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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS RODRIGO GOTTSCHALK SUKERMAN BARRETO A Terceira Pessoa: Interpretação, Intersubjetividade e Conhecimento em Donald Davidson Salvador 2014.2

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIAFACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

RODRIGO GOTTSCHALK SUKERMAN BARRETO

A Terceira Pessoa: Interpretação, Intersubjetividade eConhecimento em Donald Davidson

Salvador2014.2

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RODRIGO GOTTSCHALK SUKERMAN BARRETO

A Terceira Pessoa: Interpretação, Intersubjetividade eConhecimento em Donald Davidson

Monografia apresentada ao Curso deGraduação em Filosofia da UniversidadeFederal da Bahia como requisito parcial paraa obtenção do grau de Bacharel emFilosofia.

Orientador: Prof. Dr. Waldomiro José daSilva Filho

Salvador2014.2

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RODRIGO GOTTSCHALK SUKERMAN BARRETO

A Terceira Pessoa: Interpretação, Intersubjetividade eConhecimento em Donald Davidson

Monografia apresentada ao Curso deGraduação em Filosofia da UniversidadeFederal da Bahia como requisito parcial paraa obtenção do grau de Bacharel emFilosofia.

Orientador: Prof. Dr. Waldomiro José daSilva Filho.

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________________________ Prof. Dr. Waldorimo José da Silva Filho

__________________________________________________________ Prof. Dr. José Antônio Saja Neves dos Santos

__________________________________________________________Prof. Me. Ricardo Calheiros Pereira

Salvador 2014.2

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Professor Waldomiro José da Silva Filho pela paciência,competência, disponibilidade e comprometimento com o trabalho de orientação. Asindicações de textos, leituras minuciosas e críticas ao trabalho feitas pelo senhorforam fundamentais para conclusão deste trabalho. Agradeço aos docentes dauniversidade e a todos os funcionários por desempenharem suas funções etornarem possível o trabalho acadêmico. Agradeço ao grupo Investigaçõesfilosóficas pelo trabalho intensivo e construtivo que traz um ambiente de diálogoaberto permitindo a exposição dos nossos trabalhos, como também o rico diálogogerado entre os temas de trabalho e os especialistas convidados. Ao Pibic peloauxílio dado a pesquisa que contribuiu significativamente para os avanços realizadosno projeto.

Aos meus pais Roque Barreto e Telma Barreto que se empenharam muitopara minha educação e me deram todo suporte disponível. Todo amor, carinho ecuidado foram essenciais para elaboração do trabalho e da minha construçãopessoal. A minha irmã Mariana pelo apoio que me dá. A minha avó Norma pelapreocupação e carinho e a minha família que lhes tenho grande amor.

Agradeço aos meus colegas de curso pelas conversas e trocas deinformações significativas para minha formação em especial: Kayk Oliveira, JuliomarMarques, Mariana Cunha, Ygor Borba, Valério Cássio, Igor Adorno, Bruno SilvaDouglas Lisboa, Cleyton, Alan Brandão, Fabiano Barcella dentre outros.

Aos meus amigos íntimos aos quais compartilham comigo momentossignificativos e formadores em vários aspectos da minha vida. Rafael Cunha, RafaelSangiovanni, André Leal, Mariana Ramone, Vitor Requião, Dantte Ferreira, AlainPetterson, Hermano Oliveira, Matheus Couto, Raphael Andrade, Estevão Sollero,Tiago Martino, Victor Neri, Cláudia Sayuri, Marina fukunaga, Morgana Gazar, RomanBlanco, Marcel Coura, Fabiano Barcella, Juliana Coura, Luiz Rocha, ConchitaMeneses, Dagmar Meneses, Victor Meneses. Em especial agradeço a YasminMeneses por todo companheirismo,confiança, carinho, dedicação e apoio.

A todos os citados e aos que por ventura não citei agradeço imensamente porfazerem parte da minha vida e darem suporte na realização deste trabalho.

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RESUMO

Este trabalho monográfico tem como objeto o estudo da possibilidade doconhecimento da terceira pessoa dentro da epistemologia de Donald Davidson, como objetivo de analisar o papel que a perspectiva da terceira pessoa desempenha noconhecimento do mundo externo e no autoconhecimento, via uma pesquisabibliográfica. Para tanto, foi feita uma revisão da literatura referente ao objeto emartigos do próprio Davidson, e dos comentadores críticos das obras do filósofo.Primeiramente, para entender o contexto em geral em que a terceira pessoa estáinserida é feita uma revisão conceitual, pela obra de John Austin, do problema dasoutras mentes. O problema das outras mentes é um tema clássico da filosofiamoderna, idealista e empirista, que sob preceitos metafísicos tentam fundamentar oconhecimento sobre noções inalienáveis que por fim lhe proporcionassem garantiasestáveis e seguras sobre o conhecimento. Entretanto, essas garantias partiam,fundamentalmente, de pressupostos subjetivistas, consequentemente, a realidadeexterior e o conhecimento das outras mentes foram afetados, tendo em vista quecrenças individuais podem ser totalmente diferentes de como o mundo externo seapresenta. Essas dúvidas são o campo onde se estabelece o cenário cético. Oceticismo por sua vez negará a possibilidade do conhecimento tanto do mundoexterno, como das outras mentes. Levando em conta a independência lógica dascrenças com o mundo externo, por fim, o ceticismo lança questões sobre apossibilidade do agente conhecer até mesmo os seus próprios estados internos. Otrabalho de Davidson é mostrar que os argumentos céticos não são válidos e que,além de possível, o conhecimento do mundo, das outras mentes e oautoconhecimento são indispensáveis. Para isso, ele reformula a concepção domental sobre a noção holística e procura mostrar a indispensabilidade dessas trêsformas de conhecimento que, apesar de diferirem na forma de acesso,correspondem a uma mesma realidade compartilhada entre os homens. Outrotrabalho do autor é mostrar como é possível haver a assimetria do conhecimentoentre a primeira e a terceira pessoa e eles não serem excludentes. A assimetriacorresponde, também, as formas que um agente tem para acessar o mundo. Noscasos de primeira pessoa, ao ter uma crença o agente não tem necessidade derecorrer a indícios ou evidências externas para saber que está tendo umpensamento, enquanto no caso do conhecimento dos estados mentais de outraspessoas as informações disponíveis ao agente (intérprete) dependem do que umagente pode notar do comportamento do agente (falante). O conceito central paratrabalhar essa problemática é o de interpretação que vigora durante o trabalho deDavidson e culmina em uma concepção onde a mente não pode ser pensada comouma entidade e nem pertencendo a um corpo, mas a uma rede de fatores quetrabalham em conjunto num contexto sociolinguístico. Finalmente o estudo apontouque a perspectiva da terceira pessoa pensada como uma comunidade de mentes éparte necessária para o conhecimento da própria mente e do mundo externo.

Palavras-chave: Outras Mentes, Conhecimento, Interpretação, Intersubjetividade.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.....................................................................................................07

CAPÍTULO 1 - O Problema das Outras Mentes........................................11

1.1 O PROBLEMA DAS OUTRAS MENTES SEGUNDO JOHN AUSTIN.................11

1.1.1 Realidade, certeza e segurança.....................................................................12

1.1.2 Conhecimento e Comprometimento..............................................................16

1.1.3 Assimetria entre primeira e terceira pessoa................................................20

1.2. O PROBLEMA DAS OUTRAS MENTES SEGUNDO DONALD DAVIDSON......21

1.2.1 O Problema da assimetria …..........................................................................22

1.2.2 Entre Primeira e Terceira Pessoa..................................................................24

1.2.3 O argumento contra as linguagens privadas...............................................25

1.2.4 A comunicação como resposta aos problemas das outras mentes e o da

assimetria..................................................................................................................27

1.2.5 As consequências geradas pelo argumento da linguagem privada.........30

Capítulo 2 - AUTORIDADE DE PRIMEIRA PESSOA................................32

2.1 O QUE SIGNIFICA A AUTORIDADE DE PRIMEIRA PESSOA...........................32

2.1.1 A Visão individualística clássica....................................................................33

2.2 A VISÃO EXTERNISTA........................................................................................38

2.3 INTERPRETAÇÃO E A AUTORIDADE DE PRIMEIRA PESSOA........................40

Capítulo 3 – A INTERDEPENDÊNCIA DAS TRÊS VARIEDADES DE

CONHECIMENTO.................................................................................................47

3.1 INTERSUBJETIVIDADE.......................................................................................47

3.1.1 As Três Variedades de Conhecimento.........................................................47

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3.2 O HOLISMO DO MENTAL...................................................................................51

3.2.1 Monismo Anômalo..........................................................................................56

3.2.1.1 Crítica ao Monismo Anômalo.........................................................................57

3.2.1.2 Defesa de Davidson ao Holismo do Mental e ao Monismo Anômalo...........59

3.3 INTERPRETAÇÃO, CARIDADE E O LUGAR DA TERCEIRA PESSOA.............62

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................66

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................70

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INTRODUÇÃO

Este trabalho monográfico tem como objeto central estudar a possibilidade do

conhecimento de outras mentes e a relevância que este assunto tem para a

epistemologia.

Para ser realizado o trabalho foi utilizada como fonte primária artigos seminais

do filósofo norte-americano Donald Davidson (1917 – 2003) que tratam de temas

como a intersubjetividade, a interpretação da linguagem e o processos

comunicativos. O trabalho trata de um comentário crítico desses artigos de Davidson

direcionando para as questões voltadas a natureza e a posição epistêmica da

“outras mentes”, como, por exemplo conhecimento de terceira pessoa, o falante, o

interlocutor e outros termos que se referem a terceira pessoa do singular e do plural.

Davidson foi formado na tradição da filosofia analítica e suas obras foram de

grande contribuição para a filosofia da mente, da linguagem e a teoria da ação.

Sendo uma referência contemporânea para a abordagem do objetivo monográfico

ele se mostra um autor com contribuição relevante para formação acadêmica,

discutindo tópicos desde clássicos da filosofia como Platão, a filosofia moderna e a

contemporânea filosofia analítica e da linguagem (SMITH e SILVA FILHO, 2005).

Como fonte secundária foi utilizada, em sua maioria, filósofos americanos e

brasileiros, em geral, comentadores das obras de Davidson. Uma outra fonte foi as

obras de filósofos como John Austin, este em específico com uma seção exclusiva

para ele, Gilbert Ryle, Ludwig Wittgenstein e René Descartes.

No primeiro capítulo será apresentado e desenvolvido a problemática que

envolve o conhecimento do estados mentais de outras pessoas. Primeiramente se

mostrará que a pretensão de conhecimento quando envolve garantias que estão

para além dos recursos disponíveis a um agente epistêmico, a saber, o seus

sentidos, seu discernimento – comparação de um caso com outros – e da sua

linguagem, tentam fundamentar tais garantias sob preceitos metafísicos. Se por um

lado a metafísica propõe ter um fundamento estável e inalienável para o

conhecimento, por outro, as condições de conhecimento são muito restritas

(AUSTIN, 1946). Consequentemente surgem alguns problemas em decorrência

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disso. Por exemplo, devido as crenças de um agente serem logicamente

independentes do que é o caso no mundo, há uma barreira lógica para que um

agente possa conhecer o mundo para além de suas representações (DAVIDSON,

1991). Em seguida será tratada a assimetria do conhecimento entre primeira e

terceira pessoa, ou seja, a diferença em que um agente tem para acessar seus

próprios estados mentais e o modo como ele acessa os estados mentais de outras

pessoas. Essa diferença consiste na forma que um agente tem para acessar seus

próprios estados mentais – sem necessitar de recurso a evidências externas,

bastando que ele tenha uma crença para que lhe seja outorgável conhecimento a

ela – e o conhecimento de outras mentes, diferentemente, é necessário do acesso

ao mundo exterior e do que ele pode notar do comportamento das outras pessoas.

O primeiro capítulo se concluirá com as observações feitas por Wittgenstein

(WITTGENSTEIN, IN: DAVIDSON, 1991; HACKER, 1992) a respeito das crenças

terem sido tratadas, durante a história da filosofia, como formas de linguagem

privada. A partir desse argumento, Davidson defenderá que a comunicação será o

parâmetros para verificação objetiva das crenças e o que, em parte, significará o

conteúdo das crenças individuais.

Com os argumentos de Wittgenstein sobre a linguagem privada surgiram

algumas teses externistas (Burge, 1975; Putnam, 1979) onde afirmam que o

significado das palavras não estão na cabeça e, em alguns casos, o agente ser

alheio ou entender parcialmente as palavras que usa. Na visão de Davidson (1987,

1990) essas teses comprometem a autoridade de primeira pessoa, ou seja, o agente

passa a não saber sobre aquilo que ele pensa. O segundo capítulo explora essa

discussão, apresentando primeiramente a concepção individualística clássica, que

concebe toda forma de conhecimento a partir da subjetividade de um indivíduo. Em

seguida são apresentadas as críticas externistas ao individualismo subjetivo

clássico, como os argumentos de Putnam e Burge. Embora, Davidson concorde com

parte das teses externistas e que o significado das palavras dependam do mundo

externo ele critica as teses desses dois filósofos por desconsiderar a autoridade de

primeira pessoa. Sendo assim, Davidson (1990, 1991) desenvolve o externismo aos

seus moldes e defende que o conhecimento do mundo externo, das outras mentes e

o da própria mente apesar de diferirem na forma de acesso, consistem em uma

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mesma realidade e todos se interdependem para o pensamento.

O terceiro e último capítulo desenvolve a interdependência das três

variedades de conhecimento defendidas por Davidson. Nesse ponto Davidson

(1991) considera o mental de maneira holística, isto é, a causa de uma crença é o

próprio objeto empírico, no entanto, o significado dele será visto como o

compartilhamento linguístico influência no pensamento do agente epistêmico e como

a autoridade de primeira pessoa, sobre o padrão de verificação objetiva, pode ser

mantida. Davidson entretanto se considera um reducionista e afirma que os eventos

mentais são físicos, com a ressalva de que, devido a isso, eles são não-mentais

(DAVIDSON, 1997, p. 2). Reduzir eventos mentais a eventos mentais a eventos

físicos é uma forma de monismo, pois considera ambos como parte de uma mesma

realidade, por Davidson considerar que o mental apesar de poder ser descrito por

eventos físicos, no entanto conserva característica semânticas que dizem respeito a

um próprio vocabulário, Davidson chama seu monismo de Monismo Anômalo. O

filósofo sofre algumas críticas, principalmente de cientistas que assumem posturas

realistas metafísicas, para isso, foi utilizado os argumentos de Jaekwon Kim que

está contida no artigo de Martins (2005). Posteriormente é apresentada a defesa de

Davidson contra as objeções de Kim e de como ele acha plausível manter o seu

reducionismo sem afetar o mental.

Por fim, o trabalho monográfico se encerra sobre o conceito de interpretação

que é onde Davidson destaca a condição humana que, devido ao estar imerso em

uma comunidade linguística e fazer uso de uma linguagem, está sujeito a entender

outras pessoas e se fazer entender sobre um esforço interpretativo.

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CAPÍTULO 1

O Problema das Outras Mentes

1.1. O PROBLEMA DAS OUTRAS MENTES SEGUNDO JOHN AUSTIN

Facilmente uma pessoa pode estar enganada sobre o que ela conhece do

mundo exterior, isto é, sobre o que ela conhece da realidade. Por exemplo: Qual a

garantia que o mundo, tal como se observa é, de fato, assim? Pode ser o caso de se

estar sonhando, em delírio, ser uma ilusão, algumas vezes ocorrem confusões e

lapsos de memória, outras vezes as condições ambientais não permitem um exame

minucioso, as experiências humanas são limitadas e a capacidade descritiva

também. Se agora a proposta é querer saber o que se passa na cabeça de outras

pessoas, de antemão, essa é uma questão que tem de ser esclarecida.

O problema das outras mentes é uma questão epistemológica que se refere à

possibilidade de conhecer estados psicológicos de outras pessoas. Em geral, atribuir

estados psicológicos a outras pessoas e tomar suas vidas mentais como objeto

epistêmico exige uma atitude interpretativa que recai sobre as condições de

conhecimento de um agente que deseja saber o que outra pessoa "tem em mente".

Em casos de declarações sobre estados psicológicos é usado certo vocabulário que

remete à subjetividade do indivíduo, seus pensamentos, desejos etc. Nesses casos,

as condições de conhecimento do agente, disposto a saber o que está se passando

na cabeça da outra pessoa, está sujeito a lidar com um campo que aparentemente

não pertence ao reino do mundo físico (empírico). Austin escreve:

“Quando de fato descrevemos uma sensação como mental, é porque usamos umapalavra normalmente utilizada para descrever uma sensação física com um sentidoespecial, transferindo, como quando falamos de desconforto ou fadiga “mental”. Talse dá, é claro, porque mais está envolvido no estar zangado, por exemplo, do quesimplesmente mostrar os sintomas e experimentar as sensações”. (AUSTIN, 1946,p.114)

O que está em questão no exemplo acima é o fato de que descrever eventos mentais

envolve comumente fazer comparações com eventos físicos, talvez pelo fato de serem mais

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facilmente localizados empiricamente. Entretanto, uma sensação ou um pensamento são

estados psicológicos privados. Privados no sentido de localizar o conteúdo dos estados

mentais naquele indivíduo que está tendo aquele pensamento ou aquela sensação.

Consequentemente, conhecer algo de natureza tão intrínseca e intransferível é objeto de

dúvidas e incertezas porque, no mínimo há uma assimetria entre as condições daquele que

investiga os estados mentais de outrem e o indivíduo que está tendo aquela crença,

sensação, pensamento que p1.

Essas são algumas situações embaraçosas que configuram o problema das

outras mentes. Na primeira sessão desse capítulo será discutido o artigo intitulado

“Outras Mentes”, do filósofo inglês John Longshaw Austin (1946), para expor, ao seu

modo de ver, as principais problemáticas envolvidas na pergunta: Eu posso

conhecer outras mentes?

1.1.1 Realidade, certeza e segurança

Austin separa o problema das outras mentes em duas questões principais: o

problema da realidade e o problema da certeza e da segurança. A questão da

realidade é uma dúvida metafísica, onde é posta em questão a existência, de fato,

de outras mentes e a questão da certeza e da segurança é uma dúvida epistêmica

onde é questionada as razões que um interprete pode ter sobre o seu conhecimento

de outras mentes.

A. O Problema da realidade

Perguntar sobre a realidade de um estado psicológico, em casos de

conhecimento, põe em questão as credenciais ou fatos de um agente de um modo

especial. Por exemplo, ao questionar o um agente epistêmico que tenta interpretar

outras mentes perguntando-o: “você tem certeza que ele está realmente zangado?”,

a pergunta está dirigida a capacidade que o agente tem para acessar a realidade e

dar respostas satisfatórias sobre o que é real. Entretanto, acessar a realidade exige

1 "p" é um simbolismo para representar um predicado qualquer. Por exemplo, se estiver escrito Joãoacredita que p. p pode ser susbtituído, por exemplo, por está chovendo. Logo ficaria: João acredita que estáchovendo. O mesmo acontece quando se usa o simbolismo S para representar um sujeito qualquer. A analogia seaplica da mesma forma.

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duas condições, em primeiro lugar o agente tem que estar em condições perceptivas

favoráveis, pois, caso esteja “sonhando, em delírio, sob influência de mescal, etc.”

(AUSTIN, 1946,p.100) estes casos anulariam seu conhecimento, uma vez que levam

o agente ao erro, em segundo lugar, o ambiente (natureza) também tem que se

apresentar favorável, pois “ a coisa pode ser empalhada, pintada, simulada,

artificial, ilusão, fantasia, brinquedo, suposição, fingimento, etc”. (AUSTIN, 1946,

p.100) o que não dá condições para que o agente forme crenças verdadeiras.

O modo especial que está sendo usada a palavra realidade se refere,

justamente, ao fundo metafísico que ela deseja alcançar. O fundo metafísico

pretendido com o emprego da palavra realidade é ter uma fundamentação sólida

para o conhecimento de modo que torne-o invulnerável ao erro. No entanto, para

Austin, a palavra "real" quando posta nessas condições perde seu uso comum, que

é o de contrapor casos "relativos aos propósitos atuais" (AUSTIN,1946, p.101) como,

por exemplo, para "distinguir um pintassilgo empalhado de um pintassilgo vivo" (cf.

AUSTIN, 1946, p.100), dessa forma:

O ardil dos metafísicos consiste em perguntar "Isto é uma mesa real?" (um tipo deobjeto que não tem modo evidente de ser falsificado) e não especificar ou delimitar oque há de errado como ela, de modo que eu me sinto embaraçado a respeito de"Como provar" que isto é uma mesa real. (AUSTIN,1946, p.100)

As pretensões metafísicas fazem com que o critério de conhecimento seja

muito elevado o que viola a linguagem, permitindo, por exemplo, extrapolar os casos

de uso relativo aos propósitos atuais e tentar obter garantias de conhecimento em

todos os casos possíveis. Austin, coloca duas condições que tem de ser cumpridas

tanto para os casos comuns do uso da palavra "real" como em casos especiais

(metafísicos): a) Não há nada que dê suporte inabalável ao conhecimento de forma

que um agente sempre esteja em condições de conhecer, por exemplo, o pintassilgo

"pode voar antes que eu tenha oportunidade de examiná-lo, ou sem que eu o

examine detalhadamente" e não é por motivos como esse que pode se chegar a

conclusão de que "porque eu algumas vezes não sei ou não posso descobrir, não

posso nunca2" (AUSTIN, 1946, p.101). b) o que é chamado de real não é uma prova

2 Um exemplo de filósofo que argumenta que não pode dar crédito a nada que seja incerto é Descartes,por exemplo no §2 da Primeira Meditação Metafísica: “(...) uma vez que a razão já me persuade de que não devo

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contra milagres, ou seja, se a crença foi formada por um determinado evento e

posteriormente aconteceu algo anormal (o pintassilgo explode) e o agente não tinha

motivo nenhum para suspeitar dessa anomalia, o emprego da palavra real foi usado

corretamente, pois, as palavras não são preditivas, elas se referem as coisas e

eventos presentes e passados, "o que o futuro pode fazer sempre é nos obrigar a

rever nossas ideias sobre pintassilgos ou pintassilgos reais ou sobre qualquer outra

coisa", por esse motivo "as palavras literalmente nos traem" (AUSTIN, 1946, p.101)

Os casos de conhecimento que envolvem cenários radicais e afetam tanto o

mundo físico (miragens, cenários falsos) como as capacidades sensoriais do agente

(mal funcionamento dos órgãos, estar sobre efeito de drogas),sendo que essas

informações não são -aparentemente- disponíveis, configuram o problema da

realidade.

B. O Problema da Certeza e da Segurança

O problema da realidade surge quando as condições para o conhecimento

dependem externamente do agente epistêmico, no entanto, essas condições podem

ser direcionadas para um nível mais íntimo. O agente epistêmico tem experiências

cognitivas (sensações, percepções, memória), em certa medida, sua vida mental diz

respeito à ele próprio e, portanto, suas crenças carregam um traço privilegiado e

privado. O ponto que distingue o "conhecimento da realidade" (eventos externos) do

"conhecimento das próprias crenças" (eventos internos) são as condições de

verdade de cada um. O condicionante, no primeiro caso, é a relação da crença com

o mundo e, no segundo caso, é a relação da crença com ela mesma. Ou seja, no

primeiro caso a crença é verdadeira se for o fato do mundo também for - a crença de

que a maçã é vermelha é verdadeira se de fato a maçã for vermelha - e, no segundo

caso, basta o agente ter uma crença para que ela seja verdadeira - a crença que

João está sentindo dor é verdadeira se João estiver sentindo dor. Nesse sentido de

conhecimento o agente nunca pode estar errado, mesmo que se confunda a respeito

do nome que está usando para descrever algo, o conteúdo da experiência é

menos cuidadosamente impedir-me de dar crédito às coisas que não são inteiramente certas e indubitáveis, doque às que nos parecem manifestamente ser falsas, o menor motivo de dúvida que eu nelas encontrar bastará parame levar a rejeitar todas" (DESCARTES, p.258)

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preservado, por exemplo:

(...)utilizar, digamos, a palavra “sorver” ao invés de “sofrer”, fato que pode confundiras outras pessoas, mas não a si mesmo, seja porque ele regularmente emprega“sorver” por “sofrer”, ou porque tal uso foi uma aberração momentânea como quandochamo João de “Alberto” mesmo sabendo muito bem ser ele João – embora lhe sejapossível estar “errado” nestes dois sentidos, não lhe é possível estar no sentido maisprivilegiado. (AUSTIN, 1946, p.102)

Austin formula um enunciado afim enfatizar um possível caso onde o agente

declara algo sobre suas sensações e, por estar numa perspectiva privilegiada, sua

crença seria verdadeira: "Eis aqui algo que me parece vermelho agora" (AUSTIN,

1946, p.103), o destaque para o advérbio de tempo "agora" se refere ao caráter

ostensivo que o agente, ao fazer o enunciado, testemunha sua percepção atual do

objeto vermelho. Em contraste, quando o enunciado não indica o tempo presente

(“Eis aqui algo que me parece vermelho), ele fica sujeito a ser interpretado como que

em outros casos, para além da percepção atual do indivíduo, o enunciado fosse

verdadeiro.

Desse modo o destaque que está pretendendo ser feito com o advérbio

“agora” é, justamente, o contato efetivo e contemporâneo do agente com a sua

experiência subjetiva (privada) que, a princípio impediria interpretações peremptórias

que afirmem que "isto é realmente uma coisa vermelha, uma coisa que pareceria

vermelha numa luz normal, ou ainda amanhã e talvez mais que isso: sendo que tudo

isso envolve "predição" (senão também um substrato metafísico)". (AUSTIN, 1946,

p.102-3) Portanto, declarações no presente do indicativo teriam privilégios por

seriam menos passíveis ao erro.

O sentido conhecimento privilegiado é o estado de crença/experiência que

somente o agente que se encontra nele atualmente (crendo/experienciando) e,

portanto, tem acesso direto e íntimo. Havendo casos desse tipo há, no mínimo, certo

modo de conhecimento que não é passível de erro, que é o autoconhecimento (o

conhecimento das próprias percepções), isto é, os "enunciados de sensação", de

forma que, “quando eles são corretos e feitos por x, então x sabe que são corretos”.

(AUSTIN, 1946, p.102). Austin segue em uma direção diferente.

Austin afirma que "Algo que me parece vermelho agora" carrega uma

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ambiguidade, não tanto pela ênfase no tempo da declaração, mas na hesitação em

afirmar convictamente que algo seja exatamente dessa ou daquela maneira

(AUSTIN, 1946, p.103). Nesse ponto ele está tirando a ênfase do status de verdade

da crença subjetiva e deslocando para um sentido mais prático. No sentido prático,

independente da natureza ou realidade do objeto, o que está em questão será as

informações disponíveis ao agente para que ele possa responder. Obviamente,

quando o agente não se arrisca e se limita em descrever o evento como uma forma

de experiência privada, aparentemente ele não se compromete com a legitimidade

das suas declarações para além do que ele percebe naquele instante, ou, ainda

mais, tem a garantia de que, no mínimo, as crenças baseadas em estados internos

sejam mais evidentes e seguras do que as crenças de “segunda mão” (por

testemunho), por exemplo. Para Austin, um agente numa situação prática de

comunicação onde tenha que responder uma questão e que, para isso, recorra as

suas capacidades de discernimento, a sua capacidade de observação atual, as suas

lembranças passadas que se conectem com a atual e que, desse modo, permita-o

dar resposta. Ainda assim pode se sentir inseguro se tem em mente uma resposta

definitiva, justamente, pelo “tom e expressão, de confiança e hesitação”. (AUSTIN,

1946, p.103), pois ele reconhece que as informações disponíveis são dispersas e

que sua respostas pode causar consequências negativas as expectativas do seu

interlocutor.

1.1.2 Conhecimento e Comprometimento

O quão confiante o agente se sente para dar uma resposta, faz com que ele

pondere, arrisque, hesite, assegure-se e, enfim, declare sua crença. Dar uma

resposta (sincera) exige um compromisso com a verdade da crença, o agente pode

estar convicto e afirmar peremptoriamente, como no caso : "não importa o que

pareça aos outros, seja lá como for na realidade [eu vejo assim]" ou receosamente,

como no caso: "neste caso não me sentiria muito seguro para poder distinguir

[vermelho de laranja avermelhado]", "não sei realmente dizer se é [vermelho] ou

não." (AUSTIN, 1946, p.103). Em ambos os casos, quando a pergunta é dirigida à

segurança do agente "envolve (é) dizer que é como outro ou outros que

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experimentamos anteriormente", isto é, lembranças de casos anteriores que

permitem comparações com o caso presente. No entanto, memória e

reconhecimento são "incertos e falíveis", o que, consequentemente, se torna

arriscado declarar o conhecimento de algo através de lembranças, pois, em geral,

são imprecisas e o erro é praticamente inevitável, o que faz com que o agente hesite

antes de dar uma resposta definitiva. ( AUSTIN, 1946, p. 103).

Austin apresenta duas maneiras distintas de hesitação. O primeiro, é hesitar

por nunca ter sido o caso de ter tido uma experiência semelhante anteriormente, por

exemplo, degustar pela primeira vez o sabor da folha de louro [ter um primeiro

contato com João estando zangado]. Nesse tipo de experiência, é feito um exercício

mental onde se busca na memória, lembranças que sirvam para comparar eventos

passados semelhantes ao atual e fazer possíveis conexões onde, gradativamente,

surjam e se aprendam palavras melhor classifiquem aquele objeto, pensamento,

sensação etc., isto ocorre em diferentes graus de sucesso. (AUSTIN, 1946, p. 104).

O outro caso de hesitação se deve a “falta de nitidez”. Nem sempre a experiência

atual proporciona, imediatamente, uma imagem clara que permita classificar "sem

sombra de dúvida" o que é o caso. Por vezes faltam informações, faltam indícios,

pode ocorrer um lapso de memória, o que decorre em classificações provisórias e

hesitantes. Ocorrem também alguns casos que somente a reflexão e um exame

mais acurado das informações não supre a hesitação [por não se conhecer bem],

necessita-se de um “discernimento mais aguçado, pela discriminação sensorial”

(AUSTIN, 1946, p.104), ou seja, deve haver a oportunidade de se ter experiências

suficientes que permitam um melhor discernimento sobre x.

Em ambos os casos de hesitação, o que permite uma melhor acuidade ou

segurança do agente é o grau de aproximação que o agente tem com a sua

experiência, obviamente o número de experiências não é o que irá determinar de

modo que elimine qualquer dúvida sobre aquele conhecimento, no entanto, permite

ao agente ter mais credibilidade na sua crença.

Quase sempre, senão mesmo sempre, nós podemos estar muito ouconsideravelmente certos se nos refugiarmos numa descrição suficientementeindeterminada da percepção: indeterminação e certeza tendem a variar inversamente(AUSTIN, 1946, p.105)

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Invariavelmente apresentará algum grau de indeterminação, para Austin, o

erro dos filósofos, é tentar eliminar definitivamente os erros e buscar a total precisão,

caso que, por exemplo, os cientistas acharam um modo equivalente de se relacionar

com os fenômenos, substituindo o uso de "é real" ou "é irreal" por "é uma forma

alotrópica" , "é desnaturalizado" (AUSTIN, 1946, p.105). Há outros casos onde

podem ocorrer anomalias, milagres, ficção e essa é uma possibilidade que pode agir

causando hesitação no agente como, por exemplo, miragens, ou algum caso

extraordinário. Nesses casos cabe uma melhor averiguação e discernimento Austin

exemplifica: “[…] sem primeiro me assegurar de que não é uma miragem, então

arrisco meu pescoço, mas se eu tiver assegurado de que não é uma miragem e

reconhecer com certeza (como bebo água) então certamente não estou mais

arriscando me pescoço”. (AUSTIN, 1946, p.105)

Em casos de conhecer o pensamento ou sentimento de outras pessoas é

sempre incerto se o modelo epistêmico que adotamos é conhecer os seus

pensamentos da mesma maneira que ela própria os conhece. Como tem sido dito,

há certo nível de privacidade nos pensamentos que é intransferível e, de certo

modo, inacessível. Austin afirma que esse tipo de dúvida surge com o mal uso de

expressões envolvendo a palavra conhecimento. Por exemplo, declarações do tipo

“eu conheço seu sentimento a tal respeito”, “ele sabe o que tem em mente”, “posso

saber o que lhe vem em mente?” (AUSTIN, 1946), para o filósofo, é um erro

gramatical “colocar um objeto direto após “saber”, pois a palavra “que” é passível de

ser entendido como um relativo, ou seja “aquilo (ou aquele) que”.(AUSTIN, 1946,

p.106), sendo assim, conhecer o "que" está em mente, assume um sentido

conotativo a expressão de "aquilo que está na mente", dando a impressão de que há

um objeto que ocupa a mente. No entanto, Austin chama a atenção de que a palavra

"que" nesses casos tem a função de um interrogativo, sendo assim “Conhecer o

sentimento de outra pessoa ou o que se passa na cabeça dele não significa que há

um x3 que ao mesmo tempo eu conheço e ele está sentindo. Mas, antes disso, eu

sei a resposta para questão: o que ele está sentindo?” (cf. AUSTIN, 1946, p.106).

Portanto, não se trata de uma ontologia do conteúdo de x, mas sim, de uma tentativa

de uma resposta satisfatória para x numa situação real de comunicação entre duas

3 Nesse caso x é uma icognita que se refere a uma coisa qualquer.

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pessoas. Sobre esse ponto Austin acrescenta: “acreditar em uma pessoa, em

autoridade e testemunho, parece ser antes uma parte essencial do ato de

comunicação, que constantemente todos realizamos” (AUSTIN, 1946, p.118).

Por fim, com o deslocamento do conhecimento do âmbito metafísico para as

práticas linguísticas, se dá por uma ênfase maior nas declarações do agente e seu

compromisso intencional em enunciar sentenças verdadeiras, do que com o exame

da realidade visando atingir um fundamento para o conhecimento, ou, o ponto de

partida para que o conhecimento seja invulnerável ao erro. No âmbito do ato

comunicativo declarações de conhecimento do tipo “eu sei que” assumem

compromissos, do mesmo modo que uma promessa, quando uma pessoa promete a

outra que, por exemplo, irá comparecer a reunião às 14h, autoriza a outra pessoa a

se fiar nessa declaração e assumir responsabilidades relativas a promessa, dizer “eu

sei que S é P” é por em risco a sua reputação e, além disso, “procurar mostrar, não

meramente sua certeza a respeito, mas que este algo está ao alcance da sua

cognição” (AUSTIN, 1946, p.109).

“Analogamente, dizer “eu sei” é dar um outro passo decisivo. Mas não é dizer: “euconsegui uma façanha de cognição especialmente notável, superior na mesma escalaque a de acreditar e ter toda certeza. Assim como prometer não é algo superior, namesma escala que a de esperar ou tencionar, até mesmo ao mero ter total intenção,pois não há nada nesta escala superior à total intenção. Quando eu digo “eu sei” douminha palavra aos outros: dou aos outros minha autorização para dizer que “S é P”.”.(AUSTIN, 1946, p.108).

Do ponto de vista do agente que se comunica com outro, acreditar e aceitar

as declarações de outra pessoa, como dito, é um traço do ato comunicativo. A

respeito de “saber que S crê que P”, a questão volta ao ponto da familiaridade e da

ocasião de ter tido contato com as respostas que S deu acerca de P, de modo que o

agente se sente mais seguro em dar credibilidade as declarações de S. Esses são

modos como um agente num ato comunicativo interage com seu interlocutor. No

entanto, a base para fazer declarações de conhecimento dos próprios estados

mentais, ainda parecem não serem as mesmas nos casos de conhecimento de

estados mentais de outras pessoas. O próximo tópico tratará da assimetria dessas

duas formas de conhecimento.

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1.1.3 Assimetria entre primeira e terceira pessoa

Até o momento foram apresentadas as problemáticas que envolvem o

conhecimento de outras mentes, sobre a perspectiva de Austin. Como foi visto, para

ele, por questões linguísticas, quando se pretende conhecer algo tentando

estabelecer como o é na realidade, com total certeza e segurança, há um fundo

metafísico exigindo critérios elevados para o conhecimento. No entanto, para

situações de atos comunicativos os critérios tornam-se impeditivos para que possa

ser formulada uma teoria do conhecimento, visto que as experiências humanas e as

declarações sobre a realidade são imprecisas, embora as imprecisões sobre uma

perspectiva de uma prática linguística pareçam não afetar tão drasticamente o

conhecimento a ponto de negá-lo. Portanto, ao se dar ênfase a prática comunicativa

as dúvidas metafísicas sobre outras mentes, ao menos em parte, são esclarecidas.

Nesta seção de acordo com o que foi visto da trajetória feita por Austin da

tentativa de fundamentação do conhecimento sob preceitos metafísicos, até a

filosofia da linguagem que aponta os casos de fundamentações que por tentar

estabelecer o conhecimento como algo seguro e estável extrapola a linguagem para

além do que ela pode ser usada, a saber, a linguagem não pode predizer o futuro.

Neste sentido, se seguirá o percurso feito pela filosofia da linguagem, para isso, será

utilizará o pensamento do filósofo Donald Davidson e o modo como ele pensa as

práticas comunicativas junto ao desdobramento do problema das outras mentes. É

sabido que para haver interlocução é necessário o mínimo de duas pessoas.

Portanto, é o caso de apresentar a perspectiva tanto daquele que é objeto de ser

conhecido, como a perspectiva do que se dispõe a conhecer. Em outras palavras,

apresentar a perspectiva da primeira e da terceira pessoa. Nesse sentido, serão

expostas as principais dificuldades entre os diferentes modos que um agente

conhece os seus próprios estados psicológicos e o modo como conhece os estados

psicológicos de outras pessoas.

Um agente epistêmico tem experiências empíricas que lhe permitem formar

crenças sobre o mundo. Do mesmo modo, é esperado que outros seres humanos

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também possuam esta mesma capacidade. Essa é uma prática comum. Entretanto,

caso se questione um agente epistêmico sobre o que ele pensa, os meios que ele

terá para responder será imediata e não necessitará de apelo a evidências externa,

pode-se dizer, inclusive, que em algumas circunstâncias o autoexame, através da

introspecção, lhe confere acesso ao que pensa sem apelo ao que se passa fora de

sua mente. Em contraste, caso se pergunte ao mesmo agente como conhece os

pensamentos de outras pessoas ele não poderia dar nenhuma resposta se não

pudesse notar o comportamento delas. Por esse motivo, “se os estados mentais de

outros são conhecidos apenas através de suas manifestações comportamentais, e

outras manifestações externas, enquanto isso não é verdade para nossos próprios

estados mentais, por que devemos pensar que nossos estados mentais são algo

como os dos outros?” (DAVIDSON, 1991, p.3). Portanto, para que haja sentido em

significar estados mentais de outras pessoas como semelhantes aos casos de

primeira pessoa, é necessário que exista um traço comum entre ambos, ou, no

mínimo, algo que permita a interação entre essas duas perspectivas distintas da

primeira e terceira pessoa.

1.2. O PROBLEMA DAS OUTRAS MENTES SEGUNDO DONALD DAVIDSON

O que um agente acredita a respeito do mundo permite-o dar respostas

diferentes a depender da situação em que se encontra e também fazer asserções

sobre aquilo no que ele crê. Desse modo, a crença assume um papel determinante

para o conhecimento, pois a crença estabelece uma relação intrínseca com a

crença, sendo uma condição para o conhecimento que se acredite em algo para que

possa conhecê-lo. Portanto, ainda que , nos casos de primeira e terceira pessoa as

formas de acesso ao conteúdo de estados mentais sejam distintas, e tenham que

ser esclarecidas, ter uma crença, ou seja, acreditar em algo do mundo, e poder

expressá-lo, é um passo para o ato comunicativo e um ponto a ser esclarecido.

Davidson, nesta passagem, do seu artigo intitulado “Três Variedades do

Conhecimento” (DAVIDSON, 1991), distingue o traço peculiar da crença que

direcionará a investigação sobre a assimetria para um âmbito em comum:

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A crença é uma condição do conhecimento. Mas para ter uma crença não é suficientediscriminar entre aspectos do mundo, comportar-se de diferentes maneiras emdiferentes circunstâncias; um caracol ou uma minhoca faz isto. Ter uma crençarequer, a mais, a apreciação do contaste entre crenças verdadeiras e falsas, entreaparência e realidade, entre o mero parecer e o ser. [...] Alguém que tem uma crençasobre o mundo – ou qualquer outra coisa – deve apreender o conceito de verdadeobjetiva, do que é o caso independente do que ele ou ela pensa. Nós devemosperguntar, portanto, pela fonte do conceito de verdade. (DAVIDSON, 1991, p.5)

Em relação a um agente epistêmico ter uma crença, seja ela em primeira ou

terceira pessoa, acreditar em algo, por si só, não garante a verdade dela. Por

exemplo, um agente pode acreditar que está chovendo ao ouvir o barulho do ar-

condicionado. Ao tratar de verdade objetiva o interesse é, justamente, sair da

subjetividade do indivíduo e poder ter critérios que deem conteúdo as atitudes

proposicionais sem que, ao menos em parte, elas dependam das crenças

individuais. É de se presumir que a fonte do conceito de verdade seja externa ao

agente epistêmico , esse é um ponto que será abordado no subcapítulo seguinte e

discutido no tópico sobre externismo. No momento, coube apenas os devidos

esclarecimentos feitos a respeito de se ter uma crença. Se seguirá com os

problemas gerados pela assimetria entre o conhecimento de primeira e terceira

pessoa.

1.2.1 O Problema da assimetria

O ponto da assimetria é o tipo de acesso aos estados mentais, no caso da

perspectiva de primeira pessoa, tem caráter imediato e intransponível. No caso do

acesso à outras mentes, o acesso é baseado em observações comportamentais.

Segue-se, portanto, que a crença de um agente epistêmico não possui o mesmo

conteúdo proposicional da crença de outra pessoa. Além disso, o conhecimento do

mundo é relativo às experiências sensoriais individuais, portanto, um agente

epistêmico, a princípio, nunca estará certo se a relação entre sua crença e os fatos

do mundo é verdadeira.

A consequência dessas duas afirmativas são dois modos de ceticismo. O

primeiro modo é o ceticismo a respeito de outras mentes, no qual se afirma que é

impossível conhecer estados mentais de outros indivíduos. O segundo modo é o

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ceticismo a respeito do mundo externo, no qual se afirma que é impossível conhecer

o mundo para além das representações individuais. Evidentemente, o segundo caso

infere o primeiro, pois, uma vez impossível se conhecer o mundo constituído por

outras pessoas, logo, não se pode conhecer outras pessoas.

No primeiro caso, pode-se chegar a conclusão de que “existem realmente

dois tipos de conceitos: conceitos mentais que se aplicam aos outros, e conceitos

mentais que se aplicam a nós mesmos”. (DAVIDSON,1991, p. 3). Por exemplo,

“Manga” é uma palavra que pode ser usada de maneiras diferentes, uma referente a

fruta e outra referente a uma parte da camisa. Em cada caso “critérios de emprego

da palavra” são diferentes e se tratam, de fato, de dois objetos diferentes.

Analogamente “ter dores” pode ser entendido como tendo significados diferentes,

um quando usado nos casos de primeira pessoa, o que não necessita de recurso a

evidência e o outro “quando usando como critério a evidência fornecida pelo

comportamento (no caso da terceira pessoa: "ele tem dores")” (SMITH, 2005, p. 139)

A assimetria implica em conceitos distintos para estados mentais e estados

físicos. Essa diferença cria uma barreira entre crenças em primeira pessoa e

crenças em terceira pessoa. Sendo assim , para a comunicação ser reestabelecida é

preciso esclarecer essas diferentes formas de se referir ao mundo. Apenas mostrar

que há duas formas de acesso distinto não “garante de que se trata de um único

conceito; ao contrário, o natural é supor que são dois conceitos distintos”; como no

caso da manga fruta e a manga parte da camisa, “o natural é supor que são dois

conceitos distintos” os conceitos que se aplica em casos de primeira pessoa e nos

casos em terceira pessoa. (SMITH, 2005, p. 139-140)

No caso da independência lógica entre a crença e o mundo externo,

Davidson (DAVIDSON, 1991) aponta ainda outra dificuldade, se por um lado o

agente epistêmico não tem garantias que suas crenças contém algum valor efetivo

no mundo “nenhuma quantidade de conhecimento sobre o mundo externo implica a

verdade sobre os trabalhos de uma mente. Se há uma barreira lógica ou epistêmica

entre mente e natureza, ela não apenas nos impede de ver para fora, ela também

bloqueia uma visão de fora para dentro” (DAVIDSON, 1991, p. 2-3). A consequência

do caso apresentado é um ceticismo generalizado, ou ceticismo global, “a tese

segundo qual todas nossas crenças são falsas” (SILVA FILHO, 2005, p.156).

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Para Davidson, tanto o ceticismo sobre outras mentes, como o ceticismo

sobre o mundo externo, tem a mesma origem e “separar os problemas tem o efeito

indesejado de obscurecer o fato de que os dois problemas se apoiam em uma

mesma suposição”(DAVIDSON, 1991, p. 2), a suposição a qual Davidson se refere é

da independência lógica entre crença e mundo, essa suposição é originada,

segundo Smith, na dicotomia entre os eventos mentais e os eventos físicos:

As questões céticas parecem originar-se na imagem que se tem da relação entre amente e o mundo. No caso da assimetria, nota-se que, enquanto o emprego de umconceito mental na primeira pessoa remete a uma sensação, portanto alguma coisanaturalmente apta a estar na mente, o emprego de um conceito mental na terceirapessoa remete a um comportamento, portanto alguma coisa corporal ou física. Tantoo problema cético das outras mentes como o da própria mente parecem ter origem naideia de que os conceitos mentais são ambíguos ou têm duplo significado, um que serefere à mente, independentemente do que ocorre no corpo, e o outro ao corpo,independentemente do que ocorre na mente. Uma vez mais, vemos que a raiz últimado ceticismo está ligada à distinção entre a mente e o copo, a essa imagem de que amente está fora do mundo. (SMITH, 2005, p.140-141)

A consideração final trazida na citação acima, “essa imagem de que a mente

está fora do mundo”, de fato, mostra como se torna difícil ou intratável as questões

céticas sobre outras mentes e sobre o mundo externo. No caso da assimetria

também se nota que os casos em primeira e em terceira pessoas, a mente parece

ocupar um lugar fora da natureza ou um lugar em comum entre os homens e o

mundo. Contudo, a definição de crença, brevemente esboçada anteriormente,

seguia numa direção que sugeria uma intersecção entre as diferentes mentes e o

mundo exterior. O próximo subcapítulo apresentará as respostas dadas por

Davidson para a assimetria, as outras mentes e o problema mente-corpo. Este

último ainda de maneira provisória, pois envolve mais conceitos e argumentos que

somente serão apresentados nos capítulos posteriores.

1.2.2 Entre conhecimento em primeira e terceira pessoa.

Até o momento foram apresentados os problemas e dificuldades que

envolvem conhecer outras mentes. O principal deles e que, consequentemente, gera

os outros é o ceticismo global. Foi visto que ao se apoiar na suposição de que “as

crenças são logicamente independentes dos eventos do mundo”, a mente é

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separada do mundo físico. Desse modo, qualquer tentativa de conhecimento se

torna inapreensível e culmina no ceticismo. A assimetria entre autoconhecimento e o

conhecimento de outras mentes, por estar inserida nesse contexto, precisa de uma

resposta ao ceticismo global e ao lugar que a mente ocupa no mundo. Respondendo

essas questões se tornará possível afirmar se esses tipos de conhecimento são

viáveis e quais são suas características distintivas.

Este subcapítulo apresentará as respostas oferecidas por Donald Davidson

para o problema das outras mentes e o da assimetria entre o conhecimento da

própria mente e a das outras pessoas. No que diz respeito ao ceticismo global e ao

lugar que a mente ocupa no mundo, se esboçará a direção em que ele irá tratar

esses problemas, no entanto, por questões conceituais e argumentativas, serão

desenvolvidos posteriormente.

1.2.3 O argumento contra as linguagens privadas

Para Davidson (DAVIDSON, 1991), ter uma crença requer mais do que

responder a diferentes estímulos, a crença exerce um desempenho na vida psíquica

que permite o agente epistêmico atribuir verdade e falsidade independente do que

ele pensa. Nesse ponto, o agente epistêmico é capaz de refletir sobre seu próprio

pensamento, esse é um exercício que exige um critério para que ele possa saber os

casos quando usa as palavras de modo adequando e quando não as usa. No tópico

sobre crenças, no subcapítulo anterior, foi falado sobre verdade objetiva, cabe agora

retornar a esse ponto.

A respeito dos critérios de verdade, Davidson (DAVIDSON,1991) afirma que

somente a comunicação pode fornecer um padrão de verificação objetiva da

verdade, para isso, inicialmente ele recorre ao argumento contra as linguagens

privadas elaborado por Wittgenstein (DAVIDSON, 1991). Neste argumento, é

mostrado que qualquer tentativa de definição ostensiva privada é ininteligível, ou

seja, não há o que possa ser significado, à exemplo de como se concentrar em

determinado estado mental privado, através da introspecção, e apontá-lo como se

faz com um objeto empírico. Para Wittgenstein, de acordo com Hacker (1992), é

inviável, pois ao tentar significar privadamente estados internos não se faz o uso de

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regras que determinem o uso apropriado de palavras para esses estados.

O caráter público da linguagem é o elemento que determina o conjunto de

regras para o uso das palavras, Hacker afirma que “a definição ostensiva privada é

uma noção inteligível ou não em função de haver ou não análogos (mentais)

privados dos elementos constitutivos da definição ostensiva pública”, por exemplo:

Apontar para um tomate e dizer “Isto é vermelho”, por si mesmo, não determina maiso uso da palavra “vermelho” do que apontar para a lua e bramir determina o uso paraa ocasião de um bramido. “Vermelho” é uma palavra para cor. E a categoriagramatical de cor fixa um conjunto de várias regras. A gramática do definiendum nãoflui a partir do objeto apontado. Concentrar-se em uma dor de dente e dizer “Isto édor” não determina aquilo que isto é. Ter-se-ia de pressupor a gramática da palavra“sensação”, mas esta é uma palavra em nossa linguagem pública e não é definida pordefinição ostensiva privada. (HACKER, 1992, p. 368-374)

O argumento contra a linguagem privada mostra a ininteligibilidade de teorias

baseadas em experiências privadas tomadas isoladamente, portanto, perde sentido

falar em formas de ceticismo que tratam as crenças como logicamente

independentes do mundo. A ideia de uma crença onde seu conteúdo proposicional

foi formada pelas experiências privadas, com as considerações de Wittgenstein,

apresentadas por Hacker, desloca como a fonte de verificação de crenças

verdadeiras, a instrospecção, ou a concentração em determinado estado interno,

para Hacker, Wittgenstein:

[...]insiste na distinção entre dor e comportamento de dor, e ele não sustenta que ointerno seja uma ficção, mas antes que uma certa imagem filosófica do interno é umaficção gramatical. Seus argumentos não se baseiam em uma forma deverificacionismo para refutar a suposição da inteligibilidade da definição ostensivaprivada; antes, ele meramente nos lembra de que, se falarmos em uma regra para ouso de uma palavra, então deve haver uma distinção operativa entre a aplicaçãocorreta e a incorreta da regra. Ele não argumentou que o único refúgio contra oceticismo a respeito da linguagem jaz no consenso (público) da comunidade (e assimque a linguagem fosse essencialmente social), mas, antes, que a ideia de uma regra(por exemplo, de gramática) que pode a princípio ser entendida apenas por umapessoa é ininteligível (HACKER, 1992, p. 368-374).

Pensando desse modo é preciso levar em consideração que um

comportamento não é uma manifestação aleatória, ou automata de uma simples

reação a um estímulo sensorial e sim, “A alegria, a dor ou o deleite não são

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acompanhantes de “movimentos corporais simples” — como se fossem ocultos por

detrás do comportamento (ou seja, na mente). Não são ocultos, mas sim manifestos;

não acompanham o comportamento (como o trovão acompanha o raio), mas sim o

infundem; não estão por detrás do comportamento (como o movimento de um

relógio está atrás de seu indicador), mas sim visíveis nele (HACKER, 1992).

Davidson (DAVIDSON, 1991) se apoiará, justamente, na ênfase dada ao

caráter público da ação comunicativa para que possa haver pensamento. Para ele a

comunicação será o que possibilitará a conexão direta entre as mentes e o mundo e,

somente desse modo, é possível que se pense em termos como verdade de forma

objetiva, ou seja, independente das crenças individuais de um agente:

O argumento central contra linguagens privadas é que, a menos que uma linguagemseja compartilhada, não existe maneira de distinguir entre usar a linguagemcorretamente e usá-la incorretamente; apenas a comunicação com um outro podefornecer uma verificação objetiva. Se apenas a comunicação pode fornecer umaverificação do uso correto das palavras, apenas a comunicação pode prover umpadrão de objetividade em outros domínios, pelo menos de acordo com como euargumento. Nós não temos razões para atribuir a uma criatura com a capacidade defazer a distinção entre o que é pensado como sendo o caso e o que é o caso, amenos que a criatura tenha o padrão fornecido pela linguagem compartilhada; e semessa distinção não há nada que possa ser claramente chamado de pensamento.(DAVIDSON, 1991, p. 5-6)

Desse modo, a comunicação será para Davidson o elo entre os agente, em

um ato comunicativo e o mundo empírico, durante o processo comunicativo cada

agente terá no outro os parâmetros para saber se está usando a linguagem correta

ou incorretamente em relação ao ambiente em comum e aos objetos que eles estão

se referindo.

1.2.4 A comunicação como resposta aos problemas das outras mentes e o da

assimetria

Apresentado o papel da comunicação para o pensamento, observou-se que o

problema das outras mentes e o da assimetria entre o conhecimento da própria

mente e o da mente de outras pessoas ficam sobre o escrutínio da dependência de

uma avaliação pública que é fornecida pela linguagem. Nestes termos, a linguagem

permite uma verificação objetiva do mundo. Davidson, pensando em um contexto

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comunicativo (DAVIDSON, 1991), evoca a imagem de dois falantes potencialmente

capazes de se expressar verbalmente, radicaliza-o o referido contexto para uma

situação onde os agentes epistêmicos falam línguas diferentes. Fazendo isso, pensa

em uma situação legítima de comunicação onde um agente (intérprete) atribui

significado as frases do seu interlocutor e, além disso, atribui intencionalidade ao

seu comportamento verbal. “Perguntando como um intérprete competente (um com

recursos conceituais adequados e com uma linguagem própria) poderia

compreender o falante de uma língua estrangeira. Nesse caso, recorrendo a uma

situação radical de comunicação, o modo a relação entre os agentes epistêmicos

fornem critérios para uma verificação objetiva, pode tomar um outro direcionamento,

“Uma resposta a esta pergunta deveria revelar algumas configurações importantes

da comunicação, e jogar luz indireta sobre o que torna possível uma primeira

entrada na linguagem”. (DAVIDSON, 1991, p.6)

A interpretação radical lida com as condições de possibilidade para a

comunicação interpessoal, conferindo verdade objetiva aos enunciados dos falantes,

o esforço de uma pessoa para expressar suas crenças sobre o mundo tem, como

critério de correção, a perspectiva da outra pessoa como seu parâmetro. O mundo,

entretanto, é o causador das crenças, atuando,de modo geral, como regulador e

permitindo respostas frequentemente semelhantes entre os agentes epistêmicos.

Falar em objetividade, nesse sentido, é poder traçar uma linha comum entre as

frases enunciadas por um sujeito e seu interlocutor, a respeito do mundo, “São

precisos dois pontos de vista para dar uma localização à causa de um pensamento

e, portanto, para definir seu conteúdo” (DAVIDSON, 1991, p. 9). O fato que vigora na

comunicação, para Davidson, é a intencionalidade, portanto, para ambos os falantes

e parte crucial no discurso é a operação ativa do agente epistêmico com sua crença.

Logo, fazer asserções sobre o mundo é reconhecer a si próprio como quem acredita

e tem a intenção de anunciar sua crença a audiência, Davidson expõe essa

perspectiva como pode ser visto na citação abaixo, retirada do artigo Conhecer à

própria mente:

Se um falante quer ser compreendido, ele tem que querer que as suas palavrassejam interpretadas de uma certa maneira e tem, logo, que querer fornecer à suaaudiência as pistas de que ela necessita para chegar à interpretação almejada. Isto éválido tanto no caso de o ouvinte dominar o uso de uma língua que o falante sabe

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como no caso de o ouvinte ser um aprendente de uma língua materna. É o requisitoda aprendabilidade, da interpretabilidade, que fornece o fator social irredutível e quemostra porque é que uma pessoa não pode querer dizer seja o que for com palavrasque não possam ser corretamente decifradas por outra. (DAVIDSON, 1987, p.11)

Está sendo levado em consideração os pontos de vista de dois agentes

epistêmicos, ambos desempenham papéis essenciais no discurso e por detrás dos

seus enunciados estão a intenção de declarar suas crenças. Para Davidson

(1987;1991) É crucial o desempenho ativo, tanto em primeira como em terceira

pessoa eles sobre a tensão das suas respostas, traçam um ponto em comum com

os eventos da natureza. Por exemplo," O interprete vê o falante dizer "gavagai" e vê

que ele olha para um coelho; o próprio interprete olha para onde ele olha e vê um

coelho. Assim a série causa que leva o falante a dizer "gavagai" e a série causal que

leva o intérprete a pensar em um coelho se cruzam num certo objeto no mundo"

(SMITH, 2005, p.148).

Um agente estando sobre o exame das declarações que profere, uma vez

conhecendo as regras da linguagem, se torna apto a reconhecer-se a si próprio

como quem tem crenças. Esse é um ponto determinante no pensamento de

Davidson, pois, como será visto, os critérios de correção de palavras e enunciados,

em geral, pressupõem a perspectiva da terceira pessoa para que, como parte das

manifestações externas, possam se estabelecer as regras de uso comum e

apropriados de uma língua. No entanto, Davidson, com o quadro intersubjetivo que

está traçando, considera que um agente é capaz de acessar seus próprios

pensamentos e, parte desse pressuposto, fornecerá as condições para que a

comunicação se torne possível:

Com respeito a nossos próprios pensamentos, a diferença não é maior do que entredizer assertivamente “a neve é branca” e dizer assertivamente “eu creio que a neve ébranca” [..] Isto se dá porque qualquer um que compreende o discurso podereconhecer asserções, e sabe que alguém que faz uma asserção representa a simesmo como acreditando no que está dizendo. (DAVIDSON, 1991, p.6)

Nesse caso, fica claro que a condição de verdade para que uma pessoa

enuncie que “a neve é branca” é sua crença de que “a neve é branca”, mesmo que o

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agente não represente o mundo precisamente, tal como ele é. Pode ocorrer

equívocos, no entanto, as crenças individuais estão sobre o critério de uma

avaliação pública, sendo assim, podem ser corrigidas. Com a crença no âmbito

público ela volta a circundar a uma realidade em comum entre os agentes

epistêmicos, o que permite uma resposta ao problema das outras mentes e ao da

assimetria.

1.2.5 As consequências geradas pelo argumento da linguagem privada

O problema das outras mentes, enquanto o lugar que ocupava, numa

realidade paralela a do agente epistêmico, desloca-se para o contexto

sociolinguístico com o argumento contra as linguagens privadas. No caso do

comportamento alheio se prestar como evidência para se atribuir crenças, o

argumento da linguagem privada faz com que declarações de estados internos

desocupe a perspectiva individualista e ocupe um lugar público, porque, neste

âmbito em comum é possível haver usos claros de regras para as palavras.

Davidson concorda com esse ponto de vista, no entanto, de acordo com o seu

pensamento, imputando a crença para um âmbito exclusivamente público, em

termos de significado das palavras e experiências internas, o agente epistêmico, em

alguns casos, pode estar totalmente alheio sobre aquilo o que ele acredita e pensa

num sentido interno. Se esse for o caso, se geraria um outro tipo de ceticismo, o

ceticismo sobre o autoconhecimento.

Entretanto, o quadro esboçado a respeito da intersubjetividade, ainda que

precise ser mais amplamente desenvolvido, responde o ceticismo sobre outras

mentes e a assimetria entre conhecer a própria mente e as mentes alheias. As

outras mentes, deslocam-se de um quadro metafísico para um quadro de uma ação

comunicativa e assumem o papel de interlocutoras. Por suas crenças não poderem

ser privadas, devido ao conteúdo delas dependerem da ostensividade pública, a

mente de outros ocupa um âmbito em comum com a natureza e outros seres

humanos. Na assimetria, para Davidson (1987;1991), o agente epistêmico tem

autoridade sobre seus próprios pensamentos, no entanto, existem teses externistas

que dizem ao contrário (Burge, 1979; Putnam, 1975). Sendo assim, enquanto os

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pontos de vista da primeira e terceira pessoa pertencem ao âmbito da comunicação

a assimetria é dissolvida, por outro lado, é preciso esclarecer se o agente tem

autoridade sobre seus próprios pensamentos ou não. Foi visto que o lugar ocupado

pela mente na realidade e o ceticismo global fazem sentido sobre uma perspectiva

subjetivista, entretanto, as teses externistas outorgam ao mundo o papel de causar

as crenças nos agentes, mas o momento permitiu apenas um esboço.

O próximo capítulo intitulado A Autoridade da Primeira Pessoa, irá continuar a

discussão sobre o lugar que declarações na primeira pessoa têm de relevante para

o contexto comunicativo. Dentro disso, primeiramente, se tem como objetivo

apresentar o papel que o agente em primeira pessoa tinha para a tradição. Em

segundo lugar, expor as consequências negativas que a autoridade de primeira

pessoa sofre com algumas teorias externistas e, por fim, mostrar as defesas que

Davidson faz sobre a autoridade de primeira pessoa e a relevância dela para o seu

sistema e para a epistemologia.

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CAPÍTULO 2

A AUTORIDADE DE PRIMEIRA PESSOA

2.1 O QUE SIGNIFICA A AUTORIDADE DE PRIMEIRA PESSOA

O capítulo anterior tratou das questões epistemológicas e metafísicas que

envolvem as outras mentes. Decorrente disso, foi visto que tentar fundamentar uma

teoria do conhecimento onde tenta assumir as crenças de um agente epistêmico

sobre experiências privadas e internas, torna essas crenças inapreensíveis. Através

do argumento das linguagens privadas mostra-se que somente a ostensividade

pública fornece os critérios necessários para que as palavras, dentre elas as que

são relativas a estados sensoriais individuais, adquiram uso nas práticas

comunicativas. Portanto, a comunicação é determinante para o pensamento. A

impossibilidade de conhecer outras mentes sobre alegações de que não temos

maneiras efetivas de acessar o mundo, sem ser por nossos órgãos sensoriais, e por

outras mentes pertencerem ao mundo externo a mente, também é contestada, uma

vez que a natureza permite, durante uma situação comunicativa, sustentar as

respostas dos falantes constantemente como semelhante. O erro apesar de

inevitável não se apresenta como impeditivo para o conhecimento, uma vez que as

respostas podem ser revistas e verificadas objetivamente sobre o escrutínio público.

Entretanto, para Davidson (DAVIDSON, 1987), o argumento da linguagem

privada apesar de direcionar a crença para um âmbito público, em certa medida, faz

com que o agente epistêmico seja alheio acerca de seus próprios pensamentos.

Pois, ainda que não se possa atribuir conteúdo a crenças tomadas a um indivíduo

isoladamente, não pode ser descartada a característica da subjetividade de que

“Pensamentos são privados, no sentido óbvio, mas importante no que a propriedade

de poder ser privado, ou seja, pertencem a uma pessoa” (DAVIDSON, 1988, p.52).

Essa característica dos pensamentos de uma pessoa pertencerem a ela, é chamada

de autoridade de primeira pessoa e é o centro da discussão desse capítulo.

É importante destacar que com a crença assumindo o âmbito público,

surgiram teorias chamadas externistas. Essas teorias afirmam que o conteúdo dos

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enunciados de um agente epistêmico estão, ao menos em parte, no mundo externo.

Essa é uma resposta a um certo modelo de mental que assumia as experiências

privadas como fonte de evidência para o conhecimento do mundo.

Apresentado o quadro da problemática, esse capítulo tem como objetivo

principal apresentar o papel da autoridade da primeira pessoa para Davidson. Isso

se mostra relevante, pois se a pretensão é discutir a possibilidade de conhecer

outras mentes e o papel do interlocutor para a comunicação, é razoável pensar que

um agente epistêmico deve, ao menos parcialmente, saber aquilo o que pensa. Para

isso, se fará, inicialmente uma apresentação do quadro de como a mente era

concebida na concepção individualística. Após, serão apresentadas as críticas

externistas para esse modelo de mental. Como foi dito anteriormente, o externismo

apresentará, para Davidson, algumas dificuldades que dizem respeito a autoridade

de primeira pessoa - serão apresentados quais são esses problemas. Por fim, se

mostrará o externismo aos moldes de Davidson e o papel da autoridade da primeira

pessoa para seu pensamento.

2.1.1 A Visão individualística clássica

No capítulo anterior foi visto que a crença, tomada como uma experiência

mental privada, não tem critérios para que seja publicamente anunciável a uma

audiência. O argumento contra as linguagens privadas além de mostrar a

impossibilidade de uma teoria baseada nesses parâmetros, o alcance do argumento,

como apresenta Hacker, no artigo “O argumento da linguagem privada” (1992),

remonta uma grande parte da tradição filosófica. De acordo com o filósofo a

linguagem privada não é uma espécie de “código privado” que de alguma pode ser

traduzido ou decifrado por outras pessoas, antes disso, é uma linguagem onde as

“palavras individuais” e seu conteúdo e significado dependem das “sensações

imediatas” que somente o falante tem acesso através da sua experiência privada

“ou, para usar o jargão empirista, às “ideias” de sua mente”. (HACKER, 1992, p.368-

374)

A extensão desse argumento, reflete sobre uma concepção comumente

difundida no período moderno, “[…] seja empirista, racionalista ou kantiana —, do

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idealismo representacional, não menos do que o idealismo puro, e do

representacionismo cognitivo contemporâneo, que as línguas que todos nós falamos

são linguagens privadas”; o que significa dizer que os “fundamentos do

conhecimento” são baseado em experiências privadas e irreprodutíveis (HACKER,

1992, p. 368-374) Sobre as considerações de Wittgenstein, os dados dos sentidos

(sense datas) são pensadas sobre um novo domínio. O critério para que uma

linguagem tenha sentido é a sua correção através da ostensividade pública.

O conceito de mente, ou estados mentais, como foi concebido, partia de um

pressuposto individualista, sendo assim, a subjetividade do indivíduo era o

mecanismo para representar, a partir de dados sensoriais e de suas ideias, o mundo

externo. No entanto, esse tipo de concepção do mental mostra-se insatisfatório, uma

vez que impede que o mundo possa ser representado de maneira objetiva. Ademais,

basear-se em uma perspectiva individualista da mente, ao impedir o conhecimento

do mundo externo e de outras mentes, gera o ceticismo. Davidson caracteriza a

concepção clássica de mente da seguinte maneira:

Há uma perspectiva da mente que ficou de tal modo enraizada na nossa tradiçãofilosófica que é quase impossível escapar à sua influência, mesmo quando sereconhece e repudia os seus piores defeitos. Numa versão rudimentar mas habitualas coisas passam-se assim: a mente é um teatro no qual o eu consciente assiste aum cortejo (as sombras na parede). O cortejo compõe-se de “aparências”, de dadossensoriais, de qualia, daquilo que é dado na experiência. Aquilo que aparece no palconão são os objetos habituais do mundo que o olho exterior regista e o coraçãoaprecia, mas os seus supostos representantes. O que quer que saibamos acerca domundo exterior depende daquilo que conseguimos colher a partir de pistas internas.(DAVIDSON, 1987, p.16)

A preocupação de Davidson com o subjetivismo é como representar o mundo

de maneira objetiva. Crenças individuais e construídas por um material acessível a

experiências internas e coletadas por indícios que, em última instância, são de tal

contingência que podem representar o mundo muito diferente da forma como o

agente o concebe é, em certa medida, uma forma arbitrária de dizer como o mundo

é, pois ao assumir o subjetivo como uma fonte de evidência, as sensações, por

exemplo, podem se mostrar exatamente como são e o mundo ser diferente. “Nossas

crenças pretendem representar algo objetivo, mas o caráter de sua subjetividade

nos impede de dar o primeiro passo para determinar se eles correspondem ao que

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Page 35: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E ... · “outras mentes”, como, por exemplo conhecimento de terceira pessoa, o falante, o interlocutor e outros termos que

eles fingem representar”. (DAVIDSON, 1988, p.43)

A visão individualística, apesar de ter o agente epistêmico em primeira pessoa

que é um elemento irrevogável para o conhecimento, pois, é uma condição para o

conhecimento que haja um indivíduo ativo na prática investigativa. Por outro lado, o

individualismo assume o agente dentro de um quadro que o impede de fazer

afirmações para além das suas representações individuais e o que concebe dentro

dos seus estados internos, dessa maneira há uma dificuldade em responder se há a

possibilidade de conhecimento em diferentes casos de conhecimento,

aparentemente assimétricos e conceitualmente distintos, a saber, o conhecimento

dos próprios estados internos, no conhecimento do mundo e no conhecimento da

mente outras pessoas. Sendo que o conhecimento do mundo externo e de outras

mentes são logicamente independentes das representações internas do agente.

Sendo assim as teorias subjetivistas culminam em problemas, ou o ceticismo sobre

o mundo externo e as outras mentes ou o relativismo metafísico. Sobre esse ponto

Davidson propõe que as abordagens individualísticas, seguem um ponto em comum

quando diz respeito aos diferentes casos de conhecimento em geral, o

autoconhecimento, ou seja, aquilo o que o agente pode identificar subjetivamente

pela introspecção é a principal fonte de informação “e então buscam derivar o

conhecimento do mundo externo a partir dele; como um passo final, eles tentam

basear o conhecimento de outras mentes em observações do comportamento”.

(DAVIDSON, 1991, p.1)

Esse quadro do mental promove uma distinção ontológica entre a mente e o

resto do mundo. A mente é tida como uma entidade abstrata independente da

natureza, de forma que o agente epistêmico passivamente, através dos seus órgãos

sensoriais, recebe os dados e tenta reconciliá-los com o mundo.

Para Davidson, somente faz sentido faz sentido pensar em um mundo

exterior completamente diferente daquele que um agente epistêmico forma a partir

de suas crenças dentro da perspectiva subjetivista, nesse sentido, “o problema

engendrado pelo ceticismo na epistemologia contemporânea só pode ser

corretamente compreendido (e resolvido) no âmbito de uma certa concepção da

mente e do conhecimento que é, ao mesmo tempo, subjetivista, pois supõe que o

mundo de cada pessoa é construído a partir de um material disponível à sua

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consciência, e individualista, já que reporta à experiência singular” (SILVA FILHO,

2005, p. 157) O subjetivismo lida com as condições fisiológicas e cognitivas que

interagem com o mundo, dentre elas os dados sensoriais que são impressões

imediatas captadas por estímulos. A relação entre estímulos e a cognição do agente

funcionam, em geral, fornecendo os dados do mundo exterior de maneira passiva.

Desse modo, atribuir significado a enunciados baseado numa relação de

intermediadores epistêmicos não fornece nenhuma garantia objetiva entre o agente

e o mundo, pois, o que é apreensível ao agente epistêmico são os objetos que são

captados pelos intermediadores e postos “diante de sua mente”. Sendo assim, “não

se pode esperar que diante da mente um objeto parcialmente identificado em termos

de relações externas coincida com um objeto perante a mente pois a mente pode

desconhecer a relação externas”(DAVIDSON, 1987, p.17) e, ao desconhecer as

relações externas, o objeto mental é desconectado do mundo físico. Esses objetos

mentais “estão entre nossas mentes autoconscientes e o resto do mundo, atuando

como mensageiros dos quais dependemos para receber notícias do mundo lá fora.

Tais objetos mentais estariam diante da mente, mas conectados apenas

indiretamente, quando muito, com o mundo exterior” (SILVA FILHO, 2005, p.157)

Dessa forma, Davidson expõe:

[...]se o objeto não está em relação com o mundo, nunca poderemos aprender nadasobre o mundo tendo esse objeto perante a mente; e, pelas mesmas razões, seriaimpossível detectar um tal pensamento noutra pessoa. Assim, parece que aquilo queestá perante a mente não pode incluir as suas relações exteriores — a suasemântica. Por outro lado, se o objeto está relacionado com o mundo, então nãopode estar completamente “perante a mente” no sentido relevante. Contudo, a menosque um objeto semântico possa estar perante a mente no seu aspecto semântico, opensamento, concebido nos termos de uns tais objetos, não pode escapar ao destinodos dados sensoriais. (DAVIDSON, 1987, p.18)

É preciso uma interação ativa entre a mente e o mundo, intermediar as

experiências do agente através do que ele pode representar dos seus estímulos,

além de um dualismo entre a mente e o mundo, relativiza o mundo externo ao que a

mente do indivíduo pode apreender dele. Nesse sentido, imagens representacionais

ou intermediários epistêmicos não proporcionam objetividade, pois sempre

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dependerão de uma experiência individual que, como tem sido mostrado, não se

serve de regras e critérios para serem corrigidas, “se ter um pensamento é ter um

objeto “perante a mente” e a identidade do objeto determina aquilo que o

pensamento é, então é sempre possível estarmos enganados acerca daquilo que

pensamos”. (DAVIDSON, 1987, p.18) Para Davidson aquilo que conhecemos e

pensamos está certo, mesmo que sofra desvios de autoconhecimento, no entanto,

se o pensamento é constituído e identificado por um objeto que é conhecido pela

mente e, desse modo, somente o agente tem acesso ao objeto em que esta

pensando. Não existe nada claro que possa ser esse objeto para uma mente.

(DAVIDSON, 1988, p. 54)

O subjetivismo na medida que se serve e intermediadores epistêmicos e

buscam fundamentar suas teorias sobre esses parâmetros, mantém a mente

desvinculada, ainda que parcialmente, do mundo externo, como Davidson tem

mostrado isso é problemático, pois existe sempre a possibilidade de se estar

enganado a respeito do que se acredita e de como o mundo é de fato, é o caso da

mente ou do conceito de mental, como tem sido exposto, ocupar um lugar público e

independente das crenças individuais. Para Davidson o problema persiste com a

insistência em manter a mente em um âmbito subjetivo, desse, modo por não saber

quais propriedades um “objeto mental” pode ter, pode se assumir que ele é

desconhecido. Neste ponto, para Davidson, ele acredita que filósofos como Hume

tentaram fundar o conhecimento sobre uma “identificação infalível” como

“impressões e ideias”; “'Elas são o que parecem e parecem o que são' ou sejam tem

tudo e somente as propriedades que pensamos que eles tem. Infelizmente, não

existem tais objetos.” (DAVIDSON, 1988, p. 54)

O conteúdo dos enunciados e dos conteúdos proposicionais de um agente

quando circunscritos nesse contexto estão expostos a um ceticismo inerente. As

considerações feitas sobre o contexto comunicativo pressupõem um mundo em

comum compartilhado. O mundo como causador das crenças permite que haja uma

linha de intersecção entre as diferentes perspectivas dos agentes e, além disso, que

o conteúdo dos objetos possam ter uma causa independente do que é pensado

sobre eles. Esse modo de pensar diz respeito as teses externistas. Cabe, portanto,

apresentar as teses externistas que Davidson está discutindo e como elas

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respondem o problema do conteúdo proposicional que antes era identificado na

mente do indivíduo tomado isoladamente.

2.2 A VISÃO EXTERNISTA

Uma imagem geral do externismo acerca dos estados mentais intencionais,

pode ser descrita como uma afirmação que o conteúdo de estados mentais

intencionais estão localizados fora da mente, isto é, o que dá significado as palavras

depende, causalmente, do entorno físico e linguístico do enunciador. Este

subcapítulo apresentará os argumentos externistas com que Davidson irá discutir e,

se por uma parte ele adere certas consequências, por outra, ele rejeita. E rejeitará

justamente a parte que deixará o agente epistêmico alheio aos seus pensamentos.

Portanto, Davidson insiste que a autoridade de primeira pessoa é necessária.

Ao ter um pensamento, desejar, querer, comportar-se com algum propósito,

etc., o agente encontra-se em determinado estado psicológico. De acordo com

Davidson (1987), o filósofo Hillary Putnam pensou que estados psicológicos como

“acreditar” e “conhecer” o significado das palavras não podem ser simultaneamente

“internos” - de forma que não dependa de outros indivíduos para que esse estado

possa ser atribuído – e, ao mesmo tempo, “localizados fora do agente” – estarem

ligados ao fato de que esses mesmos estados são geralmente “identificados e

individualizados” por eventos externos ao sujeito. Sendo assim, no ponto de vista de

Putnam, não há como satisfazer essas duas condições ao mesmo tempo, o que leva

a conclusão de que os significados das palavras apenas “não estão na cabeça”.

Os estados internos, do modo como estão sendo considerados por Putnam,

são classificados pelo filósofo como limitados. São limitados, pois o agente

epistêmico a respeito de seus estados internos, na maioria dos casos, não conhece

o seu significado. Para exemplificar, Putnam recorre a um experimento mental

chamado de Terras Gêmeas (PUTNAM, 1975). Nesse experimento, Putnam sugere

considerar dois seres humanos idênticos fisiologicamente e que sofreram a mesma

experiência com a palavra “água” ao terem contato com o objeto água. No entanto,

um desses indivíduos habita a terra e o outro uma replica idêntica da terra. Na terra

1 a composição da água é H2O e na terra 2 a composição da água é XYZ. Segue-

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se que mesmo os indivíduos estando em estados físicos idênticos ao enunciar a

expressão água, isto é, tendo a mesma crença, o indivíduo um refere-se a água 1,

enquanto o indivíduo 2 refere-se a água 2. Portanto, apesar de usarem a mesma

palavra para se referenciar a água, eles estariam falando de coisas diferentes. O

que satisfaz a condição dos significadas estarem fora da cabeça e nega a condição

de dependerem de um indivíduo.

Neste tipo de caso, os indivíduos das terras fictícias não sabem a respeito

daquilo em que acreditam e também não há nada que forneça indícios de que estão

certos, “não há nada com base na qual qualquer um dos falantes pode dizer em que

estado se encontra, pois não há quaisquer pistas internas ou externas em relação a

diferença disponível” (DAVIDSON, 1987, p.9), eles são completamente alheios ao

significado daquilo em que acreditam, apesar de estarem em contato direto com o

objeto. No ponto que afirma que parte do conteúdo e significado das palavras são

fixados por elementos externos, onde facilmente um agente pode desconhecer parte

relevante deles, Davidson está de acordo , no entanto, ele descorda quanto a

conclusão de que “aparentemente não sabemos aquilo que pensamos” (DAVIDSON,

1987, p.14). Para ele, este problema surge quando chega-se a conclusão de que “a

aceitação dos papéis identificadores e individualizadores dos fatores externos leva a

conclusão que os nossos pensamentos não podem ser conhecidos por nós”.

(DAVIDSON, 1987, p.8). “As diferenças devem-se a diferenças ambientais acerca

das quais os dois agentes podem, em determinados aspectos, nada saber”.

(DAVIDSON, 1987, p13)

Outra consequência externista que afeta a autoridade de primeira pessoa e

que Davidson rejeita é a de que “fatores externos controlam os conteúdos da mente

de uma pessoa”. (DAVIDSON, 1987, p.17). O principal filósofo que Davidson utiliza

para destacar essa consequência é Tyler Burge. No experimento mental desse

filósofo, ele pede que se considere um caso onde um agente (a) acredite que está

com artrite, no entanto, as informações que ele tem sobre artrite é que é uma

inflamação nas articulações devido a depósitos de cálcio, e um outro agente (b), que

entende mais do assunto, usa a mesma palavra “artrite” para designar a doença

mencionada por (a), com a diferença que ele sabe que se trata de qualquer

inflamação nas articulações. No caso de (a) e (b) serem falantes fluentes da mesma

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língua e saberem o uso da palavra “artrite”, ambos estarão corretos, no entanto, eles

tem crenças diferentes. Por fim, os fatores externos, nesse caso, que determinam o

conteúdo do pensamento de a e de b, além disso, pode-se concluir que todo o

entendimento é incompleto. Incompleto no sentido que não é possível compreender

o conteúdo completo de uma palavra, uma vez que ele é determinado parcialmente

por fatores que são inacessíveis ao enunciador. (BURGE, 1979)

Davidson não concorda com as consequências externistas de Putnam e

Burge. Para ele, a autoridade de primeira pessoa desempenha um papel crucial para

o conhecimento e deve ser mantida, pois é parte da comunicação que agente

epistêmico tenha a intenção de ser entendido nos seus enunciados. O externismo de

Putnam e Burge que argumentam mostra que o conhecimento de um agente sobre o

significados não dependem do que eles acreditam. Sendo assim, o conhecimento

depende de fatores externos, por exemplo, as práticas linguísticas, como os

recursos conceituais são sempre precários permitem apenas entendimentos

incompletos ou limitados, deixando o agente alheio aos seus próprios pensamentos.

Em relação a imprecisão, elas, aparentemente, parecem não afetar o conhecimento

a ponto de negá-lo. Entretanto, extrair dessas conclusões que os pensamentos não

estão na cabeça, retira, para Davidson, um dos caráteres básicos da comunicação

que é a intencionalidade do agente a autoridade da primeira pessoa. (DAVIDSON,

1987)

2.3 INTERPRETAÇÃO E A AUTORIDADE DE PRIMEIRA PESSOA

As consequências do externismo de Putnam e Burge, de acordo com

Davidson (1987), retiram a autoridade que o agente epistêmico tem sobre suas

crenças sob a alegação que “as palavras não estão na cabeça”, fazendo com que

eles se tornem alheios as palavras que enunciam e gerando um outro tipo de

ceticismo, o ceticismo a respeito da própria mente. Esse externismo do significado

das palavras é também chamado de externismo semântico e culmina no ceticismo

como expõe Smith na seguinte citação:

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Um dos aspectos do externalismo semântico consiste precisamente em ser umaresposta ao ceticismo global sobre o conhecimento do mundo exterior. Segundo oexternalismo semântico parte do significado das palavras (e, portanto, de nossospensamentos) é determinada por fatores externos à mente e que nem sempre sãonotadas por ela e isso permitiria o conhecimento do mundo [...] Se, de um lado, essaforma de externalismo semântico parece garantir o conhecimento do mundo, eladeixa escapar o conhecimento de nossos próprios pensamentos, pois o que a água épode não ser conhecido pelo falante e, portanto, parte de seu pensamento lhe édesconhecido. (SMITH, 2005, p. 141)

No artigo “Epistemologia Externizada” de Davidson (1990), se dirige a dois

tipos de externismo, em específico, o social e o perceptual, usando os argumentos

de Tyler Burge.

No externismo social, o conteúdo dos pensamentos e declarações de um

indivíduo dependem da história causal dele com a sua comunidade linguística. Para

Davidson (1990), existem três motivos pelos quais ele não está de acordo com o

externismo social. O primeiro motivo para ele é o de que parece falso que o

pensamento e a fala de um agente seja interpretada pelas mesmas palavras que

outros agentes. Caso o conteúdo seja determinado por um grupo, qual grupo

determinaria as normas? Há um grande pluralismo dentro de uma sociedade e cada

grupo se entende a sua maneira. Para Davidson, um sujeito é melhor interpretado

quando ele tem a intenção de que seu interprete entenda suas palavras. O segundo

motivo, Davidson pensa haver um conflito entre o externismo social e o significado

dos enunciados de um falante, porque, estando o significado das palavras

estritamente ligadas ao contexto linguístico, sendo que grande parte delas são

desconhecidas pelo falante, o agente epistêmico, em última instância, não teria

consciência das palavras que usa, sendo assim, não teria autoridade sobre seus

próprios pensamentos. Por fim, o terceiro motivo, Davidson não concorda com a

ideia de experimentos mentais que propõe casos que fogem a experiência humana -

por exemplo, o experimento mental das Terras Gêmeas. Davidson afirma que sua

epistemologia depende da prática atual.

A partir desses três itens, percebe-se que a proposta de Davidson no seu

externismo é: considerar a intencionalidade do agente sobre o significado das

palavras que ele usa, a autoconsciência do agente sobre suas crenças e, por fim, a

relação do agente com as suas crenças e o mundo natural, em um cenário da vida

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cotidiana.

A respeito do externismo perceptual de Burge (1979), Davidson (1990) propõe

unir o aspecto do conhecimento perceptual ao externismo social. Para ele ambos

têm traços que combinados podem satisfazer as condições ser “internos” no sentido

de pertencerem a um indivíduo e que dependa de bases sociais para a correção

das palavras e enunciados.

No conhecimento perceptual, o conhecimento é obtido sobre a base do

contato direto do agente epistêmico com o objeto, por exemplo, um agente ao ver

uma vaca e ter uma crença de que aquilo é uma vaca, já o outorga conhecimento,

ainda que ele não tenha maneiras precisas de afirmar que aquilo é uma vaca (não é

um cavalo pintado como uma vaca). Dessa forma, no conhecimento perceptual, o

agente torna-se, em parte, responsável por sua crença de que aquilo é uma vaca. A

condição de ter autoridade sobre sua crença é necessária para o conhecimento, no

entanto, não é suficiente, já que é necessário um critério que sirva de correção para

crença. Nesse ponto, Davidson pretende preservar o conhecimento obtido pelo

conhecimento perceptual, ainda que falível e adicionar o aspecto corretor que o

externismo social desempenha através da ostensão pública das palavras.

O externismo perceptual, toma o objeto de crença como a causa da crença

evitando, desse modo, intermediadores epistêmicos, como ideias, sensações, dados

dos sentidos “O que fica no caminho do ceticismo global é, ao meu ver, o fato de

devemos, da mais simples e metodológica maioria dos casos básicos, tomar os

objetos de uma crença para ser a causa dessa crença”.(DAVIDSON, 1990, p. 201).

Portanto, a causa da crença é o objeto que causa a crença. Fatores como

regularidade, frequência, hábito, repetição e aprendizado tornam o agente mais ou

menos apto a dar cedibilidade naquelas crenças. A relação causal que cada

indivíduo teve com sua crença irá lhe fornecer os parâmetros básicos para

significação dos objetos, já a ostensividade pública e os fatores sociais atuarão nas

crenças do agente epistêmico dando-a objetividade no mundo compartilhado.

Davidson ao preservar a autoridade do agente sobre seus pensamentos sustenta,

de acordo com Silva Filho Davidson preserva o “espírito do cartesianismo, a saber, a

ideia de que temos uma autoridade especial sobre nossos pensamentos e crenças”.

(SILVA FILHO, 2005, p.158) Essa autoridade do agente sobre suas próprias crenças

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que fará que ao ele enunciar uma frase ela seja informativa, ou seja, que ela

carregue um conteúdo e, portanto, seja interpretável.

Outro ponto que Davidson concorda com Putnam e Burge é o de que as

relações causais do agente com o meio natural irão determinar o significado de seus

enunciados:

Defendo, juntamente com Burge e Putnam, se é que os compreendi bem, que essaligação é estabelecida por interações causais entre as pessoas e partes e aspectosdo mundo. As disposições para reagir de modo diferencial a objetos e ocorrênciasassim estabelecidas são fulcrais para a interpretação correta dos pensamentos e dodiscurso de uma pessoa. Se assim não fosse, não teríamos qualquer meio dedescobrir aquilo que os outros pensam ou aquilo que querem dizer com as suaspalavras. (DAVIDSON, 1987, p.12)

Dessa forma, para Davidson, é necessário considerar o aspecto do

externismo que leva em conta o contexto sociolinguístico como parte fundamental

na formação das crenças dos agentes epistêmicos, Davidson prossegue:

[...]não teríamos qualquer meio de descobrir aquilo que os outros pensam ou aquiloque querem dizer com as suas palavras […] Não se trata do fato de que todas aspalavras e frases sejam assim tão diretamente condicionadas por aquilo a que sereferem; podemos perfeitamente aprender a usar a palavra “lua” sem nunca a termosvisto. O que se defende é que todo o pensamento e toda a linguagem devem ter umfundamento nestas ligações históricas diretas e que estas ligações condicionam ainterpretação de pensamentos e discursos. (DAVIDSON, 1987, p.12)

Davidson se põe de acordo, sobre o aspecto de que estados fisiológicos não

necessariamente dizem respeito a um estado mental, podendo dessa forma dois

agentes se encontrarem em estados físicos idênticos (x) e ainda assim o agente (a)

acreditar em (x) e o agente (b) acreditar em (b), Davidson expõe do seguinte modo:

“Putnam afirma (corretamente, no meu ponto de vista) que duas pessoas podem ser

em todos os aspectos físicos relevantes (químicos, fisiológicos, etc.) a mesma e

contudo quererem dizer coisas diferentes com as suas palavras e terem atitudes

proposicionais diferentes (tal como estas são normalmente identificadas)”

(DAVIDSON, 1987, p. 12-13). O experimento das terras gêmeas segue nessa

direção, ao mostrar que os gêmeos apesar de serem idênticos fisiologicamente

referem-se, quando exposto a um elemento em comum, no caso a água da terra,

terão crenças diferentes. E isto ocorre devido a relação causal que tiverem com o

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objeto em questão.

A posição de Davidson (1991) será de pensar que a a significação das

palavras e a formação de crenças de um agente epistêmico estão circunscritos em

uma imagem comum de mente, mundo e realidade, sempre atuando em conjunto e

numa relação intrínseca. O filósofo sugere pensar na situação de um aprendiz que

faz declarações sobre o mundo e seu professor que o corrige nos momentos em que

ele erra, “toda a linguagem devem ter um fundamento nestas ligações históricas

diretas e que estas ligações condicionam a interpretação de pensamentos e

discursos” (DAVIDSON, 1987, p.12) Nessa relação intersubjetiva as crenças

perceptuais do agente são significadas pelo seu contato com o mundo

compartilhado, onde, no caso, o professor, sendo afetado da mesma maneira que o

aprendiz o ensina como usar suas sentenças.

O externismo de Davidson, na interpretação de Malpas (2005), é um tipo de

“realismo cotidiano” que está relacionado na forma como um sujeito mantém um

“envolvimento ordinário e cotidiano com o mundo”; não é uma tese metafísica que

pretenda dar garantias absolutas sobre a realidade do mundo, por outro lado, uma

tese que garanta os compromissos básicos que um agente epistêmico tem nessa

relação. Davidson está preocupado em fazer com que sua filosofia não comprometa

a vida cotidiana e as práticas comuns, mais que isso, ele pretende que as

experiências humana ordinárias sejas a consequência da trajetória do seu

pensamento.

Em “Epistemologia externizada” de Davidson (1990), chama a atenção para

a conexão intrínseca entre a crença e o mundo:

O conteúdo do que aprendemos mais cedo e nas mais básicas sentenças ('Mamãe,Cãozinho, Vermelho, Fogo, Gavagai) deve ser determinado pelo que está no mundoe que causa e se sustenta como verdade. Isto é, como tenho reivindicado há umlongo tempo, que os laços entre linguagem e mundo são estabelecidos e querestrições sobre significados são fixados; dado a proximidade de conexões entrepensamento e linguagem observações análogas servem para o conteúdo dasatitudes. (DAVIDSON, 1990, p.200)

Desde a formação das sentenças de um agente epistêmico ainda na sua

formação cognitiva da infância, o contexto em que ele está inserido, deve

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proporcioná-lo situações favoráveis onde ele possa apreciar o contraste entre usar a

palavra de forma apropriada e inapropriada. O erro é possível e, nesse contexto,

necessário, pois, justamente na apreciação entre usar corretamente e não usar

corretamente uma palavra é que se identifica a situação onde ela é verdadeira. Por

sua vez, o mundo, tal como se apresenta e se sustenta, fornece as evidências para

a identificação de seus aspectos e causa a crença de que ele é dessa ou daquela

maneira.

No entanto, a identificação de crenças básicas sejam elas por conhecimento

perceptivo - o que sugere serem passivo ao mundo - ou de alguma outra ordem,

pressupõe crenças prévias. Ter uma crença, para Davidson, é um estado ativo com

o mundo, uma relação, necessariamente, vinculada a ação de uma mente com

outras e o mundo, entretanto, o conceito de mental não pode pertencer ao âmbito

individualístico, para Davidson o externismo e a autoridade de primeira pessoa se

intercambiam. Um padrão de uso de palavras fornecidos por uma comunidade pode

conter menos equívocos no que diz respeito a significação, um indivíduo por si só

pode ter a sua disposição menos vocabulário e não conseguir se expressar

adequadamente em diversas situações, mas não se conclui que por estar enganado

algumas vezes ele estará enganado sempre:

É claro que, em determinados casos particulares, ele pode enganar-se em relaçãoàquilo em que acredita acerca do mundo; o que é impossível é que ele possaenganar-se a maior parte do tempo. A razão é óbvia: a menos que haja umapressuposição de que o falante sabe aquilo que diz, ou seja, que está a usarcorretamente a sua própria língua, não haverá nada para um intérprete interpretar.não podemos conceber algo como alguém a aplicar mal as suas próprias palavras deum modo regular. (DAVIDSON, 1987, p.18)

A autoridade da primeira pessoa desempenha, no projeto de Davidson, o

papel de conferir ao agente consciência sobre seus estados mentais, essa

consciência permite-o enunciar suas impressões sobre o mundo e torná-lo

interpretável a uma audiência. Dessa maneira, o conceito do mental trabalha em

conjunto com o agente em primeira pessoa, com as outras mentes e o mundo

exterior que é o causador comum das crenças dos agentes, para Davidson, os

fatores externos e internos referentes a linguagem “voltarão a estar todos juntos,

como o deverão estar, assim que abandonarmos o mito do subjectivo, a ideia de que

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os pensamentos exigem objetos mentais”. (DAVIDSON, 1987, p.19)

Essa será a sua ideia de triangulação, apresentada no capítulo subsequente.

Apresentado o papel da autoridade da primeira pessoa e o externismo segundo

Davidson o concebe, cabe mostrar diretamente o seu ponto de vista a respeito do

conhecimento, a sua concepção do mental e, por fim, o objeto de pesquisa do

trabalho o lugar das outras mentes no seu pensamento, agora reformulado para o

interlocutor.

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CAPÍTULO 3

A INTERDEPENDÊNCIA DAS TRÊS VARIEDADES DE

CONHECIMENTO

3.1 INTERSUBJETIVIDADE

O capítulo anterior apresentou como a autoridade de primeira pessoa se

mostra relevante na obra de Davidson. Para o filósofo, é parte do processo

comunicativo que um falante, ao enunciar uma sentença, tenha a intenção de

expressar algo significativo com ela, somente assim há o que seja interpretável nas

suas palavras (DAVIDSON, 1987). Essa característica do pensamento de Davidson

difere dos modelos externistas, por exemplo, de Putnam (1979) e Burge (1975) que

pensam que uma crença não pode ser ao mesmo tempo interna, ou seja, que

pertença a um indivíduo, e externa, isto é, que seu conteúdo seja determinado por

eventos externos ao agente epistêmico.

Este capítulo apresenta, dentro do pensamento de Davidson, o lugar que a

posição de terceira pessoa ocupa no cenário epistêmico. Para tanto, como já foi

apresentado anteriormente, para o filósofo tratar de conhecimento, dentro de uma

atividade comunicativa, está em questão considerar a primeira e a terceira pessoas

e o mundo como interconectados. Essa perspectiva se desenvolverá na visão

davidsoniana do mental que inclui o seu holismo e a interpretação radical.

Em primeiro lugar, tratar-se-á daquilo que Davidson chamou de três

variedades do conhecimento e, depois, do papel da terceira pessoa nesse quadro.

Em seguida, se mostrará como Davidson concebe a mente e os motivos para que

ela seja concebida sobre uma perspectiva holística. Por fim, tendo apresentado a

interdependência das três variedades de conhecimento e o caráter intersubjetivo do

mental, mostrar o papel que a terceira pessoa tem para o conhecimento e como

Davidson concebe isso sobre a ideia de uma interpretação radical.

3.1.1 As Três Variedades de Conhecimento

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O modo como um agente epistêmico tem acesso à realidade pode ser

apontado sobre três aspectos: a) o acesso à sua própria mente, isto é, aos seus

estados mentais internos individuais privados, como desejos, esperanças, receios,

crenças, entre outros; b) o acesso à mente de outras pessoas, em geral, diz

respeito a possibilidade de prever as intenções e pensamentos através do seu

comportamento; e, por fim, c) o acesso ao mundo externo e suas propriedades

físicas. Essas são três variedades de conhecimento empírico que diferem na forma

que um agente epistêmico tem para acessá-las, mas referem-se a uma mesma

realidade. (DAVIDSON, 1991)

Para Davidson é preciso que se estabeleça uma relação entre essas três

formas de conhecimento de modo que possa se ter uma imagem geral de como

estão inter-relacionadas. “Sem uma imagem geral, nós deveríamos ficar

profundamente confusos com o fato de que o mesmo mundo é conhecido por nós de

três maneiras tão diferentes”. (DAVIDSON, 1991, p.4)

Foi visto que quando o conhecimento é concebido de maneira subjetivista, ou

seja, tomando as experiências privadas do agente epistêmico para que suas

representações sirvam como intermediadores epistêmicos surgem problemas

céticos relacionados a realidade externa e as outras mentes. Por outro lado, as

teses externistas (BURGE, 1979, PUTNAM, 1975; KRIPKE, 1972) assumem o

mundo e as outras mentes como os significadores e causadores das crenças e do

conteúdo proposicional, de outro lado, geram o ceticismo acerca da própria mente.

Ao propor a acomodar as três formas de conhecimento em uma relação de

interdependência, Davidson pode criar uma imagem coerente de conhecimento onde

responda as questões céticas. Para Smith a “resposta ao ceticismo emerge quando

conseguimos explicar simultaneamente os três tipos de conhecimento postos em

xeque pelo ceticismo. Se enfrentarmos os desafios isoladamente, jamais

conseguiremos dar-lhes uma resposta satisfatória” (SMITH, 2005, p.142). Retoma-

se aqui para efeito de síntese e maior esclarecimento a ideia que Davidson sugere

de triangulação. Pensando numa situação de comunicação, o falante no intento de

entender as frases enunciadas por seu interlocutor, assume que ele tem a intenção

de expressar algo significativo com elas. O intérprete e o falante estão em um

mundo compartilhado, logo a cada frase enunciada é possível recorrer a realidade e

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acomodar as frases aos estímulos que o mundo causa em comum a cada um.

Dessa maneira é possível traçar uma linha em comum entre o agente epistêmico

interpretador, o falante que é seu interlocutor e o mundo externo, o conjunto dessas

linhas formam um triângulo e é a metáfora que Davidson (1991) se refere para

explicar a interdependência do pensamento. Desse modo, tentar isolar cada uma

dessas maneiras de conhecimento “é romper com a ideia de comunicação, de

linguagem e de crença” (SMITH, 2005, p.143).

O conceito de verdade objetiva formado pela comunicação intersubjetiva

fornece os parâmetros de correção para as crenças dos agentes. Quando

circunscrevem-se os agentes epistêmicos num mundo compartilhado, a linha

formada pela triangulação dará sentido e conteúdo as frases dos enunciadas. A

proposta de Davidson é repensar o modelo do mental que busca fundamentações a

partir de introspecções e do exame da subjetividade que a “[...] modernidade

acostumou-se a localizar tais fundações na experiência sensorial ou pré-linguística

[...]”(MARTINS, 2005, p.244) para ele a “dissolução da subjetividade nos liberta da

necessidade de 'fundações' para o conhecimento”. (DAVIDSON apud MARTINS,

2005, p.244)

Como o recurso da triangulação não necessita de uma fundação, desloca-se

o foco da investigação de uma causa que está localizada em alguma singularidade

humana ou algum estímulo que determina o modo de conhecer, para um conjunto de

fatores causais que, quando juntos, dão sentido para as palavras, as crenças e, em

geral, as práticas humanas que envolvem racionalidade, a “ideia-chave é a de

"causa comum” que afasta a arbitrariedade apontada no caso do solipsismo”

(SMITH, 2005, p.148).

Sobre o quadro da triangulação e da localização objetiva do conteúdo de um

a atitude proposicional estar na intersubjetividade, Davidson propõe defender seu

posicionamento respondendo as questões: “porque um padrão interpessoal deve ser

um padrão objetivo, isto é, porque aquilo sobre o que as pessoas concordam deve

ser verdadeiro?” e “mesmo que seja o caso que a comunicação assuma um padrão

objetivo de verdade, porque esta deve ser a única maneira em que tal padrão pode

ser estabelecido?” (DAVIDSON, 1991, p.8).

Como já exposto, o conteúdo do pensamento depende da verificação

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ostensiva pública, dessa forma o padrão interpessoal e as práticas linguísticas

fornecem os parâmetros necessários para dar objetividade as atitudes

proposicionais. Em relação a segunda questão, ela será melhor desenvolvida no

tópico 3.3, no momento cabe destacar que, para Davidson (1997, p.6 ) em um

processo interpretativo o que está em questão são duas linguagens, a do interprete

e a do falante, para interpretar a linguagem do falante o interprete precisa de

evidências e usar os recursos disponíveis em sua própria linguagem para pode

interpretar. Aquilo que se apresenta como similar entre ambos se sustenta como

verdade, permite que o intérprete signifique as palavras do falante.

A observação dessa similaridade, para Davidson (1991) não pode vir das

respostas de um falante, mas de um observador dessas respostas, ele escreve: “é

apenas quando um observador consciente correlaciona as respostas de outra

criatura com objetos e eventos do mundo do observador que existe alguma base

para dizer que a criatura está respondendo àqueles objetos e eventos, e não a

quaisquer objetos e eventos”. (DAVIDSON, 1991, p.8)

Os casos expostos mostram que o pensamento está interligado através da

comunicação. O modo como o mundo se apresenta e se sustenta, será o parâmetro

para a similaridade nas respostas entre os falantes. Portanto, Davidson ao unir as

três variedades de conhecimento cria um quadro coerente entre a formação de

crenças, o pensamento e a linguagem. Como se nota, a terceira pessoa não é só um

elemento constituinte para triangulação, mas parte necessária do autoconhecimento

e do conhecimento do mundo exterior, portanto, “Davidson sustenta que 'aquele

sem o qual não existiria nenhum é o conhecimento em terceira pessoa, isto é, o

conhecimento daquilo que está na mente dos outros'.[...] o intérprete radical é aquele

que busca estabelecer uma relação entre o que é dito por seu interlocutor e as

coisas e os eventos que existem e acontecem no mundo objetivo. (SILVA FILHO,

2005, p.163)

Apresentada a interdependência das três variedades do conhecimento e o

papel da terceira pessoa para o conhecimento será exposto no subcapítulo seguinte,

o conceito de holismo do mental de Davidson que complementam as questões aqui

discutidas.

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3.2 O HOLISMO DO MENTAL

Como foi visto anteriormente, Davidson utiliza a metáfora da triangulação

para, através do ato comunicativo, estabelecer a interação necessária entre os

agentes epistêmicos e o mundo compartilhado para atribuir às atitudes

proposicionais conteúdo e verdade objetiva. Ressaltando que “a menos que a

criatura tenha o padrão fornecido pela linguagem compartilhada; e sem essa

distinção não há nada que possa ser claramente chamado de

pensamento”(DAVIDSON, 1991, p.6), nota-se que o pensamento é deslocado do

âmbito individual para o coletivo. Essa mudança cria uma indispensabilidade das

partes envolvidas no processo do pensamento, ou seja, sem o agente epistêmico

tendo suas crenças fornecidas pela linguagem compartilhada e o mundo exterior

como causador dessas crenças, não há nada razoável que possa ser chamada de

pensamento.

O holismo é, justamente, conceber a conjuntura dos três elementos

constitutivos para a comunicação como indispensáveis. Embora pessoas pensem, o

que torna as pessoas portadoras de pensamentos (sugestivamente recaindo em um

subjetivismo), de acordo com o holismo, o pensamento faz parte de um contexto

sociolinguístico e sob essa circunstância contextual, pensar é estar imerso em uma

comunidade linguística. Ter uma crença sobre o mundo, ou seja, acreditar em algo

com conteúdo é estar em um ambiente compartilhado com outros, onde o conteúdo

e significação das crenças fazem sentido. Desse modo Malpas escreve:

A crença deve ser vista como já conectada com o mundo através da estruturatripartite que abrange o crente, o interprete e o mundo. Esta é uma estruturaque é estabelecida e mantida não por meio da recepção passiva daexperiência sensorial por parte do crente ou do interprete, mas peloengajamento ativo um com o outro e pela participação de ambos no mundo.A crença não pode, por esta explicação, ser separada da ação, mas, em vezdisso, deve ser entendida em relação intima com ela. (MALPAS, 2005, p.58)

Davidson (1991) afirma que sob o contexto sociolinguístico que “a

crença em sua natureza é verídica”(DAVIDSON; IN: SMITH, 2005, p.143), ou seja, a

maioria das crenças compartilhadas são verdadeiras “[...] as pessoas têm

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propriedades mentais e isto quer dizer que certos predicados psicológicos delas são

verdadeiros.” (DAVIDSON, 1997, p.2). A crença ser em sua natureza verídica indica

que o que a causou teve implicação direta sobre ela. Na concepção holística do

mental “o conteúdo da crença é determinado pelo próprio objeto que causa a

crença” (SMITH, 2005, p. 146), entretanto a crença não adquire seu conteúdo

individualmente, ela depende de uma rede de fatores para ser formada, dentre elas

uma causa comum entre indivíduos que, no ato comunicativo, possibilita a

significação e a atribuição de seu conteúdo.

O objeto da crença, por sua vez, é causadora da crença na medida em que

se sustenta como verdadeira. A independência lógica entre o que se acredita e como

o mundo se apresenta é eliminada na medida em que os objetos da crença são a

causa em comum das respostas entre os agentes. Devido a isso se “alguma coisa

está sistematicamente causando certas experiências (ou respostas verbais), é sobre

essa coisa que pensamentos e proferimentos versam. Isso exclui sistematicamente

o erro'. (STROUD, 2005, p.116). Com a eliminação dos intermediadores epistêmicos

(sensações, ideias, representações) as respostas dos agentes referem-se a objeto

em comum sob o mundo que compartilham, o erro é possível, no entanto, não é a

realidade dos objetos que está em questão, mas a capacidade dos indivíduos de se

expressarem sobre o objeto em questão. No que diz respeito as crenças mais

básicas, isto é, aquelas que permitem enunciados mínimos para a comunicação,

Davidson aceita que a maior parte dessas crenças são verdadeiras, pois elas que

darão as condições mínimas de comunicação. Davidson escreve:

Qualquer crença particular pode, de fato, ser falsa; mas uma quantidadesuficientemente grande, na moldura e no tecido das nossas crenças, deveser verdadeira para dar conteúdo ao resto. As conexões conceituais entre onosso conhecimento de nossas próprias mentes e nosso conhecimento domundo da natureza não são definicionais, mas holísticas. O mesmo vale paraas conexões conceituais entre nosso conhecimento do comportamento enosso conhecimento de outras mentes. (DAVIDSON, 1991, p.10)

Compartilhar crenças, recai sob um processo interpretativo. Durante o

processo comunicativo o ajuste das palavras entre os falantes incide em certo grau

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de indeterminação, pois, o “intérprete das palavras e pensamentos de outra pessoa

tem que depender de informação dispersa, de uma boa preparação e de conjecturas

imaginativas para conseguir compreendê-la” (DAVIDSON, 1987, p. 18) As relações

causais que levaram o falante a formar as suas crenças depende de uma rede

causal ampla. Devido a isso, as palavras dos agentes, em certa medida, contém

certo grau de indeterminação e mais de uma teoria da verdade é possível para a

compreensão de um falante durante o processo interpretativo, com “a riqueza da

estrutura representada pelo conjunto das frases de alguém, e a natureza das

conexões entre os membros deste conjunto e o mundo, nós não devemos nos

surpreender se existirem muitas maneiras de atribuir nossas próprias frases as

frases e pensamentos de uma outra pessoa que captura tudo de significante”.

(DAVIDSON, 1991, p. 10)

No entanto, para Davidson, aquilo que sobre o que se significa e se atribui

como verdade sobre o mundo, os objetos e as mentes está sob o escrutínio daquilo

que as pessoas podem se expressar e concordar, Davidson escreve: a

“comunicação, e o conhecimento de outras mentes que ela pressupõe, é a base de

nosso conceito de objetividade, nosso reconhecimento de uma distinção entre

crença verdadeira e falsa. Não é possível ir para além deste padrão para checar se

nós temos as coisas certas [...]”. (DAVIDSON, 1991, p.14) O holismo não está

preocupado com padrões últimos e com um fundamento inalienável, o que o holismo

assume é que apenas uma “comunidade de mentes é a base do conhecimento; ela

provê a medida de todas as coisas. Não há sentido em questionar a adequação

desta medida, ou buscar um padrão último”. (DAVIDSON, 1991, p.14) A objetividade

está no que pode ser estabelecido comumente entre indivíduos e ir além disso é ir

além das capacidades comunicativas.

No que diz respeito ao caráter sociolinguístico do pensamento como forma de

recusa ao subjetivismo clássico, o holismo tem seu traço no externismo, pois, está

de acordo que os fatores externos são responsáveis por causarem as crenças nos

indivíduos. No entanto, como foi exposto no subcapítulo 3.2, foi visto que para

Putnam (PUTNAM apud DAVIDSON, 1987), não há como satisfazer as condições de

estados mentais se concebidas como internas, ou seja, pertençam a um indivíduo, e,

externas, isto é, sejam causadas por eventos externos ao indivíduo. Sendo assim,

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para Putnam não há como a autoridade de primeira pessoa ser mantida. Entretanto,

foi discorrido no item monográfico 2.3 que essas duas condições podem ser

cumpridas e a autoridade de primeira pessoa ser mantida. Para tanto, Davidson

concebe que deve haver uma reconciliação do interno com o externo e para que isso

seja feito, primeiramente, tem de ser abandonada a concepção de mente que lida

com uma imagem em que, aparentemente, existem objetos diante da mente, isto é,

objetos que são acessíveis ao agente epistêmico através das suas representações.

Como foi visto, o autor propõe estabelecer as relações causais de crença

colocando o mundo e as outras mentes como causas diretas dessas crenças, para

isso ele usou um meio que chamou de triangulação. Segundo a triangulação o

agente mantém autoridade sobre seu pensamento porque o pressuposto básico da

comunicação é que o agente epistêmico tenha intenção de expressar algo

significativo nas suas declarações. Portanto, antes de ser um desafio manter a

subjetividade do indivíduo dentro de uma perspectiva externista, a autoridade de

primeira pessoa é uma condição para o ato comunicativo. Entretanto, essa posição

exige mais explicações, principalmente porque se um evento mental depende de

eventos externos e, eventos externos não determinam eventos mentais. A exemplo,

uma pessoa tem autoridade especial sobre seu pensamento sem recorrer a

evidências externas, donde se indaga: dada essas condições, qual o critério pode

ser usado para se estabelecer uma relação entre o mental e o físico?

De acordo com Martins para explicar essa distinção Davidson:

[…] substituirá o cogito pela imagem holística de uma rede intencional decrenças e desejos em um processo contínuo de reformulação. Ora, nenhumpólo egológico – entendido como um “cerne de meu modo de ser quepermanece inalterado (idêntico a si mesmo) independente das mudanças emminhas crenças e desejos, minhas tomadas de posição ou escolhas – podesubstituir o exterior a esta rede. (MARTINS, 2005, p.249)

O holismo do mental não distingue eventos mentais de eventos físicos

enquanto sua ontologia, por exemplo, alterações no ambiente ou no corpo alteram

estados mentais, a mente e o corpo não são entidades distintas, e sim traços

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descritivos de um corpo humano. Os estados físicos e mentais “não se cindem

ontologicamente”; a definição holística trazida por Davidson substituirá a distinção

corpo-mente como algo externo e interno para “os contornos de um corpo humano

imerso em um ambiente ou mundo comum”. (MARTINS, 2005, p.249)

Nota-se que a forma como Davidson refere-se à mente não faz menção a

alguma entidade ou atividade abstrata. Eventos, estados ou propriedades mentais

estão dentro da triangulação, isto é, da dinâmica causal entre interlocutores em um

ambiente compartilhado. Assim, ele declara: “Não há coisas como mentes, mas as

pessoas têm propriedades mentais [...]”. (DAVIDSON, 1997, p.1) Essa afirmação já

evidencia que para ele a mente não representa uma entidade, tampouco cada

pessoa tem sua própria mente, porque mente não representa uma coisa. Sobre esse

ponto o filósofo Gilbert Ryle na sua obra The Concept of Mind de 1949, faz uma

observação que pode ser esclarecedora sobre essa questão. Ryle pede que imagine

a situação onde um estudante vai pela primeira vez para universidade, o guia

mostra-o todas as salas, bibliotecas, laboratórios, quadras esportivas e as partes do

campus da universidade, no fim da visita o universitário pergunta ao guia – onde

está a universidade? (RYLE, 1949). Ryle diz que o erro incide em classificar a

universidade na mesma categoria de suas partes constitutivas. Do mesmo modo,

Ryle acredita que Descartes e outros filósofos ao tentarem estabelecer leis para o

pensamento semelhante as leis da física mecânica, cometeram um erro categorial

como o do estudante. Segundo Ryle o raciocínio seguiu-se assim, como as leis

mecânicas usavam vocabulários que delimitavam os efeitos dos eventos físicos ao

espaço físico, como os eventos mentais não se encontravam no espaço físico,

concluiu-se que as leis que deveriam reger os eventos mentais tinham que estar

sobre outro domínio, no caso, do mental ou da mente (RYLE, 1949). O autor coloca:

A diferença entre o físico e o mental foram representados com diferençasentre comuns tipos de categorias de 'coisa', 'objetos', 'atributos', 'estados',processos', 'mudanças', 'causa' e 'efeito'. Mentes são 'coisas', mas diferentetipos de coisas dos corpos; processos mentais tem causa e efeito, masdiferentes tipos de causas e efeitos dos movimentos corporais. (RYLE,1949, p.5)

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Portanto, existia um erro categorial ao tentar colocar a mente na mesma

categoria dos processos que atribui-se aos eventos mentais, como desejo,

intenção, esperança, entre outros. Eventos mentais são traços do comportamento

humano e não uma entidade distinta do corpo. Dada a explicação do erro

categorial volta-se ao ponto de Davidson.

Como tem sido mostrado, para Davidson, o mental e o físico são reduzidos

ao mesmo estatuto ontológico. Entretanto, como no caso da resposta ao

experimento mental das Terras Gêmeas de Putnam, Davidson defende que mesmo

dois indivíduos estando em estados físicos idênticos e tendo crenças diferentes, o

que corresponde ao significado ser externo ao agente, é possível conservar a

autoridade sobre o seu próprio pensamento. Isto gera um caráter diferencial aos

aspectos mentais que o filósofo apontará como uma característica anômala do

mental. Portanto, cabe mostrar como o caráter redutivista do pensamento de

Davidson não compromete os estados mentais sendo reduzido a estados físicos,

por conseguinte, cabe apresentar o conceito de monismo anômalo que possibilita

compreender que o redutivismo sugerido por Davidson não compromete o conceito

de holismo adotado por ele.

3.2.1 Monismo Anômalo

Davidson em uma introdução ao seu pensamento, no texto intitulado “Donald

Davidson” do livro A Companion to the Philosophy of Mind, publicado em 1997,

expõe sua concepção sobre os aspectos mentais. Para o filósofo eventos mentais

podem ser descritos por eventos físicos, no entanto, não são redutíveis a esses,

esta afirmação está explícita nesta passagem: “Os eventos mentais, na minha

opinião, são físicos (o que não é, obviamente, dizer que eles são não-mentais)”

(DAVIDSON, 1997, p.1). Para justificar seu pensamento, o autor trás três premissas

que considera verdadeiras e as defenderá. Dessas premissas ele inferirá o caráter

anômalo do mental. A primeira é que: “Todos os eventos mentais são causalmente

relacionados a eventos físicos. Por exemplo, as crenças e os desejos motivam os

agentes a agir e as ações causam mudanças no mundo físico”; a segunda: “Se dois

eventos são relacionados como causa e efeito, há uma lei estrita sob a qual eles

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podem ser subsumidos. Isto significa: causa e efeito têm descrições que instanciam

uma lei estrita”; e a terceira é de que: “Não há leis psicofísicas estritas (leis

conectando eventos mentais sob suas descrições mentais com eventos físicos sob

suas descrições físicas)” (DAVIDSON, 1997, p. 1-2).

Segue-se das premissas uma “redução ontológica”, isto significa que não há

duas instâncias distintas, por exemplo, uma referente aos aspectos físicos, tais

como comportamento e manifestações externas e outra referente aos aspectos

mentais, tais como introspecção e crenças subjetivas. Ambas referem-se somente a

um aspecto da realidade, portanto, pertencem a mesma categoria ontológica.

Entretanto, Davidson não admite que haja leis que conectem estritamente um evento

mental a um evento físico, ou seja, um sistema fechado que determine que estar em

um estado mental (x) equivale a estar, necessariamente, em um estado físico (y) e,

sendo assim é relevante grifar: “Porque nego que haja leis psicofísicas estritas,

chamo minha posição de Monismo Anômalo” (DAVIDSON, 1997, p. 2).

Essa é uma posição controversa principalmente para as neurociência e

ciência cognitiva que lidam com leis ligando estados neurais a respostas

comportamentais. A fim de ilustrar a discussão será utilizado um crítico de Davidson,

o filósofo Jaegwon Kim, citado por Martins (2005) no artigo “Como superar o

dualismo sem reducionismo: Davidson e a crítica hermenêutica na filosofia da

mente”. Entretanto, o debate será tratado somente para destacar o posicionamento

de Davidson em defesa de seu monismo anômalo.

3.2.1.1 Crítica ao Monismo Anômalo

Ao reduzir eventos mentais à eventos físicos há uma pressuposição de um

eliminativismo do mental, isto é, tudo pode ser explicado sobre aspectos fisiológicos

e o vocabulário do mental, desse modo, pode ser traduzido sobre o vocabulário

físico. Como tem sido apresentado, Davidson rejeita essa posição e, além disso,

sustenta que a mentalidade ainda que manifestada sobre eventos físicos não são

redutíveis a eles devido ao caráter holístico do mental.

Entretanto, o redutivismo não-eliminativista é alvo de críticas. Uma dessas

críticas é feita por Kim que, de acordo com Martins, em geral afirma:

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Na ontologia desenvolvida por Davidson, os eventos mentais estabelecemrelações causais com eventos físicos e também com outros eventos mentais.Entretanto, como relações causais sempre instanciam regularidades legais –quer dizer, apoiam-se sobre leis – e como 'não há leis sobre o mental', todarelação causal envolvendo um evento mental deve instanciar uma lei física(ou cai sob um tipo de evento físico), em uma palavra é um evento físico.Nesse sentido, todos os eventos são físicos supondo-se que todo eventoindividual esteja associado a pelo menos uma relação causal. (MARTINS,2005, p. 256)

Para Kim, uma lei tem que manter um vínculo “binário e extensional” entre as

partes envolvidas, sendo assim, “[...] o monismo anômalo, antes de nos dar uma

forma de fisicalismo não-redutivo, é essencialmente uma forma de eliminativismo.

Diferentemente do eliminativismo, contudo, ele permite que a mentalidade exista”

(KIM, 1995, IN: MARTINS, 2005, p. 257)

Kim considera que o fisicalismo de Davidson é uma forma de eliminativismo,

pois desconsidera que eventos mentais são algo diferente de eventos físicos.

Portanto, sendo ocorrências mentais uma forma de manifestação física, o evento

mental seria, a rigor, um evento físico. Davidson pretende considera o vocabulário

psicológico indispensável para mentalidade, entretanto, Para Kim, um estado

mental enquanto uma forma de descrição não pode ser a causa de evento físico

“tampouco eliminar ou abolir a eficácia causal do evento”(MARTINS, 2005, p. 259)

Causas físicas e mentais sendo a mesma coisa estariam submetidas ao

mesmo tipo de lei, então, (KIM, 1995, IN: MARTINS, 2005, p.260 ) “não seria mais

adequado questionar que 'a causa mental e a causa física são uma e a mesma?'”

Pensando nos eventos mentais como indistintos dos eventos físicos, para Kim 'há

apenas uma coisa e não duas'; a dor seria uma manifestação física neural que

estaria numa 'correlação psicofísica bicondicional'; como Davidson nega que haja

leis estritas entre o mental e o físico ele “se vê encurralado diante de duas e

somente duas alternativas: 'ou ele nega que haja eventos mentais, ou nega que eles

entrem em transações causais com os eventos físicos, constituindo seu próprio

mundo causal autônomo. Nas duas o materialismo está descartado'. (MARTINS,

2005, p. 260)

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3.2.1.2 Defesa de Davidson ao Holismo do Mental e ao Monismo Anômalo

A irredutibilidade dos aspectos mentais, para Davidson, é possível devido ao

caráter holístico do mental, previamente definido no tópico monográfico 3.2. Quando

um agente tem uma crença ele está conectado a uma rede de crenças e a um

contexto que dão sentidos a essas crenças. A causação física é um dos aspectos da

crença, entretanto a inteligibilidade da crença contém traços linguísticos que se

estabelecem na intersubjetividade que, por sua vez, dependem tanto das crenças

anteriores do próprio indivíduo como das crenças dos seus interlocutores, não “há

crença sem muitas outras crenças relacionadas, nenhuma crença sem desejos

relacionados, nenhum desejo sem crenças, e nenhuma intenção sem ambos:

crenças e desejos (DAVIDSON, IN: MARTINS, 2005, p. 261)

Na perspectiva davidsoniana o mental não é algo abstrato e misterioso, de

forma que não se relacione a “eventos concretos”, como supõe Kim, “nos termos do

monismo anômalo, uma “explicação por razão” torna-se de imediato uma

“explicação por causa” quando as razões tornam-se causas dos eventos físicos que

nossos corpos de agentes instanciam”. (MARTINS, 2005, p.261) Entretanto, o

mental depende de outras condições para que as atitudes proposicionais e eventos

mentais tenham conteúdo e, nesse sentido, o mental, enquanto atribuição de

estados psicológicos e comunicação, tem um traço diferente das ciências naturais.

Nas palavras de Davidson:

Em algum sentido, pensamos que, embora os conceitos da biologia possamnão ser definíveis nos conceitos da física, os fenômenos que a biologia tratapodem ser entendidos como pertencendo ao mesmo domínio conceitual deuma física inclusiva. Mas o que consideramos explicações psicológicas,aquelas que remetem ao que agora chamam de folk psychology, é algogenuinamente diferente em espécie, porque racionalidade e normas nãopodem ser eliminadas dessas explicações sem deixar para trás aquilo emque estamos interessados. […] Quando fazemos física, biologia, ou químicanão tratamos de objetos com pensamentos. (DAVIDSON, IN: MARTINS,2005, p.262)

A referência que Davidson faz a “objetos com pensamentos” diz respeito as

condições para que o pensamento opere. Atribuir pensamentos é poder estabelecer

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um padrão efetivo de comunicação, ter crenças submetidas a uma comunidade

linguística que compartilhando um mundo em comum dão significado e conteúdo as

crenças individuais. Sobre os critérios de avaliação de uma comunidade linguística

há um uso normativo das palavras,portanto, descrever algo enquanto eventos

mentais “é uma capacidade que possuímos desde que os outros nos vejam e nos

reconheçam como estando 'em conformidade geral as normas'”. (MARTINS, 2005,

p.263)

Davidson ao propor essa concepção do mental não desconsidera que

estados mentais possam ser avaliados pelas ciências naturais (DAVIDSON, IN:

MARTINS, 2005). Entretanto, ao falar de aspectos mentais estão envolvidos uma

rede causal de fatores que se instalam intersubjetivamente, isto é, envolve a

comunicação, por conseguinte envolve processos característicos de práticas

linguísticas como significação e interpretação e estas não se reduzem a uma

condição física estrita, mas está aberta ao caráter social promovido nas interações

comunicativas. Na interpretação de Richard Rorty (1997, p.161), para Davidson cada

vocabulário, o científico e o da psicologia popular, tem finalidades diferentes e não

são excludentes, ele “sugere que abdiquemos dessa distinção […] entre sentenças

que expressam “questões de fato” e as que não. Nós podemos substituí-las é pela

distinção entre sentenças que servem a um certo propósito e aquelas que servem a

outros”. Cada um tendo sua finalidade, ambos têm suas respectivas especificidades

e contextos, Rorty prossegue exemplificando:

[…] um propósito que a linguagem pode cumprir é a capacidade de descreverqualquer porção do espaço-tempo, não importando quão grande ou quãopequena. Esse propósito será fornecido pelo vocabulário [contemporâneo] dafísica das partículas. Nenhum outro vocabulário fará esse trabalho tão bem.Todos os outros propósitos – por exemplo, predizer o que vai acontecer comas mesas ou pessoas, louvar a Deus, curar enfermidades mentais ou físicas,escrever poemas chistosos etc. - serão melhor alcançados por outrosvocabulários. Mas esses propósitos estão, para Davidson, um ao lado dooutro. […] ele não se preocupa em elogiar a linguagem dos físicos a partirdos fundamentos metafísicos tais como “ilustrar a verdadeira e derradeiraestrutura da realidade”. (RORTY, 1997, p.161)

Ainda sobre as crenças, sua significação é também gerada por eventos

físicos e se manifesta fisicamente nas sentenças de um agente, no entanto, não é

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redutível a eventos físicos, pois cada agente epistêmico teve a sua formação de

crença estabelecida por uma rede de crenças que diz respeito a sua experiência

cognitiva. A localização de um estado mental em um evento estritamente físico,

sobre as considerações acima, é reduzido a um vocabulário científico que para os

propósitos de localização objetiva em um ato comunicativo não cumprem a

finalidade de dois indivíduos se entenderem acerca das palavras que usam.

Davidson exemplifica da seguinte forma:

Todas as criaturas nascem fazendo distinções. Desde o começo, um bebêreage de forma a diferenciar sons altos, o seio, e logo indivíduos e certasexpressões faciais. As similaridades não são sinalizadas pela natureza; nós éque julgamos sons altos como relevantemente similares, e que classificamosas respostas da criança como similares. Se perguntarmos a que,exatamente, o bebê está respondendo, a resposta seria que àqueles objetosou eventos que naturalmente classificamos juntos e que são melhorescorrelacionados com as respostas do bebê que naturalmente classificamosjuntas. No fim, devemos questionar se esta noção acerca do que vemnaturalmente faz um trabalho sério. Pois como decidimos se o bebê estárespondendo ao som, ou às vibrações de seu tímpano, ou aos sinais a partirdo ouvido interno ao cérebro? (DAVIDSON, 1997, p.5)

O julgamento por similaridade como está sendo considerada por Davidson,

diz respeito a como os humanos durante a comunicação se comportam em

diferentes manifestações da natureza. Em um caso que pessoas notam o

comportamento de um bebê em relação a uma ocorrência externa e notam

similaridade nas suas respostas, conseguem julgar sobre critérios intersubjetivos,

para fins comunicativos que o bebê está fazendo uma associação. Davidson

continua:

Dificilmente importa quando estamos em posição de especificar um estímuloapropriado a qualquer um dos vários pontos através da cadeia causal a partirda fonte do som até o cérebro. Mas, se pensarmos nas respostas à mãe, amaioria de nós não tem ideia sobre que classe de estímulos neurais provocarespostas relevantemente similares; o melhor que podemos fazer é dizer qualclasse de estímulos (dados dos sentidos, aparições, etc.) causado pela mãe.É por isso que, quando ensinamos a criança a dizer ‘Mamãe’ quandoestimulada pela mãe, concluímos que a criança que dizer que sua mãe estápresente (ao invés de que ela está recebendo uma certa contribuição [input]

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neural). (DAVIDSON, 1997, p.5)

Concebendo o mental de maneira holística, Davidson une as três variedades

de conhecimento sobre uma mesma ontologia. As distingue enquanto formas que

um agente pode acessá-la. O pensamento pertence a uma pessoa, no sentido dela

acessá-lo e saber o que pensa como outros não podem saber. No que diz respeito

ao conteúdo e a significação de crenças, o contexto sociolinguístico que o agente

epistêmico compartilha com seus interlocutores no mundo natural serão os

parâmetros de verificação objetiva para suas atitudes proposicionais.

3.3 INTERPRETAÇÃO, CARIDADE E O LUGAR DA TERCEIRA PESSOA

Como foi visto nas seções anteriores, a teoria do conhecimento e a filosofia

da mente de Davidson está apoiada sobre a concepção holística do mental e da

interrelação entre as três variedades de conhecimento. Pertencer a uma

comunidade linguística é estar imerso em um contexto onde vigora os eventos

psicológicos que constroem, concomitantemente ao agente epistêmico, o

pensamento individual. Nesse contexto estados mentais como desejos e crenças

recebem seu conteúdo pelo que é compartilhado. Estados privados tratados

isoladamente não têm critérios de avaliação e a intersubjetividade promove essa

verificação pelo contato com as outras pessoas.

O conhecimento das outras mentes é parte constitutiva do pensamento

humano. Conhecer o mundo e a si próprio implica conhecer outras mentes. O

sentido que está sendo dado é que a menos que haja um compartilhamento do que

se observa do mundo exterior e do que se expressa sobre ele com outras pessoas,

o pensamento não tem significado, pois atitudes proposicionais visam indicar algo

significativo no mundo, esse significado, como foi apresentado anteriormente,

depende de um conjunto de fatores, parte essencial deles são os propósitos

linguísticos que as pessoas compartilham, “não faz nenhum sentido falar em

comparar ou vir a concordar com os padrões comuns definitivos de racionalidade, já

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que é para nossos próprios padrões, em cada caso, que nos voltamos ao interpretar

os outros. Isto não deveria ser pensado como um fracasso da objetividade, mas

antes como o ponto em que as ‘questões terminam”. (DAVIDSON, 1997, p.3)

A natureza da comunicação é o propósito para o qual ela está empenhada.

Ao destacar que antes de ser um fracasso na objetividade, não ter um padrão

definitivo de objetividade, mas um ponto onde as questões terminam, Davidson

deixa claro que não está procurando fundamentos metafísicos, antes disso, a própria

comunicação fornece os parâmetros que regulam o conteúdo das proposições e a

verdade delas “uma teoria da verdade para Davidson não é senão uma teoria da

compreensão, isto é, uma teoria da interpretação […], da qual um dos pilares é a

indeterminação”. (MARTINS, 2005, p.242) A verdade dessa maneira é relativa aos

propósitos de uma linguagem, “[...] sentenças são verdadeiras e as palavras

referem-se a alguma coisa relativamente a uma linguagem”. (DAVIDSON, IN:

MARTINS, 2005, p.242)

A interpretação, dado que o pensamento é estabelecido intersubjetivamente,

é uma condição para o autoconhecimento e o aprendizado das declarações de

outras pessoas, pois interpretar é estar na situação de entender atitudes

proposicionais sobre os próprios critérios avaliativos. A situação radical de

interpretação – onde os interlocutores falam idiomas diferentes sem auxílio de um

tradutor – evoca um cenário onde o esforço do interprete irá depender mais do que

tomar assertivamente cada do interlocutor como correspondente ao do seu idioma.

Entra em questão o quadro desenvolvido por Davidson durante os capítulos

anteriores.

É preciso que o interprete reconheça no interlocutor como alguém que tem

intenção de expressar algo significativo, o que remete conceder a autoridade de um

agente ao seu próprio pensamento (autoridade de primeira pessoa), as

manifestações externas e as atitudes proposicionais, diante do mundo

compartilhado, serão a ponte entre os agentes em questão, no entanto, o interprete

depende de informações dispersas e devido a múltipla possibilidade de cadeias

causais que levaram o seu interlocutor a formar àquela crença e, por conseguinte,

enunciar àquela sentença demanda um esforço imaginativo grande. “O próprio

agente, contudo, não está em posição de pensar se está de modo geral a usar as

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suas próprias palavras para referir os objetos e os acontecimentos apropriados, visto

que aquilo a que ele regularmente as aplica dá às suas palavras o significado que

elas têm e aos seus pensamentos os conteúdos que eles têm”. (DAVIDSON, 1987,

p.19)

Um intérprete de pensamentos está sujeito, em cada caso individual, a

reconhecer a si próprio como uma pessoa que crê, deseja e responde a estímulos

tal como seu interlocutor. Desse modo, o interprete pode atribuir racionalidade

necessária ao seu interlocutor para julgá-lo, sob sua própria concepção de

racionalidade, como uma pessoa que tem respostas semelhantes as suas,

conduzindo, desse modo, as respostas do seu interlocutor para uma causa comum.

O intérprete reconhecendo no interlocutor causas em comum entre o que ele próprio

observa e as repostas do outro “ao correlacionar essas duas coisas, ele confere

conteúdo ao proferimento do falante”; estando em um ambiente em comum que

sustenta o aspecto referido pelos agentes “daquele aspecto recorrente do mundo é

marcado por um preferimento real ou potencial”. (STROUD, 2005, p.106)

Entretanto, conceder conteúdo a sentença de um falante, parte pelo que o

interprete acredita e parte pelo que ele pode perceber das manifestações verbais do

seu interlocutor, invoca um princípio que será a ligação entre os dois agentes, a

saber, o princípio de caridade (DAVIDSON, 1991).

O processo em que o intérprete atribuirá ao falante significado as suas

palavras, ao invés de levantar uma hipótese arbitrária, assumem dois princípios para

que o falante seja interpretável. O primeiro é o Princípio da coerência, onde o

intérprete busca “consistência lógica no pensamento do falante”, desse modo, é

possível identificar uma sequência no raciocínio do falante; o segundo é o princípio

de correspondência onde o intérprete assume que o falante responde aos mesmos

aspectos do do mundo e que “estaria respondendo se estivesse sob circunstâncias

similares”. (DAVIDSON, 1991, p.7) Ainda que predomine um certo grau de

indeterminação, de acordo com Davidson, analogamente a indeterminação do peso

ou da temperatura e outras formas de medição, o que prevalece como

“empiricamente significativo” é aquilo que é invariante, isto é, o que se sustenta

como verdadeiro e permite o intérprete se assegurar e ter boas razões para acreditar

que o falante está querendo expressar (x) quando usa certa palavra. Por isso aquilo

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que é “invariante é o fato acerca da questão”. (DAVIDSON, 1991,p.11)

Por fim, as outras mentes ou manter-se em comunicação com outras

pessoas, na perspectiva davidsoniana, é parte necessária para o pensamento

humano. O contato linguístico e a significação de palavras é uma característica da

intersubjetividade, neste ponto, critério normativo é decido por uma comunidade de

mentes. O problema das outras mentes enquanto o lugar que ocupa no espaço-

tempo é respondido pela redução de mentes a pessoas pensamentos e eventos

psicológicos, entretanto, diferente de uma objetivação enquanto evento físico, o

pensamento corresponde a um vocabulário sujeito a causas por contexto de

significação diferente, o que impede um reducionismo físico. Antes de ser um

problema, o reconhecimento das outras mentes é a condição para que um indivíduo

desenvolva sua subjetividade em um ambiente intersubjetivo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho monográfico investigou a possibilidade do conhecimento de

outras mentes. Primeiramente, foi feita uma trajetória das questões metafísicas que

envolvem o conhecimento de outras mentes e do mundo exterior, para questões

pragmáticas a respeito da comunicação entre indivíduos. Neste processo percebeu-

se que os fundamentos de conhecimento almejados pela metafísica restringe o

conhecimento sobre critérios elevados como, por exemplo, o de infalibilidade e

certeza indubitável, tornando o conhecimento do mundo e de outras mentes um

impeditivo em situações práticas de comunicação. Além de um impeditivo, surgem

algumas questões de natureza cética, pois levando em consideração que o acesso

ao mundo e as outras mentes são as crenças que um indivíduo forma a partir de

suas experiências sensórias ou de um fundamento a partir do material disponível da

sua consciência, o cético lança a dúvida sobre a independência lógica que as

crenças têm em respeito ao mundo empírico. De acordo com essa independência,

toda crença pode ser diferente do que o mundo apresenta ser e, neste sentido,

mente e mundo trabalham de formas distintivas.

Ao assumir que a mente trabalha de forma independente do mundo,

qualquer crença pode estar errada e, sendo assim, a princípio um agente pode estar

enganado sobre tudo o que acredita. Consequentemente, o mundo e as outras

mentes não podem ser conhecidas por ele. Existe ainda outro tipo de ceticismo que

aponta para a assimetria entre o conhecimento que um agente tem sobre seus

próprios estados internos e os estados externos de outras pessoas. Sendo o modo

que o agente tem para acessar seus próprios estados mentais não necessita

recorrer a evidências externas, enquanto no caso do conhecimento do pensamento

de outras pessoas ele necessite de evidências e manifestações comportamentais,

esses dois tipos de conhecimento podem ser totalmente diferentes, ou seja, aquilo

que um indivíduo acredita não é indicativo para que o tipo de crença de outra pessoa

seja a mesma coisa, isto é, carregue o mesmo conteúdo proposicional.

Para Davidson, as dúvidas céticas só fazem sentido sobre uma concepção

subjetivista do mental. Essa concepção parte de experiências individuais de um

agente epistêmico para representar o mundo a partir do material disponível em seu

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conteúdo mental, ou seja, aquilo que ele apreendeu do mundo através de

intermediadores epistêmicos, por exemplo, órgão dos sentidos, ideias, sensações

etc. Para o filósofo esta concepção do mental trabalha como se houvesse “objetos”

diante da mente e esses tipos de objetos seriam diferentes daqueles do mundo

empírico, de fato. Nesse sentido, qualquer tentativa de estabelecer uma relação

entre a crença e o objeto do mundo físico estaria sujeita a independência lógica

entre os “objetos mentais” e os “objetos materiais”.

Sob a luz do argumento contra as linguagens privadas formulada por

Wittgenstein, Davidson faz sua própria interpretação da mente e da linguagem. De

acordo com o argumento contra as linguagens privadas o critério para significar

palavras é necessário um critério para saber quando se está usando uma palavra

correta ou incorretamente. Este critério só é possível na ostensividade pública, uma

vez que “apontar” para um “objeto mental”, já exigiria regras de individuação

estabelecidas por um contexto público. Decorrente desse argumento Davidson

conclui que, de modo geral, o pensamento e as crenças adquirem seu significado

em um contexto sociolinguístico.

Pensando em uma situação onde um intérprete sem recursos bilíngue tenta

entender os enunciados de uma pessoa de uma língua estrangeira, Davidson

propõe radicalizar a situação de interpretação para chegar aos recursos

necessários, em um ato comunicativo, que identifique atitudes reais e potenciais de

um falante para que ele seja interpretável. Nesse processo é necessário que ambos

(o intérprete e o falante) se reconheçam como compartilhando um ambiente comum,

sobre os critérios da própria língua o intérprete significa os enunciados do falante a

partir da similaridade das respostas e de como elas se sustentam como verdadeiras.

Está em voga no processo de interpretação o princípio de caridade, pois, pelo fato

do intérprete possuir um conjunto de evidências disperso e a cadeia causal que

levou o falante a ter aquela crença fugir o alcance do intérprete, ao menos, ele tem

que identificar lógica e coerência nos enunciados do falante e sobre esse esforço ele

concebe, sobre seus próprios critérios, racionalidade ao falante.

No processo interpretativo, o intérprete compartilhando o mundo com o

falante, consegue estabelecer um critério normativo para o uso das palavras e

significação do conteúdo mental, através do padrão de verificação objetiva fornecida

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pelo caráter público da linguagem. Dessa maneira Davidson entende o mental como

um conjunto de fatores que se estabelece holisticamente. Os objetos são as causas

diretas das crenças, no entanto o significado dessas crenças se estabelece quando

pessoas, num processo comunicativo, se expressam a respeito daquele objeto e,

somente assim, as atitudes proposicionais recebem seu significado. Esse processo

é chamado pelo filósofo de triangulação, onde ele pede que imaginemos as pessoas

como pontos que interagem traçando uma linha em comum entre eles culminando

no vértice do triângulo que é o ponto em comum sobre o qual se comunicam - o

mundo.

Em relação a assimetria entre o conhecimento em primeira e terceira pessoa,

para Davidson, cada pessoa tem autoridade sobre aquilo que pensa, ou seja, tem

acesso ao seu pensamento de modo como outra pessoa não pode ter. Isto se dá,

pois, durante o aprendizado individual, o contato com seu ambiente social e o

contexto em que o indivíduo está inserido dependeu de uma rede causal que o levou

a formar suas crenças. Cada indivíduo por estar imerso em redes causais diferentes

estão sujeitos a variar suas crenças, variando também a significação que cada um

dá ao seu conteúdo, no entanto, sempre formado em um contexto sociolinguístico.

Em suma, a indispensabilidade e a importância da terceira pessoa é visível

durante toda construção argumentativa de Davidson. Para ele antes de ser um

problema de natureza metafísica, como é pressuposto no início do trabalho, ou um

conhecimento incerto e sujeito a dúvidas céticas, pensado de maneira holística o

mental deixa de ter uma ontologia diferente do corpo e da natureza e retorna ao

âmbito em comum entre os homens. Com sua peculiaridade de ter um vocabulário

próprio que diz respeito a intencionalidade semântica, ou seja, os eventos e

manifestações intencionais recaem em um processo interpretativo

Pensando o mental como uma forma de interpretação, se faz ver que é parte

do esforço humano de entender a si mesmo e entender aos outros - usar palavras,

para tanto, adequá-las as circunstâncias, ser indeterminadas em alguns casos,

sofrer revisões e estar em transformação. Entretanto, sobre o julgo da normatividade

de uma comunidade de mentes.

Enquanto ao realismo redutivo das ciências, sobre as considerações de

Davidson a respeito da mente, ao menos se tem a possibilidade de pensar a

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racionalidade e o pensamento humano sobre um outro viés – o pensamento requer

interpretação e a interpretação requer o uso de um vocabulário psicológico.

Considero relevante os apontamentos sobre a terceira pessoa enquanto nos

faz tratar a epistemologia em um âmbito coletivo, pois mesmo se optar por ser

autodidata o homem busca na história, em relatos, enfim, em outras mentes,

instruções para formar seu pensamento – isso enquanto já adulto. Na infância, em

fase de desenvolvimento, estamos passivos ao contexto que será o formador da

nossa subjetividade e da objetividade por meio da intersubjetividade. Neste sentido,

me parece razoável pensar na intersubjetividade como traço relevante para a

construção do pensamento humano.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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