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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO DOUTORADO EM DIREITO PÚBLICO LORENA MIRANDA SANTOS BARREIROS CONVENÇÕES PROCESSUAIS E PODER PÚBLICO Salvador 2016

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE DIREITO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO

    DOUTORADO EM DIREITO PBLICO

    LORENA MIRANDA SANTOS BARREIROS

    CONVENES PROCESSUAIS E PODER PBLICO

    Salvador

    2016

  • B271

    Barreiros, Lorena Miranda Santos.

    Convenes processuais e poder pblico [manuscrito] /

    Lorena Miranda Santos Barreiros. 2016.

    428 f. ; 30 cm.

    Orientador: Prof. Dr. Fredie Souza Didier Junior.

    Tese (doutorado) Universidade Federal da Bahia,

    Faculdade de Direito, 2016.

    1. Atos jurdicos. 2. Processo civil. 3. Direito

    administrativo. I. Universidade Federal da Bahia. Faculdade

    de Direito. II. Didier Jr., Fredie Souza. III. Ttulo.

    CDD 347.05

    Ficha catalogrfica elaborada por Ivanildes Sousa CRB5/ 1477

  • LORENA MIRANDA SANTOS BARREIROS

    CONVENES PROCESSUAIS E PODER PBLICO

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Direito,

    Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, como

    requisito parcial para obteno do grau de Doutor em Direito.

    Linha de pesquisa: Teoria do Processo e Tutela dos Direitos

    Orientador: Prof. Dr. Fredie Souza Didier Junior

    Salvador

    2016

  • TERMO DE APROVAO

    LORENA MIRANDA SANTOS BARREIROS

    CONVENES PROCESSUAIS E PODER PBLICO

    Tese aprovada como requisito parcial para obteno do grau de Doutor em Direito,

    Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia UFBA, pela seguinte banca

    examinadora:

    Nome: Prof. Dr. Fredie Souza Didier Junior

    Titulao e instituio: Livre-Docente em Direito pela Universidade de So Paulo (USP)

    Nome: Prof. Dr. Flvio Luiz Yarshell

    Titulao e instituio: Livre-Docente em Direito pela Universidade de So Paulo (USP)

    Nome: Prof. Dr. Antonio do Passo Cabral

    Titulao e instituio: Livre-Docente em Direito pela Universidade de So Paulo (USP)

    Nome: Prof. Dr. Eduardo Ferreira Jordo

    Titulao e instituio: Doutor em Direito pelas Universidades de Paris (Panthon-

    Sorbonne) e de Roma (Sapienza), em co-tutela

    Nome: Prof. Dr. Edilton Meireles de Oliveira Santos

    Titulao e instituio: Ps-Doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

    Nome: Prof. Dr. Dirley da Cunha Junior

    Titulao e instituio: Doutor em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)

    Salvador, 22/08/2016

  • A Luiza e Laura, dois presentes que a vida me reservou,

    por me fazerem compreender que h medida maior do que

    o infinito: o amor de me.

  • AGRADECIMENTOS

    A superao do desafio de elaborar a presente tese no teria sido possvel sem a ajuda

    de muitas pessoas, a quem desejo imensamente agradecer. Antes, porm, de nomin-las, o

    agradecimento primeiro e maior dirijo a Deus, que se faz presente a cada dia em minha vida,

    renovando-me as foras.

    A Maria Alexandrina dos Santos, por haver, desde muito cedo, me ensinado a

    importncia do estudo, que ela tanto valorizava, mesmo tendo tido a ele pouco acesso.

    minha av Lourdes, sua filha, que bem apreendeu as lies de sua me e me apresentou o

    encantador mundo da docncia, que exerceu com criatividade e dedicao.

    A Silvia e Gerino, por serem meus exemplos e faris. Jamais poderei agradecer a

    contento por haver sido agraciada com pais to excepcionais, amorosos e maravilhosos.

    Obrigada pela compreenso e pelo apoio, sempre valiosos. Aos meus irmos, Felipe e Cintia,

    pelo estmulo e pela torcida. A Jaime, meu eterno companheiro, pelos imensos amor, apoio e

    incentivo e por nunca me permitir desacreditar da realizao do meu objetivo. Ao meu av

    Silvio e minha Dinda Rosa, pelo dengo reconfortante e revitalizador, necessrio para

    recarregar as energias doadas ao trabalho. minha famlia, ncleo que estrutura a minha vida

    e que a torna mais leve, por me mostrar, a cada dia, a felicidade que h nas pequenas coisas da

    vida. Meu amor de vocs.

    Ao Prof. Dr. Fredie Didier Junior, no apenas pela valiosa orientao a este trabalho,

    mas, sobretudo, pela disponibilidade, pelo estmulo sua concluso, pelos comentrios e

    crticas a ele lanados e por todos os ensinamentos que me transmitiu desde a graduao, sem

    os quais, certamente, este trabalho no teria sido concretizado. Dedico-lhe minha amizade e

    minha imensa gratido.

    Aos Profs. Drs. Antonio do Passo Cabral, Flavio Luiz Yarshell, Eduardo Jordo, Edilton

    Meireles e Dirley da Cunha Junior, pelas valorosas crticas e sugestes com que me brindaram

    por ocasio da defesa desta tese, as quais, por certo, mostraram-se fundamentais ao seu

    aperfeioamento.

    A Silvia Laiane Miranda Nunes, pela inestimvel ajuda na coleta do material

    bibliogrfico e pelo incentivo constante. A Victor Matheus Nogueira, tambm pelo auxlio

    bibliogrfico.

  • Aos colegas, professores e funcionrios do Programa de Ps-Graduao da UFBA, pelo

    aprendizado haurido nas disciplinas cursadas e pelo convvio sempre prazeroso. Agradeo, em

    especial, ao colega Guilherme Guimares Ludwig, pela troca de vivncias durante a

    elaborao de nossas teses e pelo compartilhamento de fonte bibliogrfica.

    Aos colegas e amigos do escritrio Menezes, Miranda e Oliveira, Advogados

    Associados, e, em especial, ao Dr. Hlio Menezes Junior e Dra. Nelma Calmon, pela

    extraordinria experincia profissional que me concederam e pelos indelveis momentos de

    alegria que me proporcionaram durante o valioso perodo em que trabalhamos juntos.

    Aos colegas e amigos da Procuradoria Geral do Estado da Bahia, com destaque aos Drs.

    Silvio Avelino Pires Britto Junior e Andr Luiz Peixoto Fernandes, pelo apoio e pela amizade.

    Agradeo, ainda, ao amigo Jos Carlos Wasconcellos Junior, pelos profcuos debates

    profissionais, que inspiraram alguns exemplos construdos nesta tese.

    Aos colegas da Faculdade Baiana de Direito, em especial aos Profs. Carolina

    Mascarenhas e Fernando Leal, pelo carinho com que sempre fui tratada durante o perodo em

    que lecionei naquela Instituio. Agradeo a Carol, ainda, pelas dicas metodolgicas.

    Aos funcionrios da Biblioteca da Faculdade Baiana de Direito (Acio, Alexandra,

    Edilene, Hugo, Ivanildes, Marcos, Nadjane, Pmela e Victria) e da Biblioteca da

    Procuradoria Geral do Estado da Bahia (em especial a Agnbia e Aleine), pelas constantes

    ateno, presteza e simpatia com que sempre fui tratada em ambos os lugares, o que, por

    certo, tornou muito mais aprazvel a pesquisa realizada.

    s funcionrias que, alegremente, deram e do mais vida minha casa e que cuidam

    no apenas dela, mas, sobretudo e principalmente, de minhas filhas, permitindo-me ter maior

    tranquilidade para me fazer ausente, pelo tempo necessrio, para as pesquisas conducentes

    concluso desta tese. Mais do que ningum, foram testemunhas das contradies e angstias

    que vivenciei diante deste desafio e das renncias que ele me imps, tendo de abdicar de

    precioso tempo ao lado de minhas amadas filhas.

    Aos amigos que, durante todo esse perodo em que estive mergulhada na elaborao da

    tese, me incentivaram e acreditaram na consecuo deste trabalho.

    A todas as pessoas que, por qualquer modo, contriburam para a realizao desse

    projeto, ainda que aqui expressamente no citadas, meu verdadeiro muito obrigada.

  • inegvel que a renovada preocupao com o consenso, como forma

    alternativa de ao estatal, representa para a Poltica e para o Direito

    uma benfica renovao, pois contribui para aprimorar a

    governabilidade (eficincia), propicia mais freios contra os abusos

    (legalidade), garante a ateno de todos os interesses (justia),

    proporciona deciso mais sbia e prudente (legitimidade), evita os

    desvios morais (licitude), desenvolve a responsabilidade das pessoas

    (civismo) e torna os comandos estatais mais aceitveis e facilmente

    obedecidos (ordem).

    Diogo de Figueiredo Moreira Neto1

    1 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Novas tendncias da democracia: consenso e direito pblico na

    virada do sculo o caso brasileiro. Revista eletrnica sobre a Reforma do Estado, Salvador, n. 13, mar.-

    maio/2008, p. 02. Disponvel em: . Acesso em:

    09/07/2016.

  • RESUMO

    O objetivo central da presente tese consiste em demonstrar a existncia de um regime

    jurdico especfico a que se sujeita o Poder Pblico quando celebra convenes processuais,

    distinto daquele a que se submetem os particulares no exerccio da mesma atividade. A

    pesquisa desenvolvida para o alcance desse escopo principia com a anlise do fenmeno da

    consensualidade administrativa no Direito brasileiro, enquadrando-se a atuao administrativa

    consensual como alternativa (e no excludente da) atuao imperativa. A consensualidade

    administrativa conceituada e so examinadas a sua classificao e algumas de suas

    principais manifestaes encontrveis no apenas no Direito Administrativo, mas, ainda, nos

    Direitos Penal, Processual Penal e Processual Civil. Essa anlise propicia o estabelecimento

    da premissa a partir da qual se estrutura o trabalho, consistente no reconhecimento da

    Administrao Pblica como destinatria da regra estabelecida pelo art. 190 do CPC/2015

    (clusula geral de negociao processual). O foco do trabalho desloca-se, ento, da

    consensualidade administrativa para a clusula geral de negociao processual. Em um

    primeiro momento, so apresentadas as premissas histricas, ideolgicas, lgico-conceituais e

    normativas destinadas compreenso da clusula, enfrentando-se, inclusive, a questo

    referente sua constitucionalidade. luz dessas premissas e tendo em vista o enquadramento

    do art. 190 do CPC/2015 no contexto de um microssistema de negociao processual

    estruturado no direito brasileiro, parte-se, ento, para a construo dos sentido e alcance da

    clusula geral de negociao processual. No desenvolvimento dessa atividade, so delineados

    os pressupostos de existncia, os requisitos de validade e as condies de eficcia dos

    negcios jurdicos processuais atpicos e as convenes processuais so analisadas em

    variados aspectos, tais como sua revogabilidade, sua interpretao e o prprio mbito de

    incidncia da clusula geral de negociao processual. Ultrapassadas as questes referentes

    consensualidade administrativa, por um lado, e construo de sentido da clusula geral de

    negociao processual, por outro, enfrenta-se, ento, a questo cerne do trabalho. Passa-se

    demonstrao da existncia de um regime jurdico diferenciado a que se submete o Poder

    Pblico quando celebra convenes processuais. Os contornos desse regime jurdico hbrido

    (que pressupe a necessidade de considerao simultnea a normas processuais e

    administrativas) so apresentados, com destaque s temticas concernentes competncia

    para celebrao de negcios processuais em nome do Poder Pblico, os limites subjetivos,

    objetivos, formais e finalsticos a que a Administrao Pblica est sujeita quando se vale do

    instituto, os mtodos destinados a garantir o respeito ao princpio da igualdade nessa atuao

    pblica consensual e a adequao do tema aos processos administrativos.

    Palavras-chave: Negcios jurdicos processuais Consensualidade administrativa Direito

    Administrativo Direito Processual Civil Clusula geral de negociao processual.

  • ABSTRACT

    The main objective of this thesis is to demonstrate the existence of a specific legal

    regime that subordinates public entities when they celebrate contracts of procedure, diverse of

    that one which individuals are submitted to when they exercise the same activity. In order to

    achieve this scope, the research begins with the analysis of the administrative consensuality's

    phenomenon in Brazilian law, framing the consensual administrative action as an alternative

    to (and not exclusive of) imperatival action. The administrative consensuality is

    conceptualized and its classification and some of its main demonstrations are examined,

    findable not only in Administrative Law, but also in Criminal Law, in Criminal Procedural

    Law and in Civil Procedure Law. This analysis enables the establishment of the premise on

    what this research is structured, namely, the recognition that the rule established by article

    190 of the CPC/2015 (general clause of procedural negotiation) is also intended to Public

    Administration. Then the focus of the work shifts from the administrative consensuality to the

    general clause of procedural negotiation. At a first moment, the historical, ideological,

    logical-conceptual and normative premises aimed at understanding the clause are introduced

    and the issue of its constitutionality is examined. In light of these assumptions and

    considering the framework of article 190 of the CPC/2015 in the context of a microsystem of

    procedural negociation structured in Brazilian law, the construction of the meaning and scope

    of the general clause of procedural negotiation is performed. In the development of this

    activity, this work delineates the planes of existence, validity and efficiency of atypical

    contracts of procedure and analyses these contracts under various aspects, such as their

    revocability, their interpretation and the incidence area of the general clause of procedural

    negotiation. After these considerations, the nuclear issue of the work is then examined, in

    order to demonstrate the existence of a specific legal regime that subordinates public entities

    when they celebrate contracts of procedure. The contours of this hybrid legal system (which

    implies the need for simultaneous consideration of procedural and administrative rules) are

    presented, with emphasis on issues concerning the competence to conclude contracts of

    procedure on behalf of the Public Administration, the subjectives, objectives, formals and

    finalistics limits that the Public Administration is subject to when using that institute, the

    methods to ensure respect for the principle of equality in the consensual public activity and

    the appropriateness of the theme to administrative proceedings.

    Keywords: Contracts of procedure Administrative consensuality Administrative Law

    Civil Procedure Law General clause of procedural negotiation

  • RIASSUNTO

    L'obiettivo principale di questa tesi quello di dimostrare l'esistenza di un regime giuridico

    specifico che subordina gli enti pubblici al momento di firmare accordi processuali, diverso

    daquello a che gli individui sono sottoposti quando esercitano la stessa attivit. Per

    raggiungere questo scopo, la ricerca inizia con l'analisi del fenomeno della consensualit

    amministrativa in diritto brasiliano, presentando l'azione amministrativa consensuale come

    alternativa alla (e non esclusiva di) azione imperativa. La consensualit amministrativa

    concettualizzata e la sua classificazione e alcune delle sue principali manifestazioni vengono

    esaminate, trovabile non solo in diritto amministrativo, ma anche nel diritto penale, nel diritto

    processuale penale e nel diritto processuale civile. Questa analisi permette lidentificazione

    della premessa su ci che questa ricerca strutturata, vale a dire, il riconoscimento che la

    regola stabilita dall'articolo 190 del CPC/2015 (clausola generale di negoziazione

    processuale) destinato anche alla Pubblica Amministrazione. Poi, il focus della tesi si sposta

    dalla consensualit amministrativa alla clausola generale di negoziazione processuale. In un

    primo momento, le premesse storiche, ideologiche, logico-concettuali e normative volte a

    comprendere la clausola vengono introdotte e la questione della sua costituzionalit viene

    esaminata. Alla luce di questi presupposti e considerando il quadro dell'articolo 190 en dalle

    CPC/2015 nel contesto di un microsistema di negoziazione processuale strutturato nella legge

    brasiliana, viene eseguita la costruzione del significato e dellambito della clausola generale di

    negoziazione processuale. Nello sviluppo di questa attivit, questo lavoro delinea i piani di

    esistenza, validit e efficacia degli accordi processuale atipici e analizza questi accordi sotto

    vari aspetti, come la loro revocabilit, la loro interpretazione e la zona dellincidenza della

    clausola generale di negoziazione processuale. Dopo queste considerazioni, la questione

    nucleare della tesi poi esaminata, al fine di dimostrare l'esistenza di un regime giuridico

    specifico che subordina gli enti pubblici quando celebrano accordi processuali. I contorni di

    questo sistema legale ibrido (il che implica la necessit di un esame simultaneo delle norme

    processuali e amministrative) sono presentati, con l'accento su questioni che riguardano la

    competenza a concludere laccordo processuale per conto della Pubblica Amministrazione, i

    limiti subbietivi, obiettivi, formali e finalistici a che la Pubblica Amministrazione soggetta a

    quando si utilizza di tale istituto, i metodi per garantire il rispetto del principio di uguaglianza

    nellattivit pubblica consensuale e l'adeguatezza del tema a procedimenti amministrativi.

    Parole chiave: Accordi processuali Consensualit amministrativa Diritto amministrativo

    Diritto Processuale Civile Clausola generale di negoziazione processuale

  • SUMRIO

    INTRODUO 16

    1 A CONSENSUALIDADE ADMINISTRATIVA NO DIREITO

    BRASILEIRO

    23

    1.1 CONSIDERAES INICIAIS 23

    1.2 DA ATUAO ADMINISTRATIVA IMPERATIVA ATUAO

    CONSENSUAL: A CONSTITUIO FEDERAL DE 1988 COMO

    MARCO DE ABERTURA DO DIREITO ADMINISTRATIVO

    BRASILEIRO CONSENSUALIDADE

    25

    1.2.1 A viso tradicional do Direito Administrativo brasileiro: a atuao

    administrativa pautada na prerrogativa imperativa

    25

    1.2.2 A Constituio Federal de 1988, a reforma da gesto pblica de 1995 e

    a reformulao de paradigmas do direito administrativo brasileiro

    28

    1.3 A ATUAO ADMINISTRATIVA CONSENSUAL 39

    1.4 MANIFESTAES DA CONSENSUALIDADE ADMINISTRATIVA

    NO DIREITO BRASILEIRO

    43

    1.4.1 Desapropriao amigvel 45

    1.4.2 Colaborao premiada 49

    1.4.3 Transao penal e suspenso condicional do processo 54

    1.4.4 Juizados Especiais Federais e Juizados Especiais da Fazenda Pblica 57

    1.4.5 Acordo de lenincia 60

    1.4.5.1 Acordo de lenincia e defesa da concorrncia 61

    1.4.5.2 Acordo de lenincia e combate corrupo 64

    1.4.5.3 Acordo de lenincia no mbito licitatrio 66

    1.4.6 Parcerias Pblico-Privadas 67

    1.4.7 Arbitragem 70

    1.4.8 Mediao (e conciliao) 76

    1.4.9 O (revogado) art. 17, 1, da Lei de Improbidade Administrativa e seu

    histrico descompasso com a progressiva abertura do Direito

    Administrativo consensualizao

    81

    1.5 A ADMINISTRAO PBLICA COMO DESTINATRIA DA 88

  • REGRA ESTABELECIDA PELO ART. 190 DO CPC/2015

    2 PREMISSAS PARA A COMPREENSO DA CLUSULA GERAL

    DE NEGOCIAO PROCESSUAL NO CPC BRASILEIRO

    91

    2.1 PREMISSAS HISTRICAS E IDEOLGICAS 91

    2.1.1 O privatismo processual 92

    2.1.2 Publicismo processual e o dogma da irrelevncia da vontade no

    processo

    94

    2.1.3 A redescoberta da vontade privada: um retorno ao privatismo

    processual?

    99

    2.1.4 O histrico legislativo ptrio 104

    2.2 PREMISSAS LGICO-CONCEITUAIS 111

    2.2.1 Conceitos extraveis da teoria do fato jurdico: plano da existncia 112

    2.2.1.1 Fato jurdico em sentido estrito 113

    2.2.1.2 Ato-fato jurdico 113

    2.2.1.3 Atos jurdicos lato sensu: ato jurdico stricto sensu e negcio jurdico 115

    2.2.1.4 Ato ilcito 116

    2.2.2 A teoria dos fatos jurdicos processuais: plano da existncia 118

    2.2.2.1 Fato jurdico processual 118

    2.2.2.2 Ato-fato processual 119

    2.2.2.3 Ato jurdico processual lato sensu e ato jurdico processual stricto sensu 122

    2.2.2.4 Ato ilcito processual 124

    2.2.3 Os negcios jurdicos processuais 125

    2.2.3.1 Generalidades 125

    2.2.3.2 Conceito e classificao dos negcios jurdicos processuais 137

    2.2.3.3 Convenes ou acordos processuais 140

    2.2.3.4 Protocolos ou acordos institucionais 146

    2.2.4 A teoria do fato jurdico: plano da validade 147

    2.2.5 Os atos jurdicos processuais lato sensu e o plano da validade 156

    2.2.6 A teoria do fato jurdico: plano da eficcia 160

    2.2.7 A teoria dos fatos jurdicos processuais: plano da eficcia 162

    2.2.8 Conceito de clusula geral 169

    2.2.9 Conceito de procedimento 172

  • 2.3 PREMISSAS NORMATIVAS: CONSTITUCIONALIDADE E

    FUNDAMENTOS DO ART. 190 DO CPC/2015

    176

    2.3.1 A constitucionalidade da clusula geral de atipicidade da negociao

    processual prevista no art. 190 do CPC/2015

    178

    2.3.2 Fundamentos da clusula de atipicidade da negociao processual 183

    2.3.2.1 Princpio do respeito ao autorregramento da vontade no processo 185

    2.3.2.2 Princpio da cooperao 187

    3 A CONSTRUO DA CLUSULA GERAL DE NEGOCIAO

    PROCESSUAL NO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO

    191

    3.1 DA IRRELEVNCIA DA VONTADE NO PROCESSO FORMAO

    DE UM MICROSSISTEMA DE NEGOCIAO PROCESSUAL

    191

    3.2 PRESSUPOSTOS DE EXISTNCIA DOS NEGCIOS JURDICOS

    PROCESSUAIS ATPICOS

    197

    3.2.1 Sujeitos 198

    3.2.1.1 Significado do termo parte utilizado no art. 190 do CPC/2015 198

    3.2.1.2 Ainda sobre o significado do termo parte na dico do art. 190 do

    CPC/2015: o rgo jurisdicional como sujeito de convenes processuais

    202

    3.2.1.2.1 O posicionamento de Antonio do Passo Cabral 203

    3.2.1.2.2 A posio de Murilo Teixeira Avelino 210

    3.2.1.3 Vontade consciente e autorregrada 212

    3.2.2 Objeto: referibilidade a um processo 214

    3.2.2.1 Alterao do procedimento 215

    3.2.2.2 Disposio sobre situaes jurdicas processuais 217

    3.2.3 Forma (em sentido amplo) 219

    3.3 REQUISITOS DE VALIDADE DOS NEGCIOS JURDICOS

    PROCESSUAIS ATPICOS

    220

    3.3.1 Partes plenamente capazes 221

    3.3.1.1 Sobre a(s) acepo(es) de capacidade no art. 190 do CPC/2015 221

    3.3.1.2 Partes plenamente capazes: a interpretao da expresso lanada no art.

    190 do CPC/2015

    228

    3.3.1.3 A vulnerabilidade como incapacidade processual negocial 233

    3.3.2 Ainda quanto ao aspecto subjetivo de validade das convenes

  • processuais: a manifestao de vontade desprovida de vcios 241

    3.3.2.1 Manifestao e vcios de vontade 241

    3.3.2.2 Manifestao de vontade viciada pela insero abusiva de acordo

    processual em contrato de adeso

    245

    3.3.3 Objeto lcito, possvel, preciso e determinado ou determinvel 247

    3.3.3.1 A licitude do objeto 248

    3.3.3.1.1 Versar o processo sobre direitos que admitam autocomposio 248

    3.3.3.1.2 Negcios processuais atpicos e seus limites implcitos: o tratamento

    doutrinrio conferido ao tema

    253

    3.3.3.1.2.1 O estabelecimento de limites objetivos por meio de indicadores genricos

    (uso de conceitos jurdicos indeterminados)

    254

    3.3.3.1.2.2 O estabelecimento de diretrizes gerais para a anlise dos limites objetivos

    de validade dos negcios processuais

    256

    3.3.3.1.2.3 O posicionamento adotado neste trabalho 260

    3.3.3.1.3 Negcios jurdicos processuais simulados e fraudulentos 264

    3.3.3.2 As possibilidades fsica e jurdica do objeto 266

    3.3.3.3 Previsibilidade do acordo celebrado: a preciso e a determinabilidade do

    objeto

    267

    3.3.4 Forma prescrita ou no defesa em lei 268

    3.4 CONTROLE DE VALIDADE DOS NEGCIOS JURDICOS

    PROCESSUAIS

    270

    3.4.1 Iniciativa para deflagrao do controle de validade 271

    3.4.2 Forma de deflagrao do controle de validade pela parte 272

    3.4.3 Requisitos procedimentais do controle de validade 274

    3.4.4 Regime jurdico do controle de validade pela parte 275

    3.5 EFICCIA JURDICA DOS NEGCIOS JURDICOS PROCESSUAIS

    ATPICOS

    276

    3.5.1 Eficcia jurdica dos negcios antecedentes e dos negcios incidentais 276

    3.5.2 Condies de eficcia do negcio processual atpico 277

    3.5.2.1 Homologao como condio legal de eficcia dos negcios atpicos? 277

    3.5.2.2 Condies e termos convencionados (determinaes inexas) 279

    3.5.3 Esfera subjetiva de eficcia dos negcios processuais 280

    3.5.4 (In)adimplemento dos negcios jurdicos processuais 284

  • 3.6 REVOGAO DAS CONVENES PROCESSUAIS 287

    3.7 INTERPRETAO DOS NEGCIOS PROCESSUAIS 287

    3.8 MBITO DE INCIDNCIA DO ART. 190 DO CPC/2015 290

    3.9 NEGCIOS PROCESSUAIS ATPICOS CELEBRADOS ANTES DA

    VIGNCIA DO CPC/2015: O DIREITO INTERTEMPORAL

    295

    3.10 VANTAGENS E DESVANTAGENS DA ADOO DE UMA

    CLUSULA GERAL DE NEGOCIAO PROCESSUAL

    296

    4 O REGIME JURDICO DE NEGOCIAO PROCESSUAL

    ENVOLVENDO O PODER PBLICO

    302

    4.1 CONSIDERAES INICIAIS 302

    4.2 A (IN)VALIDADE DA DECISO ADMINISTRATIVA DE

    CELEBRAO DE NEGCIO PROCESSUAL E SEUS REFLEXOS

    302

    4.3 O PREENCHIMENTO DO REQUISITO SUBJETIVO DA

    CAPACIDADE PROCESSUAL NEGOCIAL PELO PODER PBLICO

    306

    4.3.1 Competncia 307

    4.3.1.1 Competncia implcita para celebrao de negcios jurdicos processuais 308

    4.3.1.2 A celebrao de negcios jurdicos processuais pela Advocacia Pblica 311

    4.3.2 Exerccio de poder-dever discricionrio 315

    4.3.3 Impessoalidade 317

    4.3.4 Poder Pblico e vulnerabilidade 319

    4.4 RESPEITO ISONOMIA, PRECEDENTE ADMINISTRATIVO E

    AUTOLIMITAO NEGOCIAL DA ADMINISTRAO PBLICA

    321

    4.4.1 O contributo de Humberto vila ao estudo do contedo jurdico da

    igualdade

    321

    4.4.2 A teoria do precedente administrativo e sua adequao ao direito

    brasileiro

    323

    4.4.3 Respeito isonomia: a deciso de celebrar negcio jurdico processual

    como precedente para a Administrao Pblica

    333

    4.4.4 Autolimitao negocial da Administrao, eficcia do precedente

    administrativo e formas de controle de sua aplicao

    335

    4.5 ASPECTOS ESPECFICOS RELACIONADOS AOS REQUISITOS

    OBJETIVOS DE VALIDADE DA CONVENO PROCESSUAL

  • ENVOLVENDO O PODER PBLICO 340

    4.5.1 Licitude do objeto: as prerrogativas processuais da Fazenda Pblica so

    negociveis?

    340

    4.5.1.1 Prerrogativas relacionadas ao regime jurdico de direito material a que se

    sujeitam as pessoas jurdicas de direito pblico ou prpria natureza

    dessas

    343

    4.5.1.2 Prerrogativas relacionadas ao funcionamento da estrutura administrativa 347

    4.5.2 Motivo da deciso administrativa de celebrao de negcio jurdico

    processual

    351

    4.6 A MOTIVAO COMO REQUISITO DE VALIDADE DO ATO

    ADMINISTRATIVO NEGOCIAL

    353

    4.7 REQUISITO FORMAL DE VALIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO

    NEGOCIAL

    359

    4.7.1 Negcios jurdicos comissivos celebrados pelo Poder Pblico 359

    4.7.2 A Fazenda Pblica e as omisses processuais negociais 360

    4.8 REQUISITO FINALSTICO DE VALIDADE DA CONVENO

    PROCESSUAL ENVOLVENDO O PODER PBLICO

    362

    4.9 EFICCIA DOS NEGCIOS PROCESSUAIS ENVOLVENDO O

    PODER PBLICO E PRINCPIO DA PUBLICIDADE

    365

    4.10 NEGCIOS PROCESSUAIS NO PROCESSO ADMINISTRATIVO 368

    4.10.1 A nomenclatura utilizada: processo ou procedimento administrativo? 368

    4.10.2 Os princpios da eficincia e do formalismo moderado como

    fundamentos da atuao processual administrativa negocial

    370

    4.10.3 O art. 15 do CPC/2015 e a sua importncia para a celebrao de

    negcios jurdicos processuais em processos administrativos

    376

    4.10.4 Alguns exemplos de negcios jurdicos processuais passveis de

    celebrao em processos administrativos

    380

    4.11 PROTOCOLOS INSTITUCIONAIS ENVOLVENDO O PODER

    PBLICO: ALGUMAS CONSIDERAES

    384

    CONCLUSO 388

    REFERNCIAS 393

  • 16

    INTRODUO

    Aps cinco anos de tramitao, foi sancionada, em 16 de maro de 2015, a Lei n

    13.105, atual Cdigo de Processo Civil brasileiro. Com vacatio legis de um ano estabelecida

    por seu art. 1.045, o diploma normativo em questo entrou em vigor em 18 de maro de 2016,

    (muito embora poucas no tenham sido as polmicas havidas quanto efetiva data inicial de

    vigncia do referido Cdigo).

    Dentre os pilares nos quais se sustenta o Cdigo de Processo Civil de 2015, esto os de

    estmulo utilizao de mtodos autocompositivos para soluo de conflitos e de valorizao

    da consensualidade. No por outra razo, alis, os 2 e 3 do art. 3 do CPC/2015, ambos

    inseridos no Captulo que trata das normas fundamentais do processo civil, consagram a

    necessidade de efetivo desenvolvimento de polticas pblicas de promoo soluo

    consensual de conflitos e de estmulo adoo de mtodos que objetivem o alcance dessa

    soluo negociada.

    A preocupao do novo diploma legal com a abertura do espao de consensualidade no

    processo no se restringiu, porm, composio do seu objeto litigioso. Reforando o poder

    de autorregramento das partes e ampliando o espectro de abertura e de flexibilidade dos

    procedimentos jurisdicionais, o CPC/2015, por intermdio de seu art. 190, conferiu s partes o

    poder de, democraticamente e valendo-se, inclusive, de negcios atpicos, conformar o

    procedimento, ajustando-o s peculiaridades da causa, e de dispor sobre suas situaes

    jurdicas processuais.

    O art. 190 do CPC/2015 consagra clusula geral de negociao processual, pondo termo

    s divergncias doutrinrias, existentes ao tempo do CPC/1973, quanto possibilidade de

    celebrao de negcios jurdicos processuais atpicos.

    Ao lado de negcios processuais tpicos j existentes na legislao processual revogada

    e que foram reproduzidos no novo diploma processual (a exemplo das convenes de eleio

  • 17

    de foro, de suspenso do processo e de distribuio do nus da prova) e de outros acrescidos

    ao sistema processual ptrio com o advento do CPC/2015 (a exemplo do calendrio

    processual, da organizao consensual do processo e da escolha consensual de perito), o art.

    190 do CPC/2015 parte integrante de um verdadeiro microssistema de negociao

    processual, de cujo ncleo faz parte, ainda, o art. 200 do CPC/2015.

    A previso de uma clusula geral de negociao processual no CPC/2015 reavivou na

    doutrina processual, ainda durante a fase da tramitao do Projeto que deu origem ao Cdigo,

    o interesse pelo estudo da teoria dos fatos jurdicos, com especial enfoque para a figura do

    negcio jurdico e sua adequao ao processo. O ponto primordial de debate e de perquirio

    centra-se na definio dos limites objetivos para o exerccio desse poder de autorregramento

    pelas partes: trata-se, sem dvida, de um dos maiores (se no o maior) desafio imposto pela

    temtica examinada.

    A ideia de consensualidade, que permeia no apenas a clusula geral de negociao

    processual do art. 190 do CPC/2015, mas todo o novo diploma processual, se bem

    contextualizada, insere-se em uma realidade que se espraia, tambm, por toda a atuao

    estatal. Consentnea com a valorizao da participao popular no exerccio de funes

    pblicas e com a democracia, a consensualidade exsurge, nesse cenrio, como forma de

    atuao administrativa, ao lado da tradicional atuao imperativa.

    Nas mais diversas reas do Direito (Penal, Administrativo, Processual), institutos so

    normatizados ou aprimorados com vistas a ampliar o mbito de atuao consensual do Poder

    Pblico. Sob o marco reformista que consagrou como diretriz da Administrao Pblica

    brasileira o princpio da eficincia, paradigmas tradicionais do Direito Administrativo so

    revisitados e reformulados e solues concertadas passam a ser a cada dia mais valorizadas,

    sobretudo porque mais democrticas, eficientes e legitimadas por maior participao cidad.

    Especificamente no mbito processual, o Poder Pblico sofreu, em 2015, o influxo no

    apenas do advento do prprio Cdigo de Processo Civil, como, ainda, de outros textos

    normativos sancionados no mesmo ano, conformando a atuao consensual do Estado.

    Merecem destaque a Lei n 13.129, de 26 de maio de 2015, que ampliou o mbito de

    aplicao da arbitragem, consignando expresso dispositivo que autoriza a Administrao

    Pblica, em carter genrico, a fazer uso desse meio de soluo de conflitos, e a Lei n

    13.140, de 26 de junho de 2015, que regrou a autocomposio de conflitos no mbito da

    Administrao Pblica. De se recordar que, antes mesmo do advento dessas Leis, o prprio

  • 18

    Cdigo de Processo Civil j previu a criao, pelos entes pblicos, de cmaras de mediao e

    conciliao voltadas resoluo de conflitos no mbito administrativo (art. 174 do

    CPC/2015). Nota-se, portanto, que a consensualidade envolvendo o Poder Pblico tambm

    tema dotado de grande atualidade e que tem merecido muita ateno da doutrina ptria.

    Partindo-se da temtica geral da consensualidade, o tema tratado nesta tese situa-se no

    ponto de interseo entre a atuao consensual do Poder Pblico e o instituto dos negcios

    processuais. A pesquisa desenvolvida pauta-se na busca de resposta a uma questo cerne: ao

    atuar consensualmente, celebrando convenes processuais, o Poder Pblico submete-se a

    regime jurdico diferenciado em relao quele a que se sujeitam os particulares no exerccio

    da mesma atividade?

    H de se ressaltar que o foco do trabalho est direcionado a uma determinada espcie de

    negcio jurdico bilateral (ou plurilateral) celebrada pelo Poder Pblico (conveno

    processual), excluindo-se, portanto, os negcios jurdicos processuais unilaterais e os

    contratos processuais, que sero referidos apenas quando se fizer necessrio exposio ou

    para complement-la.

    pergunta formulada associam-se outras que igualmente ho de ser objeto de

    investigao: a celebrao de convenes processuais pelo Poder Pblico pressupe a

    existncia de norma expressa conferindo ao agente essa competncia negocial? A negociao

    processual atribuio que compete, com exclusividade, ao rgo de representao judicial

    da pessoa jurdica de direito pblico? O Poder Pblico pode ser considerado como parte

    vulnervel em uma conveno processual? H limites objetivos especficos impostos

    negociao processual com o Poder Pblico? A fundamentao prvia ou concomitante ao ato

    requisito de validade das convenes processuais celebradas pelo Poder Pblico? Que

    mecanismos se revelam idneos a garantir o respeito isonomia na celebrao de convenes

    processuais com o Poder Pblico? As convenes processuais celebradas pelo Poder Pblico

    submetem-se a alguma condio especfica de eficcia? O art. 190 do CPC/2015 aplica-se aos

    processos administrativos?

    A importncia da temtica debatida tambm pode ser constatada. A flexibilizao

    procedimental levada a efeito pela vontade das partes ferramenta cujo adequado uso poder

    potencializar o alcance da eficincia processual, com reduo de custos e de tempo de

    tramitao do processo, em consonncia com o escopo de concretizao do princpio da

    razovel durao do processo. Quando envolva o Poder Pblico, a negociao processual

  • 19

    apresenta-se, ainda, como fator de legitimao do agir estatal e de democratizao do

    exerccio de funo pblica, ambas resultado da abertura da atuao estatal ao consenso e

    participao popular.

    Para o desenvolvimento deste trabalho, fez-se uso de mtodo exploratrio de pesquisa,

    calcado na anlise crtica dos pensamentos de autores nacionais e estrangeiros que guardem

    pertinncia temtica com o problema proposto e com os objetivos a serem alcanados. A

    investigao abrange, ainda, o exame de textos legislativos relacionados ao tema. A meno a

    decises judiciais feita esporadicamente, no tendo sido realizado exame minucioso da

    jurisprudncia ptria, ante o reduzido lapso temporal de vigncia do Cdigo de Processo

    Civil/2015. Outras fontes de pesquisa utilizadas foram os Enunciados aprovados pelo Frum

    Permanente de Processualistas Civis (FPPC) e pela Escola Nacional de Formao e

    Aperfeioamento de Magistrados (ENFAM).

    Objetiva-se, em suma, examinar sob que perspectiva o influxo da consensualidade na

    atuao pblica legitima a celebrao de convenes processuais pelos entes pblicos e quais

    os limites que lhe so impostos nessa seara.

    Para o atingimento do escopo propugnado e com vistas a tentar comprovar a hiptese

    que lastreia a tese (no sentido de que o Poder Pblico, ao celebrar convenes processuais,

    submete-se a regime jurdico diferenciado em relao quele a que esto sujeitos os

    particulares no exerccio da mesma atividade), o trabalho foi dividido em quatro Captulos.

    No primeiro Captulo, o enfoque volve-se ao exame do fenmeno da consensualidade

    administrativa no direito positivo brasileiro. Partindo-se da perspectiva da atuao

    administrativa fundada na prerrogativa imperativa, que constitui a viso tradicional haurida do

    Direito Administrativo ptrio, examina-se a mudana paradigmtica impingida ao exerccio

    da funo administrativa com o advento da Constituio Federal de 1988 e com a reforma

    gerencial havida em 1995, inclusive com as repercusses que tais alteraes ocasionaram na

    compreenso de algumas ideias estruturantes do Direito Administrativo.

    Em seguida, analisada a atuao administrativa consensual, enquadrando-a como

    categoria jurdica genrica. Apresentados a sua conceituao e os critrios de classificao das

    espcies de atuao consensual e delineados os pressupostos imprescindveis sua

    configurao, o Captulo I dedica-se, ento, identificao de algumas das principais

    manifestaes da consensualidade administrativa no direito brasileiro, englobando exemplos

  • 20

    extrados dos Direitos Penal e Processual Penal, de diversos mbitos do Direito

    Administrativo e do Processo Civil.

    Ao cabo da exposio, as questes enfrentadas no Captulo I servem de base ao

    estabelecimento da premissa que nortear todo o desenvolvimento do trabalho: o

    enquadramento da Administrao Pblica como destinatria da regra estabelecida pelo art.

    190 do CPC/2015.

    O segundo Captulo dedicado ao estabelecimento das premissas necessrias

    compreenso da clusula geral de negociao processual encartada no art. 190 do CPC/2015.

    Inicialmente, so apresentadas as premissas ideolgicas e histricas que lastrearam a insero

    dessa clusula no ordenamento jurdico brasileiro, com destaque para o enfrentamento da

    temtica concernente ao privatismo e ao publicismo processuais. O respectivo histrico

    legislativo tambm abordado. Em seguida, examinam-se as premissas lgico-conceituais

    necessrias ao desenvolvimento do tema, analisando-se a teoria dos fatos jurdicos em seus

    trs planos (existncia, validade e eficcia), com seus devidos ajustes ao campo processual.

    Os conceitos de clusula geral e de procedimento tambm so firmados.

    O Captulo II encerra-se com o delineamento das premissas normativas que do lastro

    ao art. 190 do CPC/2016, demonstrando-se a sua compatibilidade vertical com a Constituio

    Federal de 1988 e explicitando-se os fundamentos que lhe do arrimo no ordenamento

    jurdico ptrio.

    A construo dos sentido e alcance da clusula geral de negociao processual tarefa

    empreendida no Captulo III. Tomando-se por base a insero do art. 190 do CPC/2015 no

    contexto de um microssistema de negociao processual estruturado no direito brasileiro,

    busca-se conferir-lhe maior grau de concretude, explicitando-se os pressupostos de existncia,

    os requisitos de validade e as condies de eficcia dos negcios processais atpicos. Alm

    disso, so tecidas consideraes variadas sobre os negcios processuais bilaterais e

    plurilaterais, abordando-se temas referentes sua revogabilidade, sua interpretao e ao

    mbito de incidncia da clusula geral de negociao processual. Examinam-se, ainda, nesse

    Captulo, questes atinentes ao direito intertemporal, lanando-se ponderaes, ao final, sobre

    as vantagens e desvantagens da adoo dessa clusula no Direito Processual ptrio.

    Realizada a construo dogmtica dos sentido e alcance da clusula geral de negociao

    processual, os parmetros lanados no Captulo III serviro como base para o

    desenvolvimento do Captulo IV, que se prope a apresentar os contornos especficos do

  • 21

    regime jurdico de negociao processual envolvendo o Poder Pblico. Trata-se do ncleo da

    tese apresentada.

    Nele, a preocupao primordial residir no mais no estabelecimento dos parmetros

    gerais de aplicao do art. 190 do CPC/2015, tarefa j desenvolvida no Captulo precedente (e

    cujas concluses, como regra, so aplicveis ao Poder Pblico, quando no conflitantes com

    as especificidades de seu regime jurdico de negociao processual). Cuidar-se- de delimitar

    as peculiaridades da negociao processual envolvendo o Poder Pblico, tendo como foco as

    convenes processuais. O Captulo IV buscar comprovar a hiptese lanada nesta

    introduo, ao mesmo tempo em que procurar apresentar respostas s perguntas a ela

    atreladas. Com esse intuito, sero desenvolvidos temas como a competncia para celebrao

    do negcio processual, os limites subjetivos, objetivos, formais e finalsticos a que se sujeita o

    Poder Pblico na negociao processual, a publicidade como condio de eficcia das

    convenes processuais celebradas pela Administrao Pblica, os mtodos idneos a garantir

    o respeito ao princpio da igualdade dentro dessa atuao consensual dos entes pblicos e a

    conformao do tema aos processos administrativos. Ao final do Captulo IV, sero feitas

    algumas consideraes acerca da celebrao de protocolos institucionais pelo Poder Pblico.

    Prope-se o presente trabalho a buscar apresentar uma estruturao mnima do regime

    jurdico especfico de negociao processual envolvendo o Poder Pblico. As consideraes

    lanadas no Captulo IV aproveitam, em grande medida, aos negcios jurdicos unilaterais

    praticados pelo Poder Pblico e aos contratos processuais por ele celebrados. Por essa razo,

    tratou-se, no Captulo IV, do regime de negociao processual envolvendo o Poder Pblico,

    fazendo-se uso da expresso genrica negcio jurdico processual em muitas passagens

    daquele Captulo.

    No entanto, deve-se advertir que, estando o foco da pesquisa direcionado s convenes

    processuais, o captulo IV no contemplar, seno excepcionalmente, as especificidades que,

    dentro desse regime de negociao processual envolvendo o Poder Pblico, compitam aos

    negcios unilaterais ou aos contratos processuais.

    Logicamente, tratando-se a clusula geral de negociao processual de um instituto

    recm-ingresso no ordenamento jurdico-processual ptrio (ao menos efetivamente,

    abstraindo-se, nesse momento, as discusses quanto possibilidade de se atribuir, no plano

    terico, esse papel ao art. 158 do CPC/1973), muitas questes decorrentes de sua aplicao

    prtica podero, futuramente, forjar novos contornos matria.

  • 22

    Pretende-se apresentar uma contribuio ao estudo do tema, que se constri luz de

    uma indissocivel e ntima relao entre as reas do Direito Administrativo e do Direito

    Processual Civil. O aprofundamento dessa abordagem relacional consiste, possivelmente, no

    enfoque inovador exigido para a elaborao da tese ora apresentada.

    Por fim, h de se deixar assente que o trabalho pauta-se em constante preocupao com

    sua utilidade prtica. Busca-se, tanto quanto possvel (inclusive com a apresentao de

    exemplos diversos), fornecer no apenas concluses terico-dogmticas, mas, tambm,

    reflexes de carter marcadamente prtico, capazes de contribuir para a efetiva aplicao do

    instituto pelo Poder Pblico. Se, em alguma medida, esse desejo converter-se em realidade,

    todo o esforo ter valido a pena.

  • 23

    1 A CONSENSUALIDADE ADMINISTRATIVA NO DIREITO BRASILEIRO

    1.1 CONSIDERAES INICIAIS

    O tema abordado no presente trabalho a negociao processual envolvendo entes

    pblicos pressupe, para uma melhor percepo, o seu enquadramento em uma esfera mais

    ampla, concernente atuao consensual do Estado.

    A compreenso acerca dos contornos da consensualidade administrativa no Direito

    brasileiro impe-se como raciocnio antecedente quele que perquira acerca do

    reconhecimento dos entes pblicos como destinatrios do regramento geral estabelecido pelo

    art. 190 do CPC/2015. Esse reconhecimento, por sua vez, conduzir descoberta dos

    requisitos subjetivos, objetivos formais e finalsticos a que se submete essa negociao

    processual.

    Buscar-se- demonstrar, neste captulo, que, ao lado da atuao administrativa

    tradicional, de cunho imperativo, a Administrao Pblica1 tambm se utiliza do instrumental

    consensual em suas relaes com outros entes pblicos e com o particular. Destacar-se- o

    crescimento do mbito de atuao da consensualidade administrativa nas mais distintas

    1 A expresso Administrao Pblica, por sua equivocidade, demanda um esclarecimento quanto aos sentido e

    alcance em que empregada neste trabalho. Sob o aspecto objetivo, a expresso refere-se funo administrativa

    exercida por rgos e agentes do Estado (em contraposio s funes legislativa e jurisdicional). Sob o aspecto

    subjetivo, compreende os sujeitos da funo administrativa, ou seja, agentes, rgos e entidades (entes

    federativos Unio, Estados, Distrito Federal e Municpios , autarquias, sociedades de economia mista,

    fundaes pblicas e empresas pblicas) a quem esteja incumbida a execuo de atividades administrativas. Na

    primeira perspectiva (objetiva), a expresso administrao pblica normalmente utilizada com iniciais

    grafadas em letras minsculas. Ao se fazer aluso ao segundo sentido (subjetivo), grafa-se Administrao

    Pblica com uso de iniciais maisculas. Importante destacar, ainda, que o exerccio de funo administrativa

    no se limita ao Poder Executivo, tambm havendo atividade administrativa no mbito dos Poderes Legislativo e

    Judicirio (CARVALHO FILHO, Jos dos Santos. Manual de direito administrativo. 11. ed. Rio de Janeiro:

    Lumen Juris, 2004, p. 06-08). A expresso Administrao Pblica (ou, simplesmente, o termo

    Administrao), desse modo, ser utilizada neste trabalho sob a perspectiva subjetiva. Tratando o objeto deste

    trabalho do regime jurdico a que se submete o Poder Pblico na celebrao de negcios jurdicos processuais, as

    referncias feitas expresso Administrao Pblica constantes do texto estaro relacionadas s pessoas

    jurdicas de direito pblico.

  • 24

    esferas normativas (inclusive no processo penal), ao tempo em que ser demonstrada a

    abertura do ordenamento jurdico brasileiro a essa tendncia.

    A importncia progressiva que se atribui consensualidade administrativa no Direito

    brasileiro, ao lado da reformulao do sentido de alguns conceitos centrais no Direito

    Administrativo (como o da legalidade administrativa), confere legitimidade concluso no

    sentido de que o art. 190 do CPC/2015 tambm se destina a regular a negociao processual

    envolvendo o Poder Pblico2. Essa negociao pode ocorrer tanto no mbito do processo

    judicial quanto no do processo administrativo; neste ltimo caso, tambm (mas no

    exclusivamente) por fora do regramento estabelecido pelo art. 15 do CPC/2015.

    Neste captulo, o enfoque estar deliberadamente voltado, com primazia, ao exame da

    doutrina nacional, tendo em vista que o escopo primordial da anlise a ser empreendida reside

    na identificao do espao ocupado pela consensualidade administrativa na estrutura jurdico-

    positiva brasileira.

    Sem desconhecer que a consensualizao no Direito Administrativo reflete tendncia

    verificada em outros pases do mundo (algumas referncias sero feitas a fenmenos

    estrangeiros que influenciaram o Direito ptrio, sem pretenso de aprofundamento ou de

    exaustividade), o corte realizado objetiva, em ltima anlise, demonstrar que o contexto

    jurdico brasileiro atual se coaduna com a ideia de utilizao de negcios jurdicos processuais

    atpicos pela Administrao Pblica.

    Alm disso, os institutos que denotam a expanso da consensualidade no Direito ptrio

    sero apresentados panoramicamente, como fundamento para a demonstrao desse

    movimento de ampliao do espectro de atuao estatal consensual. No h pretenso de

    aprofundamento da anlise dos mesmos, o que extrapolaria os limites objetivos deste trabalho.

    2 A expresso Poder Pblico utilizada como significativa de rgo ou entidade administrativa regido(a),

    preponderantemente, por normas de Direito Pblico, em linha semelhante quela traada por BUENO, Cssio

    Scarpinella. O Poder Pblico em juzo. 4. ed. So Paulo: Saraiva, 2008, p. 01. O autor apenas no faz meno

    expressa aos rgos administrativos em seu conceito (embora estejam eles, logicamente, enquadrados, como

    parte de um todo, na noo de pessoa administrativa, pelo autor referida). A opo metodolgica por incluir os

    rgos administrativos expressamente na conceituao de Poder Pblico decorre do fato de que, em

    determinadas circunstncias, os rgos pblicos detm capacidade de estar em juzo, sobretudo para defesa de

    suas prerrogativas institucionais. Tratando-se de trabalho que objetiva estudar instituto diretamente relacionado

    ao processo (negcios processuais), esse ajuste conceitual se faz necessrio, sem desvirtuar a ideia subjacente

    expresso utilizada.

  • 25

    1.2 DA ATUAO ADMINISTRATIVA IMPERATIVA ATUAO

    CONSENSUAL: A CONSTITUIO FEDERAL DE 1988 COMO MARCO DE

    ABERTURA DO DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO CONSENSUALIDADE

    1.2.1 A viso tradicional do Direito Administrativo brasileiro: a atuao

    administrativa pautada na prerrogativa imperativa

    O Direito Administrativo (visto sob a perspectiva de ramo autnomo do Direito

    Pblico) tem suas origens no direito francs ps-revolucionrio, sendo apontada a Lei de 28

    de pluvioso do Ano VIII (1800) como o seu marco de nascimento. Sob a conduo mxima

    do Conselho de Estado francs, os tribunais administrativos firmaram, jurisprudencialmente,

    as diretrizes basilares dessa disciplina3.

    Fruto dessa produo jurisprudencial e da dissociao feita entre a justia comum e a

    justia administrativa na Frana, as normas administrativas foram construdas sob a premissa

    de que se tratava de um direito exorbitante ao direito comum e com carter derrogatrio deste,

    calcado nos princpios da supremacia do interesse pblico sobre o particular e da

    indisponibilidade do interesse pblico4.

    No Brasil, essa influncia se fez sentir j no perodo do Imprio, com a criao de um

    Conselho de Estado, dotado de atribuies consultivas5, e com a incluso da disciplina de

    Direito Administrativo nos programas das faculdades6.

    Com o advento da Repblica, o Direito Administrativo brasileiro sofre influncia do

    Direito estadunidense, passando a adotar a unidade de jurisdio, com a extino do Poder

    Moderador e do Conselho de Estado. Alm disso, a jurisprudncia ganha importante papel

    como fonte do Direito e se reconhece a submisso da Administrao Pblica ao controle

    3 ARAJO, Edmir Netto de. O direito administrativo e sua histria. Revista da Faculdade de Direito da

    Universidade de So Paulo, v. 95, 2000, p. 152. Disponvel em:

    . Acesso em: 20/03/2016; DI PIETRO, Maria Sylvia

    Zanella. Direito administrativo. 28. ed. So Paulo: Atlas, 2015, p. 10. 4 ARAJO, Edmir Netto de. O direito administrativo e sua histria. Revista da Faculdade de Direito da

    Universidade de So Paulo, v. 95, 2000, p. 153. Disponvel em:

    . Acesso em: 20/03/2016. 5 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 28. ed. So Paulo: Atlas, 2015, p. 29.

    6 ARAJO, Edmir Netto de. O direito administrativo e sua histria. Revista da Faculdade de Direito da

    Universidade de So Paulo, v. 95, 2000, p. 164. Disponvel em:

    . Acesso em: 20/03/2016.

  • 26

    jurisdicional7.

    Tais circunstncias mitigaram, em parte, a influncia do direito francs no ordenamento

    jurdico-administrativo ptrio, mas no a expurgaram por completo. Ao revs, a posio de

    verticalidade ocupada pela Administrao no regime jurdico-administrativo manteve-se,

    estando presentes as ideias de autoexecutoriedade dos atos administrativos, de prerrogativas

    pblicas, de contratos administrativos com caractersticas distintas dos contratos privados,

    dentre outras8.

    Seguindo essa tendncia histrica, Celso Antonio Bandeira de Mello apresenta o regime

    jurdico-administrativo brasileiro lastreado em dois pilares: a supremacia do interesse pblico

    sobre o privado e a indisponibilidade do interesse pblico pela Administrao. Referidos

    pontos fundamentais, qualificados de princpios pelo autor, extrairiam sua importncia do

    prprio ordenamento jurdico9.

    Esse modo de estruturar o Direito Administrativo pe em evidncia o elemento

    7 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 28. ed. So Paulo: Atlas, 2015, p. 30.

    8DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 28. ed. So Paulo: Atlas, 2015, p. 31. Em verdade, o

    Direito Administrativo brasileiro sofre, em seu desenvolvimento, uma pliade de influncias. A autora em

    referncia, alm dos direitos francs e norte-americano, cita a adoo, pelo Brasil, de contribuies extradas do

    direito italiano (conceitos de mrito, de autarquia e de entidade paraestatal, noo de interesse pblico e mtodo

    tcnico-cientfico de elaborao e estudo do Direito Administrativo), dos direitos alemo, espanhol e portugus

    (princpio da razoabilidade, uso de conceitos jurdicos indeterminados. Do direito alemo, especificamente,

    ainda podem ser citadas a proteo confiana como corolrio do princpio da segurana jurdica, a

    constitucionalizao dos princpios e a questo atinente centralidade da pessoa humana), dos sistemas de

    common law (devido processo legal, mandados de segurana e de injuno, unidade da jurisdio, ideia de

    regulao e de criao de agncias reguladoras, parcerias pblico-privadas), dentre outros sistemas (idem, p. 32-

    34). 9 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 14. ed. So Paulo: Malheiros, 2002, p.

    38-39. Da supremacia do interesse pblico sobre o privado, tida por Celso Antonio Bandeira de Mello como

    verdadeiro axioma do Direito Pblico moderno, decorrem as posies privilegiada e de supremacia do rgo

    responsvel por zelar pelo interesse pblico, nas relaes com os particulares. Em razo da primeira, o

    ordenamento jurdico prev privilgios materiais e processuais a tais rgos, a exemplo da presuno de

    veracidade dos atos administrativos e dos prazos processuais diferenciados. A posio de supremacia, por sua

    vez, representa a possibilidade de a Administrao, em razo de sua posio de autoridade na relao com o

    particular, constitu-lo unilateralmente em obrigaes ou alterar unilateralmente obrigaes j estabelecidas.

    Essas duas posies conjugadas do lastro autotutela, exigibilidade dos atos administrativos e

    executoriedade destes, em determinadas situaes, sendo contidas pela ideia de que a Administrao exerce

    funo (dever de alcance de finalidades tendentes satisfao de interesse de outrem), estando investida,

    portanto, de poderes-deveres. J o princpio da indisponibilidade, pela Administrao, dos interesses pblicos

    impede a livre disposio dos interesses da coletividade pela Administrao, estando a atividade administrativa

    regida por lei. Em razo dele, conclui-se que a Administrao se subordina a diversos princpios, dentre os quais

    os da legalidade, continuidade do servio pblico, tutela ou controle administrativo, isonomia, publicidade,

    inalienabilidade dos direitos concernentes a interesses pblicos e do controle jurisdicional dos atos

    administrativos (idem, p. 41-47). Mais recentemente, o autor explicitou outra decorrncia da supremacia do

    interesse pblico sobre o privado: as restries ou sujeies especiais havidas no exerccio da atividade pblica.

    Ressaltou que essa caracterstica exterioriza o aspecto mais relevante do Direito Administrativo e do princpio da

    supremacia do interesse pblico sobre o privado: sua vinculao aos interesses da sociedade. Dentre as sujeies

    impostas ao administrador esto a impossibilidade de livre escolha de seus contratantes e a necessidade de

    motivao e de publicidade dos atos administrativos (MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito

    administrativo. 32. ed. So Paulo: Malheiros, 2015, p. 70-75).

  • 27

    autoridade em detrimento de seu contraponto, a liberdade. A atuao administrativa brasileira

    tradicional reveste-se de cunho marcadamente autoritrio, sustentando-se sobre trs bases: a

    imperatividade, a unilateralidade e o ato administrativo. A denominada prerrogativa

    imperativa consiste na possibilidade de a Administrao impor ao administrado10

    o contedo

    de deciso por ela definido. Dessa prerrogativa advm a unilateralidade dos provimentos

    administrativos, resultados que so do exerccio do poder estatal, no derivando eles de

    acordo entre Administrao e administrado, ainda que o ato praticado pela Administrao se

    coadune com a vontade do administrado11

    .

    Ambas as caractersticas (imperatividade e unilateralidade) esto presentes como

    atributos do ato administrativo, afastveis, apenas, excepcionalmente. A ateno dispensada

    ao ato administrativo em detrimento do processo administrativo privilegiou uma anlise

    esttica da relao havida entre Administrao e administrado, desconsiderando o processo de

    formao da deciso administrativa. Por consequncia, excluiu-se do mbito de considerao

    do Direito Administrativo a participao do administrado na construo dessa deciso12

    .

    As premissas sobre as quais se embasa a atuao administrativa imperativa (posio

    verticalizada da Administrao na relao com o particular; prerrogativas fixadas em prol da

    Administrao nessa relao; imposio unilateral de suas decises administrativas) parecem

    no se harmonizar, a priori, com a ideia de celebrao de acordos pela Administrao.

    mesma concluso se pode chegar em relao aos princpios sobre os quais se estrutura o

    10

    Egon Bockman Moreira critica a utilizao do termo administrado, tendo em vista que a sua origem atrela-

    se a um perodo o do surgimento do Direito Administrativo - em que o sujeito que se relacionava com a

    Administrao no era visto como um titular de direitos subjetivos a serem exercidos em face do Poder Pblico,

    mas, apenas, como um mero interessado/colaborador da atividade administrativa ou, ainda, como objeto do

    Direito Administrativo (MOREIRA, Egon Bockman. As vrias dimenses do processo administrativo brasileiro

    (um direito-garantia fundamental do cidado). Revista de Processo, So Paulo, ano 39, n. 228, fev./2014, p. 41).

    No mesmo sentido, afirmando a mudana paradigmtica da viso que o Direito Administrativo confere ao

    particular, no mais visto como objeto (administrado), mas, sim, como cidado, titular de direitos exercitveis

    inclusive em face da Administrao: OMMATI, Jos Emlio Medauar. Do ato ao processo administrativo: a crise

    da ideia de discricionariedade no direito administrativo brasileiro. Revista dos Tribunais, So Paulo, ano 102, v.

    930, abr./2013, p. 24. Tendo em vista tratar-se o termo administrado de vocbulo de uso consagrado no mbito

    do Direito Administrativo, este trabalho dele se valer. Deixa-se de logo assente, porm, que a referncia ao

    termo em comento no se faz (salvo quando tomado em um contexto histrico) com a carga ideolgica apontada

    pelos autores acima mencionados. Reconhece-se ao administrado/particular a condio de consumidor do servio

    estatal, de participante ativo na construo da deciso administrativa e de titular de direitos exercitveis em face

    da Administrao, como poder ser inferido da leitura deste trabalho. 11

    PALMA, Juliana Bonacorsi de. Sano e acordo na administrao pblica. So Paulo: Malheiros, 2015, p.

    71-73. 12

    PALMA, Juliana Bonacorsi de. Sano e acordo na administrao pblica. So Paulo: Malheiros, 2015, p. 84

    -86. Apontando o carter processual de formao do ato administrativo, a perspectiva do processo administrativo

    como local de confronto e coexistncia de uma multiplicidade de interesses e como instrumento de controle do

    particular sobre a atividade administrativa e a prevalncia, no Direito Administrativo contemporneo, da ideia de

    democracia procedimental: MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evoluo. So Paulo: RT, 1992, p.

    210-211.

  • 28

    Direito Administrativo brasileiro (supremacia do interesse pblico sobre o Direito Privado e

    indisponibilidade do interesse pblico pela Administrao).

    1.2.2 A Constituio Federal de 1988, a reforma da gesto pblica de 1995 e a

    reformulao de paradigmas do Direito Administrativo brasileiro

    A Constituio Federal de 1988 constitui-se em marco fundamental compreenso da

    abertura do Direito Administrativo brasileiro consensualidade. Se tal diploma normativo no

    inaugurou o caminho para a adoo de solues consensuais no mbito da Administrao

    Pblica ptria, conferiu-lhe inegvel incremento, tendo em vista as transformaes impingidas

    ao Direito Administrativo.

    O Estado Democrtico de Direito, consagrado pela Constituio Federal de 1988,

    coloca em evidncia a valorizao da participao cidad no exerccio das funes pblicas,

    como forma de legitim-las13

    . Objetiva-se democratizar a democracia atravs da

    participao14

    . Alm disso, a CF/1988 explicita o compromisso social de busca da soluo

    pacfica de controvrsias, conclamando-o j no seu Prembulo15

    .

    13

    Afasta-se da ideia de presuno de legitimidade, prpria da democracia indireta, para assumir-se a concepo

    de participao cidad legitimadora da atuao estatal, por meio do procedimento administrativo (MOREIRA

    NETO, Diogo de Figueiredo. Novos institutos consensuais da ao administrativa. Revista de direito

    administrativo, Rio de Janeiro, v. 231, jan.-mar./2003, p. 136). 14

    CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 301. A anlise do texto

    constitucional brasileiro evidencia, em diversas passagens, o estmulo participao popular no exerccio de

    funes estatais: o art. 1, II, da CF/1988 elenca a cidadania como fundamento do Estado Democrtico de Direito

    e o mesmo artigo, em seu pargrafo nico, explicita que o poder emana do povo e por ele ser exercido,

    inclusive diretamente. No mbito legislativo, h a previso de institutos como plebiscito, referendo e iniciativa

    popular (art. 14 da CF/1988), formas de exerccio direto da soberania popular. Na esfera jurisdicional, essa

    participao concretizada, no processo criminal, pela instituio do jri (mencionada, embora no disciplinada,

    no art. 125, 4, da CF/1988) e, em todos os processos jurisdicionais, pelo resguardo ao contraditrio, clusula

    geral estatuda no art. 5, LV, da CF/1988 e qual esto atreladas as ideias de participao e de poder de

    influncia. Por fim, de relao ao exerccio da funo executiva, alm do reconhecimento de aplicao dos

    princpios do contraditrio aos processos administrativos, com toda a extenso que a clusula geral alcana na

    seara jurisdicional, podem ser citados como hipteses de participao popular na gesto pblica os arts. 10, 29,

    XII, 37, 3, 187, 194, pargrafo nico, VII, 198, III, 204, II, 205, 206, VI, 216, 1, 216-A, 1, X, 225, 227, 1

    e 231, 3. Alm disso, h a ao popular, instrumento jurisdicional de controle social da atividade executiva

    (art. 5, LXXIII, da CF/1988). Apresentando diversos instrumentos de participao popular na Administrao

    Pblica, inclusive previstos na legislao infraconstitucional federal e em legislaes estaduais, ver: GROTTI,

    Dinor Adelaide Musetti. A participao popular e a consensualidade na administrao pblica. Revista de

    direito constitucional e internacional, So Paulo, RT, ano 10, v. 39, abr.-jun./2002, p.133-140. 15

    O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Ao Direta de Inconstitucionalidade n 2076-5/AC, sob a relatoria

    do Ministro Carlos Velloso, explicitou que o Prembulo da Constituio no dotado de fora normativa. No

    entanto, cabe-lhe, como regra e ainda segundo o entendimento adotado pelo STF, apresentar texto poltico

    exortador dos princpios e valores contidos na Constituio.

  • 29

    A Constituio Federal de 1988 surge, porm, ainda sob o influxo do chamado Estado

    Burocrtico, iniciado sob a Era Vargas em 1937 e cujo enfoque era o de conferir efetividade

    ao aparelho estatal, a quem competiria assumir novas responsabilidades de ordens econmica

    e social. O descompasso entre essa forma administrativa de Estado e o modelo poltico de

    Estado adotado pelo Brasil a partir de 1984, com a transio democrtica (Estado

    Democrtico Social), no tardou a ser percebido e evidenciou-se com a promulgao da

    Constituio de 198816

    .

    A ausncia de sintonia entre os modelos poltico e administrativo do Estado

    impulsionou a realizao, em 1995, de reforma administrativa (reforma gerencial ou de gesto

    pblica)17

    . O acmulo de responsabilidades prestacionais assumidas pelo Estado Social

    ensejou a ineficincia e a insuficincia dos servios pblicos prestados populao, ao

    mesmo tempo em que promoveu um aumento dos gastos pblicos. A reduo da mquina

    estatal tornou-se medida imperiosa para conter o crescente endividamento pblico; o

    redimensionamento da atuao estatal frente aos servios pblicos a serem prestados

    populao revelou-se como providncia necessria busca da eficincia administrativa e

    continuidade do desenvolvimento estrutural do pas18

    .

    Tal como explicitado no Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (documento

    que apresentou as bases da reforma administrativa realizada no Brasil a partir de 1995), um

    dos objetivos da reforma operada consistiu na busca do aumento da governana estatal, ou

    seja, da capacidade de implantao eficiente de polticas pblicas, tendo como foco o

    atendimento dos cidados19

    .

    O princpio da eficincia passou a exercer papel central no contexto da reforma

    administrativa de gesto do Estado, sobretudo aps a promulgao da Emenda Constitucional

    16

    PEREIRA, Lus Carlos Bresser. Os primeiros passos da reforma gerencial do estado de 1995. Revista

    eletrnica sobre a reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Pblico, n. 16,

    dez./2008-fev./2009, p. 02-03. Disponvel em: . Acesso em 08/04/2016. 17

    PEREIRA, Lus Carlos Bresser. Os primeiros passos da reforma gerencial do estado de 1995. Revista

    eletrnica sobre a reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Pblico, n. 16,

    dez./2008-fev./2009, p. 02-03. Disponvel em: . Acesso em 08/04/2016. 18

    DUARTE, Luciana Gaspar Melquades; SILVA, Raquel Lemos Alves. As parcerias pblico-privadas na

    administrao pblica moderna. Revista de direito administrativo, v. 265, jan.-abr./2014, p. 71-73. 19

    MARE (Ministrio da Administrao Federal e Reforma do Estado). Plano diretor da reforma do aparelho do

    Estado. Braslia: Imprensa Oficial, set./1995. Disponvel em:

    . Acesso em: 08/04/2016.

  • 30

    n 19/1998, cujo art. 3 alterou o caput do art. 37 da CF/1988, vinculando expressamente a

    Administrao Pblica quele princpio20

    .

    Para a concretizao do princpio da eficincia, tornava-se imperiosa a adoo, pela

    Administrao Pblica, de uma postura mais flexvel e paritria no seu relacionamento com o

    administrado. Por um lado, necessrio seria o redimensionamento das prerrogativas

    administrativas em busca de uma horizontalizao (no absoluta, obviamente) das relaes

    entre Administrao e administrado; por outro, haver-se-ia de incrementar o uso de

    mecanismos de atuao consensual nessas relaes, ampliando-se o espectro de negociaes

    nelas envolvidas21

    .

    Tais medidas refletem o resultado da associao do modelo poltico de Estado

    Democrtico Social ao modelo administrativo de um Estado de gesto pblica. Em

    decorrncia dela, uma nova ordem de ideias ganharia espao no contexto do Direito

    Administrativo brasileiro, pari passu com a mudana paradigmtica que se operava na relao

    entre Administrao Pblica e administrado.

    As categorias bsicas do Direito Administrativo, forjadas no sculo XIX, revelaram um

    descompasso com a conformao social e seus anseios perante a Administrao Pblica,

    sobretudo a partir da promulgao da Constituio Federal de 1988. Ao menos quatro

    paradigmas do Direito Administrativo brasileiro passaram a ser alvo de questionamentos: o

    princpio da supremacia do interesse pblico sobre o privado, a legalidade administrativa vista

    como vinculao positiva lei, a intangibilidade do mrito administrativo e a unitariedade do

    Poder Executivo (estrutura piramidal).

    base das transformaes pelas quais vem passando o Direito Administrativo est a

    sua constitucionalizao, tomando-se a democracia e os direitos fundamentais como valores

    que estruturaro a atuao administrativa, a partir de princpios e regras que os veiculem22

    .

    Examinando a denominada supremacia do interesse pblico sobre o privado, Humberto

    vila esclarece que ela tratada como norma-princpio voltada a regular as relaes entre o

    20

    No se deve perder de vista que o princpio setorial da eficincia administrativa, dirigido Administrao

    Pblica e encartado no art. 37 da CF/1988 pela EC 19/1998, insere-se em um contexto mais amplo de princpio

    da eficincia estatal, tido como vetor tico-jurdico do ordenamento constitucional brasileiro e princpio

    implcito, extravel do regime republicano e do Estado Social e Democrtico de Direito (GABARDO, Emerson.

    Princpio constitucional da eficincia administrativa. So Paulo: Dialtica, 2002, p. 88-90). 21

    DUARTE, Luciana Gaspar Melquades; SILVA, Raquel Lemos Alves. As parcerias pblico-privadas na

    administrao pblica moderna. Revista de direito administrativo, v. 265, jan.-abr./2014, p. 75-76. 22

    BINENBOJM, Gustavo. A constitucionalizao do direito administrativo no Brasil: um inventrio de avanos

    e retrocessos. In: SOUZA NETO, Cludio Pereira de; SARMENTO, Daniel (coord.). A constitucionalizao do

    direito: fundamentos tericos e aplicaes especficas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 747-749.

  • 31

    particular e o Estado. Cuidando-se de princpio relacional, a supremacia do interesse pblico

    resulta de uma ponderao em abstrato de interesses supostamente conflitantes, que se define,

    tambm abstratamente, em prol do interesse pblico23

    .

    Humberto vila nega ao princpio da supremacia do interesse pblico sobre o interesse

    privado a qualidade de norma-princpio, tanto conceitualmente (a norma-princpio deve

    permitir uma concretizao gradual e sua ponderao com outras normas-princpio deve se

    dar no plano concreto e no no plano abstrato), quanto normativamente. Sob esse segundo

    vis, o autor esclarece que o denominado princpio da supremacia carece de fundamento

    jurdico-positivo de validade, padece de indeterminabilidade abstrata, dissocia interesses

    indissociveis (pblicos e privados) e se contrape a postulados normativos como os da

    proporcionalidade e da concordncia prtica24

    .

    Tambm nega vila ao princpio da supremacia do interesse pblico sobre o interesse

    privado a natureza jurdica de postulado normativo, seja em razo da dificuldade de se

    delimitar o que se deva entender por interesse pblico, seja em razo da importncia do

    interesse privado. Quanto ao primeiro ponto, pondera o autor que a impossibilidade de

    dissociao entre interesses pblicos e privados, a pluralidade significativa e a indeterminao

    23

    VILA, Humberto. Repensando o princpio da supremacia do interesse pblico sobre o particular. In:

    SARMENTO, Daniel (org.). Interesses pblicos versus interesses privados: desconstruindo o princpio da

    supremacia do interesse pblico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 173-174. O artigo em questo foi

    publicado pela primeira vez em 1998. 24

    VILA, Humberto. Repensando o princpio da supremacia do interesse pblico sobre o particular. In:

    SARMENTO, Daniel (org.). Interesses pblicos versus interesses privados: desconstruindo o princpio da

    supremacia do interesse pblico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 183-204. O autor embasa a ausncia de

    fundamento jurdico-positivo de validade do princpio da supremacia do interesse pblico sobre o particular a

    partir do exame da Constituio Federal de 1988. Do texto constitucional, extrai-se uma profunda preocupao

    de proteo aos direitos privados (liberdade, igualdade, cidadania, propriedade privada, dentre outros), alguns

    enquadrados como direitos fundamentais, bem assim dignidade da pessoa humana, de modo que o afastamento

    de tais direitos pressupe um nus argumentativo Administrao. Com base em tal premissa, o autor conclui

    que, a ser possvel extrair o princpio de supremacia do ordenamento por intermdio de tcnica de deduo, seu

    contedo no seria o de supremacia do interesse pblico sobre o particular. Alm disso, referido princpio revela-

    se abstratamente indeterminvel, a comear pela impossibilidade de se descrever objetivamente o que seria

    interesse pblico, uma vez que se trata de conceito jurdico indeterminado que se refere a variadas normas e

    contedos, concretiza-se por procedimentos tanto administrativos quanto judiciais e se preenche a partir da

    compreenso do que se entenda em cada lugar por Estado (ideia que tambm varia ao longo do tempo em uma

    mesma comunidade). Essa indeterminabilidade, segundo o autor, macula a segurana jurdica ao desconsiderar o

    postulado da explicitude das premissas. Outro fator que infirma a ideia de que o princpio da supremacia seria

    uma norma-princpio reside na indissociabilidade entre interesses pblicos e privados, o que prejudica a ideia de

    prevalncia de uns sobre os outros ou a de contradio entre eles. A atividade administrativa e os fins do Estado

    conjugam elementos privados e pblicos. Por fim, o princpio da supremacia do interesse pblico sobre o

    privado contrapor-se-ia aos postulados da proporcionalidade e da concordncia prtica, os quais, vista de um

    conflito entre normas-princpios, objetivam garantir, partindo da anlise da situao concreta, a mxima

    realizao dos interesses abarcados no conflito, ideia que se ope ao estabelecimento de uma regra abstrata de

    prevalncia, com a resoluo do conflito feito a priori. vila esclarece, ainda, que a posio privilegiada

    ocupada pelos rgos administrativos na relao administrativa no corrobora, por si s, a existncia de um

    princpio da supremacia do interesse pblico sobre o privado, tratando-se de norma procedimental e no

    finalstica, voltada atuao impessoal e desinteressada do rgo pblico.

  • 32

    objetiva da expresso interesse pblico conferem ao propalado princpio a qualidade de

    postulado tico-poltico (ideia representativa de uma necessidade racional para a comunidade

    poltica) e no normativo25

    .

    Sobre a importncia do interesse privado, vila alude complexidade das relaes

    administrativas atuais, que deixam de ser vistas apenas como relaes bipolares para

    assumirem contornos multipolares. Aponta, ainda, a existncia de diversos interesses

    qualificveis como pblicos e que podem, inclusive, em determinadas situaes, colidir entre

    si, a exigir ponderao, bem como a presena de elementos privados contidos na definio de

    interesse pblico. Mesmo os interesses privados no absorvidos pelo interesse pblico devem

    ser alvo de ponderao no caso concreto. Nesse contexto, ganham espao as ideias de

    administrao cooperativa, pautada em uma coordenao de interesses, cabendo a discusso

    sobre como se deve promover a proteo de interesses no seio de uma sociedade complexa e

    multicultural26-27

    .

    vila qualifica o princpio da supremacia do interesse pblico sobre o privado como um

    axioma, um dogma sem esteio na Constituio Federal de 198828

    . Sendo-lhe negadas as

    naturezas de norma-princpio e de postulado normativo, conclui o autor que o princpio da

    supremacia do interesse pblico sobre o privado no pode nortear a exigncia, pela

    25

    VILA, Humberto. Repensando o princpio da supremacia do interesse pblico sobre o particular. In:

    SARMENTO, Daniel (org.). Interesses pblicos versus interesses privados: desconstruindo o princpio da

    supremacia do interesse pblico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 204-207. 26

    VILA, Humberto. Repensando o princpio da supremacia do interesse pblico sobre o particular. In:

    SARMENTO, Daniel (org.). Interesses pblicos versus interesses privados: desconstruindo o princpio da

    supremacia do interesse pblico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 207-211. 27

    Lus Roberto Barroso explicita que, no raro, a concretizao de um interesse pblico primrio perpassa,

    necessariamente, pela satisfao de interesses privados. Cita como exemplos a garantia de preservao da

    integridade fsica de um detento e da liberdade de expresso de um jornalista ou, ainda, a concesso da educao

    primria de uma criana, que devem ser tutelados ainda que contrariamente vontade expressa de seus titulares

    imediatos (BARROSO, Lus Roberto. Prefcio O Estado contemporneo, os direitos fundamentais e a

    redefinio da supremacia do interesse pblico. In: SARMENTO, Daniel (org.). Interesses pblicos versus

    interesses privados: desconstruindo o princpio da supremacia do interesse pblico. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

    2007, p. XIV). 28

    VILA, Humberto. Repensando o princpio da supremacia do interesse pblico sobre o particular. In:

    SARMENTO, Daniel (org.). Interesses pblicos versus interesses privados: desconstruindo o princpio da

    supremacia do interesse pblico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 202. No mesmo sentido, Wilson Vieira

    Loubet e Juliana Bonacorsi de Palma qualificam no apenas o princpio da supremacia do interesse pblico sobre

    o privado como, tambm, o princpio da indisponibilidade do interesse pblico como construes tericas sem

    previso normativa expressa (LOUBET, Wilson Vieira. O princpio da indisponibilidade do interesse pblico e

    a administrao consensual, Braslia: Consulex, 2009, p. 64-66; PALMA, Juliana Bonacorsi de. Sano e

    acordo na administrao pblica. So Paulo: Malheiros, 2015, p. 176). Wilson Loubet conclui que o

    reconhecimento do carter dogmtico (e no normativo) da indisponibilidade do interesse pblico conduz, por

    consequncia, defesa da possibilidade de o Poder Pblico negociar e discutir o interesse pblico sob uma

    perspectiva crtica e aderente realidade e aos anseios dos administrados. Juliana Palma parte da premissa, no

    adotada no presente trabalho, da inexistncia de princpios implcitos no ordenamento jurdico brasileiro (idem,

    p. 167, nota de rodap n 147). No entanto, sua concluso assemelha-se de Humberto vila, quanto ausncia

    de carter normativo dos dois princpios do Direito Administrativo antes referidos.

  • 33

    Administrao ao particular, de adoo de determinada conduta. Tambm no pode o referido

    princpio ser utilizado para interpretar regras existentes. A anlise de interesses abarcados em

    determinada relao jurdico-administrativa deve pautar-se, portanto, na ponderao,

    buscando-se a mxima proteo aos bens jurdicos nela envolvidos29

    .

    Maral Justen Filho, examinando o posicionamento doutrinrio que reconhece nos

    princpios da supremacia e da indisponibilidade do interesse pblico (por ele tratados como

    um nico princpio) o fundamento do regime de Direito Administrativo, a ele apresenta quatro

    objees. Em primeiro lugar, afirma o autor que o Direito Administrativo no possui

    fundamento nico, de modo que o princpio da supremacia e indisponibilidade do interesse

    pblico, encontrando-se no mesmo nvel hierrquico que os demais princpios (a exemplo

    daqueles que protegem valores como a propriedade e a liberdade privadas), no poder

    exclu-los, aprioristicamente. A soluo h de ser buscada vista do caso concreto e pelo uso

    da ponderao30

    .

    Em segundo lugar, constata Maral Justen Filho que, a rigor, no possvel falar-se em

    um nico interesse pblico, havendo, ao revs, um plexo de interesses aptos a receber tal

    qualificao, inclusive com a possibilidade de concretamente colidirem entre si. Logo,

    qualquer utilizao do princpio da supremacia e indisponibilidade do interesse pblico

    pressuporia, necessariamente, uma prvia ponderao para definio de qual seria o interesse

    pblico a prevalecer no caso concreto, revelando-se a inutilidade da atuao a posteriori do

    princpio31

    .

    O terceiro bice soerguido pelo autor reside na impropriedade da afirmao de

    existncia de um verdadeiro conflito entre o interesse pblico e direitos subjetivos privados. O

    reconhecimento desses ltimos pelo ordenamento jurdico confere-lhes proteo jurdica em

    29

    VILA, Humberto. Repensando o princpio da supremacia do interesse pblico sobre o particular. In:

    SARMENTO, Daniel (org.). Interesses pblicos versus interesses privados: desconstruindo o princpio da

    supremacia do interesse pblico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 214-215. importante esclarecer que

    Celso Antonio Bandeira de Mello, em rebate s crticas lanadas ao princpio da supremacia do interesse pblico

    sobre o privado, deixa claro que no adota as acepes de princpio tratadas nas obras de Alexy e de Dworkin.

    Para o autor, haveria diferena entre princpio e norma, sendo aquele um alicerce do sistema, um fundamento

    nuclear dele, integrativo do esprito das normas e elemento de sua interpretao. Haveria, assim, em seu

    entender, equvoco da doutrina que critica o princpio da supremacia ao trat-lo sob acepo terminolgica

    distinta daquela em que apresentado e explicado na sua obra (MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de

    direito administrativo. 32. ed. So Paulo: Malheiros, 2015, p. 54). A crtica lanada por Humberto vila ao

    pensamento tradicional sobre o princpio da supremacia (no qual se insere o posicionamento de Celso Antonio

    Bandeira de Mello) leva em considerao a multiplicidade de significados do termo princpio, refutando ao

    princpio examinado as naturezas de norma-princpio e de postulado normativo e negando, fora dessas duas

    qualificaes, a possibilidade de uso do princpio para impor exigncias de conduta a particulares ou para

    estribar a interpretao normativa. 30

    JUSTEN FILHO, Maral. Curso de direito administrativo. 11. ed. So Paulo: RT, 2015, p. 131-133. 31

    JUSTEN FILHO, Maral. Curso de direito administrativo. 11. ed. So Paulo: RT, 2015, p. 133-134.

  • 34

    face de interesses inclusive pblicos contrapostos. Os limites nos quais o direito subjetivo

    deve ceder espao ao interesse pblico devero, assim, ser previstos e determinados pela

    ordem jurdica. Mesmo no conflito entre direitos (pblicos e privados) ou entre interesses

    (pblicos e privados) no possvel estabelecer uma soluo de ponderao a priori sempre

    aplicvel a tais casos32

    .

    Por fim, Maral Justen Filho salienta a dificuldade existente em se definir o que se deva

    entender por interesse pblico. No atende a tal objetivo a delimitao negativa do conceito

    (o que no se entende por interesse pblico33

    ) e tampouco a soluo de compreend-lo como

    lugar-comum. Diante da impossibilidade de se conferir preciso ao conceito, torna-se invivel

    a estruturao do regime jurdico administrativo em princpio que o toma como alicerce.

    vista de tais bices, o autor prope que o verdadeiro fundamento do Direito Administrativo

    estaria consignado na supremacia e indisponibilidade dos direitos fundamentais. A realizao

    desses direitos comporia, assim, o ncleo daquele Direito34

    .

    Paulo Ricardo Schier, admitindo a existncia do princpio da supremacia do interesse

    pblico sobre o privado, critica a sua aplicao no mbito do Direito Administrativo, por

    considerar que aludido princpio tem sido autoritariamente vislumbrado, na prtica, como

    verdadeira clusula geral restritiva de direitos fundamentais35

    .

    32

    JUSTEN FILHO, Maral. Curso de direito administrativo. 11. ed. So Paulo: RT, 2015, p. 134-136. A

    distino bsica adotada pelo autor entre direito subjetivo e interesse, com lastro nas doutrinas privatsticas de

    Windscheid e Jhering, consiste na circunstncia de que, no direito subjetivo, a posio jurdica conferida pelo

    ordenamento ao sujeito garante-lhe a possibilidade de exigir de outrem uma especfica conduta, relativamente a

    um ou mais sujeitos. Esse dever jurdico atribudo a algum e passvel de exigibilidade pelo titular do direito no

    existe quando se trata de interesse jurdico (idem, p. 134-135). 33

    Nesse sentido, Maral Justen Filho enfatiza que o interesse pblico no se confunde com o interesse: 1) do

    Estado (havendo interesses pblicos no estatais); 2) da Administrao (o autor nega o que se convencionou

    denominar de interesse secundrio, tratando-se, em verdade, em seu entender, de convenincias

    circunstanciais, no jungidas ao mbito jurdico); 3) do agente pblico (que se configura, em verdade, como

    interesse privado); 4) da sociedade (hiptese em que have