universidade estadual paulista faculdade … · de vários registros narrativos. mais do que isso:...

101
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA Dissolução e aleatoriedade: a estética do romance na obra “Almoço Nu” de William S. Burroughs Luis Fernando Catelan Encinas Marília 2011

Upload: hoangnhan

Post on 21-Jul-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

Dissolução e aleatoriedade: a estética do romance na obra

“Almoço Nu” de William S. Burroughs

Luis Fernando Catelan Encinas

Marília

2011

Page 2: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

1

UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”

Campus Marília

Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UNESP

DISSOLUÇÃO E ALEATORIEDADE:

A ESTÉTICA DO ROMANCE NA OBRA “ALMOÇO NU” DE WILLIAM

S. BURROUGHS

Dissertação apresentada ao

Programa de Pós-Graduação

em Filosofia para obtenção do

título de Mestre em Filosofia.

Área de concentração:

História da Filosofia, Estética.

Discente: Luis Fernando

Catelan Encinas.

Orientadora: Dra. Arlenice

Almeida da Silva.

Marília

2011

Page 3: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

2

DISSOLUÇÃO E ALEATORIEDADE:

A ESTÉTICA DO ROMANCE NA OBRA “ALMOÇO NU” DE WILLIAM S.

BURROUGHS.

BANCA EXAMINADORA:

_____________________________________________

Prof.ª Dra. Arlenice Almeida da Silva (UNESP/Marília)

(Presidente e Orientadora)

__________________________________________

Prof. Dr. Celso Fernando Favaretto (USP/São Paulo)

(1º Examinador)

__________________________________________

Prof. Dr. Peter Pál Pelbart (PUC/São Paulo)

(2º Examinador)

Page 4: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

3

AGRADECIMENTOS

Assim como meu destino está ligado a outras pessoas, ao encontro com

outras pessoas, este trabalho só foi possível com a ajuda e a participação de algumas

pessoas. Neste sentido, portanto, eu gostaria de agradecer...

À minha família, Mãe, Pai (R.I.P.), Lê, Lauren, etc., pelo suporte.

À Ane Carolina, por tudo o que a gente já viveu junto, e pelo amor.

Aos meus amigos, Paulão Marafão, Fabinho, Mateus, Caled, Paulão Cotia,

Xampu, Gustavo, Rodrigo, Herbert, Thien, etc., pela máxima inspiração.

Aos colegas de Pós-graduação, Tércio Bugano, Raphael Guazzelli,

Fernando Aun, Débora Barbam, Tomás Menk, Márcio Girotti, Cláudia Galassi, Flávia

Quintanilha, pela amizade.

Em especial, à professora Dra. Arlenice A. da Silva, pela paciente e

enriquecedora orientação.

Aos professores Drs. Celso F. Favaretto e Peter P. Pelbart, pela honrosa

oportunidade de tê-los em minha banca.

Ao professor Dr. Ubirajara Rancan de A. Marques, pela sempre “pronto-

generosa” disponibilidade.

À Aline, ao Paulo e à Edna, a todos os secretários da Graduação e da Pós-

graduação em Filosofia, pela gentileza e atenção dispensadas.

Ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da UNESP-Marília, por

proporcionar as condições “objetivas” para a realização deste trabalho.

À CAPES, pelo apoio e financiamento de minha pesquisa.

EU AMO VOCÊS TODOS! SEM VOCÊS ESTE TRABALHO TERIA

SIDO IMPOSSÍVEL!

Page 5: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

4

Supondo, por exemplo, que alguém faça uma quantidade de

pontos no papel, totalmente ao acaso (...) eu digo que é possível

encontrar uma linha geométrica cuja noção seja constante e

uniforme segundo uma certa regra, de modo que essa linha passe

por todos os pontos (...). (Leibniz, em “Discurso de Metafísica”)

Page 6: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

5

RESUMO:

Como consequência da experiência histórica, as formas de dominação ganharam cada

vez mais espaço na produção literária, até se constituírem num dos principais temas do

romance ao longo de todo o século XX. Vários escritores configuraram esteticamente o

problema do poder, desenvolvendo uma narrativa cujo tema central é a dominação;

dominação essa perpetrada pelos totalitarismos de direita e esquerda. Mas é na obra do

escritor norte-americano William S. Burroughs (1914-1997) que os mecanismos de

dominação ganharão um novo estatuto, em especial na obra Almoço Nu (1959), na qual

aparecem configurados os novos modos de dominação que emergiram a partir da

Segunda Grande Guerra: monopólios, burocracias, estruturas de controle, etc. Outras

características formais, não menos relevantes, acompanham a emergência das novas

temáticas, principalmente os signos de dissolução e aleatoriedade que percorrem o livro

de Burroughs, abolindo em definitivo qualquer exigência de unidade configuradora ao

instaurar uma nova combinação entre forma de expressão e forma de conteúdo. De

qualquer modo, um estudo do romance de Burroughs que leve em consideração todas

essas particularidades exige um aparato conceitual apropriado. Neste sentido, a obra de

Gilles Deleuze (1925-1995) fornece alguns elementos teóricos para a análise de Almoço

Nu, a exemplo da noção de sociedades de controle, retirada da obra de Burroughs.

Assim, o presente estudo busca apreender de que forma o romance Almoço Nu nos

aponta as transformações temáticas e composicionais no romance da segunda metade do

século XX correspondentes à experiência histórica na qual o problema da dominação

veio a ocupar lugar de destaque nas produções literárias.

PALAVRAS-CHAVE: Burroughs; romance contemporâneo; experiência histórica;

Deleuze; estruturas de controle.

Page 7: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

6

ABSTRACT:

As a consequence of historical experience, forms of domination have gained more space

in the literary production, even if they constitute one of the main themes of the novel

throughout the twentieth century. Several writers have shaped the aesthetic problem of

power, developing a narrative whose central theme is domination, domination

perpetrated by the totalitarian regimes of right and left. But it is the work of American

writer William S. Burroughs (1914-1997) that the mechanisms of domination will gain

a new status, especially in the work Naked Lunch (1959), in which they appear set new

modes of domination that emerged from the Second World War: monopolies,

bureaucratic structures, control, etc. Other formal features, not less relevant,

accompanying the emergence of new themes, especially the signs of dissolution and

randomness that run through the book of Burroughs, ultimately abolishing any

requirement to establish a unit set up by combining new form of expression and form of

content. In any case, a study of the Burroughs novel that takes into account all these

specific requires a conceptual apparatus appropriate. In this sense, the work of Gilles

Deleuze (1925-1995) provides some theoretical elements for the analysis of Naked

Lunch, like the notion of societies of control, withdrawal from work of Burroughs.

Thus, this study seeks to learn how the novel Naked Lunch points out the thematic and

compositional changes in the novel of the second half of the twentieth century,

corresponding to the historical experience in which the problem of domination came to

occupy a prominent place in literary productions.

KEY-WORDS: Burroughs; contemporary romance; historical experience; Deleuze;

control structures.

Page 8: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

7

Sumário:

Introdução.........................................................................................................................8

Capítulo 1. Elementos para uma análise de Almoço Nu..................................................21

Capítulo 2. Texto e contexto: um estudo histórico-literário............................................37

Capítulo 3. O Almoço está servido..................................................................................59

3. 1. Contrapontos e deslocamentos................................................................................66

Capítulo 4. As sociedades de controle.............................................................................84

CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................93

ANEXO: DADOS BIOGRÁFICOS DE WILLIAM SEWARD BURROUGHS, DO

NASCIMENTO ATÉ O ANO DA PUBLICAÇÃO DE “ALMOÇO NU”

(1959)...............................................................................................................................96

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................98

Page 9: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

8

Introdução

Pode uma obra como Almoço Nu, completamente apartada das estruturas

narrativas tradicionais, ser chamada de romance? Como bem salientou o escritor

Norman Mailer, o livro de Burroughs “não é um romance em qualquer sentido

convencional, com o que, então, surge a questão de se saber se é romance mesmo, em

relação a qualquer sistema de referência (...)”.1 Essa afirmação é correta se também

levarmos em conta o fato de que Burroughs foi um dos principais escritores de uma

longa linhagem literária considerada “sem enredo”. Não parece exagerado, portanto,

afirmar que a atitude de Burroughs, ao desferir um golpe de misericórdia na narrativa

tradicional, signifique muito mais do que o simples desejo de criar um “estilo” único;

representa, antes, um gesto de verdadeira honestidade intelectual em consonância com

seu próprio tempo. Ora, assim como a maioria dos escritores modernos, Burroughs

abole o ordenamento cronológico linear, ao mesmo tempo em que se abstém de

empregar um narrador onisciente, supostamente confiável; no seu lugar, são

empregados inúmeros pontos de vista ou múltiplas perspectivas, todas mais ou menos

limitadas (um escritor, por conseguinte, dedicado a “desrealizar”, a desfazer a narrativa

tradicional).2 Consciente desses aspectos, o teórico Laurent Jenny destaca a

singularidade do livro de Burroughs ao considerar os resultados advindos do emprego

da técnica do cut-up:

A narrativa esvai-se, a sintaxe explode, o próprio significante abre

brechas, a partir do momento em que a montagem dos textos deixa de

se reger por um desejo de salvaguardar, a todo preço, um sentido

monológico e uma unidade estética.3

Estas considerações introdutórias são muito importantes, principalmente no

que tange à possibilidade de pensarmos no significado do gênero “romance”. Neste

sentido, consideramos essencial a afirmação da escritora canadense Margaret Atwood

relativamente à forma romanesca:

Quando se fala em ficção, as pessoas cometem o erro de achar que

toda ficção é ou deveria ser chamada “romance”. E por “romance”

entendem realismo, é isso que querem dizer - ou algo que se pareça

com realismo -, querem dizer Jane Austen ou George Elliot. Mas de

fato há muita ficção em prosa que não é romance naquele sentido.

Mas, sobre misturar gêneros, bem, por que não? Existem regras para

1 MAILER, 1966, p. 28.

2 Como veremos, mesmo as personagens do romance, ao perderem sua “densidade” pessoal, elas mesmas

se tornam ricas em múltiplas interpretações possíveis. 3 JENNY, 1979, p. 28.

Page 10: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

9

isso? As regras estão na cabeça de certos críticos, mas escritores não

dão atenção para isso.4

Burroughs parece ter solapado os fundamentos do romance tradicional, tais

como enredo, linearidade e, sobretudo, a unidade formal; esta foi definitivamente

abolida por ele, bem como pela maioria dos escritores modernos (a exemplo de Joyce,

Gide e, posteriormente, com os surrealistas). A unidade formal foi dissolvida em favor

de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do

método cut-up, Burroughs acaba por abolir toda e qualquer forma de subordinação entre

os diversos registros narrativos (tais registros, independentes entre si, não se

subordinam a uma unidade formal). Desse modo, evidencia-se a essência do cut-up,

enquanto técnica narrativa desenvolvida por Burroughs, como uma organização textual

que rompe com o discurso horizontal, com a narrativa linear, em favor de uma

verticalidade consistente na reunião de um imenso domínio de diferenças entre diversos

registros, proporcionando assim uma leitura não-linear independente da sequência

numérica dos capítulos.5

É talvez apoiado nesta ideia que Burroughs faz a seguinte afirmação: “Pode-

se abordar Almoço Nu a partir de qualquer ponto de intersecção...”.6 Neste trecho, o

autor adverte sobre a possibilidade de se “abordar” a obra a partir de qualquer ponto,

sem nenhuma preocupação com o princípio de causalidade, ou seja, enquanto agente

promotor de uma ação. Apenas aparentemente e em relação às leis de conjunto é que

esta fórmula é negativa, mas em termos de potência, ela deve ser entendida

positivamente: a ausência de ligação, e de sentido, é algo positivo, se constituindo na

força específica desse tipo de formação.

No nosso entender, a ausência de uma continuidade lógica ou narrativa é

uma das principais características da obra de Burroughs. Com a técnica do cut-up, as

4 Folha de São Paulo, São Paulo, 26 de outubro de 2003. Caderno Mais!, p. 03.

5 Como tentaremos evidenciar ao longo deste trabalho, em termos de método, o problema de fundo que se

coloca aqui é o de como pensar duas ou mais séries, dois ou mais registros, num espaço de diferença, e

não mais dialeticamente, ou seja, como contrários (opostos). É todo um domínio das multiplicidades que

está em questão com o método cut-up... “É preciso que cada termo de uma série, sendo já diferença, seja

colocado numa relação variável com outros termos e constitua, assim, outras séries desprovidas de centro

e de convergência. É preciso afirmar a divergência e o descentramento na própria série. Cada coisa, cada

ser deve ver sua própria identidade tragada pela diferença, cada qual sendo só uma diferença entre as

diferenças. É preciso mostrar a diferença diferindo. Sabe-se que a obra de arte moderna tende a realizar

estas condições: neste sentido, ela se torna um verdadeiro teatro feito de metamorfoses e de permutações.

Teatro sem nada fixo ou labirinto sem fio (Ariadne se enforcou). A obra de arte abandona o domínio da

representação para se tornar „experiência‟, empirismo transcendental ou ciência do sensível” (DELEUZE,

1988, p. 94).

6 BURROUGHS, 2005a, p. 230.

Page 11: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

10

relações narrativas foram inteiramente modificadas, desaparece o âmbito da

comunicação dotada de sentido, uma vez que aqui, em última instância, já não

transcorre ação alguma. Completamente esvaziado de sentido ou direção, o livro de

Burroughs converte-se numa espécie de reflexão sobre o problema do vício em si

enquanto um modelo de controle; a narrativa, portanto, não chega ao fim, mas se

dissipa, esvaindo-se pouco a pouco: é a falência, no plano narrativo, das chamadas

narrativas históricas ou tradicionais.7 Isto, contudo, não significa dizer que nos

romances contemporâneos não acontece mais nada: como afirma Robbe-Grillet, “não se

deve assimilar a pesquisa de novas estruturas da narrativa a uma tentativa de supressão

pura e simples de todo acontecimento, de toda paixão, de toda aventura”.8 O resultado

portanto é uma escrita aparentemente aleatória, contrária à ordem discursiva linear, em

que cada registro narrativo é independente, isto é, regido por suas próprias leis e

representações. E mais: em que pesem a aparente desordem narrativa, o amálgama de

registros e a disposição aleatória dos capítulos, não se pode negar ao livro de Burroughs

a existência de uma estrutura mais ou menos premeditada – ainda que ela só se deixe

apreender ao final da leitura. Dessa forma, poderemos constatar que, apesar da

aparência mais ou menos caótica (ou seja, fragmentária e algo desordenada) do

encadeamento textual, o livro de Burroughs apresenta uma conexão de ideias bastante

consequente.

Em todo o caso, a imagem que melhor traduz esse enorme sistema de

afinidades morfológicas, esse composto de vários registros, é a ideia de rede, em

oposição à noção de teia, com seus centros de distribuição e convergência,

correspondendo a uma espécie de topologia indiferente a qualquer tipo de suporte ou

unidade configuradora, sem posição de saída, um sistema em última análise aberto:

Nem sequer um quebra-cabeça, cujas peças ao se adaptarem

reconstituiriam um todo, mas antes como um muro de pedras, não

cimentadas, onde cada elemento vale por si mesmo e no entanto tem

relação com os demais: isolados e relações flutuantes, ilhas e entre-

ilhas, pontos móveis e linhas sinuosas, pois a Verdade tem sempre

“bordas retalhadas”. Não um crânio, mas um cordão de vértebras, uma

7 O problema de fundo que se coloca aqui é a falência das chamadas narrativas históricas ou tradicionais,

isto é, a perda de sentido se transforma no problema central do romance contemporâneo, convertido,

segundo algumas interpretações, em reflexão sobre o Nada (a exemplo de Burroughs, Pynchon e Bolaño).

Na verdade, este tipo de problemática pode ser remetido à obra de Flaubert, especialmente ao seu

romance “Educação Sentimental” (1869). Mas a perda de sentido aqui está associada à ideia de desilusão

(descrença), e muito longe de aboli-las, a narrativa flaubertiana conserva ainda a unidade estética e o

sentido monológico do texto. Em todo o caso, todos estes romances são extremamente pobres em enredo

e em ação... 8 ROBBE-GRILLET, 1969, p. 25.

Page 12: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

11

medula espinhal; não uma vestimenta uniforme, mas uma capa de

Arlequim, mesmo branco sobre branco, uma colcha de retalhos de

continuação infinita, de juntura múltipla (...) a invenção americana por

excelência, pois os americanos inventaram a colcha de retalhos, no

mesmo sentido em que se diz que os suíços inventaram o cuco.9

Neste sentido, somente a categoria de multiplicidade, a própria ideia de

multiplicidade erigida em forma, é capaz de explicar esse grande composto formado por

vários registros. O livro de Burroughs é multiplicidade pura, ou seja, afirmação

irredutível a qualquer unidade configuradora. Diferentemente da totalidade hegeliana, a

totalidade produzida aqui é produzida por adjacência ou contiguidade, como uma parte

ao lado das partes, que ela não unifica nem totaliza – uma unidade entre registros

narrativos que conserva toda a sua diferença nas suas próprias dimensões, enquanto

conjunto de partes heterogêneas. “O Verbo divide-se em partes que formam uma

unidade e assim deve ser encarado, mas tais partes podem ser abordadas em qualquer

ordem, jogadas de um lado para o outro e exploradas de frente e de costas (...)”.10

Temos muito ainda que dizer sobre o livro de Burroughs. Adiante nos

ocuparemos dele em filigranas. No entanto, tudo não passará de um recorte. A quase

infinita sucessão de cenas que há em Almoço Nu torna quase impossível uma verdadeira

apresentação, uma apresentação que esgote integralmente o seu conteúdo. Isto porque

nenhum elemento do texto é suscetível de uma só interpretação e todas as figuras podem

ser cambiadas. Na verdade, a tradição crítica “intelectualista” quase sempre procura

estabelecer um significado unívoco, mas, com isso, perde o essencial, pois a única coisa

que é possível constatar e que corresponde à sua natureza [o livro de Burroughs] é a

multiplicidade de sentidos, a riqueza de referências quase ilimitadas que impossibilita

toda e qualquer formulação unívoca de seus conteúdos. Assim, interessa-nos muito mais

conhecer sua estrutura, seu funcionamento (as relações contrapontísticas, os

deslocamentos espaciais, etc.), do que encontrar seu “significado”. Pois enquanto a

expressão ou a forma não forem consideradas em si mesmas, não será possível

encontrar uma verdadeira resposta, mesmo ao nível dos conteúdos, para o problema da

multiplicidade de sentidos ou de perspectivas.11

Só a expressão é que nos explica o

9 DELEUZE, 1997, p. 100.

10 BURROUGHS, 2005a, p. 235.

11 Ou, como diz Robbe-Grillet: “O mesmo acontece com uma sinfonia, uma pintura, um romance: é na

sua forma que está sua realidade. Mas é também em sua forma que reside seu sentido, „seu significado

profundo‟, isto é, seu conteúdo” (ROBBE-GRILLET, 1969, p. 33).

Page 13: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

12

funcionamento.12

“É absolutamente inútil recensear um tema num escritor se não se

questionar a sua importância precisa na obra, isto é, sem se saber como é que funciona

exatamente (e não o seu „sentido‟)”.13

Neste sentido, partilhamos da opinião de Deleuze, para quem existe apenas

duas maneiras de se ler um livro:

É que há duas maneiras de ler um livro. Podemos considerá-lo como

uma caixa que remete a um dentro, e então vamos buscar seu

significado, e aí, se formos ainda mais perversos ou corrompidos,

partimos em busca do significante. E trataremos o livro seguinte como

uma caixa contida na precedente, ou contendo-a por sua vez. E

comentaremos, interpretaremos, pediremos explicações, escreveremos

o livro do livro, ao infinito. Ou a outra maneira: consideramos um

livro como uma pequena máquina a-significante; o único problema é:

“isso funciona, e como é que funciona?” Como isso funciona para

você? Se não funciona, se nada se passa, pegue outro livro. Essa outra

leitura é uma leitura em intensidade: algo passa ou não passa. Não há

nada a explicar, nada a compreender, nada a interpretar.14

Das duas modalidades de leitura estabelecidas por Deleuze, sem dúvida, a

que mais se aproxima dos objetivos deste trabalho é a denominada leitura em

intensidade, a qual procura estabelecer a plurivocidade do próprio texto, a ambiguidade

e multiplicidade aparentemente ilimitada das figuras, em vez de destacar da cadeia

significante um único elemento, um único significado, esmagando e submetendo todo o

restante a esse “objeto” único, como faz a outra forma descrita por Deleuze. Neste

ponto, deixemos que Burroughs novamente defina essa pluralidade, essa diversidade de

elementos que compõe o texto de Almoço Nu:

Este livro derrama-se em todas as direções para fora de suas páginas,

em um caleidoscópio de paisagens, miscelânea de canções e ruídos

urbanos, peidos e urros de tumultos e estrondo de pantográficas de

casas comerciais, gritos de dor e pathos e gritos de simples pederastia,

gatos que copulam e guinchos injuriados do bagre extraído de seu

habitat, resmungos proféticos do brujo em seu transe de noz-moscada,

pescoços partidos e gritarias de mandrágoras, suspiros de orgasmos,

heroína silenciosa como a aurora nas células sedentas, Rádio Cairo

com berros dignos de um leilão de tabaco ensandecido e flautas de

Ramadã abanando o junky enjoado como um delicado ladrão de

bêbados na aurora macilenta do metrô, buscando o tato das verdinhas

com seus dedos apurados...

12

Como veremos no 2º capítulo, o problema da expressão não é colocado inicialmente por Burroughs de

um modo abstrato ou universal, mas em conexão com as vanguardas literárias do começo do século XX,

tais como o dadaísmo, o surrealismo... 13

DELEUZE e GUATTARI, 2003, p. 83. 14

DELEUZE, 1992, p. 16-17.

Page 14: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

13

Esta é a Revelação e a Profecia do que consigo captar sem FM com

meu aparelho de cristal modelo 1920 com antenas de esperma... 15

Cabe explicarmos ainda a estrutura do nosso trabalho. Em linhas gerais, os

principais tópicos que formam a parte essencial desse trabalho (terceiro e quarto

capítulos) são os seguintes: 1) – A técnica do cut-up enquanto procedimento linguístico

geral; 2) – A dissolução da unidade formal num enorme sistema de afinidades

morfológicas, um composto de vários registros (os contrapontos narrativos); 3) – Os

inúmeros deslocamentos constituídos no interior do romance enquanto símbolos de

desterritorialização, os quais terminam, do mesmo modo, por dissolver toda e qualquer

unidade; 4) – As sociedades de controle, noção deleuziana retirada da própria obra de

Burroughs (o pensamento do controle).

Com relação aos dois primeiros capítulos, que juntos formam a primeira

parte do trabalho, eles levam os seguintes títulos: 1) – Elementos para a análise de

Almoço Nu; 2) – Texto e contexto: um estudo histórico-literário. No primeiro capítulo,

procuramos fornecer alguns elementos que consideramos fundamentais para a análise de

Almoço Nu, tais como a noção de configuração flutuante em oposição às identidades

fixas, personológicas, e o vício como protótipo para outras formas de controle,

introduzindo de maneira preliminar o pensamento do controle enunciado por Burroughs.

No segundo capítulo, como o próprio nome indica, realizamos um estudo histórico-

literário, no qual procuramos analisar algumas filiações e influências associadas à obra

de Burroughs, tais como as vanguardas artísticas européias, a tradição literária norte-

americana, etc.

Neste ponto, procuremos explicitar melhor as partes componentes deste

trabalho apresentadas acima, sobretudo no que tange ao significado dos cut-ups, à noção

de configuração flutuante em oposição às identidades fixas, à dissolução da unidade

formal e ao problema do controle. Em primeiro lugar, o traço de expressão informe que

se opõe à forma expressiva, fugindo à forma linguística tradicional (a questão da técnica

do cut-up enquanto procedimento geral). Em segundo lugar, já não existe um sujeito

que alcance qualquer forma de densidade pessoal. Diríamos de preferência que se

estabelece aqui uma zona de indeterminação, de indiscernibilidade, como se eles

tivessem atingido o ponto que precede qualquer diferenciação personológica. Em

terceiro lugar, a estrutura do texto está assentada sobre uma multiplicidade de elementos

que já não depende de nenhuma unidade configuradora, expressa na ideia de dissolução

15

BURROUGHS, 2005a, p. 235.

Page 15: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

14

da unidade formal, segundo uma linha de composição autônoma de vizinhança e

contiguidade (contrapontos narrativos). E por último, as formas de controle ao ar livre

que substituem as antigas disciplinas que operavam na duração de um sistema fechado.

São as quatro características do livro de Burroughs, que compõem a novo estatuto da

literatura americana produzida no pós-guerra: o traço de expressão informe, a zona de

indeterminação, a dissolução da unidade formal e o pensamento do controle. E neste

sentido, nosso objetivo consistirá em analisar e compreender o melhor possível todas

essas características.

No nosso entender, a atualidade da reflexão proposta pelo nosso trabalho

sobre Burroughs talvez seja a de problematizar a tendência das nossas sociedades

modernas em dissolver, em desfazer todos os códigos, convertendo-os em puros fluxos

(segundo Deleuze & Guattari, “uma predileção destrutiva e mortuária”.16

). É justamente

para essa tendência ou predileção que pretendemos apontar com a ideia de dissolução,

em todos os seus níveis e esferas, como aparece indicado no próprio título de nosso

trabalho: “Dissolução e aleatoriedade...”. Outra característica importante de nosso

trabalho consiste na tentativa de interpretar todos esses signos de dissolução e

aleatoriedade em termos de um esvaziamento, de um esgotamento das possibilidades de

realização do homem ocidental (como está posto ao fim do terceiro capítulo de nosso

trabalho). É neste registro, portanto, que devemos entender a falência das chamadas

narrativas históricas ou tradicionais, ou seja, enquanto esgotamento das possibilidades

formais.

Tal como foi definido anteriormente, a ideia mesma de dissolução se insinua

por toda a obra de Burroughs, desfazendo não apenas as identidades discerníveis, bem

como a unidade formal: desfaz-se a unidade, a sistemática, como expressão e símbolo,

cedendo lugar à ideia de multiplicidade, a uma espécie de produção contínua de

hipóteses e perspectivas. De qualquer maneira, a noção que melhor traduz esse enorme

16

“A civilização define-se pela descodificação e pela desterritorialização dos fluxos na produção

capitalista. Todos os processos são bons para fazer essa decodificação universal: a privatização não só dos

bens, dos meios de produção, mas também dos órgãos do próprio „homem privado‟; a abstração não só

das quantidades monetárias, mas também da quantidade e trabalho; a ilimitação não só da relação entre o

capital e a força de trabalho, mas também da relação entre os fluxos de financiamento e os fluxos de

rendimento ou meios de pagamento; a forma científica e técnica que os próprios fluxos de código tomam;

formação de configurações flutuantes a partir de linhas e de pontos sem identidade discernível. A história

monetária recente, o papel do dólar, os capitais migrantes a curto prazo, a flutuação das moedas, os novos

meios de financiamento e crédito, os direitos especiais de tiragem, a nova forma das crises e das

especulações, tudo isto junca o caminho dos fluxos descodificados. As nossas sociedades têm uma grande

predileção por códigos, por códigos estranhos e exóticos, mas esta predileção é uma predileção destrutiva

e mortuária” (DELEUZE e GUATTARI, 2004, p. 255).

Page 16: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

15

sistema de afinidades morfológicas é a noção de função, a função concebida aqui como

relação entre partes heterogêneas, como relação contrapontística, relação entre relações.

No que diz respeito à perda das identidades discerníveis, elas parecem ter sido

substituídas por novas subjetividades, sem identidade, sem uma base substancial

unitária ou forma de interioridade, ou seja, a subjetividade se converte em função

mesma, a função como singularidade, como elemento, como relação variável,

irredutível a limites personológicos. Do mesmo modo, a ideia de dissolução parece ter

afetado também à própria forma do poder: como uma função contínua e livre, os

mecanismos disciplinares se difundem em todas as direções, tornando-se independentes

dos meios de confinamento. Neste sentido, com o advento das chamadas sociedade de

controle, torna-se quase impossível acertar a localização pontual dos mecanismos

disciplinares, dissolvidos em todo o campo social, como uma extensão dos mecanismos

disciplinares para além dos próprios meios de confinamento, uma espécie de “sublime”

desenvolvimento do poder disciplinar chegado ao ponto de prescindir dos próprios

estabelecimentos de disciplina. Assim, como se pode notar pelo exposto acima, a ideia

de dissolução nos conduziu a uma noção que incide diretamente sobre todo o conjunto

de nossas reflexões: a noção de função. E neste sentido, o que de fato tentamos em

nossa pesquisa foi problematizar estes três aspectos da noção de função, a função

concebida aqui em termo de relações: a função enquanto relação variável (as

configurações flutuantes), a função enquanto relação entre relações (os contrapontos

narrativos), e a função enquanto relação contínua e livre (as sociedades de controle).

Neste sentido, portanto, nosso trabalho possui três eixos principais, sendo todos os três

entendidos segundo a forma da função: 1) – Forma ou configuração; 2) – Subjetividade;

3) – Controle.

Entretanto, vale ressaltar, a noção de função utilizada aqui se refere apenas

em parte à função descrita por Deleuze & Guattari, isto é, a função como proposição

científica, como função de conhecimento.17

Pois o que pretendemos com esta noção é

17

“A ciência não tem por objeto conceitos, mas funções que se apresentam como proposições nos

sistemas discursivos. Os elementos das funções se chamam functivos. Uma noção científica é

determinada não por conceitos, mas por funções ou proposições. É uma idéia muito variada, muito

complexa, como se pode ver já no uso que dela fazem respectivamente a matemática e a biologia; porém,

é essa ideia de função que permite às ciências refletir e comunicar. A ciência não tem nenhuma

necessidade da filosofia para essas tarefas. Em contrapartida, quando um objeto é cientificamente

construído por funções, por exemplo um espaço geométrico, resta buscar seu conceito filosófico que não

é de maneira alguma dado na função. Mais ainda, um conceito pode tomar por componentes os functivos

de toda função possível, sem por isso ter o menor valor científico, mas com a finalidade de marcar as

diferenças de natureza entre conceitos e funções” (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 139).

Page 17: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

16

justamente aquilo que determina um certo tipo de relação que constitui a própria

essência da função matemática: relação entre relações. Neste sentido, a função deve ser

entendida aqui como processo, como operação e, portanto, não como estado ou

grandeza, mas como comportamento, como atividade.18

Evidentemente, como dissemos,

a noção assim compreendida tem origem matemática, em especial nas investigações da

teoria das funções, as quais buscam como resultado não uma grandeza – pois a relação

entre grandezas se chama proporção19

–, senão a discussão de possibilidades gerais,

formais. Em outras palavras: este tipo de investigação estuda classes inteiras de

possibilidades formais, grupos de funções, operações, equações e curvas, e não as

estuda em vista de qualquer resultado, mas com respeito a sua realização e

comportamento, o que em última análise, como veremos, se aproxima muitíssimo do

que Burroughs fez em seu Almoço Nu. Todavia, não se trata de dizer que o livro de

Burroughs faz o que a teoria das funções fez. Mas se tomarmos unicamente esta

determinação da função: que existem funções constantes que podem ser diferenciadas

apenas em parte ou não podem ser de modo algum, então é isto uma função de

Burroughs (como, por exemplo, as configurações flutuantes, irredutíveis a limites

personológicos, a qualquer forma de determinação). É claro que Burroughs não é um

Weierstrass, mas ele faz na literatura a mesma coisa que se produziu na teoria das

funções, ou seja, existe como que um eco, uma espécie de intersecção entre ambos.20

Portanto, não parece exagerado afirmar que Burroughs está próximo da teoria das

funções. Não se trata de dizer que Burroughs imita determinado tipo de investigação

matemática, mas de constatar que entre ambos existem semelhanças, relações de

ressonância, etc.

Mas, com isso, não pretendemos “interferir” de maneira alguma em outros

domínios. Naturalmente, temos o dever de justificar a utilização feita, aqui, da noção de

função. Pois se utilizamos, aqui, de conhecimentos matemáticos no domínio estético-

filosófico, eles naturalmente aparecem sob uma nova luz e levam a outras conclusões

que não àquelas limitadas pelo domínio de sua especialidade, onde servem a outros fins.

Mas o fato de uma noção matemática estar no horizonte deste estudo implica que a ideia

18

“A função, concebida corretamente, é a existência pensada em atividade” (Goethe apud SPENGLER,

1923, p. 118). 19

“A relação entre grandezas se chama proporção; a relação entre relações constitui a essência da função”

(SPENGLER, 1923, p. 115). Ademais, toda proporção supõe a constância dos elementos; toda

transformação (que na teoria das funções tem uma importância decisiva), no entanto, a sua variabilidade. 20

Karl Wilhelm Theodor Weierstrass (1815-1897), matemático alemão que forneceu as bases para a

investigação das funções analíticas.

Page 18: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

17

de função, em sentido mais amplo, penetra no campo da discussão estético-filosófica,

com todas as suas consequências. Estes conhecimentos, então, perdem o caráter

independente que possuem em seu domínio especializado, e isto porque são

necessariamente interrogados sob um ângulo novo, diferente (neste caso, a disciplina

“interferente” procede com seus próprios meios, com seus elementos próprios).

Portanto, eles não são mais considerados sob o ângulo da verdade matemática, mas

examinados num outro sentido, isto é, extrinsecamente, no sentido de apurar o que

comportam de significação e de fundamento estético-filosófico. Deste modo,

gostaríamos de propor como um “índice” para nossas análises, ainda que de maneira

parcial e incompleta, o conceito de função, conceito este que, como já dissemos, incide

diretamente sobre todo o conjunto de nossas reflexões: a noção de função, concebida

aqui em termos de relações: a função enquanto relação entre relações (os contrapontos

narrativos), a função enquanto relação variável (as configurações flutuantes) e a função

enquanto relação contínua e livre (as sociedades de controle).

Mas, para tal, cabe fazermos ainda uma outra distinção relativamente à

diferença entre o conceito filosófico e a função científica enquanto dois tipos de

multiplicidades ou variedades que diferem em natureza. Pois, segundo Deleuze &

Guattari, existem algumas instâncias de oposição principais entre filosofia e ciência, que

agrupam as séries de functivos de um lado, e as pertenças de conceitos de outro,

podendo ser expressas da seguinte forma: a ciência, por um lado, tem como qualidade

distintiva os functivos, variáveis independentes construídas sobre um plano de

referência que determinam estados de coisas ou misturas de corpos; a filosofia, por

outro lado, tem como qualidade distintiva os conceitos, variações inseparáveis erigidas

sobre um plano de imanência que exprimem acontecimentos. É neste sentido, portanto,

que Deleuze & Guattari dizem que os conceitos e as funções se apresentam como dois

tipos de multiplicidades que diferem em natureza...

A função, na ciência, determina um estado de coisas, uma coisa ou um

corpo que atualizam o virtual sobre um plano de referência e num

sistema de coordenadas; o conceito, na filosofia, exprime um

acontecimento que dá ao virtual uma consistência sobre um plano de

imanência e numa forma ordenada. 21

Na opinião de Deleuze & Guattari, estas distinções não são coisas de

somenos importância, pois uma confusão entre conceitos de um lado e funções de outro

pode ser ruinosa em vários aspectos. Assim, segundo eles, só se descobre a

21

DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 158.

Page 19: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

18

irredutibilidade dos conceitos às funções se se compara o que constitui a referência de

umas e o que faz a consistência dos outros, ou seja, que os estados de coisas ou misturas

dos corpos formam as referências da função, ao passo que os acontecimentos são a

consistência do conceito. Estes são, portanto, os termos que é preciso considerar em

vista de qualquer redução ou síntese possível. Contudo, a questão de fato que se coloca

aqui é que a noção de função parece (ou poderia) se estender a outros domínios, para

além dos limites de seu próprio domínio de especialidade. Segundo o próprio Deleuze

(a propósito de Bernard Cache), as qualidades da função, a função enquanto

manifestação das relações variáveis, concernem à própria situação contemporânea, em

que a ideia de flutuação, por exemplo, substitui a permanência de uma lei, ou quando

um objeto ocupa lugar em um contínuo por variação. Assim, diz Deleuze:

Pelo seu novo estatuto, o objeto é reportado não mais a um molde

espacial, isto é, a uma relação forma-matéria, mas a uma modulação

temporal que implica tanto a inserção da matéria em uma variação

contínua como um desenvolvimento contínuo da forma. (...) É uma

concepção não só temporal mas qualitativa do objeto, visto que os

sons, as cores, são flexíveis e tomados na modulação. É um objeto

maneirista e não mais essencialista: torna-se acontecimento.22

Mas – voltemos a afirmar – para se chegar a esta concepção de função foi

necessário que a função não se definisse mais pela sua forma matemática ou científica,

mas caracterizasse uma nova ordem de relações enquanto conjunto das relações

variáveis. Foi preciso, pois, inventar um novo tipo de função, de natureza propriamente

filosófica: “(...) é na medida em que a filosofia está apto a criá-lo, que temos o conceito

de uma função”.23

E é neste sentido, portanto, que entendemos que o livro de Burroughs

demarca claramente um conjunto de relações variáveis que não pertence à função como

tal (a função científica, por exemplo), como sendo composto a partir de vários

elementos ordenados, cujas partes são independentes entre si mas que, apesar disso,

funcionam conjuntamente, ou seja, comportando-se ao mesmo tempo como unidade e

como multiplicidade. Como teremos ocasião de demonstrar no terceiro capítulo (em 3.1.

“Contrapontos e deslocamentos”), seus elementos enquanto variáveis independentes são

relativos uns em relação aos outros, mas cada um deles é absoluto em si mesmo, ou

seja, é dotado de um sentido suficiente (disso decorre, como veremos, o próprio estatuto

das ordenadas intensivas, já que, segundo Deleuze, o próprio da intensidade é ser ela

22

DELEUZE, 1991, p. 38-39. 23

DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 191.

Page 20: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

19

constituída por uma diferença que remete, ela própria, a outras diferenças, isto é,

enquanto absoluta e relativa...)

Como se poderá perceber ao longo da leitura, nosso trabalho possui um

determinado sentido de composição, no qual alguns dos tópicos ou temas principais

reaparecem ou são retomados em outra parte, numa espécie de processo contínuo de

intensificação dos seus conteúdos. Assim, o pensamento do controle, esboçado

inicialmente no primeiro capítulo, é retomado no quarto (e último) capítulo através da

noção deleuziana de sociedades de controle. Na verdade, essa tendência se manifesta em

vários momentos do nosso trabalho, com a ideia de dissolução expressa na noção de

entropia, com os inúmeros deslocamentos espaciais constituídos no interior do romance,

entre outros.

E como orientação metodológica, cabe ressaltarmos também a utilização

feita aqui da obra de Deleuze – pois como se poderá notar nosso texto em diversos

momentos faz referência à obra de Deleuze. Mas esse não é um trabalho sobre Deleuze,

mas com Deleuze, para além de qualquer forma de “ortodoxia”; antes de tudo, é uma

apropriação, uma torção, uma transposição de determinados conceitos deleuzianos para

o livro de Burroughs. Certamente, muitas outras referências teóricas foram utilizadas

aqui, mas nenhuma que se compare, em termos de utilização, à obra de Deleuze. Neste

sentido, procuramos esclarecer o melhor possível os conceitos de Deleuze utilizados

nesse trabalho para a análise de Almoço Nu (tais como a noção de contraponto, de

desterritorialização e de sociedades de controle); contudo, não se deverá esperar uma

exposição sistemática ou de conjunto dos mesmos, já que tais conceitos foram

claramente utilizados a partir de um ponto de vista, de uma perspectiva que fizeram com

que eles [os conceitos deleuzianos], ao serem realocados em outra parte (ou seja, para o

livro de Burroughs), sofressem uma considerável mudança de significação. Na verdade,

colocamos todo o nosso empenho em transpor integralmente as palavras de Deleuze

para as passagens essenciais de nosso trabalho, mas não foi possível introduzir suas

ideias sem lhes dar certas interpretações ou explicações. Isto significa dizer que os

conceitos deleuzianos foram extraídos de seu contexto original, ou melhor, que esses

conceitos foram utilizados como ferramentas, como operadores, muitas vezes

independentemente das relações conceituais próprias do sistema a que pertencem (neste

caso, a obra de Deleuze), criando uma pequena diferença que mostra os conceitos do

filósofo como que parcialmente diferentes do que eles são ou como parcialmente

idênticos à própria obra de Burroughs. Tomemos como exemplo de tal operação aquilo

Page 21: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

20

que denominamos a perda das identidades discerníveis: para Deleuze, tal perda ou

esgotamento representara sempre uma potência positiva, diferentemente de Burroughs,

que parece enxergar nesse mesmo acontecimento um elemento de negatividade, como

algo destrutivo e mortal, que denominamos de vazio de indeterminação. Assim, nossa

leitura de Deleuze possui um caráter eminentemente experimental, porquanto que o

objeto central desse trabalho é o texto de Burroughs (ainda que uma leitura fortemente

inspirada no pensamento de Deleuze).

Por fim, espero que todas as considerações apresentadas acima tenham sido

suficientes para descrever os objetivos e as intenções deste trabalho. Assim, não

pretendo aumentar desnecessariamente o seu número, mas desejo, depois de transmitido

este quadro panorâmico, passar finalmente à discussão das questões apresentadas nesta

Introdução.

Page 22: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

21

Capítulo 1. Elementos para a análise de Almoço Nu.

Apresentação

O objetivo central deste capítulo é apresentar alguns aspectos importantes

para uma análise de Almoço Nu. Para tanto, desenvolvemos o capítulo em torno de

alguns temas principais, tais como dados gerais sobre a obra e o autor, o tipo de

experiência relatado no livro, o pensamento do controle como problema central da obra

de Burroughs, a técnica do cut-up enquanto método de criação literária desenvolvido

por Burroughs e, finalmente, a caracterização das personagens do romance, irredutíveis

a qualquer forma de determinação, a qualquer diferenciação personológica.

Almoço Nu não é literatura de entretenimento, nem se enquadra no que

comumente chamamos de realismo ficcional.24

A obra, originalmente lançada em 1959,

foi construída sobre os fundamentos da subversão estilística e do desconforto

existencial. Os experimentos realizados com a linguagem em Almoço Nu, com a

maneira de se contar uma história, inspirariam uma geração inteira de escritores norte-

americanos.25

No entanto, Almoço Nu resiste a qualquer forma de determinação

conceitual definitiva; nesse romance, “conceitos abstratos, simples como álgebra,

reduzem-se a um monte de bosta ou a um par de cojones velhos”.26

O livro também não

possui apenas um único “enredo”, muito menos início ou fim; cada um de seus capítulos

obedece a uma lógica própria: “Este livro derrama-se em todas as direções para fora de

suas páginas”.27

24

O realismo é um movimento artístico-literário que se manifesta na segunda metade do século XIX no

Ocidente, que se caracteriza pela pretensão de uma abordagem objetiva da realidade e pelo interesse por

temas sociais. O engajamento ideológico e o traço panfletário fazem com que muitas vezes a forma e as

situações descritas sejam exageradas para reforçar a denúncia social, a exemplo de Zola. Nesse sentido, o

romance de Burroughs não guarda nenhuma semelhança com o chamado realismo. É evidente que

Almoço Nu está repleto de cenas de extremo realismo, ao explorar imagens de forte impacto, mas essas

cenas não possuem nenhuma qualidade social redentora. São, ao contrário, o relato direto de

determinados grupos de acontecimentos. 25

O principal deles é, sem dúvida, Thomas Pynchon, autor de O arco-íris da gravidade (1973),

considerado sua obra-prima. Em O arco-íris da gravidade, facilmente se percebe ecos de William

Burroughs no que se refere, por exemplo, aos diálogos cegos, às situações absurdas e, principalmente, no

pensamento do controle. Nesse sentido, Pynchon é o grande continuador da obra de Burroughs. 26

BURROUGHS, 2005a, p. 230. 27

BURROUGHS, 2005a, p. 235.

Page 23: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

22

Escrito de forma fragmentária, Almoço Nu não possui linearidade; é antes

um fluxo, uma torrente que arrasta consigo todo tipo de coisas.28

“O sujeito, cujo eu

desertou do centro, estende-se por todo o contorno do círculo. No centro está a máquina

do desejo...”.29

Qualquer parte do livro, portanto, pode servir de ponto de partida:

“Pode-se abordar Almoço Nu a partir de qualquer ponto de intersecção...”.30

Por isso,

pela própria natureza de Almoço Nu, não poderemos proceder a uma “leitura” de tipo

linear, seguindo a ordem mais ou menos lógica dos capítulos. O livro de Burroughs

rompe com esses esquemas demasiadamente simples. Devemos, portanto, abandonar

quaisquer expectativas desde a primeira página, deixando-nos levar pelo redemoinho de

imagens, acontecimentos e intensidades que percorrem toda a obra, que formam um

misto de aleatório e de dependente...

Nenhuma cadeia é homogênea, mas antes um desfile de letras de

alfabetos diferentes, onde subitamente aparecesse um ideograma, um

pictograma, a minúscula imagem de um elefante a passar ou de um sol

nascente. Repentinamente, na cadeia que engloba (sem os compor)

fonemas, morfemas, etc., aparecem os bigodes do pai, o braço

ameaçador da mãe, uma fita, uma rapariga, um polícia, um sapato. (...)

É todo um sistema de agulhagens e sorteio, que formam fenômenos

aleatórios parcialmente dependentes, parecidos com uma cadeia de

Markoff. (...) Se aqui existe uma escrita, é uma escrita com a forma do

Real, estranhamente plurívoca, nunca bi-univocizada, linearizada, uma

escrita transcursiva e nunca discursiva: é todo o domínio da

„inorganização real‟ das sínteses passivas, onde em vão procuraríamos

algo a que se pudesse chamar o Significante, e que compõe e

decompõe ininterruptamente as cadeias em signos que nunca virão a

ser significantes.31

Ou ainda, segundo Deleuze:

Não que qualquer um se encadeie com qualquer um. Trata-se antes de

lances sucessivos, cada um dos quais opera ao acaso, mas em

condições extrínsecas, determinadas pelo lance precedente (...) é

sempre um misto de aleatório e de dependente, como numa cadeia de

Markov. “A mão de ferro da necessidade que agita os dados do

acaso”, diz Nietzsche, invocado por Foucault. Não há pois

encadeamento por continuidade nem por interiorização, mas

reencadeamento por sobre os cortes e as descontinuidades

(mutações).32

28

Discutiremos mais adiante, no 2º capítulo deste trabalho, a noção de fluxo enquanto “afluxo libidinoso”

a partir de um referencial psicanalítico. 29

DELEUZE e GUATTARI, 2004, p. 26. 30

BURROUGHS, 2005a, p. 230. 31

DELEUZE e GUATTARI, 2004, p. 42. 32

DELEUZE, 2006a, p. 92-93.

Page 24: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

23

(...) O acaso só vale para o primeiro lance; talvez o segundo lance se

dê em condições parcialmente determinadas pelo primeiro, como

numa cadeia de Markov, uma sucessão de reencadeamentos parciais.33

Publicado no ano de 1959, Almoço Nu teve inúmeras versões, a maioria

delas organizadas em Tânger, no Marrocos. O livro, segundo James Grauerholz & Barry

Miles, estudiosos da obra de Burroughs, “evoluiu de forma lenta e imprevisível ao

longo de nove anos tumultuados na vida de seu autor”.34

Eles também dizem que o livro

“não foi criado de acordo com um plano ou esquema predeterminado, mas foi crescendo

no decorrer de uma década de viagens e de atribulações por quatro continentes (...)”.35

O romance cobre todo o período da vida de Burroughs em que esteve envolvido com

drogas, e contra as quais lutava desde a metade dos anos 1940, em Nova York, e que na

primavera de 1956 o arrastaria até o fundo mais lamentável de sua dependência, quando

vivia num quarto no Bairro Nativo de Tânger.

Neste sentido, Almoço Nu é um livro violento, pornográfico e subversivo,

acima de tudo, um livro antiamericano, contrário ao puritanismo e conservadorismo

americanos. O livro chegou até mesmo a ser proibido nos EUA por ser considerado um

livro obsceno; mais tarde, acabou sendo reconhecido em todo o mundo como uma das

obras mais importantes do pós-guerra. De certo modo, o livro coloca em xeque os

valores da “próspera” classe média norte-americana, mostrando a ânsia de poderosos e

privilegiados, o submundo dos viciados, alcoólatras e homossexuais, marginais de todo

tipo. Somente em 07 de julho de 1966, oito anos depois de sua primeira publicação pela

Olympia Press de Paris, uma alta instância americana proclamou que o romance possuía

“qualidade redentora social” e, portanto, não era obsceno, liberando assim sua

publicação em território norte-americano.36

Segundo Miles & Grauerholz, essa data

teria marcado definitivamente o final da censura aberta a obras literárias nos Estados

Unidos. “Com mais de um milhão de exemplares vendidos em todo o mundo, Almoço

Nu conquistou um lugar permanente na literatura norte-americana do pós-guerra”.37

Por exemplo, um fragmento de “Hospital” é bastante revelador da natureza subversiva,

antiamericana, do romance de Burroughs, cujas temáticas desmascaram o estilo de vida

33

DELEUZE, 2006a, p. 125. 34

BURROUGHS, 2005a, p. 279. 35

BURROUGHS, 2005a, p. 279. 36

Com certeza, as inúmeras proibições e polêmicas em torno de Almoço Nu ajudaram a despertar o

interesse pelo livro em todo o mundo; mas isso não significa dizer que o mérito da obra se deva

exclusivamente a fatores extraliterários. É nas qualidades formais e temáticas que se deve procurar uma

explicação para seu enorme sucesso, passado mais de cinquenta anos. 37

BURROUGHS, 2005a, p. 291.

Page 25: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

24

americano (o american way of life), o ethos nacionalista, a mentira do sonho americano.

A cena em questão transcorre num quarto de hospital, de onde o Agente Lee fora

removido:

Passo pelo quarto 10, de onde fui removido ontem... Imagino que

tenha sido um caso de maternidade... Comadres cheias de sangue e

absorventes e substâncias femininas desprovidas de nome, em volume

suficiente para poluir um continente inteiro... Se alguém aparecer em

meu antigo quarto para visitar-me pensará que pari um monstro e que

o Departamento de Estado está tentando ocultar o caso...38

O episódio produz uma sequência anedótica, na qual um diplomata

americano aparece sobre uma plataforma, envolto na bandeira americana, cantando o

hino nacional dos Estados Unidos, “The Star-Spangled Banner”, acompanhado por uma

orquestra: “O DIPLOMATA (lendo um rolo imenso de fita telegráfica que nunca pára

de crescer e emaranhar-se ao redor dos seus pés): – E negamos categoricamente que

algum cidadão dos Estados Unidos da América pertencente ao sexo masculino...”.39

Depois de um breve corte na narrativa, o Diplomata continua: “– Que um cidadão dos

Estados Unidos da América pertencente ao sexo masculino tenha parido, na Interzona

ou em qualquer outro lugar...”.40

Enxugando o suor do rosto, o Diplomata continua: “–

Qualquer tipo de criatura de qualquer espécie ou descrição...”.41

A fala do Diplomata é

entremeada por trechos do hino norte-americano. Segundo a narrativa, ele perde a cor e

cambaleia, tropeça no rolo e desaba sobre uma balaustrada. Sangrando, de forma quase

inaudível, o Diplomata, antes de morrer, ainda consegue dizer: “– O Departamento

nega... Antiamericano... Foi destruído... Quero dizer, isso nunca... Categor... – E

morre”.42

O fragmento termina com um verso de “The Star-Spangled Banner”, o hino

nacional norte-americano, o qual diz: “A noite deu prova de que a nossa bandeira ainda

estava lá...”.43

Enfim, como bem observou Temperley e Bradbury (1981, p. 330), o livro

de Burroughs, em determinados momentos, se assemelha a uma sátira à moda de Uma

Proposta Modesta de Jonathan Swift sobre as forças tecnológicas e repressivas que

38

BURROUGHS, 2005a, p. 71. 39

BURROUGHS, 2005a, p. 71. 40

BURROUGHS, 2005a, p. 72. 41

BURROUGHS, 2005a, p. 73. 42

BURROUGHS, 2005a, p. 73. 43

BURROUGHS, 2005a, p. 73. No que tange aos trechos do livro considerados pornográficos, eles foram

escritos, segundo o próprio Burroughs, como uma espécie de manifesto contra a Pena Capital, imposta ao

mesmo tempo sobre viciados e homossexuais: “Tais trechos têm a intenção de desnudar a pena capital

como o anacronismo obsceno, bárbaro e repugnante que é. Como sempre o almoço está nu. Se os países

civilizados desejam um retorno aos Rituais de Enforcamento dos Druidas nos Bosques Sagrados, ou beber

sangue com os astecas alimentando seus Deuses com sangue de sacrifícios humanos, que tenham plena

consciência do que realmente estão comendo e bebendo. Que vejam de perto o conteúdo das colheres

servidas a eles pelos jornais” (BURROUGHS, 2005a, p. 252).

Page 26: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

25

atacam a mente e a sexualidade, “(...) um poderoso ato de invenção e uma voz da nova

arte de espontaneidade surrealista e caráter provisório que estava entrando na cultura

americana numa época de invenção animada, livre”.44

Com relação ao título da obra, segundo Burroughs, ele teria sido uma

sugestão do escritor e amigo Jack Kerouac. “O título foi uma sugestão de Jack

Kerouac”, disse Burroughs. E acrescenta: “Só fui entender o significado do título depois

de minha recente recuperação. O título significa exatamente o que dizem suas palavras:

Almoço NU – um momento paralisado no qual todos são capazes de enxergar o que está

cravado na ponta de cada garfo”.45

Entretanto, existem alguns relatos conflitantes a

respeito da origem desse título. Numa carta de junho de 1960, por exemplo, Kerouac

lembra o poeta Allen Ginsberg da origem do título: “Não tenho falado com Burroughs

[ultimamente], mas fiquei feliz quando ele mencionou que fui eu quem batizou Almoço

Nu (mas foi você, lembra? estava lendo o manuscrito e confundiu „naked lust‟ com

„naked lunch‟, eu só chamei a atenção para o erro) (...)”.46

Um ato falho cometido por

Ginsberg, ao substituir lust (literalmente, “luxúria”) por lunch, estaria na base do título

do livro, atribuído posteriormente a Kerouac. Mas, para Grauerholz & Miles, “a carta de

1960 parece definir a invenção do título „Almoço Nu‟ como uma parceria de Kerouac e

Ginsberg”.47

Para além dessa curiosidade de história literária, o título transmite um

profundo sentido fenomenológico, uma “objetividade” que pretende chamar cada coisa

pelo seu nome correto, no momento de sua aparição, como o momento paralisado do

qual fala Burroughs. E, por esse motivo, o real fragmentado se opõe aqui à abstração

ideal.

Neste sentido, livro de Burroughs não é acessível sem o concurso da

experiência; essa parece ser a única condição imposta ao leitor, ou seja, de que tenha

com ele certa afinidade interna. Pois em se tratando da experiência de um estado

subjetivo, cuja existência não pode ser legitimada por nenhum critério exterior,

nenhuma tentativa posterior de descrição e explicação racional será bem sucedida, visto

que só quem fez tal experiência poderá compreender e testemunhar tal realidade. A

explicação dada por Burroughs quanto ao sentido da palavra hip (descolado) fornece

uma indicação neste sentido, quando afirma que “esta expressão não está sujeita a

definições, pois se você não „saca‟ o que ela significa, ninguém será capaz de lhe

44

BRADBURY e TEMPERLEY, 1981, p. 330. 45

BURROUGHS, 2005a, p. 245. 46

BURROUGHS, 2005a, p. 281. 47

BURROUGHS, 2005a, p. 282.

Page 27: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

26

explicar”.48

Neste sentido, não existe aqui qualquer possibilidade de um conhecimento

indireto, apriorístico, sem o risco da experiência: “Não sei como descrever ao leitor

branco. Pode-se escrever ou gritar ou cantar sobre isso... pintar sobre isso... representar

sobre isso... cagá-lo sob a forma de mobiles... Desde que você não vá e faça...”.49

Entendido dessa maneira, Almoço Nu não possui um problema, nem representa nada;

ele é um experimento, um processo de experimentação que só significa o que ele é: uma

experimentação.50

Experimentação – isto não é um conceito, mas um nome que designa

algo do qual temos certeza imediata, sem poder definir jamais. Na verdade, apenas o

sistemático é analisável, somente conceitos são definíveis por outros conceitos. (Em

última análise, princípios abstratos são apenas generalizações, sob cujo emprego

habitual a vida flui.) A experimentação-vida segue sendo o que sempre foi: o que não

pode nem pensar-se nem representar-se, o mistério, o eterno devir, a pura experiência

íntima.51

Mas, afinal, que tipo de experiência é relatado em Almoço Nu? Drogas,

todos os tipos de drogas, maconha, cocaína, benzedrina, nembutal, peiote, yagê, anti-

histamínicos, etc. E principalmente heroína. O livro é um relato pormenorizado da

doença da junk, ao longo de quase quinze anos da vida de Burroughs.52

É claro que as

drogas têm um papel importante na obra de Burroughs. Porém, Almoço Nu não é todo

sobre drogas. O romance trata também de alguns dos temas centrais do pós-guerra, na

última fase do modernismo ou início do “pós-modernismo” norte-americano, tais como

paranóia, cultura pop, estruturas de controle, tecnologia, aniquilação, etc. O estilo do

livro se caracteriza também pelo uso das mais variadas formas de registro associados à

cultura de massa – o desenho animado, o filme B, a estória em quadrinhos, o livro

48

BURROUGHS, 2005b, p. 26. 49

BURROUGHS, 2005a, p. 229. 50

Deleuze entende a literatura anglo-saxônica como um processo de experimentação. Num trecho de

Diálogos, ele afirma: “A literatura inglesa ou americana é um processo de experimentação” (DELEUZE,

2004, p. 64). Neste fragmento, Deleuze salienta na literatura inglesa e americana o predomínio da

experimentação sobre processos puramente abstratos. 51

“A vida... mais misteriosa – desde o dia em que o grande libertador se abateu sobre mim, o pensamento

de que a vida poderia ser um experimento do conhecimento – (...). A vida como um meio do

conhecimento –” (Nietzsche, em A gaia ciência – Livro IV, § 324, 2001). Este pensamento de Nietzsche

expressa bem essa postura na qual a vida, a experiência, antecede toda abstração, onde a vida mesma se

torna palco do conhecimento, lugar de experimentação. 52

Junk: literalmente, “porcaria”, “refugo”. Junk é um termo genérico para diversos medicamentos e

substâncias relacionadas ao ópio, o extrato da papoula. Têm em comum propriedades narcóticas,

analgésicas e hipnóticas. Seus derivados mais puros, extraídos diretamente da papoula, são conhecidos

como opiáceos (por exemplo, a morfina). Quando resultam de modificações parciais, são chamados de

opiáceos semi-sintéticos (por exemplo, a heroína), enquanto os compostos sintéticos de ação semelhante à

do ópio são conhecidos como opiáceos sintéticos ou opióides (por exemplo, a metadona). A propósito, cf.

“Carta de um Perito no Vício em Drogas Perigosas”, um anexo de Almoço Nu sobre drogas pesadas.

Page 28: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

27

pornográfico, mas também o jargão científico e tecnológico. Almoço Nu abrange,

portanto, diversos campos e temáticas, como física, matemática, química, filosofia,

história, antropologia, música, quadrinhos, drogas, medicina, psicologia, unindo-os de

maneira humorística, absurda, poética e sombria – uma encruzilhada de gêneros e

estilos por vezes inconciliáveis, mas, que, ao mesmo tempo, revela uma inequívoca

organicidade. É nesse sentido que William Burroughs não é um mero junky writer. As

drogas devem ser entendidas apenas como ponto de partida de toda a sua produção, ao

percorrê-la de uma ponta à outra.

Na verdade, Burroughs chegou a expandir o sentido de dependência para

além da doença da junk, estendendo o termo para outros âmbitos da vida humana. “As

drogas têm um papel importante em minha obra”, dissera Burroughs, “porém estou mais

interessado no vício em si mesmo, um modelo de controle que torna possível a

decadência dos potenciais biológicos humanos”.53

De certo modo, o grande mérito de

Burroughs foi o de ter determinado a essência ou a natureza do vício não a partir de seu

objeto – drogas, sexo, dinheiro, poder, etc. –, mas como essência subjetiva abstrata

(o vício abstrato, o vício qualquer, que não é mais tomado sob esta ou aquela forma)

enquanto um modelo de controle. Uma espécie de “estetismo” superior que elevou o

vício à categoria de questão, à questão propriamente transcendental do vício: como o

vício é possível enquanto problema? O problema do vício é colocado de maneira

filosófica, como problema transcendental das relações entre o vício e o pensamento do

controle. Portanto, é neste sentido que as drogas serviriam, segundo Burroughs, de

modelo para outras formas de controle. Por exemplo: em Junk (1956), primeiro romance

de Burroughs, o vício em drogas aparece como metáfora para os males da sociedade de

consumo; e numa época em que as novas formas de servidão humana passam

necessariamente pela simplificação e degradação do homem, como uma mercadoria,

Burroughs parece correto na sua apreciação. Quando Burroughs se refere ao mundo da

junk como “moldado em posse e monopólio”, isso se ajusta perfeitamente à sociedade

de consumo, já que qualquer droga entendida como mercadoria, como monopólio, é

possível apenas numa sociedade capitalista; e assim como, segundo Marx, o operário é

alienado em relação ao produto de seu trabalho, da mesma forma o dependente é

alienado em relação à droga:

Junk é o produto ideal... a mercadoria perfeita. O vendedor não precisa

de lábia. O cliente se arrastará pelo meio do esgoto implorando uma

53

MIRA e LANGER, 2001, p. 04.

Page 29: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

28

chance de comprar... O vendedor de junk não vende seu produto ao

consumidor; vende o consumidor ao seu produto. Não melhora nem

otimiza sua mercadoria. Piora a qualidade da mercadoria e otimiza o

cliente. Paga seus funcionários em junk.54

Esse é um bom exemplo da aplicação do vício em drogas para outros

âmbitos da vida humana, segundo a fórmula de Burroughs: “Pois existem diversas

formas de dependência, e creio que todas elas obedecem leis básicas”.55

Mas, se em

Junky Burroughs ainda não concebe o vício como modelo para as chamadas formas de

controle, em Almoço Nu essa ideia aparece claramente. Nesse ponto, emerge na obra de

Burroughs o pensamento do controle (que analisaremos mais detidamente no quarto

capítulo) – o problema, por assim dizer, que obseda toda a obra de Burroughs. O Doutor

Benway, por exemplo, emprega drogas em interrogatórios como meio para a obtenção

de controle total sobre os interrogados: “Na falta de conhecimentos mais precisos sobre

a eletrônica cerebral, as drogas continuam sendo uma ferramenta essencial do

interrogador em seus ataques à identidade pessoal do espécime”.56

Contudo, é num trecho de “Corporação Islã e Partidos de Interzona” que

uma operação de mudança de sentido se realiza integralmente, quando Burroughs

procura definir a noção de controle tomando a junk como um protótipo do controle,

concebendo o vício como um modelo para o controle. O texto em questão é uma longa

reflexão sobre as chamadas técnicas de emissão onde, ao final do trecho, é realizada a

operação de mudança de sentido. Segundo o narrador, os encarregados por essas

emissões, chamados de Emissores, fariam uso exclusivo de transmissões telepáticas

para controlar o espécime. Como ilustração, o narrador utiliza o exemplo dos Códices

Maias que, segundo ele, teriam feito uso de transmissões telepáticas para a obtenção de

controle sobre a população.57

Conhecem os códices Maias? É assim que os compreendo: os

sacerdotes – por volta de um por cento da população – fizeram uso de

emissões telepáticas de sentido único para informar os trabalhadores a

respeito do quê e quando sentir... Um emissor telepático precisa estar

emitindo a todo momento. Nunca pode receber, porque assim estaria

indicando ter sua continuidade parasitada por alguém com emoções

próprias. O Emissor precisa emitir o tempo todo, mas não pode

recarregar-se através de contato. Mais cedo ou mais tarde, fica sem

54

BURROUGHS, 2005a, p. 247. 55

BURROUGHS, 2005a, p. 252. 56

BURROUGHS, 2005a, p. 34. 57

Burroughs entende pontualmente o sistema maia como um calendário de controle: “Tenho me

interessado pelo sistema maia, que era um calendário de controle. Veja, o calendário deles postulava

realmente como todo mundo deveria se sentir num certo tempo, com dias de sorte, dias de azar, etc.”

(BURROUGHS, 1988, p. 150).

Page 30: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

29

emoções a transmitir. Não é possível ter emoções sozinho. Não

quando se é sozinho como um emissor – e, como é notório, só pode

haver um único Emissor em dado ponto do espaço-tempo... Por fim, a

tela se apaga... O Emissor transformou-se numa enorme centopéia...

Os trabalhadores então se aproximam, ateiam fogo à centopéia e

elegem um novo Emissor por meio de consenso geral... Os Maias

eram limitados por seu isolamento... Hoje um único Emissor

controlaria todo o planeta... Entendam, o controle não pode de modo

algum ser um meio para qualquer fim prático... Não pode de modo

algum ser um meio para qualquer coisa além de mais controle... É

como a junk.58

Evidentemente, existe toda uma tradição literária no Ocidente sobre drogas.

Grande parte dela remonta ao início do Romantismo. Em 1820, o inglês Thomas de

Quincey publica “Confissões de um comedor de ópio”. O poeta francês Baudelaire

escreve “Paraísos artificiais” no ano de 1858. No século XX, Aldous Huxley publica o

ensaio “As portas da percepção: céu e inferno” (1950), relatando suas experiências com

a mescalina. Em 1958, o surrealista Jean Cocteau publica “Opium: o diário de uma

cura”. Recentemente (1993), o escocês Irvine Welsh publicou “Trainspotting”,

posteriormente adaptado para o cinema, sobre um grupo de amigos viciados em heroína.

Todavia, nenhum deles se iguala a Almoço Nu no que tange à experimentação formal,

composto a partir de uma técnica inspirada em procedimentos artísticos de vanguarda: a

técnica do cut-up. Neste método de criação literária desenvolvido por Burroughs e Brian

Gysin (pintor inglês, amigo e colaborador de Burroughs em Tânger), frases e palavras

eram recortadas de livros e jornais e reorganizadas ao acaso, dando origem ao um novo

texto baseado em princípios de colagem e edição não-linear. Assim, no experimento

formal do cut-up se manifestaria a experiência de uma percepção fragmentada,

determinada pelo entrecruzamento de inúmeras probabilidades, os chamados “pontos de

intersecção” burroughsianos.59

Contudo, o livro de Burroughs não se utiliza apenas da

técnica do cut-up para inverter a rota usual da sintaxe; na verdade, Burroughs realiza

uma verdadeira demolição da linguagem se utilizando de diversos sinais linguísticos.

“É como se a sintaxe que compõe a frase, e que dela faz uma totalidade capaz de

desdizer-se, tendesse a desaparecer liberando uma frase assintática infinita que se estira

e lança travessões como intervalos espaço-temporais”.60

O texto está repleto de

58

BURROUGHS, 2005a, p. 172. 59

Reservamos uma seção à parte para tratar pormenorizadamente da técnica do cut-up, bem como de sua

“utilização”. Por ora, basta assinalarmos que foi o próprio Burroughs quem levou a técnica do cut-up para

o romance, e quem posteriormente elaborou vários romances a partir dessa técnica, entre os quais se

encontra Almoço Nu. 60

DELEUZE, 1997, p. 69.

Page 31: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

30

travessões e parênteses, conjunções e reticências, o que acaba por recriar não apenas a

sintaxe, mas também a própria língua, convertendo-a numa espécie de língua

estrangeira, expandindo ou fragmentando o discurso, desviando-o de seu curso usual

(sem falar do uso frequente de conjunções básicas, em especial a conjunção “e”): “É

uma frase quase louca, com suas mudanças de direção, rupturas e saltos, seus

estiramentos, germinações, parênteses”.61

De qualquer modo, a escrita de Burroughs é

uma escrita indiferente a todo e qualquer tipo de suporte ou unidade configuradora,

funcionando como puro processo de experimentação – no dizer de Deleuze & Guattari,

“entranhas de misericórdia sem sentido e sem fim (a experiência Artaud, a experiência

Burroughs)”.62

E continua:

É aqui que a arte atinge a sua modernidade autêntica, que consiste

unicamente em libertar o que já estava presente na arte de todos os

tempos, mas encontrava-se oculto pelos fins e objetos ainda que

estéticos, pelas recodificações e axiomáticas: o puro processo que se

realiza e que não deixa de se realizar enquanto se vai processando, a

arte como “experimentação”.63

Também reaparece frequentemente a mesma coisa dita num outro ponto

com as mesmas palavras, com pequenas variações. Não devemos, por isso, nos espantar

com eventuais repetições quando o próprio Burroughs nos dá uma explicação para esse

fato; segundo ele mesmo: “Isso não é um descuido nem um aceno para o Departamento

dos Apaixonados pelo Som das Próprias Palavras... São indicações de uma justaposição

no espaço-tempo... uma dobra interna que se fecha (dizem por aí que o universo é

côncavo)... um ponto de intersecção entre níveis de experiência no encontro de linhas

paralelas...”.64

Essas relações acabam por criar uma espécie de circularidade, com

múltiplas entradas no interior do romance.65

Mais ainda: talvez essas repetições tenham

por finalidade a obtenção de uma pequena diferença, uma minúscula diferença entre

duas frases, a torção ou a reduplicação de uma frase à outra, dando origem a uma

segunda frase, diversa da primeira. Como diz Deleuze: “Não é um desdobramento do

61

DELEUZE, 1997, p. 69. Em outro lugar Deleuze dirá: “Não há linha reta, nem nas coisas nem na

linguagem. A sintaxe é o conjunto dos desvios necessários criados a cada vez para revelar a vida nas

coisas” (DELEUZE, 1997, p. 12). Isto se ajusta perfeitamente aquilo que talvez Burroughs pretendesse

comunicar com a técnica do cut-up, quando busca, entre outras coisas, alterar a rota usual da sintaxe. 62

DELEUZE e GUATTARI, 2004, p. 389. 63

DELEUZE e GUATTARI, 2004, p. 389. 64

BURROUGHS, 2005a, p. 341. 65

Referindo-se à obra de Kafka, Deleuze & Guattari fazem a seguinte afirmação: “O princípio das

entradas múltiplas impede somente a entrada do inimigo, o Significante, e as tentativas para interpretar

uma obra que, de facto, só propõe a experimentação” (DELEUZE e GUATTARI, 2003, p. 19). Essa

concepção se ajusta perfeitamente às múltiplas entradas existentes em Almoço Nu.

Page 32: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

31

Um, mas uma reduplicação do Outro. Não é uma reprodução do Mesmo, mas uma

repetição do Diferente”. E continua:

Esse tema constante de Foucault já havia sido objeto de uma análise

completa, que inspirava Raymond Roussel. Pois o que Raymond

descobriu foi: a frase do lado de fora; a sua repetição numa segunda

frase; a minúscula diferença entre as duas (o “rasgão”); a torção, o

forro ou a reduplicação de uma à outra.66

Outro elemento importante do livro de Burroughs que merece ser destacado

é a caracterização das personagens: elas não possuem uma identidade discernível,

parecem irredutíveis a qualquer forma de determinação; em outras palavras: as

identidades fixas cedem lugar a zonas de indeterminação. O Justiceiro, o Bronco, o

Agente Lee, o Marujo, o Doutor Benway, “Dedos” Schafer – personagens de Almoço

Nu –: elas não são pessoas, com uma identidade ou um contorno definível. Os seus

nomes não parecem designar pessoas, mas antes variações intensivas, como “estados

necessariamente gemeais e bissexuados por que um sujeito passa sobre um ovo

cósmico. É preciso interpretar tudo em intensidade”.67

Mais ou menos como faz

Burroughs no “Prefácio Atrofiado”. Todo o restante, policiais, médicos, viciados,

traficantes, etc., devem ser entendidos genericamente apenas como tipos, ou seja, como

aquilo que reúne em si os caracteres distintivos de uma atividade ou grupo (sobretudo,

os tipos instáveis, que sobrevivem nos enclaves ou nas margens de uma sociedade: o

drogado, o homossexual, o estrangeiro...)

Mais cedo ou mais tarde o Justiceiro, o Bronco, o Agente Lee, A.J.,

Clem e Jody os irmãos Ergotina, Hassan O‟Leary o Magnata do Pós-

Parto, o Marujo, o Exterminador, Andrew Keif, „Gordo‟ Terminal,

Doutor Benway e „Dedos‟ Schafer acabarão dizendo a mesma coisa

com as mesmas palavras, ocupando a mesma posição no espaço-

tempo naquele ponto de intersecção...68

Num trecho de Diálogos, Deleuze alude ao escritor inglês Thomas Hardy,

cujas personagens são exatamente como as personagens de Burroughs, ou seja, eles

“não são pessoas ou sujeitos, são coleções de sensações intensivas, cada uma é uma

coleção dessas, um pacote, um bloco de sensações variáveis”.69

Segundo Deleuze,

existiria nestes personagens um modo de individuação sem sujeito, de individuação

impessoal, um tipo de singularidade individual definida antes por afetos, potências e

66

DELEUZE, 2006a, p. 105. 67

DELEUZE e GUATTARI, 2004, p. 163. 68

BURROUGHS, 2005a, p. 228-229. 69

DELEUZE, 2004, p. 55. Segundo Deleuze & Guattari, é possível encontrar um equivalente deste

processo também em Proust, “(...) em que a unidade das pessoas e das figuras que constitui dão lugar a

nebulosas, a conjuntos duvidosos e proliferantes” (DELEUZE e GUATTARI, 2003, p. 32-33).

Page 33: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

32

intensidades – mais ou menos como as personagens de Almoço Nu, as quais se

comportam como configurações flutuantes, sem identidade discernível, compondo uma

espécie de paisagem não-humana, irredutível a limites personológicos (não deixando,

portanto, espaço a um sujeito qualquer determinável). “É uma zona de indeterminação,

de indiscernibilidade, como se coisas, animais e pessoas (...) tivessem atingido, em cada

caso, este ponto (todavia no infinito) que precede imediatamente sua diferenciação

natural”.70

Entendido dessa maneira, a identidade parece não ser mais o ponto de

unidade de um sujeito, o qual adquire uma nova constituição, de natureza flutuante,

abandonando assim o antigo modelo de estabilidade e de discernibilidade construído em

torno da noção de indivíduo. Neste sentido, o sujeito não é mais constituído por uma

identidade, mas é entendido como uma zona de indiscernibilidade. A.J., por exemplo, é

um agente, mas, segundo a narrativa de Almoço Nu, “nunca alguém conseguiu descobrir

a serviço de quem ou de quê ele está. Segundo alguns boatos, ele representa um

conglomerado de insetos gigantes de outra galáxia...”.71

A aparência de Salvador

Hassan O‟ Leary é, ainda segundo a narrativa, “sinistra e enigmática – seus gestos e

maneirismos permanecem incompreensíveis – como as de um agente secreto de um

Estado embrionário”.72

E o Dr. Benway, que ora é confundido com um agente ocidental

infiltrado, ora com um praticante de magia negra disfarçado. Ou ainda o Marujo, um

junky enigmático, quase inumano, também confundido com um agente. Citemos um

trecho de “A Carne Negra”, o qual alude diretamente ao Marujo, a fim de explicitarmos

melhor o que acabamos de dizer acerca das outras personagens de Almoço Nu:

– Amigos, né?

Envergando seu sorriso maroto, o pequeno engraxate olhou para cima

e encarou os olhos mortos, frios e submarinos do Marujo, olhos sem

traço algum de afeto ou luxúria ou ódio ou qualquer sentimento que o

menino já tivesse experimentado por si mesmo ou visto em outro

alguém, ao mesmo tempo frios e intensos, impessoais e predatórios.73

Ou novamente, a propósito de Benway:

Pela primeira vez, os olhos do médico passaram brevemente pelo

rosto de Carl. Olhos sem traço algum de afeto ou ódio ou qualquer

sentimento que Carl já tivesse experimentado por si mesmo ou visto

em outro alguém, ao mesmo tempo frios e intensos, predatórios e

70

DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 205. E ainda, segundo Deleuze & Guattari: “É nos meios

temperados de nossa civilização que agem e prosperam atualmente as zonas equatoriais ou glaciais que se

furtam à diferenciação dos gêneros, dos sexos, das ordens e dos reinos. Só se trata de nós, aqui e agora;

mas o que é animal em nós, vegetal, mineral ou humano, não mais é distinto (...)” (DELEUZE e

GUATTARI, 1992, p. 206). 71

BURROUGHS, 2005a, p. 154. 72

BURROUGHS, 2005a, p. 164. 73

BURROUGHS, 2005a, p. 60.

Page 34: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

33

impessoais. Carl subitamente começou a sentir-se preso naquele

cômodo cavernoso, quieto e submerso, desligado de qualquer fonte de

afeto e certeza. Sua imagem de si mesmo – um homem sentado, de

aparência serena e alerta, com um quê de desprezo educado –

começou a desvanecer-se, com se a vitalidade estivesse sendo

exaurida de seu corpo para fundir-se com o ambiente leitoso e

macilento daquele cômodo.74

Neste sentido, tanto o Marujo quanto Benway são dois homens sem

referências, sem propriedades, sem particularidades humanas, insólitos demais para que

neles se possa pendurar uma particularidade qualquer – homens sem passado nem

futuro, apenas instantâneos desprovidos de qualidade (ασαπακηήπιζηορ75

). Em todo o

caso, estes e outros exemplos, que revelam a pobreza das chamadas imagens

discerníveis e imutáveis, parecem mostrar que nem o homem nem a mulher devem mais

ser entendidos como personalidades bem definidas, como identidades fixas, mas antes

como vibrações, como intensidades, como zonas de indeterminação.76

Perderam-se as

antigas referências, e a “densidade” pessoal cede o passo a um elemento desconhecido,

ao mistério de uma vida não-humana, informe e obscura, um mundo de intensidades

puras, “em que todas as formas se desfazem assim como as significações, significantes e

significados, em benefício de uma matéria não formada, de fluxos desterritorializados,

de signos a-significantes”.77

Assim, ao mesmo tempo em que perdem sua identidade,

estas personagens já não se apresentam exatamente, podendo ser diferenciados apenas

em parte ou não podendo ser de modo algum, ou seja, elas se tornam funções. Em

outras palavras, o Eu se dissolve, se volatiliza, abrindo caminho a todos os outros “eus”,

ou melhor, à emergência de novas subjetividades, sem identidade, sem uma base

substancial unitária ou forma de interioridade.78

74

BURROUGHS, 2005a, p. 195-196. 75

Acharaktéristos: sem qualidade. 76

“Por exemplo, colocar a mulher num pedestal, ou, pelo contrário, não lhe dar qualquer importância:

torná-la uma dona de casa modelo, uma mãe ou uma esposa modelo, são simplesmente meios para nos

esquivarmos a qualquer contacto com ela. Uma mulher não é um símbolo, não é uma personalidade

distinta e definida... Uma mulher é uma estranha e suave vibração do ar, que avança, inconsciente e

ignorada, à procura de uma vibração que lhe responda. Ou então é uma vibração penosa, discordante e

desagradável ao ouvido, que avança ferindo todos os que se encontram ao seu alcance. E o homem

também” (D. H. Lawrence apud DELEUZE e GUATTARI, 2004, p. 368). Ou ainda, segundo Deleuze &

Guattari: “Lawrence, Miller, Laing souberam mostrá-lo: nem o homem nem a mulher são personalidades

bem definidas – mas antes vibrações, fluxos, esquizes e „nós‟. (...) Porque cada um de nós é um

grupúsculo, e assim deve viver, ou antes, é como a caixa de chá zen, quebrada e múltipla, que tem as

fendas remendadas com cimento de ouro, ou como as lajes de uma igreja cujas fissuras a pintura ou a cal

fazem sobressair (...)” (DELEUZE e GUATTARI, 2004, p. 380). 77

DELEUZE e GUATTARI, 2003, p. 34. 78

“A espontaneidade de hoje talvez escape ao indivíduo, assim como à pessoa; não simplesmente por

causa de potências anônimas. Mantiveram-nos durante muito tempo na alternativa: ou sereis indivíduos e

pessoas, ou vos reunireis a um fundo anônimo indiferenciado. Nós descobrimos, todavia, um mundo de

Page 35: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

34

O sujeito perde sua textura em favor de um patchwork, de uma colcha

de retalhos que prolifera ao infinito: o patchwork americano torna-se a

lei (...) desprovida de centro, de avesso e de direito. É como se os

traços de expressão escapassem da forma, semelhantes às linhas

abstratas de uma escrita abstrata (...).79

Ou ainda:

O ato fundador do romance americano, o mesmo que o do romance

russo, consistiu em levar o romance para longe da via das razões e dar

nascimento a esses personagens que estão suspensos no nada, que só

sobrevivem no vazio, que conservam seu mistério até o fim e desafiam

a lógica e a psicologia.80

Como bem observara Robbe-Grillet (1969, p. 22), em seus célebres

estudos sobre o “novo romance”, publicado no ano de 1963, o romance de personagens

pertence a um passado distante, caracterizando uma época bem precisa: a que marcou o

apogeu do indivíduo. E diz:

Talvez isto não seja um progresso, mas está fora de dúvida que a

época atual é antes a era do número de matrícula. Para nós, o destino

do mundo deixou de se identificar com a ascensão ou com a queda de

alguns homens, de algumas famílias. (...) Ter um nome era sem dúvida

muito importante no tempo da burguesia de Balzac. Um caráter era

importante (...). Representava alguma coisa ter um rosto num universo

onde a personalidade representava ao mesmo tempo o meio e o fim de

toda procura. Hoje, nosso mundo está menos seguro de si mesmo,

mais modesto talvez, uma vez que renunciou à pessoa todo-poderosa,

mas também mais ambicioso, uma vez que olha para além. O culto

exclusivo do “humano” cedeu lugar a uma tomada de consciência

mais ampla, menos antropocentrista. O romance parece vacilar, tendo

perdido seu melhor sustentáculo de outrora, o herói. Se não se

consegue se pôr de pé novamente é porque sua vida estava ligada à

vida de uma sociedade agora extinta. Se conseguir, pelo contrário, um

novo caminho se abrirá para ele, com a promessa de novas

descobertas.81

Entendido dessa maneira, as antigas identidades são como moldes fixos,

estáticos, mas as novas subjetividades são uma modulação, como uma moldagem

singularidades pré-individuais, impessoais. Elas não se reduzem aos indivíduos e nem às pessoas, e nem a

um fundo sem diferença. São singularidades móveis, ladras e voadoras, que passam de um a outro, que

arrombam, que formam anarquias coroadas, que habitam um espaço nômade. Há uma grande diferença

entre repartir um espaço fixo entre indivíduos sedentários, segundo demarcações e cercados, e repartir

singularidades num espaço aberto sem cercados e nem propriedade” (DELEUZE, 2006a, p. 185). 79

DELEUZE, 1997, p. 89-90. 80

DELEUZE, 1997, p. 94. 81

ROBBE-GRILLET, 1969, p. 22-23. Na verdade, com esta recusa do “antropocentrismo” Robbe-Grillet

pretende atingir tanto a linguagem analógica e o humanismo tradicional bem como a ideia de tragédia

enquanto identidade entre homem e natureza. Nas palavras do próprio autor: “Portanto, existe a recusa do

vocabulário analógico e do humanismo tradicional, recusa ao mesmo tempo da idéia de tragédia, de

qualquer outra ideia que leve à crença numa natureza profunda e superior do homem ou das coisas (e dos

dois juntos), recusa enfim de toda ordem preestabelecida” (ROBBE-GRILLET, 1969, p. 52).

Page 36: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

35

autodeformante que parece mudar continuamente, a cada instante: o homem modulado,

um tipo de homem sem formato determinado, mas um conjunto infinito de formas ou

expressões possíveis (uma frequência de ondas, não um molde fixo, uma função).

Neste sentido, este novo homem não pode nem deve ser determinado finitamente,

enquanto uma grandeza, visto que é um sujeito que possui “qualidades” móveis e

flutuantes, cambiáveis, variáveis, como um mundo de possibilidades infinitas,

intérminas. Como uma função, portanto, ele se prolifera sobre si próprio, ou seja, ele

não para de se segmentar e de percorrer todos os seus segmentos.

Convém retomarmos ainda aquilo que dissemos anteriormente sobre a

diferença conceitual entre Burroughs e Deleuze, relativamente à compreensão da perda

das identidades discerníveis, pois se Burroughs (ao que tudo indica) parece enxergar

nesse acontecimento um elemento de negatividade, ou seja, como algo destrutivo e

mortal, para Deleuze, tal perda ou esgotamento representa uma potência positiva, uma

característica positiva afirmada pelo indivíduo. Ou seja, para Deleuze, esta

indeterminação não significa alguma coisa de inacabado na individualidade. Ao

contrário, ela exprime a plena potência positiva do indivíduo enquanto tal. Diz Deleuze:

Foi freqüentemente assinalada a franja de indeterminação de que

gozava o indivíduo e o caráter relativo, flutuante e fluente da própria

individualidade (...). Mas o erro é acreditar que essa relatividade ou

essa indeterminação signifiquem alguma coisa de inacabado na

individualidade, alguma coisa de interrompido na individuação. Ao

contrário, eles exprimem a plena potência positiva do indivíduo como

tal e a maneira pela qual ele se distingue, por natureza, de um Eu, bem

como de um eu. (...) Indeterminado, flutuante, fluente, comunicante,

envolvente-envolvido, são outras características positivas afirmadas

pelo indivíduo.82

É verdade que cada um a sua maneira soube impor a existência de uma tal

zona de indeterminação, em que não se é mais possível distinguir quem é animal e

quem é humano, capaz de dissolver a semelhança entre formas humanas e animais. Em

Burroughs, por exemplo: “Era uma sexta-feira quando o „Gordo‟ escorreu até a Praça

sob forma de um feto simiesco translúcido e desprovido de cor, com ventosas em suas

mãozinhas macias e cinza-arroxeadas e uma boca de lampreia formada de cartilagem

fria (...)”.83

Contudo, a apreciação deleuziana citada anteriormente parece distingui-lo

diametralmente do pessimismo burroughsiano (é o que se depreende das citações

extraídas de Almoço Nu). Em todo o caso, o estabelecimento dessa diferença conceitual

82

DELEUZE, 1988, p. 360-361. 83

BURROUGHS, 2005a, p. 212.

Page 37: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

36

é importante, a fim de evitarmos qualquer tipo de igualização ou semelhança entre esses

dois “sistemas”. (Neste sentido, portanto, é preciso dizer que esta diferença existe ou

que ela se estabelece, ou seja, devemos afastar qualquer ideia de semelhança entre

ambos.)

Page 38: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

37

Capítulo 2. Texto e contexto: um estudo histórico-literário.

Apresentação

O livro de Burroughs não deve ser entendido como algo separado, como

independente, por exemplo, das vanguardas européias do século XX ou da tradição

literária norte-americana; ao contrário, ele possui raízes profundas nessas duas

tendências. Neste sentido, o presente capítulo procurará desenvolver um estudo

histórico-literário, no qual buscaremos analisar algumas filiações e influências

associadas à obra de Burroughs, tais como as vanguardas artísticas européias, a tradição

literária norte-americana, entre outras referências.

A literatura do século XX se caracterizou por uma série de experimentações

estilísticas. Joyce, por exemplo, desenvolveu as “palavras-valises”; Beckett organizou a

frase sobre várias camadas de significantes, de modo a expressar todo um horizonte de

possibilidades semânticas; Aldous Huxley desenvolveu a técnica do “contraponto”

narrativo; E. E. Cummings transformou a linguagem poética com sua agramaticalidade;

Raymond Roussel desenvolveu o “procedimento”.

Esta literatura moderna que escava uma „língua estranha em sua

língua‟ e, através de um número ilimitado de construções gramaticais

superpostas, tende a uma expressão atípica, agramatical, como que

visando ao fim da linguagem (poderíamos citar, entre outros e a título

de exemplo, o livro de Mallarmé, os ensaios de Péguy, os sopros de

Artaud, as agramaticalidades de Cummings, as dobraduras de

Burroughs, cut-up e fold-in, mas também as proliferações de Roussel,

as derivações de Brisset, as colagens Dada...).84

Estes são alguns nomes que fundaram novas técnicas estilísticas, na busca

por novas possibilidades formais. Todavia, pode-se afirmar que, entre as técnicas

empregadas na composição de romances, o cut-up é uma das mais interessantes.

Originalmente, a técnica do cut-up (ou “recorte”) surgiu nas artes plásticas, por meio de

Brian Gysin, pintor inglês, colaborador e amigo de Burroughs em Tânger. Gysin, um

egresso do surrealismo, desenvolveu uma maneira diferente de intervir sobre uma tela

de pintura ao dispor sobre a superfície da tela vários tipos de recortes, que incluíam

textos literários e recortes de jornais. De modo análogo, alguns experimentos foram

realizados com a técnica do cut-up em poemas cujos resultados tiveram forte impacto

84

DELEUZE, 2006b, p. 141.

Page 39: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

38

sobre Burroughs. O recurso consistia em escrever um poema de forma linear, que em

seguida era recortado e novamente rearranjado, a fim de se obter um novo texto.85

A intenção era explorar os sentidos semânticos das palavras com base nos fragmentos

rearranjados, os quais implicavam em novos questionamentos sobre a natureza da

linguagem. Burroughs, finalmente, levou a técnica do cut-up para o romance,

elaborando vários romances a partir dessa técnica, a exemplo de Soft Machine (1961),

The Ticket That Exploded (1962) e Nova Express (1964), sendo o último totalmente

construído sob essa técnica, a partir de colagens de James Joyce, Shakespeare,

Rimbaud, Jack Kerouac, etc. Todavia, há quem pensasse – o que incluía o próprio

Kerouac – que Burroughs não produziu nada de inovador com a técnica, com exceção

de Almoço Nu. Essa observação é válida, sobretudo, para aqueles que pensam que toda a

obra de Burroughs se encontra baseada unicamente na técnica do cut-up, de que tenha

recorrido apenas a ela para a composição de romances. De fato, como aponta Claudio

Willer, trechos de Almoço Nu foram remontados ou reorganizados de modo aleatório

utilizando-se a técnica do cut-up.86

Todavia, como salienta Willer, não se pode dizer que

a obra de Burroughs foi construída unicamente a partir da técnica do cut-up. Para ele,

Burroughs soubera equilibrar a costura combinatória de textos à narrativa linear

tradicional, aplicando vários métodos e técnicas, em um processo experimental

consistente, a exemplo dos romances da última fase, na década de 1980:

Na verdade, além de Minutes to Go apenas The Soft Machine, daquele

período, e The Ticket that Exploded foram inteiramente criados desse

modo. A leitura de obras publicadas mais tarde, como Cities of the

Red Light, de 1981, que correspondeu a uma espécie de retorno

literário, ou o pseudofaroeste The Western Lands, de 1987, mostra que

85

Eis a exposição da técnica do cut-up feita por Burroughs em The Third Mind, uma coleção de escritas

cut-ups e de ensaios sobre a técnica: “O método é simples. Eis um caminho para praticá-lo. Pegue uma

folha de papel. Como esta página. Agora corte-a ao meio. Corte no meio das duas partes. Você tem quatro

pedaços: 1, 2, 3, 4... um dois três quatro. Agora rearranje as partes colocando a parte quatro com a parte

um e a parte dois com a três. E você tem uma nova página. Algumas vezes isso acaba dizendo a mesma

coisa. Outras vezes, algo muito diferente – o recorte de falas políticas é muito interessante – em qualquer

caso você acabará por considerar que isso diz alguma coisa e alguma coisa bem definida. Pegue algum

poeta ou escritor de sua admiração. Poemas que você tenha lido muitas vezes. As palavras acabaram

perdendo significação e vida através de anos de repetição. Agora pegue o poema e digite alguns trechos

selecionados. Encha um papel com esses excertos. Agora corte a página. Você tem um novo poema”

(BURROUGHS, 1978, p. 29-30). 86

Num trecho de entrevista, Burroughs parece sugerir que utilizou em Almoço Nu a técnica do cut-up

como instrumento de edição: “Na verdade, ele [Almoço Nu] foi escrito principalmente em Tânger, depois

de eu ter me curado com o Dr. Dent, em Londres, em 1957. Voltei para Tânger e comecei a trabalhar

sobre um monte de anotações que tinha feito num período de anos. A maior parte do livro foi escrita

nessa época. Fui para Paris por volta de 1959, e tinha uma pilha enorme de manuscritos. Girodias estava

interessado, e me perguntou se eu podia ter o livro pronto em duas semanas. (...) De manuscritos reunidos

num período de anos, eu montei o que se tornou o livro a partir de umas mil páginas, ou algo assim.”

(BURROUGHS, 1988, p. 146-147).

Page 40: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

39

ele não precisava do cut-up: a narrativa já saía não-linear e não-

discursiva.87

É preciso ressaltar que a técnica do cut-up está ligada à algumas tendências

do modernismo, principalmente ao surrealismo e o dadaísmo, os quais demonstram o

parentesco de Burroughs com as vanguardas européias do início do século XX. É

bastante claro, por exemplo, o parentesco da técnica de recortes de Burroughs, pelo seu

caráter transgressor, com a “escrita automática” dos escritores surrealistas e, em

especial, com o método de “colagens” dos pintores dadaístas. Como herdeiro dos

movimentos modernistas anteriores à Primeira Guerra que tentavam recriar a sintaxe da

arte para fazê-la conter a experiência moderna, o dadaísmo procurou levar adiante os

avanços formais conquistados anteriormente. Porém, diferentemente de seus

precursores, o movimento dadaísta foi menos uma nova escola poética e artística do que

um movimento do espírito com claras intenções morais, filosóficas e políticas, numa

espécie de reação a Primeira Grande Guerra. Sobretudo, como bem salienta Robert

Short, num ensaio em Modernismo (cf. BRADBURY e MCFARLANE, 1989, p. 240),

não é fácil identificar a originalidade do Dada apenas em seus artifícios, em sua

tendência iconoclasta quase agressiva, ou nos escândalos e nas práticas subversivas,

porquanto a principal contribuição do movimento foi postular não tanto um estilo, mas

uma nova concepção de artista, principalmente com a noção de autoria. (E neste sentido,

os experimentos iniciais de Burroughs com a técnica do cut-up estão muitíssimo

próximos dessa nova concepção dadaísta do artista.)

Os dadaístas não tinham o menor pudor em recorrer ao empréstimo de

inúmeros pioneiros: a colagem do cubismo, o malabarismo tipográfico

e o “bruitismo” do futurismo, o uso livre das cores do expressionismo,

as técnicas espontâneas de Kandinski e as invenções poéticas de

Apollinaire e Max Jacob. A “poesia fonética”, absolutamente

generalizada entre os dadaístas alemães e também explorada por

Tzara, derivava em grande parte das teorias de Marinetti sobre as

“palavras em liberdade” e do expressionista Auguste Stramm.88

Na verdade, as primeiras décadas do século XX testemunharam uma grande

dose de experimentação na literatura, na psicologia e nas artes plásticas. Escritores

tentaram abolir os limites das convenções linguísticas a fim de explorar e mostrar todo o

espectro da experiência interior (em sonhos, visões e fantasias). Eles experimentaram

com novas formas ou utilizaram as antigas formas de novas maneiras. Da escrita

automática dos surrealistas às fantasias góticas de Gustav Meynrick, alguns escritores

87

WILLER, 2009, p. 44. 88

BRADBURY e MCFARLANE, 1989, p. 241.

Page 41: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

40

aproximaram-se e colidiram com as pesquisas de psicólogos que estavam envolvidos

em explorações semelhantes. Artistas e escritores colaboraram em tentativas de novas

formas de ilustração e tipografia, novas configurações de texto e imagem. Em todo o

caso, ainda não haviam sido estabelecidas demarcações claras entre literatura, arte e

psicologia; escritores e artistas emprestavam ideias de psicólogos e vice-versa. Assim,

escritores tais como André Breton e Phillipe Soupault liam e utilizavam constantemente

trabalhos de psicólogos e médicos psiquiatras (tais como Frederick Myers, Théodore

Flournoy, Pierre Janet, etc.).89

O escritor W. B. Yeats, por exemplo, utilizou a escrita

automática espiritualista para compor uma psicocosmologia poética em A Vision (1925).

Em todos os cantos indivíduos procuravam novas formas com as quais representar as

realidades da experiência humana, numa espécie de busca por renovação cultural e

espiritual.

A maioria destas “pesquisas”, portanto, se voltara para a psique humana,

mas principalmente para a descoberta empírica do inconsciente realizada por Freud.

É claro que encontramos, já antes de Freud, algumas alusões sobre este fenômeno

psíquico que foi denominado de inconsciente, em Leibniz, em Kant, em Schopenhauer e

em Nietzsche. Neste último, em especial, o inconsciente já é um fator claramente

perceptível. Mas é apenas com Freud que o inconsciente se torna uma condição sine qua

non. De qualquer modo, foi somente com a psicologia moderna que se descobriu, a

partir do final do século XIX, com seu método indutivo, as bases da consciência,

demonstrando empiricamente a existência de uma psique extraconsciente.90

Mas o fato é

que não demorou muito para que escritores e artistas passassem também a utilizar em

suas criações noções retiradas do vocabulário psicanalítico: falava-se, então, em

inconsciente, em superego, em afluxos libidinosos, etc. Neste sentido, busquemos

analisar a noção de “afluxos libidinosos” a partir do conceito de libido empregado por

Freud pela primeira vez no ano de 1915, em Três ensaios para uma teoria sexual. Sua

compreensão é, no nosso entender, fundamental, a fim de que possamos avançar na

compreensão do livro de Burroughs enquanto um fluxo que arrasta consigo todo tipo de

coisas. Vejamos então...

Em Três ensaios para uma teoria sexual, Freud introduziu seu conceito de

libido e a definiu como sexual. Neste sentido, a libido se revela como divisível e pode

89

Sobre a influência de trabalhos psiquiátricos sobre artistas e escritores cf. Carl Gustav JUNG, O livro

vermelho. Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 194. 90

Cf. Carl Gustav JUNG, Aion: estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. Petrópolis: Editora Vozes,

2008, p. 17-18.

Page 42: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

41

associar-se a outras funções e áreas que, em si mesmas, não se relacionam com a

sexualidade, em forma de “afluxos libidinosos”. Daí resulta a comparação freudiana da

libido como um caudal, como algo em si divisível, podendo ser represada, passar para

adjacentes, etc. Diz Freud:

Temos fixado o conceito de libido como uma força quantitativamente

variável, que nos permite medir os processos e as transformações da

excitação sexual. Separamos esta libido, por sua origem particular, da

energia em que devem basear-se os processos anímicos e, por tanto,

lhe atribuímos também um caráter qualitativo. (...) A análise das

perversões e psiconeuroses nos levou ao conhecimento de que esta

excitação sexual não é produzida unicamente pelos órgãos chamados

sexuais, mas por todos os órgãos do corpo. Construímos, portanto, a

ideia de um libidoquantum, cuja representação psíquica denominamos

“libido do eu”, e cuja produção, aumento, diminuição, distribuição e

deslocamento devem oferecer-nos as possibilidades de explicação dos

fenômenos psicossexuais observados.91

Apesar da definição da libido como sexualidade, Freud não declara “tudo‟

como “sexual”, mas parece reconhecer a existência de outros impulsos especiais, não

conhecidos quanto à sua natureza, mas aos quais teve de atribuir a capacidade de

receber “afluxos libidinosos”. O quadro hipotético básico é o “feixe de instintos” onde o

instinto sexual figuraria apenas como instinto parcial. “A teoria de Freud decorrente

deste conceito – segundo a qual as forças instintivas de um sistema neurótico

correspondem justamente àqueles afluxos libidinosos de outras funções instintivas (não

sexuais) – transformou-se na base da teoria psicanalítica das neuroses (...)”.92

Mas

pouco tempo depois, em Observações psicanalíticas sobre um caso de paranóia (Caso

Schreber), Freud refletiu, ao analisar um caso de paranóia esquizofrênica, se afinal a

libido não coincidiria com o “interesse em geral”:

Uma terceira reflexão sugerida pelas considerações aqui

desenvolvidas coloca a questão se devemos considerar a retração geral

da libido do mundo exterior como suficientemente eficaz para explicar

por si só o “fim do mundo”, e se neste caso os conteúdos do “eu” não

bastariam para manter a relação com o mundo exterior. Teríamos

então que fazer coincidir aquilo que chamamos de conteúdos

libidinosos (interesse procedente de fontes eróticas) com o interesse

em geral (...).93

Mas Freud recua e decide então que a alteração paranóica se explica

suficientemente pela retração da libido sexual. Diz ele, novamente, em Observações

psicanalíticas sobre um caso de paranóia (Caso Schreber): “(...) por isso acho muito

91

FREUD, 1996, p. 1221-1222. 92

JUNG, 1986, p. 120. 93

FREUD, 1996, p. 1524.

Page 43: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

42

mais provável que uma relação alterada com o mundo pode se explicar, apenas ou

predominantemente, pela ausência de interesse libidinoso”.94

À guisa de complemento,

ao invés da teoria sexual das Três ensaios..., pareceu a C. G. Jung mais adequado um

conceito de tipo energético. Assim, tornou-se possível para ele identificar a expressão

“energia psíquica” com o termo “libido”. Para Jung, este último termo indica um desejo

ou um impulso que não é refreado por qualquer instância moral ou coisa semelhante: “A

libido é um appetitus em seu estado natural. Filogeneticamente são as necessidades

físicas como fome, sede, sono, sexualidade, e os estados emocionais, os afetos, que

constituem a natureza da libido”.95

Jung rejeitara completamente qualquer definição

exclusiva e unilateral deste termo, como se pode depreender claramente pelo trecho a

seguir:

Nossas considerações mostram que o termo “libido”, introduzido por

Freud, de modo algum está isento de conotação sexual, mas que uma

definição exclusiva e unilateralmente sexual deste conceito deve ser

rejeitada. Appetitus e compulsio são propriedades de todos os instintos

e automatismos. (...) A teoria sexual dos automatismos psíquicos é um

preconceito insustentável. Já o simples fato de ser impossível que a

totalidade dos fenômenos psíquicos seja derivada de um único instinto

proíbe uma definição unilateral da libido.96

Deste modo, Jung achava que não se devia falar mais em compulsões de

fome, de agressão ou de sexualidade, mas que era preciso entender todas estas

manifestações como expressões diversas da “energia psíquica”. Para ele, todas estas

manifestações tratar-se-iam de energia, isto é, de valores de intensidade, em termos

quantitativos, e as formas de seu aparecimento poderiam ser as mais diversas.97

Assim, as questões sempre controvertidas relativas à natureza da libido (sexualidade,

poder, fome, ou qualquer outro instinto) passariam para um segundo plano, tornando

pouco provável fazer decorrer todos os instintos apenas do conceito de sexualidade,

como pretendera Freud. Nos casos de esquizofrenia, por exemplo – e ainda segundo

Jung –, faltaria à realidade muito mais do que poderíamos atribuir à sexualidade, pura e

simplesmente. Para Jung, falta uma quantidade tão grande de “função do real” que

necessariamente devem estar incluídos nesta perda outros instintos que não os de caráter

94

FREUD, 1996, p. 1525. 95

JUNG, 1986, p. 123. 96

JUNG, 1986, p. 116-117. 97

“A libido como conceito psicológico de energia tem naturalmente esses atributos: o conceito de energia

já contém em si a ideia de um escoamento bem orientado, pois o escoamento sempre acontece da tensão

maior para a menor. (...) A libido como conceito energético é uma fórmula quantitativa para os

fenômenos da vida que são, reconhecidamente, de intensidade diversa. Assim como a energia física, a

libido passa por todas as transformações possíveis, manifestadas pelas fantasias do inconsciente e pelos

mitos” (JUNG, 1991, p. 208).

Page 44: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

43

exclusivamente sexual. “Como mostra o próprio Freud, a introversão e regressão da

libido sexual ou erótica na melhor das hipóteses leva à neurose, mas não à

esquizofrenia”.98

De qualquer modo, isto parece concordar com alguns trechos do livro de

Burroughs, em que é discutida a natureza “incorpórea” do vício, como forma desprovida

de corpo, ou seja, enquanto ausência ou perda de libido. Na verdade, segundo

Burroughs, um viciado é capaz de esquecer completamente de todos os prazeres

intensos do corpo, inclusive do sexo, tal como é relatado em “Hospital”:

Olho para as minhas calças imundas, há meses não troco de roupa...

Os dias passam voando, atados a uma seringa com um longo fio de

sangue... Esqueço do sexo e de todos os outros prazeres intensos do

corpo – sou um espectro desbotado, apegado à junk. Os meninos

espanhóis me chamam de El Homble Invisible – o Homem Invisível...

(...) Procurando uma veia em meio à imundície do meu pé descalço...

Junkies não têm pudor... São imunes à repugnância alheia. Não

acredito que o pudor sobreviva na ausência da libido... No viciado, o

pudor desaparece com sua sociabilidade assexual, que também é

dependente da libido... O viciado lida de forma impessoal com seu

corpo, que para si não é mais que um instrumento para absorver o

meio em que vive... Avalia seus próprios tecidos com as mãos frias de

um negociante de cavalos. „Aqui não adianta injetar‟. Olhos de peixe

morto pestanejam sobre uma veia destroçada.99

Ou ainda, segundo o Dr. Benway:

Uma conseqüência freqüente do uso de junk (...) é a depressão

permanente do cérebro posterior, acompanhada por um estado muito

semelhante à esquizofrenia terminal: completa ausência de afetos,

autismo e atividade cerebral quase inexistente. O dependente é capaz

de passar oito horas encarando uma parede. Permanece consciente

daquilo que o rodeia, mas o ambiente não tem para si nenhuma

conotação emocional e, por conseguinte, nenhum interesse. Relembrar

um período de dependência pesada é como assistir a uma gravação de

acontecimentos vividos tão-somente pelo cérebro anterior. É um relato

frio de eventos externos. (...) Se todo prazer é um alívio de tensões, a

junk proporciona alívio para todos os processos vitais ao desconectar o

hipotálamo, centro da energia psíquica e da libido. (...) Parece-me

mais provável concluir que a junk suspende por completo o ciclo de

tensão, descarga e repouso. Para um junky, o orgasmo não tem função

alguma.100

Todavia, a discussão empreendida acima talvez ainda não esteja bem

situada, pois ela deve nos conduzir necessariamente à problemática decorrente da

descoberta empírica do inconsciente por Freud. Pois esta é, no nosso entender, a questão

98

JUNG, 1986, p. 122. 99

BURROUGHS, 2005a, p. 75-76. 100

BURROUGHS, 2005a, p. 43-44.

Page 45: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

44

de fundo em qualquer discussão sobre a natureza sexual (ou não) da libido. Em outras

palavras: qual é a natureza do inconsciente? Neste sentido, portanto, trata-se de

determinar a natureza desse inconsciente. Sua base é conflitual, como quer Freud, ou

tem ele função complementar e compensadora, como quer Jung?

Os fenômenos do inconsciente, por assim dizer, não se deixam “despachar”

de uma vez por todas. Em outras palavras: para Jung, o inconsciente “é”, ele se

manifesta enquanto um “outro”, para além da consciência vigilante, como potência

autônoma e problematizante; ou seja, na medida em que o inconsciente existe, ele não é

definível e sua existência é um mero postulado; assim, nada podemos afirmar acerca de

seus conceitos possíveis. Podemos definir os limites da consciência; o inconsciente,

porém, é o psiquismo desconhecido e, portanto, ilimitado, pelo simples fato de ser

indefinível.101

Em todo o caso, se é realmente possível apreender esta realidade

chamada inconsciente, só se pode fazê-lo em face de um “outro”, enquanto um “outro”,

como aquilo que poderia acontecer na vida consciente, mas não acontece, ou como

aquilo que o sujeito consciente deveria, poderia ou gostaria de fazer, mas não faz,

assumindo então a forma inconsciente e, consequentemente, aparece como conteúdos

projetados (os conteúdos projetivos do inconsciente), mais ou menos autônomos.

Entendido dessa maneira, o inconsciente seria uma espécie de compensação para o

estado ou a disposição do consciente. Isto significa dizer que os fenômenos do

inconsciente não devem ser compreendidos sob a forma da oposição ou do conflito, isto

é, como uma potência de negação, mas, sobretudo, como uma força questionante e

problematizante. Na verdade, não existem provas de atividade meramente reativa (ou

reflexa) do inconsciente.102

Neste sentido, eis o que diz Deleuze sobre a discussão entre

Freud e Jung, relativamente à natureza do inconsciente:

Já não estaria aí um dos pontos fortes da teoria de Jung: a força de

“questionamento” no inconsciente, a concepção do inconsciente como

inconsciente dos “problemas” e das “tarefas”? Jung tirava disto uma

consequência: a descoberta de um processo de diferenciação, mais

profundo que as oposições resultantes. É verdade que Freud critica

violentamente este ponto de vista (...). Todavia, a discussão entre Jung

e Freud talvez não esteja bem situada, pois trata-se de saber se o

101

“Com base na teoria do conhecimento não estamos em condições de dizer algo válido sobre uma

realidade objetiva do complexo psicológico do fenômeno que denominamos inconsciente (...)” (JUNG,

1991, p. 167). 102

Na opinião de Jung, uma concepção desta natureza, ou seja, de um inconsciente reativo, no melhor dos

casos, seria uma hipótese de trabalho biológica, de valor limitado. “Elevada à dignidade de verdade

universal, não passa de um mito materialista, uma vez que não leva em consideração a inegável

capacidade criativa do inconsciente, diante do qual todas as „causas‟ se reduzem a meros ensejos” (JUNG,

2009, p. 195).

Page 46: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

45

inconsciente pode ou não fazer outra coisa além de desejar. Na

verdade, não seria preciso perguntar antes se o desejo é somente uma

força de oposição ou uma força inteiramente fundada na potência da

questão? 103

Ao que tudo indica, e pelo que se pode depreender da citação acima,

Deleuze parece propor um inconsciente diferencial e, neste sentido, um inconsciente

mais próximo do inconsciente junguiano, um inconsciente de base diferencial,

compensatório (1+1=3), diferentemente do inconsciente freudiano, de natureza

conflitual, que nunca se livra do caráter de valor secundário, ou seja, o de ser nada mais

que repressão, conservando sempre a forma do negativo. E neste sentido, segundo

Deleuze, se o que decorre da demonstração empírica (experimental) de uma psique

extraconsciente é toda a problemática do desejo, na medida em que esta descoberta

aponta para emergência do desejo, então este último se manifestará igualmente não

como potência de negação, mas enquanto força questionante e problematizante. Diz

Deleuze:

É verdade que o inconsciente deseja e só faz desejar. Mas, ao mesmo

tempo em que o desejo encontra o princípio de sua diferença com

relação à necessidade no objeto virtual, ele aparece não como uma

potência de negação, nem como elemento de uma oposição, mas

sobretudo como uma força de procura, uma força questionante e

problematizante que se desenvolve num outro campo que não o da

necessidade e da satisfação.104

Agora, retornemos à nossa tentativa inicial de compreensão do livro de

Burroughs enquanto um fluxo que arrasta, que transporta consigo todo tipo de coisas.

Pois no nosso entender não podemos estabelecer, ao menos neste caso, um corte radical

entre os regimes de fluxo e seus objetos, reduzindo-os a um mero “nada mais que...”, ou

seja, sem remetê-los necessariamente a uma forma unilateral ou mesmo negativa.

Ao contrário, fluxos de natureza heterogênea são colocados em jogo, em que qualquer

fluxo vem se conectar a outro fluxo, podendo associar-se a outras funções e áreas que

em si nada tem haver com um tipo de fluxo particular (por exemplo, com sexualidade),

em forma de afluxos libidinosos. “Bolsa das águas e cálculo dos rins; fluxo de cabelo,

fluxo de saliva, fluxo de esperma, de merda ou de mijo, que são produzidos por objectos

parciais, sempre cortados por outros objectos parciais que, por sua vez, produzem outros

fluxos (...)”.105

Não há dúvida que cada instinto interpreta o mundo inteiro a partir de

103

DELEUZE, 1988, p. 159, nota 18. 104

DELEUZE, 1988, p. 158. 105

DELEUZE e GUATTARI, 2004, p. 11.

Page 47: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

46

seu próprio fluxo, a partir da energia que dele flui: o instinto sexual, por exemplo,

interpreta tudo em termos de sexualidade. (“O humor triste vê tudo cinza e o humor

alegre vê tudo claro e colorido...”) Mas há sempre um acoplamento, uma conexão que

se estabelece com outros instintos, numa transversal onde o primeiro instinto corta o

fluxo de outro instinto, formando um “feixe” de instintos estritamente ligados. Em

suma, a libido é essencialmente plurívoca e a sua plurivocidade produz um só e mesmo

desejo que impregna tudo...

***

Outras características e influências podem ser aventadas, como, por

exemplo, a hipotética filiação de Burroughs com a chamada geração beat. Thomas

Grauerholz afirma que a geração Beat teria inicialmente recebido seu nome em 1952,

com a publicação do romance Go, de John Clellon Holmes. Mas, segundo ele, “a

matéria da revista Life de novembro de 1959, „The only rebellion around‟, foi

provavelmente o estouro da represa para o conhecimento público dos Beats nos Estados

Unidos”.106

Todavia, segundo o poeta Allen Ginsberg, um dos principais porta-vozes da

geração beat, foi algum tempo antes de 1952 que Jack Kerouac, numa conversa com o

mesmo John C. Holmes, inventou o termo “beat”, aludindo tanto a um sentido derrotista

e de abandono quanto ao ritmo do jazz para definir um estilo de vida recém-surgido.107

(O termo também vinha sendo utilizado por Herbert Huncke, o malandro da Times

Square que apresentara a palavra para Kerouac, amigo de Ginsberg e Burroughs.108

) Diz

Ginsberg:

106

BURROUGHS e KEROUAC, 2009, p. 160-161. 107

Segundo Willer, “polissêmica e ambivalente, „beat‟ também é a batida rítmica do jazz. E pode ser

associada à beatitude, palavra chave do repertório de Kerouac, que, em entrevista de 1959, deu esta

interpretação para contrapor-se a seu sentido mais derrotista” (WILLER, 2009, p. 09). Em um trecho de

On the Road, referindo-se a Neal Cassady e Allen Ginsberg, Kerouac fala de “uma inovadora geração

beat à qual eu estava me ligando lentamente” (KEROUAC, 2008, p. 143); isto sem contar as inúmeras

passagens de On the Road, nas quais Kerouac associa o nascimento da Geração Beat ao fenômeno do

jazz, ligando a Beat ao Bop. Elegemos apenas um trecho, o qual demonstra claramente a ligação entre o

fenômeno do jazz e a nascente geração Beat: “Nessa época, 1947, o bop se alastrava loucamente pela

América, mas ainda não havia se tornado o que é hoje. Os caras no Loop continuavam soprando, mas com

um ar fatigado porque o bop estava em algum ponto entre o período ornitológico de Charley Parker e

outro período que começou realmente com Miles Davis. E enquanto eu estava sentado ali ouvindo aquele

som noturno que o bop veio representar para todos nós, pensei em todos os meus amigos espalhados de

um canto a outro da nação e em como todos eles na verdade viviam dentro dos limites de um único e

imenso quintal fazendo alguma coisa frenética e correndo de um lado para outro” (KEROUAC, 2008, p.

110). 108

Num trecho do poema Uivo, Ginsberg se refere a Herbert Huncke, quando fala dos que “caminharam a

noite toda com os sapatos cheios de sangue pelo cais coberto de montões de neve” (GINSBERG, 1999, p.

33), numa provável alusão ao encontro entre Ginsberg e Huncke, em 1948, quando Huncke saiu da prisão

Page 48: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

47

Discutiam a natureza das gerações, lembrando o glamour da lost

generation [geração perdida], e Kerouac disse: “Ah, isso não passa de

uma geração beat”. Falavam sobre ser ou não uma “geração

encontrada” (como Kerouac às vezes a denominava), uma “geração

angelical”, ou qualquer outro epíteto. Mas Kerouac descartou a

questão e disse “geração beat” – não para nomear a geração, mas para

desnomeá-la.109

Neste sentido, como bem salientam Temperley e Bradbury (1981, p. 329), a

geração beat era mais do que um movimento artístico, era também um estilo de vida,

baseado no jazz, nas drogas, na alienação, na permissividade sexual, na experimentação

psicodélica, sua significação indo bem mais adiante dos poetas e escritores que a ela

estiveram associados. “E a arte tornou-se um centro radical para a ação boêmia na

literatura, na pintura e no teatro, mas também na política, na cultura e no

comportamento”.110

Portanto, mais do que uma simples constelação de escritores,

devemos nos perguntar em que medida Burroughs possui alguma ligação com a estética

beatnik. Acaso seu “desconstrucionismo” não o aproximaria muito mais dos surrealistas

e dadaístas? O romance The Soft Machine, por exemplo, teria sido concebido, no dizer

do próprio Burroughs, como uma espécie de expansão de suas experiências sul-

americanas, com prolongamentos surrealistas. Composto a partir da técnica do cut-up,

esse romance parece deixar claro que Burroughs não se interessava muito pelo

espontaneísmo cultivado por Kerouac e Ginsberg, os autênticos porta-vozes da geração

beat.111

A criação literária de Burroughs era muito mais cerebral do que espontânea.

Entendido dessa maneira, podemos supor que Burroughs não queria que sua

obra fosse confundida com uma estética beat, ou mesmo surrealista, sentindo a

necessidade de individualizá-la, destacando-a do restante. Na verdade, Burroughs não

partilhava do idealismo messiânico de Allen Ginsberg, ao qual opunha seu corrosivo

pessimismo. Num trecho da entrevista concedida a revista Paris Review, quando

questionado sobre sua ligação com a geração Beat, Burroughs responde: “Não me

e passou quatro dias vagando por Nova York antes de aparecer no apartamento de Ginsberg com os pés

sangrando. “De fato, no inverno de 1948, Huncke, após sair da cadeia, passou quatro dias vagando por

Nova York antes de aparecer no apartamento de Ginsberg no Harlem, seus pés escorrendo sangue”

(WILLER, 2009, p. 09). 109

Ginsberg apud WILLER, 2009, p. 07. 110

BRADBURY e TEMPERLEY, 1981, p. 329. 111

Mas, segundo Willer, “se a beat teve Ginsberg e Kerouac como porta-vozes, teve Burroughs como

orientador. Nessa primeira fase nova-iorquina, antes de mudar-se para o Texas em 1947, chegou a

promover sessões de psicanálise com Ginsberg e Kerouac. Depois, continuou a opinar e a aconselhá-los

por carta. Recomendou a Ginsberg que se assumisse como homossexual; criticou seus tratamentos

psicanalíticos e as relações heterossexuais após o internato em 1949. Insistiu com Kerouac para que se

desligasse da mãe, argumentando (acertadamente) que sua tendência regressiva o levaria à destruição”

(WILLER, 2009, p. 46-47).

Page 49: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

48

associo com eles. Trata-se de uma simples justaposição, mais do que de uma verdadeira

conjunção de estilos literários ou de objetivos gerais”. E continua:

Kerouac, Ginsberg e Corso são três bons amigos meus, há muitos

anos, porém, não fazemos a mesma literatura nem compartilhamos os

mesmos pontos de vista. Eu diria que a importância literária do

movimento beatnik não é talvez tão determinante como sua

importância sociológica, que certamente mudou o mundo e o povoou

de beatniks. Derrubou todo tipo de barreiras sociais e converteu-se em

um fenômeno mundial de terrível importância.112

A influência das narrativas norte-americanas em primeira pessoa, cujo tema

principal é a experiência da subjetividade, a exemplo de Thoreau, deve ser destacada

também na obra de Burroughs. Na verdade, a experiência da subjetividade é o principal

tema da literatura norte-americana moderna. Esse é um dado fundamental de toda a

literatura norte-americana, desde Thoreau: “Na maioria dos livros omite-se o eu, ou

primeira pessoa; neste será mantido, o que, quanto ao egotismo, é a principal diferença.

Em geral não nos lembramos de que, no final, é sempre a primeira pessoa que está

falando. Não falaria tanto de mim mesmo se houvesse outra pessoa que eu conhecesse

tão bem”.113

Neste sentido, os escritos de Thoreau, em especial Walden, tiveram forte

influência sobre a geração de escritores denominada beat, inclusive sobre Burroughs.

Isso que denominamos o dado fundamental, o tema principal de toda a literatura norte-

americana moderna, pode ser percebido quando se toma como exemplo o primeiro

romance de Burroughs, Junky, um relato em primeira pessoa sobre as experiências de

Burroughs como viciado em drogas, um relato minucioso sobre o mundo da junk.114

“Neste livro”, afirma Burroughs, “escrevi o que sei a respeito da junk e das pessoas que

a usam. A narrativa é ficcional, porém baseada em fatos da minha própria

experiência”.115

No caso do romance experimental de Burroughs, ele se opõe ao

romance clássico (tradicional) e romântico, os quais se constituem pela apresentação e

112

BURROUGHS, 1988, p. 152. 113

THOREAU, 2001, p. 18. 114

Por outro lado, Junky narra a transformação do uso de drogas ao longo de mais de quarenta anos, ao

descrever o declínio no consumo de ópio, relacionado à Lei de Exclusão do Consumo de Ópio publicada

em 1909, até o advento do uso de heroína, que rapidamente se ampliou com a proibição do ópio. A

ascensão da heroína, segundo Harris, “coincidiu com uma mudança crucial no perfil e no ambiente do

viciado típico. O conteúdo de tal mudança é documentado no romance de Burroughs por meio de detalhes

(...)” (BURROUGHS, 2005b, p. 33), como quando na Nova York de 1945, por exemplo, “os gângsteres

italianos tomaram o lugar dos fornecedores judeus que a pureza da heroína vendida nas ruas decaiu de

forma extremada, o que por sua vez levou ao aumento do uso intravenoso da droga (...)” (BURROUGHS,

2005b, p. 34). O primeiro romance de Burroughs, portanto, nos ajuda a compreender as diferentes formas

de uso de drogas, incluindo o consumo de ópio no final do século XIX, a ascensão do tráfico de heroína

após a Segunda Grande Guerra e, por que não, a entender o fenômeno do uso de drogas na atualidade,

entendida como monopólio. 115

BURROUGHS, 2005b, p. 246.

Page 50: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

49

desenvolvimento da interioridade de uma substância ou de um sujeito. Na verdade, ele

preserva desses conjuntos apenas o elemento autobiográfico, já que a experiência de

Burroughs com as drogas também é matéria de alguns dos capítulos de Almoço Nu. À

guisa de esclarecimento, o elemento autobiográfico é típico da tradição literária iniciada

com o Romantismo – como o Werther, de Goethe, ou o Adolpho, de Benjamin Constant

–, ao operar o cruzamento entre vida e obra, próprio também das narrativas em primeira

pessoa...

Esse cruzamento reaparece em Rimbaud e depois em Jerry e nas

vanguardas clássicas do começo do século (como Arthur Cravan,

Jacques Vaché, Rigaut, os Dadá), é reinterpretada por Miller após a

década de 1930 até desembocar, inteiramente reciclado (em “lixo” ou

em “ouro”?) na “beat generation dos anos 50”.116

***

A experiência da liberdade, este outro símbolo do espírito americano, se

realiza também em diversos momentos no romance de Burroughs através dos inúmeros

deslocamentos espaciais. O encanto pela liberdade, pela vida selvagem, pela estrada ou

pelo Oeste, é próprio do espírito americano, como bem definiu o historiador americano

Wallace Stegner, em The American as Living Space: “Não se deve negar (...) que estar

solto no mundo sempre foi estimulante para nós. Está associado em nossas mentes à

fuga da história, opressão, lei e obrigações maçantes, com liberdade absoluta, e a

estrada sempre levou para o oeste”.117

Todavia, existe um sentimento antitético na

literatura norte-americana com relação à experiência da liberdade. Por um lado, existe o

sentimento da natureza associado à paisagem americana, ligado aos aspectos da

geografia dos Estados Unidos (o Mississipi, as Rochosas, as Pradarias), ou seja, a busca

incessante por uma territorialidade fixa, por uma identidade. De outro, existe o esforço

contínuo por superar e transpor os limites geográficos, o desejo por liberdade e

independência absolutas, a gigantesca negação do sentimento de limitação da pátria,

expresso pelos movimentos de desterritorialização.118

Sentido semelhante (antitético) é

atribuído por Deleuze & Guattari à literatura americana: “Não será este o destino da

116

RAIMUNDO, 2007, p. 230. 117

KRAKAUER, 1998, p. 27. 118

Por tudo o que se disse até aqui, isto é, pela natureza antiamericana, pela força contestatória, pelos

movimentos de desterritorialização constituídos no interior de Almoço Nu, isto não significa dizer que o

romance de Burroughs seja indissociável da história americana. Como bem disse Deleuze, “a experiência

do escritor americano é inseparável da experiência americana, mesmo quando ele não fala da América”

(DELEUZE, 1999, p. 68). Essa nos parece ser uma percepção fundamental, válida também para o

romance de Burroughs.

Page 51: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

50

literatura americana, o de passar todos os limites e fronteiras, de fazer passar os fluxos

desterritorializados do desejo, mas também de os obrigar a transportar territorialidades

fascizantes, moralizantes, puritanas e familiaristas?”.119

Lembremos ainda o caso de

Melville, o qual Lawrence censurava por ter levado a viagem muito a sério, no sentido

de um retorno à natureza, rebatendo novamente sobre o impasse: “Retornar aos

selvagens fez Melville ficar doente... Assim que partiu, ei-lo que recomeça a suspirar, a

ter saudades do Paraíso, Lar e Mãe encontrando-se na outra extremidade de uma caça à

baleia”.120

Na opinião de Deleuze & Guattari, a literatura anglo-americana oscila

continuamente entre os seus dois polos:

Estranha literatura anglo-americana: Thomas Hardy, Lawrence e

Lowry, Miller, Ginsberg e Kerouac são homens que sabem partir,

misturar os códigos, fazer passar os fluxos, atravessar o deserto do

corpo sem órgãos. Franqueiam um limite, rebentam um muro, a

barreira capitalista, mas é evidente que nunca conseguem realizar

completamente o processo. Volta-se a fechar o impasse neurótico – o

papá-mamã da edipianização, a América, o regresso ao país natal – ou

então a perversão das territorialidades exóticas, a droga e o álcool –

ou, pior ainda, um velho sonho fascista.121

O livro de Burroughs também partilha do mesmo sentimento inato do

fragmentário, próprio da literatura americana, como bem define Deleuze num artigo

dedicado ao poeta Walt Whitman, cuja reflexão procura explicar, a partir da experiência

da escrita pelo fragmento, à própria experiência histórica americana: “Se o fragmento é

o inato americano, é porque a própria América é feita de Estados federados e de

diversos povos imigrantes (minorias): por toda parte há coleção de fragmentos (...)”.122

Neste pequeno artigo, no qual reflete sobre o problema do tratamento fragmentário,

não-linear, na literatura americana, Deleuze afirma que a escrita por fragmentos, a qual

Burroughs chega pelo emprego da técnica do cut-up, já se encontrava na base da

experiência literária norte-americana desde Whitman. “Com muita segurança e

tranquilidade”, diz Deleuze, “Whitman diz que a escrita é fragmentária e que o escritor

americano tem o dever de escrever em fragmentos”.123

E continua:

É justamente o que nos desconcerta, essa atribuição à América, como

se a Europa não houvesse tomado a dianteira nessa via. Mas talvez

seja preciso a diferença que Hölderlin descobria entre os gregos e os

europeus: o que é natal ou inato nos primeiros deve ser adquirido ou

conquistado pelos segundos, e inversamente. De uma outra maneira,

119

DELEUZE e GUATTARI, 2004, p. 289. 120

Lawrence apud DELEUZE, 2004, p. 53. 121

DELEUZE e GUATTARI, 2004, p. 138. 122

DELEUZE, 1997, p. 68. 123

DELEUZE, 1997, p. 67.

Page 52: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

51

ocorre o mesmo com europeus e americanos: os europeus têm um

senso inato da totalidade orgânica, ou da composição, mas devem

adquirir o senso do fragmento e só podem fazê-lo por meio de uma

reflexão trágica ou de uma experiência do desastre. Os americanos, ao

contrário, têm um senso natural do fragmento, e o que devem

conquistar é o sentimento da totalidade, da bela composição. O

fragmento está dado, de uma maneira irrefletida que precede o

esforço.124

Neste mesmo artigo, Deleuze recorda ainda a opinião de Melville, o qual

observava que os americanos não tinham a obrigação de escrever como os ingleses,

assim como Whitman, que invocava também a necessidade de uma literatura americana

independente, “sem traço, nem matiz da Europa, de seu solo, de suas recordações, de

suas técnicas e de seu espírito”.125

Ou seja, Whitman invocava uma literatura americana

liberta das aspirações européias, de suas estéticas e temáticas, à maneira de Ralph

Waldo Emerson, que pedia uma cultura nacional americana específica, moldada pela

própria história americana – a crença numa experiência “americana” até então não

reconhecida e num novo modo americano de ver o mundo.126

“É preciso que eles [os

americanos]”, escreve Deleuze, “desfaçam a lingua inglesa e a façam escorrer segundo

uma linha de fuga: tornar a língua convulsiva”.127

No entanto, a escrita por fragmento não é recurso meramente estilístico.

Para Deleuze, ela revela muito mais, ao suscitar uma espécie de reflexão das relações

existentes entre todas as coisas. “A lei do fragmento vale tanto para a Natureza como

para a História, tanto para a Terra como para a Guerra, tanto para o bem como para o

mal. Entre a Guerra e a Natureza, certamente há uma causa comum: a Natureza avança

em procissão, por seções, como os corpos do exército”.128

Entretanto, se o fragmento é

dado em toda parte, da maneira mais espontânea, as relações entre os fragmentos não

estão dadas de pronto, nem seu sentido está definido anteriormente; ao contrário, elas

devem ser conquistadas ou mesmo inventadas. Assim, as relações serão postas como

124

DELEUZE, 1997, p. 67. 125

Whitman apud DELEUZE, 1997, p. 69. 126

Citemos neste sentido ao próprio Emerson: “Nossa época é retrospectiva. Constrói os sepulcros dos

fundadores. Escreve biografias, histórias e critica. As gerações anteriores contemplaram Deus e a

Natureza face a face; nós, através dos nossos olhos. Por que não devemos nós também desfrutar de uma

relação original com o universo? Por que não devemos ter uma poesia e uma filosofia do discernimento, e

não da tradição, e uma religião pela revelação para nós e não da história deles? (...) Há novas terras,

novos homens, novos pensamentos. Exigimos nossas próprias obras, nossas próprias leis e nosso próprio

culto” (Emerson apud BRADBURY e TEMPERLEY, 1981, p. 101). 127

DELEUZE, 1997, p. 69. 128

DELEUZE, 1997, p. 69.

Page 53: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

52

devendo ser instauradas, criadas (como é o caso, na opinião de Deleuze, do poema de

Whitman). Diz Deleuze:

Se as partes são fragmentos que não podem ser totalizados, pode-se ao

menos inventar entre elas relações não-preexistentes, dando

testemunho de um progresso na História tanto quanto de uma

evolução na Natureza. O poema de Whitman oferece tantos sentidos

quantas são as relações que ele entretém com interlocutores diversos,

as massas, o leitor, os Estados, o Oceano...O objeto da literatura

americana é pôr em relação os aspectos mais diversos da geografia

dos Estados Unidos, Mississipi, Rochosas e Prados e suas histórias,

lutas, amor, evolução. Relações em número cada vez maior e de

qualidade cada vez mais fina, é como o motor da Natureza e da

História. Com a guerra é o contrário: seus atos de destruição incidem

sobre toda relação, e têm por consequência o Hospital, o hospital

generalizado, isto é, o lugar em que o irmão ignora o irmão e onde

partes agonizantes, fragmentos de homens mutilados, coexistem

absolutamente solitários e sem relação.129

Neste sentido, Deleuze identifica as duas bases sobre as quais repousaria

toda a literatura americana: a espontaneidade ou o sentimento inato do fragmentário e a

reflexão das relações vivas sucessivamente adquiridas, ou seja, aquela que vai de um

fragmento a outro e na coextensividade existente entre Homem e Natureza, ou entre

Homem e História.130

Mas é também a realidade da literatura americana, sob esses dois

aspectos: a espontaneidade ou o sentimento inato do fragmentário; a

reflexão das relações vivas sucessivamente adquiridas e criadas. Os

elementos espontâneos constituem o elemento através do qual ou em

cujos intervalos se tem acesso às grandes visões e audições refletidas

da Natureza e da História.131

Estas reflexões preliminares sobre a escrita em fragmento servem de

elemento preparatório para a compreensão da ideia de “arte” contrapontística enquanto

relação entre partes heterogêneas, relação entre relações (que procuramos analisar no

terceiro capítulo). Como diz Deleuze, ao refletir sobre o significado do fragmento em

Whitman:

O mundo como mostruário: as amostras (“espécimes”) são

precisamente singularidades, partes notáveis e não totalizáveis que se

destacam de uma série de partes ordinárias. Amostras de dias

specimen days, diz Whitman. Amostras de casos, amostras de cenas

ou de vistas (scenes, shows ou sights). Com efeito, as amostras ora são

casos, segundo uma coexistência de partes separadas entre si por

intervalos de espaço (os feridos nos hospitais), ora são vistas segundo

uma sucessão de fases de um movimento separadas por intervalos de

129

DELEUZE, 1997, p. 70. 130

Ou no dizer do próprio Whitman: “A imensidão da natureza da nação seria monstruosa se não

correspondesse à imensidão e generosidade de espírito do cidadão” (WHITMAN, 2006, p. 13). 131

DELEUZE, 1997, p. 72.

Page 54: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

53

tempo (os momentos de uma batalha incerta). Nos dois casos, a lei é a

da fragmentação.132

***

Por último, duas outras influências importantes sobre as ideias de Burroughs

devem ser mencionadas aqui: o filósofo e historiador alemão Oswald Spengler (1880-

1938) e o linguista polonês Alfred Korzybski (1879-1950). No que tange a Oswald

Spengler, sabemos, por intermédio de Allen Ginsberg133

e Claudio Willer134

, que

Burroughs fora um grande admirador de Spengler (assim como toda sua geração,

incluindo Miller135

, Kerouac136

e Ginsberg137

), dedicando particular atenção ao método

historiográfico comparativo, aos problemas de história da arte e aos conceitos

científicos e matemáticos empregados em A Decadência do Ocidente (1918), a obra

mais conhecida de Oswald Spengler. Existem alguns registros que apontam nessa

direção. O relato de uma visita de Ginsberg e Kerouac a Burroughs, em meados de

1944, por exemplo, vem acompanhado de uma espécie de bibliografia, em que é citada

a obra-prima de Oswald Spengler, A Decadência do Ocidente, entre outros autores...

Assim, Jack e eu fizemos uma visita formal a Bill, e eu lembro que ele

tinha exemplares de A Vision, de Yeats, que Lucien costumava levar

consigo. Shakespeare, Kafka: O Castelo ou O Processo, acho que O

Castelo; Ciência e Sanidade, de Korzybski, A Decadência do

Ocidente, de Spengler, Blake, um exemplar de Hart Crane que ele me

deu e que ainda tenho, Rimbaud, Ópio, de Cocteau. Assim, esses eram

132

DELEUZE, 1997, p. 68. 133

Em “Junkie: Um Elogio” (1952), por Allen Ginsberg. 134

Em “Geração Beat (2009), de Claudio Willer. 135

Em Plexus, segundo volume de A Crucificação Encarnada, Henry Miller cita textualmente vários

trechos de A Decadência do Ocidente, os quais são acompanhados de comentários e reflexões

interessantes de Miller sobre a obra de Spengler. Eis aqui um bom exemplo disso: “A Decadência do

Ocidente! Jamais esquecerei o calafrio que me percorreu a espinha quando ouvi pela primeira vez este

título. Era como ouvir Ivan Karamázov dizendo: „Quero ir para a Europa. Talvez eu saiba que verei um

cemitério, mas será o cemitério mais querido dos cemitérios‟. Durante um ano tive a consciência de

participar de um declínio geral. Nós todos o conhecemos, o sentimos, somente alguns conseguindo

esquecê-lo mais rapidamente do que outros. O que não compreendemos tão claramente, a maioria de nós,

foi que fazíamos parte deste mesmo „Ocidente‟, que o Ocidente incluía não apenas a Europa, mas a

América do Norte” (MILLER, 1967, p. 487). Miller se estende por várias páginas ao comentar a obra-

prima do mestre alemão. 136

Em Visões de Cody, Jack Kerouac refere-se à “Eterna Vida Interiorana dos Felás”, numa referência A

Decadência do Ocidente. Segundo Ginsberg, “(...) a visão dos Felás foi tirada do exemplar de Spengler

que pertencia a Burroughs. Foi o mantra de Jack naquele período – o Samadhi Interiorano – a visão & a

Consciência interiorana diferente da sabedoria mais Abstrata orientada por mapas no metro da cidade,

estúpida & dependente como a mente citadina é do conhecimento felá (...)” – Trecho extraído de “As

Visões do Grande Rememorador” (KEROUAC, 2009, p. 442). 137

Allen Ginsberg, numa entrevista para a revista Gay Sunshine, revela que: “Aprendi muito com

Burroughs, inclusive sobre Blake e Spengler” (LEYLAND, 1980, p. 77).

Page 55: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

54

os livros que ele estava lendo, e eu não havia lido nenhum deles. E ele

os emprestou para nós.138

Esses eram alguns dos autores lidos por Burroughs à época. E esses autores,

segundo Willer, eram assunto permanente nas conversas de Burroughs. A um amigo,

Lucien Carr, por exemplo, Burroughs teria dito, referindo-se a Oswald Spengler e

Korzybski, que “se você estiver amaldiçoado pela literatura, que é a maior maldição da

humanidade, então você deveria ler Spengler, Korzybski (...)”.139

E continua Carr:

“E assim, tivemos uma prolongada conversa com Burroughs, provavelmente sobre

Spengler e Korzybski. Ele argumentava que as palavras não eram as coisas que elas

representavam, não eram idênticas...”.140

Não parece pequena, portanto, a influência de Spengler sobre as idéias de

Burroughs. Almoço Nu está carregado de uma aura de decadência e dissolução, da visão

pessimista sobre a cultura ocidental, de termos científicos e tecnológicos, próprios

também de A Decadência do Ocidente. Um exemplo é o conceito de entropia, que

constitui o tema do segundo princípio da termodinâmica. Essa lei, que teve origem no

estudo de Carnot sobre o rendimento das máquinas cuja energia se perde e se degrada

em calor, veio mais tarde a ter significado universal por meio das fórmulas matemáticas

introduzidas por Clausius (1850). Por meio delas, foi demonstrado que:

(...) no plano natural e cósmico, todos os sistemas energéticos dotados

de heterogeneidade se submetem no seio deste imenso sistema que é o

nosso universo. Isto quer dizer que todos os sistemas físicos trocam as

energias que os singularizam em plurais manifestações fenomênicas,

numa energia degradada, ou seja, em calor ou agitação molecular

desordenada. Conclui-se que todas as leis da física se tendem a tornar

cada vez mais indiferenciadas e homogêneas à medida que decorre

este processo inelutável. As energias cinética, elétrica e química

perdem, pois, as tendências específicas e finalistas que as diferenciam

e se exteriorizam como acontecimentos ou fenômenos naturais (...)

regressando assim, no ciclo do tempo, a uma espécie de “aperon”,

onde todas as suas leis e formas se dissolvem numa espécie de

incandescência térmica, em que transparece a presença mais elementar

de toda a energética universal.141

Em linhas gerais, o segundo princípio da termodinâmica descreveria, por si

mesmo, o vasto cenário de um espaço energético descontínuo, o qual lentamente se

esvanece na desintegração dos sistemas nucleares, atômicos, moleculares e, finalmente,

astrofísicos, convertendo-se em pura energia luminosa. É neste sentido que, para

138

WILLER, 2009, p. 44. 139

WILLER, 2009, p. 44-45. 140

WILLER, 2009, p. 45. 141

SPENGLER, 1993, p. 17.

Page 56: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

55

Spengler, a entropia seria o principal símbolo da decadência da cultura ocidental, da

civilização fáustica, como ele mesmo a chama, expressa na idéia de dissolução: “Entre

os símbolos de decadência, o principal deles é a entropia, que, como é sabido, constitui

o tema da segunda lei da termodinâmica”.142

Segundo Spengler, a entropia representaria

o início da destruição da física de estilo dinâmico, ao introduzir a idéia da

irreversibilidade, contradizendo assim a essência da mecânica e da lógica, ou seja, do

acontecer físico em séries de causa e efeito. 143

(Neste ponto, ao que tudo indica, a ideia

de causalidade deixou de ter validade absoluta como categoria a priori, como princípio

último de explicação... 144

)

De qualquer modo, a idéia de dissolução expressa na noção de entropia,

predomina igualmente na obra de Burroughs. Essa mesma lei é evocada por Burroughs,

em sentido literário, num trecho de Almoço Nu, quando diz: “Sem pressa alguma, a

termodinâmica acabou vencendo... Os orgônios empacaram... Cristo sangrou... Tempo

acabado...”.145

Como veremos no próximo capítulo, no desequilíbrio produzido na

narrativa pela técnica do cut-up encontra-se também um equivalente da idéia de

entropia; neste sentido, portanto, a desordem e a instabilidade imanente à narrativa de

Almoço Nu possui, por assim dizer, um caráter entrópico.

142

SPENGLER, 1923, p. 545. Diz ainda Spengler: “A primeira lei [da termodinâmica], o princípio da

conservação de energia, se limita a formular a essência da dinâmica, para não dizer a estrutura do espírito

europeu ocidental, que é o único para quem a natureza, necessariamente, aparece na forma de uma

causalidade dinâmica e contrapontística, em oposição à estática e plástica de Aristóteles. O elemento

fundamental da visão de mundo fáustica não é a atitude, mas a ação, ou, mecanicamente considerado, o

processo; e este princípio fixa exclusivamente o caráter matemático de tal processo na forma de variáveis

e constantes. Mas o segundo princípio vai mais fundo e determina uma tendência uniforme do acontecer

físico, o qual não está de nenhum modo condicionado a priori pelos conceitos fundamentais da dinâmica”

(SPENGLER, 1923, p. 545-546). 143

“O que até o momento não foi sentido, e por este motivo eu considero o princípio da entropia (1850) o

início da destruição dessa obra-prima da inteligência européia ocidental, a física de estilo dinâmico, é a

profunda oposição entre teoria e realidade, oposição esta que pela primeira vez se manifesta

explicitamente na própria teoria. Após o primeiro princípio ter esboçado o quadro rigoroso de um

acontecer físico em séries de causa e efeito, o segundo princípio, com a introdução da irreversibilidade,

traz à tona uma tendência da vida imediata, que contradiz fundamentalmente a essência da mecânica e da

lógica” (SPENGLER, 1923, p. 546-547). 144

Em todo o caso, a tendência de anulação do acontecer físico em séries de causa e efeito se concretizou

na filosofia, na ciência e nas artes. Um trecho de O arco-íris da gravidade, romance de Thomas Pynchon,

parece aludir a este fato: “Como é que Mexico consegue jogar, tão à vontade, com estes símbolos de

aleatoriedade e medo? Inocente como uma criança, talvez inconsciente – talvez – de que com este jogo

ele destrói os elegantes salões da história, ameaça o próprio conceito de causalidade. E se toda a geração

de Mexico estiver assim? Será que o pós-guerra vai se reduzir a uma sucessão de „eventos‟, surgidos do

nada de uma hora para a outra? Nenhuma ligação? Será o fim da história?” (PYNCHON, 1998, p. 63). Ou

ainda: “(...) mas tem-se a impressão de que essa coisa de causalidade já deu o que tinha que dar. Que para

a ciência continuar a avançar ela vai precisar de pressupostos menos estreitos, menos... estéreis. Talvez o

próximo grande passo à frente ocorra quando a gente tiver a coragem de jogar fora a causalidade de uma

vez por todas, e partir para ver a coisa de outro ângulo” (PYNCHON, 1998, p. 96). 145

BURROUGHS, 2005a, p. 230.

Page 57: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

56

Com relação a Korzybski, Burroughs demonstrava sincero interesse pelas

discussões sobre a linguagem empreendidas, nos primeiros decênios do século XX, pelo

autor de Ciência e Sanidade (1933), a obra mais famosa do lingüista Alfred Korzybski.

Nesse livro, à semelhança de outras teses saídas da antropologia para a lingüística, a

linguagem é concebida não como reflexo imediato da realidade, mas como algo que, ao

contrário, condiciona a realidade humana. Neste sentido, a implicação teórica no tocante

à linguagem como portadora de ideologia influenciou sobremaneira a concepção

narrativa em Burroughs. Para Korzybski, a linguagem não nos serve unicamente para

entender a “realidade”. Segundo ele, desde a mais tenra idade, herdamos mapas de

orientação social, exatamente por meio de nossa língua. Essa tendência acaba por

produzir determinadas inferências, de modo que passamos a conduzir nosso

comportamento e coordenar nossas ações por meio dos valores subjacentes em nosso

código lingüístico.146

Entendida desse modo, a linguagem é um sistema de comando,

associada ao exercício do poder, com a qual não falamos, mas somos falados.

Ao transpor essa idéia para a composição de Almoço Nu, se utilizando da técnica do cut-

up, Burroughs buscará romper com essa linguagem discursiva, eminentemente

ideológica. É neste sentido, portanto, que as idéias de Korzybski exerceram alguma

influência sobre Burroughs, principalmente no que diz respeito ao desenvolvimento da

técnica do cut-up enquanto método lingüístico anti-discursivo, sobretudo em sua busca

por uma voz do impessoal. Nem a primeira nem a terceira pessoas do singular, mas uma

espécie de quarta pessoa do singular, o “agenciamento coletivo de enunciação”,

(segundo Deleuze & Guattari): “O enunciado não aponta para um sujeito de enunciação

que constitui a causa, nem para um sujeito do enunciado que seja o efeito. (...) Não há

sujeito, só há agenciamentos coletivos de enunciação (...)”.147

146

Neste sentido, convém citarmos um trecho de Korzybski, retirado de Ciência e Sanidade: “Um objeto

ou uma sensação (...) não são verbais, não são palavras. (...) Quem quer que deixe de o compreender – e

infelizmente isso acontece com facilidade – não compreenderá um dos fatores psicológicos mais

importantes em todas as reações semânticas fundamentais para a sanidade. Tal omissão é em grande parte

facilitada pelos sistemas mais antigos, pelos hábitos de pensamento, pelas reações semânticas mais

antigas e, acima de tudo, pela estrutura primitiva de nossa linguagem aristotélica e pelo „é‟ de identidade.

Assim, por exemplo, nós seguramos aquilo a que chamamos um lápis. O que quer que estejamos

segurando é in-dizível; dizemos, entretanto, „isto é um lápis‟, afirmação que incondicionalmente falseia

os fatos, porque o objeto surge como um indivíduo absoluto e não é uma palavra. De modo que nossas

reações semânticas são desde logo adestradas em valores ilusórios, o que deve ser patológico”

(Korzybski apud HAYAKAWA, 2000, p. 233). 147

DELEUZE e GUATTARI, 2003, p. 40-41.

Page 58: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

57

Contudo, será num trecho de A revolução eletrônica (1971), em que reflete

sobre os usos imperativos de artigos definidos (A/O) e de relações de exclusão

(OU/OU), que Burroughs se referirá nominalmente a Korzybski:

O É da Identidade. Tu és um animal. Tu és um corpo. “Ora sejas tu o

que fores, não és um „animal‟, não és um „corpo‟, porque isso são

rótulos verbais. O É da identidade compreende sempre a implicação

disso e de mais nada e compreende também a afectação de uma

condição permanente. Permanecer assim. Toda apelação pressupõe o

É de identidade.

Este conceito é desnecessário numa língua hieroglífica, como o antigo

egípcio, e é de facto frequentemente omitido. Não é preciso dizer que

o sol É do céu. Sol no céu basta. Podemos facilmente omitir o verbo

qualquer que seja a língua, o que fizeram os discípulos do conde

Korzybski eliminando o verbo ser em inglês. É contudo difícil pôr

ordem na língua inglesa excluindo arbitrariamente conceitos que

continuam vigentes enquanto se fala a língua inalterável.

Os artigos definidos O A OS AS (the). O compreende a implicação de

um só é único: O Deus, O universo, O caminho, O certo, O errado. Se

existe um outro, então ESSE universo, ESSE caminho não são mais O

universo, O caminho. O artigo definido será eliminado e substituído

pelo artigo indefinido UM UMA.

Todo o conceito de OU/OU. Certo ou errado, físico ou mental,

verdadeiro ou falso, todo o conceito de OU será eliminado da língua e

substituído pela justaposição, por E. Numa certa medida fazemo-lo em

qualquer língua pictórica em que os dois conceitos se mantêm

literalmente lado a lado. Essas falsificações inerentes ao inglês e a

outras línguas alfabéticas ocidentais dão às ordens de reacção mental o

seu poder opressor nessas línguas. Consideramos o É da identidade.

Quando digo ser eu, ser tu, ser eu próprio, ser os outros – o que quer

que seja que me peçam que seja ou diga que sou –, eu não sou o rótulo

“eu próprio”. Não posso ser e não sou o rótulo verbal “eu próprio”. A

palavra SER em inglês encerra, tal como um vírus, a sua mensagem

pré-codificada de dano, o imperativo categórico da condição

permanente. Ser corpo, não ser outra coisa, permanecer corpo. Ser

animal, não ser outra coisa, permanecer animal. Se se vir a relação do

EU com o corpo, como a relação de um piloto com seu barco, vê-se a

força totalmente paralisante da ordem de reacção mental de ser um

corpo. Dizendo ao piloto que seja o avião, então quem pilotará o

avião? 148

Na citação acima, Burroughs sugere uma outra maneira de proceder com a

linguagem, que suprime as designações linguísticas de natureza identitária, e

substituindo-as por uma linguagem pictural, imagética, mais próximas aos hieróglifos,

por artigos indefinidos e justaposições. Por meio deste projeto, Burroughs pretende

manipular os elementos lingüísticos a fim de levá-los a um estado de indeterminação, na

direção de uma imagem pura, a-lógica, evitando com isso a mera representação do

objeto (ou rótulo verbal, segundo Korzybski). Isto nos conduz finalmente à técnica do

148

BURROUGHS, 1994, p. 88-89.

Page 59: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

58

cut-up enquanto procedimento linguístico geral oposta à forma expressiva tradicional.

Vejamos agora como se dá este processo de “demolição” da linguagem usual por meio

de uma análise da técnica do cut-up, tema de nosso próximo capítulo.

Page 60: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

59

Capítulo 3. O Almoço está servido...

Apresentação

Considerado por nós a parte essencial desse trabalho, neste capítulo

discutiremos detidamente alguns dos tópicos ou temas abordados anteriormente, em

especial, a técnica do cut-up enquanto procedimento linguístico geral que se opõe à

forma expressiva tradicional, que torna a linguagem indistinta, criando assim uma zona

de indiscernibilidade, de indeterminação, em que qualquer particularidade ou referência

é completamente abolida e rechaçada (bem como seu caráter de método linguístico

diferencial); a questão da dissolução da unidade formal num enorme sistema de

afinidades morfológicas, um composto de vários registros, ou seja, a estrutura do texto

está assentada sobre uma pluralidade de elementos que já não depende de nenhuma

unidade configuradora, expressa na ideia de dissolução da unidade formal, segundo uma

linha de composição autônoma de vizinhança e contiguidade (os contrapontos

narrativos); e, finalmente, uma análise dos inúmeros deslocamentos espaciais

constituídos no interior do romance enquanto símbolos de desterritorialização que

acabam por dissolver todas as territorialidades fixas.

Almoço Nu é uma narrativa não-linear, difícil de descrever em termos de

enredo. Nela não atuam noções como causalidade e finalidade. O livro é estruturado

como uma série de “vinhetas”, frouxamente ligadas, e seus temas estão arranjados de

forma justaposta, formando blocos de associações que exploram um campo global de

coexistência.149

Estas justaposições acabam por expressar relações de natureza

contrapontística, já que os elementos da narrativa se apresentam em estilhaços, em

fragmentos. Em todo o caso, Almoço Nu acaba se comportando como uma espécie de

arte combinatória, com anotações sobre drogas, delírios, perspectivas, simetrias, cortes,

montagens, edição rigorosa dos elementos constitutivos: “Lembre-se de que primeiro fiz

uma seleção. De centenas de sentenças possíveis que poderia ter usado, escolhi uma

(...)”.150

Ao fim, o livro de Burroughs se converte numa espécie de investigação não-

linear sobre o caráter de determinados grupos de acontecimentos em sua maioria ligados

149

Apesar dos temas tratados em Almoço Nu se apresentarem verticalmente, o problema do vício em

todas as suas modalidades percorre horizontalmente toda a narrativa. Nisso talvez consista a inovação do

romance de Burroughs, a saber, não dar um tratamento linear, discursivo, aos temas contidos nele. 150

BURROUGHS, 1988, p. 146.

Page 61: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

60

ao problema do vício, ou seja, entre elementos formais de uma mesma ordem, a fim de

fixar-los como tais em expressões mais ou menos regulares.151

Foi neste sentido que

denominamos anteriormente o livro de Burroughs como um misto de aleatório e

dependente. Pois em que pesem a aparente desordem narrativa e a escrita aparentemente

aleatória, o livro de Burroughs foi construído a partir de uma edição rigorosa dos

elementos constitutivos. (No nosso entender, o sentido e o objetivo do método do cut-up

é justamente esta prova seletiva, esta seleção dos elementos constitutivos...)

Como afirma o próprio Burroughs, os capítulos foram compostos para

serem lidos em qualquer ordem: ao romper com o discurso horizontal ou linear, os

capítulos se tornam independentes, se assemelhando a uma espécie de delírio, em que

imagens se alternam e sucedem num único fluxo. Ao juntar signos de campos

semânticos distintos, ao rearranjar de maneira desconexa sentenças e parágrafos

inteiros, assim como inserir aleatoriamente historietas, anedotas e aforismos, o livro

acaba por permitir uma leitura não-linear, ou seja, sem a necessidade de se seguir à

ordem convencional dos capítulos.

A maneira como o romance foi escrito induz o leitor a ver apenas uma parte

do acontecimento narrado. Muitas vezes acontece que algo ou um trecho mencionado

no livro reapareça em outro ponto, mas sob um ângulo diferente, o que acaba por

produzir uma série de relacionamentos intertextuais, verdadeiros ecos narrativos. Na

verdade, a idéia de perspectivas e ângulos diferentes dentro de uma imagem maior é, em

si, um tema que percorre todo o livro, como idéias distintas que podemos ter acerca de

um mesmo símbolo, duas ou mais noções sobre a origem de um mesmo objeto.

“Há muitos noemas ou sentidos para um só e mesmo designado: estrela da noite e

estrela da manhã são dois noemas, isto é, duas maneiras pelas quais um mesmo

designado se apresenta em expressões”.152

Neste sentido, Burroughs problematiza a incapacidade contemporânea de

ultrapassar a experiência fragmentária, uma vez que, para ele, existe apenas uma visão

perspectiva, apenas um “conhecer” perspectivo, e nada mais: o perspectivismo como

verdade da relatividade... “Sua consciência do que está acontecendo não é capaz de

ultrapassar o superficial e relativo...”.153

Para ele, nossa consciência é continuamente

151

Neste tipo de “investigação”, que busca como resultado não uma totalidade orgânica, mas a discussão

de possibilidades formais, o método de trabalho poderia ser caracterizado como uma espécie de

composição, intimamente aparentado com a técnica de composição musical. 152

DELEUZE, 2007, p. 21. 153

BURROUGHS, 2005a, p. 226.

Page 62: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

61

atravessada por fatos aleatórios, assim como quando se olha pela janela ou quando se

anda pela rua. Neste sentido, a técnica do cut-up estaria mais próxima dos fatos da

percepção direta do que, por exemplo, a narrativa linear, em que os acontecimentos

aparecem dispostos em séries de causa e efeito. Para Burroughs, esse não é o modo

como as coisas acontecem. No experimento formal do cut-up se manifestaria, portanto,

a experiência de uma percepção fragmentada, determinada pelo entrecruzamento de

inúmeras probabilidades.154

Eu estava sentado numa lanchonete em Nova York tomando meu café

com roscas. Estava pensando que a gente realmente se sente um pouco

encaixotado em Nova York, como que vivendo numa série de caixas.

Olhei pela janela e lá estava um grande caminhão de mudanças. Isso é

um cut-up – uma justaposição do que está acontecendo fora com o que

você está pensando.155

Estas experiências parecem apontar para uma espécie de relatividade

espaço-temporal, em que a chamada “realidade objetiva” perde seu caráter absoluto, nos

obrigando assim a tomar consciência de que ela representa apenas um julgamento,

somente uma perspectiva.

No entender de Burroughs, os cut-ups possibilitariam um acesso direto ao

mundo, aos chamados fatos da percepção, sem cair nas malhas da linguagem, tornada

cada vez mais abstrata: “O que quero fazer é aprender a ver mais o que está lá fora, a

olhar para fora, atingir tanto quanto possível uma completa percepção do que nos

cerca”.156

Por meio da técnica do cut-up, Burroughs buscava escapar às ilusões da

linguagem, que se pretende veículo da substância das coisas, associada ao elemento

predicativo da linguagem, bem como de seu caráter ideológico e normativo. Em todo o

caso, o elemento normativo da linguagem é outro aspecto importante destacado por

Burroughs. Neste ponto, não é difícil demonstrar como em Burroughs os mecanismos

de dominação se exercem através e na transcendência da linguagem. A linguagem

enquanto um sistema de comando, como associada ao exercício do poder, conteria um

elemento normativo, o qual consiste em emitir, receber e transmitir palavras de ordem a

154

Deleuze compreendera a técnica de cut-up como “um método de probabilidade, ao menos lingüístico,

e não um procedimento de sorteio ou de chance única a cada vez que combina os heterogêneos. Por

exemplo, tento explicar que as coisas, as pessoas, são compostas por linhas muito diversas, e que não

sabem necessariamente em que linha estão, nem onde fazer passar a linha que estão em vias de traçar:

numa palavra, há toda uma geografia nas pessoas, com linhas duras, linhas flexíveis, linhas de fuga, etc.”

(DELEUZE, 2004, p. 21). 155

BURROUGHS, 1988, p. 142. 156

BURROUGHS, 1988, p. 143.

Page 63: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

62

fim de se obter uma determinada ação por parte de um sujeito157

; a própria estrutura

dinâmica da frase, composta de sujeito, verbo e predicado, revela esses mecanismos de

dominação constituídos no interior da própria linguagem, ou seja, de um sujeito que age

diretamente sobre um objeto, ou um predicado, como sujeito da ação. (Entendido desse

modo, o “eu” representaria uma pretensão de domínio que o homem enuncia sobre todas

as coisas.) Consciente desses fatos, Burroughs procurava escapar aos mecanismos de

controle constituídos no interior da própria linguagem.

Burroughs aproxima-se da linguagem com uma vigilante e científica

imparcialidade. Tomando controle da palavra de modo a realizar uma

espécie de dissecação cirúrgica de suas funções, ele tenta revelar e

transcender os mecanismos de controle constituídos no interior de

nosso sistema de linguagem.158

Ao romper com o discurso horizontal, com a narrativa linear, a técnica do

cut-up expõe os mecanismos de controle constituídos no interior da própria linguagem,

possibilitando, ao mesmo tempo, a criação de um espaço discursivo multidimensional,

composto de várias perspectivas, em lugar do antigo plano linear e unidimensional,

horizontal; a narrativa se esvai completamente, as relações de causalidade são

abandonadas, desaparece o âmbito da comunicação dotada de direção ou sentido – uma

empresa de demolição agindo diretamente sobre o elemento normativo da linguagem.

Neste ponto, assistimos à dissolução das determinações fixas que permitem encadear os

fatos causalmente, ou seja, as antigas relações linguísticas são recusadas em favor de

um novo paradigma, contrário à forma expressiva tradicional. Procuremos analisar um

exemplo neste sentido, utilizando um trecho de “A Álgebra da Necessidade”:

Vibrando, o zumbido silente da floresta profunda e dos acumuladores

de orgônios, a calma súbita das cidades quando os policiais junkies e

até mesmo O Suburbano zunem por entre vias entupidas de colesterol

em busca de contato. Clarões de orgasmo explodem mundo afora. Um

maconheiro levanta de um salto berrando „bateu o pavor!‟ e corre na

direção da noite mexicana, abatendo cerebelos no mundo inteiro. O

Carrasco borra-se de pavor ao enxergar o condenado. O Torturador

157

Segundo Spengler, “(...) a finalidade da linguagem não é o conhecimento obtido pelo raciocínio, pelo

juízo, mas sim o acordo mútuo obtido por meio de perguntas e respostas. Quais são, pois, as formas

primitivas do falar? Não o juízo ou a tese, mas o comando, o testemunho de obediência ou concordância,

a pergunta, a afirmação ou a negação. São frases originariamente muito breves, que se dirigem a outrem

como, por exemplo, „faz isto!‟ ou „está pronto?‟, „sim‟, „vamos‟. (...) A finalidade primeira da linguagem

é desencadear uma ação, em conformidade com uma intenção e com o tempo, o lugar e os meios

disponíveis. Que a frase tenha, então, uma estrutura clara e sem ambigüidades, é algo de necessidade

primordial. A dificuldade de alguém se fazer compreender e impor a sua vontade a outrem está na origem

de muitas técnicas gramaticais e sintáticas, técnicas que fornecem o modo adequado de mandar,

perguntar, responder (...)” (SPENGLER 1993, p. 78-79). 158

LYDENBERG, 1987, p. 138.

Page 64: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

63

grita no ouvido de sua vítima implacável. Faquistas enlaçam-se,

tomados de adrenalina. O câncer está batendo à porta com um

Telegrama Cantado...159

De fato, a técnica do cut-up enquanto um procedimento geral torna a

linguagem indistinta, criando uma zona de indiscernibilidade, de indeterminação, em

que qualquer particularidade, qualquer referência é completamente abolida e rechaçada.

A excentricidade de “O Carrasco borra-se de pavor ao enxergar o condenado”, por

exemplo, ultrapassa o uso a linguístico convencional. Pois, sem dúvida, que ela é

gramaticalmente correta, sintaticamente correta, mas sua construção atípica (a fórmula

comum seria antes O Condenado borra-se de pavor ao enxergar o carrasco) lhe

confere um caráter absolutamente radical, se constituindo numa espécie de função-

limite da própria linguagem. Neste sentido, a fórmula de Burroughs abole o termo sobre

o qual incide e que ela recusa, mas também o outro termo que parece preservar e que

parece impossível enquanto tal, tornando ambos indistintos.

Burroughs parece inventar uma língua estrangeira que arrasa a linguagem,

uma espécie de língua desterritorializada, como uma zona de indeterminação, que faz

com que os termos de uma oração já não se distingam, produzindo o vazio na

linguagem, ao mesmo tempo em que desarticula os atos de fala com os quais se emite,

recebe ou se transmite palavras de ordem. Neste sentido, o procedimento linguístico de

Burroughs desconecta as palavras e as ações, os atos de fala e as palavras, liberando a

linguagem daquilo que ela tem a “dizer”...

É como se três operações se encadeassem: um certo tratamento da

língua; o resultado desse tratamento, que tende a constituir no interior

da lingua uma lingua original; e o efeito, que consiste em arrastar toda

a linguagem, em fazê-la fugir, em impeli-la para seu limite próprio a

fim de lhe descobrir o Fora, silêncio ou música.160

Neste sentido, a técnica do cut-up enquanto procedimento linguístico anti-

discursivo traça uma “linha de fuga” que revela e põe a descoberto os mecanismos de

controle constituídos no interior da linguagem através de uma língua originária quase

inumana ou sobre-humana que destrói as referências, mina os pressupostos que

permitem à linguagem designar as coisas a partir de um sistema de convenções lógicas

ou gramaticais, lançando-a no vazio e na indeterminação. Em todo o caso, o

procedimento linguístico de Burroughs parece remeter a uma forma de exterioridade, a

uma espécie de elemento não-linguístico, em que se articula um processo capaz de

159

BURROUGHS, 2005a, p. 215. 160

DELEUZE, 1997, p. 84.

Page 65: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

64

produzir visões e imagens do mundo. Expliquemos melhor: se recordarmos a

preocupação de Burroughs explicitada anteriormente, ou seja, em “aprender a ver mais

o que está lá fora, a olhar para fora, atingir tanto quanto possível uma completa

percepção do que nos cerca”, parece evidente que os cut-ups não apenas devastam as

referências e significações linguísticas como também atinge um limite exterior à própria

linguagem, em direção a alguma coisa que não é propriamente sintático e nem mesmo

diz respeito à linguagem, ou seja, o procedimento linguístico de Burroughs possibilita

um acesso direto ao mundo (aos chamados fatos da percepção) que produz imagens e

visões do mundo.

(...) uma língua estrangeira não é escavada na própria língua sem que

toda a linguagem por seu turno sofra uma reviravolta, seja levada a

um limite, a um fora ou um avesso que consiste em Visões e Audições

que já não pertencem à língua alguma. Essas visões não são

fantasmas, mas verdadeiras Ideias que o escritor vê e ouve nos

interstícios da linguagem, nos desvios de linguagem. (...) Elas não

estão fora da linguagem, elas são o seu fora. O escritor como vidente e

ouvidor, finalidade da literatura: é a passagem da vida na linguagem

que constitui as Ideias.161

Assim, a técnica do cut-up parece comportar dois aspectos importantes

quando opera uma demolição do sistema linguístico dominante, inventando uma nova

língua no interior da própria língua mediante a recriação da sintaxe, e ao remeter a uma

forma de exterioridade, a um lado de fora, em que se articula um processo capaz de

produzir visões e imagens do mundo. A propósito deste último ponto, consideremos um

outro fragmento de Almoço Nu, em “Alguém viu Rose Pantopon?”:

Barrigas roncam ao longe... Pombos envenenados despencam da

aurora boreal... Os reservatórios estão vazios... Estátuas de latão

avançam pelas praças e becos esfomeados da cidade boquiaberta...

Procurando uma veia em meio à aurora do enjôo narcótico...

À base de xarope contra a tosse...

Mil junkies irrompem nas clínicas com paredes de vidro e cozinham

as Senhoras Macilentas...

Dentro da caverna calcária, encontrei um homem com a cabeça da

Medusa dentro de uma caixa de chapéu e disse “Tenha cuidado” ao

Inspetor da Alfândega... Paralisado para sempre com a mão a dois

centímetros do fundo falso...

Limpadores de janela gritam pela estação e enganam os caixas usando

o Golpe típico dos veados... (Golpe é um trambique que envolve

dinheiro trocado... Também é conhecido como Cédula).

– Fratura múltipla – anunciou o médico renomado... – Tenho muita

técnica...

Impossível esconder, a tuberculose se propaga pelos pórticos

escorregadios de catarro com bacilos de Koch...

161

DELEUZE, 1997, p. 16.

Page 66: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

65

A centopéia roça as mandíbulas na porta de ferro coberta de ferrugem,

transformada em uma fina lâmina de papel negro pela urina de um

milhão de veados...

Isso não é matéria-prima, são apenas grãos corrompidos de poeira,

parcos vestígios de uma dose perdida em algodões usados...162

As relações linguísticas são abandonadas em favor de um lado de fora da

linguagem; a linguagem, atirada no vazio da indeterminação, acaba por revelar uma

forma de exterioridade constituída antes de visibilidades do que de enunciados, de

visões e audições do mundo. (“Entre o não-senso absoluto e o sentido esgotado só

restam, ainda uma vez, as próprias coisas, objetos, gestos, etc.”.163

) Neste ponto,

cabe retomarmos então a discussão iniciada no primeiro capítulo, mais exatamente a

questão do procedimento cut-up enquanto procedimento linguístico diferencial. Como

vimos antes, seguindo a indicação do próprio Burroughs, sempre se acaba por

reencontrar no texto de Almoço Nu a mesma frase – ou quase a mesma. Pois no

intervalo entre elas, entre essas duas frases, terá surgido todo um mundo de descrições e

enumerações, que duas palavras tomadas em dois sentidos, em dois momentos, passam

a viver vidas diferentes, ou melhor, são deslocadas para comporem outras frases: “a

repetição de uma palavra deixa escancarada a diferença de seus sentidos”.164

Procuremos analisar alguns trechos do livro de Burroughs em que ocorrem as citadas

repetições, especialmente os trechos em que reaparece a palavra “lêmures” (em três

ocasiões). A primeira delas diz: “(...) enquanto lêmures de olhos tristes contemplam as

margens e a distante e vasta planície”.165

A segunda diz: “(...) enquanto lêmures de

olhos tristes contemplam as margens”.166

E, finalmente, a terceira ocorrência, retirada

do “Prefácio Atrofiado”: “(...) enquanto lêmures de olhos tristes contemplam as

margens, do outro lado dos campos do Missouri”.167

Como se vê, uma pequena

diferença é entrevista toda vez que é repetida a palavra “lêmures”, compondo outras

frases com sentidos diferentes, a repetição implicando pequenas variantes textuais. Três

frases escritas quase da mesma maneira, com apenas uma mínima diferença, mas cujos

sentidos se relativizam, devido às diferentes acepções em que é empregada a palavra

“lêmure”, como uma pequena irregularidade, uma pequena torção que parece mudar

tudo...

162

BURROUGHS, 2005a, p. 204-205. 163

ROBBE-GRILLET, 1969, p. 56. 164

DELEUZE, 2006a, p. 99. 165

BURROUGHS, 2005a, p. 59. 166

BURROUGHS, 2005a, p. 103. 167

BURROUGHS, 2005a, p. 236.

Page 67: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

66

3. 1. Contrapontos e deslocamentos.

Em oposição ao romance realista do século XIX, Almoço Nu não concebe

apenas uma forma narrativa, mas reúne várias formas narrativas: relatos

autobiográficos, narrativas ficcionais, notas sobre o vício, anedotas, historietas,

aforismos, etc. A combinação desses diversos registros abre um campo praticamente

infinito de possibilidades e de experiências formais, pois a reunião de todos estes

aspectos discursivos num único conjunto acaba por apresentar os traços de uma

verdadeira arte contrapontística, com inúmeras “vozes” narrativas compostas

simultaneamente, constituindo um enorme sistema de afinidades morfológicas

(um triunfo da multiplicidade sobre a unidade formal).

Mas diferentemente da arte do contraponto encontrada nos romances do

americano John Dos Passos (que, segundo Deleuze & Guattari, soube atingir uma arte

inaudita do contraponto, isto é, nos compostos que forma entre personagens,

atualidades, biografias, olhos de câmara168

), os contrapontos em Almoço Nu não vêm

indicados por cabeçalhos ou interrupções espaciais, mas fluem do começo ao fim sem

interrupção. Na verdade, existem títulos ou cabeçalhos para os capítulos, os quais são

muito significativos e indicam uma determinada organização, com seus cortes e saltos

abruptos. O que não existem são cabeçalhos que indiquem os contrapontos narrativos.169

Mas, como dissemos anteriormente, a tendência ao desequilíbrio e à

instabilidade, ao desenquadramento, o caráter de indeterminação, de indiscernibilidade

da narrativa, estes símbolos de aleatoriedade, tudo isto cobre o caminho desta “arte”

contrapontística, deste enorme sistema de afinidades morfológicas. É neste sentido que

acreditamos que parte da literatura americana do pós-guerra (Burroughs, Pynchon, etc.)

conseguiu, ao seu modo, configurar esteticamente a noção de entropia. Ao sobrepor

todos os registros, dissolvendo assim a unidade formal num enorme sistema de

afinidades morfológicas, concretiza-se a idéia de dissolução (seja da forma, da teoria, ou

168

“Um romancista como Dos Passos soube atingir uma arte inaudita do contraponto nos compostos que

forma entre personagens, atualidades, biografias, olhos de câmera, ao mesmo tempo que um plano de

composição se alarga ao infinito, para arrastar tudo para a Vida, para a Morte, para a cidade-cosmos”

(DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 223). 169

Numa carta a Irving Rosenthal, datada de 20 de julho de 1960, Burroughs faz a seguinte observação:

“Sim é minha intenção definitiva que o livro flua do começo ao fim sem nenhuma interrupção espacial ou

cabeçalhos adicionais para os capítulos. Creio que os cabeçalhos nas margens estão claramente indicados.

ISTO NÃO É UM ROMANCE. E não deve parecer-se com um. Qual o sentido de cabeçalhos que

meramente repetem trechos do texto? Em resumo sou definitivamente contrário a quaisquer cabeçalhos

adicionais nos capítulos” (BURROUGHS, 2005a, p. 297).

Page 68: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

67

da idéia de sistema, como unidade abstrata configuradora), de modo semelhante à noção

de entropia. Em todo o caso, desfaz-se a unidade, a sistemática, como expressão e

símbolo, cedendo lugar à ideia de multiplicidade, ou seja, as antigas unidades estruturais

se convertem numa pluralidade de elementos experimentais que revelam, por fim, a

autêntica face da modernidade.170

(Do ponto de vista puramente formal predomina a

característica da fragmentação, expressa nas assim chamadas linhas de ruptura, como

uma espécie de fendas, traçadas ao longo do texto.) Desse modo – como hipótese de

trabalho –, teremos chegado à convicção de que o grande estilo das representações

orgânicas (ou totalizantes) terminou, deixando o posto a uma espécie de produção

contínua de hipóteses e perspectivas; e se não somos capazes de perceber com inteira

clareza o declínio desta tendência é porque oculta-o a ideia de experimentalismo que

predomina em grande parte da modernidade em geral.

Mas o que denominamos aqui de produção contínua de hipóteses e

perspectivas não deve ser confundido, em hipótese alguma, com um mero relativismo

ou tão-somente com um ceticismo local, ou um método generalizado. Não se trata

apenas de multiplicar as perspectivas para fazer perspectivismo; ao contrário, é preciso

que a cada perspectiva ou ponto de vista corresponda uma obra autônoma, isto é, dotada

de um sentido suficiente. Por outro lado, o perspectivismo não se identifica com um

simples ponto, mas com um lugar, uma posição – ou, mais exatamente, um ponto de

vista (ηπόπορ επιζηήμη171

), na medida em que representa uma variação ou inflexão.

Segundo Deleuze, este seria o fundamento do perspectivismo, que não significa “uma

dependência em face de um sujeito definido previamente: ao contrário, será sujeito

aquele que vier ao ponto de vista, ou sobretudo aquele que se instalar no ponto de

vista”.172

E continua:

Não é o ponto de vista que varia com o sujeito, pelo menos em

primeiro lugar; ao contrário, o ponto de vista é a condição sob a qual

um eventual sujeito apreende uma variação (metamorfose) ou algo = x

(anamorfose). Em Leibniz, com também em Nietzsche, em William e

Henry James e em Whitehead, o perspectivismo é certamente um

relativismo, mas não é o relativismo em que comumente se pensa.

Trata-se não de uma variação da verdade de acordo com um sujeito,

170

Um trecho de Almoço Nu parece aludir diretamente a essa transformação relativamente à destruição

dos grandes conjuntos em favor de um sistema de afinidades morfológicas: “Bem, a nova aparência será

uma aparência combinada, isto é, não será dominada por uma única enzima, o Criminoso, o Pervertido, o

Sujeitinho Santarrão, o Sacerdote, o Intocável, todas as raças e condições e potencialidades, não importa o

quanto sejam desprezíveis e horrendas, devem fundir-se... em novas formas...” (BURROUGHS, 2005a, p.

327). 171

Trópos epistéme: ponto de vista. 172

DELEUZE, 1991, p. 39.

Page 69: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

68

mas da condição sob a qual a verdade de uma variação aparece ao

sujeito.173

Deste modo, o ponto de vista viria substituir o centro de convergência.

Ou seja, num mundo tornado infinito, aparece a importância de substituir o centro de

convergência, aparentemente enfraquecido, pelo ponto de vista, pelo perspectivismo.

Ou como bem salienta a este respeito Deleuze, em Diferença e Repetição, o que conta

neste caso é justamente a divergência das séries, o descentramento dos círculos, visto

que todo ponto de vista é ponto de vista sobre uma variação. Diz Deleuze:

O conjunto dos círculos e das séries é, pois, um caos informal, a-

fundado, que não tem outra “lei” além de sua própria repetição, sua

reprodução no desenvolvimento do que diverge e descentra. Sabe-se

como estas condições já se encontram efetuadas em obras como o

Livre, de Mallarmé, ou Finnegans Wake, de Joyce: elas são, por

natureza, obras problemáticas. Nelas, a identidade da coisa lida se

dissolve realmente nas séries divergentes definidas pelas palavras

esotéricas, assim como a identidade do sujeito que lê se dissolve nos

círculos descentrados da multileitura possível.174

A principal característica da obra de arte “moderna”, para Deleuze, estaria

justamente nesta ausência de centro ou de convergência, correspondendo a uma espécie

de topologia indiferente a qualquer tipo de suporte ou unidade configuradora, sem

posição de saída (em comparação às formas consagradas a nova forma parecerá uma

ausência de forma). E neste sentido, somente a categoria de multiplicidade seria capaz

de explicar esse enorme sistema de afinidades morfológicas, esse composto de vários

registros. Neste ponto, busquemos analisar alguns trechos do livro de Burroughs. No

nosso entender, dois capítulos, em especial, ilustram bem essa riqueza contrapontística a

qual nos referimos acima, ao explorarem essa acumulação e inter-relação entre os

diversos registros narrativos empregados. O primeiro deles é “Hospital”, um dos

capítulos que acumula mais registros. Contém pequenas notas sobre desintoxicação,

pesadelos da abstinência, narrativas ficcionais, duas “vinhetas” com o Dr. Benway, uma

cena passada num quarto de hospital, notas sobre o vício, etc. Em outras palavras,

“Hospital” possui uma riquíssima variedade contrapontística, ao misturar diferentes

registros narrativos, em sua maior parte ligados à doença da droga. O segundo capítulo

em questão é “O Mercado”, outro capítulo de Almoço Nu que contém uma variedade

enorme de registros. Entretanto, como consequência da infinita sucessão de cenas e

registros que existem em “O Mercado”, é quase impossível realizarmos uma verdadeira

173

DELEUZE, 1991, p. 40. 174

DELEUZE, 1988, p. 109.

Page 70: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

69

apresentação, uma apresentação que esgote integralmente o seu conteúdo. Por esse

motivo, nos contentaremos aqui em apenas descrever o caráter contrapontístico de “O

Mercado”, a partir de uma rápida descrição dos vários registros existentes nele. O

capítulo é formado por uma sequência panorâmica da Cidade de Interzona; um relato de

Burroughs sobre uma experiência com yagê, um cipó com propriedades alucinógenas

nativo da região amazônica; uma sátira sobre as deliberações de um curandeiro com o

auxílio de yagê num processo de assassinato; um episódio envolvendo Clem e Jody,

personagens de Interzona que pela primeira vez aparecem na narrativa de Almoço Nu;

uma cena de tribunal com A.J.; uma sátira sobre Cristo, Buda, Maomé e Confúcio; um

mosaico composto de pequenas cenas, historietas e aforismos; uma anedota contada por

A.J. sobre um garoto num bordel; e, por último, uma experiência do Dr. Benway, Iris,

uma viciada em diidroxi-heroína.

Estas relações de natureza contrapontística, no entender de Deleuze, se

aproximariam das relações constituídas no mundo natural, ao constituírem processos de

correlação entre conjuntos de partes heterogêneas, enquanto uma coleção de relações

variáveis que não se confundem com uma totalidade orgânica (o mundo concebido

como relação de partes heterogêneas, como relação contrapontística). Deleuze diz:

A Natureza não é forma, mas processo de correlação: ela inventa uma

polifonia, ela não é totalidade, mas reunião, “conclave”, “assembléia

plenária”. A Natureza é inseparável de todos os processos de

comensalidade, convivialidade, que não são dados preexistentes,

porém se elaboram entre viventes heterogêneos de modo a criar um

tecido de relações moventes que fazem com que a melodia de uma

parte intervenha como motivo na melodia de uma outra (a abelha e a

flor). As relações não são interiores a um Todo, é antes o todo que

decorre das relações exteriores em tal momento e que com elas varia.

Por toda parte as relações de contraponto devem ser inventadas e

condicionam a evolução.175

Ou ainda, segundo Deleuze & Guattari:

Cada território, cada habitat junta seus planos ou suas extensões, não

apenas espaço-tenporais, mas qualitativos: por exemplo, uma postura

e um canto, um canto e uma cor, perceptos e afectos. E cada território

engloba ou recorta territórios de outras espécies, ou intercepta trajetos

de animais sem território, formando junções interespecíficas. É neste

sentido que Uexkühl, num primeiro aspecto, desenvolve uma

concepção da Natureza melódica, polifônica, contrapontual. (...) Não é

uma concepção finalista, mas melódica, em que não mais sabemos o

que é arte ou natureza (“a técnica natural”): há contraponto toda vez

que uma melodia intervém como “motivo” numa outra melodia (...).

Essas relações de contraponto juntam planos, formam compostos de

175

DELEUZE, 1997, p. 71.

Page 71: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

70

sensações, blocos, e determinam devires. (...) Não parece que a

literatura, e particularmente o romance, estejam numa outra

situação.176

O mesmo ocorre com os fragmentos da obra de Burroughs, que exploram a

acumulação e inter-relação entre os diversos registros narrativos, uma espécie de

reflexão das relações sucessivamente adquiridas entre um fragmento e outro. Neste

sentido, a distância que vai de um registro a outro, ou de um fragmento a outro, é a

mesma que determina os limites de toda linearidade ou de uma totalidade orgânica, isto

é, esse enorme sistema de afinidades morfológicas não se orienta mais pelas leis dos

grandes conjuntos, mas formam intersecções que exploram um campo global de

coexistência entre os diversos registros; um conjunto de relações entre partes

articuladas, configurando uma totalidade fragmentária, de maneira que as partes sejam

ao mesmo tempo autônomas e interdependentes, como o momento em que o múltiplo se

subtrai à unidade: “(...) (é somente assim que o uno faz parte do múltiplo, estando

sempre subtraído dele). Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída; escrever a

n-1”.177

Neste ponto, cabe retomarmos aquilo que dissemos anteriormente

relativamente aos inúmeros deslocamentos e movimentos de desterritorialização pelo

qual passa a narrativa de Almoço Nu – os quais vão dos Estados Unidos ao México,

passando pela América do Sul, Europa e África do Norte178

– pois a distância que vai de

um registro a outro é diretamente proporcional àquela que vai de uma espacialidade a

outra, ou de uma territorialidade à outra. Tomemos como exemplo o movimento

expresso em “Consigo sentir a tocaia se armando...”, primeiro capítulo de Almoço Nu,

no qual o personagem William Lee, fugindo da polícia, empreende uma viagem pelo

interior dos Estados Unidos, Filadélfia, Chicago, Kansas, Texas, Louisiana, em direção

ao México, destino final da viagem de Lee. Mas isso não é tudo, a narrativa sofre ainda

um último deslocamento. As últimas palavras de “Consigo sentir a tocaia se armando...”

176

DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 218-219, 222. 177

DELEUZE e GUATTARI, 1995, p. 15. 178

Para Deleuze, os deslocamentos estão entre as principais características da literatura anglo-americana:

“A literatura anglo-americana não cessa de apresentar essas rupturas, essas personagens que criam a sua

linha de fuga, que criam por linha de fuga. Thomas Hardy, Melville, Stevenson, Virginia Woolf, Thomas

Wolfe, Lawrence, Fitzgerald, Miller, Kerouac. Tudo neles é partida, devir, passagem, salto, demônio,

relação com o exterior. Criam uma nova Terra, mas é possível que o movimento da terra seja a própria

desterritorialização. A literatura americana opera segundo linhas geográficas: a fuga para o Oeste, a

descoberta de que o verdadeiro Este é o Oeste, o sentido das fronteiras como algo a franquear, a repelir, a

ultrapassar. O devir é geográfico” (DELEUZE, 2004, p. 52).

Page 72: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

71

evocam a cidade de Tânger, no Marrocos: “Um ano mais tarde, em Tânger, fiquei

sabendo que ela tinha morrido”.179

Assim, o livro de Burroughs, do mesmo modo que dissolve a unidade

formal, convertendo-se num enorme sistema de afinidades morfológicas, num composto

de vários registros, se define igualmente pelos movimentos de desterritorialização, pela

superação contínua dos limites geográficos, franqueando os espaços, transpondo as

fronteiras, traçando linhas de fuga... Esses signos de dissolução, de desterritorialização,

se insinuam por todo o livro, dissolvendo as identidades, as territorialidades fixas, a

idéia mesma de unidade formal. Os registros se sobrepõem, as fronteiras são

transpostas, limites são franqueados. Nenhum registro ou territorialidade têm função ou

posição constantes, a narrativa muda de “tom” e “consistência” em frações de segundo,

constituindo-se em zonas de indiscernibilidade e de indeterminação, que formam um

sistema narrativo instável, em perpétuo desequilíbrio...

Naquele mundo de escuridão total a boca e os olhos formam um único

órgão, capaz de projetar-se para morder com seus dentes

transparentes... mas nenhum órgão tem função ou posição constantes...

órgãos sexuais brotam por toda parte... retos escancaram-se, defecam

e fecham-se novamente... o organismo inteiro muda de cor e

consistência em ajustes de frações de segundos...180

Neste sentido, as relações estabelecidas entre os diversos registros (ou entre

as diversas espacialidades constituídas no romance) são apenas virtuais, potenciais,

instáveis, e definem apenas possibilidades, probabilidades de interação, porquanto a

narrativa não está submetida a nenhuma unidade formal, capaz de dar sentido à sua

matéria fluente e à sua função difusa, exatamente – como a bolha multitarefa do Dr.

Benway:

(...) esguichando como furúnculos estourados que lançam glóbulos de

Tecido Indiferenciado para todos os lados e caem sobre algum lugar

onde crescem até transformarem-se em formas de vida degeneradas,

reproduzindo horrendas imagens aleatórias. Algumas seriam

compostas inteiramente por um tecido erétil semelhante ao do pênis,

com cachos de três ou quatro olhos reunidos, bocas e cus

entrecruzados, órgãos humanos atirados para qualquer canto e

assimilados na mesma posição em que caíram.181

No nosso entender, o mais importante aqui é definirmos a distância ou o

intervalo entre cada registro, ou seja, entendermos o espaço de intersecção, enquanto

um espaço intermediário, como o lugar por onde passa o “corte” ou onde se dá a

179

BURROUGHS, 2005a, p. 29. 180

BURROUGHS, 2005a, p. 17-18. 181

BURROUGHS, 2005a, p. 142.

Page 73: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

72

distribuição dos caracteres diferencias num espaço de coexistência, em função do qual

as coisas “aparecem” ou se relacionam. Na verdade, as relações estabelecidas aqui são

de natureza abstrata, como de resto grande parte da tradição metafísica ocidental.

Explico: Em linhas gerais, é possível assinalar que a tradição filosófica ocidental

inaugura com Descartes uma metafísica de base imaterial, um tipo de metafísica

totalmente abstrata, concebida em termos de relações, que pode ser contraposta à

metafísica grega, de base material (aqui, a condição fundamental da ideia é a

proximidade sensível; lá, é a abstração).182

Neste sentido, busquemos estabelecer, com

finalidade argumentativa, a diferença entre essas duas intuições de mundo, a começar

pelo mudo antigo. Pensemos na quintessência da obra de arte antiga: a estátua de um

homem nu. O mais essencial e significativo da existência, todo o seu ethos, se acha aqui

integralmente dado pelos planos, medidas e proporções sensíveis entre as partes. O

bloco de pedra é alguma coisa somente quando possui limites bem calculados e uma

forma bem medida, quando se tornou alguma coisa sob o cinzel do artista. De outra

maneira é um caos, algo ainda não realizado e, portanto, nada. Este sentimento,

transposto para o grande, origina o cosmos, por oposição ao caos, o mundo exterior da

alma antiga, a ordem harmônica de todas as coisas singulares, limitadas, de presença

palpável. A totalidade, a soma de todas estas coisas é o mundo inteiro. A distância ou o

intervalo entre elas, o espaço, que nós preenchemos com o pathos de um grande

símbolo, é para os gregos o nada, ηò μή όν183

. Para o homem antigo, extensão significa

corporeidade, para nós, espaço, em função do qual as coisas “aparecem”. Deste ponto

de vista, podemos compreender um dos conceitos mais profundos da metafísica antiga,

o ἄπειπον184

de Anaximandro: ἄπειπον é o que não possui “número”, em sentido

pitagórico (isto é, o número como a essência de todas as coisas apreensíveis pelos

sentidos), o que não possui medida, nem limite, nem, portanto, essência185

; o imenso, o

182

Na verdade, mesmo o universo construído por Copérnico, Galileu, Kepler e Newton, composto de

sólidas esferas materiais, separadas umas das outras por grandes distâncias e unidas por imutáveis leis da

natureza, as quais expressam um absoluto princípio de causalidade, transforma-se, a partir de Einstein,

num universo de campos de energia (ou campos de força) que, somente sob determinadas condições,

apresenta ao observador parcial o caráter de solidez material. O antigo modelo material do universo

desapareceu quase inteiramente sob o ar rarefeito de grupos algébricos, números irracionais e ordens de

infinidade. O homem ocidental verdadeiramente desmaterializou o universo... 183

Tó me ón: o que não é. 184

Apeiron: o ilimitado. 185

Aristóteles pensa o mesmo no livro segundo De Anima (B 4, 416a): “A todas as coisas naturais é

imposto um limite e um crescimento. No entanto, o fogo aplicado aos combustíveis cresce

ilimitadamente”. (ἡ μὲν ηοῦ πςπὸρ αὔξηζιρ εἰρ ἄπειπον, ἕωρ ἂν ἧ ηὸ καςζηόν, ηῶν δὲ θύζει ζςνιζηαμένων

πάνηων ἐζηὶ πέπαρ καὶ λόγος μᾶλλον ἢ ὕληρ.)

Page 74: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

73

informe, a estátua que ainda não foi extraída do bloco de pedra. Isto é a ἀπσή186

, o que

para a vista é ilimitado e informe, que somente quando recebe limites e se individualiza

se transforma em algo, a saber, o mundo (neste sentido, a matéria desprovida de forma

só recebe seu ser-assim atual, na medida em que recebe uma forma através da alma).

Em termos kantianos, é o princípio ou a forma a priori do conhecimento antigo, a

corporeidade em si.187

Pois na imagem kantiana do mundo, o lugar correspondente está

reservado ao espaço absoluto, por meio do qual Kant “podia pensar todas as coisas”, o

espaço como criação maximamente abstrata desprendida de qualquer elemento sensível,

como absoluta superação da idéia de corporeidade. A fim de confirmar o que acabamos

de dizer, citemos ao próprio Kant, em sua Crítica da Razão Pura, na seção dedicada à

problemática do espaço:

O espaço é uma representação necessária, a priori, que fundamenta

todas as intuições externas. Não se pode nunca ter uma representação

de que não haja espaço, embora se possa perfeitamente pensar que não

haja objetos alguns no espaço. Consideramos, por conseguinte, o

espaço a condição de possibilidade dos fenômenos, não uma

determinação que dependa deles; é uma representação a priori, que

fundamenta necessariamente todos os fenômenos externos.188

Este símbolo pertence aos tempos modernos e apenas à sua “religião”

espiritual: o espaço puro, desprovido de objetos, enquanto uma substância de natureza

incorpórea, imaterial; o espaço puro, sem limites, como o ideal da alma ocidental em

oposição à antiga metafísica grega, de base material e sensível. (Lembremos que os

antigos sequer tinham vocábulo para designar exatamente este problema...189

)

Justamente essa espacialidade onipotente foi rechaçada pela humanidade antiga,

considerada como ηò μή όν, como o que não é. Portanto, assim como o mundo do

concreto se ampliou, a partir da visão limitada dos antigos, para a multiplicidade

186

Arché: o princípio. 187

Sobre a ideia de corporeidade como fundamento do conhecimento antigo, cf. Oswald SPENGLER,

Der Untergang des Abendlandes (Erster Band: Gestalt und Wirklichkeit), München: C.H. Beck‟sche

Verlagsbuchhandlung, 1923, I, p. 87-88. 188

KANT, 1985, p. 65. 189

Segundo Spengler, o vocábulo não existe nem em grego nem em latim: “A palavra ηόπορ – em

latim lócus – significa lugar, comarca e também classe, no sentido de classe social. A

palavra σώπα – em latim spatium – significa separação (“entre”), distância, lugar e também

solo e terra (ηὰ ἐκ ηῆρ σώπαρ, os frutos da terra). A palavra ηό κενόν – em latim vacuum –

significa, sem dúvida nenhuma, um corpo oco, acentuando o sentido de envoltura”

(SPENGLER, 1923, p. 230). Cf. também o vocábulo ηέμενορ – em latim templum – que

designa um pedaço de terra delimitado, consagrado aos deuses. Em todos estes casos,

predomina o elemento sensível, o corpo palpável, a presença imediata. Em outras palavras,

a necessidade que nós, ocidentais, temos em seguir imaginando “espaço”, para além de

qualquer invólucro ou envoltura, parece faltar por completo ao sentimento de mundo dos

antigos.

Page 75: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

74

abstrata da visão moderna (ou seja, enquanto abandono do elemento sensível por um

princípio abstrato), também o mundo das possibilidades de relação se desenvolveu para

o multiforme inconcebível, como caminhos infinitamente longos, atados com grossos

cordões, que levam de uma espacialidade a outra. Neste ponto, portanto, apenas o

espiritual ou o abstrato é o efetivo, como o “lugar” onde se estabelece todas as relações

possíveis.

Evidentemente, o espaço entendido kantianamente, em termos absolutos, ou

seja, euclidianamente, como um plano único, não corresponde à nossa problemática,

pois somente um tratamento multidimensional do espaço pode nos conduzir a uma

solução mais ou menos satisfatória sobre a questão de um espaço diferencial capaz de

pensar a diferença para além de toda oposição possível. Em todo o caso (e como já

dissemos anteriormente), de todas as relações possíveis que se possa estabelecer num

espaço dessa natureza, a única que nos interessa aqui são as chamadas relações

contrapontísticas, entendidas aqui como relação entre relações, estabelecidas não mais

em termos de problemática dos opostos, isto é, hegelianamente.190

Como, pois, reunir o

diferente para além de toda oposição possível? Como pensar duas ou mais séries num

espaço de diferença? Neste sentido, diz Deleuze:

A primeira característica parece-nos ser a organização em séries. É

preciso que um sistema se constitua à base de duas ou várias séries,

sendo cada uma definida pelas diferenças entre os termos que a

compõem. Se supomos que as séries entram em comunicação sob a

ação de uma força qualquer, vemos que esta comunicação relaciona

diferenças a outras diferenças ou constitui, no sistema, diferenças de

diferenças: estas diferenças em segundo grau desempenham o papel

de “diferenciante”, isto é, relacionam umas às outras as diferenças de

primeiro grau. Este estado de coisas exprime-se adequadamente em

certos conceitos físicos: acoplamento entre séries heterogêneas; de

onde deriva uma ressonância interna no sistema; de onde deriva um

movimento forçado cuja amplitude transborda as próprias séries de

base. Pode-se determinar a natureza destes elementos que valem ao

mesmo tempo por sua diferença numa série da qual fazem parte e por

sua diferença de diferença, de uma série à outra: são intensidades,

190

Hegel, numa leitura deleuziana, ao que parece, compreende todas essas relações como relação entre

opostos, entre contrários, e não como relação entre partes heterogêneas, como relação contrapontística.

Ou seja, Hegel determina a diferença pela oposição dos extremos ou dos contrários: “A diferença em

geral já é contradição em si... Só quando levado à ponta da contradição o variado, o multiforme, desperta

e se anima, e as coisas participantes dessa variedade recebem a negatividade, que é a pulsação imanente

do movimento autônomo, espontâneo e vivo... Quando se leva suficientemente longe a diferença entre as

realidades, vê-se a diversidade tornar-se oposição e, por conseguinte, contradição, de modo que o

conjunto de todas as realidades se torna, por sua vez, contradição absoluta em si” (Hegel apud

DELEUZE, 1988, p. 78).

Page 76: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

75

sendo próprio da intensidade o ser constituída por uma diferença que

remete, ela própria, a outras diferenças (...).191

No entender de Deleuze, a noção de intensidade seria suficiente para

determinar a natureza dessas relações diferenciais, dessas relações contrapontísticas,

porquanto que o próprio da intensidade é ser ela “constituída por uma diferença que

remete, ela própria, a outras diferenças”, como o momento em que as séries não

aparecem dispostas em termos de oposição e de contradição, ou seja, a intensidade

como um elemento que é em si mesmo diferença, como pura diferença em si:

“A expressão „diferença de intensidade‟ é uma tautologia. A intensidade é a forma da

diferença como razão do sensível. Toda intensidade é diferencial, diferença em si

mesma”.192

Assim, cada intensidade é já um acoplamento, em que cada elemento

remete, por sua vez, a pares de elementos de outra ordem ou natureza (como um

elemento em toda uma série de outros e que não possui nenhum privilégio). Trata-se,

portanto, de saber se é possível contentar-se apenas com pluralizar a oposição ou em

sobredeterminar a contradição. Em outras palavras: a descoberta de uma pluralidade de

oposições coexistentes não é inseparável de outra descoberta mais profunda, isto é, a da

própria diferença enquanto diferença em si mesma? “A descoberta de uma pluralidade

de oposições coexistentes, em qualquer domínio, é inseparável de uma descoberta mais

profunda, a da diferença, que denuncia o negativo e a própria oposição como aparências

em relação ao campo problemático de uma multiplicidade positiva”.193

Quando se

entende a diferença como oposição, a partir da uniformidade da grande contradição, ela

fica privada de sua especificidade própria, em que afirma sua positividade, ou seja,

como sombras num único plano... “Pois a oposição nada nos ensina sobre a natureza

daquilo que se supõe estar em oposição”.194

Com efeito, a diferença enquanto tal é

constituída de relações recíprocas entre elementos diferenciais completamente

determinados em suas relações, sem nunca comportar termo negativo nem correlação de

negatividade... E se existe aqui uma problemática dos opostos, ela só pode ser entendida

enquanto um processo de diferenciação (ou melhor, de individuação), processo este que

dissolve por completo a uniformidade da grande contradição, como duas ordens de

grandeza ou duas escalas de termos heterogêneos (pelo menos) entre os quais os

potenciais se repartem. Ou seja, os contrastes se anulam mutuamente, de modo que da

191

DELEUZE, 1988, p. 172-173. 192

DELEUZE, 1988, p. 314. 193

DELEUZE, 1988, p. 288. 194

DELEUZE, 1988, p. 289.

Page 77: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

76

“coalizão” de ambos resulta, de acordo com as regras de qualquer energética, algo

semelhante a um terceiro elemento (tertium), totalmente novo. Aparece, assim, um

campo mais ou menos “problemático”, determinado pela distância ou pela intersecção

entre tais ordens ou termos heterogêneos: “A substituição de um princípio de oposição

distintiva por um princípio de posição diferencial (...)”.195

Como a noção de intensidade já exprime, portanto, uma diferença, é

necessário definirmos melhor o que é preciso entender por isso, ou seja, devemos

compreender que a intensidade não pode compor-se de termos homogêneos, mas, ao

contrário, de duas ou mais séries de termos heterogêneos. Neste sentido, chegou o

momento de determinarmos a noção de diferença enquanto multiplicidade, que até

agora tínhamos deixado indeterminada. Assim, busquemos estabelecer os traços

distintivos que caracterizam uma multiplicidade. Inicialmente, a multiplicidade não

deve designar uma combinação de múltiplo e de uno, mas, ao contrário, uma

organização própria do múltiplo enquanto tal, que de modo algum necessite da ideia de

unidade para compor um sistema, bem como de qualquer esquema dialético que proceda

por oposição. “Em toda parte, as diferenças de multiplicidades e a diferença na

multiplicidade substituem as oposições esquemáticas e grosseiras. Há tão-somente a

variedade de multiplicidade, isto é, a diferença, em vez da enorme oposição do uno e do

múltiplo”.196

Mas – perguntemos – como e em que condições devemos falar então de

uma multiplicidade? Segundo Deleuze, são três as condições que permitem definir

rigorosamente o momento de emergência da multiplicidade. São eles os seguintes

(segundo Deleuze):

(...) 1°, é preciso que os elementos da multiplicidade não tenham

forma sensível, nem significação conceitual, nem, desde então, função

assinalável. Eles nem mesmo têm existência atual e são inseparáveis

de um potencial ou de uma virtualidade. É neste sentido que eles não

implicam qualquer identidade prévia, nenhuma posição de algo que se

poderia dizer uno ou o mesmo (...). 2°, é preciso, com efeito, que estes

elementos sejam determinados, mas reciprocamente, por relações

recíprocas que não deixem subsistir qualquer independência. Tais

relações são precisamente ligações ideais, não localizáveis, seja

porque caracterizam a multiplicidade globalmente, seja porque

procedem por justaposição de vizinhanças. Mas a multiplicidade é

sempre definida de maneira intrínseca, sem que dela se saia e sem que

se recorra a um espaço uniforme em que ela estaria mergulhada. (...)

3°, uma ligação múltipla ideal, uma relação diferencial deve atualizar-

se em correlações espaço-temporais diversas, ao mesmo tempo em

195

DELEUZE, 1988, p. 289. 196

DELEUZE, 1988, p. 260.

Page 78: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

77

que seus elementos encarnam-se atualmente em termos e formas

variadas.197

Assim, segundo Deleuze, se definiria uma multiplicidade interna, isto é, um

sistema de ligação múltipla não-localizável entre elementos diferenciais, que se encarna

em correlações reais e em termos potenciais, ao mesmo tempo autônomas e

interdependentes, como um sistema portanto que incluísse todas as figuras possíveis198

,

“puras multiplicidades positivas onde tudo é possível, sem exclusões nem negações,

sínteses operando sem um plano, em que as conexões são transversais, as disjunções

inclusivas, as conjunções plurívocas, indiferentes ao seu suporte (...)”.199

Em todo o

caso, conforme lembram Deleuze & Guattari (1992, p. 181), parece que uma teoria das

multiplicidades não suporta a hipótese de uma multiplicidade qualquer, pois, como

vimos anteriormente, para a constituição de uma multiplicidade são necessárias pelo

menos duas ou dois tipos de multiplicidade. Isto, contudo, não significa dizer que o

dualismo seja superior ou valha mais que a unidade, visto que a multiplicidade é

justamente o que se passa “entre” ambos os tipos de multiplicidade (como dois vetores

que se cruzam ou se chocam). “Assim, os dois tipos [de multiplicidade] não estarão

certamente um acima do outro, mas um ao lado do outro, um contra o outro, face a face

ou costas contra costas”.200

(É o abandono definitivo do plano de transcendência em

favor de um plano de imanência: um campo horizontal de imanência em vez de uma

transcendência vertical.)

Mas retornemos, por fim, ao nosso tema estrito, definido anteriormente

como a tentativa de se entender o espaço de intersecção enquanto o lugar por onde passa

o “corte” ou onde se dá a distribuição de todos esses caracteres diferenciais. A

impressão inicial pode parecer extremamente abstrata. Mas uma das ideias básicas do

197

DELEUZE, 1988, p. 261. 198

E neste sentido, segundo Deleuze, uma multiplicidade enquanto tal, ou seja, enquanto um sistema de

ligação múltipla não-localizável entre elementos diferenciais, se aproxima das três principais

características que compõem uma intensidade: “A intensidade tem três características. De acordo com a

primeira, a intensidade intensiva compreende o desigual em si. (...) A intensidade é o não anulável na

diferença de quantidade, mas esta diferença de quantidade anula-se em extensão, sendo a extensão

precisamente o processo pelo qual a diferença intensiva é posta fora de si, repartida de maneira a ser

conjurada, compensada, igualizada, suprimida no extenso que ela cria. (...) Uma segunda característica

decorre da primeira: compreendendo o desigual em si, sendo já diferença em si, a intensidade afirma a

diferença. Ela faz da diferença um objeto de afirmação. (...) De acordo com uma terceira característica,

que resume as duas anteriores, a intensidade é uma quantidade implicada, envolvida, „embrionada‟. Não

implicada na qualidade; isto ela é, mas apenas secundariamente. Primeiramente, ela está implicada em si

mesma: implicante e implicada. Devemos conceber a implicação como uma forma de ser perfeitamente

determinada. Na intensidade, chamamos diferença aquilo que é realmente implicante, envolvente;

chamamos distância aquilo que está realmente implicado ou envolvido” (DELEUZE, 1988, p. 327-334). 199

DELEUZE e GUATTARI, 2004, p. 322. 200

DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 181.

Page 79: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

78

livro de Burroughs parece ser a da intersecção entre dois ou mais sistemas heterogêneos,

com um centro comum (o vício em si). Em outras palavras: a configuração estabelecida

em Almoço Nu parece sugerir a intersecção de duas ou mais série de termos

heterogêneos, funcionalmente relacionados entre si, mas regidos por suas próprias leis e

regras. Provavelmente, não erramos ao presumir que o livro de Burroughs busca reunir

todas as figuras possíveis sobre o vício, a mais completa possível. (Em termos

matemáticos, seu caráter é multidimensional.) Mas não queremos exagerar a

importância desta conclusão, uma vez que não podemos comprovar o acerto desta

interpretação. Em todo o caso, o importante é que se possa conceber vários sentidos ou

modalidades formalmente distintas do vício, mas que se reportam ao vício como a um

só designado, como se ele fosse ontologicamente uno. Neste sentido, o mais essencial

não é que o vício se diga num único sentido, mas é que ele se diga num mesmo sentido

por meio de todas as formas ou figuras possíveis. O vício é o mesmo para todas estas

modalidades, mas estas modalidades não são iguais. Ele se diz num só sentido de todas,

mas elas mesmas não têm o mesmo sentido, visto que elas diferem entre si (semelhante

à fórmula paradoxal dos antigos Ἓν ηὸ πᾶν – todas as coisas são uma só –, ou seja, ao

mesmo tempo como unidade e como multiplicidade...).

Uma voz para todo o múltiplo de mil vias, um mesmo Oceano para

todas as gotas, um só clamor do Ser para todos os entes. Mas à

condição de ter atingido, para cada ente, para cada gota e em cada via,

o estado de excesso, isto é, a diferença que os desloca e os disfarça, e

os faz retornar, girando sobre sua ponta móvel.201

Entendido dessa maneira, o livro de Burroughs é ao mesmo tempo relativo e

absoluto: relativo com respeito aos próprios componentes que o compõe (as

modalidades formalmente distintas do vício), mas absoluto pela maneira pela qual se

põe nele mesmo (como ontologicamente uno). Ele é relativo enquanto fragmentário,

mas absoluto como todo. Portanto, os elementos são relativos uns em relação aos

outros, mas cada elemento é absoluto em si mesmo, sendo dotado de um sentido

suficiente, comportando cada um deles uma coesão interna em seu próprio nível. (É

sobre este sistema, por assim dizer, relativo que repousa a investigação acerca do vício

absoluto.) Mas não temos a menor razão para pensar que os fragmentos tenham

necessidade de valores, por assim dizer, transcendentes que os comparariam, os

selecionariam ou decidiriam que um é “melhor” que o outro; ao contrário, não há

critérios senão relativos, e cada fragmento se avalia por ele mesmo – por ser absoluto

201

DELEUZE, 1988, p. 417.

Page 80: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

79

em si mesmo –, pelos movimentos que ele traça e pelas intensidades que ele constitui,

sobre um determinado plano de composição. Enfim, um fragmento é bom ou ruim, alto

ou baixo, pleno ou vazio, independentemente do Uno ou do Todo, em relação a todo e

qualquer sistema de referências enquanto valor transcendente (não se pode dizer,

portanto, de antemão que aqui temos um fragmento ruim e, ali, um bom): não existe

outro critério senão o sentido suficiente que cada fragmento contém por si mesmo, as

intensidades que ele constitui, etc. (“São limiares de intensidade, que só são mais altos

ou mais baixos segundo o sentido em que são percorridos”.202

)

Neste ponto, é necessário confirmar as análises precedentes com um retorno

ao livro de Burroughs, ou seja, tomando como exemplo “Rápido...”, o derradeiro cut-up

de Almoço Nu, composto a partir de inúmeros extratos sacados do próprio romance:

clarão branco... gritos de insetos mutilados...

Acordei com gosto de metal na boca ao regressar da terra dos mortos

rastreando o cheiro incolor da morte

placenta de um macaco cinzento e atrofiado

dores agudas e espectrais de amputação...

– Garotos de programa à espera de clientes – disse Eduardo antes de

morrer de overdose em Madri...

Trens carregados de pólvora pegam fogo ao cruzar róseas espirais de

carne tumescente... detonam clarões de orgasmo... fotografias precisas

de movimentos abortados... um flanco bronzeado e macio se retorce

para acender um cigarro...

Ficou ali, usando o chapéu de palha em estilo de 1920 que alguém lhe

deu... palavras macias e mendicantes desabando sobre a rua escura

como pássaros mortos...

– Não... Não mais... No más...

Um mar oscilante de martelos pneumáticos no crepúsculo roxo-

pardacento maculado pelo odor podre-metálico de gás de esgoto...

jovens rostos operários vibram desfocados em auréolas amarelecidas

de lanternas de carbureto... canos rompidos expostos...

– Estão reconstruindo a Cidade.

Lee assentiu distante... “Sim... Sempre”

De qualquer modo não é uma boa para a Ala Oriental...

Se eu soubesse, adoraria lhe contar...

– Nada bom... no bueno... ando me prostituindo...

Teinon... Vóta sestafêla.203

Em “Rápido...”, como se pode perceber, estão reunidas cadeias semióticas

de toda natureza, que colocam em questão não apenas registros formais diferentes, mas

também caracteres de estados de coisas e conteúdos vividos. Porém, todos os tipos de

coisas aqui reunidas sobre uma mesma página, sobre uma mesma paragem, sobre um

mesmo plano: acontecimentos, determinações históricas, pensamentos, indivíduos,

202

DELEUZE e GUATTARI, 2003, p. 77. 203

BURROUGHS, 2005a, p. 240-241.

Page 81: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

80

formações sociais, estão concebidas em termos de uma multiplicidade ao mesmo tempo

absoluta e relativa. Em outras palavras: é a partir destas intersecções ou distâncias, as

quais não podem ser definidas por meio de qualquer conceito de causalidade, devendo

ao contrário ser necessariamente concebidas como a-causais, que todos estes elementos

se encadeiam ou se separam, ao mesmo tempo em que cada elemento se comporta como

múltiplos irredutíveis, isto é, como absoluto e como relativo. Assim, por exemplo, não é

suficiente remeter causalmente um elemento a um outro, um fragmento a um outro,

ou passar de uma ideia a outra segundo uma ordem de associações. As relações

constituídas aqui não concernem à mera associação de ideias, ou à sucessão de causas e

de efeitos. Elas não constituem um conjunto de ideias associadas, nem tampouco uma

série de ideias ordenadas causalmente. (Na verdade, as ideias só são associáveis como

representações, e ordenáveis como abstrações.) Ora, as relações constituídas aqui se

formam antes por zonas de vizinhança ou de indiscernibilidade, por campos de forças

que procedem por resoluções de tensões, enquanto sistemas de pontos abstratos de

força, atuando como unidades, dominando o espaço energeticamente (como “campo”),

deixando assim de ser associáveis segundo as formas da representação, ou ordenáveis

segundo as exigências da causalidade, para compor verdadeiros blocos de relações:

relação entre relações (os contrapontos narrativos), ou seja, segundo a forma da função,

entendida aqui em termos de relações.

Page 82: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

81

***

O que significam, pois, esses signos de dissolução e aleatoriedade, os

movimentos de desterritorialização, a abolição dos grandes conjuntos e, principalmente,

a ausência de sentido? A ausência de uma “meta” narrativa em Almoço Nu não expressa

de modo radical a experiência da subjetividade moderna? Burroughs acaso inventou

uma nova forma de composição ou, antes, o caldo da experiência moderna a

determinou? A obra de Burroughs não emerge justamente da experiência histórica

ocidental do pós-guerra, a qual possibilitara as condições para o surgimento das novas

estéticas e temáticas?

No nosso entender, a estética burroughsiana não se relaciona somente com a

sua personalidade, com sua vontade ou sua consciência; ela também é fruto de seu

próprio tempo. O que quero dizer é que não existe criação artística independente da

história. Tudo se liga ao sítio da história. Neste sentido, a experiência do homem

contemporâneo talvez ajude a explicar todas essas particularidades, em especial a

ausência de sentido. Afinal, o que significam esses signos de indeterminação, as antigas

identidades convertidas em simples funções variáveis, em zonas de indeterminação? Do

mesmo modo, qual o significado dessa narrativa que se esvai completamente,

dissolvendo a unidade formal, resultando numa escrita aparentemente aleatória,

indiferente a qualquer tipo de suporte ou unidade configuradora? Em última instância,

não é esse o modo como o homem contemporâneo compreende o mundo onde vive,

principalmente a maneira como sua consciência capta o sentido da história, a ordem que

rege a história, aparentemente perdida? O que está por trás deste estado de coisas? O

que está por trás – é evidente – é um ser extirpado de um contexto em que a vida possui

algum sentido. Thomas Pynchon, por exemplo, fala em seus romances daquelas pessoas

que estão num estado de absoluta indeterminação como se fossem “vítimas de um

vácuo” – sendo este vácuo o vazio espiritual e intelectual, a perda de tensão em direção

a um objetivo.204

Seus personagens parecem mover-se em um vácuo, numa espécie de

vazio existencial em que ninguém possui vontade própria, substituída neste ponto por

uma espécie de vis inertiae, resultante da própria indeterminação do sujeito.

Consideremos, neste sentido, um trecho retirado de O arco-íris da gravidade (1973),

204

Cf. a análise de Eric Voegelin sobre a obra de Pynchon, em “Structures of Consciousness”.

(Conferência realizada na York University – Toronto, Canadá – em 22 de novembro de 1978). Cf. em

Referência Bibliográfica.

Page 83: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

82

romance de Pynchon cujo cenário é a Europa devastada ao final da Segunda Grande

Guerra:

Os dias se passavam, todos muito parecidos para Pökler. Idênticos

mergulhos matinais numa rotina tão morta quanto o inverno. Ele

aprendeu a pelo menos manter uma fachada tranquila, Aprendeu a

sentir o movimento palpável rumo à guerra que é característico dos

programas de armamentos. De início simula a depressão ou a

ansiedade não específica. Pode haver espasmos no esôfago e sonhos

irrecuperáveis. Você se pega escrevendo recados para si mesmo assim

que se levanta de manhã: mensagens razoáveis, tranqüilizadoras,

dirigidas ao louco varrido interior – 1. É uma combinação. 1.1 É uma

grandeza escalar. 1.2 Seus aspectos negativos se distribuem de modo

isotrópico. 2. Não é uma conspiração. 2.1 Não é um vetor. 2.11 Não é

dirigido a ninguém. 2.12 Não é dirigido a mim... u.s.w. O café começa

a ficar com um gosto cada vez mais metálico. Cada prazo agora é uma

crise, cada uma mais intensa que a anterior. Por trás deste emprego

como outro qualquer parece haver alguma coisa vazia, alguma coisa

terminal, alguma coisa cada dia mais perto de se manifestar... (“O

novo planeta Plutão”, ela sussurrara há muito tempo, deitada na

escuridão malcheirosa, seu lábio superior alongado, lábio de Asta

Nielsen, tão giboso naquela noite quanto a lua que a governava,

“Plutão é meu signo agora, presa com força em suas garras. Ele se

move tão devagar, tão devagar, tão distante... mas vai explodir. É a

fênix sinistra que cria seu próprio holocausto... ressurreição

deliberada. Uma encenação. Sob controle. Nada de graça, nada de

intervenção divina. Uns dizem que é o planeta do nacional-socialismo,

Brunhübner e aquela turma, todos tentando puxar o saco de Hitler

agora. Eles não sabem que o que estão dizendo é literalmente

verdadeiro... Você está acordado? Franz...”).205

Pökler é um paradigma do medo e da insegurança amplamente difundidos,

inclusive, entre as pessoas instruídas do nosso tempo, pertencendo, portanto, ao número

daquelas pessoas que compreendem o que significa a anulação das metas individuais.

Gestos como o seu só possuem significação quando sentimentos de inferioridade, a falta

de sentido de uma vida meramente funcional, ameaçam sufocar a individualidade. Em

realidade, este nos parece ser um bom exemplo do que pretendemos apontar sobre a

natureza particular da literatura produzida no pós-guerra, completamente apartada das

estruturas tradicionais, construída sobre os fundamentos da subversão estilística e do

desconforto existencial, a qual busca refletir sobre este momento da história em que o

humano parece ter perdido sua alma – aquilo que Nietzsche chamou pelo seu nome: o

advento do niilismo.206

Em todo o caso, todas essas mudanças não se reduzem a

205

PYNCHON, 1998, p. 429-430. 206

Disse, pois, Nietzsche: “O que narro é a história dos próximos dois séculos. Descrevo o que vem, o

que não pode deixar de vir de outro modo: o advento do niilismo. Esta história já se pode contar agora:

pois a necessidade mesma está aqui a trabalhar. Este futuro já fala em cem signos, este destino se anuncia

Page 84: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

83

transformações políticas ou econômicas, nem sequer a mutações religiosas ou artísticas.

Não se trata de nada palpável. É antes a “essência” de uma alma, de uma cultura que

parece ter realizado integralmente todas as suas possibilidades formais. Portanto, não se

trata da vida externa, da conduta, das instituições, dos costumes, porém de algo mais

profundo e último: é o esgotamento interior do homem ocidental.207

Isto ocorre enfim

quando uma alma realiza inteiramente a soma de suas possibilidades, quando todos os

grandes problemas foram pensados integralmente e reduzidos a um último estado de

saber ou não saber...208

por toda parte; para esta música do futuro já estão aguçados todos os ouvidos” (NIETZSCHE, 2008, 11

[411], p. 489). 207

Neste sentido, é importante destacar que a forma de niilismo a que nos referimos aqui não se refere à

forma estabelecida por Nietsche, isto é, como resultante da descrença nas categorias da razão, mas em

niilismo enquanto esgotamento das possibilidades de realização. Assim, pois, diz Nietzsche: “(...) a fé nas

categorias da razão é a causa do niilismo – nós temos medido o valor do mundo mediante categorias, as

quais se referem a um mundo puramente fingido” (NIETZSCHE, 2008, 11 [99] (351), p. 396). 208

Entendido dessa maneira, a reflexão das relações sucessivamente adquiridas, o mundo como relação

contrapontística, relação entre relações, ou seja, no sentido especial de relação entre dois ou vários

elementos, poderia ser considerado como o último (o mais recente) problema filosófico do Ocidente...

Page 85: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

84

Capítulo 4. As sociedades de controle.

Apresentação

Neste capítulo, procuraremos analisar a noção deleuziana de “sociedades de

controle”, inspirada na obra de Burroughs. Neste sentido, o presente capítulo tem por

objetivo a exposição da noção de sociedades de controle desenvolvida por Gilles

Deleuze, tomando como modelo paradigmático o pensamento do controle enunciado

inicialmente por Burroughs. Desse modo, buscaremos apontar para alguns dispositivos

que parecem indicar que já nos encontramos em uma sociedade cujos mecanismos de

controle estão cada vez mais disseminados, todos remetendo a mais alta perfeição da

dominação.

“O doutor Benway fora nomeado conselheiro da República de

Liberlândia, uma terra dedicada ao amor livre e aos banhos

constantes. Seus cidadãos são bem ajustados, cooperativos,

honestos, tolerantes e, acima de tudo, limpos. Mas a convocação

de Benway sinaliza que nem tudo vai bem por trás dessa fachada

higiênica: Benway é um manipulador, um coordenador de

sistemas simbólicos, um especialista em todas as etapas de

interrogatórios, lavagens cerebrais e formas de controle. Eu não

falava com Benway desde sua saída precipitada de Anéxia, onde

estivera encarregado do processo de D. T. (Desmoralização

Total). Lembro que o primeiro ato de Benway foi abolir os campos

de concentração, as prisões em massa e, exceto em circunstâncias

delimitadas e especiais, o uso de tortura.” – Almoço Nu.

Deleuze desenvolveu, num post-scriptum intitulado “Sobre as sociedades de

controle”, do ano de 1990, uma noção que traduz com perfeição o pensamento do

controle enunciado inicialmente por Burroughs, ponto culminante de sua obra: a noção

de “sociedades de controle”. Sociedade de controle foi o termo desenvolvido por

Deleuze para caracterizar o tipo de sociedade que emergiu após a Segunda Guerra

Mundial. O totalitarismo desapareceria dando lugar a novos modos de dominação e,

segundo Deleuze, “(...) em favor de novas forças que se instalavam lentamente e que se

precipitariam depois da Segunda Guerra mundial: sociedades disciplinares é o que já

não éramos mais, o que deixávamos de ser”.209

Deleuze propõe uma nova organização

social, para além da sociedade disciplinar, que implica em várias considerações

conceituais.

209

DELEUZE, 1992, p. 219-220.

Page 86: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

85

Nesse artigo, Deleuze explica que Michel Foucault, anteriormente, analisara

dois tipos de sociedade: as sociedades de soberania e as sociedades disciplinares.210

O trânsito da sociedade de soberania para a sociedade disciplinar, segundo Foucault,

teria sido operado pelo Império de Napoleão. As sociedades de disciplina, ainda

segundo as análises de Foucault, definiam-se pela formação de grandes meios de

confinamento: prisões, escolas, fábricas, hospitais, etc. Mas, ao que tudo indica,

Foucault jamais pensara que as sociedades de disciplina fossem durar para sempre. Ao

contrário, ele pensava que entraríamos num outro tipo de sociedade. Numa conferência

pronunciada no Japão, por exemplo, Foucault se refere a uma crise das sociedades

disciplinares, mas não chega a formular nenhuma hipótese sobre o futuro. Diz Foucault:

A disciplina, que era eficaz para manter o poder, perdeu uma parte de

sua eficácia. Nos países industrializados, as disciplinas entram em

crise. (...) Nesses últimos anos, a sociedade mudou e os indivíduos

também; eles são cada vez mais diversos, diferentes e independentes.

Há cada vez mais categorias de pessoas que não estão submetidas à

disciplina, de tal forma que somos obrigados a pensar o

desenvolvimento de uma sociedade sem disciplina. A classe dirigente

continua impregnada da antiga técnica. Mas é evidente que devemos

nos separar, no futuro, da sociedade de disciplina de hoje.211

Na verdade, Foucault considerava que o poder exercido pelas instituições

disciplinares não se limitava apenas ao interior de seus edifícios, mas possuía uma certa

tendência a se “desinstitucionalizar”, a se dissolver no campo social, convertendo-se em

processos flexíveis de controle:

(...) enquanto por um lado os estabelecimentos de disciplina se

multiplicam, seus mecanismos têm uma certa tendência a se

desinstitucionalizar, a sair das fortalezas fechadas onde funcionavam e

a circular em estado “livre”; as disciplinas maciças e compactas se

decompõem em processos flexíveis de controle, que se pode transferir

e adaptar.212

Entendido desse modo, os mecanismos disciplinares se difundiriam em

todas as direções, como uma função contínua e livre, ou seja, independente dos meios

de confinamento e da presença física de uma autoridade disciplinar. (Neste sentido, as

210

Em outra parte, mais exatamente em seu livro sobre Foucault, Deleuze dirá: “Vigiar e Punir analisa o

diagrama disciplinar como sendo o que substitui os efeitos da antiga soberania por um enquadramento

imanente ao campo social. (...) Nossas sociedades disciplinares passam por categorias de poder (ações

sobre as ações) que podem ser definidas assim: impor uma tarefa qualquer ou produzir um efeito útil,

controlar uma população qualquer ou gerir a vida. Mas as antigas sociedades de soberania se definiam por

outras categorias igualmente diagramáticas: confiscar (ação de se apropriar de ações ou produtos, força de

confiscar forças) e decidir a morte („causar a morte ou deixar viver‟, o que é bem diferente de gerir a

vida)” (DELEUZE, 2006b, p. 91). 211

FOUCAULT, 2006, p. 268. 212

FOUCAULT, 2009, p. 199.

Page 87: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

86

sociedades de controle talvez pudessem ser entendidas como uma função derivada da

sociedade industrial com seu anonimato de gestão e desaparecimento do poder

pessoal.213

) Neste ponto, torna-se quase impossível acertar a localização pontual dos

mecanismos disciplinares, dissolvidos em todo o campo social, enquanto uma função

(de relação) contínua e livre. Instala-se uma espécie de experiência “incorpórea” do

poder disciplinar, um tipo de prisão que não se pode ver nem tocar, que remete a uma

forma de exterioridade.

A prisão enquanto segmentaridade rígida (celular) remete a uma

função flexível e móvel, a uma circulação controlada, a toda uma rede

que atravessa também os meios livres e pode aprender a sobreviver

sem a prisão. Parece um pouco com a “prorrogação indefinida” de

Kafka, que já não necessita de detenção nem de condenação.214

Neste sentido, Deleuze parece propor uma extensão dos mecanismos

disciplinares para além dos próprios meios de confinamento, ou seja, uma espécie de

sublime desenvolvimento do poder disciplinar chegado ao ponto de prescindir dos

próprios estabelecimentos de disciplina. Consciente dessa mutação, Deleuze proporá a

noção de sociedades de controle enquanto uma espécie de desdobramento das

sociedades disciplinares, isto é, como uma função derivada das sociedades disciplinares.

Assim, o procedimento de Deleuze consistiu em acrescentar às sociedades de soberania

e de disciplina, analisadas anteriormente por Foucault, uma terceira sociedade, as

sociedades de controle, termo que ele toma emprestado da obra de Burroughs.

“São as sociedades de controle que estão substituindo as sociedades disciplinares.

„Controle‟ é o nome que Burroughs propõe para designar o novo monstro, e que

Foucault reconhece como nosso futuro próximo”.215

Segundo Deleuze, foi Burroughs

quem começou a análise dessa situação, descrevendo a passagem das sociedades

disciplinares para as sociedades de controle. Como veremos a seguir, o livro de

Burroughs está repleto de indicações nesse sentido, sobretudo as chamadas formas de

controle ao ar livre. Todavia, antes de avançarmos na análise de tais trechos, convém

respondermos às seguintes questões: como estão organizadas essas duas sociedades,

quais são as suas principais características? Nas sociedades disciplinares, segundo

Deleuze, eram destacados os aspectos institucionais, nos quais “o indivíduo não cessa

213

A propósito, eis o que dizem Deleuze & Guattari, invocando Freud: “De acordo com uma sugestão de

Freud, a sociedade americana, a sociedade industrial com anonimato de gestão e desaparecimento do

poder pessoal, etc., nos é apresentada como um ressurgimento da „sociedade sem pais‟”. (DELEUZE e

GUATTARI, 2004, p. 84). 214

DELEUZE, 2006b, p. 52. 215

DELEUZE, 1992, p. 220.

Page 88: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

87

de passar de um espaço fechado a outro, cada um com suas leis: primeiro a família,

depois a escola, depois a caserna, depois a fábrica, de vez em quando o hospital,

eventualmente a prisão, que é o meio de confinamento por excelência”.216

Porém, nas

sociedades de controle é levada a cabo a demolição desses limites institucionais, e a

vida passa a ser organizada no campo social; a lógica das instituições não se encontrará

mais restrita apenas a seu interior, mas se dissolverá na vida social. Neste sentido, pode-

se afirmar que a sociedade disciplinar tinha como clara desvantagem o fato de não lidar

com o indivíduo no próprio campo social, mas apenas dentro dos espaços fechados das

instituições, com seus regulamentos internos, numa população pouco numerosa, num

espaço limitado ou pouco extenso. Com as sociedades de controle, os dispositivos de

captura passavam a funcionar de acordo com uma nova dinâmica: os indivíduos passam

a ser controlados num espaço extenso ou aberto. Curiosamente, nas sociedades de

controle os processos de subjetivação também não estão mais relacionados com alguma

prática institucional, ou seja, o sujeito foi destituído das antigas referências que

moldavam os processos de subjetivação: a linearidade dos processos de subjetivação na

modernidade parece ter sido substituída por uma pluralidade de elementos que integram

a subjetividade. A herança transcendental do sujeito universal kantiano, capaz de ser o

centro das certezas e verdades do mundo, é completamente abandonada. Em seu lugar,

surge um sujeito modulado, marcado pela indeterminação, sem posição no mundo,

como o sujeito das incertezas e da insegurança em relação ao mundo e a si mesmo.

(Acreditamos que este elemento de indeterminação se prende àquilo que denominamos

anteriormente como a perda das identidades discerníveis).

Em todo o caso, a disciplina do controle não se restringe mais aos espaços

disciplinares, mas submete os indivíduos a uma vigilância generalizada; formas de

controle ao ar livre substituem as antigas disciplinas que operavam na duração de um

sistema fechado. De certo modo, os mecanismos de controle são mais sutis porque não

são meramente “mecânicos” e, portanto, não atuam diretamente sobre o corpo do

indivíduo. Mas isso não que dizer que a disciplina do controle não tenha o objetivo de

atingir esses indivíduos, apenas utiliza-se de mecanismos mais sutis e amenos para

atingir esse fim. Foi talvez pensando nisso que Deleuze afirma que essas novas forças

que emergiram com o fim da Segunda Guerra “passaram a integrar mecanismos de

controle que rivalizam com os mais duros confinamentos”.217

Esses mecanismos não

216

DELEUZE, 1992, p. 219. 217

DELEUZE, 1992, p. 220.

Page 89: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

88

operam mais através de sistemas fechados, como aqueles operados num campo de

concentração, numa prisão ou numa fábrica. Mas o novo regime não é por isso mais

suave; é como se o sistema do terror substituísse o da crueldade. “Face às formas

próximas de um controle incessante em meio aberto, é possível que os confinamentos

mais duros nos pareçam pertencer a um passado delicioso e benevolente”.218

Neste ponto, busquemos comparar as análises de Deleuze sobre as

sociedades de controle com os modelos burroughsianos de controle social, sobretudo no

que tange ao predomínio dos espaços abertos, as formas de controle ao ar livre.

Acreditarmos ser essa a primeira característica importante das sociedades de controle,

característica esta apresentada inicialmente por Burroughs. Como a Cidade de Anéxia...

“Todo cidadão de Anéxia era obrigado a solicitar do governo uma pasta abarrotada de

documentos, que deveria carregar sempre consigo. Os cidadãos estavam sujeitos a

serem detidos na rua a qualquer momento”.219

A cidade foi organizada de modo a

manter seus habitantes sob vigilância constante; foram suprimidos todos os espaços de

convivência, como praças e parques: “Removeram-se todos os bancos das praças da

cidade, as fontes foram desativadas e as flores e árvores foram todas destruídas”.220

Imensas sirenes elétricas instaladas no topo de cada edifício de

apartamentos (todos viviam em apartamentos) soavam a cada quarto

de hora. Tamanha vibração costumava atirar as pessoas para fora da

cama. Holofotes passavam a noite inteira esquadrinhando a cidade

(ninguém tinha permissão para usar persianas, cortinas, venezianas e

reposteiros).221

E ainda:

Nenhuma pessoa olhava para a outra, por medo de infringir alguma

das leis rígidas que proibiam importunar qualquer indivíduo,

verbalmente ou não, não importava por qual motivo, fosse sexual ou

de qualquer natureza. Todos os cafés e bares foram fechados.222

Também não eram permitidas trancas nas portas: “Ninguém tinha permissão

para colocar ferrolhos nas portas e a polícia tinha chaves mestras capazes de abrir todos

os cômodos da cidade”.223

Agentes policiais invadiam de forma repentina os

apartamentos em busca de qualquer coisa suspeita, acompanhados de seres telepatas que

tinham como tarefa guiar “os policias até qualquer coisa que o indivíduo estivesse

218

DELEUZE, 1992, p. 216. 219

BURROUGHS, 2005a, p. 30. 220

BURROUGHS, 2005a, p. 31. 221

BURROUGHS, 2005a, p. 31. 222

BURROUGHS, 2005a, p. 31. 223

BURROUGHS, 2005a, p. 32.

Page 90: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

89

tentando esconder: um tubo de vaselina, um enema, um lenço sujo de esperma, uma

arma ou bebidas alcoólicas ilegais”.224

Segundo o narrador, apenas algum tempo

vivendo sob essas condições era “suficiente para que os cidadãos começassem a se

esgueirar pelos cantos, como se fossem gatos”.225

Em todos estes trechos, como foi possível observar, Burroughs descreve

sobretudo o declínio das disciplinas, ou seja, o desaparecimento dos grandes meios de

confinamento característicos das sociedades disciplinares, ao mesmo tempo em que

fornece a primeira característica importante das sociedades de controle: as formas de

controle ao ar livre. Na verdade, o livro de Burroughs ainda está na fronteira, na

articulação das duas sociedades, a disciplinar e de controle, e, como diz Deleuze,

Burroughs foi um dos primeiros a tomar consciência dessa mudança de paradigma

histórico. Neste sentido, é evidente que algumas das características aventadas por

Burroughs se aproximam ainda das sociedades disciplinares descritas por Foucault,

sobretudo o esquema do Panóptico, cuja essência reside na centralidade da situação da

inspeção, ou na construção de uma espécie de “inspetor geral”, onipotente, onipresente

e onividente, o que daria margem a um mundo de paranóia e insegurança.226

Todo o

Panóptico, em realidade, é estruturado como uma ficção, pois é precisamente a aparente

onipresença do inspetor que sustenta a disciplina do Panóptico, ao controlar todos os

movimentos dos internos. E é neste sentido, portanto, que se pode dizer que os modelos

burroughsianos de controle social se aproximam ainda das descrições de Foucault sobre

as sociedades disciplinares; a diferença talvez se encontre no privilégio dado por

Burroughs aos espaços extensos ou abertos, bem como ao clima geral de paranóia,

resultantes do declínio das disciplinas...

Por também prescindir de violência direta contra seus cidadãos, a cidade de

Liberlândia é outra representação burroughsiana desse modelo de controle civil, “uma

terra dedicada ao amor livre e aos banhos constantes. Seus cidadãos são bem ajustados,

224

BURROUGHS, 2005a, p. 32. 225

BURROUGHS, 2005a, p. 32. 226

“O Panóptico (...) tem seu princípio não tanto numa pessoa quanto numa certa distribuição concertada

dos corpos, das superfícies, das luzes, dos olhares: numa aparelhagem cujos mecanismos internos

produzem a relação na qual se encontram presos os indivíduos. As cerimônias, os rituais, as marcas pelas

quais se manifesta no soberano o mais-poder são inúteis. (...) Pouco importa, consequentemente, quem

exerce o poder. Um indivíduo qualquer, quase tomado ao acaso, pode fazer funcionar a máquina: na falta

do diretor, sua família, os que o cercam, seus amigos, suas visitas, até seus criados. (...) Quanto mais

numerosos esses observadores anônimos e passageiros, tanto mais aumentam para o prisioneiro o risco de

ser surpreendido e a consciência inquieta de ser observado. O Panóptico é uma máquina maravilhosa que,

a partir dos desejos mais diversos, fabrica efeitos homogêneos de poder” (FOUCAULT, 2009, p. 191-

192).

Page 91: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

90

cooperativos, honestos, tolerantes e, acima de tudo, limpos”.227

Pela sua própria

natureza benevolente, esse tipo de sociedade, fundada sobre o conceito de bem-estar

social, suprime qualquer ato de rebeldia, exatamente como Liberlândia: “Liberlândia era

um estado de bem estar social. Se um cidadão desejasse qualquer coisa, de osso moído a

um parceiro sexual, encontraria alguma repartição pronta a lhe prestar auxílio. Essa

benevolência trazia consigo certa ameaça explícita que sufocava o conceito de

revolta...”.228

Os dois modelos burroughsianos de controle social possuem, sem dúvida,

parentesco com as formas de organização e controle social analisadas por Deleuze, em

especial no predomínio dos espaços abertos, as formas de controle ao ar livre.

Neste ponto, porém, termina qualquer relação possível entre Burroughs e

Deleuze, sobretudo no que tange à outra característica importante das sociedades de

controle, conforme desenvolvida por Deleuze: a idéia de comunicação, pois, para

Deleuze, a sociedade de controle é também a sociedade da comunicação.

A comunicação instantânea seria, portanto, esta outra característica

importante das sociedades de controle, característica esta que nos leva a acreditar que já

nos encontramos em uma sociedade cujos mecanismos de controle estão cada vez mais

disseminados: a sociedade de controle é a sociedade da comunicação. Sem dúvida, a

comunicabilidade e a produção de informação passaram a constituir as formas de

trabalho e das relações sociais. Atingimos a capacidade de transmitir para qualquer

parte do planeta, por meio digital, qualquer informação ou acontecimento em “tempo

real”. Segundo Deleuze, “é fácil fazer corresponder a cada sociedade certos tipos de

máquina, não porque as máquinas sejam determinantes, mas porque elas exprimem as

formas sócias capazes de lhes darem nascimento e utilizá-las”.229

Nas antigas

sociedades de soberania, explica Deleuze, manejavam-se máquinas simples como

alavancas, roldanas, relógios; nas sociedades disciplinares as máquinas correspondentes

à disciplina eram energéticas, e operadas por meios mecânicos; às sociedades de

controle correspondem as máquinas de informática. Instaura-se a relação do homem

com a cibernética, com máquinas que produzem e transmitem informação, isto é,

computadores. “As sociedades de controle operam por máquinas de uma terceira

espécie, máquinas de informática e computadores, cujo perigo passivo é a interferência,

e o ativo, a pirataria e a introdução de vírus. Não é uma evolução tecnológica sem ser,

227

BURROUGHS, 2005a, p. 29. 228

BURROUGHS, 2005a, p. 193. 229

DELEUZE, 1992, p. 223.

Page 92: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

91

mais profundamente, uma mutação do capitalismo”.230

Busquemos, neste sentido, citar

alguns exemplos dessa transformação, em especial os ligados à chamada “comunicação

instantânea”.

Em se tratando de meios de comunicação, a televisão, é bem verdade, com

suas incontáveis séries policiais televisivas, elas próprias formas de controle social – o

que acaba por revelar a natureza ubíqua da televisão – apontava já nessa direção. Mas,

é claro, isso tudo é incrivelmente primitivo se comparado às maravilhas da tecnologia

de computadores por volta do ano 2000, em especial à Internet, uma criação que

promete controle social numa escala com que os grandes tiranos do século XX nem

sequer sonhavam.231

Recordemos ainda, nesse sentido, as inúmeras novidades

tecnológicas que surgem a cada dia. Podemos citar como exemplos a proliferação das

câmeras de vídeo de “segurança” e dos transponders232

, bem como de todos os meios

capazes de registro e monitoramento, tais como celulares, cartões magnéticos, correias

eletrônicas, etc.233

Todas essas indicações nos levam a acreditar que já nos encontramos

em uma sociedade cujos mecanismos de controle ao ar livre estão cada vez mais

disseminados, todos remetendo a mais alta perfeição da dominação.

Portanto, das sociedades disciplinares à de controle passamos do

confinamento ao “controle contínuo e comunicação instantânea”, os quais permitem que

se exerça uma ação sobre os indivíduos que prescinda dos muros que os mantinha

confinados (a fábrica, a escola, a prisão) bem como da existência física de uma

autoridade disciplinar (o patrão, o professor, o inspetor). A antiga disciplina, que

operava na duração de um sistema fechado, é substituída neste ponto por formas de

controle ao ar livre – uma disciplina do controle independente, capaz de ultrapassar

todos os limites e fronteiras, surpreendentemente amena, como uma força invisível,

vislumbres de uma nova ordem... Como bem observa o Dr. Benway: “O futuro é nosso.

É claro que usaremos algumas partes da máquina de Paul durante o período de transição

230

DELEUZE, 1992, p. 223. 231

Nestes novos tempos, a ação direta acontecerá principalmente na Internet (a exemplo de Julian

Assange, LulzSec, Anonymous, etc.)? Na verdade, com a importância da web nos dias que correm, todos

os movimentos deverão estar na vanguarda da cultura da Internet. 232

Os transponders são um misto de chip e antena, do tamanho de um grão de arroz, capaz de transmitir

informações contidas nesse chip para qualquer outro banco de dados. Pode-se utilizar um transponder em

qualquer coisa que se queira monitorar: corpos, mercadorias, documentos, carros, etc. 233

Neste sentido, vale recordarmos o sistema de monitoramento eletrônico de pessoas condenadas por

crimes de pequeno potencial adotado em vários países do mundo, inclusive pelo Brasil. O monitoramento

é realizado por meio de tornozeleiras ou pulseiras eletrônicas capazes de acertar a localização pontual da

pessoa que se quer monitorar.

Page 93: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

92

durante o qual a Polícia que conhecemos ainda será necessária... Um período

relativamente elástico, é claro”.234

Um futuro mais ou menos próximo? Onde cada “alma” é conhecida

(biometria)? Onde não há nenhum esconderijo, como uma “estrutura” capaz de envolver

todas as entidades (humanas ou não)? Em todo o caso, esta é uma época que já se inicia,

em que as forças do homem se combinam com as forças da informação ou do silício

(computadores), atestando assim a futura forma do controle...235

Estaria livre da Polícia dali em diante... (...) Do outro lado do espelho

do mundo, rumo ao passado na companhia de Hauser e O‟Brien...

agarrado a um ainda-não de Burocracias Telepáticas, Monopólios

Temporais, Drogas Controladas e Viciados em Fluído Pesado (...).236

234

BURROUGHS, 2005a, p. 319. 235

Deleuze fornece algumas indicações neste sentido, como se pode depreender, por exemplo, de

determinados trechos de Foucault nos quais ele procura definir a forma do controle: “O homem é uma

figura de areia entre uma maré vazante e outra montante – isso deve ser entendido literalmente: ele é uma

composição que só aparece entre duas outras, a de um passado clássico que a ignorava, a de um futuro

que não a conhecerá mais. Não cabe mais alegria, nem choro. Não se diz, corretamente, que as forças do

homem já entraram em relação com outras forças, as da informação, que compõem com elas uma coisa

diferente do homem, sistemas indivisíveis „homem-máquina‟, com as máquinas de terceira geração? Uma

união com o silício, mais do que com o carbono?” (DELEUZE, 2006b, p. 95-96). 236

BURROUGHS, 2005a, p. 223.

Page 94: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

93

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O livro de Burroughs se instala no cruzamento de uma grande tradição

literária cujo tema principal é o controle, ao descrever as formas de dominação mais

temíveis – todo um mundo de possibilidades formais correspondente à experiência

histórica na qual o problema da dominação veio a ocupar um lugar de destaque nas

produções literárias do século XX, a exemplo de Kafka, Orwell e Pynchon. Do mesmo

modo, o livro de Burroughs também está inserido na melhor tradição da literatura

americana, de Melville a Whitman passando por Kerouac, Miller e Ginsberg. Neste

sentido, poder-se-ia dizer que as estéticas e temáticas de Almoço Nu não são de todo

peculiares; ao contrário, elas fazem parte de uma longa e venerável tradição literária.

Peculiar, porém, é o talento de Burroughs como escritor em juntar e articular inúmeros

registros narrativos, formando um amálgama de linguagens e estilos absolutamente

heterogêneos, uma autêntica arte do contraponto narrativo. Pode-se mesmo dizer que

esta é uma das principais características da obra de Burroughs, uma narrativa indiferente

a todo e qualquer tipo de suporte ou unidade configuradora, que funciona como puro

processo de experimentação, desfazendo a unidade, a sistemática, como expressão e

símbolo, cedendo lugar à ideia de multiplicidade, cujo significado não reside numa

espécie de unidade do mundo, mas em afirmar a infinita diversidade de perspectivas,

um sem número de interpretações, uma narrativa em que se manifesta a experiência de

uma percepção fragmentada, determinada pelo entrecruzamento de inúmeras

perspectivas, uma obra que se realiza a cada vez com um novo sentido, como arte da

multiplicidade.

Na verdade, o que pretendíamos com esse trabalho era apontar para a

mudança no estatuto da arte no século XX, especialmente a literatura norte-americana

produzida no pós-guerra, mais ou menos semelhante à mudança de estatuto ocorrida na

História da Filosofia, na passagem do problema do conhecimento ao problema do valor.

Muito mais do que uma simples analogia entre o estatuto do romance e a História da

Filosofia, o que ocorre aqui de fato é uma mudança no centro de gravidade do

pensamento, e que parece se manifestar tanto na Arte como na Filosofia. Pois o que

mudou é a possibilidade de se explicar a arte a partir de uma determinada forma de arte,

de um determinado tipo de arte fundada sobre uma espécie de ideal de forma, enquanto

instância última de contato com uma totalidade. Em outras palavras: com o fim deste

paradigma estético, como instância última de contato com uma totalidade, a arte se

Page 95: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

94

convertera numa instância primeira de contato com uma realidade, com uma totalidade,

cada vez mais fragmentada. Assim, o significado desta “nova” arte não reside mais

numa espécie de unidade do mundo, mas sim em afirmar a infinita diversidade de

perspectivas, um sem número de interpretações, ao desenvolver suas séries permutantes

e suas estruturas circulares, indicando assim um caminho que conduz ao abandono da

representação totalizante (sua configuração não tende mais para uma forma unitária,

mas é suscetível de uma multiplicidade ilimitada237

).

De qualquer modo, o que parece ter mudado em definitivo é o fato da

narração não estar mais compreendida no romance, ou seja, o romance deixou de ser

narrativo ao abandonar o esquema sensório-motor, o acontecer físico em séries de causa

e efeito. Assim, o romance abandonou definitivamente a ideia de sucessão, já que a

sucessão existe desde o início como lei da causalidade. Evidentemente a narração

continua presente no romance, mas não será mais a narração que contará, ela está ali

somente a título de índice. Pois o novo romance não se confunde mais com o que se

passa no tempo, porquanto não está colocado mais do lado da sucessão, mas está

construído sobre novas formas de coexistência, como a colocação em série, a

permutação, etc. E neste sentido o romance encontrou uma nova linguagem literária,

composta de situações e personagens essencialmente problemáticos, questionantes.238

Neste ponto, cabe mencionarmos uma vez mais os célebres estudos de Robbe-Grillet

sobre o “novo romance”, os quais buscavam justamente esclarecer às novas relações

que se constituíram entre o homem e o mundo e de como o romance desta nova época,

em contraposição à antiga configuração romanesca, apreendia a realidade circundante.

Diz Robbe-Grillet:

A narrativa, tal como a concebem nossos críticos acadêmicos (...)

representa uma ordem. Esta ordem, que com efeito pode ser

qualificada de natural, está ligada a todo um sistema, racionalista e

237

Segundo Deleuze & Guattari, esta condição diz respeito à própria compreensão numérica ocidental,

isto é, dos números tornados função, variáveis em vez de grandezas, correspondendo, portanto, à

passagem do número como grandeza para o número entendido como função: “Acontece que o número

deixou de ser um conceito universal que mede os elementos segundo seu lugar numa dimensão qualquer,

para tornar-se ele próprio uma multiplicidade variável segundo as dimensões consideradas (primado do

domínio sobre um complexo de números ligado a este domínio). Nós não temos unidades de medida, mas

somente multiplicidades ou variedades de medida” (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p. 17). 238

“Que o romance, notadamente depois de Joyce, tenha encontrado uma nova linguagem do tipo

„Questionário‟ ou „Inquisitório‟, que ele tenha apresentado acontecimentos e personagens essencialmente

problemáticos não significa, evidentemente, que não se esteja seguro de nada; não é, evidentemente, a

aplicação de um método de dúvida generalizada, não é o signo de um ceticismo moderno, mas, ao

contrário, a descoberta do problemático e da questão como horizonte transcendental, como foco

transcendental que pertence de maneira „essencial‟ aos seres, às coisas, aos acontecimentos” (DELEUZE,

1988, p. 276).

Page 96: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

95

organizador, cujo desabrochar corresponde à tomada do poder pela

classe burguesa. Nesta primeira metade do século XIX, que viu o

apogeu – com a Comédia Humana – de uma forma narrativa, em

relação à qual se compreende porque ela continua a ser para muitos

algo como um paraíso perdido do romance, algumas certezas

importantes estavam em circulação: em particular, a confiança numa

lógica justa e universal das coisas. Todos os elementos técnicos da

narrativa – emprego sistemático do passado perfeito e da terceira

pessoa do singular, adoção incondicional do desenrolar cronológico,

intrigas lineares, curva regular das paixões, tensão de cada episódio na

direção de um fim, etc. – tudo objetivava impor a imagem de um

universo estável, coerente, contínuo, unívoco, inteiramente decifrável.

Como a inteligibilidade do mundo não estava nem mesmo em questão,

contar não apresentava problema algum. Mas eis que, a partir de

Flaubert, tudo começa a vacilar, o sistema inteiro não é mais do que

uma lembrança (...). No entanto, basta ler os grandes romances do

começo de nosso século para constatar que, se a desintegração da

intriga não fez mais do que tornar-se nítida no decorrer dos últimos

anos, há muito tempo ela já tinha deixado de constituir o arcabouço da

narrativa. (...) Contar tornou-se literalmente impossível.239

Mas se, por um lado, narrar tornou-se impossível, se a narrativa se esvaiu

completamente, por outro lado, ela é levada ao seu limite, ao ponto de se converter

numa espécie de “estudo” comparativo de determinados grupos de acontecimentos. No

caso do livro de Burroughs, estes acontecimentos, como pudemos ver, estão ligados, em

sua maioria, ao problema do vício, ao reunir todas as figuras possíveis sobre este, a mais

completa possível (vício em drogas, sexo, dinheiro, poder, etc.), como uma vasta curva

de probabilidades nascida do cruzamento entre diversas “linhas”. É neste sentido,

portanto, que o romance contemporâneo deixou de ser narrativo e se elevou à categoria

de questão (a questão enquanto horizonte transcendental), tornando-se problemático.

Como diz Deleuze: “É a descoberta romanesca da Ideia (...)”.240

239

ROBBE-GRILLET, 1969, p. 25. 240

DELEUZE, 1988, p. 276. Ou então: “(...) quando muitos romancistas modernos instalam-se nesse

ponto aleatório, nessa „mancha negra‟, imperativa, questionante, a partir da qual a obra se desenvolve

como problema, fazendo ressoar suas séries divergentes (...) eles fazem da obra um aprender ou uma

experimentação e, ao mesmo tempo, algo de total a cada vez, em que todo o acaso encontra-se afirmado

em cada caso, cada vez renovável, sem que talvez nunca subsista um arbitrário” (DELEUZE, 1988, p.

281).

Page 97: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

96

ANEXO: DADOS BIOGRÁFICOS DE WILLIAM SEWARD BURROUGHS, DO

NASCIMENTO ATÉ O ANO DA PUBLICAÇÃO DE “ALMOÇO NU” (1959).

No ano em que os preparativos da Primeira Grande Guerra sacudiam a

Europa, nasce William Seward Burroughs, a 5 de fevereiro de 1914, em Saint Louis, no

Missouri (EUA). Sua família, de ascendência inglesa e protestante, era conhecida nos

“lares americanos, devido às invenções e negócios de seus antepassados do século

XIX”.241

Seu avô, por exemplo, foi o inventor de um mecanismo para a ativação de

calculadoras, patenteado mais tarde. Recebeu boa educação, ao que tudo indica, em uma

escola particular. Na adolescência, leu “mais do que o normal para um garoto americano

do mesmo lugar e época: Oscar Wilde, Anatole France, Baudelaire, até Gide”.242

Acabou indo estudar literatura inglesa em Harvard, segundo Burroughs, “por falta de

interesse em qualquer outra matéria”.243

Também veio a estudar antropologia em

Harvard, “especializando-se em arqueologia asteca e maia”.244

Depois de formado,

passou a receber uma pensão de cento e cinqüenta dólares, fornecida pelo Estado.

Segundo Burroughs, “era a época da Depressão e não havia empregos, mas de qualquer

maneira, não conseguia pensar em nenhum emprego que eu quisesse”.245

Acabou indo

para a Europa e, na Áustria, cursou medicina por um ano. “Dólares americanos podiam

comprar uma boa porcentagem dos habitantes da Áustria, masculinos ou femininos. Isso

foi em 1936; os nazistas estavam rapidamente fechando o cerco”.246

Nesta época, suas

leituras prediletas consistiam de Pareto e Spengler, Opium, de Jean Cocteau, Baudelaire,

Shakespeare e A Vision, de W.B. Yeats. De volta aos Estados Unidos, passou o tempo

livre entre cursos de psicologia e aulas de jiu-jítsu. Foi recrutado pelo Exército, mas

acabou dispensado pouco tempo depois, com a seguinte observação: “Este homem não

deverá ser chamado ou recrutado novamente”.247

Em seguida, trabalhou em diversos

empregos, como detetive particular, operário, barman, exterminador de insetos, etc. Em

1943, trava amizade com Jack Kerouac e Allen Ginsberg. Neste sentido, pode-se

mencionar ainda o casamento consensual, iniciado no fim dos anos 1940, com Joan

Vollmer, que terminou de modo trágico na Cidade do México, em setembro de 1950,

241

BURROUGHS, 2005b, p. 256. 242

BURROUGHS, 2005b, p. 51. 243

BURROUGHS, 2005b, p. 52. 244

BURROUGHS, 2005b, p. 258. 245

BURROUGHS, 2005b, p. 52. 246

BURROUGHS, 2005b, p. 52. 247

BURROUGHS, 2005b, p. 53.

Page 98: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

97

“num incidente relacionado ao consumo de álcool”.248

No fim, Burroughs acabou sendo

condenado a absintia, mas foi absolvido com a ajuda de seu advogado. Assume sua

homossexualidade e, num ato de exorcismo, se dedica à escrita. Burroughs tem, nessa

época, por volta de trinta e oito anos de idade. Em 1953, publica seu primeiro romance,

intitulado Junky, com o pseudônimo de William Lee. Como está previsto no fim do

romance, Burroughs parte para o Alto Amazonas em busca do yagê, mais tarde

convertido em um romance epistolar publicado posteriormente, no ano de 1963, com o

título de Cartas do Yagê. Em Tânger, no ano de 1959, Burroughs publica seu romance

Almoço Nu...

248

BURROUGHS, 2005b, p. 259.

Page 99: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

98

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo:

Unesp/Hucitec, 1993.

BLANCHOT, M. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

BOLAÑO, R. 2666. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

BRADBURY, M. e MCFARLANE, J. Modernismo: guia geral 1890-1930. São Paulo:

Companhia das Letras, 1989.

BRADBURY, M. e TEMPERLEY, H. Introdução aos estudos americanos. Rio de

Janeiro: Forense Universitária, 1981.

BURROUGHS, W. Almoço Nu. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005a.

_______________. Junky. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005b.

_______________. Naked Lunch. London: Flamingo Modern Classic, 1993.

_______________. Os escritores: as históricas entrevistas da Paris Review. São Paulo:

Companhia das Letras, 1988. p. 131-158.

_______________. A revolução eletrônica. Lisboa: Ed. Veja, 1994.

_______________. The third mind. Nova York: Viking, 1978.

BURROUGHS, W e KEROUAC, J. E os hipopótamos foram cozidos em seus tanques.

São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

DELEUZE, G. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

____________. A dobra: Leibniz e o barroco. Campinas: Papirus, 1991.

____________. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

____________. Clínica e Crítica. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997.

____________. Diálogos. Lisboa: Relógio d‟Água, 2004.

____________. A ilha deserta. São Paulo: Editora Iluminuras, 2006a.

____________. Foucault. São Paulo: Editora Brasiliense, 2006b.

____________. Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva, 2007.

DELEUZE, G e GUATTARI, F. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

_________________________. Kafka, para uma literatura menor. Lisboa: Assírio &

Alvim, 2003.

_________________________. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 1. São

Paulo: Ed. 34, 1995.

_________________________. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia I. Lisboa:

Assírio & Alvim, 2004.

Page 100: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

99

FREUD, S. Obras completas de Sigmund Freud. Madrid: Biblioteca Nueva, 1996.

FOUCAULT, M. A Sociedade Disciplinar em Crise (conferência em Quioto, Japão). In:

Ditos e Escritos IV: Estratégia, Poder-Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária,

2006.

_____________. Vigiar e Punir. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.

_____________. Raymond Roussel. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.

GINSBERG, A. Uivo e outros Poemas. Porto Alegre: L&PM, 1999.

HARRIS, O e MACFADYEN, I. Naked Lunch@50. Carbondale: Southern Illinois

University Press, 2006.

HAYAKAWA, S. I. O que Significa Estrutura Aristotélica da Linguagem? In:

CAMPOS, Haroldo de (Org.). Ideograma: Lógica, Poesia, Linguagem. São Paulo:

EDUSP, 2000.

HENZ, A. O. Estéticas do esgotamento: extratos para uma política em Beckett e

Deleuze. São Paulo: 2005 (tese de doutorado - PUC).

JENNY, L. A estratégia da forma. Poétique, Coimbra: Almedina, n. 27, 1979.

JUNG, C. G. Aion: estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. Petrópolis: Editora Vozes,

2008.

___________. O livro vermelho. Petrópolis: Editora Vozes, 2010.

__________. Psicologia e alquimia. Petrópolis: Editora Vozes, 2009.

___________. Símbolos da transformação. Petrópolis: Editora Vozes, 1986.

___________. Tipos psicológicos. Petrópolis: Editora Vozes, 1991.

KANT, I. Crítica da razão pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985.

KEROUAC, J. On the Road: o manuscrito original. Porto Alegre: L&PM, 2008.

KEROUAC, J. Visões de Cody. Porto Alegre: L&PM, 2009.

KRAKAUER, J. Na natureza selvagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

LEYLAND, W. Sexualidade & Criação Literária: as entrevistas da Gay Sunshine. Rio

de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.

MAILER, N. Alguns filhos da deusa. In: MOORE, H. T. (Org.). Romancistas

Contemporâneos. São Paulo: Lidador, 1966.

MANSANO, S. R. Sorria, você está sendo controlado: resistência e poder na

sociedade de controle. São Paulo: Editora Summus, 2009.

MILLER, H. Plexus. Rio de Janeiro: Gráfica Record Editora, 1967.

MILES, B. William Burroughs, El Hombre Invisible: a portrait. Nova York: Hyperion,

1993.

Page 101: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE … · de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, ... em termos de método,

100

MIRA, R. e LANGER, S. Burroughs para principiantes. Buenos Aires: Editora

Longseller, 2001.

NIETZSCHE, F. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

_____________. Fragmentos póstumos vol. IV. Madrid: Editorial Tecnos, 2008.

PYNCHON, T. O arco-íris da gravidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

PAULINO JÚNIOR, J. O cut-up em Naked Lunch de William Burroughs: a narrativa

em estilhaços. Assis: 2004 (tese de mestrado - UNESP).

PELBART, P. O tempo não-reconciliado. São Paulo: Perspectiva, 1998.

___________. A vertigem por um fio. Políticas da subjetividade contemporânea. São

Paulo: Iluminuras/FAPESP, 2000.

___________. Vida capital. Ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003.

RAIMUNDO, C. R. N. O conceito de inconsciente no pensamento de Gilles Deleuze e

Félix Guattari e sua relação com a literatura de Henry Miller. In: CARDOSO JÚNIOR,

H. R. (Org.). Inconsciente-multiplicidade: Conceito, problemas e práticas segundo

Deleuze e Guattari. São Paulo: Editora UNESP, 2007.

ROBBE-GRILLET, A. Por um novo romance. São Paulo: Editora Documentos, 1969.

SPENGLER, O. Der Untergang des Abendlandes (Erster Band: Gestalt und

Wirklichkeit). München: C.H. Beck‟sche Verlagsbuchhandlung, 1923.

______________. O homem e a técnica. Lisboa: Guimarães Editores, 1993.

THOREAU, H. D. Walden ou vida nos bosques. São Paulo: Aquariana, 2001.

VOEGELIN, E. Structures of Consciousness. In: The Drama of Humanity and other

miscellaneous papers, 1939-1985. Columbia: University of Missouri Press, 2004.

WHITMAN, W. Folhas de relva. São Paulo: Iluminuras, 2006.

WILLER, C. Geração beat. Porto Alegre: L&PM, 2009.