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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE DARCY RIBEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COGNIÇÃO E LINGUAGEM RENATA MATTOS DE AZEVEDO VESTÍGIOS DO IMPOSSÍVEL Refletindo sobre música a partir da psicanálise Linha de pesquisa: Filosofia da mente e processos cognitivos – O estudo dos processos cognitivos – Psicanálise CAMPOS DOS GOYTACAZES 2007

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE DARCY RIBEIRO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COGNIÇÃO E LINGUAGEM

RENATA MATTOS DE AZEVEDO

VESTÍGIOS DO IMPOSSÍVEL

Refletindo sobre música a partir da psicanálise

Linha de pesquisa: Filosofia da mente e processos cognitivos –

O estudo dos processos cognitivos – Psicanálise

CAMPOS DOS GOYTACAZES

2007

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RENATA MATTOS DE AZEVEDO

VESTÍGIOS DO IMPOSSÍVEL

Refletindo sobre música a partir da psicanálise

Dissertação apresentada ao Centro de Ciências do

Homem da Universidade Estadual do Norte Fluminense

Darcy Ribeiro, como parte das exigências para obtenção

do título de Mestre em Cognição e Linguagem, orientada

pelo Professor Doutor Gilberto Gomes.

CAMPOS DOS GOYTACAZES

2007

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RENATA MATTOS DE AZEVEDO

VESTÍGIOS DO IMPOSSÍVEL

Refletindo sobre música a partir da psicanálise

Dissertação apresentada ao Centro de Ciências do

Homem da Universidade Estadual do Norte Fluminense

Darcy Ribeiro, como parte das exigências para obtenção

do título de Mestre em Cognição e Linguagem, orientada

pelo Professor Doutor Gilberto Gomes.

Aprovada em 16 de abril de 2007.

COMISSÃO EXAMINADORA Prof. Dr. Gilberto Lourenço Gomes (Doutor, Psychopathologie Fondamentale et Psychanalyse – UENF – Orientador) Profª. Drª. Inês Catão Henriques Ferreira (Doutora, Psicologia Clínica – UnB)

Prof. Dr. Sérgio Arruda de Moura (Doutor, Ciência da Literatura – UENF) Prof. Dr. Frederico Schwerin Secco (Doutor, Filosofia – UENF) Profª. Drª. Silvya Beatriz Joffily (Doutora, Psicologia – UENF – Suplente)

CAMPOS DOS GOYTACAZES 2007

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Para todos aqueles que nos fazem ouvir além.

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AGRADECIMENTOS

À minha família, sempre presente, me encorajando nos momentos difíceis: minha

mãe Nadia, meu pai Azevedo, minhas irmãs Flávia e Carla, e meus sobrinhos Igor e

Eric. A Vinicius, companheiro constante nas alegrias, dificuldades e descobertas. E a

seus pais, Nidia e Sebastião, pelo incentivo. A meus avós Almir e Luci, sempre.

À minha família em Campos, tia Neide, Geralda, Thaís, Gisela, Juninho, pelo

receptividade e pelo apoio quando a saudade de casa mais apertava.

Ao professor Gilberto Gomes, por ter acolhido meu tema, me permitindo avançar no

trabalho e incentivando a me colocar como autora.

A Inês Catão, pela rica troca, recepção de meu trabalho e movimento a este, e pelas

importantes contribuições na banca final que apontam para uma continuidade.

Ao professor Frederico, pela sensibilidade e disponibilidade desde o início deste

mestrado, e pelas frutíferas conversas sobre música.

Ao professor Sergio Arruda pelo incentivo constante, bom humor contagiante, e por

ter aceito participar das bancas durante o curso.

A Maria Lidia Alencar, interlocutora de anos, sempre disposta a ajudar, e ajudando

mais do que tem idéia. E a Paulo Vidal, cujas palavras de anos atrás continuam

ecoando aqui.

A Maria Silvia Hanna, pela escuta e por possibilitar que eu me escute.

A Tania Rivera, pelo encontro com Inês Catão, e pelas boas idéias sobre arte.

Aos amigos e colegas que fiz em Campos, que tornaram o mestrado mais leve e

divertido, em especial a Denise Mello, Wander Luiz, Carolina Ligiero, Vânia

Tatagiba, Vilma Devas, Germano Quintanilha, Aline Santanna, Hildeny Raposo,

Thiago Eugênio, Ana Raquel Pourbaix, Zuleica Strogulski, Laura Stobaus, Rodrigo

Lacerda, Lina Fregonassi, Nara Gea, Luciana Negini.

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Aos amigos que reencontrei ou pude fazer nas aulas da Universidade Estadual do

Rio de Janeiro e da Universidade Federal do Rio de Janeiro pelas conversas sempre

boas e instigantes: Fernanda Matos, Mariana Abreu, Heloneida Neri, Adriana

Pacheco, Simone Delgado, Danielle Moura, Geraldo Piquet, Eneida Braga, Thoya

Mosena, Jaíra Perdiz, Carlos Costa, Daniela Oliver, Mirian Bacelo, Hilana Erlich.

Aos amigos que me ajudaram a seguir em frente durante o mestrado, alguns sempre

ao lado, outros em momentos cruciais. Com especial carinho a Beatriz Abreu,

Barbara Lima, Thomaz Alexandre Coelho e Sofia Andrade.

A Júnior, pela ajuda fundamental com os livros, e para além deles, e a Gracinha.

Ao Programa de Pós-graduação em Cognição e Linguagem da UENF, coordenado

por Paula Mousinho, e aos professores Glauco Tostes, Carlos Henrique de Souza e

Silvya Joffily. Agradeço imensamente ao apoio dado pela UENF para a condução da

Pesquisa, contribuindo com uma bolsa de pesquisa e com o apoio para fazer vínculo

com outras Universidades.

Ao Programa de Pós-graduação em Psicanálise da UERJ, em especial a Luciano

Elia, coordenador quando lá cursei disciplinas como aluna especial, Doris Rinaldi,

atual coordenadora, Ana Costa e Marco Antonio Coutinho Jorge, em cujas

excelentes aulas destes três últimos pude trabalhar e avançar na pesquisa. Também

a Fernanda Costa-Moura, que me aceitou em sua disciplina no Programa de Pós-

graduação em Teoria psicanalítica da UFRJ.

Às secretárias da UENF Ana Paula de Lima Caputo de Freitas Martins de Souza e

Silvana Freitas de Castro, pela ajuda, paciência e disponibilidade.

À Biblioteca do Serviço Social do Comércio Nacional (SESC-DN) pela ajuda e

contribuição com o acervo sobre música e pelo ambiente propício ao estudo,

principalmente a Rui de Matos, Francisco Silva, Carmélia Rohde, e ao maestro

Wagner Campos. E à Biblioteca do Centro Cultural do Banco do Brasil.

A Vera Lima, pela grande ajuda com o idioma francês.

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RESUMO

Este trabalho tem como proposta elaborar uma reflexão sobre os sujeitos envolvidos

no ato de criar, compondo ou interpretando, e de fruir a arte musical, tendo como

referencial teórico a psicanálise freudiana e a lacaniana. Parto de uma delimitação

do campo desta arte, destacando-a como autônoma e com uma linguagem própria.

A música é por mim tomada como uma organização por parte do compositor dos

materiais musicais, sons e silêncios, sendo dirigida a um outro sujeito que a

escutará. Entendo que a criação musical pode ser vista como um ato significante,

podendo assim ser ouvida pelos sujeitos. Neste ato de criação, o circuito pulsional

do sujeito, em especial o da pulsão invocante, é colocado em ação de forma que

terá como visada a apreensão do objeto voz. Como isto é impossível, há o contorno

do vazio deste objeto. O tema da criação artística aliado ao movimento pulsional foi

por Freud abordado através da temática da sublimação. Diferentemente de outras

produções do inconsciente, como sonhos, atos falhos ou sintomas, a música

passará por outros caminhos que não o recalque propriamente dito, porém, será

possível por ela alguma elaboração psíquica. A sublimação foi trabalhada em Lacan

pensando-se na própria constituição dos sujeitos, na qual resta um objeto perdido

desde sempre, das Ding. Diante da impossibilidade de se obter este objeto, haverá a

criação de um outro que poderá atuar como causa de desejo para os demais

sujeitos. Faz-se necessário, deste modo, um estudo mais aprofundado sobre a

constituição destes e sobre a musicalidade nela presente. Ou seja, sobre os tempos

de alienação e separação do sujeito no campo do Outro e sobre o papel que o objeto

voz neles opera. Com isso, poderemos pensar na música como uma resposta do

sujeito ao enigma do desejo do Outro, que dará a ouvir, àqueles que se colocarem

na posição de escuta, notícias do vazio da constituição e da linguagem, assim como

uma maneira de lidar com isso.

Palavras-chave: Psicanálise, música, sujeito, objeto voz, pulsão invocante, criação.

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RÉSUMÉ

Ce travail se propose à élaborer une réflexion sur les sujets qui participent à l’acte de

créer l’art musical, par la composition ou par l’interprétation, et d’en jouir, ayant

comme référence théorique la psychanalyse de Freud et celle de Lacan. Je

commence par une délimitation du champ de cet art, en la soulignant comme

autonome et ayant son propre langage. La musique, à mon avis, est une

organisation, faite par le compositeur, des matériaux musicaux, des sons et des

silences, s’adressant à un autre sujet qui l’entendra. Je comprends que la création

musicale peut être vue comme un acte signifiant et peut être ainsi entendue par des

sujets. Dans cet acte de création, le circuit pulsionnel du sujet, spécialement celui de

la pulsion invoquante, est mis en action, ayant comme visée l’appréhension de l’objet

voix. Comme cela est impossible, il y a le circuit du vide de cet objet. Le thème de la

création artistique associé au mouvement pulsionnel a été traité par Freud à travers

la thématique de la sublimation. À la différence d’autres productions de l’inconscient,

comme les rêves et les symptômes, la musique va parcourir d’autres voies que celles

du refoulement proprement dit, mais, à travers elle, une certaine élaboration

psychique sera possible. La sublimation a été discutée par Lacan en rapport à la

constitution propre des sujets, où il reste un objet perdu depuis toujours, das Ding.

Face à l’impossibilité d’avoir cet objet, il y aura la création d’un autre qui pourra agir

comme cause de désir pour les autres sujets. Il faut ainsi une étude plus approfondie

sur la constitution des sujets et sur la musicalité qui y est présente. Autrement dit, sur

les temps d’aliénation et de séparation du sujet dans le champ de l’Autre et sur le

rôle que l’objet voix joue pour eux. On pourra, donc, penser à la musique comme une

réponse du sujet à l’énigme du désir de l’Autre, qui donnera à entendre à ceux qui

l’écoutent des nouvelles du vide de la constitution et du langage, ainsi qu’une

manière de faire face à cela.

Des mots-clés : Psychanalyse, musique, sujet, objet voix, pulsion invoquante,

création.

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SUMÁRIO

Introdução 1

Capítulo I – Sobre música 10

I.1 – Delimitação dos campos sonoro e musical 12

I.2 – Linguagem musical 15

I.3 – Sistemas musicais 20

I.4 – Possíveis abordagens e uma escolha 23

I.4.1 – Uma abordagem histórica 23

I.4.2 – Uma abordagem neurocientífica 26

I.4.3 – Uma abordagem filosófica – Nietzsche e música 31

I.4.4 – Escolha por uma abordagem psicanalítica 34

Capítulo II – Sobre psicanálise 36

II.1 – O sujeito em Freud e Lacan 37

II.1.1 – O inconsciente 37

II.1.1.1 – O inconsciente em Freud 37

II.1.1.2 – Inconsciente e sujeito em Lacan 45

II.1.1.3 – Linguagem e sujeito em Freud e Lacan 55

II.2 – O Outro 60

II.3 – A constituição do sujeito 64

II.4– Pulsão, seu circuito e vicissitudes 70

Capítulo III – Sobre a musicalidade na constituição do sujeito 80

III.1 – Um resto na constituição do sujeito:

o objeto a e suas formas 81

III.2 – A musicalidade na constituição do sujeito:

a mãe, a voz e a invocação 90

Capítulo IV – Sobre psicanálise e arte 100

IV.1 – Sublimação e das Ding 100

IV.2 – Sublimação e elaboração psíquica: criação e fantasia 111

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Capítulo V – Sobre música a partir da psicanálise 118

V.1 – Tempo, atempo; harmonia, sincronia;

melodia, diacronia: aproximações 118

V.2 – Criação musical: alinhavo entre sons e silêncios 135

V.3 – Escuta musical: ouvir mais além 147

Considerações finais 158

Referências bibliográficas 163

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Na verdade, o amor pela arte não se dá nem se explica (Debussy, 1989: 106).

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INTRODUÇÃO

Ao investigar a criação artística, a psicanálise pode ter a pretensão de ir além

de uma compreensão estrita desse campo, recolocando em questão suas

próprias noções e compreensão geral do sujeito – uma vez que a teoria

psicanalítica não constitui nunca um edifício teórico bem acabado e definitivo,

mas um verdadeiro canteiro de obras a requerer novas formulações,

repetidamente (Rivera, 2002: 31).

O humano e suas expressões, em especial a artística, a partir da psicanálise:

é este o ponto central de questionamento deste trabalho. Antes de mais nada, é uma

reflexão sobre o que a arte, ouvida pela psicanálise, pode dizer daquele que a criou

e de quem a aprecia, pensando em como ela pode nos falar dos sujeitos de uma

forma geral. Porém, neste amplo campo do fazer artístico, enfocaremos uma arte em

particular, a música.

É preciso dizer que este trabalho parte de uma vivência singular minha,

anterior ao meu encontro com a psicanálise, de um forte interesse, curiosidade e

contato com o campo artístico. Isto me ocorreu tanto no pólo de apreciação como no

da prática, levando-me a experimentar posições diferenciadas nas artes plásticas, na

escrita e, principalmente, na música, uma vez que me dedicava a tocar violino e,

posteriormente, violoncelo.

A música me parecia ser radicalmente diferente das outras artes, o que me

levou a questionar se ela teria um objeto próprio que se apresentaria também de um

modo próprio aos sujeitos e que exigiria destes uma posição subjetiva específica,

como resposta aos efeitos causados por ela.

Caso existisse esse objeto, o que seria? Seria a própria linguagem musical,

seus conceitos, termos e relações? Ou seria algo constitutivo do próprio humano

que, na música, ganharia maior destaque? O que poderia ser este “algo constitutivo

do humano” que a música poderia apresentar?

Esta pesquisa surgiu, assim, do questionamento acerca da existência de uma

especificidade da arte musical em relação às demais artes. O que diferencia a

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música de artes como a poesia e a literatura – nitidamente ligadas à palavra –, as

artes plásticas, como a pintura e a escultura – em que a dimensão da imagem está

explicitamente presente–, ou até mesmo a dança, cinema e teatro – nas quais a

dimensão corporal aparece com maior evidência e que mesclam diferentes

expressões?

Tais questões puderam ser acolhidas quando me aproximei da psicanálise,

tanto teoricamente quanto na clínica, o que me levou a estudar a arte, a música e o

sujeito dentro desta perspectiva. Como se o segredo sobre o humano que a

psicanálise pode escutar na fala de quem se dispõe a entrar em análise e sobre o

qual ela elabora sua teoria pudesse ser ouvido de forma sintética nas expressões

artísticas.

Nossa aposta foi a de que, ao estudarmos a arte, de uma maneira mais

ampla, a partir do encontro com a teoria psicanalítica freudiana e, posteriormente, a

lacaniana, privilegiando a expressão musical e buscando uma interlocução com

autores de seu próprio campo, poderíamos encontrar subsídios para avançarmos na

compreensão do enigma que a música nos colocava. Com isso, efetuamos duas

monografias sobre este tema, a primeira como conclusão do curso de Graduação

em Psicologia e a segunda também como finalização do curso de Especialização

Lato Sensu em Psicanálise e Laço Social – A clínica e suas razões, ambos

realizados na Universidade Federal Fluminense. O primeiro trabalho, intitulado

Psicanálise, arte e música, foi concluído no ano de 2003, e o segundo, Música que

não se ouve – Uma visão da psicanálise sobre sujeito, arte e música, em 2004. Em

seguimento a estes trabalhos, iniciamos, em março de 2005, esta pesquisa dentro

do Mestrado em Cognição e Linguagem da Universidade Estadual do Norte

Fluminense.

Acreditamos que o ato de escolher um tema, mesmo em uma pesquisa

acadêmica, já coloca de saída a dimensão de que há um sujeito diante de um objeto.

Contudo, se este sujeito tem como referencial teórico a psicanálise, em especial as

tradições freudiana e lacaniana, o que estará em jogo não é um sujeito neutro nem

tampouco um objeto que ele buscará conhecer. Isso implicará, sim, em um sujeito

que comparece com seu desejo já na escolha de um tema, e tendo como visada um

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objeto que lhe é perdido desde sempre, e que, nessa condição, faz com que o

movimento próprio do desejo se inicie e não cesse.

É esse sujeito, desejante, e esse objeto, que causa o desejo, que nossa

pesquisa tem como mirada. Sujeito este que cria, por palavras, imagens, trabalhos

científicos, produções artísticas, etc., e em cujas criações pode ser vislumbrado o

dinamismo do psiquismo humano. A proposta, assim, é escutar este sujeito pela

psicanálise através da arte musical.

Nos trabalhos realizados por Freud e por Lacan acerca da arte, podemos

notar que há o movimento de construção do saber da psicanálise na medida em que

aquilo que se apreende do campo artístico ressoa na própria teoria psicanalítica e no

fazer do analista. Ambos estes autores puderam escutar nas artes o que elas falam

sobre o sujeito, seja pela via da criação, do criador ou do objeto criado. Contudo,

nestas incursões freudianas e lacanianas no terreno das artes, pouco se refletiu

sobre a música, apesar desta ter muito a contribuir a este campo. Entendemos que a

música apresenta-se como um rico terreno para nos questionarmos sobre o sujeito

em psicanálise.

Assim, ao nos depararmos com a música, esta nos coloca questões para

pensarmos com a psicanálise. O que ela pode nos dizer do sujeito – sujeito do

inconsciente, da linguagem, do desejo, conforme demarcado por Freud e Lacan? O

que refletir sobre a música pode nos ajudar a caminhar na teoria psicanalítica sobre

a constituição do sujeito? O que podemos aprender com a música sobre o sujeito

que a cria e sobre aquele que a frui?

A partir destes questionamentos, delimitamos três temas distintos dentro de

uma aproximação entre a música e a psicanálise: a música e a constituição

subjetiva, a música e a criação, e a escuta musical. Todos eles tocam um campo em

comum, o da pulsão invocante e do objeto voz. Podemos articulá-los se pensarmos

que o sujeito, para se constituir, precisa passar pelo movimento de busca da

incorporação da voz e da entrada na linguagem e que é de um fazer com o objeto

voz que a música dá notícias a seus fruidores, não sendo este o único mérito desta

arte.

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Com isto em mente, tomamos a música, neste trabalho, como uma linguagem

organizada de sons que precisa da ação de um compositor e de um intérprete para

tomar forma e ser ouvida. No próprio ato de compor uma música já está colocada a

presença de um ouvinte, um sujeito a escutar, para que os efeitos desta arte sonora,

abstrata e temporal sejam realizados.

Buscaremos, deste modo, pesquisar a música entendendo-a como produção

psíquica de sujeitos, levando em consideração o que estaria em jogo psiquicamente,

em sua criação, interpretação e escuta. Tomamos como hipótese que a música teria

como função, ao contornar a Coisa, apresentar algo de real que não pode ser

presentificado pela via das palavras, do dizer. Teria, ainda, a função para o sujeito

de se endereçar ao Outro, se fazendo ouvir, e colocando em cena o circuito da

pulsão invocante na busca de apreensão do objeto voz. A música envolveria, a

nosso ver, a voz e o ouvido, atingindo um além dos sentidos.

Ressaltamos, contudo, que pela complexidade do campo musical e por ser

esta uma das muitas formas de se abordar a música, não pretendemos restringi-la a

uma definição rígida nem tampouco propor uma tradução em palavras desta

expressão artística e de seus efeitos, que se encontram, justamente, no campo do

indizível.

Nossa pesquisa lida, portanto, com dois campos distintos: a música e a

psicanálise, e entendemos que ambos são de grande complexidade, podendo ser

tomados por diferentes perspectivas. Por isso, é fundamental que seja aqui

demarcado nossa posição diante deles. Com este intuito, nos dois primeiros

capítulos desta dissertação, traçaremos o modo como tomaremos cada um destes

dois campos, assim como os principais conceitos com os quais trabalharemos ao

longo de nosso percurso.

No capítulo inicial, intitulado Sobre música, buscaremos inicialmente fazer

uma delimitação dos campos do sonoro e musical, destacando que, no segundo,

há um fazer humano que o diferencia e justifica. Este fazer se baseia em leis

específicas da arte musical, o que torna possível pensá-la como uma linguagem –

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uma linguagem musical que, ao longo da história humana, foi tratada de modos

distintos, produzindo sistemas musicais com regras variadas, que, no entanto,

convencionou-se agrupar em três: sistema modal, tonal e pós-tonal (ou atonal). Tais

sistemas serão por nós apresentados, sem nos atermos à complexidade de suas

estruturas e princípios.

Para dar seguimento ao capítulo, no tópico Possíveis abordagens e uma

escolha, optamos pela apresentação de três perspectivas teóricas de estudo da

música diferentes da psicanalítica. São elas uma abordagem histórica, uma

abordagem neurocientífica, e uma abordagem filosófica – Nietzsche e a

música. Todavia, ressaltamos que fizemos um recorte nelas, buscando pontos de

encontros e divergências entre estas e a psicanálise, justificando nossa escolha por

uma abordagem psicanalítica.

Já no segundo capítulo, Sobre psicanálise, definiremos os principais

conceitos da psicanálise em que embasaremos nossa pesquisa. Para tanto,

dividiremos este estudo em quatro tópicos: O sujeito em Freud e Lacan, O Outro,

A constituição do sujeito, e Pulsão, seu circuito e vicissitudes.

O primeiro tópico será dividido da seguinte forma: O inconsciente em Freud,

Inconsciente e sujeito em Lacan, e Linguagem e sujeito em Freud e Lacan.

Nossa proposta é investigar como a psicanálise entende o sujeito, propondo uma

nova concepção deste com a elaboração do conceito freudiano de inconsciente,

defendido na teoria lacaniana como estruturado como uma linguagem.

Procuraremos investigar as idéias freudianas a respeito do aparelho psíquico

como um aparelho de memória e de inscrição de traços, presentes em escritos como

a Carta 52 dirigida a Fliess, de 6 de dezembro de 1896, e Uma nota sobre “o bloco

mágico”. Procuramos, assim, pensar a dimensão de linguagem presente na estrutura

do inconsciente, o que também pode ser lido no capítulo VII da Interpretação dos

sonhos.

Trataremos, no segundo tópico, do conceito lacaniano de Outro, como campo

do qual o sujeito deve se separar para se constituir em um processo de alienação e

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separação. Diferenciaremos este conceito da noção de outro enquanto o semelhante

que, ao cuidar do bebê será responsável por encarnar este Outro e lhe transmitir a

linguagem.

A constituição do sujeito será estudada em seguida, tomando como base

textos freudianos como o Projeto para uma psicologia científica, no qual Freud

aborda a experiência de satisfação, responsável pelo surgimento simultâneo dos

campos do sujeito e do objeto, e A negativa. Nestes, a partir da descrição dos juízos

de atribuição e de existência, podemos observar a delimitação do sujeito e do Outro,

assim como a criação da realidade psíquica para o primeiro.

Por fim, enfocaremos a dimensão pulsional presente e atuante neste sujeito.

Refletir sobre a pulsão nos dará condições não somente de entender com maior

clareza a constituição subjetiva, pela ação da pulsão e de seu circuito e do

mecanismo do recalque, como também de pensar, posteriormente, o lugar da arte

para os sujeitos. Isto na medida em que um dos destinos pulsionais, a sublimação,

se mostra como fundamental para o estudo das artes pela via psicanalítica.

O terceiro capítulo da dissertação, intitulado Sobre a musicalidade na

constituição dos sujeitos, procurará articular os conceitos psicanalíticos

apresentados no segundo capítulo com o tema da música visando destacar como a

dimensão da musicalidade tem lugar na constituição psíquica dos sujeitos. Com isso,

pretendemos compreender como esta possibilitará a criação e fruição ou gozo

estético musical.

Em um primeiro tópico, Um resto na constituição do sujeito: o objeto a e

suas formas, buscaremos delimitar o conceito lacaniano de objeto a conforme

definido pelo autor principalmente nos Seminários A angústia e Os quatro conceitos

fundamentais da psicanálise. Mais que isso, procuraremos demarcar os elementos

presentes no surgimento do sujeito enquanto tal, a saber, o objeto a como resto e

como causa de desejo, das Ding como extimidade, e a pulsão em seu circuito com

relação ao Outro, conforme vistos no capítulo precedente, ligando-os à dimensão da

musicalidade.

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Procurar-se-á pensar, no tópico A musicalidade na constituição do sujeito:

a mãe, a voz e a invocação, em como na transmissão do significante, também são

transmitidas outras marcas, sonoras, pela musicalidade da fala e da voz materna e

em como estas poderão ser determinantes na posição de quem cria e de quem frui a

obra musical. Entendemos que o sujeito somente pode advir no campo do Outro a

partir da entrada do significante, que tem como efeito a inscrição de uma marca, o

traço unário, com o qual o sujeito se identificará e por meio do qual poderá se

distinguir dos demais sujeitos. Tal conceito, que aparecerá aqui pela primeira vez na

dissertação, permitirá avançar no estudo sobre o objeto a, em sua forma de objeto

voz ligado à pulsão invocante.

Focalizaremos a posição do sujeito diante do objeto voz, enquanto objeto a, e

no circuito da pulsão invocante. Procuraremos analisar como estes dois pontos

permitem que o sujeito possa se constituir como tal, a partir de uma invocação que

lhe é feita do Outro. Pensaremos, assim, nas implicações do circuito da pulsão

invocante para que o sujeito possa ter sua própria voz e criar, a partir deste ato, na

linguagem, seja pela fala ou, eventualmente, pela música.

Surgirá como novidade no texto e como indicação para ampliar a discussão,

sem que, contudo, nos aprofundemos nela, a temática da letra como redução

mínima do real. Destacamos aqui que podemos fazer uma delimitação deste

conceito na obra lacaniana em dois momentos. O primeiro, na década de 50, quando

Lacan analisou o conto A carta roubada, de Edgar Alan Poe, no Seminário O eu na

teoria de Freud e na técnica da psicanálise e no escrito A instância da letra no

inconsciente ou a razão desde Freud. E o segundo com a virada teórica dada com o

texto Lituraterra, de 1971, a partir do qual a letra deixará de ser pensada como

suporte para o significante, como ocorria até então, e passará a distinguir e articular

os campos do sujeito e do objeto, do simbólico e do real.

Fará parte desta reflexão, a concepção lacaniana de alíngua (lalange), no

sentido de algo anterior à instauração da linguagem e que é intraduzível, escapando

ao sentido e nos remetendo ao conceito de gozo. Contudo, este conceito, assim

como o de letra, nos servirá apenas de instigador para o nosso estudo, abrindo

possibilidades futuras. Isto porque nos ateremos em nosso trabalho à elaboração

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teórica lacaniana do início de seus Seminários, em 1953, até, principalmente, o

Seminário de 1964. Mesmo assim, achamos relevante destacar considerações

lacanianas de momentos posteriores a este de forma breve e pontual, demarcando,

porém, que seria necessário um maior aprofundamento e estudo nestes temas para

avançarmos, com eles, em outro momento e espaço.

Passaremos para o estudo do destino pulsional da sublimação no capítulo

Sobre psicanálise e arte. Faremos, assim, no primeiro tópico, Sublimação e das

Ding, uma delimitação sobre como tal tema é trabalhado em Freud ao longo de sua

obra. Com isso, é preciso demarcar como entendemos a sublimação em termos

freudianos.

Neste mesmo tópico, procuraremos também articular as noções de

sublimação e das Ding, a Coisa, conforme proposto por Lacan no Seminário A ética

da psicanálise. Estudaremos os passos lacanianos a respeito da sublimação com o

intuito de acompanhar e entender sua assertiva de que “a sublimação eleva o objeto

à dignidade de Coisa” (Lacan, 1959-1960/1997: 41).

Pensaremos, ainda, no segundo tópico, Sublimação e elaboração psíquica:

criação e fantasia, em como o conceito freudiano de elaboração psíquica pode

também nos ajudar para o estudo das artes, uma vez que estas, por sua

característica de síntese, podem ser lidas como uma via para elaborar materiais

inconscientes traumáticos, não apenas para aqueles que as criam, mas também

para aqueles que a interpretam e apreciam.

Neste tópico, ampliaremos nossa reflexão sobre a arte através do conceito de

fantasia, analisando-o a partir das trajetórias freudiana e lacaniana sobre o mesmo e

refletindo sobre seu papel na criação artística. Seja pelo papel desta na criação de

novas realidades, como destacado por Freud em artigos como Escritores criativos e

devaneios, pela criação de substituições frente ao sofrimento, conforme podemos ler

em Mal estar na civilização, ou pela sua articulação com o objeto a e sua função de

tela frente ao real, como formulado por Lacan.

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No quinto e último capítulo da dissertação, que leva o título Sobre música a

partir da psicanálise, pretendemos, baseados nas discussões teóricas

precedentes, investigar a criação e a fruição musical tomando como referência

trabalhos de psicanalistas sobre música, assim como de compositores, músicos e

intérpretes.

O capítulo terá duas divisões. Na primeira, Criação e interpretação musical,

será enfocada a temática da criação musical pelas vias da composição e da

interpretação. Já na segunda, A escuta musical, teceremos reflexões sobre o ato

de fruição musical, ou seja, a posição do sujeito ouvinte, dando destaque para as

contribuições sobre este tema trazidas por Didier-Weill e pelo compositor François

Nicolas, autores da tradição lacaniana que trabalham com o intuito de esclarecer o

tema da música em uma perspectiva psicanalítica. Destacamos que, apesar desta

temática estar ganhando mais destaque nesta área, ela ainda se apresenta como

um enigma.

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CAPÍTULO I

Sobre música

As pessoas se queixam, freqüentemente, de que a música é ambígua em

excesso, de que fica muito pouco claro o que se deveria pensar ao ouvi-la, ao

passo que todos entendem as palavras. Comigo, é exatamente o contrário...

Os pensamentos expressos para mim através da música que aprecio

não são imprecisos demais para serem postos em palavras, mas sim, ao contrário, excessivamente explícitos (Mendelssohn apud Jourdain, 1998: 374; os grifos são nossos).

Fazer uma trajetória de estudo através da psicanálise freudiana e lacaniana

sobre a música se apresenta como um desafio, uma vez que não encontramos na

obra destes dois autores nenhum trabalho específico destinado a este tema. Freud

evidenciou em vários momentos de sua obra o interesse que possuía pelo campo

artístico, fazendo dele um espaço para interrogar-se sobre o sujeito, o desejo, a obra

de arte, a pulsão, enfim, sobre o humano.

Encontramos em Freud uma instigante declaração sobre a música. Ao dizer, em

O Moisés de Michelangelo, de 1914, porque não é quase capaz de sentir prazer com

a música, Freud evidencia uma “surdez” diante da música, anteriormente já

destacada por Alencar (1997: 253), que nos faz refletir sobre a própria capacidade

da música em afetar os sujeitos. Nas palavras de Freud:

Não obstante, as obras de arte exercem sobre mim um poderoso efeito, especialmente a literatura e a escultura e, com menos freqüência, a pintura. (...) Com a música, sou quase incapaz de obter qualquer prazer. Uma inclinação mental em mim, racionalista ou talvez analítica, revolta-se contra o fato de comover-me com uma coisa sem saber porque sou assim afetado e o que é que me afeta (Freud, 1914/1990: 253; os grifos são nossos).

Freud nos coloca a questão de que não se pode fugir ao apelo que a música

nos envia a não ser por uma tendência racional. Diante da música, Freud a ouve e,

contudo, recua, não a escuta. Entretanto, vemos nessas observações que Freud faz

sobre a música, na medida em que não a escuta, um caminho a seguir. É preciso

fazer com que a psicanálise pense a forma como a música pode vir a afetar um

sujeito, sendo que este pode se fazer surdo a ela justamente porque ouve. Notamos

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que, apesar de a música poder ser tomada como significante e pensada como uma

linguagem, há algo que escapa a este domínio, tomando e causando aqueles que a

ouvem.

Outro ponto pode ser levantado a partir da leitura atenta da fala de Freud em

relação à música, que nos indica a especificidade desta área e aponta para uma

possível função desta. Haveria uma não compreensão imediata da música e da

linguagem musical, sendo esta específica e da qual os músicos precisam ter um

certo domínio. Ao falar da técnica de interpretação dos sonhos, Freud escreve que:

Pode-se constatar que as melodias que acodem à mente de uma pessoa de modo inesperado são determinadas por uma seqüência de idéias à qual pertencem (...). É fácil, nesses casos, demonstrar que a relação com a melodia é baseada em sua letra ou em sua origem. Contudo, devo ter o cuidado de não estender essa asserção a pessoas realmente ligadas à música (...). Pode ser que para essas pessoas o conteúdo musical da melodia é que decide seu surgimento (Freud, 1917[1916-1917]/1990: 134; os grifos são nossos).

A partir desta citação, podemos levantar dois aspectos importantes para se

compreender o que é a música: a música, por si só, não é carregada de conteúdos

objetivos e de significações, o que pode acontecer apenas quando ela se liga à

palavra; ela possui uma lógica própria, ou seja, seus elementos possuem ligações e

articulações entre si, sendo que o sujeito que a cria tem uma relação específica com

a pulsão e com o objeto desta, através do qual obtém seu gozo1.

Nesse ponto, nos voltamos para Lacan, que, assim como Freud, buscou

avançar a psicanálise através da reflexão sobre algumas expressões artísticas sem,

contudo, se deter sobre a música. Chegou a formular o conceito de pulsão

invocante2 – que acreditamos ser de suma importância para se estudar a música

através da psicanálise, no que ela pode nos dizer sobre o pulsional –, sem, contudo,

aprofundá-lo. Não fez o mesmo movimento realizado em direção à pulsão escópica,

1 Deste modo, a música pode ser pensada como significante, conforme a leitura lacaniana deste conceito, como veremos no segundo capítulo desta dissertação. A discussão sobre a música como significante se dará no capítulo “Sobre a musicalidade dos sujeitos”. 2 Apresentaremos a teorização lacaniana sobre as pulsões parciais, a saber, pulsão oral, pulsão anal, pulsão escópica e pulsão invocante, assim como os objetos que se relacionam a tais pulsões no tópico “Um resto na constituição do sujeito: o objeto a e suas formas” presente no terceiro capítulo de nosso trabalho.

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em seu estudo sobre o olho e o olhar e, consequentemente, sobre o quadro e a

pintura, encontrado no Seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.

Acreditamos, deste modo, que a psicanálise pode se empenhar no estudo da

música com o intuito de apreender a dinâmica psíquica envolvida na criação e na

escuta musical, nos efeitos subjetivos destes dois momentos. Nessa trilha, tal

aproximação pode ser feita estudando-se a relação entre o sujeito e a arte, nesse

caso, o músico ou o ouvinte e a música, assim como também delimitar a

musicalidade existente na constituição dos sujeitos – movimentos que pretendemos

fazer. Para tanto, há pontos que precisam ser delimitados não somente a respeito da

psicanálise, a começar sobre a definição de música que aqui usaremos.

Neste trabalho, tomaremos a música, inicialmente, como arte musical, com

uma arte que lida com o sonoro e com o musical, o que, de imediato, já nos abre

uma complexa questão. Este aspecto da música nos faz refletir se o musical

sucederia o sonoro tendo com ele alguma ligação. Haveria uma continuidade entre

estes dois campos, o sonoro e o musical? Esta pergunta se faz pertinente uma vez

que buscamos conhecer um pouco mais sobre a voz, além do som e da música.

Interessa-nos refletir sobre como ela atua no sujeito e que posição ocupa para os

sujeitos que estão envolvidos na criação ou interpretação (ou re-criação musical) e

na escuta. Do mesmo modo, interessa-os, sobretudo, a posição dos sujeitos diante

da música.

I.1 – Delimitação do campo sonoro e do campo musical

Ao falarmos de música, aqui, estamos nos referindo, em primeiro plano, à

música instrumental e também vocal, apontando, contudo, para a maior autonomia

musical que a primeira tem diante da segunda, uma vez que a forma vocal,

geralmente, está ligada às palavras. Isso não significa que as formas vocais estejam

atreladas ou subjugadas ao significado das palavras nelas cantadas. É possível

observá-las a partir apenas do campo ao qual elas pertencem, o musical,

entendendo que, nesse caso, as palavras comparecem em sua dimensão de

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musicalidade3. Concordamos com o compositor russo Igor Stravinsky (1996: 46)

quando este afirma que “no momento em que a canção é usada somente para dar

expressão a um discurso, ela deixa o domínio da música e nada mais tem a ver com

ele” (Os grifos são nossos).

Além disso, estenderemos a nossa concepção de música para toda e

qualquer expressão artística ligada ao campo musical, não acreditando existir

diferença da posição ocupada pela música naquele que a cria, interpreta e frui, de

acordo com o estilo de composição, dito clássico ou não.

O compositor Murray Schafer (1991: 35) propõe uma definição para a música

que entendemos ser um bom ponto de partida para a delimitação do campo musical.

Diz ele que “música é uma organização de sons (...) com a intenção de ser ouvida”.

Esta concepção vem ao encontro das idéias de Stravinsky (1999: 13), que

pressupõe que “a forma musical é o resultado da ‘discussão lógica’ dos materiais

musicais”. Ou seja, esse autor parte do princípio de que os sons e os elementos

musicais serão explorados pelo compositor no processo de criação da música.

Pode-se dizer que a música trabalha com sons e, tendo esta premissa em

mente, que ela trabalha com o som de uma maneira, ainda que minimamente,

organizada. Para o também compositor Pierre Boulez (1992: 33), “toda reflexão

sobre a técnica musical deve ter origem no som, na duração, em suma: no material

com que o compositor trabalha”. O som, por assim dizer, seria o objeto da arte

musical, com o qual é possível que o compositor expresse seus conteúdos

inconscientes.

Stravinsky (1996: 31) também concorda que o ponto inicial para se entender a

música é o som. Para este compositor que tanto refletiu sobre o fazer musical, os

“sons são promessas de música, e é preciso um ser humano para poder registrá-

los”. Sendo promessa, os sons ainda não são música. E não basta que sejam

3 Conforme destacaremos no Capítulo II deste trabalho, ao estudar a concepção lacaniana de significante, podemos tomar uma palavra apenas por seu aspecto sonoro, independentemente do significado que pode, eventualmente, ser atrelado a esta imagem acústica. Veremos, ainda, que esta distinção pode também ser encontrada na obra freudiana, mais especificamente no Apêndice C, do artigo metapsicológico O Inconsciente (Das Unbewusste), de 1915.

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reunidos e dispostos de maneira organizada para que música se tornem. É preciso

que algo aí aconteça.

Assim, é necessário delimitar que sons seriam estes. O que definiria um som

como musical e como material para compor a música? Quando a escuta de um som

se torna uma escuta musical? Para tanto, recorremos ao compositor Pierre

Schaeffer (1966: 320), que propõe uma distinção clara entre os domínios da

sonoridade e da musicalidade. O que diferencia tais domínios, segundo este autor, é

a formalização dos valores ditos musicais em uma construção abstrata de símbolos

próprios da teoria musical e da referência geral dos timbres dos instrumentos

dispostos em diálogo pela ação de um compositor.

Segundo o compositor brasileiro Silvio Ferraz (2005: 26), a musicalidade

ainda não é a música, com o qual concordamos. A musicalidade se daria em um

“soar como música”, em uma “faculdade de algo se tornar música” (Idem), tendo

efeitos de ressonância (Ibid.: 28).

Não haveria, assim, uma continuidade natural entre o sonoro e o musical. O

canto dos pássaros, sucessões geralmente bastante agradáveis de sons

organizados, não poderia ser considerado música, visto que não sai do campo do

sonoro, por mais que com ele possamos nos encantar. Como disse o compositor

francês Debussy (1989: 253): “Não existem cantos na vida: existem ritmos,

atmosferas, cores, mas estes, se bem que variando sem parar, se sucedem sem

solução de continuidade, pela eternidade”. Porém, quando Vivaldi, Strauss ou Villa-

Lobos incluem em suas músicas sons musicais aos quais associamos ou que nos

lembram cantos de pássaros, nesses casos, ao se fazer um corte nesta continuidade

eterna de que nos fala Debussy, os sons se apresentam diferentemente ao

psiquismo, tendo uma função de causa de desejo4, sobre o que nos debruçaremos

mais atentamente ao escutarmos a música pela teoria psicanalítica5.

4 A noção de uma função de causa de desejo foi delimitada por Lacan, principalmente nos seminários A angústia e Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Trata-se de uma causa enquanto uma determinação inconsciente, da qual o sujeito não pode escapar, apesar de poder se posicionar de formas singulares, por um ato subjetivo, frente ao desejo. Este tema receberá maior destaque quando delimitarmos o conceito de objeto a na obra lacaniana. 5 O que será feito no capítulo intitulado “Sobre música a partir da psicanálise”.

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Deste modo, a organização dos sons musicais constitui o campo da música,

que apresenta, ademais, uma linguagem específica. É preciso, entretanto, marcar

que existe uma musicalidade que não pode ser restrita à arte musical. É o caso, por

exemplo, da musicalidade encontrada na poesia e, como veremos mais a diante,

daquela encontrada na fala e na voz da mãe em seu cuidado com o bebê, tema de

nosso quarto capítulo. Defendemos que tal musicalidade, que ressoa no corpo do

sujeito e faz corpo, é estruturante para todos nós e que será preciso um passo a

mais para que da musicalidade se passe à criação musical.

I.2 – Linguagem musical

A afirmativa de que a música é uma linguagem é questão controversa entre

autores de diversos campos, como o da própria música e o da lingüística.

Apresentaremos, de forma concisa, a seguir, algumas destas divergências.

Iniciaremos com a discussão sobre a música ser uma linguagem autônoma6. A

respeito disso, o lingüista Ernest Schurmann (1989: 9), em seu livro A música como

linguagem – uma abordagem histórica, propõe uma divisão da linguagem em

linguagens sonoras e linguagens não sonoras. No primeiro caso, haveria uma

subdivisão entre a linguagem verbal, que, segundo ele, tem função discursiva, e a

linguagem musical, que abrangeria todas as manifestações sonoras humanas com

exceção da fala.

Outra autora do campo da lingüística que concorda com esta divisão é Julia

Kristeva. Segundo ela:

A linguagem verbal e a música realizam-se ambas no tempo utilizando o mesmo material (o som) e atuando sobre os mesmos órgãos receptivos. Os dois sistemas têm respectivamente sistemas de escritas que marcam as suas entidades e relações entre estas. Mas embora os dois sistemas significantes estejam organizados segundo o princípio da diferença fônica dos seus componentes, essa diferença não é da mesma ordem na linguagem verbal e na música. As oposições binárias fonemáticas não são pertinentes em música. O código musical organiza-se a partir da diferença arbitrária e cultural (imposta nos quadros de uma certa civilização) entre os diversos valores vocais: as notas (Kristeva, 1969: 353-354; grifos da autora).

6 Destacamos que enfocaremos nas obras às quais iremos nos referir apenas os pontos de discussão sobre a linguagem musical, sem nos aprofundarmos nos caminhos que cada uma delas segue para estudar a música.

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Para o maestro Nikolaus Harnoncourt (1988: 23), conforme afirma no livro O

discurso dos sons – caminhos para uma nova compreensão musical, a música deve

ser concebida como uma linguagem, sem, contudo, ser relacionada à função de

comunicação. Segundo ele, a música deve ser tomada por sua dimensão estética,

tendo ligação com o movimento e a sonoridade, e representando idéias puramente

musicais.

Tal concepção também é defendida pelo poeta e músico Mario de Andrade

(1995), que busca analisar a música a partir de uma estética musical, na qual a

noção de Belo estaria associada a sensações estéticas próprias do campo musical,

seja para o compositor, o intérprete e/ou o ouvinte. Andrade defende que a estética

musical seja pensada juntamente com a linguagem e as técnicas musicais (Ibid.: 10).

No entanto, este autor não confunde a linguagem musical com sua notação.

Diz ele, em nota de rodapé de seu livro, ao defender uma separação necessária

entre harmonia e notação musical:

Aquela [a harmonia] é um elemento técnico da elaboração artística. A notação é um elemento prático da objetivação da obra musical. Na técnica de uma arte tem-se que distinguir entre os fatores de criação da obra-de-arte e os fatores de materialização dela. (…) A nota não tem valor estético pra Música, porém a melodia, o acorde que a gente objetiva por meio das notas tem. (…) A extensão dum instrumento não tem valor estético pra expressão duma inspiração musical que em si já implica o instrumento e, portanto está contida no seu domínio sonoro. Porém, a frase poética e a frase musical têm imenso valor estético e a realização delas, não a objetivação prática, se presta a muitas observações estéticas, ambas pelo ritmo, pela sonoridade, pelo conteúdo subjetivo, força emotiva, etc. (Idem).

Em outras palavras, quando é colocada em um meio espacial concreto, como

uma partitura, por exemplo, a música está apenas sendo representada graficamente.

A música é um fenômeno sonoro e não um fenômeno gráfico ou pictórico (Boulez,

1992: 131). Ou, como colocaria Debussy (1989: 256):

Procura-se demais escrever, faz-se música para o papel quando ela é feita para os ouvidos! (...) Esta deve ser gravada espontaneamente pelo ouvido do ouvinte sem que ele tenha necessidade de descobrir idéias abstratas, nos meandros de um desenvolvimento complicado.

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Andrade, ao falar do belo musical, se refere ao crítico musical Eduard

Hanslick e seu livro Do Belo Musical, de 1854. Nesta obra, Hanslick defende a

concepção de que a música deve ser concebida em seu domínio próprio, afastando-

se, assim, da idéia comumente aceita de que a música representa emoções ou

sentimentos. “As idéias que o compositor representa são, sobretudo, e em primeiro

lugar, puramente musicais. À sua fantasia apresenta-se uma determinada melodia

bela. Esta nada mais deve ser do que ela própria” (Hanslick, 2002: 25; grifos do

autor). Ao que acrescenta que “o belo na música também não coincidiria com a

exatidão da representação dos sentimentos, se esta fosse possível” (Ibid.: 34; grifos

do autor).

Tais afirmações nos abrem a possibilidade de pensar que o que é

determinante para a construção e o desenvolvimento de uma idéia musical são as

relações que o material específico da linguagem musical estabelece entre si. Sobre

este material, Hanslick destaca ser ele constituído pelas “relações significativas de

sons, em si atrativos, a sua harmonia e contraposição, o seu fugir e o seu alcançar-

se, o seu elevar-se” (Ibid.: 41).

O elemento originário da música é o som agradável, a sua essência, o ritmo. (…) O material de que se serve o compositor, e cuja riqueza nunca se poderá supor assaz suntuosa, são os sons no seu conjunto, com a possibilidade neles ínsita e inesgotável, para distintas combinações de melodia, harmonia e ritmo. Inesgotada e inesgotável, domina sobretudo a melodia, como figura fundamental da beleza musical; a harmonia oferece sempre novos fundamentos com os seus milhares de possibilidades de transformação, de inversão e reforço; move-as a ambas concertadamente o ritmo, a artéria da vida musical, e dá-lhes colorido e encanto de múltiplos timbres (Idem; grifos do autor).

Cabe ressaltar que por serem estas relações próprias ao campo musical, não

é possível promover uma tradução em palavras, nem atribuir algum significado não

musical a elas7. Diz Hanslick, rejeitando convenções que geralmente são atribuídas

em música:

7 Ademais, se entendermos a música como significante, conforme Lacan defende – com a primazia do significante sobre o significado –, veremos que os significados que a ela darmos não serão fixos, podendo se alterar de sujeito para sujeito e mesmo para um único sujeito em diferentes momentos.

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Assim como num grande quadro histórico nem todo o vermelho nos sugere alegria, nem todo o branco inocência, assim também numa sinfonia nem todo Lá bemol maior nos despertará um estado de ânimo exaltado, nem todo o si

menor uma disposição misantrópica, nem cada acorde perfeito satisfação, nem todo o acorde de sétima diminuta, desespero (Ibid.: 27, grifos do autor).

Uma primeira conclusão pode ser feita: a música é uma arte que lida

necessariamente com o som (altura sonora, escalas musicas) e com o tempo (ritmo,

duração sonora e silêncio), não podendo existir na ausência de um desses

elementos estruturais.

Para Schaeffer (1966: 95), o som é designado como sendo um objeto sonoro,

tendo em vista que o que este compositor entende por objeto é algo que

apreendemos a partir da música e da experiência acústica. O objeto sonoro,

segundo esta perspectiva, seria o elemento mais elementar da experiência musical.

Schaeffer propõe que este objeto é apreendido no encontro de uma ação acústica e

de uma intenção de escuta. Neste ponto, ressaltamos, há a implicação de, pelo

menos, dois sujeitos com posições subjetivas singulares frente à música: de um

lado, o compositor ou o intérprete (podendo ser mesmo o compositor) que produz a

música pelo ato de tocar, e o ouvinte, que faz de sua escuta também um ato

enquanto sujeito.

Como a maioria dos estudiosos em música, Schurmann (1989: 40) concorda

que há sons especificamente musicais determinados por quatro traços

fundamentais: altura, intensidade, duração e timbre. Todos estes, prossegue o autor,

estão presentes na fala. Contudo, nesta, a altura e a duração aparecem como

acessórios, enquanto que o timbre identifica os diversos fonemas e a intensidade

fundamenta a prosódia, classificando sílabas tônicas e átonas. Por outro lado, a

altura e a duração são fundamentais e imprescindíveis na música, sendo a

organização das alturas sonoras responsável pela melodia, e a disposição dos sons

no tempo pelo ritmo.

De acordo com Schurmann, a melodia se caracteriza pelo aspecto dinâmico

na música, podendo ser pensada como “voz em movimento” (Ibid.: 47). A voz, aqui,

é concebida como um “objeto sonoro – ou um som objetivado – que é dotado de

mobilidade” (Ibid.: 47-48), ao que o autor associa tanto à voz humana quanto às

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vozes dos instrumentos musicais. Schurmann (Ibid.: 41) faz, ainda, uma distinção

entre tempo e melo, o primeiro englobando a característica rítmica da música, e o

segundo, inspirado na palavra grega melos, entendido como coordenadas do meio

no qual a voz inscreve sua trajetória. Deste modo, o autor fala em um espaço mélico

(Ibid.: 46), no qual as alturas sonoras são distribuídas.

(...) o espaço mélico se nos apresenta como uma categoria abstrata em referência ao melo, no sentido de compreendermos as alturas sonoras como localizadas neste espaço, de forma análoga como o tempo é uma categoria abstrata em referência ao ritmo, no sentido de compreendermos as durações sonoras como nele distribuídas. Em conseqüência, os termos altura sonora e duração sonora adquirem o significado, respectivamente, de som no espaço e som no tempo (Idem; grifos do autor)

Com isso, a melodia passaria a ser tomada como o movimento de alturas

sonoras associadas a durações rítmicas.

Autores do campo musical também destacam características próprias ao som

musical, chegando alguns, como o maestro Sergio Magnani (1996), a propor uma

morfologia, sintaxe e fraseologia próprias à música. Este último afirma que “a música

é o resultado de uma combinação de sons organizados conforme determinados

princípios e produzidos pela vibração de corpos sonoros” (Ibid: 202).

Haveria, assim, por um lado, as características próprias desta “vibração dos

corpos sonoros”, ou seja, as propriedades morfológicas dos sons musicais, que

Magnani (Ibid.: 76) classifica em: altura relativa, duração, intensidade (amplitude), e

timbre (cor diferencial). Por outro, existiria a sintaxe sonora e a fraseologia musical,

podendo esta ser mais ou menos complexa. Dentro da sintaxe sonora, este músico

diferencia a melodia (alturas, coordenadas horizontalmente, em movimento no

tempo), a harmonia e o contraponto (organização no espaço vertical), o ritmo

(seqüência de uma série de durações – sons e silêncios), a dinâmica (sucessão de

intensidades diferentes), e a profundidade (organização horizontal e vertical de

séries de timbres).

Antes dele, Boulez(1972: 58), em seus escritos sobre música, defende esta

idéia, afirmando que a morfologia musical trabalha com a altura e a duração dos

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sons musicais, tendo função de integração, enquanto que o timbre e a dinâmica

possuem funções de coordenação. Em outro momento, Boulez (1992: 99) afirma

que, ao trabalhar com estes sons, o compositor deve se valer de critérios de escolha

morfológicos e sintáticos, abrangendo na morfologia o engendramento e distribuição

destes sons musicais e, na sintaxe, a realização e articulação.

Vemos, deste modo, que o compositor tem diante de si, na criação de uma

peça, infinitas possibilidades de trabalhar as tensões do material musical que se

aliam na criação de uma peça – característica esta encontrada apenas neste campo,

e que entendemos ser efeito da peculiaridade da linguagem musical.

I.3 – Sistemas musicais

Delimitamos o campo musical por características que o distinguem de outras

formas de linguagem, como a verbal, e de outras artes, uma vez que destacamos

ser seu material de trabalho o som musical disposto ritmicamente no tempo, o que

inclui, ademais, o silêncio. Com isso, a música se apresenta, para nós, como uma

maneira específica de lidar com o material inconsciente e com as exigências

psíquicas do sujeito, visando cercar um objeto que lhe é próprio.

É isto que pretendemos enfocar ao refletir sobre a música referindo-nos à

abordagem psicanalítica. E entendemos que isto ocorre quando se trata de música

de uma maneira geral, uma vez que a entendemos como linguagem e que assim ela

permanece, ainda que trabalhada de maneiras diferentes. Entretanto, é importante

destacar que há formas diversas de se criar música, as quais, conseqüentemente,

se articulam a técnicas musicais e escutas específicas.

Podemos abranger tais formas em três sistemas musicais, a saber, o sistema

modal, o tonal e o pós-tonal8. Tais sistemas, embora possam ser demarcados

historicamente, são, na atualidade, simultâneos e não-excludentes. Procuraremos, a

8 Escolhemos chamar, aqui, de pós-tonal a complexa trama musical que se instaurou com a ruptura realizada pela música de vanguarda do século XX, que passou a ser composta não mais seguindo os preceitos do tonalismo, mas a partir de novos paradigmas, como o serialismo, o minimalismo, o dodecafonismo, o atonalismo, etc.

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seguir, fazer uma breve diferenciação destes sistemas, sem, contudo, nos

aprofundarmos em suas complexas características técnicas.

O sistema modal pode ser situado como o historicamente mais antigo na

Humanidade, remontando às primeiras formas de se fazer música, ainda encontrado

em sociedades em que a música apresenta uma característica predominantemente

ritualística. Destacamos daí a música tradicional indiana, chinesa e árabe, os

também tradicionais corais femininos da Bulgária, a música dos índios brasileiros e

norte-americanos, e, apoiados em Wisnik (1989: 94), a música dos pigmeus e

balineses.

Este sistema também pode ser encontrado, historicamente, na música modal

grega, já extinta e da qual os conjuntos vocais femininos búlgaros se aproximam, e

na música eclesiástica medieval, em especial a prática do canto gregoriano, ainda

em uso atualmente.

A principal característica deste sistema é ser composto por oito escalas9

distintas formando modos de repertório mélico que estabelecem uma organização

racional das alturas sonoras (Schurmann, 1981: 58). O sistema modal é, assim, um

sistema pré-tonal, no qual as músicas são criadas a partir de determinados

intervalos musicais, os modos. Wisnik (1989: 75; grifos do autor) afirma que “nas

sociedades pré-modernas, um modo não é apenas um conjunto de notas, mas uma

estrutura de recorrência sonora ritualizada por um uso”.

O sistema tonal, por outro lado, embora tenha começado a se caracterizar no

início da Idade Média, com o desenvolvimento da polifonia medieval, somente se

configurou concretamente em meados do século XVI, quando da sistematização dos

estudos dos acordes hierarquizados e do estabelecimento das leis acústicas que

regem as relações entre os sons.

9 Recorremos aqui à definição de escala de José Miguel Wisnik (1989: 71; grifos do autor): “A escala é um estoque simultâneo de intervalos, unidades distintivas que serão combinadas para formar sucessões melódicas. A escala é uma reserva mínima de notas, enquanto as melodias são combinações que atualizam (…) as possibilidades intervalares reunidas na escala como pura virtualidade. (…) As escalas são paradigmas construídos artificialmente pelas culturas (…)”.

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O tonalismo se caracteriza pela substituição dos modos medievais e suas

variantes pelos dois modos tonais, o modo maior e o modo menor, cada um

contendo escalas organizadas, com intervalos pré-estabelecidos, por uma

determinada tonalidade relacionada a cada uma das sete notas musicais. Deste

modo, entendemos o tonalismo como um sistema de criação musical de acordo com

relações hierárquicas entre sons dispostos em torno de um centro, a tônica10.

Conforme configurado desde o final do século XVI e início do século XVII até

meados do século XX, o sistema tonal foi constituído com base nos estudos de

acordes hierarquizados e das leis destes e na acústica, formando um sistema lógico

e racional, e rompendo com toda uma tradição que o antecedeu. Contudo, este

mesmo sistema, vigente e dominante no pensamento musical ocidental por quatro

séculos, a partir de questionamentos de suas bases, levou à criação de outros

modos de pensar e fazer música no século XX.

Com a virada para o século XX, os pressupostos do tonalismo passaram a ser

experimentados e ampliados de tal forma, com compositores como Debussy, Ravel,

Bartók, Satie, Berg, Stravinsky, Varèse, e outros, que chegou ao seu limite.

As aberturas, questionamentos e buscas por um rompimento com o sistema

tonal chegam a um impasse decisivo na história da música, cuja conseqüência é

sentida pela música pós-tonal (atonal, serial, pantonal, politonal, etc.) e pela criação

de novas linguagens musicais, que implicam em novas formas de se escutar a

música.

Ainda assim, atualmente, a música ocidental continua predominantemente

tonal, seja a dita música clássica – havendo, entretanto um grande número de

compositores contemporâneos que desenvolvem trabalhos com princípios fora do

campo tonal –, seja a música que se convencionou chamar de popular.

Deste modo, ao falarmos em música neste trabalho, teremos em mente o ato

de fazer e escutar música de uma maneira geral, sem nos atermos a um sistema

10 A tônica é a primeira nota de uma escala musical, e, no método tonal de composição, é esta nota que determinará o tom da escala, sendo que todos os outros tons restantes serão centrados hierarquicamente ao redor dela, através de sucessivos afastamentos e convergências.

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musical especificamente. Concordamos com Henry Barraud (1975: 13) quando este

afirma que:

Não há verdade absoluta em Arte. Certas direções tomadas pelos músicos podem levar a um impasse, outras podem dar origem a estéticas aparentemente opostas mas igualmente válidas. Todo novo passo procura abrir caminho, arriscando-se a mudar sua direção (…).

O que destacamos neste trabalho é, assim, o aspecto subjetivo desta arte,

seja na posição de quem a cria, seja na de quem a ouve.

I.4 – Possíveis abordagens e uma escolha

Ao empreendermos esta pesquisa de acordo com a tradição psicanalítica,

realizamos uma escolha que implica em darmos ênfase à dimensão psíquica da arte

musical. No entanto, entendemos que há outras maneiras de se aproximar desta

arte, uma vez que o humano não pode, de forma alguma, ser reduzido somente ao

aspecto psíquico ou a qualquer outro.

Assim, apresentaremos sucintamente, a seguir, formas distintas da

perspectiva psicanalítica de se estudar a música, destacando nestas abordagens

pontos de concordância e/ou discordância com aquela por nós adotada neste

trabalho. Escolhemos, para tal fim, uma abordagem cujo foco é o contexto histórico e

social, outra que destaca os aspectos neurocientíficos da música e, por último, uma

aproximação entre música e filosofia, através da reflexão de Nietzsche sobre este

assunto em seu livro O nascimento da tragédia.

I.4.1 – Uma abordagem histórica

A história do homem, de seu pensamento e saberes, e a história da música

confundem-se. Desde os tempos mais remotos o homem cria música de formas e

com finalidades específicas. Deste modo, o estudo da linguagem musical pode ser

feito tomando-se esta como discurso e expressão através da organização dos sons,

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o que, para certos autores, requer contextualização histórica e social. Pode-se,

assim, propor contextualização histórica das formas de utilização dos sons

(abrangendo os silêncios e os ruídos) pelo homem em diferentes épocas e

sociedades.

A respeito desta contextualização, Ouvrand explicita que:

Tentar imaginar as músicas que conhecemos em seu espaço específico, geográfico e social, está longe de ser um esforço vão: é que a música dos antigos, determinada por uma função, está sempre “em situação”. Situá-la em seu lugar é, ao mesmo tempo, definir sua natureza, visualizar os executantes e os ouvintes, escutar os instrumentos e sonoridades; concretamente, compreendê-la (Ouvrand, 1997: 235).

Ao propor um estudo da música com enfoque histórico, autores como Ernest

Schurmann, Roland Candé e José Miguel Wisnik visam enfatizar esta arte em seu

aspecto social. A música e a linguagem musical seriam, assim, frutos das

sociedades em que foram criadas, levando-se em consideração aspectos históricos,

sociais, ideológicos e até mesmo econômicos. Nesse sentido, a música teria

determinadas funções sociais que se alterariam de cultura pra cultura e de época

para época. As transformações sócio-histórico-culturais seriam, deste modo,

refletidas na música.

Segundo Wisnik (1989: 13), tal abordagem sobre a música procura

(…) se aproximar daquele limiar em que a música fala ao mesmo tempo ao horizonte da sociedade e ao vértice subjetivo de cada um, sem se deixar reduzir às outras linguagens. Este limiar está dentro e fora da história. A música ensaia e antecipa aquelas transformações que estão se dando, que vão se dar, ou que deveriam se dar, na sociedade.

Este autor defende que “a música, em sua história, é uma longa conversa

entre o som (enquanto recorrência periódica, produção de constância) e o ruído

(enquanto perturbação relativa da estabilidade, superposição de pulsos complexos,

irracionais, defasados)” (Ibid.: 30; grifos do autor), com o que concordamos. Frente

ao fenômeno sonoro, à escuta de sons e ruídos, cada cultura oferecerá respostas de

organização e utilização específicas. Cada uma delas se remeterá a um campo ou

paisagem sonora distintos, convencionais, baseados em fundamentos e códigos que

lhes são próprios.

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Assim como Wisnik, Schurmann, no livro A música como linguagem – Uma

abordagem histórica, e Candé, na obra História universal da música, realizam ao

longo de seus textos um paralelo entre as categorias sociais e musicais. De acordo

com Candé (1994: 5), “a música é uma antiga sabedoria coletiva, cuja longa história

se confunde com a das sociedades humanas”. Dentro desta concepção, cada

transformação histórica e social teria seu eco na produção musical, podendo a

música ter a função de garantir tais mudanças e, também, o domínio cultural de uma

classe social sobre outra11.

As linguagens e técnicas musicais, segundo autores como os que aqui

mencionamos, são frutos de forças e características próprias das épocas em que

são criadas, a partir de questões sociais, culturais, econômicas e políticas, e daquilo

que os sujeitos que as criam almejam com sua obra. O discurso de uma obra

musical pode ser entendido como uma forma de organização e representação do

mundo na qual está em jogo um conjunto de forças sócio-histórico-culturais aliadas

às formações discursivas que a constituem.

É importante destacar que, em psicanálise, o aspecto social se encontra

presente na constituição do sujeito. Essa presença se mostra seja pelo conceito

lacaniano de Outro, campo do qual o sujeito terá de advir e no qual encontrará

disponível a rede de significantes a partir dos quais poderá vir a falar12, ou pelo

conceito de supereu (Über-Ich) freudiano, introduzido na obra deste autor no

trabalho O eu e o isso (Das Ich und das Es), de 1923. Neste texto, Freud apresenta

o psiquismo dividido em três instâncias, o eu (Ich), o isso (Es), e o supereu (Über-

Ich)13.

11 Como ilustração desta abordagem, colhemos uma passagem da análise de Ernest Schurmann a respeito da passagem do sistema modal grego para o início da tradição musical européia na Idade Média com o canto monódico, canto predominantemente masculino em uníssono. Diz Schurmann (1989: 50): “o canto monódico prosseguiria por construir um instrumento poderoso para garantir a hegemonia no domínio cultural”, destacando, assim, que, segundo esta abordagem, a música tem funções sociais e políticas. 12 Conforme veremos com maior detalhamento e clareza no próximo capítulo. 13 Indicamos que nem sempre adotaremos neste trabalho as traduções dos termos freudianos utilizadas pela Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Nesta, por exemplo, os conceitos acima destacados receberam a tradução de ego, id e superego. Escolhemos a tradução destes termos feita diretamente do alemão para o português. Explicamos tal escolha com as palavras da tradutora Betty Milan, responsável pela versão brasileira do primeiro seminário lacaniano, Os escritos técnicos de Freud (1986: 333-334), nas notas que se referem ao uso de “eu” e “isso”: “Introduzido na Psicanálise pelos ingleses como equivalente de Ich, o termo ego é latino. Como a

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Descrito por Freud (1923/1990: 64) como o “herdeiro do complexo de

Édipo”14, o supereu se forma a partir da identificação com as primeiras escolhas

objetais do sujeito, a saber, seus pais, assim como a partir da identificação com

outras figuras fora da família, como os professores. Todavia, mais do que uma

identificação com pessoas propriamente ditas, o supereu promove a interiorização

das interdições parentais, assim como das exigências sociais e culturais. Sobre isso,

diz Freud (1933[1932]/1990: 87):

Assim, o supereu de uma criança é, com efeito, construído segundo o modelo não de seus pais, mas do supereu de seus pais; os conteúdos que ele encerra são os mesmos, e torna-se veículo da tradição e de todos os duradouros julgamentos de valores que dessa forma se transmitiram de geração em geração.

Com isso, a psicanálise defende que há, de fato, na constituição do sujeito, a

presença de aspectos sociais que nele atuam, de forma inconsciente, em seus atos

e falas.

I.4.2 – Uma abordagem neurocientífica

Dentro de uma perspectiva neurocientífica, encontramos a concepção de que

a música é uma característica biológica inata do ser humano. É o que defende, por

exemplo, Isabelle Peretz (2005: 1), no artigo The nature of music from a biological

perspective15.

língua portuguesa oferece uma solução própria, não há nenhuma razão para perpetuar o uso do termo. (...) Freud nos mostra (...) que a teoria deve utilizar o material significante da língua em que se elabora. Traduzir um texto de Freud ou de Lacan é fazer existir a teoria psicanalítica em uma outra língua, isto é, é fazer existir os seus termos na língua para a qual a teoria se fará ouvir”. 14 Segundo Laplanche e Pontalis (1988: 644; grifos dos autores), “a formação do superego é correlata ao declínio do complexo de Édipo: a criança, renunciando à satisfação dos desejos edipianos atingidos pela interdição, transforma o investimento nos pais e, identificação com os pais, interioriza a interdição”. Sobre o complexo de Édipo podemos dizer resumidamente, baseados no Dicionário de

psicanálise organizado por Roland Chemama (1995: 55), que se trata de: “1. Conjunto de investimentos amorosos e hostis que a criança faz sobre os pais (…). 2. Processo que deve conduzir ao desaparecimento desses investimentos e sua substituição por identificações”. 15 Ou, em português, A natureza da música por uma perspectiva biológica. Contudo, preferimos manter o título original do texto, uma vez que não há, ainda, tradução publicada dele.

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Partindo da premissa de musicólogos de que a música seria uma produção

cultural, Peretz observa que o fato de que a música pode ser encontrada, ao longo

da história, em todas as culturas, tanto pelo aspecto de criação quanto pela fruição,

pode ratificar a hipótese de que ela seja uma função biológica específica dos seres

humanos. Com isso, pretende refutar a idéia de que a música seria uma invenção

cultural ou uma função adquirida.

Tal hipótese é defendida por estudos que observam a inclinação precoce para

a música nos seres humanos. Apesar de defender que a capacidade musical parece

ser somente plenamente desenvolvida em um pequeno grupo de pessoas,

compositores e intérpretes, Peretz (Ibid.: 2) destaca que a música “é feita para os

ouvidos da maioria” e que uma não apreciação da música ocorre somente em casos

em que a pessoa não é capaz de discriminar intervalos entre notas e reproduzi-las

(tone-deafness).

Assim, delimita a questão da universalidade da música nos seres humanos,

que é tomada por estudiosos desta perspectiva como prova de que a música é

determinada biologicamente. De uma maneira geral, a música, para ser criada,

apresentaria pontos universais (Ibid.: 6) que tendem a girar em torno da idéia do uso

de notas com alturas fixas e próximas, assim como também na organização rítmica

em termos de um padrão regular.

Peretz (Idem) defende que a observação de que somente a música, e não

também a linguagem verbal, utiliza alturas fixas e discretas levanta a possibilidade

de o processo musical ter mecanismos únicos e especiais. A universalidade da

escala e a característica de uma organização em torno da tônica e de notas

distribuídas em intervalos desiguais facilitaria a percepção, a memória e a

performance por criar expectativas de eventos auditivos futuros.

Há também indícios de uma autonomia entre as características funcionais na

música relacionadas à altura das notas e ao ritmo, uma vez que desordens rítmicas

ocorrem separadamente de desordens relacionadas à altura. Assim (Ibid.: 13), é

defendido que a capacidade musical é o resultado de uma combinação de módulos

funcionais isolados.

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Corroborando a idéia da autonomia entre as linguagens verbal e musical,

encontramos também no campo das neurociências o artigo Aphasia in a composer16,

de Luria, Tsvetkova e Futer (1965). Neste, é apresentado e analisado o caso clínico

de um compositor russo, V. G. Shabalin, que nos permite aprofundar e enriquecer

esta perspectiva. Shabalin, durante seus anos de atividade como compositor,

professor de música e diretor do Conservatório de Moscou, sofreu dois episódios de

acidentes vasculares diferentes com longo intervalo de tempo entre eles (1953 e

1959), ocasionando afasia sensorial e afetando a linguagem verbal.

O primeiro acidente acarretou graves distúrbios da fala, além de paralisia do

lado direito do rosto e perda de tato na mão direita, tendo estes sintomas

desaparecido após algumas semanas e o compositor retomando suas atividades

usuais. Durante seis anos, Shabalin continuou trabalhando em suas composições e

no Conservatório até a ocorrência de um segundo acidente, com sintomas similares

ao primeiro, porém mais severos e intensos, predominando os de uma afasia

acústica sensorial típica com alguns componentes de uma deficiência na

organização sinestésica da fala.

É preciso destacar que em nenhum dos dois episódios as atividades musicais

de Shabalin foram afetadas. Mesmo com a fala gravemente comprometida, seus

trabalhos de composição não foram interrompidos, sendo que ele pôde terminar

obras que havia começado antes dos acidentes vasculares, assim como criar novas

peças de reconhecimento técnico e estético no meio musical. Também a atividade

de analisar formalmente peças musicais de seus pupilos não sofreu quaisquer

alterações.

Com este caso clínico, os autores procuram afirmar uma diferença entre os

processos acústicos, verbal e musical, refutando a hipótese de uma possível

integração destas modalidades. Uma vez que mesmo sofrendo de afasia, tornando-

se incapaz de compreender a fala e falar com fluência, Shabalin continuou a exercer

as atividades musicais, poder-se-ia comprovar que há a preservação de organização

prosódica e melódica.

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Interessa-nos destacar que a atividade de criar com base na linguagem

musical se manteve inalterada e que a relação de Shabalin com a música pôde-lhe

preservar um lugar de destaque em sua profissão e circuito social. Perguntamo-nos

se este caso não poderia nos dar subsídios para refletirmos, com a psicanálise,

sobre a capacidade da música, enquanto arte, de poder promover uma organização

subjetiva daquele que a compõe e de, como efeito, fazer laço social17. Não teria a

música possibilitado que este sujeito pudesse, devido a uma posição subjetiva

singular frente a ela, ter sido sustentado por ela, assim como transmitido algo de sua

posição como sujeito através das obras que criou mesmo quando impossibilitado de

suas capacidades verbais?

Retomando Luria, Tsvetkova e Futer, estes autores afirmam comprovar, a

partir deste exemplo, a diferença entre as funções da linguagem verbal e musical.

Por outro lado, Peretz (2005: 12) busca estudar desordens de discurso que não

afetam apenas a linguagem verbal como também movimentos orais, incluindo o

canto, com o intuito de se perguntar sobre a questão de a música ser inata. Tal

desordem afeta a produção e percepção rítmica sem, contudo, afetar a produção e

percepção melódica, baseada nas alturas sonoras. Da mesma forma, desordens que

afetam esta última característica não alteram a percepção de intervalos temporais.

Com isso, poder-se-ia corroborar a autonomia dos processos da linguagem verbal e

da musical.

A autora (Ibid.: 16) também fornece dados sobre estudos com bebês em

períodos pré-lingüísticos que parecem confirmar a hipótese de que a musicalidade é

inata. Neste período, os bebês são sensíveis a escalas musicais e à regularidade de

tempo, da mesma forma como os adultos. Além disso, eles podem assimilar a

estrutura de altura sonora de qualquer cultura e conseguem também apreender

regularidade e métrica, estas últimas características que aparecem precocemente

16 Mais uma vez, preferimos deixar o título do artigo em inglês, posto que não encontramos tradução do mesmo em nosso idioma, no qual o mesmo poderia ser entendido como Afasia em um compositor. 17 Conforme defendemos a partir do exemplo do compositor e pianista Waladyslaw Szpliman retratado em seu livro O pianista que inspirou o filme homônimo de Roman Polanski no artigo A

música como organização e suporte para o sujeito, apresentado no II Colóquio de Cognição e Linguagem da Universidade Estadual do Norte Fluminense, realizado entre os dias 27 de novembro a 01 de dezembro de 2006.

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sem função para a linguagem. A habilidade musical poderia emergir da propensão

geral do cérebro em extrair regularidade do ambiente.

A respeito da localização cerebral do processo musical (Ibid.: 17), a

neurociência defende que este processo compreende uma vasta rede de regiões

localizadas em ambos os hemisférios do cérebro. Algumas destas áreas podem ser

também regiões com funções relacionadas à linguagem verbal, o que poderia indicar

que a música é uma função inata e autônoma, constituída de múltiplos módulos que

cruzam, minimamente, com outras funções.

Devido à plasticidade cerebral, diversos espaços do cérebro podem ser

ajustados para as necessidades musicais. Apesar de todos estarem envolvidos em

algum tipo de atividade musical no cotidiano, tal atividade não é predominante como

no caso daqueles que trabalham com a música. Neles (Ibid.: 20), há diferenças de

áreas específicas no cérebro, quando comparadas a não músicos, o que pode

demonstrar que ocorre uma modelagem do cérebro devido à experiência. Por isso, é

preciso pensar se estas diferenças cerebrais entre músicos e não-músicos decorrem

de genética e outras predisposições ou se vêm da prática e experiência.

Por fim, a autora (Ibid.: 21-22) se pergunta sobre uma possível função

adaptativa da música nas atividades ancestrais do homem que teria sido uma

vantagem na seleção natural. Em Darwin, ela encontra a suposição de que a música

era utilizada para atrair parceiros sexuais. Apresenta também a visão de que a

música teria um valor adaptativo mais voltado para o grupo do que para o indivíduo,

por proporcionar a coesão. Isto ocorreria uma vez que a música possui a

característica de incitar a vocalização e o movimento de forma sincronizada, fazendo

com que os indivíduos possam convergir emocionalmente.

Novamente, as características musicais essenciais relacionadas aos

intervalos de alturas sonoras e de regularidade temporal rítmica aparecem,

promovendo canto e dança simultâneos entres os indivíduos do grupo. Contudo,

estas mesmas qualidades da música permitem que o indivíduo tenha também certa

autonomia entre vozes e corpos, algo que, conclui Peretz (Ibid.: 22), é específico à

música.

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Entendemos que o artigo de Peretz fornece dados científicos consistentes

sobre as funções do processo musical no cérebro, acentuando diferenças e

semelhanças entre músicos e não-músicos. Entretanto, não encontramos nele

referências à posição subjetiva destes. O sujeito, conforme a psicanálise o entende –

sujeito do inconsciente que aparece eticamente em suas escolhas e atos – não pode

ser percebido ali. É preciso deixar claro que entendemos que se trate de uma

perspectiva teórica diversa, com referências e até mesmo nomenclaturas diferentes.

O que realçamos é que, nesta abordagem, o que está em jogo não é o sujeito, e sim

o indivíduo, que traz em si uma característica universal e inata de sua espécie.

Pensamos, com a psicanálise, que se o campo do musical, conforme Peretz

aponta, é dado a todos, coloca-se, no caso de compositores e intérpretes, a questão

da escolha do objeto que se alia à música e de uma posição subjetiva frente a ela.

Ou seja, torna-se uma questão ética, referida à responsabilidade destes sujeitos em

relação à música que criam em ato (ato de compor / ato de tocar). Contudo, esta

mesma questão ética se abre, por outra via, diante de quem escuta a música e se

implica com o que ouve. Em outras palavras, a escuta se torna ato e há um impacto

real a partir daí.

I.4.3 – Uma abordagem filosófica – Nietzsche e música

O filósofo alemão, e também compositor, Friedrich Nietzsche dedicou muitos

de seus trabalhos ao tema da música, dos quais destacamos O nascimento da

tragédia, primeiro livro do autor, publicado em 1872. Neste texto, Nietzsche percorre

os mitos gregos de Apolo e Dionísio, entendendo estes como impulsos (Triebe)

artísticos da natureza em oposta complementação, para contextualizar neste cenário

o nascimento e declínio da tragédia grega. Desta luta de forças teria nascido a

tragédia grega: da tensão entre a figuração e organização apolínea e a embriaguez

e o desmedido dionisíacos.

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Segundo Nietzsche, existe uma diferença entre a música apolínea e a

dionisíaca, sendo esta uma ruptura com a primeira por trazer um aspecto novo e

inaudito à arte musical.

Se a música aparentemente já era conhecida como uma arte apolínea, ela o era apenas, a rigor, enquanto batida ondulante do ritmo, cuja força figuradora foi desenvolvida para a representação de estados apolíneos. A música de Apolo era arquitetura dórica em sons, mas apenas em sons inusitados, como os que são próprios da cítara. Mantinha-se cautelosamente a distância aquele preciso elemento que, não sendo apolíneo, constitui o caráter da música dionisíaca e, portanto, da música em geral: a comovedora violência do som, a torrente unitária da melodia e o mundo absolutamente incomparável da harmonia (Nietzsche, 1992: 34).

A música dionisíaca se expressaria por via simbólica e implicaria todo o

homem, todo o seu conjunto de expressões simbólicas, incluindo o corpo e o

movimento rítmico deste. Cabe ressaltar que pela embriaguez dionisíaca entende-se

o laço selado entre pessoa a pessoa, em comunhão, sendo ainda, em Nietzsche, a

celebração da reconciliação entre o homem e a natureza.

A oposição entre as divindades de Apolo e Dionísio se dá também uma vez

que o primeiro exige a ética da medida, da necessidade estética da beleza, do auto-

conhecimento e do equilíbrio. Por outro lado, Dionísio abarcava o desmedido, a

auto-exaltação.

(...) Todo o desmesurado da natureza em prazer, dor e conhecimento, até o grito estridente, devia tornar-se sonoro. (...) O desmedido revelava-se como a verdade, a contradição, o deleite nascido das dores, falava por si desde o coração da natureza (Ibid.: 41; grifos do autor).

Nietzsche apóia-se no conceito de vontade de Schopenhaeur para afirmar

que o sujeito que é artista está isento de sua vontade individual e torna-se um “um

médium através do qual o único Sujeito verdadeiramente existente celebra a sua

redenção na aparência” (Ibid.: 47). Nesse sentido, afirma este filósofo, a existência

do mundo apenas pode justificar-se eternamente enquanto fenômeno estético.

Sobre a relação entre música, palavra e som, encontrados articulados na

canção popular, Nietzsche afirma que nela os elementos musicais, a melodia

principalmente, são o que há de mais fundamental e universal. A melodia é o que

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conduziria a poesia, estando a linguagem verbal em uma relação de imitação para

com a música.

Com isso assinalamos a única relação possível entre poesia e música, palavra e som: a palavra, a imagem, o conceito buscam uma expressão análoga à música e sofrem agora em si o poder da música (Ibid.: 49).

A linguagem não seria capaz de expressar o cerne da música, aproximando-

se dela apenas externamente sem atingir seu sentido mais profundo. A linguagem

verbal não pode nos falar do êxtase dionisíaco. Sobre este, diz Nietzsche:

O êxtase dionisíaco, com sua aniquilação das usuais barreiras e limites da existência, contém, enquanto dura, um elemento letárgico no qual imerge toda vivência pessoal do passado. Assim se separam um do outro, através desse abismo do esquecimento, o mundo da realidade cotidiana e o da dionisíaca. Mas tão logo a realidade cotidiana torna a ingressar na consciência, ela é sentida como tal com náusea; uma disposição ascética, negadora da vontade, é o fruto de tais estados (Ibid.: 55-56).

Nietzsche afirma que a arte torna possível transformar quaisquer

pensamentos sobre o horror e o absurdo da existência em representações com as

quais podemos viver, seja pelo sublime (a domesticação artística do horror) ou pelo

cômico (descarga artística do absurdo). Estas duas vias artísticas, do sublime e do

cômico, encontram-se presentes lado a lado na tragédia grega na presença do coro.

Na tragédia grega, defende o autor, há o entrelaçamento do apolíneo, através de

uma ilusão que nos protege da unificação imediata com a música, e do dionisíaco,

com todo o seu prazer, incluindo o proveniente da dor.

Destacamos que Nietzsche apresenta o impulso dionisíaco como algo

primordial, como o fluxo contínuo da vida, a partir do qual pode surgir o impulso

apolíneo e todas as manifestações humanas, incluindo nelas a arte musical.

Consideramos que este texto traz pontuações frutíferas sobre a musicalidade

e coloca em questão pontos que, embora tratados sob perspectiva distinta da

tradição psicanalítica, nos fizeram pensar em conceitos desta, em especial no que

diz respeito à questão pulsional, mais especificamente no dualismo introduzido em

1920 no texto Além do princípio de prazer. Neste artigo, Freud (1920/2006: 177)

destaca dois grupos de pulsões que atuam associadamente, as pulsões de vida e as

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pulsões de morte, as primeiras visando a conservação e as segundas a ruptura e o

retorno a um estado mínimo de tensão.

Pensamos que um paralelo pode ser traçado entre os impulsos apolíneos e

dionisíacos, conforme descritos por Nietzsche, e a concepção freudiana de pulsão

de vida e pulsão de morte. Isto pode se dar uma vez que a descrição do impulso

apolíneo, que tende à organização e à representação e à criação de unidades, em

oposição e, ao mesmo tempo, trabalhando em uníssono com o impulso dionisíaco,

que comporta o indomável, a ruptura, pode muito bem ser lida como metáfora para o

novo dualismo pulsional freudiano.

I.4.4 – Escolha por uma abordagem psicanalítica

A perspectiva psicanalítica foi aquela em que nos foi possível encontrar

acolhimento para as questões que inicialmente nos colocamos sobre a música. Com

a psicanálise, enfocamos o sujeito e o que está em jogo psiquicamente neste

quando criando ou fruindo a arte musical. Isto é possível uma vez que, nas palavras

de Freud (1923[1922]/1990: 287):

PSICANÁLISE é o nome de (1) um procedimento para a investigação de processos psíquicos que são quase inacessíveis por outro modo, (2) um método (baseado nessa investigação) para o tratamento de distúrbios neuróticos e (3) uma coleção de informações psicológicas obtidas ao longo dessas linhas, e que gradualmente se acumula numa nova disciplina científica.

Com isso, a psicanálise se apresenta como um método de investigação dos

processos psíquicos. E dela nos utilizamos para investigar a música.

A psicanálise nos oferece um caminho para pensarmos a questão da

especificidade musical pela via da pulsão que está relacionada à música, assim

como do objeto que a música coloca em jogo, ou seja, a pulsão invocante e o objeto

voz. Refletir sobre o objeto voz na música exige que delimitemos outro ponto desta

mesma questão: o silêncio. Aqui, o silêncio será pensado como vazio significante, do

qual poderá emergir algo, uma resposta ao vazio de respostas, uma composição,

uma música.

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35

Ao trabalhar os sons de uma forma musical, sendo que estes sons também

precisam ser musicais, o compositor faz com que eles, quando já articulados

simbolicamente entre si e com o silêncio e tempo na obra musical, elevem-se à

dignidade de Coisa, sendo necessário um sujeito a escutar para que a música ganhe

sua função de causa.

Pararemos, por enquanto, aqui para que possamos delimitar os conceitos

psicanalíticos com os quais trabalharemos ao longo deste trabalho e,

posteriormente, os articularmos com as reflexões até então feitas a partir do campo

musical para avançarmos em nosso estudo e tirar dele conseqüências teóricas sobre

o sujeito em psicanálise.

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CAPÍTULO II

Sobre psicanálise

As forças motivadoras dos artistas são os mesmos conflitos que impulsionam

outras pessoas à neurose e incentivaram a sociedade a construir suas

instituições (Freud, 1913/1990: 222).

Temos como proposta deste trabalho pensar articulações possíveis entre

psicanálise e música através do questionamento sobre a função desta para o sujeito,

passando por conceitos centrais da teoria psicanalítica freudiana. Destes,

destacamos os de inconsciente e pulsão, assim como por outros da tradição

lacaniana, tais como os de pulsão invocante e objeto voz enquanto causa de desejo

(objeto a) e a noção de das Ding, estudada por este autor no Seminário A ética da

psicanálise a partir das colocações freudianas sobre esta no Projeto para uma

psicologia científica18.

Neste capitulo, delimitaremos os principais conceitos da psicanálise com os

quais trabalharemos ao longo da dissertação, definindo, assim, nossa visão sobre

sujeito, inconsciente e pulsão, com a finalidade de estudarmos, a partir daí, a

musicalidade dos sujeitos, a criação musical, e como a obra de arte pode afetar

aqueles que a escutam.

Iniciaremos com a investigação do conceito de sujeito nas obras freudiana e

lacaniana. Para tanto, tomamos como ponto de partida a pergunta que Lacan (1954-

1955/1985: 221) coloca, e responde, no Seminário O eu na teoria de Freud e na

técnica psicanalítica: “O que é o sujeito? (...) no sentido freudiano do termo, o sujeito

do inconsciente, e daí, essencialmente o sujeito da fala. Ora, está-nos parecendo,

cada vez mais claramente, que o sujeito que fala está para além do ego” (Grifos do

autor).

18 A noção de das Ding também se encontra presente na obra de Freud no artigo de 1925 A negativa, sobre o qual também nos debruçaremos neste trabalho.

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II.1 – O sujeito em Freud e Lacan

Para pensar o sujeito nas teorias freudiana e lacaniana se faz fundamental,

em nosso entendimento, estudar os conceitos de inconsciente, pulsão, objeto e

Outro, a fim de entendermos o que está em jogo na constituição subjetiva.

Acreditamos que, a partir deste estudo, poderemos ir além, e promover um

questionamento sobre o que uma reflexão sobre aspectos musicais pode nos auxiliar

para uma maior compreensão sobre o sujeito.

II.1.1 – O inconsciente

II.1.1.1 – O inconsciente em Freud

O conceito de inconsciente freudiano é um dos pontos centrais da teoria

psicanalítica, tendo sido, talvez, o que permitiu toda a instauração do campo

freudiano e psicanalítico. Deste modo, ele pode e deve ser articulado a todos os

demais temas de interesse desta área. Ao refletirmos sobre qualquer atividade

humana, é preciso considerar que há sempre processos inconscientes nela

envolvidos, ainda que não seja possível, em todos os casos, ter acesso a esse

material.

A vida psíquica e sua realidade estariam baseadas no inconsciente, sendo

este a instância psíquica mais ampla e abrangente, de acordo com a primeira tópica

freudiana19. Nela, há ainda duas outras instâncias psíquicas, o consciente e o pré-

consciente.

19 Tópica (Topik) se refere à hipótese freudiana de que “a vida mental é função de um aparelho ao qual atribuímos as características de ser extenso no espaço e de ser constituído por diversas partes” (Freud, 1940[1938]/1990: 169). Encontramos uma primeira concepção tópica do aparelho psíquico em A interpretação dos sonhos (Die Traumdeutung), mais especificamente no capítulo VII, A psicologia dos processos oníricos. Neste texto, Freud (1900/1990: 492) apresenta a necessidade de retratar o aparelho psíquico composto por instâncias ou sistemas que mantêm entre si uma relação espacial. Estes sistemas seriam o inconsciente, o pré-consciente e o inconsciente. Contudo, a partir de 1920, Freud irá propor uma nova tópica, composta pelas instâncias isso, eu e supereu. Aqui, como destacam Laplanche e Pontalis (1988: 661), a idéia de uma localização psíquica já não é predominante, mas sim a de que estas instâncias possuem relações determinantes entre si. “Nesta medida, a teoria científica do aparelho psíquico tende a aproximar-se da forma (...) como o indivíduo se concebe e (…) se constrói” (Idem). Ressaltamos, contudo, que, nesta citação, entendemos que o termo “indivíduo” não é o mais adequado, ao que preferimos usar o termo “sujeito”, uma vez que o

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Na segunda tópica, inaugurada em 1920, estas instâncias são substituídas

por outras, o isso, o eu e o supereu, tornando-se as da primeira tópica qualidades do

material psíquico. Pode-se dizer que o Eu assim como o Supereu possuem aspectos

inconscientes, uma vez que ambos são formados a partir do Isso, instância que irá

trazer nessa reformulação teórica de Freud as principais características do sistema

Ics.

Apesar da importância e abrangência do inconsciente, só temos acesso a ele

através de seus efeitos e expressões, como os sonhos, os atos falhos e os sintomas.

Os derivados do inconsciente e das pulsões, da mesma forma como as formações

substitutivas, são também outros indícios dos processos inconscientes. E

defendemos que as obras de arte também podem ser lidas desta maneira por conter

em sua criação aspectos inconscientes.

Uma vez que “o Ics continua a atuar através de ramificações, os assim

chamados derivados, e mais: que ele é suscetível aos efeitos produzidos pela vida”

(Freud, 1915/2006: 40), podemos nos perguntar que relações ele possui com

determinadas atividades humanas, que fazem parte da vida cultural e social, como a

arte20.

A arte, pensada como formação do inconsciente, seja a que articula as

exigências pulsionais à materialidade significante do som, à palavra, à imagem ou ao

movimento corporal, permite que ocorra a transformação, através da sublimação, de

materiais inconscientes em objetos novos. Mais uma vez, no campo artístico, o

primeiro traz uma idéia de “indiviso”, de algo que não se pode dividir, enquanto que, na própria obra freudiana, encontramos a noção de uma divisão (Spaltung), como pode ser observada em textos como A divisão do eu no processo de defesa (Die Ichspaltung im Abwerhvorgang), de 1940 (1938). De acordo com Lacan (1954-1955/1985: 16), “com Freud faz irrupção uma nova perspectiva que revoluciona o estudo da subjetividade e que mostra justamente que o sujeito não se confunde com o indivíduo”. Destacamos que, na segunda tópica, o termo inconsciente, anteriormente uma instância psíquica, passa a qualificar o isso e também partes do eu e do supereu. 20 A respeito da arte como formação do inconsciente, em outro trabalho, defendemos que a arte, mais especificamente a música, poderia ser pensada analogamente aos sonhos, uma vez que em ambos os processos (oníricos e artísticos), encontramos a condensação de conteúdos inconscientes expressos em uma imagem, seja a onírica ou a acústica pela via musical. Tal trabalho foi a monografia do curso de graduação em Psicologia pela Universidade Federal fluminense, intitulada Psicanálise, arte e música, orientada pela Profª Drª Anelize Terezinha Araújo e defendida no ano de 2003, no qual há um tópico com esta proposta, chamado “Música como sonhos”.

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inconsciente se mostra acessível a partir de seus efeitos, nesse caso, a criação de

um novo objeto para tentar dar conta da exigência de trabalho do psiquismo.

No campo da clínica, ao dar voz a seus pacientes e ao disponibilizar a escuta

da fala desses sujeitos, Freud dá abertura à leitura e interpretação do material

inconsciente nela presente, possibilitando a mudança subjetiva daquele que busca

uma análise. Diz Freud:

Ao interpretar sonhos, atribuímos idêntica importância a cada um dos matizes de expressão lingüística em que eles nos foram apresentados. E mesmo quando o texto do sonho, tal como o tínhamos, era sem sentido ou insuficiente – como se o esforço de fornecer dele um relato correto tivesse fracassado – levamos também essa falha em consideração. Em suma, tratamos como Sagrada Escritura aquilo que autores precedentes haviam encarado como uma improvisação arbitrária, remendada às pressas no embaraço do momento (Freud, 1900/1990: 472; os grifos são nossos).

Ao considerar a fala dos pacientes, seus sonhos, associações e materiais

inconscientes, como o material fundamental da análise, Freud retira de cena a

centralidade da consciência, permitindo que a partir do fluxo da linguagem de cada

sujeito possa surgir um outro caminho para este que não o do sofrimento de seu

sintoma.

O conceito de inconsciente, conforme Freud (1940[1938]/1990: 320-321)

afirma em Algumas lições elementares de psicanálise, não é inovação própria da

psicanálise, destacando o filósofo Theodor Lipps21 como um dos autores que, em

sua época, também afirmavam sua existência. Contudo, ao utilizar este termo, a

psicanálise o reformulou como um conceito novo, estipulando as leis que regem o

inconsciente e o psiquismo humano.

Visando mapear tais leis, Freud escreveu O Inconsciente (Das Unbewusste),

em 1915, terceiro dos artigos sobre metapsicologia. Dois outros destes artigos

foram, em ordem cronológica de publicação, Pulsões e destinos da pulsão (Trieb

und Triebschicksale) e O recalque (Die Verdrangung), ambos do mesmo ano.

Nestes, também, já aparece a preocupação da formalização do conceito de

21 Este filósofo também é citado por Freud (1940[1938]/1990: 183) em Esboço de psicanálise (Abriss

der Psychoanalyse), do mesmo ano.

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inconsciente, e será mesmo a partir do questionamento sobre o mecanismo do

recalque e sua atuação sobre materiais inconscientes que Freud inicia o referido

trabalho. Diz ele:

Embora tudo o que foi recalcado precise permanecer inconsciente, esclareçamos de antemão que o recalcado não abarca todo o inconsciente. Ou seja: o inconsciente tem maior abrangência que o recalcado, este é apenas uma parte do inconsciente (Freud, 1915/2006: 19).

Freud passa, a seguir, a justificar o conceito de inconsciente, como sendo

necessário e legítimo, e, com isso, promove a descentralização do conceito de

consciência:

(…) Os dados da consciência têm muitas lacunas. Tanto em pessoas sadias quanto em doentes ocorrem com freqüência atos psíquicos que, para serem explicados, pressupõem a existência de outros atos para os quais, no entanto, a consciência não fornece evidências (Idem).

O psíquico, deste modo, não se equivale ao consciente (Ibid.: 21), isto

porque, segundo Freud (Ibid.: 24), “em rigor, do ponto de vista da psicanálise, não

nos resta alternativa a não ser considerar os processos psíquicos em si como

inconscientes”.

Para legitimar esta afirmação, Freud destaca que parece existir um outro

dentro de nós, um outro que desconhecemos, mas que, todavia, se apresenta em

nossos atos, ao que atribui à dimensão do inconsciente.

(…) É preciso que tomemos todos aqueles atos e manifestações que percebemos em nós mesmos – mas que nos parecem inexplicáveis por não se correlacionarem com o que sabemos de nossa própria vida psíquica – e busquemos explicá-los de modo análogo ao que faríamos se tais atos pertencessem a outra pessoa22 (Ibid.: 22-23).

22 Este “outro” inconsciente, que atua em nós e que desconhecemos e sobre o qual somente poderíamos inferir algo se o avaliássemos como faríamos com nosso semelhante, parece nos dar indícios sobre o que Lacan diz a respeito do Outro, concepção que será por nós abordada em tópico seguinte deste capítulo.

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Diante destes atos, o sujeito teria uma reação de estranheza (Ibid.: 23). Sobre

este tema, Freud dedicará a escrita de um artigo em 1919, cujo título é O estranho

(Das Unheimliche).

Neste artigo, Freud (1919/1990: 275) aborda uma questão estética, entendida

não apenas como teoria da beleza, mas como a teoria das qualidades do sentir. O

material do estudo da estética provém, usualmente, das pulsões inibidas em sua

meta – material com o qual a psicanálise, em seus aspectos clínicos, geralmente

não trabalha –, como é o caso da sublimação. Contudo, Freud (Ibid.: 276) investiga

os motivos pelos quais o termo “estranho” evocaria algo relacionado ao horror e ao

medo, algo que provoca aflição ou até repulsa, algo misterioso, inquietante, não-

familiar, em suma, algo que deveria ter permanecido secreto, porém veio à tona

(Ibid.: 282).

Baseando-se na linguagem e no significado das palavras alemãs heimlich e

unheimlich, conforme descritos em dicionários e no uso da língua, Freud busca em

outros idiomas alguma contribuição, sem encontrar, no entanto, na maioria deles,

uma palavra “para essa particular nuança do que é assustador” (Ibid.: 278).

No idioma alemão (Ibid.: 279-280), a palavra heimlich possui vários

significados, como pertencente à casa ou família; domesticado, no caso de animais,

que se opõe à selvagem; íntimo, agradável, confortável, que desperta sensação de

repouso e segurança; alegre, disposto; e, ainda, escondido, oculto à vista, sonegado

aos outros. Esta última acepção de heimlich converge com a idéia contida em seu

oposto unheimlich. E vale lembrar que o prefixo um confere à palavra um sentido de

mistério, de sobrenatural e fantástico, de algo que provoca terror (Ibid.: 208).

Dessa forma, unheimlich é uma palavra cujo significado se desenvolve na direção da ambivalência até que finalmente coincide com o seu oposto, unheimlich. Unheimlich é, de um certo modo ou de outro, uma subespécie de heimlich (Ibid: 283).

Vemos que o estranho é ou foi em algum momento familiar e conhecido para

nós. Mais uma vez, deparamos-nos com o conceito de recalque ao falarmos do

inconsciente. Através do mecanismo de recalque, um material psíquico é afastado

do sistema consciente e mantido no inconsciente. O retorno do material recalcado

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poderia trazer, deste modo, um estranhamento para o sujeito. Podemos, assim, dizer

que o estranho nos dá uma confirmação da existência e atuação da instância do

inconsciente.

Sobre esta, Freud afirma em 1915, que ela se diferencia das outras instâncias

psíquicas, possuindo “características especiais” (Freud, 1915/2006: 37),

complementando que:

O núcleo do Ics é composto de representantes pulsionais [Triebrepräsentanzen] desejosos de escoar sua carga de investimento – em outras palavras, é composto de impulsos de desejo [Wunschregungen]. Contudo, no Ics esses impulsos pulsionais [Triebregungen] coexistem coordenados entre si, lado a lado, sem se influenciarem mutuamente, nem se contradizerem (Idem).

Deste modo, o sistema inconsciente opera sem que haja nele a negação23,

sendo esta formulada pela censura e atuando apenas “em um nível superior, tendo

então a função de substituta do recalque” (Idem). Destacamos que, na citação

acima, é possível verificar que a pulsão só comparece no psiquismo sob a forma de

representantes.

Uma segunda característica do inconsciente é que nele há a predominância

do processo primário. Na primeira tópica freudiana, referencial de base para este

artigo metapsicológico sobre o inconsciente, o funcionamento do psiquismo é

determinado pelos processos primário e secundário, estando o primeiro ligado ao

sistema inconsciente e o segundo ao consciente e pré-consciente.

O processo primário, inconsciente, confere a este sistema uma dinâmica de

funcionamento própria na qual há o constante deslizamento de sentido, uma vez que

a energia circula livremente pelas representações. No sistema pré-

consciente/consciente, por outro lado, o modo de funcionamento é regido pelo

processo secundário, no qual a identidade de pensamento é procurada e cuja função

é de regulação dos processos primários e defesa contra a ação e irrupção destes. A

energia nesse modo de funcionamento é ligada e pode-se fazer um paralelo entre

23 Trabalharemos melhor o conceito de negação no tópico sobre a constituição subjetiva presente neste capítulo.

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este modo e o princípio de realidade, estando o processo primário ligado ao princípio

de prazer.

A respeito destes, podemos dizer que são, até a formulação da segunda

tópica, os princípios econômicos que regem o psiquismo de tal forma que a atividade

psíquica teria por finalidade evitar o desprazer (aumento de tensão no psiquismo) e

buscar o prazer (diminuição desta tensão). O princípio de realidade atua a serviço do

princípio de prazer, porém, efetua uma regulação ao primeiro, fazendo com que a

busca de prazer possa ser adiada e conseguida por vias indiretas.

Outra característica do inconsciente é que não há nele a noção de

temporalidade. Os processos inconscientes “não são cronologicamente organizados,

não são afetados pelo tempo decorrido e não têm nenhuma relação com o tempo.

(…) A relação com o tempo é algo estritamente vinculado ao trabalho do sistema

Cs.” (Ibid.: 37-38). Tal característica da atemporalidade do inconsciente nos

interessa, em especial, uma vez que, como vimos, a música não pode existir sem o

ritmo, ao qual ligamos ao conceito de tempo. Voltaremos a estudar este aspecto ao

trabalharmos a criação musical.

Em suma, sobre as características próprias do inconsciente, podemos dizer,

com Freud, que:

(…) ausência de contradição, processo primário (mobilidade das cargas de investimento), atemporalidade e substituição da realidade externa pela

realidade psíquica. Essas são as características que podemos esperar encontrar em processos pertencentes ao sistema Ics. (Ibid.: 38; grifos do autor).

Encontramos tais características, sobretudo, na fala dos pacientes na clínica

psicanalítica, o que nos dá uma configuração de sujeito que é marcado por uma

divisão constitutiva, que remete à dimensão do inconsciente, de algo que atua nele a

revelia de seu saber consciente sobre si. O sujeito em psicanálise, podemos dizer, é

justamente este do inconsciente e falante.

A partir de 1920, como vimos, com o questionamento sobre a predominância

do princípio do prazer no psiquismo e o destaque para a formulação de uma

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“compulsão à repetição” (Freud, 1920/2006: 145), o conceito de inconsciente sofre

uma alteração, passando a definir não mais uma instância, mas uma qualidade

psíquica. No texto Além do princípio de prazer, Freud apresenta a compulsão à

repetição a partir da reflexão do trabalho analítico na situação em que o paciente,

devido à transferência24, repete o material recalcado como se fosse uma experiência

contemporânea, em vez de recordá-lo como algo de seu passado. A compulsão à

repetição diz de uma tendência do conteúdo inconsciente e recalcado em irromper à

consciência.

Embora a compulsão à repetição rememore experiências no passado que

trariam prazer a um sistema psíquico e desprazer a outro, ela também está

relacionada a outras experiências que não trariam satisfação alguma porque nunca a

trouxeram. Dentre estas, destaca-se o florescimento precoce e traumático da

sexualidade infantil. É importante destacar que, assim, a temporalidade do sujeito do

inconsciente é de uma ordem outra que não a cronológica ou a linear, em que

passado, presente e futuro se sucederiam.

Freud (Ibid.: 147) coloca ainda em questão a impressão que certas pessoas

possuem de serem possuídas por um destino trágico ou um poder demoníaco, uma

compulsão que provoca a recorrência constante de uma mesma coisa, a repetição

de uma mesma fatalidade. Outros exemplos que confirmam a compulsão à

repetição, destacados por Freud, são a brincadeira das crianças em que algo

doloroso é constantemente repetido (caso da brincadeira do “Fort-Da” observada por

Freud em seu neto25), e os sonhos traumáticos.

Estas situações colocam em cena o funcionamento no psiquismo da

compulsão à repetição, que sobrepuja o princípio de prazer, sendo mais arcaica e

24 Segundo Laplanche e Pontalis (1988: 688), a transferência “designa o processo pelo qual os desejos inconscientes se atualizam sobre determinados objetos no quadro de um certo tipo de relação estabelecida com eles e, eminentemente, no quadro da relação analítica”. Encontramos no artigo freudiano A dinâmica da transferência, de 1912, três pontos de base para a Psicanálise: a transferência, a resistência e a repetição. Estes pontos nos levam a refletir sobre os aspectos pulsionais envolvidos na situação analítica. Há algo que insiste na fala de cada sujeito, que articula a dimensão do traumático, do sexual, e que só é possível de surgir na análise a partir da transferência. 25 Freud (1920/1990: 141-142) descreve em Além do princípio de prazer a brincadeira de seu neto, de 18 meses de idade, em que este atirava para longe de si um carretel amarrado a um barbante, pronunciando um longo “o-o”, relacionado por Freud com a palavra alemã fort (longe), puxando-o de volta, em seguida, simultaneamente à exclamação “Dá!” (aqui, em alemão). A interpretação freudiana

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elementar que ele (Ibid.: 37). No caso da compulsão à repetição na clínica, há uma

tentativa que esta seja colocada a serviço do tratamento, para que possa, nesse

caso, ser atrelada ao eu e ao princípio de prazer. Pela análise, é visado que a

repetição possa dar lugar à recordação e à elaboração26.

Não podemos esquecer que o termo inconsciente traz à tona a questão da

ação da pulsão em afastar da consciência um material psíquico que é mantido,

assim, através do recalque, inconsciente. Porém, não nos aprofundaremos, por

enquanto, neste conceito, deixando tal tarefa para quando trabalharmos a pulsão e

seus destinos, uma vez que o processo de recalque é um deles.

II.1.1.2 – Inconsciente e sujeito em Lacan

O Inconsciente, tomando-se como referência a leitura lacaniana das

descobertas de Freud, esta vinculada às concepções lingüísticas de Ferdinand de

Saussure e Roman Jakobson, seria uma rede de significantes, um circuito

simbólico27. Pensar o inconsciente estruturado como uma linguagem, conforme

proposto por Lacan (1964/1998: 25), requer, então, que voltemos nossa atenção

para estes autores e para a forma como alguns conceitos destes foram trabalhados

no ensino lacaniano.

é de que este jogo reproduziria a situação vivida pela criança quando a mãe desta se ausentava, o que proporcionava a elaboração desta experiência dolorosa de separação. 26 Conceito que será mais detalhadamente por nós trabalhado no quarto capítulo. 27 É preciso, de início, propor uma breve delimitação sobre os conceitos de simbólico, real e imaginário na obra lacaniana. Estes três conceitos estão intimamente ligados dentro desta teoria. O simbólico diz respeito à cadeia de significantes e à sua estrutura de linguagem, que traz aspectos inconscientes e também conscientes. Porém, nesta estrutura de linguagem, há algo que escapa, que é impossível de ser simbolizado e que, ainda assim, mesmo de fora da estrutura, intervém sobre o simbólico. Trata-se do real. O real é, assim, o “inassimilável”, o traumático (Lacan, 1964/1998: 57). O imaginário deve ser entendido a partir da função de identificação e da imagem, conforme apresentados por Lacan ao descrever o estádio do espelho, que será abordado posteriormente por nós. Este registro, em sua articulação com o simbólico, promove a fantasia, que funciona como uma tela de proteção contra o real. Ressaltamos que estes três registros não podem ser pensados isoladamente e que, no sujeito, não há a prevalência de um sobre o outro. Apesar desta ligação íntima entre os três registros ser melhor apresentada na teoria lacaniana a partir da apresentação do nó borromeano, presente a partir da década de 1970, escolhemos fazer um recorte teórico em nosso estudo que se estende do início de seus Seminários até, principalmente, o Seminário Os quatro

conceitos fundamentais da psicanálise. Ainda assim, textos e idéias posteriores serão encontradas em nossa reflexão como norteadores e apontamentos para estudos que pretendemos dar continuidade, conforme melhor explicamos na introdução desta dissertação.

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Entendemos que, ao fazer esta proposição sobre o inconsciente, o que Lacan

tem como visada é o sujeito, orientado pelo descentramento proposto por Freud

(1915/1990: 193) acerca do psiquismo humano e também enfatizar uma divisão

entre o que se sabe e o que atua sem que se tenha conhecimento. O sujeito passará

a ser ouvido a partir da linguagem nos momentos de falha, seja no sintoma, nos atos

falhos ou nos chistes, ou de abertura para o enigmático, como nas obras de arte.

Lacan, desde o início de seus Seminários, aproxima o conceito de

inconsciente freudiano a concepções relacionadas à linguagem. Em Os escritos

técnicos de Freud, Lacan (1953-54/1986: 32-33) afirma que:

(…) Freud toma, sem mais, o discurso como uma realidade enquanto tal, uma realidade que está lá, maço, feixe de provas como se diz também, feixe de discursos justapostos que se recobrem uns aos outros, se seguem, formam uma dimensão, uma espessura, um dossiê.

Nas falhas deste discurso, o sujeito poderá surgir pontualmente, revelando a

dimensão do inconsciente, formado, justamente, por cadeias de significantes que

podem possuir pontos de articulação entre si. Em Lacan (1964/1998: 46), o

inconsciente é entendido como descontinuidade, surgindo como fenômeno no

movimento pulsante de abertura e posterior fechamento, ou seja, de uma pulsação

temporal. Nessa abertura, o inconsciente pode emergir, fazendo com que o sujeito

seja surpreendido por uma verdade dele e sobre ele que ele não quer saber. Além

disso, o inconsciente traz algo do não-realizado. Sobre isso, diz Lacan (Ibid.: 30):

Tropeço, desfalecimento, rachadura. Numa frase pronunciada, escrita, alguma coisa se estatela. Freud fica siderado por esses fenômenos, e é neles que vai procurar o inconsciente. Ali, alguma outra coisa quer se realizar – algo que aparece como intencional, certamente, mas de uma estranha temporalidade. O que se produz nessa hiância, (...) se apresenta como um achado.

A dimensão do não-realizado do inconsciente aparece como uma Outra coisa

que quer se realizar. Por isso mesmo, poderá haver aí a característica de

estranheza para o sujeito; por essa fenda, algo de inconsciente pode emergir,

apontando para a função de causa deste sujeito. Lacan afirma que o inconsciente

se apresenta como vacilação a partir do corte no sujeito, que pode se perceber em

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algum ponto inesperado, de surpresa. Perguntamo-nos se, na arte, não seria o caso

de um fazer com esse tropeço, com isso que quer se realizar de outro modo28.

Nesse sentido, para Lacan (1953-1954/1986: 225), o sujeito do inconsciente

surge pela fala, pela linguagem, sendo que sua dimensão está para além da

consciência29.

O sujeito que fala, devemos admiti-lo forçosamente como sujeito. E por quê? Por uma simples razão, porque ele é capaz de mentir. Quer dizer que ele é distinto do que diz. Bem a dimensão do sujeito que fala, do sujeito que fala enquanto enganador, é o que Freud descobre para nós no inconsciente. (…) Freud (…) mostra-nos que há no sujeito humano algo que fala, que fala no pleno sentido da palavra, quer dizer, algo que mente, em conhecimento de causa, e independentemente do que traz a consciência (Idem).

As referências ao mentir e ao engano desta citação, se referem, a nosso ver,

a este saber inconsciente que surge na linguagem, por exemplo, ao se dizer mais do

que se intencionava no ato falho, podendo ocasionar, assim, uma surpresa. Por

vezes até um estranhamento.

O próprio do campo psicanalítico é supor, com efeito, que o discurso do sujeito se desenvolve normalmente – isto é Freud – na ordem do erro, do desconhecimento, e mesmo da denegação – não é bem a mentira, é entre o erro e a mentira. (…) Na análise, a verdade surge pelo que é representante manifesto da equivocação – o lapso, a ação a que se chama impropriamente falhada. Nossos atos falhados são atos que são bem sucedidos, nossas palavras que tropeçam são palavras que confessam. Eles, elas, revelam uma verdade detrás. No interior do que se chamam associações livres, imagens do sonho, sintomas, manifestam uma palavra que traz a verdade (Ibid.: 302).

Podemos notar que há no sujeito algo da ordem de uma determinação

inconsciente, ou, nas palavras de Freud (1900/1990: 295, 296, 465), uma

sobredeterminação. Esta foi estudada pelo autor na construção dos sonhos, não

28 E pretendemos manter esse questionamento norteando nosso trabalho ao longo da dissertação. 29 A consciência, sendo, segundo Freud (1923/1990: 28) uma das características relacionadas ao eu – Ich freudiano e moi, tal qual tradução adotada por Lacan, diferenciando-o do Je, do sujeito –, não pode, como vimos anteriormente em Freud (Ibid.: 25), dar conta de explicar o psiquismo humano. O eu, em Freud e Lacan, refere-se à criação de uma unidade que é constituída a partir da relação do bebê humano com seu semelhante cuidador, como será abordado mais adiante neste capítulo. Neste sentido, o eu, para Lacan (1954-1955/1985: 53), é uma função imaginária, na medida em que “o corpo despedaçado encontra sua unidade na imagem do outro, que é sua própria imagem antecipada – situação dual em que se esboça uma relação polar, porém não simétrica” (Ibid.: 74).

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sendo este, contudo, o único exemplo disto que é próprio do sujeito. Como evidencia

Freud (1893-1895/1990: 258), há na etiologia das neuroses uma sobredeterminação,

assim como também são sobredeterminados (ueberdeterminiert ou ueberbestimmt)

os sintomas (Freud, 1900/1990: 519; 1905[1901]/1990: 62).

No caso dos sonhos, como se sabe, Freud (1900/1990: 270) propôs a

diferença entre seu conteúdo manifesto, aquilo que “se apresenta em nossa

memória”, e o conteúdo latente, os “pensamentos do sonho”, inconscientes, aos

quais se pode chegar através do método psicanalítico. Nas palavras de Freud

(Idem):

Os pensamentos do sonho e o conteúdo dos sonhos nos são apresentados como duas versões do mesmo assunto em duas línguas diferentes. Ou, mais apropriadamente, o conteúdo do sonho é uma transcrição dos pensamentos oníricos em outro modo de expressão cujos caracteres e leis sintáticas é nossa tarefa descobrir, comparando o original e a tradução. (…) O conteúdo do sonho (…) é expresso, por assim dizer, numa escrita pictográfica cujos caracteres têm que ser individualmente transpostos para a linguagem dos pensamentos do sonho.

Ao investigar as “leis sintáticas” que regem o sonho, Freud desenvolve

conceitualmente os mecanismos de condensação (Ibid.: 272) e de deslocamento

(Ibid.: 296) – que participam na sobredeterminação da construção dos sonhos (Ibid.:

297) –, e da representabilidade (Ibid.: 327) e da elaboração secundária (Ibid.: 453,

461). Estes dois últimos fazem com que o material onírico latente, já sob efeito da

sobredeterminação, possa “escapar da censura imposta pela resistência” (Ibid.: 297)

e se apresentar em forma de imagens visuais e acústicas no sonho manifesto com a

máxima coerência possível.

Pelo trabalho de condensação, há a associação de diversos materiais

inconscientes em apenas uma idéia, o que nos leva a entender que no relato do

sonho um elemento único pode trazer em si diversos feixes de pensamentos. Já no

deslocamento, trata-se de transferir a intensidade entre os elementos do sonho,

passando a ênfase de valor de um para outro. Há, portanto, uma “determinação

múltipla” (Ibid.: 284) entre as redes de idéias do pensamento inconsciente e naquilo

que o sujeito expressa através da linguagem, como no caso dos relatos do sonho.

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Lacan (1955-1956/2003: 252), tomará como base para o seu entendimento da

estruturação do inconsciente as leis da condensação e do deslocamento conforme

descritas por Freud em relação à construção dos sonhos, também presentes na

Conferência XI, A elaboração onírica, das Conferências introdutórias sobre

psicanálise, de 1916-17. Para este autor, estas leis são análogas aos conceitos de

metáfora e metonímia, retirados do campo da lingüística.

De forma geral, o que Freud chama de condensação é o que se chama em retórica a metáfora, o que ele chama de deslocamento é a metonímia. A estruturação, a existência lexical do conjunto do aparelho significante, são determinantes para fenômenos presentes na neurose, pois o significante é o instrumento com o qual se exprime o significado desaparecido (Idem).

Notamos nessa passagem a leitura de Lacan do texto Dois aspectos da

linguagem e dos tipos de afasia, de Jakobson30. Na concepção deste, há na

estrutura da linguagem dois pólos, o metafórico e o metonímico, sobre os quais fala

ao estudar as afasias, pensando, ainda, no campo da poética.

Segundo Jakobson (1970: 39-40), os signos lingüísticos implicam duas

formas de arranjo. O primeiro, a combinação, opera a partir da contigüidade e

promove o agrupamento de unidades lingüísticas. Já a seleção põe em jogo o

aspecto da similaridade dos signos, e abre a possibilidade para a substituição entre

eles.

Tais arranjos estariam dispostos da seguinte maneira nos pólos da

linguagem: na metáfora encontrar-se-ia a seleção e a similaridade, próprias da

poesia, enquanto que, na metonímia estariam a combinação e a contigüidade,

voltadas para a prosa (Ibid.: 62).

Para entendermos melhor a dimensão da metáfora e da metonímia em Lacan,

se faz necessário uma maior delimitação de como o conceito saussuriano de

significante foi tomado em sua teoria. Diferentemente da forma saussuriana, que

pressupõe a língua como um sistema fechado que exclui o sujeito, na psicanálise

30 Lacan (1955-1956/2003: 250), aliás, faz referência claramente ao texto de Jakobson sobre as afasias em sua análise sobre a metáfora e a metonímia apresentada no seminário As psicoses, chegando a citar exemplos nele encontrados (Ibid.: 251-252).

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lacaniana, o significante é pensado em sua relação com o sujeito em um sistema

aberto, marcado pela falta.

O significante interessa-nos por sua posição na constituição do sujeito e, em

especial em nosso estudo relacionado à música, na medida em que traz a dimensão

da imagem acústica em contraposição à característica conceitual do significado. É

pela sonoridade própria do significante que poderá ocorrer o deslizamento na rede

simbólica, e é também devido à alternância sonora que a “matriz do funcionamento

significante” poderá se instalar (Catão, 2005: 50).

A isto, acrescentamos os conceitos freudianos de representação

(Vorstellung)31 de coisa (Sach) e representação de palavra (Wort), encontrados na

última seção do artigo O inconsciente e no Apêndice C do mesmo. Freud

(1915/2006: 49) afirma que a representação de coisa (Sachvorstellung) ocorre

apenas no Inconsciente e se dá como um conjunto de traços de memória e imagens

acústicas, visuais e cinestésicas mais ou menos afastadas da coisa em si, sem

nunca alcançá-la. Por outro lado, a representação de palavra (Wortvorstellung) está

ligada à tomada de consciência, à verbalização. Sobre a relação destes dois tipos de

representação, Freud (Idem; grifos do autor) considera que:

Aquilo que antes chamávamos de representação mental do objeto ou idéia consciente do objeto, ou seja, representação-do-objeto, agora se subdivide em representação-de-palavra [Wortvorstellung] e representação-de-coisa [Sachvorstellung]. Esta última consiste no investimento de cargas – se não nas imagens diretas das lembranças-de-coisa [Sachinnerungsbilder] –, nos traços de lembrança que estão mais distantes e derivam dessas lembranças. (…) Uma representação [Vorstellung] consciente abrange a representação-de-coisa [Sachvorstellung] acrescida da representação-de-palavra [Wortvorstellung] correspondente, ao passo que a representação [Vorstellung] inconsciente é somente a representação-de-coisa [Sachvorstellung] 32.

Voltaremos a abordar esta dimensão sonora do significante quando

trabalharmos, no capítulo III, a questão do objeto voz e da musicalidade presente na

31 Termo traduzido pela Edição Standard Brasileira das obras Completas de Sigmund Freud, lançada pela Editora Imago, como “apresentação”, ao qual preferimos usar representação. 32 É importante demarcar que, ao falar de representação de coisa (Sach), Freud não está abordando a Coisa (das Ding), termo por ele utilizado no Projeto para uma psicologia científica, de 1895, em relação ao complexo do próximo (Nebenmensch), que Lacan tornará conceito em A ética da

psicanálise, de 1959-1960. No caso de coisa e palavra, ambos fazem parte da estrutura da linguagem, enquanto a Coisa, como será visto mais adiante, é excluída desta.

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constituição do sujeito. Propomos agora investigar as concepções saussuriana e

lacaniana de significante e como estas se afastam, uma vez que concordamos com

Arrivé (1999: 73) quando este diz que “o significante lacaniano não se confunde com

o significante saussuriano”.

Em Saussure (1975: 25), a linguagem é entendida como uma faculdade e os

termos significante e significado se referem à língua, esta definida como um “produto

social da faculdade da linguagem e um conjunto de convenções necessárias,

adotadas por um corpo social para permitir o exercício dessa faculdade entre os

indivíduos”. Mais que isso (Ibid.: 32), é tomada como um sistema de signos que

seriam compostos pela associação arbitrária de um significante (imagem acústica) a

um significado (conceito, sentido), sendo que estas duas partes do signo são

psíquicas.

Desta forma, Saussure (Ibid.: 99) defenderá que o signo lingüístico é uma

entidade psíquica composta de duas faces: significado e significante. Ambos

somente podem ser estudados, nessa concepção, em conjunto, por estarem

recíproca e intimamente unidos (Idem). E, desta relação, surgiriam as significações

da língua.

No entanto, a língua comporta também outra possibilidade de relações: as

relações entre os signos. Dentro dos parâmetros saussurianos, um signo estabelece,

em um sistema, relações com outros signos, dependendo também daí sua

significação. Ou seja, a significação de um signo dependeria da associação de um

significante a um significado e, ainda, da posição que o signo ocupa dentro de um

sistema.

Cabe ressaltar que Saussure delimitou dois princípios gerais sobre o signo. O

primeiro é o da arbitrariedade do signo (Ibid.: 100), que afirma que a associação de

um significante a um significado é arbitrária. Já o segundo, sobre a característica

linear do significante (Ibid.: 103), diz que, na língua, o significante, de natureza

auditiva, se desenvolve no tempo, de forma que representa uma extensão e que

esta é mensurável em uma única dimensão: é uma linha.

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Em oposição aos significantes visuais, que podem oferecer complicações simultâneas em várias dimensões, os significantes acústicos dispõem apenas da linha do tempo, seus elementos se apresentam um após outro, formam uma cadeia (Idem).

Tal fato, segundo o autor (Idem), se conserva na escrita, sendo que a

sucessão no tempo é substituída pela linha espacial, em seqüência, dos signos

gráficos.

A noção lacaniana de significante, por outro lado, apesar de baseada em

Saussure, apresenta outras configurações. Ocorre uma inversão no signo

saussuriano, ou seja, a maior importância é dada ao significante. A significação,

nessa perspectiva, seria oriunda da relação entre os significantes, e encontrada no

discurso. Segundo Lacan (1955-1956/2002: 225), “o significante tem suas leis

próprias, independentemente do significado”, porém, estabelecendo relações com

ele.

A prevalência, ou primazia, conforme se convencionou dizer, é dada a estes

elementos desprovidos de sentido, com leis próprias, e que, dentro de uma cadeia,

podem tecer significações entre si. Para Lacan (Ibid.: 227), “o significante deve ser

concebido em primeiro lugar como distinto da significação. O que o distingue é o fato

de ser em si mesmo sem significação própria”. Isto quer dizer que o material

significante é um dado primeiro a partir do qual se poderá organizar o discurso e

suas significações, que sempre se remeteriam a outras significações (Ibid.: 66).

Vemos, assim, que há a inversão da equação saussuriana, ficando o

significante no numerador e o significado no denominador, além de o primeiro ser

grafado em maiúscula enquanto que o segundo em letra minúscula (Arrivé, 1999: 83;

Jorge, 2002: 81). A barra entre um em outro deve ser lida como um corte que diz

respeito ao próprio sujeito, que nunca poderá ser representado por um único

significante, isto porque há uma falta estrutural no simbólico, que diz respeito ao real.

Tal proposição pode melhor ser entendida na psicanálise lacaniana a partir da

articulação dos conceitos de significante e significado com os registros de imaginário

e simbólico (Ibid.: 65). “O material significante (…) é o simbólico” (Ibid.). E a partir do

fazer com o significante os significados podem ser produzidos. Para Lacan (1959-

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1960/1997: 59), é “a articulação significante” que fornece “a verdadeira estrutura do

inconsciente”.

É neste sentido que se pode dizer que:

O inconsciente é, no fundo dele, estruturado, tramado, encadeado, tecido de linguagem. E não somente o significante desempenha ali um papel tão grande quanto o significado, mas ele desempenha ali o papel fundamental. O que com efeito caracteriza a linguagem é o sistema do significante como tal (Lacan, 1955-1956/2003: 139).

Sobre este “grande papel” do significante de que nos fala Lacan, podemos

atribuir ao fato de que é ele que irá representar o sujeito: “é a partir do significante

que o sujeito se reconhece como sendo isto ou aquilo” (Ibid.: 205). Porém, um

significante não poderá representar o sujeito de modo totalizante, já que, por

definição, ele, sozinho, não significa nada (ibid.: 212). Ele é tomado por Lacan como

precisando estar em relação a outro significante. É assim que pode ser

compreendida a afirmativa lacaniana de que um significante é aquilo que representa

um sujeito para outro significante33.

Uma vez que o significante, por si só, não remete a nenhum sentido, sendo,

apenas diferença em relação a outro, ele precisa estar em uma cadeia, de no

mínimo dois, para que algum significado possa advir.

É preciso em primeiro lugar que a coordenação significante seja possível para que as transferências de significado possam se produzir. A articulação formal do significante é dominante em relação à transferência do significado (Ibid.: 261).

Assim, os significantes somente podem criar significações se associados a

outros, havendo, assim, uma transferência de significado, e podendo haver pontos

de basta (Ibid.: 303-304) que ligam o significante ao significado e que permitem

“situar de forma retroativa” o que se passa em um discurso. Como destaca Jorge

(2002: 83), o significante é binário e o sujeito intervalar, “lugar de escansão entre-

dois significantes e passível de ser representado apenas parcialmente pelo

significante”.

33 Seminário A identificação, de Lacan, aula de 6 de dezembro de 1961, inédito no Brasil.

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Para dar conta desta transferência de significado, Lacan (1995: 47) propõe no

Seminário A relação de objeto, de 1956-1957, um esquema de paralelas

superpostas que diz da possibilidade de “deslizamentos do significado sob o

significante, e do significante sobre o significado”.

Já situei, numa espécie de superposição paralela, o curso do significante, ou do discurso concreto, por exemplo, e o curso do significado, no que e como se apresenta a continuidade do vivido, o fluxo das tendências num sujeito, e entre os sujeitos. (…) este esquema comporta que o que é significante de alguma coisa pode se tornar a qualquer momento significante de outra coisa (Ibid.: 46-47).

Se esta possibilidade está aberta – de um significante poder significar uma

coisa e, em outro momento, outra – é na medida em que se pode fazer algo com o

significante, como situamos mais acima. Neste fazer, para Lacan (Ibid.: 213), surge a

dimensão do subjetivo

na medida que supõe que temos à nossa frente um sujeito capaz de se servir

do significante, do jogo do significante. É capaz de se servir dele como nós

nos servimos – não para significar algo, mas precisamente para enganar

sobre o que se tem de significar. É utilizar o fato de que o significante é outra

coisa que a significação.

É por isso que podemos dizer que uma obra de arte é significante, assim

como os materiais de que o artista se serve para sua criação, e que o efeito que ela

terá em um sujeito, mesmo aquele que a cria e os que a fruem, será, em cada um,

diferenciado. Isto porque a arte poderá produzir diferentes significações a partir

daquilo que cada um poderá pôr em relação com a obra.

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II.1.1.3 – Linguagem e sujeito em Freud e Lacan

Para aprofundarmos nossa reflexão, destacamos que, de acordo com Arrivé

(1999: 79), Lacan promove “a identificação do significante com dois objetos

conceituais freudianos”, a saber, o Wahrnehmungszichen (Wz), sinal de percepção,

também traduzido por indicação ou signo de percepção, sobre a qual Freud escreve

a Fliess na Carta 52, e a Vorstellungrepräsentanz, representante da representação

ou representante representativo34, descrito no artigo O recalque.

Arrivé (Ibid.: 81) argumenta que, embora ambos possam ser objetos do

mecanismo do recalque, característica destacada por Lacan associada ao

significante (1964/1998: 206-207), estes são conceitos com aspectos diferentes em

Freud. Vejamos, pois, como são tratados na obra freudiana.

Na Carta 52, datada de 6 de dezembro de 1896, Freud (1950[1896]/1990:

326) apresenta uma hipótese sobre o psiquismo em termos que se aproximam ao

tratamento de uma linguagem ao falar da “tradução” de traços entre os diferentes

registros psíquicos. Aborda a inscrição (Niederschrift) de traços mnêmicos que

precisariam passar pela transcrição (no sistema Unbewusstsein) e pela retranscrição

(no sistema Vorbewusstsein) de tempos em tempos, o que o leva a afirmar “que a

memória não se faz presente de uma só vez, mas se desdobra em vários tempos;

que ela é registrada em diferentes espécies de indicações” (Ibid.: 324).

Descreve os diferentes registros que comporiam o psiquismo enquanto

sistema de memória da seguinte forma: W (Wahrnehmungen), percepções; Wz

(Wahrnrhmungszeichen), indicação da percepção; Ub (Unbewusstsein),

inconsciência; e Vb (Vorbewusstsein), pré-consciência (Ibid.: 325). Em W, encontra-

se a origem das percepções, enquanto que o primeiro registro destas se dá apenas

no sistema Wz, o qual é “praticamente incapaz de assomar à consciência”, e

34 Laplanche e Pontalis (1988: 588) defendem que a tradução mais adequada para o termo composto Vorstellungrepräsentaz, ou Vorstellungrepräsentant, é “representante ideativo”, argumentando que “a expressão francesa représentant-représentation introduz um equívoco ao traduzir por duas palavras muito próximas uma palavra alemã composta de dois substantivos muito diferentes”, ressaltando, entretanto, que “Vorstellungreprásentanz significa o que representa (aqui, o que representa a pulsão no domínio da representação” (Ibid.). Por estas razões, preferimos usar a tradução “representante da representação”.

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disposto “conforme as associações por simultaneidade” (Ibid.). O segundo registro

dos traços no inconsciente obedeceria a relações causais. Já na pré-consciência,

encontrar-se-ia a “terceira transcrição, ligada às representações verbais e

correspondendo ao nosso eu reconhecido como tal” (Ibid: 325-326).

Seria, neste momento da obra freudiana, pela própria inscrição dos traços

mnêmicos, com suas posteriores transcrições e retranscrições que o funcionamento

do psiquismo se instalaria. Segundo Catão35 (2005: 54):

É por meio dos traços mnémicos que os acontecimentos psíquicos ficam gravados permanentemente na memória podendo ser reativados como efeito do investimento. Os traços mnémicos constituem a marca da diferença entre os diversos trilhamentos da energia (Bahnungen), a preferência por um caminho em detrimento de outro. (…) O reordenamento de traços mnémicos responde, para Freud, pela própria formação do aparelho psíquico. Este se constitui, portanto, concomitante ao seu funcionamento.

O inconsciente, assim, se apresenta pela simultaneidade de traços inscritos,

cujos arranjos se dão a posteriori.

Também no artigo freudiano Uma nota sobre “o bloco mágico”, podemos

observar a idéia do psiquismo como um aparelho de memória no qual há a inscrição

de traços em diferentes níveis.

O referido bloco foi descrito por Freud (1925 [1924]/1990: 287) como uma

superfície plana com borda de papel, na qual há uma folha de papel fina e encerada

presa na parte superior e solta na inferior. Ao se escrever sobre este papel com um

“estilete pontiagudo” (Idem), o mesmo “calca a superfície, cujas depressões nela

feitas constituem a “escrita”36.

35 Esta autora (Catão, 2005: 50-51) destaca no período entre 1891 e 1900 na teoria freudiana a descrição de quatro modelos do aparelho psíquico: “um aparelho de linguagem, em A Interpretação das afasias (1891) que serve de primeiro esboço do aparelho neurônico do Projeto para uma psicologia científica (1950[1895]), o aparelho de memória da Carta 52 a Fliess (1950[1986]) e o aparelho psíquico do capítulo 7 de A Interpretação dos Sonhos (1900)”. 36 Diante dessa descrição, evocamos o escrito lacaniano Lituraterra, de 1971, no qual Lacan aborda o tema do litoral para falar da função da letra e da fundação do sujeito. Não entraremos, neste momento, na definição destes conceitos. Destacamos, apenas, que com a imagem do litoral, Lacan (1971/2003: 18) diz de “um campo inteiro [que] serve de fronteira para o outro”, e da temática da “rasura” (Ibid.: 21). Esta surge no texto a partir do relato de uma viagem de avião na qual Lacan vê surgir “por entre-nuvens, o escoamento das águas, único traço a aparecer (…) naquilo que da Sibéria é planície”, tirando daí a seguinte conseqüência: “O escoamento é o remate do traço primário e daquilo que o apaga. Eu o disse: é pela conjunção dele que se faz sujeito, mas por aí se marcarem

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Porém, esta escrita fica permanentemente inscrita na superfície da prancha

(aqui, uma analogia ao inconsciente), apagando-se, entretanto, da folha de papel

encerada quando está é levantada. Com isso, ela pode, mais uma vez, reter novos

traços. Podemos dizer que esta escrita diz da própria constituição do aparelho

psíquico e da interrelação entre o sistema que recebe os estímulos perceptivos e

aquele que os registra de forma permanente (Ibid.: 289).

Vale notar que Freud atribui à descontinuidade relativa ao funcionamento do

sistema Pcpt-Cs. (perceptivo-consciência), que recebe as novas impressões e que

não está em permanente contato com o sistema inconsciente, a “origem do conceito

de tempo” (Ibid.: 290).

Também vale destacar que Lacan, retornando ao conceito de WZ freudiano,

que nos diz de uma primeira inscrição de traços da percepção (1971/2002: 19), o

descreve “como sendo o mais próximo do significante”, o que segue a hipótese

acima sustentada por Arrivé.

No texto freudiano de 1896, a característica de simultaneidade presente no

sistema Wz chama a nossa atenção. Lacan, no Seminário As psicoses, irá aproximar

a noção de simultaneidade à de sincronia. Diz ele (1955-1956/2003: 207), ao se

referir à carta 52:

A primeira registração das percepções, inacessíveis à consciência, ela também é ordenada por associações de simultaneidade. Temos aí a exigência original de uma primitiva instauração da simultaneidade. (…) O nascimento do significante é a simultaneidade, e também sua existência é uma coexistência sincrônica.

Acrescenta, em seguida (Idem), que o sistema Bewusstsein, da consciência,

é “o momento em que o significante, uma vez constituído, se ordena

secundariamente por alguma outra coisa, que é a aparição do significado”.

dois tempos”. Tal citação poderá ser melhor compreendida posteriormente ao estudarmos o conceito de traço unário e também a constituição do sujeito no campo do Outro, da qual sobra um resto, o

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Cabe ressaltar que estes são momentos lógicos na constituição do psiquismo

e que somente teoricamente podem ser estudados em separado. No sujeito que fala

ou que trabalha com o significante, apesar de podermos distinguir estas duas

coordenadas, elas vêm ao mesmo tempo.

Quando fala, o sujeito tem à sua disposição o conjunto do material da língua, e é a partir daí que se forma o discurso concreto. Há em primeiro lugar um conjunto sincrônico, que é a língua enquanto sistema simultâneo de grupos de oposição estruturados, há em seguida o que se passa diacronicamente, no tempo, e que é o discurso (Ibid.: 66).

Passemos agora à questão da Vorstellungrepräsentanz, tratada por Freud em

O recalque (Die Verdrängung) e que Lacan (1959/1998: 722) identifica ao

significante. Tal termo se refere à representação ou conjunto de representações

através da qual a pulsão se apresenta no psiquismo. Neste artigo metapsicológico,

Freud (1915/2004: 177) destaca que uma pulsão em seu movimento inicial pode ter

como destino encontrar resistências que impedem sua ação, entrando, assim, em

estado de recalque.

Freud (Ibid.: 178) supõe, a partir da observação clínica, a existência de uma

fase inicial do recalque, a qual denominou de recalque originário (Urverdrängung).

Neste primeiro momento, que ocorre em virtude da castração37, o representante

(Repräsentanz) psíquico da pulsão, ou seja, sua representação mental (Vorstellung)

seria interditado (versagen) de entrar no consciente, estabelecendo uma fixação à

qual a pulsão permanecerá atrelada.

No recalque propriamente dito (Ibid.: 179), ocorrido posteriormente, as

representações derivadas (Abkömmlinge) do representante recalcado, ou as

representações associadas a este por cadeias de pensamentos, sofrem o mesmo

destino que as originalmente recalcadas.

objeto a. 37 Segundo o Dicionário de Psicanálise organizado por Roland Chemama (1995:30), a operação da castração deve ser compreendida dentro do processo denominado complexo de castração (Kastrationkomplex) que é: 1. Para S. Freud, conjunto das conseqüências subjetivas, principalmente inconscientes, determinadas pela ameaça de castração, no homem, e pela ausência de pênis, na mulher. 2. Para J. Lacan, conjunto dessas mesmas conseqüências, enquanto determinadas pela submissão do sujeito ao significante.

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O recalcado original exerce uma força e atração sobre todas as

representações com as quais consegue estabelecer ligações. Ele continua a existir

no inconsciente, se organizando, formando novas representações derivadas e

estabelecendo outras conexões com conteúdos conscientes.

Contudo, o recalque não afasta do consciente todas as representações

derivadas do recalcado original. Elas encontram acesso ao consciente ao se

distanciarem do recalcado original e se deformarem por elos intermediários.

É possível, na clínica, reconstruir uma “tradução” do recalcado a partir destas

representações que alcançam o consciente. Cabe ressaltar que os próprios sintomas

neuróticos são derivados do recalcado que alcançaram, de uma forma especial, a

consciência.

Decompondo a pulsão (Ibid.: 182-183), encontramos além da representação

recalcada uma quantidade de afeto, que pode ser afastada do consciente

juntamente com a representação, e surgir novamente como afeto em momento

posterior, ou ser transformada em angústia (Angst).

Recordemo-nos de que o motivo e propósito do recalque eram tão somente a evitação do desprazer. Daí resulta que o destino da quantidade de afeto do representante é de longe mais importante do que o destino da representação (...). Se um recalque não conseguir impedir que surjam sensações de desprazer ou de medo (Angst), podemos dizer que ele fracassou, ainda que seu objetivo tenha sido alcançado com relação à parcela representacional. (Ibid.: 183)

O mecanismo do recalque somente pode se tornar acessível a partir de seus

efeitos, de forma retroativa. Na parcela do recalque que afeta a representação, nota-

se que ele cria uma formação substitutiva, ele deixa sintomas. O mecanismo da

formação substitutiva não coincide com o do recalque, sendo que existem diversos

mecanismos do primeiro; entretanto, em ambos os mecanismos o investimento de

energia é recolhido.

A respeito da Vorstellungrepräsentanz, podemos dizer que ele é formado no

momento do recalque originário, quando a pulsão se fixa em um representante e

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que, também neste mesmo momento, o inconsciente surge como tal. Ainda, dizemos

com Catão (2005: 65), que este termo

aponta para os dois delegados da pulsão no psiquismo: o afeto e o significante. É o afeto que exprime de modo mais direto o compromisso da pulsão com o corporal, ao passo que as representações (Vorstellung) constituem a rede significante própria do inconsciente. O investimento articula os traços mnémicos entre si constituindo a trama das Vorstellungreprasentanzen ou trama dos significantes. A esta trama Lacan denominou inconsciente estruturado como uma linguagem. A organização do inconsciente enquanto sistema (Ics) é correlata de seu funcionamento, este depende da articulação com o campo do Outro, às leis da linguagem, por via do laço com o semelhante.

É sobre este campo do Outro e sobre a constituição do sujeito nele, pela

encarnação deste no outro, que trataremos a seguir.

II.2 – O Outro

Ao pensarmos na emergência do sujeito como tal, sujeito do inconsciente,

não podemos deixar de relacioná-lo ao Outro. Em Lacan (1962-1963/2005: 33), o

grande Outro é entendido como o “lugar do significante”, da fala, que já está lá antes

mesmo do sujeito. O Outro é a diferença radical, que se apresenta como alteridade

absoluta. É nesse espaço e campo do Outro que o sujeito pode emergir, se ver, se

ouvir, se situar.

Primeiramente, se faz necessário destacar a diferença fundamental entre o

outro, tomado como semelhante e que se encontra no mesmo campo do sujeito, e o

Outro, como o lugar dos significantes e da linguagem. Segundo Lacan (1955-

1956/2002: 286-287):

O primeiro, o outro com a minúsculo, é o outro imaginário, a alteridade em espelho, que nos faz depender da forma de nosso semelhante. O segundo, o Outro absoluto, é aquele ao qual nós nos dirigimos para além desse semelhante, aquele que somos forçados a admitir para além da relação da miragem, aquele que aceita ou que se recusa na nossa presença, aquele que na ocasião nos engana, aquele ao qual sempre nos endereçamos (Os grifos são nossos).

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O outro terá um papel fundamental na constituição do sujeito, pois, ao

encarnar o Outro da linguagem, ele poderá transmiti-la, assim como a Lei e o

significante, como veremos posteriormente.

Lacan enfatiza a divisão de dois campos: o do sujeito e o do Outro, sendo

que: “O Outro é o lugar em que se situa a cadeia do significante que comanda tudo

que vai poder presentificar-se do sujeito, é o campo desse vivo onde o sujeito tem

que aparecer” (Lacan, 1964/1998: 193-194).

Desse modo, o sujeito se encontra em um estado de alienação (Ibid.: 199),

sendo submetido ao significante que vem do Outro. A partir disso, Lacan (Ibid.: 196)

irá propor que há uma “circularidade entre o sujeito e o Outro – do sujeito chamado

ao Outro, ao sujeito pelo que ele viu a si mesmo aparecer no campo do Outro, do

Outro que lá retorna”. Contudo, afirma que, embora circular, não há reciprocidade

entre estes dois campos, eles são dissimétricos, não se confundem.

Todavia, no estado de alienação, ainda não podemos falar efetivamente em

um sujeito. É preciso haver um corte nessa circularidade com o Outro, o que

somente poderá ocorrer com o processo do recalque originário.

Lacan (1964/1998: 207) propõe pensar a alienação a partir da

Vorstellungrepräsentanz, delimitando-o como esse

primeiro acasalamento significante que nos permite conceber que o sujeito aparece primeiro no Outro, no que o primeiro significante, o significante unário, surge no campo do Outro, e no que ele representa o sujeito, para um outro significante, o qual outro significante tem por efeito a afânise do sujeito. Donde, a divisão do sujeito – quando o sujeito aparece em algum lugar como sentido, em outro lugar ele se manifesta como fading, como desaparecimento. Há então, se assim podemos dizer, questão de vida e de morte entre o significante unário e o sujeito enquanto significante binário, causa de seu desaparecimento. O Vorstellungrepräsentanz é o significante binário.

Segundo Lacan (Idem), este significante constituirá o núcleo do recalque

originário, que exercerá atração para os recalques posteriores, como visto na seção

anterior. Com a entrada do significante, o sujeito advirá enquanto tal no registro da

linguagem.

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É interessante notar que na psicanálise lacaniana a questão da divisão do

sujeito, já presente na concepção freudiana, ganha contornos mais radicais. Por

estar alienado no campo do Outro em virtude do significante, o sujeito somente

poderá surgir nesta divisão, isso se a separação pôde tomar corpo. O sujeito ficará

entre “o sentido, produzido pelo significante”, e a afânise, o desaparecimento entre

dois significantes (Ibid.: 199).

É por esta dinâmica que podem atuar na linguagem os mecanismos da

metáfora e da metonímia, como destaca Rinaldi (1996: 31):

Aparecimento/desaparecimento do sujeito, indicando que nenhum significante é capaz de representá-lo em sua integridade, justamente porque põe-se em questão sua unicidade. (…) Alienação e separação, operações simultâneas, em que o sujeito se constitui como sentido e como perda, como metáfora e metonímia. É pela metonímia – pelo deslocamento –, onde se situa o desejo, que o sujeito do inconsciente se afirma enquanto sujeito do desejo.

O sujeito surge, assim, como efeito de uma extração que o significante opera

no campo do Outro. Podemos dizer que essa emergência ocorre com a retirada de

uma parte do gozo do vivente, ou seja, com um menos de gozo, como uma perda. A

partir dessa operação, a da castração, o sujeito surge tendo em si um mal-estar, um

desamparo38.

Esse menos, juntamente com seus efeitos, dá início ao autômaton

(1964/1998: 54, 56), à repetição da impossibilidade na cadeia significante. É uma

repetição de algo que não cessa de se inscrever, que diz da impossibilidade

estrutural que o recalque originário aponta. No entanto, isso não quer dizer que

nenhuma realização seja possível. A sustentação desse movimento é dada pelos

encontros, sempre faltosos, que podem ocorrer na história do sujeito.

Lacan se inspira no texto freudiano Além do princípio de prazer, do qual

destaca o conceito de compulsão à repetição, para abordar a temática do que foi

chamado, pela língua francesa, de “automatismo de repetição” (Lacan, 1954-

38 Cabe ressaltar que, da operação de emergência do sujeito no campo do Outro, há um resto, o objeto a, o qual estudaremos no próximo capítulo.

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1955/1985: 82) e, mais tarde em sua obra, tomando o termo emprestado de

Aristóteles, de autômaton, ou “a rede de significantes” (Lacan, 1964/1998: 54).

Em seu Seminário O eu na teoria de Freud e na técnica psicanalítica, Lacan

estuda a repetição ao destacar a tendência que o recalcado, que está inconsciente,

tem a se repetir. O conceito de repetição volta a ser abordado por este autor no

seminário de 1964. Neste, Lacan (Idem) aborda duas faces da repetição, as quais

denomina de autômaton – tomado como a rede de significantes–, e tiquê – tido

como o encontro com o real.

Dessa forma, o inconsciente se equivaleria ao autômaton, a essa rede de

significantes. Além disso, a repetição estaria ligada com o simbólico. Por outro lado,

tem-se a função da tiquê (Ibid.: 57), do encontro com o real, encontro esse

essencialmente faltoso. Entendemos aqui o real como sendo o inassimilável, o

traumático, ao que aproximamos na obra freudiana como sendo da ordem do

sexual.

Na psicanálise lacaniana, encontramos em um Outro a causa do sujeito.

Ocorre um drama na constituição subjetiva: o sujeito nasce dividido, marcado por um

não saber sobre si mesmo. Nesse sentido, a verdade para o sujeito é o inconsciente,

e pode se apresentar e atualizar pela linguagem, pela fala. Esta é sempre apoiada

na causa, naquilo que o faz advir como sujeito. No entanto, a causa não é o sujeito,

ela é Outra coisa.

A entrada do significante no sujeito a partir do campo do Outro coloca em jogo

a dimensão do desejo, cuja função é resíduo do efeito do próprio significante. O

desejo se encontra no ponto nodal que liga a pulsação do inconsciente com a

realidade deste, que é da ordem do sexual. Uma vez articulado nesses termos, o

desejo será sempre impossível, inalcançável, desconhecido, incessante.

A sexualidade se instaura no sujeito pela via da falta, que Lacan nos diz se

tratar de duas:

Duas faltas aqui se recobrem. Uma é da alçada do defeito central em torno do qual gira a dialética do advento do sujeito a seu próprio ser em relação ao

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Outro – pelo fato de que o sujeito depende do significante e de que o significante está primeiro no campo do Outro. Esta falta vem recobrir a outra, que é a falta real, anterior, a situar no advento do vivo, quer dizer, na reprodução sexuada. A falta real é o que o vivo perde, de sua parte de vivo, ao se reproduzir pela via sexuada. (Ibid., p. 195)

O sujeito, dividido por efeito da linguagem, defende Lacan (Ibid.: 178)

somente pode se realizar no Outro. Nesse campo, ele procurará se completar,

encontrar o objeto perdido, que lhe foi retirado. Porém, ao fazer isso, encontrará seu

desejo mais dividido ainda, uma vez que “o desejo do homem é o desejo do Outro”

(Lacan, 1962-1963/2005: 31).

Pararemos neste ponto, uma vez que entendemos que para falar sobre o

objeto perdido, ao qual o desejo está tão intimamente articulado, se faz necessário

refletir mais atentamente sobre a constituição do sujeito e sobre a pulsão.

II.3 – A constituição do sujeito

Partiremos agora de algumas indicações tanto em Freud quanto em Lacan

para traçar uma trajetória que vise melhor compreender o sujeito e sua relação ética

com o objeto tanto em sua constituição subjetiva quanto na criação e fruição

artística, mais especificamente a musical, o que será visto nos próximos capítulos.

Dentro desta proposta, o seminário A ética da psicanálise, de Lacan, se

mostra fundamental, por trazer à tona a problemática de das Ding, a Coisa

freudiana. No Projeto para uma psicologia científica (Entwurf einer Psychologie), de

1895, Freud apresenta a noção de das Ding que, embora não tenha sido

posteriormente desenvolvida em sua obra, serve-nos como norteador para o estudo

da relação entre sujeito e objeto, assim como abre novas possibilidades de entender

a constituição do psiquismo, a questão da realidade psíquica, do desejo, dentre

outros. Lacan tomará das Ding, no referido seminário, como ponto central em seus

questionamentos sobre a ética – uma ética voltada para a ação e em cujos pilares

encontram-se o desejo, a Lei, o real e a dimensão da falta.

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A ética (Lacan, 1959-1960/1997: 16), nesse sentido, se distingue da moral,

dos mandamentos, das normas e valores sociais. No entanto, Lacan explicita como

até mesmo a moral está fundada no desejo e na complexa relação deste com a Lei,

o que fica mais evidente no imperativo moral superegóico, como será visto

posteriormente na articulação que pode ser feita entre supereu e voz.

A discussão ética lacaniana gira em torno do “Wo Es war, soll Ich werden”

(“Onde o Isso estava o eu [o sujeito] deve advir”). Tal assertiva freudiana encontra-

se na Conferência XXXI – A dissecção da personalidade psíquica, das Novas

conferências introdutórias da psicanálise.39 Na Edição Standard brasileira das

obras completas de Sigmund Freud, esta frase ganhou a seguinte tradução: “Onde

estava o id, ali estará o ego”. (Freud, 1933[1932]/1990: 102). Preferimos, no entanto,

acompanhar a tradução acima, feita por Lacan (1964/1998: 47), para pensar como o

sujeito poderá surgir como efeito do Isso.

Ou seja, o que está em jogo é o sujeito do inconsciente, que advém da falta,

de um vazio real, que surge pela ação e nos efeitos da linguagem em função do

movimento do desejo. É a própria falta que funda o inconsciente, sendo que este

tem um núcleo real, das Ding.

Encontramos em Freud, ao elaborar A experiência de satisfação no Projeto, o

que seria a gênese da constituição do sujeito. Frente ao desamparo primordial do

infans, que seria incapaz de, sozinho, realizar a ação específica para eliminar uma

tensão interna, é preciso que haja uma ação externa para que ocorra a descarga da

excitação, eliminando desprazer e, conseqüentemente, trazendo a satisfação. Nas

palavras de Freud:

O organismo humano é, a princípio, incapaz de promover essa ação específica. Ela se efetua por ajuda alheia, quando a atenção de uma pessoa experiente é voltada para um estado infantil por descarga através da via de alteração interna. Essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima função secundária da comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais. Quando a pessoa que ajuda executa o trabalho da ação específica no mundo externo para o desamparado, este último fica em posição, por meio de dispositivos reflexos,

39 Título original em alemão: Neue Folge der Vorlesungen zur Einfuhrung in die Psychoalayse.

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de executar imediatamente no interior de seu corpo a atividade necessária para remover o estímulo endógeno. A totalidade do evento constitui então a experiência de satisfação, que tem as conseqüências mais radicais no desenvolvimento das funções do indivíduo. (Freud, 1950[1985]/1990: 431; grifos do autor).

Em outras palavras, na experiência de satisfação, podemos perceber a

delimitação e constituição dos campos do sujeito e do objeto, assim como a

importância do estímulo e de sua fonte endógena e também do movimento deste

estímulo em busca da descarga.

Vê-se, deste modo, embora com nomenclatura diversa, já em construção a

idéia de uma força psíquica sob a forma de um impulso, com um alvo específico,

indo na direção de um objeto, o que posteriormente será denominado de pulsão na

obra freudiana.

Aqui já é possível notar a relação de alteridade e de alienação do sujeito para

com o Outro, conforme destaca Lacan (1964/1998: 199). É este Outro que, a partir

da descarga de uma alteração no infans, como o grito (Freud 1950[1985]/1990:

43140), lhe dará, conforme seu desejo, uma significação, oferecendo, em seguida,

um objeto para eliminação da tensão. Deste modo, a vivência de satisfação deixará

marcas no infans que servirão de guia para a busca de novas satisfações, o que terá

importantes conseqüências para o movimento do desejo do sujeito. Estas marcas

darão a singularidade do desejo, que é, por estrutura, universal no humano.

Sobre o sujeito e o Outro enquanto seu exterior, o artigo freudiano A

negativa41 (Die Verneinung), de 1925, oferece grandes esclarecimentos. Nele, Freud

propõe duas espécies de decisões do sujeito frente ao que se encontra fora dele.

Encontramos aí os mecanismos de formação da realidade psíquica e da divisão

entre sujeito e objeto. Trata-se da função de juízo em relação ao atributo de uma

coisa e quanto à existência de uma representação.

40 Apontado por Freud (1950[1985]/1990: 431) em nota de roda pé explicativa sobre a alteração interna do bebê que, se exprimiria por uma descarga, adquirindo esta via “importantíssima função secundária da comunicação“. 41 Lacan (1954/1998: 381) traduz nos Escritos tal termo alemão, Verneinung, por dénegation

(denegação), ao que é apoiado por Jean Hyppolite (Ibid,: 893).

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No primeiro caso, ocorre, pelo juízo de atribuição (Freud, 1925/1990: 297), a

ação do eu-prazer de introjetar ou rejeitar algo, segundo o que oferece ou não

prazer: aquilo que lhe é bom e familiar será introjetado e o que é mau e estranho

será rejeitado. Há, assim, a delimitação do campo da linguagem pelas experiências

do sujeito em incorporar ou expulsar, ou, dito em outras palavras, em afirmar

(segundo o sim da Bejahung, que configura o campo do simbólico) ou denegar (pela

expulsão da Austossung, que marca o que está fora da simbolização, o Real),

conforme defendem Jean Hyppolite e Lacan.

Desse modo, é constituída no sujeito uma divisão, um “dentro” e “fora”

segundo a lógica da banda de Moëbius, uma vez que é pela ação do sujeito que o

interior e o exterior serão demarcados, ou seja, a própria constituição de simbólico e

de real, ambos entrelaçados pelo imaginário. Podemos, ainda, localizar neste artigo

a ação da pulsão, por um lado, tendendo para a unificação (pulsão de vida) e para a

destruição (pulsão de morte). Com Lacan (1964/1998: 195), contudo, aprendemos

que toda pulsão é pulsão de morte e que esta aponta para das Ding, como será visto

ao abordamos a sublimação.

O segundo caso refere-se ao juízo de existência através do qual o eu-

realidade, formado a partir do eu-prazer, atestará a existência de uma representação

e, com isso, distinguirá sujeito de objeto. Este último, pelo teste de realidade, deverá

ser reencontrado, uma vez que foi perdido. Diz Freud: “o objetivo primeiro e imediato

do teste de realidade é não encontrar na percepção real um objeto que corresponda

ao representado, mas reencontrar tal objeto, convencer-se de que ele está lá”

(Freud, 1925/1990: 298).

Neste ponto de constituição da realidade psíquica pela expulsão do que é

estranho e hostil e de identificação do bom e familiar e pela distinção entre sujeito e

objeto, podemos localizar o complexo do próximo (Nebenmensch) descrito por Freud

(1950[1985]/1990: 447) no Projeto ao situar Memória e juízo e Pensamento e

realidade. Segundo tal complexo, é na relação com o próximo que o sujeito irá

reconhecer e se identificar com aquilo que lhe é familiar, e que sofrerá ação do juízo,

e também expulsará o que lhe é estranho e hostil – o que é enigmático no Outro.

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Este último é a Coisa, resto que, conforme Freud (Ibid.: 451), é excluído do

juízo. Esse elemento estranho isolado na experiência com o próximo constitui-se

como primeiro exterior e opera uma divisão psíquica e uma separação entre o infans

e a mãe, pela qual o sujeito pode destaca-se dela e, assim, advir.

Podemos identificar o momento da Bejahung com o tempo da constituição do

sujeito pela alienação, e o não da Austossung com o da separação. E, com Freud

(Ibid.: 300), dizer que “a afirmação – como um substituto da união – pertence a Eros;

a negativa – o sucessor da expulsão – pertence à pulsão de destruição”.

Seria a partir do momento de separação, de corte na circularidade entre o

Outro (encarnado na mãe ou primeiro cuidador que cumpre esta função) e o bebê,

desta subtração da Coisa, que surgiria o desejo humano. Com a queda de algo no

campo do Outro, sujeito e objeto podem surgir. Sobre isso, diz Freud, no artigo de

1925:

A antítese entre subjetivo e objetivo não existe desde o início. Surge apenas

do fato de que o pensar tem a capacidade de trazer diante da mente, mais

uma vez, algo outrora percebido, reproduzindo-o como representação sem

que o objeto externo ainda tenha de estar lá (Freud, 1925/1990: 298).

É a partir daí que se encaminhará o movimento do sujeito, na medida em que

tem das Ding como objeto o qual visa reencontrar, de acordo com as coordenadas

de prazer (Lacan, 1959-1960/1997: 69) deixadas no sujeito pela Coisa. No entanto,

isto é da ordem do impossível e do real, já que das Ding é perdido desde sempre.

Ao procurar o reencontro com este objeto, o que o sujeito almeja é reproduzir um

estado inicial de sua existência no qual teria havido um encontro com a Coisa -

estado mítico, anterior à entrada do significante, à emergência do sujeito enquanto

tal.

Essa busca de reencontrar este “objeto perdido” que “nunca foi perdido” (Ibid.:

76) é governada pelo princípio de prazer. Este “lhe impõe (…) rodeios que

conservam sua distância em relação ao seu fim (Idem), regulando seu trajeto”.

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A busca encontra assim, pelo caminho, uma série de satisfações vinculadas à relação com o objeto, polarizadas por ela, e que, a cada instante, modelam, temperam, embasam seus procedimentos segundo a lei própria do prazer (Ibid.: 77).

Porém, é impossível encontrar aquilo que se visa, das Ding, uma vez que esta

se encontra para além do princípio do prazer (Ibid.: 93). E é da própria estrutura do

humano que seja assim. Nesse ponto, Lacan (Ibid.: 87) relaciona a temática da

castração e da Lei de interdição do incesto com a questão da Coisa.

É na própria medida em que a função do princípio do prazer é fazer com que o homem busque sempre aquilo que ele deve reencontrar, mas que não poderá atingir, que nesse ponto o essencial, esse móvel, essa relação que se chama a lei da interdição do incesto (Ibid.: 87-88).

Lei esta que aponta para a interdição de um terceiro na relação entre a mãe e

o bebê com a função de cortá-la e permitir que um sujeito possa surgir a partir daí.

Tal função foi delimitada por Lacan (1963/2005: 58) como sendo a função de Nome-

do-Pai42 e põe em jogo a dimensão de uma perda fundamental, colocando o sujeito

sob a “regra do Wunsch [desejo] indestrutível” (Lacan, 1959-1960: 93).

A Coisa tem efeitos para o sujeito na medida em que falta, é aquilo para o

qual não há nenhuma palavra ou significante e que, ao mesmo tempo, organiza o

simbólico. Das Ding é, então, definido por Lacan como excluído no interior, como

“extimidade” (Ibid.: 173), à qual se deve manter uma distância necessária pela

linguagem, sendo, ainda, um “fora-do-significado” (Ibid.: 71). É, desse modo, um

vazio no sujeito em torno do qual o simbólico se engendra.

Tal temática será por nós mais detalhadamente trabalhada ao estudarmos o

destino pulsional da sublimação. Antes, porém, se faz necessário destacar as

concepções freudianas e lacanianas sobre o conceito de pulsão e dos possíveis

destinos que esta pode tomar, o que faremos a seguir.

42 Lacan postula esta função baseando-se no mito freudiano do assassinato do pai da horda primitiva por seus filhos homens, seguido do banquete totêmico, descrito por Freud (1913[1912-13]/1990: 169-172) em Totem e tabu (Totem und Tabu). Este mito especula sobre a origem da lei de interdição do incesto e sobre a incorporação da mesma, que teria levado à criação da organização social. Trata-se, assim, do surgimento da Lei e da linguagem a partir da inscrição de um significante que possibilitará o corte entre a mãe e o bebê, denominado singnificante Nome-do-Pai.

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II.4 – Pulsão, seu circuito e vicissitudes

No mundo da arte, como em tudo que diz respeito à criação, o objetivo é a

liberdade e a força de ir sempre mais além (Beethoven apud Massin, 1997: 64).

Propomos, neste momento, delimitar o conceito de pulsão na psicanálise a

partir do texto freudiano Pulsões e destinos da pulsão (Trieb und Triebschicksale),

de 1915, assim como em outros trabalhos na obra freudiana que tangem esta

temática, e nas aulas destinadas à pulsão no Seminário Os quatro conceitos

fundamentais da psicanálise, de 1964, de Lacan.

Escolhemos, contudo, para dar início a esta tarefa, uma frase concisa e bela

de um grande gênio da área musical. Na fala de Beethoven, podemos ler indícios de

algo que, no humano, impulsiona sem parar, exigindo ir além – o que nos evocou o

conceito psicanalítico de pulsão (Trieb). Não apenas pela associação rápida que

pode ser feita ao texto Além do princípio de prazer. Neste, o funcionamento psíquico

é abordado pela dimensão de um “mais além” – expresso pela repetição pura,

mesmo de situações desprazerosas, e pela tendência ao retorno a um “estado

anterior de coisas43” –, pondo em xeque a dinâmica do princípio de prazer e a teoria

pulsional elaborada por Freud até então.

Nas palavras do compositor alemão, lemos, sim, a pulsão de morte, uma vez

que a entendemos como a dimensão do “mais além do princípio do prazer” apontada

por Freud no texto de 1900, que traz também a característica criacionista destacada

por Lacan (1959-1960: 260). É possível apreender nesta citação a propriedade de

ruptura e, com isso, de movimento de criação próprio da pulsão44. Lemos, ainda, as

43 Tal expressão é própria de Freud, que, a respeito disso, diz: “Se realmente o esforço por restabelecer um estado anterior for um caráter universal das pulsões, não devemos nos surpreender de que haja na vida psíquica tantos processos ocorrendo à revelia do princípio de prazer” (Freud, 1920/2006: 180). E complementa, acerca da relação entre este princípio e a pulsão de morte: “O princípio de prazer parece, de fato, estar a serviço das pulsões de morte. Embora lhe caiba vigiar os estímulos [Reize] de origem externa – que são tomados como perigos pelos dois tipos de pulsões –, ele se volta particularmente para o perigo representado pelo aumento da quantidade de estímulos [Reize] procedentes de dentro, os quais visam a dificultar a tarefa da vida”. (Ibid.: 181). 44 Ao que nos remetemos à aula sobre A pulsão de morte do Seminário A ética da Psicanálise, de 1959-60, de Lacan, na qual a pulsão, entendida por este autor fundamentalmente como pulsão de morte, comporta um além da tendência de retorno ao inanimado, trazendo, ainda, uma: “Vontade de

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características dadas à pulsão por Freud no artigo metapsicológico de 1915, no qual

esta aparece como força constante (constant Kraft45) e como exigência de trabalho;

algo que, porém, não pode ser plenamente satisfeito e que, apesar disso, buscará

vicissitudes diferenciadas para lidar com tal requisição.

Não por acaso, o próprio psicanalista vienense já havia se reportado a outro

grande artista, o poeta Goethe, para se referir à força exercida pela pulsão ao

psiquismo. Diz Freud, mais especificamente sobre a pulsão em seu destino de

recalque:

A pulsão recalcada jamais renuncia à sua completa satisfação, a qual consiste na repetição de uma experiência primária de satisfação. Todas as formações substitutivas ou reativas, bem como as sublimações, são insuficientes para remover sua tensão contínua. É da diferença entre o prazer efetivo obtido pela satisfação e o prazer esperado que surge o fator impelente [treibende] que não vai permitir ao organismo estacionar em nenhuma das situações estabelecidas, mas ao contrário, nas palavras do poeta, “indomado, sempre impele para adiante46

” (Freud, 1920/2006).

Contudo, este caráter impulsionador pode ser entendido como característica

marcante em toda pulsão. Podemos dizer que a pulsão coloca em cena algo de

caráter irrefreável, que impulsiona apesar de eventuais barreiras. Aliás, estas

mesmas só podem ser pensadas pela existência da pulsão e como forças contrárias

a ela.

Mais que isso, com Lacan veremos que nossa referência inicial a ambos os

textos-chave na obra de Freud para a delimitação do conceito de pulsão não é sem

razão. Se toda pulsão é pulsão de morte, conforme afirma Lacan (1964/1998: 195),

ela sempre aponta e exige o além. E é na busca de obtê-lo que a pulsão pode

desenvolver uma trajetória circular que lhe caracteriza, como veremos adiante.

destruição. Vontade de recomeçar com novos custos. Vontade de Outra-coisa, na medida em que tudo pode ser posto em causa a partir da função do significante” (Lacan, 1997: 259). É nesse sentido, em sua ligação com o significante e a linguagem, que a pulsão de morte pode ser concebida como sendo histórica. A pulsão, segundo Lacan, pode ser rememorada a partir da instauração da marca de um primeiro significante no sujeito, que será mais profundamente trabalhado por nós no próximo capítulo – o traço unário (einziger Zug) – a partir do qual o sujeito pode se contar. Esta dimensão da linguagem à pulsão faz com que se possa pensar na criação pelo deslizamento dos significantes e da possibilidade de criar um significante que ainda não existe. 45 Diferentemente dos impulsos oriundos do exterior, que atuam como força momentânea de impacto (momentane Stroskraft). 46 “Ungebändigt immer vorwärts dring”, Mefistófeles, em Fausto, Parte I, Cena IV.

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No campo psicanalítico, a pulsão sustenta-se como um dos conceitos

centrais. Todavia Freud nos adverte de sua obscuridade e também complexidade. A

pulsão é, em suas palavras, “o mais importante e também o mais obscuro objeto da

investigação psicológica” (Freud, 1920/2006: 158). Este termo, pulsão, ganhou na

psicanálise uma nova e radical concepção. Freud situa-o como conceito-limite entre

o psíquico e o somático, ou seja, como representante psíquico de estímulos

endossomáticos contínuos.

Freud define a pulsão como um conceito limite entre o psíquico e o somático

na medida em que são representantes psíquicos de estímulos internos do corpo. A

pulsão seria, assim, “uma medida de exigência de trabalho imposto ao psiquismo em

conseqüência de sua relação com o corpo” (Freud, 1915/2004: 148).

Em linhas gerais, podemos dizer que a pulsão apresenta-se como força

constante originada no próprio sujeito que exige do psiquismo sua satisfação ligada

a um objeto de antemão não determinado. Por ter sua definição atrelada à

constância, a pulsão se afasta, teoricamente, do instinto, que apresenta ciclos. A

respeito disso, diz Lacan (1964/1998: 157):

Na pulsão, não se trata de modo algum de energia cinética, não se trata de algo que vai se regrar pelo movimento. A descarga em causa é de natureza completamente diferente, e se coloca num plano completamente diferente. A constância do impulso proíbe qualquer assimilação da pulsão a uma função biológica, a qual tem sempre um ritmo. A primeira coisa que diz Freud da pulsão é, se posso me exprimir assim, que ela não tem dia nem noite, não tem primavera nem outono, que ela não tem subida nem descida.

Mesmo antes de conceituar formalmente a pulsão, já encontramos na obra

freudiana correlatos a ela. É o caso dos “estímulos endógenos” sobre os quais o

autor discorre na primeira Seção da Parte I do Projeto para uma psicologia científica.

Neste trecho, vemos Freud descrever a situação em que o organismo de maior

complexidade passa a receber “estímulos do próprio elemento somático”, ou seja,

estímulos endógenos, que seriam responsáveis pela criação de “necessidades” tais

como fome, respiração e sexualidade (Freud, 1950[1895]/1990: 405).

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Sobre tais estímulos, Freud formula que: “deles, ao contrário do que faz com

os estímulos externos, o organismo não pode esquivar-se” (Idem), sendo necessário

recorrer ao exterior e efetuar uma ação específica para cessá-los. Esta formulação,

aliás, é bastante próxima à feita por Freud no artigo de 1915, pondo em jogo a

questão da satisfação da pulsão e, simultaneamente, da fonte dos estímulos, por um

lado, e da vivência de satisfação e da busca pela repetição desta experiência, de

outro.

Perguntamo-nos, porém, de que ordem é a satisfação obtida pela pulsão,

uma vez que, enquanto pressão constante, ela continua, por definição, acossando o

psiquismo. Parece-nos ser mais adequado falar em um movimento de tensão e

distensão, ou, em outras palavras, de brotar e escoar. As pulsões permanecem em

contínuo processo de surgir e se extinguir, incluindo aí toda a trajetória e

transformações por elas percorridas.

Este aspecto econômico encontra-se presente na obra freudiana também em

textos anteriores ao artigo metapsicológico sobre a pulsão. Nos Três ensaios sobre a

teoria da sexualidade (Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie), Freud defenderá que

pulsão, portanto, é um dos conceitos da delimitação47 entre o psíquico e o físico. A hipótese mais simples e mais indicada sobre a natureza da pulsão seria que, em si mesma, ela não possui qualidade alguma, devendo apenas ser considerada como uma medida da exigência de trabalho feita à vida psíquica. O que distingue as pulsões entre si e as dota de propriedades específicas é sua relação com suas fontes somáticas e seus alvos. A fonte da pulsão é um processo excitatório num órgão, e seu alvo imediato consiste na supressão desse estímulo orgânico (Freud, 1905/1990: 157-158).

A esta dimensão48, somar-se-á a característica dinâmica proveniente de um

conflito psíquico, primeiramente localizado por Freud entre dois grupos diferenciados

de pulsões, as pulsões sexuais e as pulsões do Eu ou de autoconservação,

subjacente à origem das neuroses.

47 Ressaltamos que esta tradução é incorreta, sendo o adequado, neste caso, “de fronteira”. 48 A dimensão econômica, nesta citação, traz em evidência a relevância das zonas erógenas para se pensar na constituição do psiquismo, o que será apresentado por Lacan (1964/1998: 183) pela via da relação entre os orifícios corporais e a constituição da estrutura de borda no sujeito, que envolve ainda o objeto a, ponto ao qual nos ateremos posteriormente neste espaço.

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Posteriormente, com o advento da segunda Tópica, pulsão de vida e pulsão

de morte aparecem atuando conjuntamente, o que possibilita pensar a pulsão como

este vetor em movimento de brotar e escoar e em sua trajetória e vicissitudes como

forças atuando contrariamente a elas. O conflito, neste último caso, aparece mais

claramente em oposições uma vez que, conforme afirma Lacan, por ser o

Inconsciente estruturado como uma linguagem, as pulsões também podem ser

expressas por esta via.

O conceito de pulsão em Freud tem quatro termos a ele relacionados: a

pressão (Drang), a meta (Ziel), o objeto (Objekt) e a fonte (Quelle). Porém, tais

termos, nos dirá Lacan (1964/1998: 160-161), aparecem disjuntos: a pulsão é uma

montagem e o que Freud nos oferece neste artigo é a sua desmontagem49.

Na pressão, encontramos a característica de tendência à descarga. Podemos

afirmar que se trata do fator dinâmico da pulsão, que impele à ação, à atividade, e

ao movimento de trabalho em busca de satisfação. É a medida de exigência de

trabalho a característica geral a toda pulsão. A pressão coloca em cena a questão

da experiência de satisfação, e implica na coexistência de um pólo impelente, a

tensão no organismo, e de um pólo atrator, a imagem mnêmica do objeto que

poderia reduzi-la e que faz com que o sujeito busque, no exterior ou nele próprio, um

objeto com tal intuito.

Delimita-se, desse modo, a meta da pulsão: a satisfação, ou, dito de outro

modo, a suspensão do estado de estimulação da fonte pulsional. Podemos dizer,

ainda, que o alvo imediato de uma pulsão é o escoamento da energia para a

obtenção de prazer.

Um problema, no entanto, é apresentado por Lacan em seu Seminário de

1964. Este diz respeito à sublimação, anteriormente por ele enfocada no Seminário

sobre a ética psicanalítica. Na perspectiva destes momentos do ensino lacaniano,

podemos dizer que a sublimação apresenta dois problemas no que concerne à

pulsão: um ao questionar o que é a satisfação e outro ao apontar que, na pulsão, o

que se trata é de buscar o objeto perdido, das Ding, a Coisa.

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Sobre a satisfação (Befriedigung), vale lembrar que Freud, neste artigo,

emprega este termo utilizando aspas. A satisfação traz a conotação de um

apaziguamento da tensão oriunda do brotamento pulsional. No que diz respeito à

pulsão, a satisfação é paradoxal50 por comportar a dimensão do impossível51,

podendo ser obtida apenas parcialmente52.

Deste modo, ao desenvolver o conceito de pulsão, entendemos que Freud

coloca o homem no estatuto de sujeito desejante, uma vez que o sujeito coloca-se

na direção de buscar um objeto que possa satisfazer a pulsão.

O impossível também comparece em relação ao objeto. Sobre este, Freud diz

que ele é aquilo pelo qual a pulsão pode alcançar sua meta, ou seja, se satisfazer.

Ele pode ser uma parte do corpo ou um outro53 objeto externo, pode ser substituído

por outros – através de deslocamentos e deslizamentos por representações em uma

rede associativa, e pode ocorrer de um mesmo objeto satisfazer diversas pulsões.

De acordo com Freud (1915/2004: 149), o objeto é “o elemento mais variável na

pulsão e não está originalmente vinculado a ela, sendo-lhe apenas acrescentado em

razão de sua aptidão para propiciar a satisfação”.

A partir desta fala, Lacan (1964/1998: 159) afirma que o objeto da pulsão é

indiferente e que a pulsão não se satisfaz por sua apreensão. É necessário, aqui,

relembrar a idéia de objeto perdido e enfatizar que, em Lacan, a pulsão tem como

49 O próprio Lacan efetua também, no Seminário XI, uma desmontagem da pulsão, seguindo o caminho freudiano. 50 Como ilustração, temos os diversos exemplos na clínica em que a satisfação ocorre pela via dos sintomas, ainda que admitindo certa dose, por vezes bastante elevada, de desprazer. 51 O impossível que nos remete ao conceito de real lacaniano, também evidenciado no princípio de prazer, já que também neste há a delimitação de um limite frente à aspiração de satisfação plena. O real sendo aqui entendido como este impossível de ser assimilado ou simbolizado pelo psiquismo. O impossível, diz Lacan (1972-1973/1985: 81) remete a algo que “não pára de não se escrever” e que, se pensarmos em termos da pulsão, direciona-a mais para o gozo do que para a satisfação. 52 Em seu artigo Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor (Contribuições à psicologia do amor II), de 1912, Freud afirma: “Por mais estranho que pareça, creio que devemos levar em consideração a possibilidade de que algo semelhante na natureza da própria pulsão é desfavorável à realização da satisfação completa” (Freud, 1912/1990: 171). Nesta citação, já encontramos subsídios para pensar a pulsão, conforme a perspectiva lacaniana, como pulsão parcial quanto à finalidade de reprodução. Isto permite, ainda, pensar a ligação da pulsão com a sexualidade e com a morte pela inscrição do sujeito a partir da entrada do significante e da perda pela qual o ser vivo passa à condição de sexuado. 53 Neste caso, este outro está relacionado no texto original ao termo fremd, estranho, e tem o sentido de um objeto que fora anteriormente interno e que foi expulso, não introjetado, formando o exterior.

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visada este objeto impossível, das Ding. E também precisamos acrescentar o

conceito de objeto a, que indica, justamente, a falta de um objeto para a pulsão e

que se apresenta como causa de desejo54. Será esse objeto que a pulsão deverá

contornar para atingir sua meta, sendo que nenhum objeto dará a satisfará senão

por seu contorno no psiquismo.

Temos, ainda, a fonte das pulsões, que diz respeito ao processo somático,

em um órgão ou parte do corpo, através do qual se origina um estímulo

representado pela pulsão. Podemos afirmar que ela é a origem, de onde partem as

pulsões e que a satisfação implica em uma alteração na fonte, o que implica em um

movimento de ida e volta efetuado pela pulsão.

Lacan (Ibid.: 161) situa a fonte colocando a pulsão semelhante a uma

montagem, a uma “colagem surrealista”. Nesta colagem, as zonas erógenas, com

sua estrutura de borda, participariam, evocando a dimensão da sexualidade que aí

comparece, sob aspecto econômico, pelas pulsões parciais.

É em razão da realidade do sistema homeostático que a sexualidade só entra em jogo em forma de pulsões parciais. A pulsão é precisamente essa montagem pela qual a sexualidade participa da vida psíquica, de uma maneira que se deve conformar com a estrutura de hiância que é a do inconsciente (Ibid.: 167).

Diferenciando-as das pulsões sexuais, Freud demarca as pulsões do eu ou de

autoconservação, atribuindo ao conflito entre estes dois grupos pulsionais a

dinâmica da raiz das neuroses. Às pulsões sexuais é atribuída a característica de

plasticidade, e Freud aponta que está se referindo a elas ao distinguir os quatro

destinos pulsionais.

Dois destinos específicos da pulsão podem ser entendidos, com Lacan, como

próprios de toda pulsão. São eles a transformação em seu contrário – que apresenta

duas possibilidades, o redirecionamento de uma pulsão da atividade para a

passividade e a inversão de conteúdo –, e o redirecionamento contra a própria

54 Na constituição do sujeito no campo do Outro, há um resto referente a um objeto que cai do sujeito. Este é o objeto a, um lugar vazio que remete à falta de um objeto para a satisfação da pulsão.

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pessoa – em que há a troca de objeto (outro pelo próprio eu) sem que ocorra

alteração da meta.

Para demonstrar a dinâmica deste primeiro destino, no que tange a

transformação da atividade para a passividade, Freud baseia-se em dois pares de

opostos: sadismo – masoquismo e vontade de olhar – exibição. No caso da inversão

de conteúdo, a oposição escolhida é entre amor e ódio. O destino do

redirecionamento contra a própria pessoa pode ser apreendido uma vez que se

percebe que “o masoquismo é um sadismo voltado contra o próprio Eu e que a

exibição inclui a contemplação do próprio corpo” (Freud, 2004: 152).

Nessas oposições, Freud destaca o movimento pulsional em três diferentes

tempos, que podem ser analisados pela vias lingüísticas ativa, passiva e reflexiva,

sendo que o terceiro só é possível pela inclusão do outro no circuito pulsional,

enquanto um terceiro (Ibid.: 69). Em outras palavras, é necessário que o circuito de

toda pulsão se feche a partir de seu endereçamento ao campo do Outro (Ibid.: 183).

Lacan (Ibid.: 168) afirma esse movimento como sendo próprio da dialética

pulsional, cujo percurso tem caráter circular. É o que ele denomina de dialética do

arco, definindo-a como o vaivém pelo qual a pulsão se estrutura.

O circuito da pulsão nos permite, assim, pensar em como os quatro termos

por Freud destacados deste conceito podem ser articulados. Há a pressuposição de

uma fonte endossomática, órgão ou parte do corpo, que são as zonas erógenas e

que, por definição, possuem estrutura de bordas orificiais. Da fonte brotará um

impulso específico, ou seja, pulsões específicas, que se expressarão como

exigência de trabalho. Esta só cessará, ou melhor, reduzirá, e com isso

proporcionará alcançar a meta pulsional de satisfação, quando do contorno de um

objeto e do retorno e alteração da fonte emissora.

Com Lacan (Ibid.: 184-185), concluímos que a atividade da pulsão dirige-se

ao que ele apresenta como o “se fazer55”, terceiro tempo da pulsão, na medida em

55 Como nos casos de se fazer devorar (relacionado à pulsão oral e ao objeto seio enquanto objeto a), se fazer defecar (pulsão anal e fezes), se fazer olhar (pulsão escópica e olhar), e se fazer ouvir (pulsão invocante e voz). Tais relações entre pulsões específicas e os objetos a elas relacionados serão trabalhadas no final deste capítulo.

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que promove a inclusão do Outro, já que é nesse campo que o sujeito buscará algo

que responda à sua reivindicação de completude.

Deste modo, Lacan (Ibid.: 183) define a estrutura deste circuito pulsional

defendendo que

Tudo que Freud soletra das pulsões parciais nos mostra (...) esse movimento circular do impulso que sai através da borda erógena para a ela retornar como sendo seu alvo, depois de ter feito o contorno de algo que chamo de objeto a. Ponho que (...) é por aí que o sujeito tem que atingir aquilo que é, propriamente falando a dimensão do Outro.

No texto de 1915, Freud não discorre, contudo, sobre os destinos do

recalque, já abordado anteriormente por nós, e da sublimação. Porém, é

interessante notar que, desde este momento de sua obra, eles se apresentam como

caminhos diferenciados para a pulsão.

Por um lado, o recalque se mostra como um destino em que, em função de

um conflito no psiquismo, ocorre a ação de uma força contrária à pulsão, atuando

como força de defesa contra esta. Pode ser dito que o recalque cria uma formação

substitutiva, os sintomas, que comparecem como retorno do recalcado.

De outro lado, a sublimação não traz em si a idéia de um conflito. Nela,

vemos delimitar-se a questão do vetor pulsional em busca de das Ding. E, a partir

dela, temos a criação não de sintomas, posto que não há material recalcado para

retornar, mas de novos objetos e significantes: as obras de arte.

Com isso, é possível afirmar que

As duas vicissitudes mais importantes da pulsão são o recalque e a sublimação, constituidoras de dois pólos extremos de possibilidade, de vicissitudes para o processo pulsional: quando há recalque não há sublimação, quando há sublimação não há recalque. São dois pólos extremos e opostos, se excluindo mutuamente (Jorge, 2003: 28).

Tendo finda esta discussão sobre os três primeiros destinos pulsionais,

partiremos a seguir para uma análise sobre o estatuto do objeto da pulsão, que

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levou à criação do conceito lacaniano de objeto a na teoria lacaniana. Deixaremos o

destino pulsional da sublimação para capítulo posterior, no qual será pensado,

ainda o conceito de elaboração psíquica e sua relação com a criação artística.

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CAPÍTULO III

Sobre a musicalidade na constituição do sujeito

A humanização do infans passa pela conquista poética do mundo das

sonoridades56 (Didier-Weill, 2003: 101).

Vimos, com Freud, que a constituição do sujeito humano somente é possível

pelos cuidados maternos, que irão possibilitar que o pequeno vivente possa sair de

seu estado de prematuridade e, conforme defende Lacan, pela entrada na

linguagem, organizar-se psiquicamente, ainda que persista nele um mal-estar, uma

fragilidade estrutural. Tais cuidados não são feitos sem a dimensão da sonoridade e,

mais ainda, da musicalidade.

A mãe e demais adultos que cuidam e amparam o bebê lhe dirigem a fala de

maneira diferenciada, quase cantada, geralmente prolongando vogais e suavizando

as consoantes, desacelerando o andamento, tornando a fala mais melódica. É o que

se convencionou chamar de “manhês”57, e que costuma vir acompanhado de

movimentos igualmente mais delicados, olhar atento nos olhos do bebê, expressões

faciais mais acentuadas, e proximidade entre os dois corpos.

No entanto, a voz tem um papel importante nesses momentos iniciais entre

mãe e bebê, assim como também o tem o toque, o olhar e demais modos de

interação entre ambos. Entretanto, dentre as demais sonoridades que cercam o

bebê, é à voz que este primeiro atende, distingue e reconhece. Todos nós fomos,

primeiramente ouvintes58, somente podendo falar e entender a fala posteriormente.

Isso tem efeitos para o sujeito, e é sobre isto que pretendemos falar neste capítulo,

passando, antes, por um aprofundamento no estudo da constituição do sujeito e do

campo pulsional, enfocando, agora, o objeto a.

56 No texto original: “(…) l´humanisation de l´infans passe-t-elle par la conquête poétique du monde des sonorités”. 57 Ou, como conhecido na língua inglesa, também utilizado em nosso país, motherese. 58 Isto é, ouvintes do apelo do Outro, ao qual podemos ou não atender. Assim, estão também aí incluídos os sujeitos surdos ou com deficiência auditiva, já que é de uma Outra escuta que se trata.

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III.1 – Um resto na constituição do sujeito: o objeto a e suas formas

Neste momento, temos como intenção delimitar o conceito lacaniano de

objeto a conforme definido pelo autor em seus seminários até a data de 1964, ou

seja, como objeto causa de desejo (Lacan, 1962-1963/2005: 115), passando pelos

momentos em que tal idéia começa a ser elaborada. O foco maior do estudo será

dado aos Seminários A angústia e Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.

Ao abordar o conceito de pulsão no capítulo precedente, destacamos que

Freud evidencia que há uma indeterminação quanto ao seu objeto. Ele pode ser

qualquer objeto que venha a satisfazer uma pulsão, podendo variar, ser trocado ou

até ser compartilhado por mais de uma pulsão. Há, portanto, uma determinação do

objeto no sentido de que será ele que poderá proporcionar a satisfação da pulsão,

porém, há também uma indeterminação de qual objeto será esse. Além disso, ao

destacar em Pulsões e destinos da pulsão, as polaridades presentes no psiquismo,

encontramos uma delimitação e dois campos distintos: o do sujeito e do objeto.

Encontramos em Freud, além deste objeto variável que poderia trazer a

satisfação de uma pulsão, o objeto de amor com o qual o eu irá se identificar. Tal

temática ganha especial atenção por Freud no capítulo VII, A identificação, do texto

Psicologia de grupo e análise do eu59. Nele, Freud (1921/1990: 133) sustenta que a

identificação é o vínculo mais primordial e precoce com outra pessoa. Em seguida,

passa a analisar o processo de identificação no caso do complexo de Édipo60.

59 Massenpsychologie und Ich-Analyse. 60 Segundo o Vocabulário de Psicanálise, de Laplanche e Pontalis (1988: 116): o complexo de Édipo é o “conjunto organizado de desejos amorosos e hostis que a criança experimenta relativamente aos pais. Sob a chamada forma positiva, o complexo apresenta-se como na história de Édipo-Rei: desejo da morte do rival que é a personagem do mesmo sexo e desejo sexual da personagem do sexo oposto. Sob a sua forma negativa, apresenta-se inversamente: amor pelo progenitor do mesmo sexo e ódio ciumento ao progenitor do sexo oposto. Na realidade, estas duas formas encontram-se em graus diversos na chamada forma completa do complexo de Édipo” (Grifos dos autores). Freud (1923/1990: 48-49) aborda esta forma completa do complexo em O eu e o isso, afirmando que, “na dissolução do complexo de Édipo, as quatro tendências em que ele consiste agrupar-se-ão de maneira a produzir uma identificação paterna e uma identificação materna. A identificação paterna preservará a relação de objeto com a mãe que pertencia ao complexo positivo e, ao mesmo tempo, substituirá a relação de objeto com o pai, que pertencia ao complexo invertido; o mesmo será mutatis

mutantis, quanto à identificação materna”. Prossegue dizendo que, como resultado do complexo de Édipo, surge no eu um precipitado que contém tais identificações unidas, ou seja, que traz em si os resíduos das escolhas objetais do isso. Tal precipitado é o supereu. Deste modo, o supereu traz as

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Neste, a identificação desempenha papel fundamental, na medida em que a

criança irá se identificar com o genitor do mesmo sexo como aquilo que ela gostaria

de ser. Por outro lado, há também a escolha do genitor do sexo oposto como aquilo

que se gostaria de ter. Freud afirma que “a distinção depende de o laço se ligar ao

sujeito ou ao objeto do eu. O primeiro tipo de laço, portanto, já é possível antes que

qualquer escolha sexual do objeto tenha sido feita” (Ibid.: 134). Ou seja, a

identificação é anterior à escolha do objeto de amor.

Contudo, a ligação entre identificação e escolha amorosa do objeto não pára

neste ponto. Freud afirma que:

(...) primeiro, a identificação constitui a forma original de laço emocional com um objeto; segundo, de maneira regressiva, ela se torna sucedâneo para uma vinculação de objeto libidinal, por assim dizer, por meio da introjeção do objeto no eu; e, terceiro, pode surgir qualquer nova percepção de uma qualidade comum partilhada com outra pessoa que não é objeto da pulsão sexual. Quanto mais importante essa qualidade comum é, mais bem sucedida pode tornar-se essa identificação parcial, podendo representar assim o início de um novo laço (Ibid.: 136).

Da identificação com um objeto pode-se passar à introjeção deste no eu,

como objeto de escolha amorosa, o que leva Freud a afirmar que “o caráter do eu é

um precipitado de catexias objetais abandonadas e que ele contém a história dessas

escolhas de objeto” (Freud, 1923/1990: 43-44).

Passamos à leitura lacaniana sobre o objeto, tendo em vista que se trata de

um objeto ligado ao desejo do Outro.

O que faz com que o mundo humano seja um mundo coberto de objetos se acha fundado nisso: o objeto de interesse humano é o objeto do desejo do Outro. Como isso será possível? É que o eu humano é o outro, e que no começo o sujeito está mais próximo da forma do outro do que do surgimento de sua própria tendência. Ele é originalmente coleção incoerente de desejos – aí está o verdadeiro sentido da expressão corpo despedaçado – e a primeira síntese do ego é essencialmente alter ego. O sujeito humano desejante se constitui em torno de um centro que é o outro na medida em que ele lhe dá a sua unidade, e o primeiro acesso que ele tem do objeto, é o objeto enquanto objeto do desejo do outro (Lacan, 1955-1956/2003: 50; grifos, em itálico, do autor, e nossos em negrito).

“vozes” parentais que se impõem ao sujeito como um imperativo, indicando como o sujeito deve ser, ter ou fazer, e também o que ele não deve.

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Podemos destacar no ensino de um objeto absoluto, objeto perdido de uma

experiência de satisfação mítica, a saber, das Ding. Para Lacan, este objeto é

perdido definitivamente devido ao acesso à estrutura da linguagem. Tal objeto

coloca o sujeito em uma dinâmica na qual ele irá buscar a satisfação a partir das

“coordenadas de prazer” deixadas por das Ding (Lacan, 1959-1960/1997: 69), por

este objeto absoluto e perdido desde sempre, encontrando alguma satisfação

possível em outro lugar. Diz Lacan no Seminário A relação de objeto:

A primazia desta dialética coloca, no centro da relação sujeito-objeto, uma tensão fundamental, que faz com que o que é procurado não seja procurado da mesma forma que o que será encontrado. É através da busca de uma satisfação passada e ultrapassada que o novo objeto é procurado, e que é encontrado e apreendido noutra parte que não no ponto onde se o procura. Existe aí uma distância fundamental, introduzida pelo elemento essencialmente conflitual incluído em toda busca do objeto (Lacan, 1956-1957/1995: 13).

Haveria, assim, algo de uma determinação do objeto dentro da lógica da

constituição do sujeito. É o próprio Lacan quem nos dirá isso:

O objeto se apresenta, inicialmente, em uma busca do objeto perdido. O objeto é sempre o objeto redescoberto, o objeto tomado ele próprio numa busca, que se opõe da maneira categórica à noção do sujeito autônomo, onde desemboca a idéia do objeto acabado (Ibid.: 25).

Neste mesmo texto, o autor irá propor duas distinções importantes para se

pensar o objeto. A primeira é que há na relação entre sujeito e objeto uma

“reciprocidade imaginária” (Idem), fazendo com que o lugar ocupado pelo objeto na

relação seja o mesmo ocupado pelo sujeito. Tal concepção converge com a idéia de

uma não autonomia no sujeito, conforme visto na citação acima.

E a segunda é a de que existiria um tipo de objeto que surge sob um fundo de

angústia e um outro que se destacaria sobre “o fundo da realidade comum” (Idem), e

que pode ser encontrado na realidade. É sobre este que Lacan (1962-1963/2005:

103) se refere ao falar de um “objeto comum” no Seminário A angústia. Passamos a

palavra a Lacan (Idem):

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Quando comecei a enunciar a função do estágio do espelho na instituição geral do campo do objeto, passei por diversos tempos. De início, existe o plano da primeira identificação com a imagem especular, desconhecimento original do sujeito em sua totalidade. Depois, vem a referência transicional que se estabelece com a relação com o outro imaginário, seu semelhante. É isso que faz com que sua identidade seja sempre difícil de discernir da identidade do outro. Daí a introdução da mediação de um objeto comum, objeto de concorrência cujo status decorre da idéia de posse – ele é seu ou é meu.

Lacan destaca que existem dois tipos de objetos neste campo da posse. Os

que podem ser compartilhados e aqueles que não podem ser. Os primeiros, os

objetos comuns, de partilha, seriam objetos comunicáveis, socializados (Idem),

objetos constituídos “a partir da relação especular” (Ibid.: 109), ou seja, se trata dos

objetos que possuem imagem especular. Por outro lado, estariam os objetos que,

diferentemente, não possuem imagem especular, e que são “anteriores à

constituição do objeto comum” (Ibid.: 103). Com este tipo de objeto, não é possível

se relacionar, conforme se faz com os objetos comuns, uma vez que é constitutivo

do próprio sujeito.

Tais objetos não podem ser partilhados, entretanto, “quando entram

livremente no campo em que não têm nada a fazer, o da partilha, quando nele

aparecem e se tornam reconhecíveis, têm a particularidade de seu status assinalada

a nós pela angústia” (Idem).

Convém destacar que esta temática aparece nesta lição do seminário sobre a

angústia61 a partir de uma reflexão sobre o complexo de castração e sobre a fantasia

que está aí em jogo. Lacan enfatiza a dimensão do corte na fantasia da perda do

pênis, ou seja, da perda de uma parte do corpo que se transformaria, assim, em um

objeto removido. Deste modo, o objeto é isolado como faltante, o que é capaz de

gerar angústia.

É assim que o objeto a aparece neste Seminário, relacionado à angústia e à

falta. Vale dizer que se trata de um objeto que, mesmo fora do sujeito, intervém

sobre ele, e esta intervenção se manifesta pela angústia (Ibid.: 98). Com isso, ele

não pode ser reduzido aos objetos substitutivos com os quais o sujeito se relaciona

imaginariamente.

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Conforme conceituado por Lacan principalmente nos Seminários X e XI, O

objeto a aparece como resto da constituição do sujeito. Lacan (Ibid.: 309) diz que

este objeto a é definido “como o resto da constituição do sujeito no lugar do Outro,

na medida em que ele tem que se constituir como sujeito barrado”. Ou seja, a

constituição do sujeito no campo da linguagem tem como efeito sua divisão

inconsciente para que ele possa vir a tomar a fala.

A constituição deste tipo de objeto se dá a partir da função do corte. “Depois

do corte, resta algo comparável à fita de Moebius, que não tem imagem especular”

(Ibid.: 110). Esse corte é feito no corpo do sujeito a partir de sua entrada na

estrutura do significante. Desta operação, haverá a demarcação do lugar de onde o

objeto a cairá como resto, a borda corporal, e o objeto, sendo algo que pertenceu ao

corpo e se tornou externo a ele. A partir deste momento, o objeto a atuará como

causa do desejo.

Vejamos como Lacan explica esta função do objeto a. Retomando a ligação

entre o objeto e a pulsão, Lacan destaca que, em Freud, o alvo de uma pulsão não

se confunde com o seu objeto. O alvo é algo que concerne o sujeito e seu corpo,

sendo que a satisfação será obtida através de um objeto externo, que, contudo, “se

furta ao nível da captação” (Ibid.: 115), Trata-se, sim, de um contorno deste objeto

pela pulsão. Encontramos aí uma oposição entre exterior e interior. Porém, Lacan

propõe que

a idéia de um exterior antes de uma certa interiorização, que se situa em a, antes que o sujeito, no lugar do Outro, capte-se na forma especular (…), forma esta que introduz para ele a distinção entre o eu e o não-eu. É a esse exterior, lugar do objeto, anterior a qualquer interiorização, que pertence a idéia de causa (Ibid.: 115-116).

O objeto a como causa do desejo não é, portanto, um objeto que era exterior

e que foi introjetado pelo sujeito, a partir da identificação. Lacan é bem claro quanto

a esse ponto: trata-se de um objeto que foi perdido em um momento lógico anterior à

concepção de um eu, interno, e um não-eu, externo. E esse objeto perdido, que se

presentifica enquanto falta, atuará causando o desejo.

61 Lição de 9 de janeiro de 1963.

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Lacan fala da constituição destes campos do eu e do não-eu, assim como a

de um mundo interior (Innenwelt) e de um exterior (Unwelt), ao abordar o estádio do

espelho62. Na descrição deste, tem-se um estado anterior, inicial, no qual o infans,

em sua prematuridade inicial, se vê como fragmentado, não fazendo, ainda,

qualquer diferença entre o seu corpo e o corpo da mãe, assim como também não se

diferencia do mundo externo. Ou seja, ainda não há a delimitação do eu, que é

constituído progressivamente.

Através do contato com um espelho, o infans pode se identificar com a

imagem que vê. Isto se dá com o suporte de um adulto, pelo olhar deste que

confirma o que ela vê e pela sua voz, que, pela fala, indica para ele que a imagem

que vê é sua. O júbilo que a criança tem nesse momento está associado à visão da

imagem de si não mais como fragmentos63.

Entretanto, tal imagem, por mais que constitua uma unidade, não poderá ser

totalizante, completa. Na formação da imagem do eu pelo estágio do espelho, ocorre

a distinção do campo do eu e do não-eu, sobrando o objeto a. Este não é nem o eu

nem tampouco o objeto exterior. Tal objeto será aquilo que faltará para o sujeito,

algo que ele perdeu e que, por isso, não lhe será possível atingir uma completude.

O objeto a corresponderia a cinco formas de perda pelas quais o sujeito

passa para se constituir, dentre as quais o falo, que já aparece anteriormente na

obra lacaniana com maior ênfase. Somente em 1962-63 é que as serão

apresentadas todas as cinco formas do objeto a, como veremos em seguida. Estas

formas do objeto a são, assim, entendidas como perdas necessárias para o sujeito

se constituir separando-se do Outro: “(…) é de uma relação permanente com um

62 No texto O estádio do espelho como formador da função do eu tal qual nos é revelada na

experiência psicanalítica, de 1949 63 Nas palavras de Lacan: “A assunção jubilatória de sua imagem especular por esse ser ainda mergulhado na impotência motora e na dependência da amamentação que é o filhote do homem nesse estágio de infans parecer-nos-á pois manifestar, numa situação exemplar, a matriz simbólica em que o [eu] se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito” (Lacan, 1998: 97; grifos do autor). Vemos, assim, uma diferença entre o eu e o sujeito. Ainda, neste texto, Lacan irá propor que essa matriz simbólica do eu também servirá para as construções das identificações secundárias, a partir do eu ideal, e que tanto este como a própria instância do eu se darão em uma “linha de ficção” (Ibid.: 98), o que já aponta para a questão do imaginário e da fantasia.

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objeto perdido como tal que se trata. Esse objeto a, como cortado, presentifica uma

relação essencial com a separação como tal” (Ibid.: 235).

Mais que isso, o que foi perdido quando o sujeito emergiu na linguagem é

algo da ordem corporal, algo que ele paga com seu corpo.

Objeto perdido nos diferentes níveis da experiência corporal em que se produz seu corte, é ela que constitui o suporte, o substrato autêntico, de toda e qualquer função de causa. Essa parte corporal de nós é, essencialmente e por função, parcial. Convém lembrar que ela é corpo e que somos objetais, o que significa que não somos objetos do desejo senão como corpo. (…) O desejo continua, em última instância, a ser desejo do corpo, desejo do corpo do Outro (…) (Ibid.: 237).

Cabe ressaltar que o objeto a apresenta uma ligação com o órgão do corpo

correspondente à pulsão específica que ele visa atender. Isto se dá na medida em

que “o objeto a é algo de que o sujeito, para se constituir, se separou como órgão”

(Lacan, 1964/1998: 101). Nesse sentido, temos a delimitação de quatro pulsões

parciais identificadas a quatro objetos na obra lacaniana, sendo que as duas

primeiras formas já eram encontradas em Freud. São elas a pulsão oral (seio),

pulsão anal (fezes), pulsão escópica (olhar) e pulsão invocante (voz). Além destes

quatro objetos, há também o falo, objeto que também fora delimitado por Freud

como objeto parcial e que possui função mediadora.

O que tais pulsões procuram são os objetos enquanto ausência, objetos que

devem ser contornados e não apreendidos, visto que isto é da ordem do impossível.

Porém, defendemos que o contorno destes objetos pode nos dar pistas sobre como

o sujeito se posiciona frente a eles, deste modo, “a questão é encontrar os vestígios

dessa função excluída” (Lacan, 1962-1963/2005: 263).

Lacan (Ibid.: 317-318) relacionará as formas de objeto a a diferentes modos

de relação entre sujeito e Outro. Teremos, dessa forma, a ligação entre: seio, pulsão

oral e demanda ao Outro; fezes, pulsão anal e demanda do Outro; olhar, pulsão

escópica e desejo ao Outro; e voz, pulsão invocante e desejo do Outro. Há também

a quinta forma de objeto a referente ao falo, objeto este que, pela fantasia – ou seja,

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pelo arranjo entre Simbólico e Imaginário – possibilitará ao sujeito a obtenção de um

gozo possível64.

Em Freud, a noção de fantasia está ligada à encenação imaginária,

inconsciente ou não, que promoverá a realização de um desejo inconsciente. Já em

Lacan, a fantasia traz a dimensão da relação entre “um sujeito do inconsciente,

barrado e irredutivelmente dividido por sua entrada no universo dos significantes,

com o objeto pequeno a, que constitui a causa inconsciente de seu desejo”

(Chemama, 1995: 71). Na fantasia, o objeto a pode, apesar de, em relação à perda

real no copo ser limitado a poucas formas, se desdobrar infinitamente.

De fato, nunca teremos acesso ao nosso olhar, enquanto olhando o outro, nem tampouco a nossa voz, como é percebido pelo outro. As fezes são evidentemente partes destacáveis do corpo, perdidas e a serem perdidas. Quanto ao seio, ele não é apenas perdido porque a criança foi um dia ou outro privada do seio materno, mas mais essencialmente porque esse seio foi primeiro vivenciado pela criança como parte integrante de seu próprio corpo. O número de objetos a reais é limitado. O dos objetos a obturadores imaginários é infinito (Idem).

Deste modo, as formas de objeto a têm relações específicas com as posições

que o sujeito pode ocupar diante do Outro. Sobre os objetos seio, fezes e falo

enquanto a, afirma Lacan:

Há, no estágio oral, uma certa relação da demanda com o desejo velado da mãe. No estágio anal, há, para o desejo, a entrada em jogo da demanda da mãe. No estágio da castração fálica, há o menos-falo, a entrada da

64 Propomos uma breve delimitação dos conceitos de demanda, desejo e gozo na obra lacaniana, de acordo com Chemama (1995). O primeiro termo se apresenta como “forma comum de expressão de um desejo, quando se quer obter alguma coisa de alguém, a partir da qual o desejo se distingue da necessidade. (...) J. Lacan introduziu a noção de demanda, opondo-se à de necessidade. O que especifica o homem é que ele depende, para suas necessidades mais essenciais, de outros homens, aos quais o liga o uso em comum da palavra e da linguagem. (...) O mundo humano impõe ao sujeito demandar, encontrar as palavras que serão audíveis pelo outro. É no mesmo endereço que se constitui esse Outro (...), porque essa demanda que o sujeito lhe dirige constitui seu poder, sua influência sobre o sujeito” (Ibid.: 40). O desejo, por outro lado, “é o desejo do Outro. Se se constitui a partir dele, é uma falta articulada na palavra e é a linguagem que o sujeito não pode ignorar sem prejuízos. Como tal, é a margem que separa, devido à linguagem, o sujeito de um objeto supostamente perdido. Esse objeto a é a causa do desejo e suporte da fantasia do sujeito” (Ibid.: 42). E, por gozo, termo introduzido por Lacan, podemos entender as “diferentes relações com a satisfação que um sujeito desejante e falante pode esperar e experimentar, no uso de um objeto desejado. (...) Do ponto de vista da psicanálise, a ênfase é colocada na questão complexa da satisfação e, em especial, em seu vínculo com a sexualidade. O gozo se opõe, então, ao prazer, que abaixaria as tensões do aparelho psíquico ao mais baixo possível” (Ibid.: 90). Deste modo, o gozo se apresenta marcado pela falta que se dá na linguagem, sendo definido por sua relação com o significante da falta no Outro.

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negatividade quanto ao instrumento do desejo, no momento do surgimento do desejo sexual como tal no campo do Outro (1962-1963/2005: 251).

Apesar de estudar caso a caso cada uma das formas de objeto a, Lacan

aponta que há algo que os une:

Na verdade, a questão é determinar, em todos os níveis, qual a função do desejo, e nenhum deles pode separar-se das repercussões que tem sobre todos os demais. Une-os uma solidariedade íntima, que se expressa na fundação do sujeito no Outro por intermédio do significante, e no advento de um resto em torno do qual gira o drama do desejo (Ibid.: 266-267).

Com isto em mente, fica mais claro entender o que Lacan propõe como uma

“constituição circular do objeto”, ressaltando que “sob as diversas formas em que ele

se manifesta, trata-se sempre de uma mesma função, e de saber como ele se liga à

constituição do sujeito no lugar do Outro e o representa” (Ibid.: 320-321). Concebe,

deste modo, cinco níveis, ou estágios, do objeto a, localizados em uma seta que

sobe até chegar ao nível 3, fálico, para, em seguida, descer.

Neste estágio, o que se apresenta é o falo como ausência de um objeto, o

que provoca a chamada angústia de castração. Lacan defende que, entendido desta

maneira, o falo tem ligação com o gozo do Outro (Ibid.: 330), e que é pela castração

que o sujeito poderá ter algum acesso ao gozo.

Haveria, ainda, uma correlação entre os estágios ascendentes e

descendentes da seguinte forma: estágios 1 e 5 (em que se encontram,

respectivamente, os objetos oral e voz) e estágios 2 e 4 (anal e escópico)65.

Para avançarmos na questão da música, faz-se necessário aprofundarmos a

diante o estudo da voz enquanto objeto a e de sua ligação com a pulsão invocante.

Pretendemos, com isso, destacar a importância da musicalidade presente na

constituição de todo sujeito e investigar como ela pode ter efeitos na criação e

escuta musical.

65 Faz-se necessário demarcar que não, uma vez que se trata de uma questão de circularidade, não há nessa concepção a idéia de fases cronologicamente sucessivas ou de fases que superariam e

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III.2 – A musicalidade na constituição do sujeito: a mãe, a voz e a invocação

A música nos propõe, de início, uma pergunta sobre a musicalidade e a

sonoridade presentes no humano desde o seu nascimento, transmitidas pela fala e

pela voz, assim como todo o campo sonoro que está em torno do bebê. Ainda não

falamos, nesse ponto, de um sujeito, e sim da passagem do bebê como corpo

vivente – organismo – para sujeito da linguagem – corpo pulsional, erotizado.

A criança ouve a voz da mãe que lhe diz algo. Intensamente, querendo respondê-la, ela é esta voz cujo som serve para demandar. Assim, este corpo, ao se identificar a esta voz, corre o risco de desaparecer, posto que a voz desaparece, por trás das palavras que ela forja. É preciso então cantar, criar este som, para não correr o risco de morrer. É preciso se salvar dessas vozes ao forjar a melodia, uma vez pelo som perdido atrás do sentido, e uma outra pela identificação a este som. O duplo ritmo do canto afasta assim o perigo (Pommier, 1987:195).

Sobre este corpo, Garcia (2006: 1) nos chama a atenção, evidenciando qual é

aquele do qual trata o campo psicanalítico: “O corpo que interessa a psicanálise não

é do organismo vivente, um agregado de carne e órgãos, dos quais se ocupam

medicina e biologia, mas um corpo enquanto invadido, usurpado pelo significante,

que fala e goza, silencia e ensurdece desde os confins de sua pele e de suas

entranhas, sempre a espera de deciframento”.

É necessário que haja um momento inicial de fusão com o outro, seu

semelhante, no caso, a mãe ou aquele que assumirá tal função de cuidador e

assegurador, que encarnará o Outro. Esta fusão deverá chegar ao fim para que um

sujeito separado do Outro surja. É preciso, pois, fazer um corte, operado pelo

recalque originário, que faz emergir o campo do sujeito e do objeto, na dimensão da

falta. Temos aí um corte no contínuo da voz material do bebê, em seu grito,

possibilitando pela perda desta o advento da dimensão da materialidade incorpórea

do significante. Ou, em outras palavras, a inscrição da linguagem, assim como a

instauração da dimensão de ritmo, alternando presença e ausência, sincronia e

diacronia (Catão, 2005: 282).

suplantariam as anteriores. O importante, aqui, é a delimitação das diversas modalidades

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A emissão da voz do bebê, voz material, vibração das cordas vocais, precisa

ganhar uma outra dimensão, de imaterialidade, de perda, para que os significantes

que ela traz em si – palavras e músicas – possam ser ditos pela fala ou criados pela

via da estética musical. Em ambos os casos, sobra um resto afônico, que não

converge para a significação ou sentido, a voz enquanto objeto a.

Na Conferência de Genebra, Lacan faz um apontamento importante acerca

do grito, que nos interessa na medida em que afirma o som como significante, o que

tem conseqüências para o estudo da música pela psicanálise. Diz ele (1975/1998:

11):

O significante é algo que está encarnado na linguagem. Acontece que há uma espécie que soube gritar de tal maneira, que um som, enquanto significante, é diferente do outro. (…) Há um abismo entre essa relação entre o grito e o fato de que, no final, (…) o ser humano chega a dizer alguma coisa. Não só a poder dizê-lo, mas, ainda, (…) esse cancro que é a linguagem implica, desde o início, uma espécie de sensibilidade.

Deste modo, percebemos que nessa passagem do infans ao sujeito falante,

ocorre a perda de um real do corpo que exige um ato do sujeito em dizer sim ao

campo do simbólico, o que nos faz pensar, juntamente com Faladé (1974: 1), que

antes da linguagem há o real. Contudo, um real não simbolizado, que surgirá como

tal para o sujeito quando o significante for nele inscrito, fazendo com que seja

possível, a partir desta marca primeira, a identificação com o que é familiar e a

expulsão do que é estranho.

No Seminário A identificação66, de 1961-1962, Lacan afirma que o sujeito

emerge pelo ato de inscrição efetuado pelo Outro de um primeiro significante, com o

qual ele se identificará e poderá se diferenciar dos outros a partir de então67.

coexistentes do objeto a e das relações que elas podem ter entre si. 66 Inédito no Brasil. 67 A isto, acrescentamos que, de acordo com Lacan, nas aulas de 29 de novembro e 6 de dezembro de 1961 deste Seminário, um significante é aquilo que os outros significantes não são. E que a identificação não tem, então, ligação com uma unificação ou com o fazer um, mas sim com a diferença pura. Salienta, ainda, que a fecundidade do significante está em que ele não é idêntico a si mesmo, ressaltando as características de metonímia e de metáfora da linguagem e da instauração, pelo traço unário, de uma série. A identificação giraria não na concepção tradicional filosófica de que “a é a” e sim na idéia de que “a ainda é a”.

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O significante Um, primeira marca do Outro no sujeito, foi denominado por

Lacan, a partir da expressão Einziger Zug apresentada por Freud no capítulo A

identificação no texto Psicologia das massas e análise do eu, de traço unário. Este

diz respeito à identificação entre o sujeito e a marca feita pelo Outro ao se efetuar

um corte com o signo, possibilitando seu surgimento como sujeito e como

significante, além de sua entrada na linguagem.

Neste momento da obra lacaniana, o significante é concebido como tendo um

suporte: a letra, definida como “suporte material que o discurso concreto toma

emprestado da linguagem” (Lacan, 1998b: 498). A letra estaria, aqui, na base do

traço unário. Entretanto, tal concepção de Lacan sobre a letra será alterada no final

de seu ensino, com a delimitação do conceito de alíngua (lalangue), no seminário

Mais, ainda e com as idéias apresentadas acerca do litoral e da relação entre letra e

real no escrito Lituraterra.

Nos Seminários de 1961-62 e de 196468, porém, Lacan estabelece uma

ligação entre a identificação e o traço unário com o corpo, uma vez que este

inscreveria uma marca no corpo do infans, possibilitando a construção de um limite,

de uma borda pelos orifícios corporais. A pulsão terá nessa operação um papel de

suma importância e é preciso frisar que é esta escrita pulsional no corpo que faz

com que ocorra o recorte destes orifícios corporais.

Neste sentido, podemos articular a relação entre traço unário e pulsão na

medida em que

o traço unário resulta de um intervalo, cicatriz e rastro do objeto perdido, suporte da diferenciação (dessa referência que nos “contamos” entre outros); o movimento pulsional institui a demanda do Outro no lugar de objeto perdido, constituindo o destino de nossa errância entre objetos, sem satisfação plena (Costa, 2003: 33).

Em relação à temática da voz, chamamos atenção para o fato de que em sua

inscrição pulsional, há um corte no infinito contínuo do som, fazendo com que o

objeto voz possa cair. São os intervalos na voz que separam os corpos da mãe e do

68 Os quarto conceitos fundamentais da psicanálise.

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bebê, produzindo a função da borda. Esta abordagem vai ao encontro do que Lacan

(2003: 18) propõe sobre a letra em Lituraterra. Neste texto, ele apontará que a letra,

a partir da metáfora do litoral, demarca dois campos assimétricos – do real, contínuo,

e do simbólico, que instaura o descontínuo.

A voz, portanto, permitirá um primeiro laço com o Outro (Catão, 2005: 179),

operando como primeiro organizador no psiquismo. Nesta medida, “a voz faz litoral”

(Ibid.: 280), ou seja, ela promove a separação e simultânea constituição dos campos

heterogêneos do real e do simbólico, articulando-os. A voz pode promover uma

organização inicial do sujeito no simbólico a partir do real do corpo (Ibid.: 15).

Para melhor articular essa questão, inclinamo-nos sobre o Seminário Mais,

ainda, no qual Lacan (1972-1973/1985: 188) evidencia a existência da alíngua

materna (lalangue). Neste ponto de seu ensino, Lacan dá ênfase à dimensão do

gozo, articulando-o com a dimensão do impossível e do “não pára de não se

escrever” (Ibid.: 81), característico do registro do real.

É interessante notar que Lacan afasta a noção de alíngua com a função de

comunicação. Diz ele: “Alíngua serve para coisas inteiramente diferentes da

comunicação” (Ibid.: 188), o que nos faz perguntar se, por sua transmissão estar

relacionada à voz materna, uma dessas “coisas” não é possibilitar a criação musical,

já que podemos pensar em como esta alíngua produz ressonâncias no corpo do

sujeito e em como estas podem ser articuladas para efeito estético na arte.

A música nos faz lembrar nossa própria constituição no campo do Outro, na

medida em que o laço primeiro com o Outro, através do semelhante, se dá pela voz

(Catão, 2005: 140). Ao ouvir a música, podemos ter notícias remotas desta

passagem da escuta da voz do Outro e do esquecimento necessário que precisa

ocorrer para que o sujeito chegue a constituir a própria voz, vir a falar e,

eventualmente, criar artisticamente, tendo-a como causa. Nesse movimento de

alienação e separação entre o sujeito e o Outro (Lacan, 1964/1998: 199, 207), é

necessário um ponto de surdez a partir do qual o sujeito poderá dizer, mesmo sem

saber, de sua posição.

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Ao abordar a esquize do olho e do olhar, Lacan (Ibid.: 75) propõe que é

preciso haver a função de mancha para que o sujeito possa ver a partir da perda do

olhar como objeto. Isto ocorre devido à “preexistência, ao visto, de um dado-a-ver”,

uma vez que “não só isso olha, mas (…) isso mostra” (Ibid.: 76). Faz-se necessário

existir um ponto cego, tal como o ponto de fuga na pintura, para que o sujeito possa,

separado do Outro, olhar de uma perspectiva própria.

É neste sentido que podemos falar de um ponto de surdez quando se trata da

voz, na medida em que, como afirma Lacan (1963/2005: 71), “o Outro é o lugar onde

isso fala”. Este ponto de perda no campo do Outro, do qual a voz cai do órgão da

fala (Idem) enquanto objeto, é descrito pelo psicanalista Jean-Michel Vivès (Inédito:

7, 9) como ponto surdo,69 através do qual a pulsão invocante produzirá a

subjetivação do infans. O sujeito que advirá daí deverá permanecer surdo ao apelo

da voz do Outro, tendo agora, contudo, o imperativo de incorporação da voz. Esta,

no entanto, é impossível, e, com o fracasso na obtenção do objeto voz, há a

reabertura do circuito pulsional.

No Seminário A angústia, Lacan (1962-1963/2005: 301) falará que existirá

para o sujeito o imperativo de incorporação do objeto voz, o que lhe fará conferir

“uma função que serve de modelo para nosso vazio”, este cavado pela linguagem. A

isto, acrescentamos o que ele afirma sobre a voz em sua relação com a fala:

Se a voz, no sentido em que a entendemos, tem uma importância, não é por ressoar num vazio espacial qualquer (...), [mas é por ressoar] num vazio que é o vazio do Outro como tal, o ex nihilo propriamente dito. A voz responde ao que é dito, mas não pode responder por isso. Em outras palavras, para que ela responda, devemos incorporar a voz como a alteridade do que é dito. (…) Ora, é nesse vazio que a voz ressoa como distinta das sonoridades, não modulada, mas articulada. A voz de que se trata é a voz como imperativo, como aquela que reclama obediência ou convicção (Ibid.: 300).

O imperativo de incorporação da voz coloca o sujeito no movimento de buscar

apreender este objeto faltoso, agindo, assim, como uma invocação. E, ainda que

69 Concordamos com Vivès, porém, preferimos adotar a expressão “ponto de surdez” por entendermos que neste processo de separação e alienação no campo do Outro está em jogo um ato que parte do sujeito. Trata-se dos processos de Bejahung, de afirmação, e de Ausstossung, expulsão, anterior e necessário ao processo de Verneinung, denegação, descritos por Freud em A negativa, de 1925.

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ausente, ela poderá surgir como resto da própria voz do sujeito ou de alguma outra

produção sua em que a voz está implicada, como na música. “Logo, é a voz da

invocação – voz que procura a voz – que deverá se perder ao se emitir, pois seu

movimento indica que procura ouvir a voz (objeto), a resposta do Outro” (Alencar,

1997: 354).

Destacamos agora a singularidade do circuito da pulsão invocante. Como

Lacan evidencia (1964/1998: 183), o circuito pulsional inclui o Outro, por seu caráter

circular. Partindo de um impulso e de uma tensão na estrutura de borda, a pulsão se

dirige, passando pelo campo do Outro, a um objeto, a fim de atingir seu alvo,

retornando a esta zona erógena e fechando o circuito ao ocorrer uma satisfação

parcial.

Com isto, podemos melhor compreender o circuito da pulsão invocante, que,

nas palavras de Vivès (2005:1):

(...) se declinará, assim, entre um “ser chamado”, um “se fazer chamar” (eventualmente, de todos os nomes...) e um “chamar”. Mas para chamar, é preciso dar voz, depô-la, como depomos o olhar diante de um quadro.

É preciso, enfim, que o sujeito receba a voz do Outro e que esta possa ser

esquecida para que ele tenha sua própria voz. A voz do Outro, como anteriormente

afirmamos, deve se tornar inaudita tanto para que o sujeito possa não somente falar

como também criar, como no caso da música, causado por este objeto, a voz, e ser

tocado pela música ao ouvi-la. A pulsão invocante move-se, assim, para o inaudito,

velando-o sem omiti-lo, e para um “se fazer ouvir”.

Cabe ressaltar que a pulsão invocante possui, diante das outras pulsões,

uma particularidade: ela não retorna para a zona erógena que tem como fonte; ela

se dirige para o ouvido e, nesse sentido, fica no campo do outro.

Os ouvidos são, no campo do inconsciente, o único orifício que não se pode fechar. Enquanto o se fazer ver se indica por uma flecha que verdadeiramente retorna para o sujeito, o se fazer ouvir vai para o outro. A razão disto é de estrutura (Lacan, 1964/1998: 184).

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Encontramos na literatura analítica propostas para pensarmos em uma

esquize no campo da pulsão invocante análoga à do escópico, entre olho e olhar.

Destas, destacamos as defendidas por Catão (2005: 143) entre voz e som e por

Alencar (1997: 353) entre voz e ouvido. No primeiro caso, a esquize é sustentada na

medida em que a voz do Outro, ao ser encarnada, o faz pelo som sem se confundir

com ele por trazer a dimensão do inaudito, enquanto que, no segundo, a divisão é

sustentada pela característica acima citada sobre o circuito da pulsão invocante, que

não retorna à zona erógena de onde partiu.

Também Miller (1997:17) aborda esta temática do objeto voz. Em seu artigo

Jacques Lacan e a voz, destaca que é necessário “fazer calar” a voz do Outro para

ser possível se servir da voz e criar, seja pela fala, pela escrita ou pelas criações

artísticas.

Se falamos tanto, se fazemos nossos colóquios (...), se cantamos e escutamos os cantores, se fazemos música e se a escutamos, a tese de Lacan, segundo meu ponto de vista, comporta que tudo isso é feito para fazer calar aquilo que merece ser chamada a voz como objeto a.

Tal afirmação abre margem para se pensar nestas expressões como defesas

contra a voz do Outro70. Como nos aponta Vives (2005: 5), a música e o canto

podem ser lidas como “revocação da voz, aquilo que permite mantê-la à distância”,

ou, ainda, como “um domador da voz”.

No ensino de Lacan (1962-1963/2005: 300), a voz surge como resto da fala,

para além da significação, “distinta das sonoridades”, o que o leva a afirmar que ela

“não se situa em relação à música, mas em relação à fala”. Contudo, entendemos

que, na música, a dimensão da voz do Outro pode comparecer, também como resto,

evidenciando, segundo Mandil (2003: 247), em seu centro, um furo que diz da

impossibilidade do simbólico de lidar com o real.

A voz enquanto objeto a, dentro do momento da obra lacaniana que o

entende como causa de desejo, nos ajuda a entender que há pela voz materna a

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transmissão para o sujeito de uma vocação no que tange a este objeto: a vocação

de “fazer ouvir sua própria voz no concerto do mundo” (Didier-Weill, 1999: 135). A

musicalidade da voz materna apresenta-se, assim, como um tempo inicial de

marcação do sujeito.

Este autor destaca que o objeto voz possui a característica de ser um objeto

singularizador, diferentemente das outras formas de objeto a.

O objeto voz (…) não é um objeto parcial tendente a despedaçar do corpo, pois é um objeto subjetivador, na medida em que por intermédio da sua musicalidade ele é o meio pelo qual se transmite a linguagem a esse recém-chegado que é o infans (Ibid.: 133-134).

Nos campos da música e da lingüística, podemos distinguir a voz que canta e

a voz que fala (Tatit, 1996:14), ao passo que, na psicanálise, o que se tem como

visada é uma Outra voz, a voz enquanto objeto a, causa de desejo (Lacan, 1962-

1963: 279). Isto porque tal objeto, no horizonte do sujeito e na fantasia deste,

poderia lhe dar aquilo que lhe foi perdido, porém que, por estrutura, nunca poderá

ser reencontrado, posto que é perdido desde sempre. A fantasia assegura ao sujeito

uma posição frente ao objeto a, permitindo que, na arte, se possa fazer algo com

ele.

Ao estudar a voz em sua articulação com a pulsão invocante e com a criação

musical, Didier-Weill (1999: 9), nos diz que a transmissão da linguagem, do

significante, envolve também uma convocação para tornar-se humano. Ela é feita

através da própria linguagem, pela fala da mãe. Contudo, tal transmissão não se dá

sem a dimensão da sonoridade e da musicalidade da voz materna – voz que é

suporte e resto da fala e voz que convida a ir além do sentido das palavras.

Isto, todavia, é condição para todos os humanos, para todos os sujeitos que

puderam dizer sim (momento de alienação) a este convite do Outro encarnado pela

mãe, com sua fala musicada, e, em seguida, passar a um não (da separação) da

70 Agradeço ao psicanalista José Marcus de Castro Mattos, que foi o primeiro a me chamar a atenção para esta forma de lidar com a música a partir da psicanálise e me apresentou a idéia da música como defesa contra a voz, tendo me indicado o referido artgo de Miller.

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castração e do recalque originário. Passa de um “sim, eu ouço a sua voz” a um “não

posso ouvir somente a sua voz, ou não terei nunca uma voz própria”.

Ao músico, cabe uma outra posição, uma vez que, na música, é possível

fazer esta voz calar (Miller, 1997: 17), velá-la, torná-la afônica (Alencar, 1997: 357).

O músico pode fazer algo, a peça musical, a partir deste ponto de surdez. É deste

modo que entendemos que a música pode, então, nos ajudar a visualizar a relação

entre sujeito e Outro por este campo singular da voz.

Ressaltamos, todavia, que autores como Didier-Weill (1999: 9) e Catão (2005:

282), utilizam o termo “música” para falar deste período de constituição do sujeito em

relação à voz do Outro encarnada pela mãe. Falam, assim, de uma música da voz

da mãe, por vezes se confundindo com a expressão “musicalidade da voz materna”.

Contudo, é necessário propor que, aqui, estamos tratando de um embrião de

música, mais propriamente de uma abertura para a música, assim como para a fala,

que é transmitida como virtualidade pela fala e voz da mãe.

Entendemos ser mais adequado falar em uma musicalidade, uma vez que a

música, como vimos no primeiro capítulo, é uma arte na qual um sujeito trabalha de

acordo com leis pré-estabelecidas, com os sons musicais enquanto significantes.

Defendemos que a voz da mãe transmite ao bebê a possibilidade e o convite para

ele também se tornar sujeito e poder, desta posição, ser tocado pela arte musical.

Propomos assim, que o bebê para se tornar sujeito deve aceitar o convite à

humanização, dizendo sim à musicalidade da fala e da voz materna e, ao tornar a

voz do Outro inaudita, dar um passo além e constituir a sua própria voz. Para criar

música, ele precisará ainda de um terceiro passo, o qual veremos ao abordarmos a

sublimação, que implica em um fazer com esse vazio do objeto voz.

A voz materna com sua sonoridade e musicalidade, assim como todo o

campo sonoro musical em que o bebê está imerso quando antes da entrada do

significante e de seu acesso à linguagem, transmite uma ampla abrangência de

material sonoro do qual o músico poderá se servir para trabalhar na criação, ex

nihilo, da obra musical. O músico pode ser assim entendido como um sujeito que foi

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marcado por essa voz, enquanto objeto a, que nele demarcou um vazio e um limite,

de tal maneira que ele a terá como visada.

Passaremos, a seguir, a uma análise de um destino específico da pulsão que

coloca em evidência o campo das artes. Estudaremos, então, no próximo capítulo o

tema da sublimação em Freud e Lacan, assim como o da elaboração psíquica nas

artes.

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Capítulo IV

Sobre psicanálise e arte

A linguagem do segredo através do segredo. Não é ela o teor? Não é ela o

objetivo consciente e inconsciente do impulso criador que nos domina?… O

Homem fala ao Homem sobre o sobrehumano – a linguagem da arte (Kandinsky apud Düchting, 2000: 54).

Estabeleceremos, neste capítulo, uma relação entre a psicanálise e o campo

artístico a partir do estudo do destino pulsional da sublimação, que entendemos ser

aquele que, na obra freudiana, mais satisfatoriamente pode nos auxiliar na

compreensão do que está envolvido psiquicamente nas obras de arte.

Pensaremos, ainda, em como o conceito freudiano de elaboração psíquica

pode também nos ajudar para o estudo das artes, uma vez que estas, por sua

característica de síntese, podem ser lidas como uma via de se elaborar materiais

inconscientes traumáticos, não apenas para aqueles que as criam. A fantasia, outro

conceito freudiano, será enfocada, com as colaborações lacanianas, a fim de

pensarmos o lugar que a obra de arte pode ocupar para os sujeitos.

IV.1 – Sublimação e das Ding

A arte joga com as coisas derradeiras sem tomar conhecimento delas, e no

entanto as alcança! (Klee, 2001: 50) Neste momento, temos como objetivo traçar uma reflexão sobre a sublimação

a partir da perspectiva freudiana e da discussão ética sobre ela elaborada por Lacan

no seminário A ética da psicanálise. Pretendemos, assim, pensar como a

sublimação coloca em questão o tema da pulsão remetida ao real e à noção de

Coisa (das Ding) freudiana.

Uma vez que esta temática não ganhou de Freud uma delimitação conclusiva

como conceito, torna-se necessário rastrear os diferentes momentos da obra

freudiana em que a sublimação é discutida. Ressaltamos que diversos autores pós-

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freudianos tomaram a sublimação como uma dessexualização da pulsão, só

ocorrendo uma retificação desta com sua retomada por Lacan no Seminário acima

citado. Entendemos que tal idéia, embora encontrada em Freud, não sintetiza as

considerações deste autor sobre esta temática, como veremos a seguir.

Freud não apresentou nenhum escrito que buscasse dar conta deste tema.

Supõe-se, como nos diz James Strachey na edição dos “Artigos sobre

metapsicologia”, de 1914, que um dos trabalhos que complementariam tais artigos

poderia abranger a sublimação. Contudo, o que temos sobre esta questão são

apontamentos e rastros, que se alteram durante a obra freudiana, sem, porém,

perder de vista de que se trata de um processo no qual o sujeito não abre mão de

uma forma específica de obter satisfação pulsional. Há algo que ele não entrega ao

recalque.

A referência à sublimação aparece pela primeira vez na obra freudiana em

1905, nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Neste trabalho, Freud utiliza o

termo “sublimar” primeiramente o relacionado à estética e ao belo, afirmando que,

nas artes, o interesse pelos órgãos sexuais pode ser desviado (ou sublimado) para

um interesse “pela forma do corpo como um todo” (Freud, 1905/1990: 147), ao que

acrescenta, em nota de rodapé escrita em 1915: “parece-me indubitavelmente que o

conceito de “belo” enraíza-se na excitação sexual e, em sua origem, significava

aquilo que estimulava sexualmente”. Define a sublimação, ainda, como um desfecho

em que “excitações hiperintensas provenientes de diversas fontes da sexualidade

encontram escoamento e emprego em outros campos” (Ibid.: 224).

Notamos que não há aí a idéia de uma dessexualização da pulsão, uma vez

que esta é apenas escoada para outros campos que não o sexual, podendo

conservar suas características. Ao associar a sublimação a campos mais valorizados

socialmente, Freud se pergunta:

Com que meios se erigem essas construções tão importantes para a cultura e normalidade posteriores da pessoa? Provavelmente, às expensas das próprias moções sexuais infantis, cujo afluxo não cessa nem mesmo durante esse período de latência, mas cuja energia – na totalidade ou em sua maior parte – é desviada do uso sexual e voltada para outros fins (Ibid.: 166).

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Mais que isso, neste texto, Freud irá propor uma diferença entre a fixação da

libido no caso dos sintomas neuróticos, e o deslocamento da libido que, pelo

processo da sublimação, pode ser destinada à arte (Ibid.: 147).

Posteriormente, no artigo Moral sexual “civilizada” e doença nervosa

moderna, Freud (1908/1990: 193) define a sublimação como uma “capacidade de

trocar seu objetivo sexual original por outro, não mais sexual, mas psiquicamente

relacionado com o primeiro”. Neste processo, ocorre uma alteração do objetivo, da

finalidade ou meta (Ziel) da pulsão, e não uma transformação da própria pulsão de

sexual para não-sexual.

O que também pode ser encontrado na segunda e na quinta das Cinco lições

de psicanálise. Na segunda lição, Freud (1910[1909]/1990: 28) esboça uma

diferenciação entre o mecanismo do recalque e o da sublimação, abordando esta

como uma solução “para rematar satisfatoriamente conflito e neurose” em que o

desejo pode ser dirigido a um alvo mais elevado. Na quinta lição, há a

complementação de que os desejos infantis não são anulados posteriormente,

permanecendo atuantes e podendo ser utilizados quando da substituição do “alvo de

algumas tendências por outro mais elevado, quiçá não mais de ordem sexual” (Ibid.:

50). Tanto a diferença entre recalque e sublimação e a substituição do objetivo

imediato da pulsão por outro de maior valor são, ainda, apresentados por Freud

(1910 [1909]/1990: 72 e 74) em Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância,

do mesmo ano.

Na conferência XXII das Conferências introdutórias sobre psicanálise, Freud

(1916-1917[1915-1917]/1990: 404) assinala que a sublimação

consiste no fato de a inclinação sexual abandonar seu fim de obter um prazer parcial ou reprodutivo e de adotar um outro, que geneticamente se relaciona àquele que foi abandonado, mas que, por si mesmo, já não possui mais um caráter sexual, devendo ser descrito como social. (…) A sublimação é apenas um caso especial da maneira pela qual as inclinações sexuais se vinculam a outras, não sexuais.

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Aí, também, vemos se tratar de uma mudança da finalidade e do objeto da

pulsão. Ao que complementamos com o que Freud afirma em Dois verbetes de

enciclopédia, no tópico A teoria da libido:

A vicissitude mais importante que uma pulsão pode experimentar parece ser a sublimação; aqui, tanto o objeto quanto o objetivo são modificados; assim, o que era originalmente uma pulsão sexual encontra satisfação em alguma realização que não é mais sexual, mas de uma valorização social ou ética superior (Freud, 1922-1923/1990: 309).

Ainda podemos notar, nestas citações, a ligação da pulsão com a

sexualidade, mesmo com as alterações pelas quais passou. A questão, contudo, se

torna mais complexa quando Freud (1923/1990: 44), ao abordar a transformação da

libido do objeto em libido narcísica na terceira parte de O eu e o isso, de 1923,

afirma que o abandono de objetivos sexuais, como ocorre na sublimação, consiste

em uma dessexualização. Em seguida, questiona-se sobre o papel da mediação do

eu em transformar a libido objetal em narcísica para, na sublimação, empregá-la em

outro objetivo.

Entendemos, contudo, que é característica própria de toda pulsão esta

plasticidade e possibilidade de alteração de finalidade e objeto e que, mesmo

nestes casos, ela conserva sua ligação com o sexual. Na conferência XXXII das

Novas conferências introdutórias sobre psicanálise, última referência que

encontramos na obra freudiana sobre a sublimação, Freud argumenta que

A evidência da experiência analítica mostra como fato indubitável que os impulsos pulsionais provenientes de uma fonte ligam-se àqueles que provêm de outras fontes e compartilham de suas vicissitudes, e que, de um modo geral, uma satisfação pulsional pode ser substituída por outra. (…) As relações de uma pulsão com a sua finalidade e com seu objeto também são passíveis de modificações; ambos podem ser trocados por outros, embora sua relação com seu objeto, não obstante, a que cede mais facilmente. Um determinado tipo de modificação da finalidade e de mudança do objeto, na qual se levam em conta nossos valores sociais, é descrito por nós como sublimação (Freud, 1933[1932]/1990: 121).

Levar em conta os valores sociais, entendemos, não exclui a vinculação da

pulsão com o aspecto sexual. E isso pode ser melhor entendido se pensarmos que

o social se apresenta no sujeito pela instância do supereu, conforme vimos no

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Capítulo I. Como “herdeiro do Complexo de Édipo” (Freud, 1923/1990: 51), o

supereu surge na vida psíquica como representante do isso, como “resíduo das

escolhas objetais do isso” (Ibid.: 49). Contudo, continua Freud, “ele também

representa uma formação reativa energética contra essas escolhas”, ditando para o

sujeito aquilo que ele deve fazer/ser/ter, e também o que ele não deve.

A sublimação, assim, vista dentro dos parâmetros da metapsicologia

freudiana, nos leva a refletir sobre a pulsão enquanto fundamental para a

constituição do psiquismo humano. Por outro lado, o psiquismo é entendido como

aparelho de captura deste impacto causado pela pulsão, podendo dar diferentes

destinos a ela, sendo a sublimação uma dessas saídas.

O que Freud nos apresenta com o tema da sublimação, e que destacamos

como essencial para este trabalho, é uma outra saída possível para o sujeito diante

da exigência constante de trabalho e satisfação pulsional que não envolve o

recalque propriamente dito.

Em Mal-estar na civilização, Freud coloca a sublimação como uma saída para

o mal-estar, para o sofrimento que ele coloca ao sujeito, sendo uma satisfação

diferenciada, encontrada nas “atividades psíquicas superiores, científicas, artísticas

ou ideológicas” (Freud, 1930[1929]1990: 118). Essa saída só é possível devido à

plasticidade e flexibilidade da libido. Diz Freud:

Uma satisfação desse tipo, como, por exemplo, a alegria do artista em criar, em dar corpo às suas fantasias, ou a do cientista em solucionar problemas ou descobrir verdades, possui uma qualidade especial que, sem dúvida, um dia poderemos caracterizar em termos metapsicológicos71. (ibid.: 98)

Diante de um mal-estar que lhe é inerente, o sujeito que trilha o caminho da

sublimação em um determinado momento de sua trajetória, posto que a sublimação

não dará conta de toda exigência pulsional72, buscará satisfação ligando-se não a

71 Neste texto, a questão da fantasia aparece nitidamente como satisfação substitutiva para artistas e fruidores frente ao mal-estar que a vida nos apresente. Retomaremos esta idéia mais adiante ao tratarmos deste conceito. 72 Defendemos, assim, que mesmo naqueles em que o destino pulsional da sublimação aparece, há a coexistência com outras vicissitudes possíveis. Freud (1908/1990: 193) deixa isso claro ao falar, em Moral sexual “civilizada” e doença nervosa moderna, de uma quantidade de sublimação possível, ou seja, de uma parte da pulsão que é suscetível à sublimação, e de uma quantidade de atividade sexual

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objetos que já estão disponíveis no mundo, mas produzindo novos. O prazer será

obtido, por uma via direta e específica, na criação de um objeto novo, ou seja, na

criação, a partir do nada, ex nihilo73, de um novo significante.

A criação, ao ser associada ao mal-estar, ao desamparo constitutivo, não

seria desacompanhada de um estranhamento, um desconforto, uma angústia no

sujeito, uma vez que a própria criação aponta para um vazio e para a falta de um

objeto que viria satisfazer a pulsão74.

Porém, a criação, através da sublimação, se apresenta como uma solução

diferente em relação ao mal-estar, visto que o sujeito, neste caso, não adoece, não

produz sintomas. Freud (1917[1916-1917]/1990: 404) diz, nas Conferências

introdutórias sobre psicanálise, que a sublimação pode ser entendida como um

processo protetor contra o adoecer que teria adquirido maior significação e valor no

campo social. Neste caso, o que vem a ocorrer é uma organização em torno desse

vazio para o qual o mal-estar aponta75.

necessária. Consideramos, ainda, que é preciso levar em consideração a questão da elaboração psíquica nas obras de arte, e, para aprofundar esta idéia, já presente em Freud e em Lacan, contaremos, ainda neste capítulo, com a ajuda do psicanalista Joseph Attié em seu artigo Sublimação

– sintoma?, de 1997. 73 A expressão ex nihilo é aqui usada como uma referência à idéia lacaniana presente em O Seminário, livro 7, de criação a partir do nada. Em outras palavras, criação, a partir do real, de algo que não existia anteriormente na linguagem (na rede simbólica de significantes), mas que, contudo, é prevista pela estrutura lingüística. Isto se dá uma vez que ela comporta, ainda que apenas em apontamento, o real. Neste Seminário, Lacan aponta que a arte é uma maneira de tratar o Real pelo Simbólico, positivando o vazio, como veremos adiante. A própria estrutura da linguagem comporta a possibilidade de se criar um significante a mais na tentativa de se cunhar o significante que lhe falta. 74 A relação entre objeto e angústia foi por nós abordada no capítulo precedente, quando tratamos da constituição do sujeito conforme entendida a partir dos Seminários A angústia e Os quatro conceitos

fundamentais da psicanálise, e do conceito de objeto a, com sua função de causa de desejo. 75 Não podemos perder de vista que, mesmo em artistas, a sublimação não é a única via de satisfação pulsional. Se não tivermos isso em mente, corremos o risco de fazer uma idealização destes como sujeitos em que o processo de recalque não ocorre, o que poderia levar, em uma radicalização desta idéia, a pensar que os artistas teriam uma estrutura psíquica diferenciada, uma quarta estrutura além da neurose, psicose e perversão, conforme delimitadas pela psicanálise freudiana e lacaniana. O que está em jogo na criação artística é de outra ordem. Há nesses sujeitos a estrutura do recalque, que se apresenta atuando em determinados pontos de sua vida psíquica. Ademais, podemos chegar a pensar que é por ter ocorrido o recalque originário que se abre a possibilidade de criação artística. No entanto, uma parte da pulsão pôde encontrar outra via de satisfação, que se realiza pela criação de uma obra de arte, o que não exclui que outra parte da exigência pulsional sofra o recalque propriamente dito, e que nesses sujeitos haja a incidência de sintomas. Por outro lado, também em sujeitos que não são artistas, a sublimação se mostra presente, uma vez que a arte não é o único modo de sublimação existente, e, ainda, que ao se fruir a arte faz-se necessário que ocorra a sublimação. É preciso ressaltar que sublimação e recalque são processos excludentes no sentido que, quando uma pulsão busca satisfação pela via da sublimação, o recalque não pode ocorrer, e vice-versa. Todavia, no sujeito, estes dois processos podem coexistir. Daí indicarmos que, além da sublimação, é preciso também estudar o processo de elaboração psíquica presente na arte, tanto naquele que a cria quando no que a aprecia.

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Diferentemente dos casos de neurose em que o sujeito busca entre os objetos

existentes, no campo do significante, algum com o qual possa se identificar, pela

arte, o sujeito deixa impressa sua marca nos objetos que cria. Ao tentar se

aproximar imaginariamente e se aglutinar com o objeto perdido, o sujeito que cria

cerne o limite, o impossível, o furo, e volta a perder essa aproximação.

A sublimação, como vimos, tem ligação com o objeto. Em À guisa de

introdução ao narcisismo, Freud nos fala da sublimação como sendo relacionada à

libido objetal. Nesse ponto, há o questionamento de uma possível proximidade entre

a sublimação e a formação do ideal do ego, a qual Freud refuta. Temos aí a

indicação do fato de a sublimação se tratar de um processo especial, que pode vir a

ser estimulado pelo ideal, sem, contudo, depender dele. Passamos a palavra a

Freud: “A formação de um ideal eleva o nível das exigências do Eu e é o mais forte

favorecedor do recalque; a sublimação, por sua vez, oferece uma saída para cumprir

essas exigências sem envolver recalque” (Freud, 1914/ 2004: 113).

A pulsão, satisfazendo-se dessa maneira particular, nos remete ao conceito

de gozo encontrado na obra de Lacan. O psicanalista Joseph Attié (1990/1997. 176),

designa esta satisfação pulsional encontrada na sublimação de gozo. Segundo este

autor, a sublimação “é uma deriva onde o sujeito inventa seus próprios significantes;

daí o gozo em jogo” (Ibid.: 179). Nesse caso, a satisfação da pulsão, ainda que

parcial como toda satisfação, ocorre de forma direta; o gozo, como colocaria Lacan,

é direto.

Demarcamos que não há nesse processo uma dessexualização da pulsão.

Em Freud, a sublimação evidencia a problematização da questão do sexual, da

pulsão, do objeto, do alvo, da satisfação. A pulsão, primeira no sujeito, instala o

campo da libido, do erótico, fazendo com que a relação com os objetos seja

possível.

O campo libidinal aparece como segundo e, por sua plasticidade, não pré-

determinará o objeto para satisfazer a pulsão, podendo este ser encontrado no

mundo ou, como acontece na sublimação, criado, inventado.

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Lembremos-nos aqui, ao falarmos da criação, do exemplo dado por Lacan em

A ética da psicanálise sobre o vaso, exemplo este que vem de Heidegger, como

sendo um significante modelado e, ao mesmo tempo, um objeto criado para

representar a existência do vazio no centro do real, ou seja, a Coisa.

Heidegger, e posteriormente Lacan, utiliza o exemplo do vaso, da jarra, para

evidenciar o vazio que há em seu centro, servindo, assim, como metáfora da

criação. O oleiro, nos diz Heidegger (2001: 147), molda a jarra com a argila sendo

esta produção o que faz a jarra subsistir em si, como receptáculo e como novo

objeto criado. Porém, não é a argila que faz o jarro ou o vaso, e sim o vazio, o “nada

na jarra” (Idem). No ato da criação, o oleiro toca o vazio, “o oleiro toca, primeiro, e

toca, sempre, no intocável do vazio” (Idem.). Dessa forma, Heidegger, e também

Lacan, se aproxima da noção de criação ex nihilo, ou seja, a criação a partir do

nada, tendo em si o vazio.

Cria-se a partir do furo que o Simbólico cava no Real com a instauração da

linguagem. Contudo, a criação não dá conta de tapar o furo do qual surgimos; é

impossível criar um objeto que irá preencher a falta ou promover o reencontro com o

objeto perdido. A criação de um novo significante não tapa a verdade do impossível

da própria constituição do sujeito.

O tema da sublimação da forma como Freud a colocou exige que se faça uma

teorização do objeto, como Lacan, posteriormente, nos apresentou. O produto da

sublimação, a obra de arte, vai nos dizer de um objeto que não são os que

encontramos no mundo, os pequenos objetos aos quais o sujeito vai se ligando e

imprimindo sua marca, mas sim do objeto que causa o desejo, o objeto a, como

vimos anteriormente no capítulo anterior.

Assim, temos que o desejo circula no significante que foi retirado do sujeito na

linguagem. Devemos, ainda, articular a essa temática o conceito de das Ding, da

Coisa, já anteriormente delimitado por nós quando do estudo sobre a constituição

subjetiva. Seria a partir deste evento, desta subtração de das Ding, que surgiria o

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desejo humano, esse “mistério jamais inteiramente resolvido” (Lacan, 1959-

1960/1997: 288).

O objeto, que para o sujeito é experimentado como perdido desde sempre,

mesmo sem ter sido perdido, é instaurado desse modo através da retirada de algo.

Isto é a Coisa, este resto, que é isolado do sujeito na experiência do complexo do

próximo76 (Nebenmensch) como sendo estranho, que escapa à linguagem.

O Ding é o elemento que é, originalmente, isolado pelo sujeito em sua experiência do Nebenmensch como sendo, por sua natureza, estranho, Fremde. (...) O Ding como Fremde, estranho e podendo mesmo ser hostil num dado momento, em todo caso como o primeiro exterior, é em torno do que se orienta todo o encaminhamento do sujeito É sem dúvida alguma um encaminhamento de controle, de referência, em relação a quê? – ao mundo de seus desejos (Ibid.: 68-69).

O sujeito se orienta em direção da busca de das Ding; ele busca reencontrar

algo que não pode, nem sequer, ser encontrado. Sendo, ainda, o primeiro exterior,

este objeto – a Coisa, será para o sujeito o Outro absoluto. Deste modo, a Coisa

será uma “extimidade77” (Ibid.:173), uma “exterioridade íntima” (Ibid.).

É no campo de das Ding e da pulsão de morte que a sublimação pode

ocorrer. Pela arte, na criação de uma Obra, a Coisa pode ser presentificada no

psiquismo, evidenciando-se o vazio estrutural que causa o sujeito. Neste sentido,

podemos dizer, com Jorge (2002: 150), que a sublimação em psicanálise é um

conceito “imprescindível”, que “revela a estrutura do desejo enquanto tal” (Ibid.: 154-

155).

Tal posição é também encontrada em Rinaldi (1996: 123), que, sobre este

tema, aponta que

A sublimação – diretamente relacionada ao campo de das Ding – representa uma via, talvez a principal via de realização da ética da psicanálise como ética da castração. (…) Ao produzir-se no lugar da Coisa, que também é o da

76 Conforme visto no tópico A constituição do sujeito do segundo capítulo. 77 O termo extimidade refere-se ao neologismo lacaniano criado no Seminário A ética da Psicanálise, de 1959-1960, para delimitar a noção de Coisa como aquilo que é exterior ao sujeito, por ter sido separado deste, e que, porém, é aquilo que o sujeito tem de mais íntimo, uma vez que é a partir deste ponto perdido que ele deve se constituir.

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pulsão de morte, ela manifesta a própria estrutura do desejo, que é movimento enquanto tal, em que o desejo é sempre desejo de “outra coisa”.

Sobre a relação entre a sublimação, o objeto, a Coisa, Lacan (1959-

1960/1997: 140-141) afirma que:

O objeto – uma vez que lhe especifica as direções, os pontos de atrativo do homem em sua embocadura, em seu mundo, uma vez que o objeto lhe interessa por ser mais ou menos sua imagem, seu reflexo – esse objeto, precisamente, não é a Coisa, na medida em que ela está no âmago da economia libidinal. E a fórmula que lhes dou da sublimação é esta – ela eleva um objeto (...) à dignidade da Coisa.

Podemos, com isso, compreender a fórmula lacaniana sobre a sublimação

que, subvertendo a idéia freudiana de que esta se refere a objetos elevados e de

grande valor social, diz que a sublimação eleva o objeto à dignidade de Coisa. A

obra criada, um novo significante, ocupará metaforicamente o lugar da Coisa e,

deste modo, terá função de causa. O sujeito criará a obra de arte uma vez que tem

das Ding como causa e como visada, sendo orientado por suas coordenadas de

prazer, no sentido em que

(...) o que nos governa no caminho de nosso prazer não é nenhum Bem Supremo, e que para além de um certo limite de nosso prazer estamos, no que diz respeito ao que das Ding recepta, numa posição inteiramente enigmática, pois não há regra ética que faça mediação entre nosso prazer e sua regra real (Ibid:: 121).

A Coisa, o que do real padece do significante (Ibid.: 157), seria concebida

pelo psiquismo por seu contorno. É preciso contorná-la, cingi-la, para que ela seja

concebida. Por estar separada do campo do significante, das Ding nos remete a um

vazio significante, um vazio aplicado à linguagem. Ela é impossível de ser capturada

pela rede significante, porém, ao mesmo tempo, é ela a responsável por esta cadeia,

pela própria rede de representações simbólicas. O significante que falta é este

mesmo que organiza toda a cadeia. Segundo Rivera (2002: 41), a Coisa, através de

sua perda, marcaria “um centro de gravidade em torno do qual se constituirá o

sujeito”.

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A arte, assim, presentificaria a Coisa nos objetos criados do nada, nas obras

de arte, no novo significante que é cunhado e introduzido no mundo.

Essa Coisa, da qual todas as formas criadas pelo homem são do registro da sublimação, será sempre representada pelo vazio, precisamente pelo fato de ela não poder ser representada por outra coisa – ou, mais precisamente, de ela não poder ser representada senão por outra coisa. (Lacan, 1959-1960/1997: 162).

No plano imaginário, o objeto tem por uma de suas características servir

como engodo para o sujeito frente ao real. O caráter de composição imaginária, de

elemento imaginário do objeto, faz dele o que se poderia chamar de a substância de

aparência, o material de um engodo vital (Ibid.: 79).

Também como engodo, encontramos o bem enquanto função. Ele se

apresenta para o desejo humano como uma barreira, não permitindo a satisfação da

pulsão, ou seja, seu gozo. “A dimensão do bem levanta uma muralha poderosa na

via de nosso desejo. É mesmo a primeira com a qual lidamos em cada instante e

sempre” (Ibid.: 280). Enquanto engodo, o bem como barreira, como algo que nos

priva, é uma função do registro imaginário.

Por outro lado, temos também como barreira o belo. A expressão do belo

intimidaria o desejo; no entanto, o belo não atuaria como engodo para o sujeito, ele

vela a Coisa, sem omitir o vazio que o objeto criado traz em seu centro. O belo na

obra de arte, no objeto criado pela arte, aponta para a verdade que o objeto traz.

Esta verdade do objeto somente pode ser compreendida em sua referência à

Coisa. Sobre a relação entre o objeto e a Coisa, podemos dizer que a partir da

sublimação, o objeto é elevado à dignidade de Coisa. Colocando essa mesma

fórmula em outras palavras, podemos dizer que o novo objeto, que cingiu a própria

Coisa, ao ser criado, passou a ter a função da Coisa.

Segundo Pommier (1987: 197):

A sublimação dá uma forma ao que nunca havia existido outrora, senão como um puro efeito de linguagem; ela apresenta a Coisa que divide a linguagem, Coisa cuja inacessibilidade dá seu gume à pulsão de morte. A voz perdida

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por trás das palavras, a cor ausentificada por detrás da significação do quadro, toda sensação escava uma ausência.

Desse modo, temos nas artes uma constante tentativa de reencontro com a

Coisa, de aproximação a ela; indo além, ao se criar um objeto, temos uma tentativa

de recriação da Coisa na obra de arte, o que, no entanto, é da ordem do impossível,

e que, mesmo assim, deixa vestígios na arte.

IV.2 – Sublimação e elaboração psíquica: criação e fantasia

Como vimos anteriormente, o sujeito emerge como efeito de uma extração

que o significante opera no campo do Outro. A partir dessa operação, que é a da

castração, se instala nesse sujeito um mal-estar, um desamparo. Diante dessa falta,

instaura-se o movimento de uma busca contínua daquilo que foi perdido, sob a

forma de objeto e na dinâmica da repetição.

A vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós; proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. A fim de suportá-la, não podemos dispensar as medidas paliativas. (…) Existem talvez três medidas deste tipo: derivativos poderosos, que nos fazem extrair luz de nossa desgraça; satisfações substitutivas, que a diminuem; e substâncias tóxicas, que nos tornam insensíveis a elas. (…) As satisfações substitutivas, tal como as oferecidas pela arte, são ilusões, em contraste com a realidade; nem por isso, contudo, se revelam menos eficazes psiquicamente, graças ao papel que a fantasia assume na vida mental (Freud, 1930[1929]/1990: 93).

Há diversos modos de lidar com este mal-estar constitutivo, dentre as quais

destacamos nesta pesquisa a arte. A psicanálise fornece-nos material para

pensarmos a arte como uma experiência que permite a elaboração psíquica de

conteúdos inconscientes. A arte apresenta-se como fundamental para a constituição

da realidade para os sujeitos – artistas e fruidores.

Articulando este ponto à questão específica da música, podemos pensá-la

como escrita, como uma tentativa de inscrição no sujeito de algo que não pode ser

assimilado e que escapa à linguagem. Em outras palavras, tentativa de escrita e

inscrição da pulsão e do objeto a ela articulado, o objeto voz. Tal linha de

pensamento abre-nos o campo para refletir sobre como a pulsação, o movimento

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próprio da pulsão, que é constante, pode ser circunscrito no sujeito pela música

através de um outro tempo. Acreditamos que a música, por possuir um ritmo pré-

estabelecido e, por isso, artificial, pode se dar para o sujeito como uma tentativa de

dar conta do pulsional, organizando-o deste modo.

Vale aqui demarcar a concepção de realidade para a psicanálise que, como

delimitamos ao abordar a constituição subjetiva, pode ser apreendida através da

dinâmica entre princípio de prazer e princípio de realidade, assim como pela relação

entre processo primário e processo secundário. Pela dinâmica entre estes princípios,

o campo da realidade psíquica passa a ser demarcado e organizado através daquilo

que dá prazer ao sujeito.

Sobre a questão da arte como forma de elaboração psíquica tanto para

aqueles responsáveis por sua criação quanto para os que a fruem, Freud

(1913/1990: 222) nos aponta que as “forças motivadoras” dos artistas são conflitos

inconscientes também presentes nos demais sujeitos. Contudo, na arte estes

conflitos não aparecem sob a forma de sintomas. Eles exigem uma outra forma de

trabalho.

A respeito da elaboração psíquica (Bearbeitung), podemos dizer que este

conceito alude à dimensão de trabalho inerente ao aparelho psíquico,

subentendendo uma concepção econômica do psiquismo e tendo em vista que este

transforma e transmite energia pulsional.

O trabalho da elaboração psíquica consiste em transformar a quantidade de

energia que o aparelho psíquico recebe, lidando com ele através de uma derivação

ou ligação. Tal termo foi encontrado por Freud e Breuer na obra de Charcot, que

propunha que o paciente histérico teria um momento de elaboração entre o trauma e

o aparecimento dos sintomas.

Em Freud (1914/1990: 202), no contexto clínico, a elaboração surge, pela

transferência, como uma saída possível para a repetição. O sujeito em análise pode,

através da fala, contornar um material traumático e passar da repetição à recordação

e, posteriormente, à elaboração. Ou seja, aquilo que era repetindo ou intervinha sob

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a forma de angústia, por exemplo, pode estabelecer relações significantes e, deste

modo, ser elaborado através da linguagem.

Na análise, o sintoma pode ser interpretado, por se fazer como um enigma ao

sujeito e demandar decifração (Attié, 1990/1997: 169). Deste modo, ele pode ser

elaborado.

Na arte, por outro lado, como já dissemos, há uma parcela pulsional que não

está sob o regime do recalque propriamente dito. Entretanto, aí também

encontramos a dimensão do mal-estar. O artista, com isto, poderá, com restos do

impossível, criar, elaborando, assim, parte deste traumático incurável e imperioso. O

que não tem nome ou medida poderá ser tateado, às cegas, pela linguagem, sendo

elaborado e diminuindo a angústia.

Assim, a elaboração psíquica não pode ser referenciada apenas ao contexto

clínico; ela diz respeito ao estabelecimento de novos caminhos associativos que

supõem como condição prévia esta transformação de quantidade física em

qualidade psíquica e que se dá pela e na linguagem. Através da elaboração

psíquica, um material psíquico inconsciente pode ser assimilado e integrado à

cadeia de significantes (Hanns, 1996: 190). Isto na medida em que é possível, pois o

que exige maior trabalho de elaboração é justamente o vazio estrutural do sujeito,

impossível de ser assimilado.

É o vazio de das Ding, deixado pelo recalque originário, pela castração.

Assim, a elaboração psíquica, que atua ou pode atuar em todos os sujeitos,

comparece também no trabalho da sublimação, uma vez que, pela criação com os

significantes, também se poderá tecer com este material traumático, permitindo ao

sujeito que cria uma mudança subjetiva. Este vazio faz corpo feito de significantes e

de gozo. Nas palavras de Pommier (1987: 192):

Nosso corpo se dá à altura deste vazio e mais nada podemos saber dele. Este vazio é nossa primeira morada e nos é preciso confirmar seu contorno no espelho ou no olhar de nossos semelhantes. O corpo responde pela inconsistência do simbólico pelo enigma da significação do desejo do Outro materno; ele é tomado por uma angústia primeira que o suprime para sempre do saber. O recalcamento primordial concorda com esta primeira perda de gozo em que consentimos, pelo menos até o encontro desta barreia da

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pulsão de morte: à sua altura, o desejo se inverte graças ao sintoma ou graças à sublimação.

Vemos nesta citação a exclusão entre os destinos pulsionais do recalque e da

sublimação, conforme abordamos no terceiro capítulo. Porém, notamos entre eles

um ponto em comum: o do vazio de das Ding, e o ato do sujeito em dar uma

resposta singular ao Outro, pela via do sintoma ou da criação.

Sobre este vazio, o pintor e escultor Lee Ufan (apud Azouri, 1997: 46) nos dá

um belo testemunho:

O vazio não é o espaço em que o artista fala. É o lugar em que aparecem o rosto e a voz do Outro pelo viés do toque do artista. Quando se toca tambor, ouve-se um som que não pertence nem ao tambor nem a quem o toca.

A respeito das diferenças e convergências entre sintoma e sublimação, nos

voltamos ao estudo de Attié (1997: 150, 154). Já destacamos mais acima alguns

destes pontos, a saber, a diferença dos destinos pulsionais envolvidos em cada uma

destes processos (recalque no sintoma e sublimação na arte), e o ponto de vazio

central presente em ambos.

Attié (Ibid. 150), aponta, seguindo os passos freudianos, para uma fixação da

libido no sintoma em contraste com a plasticidade libidinal na sublimação, que diz da

possibilidade de deslocação da mesma neste caso justamente porque não ocorreu

aí o recalque (Ibid.: 154).

De acordo com este autor, é possível para o artista elaborar devido à posição

deste diante de sua fantasia, diante do objeto que o causa (Ibid.: 155), estando a

fantasia, assim, na base da criação artística.

Lembramos que Freud destacou tal característica da criação no artigo

Escritores criativos e devaneios. Nele, Freud (1908[1907]/1990: 149) nos apresenta

uma indagação sobre a fonte da qual o escritor tiraria o material para a elaboração

de sua arte. Aproxima o trabalho artístico com o brincar infantil (Idem), uma vez a

criança, de forma análoga ao trabalho poético, “cria um mundo próprio, ou melhor,

registra os elementos de seu mundo de uma forma que lhe agrade”.

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O próprio Freud (Idem) fará uma oposição entre o brincar e “o que é real”, o

que nos interessa por lermos nesta afirmação, apoiados em Lacan, que a fantasia é

uma montagem entre os registros do simbólico e do imaginário que serve de

anteparo e mediador frente ao real.

Em ambos os casos, no brincar e na criação artística, diz Freud (Idem), o que

está em jogo é a fantasia, e, diríamos nós, seu manejo. O escritor (representando

aqui a posição de todo artista), pela fantasia, pode fazer com que algo que é

“penoso” e traumático passar a ser uma “fonte de prazer” tanto para ele quanto para

quem lê sua obra. Freud nos abre a possibilidade de pensarmos como o traumático

pode ser elaborado através da criação de uma obra de arte, que atuará de uma

maneira singular no apreciador.

A fantasia, na perspectiva lacaniana, ou seja, a montagem entre Simbólico e

Imaginário78 como tela frente ao impossível, é pensada como suporte de desejo. Isto

na medida em que o desejo surge em decorrência da perda do objeto absoluto, a

Coisa, tendo-o como visada e que a fantasia permite que o sujeito seja articulado a

uma determinada forma de comparecimento de objeto a, dando-lhe um lugar a

ocupar (Lacan, 1966-1967/2003: 327).

A estrutura da fantasia remete, assim, a estes objetos a que podem exercer a

função de causa de desejo por terem em seu centro um vazio (Ibid.: 325), vazio que

compartilham com o sujeito e que diz da divisão estrutural deste. Nas palavras de

Jorge (2006: 63): “Se o desejo é, em sua essência, da ordem da falta, a fantasia é a

estrutura que enquadra, emoldura esta falta num certo limite”.

Resta dizer que a fantasia surge da operação do recalque originário, como

uma resposta singular do sujeito diante da castração, que impõe um limite no gozo e

“instala uma forma particular para cada sujeito deparar-se com o real, ao mesmo

tempo em que constitui para cada um uma realidade psíquica que é a fantasia”

(Ibid.: 65).

78 LACAN, Jacques. (1966-1967) O Seminário XIV – La lógica del fantasma. Inédito: classe de 16 de noviembre de 1966. Nesta aula, Lacan defende que, no homem, toda a realidade, entendida como realidade psíquica, é esta montagem do simbólico e do imaginário frente ao real.

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Seguindo Lacan em seu Seminário A lógica da fantasia, Attié (1990/1997:

157) propõe pensar a dimensão da fantasia presente na sublimação. Neste

seminário, Lacan79 propõe pensar o inconsciente e sua estrutura a partir das

fórmulas “eu não sou” e “eu não penso”, contrapondo-as ao cogito cartesiano

(penso, logo sou). Estipula, com isto, uma nova abordagem para tratar da divisão do

sujeito e dos momentos de alienação e separação no campo do Outro.

A partir daí, Attié (Ibid.: 165) concluirá que Lacan enfatiza a “disjunção entre a

sublimação e o sintoma”, sendo que a primeira deve ser entendida como uma

operação do sujeito enquanto que o segundo, através do trabalho analítico, caminha

para um ponto final: o término da análise. Nesse sentido, o sintoma “precisa ser

decifrado” (Ibid.: 169), enquanto que “a façanha do artista é saber cifrar alguma

coisa de seu inconsciente” sem que haja a demanda de interpretação.

Assim, podemos entender que sintoma e sublimação são modos distintos de

lidar com o mesmo ponto traumático na constituição do sujeito.

A sublimação, em sua ordem artística, pode ser dita como uma resposta da pulsão, do real, ao impossível da relação sexual. Aquele que sublima elabora seu sintoma a partir de sua fantasia. O neurótico chega a sua fantasia a partir de seu sintoma (Ibid.: 183)

A função da arte, nos diz Alencar (2004: 11), pode ser pensada, deste modo,

como a “tomada da fantasia como o princípio que rege a posição da obra como

causa para o sujeito”.

No caso da música, enquanto produção simbólica que pode apresentar uma

resposta do sujeito frente ao real por sua posição singular na fantasia, defendemos

que ela pode desempenhar uma função de destaque para o sujeito. Através desta, a

pulsão poderá ganhar um destino e, pelo trabalho com os significantes (neste caso,

os sons musicais), o desejo poderá ser colocado em cena pela linguagem.

79 Na aula de 21 de dezembro de 1966.

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Neste sentido, podemos supor que um sujeito pode ser marcado de maneira

tal pela incidência do objeto voz que, na fantasia, o tomará como causa de desejo,

conseguindo se servir dele de modo a oferecer como resposta ao Outro um novo

objeto criado pelo arranjo de sons musicais significantes.

Retomando a citação de Freud com a qual iniciamos este tópico, podemos

dizer, então, que, pela arte, a dimensão do impossível pode ser suportada, através

da fantasia, sem que com isso, todavia, esta dimensão seja encoberta. No caso

específico da música, a obra musical irá velar esse objeto sem omitir, contudo, que

há uma falta real aí. Ou seja, a música criada trará vestígios deste real, podendo ela

também ser tomada como causa de desejo para um outro sujeito.

Faremos no próximo capítulo um estudo mais detalhado acerca da criação

artística no campo da música, retomando e articulando os conceitos até agora

apresentados.

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CAPÍTULO V

Sobre música a partir da psicanálise

Não sei escrever poema: não sou poeta. Não sei dispor minhas frases de um

modo tão artístico que elas disseminem alternadamente sombra e luz: não

sou pintor. Não sei exprimir com gestos e pantomimas minhas idéias e meus

sentimentos: não sou bailarino. Mas sei fazê-lo através dos sons: sou músico (Mozart apud Massin, 1997: xxii).

Tendo percorrido o que delimita, em nosso trabalho, o campo da arte musical

e da psicanálise freudiana e lacaniana, assim como a musicalidade presente na

constituição dos sujeitos e a criação artística pelo viés psicanalítico, passaremos

agora a uma reflexão especificamente sobre a música. Sustentamos que é por uma

musicalidade presente na constituição de todos os sujeitos que, posteriormente, uma

criação com o material musical poderá atuar como causa de desejo e assim ser

tomado no momento de escuta.

Investigaremos, portanto, a seguir, os pólos da criação (pela via do

compositor, principalmente, e também do músico intérprete) e da escuta musical,

acompanhados de autores que já trilharam alguns destes caminhos. Antes,

propomos algumas aproximações entre a música e a psicanálise, ou, ainda, refletir

sobre a primeira a partir da segunda.

V.1 – Tempo, atempo; harmonia, sincronia; melodia, diacronia: aproximações

Como vimos no primeiro capítulo, a música, enquanto arte cuja linguagem é

estabelecida por um determinado conjunto de regras próprias a este campo, não

pode existir e tomar corpo na ausência destes dois elementos: ritmo e altura sonora.

Ela trabalha, assim, com a diferença e tensão dos sons musicais, e também

marcando e produzindo diferenças no tempo e no espaço musical, contudo, na maior

parte das vezes, como na música tonal, por exemplo, com certa regularidade.

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Sobre este espaço musical, trazemos as palavras do compositor francês

Debussy (1989: 47): “a música e a poesia são as duas únicas artes que se movem

no espaço”, afirmando, desta forma, uma semelhança entre elas. Ressaltamos,

entretanto, que também a dança e o cinema apresentam esta característica de

mesclar tempo e espaço. O pintor Paul Klee (2001: 46) vai além e afirma que “o

espaço é também um conceito temporal”, transpondo a separação por ele definida

como “divagação erudita” (Idem) entre as artes temporais e as espaciais. Para ele, o

que as diferencia é o que é dado ao espectador para fruir, conduzindo-os a sentidos

diversos.

Na obra de arte encontram-se os caminhos que conduzem para o olho do espectador, o olho que tateia ao redor como faz um animal ruminante ao pastar. Na música, como todos sabem, encontram-se disponíveis os canais que conduzem ao ouvido, no teatro, ambos os sentidos estão à disposição (Idem).

Aqui, já podemos avançar nesta discussão com elementos da teoria lacaniana

para destacarmos dois pontos na fala de Klee, amarrando-os a dois conceitos em

Lacan. O primeiro diz respeito ao olho, como órgão do sentido, que “tateia” o quadro,

e o segundo ao ouvido que seria convocado na música. Como é bem conhecido,

Lacan (1964/1998: 74) ressalta uma esquize entre o olho e o olhar em seu estudo

Do olhar como objeto a minúsculo no Seminário Os quatro conceitos fundamentais

da psicanálise. Interessa-nos na pintura o olhar enquanto objeto a correspondente à

pulsão escópica, olhar este que tem relação com a função do quadro.

A pintura e o quadro, “essa coisa que tem por centro o olhar” (Ibid.: 98),

permitem que esta divisão de que nos fala Lacan possa comparecer de forma que,

ao tatear o quadro com o olho, o sujeito possa depositar seu olhar, isto na medida

em que o pintor ”dá a ver seu quadro” (Ibid.: 99).

O pintor, àquele que deverá estar diante do seu quadro, oferece algo que em toda uma parte, pelo menos, da pintura, poderia resumir-se assim – Queres

olhar? Pois bem, veja então isso! Ele oferece algo como pastagem para o olho, mas convida a quem o quadro é apresentado a depor ali seu olhar, como se depõem as armas. Aí esta o efeito pacificador, apolíneo, da pintura. Algo é dado não tanto ao olhar quanto ao olho, algo que comporta abandono, deposição, do olhar (Idem.. Grifos do autor).

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Chama-nos a atenção nas citações de Klee e de Lacan uma forma similar de

falar do quadro como um campo de “pastagem para o olho”, o que nos faz pensar na

possibilidade do segundo ter lido o primeiro. Este, porém, avança saindo do campo

do sentido e apontando para esta falta no centro do quadro que faz com que o olhar

possa ser ali depositado, não causando angústia em sua intervenção (Lacan, 1962-

1963/2005: 98) e podendo ser até mesmo pacificador.

O segundo ponto que destacamos da citação de Klee se refere ao ouvido, por

ele apontado como o órgão do sentido a que se destina a música. Para Lacan

(1964/1998: 184), o ouvido é o “único orifício que não se pode fechar”, ao que

complementa, em relação ao circuito pulsional, que “enquanto que o se fazer ver se

indica por uma flecha que verdadeiramente retorna para o sujeito, o se fazer ouvir

vai para o outro”.

Guardaremos esta idéia para quando tratarmos mais adiante a escuta

musical. Neste momento, destacamos que na música, o compositor visa se fazer

ouvir e, além disso, ao contornar pulsionalmente o objeto voz, o vazio deste objeto,

nos dá notícias sobre ele. Podemos assim dizer que o compositor visa um além dos

sentidos. O que se ouve, então, quando se ouve música? O que o compositor coloca

em cena ao criar melodias e harmonias?

Como nos mostra com muita precisão Miller (2000: 68), a música é “arte do

tempo”, manobrando-o e, assim, pontuando-o para o sujeito. O que não deixa de ter

efeitos e conseqüências. Isto na medida em que, como demarca Freud (1915/1990:

214), o inconsciente possui como uma de suas características principais a

atemporalidade, e que a pulsão é uma força constante (Freud, 1915/2004: 146).

Como, então, pensar o que a música produz para e nos sujeitos?

Aprendemos com Freud que a temporalidade vem do registro do consciente,

vem do eu. O inconsciente está sob o regime do atemporal, das simultaneidades de

marcações. Em análise, o sujeito pode ascender à temporalidade do a posteriori

(Nachträglich), da leitura retroativa que implica a dimensão do “estava escrito”

(Miller, 2000: 50). É possível uma ordenação, própria a cada sujeito, aberta a

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alterações, a outras leituras. Conforme nos diz o psicanalista Luciano Elia (2004:

41):

O tempo próprio do inconsciente é o a posteriori (Nachträglich, no dizer de Freud). Em sua experiência, o sujeito tem um encontro - o encontro com o Outro materno (...) - que se dá em determinado ponto de sua estrutura temporal, ou seja, em determinado momento. Só depois, em um segundo momento, é que esse encontro poderá ganhar, para o sujeito, alguma significação que permitirá que ele faça o reconhecimento de algum nível de sua constituição. Incidentalmente, essa estrutura temporal a posteriori expressa, à maneira da diacronia, a prevalência lógica e sincrônica do significante sobre o significado no inconsciente: em dado momento o sujeito encontra-se com o significante - ou é por este encontrado, já que nesse momento o sujeito ainda é inconstituído, é um sujeito constituinte ou a devir.

Miller (2000: 50) aborda a questão da atemporalidade do inconsciente

ressaltando que, se ele comporta esta dimensão, se ele “em si mesmo não muda, o

que pode mudar é a relação do sujeito com o inconsciente”. Isto é, pelo trabalho da

análise, o sujeito pode se situar de maneiras diferenciadas na cadeia significante e

promover rearranjos destes significantes que são, no inconsciente, inscritos

sincronicamente.

Tal operação é possível, nos diz o autor (Ibid.: 52) uma vez que a presença

do analista garante que ocorra uma reversão temporal de forma que “o analista se

dedica a encarnar na atualidade o instante passado. É por isso que não se trata

simplesmente de saber, e sim de um sujeito suposto saber” (Grifos do autor).

Lacan (1960/1998: 853), antes de Miller, destaca esta reversão temporal,

como vemos no escrito Posição do inconsciente, no qual aborda a estrutura temporal

do nachträglich freudiano, ou a posteriori. Evidencia, deste modo, os efeitos do

significante e da linguagem sobre o sujeito, sendo que este somente advém como tal

a partir de sua entrada no campo da linguagem.

Assim, o sujeito em Lacan (1964/1998: 46) comporta uma dimensão temporal,

pulsativa, de abertura e posterior fechamento, por onde ele surge para, em seguida,

desaparecer. Lacan (Ibid.: 30) diz que nessa vacilação, nesta descontinuidade, há

uma estranha temporalidade, de encontrar, em um momento, algo que traz surpresa

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e que, em um segundo momento, volta a ser perdido. Tem-se, assim, que surge, de

forma pontual e evanescente, alguma coisa de um não-realizado (Ibid.: 34-35).

Por outro lado, Miller (2000: 63) nos faz lembrar que o sujeito se encontra

entre dois significantes, tanto espacial quanto temporalmente. Entendemos essa

assertiva na medida em que se um significante é aquilo que representa um sujeito

para um outro significante (Lacan, 1960/1998: 854), isto ocorre posto que o sujeito

está no intervalo entre dois significantes por não ser definitivamente representado

por nenhum. Tal intervalo pode ser entendido dentro do ordenamento temporal da

cadeia significante.

Como acima vimos, este intervalo comporta um momento de abertura e outro

de fechamento, de uma sincronia significante (Ibid.: 849) e de um corte (Ibid.: 854),

movimentos que dizem das operações de alienação e de separação entre o sujeito e

o Outro, de onde o sujeito surge como barrado e cujo resto desta operação é o

objeto a.

É este objeto que Miller (2000: 66) relacionará ao sujeito barrado

contrapondo, a pontualidade e evanescência da articulação significante deste a não

pontualidade do objeto a. Nas palavras do autor (Ibid.: 66-67), “o objeto a é uma

consistência lógica, e mesmo o lastro de uma retirada de uma parte do corpo: o

objeto anal, o objeto vocal, que cada um supõe ocupar um certo lugar e estar ligado

a um certo tempo”. Ao que conclui que “o objeto a é o fator que desregula o

desenrolar uniforme do tempo” (Ibid.: 67).

Será sob estas coordenadas que Miller apresentará a idéia de que a música,

por ser “arte do tempo” (Ibid.: 68), trabalha com o tempo de forma ritmada e

regulada, substituindo o “tempo imprevisto” do objeto voz.

A partir dos pontos acima delimitados, nos propomos algumas perguntas: O

que pode a música fazer quanto ao tempo? Ritmar o arítmico e a constância da

pulsão? Regular, pelo movimento do circuito pulsional, a busca de apreensão do

objeto voz? Como pensar o tempo na música, já que o ritmo, que marca e corta o

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tempo, lhe é de base? Para que (Outro) tempo a música pode levar? Ela, ao mesmo

tempo, cria um espaço e um tempo próprios, e opera um corte no tempo cronológico.

Se a pulsão é constante, incessante, se “ela não tem nem dia nem noite”

(Lacan. 1964/1998: 157), a música, pelo contrário, marca tempos, inscreve e

escreve no silêncio, no vazio, notas de durações pré-determinadas e em relação

entre si, possibilitando alguma organização e previsibilidade, em maior ou menor

grau, dependendo do estilo musical ao qual o compositor se filia. A própria criação

da obra musical depende dessa marcação rítmica; o trabalho de criação é um

trabalho com o tempo, cortando a constância do silêncio, trabalhando com a “tensão-

distensão” (Boulez, 1972: 25) do material que lhe é próprio, em especial a altura e a

duração das notas (Ibid.: 35), e produzindo um novo objeto, não o que se esperava

encontrar, mas um possível.

Este material de base que Schaeffer (1966: 95), como vimos, denomina de

objeto sonoro é também assim denominado por Boulez (1972: 40), que lhe

acrescenta o adjetivo “concreto”. O objeto sonoro concreto seria o que engendraria a

estrutura do universo sonoro-musical, podendo, porém, segundo o autor (Ibid.: 42),

se diferenciar os sons brutos dos sons trabalhados. Entendemos que, de um caso a

outro, há uma escolha de um sujeito que tomará uma marca sonoro-musical e a

situará em um conjunto em relação a outras, formando uma cadeia. Tais marcas, já

arranjadas, terão função significante.

Deste modo, o sonoro ascende ao musical quando, por ação humana, os

sons são trabalhados e organizados de tal forma que, como por exemplo, no caso da

música ocidental, são formalizados, por suas diferenças, em doze semitons

conforme o sistema temperado tradicional (Ibid.: 43).

Há, portanto, um corte no sonoro que tem efeitos de perda neste universo

“natural” e que somente depois de efetuado tal corte se poderá dizer que estes sons

se tornam musicais e podem ser utilizados na criação de uma música. Além disso,

este corte também produzirá efeitos temporais e espaciais para os sujeitos. Boulez

(Ibid.: 84) aborda a função de corte na dialética entre o contínuo e o descontínuo, na

“possibilidade de cortar o espaço segundo certas leis” (Grifos do autor).

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Em psicanálise, como estudamos com Lacan (1964/1998: 196), é preciso,

para o advento do sujeito, que se faça um corte entre o bebê e o Outro, produzindo

uma borda. O contínuo do bebê, enquanto organismo vivo, é perdido e este passa

ao descontínuo, lacunar e pulsante do sujeito do inconsciente.

Em que o corte de que nos fala Boulez se aproxima do corte apresentado por

Lacan? Ambos os autores partem de um referencial estruturalista; porém, isto nos

autorizaria a aproximá-los? Notamos na posição de ambos que o corte de que se

trata faz com que seja possível se passar ao campo do simbólico, tratar

determinados sons musicais por um conjunto de regras, de um lado, e passar a

sujeito da fala pela transmissão da Lei. Aliás, no primeiro caso, só se pode fazer este

corte entre o som bruto e trabalhá-lo posto que há um sujeito ali.

A aproximação que fazemos se dá, então, na medida em que no trabalho de

criação musical, com este material concreto musical, é preciso, como destaca

Boulez (1972: 84), que se escolha um padrão e que este último não é dado, é uma

construção. Se há escolha, há um sujeito a escolher, mesmo sem saber, a partir de

uma posição singular com o objeto causa de desejo. Temos aí uma escolha de uma

escolha. E nela o sujeito do inconsciente pode emergir, ainda que sob forma de

surpresa.

Nesta escolha, o sujeito que cria transmite algo pela obra de forma cifrada,

fala de sua posição e do vazio enigmático de sua constituição. Este vazio, como

ressalta Lacan (1959-1960/1997: 153), estará no centro do objeto criado pela

“modelagem do significante” a partir deste furo real. É porque este furo existe que se

cria e continuará criando, laborando através dos significantes, no caso do

compositor, neste “campo de batalha” que é a música, como nos diz Ferraz (2005:

18).

Na obra freudiana, temos notícia deste real quando o autor (1900/1990: 482)

descreve em A interpretação dos sonhos o umbigo do sonho. Cabe, aqui, situar esta

discussão. Neste momento de sua teoria, Freud (Ibid.: 489) estuda os sonhos como

atos psíquicos cuja

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força propulsora é, na totalidade de casos, um desejo que busca realizar-se; o fato de não serem reconhecíveis como desejos, bem como suas múltiplas peculiaridades e absurdos, devem à influência da censura psíquica a que foram submetidos durante o processo de sua formação; à parte a necessidade de fugir a essa censura, outros fatores que contribuíram para sua formação foram a exigência de condensação de seu material psíquico, a consideração a sua representabilidade em imagens sensoriais e – embora não invariavelmente – a demanda de que a estrutura do sonho possua uma fachada racional e inteligível.

Vemos nesta citação resumidos os principais conceitos relacionados aos

sonhos, de grande complexidade, e que dizem da própria estrutura do inconsciente,

que, em Lacan (1955-1956/2002: 252), foram relacionadas à estrutura de uma

linguagem e à operação da metáfora e da metonímia. No trabalho da análise, o

sonho será dado à decifração, o que faz com que se possa, pela associação livre do

analisante e pela interpretação do analista, passar do sonho manifesto ao sonho

latente. Isto porque

as modificações a que os sonhos são submetidos na redação |Redaktion| da vida de vigília tampouco são arbitrárias. Estão associativamente ligadas ao material que substituem e servem para indicar-nos o caminho para este material, que, por sua vez, pode ser substituto de alguma outra coisa (Freud, 1900/1990: 473).

Ou seja, Freud nos indica que através dos sonhos e, também, do trabalho de

análise, podemos ter acesso a esta Outra coisa inconsciente.

Entretanto, por mais que os elementos oníricos e da fala do paciente possam

ser interpretados, revelando as redes a que se atrelam, suas determinações e

ramificações inconscientes, haverá um ponto irredutível a qualquer interpretação,

algo que nenhuma palavra ou imagem (visual ou acústica) poderá dizer, algo que é

“insondável” (Ibid.: 132). Nas palavras de Freud (Ibid.: 482):

Mesmo no sonho mais minuciosamente interpretado, é freqüente haver um trecho que tem de ser deixado na obscuridade; é que, durante o trabalho de interpretação, apercebemo-nos de que há nesse ponto um emaranhado de pensamentos oníricos que não se deixa desenredar e que, além disso, nada acrescenta ao nosso próprio conhecimento do sonho. Esse é o umbigo do sonho, o ponto onde ele mergulha no desconhecido.

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Toda e qualquer rede de significantes, podemos assim dizer com a tradição

lacaniana, encontrará invariavelmente este ponto real, não submetido a nenhuma

palavra. Não apenas nos sonhos, mas em toda expressão humana, incluindo aí,

obviamente, a música.

E não são apenas os psicanalistas que observam este ponto. Boulez (1992:

50-51), baseando-se em André Breton, nos diz de um “núcleo noturno, inquebrável”

no compositor, acrescentando que “mesmo se quisesse, ele não poderia destruir em

si esta fonte profunda e inesgotável de irradiação”.

O curioso é que ele associa o talento a este ponto de desconhecido (talento

de lidar com este ponto?), ligando-o, ainda, ao que chama de “experiência do vazio”

(Ibid.: 88). Diz ele: “O talento não é destruído pela experiência do vazio, mas tira

dela capacidades renovadas, um poder de invenção reativado”. Diríamos, deste

modo, que o “talento” do compositor e do músico intérprete residiria em criar a partir

do vazio, em lidar com ele, servindo-se dos recursos de que dispõem.

Antes de avançarmos, propomos uma breve pausa aproveitando a referência

feita à Interpretação dos sonhos freudiana. Chamou-nos a atenção o fato de termos

encontrado neste texto, dentre as poucas falas de Freud sobre música, uma em que

ele descreve que ao soar “alguns compassos musicais” de Mozart, estes poderão

despertar no sujeito “de uma vez só, inúmeras lembranças” que se enlaçam em uma

“rede” (Freud, 1900/1990: 458).

Lembramos que, sobre a técnica da interpretação, também encontramos em

Freud (1916[1915-16]/1990: 134) um comentário sobre música. Nele, conforme

citado em nosso primeiro capítulo, o conteúdo musical de uma melodia é

considerado por ele como tendo valor diferenciado para “pessoas realmente ligadas

à música” (Idem). É este conteúdo musical que determinará para estas pessoas o

surgimento inesperado de uma música em um sonho.

Voltemos agora para o núcleo noturno de Breton e Boulez e para o umbigo do

sonho de Freud, acrescentando a esta reflexão o vazio de das Ding de Lacan. Se a

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criação musical pode evidenciar este ponto, como ela o faz? Seria este o ponto que

une criador, intérprete e ouvinte?

Se, por um lado, o compositor e o intérprete podem transmitir algo de sua

posição frente ao vazio pela música, na escuta, o trabalho está do lado do ouvinte. A

música irá ressoar no vazio deste sujeito que ouve, produzindo efeitos nele. Ao

término da música, esta deixará vestígios no ouvinte e, com eles ou a partir deles,

este sujeito poderá, se assim se sentir impelido, fazer algo, tecer alguma coisa por

ter sido tocado neste ponto para além dos sentidos, ainda que esta produção

comporte sentidos, pela via da fantasia, por exemplo.

Em um mesmo instante, a obra musical põe ao sujeito uma série de

complexos fatores, mesclando sincronia e diacronia, harmonia e melodia, tensão e

resolução dos materiais musicais, pelo ritmo e pelas diferenças de alturas, pela

regularidade e pela surpresa, pela repetição de temas e frases, impondo-se como

um enigma para quem ouve.

Sobre esta trama musical, nos diz Wisnik (1989: 28-29):

uma das graças da música é justamente essa: juntar, num tecido muito fino e intricado, padrões de recorrência e constância com acidentes que desequilibram e instabilizam. Sendo sucessiva e simultânea (os sons acontecem um depois do outro, mas também juntos), a música é capaz de ritmar a repetição e a diferença, o mesmo e o diverso, o contínuo e o descontínuo. Desiguais e pulsantes, os sons nos remetem no seu vai-e-vem ao tempo sucessivo e linear mas também a um outro tempo ausente, virtual, espiral, circular ou informe, e em todo caso não cronológico, que sugere um contraponto entre o tempo da consciência e o não-tempo do inconsciente. Mexendo nessas dimensões, a música não refere nem nomeia coisas visíveis, como a linguagem verbal faz, mas aponta com uma força toda sua para o não-verbalizável.

Destacamos desta fala o contraponto entre uma ordenação temporal que a

música evoca e efetivamente produz e o “não-tempo” do inconsciente. Sobre esta

ordenação temporal da música, apesar de se poder mensurar a passagem do tempo

pela duração da obra, o que ela produz em cada sujeito é uma Outra coisa, por seus

efeitos inconscientes e não cronológicos.

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Repetição e temporalidades diversas também são centrais na concepção de

Ferraz (2005: 28) sobre o momento de escuta musical, sobretudo em uma primeira

audição. Passamos a palavra ao próprio compositor (Ibid.: 28-29):

Música é aquilo que se faz ao mesmo tempo em que se desfaz, que ganha uma realidade a cada instante, sempre lançada sobre o futuro. Quando se ouve música pela primeira vez, é no futuro que esta música está; ela cruza aquilo que não temos a menor idéia com um pouco daquilo que já conhecemos. Daí a música seguir a dinâmica da repetição, não a da simples reiteração circunscrita a um objeto, ao fenômeno sonoro, mas de uma outra repetição, totalmente a parte, em que a música não repousa apenas no sonoro. A repetição vista como o ato de repetir sempre a condição de trazer o diferente, de permitir novas conexões.

Este modo de apresentar a repetição aproxima-se do modo tal como Lacan

(1959-1960/1997: 256) descreve a pulsão de morte, enfatizando sua dimensão

histórica e sua característica de insistência, articulada, contudo, à cadeia significante

(Ibid.: 258). Assim entendida, a pulsão de morte visa a criação já que pode ser

pensada como “vontade de recomeçar com novos custos”, “vontade de Outra-coisa”

(Ibid.: 259), “vontade de criação a partir do nada” (Ibid.: 260).

Desse modo, Ferraz nos dá uma instigante contribuição para pensarmos de

que temporalidade se trata na música. Primeiro, como acima visto, nos diz que a

música, ao ser escutada, está no futuro, para depois complementar que

não é o ouvinte que está no futuro. O ouvinte está no presente brincando com o passado: é a matéria, grão sem forma ou de forma transiente, que “vai ao futuro” e traz, naquilo que é o plano de composição, forças que ainda não nos tinham sido reveladas (Ferraz, 2005: 44).

Perguntamo-nos se o sujeito que ouve não está na dimensão atemporal do

inconsciente, posto que é com este sujeito que a psicanálise lida, retirando, assim, o

pensamento de Ferraz de seu contexto deleuzeano e situando-o em Freud. Ou seja,

nossa pergunta se volta para a possibilidade de a música poder fazer esse

entrelaçamento entre futuro, passado e presente para quem a escuta por se

aproximar da realidade do inconsciente, na qual há a simultaneidade de traços

inscritos.

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Paradoxalmente, ela regula o tempo, substituindo o imprevisto pelo ritmado; a

constância da pulsão é regulada, sai do arítmico para o rítmico. O imprevisível da

incidência do objeto voz pode ser, ao buscá-lo (jogando com o tempo e com texturas

musicais que o silenciam), submetido a uma ordem, a uma lei.

O ritmo produz um corte no tempo contínuo, cronológico e instaura a

marcação de outra temporalidade. Encontramos idéias consoantes a esta no campo

musical. O musicólogo Roland de Candé (1983: 217), ao definir o ritmo, pontua que,

em música, ele tem um caráter relativo, já que é baseado em um tempo, ou

andamento musical, que, nas palavras do autor, “falseia a nossa maneira de medir

as durações”. Desta forma (Ibid.: 198), ele relaciona o ritmo à “expressão do ´tempo

musical´ em concordância com o ´tempo psicológico´”, desvinculando-os do “tempo

do relógio”, com o qual eles não têm medida. Trata-se da marcação de uma

temporalidade própria na música, que implicará os sujeitos com ela envolvidos.

Entretanto, no humano, o ritmo, decerto, não é exclusivo à música; é algo que

se apresenta precocemente ao infans, como nos evidencia Catão (2005: 121). A

autora (Idem) aponta que o “trajeto desenhado pela pulsão ao circundar o objeto –

trajeto que só é possível pela mediação de um outro (Outro)”, é o que possibilitará o

surgimento de uma ritmicidade.

Voltamos, com isso, a pensar na característica constante da força pulsional.

De fato, a pulsão é uma força constante, e é Freud quem nos dá a resposta para o

impasse que poderia daí surgir: essa força exige constantemente, repetimos,

trabalho ao psiquismo. Assim, ao ser colocada em trabalho, surge o circuito

pulsional, como estudamos no capítulo II. A busca de apreensão do objeto pelo

circuito pulsional instaura uma organização e um ritmo. Este vem de um trabalho

psíquico que ocorre pela linguagem.

Sobre este tema, Catão (Ibid.: 102-121) nos dirá que é preciso uma

organização psíquica prévia possibilitada pelo corte entre o bebê e a mãe, corte este

que se efetua pelo objeto voz. É nesse sentido que, segundo a autora (Ibid.: 208) a

voz “delimita as bordas que separam o corpo da mãe e o corpo do bebê. A voz é o

que funda, a um só tempo, sujeito e Outro”.

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Indo além, Catão (Ibid.: 121) defende que é pela musicalidade da voz e da

fala maternal que a alternância significante do simbólico pode tomar lugar, afirmando

que “ritmo é significante”.

Retomando a concepção freudiana do circuito pulsional em três tempos, vista

neste trabalho no capítulo II, e o circuito da pulsão invocante, por nós estudado no

capítulo III, podemos pensar em como o ritmo possibilita a elaboração do movimento

de separação no campo do Outro pela pulsação alternada de presença-ausência

(Ibid.: 128). Lembramos aqui do jogo do “fort-da” do pequeno neto de Freud que,

repetidamente, ritmava pela brincadeira sua separação com a mãe.

Didier-Weill (1999: 155) nos diz que a fala maternal é revestida de uma

“musicalidade invocante” que transmite as dimensões de harmonia – sincronia e

melodia – diacronia. Ela convida à simultaneidade, à continuidade e ao corte, à

separação. Também na música as dimensões da sincronia e da diacronia estão

presentes, de uma só vez, podendo-se associar a primeira à harmonia e a segunda

à melodia. Contudo, entendemos que também na constituição do sujeito elas se

apresentam em um mesmo instante.

Vale aqui ressaltar que por mais que possamos falar, e de fato falamos, em

harmonia como a característica vertical na música e a melodia como a horizontal, é

preciso tomar cuidado quanto a isso. Candé (1983: 118) afirma que “estas noções

muito artificiais às quais nos referimos ao falar das qualidades ´harmônicas´ ou

´contrapontísticas80´ de uma obra musical são ingenuamente deduzidas de uma

particularidade da notação”. Ao que conclui que, “com efeito, a música não é nem

horizontal nem vertical e raramente uma obra pode considerar-se exclusivamente

sob o seu aspecto harmônico ou contrapontístico”.

Ao sujeito em vias de sua constituição, a fala e voz da mãe dão um

testemunho de que há um sujeito ali, ela própria, que pôde ouvir a voz do Outro,

aceitar seu convite à subjetivação e torná-la inaudita, pela separação e pelo recalque

originário. Com a música, por outro lado, o sujeito ouvinte tem acesso a um outro

80 Estas relacionadas à progressão das linhas melódicas.

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testemunho, desta vez do compositor, de que foi possível fazer algo com o objeto

voz, organizando-se e criando em torno deste vazio.

Defendemos, portanto, que a música é capaz de testemunhar o inconsciente,

colocando em cena um real, a ausência do objeto a que ela tenta, em vão,

apreender em seu circuito, apenas circundando seu vazio e apontando para a Coisa,

e também de colocar em jogo a dimensão simbólica, discursiva, e imaginária, por ser

criação de um sujeito singular. Ela é assim, uma produção do inconsciente; porém,

diferentemente de um sonho ou um sintoma, ela não se coloca de forma a exigir

decifração81: ela, pelo contrário, causa aqueles que a ouvem.

Podemos afirmar que a música se estrutura como uma linguagem, por existir

nela um conjunto de materiais com os quais o compositor poderá trabalhar

relacionando-os entre si a partir de suas diferenças, reunindo-os em cadeias,

formando temas, frases, melodias. Como vimos no primeiro capítulo, encontramos

autores no campo musical que afirmam a música deste modo, defendendo que ela

comporta uma morfologia e uma sintaxe próprias, tal qual uma linguagem. Assim

sendo, poderíamos aproximá-la do conceito de inconsciente? Em que medida?

Sobre esta aproximação, destacamos que o psicanalista François Dachet

(2001: 4) aponta que a escrita clássica musical se fundamenta nos princípios da

harmonia e da melodia, sendo estes parâmetros de orientação para a criação

musical. Em seguida, (Ibid.: 7-8), os relaciona, respectivamente, aos conceitos

lingüísticos de metáfora (por suas características de transversalidade,

simultaneidade e combinação) e de metonímia (por serem ambas longitudinais,

sucessivas e passíveis de substituição).

O psicanalista François Regnault (2002: 4-5) propõe que a música traz

dimensões dos três registros estipulados por Lacan, do real, por remeter ao vazio,

do simbólico, por ser um discurso, e do imaginário, pelos efeitos singulares que pode

81 Como vimos no capítulo IV com Attié, é o sintoma que demanda decifração, exigindo interpretação e trabalho de análise. A arte parte de outro ponto. Nela, o artista pode cifrar algo de seu inconsciente sem que isso implique em demanda de análise. Da mesma forma, o fruidor, ao se deparar com algum estranhamento ou fascínio diante da obra, ou seja, ao ser por ela causado, também não implicará que isto se converta em pedido de decifração, por mais que isso possa vir a acontecer.

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gerar em cada ouvinte. Isto porque a trama da composição musical pode ser

entendida como análoga à composição do inconsciente.

Como destacamos em outro lugar (Azevedo, 2003: 68-69), este mesmo

psicanalista afirma que a música não é estruturada como uma linguagem dentro dos

parâmetros saussurianos. A isto, respondemos que, por ser a música uma resposta

de um sujeito a uma exigência pulsional, ela surge como expressão psíquica, sendo

sua linguagem “uma construção que tratará de normatizar e formalizar esta arte”

(Ibid.: 69).

Ao que acrescentamos, com Candé (1983: 74), que “as leis da música, não

sendo postuladas a priori, terão de ser extraídas, pouco a pouco, da análise das

obras-primas”. Para este autor, estas leis formam um conjunto que, apesar de poder

ser ensinado àqueles que almejam se tornar compositores, não lhes é suficiente

para criar suas obras originais. Diz ele (Idem): “a intuição do gênio, muito mais

rápida, encontra-se necessariamente, muito mais avançada”. Ou, nas palavras do

compositor Arnold Schoenberg (1967: 1):

Um compositor, é claro, não adiciona pouco a pouco, como uma criança o faz ao construir peças com blocos de madeira. Ele concebe uma composição inteira como uma visão espontânea. A partir daí ele procede, conforme Michelangelo que criou seu Moisés retirando-o do mármore sem rascunhos, completando em cada detalhe diretamente dando forma ao seu material.

Também Stravinsky (1999: 10) indica que o trabalho de compor se antecipa e

é, de certa forma, autônomo à teoria musical, que, em suas palavras, é uma

“percepção retrospectiva” que “pode ser deduzida de certas composições”. Embora

um compositor se utilize de uma linguagem musical comum a “uma determinada

época e escola”, Stravinsky (1996: 70) indica que “o modo particular com que um

compositor organiza suas concepções e fala a linguagem de sua arte” é o que

determina seu estilo. Ou seja, ao se servir da linguagem, criando de forma singular e

única, um sujeito elabora seu estilo próprio, sua própria voz, “falando” o seu lugar e

seu vazio.

Interessa-nos, ademais, destacar que é a partir deste material musical que o

compositor poderá criar a música com uma estrutura que não pode ser reduzida a

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qualquer outra forma de arte. É com este material, o som musical, que ele poderá

tecer articulações e construir frases, motivos, formas musicais, temas e melodias.

Schoenberg (Ibid.: 8) afirma que estas construções, como os motivos e temas,

apresentam-se na melodia como conjunto de ritmos e intervalos, com uma harmonia

inerente, combinados de modo a produzir uma forma ou contorno que possa ser

memorizado a fim de ser repetido e variado. Entendemos que a repetição assegura

o sujeito que ouve de uma certa regularidade e, até mesmo, previsibilidade,

enquanto que a variação traz a repetição como diferença, trazendo uma surpresa e

imprevisibilidade.

Poderíamos, assim, pensar que a obra musical, enquanto criação estética é

também ética, ela aponta para o real sem servir de engodo ao sujeito, tal como

Lacan (1959-1960/1997: 265) nos diz do belo no Seminário A ética da psicanálise.

Neste, Lacan (Ibid.: 289) afirma que a criação do belo comporta um valor cifrado na

obra de arte, ressaltando, deste modo, a relação entre o desejo e o belo. “Essa

relação é ambígua. Por um lado, parece ser possível que o horizonte do desejo seja

eliminado do registro do belo. E, no entanto, por um outro lado, ele não deixa de ser

manifesto” (Ibid.: 290).

A psicanalista Marie-Claude Lambotte (1996: 693), seguindo J. e A. Caïn,

propõe que a realidade própria da música possui uma “proximidade excessiva do

tipo da realidade do inconsciente – em particular no que concerne à temporalidade”.

Sem, contudo, aprofundar-se neste aspecto, nos sinaliza que o tempo musical é,

“antes de mais nada, um tempo de escanção, um tempo de movimento e ruptura”

(Ibid.: 698).

Por outro lado, sua via vai em direção de buscar ver como o inconsciente se

expressa na música, admitindo nela a presença do objeto voz (Ibid.: 697). Para a

autora, a música poderia alcançar um aquém e um além da expressão,

transcendendo-a deste modo. Em suas palavras (Idem):

A música, por esta dupla capacidade – de fazer o melômano regredir a fontes pulsionais há muito esquecidas, e de fazê-lo aceder, ao mesmo tempo, à apreensão de combinações formais intangíveis –, se auto-expressaria,

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independentemente de qualquer interpretação concernente a uma interpretação externa a ela.

Esta característica de uma certa intradutibilidade da música também é

ressaltada pela psicanalista Dinara Guimarães. Para ela, mais do que não comportar

tradução, a música encontra-se no registro do indizível. Nas palavras da autora

(Guimarães, 2004: 60), “a música exprime o quanto há palavras que não se pode

dizer”.

Entretanto, não podemos assumir que este aquém ou além das palavras

queira dizer de um “pré-verbal” ou de um fora do domínio da linguagem ou da fala.

Ao tocarmos, compormos ou ouvirmos uma música não deixamos o verbal e nos

transportamos para um registro no qual as palavras deixam de existir. Compositor,

intérprete e ouvinte ainda se encontram sob efeito da linguagem. No entanto, a

música comporta um indizível, um ponto sobre o qual nenhuma palavra ou mesmo

som musical pode dizer, da mesma forma como não o faria um passo de dança, um

filme ou um quadro.

Não existirá, portanto, o "não-verbal" no campo simbólico, e menos ainda o "pré-verbal". O domínio do verbal não é uma conquista do desenvolvimento cognitivo ou simbólico, mas uma condição inerente ao falante como tal. Como ser de linguagem, o sujeito humano se constitui no domínio verbal. Trata-se de um domínio no sentido de um campo, um território, um universo, que contém e subsume o sujeito, mais do que um domínio de uma função, isto é, de algo que o sujeito pode dominar ou não (Elia, 2004: 21).

A partir deste ponto, Lambotte (1996: 697) se detém a pensar na questão da

satisfação que encontramos ao ouvir uma música para pensar na natureza desta

arte. É interessante notar que, ao falar da música como autônoma, não precisando

de outras formas de linguagem para ser explicada, nem, acrescentaríamos,

precisando de explicação, apesar de deixar rastros nos sujeitos, Lambotte (Idem),

recorre ao filósofo Daniel Charles. Este descreve a música como desenvolvendo um

“tremor surdo” e pertencendo ao nível da cifra. Nas palavras do filósofo (Charles

apud Lambotte, 1996: 697): “O abalo vem de mais longe. E deixa vestígios: são

esses vestígios que, como escrita, se prestam à decifração”.

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Destacamos, contudo, que essa “decifração” somente poderá ganhar lugar

caso o sujeito ouvinte seja levado a falar de tal abalo causado pela música para

alguém que possa acolher esta fala, a saber, o analista. Se a música apresenta um

saber cifrado do compositor e se, no pólo do ouvinte, ela poderá causá-lo a ouvir

algo dele mesmo, é preciso um outro encaminhamento para que, a partir daí, possa

se dar um trabalho de decifração. A obra de arte musical, tanto para quem a cria,

interpreta ou ouve, não é análoga ao processo de uma análise, embora, notamos,

possa haver mudanças no sujeito a partir dela.

Também Regnault (2002: 5) destaca na música uma característica de

decifração, porém, separando o campo teórico da música de um campo clínico, no

qual, entendemos, a música pode ser acolhida e ouvida dentro do trabalho analítico.

No primeiro plano, teórico, ele define a música como “o exercício de psicanálise

inconsciente do sujeito que não sabe que goza da decifração” (Idem). No plano

clínico, sua definição de música é de que ela é “um exercício clínico de uma cura no

qual o sujeito não sabe que se cura”.

Não focalizaremos esta segunda definição, posto que visamos neste trabalho

refletir sobre a música enquanto arte. No entanto, quanto à primeira, nos chama a

atenção que ela se detenha sobre um saber que o sujeito que cria transmitiria, de

forma cifrada, sobre sua posição. Sem saber, o sujeito que cria tem a chave para o

enigma de sua criação, ainda que essa chave seja um outro enigma, sobre o desejo

do Outro.

Passaremos, agora, a focalizar separadamente, apesar de já termos

abordado neste espaço os dois próximos temas, a criação e, posteriormente, a

escuta musical.

V.2 – Criação musical: alinhavo entre sons e silêncio

Vimos no capítulo anterior como a psicanálise se aproxima da criação artística

a partir das considerações freudianas sobre a sublimação e das lacanianas que

enfocam, mais do que um destino pulsional, o trabalho de criar novos objetos que

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possam atuar como causa de desejo. Há, evidentemente, pontos em comum em

toda criação de obras de arte e pontos em que os meios próprios de cada produção

artística serão determinantes. Pretendemos, neste momento, investigar alguns

destes últimos pontos no que concerne à música.

Iniciaremos esta tarefa mais uma vez com a ajuda do pintor Paul Klee. Ele

nos apresenta a idéia de que o “impulso” criador somente ganha forma quando

trabalhado com os recursos materiais de que o artista dispõe para criar. E neste ato,

sempre singular e único, o artista alcança além do que está presente nesta

materialidade.

O que surge deste impulso pode ser chamado como quiserem, sonho, idéia ou fantasia, mas só pode ser considerado seriamente quando se liga aos meios plásticos próprios para lhe darem forma. Então aquelas curiosidades se tornam realidades, realidades da arte, que levam a vida para além do que ela aparenta ser por uma perspectiva mediana. Porque as obras de arte não só reproduzem com vivacidade o que é visto, mas também tornam visível o que é vislumbrado em segredo (Klee, 2001: 66).

Nesta fala, temos a especificidade de um pintor falando de sua arte, de como

ela, por seus meios específicos, consegue bordear o invisível e dar a ver algo de real

que não pode ser apreendido pelo simbólico nem, tampouco, pela fantasia. No caso

da arte musical, entendemos que o ato significante da criação da obra, por sons

musicais e silêncios, contorna, igualmente, o inaudito.

Sobre este ponto, lemos em Diddier-Weill que a arte pode “tocar” o além do

que é visto, ouvido ou do que é concreto. Ela pode apresentar formas de lidar com o

invisível, o inaudito e o imaterial (Didier-Weill, 1997: 20). O autor nos apresenta

estes termos ao falar de três faces distintas do contínuo e do ilimitado, ou, mais

claramente dizendo, da continuidade entre o real, o simbólico e o imaginário. Seriam,

defende ele (Idem), as interseções entre o real e o simbólico (inaudito), o simbólico e

o imaginário (invisível), e o imaginário e o real (imaterial).

Não nos aprofundaremos na tese de Didier-Weill, contudo, nos serviremos

destes termos para pensar os efeitos da arte. Caminharemos, como já

demonstramos acima, com a idéia do invisível que é “vislumbrado em segredo” de

Klee e, com Lacan (1964/1998: 99), com o que se é dado a ver no quadro e que, de

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fato, lá não está. De forma análoga, podemos dizer que há na música algo que não

se ouve e que a move, algo inaudito com o qual o compositor sabe habilmente lidar.

Ouvimos na música mais do que as notas que a compõem.

Ao estudarmos a sublimação, percebemos que há um vazio central e

estrutural na criação artística, algo que marca a própria condição humana. Contudo,

para o artista, não basta se defrontar com este vazio; o artista faz algo com ele, com

recursos que especificam uma ou outra arte. Assim sendo, a criação, nos diz Alencar

(2004: 7-8), passa por momentos distintos.

Diríamos que o processo de criação pode ser situado, resumidamente, como incluindo: 1- uma determinada experiência com o vazio significante, que, por reportar à impossibilidade do gozo, implica na invenção, por parte do sujeito, de um objeto, criado para supri-lo; 2- a escolha de um suporte material para margear esse vazio, funcionando ao nível da letra, ou seja, distinto do próprio significante; 3- a assunção pelo sujeito de um produto deste ato, que, investido de função significante, esteja em posição de causar efeitos de significação.

Vemos nesta citação a delimitação de três momentos lógicos, que são,

contudo, simultâneos, na criação ex nihilo de um novo objeto a partir de uma dada

materialidade, cujo efeito será o de poder servir como causa para outros sujeitos.

Esta concepção vai ao encontro da descrição sobre a composição musical feita por

Candé (1983: 73-74):

A primeira fase da criação musical é a escolha de uma “escala” de sons, determinada apenas pelas relações de altura (…). Adquiridos os materiais, o verdadeiro trabalho do compositor consiste na distribuição dos sons sucessivamente (melodia) e simultaneamente (harmonia) variando harmoniosamente as suas intensidades (cambiantes), as suas durações (ritmo) e os seus timbres (instrumentação). Ele inventa e combina ou “compõe”. A arte de inventar não se ensina, pertence à inspiração.

Propomos uma breve pausa para trazer um pequeno exemplo quanto à última

frase deste autor acerca da composição. Machado de Assis (1962: 72), em seu

conto Um homem célebre82 nos narra a estória de um compositor em sua divisão

entre compor o que sua “inspiração” lhe indica ou seguir o caminho dos grandes

mestres que admira. Entre quadros de Mozart, Beethoven e Haydn, o compositor e

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pianista de Machado de Assis, Pestana, busca “nas profundezas do inconsciente”

(Idem) uma idéia que se assemelhasse às obras destes mestres, estudando-as e

esforçando-se em compor como eles. Contudo, o que encontrava, à revelia de seu

estudo e afinco, eram polcas. O conto é de uma riqueza que não exploraremos aqui.

Apenas o apresentamos a título de complementar a idéia de Candé acima descrita.

O processo de criação de uma obra musical, de certo, será particular a cada

sujeito compositor e, até mesmo, a cada peça criada. No entanto, defendemos que

toda criação partirá de um encontro de um sujeito com o vazio, que colocará em jogo

o circuito pulsional visando contornar o objeto voz, de forma que a peça criada será

uma resposta singular do sujeito que a criou.

Encontramos no artigo Da voz à música: o grão e o resto, de Alencar (1997:

356-357), um rico exemplo do processo de criação de um compositor, mantido

anônimo pela autora. Tomaremos este caso para trabalharmos a questão da criação

musical, portanto, faz-se necessário que citemos integralmente o testemunho deste

compositor:

Pediram-me, outro dia, de uma hora prá outra, que eu compusesse uma peça para um quarteto de cordas. Perguntei quanto tempo eu tinha para isso e a resposta foi: não tem tempo. É prá já, é prá ontem. Isolei-me no silêncio/escuro do meu quarto à espera, premido pela urgência do pedido, visto que a única condição era a pressa, e a liberdade de escolha, de resto, era total – “faça como quiser, queremos a peça”. Como eu quiser? Qual nada. Não fiz nada. Recolhi-me ao nada, ao silêncio. Ative-me a não pensar em nada. E, curioso, me dei conta de repente que duas linhas melódicas distintas, não-sonoras (pois tudo era silêncio no escuro do meu quarto), na forma de dois sons diferentes de trompetes se impuseram à minha escuta, em súbita expansão no espaço-tempo. Surpreso, urgia me incluir nesse processo, o que fiz. Procurei rapidamente registrar as duas linhas, e tratei de “esgarçar” sua harmonia, abusar o que pudesse de seus limites (tonais), interpondo-lhes súbitas texturas (de cordas, já que me pediram), pois que expandindo e contraindo o campo, deslocando ou suspendendo os acentos, punha-se em marcha um tal processo, instável e estável a cada novo ponto, tecendo num alinhavo entre o som o silêncio. Aí parou. A peça estava pronta, eu podia assiná-la naquele instante.

Nessa bela fala, podemos destacar diversos pontos de nosso interesse: o

aspecto de um pedido exterior para a criação da peça (que poderia ocupar o lugar

82 Agradeço à colega de Mestrado Luciane Negrini pela indicação deste conto para o enriquecimento de minhas reflexões sobre música e psicanálise.

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de uma demanda ou, ainda, mesclar-se com o enigma do desejo do Outro, fazendo

com que este compositor se direcionasse ao ato de criação), o tempo e a pressa

presentes neste exemplo (a “urgência do pedido”), a experiência com o nada e com

o silêncio, as idéias musicais que se impõem à escuta do compositor, a inclusão

deste (enquanto sujeito que tece e cria) no processo, o trabalho com o material

sonoro e, por fim, a dimensão da autoria.

Antes de nos aprofundarmos nestes pontos, propomos seguir o

encaminhamento que Alencar (Ibid.: 357) deu à discussão desta fala. Destacamos,

com ela, o trabalho de lidar com o material musical de forma tal que o ato de criação

traz a dimensão de perda, corte, contração e expansão, e tem como conseqüências

a produção de uma obra única.

Neste mesmo artigo, a autora (Ibid.: 355-356) se utiliza do exemplo da cantora

Janis Joplin para pensar a questão da voz que canta e do objeto voz que advém da

música como vestígio, adicionando a esta reflexão o conceito de “grão da voz”

emprestado de Roland Barthes. Este seria o que resta da voz, o que não é redutível

à significação e que dá a singularidade de cada sujeito, aproximando-se, assim, do

conceito de objeto voz lacaniano. Com estas coordenadas, Alencar (Ibid.: 357)

conclui que

Se criar em música implica em velar a voz-objeto, torná-la afônica, há que sobreviver da voz um resto, um mínimo vestígio. E mesmo muda, a pulsão tem que premir a invocação e contornar, infinita, o “grão” da voz. Pois, para além da dor de Janis e da pressa de compor de nosso músico, mas tecendo com isso, se arma a tela, anteparo melódico, que na voz dela se expande e goza do “grão” que apela ao Outro; e nos trompetes que ele escuta se transmutam, em metal fônico, vozes-vibratos-sopros daqueles que não se ouvem por orelhas, que são imagens (eidos), mas que são acústicas (estão no acervo do compositor) e atravessam no processo da inventiva o tráfego imagético, e fazem nó entre silêncio e som.

Podemos, agora, avançar em nossa reflexão com mais estas idéias. A

composição de uma música faz com que marcas e traços que estão no “acervo do

compositor” possam ser reordenadas e trabalhadas (expandidas, implodidas,

tensionadas, distensionadas), ganhando relações com outros traços, ganhando

corpo melódico e harmônico, tonalidades e timbres, passando a ter função

significante.

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Segundo Stravisnky (1996: 9), o trabalho de compor uma obra passa pela

“exploração das possibilidades” do material musical, que propicia o estabelecimento

de “relações rítmicas entre os intervalos”, ato este que pode ser anterior ao

surgimento de uma idéia musical propriamente dita. Deste modo, ele afirma que “o

ato de compor é a expansão e a organização posteriores do material com que

trabalho” (Idem).

O trabalho de criação a partir de certas idéias musicais também recebeu de

Mozart (apud Bassine, 1973: 175-176) um interessante comentário, encontrado em

uma carta na qual o compositor responde a um amigo acerca de seu processo de

escrita. Diz ele83:

Se me sinto bem e estou em boa disposição de espírito (...), as idéias me chegam claramente em profusão. De onde e como vêm? Não sei e nada posso fazer para saber. Aquelas que me agradam, retenho na memória e cantarolo para mim mesmo, como me dizem os outros. Se as retenho bem, vem-me rapidamente ao espírito como posso utilizar um fragmento qualquer para compor um conjunto em relação a um contraponto, ao som de instrumentos diversos, etc. Este processo me emociona profundamente, sobretudo se ninguém vem me incomodar. Minha inspiração vai crescendo, eu a atiço e a torno mais clara, a tal ponto que ela se organiza em minha cabeça sob aspecto quase terminado, mesmo se adquire grandes proporções. Posso, em seguida, contemplá-la mentalmente em conjunto, como um quadro magnífico ou uma bela pessoa, e não sucessivamente, por partes, como se dará posteriormente, quando a reproduzir em minha imaginação, mas como um todo, de uma só vez. É um verdadeiro banquete! Encontrando-se tudo isso, cria-se como em um maravilhoso sonho. A percepção como um todo da obra musical completa é o que há de mais belo. O que crio desta maneira, não esqueço facilmente e este é provavelmente o mais belo dom que recebi de Deus. Quando passo depois à escrita, tiro do sótão de meu cérebro o que lá havia sido guardado antes como descrevi. É por isso que tudo se passa rapidamente para o papel. Porque a obra já está, como disse, propriamente pronta, e raramente se distingue daquilo que era em minha cabeça. É por isso que, quando escrevo, qualquer um pode me importunar, andar ao meu redor, que não me impede de escrever. Eu mesmo posso tagarelar toda espécie de coisas. Mas o que faz com que minhas obras adquiram precisamente um caráter mozartiano e não que sejam compostas da maneira de um outro qualquer? Exatamente pelo mesmo modo que meu nariz ficou longo e arqueado e adquiriu uma forma mozartiana e não uma outra.

83 Tomamos a liberdade de traduzir para nosso idioma o texto reproduzido por Bassine (1973: 175-176) em francês.

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Aproximamos esta poética descrição do trabalho de criação da anteriormente

por nós aqui apresentada, ressaltando que, ao contrário daquela, vemos neste caso

o surgimento das idéias musicais sem que qualquer pedido externo tenha sido feito.

Nesta descrição, de forma análoga a de Schoenberg anteriormente por nós

apresentada, a peça musical vai se apresentando como um conjunto completo ao

compositor, que a transcreverá posteriormente na partitura. O trabalho de criação

musical se apresenta, assim, desligado do processo posterior de escrita na partitura;

o que ocorre é uma escrita da própria obra, por seus meios especificamente

musicais, naquele que a criou.

Fazemos uma ressalva, destacando que estes casos não são por nós

tomados como uma generalização do processo de criação musical, posto que

entendemos que cada ato de criação é único e singular. Procuramos tomá-los para

enriquecer nossas reflexões e dar voz em nosso trabalho àqueles que, de fato, criam

a música, ponto que se apresentou a nós como enigma e que assim continuará

sendo, por mais que nos coloquemos a estudar, ouvir e tocar. Entendemos que não

há uma resposta possível para dar conta da criação, mas, estudando-a, podemos

avançar um pouco mais neste misterioso terreno do humano.

Cada criação, repetimos, será única, ao que acrescentamos, com Boulez

(1992: 39), que

Se nos interrogarmos com franqueza, chegamos à conclusão de que as obras nascem de maneiras complemente diferentes. A idéia primeira raramente se apresenta sob um aspecto idêntico. O que nos incita a começar uma obra? Pode ser uma idéia muito geral de forma, totalmente independente de qualquer “conteúdo”: esta forma deverá encontrar pouco a pouco os intermediários para poder manifestar-se; o projeto inicial, que existe em linhas gerais, se ramificará em descobertas de detalhe.

Para além da gênese das idéias da obra, campo este que nos escapa e o qual

não temos a pretensão de alcançar, estas impõem ao compositor um trabalho com o

material musical, trabalho pela linguagem que lhe é própria. Neste, complementa

Boulez (Ibid.: 97), se faz necessário ter “a capacidade tanto de escolha quanto de

recusa” para que se possa “operar uma escolha no universo indeterminado e amorfo

do início” da atividade de criação.

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Quanto a este ponto, somos levados a pensar nas operações da Behajung e

da Ausstossung freudianas, conforme delimitadas pelo autor no artigo A negativa,

pelas quais o sujeito, em sua constituição, aceitará ou recusará e expulsará

determinados pontos, constituindo-se deste modo. Na criação estão implícitos um

sim e um não que delimitam o campo com o qual o compositor irá trabalhar, uma

seleção (Stravinsky, 1996: 69) que leva para a organização daquilo que foi

escolhido, ainda que este ato tenha sido feito sem se saber.

Neste trabalho de criação, a surpresa e as descobertas possuem um lugar de

destaque, diz Stravinsky (1996: 54). Para ele, “toda criação pressupõe, em sua

origem, uma espécie de apetite provocado pela antevisão da descoberta”, fato que

também é possível notar nas falas de Mozart e do compositor anônimo, acima

citadas. A surpresa implica, ainda, em uma experiência com algo desconhecido e

inesperado, que Stravinsky (Ibid.: 56) chama ora de “acaso”, ora de “acidental” (Ibid.:

57), do qual se pode “extrair inspiração” e também procurar prazer. Não podemos

deixar de relacionar esta fala à “experiência com o vazio” de que nos fala Alencar e

também ao “núcleo noturno” de Boulez.

Tocamos agora, com Stravinsky, na questão do prazer que o compositor

obtém na criação e não podemos passar por este ponto sem nele nos aprofundar.

Este prazer pode ser obtido tanto pelo trabalho com os elementos musicais quanto

pelo ato de criar, organizando sons e silêncios diante deste vazio. Veremos como

Stravinsky (Ibid.: 55) nos fala a respeito disso:

A idéia de um trabalho a ser feito está, para mim, tão estreitamente ligada à idéia do arranjo dos materiais e do prazer da confecção concreta que a obra proporciona que, se o impossível acontecesse, e a obra de repente me fosse dada numa forma perfeita e completa, eu ficaria embaraçado e perplexo com isso, como ficaria como uma fraude.

Já nos dizia nosso compositor anônimo (apud Alencar, 1997: 356-357) que,

diante de um nada silencioso ao qual ele se recolheu, tendo percebido algumas

linhas melódicas que se impuseram à sua escuta, ele tratou de se “incluir no

processo” e, expandindo e cortando sons, tempos, silêncios e timbres, laborar com a

linguagem a ele disponível para produzir um novo objeto, a obra musical.

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De certo, há neste trabalho um prazer, parcial, conforme o entendemos na

psicanálise, do lado do compositor. Podemos ir além e falar de um gozo no trabalho

com o material musical, que também se apresentará, de forma diferenciada, ao

intérprete, gozo neste laborar com a linguagem que faz com que o próprio corpo do

artista compareça, seja pelas ressonâncias que a música produz, seja por colocar

em jogo o circuito pulsional (o que implica na dimensão da fonte e da zona erógena,

da borda do orifício corporal).

Destacamos que Stravisnky (1996: 55), ao falar da surpresa na criação e do

prazer nela encontrado, localiza um dever do compositor quanto à música, que

entendemos se tratar de uma posição ética. Diz ele (Idem): “Temos um dever em

relação à música, que é inventá-la”. Extrair do vazio a música, transmitindo àquele

que ouve esta experiência, é, em nossa concepção, um ato ético.

Nesse sentido, o ato ético de criar a música deve ser relacionado à dimensão

do Outro. Como vimos ao abordar a constituição do sujeito, há neste momento um

enigma do desejo do Outro que é transmitido a ele como uma pergunta, “Che vuoi”,

“Que queres?”, “O que o Outro quer de mim?”. E, sem nunca obter “a” resposta a

este mistério, sem nunca obter aquilo que completaria o sujeito e lhe traria um gozo

pleno, com esta falta radical e estrutural, o sujeito se mantém em movimento,

obtendo pequenas e efêmeras satisfações, criando respostas, apesar e com o vazio.

A música poderia, então, ser pensada como uma resposta possível a este enigma,

resposta diante desse impossível real, que o demarca, contudo, sem engodar o

sujeito, trazendo alguns vestígios dele.

Em Stravinsky (Ibid.: 65), encontramos uma fala que aproxima nossa hipótese

psicanalítica ao campo musical: “À voz que me ordena criar respondo primeiro com

temor; depois me reconforto assumindo como arma aquelas coisas que participam

da criação, mas que ainda estavam fora dela”. Temor, ou angústia, sinal da

intervenção do objeto a, como define Lacan (1962-1963/2005: 98) apoiando-se em

Freud. Reconforto por tomar para criar justamente aquilo que estava externo à

criação, a voz enquanto vazio, impossível de apreender, ausência presentificada por

seu contorno. Ou, ainda, trabalho de fazer com que o “nada” que as notas são

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separadas umas da outra (Stravinsky, 1999: 89) possa se tornar algo se

relacionadas a outras, ganhando uma “posição intervalar” (Idem) em um conjunto.

Enquanto ato ético, deste modo, a criação transmite um saber do lado do

compositor que ele sabe sem saber, e que passa, como vimos, por um

endereçamento ao Outro, na medida em que um sujeito fala, ou melhor, musica, sua

posição singular, e sua resposta, a obra, se dirige ao ouvinte, ficando no campo da

linguagem. A obra musical se torna, ao ser criada, um objeto passível de causar

outros sujeitos.

A psicanalista Ana Costa (2003: 13), ao se questionar sobre O que é um ato

criativo?, nos ajuda a esclarecer este ponto. Segundo a autora, todo ato criativo

“carrega seu autor” (Idem), acrescentando que a produção e o endereçamento

estão, aí, em um mesmo lugar, podendo, eventualmente, até mesmo, se confundir.

Nas palavras da autora, encontramos a explicação para isto, na medida em que:

O endereço é o motor do ato, permanecendo inconsciente e somente se fazendo “sentir” pelo retorno de seus efeitos. A dimensão do inconsciente está colocada na medida em que um ato precisa passar pelo corpo (seja pela voz, num ato de palavra; seja pelo olhar, nas artes, ou mesmo na escrita; etc.). É assim que esse ato sabe para além do indivíduo que é interpelado a realizá-lo, na medida em que transpõe ao social a condição de alienação mais radical ao Outro. Isso diz respeito à inscrição primária que todos compartilhamos (o denominado recalcamento originário), que insiste como um enigma motor da cultura (Idem; grifos da autora).

Este ato ético evidencia, deste modo, a falta radical de todos os sujeitos,

fazendo com que a música ressoe neste vazio; a música faz, assim, laço social. O

exemplo do compositor Shabalin, apresentado em nosso primeiro capítulo, pode ser

retomado sob esta perspectiva. Mesmo sofrendo de uma doença que o privou

parcialmente das faculdades verbais, o compositor não parou com suas atividades

musicais, compondo, dando aula, tocando, fazendo-se ouvir, deste modo, e

dirigindo-se a outros sujeitos. Este compositor permanece sob efeito do registro da

linguagem e do simbólico, podendo vincular-se a outros sujeitos e ao campo cultural.

É importante acrescentar que deste vazio o músico intérprete também se

servirá, podendo tocar a música de uma posição própria, não sendo, portanto, um

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mero executante, alguém que simplesmente lerá o que está escrito na partitura,

executando a música com um instrumento musical ou com a voz humana.

O intérprete possui também uma relação com este enigma que a obra musical

toca, o que, aliás, podemos pensar, que é o que determina que ele tenha se tornado

músico e não pintor, por exemplo. Sua posição passa por um posicionamento

específico diante deste objeto voz que a música visa, em vão, capturar. E quando o

músico está diante de uma obra musical, ela é tomada por ele como causa de

desejo, fazendo com que seu trabalho se dê na direção de que, ao tocá-la, estudá-la

e dar-lhe corpo, fazendo-a soar, suas próprias marcas sejam postas em jogo e seu

circuito pulsional seja movimentado.

Há também no intérprete um ato que implica criação e endereçamento. Ao

tomar uma composição musical para interpretar, o músico criará a partir das

relações do material musical já estabelecidas pelo compositor e, ainda, a partir de

sua posição como sujeito. Neste pólo, temos um trabalho que também parte de uma

escolha, de um sim e não (ou talvez de ser escolhido por uma música e consentir

com isso), que será decisivo para o modo como tal obra será tocada. Isto é estrutural

na música, uma vez que ela não se reduz, nem pode se resumir, à notação, ao que

está escrito na partitura. Há algo que escapa e é justamente esse algo que a move e

de que o intérprete se utiliza para tocar ou cantar.

Assim como o compositor, o intérprete se direciona ao ouvinte, quer se fazer

ouvir, e a peça que toca e/ou canta será, igualmente, endereçada ao Outro, como

uma resposta que lhe foi possível elaborar e oferecer. E será com o seu “acervo”

próprio que ele cunhará a interpretação singular que dará de determinada obra

musical, obtendo, daí, algum prazer possível.

No caso do intérprete, a questão do gozo e da mobilização do corpo fica mais

evidente, como por exemplo no canto, em que um além do sentido da fala se torna

notório tanto pelos ornamentos musicais que o compositor indica na obra como pela

acentuação e prolongamento das vogais, característica do canto, que, assim, se

distingue da fala, como pontua o compositor Luiz Tatit (1996: 14).

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Sobre a questão do endereçamento ao Outro no caso do intérprete, trazemos

como ilustração o caso de Wladyslav Szpilman, pianista e compositor, autor do livro

O pianista, que inspirou o filme homônimo de Roman Polanski. No livro e no filme,

somos confrontados com o sofrimento e a obstinação de Szpilman em sobreviver

durante o período de ocupação alemã na Polônia na Segunda Guerra Mundial.

Separado da família, que foi enviada a campo de concentração e lá exterminada, e

desprovido de quaisquer recursos materiais, Szpilman (1946/2003: 176) agarrava-se

à música, chegando a “passar na memória todas as composições que havia

executado no piano, cadência por cadência” nos esconderijos durante a guerra, com

o intuito de voltar às atividades de pianista e compositor ao final desta.

Já abordamos este caso em outro momento (Azevedo, 2006: 2), e dele

destacamos que para este sujeito, a música lhe pôde “servir de suporte, posto que

mesmo em momentos de maior sofrimento ele recorria à música, se endereçando ao

Outro, tendo podido a ela voltar como prática ao término da guerra”.

Também relacionado a Szpilman, desta vez em uma cena do filme de

Polanski, recolhemos uma evidência de que o intérprete efetua algo para além de

uma execução “mecânica”, poderíamos dizer, da obra. Logo no início do filme,

Szpilman conhece uma jovem violoncelista que lhe dirige um elogio, lhe dizendo que

ninguém toca Chopin como ele. Não apenas o compositor possui um estilo, o

músico que interpreta também o tem, efeito de sua forma singular de lidar com a

obra e com a linguagem musical, assinando-a diferente e singularmente.

Novamente, recorremos a Stravinsky (1996: 113) a esse respeito, que nos diz

que “o compositor corre um risco inegável a cada vez que sua música é tocada, já

que, a cada vez, uma competente apresentação de sua obra depende de fatores

imprevisíveis e imponderáveis”, nos quais, certamente, o intérprete tem grande

participação.

O trabalho do intérprete não é o de um leitor que se debruça sobre o texto

apresentado nas notações gráficas de uma partitura. Se podemos comparar a

música a uma escrita, é de uma escrita que não está no papel que se trata, de uma

escrita pulsional. Deste modo, a única forma de aproximarmos o intérprete de um

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leitor é no sentido em que, para além da partitura, ele poderá ler a música que se

dispõe a ser tocada, mesclando, nesse ato, suas próprias inscrições. Assim, como

ressalta Stravinsky (Ibid.: 112), não há para o intérprete um texto unívoco a ser lido

pelo músico. Damos a ele a palavra (Idem):

Costuma-se achar que o que é colocado diante do músico é a música escrita onde a vontade do compositor está explícita e facilmente discernível a partir de um texto corretamente estabelecido. Porém, por mais que seja escrupulosa a notação de uma peça musical, por mais cuidado que se tome contra qualquer ambigüidade possível, utilizando as indicações de andamento, nuances, fraseado, acentuação e assim por diante, ela sempre contém elementos ocultos que escapam a uma definição precisa, pois a dialética verbal é impotente para definir a dialética musical em sua totalidade. A realização desses elementos é, assim, uma questão de experiência e intuição; em suma, do talento daquele a quem cabe apresentar uma obra.

É bastante interessante notar que Stravinsky (Ibid.: 113) define a diferença

entre o executante e o intérprete como uma diferença de “um caráter mais ético do

que estético”. Entendemos, com esta indicação, que é a posição ética do sujeito em

relação a seu desejo e ao Outro, que terá conseqüências cruciais em sua posição

diante da música, que é colocada em cena, portanto, quando um músico interpreta

uma obra musical, tendo também efeitos para aqueles que o ouvem.

É sobre este ato, o de ouvir uma música, que passaremos, em seguida, a

refletir, encerrando, com ele, nosso estudo sobre a arte musical.

V.3 – Escuta musical: ouvir mais além

A escuta musical, assim como a criação e a interpretação, é um ato de grande

complexidade e mistério, tornando-se um outro desafio estudá-la. Assim como nos

momentos anteriores de nosso estudo, não acreditamos ser possível dar alguma

resposta fechada às questões que ela nos coloca e que nos colocamos ao ouvir uma

música. Ainda assim, cientes disso, aceitamos o desafio de algo falar sobre o que é

impossível dizer e o que se pode ou não ouvir quando se cria, toca ou escuta uma

peça musical.

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Caminharemos no terreno da escuta musical seguindo os trilhos de um

psicanalista marcado pela música, Alain Didier-Weill, e de um compositor tocado

pela psicanálise, François Nicolas. Ambos, tendo em foco a pulsão invocante e o

objeto voz, formularam teorias densas e consistentes sobre o que ocorre no sujeito

quando este escuta uma música. Procuraremos, a seguir, destacar e apresentar os

principais pontos defendidos por estes autores, evidenciando aqueles com os quais

concordamos e dos quais nos afastamos.

O tema da escuta musical foi tratado por Didier-Weill (1976-1977/1997: 69)

partindo de um questionamento sobre o melômano, perguntando se este ouve como

sujeito ou como Outro. Entendemos que esta questão parte do pressuposto de que,

ao criar a música, o sujeito que o compositor é está dando, à sua maneira, uma

resposta ao enigma do Outro, como vimos no tópico anterior. Há, pois, um sujeito se

endereçando ao campo do Outro, transmitindo, pela obra, algo de sua relação com

ele a partir de sua posição singular, e através da organização em torno do vazio real

de nossa constituição. Por isso, por girar em torno deste vazio, e por apresentar uma

via de lidar com ele, a música faz laço entre os sujeitos.

Retomemos: há um sujeito que, com sua criação, se dirige ao Outro. Mais de

um sujeito até, posto que nem toda obra criada por um compositor é por ele mesmo

interpretada; assim, dependendo da peça musical, um ou mais outros sujeitos a

interpretarão. E também o intérprete ocupa uma posição de fazer uma criação com

os sons musicais e o tempo diante do enigma do desejo do Outro, e, assim, de seu

próprio desejo.

De outro lado, há o ouvinte, um sujeito que, ao escutar a música, poderá ouvir

mais do que esperava, ouvirá esta resposta de um outro, quase um testemunho,

endereçado, primeiramente, não a ele, mas também a ele. Isto na medida em que o

músico inclui o ouvinte no ato de criar, mas o ouvinte enquanto aquele que ouvirá

sua música, e não um ou outro sujeito em especial. Trata-se do ouvinte enquanto

terceiro entre ele e sua obra, que, por certo, será encarnado quando alguém se

colocar à escuta desta. Por parte do ouvinte, ao compreender ou ser tocado pela

obra musical, sentindo os efeitos e ressonâncias desta, ele pode se perceber como

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aquele para quem compositor e intérprete se dirigiram ao compor e interpretar

determinada música.

Lembremos que, ao tratar do circuito da pulsão invocante, vimos que ele

somente se fecha com a passagem pelo campo do Outro e que, porém, a pulsão

não retorna para a zona erógena que deu início ao seu trajeto. Diferentemente das

outras pulsões, a invocante, ao contornar o objeto voz, não volta para o mesmo

ponto. O que leva Lacan (1964/1998: 184) a afirmar que o ouvido é o único orifício

do corpo que nunca pode se fechar, marcando uma diferença estrutural entre os

circuitos das pulsões escópica e invocante, em que o “se fazer ouvir” vai para o

outro.

É neste sentido que entendemos a afirmação de Didier-Weill (1976-

1977/1997: 65) de que, em um primeiro momento da escuta musical, o ouvinte

ocupa o lugar do Outro. Mais que isso, defende que “somos o Outro e muito

precisamente o Outro do Sujeito da criação musical” (Idem). Assim, o autor busca

mapear quatro momentos lógicos na escuta musical que se dão no mesmo instante.

No entanto, para estudá-los, nos propõe mostrar, um a um, estes instantes.

Apresentaremos estes quatro tempos de forma breve para, em seguida,

discuti-los. Pela criação, um sujeito se dirige ao Outro, dando-lhe uma resposta ao

seu enigma. Tal resposta, contudo, é escutada por um outro sujeito, que se encontra

neste lugar de Outro do compositor. Ao escutá-la, o ouvinte percebe que a música o

toca e oferece uma resposta para sua questão enquanto sujeito, sendo, assim,

convocado a se posicionar deste modo. É o segundo tempo da escuta. No terceiro,

há a identificação entre os dois sujeitos deste processo, o músico e o ouvinte. No

quarto e último tempo, ocorre uma surpresa por parte daquele que ouve com a

“explosão” de uma “nota azul”, que dirá do fato do ouvinte ser chamado a fazer algo

com o que ouviu, a dar ele também uma resposta sua ao enigma que lhe concerne.

A nota azul diz do momento final da escuta musical no qual o ouvinte sentirá

mais intensamente os efeitos da obra sobre ele. Trata-se de uma nota que, embora

virtual, se apresenta ao longo da obra como um ponto para o qual ela se dirige.

Voltaremos a esta nota azul mais detalhadamente a diante.

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Vejamos, agora, com mais calma: A proposta de Didier-Weill traz uma

importante contribuição para pensarmos como a música ressoa em um ponto no

sujeito que se tornou inaudito e que é importante que assim permaneça, pois diz da

própria constituição do sujeito no campo do Outro, em seu movimento de alienação

e separação. A música aponta para este ponto e volta a velá-lo. E, ao fazer isso,

somos convocados a afirmar nossa posição enquanto sujeitos.

Didier-Weill (1995/1997: 237) se pergunta: “quando escuto música, por que

fico encantado por ela?”, ressaltando que “quando escuto soar a música, descubro a

cada vez, com espanto, que não posso deixar de lhe dizer ‘sim’”. Este “sim” é dado

na medida em que o ouvinte se identifica, de algum modo, com a música e permite

que ela faça parte de sua vida. Por outro lado, se o ouvinte não gosta da música e

não a toma para si, ou seja, quando o sujeito diz “não” a ela, esta não será tomada

como causa de desejo e o sujeito não se colocará aberto a seus efeitos.

Desta forma, quando o sujeito se coloca à escuta da obra musical, poderá

nele ocorrer um reviramento, uma vez que este, acreditando ouvi-la, percebe que é a

música que o ouve (Ibid.: 238). Deixamos para o autor o encaminhamento desta

questão:

O que ela [a música] ouve? Que ouvi, no que ela havia me dado a ouvir, um apelo ao qual respondi um “sim” cuja simplicidade não tem igual, a não ser seu caráter enigmático: não sei, com efeito, a quem eu disse nem quem disse “sim”. (...) Por este “sim”, sou, ao mesmo tempo, o que diz: “Sim, sou chamado por você” e: “Sim, eu chamo você”. É nessa mutação pela qual um sujeito invocado advém como invocante que indicamos, nessa pressão de dizer “sim”, a pulsão invocante (Idem. Grifos do autor).

Vemos, assim, que Didier-Weill relaciona a música com a pulsão invocante no

sentido em que essa arte nos chama a ser sujeito, tocando-nos em nossa questão

quanto ao desejo do Outro e revelando-nos que é possível fazer algo a partir desta

questão, sem nos paralisarmos, posto que a música convida ao movimento e fala do

vazio de nossa constituição contornando-o com uma regularidade que o harmoniza.

É interessante notar que o reviramento que a música produz no sujeito só é

possível porque, nos diz Didier-Weill (Ibid.: 239) apoiando-se em Lacan, nesta

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escuta o sujeito pode vislumbrar que é constituído “segundo a concepção moebiana,

por uma continuidade entre o íntimo e o exterior que Lacan batizou com um neo-

logismo: “ex-timo”. Há, assim, uma continuidade do Outro e do sujeito quando da

escuta musical, que, entretanto, não significa que as diferenças entre estes dois

campos sejam abolidas. O que o autor propõe é, entendemos, próximo ao que Freud

(1919/1990: 283) afirma sobre o estranho, que nele existe uma familiaridade.

Ouvindo a música, podemos perceber, ainda que vagamente, que “o sujeito não é

estranho a este estranho que é o Outro” (Idem. Grifos do autor).

Com isso, a música é por ele pensada como “um dos caminhos possíveis

para se compreender a relação mais primordial do sujeito com o Outro” (Ibid.: 240),

propondo relacioná-la a um tempo primordial desta relação anterior ao recebimento

pelo sujeito da palavra. Contudo, este receberia do Outro uma “base, uma raiz sobre

a qual poderá, em segundo lugar, germinar a palavra” (Idem), que seria um traço, o

traço unário. Didier-Weill propõe, deste modo, que ao traço unário lacaniano se deve

o surgimento de um elemento musical de base, recebido por todos os sujeitos, a

saber, uma nota escandida percebida na fala e na voz da mãe antes mesmo de

poder perceber os sentidos que esta fala passa (Idem.: 240-241). Como defendemos

no capitulo anterior, esta musicalidade da mãe possibilita a todos os sujeitos uma

abertura para a arte musical e para a escuta desta.

Em suas considerações sobre a música, Didier-Weill, sob nítida influência do

antropólogo Claude Lévi-Strauss defende que ela é a comemoração deste tempo

inicial entre sujeito e Outro (Ibid.: 204), e que a música provocaria, com isso, um

“estado de nostalgia” (Didier-Weill, 1976-1977/1997: 74), idéias das quais nos

afastamos. Acreditamos que não é possível, de antemão, dar algum sentido comum

a todos os sujeitos para o ato tão singular que é a escuta musical e a relação do

sujeito com a música, que pode ser cambiante a cada escuta, ainda que de uma

mesma peça.

Voltemos agora aos tempos lógicos da escuta musical. O primeiro tempo

seria, então, o ouvinte, no lugar de Outro do músico, pode ouvir na obra uma

resposta para a pergunta que nele habita, embora esquecida. Descobrimos, ouvindo

a música, que é possível fazer algo diante de nosso vazio estrutural que não seja da

ordem do sintoma, do retorno do recalcado.

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Um Sujeito – o criador da música – nos dá testemunho de que a presença do desejo do Outro pode não funcionar para ele como esse “che vuoi” angustiante. Nesse caso é até mesmo o contrário que se produz, pois se a questão formulada pelo Outro no “che vuoi” deixa o Sujeito sem resposta, aqui o Sujeito, ao nos responder, faz surgir em nós a presença de uma questão cuja natureza se revela não esterilizante, mas fecunda para ele (Ibid.: 70-71).

Para não corrermos o risco de idealizar o músico, cabe dizer que, como visto

ao tratar a sublimação, nem toda parcela pulsional é possível de ser encaminhada

para a criação. E que há também a incidência da angústia neste ato, como nos

alertou Stravinsky (1996: 65). É mesmo dessa experiência com o vazio que o sujeito

pode criar.

Também na escuta, a angústia pode comparecer, apesar de Didier-Weill

(1976/19771997: 74, 76) nos dizer o contrário, defendendo que no segundo tempo

deste ato, o sujeito, identificado com o sujeito que criou a música, tomará para si a

questão de cuja resposta teve notícias na música, passando a um estado de

felicidade e nostalgia. Nossa proposta é que, de fato, a experiência com a música

nos faz confrontarmo-nos com este vazio, tal qual toda arte, porém, ela nos distancia

dele ao contorná-lo pulsionalmente, construindo, com sons e silêncios, uma rede de

linguagem tecida bela e harmoniosamente.

Apoiamos nossa idéia em Alencar (1997: 355), que igualmente aponta a

existência de angústia na obra musical e em sua escuta: “Agarrados por algo que

nos enreda, nos arrebata, com o qual queremos ensurdecer sem medo, oscilando

entre angústia e fascínio, tomados pelas modulações harmônicas dessa voz, mas

sem querer ouvir o que ela nos diz”.

Escutando música, ouvimos também que há então essa via de responder ao

Outro, de fazer algo com o vazio (com o vazio do objeto voz) sem sucumbir a ele no

sofrimento do sintoma. Podemos vislumbrar este vazio pela distância da linguagem

musical e não nos calar ou paralisar, cantando ou cantarolando junto, dançando ou

marcando o ritmo, fruindo, enfim.

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Entendemos que Didier-Weill (1976-1977/1997: 70), ao apontar que, pela

escuta musical, é possível de maneira não angustiante perceber o ponto em comum

entre o sujeito e o Outro, o objeto a (Ibid.: 73), está enfatizando uma característica

que a música possui de passar uma ilusão de fazer um com o Outro, de fusão.

Porém, esta é apenas uma de suas características, e dificilmente podemos dar

algum nome ao que a música causa nos sujeitos, seja nostalgia, felicidade, como o

autor propõe, ou qualquer outra denominação que se possa pensar.

Se a música causa uma reversão na temporalidade para aqueles que a

ouvem, isso não é sem conseqüências. Entretanto, cada sujeito poderá, ao ser

tocado pela obra musical, buscar sentidos a isto, chamando de qualquer, todos ou

nenhum nome aquilo que experimentou, justamente porque não há nome algum

para dar conta disto. O quarto tempo lógico de Didier-Weill, do comparecimento da

nota azul, é entendido por nós desta maneira.

Após a música ser tomada como significante pelo ouvinte no terceiro tempo

da escuta (Ibid.: 77), ocorre um “salto” (Didier-Weill, 1976/1997: 101) que faz com

que o sujeito atinja um ponto para além da própria música, a que ela mesma, no

entanto, nos conduz. É a nota azul, entendida pelo autor como um ponto de

“explosão de significância” (Didier-Weill, 1976-1977/1997: 80).

É preciso localizar e contextualizar esta nota. Em música, esta expressão nos

leva à música de Chopin e a como o pintor Eugène Delacroix, amigo do compositor,

pôde ouvir e falar sobre a música deste, em carta a ele dirigida (Didier-Weill, 1999:

33). Lembramos, rapidamente, que a denominação desta nota chegou a render título

de um filme do cineasta Andrzej Zulawski (La note bleue), de 1991, cujas

personagens centrais são Chopin, a escritora George Sand e sua filha, e Delacroix.

A nota azul, como tomada por Didier-Weill (Idem), diz de um ponto em que o

sujeito, “dividido pela tensão produzida entre a harmonia e a melodia”, pode escutar

além do que está presente na música e alcançar “uma certa nota – ainda não

presente – no nível da qual a tensão entre a sincronia harmônica e a diacronia

melódica poderia ser resolvida”. É uma nota, portanto, virtual e efêmera, porém que

comporta um ponto real.

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Por trazer esta dimensão de real, podemos chamá-la de azul para ser viável

teorizar sobre ela. Todavia, por ser talvez o que pode haver mais de real em uma

música, ela não terá cor alguma, fazendo, em contrapartida, com que o sujeito lhe dê

alguma coloração. Azul, em Chopin. Quem saberá de que outras cores para cada

um de nós? Como nos diz Didier-Weill (1976-1977/1997: 58), esta nota é, no

inconsciente, sempre a mesma. O que ela nos faz falar e produzir em seguida,

certamente não, ainda que se repita. O que podemos dizer dela é que, mesmo que a

esperemos, ela nos surpreende.

Passamos, agora, à proposta de François Nicolas sobre a escuta musical.

Destacaremos no trabalho deste compositor (Nicolas, 2002: 1) suas três teses sobre

a música e o som, a expressão musical e as relações constitutivas da escuta

musical, com maior ênfase nesta última. A primeira tese afirma que o som, enquanto

material de base do compositor, não é trabalhado por este como substância, mas

como vestígio da relação corpo-a-corpo do músico com o seu instrumento, isto na

medida em que a expressão musical comporta um endereçamento destes sons

musicais ao Outro e que, enquanto vestígios, eles podem ser apreendidos por um

outro sujeito (Ibid.: 2).

De acordo com Nicolas (Ibid.: 6), a música é um jogo sonoro que se endereça

a ser ouvido por um outro. Ela tem origem em um sujeito e em seu corpo, passando

por ele, mas é na medida em que se apresenta como um vestígio que passa a ser

um som musical. A música (Ibid.: 8) não é, portanto, a irradiação de um corpo,

fisiológico se pensarmos no compositor e no cantor, ou de uma combinação de um

corpo fisiológico que toca um corpo mecânico (instrumentista e seu instrumento),

mas esse endereçamento.

Neste, está em jogo a dimensão do prazer daquele que cria e de quem ouve a

música. Prazer obtido pela dimensão significante da música e que, mais além, atinge

o corpo, propiciando aos sujeitos um puro gozo “do som musical por ele mesmo”

(Ibid.: 3).

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Contudo, para que o som musical possa se tornar um endereçamento, nos diz

Nicolas (Ibid.: 9), é preciso que o músico se retire para dar existência a uma marca

no vetor sonoro-musical que se orienta a um alvo. O autor nos dirá que esse alvo é

impreciso. Se o relacionarmos ao circuito pulsional, este movimento de

endereçamento da música pode ser pensado como a própria trajetória da pulsão

invocante, o movimento de se fazer ouvir, visando a satisfação deste circuito e

incluindo nele o Outro para que possa fazer seu retorno à fonte.

Definidas estas coordenadas no argumento de Nicolas, faz-se necessário

mais um outro esclarecimento para acompanharmos sua tese sobre a estrutura da

escuta musical, que, segundo ele (Ibid.: 11), seria a da banda de Möebius,

enlaçando aqueles que nela participam.

Nicolas propõe três lugares, ou posições, do público, do músico e da obra, e

dois movimentos ou ações, de escuta e de endereçamento, existindo ainda um

vazio. Com estes elementos, o autor elabora seis combinações que dirão de uma

escuta que não é propriamente o ato de ouvir uma peça mas sim de uma escuta

musical. Esta diria respeito ao que pode ser ouvido particularmente na relação entre

estas posições.

Cabe frisar que entendemos que Nicolas toma a obra como a produção de um

sujeito, efeito do ato de criação, trazendo, neste sentido, o movimento de um sujeito

e atuando como causa para outros.

As seis combinações de Nicolas são as seguintes: 1) o público escuta o

músico que se endereça à obra; 2) o público escuta a obra que se endereça ao

músico; 3) o músico escuta a obra que se endereça ao público; 4) o músico escuta o

público que se endereça à obra; 5) a obra escuta o público que se endereça ao

músico; 6) a obra escuta o músico que se endereça ao público; ocorrendo, em

seguida, o retorno para a primeira combinação.

Entendemos que tal esquematização somente pode ser entendida como

forma de apresentar didaticamente algo que ocorre de uma só vez na interpretação

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e escuta de uma peça. Passaremos agora a analisar estas posições apresentadas

por Nicolas.

Na primeira combinação, a escuta está posta do lado do ouvinte, que irá

apreender algo do trabalho de dois sujeitos: um compositor que criou, ex nihilo, a

obra, e um músico que a tomará como causa de desejo e, a partir de sua própria

posição subjetiva, interpretará esta criação. Nesta combinação já está implícita a

segunda, da platéia que ouve o endereçamento da obra, enquanto criação de um

sujeito a outro, neste caso, o intérprete.

Paralelamente, o músico escuta a obra, e o compositor consequentemente,

em seu endereçamento ao público (terceira combinação) e também o público que se

dirige à obra (quarta). Esta última, pensamos, diz da abertura dos sujeitos que

ouvem a música e que são por ela tocados, tal como o “sim” descrito por Didier-

Weill, acima por nós trabalhado.

Por sua vez, a própria obra irá escutar os sujeitos: o público que se dirige ao

músico (e com ele pode se identificar) e da mesma forma o contrário. É aqui que

vemos as propostas destes dois autores convergirem, uma vez que de sujeitos que

escutam a música eles passam a sujeitos por ela escutados.

Nicolas (Ibid.: 13) ressalta, confirmando a idéia de que a música é apreendida

apenas como vestígio, que para que o ouvinte/público possa escutar a obra musical,

o músico que a interpreta deve se apagar, deixando ouvir o endereçamento do

compositor, através da obra, a um Outro. Entendemos que este “apagamento” pode

ser entendido se a ele acrescentarmos a idéia de que, embora o sujeito que cria

utilize de seus referenciais e materiais psíquicos para criar, ou seja, a obra musical é

criação de um sujeito em especial, ela transmite algo que é da própria condição do

humano. Ainda assim, compositor e intérprete estarão ali presentes na medida em

que deixarão na música suas marcas e nela imprimirão seus estilos.

Na visão de Nicolas (Ibid.: 16), este apagamento está presente em todas as

combinações e é ele, pelo vazio que comporta que possibilitará a escuta circular. Diz

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o autor (Ibid.: 15): “a escuta musical se distingue da audição e da percepção no que

ela supõe o lugar de um vazio”.

Vazio este que é o próprio da constituição do sujeito e que, deste modo, é

transmitido pela música ao mesmo tempo em que faz possível o estabelecimento de

um laço entre os sujeitos em jogo neste processo de escuta musical, o compositor, o

intérprete e ouvinte. E que, contornado desta forma pela música, faz com que os

sujeitos possam se defrontar com o real, tendo dele notícias, e, ir além, podendo

fazer algo a partir daí.

Nesse sentido, defendemos que tanto compor, quanto tocar e ouvir uma obra

musical pode modificar os sujeitos envolvidos nestes atos, sem, contudo, se tratar aí

de efeitos que possam ser comparados aos de uma análise. A música, assim, dá a

ouvir aos sujeitos vestígios do impossível.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O artista é um mero filtro por onde a vida passa deixando sedimentos (Muniz, 2006: 20).

Em nossa trajetória, buscamos, inicialmente, delimitar nosso tema de trabalho

ressaltando que tomaríamos a música como arte, como produção estética, e que,

dentre as mais diversas abordagens para estudá-la, partíamos de uma escolha. A

música seria por nós acolhida e estudada com uma escuta psicanalítica, tomando

como referencial as obras de Freud, Lacan e teóricos destas tradições, sem que,

contudo, deixássemos de recorrer ao campo mesmo desta arte.

Tarefa árdua que, de início, nos colocou dificuldades, já que, neste campo, as

vozes não são unânimes. Perguntas como “o que é a música?”, “é a música uma

linguagem?”, ou “a música pretende comunicar e significar algo ou não?”

permanecem pontos controversos. De um espanto inicial, que apontava para uma

diferença entre a arte musical e as demais, procuramos algumas coordenadas para

estudá-la, sem, contudo, fechar uma resposta.

Caminhar neste terreno exigiu de nós, então, uma segunda escolha: a de

definirmos o que entendemos por música neste espaço. Nossa aposta foi a de

defender a música como uma arte autônoma, com materiais de trabalho próprios,

assim como uma linguagem específica.

Ao pensá-la como uma linguagem, nos baseamos em autores, como Pierre

Boulez e Arnold Shoenberg, ambos compositores, que defendem que com o material

que lhe é próprio, o som musical, o compositor trabalhará de tal forma a tecer uma

construção com as diferenças e tensões entre estes sons, porém os relacionando e

encadeando em frases, temas, motivos, melodias e harmonias. Alinhavando sons

musicais e silêncios igualmente musicais, o compositor faz música. E a faz para ser

ouvida. Isto é, sua criação tem um endereçamento. No outro pólo da música, há um

outro sujeito que a ouvirá.

Portanto, pensamos a música como a criação a partir de um material

específico, os sons e silêncios musicais, determinada por certas regras que

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delimitam este campo, que é feita por um sujeito e se dirige a outro, podendo ter a

participação ativa de um ou mais músicos intérpretes. Surgem, aqui, os primeiros

ecos de nossa escolha pelo referencial psicanalítico. Falamos em sujeitos e não, por

exemplo, em indivíduos ou pessoas, efeito de que pensamos que aqueles que estão

envolvidos neste processo da criação à escuta da música devem ser escutados

balizados pela descoberta e sistematização freudiana do inconsciente, assim como

pelas demais construções teóricas deste autor e também das teorias de Lacan.

Deste modo, foi necessário deixarmos claro, tal qual havíamos feito com a

concepção de música, nosso posicionamento diante do campo da psicanálise e dos

conceitos que recortamos para a construção deste trabalho. Isto na medida em que,

desde o início, nossa intenção foi a de buscar o que a arte musical pode nos dizer

sobre o humano, norteados pela psicanálise. Os efeitos deste ato se dão,

conseqüentemente, no campo da psicanálise, e retornam para ela. A música sempre

nos pareceu, e isto não se alterou ao longo da pesquisa, escapar a qualquer

tentativa de explicá-la. Aproximamo-nos dela, assim, como aprendizes, seguindo em

seus rastros pistas para vislumbrar como o sujeito pode por ela emergir.

Em nosso estudo, e em nossa concepção de sujeito em psicanálise, tornou-se

cada vez mais importante destacarmos o modo como este é constituído, em sua

relação com o outro cuidador que vem encarnar a função de Outro da linguagem. Ou

seja, como o bebê poderá se organizar, psíquica e pulsionalmente, separando-se do

Outro a partir de seu contato com o semelhante.

Freud nos fala dessa precariedade do infans ao nascer e de como será a ele

possível se organizar, não sem, contudo, sofrer perdas. Talvez, diríamos, somente

por elas terem ocorrido. A perda da fusão com a mãe, cujo resto permanece

estranho ao sujeito, tal como nos indica a alusão a das Ding (a Coisa). A perda de

certos objetos, seio e fezes, em Freud, olhar e voz, em Lacan. Perdas que são

decisivas para o surgimento de um sujeito do inconsciente e, que, portanto, são

estruturantes.

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160

Dentre estes objetos, denominados por Lacan84 de objetos a, objetos causa

de desejo, demos ênfase ao objeto voz enquanto este que possibilitará, através da

construção de um ponto de surdez para o sujeito da voz do Outro, que ele possa se

separar deste campo e, assim, advir. Este objeto surgirá como resto da fala

musicada da voz da mãe ou de seu cuidador mais próximo e inicial. Destacamos a

presença de uma musicalidade na constituição de todos os sujeitos, defendendo que

esta terá maiores conseqüências no ato de criação e fruição da arte musical.

Este objeto voz não pode, entretanto, ser pensado desarticuladamente de

uma determinada pulsão, a pulsão invocante, e de seu circuito, que possui a

característica particular de partir de uma fonte e uma zona erógena, associada ao

aparelho vocal, e não retornar a ela. Estão postos em jogo, de um lado, um

movimento de se fazer ouvir, e, de outro, o que se pode ou não ouvir.

Ao tratarmos da pulsão e de seu circuito pensando em uma produção

artística, procuramos nos debruçar sobre o destino pulsional freudiano da

sublimação, por ele apontado como aquele que comparece nas artes. Destino que

não se confunde com o recalque propriamente dito, que propõe exigências

diferentes aos sujeitos. Exige que um novo objeto seja criado.

Com Lacan, vimos que esse ato de criação implica na organização de certos

materiais dos quais o sujeito dispõe em torno de um vazio real da linguagem. Nesse

sentido, parte do singular de um sujeito sem nele se encerrar, não sendo uma

construção que somente produzirá sentidos para ele, tal como ocorre com os sonhos

ou sintomas.

Por mais que possa partir de suas vivências, de sua fantasia, que sirva

inconscientemente ao artista como elaboração de materiais traumáticos, a obra de

arte tocará um ponto que é comum a todos os humanos e, ao ser criada, poderá ser

tomada como causa de desejo para todos nós. Escutamos essa idéia na fala do

artista plástico Vik Muniz quando este diz que o artista é um filtro pelo qual “a vida

passa deixando sedimentos”. A vida com seu movimento incessante, exigindo

84 Respeitamos aqui nossa proposta de fazer um recorte na obra lacaniana, estudando sobre este tema em especial os Seminários entre 1959 e 1964.

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constantemente de nós o impossível, diante do qual, em ato, podemos efetuar atos

pelos quais afirmamos nossas posições enquanto sujeitos.

A criação, interpretação e escuta musical foram desta maneira tomadas por

nós como atos significantes. Todavia, com lugares diferentes para os sujeitos

envolvidos em cada um deles. Criar música não pode ser equiparado à interpretação

de uma música, nem tampouco à escuta desta. Mesmo assim, em todos esses

casos, é de um lidar com esse vazio da constituição e com o vazio do objeto voz que

se trata. E de uma possibilidade de cunhar uma resposta ao enigma do desejo do

Outro, colocando em cena o circuito da pulsão invocante, buscando apreender,

criando, tocando ou ouvindo, um objeto desde sempre perdido.

Mas como cada sujeito é singular, esta experiência não será a mesma em

cada criação, interpretação ou escuta. E diante de cada música, ele poderá ser

levado a tecer os mais variados sentidos para ela, justamente porque ela circunda

algo que é da ordem de um não sentido, e sim de um além do sentido.

Podemos, com isso, melhor compreender que até mesmo este trabalho

caminha nesta vertente. A música despertou-nos diversas questões, das quais

escolhemos trabalhar um número limitado, estudando, produzindo, criando,

trabalhando, pesquisando e o que aqui apresentamos foi uma resposta. Uma

apenas, não conclusiva. Pelo contrário, ela nos abriu inúmeros outros enigmas.

Percebemos que mesmo nos temas por nós trabalhados ou levantados houve

pontos que poderiam ter sido mais aprofundados, como no caso das vozes do

supereu, ou seja, da relação das vozes parentais e demais vozes que operam no

supereu e atuam no sujeito. Houve também pontos que poderíamos ter estudado e

de que nem nos aproximamos, como, por exemplo, a dimensão amorosa da

produção musical, como Didier-Weill (1976-77/1997: 71) propõe ao abordar o tema

da nota azul. A música como uma resposta ao Outro, como uma resposta amorosa

ao Outro.

E aqui não deixamos de recordar as inúmeras canções nas quais o tema do

amor é central. Podemos mesmo dizer que a canção de amor é um dos gêneros

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mais antigos e presentes na história da música, desde as canções dos trovadores da

Idade Média até os nossos dias, e seguramente além destes. A dimensão de falta no

amor também sendo cantada ao longo dos séculos85.

Cada tema estudado nos gerou incontáveis perguntas que aqui não foi

possível acolher, as quais pretendemos seguir estudando. Questões que, de um

lado, poderiam ser reunidas sob o tema de uma clínica psicanalítica atravessada

pela musicalidade dos sujeitos e, mais até, pela própria música, não mais como arte,

mas possibilitando a fala. Seja no campo da neurose como da psicose. Que lugar

poderia ter a música no tratamento analítico e, mais especificamente, na psicose?

Pensando-se na musicalidade na constituição dos sujeitos, como poderia a música

atuar em pacientes em idades precoces ou em casos de autismo? Com isso,

retomamos reflexões e casos clínicos antigos sob nova ótica e abrimos nossa escuta

para o inaudito em cada sessão, percebendo os efeitos que este estudo vem tendo

sobre nossa atuação.

E, por outro lado, questões variadas que se encaminham para um novo

recorte sobre esta articulação entre a arte musical e a psicanálise, que indagam

sobre as conseqüências do modo de criação pós-tonal sobre os sujeitos envolvidos

e agarrados, para retomar a idéia freudiana sobre os efeitos da música presente em

O Moisés de Michelangelo, por esta forma de construção em torno do vazio que,

certamente, é outra que não a do tonalismo com sua convergência para um centro,

uma tonalidade que, dentro das inúmeras tensões e manobras com o material

musical, visa uma resolução.

Por hora, fechamos aqui, apontando estes restos que não pretendemos calar,

assim como percebemos haver tantos outros no decorrer do trabalho. Fechamos

sem de fato fechar. Alguns enigmas se aquietaram e outros surgiram ou se

intensificaram. Lembrando Clarice Lispector (1999: 41), podemos dizer apenas que

“a criação”, seja ela qual for, “não é uma compreensão, é um novo mistério”.

85 Ao pensarmos neste ponto, nos vem à mente o refrão de uma canção da cantora Regina Spektor, Reading time with Pickle, do álbum Songs, de 2002, em que o amor aparece como resposta a algo que falta. Ela nos canta: “Love is the answer to a question that I have forgotten, but I know I’ve been asked and the answer has got to be love” (O amor é a resposta para uma pergunta de que me esqueci, mas sei que fui perguntada e a resposta tem que ser amor).

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