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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE DARCY RIBEIRO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COGNIÇÃO E LINGUAGEM
RENATA MATTOS DE AZEVEDO
VESTÍGIOS DO IMPOSSÍVEL
Refletindo sobre música a partir da psicanálise
Linha de pesquisa: Filosofia da mente e processos cognitivos –
O estudo dos processos cognitivos – Psicanálise
CAMPOS DOS GOYTACAZES
2007
ii
RENATA MATTOS DE AZEVEDO
VESTÍGIOS DO IMPOSSÍVEL
Refletindo sobre música a partir da psicanálise
Dissertação apresentada ao Centro de Ciências do
Homem da Universidade Estadual do Norte Fluminense
Darcy Ribeiro, como parte das exigências para obtenção
do título de Mestre em Cognição e Linguagem, orientada
pelo Professor Doutor Gilberto Gomes.
CAMPOS DOS GOYTACAZES
2007
iii
RENATA MATTOS DE AZEVEDO
VESTÍGIOS DO IMPOSSÍVEL
Refletindo sobre música a partir da psicanálise
Dissertação apresentada ao Centro de Ciências do
Homem da Universidade Estadual do Norte Fluminense
Darcy Ribeiro, como parte das exigências para obtenção
do título de Mestre em Cognição e Linguagem, orientada
pelo Professor Doutor Gilberto Gomes.
Aprovada em 16 de abril de 2007.
COMISSÃO EXAMINADORA Prof. Dr. Gilberto Lourenço Gomes (Doutor, Psychopathologie Fondamentale et Psychanalyse – UENF – Orientador) Profª. Drª. Inês Catão Henriques Ferreira (Doutora, Psicologia Clínica – UnB)
Prof. Dr. Sérgio Arruda de Moura (Doutor, Ciência da Literatura – UENF) Prof. Dr. Frederico Schwerin Secco (Doutor, Filosofia – UENF) Profª. Drª. Silvya Beatriz Joffily (Doutora, Psicologia – UENF – Suplente)
CAMPOS DOS GOYTACAZES 2007
iv
Para todos aqueles que nos fazem ouvir além.
v
AGRADECIMENTOS
À minha família, sempre presente, me encorajando nos momentos difíceis: minha
mãe Nadia, meu pai Azevedo, minhas irmãs Flávia e Carla, e meus sobrinhos Igor e
Eric. A Vinicius, companheiro constante nas alegrias, dificuldades e descobertas. E a
seus pais, Nidia e Sebastião, pelo incentivo. A meus avós Almir e Luci, sempre.
À minha família em Campos, tia Neide, Geralda, Thaís, Gisela, Juninho, pelo
receptividade e pelo apoio quando a saudade de casa mais apertava.
Ao professor Gilberto Gomes, por ter acolhido meu tema, me permitindo avançar no
trabalho e incentivando a me colocar como autora.
A Inês Catão, pela rica troca, recepção de meu trabalho e movimento a este, e pelas
importantes contribuições na banca final que apontam para uma continuidade.
Ao professor Frederico, pela sensibilidade e disponibilidade desde o início deste
mestrado, e pelas frutíferas conversas sobre música.
Ao professor Sergio Arruda pelo incentivo constante, bom humor contagiante, e por
ter aceito participar das bancas durante o curso.
A Maria Lidia Alencar, interlocutora de anos, sempre disposta a ajudar, e ajudando
mais do que tem idéia. E a Paulo Vidal, cujas palavras de anos atrás continuam
ecoando aqui.
A Maria Silvia Hanna, pela escuta e por possibilitar que eu me escute.
A Tania Rivera, pelo encontro com Inês Catão, e pelas boas idéias sobre arte.
Aos amigos e colegas que fiz em Campos, que tornaram o mestrado mais leve e
divertido, em especial a Denise Mello, Wander Luiz, Carolina Ligiero, Vânia
Tatagiba, Vilma Devas, Germano Quintanilha, Aline Santanna, Hildeny Raposo,
Thiago Eugênio, Ana Raquel Pourbaix, Zuleica Strogulski, Laura Stobaus, Rodrigo
Lacerda, Lina Fregonassi, Nara Gea, Luciana Negini.
vi
Aos amigos que reencontrei ou pude fazer nas aulas da Universidade Estadual do
Rio de Janeiro e da Universidade Federal do Rio de Janeiro pelas conversas sempre
boas e instigantes: Fernanda Matos, Mariana Abreu, Heloneida Neri, Adriana
Pacheco, Simone Delgado, Danielle Moura, Geraldo Piquet, Eneida Braga, Thoya
Mosena, Jaíra Perdiz, Carlos Costa, Daniela Oliver, Mirian Bacelo, Hilana Erlich.
Aos amigos que me ajudaram a seguir em frente durante o mestrado, alguns sempre
ao lado, outros em momentos cruciais. Com especial carinho a Beatriz Abreu,
Barbara Lima, Thomaz Alexandre Coelho e Sofia Andrade.
A Júnior, pela ajuda fundamental com os livros, e para além deles, e a Gracinha.
Ao Programa de Pós-graduação em Cognição e Linguagem da UENF, coordenado
por Paula Mousinho, e aos professores Glauco Tostes, Carlos Henrique de Souza e
Silvya Joffily. Agradeço imensamente ao apoio dado pela UENF para a condução da
Pesquisa, contribuindo com uma bolsa de pesquisa e com o apoio para fazer vínculo
com outras Universidades.
Ao Programa de Pós-graduação em Psicanálise da UERJ, em especial a Luciano
Elia, coordenador quando lá cursei disciplinas como aluna especial, Doris Rinaldi,
atual coordenadora, Ana Costa e Marco Antonio Coutinho Jorge, em cujas
excelentes aulas destes três últimos pude trabalhar e avançar na pesquisa. Também
a Fernanda Costa-Moura, que me aceitou em sua disciplina no Programa de Pós-
graduação em Teoria psicanalítica da UFRJ.
Às secretárias da UENF Ana Paula de Lima Caputo de Freitas Martins de Souza e
Silvana Freitas de Castro, pela ajuda, paciência e disponibilidade.
À Biblioteca do Serviço Social do Comércio Nacional (SESC-DN) pela ajuda e
contribuição com o acervo sobre música e pelo ambiente propício ao estudo,
principalmente a Rui de Matos, Francisco Silva, Carmélia Rohde, e ao maestro
Wagner Campos. E à Biblioteca do Centro Cultural do Banco do Brasil.
A Vera Lima, pela grande ajuda com o idioma francês.
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RESUMO
Este trabalho tem como proposta elaborar uma reflexão sobre os sujeitos envolvidos
no ato de criar, compondo ou interpretando, e de fruir a arte musical, tendo como
referencial teórico a psicanálise freudiana e a lacaniana. Parto de uma delimitação
do campo desta arte, destacando-a como autônoma e com uma linguagem própria.
A música é por mim tomada como uma organização por parte do compositor dos
materiais musicais, sons e silêncios, sendo dirigida a um outro sujeito que a
escutará. Entendo que a criação musical pode ser vista como um ato significante,
podendo assim ser ouvida pelos sujeitos. Neste ato de criação, o circuito pulsional
do sujeito, em especial o da pulsão invocante, é colocado em ação de forma que
terá como visada a apreensão do objeto voz. Como isto é impossível, há o contorno
do vazio deste objeto. O tema da criação artística aliado ao movimento pulsional foi
por Freud abordado através da temática da sublimação. Diferentemente de outras
produções do inconsciente, como sonhos, atos falhos ou sintomas, a música
passará por outros caminhos que não o recalque propriamente dito, porém, será
possível por ela alguma elaboração psíquica. A sublimação foi trabalhada em Lacan
pensando-se na própria constituição dos sujeitos, na qual resta um objeto perdido
desde sempre, das Ding. Diante da impossibilidade de se obter este objeto, haverá a
criação de um outro que poderá atuar como causa de desejo para os demais
sujeitos. Faz-se necessário, deste modo, um estudo mais aprofundado sobre a
constituição destes e sobre a musicalidade nela presente. Ou seja, sobre os tempos
de alienação e separação do sujeito no campo do Outro e sobre o papel que o objeto
voz neles opera. Com isso, poderemos pensar na música como uma resposta do
sujeito ao enigma do desejo do Outro, que dará a ouvir, àqueles que se colocarem
na posição de escuta, notícias do vazio da constituição e da linguagem, assim como
uma maneira de lidar com isso.
Palavras-chave: Psicanálise, música, sujeito, objeto voz, pulsão invocante, criação.
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RÉSUMÉ
Ce travail se propose à élaborer une réflexion sur les sujets qui participent à l’acte de
créer l’art musical, par la composition ou par l’interprétation, et d’en jouir, ayant
comme référence théorique la psychanalyse de Freud et celle de Lacan. Je
commence par une délimitation du champ de cet art, en la soulignant comme
autonome et ayant son propre langage. La musique, à mon avis, est une
organisation, faite par le compositeur, des matériaux musicaux, des sons et des
silences, s’adressant à un autre sujet qui l’entendra. Je comprends que la création
musicale peut être vue comme un acte signifiant et peut être ainsi entendue par des
sujets. Dans cet acte de création, le circuit pulsionnel du sujet, spécialement celui de
la pulsion invoquante, est mis en action, ayant comme visée l’appréhension de l’objet
voix. Comme cela est impossible, il y a le circuit du vide de cet objet. Le thème de la
création artistique associé au mouvement pulsionnel a été traité par Freud à travers
la thématique de la sublimation. À la différence d’autres productions de l’inconscient,
comme les rêves et les symptômes, la musique va parcourir d’autres voies que celles
du refoulement proprement dit, mais, à travers elle, une certaine élaboration
psychique sera possible. La sublimation a été discutée par Lacan en rapport à la
constitution propre des sujets, où il reste un objet perdu depuis toujours, das Ding.
Face à l’impossibilité d’avoir cet objet, il y aura la création d’un autre qui pourra agir
comme cause de désir pour les autres sujets. Il faut ainsi une étude plus approfondie
sur la constitution des sujets et sur la musicalité qui y est présente. Autrement dit, sur
les temps d’aliénation et de séparation du sujet dans le champ de l’Autre et sur le
rôle que l’objet voix joue pour eux. On pourra, donc, penser à la musique comme une
réponse du sujet à l’énigme du désir de l’Autre, qui donnera à entendre à ceux qui
l’écoutent des nouvelles du vide de la constitution et du langage, ainsi qu’une
manière de faire face à cela.
Des mots-clés : Psychanalyse, musique, sujet, objet voix, pulsion invoquante,
création.
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SUMÁRIO
Introdução 1
Capítulo I – Sobre música 10
I.1 – Delimitação dos campos sonoro e musical 12
I.2 – Linguagem musical 15
I.3 – Sistemas musicais 20
I.4 – Possíveis abordagens e uma escolha 23
I.4.1 – Uma abordagem histórica 23
I.4.2 – Uma abordagem neurocientífica 26
I.4.3 – Uma abordagem filosófica – Nietzsche e música 31
I.4.4 – Escolha por uma abordagem psicanalítica 34
Capítulo II – Sobre psicanálise 36
II.1 – O sujeito em Freud e Lacan 37
II.1.1 – O inconsciente 37
II.1.1.1 – O inconsciente em Freud 37
II.1.1.2 – Inconsciente e sujeito em Lacan 45
II.1.1.3 – Linguagem e sujeito em Freud e Lacan 55
II.2 – O Outro 60
II.3 – A constituição do sujeito 64
II.4– Pulsão, seu circuito e vicissitudes 70
Capítulo III – Sobre a musicalidade na constituição do sujeito 80
III.1 – Um resto na constituição do sujeito:
o objeto a e suas formas 81
III.2 – A musicalidade na constituição do sujeito:
a mãe, a voz e a invocação 90
Capítulo IV – Sobre psicanálise e arte 100
IV.1 – Sublimação e das Ding 100
IV.2 – Sublimação e elaboração psíquica: criação e fantasia 111
x
Capítulo V – Sobre música a partir da psicanálise 118
V.1 – Tempo, atempo; harmonia, sincronia;
melodia, diacronia: aproximações 118
V.2 – Criação musical: alinhavo entre sons e silêncios 135
V.3 – Escuta musical: ouvir mais além 147
Considerações finais 158
Referências bibliográficas 163
xi
Na verdade, o amor pela arte não se dá nem se explica (Debussy, 1989: 106).
1
INTRODUÇÃO
Ao investigar a criação artística, a psicanálise pode ter a pretensão de ir além
de uma compreensão estrita desse campo, recolocando em questão suas
próprias noções e compreensão geral do sujeito – uma vez que a teoria
psicanalítica não constitui nunca um edifício teórico bem acabado e definitivo,
mas um verdadeiro canteiro de obras a requerer novas formulações,
repetidamente (Rivera, 2002: 31).
O humano e suas expressões, em especial a artística, a partir da psicanálise:
é este o ponto central de questionamento deste trabalho. Antes de mais nada, é uma
reflexão sobre o que a arte, ouvida pela psicanálise, pode dizer daquele que a criou
e de quem a aprecia, pensando em como ela pode nos falar dos sujeitos de uma
forma geral. Porém, neste amplo campo do fazer artístico, enfocaremos uma arte em
particular, a música.
É preciso dizer que este trabalho parte de uma vivência singular minha,
anterior ao meu encontro com a psicanálise, de um forte interesse, curiosidade e
contato com o campo artístico. Isto me ocorreu tanto no pólo de apreciação como no
da prática, levando-me a experimentar posições diferenciadas nas artes plásticas, na
escrita e, principalmente, na música, uma vez que me dedicava a tocar violino e,
posteriormente, violoncelo.
A música me parecia ser radicalmente diferente das outras artes, o que me
levou a questionar se ela teria um objeto próprio que se apresentaria também de um
modo próprio aos sujeitos e que exigiria destes uma posição subjetiva específica,
como resposta aos efeitos causados por ela.
Caso existisse esse objeto, o que seria? Seria a própria linguagem musical,
seus conceitos, termos e relações? Ou seria algo constitutivo do próprio humano
que, na música, ganharia maior destaque? O que poderia ser este “algo constitutivo
do humano” que a música poderia apresentar?
Esta pesquisa surgiu, assim, do questionamento acerca da existência de uma
especificidade da arte musical em relação às demais artes. O que diferencia a
2
música de artes como a poesia e a literatura – nitidamente ligadas à palavra –, as
artes plásticas, como a pintura e a escultura – em que a dimensão da imagem está
explicitamente presente–, ou até mesmo a dança, cinema e teatro – nas quais a
dimensão corporal aparece com maior evidência e que mesclam diferentes
expressões?
Tais questões puderam ser acolhidas quando me aproximei da psicanálise,
tanto teoricamente quanto na clínica, o que me levou a estudar a arte, a música e o
sujeito dentro desta perspectiva. Como se o segredo sobre o humano que a
psicanálise pode escutar na fala de quem se dispõe a entrar em análise e sobre o
qual ela elabora sua teoria pudesse ser ouvido de forma sintética nas expressões
artísticas.
Nossa aposta foi a de que, ao estudarmos a arte, de uma maneira mais
ampla, a partir do encontro com a teoria psicanalítica freudiana e, posteriormente, a
lacaniana, privilegiando a expressão musical e buscando uma interlocução com
autores de seu próprio campo, poderíamos encontrar subsídios para avançarmos na
compreensão do enigma que a música nos colocava. Com isso, efetuamos duas
monografias sobre este tema, a primeira como conclusão do curso de Graduação
em Psicologia e a segunda também como finalização do curso de Especialização
Lato Sensu em Psicanálise e Laço Social – A clínica e suas razões, ambos
realizados na Universidade Federal Fluminense. O primeiro trabalho, intitulado
Psicanálise, arte e música, foi concluído no ano de 2003, e o segundo, Música que
não se ouve – Uma visão da psicanálise sobre sujeito, arte e música, em 2004. Em
seguimento a estes trabalhos, iniciamos, em março de 2005, esta pesquisa dentro
do Mestrado em Cognição e Linguagem da Universidade Estadual do Norte
Fluminense.
Acreditamos que o ato de escolher um tema, mesmo em uma pesquisa
acadêmica, já coloca de saída a dimensão de que há um sujeito diante de um objeto.
Contudo, se este sujeito tem como referencial teórico a psicanálise, em especial as
tradições freudiana e lacaniana, o que estará em jogo não é um sujeito neutro nem
tampouco um objeto que ele buscará conhecer. Isso implicará, sim, em um sujeito
que comparece com seu desejo já na escolha de um tema, e tendo como visada um
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objeto que lhe é perdido desde sempre, e que, nessa condição, faz com que o
movimento próprio do desejo se inicie e não cesse.
É esse sujeito, desejante, e esse objeto, que causa o desejo, que nossa
pesquisa tem como mirada. Sujeito este que cria, por palavras, imagens, trabalhos
científicos, produções artísticas, etc., e em cujas criações pode ser vislumbrado o
dinamismo do psiquismo humano. A proposta, assim, é escutar este sujeito pela
psicanálise através da arte musical.
Nos trabalhos realizados por Freud e por Lacan acerca da arte, podemos
notar que há o movimento de construção do saber da psicanálise na medida em que
aquilo que se apreende do campo artístico ressoa na própria teoria psicanalítica e no
fazer do analista. Ambos estes autores puderam escutar nas artes o que elas falam
sobre o sujeito, seja pela via da criação, do criador ou do objeto criado. Contudo,
nestas incursões freudianas e lacanianas no terreno das artes, pouco se refletiu
sobre a música, apesar desta ter muito a contribuir a este campo. Entendemos que a
música apresenta-se como um rico terreno para nos questionarmos sobre o sujeito
em psicanálise.
Assim, ao nos depararmos com a música, esta nos coloca questões para
pensarmos com a psicanálise. O que ela pode nos dizer do sujeito – sujeito do
inconsciente, da linguagem, do desejo, conforme demarcado por Freud e Lacan? O
que refletir sobre a música pode nos ajudar a caminhar na teoria psicanalítica sobre
a constituição do sujeito? O que podemos aprender com a música sobre o sujeito
que a cria e sobre aquele que a frui?
A partir destes questionamentos, delimitamos três temas distintos dentro de
uma aproximação entre a música e a psicanálise: a música e a constituição
subjetiva, a música e a criação, e a escuta musical. Todos eles tocam um campo em
comum, o da pulsão invocante e do objeto voz. Podemos articulá-los se pensarmos
que o sujeito, para se constituir, precisa passar pelo movimento de busca da
incorporação da voz e da entrada na linguagem e que é de um fazer com o objeto
voz que a música dá notícias a seus fruidores, não sendo este o único mérito desta
arte.
4
Com isto em mente, tomamos a música, neste trabalho, como uma linguagem
organizada de sons que precisa da ação de um compositor e de um intérprete para
tomar forma e ser ouvida. No próprio ato de compor uma música já está colocada a
presença de um ouvinte, um sujeito a escutar, para que os efeitos desta arte sonora,
abstrata e temporal sejam realizados.
Buscaremos, deste modo, pesquisar a música entendendo-a como produção
psíquica de sujeitos, levando em consideração o que estaria em jogo psiquicamente,
em sua criação, interpretação e escuta. Tomamos como hipótese que a música teria
como função, ao contornar a Coisa, apresentar algo de real que não pode ser
presentificado pela via das palavras, do dizer. Teria, ainda, a função para o sujeito
de se endereçar ao Outro, se fazendo ouvir, e colocando em cena o circuito da
pulsão invocante na busca de apreensão do objeto voz. A música envolveria, a
nosso ver, a voz e o ouvido, atingindo um além dos sentidos.
Ressaltamos, contudo, que pela complexidade do campo musical e por ser
esta uma das muitas formas de se abordar a música, não pretendemos restringi-la a
uma definição rígida nem tampouco propor uma tradução em palavras desta
expressão artística e de seus efeitos, que se encontram, justamente, no campo do
indizível.
Nossa pesquisa lida, portanto, com dois campos distintos: a música e a
psicanálise, e entendemos que ambos são de grande complexidade, podendo ser
tomados por diferentes perspectivas. Por isso, é fundamental que seja aqui
demarcado nossa posição diante deles. Com este intuito, nos dois primeiros
capítulos desta dissertação, traçaremos o modo como tomaremos cada um destes
dois campos, assim como os principais conceitos com os quais trabalharemos ao
longo de nosso percurso.
No capítulo inicial, intitulado Sobre música, buscaremos inicialmente fazer
uma delimitação dos campos do sonoro e musical, destacando que, no segundo,
há um fazer humano que o diferencia e justifica. Este fazer se baseia em leis
específicas da arte musical, o que torna possível pensá-la como uma linguagem –
5
uma linguagem musical que, ao longo da história humana, foi tratada de modos
distintos, produzindo sistemas musicais com regras variadas, que, no entanto,
convencionou-se agrupar em três: sistema modal, tonal e pós-tonal (ou atonal). Tais
sistemas serão por nós apresentados, sem nos atermos à complexidade de suas
estruturas e princípios.
Para dar seguimento ao capítulo, no tópico Possíveis abordagens e uma
escolha, optamos pela apresentação de três perspectivas teóricas de estudo da
música diferentes da psicanalítica. São elas uma abordagem histórica, uma
abordagem neurocientífica, e uma abordagem filosófica – Nietzsche e a
música. Todavia, ressaltamos que fizemos um recorte nelas, buscando pontos de
encontros e divergências entre estas e a psicanálise, justificando nossa escolha por
uma abordagem psicanalítica.
Já no segundo capítulo, Sobre psicanálise, definiremos os principais
conceitos da psicanálise em que embasaremos nossa pesquisa. Para tanto,
dividiremos este estudo em quatro tópicos: O sujeito em Freud e Lacan, O Outro,
A constituição do sujeito, e Pulsão, seu circuito e vicissitudes.
O primeiro tópico será dividido da seguinte forma: O inconsciente em Freud,
Inconsciente e sujeito em Lacan, e Linguagem e sujeito em Freud e Lacan.
Nossa proposta é investigar como a psicanálise entende o sujeito, propondo uma
nova concepção deste com a elaboração do conceito freudiano de inconsciente,
defendido na teoria lacaniana como estruturado como uma linguagem.
Procuraremos investigar as idéias freudianas a respeito do aparelho psíquico
como um aparelho de memória e de inscrição de traços, presentes em escritos como
a Carta 52 dirigida a Fliess, de 6 de dezembro de 1896, e Uma nota sobre “o bloco
mágico”. Procuramos, assim, pensar a dimensão de linguagem presente na estrutura
do inconsciente, o que também pode ser lido no capítulo VII da Interpretação dos
sonhos.
Trataremos, no segundo tópico, do conceito lacaniano de Outro, como campo
do qual o sujeito deve se separar para se constituir em um processo de alienação e
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separação. Diferenciaremos este conceito da noção de outro enquanto o semelhante
que, ao cuidar do bebê será responsável por encarnar este Outro e lhe transmitir a
linguagem.
A constituição do sujeito será estudada em seguida, tomando como base
textos freudianos como o Projeto para uma psicologia científica, no qual Freud
aborda a experiência de satisfação, responsável pelo surgimento simultâneo dos
campos do sujeito e do objeto, e A negativa. Nestes, a partir da descrição dos juízos
de atribuição e de existência, podemos observar a delimitação do sujeito e do Outro,
assim como a criação da realidade psíquica para o primeiro.
Por fim, enfocaremos a dimensão pulsional presente e atuante neste sujeito.
Refletir sobre a pulsão nos dará condições não somente de entender com maior
clareza a constituição subjetiva, pela ação da pulsão e de seu circuito e do
mecanismo do recalque, como também de pensar, posteriormente, o lugar da arte
para os sujeitos. Isto na medida em que um dos destinos pulsionais, a sublimação,
se mostra como fundamental para o estudo das artes pela via psicanalítica.
O terceiro capítulo da dissertação, intitulado Sobre a musicalidade na
constituição dos sujeitos, procurará articular os conceitos psicanalíticos
apresentados no segundo capítulo com o tema da música visando destacar como a
dimensão da musicalidade tem lugar na constituição psíquica dos sujeitos. Com isso,
pretendemos compreender como esta possibilitará a criação e fruição ou gozo
estético musical.
Em um primeiro tópico, Um resto na constituição do sujeito: o objeto a e
suas formas, buscaremos delimitar o conceito lacaniano de objeto a conforme
definido pelo autor principalmente nos Seminários A angústia e Os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise. Mais que isso, procuraremos demarcar os elementos
presentes no surgimento do sujeito enquanto tal, a saber, o objeto a como resto e
como causa de desejo, das Ding como extimidade, e a pulsão em seu circuito com
relação ao Outro, conforme vistos no capítulo precedente, ligando-os à dimensão da
musicalidade.
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Procurar-se-á pensar, no tópico A musicalidade na constituição do sujeito:
a mãe, a voz e a invocação, em como na transmissão do significante, também são
transmitidas outras marcas, sonoras, pela musicalidade da fala e da voz materna e
em como estas poderão ser determinantes na posição de quem cria e de quem frui a
obra musical. Entendemos que o sujeito somente pode advir no campo do Outro a
partir da entrada do significante, que tem como efeito a inscrição de uma marca, o
traço unário, com o qual o sujeito se identificará e por meio do qual poderá se
distinguir dos demais sujeitos. Tal conceito, que aparecerá aqui pela primeira vez na
dissertação, permitirá avançar no estudo sobre o objeto a, em sua forma de objeto
voz ligado à pulsão invocante.
Focalizaremos a posição do sujeito diante do objeto voz, enquanto objeto a, e
no circuito da pulsão invocante. Procuraremos analisar como estes dois pontos
permitem que o sujeito possa se constituir como tal, a partir de uma invocação que
lhe é feita do Outro. Pensaremos, assim, nas implicações do circuito da pulsão
invocante para que o sujeito possa ter sua própria voz e criar, a partir deste ato, na
linguagem, seja pela fala ou, eventualmente, pela música.
Surgirá como novidade no texto e como indicação para ampliar a discussão,
sem que, contudo, nos aprofundemos nela, a temática da letra como redução
mínima do real. Destacamos aqui que podemos fazer uma delimitação deste
conceito na obra lacaniana em dois momentos. O primeiro, na década de 50, quando
Lacan analisou o conto A carta roubada, de Edgar Alan Poe, no Seminário O eu na
teoria de Freud e na técnica da psicanálise e no escrito A instância da letra no
inconsciente ou a razão desde Freud. E o segundo com a virada teórica dada com o
texto Lituraterra, de 1971, a partir do qual a letra deixará de ser pensada como
suporte para o significante, como ocorria até então, e passará a distinguir e articular
os campos do sujeito e do objeto, do simbólico e do real.
Fará parte desta reflexão, a concepção lacaniana de alíngua (lalange), no
sentido de algo anterior à instauração da linguagem e que é intraduzível, escapando
ao sentido e nos remetendo ao conceito de gozo. Contudo, este conceito, assim
como o de letra, nos servirá apenas de instigador para o nosso estudo, abrindo
possibilidades futuras. Isto porque nos ateremos em nosso trabalho à elaboração
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teórica lacaniana do início de seus Seminários, em 1953, até, principalmente, o
Seminário de 1964. Mesmo assim, achamos relevante destacar considerações
lacanianas de momentos posteriores a este de forma breve e pontual, demarcando,
porém, que seria necessário um maior aprofundamento e estudo nestes temas para
avançarmos, com eles, em outro momento e espaço.
Passaremos para o estudo do destino pulsional da sublimação no capítulo
Sobre psicanálise e arte. Faremos, assim, no primeiro tópico, Sublimação e das
Ding, uma delimitação sobre como tal tema é trabalhado em Freud ao longo de sua
obra. Com isso, é preciso demarcar como entendemos a sublimação em termos
freudianos.
Neste mesmo tópico, procuraremos também articular as noções de
sublimação e das Ding, a Coisa, conforme proposto por Lacan no Seminário A ética
da psicanálise. Estudaremos os passos lacanianos a respeito da sublimação com o
intuito de acompanhar e entender sua assertiva de que “a sublimação eleva o objeto
à dignidade de Coisa” (Lacan, 1959-1960/1997: 41).
Pensaremos, ainda, no segundo tópico, Sublimação e elaboração psíquica:
criação e fantasia, em como o conceito freudiano de elaboração psíquica pode
também nos ajudar para o estudo das artes, uma vez que estas, por sua
característica de síntese, podem ser lidas como uma via para elaborar materiais
inconscientes traumáticos, não apenas para aqueles que as criam, mas também
para aqueles que a interpretam e apreciam.
Neste tópico, ampliaremos nossa reflexão sobre a arte através do conceito de
fantasia, analisando-o a partir das trajetórias freudiana e lacaniana sobre o mesmo e
refletindo sobre seu papel na criação artística. Seja pelo papel desta na criação de
novas realidades, como destacado por Freud em artigos como Escritores criativos e
devaneios, pela criação de substituições frente ao sofrimento, conforme podemos ler
em Mal estar na civilização, ou pela sua articulação com o objeto a e sua função de
tela frente ao real, como formulado por Lacan.
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No quinto e último capítulo da dissertação, que leva o título Sobre música a
partir da psicanálise, pretendemos, baseados nas discussões teóricas
precedentes, investigar a criação e a fruição musical tomando como referência
trabalhos de psicanalistas sobre música, assim como de compositores, músicos e
intérpretes.
O capítulo terá duas divisões. Na primeira, Criação e interpretação musical,
será enfocada a temática da criação musical pelas vias da composição e da
interpretação. Já na segunda, A escuta musical, teceremos reflexões sobre o ato
de fruição musical, ou seja, a posição do sujeito ouvinte, dando destaque para as
contribuições sobre este tema trazidas por Didier-Weill e pelo compositor François
Nicolas, autores da tradição lacaniana que trabalham com o intuito de esclarecer o
tema da música em uma perspectiva psicanalítica. Destacamos que, apesar desta
temática estar ganhando mais destaque nesta área, ela ainda se apresenta como
um enigma.
10
CAPÍTULO I
Sobre música
As pessoas se queixam, freqüentemente, de que a música é ambígua em
excesso, de que fica muito pouco claro o que se deveria pensar ao ouvi-la, ao
passo que todos entendem as palavras. Comigo, é exatamente o contrário...
Os pensamentos expressos para mim através da música que aprecio
não são imprecisos demais para serem postos em palavras, mas sim, ao contrário, excessivamente explícitos (Mendelssohn apud Jourdain, 1998: 374; os grifos são nossos).
Fazer uma trajetória de estudo através da psicanálise freudiana e lacaniana
sobre a música se apresenta como um desafio, uma vez que não encontramos na
obra destes dois autores nenhum trabalho específico destinado a este tema. Freud
evidenciou em vários momentos de sua obra o interesse que possuía pelo campo
artístico, fazendo dele um espaço para interrogar-se sobre o sujeito, o desejo, a obra
de arte, a pulsão, enfim, sobre o humano.
Encontramos em Freud uma instigante declaração sobre a música. Ao dizer, em
O Moisés de Michelangelo, de 1914, porque não é quase capaz de sentir prazer com
a música, Freud evidencia uma “surdez” diante da música, anteriormente já
destacada por Alencar (1997: 253), que nos faz refletir sobre a própria capacidade
da música em afetar os sujeitos. Nas palavras de Freud:
Não obstante, as obras de arte exercem sobre mim um poderoso efeito, especialmente a literatura e a escultura e, com menos freqüência, a pintura. (...) Com a música, sou quase incapaz de obter qualquer prazer. Uma inclinação mental em mim, racionalista ou talvez analítica, revolta-se contra o fato de comover-me com uma coisa sem saber porque sou assim afetado e o que é que me afeta (Freud, 1914/1990: 253; os grifos são nossos).
Freud nos coloca a questão de que não se pode fugir ao apelo que a música
nos envia a não ser por uma tendência racional. Diante da música, Freud a ouve e,
contudo, recua, não a escuta. Entretanto, vemos nessas observações que Freud faz
sobre a música, na medida em que não a escuta, um caminho a seguir. É preciso
fazer com que a psicanálise pense a forma como a música pode vir a afetar um
sujeito, sendo que este pode se fazer surdo a ela justamente porque ouve. Notamos
11
que, apesar de a música poder ser tomada como significante e pensada como uma
linguagem, há algo que escapa a este domínio, tomando e causando aqueles que a
ouvem.
Outro ponto pode ser levantado a partir da leitura atenta da fala de Freud em
relação à música, que nos indica a especificidade desta área e aponta para uma
possível função desta. Haveria uma não compreensão imediata da música e da
linguagem musical, sendo esta específica e da qual os músicos precisam ter um
certo domínio. Ao falar da técnica de interpretação dos sonhos, Freud escreve que:
Pode-se constatar que as melodias que acodem à mente de uma pessoa de modo inesperado são determinadas por uma seqüência de idéias à qual pertencem (...). É fácil, nesses casos, demonstrar que a relação com a melodia é baseada em sua letra ou em sua origem. Contudo, devo ter o cuidado de não estender essa asserção a pessoas realmente ligadas à música (...). Pode ser que para essas pessoas o conteúdo musical da melodia é que decide seu surgimento (Freud, 1917[1916-1917]/1990: 134; os grifos são nossos).
A partir desta citação, podemos levantar dois aspectos importantes para se
compreender o que é a música: a música, por si só, não é carregada de conteúdos
objetivos e de significações, o que pode acontecer apenas quando ela se liga à
palavra; ela possui uma lógica própria, ou seja, seus elementos possuem ligações e
articulações entre si, sendo que o sujeito que a cria tem uma relação específica com
a pulsão e com o objeto desta, através do qual obtém seu gozo1.
Nesse ponto, nos voltamos para Lacan, que, assim como Freud, buscou
avançar a psicanálise através da reflexão sobre algumas expressões artísticas sem,
contudo, se deter sobre a música. Chegou a formular o conceito de pulsão
invocante2 – que acreditamos ser de suma importância para se estudar a música
através da psicanálise, no que ela pode nos dizer sobre o pulsional –, sem, contudo,
aprofundá-lo. Não fez o mesmo movimento realizado em direção à pulsão escópica,
1 Deste modo, a música pode ser pensada como significante, conforme a leitura lacaniana deste conceito, como veremos no segundo capítulo desta dissertação. A discussão sobre a música como significante se dará no capítulo “Sobre a musicalidade dos sujeitos”. 2 Apresentaremos a teorização lacaniana sobre as pulsões parciais, a saber, pulsão oral, pulsão anal, pulsão escópica e pulsão invocante, assim como os objetos que se relacionam a tais pulsões no tópico “Um resto na constituição do sujeito: o objeto a e suas formas” presente no terceiro capítulo de nosso trabalho.
12
em seu estudo sobre o olho e o olhar e, consequentemente, sobre o quadro e a
pintura, encontrado no Seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
Acreditamos, deste modo, que a psicanálise pode se empenhar no estudo da
música com o intuito de apreender a dinâmica psíquica envolvida na criação e na
escuta musical, nos efeitos subjetivos destes dois momentos. Nessa trilha, tal
aproximação pode ser feita estudando-se a relação entre o sujeito e a arte, nesse
caso, o músico ou o ouvinte e a música, assim como também delimitar a
musicalidade existente na constituição dos sujeitos – movimentos que pretendemos
fazer. Para tanto, há pontos que precisam ser delimitados não somente a respeito da
psicanálise, a começar sobre a definição de música que aqui usaremos.
Neste trabalho, tomaremos a música, inicialmente, como arte musical, com
uma arte que lida com o sonoro e com o musical, o que, de imediato, já nos abre
uma complexa questão. Este aspecto da música nos faz refletir se o musical
sucederia o sonoro tendo com ele alguma ligação. Haveria uma continuidade entre
estes dois campos, o sonoro e o musical? Esta pergunta se faz pertinente uma vez
que buscamos conhecer um pouco mais sobre a voz, além do som e da música.
Interessa-nos refletir sobre como ela atua no sujeito e que posição ocupa para os
sujeitos que estão envolvidos na criação ou interpretação (ou re-criação musical) e
na escuta. Do mesmo modo, interessa-os, sobretudo, a posição dos sujeitos diante
da música.
I.1 – Delimitação do campo sonoro e do campo musical
Ao falarmos de música, aqui, estamos nos referindo, em primeiro plano, à
música instrumental e também vocal, apontando, contudo, para a maior autonomia
musical que a primeira tem diante da segunda, uma vez que a forma vocal,
geralmente, está ligada às palavras. Isso não significa que as formas vocais estejam
atreladas ou subjugadas ao significado das palavras nelas cantadas. É possível
observá-las a partir apenas do campo ao qual elas pertencem, o musical,
entendendo que, nesse caso, as palavras comparecem em sua dimensão de
13
musicalidade3. Concordamos com o compositor russo Igor Stravinsky (1996: 46)
quando este afirma que “no momento em que a canção é usada somente para dar
expressão a um discurso, ela deixa o domínio da música e nada mais tem a ver com
ele” (Os grifos são nossos).
Além disso, estenderemos a nossa concepção de música para toda e
qualquer expressão artística ligada ao campo musical, não acreditando existir
diferença da posição ocupada pela música naquele que a cria, interpreta e frui, de
acordo com o estilo de composição, dito clássico ou não.
O compositor Murray Schafer (1991: 35) propõe uma definição para a música
que entendemos ser um bom ponto de partida para a delimitação do campo musical.
Diz ele que “música é uma organização de sons (...) com a intenção de ser ouvida”.
Esta concepção vem ao encontro das idéias de Stravinsky (1999: 13), que
pressupõe que “a forma musical é o resultado da ‘discussão lógica’ dos materiais
musicais”. Ou seja, esse autor parte do princípio de que os sons e os elementos
musicais serão explorados pelo compositor no processo de criação da música.
Pode-se dizer que a música trabalha com sons e, tendo esta premissa em
mente, que ela trabalha com o som de uma maneira, ainda que minimamente,
organizada. Para o também compositor Pierre Boulez (1992: 33), “toda reflexão
sobre a técnica musical deve ter origem no som, na duração, em suma: no material
com que o compositor trabalha”. O som, por assim dizer, seria o objeto da arte
musical, com o qual é possível que o compositor expresse seus conteúdos
inconscientes.
Stravinsky (1996: 31) também concorda que o ponto inicial para se entender a
música é o som. Para este compositor que tanto refletiu sobre o fazer musical, os
“sons são promessas de música, e é preciso um ser humano para poder registrá-
los”. Sendo promessa, os sons ainda não são música. E não basta que sejam
3 Conforme destacaremos no Capítulo II deste trabalho, ao estudar a concepção lacaniana de significante, podemos tomar uma palavra apenas por seu aspecto sonoro, independentemente do significado que pode, eventualmente, ser atrelado a esta imagem acústica. Veremos, ainda, que esta distinção pode também ser encontrada na obra freudiana, mais especificamente no Apêndice C, do artigo metapsicológico O Inconsciente (Das Unbewusste), de 1915.
14
reunidos e dispostos de maneira organizada para que música se tornem. É preciso
que algo aí aconteça.
Assim, é necessário delimitar que sons seriam estes. O que definiria um som
como musical e como material para compor a música? Quando a escuta de um som
se torna uma escuta musical? Para tanto, recorremos ao compositor Pierre
Schaeffer (1966: 320), que propõe uma distinção clara entre os domínios da
sonoridade e da musicalidade. O que diferencia tais domínios, segundo este autor, é
a formalização dos valores ditos musicais em uma construção abstrata de símbolos
próprios da teoria musical e da referência geral dos timbres dos instrumentos
dispostos em diálogo pela ação de um compositor.
Segundo o compositor brasileiro Silvio Ferraz (2005: 26), a musicalidade
ainda não é a música, com o qual concordamos. A musicalidade se daria em um
“soar como música”, em uma “faculdade de algo se tornar música” (Idem), tendo
efeitos de ressonância (Ibid.: 28).
Não haveria, assim, uma continuidade natural entre o sonoro e o musical. O
canto dos pássaros, sucessões geralmente bastante agradáveis de sons
organizados, não poderia ser considerado música, visto que não sai do campo do
sonoro, por mais que com ele possamos nos encantar. Como disse o compositor
francês Debussy (1989: 253): “Não existem cantos na vida: existem ritmos,
atmosferas, cores, mas estes, se bem que variando sem parar, se sucedem sem
solução de continuidade, pela eternidade”. Porém, quando Vivaldi, Strauss ou Villa-
Lobos incluem em suas músicas sons musicais aos quais associamos ou que nos
lembram cantos de pássaros, nesses casos, ao se fazer um corte nesta continuidade
eterna de que nos fala Debussy, os sons se apresentam diferentemente ao
psiquismo, tendo uma função de causa de desejo4, sobre o que nos debruçaremos
mais atentamente ao escutarmos a música pela teoria psicanalítica5.
4 A noção de uma função de causa de desejo foi delimitada por Lacan, principalmente nos seminários A angústia e Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Trata-se de uma causa enquanto uma determinação inconsciente, da qual o sujeito não pode escapar, apesar de poder se posicionar de formas singulares, por um ato subjetivo, frente ao desejo. Este tema receberá maior destaque quando delimitarmos o conceito de objeto a na obra lacaniana. 5 O que será feito no capítulo intitulado “Sobre música a partir da psicanálise”.
15
Deste modo, a organização dos sons musicais constitui o campo da música,
que apresenta, ademais, uma linguagem específica. É preciso, entretanto, marcar
que existe uma musicalidade que não pode ser restrita à arte musical. É o caso, por
exemplo, da musicalidade encontrada na poesia e, como veremos mais a diante,
daquela encontrada na fala e na voz da mãe em seu cuidado com o bebê, tema de
nosso quarto capítulo. Defendemos que tal musicalidade, que ressoa no corpo do
sujeito e faz corpo, é estruturante para todos nós e que será preciso um passo a
mais para que da musicalidade se passe à criação musical.
I.2 – Linguagem musical
A afirmativa de que a música é uma linguagem é questão controversa entre
autores de diversos campos, como o da própria música e o da lingüística.
Apresentaremos, de forma concisa, a seguir, algumas destas divergências.
Iniciaremos com a discussão sobre a música ser uma linguagem autônoma6. A
respeito disso, o lingüista Ernest Schurmann (1989: 9), em seu livro A música como
linguagem – uma abordagem histórica, propõe uma divisão da linguagem em
linguagens sonoras e linguagens não sonoras. No primeiro caso, haveria uma
subdivisão entre a linguagem verbal, que, segundo ele, tem função discursiva, e a
linguagem musical, que abrangeria todas as manifestações sonoras humanas com
exceção da fala.
Outra autora do campo da lingüística que concorda com esta divisão é Julia
Kristeva. Segundo ela:
A linguagem verbal e a música realizam-se ambas no tempo utilizando o mesmo material (o som) e atuando sobre os mesmos órgãos receptivos. Os dois sistemas têm respectivamente sistemas de escritas que marcam as suas entidades e relações entre estas. Mas embora os dois sistemas significantes estejam organizados segundo o princípio da diferença fônica dos seus componentes, essa diferença não é da mesma ordem na linguagem verbal e na música. As oposições binárias fonemáticas não são pertinentes em música. O código musical organiza-se a partir da diferença arbitrária e cultural (imposta nos quadros de uma certa civilização) entre os diversos valores vocais: as notas (Kristeva, 1969: 353-354; grifos da autora).
6 Destacamos que enfocaremos nas obras às quais iremos nos referir apenas os pontos de discussão sobre a linguagem musical, sem nos aprofundarmos nos caminhos que cada uma delas segue para estudar a música.
16
Para o maestro Nikolaus Harnoncourt (1988: 23), conforme afirma no livro O
discurso dos sons – caminhos para uma nova compreensão musical, a música deve
ser concebida como uma linguagem, sem, contudo, ser relacionada à função de
comunicação. Segundo ele, a música deve ser tomada por sua dimensão estética,
tendo ligação com o movimento e a sonoridade, e representando idéias puramente
musicais.
Tal concepção também é defendida pelo poeta e músico Mario de Andrade
(1995), que busca analisar a música a partir de uma estética musical, na qual a
noção de Belo estaria associada a sensações estéticas próprias do campo musical,
seja para o compositor, o intérprete e/ou o ouvinte. Andrade defende que a estética
musical seja pensada juntamente com a linguagem e as técnicas musicais (Ibid.: 10).
No entanto, este autor não confunde a linguagem musical com sua notação.
Diz ele, em nota de rodapé de seu livro, ao defender uma separação necessária
entre harmonia e notação musical:
Aquela [a harmonia] é um elemento técnico da elaboração artística. A notação é um elemento prático da objetivação da obra musical. Na técnica de uma arte tem-se que distinguir entre os fatores de criação da obra-de-arte e os fatores de materialização dela. (…) A nota não tem valor estético pra Música, porém a melodia, o acorde que a gente objetiva por meio das notas tem. (…) A extensão dum instrumento não tem valor estético pra expressão duma inspiração musical que em si já implica o instrumento e, portanto está contida no seu domínio sonoro. Porém, a frase poética e a frase musical têm imenso valor estético e a realização delas, não a objetivação prática, se presta a muitas observações estéticas, ambas pelo ritmo, pela sonoridade, pelo conteúdo subjetivo, força emotiva, etc. (Idem).
Em outras palavras, quando é colocada em um meio espacial concreto, como
uma partitura, por exemplo, a música está apenas sendo representada graficamente.
A música é um fenômeno sonoro e não um fenômeno gráfico ou pictórico (Boulez,
1992: 131). Ou, como colocaria Debussy (1989: 256):
Procura-se demais escrever, faz-se música para o papel quando ela é feita para os ouvidos! (...) Esta deve ser gravada espontaneamente pelo ouvido do ouvinte sem que ele tenha necessidade de descobrir idéias abstratas, nos meandros de um desenvolvimento complicado.
17
Andrade, ao falar do belo musical, se refere ao crítico musical Eduard
Hanslick e seu livro Do Belo Musical, de 1854. Nesta obra, Hanslick defende a
concepção de que a música deve ser concebida em seu domínio próprio, afastando-
se, assim, da idéia comumente aceita de que a música representa emoções ou
sentimentos. “As idéias que o compositor representa são, sobretudo, e em primeiro
lugar, puramente musicais. À sua fantasia apresenta-se uma determinada melodia
bela. Esta nada mais deve ser do que ela própria” (Hanslick, 2002: 25; grifos do
autor). Ao que acrescenta que “o belo na música também não coincidiria com a
exatidão da representação dos sentimentos, se esta fosse possível” (Ibid.: 34; grifos
do autor).
Tais afirmações nos abrem a possibilidade de pensar que o que é
determinante para a construção e o desenvolvimento de uma idéia musical são as
relações que o material específico da linguagem musical estabelece entre si. Sobre
este material, Hanslick destaca ser ele constituído pelas “relações significativas de
sons, em si atrativos, a sua harmonia e contraposição, o seu fugir e o seu alcançar-
se, o seu elevar-se” (Ibid.: 41).
O elemento originário da música é o som agradável, a sua essência, o ritmo. (…) O material de que se serve o compositor, e cuja riqueza nunca se poderá supor assaz suntuosa, são os sons no seu conjunto, com a possibilidade neles ínsita e inesgotável, para distintas combinações de melodia, harmonia e ritmo. Inesgotada e inesgotável, domina sobretudo a melodia, como figura fundamental da beleza musical; a harmonia oferece sempre novos fundamentos com os seus milhares de possibilidades de transformação, de inversão e reforço; move-as a ambas concertadamente o ritmo, a artéria da vida musical, e dá-lhes colorido e encanto de múltiplos timbres (Idem; grifos do autor).
Cabe ressaltar que por serem estas relações próprias ao campo musical, não
é possível promover uma tradução em palavras, nem atribuir algum significado não
musical a elas7. Diz Hanslick, rejeitando convenções que geralmente são atribuídas
em música:
7 Ademais, se entendermos a música como significante, conforme Lacan defende – com a primazia do significante sobre o significado –, veremos que os significados que a ela darmos não serão fixos, podendo se alterar de sujeito para sujeito e mesmo para um único sujeito em diferentes momentos.
18
Assim como num grande quadro histórico nem todo o vermelho nos sugere alegria, nem todo o branco inocência, assim também numa sinfonia nem todo Lá bemol maior nos despertará um estado de ânimo exaltado, nem todo o si
menor uma disposição misantrópica, nem cada acorde perfeito satisfação, nem todo o acorde de sétima diminuta, desespero (Ibid.: 27, grifos do autor).
Uma primeira conclusão pode ser feita: a música é uma arte que lida
necessariamente com o som (altura sonora, escalas musicas) e com o tempo (ritmo,
duração sonora e silêncio), não podendo existir na ausência de um desses
elementos estruturais.
Para Schaeffer (1966: 95), o som é designado como sendo um objeto sonoro,
tendo em vista que o que este compositor entende por objeto é algo que
apreendemos a partir da música e da experiência acústica. O objeto sonoro,
segundo esta perspectiva, seria o elemento mais elementar da experiência musical.
Schaeffer propõe que este objeto é apreendido no encontro de uma ação acústica e
de uma intenção de escuta. Neste ponto, ressaltamos, há a implicação de, pelo
menos, dois sujeitos com posições subjetivas singulares frente à música: de um
lado, o compositor ou o intérprete (podendo ser mesmo o compositor) que produz a
música pelo ato de tocar, e o ouvinte, que faz de sua escuta também um ato
enquanto sujeito.
Como a maioria dos estudiosos em música, Schurmann (1989: 40) concorda
que há sons especificamente musicais determinados por quatro traços
fundamentais: altura, intensidade, duração e timbre. Todos estes, prossegue o autor,
estão presentes na fala. Contudo, nesta, a altura e a duração aparecem como
acessórios, enquanto que o timbre identifica os diversos fonemas e a intensidade
fundamenta a prosódia, classificando sílabas tônicas e átonas. Por outro lado, a
altura e a duração são fundamentais e imprescindíveis na música, sendo a
organização das alturas sonoras responsável pela melodia, e a disposição dos sons
no tempo pelo ritmo.
De acordo com Schurmann, a melodia se caracteriza pelo aspecto dinâmico
na música, podendo ser pensada como “voz em movimento” (Ibid.: 47). A voz, aqui,
é concebida como um “objeto sonoro – ou um som objetivado – que é dotado de
mobilidade” (Ibid.: 47-48), ao que o autor associa tanto à voz humana quanto às
19
vozes dos instrumentos musicais. Schurmann (Ibid.: 41) faz, ainda, uma distinção
entre tempo e melo, o primeiro englobando a característica rítmica da música, e o
segundo, inspirado na palavra grega melos, entendido como coordenadas do meio
no qual a voz inscreve sua trajetória. Deste modo, o autor fala em um espaço mélico
(Ibid.: 46), no qual as alturas sonoras são distribuídas.
(...) o espaço mélico se nos apresenta como uma categoria abstrata em referência ao melo, no sentido de compreendermos as alturas sonoras como localizadas neste espaço, de forma análoga como o tempo é uma categoria abstrata em referência ao ritmo, no sentido de compreendermos as durações sonoras como nele distribuídas. Em conseqüência, os termos altura sonora e duração sonora adquirem o significado, respectivamente, de som no espaço e som no tempo (Idem; grifos do autor)
Com isso, a melodia passaria a ser tomada como o movimento de alturas
sonoras associadas a durações rítmicas.
Autores do campo musical também destacam características próprias ao som
musical, chegando alguns, como o maestro Sergio Magnani (1996), a propor uma
morfologia, sintaxe e fraseologia próprias à música. Este último afirma que “a música
é o resultado de uma combinação de sons organizados conforme determinados
princípios e produzidos pela vibração de corpos sonoros” (Ibid: 202).
Haveria, assim, por um lado, as características próprias desta “vibração dos
corpos sonoros”, ou seja, as propriedades morfológicas dos sons musicais, que
Magnani (Ibid.: 76) classifica em: altura relativa, duração, intensidade (amplitude), e
timbre (cor diferencial). Por outro, existiria a sintaxe sonora e a fraseologia musical,
podendo esta ser mais ou menos complexa. Dentro da sintaxe sonora, este músico
diferencia a melodia (alturas, coordenadas horizontalmente, em movimento no
tempo), a harmonia e o contraponto (organização no espaço vertical), o ritmo
(seqüência de uma série de durações – sons e silêncios), a dinâmica (sucessão de
intensidades diferentes), e a profundidade (organização horizontal e vertical de
séries de timbres).
Antes dele, Boulez(1972: 58), em seus escritos sobre música, defende esta
idéia, afirmando que a morfologia musical trabalha com a altura e a duração dos
20
sons musicais, tendo função de integração, enquanto que o timbre e a dinâmica
possuem funções de coordenação. Em outro momento, Boulez (1992: 99) afirma
que, ao trabalhar com estes sons, o compositor deve se valer de critérios de escolha
morfológicos e sintáticos, abrangendo na morfologia o engendramento e distribuição
destes sons musicais e, na sintaxe, a realização e articulação.
Vemos, deste modo, que o compositor tem diante de si, na criação de uma
peça, infinitas possibilidades de trabalhar as tensões do material musical que se
aliam na criação de uma peça – característica esta encontrada apenas neste campo,
e que entendemos ser efeito da peculiaridade da linguagem musical.
I.3 – Sistemas musicais
Delimitamos o campo musical por características que o distinguem de outras
formas de linguagem, como a verbal, e de outras artes, uma vez que destacamos
ser seu material de trabalho o som musical disposto ritmicamente no tempo, o que
inclui, ademais, o silêncio. Com isso, a música se apresenta, para nós, como uma
maneira específica de lidar com o material inconsciente e com as exigências
psíquicas do sujeito, visando cercar um objeto que lhe é próprio.
É isto que pretendemos enfocar ao refletir sobre a música referindo-nos à
abordagem psicanalítica. E entendemos que isto ocorre quando se trata de música
de uma maneira geral, uma vez que a entendemos como linguagem e que assim ela
permanece, ainda que trabalhada de maneiras diferentes. Entretanto, é importante
destacar que há formas diversas de se criar música, as quais, conseqüentemente,
se articulam a técnicas musicais e escutas específicas.
Podemos abranger tais formas em três sistemas musicais, a saber, o sistema
modal, o tonal e o pós-tonal8. Tais sistemas, embora possam ser demarcados
historicamente, são, na atualidade, simultâneos e não-excludentes. Procuraremos, a
8 Escolhemos chamar, aqui, de pós-tonal a complexa trama musical que se instaurou com a ruptura realizada pela música de vanguarda do século XX, que passou a ser composta não mais seguindo os preceitos do tonalismo, mas a partir de novos paradigmas, como o serialismo, o minimalismo, o dodecafonismo, o atonalismo, etc.
21
seguir, fazer uma breve diferenciação destes sistemas, sem, contudo, nos
aprofundarmos em suas complexas características técnicas.
O sistema modal pode ser situado como o historicamente mais antigo na
Humanidade, remontando às primeiras formas de se fazer música, ainda encontrado
em sociedades em que a música apresenta uma característica predominantemente
ritualística. Destacamos daí a música tradicional indiana, chinesa e árabe, os
também tradicionais corais femininos da Bulgária, a música dos índios brasileiros e
norte-americanos, e, apoiados em Wisnik (1989: 94), a música dos pigmeus e
balineses.
Este sistema também pode ser encontrado, historicamente, na música modal
grega, já extinta e da qual os conjuntos vocais femininos búlgaros se aproximam, e
na música eclesiástica medieval, em especial a prática do canto gregoriano, ainda
em uso atualmente.
A principal característica deste sistema é ser composto por oito escalas9
distintas formando modos de repertório mélico que estabelecem uma organização
racional das alturas sonoras (Schurmann, 1981: 58). O sistema modal é, assim, um
sistema pré-tonal, no qual as músicas são criadas a partir de determinados
intervalos musicais, os modos. Wisnik (1989: 75; grifos do autor) afirma que “nas
sociedades pré-modernas, um modo não é apenas um conjunto de notas, mas uma
estrutura de recorrência sonora ritualizada por um uso”.
O sistema tonal, por outro lado, embora tenha começado a se caracterizar no
início da Idade Média, com o desenvolvimento da polifonia medieval, somente se
configurou concretamente em meados do século XVI, quando da sistematização dos
estudos dos acordes hierarquizados e do estabelecimento das leis acústicas que
regem as relações entre os sons.
9 Recorremos aqui à definição de escala de José Miguel Wisnik (1989: 71; grifos do autor): “A escala é um estoque simultâneo de intervalos, unidades distintivas que serão combinadas para formar sucessões melódicas. A escala é uma reserva mínima de notas, enquanto as melodias são combinações que atualizam (…) as possibilidades intervalares reunidas na escala como pura virtualidade. (…) As escalas são paradigmas construídos artificialmente pelas culturas (…)”.
22
O tonalismo se caracteriza pela substituição dos modos medievais e suas
variantes pelos dois modos tonais, o modo maior e o modo menor, cada um
contendo escalas organizadas, com intervalos pré-estabelecidos, por uma
determinada tonalidade relacionada a cada uma das sete notas musicais. Deste
modo, entendemos o tonalismo como um sistema de criação musical de acordo com
relações hierárquicas entre sons dispostos em torno de um centro, a tônica10.
Conforme configurado desde o final do século XVI e início do século XVII até
meados do século XX, o sistema tonal foi constituído com base nos estudos de
acordes hierarquizados e das leis destes e na acústica, formando um sistema lógico
e racional, e rompendo com toda uma tradição que o antecedeu. Contudo, este
mesmo sistema, vigente e dominante no pensamento musical ocidental por quatro
séculos, a partir de questionamentos de suas bases, levou à criação de outros
modos de pensar e fazer música no século XX.
Com a virada para o século XX, os pressupostos do tonalismo passaram a ser
experimentados e ampliados de tal forma, com compositores como Debussy, Ravel,
Bartók, Satie, Berg, Stravinsky, Varèse, e outros, que chegou ao seu limite.
As aberturas, questionamentos e buscas por um rompimento com o sistema
tonal chegam a um impasse decisivo na história da música, cuja conseqüência é
sentida pela música pós-tonal (atonal, serial, pantonal, politonal, etc.) e pela criação
de novas linguagens musicais, que implicam em novas formas de se escutar a
música.
Ainda assim, atualmente, a música ocidental continua predominantemente
tonal, seja a dita música clássica – havendo, entretanto um grande número de
compositores contemporâneos que desenvolvem trabalhos com princípios fora do
campo tonal –, seja a música que se convencionou chamar de popular.
Deste modo, ao falarmos em música neste trabalho, teremos em mente o ato
de fazer e escutar música de uma maneira geral, sem nos atermos a um sistema
10 A tônica é a primeira nota de uma escala musical, e, no método tonal de composição, é esta nota que determinará o tom da escala, sendo que todos os outros tons restantes serão centrados hierarquicamente ao redor dela, através de sucessivos afastamentos e convergências.
23
musical especificamente. Concordamos com Henry Barraud (1975: 13) quando este
afirma que:
Não há verdade absoluta em Arte. Certas direções tomadas pelos músicos podem levar a um impasse, outras podem dar origem a estéticas aparentemente opostas mas igualmente válidas. Todo novo passo procura abrir caminho, arriscando-se a mudar sua direção (…).
O que destacamos neste trabalho é, assim, o aspecto subjetivo desta arte,
seja na posição de quem a cria, seja na de quem a ouve.
I.4 – Possíveis abordagens e uma escolha
Ao empreendermos esta pesquisa de acordo com a tradição psicanalítica,
realizamos uma escolha que implica em darmos ênfase à dimensão psíquica da arte
musical. No entanto, entendemos que há outras maneiras de se aproximar desta
arte, uma vez que o humano não pode, de forma alguma, ser reduzido somente ao
aspecto psíquico ou a qualquer outro.
Assim, apresentaremos sucintamente, a seguir, formas distintas da
perspectiva psicanalítica de se estudar a música, destacando nestas abordagens
pontos de concordância e/ou discordância com aquela por nós adotada neste
trabalho. Escolhemos, para tal fim, uma abordagem cujo foco é o contexto histórico e
social, outra que destaca os aspectos neurocientíficos da música e, por último, uma
aproximação entre música e filosofia, através da reflexão de Nietzsche sobre este
assunto em seu livro O nascimento da tragédia.
I.4.1 – Uma abordagem histórica
A história do homem, de seu pensamento e saberes, e a história da música
confundem-se. Desde os tempos mais remotos o homem cria música de formas e
com finalidades específicas. Deste modo, o estudo da linguagem musical pode ser
feito tomando-se esta como discurso e expressão através da organização dos sons,
24
o que, para certos autores, requer contextualização histórica e social. Pode-se,
assim, propor contextualização histórica das formas de utilização dos sons
(abrangendo os silêncios e os ruídos) pelo homem em diferentes épocas e
sociedades.
A respeito desta contextualização, Ouvrand explicita que:
Tentar imaginar as músicas que conhecemos em seu espaço específico, geográfico e social, está longe de ser um esforço vão: é que a música dos antigos, determinada por uma função, está sempre “em situação”. Situá-la em seu lugar é, ao mesmo tempo, definir sua natureza, visualizar os executantes e os ouvintes, escutar os instrumentos e sonoridades; concretamente, compreendê-la (Ouvrand, 1997: 235).
Ao propor um estudo da música com enfoque histórico, autores como Ernest
Schurmann, Roland Candé e José Miguel Wisnik visam enfatizar esta arte em seu
aspecto social. A música e a linguagem musical seriam, assim, frutos das
sociedades em que foram criadas, levando-se em consideração aspectos históricos,
sociais, ideológicos e até mesmo econômicos. Nesse sentido, a música teria
determinadas funções sociais que se alterariam de cultura pra cultura e de época
para época. As transformações sócio-histórico-culturais seriam, deste modo,
refletidas na música.
Segundo Wisnik (1989: 13), tal abordagem sobre a música procura
(…) se aproximar daquele limiar em que a música fala ao mesmo tempo ao horizonte da sociedade e ao vértice subjetivo de cada um, sem se deixar reduzir às outras linguagens. Este limiar está dentro e fora da história. A música ensaia e antecipa aquelas transformações que estão se dando, que vão se dar, ou que deveriam se dar, na sociedade.
Este autor defende que “a música, em sua história, é uma longa conversa
entre o som (enquanto recorrência periódica, produção de constância) e o ruído
(enquanto perturbação relativa da estabilidade, superposição de pulsos complexos,
irracionais, defasados)” (Ibid.: 30; grifos do autor), com o que concordamos. Frente
ao fenômeno sonoro, à escuta de sons e ruídos, cada cultura oferecerá respostas de
organização e utilização específicas. Cada uma delas se remeterá a um campo ou
paisagem sonora distintos, convencionais, baseados em fundamentos e códigos que
lhes são próprios.
25
Assim como Wisnik, Schurmann, no livro A música como linguagem – Uma
abordagem histórica, e Candé, na obra História universal da música, realizam ao
longo de seus textos um paralelo entre as categorias sociais e musicais. De acordo
com Candé (1994: 5), “a música é uma antiga sabedoria coletiva, cuja longa história
se confunde com a das sociedades humanas”. Dentro desta concepção, cada
transformação histórica e social teria seu eco na produção musical, podendo a
música ter a função de garantir tais mudanças e, também, o domínio cultural de uma
classe social sobre outra11.
As linguagens e técnicas musicais, segundo autores como os que aqui
mencionamos, são frutos de forças e características próprias das épocas em que
são criadas, a partir de questões sociais, culturais, econômicas e políticas, e daquilo
que os sujeitos que as criam almejam com sua obra. O discurso de uma obra
musical pode ser entendido como uma forma de organização e representação do
mundo na qual está em jogo um conjunto de forças sócio-histórico-culturais aliadas
às formações discursivas que a constituem.
É importante destacar que, em psicanálise, o aspecto social se encontra
presente na constituição do sujeito. Essa presença se mostra seja pelo conceito
lacaniano de Outro, campo do qual o sujeito terá de advir e no qual encontrará
disponível a rede de significantes a partir dos quais poderá vir a falar12, ou pelo
conceito de supereu (Über-Ich) freudiano, introduzido na obra deste autor no
trabalho O eu e o isso (Das Ich und das Es), de 1923. Neste texto, Freud apresenta
o psiquismo dividido em três instâncias, o eu (Ich), o isso (Es), e o supereu (Über-
Ich)13.
11 Como ilustração desta abordagem, colhemos uma passagem da análise de Ernest Schurmann a respeito da passagem do sistema modal grego para o início da tradição musical européia na Idade Média com o canto monódico, canto predominantemente masculino em uníssono. Diz Schurmann (1989: 50): “o canto monódico prosseguiria por construir um instrumento poderoso para garantir a hegemonia no domínio cultural”, destacando, assim, que, segundo esta abordagem, a música tem funções sociais e políticas. 12 Conforme veremos com maior detalhamento e clareza no próximo capítulo. 13 Indicamos que nem sempre adotaremos neste trabalho as traduções dos termos freudianos utilizadas pela Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Nesta, por exemplo, os conceitos acima destacados receberam a tradução de ego, id e superego. Escolhemos a tradução destes termos feita diretamente do alemão para o português. Explicamos tal escolha com as palavras da tradutora Betty Milan, responsável pela versão brasileira do primeiro seminário lacaniano, Os escritos técnicos de Freud (1986: 333-334), nas notas que se referem ao uso de “eu” e “isso”: “Introduzido na Psicanálise pelos ingleses como equivalente de Ich, o termo ego é latino. Como a
26
Descrito por Freud (1923/1990: 64) como o “herdeiro do complexo de
Édipo”14, o supereu se forma a partir da identificação com as primeiras escolhas
objetais do sujeito, a saber, seus pais, assim como a partir da identificação com
outras figuras fora da família, como os professores. Todavia, mais do que uma
identificação com pessoas propriamente ditas, o supereu promove a interiorização
das interdições parentais, assim como das exigências sociais e culturais. Sobre isso,
diz Freud (1933[1932]/1990: 87):
Assim, o supereu de uma criança é, com efeito, construído segundo o modelo não de seus pais, mas do supereu de seus pais; os conteúdos que ele encerra são os mesmos, e torna-se veículo da tradição e de todos os duradouros julgamentos de valores que dessa forma se transmitiram de geração em geração.
Com isso, a psicanálise defende que há, de fato, na constituição do sujeito, a
presença de aspectos sociais que nele atuam, de forma inconsciente, em seus atos
e falas.
I.4.2 – Uma abordagem neurocientífica
Dentro de uma perspectiva neurocientífica, encontramos a concepção de que
a música é uma característica biológica inata do ser humano. É o que defende, por
exemplo, Isabelle Peretz (2005: 1), no artigo The nature of music from a biological
perspective15.
língua portuguesa oferece uma solução própria, não há nenhuma razão para perpetuar o uso do termo. (...) Freud nos mostra (...) que a teoria deve utilizar o material significante da língua em que se elabora. Traduzir um texto de Freud ou de Lacan é fazer existir a teoria psicanalítica em uma outra língua, isto é, é fazer existir os seus termos na língua para a qual a teoria se fará ouvir”. 14 Segundo Laplanche e Pontalis (1988: 644; grifos dos autores), “a formação do superego é correlata ao declínio do complexo de Édipo: a criança, renunciando à satisfação dos desejos edipianos atingidos pela interdição, transforma o investimento nos pais e, identificação com os pais, interioriza a interdição”. Sobre o complexo de Édipo podemos dizer resumidamente, baseados no Dicionário de
psicanálise organizado por Roland Chemama (1995: 55), que se trata de: “1. Conjunto de investimentos amorosos e hostis que a criança faz sobre os pais (…). 2. Processo que deve conduzir ao desaparecimento desses investimentos e sua substituição por identificações”. 15 Ou, em português, A natureza da música por uma perspectiva biológica. Contudo, preferimos manter o título original do texto, uma vez que não há, ainda, tradução publicada dele.
27
Partindo da premissa de musicólogos de que a música seria uma produção
cultural, Peretz observa que o fato de que a música pode ser encontrada, ao longo
da história, em todas as culturas, tanto pelo aspecto de criação quanto pela fruição,
pode ratificar a hipótese de que ela seja uma função biológica específica dos seres
humanos. Com isso, pretende refutar a idéia de que a música seria uma invenção
cultural ou uma função adquirida.
Tal hipótese é defendida por estudos que observam a inclinação precoce para
a música nos seres humanos. Apesar de defender que a capacidade musical parece
ser somente plenamente desenvolvida em um pequeno grupo de pessoas,
compositores e intérpretes, Peretz (Ibid.: 2) destaca que a música “é feita para os
ouvidos da maioria” e que uma não apreciação da música ocorre somente em casos
em que a pessoa não é capaz de discriminar intervalos entre notas e reproduzi-las
(tone-deafness).
Assim, delimita a questão da universalidade da música nos seres humanos,
que é tomada por estudiosos desta perspectiva como prova de que a música é
determinada biologicamente. De uma maneira geral, a música, para ser criada,
apresentaria pontos universais (Ibid.: 6) que tendem a girar em torno da idéia do uso
de notas com alturas fixas e próximas, assim como também na organização rítmica
em termos de um padrão regular.
Peretz (Idem) defende que a observação de que somente a música, e não
também a linguagem verbal, utiliza alturas fixas e discretas levanta a possibilidade
de o processo musical ter mecanismos únicos e especiais. A universalidade da
escala e a característica de uma organização em torno da tônica e de notas
distribuídas em intervalos desiguais facilitaria a percepção, a memória e a
performance por criar expectativas de eventos auditivos futuros.
Há também indícios de uma autonomia entre as características funcionais na
música relacionadas à altura das notas e ao ritmo, uma vez que desordens rítmicas
ocorrem separadamente de desordens relacionadas à altura. Assim (Ibid.: 13), é
defendido que a capacidade musical é o resultado de uma combinação de módulos
funcionais isolados.
28
Corroborando a idéia da autonomia entre as linguagens verbal e musical,
encontramos também no campo das neurociências o artigo Aphasia in a composer16,
de Luria, Tsvetkova e Futer (1965). Neste, é apresentado e analisado o caso clínico
de um compositor russo, V. G. Shabalin, que nos permite aprofundar e enriquecer
esta perspectiva. Shabalin, durante seus anos de atividade como compositor,
professor de música e diretor do Conservatório de Moscou, sofreu dois episódios de
acidentes vasculares diferentes com longo intervalo de tempo entre eles (1953 e
1959), ocasionando afasia sensorial e afetando a linguagem verbal.
O primeiro acidente acarretou graves distúrbios da fala, além de paralisia do
lado direito do rosto e perda de tato na mão direita, tendo estes sintomas
desaparecido após algumas semanas e o compositor retomando suas atividades
usuais. Durante seis anos, Shabalin continuou trabalhando em suas composições e
no Conservatório até a ocorrência de um segundo acidente, com sintomas similares
ao primeiro, porém mais severos e intensos, predominando os de uma afasia
acústica sensorial típica com alguns componentes de uma deficiência na
organização sinestésica da fala.
É preciso destacar que em nenhum dos dois episódios as atividades musicais
de Shabalin foram afetadas. Mesmo com a fala gravemente comprometida, seus
trabalhos de composição não foram interrompidos, sendo que ele pôde terminar
obras que havia começado antes dos acidentes vasculares, assim como criar novas
peças de reconhecimento técnico e estético no meio musical. Também a atividade
de analisar formalmente peças musicais de seus pupilos não sofreu quaisquer
alterações.
Com este caso clínico, os autores procuram afirmar uma diferença entre os
processos acústicos, verbal e musical, refutando a hipótese de uma possível
integração destas modalidades. Uma vez que mesmo sofrendo de afasia, tornando-
se incapaz de compreender a fala e falar com fluência, Shabalin continuou a exercer
as atividades musicais, poder-se-ia comprovar que há a preservação de organização
prosódica e melódica.
29
Interessa-nos destacar que a atividade de criar com base na linguagem
musical se manteve inalterada e que a relação de Shabalin com a música pôde-lhe
preservar um lugar de destaque em sua profissão e circuito social. Perguntamo-nos
se este caso não poderia nos dar subsídios para refletirmos, com a psicanálise,
sobre a capacidade da música, enquanto arte, de poder promover uma organização
subjetiva daquele que a compõe e de, como efeito, fazer laço social17. Não teria a
música possibilitado que este sujeito pudesse, devido a uma posição subjetiva
singular frente a ela, ter sido sustentado por ela, assim como transmitido algo de sua
posição como sujeito através das obras que criou mesmo quando impossibilitado de
suas capacidades verbais?
Retomando Luria, Tsvetkova e Futer, estes autores afirmam comprovar, a
partir deste exemplo, a diferença entre as funções da linguagem verbal e musical.
Por outro lado, Peretz (2005: 12) busca estudar desordens de discurso que não
afetam apenas a linguagem verbal como também movimentos orais, incluindo o
canto, com o intuito de se perguntar sobre a questão de a música ser inata. Tal
desordem afeta a produção e percepção rítmica sem, contudo, afetar a produção e
percepção melódica, baseada nas alturas sonoras. Da mesma forma, desordens que
afetam esta última característica não alteram a percepção de intervalos temporais.
Com isso, poder-se-ia corroborar a autonomia dos processos da linguagem verbal e
da musical.
A autora (Ibid.: 16) também fornece dados sobre estudos com bebês em
períodos pré-lingüísticos que parecem confirmar a hipótese de que a musicalidade é
inata. Neste período, os bebês são sensíveis a escalas musicais e à regularidade de
tempo, da mesma forma como os adultos. Além disso, eles podem assimilar a
estrutura de altura sonora de qualquer cultura e conseguem também apreender
regularidade e métrica, estas últimas características que aparecem precocemente
16 Mais uma vez, preferimos deixar o título do artigo em inglês, posto que não encontramos tradução do mesmo em nosso idioma, no qual o mesmo poderia ser entendido como Afasia em um compositor. 17 Conforme defendemos a partir do exemplo do compositor e pianista Waladyslaw Szpliman retratado em seu livro O pianista que inspirou o filme homônimo de Roman Polanski no artigo A
música como organização e suporte para o sujeito, apresentado no II Colóquio de Cognição e Linguagem da Universidade Estadual do Norte Fluminense, realizado entre os dias 27 de novembro a 01 de dezembro de 2006.
30
sem função para a linguagem. A habilidade musical poderia emergir da propensão
geral do cérebro em extrair regularidade do ambiente.
A respeito da localização cerebral do processo musical (Ibid.: 17), a
neurociência defende que este processo compreende uma vasta rede de regiões
localizadas em ambos os hemisférios do cérebro. Algumas destas áreas podem ser
também regiões com funções relacionadas à linguagem verbal, o que poderia indicar
que a música é uma função inata e autônoma, constituída de múltiplos módulos que
cruzam, minimamente, com outras funções.
Devido à plasticidade cerebral, diversos espaços do cérebro podem ser
ajustados para as necessidades musicais. Apesar de todos estarem envolvidos em
algum tipo de atividade musical no cotidiano, tal atividade não é predominante como
no caso daqueles que trabalham com a música. Neles (Ibid.: 20), há diferenças de
áreas específicas no cérebro, quando comparadas a não músicos, o que pode
demonstrar que ocorre uma modelagem do cérebro devido à experiência. Por isso, é
preciso pensar se estas diferenças cerebrais entre músicos e não-músicos decorrem
de genética e outras predisposições ou se vêm da prática e experiência.
Por fim, a autora (Ibid.: 21-22) se pergunta sobre uma possível função
adaptativa da música nas atividades ancestrais do homem que teria sido uma
vantagem na seleção natural. Em Darwin, ela encontra a suposição de que a música
era utilizada para atrair parceiros sexuais. Apresenta também a visão de que a
música teria um valor adaptativo mais voltado para o grupo do que para o indivíduo,
por proporcionar a coesão. Isto ocorreria uma vez que a música possui a
característica de incitar a vocalização e o movimento de forma sincronizada, fazendo
com que os indivíduos possam convergir emocionalmente.
Novamente, as características musicais essenciais relacionadas aos
intervalos de alturas sonoras e de regularidade temporal rítmica aparecem,
promovendo canto e dança simultâneos entres os indivíduos do grupo. Contudo,
estas mesmas qualidades da música permitem que o indivíduo tenha também certa
autonomia entre vozes e corpos, algo que, conclui Peretz (Ibid.: 22), é específico à
música.
31
Entendemos que o artigo de Peretz fornece dados científicos consistentes
sobre as funções do processo musical no cérebro, acentuando diferenças e
semelhanças entre músicos e não-músicos. Entretanto, não encontramos nele
referências à posição subjetiva destes. O sujeito, conforme a psicanálise o entende –
sujeito do inconsciente que aparece eticamente em suas escolhas e atos – não pode
ser percebido ali. É preciso deixar claro que entendemos que se trate de uma
perspectiva teórica diversa, com referências e até mesmo nomenclaturas diferentes.
O que realçamos é que, nesta abordagem, o que está em jogo não é o sujeito, e sim
o indivíduo, que traz em si uma característica universal e inata de sua espécie.
Pensamos, com a psicanálise, que se o campo do musical, conforme Peretz
aponta, é dado a todos, coloca-se, no caso de compositores e intérpretes, a questão
da escolha do objeto que se alia à música e de uma posição subjetiva frente a ela.
Ou seja, torna-se uma questão ética, referida à responsabilidade destes sujeitos em
relação à música que criam em ato (ato de compor / ato de tocar). Contudo, esta
mesma questão ética se abre, por outra via, diante de quem escuta a música e se
implica com o que ouve. Em outras palavras, a escuta se torna ato e há um impacto
real a partir daí.
I.4.3 – Uma abordagem filosófica – Nietzsche e música
O filósofo alemão, e também compositor, Friedrich Nietzsche dedicou muitos
de seus trabalhos ao tema da música, dos quais destacamos O nascimento da
tragédia, primeiro livro do autor, publicado em 1872. Neste texto, Nietzsche percorre
os mitos gregos de Apolo e Dionísio, entendendo estes como impulsos (Triebe)
artísticos da natureza em oposta complementação, para contextualizar neste cenário
o nascimento e declínio da tragédia grega. Desta luta de forças teria nascido a
tragédia grega: da tensão entre a figuração e organização apolínea e a embriaguez
e o desmedido dionisíacos.
32
Segundo Nietzsche, existe uma diferença entre a música apolínea e a
dionisíaca, sendo esta uma ruptura com a primeira por trazer um aspecto novo e
inaudito à arte musical.
Se a música aparentemente já era conhecida como uma arte apolínea, ela o era apenas, a rigor, enquanto batida ondulante do ritmo, cuja força figuradora foi desenvolvida para a representação de estados apolíneos. A música de Apolo era arquitetura dórica em sons, mas apenas em sons inusitados, como os que são próprios da cítara. Mantinha-se cautelosamente a distância aquele preciso elemento que, não sendo apolíneo, constitui o caráter da música dionisíaca e, portanto, da música em geral: a comovedora violência do som, a torrente unitária da melodia e o mundo absolutamente incomparável da harmonia (Nietzsche, 1992: 34).
A música dionisíaca se expressaria por via simbólica e implicaria todo o
homem, todo o seu conjunto de expressões simbólicas, incluindo o corpo e o
movimento rítmico deste. Cabe ressaltar que pela embriaguez dionisíaca entende-se
o laço selado entre pessoa a pessoa, em comunhão, sendo ainda, em Nietzsche, a
celebração da reconciliação entre o homem e a natureza.
A oposição entre as divindades de Apolo e Dionísio se dá também uma vez
que o primeiro exige a ética da medida, da necessidade estética da beleza, do auto-
conhecimento e do equilíbrio. Por outro lado, Dionísio abarcava o desmedido, a
auto-exaltação.
(...) Todo o desmesurado da natureza em prazer, dor e conhecimento, até o grito estridente, devia tornar-se sonoro. (...) O desmedido revelava-se como a verdade, a contradição, o deleite nascido das dores, falava por si desde o coração da natureza (Ibid.: 41; grifos do autor).
Nietzsche apóia-se no conceito de vontade de Schopenhaeur para afirmar
que o sujeito que é artista está isento de sua vontade individual e torna-se um “um
médium através do qual o único Sujeito verdadeiramente existente celebra a sua
redenção na aparência” (Ibid.: 47). Nesse sentido, afirma este filósofo, a existência
do mundo apenas pode justificar-se eternamente enquanto fenômeno estético.
Sobre a relação entre música, palavra e som, encontrados articulados na
canção popular, Nietzsche afirma que nela os elementos musicais, a melodia
principalmente, são o que há de mais fundamental e universal. A melodia é o que
33
conduziria a poesia, estando a linguagem verbal em uma relação de imitação para
com a música.
Com isso assinalamos a única relação possível entre poesia e música, palavra e som: a palavra, a imagem, o conceito buscam uma expressão análoga à música e sofrem agora em si o poder da música (Ibid.: 49).
A linguagem não seria capaz de expressar o cerne da música, aproximando-
se dela apenas externamente sem atingir seu sentido mais profundo. A linguagem
verbal não pode nos falar do êxtase dionisíaco. Sobre este, diz Nietzsche:
O êxtase dionisíaco, com sua aniquilação das usuais barreiras e limites da existência, contém, enquanto dura, um elemento letárgico no qual imerge toda vivência pessoal do passado. Assim se separam um do outro, através desse abismo do esquecimento, o mundo da realidade cotidiana e o da dionisíaca. Mas tão logo a realidade cotidiana torna a ingressar na consciência, ela é sentida como tal com náusea; uma disposição ascética, negadora da vontade, é o fruto de tais estados (Ibid.: 55-56).
Nietzsche afirma que a arte torna possível transformar quaisquer
pensamentos sobre o horror e o absurdo da existência em representações com as
quais podemos viver, seja pelo sublime (a domesticação artística do horror) ou pelo
cômico (descarga artística do absurdo). Estas duas vias artísticas, do sublime e do
cômico, encontram-se presentes lado a lado na tragédia grega na presença do coro.
Na tragédia grega, defende o autor, há o entrelaçamento do apolíneo, através de
uma ilusão que nos protege da unificação imediata com a música, e do dionisíaco,
com todo o seu prazer, incluindo o proveniente da dor.
Destacamos que Nietzsche apresenta o impulso dionisíaco como algo
primordial, como o fluxo contínuo da vida, a partir do qual pode surgir o impulso
apolíneo e todas as manifestações humanas, incluindo nelas a arte musical.
Consideramos que este texto traz pontuações frutíferas sobre a musicalidade
e coloca em questão pontos que, embora tratados sob perspectiva distinta da
tradição psicanalítica, nos fizeram pensar em conceitos desta, em especial no que
diz respeito à questão pulsional, mais especificamente no dualismo introduzido em
1920 no texto Além do princípio de prazer. Neste artigo, Freud (1920/2006: 177)
destaca dois grupos de pulsões que atuam associadamente, as pulsões de vida e as
34
pulsões de morte, as primeiras visando a conservação e as segundas a ruptura e o
retorno a um estado mínimo de tensão.
Pensamos que um paralelo pode ser traçado entre os impulsos apolíneos e
dionisíacos, conforme descritos por Nietzsche, e a concepção freudiana de pulsão
de vida e pulsão de morte. Isto pode se dar uma vez que a descrição do impulso
apolíneo, que tende à organização e à representação e à criação de unidades, em
oposição e, ao mesmo tempo, trabalhando em uníssono com o impulso dionisíaco,
que comporta o indomável, a ruptura, pode muito bem ser lida como metáfora para o
novo dualismo pulsional freudiano.
I.4.4 – Escolha por uma abordagem psicanalítica
A perspectiva psicanalítica foi aquela em que nos foi possível encontrar
acolhimento para as questões que inicialmente nos colocamos sobre a música. Com
a psicanálise, enfocamos o sujeito e o que está em jogo psiquicamente neste
quando criando ou fruindo a arte musical. Isto é possível uma vez que, nas palavras
de Freud (1923[1922]/1990: 287):
PSICANÁLISE é o nome de (1) um procedimento para a investigação de processos psíquicos que são quase inacessíveis por outro modo, (2) um método (baseado nessa investigação) para o tratamento de distúrbios neuróticos e (3) uma coleção de informações psicológicas obtidas ao longo dessas linhas, e que gradualmente se acumula numa nova disciplina científica.
Com isso, a psicanálise se apresenta como um método de investigação dos
processos psíquicos. E dela nos utilizamos para investigar a música.
A psicanálise nos oferece um caminho para pensarmos a questão da
especificidade musical pela via da pulsão que está relacionada à música, assim
como do objeto que a música coloca em jogo, ou seja, a pulsão invocante e o objeto
voz. Refletir sobre o objeto voz na música exige que delimitemos outro ponto desta
mesma questão: o silêncio. Aqui, o silêncio será pensado como vazio significante, do
qual poderá emergir algo, uma resposta ao vazio de respostas, uma composição,
uma música.
35
Ao trabalhar os sons de uma forma musical, sendo que estes sons também
precisam ser musicais, o compositor faz com que eles, quando já articulados
simbolicamente entre si e com o silêncio e tempo na obra musical, elevem-se à
dignidade de Coisa, sendo necessário um sujeito a escutar para que a música ganhe
sua função de causa.
Pararemos, por enquanto, aqui para que possamos delimitar os conceitos
psicanalíticos com os quais trabalharemos ao longo deste trabalho e,
posteriormente, os articularmos com as reflexões até então feitas a partir do campo
musical para avançarmos em nosso estudo e tirar dele conseqüências teóricas sobre
o sujeito em psicanálise.
36
CAPÍTULO II
Sobre psicanálise
As forças motivadoras dos artistas são os mesmos conflitos que impulsionam
outras pessoas à neurose e incentivaram a sociedade a construir suas
instituições (Freud, 1913/1990: 222).
Temos como proposta deste trabalho pensar articulações possíveis entre
psicanálise e música através do questionamento sobre a função desta para o sujeito,
passando por conceitos centrais da teoria psicanalítica freudiana. Destes,
destacamos os de inconsciente e pulsão, assim como por outros da tradição
lacaniana, tais como os de pulsão invocante e objeto voz enquanto causa de desejo
(objeto a) e a noção de das Ding, estudada por este autor no Seminário A ética da
psicanálise a partir das colocações freudianas sobre esta no Projeto para uma
psicologia científica18.
Neste capitulo, delimitaremos os principais conceitos da psicanálise com os
quais trabalharemos ao longo da dissertação, definindo, assim, nossa visão sobre
sujeito, inconsciente e pulsão, com a finalidade de estudarmos, a partir daí, a
musicalidade dos sujeitos, a criação musical, e como a obra de arte pode afetar
aqueles que a escutam.
Iniciaremos com a investigação do conceito de sujeito nas obras freudiana e
lacaniana. Para tanto, tomamos como ponto de partida a pergunta que Lacan (1954-
1955/1985: 221) coloca, e responde, no Seminário O eu na teoria de Freud e na
técnica psicanalítica: “O que é o sujeito? (...) no sentido freudiano do termo, o sujeito
do inconsciente, e daí, essencialmente o sujeito da fala. Ora, está-nos parecendo,
cada vez mais claramente, que o sujeito que fala está para além do ego” (Grifos do
autor).
18 A noção de das Ding também se encontra presente na obra de Freud no artigo de 1925 A negativa, sobre o qual também nos debruçaremos neste trabalho.
37
II.1 – O sujeito em Freud e Lacan
Para pensar o sujeito nas teorias freudiana e lacaniana se faz fundamental,
em nosso entendimento, estudar os conceitos de inconsciente, pulsão, objeto e
Outro, a fim de entendermos o que está em jogo na constituição subjetiva.
Acreditamos que, a partir deste estudo, poderemos ir além, e promover um
questionamento sobre o que uma reflexão sobre aspectos musicais pode nos auxiliar
para uma maior compreensão sobre o sujeito.
II.1.1 – O inconsciente
II.1.1.1 – O inconsciente em Freud
O conceito de inconsciente freudiano é um dos pontos centrais da teoria
psicanalítica, tendo sido, talvez, o que permitiu toda a instauração do campo
freudiano e psicanalítico. Deste modo, ele pode e deve ser articulado a todos os
demais temas de interesse desta área. Ao refletirmos sobre qualquer atividade
humana, é preciso considerar que há sempre processos inconscientes nela
envolvidos, ainda que não seja possível, em todos os casos, ter acesso a esse
material.
A vida psíquica e sua realidade estariam baseadas no inconsciente, sendo
este a instância psíquica mais ampla e abrangente, de acordo com a primeira tópica
freudiana19. Nela, há ainda duas outras instâncias psíquicas, o consciente e o pré-
consciente.
19 Tópica (Topik) se refere à hipótese freudiana de que “a vida mental é função de um aparelho ao qual atribuímos as características de ser extenso no espaço e de ser constituído por diversas partes” (Freud, 1940[1938]/1990: 169). Encontramos uma primeira concepção tópica do aparelho psíquico em A interpretação dos sonhos (Die Traumdeutung), mais especificamente no capítulo VII, A psicologia dos processos oníricos. Neste texto, Freud (1900/1990: 492) apresenta a necessidade de retratar o aparelho psíquico composto por instâncias ou sistemas que mantêm entre si uma relação espacial. Estes sistemas seriam o inconsciente, o pré-consciente e o inconsciente. Contudo, a partir de 1920, Freud irá propor uma nova tópica, composta pelas instâncias isso, eu e supereu. Aqui, como destacam Laplanche e Pontalis (1988: 661), a idéia de uma localização psíquica já não é predominante, mas sim a de que estas instâncias possuem relações determinantes entre si. “Nesta medida, a teoria científica do aparelho psíquico tende a aproximar-se da forma (...) como o indivíduo se concebe e (…) se constrói” (Idem). Ressaltamos, contudo, que, nesta citação, entendemos que o termo “indivíduo” não é o mais adequado, ao que preferimos usar o termo “sujeito”, uma vez que o
38
Na segunda tópica, inaugurada em 1920, estas instâncias são substituídas
por outras, o isso, o eu e o supereu, tornando-se as da primeira tópica qualidades do
material psíquico. Pode-se dizer que o Eu assim como o Supereu possuem aspectos
inconscientes, uma vez que ambos são formados a partir do Isso, instância que irá
trazer nessa reformulação teórica de Freud as principais características do sistema
Ics.
Apesar da importância e abrangência do inconsciente, só temos acesso a ele
através de seus efeitos e expressões, como os sonhos, os atos falhos e os sintomas.
Os derivados do inconsciente e das pulsões, da mesma forma como as formações
substitutivas, são também outros indícios dos processos inconscientes. E
defendemos que as obras de arte também podem ser lidas desta maneira por conter
em sua criação aspectos inconscientes.
Uma vez que “o Ics continua a atuar através de ramificações, os assim
chamados derivados, e mais: que ele é suscetível aos efeitos produzidos pela vida”
(Freud, 1915/2006: 40), podemos nos perguntar que relações ele possui com
determinadas atividades humanas, que fazem parte da vida cultural e social, como a
arte20.
A arte, pensada como formação do inconsciente, seja a que articula as
exigências pulsionais à materialidade significante do som, à palavra, à imagem ou ao
movimento corporal, permite que ocorra a transformação, através da sublimação, de
materiais inconscientes em objetos novos. Mais uma vez, no campo artístico, o
primeiro traz uma idéia de “indiviso”, de algo que não se pode dividir, enquanto que, na própria obra freudiana, encontramos a noção de uma divisão (Spaltung), como pode ser observada em textos como A divisão do eu no processo de defesa (Die Ichspaltung im Abwerhvorgang), de 1940 (1938). De acordo com Lacan (1954-1955/1985: 16), “com Freud faz irrupção uma nova perspectiva que revoluciona o estudo da subjetividade e que mostra justamente que o sujeito não se confunde com o indivíduo”. Destacamos que, na segunda tópica, o termo inconsciente, anteriormente uma instância psíquica, passa a qualificar o isso e também partes do eu e do supereu. 20 A respeito da arte como formação do inconsciente, em outro trabalho, defendemos que a arte, mais especificamente a música, poderia ser pensada analogamente aos sonhos, uma vez que em ambos os processos (oníricos e artísticos), encontramos a condensação de conteúdos inconscientes expressos em uma imagem, seja a onírica ou a acústica pela via musical. Tal trabalho foi a monografia do curso de graduação em Psicologia pela Universidade Federal fluminense, intitulada Psicanálise, arte e música, orientada pela Profª Drª Anelize Terezinha Araújo e defendida no ano de 2003, no qual há um tópico com esta proposta, chamado “Música como sonhos”.
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inconsciente se mostra acessível a partir de seus efeitos, nesse caso, a criação de
um novo objeto para tentar dar conta da exigência de trabalho do psiquismo.
No campo da clínica, ao dar voz a seus pacientes e ao disponibilizar a escuta
da fala desses sujeitos, Freud dá abertura à leitura e interpretação do material
inconsciente nela presente, possibilitando a mudança subjetiva daquele que busca
uma análise. Diz Freud:
Ao interpretar sonhos, atribuímos idêntica importância a cada um dos matizes de expressão lingüística em que eles nos foram apresentados. E mesmo quando o texto do sonho, tal como o tínhamos, era sem sentido ou insuficiente – como se o esforço de fornecer dele um relato correto tivesse fracassado – levamos também essa falha em consideração. Em suma, tratamos como Sagrada Escritura aquilo que autores precedentes haviam encarado como uma improvisação arbitrária, remendada às pressas no embaraço do momento (Freud, 1900/1990: 472; os grifos são nossos).
Ao considerar a fala dos pacientes, seus sonhos, associações e materiais
inconscientes, como o material fundamental da análise, Freud retira de cena a
centralidade da consciência, permitindo que a partir do fluxo da linguagem de cada
sujeito possa surgir um outro caminho para este que não o do sofrimento de seu
sintoma.
O conceito de inconsciente, conforme Freud (1940[1938]/1990: 320-321)
afirma em Algumas lições elementares de psicanálise, não é inovação própria da
psicanálise, destacando o filósofo Theodor Lipps21 como um dos autores que, em
sua época, também afirmavam sua existência. Contudo, ao utilizar este termo, a
psicanálise o reformulou como um conceito novo, estipulando as leis que regem o
inconsciente e o psiquismo humano.
Visando mapear tais leis, Freud escreveu O Inconsciente (Das Unbewusste),
em 1915, terceiro dos artigos sobre metapsicologia. Dois outros destes artigos
foram, em ordem cronológica de publicação, Pulsões e destinos da pulsão (Trieb
und Triebschicksale) e O recalque (Die Verdrangung), ambos do mesmo ano.
Nestes, também, já aparece a preocupação da formalização do conceito de
21 Este filósofo também é citado por Freud (1940[1938]/1990: 183) em Esboço de psicanálise (Abriss
der Psychoanalyse), do mesmo ano.
40
inconsciente, e será mesmo a partir do questionamento sobre o mecanismo do
recalque e sua atuação sobre materiais inconscientes que Freud inicia o referido
trabalho. Diz ele:
Embora tudo o que foi recalcado precise permanecer inconsciente, esclareçamos de antemão que o recalcado não abarca todo o inconsciente. Ou seja: o inconsciente tem maior abrangência que o recalcado, este é apenas uma parte do inconsciente (Freud, 1915/2006: 19).
Freud passa, a seguir, a justificar o conceito de inconsciente, como sendo
necessário e legítimo, e, com isso, promove a descentralização do conceito de
consciência:
(…) Os dados da consciência têm muitas lacunas. Tanto em pessoas sadias quanto em doentes ocorrem com freqüência atos psíquicos que, para serem explicados, pressupõem a existência de outros atos para os quais, no entanto, a consciência não fornece evidências (Idem).
O psíquico, deste modo, não se equivale ao consciente (Ibid.: 21), isto
porque, segundo Freud (Ibid.: 24), “em rigor, do ponto de vista da psicanálise, não
nos resta alternativa a não ser considerar os processos psíquicos em si como
inconscientes”.
Para legitimar esta afirmação, Freud destaca que parece existir um outro
dentro de nós, um outro que desconhecemos, mas que, todavia, se apresenta em
nossos atos, ao que atribui à dimensão do inconsciente.
(…) É preciso que tomemos todos aqueles atos e manifestações que percebemos em nós mesmos – mas que nos parecem inexplicáveis por não se correlacionarem com o que sabemos de nossa própria vida psíquica – e busquemos explicá-los de modo análogo ao que faríamos se tais atos pertencessem a outra pessoa22 (Ibid.: 22-23).
22 Este “outro” inconsciente, que atua em nós e que desconhecemos e sobre o qual somente poderíamos inferir algo se o avaliássemos como faríamos com nosso semelhante, parece nos dar indícios sobre o que Lacan diz a respeito do Outro, concepção que será por nós abordada em tópico seguinte deste capítulo.
41
Diante destes atos, o sujeito teria uma reação de estranheza (Ibid.: 23). Sobre
este tema, Freud dedicará a escrita de um artigo em 1919, cujo título é O estranho
(Das Unheimliche).
Neste artigo, Freud (1919/1990: 275) aborda uma questão estética, entendida
não apenas como teoria da beleza, mas como a teoria das qualidades do sentir. O
material do estudo da estética provém, usualmente, das pulsões inibidas em sua
meta – material com o qual a psicanálise, em seus aspectos clínicos, geralmente
não trabalha –, como é o caso da sublimação. Contudo, Freud (Ibid.: 276) investiga
os motivos pelos quais o termo “estranho” evocaria algo relacionado ao horror e ao
medo, algo que provoca aflição ou até repulsa, algo misterioso, inquietante, não-
familiar, em suma, algo que deveria ter permanecido secreto, porém veio à tona
(Ibid.: 282).
Baseando-se na linguagem e no significado das palavras alemãs heimlich e
unheimlich, conforme descritos em dicionários e no uso da língua, Freud busca em
outros idiomas alguma contribuição, sem encontrar, no entanto, na maioria deles,
uma palavra “para essa particular nuança do que é assustador” (Ibid.: 278).
No idioma alemão (Ibid.: 279-280), a palavra heimlich possui vários
significados, como pertencente à casa ou família; domesticado, no caso de animais,
que se opõe à selvagem; íntimo, agradável, confortável, que desperta sensação de
repouso e segurança; alegre, disposto; e, ainda, escondido, oculto à vista, sonegado
aos outros. Esta última acepção de heimlich converge com a idéia contida em seu
oposto unheimlich. E vale lembrar que o prefixo um confere à palavra um sentido de
mistério, de sobrenatural e fantástico, de algo que provoca terror (Ibid.: 208).
Dessa forma, unheimlich é uma palavra cujo significado se desenvolve na direção da ambivalência até que finalmente coincide com o seu oposto, unheimlich. Unheimlich é, de um certo modo ou de outro, uma subespécie de heimlich (Ibid: 283).
Vemos que o estranho é ou foi em algum momento familiar e conhecido para
nós. Mais uma vez, deparamos-nos com o conceito de recalque ao falarmos do
inconsciente. Através do mecanismo de recalque, um material psíquico é afastado
do sistema consciente e mantido no inconsciente. O retorno do material recalcado
42
poderia trazer, deste modo, um estranhamento para o sujeito. Podemos, assim, dizer
que o estranho nos dá uma confirmação da existência e atuação da instância do
inconsciente.
Sobre esta, Freud afirma em 1915, que ela se diferencia das outras instâncias
psíquicas, possuindo “características especiais” (Freud, 1915/2006: 37),
complementando que:
O núcleo do Ics é composto de representantes pulsionais [Triebrepräsentanzen] desejosos de escoar sua carga de investimento – em outras palavras, é composto de impulsos de desejo [Wunschregungen]. Contudo, no Ics esses impulsos pulsionais [Triebregungen] coexistem coordenados entre si, lado a lado, sem se influenciarem mutuamente, nem se contradizerem (Idem).
Deste modo, o sistema inconsciente opera sem que haja nele a negação23,
sendo esta formulada pela censura e atuando apenas “em um nível superior, tendo
então a função de substituta do recalque” (Idem). Destacamos que, na citação
acima, é possível verificar que a pulsão só comparece no psiquismo sob a forma de
representantes.
Uma segunda característica do inconsciente é que nele há a predominância
do processo primário. Na primeira tópica freudiana, referencial de base para este
artigo metapsicológico sobre o inconsciente, o funcionamento do psiquismo é
determinado pelos processos primário e secundário, estando o primeiro ligado ao
sistema inconsciente e o segundo ao consciente e pré-consciente.
O processo primário, inconsciente, confere a este sistema uma dinâmica de
funcionamento própria na qual há o constante deslizamento de sentido, uma vez que
a energia circula livremente pelas representações. No sistema pré-
consciente/consciente, por outro lado, o modo de funcionamento é regido pelo
processo secundário, no qual a identidade de pensamento é procurada e cuja função
é de regulação dos processos primários e defesa contra a ação e irrupção destes. A
energia nesse modo de funcionamento é ligada e pode-se fazer um paralelo entre
23 Trabalharemos melhor o conceito de negação no tópico sobre a constituição subjetiva presente neste capítulo.
43
este modo e o princípio de realidade, estando o processo primário ligado ao princípio
de prazer.
A respeito destes, podemos dizer que são, até a formulação da segunda
tópica, os princípios econômicos que regem o psiquismo de tal forma que a atividade
psíquica teria por finalidade evitar o desprazer (aumento de tensão no psiquismo) e
buscar o prazer (diminuição desta tensão). O princípio de realidade atua a serviço do
princípio de prazer, porém, efetua uma regulação ao primeiro, fazendo com que a
busca de prazer possa ser adiada e conseguida por vias indiretas.
Outra característica do inconsciente é que não há nele a noção de
temporalidade. Os processos inconscientes “não são cronologicamente organizados,
não são afetados pelo tempo decorrido e não têm nenhuma relação com o tempo.
(…) A relação com o tempo é algo estritamente vinculado ao trabalho do sistema
Cs.” (Ibid.: 37-38). Tal característica da atemporalidade do inconsciente nos
interessa, em especial, uma vez que, como vimos, a música não pode existir sem o
ritmo, ao qual ligamos ao conceito de tempo. Voltaremos a estudar este aspecto ao
trabalharmos a criação musical.
Em suma, sobre as características próprias do inconsciente, podemos dizer,
com Freud, que:
(…) ausência de contradição, processo primário (mobilidade das cargas de investimento), atemporalidade e substituição da realidade externa pela
realidade psíquica. Essas são as características que podemos esperar encontrar em processos pertencentes ao sistema Ics. (Ibid.: 38; grifos do autor).
Encontramos tais características, sobretudo, na fala dos pacientes na clínica
psicanalítica, o que nos dá uma configuração de sujeito que é marcado por uma
divisão constitutiva, que remete à dimensão do inconsciente, de algo que atua nele a
revelia de seu saber consciente sobre si. O sujeito em psicanálise, podemos dizer, é
justamente este do inconsciente e falante.
A partir de 1920, como vimos, com o questionamento sobre a predominância
do princípio do prazer no psiquismo e o destaque para a formulação de uma
44
“compulsão à repetição” (Freud, 1920/2006: 145), o conceito de inconsciente sofre
uma alteração, passando a definir não mais uma instância, mas uma qualidade
psíquica. No texto Além do princípio de prazer, Freud apresenta a compulsão à
repetição a partir da reflexão do trabalho analítico na situação em que o paciente,
devido à transferência24, repete o material recalcado como se fosse uma experiência
contemporânea, em vez de recordá-lo como algo de seu passado. A compulsão à
repetição diz de uma tendência do conteúdo inconsciente e recalcado em irromper à
consciência.
Embora a compulsão à repetição rememore experiências no passado que
trariam prazer a um sistema psíquico e desprazer a outro, ela também está
relacionada a outras experiências que não trariam satisfação alguma porque nunca a
trouxeram. Dentre estas, destaca-se o florescimento precoce e traumático da
sexualidade infantil. É importante destacar que, assim, a temporalidade do sujeito do
inconsciente é de uma ordem outra que não a cronológica ou a linear, em que
passado, presente e futuro se sucederiam.
Freud (Ibid.: 147) coloca ainda em questão a impressão que certas pessoas
possuem de serem possuídas por um destino trágico ou um poder demoníaco, uma
compulsão que provoca a recorrência constante de uma mesma coisa, a repetição
de uma mesma fatalidade. Outros exemplos que confirmam a compulsão à
repetição, destacados por Freud, são a brincadeira das crianças em que algo
doloroso é constantemente repetido (caso da brincadeira do “Fort-Da” observada por
Freud em seu neto25), e os sonhos traumáticos.
Estas situações colocam em cena o funcionamento no psiquismo da
compulsão à repetição, que sobrepuja o princípio de prazer, sendo mais arcaica e
24 Segundo Laplanche e Pontalis (1988: 688), a transferência “designa o processo pelo qual os desejos inconscientes se atualizam sobre determinados objetos no quadro de um certo tipo de relação estabelecida com eles e, eminentemente, no quadro da relação analítica”. Encontramos no artigo freudiano A dinâmica da transferência, de 1912, três pontos de base para a Psicanálise: a transferência, a resistência e a repetição. Estes pontos nos levam a refletir sobre os aspectos pulsionais envolvidos na situação analítica. Há algo que insiste na fala de cada sujeito, que articula a dimensão do traumático, do sexual, e que só é possível de surgir na análise a partir da transferência. 25 Freud (1920/1990: 141-142) descreve em Além do princípio de prazer a brincadeira de seu neto, de 18 meses de idade, em que este atirava para longe de si um carretel amarrado a um barbante, pronunciando um longo “o-o”, relacionado por Freud com a palavra alemã fort (longe), puxando-o de volta, em seguida, simultaneamente à exclamação “Dá!” (aqui, em alemão). A interpretação freudiana
45
elementar que ele (Ibid.: 37). No caso da compulsão à repetição na clínica, há uma
tentativa que esta seja colocada a serviço do tratamento, para que possa, nesse
caso, ser atrelada ao eu e ao princípio de prazer. Pela análise, é visado que a
repetição possa dar lugar à recordação e à elaboração26.
Não podemos esquecer que o termo inconsciente traz à tona a questão da
ação da pulsão em afastar da consciência um material psíquico que é mantido,
assim, através do recalque, inconsciente. Porém, não nos aprofundaremos, por
enquanto, neste conceito, deixando tal tarefa para quando trabalharmos a pulsão e
seus destinos, uma vez que o processo de recalque é um deles.
II.1.1.2 – Inconsciente e sujeito em Lacan
O Inconsciente, tomando-se como referência a leitura lacaniana das
descobertas de Freud, esta vinculada às concepções lingüísticas de Ferdinand de
Saussure e Roman Jakobson, seria uma rede de significantes, um circuito
simbólico27. Pensar o inconsciente estruturado como uma linguagem, conforme
proposto por Lacan (1964/1998: 25), requer, então, que voltemos nossa atenção
para estes autores e para a forma como alguns conceitos destes foram trabalhados
no ensino lacaniano.
é de que este jogo reproduziria a situação vivida pela criança quando a mãe desta se ausentava, o que proporcionava a elaboração desta experiência dolorosa de separação. 26 Conceito que será mais detalhadamente por nós trabalhado no quarto capítulo. 27 É preciso, de início, propor uma breve delimitação sobre os conceitos de simbólico, real e imaginário na obra lacaniana. Estes três conceitos estão intimamente ligados dentro desta teoria. O simbólico diz respeito à cadeia de significantes e à sua estrutura de linguagem, que traz aspectos inconscientes e também conscientes. Porém, nesta estrutura de linguagem, há algo que escapa, que é impossível de ser simbolizado e que, ainda assim, mesmo de fora da estrutura, intervém sobre o simbólico. Trata-se do real. O real é, assim, o “inassimilável”, o traumático (Lacan, 1964/1998: 57). O imaginário deve ser entendido a partir da função de identificação e da imagem, conforme apresentados por Lacan ao descrever o estádio do espelho, que será abordado posteriormente por nós. Este registro, em sua articulação com o simbólico, promove a fantasia, que funciona como uma tela de proteção contra o real. Ressaltamos que estes três registros não podem ser pensados isoladamente e que, no sujeito, não há a prevalência de um sobre o outro. Apesar desta ligação íntima entre os três registros ser melhor apresentada na teoria lacaniana a partir da apresentação do nó borromeano, presente a partir da década de 1970, escolhemos fazer um recorte teórico em nosso estudo que se estende do início de seus Seminários até, principalmente, o Seminário Os quatro
conceitos fundamentais da psicanálise. Ainda assim, textos e idéias posteriores serão encontradas em nossa reflexão como norteadores e apontamentos para estudos que pretendemos dar continuidade, conforme melhor explicamos na introdução desta dissertação.
46
Entendemos que, ao fazer esta proposição sobre o inconsciente, o que Lacan
tem como visada é o sujeito, orientado pelo descentramento proposto por Freud
(1915/1990: 193) acerca do psiquismo humano e também enfatizar uma divisão
entre o que se sabe e o que atua sem que se tenha conhecimento. O sujeito passará
a ser ouvido a partir da linguagem nos momentos de falha, seja no sintoma, nos atos
falhos ou nos chistes, ou de abertura para o enigmático, como nas obras de arte.
Lacan, desde o início de seus Seminários, aproxima o conceito de
inconsciente freudiano a concepções relacionadas à linguagem. Em Os escritos
técnicos de Freud, Lacan (1953-54/1986: 32-33) afirma que:
(…) Freud toma, sem mais, o discurso como uma realidade enquanto tal, uma realidade que está lá, maço, feixe de provas como se diz também, feixe de discursos justapostos que se recobrem uns aos outros, se seguem, formam uma dimensão, uma espessura, um dossiê.
Nas falhas deste discurso, o sujeito poderá surgir pontualmente, revelando a
dimensão do inconsciente, formado, justamente, por cadeias de significantes que
podem possuir pontos de articulação entre si. Em Lacan (1964/1998: 46), o
inconsciente é entendido como descontinuidade, surgindo como fenômeno no
movimento pulsante de abertura e posterior fechamento, ou seja, de uma pulsação
temporal. Nessa abertura, o inconsciente pode emergir, fazendo com que o sujeito
seja surpreendido por uma verdade dele e sobre ele que ele não quer saber. Além
disso, o inconsciente traz algo do não-realizado. Sobre isso, diz Lacan (Ibid.: 30):
Tropeço, desfalecimento, rachadura. Numa frase pronunciada, escrita, alguma coisa se estatela. Freud fica siderado por esses fenômenos, e é neles que vai procurar o inconsciente. Ali, alguma outra coisa quer se realizar – algo que aparece como intencional, certamente, mas de uma estranha temporalidade. O que se produz nessa hiância, (...) se apresenta como um achado.
A dimensão do não-realizado do inconsciente aparece como uma Outra coisa
que quer se realizar. Por isso mesmo, poderá haver aí a característica de
estranheza para o sujeito; por essa fenda, algo de inconsciente pode emergir,
apontando para a função de causa deste sujeito. Lacan afirma que o inconsciente
se apresenta como vacilação a partir do corte no sujeito, que pode se perceber em
47
algum ponto inesperado, de surpresa. Perguntamo-nos se, na arte, não seria o caso
de um fazer com esse tropeço, com isso que quer se realizar de outro modo28.
Nesse sentido, para Lacan (1953-1954/1986: 225), o sujeito do inconsciente
surge pela fala, pela linguagem, sendo que sua dimensão está para além da
consciência29.
O sujeito que fala, devemos admiti-lo forçosamente como sujeito. E por quê? Por uma simples razão, porque ele é capaz de mentir. Quer dizer que ele é distinto do que diz. Bem a dimensão do sujeito que fala, do sujeito que fala enquanto enganador, é o que Freud descobre para nós no inconsciente. (…) Freud (…) mostra-nos que há no sujeito humano algo que fala, que fala no pleno sentido da palavra, quer dizer, algo que mente, em conhecimento de causa, e independentemente do que traz a consciência (Idem).
As referências ao mentir e ao engano desta citação, se referem, a nosso ver,
a este saber inconsciente que surge na linguagem, por exemplo, ao se dizer mais do
que se intencionava no ato falho, podendo ocasionar, assim, uma surpresa. Por
vezes até um estranhamento.
O próprio do campo psicanalítico é supor, com efeito, que o discurso do sujeito se desenvolve normalmente – isto é Freud – na ordem do erro, do desconhecimento, e mesmo da denegação – não é bem a mentira, é entre o erro e a mentira. (…) Na análise, a verdade surge pelo que é representante manifesto da equivocação – o lapso, a ação a que se chama impropriamente falhada. Nossos atos falhados são atos que são bem sucedidos, nossas palavras que tropeçam são palavras que confessam. Eles, elas, revelam uma verdade detrás. No interior do que se chamam associações livres, imagens do sonho, sintomas, manifestam uma palavra que traz a verdade (Ibid.: 302).
Podemos notar que há no sujeito algo da ordem de uma determinação
inconsciente, ou, nas palavras de Freud (1900/1990: 295, 296, 465), uma
sobredeterminação. Esta foi estudada pelo autor na construção dos sonhos, não
28 E pretendemos manter esse questionamento norteando nosso trabalho ao longo da dissertação. 29 A consciência, sendo, segundo Freud (1923/1990: 28) uma das características relacionadas ao eu – Ich freudiano e moi, tal qual tradução adotada por Lacan, diferenciando-o do Je, do sujeito –, não pode, como vimos anteriormente em Freud (Ibid.: 25), dar conta de explicar o psiquismo humano. O eu, em Freud e Lacan, refere-se à criação de uma unidade que é constituída a partir da relação do bebê humano com seu semelhante cuidador, como será abordado mais adiante neste capítulo. Neste sentido, o eu, para Lacan (1954-1955/1985: 53), é uma função imaginária, na medida em que “o corpo despedaçado encontra sua unidade na imagem do outro, que é sua própria imagem antecipada – situação dual em que se esboça uma relação polar, porém não simétrica” (Ibid.: 74).
48
sendo este, contudo, o único exemplo disto que é próprio do sujeito. Como evidencia
Freud (1893-1895/1990: 258), há na etiologia das neuroses uma sobredeterminação,
assim como também são sobredeterminados (ueberdeterminiert ou ueberbestimmt)
os sintomas (Freud, 1900/1990: 519; 1905[1901]/1990: 62).
No caso dos sonhos, como se sabe, Freud (1900/1990: 270) propôs a
diferença entre seu conteúdo manifesto, aquilo que “se apresenta em nossa
memória”, e o conteúdo latente, os “pensamentos do sonho”, inconscientes, aos
quais se pode chegar através do método psicanalítico. Nas palavras de Freud
(Idem):
Os pensamentos do sonho e o conteúdo dos sonhos nos são apresentados como duas versões do mesmo assunto em duas línguas diferentes. Ou, mais apropriadamente, o conteúdo do sonho é uma transcrição dos pensamentos oníricos em outro modo de expressão cujos caracteres e leis sintáticas é nossa tarefa descobrir, comparando o original e a tradução. (…) O conteúdo do sonho (…) é expresso, por assim dizer, numa escrita pictográfica cujos caracteres têm que ser individualmente transpostos para a linguagem dos pensamentos do sonho.
Ao investigar as “leis sintáticas” que regem o sonho, Freud desenvolve
conceitualmente os mecanismos de condensação (Ibid.: 272) e de deslocamento
(Ibid.: 296) – que participam na sobredeterminação da construção dos sonhos (Ibid.:
297) –, e da representabilidade (Ibid.: 327) e da elaboração secundária (Ibid.: 453,
461). Estes dois últimos fazem com que o material onírico latente, já sob efeito da
sobredeterminação, possa “escapar da censura imposta pela resistência” (Ibid.: 297)
e se apresentar em forma de imagens visuais e acústicas no sonho manifesto com a
máxima coerência possível.
Pelo trabalho de condensação, há a associação de diversos materiais
inconscientes em apenas uma idéia, o que nos leva a entender que no relato do
sonho um elemento único pode trazer em si diversos feixes de pensamentos. Já no
deslocamento, trata-se de transferir a intensidade entre os elementos do sonho,
passando a ênfase de valor de um para outro. Há, portanto, uma “determinação
múltipla” (Ibid.: 284) entre as redes de idéias do pensamento inconsciente e naquilo
que o sujeito expressa através da linguagem, como no caso dos relatos do sonho.
49
Lacan (1955-1956/2003: 252), tomará como base para o seu entendimento da
estruturação do inconsciente as leis da condensação e do deslocamento conforme
descritas por Freud em relação à construção dos sonhos, também presentes na
Conferência XI, A elaboração onírica, das Conferências introdutórias sobre
psicanálise, de 1916-17. Para este autor, estas leis são análogas aos conceitos de
metáfora e metonímia, retirados do campo da lingüística.
De forma geral, o que Freud chama de condensação é o que se chama em retórica a metáfora, o que ele chama de deslocamento é a metonímia. A estruturação, a existência lexical do conjunto do aparelho significante, são determinantes para fenômenos presentes na neurose, pois o significante é o instrumento com o qual se exprime o significado desaparecido (Idem).
Notamos nessa passagem a leitura de Lacan do texto Dois aspectos da
linguagem e dos tipos de afasia, de Jakobson30. Na concepção deste, há na
estrutura da linguagem dois pólos, o metafórico e o metonímico, sobre os quais fala
ao estudar as afasias, pensando, ainda, no campo da poética.
Segundo Jakobson (1970: 39-40), os signos lingüísticos implicam duas
formas de arranjo. O primeiro, a combinação, opera a partir da contigüidade e
promove o agrupamento de unidades lingüísticas. Já a seleção põe em jogo o
aspecto da similaridade dos signos, e abre a possibilidade para a substituição entre
eles.
Tais arranjos estariam dispostos da seguinte maneira nos pólos da
linguagem: na metáfora encontrar-se-ia a seleção e a similaridade, próprias da
poesia, enquanto que, na metonímia estariam a combinação e a contigüidade,
voltadas para a prosa (Ibid.: 62).
Para entendermos melhor a dimensão da metáfora e da metonímia em Lacan,
se faz necessário uma maior delimitação de como o conceito saussuriano de
significante foi tomado em sua teoria. Diferentemente da forma saussuriana, que
pressupõe a língua como um sistema fechado que exclui o sujeito, na psicanálise
30 Lacan (1955-1956/2003: 250), aliás, faz referência claramente ao texto de Jakobson sobre as afasias em sua análise sobre a metáfora e a metonímia apresentada no seminário As psicoses, chegando a citar exemplos nele encontrados (Ibid.: 251-252).
50
lacaniana, o significante é pensado em sua relação com o sujeito em um sistema
aberto, marcado pela falta.
O significante interessa-nos por sua posição na constituição do sujeito e, em
especial em nosso estudo relacionado à música, na medida em que traz a dimensão
da imagem acústica em contraposição à característica conceitual do significado. É
pela sonoridade própria do significante que poderá ocorrer o deslizamento na rede
simbólica, e é também devido à alternância sonora que a “matriz do funcionamento
significante” poderá se instalar (Catão, 2005: 50).
A isto, acrescentamos os conceitos freudianos de representação
(Vorstellung)31 de coisa (Sach) e representação de palavra (Wort), encontrados na
última seção do artigo O inconsciente e no Apêndice C do mesmo. Freud
(1915/2006: 49) afirma que a representação de coisa (Sachvorstellung) ocorre
apenas no Inconsciente e se dá como um conjunto de traços de memória e imagens
acústicas, visuais e cinestésicas mais ou menos afastadas da coisa em si, sem
nunca alcançá-la. Por outro lado, a representação de palavra (Wortvorstellung) está
ligada à tomada de consciência, à verbalização. Sobre a relação destes dois tipos de
representação, Freud (Idem; grifos do autor) considera que:
Aquilo que antes chamávamos de representação mental do objeto ou idéia consciente do objeto, ou seja, representação-do-objeto, agora se subdivide em representação-de-palavra [Wortvorstellung] e representação-de-coisa [Sachvorstellung]. Esta última consiste no investimento de cargas – se não nas imagens diretas das lembranças-de-coisa [Sachinnerungsbilder] –, nos traços de lembrança que estão mais distantes e derivam dessas lembranças. (…) Uma representação [Vorstellung] consciente abrange a representação-de-coisa [Sachvorstellung] acrescida da representação-de-palavra [Wortvorstellung] correspondente, ao passo que a representação [Vorstellung] inconsciente é somente a representação-de-coisa [Sachvorstellung] 32.
Voltaremos a abordar esta dimensão sonora do significante quando
trabalharmos, no capítulo III, a questão do objeto voz e da musicalidade presente na
31 Termo traduzido pela Edição Standard Brasileira das obras Completas de Sigmund Freud, lançada pela Editora Imago, como “apresentação”, ao qual preferimos usar representação. 32 É importante demarcar que, ao falar de representação de coisa (Sach), Freud não está abordando a Coisa (das Ding), termo por ele utilizado no Projeto para uma psicologia científica, de 1895, em relação ao complexo do próximo (Nebenmensch), que Lacan tornará conceito em A ética da
psicanálise, de 1959-1960. No caso de coisa e palavra, ambos fazem parte da estrutura da linguagem, enquanto a Coisa, como será visto mais adiante, é excluída desta.
51
constituição do sujeito. Propomos agora investigar as concepções saussuriana e
lacaniana de significante e como estas se afastam, uma vez que concordamos com
Arrivé (1999: 73) quando este diz que “o significante lacaniano não se confunde com
o significante saussuriano”.
Em Saussure (1975: 25), a linguagem é entendida como uma faculdade e os
termos significante e significado se referem à língua, esta definida como um “produto
social da faculdade da linguagem e um conjunto de convenções necessárias,
adotadas por um corpo social para permitir o exercício dessa faculdade entre os
indivíduos”. Mais que isso (Ibid.: 32), é tomada como um sistema de signos que
seriam compostos pela associação arbitrária de um significante (imagem acústica) a
um significado (conceito, sentido), sendo que estas duas partes do signo são
psíquicas.
Desta forma, Saussure (Ibid.: 99) defenderá que o signo lingüístico é uma
entidade psíquica composta de duas faces: significado e significante. Ambos
somente podem ser estudados, nessa concepção, em conjunto, por estarem
recíproca e intimamente unidos (Idem). E, desta relação, surgiriam as significações
da língua.
No entanto, a língua comporta também outra possibilidade de relações: as
relações entre os signos. Dentro dos parâmetros saussurianos, um signo estabelece,
em um sistema, relações com outros signos, dependendo também daí sua
significação. Ou seja, a significação de um signo dependeria da associação de um
significante a um significado e, ainda, da posição que o signo ocupa dentro de um
sistema.
Cabe ressaltar que Saussure delimitou dois princípios gerais sobre o signo. O
primeiro é o da arbitrariedade do signo (Ibid.: 100), que afirma que a associação de
um significante a um significado é arbitrária. Já o segundo, sobre a característica
linear do significante (Ibid.: 103), diz que, na língua, o significante, de natureza
auditiva, se desenvolve no tempo, de forma que representa uma extensão e que
esta é mensurável em uma única dimensão: é uma linha.
52
Em oposição aos significantes visuais, que podem oferecer complicações simultâneas em várias dimensões, os significantes acústicos dispõem apenas da linha do tempo, seus elementos se apresentam um após outro, formam uma cadeia (Idem).
Tal fato, segundo o autor (Idem), se conserva na escrita, sendo que a
sucessão no tempo é substituída pela linha espacial, em seqüência, dos signos
gráficos.
A noção lacaniana de significante, por outro lado, apesar de baseada em
Saussure, apresenta outras configurações. Ocorre uma inversão no signo
saussuriano, ou seja, a maior importância é dada ao significante. A significação,
nessa perspectiva, seria oriunda da relação entre os significantes, e encontrada no
discurso. Segundo Lacan (1955-1956/2002: 225), “o significante tem suas leis
próprias, independentemente do significado”, porém, estabelecendo relações com
ele.
A prevalência, ou primazia, conforme se convencionou dizer, é dada a estes
elementos desprovidos de sentido, com leis próprias, e que, dentro de uma cadeia,
podem tecer significações entre si. Para Lacan (Ibid.: 227), “o significante deve ser
concebido em primeiro lugar como distinto da significação. O que o distingue é o fato
de ser em si mesmo sem significação própria”. Isto quer dizer que o material
significante é um dado primeiro a partir do qual se poderá organizar o discurso e
suas significações, que sempre se remeteriam a outras significações (Ibid.: 66).
Vemos, assim, que há a inversão da equação saussuriana, ficando o
significante no numerador e o significado no denominador, além de o primeiro ser
grafado em maiúscula enquanto que o segundo em letra minúscula (Arrivé, 1999: 83;
Jorge, 2002: 81). A barra entre um em outro deve ser lida como um corte que diz
respeito ao próprio sujeito, que nunca poderá ser representado por um único
significante, isto porque há uma falta estrutural no simbólico, que diz respeito ao real.
Tal proposição pode melhor ser entendida na psicanálise lacaniana a partir da
articulação dos conceitos de significante e significado com os registros de imaginário
e simbólico (Ibid.: 65). “O material significante (…) é o simbólico” (Ibid.). E a partir do
fazer com o significante os significados podem ser produzidos. Para Lacan (1959-
53
1960/1997: 59), é “a articulação significante” que fornece “a verdadeira estrutura do
inconsciente”.
É neste sentido que se pode dizer que:
O inconsciente é, no fundo dele, estruturado, tramado, encadeado, tecido de linguagem. E não somente o significante desempenha ali um papel tão grande quanto o significado, mas ele desempenha ali o papel fundamental. O que com efeito caracteriza a linguagem é o sistema do significante como tal (Lacan, 1955-1956/2003: 139).
Sobre este “grande papel” do significante de que nos fala Lacan, podemos
atribuir ao fato de que é ele que irá representar o sujeito: “é a partir do significante
que o sujeito se reconhece como sendo isto ou aquilo” (Ibid.: 205). Porém, um
significante não poderá representar o sujeito de modo totalizante, já que, por
definição, ele, sozinho, não significa nada (ibid.: 212). Ele é tomado por Lacan como
precisando estar em relação a outro significante. É assim que pode ser
compreendida a afirmativa lacaniana de que um significante é aquilo que representa
um sujeito para outro significante33.
Uma vez que o significante, por si só, não remete a nenhum sentido, sendo,
apenas diferença em relação a outro, ele precisa estar em uma cadeia, de no
mínimo dois, para que algum significado possa advir.
É preciso em primeiro lugar que a coordenação significante seja possível para que as transferências de significado possam se produzir. A articulação formal do significante é dominante em relação à transferência do significado (Ibid.: 261).
Assim, os significantes somente podem criar significações se associados a
outros, havendo, assim, uma transferência de significado, e podendo haver pontos
de basta (Ibid.: 303-304) que ligam o significante ao significado e que permitem
“situar de forma retroativa” o que se passa em um discurso. Como destaca Jorge
(2002: 83), o significante é binário e o sujeito intervalar, “lugar de escansão entre-
dois significantes e passível de ser representado apenas parcialmente pelo
significante”.
33 Seminário A identificação, de Lacan, aula de 6 de dezembro de 1961, inédito no Brasil.
54
Para dar conta desta transferência de significado, Lacan (1995: 47) propõe no
Seminário A relação de objeto, de 1956-1957, um esquema de paralelas
superpostas que diz da possibilidade de “deslizamentos do significado sob o
significante, e do significante sobre o significado”.
Já situei, numa espécie de superposição paralela, o curso do significante, ou do discurso concreto, por exemplo, e o curso do significado, no que e como se apresenta a continuidade do vivido, o fluxo das tendências num sujeito, e entre os sujeitos. (…) este esquema comporta que o que é significante de alguma coisa pode se tornar a qualquer momento significante de outra coisa (Ibid.: 46-47).
Se esta possibilidade está aberta – de um significante poder significar uma
coisa e, em outro momento, outra – é na medida em que se pode fazer algo com o
significante, como situamos mais acima. Neste fazer, para Lacan (Ibid.: 213), surge a
dimensão do subjetivo
na medida que supõe que temos à nossa frente um sujeito capaz de se servir
do significante, do jogo do significante. É capaz de se servir dele como nós
nos servimos – não para significar algo, mas precisamente para enganar
sobre o que se tem de significar. É utilizar o fato de que o significante é outra
coisa que a significação.
É por isso que podemos dizer que uma obra de arte é significante, assim
como os materiais de que o artista se serve para sua criação, e que o efeito que ela
terá em um sujeito, mesmo aquele que a cria e os que a fruem, será, em cada um,
diferenciado. Isto porque a arte poderá produzir diferentes significações a partir
daquilo que cada um poderá pôr em relação com a obra.
55
II.1.1.3 – Linguagem e sujeito em Freud e Lacan
Para aprofundarmos nossa reflexão, destacamos que, de acordo com Arrivé
(1999: 79), Lacan promove “a identificação do significante com dois objetos
conceituais freudianos”, a saber, o Wahrnehmungszichen (Wz), sinal de percepção,
também traduzido por indicação ou signo de percepção, sobre a qual Freud escreve
a Fliess na Carta 52, e a Vorstellungrepräsentanz, representante da representação
ou representante representativo34, descrito no artigo O recalque.
Arrivé (Ibid.: 81) argumenta que, embora ambos possam ser objetos do
mecanismo do recalque, característica destacada por Lacan associada ao
significante (1964/1998: 206-207), estes são conceitos com aspectos diferentes em
Freud. Vejamos, pois, como são tratados na obra freudiana.
Na Carta 52, datada de 6 de dezembro de 1896, Freud (1950[1896]/1990:
326) apresenta uma hipótese sobre o psiquismo em termos que se aproximam ao
tratamento de uma linguagem ao falar da “tradução” de traços entre os diferentes
registros psíquicos. Aborda a inscrição (Niederschrift) de traços mnêmicos que
precisariam passar pela transcrição (no sistema Unbewusstsein) e pela retranscrição
(no sistema Vorbewusstsein) de tempos em tempos, o que o leva a afirmar “que a
memória não se faz presente de uma só vez, mas se desdobra em vários tempos;
que ela é registrada em diferentes espécies de indicações” (Ibid.: 324).
Descreve os diferentes registros que comporiam o psiquismo enquanto
sistema de memória da seguinte forma: W (Wahrnehmungen), percepções; Wz
(Wahrnrhmungszeichen), indicação da percepção; Ub (Unbewusstsein),
inconsciência; e Vb (Vorbewusstsein), pré-consciência (Ibid.: 325). Em W, encontra-
se a origem das percepções, enquanto que o primeiro registro destas se dá apenas
no sistema Wz, o qual é “praticamente incapaz de assomar à consciência”, e
34 Laplanche e Pontalis (1988: 588) defendem que a tradução mais adequada para o termo composto Vorstellungrepräsentaz, ou Vorstellungrepräsentant, é “representante ideativo”, argumentando que “a expressão francesa représentant-représentation introduz um equívoco ao traduzir por duas palavras muito próximas uma palavra alemã composta de dois substantivos muito diferentes”, ressaltando, entretanto, que “Vorstellungreprásentanz significa o que representa (aqui, o que representa a pulsão no domínio da representação” (Ibid.). Por estas razões, preferimos usar a tradução “representante da representação”.
56
disposto “conforme as associações por simultaneidade” (Ibid.). O segundo registro
dos traços no inconsciente obedeceria a relações causais. Já na pré-consciência,
encontrar-se-ia a “terceira transcrição, ligada às representações verbais e
correspondendo ao nosso eu reconhecido como tal” (Ibid: 325-326).
Seria, neste momento da obra freudiana, pela própria inscrição dos traços
mnêmicos, com suas posteriores transcrições e retranscrições que o funcionamento
do psiquismo se instalaria. Segundo Catão35 (2005: 54):
É por meio dos traços mnémicos que os acontecimentos psíquicos ficam gravados permanentemente na memória podendo ser reativados como efeito do investimento. Os traços mnémicos constituem a marca da diferença entre os diversos trilhamentos da energia (Bahnungen), a preferência por um caminho em detrimento de outro. (…) O reordenamento de traços mnémicos responde, para Freud, pela própria formação do aparelho psíquico. Este se constitui, portanto, concomitante ao seu funcionamento.
O inconsciente, assim, se apresenta pela simultaneidade de traços inscritos,
cujos arranjos se dão a posteriori.
Também no artigo freudiano Uma nota sobre “o bloco mágico”, podemos
observar a idéia do psiquismo como um aparelho de memória no qual há a inscrição
de traços em diferentes níveis.
O referido bloco foi descrito por Freud (1925 [1924]/1990: 287) como uma
superfície plana com borda de papel, na qual há uma folha de papel fina e encerada
presa na parte superior e solta na inferior. Ao se escrever sobre este papel com um
“estilete pontiagudo” (Idem), o mesmo “calca a superfície, cujas depressões nela
feitas constituem a “escrita”36.
35 Esta autora (Catão, 2005: 50-51) destaca no período entre 1891 e 1900 na teoria freudiana a descrição de quatro modelos do aparelho psíquico: “um aparelho de linguagem, em A Interpretação das afasias (1891) que serve de primeiro esboço do aparelho neurônico do Projeto para uma psicologia científica (1950[1895]), o aparelho de memória da Carta 52 a Fliess (1950[1986]) e o aparelho psíquico do capítulo 7 de A Interpretação dos Sonhos (1900)”. 36 Diante dessa descrição, evocamos o escrito lacaniano Lituraterra, de 1971, no qual Lacan aborda o tema do litoral para falar da função da letra e da fundação do sujeito. Não entraremos, neste momento, na definição destes conceitos. Destacamos, apenas, que com a imagem do litoral, Lacan (1971/2003: 18) diz de “um campo inteiro [que] serve de fronteira para o outro”, e da temática da “rasura” (Ibid.: 21). Esta surge no texto a partir do relato de uma viagem de avião na qual Lacan vê surgir “por entre-nuvens, o escoamento das águas, único traço a aparecer (…) naquilo que da Sibéria é planície”, tirando daí a seguinte conseqüência: “O escoamento é o remate do traço primário e daquilo que o apaga. Eu o disse: é pela conjunção dele que se faz sujeito, mas por aí se marcarem
57
Porém, esta escrita fica permanentemente inscrita na superfície da prancha
(aqui, uma analogia ao inconsciente), apagando-se, entretanto, da folha de papel
encerada quando está é levantada. Com isso, ela pode, mais uma vez, reter novos
traços. Podemos dizer que esta escrita diz da própria constituição do aparelho
psíquico e da interrelação entre o sistema que recebe os estímulos perceptivos e
aquele que os registra de forma permanente (Ibid.: 289).
Vale notar que Freud atribui à descontinuidade relativa ao funcionamento do
sistema Pcpt-Cs. (perceptivo-consciência), que recebe as novas impressões e que
não está em permanente contato com o sistema inconsciente, a “origem do conceito
de tempo” (Ibid.: 290).
Também vale destacar que Lacan, retornando ao conceito de WZ freudiano,
que nos diz de uma primeira inscrição de traços da percepção (1971/2002: 19), o
descreve “como sendo o mais próximo do significante”, o que segue a hipótese
acima sustentada por Arrivé.
No texto freudiano de 1896, a característica de simultaneidade presente no
sistema Wz chama a nossa atenção. Lacan, no Seminário As psicoses, irá aproximar
a noção de simultaneidade à de sincronia. Diz ele (1955-1956/2003: 207), ao se
referir à carta 52:
A primeira registração das percepções, inacessíveis à consciência, ela também é ordenada por associações de simultaneidade. Temos aí a exigência original de uma primitiva instauração da simultaneidade. (…) O nascimento do significante é a simultaneidade, e também sua existência é uma coexistência sincrônica.
Acrescenta, em seguida (Idem), que o sistema Bewusstsein, da consciência,
é “o momento em que o significante, uma vez constituído, se ordena
secundariamente por alguma outra coisa, que é a aparição do significado”.
dois tempos”. Tal citação poderá ser melhor compreendida posteriormente ao estudarmos o conceito de traço unário e também a constituição do sujeito no campo do Outro, da qual sobra um resto, o
58
Cabe ressaltar que estes são momentos lógicos na constituição do psiquismo
e que somente teoricamente podem ser estudados em separado. No sujeito que fala
ou que trabalha com o significante, apesar de podermos distinguir estas duas
coordenadas, elas vêm ao mesmo tempo.
Quando fala, o sujeito tem à sua disposição o conjunto do material da língua, e é a partir daí que se forma o discurso concreto. Há em primeiro lugar um conjunto sincrônico, que é a língua enquanto sistema simultâneo de grupos de oposição estruturados, há em seguida o que se passa diacronicamente, no tempo, e que é o discurso (Ibid.: 66).
Passemos agora à questão da Vorstellungrepräsentanz, tratada por Freud em
O recalque (Die Verdrängung) e que Lacan (1959/1998: 722) identifica ao
significante. Tal termo se refere à representação ou conjunto de representações
através da qual a pulsão se apresenta no psiquismo. Neste artigo metapsicológico,
Freud (1915/2004: 177) destaca que uma pulsão em seu movimento inicial pode ter
como destino encontrar resistências que impedem sua ação, entrando, assim, em
estado de recalque.
Freud (Ibid.: 178) supõe, a partir da observação clínica, a existência de uma
fase inicial do recalque, a qual denominou de recalque originário (Urverdrängung).
Neste primeiro momento, que ocorre em virtude da castração37, o representante
(Repräsentanz) psíquico da pulsão, ou seja, sua representação mental (Vorstellung)
seria interditado (versagen) de entrar no consciente, estabelecendo uma fixação à
qual a pulsão permanecerá atrelada.
No recalque propriamente dito (Ibid.: 179), ocorrido posteriormente, as
representações derivadas (Abkömmlinge) do representante recalcado, ou as
representações associadas a este por cadeias de pensamentos, sofrem o mesmo
destino que as originalmente recalcadas.
objeto a. 37 Segundo o Dicionário de Psicanálise organizado por Roland Chemama (1995:30), a operação da castração deve ser compreendida dentro do processo denominado complexo de castração (Kastrationkomplex) que é: 1. Para S. Freud, conjunto das conseqüências subjetivas, principalmente inconscientes, determinadas pela ameaça de castração, no homem, e pela ausência de pênis, na mulher. 2. Para J. Lacan, conjunto dessas mesmas conseqüências, enquanto determinadas pela submissão do sujeito ao significante.
59
O recalcado original exerce uma força e atração sobre todas as
representações com as quais consegue estabelecer ligações. Ele continua a existir
no inconsciente, se organizando, formando novas representações derivadas e
estabelecendo outras conexões com conteúdos conscientes.
Contudo, o recalque não afasta do consciente todas as representações
derivadas do recalcado original. Elas encontram acesso ao consciente ao se
distanciarem do recalcado original e se deformarem por elos intermediários.
É possível, na clínica, reconstruir uma “tradução” do recalcado a partir destas
representações que alcançam o consciente. Cabe ressaltar que os próprios sintomas
neuróticos são derivados do recalcado que alcançaram, de uma forma especial, a
consciência.
Decompondo a pulsão (Ibid.: 182-183), encontramos além da representação
recalcada uma quantidade de afeto, que pode ser afastada do consciente
juntamente com a representação, e surgir novamente como afeto em momento
posterior, ou ser transformada em angústia (Angst).
Recordemo-nos de que o motivo e propósito do recalque eram tão somente a evitação do desprazer. Daí resulta que o destino da quantidade de afeto do representante é de longe mais importante do que o destino da representação (...). Se um recalque não conseguir impedir que surjam sensações de desprazer ou de medo (Angst), podemos dizer que ele fracassou, ainda que seu objetivo tenha sido alcançado com relação à parcela representacional. (Ibid.: 183)
O mecanismo do recalque somente pode se tornar acessível a partir de seus
efeitos, de forma retroativa. Na parcela do recalque que afeta a representação, nota-
se que ele cria uma formação substitutiva, ele deixa sintomas. O mecanismo da
formação substitutiva não coincide com o do recalque, sendo que existem diversos
mecanismos do primeiro; entretanto, em ambos os mecanismos o investimento de
energia é recolhido.
A respeito da Vorstellungrepräsentanz, podemos dizer que ele é formado no
momento do recalque originário, quando a pulsão se fixa em um representante e
60
que, também neste mesmo momento, o inconsciente surge como tal. Ainda, dizemos
com Catão (2005: 65), que este termo
aponta para os dois delegados da pulsão no psiquismo: o afeto e o significante. É o afeto que exprime de modo mais direto o compromisso da pulsão com o corporal, ao passo que as representações (Vorstellung) constituem a rede significante própria do inconsciente. O investimento articula os traços mnémicos entre si constituindo a trama das Vorstellungreprasentanzen ou trama dos significantes. A esta trama Lacan denominou inconsciente estruturado como uma linguagem. A organização do inconsciente enquanto sistema (Ics) é correlata de seu funcionamento, este depende da articulação com o campo do Outro, às leis da linguagem, por via do laço com o semelhante.
É sobre este campo do Outro e sobre a constituição do sujeito nele, pela
encarnação deste no outro, que trataremos a seguir.
II.2 – O Outro
Ao pensarmos na emergência do sujeito como tal, sujeito do inconsciente,
não podemos deixar de relacioná-lo ao Outro. Em Lacan (1962-1963/2005: 33), o
grande Outro é entendido como o “lugar do significante”, da fala, que já está lá antes
mesmo do sujeito. O Outro é a diferença radical, que se apresenta como alteridade
absoluta. É nesse espaço e campo do Outro que o sujeito pode emergir, se ver, se
ouvir, se situar.
Primeiramente, se faz necessário destacar a diferença fundamental entre o
outro, tomado como semelhante e que se encontra no mesmo campo do sujeito, e o
Outro, como o lugar dos significantes e da linguagem. Segundo Lacan (1955-
1956/2002: 286-287):
O primeiro, o outro com a minúsculo, é o outro imaginário, a alteridade em espelho, que nos faz depender da forma de nosso semelhante. O segundo, o Outro absoluto, é aquele ao qual nós nos dirigimos para além desse semelhante, aquele que somos forçados a admitir para além da relação da miragem, aquele que aceita ou que se recusa na nossa presença, aquele que na ocasião nos engana, aquele ao qual sempre nos endereçamos (Os grifos são nossos).
61
O outro terá um papel fundamental na constituição do sujeito, pois, ao
encarnar o Outro da linguagem, ele poderá transmiti-la, assim como a Lei e o
significante, como veremos posteriormente.
Lacan enfatiza a divisão de dois campos: o do sujeito e o do Outro, sendo
que: “O Outro é o lugar em que se situa a cadeia do significante que comanda tudo
que vai poder presentificar-se do sujeito, é o campo desse vivo onde o sujeito tem
que aparecer” (Lacan, 1964/1998: 193-194).
Desse modo, o sujeito se encontra em um estado de alienação (Ibid.: 199),
sendo submetido ao significante que vem do Outro. A partir disso, Lacan (Ibid.: 196)
irá propor que há uma “circularidade entre o sujeito e o Outro – do sujeito chamado
ao Outro, ao sujeito pelo que ele viu a si mesmo aparecer no campo do Outro, do
Outro que lá retorna”. Contudo, afirma que, embora circular, não há reciprocidade
entre estes dois campos, eles são dissimétricos, não se confundem.
Todavia, no estado de alienação, ainda não podemos falar efetivamente em
um sujeito. É preciso haver um corte nessa circularidade com o Outro, o que
somente poderá ocorrer com o processo do recalque originário.
Lacan (1964/1998: 207) propõe pensar a alienação a partir da
Vorstellungrepräsentanz, delimitando-o como esse
primeiro acasalamento significante que nos permite conceber que o sujeito aparece primeiro no Outro, no que o primeiro significante, o significante unário, surge no campo do Outro, e no que ele representa o sujeito, para um outro significante, o qual outro significante tem por efeito a afânise do sujeito. Donde, a divisão do sujeito – quando o sujeito aparece em algum lugar como sentido, em outro lugar ele se manifesta como fading, como desaparecimento. Há então, se assim podemos dizer, questão de vida e de morte entre o significante unário e o sujeito enquanto significante binário, causa de seu desaparecimento. O Vorstellungrepräsentanz é o significante binário.
Segundo Lacan (Idem), este significante constituirá o núcleo do recalque
originário, que exercerá atração para os recalques posteriores, como visto na seção
anterior. Com a entrada do significante, o sujeito advirá enquanto tal no registro da
linguagem.
62
É interessante notar que na psicanálise lacaniana a questão da divisão do
sujeito, já presente na concepção freudiana, ganha contornos mais radicais. Por
estar alienado no campo do Outro em virtude do significante, o sujeito somente
poderá surgir nesta divisão, isso se a separação pôde tomar corpo. O sujeito ficará
entre “o sentido, produzido pelo significante”, e a afânise, o desaparecimento entre
dois significantes (Ibid.: 199).
É por esta dinâmica que podem atuar na linguagem os mecanismos da
metáfora e da metonímia, como destaca Rinaldi (1996: 31):
Aparecimento/desaparecimento do sujeito, indicando que nenhum significante é capaz de representá-lo em sua integridade, justamente porque põe-se em questão sua unicidade. (…) Alienação e separação, operações simultâneas, em que o sujeito se constitui como sentido e como perda, como metáfora e metonímia. É pela metonímia – pelo deslocamento –, onde se situa o desejo, que o sujeito do inconsciente se afirma enquanto sujeito do desejo.
O sujeito surge, assim, como efeito de uma extração que o significante opera
no campo do Outro. Podemos dizer que essa emergência ocorre com a retirada de
uma parte do gozo do vivente, ou seja, com um menos de gozo, como uma perda. A
partir dessa operação, a da castração, o sujeito surge tendo em si um mal-estar, um
desamparo38.
Esse menos, juntamente com seus efeitos, dá início ao autômaton
(1964/1998: 54, 56), à repetição da impossibilidade na cadeia significante. É uma
repetição de algo que não cessa de se inscrever, que diz da impossibilidade
estrutural que o recalque originário aponta. No entanto, isso não quer dizer que
nenhuma realização seja possível. A sustentação desse movimento é dada pelos
encontros, sempre faltosos, que podem ocorrer na história do sujeito.
Lacan se inspira no texto freudiano Além do princípio de prazer, do qual
destaca o conceito de compulsão à repetição, para abordar a temática do que foi
chamado, pela língua francesa, de “automatismo de repetição” (Lacan, 1954-
38 Cabe ressaltar que, da operação de emergência do sujeito no campo do Outro, há um resto, o objeto a, o qual estudaremos no próximo capítulo.
63
1955/1985: 82) e, mais tarde em sua obra, tomando o termo emprestado de
Aristóteles, de autômaton, ou “a rede de significantes” (Lacan, 1964/1998: 54).
Em seu Seminário O eu na teoria de Freud e na técnica psicanalítica, Lacan
estuda a repetição ao destacar a tendência que o recalcado, que está inconsciente,
tem a se repetir. O conceito de repetição volta a ser abordado por este autor no
seminário de 1964. Neste, Lacan (Idem) aborda duas faces da repetição, as quais
denomina de autômaton – tomado como a rede de significantes–, e tiquê – tido
como o encontro com o real.
Dessa forma, o inconsciente se equivaleria ao autômaton, a essa rede de
significantes. Além disso, a repetição estaria ligada com o simbólico. Por outro lado,
tem-se a função da tiquê (Ibid.: 57), do encontro com o real, encontro esse
essencialmente faltoso. Entendemos aqui o real como sendo o inassimilável, o
traumático, ao que aproximamos na obra freudiana como sendo da ordem do
sexual.
Na psicanálise lacaniana, encontramos em um Outro a causa do sujeito.
Ocorre um drama na constituição subjetiva: o sujeito nasce dividido, marcado por um
não saber sobre si mesmo. Nesse sentido, a verdade para o sujeito é o inconsciente,
e pode se apresentar e atualizar pela linguagem, pela fala. Esta é sempre apoiada
na causa, naquilo que o faz advir como sujeito. No entanto, a causa não é o sujeito,
ela é Outra coisa.
A entrada do significante no sujeito a partir do campo do Outro coloca em jogo
a dimensão do desejo, cuja função é resíduo do efeito do próprio significante. O
desejo se encontra no ponto nodal que liga a pulsação do inconsciente com a
realidade deste, que é da ordem do sexual. Uma vez articulado nesses termos, o
desejo será sempre impossível, inalcançável, desconhecido, incessante.
A sexualidade se instaura no sujeito pela via da falta, que Lacan nos diz se
tratar de duas:
Duas faltas aqui se recobrem. Uma é da alçada do defeito central em torno do qual gira a dialética do advento do sujeito a seu próprio ser em relação ao
64
Outro – pelo fato de que o sujeito depende do significante e de que o significante está primeiro no campo do Outro. Esta falta vem recobrir a outra, que é a falta real, anterior, a situar no advento do vivo, quer dizer, na reprodução sexuada. A falta real é o que o vivo perde, de sua parte de vivo, ao se reproduzir pela via sexuada. (Ibid., p. 195)
O sujeito, dividido por efeito da linguagem, defende Lacan (Ibid.: 178)
somente pode se realizar no Outro. Nesse campo, ele procurará se completar,
encontrar o objeto perdido, que lhe foi retirado. Porém, ao fazer isso, encontrará seu
desejo mais dividido ainda, uma vez que “o desejo do homem é o desejo do Outro”
(Lacan, 1962-1963/2005: 31).
Pararemos neste ponto, uma vez que entendemos que para falar sobre o
objeto perdido, ao qual o desejo está tão intimamente articulado, se faz necessário
refletir mais atentamente sobre a constituição do sujeito e sobre a pulsão.
II.3 – A constituição do sujeito
Partiremos agora de algumas indicações tanto em Freud quanto em Lacan
para traçar uma trajetória que vise melhor compreender o sujeito e sua relação ética
com o objeto tanto em sua constituição subjetiva quanto na criação e fruição
artística, mais especificamente a musical, o que será visto nos próximos capítulos.
Dentro desta proposta, o seminário A ética da psicanálise, de Lacan, se
mostra fundamental, por trazer à tona a problemática de das Ding, a Coisa
freudiana. No Projeto para uma psicologia científica (Entwurf einer Psychologie), de
1895, Freud apresenta a noção de das Ding que, embora não tenha sido
posteriormente desenvolvida em sua obra, serve-nos como norteador para o estudo
da relação entre sujeito e objeto, assim como abre novas possibilidades de entender
a constituição do psiquismo, a questão da realidade psíquica, do desejo, dentre
outros. Lacan tomará das Ding, no referido seminário, como ponto central em seus
questionamentos sobre a ética – uma ética voltada para a ação e em cujos pilares
encontram-se o desejo, a Lei, o real e a dimensão da falta.
65
A ética (Lacan, 1959-1960/1997: 16), nesse sentido, se distingue da moral,
dos mandamentos, das normas e valores sociais. No entanto, Lacan explicita como
até mesmo a moral está fundada no desejo e na complexa relação deste com a Lei,
o que fica mais evidente no imperativo moral superegóico, como será visto
posteriormente na articulação que pode ser feita entre supereu e voz.
A discussão ética lacaniana gira em torno do “Wo Es war, soll Ich werden”
(“Onde o Isso estava o eu [o sujeito] deve advir”). Tal assertiva freudiana encontra-
se na Conferência XXXI – A dissecção da personalidade psíquica, das Novas
conferências introdutórias da psicanálise.39 Na Edição Standard brasileira das
obras completas de Sigmund Freud, esta frase ganhou a seguinte tradução: “Onde
estava o id, ali estará o ego”. (Freud, 1933[1932]/1990: 102). Preferimos, no entanto,
acompanhar a tradução acima, feita por Lacan (1964/1998: 47), para pensar como o
sujeito poderá surgir como efeito do Isso.
Ou seja, o que está em jogo é o sujeito do inconsciente, que advém da falta,
de um vazio real, que surge pela ação e nos efeitos da linguagem em função do
movimento do desejo. É a própria falta que funda o inconsciente, sendo que este
tem um núcleo real, das Ding.
Encontramos em Freud, ao elaborar A experiência de satisfação no Projeto, o
que seria a gênese da constituição do sujeito. Frente ao desamparo primordial do
infans, que seria incapaz de, sozinho, realizar a ação específica para eliminar uma
tensão interna, é preciso que haja uma ação externa para que ocorra a descarga da
excitação, eliminando desprazer e, conseqüentemente, trazendo a satisfação. Nas
palavras de Freud:
O organismo humano é, a princípio, incapaz de promover essa ação específica. Ela se efetua por ajuda alheia, quando a atenção de uma pessoa experiente é voltada para um estado infantil por descarga através da via de alteração interna. Essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima função secundária da comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais. Quando a pessoa que ajuda executa o trabalho da ação específica no mundo externo para o desamparado, este último fica em posição, por meio de dispositivos reflexos,
39 Título original em alemão: Neue Folge der Vorlesungen zur Einfuhrung in die Psychoalayse.
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de executar imediatamente no interior de seu corpo a atividade necessária para remover o estímulo endógeno. A totalidade do evento constitui então a experiência de satisfação, que tem as conseqüências mais radicais no desenvolvimento das funções do indivíduo. (Freud, 1950[1985]/1990: 431; grifos do autor).
Em outras palavras, na experiência de satisfação, podemos perceber a
delimitação e constituição dos campos do sujeito e do objeto, assim como a
importância do estímulo e de sua fonte endógena e também do movimento deste
estímulo em busca da descarga.
Vê-se, deste modo, embora com nomenclatura diversa, já em construção a
idéia de uma força psíquica sob a forma de um impulso, com um alvo específico,
indo na direção de um objeto, o que posteriormente será denominado de pulsão na
obra freudiana.
Aqui já é possível notar a relação de alteridade e de alienação do sujeito para
com o Outro, conforme destaca Lacan (1964/1998: 199). É este Outro que, a partir
da descarga de uma alteração no infans, como o grito (Freud 1950[1985]/1990:
43140), lhe dará, conforme seu desejo, uma significação, oferecendo, em seguida,
um objeto para eliminação da tensão. Deste modo, a vivência de satisfação deixará
marcas no infans que servirão de guia para a busca de novas satisfações, o que terá
importantes conseqüências para o movimento do desejo do sujeito. Estas marcas
darão a singularidade do desejo, que é, por estrutura, universal no humano.
Sobre o sujeito e o Outro enquanto seu exterior, o artigo freudiano A
negativa41 (Die Verneinung), de 1925, oferece grandes esclarecimentos. Nele, Freud
propõe duas espécies de decisões do sujeito frente ao que se encontra fora dele.
Encontramos aí os mecanismos de formação da realidade psíquica e da divisão
entre sujeito e objeto. Trata-se da função de juízo em relação ao atributo de uma
coisa e quanto à existência de uma representação.
40 Apontado por Freud (1950[1985]/1990: 431) em nota de roda pé explicativa sobre a alteração interna do bebê que, se exprimiria por uma descarga, adquirindo esta via “importantíssima função secundária da comunicação“. 41 Lacan (1954/1998: 381) traduz nos Escritos tal termo alemão, Verneinung, por dénegation
(denegação), ao que é apoiado por Jean Hyppolite (Ibid,: 893).
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No primeiro caso, ocorre, pelo juízo de atribuição (Freud, 1925/1990: 297), a
ação do eu-prazer de introjetar ou rejeitar algo, segundo o que oferece ou não
prazer: aquilo que lhe é bom e familiar será introjetado e o que é mau e estranho
será rejeitado. Há, assim, a delimitação do campo da linguagem pelas experiências
do sujeito em incorporar ou expulsar, ou, dito em outras palavras, em afirmar
(segundo o sim da Bejahung, que configura o campo do simbólico) ou denegar (pela
expulsão da Austossung, que marca o que está fora da simbolização, o Real),
conforme defendem Jean Hyppolite e Lacan.
Desse modo, é constituída no sujeito uma divisão, um “dentro” e “fora”
segundo a lógica da banda de Moëbius, uma vez que é pela ação do sujeito que o
interior e o exterior serão demarcados, ou seja, a própria constituição de simbólico e
de real, ambos entrelaçados pelo imaginário. Podemos, ainda, localizar neste artigo
a ação da pulsão, por um lado, tendendo para a unificação (pulsão de vida) e para a
destruição (pulsão de morte). Com Lacan (1964/1998: 195), contudo, aprendemos
que toda pulsão é pulsão de morte e que esta aponta para das Ding, como será visto
ao abordamos a sublimação.
O segundo caso refere-se ao juízo de existência através do qual o eu-
realidade, formado a partir do eu-prazer, atestará a existência de uma representação
e, com isso, distinguirá sujeito de objeto. Este último, pelo teste de realidade, deverá
ser reencontrado, uma vez que foi perdido. Diz Freud: “o objetivo primeiro e imediato
do teste de realidade é não encontrar na percepção real um objeto que corresponda
ao representado, mas reencontrar tal objeto, convencer-se de que ele está lá”
(Freud, 1925/1990: 298).
Neste ponto de constituição da realidade psíquica pela expulsão do que é
estranho e hostil e de identificação do bom e familiar e pela distinção entre sujeito e
objeto, podemos localizar o complexo do próximo (Nebenmensch) descrito por Freud
(1950[1985]/1990: 447) no Projeto ao situar Memória e juízo e Pensamento e
realidade. Segundo tal complexo, é na relação com o próximo que o sujeito irá
reconhecer e se identificar com aquilo que lhe é familiar, e que sofrerá ação do juízo,
e também expulsará o que lhe é estranho e hostil – o que é enigmático no Outro.
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Este último é a Coisa, resto que, conforme Freud (Ibid.: 451), é excluído do
juízo. Esse elemento estranho isolado na experiência com o próximo constitui-se
como primeiro exterior e opera uma divisão psíquica e uma separação entre o infans
e a mãe, pela qual o sujeito pode destaca-se dela e, assim, advir.
Podemos identificar o momento da Bejahung com o tempo da constituição do
sujeito pela alienação, e o não da Austossung com o da separação. E, com Freud
(Ibid.: 300), dizer que “a afirmação – como um substituto da união – pertence a Eros;
a negativa – o sucessor da expulsão – pertence à pulsão de destruição”.
Seria a partir do momento de separação, de corte na circularidade entre o
Outro (encarnado na mãe ou primeiro cuidador que cumpre esta função) e o bebê,
desta subtração da Coisa, que surgiria o desejo humano. Com a queda de algo no
campo do Outro, sujeito e objeto podem surgir. Sobre isso, diz Freud, no artigo de
1925:
A antítese entre subjetivo e objetivo não existe desde o início. Surge apenas
do fato de que o pensar tem a capacidade de trazer diante da mente, mais
uma vez, algo outrora percebido, reproduzindo-o como representação sem
que o objeto externo ainda tenha de estar lá (Freud, 1925/1990: 298).
É a partir daí que se encaminhará o movimento do sujeito, na medida em que
tem das Ding como objeto o qual visa reencontrar, de acordo com as coordenadas
de prazer (Lacan, 1959-1960/1997: 69) deixadas no sujeito pela Coisa. No entanto,
isto é da ordem do impossível e do real, já que das Ding é perdido desde sempre.
Ao procurar o reencontro com este objeto, o que o sujeito almeja é reproduzir um
estado inicial de sua existência no qual teria havido um encontro com a Coisa -
estado mítico, anterior à entrada do significante, à emergência do sujeito enquanto
tal.
Essa busca de reencontrar este “objeto perdido” que “nunca foi perdido” (Ibid.:
76) é governada pelo princípio de prazer. Este “lhe impõe (…) rodeios que
conservam sua distância em relação ao seu fim (Idem), regulando seu trajeto”.
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A busca encontra assim, pelo caminho, uma série de satisfações vinculadas à relação com o objeto, polarizadas por ela, e que, a cada instante, modelam, temperam, embasam seus procedimentos segundo a lei própria do prazer (Ibid.: 77).
Porém, é impossível encontrar aquilo que se visa, das Ding, uma vez que esta
se encontra para além do princípio do prazer (Ibid.: 93). E é da própria estrutura do
humano que seja assim. Nesse ponto, Lacan (Ibid.: 87) relaciona a temática da
castração e da Lei de interdição do incesto com a questão da Coisa.
É na própria medida em que a função do princípio do prazer é fazer com que o homem busque sempre aquilo que ele deve reencontrar, mas que não poderá atingir, que nesse ponto o essencial, esse móvel, essa relação que se chama a lei da interdição do incesto (Ibid.: 87-88).
Lei esta que aponta para a interdição de um terceiro na relação entre a mãe e
o bebê com a função de cortá-la e permitir que um sujeito possa surgir a partir daí.
Tal função foi delimitada por Lacan (1963/2005: 58) como sendo a função de Nome-
do-Pai42 e põe em jogo a dimensão de uma perda fundamental, colocando o sujeito
sob a “regra do Wunsch [desejo] indestrutível” (Lacan, 1959-1960: 93).
A Coisa tem efeitos para o sujeito na medida em que falta, é aquilo para o
qual não há nenhuma palavra ou significante e que, ao mesmo tempo, organiza o
simbólico. Das Ding é, então, definido por Lacan como excluído no interior, como
“extimidade” (Ibid.: 173), à qual se deve manter uma distância necessária pela
linguagem, sendo, ainda, um “fora-do-significado” (Ibid.: 71). É, desse modo, um
vazio no sujeito em torno do qual o simbólico se engendra.
Tal temática será por nós mais detalhadamente trabalhada ao estudarmos o
destino pulsional da sublimação. Antes, porém, se faz necessário destacar as
concepções freudianas e lacanianas sobre o conceito de pulsão e dos possíveis
destinos que esta pode tomar, o que faremos a seguir.
42 Lacan postula esta função baseando-se no mito freudiano do assassinato do pai da horda primitiva por seus filhos homens, seguido do banquete totêmico, descrito por Freud (1913[1912-13]/1990: 169-172) em Totem e tabu (Totem und Tabu). Este mito especula sobre a origem da lei de interdição do incesto e sobre a incorporação da mesma, que teria levado à criação da organização social. Trata-se, assim, do surgimento da Lei e da linguagem a partir da inscrição de um significante que possibilitará o corte entre a mãe e o bebê, denominado singnificante Nome-do-Pai.
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II.4 – Pulsão, seu circuito e vicissitudes
No mundo da arte, como em tudo que diz respeito à criação, o objetivo é a
liberdade e a força de ir sempre mais além (Beethoven apud Massin, 1997: 64).
Propomos, neste momento, delimitar o conceito de pulsão na psicanálise a
partir do texto freudiano Pulsões e destinos da pulsão (Trieb und Triebschicksale),
de 1915, assim como em outros trabalhos na obra freudiana que tangem esta
temática, e nas aulas destinadas à pulsão no Seminário Os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise, de 1964, de Lacan.
Escolhemos, contudo, para dar início a esta tarefa, uma frase concisa e bela
de um grande gênio da área musical. Na fala de Beethoven, podemos ler indícios de
algo que, no humano, impulsiona sem parar, exigindo ir além – o que nos evocou o
conceito psicanalítico de pulsão (Trieb). Não apenas pela associação rápida que
pode ser feita ao texto Além do princípio de prazer. Neste, o funcionamento psíquico
é abordado pela dimensão de um “mais além” – expresso pela repetição pura,
mesmo de situações desprazerosas, e pela tendência ao retorno a um “estado
anterior de coisas43” –, pondo em xeque a dinâmica do princípio de prazer e a teoria
pulsional elaborada por Freud até então.
Nas palavras do compositor alemão, lemos, sim, a pulsão de morte, uma vez
que a entendemos como a dimensão do “mais além do princípio do prazer” apontada
por Freud no texto de 1900, que traz também a característica criacionista destacada
por Lacan (1959-1960: 260). É possível apreender nesta citação a propriedade de
ruptura e, com isso, de movimento de criação próprio da pulsão44. Lemos, ainda, as
43 Tal expressão é própria de Freud, que, a respeito disso, diz: “Se realmente o esforço por restabelecer um estado anterior for um caráter universal das pulsões, não devemos nos surpreender de que haja na vida psíquica tantos processos ocorrendo à revelia do princípio de prazer” (Freud, 1920/2006: 180). E complementa, acerca da relação entre este princípio e a pulsão de morte: “O princípio de prazer parece, de fato, estar a serviço das pulsões de morte. Embora lhe caiba vigiar os estímulos [Reize] de origem externa – que são tomados como perigos pelos dois tipos de pulsões –, ele se volta particularmente para o perigo representado pelo aumento da quantidade de estímulos [Reize] procedentes de dentro, os quais visam a dificultar a tarefa da vida”. (Ibid.: 181). 44 Ao que nos remetemos à aula sobre A pulsão de morte do Seminário A ética da Psicanálise, de 1959-60, de Lacan, na qual a pulsão, entendida por este autor fundamentalmente como pulsão de morte, comporta um além da tendência de retorno ao inanimado, trazendo, ainda, uma: “Vontade de
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características dadas à pulsão por Freud no artigo metapsicológico de 1915, no qual
esta aparece como força constante (constant Kraft45) e como exigência de trabalho;
algo que, porém, não pode ser plenamente satisfeito e que, apesar disso, buscará
vicissitudes diferenciadas para lidar com tal requisição.
Não por acaso, o próprio psicanalista vienense já havia se reportado a outro
grande artista, o poeta Goethe, para se referir à força exercida pela pulsão ao
psiquismo. Diz Freud, mais especificamente sobre a pulsão em seu destino de
recalque:
A pulsão recalcada jamais renuncia à sua completa satisfação, a qual consiste na repetição de uma experiência primária de satisfação. Todas as formações substitutivas ou reativas, bem como as sublimações, são insuficientes para remover sua tensão contínua. É da diferença entre o prazer efetivo obtido pela satisfação e o prazer esperado que surge o fator impelente [treibende] que não vai permitir ao organismo estacionar em nenhuma das situações estabelecidas, mas ao contrário, nas palavras do poeta, “indomado, sempre impele para adiante46
” (Freud, 1920/2006).
Contudo, este caráter impulsionador pode ser entendido como característica
marcante em toda pulsão. Podemos dizer que a pulsão coloca em cena algo de
caráter irrefreável, que impulsiona apesar de eventuais barreiras. Aliás, estas
mesmas só podem ser pensadas pela existência da pulsão e como forças contrárias
a ela.
Mais que isso, com Lacan veremos que nossa referência inicial a ambos os
textos-chave na obra de Freud para a delimitação do conceito de pulsão não é sem
razão. Se toda pulsão é pulsão de morte, conforme afirma Lacan (1964/1998: 195),
ela sempre aponta e exige o além. E é na busca de obtê-lo que a pulsão pode
desenvolver uma trajetória circular que lhe caracteriza, como veremos adiante.
destruição. Vontade de recomeçar com novos custos. Vontade de Outra-coisa, na medida em que tudo pode ser posto em causa a partir da função do significante” (Lacan, 1997: 259). É nesse sentido, em sua ligação com o significante e a linguagem, que a pulsão de morte pode ser concebida como sendo histórica. A pulsão, segundo Lacan, pode ser rememorada a partir da instauração da marca de um primeiro significante no sujeito, que será mais profundamente trabalhado por nós no próximo capítulo – o traço unário (einziger Zug) – a partir do qual o sujeito pode se contar. Esta dimensão da linguagem à pulsão faz com que se possa pensar na criação pelo deslizamento dos significantes e da possibilidade de criar um significante que ainda não existe. 45 Diferentemente dos impulsos oriundos do exterior, que atuam como força momentânea de impacto (momentane Stroskraft). 46 “Ungebändigt immer vorwärts dring”, Mefistófeles, em Fausto, Parte I, Cena IV.
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No campo psicanalítico, a pulsão sustenta-se como um dos conceitos
centrais. Todavia Freud nos adverte de sua obscuridade e também complexidade. A
pulsão é, em suas palavras, “o mais importante e também o mais obscuro objeto da
investigação psicológica” (Freud, 1920/2006: 158). Este termo, pulsão, ganhou na
psicanálise uma nova e radical concepção. Freud situa-o como conceito-limite entre
o psíquico e o somático, ou seja, como representante psíquico de estímulos
endossomáticos contínuos.
Freud define a pulsão como um conceito limite entre o psíquico e o somático
na medida em que são representantes psíquicos de estímulos internos do corpo. A
pulsão seria, assim, “uma medida de exigência de trabalho imposto ao psiquismo em
conseqüência de sua relação com o corpo” (Freud, 1915/2004: 148).
Em linhas gerais, podemos dizer que a pulsão apresenta-se como força
constante originada no próprio sujeito que exige do psiquismo sua satisfação ligada
a um objeto de antemão não determinado. Por ter sua definição atrelada à
constância, a pulsão se afasta, teoricamente, do instinto, que apresenta ciclos. A
respeito disso, diz Lacan (1964/1998: 157):
Na pulsão, não se trata de modo algum de energia cinética, não se trata de algo que vai se regrar pelo movimento. A descarga em causa é de natureza completamente diferente, e se coloca num plano completamente diferente. A constância do impulso proíbe qualquer assimilação da pulsão a uma função biológica, a qual tem sempre um ritmo. A primeira coisa que diz Freud da pulsão é, se posso me exprimir assim, que ela não tem dia nem noite, não tem primavera nem outono, que ela não tem subida nem descida.
Mesmo antes de conceituar formalmente a pulsão, já encontramos na obra
freudiana correlatos a ela. É o caso dos “estímulos endógenos” sobre os quais o
autor discorre na primeira Seção da Parte I do Projeto para uma psicologia científica.
Neste trecho, vemos Freud descrever a situação em que o organismo de maior
complexidade passa a receber “estímulos do próprio elemento somático”, ou seja,
estímulos endógenos, que seriam responsáveis pela criação de “necessidades” tais
como fome, respiração e sexualidade (Freud, 1950[1895]/1990: 405).
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Sobre tais estímulos, Freud formula que: “deles, ao contrário do que faz com
os estímulos externos, o organismo não pode esquivar-se” (Idem), sendo necessário
recorrer ao exterior e efetuar uma ação específica para cessá-los. Esta formulação,
aliás, é bastante próxima à feita por Freud no artigo de 1915, pondo em jogo a
questão da satisfação da pulsão e, simultaneamente, da fonte dos estímulos, por um
lado, e da vivência de satisfação e da busca pela repetição desta experiência, de
outro.
Perguntamo-nos, porém, de que ordem é a satisfação obtida pela pulsão,
uma vez que, enquanto pressão constante, ela continua, por definição, acossando o
psiquismo. Parece-nos ser mais adequado falar em um movimento de tensão e
distensão, ou, em outras palavras, de brotar e escoar. As pulsões permanecem em
contínuo processo de surgir e se extinguir, incluindo aí toda a trajetória e
transformações por elas percorridas.
Este aspecto econômico encontra-se presente na obra freudiana também em
textos anteriores ao artigo metapsicológico sobre a pulsão. Nos Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade (Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie), Freud defenderá que
pulsão, portanto, é um dos conceitos da delimitação47 entre o psíquico e o físico. A hipótese mais simples e mais indicada sobre a natureza da pulsão seria que, em si mesma, ela não possui qualidade alguma, devendo apenas ser considerada como uma medida da exigência de trabalho feita à vida psíquica. O que distingue as pulsões entre si e as dota de propriedades específicas é sua relação com suas fontes somáticas e seus alvos. A fonte da pulsão é um processo excitatório num órgão, e seu alvo imediato consiste na supressão desse estímulo orgânico (Freud, 1905/1990: 157-158).
A esta dimensão48, somar-se-á a característica dinâmica proveniente de um
conflito psíquico, primeiramente localizado por Freud entre dois grupos diferenciados
de pulsões, as pulsões sexuais e as pulsões do Eu ou de autoconservação,
subjacente à origem das neuroses.
47 Ressaltamos que esta tradução é incorreta, sendo o adequado, neste caso, “de fronteira”. 48 A dimensão econômica, nesta citação, traz em evidência a relevância das zonas erógenas para se pensar na constituição do psiquismo, o que será apresentado por Lacan (1964/1998: 183) pela via da relação entre os orifícios corporais e a constituição da estrutura de borda no sujeito, que envolve ainda o objeto a, ponto ao qual nos ateremos posteriormente neste espaço.
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Posteriormente, com o advento da segunda Tópica, pulsão de vida e pulsão
de morte aparecem atuando conjuntamente, o que possibilita pensar a pulsão como
este vetor em movimento de brotar e escoar e em sua trajetória e vicissitudes como
forças atuando contrariamente a elas. O conflito, neste último caso, aparece mais
claramente em oposições uma vez que, conforme afirma Lacan, por ser o
Inconsciente estruturado como uma linguagem, as pulsões também podem ser
expressas por esta via.
O conceito de pulsão em Freud tem quatro termos a ele relacionados: a
pressão (Drang), a meta (Ziel), o objeto (Objekt) e a fonte (Quelle). Porém, tais
termos, nos dirá Lacan (1964/1998: 160-161), aparecem disjuntos: a pulsão é uma
montagem e o que Freud nos oferece neste artigo é a sua desmontagem49.
Na pressão, encontramos a característica de tendência à descarga. Podemos
afirmar que se trata do fator dinâmico da pulsão, que impele à ação, à atividade, e
ao movimento de trabalho em busca de satisfação. É a medida de exigência de
trabalho a característica geral a toda pulsão. A pressão coloca em cena a questão
da experiência de satisfação, e implica na coexistência de um pólo impelente, a
tensão no organismo, e de um pólo atrator, a imagem mnêmica do objeto que
poderia reduzi-la e que faz com que o sujeito busque, no exterior ou nele próprio, um
objeto com tal intuito.
Delimita-se, desse modo, a meta da pulsão: a satisfação, ou, dito de outro
modo, a suspensão do estado de estimulação da fonte pulsional. Podemos dizer,
ainda, que o alvo imediato de uma pulsão é o escoamento da energia para a
obtenção de prazer.
Um problema, no entanto, é apresentado por Lacan em seu Seminário de
1964. Este diz respeito à sublimação, anteriormente por ele enfocada no Seminário
sobre a ética psicanalítica. Na perspectiva destes momentos do ensino lacaniano,
podemos dizer que a sublimação apresenta dois problemas no que concerne à
pulsão: um ao questionar o que é a satisfação e outro ao apontar que, na pulsão, o
que se trata é de buscar o objeto perdido, das Ding, a Coisa.
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Sobre a satisfação (Befriedigung), vale lembrar que Freud, neste artigo,
emprega este termo utilizando aspas. A satisfação traz a conotação de um
apaziguamento da tensão oriunda do brotamento pulsional. No que diz respeito à
pulsão, a satisfação é paradoxal50 por comportar a dimensão do impossível51,
podendo ser obtida apenas parcialmente52.
Deste modo, ao desenvolver o conceito de pulsão, entendemos que Freud
coloca o homem no estatuto de sujeito desejante, uma vez que o sujeito coloca-se
na direção de buscar um objeto que possa satisfazer a pulsão.
O impossível também comparece em relação ao objeto. Sobre este, Freud diz
que ele é aquilo pelo qual a pulsão pode alcançar sua meta, ou seja, se satisfazer.
Ele pode ser uma parte do corpo ou um outro53 objeto externo, pode ser substituído
por outros – através de deslocamentos e deslizamentos por representações em uma
rede associativa, e pode ocorrer de um mesmo objeto satisfazer diversas pulsões.
De acordo com Freud (1915/2004: 149), o objeto é “o elemento mais variável na
pulsão e não está originalmente vinculado a ela, sendo-lhe apenas acrescentado em
razão de sua aptidão para propiciar a satisfação”.
A partir desta fala, Lacan (1964/1998: 159) afirma que o objeto da pulsão é
indiferente e que a pulsão não se satisfaz por sua apreensão. É necessário, aqui,
relembrar a idéia de objeto perdido e enfatizar que, em Lacan, a pulsão tem como
49 O próprio Lacan efetua também, no Seminário XI, uma desmontagem da pulsão, seguindo o caminho freudiano. 50 Como ilustração, temos os diversos exemplos na clínica em que a satisfação ocorre pela via dos sintomas, ainda que admitindo certa dose, por vezes bastante elevada, de desprazer. 51 O impossível que nos remete ao conceito de real lacaniano, também evidenciado no princípio de prazer, já que também neste há a delimitação de um limite frente à aspiração de satisfação plena. O real sendo aqui entendido como este impossível de ser assimilado ou simbolizado pelo psiquismo. O impossível, diz Lacan (1972-1973/1985: 81) remete a algo que “não pára de não se escrever” e que, se pensarmos em termos da pulsão, direciona-a mais para o gozo do que para a satisfação. 52 Em seu artigo Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor (Contribuições à psicologia do amor II), de 1912, Freud afirma: “Por mais estranho que pareça, creio que devemos levar em consideração a possibilidade de que algo semelhante na natureza da própria pulsão é desfavorável à realização da satisfação completa” (Freud, 1912/1990: 171). Nesta citação, já encontramos subsídios para pensar a pulsão, conforme a perspectiva lacaniana, como pulsão parcial quanto à finalidade de reprodução. Isto permite, ainda, pensar a ligação da pulsão com a sexualidade e com a morte pela inscrição do sujeito a partir da entrada do significante e da perda pela qual o ser vivo passa à condição de sexuado. 53 Neste caso, este outro está relacionado no texto original ao termo fremd, estranho, e tem o sentido de um objeto que fora anteriormente interno e que foi expulso, não introjetado, formando o exterior.
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visada este objeto impossível, das Ding. E também precisamos acrescentar o
conceito de objeto a, que indica, justamente, a falta de um objeto para a pulsão e
que se apresenta como causa de desejo54. Será esse objeto que a pulsão deverá
contornar para atingir sua meta, sendo que nenhum objeto dará a satisfará senão
por seu contorno no psiquismo.
Temos, ainda, a fonte das pulsões, que diz respeito ao processo somático,
em um órgão ou parte do corpo, através do qual se origina um estímulo
representado pela pulsão. Podemos afirmar que ela é a origem, de onde partem as
pulsões e que a satisfação implica em uma alteração na fonte, o que implica em um
movimento de ida e volta efetuado pela pulsão.
Lacan (Ibid.: 161) situa a fonte colocando a pulsão semelhante a uma
montagem, a uma “colagem surrealista”. Nesta colagem, as zonas erógenas, com
sua estrutura de borda, participariam, evocando a dimensão da sexualidade que aí
comparece, sob aspecto econômico, pelas pulsões parciais.
É em razão da realidade do sistema homeostático que a sexualidade só entra em jogo em forma de pulsões parciais. A pulsão é precisamente essa montagem pela qual a sexualidade participa da vida psíquica, de uma maneira que se deve conformar com a estrutura de hiância que é a do inconsciente (Ibid.: 167).
Diferenciando-as das pulsões sexuais, Freud demarca as pulsões do eu ou de
autoconservação, atribuindo ao conflito entre estes dois grupos pulsionais a
dinâmica da raiz das neuroses. Às pulsões sexuais é atribuída a característica de
plasticidade, e Freud aponta que está se referindo a elas ao distinguir os quatro
destinos pulsionais.
Dois destinos específicos da pulsão podem ser entendidos, com Lacan, como
próprios de toda pulsão. São eles a transformação em seu contrário – que apresenta
duas possibilidades, o redirecionamento de uma pulsão da atividade para a
passividade e a inversão de conteúdo –, e o redirecionamento contra a própria
54 Na constituição do sujeito no campo do Outro, há um resto referente a um objeto que cai do sujeito. Este é o objeto a, um lugar vazio que remete à falta de um objeto para a satisfação da pulsão.
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pessoa – em que há a troca de objeto (outro pelo próprio eu) sem que ocorra
alteração da meta.
Para demonstrar a dinâmica deste primeiro destino, no que tange a
transformação da atividade para a passividade, Freud baseia-se em dois pares de
opostos: sadismo – masoquismo e vontade de olhar – exibição. No caso da inversão
de conteúdo, a oposição escolhida é entre amor e ódio. O destino do
redirecionamento contra a própria pessoa pode ser apreendido uma vez que se
percebe que “o masoquismo é um sadismo voltado contra o próprio Eu e que a
exibição inclui a contemplação do próprio corpo” (Freud, 2004: 152).
Nessas oposições, Freud destaca o movimento pulsional em três diferentes
tempos, que podem ser analisados pela vias lingüísticas ativa, passiva e reflexiva,
sendo que o terceiro só é possível pela inclusão do outro no circuito pulsional,
enquanto um terceiro (Ibid.: 69). Em outras palavras, é necessário que o circuito de
toda pulsão se feche a partir de seu endereçamento ao campo do Outro (Ibid.: 183).
Lacan (Ibid.: 168) afirma esse movimento como sendo próprio da dialética
pulsional, cujo percurso tem caráter circular. É o que ele denomina de dialética do
arco, definindo-a como o vaivém pelo qual a pulsão se estrutura.
O circuito da pulsão nos permite, assim, pensar em como os quatro termos
por Freud destacados deste conceito podem ser articulados. Há a pressuposição de
uma fonte endossomática, órgão ou parte do corpo, que são as zonas erógenas e
que, por definição, possuem estrutura de bordas orificiais. Da fonte brotará um
impulso específico, ou seja, pulsões específicas, que se expressarão como
exigência de trabalho. Esta só cessará, ou melhor, reduzirá, e com isso
proporcionará alcançar a meta pulsional de satisfação, quando do contorno de um
objeto e do retorno e alteração da fonte emissora.
Com Lacan (Ibid.: 184-185), concluímos que a atividade da pulsão dirige-se
ao que ele apresenta como o “se fazer55”, terceiro tempo da pulsão, na medida em
55 Como nos casos de se fazer devorar (relacionado à pulsão oral e ao objeto seio enquanto objeto a), se fazer defecar (pulsão anal e fezes), se fazer olhar (pulsão escópica e olhar), e se fazer ouvir (pulsão invocante e voz). Tais relações entre pulsões específicas e os objetos a elas relacionados serão trabalhadas no final deste capítulo.
78
que promove a inclusão do Outro, já que é nesse campo que o sujeito buscará algo
que responda à sua reivindicação de completude.
Deste modo, Lacan (Ibid.: 183) define a estrutura deste circuito pulsional
defendendo que
Tudo que Freud soletra das pulsões parciais nos mostra (...) esse movimento circular do impulso que sai através da borda erógena para a ela retornar como sendo seu alvo, depois de ter feito o contorno de algo que chamo de objeto a. Ponho que (...) é por aí que o sujeito tem que atingir aquilo que é, propriamente falando a dimensão do Outro.
No texto de 1915, Freud não discorre, contudo, sobre os destinos do
recalque, já abordado anteriormente por nós, e da sublimação. Porém, é
interessante notar que, desde este momento de sua obra, eles se apresentam como
caminhos diferenciados para a pulsão.
Por um lado, o recalque se mostra como um destino em que, em função de
um conflito no psiquismo, ocorre a ação de uma força contrária à pulsão, atuando
como força de defesa contra esta. Pode ser dito que o recalque cria uma formação
substitutiva, os sintomas, que comparecem como retorno do recalcado.
De outro lado, a sublimação não traz em si a idéia de um conflito. Nela,
vemos delimitar-se a questão do vetor pulsional em busca de das Ding. E, a partir
dela, temos a criação não de sintomas, posto que não há material recalcado para
retornar, mas de novos objetos e significantes: as obras de arte.
Com isso, é possível afirmar que
As duas vicissitudes mais importantes da pulsão são o recalque e a sublimação, constituidoras de dois pólos extremos de possibilidade, de vicissitudes para o processo pulsional: quando há recalque não há sublimação, quando há sublimação não há recalque. São dois pólos extremos e opostos, se excluindo mutuamente (Jorge, 2003: 28).
Tendo finda esta discussão sobre os três primeiros destinos pulsionais,
partiremos a seguir para uma análise sobre o estatuto do objeto da pulsão, que
79
levou à criação do conceito lacaniano de objeto a na teoria lacaniana. Deixaremos o
destino pulsional da sublimação para capítulo posterior, no qual será pensado,
ainda o conceito de elaboração psíquica e sua relação com a criação artística.
80
CAPÍTULO III
Sobre a musicalidade na constituição do sujeito
A humanização do infans passa pela conquista poética do mundo das
sonoridades56 (Didier-Weill, 2003: 101).
Vimos, com Freud, que a constituição do sujeito humano somente é possível
pelos cuidados maternos, que irão possibilitar que o pequeno vivente possa sair de
seu estado de prematuridade e, conforme defende Lacan, pela entrada na
linguagem, organizar-se psiquicamente, ainda que persista nele um mal-estar, uma
fragilidade estrutural. Tais cuidados não são feitos sem a dimensão da sonoridade e,
mais ainda, da musicalidade.
A mãe e demais adultos que cuidam e amparam o bebê lhe dirigem a fala de
maneira diferenciada, quase cantada, geralmente prolongando vogais e suavizando
as consoantes, desacelerando o andamento, tornando a fala mais melódica. É o que
se convencionou chamar de “manhês”57, e que costuma vir acompanhado de
movimentos igualmente mais delicados, olhar atento nos olhos do bebê, expressões
faciais mais acentuadas, e proximidade entre os dois corpos.
No entanto, a voz tem um papel importante nesses momentos iniciais entre
mãe e bebê, assim como também o tem o toque, o olhar e demais modos de
interação entre ambos. Entretanto, dentre as demais sonoridades que cercam o
bebê, é à voz que este primeiro atende, distingue e reconhece. Todos nós fomos,
primeiramente ouvintes58, somente podendo falar e entender a fala posteriormente.
Isso tem efeitos para o sujeito, e é sobre isto que pretendemos falar neste capítulo,
passando, antes, por um aprofundamento no estudo da constituição do sujeito e do
campo pulsional, enfocando, agora, o objeto a.
56 No texto original: “(…) l´humanisation de l´infans passe-t-elle par la conquête poétique du monde des sonorités”. 57 Ou, como conhecido na língua inglesa, também utilizado em nosso país, motherese. 58 Isto é, ouvintes do apelo do Outro, ao qual podemos ou não atender. Assim, estão também aí incluídos os sujeitos surdos ou com deficiência auditiva, já que é de uma Outra escuta que se trata.
81
III.1 – Um resto na constituição do sujeito: o objeto a e suas formas
Neste momento, temos como intenção delimitar o conceito lacaniano de
objeto a conforme definido pelo autor em seus seminários até a data de 1964, ou
seja, como objeto causa de desejo (Lacan, 1962-1963/2005: 115), passando pelos
momentos em que tal idéia começa a ser elaborada. O foco maior do estudo será
dado aos Seminários A angústia e Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
Ao abordar o conceito de pulsão no capítulo precedente, destacamos que
Freud evidencia que há uma indeterminação quanto ao seu objeto. Ele pode ser
qualquer objeto que venha a satisfazer uma pulsão, podendo variar, ser trocado ou
até ser compartilhado por mais de uma pulsão. Há, portanto, uma determinação do
objeto no sentido de que será ele que poderá proporcionar a satisfação da pulsão,
porém, há também uma indeterminação de qual objeto será esse. Além disso, ao
destacar em Pulsões e destinos da pulsão, as polaridades presentes no psiquismo,
encontramos uma delimitação e dois campos distintos: o do sujeito e do objeto.
Encontramos em Freud, além deste objeto variável que poderia trazer a
satisfação de uma pulsão, o objeto de amor com o qual o eu irá se identificar. Tal
temática ganha especial atenção por Freud no capítulo VII, A identificação, do texto
Psicologia de grupo e análise do eu59. Nele, Freud (1921/1990: 133) sustenta que a
identificação é o vínculo mais primordial e precoce com outra pessoa. Em seguida,
passa a analisar o processo de identificação no caso do complexo de Édipo60.
59 Massenpsychologie und Ich-Analyse. 60 Segundo o Vocabulário de Psicanálise, de Laplanche e Pontalis (1988: 116): o complexo de Édipo é o “conjunto organizado de desejos amorosos e hostis que a criança experimenta relativamente aos pais. Sob a chamada forma positiva, o complexo apresenta-se como na história de Édipo-Rei: desejo da morte do rival que é a personagem do mesmo sexo e desejo sexual da personagem do sexo oposto. Sob a sua forma negativa, apresenta-se inversamente: amor pelo progenitor do mesmo sexo e ódio ciumento ao progenitor do sexo oposto. Na realidade, estas duas formas encontram-se em graus diversos na chamada forma completa do complexo de Édipo” (Grifos dos autores). Freud (1923/1990: 48-49) aborda esta forma completa do complexo em O eu e o isso, afirmando que, “na dissolução do complexo de Édipo, as quatro tendências em que ele consiste agrupar-se-ão de maneira a produzir uma identificação paterna e uma identificação materna. A identificação paterna preservará a relação de objeto com a mãe que pertencia ao complexo positivo e, ao mesmo tempo, substituirá a relação de objeto com o pai, que pertencia ao complexo invertido; o mesmo será mutatis
mutantis, quanto à identificação materna”. Prossegue dizendo que, como resultado do complexo de Édipo, surge no eu um precipitado que contém tais identificações unidas, ou seja, que traz em si os resíduos das escolhas objetais do isso. Tal precipitado é o supereu. Deste modo, o supereu traz as
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Neste, a identificação desempenha papel fundamental, na medida em que a
criança irá se identificar com o genitor do mesmo sexo como aquilo que ela gostaria
de ser. Por outro lado, há também a escolha do genitor do sexo oposto como aquilo
que se gostaria de ter. Freud afirma que “a distinção depende de o laço se ligar ao
sujeito ou ao objeto do eu. O primeiro tipo de laço, portanto, já é possível antes que
qualquer escolha sexual do objeto tenha sido feita” (Ibid.: 134). Ou seja, a
identificação é anterior à escolha do objeto de amor.
Contudo, a ligação entre identificação e escolha amorosa do objeto não pára
neste ponto. Freud afirma que:
(...) primeiro, a identificação constitui a forma original de laço emocional com um objeto; segundo, de maneira regressiva, ela se torna sucedâneo para uma vinculação de objeto libidinal, por assim dizer, por meio da introjeção do objeto no eu; e, terceiro, pode surgir qualquer nova percepção de uma qualidade comum partilhada com outra pessoa que não é objeto da pulsão sexual. Quanto mais importante essa qualidade comum é, mais bem sucedida pode tornar-se essa identificação parcial, podendo representar assim o início de um novo laço (Ibid.: 136).
Da identificação com um objeto pode-se passar à introjeção deste no eu,
como objeto de escolha amorosa, o que leva Freud a afirmar que “o caráter do eu é
um precipitado de catexias objetais abandonadas e que ele contém a história dessas
escolhas de objeto” (Freud, 1923/1990: 43-44).
Passamos à leitura lacaniana sobre o objeto, tendo em vista que se trata de
um objeto ligado ao desejo do Outro.
O que faz com que o mundo humano seja um mundo coberto de objetos se acha fundado nisso: o objeto de interesse humano é o objeto do desejo do Outro. Como isso será possível? É que o eu humano é o outro, e que no começo o sujeito está mais próximo da forma do outro do que do surgimento de sua própria tendência. Ele é originalmente coleção incoerente de desejos – aí está o verdadeiro sentido da expressão corpo despedaçado – e a primeira síntese do ego é essencialmente alter ego. O sujeito humano desejante se constitui em torno de um centro que é o outro na medida em que ele lhe dá a sua unidade, e o primeiro acesso que ele tem do objeto, é o objeto enquanto objeto do desejo do outro (Lacan, 1955-1956/2003: 50; grifos, em itálico, do autor, e nossos em negrito).
“vozes” parentais que se impõem ao sujeito como um imperativo, indicando como o sujeito deve ser, ter ou fazer, e também o que ele não deve.
83
Podemos destacar no ensino de um objeto absoluto, objeto perdido de uma
experiência de satisfação mítica, a saber, das Ding. Para Lacan, este objeto é
perdido definitivamente devido ao acesso à estrutura da linguagem. Tal objeto
coloca o sujeito em uma dinâmica na qual ele irá buscar a satisfação a partir das
“coordenadas de prazer” deixadas por das Ding (Lacan, 1959-1960/1997: 69), por
este objeto absoluto e perdido desde sempre, encontrando alguma satisfação
possível em outro lugar. Diz Lacan no Seminário A relação de objeto:
A primazia desta dialética coloca, no centro da relação sujeito-objeto, uma tensão fundamental, que faz com que o que é procurado não seja procurado da mesma forma que o que será encontrado. É através da busca de uma satisfação passada e ultrapassada que o novo objeto é procurado, e que é encontrado e apreendido noutra parte que não no ponto onde se o procura. Existe aí uma distância fundamental, introduzida pelo elemento essencialmente conflitual incluído em toda busca do objeto (Lacan, 1956-1957/1995: 13).
Haveria, assim, algo de uma determinação do objeto dentro da lógica da
constituição do sujeito. É o próprio Lacan quem nos dirá isso:
O objeto se apresenta, inicialmente, em uma busca do objeto perdido. O objeto é sempre o objeto redescoberto, o objeto tomado ele próprio numa busca, que se opõe da maneira categórica à noção do sujeito autônomo, onde desemboca a idéia do objeto acabado (Ibid.: 25).
Neste mesmo texto, o autor irá propor duas distinções importantes para se
pensar o objeto. A primeira é que há na relação entre sujeito e objeto uma
“reciprocidade imaginária” (Idem), fazendo com que o lugar ocupado pelo objeto na
relação seja o mesmo ocupado pelo sujeito. Tal concepção converge com a idéia de
uma não autonomia no sujeito, conforme visto na citação acima.
E a segunda é a de que existiria um tipo de objeto que surge sob um fundo de
angústia e um outro que se destacaria sobre “o fundo da realidade comum” (Idem), e
que pode ser encontrado na realidade. É sobre este que Lacan (1962-1963/2005:
103) se refere ao falar de um “objeto comum” no Seminário A angústia. Passamos a
palavra a Lacan (Idem):
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Quando comecei a enunciar a função do estágio do espelho na instituição geral do campo do objeto, passei por diversos tempos. De início, existe o plano da primeira identificação com a imagem especular, desconhecimento original do sujeito em sua totalidade. Depois, vem a referência transicional que se estabelece com a relação com o outro imaginário, seu semelhante. É isso que faz com que sua identidade seja sempre difícil de discernir da identidade do outro. Daí a introdução da mediação de um objeto comum, objeto de concorrência cujo status decorre da idéia de posse – ele é seu ou é meu.
Lacan destaca que existem dois tipos de objetos neste campo da posse. Os
que podem ser compartilhados e aqueles que não podem ser. Os primeiros, os
objetos comuns, de partilha, seriam objetos comunicáveis, socializados (Idem),
objetos constituídos “a partir da relação especular” (Ibid.: 109), ou seja, se trata dos
objetos que possuem imagem especular. Por outro lado, estariam os objetos que,
diferentemente, não possuem imagem especular, e que são “anteriores à
constituição do objeto comum” (Ibid.: 103). Com este tipo de objeto, não é possível
se relacionar, conforme se faz com os objetos comuns, uma vez que é constitutivo
do próprio sujeito.
Tais objetos não podem ser partilhados, entretanto, “quando entram
livremente no campo em que não têm nada a fazer, o da partilha, quando nele
aparecem e se tornam reconhecíveis, têm a particularidade de seu status assinalada
a nós pela angústia” (Idem).
Convém destacar que esta temática aparece nesta lição do seminário sobre a
angústia61 a partir de uma reflexão sobre o complexo de castração e sobre a fantasia
que está aí em jogo. Lacan enfatiza a dimensão do corte na fantasia da perda do
pênis, ou seja, da perda de uma parte do corpo que se transformaria, assim, em um
objeto removido. Deste modo, o objeto é isolado como faltante, o que é capaz de
gerar angústia.
É assim que o objeto a aparece neste Seminário, relacionado à angústia e à
falta. Vale dizer que se trata de um objeto que, mesmo fora do sujeito, intervém
sobre ele, e esta intervenção se manifesta pela angústia (Ibid.: 98). Com isso, ele
não pode ser reduzido aos objetos substitutivos com os quais o sujeito se relaciona
imaginariamente.
85
Conforme conceituado por Lacan principalmente nos Seminários X e XI, O
objeto a aparece como resto da constituição do sujeito. Lacan (Ibid.: 309) diz que
este objeto a é definido “como o resto da constituição do sujeito no lugar do Outro,
na medida em que ele tem que se constituir como sujeito barrado”. Ou seja, a
constituição do sujeito no campo da linguagem tem como efeito sua divisão
inconsciente para que ele possa vir a tomar a fala.
A constituição deste tipo de objeto se dá a partir da função do corte. “Depois
do corte, resta algo comparável à fita de Moebius, que não tem imagem especular”
(Ibid.: 110). Esse corte é feito no corpo do sujeito a partir de sua entrada na
estrutura do significante. Desta operação, haverá a demarcação do lugar de onde o
objeto a cairá como resto, a borda corporal, e o objeto, sendo algo que pertenceu ao
corpo e se tornou externo a ele. A partir deste momento, o objeto a atuará como
causa do desejo.
Vejamos como Lacan explica esta função do objeto a. Retomando a ligação
entre o objeto e a pulsão, Lacan destaca que, em Freud, o alvo de uma pulsão não
se confunde com o seu objeto. O alvo é algo que concerne o sujeito e seu corpo,
sendo que a satisfação será obtida através de um objeto externo, que, contudo, “se
furta ao nível da captação” (Ibid.: 115), Trata-se, sim, de um contorno deste objeto
pela pulsão. Encontramos aí uma oposição entre exterior e interior. Porém, Lacan
propõe que
a idéia de um exterior antes de uma certa interiorização, que se situa em a, antes que o sujeito, no lugar do Outro, capte-se na forma especular (…), forma esta que introduz para ele a distinção entre o eu e o não-eu. É a esse exterior, lugar do objeto, anterior a qualquer interiorização, que pertence a idéia de causa (Ibid.: 115-116).
O objeto a como causa do desejo não é, portanto, um objeto que era exterior
e que foi introjetado pelo sujeito, a partir da identificação. Lacan é bem claro quanto
a esse ponto: trata-se de um objeto que foi perdido em um momento lógico anterior à
concepção de um eu, interno, e um não-eu, externo. E esse objeto perdido, que se
presentifica enquanto falta, atuará causando o desejo.
61 Lição de 9 de janeiro de 1963.
86
Lacan fala da constituição destes campos do eu e do não-eu, assim como a
de um mundo interior (Innenwelt) e de um exterior (Unwelt), ao abordar o estádio do
espelho62. Na descrição deste, tem-se um estado anterior, inicial, no qual o infans,
em sua prematuridade inicial, se vê como fragmentado, não fazendo, ainda,
qualquer diferença entre o seu corpo e o corpo da mãe, assim como também não se
diferencia do mundo externo. Ou seja, ainda não há a delimitação do eu, que é
constituído progressivamente.
Através do contato com um espelho, o infans pode se identificar com a
imagem que vê. Isto se dá com o suporte de um adulto, pelo olhar deste que
confirma o que ela vê e pela sua voz, que, pela fala, indica para ele que a imagem
que vê é sua. O júbilo que a criança tem nesse momento está associado à visão da
imagem de si não mais como fragmentos63.
Entretanto, tal imagem, por mais que constitua uma unidade, não poderá ser
totalizante, completa. Na formação da imagem do eu pelo estágio do espelho, ocorre
a distinção do campo do eu e do não-eu, sobrando o objeto a. Este não é nem o eu
nem tampouco o objeto exterior. Tal objeto será aquilo que faltará para o sujeito,
algo que ele perdeu e que, por isso, não lhe será possível atingir uma completude.
O objeto a corresponderia a cinco formas de perda pelas quais o sujeito
passa para se constituir, dentre as quais o falo, que já aparece anteriormente na
obra lacaniana com maior ênfase. Somente em 1962-63 é que as serão
apresentadas todas as cinco formas do objeto a, como veremos em seguida. Estas
formas do objeto a são, assim, entendidas como perdas necessárias para o sujeito
se constituir separando-se do Outro: “(…) é de uma relação permanente com um
62 No texto O estádio do espelho como formador da função do eu tal qual nos é revelada na
experiência psicanalítica, de 1949 63 Nas palavras de Lacan: “A assunção jubilatória de sua imagem especular por esse ser ainda mergulhado na impotência motora e na dependência da amamentação que é o filhote do homem nesse estágio de infans parecer-nos-á pois manifestar, numa situação exemplar, a matriz simbólica em que o [eu] se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito” (Lacan, 1998: 97; grifos do autor). Vemos, assim, uma diferença entre o eu e o sujeito. Ainda, neste texto, Lacan irá propor que essa matriz simbólica do eu também servirá para as construções das identificações secundárias, a partir do eu ideal, e que tanto este como a própria instância do eu se darão em uma “linha de ficção” (Ibid.: 98), o que já aponta para a questão do imaginário e da fantasia.
87
objeto perdido como tal que se trata. Esse objeto a, como cortado, presentifica uma
relação essencial com a separação como tal” (Ibid.: 235).
Mais que isso, o que foi perdido quando o sujeito emergiu na linguagem é
algo da ordem corporal, algo que ele paga com seu corpo.
Objeto perdido nos diferentes níveis da experiência corporal em que se produz seu corte, é ela que constitui o suporte, o substrato autêntico, de toda e qualquer função de causa. Essa parte corporal de nós é, essencialmente e por função, parcial. Convém lembrar que ela é corpo e que somos objetais, o que significa que não somos objetos do desejo senão como corpo. (…) O desejo continua, em última instância, a ser desejo do corpo, desejo do corpo do Outro (…) (Ibid.: 237).
Cabe ressaltar que o objeto a apresenta uma ligação com o órgão do corpo
correspondente à pulsão específica que ele visa atender. Isto se dá na medida em
que “o objeto a é algo de que o sujeito, para se constituir, se separou como órgão”
(Lacan, 1964/1998: 101). Nesse sentido, temos a delimitação de quatro pulsões
parciais identificadas a quatro objetos na obra lacaniana, sendo que as duas
primeiras formas já eram encontradas em Freud. São elas a pulsão oral (seio),
pulsão anal (fezes), pulsão escópica (olhar) e pulsão invocante (voz). Além destes
quatro objetos, há também o falo, objeto que também fora delimitado por Freud
como objeto parcial e que possui função mediadora.
O que tais pulsões procuram são os objetos enquanto ausência, objetos que
devem ser contornados e não apreendidos, visto que isto é da ordem do impossível.
Porém, defendemos que o contorno destes objetos pode nos dar pistas sobre como
o sujeito se posiciona frente a eles, deste modo, “a questão é encontrar os vestígios
dessa função excluída” (Lacan, 1962-1963/2005: 263).
Lacan (Ibid.: 317-318) relacionará as formas de objeto a a diferentes modos
de relação entre sujeito e Outro. Teremos, dessa forma, a ligação entre: seio, pulsão
oral e demanda ao Outro; fezes, pulsão anal e demanda do Outro; olhar, pulsão
escópica e desejo ao Outro; e voz, pulsão invocante e desejo do Outro. Há também
a quinta forma de objeto a referente ao falo, objeto este que, pela fantasia – ou seja,
88
pelo arranjo entre Simbólico e Imaginário – possibilitará ao sujeito a obtenção de um
gozo possível64.
Em Freud, a noção de fantasia está ligada à encenação imaginária,
inconsciente ou não, que promoverá a realização de um desejo inconsciente. Já em
Lacan, a fantasia traz a dimensão da relação entre “um sujeito do inconsciente,
barrado e irredutivelmente dividido por sua entrada no universo dos significantes,
com o objeto pequeno a, que constitui a causa inconsciente de seu desejo”
(Chemama, 1995: 71). Na fantasia, o objeto a pode, apesar de, em relação à perda
real no copo ser limitado a poucas formas, se desdobrar infinitamente.
De fato, nunca teremos acesso ao nosso olhar, enquanto olhando o outro, nem tampouco a nossa voz, como é percebido pelo outro. As fezes são evidentemente partes destacáveis do corpo, perdidas e a serem perdidas. Quanto ao seio, ele não é apenas perdido porque a criança foi um dia ou outro privada do seio materno, mas mais essencialmente porque esse seio foi primeiro vivenciado pela criança como parte integrante de seu próprio corpo. O número de objetos a reais é limitado. O dos objetos a obturadores imaginários é infinito (Idem).
Deste modo, as formas de objeto a têm relações específicas com as posições
que o sujeito pode ocupar diante do Outro. Sobre os objetos seio, fezes e falo
enquanto a, afirma Lacan:
Há, no estágio oral, uma certa relação da demanda com o desejo velado da mãe. No estágio anal, há, para o desejo, a entrada em jogo da demanda da mãe. No estágio da castração fálica, há o menos-falo, a entrada da
64 Propomos uma breve delimitação dos conceitos de demanda, desejo e gozo na obra lacaniana, de acordo com Chemama (1995). O primeiro termo se apresenta como “forma comum de expressão de um desejo, quando se quer obter alguma coisa de alguém, a partir da qual o desejo se distingue da necessidade. (...) J. Lacan introduziu a noção de demanda, opondo-se à de necessidade. O que especifica o homem é que ele depende, para suas necessidades mais essenciais, de outros homens, aos quais o liga o uso em comum da palavra e da linguagem. (...) O mundo humano impõe ao sujeito demandar, encontrar as palavras que serão audíveis pelo outro. É no mesmo endereço que se constitui esse Outro (...), porque essa demanda que o sujeito lhe dirige constitui seu poder, sua influência sobre o sujeito” (Ibid.: 40). O desejo, por outro lado, “é o desejo do Outro. Se se constitui a partir dele, é uma falta articulada na palavra e é a linguagem que o sujeito não pode ignorar sem prejuízos. Como tal, é a margem que separa, devido à linguagem, o sujeito de um objeto supostamente perdido. Esse objeto a é a causa do desejo e suporte da fantasia do sujeito” (Ibid.: 42). E, por gozo, termo introduzido por Lacan, podemos entender as “diferentes relações com a satisfação que um sujeito desejante e falante pode esperar e experimentar, no uso de um objeto desejado. (...) Do ponto de vista da psicanálise, a ênfase é colocada na questão complexa da satisfação e, em especial, em seu vínculo com a sexualidade. O gozo se opõe, então, ao prazer, que abaixaria as tensões do aparelho psíquico ao mais baixo possível” (Ibid.: 90). Deste modo, o gozo se apresenta marcado pela falta que se dá na linguagem, sendo definido por sua relação com o significante da falta no Outro.
89
negatividade quanto ao instrumento do desejo, no momento do surgimento do desejo sexual como tal no campo do Outro (1962-1963/2005: 251).
Apesar de estudar caso a caso cada uma das formas de objeto a, Lacan
aponta que há algo que os une:
Na verdade, a questão é determinar, em todos os níveis, qual a função do desejo, e nenhum deles pode separar-se das repercussões que tem sobre todos os demais. Une-os uma solidariedade íntima, que se expressa na fundação do sujeito no Outro por intermédio do significante, e no advento de um resto em torno do qual gira o drama do desejo (Ibid.: 266-267).
Com isto em mente, fica mais claro entender o que Lacan propõe como uma
“constituição circular do objeto”, ressaltando que “sob as diversas formas em que ele
se manifesta, trata-se sempre de uma mesma função, e de saber como ele se liga à
constituição do sujeito no lugar do Outro e o representa” (Ibid.: 320-321). Concebe,
deste modo, cinco níveis, ou estágios, do objeto a, localizados em uma seta que
sobe até chegar ao nível 3, fálico, para, em seguida, descer.
Neste estágio, o que se apresenta é o falo como ausência de um objeto, o
que provoca a chamada angústia de castração. Lacan defende que, entendido desta
maneira, o falo tem ligação com o gozo do Outro (Ibid.: 330), e que é pela castração
que o sujeito poderá ter algum acesso ao gozo.
Haveria, ainda, uma correlação entre os estágios ascendentes e
descendentes da seguinte forma: estágios 1 e 5 (em que se encontram,
respectivamente, os objetos oral e voz) e estágios 2 e 4 (anal e escópico)65.
Para avançarmos na questão da música, faz-se necessário aprofundarmos a
diante o estudo da voz enquanto objeto a e de sua ligação com a pulsão invocante.
Pretendemos, com isso, destacar a importância da musicalidade presente na
constituição de todo sujeito e investigar como ela pode ter efeitos na criação e
escuta musical.
65 Faz-se necessário demarcar que não, uma vez que se trata de uma questão de circularidade, não há nessa concepção a idéia de fases cronologicamente sucessivas ou de fases que superariam e
90
III.2 – A musicalidade na constituição do sujeito: a mãe, a voz e a invocação
A música nos propõe, de início, uma pergunta sobre a musicalidade e a
sonoridade presentes no humano desde o seu nascimento, transmitidas pela fala e
pela voz, assim como todo o campo sonoro que está em torno do bebê. Ainda não
falamos, nesse ponto, de um sujeito, e sim da passagem do bebê como corpo
vivente – organismo – para sujeito da linguagem – corpo pulsional, erotizado.
A criança ouve a voz da mãe que lhe diz algo. Intensamente, querendo respondê-la, ela é esta voz cujo som serve para demandar. Assim, este corpo, ao se identificar a esta voz, corre o risco de desaparecer, posto que a voz desaparece, por trás das palavras que ela forja. É preciso então cantar, criar este som, para não correr o risco de morrer. É preciso se salvar dessas vozes ao forjar a melodia, uma vez pelo som perdido atrás do sentido, e uma outra pela identificação a este som. O duplo ritmo do canto afasta assim o perigo (Pommier, 1987:195).
Sobre este corpo, Garcia (2006: 1) nos chama a atenção, evidenciando qual é
aquele do qual trata o campo psicanalítico: “O corpo que interessa a psicanálise não
é do organismo vivente, um agregado de carne e órgãos, dos quais se ocupam
medicina e biologia, mas um corpo enquanto invadido, usurpado pelo significante,
que fala e goza, silencia e ensurdece desde os confins de sua pele e de suas
entranhas, sempre a espera de deciframento”.
É necessário que haja um momento inicial de fusão com o outro, seu
semelhante, no caso, a mãe ou aquele que assumirá tal função de cuidador e
assegurador, que encarnará o Outro. Esta fusão deverá chegar ao fim para que um
sujeito separado do Outro surja. É preciso, pois, fazer um corte, operado pelo
recalque originário, que faz emergir o campo do sujeito e do objeto, na dimensão da
falta. Temos aí um corte no contínuo da voz material do bebê, em seu grito,
possibilitando pela perda desta o advento da dimensão da materialidade incorpórea
do significante. Ou, em outras palavras, a inscrição da linguagem, assim como a
instauração da dimensão de ritmo, alternando presença e ausência, sincronia e
diacronia (Catão, 2005: 282).
suplantariam as anteriores. O importante, aqui, é a delimitação das diversas modalidades
91
A emissão da voz do bebê, voz material, vibração das cordas vocais, precisa
ganhar uma outra dimensão, de imaterialidade, de perda, para que os significantes
que ela traz em si – palavras e músicas – possam ser ditos pela fala ou criados pela
via da estética musical. Em ambos os casos, sobra um resto afônico, que não
converge para a significação ou sentido, a voz enquanto objeto a.
Na Conferência de Genebra, Lacan faz um apontamento importante acerca
do grito, que nos interessa na medida em que afirma o som como significante, o que
tem conseqüências para o estudo da música pela psicanálise. Diz ele (1975/1998:
11):
O significante é algo que está encarnado na linguagem. Acontece que há uma espécie que soube gritar de tal maneira, que um som, enquanto significante, é diferente do outro. (…) Há um abismo entre essa relação entre o grito e o fato de que, no final, (…) o ser humano chega a dizer alguma coisa. Não só a poder dizê-lo, mas, ainda, (…) esse cancro que é a linguagem implica, desde o início, uma espécie de sensibilidade.
Deste modo, percebemos que nessa passagem do infans ao sujeito falante,
ocorre a perda de um real do corpo que exige um ato do sujeito em dizer sim ao
campo do simbólico, o que nos faz pensar, juntamente com Faladé (1974: 1), que
antes da linguagem há o real. Contudo, um real não simbolizado, que surgirá como
tal para o sujeito quando o significante for nele inscrito, fazendo com que seja
possível, a partir desta marca primeira, a identificação com o que é familiar e a
expulsão do que é estranho.
No Seminário A identificação66, de 1961-1962, Lacan afirma que o sujeito
emerge pelo ato de inscrição efetuado pelo Outro de um primeiro significante, com o
qual ele se identificará e poderá se diferenciar dos outros a partir de então67.
coexistentes do objeto a e das relações que elas podem ter entre si. 66 Inédito no Brasil. 67 A isto, acrescentamos que, de acordo com Lacan, nas aulas de 29 de novembro e 6 de dezembro de 1961 deste Seminário, um significante é aquilo que os outros significantes não são. E que a identificação não tem, então, ligação com uma unificação ou com o fazer um, mas sim com a diferença pura. Salienta, ainda, que a fecundidade do significante está em que ele não é idêntico a si mesmo, ressaltando as características de metonímia e de metáfora da linguagem e da instauração, pelo traço unário, de uma série. A identificação giraria não na concepção tradicional filosófica de que “a é a” e sim na idéia de que “a ainda é a”.
92
O significante Um, primeira marca do Outro no sujeito, foi denominado por
Lacan, a partir da expressão Einziger Zug apresentada por Freud no capítulo A
identificação no texto Psicologia das massas e análise do eu, de traço unário. Este
diz respeito à identificação entre o sujeito e a marca feita pelo Outro ao se efetuar
um corte com o signo, possibilitando seu surgimento como sujeito e como
significante, além de sua entrada na linguagem.
Neste momento da obra lacaniana, o significante é concebido como tendo um
suporte: a letra, definida como “suporte material que o discurso concreto toma
emprestado da linguagem” (Lacan, 1998b: 498). A letra estaria, aqui, na base do
traço unário. Entretanto, tal concepção de Lacan sobre a letra será alterada no final
de seu ensino, com a delimitação do conceito de alíngua (lalangue), no seminário
Mais, ainda e com as idéias apresentadas acerca do litoral e da relação entre letra e
real no escrito Lituraterra.
Nos Seminários de 1961-62 e de 196468, porém, Lacan estabelece uma
ligação entre a identificação e o traço unário com o corpo, uma vez que este
inscreveria uma marca no corpo do infans, possibilitando a construção de um limite,
de uma borda pelos orifícios corporais. A pulsão terá nessa operação um papel de
suma importância e é preciso frisar que é esta escrita pulsional no corpo que faz
com que ocorra o recorte destes orifícios corporais.
Neste sentido, podemos articular a relação entre traço unário e pulsão na
medida em que
o traço unário resulta de um intervalo, cicatriz e rastro do objeto perdido, suporte da diferenciação (dessa referência que nos “contamos” entre outros); o movimento pulsional institui a demanda do Outro no lugar de objeto perdido, constituindo o destino de nossa errância entre objetos, sem satisfação plena (Costa, 2003: 33).
Em relação à temática da voz, chamamos atenção para o fato de que em sua
inscrição pulsional, há um corte no infinito contínuo do som, fazendo com que o
objeto voz possa cair. São os intervalos na voz que separam os corpos da mãe e do
68 Os quarto conceitos fundamentais da psicanálise.
93
bebê, produzindo a função da borda. Esta abordagem vai ao encontro do que Lacan
(2003: 18) propõe sobre a letra em Lituraterra. Neste texto, ele apontará que a letra,
a partir da metáfora do litoral, demarca dois campos assimétricos – do real, contínuo,
e do simbólico, que instaura o descontínuo.
A voz, portanto, permitirá um primeiro laço com o Outro (Catão, 2005: 179),
operando como primeiro organizador no psiquismo. Nesta medida, “a voz faz litoral”
(Ibid.: 280), ou seja, ela promove a separação e simultânea constituição dos campos
heterogêneos do real e do simbólico, articulando-os. A voz pode promover uma
organização inicial do sujeito no simbólico a partir do real do corpo (Ibid.: 15).
Para melhor articular essa questão, inclinamo-nos sobre o Seminário Mais,
ainda, no qual Lacan (1972-1973/1985: 188) evidencia a existência da alíngua
materna (lalangue). Neste ponto de seu ensino, Lacan dá ênfase à dimensão do
gozo, articulando-o com a dimensão do impossível e do “não pára de não se
escrever” (Ibid.: 81), característico do registro do real.
É interessante notar que Lacan afasta a noção de alíngua com a função de
comunicação. Diz ele: “Alíngua serve para coisas inteiramente diferentes da
comunicação” (Ibid.: 188), o que nos faz perguntar se, por sua transmissão estar
relacionada à voz materna, uma dessas “coisas” não é possibilitar a criação musical,
já que podemos pensar em como esta alíngua produz ressonâncias no corpo do
sujeito e em como estas podem ser articuladas para efeito estético na arte.
A música nos faz lembrar nossa própria constituição no campo do Outro, na
medida em que o laço primeiro com o Outro, através do semelhante, se dá pela voz
(Catão, 2005: 140). Ao ouvir a música, podemos ter notícias remotas desta
passagem da escuta da voz do Outro e do esquecimento necessário que precisa
ocorrer para que o sujeito chegue a constituir a própria voz, vir a falar e,
eventualmente, criar artisticamente, tendo-a como causa. Nesse movimento de
alienação e separação entre o sujeito e o Outro (Lacan, 1964/1998: 199, 207), é
necessário um ponto de surdez a partir do qual o sujeito poderá dizer, mesmo sem
saber, de sua posição.
94
Ao abordar a esquize do olho e do olhar, Lacan (Ibid.: 75) propõe que é
preciso haver a função de mancha para que o sujeito possa ver a partir da perda do
olhar como objeto. Isto ocorre devido à “preexistência, ao visto, de um dado-a-ver”,
uma vez que “não só isso olha, mas (…) isso mostra” (Ibid.: 76). Faz-se necessário
existir um ponto cego, tal como o ponto de fuga na pintura, para que o sujeito possa,
separado do Outro, olhar de uma perspectiva própria.
É neste sentido que podemos falar de um ponto de surdez quando se trata da
voz, na medida em que, como afirma Lacan (1963/2005: 71), “o Outro é o lugar onde
isso fala”. Este ponto de perda no campo do Outro, do qual a voz cai do órgão da
fala (Idem) enquanto objeto, é descrito pelo psicanalista Jean-Michel Vivès (Inédito:
7, 9) como ponto surdo,69 através do qual a pulsão invocante produzirá a
subjetivação do infans. O sujeito que advirá daí deverá permanecer surdo ao apelo
da voz do Outro, tendo agora, contudo, o imperativo de incorporação da voz. Esta,
no entanto, é impossível, e, com o fracasso na obtenção do objeto voz, há a
reabertura do circuito pulsional.
No Seminário A angústia, Lacan (1962-1963/2005: 301) falará que existirá
para o sujeito o imperativo de incorporação do objeto voz, o que lhe fará conferir
“uma função que serve de modelo para nosso vazio”, este cavado pela linguagem. A
isto, acrescentamos o que ele afirma sobre a voz em sua relação com a fala:
Se a voz, no sentido em que a entendemos, tem uma importância, não é por ressoar num vazio espacial qualquer (...), [mas é por ressoar] num vazio que é o vazio do Outro como tal, o ex nihilo propriamente dito. A voz responde ao que é dito, mas não pode responder por isso. Em outras palavras, para que ela responda, devemos incorporar a voz como a alteridade do que é dito. (…) Ora, é nesse vazio que a voz ressoa como distinta das sonoridades, não modulada, mas articulada. A voz de que se trata é a voz como imperativo, como aquela que reclama obediência ou convicção (Ibid.: 300).
O imperativo de incorporação da voz coloca o sujeito no movimento de buscar
apreender este objeto faltoso, agindo, assim, como uma invocação. E, ainda que
69 Concordamos com Vivès, porém, preferimos adotar a expressão “ponto de surdez” por entendermos que neste processo de separação e alienação no campo do Outro está em jogo um ato que parte do sujeito. Trata-se dos processos de Bejahung, de afirmação, e de Ausstossung, expulsão, anterior e necessário ao processo de Verneinung, denegação, descritos por Freud em A negativa, de 1925.
95
ausente, ela poderá surgir como resto da própria voz do sujeito ou de alguma outra
produção sua em que a voz está implicada, como na música. “Logo, é a voz da
invocação – voz que procura a voz – que deverá se perder ao se emitir, pois seu
movimento indica que procura ouvir a voz (objeto), a resposta do Outro” (Alencar,
1997: 354).
Destacamos agora a singularidade do circuito da pulsão invocante. Como
Lacan evidencia (1964/1998: 183), o circuito pulsional inclui o Outro, por seu caráter
circular. Partindo de um impulso e de uma tensão na estrutura de borda, a pulsão se
dirige, passando pelo campo do Outro, a um objeto, a fim de atingir seu alvo,
retornando a esta zona erógena e fechando o circuito ao ocorrer uma satisfação
parcial.
Com isto, podemos melhor compreender o circuito da pulsão invocante, que,
nas palavras de Vivès (2005:1):
(...) se declinará, assim, entre um “ser chamado”, um “se fazer chamar” (eventualmente, de todos os nomes...) e um “chamar”. Mas para chamar, é preciso dar voz, depô-la, como depomos o olhar diante de um quadro.
É preciso, enfim, que o sujeito receba a voz do Outro e que esta possa ser
esquecida para que ele tenha sua própria voz. A voz do Outro, como anteriormente
afirmamos, deve se tornar inaudita tanto para que o sujeito possa não somente falar
como também criar, como no caso da música, causado por este objeto, a voz, e ser
tocado pela música ao ouvi-la. A pulsão invocante move-se, assim, para o inaudito,
velando-o sem omiti-lo, e para um “se fazer ouvir”.
Cabe ressaltar que a pulsão invocante possui, diante das outras pulsões,
uma particularidade: ela não retorna para a zona erógena que tem como fonte; ela
se dirige para o ouvido e, nesse sentido, fica no campo do outro.
Os ouvidos são, no campo do inconsciente, o único orifício que não se pode fechar. Enquanto o se fazer ver se indica por uma flecha que verdadeiramente retorna para o sujeito, o se fazer ouvir vai para o outro. A razão disto é de estrutura (Lacan, 1964/1998: 184).
96
Encontramos na literatura analítica propostas para pensarmos em uma
esquize no campo da pulsão invocante análoga à do escópico, entre olho e olhar.
Destas, destacamos as defendidas por Catão (2005: 143) entre voz e som e por
Alencar (1997: 353) entre voz e ouvido. No primeiro caso, a esquize é sustentada na
medida em que a voz do Outro, ao ser encarnada, o faz pelo som sem se confundir
com ele por trazer a dimensão do inaudito, enquanto que, no segundo, a divisão é
sustentada pela característica acima citada sobre o circuito da pulsão invocante, que
não retorna à zona erógena de onde partiu.
Também Miller (1997:17) aborda esta temática do objeto voz. Em seu artigo
Jacques Lacan e a voz, destaca que é necessário “fazer calar” a voz do Outro para
ser possível se servir da voz e criar, seja pela fala, pela escrita ou pelas criações
artísticas.
Se falamos tanto, se fazemos nossos colóquios (...), se cantamos e escutamos os cantores, se fazemos música e se a escutamos, a tese de Lacan, segundo meu ponto de vista, comporta que tudo isso é feito para fazer calar aquilo que merece ser chamada a voz como objeto a.
Tal afirmação abre margem para se pensar nestas expressões como defesas
contra a voz do Outro70. Como nos aponta Vives (2005: 5), a música e o canto
podem ser lidas como “revocação da voz, aquilo que permite mantê-la à distância”,
ou, ainda, como “um domador da voz”.
No ensino de Lacan (1962-1963/2005: 300), a voz surge como resto da fala,
para além da significação, “distinta das sonoridades”, o que o leva a afirmar que ela
“não se situa em relação à música, mas em relação à fala”. Contudo, entendemos
que, na música, a dimensão da voz do Outro pode comparecer, também como resto,
evidenciando, segundo Mandil (2003: 247), em seu centro, um furo que diz da
impossibilidade do simbólico de lidar com o real.
A voz enquanto objeto a, dentro do momento da obra lacaniana que o
entende como causa de desejo, nos ajuda a entender que há pela voz materna a
97
transmissão para o sujeito de uma vocação no que tange a este objeto: a vocação
de “fazer ouvir sua própria voz no concerto do mundo” (Didier-Weill, 1999: 135). A
musicalidade da voz materna apresenta-se, assim, como um tempo inicial de
marcação do sujeito.
Este autor destaca que o objeto voz possui a característica de ser um objeto
singularizador, diferentemente das outras formas de objeto a.
O objeto voz (…) não é um objeto parcial tendente a despedaçar do corpo, pois é um objeto subjetivador, na medida em que por intermédio da sua musicalidade ele é o meio pelo qual se transmite a linguagem a esse recém-chegado que é o infans (Ibid.: 133-134).
Nos campos da música e da lingüística, podemos distinguir a voz que canta e
a voz que fala (Tatit, 1996:14), ao passo que, na psicanálise, o que se tem como
visada é uma Outra voz, a voz enquanto objeto a, causa de desejo (Lacan, 1962-
1963: 279). Isto porque tal objeto, no horizonte do sujeito e na fantasia deste,
poderia lhe dar aquilo que lhe foi perdido, porém que, por estrutura, nunca poderá
ser reencontrado, posto que é perdido desde sempre. A fantasia assegura ao sujeito
uma posição frente ao objeto a, permitindo que, na arte, se possa fazer algo com
ele.
Ao estudar a voz em sua articulação com a pulsão invocante e com a criação
musical, Didier-Weill (1999: 9), nos diz que a transmissão da linguagem, do
significante, envolve também uma convocação para tornar-se humano. Ela é feita
através da própria linguagem, pela fala da mãe. Contudo, tal transmissão não se dá
sem a dimensão da sonoridade e da musicalidade da voz materna – voz que é
suporte e resto da fala e voz que convida a ir além do sentido das palavras.
Isto, todavia, é condição para todos os humanos, para todos os sujeitos que
puderam dizer sim (momento de alienação) a este convite do Outro encarnado pela
mãe, com sua fala musicada, e, em seguida, passar a um não (da separação) da
70 Agradeço ao psicanalista José Marcus de Castro Mattos, que foi o primeiro a me chamar a atenção para esta forma de lidar com a música a partir da psicanálise e me apresentou a idéia da música como defesa contra a voz, tendo me indicado o referido artgo de Miller.
98
castração e do recalque originário. Passa de um “sim, eu ouço a sua voz” a um “não
posso ouvir somente a sua voz, ou não terei nunca uma voz própria”.
Ao músico, cabe uma outra posição, uma vez que, na música, é possível
fazer esta voz calar (Miller, 1997: 17), velá-la, torná-la afônica (Alencar, 1997: 357).
O músico pode fazer algo, a peça musical, a partir deste ponto de surdez. É deste
modo que entendemos que a música pode, então, nos ajudar a visualizar a relação
entre sujeito e Outro por este campo singular da voz.
Ressaltamos, todavia, que autores como Didier-Weill (1999: 9) e Catão (2005:
282), utilizam o termo “música” para falar deste período de constituição do sujeito em
relação à voz do Outro encarnada pela mãe. Falam, assim, de uma música da voz
da mãe, por vezes se confundindo com a expressão “musicalidade da voz materna”.
Contudo, é necessário propor que, aqui, estamos tratando de um embrião de
música, mais propriamente de uma abertura para a música, assim como para a fala,
que é transmitida como virtualidade pela fala e voz da mãe.
Entendemos ser mais adequado falar em uma musicalidade, uma vez que a
música, como vimos no primeiro capítulo, é uma arte na qual um sujeito trabalha de
acordo com leis pré-estabelecidas, com os sons musicais enquanto significantes.
Defendemos que a voz da mãe transmite ao bebê a possibilidade e o convite para
ele também se tornar sujeito e poder, desta posição, ser tocado pela arte musical.
Propomos assim, que o bebê para se tornar sujeito deve aceitar o convite à
humanização, dizendo sim à musicalidade da fala e da voz materna e, ao tornar a
voz do Outro inaudita, dar um passo além e constituir a sua própria voz. Para criar
música, ele precisará ainda de um terceiro passo, o qual veremos ao abordarmos a
sublimação, que implica em um fazer com esse vazio do objeto voz.
A voz materna com sua sonoridade e musicalidade, assim como todo o
campo sonoro musical em que o bebê está imerso quando antes da entrada do
significante e de seu acesso à linguagem, transmite uma ampla abrangência de
material sonoro do qual o músico poderá se servir para trabalhar na criação, ex
nihilo, da obra musical. O músico pode ser assim entendido como um sujeito que foi
99
marcado por essa voz, enquanto objeto a, que nele demarcou um vazio e um limite,
de tal maneira que ele a terá como visada.
Passaremos, a seguir, a uma análise de um destino específico da pulsão que
coloca em evidência o campo das artes. Estudaremos, então, no próximo capítulo o
tema da sublimação em Freud e Lacan, assim como o da elaboração psíquica nas
artes.
100
Capítulo IV
Sobre psicanálise e arte
A linguagem do segredo através do segredo. Não é ela o teor? Não é ela o
objetivo consciente e inconsciente do impulso criador que nos domina?… O
Homem fala ao Homem sobre o sobrehumano – a linguagem da arte (Kandinsky apud Düchting, 2000: 54).
Estabeleceremos, neste capítulo, uma relação entre a psicanálise e o campo
artístico a partir do estudo do destino pulsional da sublimação, que entendemos ser
aquele que, na obra freudiana, mais satisfatoriamente pode nos auxiliar na
compreensão do que está envolvido psiquicamente nas obras de arte.
Pensaremos, ainda, em como o conceito freudiano de elaboração psíquica
pode também nos ajudar para o estudo das artes, uma vez que estas, por sua
característica de síntese, podem ser lidas como uma via de se elaborar materiais
inconscientes traumáticos, não apenas para aqueles que as criam. A fantasia, outro
conceito freudiano, será enfocada, com as colaborações lacanianas, a fim de
pensarmos o lugar que a obra de arte pode ocupar para os sujeitos.
IV.1 – Sublimação e das Ding
A arte joga com as coisas derradeiras sem tomar conhecimento delas, e no
entanto as alcança! (Klee, 2001: 50) Neste momento, temos como objetivo traçar uma reflexão sobre a sublimação
a partir da perspectiva freudiana e da discussão ética sobre ela elaborada por Lacan
no seminário A ética da psicanálise. Pretendemos, assim, pensar como a
sublimação coloca em questão o tema da pulsão remetida ao real e à noção de
Coisa (das Ding) freudiana.
Uma vez que esta temática não ganhou de Freud uma delimitação conclusiva
como conceito, torna-se necessário rastrear os diferentes momentos da obra
freudiana em que a sublimação é discutida. Ressaltamos que diversos autores pós-
101
freudianos tomaram a sublimação como uma dessexualização da pulsão, só
ocorrendo uma retificação desta com sua retomada por Lacan no Seminário acima
citado. Entendemos que tal idéia, embora encontrada em Freud, não sintetiza as
considerações deste autor sobre esta temática, como veremos a seguir.
Freud não apresentou nenhum escrito que buscasse dar conta deste tema.
Supõe-se, como nos diz James Strachey na edição dos “Artigos sobre
metapsicologia”, de 1914, que um dos trabalhos que complementariam tais artigos
poderia abranger a sublimação. Contudo, o que temos sobre esta questão são
apontamentos e rastros, que se alteram durante a obra freudiana, sem, porém,
perder de vista de que se trata de um processo no qual o sujeito não abre mão de
uma forma específica de obter satisfação pulsional. Há algo que ele não entrega ao
recalque.
A referência à sublimação aparece pela primeira vez na obra freudiana em
1905, nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Neste trabalho, Freud utiliza o
termo “sublimar” primeiramente o relacionado à estética e ao belo, afirmando que,
nas artes, o interesse pelos órgãos sexuais pode ser desviado (ou sublimado) para
um interesse “pela forma do corpo como um todo” (Freud, 1905/1990: 147), ao que
acrescenta, em nota de rodapé escrita em 1915: “parece-me indubitavelmente que o
conceito de “belo” enraíza-se na excitação sexual e, em sua origem, significava
aquilo que estimulava sexualmente”. Define a sublimação, ainda, como um desfecho
em que “excitações hiperintensas provenientes de diversas fontes da sexualidade
encontram escoamento e emprego em outros campos” (Ibid.: 224).
Notamos que não há aí a idéia de uma dessexualização da pulsão, uma vez
que esta é apenas escoada para outros campos que não o sexual, podendo
conservar suas características. Ao associar a sublimação a campos mais valorizados
socialmente, Freud se pergunta:
Com que meios se erigem essas construções tão importantes para a cultura e normalidade posteriores da pessoa? Provavelmente, às expensas das próprias moções sexuais infantis, cujo afluxo não cessa nem mesmo durante esse período de latência, mas cuja energia – na totalidade ou em sua maior parte – é desviada do uso sexual e voltada para outros fins (Ibid.: 166).
102
Mais que isso, neste texto, Freud irá propor uma diferença entre a fixação da
libido no caso dos sintomas neuróticos, e o deslocamento da libido que, pelo
processo da sublimação, pode ser destinada à arte (Ibid.: 147).
Posteriormente, no artigo Moral sexual “civilizada” e doença nervosa
moderna, Freud (1908/1990: 193) define a sublimação como uma “capacidade de
trocar seu objetivo sexual original por outro, não mais sexual, mas psiquicamente
relacionado com o primeiro”. Neste processo, ocorre uma alteração do objetivo, da
finalidade ou meta (Ziel) da pulsão, e não uma transformação da própria pulsão de
sexual para não-sexual.
O que também pode ser encontrado na segunda e na quinta das Cinco lições
de psicanálise. Na segunda lição, Freud (1910[1909]/1990: 28) esboça uma
diferenciação entre o mecanismo do recalque e o da sublimação, abordando esta
como uma solução “para rematar satisfatoriamente conflito e neurose” em que o
desejo pode ser dirigido a um alvo mais elevado. Na quinta lição, há a
complementação de que os desejos infantis não são anulados posteriormente,
permanecendo atuantes e podendo ser utilizados quando da substituição do “alvo de
algumas tendências por outro mais elevado, quiçá não mais de ordem sexual” (Ibid.:
50). Tanto a diferença entre recalque e sublimação e a substituição do objetivo
imediato da pulsão por outro de maior valor são, ainda, apresentados por Freud
(1910 [1909]/1990: 72 e 74) em Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância,
do mesmo ano.
Na conferência XXII das Conferências introdutórias sobre psicanálise, Freud
(1916-1917[1915-1917]/1990: 404) assinala que a sublimação
consiste no fato de a inclinação sexual abandonar seu fim de obter um prazer parcial ou reprodutivo e de adotar um outro, que geneticamente se relaciona àquele que foi abandonado, mas que, por si mesmo, já não possui mais um caráter sexual, devendo ser descrito como social. (…) A sublimação é apenas um caso especial da maneira pela qual as inclinações sexuais se vinculam a outras, não sexuais.
103
Aí, também, vemos se tratar de uma mudança da finalidade e do objeto da
pulsão. Ao que complementamos com o que Freud afirma em Dois verbetes de
enciclopédia, no tópico A teoria da libido:
A vicissitude mais importante que uma pulsão pode experimentar parece ser a sublimação; aqui, tanto o objeto quanto o objetivo são modificados; assim, o que era originalmente uma pulsão sexual encontra satisfação em alguma realização que não é mais sexual, mas de uma valorização social ou ética superior (Freud, 1922-1923/1990: 309).
Ainda podemos notar, nestas citações, a ligação da pulsão com a
sexualidade, mesmo com as alterações pelas quais passou. A questão, contudo, se
torna mais complexa quando Freud (1923/1990: 44), ao abordar a transformação da
libido do objeto em libido narcísica na terceira parte de O eu e o isso, de 1923,
afirma que o abandono de objetivos sexuais, como ocorre na sublimação, consiste
em uma dessexualização. Em seguida, questiona-se sobre o papel da mediação do
eu em transformar a libido objetal em narcísica para, na sublimação, empregá-la em
outro objetivo.
Entendemos, contudo, que é característica própria de toda pulsão esta
plasticidade e possibilidade de alteração de finalidade e objeto e que, mesmo
nestes casos, ela conserva sua ligação com o sexual. Na conferência XXXII das
Novas conferências introdutórias sobre psicanálise, última referência que
encontramos na obra freudiana sobre a sublimação, Freud argumenta que
A evidência da experiência analítica mostra como fato indubitável que os impulsos pulsionais provenientes de uma fonte ligam-se àqueles que provêm de outras fontes e compartilham de suas vicissitudes, e que, de um modo geral, uma satisfação pulsional pode ser substituída por outra. (…) As relações de uma pulsão com a sua finalidade e com seu objeto também são passíveis de modificações; ambos podem ser trocados por outros, embora sua relação com seu objeto, não obstante, a que cede mais facilmente. Um determinado tipo de modificação da finalidade e de mudança do objeto, na qual se levam em conta nossos valores sociais, é descrito por nós como sublimação (Freud, 1933[1932]/1990: 121).
Levar em conta os valores sociais, entendemos, não exclui a vinculação da
pulsão com o aspecto sexual. E isso pode ser melhor entendido se pensarmos que
o social se apresenta no sujeito pela instância do supereu, conforme vimos no
104
Capítulo I. Como “herdeiro do Complexo de Édipo” (Freud, 1923/1990: 51), o
supereu surge na vida psíquica como representante do isso, como “resíduo das
escolhas objetais do isso” (Ibid.: 49). Contudo, continua Freud, “ele também
representa uma formação reativa energética contra essas escolhas”, ditando para o
sujeito aquilo que ele deve fazer/ser/ter, e também o que ele não deve.
A sublimação, assim, vista dentro dos parâmetros da metapsicologia
freudiana, nos leva a refletir sobre a pulsão enquanto fundamental para a
constituição do psiquismo humano. Por outro lado, o psiquismo é entendido como
aparelho de captura deste impacto causado pela pulsão, podendo dar diferentes
destinos a ela, sendo a sublimação uma dessas saídas.
O que Freud nos apresenta com o tema da sublimação, e que destacamos
como essencial para este trabalho, é uma outra saída possível para o sujeito diante
da exigência constante de trabalho e satisfação pulsional que não envolve o
recalque propriamente dito.
Em Mal-estar na civilização, Freud coloca a sublimação como uma saída para
o mal-estar, para o sofrimento que ele coloca ao sujeito, sendo uma satisfação
diferenciada, encontrada nas “atividades psíquicas superiores, científicas, artísticas
ou ideológicas” (Freud, 1930[1929]1990: 118). Essa saída só é possível devido à
plasticidade e flexibilidade da libido. Diz Freud:
Uma satisfação desse tipo, como, por exemplo, a alegria do artista em criar, em dar corpo às suas fantasias, ou a do cientista em solucionar problemas ou descobrir verdades, possui uma qualidade especial que, sem dúvida, um dia poderemos caracterizar em termos metapsicológicos71. (ibid.: 98)
Diante de um mal-estar que lhe é inerente, o sujeito que trilha o caminho da
sublimação em um determinado momento de sua trajetória, posto que a sublimação
não dará conta de toda exigência pulsional72, buscará satisfação ligando-se não a
71 Neste texto, a questão da fantasia aparece nitidamente como satisfação substitutiva para artistas e fruidores frente ao mal-estar que a vida nos apresente. Retomaremos esta idéia mais adiante ao tratarmos deste conceito. 72 Defendemos, assim, que mesmo naqueles em que o destino pulsional da sublimação aparece, há a coexistência com outras vicissitudes possíveis. Freud (1908/1990: 193) deixa isso claro ao falar, em Moral sexual “civilizada” e doença nervosa moderna, de uma quantidade de sublimação possível, ou seja, de uma parte da pulsão que é suscetível à sublimação, e de uma quantidade de atividade sexual
105
objetos que já estão disponíveis no mundo, mas produzindo novos. O prazer será
obtido, por uma via direta e específica, na criação de um objeto novo, ou seja, na
criação, a partir do nada, ex nihilo73, de um novo significante.
A criação, ao ser associada ao mal-estar, ao desamparo constitutivo, não
seria desacompanhada de um estranhamento, um desconforto, uma angústia no
sujeito, uma vez que a própria criação aponta para um vazio e para a falta de um
objeto que viria satisfazer a pulsão74.
Porém, a criação, através da sublimação, se apresenta como uma solução
diferente em relação ao mal-estar, visto que o sujeito, neste caso, não adoece, não
produz sintomas. Freud (1917[1916-1917]/1990: 404) diz, nas Conferências
introdutórias sobre psicanálise, que a sublimação pode ser entendida como um
processo protetor contra o adoecer que teria adquirido maior significação e valor no
campo social. Neste caso, o que vem a ocorrer é uma organização em torno desse
vazio para o qual o mal-estar aponta75.
necessária. Consideramos, ainda, que é preciso levar em consideração a questão da elaboração psíquica nas obras de arte, e, para aprofundar esta idéia, já presente em Freud e em Lacan, contaremos, ainda neste capítulo, com a ajuda do psicanalista Joseph Attié em seu artigo Sublimação
– sintoma?, de 1997. 73 A expressão ex nihilo é aqui usada como uma referência à idéia lacaniana presente em O Seminário, livro 7, de criação a partir do nada. Em outras palavras, criação, a partir do real, de algo que não existia anteriormente na linguagem (na rede simbólica de significantes), mas que, contudo, é prevista pela estrutura lingüística. Isto se dá uma vez que ela comporta, ainda que apenas em apontamento, o real. Neste Seminário, Lacan aponta que a arte é uma maneira de tratar o Real pelo Simbólico, positivando o vazio, como veremos adiante. A própria estrutura da linguagem comporta a possibilidade de se criar um significante a mais na tentativa de se cunhar o significante que lhe falta. 74 A relação entre objeto e angústia foi por nós abordada no capítulo precedente, quando tratamos da constituição do sujeito conforme entendida a partir dos Seminários A angústia e Os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise, e do conceito de objeto a, com sua função de causa de desejo. 75 Não podemos perder de vista que, mesmo em artistas, a sublimação não é a única via de satisfação pulsional. Se não tivermos isso em mente, corremos o risco de fazer uma idealização destes como sujeitos em que o processo de recalque não ocorre, o que poderia levar, em uma radicalização desta idéia, a pensar que os artistas teriam uma estrutura psíquica diferenciada, uma quarta estrutura além da neurose, psicose e perversão, conforme delimitadas pela psicanálise freudiana e lacaniana. O que está em jogo na criação artística é de outra ordem. Há nesses sujeitos a estrutura do recalque, que se apresenta atuando em determinados pontos de sua vida psíquica. Ademais, podemos chegar a pensar que é por ter ocorrido o recalque originário que se abre a possibilidade de criação artística. No entanto, uma parte da pulsão pôde encontrar outra via de satisfação, que se realiza pela criação de uma obra de arte, o que não exclui que outra parte da exigência pulsional sofra o recalque propriamente dito, e que nesses sujeitos haja a incidência de sintomas. Por outro lado, também em sujeitos que não são artistas, a sublimação se mostra presente, uma vez que a arte não é o único modo de sublimação existente, e, ainda, que ao se fruir a arte faz-se necessário que ocorra a sublimação. É preciso ressaltar que sublimação e recalque são processos excludentes no sentido que, quando uma pulsão busca satisfação pela via da sublimação, o recalque não pode ocorrer, e vice-versa. Todavia, no sujeito, estes dois processos podem coexistir. Daí indicarmos que, além da sublimação, é preciso também estudar o processo de elaboração psíquica presente na arte, tanto naquele que a cria quando no que a aprecia.
106
Diferentemente dos casos de neurose em que o sujeito busca entre os objetos
existentes, no campo do significante, algum com o qual possa se identificar, pela
arte, o sujeito deixa impressa sua marca nos objetos que cria. Ao tentar se
aproximar imaginariamente e se aglutinar com o objeto perdido, o sujeito que cria
cerne o limite, o impossível, o furo, e volta a perder essa aproximação.
A sublimação, como vimos, tem ligação com o objeto. Em À guisa de
introdução ao narcisismo, Freud nos fala da sublimação como sendo relacionada à
libido objetal. Nesse ponto, há o questionamento de uma possível proximidade entre
a sublimação e a formação do ideal do ego, a qual Freud refuta. Temos aí a
indicação do fato de a sublimação se tratar de um processo especial, que pode vir a
ser estimulado pelo ideal, sem, contudo, depender dele. Passamos a palavra a
Freud: “A formação de um ideal eleva o nível das exigências do Eu e é o mais forte
favorecedor do recalque; a sublimação, por sua vez, oferece uma saída para cumprir
essas exigências sem envolver recalque” (Freud, 1914/ 2004: 113).
A pulsão, satisfazendo-se dessa maneira particular, nos remete ao conceito
de gozo encontrado na obra de Lacan. O psicanalista Joseph Attié (1990/1997. 176),
designa esta satisfação pulsional encontrada na sublimação de gozo. Segundo este
autor, a sublimação “é uma deriva onde o sujeito inventa seus próprios significantes;
daí o gozo em jogo” (Ibid.: 179). Nesse caso, a satisfação da pulsão, ainda que
parcial como toda satisfação, ocorre de forma direta; o gozo, como colocaria Lacan,
é direto.
Demarcamos que não há nesse processo uma dessexualização da pulsão.
Em Freud, a sublimação evidencia a problematização da questão do sexual, da
pulsão, do objeto, do alvo, da satisfação. A pulsão, primeira no sujeito, instala o
campo da libido, do erótico, fazendo com que a relação com os objetos seja
possível.
O campo libidinal aparece como segundo e, por sua plasticidade, não pré-
determinará o objeto para satisfazer a pulsão, podendo este ser encontrado no
mundo ou, como acontece na sublimação, criado, inventado.
107
Lembremos-nos aqui, ao falarmos da criação, do exemplo dado por Lacan em
A ética da psicanálise sobre o vaso, exemplo este que vem de Heidegger, como
sendo um significante modelado e, ao mesmo tempo, um objeto criado para
representar a existência do vazio no centro do real, ou seja, a Coisa.
Heidegger, e posteriormente Lacan, utiliza o exemplo do vaso, da jarra, para
evidenciar o vazio que há em seu centro, servindo, assim, como metáfora da
criação. O oleiro, nos diz Heidegger (2001: 147), molda a jarra com a argila sendo
esta produção o que faz a jarra subsistir em si, como receptáculo e como novo
objeto criado. Porém, não é a argila que faz o jarro ou o vaso, e sim o vazio, o “nada
na jarra” (Idem). No ato da criação, o oleiro toca o vazio, “o oleiro toca, primeiro, e
toca, sempre, no intocável do vazio” (Idem.). Dessa forma, Heidegger, e também
Lacan, se aproxima da noção de criação ex nihilo, ou seja, a criação a partir do
nada, tendo em si o vazio.
Cria-se a partir do furo que o Simbólico cava no Real com a instauração da
linguagem. Contudo, a criação não dá conta de tapar o furo do qual surgimos; é
impossível criar um objeto que irá preencher a falta ou promover o reencontro com o
objeto perdido. A criação de um novo significante não tapa a verdade do impossível
da própria constituição do sujeito.
O tema da sublimação da forma como Freud a colocou exige que se faça uma
teorização do objeto, como Lacan, posteriormente, nos apresentou. O produto da
sublimação, a obra de arte, vai nos dizer de um objeto que não são os que
encontramos no mundo, os pequenos objetos aos quais o sujeito vai se ligando e
imprimindo sua marca, mas sim do objeto que causa o desejo, o objeto a, como
vimos anteriormente no capítulo anterior.
Assim, temos que o desejo circula no significante que foi retirado do sujeito na
linguagem. Devemos, ainda, articular a essa temática o conceito de das Ding, da
Coisa, já anteriormente delimitado por nós quando do estudo sobre a constituição
subjetiva. Seria a partir deste evento, desta subtração de das Ding, que surgiria o
108
desejo humano, esse “mistério jamais inteiramente resolvido” (Lacan, 1959-
1960/1997: 288).
O objeto, que para o sujeito é experimentado como perdido desde sempre,
mesmo sem ter sido perdido, é instaurado desse modo através da retirada de algo.
Isto é a Coisa, este resto, que é isolado do sujeito na experiência do complexo do
próximo76 (Nebenmensch) como sendo estranho, que escapa à linguagem.
O Ding é o elemento que é, originalmente, isolado pelo sujeito em sua experiência do Nebenmensch como sendo, por sua natureza, estranho, Fremde. (...) O Ding como Fremde, estranho e podendo mesmo ser hostil num dado momento, em todo caso como o primeiro exterior, é em torno do que se orienta todo o encaminhamento do sujeito É sem dúvida alguma um encaminhamento de controle, de referência, em relação a quê? – ao mundo de seus desejos (Ibid.: 68-69).
O sujeito se orienta em direção da busca de das Ding; ele busca reencontrar
algo que não pode, nem sequer, ser encontrado. Sendo, ainda, o primeiro exterior,
este objeto – a Coisa, será para o sujeito o Outro absoluto. Deste modo, a Coisa
será uma “extimidade77” (Ibid.:173), uma “exterioridade íntima” (Ibid.).
É no campo de das Ding e da pulsão de morte que a sublimação pode
ocorrer. Pela arte, na criação de uma Obra, a Coisa pode ser presentificada no
psiquismo, evidenciando-se o vazio estrutural que causa o sujeito. Neste sentido,
podemos dizer, com Jorge (2002: 150), que a sublimação em psicanálise é um
conceito “imprescindível”, que “revela a estrutura do desejo enquanto tal” (Ibid.: 154-
155).
Tal posição é também encontrada em Rinaldi (1996: 123), que, sobre este
tema, aponta que
A sublimação – diretamente relacionada ao campo de das Ding – representa uma via, talvez a principal via de realização da ética da psicanálise como ética da castração. (…) Ao produzir-se no lugar da Coisa, que também é o da
76 Conforme visto no tópico A constituição do sujeito do segundo capítulo. 77 O termo extimidade refere-se ao neologismo lacaniano criado no Seminário A ética da Psicanálise, de 1959-1960, para delimitar a noção de Coisa como aquilo que é exterior ao sujeito, por ter sido separado deste, e que, porém, é aquilo que o sujeito tem de mais íntimo, uma vez que é a partir deste ponto perdido que ele deve se constituir.
109
pulsão de morte, ela manifesta a própria estrutura do desejo, que é movimento enquanto tal, em que o desejo é sempre desejo de “outra coisa”.
Sobre a relação entre a sublimação, o objeto, a Coisa, Lacan (1959-
1960/1997: 140-141) afirma que:
O objeto – uma vez que lhe especifica as direções, os pontos de atrativo do homem em sua embocadura, em seu mundo, uma vez que o objeto lhe interessa por ser mais ou menos sua imagem, seu reflexo – esse objeto, precisamente, não é a Coisa, na medida em que ela está no âmago da economia libidinal. E a fórmula que lhes dou da sublimação é esta – ela eleva um objeto (...) à dignidade da Coisa.
Podemos, com isso, compreender a fórmula lacaniana sobre a sublimação
que, subvertendo a idéia freudiana de que esta se refere a objetos elevados e de
grande valor social, diz que a sublimação eleva o objeto à dignidade de Coisa. A
obra criada, um novo significante, ocupará metaforicamente o lugar da Coisa e,
deste modo, terá função de causa. O sujeito criará a obra de arte uma vez que tem
das Ding como causa e como visada, sendo orientado por suas coordenadas de
prazer, no sentido em que
(...) o que nos governa no caminho de nosso prazer não é nenhum Bem Supremo, e que para além de um certo limite de nosso prazer estamos, no que diz respeito ao que das Ding recepta, numa posição inteiramente enigmática, pois não há regra ética que faça mediação entre nosso prazer e sua regra real (Ibid:: 121).
A Coisa, o que do real padece do significante (Ibid.: 157), seria concebida
pelo psiquismo por seu contorno. É preciso contorná-la, cingi-la, para que ela seja
concebida. Por estar separada do campo do significante, das Ding nos remete a um
vazio significante, um vazio aplicado à linguagem. Ela é impossível de ser capturada
pela rede significante, porém, ao mesmo tempo, é ela a responsável por esta cadeia,
pela própria rede de representações simbólicas. O significante que falta é este
mesmo que organiza toda a cadeia. Segundo Rivera (2002: 41), a Coisa, através de
sua perda, marcaria “um centro de gravidade em torno do qual se constituirá o
sujeito”.
110
A arte, assim, presentificaria a Coisa nos objetos criados do nada, nas obras
de arte, no novo significante que é cunhado e introduzido no mundo.
Essa Coisa, da qual todas as formas criadas pelo homem são do registro da sublimação, será sempre representada pelo vazio, precisamente pelo fato de ela não poder ser representada por outra coisa – ou, mais precisamente, de ela não poder ser representada senão por outra coisa. (Lacan, 1959-1960/1997: 162).
No plano imaginário, o objeto tem por uma de suas características servir
como engodo para o sujeito frente ao real. O caráter de composição imaginária, de
elemento imaginário do objeto, faz dele o que se poderia chamar de a substância de
aparência, o material de um engodo vital (Ibid.: 79).
Também como engodo, encontramos o bem enquanto função. Ele se
apresenta para o desejo humano como uma barreira, não permitindo a satisfação da
pulsão, ou seja, seu gozo. “A dimensão do bem levanta uma muralha poderosa na
via de nosso desejo. É mesmo a primeira com a qual lidamos em cada instante e
sempre” (Ibid.: 280). Enquanto engodo, o bem como barreira, como algo que nos
priva, é uma função do registro imaginário.
Por outro lado, temos também como barreira o belo. A expressão do belo
intimidaria o desejo; no entanto, o belo não atuaria como engodo para o sujeito, ele
vela a Coisa, sem omitir o vazio que o objeto criado traz em seu centro. O belo na
obra de arte, no objeto criado pela arte, aponta para a verdade que o objeto traz.
Esta verdade do objeto somente pode ser compreendida em sua referência à
Coisa. Sobre a relação entre o objeto e a Coisa, podemos dizer que a partir da
sublimação, o objeto é elevado à dignidade de Coisa. Colocando essa mesma
fórmula em outras palavras, podemos dizer que o novo objeto, que cingiu a própria
Coisa, ao ser criado, passou a ter a função da Coisa.
Segundo Pommier (1987: 197):
A sublimação dá uma forma ao que nunca havia existido outrora, senão como um puro efeito de linguagem; ela apresenta a Coisa que divide a linguagem, Coisa cuja inacessibilidade dá seu gume à pulsão de morte. A voz perdida
111
por trás das palavras, a cor ausentificada por detrás da significação do quadro, toda sensação escava uma ausência.
Desse modo, temos nas artes uma constante tentativa de reencontro com a
Coisa, de aproximação a ela; indo além, ao se criar um objeto, temos uma tentativa
de recriação da Coisa na obra de arte, o que, no entanto, é da ordem do impossível,
e que, mesmo assim, deixa vestígios na arte.
IV.2 – Sublimação e elaboração psíquica: criação e fantasia
Como vimos anteriormente, o sujeito emerge como efeito de uma extração
que o significante opera no campo do Outro. A partir dessa operação, que é a da
castração, se instala nesse sujeito um mal-estar, um desamparo. Diante dessa falta,
instaura-se o movimento de uma busca contínua daquilo que foi perdido, sob a
forma de objeto e na dinâmica da repetição.
A vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós; proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. A fim de suportá-la, não podemos dispensar as medidas paliativas. (…) Existem talvez três medidas deste tipo: derivativos poderosos, que nos fazem extrair luz de nossa desgraça; satisfações substitutivas, que a diminuem; e substâncias tóxicas, que nos tornam insensíveis a elas. (…) As satisfações substitutivas, tal como as oferecidas pela arte, são ilusões, em contraste com a realidade; nem por isso, contudo, se revelam menos eficazes psiquicamente, graças ao papel que a fantasia assume na vida mental (Freud, 1930[1929]/1990: 93).
Há diversos modos de lidar com este mal-estar constitutivo, dentre as quais
destacamos nesta pesquisa a arte. A psicanálise fornece-nos material para
pensarmos a arte como uma experiência que permite a elaboração psíquica de
conteúdos inconscientes. A arte apresenta-se como fundamental para a constituição
da realidade para os sujeitos – artistas e fruidores.
Articulando este ponto à questão específica da música, podemos pensá-la
como escrita, como uma tentativa de inscrição no sujeito de algo que não pode ser
assimilado e que escapa à linguagem. Em outras palavras, tentativa de escrita e
inscrição da pulsão e do objeto a ela articulado, o objeto voz. Tal linha de
pensamento abre-nos o campo para refletir sobre como a pulsação, o movimento
112
próprio da pulsão, que é constante, pode ser circunscrito no sujeito pela música
através de um outro tempo. Acreditamos que a música, por possuir um ritmo pré-
estabelecido e, por isso, artificial, pode se dar para o sujeito como uma tentativa de
dar conta do pulsional, organizando-o deste modo.
Vale aqui demarcar a concepção de realidade para a psicanálise que, como
delimitamos ao abordar a constituição subjetiva, pode ser apreendida através da
dinâmica entre princípio de prazer e princípio de realidade, assim como pela relação
entre processo primário e processo secundário. Pela dinâmica entre estes princípios,
o campo da realidade psíquica passa a ser demarcado e organizado através daquilo
que dá prazer ao sujeito.
Sobre a questão da arte como forma de elaboração psíquica tanto para
aqueles responsáveis por sua criação quanto para os que a fruem, Freud
(1913/1990: 222) nos aponta que as “forças motivadoras” dos artistas são conflitos
inconscientes também presentes nos demais sujeitos. Contudo, na arte estes
conflitos não aparecem sob a forma de sintomas. Eles exigem uma outra forma de
trabalho.
A respeito da elaboração psíquica (Bearbeitung), podemos dizer que este
conceito alude à dimensão de trabalho inerente ao aparelho psíquico,
subentendendo uma concepção econômica do psiquismo e tendo em vista que este
transforma e transmite energia pulsional.
O trabalho da elaboração psíquica consiste em transformar a quantidade de
energia que o aparelho psíquico recebe, lidando com ele através de uma derivação
ou ligação. Tal termo foi encontrado por Freud e Breuer na obra de Charcot, que
propunha que o paciente histérico teria um momento de elaboração entre o trauma e
o aparecimento dos sintomas.
Em Freud (1914/1990: 202), no contexto clínico, a elaboração surge, pela
transferência, como uma saída possível para a repetição. O sujeito em análise pode,
através da fala, contornar um material traumático e passar da repetição à recordação
e, posteriormente, à elaboração. Ou seja, aquilo que era repetindo ou intervinha sob
113
a forma de angústia, por exemplo, pode estabelecer relações significantes e, deste
modo, ser elaborado através da linguagem.
Na análise, o sintoma pode ser interpretado, por se fazer como um enigma ao
sujeito e demandar decifração (Attié, 1990/1997: 169). Deste modo, ele pode ser
elaborado.
Na arte, por outro lado, como já dissemos, há uma parcela pulsional que não
está sob o regime do recalque propriamente dito. Entretanto, aí também
encontramos a dimensão do mal-estar. O artista, com isto, poderá, com restos do
impossível, criar, elaborando, assim, parte deste traumático incurável e imperioso. O
que não tem nome ou medida poderá ser tateado, às cegas, pela linguagem, sendo
elaborado e diminuindo a angústia.
Assim, a elaboração psíquica não pode ser referenciada apenas ao contexto
clínico; ela diz respeito ao estabelecimento de novos caminhos associativos que
supõem como condição prévia esta transformação de quantidade física em
qualidade psíquica e que se dá pela e na linguagem. Através da elaboração
psíquica, um material psíquico inconsciente pode ser assimilado e integrado à
cadeia de significantes (Hanns, 1996: 190). Isto na medida em que é possível, pois o
que exige maior trabalho de elaboração é justamente o vazio estrutural do sujeito,
impossível de ser assimilado.
É o vazio de das Ding, deixado pelo recalque originário, pela castração.
Assim, a elaboração psíquica, que atua ou pode atuar em todos os sujeitos,
comparece também no trabalho da sublimação, uma vez que, pela criação com os
significantes, também se poderá tecer com este material traumático, permitindo ao
sujeito que cria uma mudança subjetiva. Este vazio faz corpo feito de significantes e
de gozo. Nas palavras de Pommier (1987: 192):
Nosso corpo se dá à altura deste vazio e mais nada podemos saber dele. Este vazio é nossa primeira morada e nos é preciso confirmar seu contorno no espelho ou no olhar de nossos semelhantes. O corpo responde pela inconsistência do simbólico pelo enigma da significação do desejo do Outro materno; ele é tomado por uma angústia primeira que o suprime para sempre do saber. O recalcamento primordial concorda com esta primeira perda de gozo em que consentimos, pelo menos até o encontro desta barreia da
114
pulsão de morte: à sua altura, o desejo se inverte graças ao sintoma ou graças à sublimação.
Vemos nesta citação a exclusão entre os destinos pulsionais do recalque e da
sublimação, conforme abordamos no terceiro capítulo. Porém, notamos entre eles
um ponto em comum: o do vazio de das Ding, e o ato do sujeito em dar uma
resposta singular ao Outro, pela via do sintoma ou da criação.
Sobre este vazio, o pintor e escultor Lee Ufan (apud Azouri, 1997: 46) nos dá
um belo testemunho:
O vazio não é o espaço em que o artista fala. É o lugar em que aparecem o rosto e a voz do Outro pelo viés do toque do artista. Quando se toca tambor, ouve-se um som que não pertence nem ao tambor nem a quem o toca.
A respeito das diferenças e convergências entre sintoma e sublimação, nos
voltamos ao estudo de Attié (1997: 150, 154). Já destacamos mais acima alguns
destes pontos, a saber, a diferença dos destinos pulsionais envolvidos em cada uma
destes processos (recalque no sintoma e sublimação na arte), e o ponto de vazio
central presente em ambos.
Attié (Ibid. 150), aponta, seguindo os passos freudianos, para uma fixação da
libido no sintoma em contraste com a plasticidade libidinal na sublimação, que diz da
possibilidade de deslocação da mesma neste caso justamente porque não ocorreu
aí o recalque (Ibid.: 154).
De acordo com este autor, é possível para o artista elaborar devido à posição
deste diante de sua fantasia, diante do objeto que o causa (Ibid.: 155), estando a
fantasia, assim, na base da criação artística.
Lembramos que Freud destacou tal característica da criação no artigo
Escritores criativos e devaneios. Nele, Freud (1908[1907]/1990: 149) nos apresenta
uma indagação sobre a fonte da qual o escritor tiraria o material para a elaboração
de sua arte. Aproxima o trabalho artístico com o brincar infantil (Idem), uma vez a
criança, de forma análoga ao trabalho poético, “cria um mundo próprio, ou melhor,
registra os elementos de seu mundo de uma forma que lhe agrade”.
115
O próprio Freud (Idem) fará uma oposição entre o brincar e “o que é real”, o
que nos interessa por lermos nesta afirmação, apoiados em Lacan, que a fantasia é
uma montagem entre os registros do simbólico e do imaginário que serve de
anteparo e mediador frente ao real.
Em ambos os casos, no brincar e na criação artística, diz Freud (Idem), o que
está em jogo é a fantasia, e, diríamos nós, seu manejo. O escritor (representando
aqui a posição de todo artista), pela fantasia, pode fazer com que algo que é
“penoso” e traumático passar a ser uma “fonte de prazer” tanto para ele quanto para
quem lê sua obra. Freud nos abre a possibilidade de pensarmos como o traumático
pode ser elaborado através da criação de uma obra de arte, que atuará de uma
maneira singular no apreciador.
A fantasia, na perspectiva lacaniana, ou seja, a montagem entre Simbólico e
Imaginário78 como tela frente ao impossível, é pensada como suporte de desejo. Isto
na medida em que o desejo surge em decorrência da perda do objeto absoluto, a
Coisa, tendo-o como visada e que a fantasia permite que o sujeito seja articulado a
uma determinada forma de comparecimento de objeto a, dando-lhe um lugar a
ocupar (Lacan, 1966-1967/2003: 327).
A estrutura da fantasia remete, assim, a estes objetos a que podem exercer a
função de causa de desejo por terem em seu centro um vazio (Ibid.: 325), vazio que
compartilham com o sujeito e que diz da divisão estrutural deste. Nas palavras de
Jorge (2006: 63): “Se o desejo é, em sua essência, da ordem da falta, a fantasia é a
estrutura que enquadra, emoldura esta falta num certo limite”.
Resta dizer que a fantasia surge da operação do recalque originário, como
uma resposta singular do sujeito diante da castração, que impõe um limite no gozo e
“instala uma forma particular para cada sujeito deparar-se com o real, ao mesmo
tempo em que constitui para cada um uma realidade psíquica que é a fantasia”
(Ibid.: 65).
78 LACAN, Jacques. (1966-1967) O Seminário XIV – La lógica del fantasma. Inédito: classe de 16 de noviembre de 1966. Nesta aula, Lacan defende que, no homem, toda a realidade, entendida como realidade psíquica, é esta montagem do simbólico e do imaginário frente ao real.
116
Seguindo Lacan em seu Seminário A lógica da fantasia, Attié (1990/1997:
157) propõe pensar a dimensão da fantasia presente na sublimação. Neste
seminário, Lacan79 propõe pensar o inconsciente e sua estrutura a partir das
fórmulas “eu não sou” e “eu não penso”, contrapondo-as ao cogito cartesiano
(penso, logo sou). Estipula, com isto, uma nova abordagem para tratar da divisão do
sujeito e dos momentos de alienação e separação no campo do Outro.
A partir daí, Attié (Ibid.: 165) concluirá que Lacan enfatiza a “disjunção entre a
sublimação e o sintoma”, sendo que a primeira deve ser entendida como uma
operação do sujeito enquanto que o segundo, através do trabalho analítico, caminha
para um ponto final: o término da análise. Nesse sentido, o sintoma “precisa ser
decifrado” (Ibid.: 169), enquanto que “a façanha do artista é saber cifrar alguma
coisa de seu inconsciente” sem que haja a demanda de interpretação.
Assim, podemos entender que sintoma e sublimação são modos distintos de
lidar com o mesmo ponto traumático na constituição do sujeito.
A sublimação, em sua ordem artística, pode ser dita como uma resposta da pulsão, do real, ao impossível da relação sexual. Aquele que sublima elabora seu sintoma a partir de sua fantasia. O neurótico chega a sua fantasia a partir de seu sintoma (Ibid.: 183)
A função da arte, nos diz Alencar (2004: 11), pode ser pensada, deste modo,
como a “tomada da fantasia como o princípio que rege a posição da obra como
causa para o sujeito”.
No caso da música, enquanto produção simbólica que pode apresentar uma
resposta do sujeito frente ao real por sua posição singular na fantasia, defendemos
que ela pode desempenhar uma função de destaque para o sujeito. Através desta, a
pulsão poderá ganhar um destino e, pelo trabalho com os significantes (neste caso,
os sons musicais), o desejo poderá ser colocado em cena pela linguagem.
79 Na aula de 21 de dezembro de 1966.
117
Neste sentido, podemos supor que um sujeito pode ser marcado de maneira
tal pela incidência do objeto voz que, na fantasia, o tomará como causa de desejo,
conseguindo se servir dele de modo a oferecer como resposta ao Outro um novo
objeto criado pelo arranjo de sons musicais significantes.
Retomando a citação de Freud com a qual iniciamos este tópico, podemos
dizer, então, que, pela arte, a dimensão do impossível pode ser suportada, através
da fantasia, sem que com isso, todavia, esta dimensão seja encoberta. No caso
específico da música, a obra musical irá velar esse objeto sem omitir, contudo, que
há uma falta real aí. Ou seja, a música criada trará vestígios deste real, podendo ela
também ser tomada como causa de desejo para um outro sujeito.
Faremos no próximo capítulo um estudo mais detalhado acerca da criação
artística no campo da música, retomando e articulando os conceitos até agora
apresentados.
118
CAPÍTULO V
Sobre música a partir da psicanálise
Não sei escrever poema: não sou poeta. Não sei dispor minhas frases de um
modo tão artístico que elas disseminem alternadamente sombra e luz: não
sou pintor. Não sei exprimir com gestos e pantomimas minhas idéias e meus
sentimentos: não sou bailarino. Mas sei fazê-lo através dos sons: sou músico (Mozart apud Massin, 1997: xxii).
Tendo percorrido o que delimita, em nosso trabalho, o campo da arte musical
e da psicanálise freudiana e lacaniana, assim como a musicalidade presente na
constituição dos sujeitos e a criação artística pelo viés psicanalítico, passaremos
agora a uma reflexão especificamente sobre a música. Sustentamos que é por uma
musicalidade presente na constituição de todos os sujeitos que, posteriormente, uma
criação com o material musical poderá atuar como causa de desejo e assim ser
tomado no momento de escuta.
Investigaremos, portanto, a seguir, os pólos da criação (pela via do
compositor, principalmente, e também do músico intérprete) e da escuta musical,
acompanhados de autores que já trilharam alguns destes caminhos. Antes,
propomos algumas aproximações entre a música e a psicanálise, ou, ainda, refletir
sobre a primeira a partir da segunda.
V.1 – Tempo, atempo; harmonia, sincronia; melodia, diacronia: aproximações
Como vimos no primeiro capítulo, a música, enquanto arte cuja linguagem é
estabelecida por um determinado conjunto de regras próprias a este campo, não
pode existir e tomar corpo na ausência destes dois elementos: ritmo e altura sonora.
Ela trabalha, assim, com a diferença e tensão dos sons musicais, e também
marcando e produzindo diferenças no tempo e no espaço musical, contudo, na maior
parte das vezes, como na música tonal, por exemplo, com certa regularidade.
119
Sobre este espaço musical, trazemos as palavras do compositor francês
Debussy (1989: 47): “a música e a poesia são as duas únicas artes que se movem
no espaço”, afirmando, desta forma, uma semelhança entre elas. Ressaltamos,
entretanto, que também a dança e o cinema apresentam esta característica de
mesclar tempo e espaço. O pintor Paul Klee (2001: 46) vai além e afirma que “o
espaço é também um conceito temporal”, transpondo a separação por ele definida
como “divagação erudita” (Idem) entre as artes temporais e as espaciais. Para ele, o
que as diferencia é o que é dado ao espectador para fruir, conduzindo-os a sentidos
diversos.
Na obra de arte encontram-se os caminhos que conduzem para o olho do espectador, o olho que tateia ao redor como faz um animal ruminante ao pastar. Na música, como todos sabem, encontram-se disponíveis os canais que conduzem ao ouvido, no teatro, ambos os sentidos estão à disposição (Idem).
Aqui, já podemos avançar nesta discussão com elementos da teoria lacaniana
para destacarmos dois pontos na fala de Klee, amarrando-os a dois conceitos em
Lacan. O primeiro diz respeito ao olho, como órgão do sentido, que “tateia” o quadro,
e o segundo ao ouvido que seria convocado na música. Como é bem conhecido,
Lacan (1964/1998: 74) ressalta uma esquize entre o olho e o olhar em seu estudo
Do olhar como objeto a minúsculo no Seminário Os quatro conceitos fundamentais
da psicanálise. Interessa-nos na pintura o olhar enquanto objeto a correspondente à
pulsão escópica, olhar este que tem relação com a função do quadro.
A pintura e o quadro, “essa coisa que tem por centro o olhar” (Ibid.: 98),
permitem que esta divisão de que nos fala Lacan possa comparecer de forma que,
ao tatear o quadro com o olho, o sujeito possa depositar seu olhar, isto na medida
em que o pintor ”dá a ver seu quadro” (Ibid.: 99).
O pintor, àquele que deverá estar diante do seu quadro, oferece algo que em toda uma parte, pelo menos, da pintura, poderia resumir-se assim – Queres
olhar? Pois bem, veja então isso! Ele oferece algo como pastagem para o olho, mas convida a quem o quadro é apresentado a depor ali seu olhar, como se depõem as armas. Aí esta o efeito pacificador, apolíneo, da pintura. Algo é dado não tanto ao olhar quanto ao olho, algo que comporta abandono, deposição, do olhar (Idem.. Grifos do autor).
120
Chama-nos a atenção nas citações de Klee e de Lacan uma forma similar de
falar do quadro como um campo de “pastagem para o olho”, o que nos faz pensar na
possibilidade do segundo ter lido o primeiro. Este, porém, avança saindo do campo
do sentido e apontando para esta falta no centro do quadro que faz com que o olhar
possa ser ali depositado, não causando angústia em sua intervenção (Lacan, 1962-
1963/2005: 98) e podendo ser até mesmo pacificador.
O segundo ponto que destacamos da citação de Klee se refere ao ouvido, por
ele apontado como o órgão do sentido a que se destina a música. Para Lacan
(1964/1998: 184), o ouvido é o “único orifício que não se pode fechar”, ao que
complementa, em relação ao circuito pulsional, que “enquanto que o se fazer ver se
indica por uma flecha que verdadeiramente retorna para o sujeito, o se fazer ouvir
vai para o outro”.
Guardaremos esta idéia para quando tratarmos mais adiante a escuta
musical. Neste momento, destacamos que na música, o compositor visa se fazer
ouvir e, além disso, ao contornar pulsionalmente o objeto voz, o vazio deste objeto,
nos dá notícias sobre ele. Podemos assim dizer que o compositor visa um além dos
sentidos. O que se ouve, então, quando se ouve música? O que o compositor coloca
em cena ao criar melodias e harmonias?
Como nos mostra com muita precisão Miller (2000: 68), a música é “arte do
tempo”, manobrando-o e, assim, pontuando-o para o sujeito. O que não deixa de ter
efeitos e conseqüências. Isto na medida em que, como demarca Freud (1915/1990:
214), o inconsciente possui como uma de suas características principais a
atemporalidade, e que a pulsão é uma força constante (Freud, 1915/2004: 146).
Como, então, pensar o que a música produz para e nos sujeitos?
Aprendemos com Freud que a temporalidade vem do registro do consciente,
vem do eu. O inconsciente está sob o regime do atemporal, das simultaneidades de
marcações. Em análise, o sujeito pode ascender à temporalidade do a posteriori
(Nachträglich), da leitura retroativa que implica a dimensão do “estava escrito”
(Miller, 2000: 50). É possível uma ordenação, própria a cada sujeito, aberta a
121
alterações, a outras leituras. Conforme nos diz o psicanalista Luciano Elia (2004:
41):
O tempo próprio do inconsciente é o a posteriori (Nachträglich, no dizer de Freud). Em sua experiência, o sujeito tem um encontro - o encontro com o Outro materno (...) - que se dá em determinado ponto de sua estrutura temporal, ou seja, em determinado momento. Só depois, em um segundo momento, é que esse encontro poderá ganhar, para o sujeito, alguma significação que permitirá que ele faça o reconhecimento de algum nível de sua constituição. Incidentalmente, essa estrutura temporal a posteriori expressa, à maneira da diacronia, a prevalência lógica e sincrônica do significante sobre o significado no inconsciente: em dado momento o sujeito encontra-se com o significante - ou é por este encontrado, já que nesse momento o sujeito ainda é inconstituído, é um sujeito constituinte ou a devir.
Miller (2000: 50) aborda a questão da atemporalidade do inconsciente
ressaltando que, se ele comporta esta dimensão, se ele “em si mesmo não muda, o
que pode mudar é a relação do sujeito com o inconsciente”. Isto é, pelo trabalho da
análise, o sujeito pode se situar de maneiras diferenciadas na cadeia significante e
promover rearranjos destes significantes que são, no inconsciente, inscritos
sincronicamente.
Tal operação é possível, nos diz o autor (Ibid.: 52) uma vez que a presença
do analista garante que ocorra uma reversão temporal de forma que “o analista se
dedica a encarnar na atualidade o instante passado. É por isso que não se trata
simplesmente de saber, e sim de um sujeito suposto saber” (Grifos do autor).
Lacan (1960/1998: 853), antes de Miller, destaca esta reversão temporal,
como vemos no escrito Posição do inconsciente, no qual aborda a estrutura temporal
do nachträglich freudiano, ou a posteriori. Evidencia, deste modo, os efeitos do
significante e da linguagem sobre o sujeito, sendo que este somente advém como tal
a partir de sua entrada no campo da linguagem.
Assim, o sujeito em Lacan (1964/1998: 46) comporta uma dimensão temporal,
pulsativa, de abertura e posterior fechamento, por onde ele surge para, em seguida,
desaparecer. Lacan (Ibid.: 30) diz que nessa vacilação, nesta descontinuidade, há
uma estranha temporalidade, de encontrar, em um momento, algo que traz surpresa
122
e que, em um segundo momento, volta a ser perdido. Tem-se, assim, que surge, de
forma pontual e evanescente, alguma coisa de um não-realizado (Ibid.: 34-35).
Por outro lado, Miller (2000: 63) nos faz lembrar que o sujeito se encontra
entre dois significantes, tanto espacial quanto temporalmente. Entendemos essa
assertiva na medida em que se um significante é aquilo que representa um sujeito
para um outro significante (Lacan, 1960/1998: 854), isto ocorre posto que o sujeito
está no intervalo entre dois significantes por não ser definitivamente representado
por nenhum. Tal intervalo pode ser entendido dentro do ordenamento temporal da
cadeia significante.
Como acima vimos, este intervalo comporta um momento de abertura e outro
de fechamento, de uma sincronia significante (Ibid.: 849) e de um corte (Ibid.: 854),
movimentos que dizem das operações de alienação e de separação entre o sujeito e
o Outro, de onde o sujeito surge como barrado e cujo resto desta operação é o
objeto a.
É este objeto que Miller (2000: 66) relacionará ao sujeito barrado
contrapondo, a pontualidade e evanescência da articulação significante deste a não
pontualidade do objeto a. Nas palavras do autor (Ibid.: 66-67), “o objeto a é uma
consistência lógica, e mesmo o lastro de uma retirada de uma parte do corpo: o
objeto anal, o objeto vocal, que cada um supõe ocupar um certo lugar e estar ligado
a um certo tempo”. Ao que conclui que “o objeto a é o fator que desregula o
desenrolar uniforme do tempo” (Ibid.: 67).
Será sob estas coordenadas que Miller apresentará a idéia de que a música,
por ser “arte do tempo” (Ibid.: 68), trabalha com o tempo de forma ritmada e
regulada, substituindo o “tempo imprevisto” do objeto voz.
A partir dos pontos acima delimitados, nos propomos algumas perguntas: O
que pode a música fazer quanto ao tempo? Ritmar o arítmico e a constância da
pulsão? Regular, pelo movimento do circuito pulsional, a busca de apreensão do
objeto voz? Como pensar o tempo na música, já que o ritmo, que marca e corta o
123
tempo, lhe é de base? Para que (Outro) tempo a música pode levar? Ela, ao mesmo
tempo, cria um espaço e um tempo próprios, e opera um corte no tempo cronológico.
Se a pulsão é constante, incessante, se “ela não tem nem dia nem noite”
(Lacan. 1964/1998: 157), a música, pelo contrário, marca tempos, inscreve e
escreve no silêncio, no vazio, notas de durações pré-determinadas e em relação
entre si, possibilitando alguma organização e previsibilidade, em maior ou menor
grau, dependendo do estilo musical ao qual o compositor se filia. A própria criação
da obra musical depende dessa marcação rítmica; o trabalho de criação é um
trabalho com o tempo, cortando a constância do silêncio, trabalhando com a “tensão-
distensão” (Boulez, 1972: 25) do material que lhe é próprio, em especial a altura e a
duração das notas (Ibid.: 35), e produzindo um novo objeto, não o que se esperava
encontrar, mas um possível.
Este material de base que Schaeffer (1966: 95), como vimos, denomina de
objeto sonoro é também assim denominado por Boulez (1972: 40), que lhe
acrescenta o adjetivo “concreto”. O objeto sonoro concreto seria o que engendraria a
estrutura do universo sonoro-musical, podendo, porém, segundo o autor (Ibid.: 42),
se diferenciar os sons brutos dos sons trabalhados. Entendemos que, de um caso a
outro, há uma escolha de um sujeito que tomará uma marca sonoro-musical e a
situará em um conjunto em relação a outras, formando uma cadeia. Tais marcas, já
arranjadas, terão função significante.
Deste modo, o sonoro ascende ao musical quando, por ação humana, os
sons são trabalhados e organizados de tal forma que, como por exemplo, no caso da
música ocidental, são formalizados, por suas diferenças, em doze semitons
conforme o sistema temperado tradicional (Ibid.: 43).
Há, portanto, um corte no sonoro que tem efeitos de perda neste universo
“natural” e que somente depois de efetuado tal corte se poderá dizer que estes sons
se tornam musicais e podem ser utilizados na criação de uma música. Além disso,
este corte também produzirá efeitos temporais e espaciais para os sujeitos. Boulez
(Ibid.: 84) aborda a função de corte na dialética entre o contínuo e o descontínuo, na
“possibilidade de cortar o espaço segundo certas leis” (Grifos do autor).
124
Em psicanálise, como estudamos com Lacan (1964/1998: 196), é preciso,
para o advento do sujeito, que se faça um corte entre o bebê e o Outro, produzindo
uma borda. O contínuo do bebê, enquanto organismo vivo, é perdido e este passa
ao descontínuo, lacunar e pulsante do sujeito do inconsciente.
Em que o corte de que nos fala Boulez se aproxima do corte apresentado por
Lacan? Ambos os autores partem de um referencial estruturalista; porém, isto nos
autorizaria a aproximá-los? Notamos na posição de ambos que o corte de que se
trata faz com que seja possível se passar ao campo do simbólico, tratar
determinados sons musicais por um conjunto de regras, de um lado, e passar a
sujeito da fala pela transmissão da Lei. Aliás, no primeiro caso, só se pode fazer este
corte entre o som bruto e trabalhá-lo posto que há um sujeito ali.
A aproximação que fazemos se dá, então, na medida em que no trabalho de
criação musical, com este material concreto musical, é preciso, como destaca
Boulez (1972: 84), que se escolha um padrão e que este último não é dado, é uma
construção. Se há escolha, há um sujeito a escolher, mesmo sem saber, a partir de
uma posição singular com o objeto causa de desejo. Temos aí uma escolha de uma
escolha. E nela o sujeito do inconsciente pode emergir, ainda que sob forma de
surpresa.
Nesta escolha, o sujeito que cria transmite algo pela obra de forma cifrada,
fala de sua posição e do vazio enigmático de sua constituição. Este vazio, como
ressalta Lacan (1959-1960/1997: 153), estará no centro do objeto criado pela
“modelagem do significante” a partir deste furo real. É porque este furo existe que se
cria e continuará criando, laborando através dos significantes, no caso do
compositor, neste “campo de batalha” que é a música, como nos diz Ferraz (2005:
18).
Na obra freudiana, temos notícia deste real quando o autor (1900/1990: 482)
descreve em A interpretação dos sonhos o umbigo do sonho. Cabe, aqui, situar esta
discussão. Neste momento de sua teoria, Freud (Ibid.: 489) estuda os sonhos como
atos psíquicos cuja
125
força propulsora é, na totalidade de casos, um desejo que busca realizar-se; o fato de não serem reconhecíveis como desejos, bem como suas múltiplas peculiaridades e absurdos, devem à influência da censura psíquica a que foram submetidos durante o processo de sua formação; à parte a necessidade de fugir a essa censura, outros fatores que contribuíram para sua formação foram a exigência de condensação de seu material psíquico, a consideração a sua representabilidade em imagens sensoriais e – embora não invariavelmente – a demanda de que a estrutura do sonho possua uma fachada racional e inteligível.
Vemos nesta citação resumidos os principais conceitos relacionados aos
sonhos, de grande complexidade, e que dizem da própria estrutura do inconsciente,
que, em Lacan (1955-1956/2002: 252), foram relacionadas à estrutura de uma
linguagem e à operação da metáfora e da metonímia. No trabalho da análise, o
sonho será dado à decifração, o que faz com que se possa, pela associação livre do
analisante e pela interpretação do analista, passar do sonho manifesto ao sonho
latente. Isto porque
as modificações a que os sonhos são submetidos na redação |Redaktion| da vida de vigília tampouco são arbitrárias. Estão associativamente ligadas ao material que substituem e servem para indicar-nos o caminho para este material, que, por sua vez, pode ser substituto de alguma outra coisa (Freud, 1900/1990: 473).
Ou seja, Freud nos indica que através dos sonhos e, também, do trabalho de
análise, podemos ter acesso a esta Outra coisa inconsciente.
Entretanto, por mais que os elementos oníricos e da fala do paciente possam
ser interpretados, revelando as redes a que se atrelam, suas determinações e
ramificações inconscientes, haverá um ponto irredutível a qualquer interpretação,
algo que nenhuma palavra ou imagem (visual ou acústica) poderá dizer, algo que é
“insondável” (Ibid.: 132). Nas palavras de Freud (Ibid.: 482):
Mesmo no sonho mais minuciosamente interpretado, é freqüente haver um trecho que tem de ser deixado na obscuridade; é que, durante o trabalho de interpretação, apercebemo-nos de que há nesse ponto um emaranhado de pensamentos oníricos que não se deixa desenredar e que, além disso, nada acrescenta ao nosso próprio conhecimento do sonho. Esse é o umbigo do sonho, o ponto onde ele mergulha no desconhecido.
126
Toda e qualquer rede de significantes, podemos assim dizer com a tradição
lacaniana, encontrará invariavelmente este ponto real, não submetido a nenhuma
palavra. Não apenas nos sonhos, mas em toda expressão humana, incluindo aí,
obviamente, a música.
E não são apenas os psicanalistas que observam este ponto. Boulez (1992:
50-51), baseando-se em André Breton, nos diz de um “núcleo noturno, inquebrável”
no compositor, acrescentando que “mesmo se quisesse, ele não poderia destruir em
si esta fonte profunda e inesgotável de irradiação”.
O curioso é que ele associa o talento a este ponto de desconhecido (talento
de lidar com este ponto?), ligando-o, ainda, ao que chama de “experiência do vazio”
(Ibid.: 88). Diz ele: “O talento não é destruído pela experiência do vazio, mas tira
dela capacidades renovadas, um poder de invenção reativado”. Diríamos, deste
modo, que o “talento” do compositor e do músico intérprete residiria em criar a partir
do vazio, em lidar com ele, servindo-se dos recursos de que dispõem.
Antes de avançarmos, propomos uma breve pausa aproveitando a referência
feita à Interpretação dos sonhos freudiana. Chamou-nos a atenção o fato de termos
encontrado neste texto, dentre as poucas falas de Freud sobre música, uma em que
ele descreve que ao soar “alguns compassos musicais” de Mozart, estes poderão
despertar no sujeito “de uma vez só, inúmeras lembranças” que se enlaçam em uma
“rede” (Freud, 1900/1990: 458).
Lembramos que, sobre a técnica da interpretação, também encontramos em
Freud (1916[1915-16]/1990: 134) um comentário sobre música. Nele, conforme
citado em nosso primeiro capítulo, o conteúdo musical de uma melodia é
considerado por ele como tendo valor diferenciado para “pessoas realmente ligadas
à música” (Idem). É este conteúdo musical que determinará para estas pessoas o
surgimento inesperado de uma música em um sonho.
Voltemos agora para o núcleo noturno de Breton e Boulez e para o umbigo do
sonho de Freud, acrescentando a esta reflexão o vazio de das Ding de Lacan. Se a
127
criação musical pode evidenciar este ponto, como ela o faz? Seria este o ponto que
une criador, intérprete e ouvinte?
Se, por um lado, o compositor e o intérprete podem transmitir algo de sua
posição frente ao vazio pela música, na escuta, o trabalho está do lado do ouvinte. A
música irá ressoar no vazio deste sujeito que ouve, produzindo efeitos nele. Ao
término da música, esta deixará vestígios no ouvinte e, com eles ou a partir deles,
este sujeito poderá, se assim se sentir impelido, fazer algo, tecer alguma coisa por
ter sido tocado neste ponto para além dos sentidos, ainda que esta produção
comporte sentidos, pela via da fantasia, por exemplo.
Em um mesmo instante, a obra musical põe ao sujeito uma série de
complexos fatores, mesclando sincronia e diacronia, harmonia e melodia, tensão e
resolução dos materiais musicais, pelo ritmo e pelas diferenças de alturas, pela
regularidade e pela surpresa, pela repetição de temas e frases, impondo-se como
um enigma para quem ouve.
Sobre esta trama musical, nos diz Wisnik (1989: 28-29):
uma das graças da música é justamente essa: juntar, num tecido muito fino e intricado, padrões de recorrência e constância com acidentes que desequilibram e instabilizam. Sendo sucessiva e simultânea (os sons acontecem um depois do outro, mas também juntos), a música é capaz de ritmar a repetição e a diferença, o mesmo e o diverso, o contínuo e o descontínuo. Desiguais e pulsantes, os sons nos remetem no seu vai-e-vem ao tempo sucessivo e linear mas também a um outro tempo ausente, virtual, espiral, circular ou informe, e em todo caso não cronológico, que sugere um contraponto entre o tempo da consciência e o não-tempo do inconsciente. Mexendo nessas dimensões, a música não refere nem nomeia coisas visíveis, como a linguagem verbal faz, mas aponta com uma força toda sua para o não-verbalizável.
Destacamos desta fala o contraponto entre uma ordenação temporal que a
música evoca e efetivamente produz e o “não-tempo” do inconsciente. Sobre esta
ordenação temporal da música, apesar de se poder mensurar a passagem do tempo
pela duração da obra, o que ela produz em cada sujeito é uma Outra coisa, por seus
efeitos inconscientes e não cronológicos.
128
Repetição e temporalidades diversas também são centrais na concepção de
Ferraz (2005: 28) sobre o momento de escuta musical, sobretudo em uma primeira
audição. Passamos a palavra ao próprio compositor (Ibid.: 28-29):
Música é aquilo que se faz ao mesmo tempo em que se desfaz, que ganha uma realidade a cada instante, sempre lançada sobre o futuro. Quando se ouve música pela primeira vez, é no futuro que esta música está; ela cruza aquilo que não temos a menor idéia com um pouco daquilo que já conhecemos. Daí a música seguir a dinâmica da repetição, não a da simples reiteração circunscrita a um objeto, ao fenômeno sonoro, mas de uma outra repetição, totalmente a parte, em que a música não repousa apenas no sonoro. A repetição vista como o ato de repetir sempre a condição de trazer o diferente, de permitir novas conexões.
Este modo de apresentar a repetição aproxima-se do modo tal como Lacan
(1959-1960/1997: 256) descreve a pulsão de morte, enfatizando sua dimensão
histórica e sua característica de insistência, articulada, contudo, à cadeia significante
(Ibid.: 258). Assim entendida, a pulsão de morte visa a criação já que pode ser
pensada como “vontade de recomeçar com novos custos”, “vontade de Outra-coisa”
(Ibid.: 259), “vontade de criação a partir do nada” (Ibid.: 260).
Desse modo, Ferraz nos dá uma instigante contribuição para pensarmos de
que temporalidade se trata na música. Primeiro, como acima visto, nos diz que a
música, ao ser escutada, está no futuro, para depois complementar que
não é o ouvinte que está no futuro. O ouvinte está no presente brincando com o passado: é a matéria, grão sem forma ou de forma transiente, que “vai ao futuro” e traz, naquilo que é o plano de composição, forças que ainda não nos tinham sido reveladas (Ferraz, 2005: 44).
Perguntamo-nos se o sujeito que ouve não está na dimensão atemporal do
inconsciente, posto que é com este sujeito que a psicanálise lida, retirando, assim, o
pensamento de Ferraz de seu contexto deleuzeano e situando-o em Freud. Ou seja,
nossa pergunta se volta para a possibilidade de a música poder fazer esse
entrelaçamento entre futuro, passado e presente para quem a escuta por se
aproximar da realidade do inconsciente, na qual há a simultaneidade de traços
inscritos.
129
Paradoxalmente, ela regula o tempo, substituindo o imprevisto pelo ritmado; a
constância da pulsão é regulada, sai do arítmico para o rítmico. O imprevisível da
incidência do objeto voz pode ser, ao buscá-lo (jogando com o tempo e com texturas
musicais que o silenciam), submetido a uma ordem, a uma lei.
O ritmo produz um corte no tempo contínuo, cronológico e instaura a
marcação de outra temporalidade. Encontramos idéias consoantes a esta no campo
musical. O musicólogo Roland de Candé (1983: 217), ao definir o ritmo, pontua que,
em música, ele tem um caráter relativo, já que é baseado em um tempo, ou
andamento musical, que, nas palavras do autor, “falseia a nossa maneira de medir
as durações”. Desta forma (Ibid.: 198), ele relaciona o ritmo à “expressão do ´tempo
musical´ em concordância com o ´tempo psicológico´”, desvinculando-os do “tempo
do relógio”, com o qual eles não têm medida. Trata-se da marcação de uma
temporalidade própria na música, que implicará os sujeitos com ela envolvidos.
Entretanto, no humano, o ritmo, decerto, não é exclusivo à música; é algo que
se apresenta precocemente ao infans, como nos evidencia Catão (2005: 121). A
autora (Idem) aponta que o “trajeto desenhado pela pulsão ao circundar o objeto –
trajeto que só é possível pela mediação de um outro (Outro)”, é o que possibilitará o
surgimento de uma ritmicidade.
Voltamos, com isso, a pensar na característica constante da força pulsional.
De fato, a pulsão é uma força constante, e é Freud quem nos dá a resposta para o
impasse que poderia daí surgir: essa força exige constantemente, repetimos,
trabalho ao psiquismo. Assim, ao ser colocada em trabalho, surge o circuito
pulsional, como estudamos no capítulo II. A busca de apreensão do objeto pelo
circuito pulsional instaura uma organização e um ritmo. Este vem de um trabalho
psíquico que ocorre pela linguagem.
Sobre este tema, Catão (Ibid.: 102-121) nos dirá que é preciso uma
organização psíquica prévia possibilitada pelo corte entre o bebê e a mãe, corte este
que se efetua pelo objeto voz. É nesse sentido que, segundo a autora (Ibid.: 208) a
voz “delimita as bordas que separam o corpo da mãe e o corpo do bebê. A voz é o
que funda, a um só tempo, sujeito e Outro”.
130
Indo além, Catão (Ibid.: 121) defende que é pela musicalidade da voz e da
fala maternal que a alternância significante do simbólico pode tomar lugar, afirmando
que “ritmo é significante”.
Retomando a concepção freudiana do circuito pulsional em três tempos, vista
neste trabalho no capítulo II, e o circuito da pulsão invocante, por nós estudado no
capítulo III, podemos pensar em como o ritmo possibilita a elaboração do movimento
de separação no campo do Outro pela pulsação alternada de presença-ausência
(Ibid.: 128). Lembramos aqui do jogo do “fort-da” do pequeno neto de Freud que,
repetidamente, ritmava pela brincadeira sua separação com a mãe.
Didier-Weill (1999: 155) nos diz que a fala maternal é revestida de uma
“musicalidade invocante” que transmite as dimensões de harmonia – sincronia e
melodia – diacronia. Ela convida à simultaneidade, à continuidade e ao corte, à
separação. Também na música as dimensões da sincronia e da diacronia estão
presentes, de uma só vez, podendo-se associar a primeira à harmonia e a segunda
à melodia. Contudo, entendemos que também na constituição do sujeito elas se
apresentam em um mesmo instante.
Vale aqui ressaltar que por mais que possamos falar, e de fato falamos, em
harmonia como a característica vertical na música e a melodia como a horizontal, é
preciso tomar cuidado quanto a isso. Candé (1983: 118) afirma que “estas noções
muito artificiais às quais nos referimos ao falar das qualidades ´harmônicas´ ou
´contrapontísticas80´ de uma obra musical são ingenuamente deduzidas de uma
particularidade da notação”. Ao que conclui que, “com efeito, a música não é nem
horizontal nem vertical e raramente uma obra pode considerar-se exclusivamente
sob o seu aspecto harmônico ou contrapontístico”.
Ao sujeito em vias de sua constituição, a fala e voz da mãe dão um
testemunho de que há um sujeito ali, ela própria, que pôde ouvir a voz do Outro,
aceitar seu convite à subjetivação e torná-la inaudita, pela separação e pelo recalque
originário. Com a música, por outro lado, o sujeito ouvinte tem acesso a um outro
80 Estas relacionadas à progressão das linhas melódicas.
131
testemunho, desta vez do compositor, de que foi possível fazer algo com o objeto
voz, organizando-se e criando em torno deste vazio.
Defendemos, portanto, que a música é capaz de testemunhar o inconsciente,
colocando em cena um real, a ausência do objeto a que ela tenta, em vão,
apreender em seu circuito, apenas circundando seu vazio e apontando para a Coisa,
e também de colocar em jogo a dimensão simbólica, discursiva, e imaginária, por ser
criação de um sujeito singular. Ela é assim, uma produção do inconsciente; porém,
diferentemente de um sonho ou um sintoma, ela não se coloca de forma a exigir
decifração81: ela, pelo contrário, causa aqueles que a ouvem.
Podemos afirmar que a música se estrutura como uma linguagem, por existir
nela um conjunto de materiais com os quais o compositor poderá trabalhar
relacionando-os entre si a partir de suas diferenças, reunindo-os em cadeias,
formando temas, frases, melodias. Como vimos no primeiro capítulo, encontramos
autores no campo musical que afirmam a música deste modo, defendendo que ela
comporta uma morfologia e uma sintaxe próprias, tal qual uma linguagem. Assim
sendo, poderíamos aproximá-la do conceito de inconsciente? Em que medida?
Sobre esta aproximação, destacamos que o psicanalista François Dachet
(2001: 4) aponta que a escrita clássica musical se fundamenta nos princípios da
harmonia e da melodia, sendo estes parâmetros de orientação para a criação
musical. Em seguida, (Ibid.: 7-8), os relaciona, respectivamente, aos conceitos
lingüísticos de metáfora (por suas características de transversalidade,
simultaneidade e combinação) e de metonímia (por serem ambas longitudinais,
sucessivas e passíveis de substituição).
O psicanalista François Regnault (2002: 4-5) propõe que a música traz
dimensões dos três registros estipulados por Lacan, do real, por remeter ao vazio,
do simbólico, por ser um discurso, e do imaginário, pelos efeitos singulares que pode
81 Como vimos no capítulo IV com Attié, é o sintoma que demanda decifração, exigindo interpretação e trabalho de análise. A arte parte de outro ponto. Nela, o artista pode cifrar algo de seu inconsciente sem que isso implique em demanda de análise. Da mesma forma, o fruidor, ao se deparar com algum estranhamento ou fascínio diante da obra, ou seja, ao ser por ela causado, também não implicará que isto se converta em pedido de decifração, por mais que isso possa vir a acontecer.
132
gerar em cada ouvinte. Isto porque a trama da composição musical pode ser
entendida como análoga à composição do inconsciente.
Como destacamos em outro lugar (Azevedo, 2003: 68-69), este mesmo
psicanalista afirma que a música não é estruturada como uma linguagem dentro dos
parâmetros saussurianos. A isto, respondemos que, por ser a música uma resposta
de um sujeito a uma exigência pulsional, ela surge como expressão psíquica, sendo
sua linguagem “uma construção que tratará de normatizar e formalizar esta arte”
(Ibid.: 69).
Ao que acrescentamos, com Candé (1983: 74), que “as leis da música, não
sendo postuladas a priori, terão de ser extraídas, pouco a pouco, da análise das
obras-primas”. Para este autor, estas leis formam um conjunto que, apesar de poder
ser ensinado àqueles que almejam se tornar compositores, não lhes é suficiente
para criar suas obras originais. Diz ele (Idem): “a intuição do gênio, muito mais
rápida, encontra-se necessariamente, muito mais avançada”. Ou, nas palavras do
compositor Arnold Schoenberg (1967: 1):
Um compositor, é claro, não adiciona pouco a pouco, como uma criança o faz ao construir peças com blocos de madeira. Ele concebe uma composição inteira como uma visão espontânea. A partir daí ele procede, conforme Michelangelo que criou seu Moisés retirando-o do mármore sem rascunhos, completando em cada detalhe diretamente dando forma ao seu material.
Também Stravinsky (1999: 10) indica que o trabalho de compor se antecipa e
é, de certa forma, autônomo à teoria musical, que, em suas palavras, é uma
“percepção retrospectiva” que “pode ser deduzida de certas composições”. Embora
um compositor se utilize de uma linguagem musical comum a “uma determinada
época e escola”, Stravinsky (1996: 70) indica que “o modo particular com que um
compositor organiza suas concepções e fala a linguagem de sua arte” é o que
determina seu estilo. Ou seja, ao se servir da linguagem, criando de forma singular e
única, um sujeito elabora seu estilo próprio, sua própria voz, “falando” o seu lugar e
seu vazio.
Interessa-nos, ademais, destacar que é a partir deste material musical que o
compositor poderá criar a música com uma estrutura que não pode ser reduzida a
133
qualquer outra forma de arte. É com este material, o som musical, que ele poderá
tecer articulações e construir frases, motivos, formas musicais, temas e melodias.
Schoenberg (Ibid.: 8) afirma que estas construções, como os motivos e temas,
apresentam-se na melodia como conjunto de ritmos e intervalos, com uma harmonia
inerente, combinados de modo a produzir uma forma ou contorno que possa ser
memorizado a fim de ser repetido e variado. Entendemos que a repetição assegura
o sujeito que ouve de uma certa regularidade e, até mesmo, previsibilidade,
enquanto que a variação traz a repetição como diferença, trazendo uma surpresa e
imprevisibilidade.
Poderíamos, assim, pensar que a obra musical, enquanto criação estética é
também ética, ela aponta para o real sem servir de engodo ao sujeito, tal como
Lacan (1959-1960/1997: 265) nos diz do belo no Seminário A ética da psicanálise.
Neste, Lacan (Ibid.: 289) afirma que a criação do belo comporta um valor cifrado na
obra de arte, ressaltando, deste modo, a relação entre o desejo e o belo. “Essa
relação é ambígua. Por um lado, parece ser possível que o horizonte do desejo seja
eliminado do registro do belo. E, no entanto, por um outro lado, ele não deixa de ser
manifesto” (Ibid.: 290).
A psicanalista Marie-Claude Lambotte (1996: 693), seguindo J. e A. Caïn,
propõe que a realidade própria da música possui uma “proximidade excessiva do
tipo da realidade do inconsciente – em particular no que concerne à temporalidade”.
Sem, contudo, aprofundar-se neste aspecto, nos sinaliza que o tempo musical é,
“antes de mais nada, um tempo de escanção, um tempo de movimento e ruptura”
(Ibid.: 698).
Por outro lado, sua via vai em direção de buscar ver como o inconsciente se
expressa na música, admitindo nela a presença do objeto voz (Ibid.: 697). Para a
autora, a música poderia alcançar um aquém e um além da expressão,
transcendendo-a deste modo. Em suas palavras (Idem):
A música, por esta dupla capacidade – de fazer o melômano regredir a fontes pulsionais há muito esquecidas, e de fazê-lo aceder, ao mesmo tempo, à apreensão de combinações formais intangíveis –, se auto-expressaria,
134
independentemente de qualquer interpretação concernente a uma interpretação externa a ela.
Esta característica de uma certa intradutibilidade da música também é
ressaltada pela psicanalista Dinara Guimarães. Para ela, mais do que não comportar
tradução, a música encontra-se no registro do indizível. Nas palavras da autora
(Guimarães, 2004: 60), “a música exprime o quanto há palavras que não se pode
dizer”.
Entretanto, não podemos assumir que este aquém ou além das palavras
queira dizer de um “pré-verbal” ou de um fora do domínio da linguagem ou da fala.
Ao tocarmos, compormos ou ouvirmos uma música não deixamos o verbal e nos
transportamos para um registro no qual as palavras deixam de existir. Compositor,
intérprete e ouvinte ainda se encontram sob efeito da linguagem. No entanto, a
música comporta um indizível, um ponto sobre o qual nenhuma palavra ou mesmo
som musical pode dizer, da mesma forma como não o faria um passo de dança, um
filme ou um quadro.
Não existirá, portanto, o "não-verbal" no campo simbólico, e menos ainda o "pré-verbal". O domínio do verbal não é uma conquista do desenvolvimento cognitivo ou simbólico, mas uma condição inerente ao falante como tal. Como ser de linguagem, o sujeito humano se constitui no domínio verbal. Trata-se de um domínio no sentido de um campo, um território, um universo, que contém e subsume o sujeito, mais do que um domínio de uma função, isto é, de algo que o sujeito pode dominar ou não (Elia, 2004: 21).
A partir deste ponto, Lambotte (1996: 697) se detém a pensar na questão da
satisfação que encontramos ao ouvir uma música para pensar na natureza desta
arte. É interessante notar que, ao falar da música como autônoma, não precisando
de outras formas de linguagem para ser explicada, nem, acrescentaríamos,
precisando de explicação, apesar de deixar rastros nos sujeitos, Lambotte (Idem),
recorre ao filósofo Daniel Charles. Este descreve a música como desenvolvendo um
“tremor surdo” e pertencendo ao nível da cifra. Nas palavras do filósofo (Charles
apud Lambotte, 1996: 697): “O abalo vem de mais longe. E deixa vestígios: são
esses vestígios que, como escrita, se prestam à decifração”.
135
Destacamos, contudo, que essa “decifração” somente poderá ganhar lugar
caso o sujeito ouvinte seja levado a falar de tal abalo causado pela música para
alguém que possa acolher esta fala, a saber, o analista. Se a música apresenta um
saber cifrado do compositor e se, no pólo do ouvinte, ela poderá causá-lo a ouvir
algo dele mesmo, é preciso um outro encaminhamento para que, a partir daí, possa
se dar um trabalho de decifração. A obra de arte musical, tanto para quem a cria,
interpreta ou ouve, não é análoga ao processo de uma análise, embora, notamos,
possa haver mudanças no sujeito a partir dela.
Também Regnault (2002: 5) destaca na música uma característica de
decifração, porém, separando o campo teórico da música de um campo clínico, no
qual, entendemos, a música pode ser acolhida e ouvida dentro do trabalho analítico.
No primeiro plano, teórico, ele define a música como “o exercício de psicanálise
inconsciente do sujeito que não sabe que goza da decifração” (Idem). No plano
clínico, sua definição de música é de que ela é “um exercício clínico de uma cura no
qual o sujeito não sabe que se cura”.
Não focalizaremos esta segunda definição, posto que visamos neste trabalho
refletir sobre a música enquanto arte. No entanto, quanto à primeira, nos chama a
atenção que ela se detenha sobre um saber que o sujeito que cria transmitiria, de
forma cifrada, sobre sua posição. Sem saber, o sujeito que cria tem a chave para o
enigma de sua criação, ainda que essa chave seja um outro enigma, sobre o desejo
do Outro.
Passaremos, agora, a focalizar separadamente, apesar de já termos
abordado neste espaço os dois próximos temas, a criação e, posteriormente, a
escuta musical.
V.2 – Criação musical: alinhavo entre sons e silêncio
Vimos no capítulo anterior como a psicanálise se aproxima da criação artística
a partir das considerações freudianas sobre a sublimação e das lacanianas que
enfocam, mais do que um destino pulsional, o trabalho de criar novos objetos que
136
possam atuar como causa de desejo. Há, evidentemente, pontos em comum em
toda criação de obras de arte e pontos em que os meios próprios de cada produção
artística serão determinantes. Pretendemos, neste momento, investigar alguns
destes últimos pontos no que concerne à música.
Iniciaremos esta tarefa mais uma vez com a ajuda do pintor Paul Klee. Ele
nos apresenta a idéia de que o “impulso” criador somente ganha forma quando
trabalhado com os recursos materiais de que o artista dispõe para criar. E neste ato,
sempre singular e único, o artista alcança além do que está presente nesta
materialidade.
O que surge deste impulso pode ser chamado como quiserem, sonho, idéia ou fantasia, mas só pode ser considerado seriamente quando se liga aos meios plásticos próprios para lhe darem forma. Então aquelas curiosidades se tornam realidades, realidades da arte, que levam a vida para além do que ela aparenta ser por uma perspectiva mediana. Porque as obras de arte não só reproduzem com vivacidade o que é visto, mas também tornam visível o que é vislumbrado em segredo (Klee, 2001: 66).
Nesta fala, temos a especificidade de um pintor falando de sua arte, de como
ela, por seus meios específicos, consegue bordear o invisível e dar a ver algo de real
que não pode ser apreendido pelo simbólico nem, tampouco, pela fantasia. No caso
da arte musical, entendemos que o ato significante da criação da obra, por sons
musicais e silêncios, contorna, igualmente, o inaudito.
Sobre este ponto, lemos em Diddier-Weill que a arte pode “tocar” o além do
que é visto, ouvido ou do que é concreto. Ela pode apresentar formas de lidar com o
invisível, o inaudito e o imaterial (Didier-Weill, 1997: 20). O autor nos apresenta
estes termos ao falar de três faces distintas do contínuo e do ilimitado, ou, mais
claramente dizendo, da continuidade entre o real, o simbólico e o imaginário. Seriam,
defende ele (Idem), as interseções entre o real e o simbólico (inaudito), o simbólico e
o imaginário (invisível), e o imaginário e o real (imaterial).
Não nos aprofundaremos na tese de Didier-Weill, contudo, nos serviremos
destes termos para pensar os efeitos da arte. Caminharemos, como já
demonstramos acima, com a idéia do invisível que é “vislumbrado em segredo” de
Klee e, com Lacan (1964/1998: 99), com o que se é dado a ver no quadro e que, de
137
fato, lá não está. De forma análoga, podemos dizer que há na música algo que não
se ouve e que a move, algo inaudito com o qual o compositor sabe habilmente lidar.
Ouvimos na música mais do que as notas que a compõem.
Ao estudarmos a sublimação, percebemos que há um vazio central e
estrutural na criação artística, algo que marca a própria condição humana. Contudo,
para o artista, não basta se defrontar com este vazio; o artista faz algo com ele, com
recursos que especificam uma ou outra arte. Assim sendo, a criação, nos diz Alencar
(2004: 7-8), passa por momentos distintos.
Diríamos que o processo de criação pode ser situado, resumidamente, como incluindo: 1- uma determinada experiência com o vazio significante, que, por reportar à impossibilidade do gozo, implica na invenção, por parte do sujeito, de um objeto, criado para supri-lo; 2- a escolha de um suporte material para margear esse vazio, funcionando ao nível da letra, ou seja, distinto do próprio significante; 3- a assunção pelo sujeito de um produto deste ato, que, investido de função significante, esteja em posição de causar efeitos de significação.
Vemos nesta citação a delimitação de três momentos lógicos, que são,
contudo, simultâneos, na criação ex nihilo de um novo objeto a partir de uma dada
materialidade, cujo efeito será o de poder servir como causa para outros sujeitos.
Esta concepção vai ao encontro da descrição sobre a composição musical feita por
Candé (1983: 73-74):
A primeira fase da criação musical é a escolha de uma “escala” de sons, determinada apenas pelas relações de altura (…). Adquiridos os materiais, o verdadeiro trabalho do compositor consiste na distribuição dos sons sucessivamente (melodia) e simultaneamente (harmonia) variando harmoniosamente as suas intensidades (cambiantes), as suas durações (ritmo) e os seus timbres (instrumentação). Ele inventa e combina ou “compõe”. A arte de inventar não se ensina, pertence à inspiração.
Propomos uma breve pausa para trazer um pequeno exemplo quanto à última
frase deste autor acerca da composição. Machado de Assis (1962: 72), em seu
conto Um homem célebre82 nos narra a estória de um compositor em sua divisão
entre compor o que sua “inspiração” lhe indica ou seguir o caminho dos grandes
mestres que admira. Entre quadros de Mozart, Beethoven e Haydn, o compositor e
138
pianista de Machado de Assis, Pestana, busca “nas profundezas do inconsciente”
(Idem) uma idéia que se assemelhasse às obras destes mestres, estudando-as e
esforçando-se em compor como eles. Contudo, o que encontrava, à revelia de seu
estudo e afinco, eram polcas. O conto é de uma riqueza que não exploraremos aqui.
Apenas o apresentamos a título de complementar a idéia de Candé acima descrita.
O processo de criação de uma obra musical, de certo, será particular a cada
sujeito compositor e, até mesmo, a cada peça criada. No entanto, defendemos que
toda criação partirá de um encontro de um sujeito com o vazio, que colocará em jogo
o circuito pulsional visando contornar o objeto voz, de forma que a peça criada será
uma resposta singular do sujeito que a criou.
Encontramos no artigo Da voz à música: o grão e o resto, de Alencar (1997:
356-357), um rico exemplo do processo de criação de um compositor, mantido
anônimo pela autora. Tomaremos este caso para trabalharmos a questão da criação
musical, portanto, faz-se necessário que citemos integralmente o testemunho deste
compositor:
Pediram-me, outro dia, de uma hora prá outra, que eu compusesse uma peça para um quarteto de cordas. Perguntei quanto tempo eu tinha para isso e a resposta foi: não tem tempo. É prá já, é prá ontem. Isolei-me no silêncio/escuro do meu quarto à espera, premido pela urgência do pedido, visto que a única condição era a pressa, e a liberdade de escolha, de resto, era total – “faça como quiser, queremos a peça”. Como eu quiser? Qual nada. Não fiz nada. Recolhi-me ao nada, ao silêncio. Ative-me a não pensar em nada. E, curioso, me dei conta de repente que duas linhas melódicas distintas, não-sonoras (pois tudo era silêncio no escuro do meu quarto), na forma de dois sons diferentes de trompetes se impuseram à minha escuta, em súbita expansão no espaço-tempo. Surpreso, urgia me incluir nesse processo, o que fiz. Procurei rapidamente registrar as duas linhas, e tratei de “esgarçar” sua harmonia, abusar o que pudesse de seus limites (tonais), interpondo-lhes súbitas texturas (de cordas, já que me pediram), pois que expandindo e contraindo o campo, deslocando ou suspendendo os acentos, punha-se em marcha um tal processo, instável e estável a cada novo ponto, tecendo num alinhavo entre o som o silêncio. Aí parou. A peça estava pronta, eu podia assiná-la naquele instante.
Nessa bela fala, podemos destacar diversos pontos de nosso interesse: o
aspecto de um pedido exterior para a criação da peça (que poderia ocupar o lugar
82 Agradeço à colega de Mestrado Luciane Negrini pela indicação deste conto para o enriquecimento de minhas reflexões sobre música e psicanálise.
139
de uma demanda ou, ainda, mesclar-se com o enigma do desejo do Outro, fazendo
com que este compositor se direcionasse ao ato de criação), o tempo e a pressa
presentes neste exemplo (a “urgência do pedido”), a experiência com o nada e com
o silêncio, as idéias musicais que se impõem à escuta do compositor, a inclusão
deste (enquanto sujeito que tece e cria) no processo, o trabalho com o material
sonoro e, por fim, a dimensão da autoria.
Antes de nos aprofundarmos nestes pontos, propomos seguir o
encaminhamento que Alencar (Ibid.: 357) deu à discussão desta fala. Destacamos,
com ela, o trabalho de lidar com o material musical de forma tal que o ato de criação
traz a dimensão de perda, corte, contração e expansão, e tem como conseqüências
a produção de uma obra única.
Neste mesmo artigo, a autora (Ibid.: 355-356) se utiliza do exemplo da cantora
Janis Joplin para pensar a questão da voz que canta e do objeto voz que advém da
música como vestígio, adicionando a esta reflexão o conceito de “grão da voz”
emprestado de Roland Barthes. Este seria o que resta da voz, o que não é redutível
à significação e que dá a singularidade de cada sujeito, aproximando-se, assim, do
conceito de objeto voz lacaniano. Com estas coordenadas, Alencar (Ibid.: 357)
conclui que
Se criar em música implica em velar a voz-objeto, torná-la afônica, há que sobreviver da voz um resto, um mínimo vestígio. E mesmo muda, a pulsão tem que premir a invocação e contornar, infinita, o “grão” da voz. Pois, para além da dor de Janis e da pressa de compor de nosso músico, mas tecendo com isso, se arma a tela, anteparo melódico, que na voz dela se expande e goza do “grão” que apela ao Outro; e nos trompetes que ele escuta se transmutam, em metal fônico, vozes-vibratos-sopros daqueles que não se ouvem por orelhas, que são imagens (eidos), mas que são acústicas (estão no acervo do compositor) e atravessam no processo da inventiva o tráfego imagético, e fazem nó entre silêncio e som.
Podemos, agora, avançar em nossa reflexão com mais estas idéias. A
composição de uma música faz com que marcas e traços que estão no “acervo do
compositor” possam ser reordenadas e trabalhadas (expandidas, implodidas,
tensionadas, distensionadas), ganhando relações com outros traços, ganhando
corpo melódico e harmônico, tonalidades e timbres, passando a ter função
significante.
140
Segundo Stravisnky (1996: 9), o trabalho de compor uma obra passa pela
“exploração das possibilidades” do material musical, que propicia o estabelecimento
de “relações rítmicas entre os intervalos”, ato este que pode ser anterior ao
surgimento de uma idéia musical propriamente dita. Deste modo, ele afirma que “o
ato de compor é a expansão e a organização posteriores do material com que
trabalho” (Idem).
O trabalho de criação a partir de certas idéias musicais também recebeu de
Mozart (apud Bassine, 1973: 175-176) um interessante comentário, encontrado em
uma carta na qual o compositor responde a um amigo acerca de seu processo de
escrita. Diz ele83:
Se me sinto bem e estou em boa disposição de espírito (...), as idéias me chegam claramente em profusão. De onde e como vêm? Não sei e nada posso fazer para saber. Aquelas que me agradam, retenho na memória e cantarolo para mim mesmo, como me dizem os outros. Se as retenho bem, vem-me rapidamente ao espírito como posso utilizar um fragmento qualquer para compor um conjunto em relação a um contraponto, ao som de instrumentos diversos, etc. Este processo me emociona profundamente, sobretudo se ninguém vem me incomodar. Minha inspiração vai crescendo, eu a atiço e a torno mais clara, a tal ponto que ela se organiza em minha cabeça sob aspecto quase terminado, mesmo se adquire grandes proporções. Posso, em seguida, contemplá-la mentalmente em conjunto, como um quadro magnífico ou uma bela pessoa, e não sucessivamente, por partes, como se dará posteriormente, quando a reproduzir em minha imaginação, mas como um todo, de uma só vez. É um verdadeiro banquete! Encontrando-se tudo isso, cria-se como em um maravilhoso sonho. A percepção como um todo da obra musical completa é o que há de mais belo. O que crio desta maneira, não esqueço facilmente e este é provavelmente o mais belo dom que recebi de Deus. Quando passo depois à escrita, tiro do sótão de meu cérebro o que lá havia sido guardado antes como descrevi. É por isso que tudo se passa rapidamente para o papel. Porque a obra já está, como disse, propriamente pronta, e raramente se distingue daquilo que era em minha cabeça. É por isso que, quando escrevo, qualquer um pode me importunar, andar ao meu redor, que não me impede de escrever. Eu mesmo posso tagarelar toda espécie de coisas. Mas o que faz com que minhas obras adquiram precisamente um caráter mozartiano e não que sejam compostas da maneira de um outro qualquer? Exatamente pelo mesmo modo que meu nariz ficou longo e arqueado e adquiriu uma forma mozartiana e não uma outra.
83 Tomamos a liberdade de traduzir para nosso idioma o texto reproduzido por Bassine (1973: 175-176) em francês.
141
Aproximamos esta poética descrição do trabalho de criação da anteriormente
por nós aqui apresentada, ressaltando que, ao contrário daquela, vemos neste caso
o surgimento das idéias musicais sem que qualquer pedido externo tenha sido feito.
Nesta descrição, de forma análoga a de Schoenberg anteriormente por nós
apresentada, a peça musical vai se apresentando como um conjunto completo ao
compositor, que a transcreverá posteriormente na partitura. O trabalho de criação
musical se apresenta, assim, desligado do processo posterior de escrita na partitura;
o que ocorre é uma escrita da própria obra, por seus meios especificamente
musicais, naquele que a criou.
Fazemos uma ressalva, destacando que estes casos não são por nós
tomados como uma generalização do processo de criação musical, posto que
entendemos que cada ato de criação é único e singular. Procuramos tomá-los para
enriquecer nossas reflexões e dar voz em nosso trabalho àqueles que, de fato, criam
a música, ponto que se apresentou a nós como enigma e que assim continuará
sendo, por mais que nos coloquemos a estudar, ouvir e tocar. Entendemos que não
há uma resposta possível para dar conta da criação, mas, estudando-a, podemos
avançar um pouco mais neste misterioso terreno do humano.
Cada criação, repetimos, será única, ao que acrescentamos, com Boulez
(1992: 39), que
Se nos interrogarmos com franqueza, chegamos à conclusão de que as obras nascem de maneiras complemente diferentes. A idéia primeira raramente se apresenta sob um aspecto idêntico. O que nos incita a começar uma obra? Pode ser uma idéia muito geral de forma, totalmente independente de qualquer “conteúdo”: esta forma deverá encontrar pouco a pouco os intermediários para poder manifestar-se; o projeto inicial, que existe em linhas gerais, se ramificará em descobertas de detalhe.
Para além da gênese das idéias da obra, campo este que nos escapa e o qual
não temos a pretensão de alcançar, estas impõem ao compositor um trabalho com o
material musical, trabalho pela linguagem que lhe é própria. Neste, complementa
Boulez (Ibid.: 97), se faz necessário ter “a capacidade tanto de escolha quanto de
recusa” para que se possa “operar uma escolha no universo indeterminado e amorfo
do início” da atividade de criação.
142
Quanto a este ponto, somos levados a pensar nas operações da Behajung e
da Ausstossung freudianas, conforme delimitadas pelo autor no artigo A negativa,
pelas quais o sujeito, em sua constituição, aceitará ou recusará e expulsará
determinados pontos, constituindo-se deste modo. Na criação estão implícitos um
sim e um não que delimitam o campo com o qual o compositor irá trabalhar, uma
seleção (Stravinsky, 1996: 69) que leva para a organização daquilo que foi
escolhido, ainda que este ato tenha sido feito sem se saber.
Neste trabalho de criação, a surpresa e as descobertas possuem um lugar de
destaque, diz Stravinsky (1996: 54). Para ele, “toda criação pressupõe, em sua
origem, uma espécie de apetite provocado pela antevisão da descoberta”, fato que
também é possível notar nas falas de Mozart e do compositor anônimo, acima
citadas. A surpresa implica, ainda, em uma experiência com algo desconhecido e
inesperado, que Stravinsky (Ibid.: 56) chama ora de “acaso”, ora de “acidental” (Ibid.:
57), do qual se pode “extrair inspiração” e também procurar prazer. Não podemos
deixar de relacionar esta fala à “experiência com o vazio” de que nos fala Alencar e
também ao “núcleo noturno” de Boulez.
Tocamos agora, com Stravinsky, na questão do prazer que o compositor
obtém na criação e não podemos passar por este ponto sem nele nos aprofundar.
Este prazer pode ser obtido tanto pelo trabalho com os elementos musicais quanto
pelo ato de criar, organizando sons e silêncios diante deste vazio. Veremos como
Stravinsky (Ibid.: 55) nos fala a respeito disso:
A idéia de um trabalho a ser feito está, para mim, tão estreitamente ligada à idéia do arranjo dos materiais e do prazer da confecção concreta que a obra proporciona que, se o impossível acontecesse, e a obra de repente me fosse dada numa forma perfeita e completa, eu ficaria embaraçado e perplexo com isso, como ficaria como uma fraude.
Já nos dizia nosso compositor anônimo (apud Alencar, 1997: 356-357) que,
diante de um nada silencioso ao qual ele se recolheu, tendo percebido algumas
linhas melódicas que se impuseram à sua escuta, ele tratou de se “incluir no
processo” e, expandindo e cortando sons, tempos, silêncios e timbres, laborar com a
linguagem a ele disponível para produzir um novo objeto, a obra musical.
143
De certo, há neste trabalho um prazer, parcial, conforme o entendemos na
psicanálise, do lado do compositor. Podemos ir além e falar de um gozo no trabalho
com o material musical, que também se apresentará, de forma diferenciada, ao
intérprete, gozo neste laborar com a linguagem que faz com que o próprio corpo do
artista compareça, seja pelas ressonâncias que a música produz, seja por colocar
em jogo o circuito pulsional (o que implica na dimensão da fonte e da zona erógena,
da borda do orifício corporal).
Destacamos que Stravisnky (1996: 55), ao falar da surpresa na criação e do
prazer nela encontrado, localiza um dever do compositor quanto à música, que
entendemos se tratar de uma posição ética. Diz ele (Idem): “Temos um dever em
relação à música, que é inventá-la”. Extrair do vazio a música, transmitindo àquele
que ouve esta experiência, é, em nossa concepção, um ato ético.
Nesse sentido, o ato ético de criar a música deve ser relacionado à dimensão
do Outro. Como vimos ao abordar a constituição do sujeito, há neste momento um
enigma do desejo do Outro que é transmitido a ele como uma pergunta, “Che vuoi”,
“Que queres?”, “O que o Outro quer de mim?”. E, sem nunca obter “a” resposta a
este mistério, sem nunca obter aquilo que completaria o sujeito e lhe traria um gozo
pleno, com esta falta radical e estrutural, o sujeito se mantém em movimento,
obtendo pequenas e efêmeras satisfações, criando respostas, apesar e com o vazio.
A música poderia, então, ser pensada como uma resposta possível a este enigma,
resposta diante desse impossível real, que o demarca, contudo, sem engodar o
sujeito, trazendo alguns vestígios dele.
Em Stravinsky (Ibid.: 65), encontramos uma fala que aproxima nossa hipótese
psicanalítica ao campo musical: “À voz que me ordena criar respondo primeiro com
temor; depois me reconforto assumindo como arma aquelas coisas que participam
da criação, mas que ainda estavam fora dela”. Temor, ou angústia, sinal da
intervenção do objeto a, como define Lacan (1962-1963/2005: 98) apoiando-se em
Freud. Reconforto por tomar para criar justamente aquilo que estava externo à
criação, a voz enquanto vazio, impossível de apreender, ausência presentificada por
seu contorno. Ou, ainda, trabalho de fazer com que o “nada” que as notas são
144
separadas umas da outra (Stravinsky, 1999: 89) possa se tornar algo se
relacionadas a outras, ganhando uma “posição intervalar” (Idem) em um conjunto.
Enquanto ato ético, deste modo, a criação transmite um saber do lado do
compositor que ele sabe sem saber, e que passa, como vimos, por um
endereçamento ao Outro, na medida em que um sujeito fala, ou melhor, musica, sua
posição singular, e sua resposta, a obra, se dirige ao ouvinte, ficando no campo da
linguagem. A obra musical se torna, ao ser criada, um objeto passível de causar
outros sujeitos.
A psicanalista Ana Costa (2003: 13), ao se questionar sobre O que é um ato
criativo?, nos ajuda a esclarecer este ponto. Segundo a autora, todo ato criativo
“carrega seu autor” (Idem), acrescentando que a produção e o endereçamento
estão, aí, em um mesmo lugar, podendo, eventualmente, até mesmo, se confundir.
Nas palavras da autora, encontramos a explicação para isto, na medida em que:
O endereço é o motor do ato, permanecendo inconsciente e somente se fazendo “sentir” pelo retorno de seus efeitos. A dimensão do inconsciente está colocada na medida em que um ato precisa passar pelo corpo (seja pela voz, num ato de palavra; seja pelo olhar, nas artes, ou mesmo na escrita; etc.). É assim que esse ato sabe para além do indivíduo que é interpelado a realizá-lo, na medida em que transpõe ao social a condição de alienação mais radical ao Outro. Isso diz respeito à inscrição primária que todos compartilhamos (o denominado recalcamento originário), que insiste como um enigma motor da cultura (Idem; grifos da autora).
Este ato ético evidencia, deste modo, a falta radical de todos os sujeitos,
fazendo com que a música ressoe neste vazio; a música faz, assim, laço social. O
exemplo do compositor Shabalin, apresentado em nosso primeiro capítulo, pode ser
retomado sob esta perspectiva. Mesmo sofrendo de uma doença que o privou
parcialmente das faculdades verbais, o compositor não parou com suas atividades
musicais, compondo, dando aula, tocando, fazendo-se ouvir, deste modo, e
dirigindo-se a outros sujeitos. Este compositor permanece sob efeito do registro da
linguagem e do simbólico, podendo vincular-se a outros sujeitos e ao campo cultural.
É importante acrescentar que deste vazio o músico intérprete também se
servirá, podendo tocar a música de uma posição própria, não sendo, portanto, um
145
mero executante, alguém que simplesmente lerá o que está escrito na partitura,
executando a música com um instrumento musical ou com a voz humana.
O intérprete possui também uma relação com este enigma que a obra musical
toca, o que, aliás, podemos pensar, que é o que determina que ele tenha se tornado
músico e não pintor, por exemplo. Sua posição passa por um posicionamento
específico diante deste objeto voz que a música visa, em vão, capturar. E quando o
músico está diante de uma obra musical, ela é tomada por ele como causa de
desejo, fazendo com que seu trabalho se dê na direção de que, ao tocá-la, estudá-la
e dar-lhe corpo, fazendo-a soar, suas próprias marcas sejam postas em jogo e seu
circuito pulsional seja movimentado.
Há também no intérprete um ato que implica criação e endereçamento. Ao
tomar uma composição musical para interpretar, o músico criará a partir das
relações do material musical já estabelecidas pelo compositor e, ainda, a partir de
sua posição como sujeito. Neste pólo, temos um trabalho que também parte de uma
escolha, de um sim e não (ou talvez de ser escolhido por uma música e consentir
com isso), que será decisivo para o modo como tal obra será tocada. Isto é estrutural
na música, uma vez que ela não se reduz, nem pode se resumir, à notação, ao que
está escrito na partitura. Há algo que escapa e é justamente esse algo que a move e
de que o intérprete se utiliza para tocar ou cantar.
Assim como o compositor, o intérprete se direciona ao ouvinte, quer se fazer
ouvir, e a peça que toca e/ou canta será, igualmente, endereçada ao Outro, como
uma resposta que lhe foi possível elaborar e oferecer. E será com o seu “acervo”
próprio que ele cunhará a interpretação singular que dará de determinada obra
musical, obtendo, daí, algum prazer possível.
No caso do intérprete, a questão do gozo e da mobilização do corpo fica mais
evidente, como por exemplo no canto, em que um além do sentido da fala se torna
notório tanto pelos ornamentos musicais que o compositor indica na obra como pela
acentuação e prolongamento das vogais, característica do canto, que, assim, se
distingue da fala, como pontua o compositor Luiz Tatit (1996: 14).
146
Sobre a questão do endereçamento ao Outro no caso do intérprete, trazemos
como ilustração o caso de Wladyslav Szpilman, pianista e compositor, autor do livro
O pianista, que inspirou o filme homônimo de Roman Polanski. No livro e no filme,
somos confrontados com o sofrimento e a obstinação de Szpilman em sobreviver
durante o período de ocupação alemã na Polônia na Segunda Guerra Mundial.
Separado da família, que foi enviada a campo de concentração e lá exterminada, e
desprovido de quaisquer recursos materiais, Szpilman (1946/2003: 176) agarrava-se
à música, chegando a “passar na memória todas as composições que havia
executado no piano, cadência por cadência” nos esconderijos durante a guerra, com
o intuito de voltar às atividades de pianista e compositor ao final desta.
Já abordamos este caso em outro momento (Azevedo, 2006: 2), e dele
destacamos que para este sujeito, a música lhe pôde “servir de suporte, posto que
mesmo em momentos de maior sofrimento ele recorria à música, se endereçando ao
Outro, tendo podido a ela voltar como prática ao término da guerra”.
Também relacionado a Szpilman, desta vez em uma cena do filme de
Polanski, recolhemos uma evidência de que o intérprete efetua algo para além de
uma execução “mecânica”, poderíamos dizer, da obra. Logo no início do filme,
Szpilman conhece uma jovem violoncelista que lhe dirige um elogio, lhe dizendo que
ninguém toca Chopin como ele. Não apenas o compositor possui um estilo, o
músico que interpreta também o tem, efeito de sua forma singular de lidar com a
obra e com a linguagem musical, assinando-a diferente e singularmente.
Novamente, recorremos a Stravinsky (1996: 113) a esse respeito, que nos diz
que “o compositor corre um risco inegável a cada vez que sua música é tocada, já
que, a cada vez, uma competente apresentação de sua obra depende de fatores
imprevisíveis e imponderáveis”, nos quais, certamente, o intérprete tem grande
participação.
O trabalho do intérprete não é o de um leitor que se debruça sobre o texto
apresentado nas notações gráficas de uma partitura. Se podemos comparar a
música a uma escrita, é de uma escrita que não está no papel que se trata, de uma
escrita pulsional. Deste modo, a única forma de aproximarmos o intérprete de um
147
leitor é no sentido em que, para além da partitura, ele poderá ler a música que se
dispõe a ser tocada, mesclando, nesse ato, suas próprias inscrições. Assim, como
ressalta Stravinsky (Ibid.: 112), não há para o intérprete um texto unívoco a ser lido
pelo músico. Damos a ele a palavra (Idem):
Costuma-se achar que o que é colocado diante do músico é a música escrita onde a vontade do compositor está explícita e facilmente discernível a partir de um texto corretamente estabelecido. Porém, por mais que seja escrupulosa a notação de uma peça musical, por mais cuidado que se tome contra qualquer ambigüidade possível, utilizando as indicações de andamento, nuances, fraseado, acentuação e assim por diante, ela sempre contém elementos ocultos que escapam a uma definição precisa, pois a dialética verbal é impotente para definir a dialética musical em sua totalidade. A realização desses elementos é, assim, uma questão de experiência e intuição; em suma, do talento daquele a quem cabe apresentar uma obra.
É bastante interessante notar que Stravinsky (Ibid.: 113) define a diferença
entre o executante e o intérprete como uma diferença de “um caráter mais ético do
que estético”. Entendemos, com esta indicação, que é a posição ética do sujeito em
relação a seu desejo e ao Outro, que terá conseqüências cruciais em sua posição
diante da música, que é colocada em cena, portanto, quando um músico interpreta
uma obra musical, tendo também efeitos para aqueles que o ouvem.
É sobre este ato, o de ouvir uma música, que passaremos, em seguida, a
refletir, encerrando, com ele, nosso estudo sobre a arte musical.
V.3 – Escuta musical: ouvir mais além
A escuta musical, assim como a criação e a interpretação, é um ato de grande
complexidade e mistério, tornando-se um outro desafio estudá-la. Assim como nos
momentos anteriores de nosso estudo, não acreditamos ser possível dar alguma
resposta fechada às questões que ela nos coloca e que nos colocamos ao ouvir uma
música. Ainda assim, cientes disso, aceitamos o desafio de algo falar sobre o que é
impossível dizer e o que se pode ou não ouvir quando se cria, toca ou escuta uma
peça musical.
148
Caminharemos no terreno da escuta musical seguindo os trilhos de um
psicanalista marcado pela música, Alain Didier-Weill, e de um compositor tocado
pela psicanálise, François Nicolas. Ambos, tendo em foco a pulsão invocante e o
objeto voz, formularam teorias densas e consistentes sobre o que ocorre no sujeito
quando este escuta uma música. Procuraremos, a seguir, destacar e apresentar os
principais pontos defendidos por estes autores, evidenciando aqueles com os quais
concordamos e dos quais nos afastamos.
O tema da escuta musical foi tratado por Didier-Weill (1976-1977/1997: 69)
partindo de um questionamento sobre o melômano, perguntando se este ouve como
sujeito ou como Outro. Entendemos que esta questão parte do pressuposto de que,
ao criar a música, o sujeito que o compositor é está dando, à sua maneira, uma
resposta ao enigma do Outro, como vimos no tópico anterior. Há, pois, um sujeito se
endereçando ao campo do Outro, transmitindo, pela obra, algo de sua relação com
ele a partir de sua posição singular, e através da organização em torno do vazio real
de nossa constituição. Por isso, por girar em torno deste vazio, e por apresentar uma
via de lidar com ele, a música faz laço entre os sujeitos.
Retomemos: há um sujeito que, com sua criação, se dirige ao Outro. Mais de
um sujeito até, posto que nem toda obra criada por um compositor é por ele mesmo
interpretada; assim, dependendo da peça musical, um ou mais outros sujeitos a
interpretarão. E também o intérprete ocupa uma posição de fazer uma criação com
os sons musicais e o tempo diante do enigma do desejo do Outro, e, assim, de seu
próprio desejo.
De outro lado, há o ouvinte, um sujeito que, ao escutar a música, poderá ouvir
mais do que esperava, ouvirá esta resposta de um outro, quase um testemunho,
endereçado, primeiramente, não a ele, mas também a ele. Isto na medida em que o
músico inclui o ouvinte no ato de criar, mas o ouvinte enquanto aquele que ouvirá
sua música, e não um ou outro sujeito em especial. Trata-se do ouvinte enquanto
terceiro entre ele e sua obra, que, por certo, será encarnado quando alguém se
colocar à escuta desta. Por parte do ouvinte, ao compreender ou ser tocado pela
obra musical, sentindo os efeitos e ressonâncias desta, ele pode se perceber como
149
aquele para quem compositor e intérprete se dirigiram ao compor e interpretar
determinada música.
Lembremos que, ao tratar do circuito da pulsão invocante, vimos que ele
somente se fecha com a passagem pelo campo do Outro e que, porém, a pulsão
não retorna para a zona erógena que deu início ao seu trajeto. Diferentemente das
outras pulsões, a invocante, ao contornar o objeto voz, não volta para o mesmo
ponto. O que leva Lacan (1964/1998: 184) a afirmar que o ouvido é o único orifício
do corpo que nunca pode se fechar, marcando uma diferença estrutural entre os
circuitos das pulsões escópica e invocante, em que o “se fazer ouvir” vai para o
outro.
É neste sentido que entendemos a afirmação de Didier-Weill (1976-
1977/1997: 65) de que, em um primeiro momento da escuta musical, o ouvinte
ocupa o lugar do Outro. Mais que isso, defende que “somos o Outro e muito
precisamente o Outro do Sujeito da criação musical” (Idem). Assim, o autor busca
mapear quatro momentos lógicos na escuta musical que se dão no mesmo instante.
No entanto, para estudá-los, nos propõe mostrar, um a um, estes instantes.
Apresentaremos estes quatro tempos de forma breve para, em seguida,
discuti-los. Pela criação, um sujeito se dirige ao Outro, dando-lhe uma resposta ao
seu enigma. Tal resposta, contudo, é escutada por um outro sujeito, que se encontra
neste lugar de Outro do compositor. Ao escutá-la, o ouvinte percebe que a música o
toca e oferece uma resposta para sua questão enquanto sujeito, sendo, assim,
convocado a se posicionar deste modo. É o segundo tempo da escuta. No terceiro,
há a identificação entre os dois sujeitos deste processo, o músico e o ouvinte. No
quarto e último tempo, ocorre uma surpresa por parte daquele que ouve com a
“explosão” de uma “nota azul”, que dirá do fato do ouvinte ser chamado a fazer algo
com o que ouviu, a dar ele também uma resposta sua ao enigma que lhe concerne.
A nota azul diz do momento final da escuta musical no qual o ouvinte sentirá
mais intensamente os efeitos da obra sobre ele. Trata-se de uma nota que, embora
virtual, se apresenta ao longo da obra como um ponto para o qual ela se dirige.
Voltaremos a esta nota azul mais detalhadamente a diante.
150
Vejamos, agora, com mais calma: A proposta de Didier-Weill traz uma
importante contribuição para pensarmos como a música ressoa em um ponto no
sujeito que se tornou inaudito e que é importante que assim permaneça, pois diz da
própria constituição do sujeito no campo do Outro, em seu movimento de alienação
e separação. A música aponta para este ponto e volta a velá-lo. E, ao fazer isso,
somos convocados a afirmar nossa posição enquanto sujeitos.
Didier-Weill (1995/1997: 237) se pergunta: “quando escuto música, por que
fico encantado por ela?”, ressaltando que “quando escuto soar a música, descubro a
cada vez, com espanto, que não posso deixar de lhe dizer ‘sim’”. Este “sim” é dado
na medida em que o ouvinte se identifica, de algum modo, com a música e permite
que ela faça parte de sua vida. Por outro lado, se o ouvinte não gosta da música e
não a toma para si, ou seja, quando o sujeito diz “não” a ela, esta não será tomada
como causa de desejo e o sujeito não se colocará aberto a seus efeitos.
Desta forma, quando o sujeito se coloca à escuta da obra musical, poderá
nele ocorrer um reviramento, uma vez que este, acreditando ouvi-la, percebe que é a
música que o ouve (Ibid.: 238). Deixamos para o autor o encaminhamento desta
questão:
O que ela [a música] ouve? Que ouvi, no que ela havia me dado a ouvir, um apelo ao qual respondi um “sim” cuja simplicidade não tem igual, a não ser seu caráter enigmático: não sei, com efeito, a quem eu disse nem quem disse “sim”. (...) Por este “sim”, sou, ao mesmo tempo, o que diz: “Sim, sou chamado por você” e: “Sim, eu chamo você”. É nessa mutação pela qual um sujeito invocado advém como invocante que indicamos, nessa pressão de dizer “sim”, a pulsão invocante (Idem. Grifos do autor).
Vemos, assim, que Didier-Weill relaciona a música com a pulsão invocante no
sentido em que essa arte nos chama a ser sujeito, tocando-nos em nossa questão
quanto ao desejo do Outro e revelando-nos que é possível fazer algo a partir desta
questão, sem nos paralisarmos, posto que a música convida ao movimento e fala do
vazio de nossa constituição contornando-o com uma regularidade que o harmoniza.
É interessante notar que o reviramento que a música produz no sujeito só é
possível porque, nos diz Didier-Weill (Ibid.: 239) apoiando-se em Lacan, nesta
151
escuta o sujeito pode vislumbrar que é constituído “segundo a concepção moebiana,
por uma continuidade entre o íntimo e o exterior que Lacan batizou com um neo-
logismo: “ex-timo”. Há, assim, uma continuidade do Outro e do sujeito quando da
escuta musical, que, entretanto, não significa que as diferenças entre estes dois
campos sejam abolidas. O que o autor propõe é, entendemos, próximo ao que Freud
(1919/1990: 283) afirma sobre o estranho, que nele existe uma familiaridade.
Ouvindo a música, podemos perceber, ainda que vagamente, que “o sujeito não é
estranho a este estranho que é o Outro” (Idem. Grifos do autor).
Com isso, a música é por ele pensada como “um dos caminhos possíveis
para se compreender a relação mais primordial do sujeito com o Outro” (Ibid.: 240),
propondo relacioná-la a um tempo primordial desta relação anterior ao recebimento
pelo sujeito da palavra. Contudo, este receberia do Outro uma “base, uma raiz sobre
a qual poderá, em segundo lugar, germinar a palavra” (Idem), que seria um traço, o
traço unário. Didier-Weill propõe, deste modo, que ao traço unário lacaniano se deve
o surgimento de um elemento musical de base, recebido por todos os sujeitos, a
saber, uma nota escandida percebida na fala e na voz da mãe antes mesmo de
poder perceber os sentidos que esta fala passa (Idem.: 240-241). Como defendemos
no capitulo anterior, esta musicalidade da mãe possibilita a todos os sujeitos uma
abertura para a arte musical e para a escuta desta.
Em suas considerações sobre a música, Didier-Weill, sob nítida influência do
antropólogo Claude Lévi-Strauss defende que ela é a comemoração deste tempo
inicial entre sujeito e Outro (Ibid.: 204), e que a música provocaria, com isso, um
“estado de nostalgia” (Didier-Weill, 1976-1977/1997: 74), idéias das quais nos
afastamos. Acreditamos que não é possível, de antemão, dar algum sentido comum
a todos os sujeitos para o ato tão singular que é a escuta musical e a relação do
sujeito com a música, que pode ser cambiante a cada escuta, ainda que de uma
mesma peça.
Voltemos agora aos tempos lógicos da escuta musical. O primeiro tempo
seria, então, o ouvinte, no lugar de Outro do músico, pode ouvir na obra uma
resposta para a pergunta que nele habita, embora esquecida. Descobrimos, ouvindo
a música, que é possível fazer algo diante de nosso vazio estrutural que não seja da
ordem do sintoma, do retorno do recalcado.
152
Um Sujeito – o criador da música – nos dá testemunho de que a presença do desejo do Outro pode não funcionar para ele como esse “che vuoi” angustiante. Nesse caso é até mesmo o contrário que se produz, pois se a questão formulada pelo Outro no “che vuoi” deixa o Sujeito sem resposta, aqui o Sujeito, ao nos responder, faz surgir em nós a presença de uma questão cuja natureza se revela não esterilizante, mas fecunda para ele (Ibid.: 70-71).
Para não corrermos o risco de idealizar o músico, cabe dizer que, como visto
ao tratar a sublimação, nem toda parcela pulsional é possível de ser encaminhada
para a criação. E que há também a incidência da angústia neste ato, como nos
alertou Stravinsky (1996: 65). É mesmo dessa experiência com o vazio que o sujeito
pode criar.
Também na escuta, a angústia pode comparecer, apesar de Didier-Weill
(1976/19771997: 74, 76) nos dizer o contrário, defendendo que no segundo tempo
deste ato, o sujeito, identificado com o sujeito que criou a música, tomará para si a
questão de cuja resposta teve notícias na música, passando a um estado de
felicidade e nostalgia. Nossa proposta é que, de fato, a experiência com a música
nos faz confrontarmo-nos com este vazio, tal qual toda arte, porém, ela nos distancia
dele ao contorná-lo pulsionalmente, construindo, com sons e silêncios, uma rede de
linguagem tecida bela e harmoniosamente.
Apoiamos nossa idéia em Alencar (1997: 355), que igualmente aponta a
existência de angústia na obra musical e em sua escuta: “Agarrados por algo que
nos enreda, nos arrebata, com o qual queremos ensurdecer sem medo, oscilando
entre angústia e fascínio, tomados pelas modulações harmônicas dessa voz, mas
sem querer ouvir o que ela nos diz”.
Escutando música, ouvimos também que há então essa via de responder ao
Outro, de fazer algo com o vazio (com o vazio do objeto voz) sem sucumbir a ele no
sofrimento do sintoma. Podemos vislumbrar este vazio pela distância da linguagem
musical e não nos calar ou paralisar, cantando ou cantarolando junto, dançando ou
marcando o ritmo, fruindo, enfim.
153
Entendemos que Didier-Weill (1976-1977/1997: 70), ao apontar que, pela
escuta musical, é possível de maneira não angustiante perceber o ponto em comum
entre o sujeito e o Outro, o objeto a (Ibid.: 73), está enfatizando uma característica
que a música possui de passar uma ilusão de fazer um com o Outro, de fusão.
Porém, esta é apenas uma de suas características, e dificilmente podemos dar
algum nome ao que a música causa nos sujeitos, seja nostalgia, felicidade, como o
autor propõe, ou qualquer outra denominação que se possa pensar.
Se a música causa uma reversão na temporalidade para aqueles que a
ouvem, isso não é sem conseqüências. Entretanto, cada sujeito poderá, ao ser
tocado pela obra musical, buscar sentidos a isto, chamando de qualquer, todos ou
nenhum nome aquilo que experimentou, justamente porque não há nome algum
para dar conta disto. O quarto tempo lógico de Didier-Weill, do comparecimento da
nota azul, é entendido por nós desta maneira.
Após a música ser tomada como significante pelo ouvinte no terceiro tempo
da escuta (Ibid.: 77), ocorre um “salto” (Didier-Weill, 1976/1997: 101) que faz com
que o sujeito atinja um ponto para além da própria música, a que ela mesma, no
entanto, nos conduz. É a nota azul, entendida pelo autor como um ponto de
“explosão de significância” (Didier-Weill, 1976-1977/1997: 80).
É preciso localizar e contextualizar esta nota. Em música, esta expressão nos
leva à música de Chopin e a como o pintor Eugène Delacroix, amigo do compositor,
pôde ouvir e falar sobre a música deste, em carta a ele dirigida (Didier-Weill, 1999:
33). Lembramos, rapidamente, que a denominação desta nota chegou a render título
de um filme do cineasta Andrzej Zulawski (La note bleue), de 1991, cujas
personagens centrais são Chopin, a escritora George Sand e sua filha, e Delacroix.
A nota azul, como tomada por Didier-Weill (Idem), diz de um ponto em que o
sujeito, “dividido pela tensão produzida entre a harmonia e a melodia”, pode escutar
além do que está presente na música e alcançar “uma certa nota – ainda não
presente – no nível da qual a tensão entre a sincronia harmônica e a diacronia
melódica poderia ser resolvida”. É uma nota, portanto, virtual e efêmera, porém que
comporta um ponto real.
154
Por trazer esta dimensão de real, podemos chamá-la de azul para ser viável
teorizar sobre ela. Todavia, por ser talvez o que pode haver mais de real em uma
música, ela não terá cor alguma, fazendo, em contrapartida, com que o sujeito lhe dê
alguma coloração. Azul, em Chopin. Quem saberá de que outras cores para cada
um de nós? Como nos diz Didier-Weill (1976-1977/1997: 58), esta nota é, no
inconsciente, sempre a mesma. O que ela nos faz falar e produzir em seguida,
certamente não, ainda que se repita. O que podemos dizer dela é que, mesmo que a
esperemos, ela nos surpreende.
Passamos, agora, à proposta de François Nicolas sobre a escuta musical.
Destacaremos no trabalho deste compositor (Nicolas, 2002: 1) suas três teses sobre
a música e o som, a expressão musical e as relações constitutivas da escuta
musical, com maior ênfase nesta última. A primeira tese afirma que o som, enquanto
material de base do compositor, não é trabalhado por este como substância, mas
como vestígio da relação corpo-a-corpo do músico com o seu instrumento, isto na
medida em que a expressão musical comporta um endereçamento destes sons
musicais ao Outro e que, enquanto vestígios, eles podem ser apreendidos por um
outro sujeito (Ibid.: 2).
De acordo com Nicolas (Ibid.: 6), a música é um jogo sonoro que se endereça
a ser ouvido por um outro. Ela tem origem em um sujeito e em seu corpo, passando
por ele, mas é na medida em que se apresenta como um vestígio que passa a ser
um som musical. A música (Ibid.: 8) não é, portanto, a irradiação de um corpo,
fisiológico se pensarmos no compositor e no cantor, ou de uma combinação de um
corpo fisiológico que toca um corpo mecânico (instrumentista e seu instrumento),
mas esse endereçamento.
Neste, está em jogo a dimensão do prazer daquele que cria e de quem ouve a
música. Prazer obtido pela dimensão significante da música e que, mais além, atinge
o corpo, propiciando aos sujeitos um puro gozo “do som musical por ele mesmo”
(Ibid.: 3).
155
Contudo, para que o som musical possa se tornar um endereçamento, nos diz
Nicolas (Ibid.: 9), é preciso que o músico se retire para dar existência a uma marca
no vetor sonoro-musical que se orienta a um alvo. O autor nos dirá que esse alvo é
impreciso. Se o relacionarmos ao circuito pulsional, este movimento de
endereçamento da música pode ser pensado como a própria trajetória da pulsão
invocante, o movimento de se fazer ouvir, visando a satisfação deste circuito e
incluindo nele o Outro para que possa fazer seu retorno à fonte.
Definidas estas coordenadas no argumento de Nicolas, faz-se necessário
mais um outro esclarecimento para acompanharmos sua tese sobre a estrutura da
escuta musical, que, segundo ele (Ibid.: 11), seria a da banda de Möebius,
enlaçando aqueles que nela participam.
Nicolas propõe três lugares, ou posições, do público, do músico e da obra, e
dois movimentos ou ações, de escuta e de endereçamento, existindo ainda um
vazio. Com estes elementos, o autor elabora seis combinações que dirão de uma
escuta que não é propriamente o ato de ouvir uma peça mas sim de uma escuta
musical. Esta diria respeito ao que pode ser ouvido particularmente na relação entre
estas posições.
Cabe frisar que entendemos que Nicolas toma a obra como a produção de um
sujeito, efeito do ato de criação, trazendo, neste sentido, o movimento de um sujeito
e atuando como causa para outros.
As seis combinações de Nicolas são as seguintes: 1) o público escuta o
músico que se endereça à obra; 2) o público escuta a obra que se endereça ao
músico; 3) o músico escuta a obra que se endereça ao público; 4) o músico escuta o
público que se endereça à obra; 5) a obra escuta o público que se endereça ao
músico; 6) a obra escuta o músico que se endereça ao público; ocorrendo, em
seguida, o retorno para a primeira combinação.
Entendemos que tal esquematização somente pode ser entendida como
forma de apresentar didaticamente algo que ocorre de uma só vez na interpretação
156
e escuta de uma peça. Passaremos agora a analisar estas posições apresentadas
por Nicolas.
Na primeira combinação, a escuta está posta do lado do ouvinte, que irá
apreender algo do trabalho de dois sujeitos: um compositor que criou, ex nihilo, a
obra, e um músico que a tomará como causa de desejo e, a partir de sua própria
posição subjetiva, interpretará esta criação. Nesta combinação já está implícita a
segunda, da platéia que ouve o endereçamento da obra, enquanto criação de um
sujeito a outro, neste caso, o intérprete.
Paralelamente, o músico escuta a obra, e o compositor consequentemente,
em seu endereçamento ao público (terceira combinação) e também o público que se
dirige à obra (quarta). Esta última, pensamos, diz da abertura dos sujeitos que
ouvem a música e que são por ela tocados, tal como o “sim” descrito por Didier-
Weill, acima por nós trabalhado.
Por sua vez, a própria obra irá escutar os sujeitos: o público que se dirige ao
músico (e com ele pode se identificar) e da mesma forma o contrário. É aqui que
vemos as propostas destes dois autores convergirem, uma vez que de sujeitos que
escutam a música eles passam a sujeitos por ela escutados.
Nicolas (Ibid.: 13) ressalta, confirmando a idéia de que a música é apreendida
apenas como vestígio, que para que o ouvinte/público possa escutar a obra musical,
o músico que a interpreta deve se apagar, deixando ouvir o endereçamento do
compositor, através da obra, a um Outro. Entendemos que este “apagamento” pode
ser entendido se a ele acrescentarmos a idéia de que, embora o sujeito que cria
utilize de seus referenciais e materiais psíquicos para criar, ou seja, a obra musical é
criação de um sujeito em especial, ela transmite algo que é da própria condição do
humano. Ainda assim, compositor e intérprete estarão ali presentes na medida em
que deixarão na música suas marcas e nela imprimirão seus estilos.
Na visão de Nicolas (Ibid.: 16), este apagamento está presente em todas as
combinações e é ele, pelo vazio que comporta que possibilitará a escuta circular. Diz
157
o autor (Ibid.: 15): “a escuta musical se distingue da audição e da percepção no que
ela supõe o lugar de um vazio”.
Vazio este que é o próprio da constituição do sujeito e que, deste modo, é
transmitido pela música ao mesmo tempo em que faz possível o estabelecimento de
um laço entre os sujeitos em jogo neste processo de escuta musical, o compositor, o
intérprete e ouvinte. E que, contornado desta forma pela música, faz com que os
sujeitos possam se defrontar com o real, tendo dele notícias, e, ir além, podendo
fazer algo a partir daí.
Nesse sentido, defendemos que tanto compor, quanto tocar e ouvir uma obra
musical pode modificar os sujeitos envolvidos nestes atos, sem, contudo, se tratar aí
de efeitos que possam ser comparados aos de uma análise. A música, assim, dá a
ouvir aos sujeitos vestígios do impossível.
158
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O artista é um mero filtro por onde a vida passa deixando sedimentos (Muniz, 2006: 20).
Em nossa trajetória, buscamos, inicialmente, delimitar nosso tema de trabalho
ressaltando que tomaríamos a música como arte, como produção estética, e que,
dentre as mais diversas abordagens para estudá-la, partíamos de uma escolha. A
música seria por nós acolhida e estudada com uma escuta psicanalítica, tomando
como referencial as obras de Freud, Lacan e teóricos destas tradições, sem que,
contudo, deixássemos de recorrer ao campo mesmo desta arte.
Tarefa árdua que, de início, nos colocou dificuldades, já que, neste campo, as
vozes não são unânimes. Perguntas como “o que é a música?”, “é a música uma
linguagem?”, ou “a música pretende comunicar e significar algo ou não?”
permanecem pontos controversos. De um espanto inicial, que apontava para uma
diferença entre a arte musical e as demais, procuramos algumas coordenadas para
estudá-la, sem, contudo, fechar uma resposta.
Caminhar neste terreno exigiu de nós, então, uma segunda escolha: a de
definirmos o que entendemos por música neste espaço. Nossa aposta foi a de
defender a música como uma arte autônoma, com materiais de trabalho próprios,
assim como uma linguagem específica.
Ao pensá-la como uma linguagem, nos baseamos em autores, como Pierre
Boulez e Arnold Shoenberg, ambos compositores, que defendem que com o material
que lhe é próprio, o som musical, o compositor trabalhará de tal forma a tecer uma
construção com as diferenças e tensões entre estes sons, porém os relacionando e
encadeando em frases, temas, motivos, melodias e harmonias. Alinhavando sons
musicais e silêncios igualmente musicais, o compositor faz música. E a faz para ser
ouvida. Isto é, sua criação tem um endereçamento. No outro pólo da música, há um
outro sujeito que a ouvirá.
Portanto, pensamos a música como a criação a partir de um material
específico, os sons e silêncios musicais, determinada por certas regras que
159
delimitam este campo, que é feita por um sujeito e se dirige a outro, podendo ter a
participação ativa de um ou mais músicos intérpretes. Surgem, aqui, os primeiros
ecos de nossa escolha pelo referencial psicanalítico. Falamos em sujeitos e não, por
exemplo, em indivíduos ou pessoas, efeito de que pensamos que aqueles que estão
envolvidos neste processo da criação à escuta da música devem ser escutados
balizados pela descoberta e sistematização freudiana do inconsciente, assim como
pelas demais construções teóricas deste autor e também das teorias de Lacan.
Deste modo, foi necessário deixarmos claro, tal qual havíamos feito com a
concepção de música, nosso posicionamento diante do campo da psicanálise e dos
conceitos que recortamos para a construção deste trabalho. Isto na medida em que,
desde o início, nossa intenção foi a de buscar o que a arte musical pode nos dizer
sobre o humano, norteados pela psicanálise. Os efeitos deste ato se dão,
conseqüentemente, no campo da psicanálise, e retornam para ela. A música sempre
nos pareceu, e isto não se alterou ao longo da pesquisa, escapar a qualquer
tentativa de explicá-la. Aproximamo-nos dela, assim, como aprendizes, seguindo em
seus rastros pistas para vislumbrar como o sujeito pode por ela emergir.
Em nosso estudo, e em nossa concepção de sujeito em psicanálise, tornou-se
cada vez mais importante destacarmos o modo como este é constituído, em sua
relação com o outro cuidador que vem encarnar a função de Outro da linguagem. Ou
seja, como o bebê poderá se organizar, psíquica e pulsionalmente, separando-se do
Outro a partir de seu contato com o semelhante.
Freud nos fala dessa precariedade do infans ao nascer e de como será a ele
possível se organizar, não sem, contudo, sofrer perdas. Talvez, diríamos, somente
por elas terem ocorrido. A perda da fusão com a mãe, cujo resto permanece
estranho ao sujeito, tal como nos indica a alusão a das Ding (a Coisa). A perda de
certos objetos, seio e fezes, em Freud, olhar e voz, em Lacan. Perdas que são
decisivas para o surgimento de um sujeito do inconsciente e, que, portanto, são
estruturantes.
160
Dentre estes objetos, denominados por Lacan84 de objetos a, objetos causa
de desejo, demos ênfase ao objeto voz enquanto este que possibilitará, através da
construção de um ponto de surdez para o sujeito da voz do Outro, que ele possa se
separar deste campo e, assim, advir. Este objeto surgirá como resto da fala
musicada da voz da mãe ou de seu cuidador mais próximo e inicial. Destacamos a
presença de uma musicalidade na constituição de todos os sujeitos, defendendo que
esta terá maiores conseqüências no ato de criação e fruição da arte musical.
Este objeto voz não pode, entretanto, ser pensado desarticuladamente de
uma determinada pulsão, a pulsão invocante, e de seu circuito, que possui a
característica particular de partir de uma fonte e uma zona erógena, associada ao
aparelho vocal, e não retornar a ela. Estão postos em jogo, de um lado, um
movimento de se fazer ouvir, e, de outro, o que se pode ou não ouvir.
Ao tratarmos da pulsão e de seu circuito pensando em uma produção
artística, procuramos nos debruçar sobre o destino pulsional freudiano da
sublimação, por ele apontado como aquele que comparece nas artes. Destino que
não se confunde com o recalque propriamente dito, que propõe exigências
diferentes aos sujeitos. Exige que um novo objeto seja criado.
Com Lacan, vimos que esse ato de criação implica na organização de certos
materiais dos quais o sujeito dispõe em torno de um vazio real da linguagem. Nesse
sentido, parte do singular de um sujeito sem nele se encerrar, não sendo uma
construção que somente produzirá sentidos para ele, tal como ocorre com os sonhos
ou sintomas.
Por mais que possa partir de suas vivências, de sua fantasia, que sirva
inconscientemente ao artista como elaboração de materiais traumáticos, a obra de
arte tocará um ponto que é comum a todos os humanos e, ao ser criada, poderá ser
tomada como causa de desejo para todos nós. Escutamos essa idéia na fala do
artista plástico Vik Muniz quando este diz que o artista é um filtro pelo qual “a vida
passa deixando sedimentos”. A vida com seu movimento incessante, exigindo
84 Respeitamos aqui nossa proposta de fazer um recorte na obra lacaniana, estudando sobre este tema em especial os Seminários entre 1959 e 1964.
161
constantemente de nós o impossível, diante do qual, em ato, podemos efetuar atos
pelos quais afirmamos nossas posições enquanto sujeitos.
A criação, interpretação e escuta musical foram desta maneira tomadas por
nós como atos significantes. Todavia, com lugares diferentes para os sujeitos
envolvidos em cada um deles. Criar música não pode ser equiparado à interpretação
de uma música, nem tampouco à escuta desta. Mesmo assim, em todos esses
casos, é de um lidar com esse vazio da constituição e com o vazio do objeto voz que
se trata. E de uma possibilidade de cunhar uma resposta ao enigma do desejo do
Outro, colocando em cena o circuito da pulsão invocante, buscando apreender,
criando, tocando ou ouvindo, um objeto desde sempre perdido.
Mas como cada sujeito é singular, esta experiência não será a mesma em
cada criação, interpretação ou escuta. E diante de cada música, ele poderá ser
levado a tecer os mais variados sentidos para ela, justamente porque ela circunda
algo que é da ordem de um não sentido, e sim de um além do sentido.
Podemos, com isso, melhor compreender que até mesmo este trabalho
caminha nesta vertente. A música despertou-nos diversas questões, das quais
escolhemos trabalhar um número limitado, estudando, produzindo, criando,
trabalhando, pesquisando e o que aqui apresentamos foi uma resposta. Uma
apenas, não conclusiva. Pelo contrário, ela nos abriu inúmeros outros enigmas.
Percebemos que mesmo nos temas por nós trabalhados ou levantados houve
pontos que poderiam ter sido mais aprofundados, como no caso das vozes do
supereu, ou seja, da relação das vozes parentais e demais vozes que operam no
supereu e atuam no sujeito. Houve também pontos que poderíamos ter estudado e
de que nem nos aproximamos, como, por exemplo, a dimensão amorosa da
produção musical, como Didier-Weill (1976-77/1997: 71) propõe ao abordar o tema
da nota azul. A música como uma resposta ao Outro, como uma resposta amorosa
ao Outro.
E aqui não deixamos de recordar as inúmeras canções nas quais o tema do
amor é central. Podemos mesmo dizer que a canção de amor é um dos gêneros
162
mais antigos e presentes na história da música, desde as canções dos trovadores da
Idade Média até os nossos dias, e seguramente além destes. A dimensão de falta no
amor também sendo cantada ao longo dos séculos85.
Cada tema estudado nos gerou incontáveis perguntas que aqui não foi
possível acolher, as quais pretendemos seguir estudando. Questões que, de um
lado, poderiam ser reunidas sob o tema de uma clínica psicanalítica atravessada
pela musicalidade dos sujeitos e, mais até, pela própria música, não mais como arte,
mas possibilitando a fala. Seja no campo da neurose como da psicose. Que lugar
poderia ter a música no tratamento analítico e, mais especificamente, na psicose?
Pensando-se na musicalidade na constituição dos sujeitos, como poderia a música
atuar em pacientes em idades precoces ou em casos de autismo? Com isso,
retomamos reflexões e casos clínicos antigos sob nova ótica e abrimos nossa escuta
para o inaudito em cada sessão, percebendo os efeitos que este estudo vem tendo
sobre nossa atuação.
E, por outro lado, questões variadas que se encaminham para um novo
recorte sobre esta articulação entre a arte musical e a psicanálise, que indagam
sobre as conseqüências do modo de criação pós-tonal sobre os sujeitos envolvidos
e agarrados, para retomar a idéia freudiana sobre os efeitos da música presente em
O Moisés de Michelangelo, por esta forma de construção em torno do vazio que,
certamente, é outra que não a do tonalismo com sua convergência para um centro,
uma tonalidade que, dentro das inúmeras tensões e manobras com o material
musical, visa uma resolução.
Por hora, fechamos aqui, apontando estes restos que não pretendemos calar,
assim como percebemos haver tantos outros no decorrer do trabalho. Fechamos
sem de fato fechar. Alguns enigmas se aquietaram e outros surgiram ou se
intensificaram. Lembrando Clarice Lispector (1999: 41), podemos dizer apenas que
“a criação”, seja ela qual for, “não é uma compreensão, é um novo mistério”.
85 Ao pensarmos neste ponto, nos vem à mente o refrão de uma canção da cantora Regina Spektor, Reading time with Pickle, do álbum Songs, de 2002, em que o amor aparece como resposta a algo que falta. Ela nos canta: “Love is the answer to a question that I have forgotten, but I know I’ve been asked and the answer has got to be love” (O amor é a resposta para uma pergunta de que me esqueci, mas sei que fui perguntada e a resposta tem que ser amor).
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