensão social participando de seleções para o
ingresso em times de futebol; Dênis remete à presença dos motoboys que se arriscam em
manobras arriscadas no trânsito em competição com os carros e se tornam símbolo de ameaça
à segurança com a onda de assaltos em sinaleiras e Reginaldo, intrigado por ser o único negro
entre os irmãos é aquele que deseja descobrir sua própria trajetória buscando referências do
seu pai.
São os filhos de Cleusa, essa mãe solteira, que aguarda o nascimento de mais um filho,
cujo pai também é desconhecido ao espectador e que no filme sugere uma personificação da
própria ideia de nação brasileira: um território formado por filhos (pessoas) de pais diferentes
e desconhecidos (índio, negro, europeu) lutando pela sobrevivência em busca de uma razão
maior para nortear a sua existência. Seja essa razão encontrada em uma comunidade religiosa,
em um time de futebol, no cotidiano de uma profissão, na busca de um pai desconhecido. A
busca das personagens, inclusive a de Dinho, aparece associada com uma busca de
encontrarem a si mesmos, apesar das agruras de um contexto periférico e sem perspectivas de
mudança.
Como um desses filhos em busca de um pertencimento, Dinho ao aparecer, pela
primeira vez, está em um culto na igreja e faz a seguinte oração: “Te agradeço, Deus, pelo
período que passei triste, que passei perdido, que passei sozinho...”. Com essa afirmação,
Dinho demonstra indiretamente a potência do discurso religioso em operar subversões por
meio de reações inesperadas, como agradecer por algo que lhe teria causado dano – ficar
perdido, sozinho. Logo em seguida, o pastor convida os presentes a cantar uma música que
diz: "Quero que valorize o que você tem/ Você é um ser, você é alguém tão importante para
Deus [...]" o que de alguma forma vai de encontro à necessidade de aceitação e pertencimento
da personagem.
122
É através da personagem de Dinho que essa busca das personagens também é
verbalizada no momento em que ele vai visitar Dona Rosa, uma irmã da igreja, e lê para ela
um texto da Bíblia:
Até quando te esquecerás de mim, Senhor? Até quando esconderás de mim o teu
rosto? Porque os meus dias se consomem como a fumaça e os meus ossos ardem
como lenha. Meu coração está ferido e seco como a erva, por isso me esqueço de
comer pão. Meus dias são como a sombra que declina e como a erva me vou secando.
O texto, de fato, foi extraído da Bíblia, porém, em um apanhado com trechos de
diferentes capítulos do livro de Salmos (Salmo 13: 1 e Salmo 102: 3, 4 e 11). Enquanto lê, os
planos mostram Cleusa à espera de um ônibus na estação, Dario pensativo no sofá de casa,
prédios da grande São Paulo, em plano geral. Mesmo sendo um texto religioso, ele traduz o
sentimento de desgaste e frustração que circunscrevem, muitas vezes, esse movimento de
busca cotidiana.
No caso de Dinho, um desses momentos de frustração ocorre quando ele está no
momento do culto e presencia a irmã Rosa, que era paralítica, ser convidada pelo pastor para
se erguer com as próprias pernas. Como uma prova da sua própria fé, a mulher é desafiada, no
entanto não consegue se levantar sozinha e cai. Com isso, o pastor justifica o acontecido com
o discurso: "Muitas vezes, irmãos, nós achamos que estamos com aquele 100% de fé [...] E
não está". Mesmo após o fato, Dinho continua na igreja.
Além de colecionar frustrações pessoais, Dinho, assim como outras personagens
evangélicas do cinema também é retratado em várias cenas que permitem observar como as
outras pessoas reagem ao seu pertencimento religioso. E é assim que surgem os seguintes
comentários:
- Não é porque virou crente, não. Uma vez na quebrada, sempre na quebrada, irmão.
(quando Dinho passa por seus colegas de rua).
- E aí, crente, futebol também é de Deus? (quando Dinho é flagrado pelo seu chefe
ouvindo uma partida de futebol no rádio)
- Tá bonito, hein? Vai fazer exame de fezes? (quando Dinho chega ao posto arrumado
de paletó e camisa).
São afirmações que oferecem indícios dos conflitos vivenciados pela personagem e que
demonstram que o território periférico não deixa de exercer influência sobre o sujeito. As
implicações simbólicas de pertencer a um determinado território geográfico da cidade – neste
caso, a zona periférica – precede e antecipa outras leituras possíveis acerca da subjetividade.
No entanto, a trajetória de Dinho, assim como a de Teodoro é atravessada por conflitos que
vão além das contingências socioeconômicas do território onde vive, permitindo com isso um
olhar mais complexo sobre pertencimento religioso na contemporaneidade e,
123
consequentemente, das personagens apresentadas como evangélicas na cinematografia
brasileira.
Nesse sentido, embora a personagem assuma um posicionamento claro em relação à sua
religiosidade, esse vínculo é tensionado por outros acontecimentos que, ultrapassam o
universo religioso, entre eles, por exemplo, a busca pelo prazer. Enquanto Dênis tem relações
sexuais com a colega de trabalho em um motel da cidade e Dario se embriaga com o filho da
patroa de sua mãe em uma balada, Dinho se tranca em quarto escuro de casa e parece se
masturbar. O seu corpo de costas para a câmera não deixa ver a expressão do seu rosto
durante a cena. Imageticamente, pode se considerar este como um momento de rasura sobre
qualquer projeto de identidade até então construído acerca da personagem. Sabemos que é
Dinho, mas não reconhecemos pelo rosto. Da mesma forma que sua expressão como sujeito
vai além da religiosidade que professa, a aparição do seu rosto não é suficiente para definir
quem ele é.
Momentos depois, Dinho socorre Dario quando este chega em casa, ainda sob efeito de
alucinógenos, e, ao colocá-lo embaixo do chuveiro para despertar, é ele quem também se
deixa molhar colocando o rosto sob a queda d'água como em um desejo de, se lavando,
esquecer do ato que cometera. Ao retornar à igreja, novamente temos a imagem de Dinho
sentado de costas em uma cadeira do templo da igreja. Em uma clara associação com a cena
de masturbação, dessa vez, ouve-se a sua voz murmurar as seguintes palavras:
Dinho: Deus eu me vendi. Eu fraquejei. O Senhor sabe que eu estou cada vez mais
distante, né?. Eu sou um porco. Eu sou um fraco.
Pastor: Paz do Senhor, irmão. Jesus tá ouvindo suas orações.
Dinho: Eu não sei se Ele quer me ouvir não, pastor.
Pastor: Que é isso Dinho? No dia que você aceitou Jesus, Jesus aceitou você.
Sua fala não é motivada pela presença de outra personagem, a não ser o próprio
espectador, agora cúmplice de sua vontade de regeneração. Com isso, percebe-se na
personagem a vontade de mudança. Fato que vai contribuir para a compreensão da cena em
que Dinho agride o gerente do posto. Uma atitude que poderia significar uma ruptura e
desconstrução de sua imagem de evangélico, quando comparada com sua reação em outras
situações, acaba figurando como um acidente, um deslize que contribui para a composição de
uma personagem humanizada.
O filme também traz a discussão de questões referentes ao próprio meio religioso como
o discurso de desapego aos bens materiais para ganho espiritual, a competição que começou a
124
haver com o aumento na quantidade de denominações, dando um caráter mercadológico ao
universo religioso, como assim deixa entender o pastor quando fala com Dinho:
Pastor: Sabe irmão, nesses três anos que eu tô nessa luta, eu nunca vi esses salão assim
tão vazio. E agora com a “Reviver” aí na esquina (fala se referindo a uma outra igreja)
tá todo mundo pulando pra lá. Todo mundo. Mas pra quê, né? Ouvir sermão que não
incomoda? Acreditar que Jesus é bonzinho? Jesus não é bonzinho. Nunca foi, nunca
vai ser.
Deste modo, além de abordar conflitos provenientes da reação da própria sociedade, o
filme discute conflitos internos que permeiam a existência das instituições religiosas no
Brasil, como a evasão de membros em virtude da chegada de uma nova igreja.
Por ser portador de todos esses conflitos, há momentos em que Dinho apresenta atitudes
que fogem das expectativas previstas para uma personagem evangélica – considerando o
histórico dessa personagem no cinema brasileiro. Uma dessas atitudes é apresentada na cena
em que Dinho é assaltado no posto de combustível onde trabalha e o gerente o acusa de
participação. Assim, mesmo que o pertencimento religioso pressuponha uma mudança de
comportamento e o seguimento de uma nova ordem moral; o pertencimento territorial e
periférico da personagem é o que antecede e dita as relações em uma situação de crise. Diante
da acusação, Dinho se sente injustiçado descontrola e acaba dando um soco no gerente. Uma
reação de ruptura e que fragmenta a subjetividade que parecia territorializada em uma
“identidade”.
Após a agressão, a cena que sucede é o rosto de Dinho em primeiro plano, ofuscado
pela escuridão da noite (Figura 16). Assim como o rosto de Teodoro quando se revela para
Terezinha a ausência de luz sobre o rosto, elemento de identificação do sujeito – impede o seu
devido reconhecimento nessa fuga desnorteada.
Figura 16 – Dinho, após a agressão, com o rosto obscurecido.
Fonte: Linha de Passe (Walter Salles, 2008, Videofilmes).
125
No plano da imagem, este pode ser considerado mais um mecanismo de rasura que não
consiste na substituição de Dinho por um outro totalmente, mas interfere no reconhecimento
da sua imagem, aqui, situada como a parte visível de sua subjetividade. Em seguida, a sua
reação é sair pelos bares bebendo. Com esse tipo de ruptura, a personagem mostra que o
pertencimento religioso constitui apenas uma das possibilidades de subjetivação.
Assim como em Teodoro, o final de Dinho também não é definido. Ao invés disso, nos
minutos finais temos a imagem do seu rosto, novamente em primeiro plano, porém dessa vez
caminha retornando de um batismo realizado pela igreja. Com olhar e cabeça erguidos, da sua
boca sai a palavra: “Anda”. Uma expressão que, a despeito dos conflitos sugere que a
personagem prossegue em movimento.
A compreensão que o filme apresenta vai além de atribuição de adereços materiais que
se referem ao universo religioso, como trajes conservadores, bíblias em punho, mas está
relacionada à intervenção de outras redes de relação que, ao invés de consolidar identidades,
se abrem para as singularidades.
126
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Partindo da ideia do cinema brasileiro como um lugar em que a religiosidade pode ser
pensada, tentamos compor um breve panorama com o fim de apresentar como as
manifestações religiosas foram lidas e interpretadas pelos cineastas em outros períodos da
cinematografia brasileira culminando com a personagem evangélica nas produções
contemporâneas.
Nesse percurso foi observado que, antes mesmo da religiosidade vir a ser eleita como
temática a ser abordada nas narrativas audiovisuais, ela perpassa a formação dos próprios
realizadores, pois ainda que eles não defendam explicitamente nenhum tipo de devoção – e
nem tenham a intenção de fazê-lo por meio de suas produções – a influência religiosa está
disseminada nos costumes e valores da cultura brasileira. O vínculo entre o Estado e a religião
constituiu a base do processo de colonização portuguesa e, mesmo após a superação dessa
fase política na história do Brasil e a instauração formal de um Estado laico, os rastros dessa
influência religiosa são visíveis em fatos como a predominância estatística de pessoas que se
declaram como adeptas da religião católica e o próprio calendário de festividades no país. Tal
religiosidade foi incorporada às tradições e costumes nacionais de modo que outras
manifestações religiosas, inevitavelmente, tendem a ser interpretadas sob a perspectiva da
alteridade.
E foi na tentativa de pensar essa conjuntura, anterior à construção de personagens
evangélicas, que dedicamos o capítulo inicial para uma reflexão mais abrangente relacionada
à forma como a religiosidade – em sua diversidade de crenças e ritos – foi apresentada em
diferentes períodos do cinema brasileiro. Ao fazer isso, foi constatado que os primeiros filmes
abordaram o tema a partir de narrativas dedicadas em relatar biografias de divindades
católicas. Um tipo de produção que pode ser considerada como religiosa – visto que tem por
finalidade em reforçar símbolos e valores pressupostos na religião que serve de tema central
da narrativa – e que mantém na atualidade, muito embora, diante da pluralidade de religiões
presentes no Brasil venha se subdividir em subcategorias: filmes católicos, filmes espíritas,
filmes evangélicos, etc.
São filmes, a princípio, voltados para um público segmentado – os adeptos ou
simpatizantes da religião – mas que tem ganhado proeminência no campo da crítica e
pesquisa audiovisual, a exemplo do trabalho desenvolvido por Luiz Vadico (VADICO, 2009),
127
sobretudo, por suas contribuições estéticas na forma de representar o sagrado na ficção. Por
esse aspecto, pensar a construção de personagens evangélicas em filmes produzidos por
evangélicos surge como uma possibilidade de trazer novos elementos à discussão aqui
apresentada, porém sob a perspectiva de auto-representação dos evangélicos no cinema e
considerando a personagem e a narrativa como integrantes de um discurso com fins
institucionais e religiosos.
Mesmo que em alguns momentos do trajeto dessa pesquisa, a personagem evangélica
tenha sido confundida com personagens de filmes religiosos – como se em referência a
personagens apresentadas em filmes evangélicos – o nosso interesse foi trazer a personagem
religiosa como uma das peças que constituíram e constituem as narrativas do cinema
brasileiro. Ao fazer isso não só teríamos acesso à forma como a sociedade brasileira –
representada através do olhar de diferentes cineastas – absorve, interpreta, a ascensão de uma
nova religiosidade, mas também como essa forma de interpretar revela os rastros, as
influências, deixadas pela religião fundante da cultura brasileira.
Esse processo, ainda que superficial e restrito a alguns filmes que tiveram maior
destaque de crítica, foi fundamental para observar como essa forma de representar a
religiosidade estava relacionada a determinadas estruturas de pensamento, provenientes de
estudos sociológicos, antropológicos, cuja repercussão influenciava o posicionamento político
dos realizadores e, consequentemente, a sua interpretação sobre fenômenos sociais como as
manifestações religiosas entre as classes populares. Desse modo, as primeiras produções não-
religiosas que trazem referências à religiosidade no Brasil, revelam a tendência em associar a
devoção como um rito inserido na cultura popular e desenvolvido por pessoas com baixo
nível socioeconômico, sejam elas habitantes da zona rural – como em Deus e o diabo na terra
do sol – sejam moradoras da região periférica de grandes cidades.
Ao tempo em que era uma tentativa de conhecer e tornar visível a religiosidade do
outro, a associação com a pobreza não deixava de ser resultante de uma projeção
preconceituosa de seus realizadores visto que, com raras exceções, a religião era apresentada
como uma necessidade do “povo”. Tal tendência chega à contemporaneidade e se estende às
personagens evangélicas, considerando que em todos os filmes elas são habitantes de
comunidades periféricas.
A reiteração de determinados elementos na composição da personagem evangélica a
cada filme acabou por organizar uma estrutura que só pode ser percebida com o passar dos
128
anos e, embora referentes a um fenômeno recente – o crescimento do número de evangélicos
no Brasil – é subsidiária de uma estrutura anterior, não atual, proveniente da própria formação
cultural brasileira, de influência católica. Como diria Gilles Deleuze, “[...] o que é atual é
aquilo em que a estrutura se encarna, ou antes, aquilo que ela constitui encarnando-se” (2010,
p. 230-231). Com essa afirmação, o autor nos permite aprofundar um pouco mais a
interpretação acerca dessa personagem no cinema, vendo a sua estrutura não apenas pelo que
lhe é aparente – a caracterização, o discurso que apresenta – mas como efeito de superfície de
um movimento mais profundo relacionado diretamente à construção do povo no cinema ou
um devir-povo como diria Deleuze.
A diferença da personagem evangélica para personagens religiosas apresentadas
anteriormente – e que vem resultar em um ganho para fins de representação da religiosidade
no cinema – é que tal personagem, dada a sua exposição aos conflitos e complexos da
contemporaneidade, não está detida ao território sob o qual foi narrativamente constituída,
neste caso, o território das periferias sociais e o território da religião. O processo de
subjetivação que encena não é está limitado à comunidade religiosa, antes, está dentro de um
processo de desterritorialização – saída dos territórios que a constituem na narrativa – para o
um movimento de trânsito entre fluxos – considerando aqui que nem mesmo os territórios
sobrevivem a uma constituição fixa. Por essa razão, ao invés de simplesmente apresentar as
personagens evangélicas em suas diversas caracterizações dentro da ficção, demos preferência
a um olhar analítico pautado nos conflitos que suas trajetórias encenam.
Assim, a presença de personagens evangélicas no cinema contemporâneo aponta para
uma representação de religiosidade mais próxima de discussões relacionadas a identidades
múltiplas, fragmentadas. Um aspecto notado na própria narrativa. Enquanto nas primeiras
produções que trouxeram personagens religiosos a performance da personagem era baseada
em uma representação da coletividade, nos filmes mais recentes, tamanha a complexidade de
compreender o processo subjetivação do sujeito, resta como alternativa trazer a questão
religiosa através de uma personalização desse pertencimento. A questão religiosa não como o
interesse de um grupo em particular – como o grupo de pescadores em Barravento – mas
como parte da trajetória específica de um sujeito que, não necessariamente, corresponde ou
está interessado em representar uma coletividade. Nesse sentido, pode-se dizer que por essa
personagem houve uma subjetivação da religiosidade no cinema.
E é por esse processo de subjetivação que o vínculo religioso – a princípio mostrado
como algo que define as personagens – se dilui e se dissolve em meio a múltiplos vínculos e
129
redes que atravessam a constituição do sujeito. Com isso, essa personagem contemporânea
escapa a qualquer projeto de rótulo baseado apenas na religiosidade e encena na ficção aquilo
que denominamos de singularidade, uma das formas pela qual a subjetividade se produz que,
recusando modos de codificação pré-estabelecidos, se apresenta como potência para
compreender os sujeitos fragmentados.
Por isso, a necessidade de nossa pesquisa ter seguido por uma análise amparada
metodologicamente nos Estudos Culturais e, ao mesmo tempo, seguindo uma tendência Pós-
estruturalista. Pois ao invés de uma observação detida no “padrão repetitivo do signo”
(WILLIAMS, p. 14), que a construção dessa personagem no cinema poderia resultar, o
desafio foi pensar os próprios limites dessa construção.
Limites que em um primeiro momento denunciam a dificuldade em nossa cultura de
lidar com as diferentes religiosidades em ascensão no país e que distingue uma nova peça
dentro do quebra-cabeça que compõe a representação das periferias no cinema brasileiro
contemporâneo. No entanto, para além desses limites, a personagem evangélica,
especialmente as duas escolhidas para compor a corpus de análise dessa pesquisa mostram
que é possível construir na ficção cinematográfica personagens fraturadas, complexas, que
reunindo em si diferentes ordens de conflito, permitem uma compreensão mais abrangente do
processo de subjetivação na contemporaneidade no qual a religiosidade constitui apenas um
entre outros pertencimentos possíveis.
130
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136
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Miceli. Intérpretes: Matheus Nachtergaele; Vinícius Miranda; Gorete Milagres; Rosi Campos;
Aílton Graça e outros. Roteiro: Luiz Alberto Pereira e Rosa Nepomuceno. Música: Renato
Teixeira. Brasil: Pandora Filmes, c2006. 1 DVD (100 min), widescreen, color. Co-produzido
por LAPFILME Produções Cinematográficas Ltda.
ÚLTIMA PARADA 174. Direção: Bruno Barreto. Produção: Patrick Siaretta, Paulo Dantas,
Bruno Barreto, Antoine de Clermont-Tonnerre. Intérpretes: Michel Gomes; Marcello Melo
Jr.; Gabriela Luiz; Cris Vianna; Anna Cotrim e outros. Roteiro: Bráulio Mantovani. Música:
Marcelo Zarvos. Brasil: Moonshot Pictures / Movie&art / Mact Productions / Paramount
Pictures / Globo Filmes / Canal+, c2008. 1 DVD (110 min). Distribuído por Paramount
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______. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. 2 ed. São Paulo: Paz &
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APÊNDICES
138
APÊNDICE A - Decupagem de filmes com personagens evangélicos
Cada um dos filmes selecionados apresenta cenas específicas onde é possível observar
a forma como o personagem evangélico é construído, seja a partir da articulação dos
elementos da linguagem cinematográfica, seja por detalhes contidos no roteiro, como os
diálogos. Segue abaixo a decupagem dos filmes selecionados conforme ordem cronológica de
produção.
Filme: Central do Brasil
Ano: 1998
Direção: Walter Salles Jr.
Durante a viagem de Dora (Fernanda Montenegro) e Josué (Vinicius de Oliveira), em busca
do pai deste, eles se encontram com César (Othon Bastos), um caminhoneiro que lhes dá
carona no meio da estrada.
TEMPO AUDIO VÍDEO (DESCRIÇÃO)
IN OUT
01:06:00 01:07:00
César: Não, não, não. Eu não posso beber... Eu
sou evangélico1.
Dora: Tenho certeza que “Aquele” lá em cima
tá te olhando... Eu queria te dizer uma coisa.
Eu tô muito feliz por ter perdido aquele ônibus.
Muito feliz. (Pega na mão dele). Só um
instante...Eu volto num instante.
Dora está num restaurante e
conversa com o caminhoneiro que
acabara de conhecer. Ao chegar
uma cerveja, serve o copo dele.
Filme: Orfeu
Ano: 1999
Direção: Cacá Diegues
Orfeu (Toni Garrido) é filho de Conceição (Zezé Mota) uma passista de escola de samba e
Inácio (Milton Gonçalves) um ex-Mestre de Bateria que se converteu.
TEMPO AUDIO VÍDEO (DESCRIÇÃO)
IN OUT
00:04:45 00:04:55
Inácio: Viu Orfeu, tocando? Era ele?
Conceição: Quem mais podia ser, Inácio? Até
ofende a Deus tocar violão dessa maneira.
Inácio conversa com Conceição.
1 Alguns trechos de falas estão em destacadas em itálico por serem considerados importantes para a identificação
do personagem como evangélico ou por apresentar algum elemento que contribui para a representação do
evangélico no filme.
139
Inácio: Deixa Deus sossegado, mulher. (Abre
a Bíblia).
00:13:30 00:13:35
Aparece na casa de Conceição,
esposa de Inácio, uma placa com a
inscrição “Alegrai-vos no
Senhor”.
00:18:45 00:19:23
(Inácio segura a Bíblia enquanto almoça)
Orfeu: Ó eu aí ó!
Conceição: Mano já mandou te procurar. Tá
todo mundo te esperando no barracão.
Orfeu: Vocês sabiam que o estado do Acre é
espetacular? Tá olhando o quê aí, mestre
Inácio?
Inácio: Não sou mestre de nada. É a história
de Caim e Abel.
Orfeu: Aleluia!
Inácio: Louvado seja o nome do Senhor. A
humanidade começou com um irmão sendo
mais amado do que outro.
Orfeu: Só o amor traz felicidade, Seu Inácio.
Conceição: Felicidade, meu filho, é uma
geladeira cheia de feijão e cerveja, com o
remédio da gripe do lado do pingüim.
Orfeu chega em casa e conversa
com Inácio.
00:35:05 00:35:10
Em plano de fundo aparece uma
casa com a placa “Igreja
Evangélica do Morro Carioca”.
01:0014 01:00:38
Igreja (canta): Se a dor mais forte sofrer/ Ó
seja o que for/ Tú me fazes saber que feliz...
(A seqüência termina com um plano
mostrando Inácio na igreja)
Eurídice passa em frente a uma
igreja evangélica e entra após o
convite de uma menina.
01:08:13 01:10:40
Inácio: Quando você entrou na igreja, eu falei
comigo mesmo que você só podia ser a
sobrinha de Dona Carmem.
Eurídice: Pois é, bem que eu vi o senhor me
olhando.
Inácio: Você ia sempre na igreja lá no
Amazonas?
Eurídice: Acre. Às vezes, acho bonito.
Inácio: Acha bonito?
Eurídice: O senhor sempre foi religioso?
Inácio: A palavra de Jesus expulsou o
demônio do meu coração e a igreja me salvou
da vida boêmia e da bebida que estavam
acabando comigo.
Eurídice: Meu pai não acreditava em deus,
mas tinha medo do inferno.
Inácio: Pronto, você já está em casa. Eu vou
dormir que amanhã cedo eu trabalho.
Inácio leva Eurídice pra casa e
conversa com ela.
140
Eurídice: Amanhã, Seu Inácio? Mas amanhã
ainda é carnaval.
Inácio: Por isso mesmo, ninguém vai na
oficina, eu gosto do silêncio dela vazia, muito
mais.
Eurídice: Ih! Esqueci a televisão ligada (Entra
em casa) Seu Inácio! Ô, Seu Inácio, depressa!
Vem ver, Seu Inácio! Olha, Seu Inácio, Dona
Conceição.
(Seu Inácio para a imagem da televisão, que
mostra a escola de samba, vira de costas e se
volta novamente)
Inácio: Orfeu e você, minha filha. É diferente,
não é?
Eurídice: É como se eu não tivesse existido
antes de conhecer ele.
Inácio: Todo mundo quer ser amado. Até o
Senhor só pensa nisso. Em tudo que é religião,
em qualquer lugar do mundo, o maior
mandamento é sempre amar a Deus acima de
todas as coisas. Até Ele só pensa em ser
amado, sem nenhuma concorrência.
(Sai e vai embora)
01:20:55 01:21:35
Orfeu: Me ajuda, Pai, pelo amor de Deus.
Inácio: O que é que foi?
Orfeu: A Eurídice sumiu.
Inácio: sumiu como?
Orfeu: Não sei, desde ontem ninguém mais
viu ela.
Inácio: Mas eu deixei ela em casa depois do
culto. Eurídice não tinha pra onde ir depois à
noite, sozinha em plena segunda-feira de
carnaval?
Orfeu: Tô com medo, pai.
Inácio: Deus já te deu tanto, meu filho, um dia
você ia ter mesmo que pagar por tudo que o
Senhor te deu.
Orfeu conversa com seu pai
Inácio.
Filme: Cidade de Deus
Ano: 2002
Direção: Fernando Meireles
Um dos componentes do “Trio Ternura”, chamado Alicate (Jefechander Suplino) está se
escondendo da polícia e decide voltar para a igreja.
141
TEMPO AUDIO VÍDEO (DESCRIÇÃO)
IN OUT
00:18:55 00:20:30
Alicate: Marreco, tive uma visão, mano.
Marreco: Tú fumou, cara?
Alicate: Tú já trabalhou, num já, Marreco?
Marreco: Já.
Alicate: Como é que é trabalhar, o que os cara
fala?
Marreco: Só trabalhei com meu pai. E sabe como é
pai, né? Pai só fala merda.
Alicate: Quer saber Marreco? Vou sair dessa vida
senão vou amanhecer com a boca cheia de
formiga. Vida de bicho solto é pra maluco, não pra
mim.
(...)
Alicate: Vou voltar pra igreja.
Voz em OFF de Alicate: Aquele que habita no
esconderijo do Altíssimo, à sombra do Onipotente
descansará (...) nem mortandade que assole ao
meio dia”. Pois aquele que habita no esconderijo
do Altíssimo à sombra do presente descansará.
Narrador: O assalto do hotel entrou pra história
como o mais sangrento daquela época. Depois
desse dia, cada bandido teve um destino: o destino
entregou Alicate nas mãos de Deus
Marreco e Alicate estão
escondidos numa mata tentando
escapar de uma perseguição
policial. Em um determinado
momento da conversa, Alicate
desce da árvore em que estava
escondido.
Enquanto faz o caminho de volta
pra casa, pensa em um texto
bíblico (ver texto em OFF).
Simultaneamente a isso, a polícia
passa por ele e não o reconhece.
00:25:56 00:26:00
Berenice: Só vou te dizer uma coisa cara: eu não
quero que meu filho seja filho de malandro, ta
escutando? Porque você ta sozinho, Cabeleira.
Cabeleira: que sozinho, o quê?
Berenice: Sozinho, sim! O Alicate entrou pra
igreja.
Cabeleira: Aleluia, irmão.
Berenice: Marreco tá trabalhando.
Cabeleira: Um otário, tudo otário.
Berenice: E você, Cabeleira?
Berenice e Cabeleira discutem
sobre a relação.
Filme: Carandirú
Ano: 2003
Direção: Hector Babenco
Um dos detentos de nome Peixeira (Milhem Cortez) visita um salão de evangélicos que tem
dentro do presídio.
142
TEMPO AUDIO VÍDEO (DESCRIÇÃO)
IN OUT
01:15:50 01:16:15
Em dia de visita aos presidiários,
Peixeira caminha solitário pelo
pátio até parar diante de uma cela
onde ocorre um culto evangélico.
01:46:50 ???
Peixeira: Escuta, Zico, e lá no céu tú não
encontrou ninguém, não?
Zico: Que você conhece, só ele...
Peixeira: Não Zico, mas e Deus?
Zico: Deus mesmo, não... Esse eu ainda não vi.
Peixeira tem um sonho com o
preso que assassinou.
01:47:15 01:48:50
Dr. Dráuzio: Que foi?
Peixeira: Doutor, como é que a gente sabe se a
gente ficou doente, doutor? O Zico voltou pra
me cobrar doutor não ter matado ele...
Dr. Dráuzio: Ô Peixeira, tu ta vendo fantasma?
Peixeira: O sujeito anda como eu doutor. Não
conseguí matar? Acho que é a primeira vez que
me acontece isso. Só sei matar. Cresci assim.
Dr. Dráuzio: A gente muda, Peixeira.
Peixeira: Doutor, eu preciso saber o que tá
acontecendo comigo, doutor. Será que eu não
sou mais eu?
Dr. Dráuzio: Vai ver é culpa de ter matado
tanta gente.
Peixeira: Doutor, culpa tem remédio, doutor?
Dr. Dráuzio: Se tivesse todo mundo ia querer.
Peixeira, depois de ter um
pesadelo, conversa com o Dr.
Dráuzio.
01:49:35 01:51:40
(OFF): Segura na mão de Deus, segura na
mão de Deus, pois ela, ela te sustentará...Não
tema, segue adiante e não olhe para trás,
segura na mão de Deus...
Pastor: Entra, irmão! Vem! Vem! Você sabe
que o Senhor tem um plano pra você? Vem!
Esta é a tua casa. Você está perdido. Você não
sabe, mas foi Ele quem te trouxe aqui.
Peixeira: Ele quem, pastor?
Pastor: Jesus! (fala olhando para os fiéis em
redor). Ele sabe que você não dorme se faz
mal a alguém. Que você perde o sono todas as
noites senão consegue fazer alguém tropeçar.
Me diga se não foi assim todos os seus dias!
Vamos! Vamos! Não tem sido assim todos os
seus dias?
Peixeira: Foi, pastor! Foi sim! Tem tanto
sangue comigo, pastor!
Pastor: Vamos, irmão! Dobre o joelho.
Vamos...(com a Bíblia em punho). Dobre o
joelho. Você quer aceitar Jesus? Vamos, você
Peixeira se aproxima da sala onde
está acontecendo um culto e se
converte.
143
quer aceitar Jesus? Você quer aceitar Jesus?
(gritando). Vamos, irmão, você quer aceitar
Jesus?
(Peixeira se ajoelha em prantos)
Pastor: Quem aqui já aceitou Jesus?
Todos: Eu ! (respondem com as Bíblias
erguidas)
Pastor: Aleluia!
Peixeira: Aleluia, Senhor.
02:04:42 02:04:45 Cena que mostra alguém
cultuando o candomblé.
02:07:20 02:07:35
Peixeira é assassinado. Na cena,
ele aparece segurando uma
imagem de Jesus e uma Bíblia,
com uma camisa de manga
comprida, abotoada até o
pescoço.
02:16:55 02:17:57
OFF (voz feminina): Davilson, meu filho
querido, a mãe chora quando lembra de ti
pequenininho, rindo no fundo dos meus olhos,
sei que você nunca acreditou no meu Deus,
mas hoje quando peguei a Bíblia, parecia que
te tinha de novo no meu colo. Meu coração
ficou miúdo quando abri no Salmo 91, olha só
que bonita a palavra: Mil cairão ao teu lado,
dez mil à tua direita, mas tu não serás
atingido, nada chegará à tua tenda.
Presidiário lê carta da mãe. A
câmera em fade-out mostra os
cadáveres resultantes da chacina.
Filme: Amarelo Manga
Ano: 2003
Direção: Cláudio Assis
Wellington (Chico Diaz) é casado com Kika (Dira Paes), uma dona de casa evangélica, que se
transforma ao descobrir a traição do marido.
TEMPO AUDIO VÍDEO (DESCRIÇÃO)
IN OUT
00:04:55 00:05:16
Rádio: E agora, vamos às nossas notícias
matinais. Dona de casa muito respeitável,
encontrou seu marido com amante e aí a coisa
ficou preta. Ela, uma evangélica, partiu pra
cima da fulana e foi um tal de “Deus nos
acuda”. Resultado: amante no hospital ferida e
a corna ninguém sabe, ninguém viu.
Enquanto um dos personagens
dirige o veículo, escuta a
narração de um noticiário na
rádio. (Uma narração que
antecipa um fato que acontece no
filme).
00:06:35 00:07:07
Pastor: Aleluia, irmãos, devemos temer o
demônio e “gloriai” o Senhor!
Igreja: Aleluia!
Pastor: Não devemos dar espaço em nossas
A voz do pastor falando “Aleluia,
irmãos” é primeiramente
colocada em mixagem com a
imagem de uma mão mexendo
em um disco de vinil, para em
144
mentes para que Satanás invada nossos
corações. Amém? (Plano geral do auditório da
igreja, seguido de um plano com o pregador e
uma frase no plano de fundo que diz: “Deus é
fiel”).
Igreja: Amém!
Pastor: ...e faça sua morada. Aleluia!
Igreja: Aleluia!
Pastor: A arma contra o sofrimento é a crença
no nosso Senhor Jesus! (Simultaneamente
aparece Kika balbuciando uma oração).
Kika: Glória a Deus!
Pastor: Louvemos ao Senhor!
seguida, exibir o rosto do pastor
em primeiro plano.
00:07:15 00:08:15
Wellington: Eu sou capaz de matar um
homem...entre todas as espécies que existe no
mundo, o home é a espécie mais capaz de
morrer. Na verdade, eu já matei um, é por isso
que chama de canibal. Wellington Canibal. Ói,
a única coisa que eu não seria capaz de matar é
Kika. Não é a mulher mais bonita do mundo,
mas é meinha, melhor porque é crente..é...que a
Deus a conserve daquele jeito sim. Por Deus eu
lhe digo, viu meu amigo, que eu confio mais
em Kika do que em mim. Diz cada coisa
bonita...eita.
Câmera alta passa pelo
abatedouro até chegar em
Wellington. Wellington conversa
com colega enquanto corta a
carne.
00:14:34 00:15:05
Dunguinha: A Dona Kika a quantas anda?
Wellington: Aquela com a graça de Deus é
ajuizada, viu? Crente... qualquer dia sabe
Dunguinha, eu é que embarco nessa. Tô mesmo
precisando parar de fumar.
Dunguinha: Aquela que é mulher de sorte,
come muita carne, né?
Wellington: Gosta não... Agora na cama ela até
que é fraquinha... Ela é boa como mulher. É
crente.
(Dunguinha solta uma gargalhada)
00:15:06 00:15:56 Cláudio Assis (diretor): O pudor é a forma
mais inteligente de perversão.
Kika aparece caminhando pela
rua (plano médio). Ao parar a
câmera fecha e em close e um
personagem anônimo (o próprio
diretor) fala ao seu ouvido.
00:18:30 00:19:23
OFF(Voz do padre): Ninguém é inocente. Há
muito tempo se perdeu a esperança nos
homens. O castigo hoje que grita aos sete
cantos, os humanistas de beira de púlpito se
apiedam, pois que se apiedem de suas próprias
almas, pois é justamente no orgulho da
bondade que reside o maior de todos os
pecados. O homem morre, o mundo se extingue
e as chamas se consomem, mas a soberba
acompanha o vácuo.
Dentro de uma igreja está um
homem ajoelhado, que ao se
levantar começa a varrer a igreja,
cantando.
00:19:22 Crianças: Kika canibal... (risos) Ô Kika Câmera se movimenta da
145
Canibal...
Kika: Paz do Senhor, irmã (cumprimenta Kika
ao passar por uma mulher).
esquerda para a direita e mostra
Kika subindo a escadaria. Ao
fundo em plano geral, grandes
prédios. Câmera fixa acompanha
a subida. Ao entrar em casa, Kika
deixa as compras sobre a mesa e
se dirige ao quarto onde começa a
se despir virada de frente a um
espelho. Assim que tira a blusa,
vira-se de costas para o espelho.
00:27:40 00:29:00
Amante: Meu pai me chamou de vagabunda,
pô. Sabe por quê? Sabe não né? Por tua causa!
Wellington: E tú foi contar pra ele.
Amante: Claro que eu não contei, né? Seu
frouxo. Mas ele ta sacando. Ele saca que eu to
de caso com homem casado. Namorado
fantasma é homem casado. Deus me livre que
ele saiba que o homem é duro. Do jeito que ele
gosta de Kika. Aquela sonsa...
Wellington: Aquela sonsa, não! Kika é crente!
Kika não é do tipo que...
Amante: As crentes são as mais safadas, vice?
Wellington: Repete, se tú tem coragem!
Amante: As crentes são as mais safadas.
00:33:45
Kika: Kika canibal... pelo amor de Deus,
Wellington, que história é essa? Faço de um
tudo pra não me meter em intriga, não faço mal
a ninguém, não dou trela, o que é que eu ganho
com isso? Kika canibal...
Wellington: Ô Kika, isso é coisa de criança...
não sabe que essas pestes desses meninos adora
avacalhar com as pessoa de bem? Lembra o
caso de Suian.
Kika: Manicure?
Wellington: Não mandaram dizer pra vila toda
pra ninguém mais fazer unha com ela, porque
ela tava aidética? Maldade de criança. Esses
filhos de uma puta...
Kika: Wellington! Eu já te pedi, uma duas, três,
um milhão de vezes... quer falar palavrão, vai
falar com teus amigos lá no bar. Aqui não.
Abaixo desse teto, eu exijo respeito em nome de
Jesus.
Wellington: Desculpa, Kika, desculpa.
Kika: Bem que merecia, traiu.
Wellington: Oi?
Kika: Suian...merecia o castigo. Traiu o
marido, todo mundo ficou sabendo. Achei é
pouco. Tem uma coisa, Wellington, uma coisa
que eu não tolero, não tolero, não: traição.
Tolero, não. Assassinato, roubo, violência, tudo
isso eu perdoo. Traição, não. Adúltera é
Kika e Wellington comem à
mesa.
146
repugnante. Adúltero também. Com ferro fere,
com ferro será ferido. Quero nem pensar.
00:43:00 00:44:10
Padre: Eu não sou mais, nem menos infeliz
com a situação da minha igreja. De uma coisa
eu não posso reclamar: fiéis. Aliás, isso é uma
coisa que eu nem ligo. A igreja tá fechada, não
tem santos, roubaram. As missas estão paradas.
Tudo bem, não faz diferença. O importante pra
mim é Deus. O resto é resto. Você não acha que
eu to certo?
Bianor (Gerente do hotel): Quem sou eu para
contradizer uma palavra do senhor? Decerto,
deve tá certo.
Padre: Bianor, esse povo tem muito lugar pra
expor sua fé. Os templos protestantes,
umbanda, os terreiros, as clínicas psiquiátricas.
Por que não deixam a minha igreja em paz?
Bianor: Eu só imagino que se continuar assim
desse jeito, um dia ela vai se acabar.
Padre: Vai, você tá certo, vai. Por que o povo
gosta de ostentação. Não tem ostentação, então
não tem igreja. Eu é que estou tranqüilo e
calmo.
Padre conversa com o atendente
de hotel, Bianor.
00:47:47 00:49:05
OFF (voz do Padre): O ser humano é estômago
e sexo e tem diante de si uma condenação, real
e obrigatoriamente, de ser livre, pois ele mata e
se mata com medo de viver. Por isso, meus
olhos estão cegos, para não enxergar a forma
desses pecadores. Meus ouvidos escutam uma
voz que diz: Padre! Morrer não dói, morrer não
dói, estamos todos condenados, eternamente
condenados, condenados a ser livres.
Padre (em conversas com cachorros de rua):
Nós vamos almoçar agora, porque só vocês são
fiéis. Vocês são fiéis, vocês...
Câmera segue o padre andando
de costas. Ao final da voz em
OFF, câmera abre em contra-
plongeé no prédio da igreja.
00:59:08
A câmera registra a saída de Kika
pela porta e em primeiro plano
um imã de geladeira em forma de
Bíblia.
01:07:32
Wellington pára em frente a uma
Igreja (Igreja do Evangelho
Quadrangular). Toca uma música
ritmada durante o culto. Câmera
subjetiva gira em torno do
próprio eixo simulando o olhar de
Wellington em busca de Kika.
01:09:38 O padre recebe revelação de que
Seu Bianor faleceu.
01:12:00 Kika descobre a traição e morde a
orelha da amante.
00:01:17
Alguém reza no funeral de Seu
Bianor. Câmera em close.
Câmera passeia lentamente entre
rostos de pessoas que cantam um
147
hino (contraste com a câmera
frenética e a música agitada do
culto evangélico).
01:21:17
Homem: Essa marca na sua roupa é sangue?
Kika: Arranquei a orelha da amante do meu
marido (solta uma gargalhada e fica séria de
repente). Eu era uma mulher morta por dentro.
Kika caminha pela rua à noite
com os cabelos soltos.
01:36:00
Cabeleireiro: E a, nega, vai fazer o quê nesse
cabelo, hein?
Kika: Corta esse negócio, depois pinta.
Cabeleireiro:: Vai cortar assim, vai tirar as
pontinhas dele...
Kika: Não meu filho, arranca tudo e pinta!
Cabeleireiro:: Qual é a cor que a gente vai
pintar esse cabelo, hein?
Kika: Uma coisa meio amarelo.
Cabeleireiro:: Uma coisa ferrugem assim,
barro.
Kika: Não, uma coisa mais manga. Um
amarelo manga.
Fim do filme
Fiéis do Templo I: Comunidade de Brasília
Teimosa
Fiéis de Templo II: Comunidade Alto José do
Pinho
Kika reaparece andando de dia
com cabelos soltos e roupa
desabotoada. Seu andar mais
solto.
Filme: Contra Todos
Ano: 2004
Direção: Roberto Moreira
Teodoro (Giulio Lopes) é um matador de aluguel que freqüenta cultos evangélicos e mesmo
sendo casado, trai a esposa Cláudia (Leona Cavalli) com Terezinha (Martha Meola), uma
mulher da igreja.
TEMPO AUDIO VÍDEO (DESCRIÇÃO)
IN OUT
00:03:10 00:03:44
Teodoro: Só um minutinho. Vamo fazer uma
oraçãozinha antes de comer?
Soninha...Valdomiro...pode ser? Senhor, eu vos
agradeço por esse alimento e eu vos peço que
nunca nos falte (Soninha ri). Amém.
Teodoro está à mesa e fala com
os familiares e amigos.
00:08:46 00:08:55
Terezinha: Teodoro! Eu quero te agradecer, em
nome de Jesus, por tudo o que você ta fazendo
por mim.
Teodoro visita Terezinha.
00:13:45 00:14:35 Teodoro: Sabe, Terezinha, fico me lembrando o Teodoro vai à Terezinha e
148
primeiro dia que a gente se viu, se lembra?
Terezinha: Claro.
Teodoro: Num banquinho de jardim...
Terezinha: É...tava fazendo hora pra o trabalho. A
gente começou a conversar.
Teodoro: Tinha um co...coral, lembra disso, não?
Terezinha: Lembro. Você foi! Ah! Aquele culto
foi tão bonito...o pastor parecia ta falando com a
gente, né?
Teodoro: Ah! Impressionante, parecia que era
comigo.
Terezinha: Eu tô muito feliz.
Teodoro: Terezinha, você mudou minha vida,
viu?
conversa com ela.
00:19:05 00:20:10
Cláudia: Deixa eu servir você, Teodoro.
Teodoro: Soninha, dá pra esperar um pouco, não?
Soninha: Por quê?
Teodoro: Porque a gente vai orar antes de comer.
Pode ser, não?
Soninha: Não.
Teodoro: Como é que é?
Cláudia: Como assim “não”? Calma, calma...
Teodoro: Olha aqui, cê deixa de ser atrevida, hein
menina?
Soninha: Cê ta nervosa? (pergunta para Cláudia,
sua enteada)
Cláudia: Não.
Soninha: Nem eu. (começa a comer)
Teodoro: Faz favor, vamo orar antes de comer,
por favor! Eu tô falando grego aqui, não?
Cláudia: Calma, Teodoro.
Teodoro: Põe esse garfo aí!
Cláudia: Gente, por favor...quer suco?
Soninha: Eu não orar porra nenhuma. (larga o
garfo)
Teodoro: Cê ta pensando o quê, sua putinha? (dá
um tapa no rosto de Soninha). Vai pro seu quarto
agora, sem vergonha. Vai pro seu quarto! Cala
essa boca! (continua batendo em Soninha)
Soninha: Cê não tem vergonha de bater em mim,
não?
00:21:30 00:22:25
Voz 1: Elevo meus olhos para os montes, de onde
me virá o socorro? O meu socorro vem do Senhor
que fez o céu e a terra (Teodoro pega na mão de
Terezinha). Não deixará vacilar o teu pé. Aquele
que te guarda não dormitará.
Terezinha e Teodoro participam
de uma oração na casa de uma
pessoa doente.
149
Voz 2:Aleluia.
Voz 1: Elevo os meus olhos para os montes de
onde me virá o socorro? O meu socorro vem do
Senhor que fez o céu e a terra, não deixará
vacilar o teu pé, aquele que guarda não
dormitará.
Voz 3: Glória a Deus! Aleluia!
Voz 4: Senhor, meu Deus, meu Jesus, liberta, tira
toda enfermidade, meu Pai, levanta ele dessa
cama, Senhor.
01:08:26 01:09:25
Terezinha: Oi Claudete, tá atrasada?
Claudete: Só pra variar, né?
Terezinha: Eu já acabei.
Claudete: Ah, ainda bem! Calor, correria, viu?
Terezinha: Dete...
Claudete: Hum...
Terezinha: Tenho uma novidade pra te contar.
Claudete: Jura?
Terezinha: Olha só (mostra o anel de noivado na
mão direita).
Claudete: Não acredito!
Terezinha: Teodoro me pediu em casamento e eu
aceitei.
Claudete: Ô glória! Já contou pra tua mãe?
Terezinha: Ainda não.
Claudete: Ela vai ficar muito feliz, não é?
Terezinha: Mas hoje eu vou testemunhar na
igreja. Vou dizer como conheci Teodoro, como
ele foi pra casa de Deus e aceitou Jesus. Louvado
seja Deus, né Claudete?
Claudete: Louvado seja! Porque o que mais
interessa nessa vida é o amor e o amor a Jesus. E
se você encontrou um guerreiro pra te
acompanhar na fé, minha amiga, nada mais é
importante. Quer dizer...só Jesus Cristo!
Terezinha encontra com uma
amiga na saída do trabalho.
01:12:55 01:14:15
Teodoro: Terezinha? Terezinha?
Terezinha: Vá embora! Vá embora, Teodoro! Eu
não quero ver você nunca mais! Vá embora.
Some daqui! Eu não vou permitir que o demônio
entre na minha casa. Vá embora!
Teodoro: Terezinha, eu preciso te explicar...
Terezinha: Demônio não vai triunfar! Vá embora!
Teodoro: Terezinha...
Terezinha: Vai embora!
Teodoro: Abre a porta, Terezinha...
Teodoro tenta entrar na casa de
Terezinha.
150
Terezinha: Não vou abrir, não vou abrir,
demônio! Senhor, Senhor, Senhor...
01:14:55 01:16:15
Teodoro: Cê tinha razão, Terezinha...Sou
demônio, mesmo. Eu tentei mudar. Eu queria
seguir com você o caminho de Deus, fazer tudo
direitinho, mas você não me ajudou em nada. Cê
não quis nem me ouvir, Terezinha. Ou será que eu
não tenho direito a perdão? Tá lá na sua Bíblia,
todo mundo tem direito a perdão. Deus deve ter
me perdoado, mas você não me perdoou, né
Terezinha? Então você vai conhecer o Teodoro.
Você vai me conhecer, Terezinha.
Teodoro fala com Terezinha
que está amordaçada.
01:29:45 01:31:40
Pessoas da igreja (cantam): Eu quero ser, Jesus
amado, como um barro nas mãos do oleiro.
Quebra minha vida, faze de novo, eu quero
ser....eu quero ser...um vaso novo.
Terezinha se casa com
Valdomiro (amigo de Teodoro
que trabalha como matador de
aluguel) e os convidados da
festa cantam um hino cristão.
Filme: O homem do ano
Ano: 2004
Direção: José Henrique Fonseca
Érica (Natália Lage) inicia um relacionamento com Michael (Murilo Benício), após o
assassinato de seu namorado. Após uma decepção no relacionamento, Érica começa a
frequentar uma igreja evangélica dirigida pelo pastor Marleno (André de Barros).
TEMPO AUDIO VÍDEO (DESCRIÇÃO)
IN OUT
00:00:58 00:01:30
(Voz em OFF de Máiquel): Antes da gente nascer,
alguém, talvez Deus, pensa direitinho em como é que
vai f* tua vida...Deus só pensa no homem na largada.
Quando decide se sua vida vai ser boa ruim. Quando
não tem tempo, faz uma guerra, um furacão e mata um
buncado de gente sem ter que pensar em nada, mas em
mim, ele pensou.
01:04:12
Érica: Eu não sabia, mas Jesus tinha um encontro
marcado comigo. Eu to indo me entregar pra ele de
corpo e alma na Igreja do Poderoso Coração de Jesus.
Fica aí com sua filha e com sua mulher.
01:04:53
Máiquel (sic.): Érica, vambora!
Érica: Você já conhece o Pastor Marleno?
Máiquel: Érica, vambora...
Érica: Eu tô lendo a Bíblia com o pastor. Nada mais
importante do que as palavras de Jesus. Jesus disse:
Agora vem o fim sobre Ti, porque derramarei sobre ti
minha ira...
Máiquel: Érica tô precisando conversar com você...
Pastor: Nós podemos ler a Bíblia amanhã, Érica, não
tem problema nenhum.
Michael vai ao encontro de
Érica na igreja, onde ela está
fazendo um estudo com o
pastor.
151
Érica: ...mas o Marleno me ensinou que Deus sempre
tá perto da gente, quem tem Jesus no coração não
precisa de mais ninguém.
Máiquel: Marleno, né? Esse pastor de merda, tá
enchendo de merda a tua cabeça
01:06:40
Marleno: Sejam bem-vindos ao reino de Deus, a porta
pode ser estreita, mas o coração de Jesus é muito
grande...é tão grande, tão hospitaleiro que dentro dele
cabe o santo e o pecador...cabe eu você, cabe o mundo
todo. Quem não se aproxima de Jesus, esse sim, deve
temer. É porque está de mãos dadas com o demônio. E
Deus vê tudo. Deus sabe de tudo e pune de maneira
terrível os crimes cometidos. Portanto, pensem nisso
meus irmãos e fiquemos na paz do nosso Senhor e
Salvador Jesus Cristo. Aleluia! (fade out)
01:09:02
Máiquel: Onde é que você anda, Érica, não te vejo em
casa...
Érica: Eu tô trabalhando na Igreja do Poderoso
Coração de Jesus. Vim devolver a chave da tua casa,
to me mudando pra lá
Máiquel: Onde que você disse que tá morando?
Érica: Na Igreja do Poderoso Coração de Jesus. O
Marleno arranjou pra mim, você sabe onde é.
Máiquel: O que você tá fazendo lá, Érica?
Cleidir (esposa de Michael): Não te interessa, é
problema dela!
Érica: Isso mesmo, não te interessa...
Máiquel: Quem é esse Marlênio?
Érica: É o meu pastor. Eu limpo a igreja, lavo,
cozinho, preencho e carimbo as carteirinhas...
Máiquel: Que carteirinha?
Érica: A carteirinha dos fieis.
Cleidir: Deixa a Érica morar na igreja fazer o que bem
que entender, tá mesmo na hora dela sair da nossa
vida.
Érica: ...portanto sede prudente como as serpentes e
símplices como a pomba...
Máiquel: Érica, preciso de você.
Érica: Você não tá vendo que eu tô ocupada? O
Marlênio falou que eu vou ser pastora assistente... eu
não quero conhecer o seu filho não, vai embora!
Michael: Você tá sozinha? Preciso falar com você.
Érica: Deus vê tudo, sabe tudo e vai nos punir de
maneira terrível pelo crime cometido... meu coração
cansado, pois só em ti Jesus, a minha vida eu entrego
a Deus, pois o seu filho entregou por mim....
Michael encontra Érica na
igreja, enquanto essa ensaia
uma fala ao microfone.
01:20:33 Máiquel: O que é esse cara tá fazendo aqui?
Érica: Convidei pra tomar um cafezinho...
152
Máiquel: Não gosto desse cara.
Érica: Coitado, Michael, a Igreja tá precisando de
dinheiro.
Máiquel: Vai dar dinheiro pra esse merda agora, é
isso?
Érica: Você não falou que tá ganhando rios de
dinheiro que era pra pedir o que eu quiser? Então, eu
quero dar dinheiro pra igreja.
01:23:40
Érica: Essa noite eu sonhei com Jesus Cristo. Ele
tocou a campainha daqui de casa, eu abri a porta, ele
entrou e disse: Érica você e o Michael devem se
entregar pra polícia.
Máiquel: Jesus sempre quer que a gente se entregue,
né? Você quer comer alguma coisa?
Érica: Você não acha que eu pareço com Ele? Olha
só...impressionante...igualzinho...Michael eu preciso
te dizer uma coisa...eu contei pro Marleno que a gente
matou a Cleidir.
Marleno: É a fé que livra a alma do inferno...é a fé que
limpa o seu corpo...é a fé que salva...eu peço a todos
que se levantem...Isso, vamos dar as mãos e agora, de
mãos dadas, eu quero uma oração de fé ao nosso
Senhor Jesus.
(Após o culto, Michael dá carona para o pastor e
inicia uma conversa no carro)
Máiquel: Padre não pode sair contando por aí o que
ouviu no confessionário, sabia?
Marleno: Eu não sou padre, eu sou um pastor, a Érica
me garantiu que vocês iam se entregar pra polícia, dei
dois dias pra ela. Se vocês confessarem tudo, se
mostrarem arrependimento pelo crime cometido, serão
salvos do fogo do inferno. Deus não nos destinou pro
ódio, pra ira...
Máiquel: Se Deus achar que eu devo mais alguma
coisa eu volto aqui e te mato.
01:34:50
Érica (deixa um recado na secretária eletrônica): Eu
nunca mais quero ver você, seu idiota. Nem que a
vaca tussa. O Marlênio arranjou um lugar pra mim, é
longe daqui, você nem precisa me procurar porque não
vai me achar. Levei sua filha também, você não dava a
mínima pra ela mesmo. Ah, também peguei 20mil
dólares que tava no cofre, foi mal, mas eu também tive
que fazer isso. Tomara que você se f*, que sua vida
vire uma merda. Até nunca mais!
Filme: Tapete Vermelho
Ano: 2006
Direção: Luiz Alberto Pereira
153
Em sua busca pelo filme de Mazzapori na cidade grande, Quinzinho (Matheus Nachtergaele)
passa em frente de uma igreja evangélica e entra.
TEMPO AUDIO VÍDEO (DESCRIÇÃO)
IN OUT
01:19:45 01:22:06 Pastor: A mão de Deus está acariciando a cabeça de
cada um de vocês. Tem que trazer os outros irmãos
para que, juntos, possamos confessar essa fé, essa fé
inabalável no Criador de todas as coisas. Aleluia!
Igreja: Aleluia!
Pastor: Deus, Deus meu, aquele que diz amém, ore!
Temos que nos voltar para Deus, ampliar o reino de
Deus, para que o diabo desapareça completamente
da face da Terra, amém? Amém?
Igreja: Amém!
Pastor: Esta é mais uma casa de Deus que
conseguimos erguer com muito sacrifício. Já foi do
diabo...quando aqui funcionava o cinema, amém?
Igreja: Amém!
Pastor: Aqui vocês poderão sentir a mão de Deus
acariciando a cabeça de cada um de vocês.
(Muda o plano)
Quinzinho: Boa noite.
Secretária da Igreja: Boa noite, vai pagar o dízimo?
Quinzinho: Vou pagar, nada, não senhora. Podia me
contar uma coisa?
Secretária da Igreja: Pode ir falando.
Quinzinho: Aqui já foi cinema?
Secretária da Igreja: Foi, até pouco tempo, por quê?
Quinzinho: Por curiosidade.
Secretária da Igreja: Tá. Ainda ta cheio de tralha pra
jogar fora, coisa que ninguém quer, sabe? Ó...pode ir
vendo, uma tranquerada. Olha ali, ó..tem lata de
filme, tem cartazes...
Quinzinho: Essas latas aí, são de filmes?
Secretária da Igreja: São.
Quinzinho: Posso espiar?
Secretária da Igreja: Pode, mas olha..pelo amor de
Deus, você não vai me tirar nada do lugar. Não vai
bagunçar mais do que já ta isso aí.
Quinzinho: Je...ca. Ta...tu. Mazza...ro..pi.
Mazzaropi! Mazzaropi!
Secretária da Igreja: Ei! O que é isso? A casa de
Deus!
Quinzinho: Ô Dona...já vi que a senhora é muito
bondosa. Será que a senhora poderia me dar essas
latas do Mazzaropi? É o filme do Jeca Tatu que eu vi
ali pequeno. A senhora não imagina o tanto que eu
andei pra mó de ver esses filme.
Secretária da Igreja: Pelo menos alguém se
Em Plano Geral aparece uma casa
com uma placa indicando “Igreja
Global do Amor Divino”. Quinzinho
passa na frente e entra. Assiste uma
parte do culto e, em seguida, tem uma
conversa com a secretária da igreja.
154
interessou pelos filmes. O senhor quer levar? Pode
levar, tem um saco alí. Põe aí no saco.
Quinzinho: Muito obrigado.
Secretária da Igreja: Leva.
Filme: Ó Pai Ó
Ano: 2007
Direção: Monique Gardenberg
Dona Joana (Luciana Souza) é a síndica de um cortiço no Pelourinho, mas não é muito bem
vista pelos moradores.
TEMPO AUDIO VÍDEO (DESCRIÇÃO)
IN OUT
00:05:30 00:06:07
Dona Joana: Saí da minha porta cambada de
Satanás!
(Som da agitação dos fantasiados na rua)
Dona Joana: Ô feiticeira, que fumaceiro é esse
aí? Tá fumando maconha, é?
- É, me deixe!
Dona Joana: Quando a polícia chegar aí, nega,
fica doida com a bala perdida, aí a chacina vai
ser boa! O prédio vai pegar fogo e sabe onde
que a gente vai morar, nega? Cajazeira 50! Aí
vai ser gostoso!
Dona Joana discute com a vizinha
e com os moradores da janela do
prédio.
00:06:18 00:07:22
(Meninos pegam a Bíblia escondida embaixo
da escada, antes de entrar em casa)
Dona Joana: Demoraram...
Cosme: Foi longo o sermão...
Dona Joana: Ah! Me conte...
Damião: Foi lindo, uma lindeza...
Dona Joana: Ah...o que foi tanto que o pastor
falou?
Cosme: Falou muito lá.
Dona Joana: Falou de quê, menino?
Damião: Falou da...da...da cruz!
Dona Joana: Da cruz? No último dia de
carnaval?
Damião: Pior que foi, Jesus preso lá na cruz e o
povo brincando carnaval.
Dona Joana: Hum...Isso só pode ser um sinal.
Pra me alertar...pra deixar vocês pregados em
casa longe dessa pouca vergonha, dessa cruz
que é o carnaval. Aleluia! Aleluia!
155
Cosme e Damião: Aleluia! Aleluia!
00:12:34 00:13:24
Dona Joana: Quem taí, Damião? Pra mim, é?
Damião: Não, não é pra gente mermo tomar
partido de uma cão na frente da casa daquela
menina endemoninhada.
Dona Joana: Deus seja louvado! Amarra o
mal!
Cosme: Deixa eu ir, mainha, amarrar o mal.
Dona Joana: Você desse tamainho amarra o
mal? Onde já se viu...
Cosme: A gente amarra...
Dona Joana: Ó paí menino...Tá, ta certo,
podem ir, mas de lá direto pra casa. Êpa!
Podem voltar...Tão pensando que vão aonde
mão abanando, feito menino de rua?
Meninos fingem que alguém bate
na porta de casa, para poder sair.
00:17:15 00:17:57
Dalva: Cês, não são Cosme e Damião, filho de
Dona Joana?
Cosme e Damião: Somos, somos!
Cosme: Conhece mainha d’aonde?
Dalva: Do culto, glórias ao Senhor!
Damião: Eu to me alembrando da senhora,
acho que já vi a senhora antes.
Dalva: Ela sabe que vocês estão aqui?
Cosme e Damião: Sabe, sabe, sabe.
Cosme: A senhora não sabe não, minha mãe tá
doente.
Dalva: Ô meu Deus, talvez essa semana ela
nem vá na igreja. Leve pra sua mãe, diga que
foi Dalva, da Saúde, que mandou.
Damião: Deus lhe pague.
Dalva: Amém, a nós todos.
Filhos de Dona Joana encontram
com Dalva, senhora que freqüenta
a mesma igreja da mãe deles.
00:20:56 00:21:57
Seu Gerônimo: Marizete põe um cafezinho pra
gente.
Dona Joana: Pôxa, Seu Gerônimo, sua loja ta
bonita, viu? Cheia de coisas...
Seu Gerônimo: É, essa época do ano tem muito
navio atracando, tem muitas opções para os
clientes como essa coroa santíssima toda em
prata do século XVIII.
Dona Joana: Belíssima, Seu Gerônimo. Muito
bonita.
Seu Gerônimo: Cafezinho melhor da Bahia.
Dona Joana: Ô, Seu Gerônimo, tem uma coisa
que eu nunca falei, mas que eu admiro muito
no senhor. É que até hoje o senhor usa a
aliança da sua esposa no dedo.
Dona Joana conversa com Seu
Gerônimo, dono de uma loja de
antiquário no Pelourinho.
156
Seu Gerônimo: É, quando a gente ama uma
pessoa como eu amei a minha falecida esposa,
esse amor fica pregado na gente.
Dona Joana: Mas hoje em dia ninguém liga pra
isso, não. Hoje em dia o pessoal só quer
mesmo é safadeza, Seu Gerônimo.
Seu Gerônimo: O mundo tá perdido.
Dona Joana: Tá perdido.
00:31:26 00:33:26
Dona Joana: Boa tarde!
Dalva: O que é que você está fazendo aqui,
Joana?
Dona Joana: Oxente, mulher, fazendo a mesma
coisa que você. Cumprindo minhas obrigações
com Deus.
Dalva: Doente não tem obrigação de vir à
igreja, não senhora.
Dona Joana: Oxente, o quê, mulher, que
conversa é essa?
Dalva: Seus meninos passaram lá na feira hoje
bem mais cedo e contaram que você tava
ardendo de febre na cama. Fiquei tão avexada.
Dona Joana: Como foi isso, Dalva?
Dalva: Foi assim como lhe falei. Disseram que
estava lá, fazendo compras pra você.
Dona Joana: Como foi isso mesmo?
Dalva: Assim como lhe falei?
Dona Joana: Foi?
Dalva: foi.
Dona Joana: Deixa estar...
OFF: Jesus te ama!
(Há uma mudança de plano e Dona Joana
aparece sentada na igreja)
Dona Joana: Jesus te ama!
Pastor: Liberta!
Dona Joana: Liberta!
Pastor:...e expulsa Satanás! (...) Levante
demônio! Levante! Saia desse corpo! Xô
Satanás! Saia demônio! Sai! Sai!
Outro: Glória a Deus! Aleluia!
Dona Joana: Glória!
Pastor: Você já está liberto para a honra e
glória do senhor Jesus. Ô, glória a Deus,
aleluia! Minha amada irmã vou fazer uma
pergunta a você: você usava droga, minha
irmã?
Irmã: Não, senhor.
Dona Joana encontra com Dalva
no Pelourinho e, em seguida,
aparece participando de um culto
na igreja.
157
Pastor: Você sai pra rua em dia de carnaval?
Irmã: (Nega com a cabeça)
Pastor: Mas como o demônio tomou posse de
sua alma? Eu explico que essa menina é uma
menina muito nervosa, impaciente e os
familiares dela, no intuito de ajudá-la, recorreu
aos chamados orixás do candomblé. Tá
repreendido, em nome de Jesus! E que são os
orixás do candomblé? Os orixás do candomblé
são formas que o diabo toma para arrebatar as
almas que pertencem ao Senhor Jesus. E o
carnaval? O que é o carnaval? São várias
formas que o demônio assume para roubar as
almas que pertencem ao senhor Jesus. Ô, glória
a Deus, aleluia!
01:12:10 01:13:50
Dona Joana: Que invasão é essa?
- Já é carnaval e você trancou a transmissão!
Dona Joana: Acontece, minha filha, que a
conta d‟água está aqui, ó. E até gora ninguém...
(Começa o burburinho)
Dona Joana:...alíás, o senhor Roque, tem um
pouco de água para o senhor.
- Mulher...quer dizer o quê? Que só Roque é o
gostoso, que só ele paga a conta aqui? Abre
essa zorra!
- Cês não tão entendo, não, minha
gente...vestiu calça dá pra ela.
- Eu sei muito bem o que você fica aí com seu
vestidinho de santa, mas só pensa naquilo.
- Seus filhos que saíram ontem e até hoje não
voltaram?
Reginaldo: Peraí...não é assim que se resolvem
as coisas. Tem que ser na diplomacia.
Roque: Ô Dona Joana, a gente tem uma
consideração muito grande um pelo outro,
então a senhora abre a transmissão pra essa
criatura tomar banho que o fedor ta exalando.
Dona Joana: Em nome da consideração de Seu
Roque e Seu Reginaldo eu vou abrir. Vou
cuspir no chão e quando secar eu vou fechar,
viu?
Moradores do prédio entram no
apartamento de Dona Joana para
cobrar a abertura da transmissão
da água.
01:29:20 01:29:45
Dona Joana: Tá fresca, né, nega?
Mãe Raimunda: Fresca e doida pra me deitar.
Dona Joana: Cê não quer fazer um favor, pra sua
vizinha, não?
Mãe Raimunda: Ai, lá vem trabalho.
Dona Joana: Você sabe que minhas crianças não
voltaram pra casa até agora, não é?
Mãe Raimunda: Então não sei Joana? Eu não lhe
Dona Joana conversa com sua
vizinha que é adepta do
candomblé.
158
vi ali no portão consumida atrás desses meninos?
Dona Joana: Então faça esse favorzinho, aí. Joga
esses búzios aí, por favor.
Mãe Raimunda: É o quê Joana? Que novidade é
essa?
Filme: Linha de Passe
Ano: 2008
Direção: Walter Salles e Daniela Thomas
Dinho (José Geraldo Rodrigues), além de ser um dos filhos de Cleuza (Sandra Corveloni),
trabalha como frentista em um posto de gasolina e freqüenta uma igreja evangélica.
TEMPO AUDIO VÍDEO (DESCRIÇÃO)
IN OUT
00:03:38 00:05:00 Pastor: Ó Senhor nosso Pai, continue
operando seus milagres nos nossos lares,
Senhor.
Dinho: Te agradeço, Deus, pelo período
que passei triste, que passei perdido, que
passei sozinho...
Pastor: Vamos louvar ao Senhor agora com
o hino “O Espírito Santo se Move em
Você”. Amém, Senhor, glória a Deus.
Igreja: Quero que valorize o que você tem/
Você é um ser, você é alguém tão
importante para Deus/ Nada de ficar
sofrendo angústia e dor nesse seu complexo
inferior/ Dizendo, às vezes, que não é
ninguém/ Eu venho falar do valor que você
tem/ Ele está em você/ O Espírito Santo se
move em você até com gemidos... (As mãos
erguidas na igreja se confundem com as
mãos no estádio de futebol)
Dinho participa de um culto na
igreja. Câmera em close mostra
rosto de mulher orando, mãos
cruzadas de outra em
reverência, Dinho orando.
Imagem do pastor com câmera
horizontal, mas deixando
entrever cabeça das pessoas
presentes no auditório (câmera
subjetiva?). Rostos contristados
de pessoas que cantam a
música são flagrados em
primeiro plano e intercalados
por mãos erguidas. (Esta cena é
uma intervalo da sequência
anterior em que Cleusa está no
estádio em uma final de partida
de futebol).
00:12:40 00:14:00 - Dinho, que roupa é essa, irmão?
- Não fala mais com os pecadores, não?
- É irmão tô falando com você! Dinho!
- Não é porque virou crente, não. Uma vez
na quebrada, sempre na quebrada, irmão!
Dinho passa pela rua onde
mora e alguns rapazes falam
com ele.
00:16:00 00:16:40 Gerente do posto: E aí, crente, futebol
também é de Deus?
Dinho: É de Deus, mano...
Gerente do posto: E Jesus torcia pra quem,
hein?
Gerente do posto de gasolina
conversa com Dinho.
00:21:50 00:22:00 Dênis pede gasolina a Dinho,
sem pagar, mas este se recusa
em fazê-lo.
00:33:23 00:34:16 Pastor: Às vezes, a gente perde tanto tempo Durante o culto, o pastor fala
159
na vida pensando em coisas bobas, coisas
materiais que queremos ter. Coisas que, na
verdade, nos afastam de Jesus. Por
exemplo, a gente, às vezes, passa 12 meses
pagando a prestação do sofá, não é
verdade? Quem já não fez isso aqui? (Passa
o rosto de Dinho, rindo). 12 meses. Todo
mês vai lá com o carnêzinho, né irmão?
Pagar a prestação de um sofá, se às vezes, a
gente nem senta direito nele, por isso eu
pergunto pra você, meu irmão, a casa onde
você mora é sua?
- Não! (responde uma senhora sentada em
um dos bancos da igreja)
Pastor: Ela é de quem?
Igreja: De Jesus!
- Aleluia!
Pastor: Essa terra não é nossa, irmãos.
Essa terra é de Jesus!
Dinho: Glória Deus, aleluia. (Dinho fala de
olhos fechados)
com a Igreja. Câmera em leve
plongée, apresenta o pastor
falando para o auditório da
igreja. Durante o discurso
aparece imagem do rosto de
fiéis atentos a mensagem, entre
eles, Dinho.
00:43:26 00:44:27 Dinho: Boa noite, prazer, sou Dinho.
Dênis: Dinho, Glória, Glória, Dinho (o
irmão apresenta).
Dinho: Meu irmão já fez as honras da casa.
Aceita uma água?
Dênis: Que é isso mano, a menina não é
crente pô.
Glória: Não sou crente, mas repeito quem é,
tá?
Dênis: Nóis tá na “veja” (pega um copo de
cerveja). A Jesus!
(Dinho observa sorridente)
Dinho olha para dentro de casa
pela cortina da janela seu irmão
tendo relações com a
namorada. Depois da entrada
repentina de Reginaldo, Dinho
entra e cumprimenta o casal.
00:44:30 00:46:15 Dinho: Sabe que eu tava lendo uma coisa?
Tão bonita...A felicidade que termos o
Senhor como nosso pastor...(Fala abrindo a
Bíblia sentado no sofá)
Dênis: Velho...(fala rindo e olhando para a
namorada). Não rola, né, mano?
Dinho: Bem, fique a vontade viu? A casa é
pobre, mas o que tem a gente gosta de
compartilhar, viu?
Câmera pega Dinho em plano
americano.
Dinho desfocado em primeiro
plano e casal a fundo.
00:54:00 00:55:13 Dinho: Deus eu me vendi. Eu fraquejei. O
Senhor sabe que eu estou cada vez mais
distante, né?. Eu sou um porco. Eu sou um
fraco.
Pastor: Paz do Senhor, irmão. Jesus tá
ouvindo suas orações.
Dinho: Eu não sei se Ele quer me ouvir não,
pastor.
Imagem de Dinho sentado de
costas em um dos bancos da
igreja vazia e o pastor começa
uma conversa com ele.
160
Pastor: Que é isso Dinho? No dia que você
aceitou Jesus, Jesus aceitou você.
(Mudança de plano. Dinho e o pastor estão
dentro de um escritório)
Pastor: Sabe irmão, nesses três anos que eu
tô nessa luta, eu nunca vi esses salão assim
tão vazio. E agora com a “Reviver” aí na
esquina (fala se referindo a uma outra
igreja) tá todo mundo pulando pra lá. Todo
mundo. Mas pra quê, né? Ouvir sermão que
não incomoda? Acreditar que Jesus é
bonzinho? Jesus não é bonzinho. Nuca foi,
nunca vai ser.
Dinho: Eu continuo servindo ao Senhor
nessa casa, pastor.
Pastor: Até quando?
Dinho: Vamos orar pra os irmãos que vão
nos abandonar?
00:55:25 00:56:15 Dinho: Bom dia, Rosa.
Rosa: Bom dia, meu filho.
Dinho: Paz do Senhor.
Rosa: Amém.
Dinho: Trouxe um Salmo hoje pra gente
orar.
Rosa: Vamo lá.
Dinho: Até quando te esquecerás de mim,
Senhor? Até quando esconderás de mim o
teu rosto? Porque os meus dias se
consomem como a fumaça e os meus ossos
ardem como lenha. Meu coração está ferido
e seco como a erva, por isso me esqueço de
comer pão. Meus dias são como a sombra
que declina e como a erva me vou secando.
Dinho visita uma irmã da
igreja.
Enquanto lê o texto, os planos
mostram cenas da cidade de
São Paulo e de seus irmãos e
sua mãe.
01:03:15 01:04:00 Cleusa: Ele colocou outra em meu lugar,
nunca quis assinar carteira, mas eu pego
qualquer advogado e ela ta fudida comigo,
aquela filha da puta.
Dinho: Não fala palavrão, mãe.
Cleusa: Ih...o que é que é? Virou santo
agora, é? Santo de pau oco. Eu te conheço,
Dinho. Sei muito bem a trabalheira que
você já deu nessa vida.
Dinho: Eu aceitei Jesus, mãe.
Cleusa: Jesus, o caralho! Desgraceira...
Dinho: Às vezes, se a senhora tivesse
procurado Jesus não estaria agora com essa
barriga.
Cleusa: Como é que é?
Dinho: É isso que a senhora ouviu.
Cleusa está servindo comida
para Dinho e enquanto isso
conversa com ele.
161
Cleusa: Repete! Repete!
Dinho: É mais um filho que a gente não
sabe quem é o pai.
Cleusa: Cala a boca (dá um tapa no rosto de
Dinho). Eu sou seu pai e sua mãe, ouviu?
Eu sou pai e mãe de vocês. Eu!
01: 08: 13 01:08:15 Gerente do posto (fala com Dinho): Tá
bonito, hein? Vai fazer exame de fezes?
Dinho chega ao posto para
trabalhar vestido de paletó e o
gerente fala com ele.
01:19:35 01:21:22 Igreja (canta): Quem dá com alegria/ Lá no
céu reinará/ Lá no céu reinará/ Lá no céu
reinará/ Quem dá com alegria/ Lá no céu
reinará.
Pastor: Qual é a diferença entre fé e
necessidade? Necessidade, irmãos, é a
vontade do homem. E fé, irmãos? Fé é a
vontade de Deus!
(Vozes na igreja disparam gritos de
“aleluia” e “glória a Deus”)
Pastor: E pra quem tem fé, irmãos...Pra
quem tá com o coração repleto de fé...o
Senhor opera milagres. Aleluia! Não é
verdade, irmão Dinho?
Dinho: É verdade. Glória a Deus!
Pastor: Glória a Deus, meu Pai. Glória a
Jesus. Irmão Dinho, traz a irmã Rosa até
aqui. Irmão Mateus, afasta um pouco a
cadeira, por favor. Vem, irmã Rosa.
(Começa a orar com voz exaltada por uma
mulher cadeirante). Ó Senhor, amado, meu
Pai Todo Poderoso, ilumina a irmã Rosa,
Senhor, para que ela tenha força e tenha fé.
Deixa o Senhor trabalhar no seu coração.
Deixa Jesus elevar as suas pernas, irmã
Rosa, vamos. Tenha força, irmã Rosa!
Tenha fé que o Senhor vai modificar sua
vida e a senhora vai sair daqui andando,
irmã Rosa. (A irmã Rosa não consegue se
firmar com as pernas e olha para Dinho
como que frustrada).
Aleluia, irmãos! Aleluia, irmãos! (o pastor
continua) Muitas vezes, irmãos, nós
achamos que estamos com aquele 100% de
fé. Lembra quando eu falei de 100% de fé?
E não está. Falta um pouco ainda. Falta, às
vezes, um tiquinho, uma coisinha de nada.
Mas isso conta muito pro Senhor. Vamos
orar pra irmã Rosa, vamos louvar ao
Senhor.
Enquanto a igreja canta a
música, Dinho passa
arrecadando as ofertas dadas
pelos fiéis.
Câmera em close no pastor.
Câmera imagem do pastor de
costas de onde se vê no plano
de fundo o auditório da igreja
vazia.
Imagem dos fieis tirando os pés
da mulher da cadeira de rodas.
Em seguida eles a levantam
pelos braços. Pastor ora
olhando para a Irmã Rosa.
Imagem de Dinho, em plano
americano, recua cabisbaixo
conduzindo a cadeira de rodas
com Irmã Rosa.
01:22:00 01:22:36 Pastor (tira dinheiro de dentro de alguns
envelopes e fala): Toma, Dinho, pelo seu
serviço.
Dinho: Quero nada não, pastor.
O pastor conversa com Dinho
no escritório.
162
Pastor: Isso não é esmola não, meu irmão.
Você fez um trabalho pra igreja e ta aqui
seu pagamento. Eu sei que não é muito, mas
ajuda.
Dinho: Obrigado.,. mas o senhor não deve
nada. Tenho que ir agora. Paz do Senhor
(oferece a mão em cumprimento ao pastor).
Pastor: Paz do Senhor, irmão.
01:27:14 01:28:40 Dinho: Senhor Jeferson, o dinheiro tava
aqui. O senhor viu, o cara tava armado.
Gerente do posto: Que tava armado, o
caralho. O cara era teu irmão. Você ta me
tirando de trouxa?
Dinho: O senhor não pode falar isso, eu sou
um homem de bem, Deus e testemunha.
Gerente do posto: Tira esse dedo de cima de
mim. Vem falar de Deus, vai tomar no cú,
ladrão do caralho!
Dinho: O senhor não sabe o quê o senhor ta
falando. Eu não sou ladrão.
Gerente do posto: Você é ladrão, irmão de
ladrão, vai tomar no seu cú, crente filho da
puta, crente do caralho. Qual que é a sua,
hein, rapaz? Passa uma fome do caralho, eu
te arrumo emprego e você vem me roubar.
É assim que você me paga, filho da puta?
(Dinho dá um soco no gerente com o peso
de mesa seguido de pontapés)
Após ser assaltado, o gerente
discute com Dinho.
Após espancamento, imagem
de Dinho saindo do posto, em
primeiro plano, com o rosto
oculto pela escuridão. Em
seguida, sequência de planos
intercala a imagem de Dinho
bebendo em um bar e andando.
Ao final, Dinho é encontrado
na calçada da igreja pelo
pastor.
01:38:33 01:39:10 Pastor: Irmão Jônatas Araújo aceita receber
Jesus como seu único Senhor e Salvador?
- Amém.
Pastor: Eu te batizo em nome do Pai, do
Filho e do Espírito Santo. (Mergulha a
pessoa na água) Amém, Senhor. Glória a
Deus.
O pastor batiza várias pessoas
na água da praia.
01:42:45 01:44:58 Pastor: Aceita receber Jesus como seu único
Senhor e Salvador?
- Amém.
Pastor: Eu te batizo em nome do Pai, do
Filho e do Espírito Santo. (Mergulha a
pessoa na água) Amém, Senhor. Amém,
Jesus.
Pastor: Leandro, traz a irmã Rosa. Irmã
Rosa!
- Ó Senhor Jesus, opera na vida da irmã
Rosa.
Pastor: Rosa Maria Assunção, aceita
receber Jesus como seu único Senhor e
Salvador?
O pastor batiza várias pessoas
na água da praia.
163
Rosa: Aceito.
Pastor: Eu te batizo em nome do Pai, do
Filho e do Espírito Santo. (Mergulha a
pessoa na água) Glória ao Senhor.
Rosa: Glória ao Senhor.
Pastor (ainda dentro água com a irmã Rosa
e os auxiliares): Agora, irmã Rosa, que tá
purificada, vamo deixar o Senhor Jesus
modificar a sua vida? Vamo? Firmar a
perna? Tenha fé, irmã Rosa, tenha fé. Firma
a perna. Vamo, irmã Rosa. Vamo, irmã
Rosa. Firma a perna. Firma a perna. Firma.
Firma. Vamos, irmã Rosa, vamos que a
senhora consegue. Vamo. Vamo.
Dinho...Dinho...
Dinho: Deus sabe o que faz, Rosa. Ele sabe
onde atinge a pessoa pra machucar.
Rosto de Dinho aflito em
primeiro plano. Irmã Rosa não
consegue firmar as pernas na
água.
Filme: Última Viagem - 174
Ano: 2008
Direção: Bruno Barreto
A mãe adotiva de Sandro é Marisa, uma senhora evangélica que trabalha como empregada
doméstica e é casada com o pastor Jaziel.
TEMPO AUDIO VÍDEO (DESCRIÇÃO)
IN OUT
00:09:30 00:10:34
Marisa (enquanto limpa um móvel, canta):
Doce é a mim o teu querer/ Pois tú me faz te
obedecer/ Me ame sempre, meu Senhor/ Guia
os meus passos (Câmera dá um close em um
porta-retrato onde tem a foto de uma mãe
abraçando o filho).
(Mudança de plano)
Pastor: Rege-me em tudo Jesus!
Igreja (cantando): Rege-me em tudo meu
Jesus.
Pastor: Acho prazer em te seguir.
Igreja: Descanso em paz, me faz sentir.
- Aleluia!
- Glória a Deus! Aleluia!
Igreja: Doce é a mim o teu querer/ Pois tu me
faz te obedecer. (Câmera se afasta, abrindo
em plano geral, mostrando o templo – uma
espécie de galpão onde as pessoas estão
sentadas em bancos de madeira – que
apresenta uma faixa com o nome “Assembléia
Marisa está sentada em um dos
bancos da igreja e troca olhares
com o pastor.
164
de Deus”)
00:15:35 00:16:20
Assaltante: Passa a grana aí. Passa a grana aí,
porra. Fica todo mundo na moral, porra.
Vambora, cara, cata dinheiro.
Marisa: “Aquele que habita à sombra do
Onipotente descansará. Direi do Senhor: ele é
o meu Deus...”
Assaltante: Pára a porra do ônibus aí, piloto.
(Bandido desce do ônibus)
Marisa: Eu sabia que ele ia descer sem
machucar ninguém. Foi o Salmo 91 que eu
rezei. É o Salmo mais forte da Bíblia.
Assaltante entra no mesmo ônibus
onde está Marisa.
00:24:12 00:25:16
Pastor: Paz do Senhor, irmã.
Marisa: Paz do Senhor.
Pastor: Desculpe incomodar, mas a senhora
não vai passar a noite de Natal sozinha, vai?
Marisa: Não tô animada pra sair hoje não.
Pastor: O culto de Natal é muito bonito a
senhora tem que ir.
Marisa: Não precisa me chamar de senhora,
não. Vou pegar minha bolsa, só um minutinho.
Pastor Jaziel vai até a casa de
Marisa.
00:30:24 00:31:58
Pastor: Marisa, eu acho que tú não devia
trabalhar limpando a casa dos outros, não.
Marisa: É meu trabalho.
Pastor: Eu sei, mas também não é pecado tú
não trabalhar.
Marisa: Trabalhar é bom, Jaziel.
Pastor: Tú não precisa mais, Marisa. (Pega
uma mala e abre mostrando dinheiro dentro).
Nossa igreja tá prosperando...
Marisa: Graças a Deus, hein?.
Pastor: Graças a Deus.
Marisa: Você é um bom pastor, Jaziel. Ajuda
muita gente. Eu não quero ser um peso, não.
Pastor: Tú é minha mulher, Marisa. Tú vai ser
a mãe dos meus filhos. Isso é peso, é? (...)
Marisa quando um homem casa ele quer ter
filho. É isso que Deus espera da gente.
Marisa: Eu não posso ter outro filho, enquanto
eu não encontrar o meu filho. É isso que Deus
espera de mim.
Pastor Jaziel conversa com Marisa
em casa.
00:51:50 00:52:15
OFF (voz de Marisa): Meu filho Alessandro,
te escrevo essa carta como tua mãe verdadeira,
a mãe que você não conheceu, mas que nunca
te esqueceu. A mãe que não te criou, mas que
te gerou. Enquanto eu vivia longe de Deus, eu
vivia sem esperança de reencontrar você. No
dia que fui para a igreja e aceitei Jesus, tudo
mudou e agora eu encontrei você, meu filho.
Marisa escreve uma carta para
Sandro.
165
00:54:09 00:54:19
Marisa (em OFF): Louvores ao Teu nome ó
Altissímo para de manhã anunciar a tua
benignidade...
01:08:00 01:08:40
OFF: Com amor da sua mãe, Marisa.
Sandro: Sei lá porque ela acha isso, tia.
Walquíria: Você acha que o filho dela tá vivo?
Sandro: Ah, não sei pode tá morto, tá ligado?
Pode tá vivo. Pode ter virado bandido. Mas se
o cara for bandido, ela não vai querer ter um
filho bandido.
Walquíria: Por que não?
Sandro: Ela é toda certinha, da igreja. É cheia
de papo-bíblia.
Walquíria: Eu sei, ela veio aqui me procurar.
Sandro: A senhora acha que eu posso ser filho
dela mesmo?
Walquíria: Você gostaria de ser o filho dela?
Sandro conversa com a assistente
social Walquíria.
01:13:50 01:15:35
Marisa: Jaziel, esse é meu filho.
Pastor: Por que tú não foste ao culto hoje?
Sandro: Prazer.
Pastor: A paz do Senhor. Marisa vamo
conversar um pouquinho aqui no quarto.
Marisa: Aqui tá bom, vamo sentar.
Pastor: Eu tô querendo falar contigo em
particular. Só nós dois.
Marisa: Eu não tenho segredo pro meu filho,
Jaziel.
Pastor: Eu to pedindo pra tú vir comigo.
Sandro: Ô, qual foi doidão? Tira a mão da
minha mãe, rapaz.
Marisa: Calma, filho.
Pastor: Marisa, tu não conhece esse rapaz,
Marisa. Ele já teve preso, ele fugiu e tudo,
ele...Eu sou responsável pela igreja, tú tá
entendo, agora?
Marisa: É com esse dinheiro que cê ta
preocupado, né?
Pastor: Tú me respeita que eu sou teu marido!
Sandro: Tira o dedo da cara da minha mãe,
porra!
Pastor: Tú não é o filho dela, moleque.
(Sandro dá um soco em Jaziel, o pastor que é
marido de sua mãe)
Marisa: O que é isso? Jaziel...Calma, calma
filho...
O pastor chega em casa e Marisa
apresenta Sandro como seu filho.
166
Sandro: Ô mandadão esse comédia aí,
compade.
Marisa: Calma.
(Jaziel bate a porta e sai de casa)
01:16:52 01:17:35
Sandro: Ela não é bonita, mãe?
Marisa: O quê?
Sandro: Minha namorada não é linda?
Marisa: É...mas ela não é moça pra você casar,
meu filho.
Sandro: Por quê?
Marisa: Lá na igreja tem moça mais bonita.
Namorada: Eu acho que tua descarga tá
quebrada.
Marisa: Depois eu mando consertar. Você
trabalha?
Namorada: hum-hum.
Marisa: Com o quê?
Namorada: Com o corpo.
Sandro apresenta sua namorada
para a mãe.
01:24:40 01:26:01
Sandro: Abre essa porta, ô comédia! Abre essa
porta ô cuzão! Abre logo!
(Jaziel abre a janela e fecha rapidamente. Em
seguida pega a mala e esconde. Encosta a
mesa atrás da porta de casa e pega uma arma)
Pastor: Eu sabia que tú vinha pegar o dinheiro,
rapaz.
Sandro: Cadê a porra do dinheiro, rapaz? Tá
onde, porra?
Pastor: Tá-tá ali.
Sandro: “Tá-tá ali?” O dinheiro tá onde?
Pastor: Tá embaixo do travesseiro ali.
Sandro: Reza por mim na igreja, cuzão.
Otário.
Sandro invade a casa do pastor e
rouba a mala com dinheiro.
Jardim das Folhas Sagradas
Ano: 2011
Direção: Póla Ribeiro
Miguel Bonfim (Antônio Godi) é um homem que em meio ao avanço da cidade sobre as tradições,
tenta restaurar um terreiro. Sua esposa, Ângela (Evelin Buchegger), por ser evangélica, se opõe ao
projeto e à crença do marido. Além dela, uma senhora evangélica, Dona Queca (Haydil Linhares) que
reside próximo ao terreno, também se opõe ao projeto.
167
TEMPO AUDIO VÍDEO (DESCRIÇÃO)
IN OUT
00:10:58 00:11:02
Ângela: Bonfim, você devia parar de mexer com essas
coisas (tenta tirar um colar da mão do marido).
Bonfim: Porque que você não vem pro culto comigo,
hum? Hein, Bonfim? (pausa). Bonfim...olha, as coisas
acontecem, elas mudam. Você aquele amigo de Neide
que era alcoólatra? Ele parou de beber, até emprego
ele conseguiu!
Bonfim: Ângela eu não sou alcoólatra e tenho um belo
emprego.
Ângela: Vamos comigo pro templo...
Bonfim: Quando era menino, já assisti muitos filmes
ali...no templo...
Bonfim entra em casa e na
TV ligada aparece a imagem
de um pastor falando.
00:17:53 00:19:27
Mulher religiosa: A paz do Senhor, irmão...
Ângela: Que é isso, meu amor? Olha, preste atenção:
Deus perdoa tudo! Eu também! Porque você não se
entrega a Jesus junto comigo? Nossa vida vai mudar,
nosso casamento vai mudar, a gente vai viver em paz.
Bonfim: Acabou, cada um pro seu lado.
Ângela: Eu não posso viver com um homem entregue
ao demônio, você está sendo desviado pelos seus
amigos...é festa todo dia! É charuto, é bebida, é festa,
o que é isso?
Bonfim: Não é festa, mulher! É ritual é religião! É
coisa séria!
Ângela: Eu só quero ter tranquilidade quando morrer...
Bonfim: A nossa diferença é essa! É que eu acredito
que tem vida antes da morte!
Ângela: Você não está acreditando em nada, você está
com um encosto!
A mulher de Bonfim está
reunia com outras mulheres
religiosas e, casa. Bonfim
chega e se dirige para o
quarto onde os dois
conversam.
00:35:25 00:36:05
Dona Queca (dona de uma quitanda) canta: Glória a
Jesus, foi Jesus que me salvou...A glória eu dou...a
glória eu dou...foi Jesus que me salvou...
Mulher: Dona Queca, tem nego bom?
Outra mulher: Tem nego ótimo...(fala olhando para
Bonfim)
Dona Queca: Duas mundana! Nem sutiã usa!
Bonfim: Tem água mineral?
Dona Queca: Não moço, tem guaraná Jesus...
Bonfim: Você me concede um copo?
Dona Queca: Meu filho, você tá procurando terreno,
é? Tomara que não seja pra candombré ou das coisas
que você gosta.
Voz diegética de Dona
Queca cantando uma música
religiosa enquanto a câmera,
em plano geral, mostra
casas de papelão em uma
favela.
00:56:30
Dona Queca: Eu sou uma mulher temente a Deus, ai
daquele que diminuir ou aumentar a palavra de Deus,
vocês estão pensando que nós vai sair daqui e vocês
168
vão ficar, tão enganado. Vocês vão sair daqui nos
poderes de Deus...Eu dediquei minha vida, minha
juventude, minha vaidade...vocês não vão fazer piseiro
aqui, sai da minha frente!
Mulher 1: A senhora se acalme...
Homem: Onde a senhora pensa que vai?
Mulher: Se acalme...
Dona Queca: Sai da minha frente, Satanás! Você tá
pensando que vai fazer um trono de Satanás aqui...
Bonfim: Minha senhora, por favor...
Mulher 2: Esses crente, viu? Faz uma campanha
danada contra a gente...É na TV, é no corpo a corpo
Mulher 3: Só fala de demônio! Deve de ter uma
parceria...Tú, correu, hein, miúda?
01:03:40 01:04:18 Ângela, mulher de Bonfim, dá depoimento na TV,
desmentindo que o marido seja Pai de Santo.
169
APÊNDICE B – Lista de filmes brasileiros com personagens evangélicas
1. SUPEROUTRO
Direção: Edgard Navarro
Ano: 1989
Personagem:
1) Sem nome
2. CENTRAL DO BRASIL
Direção: Walter Salles Jr.
Ano: 1998
Personagem:
1) César (Othon Bastos)
3. ORFEU
Direção: Cacá Diegues
Ano: 1999
Personagem:
1) Inácio (Milton Gonçalves)
170
4. CIDADE DE DEUS
Direção: Fernando Meirelles
Ano: 2002
Personagem:
1) Alicate (Jefechander Suplino)
5. CARANDIRÚ
Direção: Hector Babenco
Ano: 2002
Personagens:
1) Peixeira (Milhem Cortaz)
2) Pastor no presídio (sem nome)
6. AMARELO MANGA
Direção: Cláudio Assis
Ano: 2003
Personagens:
1) Kika (Dira Paes)
171
2) Pastor (sem nome)
7. CONTRA TODOS
Direção: Roberto Moreira
Ano: 2004
Personagens:
1) Teodoro (Giulio Lopes)
2) Terezinha (Marta Meola)
8. TAPETE VERMELHO
Direção: Luiz Alberto Pereira
Ano: 2006
Personagens:
1) Pastor (sem nome)
172
2) Obreira (sem nome)
9. Ó PAÍ Ó
Direção: Monique Gardenberg
Ano: 2007
Personagens:
1) Dona Joana (Luciana Souza)
2) Dalva (Merry Batista)
3) Pastor (Lázaro Machado)/
Fiel possuída (Nívea Pita)
173
10. LINHA DE PASSE
Direção: Walter Salles Jr. e Daniela Thomas
Ano: 2008
Personagens:
1) Dinho (Geraldo Rodrigues)
2) Pastor (Roberto Audi)
3) Dona Rosa (Gabriela Rabello)
11. ÚLTIMA PARADA 174
Direção: Bruno Barreto
Ano: 2008
Personagens:
1) Pastor Jaziel (Tay Lopes);
174
2) Marisa - Tia de Sandro (Cris Vianna)
12. MEU NOME NÃO É JOHNNY
Direção: Mauro Lima
Ano: 2008
Personagem:
1) Nome
13. LUCAS TERRA
Direção: Cláudio Factum
Ano: 2009
Personagem: Sem nome
1) Bispo
2) Lucas Terra
175
14. FAMÍLIA VENDE TUDO
Direção: Alain Fresnot
Ano: 2009
Personagens:
1) Bispa Marisa (Marisa Orth)
2) Webster (Robson Nunes)
3) Ivan Carlos (Caco Ciocler)
15. JARDIM DAS FOLHAS SAGRADAS
Direção: Póla Ribeiro
Ano: 2010
Personagem:
1) Ângela (Evelin Buchegger)
176
16. ASSALTO AO BANCO CENTRAL
Direção: Marcos Paulo
Ano: 2010
Personagens:
1) Devanildo (Vinicius de Oliveira)
2) Pastor (Milton Gonçalves)
17. O HOMEM DO ANO
Direção: José Henrique Fonseca
Ano: 2010
Personagens:
1) Pastor Marleno (André de Barros);
2) Érica (Natália Lage)
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18. TRAMPOLIM DO FORTE
Direção: João Rodrigo Mattos
Ano: 2010
Personagens:
1) Reverendo Magalhães (Luíz Miranda)
2) Dona do Céu (Marcelia Cartaxo)
19. EU RECEBERIA AS PIORES NOTÍCIAS DOS
SEUS LINDOS LÁBIOS
Direção: Beto Brant / Renato Ciasca
Ano: 2012
Personagens:
1) Pastor Ernani (Zécarlos Machado)
2) Lavínia (Camila Pitanga)
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20. ÉDEN
Direção: Bruno Safadi
Ano: 2012
Personagens
Pastor (João Miguel)
Leandra Leal