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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ MICHELL ÂNGELO MARQUES ARAÚJO SENTIDO DA VIDA, ESPIRITUALIDADE E SOCIOPOÉTICA: convergências para a produção de conhecimento e para o cuidado clínico FORTALEZA-CEARÁ 2008

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

MICHELL ÂNGELO MARQUES ARAÚJO

SENTIDO DA VIDA, ESPIRITUALIDADE E SOCIOPOÉTICA: convergências para a produção

de conhecimento e para o cuidado clínico

FORTALEZA-CEARÁ 2008

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Michell Ângelo Marques Araújo

Sentido da Vida, Espiritualidade e Sociopoética: convergências para a produção de conhecimento e

para o cuidado clínico

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico em Cuidados Clínicos em Saúde (CMACCLIS), da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial para obtenção do grau de mestre. Área de Concentração: Enfermagem.

Orientadora: Profª. Drª. Lia Carneiro Silveira

Fortaleza – Ceará 2008

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Universidade Estadual do Ceará

Mestrado Acadêmico em Cuidados Clínicos em Saúde

Título do Trabalho: SENTIDO DA VIDA, ESPIRITUALIDADE E SOCIOPOÉTICA: CONVERGÊNCIAS PARA A PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO E PARA O CUIDADO CLÍNICO Autor: Michell Ângelo Marques Araújo Defesa em: 28/01/2008 Nota obtida: 9,0

BANCA EXAMINADORA

Profª. Drª. Lia Carneiro Silveira Universidade Estadual do Ceará

Orientadora

Profª. Drª. Sandra Haydée Petit Universidade Federal do Ceará

Profª. Drª. Violante Augusta Batista Braga Universidade Federal do Ceará

Profª. Drª. Ana Ruth Macêdo Monteiro Universidade Estadual do Ceará

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AGRADECIMENTOS

A Deus que é pai e mãe, por sua beneguinidade imerecida, em me amar e estar sempre presente. Aos meus pais, José Arimatéa (In memoriam) e Margarida Maria por me ensinarem a extrair da vida um sentido e possibilitarem com seu amor e suor a minha caminhada até aqui. À minha companheira Ana Maurícia pela paciência, companheirismo e confidências nesses momentos difíceis de construção. À minha amiga e orientadora Profª. Drª. Lia Carneiro Silveira, por seu apoio, respeito, incentivo, valorização e contribuição nessa produção. A meus irmãos e familiares pelos incentivos e carinho. Ao Hospital do Câncer na pessoa da Dra. Mírem pela ajuda imprescindível na viabilidade da pesquisa. Aos profissionais do Hospital do Câncer, Dr. Luciano, Dra. Denise, Dra. Sárvia, Dra. Inês, que ajudaram no processo de realização da pesquisa. À Profª. Drª. Violante Augusta Batista Braga, amiga que vem acompanhando minha caminhada acadêmica, pela disponibilidade e interesse em participar da banca. À Profª. Drª. Sandra Haydée Petit, também pela sua disponibilidade em participar da banca. Às amigas e Profas, Ângela, Dalva, Lucélia, Eucléa, pela contribuição e incentivo a minha carreira profissional. Às companheiras de mestrado, em especial a prima Karla, Ana Larissa, Edilma e Rita pelo muito compartilhar de receios e angústias. Aos professores e funcionários do mestrado pelo apoio e contribuição nesse percurso. Aos colegas de trabalho, Keylla, Geordany, Lilianne, Cinthia, Ytanna, Tharsyla, Jôse, Pedro, Glória, Klefer, Luisa e Alípio, pelo companheirismo. Às chefes, Dra. Haydée e Mônica pele compreensão das muitas ausências. À amiga Arisa pela ajuda no processo de pesquisar. A todos os amigos e alunos que contribuíram ou estiveram presentes na minha caminhada.

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DEDICATÓRIA

Aos pacientes que realizaram esse estudo como co-pesquisadores, contribuindo de forma ativa

na produção de novos conhecimentos.

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RESUMO

O sentido da vida constitui fator importante e revelador da espiritualidade humana, que muitas vezes é afetada pelas situações de sofrimento e adoecimento. Pensando nisso, desenvolvemos um estudo, cujo objetivo é produzir conceitos de sentido da vida junto a pessoas com câncer. O caminho metodológico escolhido foi a sociopoética, método desconstrutivista que entende que os participantes da pesquisa são co-pesquisadores, que juntos formam o grupo-pesquisador e produzem conhecimento. Esse grupo foi formado por 07 pacientes com câncer em tratamento, que se encontravam na casa de apoio de um hospital de referência em Fortaleza. A produção aconteceu em quatro oficinas, uma de negociação, duas de produção propriamente dita e uma oficina de análise. Os dados foram produzidos através de dispositivos que propiciaram o surgimento do novo e foram analisados com base nas diversas análises propostas: plástica: classificatória; transversal; surreal; do grupo-pesquisador; filosófica; e maquínica. Os conceitos produzidos foram o: sentido serra; sentido sertão; sentido lagoa; sentido ponte; sentido túnel/luz; sentido fogão; sentido mar de rosas; e sentido Deus. Esses confetos, junção de conceitos e afeto, mostram as possibilidades que o sentido da vida pode representar para as pessoas ao enfrentarem a dor, o sofrimento e a iminência de morte. Neles encontramos a força e a motivação para superar as adversidades e manter-se vivo, percepção das realizações como importante para a construção de sentido, esperança de dias melhores, encontro de sentido no sofrimento e na fé, além de encontrarmos sentido nas relações afetivas estabelecidas durante a vida. Os confetos produzem ressonâncias para a enfermagem, verdadeiro agenciamento daquilo que foi produzido com o que já existia na academia, constatamos que há alguns paralelos entre os saberes, além de contribuir com novas perspectivas para o cuidado clínico e de descoberta de potencialidade do grupo-pesquisador. Esperamos que esse estudo provoque novos agenciamentos e motive novas pesquisas sobre o assunto. Palavras chaves: Espiritualidade; Enfermagem; Sociopoética.

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RESUME

The meaning of life is an important and revealing factor in spirituality, and it is many times affected by suffering and illness situations. With this in mind, we developed a study aiming in the production of life meaning concepts along with people with cancer. The methodological path chosen was Sociopoetics, a constructivist method which understands the research participants as co-researchers that together constitute the researcher-group and produce the knowledge. This group was formed by 7 patients with cancer in treatment in a support foundation in a very respected hospital in Fortaleza. The production occurred in four workshops, a negotiation one, two producing ones and an analysis workshop. The data was produced through dispositives which made emerge the new and were analyzed based in the several proposed analysis: plastical, classifying, transversal, surreal, from the researcher group, philosophic and “maquinico”. The concepts produced were: the saw concept, the lake concept, the brigde concept, the tunnel-light concept, the stove concept, the sea of roses concept and the God sense. These “confetos”, reunion of concepts and afetcs, show the possibilities that the life sense can represent to the people when they face the pain, the suffering and the imminence of death. On them we can find the strength and the motivation to over come the adversities and keep ourselves alive, perception of achievements as important to the construction of the meaning, hope in better days, finding of the meaning in the suffering and in the faith, and we found sense in the affective relationships established during life. The “confetos” produce resonances to the nursing, a truly negotiation of what was produced to what already existed in the academy, we found out that some parallels among the knowledge and even contributing to new perspectives to the clinical care and the potential discovery of the researcher-group. We hope this study may provoke new negotiations and motivate new research about the topic. Key words: Spirituality, Nursing; Sociopoetics.

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“Não há vida sem morte, nem morte sem vida, mas há morte em vida. E a morte em vida é exatamente a vida proibida de ser vivida”.

Paulo Freire

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SUMÁRIO

1 PARTILHANDO UMA INTENÇÃO __________________________________11 2 ESPIRITUALIDADE: DESDOBRANDO O HOMEM _____________________17

2.1 Encontros e desencontros: linhas de percepção da espiritualidade _17 2.2 Os conceitos de transcendência e transparência como forma de entender a espiritualidade _________________________________________23 2.3 Revisitando a Enfermagem e sua prática espiritual _______________29 2.4 Cuidando de pessoas com câncer: vivenciando a dor, a morte e o sentido da vida __________________________________________________36

3 SOCIOPOÉTICA: FORMA ESPIRITUAL DE PESQUISAR _______________44 4 OFICINA DE NEGOCIAÇÃO: OS PRIMEIROS PASSOS DA PESQUISA ___54 5 PRIMEIRA OFICINA DE PRODUÇÃO: OS LUGARES GEOMÍTICOS ______57

5.1 Oficina I: Análise da Produção Plástica _________________________62 5.2 Oficina I: Análise do Formulário dos Sete Lugares Geomíticos _____64 5.3 Oficina I: Análise Classificatória _______________________________68 5.4 Oficina I - Análise Transversal ________________________________71 5.5 Oficina I: Análise Surreal _____________________________________73

6 SEGUNDA OFICINA: O FILME DA MINHA HISTÓRIA __________________76 6.1 Oficina II: Análise da Produção Plástica ________________________81 6.2 Oficina II: Análise Classificatória ______________________________83 6.3 Oficina II: Análise Transversal ________________________________89 6.4 Oficina II: Análise Surreal ____________________________________91

7 ANÁLISE DO GRUPO PESQUISADOR ______________________________94 8 DIÁLOGO FILOSÓFICO-ESPIRITUAL SOBRE O SENTIDO DA VIDA _____97 9 ANÁLISE MAQUÍNICA: UM AGENCIAMENTO ENTRE O PENSAMENTO DO GRUPO E A CLÍNICA DE ENFERMAGEM ______________________________108 10 POSSÍVEIS CONSIDERAÇÕES PARA UM NOVO COMEÇAR ________115 11 REFERÊNCIAS ______________________________________________120 12 APÊNDICES ________________________________________________126 13 ANEXOS ___________________________________________________139

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Partilhando uma intenção “Ando devagar porque já tive pressa e levo este sorriso porque já chorei demais, hoje me sinto

mais forte mais feliz quem sabe só levo a certeza de que muito pouco eu sei que nada sei.”

(Renato Teixeira/ Almir Sater)

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1 PARTILHANDO UMA INTENÇÃO

Para conseguir expor minha intenção de pesquisar a espiritualidade, preciso

partilhar não só meu interesse sobre o tema, mas, antes, minha própria vida, com

suas diversas oportunidades de significar e ressignificar sentimentos e

acontecimentos importantes que constituem implicações e fundamentações para

entender a escolha. Ainda criança, já me fazia questionamentos profundos sobre a

vida, a morte e a existência, algo incomum em razão da pouca idade. Algumas

respostas foram surgindo com a ajuda de pessoas próximas que, quase sempre,

tinham explicações baseadas em suas crenças, sua fé e seus preceitos religiosos,

os quais me fizeram depois, eu mesmo, procurar, na religião de meus pais (o

catolicismo), explicações que acalentavam as dúvidas e as inquietações do existir.

Assim, as religiões em geral me atraíam de forma incomum, com suas

propostas variadas de viver. Confesso que me fascinava o mundo místico, levando-

me a empreender a busca do “Caminho” para o encontro com Deus, que se deu em

várias experiências além do catolicismo, como no espiritismo kardecista,

protestantismo e, por último, as Testemunhas de Jeová. A despeito de acreditar que

já houvera encontrado o “Caminho”, permanecia meu interesse em conhecer o modo

de percepção da vida pelas pessoas de outras religiões.

Nesse ínterim, pude enfrentar situações que considero parte das implicações

desta pesquisa, portanto, esclarecendo a escolha do tema deste estudo. Achava-me

uma criança diferente das outras, sempre voltada para questões muito sérias da

vida, o que explica a preferência por amizades com adultos e idosos. Sentia-me

preterido por meus pais, ocasionando-me uma baixa auto-estima e freqüentes

sentimentos de profunda tristeza. Ainda na infância, perdas de entes queridos

somam-se às implicações. Aos nove anos, vivenciei a dor do falecimento de minha

avó materna e, aos dez, enfrentei o duro golpe de perder meu pai, assassinado aos

trinta e quatro anos de idade. Logo em seguida, nesse mesmo ano, meu avô

materno que vivia conosco desde sua viuvez, também falece.

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Essas perdas marcaram profundamente a minha vida, de modo que

ganharam força e importância os questionamentos que já fazia, tais como: “É essa

vida tudo o que há? Há algum sentido para a vida e para a morte? Há alguém maior

que nós mesmos, que se importa conosco? Para onde iremos após a morte? Por

que sofremos?”

Em princípio, a forma que encontrei para elaborar o luto foi me interessar por

aquilo que tinha relação com a morte: os velórios, os enterros, os cemitérios, os

rituais fúnebres e também, pelas explicações religiosas para esse acontecimento.

Em razão disso, houve uma ainda maior aproximação minha com os assuntos

religiosos e espirituais ligados à existência, ao viver e ao morrer.

Estabelecendo uma analogia com a história da ostra que, ao abrir-se, deixa

entrar em seu interior grãos de areia que a ferem, mas dão-lhe a oportunidade de

envolvê-los e transformá-los em pérolas, fazendo sentido o sofrimento. Faço

aplicação à minha história pessoal, pois as vivências e os momentos difíceis

serviram para as escolhas futuras.

Nesse sentido, o sofrimento gerou competência, influenciando minha opção

pela Enfermagem. Estava inclinado, nas atividades acadêmicas, a lidar comumente

com pacientes portadores de algum sofrimento psíquico, deprimidos, terminais,

enlutados, fato que justifica a saúde mental como minha principal área de atuação

hoje.

Ainda na Graduação, algo me inquietava demasiadamente: o fato de que

uma das atribuições do enfermeiro é a assistência espiritual. Mas o que significa

essa assistência? Seria assistência religiosa? Meu interesse pelas religiões foi

dando lugar a algo que não envolvia somente o sagrado e o místico, mas a própria

existência e o sentido da vida, que pode abranger a todos, inclusive os que não têm

religião ou fé. Como prestar tal cuidado se, em momento algum, tal atribuição foi

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abordada em minha formação acadêmica? Seria eu capaz de prestar tal

assistência? Essas inquietações se intensificaram ao me deparar com a

responsabilidade de cuidar de pessoas agora como profissional, visto que tais

pessoas, doentes, esperam respostas e soluções para os mais variados sofrimentos.

Por ter tido a oportunidade de trabalhar com pacientes com câncer em vários

estágios da doença, vejo-me constantemente envolvido em questões existenciais,

como: amor, perdão, sofrimento, morte, fé, culpa e esperança. Em suas crises,

esses pacientes solicitam de nós, enfermeiros, alívio para suas dores e esperam ser

ajudados de algum modo.

Procurei estudar o que havia disponível sobre espiritualidade na

Enfermagem, mas somente encontrei tópicos relacionados à religião, costumes,

doutrinas e ritos. Mesmo não sendo profundo conhecedor do tema, quase

intuitivamente rejeitava o reducionismo proposto. Busquei em outras searas algo que

pudesse nortear outros caminhos e formas de expressão de espiritualidade,

encontrando referências apropriadas ao que estava buscando: uma visão ampla da

espiritualidade humana, longe de conceitos estritamente religiosos na antropologia

filosófica, psicologia e teologia.

É preciso deixar claro sobre o que me refiro ao fazer uso do termo

espiritualidade. Antes de qualquer coisa, deve ser diferenciado de aspectos

religiosos e psicossociais. Trata-se de algo mais abrangente que, apesar de conter

aspectos religiosos, com eles não se identifica. O que Frankl (1992:73) considera

como espiritualidade pode esclarecer:

Dimensão que integra e transcende as outras dimensões humanas, é o princípio de vida que permeia a pessoa por inteiro, incluindo a volição, a moral, a ética, a arte, os valores, as tradições, a fé e a fonte da própria consciência.

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A espiritualidade constitui-se uma dimensão humana e mostra-se

propiciadora de sentido para a vida, à medida que favorece, através desses

aspectos citados por Frankl, a busca e o sentido transcendente, que é irrepetível.

Não poderíamos, por tanto, tratar de espiritualidade sem nos indagarmos sobre o

sentido da vida, que está atrelado a cada pessoa individualmente e que corresponde

ao contexto vivenciado na esfera do tempo.

Ante o exposto, algumas indagações emergem: como a dimensão espiritual

revelada no sentido da vida de pacientes gravemente enfermos se apresenta frente

à doença, ao sofrimento e à morte iminente? Que necessidades e desejos espirituais

surgem nesses casos? A que aspectos da espiritualidade humana o enfermeiro

precisa estar atento para bem cuidar de seus pacientes?

Buscando prestar um cuidado que contemple essa dimensão, e frente as

demandas dos próprios pacientes, senti-me motivado a procurar respostas para tais

questões. Por isso, me propuz a realizar este estudo que toca em pontos, no mínimo

delicados, a saber: a espiritualidade, a dor, o sofrimento e a morte na prática clínica

do enfermeiro.

Foi-me apresentado pela orientadora deste estudo um método qualitativo de

pesquisa conhecido como sociopoética, método concebido como desconstrutivista,

pois tem a preocupação de questionar as formas estabelecidas de conhecimento e

abrir-se para novas formas de construção, a partir de relações autônomas e livres do

homem e das instituições, tornando o pesquisar ainda prática prazerosa e

envolvente para todos, participantes e facilitadores (SILVA, 1999). A sociopoética

que descrevo mais adiante se mostra adequada para o estudo que proponho, pois

utiliza dispositivos para a produção do saber a partir de experiências, sentimentos e

vivências, coisa não convencional na pesquisa, além de reconhecer a espiritualidade

como objeto de investigação científica (GAUTHIER, 2005).

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Interessei-me em aprofundar o tema. Este estudo tem como objetivo

produzir conceitos de sentido da vida junto ao grupo pesquisador composto por

pacientes com câncer. Esperamos que os conceitos de sentido da vida produzidos

possam contribuir com o entendimento da espiritualidade humana e motivar outros a

investigarem o assunto.

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Espiritualidade – desdobrando o homem

“Eu quero mergulhar nos rios do espírito, entrar na dimensão do sobrenatural. E onde esse rios me levarem eu irei e cada vez mais fundo eu mergulharei.”

(Ludmila Feber)

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2 ESPIRITUALIDADE: DESDOBRANDO O HOMEM

Tratar desse tema obriga-me a esclarecer alguns aspectos controversos que

permeiam seu entendimento. Em nossos dias, muito se fala sobre espiritualidade

como algo ligado estritamente a questões religiosas, trazendo um reducionismo

inadequado e uma desvalorização por parte da ciência tradicional. É necessário nos

determos naquilo que me refiro como “Espiritualidade”, suas formas de expressão e

de que maneira essas concepções podem contribuir para a assistência de

enfermagem.

Para tanto, é preciso, antes, discorrer sobre os encontros e os desencontros

que a temática nos traz, desde a supervalorização das antigas civilizações até o

ceticismo da sociedade moderna a partir disso, fazer uma relação entre

transcendência, transparência e espiritualidade. Em meio a isso, revisitamos a

História da enfermagem, discutindo sua prática de cuidado e sua relação com a

espiritualidade, a fim de apresentarmos a força desafiadora do espírito ao vivenciar a

dor, o sofrimento, a morte e a busca do sentido da vida, presenciado especialmente

por pessoas com câncer e por profissionais que delas cuidam.

2.1 Encontros e desencontros: linhas de percepção da espiritualidade

Durante toda a História, o homem tenta de diversas formas entender sua

existência, criando conceitos e explicações para os mais variados fenômenos da

vida. Utiliza para isso a razão (forma de discernimento lógica e consciente), a

sensação (capacidade de percepção dos sentidos), a emoção (sensibilidade dos

sentimentos) e a intuição (capacidade de perceber, compreender e pressentir sem,

necessariamente, fazer uso do raciocínio ou análise). Em dado momento histórico, a

ênfase desloca-se para uma dessas formas de conceber a realidade e a existência,

mas não deveria invalidar as demais (LELOUP, 1997).

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Desde a Antigüidade, a sensação, a emoção e, sobretudo a intuição são

valorizadas sem que seja deixada de lado a razão. Os mitos, as fábulas e as

parábolas são exemplos de como aspectos tão densos e profundos da vida são

compreendidos de forma tão simples. Para Jung (1987), os mitos surgem do

inconsciente coletivo, local da psique, onde estão armazenadas todas as

experiências comuns da humanidade, desde os tempos imemoráveis. Nesse

inconsciente coletivo, aspectos importantes da vida são armazenados em forma de

lendas, superstições, rituais e formas variadas de arte, que estarão presentes por

toda a vida. Por isso, não podem ser desconsideradas ou invalidadas como fato de

menos importância. As explicações contidas nos mitos são fontes de sabedoria e

correspondem às necessidades do tempo vivido. Nascem do desejo de entender o

mundo e tem origem no cotidiano. Levam a marca de seu tempo, de sua cultura,

representando o sujeito coletivamente, transmitido de forma oral de geração a

geração. Tentam acalmar o homem naquilo que é desconhecido, que o deixa

inseguro e permanece como tradição, unindo e redirecionando as emoções

coletivas.

Na Idade Média, conhecida como “Idade das Trevas”, a ciência e seus

métodos foram impedidos de realizar avanços, tudo isso em nome de Deus e da

religião, por entender que a vida e o homem bastavam nessa relação com Deus e

com seus supostos representantes legítimos na terra. Durante a História observa-se

que as relações entre os diversos saberes científicos, religiosos, filosóficos, artísticos

alternaram conforme as estruturas estabelecidas de poder, onde a lógica era

impressa de acordo com as instituições dominantes. Isso gerou certo distanciamento

da ciência para com as questões religiosas. O Iluminismo levou-nos a caminhar para

o outro extremo, posto que supervalorizava a objetividade e desprezava, na Idade

Moderna, tudo aquilo afeto à religiosidade, perdendo-se a perspectiva do sublime e

do sagrado (CREMA, 1997).

Assim como na Idade Média, grandes atrocidades foram cometidas em

nome da religião. Na Idade Moderna e na Idade Contemporânea, essas foram

legitimadas em favor do avanço da ciência. Esta passou a ser a detentora da

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verdade, pois a supervalorização da cientificidade, como única forma de

conhecimento, esconde e esquece outras formas como a filosofia, a arte, a tradição,

a religião e a cultura, causando uma redução e um prejuízo no modo como vemos e

transformamos a realidade.

Mas os fatos não acontecem cronologicamente de forma linear, pois vemos

sempre um dobrar e desdobrar nos acontecimentos históricos. Vez por outra, a

religião assume lugar de destaque nos caminhos e nas decisões no mundo,

imprimindo sua lógica, quase sempre questionada pela ciência, que tenta com seus

variados métodos se impor e retomar seu posto como última verdade.

Para Foucault (2006), a problemática tem seu foco nas concepções de como

se chega à verdade. Ora, o homem pode buscar a verdade através da

espiritualidade, que é possível no exercício da ascese. O sujeito, transformando-se,

torna-se sujeito capaz da verdade ou empreendendo outro caminho na busca do

próprio conhecimento, compreendendo que o conhecimento em si propicia o

encontro da verdade. Foucault (2006, p.21), ao descrever a concepção espiritual de

acesso à verdade, ilustra bem o impasse:

Para a espiritualidade, um ato de conhecimento, em si mesmo e por si mesmo, jamais conseguiria dar acesso à verdade se não fosse preparado, acompanhado, duplicado, conformado por certa transformação do sujeito, não do indivíduo, mas do próprio sujeito no seu ser de sujeito.

Foucault (2006) ainda acrescenta que o conhecimento toma lugar

proeminente nesta busca, no chamado “momento cartesiano”, que começa quando

ascende a verdade através do conhecimento e somente nele, sem que seja

necessária qualquer modificação ou alteração do sujeito. Esse mesmo sujeito é

capaz, por si mesmo e pelos esforços de conhecimento, reconhecer e ter acesso à

verdade. A lógica dessa estrutura é representada, segundo Foucault, na ênfase

dada ao “conhece-te a ti mesmo” e não como deveria ser no “cuidado de si”, que

compreende o poder e a capacidade do sujeito ser sujeito em si mesmo.

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Toda essa discussão traz o percurso ocidental de busca do conhecimento e

da espiritualidade. No Oriente, em povos da África e alguns povos nativos da

Oceania e das Américas, essa lógica não se repete ou mesmo integra

harmoniosamente essas duas possibilidades, perfazendo uma totalidade, como

comenta Boff (2006, p.37):

O caminho espiritual do oriente é o da totalidade, vale dizer, da unidade da realidade. As coisas não estão colocadas umas ao lado das outras, em justaposição, mas são todas sinfônicas, interligadas. Há uma grande unidade, mas uma unidade complexa, feitas de muitos níveis, de muitos seres diferentes, todos eles ligados e religados entre si (...) O drama é sentir-se um elo vivo e esquecer que este é um elo da única corrente de vida (...) A experiência de totalidade, uma experiência de não dualidade. Isso equivale a dizer: sentir-se pedra, planta, animal, estrela, numa palavra, sentir-se universo.

O mesmo acontece com as concepções espirituais indígenas e afro-

brasileiras, por ser um conteúdo profundamente enraizado na ecologia. O mundo, os

ambientes e seus moradores estão impregnados de uma energia cósmica,

penetrante no universo, na realidade e principalmente no homem que contagia sua

própria realidade com energias sutis de solidariedade e respeito por todas as coisas

vivas e inanimadas (PREVITALLI, 2005).

A Medicina ocidental consolida-se como prática científica apoiada no modelo

cartesiano de explicação do homem e do processo saúde-doença. Neste modelo, o

homem é visto como uma máquina, a doença é o mau funcionamento dessa

máquina e os profissionais de saúde são mecânicos que consertarão a máquina

com defeito. O objeto de estudo é a doença e seu enquadramento em entidades

patológicas e definições anátomo-químicas. Mas quais são as conseqüências disso?

Vasconcelos (2006: 26) denuncia:

A razão tornou-se o único meio aceito como legítimo de compreensão da vida e da definição dos caminhos de organização

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da sociedade capaz de levar ao progresso e ao bem estar, desvalorizando as percepções oriundas dos sentimentos, da intuição, da inspiração poética e da vivência religiosa.

A forma como percebem o mundo, a partir do conhecimento científico, é

dualista. Há o mundo da matéria, de tudo o que é concreto, e há o mundo do

espírito, sendo este último objeto de estudo apenas da filosofia e da teologia. Se

analisarmos essa dicotomia, muitos aspectos religiosos que influenciam o processo

saúde-doença não são levados em consideração, tampouco discutidos abertamente,

correndo-se o risco de infiltrarem-se nesses meios de forma silenciosa e pouco

crítica, como denuncia Vasconcelos (2006).

Esse modelo biomédico começa a entrar em crise no século XX devido à

crítica ao modelo centrado na doença, a falácia de um conhecimento objetivo

afastado da subjetividade e as conseqüências catastróficas da supervalorização da

razão em relação à sensação, à emoção e à intuição.

Percebendo que esse modelo não dá conta de toda a complexidade da vida,

abre-se espaço para outras formas de explicar os processos vividos pelo homem.

Ampliando a discussão sobre o modo de fazer ciência na saúde, a religiosidade

insere-se numa construção objetiva de investigação que ressignifica variadas

dimensões nas práticas de saúde, desde que discutida de forma aberta e crítica.

Muitos hoje têm interesse por questões espirituais e pelas formas de vivê-la,

sem obrigatoriamente seguir uma instituição formal, dando origem à experiência

pessoal de transcendência, isso devido ao descrédito das variadas formas

constituídas de caminhos religiosos ou, até mesmo, de projetos de emancipação

humana, como o liberalismo, o nazismo e o comunismo. Inundado de muitas

filosofias, religiões e observando os limites do modelo cartesiano de razão e ciência,

o homem se pergunta sobre o sentido da vida, a existência de Deus e de

perspectivas quanto à ciência e ao seu futuro.

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As concepções de espiritualidade são diversas e grandes pensadores

dedicaram esforços para compreender esse tema. Com base nessas concepções

destacamos três abordagens que mais influenciam a saúde: a psicanálise, a

psicologia analítica e a análise existencial.

Para Freud, essa busca espiritual ou mesmo religiosa é conseqüência do

sentimento de desamparo. Frente a esse sentimento a idéia de salvação, e de

imortalidade, de lugar protegido e seguro, de lugar paradisíaco tranqüiliza e

reestrutura o homem. Essa concepção de imortalidade surge nos níveis primários de

desenvolvimento infantil, sendo posteriormente substituído pelo conhecimento da

realidade. Freud (1976) esclarece que a idéia de Deus, divindades, rituais, leis,

normas e princípios morais são uma representação do complexo centrado na figura

paterna. Mesmo reconhecendo que os aspectos espirituais ou religiosos sevem para

segurar ou barrar a pulsões anti-sociais e trazer certo grau de conforto para o

homem, devem ser encarados como ilusão humana.

Um dos mais ilustres discípulos de Freud e depois dissidente, Jung, traz

uma visão diferente da espiritualidade e, por isso mesmo, seu rompimento com seu

mestre. Para ele, a espiritualidade não seria uma resposta à angústia ou ao

desamparo frente à morte, mas antes algo inerente ao homem. A morte, por tanto,

seria encarada como a conquista da totalidade, antes precedida da sabedoria

adquirida durante as experiências e oportunidades da vida, fruto de um estágio de

desenvolvimento humano além do estágio infantil e juvenil. Os conteúdos

vivenciados pelo homem seriam, portanto, reprimidos e reapareceriam de forma

coletiva em um contexto individual. A transcendência seria a manifestação do

simbólico, não de forma consciente, mas advinda da psique inconsciente e coletiva,

dando o caráter de revelação ao conteúdo experienciado (JUNG, 1984).

Frankl, que também foi discípulo de Freud e teve a oportunidade de

vivenciar na prática suas teses nos campos de concentração nazistas quando

esteve como prisioneiro, entendia que o homem possui a dimensão espiritual como

forma de organizar a existência, que permite encarar à vida e a morte em uma visão

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de liberdade. Para ele, o homem configura-se homem na busca pelo sentido da vida

e no querer um significado para sua existência. Concebe a espiritualidade como algo

que traz objetivo a vida e gera o conforto e a esperança frente ao sofrimento

inevitável (FRANKL, 1991).

Abandonando o modo dualista de ver o mundo e o homem, herança

platônica, iluminista e avançando ao reducionista contemporâneo, rejeitamos a

concepção de que o ser humano é bidimensional e aceitamos a

multidimensionalidade proposta por Frankl. Escolhi me deter à análise existencial

por permitir compreender o fenômeno espiritual de forma ampla e livre da redução

comumente imposta, além de dar ênfase ao sentido da vida como forma de vivenciar

a espiritualidade.

2.2 Os conceitos de transcendência e transparência como forma de entender a espiritualidade

Partido das concepções de Frankl, o homem possui três dimensões

(corporal, mental e espiritual) que se interpenetram, conservando a unidade do ser.

Apesar de sua multiplicidade, reconhece suas diferenças ontológicas, mas, também,

sua unidade antropológica. Isso está posto como vemos em seu comentário:

A imagem do homem se dá na coexistência entre sua unidade antropológica e suas diferenças ontológicas, entre o modo único de ser que o homem possui e as modalidades diferenciáveis do ser, no sentido de existir (FRANKL, 1990, p.40).

Mas poderíamos nos perguntar: o que é essa dimensão espiritual? Como

diferenciá-la de aspectos religiosos e psicossociais? Como perceber e caracterizar a

espiritualidade no homem?

O que diferencia o homem dos demais seres vivos é a dimensão espiritual

que Frankl denominou de noético, âmbito que torna esse homem um ser facultativo,

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ou seja, com capacidade para decidir, mesmo sendo também fático, devido a seu

determinismo psicobiológico.

Um aspecto que se pode destacar, para tentar responder a tais questões,

está naquilo que é próprio do espírito, sua liberdade e sua responsabilidade. Na

compreensão frankliana, o homem é livre ôntica e ontologicamente, em sua

condição primária. Esta liberdade origina-se da dimensão espiritual, parte da

pessoa, e não se submete aos condicionantes biopsicossociais ou mecanismos de

qualquer sorte.

É através da liberdade que o homem toma posição e atitude frente aos

diversos condicionantes da vida, sem ela não há qualquer decisão. E uma vez que é

pessoal e única não pode ser imposta, precisa ser assumida através da livre

expressão. Jamais poderia originar-se de outra dimensão a não ser da espiritual,

visto que todas as outras estão atreladas a leis e mecanismos neurobiológicos,

psicobiológicos ou psicossociais (RODRIGUES, 1991).

A liberdade vai estar sempre ligada à responsabilidade. Rodrigues (1991)

ressalta que a responsabilidade vem antes da liberdade: primeiro, o homem é

responsável por sua vida, por si próprio, pelos outros e pela sua consciência; a partir

daí, torna-se livre para escolher com base em seus valores, objetivando-os e

partindo de si próprio. A responsabilidade deve ser entendida como habilidade de

responder a algo. Esse “algo” está fora de nós ou além de nós, portanto, algo

transcendente ao homem. Podemos dizer que a responsabilidade é o exercício de

transcendência. Somos convidados constantemente a nos posicionar frente à dada

situação para um “tu”, para um “nós”, para um “outro”, isso nada mais é que

responsabilidade ou transcendência.

A espiritualidade está intimamente ligada à concepção de transcendência,

como atesta a definição de espiritualidade de Boff (2000: 23):

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Experiência de contato com esta dimensão que vai além das realidades consideradas normais na vida humana. Que as transcende. Seria a arte e o saber de tornar o viver orientado e impregnado pela transcendência

Corroborando a definição supracitada, Modin (1980: 263) também traz a

transcendência como elemento chave para compreender a espiritualidade ao dizer:

O homem está em condições de sobrevoar todo o mundo da experiência, valorar e julgar o presente e o passado e antecipar o futuro, porque traz em si um elemento de imaterialidade, ou melhor, de espiritualidade.

Segundo Schramn (2007), a transcendência pode ser apreendida de duas

formas: transcendência vertical e transcendência horizontal. A primeira pressupõe

uma estrutura hierarquizada nas relações entre humanos e um ser superior ou de

seus pretensos representantes, onde é necessário se submeter à decisão de um

“outro”. A segunda não se fecha no imanentismo, mas propõe uma ponderação

reflexiva dos princípios absolutos e da autoridade não revogável, rompe com a

hierarquia e estabelece a horizontalidade, exemplificada no conceito Homem-Deus,

do Cristianismo, construindo uma ética emancipada do sobrenatural e do divino.

É importante deixar claro que a transcendência aqui referida, e que se adota

neste estudo, não se contrapõe à imanência, pois é compreendida como dimensão,

não percebida a priori, da realidade existencial, mas algo presente, nem sempre

revelado, da experiência humana, não fora dela, mas, sobretudo, imbricada nela,

possibilitando um desdobrar de uma realidade não vista, mas presente (BOFF,

2000).

Sim, pelo que vimos, é possível integrar duas concepções aparentemente

opostas, transcendência e imanência, como definiu Boff (2002), em “transparência”,

que é uma síntese dialética, significando a presença da transcendência na

imanência.

A esse respeito, Vasconcelos (2006: 36) explicita essa transparência:

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Um ser humano nunca pronto, sempre em construção. Ser marcado por limitações imensas em seu corpo, na sua inteligência e capacidade de afeto; ser enraizado num determinado local, tempo e contexto social e cultural; submetido a situações de opressão, de miséria e de falta de perspectivas de superação. Mas, nas mais profundas situações de opressão, seus sonhos e desejos latejam incessantemente, empurrando-o para uma teimosia e persistente busca de superação... Nos momentos mais difíceis, seu humor relativiza todas as coisas e delas ri, mostrando que não está definitivamente encurralado. Esta dimensão de abertura e força do ser humano, de romper barreiras, de superar proibições e de ir além de todos os limites é a sua transcendência.

Tudo o que foi tratado até agora mostra-nos dois pontos importantes: 1 – A

espiritualidade não está ligada simplesmente a questões metafísicas; antes disso, é

parte integrante do todo que é o homem; 2 – O conceito de espiritualidade não pode

ser confundido com o de religiosidade, pois o primeiro é mais amplo e complexo.

Frankl (1994) revela a capacidade de transcender do homem. Para ele,

advém de sua dimensão noética ou espiritual, pois nela se encontra a liberdade de

decisão frente a todos os condicionamentos humanos, inclinando-se para o

interesse prático e artístico, o pensamento criativo, a intencionalidade, a

religiosidade, o senso ético e a compreensão de valores e revelando a

responsabilidade como outro aspecto da espiritualidade, porque inclui o “para que”

da liberdade humana. Nesta perspectiva, o homem é visto como responsável por

cumprir e realizar o sentido e os valores. Assumir isso é o sentido da existência

humana.

Uma outra concepção de espiritualidade está ligada à forma peculiar de

estar no mundo e de se relacionar com as pessoas, e empreendendo uma teia de

ligações frente ao materialismo e às dificuldades para se abrir a totalidade

(TEIXEIRA, 2004). É também “um amor bem pensado à vida” em seu poder de fazer

escolhas e encontrar sentido na vida e, em todos os seus momentos, extrair aquilo

que é importante para o crescimento mesmo em fase de sofrimento (FRANKL, 1994;

PAIVA, 2004).

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É importante ressaltar que é possível e importante o desenvolvimento da

espiritualidade, o que ocorre em estágios, que Leloup e Boff (1997) chamam de

itinerários espirituais.

O primeiro estágio que se pode descrever como encontro com o “numinoso”

acontece através de processos individuais de interiorização, que conectam as

dimensões profundas de subjetividade e proporcionam muitas vezes um estado

alterado de consciência. Esse estado traz ao indivíduo encontro com conteúdos

surpreendentes e muitas vezes capazes de transcender a dor e o sofrimento, além

de causar um bem-estar profundo, que alguns místicos chamam êxtase. Segue-se a

este um estado de metanóia, de busca dos significados da experiência vivida, além

das consolações, estado de paz e consolação, que poderá trazer riscos espirituais

se nos fizer parar no caminho, nos fixar e impedir de continuar o itinerário.

Os estágios seguintes são o da dúvida e o do vazio. É nesse momento que a

pessoa, saída da experiência do numinoso, vivencia a volta à realidade.

Questionamentos, dúvidas e incertezas assolam e lhe tiram a paz. Esse estado pode

muito bem ser representado por um reservatório vazio e sujo que recebe

inesperadamente uma quantidade inimaginável de água, e da mais pura. Até que a

sujeira já existente possa “sentar”, ir para o fundo, o reservatório e a água terão

aparência lamacenta, descrevendo assim esse estágio. De nada adiantará tentar

limpar a água, ou acrescentar mais água ao reservatório. É preciso esperar, viver

esse tempo, que se configura difícil mais imprescindível para avançar outros

estágios.

Os últimos estágios são a abundância da transcendência e o retorno ao

cotidiano, onde acontece a verdadeira, duradoura e autêntica mobilização do

potencial da espiritualidade, o que Vasconcelos (2006) chamou de espiritualidade

engajada, na qual a força oriunda do espírito humano já conectado, não somente

consigo mesmo, mas com a vida é empregada para uma causa ou para alguém. O

êxtase agora é conseguir, com alívio da dor de alguém, com a luta contra a injustiça,

contra a miséria ou no empenho de se conseguir algo em prol dos outros e da vida,

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vivenciando, assim, o pleno sentido de espiritualidade, conforme descrito por Leloup

e Boff (1997: 24):

Espiritualidade significa alimentar em nós esta fonte de onde jorra, continuamente, a vida. A espiritualidade é um ponto que coloca a centralidade da vida a partir daqueles que menos tem vida (...) toda espiritualidade tem dimensão ética de defender e expandir a vida...

Para Leloup e Boff (1997), aqueles a quem se referem como os que

menos têm vida são os trabalhadores explorados, os pobres, os excluídos e

marginalizados, os injustiçados, os humilhados e todos os usurpados em sua

dignidade e cidadania. Esses são frutos do sistema capitalista, que concentra os

meios de vida, saúde, educação, habitação, alimentação e lazer nas mãos de

poucos. Vivenciar a espiritualidade requer um comprometimento com os que sofrem,

valorizando suas experiências e conhecimentos, percebendo que há muita riqueza

de vida neles. Reconhecer isso exige ver todos os aspectos de vida dessas

pessoas, não reduzindo ou limitando aos aspectos econômicos.

Os que vivem esse estágio de engajamento espiritual ou espiritualidade

ativa empreendem incansavelmente uma luta contra o sistema estabelecido e se

misturam de forma tão homogênea que se fazem eles próprios excluídos,

injustiçados e humilhados, conseguindo ajudar não só aos outros, mas a si mesmos

em participação. Temos muitos exemplos de pessoas que provavelmente

conseguiram esse nível espiritual: Francisco de Assis, Betinho, Madre Tereza de

Calcutá, Luther King, Gandhi.

Ressalta-se que esse itinerário espiritual não é estanque e não ocorre de

forma linear. A busca por esse caminho espiritual se dá em muitas idas e voltas, não

é traçado um modelo de santidade, parte-se do pressuposto de que vivermos os

aspectos espirituais é valorizar as ações solidárias, o respeito à diversidade e as

diferenças e assegurar a justiça a todos.

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Frankl (2003) alerta que só realmente encontraremos o sentido da vida

se nos esquecermos, deixarmos de lado nosso modo egoísta de viver e passarmos

a buscar algo que realmente valha a pena, além de nós mesmos.

A enfermagem, desde sua origem, tem enraizado esse paradigma de

atuação como prática espiritual através do altruísmo e solidariedade, muitas vezes

confundida com generosidade e gratuidade. Estereótipo que causa o panorama

profissional comumente visto: baixos salários e condições precarizadas de trabalho.

Como entender esse processo e de que forma a enfermagem atua espiritualmente?

Discutiremos essas proposições nos tópicos seguintes.

2.3 Revisitando a Enfermagem e sua prática espiritual

A prática de enfermagem, compreendida como atividade do cuidado, não é

nova. Se tivermos o mesmo conceito de enfermagem de Horta (1970) “gente que

cuida de gente”, então essa prática remonta ao surgimento do homem na terra.

Durante toda a sua trajetória histórica, a Enfermagem tem sofrido influência de

várias áreas do conhecimento e tem incorporado saberes que possibilitam um

cuidado condizente com o que se pensa e se exige em cada época. Mas ao nos

referirmos à Enfermagem como ciência, esta tem seu surgimento por volta do século

XIX, com Florence Nightingale, conhecida como a Mãe da Enfermagem Moderna e a

Dama da Lâmpada, alusão ao seu desvelo em cuidar dos doentes, mesmo em altas

horas da noite.

O histórico do exercício de enfermagem esteve mesmo antes de se

consolidar como ciência e muito depois disso, a cargo de religiosos. A expansão do

Cristianismo favoreceu diretamente o interesse dos cristãos em cuidar dos doentes,

dos pobres e desamparados, por cumprir com os princípios de amor, compaixão,

misericórdia e altruísmo ensinados por Cristo. Nesse contexto, o interesse cristão de

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ajudar o outro foi o responsável pela criação de ordens religiosas e instituições de

acolhimento aos doentes. Entre as atividades prestadas a essas pessoas, estavam

os cuidados espirituais, que eram compreendidos como forma de salvar as almas.

Tais cuidados estavam direcionados às práticas religiosas, visando a propagação da

fé cristã (TURKIEWICZ, 1995).

Florence deixou para a enfermagem um legado: perceber o homem em

todas as suas necessidades, sendo essas compreendidas por ela de forma ampla.

Florence teve uma formação cristã, tanto familiar como profissional. Antes de criar

seu modelo de enfermagem, esteve junto às diaconisas alemãs para aprender seu

ofício. Em seus registros e normas, na sua escola de novas enfermeiras, princípios

morais e religiosos rígidos faziam parte do treinamento. O modelo Nightigeriano se

espalhou pelo mundo inteiro como excelência em enfermagem, consolidando e

reafirmando também os princípios religiosos (NIGHTINGALE, 1989).

Esse modelo foi determinante para a divisão do trabalho em enfermagem,

que vemos até hoje nas diversas categorias: enfermeiro; técnico de enfermagem;

auxiliar de enfermagem e parteiro. A estrutura hierarquizada da Enfermagem

assegura o saber à classe de enfermeiros e o fazer ao nível médio e elementar da

profissão, contribuindo, assim, para a desqualificação profissional, disputas de poder

e o enfraquecimento político da profissão (MELO, 1986).

A Enfermagem em sua História, além da influência religiosa e da divisão do

trabalho, estrutura-se como profissão feminina, isso ocorreu durante muito tempo,

trazendo uma idéia deturpada da profissão ligada sempre à submissão e a trabalho

de menor importância, ligada à figura da mulher. A hegemonia médica na saúde

que, por sua vez, representada eminentemente pela figura masculina, reafirma e

imprime submissão à enfermagem e a classifica como área inferior e dependente.

Essa estrutura social nunca foi aceita passivamente, não devemos esquecer de que

nesse percurso sempre houve mulheres corajosas, inteligentes e competentes que

mostraram uma forma de superação e o rompimento desse modelo, através de

habilidades e competências que as distinguiam e traziam mudanças na visão social

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da enfermagem, tornando-as respeitada e, por isso, encontraram lugar destacado na

saúde (PIRES, 1989).

Uma das estratégias de construção científica de enfermagem de forma

independente, deu-se com o estudo e a categorização de técnica e de

procedimentos de enfermagem e, posteriormente, com a criação de teorias

aplicadas. Para Penha e Silva (2007), o que norteia os cuidados de enfermagem é

seu aparato teórico, pois, através das teorias, é possível descrever e explicar os

relacionamentos entre indivíduos, grupos, situações ou eventos e mesmo prever

desdobramentos destes fenômenos. Apesar de atribuírem a Florence a elaboração

da Teoria Ambientalista, somente a partir da década de 50 do século passado,

surgem as primeiras teorias de enfermagem.

Essas teorias têm como base o estudo das relações humanas e podem ser

agrupadas de duas formas (PENHA; SILVA, 2007; GEORGE, 2003):

1- Interação Recíproca (entendem que essas relações acontecem com seres

humanos que possuem partes ou dimensões, mas vistas em seu conjunto). Entre as

teoristas que estão nesse grupo: Peplau; Orlando; King; Orem; Levine; Johnson;

Roy; Leininger; Neuman e Watson;

2- Ações Simultâneas (o homem é concebido por padrões de

comportamento ao invés de partes ou dimensões, esses padrões envolvem

sentimentos e são elaborados a partir das relações). As teoristas desse grupo são:

Horta; Rogers; Newman e Parse.

O contexto histórico e social em que se insere a enfermagem é importante

para compreendermos como se dá seu desenvolvimento e chegarmos à

espiritualidade e a assistência espiritual de enfermagem.

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Segundo Huf (1999), os primeiros estudos sobre espiritualidade como

fenômeno para os cuidados de enfermagem datam do surgimento também das

primeiras teorias. Ela destaca a classificação dos problemas de enfermagem de

Abdellah, em 1959, o modelo de relação interpessoal de Travelbee, em 1969, o

roteiro de necessidades espirituais de Stoll, em 1979, a assistência espiritual de

Daniel, em 1983 e Fish & Shelly, em 1988, a filosofia e a ciência da assistência de

enfermagem de Watson, em 1985, os 14 componentes da assistência de

enfermagem de Handerson, em 1989, e o modelo de sistemas de Neuman, em

1989.

Dentre as teorias de enfermagem, poderíamos dividir em três grupos que

exploram a espiritualidade (PENHA; SILVA, 2007):

1- As que pouco ou nada referem de espiritualidade (Peplau, Orlando, King e

Orem).

2- As que o conceito de espiritualidade está contemplado na teoria (Levine,

Roy, Leininger, Rogers e Horta).

3- As que trazem o conceito de espiritualidade como foco central da teoria

(Neuman, Newman, Parse e Watson).

Percebe-se que, apesar dos diversos estudos sobre espiritualidade e a

assistência de enfermagem, ainda é um problema a inclusão no processo e prática

de enfermagem. Isso fica claro na retrospectiva histórica da produção sobre

espiritualidade da Revista Brasileira de Enfermagem, primeira publicação científica

brasileira de enfermagem, que data de 1947 e permanece até os dias atuais,

realizada por Sá e Pereira (2007).

As autoras constataram que a produção sobre o tema está atrelada a

religião principalmente nos anos 50 e 60, e, ao longo dos demais, acrescentam-se

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reflexões de caráter ético, bioético, filosófico e a tentativa de compreender a

espiritualidade não somente através da pessoa cuidada, mas também dos

profissionais. Vê-se na produção de enfermagem a necessidade clara de diferenciar

os aspectos psicossociais e religiosos isoladamente de espiritualidade.

Para Sá e Pereira (2007), as tendências identificadas quanto à

espiritualidade mostram-se complexas e são entre elas: espiritualidade como parte

do caráter e da moral do indivíduo que escolhe fazer enfermagem; espiritualidade

como filosofia de trabalho do enfermeiro; espiritualidade como parte do currículo e

da formação do enfermeiro; espiritualidade na assistência ao paciente com

necessidades humanas básicas; significado de espiritualidade para quem é cuidado;

significado de espiritualidade para quem cuida; espiritualidade e humanização;

espiritualidade, morte e morrer; e espiritualidade sob a luz da ética e da bioética.

Precisamos salientar que a Enfermagem, como área da saúde, também

sofreu a influência do modelo biomédico em sua prática, posto que supervaloriza as

técnicas, tratamento, tecnologias duras e muito pode se notar a ênfase dada à

doença ao invés da pessoa, alvo do cuidado. Nessa situação, a espiritualidade e as

outras necessidades não biológicas assumem lugar secundário ou inexistente. A

avaliação e as intervenções de enfermagem devem contemplar todas as

necessidades, desde que precisem ser satisfeitas.

Stoll (1979) desenvolveu um roteiro para identificar as necessidades

espirituais do paciente. Ela as subdividiu em quatro partes:

1- Crença em Deus ou no sobrenatural;

2- A força e a esperança na vida;

3- Práticas e necessidades religiosas;

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4- Relação entre crenças espirituais e processo saúde/doença.

De acordo com Guimarães (1984), o entendimento amplo da espiritualidade

e a capacidade precisa de observação do enfermeiro permitem a identificação das

necessidades espirituais. A autora relaciona que comportamentos apresentados

pelos pacientes podem ser indícios de crise espiritual: desespero, falta de propósito

na vida, perda de fé, vontade de morrer, falta de propósito para o sofrimento,

depressão severa, recusa de se comunicar com entes queridos e desistências em

participar das atividades religiosas.

Ainda, Daniel (1983, p.165) apresenta as possíveis manifestações de

necessidades espirituais não satisfeitas, entre elas:

Medo de ficar sozinho, da morte, do sofrimento, de negligência, de deixar os filhos sozinhos, de perder o emprego, de ficar com incapacidade física; choro; solicitações freqüentes; isolamento; solidão; questionamentos; dependência; queixas excessivas; expressão de sentimento de culpa, de falta de motivação e propósito, de rejeição, de desvalorização da auto-estima, da auto imagem; angústia; demonstração de carência afetiva, com solicitação freqüente de companhia; desesperança; agressividade verbal, crítica negativa; depressão; desespero; sintomas somáticos; semblantes tristes; insônia; desconfiança; projeção de sentimentos e pensamentos; atitude de desprezo e displicência.

Poderíamos nos perguntar se tais manifestações não podem ser

confundidas com manifestações oriundas também da dimensão psicofísica. Sem

dúvida poderiam, mas vale esclarecer que tanto Guimarães (1984) quanto Daniel

(1983) consideraram não somente as necessidades e manifestações espirituais,

sobretudo as psicoespirituais. Provavelmente pela dificuldade de delimitar o que é

exclusivamente espiritual e o que é psicossocial, além de compreender que o

homem é o todo e que suas dimensões se interpenetram e repercutem umas nas

outras, conforme apregoou Frankl (1990).

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A North American Nursing Diagnosis Association – NANDA (1999), inclui em

sua taxonomia quatro diagnósticos de enfermagem que dizem respeito à

espiritualidade: angústia espiritual, risco para angústia espiritual e potencial para

bem-estar espiritual. Para Heliker (1992), esses diagnósticos compreendem tanto

aspectos religiosos como espirituais e relaciona como características definidoras os

questionamentos quanto ao sentido da vida, ao sofrimento, à morte ou ao sistema

de crenças. Todas essas características definidoras desses diagnósticos são

corroboradas por Hensley (1994).

Tratando agora das intervenções de enfermagem que contemplam as

necessidades espirituais, podemos implementá-las desenvolvendo o relacionamento

terapêutico enfermeiro-paciente, cujos objetivos são: favorecer o encontro do sentido

da vida, favorecer a esperança, apoiar espiritualmente e clarificar valores (FISH;

SHELLY, 1988).

Para Olivieire (1985), essa relação, que precisa ser desenvolvida a fim de se

prestar cuidados espirituais, exige que o enfermeiro transcenda e forme uma

unidade com o outro.

Outra maneira de prestar esses cuidados e desenvolver uma relação de

ajuda é através do trabalho de grupo. No grupo, é possível favorecer a troca de

experiências, o sentimento de pertença, de não estar sozinho em dada situação, ter

a possibilidade de ajudar e ser ajudado e perceber um propósito comum (MUNARI,

1995).

Nessa relação terapêutica, o enfermeiro deve estar atento a um grande

número de fatores, como: tipo de problema enfrentado pela pessoa cuidada,

disponibilidade para o acompanhamento, enfrentamento de questões existenciais

envolvidas, sua formação e suas habilidades para o cuidado espiritual. Todos esses

fatores precisam ser levados em consideração se quisermos cuidar das pessoas e

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ajudá-las a suprir suas necessidades e seus desejos. Trataremos, pois dessas

questões no tópico que se segue.

2.4 Cuidando de pessoas com câncer: vivenciando a dor, a morte e o sentido da vida

Os profissionais de saúde vivenciam constantemente momentos de crise,

tanto das pessoas submetidas aos seus cuidados, quanto de seus próprios, no

envolvimento num emaranhado de sentimentos e pensamentos, nos quais

elementos subjetivos emergem. Em meio a tudo isso, esses profissionais precisam

atender às demandas desses pacientes de forma que consigam alcançar os

objetivos de seu cuidado.

Para que isso ocorra, é preciso que os cuidadores estejam apercebidos de

seus próprios processos interiores e também dos lampejos, muitas vezes

inconscientes que apontam uma saída ou uma estratégia para melhor assistir aos

pacientes. A forma segura de alcançar essa sabedoria é mergulharmos dentro de

nós mesmos, caminho árduo, para atingi-lo de forma completa, dado o dinamismo

da vida, que sempre apresenta-nos algo a conhecer. Há sempre, ainda, algo que

não se mostra plenamente, sem falar nos constantes processos de transformações

conscientes e inconscientes.

Muitas são as formas de empreender essa caminhada: as tradições

religiosas, as psicoterapias, as artes, as crises vivenciadas e os encontros com

outras pessoas. Esses processos propiciam ligações sutis com fatos ocorridos,

sentimentos reprimidos não considerados. Assim, intuições e sensações são

percebidas, relembradas e valorizadas; os valores são confrontados e tudo vai

gerando energia e aumenta a capacidade de interpretar, refletir e ressignificar as

coisas, desenvolvendo uma inteligência espiritual (BOFF, 1996).

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Os efeitos da busca de nós mesmos refletem diretamente na forma como

cuidamos de nossos pacientes. Esses efeitos são descritos por Vasconcelos (2006:

67):

Acesso à linguagem simbólica do inconsciente. Aprende a lidar com imagens e pequenas histórias carregadas de simbolismo e poder entrar num diálogo mais profundo com pacientes e grupos envolvidos em problemas de saúde importantes. Passa a poder participar de forma voluntária do processo de elaboração do sentido e da mobilização interior, centrais na dinâmica de enfrentamento da crise do viver de seus pacientes. Abre a porta de acesso ao saber de manejo da subjetividade e das relações que se encontra acumulado no inconsciente.

Nos serviços de saúde, os profissionais deparam-se rotineiramente com

problemas tão complexos que não conseguem visualizar outro caminho a não ser se

fechar e criar uma couraça de insensibilidade, reforçada, inclusive, na formação e

exigida pelos mestres. Para quebrar esse paradigma, é imperativo o

desenvolvimento das dimensões racional, sensitiva, afetiva e intuitiva. Do contrário,

o sofrimento dos pacientes, intensos e constantes, tornar-se-ão insuportáveis para

os cuidadores.

É a partir da espiritualidade que os profissionais conseguirão superar essa

tendência de afastamento. Nessa perspectiva, a espiritualidade mostra-nos o poder

do homem de criar, de transformar e de decidir mesmo em situações extremas de

comprometimento, pela transcendência. Vislumbra-se a possibilidade de, mesmo no

sofrimento, emergir criatividade, crescimento e superação (PESSINI, 2004).

O sofrimento e a proximidade da morte mobilizam muitos processos nos

pacientes, uma vez que o sentimento de fraqueza frente a situações irremediáveis

traz abertura e disponibilidade para o desenvolvimento de relações afetivas intensas,

reorganização de prioridades na vida. Além disso, possibilita encontros plenos de

significados que possibilitam o perdão, a solidariedade, o amor e o respeito à vida de

modo geral.

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Por termos escolhido e convidado pacientes com câncer para participar

desse estudo como co-pesquisadores, demos ênfase e nos detivemos a estes na

discussão de experiências e necessidades espirituais, compreendendo nossas

reflexões.

As pessoas com câncer muitas vezes enfrentam o medo da dependência, da

dor, da degeneração, da incerteza, da solidão, do isolamento, da separação dos

entes queridos e de serem abandonadas pelos profissionais que delas cuidam. Para

Kóvacs (2007), essas pessoas vivenciam o luto da perda de si mesmas e das

pessoas próximas, além de apresentarem manifestações de angústia espiritual entre

as quais: o temor de não serem perdoadas por Deus a imprevisibilidade do que há

após a morte e a falta de sentido na vida.

Da dor e do sofrimento próprios da crise podem gerar felicidade e paz,

mesmo que não seja num momento tranqüilo, permeado muitas vezes de ansiedade

e de desespero, se, nas elaborações subjetivas, forem buscados sentidos para

mobilizar a reorganização. Cabe ao profissional de saúde favorecer o encontro do

sentido do sofrimento a partir de valores dos que sofrem (FRANKL, 2003).

Breitbart (2003) relata que muitos pacientes com câncer, apesar de

vivenciarem a ameaça em suas vidas, puderam fazer grandes reviravoltas,

priorizando o que era significativo, mesmo na iminência de morte. Observou também

que, quanto maior a paz e a compreensão do que está acontecendo, melhores são

as respostas à dor, e melhor é o enfrentamento à doença e, ainda, há uma melhor

qualidade de vida.

Mas não se pode negar que a dor, o sofrimento e a morte iminente geram

angústia espiritual. Caso o paciente não encontre sentido para seu estado, seu

desespero e seu sofrimento podem se tornar intensos, porque está em jogo sua

integridade pessoal e acima de tudo, existencial.

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Sounders (1991), uma das fundadoras dos hospices (serviços de saúde que

prestam cuidados paliativos a pessoas sem possibilidades terapêuticas) da

Inglaterra, formulou o conceito de dor total e descreve que a pessoa com câncer

vivencia: dor física que é a sensação dolorosa associada às lesões reais; dor

psíquica que é o medo do sofrimento, da morte, do desconhecido; tristezas; raiva;

revolta; perdas; inseguranças; incertezas; desespero; depressão; dor social que é

causada pelo isolamento, rejeição, abandono, mudanças de papéis, dependência e

inutilidade; e dor espiritual, que é caracterizada pela falta de sentido na vida e na

morte, medo do pós-morte, do submeter-se, das culpas perante Deus, busca de fé,

de conforto espiritual.

Kubler-Ross (2000), em seus estudos com pacientes terminais, descreve as

cinco fases do processo de morte e morrer: negação, raiva ou ira, barganha,

depressão e aceitação. Também alerta que a forma de experienciar essa situação é

individual e temporal, sendo, portanto, necessário realizar o cuidado de forma

específica para cada caso.

Segundo Koenig (2001), os pacientes que tinham crenças espirituais,

mostravam-se mais satisfeitos com a vida e sentiam menor dor em comparação com

aqueles sem crenças, referindo ainda que a expressão da espiritualidade está

relacionada a menor risco de depressão, de complicações somáticas, de suicídio e

de hospitalizações.

De acordo com a experiência de Breitbart (2003), os pacientes querem

conversar com os cuidadores sobre espiritualidade. Segundo ele essa necessidade

está relacionada com a dignidade no processo de morte e morrer. Ressalta ainda

que se busca a existência plena e não apenas a sobrevivência. Entre as

necessidades espirituais mais importantes dos pacientes, destacam-se as seguintes:

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1- Ter assegurado sua dignidade como pessoa: muitos temem perder sua

identidade e seu direito de decidir sua vida, de se tornarem dependentes e inúteis;

2- Revisar sua vida: muitos encontram sentido na vida, fazendo uma revisão

dos acontecimentos, isso proporciona uma reavaliação de valores e busca do

sentido do seu sofrimento;

3- Buscar sentido: a doença pode proporcionar um reagrupamento de

valores e impelir a pessoa doente a buscar algo mais forte e maior que a própria

doença. A idéia de finitude imprime um desejo de encontrar um sentido para a

existência;

4- Livrar-se da culpa: a sensação de não ter cumprido tudo o que deveria e a

concepção de alguns pacientes que acham que suas doenças são conseqüências

de seus atos falhos podem gerar culpa e aumentar muito o sofrimento, por isso

oportunizar o alívio da culpa pode trazer conforto.

5- Reconciliar-se: é possível que enfrentemos questões não resolvidas,

mágoas, ressentimentos, assuntos inacabados. Favorecer o encontro com pessoas

envolvidas nessas questões e propiciar a reconciliação sem dúvida contribuirá para

a paz da pessoa doente;

6- Transcender a situação vivida: a pessoa doente pode transcender através

da relação com Deus, com a arte e com a natureza ou ajudando alguém em

dificuldade, mesmo sendo ele o mais necessitado;

7- Ser amado incondicionalmente: muitos pacientes sentem um profundo

sentimento de solidão, talvez porque seja difícil para parentes e amigos

acompanharem o sofrimento e a gradual deterioração física. É preciso reafirmar o

amor e estar presente nesse momento;

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8- Ter nova relação com o tempo: os projetos a longo prazo podem não ser

reais, por isso, o tempo precisa ser definido de forma realista para que se possa

viver plenamente o tempo que se tem;

9- Permanecer vivo: é a idéia de continuidade, de se manter vivo, mesmo

que através de uma obra, da descendência, das palavras, de um feito ou da

lembrança. Como fruto de uma vida, encontra-se sentido.

Frankl (1992) ajuda-nos a entender que a espiritualidade está

intrinsecamente atrelada ao sentido da vida, concebendo a dimensão espiritual

como aquilo que permite que uma pessoa vivencie um sentido transcendente na

vida. Para ele, a vida tem um sentido transcendente para cada pessoa e nunca

cessa de ter, mesmo no último momento, onde cada pessoa deseja descobrir o

sentido de sua existência, a liberdade de descobrir e escolher a atitude a tomar

diante do sofrer. O autor descreve também as três principais fontes de sentido, a

saber: a criatividade, a experiência e a atitude.

Essas três fontes são descritas por Frankl (2005) como formas de se

encontrar sentido na vida, resultante do que ele considera como análise

fenomenológica da vivência imediata, genuína e não evasiva que é conhecida pelo

homem no seu senso comum, mesmo não sabendo defini-las:

1- Valores criativos: algo a ser feito ou produzido através do trabalho, das

obras de arte ou das descobertas e invenções;

2- Valores vivenciais: algo a ser vivenciado e amado através da afetividade e

da capacidade de amar, sendo o foco dessa vivência e amor a natureza, a beleza, a

cultura, as virtudes e as pessoas.

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3- Valores atitudinais: atitude e firmeza frente a situações inevitáveis,

imutáveis ou fatais, compreendida como postura ativa frente ao sofrimento, a dor, a

culpa e a morte, revelando a força desafiadora e o poder de resistência do espírito.

Ajudar o paciente a descobrir seu sentido de vida é favorecer sua autonomia

de fazer escolhas e propiciar a abertura para sua espiritualidade que gerará

transformações pessoais e não se fechará no seu sofrimento. Antes, mostrará, não

só para seus familiares, mas também para os profissionais de saúde, que é possível

ter um enfrentamento satisfatório, mesmo vivenciando toda a sorte de problemas e

que situações aparentemente dolorosas podem ser ricas em significado, que só

tirarão proveito delas aqueles que não se eximirem de prová-las.

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Sociopoética – forma espiritual de pesquisar “Vem caminheiro, caminho é caminhar, vai peregrino seu amor testemunhar.”

(Pe. Campos)

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3 SOCIOPOÉTICA: FORMA ESPIRITUAL DE PESQUISAR

Gauthier (1999) descreve a sociopoética como uma prática social, de

pesquisa, de cuidado, de inclusão e espiritualidade, que aborda o conhecimento do

homem como sujeito autônomo, dono de sua história. Essa abordagem é

caracterizada principalmente pelo uso de métodos poéticos, ligados à arte, à

criatividade e conseqüentes, produção de uma poesia crítica.

Segundo Silva (1999), a sociopoética é considerado, um método da linha

epistemológica desconstrutivista, por assumir um compromisso de questionamento

radical das formas de conhecer, dos saberes científicos e de seus estatutos de

verdade, propondo alternativas de construção destes, ao tomar consciência de que o

conhecimento é parte da construção humana interessada e politicamente objetivada.

Nessa perspectiva, a pesquisa desempenha importante papel na busca do

aprimoramento de uma consciência crítica por parte de todos os envolvidos na

pesquisa, participantes e facilitadores.

As pesquisas realizadas nessa linha seguem algumas tendências: 1 – Não

procurar homogeneizar, mas acentuar as diferenças nas relações com o outro; 2 –

Envolver os participantes no processo de pesquisa, desde a negociação das

questões norteadoras, até a interpretação/análise dos dados; 3 – Por entender que

não podemos esgotar os significados de algo, que podem conter múltiplos

significados e que, nossas posições afetam a leitura que fazemos, a pesquisa se

constitui uma desconstrução da autoridade, na medida em que favorece e encoraja

o expressar de várias vozes e leituras; 4 – A força da pesquisa está quando

concebida como espaço para o cuidado, enquanto construtor de novos saberes e de

aumento da autonomia humana frente aos níveis de qualidade de vida expressos no

empoderamento; 5 – A pesquisa deve estar a serviço do homem, quebrando as

barreiras de toda sorte de discriminação - de gênero, raciais, sociais, étnicas e

religiosas (SILVA e RAMOS, 2001).

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Meu contato com a Sociopoética deu-se através do Curso de Mestrado em

Cuidados Clínicos em Saúde, mais precisamente mediante os encontros com a

Professora Lia Carneiro Silveira, orientadora deste trabalho. A princípio, minha

intenção era usar o método fenomenológico para pesquisar a espiritualidade do

paciente terminal. Confesso que me abrir para um novo caminho metodológico não

foi tranqüilo nem fácil, visto que este era um projeto há muito pensado. Aos poucos,

sem que eu fosse forçado, fui conhecendo a sociopoética e descobrindo as

vantagens desse método e que era compatível com aspectos que eu desejava dar à

pesquisa, principalmente pelas tendências já descritas anteriormente. Confesso,

também, que um sentimento me invadiu e ainda é presente, de que realizei, pela

primeira vez, uma pesquisa de verdade, porque não sabia realmente que resultados

iria encontrar.

Como já foi dito, a sociopoética é uma prática social, e educativa de

pesquisar e cuidar, que propõe uma visão crítica da realidade, propiciando a

expressão dos desejos e dos poderes que agem de forma consciente e inconsciente

na vida de cada indivíduo (GAUTHIER, 1999).

Para Silveira (2004), esse método foi gerado do encontro entre a pedagogia

do oprimido, a análise institucional, a escuta mitopoética, a educação simbólica e a

esquizoanálise.

Da análise Institucional, proposto por René Lourau e George Lapassade

entre outros, surge à idéia de dispositivo, entendendo que é qualquer estrutura que

torna visível àquilo que está perpassado pelo cotidiano, sendo possível sua análise,

crítica e autocrítica. Dela parte também a proposta de análise de implicações,

deixando claro que o pesquisador não é neutro e suas implicações precisam ser

levadas em consideração (SILVEIRA, 2004; PETIT et al,2005).

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A concepção de grupo pesquisador foi herdada da pedagogia de Paulo

Freire, quando torna o grupo, objeto da pesquisa e também co-pesquisador,

produtor de conhecimento, independente de classes, títulos e posições. Rompendo

com a visão que o conhecimento e sua produção são exclusividade e propriedade

de uma única casta privilegiada, acadêmica, abastada. Para a sociopoética é

necessário uma troca e respeito mútuo entre os saberes intelectuais e populares.

(PETIT et al, 2005).

A Esquizoanálise como propõem Deleuze e Guattari (1996), traz para a

pesquisa o entendimento que os processos subjetivos devem ser levados em

consideração, e não podem ser entendidos como processos individuais internos, ou

processos sociais de produção, antes um agenciamento de desejo e de produção

que geram formas de existir. Já a Escuta Mitopoética contribui com a proposta de

escutar o outro em todas as suas necessidades e desejos, fazendo da pesquisa

sociopoética uma junção de razão, emoção, sensação e intuição, trazendo o prazer

como forma de pesquisar (PETIT et al, 2005).

Cinco princípios orientam a implementação desse método. São eles

(SANTANA; SANTOS, 2005):

1. A importância do corpo como fonte de conhecimento. Esse princípio nos

lembra que precisamos manter o equilíbrio das formas de pensar, integrando

razão, sensação, emoção e intuição.

2. A importância das culturas dominadas e de resistência, das categorias e dos

conceitos que elas produzem. É reafirmado neste princípio a importância dos

saberes dos sujeitos da pesquisa, construindo-se a ciência na troca igualitária

de experiências, práticas e teorias. Para isso, é fundamental a composição

transcultural e multireferencial do grupo de facilitadores da pesquisa.

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3. O papel dos sujeitos pesquisados como co-responsáveis pelos

conhecimentos produzidos, co-pesquisadores, visto que participam do

processo de pesquisa desde as decisões para o início até a sua conclusão.

Aqui se aplicam os princípios da Teoria da Ação Dialógica de Paulo Freire.

4. O papel da criatividade do tipo artístico no aprender, no conhecer e no

pesquisar, caracterizado, esse princípio, pelo uso de técnicas que expressam

a criatividade e estimulam o imaginário, sempre precedidas de uma atividade

preparatória, o que favorece a fluidez da criação imaginária.

5. A importância do sentido espiritual, humano, das formas e dos conteúdos nos

processos de construção dos saberes. Esse princípio é considerado por

Gauthier (2005) como síntese de todos os outros, implica um pesquisar-junto,

construção e aprendizagem mútua.

É necessário esclarecer que as variações das pessoas verbais, nas várias

etapas da escrita da pesquisa, ora na primeira pessoa do singular, quando se

tratava de questões minhas, ora na primeira pessoa do plural quando era

vivenciadas e produzidas pelo grupo ou mesmo quando era realizada em conjunto

com a orientadora, são frutos de uma produção também, ora individual, ora coletiva.

Descreveremos agora como implementamos os princípios da sociopoética

nesta pesquisa. O processo de produção de conhecimento – produção de conceitos

e constructos ou “confetos”, como esclarece Gauthier (2004), são conceitos

produzidos pelo grupo-pesquisador, abrindo a possibilidade de conceito e afetos se

misturarem e traçarem linhas de desterritorialização e configurações de novos

desejos. Acontecem em seis fases, incluindo-se nessas os aspectos éticos da

pesquisa:

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3.1 Formação do grupo pesquisador

O local para a realização do estudo foi um hospital de referência em

cuidados com pessoas com câncer, localizado em Fortaleza, Ceará. O grupo

pesquisador foi formado inicialmente por 12 usuários, permanecendo durante toda a

pesquisa 08 usuários, identificados através do setor de acompanhamento

psicológico do referido hospital. Esse número está de acordo com a proposta

metodológica da sociopoética a qual orienta que o grupo pesquisador seja composto

por, no máximo, de 15 participantes, entendendo que este número não é excessivo

a ponto de prejudicar o tempo de discussão destinado a cada participante, nem tão

pequeno que, caso haja desistências ao longo da pesquisa, o grupo fique

extremamente reduzido (SANTOS, 2005).

Os critérios de inclusão foram: ter mais de 21 anos, por querermos trabalhar

especificamente com adultos; estar em condições físicas de participar das oficinas;

ter recebido o diagnóstico de câncer há mais de seis meses, por entendermos ser

necessário um período mínimo para o enfrentamento inicial do diagnóstico e

tratamento; além de ter recebido pelo menos um atendimento no setor de

acompanhamento psicológico nesse período, isso porque para o estudo na

instituição precisávamos nos vincular a um setor.

A pesquisa foi realizada na casa de apoio, instituição vinculada ao referido

hospital, que recebe pessoas de outros municípios e estados que precisam ficar em

Fortaleza para exames e tratamentos e não possuem lugar ou familiares onde

possam ficar enquanto permanecer na cidade.

3.2 A escolha do tema da pesquisa

Realizamos uma oficina de negociação no dia 04 de setembro de 2007.

Essa negociação acontece porque a sociopoética defende que os participantes da

pesquisa se tornem co-pesquisadores e, junto com o facilitador ou pesquisador

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oficial, construam o conhecimento através da participação em todas as etapas da

pesquisa. Essa fase da pesquisa foi tranqüila, mesmo sabendo que conflitos podiam

surgir em razão da incompatibilidade entre a escolha do pesquisador e o interesse

do grupo pesquisador. A escolha por trabalharmos a espiritualidade através do

sentido da vida não constituiu grande conflito por se tratar de algo vivenciado como

necessidade ao enfrentar o adoecimento. Compareceram a essa oficina 12

pacientes, apenas 07 permaneceram durante as oficinas de produção, e alguns

entraram ou saíram durante o processo. Tal fato não compromete a pesquisa, pois a

sociopoética não está interessada em homogeneização, busca antes a valorização

da produção coletiva, ou seja, do grupo pesquisador.

3.3 A produção dos dados

Deu-se com a realização de 02 (duas) oficinas e uma de análise, nas quais

utilizamos técnicas/dispositivos que nos permitiram cumprir os princípios da

sociopoética. Na primeira, utilizamos uma adaptação da técnica dos “Lugares

Geomíticos”, criado, por Gauthier; na segunda, utilizamos uma técnica nova criada

para essa pesquisa que chamamos “O Filme da Minha Vida”. Essas técnicas são

exploradas detalhadamente nas descrições das oficinas. Utilizamos elementos

artísticos como forma de ir além do racional e adentrar no emocional, sensitivo e

intuitivo, ponto convergente que possibilita o contato com os conteúdos espirituais

conscientes e inconscientes e a relação desses elementos com o sentido da vida. O

material produzido foi formado por expressões artísticas, gravações de falas e

fotografias.

3.4 Análise multifacetada dos dados

A participação do grupo-pesquisador nesta fase é crucial e foi realizada após

cada oficina de produção. O grupo iniciou sua análise em cada oficina comentando

os dados produzidos. O facilitador da pesquisa também analisou os dados por

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outros ângulos. Assim aconteceu a análise através de vários caminhos para

culminar no que chamamos de desdobrar do homem (PETIT et al, 2005).

Primeiro, com a análise produção plástica do grupo que, para Joly (1996),

é uma forma de desconstruir e interpretar imagens com a finalidade de identificar a

intenção do autor e a mensagem implícita, considerando seu contexto histórico-

social de produção os autores e quem as analisam. Segundo Arnheim (1997), a

análise plástica deve conter uma descrição física da obra, o que ele chama de não

estética, e uma descrição subjetiva considerando aspectos qualitativos. Essas

recomendações foram seguidas apesar de ter sido realizada muito mais pela

intuição como é proposto pela sociopoética.

Realizamos a análise do formulário dos sete lugares geomíticos que fez

parte unicamente da produção da oficina I. Nesse formulário continha a pergunta:

como seria o sentido da vida se fosse...uma vereda, uma cacimba, uma ponte, o

túnel, o sertão, o açude e a serra? Tentamos encontrar em cada lugar geomítico

conceitos de sentido da vida construídos por cada co-pesquisador, traçando

aproximações e distanciamentos nas diversas possibilidades criadas pelas

formulações do grupo-pesquisador.

Num segundo momento, deu-se a análise da produção verbal, através da

análise classificatória, que consiste em agrupar as falas em categorias e encontrar

relações entre elas, mesmo que convergentes ou divergentes.

O terceiro momento é a análise transversal que é buscar as ligações entre

as idéias antes separadas pela análise classificatória. Optamos realizá-la através da

cartografia que é descrita por Rolnik (1989) como o desenho que acompanha e se

faz e se refaz em um movimento de transformação, desmembrando certos mundos e

fazendo ressurgir outros, que se criam para expressar afetos. As cartografias não

são fixas, estão abertas às mudanças e às possibilidades.

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Os dados já analisados nos processos anteriormente descritos, são agora

agrupados se tiverem sido separados, separados se tiverem sido relacionados,

dando uma nova lógica ou combinação para o pensamento. A isso chamamos de

análise surreal.

A análise filosófica é o quinto momento analítico, que acontece através

dos referenciais teóricos do facilitador. Essa análise é realizada para que haja

diálogo entre o saber produzido pelo grupo pesquisador e os outros saberes

existentes. Realizamos essa análise de forma separada para destacar a produção

filosófica do grupo-pesquisador.

Por último, a análise maquínica. Essa análise está sendo proposta devido à

percepção de agenciamentos entre o que foi produzido pelo grupo-pesquisador e os

cuidados prestados pela equipe de enfermagem. Mesmo sabendo que o método

escolhido não contempla tal análise, resolvemos nos aventurar e propor uma análise

que gere a partir dos confetos produzidos pelo grupo, reflexões que contribuam com

os cuidados espirituais de enfermagem.

3.5 Análise e Contra-análise dos dados

Esse é o momento em que o facilitador apresenta ao grupo-pesquisador a

análise realizada e solicita ao grupo que ele realize sua análise, além de oferecer a

possibilidade para que este possa aceitar acrescentar, alterar, rejeitar ou propor uma

contra-análise. Os co-pesquisadores eram paciente que permaneciam um curto

período de tempo na casa de apoio. Suas idas e vindas de suas residências no

interior do estado para o acompanhamento no hospital, impossibilitaram reuni-los

novamente, inviabilizando a realização da contra-análise. Dessa forma, realizamos

apenas a análise do grupo-pesquisador a partir da produção plástica e verbal do

grupo.

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3.6 Socialização da pesquisa

O fim da pesquisa acontece com a elaboração de uma proposta de

socialização do conhecimento produzido, envolvendo também o grupo pesquisador.

Na sociopoética, há produção final também dos participantes. Foi decidido pelo

grupo pesquisador que a produção plástica deve fazer parte do acervo de outras

produções da casa de apoio, com o objetivo de mostrar às pessoas, que forem se

hospedar nessa casa, saibam o que foi feito.

3.7 Aspectos éticos

Todos os procedimentos da pesquisa foram rigorosamente realizados

seguindo os princípios éticos contidos na Resolução n° 196/96 do Conselho

Nacional de Saúde, que trata de pesquisas com seres humanos.

Inicialmente, escolhemos um local reservado, confortável e seguro para os

co-pesquisadores. Mesmo, posteriormente, mudando o local da realização das

oficinas, tivemos as mesmas preocupações. Solicitamos o consentimento dos

participantes na oficina de negociação e asseguramos a autonomia, a beneficência,

a não maleficência e o favorecimento da justiça e da eqüidade no transcorrer do

estudo.

Após os esclarecimentos e o acordo verbal com os participantes, solicitamos

a permissão formal por escrito, através do termo de consentimento livre e

esclarecido. Foi solicitada também à instituição autorização para realização da

pesquisa, além de ter sido submetido anteriormente à apreciação do Comitê de Ética

e incorporadas suas sugestões pertinentes.

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Oficina de negociação: os primeiros passos da

pesquisa

“Vamo lá que eu tô contando separando direitim. Uma pra mim, uma pra mim, uma pra tú, outra pra mim. Uma pra mim, outra pra tú, uma prá mim, outra pra mim.”

(Luis Gonzaga/ João Silva)

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4 OFICINA DE NEGOCIAÇÃO: OS PRIMEIROS PASSOS DA PESQUISA

A realização da pesquisa aconteceu em meio a uma série de sentimentos

próprios do processo: a ansiedade do inicio; o medo de não conseguir; a angústia de

achar que as coisas não se desenvolveram de forma correta ou esperada e, em

meio a isso, houve espaço também para o prazer de descobrir o novo, da aventura

de trilhar um caminho nunca antes percorrido. Assim foi se construindo essa

pesquisa: primeiro, os contatos com o hospital escolhido; depois com o serviço de

psicologia; e algumas reuniões se seguiram para selecionarmos os interessados em

participar.

Por sugestão de profissionais desse serviço, fomos conhecer a casa de

apoio, instituição ligada ao referido hospital, local onde pessoas do interior que não

possuem parentes em Fortaleza ficam para realização de exames e de tratamentos

como radioterapia e quimioterapia. Percebemos que a Casa Vida, como é

conhecida, reunia fatores convenientes para a pesquisa, por cumprir com os critérios

exigidos na seleção dos participantes, além de contar com o fato de estarem todos

no mesmo local, passarem dias e sem haver necessidade de deslocamento para as

oficinas.

Durante o mês de agosto de 2007, tive encontros com profissionais da casa

de apoio para conhecer a dinâmica do serviço, a estrutura física, o perfil dos

pacientes atendidos e o trabalho desenvolvido. Foram discutidas as possíveis

dificuldades da realização das oficinas devido ao fluxo muito grande de pacientes,

ao baixo nível educacional e às suas atividades rotineiras no curso da doença e do

seu tratamento.

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No dia 04 de setembro de 2007 tivemos nosso primeiro encontro com os

pacientes. A psicóloga e a terapeuta ocupacional da instituição realizaram as

devidas apresentações. Em seguida comuniquei o motivo da minha presença e a

proposta da pesquisa, expliquei os objetivos e o método que seria utilizado. Muito

solícitos, os pacientes se mostraram interessados imediatamente, mas alguns, logo

depois, desistiram porque lembraram que não ficariam na casa de apoio no tempo

da realização das oficinas. Doze pessoas confirmaram que queriam e podiam

participar do estudo. Foram explicados novamente os objetivos e o método utilizado

e respondidas as dúvidas remanescentes. Marcamos os dias 12 e 13 de setembro

para as duas oficinas de produção.

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Primeira oficina de produção: os lugares geomíticos “Minha vida tem sentido, cada vez que eu venho aqui, e te faço meu pedido de não me

esquecer de ti.”

(Pe. Zezinho)

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5 PRIMEIRA OFICINA DE PRODUÇÃO: OS LUGARES GEOMÍTICOS

Nossa primeira oficina aconteceu em 12 de setembro de 2007. Nesse

momento, mostraram realmente interesse em participar apenas oito pessoas das

doze anteriormente interessadas. Devido à falta de espaço adequado na casa de

apoio, que conta apenas com um salão amplo sem nenhuma privacidade e uma

salinha minúscula para a terapia ocupacional, optamos por realizar a primeira oficina

em uma sala do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal do Ceará

que fica a poucos metros da casa de apoio e que nos cedeu o espaço.

Nessa oficina, contei com a presença e a ajuda de uma aluna de graduação

que já havia participado de outras pesquisas sociopoéticas, e da terapeuta

ocupacional do serviço, esta especificamente recomendada pela instituição para

acompanhar o processo. A oficina estava marcada para as 14h, horário apropriado,

pois, no período da tarde, os pacientes, em sua maioria, já cumpriram suas

atividades do dia, entre elas: exames, curativos, sessões do tratamento e

fisioterapia.

Percebi nesse momento que os pacientes não estavam muito à vontade na

sala reservada para a realização da oficina. Foram reiterados os objetivos da

pesquisa e agradecida a disponibilidade de todos em participar da oficina.

A sala estava devidamente preparada para recebê-los, os colchonetes

dispostos em círculo, o som ambiente e o material da oficina organizado no centro

do círculo. Convidamos a ficarem à vontade, pedimos que escolhessem um dos

colchonetes e se sentassem. Alguns ficaram resistentes, devido seu

comprometimento físico e preferiram sentar em cadeiras, fato acatado sem maiores

dificuldades.

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Iniciamos com um relaxamento, que se tratava de uma visualização, onde foi

pedido que imaginassem uma estação de trem e cada um à espera da oportunidade

de embarcar. Após o embarque, era solicitado que fossem observando a saída e a

entrada de pessoas nas estações que se seguiam, pessoas significativas em suas

vidas. Solicitamos também que observassem tudo o que havia no trem, até que

chegasse a vez de cada um descer e se despedir dos outros que ficariam. A partir

daí, foi solicitado que começassem a mexer o corpo e, vagarosamente, voltassem

para a sala onde nós estávamos.

Depois do relaxamento, demos prosseguimento à oficina com a técnica de

produção de dados conhecida como “Vivências dos Lugares Geomíticos”. Essa

técnica foi criada inicialmente por Gauthier inspirado nas culturas indígenas de

povos das ilhas do Pacífico, utilizada e adaptada posteriormente por outros

pesquisadores. Gauthier (1999) ressalta que essa técnica causa estranhamento e,

por isso, propicia o surgimento do novo, do diferente e do autêntico, frente àquilo

que está bem organizado racionalmente no pensamento, dando vazão à expressão

de energias imaginativas, criadoras, do indivíduo e do grupo.

Utilizamos um formulário que continha sete lugares: Vereda, Cacimba,

Ponte, Túnel, Sertão, Açude, Serra e uma pergunta que deveriam responder. Cada

co-pesquisador recebeu esse formulário que lhes dirigia a pergunta: como seria o

sentido da vida se fosse... em seguida os lugares citados. Todos responderam o

formulário, alguns com a ajuda dos facilitadores, porque nem todos sabiam ler e

escrever. Alguns lugares foram escolhidos por tratarem de lugares comuns ao grupo

e outros lugares já utilizados em pesquisas sociopoéticas.

Esse momento foi o mais angustiante de toda a pesquisa para mim. Os co-

pesquisadores mostraram-se inquietos, demonstrando não entender o que eu havia

solicitado. A dificuldade de abstrair era enorme, muitos questionamentos me

perturbaram: estava eu exigindo demais deles ou estava-os subestimando?

Passado, essa fase, pedimos que escolhessem, dos sete lugares, um lugar que

mais se relacionasse com o sentido da vida e o representasse utilizando tinta e

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tecido. Mais uma vez, demonstraram resistência, principalmente os dois homens que

participavam. Muitos relataram nunca ter tido a oportunidade de pegar em um pincel,

tinta, lápis e muito menos desenhar.

Confesso que fiquei envergonhado e constrangido com aquela situação:

como convivemos com tantas desigualdades e somos tão omissos com a usurpação

dos direitos dos outros e sua exclusão? Uma coisa que nos chamou atenção foi

quando solicitado que os co-pesquisadores escolhessem e pintassem um lugar

dentre os sete do formulário. Alguns se recusaram, não porque não quisessem

participar, mas porque se consideravam incapazes de pegar em um pincel e pintar

ou desenhar qualquer coisa. Incentivei-os a brincar com as tintas e pensar no

sentido da vida e fazer relação com os lugares propostos, depois dos argumentos se

dispuseram a participar.

Feito o desenho cada co-pesquisador apresentou sua produção

relacionando com o sentido da vida. Em seguida, foram feitas discussões acerca do

desenho, da vida e do sentido atribuído a ela. A oficina teve a duração de duas

horas aproximadamente.

Para minha surpresa (e dos co-pesquisadores), como veremos na oficina de

análise, aqueles desenhos que, aparentemente, eram simples e primários,

mostraram-se inimaginavelmente profundos e significativos. Esses relatos foram

gravados e transcritos posteriormente. Finalizamos a oficina com um lanche e

marcamos o próximo encontro para o dia seguinte.

A seguir, apresentamos o material produzido pelo grupo e suas respectivas

descrições. Decidimos apresentar as pinturas em forma de quadro, com os

respectivos co-pesquisadores e seus comentários em seguida, para facilitar a

compreensão e a organização do material plástico. A transcrição completa das falas

do grupo-pesquisador encontram-se nos apêndices:

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Co-Pesquisador

Produção Comentários

Co-

pesq

uisa

dor 1

O que eu fiz do sentido da minha vida, o túnel com as luzes, porque é claro, né? Que eu gosto muito de claridade, só isso mesmo. (...) Ele representa pra minha vida porque, é claro por causa da minha saúde né? porque eu gosto muito de claridade. E aí eu representei isso.

Co-

pesq

uisa

dor 2

Eu desenhei uma lagoa, um açude. (..) O sentido da lagoa é pro caba pescar, quando tiver vontade, pegar peixe, comer o peixe. Pegar o peixe pra comer, sem comer ninguém vive né? É o sentido de sobreviver, trabalhando.

Co-

pesq

uisa

dor 3

A serra representa a força, exatamente a força que faz eu cuidar dos meus filhos, um casal de filhos que eu tenho e minha mãe (...) Essa serra é exatamente isso. Essa serra sou eu de pé pra ter força pra continuar tudo isso.

Co-

pesq

uisa

dor 4

Essas plantas são as frutas da serra. Eu penso ser... através de muitos problemas, muitas dificuldades que eu passei e estou passando, eu tento viver feliz.

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Co-

pesq

uisa

dor 5

Eu? Eu acho que eu desenhei uma ponte, eu acho que foi uma ponte, que a gente precisa está apoiada em alguém, principalmente eu que não posso andar sozinha, eu tenho que ter uma ponte, onde eu tô eu sempre ando com pessoas que eu me comunico, então eu me acho assim, o seguinte, quero andar seguro pra não cair.

Co-

pesq

uisa

dor 6

O desenho representa o túnel e a cacimba, e a linha de pau que eu fiz é pra me segurar e aqui é a luzinha do túnel, mode eu passei e cheguei onde eu cheguei... (choro) vim sozinha, passei por dentro desse túnel e cheguei e tô aqui e vou vencer. Esse desenho representa minha vida, porque desde 2004 que eu luto, por esse tratamento e eu não consegui, e agora eu fiz, o túnel e a luzinha, que eu disse né? Pra passar pra lá e vencer.

Co-

pesq

uisa

do7

Eu fiz esse sertão porque eu não tenho nem um canto pra eu morar, só moro nas casas dos outros, aí eu escolhi logo um sertão por aí no meio do mundo, pelo menos é um canto pra eu morar né? Por isso eu desenhei isso aqui, um lugar, agora não sei onde que no mundo, onde eu possa construir um canto pra morar e viver. Pois bem, né?

Co-

pesq

uisa

do8

Minha vó mora numa serra, ela planta muita flor, e a minha mãe é muito religiosa manda eu pegar flor pra fazer reza lá em casa. E aí eu retratei isso aqui.

A seguir, apresentaremos as análises das produções do grupo-pesquisador

realizadas de acordo com a proposta da sociopoética. Inicialmente apresentamos a

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análise da produção plástica e, em seguida, desenvolvemos a análise do sentido da

vida atribuído a cada lugar geomítico, das falas transcritas através da análise

classificatória, transversal e surreal.

5.1 Oficina I: Análise da Produção Plástica

A análise da produção plástica do grupo se revelou um momento importante

da pesquisa, visto que constitui um dispositivo para o surgimento do novo e do

estranho, nunca pensado ou verbalizado, além de permitir a imaginação fluir, sem

saber conscientemente onde ela levaria.

Observando atentamente as figuras, percebemos que se tratavam de

pinturas com aspectos primitivistas, devido ao seu traçado despretensioso, à

ausência de técnica e à mistura para originar cores secundárias. A riqueza e a

expressividade são marcas da simplicidade das pinturas.

As cores são expressivas, nada de cores escuras e tons neutros, vemos

cores vibrantes, verde, amarelo, rosa, azul, cinza, preto e, discretamente, o

vermelho. Foi utilizada basicamente apenas uma cor nas obras, em outras, cores

levemente associadas. O verde é a cor que mais está presente e se repete em

quatro pinturas.

Há nas pinturas muitos espaços vazios. Os desenhos em sua maioria estão

nos centros das telas, dispostos ora de forma a possibilitar uma similaridade, ora de

forma irregular e descentralizada. Percebemos em duas obras um contorno feito na

tela e, em outra, que é um quadro, a delimitação dos desenhos, dando a idéia de

continuidade e fechamento, o que não ocorre nas demais.

Algumas obras contêm apenas um único desenho, que ressalta a análise de

figura e fundo. Nesse contraste, a figura assume importância fundamental ou apenas

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enriquece e focaliza o fundo. Os múltiplos desenhos de outras obras trazem a idéia

de diversidade e, ao mesmo tempo, a composição de uma única coisa,

proporcionando os sentidos e as interpretações de maneira a condensar-se.

Tratando-se dos quadros pintados em relação ao sentido da vida, vemos a

presença de vegetação em cinco das oito pinturas. Isso nos remete ao viçar das

plantas e a algo que precisa ser regado e cuidado para que possa dar frutos no

tempo oportuno, mas traz também a noção de fragilidade e de algo processual.

Pode muito bem representar a noção de vida e seu sentido, ao passo que contempla

um paradoxo de vigor e vulnerabilidade.

Percebe-se a falta de base de apoio ou sustentação nos diversos desenhos.

Vemos o quadrado, os círculos, as plantas, as flores, a figura azul, sem que haja

uma linha de continuidade e noção de estabilidade, exceto em duas das pinturas

que vemos uma linha verde de contorno e um chão cinza. Representa isso a falta de

chão no momento vivido pelos co-pesquisadores? É certo que pode significar

exatamente o contrário, um estágio além da necessidade de apoio, de segurança e

estabilidade. Um nível onde os elementos flutuam, transcendem e existem por si

mesmos, sem que isso faça sentido ou dependam de uma lógica.

As figuras circulares devem ser destacadas. Os grandes e pequenos

círculos oferecem a visão de totalidade, de algo completo, mas também

antagonicamente de algo incompleto, pois a continuidade é vista nesta figura e pode

se perpetuar, como um ciclo de idas e vindas, de caminho e encontro e caminho

novamente. O circulo nesta visão de completude, totalidade não somente representa

isso: muitas vezes representa estagnação, comodismo e por vezes aprisionamento.

O sentido da vida pode estar representado pelo círculo nessas diversas perspectivas

e é interessante questionarmo-nos sobre como se apresentam os sentidos

atribuídos.

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É preciso citar a coisa azul com suas garras, que imprime medo e, ao

mesmo tempo, admiração em quem a vê. Seu rosto, sua boca enorme e suas garras

estão prontos para o ataque ou seria a defesa? Seria um monstrinho carente e

amigo, que, apesar de sua aparência, pede para viver e não ser cassado? Seja

como for, a figura transmite um sentido, a vida que se tem, com suas agruras e

sabores, comportamento de predador e presa, de ação e de espera. Sim uma fera

ávida por vida, e vida com abundância.

O jardim de flores amarelas também chama atenção. Flores de tamanhos

variados, enquadradas em um jardim fechado, sem chão, suas pétalas caem, será

por falta de algo que as possa nutrir? Ou será pelo processo natural da vida? Uma

mancha macula o jardim, isso pode ser coisa do próprio ambiente, estrumes, pedras,

espinhos fazem parte, mas um inimigo sorrateiro pode aparecer, as ervas daninhas,

e começar a minar a vida e a beleza do jardim. Ora, a presença e a grandiosidade

do jardim enchem de alegria uma vida e dão sentidos a ela, mesmo que um dia ele

não mais exista, mas o que dura para sempre?

Essas reflexões podem proporcionar uma autenticidade à vida, à medida

que vivenciamos os processos cotidianos. As pinturas oferecem infindáveis

caminhos de análise. Optamos por nos deslocarmos das situações vividas pelos co-

pesquisadores, como forma de evitar o reducionismo e valorizar as possibilidades da

obra em si, mas não esquecer seu contexto histórico e social. Entendemos que a

análise plástica amplia nossa visão, que tende a ser focalizada, passando-se a ver

além das circunstâncias, em um verdadeiro exercício de transcendência.

5.2 Oficina I: Análise do Formulário dos Sete Lugares Geomíticos

Ao solicitarmos que cada co-pesquisador respondesse “como seria o

sentido da vida se fosse... uma vereda, uma cacimba, uma ponte, um túnel, um

sertão, um açude e uma serra”, foi possível encontrar respostas importantes para o

surgimento de conceitos de sentido da vida.

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Organizamos essa análise seguindo a seqüência dos lugares geomíticos,

fazendo um movimento de encontro das convergências e das divergências, sendo

traçados caminhos de percepção do sentido da vida, imbricado na própria vida e

nela identificando-se.

A Vereda...

Esse caminho de sentido confunde-se com a vida sentida e vivida no

momento atual, percebida como caminhada difícil, cheia de buracos, de altos e

baixos, muitas vezes longa e estreita, com curvas, com rampas, com pedras, com

espinhos e de vez em quando sem passagem. Seria a impossibilidade de encontrar

um sentido na vida e no sofrimento experienciado, que faz o trajeto penoso?... Mas

há saída, é preciso ter paciência, é preciso força para continuar enveredando pela

vida e encontrar sentido nela. Olhe que já foi mais difícil, hoje até que o caminho

está limpo, sem muitos espinhos, é possível até vislumbrar sentido nessa

caminhada. A vigilância é importante para não deixar nascer mais espinhos que

aumentem o sofrimento ou impeçam o caminhar.

A Cacimba...

A cacimba é a fonte de onde jorram águas de sentido, não é tão fácil

encontrar essa água, por vezes a cacimba é funda, exige algo que ajude na retirada.

O sentido qual água limpa, sustenta e faz vencer àqueles que conseguem encontrá-

lo e sem desistir o procuram... Procuram tirar a água para viver. Extraem da sua vida

e de sua história sentido para continuar. É necessário estar atento para reformar a

cacimba, não permitir que essa água fique suja, turva e perca sua função de manter

a vontade de viver e de vencer.

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A Ponte...

A ponte como sentido deve ser bem feita, bonita, forte, para a passagem

de pessoas e coisas no percurso da vida. É importante que o sentido qual ponte

esteja bem alicerçado, com colunas para sustentar e para agüentar o peso da dor e

do sofrimento que constantemente passam por ela. Essa ponte liga coisas

naturalmente separadas, passa por cima de outras e está pronta para o que der e

vier. Sua força de sentido está em lutar, prosseguir, conseguir e vencer... Sim, por

ser larga e comprida a passagem nem sempre é tranqüila, o sentido precisa ser

firme o bastante para ultrapassar dificuldades e possibilitar a ligação e o encontro

com outros, que trazem consigo novas formas de passagem.

O Túnel...

O sofrimento, a dor e a doença nos lançam em um túnel escuro, de

incertezas e perigos, mas mesmo vivenciando esse momento sombrio é possível

encontrar uma luz no fim do túnel e esse lugar é também a saída da situação

adversa. Mister que adentremos na busca de sentido: primeiro vivendo a aparente

falta de sentido, a escuridão e depois havendo o encontro do sentido, surge à luz.

Para isso o esforço, o sacrifício se faz necessário, é preciso enfrentar o túnel, é de

se esperar que no decorrer da travessia haja sempre bicos de luz que apontem para

a iluminação natural do fim. Nisso atravessam-se serras de dificuldades e

problemas, sempre na esperança que exista uma luz e que leve para alguma coisa

melhor.

O Sertão...

A vida pode ser melhor que o sertão por este parecer feio, triste e seco,

mas nele se esconde um lugar também de resistência e de luta, no sertão luta-se

com o que se tem. O sentido da vida é o próprio sertão que resiste às dificuldades.

Sua força está em poupar à escassa e preciosa água de sentido, importante para

vencer e sobreviver à longa estiagem, evitando que o homem desista e abandone

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sua terra, tornando-se retirante sem sentido. Há também períodos de abundância,

chuvas de sentido transformam o sertão em um lugar feliz, tranqüilo e farto, onde é

fácil viver e vencer.

O Açude...

O açude é apresentado como nenhum outro lugar geomítico. Referido

como espaço de fartura, muita água e peixes, sinônimo de sobrevivência e

manutenção da vida. Parece que o sentido da vida é visto como um grande açude,

pois sacia a sede de viver, imprime a alegria, a abundância de água e de

simplesmente estar vivo, onde todos querem morar perto e conservar esse lugar

para os momentos de necessidade.

A Serra...

A serra como sentido da vida traz a idéia de força, de altivez e também de

abundância. Como ela, o sentido ventila o calor abrasador das situações difíceis e

com isso relativizam-se os sofrimentos vividos. O sentido produz frutos como

tranqüilidade e paz, tal qual a serra com suas arvores frutíferas e sombras. Mas a

serra pode ser de difícil acesso, é preciso ajuda para subir, o trabalho de chegar até

lá exige disposição de enfrentar a solidão e muitas vezes o cansaço. Uma vez

escalado o sentido, proporciona uma posição privilegiada na vida, de lá é possível

ver as possibilidades de vencer as barreiras e superar o sofrimento.

Os sentidos produzidos através desse formulário trazem uma riqueza de

conceitos que servirão de apoio para as análises seguintes. Traduzem

especialmente o desejo dos co-pesquisadores de “vencer” as limitações, o

sofrimento, a doença, a possível morte e por fim todos juntos possam cantar o “Hino

da Vitória”.

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5.3 Oficina I: Análise Classificatória

A análise classificatória consiste em agrupar as falas dos co-pesquisadores

em categorias, não na tentativa de homogeneizar o discurso produzido na oficina,

mas encontrar linhas de análise que convergem, que divergem, que são ambíguas e

as que se mostram únicas.

As categorias identificadas nesta oficina foram: sentidos atribuídos aos

desenhos dos lugares, sentidos atribuídos ao processo de adoecimento e sentidos

atribuídos aos aspectos importantes da vida. Em seguida, apresentaremos os

quadros das categorias, suas falas e as linhas de análise.

Sentidos atribuídos aos desenhos dos lugares.

1. O que eu fiz do sentido da minha vida, o túnel com as luzes, porque é claro, né? Que eu gosto muito de claridade, só isso mesmo. (...) Ele representa pra minha vida porque, é claro por causa da minha saúde, né? Porque eu gosto muito de claridade. E aí eu representei isso.

2. Eu desenhei uma lagoa, um açude. (..) O sentido da lagoa é pro caba pescar, quando tiver vontade, pegar peixe, comer o peixe. Pegar o peixe pra comer, sem comer ninguém vive né? É o sentido de sobreviver, trabalhando.

3. A serra representa a força, exatamente a força que faz eu cuidar dos meus filhos, um casal de filhos que eu tenho e minha mãe (...) Essa serra é exatamente isso. Essa serra sou eu de pé pra ter força pra continuar tudo isso.

4. Essas plantas são as frutas da serra. Eu penso ser... através de muitos problemas, muitas dificuldades que eu passei e estou passando, eu tento viver feliz.

5. Eu? Eu acho que eu desenhei uma ponte, eu acho que foi uma ponte, que a gente precisa estar apoiada em alguém, principalmente eu que não posso andar sozinha, eu tenho que ter uma ponte, onde eu tô eu sempre ando com pessoas que eu me comunico, então eu me acho assim, o seguinte, quero andar seguro pra não cair.

6. O desenho representa o túnel e a cacimba, e a linha de pau que eu fiz é pra me segurar e aqui é a luzinha do túnel, mode eu passei e cheguei onde eu cheguei... (choro) vim sozinha, passei por dentro desse túnel e cheguei e tô aqui e vou vencer. Esse desenho representa minha vida, porque desde 2004 que eu luto, por esse tratamento e eu não consegui, e agora eu fiz, o túnel e a luzinha, que eu disse né? Pra passar pra lá e vencer.

7. Eu fiz esse sertão porque eu não tenho nem um canto pra eu morar, só moro nas casas dos outros, aí eu escolhi logo um sertão por aí no meio do mundo, pelo menos é um canto pra eu morar né? Por isso eu desenhei isso aqui, um lugar, agora não sei onde que no mundo, onde eu possa construir um canto pra morar e viver. Pois bem, né?

8. Minha vó mora numa serra, ela planta muita flor, e a minha mãe é muito religiosa manda eu pegar flor pra fazer reza lá em casa. E aí eu retratei isso

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aqui. 1 e 6 convergem ao relacionar o túnel ao sentido da vida com a saúde e a luz no fim do túnel.

3, 4 e 8 convergem ao relacionar a serra ao sentido da vida, 3 e 4 relacionam a serra a força e 8 as flores da serra que as tira para rezar.

2 relaciona a lagoa ao sentido da vida pela busca do peixe e a sobrevivência.

5 e 7 convergem ao relacionarem os lugares, a ponte e o sertão, ao sentido da vida e por referirem apoio e segurança.

Sentidos atribuídos ao processo de adoecimento.

1. (...) eu quero viver muito, por isso tô fazendo o tratamento porque eu gosto muito de viver.

2. Eu tô sendo uma doente feliz, eu encontrei vocês ó, meus amigos aí tudinho, né? E essa casa maravilhosa ali, então eu tô tirando de letra, eu não tô nem pensando em doença. Vou levando.Você acredita que eu tô me sentido melhor de que quando eu estava boa, acredita? Eu não tô sofrendo. Eu não me acho doente, e é porque eu tô morrendo de dor nas minhas costas, tá latejando, mas não me acho doente. Se eu puder andar eu tô feliz, eu sou assim, eu acho que é por isso que eu ainda não morri, eu ainda me alimento, pior os que vivem num fundo de uma rede, ou num fundo de uma cama, que não podem andar (...)Porque eu estava doente e não sabia, três anos que eu tinha esse caroço, um nódulo no seio, mas não sabia, levava uma vida normal, sentia uma dor nas costa, uma dor aqui outra aculá, inchava meu braço, mas não sabia o que era, não ia pra médico. Aí minha filha foi trabalhar, fez um curso de enfermagem, foi trabalhar num posto de saúde, ela falou pro médico que eu sentia essa dor, ele passou pra mim fazer uma mamografia e aí eu descobri. Eu fiquei assim também, eu não estava com muita confiança, as pessoas chegavam e aí como vai? Eu chorava, as vezes eu tava sentindo dor, mas agora graças a Deus né? Venci, e aí eu espero que ela vença também né? Pra cantar o hino da vitória. Agora tá com seis meses que eu fiz a cirurgia, graça a Deus se fosse por esse ponto me considerava boa. Procuro logo, desde criança que eu peguei essa paralisia. Sempre, de vez em quanto eu caía, de vez em quanto eu caía, aí meu irmão mais velho disse pra mim: minha irmã quando você for andar, você levante bem os pés como soldado, pra você não caí, e no que você vai topando você vai caindo. Aí ficou isso na minha cabeça. Aí eu preciso saber onde eu tô pisando.

3. Eu não tô melhor...tô nas mãos dos médicos, nas mãos de Deus, tô fazendo os exames e o que for descobrindo eu tenho fé que vou tirando, fazendo e agradecendo a Deus por tá viva pronto, nunca quero me preocupar não.

4. Por que no início dessa doença eu chorava muito, peguei um trauma, aí foi passando e no fim nem liguei mais, quando fiz um exame tava boa e fui desenganada. Agora é continuar o tratamento e ir embora, ir pra casa, e viajar e pronto.Que meu menino teve que ir embora, e tiraram meu menino de mim mode eu poder me cuidar, desde abril, tô bem graças a Deus. Depois da doença mexi com tudo na minha vida, quero outra vida, até meu marido eu deixei, quando eu vivia com ele eu vivia pior, além de estar doente ele não

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deixava me cuidar, dizia que eu estava inventando, quando eu fui procurar ajuda, já estava desenganada (...).

5. Tenho tido força em Deus, porque quando eu comecei a vir pra Casa Vida, eu pedia esmola, aí sozinha, sem parente, sem ninguém, me achei só com estranhos aí, aí fiquei num horror de tempo aí (...).

6. Se for pra me dá, é Deus, minha mãe reza muito, faz promessa, eu acredito quem me curou foi São Francisco, foi muita promessa que a mãe fez, rezava terço lá em casa, graças a Deus, ontem eu fiz um exame, a Dra. olhou, ficou maravilhada. Graças a Deus tô feliz.

7. Só Deus mesmo que dá força e coragem a gente. 1,3 e 4 convergem ao referirem fazer o tratamento e querer viver.

2 e 4 convergem ao referirem que a vida mudou após o adoecimento.

2 e 4 divergem, 2 refere ter mudado pra melhor, ao encontrar pessoas e ver que outros tem sofrimentos maiores, 4, no entanto, enfrentou muitas dificuldades como: separação do filho e problemas conjugais.

3, 5, 6 e 7 convergem ao referirem que Deus e a fé são fontes de força para superar o sofrimento e a doença.

Sentidos atribuídos aos aspectos importantes da vida

1. [o pesquisador pergunta sobre se há algo na vida pelo qual vale a pena viver] Vale sim, porque eu gosto muito da minha família, dos meus amigos, e bom agente viver por causa disso, né? É bom a gente viver pra ter comunicação com o pessoal, com outras coisas também né? É isso.

2. O que me dá força pra continuar a viver são meus filhos, eu tenho um casal de filhos, pra mim é tudo de mais importante, eles dão muita força pra continuar. Esse é o maior objetivo ficar boa pra cuidar dos meus filhos. Um caminho que me dá a maior força pra vencer tudo isso é minha mãe e meus dois filhos.

3. Eu gosto muito da minha família, gosto e quero muito bem. 4. Tem sentido de ser feliz, com minha família que eu amo muito, né? Será que

tá certo? 5. Não quero falar não. Gostaria de falar não. A minha vida tá representada aqui

mesmo. Eu gosto de estar sempre junto das pessoas, só olhar mesmo, conversar mesmo. Mas a respeito de serra, de coisa, tô muito ligada não.

6. [indagado se a vida tem sentido] Tem sentido, meus filhos. 7. [indagado se a vida tem sentido] Primeiramente Deus, segundo meu marido e

meus filhos, eu tenho filhos criança em casa que depende de mim, de ficar boa. Eu tô aqui, mas eu não sei nem o que eles estão passando em casa (...)

8. Eu espero achar um dia, um lugar que nem um sertão, pra morar lá, né? Hora meu sentido é um lugar pra morar, pode ser num sertão, pode ser em qualquer lugar pra eu morar. Eu estou esperando da minha vida esse lugar.

9. Minha saúde, eu procuro viver, eu gosto muito de viver né, a gente é pobre, mas a vida da gente é muito importante (...).

10. Eu gosto muito de árvore, de planta, de flores. Eu quero muito viver (...)E também, em primeiro lugar Jesus, a gente ama primeiro que tudo, depois segundo vem tudo.

11. Porque é bom viver né? Viver com as pessoas, conversar, com a família da gente, e mesmo que não seja a família da gente, a esposa, os filhos, tudo é bom né? Pra gente viver.

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12. A vida é importante. Deus consente eu viver, se não consentisse já tinha me tirado a muito tempo.Tem sentido sim, se for pra mim mudar, eu mudo, me tira bem facinho, me tira bem ligeiro.

1,2,3,4,6,7 e 11 convergem ao referirem que a família é um aspecto importante da vida constituindo fonte de sentido.

5 diverge dos demais ao não querer falar, mas refere que estar com pessoas e conversar com elas é importante.

8 diverge dos demais ao relatar que um lugar para morar é sua motivação para viver.

9,10 e 11 convergem ao referirem querer viver é fator importante.

10 diverge dos outros ao relatar que gosta de arvores, plantas e flores.

10 e 12 convergem ao referirem que Deus é um aspecto muito importante da vida.

5.4 Oficina I - Análise Transversal

No percurso que o grupo traçou, os lugares nos levam a mundos

totalmente diferentes e, por mais contraditórios que sejam, são partes da mesma

coisa, pois perscrutam um sentido para a vida.

Quem sabe um sertão por aí, no meio do mundo, pelo menos é um canto

para morar. Afinal, todo mundo precisa de um território firme, um lugar pra morar,

algo que dê segurança. Essa segurança pode ser buscada em Deus. Em meio a

tantas dificuldades, só mesmo Deus para dar força e coragem à gente, e para

consentir viver. Como uma ponte, tenho que ter uma ponte, levando a vida, seguro

firme para não cair.

Mas o sertão também é a seca. As dificuldades enfrentadas na dor e no

adoecimento: onde não estou melhor, entrego-me nas mãos dos médicos e de

Deus. Lugar desolado, de sofrimento e privação, sem ninguém. Só com estranhos

aí, nesse lugar, num horror de tempo. Ora, nem tudo está perdido nesse sertão

brabo: tem a reza da mãe, o terço lá em casa, os filhos que dependem da gente, de

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ficar bem. Eu sigo caminhando, mas é preciso que Deus consinta viver. Se não

consentisse, já tinha tirado há muito tempo.

A serra se mostra altiva, quem a pode encontrar? Essa serra do sentido sou

eu de pé pra ter força pra continuar tudo isso. Como em um constante vai-e-vem de

altos e baixos, nem sempre tudo está bem. Mas continuamos levando a vida,

chorando, às vezes sentindo dor, às vezes vencendo. Por que no início se chora

muito, pega trauma. Mas aí vai passando e, no fim, nem ligamos mais e vamos

tirando de letra. Vamos levando. Tem até quem se sinta melhor do que quando se

estava bem. Não sofre.

Em meios a sertões e serras há túneis, que escondem as agruras da vida,

como um grande espaço tenebroso, porque desde muito se luta, por esse

tratamento e não se consegue. Mas quando se quer viver muito, busca-se o

tratamento, pois se gosta muito de viver. Essa vontade de viver é como uma

pequena luz que se avizinha à medida que se enfrenta a escuridão desse túnel e

muitas são as formas de luzes no fim do túnel: a família, os filhos, os amigos... isso é

que faz ser bom a gente viver! É também um lugar, pode ser qualquer lugar, um

lugar para morar, onde se conquista força para vencer tudo. É isso que se espera da

vida: esse lugar.

Chegamos, pois, à lagoa. O sentido da lagoa é “pro caba pescar”, quando

tiver vontade, pegar peixe, comer o peixe. Pegar o peixe pra comer, pois sem comer

ninguém vive. É o sentido de sobreviver, trabalhando. Sim, o sentido da vida motiva

e constrói, traz a busca e o encontro. Mesmo na dor da doença ou na saúde,

procuramos viver, pois gostamos de viver. Mesmo sendo pobre, mesmo com muitas

dificuldades, a vida é muito importante. Dessa lagoa se extrai vida, mas é preciso ter

cuidado: muitos podem se afogar, as águas desse reservatório podem ser revoltas e

mexer com tudo na vida, é preciso querer outra vida. É preciso deixar marido,

afastar-se do filho amado.

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A ponte é aquela que tudo liga: liga a vida a seu sentido ou à falta de

sentido; liga pessoas que se comunicam; gente indo, gente voltando, em um eterno

comunicar de vontade e sentido. Essa ponte é que une no amor, em primeiro lugar,

Jesus! Depois vem tudo: filhos, família, amigos... Ora, eles dão muita força pra

continuar. A doença pode ser um transeunte na vida. Os problemas que vão

aparecendo a gente vai tirando, e vai passando. Com fé, e agradecendo a Deus por

estar vivo, e pronto. Não precisa se preocupar não. Ainda pensando nesse que

passa, ele não passa despercebido. Deixa-nos marcas profundas. Traz muitas

coisas: desafios, convites a mudanças. E respondendo que a vida tem sentido, sim,

se for preciso mudar, a gente muda.

O sentido da vida transita onde houver vida, mesmo em lugar ermo como o

sertão, ou grandes altitudes das serras, calmas e perigosas águas de lagoa,

profundos e desconhecidos túneis. Sempre se espera o inverno no sertão, o clima

agradável e a fartura da serra, os peixes da lagoa e a luz no fim do túnel.

5.5 Oficina I: Análise Surreal

Nessa análise, resolvemos trazer uma cartografia dos lugares geomíticos,

dispositivo este escolhido na oficina. Podemos, através desta, juntar, tirar e

acrescentar elementos que contribuam com a análise.

Escolhemos a partir dos lugares descritos pelo grupo, juntar todos em um

lugar, “A Ilha dos Sentidos”, e ao mesmo tempo deixar separado em áreas

levemente demarcadas.

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A ILHA DO SENTIDO DA VIDA

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Segunda oficina - o filme da minha história “Ah! Se o mundo inteiro me pudesse ouvir, tenho muito prá contar, dizer que aprendi... ver na

vida algum motivo prá sonhar, ter um sonho todo azul, azul da cor do mar...”

(Tim Maia)

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6 SEGUNDA OFICINA: O FILME DA MINHA HISTÓRIA

No dia seguinte à primeira oficina, 13 de setembro de 2007, estava no

horário combinado na casa de apoio. Notei certo esquivar dos co-pesquisadores,

senti que aquele momento não era o mais apropriado para a realização da segunda

oficina, pois alguns tinham outras obrigações no mesmo horário, outros não haviam

chegado de seus acompanhamentos terapêuticos, além dos que demonstraram

desinteresse de participar da oficina no momento.

Conversei com a terapeuta ocupacional do serviço e ela, que havia estado

presente no primeiro encontro, relatou que muitos sentimentos e sensações haviam

sido mobilizados naquela oficina. Ela não conseguiu especificar, mas relacionou as

questões de saúde e a idéia de não serem capazes de realizar as atividades.

Além disso, conversei brevemente com alguns co-pesquisadores sobre

nossos encontros e pude perceber que naquela data era inviável a realização da

oficina, pois alguns ainda não haviam chegado das atividades terapêuticas, outros

tinham consulta ou exames nesse mesmo horário, impossibilitando qualquer

produção. Depois de avaliar a situação, decidi remarcar nossa segunda oficina e

avisei-os que iríamos nos encontrar dia 18 de setembro, no mesmo horário.

Ainda comentando nossa primeira oficina com a terapeuta ocupacional, ela

relatou que os co-pesquisadores haviam confidenciado que esse tema “o sentido da

vida” era muito difícil e que nunca tinham parado e pensado nisso. Sempre levaram

a vida com dificuldade, trabalhando arduamente, não tinham tempo de pensar no

sentido de suas vidas.

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Comentamos que o Departamento de Enfermagem, local escolhido para os

encontros, apesar de confortável, poderia ser impessoal e resolvemos realizar a

segunda oficina ali mesmo na casa de apoio, na sala pequena do andar de cima.

Além disso, comentamos a possível ausência de alguns co-pesquisadores, pois a

permanência na casa de apoio dependeria da continuidade ou pendências no

tratamento.

Sendo assim, realizamos, no dia 18 de setembro de 2007, nossa segunda

oficina, na sala reservada para guardar o material da terapia ocupacional, que

mesmo sendo pequena, mostrou-se aconchegante e favoreceu o sentimento de

pertença do grupo. Como havíamos previsto, o grupo não se configurou o mesmo,

pois alguns co-pesquisadores já haviam retornado para suas casas e outros

estavam em suas atividades terapêuticas.

Compareceram sete (07) co-pesquisadores, dentre eles 02(dois) novatos.

Ressaltamos que esse fato não compromete a pesquisa, pois a sociopoética não

exige os mesmos componentes em todas as oficinas, por procurar valorizar e

acentuar as diferenças e não busca a homogeneização, busca, antes, a

singularidade, o heterogêneo e a criação de novas possibilidades.

Iniciamos a oficina com o relaxamento, pedimos que se sentassem

confortavelmente e, ouvindo minhas sugestões, visualizassem o que se pedia. Ao

fundo uma música relaxante que induzia ao relaxamento e à visualização. Solicitei

que começassem a lembrar a infância, suas brincadeiras, seus brinquedos, os

amigos, as atividades que realizavam, o convívio familiar, os sonhos e as fantasias

de criança. Depois disso, prossegui pedindo que fossem para a juventude, que

relembrassem os primeiros relacionamentos, amizades, namoros, trabalhos,

diversões e obrigações da época e, em seguida, fossem para a vida adulta, agora

com a constituição ou não da família, o trabalho, as atividades de lazer, as

dificuldades, os prazeres, as novas gerações e solicitei que lembrassem da situação

de estar doente e realizar os tratamentos necessários. Finalizamos o relaxamento

tentando encontrar fatos importantes da suas histórias de vida. Pedi que mexessem

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lentamente os dedos das mãos e dos pés, abrissem lentamente os olhos e

retornassem para a sala onde estávamos.

Após o relaxamento, iniciamos a técnica “O filme da minha história”1, com o

objetivo de reconstruir os principais fatos da vida dos co-pesquisadores e, a partir

desses, extrair os sentidos da vida de cada um e possibilitar a construção coletiva do

grupo pesquisador. A técnica consiste em desenhar um filme contando a história de

vida, destacando aquilo que lhe confere sentido.

Participou também como co-facilitadora a terapeuta ocupacional que

estava na primeira oficina. Sentimos claramente que o grupo fluiu muito melhor

nessa segunda oficina. Atribuímos a alguns fatores: o local ser nas dependências da

casa de apoio; as reflexões sobre o sentido da vida produzidas pela primeira oficina

e a técnica facilmente entendida pelos co-pesquisadores.

Mesmo tendo fluído com mais facilidade, nem por isso esteve livre de

resistências. Alguns co-pesquisadores negaram-se mais uma vez a realizar a

técnica. Ressaltamos que não era necessário saber desenhar, bastava representar

sua história em forma de símbolos e poder contar depois, encorajamos e

valorizamos suas capacidades, tendo como exemplo a produção plástica anterior.

Tendo realizado o filme de sua história, solicitamos que cada um

apresentasse seu filme fazendo relação com o sentido de cada cena e passamos a

discutir em grupo os sentidos da vida atribuídos nessas histórias. Esses relatos

foram gravados e, posteriormente, transcritos.

Finalizamos a oficina com um lanche e marcamos o último encontro para o

dia 24 de setembro de 2007, agora para realizarmos a oficina de análise do grupo-

pesquisador. 1 Esta técnica foi desenvolvida por mim, especialmente para esta pesquisa.

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Dispomos a produção em um quadro que contém: os co-pesquisadores, os

desenhos e seus comentários, respectivamente.

Co-pesquisadores

Produções Descrições

Co-

pesq

uisa

dor 1

Esse fogão representa o sustento da minha família, o fogão, o que eu aprendi a fazer no fogão, né? O sustento da minha família era tirado por aqui.

Co-

pesq

uisa

dor 2

Minha vida sempre foi procurando, procurando um, um algo melhor, então eu desenhei um caminhão, por que eu gostava muito de andar, de um vizinho quando eu era jovem, aí eu desenhei (...) E meu filme é esse, gosto muito de viajar, de conhecer lugares e trabalhar também. (...). Isso é o que me faz bem, que eu posso. Aqui sou eu pedindo uma rosa, né? Essa rosa que eu peço é que eu tenha muito amor pra dar as pessoas, que possa ajudar, entendeu?

Co-

pesq

uisa

dor 3

Meu desenho representa meu sofrimento e aqui minha vida, agora né? Que é um mar de rosas(...).

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Co-

pesq

uisa

dor 4

Eu desenhei meu pai também, que brigava com a gente, não deixava a gente sair pra canto nenhum (...). Isso aqui era quando eu era criança, eu brincava com as crianças de bonecas, de baixo das moitas, das moitas de mufumo que tem nos matos, eram verdinhas que pareciam umas casinhas e aí nós brincava de casinha.

Co-

pesq

uisa

dor 5

Eu vou começar na roça, por que comecei a trabalhar na roça, quando eu era criança gostava de brincar, comecei a trabalhar logo. Essa mesa representa o trabalho na roça, minha infância não foi muito sofrida não.

Co-

pesq

uisa

dor 6

(Meu desenho é...) Trabalhando de padaria, sapataria, né? Minha vida não foi sofrida não (...).

Co-

pesq

uisa

dor 7

É assim, mas o papel não apresenta nada, daqui não conto nada.

Após descrevermos a oficina e apresentarmos a produção plástica, seguem

em ordem as análises: plástica, classificatória, transversal e surreal.

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6.1 Oficina II: Análise da Produção Plástica

Prestando detida atenção nos desenhos expostos, temos a impressão de

tratar-se de desenhos infantis, seus traços não são medidos, nem muito menos

articulados intencionalmente, são despretensiosos como orientado na oficina. Os

desenhos foram dispostos em uma ou mais folhas de papel A4, como um filme.

As cores também nessa produção nos impressionam, são cores diversas e

expressivas, os desenhos que utilizam basicamente uma ou duas cores não deixam

transparecer indiferença com sua história, mas dão um tom de clareza e

simplicidade.

Há muitas similaridades percebidas nos desenhos, devido à continuidade

das obras individuais, proposta com a técnica do filme. As cenas se desenvolvem e

a similaridade de uma para a outra fica evidente no desenrolar de algumas histórias.

Em outras descrições artísticas, essa similaridade está ausente, como se não

houvesse relação nenhuma das folhas que compõem o filme. Apenas um trabalho é

composto de uma única folha ou cena.

Quase todos os desenhos são planos, dando idéia de apenas uma

dimensão, exceto o primeiro desenho apresentado, no qual se nota uma perspectiva

de profundidade e de movimento.

Os desenhos são permeados de sentidos. Percebemos ao analisarmos que

estes estão imbricados intimamente com as experiências de vida, experiências de

felicidades e de sofrimentos, de privações e de abundâncias, de limitações e de

potencialidades dos co-pesquisadores. Sim um aparente paradoxo, mas uma

representação real e fiel da vida.

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A infância é algo presente no filme da vida. Fica evidente em boa parte

dos desenhos que essa fase da vida representa o começo da história. As vivências

de amor, sofrimento, luta, trabalho, crescimento e privação dessa época também se

fazem presentes. Essas vivências costumeiramente ressoam na vida adulta como

recordações marcantes e que possivelmente as influencia.

A única cena do primeiro filme dá-nos a idéia de um portal mágico, que nos

leva para uma outra dimensão. Com seus movimentos luminosos, ofuscam quem se

atrever a atravessar. Antes de chegar ao outro lado, faz-se necessário caminhar por

um túnel e escolher um lugar entre seis possibilidades. Essa descrição nos remete

ao percurso natural da vida. Somos constantemente impelidos a buscar novos

caminhos, podemos ser impedidos, como se estivéssemos ofuscados e paralisados,

ou continuando e ultrapassando os túneis escuros das incertezas, das dificuldades,

chegarmos a novas escolhas. Essas, por sua vez, trarão mudanças e realidades

boas ou más que nos levarão novamente a enfrentar um novo portal.

Há, entre os filmes, a história de um monstrengo. Percebemos que esse

pobre coitado sangra, enfraquecido quase sucumbe mas, na cena seguinte, ele

adquire super-poderes, utilizando seus óculos e seu cajado mágicos. Cria alma nova

e passa a esbanjar poder e vitalidade. Essa historinha não nos parece familiar? A

vida não se processa de forma muito parecida? São faces de uma mesma moeda:

em um momento, sentimos-nos derrotados e humilhados e, em outro, estamos fortes

e dispostos a enfrentar os obstáculos. Essas mudanças estão intimamente ligadas

aos sentidos atribuídos às situações e mesmo à vida.

Duas histórias são bem parecidas, merecem destaque. Os desenhos contam

a história de uma menina que vive em um campo minado, onde só há tristeza e dor.

Aos poucos, ela descobre como desarmar as minas e planta um lindo jardim de

flores vermelhas, até descobrir que as flores têm espinhos e fere quem as toca,

causando sofrimento e dor. Precisamos estar receptíveis aos possíveis desfechos

dos processos da vida e encontrar o sentido de cada coisa em seu devido momento

ou circunstância.

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Uma história chama atenção com o desenho do filme em duas folhas que

demos o nome de “A história do sapo que vira príncipe e que não deixa de ser

sapo”. Esse sapo utiliza várias máscaras e uma delas é a de príncipe. Usando a

máscara, até mesmo se convence que é príncipe, mas não se contém ao se deparar

com um inseto: cai em si e lembra de sua real condição. Esse filme nos faz lembrar

que uma vida experimentada e saboreada deve ser buscada e vivida por todos. Isso

propicia um valor maior à vida e, sem dúvida, só pode ser alcançado esse marco ao

encontrar um sentido para a vida.

Essas releituras das histórias proporcionam um olhar diferenciado dos

processos de atribuição de sentido de vida dos co-pesquisadores, claro que de

forma arbitrária, realizada por nós pesquisadores oficiais. Tencionamos com isso

não estipular um único sentido, antes disso, levantar muitas outras possibilidades de

uma mesma descrição, compondo a análise plástica da produção da oficina II.

6.2 Oficina II: Análise Classificatória

Na análise classificatória da segunda oficina, surgiram cinco categorias:

sentidos atribuídos ao adoecimento; sentidos atribuídos aos desenhos; sentidos

atribuídos a forma de ver e viver a vida; sentidos atribuídos a forma de enfrentar o

sofrimento e sentidos atribuídos à família. Foram feitos os movimentos para

descobrir as linhas de análise nas convergências, nas divergências, nas

ambigüidades e nas de sentido único.

Sentidos atribuídos ao processo de adoecimento.

1. [indagada sobre o que há de importante na vida] O importante, até agora é minha saúde, por que quando cheguei aqui, cheguei muito doente, pra hoje tá contando a minha história, o que mais marcou foi minha saúde. Quando cheguei, cheguei muito doente, eu pensava que não voltava mais nem viva, quando eu saí lá de casa eu disse logo, eu sei que eu vou mais não volto com os meus pés não, aí tô contando a vitória. Por isso é que eu disse minha vida agora é uma rosa, minha vida ta maravilhosa, tô me recuperando, tô com saúde, tô bem.

2. Depois da doença, quando cheguei aqui muito abatida, graças a Deus tô

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pensando que estou bem, vou fazer uns exames agora, mas de cabeça erguida e se der qualquer coisa seja da vontade de Deus, né? Tô nas mãos dele.

3. (...) aí depois que casei e constituí família, pra criar os filhos, aí foi mais preocupado. Aqui tô com mais de mês que tô aqui, me preocupando todo dia com minha família no interior, como é que estão por lá, né? Ora não sei como eles estão lá e eles não sabem como eu tô aqui, né? Aí é que tá, a gente não é adivinho, não imagina como nós estamos, os pensamentos nos de lá. (...) Hoje tô preocupado, pois tô meio-lá-meio-cá vê se melhoro, mais tô me tratando, os homens pediram pra fazer o tratamento aí eu tô por aqui, mas só por minha vontade eu tava lá em casa, mas os homens disse que se eu me trato aumenta os anos de vida, aí eu tô cuidando, pra vê se dá certo.

4. Aí quando eu dei fé, Deus levou ela [a mãe], aí fui pra luta, lavar roupa de ganho, aí apareceu um caroço no meu útero, um mioma, tive que operar, operei, o doutor disse que se eu não operasse ia virar um CA, operei e parei de trabalhar, aí quando dei fé apareceu esse problema, levei uma queda, machuquei o queixo, aí saiu esse problema no meu dente, aí mais um sofrimento, e eu vencendo” (...).

5. O tempo de passarmos mais tempo separados foi em 2005 quando tive que me separar, tive que me operar, veio um filho meu, e ela ficou na casa de apoio sem poder vir, com problema de coluna, pressão alta, pra você ver, né? A gente vinha da casa de apoio do centro, qualquer carrinho era caro, vinha do interior 500 km., numa ambulância pequena, sentada ali atrás e ela agüentava, é um milagre, né? Vai saber mais de vinte anos lutando, né? Não sei quantas cirurgias e ainda vou fazer outras, a vida não é boa, mas tem que agüentar, né? Porque quando o cabra tá com uma certa idade as pernas não podem com o corpo, né? A vista ruim, não ouve bem, fazer o quê?

6. Só choro se tiver dor, se não tiver dor não choro não. 1 e 2 convergem ao relatarem que seu estado de saúde já foi muito difícil, mas que agora está melhor.

1 e 5 divergem ao referirem como está à vida hoje, 1 diz que a vida é uma rosa e 5 diz que a vida não está boa.

3 e 5 convergem ao relatarem a distancia e a preocupação com a família como dificuldade em lidar com o adoecimento e suas famílias.

4 relata como aconteceu seu adoecimento.

1 e 2 divergem de 3 e 5 ao referirem que a vida está melhor hoje, 3 e 5 referem que não, hoje a vida não está boa.

3,2 e 4 divergem ao referirem a motivação para fazer o tratamento, 1 refere querer viver um pouco mais, enquanto que 2 refere querer ficar bem e de cabeça erguida, 4 refere querer vencer os problemas de saúde.

6 relata que somente chora quando sente dor.

Sentidos atribuídos aos desenhos.

1. Esse fogão representa o sustento da minha família, o fogão, o que eu aprendi a fazer no fogão, né? O sustento da minha família era tirado por aqui.

2. Minha vida sempre foi procurando, procurando um, um algo melhor, então eu

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desenhei um caminhão, por que eu gostava muito de andar, de um vizinho quando eu era jovem, aí eu desenhei (...) E meu filme é esse, gosto muito de viajar, de conhecer lugares e trabalhar também. (...). Isso é o que me faz bem, que eu posso. Aqui sou eu pedindo uma rosa, né? Essa rosa que eu peço é que eu tenha muito amor pra dar as pessoas, que possa ajudar, entendeu?

3. Meu desenho representa meu sofrimento e aqui minha vida, agora né? Que é um mar de rosas(...).

4. Eu desenhei meu pai também, que brigava com a gente, não deixava a gente sair pra canto nenhum.(...) Isso aqui era quando eu era criança, eu brincava com as crianças de bonecas, de baixo das moitas, das moitas de mufumo que tem nos matos, eram verdinhas que pareciam umas casinhas e aí nós brincava de casinha.

5. Eu vou começar na roça, por que comecei a trabalhar na roça, quando eu era criança gostava de brincar, comecei a trabalhar logo. Essa mesa representa o trabalho na roça, minha infância não foi muito sofrida não.

6. (Meu desenho é...) Trabalhando de padaria, sapataria, né? Minha vida não foi sofrida não (...).

7. É assim, mas o papel não apresenta nada, daqui não conto nada. 1,5 e 6 convergem ao atribuir aos desenhos algo relacionado ao trabalho.

2 atribui seu desenho do caminhão a procura, por isso anda e compartilha com outros.

4 atribui seu desenho às brincadeiras de criança.

3 diverge de 5 e 6 ao referir que a vida representada no desenho foi sofrida apesar de hoje estar um mar de rosa.

7 diverge dos demais ao referir que seu desenho não representa nada.

Sentidos atribuídos à forma de ver e viver a vida.

1. Tudo que eu fiz, sempre me agradei do que eu fiz, sabe? Sempre suando assim, era um prazer medonho, sempre eu era assim, mesmo aleijada, minha mãe dizia: menina para, tu não é pra andar no meio dos outros não. Eu ia evangelizar com um bocado de gente, vai menos no meio, ela dizia, tu vai lá na frente, mesmo cachingando, todo mundo vendo tu cachingando, e eu dizia deixa eu ir assim mesmo. (...) Eu sempre fui feliz, mesmo assim, pessoal mangava de mim eu tirava de letra, sempre fui assim. Aí então, aqui era na minha infância, fiz tudo, pesquei, quebrei lenha, lavei roupa, tudo eu fiz como uma pessoa normal (...) Nunca me queixei, “ai como tô com dor! Não sei quê!” Nunca senti essas coisas, chegava em casa tomava banho, almoçava, ia brincar ou me deitar na rede até dizer chega e de noite ia pra igreja (...) mas sempre foi assim, metida, minha história é metida. Você acredita que com doze anos fui pro Cauípe á pé, cinco léguas, de madrugada escondida de que ia a frente no trabalho, entendeu? Fiquei no meio do povo, me escondendo, me escondendo, porque eu sabia que ele não ia deixar eu ir, sabia que eu não botava lá, né? Lá na frente eu parei, já cansada ele me avistou e disse que não acreditava quem tava aí, me colocou no jumento. [indagada e sua deficiência foi marcante na sua vida] Justamente, até a própria minha mãe dizia você não vai, não vai, e eu dizia mãe eu vou, eu insistia, eu viajava de caminhão.

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2. Hoje a vida não tá muito boa não, mas da pra levar, um dia a gente tá mais alegre, outro dia a gente tá mais triste, um dia a gente ri, outro a gente chora (...).

3. (...) tomando conta dela (a mãe) ainda ganhava dinheiro do aluguel da minha casa, porque tomava conta dela e tomava conta dos outros e cada qual me agradava no que podia, aí quando chegava o mês de pagar minha casa, meu marido ia visitar ela e eu dizia olha meu filho o dinheiro da casa, arrumou aonde? Ele perguntava, eu dizia tomando conta dos doentes, eu tomava conta da minha mãe e tomava conta dos outros.

4. (...) mas dizer que eu quero coisa boa, importantes, pra minha vida, não quero não. O que eu quero é ficar perto dela (da esposa), né? Dizer que eu quero carro, fortuna depois de velho, que nem meu amigo, depois de velho quero riqueza não, pra fazer o quê? Um carro bonito e importante com um motorista, pra ir pra onde? Com um velho! Fazer o quê? Deixe pros novos, pros filhos, pros netos e outros.

5. Meu futuro é isso mesmo, que eu tô pelejando pra ir pra frente. Não tem mais o que pensar não, é pensar em durar mais e pronto.

6. (Quando era criança) Fazíamos as bonecas com os ossos, amarrava um no outro, brincava de correr e fazer medo os outros, eu tinha muito medo de gafanhoto e mane mago. Minha infância não foi muito boa não, tudo era muito difícil, se a gente ia pra escola era difícil. Tudo era longe, o maior sacrifício pra estudar e os pais da gente eram muito duros, por tudo em quanto brigavam com a gente, passear era a coisa mais difícil, era muito presa, depois que eu fui crescendo fui me animando mais arranjei o primeiro namorado, gostava muito dele, mas não deu certo, gostava de ir pra festa.

7. Eu não quero falar nada não. [solicitado que mostre seu desenho e fale um pouquinho sua história] Minha infância foi boa, foi trabalhando, minha preocupação era muito pouca (...).

8. É pra contar desde que a gente era criança? [o facilitador esclarece deve mostrar o desenho que conta a sua história, que fez sentido] Pra mim é um sentido grande, porque é a profissão que eu tenho, né? Trabalhei de cozinha, eu fazia muitos pedidos e graças a Deus todo mundo gostava, os pedidos podiam ser, lagosta, camarão, filé mignone, ou outro peixe, tem muitos tipos de comida, né? Cada dia saía as coisas e vinha outros pedidos. A minha vida foi isso, meu trabalho, que eu aprendi foi isso, até o dia que eu adoeci, mas ainda hoje se eu me meter a fazer, cozinho do mesmo jeito. Ora se não fizesse isso, cozinhando na cozinha, eu trabalharia na roça, né? Minha profissão era trabalhar na roça (...). Trabalhei de cozinheiro, de chefe de cozinha, aqui em Fortaleza dez anos, né? Tudo que eu aprendi fazer, sei fazer muitas coisas, não faço aqui porque não é permitido a gente fazer as coisas, porque a gente é paciente, mas eu tenho prazer em trabalhar em cozinha, muitas coisas eu sei fazer. [o facilitador indaga se isso marcou muito sua vida] Marcou, marcou porque o que eu aprendi, na minha juventude foi o que eu aprendi a trabalhar, desde rapaz novo que eu fui embora pro Rio, passei lá quinze anos, foi lá que comecei a trabalhar em cozinha, comecei lavando prato, e foi aprendendo, aprendendo, até que aprendi, né? Muitos tipos de macarrão, aprendi macarrão a bolonhesa não sei se vocês conhecem, muito gostoso, foi lá que eu aprendi a fazer muitos tipos de massa, e esses tipos de comida, né? Marcou minha vida porque eu aprendi, né? Sustentei minha família e as coisas que eu tenho hoje em dia ainda, foi comprado com meu trabalho com esse negócio de cozinha, né? Algum móvel que eu não podia dar, né? Eu tinha as férias, o décimo terceiro, eu comprava e dava de presente a mulher, a gente gosta de fazer uma surprezinha, né? Eu usava minhas férias, décimo terceiro, né? É isso.

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9. Eu trabalhava também, trabalhava na roça, eu plantava e colhia, melancia, frutas, né? Feijão, milho, cheguei até quebrar pedra, aquelas pedrinhas pra encher as latas pra vender? Vendi pedra, catei búzios, vendi búzios, os japoneses iam lá pra Barra do Ceará pra comprar, mesmo aleijada ia assim mesmo, pescava de rede no mangue, por isso que teve essas coisinhas sequinhas aqui (no desenho) (...) aí quando eu cheguei na minha idade de me assumir, de trabalhar, aí fui botar barraca, na praia vender comida, conhecer muita gente, fiz muita amizade (...) depois me acomodei porque já não agüentava mais, né? Fui cuidar de casa, comecei a ter filho, não podia caminhar tanto assim, minha caminhada é um quarteirão e meio o máximo.

1,2 e 5 convergem ao levarem a vida de forma a superar as limitações, a tristeza e esperar viver dentro das possibilidades.

3 diverge dos demais ao relatar que aproveitava as oportunidades mesmo cuidando da mãe doente, para conseguir a manutenção do lar.

5 diverge de 4 ao referir que quer viver mais, enquanto que 4 refere não ter muitas aspirações na vida, deseja apenas ficar perto da esposa.

6 diverge dos demais ao relatar as brincadeiras e as dificuldades vividas na infância.

7 diverge de 1 e 6 ao relatar que não tinha preocupação na infância.

7,8 e 9 convergem ao citarem que o trabalho marcou como forma de levar a vida.

Sentidos atribuídos às formas de enfrentar o sofrimento.

1. (...) sempre tive muitos amigos sabe? Se eu ia lavar roupa, tinha minhas amigas que me ajudavam, com pena de mim me ajudavam, qualquer atividade eu fazia.

2. (Eu quero poder ajudar) contar para as pessoas, o que eu já passei e que as pessoas possam saber que a gente pode superar, com confiança em Deus a gente supera, né?

3. (...) quando a gente lembra coisa que a gente passou ou ainda tá passando dá vontade de chorar.

4. Aí eu procuro os amigos, procuro conversar, passear, ir pra casa de uma amiga, pra não ficar parada em casa, por que se ficar só não serve, por que eu sou bem dizer só (...)

5. Aí na doença dela eu trabalhava, tomava conta de um senhor, carteira assinada e tudo, aí me obrigaram a sair do emprego pra tomar conta da minha mãe que ninguém quis ficar com ela no hospital, acho que tinham medo da doença dela. Eu, quer dizer, bem, fui obrigada assim, eu entreguei o emprego pra tomar conta da minha mãe, quer dizer, eu não ia deixar ela no hospital sem ninguém, aí deixei tudo, meu marido disse: minha filha você vai sair do emprego? Eu disse vou, mas ele disse: eu tô parado. Mas eu disse a gente leva a vida assim mesmo, aí eu tomei conta dela três meses no hospital (...) trabalhava tomando conta de idoso, passei três meses com minha mãe no hospital, minha mãe com CA, morreu nos meus braços. Ela me desprezou, mas morreu nos meus braços, a filha que ela criou não quis saber dela, eu tomei conta dela até na hora da morte. Cuidar dela foi muito importante, porque ela me desprezou, levou a minha irmã mais velha pra morar com ela e

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meu irmão mais velho, aí ela morava com meu irmão mais velho. 6. (...) aí pra eu vencer, já doente, catei duas filhas, três filhas dos outros, pra

criar, com mais três filhas dos outros, lavando roupa de ganho. Essas meninas, o pai delas morreu, a mãe irresponsável, uma delas eu peguei na maternidade, ela me deu, eu registrei no meu nome, aí tinha duas irmãs, uma com 11 anos e a outra com 08, aí moravam em Recife, aí eu fui pra Paraíba e aí as outras duas disse eu vou embora com tu também, aí a mãe delas disse “pode levar se não eu vou jogar tudo na rua”, aí eu trouxe as três, uma é registrada em meu nome, duas não é. Aí eu criei, duas estão casadas, na casa delas, elas são melhores pra mim que minha própria filha, a que eu criei. O que minha mãe não fez por mim eu fiz pra essas três. [indagada se sua história fazia sentido] Fez muito sentido, eu fiz com elas, o que não fizeram comigo, judiavam, e eu criei com maior carinho, como se fosse minhas filhas, elas gostam muito de mim, mas nenhuma podem vir. O que me dá muita força ainda é criar meus netinhos ainda, eu tenho um neto e uma neta que eu crio, meu neto tem seis anos e minha neta tem nove e minha filha que eu crio, irmã das casadas tem onze anos. Eles me amam muito, e quando ele liga pra cá, ele diz vovó fique boa (choro) que a gente ama muito a senhora.

1 e 4 convergem ao referirem encontrar nos amigos forma de enfrentar o sofrimento. Mas 4 diverge de 1 ao citar também os passeios e não ficar em casa sozinho como forma de enfrentamento.

2,5 e 6 convergem ao relatar que ajudar a outros constitui uma forma de enfrentar o sofrimento. Mas divergem na forma de ajudar, 2 refere ajudar contando sua experiência, 5 refere que foi cuidando de quem a desprezou e 6 refere que foi adotando três filhas.

3 diverge dos demais ao referir que enfrenta o sofrimento chorando.

6 diverge dos outros ao relatar que criar os netinhos dá forças para enfrentar o sofrimento.

Sentidos atribuídos à família.

1. (...) nunca me casei, não tenho filho, não tenho mais pai, nem mãe, sou uma pessoa bem dizer só, né? As vezes eu fico triste pensando, todo mundo tem filhos, tem marido, tem pai, mãe e eu não tenho nada? Se eu ficar pensando assim eu começo a chorar, fico nervosa.

2. Minha história é aquela que eu lhe contei fui muito judiada, minha mãe abandonou meu pai, eu tinha três anos de idade, essa mulher aqui do desenho é a mulher que me criou, era da minha família, era minha tia. Agora ela judiava muito comigo, meus primos com quem eu vivia, me queimavam com ponta de cigarro, botava pimenta no meu café, aí eu fui crescendo, sendo judiada até meus dezesseis anos.

3. Aí, nessa idade, conheci um rapaz, comecei a namorar e não passou dois meses. Aí eu fugi com ele de tanto sofrimento que eu sofria, aí eu fugi, aí foi quando eu comecei a ser feliz, agora tô com 52 anos, tô com ele ainda (...) pra mim apesar da minha doença, é um mar de rosas, porque meus filhos me amam muito, meu marido também, ele só não veio ainda aqui, porque ele não tem condições, porque se ele tivesse ele já tinha vindo me visitar.

4. Pensando o que mais marcou minha vida foi ter casado com ela, foi. Até

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hoje, 45 anos de casado, né brincadeira não, né? Hoje é um mês, um ano, 45 anos sem separação, parece que eu casei hoje, satisfeito, quatro filhos, não me deram trabalho. Ela é minha sombra, onde eu vou ela vai, a sombra né assim, né? É tudo na vida, uma mãe de família, deixar a casa um ano fora, eu nunca vi.

5. Ele [o pai] me ensinou muitas coisas, reza, oração, toda noite rezava, a gente sentava toda noite ao redor dele e ele ficava ensinando a respeitar as pessoas, a cumprimentar os mais velhos.

1 e 2 divergem de 5 ao relatarem sofrer pela falta do apoio da família, enquanto que 5 refere à presença e os ensinamentos do pai.

1 diverge de 3 e 4 ao referir que chora e fica nervosa ao pensar na família, enquanto que 3 e 4 referem estar satisfeitos e felizes com a família que tem.

1 diverge de 2 ao referir que sofre por não ter família, enquanto que 2 refere ter sido muito judiada por sua família.

3 e 4 convergem ao referirem que encontrar um companheiro(a) os ajudou a superar os problemas.

5 relata que seu pai ensinava coisas importantes da vida.

6.3 Oficina II: Análise Transversal

Encontrar o sentido da vida pode se dar de diversas formas e aqui trazemos

algumas delas. Por mais incrível que pareça, o sentido da vida pode estar no fogão.

É nele que se ganha o sustento da família. O fogão, a roça, o trabalho fortalecem o

homem. Esse fogão tem que render, pois o peso é grande. Principalmente depois

que se casa e se constitui família, filhos para criar, mais preocupação... Mas essa

mesma família que se preocupa, torna a vida um mar de rosas, apesar da doença.

E quando falta a família? É triste pensar que todo mundo tem filhos, tem

marido, tem pai, mãe, quando você não tem. Se pensarmos assim começamos até a

chorar. Devem-se criar estratégias, procurar... procurar um algo melhor pra vencer:

nos amigos, criando os filhos (mesmo que sejam os filhos dos outros), qualquer

coisa que afaste essa tristeza.

Mas nem sempre a família é mar de rosas, também pode ser um mar

turbulento. Ela também judia, maltrata. Ao invés de apoio e estímulo, encontramos

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maus tratos e tolhimento: no pai que briga, nos limites que não deixam a gente sair

pra canto nenhum. Um ambiente hostil de sofrimento e da dor.

Não se pode esquecer que essas experiências difíceis são novos caminhos

que se abrem na busca incessante por sentido. Das situações mais desafiadoras,

emergem sentidos desconhecidos ou ressignificados. O mesmo pai que tolhe é o

que ensina a rezar; o que a mãe não faz pelo filho, ele faz pelos seus; e, nesse

movimento, supera-se tudo.

O mar de rosas também pode ser o conformismo de nunca se queixar,

nunca se perguntar: por que será que não tenho tantas aspirações como antes?

Será que eu quero mesmo é ficar perto dela? Meu futuro é isso mesmo, seguir

pelejando pra ir pra frente? Não tem mais o que pensar não, é pensar em durar mais

e pronto.

Mesmo nos jardins floridos, as flores escondem espinhos que machucam e

nos deixam a sensação de não voltar mais nem vivo: é saber que vou, mas não volto

com os meus pés, não. Sim, ficamos sem chão, sem rumo, perdidos e entregues a

própria sorte. Mas quando nos sentimos meio-lá-meio-cá, avistamos caminhos de

melhora, formas de tratar a ferida aberta, talvez contando para as pessoas o que eu

já passei e que as pessoas possam saber que a gente pode superar. Pode ser

cuidando de quem nos desprezou, ou compartilhando o amor, a amizade como uma

sombra presente em todos os momentos. É preciso entender que um dia a gente

está mais alegre, outro dia a gente está mais triste. Um dia a gente ri, outro a gente

chora.

Em meio a esse emaranhado de formas de ver e trilhar o caminho, podemos

encontrar “um” para quem viver. Um sentido para além de si próprio: a esposa que é

tudo na vida, as lembranças do pai e de seus ensinamentos, a criação dos netinhos,

a oportunidade de aproveitar os momentos e pensar em viver mais e o trabalho

desenvolvido em toda uma vida são inquestionavelmente linhas de aproximação dos

sentidos da vida.

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6.4 Oficina II: Análise Surreal

Optamos na análise surreal utilizar uma paródia da bela música de

Gonzaguinha, “O que é, o que é?”, misturando relatos, expressões e criações à

letra da música, criando uma lógica impensada, como é próprio dessa análise.

O QUE É O QUE É O SENTIDO DA VIDA?

Eu fico com a pureza dos sentidos da infância É a vida, é bendita e é bendita.

Lutar e lutar e lutar

A presteza de um ser eterno que diz Ah! Bem sei, eu sei

Que a vida já foi bem pior Mas que mal há?

Se ela foi vivida, bem vivida e bem vivida.

Mas e o sentido da vida? Encontre se puder meu irmão

Ele pode ser encontrado em um fogão Ele pode ser uma bela visão, ê ô

Mas na vida

Se puder encontrar maravilha e também sofrimento Ela é alegria e muitas vezes lamento.

Encontre se puder meu irmão.

Há quem diga que o sentido, É um sertão no meio do mundo.

São os pais, os filhos, os amigos, Uma historia passada,

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E um encontro profundo.

Há quem diga que é Deus, Em seu amor fecundo.

É o beijo de um grande amor Ou a resposta extraída da dor.

Você diz que o sentido é viver

Mas digo que também é o morrer. Talvez seja o Criador

Numa atitude, no sentido amor.

Sentido, sempre encontrado!!

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Análise do grupo pesquisador

“Quem disse que não somos nada, que não temos nada para oferecer, repare nossas mãos abertas, trazendo as ofertas do nosso viver.”

(Zé Vicente Ceará)

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7 ANÁLISE DO GRUPO PESQUISADOR

A análise do grupo-pesquisador é, sem dúvida, parte de fundamental

importância para a pesquisa sociopoética. Nesse tipo de pesquisa, os participantes

são considerados co-pesquisadores e, por tanto, vozes ativas no processo. Essa

análise contempla a forma de perceber e analisar a produção feita por eles mesmos.

A oficina de análise aconteceu em 24 de setembro de 2007 na sala de

material da Terapia Ocupacional, às 14hs, na própria casa de apoio, onde

participaram dessa oficina 07 (sete) co-pesquisadores que estiveram presentes nas

oficinas de produção, o facilitador e a terapeuta ocupacional da instituição.

Iniciamos a oficina como de costume, com um breve relaxamento. Esse

consistia em retornar aos primeiros encontros, tentar rever o que foi dito, pensar nas

primeiras sensações, apreensões e curiosidades, depois passamos na visualização

proposta para retomar o que foi produzido, tanto na primeira como na segunda

oficina de produção. Finalizamos o relaxamento com um alongamento. Após o

relaxamento, dispomos o material plástico produzido. Iniciamos com as pinturas

realizadas na primeira oficina e mostramos, através da leitura, os comentários feitos

por cada participante. Todos os co-pesquisadores tiveram oportunidade de comentar

e analisar a produção do grupo. Procedemos da mesma forma com o material da

segunda oficina.

Resolvemos apresentar através de carta, que costumamos ver em fins de

conferências, reuniões, para mostrar as resoluções ou contribuições que ficaram

acertadas após os encontros. Assim fizemos. Essa proposta trata da voz e da forma

de pensar sobre tudo o que foi realizado durante os encontros do grupo-

pesquisador.

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Carta Espiritual de Fortaleza

Realizamos no dia 24 de setembro de 2007, às 14h, o encontro de análise das oficinas de produção. Estiveram presentes 07 (sete) participantes, além do pesquisador oficial e da terapeuta ocupacional, que esteve acompanhando todo o processo.

Após observarmos a produção plástica e ouvirmos as transcrições dos nossos próprios comentários, tanto da primeira oficina como da segunda oficina de produção, foi possível analisar que:

1- Produzimos sem nos apercebermos, uma arte muito bonita, que representa nosso sentido de vida;

2- À medida que vemos as pinturas, percebemos que a vida é maravilhosa. Isso representa o bom da vida, seu sentido;

3- Se juntarmos tudo, o sertão, a serra, o túnel, a lagoa, a ponte podemos dizer que somos e temos esperança, de melhorarmos, de ainda trabalhar e lutar pela vida;

4- Percebemos que cada um tem uma história para contar, as experiências e se prestarmos atenção, essa história dá sentido à vida, como é o caso do trabalho;

5- Ouvir e contar essas histórias nos deixa mais atentos, para não desperdiçarmos nosso tempo e cultivarmos as coisas boas da vida;

6- Participar desses encontros trouxe tanto crescimento que fez mais leve nosso sofrimento e iremos repassar aos nossos filhos e parentes o que aprendemos aqui;

7- Vencemos as dificuldades e limitações na realização das oficinas, descobrimos-nos capazes de muitas coisas, sentimos-nos valorizados. Quase todos nunca tinham pegado em um lápis para escrever ou desenhar nada e também nunca ninguém tinha perguntado como nos sentíamos ou como queríamos as coisas.

Estamos certos que foi importante para nós tudo o que vivemos nesses encontros e esperamos que seja uma resposta a todos os envolvidos nesse processo de saúde e de doença, nossos familiares, profissionais e nós mesmos, que a vida tem sentido e que é muito bom viver.

Grupo-pesquisador

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Diálogo filosófico-espiritual sobre o sentido da vida

“A vida é frágil e viver é um lindo momento, quando se sabe amar, notar a poesia perdida... Os

nossos momentos, as nossas idéias presentes em todas as canções, o que nós sentimos, os

nossos desejos seguirão em nossos corações.”

(Kim/Julio)

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8 DIÁLOGO FILOSÓFICO-ESPIRITUAL SOBRE O SENTIDO DA VIDA

Nesse capítulo, iremos realizar a análise filosófica proposta pela

sociopoética, que compreende o diálogo entre os saberes que foram produzidos

pelo grupo-pesquisador e o saber acadêmico que outros autores trazem. O diálogo

que iremos desenvolver não tem por objetivo descobrir e revelar quem está certo, ou

quem dos dois tem a verdade. Antes busca as intercessões desses saberes e,

nestas, encontrar pontos que clarificam e que se complementam. Nisso consiste a

análise filosófica proposta pela sociopoética.

Para Deleuze e Guatarri (1997), a filosofia não deve ser confundida com

reflexão, contemplação ou comunicação. Antes, a filosofia se detem a criar conceitos

e estes, por sua vez, não devem ser fechadas em verdades. Antes, são

aproximações de uma realidade possível. Através dos dispositivos propostos nas

oficinas, ocorre a mobilização dos corpos e, a partir do tema proposto, as

associações livres culminam na produção de conceitos inesperados e inusitados.

Gauthier (2005) concebe esses conceitos como sendo produções

desterritorializadas, contextualizadas no encontro exótico do afeto com a razão,

passando a serem chamados de “confetos.” A análise filosófica traz a perspectiva de

que o grupo-pesquisador é capaz de filosofar, à medida que cria confetos.

Cabe salientar que o que foi produzido pelo grupo-pesquisador é fruto de

saber construído em suas experiências e nas formas de compreender a vida, seus

processos e suas significações. Para isso, os co-pesquisadores empreenderam um

caminho de construção a princípio individual e, posteriormente, coletivo.

O primeiro confeto que destacamos é o Sentido Sertão. Neste,

entendemos que o sentido da vida é percebido como um lugar desejado, sonhado,

onde se pode descansar, um pouso certo nas horas de aflição. O sentido da vida é

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esse lugar, que corresponde à paz e a tranqüilidade, não importando que localização

ele tenha, se o tenho, estou seguro e pronto para viver as possibilidades.

Esse sertão proporciona satisfação na vida, apesar de vivenciar o câncer

ou qualquer outra coisa. Para Frankl (2002), a procura desse lugar pode muito bem

ser a busca de um sentido de vida, aquilo que ele chama de “vontade de sentido”. O

homem está sempre desejoso de encontrar um sentido na vida e nas situações.

Essa motivação é, às vezes, conseqüência do vazio existencial vivido no sofrimento,

que o faz procurar e, ao encontrar sentido, acha-se forte o bastante para enfrentar

qualquer sofrimento ou dificuldade, transcende a isso e é capaz de dar sua própria

vida por esse sentido.

Os diversos problemas enfrentados na vida, inclusive o adoecimento,

tornam a depressão, a drogadicção e a agressão, fugas do sofrimento e um

fenômeno comum em nossos dias. O confeto Sentido Serra pode ser uma resposta

a isso. Esse confeto traz a idéia de que o sentido da vida é algo maior, alto, no

sentido de ser uma resposta ao sofrimento, à culpa e à morte. Fica também claro

que o grupo-pesquisador produz e associa esse confeto à força, força representada

pela serra, que enfrenta bravamente as adversidades e não sucumbe. Em

consonância com isso, Giovanetti (2001) diz que o sentido da vida é o elemento

central na vida humana e que sustenta o homem em tempo de dificuldade. Frankl

(2003), por sua vez, ressalta que mesmo o homem vivendo o fracasso, pode estar

bem se, em sua vida, conseguir extrair um sentido em sua história, algo que lhe

fortaleça e o faça transcender.

Outro confeto produzido foi o Sentido Túnel/ Luz. Segundo o grupo-

pesquisador, o sentido da vida é concebido como um túnel com sua luz no final.

Esse confeto tenta dar conta da existência de um sentido no próprio sofrimento. É

como se dissessem: “só há escuridão se houver luz”. O túnel em si representa o

desconhecido, o sofrimento, as dificuldades, a possibilidade de morte, a situação

vivida. Mas não é só isso: esse túnel tem uma saída, há uma luz que pode e precisa

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ser buscada. E mais: passar pelo túnel é uma esperança certa de enfrentar a

escuridão para, enfim, encontrar a luz.

Lukas (1992) nos fala que o sofrimento inevitável é vivenciado de forma

plena quando encontra um sentido para ser, ou seja, quando um sentido é

descoberto. Faz crítica aos que consideram alguns casos na saúde sem perspectiva

ou esperança e faz as seguintes perguntas: perspectiva e esperança de quê? Para

ela, há sempre esperança, mesmo que não haja possibilidades terapêuticas, há

esperança de uma vida com sentido, tal como nunca houve em toda uma vida.

Nenhuma vida humana, nenhuma única é sem sentido ou perspectiva, há sempre

algo para contribuir e que possua sentido no mundo.

Para Frankl (1994), é a partir da aflição que surge um olhar de

interrogação, de queixa, de desafio ou de súplica, empreende-se uma luta para

compreender o que aconteceu ou está acontecendo e, nessa busca para entender,

encontra-se o sentido. Como uma luz no fim do túnel, o sofrimento transmuta-se em

contribuição, a culpa em transformação e a morte em estímulo para agir

responsável. Da mesma forma, todas as fases ruins da vida podem ser apreendidas

como tempo de provação, de amadurecimento e de reflexão.

Um outro confeto produzido é o Sentido Lagoa. Neste, destacamos o que

o grupo-pesquisador trouxe como confeto. Essa lagoa é compreendida como

sentido, garantindo a sobrevivência, pois produz vida que é oferecida a quem se

dispor a pescar. Essa pesca é nossa eterna busca por sentido na vida e nas

situações e a lagoa é a fonte de onde se pode extrair o sentido.

Mas porque o grupo pesquisador associou o sentido da vida à

sobrevivência? Ora, o sentido da vida proporciona a quem o encontra um estado de

graça, um sentimento de plenitude e de transcendência, como se o tempo tivesse

parado e o que restasse era apenas a complementação do todo. Vasconcelos

(2006) corrobora no tocante ao sentido da vida ser a forma de o homem se

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preservar. Do contrário, ele mesmo se autodestruiria. A falta de sentido ou o vazio

existencial descrito por Frankl (1991) é a principal causa da drogadicção, violência e

depressão, formas de autodestruição tão comuns em nossos dias. Em sua

experiência nos campos de concentração nazistas, Frankl (1991) relata que apenas

os que tinham “um [sentido] para que viver” conseguiam superar o horror do cárcere

e sobreviver, os que não conseguiam encontrar um sentido ou achavam que a vida

era desprovida de sentido, sucumbiram pela fome, pelos maus-tratos ou pelas

doenças.

Há um outro confeto produzido pelo grupo-pesquisador, o Sentido Ponte.

Esse confeto mostra-nos que o sentido da vida é apreendido como forma de ligação,

uma verdadeira ponte que conecta duas partes diferentes que necessariamente

precisam uma da outra. A ponte está bem representada pelo amor que faz ligações

entre o “eu” e o “outro”. Nessa ligação, a profundidade de sentido está representada

pelos diversos relacionamentos, sejam familiares, de amizade, de companheirismo,

de responsabilidade ou de interesse. O grupo-pesquisador elegeu o amor como

ponte que liga a vida e seu sentido. Por esse amor vive-se e morre-se. Nele,

encontra-se força para viver e superar tudo e, através dele, a vida se torna algo que

vale a pena viver.

Frankl (1992) concebe o amor não como forma de obter prazer ou

vantagens, mas como expressão que supera a satisfação de uma necessidade, um

verdadeiro ato coexistencial. Para ele, quando existe amor, a pessoa liga-se a outra

na mesma totalidade físico-psíquico-espiritual que é composta, de uma existência

para outra existência. Lukas (1992) refere-se a quem ama de verdade, ama não

somente algo que a pessoa tem, ama a própria pessoa, portanto, não o que a

pessoa amada tenha, mas, precisamente, o que a pessoa é. Esses autores alertam

que as relações nem sempre se dão nessa profundidade e não se chega a um ato

coexistencial.

De acordo com Crema (2002), há outras formas de amor, estarmos

atentos a essa formas podem nos ajudar a procurar sempre concretizar o ato

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coexistencial. A primeira é a Porneia, o mais elementar de todos, representado pelo

bebê que suga sua mãe sem ao menos se preocupar com ela e com seus

sentimentos, seu interesse está em si próprio. Dessa palavra derivam pornografia e

prostituição. Se houver uma fixação nessa fase ou estágio evolutivo, nunca

chegaremos a um ato coexistencial e tão pouco viveremos o sentido da vida que

esse ato proporciona. A segunda forma de amor é o Eros, o amor do encantamento

e da posse, representado dessa vez pelo amor adolescente, que busca no outro a

felicidade e o preenchimento da carência dos pais. Esse amor pode não tem força

em si e também pode não concretiza o ato. A terceira forma, o amor Philia, é

descrito como o amor da troca, que vai à direção do outro para aprender a ser

humano com o outro e aprender também a amar com o outro. Esse amor é

considerado o da sinergia é a forma da concretização do ato coexistencial. Mas, há

além desse, o amor Ágape, o amor incondicional, gratuito e divino. O autor descreve

esse amor como maior que o coração humano, mas possível de ser vivido. Esse

amor seria a vivência plena desse ato coexistencial. Essa descrição nos faz pensar

que no amor há muitas configurações e que não necessariamente são boas ou más,

antes são formas de viver esse processo e de buscarmos através do encontro do

outro, extrair um sentido.

Para Frankl (2005), o caminho a ser trilhado para algo vivenciado e amado

constitui os valores vivenciais que, por sua vez, ao serem cumpridos, tornam-se

fonte de sentido. Podem ser concretizados no encontro com o outro e esse outro

pode ser a natureza, o belo, a cultura, as virtudes e as pessoas. Frankl (2005) ainda

refere-se ao fato de que esse amor autêntico, definido pelo grupo pesquisador como

ponte que a tudo liga, enriquece a vida do homem em todos os casos, mesmo no

caso de não ser retribuído. A experiência e o bem que esse amor proporciona ficará

para sempre gravado na sua história.

O sexto confeto produzido pelo grupo-pesquisador é o Sentido Fogão.

Esse conceito associa o sentido da vida à realização de algo, ou seja, o trabalho.

Para o grupo-pesquisador, esse trabalho personifica o próprio sentido, nele se pode

realizar algo. E essa realização proporciona àqueles que trabalham um sentimento

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de utilidade, de importância social e de sobrevivência tanto de si como dos que

dependem deles. O sentido fogão representa o suor, o esforço de transcender as

dificuldades e a dureza do trabalho em si para um algo intencional que representa a

finalidade que se atribui essa ação e que nunca acaba ou nunca se conclui.

Observando o trabalho realizado durante toda uma vida, e destacando aquilo

conseguido através dele, é possível dizer que há valor nisso e nada, ou ninguém,

poderá destruir, pois está plasmado para sempre na história. O grupo-pesquisador

ressalta isso ao propor o trabalho como sentido da vida e o faz através da figura

“fogão”.

Segundo Lukas (1992), o trabalho oferece oportunidades próprias,

realizando-se de forma única, imprimindo-lhe uma nota pessoal, fazendo dele um

pedaço de vida vivida que do contrário, permaneceria sem ser vivida. Assim,

concebe-se o trabalho como uma transformação do ser-homem substancial no ser-

homem funcional que confluem na eficácia a temporalidade e a corporeidade.

Para Mondin (1980), o trabalho constitui uma forma de

autotranscendência, visto que está numa busca incessante de superação, procura

sempre romper os limites do tempo e da matéria, em busca do duradouro, perfeito e

eterno. O trabalho constitui os valores criativos para um algo a ser feito ou

produzido, a saber: o trabalho em si, as artes, as descobertas e as invenções.

Mas o trabalho pode gerar não só sentido, por vezes, gera desvios

também. Frankl (2003) analisou dois fenômenos que considerou opostos e

extremos. A esses deu o nome de “neurose do desempregado” e “doença do

executivo”. O primeiro sente-se um inútil e por isso considera a vida sem sentido.

Essa carência de sentido cria um campo fértil para as reações neuróticas e

depressivas e impede a pessoa de ter experiências na situação e dela extrair um

sentido. O segundo, apesar do nome, não trata de doença apenas de executivos,

mas de todos que fazem do trabalho um fim em si mesmo, degeneração do trabalho

pelo trabalho. É preciso enxergar o verdadeiro sentido do trabalho, aquele que

identificar a que o trabalho serve estará livre do excesso.

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Lukas (1992) estabelece que o verdadeiro milagre do trabalho é falta aos

que fogem dele, opressão para quem nele se afoga, e asas à pessoa que o realiza

buscando fazer o melhor não somente para si, mas, sobretudo, para o outro.

O confeto Sentido Mar de Rosas, também produzido pelo grupo-

pesquisador, traz mais esclarecimentos sobre o sentido da vida. Essa perspectiva

encontra, nas situações difíceis, fonte de sentido. Ao vivenciar o câncer ou qualquer

outra doença grave, a pessoa sofrerá, mas traz consigo, em sua história de vida,

muitas lutas, batalhas, vitórias e fracassos vividos que ajudam a enfrentar e a

superar mais um obstáculo. Para o grupo-pesquisador, o sentido da vida

proporciona esse conforto, esse prazer, tal e qual um mar de rosas, onde a vida

parece estar melhor com a doença do que antes, quando estava são.

Esse confeto mostra-nos que não importa o que passamos. Se a vida tiver

sentido estaremos bem e nossa vida, preservada do desespero. O mar de rosas é o

sentido da vida que transforma as dores em pequenos sentidos e, ao vivenciá-los,

relativiza-se e minimiza-se tudo em conseqüência, dando a impressão de não mais

sofrer.

Vasconcelos (2006) corrobora com essa mesma concepção de sentido

mar de rosas, ao referir a capacidade que o homem tem de transcender o

sofrimento. Transcende ao encontrar em sua história dores maiores, ao ter a certeza

de que poderá ultrapassar mais uma dor e envolver de sentido a situação.

Lukas e Eberle (1993) referem-se ao homem como primeiramente capaz

de buscar um sentido até na doença, na culpa e no sofrimento, elevando-se

espiritualmente acima deles e encontrando sua determinação mais específica. Isso

comunga amplamente no que o grupo-pesquisador traz como sentido mar de rosas.

Neste sentido, Frankl (1991) fala da possibilidade de manter-se otimista diante da

tragédia. Dá-nos a noção de transformar o sofrimento numa conquista ou realização

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humana e extrair da dor a oportunidade de mudar e fazer da transitoriedade da vida

um incentivo para realizar ações responsáveis.

O último dos confetos é o Sentido Deus. Essa produção do grupo-

pesquisador tem seu foco não só em Deus, mas, especialmente, na fé, na

esperança e na entrega total. O confeto traduz, em última análise, a segurança de

não entender nada e, mesmo assim, estar bem. O sentido está presente no

incognoscível, pois há um despojamento de tudo, inclusive da própria vida. Para o

grupo-pesquisador, Deus é o sentido por si mesmo, a primeira e a última forma de

se agarrar à vida e não sucumbir ao desespero, à solidão, ao sofrimento e à possível

morte.

Valle (2005) refere-se ao fato de que antes mesmo de sermos religiosos,

procuramos um sentido para nós mesmos e que o homem, ao tentar entender a

vida, o tempo e o universo depara-se com o mistério e o inefável, obrigando-o a

calar e humildemente tentar empreender caminhos espirituais que dêem conta de

suas demandas, primordialmente através da fé. Para ele, a fé deve ser entendido

em seu sentido original, que vem do grego Pistis e Pisteuo, que quer dizer “eu

assumo, eu confio, coloco meu coração, empenho minha fidelidade”. Jamais poderia

ser desvinculada ou separada da vida. É ela que dá propósito para as lutas e

esperanças, para o pensar e o agir. É uma forma ativa de ser e comprometer-se,

também forma de conhecermos e modelarmos nossas experiências, estão ligadas

as relações, na fé, sempre há um outro.

Vasconcelos (2006) afirma que a espiritualidade vivenciada através da

religião ou de fé pressupõe conhecimento dos próprios limites e possibilidades, não

é um ato de simples resignação e, sim, uma atitude corajosa e humilde de alguém

que sabe que sua vida está voltada para um ser mais, um partilhar mais, um

desprender-se. Para Frankl (1992), a religião é a consciência de que o homem

possui uma dimensão sobre-humana. Ao ver-se como ser no mundo, vislumbra o

infinito e isso o faz cheio de esperança e de fé na vida e em seu sentido último.

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O grupo-pesquisador traz o “Sentido Deus” não como imagem, mas como

realidade viva, existente e conhecida dele, ajudando inquestionavelmente no

enfrentamento e superação do sofrimento, da culpa e da morte, muito embora não

se possa comprovar fisicamente.

Ao dialogarmos sobre o sentido da vida, faz-se necessário entendermos

que esse tema está intrinsecamente ligado à transcendência, à liberdade e à

transitoriedade da vida, posto que torna o sentido da vida expressão importante da

espiritualidade humana.

Nossa forma de conceber a transcendência não se exclui em momento

nenhum a idéia de imanência. Antes, propõe sua integração naquilo que Boff (2002)

chama de transparência. Percebemos que a produção do grupo pesquisador está

mergulhada nessa transcendência, visto que seu movimento de encontro do sentido

e sua plena expressão acontecem na vida cotidiana e no interesse de algo além das

suas necessidades psicofísicas.

O poder decidir-se também precisa ser destacado e está atrelado à

transcendência. Esse poder nada mais é que a liberdade humana frente aos

condicionantes biopsicossociais, que imprimem no homem um caminho já traçado a

percorrer, mas que a todo o momento é impelido a decidir entre esse e outros

caminhos. Os confetos produzidos pelo grupo-pesquisador mostram de forma clara

e simples que a liberdade é utilizada para dar uma resposta à vida. O grupo-

pesquisador declara que há um sentido, mesmo vivenciando situações difíceis como

o adoecimento e as diversas dificuldades da vida. A liberdade possibilita que, em

face às adversidades, o homem responda de forma otimista a fim de encontrar um

sentido para a vida.

A transitoriedade da vida também é responsável por essa busca

incessante de sentido. Para Frankl (2005), é inegável essa transitoriedade, mas,

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sendo possível dar um sentido, as oportunidade de criar, de experienciar, e de

sofrer, o homem concretiza essas possibilidades e finda a transitoriedade, pois

essas experiências estarão para sempre presentes, conservadas no passado e

ninguém poderá destruir. Poderíamos dizer que o sentimento de transitoriedade é

mola impulsionadora para um sentido e está também ligada à liberdade e à

transcendência. O grupo-pesquisador em sua produção tem noção disso e traz as

experiências de vida como arquivadas no passado, retornam como fonte de sentido

que, ao responder as aguilhoadas dessa transitoriedade, permitem a continuidade

dessa busca.

Fica evidente que, em toda a produção de confetos do grupo-pesquisador,

as concepções de transcendência e liberdade humana estão presentes e estão

frente à transitoriedade da vida. Os conceitos de sentido da vida elaborados são

produzidos a partir do sofrimento vivido durante a vida e, sobretudo, no atual

adoecimento. Dentre os confetos que podemos chamar gerais estão: o “Sentido

Sertão”, o “Sentido Serra”, o “Sentido Túnel /Luz”, e o “Sentido Lagoa”. Há também

os confetos que trazem os valores: criativos, “Sentido Fogão”; vivenciais, “Sentido

Ponte”; e atitudinais, “Sentido Mar de Rosas”, além do confeto que trata do último-

sentido, o “Sentido Deus”.

Percebemos que houve muitas intercessões e complementaridade dos

saberes do grupo-pesquisador e dos saberes produzidos na academia. Os confetos

apresentados mostram-nos a riqueza da produção coletiva e, especialmente, da

capacidade de vivenciar a espiritualidade no processo de adoecimento. O sentido da

vida é apreendido nas pequenas coisas que agora se tornam coisas relevantes da

vida e, ao se realizar a formação do grupo-pesquisador e as oficinas em si, dá-se

então o efeito maquínico que proporciona mudanças e torna a vida pronta para ser

vivida em sua plenitude por todos que se deixaram tocar por esse efeito, mesmo que

isso não seja a intenção primária da produção de conhecimento do grupo.

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Análise maquínica: um agenciamento entre o

pensamento do grupo e a clínica de enfermagem

“Há esperança para o ferido, como arvore cortada, marcada pela dor... Há esperança pra você!

Ao cheiro das águas brotará, como planta nova, florescerá, seus ramos se renovarão, não

cessarão os seus frutos e viverá...”

(Ana Paula Valadão)

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9 ANÁLISE MAQUÍNICA: UM AGENCIAMENTO ENTRE O PENSAMENTO DO GRUPO E A CLÍNICA DE ENFERMAGEM

Durante um dos encontros que tivemos, um dos co-pesquisadores me

fez duas perguntas: para que vai servir essa pesquisa que nós estamos fazendo? E

por que você resolveu saber de nós essas coisas? Essas perguntas ficaram em

minha mente e, a partir de então, incorporei-as como minhas. Uma das formas de

responder a tais perguntas foi trazer uma análise dos efeitos maquínicos da

pesquisa sociopoética.

Antes de nos aventurarmos nessa nova proposta de análise,

precisamos antes esclarecer porque demos o nome de maquínica. Essa palavra,

conforme proposto por Guatarri e Rolnik (1986), origina-se da idéia de máquinas,

considerando suas evoluções históricas, comparadas ao das espécies vivas. Elas se

relacionam, engendrando-se umas nas outras, selecionam-se, eliminam-se, fazendo

surgir novas possibilidades. Além disso, essas máquinas nunca funcionam

isoladamente, sempre há uma outra máquina para formar uma agregação ou um

agenciamento. Tratam de maquínico aquilo que cria novas linhas ou perspectivas,

idéias talvez impensadas, um desejo produtivo, criativo e agenciador de elementos,

excluindo, portanto, a idéia de mecanicismo ou maquinismo, resquícios de um

racionalismo que faz apologia ao mecânico em detrimento do humano.

Mesmo sabendo que o efeito maquínico não é o foco principal da

pesquisa sociopoética, não poderíamos negar ou esquecer que este está sempre

presente, como ressonância do saber produzido. Sendo, portanto, imprescindível um

olhar mesmo que sucinto desse aspecto da pesquisa, trazendo para nós um desafio

ao propor uma outra análise.

Gauthier (2005) revela que o efeito maquínico surge da própria produção

do conhecimento do grupo-pesquisador, ao afirmar que as expressões trazidas por

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cada co-pesquisador modificam os corpos e as paixões para produzirem novas

expressões. Para ele, a sociopoética torna-se uma agência clínica e espiritual ou,

ainda, uma micropolítica do desejo, com efeitos potentes de transformação da

realidade: primeiramente do grupo e, por conseqüência, dos mundos onde andam

essas pessoas.

O efeito maquínico que vamos nos deter nessa análise é o que Gauthier

(2005) descreve como relacionado com as ressonâncias que os mesmos produzem

no mundo no qual estão inseridos os envolvidos. Como ressalta Gauthier (2005),

após sociopoetizar, os corpos são transformados e induzem transformações nos

seus ambientes. Cria-se um novo corpo, coletivo, desterritorializado, que, por certo,

transmuta-se continuamente e tele-transporta-se para espaços de contextos de

tempo, onde estão também nossas reservas de significados e onde possivelmente

afeta todos os que estiverem no mesmo círculo de efeito.

Os confetos produzidos pelo grupo-pesquisador composto por pacientes

com câncer constituem peças importantes para aqueles que lhes prestam cuidados.

Não nos furtaríamos de tecer alguns comentários a este respeito, visto que

analisarmos os confetos na perspectiva dos cuidadores podem, sem dúvida,

proporcionar um novo olhar para a pessoa com câncer e para seus cuidados.

Os efeitos maquínicos ressoam em todos os que estão em contato com o

grupo-pesquisador ou com a pesquisa quando esta for socializada. Especificamente,

para os cuidadores e mais precisamente, para os enfermeiros e profissionais com

contato direto e contínuo, com os pacientes, muitas lições podem ser extraídas.

Os confetos produzidos pelo grupo-pesquisador nos ensinam muito.

Apesar da produção ser específica desse grupo pesquisador e, portanto, não

generalizável, com certeza os efeitos maquínicos nos atingem ao ponto de

traçarmos questões importantes para o cuidado clínico de enfermagem.

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Ao buscarmos nos co-pesquisadores seus conceitos sobre o sentido da

vida como forma de expressão de espiritualidade, vemos que esta pessoa

acometida pelo câncer, ao encontrar e vivenciar um sentido na vida, passa pelo

adoecimento e enfrenta inclusive a possibilidade de morte.

Um fator presente nos confetos Sentido Sertão, Sentido Serra, Sentido Túnel/Luz, Sentido Deus, Sentido Lagoa, e relevante para os cuidados de

enfermagem, é a “Esperança”, não necessariamente na cura da doença em si, mas

na espera de algo melhor, no trabalho que torna útil o homem, na fé e na entrega

total a Deus e na possibilidade de acrescentar vida aos dias. Destruir tal esperança

seria algo desastroso, trazendo, sem dúvida mais sofrimento.

Conforme Sá e Pereira (2007), durante a história da enfermagem, a

espiritualidade é, na maioria das vezes, associada ao aspecto religioso. Os confetos

trazem uma contribuição às formas de ver a espiritualidade pela enfermagem, no

que tange ao sentido de a vida ser esperança em algo, motivo e força de superação.

O enfermeiro deve incentivar em seus pacientes a esperança em uma vida plena de

sentido, mesmo ao deparar-se com o sofrimento, a culpa e a morte iminente. Há

sempre possibilidades de se retomar algo, pedir e dar perdão, revisitar sua história

de vida e suas experiências, extrair da situação um sentido, construir alguma coisa

por menor que seja e, por fim, esperar uma outra vida, quem sabe!

Os confetos apresentados impactam a enfermagem ao mostrar que o

sentido da vida significa fonte de sobrevivência, força que mantem alguém firme

para travar a luta pela vida, energia motivadora que faz o homem buscar

incessantemente uma coisa que faça a vida valer a pena ou achar em Deus e na fé

a última possibilidade de viver a vida com sentido.

Os confetos Sentido Ponte, Sentido Deus, Sentido Mar de Rosas, Sentido Fogão nos fazem refletir em como propiciar o encontro dos pacientes com

seus sentidos de vida. Vemos nitidamente que o sofrimento vivido anteriormente, as

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realizações durante a vida, as relações afetivas e as crenças ou a fé são fontes onde

podem ser extraídos sentidos para a vida.

Vemos que a produção do grupo-pesquisador encontra paralelo na

enfermagem no que diz respeito às crenças, a fé em Deus. Mas vai além quando

propõe um “Sentido Mar de Rosas” encontrado nas situações inevitáveis de

sofrimento. Tal concepção possibilita que o indivíduo saia de uma condição passiva

e vitimizada para uma condição ativa e uma postura libertária frente à doença e aos

sofrimentos da vida. Esse confeto mostra quão importante é fazer as pessoas se

posicionarem como sujeitos, mostrando o que desejam e o que pensam sobre a

vida. Assim fazendo, não nos deixam outra alternativa, a não ser cuidar da forma

como querem ser cuidados.

Uma outra contribuição é o confeto “Sentido Ponte” que mostra que o

sentido da vida pode ser encontrado nas relações que se estabelecem durante a

vida. Apesar de alguns estudos sobre espiritualidade na enfermagem fazerem essa

associação, fazem-no atrelado principalmente aos aspectos psicossociais (DANIEL,

1989; GUIMARÃES,1984). Esse confeto abre um leque de possibilidades de

cuidados espirituais de enfermagem que precisa ser construído e discutido junto

com o paciente.

A história de vida da pessoa cuidada constitui uma das possíveis chaves

para a descoberta do sentido da vida. Vasculhando seu itinerário espiritual e sua

trajetória, podem ser achados fatos importantes que trazem sentido as experiências

vividas no hoje, como constatamos no “Sentido Fogão”. Percebemos que esse

confeto traz algo original para a enfermagem, pois vincula as realizações e o

trabalho como fontes de sentido para a vida e acrescenta mais um aspecto para ser

levado em consideração na avaliação das necessidades espirituais dos pacientes,

aspecto não visto nas produções de enfermagem.

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Muitas vezes a pessoa doente não consegue viver plenamente, pois está

limitada em suas possibilidades, devido ao comprometimento da sua estrutura

psicofísica. O enfermeiro oportunamente precisa ajudá-lo a compreender todas as

oportunidades, especialmente as subjacentes, que só se mostram no decorrer da

relação terapêutica e assim abrem-se caminhos e novas possibilidades de escolhas,

caracterizando a liberdade e a responsabilidade humana, advindas da dimensão

espiritual como observamos claramente nos confetos produzidos.

Tanto Travelbee (1979), como Fish e Shelly (1988), referem-se, que o

enfermeiro só poderá propiciar ou favorecer o encontro do sentido da vida de seus

pacientes, através do estabelecimento e desenvolvimento de uma relação

terapêutica efetiva, não só individual, mas também coletiva, exigindo do enfermeiro

conhecimento de crenças, valores e atitudes de si próprio e das pessoas

relacionadas. Os confetos produzidos ampliam e acrescentam o conhecimento já

estabelecido.

O grupo-pesquisado teve a oportunidade de pensar e de ser estimulado a

encontrar seu sentido, quando criou conceitos sobre o sentido da vida. Gauthier

(2005) prevê tal possibilidade afirmando que, ao juntar facilitador ou pesquisador

oficial com co-pesquisadores na produção de confetos práticos, e por serem

geralmente super-contextualizados, afetam diretamente os contextos de inserção

das práticas sociais, proporcionando um agenciamento maquínico de corpos.

À medida que começaram a produzir conceitos para o sentido da vida, não

o fizeram de forma apenas cognitiva ou intelectual, mas o fizeram com sentimento,

com verdade e de forma vivencial. O grupo-pesquisador foi atiçado pelo próprio

movimento dos co-pesquisadores, diante de uma situação adversa, a refletir e a

traçar um itinerário espiritual, como Gauthier (2005) chamou esse efeito de “terapia

profana”, por não ser intencional, mas, presente e pulsante.

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Conceituar o sentido da vida como algo ligado à força, à sobrevivência, às

relações de amor, a Deus, ao trabalho, às experiências de sofrimento e fonte de

prazer, possibilitou uma aproximação do sentido de cada co-pesquisador. Dar-se aí

um outro efeito maquínico, desta vez, individual/grupal da produção de

conhecimento da pesquisa sociopoética.

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Possíveis considerações para um novo começar

“Eu perdi o meu medo, o meu medo da chuva. Pois a chuva voltando pra terra traz coisas do

ar. Aprendi o segredo, o segredo, o segredo da vida. Vendo as pedras que choram sozinhas no

mesmo lugar.”

(Raul Seixas)

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10 POSSÍVEIS CONSIDERAÇÕES PARA UM NOVO COMEÇAR

Chegamos a um momento importante da pesquisa, momento de rever

intenções, analisar implicações e avaliar se o objetivo proposto foi cumprido. Nosso

objetivo era produzir conceitos sobre o sentido da vida, aspecto revelador da

dimensão espiritual junto do grupo-pesquisador formado por pessoas com câncer.

Ao fazer um paralelo entre nossa proposta e o caminho feito pelo grupo-

pesquisador, percebemos que, com a sociopoética, atingimos de forma bela e

natural nosso objetivo demonstrado nos diversos confetos criados. A partir dos

confetos, foi possível encontrar pontos relevantes do sentido da vida para aqueles

que enfrentam o câncer e a maneira que esse sentido pode contribuir com o bem-

estar dessas pessoas.

Destacamos que os confetos produzidos foram tecidos com experiências

práticas, e talhados no cotidiano de quem viveu e tem muito para contar, mesmo que

muitas vezes desvalorizados no seu modo simples de ser. Cada co-pesquisador e,

mais ainda, o grupo mostraram que são capazes de produzir e filosofar. Sua filosofia

não deixa a desejar em relação às filosofias acadêmicas. Ela é tão valiosa quanto e,

portanto, merecedora de crédito de todos aqueles que querem entrar em contato

com seu mundo de coisas.

Inicialmente o grupo-pesquisador me trouxe certo receio, perguntava-me:

será que entenderiam a proposta? Permaneceriam em todas as atividades?

Mobilizariam muitos conteúdos dolorosos ao ponto de desistirem? As respostas

podemos ver nos confetos produzidos. Esses mostram que o sentido da vida é algo

propiciador de um enfrentamento da doença, mesmo em fase de sofrimento, da dor

e da possível morte. Ao serem mobilizados a pensar, repensar e elaborar conceitos

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sobre o sentido da vida, o grupo apresentou-se otimista e consciente da realidade

vivida.

Consideramos que os confetos gerais Sentido Serra, Sentido Sertão,

Sentido Lagoa, Sentido Túnel/Luz traduzem um sentido de força ao deparar-se

com a doença. Nisso, a reza, um lugar para viver, a saúde ou mesmo a

sobrevivência também trazem um sentido de espera e esperança àquilo que pode

ser modificado. O sentido está na força de não se dar por vencido, de buscar algo

que faça continuar na luta, buscando uma luz no fim do túnel, a motivação

necessária para não sucumbir ao desespero, ao sofrimento de toda espécie e ao

medo da morte.

Há os confetos que chamamos específicos. São eles: criativos, vivenciais,

atitudinais e o último-sentido. O confeto Sentido Fogão está no grupo dos valores

criativos, representado pelo trabalho do homem, suas realizações, seu papel social,

sua sobrevivência. Esse conceito pode responder as indagações que, vez por outra

fazemos: “o que eu fiz da minha vida?” Ou, ainda, “qual a minha contribuição para a

vida?” Encontrar tais respostas pode tornar a vida plena de sentido.

Os valores vivenciais são representados pelo Sentido Ponte. Nele

encontramos o ato co-existencial pelo qual se vive e se morre, representação do

amor, concretizados no encontro com a natureza, com o belo, com a cultura, com as

virtudes e com as pessoas.

Os valores atitudinais são representados pelo Sentido Mar de Rosas.

Este confeto traz a perspectiva de traduzir o sentido da vida, as lições tiradas do

sofrimento inevitável. A partir de experiências difíceis, é possível extrair sentido que

torna a vida mais fácil e proporciona prazer em viver, mesmo enfrentando o câncer.

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O último-sentido foi representado pelo Sentido Deus. Nele encontramos

não só a figura de Deus, mas a fé, a última esperança que não me deixa desistir.

Por piores que sejam as circunstâncias, é um ato corajoso que me faz forte, mesmo

sendo fraco.

Ao contemplarmos a riqueza produzida pelo grupo-pesquisador, não

poderíamos nos esquecer de mencionar que todo esse processo nem sempre

aconteceu de forma tranqüila. Além da possibilidade de os co-pesquisadores não

permanecerem no grupo pela breve estadia na casa de apoio, dependendo do

tratamento e acompanhamento realizado no hospital, os co-pesquisadores

achavam-se incapazes de realizar as oficinas. Muitos relataram que nunca haviam

tido a oportunidade de pegar em um pincel, de desenhar ou de pintar qualquer coisa

e que não tinham nada de interessante para compartilhar.

À medida que o grupo foi se integrando e valorizando tudo o que era

produzido, os encontros tornaram-se mais agradáveis e descontraídos. Foram se

descobrindo importantes, começaram a analisar que suas histórias de vida eram

ricas de significados e o que haviam vivido servia de experiência para superar as

dificuldades que surgiam. Isso fica bem claro nos depoimentos espontâneos do

grupo, no final da última oficina, como vemos nas transcrições:

Eu gostei, no começo da pesquisa eu fiquei meio assim...você explicou, eu me senti... nunca peguei num lápis pra desenhar nada, né? Aí era pra eu desenhar minha vida, e eu fiquei pensando, pensando e deu certo o que eu fiz, né? Porque desde criança eu tinha vontade de vencer, dei conta do meu problema na perna, porque eu queria mostrar que não era peso pra ninguém e incomodo pra mim. Mesmo sofrendo eu iria enfrentar (CP2).

Eu achei ótimo nós sermos convidados, porque ninguém pensava nisso, foi três reuniões, né? Foi muito bom, eu nunca tinha pego num pincel pra desenhar nada, né? Eu achei importante, porque eu aprendi, a gente tem que dizer o que a gente quer. Quero me

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desculpar se não participei bem, é que nós não somos sabido, não tem curso. Eu me achei muito importante, porque o que eu sabia era cozinhar e, nunca tinha pensado nisso. Eu aprendi a relaxar, respirar e cheirar a fulo (CP1).

O que eu achei importante foi conhecer vocês, a gente vive junto e não se conhecia (CP6).

Eu fui a primeira a dar o nome pra pesquisa. Pra mim foi muito bom, quando eu chegar em casa vou ensinar aos meus filhos tudo o que eu aprendi aqui. Eu aprendi a ser mais forte e tocar a vida pra frente. Se eu não tivesse com vocês, eu estaria num canto chorando. Até me distrai com essas reuniões, porque no primeiro dia do encontro, tava só chorando, era Maria Chorona (CP3).

Pra mim, eu gostei muito, fiquei importante de participar, fiquei mais alegre do que eu era, com tanto problema (CP4).

Foi ótimo participar, fizemos um grupo, a gente discutiu o que a gente achava. Pelo menos o que a gente achava que era importante dizer, né? Pra mim foi ótimo (CP7).

Para mim, o percurso também não foi tranqüilo: primeiro, porque, apesar

da pesquisa sociopoética ser fascinante e estimulante, estava acostumado a

pesquisar com métodos tradicionais. Não é fácil deixar as formas práticas, indo

como par ao encontro do outro, percebendo-o rico em saberes e passarmos juntos a

produzir conhecimento.

Confesso que cada passo desta pesquisa foi para mim um desafio,

começando pela formação do grupo-pesquisador, a realização das oficinas e,

especialmente, as análises. Nas análises é onde se mostra toda a beleza e a

riqueza da sociopoética. Uma a uma, foram batalhas vencidas. Mesmo com grande

dificuldade, esse processo não deixou de ser prazeroso.

Nesse ínterim, o assunto “Sentido da Vida” foi ganhando grandes

proporções, não só porque estava teoricamente mergulhado na temática, mas por

mobilizar conteúdos que surgiam e outros que não havia me dado conta.

Questionamentos vieram à tona e me fizeram pensar e repensar crenças, atitudes e

posturas.

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Não poderia deixar de relatar que minha orientadora e amiga Lia Carneiro

Silveira me acompanha e me orienta desde a minha primeira especialização e foi ela

quem me apresentou e me introduziu na sociopoética, tendo em todos os momentos

me incentivado, ajudado, corrigido e produzido comigo. Tudo o que era produzido

era valorizado por ela, mesmo que muitas vezes não concordasse com o que eu

havia escrito por termos concepções diferentes sobre espiritualidade, sentia seu

apoio e respeito. Sua paciência é também algo a ser destacado, sempre soube

entender que, além de realizar a pesquisa, ainda tinha que trabalhar e administrar

outras atividades acadêmicas. Nossas orientações sempre foram rápidas, mas

profícuas.

É necessário ressaltar a importância que esse estudo tem para a

Enfermagem, utilizando a sociopoética como caminho metodológico. Primeiramente,

porque nos ensina que não somos os detentores do saber. Percebemos que há

outros saberes tão ricos e profundos quanto aqueles que aprendemos na academia

e estes provem das pessoas que menos consideramos como ativas no processo de

cuidar: o “paciente”.

Este estudo também nos mostra a grande oportunidade de favorecer o

cuidado naquilo que chamamos de efeito maquínico, através do agenciamento entre

os confetos trazidos pelo grupo e os cuidados de Enfermagem. Podemos perceber

que, ao analisarmos esse agenciamento, os confetos trouxeram contribuições

importantes para a enfermagem e para a sua assistência espiritual. Não temos a

pretensão de encarar ou apresentar esses confetos como a última verdade, não,

foram apenas construções possíveis para o momento vivido. Esperamos que tudo o

que foi apresentado aqui possa agenciar novas possibilidades e mobilizar novas

pesquisas sobre o assunto.

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APÊNDICES

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APÊNDICE - I

PRIMEIRA OFICINA DE PRODUÇÃO: OS LUGARES GEOMÍTICOS (12/09/2007)

F1-Nosso objetivo agora é fala um pouquinho sobre o sentido da vida, como eu falei pra vocês a vida está cheia de dificuldade, ainda mais vivenciando a doença, o sofrimento, as dificuldades, isso nos traz uma séria de coisas que passam pela cabeça da gente, e a gente vai vendo um filme como o trem, desde quando éramos criancinhas, com os pais, com os amigos, depois com a namorada, o namorado, o casamento, o trabalho, os filhos. E a aí podemos fazer umas perguntas: A vida vale a pena? Há algum sentido na vida? Apesar de toda dificuldade, o que nos faz ficar vivos? Aquilo que vocês representaram no papel, a minha serra, esse sentido pode ser minha serra, minha lagoa, meu sertão, meu túnel, a minha ponte, tudo representa meu sentido. Vocês falam um pouquinho do desenho, e como esse desenho representa o sentido da vida de vocês. O que foi o desenho que vocês fizeram que diz alguma coisa sobre vocês e sobre o sentido? O Sr. quer começar?

CP1-O que eu fiz do sentido da minha vida, o túnel com as luzes, porque é claro, né? Que eu gosto muito de claridade, só isso mesmo.

F1-Certo, esse túnel que Sr. desenhou, o que tem a ver com o sentido da sua vida? O que o Sr. pensa sobre isso? Tem alguma relação com seus problemas? Sua doença? O que representa o escuro, as luzes e o túnel todo, que o Sr. desenhou?

CP1-Ele representa pra minha vida porque, é claro por causa da minha saúde né, porque eu gosto muito de claridade. E aí eu representei isso.

F1-E o que esse túnel tem a ver com o sentido da sua vida? Deixa eu lhe dizer o seguinte, eu estou vivo e quero lutar, quero ser feliz, quero viver bem ou não, o que tem na sua vida que Sr. procura como sentido, que foi mostrado no seu desenho?

CP1-Minha saúde, eu procuro viver, eu gosto muito de viver né, a gente é pobre mas a vida da gente é muito importante, eu quero viver muito, por isso tô fazendo o tratamento porque eu gosto muito de viver.

F1-O Sr. disse que gosta de viver, o que tem na sua vida que o faz gostar tanto de viver?

CP1-Porque é bom viver né? Viver com as pessoas, conversar, com a família da gente, e mesmo que não seja a família da gente, a esposa , os filhos.tudo é bom né pra gente viver.

F1-Há algo na sua vida que o Sr. diga viver vale a pena?

CP1-Vale sim, porque eu gosto muito da minha família, dos meus amigos, e bom agente viver por causa disso né, é bom a gente viver pra ter comunicação com o pessoal, com outras coisas também né? È isso.

F1-Quem gostaria de mostrar agora seu desenho?

CP2-Eu desenhei uma lagoa, um açude.

F1-O que tem a ver essa lagoa ou o açude com sentido da sua vida?

CP2-O sentido da lagoa é pro caba pescar, quando tiver vontade, pegar peixe, comer o peixe.

F1-Mas o que tem a ver a lagoa com o sentido da vida do Sr.? Há algo na vida que vale a pena, que o Sr. desenhou?

CP2-Pegar o peixe pra comer, sem comer ninguém vive né? É o sentido de sobreviver, trabalhando.

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F1-Há algo na sua vida que faz sentido que o Sr. tentou desenhar?

CP2-É importante.Deus consente eu viver, se não consentisse já tinha me tirado a muito tempo.Tem sentido sim, se for pra mim mudar, eu mudo, me tira bem facinho, me tira bem ligeiro.

F1-Alguém gostaria de mostrar seu desenho?

CP3-O que me dá força pra continuar a viver são meus filhos, eu tenho um casal de filhos, pra mim é tudo de mais importante, eles dão muita força pra continuar. Esse é o maior objetivo ficar boa pra cuidar dos meus filhos.

F1-E o desenho que a Sra. pintou o que tem a ver com isso que você acabou de me dizer?

CP3-A serra representa a força, exatamente a força que faz eu cuidar dos meus filhos, um casal de filhos que eu tenho e minha mãe. Um caminho que me dá a maior força pra vencer tudo isso é minha mãe e meus dois filhos. Essa serra é exatamente isso. Essa serra sou eu de pé pra ter força pra continuar tudo isso.

F1-Quem mais quer falar? A Sra. quer falar?

CP4-Eu gosto muito de árvore, de planta, de flores. Eu quero muito viver, eu gosto muito da minha família, gosto e quero muito bem. E também, em primeiro lugar Jesus, a gente ama primeiro que tudo, depois segundo vem tudo.

F1-E essas plantas representam o quê?

CP4-Essas plantas são as frutas da serra.

F1-E o sentido da vida da Sra. como ficou pintado, como já foi comentado aqui, que relação tem a pintura com a vida da Sra.?

CP4-Eu penso ser... através de muitos problemas, muitas dificuldades que eu passei e estou passando, eu tento viver feliz. Tem sentido de ser feliz, com minha família que eu amo muito, né? Será que tá certo?

F1-É isso mesmo, é a Sra. que sabe o seu sentido. Quem gostaria de continua? A Sra. quer falar sobre sua pintura?

CP5-Não quero falar não. Gostaria de falar não.

F1-Não, é só mostrar o desenho e falar o que tem a ver com o sentido da sua vida.

CP5-A minha vida tá representada aqui mesmo. Eu gosto de estar sempre junto das pessoas, só olhar mesmo, conversar mesmo. Mas a respeito de serra, de coisa, tô muito ligada não.

F1-Está certo, mas tinha aqueles lugares que a gente colocou, a Sra. escolheu que lugar?

CP5-Eu? Eu acho que eu desenhei uma ponte, eu acho que foi uma ponte, que a gente precisa estar apoiada em alguém, principalmente eu que não posso andar sozinha, eu tenho que ter uma ponte, onde eu tô eu sempre ando com pessoas que eu me comunico, então eu me acho assim, o seguinte, quero andar seguro pra não cair.

F1-Então a ponte que a Sra. falou representa segurança, é isso?

CP5-Justamente, é. Procuro logo, desde criança que eu peguei essa paralisia. Sempre, de vez em quanto eu caía, de vez em quanto eu caía, aí meu irmão mais velho disse pra mim: minha irmã quando você for andar, você levante bem os pés como soldado, pra você não caí, e no que você vai topando você vai caindo. Aí ficou isso na minha cabeça. Aí eu preciso saber onde eu tô pisando.

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F1-E a respeito da vida, dos problemas, da doença do sentido da vida?

CP5 -Eu tô sendo uma doente feliz, eu encontrei vocês ó, meus amigos aí tudinho né, e essa casa maravilhosa ali, então eu tô tirando de letra, eu não tô nem pensando em doença. Vou levando. Você acredita que eu tô me sentido melhor de que quando eu estava boa, acredita? Eu não tô sofrendo. Eu não me acho doente, e é porque eu tô morrendo de dor nas minhas costas, tá latejando, mas não me acho doente. Se eu puder andar eu tô feliz, eu sou assim, eu acho que é por isso que eu ainda não morri, eu ainda me alimento, pior os que vivem num fundo de uma rede, ou num fundo de uma cama, que não podem andar, porque eu estava doente e não sabia, três anos que eu tinha esse caroço, um nódulo no seio, mas não sabia, levava uma vida normal, sentia uma dor nas costa, uma dor aqui outra açula, inchava meu braço, mas não sabia o que era, não ia pra médico. Aí minha filha foi trabalhar, fez um curso de enfermagem, foi trabalhar num posto de saúde, ela falou pro médico que eu sentia essa dor, ele passou pra mim fazer uma mamografia e aí eu descobri. Eu não tô melhor...tô nas mãos dos médicos, nas mãos de Deus, tô fazendo os exames e o que for descobrindo eu tenho fé que vou tirando, fazendo e agradecendo a Deus por tá viva pronto, nunca quero me preocupar não.

F1-E agora quem vai continuar? A Sra.? O que representa seu desenho?

CP6-O desenho representa o túnel e a cacimba, e a linha de pau que eu fiz é pra me segurar e aqui é a luzinha do túnel, mode eu passei e cheguei onde eu cheguei... (choro) vim sozinha, passei por dentro desse túnel e cheguei e tô aqui e vou vencer.

F1-E o sentido de vida representado nesse túnel?

CP6-Tem sentido, meus filhos. Primeiramente Deus, segundo meu marido e meus filhos, eu tenho filhos criança em casa que depende de mim, de ficar boa. Eu tô aqui, mas eu não sei nem o que eles estão passando em casa, eu sozinha, sem ninguém, só Deus mesmo e a casa de apoio que me apoiou. E agradeço muito a Deus e a vocês que estão me ajudando.

F1-E o desenho?

CP6-Esse desenho representa minha vida, porque desde 2004 que eu luto, por esse tratamento e eu não consegui, e agora eu fiz, o túnel e a luzinha, que eu disse né? Pra passar pra lá e vencer.

F2-Isso aqui é o quê?

CP6-Isso aqui é a luzinha e isso aqui é o túnel e aqui e o galho de pau pra me segurar, pra Deus me dá forças pra eu me segurar e não desistir.

CP5-Eu fiquei assim também, eu não estava com muita confiança, as pessoas chegavam e aí como vai? Eu chorava, as vezes eu tava sentindo dor, mas agora graças a Deus né? Venci, e aí eu espero que ela vença também né? Pra cantar o hino da vitória.

F1-E agora quem gostaria de falar? A Sra.? A Sr. fez o sertão o que isso tem a ver com o sentido da vida?

CP7-Eu fiz esse sertão porque eu não tenho nem um canto pra eu morar, só moro nas casas dos outros, aí eu escolhi logo um sertão por aí no meio do mundo, pelo menos é um canto pra eu morar né?

F2-Como a Sra. vê o sentido da vida dentro desse sertão?

CP7-Eu espero achar um dia, um lugar que nem um sertão, pra morar lá, né? Hora meu sentido é um lugar pra morar, pode ser num sertão, pode ser em qualquer lugar pra eu morar. Eu estou esperando da minha vida esse lugar. Tenho tido força em Deus, porque quando eu comecei a vir pra Casa Vida, eu pedia esmola, aí sozinha, sem parente, sem ninguém, me achei só com estranhos aí, aí fiquei num horror de tempo aí, agora tá com seis meses que eu fiz a cirurgia, graça a Deus se fosse por esse ponto me considerava boa. Por isso eu desenhei isso aqui, um lugar, agora não sei onde que no mundo, onde eu possa construir um canto pra morar e viver. Pois bem, né?

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F1-Agora a Sra. mostre seu desenho e fale sobre o sentido da vida.

CP8-Minha vó mora numa serra, ela planta muita flor, e a minha mãe é muito religiosa manda eu pegar flor pra fazer reza lá em casa. E aí eu retratei isso aqui.

F1-E a relação que a Sra. faz de seu desenho com o sentido?

CP8-Só Deus mesmo que dá força e coragem a gente, por que no início dessa doença eu chorava muito, peguei um trauma, aí foi passando e no fim nem liguei mais, quando fiz um exame tava boa e fui desenganada. Agora é continuar o tratamento e ir embora, ir pra casa, e viajar e pronto, que meu menino teve que ir embora, e tiraram meu menino de mim mode eu poder me cuidar desde abril, tô bem graças a Deus. Depois da doença mexi com tudo na minha vida, quero outra vida, até meu marido eu deixei, quando eu vivia com ele eu vivia pior, além de estar doente ele não deixava me cuidar, dizia que eu estava inventando, quando eu fui procurar ajuda, já estava desenganada, se for pra me dá é Deus, minha mãe reza muito, faz promessa, eu acredito quem me curou foi São Francisco, foi muita promessa que a mãe fez, rezava terço lá em casa, graças a Deus, ontem eu fiz um exame, a Dra. olhou, ficou maravilhada. Graças a Deus tô feliz.

F1-Agora vamos pegar as pinturas e vamos fazer um painel, como nós gostaríamos que fosse com todos os panos juntos, pra gente finalizar. Como vocês querem a disposição dos panos aqui no chão? È assim que vocês escolheram? Observem que cada um encontrou na forma de desenhar a expressão do sentido da vida.

CP5-Tem muita coisa em branco ainda.

F1-Realmente, tem muita coisa na vida que a gente pode ainda colocar, mas é no decorrer da vida que a gente vai pintando.

Co-pesq

Vereda Cacimba Ponte Túnel Sertão Açude Serra

CP8 É difícil, muitas vezes cheia de buracos, sem passagem.

Eu busco água até encontrar, sem desistir.

Bem feita, bonita, forte, e os carros passam por ela.

A saída da escuridão, do perigo, da incerteza.

No sertão a gente luta com o que tem, não desisti, não

abandona

Muito peixe e água sacia a sede, mantem a vida.

È verde, com mata cheia de frutas e muito forte.

CP6 Sem espinhos, não é difícil andar, tem asfalto, já foi difícil, mas hoje é fácil, muita força pra continuar andando, mas estou conseguindo.

Tentar sempre pegar água, ela é funda, mas pego a corda e pego a água.

Forte pra lutar, conseguir, prosseguir e vencer.

É escuro, mas existe a luz, a saída é a luz que me leva pra alguma coisa melhor.

Lugar de luta pra sobreviver, tem nesse lugar varias coisas pra gente lutar e vencer.

Grande, com muita água, é fonte de sobrevivência, de conseguir se manter.

Alta, com muitas frutas, ventilada, é um meio de vencer as barreiras, sempre subir.

CP3 Cheia de altos e baixos, é longa, caminho difícil, mas com paciência os altos tornam-se

Seria uma cacimba cheia de água limpa. É a vontade de viver, de vencer.

Seria uma ponte forte e muito firme pra agüentar.

Precisa ser claro e iluminado

Sendo um sertão teria sua dificuldade e força.

Cheio de peixe, muita fartura.

È alta e verde, cheia de muitas frutas e bem ventilada.

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baixos.

CP5 Minha vereda é sempre limpa, não deixo nascer espinhos.

Uma reforma seria preciso pra a água não ficar suja, talvez alguns anéis.

Uma ponte bem alicerçada, bem forte, onde passam carros e pessoas, bem larga.

Me acho ainda no túnel, lutando pra vencer, confio que vou sair pro outro lado.

Meu sertão é difícil, falta água, é uma luta, poupar água é como vencer.

Meu açude é muito fundo, abriga muitos peixes, lugar de muita coisa.

Essa é muito distante, sozinha não posso subir, preciso de ajuda .

CP4 Essa é difícil, cheia de buracos e barreiras altas e baixas, cheia de desafios. Porque a vida da gente é assim mesmo, já passei por muitos problemas e agora de saúde. Caminho estreito.

Tem água pouca, cacimba funda e estreita, como as dificuldades.

Ela é comprida e difícil de passar.

Seria longo, escuro. Com muito esforço e sacrifício enfrento o túnel.

O sertão está muito feio, seco e triste.

È diferente, esse seria cheio de água, sinto mais alegria, mais fartura.

A serra seria cheia de frutas, muita sombra, muito ventilada, mas pra isso, precisa muito trabalho.

CP7 Difícil, caminho com muitos problemas.

Seria pra buscar água, pra sustentar.

Serve pra eu passar por cima.

Um túnel escuro.

Um sertão feliz, tranqüilo, com água. Uma casa, muitos animais e bichos.

Um açude seria bom morar perto dele, eu seria feliz. A água eu usaria pra tudo.

Bem verde e alta, com muita coisa nela.

CP2 Caminho limpo, sem problema.

Eu iria puxar água, usar um motor e conseguir.

Pra mim e pro que der e vier.

Tem água e é escuro.

A minha vida tá melhor que o sertão agora, né?

È uma lagoa bem grande, cheia de peixe, nesta lagoa tem muita história.

Como uma serra é uma tranqüilidade, sem preocupação, o que penso é como sair daqui.

CP1 Estreita, cheia de curva, com pedras, rampas e espinhos.

É muito funda, onde eu pego água pra viver.

Essa é comprida, larga, cheia de colunas pra sustentar o peso.

Bem feito, cheio de bico de luz, sai debaixo de uma serra pro outro lado.

Muito seco, falta água, cheio de altos e baixos.

É grande tem muita água, a parede é larga, comprida e estreita em cima.

Ela é alta, bem grande, muito verde.

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APÊNDICE – II

SEGUNDA OFICINA DE PRODUÇÃO: O FILME DA MINHA VIDA (13/09/2007)

F-No relaxamento nos vimos à vida, desde a infância, a adolescência e a vida adulta, pudemos ver o que construímos, aquilo que vivemos, aquilo que experimentamos, todas essas coisas estão escritas na história de vida da gente, algumas coisas foram bem marcantes na vida da gente, que marcou e podemos dizer eu sou quem sou hoje porque eu vivi isso. Temos aqui papel e canetinhas pra desenhar esses momentos marcantes e podemos contar um pouco a nossa história, como um filme em várias cenas.

CP1- Eu nunca desenhei nada. Eu não sei.

F- Não precisa saber desenhar, basta pensar na vida e representar no papel esse momento, mesmo que isso não diga nada pra ninguém. É você que vai dizer.

Momento de produção...

F- Quem gostaria de começar a contar sua história, e mostrar como foi o filme da vida de vocês? Quem gostaria de começar?

CP1- É pra contar desde que a gente era criança?

F-Não, o senhor fez esse desenho, o que esse desenho conta a sua história, que fez sentido?

CP1- Pra mim é um sentido grande, porque é a profissão que eu tenho, né? Trabalhei de cozinha, eu fazia muitos pedidos e graças a Deus todo mundo gostava, os pedidos podiam ser, lagosta, camarão, filé mignone, ou outro peixe, tem muitos tipos de comida, né? Cada dia saía as coisas e vinha outros pedidos. A minha vida foi isso, meu trabalho, que eu aprendi foi isso, até o dia que eu adoeci, mas ainda hoje se eu me meter a fazer, cozinho do mesmo jeito.

F-O senhor desenhou um fogão como fato marcante na sua vida, e se não houve esse fogão, a culinária como seria sua vida? O senhor já parou pra pensar?

CP1- Ora se não fizesse isso, cozinhando na cozinha, eu trabalharia na roça, né? Minha profissão era trabalhar na roça, mas como eu saí de casa, aí aprendi a trabalhar no Rio de Janeiro, aí minha profissão é essa. Eu sou grato porque ganhava meu dinheiro, me aposentei com quatro salários nesse trabalho de cozinha né? Trabalhei de cozinheiro, de chefe de cozinha, aqui em Fortaleza dez anos, né? Tudo que eu aprendi fazer, sei fazer muitas coisas, não faço aqui porque não é permitido a gente fazer as coisas, porque a gente é paciente, mas eu tenho prazer em trabalhar em cozinha, muitas coisas eu sei fazer.

F- O senhor olha e vê que isso marcou muito sua vida?

CP1- Marcou, marcou porque o que eu aprendi, na minha juventude foi o que eu aprendi a trabalhar, desde rapaz novo que eu fui embora pro Rio, passei lá quinze anos, foi lá que comecei a trabalhar em cozinha, comecei lavando prato, e foi aprendendo, aprendendo, até que aprendi, né? Muitos tipos de macarrão, aprendi macarrão a bolonhesa não sei se vocês conhecem, muito gosto, foi lá que eu aprendi a fazer muitos tipos de massa, e esses tipos de comida, né? Marcou minha vida porque eu aprendi, né? Sustentei minha família e as coisas que eu tenho hoje em dia ainda, foi comprado com meu trabalho com esse negócio de cozinha, né? Algum móvel que eu não podia dar, né? Eu tinha as férias, o décimo terceiro, eu comprava e dava de presente a mulher, a gente gosta de fazer uma surprezinha, né? Eu usava minhas férias, décimo terceiro, né? É isso. Esse fugão representa o sustento da minha família, o fugão, o que eu aprendi a fazer no fugão, né? O sustento da minha família era tirado por aqui.

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F- Quem agora gostaria de mostrar sua história? A senhora pode continuar, mostrei seu desenho, conte do início do seu filme, o que a senhora quis representar, como já foi comentado, há algo marcante em sua história?

CP2-Eu vou começar na roça, por que comecei a trabalhar na roça, quando eu era criança gostava de brincar, comecei a trabalhar logo.

F- Nesse seu primeiro desenho a senhora desenhou o quê?

CP2- Essa mesa representa o trabalho na roça, minha infância não foi muito sofrida não.

F- Aquilo que a senhora pode destacar, falar de importante na vida?

CP2- O importante, até agora é minha saúde, por que quando cheguei aqui, cheguei muito doente, pra hoje tá contando a minha história, o que mais marcou foi minha saúde. Quando cheguei, cheguei muito doente, eu pensava que não voltava mais nem viva, quando eu saí lá de casa eu disse logo, eu sei que eu vou mais não volto com os meus pés não, aí tô contando a vitória, por isso é que eu disse minha vida agora é uma rosa, minha vida ta maravilhosa, tô me recuperando, tô com saúde, tô bem.

F- A senhora quer continuar?

CP3-Minha vida sempre foi procurando, procurando um, um algo melhor, então eu desenhei um caminhão, por que eu gostava muito de andar, de um vizinho quando eu era jovem, aí eu desenhei. Eu trabalhava também, trabalhava na roça, eu plantava e colhia, melancia, frutas, né? Feijão, milho, cheguei até quebrar pedra, aquelas pedrinhas pra encher as latas pra vender? Vendi pedra, catei búzios, vendi búzios, os japoneses iam lá pra Barra do Ceará pra comprar, mesmo aleijada ia assim mesmo, pescava de rede no mangue, por isso que teve essas coisinhas sequinhas aqui (no desenho).

F-Houve alguma coisa marcante, que a senhora queira falar?

CP3-Tudo que eu fiz, sempre me agradei do que eu fiz, sabe? Sempre suando assim, era um prazer medonho, sempre eu era assim, mesmo aleijada, minha mãe dizia: menina para, tu não é pra andar no meio dos outros não. Eu ia evangelizar com um bucado de gente, vai menos no meio ela dizia, tu vai lá na frente, mesmo cachingando, todo mundo vendo tu cachingando, e eu dizia deixa eu ir assim mesmo. Eu sempre fui feliz, mesmo assim, pessoal mangava de mim eu tirava de letra, sempre fui assim. Aí então, aqui era na minha infância, fiz tudo, pesquei, quebrei lenha, lavei roupa, tudo eu fiz como uma pessoa normal, sempre tive muitos amigos sabe? Se eu ia lavar roupa, tinha minhas amigas que me ajudavam, com pena de mim me ajudavam, qualquer atividade eu fazia. Nunca me queixei, aí como tô com dor! Não sei quê! Nunca senti essas coisas, chegava em casa tomava banho, almoçava, ia brincar ou me deitar na rede até dizer chega e de noite ia pra igreja mas sempre foi assim, metida, minha história é metida. Você acredita que com doze anos fui pro Cauípe á pé, cinco léguas, de madrugada escondida de que ia a frente no trabalho, entendeu? Fiquei no meio do povo, me escondendo, me escondendo, porque eu sabia que ele não ia deixar eu ir, sabia que eu não botava lá, né? Lá na frente eu parei, já cansada ele me avistou e disse que não acreditava quem tava aí, me colocou no jumento.

F-A senhora fala muito de sua deficiência, isso foi marcante na sua vida?

CP3-Justamente, até a própria minha mãe dizia você não vai, não vai, e eu dizia mãe eu vou, eu insistia, eu viajava de caminhão. E meu filme é esse, gosto muito de viajar, de conhecer lugares e trabalhar também, aí quando eu cheguei na minha idade de me assumir, de trabalhar, aí fui botar barraca, na praia vender comida, conhecer muita gente, fiz muita amizade, depois me acomodei porque já não agüentava mais, né? Fui cuidar de casa, comecei a ter filho, não podia caminhar tanto assim, minha caminhada é um quarteirão e meio o máximo. Depois da doença, quando cheguei aqui muito abatida, graças a Deus tô pensando que estou bem, vou fazer uns exames agora, mas de cabeça erguida, e se dever qualquer coisa seja da vontade de Deus, né? Tô nas mãos dele. Só choro se tiver dor, se não tiver dor não choro não. Aqui sou eu pedindo uma rosa, né? Essa rosa que eu peço é que eu tenha muito amor pra dar as pessoas, que possa ajudar, entendeu? Isso é o que me

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faz bem, que eu posso contar com as pessoas, o que eu já passei e que as pessoas possam saber que a gente pode superar, com confiança em Deus a gente supera, né?

F-A senhora gostaria de falar agora sobre sua história?

CP4-Isso aqui era quando eu era criança, eu brincava com as crianças de bonecas, de baixo das moitas, das moitas de mufumo que tem nos matos, eram verdinhas que parecia umas casinhas e aí nós brincava de casinha, fazíamos as bonecas com os ossos, amarrava um no outro, brincava de correr e fazer medo os outros, eu tinha muito medo de gafanhoto e mane mago. Minha infância não foi muito boa não, tudo era muito difícil, se a gente ia pra escola era difícil. Tudo era longe, o maior sacrifício pra estudar e os pais da gente eram muito duros, por tudo em quanto brigavam com a gente, passear era a coisa mais difícil, era muito presa, depois que eu fui crescendo fui me animando mais arranjei o primeiro namorado, gostava muito dele, mas não deu certo, gostava de ir pra festa.

F- Seu desenho representa o quê da sua história?

CP4- Eu desenhei meu pai também, que brigava com a gente, não deixava a gente sair pra canto nenhum. Ele me ensinou muitas coisas, reza, oração, toda noite rezava, a gente sentava toda noite ao redor dele e ele ficava ensinando a respeitar as pessoas, a cumprimentar os mais velhos. Hoje a vida não tá muito boa não mas da pra levar, um dia a gente tá mais alegre, outro dia a gente tá mais triste, um dia a gente ri, outro a gente chora, quando a gente lembra coisa que a gente passou ou ainda tá passando dá vontade de chorar. Aí eu procuro os amigos, procuro conversar, passear, ir pra casa de uma amiga, pra não ficar parada em casa, por que se não ficar não serve, por que eu sou bem dizer só, nunca me casei, não tenho filho, não tenho mais pai, nem mãe, sou uma pessoa bem dizer só, né? As vezes eu fico triste pensando, todo mundo tem filhos, tem marido, tem pai, mãe e eu não tenho nada? Se eu ficar pensando assim eu começo a chorar, fico nervosa. Aqui eu desenhei muitas plantas e flor, por que eu gosto muito de flor, meu futuro quero que seja feliz, ficar boa, possuir uma casa eu ainda moro com meu irmão e minha cunhada, morava com minha irmã mas não deu certo.

F- O senhor quer mostrar seu desenho?

CP5-Eu não quero falar nada não.

F-O senhor desenhou e representou o seu desenho sua história, fale um pouquinho.

CP5-Minha infância foi boa, foi trabalhando, minha preocupação era muito pouca, aí depois que casei e constituí família, pra criar os filhos, aí foi mais preocupado. Aqui tô com mais de mês que tô aqui, me preocupando todo dia com minha família no interior, como é que estão por lá, né? Ora não sei como eles estão lá e eles não sabem como eu tô aqui, né? Aí é que tá, a gente não é adivinho, não imagina como nós estamos, os pensamentos nos de lá. É assim, mas o papel não apresenta nada, daqui não conto nada. Hoje tô preocupado, pois tô meio-lá-meio-cá vê se melhoro mais, tô me tratando, os homens pediram pra fazer o tratamento aí eu tô por aqui, mas só por minha vontade eu tava lá em casa, mas os homens disse que se eu me trato aumenta os anos de vida, aí eu tô cuidando, pra vê se dá certo. Meu futuro é isso mesmo, que eu tô pelejando pra ir pra frente. Não tem mais o que pensar não, é pensar em durar mais e pronto.

F-Diga lá a senhora mostre seu filme e conte sua história.

CP6-Minha história é aquela que eu lhe contei fui muito judiada, minha mãe abandonou meu pai, eu tinha três anos de idade, essa mulher aqui do desenho é a mulher que me criou, era da minha família, era minha tia, agora ela judiava muito comigo, meus primos com quem eu vivia, me queimavam com ponta de cigarro, botava pimenta no meu café, aí eu fui crescendo, sendo judiada, até meus dezesseis anos, aí nessa idade conheci um rapaz, comecei a namorar e não passou dois meses aí eu fugi com ele de tanto sofrimento que eu sofria, aí eu fugi, aí foi quando eu comecei a ser feliz, agora tô com 52 anos tô com ele ainda, trabalhava tomando conta de idoso, passei três meses com minha mãe no hospital, minha mãe com CA, morreu nos meus braços, ela me disprezou, mas morreu nos meus braços, a filha que ela criou não quis saber dela, eu tomei conta dela até na hora da morte. Cuidar dela foi muito importante, porque ela me disprezou, levou a minha irmã mais velha pra morar

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com ela e meu irmão mais velho, aí ela morava com meu irmão mais velho, aí na doença dela eu trabalhava, tomava conta de um senhor, carteira assinada e tudo, aí me obrigaram a sair do emprego pra tomar conta da minha mãe que ninguém quis ficar com ela no hospital, acho que tinham medo da doença dela.

F-A senhora foi obrigada a sair do emprego, ou a senhora quis?

CP6- Eu, quer dizer, bem, fui obrigada assim, eu entreguei o emprego pra tomar conta da minha mãe, quer dizer, eu não ia deixar ela no hospital sem ninguém, aí deixei tudo, meu marido disse: minha filha você vai sair do emprego? Eu disse vou, mas ele disse: eu tô parado. Mas eu disse a gente leva a vida assim mesmo, aí eu tomei conta dela três meses no hospital, tomando conta dela ainda ganhava dinheiro do aluguel da minha casa, porque tomava conta dela e tomava conta dos outros e cada qual me agradava no que podia, aí quando chegava o mês de pagar minha casa, meu marido ia visitar ela e eu dizia olha meu filho o dinheiro da casa, arrumou aonde? Ele perguntava, eu dizia tomando conta dos doentes, eu tomava conta da minha mãe e tomava conta dos outros. Aí quando eu dei fé, Deus levou ela, aí fui pra luta, lavar roupa de ganho, aí apareceu um caroço no meu útero, um mioma, tive que operar, operei, o doutor disse que se eu não operasse ia virar um CA, operei e parei de trabalhar, aí quando dei fé apareceu esse problema, levei uma queda, machuquei o queixo, aí saiu esse problema no meu dente, aí mais um sofrimento, e eu vencendo” aí pra eu vencer, já doente, catei duas filhas, três filhas dos outros, pra criar, com mais três filhas dos outros, lavando roupa de ganho. Essas meninas, o pai delas morreu, a mãe irresponsável, uma delas eu peguei na maternidade, ela me deu, eu registrei no meu nome, aí tinha duas irmãs, uma com 11 anos e a outra com 08, aí moravam em Recife, aí eu fui pra Paraíba e aí as outras duas disse eu vou embora com tu também, aí a mãe delas disse pode levar se não eu vou jogar tudo na rua, aí eu trouxe as três, uma é registrada em meu nome, duas não é. Aí eu criei, duas estão casadas, na casa delas, elas são melhores pra mim que minha própria filha, a que eu criei. O que minha mãe não fez por mim eu fiz pra essas três. Meu desenho representa meu sofrimento e aqui minha vida, agora né? Que é um mar de rosas, pra mim apesar da minha doença, é um mar de rosas, porque meus filhos me amam muito, meu marido também, ele só não veio ainda aqui, porque ele não tem condições, porque se ele tivesse ele já tinha vindo me visitar.

F- Toda essa história que a senhora contou faz algum sentido?

CP6-Fez muito sentido, eu fiz com elas, o que não fizeram comigo, judiavam, e eu criei com maior carinho, como se fosse minhas filhas, elas gostam muito de mim, mas nenhuma podem vir. O que me dá muita força ainda é criar meus netinhos ainda, eu tenho um neto e uma neta que eu crio, meu neto tem seis anos e minha neta tem nove e minha filha que eu crio, irmã das casadas tem onze anos, e eles me amam muito, e quando ele liga pra cá, ele diz vovó fique boa (choro) que a gente ama muito a senhora.

F-Agora o senhor mostrar seu desenho e fala um pouco sua história.

CP7- Trabalhando de padaria, sapataria, né? Minha vida não foi sofrida não, só depois de velho, doente, né? Isso tá com mais de vinte anos nessa luta, a primeira viagem foi pro Hospital das Clínicas, já passei ano fora com minha esposa, passei de ano fora mais ela. Com os filhos ainda pequenos, mas na luta, né? O que eu representei foi o meu trabalho, a padaria, a sapataria, as pescarias nas horas de folga, que eram poucas. Pensando o que mais marcou minha vida foi ter casado com ela, foi. Até hoje, 45 anos de casado, né brincadeira não, né? Hoje é um mês, um ano, 45 anos sem separação, parece que eu casei hoje, satisfeito, quatro filhos, não me deram trabalho. Ela é minha sombra, onde eu vou ela vai, a sombra né assim, né? É tudo na vida, uma mãe de família, deixar a casa um ano fora, eu nunca vi. O tempo de passarmos mais tempo separado foi em 2005 quando tive que me separar, tive que me operar, veio um filho meu, e ela ficou na casa de apoio sem poder vir, com problema de coluna, pressão alta, pra você ver, né? A gente vinha da casa de apoio do centro, qualquer carrinho era caro, vinha do interior 500 km., numa ambulância pequena, sentada ali atrás e ela agüentava, é um milagre, né? Eu fico pensando, meu futuro eu não penso muito não, na idade que eu tô e doente, é só dos meus filhos e netos mas dizer que eu quero coisa boa, importantes, pra minha vida, não quero não. O que eu quero é ficar perto dela, né? Vai saber mais de vinte anos lutando, né? Não sei quantas cirurgias e ainda vou fazer outras, a vida não é boa, mas tem que agüentar, né? Dizer que eu quero carro, fortuna depois de velho, que nem meu amigo, depois de velho quero riqueza não, pra fazer o quê? Porque quando o cabra tá com uma certa idade

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as pernas não podem com o corpo, né? A vista ruim, não ouve bem, fazer o quê? Um carro bonito e importante com um motorista, pra ir pra onde? Com um velho! Fazer o quê? Deixe pros novos, pros filhos, pros netos e outros.

APÊNDICE – III

OFICINA DE ANÁLISE DO GRUPO PESQUISADOR (24/09/2007)

F-Depois desse relaxamento gostaria que prestassem detida atenção nas pinturas que realizaram no nosso primeiro encontro, estão lembrados? Agora eu vou ler cada comentário... Nosso encontro hoje é diferente, pois, vamos analisar o que o grupo fez. Quem quer começar?

CP1 Você leu ai o que a gente disse, eu achei uma arte muito bonita, muito bem feita, valeu! Pro sentido da vida, né?

F-O que a Sra. destaca, no que foi feito e o que foi dito que, serve de análise?

CP1-Eu aprendi muito, o sentido da vida é viver e aproveitar, agradecer a Deus todo dia, né? Olha, você sabe que eu nunca fui chegado a esse negócio de arte!

CP2-O que eu acho é que a vida é maravilhosa, isso representa o bom da vida, as lutas, a gente tem mais é que lutar pela a vida. Tudo isso que vemos representa o motivo de viver, é por que por pior que esteja um sentido, como uma luz no fim do túnel, é uma esperança, é ou, não é? Se é a luz, imagine uma ruma de luz dessa, junto com um monte de planta da serra, um jardim, a vida é maravilhosa. Resumindo é ter uma vida maravilhosa.

CP3-Tudo ta ligado, o túnel e a serra, as plantinhas, o sertão, a ponte e a lagoa. Representa o sentido da vida nas coisas do sertão, menos o túnel, que lá nós não tem. Isso representa a vida e o motivo de viver.

F-A Sra. gostaria de falar? O que a Sra. tira de tudo que foi mostrado e lido? Agora pensando como o grupo acha, não como eu sozinho penso.

CP3-O sentido da vida é tudo isso misturado. É não deixar cair, sobreviver os problemas, alcançar a serra, pescar o peixe. Tudo isso representa nosso sentido, maravilhoso, trabalho lindo!

F-O que Sr. pode analisar, comentar do papel e das falas lidas?

CP4-Tá bom demais, agora não vou dizer nada não, tem tanta coisa pra dizer, mas sobre isso não sei, quase nada vou dizer. Quero falar não.

F-A Senhora?

CP5-Eu amei, foi maravilhoso, eu gostei. Eu já disse pra você, nunca gostei de olhar quadro, que minha mente é tapada, né? Eu digo pra minhas filhas que gostam dessas coisas, sei nem o que é isso! Mas olhando assim, eu até criei...fiquei até com vontade de ... de olhar mais coisas e até de fazer. Eu entendi aqui, que todos nós no grupo estamos esperançosos, esperançosos de voltar pra casa, de fazer nossas atividades, se não pudermos trabalhar mas, pelo menos de aproveitar a vida. Eu tô entendendo que cada um de nós tamo lutando pra ser feliz e, continuar nossas vidas, né?Como a gente ta em comunidade, formando um corpo só, né? Achei interessante a serra, a força de subir... é o sentido da vida, subir, se esforçar. A ponte e o túnel é nosso sentido, que todos nós enfermos, se tratando no Hospital do Câncer, né? É a esperança, sabendo que a gente vai vencer e vai poder passar por essas atividades que nós criamos aqui, né?

F-A Sra. pode falar agora.

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CP6-Cada um fez seu sentido, aí agora juntou os sentidos tudinho, só num só. Acho tudo interessante, trás tudo o sentido da vida. O grupo procura um sentido, vencer os problemas, ficar bem, com saúde e ser feliz. Viver e aprender com a vida.

CP3-Achei tudo interessante, porque tudo faz parte do sentido da vida da gente, né? Por que a vida pode ser um túnel escuro, mas o sentido é a luz. É sempre ir pra frente. Representa o sentido de nós todos, não deixar cair não, tem que levantar a cabeça e ir em frente, lutar.

CP7-As vezes vem um sentido, depois vem outro, a cada momento da vida.

CP5-Na pesquisa eu me achei meio tonta. Depois eu notei que nós tudinho, fizemos uma coisa grande, diferente. Tamo passando uma tormenta de doença, e podemos vencer, e tamo com esperança de viver melhor. Parece que é isso.

F-Agora vamos passar para a produção da outra oficina. Observem que eu à medida que for mostrando o filme que vocês produziram, vou lendo os comentários de vocês. Vamos começar...

CP1-É um filme bonito, cada um tem uma história pra contar, porque se cada um fez é porque a história é importante. Cada um tem seu trabalho, suas coisas, pra se sustentar, viver. O trabalho dá sentido.

CP5-Todos comentaram sua vida, desde criança. O que fizemos, que dá pra tirar uma experiência. Aprendi não deixar o tempo passar, passar desapercebido pelo tempo. A gente tem... o resto de tempo que a gente tem, saber cultivar as coisas boas da vida e aproveitar, apesar da vida não estar tão boa assim. Tem coisas na vida da gente como o trabalho, a família, um lar que dá esperança de sobreviver e lutar. A pessoa passar por cima do orgulho, cuidar de quem desprezou e pegar filho dos outros pra criar, tudo isso é lição de vida pra gente aprender.

CP4-Achei muito bom, legal. Pra mim tudo foi importante.

CP5-A história mostra o sentida da vida da gente. Cada história que você não acredita, com certeza ensina que a vida é boa, mesmo sofrendo, o negócio é não desistir, é lutar. Ter saúde, coragem e fé em Deus, sem Deus nada disso valia.

Depoimentos...

CP2-Eu gostei, no começo da pesquisa eu fiquei meio assim...você explicou, eu me senti... nunca peguei num lápis pra desenhar nada, né? Aí era pra eu desenhar minha vida, e eu fiquei pensando, pensando e deu certo o que eu fiz, né? Porque desde criança eu tinha vontade de vencer, dei conta do meu problema na perna, porque eu queria mostrar que não era peso pra ninguém e incomodo pra mim. Mesmo sofrendo eu iria enfrentar.

CP1-Eu achei ótimo nós sermos convidados, porque ninguém pensava nisso, foi três reuniões, né? Foi muito bom, eu nunca tinha pego num pincel pra desenhar nada, né? Eu achei importante, porque eu aprendi, a gente tem que dizer o que agente quer. Quero me desculpar se não participei bem, é que nós não somos sabido, não tem curso.

CP6-O que eu achei importante foi conhecer vocês, a gente vive junto e não se conhecia.

CP3-Eu fui a primeira a dar o nome pra pesquisa. Pra mim foi muito bom, quando eu chegar em casa vou ensinar aos meus filhos tudo o que eu aprendi aqui. Eu aprendi a ser mais forte e tocar a vida pra frente. Se eu não tivesse com vocês, eu estaria num canto chorando. Até me distrai com essas reuniões, porque no primeiro dia do encontro, tava só chorando, era Maria chorona.

CP1-Eu me achei muito importante, porque o que eu sabia era cozinhar e, nunca tinha pensado nisso. Eu aprendi a relaxar, respirar e cheirar a fulô.

CP4-Pra mim, eu gostei muito, fiquei importante de participar, fiquei mais alegre do que eu era, com tanto problema.

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CP7-Foi ótimo participar, fizemos um grupo, a gente discutiu o que a gente achava. Pelo menos o que a gente achava que era importante dizer, né? Pra mim foi ótimo.

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ANEXOS

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13 ANEXOS

ANEXO-I

Termo de Consentimento

A presente pesquisa intitulada O SENTIDO DA VIDA: DESVELANDO A ESPIRITUALIDADE ATRAVÈS DA SOCIOPOÈTICA, desenvolvida pelo pesquisador

Michell Ângelo Marques Araújo, tem por objetivo produzir conceitos de sentido da vida junto

ao grupo pesquisador composto de pacientes com câncer. Para isso, necessitamos de seu

consentimento em participar da pesquisa que será realizada através de oficinas. Será

assegurado seu direito de negar-se a participar da pesquisa ou dela retirar-se quando assim

desejar sem nenhum prejuízo moral, físico ou social e o anonimato com relação à sua

identidade, bem como qualquer informação que possa identificá-lo (a). Fica garantido ainda

que a pesquisa não irá causar nenhum risco à sua saúde nem irá interferir no seu

tratamento. A participação na pesquisa é atividade voluntária e os participantes não

receberão remuneração. A responsabilidade pela realização da pesquisa é do Enfermeiro

Michell Ângelo Marques Araújo, orientado pela Profª. Dra. Lia Carneiro Silveira, que podem

ser contatados na rua Walter Bezerra de Sá, Edson Queiroz. Cep: 60 811420 - Fortaleza –

CE. Qualquer informação adicional poderá ser obtida junto aos pesquisadores através do

telefone (0xx85) 32786585.

Eu,_______________________________________________________________________

_ , ______anos, sexo __________, de naturalidade ____________________, domiciliado

em _____________________________________________________________, de

profissão ___________________ e portador do RG nº _____________________, fui

informado detalhadamente sobre a pesquisa intitulada ”O SENTIDO DA VIDA:

DESVELANDO A ESPIRITUALIDADE ATRAVÉS DA SOCIOPOÉTICA” e concordo em

participar da mesma. Permito que os dados produzidos pro mim durante a mesma (falas,

fotos, desenhos) sejam divulgados desde que garantidos meu anonimato.

Fortaleza, _______ de _______________de 2007.

______________________________________________________ Informante

______________________________________________________

Pesquisador

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ANEXO-II