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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
Dissolução e aleatoriedade: a estética do romance na obra
“Almoço Nu” de William S. Burroughs
Luis Fernando Catelan Encinas
Marília
2011
1
UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
Campus Marília
Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UNESP
DISSOLUÇÃO E ALEATORIEDADE:
A ESTÉTICA DO ROMANCE NA OBRA “ALMOÇO NU” DE WILLIAM
S. BURROUGHS
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação
em Filosofia para obtenção do
título de Mestre em Filosofia.
Área de concentração:
História da Filosofia, Estética.
Discente: Luis Fernando
Catelan Encinas.
Orientadora: Dra. Arlenice
Almeida da Silva.
Marília
2011
2
DISSOLUÇÃO E ALEATORIEDADE:
A ESTÉTICA DO ROMANCE NA OBRA “ALMOÇO NU” DE WILLIAM S.
BURROUGHS.
BANCA EXAMINADORA:
_____________________________________________
Prof.ª Dra. Arlenice Almeida da Silva (UNESP/Marília)
(Presidente e Orientadora)
__________________________________________
Prof. Dr. Celso Fernando Favaretto (USP/São Paulo)
(1º Examinador)
__________________________________________
Prof. Dr. Peter Pál Pelbart (PUC/São Paulo)
(2º Examinador)
3
AGRADECIMENTOS
Assim como meu destino está ligado a outras pessoas, ao encontro com
outras pessoas, este trabalho só foi possível com a ajuda e a participação de algumas
pessoas. Neste sentido, portanto, eu gostaria de agradecer...
À minha família, Mãe, Pai (R.I.P.), Lê, Lauren, etc., pelo suporte.
À Ane Carolina, por tudo o que a gente já viveu junto, e pelo amor.
Aos meus amigos, Paulão Marafão, Fabinho, Mateus, Caled, Paulão Cotia,
Xampu, Gustavo, Rodrigo, Herbert, Thien, etc., pela máxima inspiração.
Aos colegas de Pós-graduação, Tércio Bugano, Raphael Guazzelli,
Fernando Aun, Débora Barbam, Tomás Menk, Márcio Girotti, Cláudia Galassi, Flávia
Quintanilha, pela amizade.
Em especial, à professora Dra. Arlenice A. da Silva, pela paciente e
enriquecedora orientação.
Aos professores Drs. Celso F. Favaretto e Peter P. Pelbart, pela honrosa
oportunidade de tê-los em minha banca.
Ao professor Dr. Ubirajara Rancan de A. Marques, pela sempre “pronto-
generosa” disponibilidade.
À Aline, ao Paulo e à Edna, a todos os secretários da Graduação e da Pós-
graduação em Filosofia, pela gentileza e atenção dispensadas.
Ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da UNESP-Marília, por
proporcionar as condições “objetivas” para a realização deste trabalho.
À CAPES, pelo apoio e financiamento de minha pesquisa.
EU AMO VOCÊS TODOS! SEM VOCÊS ESTE TRABALHO TERIA
SIDO IMPOSSÍVEL!
4
Supondo, por exemplo, que alguém faça uma quantidade de
pontos no papel, totalmente ao acaso (...) eu digo que é possível
encontrar uma linha geométrica cuja noção seja constante e
uniforme segundo uma certa regra, de modo que essa linha passe
por todos os pontos (...). (Leibniz, em “Discurso de Metafísica”)
5
RESUMO:
Como consequência da experiência histórica, as formas de dominação ganharam cada
vez mais espaço na produção literária, até se constituírem num dos principais temas do
romance ao longo de todo o século XX. Vários escritores configuraram esteticamente o
problema do poder, desenvolvendo uma narrativa cujo tema central é a dominação;
dominação essa perpetrada pelos totalitarismos de direita e esquerda. Mas é na obra do
escritor norte-americano William S. Burroughs (1914-1997) que os mecanismos de
dominação ganharão um novo estatuto, em especial na obra Almoço Nu (1959), na qual
aparecem configurados os novos modos de dominação que emergiram a partir da
Segunda Grande Guerra: monopólios, burocracias, estruturas de controle, etc. Outras
características formais, não menos relevantes, acompanham a emergência das novas
temáticas, principalmente os signos de dissolução e aleatoriedade que percorrem o livro
de Burroughs, abolindo em definitivo qualquer exigência de unidade configuradora ao
instaurar uma nova combinação entre forma de expressão e forma de conteúdo. De
qualquer modo, um estudo do romance de Burroughs que leve em consideração todas
essas particularidades exige um aparato conceitual apropriado. Neste sentido, a obra de
Gilles Deleuze (1925-1995) fornece alguns elementos teóricos para a análise de Almoço
Nu, a exemplo da noção de sociedades de controle, retirada da obra de Burroughs.
Assim, o presente estudo busca apreender de que forma o romance Almoço Nu nos
aponta as transformações temáticas e composicionais no romance da segunda metade do
século XX correspondentes à experiência histórica na qual o problema da dominação
veio a ocupar lugar de destaque nas produções literárias.
PALAVRAS-CHAVE: Burroughs; romance contemporâneo; experiência histórica;
Deleuze; estruturas de controle.
6
ABSTRACT:
As a consequence of historical experience, forms of domination have gained more space
in the literary production, even if they constitute one of the main themes of the novel
throughout the twentieth century. Several writers have shaped the aesthetic problem of
power, developing a narrative whose central theme is domination, domination
perpetrated by the totalitarian regimes of right and left. But it is the work of American
writer William S. Burroughs (1914-1997) that the mechanisms of domination will gain
a new status, especially in the work Naked Lunch (1959), in which they appear set new
modes of domination that emerged from the Second World War: monopolies,
bureaucratic structures, control, etc. Other formal features, not less relevant,
accompanying the emergence of new themes, especially the signs of dissolution and
randomness that run through the book of Burroughs, ultimately abolishing any
requirement to establish a unit set up by combining new form of expression and form of
content. In any case, a study of the Burroughs novel that takes into account all these
specific requires a conceptual apparatus appropriate. In this sense, the work of Gilles
Deleuze (1925-1995) provides some theoretical elements for the analysis of Naked
Lunch, like the notion of societies of control, withdrawal from work of Burroughs.
Thus, this study seeks to learn how the novel Naked Lunch points out the thematic and
compositional changes in the novel of the second half of the twentieth century,
corresponding to the historical experience in which the problem of domination came to
occupy a prominent place in literary productions.
KEY-WORDS: Burroughs; contemporary romance; historical experience; Deleuze;
control structures.
7
Sumário:
Introdução.........................................................................................................................8
Capítulo 1. Elementos para uma análise de Almoço Nu..................................................21
Capítulo 2. Texto e contexto: um estudo histórico-literário............................................37
Capítulo 3. O Almoço está servido..................................................................................59
3. 1. Contrapontos e deslocamentos................................................................................66
Capítulo 4. As sociedades de controle.............................................................................84
CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................93
ANEXO: DADOS BIOGRÁFICOS DE WILLIAM SEWARD BURROUGHS, DO
NASCIMENTO ATÉ O ANO DA PUBLICAÇÃO DE “ALMOÇO NU”
(1959)...............................................................................................................................96
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................98
8
Introdução
Pode uma obra como Almoço Nu, completamente apartada das estruturas
narrativas tradicionais, ser chamada de romance? Como bem salientou o escritor
Norman Mailer, o livro de Burroughs “não é um romance em qualquer sentido
convencional, com o que, então, surge a questão de se saber se é romance mesmo, em
relação a qualquer sistema de referência (...)”.1 Essa afirmação é correta se também
levarmos em conta o fato de que Burroughs foi um dos principais escritores de uma
longa linhagem literária considerada “sem enredo”. Não parece exagerado, portanto,
afirmar que a atitude de Burroughs, ao desferir um golpe de misericórdia na narrativa
tradicional, signifique muito mais do que o simples desejo de criar um “estilo” único;
representa, antes, um gesto de verdadeira honestidade intelectual em consonância com
seu próprio tempo. Ora, assim como a maioria dos escritores modernos, Burroughs
abole o ordenamento cronológico linear, ao mesmo tempo em que se abstém de
empregar um narrador onisciente, supostamente confiável; no seu lugar, são
empregados inúmeros pontos de vista ou múltiplas perspectivas, todas mais ou menos
limitadas (um escritor, por conseguinte, dedicado a “desrealizar”, a desfazer a narrativa
tradicional).2 Consciente desses aspectos, o teórico Laurent Jenny destaca a
singularidade do livro de Burroughs ao considerar os resultados advindos do emprego
da técnica do cut-up:
A narrativa esvai-se, a sintaxe explode, o próprio significante abre
brechas, a partir do momento em que a montagem dos textos deixa de
se reger por um desejo de salvaguardar, a todo preço, um sentido
monológico e uma unidade estética.3
Estas considerações introdutórias são muito importantes, principalmente no
que tange à possibilidade de pensarmos no significado do gênero “romance”. Neste
sentido, consideramos essencial a afirmação da escritora canadense Margaret Atwood
relativamente à forma romanesca:
Quando se fala em ficção, as pessoas cometem o erro de achar que
toda ficção é ou deveria ser chamada “romance”. E por “romance”
entendem realismo, é isso que querem dizer - ou algo que se pareça
com realismo -, querem dizer Jane Austen ou George Elliot. Mas de
fato há muita ficção em prosa que não é romance naquele sentido.
Mas, sobre misturar gêneros, bem, por que não? Existem regras para
1 MAILER, 1966, p. 28.
2 Como veremos, mesmo as personagens do romance, ao perderem sua “densidade” pessoal, elas mesmas
se tornam ricas em múltiplas interpretações possíveis. 3 JENNY, 1979, p. 28.
9
isso? As regras estão na cabeça de certos críticos, mas escritores não
dão atenção para isso.4
Burroughs parece ter solapado os fundamentos do romance tradicional, tais
como enredo, linearidade e, sobretudo, a unidade formal; esta foi definitivamente
abolida por ele, bem como pela maioria dos escritores modernos (a exemplo de Joyce,
Gide e, posteriormente, com os surrealistas). A unidade formal foi dissolvida em favor
de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do
método cut-up, Burroughs acaba por abolir toda e qualquer forma de subordinação entre
os diversos registros narrativos (tais registros, independentes entre si, não se
subordinam a uma unidade formal). Desse modo, evidencia-se a essência do cut-up,
enquanto técnica narrativa desenvolvida por Burroughs, como uma organização textual
que rompe com o discurso horizontal, com a narrativa linear, em favor de uma
verticalidade consistente na reunião de um imenso domínio de diferenças entre diversos
registros, proporcionando assim uma leitura não-linear independente da sequência
numérica dos capítulos.5
É talvez apoiado nesta ideia que Burroughs faz a seguinte afirmação: “Pode-
se abordar Almoço Nu a partir de qualquer ponto de intersecção...”.6 Neste trecho, o
autor adverte sobre a possibilidade de se “abordar” a obra a partir de qualquer ponto,
sem nenhuma preocupação com o princípio de causalidade, ou seja, enquanto agente
promotor de uma ação. Apenas aparentemente e em relação às leis de conjunto é que
esta fórmula é negativa, mas em termos de potência, ela deve ser entendida
positivamente: a ausência de ligação, e de sentido, é algo positivo, se constituindo na
força específica desse tipo de formação.
No nosso entender, a ausência de uma continuidade lógica ou narrativa é
uma das principais características da obra de Burroughs. Com a técnica do cut-up, as
4 Folha de São Paulo, São Paulo, 26 de outubro de 2003. Caderno Mais!, p. 03.
5 Como tentaremos evidenciar ao longo deste trabalho, em termos de método, o problema de fundo que se
coloca aqui é o de como pensar duas ou mais séries, dois ou mais registros, num espaço de diferença, e
não mais dialeticamente, ou seja, como contrários (opostos). É todo um domínio das multiplicidades que
está em questão com o método cut-up... “É preciso que cada termo de uma série, sendo já diferença, seja
colocado numa relação variável com outros termos e constitua, assim, outras séries desprovidas de centro
e de convergência. É preciso afirmar a divergência e o descentramento na própria série. Cada coisa, cada
ser deve ver sua própria identidade tragada pela diferença, cada qual sendo só uma diferença entre as
diferenças. É preciso mostrar a diferença diferindo. Sabe-se que a obra de arte moderna tende a realizar
estas condições: neste sentido, ela se torna um verdadeiro teatro feito de metamorfoses e de permutações.
Teatro sem nada fixo ou labirinto sem fio (Ariadne se enforcou). A obra de arte abandona o domínio da
representação para se tornar „experiência‟, empirismo transcendental ou ciência do sensível” (DELEUZE,
1988, p. 94).
6 BURROUGHS, 2005a, p. 230.
10
relações narrativas foram inteiramente modificadas, desaparece o âmbito da
comunicação dotada de sentido, uma vez que aqui, em última instância, já não
transcorre ação alguma. Completamente esvaziado de sentido ou direção, o livro de
Burroughs converte-se numa espécie de reflexão sobre o problema do vício em si
enquanto um modelo de controle; a narrativa, portanto, não chega ao fim, mas se
dissipa, esvaindo-se pouco a pouco: é a falência, no plano narrativo, das chamadas
narrativas históricas ou tradicionais.7 Isto, contudo, não significa dizer que nos
romances contemporâneos não acontece mais nada: como afirma Robbe-Grillet, “não se
deve assimilar a pesquisa de novas estruturas da narrativa a uma tentativa de supressão
pura e simples de todo acontecimento, de toda paixão, de toda aventura”.8 O resultado
portanto é uma escrita aparentemente aleatória, contrária à ordem discursiva linear, em
que cada registro narrativo é independente, isto é, regido por suas próprias leis e
representações. E mais: em que pesem a aparente desordem narrativa, o amálgama de
registros e a disposição aleatória dos capítulos, não se pode negar ao livro de Burroughs
a existência de uma estrutura mais ou menos premeditada – ainda que ela só se deixe
apreender ao final da leitura. Dessa forma, poderemos constatar que, apesar da
aparência mais ou menos caótica (ou seja, fragmentária e algo desordenada) do
encadeamento textual, o livro de Burroughs apresenta uma conexão de ideias bastante
consequente.
Em todo o caso, a imagem que melhor traduz esse enorme sistema de
afinidades morfológicas, esse composto de vários registros, é a ideia de rede, em
oposição à noção de teia, com seus centros de distribuição e convergência,
correspondendo a uma espécie de topologia indiferente a qualquer tipo de suporte ou
unidade configuradora, sem posição de saída, um sistema em última análise aberto:
Nem sequer um quebra-cabeça, cujas peças ao se adaptarem
reconstituiriam um todo, mas antes como um muro de pedras, não
cimentadas, onde cada elemento vale por si mesmo e no entanto tem
relação com os demais: isolados e relações flutuantes, ilhas e entre-
ilhas, pontos móveis e linhas sinuosas, pois a Verdade tem sempre
“bordas retalhadas”. Não um crânio, mas um cordão de vértebras, uma
7 O problema de fundo que se coloca aqui é a falência das chamadas narrativas históricas ou tradicionais,
isto é, a perda de sentido se transforma no problema central do romance contemporâneo, convertido,
segundo algumas interpretações, em reflexão sobre o Nada (a exemplo de Burroughs, Pynchon e Bolaño).
Na verdade, este tipo de problemática pode ser remetido à obra de Flaubert, especialmente ao seu
romance “Educação Sentimental” (1869). Mas a perda de sentido aqui está associada à ideia de desilusão
(descrença), e muito longe de aboli-las, a narrativa flaubertiana conserva ainda a unidade estética e o
sentido monológico do texto. Em todo o caso, todos estes romances são extremamente pobres em enredo
e em ação... 8 ROBBE-GRILLET, 1969, p. 25.
11
medula espinhal; não uma vestimenta uniforme, mas uma capa de
Arlequim, mesmo branco sobre branco, uma colcha de retalhos de
continuação infinita, de juntura múltipla (...) a invenção americana por
excelência, pois os americanos inventaram a colcha de retalhos, no
mesmo sentido em que se diz que os suíços inventaram o cuco.9
Neste sentido, somente a categoria de multiplicidade, a própria ideia de
multiplicidade erigida em forma, é capaz de explicar esse grande composto formado por
vários registros. O livro de Burroughs é multiplicidade pura, ou seja, afirmação
irredutível a qualquer unidade configuradora. Diferentemente da totalidade hegeliana, a
totalidade produzida aqui é produzida por adjacência ou contiguidade, como uma parte
ao lado das partes, que ela não unifica nem totaliza – uma unidade entre registros
narrativos que conserva toda a sua diferença nas suas próprias dimensões, enquanto
conjunto de partes heterogêneas. “O Verbo divide-se em partes que formam uma
unidade e assim deve ser encarado, mas tais partes podem ser abordadas em qualquer
ordem, jogadas de um lado para o outro e exploradas de frente e de costas (...)”.10
Temos muito ainda que dizer sobre o livro de Burroughs. Adiante nos
ocuparemos dele em filigranas. No entanto, tudo não passará de um recorte. A quase
infinita sucessão de cenas que há em Almoço Nu torna quase impossível uma verdadeira
apresentação, uma apresentação que esgote integralmente o seu conteúdo. Isto porque
nenhum elemento do texto é suscetível de uma só interpretação e todas as figuras podem
ser cambiadas. Na verdade, a tradição crítica “intelectualista” quase sempre procura
estabelecer um significado unívoco, mas, com isso, perde o essencial, pois a única coisa
que é possível constatar e que corresponde à sua natureza [o livro de Burroughs] é a
multiplicidade de sentidos, a riqueza de referências quase ilimitadas que impossibilita
toda e qualquer formulação unívoca de seus conteúdos. Assim, interessa-nos muito mais
conhecer sua estrutura, seu funcionamento (as relações contrapontísticas, os
deslocamentos espaciais, etc.), do que encontrar seu “significado”. Pois enquanto a
expressão ou a forma não forem consideradas em si mesmas, não será possível
encontrar uma verdadeira resposta, mesmo ao nível dos conteúdos, para o problema da
multiplicidade de sentidos ou de perspectivas.11
Só a expressão é que nos explica o
9 DELEUZE, 1997, p. 100.
10 BURROUGHS, 2005a, p. 235.
11 Ou, como diz Robbe-Grillet: “O mesmo acontece com uma sinfonia, uma pintura, um romance: é na
sua forma que está sua realidade. Mas é também em sua forma que reside seu sentido, „seu significado
profundo‟, isto é, seu conteúdo” (ROBBE-GRILLET, 1969, p. 33).
12
funcionamento.12
“É absolutamente inútil recensear um tema num escritor se não se
questionar a sua importância precisa na obra, isto é, sem se saber como é que funciona
exatamente (e não o seu „sentido‟)”.13
Neste sentido, partilhamos da opinião de Deleuze, para quem existe apenas
duas maneiras de se ler um livro:
É que há duas maneiras de ler um livro. Podemos considerá-lo como
uma caixa que remete a um dentro, e então vamos buscar seu
significado, e aí, se formos ainda mais perversos ou corrompidos,
partimos em busca do significante. E trataremos o livro seguinte como
uma caixa contida na precedente, ou contendo-a por sua vez. E
comentaremos, interpretaremos, pediremos explicações, escreveremos
o livro do livro, ao infinito. Ou a outra maneira: consideramos um
livro como uma pequena máquina a-significante; o único problema é:
“isso funciona, e como é que funciona?” Como isso funciona para
você? Se não funciona, se nada se passa, pegue outro livro. Essa outra
leitura é uma leitura em intensidade: algo passa ou não passa. Não há
nada a explicar, nada a compreender, nada a interpretar.14
Das duas modalidades de leitura estabelecidas por Deleuze, sem dúvida, a
que mais se aproxima dos objetivos deste trabalho é a denominada leitura em
intensidade, a qual procura estabelecer a plurivocidade do próprio texto, a ambiguidade
e multiplicidade aparentemente ilimitada das figuras, em vez de destacar da cadeia
significante um único elemento, um único significado, esmagando e submetendo todo o
restante a esse “objeto” único, como faz a outra forma descrita por Deleuze. Neste
ponto, deixemos que Burroughs novamente defina essa pluralidade, essa diversidade de
elementos que compõe o texto de Almoço Nu:
Este livro derrama-se em todas as direções para fora de suas páginas,
em um caleidoscópio de paisagens, miscelânea de canções e ruídos
urbanos, peidos e urros de tumultos e estrondo de pantográficas de
casas comerciais, gritos de dor e pathos e gritos de simples pederastia,
gatos que copulam e guinchos injuriados do bagre extraído de seu
habitat, resmungos proféticos do brujo em seu transe de noz-moscada,
pescoços partidos e gritarias de mandrágoras, suspiros de orgasmos,
heroína silenciosa como a aurora nas células sedentas, Rádio Cairo
com berros dignos de um leilão de tabaco ensandecido e flautas de
Ramadã abanando o junky enjoado como um delicado ladrão de
bêbados na aurora macilenta do metrô, buscando o tato das verdinhas
com seus dedos apurados...
12
Como veremos no 2º capítulo, o problema da expressão não é colocado inicialmente por Burroughs de
um modo abstrato ou universal, mas em conexão com as vanguardas literárias do começo do século XX,
tais como o dadaísmo, o surrealismo... 13
DELEUZE e GUATTARI, 2003, p. 83. 14
DELEUZE, 1992, p. 16-17.
13
Esta é a Revelação e a Profecia do que consigo captar sem FM com
meu aparelho de cristal modelo 1920 com antenas de esperma... 15
Cabe explicarmos ainda a estrutura do nosso trabalho. Em linhas gerais, os
principais tópicos que formam a parte essencial desse trabalho (terceiro e quarto
capítulos) são os seguintes: 1) – A técnica do cut-up enquanto procedimento linguístico
geral; 2) – A dissolução da unidade formal num enorme sistema de afinidades
morfológicas, um composto de vários registros (os contrapontos narrativos); 3) – Os
inúmeros deslocamentos constituídos no interior do romance enquanto símbolos de
desterritorialização, os quais terminam, do mesmo modo, por dissolver toda e qualquer
unidade; 4) – As sociedades de controle, noção deleuziana retirada da própria obra de
Burroughs (o pensamento do controle).
Com relação aos dois primeiros capítulos, que juntos formam a primeira
parte do trabalho, eles levam os seguintes títulos: 1) – Elementos para a análise de
Almoço Nu; 2) – Texto e contexto: um estudo histórico-literário. No primeiro capítulo,
procuramos fornecer alguns elementos que consideramos fundamentais para a análise de
Almoço Nu, tais como a noção de configuração flutuante em oposição às identidades
fixas, personológicas, e o vício como protótipo para outras formas de controle,
introduzindo de maneira preliminar o pensamento do controle enunciado por Burroughs.
No segundo capítulo, como o próprio nome indica, realizamos um estudo histórico-
literário, no qual procuramos analisar algumas filiações e influências associadas à obra
de Burroughs, tais como as vanguardas artísticas européias, a tradição literária norte-
americana, etc.
Neste ponto, procuremos explicitar melhor as partes componentes deste
trabalho apresentadas acima, sobretudo no que tange ao significado dos cut-ups, à noção
de configuração flutuante em oposição às identidades fixas, à dissolução da unidade
formal e ao problema do controle. Em primeiro lugar, o traço de expressão informe que
se opõe à forma expressiva, fugindo à forma linguística tradicional (a questão da técnica
do cut-up enquanto procedimento geral). Em segundo lugar, já não existe um sujeito
que alcance qualquer forma de densidade pessoal. Diríamos de preferência que se
estabelece aqui uma zona de indeterminação, de indiscernibilidade, como se eles
tivessem atingido o ponto que precede qualquer diferenciação personológica. Em
terceiro lugar, a estrutura do texto está assentada sobre uma multiplicidade de elementos
que já não depende de nenhuma unidade configuradora, expressa na ideia de dissolução
15
BURROUGHS, 2005a, p. 235.
14
da unidade formal, segundo uma linha de composição autônoma de vizinhança e
contiguidade (contrapontos narrativos). E por último, as formas de controle ao ar livre
que substituem as antigas disciplinas que operavam na duração de um sistema fechado.
São as quatro características do livro de Burroughs, que compõem a novo estatuto da
literatura americana produzida no pós-guerra: o traço de expressão informe, a zona de
indeterminação, a dissolução da unidade formal e o pensamento do controle. E neste
sentido, nosso objetivo consistirá em analisar e compreender o melhor possível todas
essas características.
No nosso entender, a atualidade da reflexão proposta pelo nosso trabalho
sobre Burroughs talvez seja a de problematizar a tendência das nossas sociedades
modernas em dissolver, em desfazer todos os códigos, convertendo-os em puros fluxos
(segundo Deleuze & Guattari, “uma predileção destrutiva e mortuária”.16
). É justamente
para essa tendência ou predileção que pretendemos apontar com a ideia de dissolução,
em todos os seus níveis e esferas, como aparece indicado no próprio título de nosso
trabalho: “Dissolução e aleatoriedade...”. Outra característica importante de nosso
trabalho consiste na tentativa de interpretar todos esses signos de dissolução e
aleatoriedade em termos de um esvaziamento, de um esgotamento das possibilidades de
realização do homem ocidental (como está posto ao fim do terceiro capítulo de nosso
trabalho). É neste registro, portanto, que devemos entender a falência das chamadas
narrativas históricas ou tradicionais, ou seja, enquanto esgotamento das possibilidades
formais.
Tal como foi definido anteriormente, a ideia mesma de dissolução se insinua
por toda a obra de Burroughs, desfazendo não apenas as identidades discerníveis, bem
como a unidade formal: desfaz-se a unidade, a sistemática, como expressão e símbolo,
cedendo lugar à ideia de multiplicidade, a uma espécie de produção contínua de
hipóteses e perspectivas. De qualquer maneira, a noção que melhor traduz esse enorme
16
“A civilização define-se pela descodificação e pela desterritorialização dos fluxos na produção
capitalista. Todos os processos são bons para fazer essa decodificação universal: a privatização não só dos
bens, dos meios de produção, mas também dos órgãos do próprio „homem privado‟; a abstração não só
das quantidades monetárias, mas também da quantidade e trabalho; a ilimitação não só da relação entre o
capital e a força de trabalho, mas também da relação entre os fluxos de financiamento e os fluxos de
rendimento ou meios de pagamento; a forma científica e técnica que os próprios fluxos de código tomam;
formação de configurações flutuantes a partir de linhas e de pontos sem identidade discernível. A história
monetária recente, o papel do dólar, os capitais migrantes a curto prazo, a flutuação das moedas, os novos
meios de financiamento e crédito, os direitos especiais de tiragem, a nova forma das crises e das
especulações, tudo isto junca o caminho dos fluxos descodificados. As nossas sociedades têm uma grande
predileção por códigos, por códigos estranhos e exóticos, mas esta predileção é uma predileção destrutiva
e mortuária” (DELEUZE e GUATTARI, 2004, p. 255).
15
sistema de afinidades morfológicas é a noção de função, a função concebida aqui como
relação entre partes heterogêneas, como relação contrapontística, relação entre relações.
No que diz respeito à perda das identidades discerníveis, elas parecem ter sido
substituídas por novas subjetividades, sem identidade, sem uma base substancial
unitária ou forma de interioridade, ou seja, a subjetividade se converte em função
mesma, a função como singularidade, como elemento, como relação variável,
irredutível a limites personológicos. Do mesmo modo, a ideia de dissolução parece ter
afetado também à própria forma do poder: como uma função contínua e livre, os
mecanismos disciplinares se difundem em todas as direções, tornando-se independentes
dos meios de confinamento. Neste sentido, com o advento das chamadas sociedade de
controle, torna-se quase impossível acertar a localização pontual dos mecanismos
disciplinares, dissolvidos em todo o campo social, como uma extensão dos mecanismos
disciplinares para além dos próprios meios de confinamento, uma espécie de “sublime”
desenvolvimento do poder disciplinar chegado ao ponto de prescindir dos próprios
estabelecimentos de disciplina. Assim, como se pode notar pelo exposto acima, a ideia
de dissolução nos conduziu a uma noção que incide diretamente sobre todo o conjunto
de nossas reflexões: a noção de função. E neste sentido, o que de fato tentamos em
nossa pesquisa foi problematizar estes três aspectos da noção de função, a função
concebida aqui em termo de relações: a função enquanto relação variável (as
configurações flutuantes), a função enquanto relação entre relações (os contrapontos
narrativos), e a função enquanto relação contínua e livre (as sociedades de controle).
Neste sentido, portanto, nosso trabalho possui três eixos principais, sendo todos os três
entendidos segundo a forma da função: 1) – Forma ou configuração; 2) – Subjetividade;
3) – Controle.
Entretanto, vale ressaltar, a noção de função utilizada aqui se refere apenas
em parte à função descrita por Deleuze & Guattari, isto é, a função como proposição
científica, como função de conhecimento.17
Pois o que pretendemos com esta noção é
17
“A ciência não tem por objeto conceitos, mas funções que se apresentam como proposições nos
sistemas discursivos. Os elementos das funções se chamam functivos. Uma noção científica é
determinada não por conceitos, mas por funções ou proposições. É uma idéia muito variada, muito
complexa, como se pode ver já no uso que dela fazem respectivamente a matemática e a biologia; porém,
é essa ideia de função que permite às ciências refletir e comunicar. A ciência não tem nenhuma
necessidade da filosofia para essas tarefas. Em contrapartida, quando um objeto é cientificamente
construído por funções, por exemplo um espaço geométrico, resta buscar seu conceito filosófico que não
é de maneira alguma dado na função. Mais ainda, um conceito pode tomar por componentes os functivos
de toda função possível, sem por isso ter o menor valor científico, mas com a finalidade de marcar as
diferenças de natureza entre conceitos e funções” (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 139).
16
justamente aquilo que determina um certo tipo de relação que constitui a própria
essência da função matemática: relação entre relações. Neste sentido, a função deve ser
entendida aqui como processo, como operação e, portanto, não como estado ou
grandeza, mas como comportamento, como atividade.18
Evidentemente, como dissemos,
a noção assim compreendida tem origem matemática, em especial nas investigações da
teoria das funções, as quais buscam como resultado não uma grandeza – pois a relação
entre grandezas se chama proporção19
–, senão a discussão de possibilidades gerais,
formais. Em outras palavras: este tipo de investigação estuda classes inteiras de
possibilidades formais, grupos de funções, operações, equações e curvas, e não as
estuda em vista de qualquer resultado, mas com respeito a sua realização e
comportamento, o que em última análise, como veremos, se aproxima muitíssimo do
que Burroughs fez em seu Almoço Nu. Todavia, não se trata de dizer que o livro de
Burroughs faz o que a teoria das funções fez. Mas se tomarmos unicamente esta
determinação da função: que existem funções constantes que podem ser diferenciadas
apenas em parte ou não podem ser de modo algum, então é isto uma função de
Burroughs (como, por exemplo, as configurações flutuantes, irredutíveis a limites
personológicos, a qualquer forma de determinação). É claro que Burroughs não é um
Weierstrass, mas ele faz na literatura a mesma coisa que se produziu na teoria das
funções, ou seja, existe como que um eco, uma espécie de intersecção entre ambos.20
Portanto, não parece exagerado afirmar que Burroughs está próximo da teoria das
funções. Não se trata de dizer que Burroughs imita determinado tipo de investigação
matemática, mas de constatar que entre ambos existem semelhanças, relações de
ressonância, etc.
Mas, com isso, não pretendemos “interferir” de maneira alguma em outros
domínios. Naturalmente, temos o dever de justificar a utilização feita, aqui, da noção de
função. Pois se utilizamos, aqui, de conhecimentos matemáticos no domínio estético-
filosófico, eles naturalmente aparecem sob uma nova luz e levam a outras conclusões
que não àquelas limitadas pelo domínio de sua especialidade, onde servem a outros fins.
Mas o fato de uma noção matemática estar no horizonte deste estudo implica que a ideia
18
“A função, concebida corretamente, é a existência pensada em atividade” (Goethe apud SPENGLER,
1923, p. 118). 19
“A relação entre grandezas se chama proporção; a relação entre relações constitui a essência da função”
(SPENGLER, 1923, p. 115). Ademais, toda proporção supõe a constância dos elementos; toda
transformação (que na teoria das funções tem uma importância decisiva), no entanto, a sua variabilidade. 20
Karl Wilhelm Theodor Weierstrass (1815-1897), matemático alemão que forneceu as bases para a
investigação das funções analíticas.
17
de função, em sentido mais amplo, penetra no campo da discussão estético-filosófica,
com todas as suas consequências. Estes conhecimentos, então, perdem o caráter
independente que possuem em seu domínio especializado, e isto porque são
necessariamente interrogados sob um ângulo novo, diferente (neste caso, a disciplina
“interferente” procede com seus próprios meios, com seus elementos próprios).
Portanto, eles não são mais considerados sob o ângulo da verdade matemática, mas
examinados num outro sentido, isto é, extrinsecamente, no sentido de apurar o que
comportam de significação e de fundamento estético-filosófico. Deste modo,
gostaríamos de propor como um “índice” para nossas análises, ainda que de maneira
parcial e incompleta, o conceito de função, conceito este que, como já dissemos, incide
diretamente sobre todo o conjunto de nossas reflexões: a noção de função, concebida
aqui em termos de relações: a função enquanto relação entre relações (os contrapontos
narrativos), a função enquanto relação variável (as configurações flutuantes) e a função
enquanto relação contínua e livre (as sociedades de controle).
Mas, para tal, cabe fazermos ainda uma outra distinção relativamente à
diferença entre o conceito filosófico e a função científica enquanto dois tipos de
multiplicidades ou variedades que diferem em natureza. Pois, segundo Deleuze &
Guattari, existem algumas instâncias de oposição principais entre filosofia e ciência, que
agrupam as séries de functivos de um lado, e as pertenças de conceitos de outro,
podendo ser expressas da seguinte forma: a ciência, por um lado, tem como qualidade
distintiva os functivos, variáveis independentes construídas sobre um plano de
referência que determinam estados de coisas ou misturas de corpos; a filosofia, por
outro lado, tem como qualidade distintiva os conceitos, variações inseparáveis erigidas
sobre um plano de imanência que exprimem acontecimentos. É neste sentido, portanto,
que Deleuze & Guattari dizem que os conceitos e as funções se apresentam como dois
tipos de multiplicidades que diferem em natureza...
A função, na ciência, determina um estado de coisas, uma coisa ou um
corpo que atualizam o virtual sobre um plano de referência e num
sistema de coordenadas; o conceito, na filosofia, exprime um
acontecimento que dá ao virtual uma consistência sobre um plano de
imanência e numa forma ordenada. 21
Na opinião de Deleuze & Guattari, estas distinções não são coisas de
somenos importância, pois uma confusão entre conceitos de um lado e funções de outro
pode ser ruinosa em vários aspectos. Assim, segundo eles, só se descobre a
21
DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 158.
18
irredutibilidade dos conceitos às funções se se compara o que constitui a referência de
umas e o que faz a consistência dos outros, ou seja, que os estados de coisas ou misturas
dos corpos formam as referências da função, ao passo que os acontecimentos são a
consistência do conceito. Estes são, portanto, os termos que é preciso considerar em
vista de qualquer redução ou síntese possível. Contudo, a questão de fato que se coloca
aqui é que a noção de função parece (ou poderia) se estender a outros domínios, para
além dos limites de seu próprio domínio de especialidade. Segundo o próprio Deleuze
(a propósito de Bernard Cache), as qualidades da função, a função enquanto
manifestação das relações variáveis, concernem à própria situação contemporânea, em
que a ideia de flutuação, por exemplo, substitui a permanência de uma lei, ou quando
um objeto ocupa lugar em um contínuo por variação. Assim, diz Deleuze:
Pelo seu novo estatuto, o objeto é reportado não mais a um molde
espacial, isto é, a uma relação forma-matéria, mas a uma modulação
temporal que implica tanto a inserção da matéria em uma variação
contínua como um desenvolvimento contínuo da forma. (...) É uma
concepção não só temporal mas qualitativa do objeto, visto que os
sons, as cores, são flexíveis e tomados na modulação. É um objeto
maneirista e não mais essencialista: torna-se acontecimento.22
Mas – voltemos a afirmar – para se chegar a esta concepção de função foi
necessário que a função não se definisse mais pela sua forma matemática ou científica,
mas caracterizasse uma nova ordem de relações enquanto conjunto das relações
variáveis. Foi preciso, pois, inventar um novo tipo de função, de natureza propriamente
filosófica: “(...) é na medida em que a filosofia está apto a criá-lo, que temos o conceito
de uma função”.23
E é neste sentido, portanto, que entendemos que o livro de Burroughs
demarca claramente um conjunto de relações variáveis que não pertence à função como
tal (a função científica, por exemplo), como sendo composto a partir de vários
elementos ordenados, cujas partes são independentes entre si mas que, apesar disso,
funcionam conjuntamente, ou seja, comportando-se ao mesmo tempo como unidade e
como multiplicidade. Como teremos ocasião de demonstrar no terceiro capítulo (em 3.1.
“Contrapontos e deslocamentos”), seus elementos enquanto variáveis independentes são
relativos uns em relação aos outros, mas cada um deles é absoluto em si mesmo, ou
seja, é dotado de um sentido suficiente (disso decorre, como veremos, o próprio estatuto
das ordenadas intensivas, já que, segundo Deleuze, o próprio da intensidade é ser ela
22
DELEUZE, 1991, p. 38-39. 23
DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 191.
19
constituída por uma diferença que remete, ela própria, a outras diferenças, isto é,
enquanto absoluta e relativa...)
Como se poderá perceber ao longo da leitura, nosso trabalho possui um
determinado sentido de composição, no qual alguns dos tópicos ou temas principais
reaparecem ou são retomados em outra parte, numa espécie de processo contínuo de
intensificação dos seus conteúdos. Assim, o pensamento do controle, esboçado
inicialmente no primeiro capítulo, é retomado no quarto (e último) capítulo através da
noção deleuziana de sociedades de controle. Na verdade, essa tendência se manifesta em
vários momentos do nosso trabalho, com a ideia de dissolução expressa na noção de
entropia, com os inúmeros deslocamentos espaciais constituídos no interior do romance,
entre outros.
E como orientação metodológica, cabe ressaltarmos também a utilização
feita aqui da obra de Deleuze – pois como se poderá notar nosso texto em diversos
momentos faz referência à obra de Deleuze. Mas esse não é um trabalho sobre Deleuze,
mas com Deleuze, para além de qualquer forma de “ortodoxia”; antes de tudo, é uma
apropriação, uma torção, uma transposição de determinados conceitos deleuzianos para
o livro de Burroughs. Certamente, muitas outras referências teóricas foram utilizadas
aqui, mas nenhuma que se compare, em termos de utilização, à obra de Deleuze. Neste
sentido, procuramos esclarecer o melhor possível os conceitos de Deleuze utilizados
nesse trabalho para a análise de Almoço Nu (tais como a noção de contraponto, de
desterritorialização e de sociedades de controle); contudo, não se deverá esperar uma
exposição sistemática ou de conjunto dos mesmos, já que tais conceitos foram
claramente utilizados a partir de um ponto de vista, de uma perspectiva que fizeram com
que eles [os conceitos deleuzianos], ao serem realocados em outra parte (ou seja, para o
livro de Burroughs), sofressem uma considerável mudança de significação. Na verdade,
colocamos todo o nosso empenho em transpor integralmente as palavras de Deleuze
para as passagens essenciais de nosso trabalho, mas não foi possível introduzir suas
ideias sem lhes dar certas interpretações ou explicações. Isto significa dizer que os
conceitos deleuzianos foram extraídos de seu contexto original, ou melhor, que esses
conceitos foram utilizados como ferramentas, como operadores, muitas vezes
independentemente das relações conceituais próprias do sistema a que pertencem (neste
caso, a obra de Deleuze), criando uma pequena diferença que mostra os conceitos do
filósofo como que parcialmente diferentes do que eles são ou como parcialmente
idênticos à própria obra de Burroughs. Tomemos como exemplo de tal operação aquilo
20
que denominamos a perda das identidades discerníveis: para Deleuze, tal perda ou
esgotamento representara sempre uma potência positiva, diferentemente de Burroughs,
que parece enxergar nesse mesmo acontecimento um elemento de negatividade, como
algo destrutivo e mortal, que denominamos de vazio de indeterminação. Assim, nossa
leitura de Deleuze possui um caráter eminentemente experimental, porquanto que o
objeto central desse trabalho é o texto de Burroughs (ainda que uma leitura fortemente
inspirada no pensamento de Deleuze).
Por fim, espero que todas as considerações apresentadas acima tenham sido
suficientes para descrever os objetivos e as intenções deste trabalho. Assim, não
pretendo aumentar desnecessariamente o seu número, mas desejo, depois de transmitido
este quadro panorâmico, passar finalmente à discussão das questões apresentadas nesta
Introdução.
21
Capítulo 1. Elementos para a análise de Almoço Nu.
Apresentação
O objetivo central deste capítulo é apresentar alguns aspectos importantes
para uma análise de Almoço Nu. Para tanto, desenvolvemos o capítulo em torno de
alguns temas principais, tais como dados gerais sobre a obra e o autor, o tipo de
experiência relatado no livro, o pensamento do controle como problema central da obra
de Burroughs, a técnica do cut-up enquanto método de criação literária desenvolvido
por Burroughs e, finalmente, a caracterização das personagens do romance, irredutíveis
a qualquer forma de determinação, a qualquer diferenciação personológica.
Almoço Nu não é literatura de entretenimento, nem se enquadra no que
comumente chamamos de realismo ficcional.24
A obra, originalmente lançada em 1959,
foi construída sobre os fundamentos da subversão estilística e do desconforto
existencial. Os experimentos realizados com a linguagem em Almoço Nu, com a
maneira de se contar uma história, inspirariam uma geração inteira de escritores norte-
americanos.25
No entanto, Almoço Nu resiste a qualquer forma de determinação
conceitual definitiva; nesse romance, “conceitos abstratos, simples como álgebra,
reduzem-se a um monte de bosta ou a um par de cojones velhos”.26
O livro também não
possui apenas um único “enredo”, muito menos início ou fim; cada um de seus capítulos
obedece a uma lógica própria: “Este livro derrama-se em todas as direções para fora de
suas páginas”.27
24
O realismo é um movimento artístico-literário que se manifesta na segunda metade do século XIX no
Ocidente, que se caracteriza pela pretensão de uma abordagem objetiva da realidade e pelo interesse por
temas sociais. O engajamento ideológico e o traço panfletário fazem com que muitas vezes a forma e as
situações descritas sejam exageradas para reforçar a denúncia social, a exemplo de Zola. Nesse sentido, o
romance de Burroughs não guarda nenhuma semelhança com o chamado realismo. É evidente que
Almoço Nu está repleto de cenas de extremo realismo, ao explorar imagens de forte impacto, mas essas
cenas não possuem nenhuma qualidade social redentora. São, ao contrário, o relato direto de
determinados grupos de acontecimentos. 25
O principal deles é, sem dúvida, Thomas Pynchon, autor de O arco-íris da gravidade (1973),
considerado sua obra-prima. Em O arco-íris da gravidade, facilmente se percebe ecos de William
Burroughs no que se refere, por exemplo, aos diálogos cegos, às situações absurdas e, principalmente, no
pensamento do controle. Nesse sentido, Pynchon é o grande continuador da obra de Burroughs. 26
BURROUGHS, 2005a, p. 230. 27
BURROUGHS, 2005a, p. 235.
22
Escrito de forma fragmentária, Almoço Nu não possui linearidade; é antes
um fluxo, uma torrente que arrasta consigo todo tipo de coisas.28
“O sujeito, cujo eu
desertou do centro, estende-se por todo o contorno do círculo. No centro está a máquina
do desejo...”.29
Qualquer parte do livro, portanto, pode servir de ponto de partida:
“Pode-se abordar Almoço Nu a partir de qualquer ponto de intersecção...”.30
Por isso,
pela própria natureza de Almoço Nu, não poderemos proceder a uma “leitura” de tipo
linear, seguindo a ordem mais ou menos lógica dos capítulos. O livro de Burroughs
rompe com esses esquemas demasiadamente simples. Devemos, portanto, abandonar
quaisquer expectativas desde a primeira página, deixando-nos levar pelo redemoinho de
imagens, acontecimentos e intensidades que percorrem toda a obra, que formam um
misto de aleatório e de dependente...
Nenhuma cadeia é homogênea, mas antes um desfile de letras de
alfabetos diferentes, onde subitamente aparecesse um ideograma, um
pictograma, a minúscula imagem de um elefante a passar ou de um sol
nascente. Repentinamente, na cadeia que engloba (sem os compor)
fonemas, morfemas, etc., aparecem os bigodes do pai, o braço
ameaçador da mãe, uma fita, uma rapariga, um polícia, um sapato. (...)
É todo um sistema de agulhagens e sorteio, que formam fenômenos
aleatórios parcialmente dependentes, parecidos com uma cadeia de
Markoff. (...) Se aqui existe uma escrita, é uma escrita com a forma do
Real, estranhamente plurívoca, nunca bi-univocizada, linearizada, uma
escrita transcursiva e nunca discursiva: é todo o domínio da
„inorganização real‟ das sínteses passivas, onde em vão procuraríamos
algo a que se pudesse chamar o Significante, e que compõe e
decompõe ininterruptamente as cadeias em signos que nunca virão a
ser significantes.31
Ou ainda, segundo Deleuze:
Não que qualquer um se encadeie com qualquer um. Trata-se antes de
lances sucessivos, cada um dos quais opera ao acaso, mas em
condições extrínsecas, determinadas pelo lance precedente (...) é
sempre um misto de aleatório e de dependente, como numa cadeia de
Markov. “A mão de ferro da necessidade que agita os dados do
acaso”, diz Nietzsche, invocado por Foucault. Não há pois
encadeamento por continuidade nem por interiorização, mas
reencadeamento por sobre os cortes e as descontinuidades
(mutações).32
28
Discutiremos mais adiante, no 2º capítulo deste trabalho, a noção de fluxo enquanto “afluxo libidinoso”
a partir de um referencial psicanalítico. 29
DELEUZE e GUATTARI, 2004, p. 26. 30
BURROUGHS, 2005a, p. 230. 31
DELEUZE e GUATTARI, 2004, p. 42. 32
DELEUZE, 2006a, p. 92-93.
23
(...) O acaso só vale para o primeiro lance; talvez o segundo lance se
dê em condições parcialmente determinadas pelo primeiro, como
numa cadeia de Markov, uma sucessão de reencadeamentos parciais.33
Publicado no ano de 1959, Almoço Nu teve inúmeras versões, a maioria
delas organizadas em Tânger, no Marrocos. O livro, segundo James Grauerholz & Barry
Miles, estudiosos da obra de Burroughs, “evoluiu de forma lenta e imprevisível ao
longo de nove anos tumultuados na vida de seu autor”.34
Eles também dizem que o livro
“não foi criado de acordo com um plano ou esquema predeterminado, mas foi crescendo
no decorrer de uma década de viagens e de atribulações por quatro continentes (...)”.35
O romance cobre todo o período da vida de Burroughs em que esteve envolvido com
drogas, e contra as quais lutava desde a metade dos anos 1940, em Nova York, e que na
primavera de 1956 o arrastaria até o fundo mais lamentável de sua dependência, quando
vivia num quarto no Bairro Nativo de Tânger.
Neste sentido, Almoço Nu é um livro violento, pornográfico e subversivo,
acima de tudo, um livro antiamericano, contrário ao puritanismo e conservadorismo
americanos. O livro chegou até mesmo a ser proibido nos EUA por ser considerado um
livro obsceno; mais tarde, acabou sendo reconhecido em todo o mundo como uma das
obras mais importantes do pós-guerra. De certo modo, o livro coloca em xeque os
valores da “próspera” classe média norte-americana, mostrando a ânsia de poderosos e
privilegiados, o submundo dos viciados, alcoólatras e homossexuais, marginais de todo
tipo. Somente em 07 de julho de 1966, oito anos depois de sua primeira publicação pela
Olympia Press de Paris, uma alta instância americana proclamou que o romance possuía
“qualidade redentora social” e, portanto, não era obsceno, liberando assim sua
publicação em território norte-americano.36
Segundo Miles & Grauerholz, essa data
teria marcado definitivamente o final da censura aberta a obras literárias nos Estados
Unidos. “Com mais de um milhão de exemplares vendidos em todo o mundo, Almoço
Nu conquistou um lugar permanente na literatura norte-americana do pós-guerra”.37
Por exemplo, um fragmento de “Hospital” é bastante revelador da natureza subversiva,
antiamericana, do romance de Burroughs, cujas temáticas desmascaram o estilo de vida
33
DELEUZE, 2006a, p. 125. 34
BURROUGHS, 2005a, p. 279. 35
BURROUGHS, 2005a, p. 279. 36
Com certeza, as inúmeras proibições e polêmicas em torno de Almoço Nu ajudaram a despertar o
interesse pelo livro em todo o mundo; mas isso não significa dizer que o mérito da obra se deva
exclusivamente a fatores extraliterários. É nas qualidades formais e temáticas que se deve procurar uma
explicação para seu enorme sucesso, passado mais de cinquenta anos. 37
BURROUGHS, 2005a, p. 291.
24
americano (o american way of life), o ethos nacionalista, a mentira do sonho americano.
A cena em questão transcorre num quarto de hospital, de onde o Agente Lee fora
removido:
Passo pelo quarto 10, de onde fui removido ontem... Imagino que
tenha sido um caso de maternidade... Comadres cheias de sangue e
absorventes e substâncias femininas desprovidas de nome, em volume
suficiente para poluir um continente inteiro... Se alguém aparecer em
meu antigo quarto para visitar-me pensará que pari um monstro e que
o Departamento de Estado está tentando ocultar o caso...38
O episódio produz uma sequência anedótica, na qual um diplomata
americano aparece sobre uma plataforma, envolto na bandeira americana, cantando o
hino nacional dos Estados Unidos, “The Star-Spangled Banner”, acompanhado por uma
orquestra: “O DIPLOMATA (lendo um rolo imenso de fita telegráfica que nunca pára
de crescer e emaranhar-se ao redor dos seus pés): – E negamos categoricamente que
algum cidadão dos Estados Unidos da América pertencente ao sexo masculino...”.39
Depois de um breve corte na narrativa, o Diplomata continua: “– Que um cidadão dos
Estados Unidos da América pertencente ao sexo masculino tenha parido, na Interzona
ou em qualquer outro lugar...”.40
Enxugando o suor do rosto, o Diplomata continua: “–
Qualquer tipo de criatura de qualquer espécie ou descrição...”.41
A fala do Diplomata é
entremeada por trechos do hino norte-americano. Segundo a narrativa, ele perde a cor e
cambaleia, tropeça no rolo e desaba sobre uma balaustrada. Sangrando, de forma quase
inaudível, o Diplomata, antes de morrer, ainda consegue dizer: “– O Departamento
nega... Antiamericano... Foi destruído... Quero dizer, isso nunca... Categor... – E
morre”.42
O fragmento termina com um verso de “The Star-Spangled Banner”, o hino
nacional norte-americano, o qual diz: “A noite deu prova de que a nossa bandeira ainda
estava lá...”.43
Enfim, como bem observou Temperley e Bradbury (1981, p. 330), o livro
de Burroughs, em determinados momentos, se assemelha a uma sátira à moda de Uma
Proposta Modesta de Jonathan Swift sobre as forças tecnológicas e repressivas que
38
BURROUGHS, 2005a, p. 71. 39
BURROUGHS, 2005a, p. 71. 40
BURROUGHS, 2005a, p. 72. 41
BURROUGHS, 2005a, p. 73. 42
BURROUGHS, 2005a, p. 73. 43
BURROUGHS, 2005a, p. 73. No que tange aos trechos do livro considerados pornográficos, eles foram
escritos, segundo o próprio Burroughs, como uma espécie de manifesto contra a Pena Capital, imposta ao
mesmo tempo sobre viciados e homossexuais: “Tais trechos têm a intenção de desnudar a pena capital
como o anacronismo obsceno, bárbaro e repugnante que é. Como sempre o almoço está nu. Se os países
civilizados desejam um retorno aos Rituais de Enforcamento dos Druidas nos Bosques Sagrados, ou beber
sangue com os astecas alimentando seus Deuses com sangue de sacrifícios humanos, que tenham plena
consciência do que realmente estão comendo e bebendo. Que vejam de perto o conteúdo das colheres
servidas a eles pelos jornais” (BURROUGHS, 2005a, p. 252).
25
atacam a mente e a sexualidade, “(...) um poderoso ato de invenção e uma voz da nova
arte de espontaneidade surrealista e caráter provisório que estava entrando na cultura
americana numa época de invenção animada, livre”.44
Com relação ao título da obra, segundo Burroughs, ele teria sido uma
sugestão do escritor e amigo Jack Kerouac. “O título foi uma sugestão de Jack
Kerouac”, disse Burroughs. E acrescenta: “Só fui entender o significado do título depois
de minha recente recuperação. O título significa exatamente o que dizem suas palavras:
Almoço NU – um momento paralisado no qual todos são capazes de enxergar o que está
cravado na ponta de cada garfo”.45
Entretanto, existem alguns relatos conflitantes a
respeito da origem desse título. Numa carta de junho de 1960, por exemplo, Kerouac
lembra o poeta Allen Ginsberg da origem do título: “Não tenho falado com Burroughs
[ultimamente], mas fiquei feliz quando ele mencionou que fui eu quem batizou Almoço
Nu (mas foi você, lembra? estava lendo o manuscrito e confundiu „naked lust‟ com
„naked lunch‟, eu só chamei a atenção para o erro) (...)”.46
Um ato falho cometido por
Ginsberg, ao substituir lust (literalmente, “luxúria”) por lunch, estaria na base do título
do livro, atribuído posteriormente a Kerouac. Mas, para Grauerholz & Miles, “a carta de
1960 parece definir a invenção do título „Almoço Nu‟ como uma parceria de Kerouac e
Ginsberg”.47
Para além dessa curiosidade de história literária, o título transmite um
profundo sentido fenomenológico, uma “objetividade” que pretende chamar cada coisa
pelo seu nome correto, no momento de sua aparição, como o momento paralisado do
qual fala Burroughs. E, por esse motivo, o real fragmentado se opõe aqui à abstração
ideal.
Neste sentido, livro de Burroughs não é acessível sem o concurso da
experiência; essa parece ser a única condição imposta ao leitor, ou seja, de que tenha
com ele certa afinidade interna. Pois em se tratando da experiência de um estado
subjetivo, cuja existência não pode ser legitimada por nenhum critério exterior,
nenhuma tentativa posterior de descrição e explicação racional será bem sucedida, visto
que só quem fez tal experiência poderá compreender e testemunhar tal realidade. A
explicação dada por Burroughs quanto ao sentido da palavra hip (descolado) fornece
uma indicação neste sentido, quando afirma que “esta expressão não está sujeita a
definições, pois se você não „saca‟ o que ela significa, ninguém será capaz de lhe
44
BRADBURY e TEMPERLEY, 1981, p. 330. 45
BURROUGHS, 2005a, p. 245. 46
BURROUGHS, 2005a, p. 281. 47
BURROUGHS, 2005a, p. 282.
26
explicar”.48
Neste sentido, não existe aqui qualquer possibilidade de um conhecimento
indireto, apriorístico, sem o risco da experiência: “Não sei como descrever ao leitor
branco. Pode-se escrever ou gritar ou cantar sobre isso... pintar sobre isso... representar
sobre isso... cagá-lo sob a forma de mobiles... Desde que você não vá e faça...”.49
Entendido dessa maneira, Almoço Nu não possui um problema, nem representa nada;
ele é um experimento, um processo de experimentação que só significa o que ele é: uma
experimentação.50
Experimentação – isto não é um conceito, mas um nome que designa
algo do qual temos certeza imediata, sem poder definir jamais. Na verdade, apenas o
sistemático é analisável, somente conceitos são definíveis por outros conceitos. (Em
última análise, princípios abstratos são apenas generalizações, sob cujo emprego
habitual a vida flui.) A experimentação-vida segue sendo o que sempre foi: o que não
pode nem pensar-se nem representar-se, o mistério, o eterno devir, a pura experiência
íntima.51
Mas, afinal, que tipo de experiência é relatado em Almoço Nu? Drogas,
todos os tipos de drogas, maconha, cocaína, benzedrina, nembutal, peiote, yagê, anti-
histamínicos, etc. E principalmente heroína. O livro é um relato pormenorizado da
doença da junk, ao longo de quase quinze anos da vida de Burroughs.52
É claro que as
drogas têm um papel importante na obra de Burroughs. Porém, Almoço Nu não é todo
sobre drogas. O romance trata também de alguns dos temas centrais do pós-guerra, na
última fase do modernismo ou início do “pós-modernismo” norte-americano, tais como
paranóia, cultura pop, estruturas de controle, tecnologia, aniquilação, etc. O estilo do
livro se caracteriza também pelo uso das mais variadas formas de registro associados à
cultura de massa – o desenho animado, o filme B, a estória em quadrinhos, o livro
48
BURROUGHS, 2005b, p. 26. 49
BURROUGHS, 2005a, p. 229. 50
Deleuze entende a literatura anglo-saxônica como um processo de experimentação. Num trecho de
Diálogos, ele afirma: “A literatura inglesa ou americana é um processo de experimentação” (DELEUZE,
2004, p. 64). Neste fragmento, Deleuze salienta na literatura inglesa e americana o predomínio da
experimentação sobre processos puramente abstratos. 51
“A vida... mais misteriosa – desde o dia em que o grande libertador se abateu sobre mim, o pensamento
de que a vida poderia ser um experimento do conhecimento – (...). A vida como um meio do
conhecimento –” (Nietzsche, em A gaia ciência – Livro IV, § 324, 2001). Este pensamento de Nietzsche
expressa bem essa postura na qual a vida, a experiência, antecede toda abstração, onde a vida mesma se
torna palco do conhecimento, lugar de experimentação. 52
Junk: literalmente, “porcaria”, “refugo”. Junk é um termo genérico para diversos medicamentos e
substâncias relacionadas ao ópio, o extrato da papoula. Têm em comum propriedades narcóticas,
analgésicas e hipnóticas. Seus derivados mais puros, extraídos diretamente da papoula, são conhecidos
como opiáceos (por exemplo, a morfina). Quando resultam de modificações parciais, são chamados de
opiáceos semi-sintéticos (por exemplo, a heroína), enquanto os compostos sintéticos de ação semelhante à
do ópio são conhecidos como opiáceos sintéticos ou opióides (por exemplo, a metadona). A propósito, cf.
“Carta de um Perito no Vício em Drogas Perigosas”, um anexo de Almoço Nu sobre drogas pesadas.
27
pornográfico, mas também o jargão científico e tecnológico. Almoço Nu abrange,
portanto, diversos campos e temáticas, como física, matemática, química, filosofia,
história, antropologia, música, quadrinhos, drogas, medicina, psicologia, unindo-os de
maneira humorística, absurda, poética e sombria – uma encruzilhada de gêneros e
estilos por vezes inconciliáveis, mas, que, ao mesmo tempo, revela uma inequívoca
organicidade. É nesse sentido que William Burroughs não é um mero junky writer. As
drogas devem ser entendidas apenas como ponto de partida de toda a sua produção, ao
percorrê-la de uma ponta à outra.
Na verdade, Burroughs chegou a expandir o sentido de dependência para
além da doença da junk, estendendo o termo para outros âmbitos da vida humana. “As
drogas têm um papel importante em minha obra”, dissera Burroughs, “porém estou mais
interessado no vício em si mesmo, um modelo de controle que torna possível a
decadência dos potenciais biológicos humanos”.53
De certo modo, o grande mérito de
Burroughs foi o de ter determinado a essência ou a natureza do vício não a partir de seu
objeto – drogas, sexo, dinheiro, poder, etc. –, mas como essência subjetiva abstrata
(o vício abstrato, o vício qualquer, que não é mais tomado sob esta ou aquela forma)
enquanto um modelo de controle. Uma espécie de “estetismo” superior que elevou o
vício à categoria de questão, à questão propriamente transcendental do vício: como o
vício é possível enquanto problema? O problema do vício é colocado de maneira
filosófica, como problema transcendental das relações entre o vício e o pensamento do
controle. Portanto, é neste sentido que as drogas serviriam, segundo Burroughs, de
modelo para outras formas de controle. Por exemplo: em Junk (1956), primeiro romance
de Burroughs, o vício em drogas aparece como metáfora para os males da sociedade de
consumo; e numa época em que as novas formas de servidão humana passam
necessariamente pela simplificação e degradação do homem, como uma mercadoria,
Burroughs parece correto na sua apreciação. Quando Burroughs se refere ao mundo da
junk como “moldado em posse e monopólio”, isso se ajusta perfeitamente à sociedade
de consumo, já que qualquer droga entendida como mercadoria, como monopólio, é
possível apenas numa sociedade capitalista; e assim como, segundo Marx, o operário é
alienado em relação ao produto de seu trabalho, da mesma forma o dependente é
alienado em relação à droga:
Junk é o produto ideal... a mercadoria perfeita. O vendedor não precisa
de lábia. O cliente se arrastará pelo meio do esgoto implorando uma
53
MIRA e LANGER, 2001, p. 04.
28
chance de comprar... O vendedor de junk não vende seu produto ao
consumidor; vende o consumidor ao seu produto. Não melhora nem
otimiza sua mercadoria. Piora a qualidade da mercadoria e otimiza o
cliente. Paga seus funcionários em junk.54
Esse é um bom exemplo da aplicação do vício em drogas para outros
âmbitos da vida humana, segundo a fórmula de Burroughs: “Pois existem diversas
formas de dependência, e creio que todas elas obedecem leis básicas”.55
Mas, se em
Junky Burroughs ainda não concebe o vício como modelo para as chamadas formas de
controle, em Almoço Nu essa ideia aparece claramente. Nesse ponto, emerge na obra de
Burroughs o pensamento do controle (que analisaremos mais detidamente no quarto
capítulo) – o problema, por assim dizer, que obseda toda a obra de Burroughs. O Doutor
Benway, por exemplo, emprega drogas em interrogatórios como meio para a obtenção
de controle total sobre os interrogados: “Na falta de conhecimentos mais precisos sobre
a eletrônica cerebral, as drogas continuam sendo uma ferramenta essencial do
interrogador em seus ataques à identidade pessoal do espécime”.56
Contudo, é num trecho de “Corporação Islã e Partidos de Interzona” que
uma operação de mudança de sentido se realiza integralmente, quando Burroughs
procura definir a noção de controle tomando a junk como um protótipo do controle,
concebendo o vício como um modelo para o controle. O texto em questão é uma longa
reflexão sobre as chamadas técnicas de emissão onde, ao final do trecho, é realizada a
operação de mudança de sentido. Segundo o narrador, os encarregados por essas
emissões, chamados de Emissores, fariam uso exclusivo de transmissões telepáticas
para controlar o espécime. Como ilustração, o narrador utiliza o exemplo dos Códices
Maias que, segundo ele, teriam feito uso de transmissões telepáticas para a obtenção de
controle sobre a população.57
Conhecem os códices Maias? É assim que os compreendo: os
sacerdotes – por volta de um por cento da população – fizeram uso de
emissões telepáticas de sentido único para informar os trabalhadores a
respeito do quê e quando sentir... Um emissor telepático precisa estar
emitindo a todo momento. Nunca pode receber, porque assim estaria
indicando ter sua continuidade parasitada por alguém com emoções
próprias. O Emissor precisa emitir o tempo todo, mas não pode
recarregar-se através de contato. Mais cedo ou mais tarde, fica sem
54
BURROUGHS, 2005a, p. 247. 55
BURROUGHS, 2005a, p. 252. 56
BURROUGHS, 2005a, p. 34. 57
Burroughs entende pontualmente o sistema maia como um calendário de controle: “Tenho me
interessado pelo sistema maia, que era um calendário de controle. Veja, o calendário deles postulava
realmente como todo mundo deveria se sentir num certo tempo, com dias de sorte, dias de azar, etc.”
(BURROUGHS, 1988, p. 150).
29
emoções a transmitir. Não é possível ter emoções sozinho. Não
quando se é sozinho como um emissor – e, como é notório, só pode
haver um único Emissor em dado ponto do espaço-tempo... Por fim, a
tela se apaga... O Emissor transformou-se numa enorme centopéia...
Os trabalhadores então se aproximam, ateiam fogo à centopéia e
elegem um novo Emissor por meio de consenso geral... Os Maias
eram limitados por seu isolamento... Hoje um único Emissor
controlaria todo o planeta... Entendam, o controle não pode de modo
algum ser um meio para qualquer fim prático... Não pode de modo
algum ser um meio para qualquer coisa além de mais controle... É
como a junk.58
Evidentemente, existe toda uma tradição literária no Ocidente sobre drogas.
Grande parte dela remonta ao início do Romantismo. Em 1820, o inglês Thomas de
Quincey publica “Confissões de um comedor de ópio”. O poeta francês Baudelaire
escreve “Paraísos artificiais” no ano de 1858. No século XX, Aldous Huxley publica o
ensaio “As portas da percepção: céu e inferno” (1950), relatando suas experiências com
a mescalina. Em 1958, o surrealista Jean Cocteau publica “Opium: o diário de uma
cura”. Recentemente (1993), o escocês Irvine Welsh publicou “Trainspotting”,
posteriormente adaptado para o cinema, sobre um grupo de amigos viciados em heroína.
Todavia, nenhum deles se iguala a Almoço Nu no que tange à experimentação formal,
composto a partir de uma técnica inspirada em procedimentos artísticos de vanguarda: a
técnica do cut-up. Neste método de criação literária desenvolvido por Burroughs e Brian
Gysin (pintor inglês, amigo e colaborador de Burroughs em Tânger), frases e palavras
eram recortadas de livros e jornais e reorganizadas ao acaso, dando origem ao um novo
texto baseado em princípios de colagem e edição não-linear. Assim, no experimento
formal do cut-up se manifestaria a experiência de uma percepção fragmentada,
determinada pelo entrecruzamento de inúmeras probabilidades, os chamados “pontos de
intersecção” burroughsianos.59
Contudo, o livro de Burroughs não se utiliza apenas da
técnica do cut-up para inverter a rota usual da sintaxe; na verdade, Burroughs realiza
uma verdadeira demolição da linguagem se utilizando de diversos sinais linguísticos.
“É como se a sintaxe que compõe a frase, e que dela faz uma totalidade capaz de
desdizer-se, tendesse a desaparecer liberando uma frase assintática infinita que se estira
e lança travessões como intervalos espaço-temporais”.60
O texto está repleto de
58
BURROUGHS, 2005a, p. 172. 59
Reservamos uma seção à parte para tratar pormenorizadamente da técnica do cut-up, bem como de sua
“utilização”. Por ora, basta assinalarmos que foi o próprio Burroughs quem levou a técnica do cut-up para
o romance, e quem posteriormente elaborou vários romances a partir dessa técnica, entre os quais se
encontra Almoço Nu. 60
DELEUZE, 1997, p. 69.
30
travessões e parênteses, conjunções e reticências, o que acaba por recriar não apenas a
sintaxe, mas também a própria língua, convertendo-a numa espécie de língua
estrangeira, expandindo ou fragmentando o discurso, desviando-o de seu curso usual
(sem falar do uso frequente de conjunções básicas, em especial a conjunção “e”): “É
uma frase quase louca, com suas mudanças de direção, rupturas e saltos, seus
estiramentos, germinações, parênteses”.61
De qualquer modo, a escrita de Burroughs é
uma escrita indiferente a todo e qualquer tipo de suporte ou unidade configuradora,
funcionando como puro processo de experimentação – no dizer de Deleuze & Guattari,
“entranhas de misericórdia sem sentido e sem fim (a experiência Artaud, a experiência
Burroughs)”.62
E continua:
É aqui que a arte atinge a sua modernidade autêntica, que consiste
unicamente em libertar o que já estava presente na arte de todos os
tempos, mas encontrava-se oculto pelos fins e objetos ainda que
estéticos, pelas recodificações e axiomáticas: o puro processo que se
realiza e que não deixa de se realizar enquanto se vai processando, a
arte como “experimentação”.63
Também reaparece frequentemente a mesma coisa dita num outro ponto
com as mesmas palavras, com pequenas variações. Não devemos, por isso, nos espantar
com eventuais repetições quando o próprio Burroughs nos dá uma explicação para esse
fato; segundo ele mesmo: “Isso não é um descuido nem um aceno para o Departamento
dos Apaixonados pelo Som das Próprias Palavras... São indicações de uma justaposição
no espaço-tempo... uma dobra interna que se fecha (dizem por aí que o universo é
côncavo)... um ponto de intersecção entre níveis de experiência no encontro de linhas
paralelas...”.64
Essas relações acabam por criar uma espécie de circularidade, com
múltiplas entradas no interior do romance.65
Mais ainda: talvez essas repetições tenham
por finalidade a obtenção de uma pequena diferença, uma minúscula diferença entre
duas frases, a torção ou a reduplicação de uma frase à outra, dando origem a uma
segunda frase, diversa da primeira. Como diz Deleuze: “Não é um desdobramento do
61
DELEUZE, 1997, p. 69. Em outro lugar Deleuze dirá: “Não há linha reta, nem nas coisas nem na
linguagem. A sintaxe é o conjunto dos desvios necessários criados a cada vez para revelar a vida nas
coisas” (DELEUZE, 1997, p. 12). Isto se ajusta perfeitamente aquilo que talvez Burroughs pretendesse
comunicar com a técnica do cut-up, quando busca, entre outras coisas, alterar a rota usual da sintaxe. 62
DELEUZE e GUATTARI, 2004, p. 389. 63
DELEUZE e GUATTARI, 2004, p. 389. 64
BURROUGHS, 2005a, p. 341. 65
Referindo-se à obra de Kafka, Deleuze & Guattari fazem a seguinte afirmação: “O princípio das
entradas múltiplas impede somente a entrada do inimigo, o Significante, e as tentativas para interpretar
uma obra que, de facto, só propõe a experimentação” (DELEUZE e GUATTARI, 2003, p. 19). Essa
concepção se ajusta perfeitamente às múltiplas entradas existentes em Almoço Nu.
31
Um, mas uma reduplicação do Outro. Não é uma reprodução do Mesmo, mas uma
repetição do Diferente”. E continua:
Esse tema constante de Foucault já havia sido objeto de uma análise
completa, que inspirava Raymond Roussel. Pois o que Raymond
descobriu foi: a frase do lado de fora; a sua repetição numa segunda
frase; a minúscula diferença entre as duas (o “rasgão”); a torção, o
forro ou a reduplicação de uma à outra.66
Outro elemento importante do livro de Burroughs que merece ser destacado
é a caracterização das personagens: elas não possuem uma identidade discernível,
parecem irredutíveis a qualquer forma de determinação; em outras palavras: as
identidades fixas cedem lugar a zonas de indeterminação. O Justiceiro, o Bronco, o
Agente Lee, o Marujo, o Doutor Benway, “Dedos” Schafer – personagens de Almoço
Nu –: elas não são pessoas, com uma identidade ou um contorno definível. Os seus
nomes não parecem designar pessoas, mas antes variações intensivas, como “estados
necessariamente gemeais e bissexuados por que um sujeito passa sobre um ovo
cósmico. É preciso interpretar tudo em intensidade”.67
Mais ou menos como faz
Burroughs no “Prefácio Atrofiado”. Todo o restante, policiais, médicos, viciados,
traficantes, etc., devem ser entendidos genericamente apenas como tipos, ou seja, como
aquilo que reúne em si os caracteres distintivos de uma atividade ou grupo (sobretudo,
os tipos instáveis, que sobrevivem nos enclaves ou nas margens de uma sociedade: o
drogado, o homossexual, o estrangeiro...)
Mais cedo ou mais tarde o Justiceiro, o Bronco, o Agente Lee, A.J.,
Clem e Jody os irmãos Ergotina, Hassan O‟Leary o Magnata do Pós-
Parto, o Marujo, o Exterminador, Andrew Keif, „Gordo‟ Terminal,
Doutor Benway e „Dedos‟ Schafer acabarão dizendo a mesma coisa
com as mesmas palavras, ocupando a mesma posição no espaço-
tempo naquele ponto de intersecção...68
Num trecho de Diálogos, Deleuze alude ao escritor inglês Thomas Hardy,
cujas personagens são exatamente como as personagens de Burroughs, ou seja, eles
“não são pessoas ou sujeitos, são coleções de sensações intensivas, cada uma é uma
coleção dessas, um pacote, um bloco de sensações variáveis”.69
Segundo Deleuze,
existiria nestes personagens um modo de individuação sem sujeito, de individuação
impessoal, um tipo de singularidade individual definida antes por afetos, potências e
66
DELEUZE, 2006a, p. 105. 67
DELEUZE e GUATTARI, 2004, p. 163. 68
BURROUGHS, 2005a, p. 228-229. 69
DELEUZE, 2004, p. 55. Segundo Deleuze & Guattari, é possível encontrar um equivalente deste
processo também em Proust, “(...) em que a unidade das pessoas e das figuras que constitui dão lugar a
nebulosas, a conjuntos duvidosos e proliferantes” (DELEUZE e GUATTARI, 2003, p. 32-33).
32
intensidades – mais ou menos como as personagens de Almoço Nu, as quais se
comportam como configurações flutuantes, sem identidade discernível, compondo uma
espécie de paisagem não-humana, irredutível a limites personológicos (não deixando,
portanto, espaço a um sujeito qualquer determinável). “É uma zona de indeterminação,
de indiscernibilidade, como se coisas, animais e pessoas (...) tivessem atingido, em cada
caso, este ponto (todavia no infinito) que precede imediatamente sua diferenciação
natural”.70
Entendido dessa maneira, a identidade parece não ser mais o ponto de
unidade de um sujeito, o qual adquire uma nova constituição, de natureza flutuante,
abandonando assim o antigo modelo de estabilidade e de discernibilidade construído em
torno da noção de indivíduo. Neste sentido, o sujeito não é mais constituído por uma
identidade, mas é entendido como uma zona de indiscernibilidade. A.J., por exemplo, é
um agente, mas, segundo a narrativa de Almoço Nu, “nunca alguém conseguiu descobrir
a serviço de quem ou de quê ele está. Segundo alguns boatos, ele representa um
conglomerado de insetos gigantes de outra galáxia...”.71
A aparência de Salvador
Hassan O‟ Leary é, ainda segundo a narrativa, “sinistra e enigmática – seus gestos e
maneirismos permanecem incompreensíveis – como as de um agente secreto de um
Estado embrionário”.72
E o Dr. Benway, que ora é confundido com um agente ocidental
infiltrado, ora com um praticante de magia negra disfarçado. Ou ainda o Marujo, um
junky enigmático, quase inumano, também confundido com um agente. Citemos um
trecho de “A Carne Negra”, o qual alude diretamente ao Marujo, a fim de explicitarmos
melhor o que acabamos de dizer acerca das outras personagens de Almoço Nu:
– Amigos, né?
Envergando seu sorriso maroto, o pequeno engraxate olhou para cima
e encarou os olhos mortos, frios e submarinos do Marujo, olhos sem
traço algum de afeto ou luxúria ou ódio ou qualquer sentimento que o
menino já tivesse experimentado por si mesmo ou visto em outro
alguém, ao mesmo tempo frios e intensos, impessoais e predatórios.73
Ou novamente, a propósito de Benway:
Pela primeira vez, os olhos do médico passaram brevemente pelo
rosto de Carl. Olhos sem traço algum de afeto ou ódio ou qualquer
sentimento que Carl já tivesse experimentado por si mesmo ou visto
em outro alguém, ao mesmo tempo frios e intensos, predatórios e
70
DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 205. E ainda, segundo Deleuze & Guattari: “É nos meios
temperados de nossa civilização que agem e prosperam atualmente as zonas equatoriais ou glaciais que se
furtam à diferenciação dos gêneros, dos sexos, das ordens e dos reinos. Só se trata de nós, aqui e agora;
mas o que é animal em nós, vegetal, mineral ou humano, não mais é distinto (...)” (DELEUZE e
GUATTARI, 1992, p. 206). 71
BURROUGHS, 2005a, p. 154. 72
BURROUGHS, 2005a, p. 164. 73
BURROUGHS, 2005a, p. 60.
33
impessoais. Carl subitamente começou a sentir-se preso naquele
cômodo cavernoso, quieto e submerso, desligado de qualquer fonte de
afeto e certeza. Sua imagem de si mesmo – um homem sentado, de
aparência serena e alerta, com um quê de desprezo educado –
começou a desvanecer-se, com se a vitalidade estivesse sendo
exaurida de seu corpo para fundir-se com o ambiente leitoso e
macilento daquele cômodo.74
Neste sentido, tanto o Marujo quanto Benway são dois homens sem
referências, sem propriedades, sem particularidades humanas, insólitos demais para que
neles se possa pendurar uma particularidade qualquer – homens sem passado nem
futuro, apenas instantâneos desprovidos de qualidade (ασαπακηήπιζηορ75
). Em todo o
caso, estes e outros exemplos, que revelam a pobreza das chamadas imagens
discerníveis e imutáveis, parecem mostrar que nem o homem nem a mulher devem mais
ser entendidos como personalidades bem definidas, como identidades fixas, mas antes
como vibrações, como intensidades, como zonas de indeterminação.76
Perderam-se as
antigas referências, e a “densidade” pessoal cede o passo a um elemento desconhecido,
ao mistério de uma vida não-humana, informe e obscura, um mundo de intensidades
puras, “em que todas as formas se desfazem assim como as significações, significantes e
significados, em benefício de uma matéria não formada, de fluxos desterritorializados,
de signos a-significantes”.77
Assim, ao mesmo tempo em que perdem sua identidade,
estas personagens já não se apresentam exatamente, podendo ser diferenciados apenas
em parte ou não podendo ser de modo algum, ou seja, elas se tornam funções. Em
outras palavras, o Eu se dissolve, se volatiliza, abrindo caminho a todos os outros “eus”,
ou melhor, à emergência de novas subjetividades, sem identidade, sem uma base
substancial unitária ou forma de interioridade.78
74
BURROUGHS, 2005a, p. 195-196. 75
Acharaktéristos: sem qualidade. 76
“Por exemplo, colocar a mulher num pedestal, ou, pelo contrário, não lhe dar qualquer importância:
torná-la uma dona de casa modelo, uma mãe ou uma esposa modelo, são simplesmente meios para nos
esquivarmos a qualquer contacto com ela. Uma mulher não é um símbolo, não é uma personalidade
distinta e definida... Uma mulher é uma estranha e suave vibração do ar, que avança, inconsciente e
ignorada, à procura de uma vibração que lhe responda. Ou então é uma vibração penosa, discordante e
desagradável ao ouvido, que avança ferindo todos os que se encontram ao seu alcance. E o homem
também” (D. H. Lawrence apud DELEUZE e GUATTARI, 2004, p. 368). Ou ainda, segundo Deleuze &
Guattari: “Lawrence, Miller, Laing souberam mostrá-lo: nem o homem nem a mulher são personalidades
bem definidas – mas antes vibrações, fluxos, esquizes e „nós‟. (...) Porque cada um de nós é um
grupúsculo, e assim deve viver, ou antes, é como a caixa de chá zen, quebrada e múltipla, que tem as
fendas remendadas com cimento de ouro, ou como as lajes de uma igreja cujas fissuras a pintura ou a cal
fazem sobressair (...)” (DELEUZE e GUATTARI, 2004, p. 380). 77
DELEUZE e GUATTARI, 2003, p. 34. 78
“A espontaneidade de hoje talvez escape ao indivíduo, assim como à pessoa; não simplesmente por
causa de potências anônimas. Mantiveram-nos durante muito tempo na alternativa: ou sereis indivíduos e
pessoas, ou vos reunireis a um fundo anônimo indiferenciado. Nós descobrimos, todavia, um mundo de
34
O sujeito perde sua textura em favor de um patchwork, de uma colcha
de retalhos que prolifera ao infinito: o patchwork americano torna-se a
lei (...) desprovida de centro, de avesso e de direito. É como se os
traços de expressão escapassem da forma, semelhantes às linhas
abstratas de uma escrita abstrata (...).79
Ou ainda:
O ato fundador do romance americano, o mesmo que o do romance
russo, consistiu em levar o romance para longe da via das razões e dar
nascimento a esses personagens que estão suspensos no nada, que só
sobrevivem no vazio, que conservam seu mistério até o fim e desafiam
a lógica e a psicologia.80
Como bem observara Robbe-Grillet (1969, p. 22), em seus célebres
estudos sobre o “novo romance”, publicado no ano de 1963, o romance de personagens
pertence a um passado distante, caracterizando uma época bem precisa: a que marcou o
apogeu do indivíduo. E diz:
Talvez isto não seja um progresso, mas está fora de dúvida que a
época atual é antes a era do número de matrícula. Para nós, o destino
do mundo deixou de se identificar com a ascensão ou com a queda de
alguns homens, de algumas famílias. (...) Ter um nome era sem dúvida
muito importante no tempo da burguesia de Balzac. Um caráter era
importante (...). Representava alguma coisa ter um rosto num universo
onde a personalidade representava ao mesmo tempo o meio e o fim de
toda procura. Hoje, nosso mundo está menos seguro de si mesmo,
mais modesto talvez, uma vez que renunciou à pessoa todo-poderosa,
mas também mais ambicioso, uma vez que olha para além. O culto
exclusivo do “humano” cedeu lugar a uma tomada de consciência
mais ampla, menos antropocentrista. O romance parece vacilar, tendo
perdido seu melhor sustentáculo de outrora, o herói. Se não se
consegue se pôr de pé novamente é porque sua vida estava ligada à
vida de uma sociedade agora extinta. Se conseguir, pelo contrário, um
novo caminho se abrirá para ele, com a promessa de novas
descobertas.81
Entendido dessa maneira, as antigas identidades são como moldes fixos,
estáticos, mas as novas subjetividades são uma modulação, como uma moldagem
singularidades pré-individuais, impessoais. Elas não se reduzem aos indivíduos e nem às pessoas, e nem a
um fundo sem diferença. São singularidades móveis, ladras e voadoras, que passam de um a outro, que
arrombam, que formam anarquias coroadas, que habitam um espaço nômade. Há uma grande diferença
entre repartir um espaço fixo entre indivíduos sedentários, segundo demarcações e cercados, e repartir
singularidades num espaço aberto sem cercados e nem propriedade” (DELEUZE, 2006a, p. 185). 79
DELEUZE, 1997, p. 89-90. 80
DELEUZE, 1997, p. 94. 81
ROBBE-GRILLET, 1969, p. 22-23. Na verdade, com esta recusa do “antropocentrismo” Robbe-Grillet
pretende atingir tanto a linguagem analógica e o humanismo tradicional bem como a ideia de tragédia
enquanto identidade entre homem e natureza. Nas palavras do próprio autor: “Portanto, existe a recusa do
vocabulário analógico e do humanismo tradicional, recusa ao mesmo tempo da idéia de tragédia, de
qualquer outra ideia que leve à crença numa natureza profunda e superior do homem ou das coisas (e dos
dois juntos), recusa enfim de toda ordem preestabelecida” (ROBBE-GRILLET, 1969, p. 52).
35
autodeformante que parece mudar continuamente, a cada instante: o homem modulado,
um tipo de homem sem formato determinado, mas um conjunto infinito de formas ou
expressões possíveis (uma frequência de ondas, não um molde fixo, uma função).
Neste sentido, este novo homem não pode nem deve ser determinado finitamente,
enquanto uma grandeza, visto que é um sujeito que possui “qualidades” móveis e
flutuantes, cambiáveis, variáveis, como um mundo de possibilidades infinitas,
intérminas. Como uma função, portanto, ele se prolifera sobre si próprio, ou seja, ele
não para de se segmentar e de percorrer todos os seus segmentos.
Convém retomarmos ainda aquilo que dissemos anteriormente sobre a
diferença conceitual entre Burroughs e Deleuze, relativamente à compreensão da perda
das identidades discerníveis, pois se Burroughs (ao que tudo indica) parece enxergar
nesse acontecimento um elemento de negatividade, ou seja, como algo destrutivo e
mortal, para Deleuze, tal perda ou esgotamento representa uma potência positiva, uma
característica positiva afirmada pelo indivíduo. Ou seja, para Deleuze, esta
indeterminação não significa alguma coisa de inacabado na individualidade. Ao
contrário, ela exprime a plena potência positiva do indivíduo enquanto tal. Diz Deleuze:
Foi freqüentemente assinalada a franja de indeterminação de que
gozava o indivíduo e o caráter relativo, flutuante e fluente da própria
individualidade (...). Mas o erro é acreditar que essa relatividade ou
essa indeterminação signifiquem alguma coisa de inacabado na
individualidade, alguma coisa de interrompido na individuação. Ao
contrário, eles exprimem a plena potência positiva do indivíduo como
tal e a maneira pela qual ele se distingue, por natureza, de um Eu, bem
como de um eu. (...) Indeterminado, flutuante, fluente, comunicante,
envolvente-envolvido, são outras características positivas afirmadas
pelo indivíduo.82
É verdade que cada um a sua maneira soube impor a existência de uma tal
zona de indeterminação, em que não se é mais possível distinguir quem é animal e
quem é humano, capaz de dissolver a semelhança entre formas humanas e animais. Em
Burroughs, por exemplo: “Era uma sexta-feira quando o „Gordo‟ escorreu até a Praça
sob forma de um feto simiesco translúcido e desprovido de cor, com ventosas em suas
mãozinhas macias e cinza-arroxeadas e uma boca de lampreia formada de cartilagem
fria (...)”.83
Contudo, a apreciação deleuziana citada anteriormente parece distingui-lo
diametralmente do pessimismo burroughsiano (é o que se depreende das citações
extraídas de Almoço Nu). Em todo o caso, o estabelecimento dessa diferença conceitual
82
DELEUZE, 1988, p. 360-361. 83
BURROUGHS, 2005a, p. 212.
36
é importante, a fim de evitarmos qualquer tipo de igualização ou semelhança entre esses
dois “sistemas”. (Neste sentido, portanto, é preciso dizer que esta diferença existe ou
que ela se estabelece, ou seja, devemos afastar qualquer ideia de semelhança entre
ambos.)
37
Capítulo 2. Texto e contexto: um estudo histórico-literário.
Apresentação
O livro de Burroughs não deve ser entendido como algo separado, como
independente, por exemplo, das vanguardas européias do século XX ou da tradição
literária norte-americana; ao contrário, ele possui raízes profundas nessas duas
tendências. Neste sentido, o presente capítulo procurará desenvolver um estudo
histórico-literário, no qual buscaremos analisar algumas filiações e influências
associadas à obra de Burroughs, tais como as vanguardas artísticas européias, a tradição
literária norte-americana, entre outras referências.
A literatura do século XX se caracterizou por uma série de experimentações
estilísticas. Joyce, por exemplo, desenvolveu as “palavras-valises”; Beckett organizou a
frase sobre várias camadas de significantes, de modo a expressar todo um horizonte de
possibilidades semânticas; Aldous Huxley desenvolveu a técnica do “contraponto”
narrativo; E. E. Cummings transformou a linguagem poética com sua agramaticalidade;
Raymond Roussel desenvolveu o “procedimento”.
Esta literatura moderna que escava uma „língua estranha em sua
língua‟ e, através de um número ilimitado de construções gramaticais
superpostas, tende a uma expressão atípica, agramatical, como que
visando ao fim da linguagem (poderíamos citar, entre outros e a título
de exemplo, o livro de Mallarmé, os ensaios de Péguy, os sopros de
Artaud, as agramaticalidades de Cummings, as dobraduras de
Burroughs, cut-up e fold-in, mas também as proliferações de Roussel,
as derivações de Brisset, as colagens Dada...).84
Estes são alguns nomes que fundaram novas técnicas estilísticas, na busca
por novas possibilidades formais. Todavia, pode-se afirmar que, entre as técnicas
empregadas na composição de romances, o cut-up é uma das mais interessantes.
Originalmente, a técnica do cut-up (ou “recorte”) surgiu nas artes plásticas, por meio de
Brian Gysin, pintor inglês, colaborador e amigo de Burroughs em Tânger. Gysin, um
egresso do surrealismo, desenvolveu uma maneira diferente de intervir sobre uma tela
de pintura ao dispor sobre a superfície da tela vários tipos de recortes, que incluíam
textos literários e recortes de jornais. De modo análogo, alguns experimentos foram
realizados com a técnica do cut-up em poemas cujos resultados tiveram forte impacto
84
DELEUZE, 2006b, p. 141.
38
sobre Burroughs. O recurso consistia em escrever um poema de forma linear, que em
seguida era recortado e novamente rearranjado, a fim de se obter um novo texto.85
A intenção era explorar os sentidos semânticos das palavras com base nos fragmentos
rearranjados, os quais implicavam em novos questionamentos sobre a natureza da
linguagem. Burroughs, finalmente, levou a técnica do cut-up para o romance,
elaborando vários romances a partir dessa técnica, a exemplo de Soft Machine (1961),
The Ticket That Exploded (1962) e Nova Express (1964), sendo o último totalmente
construído sob essa técnica, a partir de colagens de James Joyce, Shakespeare,
Rimbaud, Jack Kerouac, etc. Todavia, há quem pensasse – o que incluía o próprio
Kerouac – que Burroughs não produziu nada de inovador com a técnica, com exceção
de Almoço Nu. Essa observação é válida, sobretudo, para aqueles que pensam que toda a
obra de Burroughs se encontra baseada unicamente na técnica do cut-up, de que tenha
recorrido apenas a ela para a composição de romances. De fato, como aponta Claudio
Willer, trechos de Almoço Nu foram remontados ou reorganizados de modo aleatório
utilizando-se a técnica do cut-up.86
Todavia, como salienta Willer, não se pode dizer que
a obra de Burroughs foi construída unicamente a partir da técnica do cut-up. Para ele,
Burroughs soubera equilibrar a costura combinatória de textos à narrativa linear
tradicional, aplicando vários métodos e técnicas, em um processo experimental
consistente, a exemplo dos romances da última fase, na década de 1980:
Na verdade, além de Minutes to Go apenas The Soft Machine, daquele
período, e The Ticket that Exploded foram inteiramente criados desse
modo. A leitura de obras publicadas mais tarde, como Cities of the
Red Light, de 1981, que correspondeu a uma espécie de retorno
literário, ou o pseudofaroeste The Western Lands, de 1987, mostra que
85
Eis a exposição da técnica do cut-up feita por Burroughs em The Third Mind, uma coleção de escritas
cut-ups e de ensaios sobre a técnica: “O método é simples. Eis um caminho para praticá-lo. Pegue uma
folha de papel. Como esta página. Agora corte-a ao meio. Corte no meio das duas partes. Você tem quatro
pedaços: 1, 2, 3, 4... um dois três quatro. Agora rearranje as partes colocando a parte quatro com a parte
um e a parte dois com a três. E você tem uma nova página. Algumas vezes isso acaba dizendo a mesma
coisa. Outras vezes, algo muito diferente – o recorte de falas políticas é muito interessante – em qualquer
caso você acabará por considerar que isso diz alguma coisa e alguma coisa bem definida. Pegue algum
poeta ou escritor de sua admiração. Poemas que você tenha lido muitas vezes. As palavras acabaram
perdendo significação e vida através de anos de repetição. Agora pegue o poema e digite alguns trechos
selecionados. Encha um papel com esses excertos. Agora corte a página. Você tem um novo poema”
(BURROUGHS, 1978, p. 29-30). 86
Num trecho de entrevista, Burroughs parece sugerir que utilizou em Almoço Nu a técnica do cut-up
como instrumento de edição: “Na verdade, ele [Almoço Nu] foi escrito principalmente em Tânger, depois
de eu ter me curado com o Dr. Dent, em Londres, em 1957. Voltei para Tânger e comecei a trabalhar
sobre um monte de anotações que tinha feito num período de anos. A maior parte do livro foi escrita
nessa época. Fui para Paris por volta de 1959, e tinha uma pilha enorme de manuscritos. Girodias estava
interessado, e me perguntou se eu podia ter o livro pronto em duas semanas. (...) De manuscritos reunidos
num período de anos, eu montei o que se tornou o livro a partir de umas mil páginas, ou algo assim.”
(BURROUGHS, 1988, p. 146-147).
39
ele não precisava do cut-up: a narrativa já saía não-linear e não-
discursiva.87
É preciso ressaltar que a técnica do cut-up está ligada à algumas tendências
do modernismo, principalmente ao surrealismo e o dadaísmo, os quais demonstram o
parentesco de Burroughs com as vanguardas européias do início do século XX. É
bastante claro, por exemplo, o parentesco da técnica de recortes de Burroughs, pelo seu
caráter transgressor, com a “escrita automática” dos escritores surrealistas e, em
especial, com o método de “colagens” dos pintores dadaístas. Como herdeiro dos
movimentos modernistas anteriores à Primeira Guerra que tentavam recriar a sintaxe da
arte para fazê-la conter a experiência moderna, o dadaísmo procurou levar adiante os
avanços formais conquistados anteriormente. Porém, diferentemente de seus
precursores, o movimento dadaísta foi menos uma nova escola poética e artística do que
um movimento do espírito com claras intenções morais, filosóficas e políticas, numa
espécie de reação a Primeira Grande Guerra. Sobretudo, como bem salienta Robert
Short, num ensaio em Modernismo (cf. BRADBURY e MCFARLANE, 1989, p. 240),
não é fácil identificar a originalidade do Dada apenas em seus artifícios, em sua
tendência iconoclasta quase agressiva, ou nos escândalos e nas práticas subversivas,
porquanto a principal contribuição do movimento foi postular não tanto um estilo, mas
uma nova concepção de artista, principalmente com a noção de autoria. (E neste sentido,
os experimentos iniciais de Burroughs com a técnica do cut-up estão muitíssimo
próximos dessa nova concepção dadaísta do artista.)
Os dadaístas não tinham o menor pudor em recorrer ao empréstimo de
inúmeros pioneiros: a colagem do cubismo, o malabarismo tipográfico
e o “bruitismo” do futurismo, o uso livre das cores do expressionismo,
as técnicas espontâneas de Kandinski e as invenções poéticas de
Apollinaire e Max Jacob. A “poesia fonética”, absolutamente
generalizada entre os dadaístas alemães e também explorada por
Tzara, derivava em grande parte das teorias de Marinetti sobre as
“palavras em liberdade” e do expressionista Auguste Stramm.88
Na verdade, as primeiras décadas do século XX testemunharam uma grande
dose de experimentação na literatura, na psicologia e nas artes plásticas. Escritores
tentaram abolir os limites das convenções linguísticas a fim de explorar e mostrar todo o
espectro da experiência interior (em sonhos, visões e fantasias). Eles experimentaram
com novas formas ou utilizaram as antigas formas de novas maneiras. Da escrita
automática dos surrealistas às fantasias góticas de Gustav Meynrick, alguns escritores
87
WILLER, 2009, p. 44. 88
BRADBURY e MCFARLANE, 1989, p. 241.
40
aproximaram-se e colidiram com as pesquisas de psicólogos que estavam envolvidos
em explorações semelhantes. Artistas e escritores colaboraram em tentativas de novas
formas de ilustração e tipografia, novas configurações de texto e imagem. Em todo o
caso, ainda não haviam sido estabelecidas demarcações claras entre literatura, arte e
psicologia; escritores e artistas emprestavam ideias de psicólogos e vice-versa. Assim,
escritores tais como André Breton e Phillipe Soupault liam e utilizavam constantemente
trabalhos de psicólogos e médicos psiquiatras (tais como Frederick Myers, Théodore
Flournoy, Pierre Janet, etc.).89
O escritor W. B. Yeats, por exemplo, utilizou a escrita
automática espiritualista para compor uma psicocosmologia poética em A Vision (1925).
Em todos os cantos indivíduos procuravam novas formas com as quais representar as
realidades da experiência humana, numa espécie de busca por renovação cultural e
espiritual.
A maioria destas “pesquisas”, portanto, se voltara para a psique humana,
mas principalmente para a descoberta empírica do inconsciente realizada por Freud.
É claro que encontramos, já antes de Freud, algumas alusões sobre este fenômeno
psíquico que foi denominado de inconsciente, em Leibniz, em Kant, em Schopenhauer e
em Nietzsche. Neste último, em especial, o inconsciente já é um fator claramente
perceptível. Mas é apenas com Freud que o inconsciente se torna uma condição sine qua
non. De qualquer modo, foi somente com a psicologia moderna que se descobriu, a
partir do final do século XIX, com seu método indutivo, as bases da consciência,
demonstrando empiricamente a existência de uma psique extraconsciente.90
Mas o fato é
que não demorou muito para que escritores e artistas passassem também a utilizar em
suas criações noções retiradas do vocabulário psicanalítico: falava-se, então, em
inconsciente, em superego, em afluxos libidinosos, etc. Neste sentido, busquemos
analisar a noção de “afluxos libidinosos” a partir do conceito de libido empregado por
Freud pela primeira vez no ano de 1915, em Três ensaios para uma teoria sexual. Sua
compreensão é, no nosso entender, fundamental, a fim de que possamos avançar na
compreensão do livro de Burroughs enquanto um fluxo que arrasta consigo todo tipo de
coisas. Vejamos então...
Em Três ensaios para uma teoria sexual, Freud introduziu seu conceito de
libido e a definiu como sexual. Neste sentido, a libido se revela como divisível e pode
89
Sobre a influência de trabalhos psiquiátricos sobre artistas e escritores cf. Carl Gustav JUNG, O livro
vermelho. Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 194. 90
Cf. Carl Gustav JUNG, Aion: estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. Petrópolis: Editora Vozes,
2008, p. 17-18.
41
associar-se a outras funções e áreas que, em si mesmas, não se relacionam com a
sexualidade, em forma de “afluxos libidinosos”. Daí resulta a comparação freudiana da
libido como um caudal, como algo em si divisível, podendo ser represada, passar para
adjacentes, etc. Diz Freud:
Temos fixado o conceito de libido como uma força quantitativamente
variável, que nos permite medir os processos e as transformações da
excitação sexual. Separamos esta libido, por sua origem particular, da
energia em que devem basear-se os processos anímicos e, por tanto,
lhe atribuímos também um caráter qualitativo. (...) A análise das
perversões e psiconeuroses nos levou ao conhecimento de que esta
excitação sexual não é produzida unicamente pelos órgãos chamados
sexuais, mas por todos os órgãos do corpo. Construímos, portanto, a
ideia de um libidoquantum, cuja representação psíquica denominamos
“libido do eu”, e cuja produção, aumento, diminuição, distribuição e
deslocamento devem oferecer-nos as possibilidades de explicação dos
fenômenos psicossexuais observados.91
Apesar da definição da libido como sexualidade, Freud não declara “tudo‟
como “sexual”, mas parece reconhecer a existência de outros impulsos especiais, não
conhecidos quanto à sua natureza, mas aos quais teve de atribuir a capacidade de
receber “afluxos libidinosos”. O quadro hipotético básico é o “feixe de instintos” onde o
instinto sexual figuraria apenas como instinto parcial. “A teoria de Freud decorrente
deste conceito – segundo a qual as forças instintivas de um sistema neurótico
correspondem justamente àqueles afluxos libidinosos de outras funções instintivas (não
sexuais) – transformou-se na base da teoria psicanalítica das neuroses (...)”.92
Mas
pouco tempo depois, em Observações psicanalíticas sobre um caso de paranóia (Caso
Schreber), Freud refletiu, ao analisar um caso de paranóia esquizofrênica, se afinal a
libido não coincidiria com o “interesse em geral”:
Uma terceira reflexão sugerida pelas considerações aqui
desenvolvidas coloca a questão se devemos considerar a retração geral
da libido do mundo exterior como suficientemente eficaz para explicar
por si só o “fim do mundo”, e se neste caso os conteúdos do “eu” não
bastariam para manter a relação com o mundo exterior. Teríamos
então que fazer coincidir aquilo que chamamos de conteúdos
libidinosos (interesse procedente de fontes eróticas) com o interesse
em geral (...).93
Mas Freud recua e decide então que a alteração paranóica se explica
suficientemente pela retração da libido sexual. Diz ele, novamente, em Observações
psicanalíticas sobre um caso de paranóia (Caso Schreber): “(...) por isso acho muito
91
FREUD, 1996, p. 1221-1222. 92
JUNG, 1986, p. 120. 93
FREUD, 1996, p. 1524.
42
mais provável que uma relação alterada com o mundo pode se explicar, apenas ou
predominantemente, pela ausência de interesse libidinoso”.94
À guisa de complemento,
ao invés da teoria sexual das Três ensaios..., pareceu a C. G. Jung mais adequado um
conceito de tipo energético. Assim, tornou-se possível para ele identificar a expressão
“energia psíquica” com o termo “libido”. Para Jung, este último termo indica um desejo
ou um impulso que não é refreado por qualquer instância moral ou coisa semelhante: “A
libido é um appetitus em seu estado natural. Filogeneticamente são as necessidades
físicas como fome, sede, sono, sexualidade, e os estados emocionais, os afetos, que
constituem a natureza da libido”.95
Jung rejeitara completamente qualquer definição
exclusiva e unilateral deste termo, como se pode depreender claramente pelo trecho a
seguir:
Nossas considerações mostram que o termo “libido”, introduzido por
Freud, de modo algum está isento de conotação sexual, mas que uma
definição exclusiva e unilateralmente sexual deste conceito deve ser
rejeitada. Appetitus e compulsio são propriedades de todos os instintos
e automatismos. (...) A teoria sexual dos automatismos psíquicos é um
preconceito insustentável. Já o simples fato de ser impossível que a
totalidade dos fenômenos psíquicos seja derivada de um único instinto
proíbe uma definição unilateral da libido.96
Deste modo, Jung achava que não se devia falar mais em compulsões de
fome, de agressão ou de sexualidade, mas que era preciso entender todas estas
manifestações como expressões diversas da “energia psíquica”. Para ele, todas estas
manifestações tratar-se-iam de energia, isto é, de valores de intensidade, em termos
quantitativos, e as formas de seu aparecimento poderiam ser as mais diversas.97
Assim, as questões sempre controvertidas relativas à natureza da libido (sexualidade,
poder, fome, ou qualquer outro instinto) passariam para um segundo plano, tornando
pouco provável fazer decorrer todos os instintos apenas do conceito de sexualidade,
como pretendera Freud. Nos casos de esquizofrenia, por exemplo – e ainda segundo
Jung –, faltaria à realidade muito mais do que poderíamos atribuir à sexualidade, pura e
simplesmente. Para Jung, falta uma quantidade tão grande de “função do real” que
necessariamente devem estar incluídos nesta perda outros instintos que não os de caráter
94
FREUD, 1996, p. 1525. 95
JUNG, 1986, p. 123. 96
JUNG, 1986, p. 116-117. 97
“A libido como conceito psicológico de energia tem naturalmente esses atributos: o conceito de energia
já contém em si a ideia de um escoamento bem orientado, pois o escoamento sempre acontece da tensão
maior para a menor. (...) A libido como conceito energético é uma fórmula quantitativa para os
fenômenos da vida que são, reconhecidamente, de intensidade diversa. Assim como a energia física, a
libido passa por todas as transformações possíveis, manifestadas pelas fantasias do inconsciente e pelos
mitos” (JUNG, 1991, p. 208).
43
exclusivamente sexual. “Como mostra o próprio Freud, a introversão e regressão da
libido sexual ou erótica na melhor das hipóteses leva à neurose, mas não à
esquizofrenia”.98
De qualquer modo, isto parece concordar com alguns trechos do livro de
Burroughs, em que é discutida a natureza “incorpórea” do vício, como forma desprovida
de corpo, ou seja, enquanto ausência ou perda de libido. Na verdade, segundo
Burroughs, um viciado é capaz de esquecer completamente de todos os prazeres
intensos do corpo, inclusive do sexo, tal como é relatado em “Hospital”:
Olho para as minhas calças imundas, há meses não troco de roupa...
Os dias passam voando, atados a uma seringa com um longo fio de
sangue... Esqueço do sexo e de todos os outros prazeres intensos do
corpo – sou um espectro desbotado, apegado à junk. Os meninos
espanhóis me chamam de El Homble Invisible – o Homem Invisível...
(...) Procurando uma veia em meio à imundície do meu pé descalço...
Junkies não têm pudor... São imunes à repugnância alheia. Não
acredito que o pudor sobreviva na ausência da libido... No viciado, o
pudor desaparece com sua sociabilidade assexual, que também é
dependente da libido... O viciado lida de forma impessoal com seu
corpo, que para si não é mais que um instrumento para absorver o
meio em que vive... Avalia seus próprios tecidos com as mãos frias de
um negociante de cavalos. „Aqui não adianta injetar‟. Olhos de peixe
morto pestanejam sobre uma veia destroçada.99
Ou ainda, segundo o Dr. Benway:
Uma conseqüência freqüente do uso de junk (...) é a depressão
permanente do cérebro posterior, acompanhada por um estado muito
semelhante à esquizofrenia terminal: completa ausência de afetos,
autismo e atividade cerebral quase inexistente. O dependente é capaz
de passar oito horas encarando uma parede. Permanece consciente
daquilo que o rodeia, mas o ambiente não tem para si nenhuma
conotação emocional e, por conseguinte, nenhum interesse. Relembrar
um período de dependência pesada é como assistir a uma gravação de
acontecimentos vividos tão-somente pelo cérebro anterior. É um relato
frio de eventos externos. (...) Se todo prazer é um alívio de tensões, a
junk proporciona alívio para todos os processos vitais ao desconectar o
hipotálamo, centro da energia psíquica e da libido. (...) Parece-me
mais provável concluir que a junk suspende por completo o ciclo de
tensão, descarga e repouso. Para um junky, o orgasmo não tem função
alguma.100
Todavia, a discussão empreendida acima talvez ainda não esteja bem
situada, pois ela deve nos conduzir necessariamente à problemática decorrente da
descoberta empírica do inconsciente por Freud. Pois esta é, no nosso entender, a questão
98
JUNG, 1986, p. 122. 99
BURROUGHS, 2005a, p. 75-76. 100
BURROUGHS, 2005a, p. 43-44.
44
de fundo em qualquer discussão sobre a natureza sexual (ou não) da libido. Em outras
palavras: qual é a natureza do inconsciente? Neste sentido, portanto, trata-se de
determinar a natureza desse inconsciente. Sua base é conflitual, como quer Freud, ou
tem ele função complementar e compensadora, como quer Jung?
Os fenômenos do inconsciente, por assim dizer, não se deixam “despachar”
de uma vez por todas. Em outras palavras: para Jung, o inconsciente “é”, ele se
manifesta enquanto um “outro”, para além da consciência vigilante, como potência
autônoma e problematizante; ou seja, na medida em que o inconsciente existe, ele não é
definível e sua existência é um mero postulado; assim, nada podemos afirmar acerca de
seus conceitos possíveis. Podemos definir os limites da consciência; o inconsciente,
porém, é o psiquismo desconhecido e, portanto, ilimitado, pelo simples fato de ser
indefinível.101
Em todo o caso, se é realmente possível apreender esta realidade
chamada inconsciente, só se pode fazê-lo em face de um “outro”, enquanto um “outro”,
como aquilo que poderia acontecer na vida consciente, mas não acontece, ou como
aquilo que o sujeito consciente deveria, poderia ou gostaria de fazer, mas não faz,
assumindo então a forma inconsciente e, consequentemente, aparece como conteúdos
projetados (os conteúdos projetivos do inconsciente), mais ou menos autônomos.
Entendido dessa maneira, o inconsciente seria uma espécie de compensação para o
estado ou a disposição do consciente. Isto significa dizer que os fenômenos do
inconsciente não devem ser compreendidos sob a forma da oposição ou do conflito, isto
é, como uma potência de negação, mas, sobretudo, como uma força questionante e
problematizante. Na verdade, não existem provas de atividade meramente reativa (ou
reflexa) do inconsciente.102
Neste sentido, eis o que diz Deleuze sobre a discussão entre
Freud e Jung, relativamente à natureza do inconsciente:
Já não estaria aí um dos pontos fortes da teoria de Jung: a força de
“questionamento” no inconsciente, a concepção do inconsciente como
inconsciente dos “problemas” e das “tarefas”? Jung tirava disto uma
consequência: a descoberta de um processo de diferenciação, mais
profundo que as oposições resultantes. É verdade que Freud critica
violentamente este ponto de vista (...). Todavia, a discussão entre Jung
e Freud talvez não esteja bem situada, pois trata-se de saber se o
101
“Com base na teoria do conhecimento não estamos em condições de dizer algo válido sobre uma
realidade objetiva do complexo psicológico do fenômeno que denominamos inconsciente (...)” (JUNG,
1991, p. 167). 102
Na opinião de Jung, uma concepção desta natureza, ou seja, de um inconsciente reativo, no melhor dos
casos, seria uma hipótese de trabalho biológica, de valor limitado. “Elevada à dignidade de verdade
universal, não passa de um mito materialista, uma vez que não leva em consideração a inegável
capacidade criativa do inconsciente, diante do qual todas as „causas‟ se reduzem a meros ensejos” (JUNG,
2009, p. 195).
45
inconsciente pode ou não fazer outra coisa além de desejar. Na
verdade, não seria preciso perguntar antes se o desejo é somente uma
força de oposição ou uma força inteiramente fundada na potência da
questão? 103
Ao que tudo indica, e pelo que se pode depreender da citação acima,
Deleuze parece propor um inconsciente diferencial e, neste sentido, um inconsciente
mais próximo do inconsciente junguiano, um inconsciente de base diferencial,
compensatório (1+1=3), diferentemente do inconsciente freudiano, de natureza
conflitual, que nunca se livra do caráter de valor secundário, ou seja, o de ser nada mais
que repressão, conservando sempre a forma do negativo. E neste sentido, segundo
Deleuze, se o que decorre da demonstração empírica (experimental) de uma psique
extraconsciente é toda a problemática do desejo, na medida em que esta descoberta
aponta para emergência do desejo, então este último se manifestará igualmente não
como potência de negação, mas enquanto força questionante e problematizante. Diz
Deleuze:
É verdade que o inconsciente deseja e só faz desejar. Mas, ao mesmo
tempo em que o desejo encontra o princípio de sua diferença com
relação à necessidade no objeto virtual, ele aparece não como uma
potência de negação, nem como elemento de uma oposição, mas
sobretudo como uma força de procura, uma força questionante e
problematizante que se desenvolve num outro campo que não o da
necessidade e da satisfação.104
Agora, retornemos à nossa tentativa inicial de compreensão do livro de
Burroughs enquanto um fluxo que arrasta, que transporta consigo todo tipo de coisas.
Pois no nosso entender não podemos estabelecer, ao menos neste caso, um corte radical
entre os regimes de fluxo e seus objetos, reduzindo-os a um mero “nada mais que...”, ou
seja, sem remetê-los necessariamente a uma forma unilateral ou mesmo negativa.
Ao contrário, fluxos de natureza heterogênea são colocados em jogo, em que qualquer
fluxo vem se conectar a outro fluxo, podendo associar-se a outras funções e áreas que
em si nada tem haver com um tipo de fluxo particular (por exemplo, com sexualidade),
em forma de afluxos libidinosos. “Bolsa das águas e cálculo dos rins; fluxo de cabelo,
fluxo de saliva, fluxo de esperma, de merda ou de mijo, que são produzidos por objectos
parciais, sempre cortados por outros objectos parciais que, por sua vez, produzem outros
fluxos (...)”.105
Não há dúvida que cada instinto interpreta o mundo inteiro a partir de
103
DELEUZE, 1988, p. 159, nota 18. 104
DELEUZE, 1988, p. 158. 105
DELEUZE e GUATTARI, 2004, p. 11.
46
seu próprio fluxo, a partir da energia que dele flui: o instinto sexual, por exemplo,
interpreta tudo em termos de sexualidade. (“O humor triste vê tudo cinza e o humor
alegre vê tudo claro e colorido...”) Mas há sempre um acoplamento, uma conexão que
se estabelece com outros instintos, numa transversal onde o primeiro instinto corta o
fluxo de outro instinto, formando um “feixe” de instintos estritamente ligados. Em
suma, a libido é essencialmente plurívoca e a sua plurivocidade produz um só e mesmo
desejo que impregna tudo...
***
Outras características e influências podem ser aventadas, como, por
exemplo, a hipotética filiação de Burroughs com a chamada geração beat. Thomas
Grauerholz afirma que a geração Beat teria inicialmente recebido seu nome em 1952,
com a publicação do romance Go, de John Clellon Holmes. Mas, segundo ele, “a
matéria da revista Life de novembro de 1959, „The only rebellion around‟, foi
provavelmente o estouro da represa para o conhecimento público dos Beats nos Estados
Unidos”.106
Todavia, segundo o poeta Allen Ginsberg, um dos principais porta-vozes da
geração beat, foi algum tempo antes de 1952 que Jack Kerouac, numa conversa com o
mesmo John C. Holmes, inventou o termo “beat”, aludindo tanto a um sentido derrotista
e de abandono quanto ao ritmo do jazz para definir um estilo de vida recém-surgido.107
(O termo também vinha sendo utilizado por Herbert Huncke, o malandro da Times
Square que apresentara a palavra para Kerouac, amigo de Ginsberg e Burroughs.108
) Diz
Ginsberg:
106
BURROUGHS e KEROUAC, 2009, p. 160-161. 107
Segundo Willer, “polissêmica e ambivalente, „beat‟ também é a batida rítmica do jazz. E pode ser
associada à beatitude, palavra chave do repertório de Kerouac, que, em entrevista de 1959, deu esta
interpretação para contrapor-se a seu sentido mais derrotista” (WILLER, 2009, p. 09). Em um trecho de
On the Road, referindo-se a Neal Cassady e Allen Ginsberg, Kerouac fala de “uma inovadora geração
beat à qual eu estava me ligando lentamente” (KEROUAC, 2008, p. 143); isto sem contar as inúmeras
passagens de On the Road, nas quais Kerouac associa o nascimento da Geração Beat ao fenômeno do
jazz, ligando a Beat ao Bop. Elegemos apenas um trecho, o qual demonstra claramente a ligação entre o
fenômeno do jazz e a nascente geração Beat: “Nessa época, 1947, o bop se alastrava loucamente pela
América, mas ainda não havia se tornado o que é hoje. Os caras no Loop continuavam soprando, mas com
um ar fatigado porque o bop estava em algum ponto entre o período ornitológico de Charley Parker e
outro período que começou realmente com Miles Davis. E enquanto eu estava sentado ali ouvindo aquele
som noturno que o bop veio representar para todos nós, pensei em todos os meus amigos espalhados de
um canto a outro da nação e em como todos eles na verdade viviam dentro dos limites de um único e
imenso quintal fazendo alguma coisa frenética e correndo de um lado para outro” (KEROUAC, 2008, p.
110). 108
Num trecho do poema Uivo, Ginsberg se refere a Herbert Huncke, quando fala dos que “caminharam a
noite toda com os sapatos cheios de sangue pelo cais coberto de montões de neve” (GINSBERG, 1999, p.
33), numa provável alusão ao encontro entre Ginsberg e Huncke, em 1948, quando Huncke saiu da prisão
47
Discutiam a natureza das gerações, lembrando o glamour da lost
generation [geração perdida], e Kerouac disse: “Ah, isso não passa de
uma geração beat”. Falavam sobre ser ou não uma “geração
encontrada” (como Kerouac às vezes a denominava), uma “geração
angelical”, ou qualquer outro epíteto. Mas Kerouac descartou a
questão e disse “geração beat” – não para nomear a geração, mas para
desnomeá-la.109
Neste sentido, como bem salientam Temperley e Bradbury (1981, p. 329), a
geração beat era mais do que um movimento artístico, era também um estilo de vida,
baseado no jazz, nas drogas, na alienação, na permissividade sexual, na experimentação
psicodélica, sua significação indo bem mais adiante dos poetas e escritores que a ela
estiveram associados. “E a arte tornou-se um centro radical para a ação boêmia na
literatura, na pintura e no teatro, mas também na política, na cultura e no
comportamento”.110
Portanto, mais do que uma simples constelação de escritores,
devemos nos perguntar em que medida Burroughs possui alguma ligação com a estética
beatnik. Acaso seu “desconstrucionismo” não o aproximaria muito mais dos surrealistas
e dadaístas? O romance The Soft Machine, por exemplo, teria sido concebido, no dizer
do próprio Burroughs, como uma espécie de expansão de suas experiências sul-
americanas, com prolongamentos surrealistas. Composto a partir da técnica do cut-up,
esse romance parece deixar claro que Burroughs não se interessava muito pelo
espontaneísmo cultivado por Kerouac e Ginsberg, os autênticos porta-vozes da geração
beat.111
A criação literária de Burroughs era muito mais cerebral do que espontânea.
Entendido dessa maneira, podemos supor que Burroughs não queria que sua
obra fosse confundida com uma estética beat, ou mesmo surrealista, sentindo a
necessidade de individualizá-la, destacando-a do restante. Na verdade, Burroughs não
partilhava do idealismo messiânico de Allen Ginsberg, ao qual opunha seu corrosivo
pessimismo. Num trecho da entrevista concedida a revista Paris Review, quando
questionado sobre sua ligação com a geração Beat, Burroughs responde: “Não me
e passou quatro dias vagando por Nova York antes de aparecer no apartamento de Ginsberg com os pés
sangrando. “De fato, no inverno de 1948, Huncke, após sair da cadeia, passou quatro dias vagando por
Nova York antes de aparecer no apartamento de Ginsberg no Harlem, seus pés escorrendo sangue”
(WILLER, 2009, p. 09). 109
Ginsberg apud WILLER, 2009, p. 07. 110
BRADBURY e TEMPERLEY, 1981, p. 329. 111
Mas, segundo Willer, “se a beat teve Ginsberg e Kerouac como porta-vozes, teve Burroughs como
orientador. Nessa primeira fase nova-iorquina, antes de mudar-se para o Texas em 1947, chegou a
promover sessões de psicanálise com Ginsberg e Kerouac. Depois, continuou a opinar e a aconselhá-los
por carta. Recomendou a Ginsberg que se assumisse como homossexual; criticou seus tratamentos
psicanalíticos e as relações heterossexuais após o internato em 1949. Insistiu com Kerouac para que se
desligasse da mãe, argumentando (acertadamente) que sua tendência regressiva o levaria à destruição”
(WILLER, 2009, p. 46-47).
48
associo com eles. Trata-se de uma simples justaposição, mais do que de uma verdadeira
conjunção de estilos literários ou de objetivos gerais”. E continua:
Kerouac, Ginsberg e Corso são três bons amigos meus, há muitos
anos, porém, não fazemos a mesma literatura nem compartilhamos os
mesmos pontos de vista. Eu diria que a importância literária do
movimento beatnik não é talvez tão determinante como sua
importância sociológica, que certamente mudou o mundo e o povoou
de beatniks. Derrubou todo tipo de barreiras sociais e converteu-se em
um fenômeno mundial de terrível importância.112
A influência das narrativas norte-americanas em primeira pessoa, cujo tema
principal é a experiência da subjetividade, a exemplo de Thoreau, deve ser destacada
também na obra de Burroughs. Na verdade, a experiência da subjetividade é o principal
tema da literatura norte-americana moderna. Esse é um dado fundamental de toda a
literatura norte-americana, desde Thoreau: “Na maioria dos livros omite-se o eu, ou
primeira pessoa; neste será mantido, o que, quanto ao egotismo, é a principal diferença.
Em geral não nos lembramos de que, no final, é sempre a primeira pessoa que está
falando. Não falaria tanto de mim mesmo se houvesse outra pessoa que eu conhecesse
tão bem”.113
Neste sentido, os escritos de Thoreau, em especial Walden, tiveram forte
influência sobre a geração de escritores denominada beat, inclusive sobre Burroughs.
Isso que denominamos o dado fundamental, o tema principal de toda a literatura norte-
americana moderna, pode ser percebido quando se toma como exemplo o primeiro
romance de Burroughs, Junky, um relato em primeira pessoa sobre as experiências de
Burroughs como viciado em drogas, um relato minucioso sobre o mundo da junk.114
“Neste livro”, afirma Burroughs, “escrevi o que sei a respeito da junk e das pessoas que
a usam. A narrativa é ficcional, porém baseada em fatos da minha própria
experiência”.115
No caso do romance experimental de Burroughs, ele se opõe ao
romance clássico (tradicional) e romântico, os quais se constituem pela apresentação e
112
BURROUGHS, 1988, p. 152. 113
THOREAU, 2001, p. 18. 114
Por outro lado, Junky narra a transformação do uso de drogas ao longo de mais de quarenta anos, ao
descrever o declínio no consumo de ópio, relacionado à Lei de Exclusão do Consumo de Ópio publicada
em 1909, até o advento do uso de heroína, que rapidamente se ampliou com a proibição do ópio. A
ascensão da heroína, segundo Harris, “coincidiu com uma mudança crucial no perfil e no ambiente do
viciado típico. O conteúdo de tal mudança é documentado no romance de Burroughs por meio de detalhes
(...)” (BURROUGHS, 2005b, p. 33), como quando na Nova York de 1945, por exemplo, “os gângsteres
italianos tomaram o lugar dos fornecedores judeus que a pureza da heroína vendida nas ruas decaiu de
forma extremada, o que por sua vez levou ao aumento do uso intravenoso da droga (...)” (BURROUGHS,
2005b, p. 34). O primeiro romance de Burroughs, portanto, nos ajuda a compreender as diferentes formas
de uso de drogas, incluindo o consumo de ópio no final do século XIX, a ascensão do tráfico de heroína
após a Segunda Grande Guerra e, por que não, a entender o fenômeno do uso de drogas na atualidade,
entendida como monopólio. 115
BURROUGHS, 2005b, p. 246.
49
desenvolvimento da interioridade de uma substância ou de um sujeito. Na verdade, ele
preserva desses conjuntos apenas o elemento autobiográfico, já que a experiência de
Burroughs com as drogas também é matéria de alguns dos capítulos de Almoço Nu. À
guisa de esclarecimento, o elemento autobiográfico é típico da tradição literária iniciada
com o Romantismo – como o Werther, de Goethe, ou o Adolpho, de Benjamin Constant
–, ao operar o cruzamento entre vida e obra, próprio também das narrativas em primeira
pessoa...
Esse cruzamento reaparece em Rimbaud e depois em Jerry e nas
vanguardas clássicas do começo do século (como Arthur Cravan,
Jacques Vaché, Rigaut, os Dadá), é reinterpretada por Miller após a
década de 1930 até desembocar, inteiramente reciclado (em “lixo” ou
em “ouro”?) na “beat generation dos anos 50”.116
***
A experiência da liberdade, este outro símbolo do espírito americano, se
realiza também em diversos momentos no romance de Burroughs através dos inúmeros
deslocamentos espaciais. O encanto pela liberdade, pela vida selvagem, pela estrada ou
pelo Oeste, é próprio do espírito americano, como bem definiu o historiador americano
Wallace Stegner, em The American as Living Space: “Não se deve negar (...) que estar
solto no mundo sempre foi estimulante para nós. Está associado em nossas mentes à
fuga da história, opressão, lei e obrigações maçantes, com liberdade absoluta, e a
estrada sempre levou para o oeste”.117
Todavia, existe um sentimento antitético na
literatura norte-americana com relação à experiência da liberdade. Por um lado, existe o
sentimento da natureza associado à paisagem americana, ligado aos aspectos da
geografia dos Estados Unidos (o Mississipi, as Rochosas, as Pradarias), ou seja, a busca
incessante por uma territorialidade fixa, por uma identidade. De outro, existe o esforço
contínuo por superar e transpor os limites geográficos, o desejo por liberdade e
independência absolutas, a gigantesca negação do sentimento de limitação da pátria,
expresso pelos movimentos de desterritorialização.118
Sentido semelhante (antitético) é
atribuído por Deleuze & Guattari à literatura americana: “Não será este o destino da
116
RAIMUNDO, 2007, p. 230. 117
KRAKAUER, 1998, p. 27. 118
Por tudo o que se disse até aqui, isto é, pela natureza antiamericana, pela força contestatória, pelos
movimentos de desterritorialização constituídos no interior de Almoço Nu, isto não significa dizer que o
romance de Burroughs seja indissociável da história americana. Como bem disse Deleuze, “a experiência
do escritor americano é inseparável da experiência americana, mesmo quando ele não fala da América”
(DELEUZE, 1999, p. 68). Essa nos parece ser uma percepção fundamental, válida também para o
romance de Burroughs.
50
literatura americana, o de passar todos os limites e fronteiras, de fazer passar os fluxos
desterritorializados do desejo, mas também de os obrigar a transportar territorialidades
fascizantes, moralizantes, puritanas e familiaristas?”.119
Lembremos ainda o caso de
Melville, o qual Lawrence censurava por ter levado a viagem muito a sério, no sentido
de um retorno à natureza, rebatendo novamente sobre o impasse: “Retornar aos
selvagens fez Melville ficar doente... Assim que partiu, ei-lo que recomeça a suspirar, a
ter saudades do Paraíso, Lar e Mãe encontrando-se na outra extremidade de uma caça à
baleia”.120
Na opinião de Deleuze & Guattari, a literatura anglo-americana oscila
continuamente entre os seus dois polos:
Estranha literatura anglo-americana: Thomas Hardy, Lawrence e
Lowry, Miller, Ginsberg e Kerouac são homens que sabem partir,
misturar os códigos, fazer passar os fluxos, atravessar o deserto do
corpo sem órgãos. Franqueiam um limite, rebentam um muro, a
barreira capitalista, mas é evidente que nunca conseguem realizar
completamente o processo. Volta-se a fechar o impasse neurótico – o
papá-mamã da edipianização, a América, o regresso ao país natal – ou
então a perversão das territorialidades exóticas, a droga e o álcool –
ou, pior ainda, um velho sonho fascista.121
O livro de Burroughs também partilha do mesmo sentimento inato do
fragmentário, próprio da literatura americana, como bem define Deleuze num artigo
dedicado ao poeta Walt Whitman, cuja reflexão procura explicar, a partir da experiência
da escrita pelo fragmento, à própria experiência histórica americana: “Se o fragmento é
o inato americano, é porque a própria América é feita de Estados federados e de
diversos povos imigrantes (minorias): por toda parte há coleção de fragmentos (...)”.122
Neste pequeno artigo, no qual reflete sobre o problema do tratamento fragmentário,
não-linear, na literatura americana, Deleuze afirma que a escrita por fragmentos, a qual
Burroughs chega pelo emprego da técnica do cut-up, já se encontrava na base da
experiência literária norte-americana desde Whitman. “Com muita segurança e
tranquilidade”, diz Deleuze, “Whitman diz que a escrita é fragmentária e que o escritor
americano tem o dever de escrever em fragmentos”.123
E continua:
É justamente o que nos desconcerta, essa atribuição à América, como
se a Europa não houvesse tomado a dianteira nessa via. Mas talvez
seja preciso a diferença que Hölderlin descobria entre os gregos e os
europeus: o que é natal ou inato nos primeiros deve ser adquirido ou
conquistado pelos segundos, e inversamente. De uma outra maneira,
119
DELEUZE e GUATTARI, 2004, p. 289. 120
Lawrence apud DELEUZE, 2004, p. 53. 121
DELEUZE e GUATTARI, 2004, p. 138. 122
DELEUZE, 1997, p. 68. 123
DELEUZE, 1997, p. 67.
51
ocorre o mesmo com europeus e americanos: os europeus têm um
senso inato da totalidade orgânica, ou da composição, mas devem
adquirir o senso do fragmento e só podem fazê-lo por meio de uma
reflexão trágica ou de uma experiência do desastre. Os americanos, ao
contrário, têm um senso natural do fragmento, e o que devem
conquistar é o sentimento da totalidade, da bela composição. O
fragmento está dado, de uma maneira irrefletida que precede o
esforço.124
Neste mesmo artigo, Deleuze recorda ainda a opinião de Melville, o qual
observava que os americanos não tinham a obrigação de escrever como os ingleses,
assim como Whitman, que invocava também a necessidade de uma literatura americana
independente, “sem traço, nem matiz da Europa, de seu solo, de suas recordações, de
suas técnicas e de seu espírito”.125
Ou seja, Whitman invocava uma literatura americana
liberta das aspirações européias, de suas estéticas e temáticas, à maneira de Ralph
Waldo Emerson, que pedia uma cultura nacional americana específica, moldada pela
própria história americana – a crença numa experiência “americana” até então não
reconhecida e num novo modo americano de ver o mundo.126
“É preciso que eles [os
americanos]”, escreve Deleuze, “desfaçam a lingua inglesa e a façam escorrer segundo
uma linha de fuga: tornar a língua convulsiva”.127
No entanto, a escrita por fragmento não é recurso meramente estilístico.
Para Deleuze, ela revela muito mais, ao suscitar uma espécie de reflexão das relações
existentes entre todas as coisas. “A lei do fragmento vale tanto para a Natureza como
para a História, tanto para a Terra como para a Guerra, tanto para o bem como para o
mal. Entre a Guerra e a Natureza, certamente há uma causa comum: a Natureza avança
em procissão, por seções, como os corpos do exército”.128
Entretanto, se o fragmento é
dado em toda parte, da maneira mais espontânea, as relações entre os fragmentos não
estão dadas de pronto, nem seu sentido está definido anteriormente; ao contrário, elas
devem ser conquistadas ou mesmo inventadas. Assim, as relações serão postas como
124
DELEUZE, 1997, p. 67. 125
Whitman apud DELEUZE, 1997, p. 69. 126
Citemos neste sentido ao próprio Emerson: “Nossa época é retrospectiva. Constrói os sepulcros dos
fundadores. Escreve biografias, histórias e critica. As gerações anteriores contemplaram Deus e a
Natureza face a face; nós, através dos nossos olhos. Por que não devemos nós também desfrutar de uma
relação original com o universo? Por que não devemos ter uma poesia e uma filosofia do discernimento, e
não da tradição, e uma religião pela revelação para nós e não da história deles? (...) Há novas terras,
novos homens, novos pensamentos. Exigimos nossas próprias obras, nossas próprias leis e nosso próprio
culto” (Emerson apud BRADBURY e TEMPERLEY, 1981, p. 101). 127
DELEUZE, 1997, p. 69. 128
DELEUZE, 1997, p. 69.
52
devendo ser instauradas, criadas (como é o caso, na opinião de Deleuze, do poema de
Whitman). Diz Deleuze:
Se as partes são fragmentos que não podem ser totalizados, pode-se ao
menos inventar entre elas relações não-preexistentes, dando
testemunho de um progresso na História tanto quanto de uma
evolução na Natureza. O poema de Whitman oferece tantos sentidos
quantas são as relações que ele entretém com interlocutores diversos,
as massas, o leitor, os Estados, o Oceano...O objeto da literatura
americana é pôr em relação os aspectos mais diversos da geografia
dos Estados Unidos, Mississipi, Rochosas e Prados e suas histórias,
lutas, amor, evolução. Relações em número cada vez maior e de
qualidade cada vez mais fina, é como o motor da Natureza e da
História. Com a guerra é o contrário: seus atos de destruição incidem
sobre toda relação, e têm por consequência o Hospital, o hospital
generalizado, isto é, o lugar em que o irmão ignora o irmão e onde
partes agonizantes, fragmentos de homens mutilados, coexistem
absolutamente solitários e sem relação.129
Neste sentido, Deleuze identifica as duas bases sobre as quais repousaria
toda a literatura americana: a espontaneidade ou o sentimento inato do fragmentário e a
reflexão das relações vivas sucessivamente adquiridas, ou seja, aquela que vai de um
fragmento a outro e na coextensividade existente entre Homem e Natureza, ou entre
Homem e História.130
Mas é também a realidade da literatura americana, sob esses dois
aspectos: a espontaneidade ou o sentimento inato do fragmentário; a
reflexão das relações vivas sucessivamente adquiridas e criadas. Os
elementos espontâneos constituem o elemento através do qual ou em
cujos intervalos se tem acesso às grandes visões e audições refletidas
da Natureza e da História.131
Estas reflexões preliminares sobre a escrita em fragmento servem de
elemento preparatório para a compreensão da ideia de “arte” contrapontística enquanto
relação entre partes heterogêneas, relação entre relações (que procuramos analisar no
terceiro capítulo). Como diz Deleuze, ao refletir sobre o significado do fragmento em
Whitman:
O mundo como mostruário: as amostras (“espécimes”) são
precisamente singularidades, partes notáveis e não totalizáveis que se
destacam de uma série de partes ordinárias. Amostras de dias
specimen days, diz Whitman. Amostras de casos, amostras de cenas
ou de vistas (scenes, shows ou sights). Com efeito, as amostras ora são
casos, segundo uma coexistência de partes separadas entre si por
intervalos de espaço (os feridos nos hospitais), ora são vistas segundo
uma sucessão de fases de um movimento separadas por intervalos de
129
DELEUZE, 1997, p. 70. 130
Ou no dizer do próprio Whitman: “A imensidão da natureza da nação seria monstruosa se não
correspondesse à imensidão e generosidade de espírito do cidadão” (WHITMAN, 2006, p. 13). 131
DELEUZE, 1997, p. 72.
53
tempo (os momentos de uma batalha incerta). Nos dois casos, a lei é a
da fragmentação.132
***
Por último, duas outras influências importantes sobre as ideias de Burroughs
devem ser mencionadas aqui: o filósofo e historiador alemão Oswald Spengler (1880-
1938) e o linguista polonês Alfred Korzybski (1879-1950). No que tange a Oswald
Spengler, sabemos, por intermédio de Allen Ginsberg133
e Claudio Willer134
, que
Burroughs fora um grande admirador de Spengler (assim como toda sua geração,
incluindo Miller135
, Kerouac136
e Ginsberg137
), dedicando particular atenção ao método
historiográfico comparativo, aos problemas de história da arte e aos conceitos
científicos e matemáticos empregados em A Decadência do Ocidente (1918), a obra
mais conhecida de Oswald Spengler. Existem alguns registros que apontam nessa
direção. O relato de uma visita de Ginsberg e Kerouac a Burroughs, em meados de
1944, por exemplo, vem acompanhado de uma espécie de bibliografia, em que é citada
a obra-prima de Oswald Spengler, A Decadência do Ocidente, entre outros autores...
Assim, Jack e eu fizemos uma visita formal a Bill, e eu lembro que ele
tinha exemplares de A Vision, de Yeats, que Lucien costumava levar
consigo. Shakespeare, Kafka: O Castelo ou O Processo, acho que O
Castelo; Ciência e Sanidade, de Korzybski, A Decadência do
Ocidente, de Spengler, Blake, um exemplar de Hart Crane que ele me
deu e que ainda tenho, Rimbaud, Ópio, de Cocteau. Assim, esses eram
132
DELEUZE, 1997, p. 68. 133
Em “Junkie: Um Elogio” (1952), por Allen Ginsberg. 134
Em “Geração Beat (2009), de Claudio Willer. 135
Em Plexus, segundo volume de A Crucificação Encarnada, Henry Miller cita textualmente vários
trechos de A Decadência do Ocidente, os quais são acompanhados de comentários e reflexões
interessantes de Miller sobre a obra de Spengler. Eis aqui um bom exemplo disso: “A Decadência do
Ocidente! Jamais esquecerei o calafrio que me percorreu a espinha quando ouvi pela primeira vez este
título. Era como ouvir Ivan Karamázov dizendo: „Quero ir para a Europa. Talvez eu saiba que verei um
cemitério, mas será o cemitério mais querido dos cemitérios‟. Durante um ano tive a consciência de
participar de um declínio geral. Nós todos o conhecemos, o sentimos, somente alguns conseguindo
esquecê-lo mais rapidamente do que outros. O que não compreendemos tão claramente, a maioria de nós,
foi que fazíamos parte deste mesmo „Ocidente‟, que o Ocidente incluía não apenas a Europa, mas a
América do Norte” (MILLER, 1967, p. 487). Miller se estende por várias páginas ao comentar a obra-
prima do mestre alemão. 136
Em Visões de Cody, Jack Kerouac refere-se à “Eterna Vida Interiorana dos Felás”, numa referência A
Decadência do Ocidente. Segundo Ginsberg, “(...) a visão dos Felás foi tirada do exemplar de Spengler
que pertencia a Burroughs. Foi o mantra de Jack naquele período – o Samadhi Interiorano – a visão & a
Consciência interiorana diferente da sabedoria mais Abstrata orientada por mapas no metro da cidade,
estúpida & dependente como a mente citadina é do conhecimento felá (...)” – Trecho extraído de “As
Visões do Grande Rememorador” (KEROUAC, 2009, p. 442). 137
Allen Ginsberg, numa entrevista para a revista Gay Sunshine, revela que: “Aprendi muito com
Burroughs, inclusive sobre Blake e Spengler” (LEYLAND, 1980, p. 77).
54
os livros que ele estava lendo, e eu não havia lido nenhum deles. E ele
os emprestou para nós.138
Esses eram alguns dos autores lidos por Burroughs à época. E esses autores,
segundo Willer, eram assunto permanente nas conversas de Burroughs. A um amigo,
Lucien Carr, por exemplo, Burroughs teria dito, referindo-se a Oswald Spengler e
Korzybski, que “se você estiver amaldiçoado pela literatura, que é a maior maldição da
humanidade, então você deveria ler Spengler, Korzybski (...)”.139
E continua Carr:
“E assim, tivemos uma prolongada conversa com Burroughs, provavelmente sobre
Spengler e Korzybski. Ele argumentava que as palavras não eram as coisas que elas
representavam, não eram idênticas...”.140
Não parece pequena, portanto, a influência de Spengler sobre as idéias de
Burroughs. Almoço Nu está carregado de uma aura de decadência e dissolução, da visão
pessimista sobre a cultura ocidental, de termos científicos e tecnológicos, próprios
também de A Decadência do Ocidente. Um exemplo é o conceito de entropia, que
constitui o tema do segundo princípio da termodinâmica. Essa lei, que teve origem no
estudo de Carnot sobre o rendimento das máquinas cuja energia se perde e se degrada
em calor, veio mais tarde a ter significado universal por meio das fórmulas matemáticas
introduzidas por Clausius (1850). Por meio delas, foi demonstrado que:
(...) no plano natural e cósmico, todos os sistemas energéticos dotados
de heterogeneidade se submetem no seio deste imenso sistema que é o
nosso universo. Isto quer dizer que todos os sistemas físicos trocam as
energias que os singularizam em plurais manifestações fenomênicas,
numa energia degradada, ou seja, em calor ou agitação molecular
desordenada. Conclui-se que todas as leis da física se tendem a tornar
cada vez mais indiferenciadas e homogêneas à medida que decorre
este processo inelutável. As energias cinética, elétrica e química
perdem, pois, as tendências específicas e finalistas que as diferenciam
e se exteriorizam como acontecimentos ou fenômenos naturais (...)
regressando assim, no ciclo do tempo, a uma espécie de “aperon”,
onde todas as suas leis e formas se dissolvem numa espécie de
incandescência térmica, em que transparece a presença mais elementar
de toda a energética universal.141
Em linhas gerais, o segundo princípio da termodinâmica descreveria, por si
mesmo, o vasto cenário de um espaço energético descontínuo, o qual lentamente se
esvanece na desintegração dos sistemas nucleares, atômicos, moleculares e, finalmente,
astrofísicos, convertendo-se em pura energia luminosa. É neste sentido que, para
138
WILLER, 2009, p. 44. 139
WILLER, 2009, p. 44-45. 140
WILLER, 2009, p. 45. 141
SPENGLER, 1993, p. 17.
55
Spengler, a entropia seria o principal símbolo da decadência da cultura ocidental, da
civilização fáustica, como ele mesmo a chama, expressa na idéia de dissolução: “Entre
os símbolos de decadência, o principal deles é a entropia, que, como é sabido, constitui
o tema da segunda lei da termodinâmica”.142
Segundo Spengler, a entropia representaria
o início da destruição da física de estilo dinâmico, ao introduzir a idéia da
irreversibilidade, contradizendo assim a essência da mecânica e da lógica, ou seja, do
acontecer físico em séries de causa e efeito. 143
(Neste ponto, ao que tudo indica, a ideia
de causalidade deixou de ter validade absoluta como categoria a priori, como princípio
último de explicação... 144
)
De qualquer modo, a idéia de dissolução expressa na noção de entropia,
predomina igualmente na obra de Burroughs. Essa mesma lei é evocada por Burroughs,
em sentido literário, num trecho de Almoço Nu, quando diz: “Sem pressa alguma, a
termodinâmica acabou vencendo... Os orgônios empacaram... Cristo sangrou... Tempo
acabado...”.145
Como veremos no próximo capítulo, no desequilíbrio produzido na
narrativa pela técnica do cut-up encontra-se também um equivalente da idéia de
entropia; neste sentido, portanto, a desordem e a instabilidade imanente à narrativa de
Almoço Nu possui, por assim dizer, um caráter entrópico.
142
SPENGLER, 1923, p. 545. Diz ainda Spengler: “A primeira lei [da termodinâmica], o princípio da
conservação de energia, se limita a formular a essência da dinâmica, para não dizer a estrutura do espírito
europeu ocidental, que é o único para quem a natureza, necessariamente, aparece na forma de uma
causalidade dinâmica e contrapontística, em oposição à estática e plástica de Aristóteles. O elemento
fundamental da visão de mundo fáustica não é a atitude, mas a ação, ou, mecanicamente considerado, o
processo; e este princípio fixa exclusivamente o caráter matemático de tal processo na forma de variáveis
e constantes. Mas o segundo princípio vai mais fundo e determina uma tendência uniforme do acontecer
físico, o qual não está de nenhum modo condicionado a priori pelos conceitos fundamentais da dinâmica”
(SPENGLER, 1923, p. 545-546). 143
“O que até o momento não foi sentido, e por este motivo eu considero o princípio da entropia (1850) o
início da destruição dessa obra-prima da inteligência européia ocidental, a física de estilo dinâmico, é a
profunda oposição entre teoria e realidade, oposição esta que pela primeira vez se manifesta
explicitamente na própria teoria. Após o primeiro princípio ter esboçado o quadro rigoroso de um
acontecer físico em séries de causa e efeito, o segundo princípio, com a introdução da irreversibilidade,
traz à tona uma tendência da vida imediata, que contradiz fundamentalmente a essência da mecânica e da
lógica” (SPENGLER, 1923, p. 546-547). 144
Em todo o caso, a tendência de anulação do acontecer físico em séries de causa e efeito se concretizou
na filosofia, na ciência e nas artes. Um trecho de O arco-íris da gravidade, romance de Thomas Pynchon,
parece aludir a este fato: “Como é que Mexico consegue jogar, tão à vontade, com estes símbolos de
aleatoriedade e medo? Inocente como uma criança, talvez inconsciente – talvez – de que com este jogo
ele destrói os elegantes salões da história, ameaça o próprio conceito de causalidade. E se toda a geração
de Mexico estiver assim? Será que o pós-guerra vai se reduzir a uma sucessão de „eventos‟, surgidos do
nada de uma hora para a outra? Nenhuma ligação? Será o fim da história?” (PYNCHON, 1998, p. 63). Ou
ainda: “(...) mas tem-se a impressão de que essa coisa de causalidade já deu o que tinha que dar. Que para
a ciência continuar a avançar ela vai precisar de pressupostos menos estreitos, menos... estéreis. Talvez o
próximo grande passo à frente ocorra quando a gente tiver a coragem de jogar fora a causalidade de uma
vez por todas, e partir para ver a coisa de outro ângulo” (PYNCHON, 1998, p. 96). 145
BURROUGHS, 2005a, p. 230.
56
Com relação a Korzybski, Burroughs demonstrava sincero interesse pelas
discussões sobre a linguagem empreendidas, nos primeiros decênios do século XX, pelo
autor de Ciência e Sanidade (1933), a obra mais famosa do lingüista Alfred Korzybski.
Nesse livro, à semelhança de outras teses saídas da antropologia para a lingüística, a
linguagem é concebida não como reflexo imediato da realidade, mas como algo que, ao
contrário, condiciona a realidade humana. Neste sentido, a implicação teórica no tocante
à linguagem como portadora de ideologia influenciou sobremaneira a concepção
narrativa em Burroughs. Para Korzybski, a linguagem não nos serve unicamente para
entender a “realidade”. Segundo ele, desde a mais tenra idade, herdamos mapas de
orientação social, exatamente por meio de nossa língua. Essa tendência acaba por
produzir determinadas inferências, de modo que passamos a conduzir nosso
comportamento e coordenar nossas ações por meio dos valores subjacentes em nosso
código lingüístico.146
Entendida desse modo, a linguagem é um sistema de comando,
associada ao exercício do poder, com a qual não falamos, mas somos falados.
Ao transpor essa idéia para a composição de Almoço Nu, se utilizando da técnica do cut-
up, Burroughs buscará romper com essa linguagem discursiva, eminentemente
ideológica. É neste sentido, portanto, que as idéias de Korzybski exerceram alguma
influência sobre Burroughs, principalmente no que diz respeito ao desenvolvimento da
técnica do cut-up enquanto método lingüístico anti-discursivo, sobretudo em sua busca
por uma voz do impessoal. Nem a primeira nem a terceira pessoas do singular, mas uma
espécie de quarta pessoa do singular, o “agenciamento coletivo de enunciação”,
(segundo Deleuze & Guattari): “O enunciado não aponta para um sujeito de enunciação
que constitui a causa, nem para um sujeito do enunciado que seja o efeito. (...) Não há
sujeito, só há agenciamentos coletivos de enunciação (...)”.147
146
Neste sentido, convém citarmos um trecho de Korzybski, retirado de Ciência e Sanidade: “Um objeto
ou uma sensação (...) não são verbais, não são palavras. (...) Quem quer que deixe de o compreender – e
infelizmente isso acontece com facilidade – não compreenderá um dos fatores psicológicos mais
importantes em todas as reações semânticas fundamentais para a sanidade. Tal omissão é em grande parte
facilitada pelos sistemas mais antigos, pelos hábitos de pensamento, pelas reações semânticas mais
antigas e, acima de tudo, pela estrutura primitiva de nossa linguagem aristotélica e pelo „é‟ de identidade.
Assim, por exemplo, nós seguramos aquilo a que chamamos um lápis. O que quer que estejamos
segurando é in-dizível; dizemos, entretanto, „isto é um lápis‟, afirmação que incondicionalmente falseia
os fatos, porque o objeto surge como um indivíduo absoluto e não é uma palavra. De modo que nossas
reações semânticas são desde logo adestradas em valores ilusórios, o que deve ser patológico”
(Korzybski apud HAYAKAWA, 2000, p. 233). 147
DELEUZE e GUATTARI, 2003, p. 40-41.
57
Contudo, será num trecho de A revolução eletrônica (1971), em que reflete
sobre os usos imperativos de artigos definidos (A/O) e de relações de exclusão
(OU/OU), que Burroughs se referirá nominalmente a Korzybski:
O É da Identidade. Tu és um animal. Tu és um corpo. “Ora sejas tu o
que fores, não és um „animal‟, não és um „corpo‟, porque isso são
rótulos verbais. O É da identidade compreende sempre a implicação
disso e de mais nada e compreende também a afectação de uma
condição permanente. Permanecer assim. Toda apelação pressupõe o
É de identidade.
Este conceito é desnecessário numa língua hieroglífica, como o antigo
egípcio, e é de facto frequentemente omitido. Não é preciso dizer que
o sol É do céu. Sol no céu basta. Podemos facilmente omitir o verbo
qualquer que seja a língua, o que fizeram os discípulos do conde
Korzybski eliminando o verbo ser em inglês. É contudo difícil pôr
ordem na língua inglesa excluindo arbitrariamente conceitos que
continuam vigentes enquanto se fala a língua inalterável.
Os artigos definidos O A OS AS (the). O compreende a implicação de
um só é único: O Deus, O universo, O caminho, O certo, O errado. Se
existe um outro, então ESSE universo, ESSE caminho não são mais O
universo, O caminho. O artigo definido será eliminado e substituído
pelo artigo indefinido UM UMA.
Todo o conceito de OU/OU. Certo ou errado, físico ou mental,
verdadeiro ou falso, todo o conceito de OU será eliminado da língua e
substituído pela justaposição, por E. Numa certa medida fazemo-lo em
qualquer língua pictórica em que os dois conceitos se mantêm
literalmente lado a lado. Essas falsificações inerentes ao inglês e a
outras línguas alfabéticas ocidentais dão às ordens de reacção mental o
seu poder opressor nessas línguas. Consideramos o É da identidade.
Quando digo ser eu, ser tu, ser eu próprio, ser os outros – o que quer
que seja que me peçam que seja ou diga que sou –, eu não sou o rótulo
“eu próprio”. Não posso ser e não sou o rótulo verbal “eu próprio”. A
palavra SER em inglês encerra, tal como um vírus, a sua mensagem
pré-codificada de dano, o imperativo categórico da condição
permanente. Ser corpo, não ser outra coisa, permanecer corpo. Ser
animal, não ser outra coisa, permanecer animal. Se se vir a relação do
EU com o corpo, como a relação de um piloto com seu barco, vê-se a
força totalmente paralisante da ordem de reacção mental de ser um
corpo. Dizendo ao piloto que seja o avião, então quem pilotará o
avião? 148
Na citação acima, Burroughs sugere uma outra maneira de proceder com a
linguagem, que suprime as designações linguísticas de natureza identitária, e
substituindo-as por uma linguagem pictural, imagética, mais próximas aos hieróglifos,
por artigos indefinidos e justaposições. Por meio deste projeto, Burroughs pretende
manipular os elementos lingüísticos a fim de levá-los a um estado de indeterminação, na
direção de uma imagem pura, a-lógica, evitando com isso a mera representação do
objeto (ou rótulo verbal, segundo Korzybski). Isto nos conduz finalmente à técnica do
148
BURROUGHS, 1994, p. 88-89.
58
cut-up enquanto procedimento linguístico geral oposta à forma expressiva tradicional.
Vejamos agora como se dá este processo de “demolição” da linguagem usual por meio
de uma análise da técnica do cut-up, tema de nosso próximo capítulo.
59
Capítulo 3. O Almoço está servido...
Apresentação
Considerado por nós a parte essencial desse trabalho, neste capítulo
discutiremos detidamente alguns dos tópicos ou temas abordados anteriormente, em
especial, a técnica do cut-up enquanto procedimento linguístico geral que se opõe à
forma expressiva tradicional, que torna a linguagem indistinta, criando assim uma zona
de indiscernibilidade, de indeterminação, em que qualquer particularidade ou referência
é completamente abolida e rechaçada (bem como seu caráter de método linguístico
diferencial); a questão da dissolução da unidade formal num enorme sistema de
afinidades morfológicas, um composto de vários registros, ou seja, a estrutura do texto
está assentada sobre uma pluralidade de elementos que já não depende de nenhuma
unidade configuradora, expressa na ideia de dissolução da unidade formal, segundo uma
linha de composição autônoma de vizinhança e contiguidade (os contrapontos
narrativos); e, finalmente, uma análise dos inúmeros deslocamentos espaciais
constituídos no interior do romance enquanto símbolos de desterritorialização que
acabam por dissolver todas as territorialidades fixas.
Almoço Nu é uma narrativa não-linear, difícil de descrever em termos de
enredo. Nela não atuam noções como causalidade e finalidade. O livro é estruturado
como uma série de “vinhetas”, frouxamente ligadas, e seus temas estão arranjados de
forma justaposta, formando blocos de associações que exploram um campo global de
coexistência.149
Estas justaposições acabam por expressar relações de natureza
contrapontística, já que os elementos da narrativa se apresentam em estilhaços, em
fragmentos. Em todo o caso, Almoço Nu acaba se comportando como uma espécie de
arte combinatória, com anotações sobre drogas, delírios, perspectivas, simetrias, cortes,
montagens, edição rigorosa dos elementos constitutivos: “Lembre-se de que primeiro fiz
uma seleção. De centenas de sentenças possíveis que poderia ter usado, escolhi uma
(...)”.150
Ao fim, o livro de Burroughs se converte numa espécie de investigação não-
linear sobre o caráter de determinados grupos de acontecimentos em sua maioria ligados
149
Apesar dos temas tratados em Almoço Nu se apresentarem verticalmente, o problema do vício em
todas as suas modalidades percorre horizontalmente toda a narrativa. Nisso talvez consista a inovação do
romance de Burroughs, a saber, não dar um tratamento linear, discursivo, aos temas contidos nele. 150
BURROUGHS, 1988, p. 146.
60
ao problema do vício, ou seja, entre elementos formais de uma mesma ordem, a fim de
fixar-los como tais em expressões mais ou menos regulares.151
Foi neste sentido que
denominamos anteriormente o livro de Burroughs como um misto de aleatório e
dependente. Pois em que pesem a aparente desordem narrativa e a escrita aparentemente
aleatória, o livro de Burroughs foi construído a partir de uma edição rigorosa dos
elementos constitutivos. (No nosso entender, o sentido e o objetivo do método do cut-up
é justamente esta prova seletiva, esta seleção dos elementos constitutivos...)
Como afirma o próprio Burroughs, os capítulos foram compostos para
serem lidos em qualquer ordem: ao romper com o discurso horizontal ou linear, os
capítulos se tornam independentes, se assemelhando a uma espécie de delírio, em que
imagens se alternam e sucedem num único fluxo. Ao juntar signos de campos
semânticos distintos, ao rearranjar de maneira desconexa sentenças e parágrafos
inteiros, assim como inserir aleatoriamente historietas, anedotas e aforismos, o livro
acaba por permitir uma leitura não-linear, ou seja, sem a necessidade de se seguir à
ordem convencional dos capítulos.
A maneira como o romance foi escrito induz o leitor a ver apenas uma parte
do acontecimento narrado. Muitas vezes acontece que algo ou um trecho mencionado
no livro reapareça em outro ponto, mas sob um ângulo diferente, o que acaba por
produzir uma série de relacionamentos intertextuais, verdadeiros ecos narrativos. Na
verdade, a idéia de perspectivas e ângulos diferentes dentro de uma imagem maior é, em
si, um tema que percorre todo o livro, como idéias distintas que podemos ter acerca de
um mesmo símbolo, duas ou mais noções sobre a origem de um mesmo objeto.
“Há muitos noemas ou sentidos para um só e mesmo designado: estrela da noite e
estrela da manhã são dois noemas, isto é, duas maneiras pelas quais um mesmo
designado se apresenta em expressões”.152
Neste sentido, Burroughs problematiza a incapacidade contemporânea de
ultrapassar a experiência fragmentária, uma vez que, para ele, existe apenas uma visão
perspectiva, apenas um “conhecer” perspectivo, e nada mais: o perspectivismo como
verdade da relatividade... “Sua consciência do que está acontecendo não é capaz de
ultrapassar o superficial e relativo...”.153
Para ele, nossa consciência é continuamente
151
Neste tipo de “investigação”, que busca como resultado não uma totalidade orgânica, mas a discussão
de possibilidades formais, o método de trabalho poderia ser caracterizado como uma espécie de
composição, intimamente aparentado com a técnica de composição musical. 152
DELEUZE, 2007, p. 21. 153
BURROUGHS, 2005a, p. 226.
61
atravessada por fatos aleatórios, assim como quando se olha pela janela ou quando se
anda pela rua. Neste sentido, a técnica do cut-up estaria mais próxima dos fatos da
percepção direta do que, por exemplo, a narrativa linear, em que os acontecimentos
aparecem dispostos em séries de causa e efeito. Para Burroughs, esse não é o modo
como as coisas acontecem. No experimento formal do cut-up se manifestaria, portanto,
a experiência de uma percepção fragmentada, determinada pelo entrecruzamento de
inúmeras probabilidades.154
Eu estava sentado numa lanchonete em Nova York tomando meu café
com roscas. Estava pensando que a gente realmente se sente um pouco
encaixotado em Nova York, como que vivendo numa série de caixas.
Olhei pela janela e lá estava um grande caminhão de mudanças. Isso é
um cut-up – uma justaposição do que está acontecendo fora com o que
você está pensando.155
Estas experiências parecem apontar para uma espécie de relatividade
espaço-temporal, em que a chamada “realidade objetiva” perde seu caráter absoluto, nos
obrigando assim a tomar consciência de que ela representa apenas um julgamento,
somente uma perspectiva.
No entender de Burroughs, os cut-ups possibilitariam um acesso direto ao
mundo, aos chamados fatos da percepção, sem cair nas malhas da linguagem, tornada
cada vez mais abstrata: “O que quero fazer é aprender a ver mais o que está lá fora, a
olhar para fora, atingir tanto quanto possível uma completa percepção do que nos
cerca”.156
Por meio da técnica do cut-up, Burroughs buscava escapar às ilusões da
linguagem, que se pretende veículo da substância das coisas, associada ao elemento
predicativo da linguagem, bem como de seu caráter ideológico e normativo. Em todo o
caso, o elemento normativo da linguagem é outro aspecto importante destacado por
Burroughs. Neste ponto, não é difícil demonstrar como em Burroughs os mecanismos
de dominação se exercem através e na transcendência da linguagem. A linguagem
enquanto um sistema de comando, como associada ao exercício do poder, conteria um
elemento normativo, o qual consiste em emitir, receber e transmitir palavras de ordem a
154
Deleuze compreendera a técnica de cut-up como “um método de probabilidade, ao menos lingüístico,
e não um procedimento de sorteio ou de chance única a cada vez que combina os heterogêneos. Por
exemplo, tento explicar que as coisas, as pessoas, são compostas por linhas muito diversas, e que não
sabem necessariamente em que linha estão, nem onde fazer passar a linha que estão em vias de traçar:
numa palavra, há toda uma geografia nas pessoas, com linhas duras, linhas flexíveis, linhas de fuga, etc.”
(DELEUZE, 2004, p. 21). 155
BURROUGHS, 1988, p. 142. 156
BURROUGHS, 1988, p. 143.
62
fim de se obter uma determinada ação por parte de um sujeito157
; a própria estrutura
dinâmica da frase, composta de sujeito, verbo e predicado, revela esses mecanismos de
dominação constituídos no interior da própria linguagem, ou seja, de um sujeito que age
diretamente sobre um objeto, ou um predicado, como sujeito da ação. (Entendido desse
modo, o “eu” representaria uma pretensão de domínio que o homem enuncia sobre todas
as coisas.) Consciente desses fatos, Burroughs procurava escapar aos mecanismos de
controle constituídos no interior da própria linguagem.
Burroughs aproxima-se da linguagem com uma vigilante e científica
imparcialidade. Tomando controle da palavra de modo a realizar uma
espécie de dissecação cirúrgica de suas funções, ele tenta revelar e
transcender os mecanismos de controle constituídos no interior de
nosso sistema de linguagem.158
Ao romper com o discurso horizontal, com a narrativa linear, a técnica do
cut-up expõe os mecanismos de controle constituídos no interior da própria linguagem,
possibilitando, ao mesmo tempo, a criação de um espaço discursivo multidimensional,
composto de várias perspectivas, em lugar do antigo plano linear e unidimensional,
horizontal; a narrativa se esvai completamente, as relações de causalidade são
abandonadas, desaparece o âmbito da comunicação dotada de direção ou sentido – uma
empresa de demolição agindo diretamente sobre o elemento normativo da linguagem.
Neste ponto, assistimos à dissolução das determinações fixas que permitem encadear os
fatos causalmente, ou seja, as antigas relações linguísticas são recusadas em favor de
um novo paradigma, contrário à forma expressiva tradicional. Procuremos analisar um
exemplo neste sentido, utilizando um trecho de “A Álgebra da Necessidade”:
Vibrando, o zumbido silente da floresta profunda e dos acumuladores
de orgônios, a calma súbita das cidades quando os policiais junkies e
até mesmo O Suburbano zunem por entre vias entupidas de colesterol
em busca de contato. Clarões de orgasmo explodem mundo afora. Um
maconheiro levanta de um salto berrando „bateu o pavor!‟ e corre na
direção da noite mexicana, abatendo cerebelos no mundo inteiro. O
Carrasco borra-se de pavor ao enxergar o condenado. O Torturador
157
Segundo Spengler, “(...) a finalidade da linguagem não é o conhecimento obtido pelo raciocínio, pelo
juízo, mas sim o acordo mútuo obtido por meio de perguntas e respostas. Quais são, pois, as formas
primitivas do falar? Não o juízo ou a tese, mas o comando, o testemunho de obediência ou concordância,
a pergunta, a afirmação ou a negação. São frases originariamente muito breves, que se dirigem a outrem
como, por exemplo, „faz isto!‟ ou „está pronto?‟, „sim‟, „vamos‟. (...) A finalidade primeira da linguagem
é desencadear uma ação, em conformidade com uma intenção e com o tempo, o lugar e os meios
disponíveis. Que a frase tenha, então, uma estrutura clara e sem ambigüidades, é algo de necessidade
primordial. A dificuldade de alguém se fazer compreender e impor a sua vontade a outrem está na origem
de muitas técnicas gramaticais e sintáticas, técnicas que fornecem o modo adequado de mandar,
perguntar, responder (...)” (SPENGLER 1993, p. 78-79). 158
LYDENBERG, 1987, p. 138.
63
grita no ouvido de sua vítima implacável. Faquistas enlaçam-se,
tomados de adrenalina. O câncer está batendo à porta com um
Telegrama Cantado...159
De fato, a técnica do cut-up enquanto um procedimento geral torna a
linguagem indistinta, criando uma zona de indiscernibilidade, de indeterminação, em
que qualquer particularidade, qualquer referência é completamente abolida e rechaçada.
A excentricidade de “O Carrasco borra-se de pavor ao enxergar o condenado”, por
exemplo, ultrapassa o uso a linguístico convencional. Pois, sem dúvida, que ela é
gramaticalmente correta, sintaticamente correta, mas sua construção atípica (a fórmula
comum seria antes O Condenado borra-se de pavor ao enxergar o carrasco) lhe
confere um caráter absolutamente radical, se constituindo numa espécie de função-
limite da própria linguagem. Neste sentido, a fórmula de Burroughs abole o termo sobre
o qual incide e que ela recusa, mas também o outro termo que parece preservar e que
parece impossível enquanto tal, tornando ambos indistintos.
Burroughs parece inventar uma língua estrangeira que arrasa a linguagem,
uma espécie de língua desterritorializada, como uma zona de indeterminação, que faz
com que os termos de uma oração já não se distingam, produzindo o vazio na
linguagem, ao mesmo tempo em que desarticula os atos de fala com os quais se emite,
recebe ou se transmite palavras de ordem. Neste sentido, o procedimento linguístico de
Burroughs desconecta as palavras e as ações, os atos de fala e as palavras, liberando a
linguagem daquilo que ela tem a “dizer”...
É como se três operações se encadeassem: um certo tratamento da
língua; o resultado desse tratamento, que tende a constituir no interior
da lingua uma lingua original; e o efeito, que consiste em arrastar toda
a linguagem, em fazê-la fugir, em impeli-la para seu limite próprio a
fim de lhe descobrir o Fora, silêncio ou música.160
Neste sentido, a técnica do cut-up enquanto procedimento linguístico anti-
discursivo traça uma “linha de fuga” que revela e põe a descoberto os mecanismos de
controle constituídos no interior da linguagem através de uma língua originária quase
inumana ou sobre-humana que destrói as referências, mina os pressupostos que
permitem à linguagem designar as coisas a partir de um sistema de convenções lógicas
ou gramaticais, lançando-a no vazio e na indeterminação. Em todo o caso, o
procedimento linguístico de Burroughs parece remeter a uma forma de exterioridade, a
uma espécie de elemento não-linguístico, em que se articula um processo capaz de
159
BURROUGHS, 2005a, p. 215. 160
DELEUZE, 1997, p. 84.
64
produzir visões e imagens do mundo. Expliquemos melhor: se recordarmos a
preocupação de Burroughs explicitada anteriormente, ou seja, em “aprender a ver mais
o que está lá fora, a olhar para fora, atingir tanto quanto possível uma completa
percepção do que nos cerca”, parece evidente que os cut-ups não apenas devastam as
referências e significações linguísticas como também atinge um limite exterior à própria
linguagem, em direção a alguma coisa que não é propriamente sintático e nem mesmo
diz respeito à linguagem, ou seja, o procedimento linguístico de Burroughs possibilita
um acesso direto ao mundo (aos chamados fatos da percepção) que produz imagens e
visões do mundo.
(...) uma língua estrangeira não é escavada na própria língua sem que
toda a linguagem por seu turno sofra uma reviravolta, seja levada a
um limite, a um fora ou um avesso que consiste em Visões e Audições
que já não pertencem à língua alguma. Essas visões não são
fantasmas, mas verdadeiras Ideias que o escritor vê e ouve nos
interstícios da linguagem, nos desvios de linguagem. (...) Elas não
estão fora da linguagem, elas são o seu fora. O escritor como vidente e
ouvidor, finalidade da literatura: é a passagem da vida na linguagem
que constitui as Ideias.161
Assim, a técnica do cut-up parece comportar dois aspectos importantes
quando opera uma demolição do sistema linguístico dominante, inventando uma nova
língua no interior da própria língua mediante a recriação da sintaxe, e ao remeter a uma
forma de exterioridade, a um lado de fora, em que se articula um processo capaz de
produzir visões e imagens do mundo. A propósito deste último ponto, consideremos um
outro fragmento de Almoço Nu, em “Alguém viu Rose Pantopon?”:
Barrigas roncam ao longe... Pombos envenenados despencam da
aurora boreal... Os reservatórios estão vazios... Estátuas de latão
avançam pelas praças e becos esfomeados da cidade boquiaberta...
Procurando uma veia em meio à aurora do enjôo narcótico...
À base de xarope contra a tosse...
Mil junkies irrompem nas clínicas com paredes de vidro e cozinham
as Senhoras Macilentas...
Dentro da caverna calcária, encontrei um homem com a cabeça da
Medusa dentro de uma caixa de chapéu e disse “Tenha cuidado” ao
Inspetor da Alfândega... Paralisado para sempre com a mão a dois
centímetros do fundo falso...
Limpadores de janela gritam pela estação e enganam os caixas usando
o Golpe típico dos veados... (Golpe é um trambique que envolve
dinheiro trocado... Também é conhecido como Cédula).
– Fratura múltipla – anunciou o médico renomado... – Tenho muita
técnica...
Impossível esconder, a tuberculose se propaga pelos pórticos
escorregadios de catarro com bacilos de Koch...
161
DELEUZE, 1997, p. 16.
65
A centopéia roça as mandíbulas na porta de ferro coberta de ferrugem,
transformada em uma fina lâmina de papel negro pela urina de um
milhão de veados...
Isso não é matéria-prima, são apenas grãos corrompidos de poeira,
parcos vestígios de uma dose perdida em algodões usados...162
As relações linguísticas são abandonadas em favor de um lado de fora da
linguagem; a linguagem, atirada no vazio da indeterminação, acaba por revelar uma
forma de exterioridade constituída antes de visibilidades do que de enunciados, de
visões e audições do mundo. (“Entre o não-senso absoluto e o sentido esgotado só
restam, ainda uma vez, as próprias coisas, objetos, gestos, etc.”.163
) Neste ponto,
cabe retomarmos então a discussão iniciada no primeiro capítulo, mais exatamente a
questão do procedimento cut-up enquanto procedimento linguístico diferencial. Como
vimos antes, seguindo a indicação do próprio Burroughs, sempre se acaba por
reencontrar no texto de Almoço Nu a mesma frase – ou quase a mesma. Pois no
intervalo entre elas, entre essas duas frases, terá surgido todo um mundo de descrições e
enumerações, que duas palavras tomadas em dois sentidos, em dois momentos, passam
a viver vidas diferentes, ou melhor, são deslocadas para comporem outras frases: “a
repetição de uma palavra deixa escancarada a diferença de seus sentidos”.164
Procuremos analisar alguns trechos do livro de Burroughs em que ocorrem as citadas
repetições, especialmente os trechos em que reaparece a palavra “lêmures” (em três
ocasiões). A primeira delas diz: “(...) enquanto lêmures de olhos tristes contemplam as
margens e a distante e vasta planície”.165
A segunda diz: “(...) enquanto lêmures de
olhos tristes contemplam as margens”.166
E, finalmente, a terceira ocorrência, retirada
do “Prefácio Atrofiado”: “(...) enquanto lêmures de olhos tristes contemplam as
margens, do outro lado dos campos do Missouri”.167
Como se vê, uma pequena
diferença é entrevista toda vez que é repetida a palavra “lêmures”, compondo outras
frases com sentidos diferentes, a repetição implicando pequenas variantes textuais. Três
frases escritas quase da mesma maneira, com apenas uma mínima diferença, mas cujos
sentidos se relativizam, devido às diferentes acepções em que é empregada a palavra
“lêmure”, como uma pequena irregularidade, uma pequena torção que parece mudar
tudo...
162
BURROUGHS, 2005a, p. 204-205. 163
ROBBE-GRILLET, 1969, p. 56. 164
DELEUZE, 2006a, p. 99. 165
BURROUGHS, 2005a, p. 59. 166
BURROUGHS, 2005a, p. 103. 167
BURROUGHS, 2005a, p. 236.
66
3. 1. Contrapontos e deslocamentos.
Em oposição ao romance realista do século XIX, Almoço Nu não concebe
apenas uma forma narrativa, mas reúne várias formas narrativas: relatos
autobiográficos, narrativas ficcionais, notas sobre o vício, anedotas, historietas,
aforismos, etc. A combinação desses diversos registros abre um campo praticamente
infinito de possibilidades e de experiências formais, pois a reunião de todos estes
aspectos discursivos num único conjunto acaba por apresentar os traços de uma
verdadeira arte contrapontística, com inúmeras “vozes” narrativas compostas
simultaneamente, constituindo um enorme sistema de afinidades morfológicas
(um triunfo da multiplicidade sobre a unidade formal).
Mas diferentemente da arte do contraponto encontrada nos romances do
americano John Dos Passos (que, segundo Deleuze & Guattari, soube atingir uma arte
inaudita do contraponto, isto é, nos compostos que forma entre personagens,
atualidades, biografias, olhos de câmara168
), os contrapontos em Almoço Nu não vêm
indicados por cabeçalhos ou interrupções espaciais, mas fluem do começo ao fim sem
interrupção. Na verdade, existem títulos ou cabeçalhos para os capítulos, os quais são
muito significativos e indicam uma determinada organização, com seus cortes e saltos
abruptos. O que não existem são cabeçalhos que indiquem os contrapontos narrativos.169
Mas, como dissemos anteriormente, a tendência ao desequilíbrio e à
instabilidade, ao desenquadramento, o caráter de indeterminação, de indiscernibilidade
da narrativa, estes símbolos de aleatoriedade, tudo isto cobre o caminho desta “arte”
contrapontística, deste enorme sistema de afinidades morfológicas. É neste sentido que
acreditamos que parte da literatura americana do pós-guerra (Burroughs, Pynchon, etc.)
conseguiu, ao seu modo, configurar esteticamente a noção de entropia. Ao sobrepor
todos os registros, dissolvendo assim a unidade formal num enorme sistema de
afinidades morfológicas, concretiza-se a idéia de dissolução (seja da forma, da teoria, ou
168
“Um romancista como Dos Passos soube atingir uma arte inaudita do contraponto nos compostos que
forma entre personagens, atualidades, biografias, olhos de câmera, ao mesmo tempo que um plano de
composição se alarga ao infinito, para arrastar tudo para a Vida, para a Morte, para a cidade-cosmos”
(DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 223). 169
Numa carta a Irving Rosenthal, datada de 20 de julho de 1960, Burroughs faz a seguinte observação:
“Sim é minha intenção definitiva que o livro flua do começo ao fim sem nenhuma interrupção espacial ou
cabeçalhos adicionais para os capítulos. Creio que os cabeçalhos nas margens estão claramente indicados.
ISTO NÃO É UM ROMANCE. E não deve parecer-se com um. Qual o sentido de cabeçalhos que
meramente repetem trechos do texto? Em resumo sou definitivamente contrário a quaisquer cabeçalhos
adicionais nos capítulos” (BURROUGHS, 2005a, p. 297).
67
da idéia de sistema, como unidade abstrata configuradora), de modo semelhante à noção
de entropia. Em todo o caso, desfaz-se a unidade, a sistemática, como expressão e
símbolo, cedendo lugar à ideia de multiplicidade, ou seja, as antigas unidades estruturais
se convertem numa pluralidade de elementos experimentais que revelam, por fim, a
autêntica face da modernidade.170
(Do ponto de vista puramente formal predomina a
característica da fragmentação, expressa nas assim chamadas linhas de ruptura, como
uma espécie de fendas, traçadas ao longo do texto.) Desse modo – como hipótese de
trabalho –, teremos chegado à convicção de que o grande estilo das representações
orgânicas (ou totalizantes) terminou, deixando o posto a uma espécie de produção
contínua de hipóteses e perspectivas; e se não somos capazes de perceber com inteira
clareza o declínio desta tendência é porque oculta-o a ideia de experimentalismo que
predomina em grande parte da modernidade em geral.
Mas o que denominamos aqui de produção contínua de hipóteses e
perspectivas não deve ser confundido, em hipótese alguma, com um mero relativismo
ou tão-somente com um ceticismo local, ou um método generalizado. Não se trata
apenas de multiplicar as perspectivas para fazer perspectivismo; ao contrário, é preciso
que a cada perspectiva ou ponto de vista corresponda uma obra autônoma, isto é, dotada
de um sentido suficiente. Por outro lado, o perspectivismo não se identifica com um
simples ponto, mas com um lugar, uma posição – ou, mais exatamente, um ponto de
vista (ηπόπορ επιζηήμη171
), na medida em que representa uma variação ou inflexão.
Segundo Deleuze, este seria o fundamento do perspectivismo, que não significa “uma
dependência em face de um sujeito definido previamente: ao contrário, será sujeito
aquele que vier ao ponto de vista, ou sobretudo aquele que se instalar no ponto de
vista”.172
E continua:
Não é o ponto de vista que varia com o sujeito, pelo menos em
primeiro lugar; ao contrário, o ponto de vista é a condição sob a qual
um eventual sujeito apreende uma variação (metamorfose) ou algo = x
(anamorfose). Em Leibniz, com também em Nietzsche, em William e
Henry James e em Whitehead, o perspectivismo é certamente um
relativismo, mas não é o relativismo em que comumente se pensa.
Trata-se não de uma variação da verdade de acordo com um sujeito,
170
Um trecho de Almoço Nu parece aludir diretamente a essa transformação relativamente à destruição
dos grandes conjuntos em favor de um sistema de afinidades morfológicas: “Bem, a nova aparência será
uma aparência combinada, isto é, não será dominada por uma única enzima, o Criminoso, o Pervertido, o
Sujeitinho Santarrão, o Sacerdote, o Intocável, todas as raças e condições e potencialidades, não importa o
quanto sejam desprezíveis e horrendas, devem fundir-se... em novas formas...” (BURROUGHS, 2005a, p.
327). 171
Trópos epistéme: ponto de vista. 172
DELEUZE, 1991, p. 39.
68
mas da condição sob a qual a verdade de uma variação aparece ao
sujeito.173
Deste modo, o ponto de vista viria substituir o centro de convergência.
Ou seja, num mundo tornado infinito, aparece a importância de substituir o centro de
convergência, aparentemente enfraquecido, pelo ponto de vista, pelo perspectivismo.
Ou como bem salienta a este respeito Deleuze, em Diferença e Repetição, o que conta
neste caso é justamente a divergência das séries, o descentramento dos círculos, visto
que todo ponto de vista é ponto de vista sobre uma variação. Diz Deleuze:
O conjunto dos círculos e das séries é, pois, um caos informal, a-
fundado, que não tem outra “lei” além de sua própria repetição, sua
reprodução no desenvolvimento do que diverge e descentra. Sabe-se
como estas condições já se encontram efetuadas em obras como o
Livre, de Mallarmé, ou Finnegans Wake, de Joyce: elas são, por
natureza, obras problemáticas. Nelas, a identidade da coisa lida se
dissolve realmente nas séries divergentes definidas pelas palavras
esotéricas, assim como a identidade do sujeito que lê se dissolve nos
círculos descentrados da multileitura possível.174
A principal característica da obra de arte “moderna”, para Deleuze, estaria
justamente nesta ausência de centro ou de convergência, correspondendo a uma espécie
de topologia indiferente a qualquer tipo de suporte ou unidade configuradora, sem
posição de saída (em comparação às formas consagradas a nova forma parecerá uma
ausência de forma). E neste sentido, somente a categoria de multiplicidade seria capaz
de explicar esse enorme sistema de afinidades morfológicas, esse composto de vários
registros. Neste ponto, busquemos analisar alguns trechos do livro de Burroughs. No
nosso entender, dois capítulos, em especial, ilustram bem essa riqueza contrapontística a
qual nos referimos acima, ao explorarem essa acumulação e inter-relação entre os
diversos registros narrativos empregados. O primeiro deles é “Hospital”, um dos
capítulos que acumula mais registros. Contém pequenas notas sobre desintoxicação,
pesadelos da abstinência, narrativas ficcionais, duas “vinhetas” com o Dr. Benway, uma
cena passada num quarto de hospital, notas sobre o vício, etc. Em outras palavras,
“Hospital” possui uma riquíssima variedade contrapontística, ao misturar diferentes
registros narrativos, em sua maior parte ligados à doença da droga. O segundo capítulo
em questão é “O Mercado”, outro capítulo de Almoço Nu que contém uma variedade
enorme de registros. Entretanto, como consequência da infinita sucessão de cenas e
registros que existem em “O Mercado”, é quase impossível realizarmos uma verdadeira
173
DELEUZE, 1991, p. 40. 174
DELEUZE, 1988, p. 109.
69
apresentação, uma apresentação que esgote integralmente o seu conteúdo. Por esse
motivo, nos contentaremos aqui em apenas descrever o caráter contrapontístico de “O
Mercado”, a partir de uma rápida descrição dos vários registros existentes nele. O
capítulo é formado por uma sequência panorâmica da Cidade de Interzona; um relato de
Burroughs sobre uma experiência com yagê, um cipó com propriedades alucinógenas
nativo da região amazônica; uma sátira sobre as deliberações de um curandeiro com o
auxílio de yagê num processo de assassinato; um episódio envolvendo Clem e Jody,
personagens de Interzona que pela primeira vez aparecem na narrativa de Almoço Nu;
uma cena de tribunal com A.J.; uma sátira sobre Cristo, Buda, Maomé e Confúcio; um
mosaico composto de pequenas cenas, historietas e aforismos; uma anedota contada por
A.J. sobre um garoto num bordel; e, por último, uma experiência do Dr. Benway, Iris,
uma viciada em diidroxi-heroína.
Estas relações de natureza contrapontística, no entender de Deleuze, se
aproximariam das relações constituídas no mundo natural, ao constituírem processos de
correlação entre conjuntos de partes heterogêneas, enquanto uma coleção de relações
variáveis que não se confundem com uma totalidade orgânica (o mundo concebido
como relação de partes heterogêneas, como relação contrapontística). Deleuze diz:
A Natureza não é forma, mas processo de correlação: ela inventa uma
polifonia, ela não é totalidade, mas reunião, “conclave”, “assembléia
plenária”. A Natureza é inseparável de todos os processos de
comensalidade, convivialidade, que não são dados preexistentes,
porém se elaboram entre viventes heterogêneos de modo a criar um
tecido de relações moventes que fazem com que a melodia de uma
parte intervenha como motivo na melodia de uma outra (a abelha e a
flor). As relações não são interiores a um Todo, é antes o todo que
decorre das relações exteriores em tal momento e que com elas varia.
Por toda parte as relações de contraponto devem ser inventadas e
condicionam a evolução.175
Ou ainda, segundo Deleuze & Guattari:
Cada território, cada habitat junta seus planos ou suas extensões, não
apenas espaço-tenporais, mas qualitativos: por exemplo, uma postura
e um canto, um canto e uma cor, perceptos e afectos. E cada território
engloba ou recorta territórios de outras espécies, ou intercepta trajetos
de animais sem território, formando junções interespecíficas. É neste
sentido que Uexkühl, num primeiro aspecto, desenvolve uma
concepção da Natureza melódica, polifônica, contrapontual. (...) Não é
uma concepção finalista, mas melódica, em que não mais sabemos o
que é arte ou natureza (“a técnica natural”): há contraponto toda vez
que uma melodia intervém como “motivo” numa outra melodia (...).
Essas relações de contraponto juntam planos, formam compostos de
175
DELEUZE, 1997, p. 71.
70
sensações, blocos, e determinam devires. (...) Não parece que a
literatura, e particularmente o romance, estejam numa outra
situação.176
O mesmo ocorre com os fragmentos da obra de Burroughs, que exploram a
acumulação e inter-relação entre os diversos registros narrativos, uma espécie de
reflexão das relações sucessivamente adquiridas entre um fragmento e outro. Neste
sentido, a distância que vai de um registro a outro, ou de um fragmento a outro, é a
mesma que determina os limites de toda linearidade ou de uma totalidade orgânica, isto
é, esse enorme sistema de afinidades morfológicas não se orienta mais pelas leis dos
grandes conjuntos, mas formam intersecções que exploram um campo global de
coexistência entre os diversos registros; um conjunto de relações entre partes
articuladas, configurando uma totalidade fragmentária, de maneira que as partes sejam
ao mesmo tempo autônomas e interdependentes, como o momento em que o múltiplo se
subtrai à unidade: “(...) (é somente assim que o uno faz parte do múltiplo, estando
sempre subtraído dele). Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída; escrever a
n-1”.177
Neste ponto, cabe retomarmos aquilo que dissemos anteriormente
relativamente aos inúmeros deslocamentos e movimentos de desterritorialização pelo
qual passa a narrativa de Almoço Nu – os quais vão dos Estados Unidos ao México,
passando pela América do Sul, Europa e África do Norte178
– pois a distância que vai de
um registro a outro é diretamente proporcional àquela que vai de uma espacialidade a
outra, ou de uma territorialidade à outra. Tomemos como exemplo o movimento
expresso em “Consigo sentir a tocaia se armando...”, primeiro capítulo de Almoço Nu,
no qual o personagem William Lee, fugindo da polícia, empreende uma viagem pelo
interior dos Estados Unidos, Filadélfia, Chicago, Kansas, Texas, Louisiana, em direção
ao México, destino final da viagem de Lee. Mas isso não é tudo, a narrativa sofre ainda
um último deslocamento. As últimas palavras de “Consigo sentir a tocaia se armando...”
176
DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 218-219, 222. 177
DELEUZE e GUATTARI, 1995, p. 15. 178
Para Deleuze, os deslocamentos estão entre as principais características da literatura anglo-americana:
“A literatura anglo-americana não cessa de apresentar essas rupturas, essas personagens que criam a sua
linha de fuga, que criam por linha de fuga. Thomas Hardy, Melville, Stevenson, Virginia Woolf, Thomas
Wolfe, Lawrence, Fitzgerald, Miller, Kerouac. Tudo neles é partida, devir, passagem, salto, demônio,
relação com o exterior. Criam uma nova Terra, mas é possível que o movimento da terra seja a própria
desterritorialização. A literatura americana opera segundo linhas geográficas: a fuga para o Oeste, a
descoberta de que o verdadeiro Este é o Oeste, o sentido das fronteiras como algo a franquear, a repelir, a
ultrapassar. O devir é geográfico” (DELEUZE, 2004, p. 52).
71
evocam a cidade de Tânger, no Marrocos: “Um ano mais tarde, em Tânger, fiquei
sabendo que ela tinha morrido”.179
Assim, o livro de Burroughs, do mesmo modo que dissolve a unidade
formal, convertendo-se num enorme sistema de afinidades morfológicas, num composto
de vários registros, se define igualmente pelos movimentos de desterritorialização, pela
superação contínua dos limites geográficos, franqueando os espaços, transpondo as
fronteiras, traçando linhas de fuga... Esses signos de dissolução, de desterritorialização,
se insinuam por todo o livro, dissolvendo as identidades, as territorialidades fixas, a
idéia mesma de unidade formal. Os registros se sobrepõem, as fronteiras são
transpostas, limites são franqueados. Nenhum registro ou territorialidade têm função ou
posição constantes, a narrativa muda de “tom” e “consistência” em frações de segundo,
constituindo-se em zonas de indiscernibilidade e de indeterminação, que formam um
sistema narrativo instável, em perpétuo desequilíbrio...
Naquele mundo de escuridão total a boca e os olhos formam um único
órgão, capaz de projetar-se para morder com seus dentes
transparentes... mas nenhum órgão tem função ou posição constantes...
órgãos sexuais brotam por toda parte... retos escancaram-se, defecam
e fecham-se novamente... o organismo inteiro muda de cor e
consistência em ajustes de frações de segundos...180
Neste sentido, as relações estabelecidas entre os diversos registros (ou entre
as diversas espacialidades constituídas no romance) são apenas virtuais, potenciais,
instáveis, e definem apenas possibilidades, probabilidades de interação, porquanto a
narrativa não está submetida a nenhuma unidade formal, capaz de dar sentido à sua
matéria fluente e à sua função difusa, exatamente – como a bolha multitarefa do Dr.
Benway:
(...) esguichando como furúnculos estourados que lançam glóbulos de
Tecido Indiferenciado para todos os lados e caem sobre algum lugar
onde crescem até transformarem-se em formas de vida degeneradas,
reproduzindo horrendas imagens aleatórias. Algumas seriam
compostas inteiramente por um tecido erétil semelhante ao do pênis,
com cachos de três ou quatro olhos reunidos, bocas e cus
entrecruzados, órgãos humanos atirados para qualquer canto e
assimilados na mesma posição em que caíram.181
No nosso entender, o mais importante aqui é definirmos a distância ou o
intervalo entre cada registro, ou seja, entendermos o espaço de intersecção, enquanto
um espaço intermediário, como o lugar por onde passa o “corte” ou onde se dá a
179
BURROUGHS, 2005a, p. 29. 180
BURROUGHS, 2005a, p. 17-18. 181
BURROUGHS, 2005a, p. 142.
72
distribuição dos caracteres diferencias num espaço de coexistência, em função do qual
as coisas “aparecem” ou se relacionam. Na verdade, as relações estabelecidas aqui são
de natureza abstrata, como de resto grande parte da tradição metafísica ocidental.
Explico: Em linhas gerais, é possível assinalar que a tradição filosófica ocidental
inaugura com Descartes uma metafísica de base imaterial, um tipo de metafísica
totalmente abstrata, concebida em termos de relações, que pode ser contraposta à
metafísica grega, de base material (aqui, a condição fundamental da ideia é a
proximidade sensível; lá, é a abstração).182
Neste sentido, busquemos estabelecer, com
finalidade argumentativa, a diferença entre essas duas intuições de mundo, a começar
pelo mudo antigo. Pensemos na quintessência da obra de arte antiga: a estátua de um
homem nu. O mais essencial e significativo da existência, todo o seu ethos, se acha aqui
integralmente dado pelos planos, medidas e proporções sensíveis entre as partes. O
bloco de pedra é alguma coisa somente quando possui limites bem calculados e uma
forma bem medida, quando se tornou alguma coisa sob o cinzel do artista. De outra
maneira é um caos, algo ainda não realizado e, portanto, nada. Este sentimento,
transposto para o grande, origina o cosmos, por oposição ao caos, o mundo exterior da
alma antiga, a ordem harmônica de todas as coisas singulares, limitadas, de presença
palpável. A totalidade, a soma de todas estas coisas é o mundo inteiro. A distância ou o
intervalo entre elas, o espaço, que nós preenchemos com o pathos de um grande
símbolo, é para os gregos o nada, ηò μή όν183
. Para o homem antigo, extensão significa
corporeidade, para nós, espaço, em função do qual as coisas “aparecem”. Deste ponto
de vista, podemos compreender um dos conceitos mais profundos da metafísica antiga,
o ἄπειπον184
de Anaximandro: ἄπειπον é o que não possui “número”, em sentido
pitagórico (isto é, o número como a essência de todas as coisas apreensíveis pelos
sentidos), o que não possui medida, nem limite, nem, portanto, essência185
; o imenso, o
182
Na verdade, mesmo o universo construído por Copérnico, Galileu, Kepler e Newton, composto de
sólidas esferas materiais, separadas umas das outras por grandes distâncias e unidas por imutáveis leis da
natureza, as quais expressam um absoluto princípio de causalidade, transforma-se, a partir de Einstein,
num universo de campos de energia (ou campos de força) que, somente sob determinadas condições,
apresenta ao observador parcial o caráter de solidez material. O antigo modelo material do universo
desapareceu quase inteiramente sob o ar rarefeito de grupos algébricos, números irracionais e ordens de
infinidade. O homem ocidental verdadeiramente desmaterializou o universo... 183
Tó me ón: o que não é. 184
Apeiron: o ilimitado. 185
Aristóteles pensa o mesmo no livro segundo De Anima (B 4, 416a): “A todas as coisas naturais é
imposto um limite e um crescimento. No entanto, o fogo aplicado aos combustíveis cresce
ilimitadamente”. (ἡ μὲν ηοῦ πςπὸρ αὔξηζιρ εἰρ ἄπειπον, ἕωρ ἂν ἧ ηὸ καςζηόν, ηῶν δὲ θύζει ζςνιζηαμένων
πάνηων ἐζηὶ πέπαρ καὶ λόγος μᾶλλον ἢ ὕληρ.)
73
informe, a estátua que ainda não foi extraída do bloco de pedra. Isto é a ἀπσή186
, o que
para a vista é ilimitado e informe, que somente quando recebe limites e se individualiza
se transforma em algo, a saber, o mundo (neste sentido, a matéria desprovida de forma
só recebe seu ser-assim atual, na medida em que recebe uma forma através da alma).
Em termos kantianos, é o princípio ou a forma a priori do conhecimento antigo, a
corporeidade em si.187
Pois na imagem kantiana do mundo, o lugar correspondente está
reservado ao espaço absoluto, por meio do qual Kant “podia pensar todas as coisas”, o
espaço como criação maximamente abstrata desprendida de qualquer elemento sensível,
como absoluta superação da idéia de corporeidade. A fim de confirmar o que acabamos
de dizer, citemos ao próprio Kant, em sua Crítica da Razão Pura, na seção dedicada à
problemática do espaço:
O espaço é uma representação necessária, a priori, que fundamenta
todas as intuições externas. Não se pode nunca ter uma representação
de que não haja espaço, embora se possa perfeitamente pensar que não
haja objetos alguns no espaço. Consideramos, por conseguinte, o
espaço a condição de possibilidade dos fenômenos, não uma
determinação que dependa deles; é uma representação a priori, que
fundamenta necessariamente todos os fenômenos externos.188
Este símbolo pertence aos tempos modernos e apenas à sua “religião”
espiritual: o espaço puro, desprovido de objetos, enquanto uma substância de natureza
incorpórea, imaterial; o espaço puro, sem limites, como o ideal da alma ocidental em
oposição à antiga metafísica grega, de base material e sensível. (Lembremos que os
antigos sequer tinham vocábulo para designar exatamente este problema...189
)
Justamente essa espacialidade onipotente foi rechaçada pela humanidade antiga,
considerada como ηò μή όν, como o que não é. Portanto, assim como o mundo do
concreto se ampliou, a partir da visão limitada dos antigos, para a multiplicidade
186
Arché: o princípio. 187
Sobre a ideia de corporeidade como fundamento do conhecimento antigo, cf. Oswald SPENGLER,
Der Untergang des Abendlandes (Erster Band: Gestalt und Wirklichkeit), München: C.H. Beck‟sche
Verlagsbuchhandlung, 1923, I, p. 87-88. 188
KANT, 1985, p. 65. 189
Segundo Spengler, o vocábulo não existe nem em grego nem em latim: “A palavra ηόπορ – em
latim lócus – significa lugar, comarca e também classe, no sentido de classe social. A
palavra σώπα – em latim spatium – significa separação (“entre”), distância, lugar e também
solo e terra (ηὰ ἐκ ηῆρ σώπαρ, os frutos da terra). A palavra ηό κενόν – em latim vacuum –
significa, sem dúvida nenhuma, um corpo oco, acentuando o sentido de envoltura”
(SPENGLER, 1923, p. 230). Cf. também o vocábulo ηέμενορ – em latim templum – que
designa um pedaço de terra delimitado, consagrado aos deuses. Em todos estes casos,
predomina o elemento sensível, o corpo palpável, a presença imediata. Em outras palavras,
a necessidade que nós, ocidentais, temos em seguir imaginando “espaço”, para além de
qualquer invólucro ou envoltura, parece faltar por completo ao sentimento de mundo dos
antigos.
74
abstrata da visão moderna (ou seja, enquanto abandono do elemento sensível por um
princípio abstrato), também o mundo das possibilidades de relação se desenvolveu para
o multiforme inconcebível, como caminhos infinitamente longos, atados com grossos
cordões, que levam de uma espacialidade a outra. Neste ponto, portanto, apenas o
espiritual ou o abstrato é o efetivo, como o “lugar” onde se estabelece todas as relações
possíveis.
Evidentemente, o espaço entendido kantianamente, em termos absolutos, ou
seja, euclidianamente, como um plano único, não corresponde à nossa problemática,
pois somente um tratamento multidimensional do espaço pode nos conduzir a uma
solução mais ou menos satisfatória sobre a questão de um espaço diferencial capaz de
pensar a diferença para além de toda oposição possível. Em todo o caso (e como já
dissemos anteriormente), de todas as relações possíveis que se possa estabelecer num
espaço dessa natureza, a única que nos interessa aqui são as chamadas relações
contrapontísticas, entendidas aqui como relação entre relações, estabelecidas não mais
em termos de problemática dos opostos, isto é, hegelianamente.190
Como, pois, reunir o
diferente para além de toda oposição possível? Como pensar duas ou mais séries num
espaço de diferença? Neste sentido, diz Deleuze:
A primeira característica parece-nos ser a organização em séries. É
preciso que um sistema se constitua à base de duas ou várias séries,
sendo cada uma definida pelas diferenças entre os termos que a
compõem. Se supomos que as séries entram em comunicação sob a
ação de uma força qualquer, vemos que esta comunicação relaciona
diferenças a outras diferenças ou constitui, no sistema, diferenças de
diferenças: estas diferenças em segundo grau desempenham o papel
de “diferenciante”, isto é, relacionam umas às outras as diferenças de
primeiro grau. Este estado de coisas exprime-se adequadamente em
certos conceitos físicos: acoplamento entre séries heterogêneas; de
onde deriva uma ressonância interna no sistema; de onde deriva um
movimento forçado cuja amplitude transborda as próprias séries de
base. Pode-se determinar a natureza destes elementos que valem ao
mesmo tempo por sua diferença numa série da qual fazem parte e por
sua diferença de diferença, de uma série à outra: são intensidades,
190
Hegel, numa leitura deleuziana, ao que parece, compreende todas essas relações como relação entre
opostos, entre contrários, e não como relação entre partes heterogêneas, como relação contrapontística.
Ou seja, Hegel determina a diferença pela oposição dos extremos ou dos contrários: “A diferença em
geral já é contradição em si... Só quando levado à ponta da contradição o variado, o multiforme, desperta
e se anima, e as coisas participantes dessa variedade recebem a negatividade, que é a pulsação imanente
do movimento autônomo, espontâneo e vivo... Quando se leva suficientemente longe a diferença entre as
realidades, vê-se a diversidade tornar-se oposição e, por conseguinte, contradição, de modo que o
conjunto de todas as realidades se torna, por sua vez, contradição absoluta em si” (Hegel apud
DELEUZE, 1988, p. 78).
75
sendo próprio da intensidade o ser constituída por uma diferença que
remete, ela própria, a outras diferenças (...).191
No entender de Deleuze, a noção de intensidade seria suficiente para
determinar a natureza dessas relações diferenciais, dessas relações contrapontísticas,
porquanto que o próprio da intensidade é ser ela “constituída por uma diferença que
remete, ela própria, a outras diferenças”, como o momento em que as séries não
aparecem dispostas em termos de oposição e de contradição, ou seja, a intensidade
como um elemento que é em si mesmo diferença, como pura diferença em si:
“A expressão „diferença de intensidade‟ é uma tautologia. A intensidade é a forma da
diferença como razão do sensível. Toda intensidade é diferencial, diferença em si
mesma”.192
Assim, cada intensidade é já um acoplamento, em que cada elemento
remete, por sua vez, a pares de elementos de outra ordem ou natureza (como um
elemento em toda uma série de outros e que não possui nenhum privilégio). Trata-se,
portanto, de saber se é possível contentar-se apenas com pluralizar a oposição ou em
sobredeterminar a contradição. Em outras palavras: a descoberta de uma pluralidade de
oposições coexistentes não é inseparável de outra descoberta mais profunda, isto é, a da
própria diferença enquanto diferença em si mesma? “A descoberta de uma pluralidade
de oposições coexistentes, em qualquer domínio, é inseparável de uma descoberta mais
profunda, a da diferença, que denuncia o negativo e a própria oposição como aparências
em relação ao campo problemático de uma multiplicidade positiva”.193
Quando se
entende a diferença como oposição, a partir da uniformidade da grande contradição, ela
fica privada de sua especificidade própria, em que afirma sua positividade, ou seja,
como sombras num único plano... “Pois a oposição nada nos ensina sobre a natureza
daquilo que se supõe estar em oposição”.194
Com efeito, a diferença enquanto tal é
constituída de relações recíprocas entre elementos diferenciais completamente
determinados em suas relações, sem nunca comportar termo negativo nem correlação de
negatividade... E se existe aqui uma problemática dos opostos, ela só pode ser entendida
enquanto um processo de diferenciação (ou melhor, de individuação), processo este que
dissolve por completo a uniformidade da grande contradição, como duas ordens de
grandeza ou duas escalas de termos heterogêneos (pelo menos) entre os quais os
potenciais se repartem. Ou seja, os contrastes se anulam mutuamente, de modo que da
191
DELEUZE, 1988, p. 172-173. 192
DELEUZE, 1988, p. 314. 193
DELEUZE, 1988, p. 288. 194
DELEUZE, 1988, p. 289.
76
“coalizão” de ambos resulta, de acordo com as regras de qualquer energética, algo
semelhante a um terceiro elemento (tertium), totalmente novo. Aparece, assim, um
campo mais ou menos “problemático”, determinado pela distância ou pela intersecção
entre tais ordens ou termos heterogêneos: “A substituição de um princípio de oposição
distintiva por um princípio de posição diferencial (...)”.195
Como a noção de intensidade já exprime, portanto, uma diferença, é
necessário definirmos melhor o que é preciso entender por isso, ou seja, devemos
compreender que a intensidade não pode compor-se de termos homogêneos, mas, ao
contrário, de duas ou mais séries de termos heterogêneos. Neste sentido, chegou o
momento de determinarmos a noção de diferença enquanto multiplicidade, que até
agora tínhamos deixado indeterminada. Assim, busquemos estabelecer os traços
distintivos que caracterizam uma multiplicidade. Inicialmente, a multiplicidade não
deve designar uma combinação de múltiplo e de uno, mas, ao contrário, uma
organização própria do múltiplo enquanto tal, que de modo algum necessite da ideia de
unidade para compor um sistema, bem como de qualquer esquema dialético que proceda
por oposição. “Em toda parte, as diferenças de multiplicidades e a diferença na
multiplicidade substituem as oposições esquemáticas e grosseiras. Há tão-somente a
variedade de multiplicidade, isto é, a diferença, em vez da enorme oposição do uno e do
múltiplo”.196
Mas – perguntemos – como e em que condições devemos falar então de
uma multiplicidade? Segundo Deleuze, são três as condições que permitem definir
rigorosamente o momento de emergência da multiplicidade. São eles os seguintes
(segundo Deleuze):
(...) 1°, é preciso que os elementos da multiplicidade não tenham
forma sensível, nem significação conceitual, nem, desde então, função
assinalável. Eles nem mesmo têm existência atual e são inseparáveis
de um potencial ou de uma virtualidade. É neste sentido que eles não
implicam qualquer identidade prévia, nenhuma posição de algo que se
poderia dizer uno ou o mesmo (...). 2°, é preciso, com efeito, que estes
elementos sejam determinados, mas reciprocamente, por relações
recíprocas que não deixem subsistir qualquer independência. Tais
relações são precisamente ligações ideais, não localizáveis, seja
porque caracterizam a multiplicidade globalmente, seja porque
procedem por justaposição de vizinhanças. Mas a multiplicidade é
sempre definida de maneira intrínseca, sem que dela se saia e sem que
se recorra a um espaço uniforme em que ela estaria mergulhada. (...)
3°, uma ligação múltipla ideal, uma relação diferencial deve atualizar-
se em correlações espaço-temporais diversas, ao mesmo tempo em
195
DELEUZE, 1988, p. 289. 196
DELEUZE, 1988, p. 260.
77
que seus elementos encarnam-se atualmente em termos e formas
variadas.197
Assim, segundo Deleuze, se definiria uma multiplicidade interna, isto é, um
sistema de ligação múltipla não-localizável entre elementos diferenciais, que se encarna
em correlações reais e em termos potenciais, ao mesmo tempo autônomas e
interdependentes, como um sistema portanto que incluísse todas as figuras possíveis198
,
“puras multiplicidades positivas onde tudo é possível, sem exclusões nem negações,
sínteses operando sem um plano, em que as conexões são transversais, as disjunções
inclusivas, as conjunções plurívocas, indiferentes ao seu suporte (...)”.199
Em todo o
caso, conforme lembram Deleuze & Guattari (1992, p. 181), parece que uma teoria das
multiplicidades não suporta a hipótese de uma multiplicidade qualquer, pois, como
vimos anteriormente, para a constituição de uma multiplicidade são necessárias pelo
menos duas ou dois tipos de multiplicidade. Isto, contudo, não significa dizer que o
dualismo seja superior ou valha mais que a unidade, visto que a multiplicidade é
justamente o que se passa “entre” ambos os tipos de multiplicidade (como dois vetores
que se cruzam ou se chocam). “Assim, os dois tipos [de multiplicidade] não estarão
certamente um acima do outro, mas um ao lado do outro, um contra o outro, face a face
ou costas contra costas”.200
(É o abandono definitivo do plano de transcendência em
favor de um plano de imanência: um campo horizontal de imanência em vez de uma
transcendência vertical.)
Mas retornemos, por fim, ao nosso tema estrito, definido anteriormente
como a tentativa de se entender o espaço de intersecção enquanto o lugar por onde passa
o “corte” ou onde se dá a distribuição de todos esses caracteres diferenciais. A
impressão inicial pode parecer extremamente abstrata. Mas uma das ideias básicas do
197
DELEUZE, 1988, p. 261. 198
E neste sentido, segundo Deleuze, uma multiplicidade enquanto tal, ou seja, enquanto um sistema de
ligação múltipla não-localizável entre elementos diferenciais, se aproxima das três principais
características que compõem uma intensidade: “A intensidade tem três características. De acordo com a
primeira, a intensidade intensiva compreende o desigual em si. (...) A intensidade é o não anulável na
diferença de quantidade, mas esta diferença de quantidade anula-se em extensão, sendo a extensão
precisamente o processo pelo qual a diferença intensiva é posta fora de si, repartida de maneira a ser
conjurada, compensada, igualizada, suprimida no extenso que ela cria. (...) Uma segunda característica
decorre da primeira: compreendendo o desigual em si, sendo já diferença em si, a intensidade afirma a
diferença. Ela faz da diferença um objeto de afirmação. (...) De acordo com uma terceira característica,
que resume as duas anteriores, a intensidade é uma quantidade implicada, envolvida, „embrionada‟. Não
implicada na qualidade; isto ela é, mas apenas secundariamente. Primeiramente, ela está implicada em si
mesma: implicante e implicada. Devemos conceber a implicação como uma forma de ser perfeitamente
determinada. Na intensidade, chamamos diferença aquilo que é realmente implicante, envolvente;
chamamos distância aquilo que está realmente implicado ou envolvido” (DELEUZE, 1988, p. 327-334). 199
DELEUZE e GUATTARI, 2004, p. 322. 200
DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 181.
78
livro de Burroughs parece ser a da intersecção entre dois ou mais sistemas heterogêneos,
com um centro comum (o vício em si). Em outras palavras: a configuração estabelecida
em Almoço Nu parece sugerir a intersecção de duas ou mais série de termos
heterogêneos, funcionalmente relacionados entre si, mas regidos por suas próprias leis e
regras. Provavelmente, não erramos ao presumir que o livro de Burroughs busca reunir
todas as figuras possíveis sobre o vício, a mais completa possível. (Em termos
matemáticos, seu caráter é multidimensional.) Mas não queremos exagerar a
importância desta conclusão, uma vez que não podemos comprovar o acerto desta
interpretação. Em todo o caso, o importante é que se possa conceber vários sentidos ou
modalidades formalmente distintas do vício, mas que se reportam ao vício como a um
só designado, como se ele fosse ontologicamente uno. Neste sentido, o mais essencial
não é que o vício se diga num único sentido, mas é que ele se diga num mesmo sentido
por meio de todas as formas ou figuras possíveis. O vício é o mesmo para todas estas
modalidades, mas estas modalidades não são iguais. Ele se diz num só sentido de todas,
mas elas mesmas não têm o mesmo sentido, visto que elas diferem entre si (semelhante
à fórmula paradoxal dos antigos Ἓν ηὸ πᾶν – todas as coisas são uma só –, ou seja, ao
mesmo tempo como unidade e como multiplicidade...).
Uma voz para todo o múltiplo de mil vias, um mesmo Oceano para
todas as gotas, um só clamor do Ser para todos os entes. Mas à
condição de ter atingido, para cada ente, para cada gota e em cada via,
o estado de excesso, isto é, a diferença que os desloca e os disfarça, e
os faz retornar, girando sobre sua ponta móvel.201
Entendido dessa maneira, o livro de Burroughs é ao mesmo tempo relativo e
absoluto: relativo com respeito aos próprios componentes que o compõe (as
modalidades formalmente distintas do vício), mas absoluto pela maneira pela qual se
põe nele mesmo (como ontologicamente uno). Ele é relativo enquanto fragmentário,
mas absoluto como todo. Portanto, os elementos são relativos uns em relação aos
outros, mas cada elemento é absoluto em si mesmo, sendo dotado de um sentido
suficiente, comportando cada um deles uma coesão interna em seu próprio nível. (É
sobre este sistema, por assim dizer, relativo que repousa a investigação acerca do vício
absoluto.) Mas não temos a menor razão para pensar que os fragmentos tenham
necessidade de valores, por assim dizer, transcendentes que os comparariam, os
selecionariam ou decidiriam que um é “melhor” que o outro; ao contrário, não há
critérios senão relativos, e cada fragmento se avalia por ele mesmo – por ser absoluto
201
DELEUZE, 1988, p. 417.
79
em si mesmo –, pelos movimentos que ele traça e pelas intensidades que ele constitui,
sobre um determinado plano de composição. Enfim, um fragmento é bom ou ruim, alto
ou baixo, pleno ou vazio, independentemente do Uno ou do Todo, em relação a todo e
qualquer sistema de referências enquanto valor transcendente (não se pode dizer,
portanto, de antemão que aqui temos um fragmento ruim e, ali, um bom): não existe
outro critério senão o sentido suficiente que cada fragmento contém por si mesmo, as
intensidades que ele constitui, etc. (“São limiares de intensidade, que só são mais altos
ou mais baixos segundo o sentido em que são percorridos”.202
)
Neste ponto, é necessário confirmar as análises precedentes com um retorno
ao livro de Burroughs, ou seja, tomando como exemplo “Rápido...”, o derradeiro cut-up
de Almoço Nu, composto a partir de inúmeros extratos sacados do próprio romance:
clarão branco... gritos de insetos mutilados...
Acordei com gosto de metal na boca ao regressar da terra dos mortos
rastreando o cheiro incolor da morte
placenta de um macaco cinzento e atrofiado
dores agudas e espectrais de amputação...
– Garotos de programa à espera de clientes – disse Eduardo antes de
morrer de overdose em Madri...
Trens carregados de pólvora pegam fogo ao cruzar róseas espirais de
carne tumescente... detonam clarões de orgasmo... fotografias precisas
de movimentos abortados... um flanco bronzeado e macio se retorce
para acender um cigarro...
Ficou ali, usando o chapéu de palha em estilo de 1920 que alguém lhe
deu... palavras macias e mendicantes desabando sobre a rua escura
como pássaros mortos...
– Não... Não mais... No más...
Um mar oscilante de martelos pneumáticos no crepúsculo roxo-
pardacento maculado pelo odor podre-metálico de gás de esgoto...
jovens rostos operários vibram desfocados em auréolas amarelecidas
de lanternas de carbureto... canos rompidos expostos...
– Estão reconstruindo a Cidade.
Lee assentiu distante... “Sim... Sempre”
De qualquer modo não é uma boa para a Ala Oriental...
Se eu soubesse, adoraria lhe contar...
– Nada bom... no bueno... ando me prostituindo...
Teinon... Vóta sestafêla.203
Em “Rápido...”, como se pode perceber, estão reunidas cadeias semióticas
de toda natureza, que colocam em questão não apenas registros formais diferentes, mas
também caracteres de estados de coisas e conteúdos vividos. Porém, todos os tipos de
coisas aqui reunidas sobre uma mesma página, sobre uma mesma paragem, sobre um
mesmo plano: acontecimentos, determinações históricas, pensamentos, indivíduos,
202
DELEUZE e GUATTARI, 2003, p. 77. 203
BURROUGHS, 2005a, p. 240-241.
80
formações sociais, estão concebidas em termos de uma multiplicidade ao mesmo tempo
absoluta e relativa. Em outras palavras: é a partir destas intersecções ou distâncias, as
quais não podem ser definidas por meio de qualquer conceito de causalidade, devendo
ao contrário ser necessariamente concebidas como a-causais, que todos estes elementos
se encadeiam ou se separam, ao mesmo tempo em que cada elemento se comporta como
múltiplos irredutíveis, isto é, como absoluto e como relativo. Assim, por exemplo, não é
suficiente remeter causalmente um elemento a um outro, um fragmento a um outro,
ou passar de uma ideia a outra segundo uma ordem de associações. As relações
constituídas aqui não concernem à mera associação de ideias, ou à sucessão de causas e
de efeitos. Elas não constituem um conjunto de ideias associadas, nem tampouco uma
série de ideias ordenadas causalmente. (Na verdade, as ideias só são associáveis como
representações, e ordenáveis como abstrações.) Ora, as relações constituídas aqui se
formam antes por zonas de vizinhança ou de indiscernibilidade, por campos de forças
que procedem por resoluções de tensões, enquanto sistemas de pontos abstratos de
força, atuando como unidades, dominando o espaço energeticamente (como “campo”),
deixando assim de ser associáveis segundo as formas da representação, ou ordenáveis
segundo as exigências da causalidade, para compor verdadeiros blocos de relações:
relação entre relações (os contrapontos narrativos), ou seja, segundo a forma da função,
entendida aqui em termos de relações.
81
***
O que significam, pois, esses signos de dissolução e aleatoriedade, os
movimentos de desterritorialização, a abolição dos grandes conjuntos e, principalmente,
a ausência de sentido? A ausência de uma “meta” narrativa em Almoço Nu não expressa
de modo radical a experiência da subjetividade moderna? Burroughs acaso inventou
uma nova forma de composição ou, antes, o caldo da experiência moderna a
determinou? A obra de Burroughs não emerge justamente da experiência histórica
ocidental do pós-guerra, a qual possibilitara as condições para o surgimento das novas
estéticas e temáticas?
No nosso entender, a estética burroughsiana não se relaciona somente com a
sua personalidade, com sua vontade ou sua consciência; ela também é fruto de seu
próprio tempo. O que quero dizer é que não existe criação artística independente da
história. Tudo se liga ao sítio da história. Neste sentido, a experiência do homem
contemporâneo talvez ajude a explicar todas essas particularidades, em especial a
ausência de sentido. Afinal, o que significam esses signos de indeterminação, as antigas
identidades convertidas em simples funções variáveis, em zonas de indeterminação? Do
mesmo modo, qual o significado dessa narrativa que se esvai completamente,
dissolvendo a unidade formal, resultando numa escrita aparentemente aleatória,
indiferente a qualquer tipo de suporte ou unidade configuradora? Em última instância,
não é esse o modo como o homem contemporâneo compreende o mundo onde vive,
principalmente a maneira como sua consciência capta o sentido da história, a ordem que
rege a história, aparentemente perdida? O que está por trás deste estado de coisas? O
que está por trás – é evidente – é um ser extirpado de um contexto em que a vida possui
algum sentido. Thomas Pynchon, por exemplo, fala em seus romances daquelas pessoas
que estão num estado de absoluta indeterminação como se fossem “vítimas de um
vácuo” – sendo este vácuo o vazio espiritual e intelectual, a perda de tensão em direção
a um objetivo.204
Seus personagens parecem mover-se em um vácuo, numa espécie de
vazio existencial em que ninguém possui vontade própria, substituída neste ponto por
uma espécie de vis inertiae, resultante da própria indeterminação do sujeito.
Consideremos, neste sentido, um trecho retirado de O arco-íris da gravidade (1973),
204
Cf. a análise de Eric Voegelin sobre a obra de Pynchon, em “Structures of Consciousness”.
(Conferência realizada na York University – Toronto, Canadá – em 22 de novembro de 1978). Cf. em
Referência Bibliográfica.
82
romance de Pynchon cujo cenário é a Europa devastada ao final da Segunda Grande
Guerra:
Os dias se passavam, todos muito parecidos para Pökler. Idênticos
mergulhos matinais numa rotina tão morta quanto o inverno. Ele
aprendeu a pelo menos manter uma fachada tranquila, Aprendeu a
sentir o movimento palpável rumo à guerra que é característico dos
programas de armamentos. De início simula a depressão ou a
ansiedade não específica. Pode haver espasmos no esôfago e sonhos
irrecuperáveis. Você se pega escrevendo recados para si mesmo assim
que se levanta de manhã: mensagens razoáveis, tranqüilizadoras,
dirigidas ao louco varrido interior – 1. É uma combinação. 1.1 É uma
grandeza escalar. 1.2 Seus aspectos negativos se distribuem de modo
isotrópico. 2. Não é uma conspiração. 2.1 Não é um vetor. 2.11 Não é
dirigido a ninguém. 2.12 Não é dirigido a mim... u.s.w. O café começa
a ficar com um gosto cada vez mais metálico. Cada prazo agora é uma
crise, cada uma mais intensa que a anterior. Por trás deste emprego
como outro qualquer parece haver alguma coisa vazia, alguma coisa
terminal, alguma coisa cada dia mais perto de se manifestar... (“O
novo planeta Plutão”, ela sussurrara há muito tempo, deitada na
escuridão malcheirosa, seu lábio superior alongado, lábio de Asta
Nielsen, tão giboso naquela noite quanto a lua que a governava,
“Plutão é meu signo agora, presa com força em suas garras. Ele se
move tão devagar, tão devagar, tão distante... mas vai explodir. É a
fênix sinistra que cria seu próprio holocausto... ressurreição
deliberada. Uma encenação. Sob controle. Nada de graça, nada de
intervenção divina. Uns dizem que é o planeta do nacional-socialismo,
Brunhübner e aquela turma, todos tentando puxar o saco de Hitler
agora. Eles não sabem que o que estão dizendo é literalmente
verdadeiro... Você está acordado? Franz...”).205
Pökler é um paradigma do medo e da insegurança amplamente difundidos,
inclusive, entre as pessoas instruídas do nosso tempo, pertencendo, portanto, ao número
daquelas pessoas que compreendem o que significa a anulação das metas individuais.
Gestos como o seu só possuem significação quando sentimentos de inferioridade, a falta
de sentido de uma vida meramente funcional, ameaçam sufocar a individualidade. Em
realidade, este nos parece ser um bom exemplo do que pretendemos apontar sobre a
natureza particular da literatura produzida no pós-guerra, completamente apartada das
estruturas tradicionais, construída sobre os fundamentos da subversão estilística e do
desconforto existencial, a qual busca refletir sobre este momento da história em que o
humano parece ter perdido sua alma – aquilo que Nietzsche chamou pelo seu nome: o
advento do niilismo.206
Em todo o caso, todas essas mudanças não se reduzem a
205
PYNCHON, 1998, p. 429-430. 206
Disse, pois, Nietzsche: “O que narro é a história dos próximos dois séculos. Descrevo o que vem, o
que não pode deixar de vir de outro modo: o advento do niilismo. Esta história já se pode contar agora:
pois a necessidade mesma está aqui a trabalhar. Este futuro já fala em cem signos, este destino se anuncia
83
transformações políticas ou econômicas, nem sequer a mutações religiosas ou artísticas.
Não se trata de nada palpável. É antes a “essência” de uma alma, de uma cultura que
parece ter realizado integralmente todas as suas possibilidades formais. Portanto, não se
trata da vida externa, da conduta, das instituições, dos costumes, porém de algo mais
profundo e último: é o esgotamento interior do homem ocidental.207
Isto ocorre enfim
quando uma alma realiza inteiramente a soma de suas possibilidades, quando todos os
grandes problemas foram pensados integralmente e reduzidos a um último estado de
saber ou não saber...208
por toda parte; para esta música do futuro já estão aguçados todos os ouvidos” (NIETZSCHE, 2008, 11
[411], p. 489). 207
Neste sentido, é importante destacar que a forma de niilismo a que nos referimos aqui não se refere à
forma estabelecida por Nietsche, isto é, como resultante da descrença nas categorias da razão, mas em
niilismo enquanto esgotamento das possibilidades de realização. Assim, pois, diz Nietzsche: “(...) a fé nas
categorias da razão é a causa do niilismo – nós temos medido o valor do mundo mediante categorias, as
quais se referem a um mundo puramente fingido” (NIETZSCHE, 2008, 11 [99] (351), p. 396). 208
Entendido dessa maneira, a reflexão das relações sucessivamente adquiridas, o mundo como relação
contrapontística, relação entre relações, ou seja, no sentido especial de relação entre dois ou vários
elementos, poderia ser considerado como o último (o mais recente) problema filosófico do Ocidente...
84
Capítulo 4. As sociedades de controle.
Apresentação
Neste capítulo, procuraremos analisar a noção deleuziana de “sociedades de
controle”, inspirada na obra de Burroughs. Neste sentido, o presente capítulo tem por
objetivo a exposição da noção de sociedades de controle desenvolvida por Gilles
Deleuze, tomando como modelo paradigmático o pensamento do controle enunciado
inicialmente por Burroughs. Desse modo, buscaremos apontar para alguns dispositivos
que parecem indicar que já nos encontramos em uma sociedade cujos mecanismos de
controle estão cada vez mais disseminados, todos remetendo a mais alta perfeição da
dominação.
“O doutor Benway fora nomeado conselheiro da República de
Liberlândia, uma terra dedicada ao amor livre e aos banhos
constantes. Seus cidadãos são bem ajustados, cooperativos,
honestos, tolerantes e, acima de tudo, limpos. Mas a convocação
de Benway sinaliza que nem tudo vai bem por trás dessa fachada
higiênica: Benway é um manipulador, um coordenador de
sistemas simbólicos, um especialista em todas as etapas de
interrogatórios, lavagens cerebrais e formas de controle. Eu não
falava com Benway desde sua saída precipitada de Anéxia, onde
estivera encarregado do processo de D. T. (Desmoralização
Total). Lembro que o primeiro ato de Benway foi abolir os campos
de concentração, as prisões em massa e, exceto em circunstâncias
delimitadas e especiais, o uso de tortura.” – Almoço Nu.
Deleuze desenvolveu, num post-scriptum intitulado “Sobre as sociedades de
controle”, do ano de 1990, uma noção que traduz com perfeição o pensamento do
controle enunciado inicialmente por Burroughs, ponto culminante de sua obra: a noção
de “sociedades de controle”. Sociedade de controle foi o termo desenvolvido por
Deleuze para caracterizar o tipo de sociedade que emergiu após a Segunda Guerra
Mundial. O totalitarismo desapareceria dando lugar a novos modos de dominação e,
segundo Deleuze, “(...) em favor de novas forças que se instalavam lentamente e que se
precipitariam depois da Segunda Guerra mundial: sociedades disciplinares é o que já
não éramos mais, o que deixávamos de ser”.209
Deleuze propõe uma nova organização
social, para além da sociedade disciplinar, que implica em várias considerações
conceituais.
209
DELEUZE, 1992, p. 219-220.
85
Nesse artigo, Deleuze explica que Michel Foucault, anteriormente, analisara
dois tipos de sociedade: as sociedades de soberania e as sociedades disciplinares.210
O trânsito da sociedade de soberania para a sociedade disciplinar, segundo Foucault,
teria sido operado pelo Império de Napoleão. As sociedades de disciplina, ainda
segundo as análises de Foucault, definiam-se pela formação de grandes meios de
confinamento: prisões, escolas, fábricas, hospitais, etc. Mas, ao que tudo indica,
Foucault jamais pensara que as sociedades de disciplina fossem durar para sempre. Ao
contrário, ele pensava que entraríamos num outro tipo de sociedade. Numa conferência
pronunciada no Japão, por exemplo, Foucault se refere a uma crise das sociedades
disciplinares, mas não chega a formular nenhuma hipótese sobre o futuro. Diz Foucault:
A disciplina, que era eficaz para manter o poder, perdeu uma parte de
sua eficácia. Nos países industrializados, as disciplinas entram em
crise. (...) Nesses últimos anos, a sociedade mudou e os indivíduos
também; eles são cada vez mais diversos, diferentes e independentes.
Há cada vez mais categorias de pessoas que não estão submetidas à
disciplina, de tal forma que somos obrigados a pensar o
desenvolvimento de uma sociedade sem disciplina. A classe dirigente
continua impregnada da antiga técnica. Mas é evidente que devemos
nos separar, no futuro, da sociedade de disciplina de hoje.211
Na verdade, Foucault considerava que o poder exercido pelas instituições
disciplinares não se limitava apenas ao interior de seus edifícios, mas possuía uma certa
tendência a se “desinstitucionalizar”, a se dissolver no campo social, convertendo-se em
processos flexíveis de controle:
(...) enquanto por um lado os estabelecimentos de disciplina se
multiplicam, seus mecanismos têm uma certa tendência a se
desinstitucionalizar, a sair das fortalezas fechadas onde funcionavam e
a circular em estado “livre”; as disciplinas maciças e compactas se
decompõem em processos flexíveis de controle, que se pode transferir
e adaptar.212
Entendido desse modo, os mecanismos disciplinares se difundiriam em
todas as direções, como uma função contínua e livre, ou seja, independente dos meios
de confinamento e da presença física de uma autoridade disciplinar. (Neste sentido, as
210
Em outra parte, mais exatamente em seu livro sobre Foucault, Deleuze dirá: “Vigiar e Punir analisa o
diagrama disciplinar como sendo o que substitui os efeitos da antiga soberania por um enquadramento
imanente ao campo social. (...) Nossas sociedades disciplinares passam por categorias de poder (ações
sobre as ações) que podem ser definidas assim: impor uma tarefa qualquer ou produzir um efeito útil,
controlar uma população qualquer ou gerir a vida. Mas as antigas sociedades de soberania se definiam por
outras categorias igualmente diagramáticas: confiscar (ação de se apropriar de ações ou produtos, força de
confiscar forças) e decidir a morte („causar a morte ou deixar viver‟, o que é bem diferente de gerir a
vida)” (DELEUZE, 2006b, p. 91). 211
FOUCAULT, 2006, p. 268. 212
FOUCAULT, 2009, p. 199.
86
sociedades de controle talvez pudessem ser entendidas como uma função derivada da
sociedade industrial com seu anonimato de gestão e desaparecimento do poder
pessoal.213
) Neste ponto, torna-se quase impossível acertar a localização pontual dos
mecanismos disciplinares, dissolvidos em todo o campo social, enquanto uma função
(de relação) contínua e livre. Instala-se uma espécie de experiência “incorpórea” do
poder disciplinar, um tipo de prisão que não se pode ver nem tocar, que remete a uma
forma de exterioridade.
A prisão enquanto segmentaridade rígida (celular) remete a uma
função flexível e móvel, a uma circulação controlada, a toda uma rede
que atravessa também os meios livres e pode aprender a sobreviver
sem a prisão. Parece um pouco com a “prorrogação indefinida” de
Kafka, que já não necessita de detenção nem de condenação.214
Neste sentido, Deleuze parece propor uma extensão dos mecanismos
disciplinares para além dos próprios meios de confinamento, ou seja, uma espécie de
sublime desenvolvimento do poder disciplinar chegado ao ponto de prescindir dos
próprios estabelecimentos de disciplina. Consciente dessa mutação, Deleuze proporá a
noção de sociedades de controle enquanto uma espécie de desdobramento das
sociedades disciplinares, isto é, como uma função derivada das sociedades disciplinares.
Assim, o procedimento de Deleuze consistiu em acrescentar às sociedades de soberania
e de disciplina, analisadas anteriormente por Foucault, uma terceira sociedade, as
sociedades de controle, termo que ele toma emprestado da obra de Burroughs.
“São as sociedades de controle que estão substituindo as sociedades disciplinares.
„Controle‟ é o nome que Burroughs propõe para designar o novo monstro, e que
Foucault reconhece como nosso futuro próximo”.215
Segundo Deleuze, foi Burroughs
quem começou a análise dessa situação, descrevendo a passagem das sociedades
disciplinares para as sociedades de controle. Como veremos a seguir, o livro de
Burroughs está repleto de indicações nesse sentido, sobretudo as chamadas formas de
controle ao ar livre. Todavia, antes de avançarmos na análise de tais trechos, convém
respondermos às seguintes questões: como estão organizadas essas duas sociedades,
quais são as suas principais características? Nas sociedades disciplinares, segundo
Deleuze, eram destacados os aspectos institucionais, nos quais “o indivíduo não cessa
213
A propósito, eis o que dizem Deleuze & Guattari, invocando Freud: “De acordo com uma sugestão de
Freud, a sociedade americana, a sociedade industrial com anonimato de gestão e desaparecimento do
poder pessoal, etc., nos é apresentada como um ressurgimento da „sociedade sem pais‟”. (DELEUZE e
GUATTARI, 2004, p. 84). 214
DELEUZE, 2006b, p. 52. 215
DELEUZE, 1992, p. 220.
87
de passar de um espaço fechado a outro, cada um com suas leis: primeiro a família,
depois a escola, depois a caserna, depois a fábrica, de vez em quando o hospital,
eventualmente a prisão, que é o meio de confinamento por excelência”.216
Porém, nas
sociedades de controle é levada a cabo a demolição desses limites institucionais, e a
vida passa a ser organizada no campo social; a lógica das instituições não se encontrará
mais restrita apenas a seu interior, mas se dissolverá na vida social. Neste sentido, pode-
se afirmar que a sociedade disciplinar tinha como clara desvantagem o fato de não lidar
com o indivíduo no próprio campo social, mas apenas dentro dos espaços fechados das
instituições, com seus regulamentos internos, numa população pouco numerosa, num
espaço limitado ou pouco extenso. Com as sociedades de controle, os dispositivos de
captura passavam a funcionar de acordo com uma nova dinâmica: os indivíduos passam
a ser controlados num espaço extenso ou aberto. Curiosamente, nas sociedades de
controle os processos de subjetivação também não estão mais relacionados com alguma
prática institucional, ou seja, o sujeito foi destituído das antigas referências que
moldavam os processos de subjetivação: a linearidade dos processos de subjetivação na
modernidade parece ter sido substituída por uma pluralidade de elementos que integram
a subjetividade. A herança transcendental do sujeito universal kantiano, capaz de ser o
centro das certezas e verdades do mundo, é completamente abandonada. Em seu lugar,
surge um sujeito modulado, marcado pela indeterminação, sem posição no mundo,
como o sujeito das incertezas e da insegurança em relação ao mundo e a si mesmo.
(Acreditamos que este elemento de indeterminação se prende àquilo que denominamos
anteriormente como a perda das identidades discerníveis).
Em todo o caso, a disciplina do controle não se restringe mais aos espaços
disciplinares, mas submete os indivíduos a uma vigilância generalizada; formas de
controle ao ar livre substituem as antigas disciplinas que operavam na duração de um
sistema fechado. De certo modo, os mecanismos de controle são mais sutis porque não
são meramente “mecânicos” e, portanto, não atuam diretamente sobre o corpo do
indivíduo. Mas isso não que dizer que a disciplina do controle não tenha o objetivo de
atingir esses indivíduos, apenas utiliza-se de mecanismos mais sutis e amenos para
atingir esse fim. Foi talvez pensando nisso que Deleuze afirma que essas novas forças
que emergiram com o fim da Segunda Guerra “passaram a integrar mecanismos de
controle que rivalizam com os mais duros confinamentos”.217
Esses mecanismos não
216
DELEUZE, 1992, p. 219. 217
DELEUZE, 1992, p. 220.
88
operam mais através de sistemas fechados, como aqueles operados num campo de
concentração, numa prisão ou numa fábrica. Mas o novo regime não é por isso mais
suave; é como se o sistema do terror substituísse o da crueldade. “Face às formas
próximas de um controle incessante em meio aberto, é possível que os confinamentos
mais duros nos pareçam pertencer a um passado delicioso e benevolente”.218
Neste ponto, busquemos comparar as análises de Deleuze sobre as
sociedades de controle com os modelos burroughsianos de controle social, sobretudo no
que tange ao predomínio dos espaços abertos, as formas de controle ao ar livre.
Acreditarmos ser essa a primeira característica importante das sociedades de controle,
característica esta apresentada inicialmente por Burroughs. Como a Cidade de Anéxia...
“Todo cidadão de Anéxia era obrigado a solicitar do governo uma pasta abarrotada de
documentos, que deveria carregar sempre consigo. Os cidadãos estavam sujeitos a
serem detidos na rua a qualquer momento”.219
A cidade foi organizada de modo a
manter seus habitantes sob vigilância constante; foram suprimidos todos os espaços de
convivência, como praças e parques: “Removeram-se todos os bancos das praças da
cidade, as fontes foram desativadas e as flores e árvores foram todas destruídas”.220
Imensas sirenes elétricas instaladas no topo de cada edifício de
apartamentos (todos viviam em apartamentos) soavam a cada quarto
de hora. Tamanha vibração costumava atirar as pessoas para fora da
cama. Holofotes passavam a noite inteira esquadrinhando a cidade
(ninguém tinha permissão para usar persianas, cortinas, venezianas e
reposteiros).221
E ainda:
Nenhuma pessoa olhava para a outra, por medo de infringir alguma
das leis rígidas que proibiam importunar qualquer indivíduo,
verbalmente ou não, não importava por qual motivo, fosse sexual ou
de qualquer natureza. Todos os cafés e bares foram fechados.222
Também não eram permitidas trancas nas portas: “Ninguém tinha permissão
para colocar ferrolhos nas portas e a polícia tinha chaves mestras capazes de abrir todos
os cômodos da cidade”.223
Agentes policiais invadiam de forma repentina os
apartamentos em busca de qualquer coisa suspeita, acompanhados de seres telepatas que
tinham como tarefa guiar “os policias até qualquer coisa que o indivíduo estivesse
218
DELEUZE, 1992, p. 216. 219
BURROUGHS, 2005a, p. 30. 220
BURROUGHS, 2005a, p. 31. 221
BURROUGHS, 2005a, p. 31. 222
BURROUGHS, 2005a, p. 31. 223
BURROUGHS, 2005a, p. 32.
89
tentando esconder: um tubo de vaselina, um enema, um lenço sujo de esperma, uma
arma ou bebidas alcoólicas ilegais”.224
Segundo o narrador, apenas algum tempo
vivendo sob essas condições era “suficiente para que os cidadãos começassem a se
esgueirar pelos cantos, como se fossem gatos”.225
Em todos estes trechos, como foi possível observar, Burroughs descreve
sobretudo o declínio das disciplinas, ou seja, o desaparecimento dos grandes meios de
confinamento característicos das sociedades disciplinares, ao mesmo tempo em que
fornece a primeira característica importante das sociedades de controle: as formas de
controle ao ar livre. Na verdade, o livro de Burroughs ainda está na fronteira, na
articulação das duas sociedades, a disciplinar e de controle, e, como diz Deleuze,
Burroughs foi um dos primeiros a tomar consciência dessa mudança de paradigma
histórico. Neste sentido, é evidente que algumas das características aventadas por
Burroughs se aproximam ainda das sociedades disciplinares descritas por Foucault,
sobretudo o esquema do Panóptico, cuja essência reside na centralidade da situação da
inspeção, ou na construção de uma espécie de “inspetor geral”, onipotente, onipresente
e onividente, o que daria margem a um mundo de paranóia e insegurança.226
Todo o
Panóptico, em realidade, é estruturado como uma ficção, pois é precisamente a aparente
onipresença do inspetor que sustenta a disciplina do Panóptico, ao controlar todos os
movimentos dos internos. E é neste sentido, portanto, que se pode dizer que os modelos
burroughsianos de controle social se aproximam ainda das descrições de Foucault sobre
as sociedades disciplinares; a diferença talvez se encontre no privilégio dado por
Burroughs aos espaços extensos ou abertos, bem como ao clima geral de paranóia,
resultantes do declínio das disciplinas...
Por também prescindir de violência direta contra seus cidadãos, a cidade de
Liberlândia é outra representação burroughsiana desse modelo de controle civil, “uma
terra dedicada ao amor livre e aos banhos constantes. Seus cidadãos são bem ajustados,
224
BURROUGHS, 2005a, p. 32. 225
BURROUGHS, 2005a, p. 32. 226
“O Panóptico (...) tem seu princípio não tanto numa pessoa quanto numa certa distribuição concertada
dos corpos, das superfícies, das luzes, dos olhares: numa aparelhagem cujos mecanismos internos
produzem a relação na qual se encontram presos os indivíduos. As cerimônias, os rituais, as marcas pelas
quais se manifesta no soberano o mais-poder são inúteis. (...) Pouco importa, consequentemente, quem
exerce o poder. Um indivíduo qualquer, quase tomado ao acaso, pode fazer funcionar a máquina: na falta
do diretor, sua família, os que o cercam, seus amigos, suas visitas, até seus criados. (...) Quanto mais
numerosos esses observadores anônimos e passageiros, tanto mais aumentam para o prisioneiro o risco de
ser surpreendido e a consciência inquieta de ser observado. O Panóptico é uma máquina maravilhosa que,
a partir dos desejos mais diversos, fabrica efeitos homogêneos de poder” (FOUCAULT, 2009, p. 191-
192).
90
cooperativos, honestos, tolerantes e, acima de tudo, limpos”.227
Pela sua própria
natureza benevolente, esse tipo de sociedade, fundada sobre o conceito de bem-estar
social, suprime qualquer ato de rebeldia, exatamente como Liberlândia: “Liberlândia era
um estado de bem estar social. Se um cidadão desejasse qualquer coisa, de osso moído a
um parceiro sexual, encontraria alguma repartição pronta a lhe prestar auxílio. Essa
benevolência trazia consigo certa ameaça explícita que sufocava o conceito de
revolta...”.228
Os dois modelos burroughsianos de controle social possuem, sem dúvida,
parentesco com as formas de organização e controle social analisadas por Deleuze, em
especial no predomínio dos espaços abertos, as formas de controle ao ar livre.
Neste ponto, porém, termina qualquer relação possível entre Burroughs e
Deleuze, sobretudo no que tange à outra característica importante das sociedades de
controle, conforme desenvolvida por Deleuze: a idéia de comunicação, pois, para
Deleuze, a sociedade de controle é também a sociedade da comunicação.
A comunicação instantânea seria, portanto, esta outra característica
importante das sociedades de controle, característica esta que nos leva a acreditar que já
nos encontramos em uma sociedade cujos mecanismos de controle estão cada vez mais
disseminados: a sociedade de controle é a sociedade da comunicação. Sem dúvida, a
comunicabilidade e a produção de informação passaram a constituir as formas de
trabalho e das relações sociais. Atingimos a capacidade de transmitir para qualquer
parte do planeta, por meio digital, qualquer informação ou acontecimento em “tempo
real”. Segundo Deleuze, “é fácil fazer corresponder a cada sociedade certos tipos de
máquina, não porque as máquinas sejam determinantes, mas porque elas exprimem as
formas sócias capazes de lhes darem nascimento e utilizá-las”.229
Nas antigas
sociedades de soberania, explica Deleuze, manejavam-se máquinas simples como
alavancas, roldanas, relógios; nas sociedades disciplinares as máquinas correspondentes
à disciplina eram energéticas, e operadas por meios mecânicos; às sociedades de
controle correspondem as máquinas de informática. Instaura-se a relação do homem
com a cibernética, com máquinas que produzem e transmitem informação, isto é,
computadores. “As sociedades de controle operam por máquinas de uma terceira
espécie, máquinas de informática e computadores, cujo perigo passivo é a interferência,
e o ativo, a pirataria e a introdução de vírus. Não é uma evolução tecnológica sem ser,
227
BURROUGHS, 2005a, p. 29. 228
BURROUGHS, 2005a, p. 193. 229
DELEUZE, 1992, p. 223.
91
mais profundamente, uma mutação do capitalismo”.230
Busquemos, neste sentido, citar
alguns exemplos dessa transformação, em especial os ligados à chamada “comunicação
instantânea”.
Em se tratando de meios de comunicação, a televisão, é bem verdade, com
suas incontáveis séries policiais televisivas, elas próprias formas de controle social – o
que acaba por revelar a natureza ubíqua da televisão – apontava já nessa direção. Mas,
é claro, isso tudo é incrivelmente primitivo se comparado às maravilhas da tecnologia
de computadores por volta do ano 2000, em especial à Internet, uma criação que
promete controle social numa escala com que os grandes tiranos do século XX nem
sequer sonhavam.231
Recordemos ainda, nesse sentido, as inúmeras novidades
tecnológicas que surgem a cada dia. Podemos citar como exemplos a proliferação das
câmeras de vídeo de “segurança” e dos transponders232
, bem como de todos os meios
capazes de registro e monitoramento, tais como celulares, cartões magnéticos, correias
eletrônicas, etc.233
Todas essas indicações nos levam a acreditar que já nos encontramos
em uma sociedade cujos mecanismos de controle ao ar livre estão cada vez mais
disseminados, todos remetendo a mais alta perfeição da dominação.
Portanto, das sociedades disciplinares à de controle passamos do
confinamento ao “controle contínuo e comunicação instantânea”, os quais permitem que
se exerça uma ação sobre os indivíduos que prescinda dos muros que os mantinha
confinados (a fábrica, a escola, a prisão) bem como da existência física de uma
autoridade disciplinar (o patrão, o professor, o inspetor). A antiga disciplina, que
operava na duração de um sistema fechado, é substituída neste ponto por formas de
controle ao ar livre – uma disciplina do controle independente, capaz de ultrapassar
todos os limites e fronteiras, surpreendentemente amena, como uma força invisível,
vislumbres de uma nova ordem... Como bem observa o Dr. Benway: “O futuro é nosso.
É claro que usaremos algumas partes da máquina de Paul durante o período de transição
230
DELEUZE, 1992, p. 223. 231
Nestes novos tempos, a ação direta acontecerá principalmente na Internet (a exemplo de Julian
Assange, LulzSec, Anonymous, etc.)? Na verdade, com a importância da web nos dias que correm, todos
os movimentos deverão estar na vanguarda da cultura da Internet. 232
Os transponders são um misto de chip e antena, do tamanho de um grão de arroz, capaz de transmitir
informações contidas nesse chip para qualquer outro banco de dados. Pode-se utilizar um transponder em
qualquer coisa que se queira monitorar: corpos, mercadorias, documentos, carros, etc. 233
Neste sentido, vale recordarmos o sistema de monitoramento eletrônico de pessoas condenadas por
crimes de pequeno potencial adotado em vários países do mundo, inclusive pelo Brasil. O monitoramento
é realizado por meio de tornozeleiras ou pulseiras eletrônicas capazes de acertar a localização pontual da
pessoa que se quer monitorar.
92
durante o qual a Polícia que conhecemos ainda será necessária... Um período
relativamente elástico, é claro”.234
Um futuro mais ou menos próximo? Onde cada “alma” é conhecida
(biometria)? Onde não há nenhum esconderijo, como uma “estrutura” capaz de envolver
todas as entidades (humanas ou não)? Em todo o caso, esta é uma época que já se inicia,
em que as forças do homem se combinam com as forças da informação ou do silício
(computadores), atestando assim a futura forma do controle...235
Estaria livre da Polícia dali em diante... (...) Do outro lado do espelho
do mundo, rumo ao passado na companhia de Hauser e O‟Brien...
agarrado a um ainda-não de Burocracias Telepáticas, Monopólios
Temporais, Drogas Controladas e Viciados em Fluído Pesado (...).236
234
BURROUGHS, 2005a, p. 319. 235
Deleuze fornece algumas indicações neste sentido, como se pode depreender, por exemplo, de
determinados trechos de Foucault nos quais ele procura definir a forma do controle: “O homem é uma
figura de areia entre uma maré vazante e outra montante – isso deve ser entendido literalmente: ele é uma
composição que só aparece entre duas outras, a de um passado clássico que a ignorava, a de um futuro
que não a conhecerá mais. Não cabe mais alegria, nem choro. Não se diz, corretamente, que as forças do
homem já entraram em relação com outras forças, as da informação, que compõem com elas uma coisa
diferente do homem, sistemas indivisíveis „homem-máquina‟, com as máquinas de terceira geração? Uma
união com o silício, mais do que com o carbono?” (DELEUZE, 2006b, p. 95-96). 236
BURROUGHS, 2005a, p. 223.
93
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O livro de Burroughs se instala no cruzamento de uma grande tradição
literária cujo tema principal é o controle, ao descrever as formas de dominação mais
temíveis – todo um mundo de possibilidades formais correspondente à experiência
histórica na qual o problema da dominação veio a ocupar um lugar de destaque nas
produções literárias do século XX, a exemplo de Kafka, Orwell e Pynchon. Do mesmo
modo, o livro de Burroughs também está inserido na melhor tradição da literatura
americana, de Melville a Whitman passando por Kerouac, Miller e Ginsberg. Neste
sentido, poder-se-ia dizer que as estéticas e temáticas de Almoço Nu não são de todo
peculiares; ao contrário, elas fazem parte de uma longa e venerável tradição literária.
Peculiar, porém, é o talento de Burroughs como escritor em juntar e articular inúmeros
registros narrativos, formando um amálgama de linguagens e estilos absolutamente
heterogêneos, uma autêntica arte do contraponto narrativo. Pode-se mesmo dizer que
esta é uma das principais características da obra de Burroughs, uma narrativa indiferente
a todo e qualquer tipo de suporte ou unidade configuradora, que funciona como puro
processo de experimentação, desfazendo a unidade, a sistemática, como expressão e
símbolo, cedendo lugar à ideia de multiplicidade, cujo significado não reside numa
espécie de unidade do mundo, mas em afirmar a infinita diversidade de perspectivas,
um sem número de interpretações, uma narrativa em que se manifesta a experiência de
uma percepção fragmentada, determinada pelo entrecruzamento de inúmeras
perspectivas, uma obra que se realiza a cada vez com um novo sentido, como arte da
multiplicidade.
Na verdade, o que pretendíamos com esse trabalho era apontar para a
mudança no estatuto da arte no século XX, especialmente a literatura norte-americana
produzida no pós-guerra, mais ou menos semelhante à mudança de estatuto ocorrida na
História da Filosofia, na passagem do problema do conhecimento ao problema do valor.
Muito mais do que uma simples analogia entre o estatuto do romance e a História da
Filosofia, o que ocorre aqui de fato é uma mudança no centro de gravidade do
pensamento, e que parece se manifestar tanto na Arte como na Filosofia. Pois o que
mudou é a possibilidade de se explicar a arte a partir de uma determinada forma de arte,
de um determinado tipo de arte fundada sobre uma espécie de ideal de forma, enquanto
instância última de contato com uma totalidade. Em outras palavras: com o fim deste
paradigma estético, como instância última de contato com uma totalidade, a arte se
94
convertera numa instância primeira de contato com uma realidade, com uma totalidade,
cada vez mais fragmentada. Assim, o significado desta “nova” arte não reside mais
numa espécie de unidade do mundo, mas sim em afirmar a infinita diversidade de
perspectivas, um sem número de interpretações, ao desenvolver suas séries permutantes
e suas estruturas circulares, indicando assim um caminho que conduz ao abandono da
representação totalizante (sua configuração não tende mais para uma forma unitária,
mas é suscetível de uma multiplicidade ilimitada237
).
De qualquer modo, o que parece ter mudado em definitivo é o fato da
narração não estar mais compreendida no romance, ou seja, o romance deixou de ser
narrativo ao abandonar o esquema sensório-motor, o acontecer físico em séries de causa
e efeito. Assim, o romance abandonou definitivamente a ideia de sucessão, já que a
sucessão existe desde o início como lei da causalidade. Evidentemente a narração
continua presente no romance, mas não será mais a narração que contará, ela está ali
somente a título de índice. Pois o novo romance não se confunde mais com o que se
passa no tempo, porquanto não está colocado mais do lado da sucessão, mas está
construído sobre novas formas de coexistência, como a colocação em série, a
permutação, etc. E neste sentido o romance encontrou uma nova linguagem literária,
composta de situações e personagens essencialmente problemáticos, questionantes.238
Neste ponto, cabe mencionarmos uma vez mais os célebres estudos de Robbe-Grillet
sobre o “novo romance”, os quais buscavam justamente esclarecer às novas relações
que se constituíram entre o homem e o mundo e de como o romance desta nova época,
em contraposição à antiga configuração romanesca, apreendia a realidade circundante.
Diz Robbe-Grillet:
A narrativa, tal como a concebem nossos críticos acadêmicos (...)
representa uma ordem. Esta ordem, que com efeito pode ser
qualificada de natural, está ligada a todo um sistema, racionalista e
237
Segundo Deleuze & Guattari, esta condição diz respeito à própria compreensão numérica ocidental,
isto é, dos números tornados função, variáveis em vez de grandezas, correspondendo, portanto, à
passagem do número como grandeza para o número entendido como função: “Acontece que o número
deixou de ser um conceito universal que mede os elementos segundo seu lugar numa dimensão qualquer,
para tornar-se ele próprio uma multiplicidade variável segundo as dimensões consideradas (primado do
domínio sobre um complexo de números ligado a este domínio). Nós não temos unidades de medida, mas
somente multiplicidades ou variedades de medida” (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p. 17). 238
“Que o romance, notadamente depois de Joyce, tenha encontrado uma nova linguagem do tipo
„Questionário‟ ou „Inquisitório‟, que ele tenha apresentado acontecimentos e personagens essencialmente
problemáticos não significa, evidentemente, que não se esteja seguro de nada; não é, evidentemente, a
aplicação de um método de dúvida generalizada, não é o signo de um ceticismo moderno, mas, ao
contrário, a descoberta do problemático e da questão como horizonte transcendental, como foco
transcendental que pertence de maneira „essencial‟ aos seres, às coisas, aos acontecimentos” (DELEUZE,
1988, p. 276).
95
organizador, cujo desabrochar corresponde à tomada do poder pela
classe burguesa. Nesta primeira metade do século XIX, que viu o
apogeu – com a Comédia Humana – de uma forma narrativa, em
relação à qual se compreende porque ela continua a ser para muitos
algo como um paraíso perdido do romance, algumas certezas
importantes estavam em circulação: em particular, a confiança numa
lógica justa e universal das coisas. Todos os elementos técnicos da
narrativa – emprego sistemático do passado perfeito e da terceira
pessoa do singular, adoção incondicional do desenrolar cronológico,
intrigas lineares, curva regular das paixões, tensão de cada episódio na
direção de um fim, etc. – tudo objetivava impor a imagem de um
universo estável, coerente, contínuo, unívoco, inteiramente decifrável.
Como a inteligibilidade do mundo não estava nem mesmo em questão,
contar não apresentava problema algum. Mas eis que, a partir de
Flaubert, tudo começa a vacilar, o sistema inteiro não é mais do que
uma lembrança (...). No entanto, basta ler os grandes romances do
começo de nosso século para constatar que, se a desintegração da
intriga não fez mais do que tornar-se nítida no decorrer dos últimos
anos, há muito tempo ela já tinha deixado de constituir o arcabouço da
narrativa. (...) Contar tornou-se literalmente impossível.239
Mas se, por um lado, narrar tornou-se impossível, se a narrativa se esvaiu
completamente, por outro lado, ela é levada ao seu limite, ao ponto de se converter
numa espécie de “estudo” comparativo de determinados grupos de acontecimentos. No
caso do livro de Burroughs, estes acontecimentos, como pudemos ver, estão ligados, em
sua maioria, ao problema do vício, ao reunir todas as figuras possíveis sobre este, a mais
completa possível (vício em drogas, sexo, dinheiro, poder, etc.), como uma vasta curva
de probabilidades nascida do cruzamento entre diversas “linhas”. É neste sentido,
portanto, que o romance contemporâneo deixou de ser narrativo e se elevou à categoria
de questão (a questão enquanto horizonte transcendental), tornando-se problemático.
Como diz Deleuze: “É a descoberta romanesca da Ideia (...)”.240
239
ROBBE-GRILLET, 1969, p. 25. 240
DELEUZE, 1988, p. 276. Ou então: “(...) quando muitos romancistas modernos instalam-se nesse
ponto aleatório, nessa „mancha negra‟, imperativa, questionante, a partir da qual a obra se desenvolve
como problema, fazendo ressoar suas séries divergentes (...) eles fazem da obra um aprender ou uma
experimentação e, ao mesmo tempo, algo de total a cada vez, em que todo o acaso encontra-se afirmado
em cada caso, cada vez renovável, sem que talvez nunca subsista um arbitrário” (DELEUZE, 1988, p.
281).
96
ANEXO: DADOS BIOGRÁFICOS DE WILLIAM SEWARD BURROUGHS, DO
NASCIMENTO ATÉ O ANO DA PUBLICAÇÃO DE “ALMOÇO NU” (1959).
No ano em que os preparativos da Primeira Grande Guerra sacudiam a
Europa, nasce William Seward Burroughs, a 5 de fevereiro de 1914, em Saint Louis, no
Missouri (EUA). Sua família, de ascendência inglesa e protestante, era conhecida nos
“lares americanos, devido às invenções e negócios de seus antepassados do século
XIX”.241
Seu avô, por exemplo, foi o inventor de um mecanismo para a ativação de
calculadoras, patenteado mais tarde. Recebeu boa educação, ao que tudo indica, em uma
escola particular. Na adolescência, leu “mais do que o normal para um garoto americano
do mesmo lugar e época: Oscar Wilde, Anatole France, Baudelaire, até Gide”.242
Acabou indo estudar literatura inglesa em Harvard, segundo Burroughs, “por falta de
interesse em qualquer outra matéria”.243
Também veio a estudar antropologia em
Harvard, “especializando-se em arqueologia asteca e maia”.244
Depois de formado,
passou a receber uma pensão de cento e cinqüenta dólares, fornecida pelo Estado.
Segundo Burroughs, “era a época da Depressão e não havia empregos, mas de qualquer
maneira, não conseguia pensar em nenhum emprego que eu quisesse”.245
Acabou indo
para a Europa e, na Áustria, cursou medicina por um ano. “Dólares americanos podiam
comprar uma boa porcentagem dos habitantes da Áustria, masculinos ou femininos. Isso
foi em 1936; os nazistas estavam rapidamente fechando o cerco”.246
Nesta época, suas
leituras prediletas consistiam de Pareto e Spengler, Opium, de Jean Cocteau, Baudelaire,
Shakespeare e A Vision, de W.B. Yeats. De volta aos Estados Unidos, passou o tempo
livre entre cursos de psicologia e aulas de jiu-jítsu. Foi recrutado pelo Exército, mas
acabou dispensado pouco tempo depois, com a seguinte observação: “Este homem não
deverá ser chamado ou recrutado novamente”.247
Em seguida, trabalhou em diversos
empregos, como detetive particular, operário, barman, exterminador de insetos, etc. Em
1943, trava amizade com Jack Kerouac e Allen Ginsberg. Neste sentido, pode-se
mencionar ainda o casamento consensual, iniciado no fim dos anos 1940, com Joan
Vollmer, que terminou de modo trágico na Cidade do México, em setembro de 1950,
241
BURROUGHS, 2005b, p. 256. 242
BURROUGHS, 2005b, p. 51. 243
BURROUGHS, 2005b, p. 52. 244
BURROUGHS, 2005b, p. 258. 245
BURROUGHS, 2005b, p. 52. 246
BURROUGHS, 2005b, p. 52. 247
BURROUGHS, 2005b, p. 53.
97
“num incidente relacionado ao consumo de álcool”.248
No fim, Burroughs acabou sendo
condenado a absintia, mas foi absolvido com a ajuda de seu advogado. Assume sua
homossexualidade e, num ato de exorcismo, se dedica à escrita. Burroughs tem, nessa
época, por volta de trinta e oito anos de idade. Em 1953, publica seu primeiro romance,
intitulado Junky, com o pseudônimo de William Lee. Como está previsto no fim do
romance, Burroughs parte para o Alto Amazonas em busca do yagê, mais tarde
convertido em um romance epistolar publicado posteriormente, no ano de 1963, com o
título de Cartas do Yagê. Em Tânger, no ano de 1959, Burroughs publica seu romance
Almoço Nu...
248
BURROUGHS, 2005b, p. 259.
98
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