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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
MICHELL ÂNGELO MARQUES ARAÚJO
SENTIDO DA VIDA, ESPIRITUALIDADE E SOCIOPOÉTICA: convergências para a produção
de conhecimento e para o cuidado clínico
FORTALEZA-CEARÁ 2008
Michell Ângelo Marques Araújo
Sentido da Vida, Espiritualidade e Sociopoética: convergências para a produção de conhecimento e
para o cuidado clínico
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico em Cuidados Clínicos em Saúde (CMACCLIS), da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial para obtenção do grau de mestre. Área de Concentração: Enfermagem.
Orientadora: Profª. Drª. Lia Carneiro Silveira
Fortaleza – Ceará 2008
Universidade Estadual do Ceará
Mestrado Acadêmico em Cuidados Clínicos em Saúde
Título do Trabalho: SENTIDO DA VIDA, ESPIRITUALIDADE E SOCIOPOÉTICA: CONVERGÊNCIAS PARA A PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO E PARA O CUIDADO CLÍNICO Autor: Michell Ângelo Marques Araújo Defesa em: 28/01/2008 Nota obtida: 9,0
BANCA EXAMINADORA
Profª. Drª. Lia Carneiro Silveira Universidade Estadual do Ceará
Orientadora
Profª. Drª. Sandra Haydée Petit Universidade Federal do Ceará
Profª. Drª. Violante Augusta Batista Braga Universidade Federal do Ceará
Profª. Drª. Ana Ruth Macêdo Monteiro Universidade Estadual do Ceará
AGRADECIMENTOS
A Deus que é pai e mãe, por sua beneguinidade imerecida, em me amar e estar sempre presente. Aos meus pais, José Arimatéa (In memoriam) e Margarida Maria por me ensinarem a extrair da vida um sentido e possibilitarem com seu amor e suor a minha caminhada até aqui. À minha companheira Ana Maurícia pela paciência, companheirismo e confidências nesses momentos difíceis de construção. À minha amiga e orientadora Profª. Drª. Lia Carneiro Silveira, por seu apoio, respeito, incentivo, valorização e contribuição nessa produção. A meus irmãos e familiares pelos incentivos e carinho. Ao Hospital do Câncer na pessoa da Dra. Mírem pela ajuda imprescindível na viabilidade da pesquisa. Aos profissionais do Hospital do Câncer, Dr. Luciano, Dra. Denise, Dra. Sárvia, Dra. Inês, que ajudaram no processo de realização da pesquisa. À Profª. Drª. Violante Augusta Batista Braga, amiga que vem acompanhando minha caminhada acadêmica, pela disponibilidade e interesse em participar da banca. À Profª. Drª. Sandra Haydée Petit, também pela sua disponibilidade em participar da banca. Às amigas e Profas, Ângela, Dalva, Lucélia, Eucléa, pela contribuição e incentivo a minha carreira profissional. Às companheiras de mestrado, em especial a prima Karla, Ana Larissa, Edilma e Rita pelo muito compartilhar de receios e angústias. Aos professores e funcionários do mestrado pelo apoio e contribuição nesse percurso. Aos colegas de trabalho, Keylla, Geordany, Lilianne, Cinthia, Ytanna, Tharsyla, Jôse, Pedro, Glória, Klefer, Luisa e Alípio, pelo companheirismo. Às chefes, Dra. Haydée e Mônica pele compreensão das muitas ausências. À amiga Arisa pela ajuda no processo de pesquisar. A todos os amigos e alunos que contribuíram ou estiveram presentes na minha caminhada.
DEDICATÓRIA
Aos pacientes que realizaram esse estudo como co-pesquisadores, contribuindo de forma ativa
na produção de novos conhecimentos.
RESUMO
O sentido da vida constitui fator importante e revelador da espiritualidade humana, que muitas vezes é afetada pelas situações de sofrimento e adoecimento. Pensando nisso, desenvolvemos um estudo, cujo objetivo é produzir conceitos de sentido da vida junto a pessoas com câncer. O caminho metodológico escolhido foi a sociopoética, método desconstrutivista que entende que os participantes da pesquisa são co-pesquisadores, que juntos formam o grupo-pesquisador e produzem conhecimento. Esse grupo foi formado por 07 pacientes com câncer em tratamento, que se encontravam na casa de apoio de um hospital de referência em Fortaleza. A produção aconteceu em quatro oficinas, uma de negociação, duas de produção propriamente dita e uma oficina de análise. Os dados foram produzidos através de dispositivos que propiciaram o surgimento do novo e foram analisados com base nas diversas análises propostas: plástica: classificatória; transversal; surreal; do grupo-pesquisador; filosófica; e maquínica. Os conceitos produzidos foram o: sentido serra; sentido sertão; sentido lagoa; sentido ponte; sentido túnel/luz; sentido fogão; sentido mar de rosas; e sentido Deus. Esses confetos, junção de conceitos e afeto, mostram as possibilidades que o sentido da vida pode representar para as pessoas ao enfrentarem a dor, o sofrimento e a iminência de morte. Neles encontramos a força e a motivação para superar as adversidades e manter-se vivo, percepção das realizações como importante para a construção de sentido, esperança de dias melhores, encontro de sentido no sofrimento e na fé, além de encontrarmos sentido nas relações afetivas estabelecidas durante a vida. Os confetos produzem ressonâncias para a enfermagem, verdadeiro agenciamento daquilo que foi produzido com o que já existia na academia, constatamos que há alguns paralelos entre os saberes, além de contribuir com novas perspectivas para o cuidado clínico e de descoberta de potencialidade do grupo-pesquisador. Esperamos que esse estudo provoque novos agenciamentos e motive novas pesquisas sobre o assunto. Palavras chaves: Espiritualidade; Enfermagem; Sociopoética.
RESUME
The meaning of life is an important and revealing factor in spirituality, and it is many times affected by suffering and illness situations. With this in mind, we developed a study aiming in the production of life meaning concepts along with people with cancer. The methodological path chosen was Sociopoetics, a constructivist method which understands the research participants as co-researchers that together constitute the researcher-group and produce the knowledge. This group was formed by 7 patients with cancer in treatment in a support foundation in a very respected hospital in Fortaleza. The production occurred in four workshops, a negotiation one, two producing ones and an analysis workshop. The data was produced through dispositives which made emerge the new and were analyzed based in the several proposed analysis: plastical, classifying, transversal, surreal, from the researcher group, philosophic and “maquinico”. The concepts produced were: the saw concept, the lake concept, the brigde concept, the tunnel-light concept, the stove concept, the sea of roses concept and the God sense. These “confetos”, reunion of concepts and afetcs, show the possibilities that the life sense can represent to the people when they face the pain, the suffering and the imminence of death. On them we can find the strength and the motivation to over come the adversities and keep ourselves alive, perception of achievements as important to the construction of the meaning, hope in better days, finding of the meaning in the suffering and in the faith, and we found sense in the affective relationships established during life. The “confetos” produce resonances to the nursing, a truly negotiation of what was produced to what already existed in the academy, we found out that some parallels among the knowledge and even contributing to new perspectives to the clinical care and the potential discovery of the researcher-group. We hope this study may provoke new negotiations and motivate new research about the topic. Key words: Spirituality, Nursing; Sociopoetics.
“Não há vida sem morte, nem morte sem vida, mas há morte em vida. E a morte em vida é exatamente a vida proibida de ser vivida”.
Paulo Freire
SUMÁRIO
1 PARTILHANDO UMA INTENÇÃO __________________________________11 2 ESPIRITUALIDADE: DESDOBRANDO O HOMEM _____________________17
2.1 Encontros e desencontros: linhas de percepção da espiritualidade _17 2.2 Os conceitos de transcendência e transparência como forma de entender a espiritualidade _________________________________________23 2.3 Revisitando a Enfermagem e sua prática espiritual _______________29 2.4 Cuidando de pessoas com câncer: vivenciando a dor, a morte e o sentido da vida __________________________________________________36
3 SOCIOPOÉTICA: FORMA ESPIRITUAL DE PESQUISAR _______________44 4 OFICINA DE NEGOCIAÇÃO: OS PRIMEIROS PASSOS DA PESQUISA ___54 5 PRIMEIRA OFICINA DE PRODUÇÃO: OS LUGARES GEOMÍTICOS ______57
5.1 Oficina I: Análise da Produção Plástica _________________________62 5.2 Oficina I: Análise do Formulário dos Sete Lugares Geomíticos _____64 5.3 Oficina I: Análise Classificatória _______________________________68 5.4 Oficina I - Análise Transversal ________________________________71 5.5 Oficina I: Análise Surreal _____________________________________73
6 SEGUNDA OFICINA: O FILME DA MINHA HISTÓRIA __________________76 6.1 Oficina II: Análise da Produção Plástica ________________________81 6.2 Oficina II: Análise Classificatória ______________________________83 6.3 Oficina II: Análise Transversal ________________________________89 6.4 Oficina II: Análise Surreal ____________________________________91
7 ANÁLISE DO GRUPO PESQUISADOR ______________________________94 8 DIÁLOGO FILOSÓFICO-ESPIRITUAL SOBRE O SENTIDO DA VIDA _____97 9 ANÁLISE MAQUÍNICA: UM AGENCIAMENTO ENTRE O PENSAMENTO DO GRUPO E A CLÍNICA DE ENFERMAGEM ______________________________108 10 POSSÍVEIS CONSIDERAÇÕES PARA UM NOVO COMEÇAR ________115 11 REFERÊNCIAS ______________________________________________120 12 APÊNDICES ________________________________________________126 13 ANEXOS ___________________________________________________139
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Partilhando uma intenção “Ando devagar porque já tive pressa e levo este sorriso porque já chorei demais, hoje me sinto
mais forte mais feliz quem sabe só levo a certeza de que muito pouco eu sei que nada sei.”
(Renato Teixeira/ Almir Sater)
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1 PARTILHANDO UMA INTENÇÃO
Para conseguir expor minha intenção de pesquisar a espiritualidade, preciso
partilhar não só meu interesse sobre o tema, mas, antes, minha própria vida, com
suas diversas oportunidades de significar e ressignificar sentimentos e
acontecimentos importantes que constituem implicações e fundamentações para
entender a escolha. Ainda criança, já me fazia questionamentos profundos sobre a
vida, a morte e a existência, algo incomum em razão da pouca idade. Algumas
respostas foram surgindo com a ajuda de pessoas próximas que, quase sempre,
tinham explicações baseadas em suas crenças, sua fé e seus preceitos religiosos,
os quais me fizeram depois, eu mesmo, procurar, na religião de meus pais (o
catolicismo), explicações que acalentavam as dúvidas e as inquietações do existir.
Assim, as religiões em geral me atraíam de forma incomum, com suas
propostas variadas de viver. Confesso que me fascinava o mundo místico, levando-
me a empreender a busca do “Caminho” para o encontro com Deus, que se deu em
várias experiências além do catolicismo, como no espiritismo kardecista,
protestantismo e, por último, as Testemunhas de Jeová. A despeito de acreditar que
já houvera encontrado o “Caminho”, permanecia meu interesse em conhecer o modo
de percepção da vida pelas pessoas de outras religiões.
Nesse ínterim, pude enfrentar situações que considero parte das implicações
desta pesquisa, portanto, esclarecendo a escolha do tema deste estudo. Achava-me
uma criança diferente das outras, sempre voltada para questões muito sérias da
vida, o que explica a preferência por amizades com adultos e idosos. Sentia-me
preterido por meus pais, ocasionando-me uma baixa auto-estima e freqüentes
sentimentos de profunda tristeza. Ainda na infância, perdas de entes queridos
somam-se às implicações. Aos nove anos, vivenciei a dor do falecimento de minha
avó materna e, aos dez, enfrentei o duro golpe de perder meu pai, assassinado aos
trinta e quatro anos de idade. Logo em seguida, nesse mesmo ano, meu avô
materno que vivia conosco desde sua viuvez, também falece.
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Essas perdas marcaram profundamente a minha vida, de modo que
ganharam força e importância os questionamentos que já fazia, tais como: “É essa
vida tudo o que há? Há algum sentido para a vida e para a morte? Há alguém maior
que nós mesmos, que se importa conosco? Para onde iremos após a morte? Por
que sofremos?”
Em princípio, a forma que encontrei para elaborar o luto foi me interessar por
aquilo que tinha relação com a morte: os velórios, os enterros, os cemitérios, os
rituais fúnebres e também, pelas explicações religiosas para esse acontecimento.
Em razão disso, houve uma ainda maior aproximação minha com os assuntos
religiosos e espirituais ligados à existência, ao viver e ao morrer.
Estabelecendo uma analogia com a história da ostra que, ao abrir-se, deixa
entrar em seu interior grãos de areia que a ferem, mas dão-lhe a oportunidade de
envolvê-los e transformá-los em pérolas, fazendo sentido o sofrimento. Faço
aplicação à minha história pessoal, pois as vivências e os momentos difíceis
serviram para as escolhas futuras.
Nesse sentido, o sofrimento gerou competência, influenciando minha opção
pela Enfermagem. Estava inclinado, nas atividades acadêmicas, a lidar comumente
com pacientes portadores de algum sofrimento psíquico, deprimidos, terminais,
enlutados, fato que justifica a saúde mental como minha principal área de atuação
hoje.
Ainda na Graduação, algo me inquietava demasiadamente: o fato de que
uma das atribuições do enfermeiro é a assistência espiritual. Mas o que significa
essa assistência? Seria assistência religiosa? Meu interesse pelas religiões foi
dando lugar a algo que não envolvia somente o sagrado e o místico, mas a própria
existência e o sentido da vida, que pode abranger a todos, inclusive os que não têm
religião ou fé. Como prestar tal cuidado se, em momento algum, tal atribuição foi
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abordada em minha formação acadêmica? Seria eu capaz de prestar tal
assistência? Essas inquietações se intensificaram ao me deparar com a
responsabilidade de cuidar de pessoas agora como profissional, visto que tais
pessoas, doentes, esperam respostas e soluções para os mais variados sofrimentos.
Por ter tido a oportunidade de trabalhar com pacientes com câncer em vários
estágios da doença, vejo-me constantemente envolvido em questões existenciais,
como: amor, perdão, sofrimento, morte, fé, culpa e esperança. Em suas crises,
esses pacientes solicitam de nós, enfermeiros, alívio para suas dores e esperam ser
ajudados de algum modo.
Procurei estudar o que havia disponível sobre espiritualidade na
Enfermagem, mas somente encontrei tópicos relacionados à religião, costumes,
doutrinas e ritos. Mesmo não sendo profundo conhecedor do tema, quase
intuitivamente rejeitava o reducionismo proposto. Busquei em outras searas algo que
pudesse nortear outros caminhos e formas de expressão de espiritualidade,
encontrando referências apropriadas ao que estava buscando: uma visão ampla da
espiritualidade humana, longe de conceitos estritamente religiosos na antropologia
filosófica, psicologia e teologia.
É preciso deixar claro sobre o que me refiro ao fazer uso do termo
espiritualidade. Antes de qualquer coisa, deve ser diferenciado de aspectos
religiosos e psicossociais. Trata-se de algo mais abrangente que, apesar de conter
aspectos religiosos, com eles não se identifica. O que Frankl (1992:73) considera
como espiritualidade pode esclarecer:
Dimensão que integra e transcende as outras dimensões humanas, é o princípio de vida que permeia a pessoa por inteiro, incluindo a volição, a moral, a ética, a arte, os valores, as tradições, a fé e a fonte da própria consciência.
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A espiritualidade constitui-se uma dimensão humana e mostra-se
propiciadora de sentido para a vida, à medida que favorece, através desses
aspectos citados por Frankl, a busca e o sentido transcendente, que é irrepetível.
Não poderíamos, por tanto, tratar de espiritualidade sem nos indagarmos sobre o
sentido da vida, que está atrelado a cada pessoa individualmente e que corresponde
ao contexto vivenciado na esfera do tempo.
Ante o exposto, algumas indagações emergem: como a dimensão espiritual
revelada no sentido da vida de pacientes gravemente enfermos se apresenta frente
à doença, ao sofrimento e à morte iminente? Que necessidades e desejos espirituais
surgem nesses casos? A que aspectos da espiritualidade humana o enfermeiro
precisa estar atento para bem cuidar de seus pacientes?
Buscando prestar um cuidado que contemple essa dimensão, e frente as
demandas dos próprios pacientes, senti-me motivado a procurar respostas para tais
questões. Por isso, me propuz a realizar este estudo que toca em pontos, no mínimo
delicados, a saber: a espiritualidade, a dor, o sofrimento e a morte na prática clínica
do enfermeiro.
Foi-me apresentado pela orientadora deste estudo um método qualitativo de
pesquisa conhecido como sociopoética, método concebido como desconstrutivista,
pois tem a preocupação de questionar as formas estabelecidas de conhecimento e
abrir-se para novas formas de construção, a partir de relações autônomas e livres do
homem e das instituições, tornando o pesquisar ainda prática prazerosa e
envolvente para todos, participantes e facilitadores (SILVA, 1999). A sociopoética
que descrevo mais adiante se mostra adequada para o estudo que proponho, pois
utiliza dispositivos para a produção do saber a partir de experiências, sentimentos e
vivências, coisa não convencional na pesquisa, além de reconhecer a espiritualidade
como objeto de investigação científica (GAUTHIER, 2005).
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Interessei-me em aprofundar o tema. Este estudo tem como objetivo
produzir conceitos de sentido da vida junto ao grupo pesquisador composto por
pacientes com câncer. Esperamos que os conceitos de sentido da vida produzidos
possam contribuir com o entendimento da espiritualidade humana e motivar outros a
investigarem o assunto.
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Espiritualidade – desdobrando o homem
“Eu quero mergulhar nos rios do espírito, entrar na dimensão do sobrenatural. E onde esse rios me levarem eu irei e cada vez mais fundo eu mergulharei.”
(Ludmila Feber)
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2 ESPIRITUALIDADE: DESDOBRANDO O HOMEM
Tratar desse tema obriga-me a esclarecer alguns aspectos controversos que
permeiam seu entendimento. Em nossos dias, muito se fala sobre espiritualidade
como algo ligado estritamente a questões religiosas, trazendo um reducionismo
inadequado e uma desvalorização por parte da ciência tradicional. É necessário nos
determos naquilo que me refiro como “Espiritualidade”, suas formas de expressão e
de que maneira essas concepções podem contribuir para a assistência de
enfermagem.
Para tanto, é preciso, antes, discorrer sobre os encontros e os desencontros
que a temática nos traz, desde a supervalorização das antigas civilizações até o
ceticismo da sociedade moderna a partir disso, fazer uma relação entre
transcendência, transparência e espiritualidade. Em meio a isso, revisitamos a
História da enfermagem, discutindo sua prática de cuidado e sua relação com a
espiritualidade, a fim de apresentarmos a força desafiadora do espírito ao vivenciar a
dor, o sofrimento, a morte e a busca do sentido da vida, presenciado especialmente
por pessoas com câncer e por profissionais que delas cuidam.
2.1 Encontros e desencontros: linhas de percepção da espiritualidade
Durante toda a História, o homem tenta de diversas formas entender sua
existência, criando conceitos e explicações para os mais variados fenômenos da
vida. Utiliza para isso a razão (forma de discernimento lógica e consciente), a
sensação (capacidade de percepção dos sentidos), a emoção (sensibilidade dos
sentimentos) e a intuição (capacidade de perceber, compreender e pressentir sem,
necessariamente, fazer uso do raciocínio ou análise). Em dado momento histórico, a
ênfase desloca-se para uma dessas formas de conceber a realidade e a existência,
mas não deveria invalidar as demais (LELOUP, 1997).
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Desde a Antigüidade, a sensação, a emoção e, sobretudo a intuição são
valorizadas sem que seja deixada de lado a razão. Os mitos, as fábulas e as
parábolas são exemplos de como aspectos tão densos e profundos da vida são
compreendidos de forma tão simples. Para Jung (1987), os mitos surgem do
inconsciente coletivo, local da psique, onde estão armazenadas todas as
experiências comuns da humanidade, desde os tempos imemoráveis. Nesse
inconsciente coletivo, aspectos importantes da vida são armazenados em forma de
lendas, superstições, rituais e formas variadas de arte, que estarão presentes por
toda a vida. Por isso, não podem ser desconsideradas ou invalidadas como fato de
menos importância. As explicações contidas nos mitos são fontes de sabedoria e
correspondem às necessidades do tempo vivido. Nascem do desejo de entender o
mundo e tem origem no cotidiano. Levam a marca de seu tempo, de sua cultura,
representando o sujeito coletivamente, transmitido de forma oral de geração a
geração. Tentam acalmar o homem naquilo que é desconhecido, que o deixa
inseguro e permanece como tradição, unindo e redirecionando as emoções
coletivas.
Na Idade Média, conhecida como “Idade das Trevas”, a ciência e seus
métodos foram impedidos de realizar avanços, tudo isso em nome de Deus e da
religião, por entender que a vida e o homem bastavam nessa relação com Deus e
com seus supostos representantes legítimos na terra. Durante a História observa-se
que as relações entre os diversos saberes científicos, religiosos, filosóficos, artísticos
alternaram conforme as estruturas estabelecidas de poder, onde a lógica era
impressa de acordo com as instituições dominantes. Isso gerou certo distanciamento
da ciência para com as questões religiosas. O Iluminismo levou-nos a caminhar para
o outro extremo, posto que supervalorizava a objetividade e desprezava, na Idade
Moderna, tudo aquilo afeto à religiosidade, perdendo-se a perspectiva do sublime e
do sagrado (CREMA, 1997).
Assim como na Idade Média, grandes atrocidades foram cometidas em
nome da religião. Na Idade Moderna e na Idade Contemporânea, essas foram
legitimadas em favor do avanço da ciência. Esta passou a ser a detentora da
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verdade, pois a supervalorização da cientificidade, como única forma de
conhecimento, esconde e esquece outras formas como a filosofia, a arte, a tradição,
a religião e a cultura, causando uma redução e um prejuízo no modo como vemos e
transformamos a realidade.
Mas os fatos não acontecem cronologicamente de forma linear, pois vemos
sempre um dobrar e desdobrar nos acontecimentos históricos. Vez por outra, a
religião assume lugar de destaque nos caminhos e nas decisões no mundo,
imprimindo sua lógica, quase sempre questionada pela ciência, que tenta com seus
variados métodos se impor e retomar seu posto como última verdade.
Para Foucault (2006), a problemática tem seu foco nas concepções de como
se chega à verdade. Ora, o homem pode buscar a verdade através da
espiritualidade, que é possível no exercício da ascese. O sujeito, transformando-se,
torna-se sujeito capaz da verdade ou empreendendo outro caminho na busca do
próprio conhecimento, compreendendo que o conhecimento em si propicia o
encontro da verdade. Foucault (2006, p.21), ao descrever a concepção espiritual de
acesso à verdade, ilustra bem o impasse:
Para a espiritualidade, um ato de conhecimento, em si mesmo e por si mesmo, jamais conseguiria dar acesso à verdade se não fosse preparado, acompanhado, duplicado, conformado por certa transformação do sujeito, não do indivíduo, mas do próprio sujeito no seu ser de sujeito.
Foucault (2006) ainda acrescenta que o conhecimento toma lugar
proeminente nesta busca, no chamado “momento cartesiano”, que começa quando
ascende a verdade através do conhecimento e somente nele, sem que seja
necessária qualquer modificação ou alteração do sujeito. Esse mesmo sujeito é
capaz, por si mesmo e pelos esforços de conhecimento, reconhecer e ter acesso à
verdade. A lógica dessa estrutura é representada, segundo Foucault, na ênfase
dada ao “conhece-te a ti mesmo” e não como deveria ser no “cuidado de si”, que
compreende o poder e a capacidade do sujeito ser sujeito em si mesmo.
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Toda essa discussão traz o percurso ocidental de busca do conhecimento e
da espiritualidade. No Oriente, em povos da África e alguns povos nativos da
Oceania e das Américas, essa lógica não se repete ou mesmo integra
harmoniosamente essas duas possibilidades, perfazendo uma totalidade, como
comenta Boff (2006, p.37):
O caminho espiritual do oriente é o da totalidade, vale dizer, da unidade da realidade. As coisas não estão colocadas umas ao lado das outras, em justaposição, mas são todas sinfônicas, interligadas. Há uma grande unidade, mas uma unidade complexa, feitas de muitos níveis, de muitos seres diferentes, todos eles ligados e religados entre si (...) O drama é sentir-se um elo vivo e esquecer que este é um elo da única corrente de vida (...) A experiência de totalidade, uma experiência de não dualidade. Isso equivale a dizer: sentir-se pedra, planta, animal, estrela, numa palavra, sentir-se universo.
O mesmo acontece com as concepções espirituais indígenas e afro-
brasileiras, por ser um conteúdo profundamente enraizado na ecologia. O mundo, os
ambientes e seus moradores estão impregnados de uma energia cósmica,
penetrante no universo, na realidade e principalmente no homem que contagia sua
própria realidade com energias sutis de solidariedade e respeito por todas as coisas
vivas e inanimadas (PREVITALLI, 2005).
A Medicina ocidental consolida-se como prática científica apoiada no modelo
cartesiano de explicação do homem e do processo saúde-doença. Neste modelo, o
homem é visto como uma máquina, a doença é o mau funcionamento dessa
máquina e os profissionais de saúde são mecânicos que consertarão a máquina
com defeito. O objeto de estudo é a doença e seu enquadramento em entidades
patológicas e definições anátomo-químicas. Mas quais são as conseqüências disso?
Vasconcelos (2006: 26) denuncia:
A razão tornou-se o único meio aceito como legítimo de compreensão da vida e da definição dos caminhos de organização
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da sociedade capaz de levar ao progresso e ao bem estar, desvalorizando as percepções oriundas dos sentimentos, da intuição, da inspiração poética e da vivência religiosa.
A forma como percebem o mundo, a partir do conhecimento científico, é
dualista. Há o mundo da matéria, de tudo o que é concreto, e há o mundo do
espírito, sendo este último objeto de estudo apenas da filosofia e da teologia. Se
analisarmos essa dicotomia, muitos aspectos religiosos que influenciam o processo
saúde-doença não são levados em consideração, tampouco discutidos abertamente,
correndo-se o risco de infiltrarem-se nesses meios de forma silenciosa e pouco
crítica, como denuncia Vasconcelos (2006).
Esse modelo biomédico começa a entrar em crise no século XX devido à
crítica ao modelo centrado na doença, a falácia de um conhecimento objetivo
afastado da subjetividade e as conseqüências catastróficas da supervalorização da
razão em relação à sensação, à emoção e à intuição.
Percebendo que esse modelo não dá conta de toda a complexidade da vida,
abre-se espaço para outras formas de explicar os processos vividos pelo homem.
Ampliando a discussão sobre o modo de fazer ciência na saúde, a religiosidade
insere-se numa construção objetiva de investigação que ressignifica variadas
dimensões nas práticas de saúde, desde que discutida de forma aberta e crítica.
Muitos hoje têm interesse por questões espirituais e pelas formas de vivê-la,
sem obrigatoriamente seguir uma instituição formal, dando origem à experiência
pessoal de transcendência, isso devido ao descrédito das variadas formas
constituídas de caminhos religiosos ou, até mesmo, de projetos de emancipação
humana, como o liberalismo, o nazismo e o comunismo. Inundado de muitas
filosofias, religiões e observando os limites do modelo cartesiano de razão e ciência,
o homem se pergunta sobre o sentido da vida, a existência de Deus e de
perspectivas quanto à ciência e ao seu futuro.
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As concepções de espiritualidade são diversas e grandes pensadores
dedicaram esforços para compreender esse tema. Com base nessas concepções
destacamos três abordagens que mais influenciam a saúde: a psicanálise, a
psicologia analítica e a análise existencial.
Para Freud, essa busca espiritual ou mesmo religiosa é conseqüência do
sentimento de desamparo. Frente a esse sentimento a idéia de salvação, e de
imortalidade, de lugar protegido e seguro, de lugar paradisíaco tranqüiliza e
reestrutura o homem. Essa concepção de imortalidade surge nos níveis primários de
desenvolvimento infantil, sendo posteriormente substituído pelo conhecimento da
realidade. Freud (1976) esclarece que a idéia de Deus, divindades, rituais, leis,
normas e princípios morais são uma representação do complexo centrado na figura
paterna. Mesmo reconhecendo que os aspectos espirituais ou religiosos sevem para
segurar ou barrar a pulsões anti-sociais e trazer certo grau de conforto para o
homem, devem ser encarados como ilusão humana.
Um dos mais ilustres discípulos de Freud e depois dissidente, Jung, traz
uma visão diferente da espiritualidade e, por isso mesmo, seu rompimento com seu
mestre. Para ele, a espiritualidade não seria uma resposta à angústia ou ao
desamparo frente à morte, mas antes algo inerente ao homem. A morte, por tanto,
seria encarada como a conquista da totalidade, antes precedida da sabedoria
adquirida durante as experiências e oportunidades da vida, fruto de um estágio de
desenvolvimento humano além do estágio infantil e juvenil. Os conteúdos
vivenciados pelo homem seriam, portanto, reprimidos e reapareceriam de forma
coletiva em um contexto individual. A transcendência seria a manifestação do
simbólico, não de forma consciente, mas advinda da psique inconsciente e coletiva,
dando o caráter de revelação ao conteúdo experienciado (JUNG, 1984).
Frankl, que também foi discípulo de Freud e teve a oportunidade de
vivenciar na prática suas teses nos campos de concentração nazistas quando
esteve como prisioneiro, entendia que o homem possui a dimensão espiritual como
forma de organizar a existência, que permite encarar à vida e a morte em uma visão
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de liberdade. Para ele, o homem configura-se homem na busca pelo sentido da vida
e no querer um significado para sua existência. Concebe a espiritualidade como algo
que traz objetivo a vida e gera o conforto e a esperança frente ao sofrimento
inevitável (FRANKL, 1991).
Abandonando o modo dualista de ver o mundo e o homem, herança
platônica, iluminista e avançando ao reducionista contemporâneo, rejeitamos a
concepção de que o ser humano é bidimensional e aceitamos a
multidimensionalidade proposta por Frankl. Escolhi me deter à análise existencial
por permitir compreender o fenômeno espiritual de forma ampla e livre da redução
comumente imposta, além de dar ênfase ao sentido da vida como forma de vivenciar
a espiritualidade.
2.2 Os conceitos de transcendência e transparência como forma de entender a espiritualidade
Partido das concepções de Frankl, o homem possui três dimensões
(corporal, mental e espiritual) que se interpenetram, conservando a unidade do ser.
Apesar de sua multiplicidade, reconhece suas diferenças ontológicas, mas, também,
sua unidade antropológica. Isso está posto como vemos em seu comentário:
A imagem do homem se dá na coexistência entre sua unidade antropológica e suas diferenças ontológicas, entre o modo único de ser que o homem possui e as modalidades diferenciáveis do ser, no sentido de existir (FRANKL, 1990, p.40).
Mas poderíamos nos perguntar: o que é essa dimensão espiritual? Como
diferenciá-la de aspectos religiosos e psicossociais? Como perceber e caracterizar a
espiritualidade no homem?
O que diferencia o homem dos demais seres vivos é a dimensão espiritual
que Frankl denominou de noético, âmbito que torna esse homem um ser facultativo,
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ou seja, com capacidade para decidir, mesmo sendo também fático, devido a seu
determinismo psicobiológico.
Um aspecto que se pode destacar, para tentar responder a tais questões,
está naquilo que é próprio do espírito, sua liberdade e sua responsabilidade. Na
compreensão frankliana, o homem é livre ôntica e ontologicamente, em sua
condição primária. Esta liberdade origina-se da dimensão espiritual, parte da
pessoa, e não se submete aos condicionantes biopsicossociais ou mecanismos de
qualquer sorte.
É através da liberdade que o homem toma posição e atitude frente aos
diversos condicionantes da vida, sem ela não há qualquer decisão. E uma vez que é
pessoal e única não pode ser imposta, precisa ser assumida através da livre
expressão. Jamais poderia originar-se de outra dimensão a não ser da espiritual,
visto que todas as outras estão atreladas a leis e mecanismos neurobiológicos,
psicobiológicos ou psicossociais (RODRIGUES, 1991).
A liberdade vai estar sempre ligada à responsabilidade. Rodrigues (1991)
ressalta que a responsabilidade vem antes da liberdade: primeiro, o homem é
responsável por sua vida, por si próprio, pelos outros e pela sua consciência; a partir
daí, torna-se livre para escolher com base em seus valores, objetivando-os e
partindo de si próprio. A responsabilidade deve ser entendida como habilidade de
responder a algo. Esse “algo” está fora de nós ou além de nós, portanto, algo
transcendente ao homem. Podemos dizer que a responsabilidade é o exercício de
transcendência. Somos convidados constantemente a nos posicionar frente à dada
situação para um “tu”, para um “nós”, para um “outro”, isso nada mais é que
responsabilidade ou transcendência.
A espiritualidade está intimamente ligada à concepção de transcendência,
como atesta a definição de espiritualidade de Boff (2000: 23):
25
Experiência de contato com esta dimensão que vai além das realidades consideradas normais na vida humana. Que as transcende. Seria a arte e o saber de tornar o viver orientado e impregnado pela transcendência
Corroborando a definição supracitada, Modin (1980: 263) também traz a
transcendência como elemento chave para compreender a espiritualidade ao dizer:
O homem está em condições de sobrevoar todo o mundo da experiência, valorar e julgar o presente e o passado e antecipar o futuro, porque traz em si um elemento de imaterialidade, ou melhor, de espiritualidade.
Segundo Schramn (2007), a transcendência pode ser apreendida de duas
formas: transcendência vertical e transcendência horizontal. A primeira pressupõe
uma estrutura hierarquizada nas relações entre humanos e um ser superior ou de
seus pretensos representantes, onde é necessário se submeter à decisão de um
“outro”. A segunda não se fecha no imanentismo, mas propõe uma ponderação
reflexiva dos princípios absolutos e da autoridade não revogável, rompe com a
hierarquia e estabelece a horizontalidade, exemplificada no conceito Homem-Deus,
do Cristianismo, construindo uma ética emancipada do sobrenatural e do divino.
É importante deixar claro que a transcendência aqui referida, e que se adota
neste estudo, não se contrapõe à imanência, pois é compreendida como dimensão,
não percebida a priori, da realidade existencial, mas algo presente, nem sempre
revelado, da experiência humana, não fora dela, mas, sobretudo, imbricada nela,
possibilitando um desdobrar de uma realidade não vista, mas presente (BOFF,
2000).
Sim, pelo que vimos, é possível integrar duas concepções aparentemente
opostas, transcendência e imanência, como definiu Boff (2002), em “transparência”,
que é uma síntese dialética, significando a presença da transcendência na
imanência.
A esse respeito, Vasconcelos (2006: 36) explicita essa transparência:
26
Um ser humano nunca pronto, sempre em construção. Ser marcado por limitações imensas em seu corpo, na sua inteligência e capacidade de afeto; ser enraizado num determinado local, tempo e contexto social e cultural; submetido a situações de opressão, de miséria e de falta de perspectivas de superação. Mas, nas mais profundas situações de opressão, seus sonhos e desejos latejam incessantemente, empurrando-o para uma teimosia e persistente busca de superação... Nos momentos mais difíceis, seu humor relativiza todas as coisas e delas ri, mostrando que não está definitivamente encurralado. Esta dimensão de abertura e força do ser humano, de romper barreiras, de superar proibições e de ir além de todos os limites é a sua transcendência.
Tudo o que foi tratado até agora mostra-nos dois pontos importantes: 1 – A
espiritualidade não está ligada simplesmente a questões metafísicas; antes disso, é
parte integrante do todo que é o homem; 2 – O conceito de espiritualidade não pode
ser confundido com o de religiosidade, pois o primeiro é mais amplo e complexo.
Frankl (1994) revela a capacidade de transcender do homem. Para ele,
advém de sua dimensão noética ou espiritual, pois nela se encontra a liberdade de
decisão frente a todos os condicionamentos humanos, inclinando-se para o
interesse prático e artístico, o pensamento criativo, a intencionalidade, a
religiosidade, o senso ético e a compreensão de valores e revelando a
responsabilidade como outro aspecto da espiritualidade, porque inclui o “para que”
da liberdade humana. Nesta perspectiva, o homem é visto como responsável por
cumprir e realizar o sentido e os valores. Assumir isso é o sentido da existência
humana.
Uma outra concepção de espiritualidade está ligada à forma peculiar de
estar no mundo e de se relacionar com as pessoas, e empreendendo uma teia de
ligações frente ao materialismo e às dificuldades para se abrir a totalidade
(TEIXEIRA, 2004). É também “um amor bem pensado à vida” em seu poder de fazer
escolhas e encontrar sentido na vida e, em todos os seus momentos, extrair aquilo
que é importante para o crescimento mesmo em fase de sofrimento (FRANKL, 1994;
PAIVA, 2004).
27
É importante ressaltar que é possível e importante o desenvolvimento da
espiritualidade, o que ocorre em estágios, que Leloup e Boff (1997) chamam de
itinerários espirituais.
O primeiro estágio que se pode descrever como encontro com o “numinoso”
acontece através de processos individuais de interiorização, que conectam as
dimensões profundas de subjetividade e proporcionam muitas vezes um estado
alterado de consciência. Esse estado traz ao indivíduo encontro com conteúdos
surpreendentes e muitas vezes capazes de transcender a dor e o sofrimento, além
de causar um bem-estar profundo, que alguns místicos chamam êxtase. Segue-se a
este um estado de metanóia, de busca dos significados da experiência vivida, além
das consolações, estado de paz e consolação, que poderá trazer riscos espirituais
se nos fizer parar no caminho, nos fixar e impedir de continuar o itinerário.
Os estágios seguintes são o da dúvida e o do vazio. É nesse momento que a
pessoa, saída da experiência do numinoso, vivencia a volta à realidade.
Questionamentos, dúvidas e incertezas assolam e lhe tiram a paz. Esse estado pode
muito bem ser representado por um reservatório vazio e sujo que recebe
inesperadamente uma quantidade inimaginável de água, e da mais pura. Até que a
sujeira já existente possa “sentar”, ir para o fundo, o reservatório e a água terão
aparência lamacenta, descrevendo assim esse estágio. De nada adiantará tentar
limpar a água, ou acrescentar mais água ao reservatório. É preciso esperar, viver
esse tempo, que se configura difícil mais imprescindível para avançar outros
estágios.
Os últimos estágios são a abundância da transcendência e o retorno ao
cotidiano, onde acontece a verdadeira, duradoura e autêntica mobilização do
potencial da espiritualidade, o que Vasconcelos (2006) chamou de espiritualidade
engajada, na qual a força oriunda do espírito humano já conectado, não somente
consigo mesmo, mas com a vida é empregada para uma causa ou para alguém. O
êxtase agora é conseguir, com alívio da dor de alguém, com a luta contra a injustiça,
contra a miséria ou no empenho de se conseguir algo em prol dos outros e da vida,
28
vivenciando, assim, o pleno sentido de espiritualidade, conforme descrito por Leloup
e Boff (1997: 24):
Espiritualidade significa alimentar em nós esta fonte de onde jorra, continuamente, a vida. A espiritualidade é um ponto que coloca a centralidade da vida a partir daqueles que menos tem vida (...) toda espiritualidade tem dimensão ética de defender e expandir a vida...
Para Leloup e Boff (1997), aqueles a quem se referem como os que
menos têm vida são os trabalhadores explorados, os pobres, os excluídos e
marginalizados, os injustiçados, os humilhados e todos os usurpados em sua
dignidade e cidadania. Esses são frutos do sistema capitalista, que concentra os
meios de vida, saúde, educação, habitação, alimentação e lazer nas mãos de
poucos. Vivenciar a espiritualidade requer um comprometimento com os que sofrem,
valorizando suas experiências e conhecimentos, percebendo que há muita riqueza
de vida neles. Reconhecer isso exige ver todos os aspectos de vida dessas
pessoas, não reduzindo ou limitando aos aspectos econômicos.
Os que vivem esse estágio de engajamento espiritual ou espiritualidade
ativa empreendem incansavelmente uma luta contra o sistema estabelecido e se
misturam de forma tão homogênea que se fazem eles próprios excluídos,
injustiçados e humilhados, conseguindo ajudar não só aos outros, mas a si mesmos
em participação. Temos muitos exemplos de pessoas que provavelmente
conseguiram esse nível espiritual: Francisco de Assis, Betinho, Madre Tereza de
Calcutá, Luther King, Gandhi.
Ressalta-se que esse itinerário espiritual não é estanque e não ocorre de
forma linear. A busca por esse caminho espiritual se dá em muitas idas e voltas, não
é traçado um modelo de santidade, parte-se do pressuposto de que vivermos os
aspectos espirituais é valorizar as ações solidárias, o respeito à diversidade e as
diferenças e assegurar a justiça a todos.
29
Frankl (2003) alerta que só realmente encontraremos o sentido da vida
se nos esquecermos, deixarmos de lado nosso modo egoísta de viver e passarmos
a buscar algo que realmente valha a pena, além de nós mesmos.
A enfermagem, desde sua origem, tem enraizado esse paradigma de
atuação como prática espiritual através do altruísmo e solidariedade, muitas vezes
confundida com generosidade e gratuidade. Estereótipo que causa o panorama
profissional comumente visto: baixos salários e condições precarizadas de trabalho.
Como entender esse processo e de que forma a enfermagem atua espiritualmente?
Discutiremos essas proposições nos tópicos seguintes.
2.3 Revisitando a Enfermagem e sua prática espiritual
A prática de enfermagem, compreendida como atividade do cuidado, não é
nova. Se tivermos o mesmo conceito de enfermagem de Horta (1970) “gente que
cuida de gente”, então essa prática remonta ao surgimento do homem na terra.
Durante toda a sua trajetória histórica, a Enfermagem tem sofrido influência de
várias áreas do conhecimento e tem incorporado saberes que possibilitam um
cuidado condizente com o que se pensa e se exige em cada época. Mas ao nos
referirmos à Enfermagem como ciência, esta tem seu surgimento por volta do século
XIX, com Florence Nightingale, conhecida como a Mãe da Enfermagem Moderna e a
Dama da Lâmpada, alusão ao seu desvelo em cuidar dos doentes, mesmo em altas
horas da noite.
O histórico do exercício de enfermagem esteve mesmo antes de se
consolidar como ciência e muito depois disso, a cargo de religiosos. A expansão do
Cristianismo favoreceu diretamente o interesse dos cristãos em cuidar dos doentes,
dos pobres e desamparados, por cumprir com os princípios de amor, compaixão,
misericórdia e altruísmo ensinados por Cristo. Nesse contexto, o interesse cristão de
30
ajudar o outro foi o responsável pela criação de ordens religiosas e instituições de
acolhimento aos doentes. Entre as atividades prestadas a essas pessoas, estavam
os cuidados espirituais, que eram compreendidos como forma de salvar as almas.
Tais cuidados estavam direcionados às práticas religiosas, visando a propagação da
fé cristã (TURKIEWICZ, 1995).
Florence deixou para a enfermagem um legado: perceber o homem em
todas as suas necessidades, sendo essas compreendidas por ela de forma ampla.
Florence teve uma formação cristã, tanto familiar como profissional. Antes de criar
seu modelo de enfermagem, esteve junto às diaconisas alemãs para aprender seu
ofício. Em seus registros e normas, na sua escola de novas enfermeiras, princípios
morais e religiosos rígidos faziam parte do treinamento. O modelo Nightigeriano se
espalhou pelo mundo inteiro como excelência em enfermagem, consolidando e
reafirmando também os princípios religiosos (NIGHTINGALE, 1989).
Esse modelo foi determinante para a divisão do trabalho em enfermagem,
que vemos até hoje nas diversas categorias: enfermeiro; técnico de enfermagem;
auxiliar de enfermagem e parteiro. A estrutura hierarquizada da Enfermagem
assegura o saber à classe de enfermeiros e o fazer ao nível médio e elementar da
profissão, contribuindo, assim, para a desqualificação profissional, disputas de poder
e o enfraquecimento político da profissão (MELO, 1986).
A Enfermagem em sua História, além da influência religiosa e da divisão do
trabalho, estrutura-se como profissão feminina, isso ocorreu durante muito tempo,
trazendo uma idéia deturpada da profissão ligada sempre à submissão e a trabalho
de menor importância, ligada à figura da mulher. A hegemonia médica na saúde
que, por sua vez, representada eminentemente pela figura masculina, reafirma e
imprime submissão à enfermagem e a classifica como área inferior e dependente.
Essa estrutura social nunca foi aceita passivamente, não devemos esquecer de que
nesse percurso sempre houve mulheres corajosas, inteligentes e competentes que
mostraram uma forma de superação e o rompimento desse modelo, através de
habilidades e competências que as distinguiam e traziam mudanças na visão social
31
da enfermagem, tornando-as respeitada e, por isso, encontraram lugar destacado na
saúde (PIRES, 1989).
Uma das estratégias de construção científica de enfermagem de forma
independente, deu-se com o estudo e a categorização de técnica e de
procedimentos de enfermagem e, posteriormente, com a criação de teorias
aplicadas. Para Penha e Silva (2007), o que norteia os cuidados de enfermagem é
seu aparato teórico, pois, através das teorias, é possível descrever e explicar os
relacionamentos entre indivíduos, grupos, situações ou eventos e mesmo prever
desdobramentos destes fenômenos. Apesar de atribuírem a Florence a elaboração
da Teoria Ambientalista, somente a partir da década de 50 do século passado,
surgem as primeiras teorias de enfermagem.
Essas teorias têm como base o estudo das relações humanas e podem ser
agrupadas de duas formas (PENHA; SILVA, 2007; GEORGE, 2003):
1- Interação Recíproca (entendem que essas relações acontecem com seres
humanos que possuem partes ou dimensões, mas vistas em seu conjunto). Entre as
teoristas que estão nesse grupo: Peplau; Orlando; King; Orem; Levine; Johnson;
Roy; Leininger; Neuman e Watson;
2- Ações Simultâneas (o homem é concebido por padrões de
comportamento ao invés de partes ou dimensões, esses padrões envolvem
sentimentos e são elaborados a partir das relações). As teoristas desse grupo são:
Horta; Rogers; Newman e Parse.
O contexto histórico e social em que se insere a enfermagem é importante
para compreendermos como se dá seu desenvolvimento e chegarmos à
espiritualidade e a assistência espiritual de enfermagem.
32
Segundo Huf (1999), os primeiros estudos sobre espiritualidade como
fenômeno para os cuidados de enfermagem datam do surgimento também das
primeiras teorias. Ela destaca a classificação dos problemas de enfermagem de
Abdellah, em 1959, o modelo de relação interpessoal de Travelbee, em 1969, o
roteiro de necessidades espirituais de Stoll, em 1979, a assistência espiritual de
Daniel, em 1983 e Fish & Shelly, em 1988, a filosofia e a ciência da assistência de
enfermagem de Watson, em 1985, os 14 componentes da assistência de
enfermagem de Handerson, em 1989, e o modelo de sistemas de Neuman, em
1989.
Dentre as teorias de enfermagem, poderíamos dividir em três grupos que
exploram a espiritualidade (PENHA; SILVA, 2007):
1- As que pouco ou nada referem de espiritualidade (Peplau, Orlando, King e
Orem).
2- As que o conceito de espiritualidade está contemplado na teoria (Levine,
Roy, Leininger, Rogers e Horta).
3- As que trazem o conceito de espiritualidade como foco central da teoria
(Neuman, Newman, Parse e Watson).
Percebe-se que, apesar dos diversos estudos sobre espiritualidade e a
assistência de enfermagem, ainda é um problema a inclusão no processo e prática
de enfermagem. Isso fica claro na retrospectiva histórica da produção sobre
espiritualidade da Revista Brasileira de Enfermagem, primeira publicação científica
brasileira de enfermagem, que data de 1947 e permanece até os dias atuais,
realizada por Sá e Pereira (2007).
As autoras constataram que a produção sobre o tema está atrelada a
religião principalmente nos anos 50 e 60, e, ao longo dos demais, acrescentam-se
33
reflexões de caráter ético, bioético, filosófico e a tentativa de compreender a
espiritualidade não somente através da pessoa cuidada, mas também dos
profissionais. Vê-se na produção de enfermagem a necessidade clara de diferenciar
os aspectos psicossociais e religiosos isoladamente de espiritualidade.
Para Sá e Pereira (2007), as tendências identificadas quanto à
espiritualidade mostram-se complexas e são entre elas: espiritualidade como parte
do caráter e da moral do indivíduo que escolhe fazer enfermagem; espiritualidade
como filosofia de trabalho do enfermeiro; espiritualidade como parte do currículo e
da formação do enfermeiro; espiritualidade na assistência ao paciente com
necessidades humanas básicas; significado de espiritualidade para quem é cuidado;
significado de espiritualidade para quem cuida; espiritualidade e humanização;
espiritualidade, morte e morrer; e espiritualidade sob a luz da ética e da bioética.
Precisamos salientar que a Enfermagem, como área da saúde, também
sofreu a influência do modelo biomédico em sua prática, posto que supervaloriza as
técnicas, tratamento, tecnologias duras e muito pode se notar a ênfase dada à
doença ao invés da pessoa, alvo do cuidado. Nessa situação, a espiritualidade e as
outras necessidades não biológicas assumem lugar secundário ou inexistente. A
avaliação e as intervenções de enfermagem devem contemplar todas as
necessidades, desde que precisem ser satisfeitas.
Stoll (1979) desenvolveu um roteiro para identificar as necessidades
espirituais do paciente. Ela as subdividiu em quatro partes:
1- Crença em Deus ou no sobrenatural;
2- A força e a esperança na vida;
3- Práticas e necessidades religiosas;
34
4- Relação entre crenças espirituais e processo saúde/doença.
De acordo com Guimarães (1984), o entendimento amplo da espiritualidade
e a capacidade precisa de observação do enfermeiro permitem a identificação das
necessidades espirituais. A autora relaciona que comportamentos apresentados
pelos pacientes podem ser indícios de crise espiritual: desespero, falta de propósito
na vida, perda de fé, vontade de morrer, falta de propósito para o sofrimento,
depressão severa, recusa de se comunicar com entes queridos e desistências em
participar das atividades religiosas.
Ainda, Daniel (1983, p.165) apresenta as possíveis manifestações de
necessidades espirituais não satisfeitas, entre elas:
Medo de ficar sozinho, da morte, do sofrimento, de negligência, de deixar os filhos sozinhos, de perder o emprego, de ficar com incapacidade física; choro; solicitações freqüentes; isolamento; solidão; questionamentos; dependência; queixas excessivas; expressão de sentimento de culpa, de falta de motivação e propósito, de rejeição, de desvalorização da auto-estima, da auto imagem; angústia; demonstração de carência afetiva, com solicitação freqüente de companhia; desesperança; agressividade verbal, crítica negativa; depressão; desespero; sintomas somáticos; semblantes tristes; insônia; desconfiança; projeção de sentimentos e pensamentos; atitude de desprezo e displicência.
Poderíamos nos perguntar se tais manifestações não podem ser
confundidas com manifestações oriundas também da dimensão psicofísica. Sem
dúvida poderiam, mas vale esclarecer que tanto Guimarães (1984) quanto Daniel
(1983) consideraram não somente as necessidades e manifestações espirituais,
sobretudo as psicoespirituais. Provavelmente pela dificuldade de delimitar o que é
exclusivamente espiritual e o que é psicossocial, além de compreender que o
homem é o todo e que suas dimensões se interpenetram e repercutem umas nas
outras, conforme apregoou Frankl (1990).
35
A North American Nursing Diagnosis Association – NANDA (1999), inclui em
sua taxonomia quatro diagnósticos de enfermagem que dizem respeito à
espiritualidade: angústia espiritual, risco para angústia espiritual e potencial para
bem-estar espiritual. Para Heliker (1992), esses diagnósticos compreendem tanto
aspectos religiosos como espirituais e relaciona como características definidoras os
questionamentos quanto ao sentido da vida, ao sofrimento, à morte ou ao sistema
de crenças. Todas essas características definidoras desses diagnósticos são
corroboradas por Hensley (1994).
Tratando agora das intervenções de enfermagem que contemplam as
necessidades espirituais, podemos implementá-las desenvolvendo o relacionamento
terapêutico enfermeiro-paciente, cujos objetivos são: favorecer o encontro do sentido
da vida, favorecer a esperança, apoiar espiritualmente e clarificar valores (FISH;
SHELLY, 1988).
Para Olivieire (1985), essa relação, que precisa ser desenvolvida a fim de se
prestar cuidados espirituais, exige que o enfermeiro transcenda e forme uma
unidade com o outro.
Outra maneira de prestar esses cuidados e desenvolver uma relação de
ajuda é através do trabalho de grupo. No grupo, é possível favorecer a troca de
experiências, o sentimento de pertença, de não estar sozinho em dada situação, ter
a possibilidade de ajudar e ser ajudado e perceber um propósito comum (MUNARI,
1995).
Nessa relação terapêutica, o enfermeiro deve estar atento a um grande
número de fatores, como: tipo de problema enfrentado pela pessoa cuidada,
disponibilidade para o acompanhamento, enfrentamento de questões existenciais
envolvidas, sua formação e suas habilidades para o cuidado espiritual. Todos esses
fatores precisam ser levados em consideração se quisermos cuidar das pessoas e
36
ajudá-las a suprir suas necessidades e seus desejos. Trataremos, pois dessas
questões no tópico que se segue.
2.4 Cuidando de pessoas com câncer: vivenciando a dor, a morte e o sentido da vida
Os profissionais de saúde vivenciam constantemente momentos de crise,
tanto das pessoas submetidas aos seus cuidados, quanto de seus próprios, no
envolvimento num emaranhado de sentimentos e pensamentos, nos quais
elementos subjetivos emergem. Em meio a tudo isso, esses profissionais precisam
atender às demandas desses pacientes de forma que consigam alcançar os
objetivos de seu cuidado.
Para que isso ocorra, é preciso que os cuidadores estejam apercebidos de
seus próprios processos interiores e também dos lampejos, muitas vezes
inconscientes que apontam uma saída ou uma estratégia para melhor assistir aos
pacientes. A forma segura de alcançar essa sabedoria é mergulharmos dentro de
nós mesmos, caminho árduo, para atingi-lo de forma completa, dado o dinamismo
da vida, que sempre apresenta-nos algo a conhecer. Há sempre, ainda, algo que
não se mostra plenamente, sem falar nos constantes processos de transformações
conscientes e inconscientes.
Muitas são as formas de empreender essa caminhada: as tradições
religiosas, as psicoterapias, as artes, as crises vivenciadas e os encontros com
outras pessoas. Esses processos propiciam ligações sutis com fatos ocorridos,
sentimentos reprimidos não considerados. Assim, intuições e sensações são
percebidas, relembradas e valorizadas; os valores são confrontados e tudo vai
gerando energia e aumenta a capacidade de interpretar, refletir e ressignificar as
coisas, desenvolvendo uma inteligência espiritual (BOFF, 1996).
37
Os efeitos da busca de nós mesmos refletem diretamente na forma como
cuidamos de nossos pacientes. Esses efeitos são descritos por Vasconcelos (2006:
67):
Acesso à linguagem simbólica do inconsciente. Aprende a lidar com imagens e pequenas histórias carregadas de simbolismo e poder entrar num diálogo mais profundo com pacientes e grupos envolvidos em problemas de saúde importantes. Passa a poder participar de forma voluntária do processo de elaboração do sentido e da mobilização interior, centrais na dinâmica de enfrentamento da crise do viver de seus pacientes. Abre a porta de acesso ao saber de manejo da subjetividade e das relações que se encontra acumulado no inconsciente.
Nos serviços de saúde, os profissionais deparam-se rotineiramente com
problemas tão complexos que não conseguem visualizar outro caminho a não ser se
fechar e criar uma couraça de insensibilidade, reforçada, inclusive, na formação e
exigida pelos mestres. Para quebrar esse paradigma, é imperativo o
desenvolvimento das dimensões racional, sensitiva, afetiva e intuitiva. Do contrário,
o sofrimento dos pacientes, intensos e constantes, tornar-se-ão insuportáveis para
os cuidadores.
É a partir da espiritualidade que os profissionais conseguirão superar essa
tendência de afastamento. Nessa perspectiva, a espiritualidade mostra-nos o poder
do homem de criar, de transformar e de decidir mesmo em situações extremas de
comprometimento, pela transcendência. Vislumbra-se a possibilidade de, mesmo no
sofrimento, emergir criatividade, crescimento e superação (PESSINI, 2004).
O sofrimento e a proximidade da morte mobilizam muitos processos nos
pacientes, uma vez que o sentimento de fraqueza frente a situações irremediáveis
traz abertura e disponibilidade para o desenvolvimento de relações afetivas intensas,
reorganização de prioridades na vida. Além disso, possibilita encontros plenos de
significados que possibilitam o perdão, a solidariedade, o amor e o respeito à vida de
modo geral.
38
Por termos escolhido e convidado pacientes com câncer para participar
desse estudo como co-pesquisadores, demos ênfase e nos detivemos a estes na
discussão de experiências e necessidades espirituais, compreendendo nossas
reflexões.
As pessoas com câncer muitas vezes enfrentam o medo da dependência, da
dor, da degeneração, da incerteza, da solidão, do isolamento, da separação dos
entes queridos e de serem abandonadas pelos profissionais que delas cuidam. Para
Kóvacs (2007), essas pessoas vivenciam o luto da perda de si mesmas e das
pessoas próximas, além de apresentarem manifestações de angústia espiritual entre
as quais: o temor de não serem perdoadas por Deus a imprevisibilidade do que há
após a morte e a falta de sentido na vida.
Da dor e do sofrimento próprios da crise podem gerar felicidade e paz,
mesmo que não seja num momento tranqüilo, permeado muitas vezes de ansiedade
e de desespero, se, nas elaborações subjetivas, forem buscados sentidos para
mobilizar a reorganização. Cabe ao profissional de saúde favorecer o encontro do
sentido do sofrimento a partir de valores dos que sofrem (FRANKL, 2003).
Breitbart (2003) relata que muitos pacientes com câncer, apesar de
vivenciarem a ameaça em suas vidas, puderam fazer grandes reviravoltas,
priorizando o que era significativo, mesmo na iminência de morte. Observou também
que, quanto maior a paz e a compreensão do que está acontecendo, melhores são
as respostas à dor, e melhor é o enfrentamento à doença e, ainda, há uma melhor
qualidade de vida.
Mas não se pode negar que a dor, o sofrimento e a morte iminente geram
angústia espiritual. Caso o paciente não encontre sentido para seu estado, seu
desespero e seu sofrimento podem se tornar intensos, porque está em jogo sua
integridade pessoal e acima de tudo, existencial.
39
Sounders (1991), uma das fundadoras dos hospices (serviços de saúde que
prestam cuidados paliativos a pessoas sem possibilidades terapêuticas) da
Inglaterra, formulou o conceito de dor total e descreve que a pessoa com câncer
vivencia: dor física que é a sensação dolorosa associada às lesões reais; dor
psíquica que é o medo do sofrimento, da morte, do desconhecido; tristezas; raiva;
revolta; perdas; inseguranças; incertezas; desespero; depressão; dor social que é
causada pelo isolamento, rejeição, abandono, mudanças de papéis, dependência e
inutilidade; e dor espiritual, que é caracterizada pela falta de sentido na vida e na
morte, medo do pós-morte, do submeter-se, das culpas perante Deus, busca de fé,
de conforto espiritual.
Kubler-Ross (2000), em seus estudos com pacientes terminais, descreve as
cinco fases do processo de morte e morrer: negação, raiva ou ira, barganha,
depressão e aceitação. Também alerta que a forma de experienciar essa situação é
individual e temporal, sendo, portanto, necessário realizar o cuidado de forma
específica para cada caso.
Segundo Koenig (2001), os pacientes que tinham crenças espirituais,
mostravam-se mais satisfeitos com a vida e sentiam menor dor em comparação com
aqueles sem crenças, referindo ainda que a expressão da espiritualidade está
relacionada a menor risco de depressão, de complicações somáticas, de suicídio e
de hospitalizações.
De acordo com a experiência de Breitbart (2003), os pacientes querem
conversar com os cuidadores sobre espiritualidade. Segundo ele essa necessidade
está relacionada com a dignidade no processo de morte e morrer. Ressalta ainda
que se busca a existência plena e não apenas a sobrevivência. Entre as
necessidades espirituais mais importantes dos pacientes, destacam-se as seguintes:
40
1- Ter assegurado sua dignidade como pessoa: muitos temem perder sua
identidade e seu direito de decidir sua vida, de se tornarem dependentes e inúteis;
2- Revisar sua vida: muitos encontram sentido na vida, fazendo uma revisão
dos acontecimentos, isso proporciona uma reavaliação de valores e busca do
sentido do seu sofrimento;
3- Buscar sentido: a doença pode proporcionar um reagrupamento de
valores e impelir a pessoa doente a buscar algo mais forte e maior que a própria
doença. A idéia de finitude imprime um desejo de encontrar um sentido para a
existência;
4- Livrar-se da culpa: a sensação de não ter cumprido tudo o que deveria e a
concepção de alguns pacientes que acham que suas doenças são conseqüências
de seus atos falhos podem gerar culpa e aumentar muito o sofrimento, por isso
oportunizar o alívio da culpa pode trazer conforto.
5- Reconciliar-se: é possível que enfrentemos questões não resolvidas,
mágoas, ressentimentos, assuntos inacabados. Favorecer o encontro com pessoas
envolvidas nessas questões e propiciar a reconciliação sem dúvida contribuirá para
a paz da pessoa doente;
6- Transcender a situação vivida: a pessoa doente pode transcender através
da relação com Deus, com a arte e com a natureza ou ajudando alguém em
dificuldade, mesmo sendo ele o mais necessitado;
7- Ser amado incondicionalmente: muitos pacientes sentem um profundo
sentimento de solidão, talvez porque seja difícil para parentes e amigos
acompanharem o sofrimento e a gradual deterioração física. É preciso reafirmar o
amor e estar presente nesse momento;
41
8- Ter nova relação com o tempo: os projetos a longo prazo podem não ser
reais, por isso, o tempo precisa ser definido de forma realista para que se possa
viver plenamente o tempo que se tem;
9- Permanecer vivo: é a idéia de continuidade, de se manter vivo, mesmo
que através de uma obra, da descendência, das palavras, de um feito ou da
lembrança. Como fruto de uma vida, encontra-se sentido.
Frankl (1992) ajuda-nos a entender que a espiritualidade está
intrinsecamente atrelada ao sentido da vida, concebendo a dimensão espiritual
como aquilo que permite que uma pessoa vivencie um sentido transcendente na
vida. Para ele, a vida tem um sentido transcendente para cada pessoa e nunca
cessa de ter, mesmo no último momento, onde cada pessoa deseja descobrir o
sentido de sua existência, a liberdade de descobrir e escolher a atitude a tomar
diante do sofrer. O autor descreve também as três principais fontes de sentido, a
saber: a criatividade, a experiência e a atitude.
Essas três fontes são descritas por Frankl (2005) como formas de se
encontrar sentido na vida, resultante do que ele considera como análise
fenomenológica da vivência imediata, genuína e não evasiva que é conhecida pelo
homem no seu senso comum, mesmo não sabendo defini-las:
1- Valores criativos: algo a ser feito ou produzido através do trabalho, das
obras de arte ou das descobertas e invenções;
2- Valores vivenciais: algo a ser vivenciado e amado através da afetividade e
da capacidade de amar, sendo o foco dessa vivência e amor a natureza, a beleza, a
cultura, as virtudes e as pessoas.
42
3- Valores atitudinais: atitude e firmeza frente a situações inevitáveis,
imutáveis ou fatais, compreendida como postura ativa frente ao sofrimento, a dor, a
culpa e a morte, revelando a força desafiadora e o poder de resistência do espírito.
Ajudar o paciente a descobrir seu sentido de vida é favorecer sua autonomia
de fazer escolhas e propiciar a abertura para sua espiritualidade que gerará
transformações pessoais e não se fechará no seu sofrimento. Antes, mostrará, não
só para seus familiares, mas também para os profissionais de saúde, que é possível
ter um enfrentamento satisfatório, mesmo vivenciando toda a sorte de problemas e
que situações aparentemente dolorosas podem ser ricas em significado, que só
tirarão proveito delas aqueles que não se eximirem de prová-las.
43
Sociopoética – forma espiritual de pesquisar “Vem caminheiro, caminho é caminhar, vai peregrino seu amor testemunhar.”
(Pe. Campos)
44
3 SOCIOPOÉTICA: FORMA ESPIRITUAL DE PESQUISAR
Gauthier (1999) descreve a sociopoética como uma prática social, de
pesquisa, de cuidado, de inclusão e espiritualidade, que aborda o conhecimento do
homem como sujeito autônomo, dono de sua história. Essa abordagem é
caracterizada principalmente pelo uso de métodos poéticos, ligados à arte, à
criatividade e conseqüentes, produção de uma poesia crítica.
Segundo Silva (1999), a sociopoética é considerado, um método da linha
epistemológica desconstrutivista, por assumir um compromisso de questionamento
radical das formas de conhecer, dos saberes científicos e de seus estatutos de
verdade, propondo alternativas de construção destes, ao tomar consciência de que o
conhecimento é parte da construção humana interessada e politicamente objetivada.
Nessa perspectiva, a pesquisa desempenha importante papel na busca do
aprimoramento de uma consciência crítica por parte de todos os envolvidos na
pesquisa, participantes e facilitadores.
As pesquisas realizadas nessa linha seguem algumas tendências: 1 – Não
procurar homogeneizar, mas acentuar as diferenças nas relações com o outro; 2 –
Envolver os participantes no processo de pesquisa, desde a negociação das
questões norteadoras, até a interpretação/análise dos dados; 3 – Por entender que
não podemos esgotar os significados de algo, que podem conter múltiplos
significados e que, nossas posições afetam a leitura que fazemos, a pesquisa se
constitui uma desconstrução da autoridade, na medida em que favorece e encoraja
o expressar de várias vozes e leituras; 4 – A força da pesquisa está quando
concebida como espaço para o cuidado, enquanto construtor de novos saberes e de
aumento da autonomia humana frente aos níveis de qualidade de vida expressos no
empoderamento; 5 – A pesquisa deve estar a serviço do homem, quebrando as
barreiras de toda sorte de discriminação - de gênero, raciais, sociais, étnicas e
religiosas (SILVA e RAMOS, 2001).
45
Meu contato com a Sociopoética deu-se através do Curso de Mestrado em
Cuidados Clínicos em Saúde, mais precisamente mediante os encontros com a
Professora Lia Carneiro Silveira, orientadora deste trabalho. A princípio, minha
intenção era usar o método fenomenológico para pesquisar a espiritualidade do
paciente terminal. Confesso que me abrir para um novo caminho metodológico não
foi tranqüilo nem fácil, visto que este era um projeto há muito pensado. Aos poucos,
sem que eu fosse forçado, fui conhecendo a sociopoética e descobrindo as
vantagens desse método e que era compatível com aspectos que eu desejava dar à
pesquisa, principalmente pelas tendências já descritas anteriormente. Confesso,
também, que um sentimento me invadiu e ainda é presente, de que realizei, pela
primeira vez, uma pesquisa de verdade, porque não sabia realmente que resultados
iria encontrar.
Como já foi dito, a sociopoética é uma prática social, e educativa de
pesquisar e cuidar, que propõe uma visão crítica da realidade, propiciando a
expressão dos desejos e dos poderes que agem de forma consciente e inconsciente
na vida de cada indivíduo (GAUTHIER, 1999).
Para Silveira (2004), esse método foi gerado do encontro entre a pedagogia
do oprimido, a análise institucional, a escuta mitopoética, a educação simbólica e a
esquizoanálise.
Da análise Institucional, proposto por René Lourau e George Lapassade
entre outros, surge à idéia de dispositivo, entendendo que é qualquer estrutura que
torna visível àquilo que está perpassado pelo cotidiano, sendo possível sua análise,
crítica e autocrítica. Dela parte também a proposta de análise de implicações,
deixando claro que o pesquisador não é neutro e suas implicações precisam ser
levadas em consideração (SILVEIRA, 2004; PETIT et al,2005).
46
A concepção de grupo pesquisador foi herdada da pedagogia de Paulo
Freire, quando torna o grupo, objeto da pesquisa e também co-pesquisador,
produtor de conhecimento, independente de classes, títulos e posições. Rompendo
com a visão que o conhecimento e sua produção são exclusividade e propriedade
de uma única casta privilegiada, acadêmica, abastada. Para a sociopoética é
necessário uma troca e respeito mútuo entre os saberes intelectuais e populares.
(PETIT et al, 2005).
A Esquizoanálise como propõem Deleuze e Guattari (1996), traz para a
pesquisa o entendimento que os processos subjetivos devem ser levados em
consideração, e não podem ser entendidos como processos individuais internos, ou
processos sociais de produção, antes um agenciamento de desejo e de produção
que geram formas de existir. Já a Escuta Mitopoética contribui com a proposta de
escutar o outro em todas as suas necessidades e desejos, fazendo da pesquisa
sociopoética uma junção de razão, emoção, sensação e intuição, trazendo o prazer
como forma de pesquisar (PETIT et al, 2005).
Cinco princípios orientam a implementação desse método. São eles
(SANTANA; SANTOS, 2005):
1. A importância do corpo como fonte de conhecimento. Esse princípio nos
lembra que precisamos manter o equilíbrio das formas de pensar, integrando
razão, sensação, emoção e intuição.
2. A importância das culturas dominadas e de resistência, das categorias e dos
conceitos que elas produzem. É reafirmado neste princípio a importância dos
saberes dos sujeitos da pesquisa, construindo-se a ciência na troca igualitária
de experiências, práticas e teorias. Para isso, é fundamental a composição
transcultural e multireferencial do grupo de facilitadores da pesquisa.
47
3. O papel dos sujeitos pesquisados como co-responsáveis pelos
conhecimentos produzidos, co-pesquisadores, visto que participam do
processo de pesquisa desde as decisões para o início até a sua conclusão.
Aqui se aplicam os princípios da Teoria da Ação Dialógica de Paulo Freire.
4. O papel da criatividade do tipo artístico no aprender, no conhecer e no
pesquisar, caracterizado, esse princípio, pelo uso de técnicas que expressam
a criatividade e estimulam o imaginário, sempre precedidas de uma atividade
preparatória, o que favorece a fluidez da criação imaginária.
5. A importância do sentido espiritual, humano, das formas e dos conteúdos nos
processos de construção dos saberes. Esse princípio é considerado por
Gauthier (2005) como síntese de todos os outros, implica um pesquisar-junto,
construção e aprendizagem mútua.
É necessário esclarecer que as variações das pessoas verbais, nas várias
etapas da escrita da pesquisa, ora na primeira pessoa do singular, quando se
tratava de questões minhas, ora na primeira pessoa do plural quando era
vivenciadas e produzidas pelo grupo ou mesmo quando era realizada em conjunto
com a orientadora, são frutos de uma produção também, ora individual, ora coletiva.
Descreveremos agora como implementamos os princípios da sociopoética
nesta pesquisa. O processo de produção de conhecimento – produção de conceitos
e constructos ou “confetos”, como esclarece Gauthier (2004), são conceitos
produzidos pelo grupo-pesquisador, abrindo a possibilidade de conceito e afetos se
misturarem e traçarem linhas de desterritorialização e configurações de novos
desejos. Acontecem em seis fases, incluindo-se nessas os aspectos éticos da
pesquisa:
48
3.1 Formação do grupo pesquisador
O local para a realização do estudo foi um hospital de referência em
cuidados com pessoas com câncer, localizado em Fortaleza, Ceará. O grupo
pesquisador foi formado inicialmente por 12 usuários, permanecendo durante toda a
pesquisa 08 usuários, identificados através do setor de acompanhamento
psicológico do referido hospital. Esse número está de acordo com a proposta
metodológica da sociopoética a qual orienta que o grupo pesquisador seja composto
por, no máximo, de 15 participantes, entendendo que este número não é excessivo
a ponto de prejudicar o tempo de discussão destinado a cada participante, nem tão
pequeno que, caso haja desistências ao longo da pesquisa, o grupo fique
extremamente reduzido (SANTOS, 2005).
Os critérios de inclusão foram: ter mais de 21 anos, por querermos trabalhar
especificamente com adultos; estar em condições físicas de participar das oficinas;
ter recebido o diagnóstico de câncer há mais de seis meses, por entendermos ser
necessário um período mínimo para o enfrentamento inicial do diagnóstico e
tratamento; além de ter recebido pelo menos um atendimento no setor de
acompanhamento psicológico nesse período, isso porque para o estudo na
instituição precisávamos nos vincular a um setor.
A pesquisa foi realizada na casa de apoio, instituição vinculada ao referido
hospital, que recebe pessoas de outros municípios e estados que precisam ficar em
Fortaleza para exames e tratamentos e não possuem lugar ou familiares onde
possam ficar enquanto permanecer na cidade.
3.2 A escolha do tema da pesquisa
Realizamos uma oficina de negociação no dia 04 de setembro de 2007.
Essa negociação acontece porque a sociopoética defende que os participantes da
pesquisa se tornem co-pesquisadores e, junto com o facilitador ou pesquisador
49
oficial, construam o conhecimento através da participação em todas as etapas da
pesquisa. Essa fase da pesquisa foi tranqüila, mesmo sabendo que conflitos podiam
surgir em razão da incompatibilidade entre a escolha do pesquisador e o interesse
do grupo pesquisador. A escolha por trabalharmos a espiritualidade através do
sentido da vida não constituiu grande conflito por se tratar de algo vivenciado como
necessidade ao enfrentar o adoecimento. Compareceram a essa oficina 12
pacientes, apenas 07 permaneceram durante as oficinas de produção, e alguns
entraram ou saíram durante o processo. Tal fato não compromete a pesquisa, pois a
sociopoética não está interessada em homogeneização, busca antes a valorização
da produção coletiva, ou seja, do grupo pesquisador.
3.3 A produção dos dados
Deu-se com a realização de 02 (duas) oficinas e uma de análise, nas quais
utilizamos técnicas/dispositivos que nos permitiram cumprir os princípios da
sociopoética. Na primeira, utilizamos uma adaptação da técnica dos “Lugares
Geomíticos”, criado, por Gauthier; na segunda, utilizamos uma técnica nova criada
para essa pesquisa que chamamos “O Filme da Minha Vida”. Essas técnicas são
exploradas detalhadamente nas descrições das oficinas. Utilizamos elementos
artísticos como forma de ir além do racional e adentrar no emocional, sensitivo e
intuitivo, ponto convergente que possibilita o contato com os conteúdos espirituais
conscientes e inconscientes e a relação desses elementos com o sentido da vida. O
material produzido foi formado por expressões artísticas, gravações de falas e
fotografias.
3.4 Análise multifacetada dos dados
A participação do grupo-pesquisador nesta fase é crucial e foi realizada após
cada oficina de produção. O grupo iniciou sua análise em cada oficina comentando
os dados produzidos. O facilitador da pesquisa também analisou os dados por
50
outros ângulos. Assim aconteceu a análise através de vários caminhos para
culminar no que chamamos de desdobrar do homem (PETIT et al, 2005).
Primeiro, com a análise produção plástica do grupo que, para Joly (1996),
é uma forma de desconstruir e interpretar imagens com a finalidade de identificar a
intenção do autor e a mensagem implícita, considerando seu contexto histórico-
social de produção os autores e quem as analisam. Segundo Arnheim (1997), a
análise plástica deve conter uma descrição física da obra, o que ele chama de não
estética, e uma descrição subjetiva considerando aspectos qualitativos. Essas
recomendações foram seguidas apesar de ter sido realizada muito mais pela
intuição como é proposto pela sociopoética.
Realizamos a análise do formulário dos sete lugares geomíticos que fez
parte unicamente da produção da oficina I. Nesse formulário continha a pergunta:
como seria o sentido da vida se fosse...uma vereda, uma cacimba, uma ponte, o
túnel, o sertão, o açude e a serra? Tentamos encontrar em cada lugar geomítico
conceitos de sentido da vida construídos por cada co-pesquisador, traçando
aproximações e distanciamentos nas diversas possibilidades criadas pelas
formulações do grupo-pesquisador.
Num segundo momento, deu-se a análise da produção verbal, através da
análise classificatória, que consiste em agrupar as falas em categorias e encontrar
relações entre elas, mesmo que convergentes ou divergentes.
O terceiro momento é a análise transversal que é buscar as ligações entre
as idéias antes separadas pela análise classificatória. Optamos realizá-la através da
cartografia que é descrita por Rolnik (1989) como o desenho que acompanha e se
faz e se refaz em um movimento de transformação, desmembrando certos mundos e
fazendo ressurgir outros, que se criam para expressar afetos. As cartografias não
são fixas, estão abertas às mudanças e às possibilidades.
51
Os dados já analisados nos processos anteriormente descritos, são agora
agrupados se tiverem sido separados, separados se tiverem sido relacionados,
dando uma nova lógica ou combinação para o pensamento. A isso chamamos de
análise surreal.
A análise filosófica é o quinto momento analítico, que acontece através
dos referenciais teóricos do facilitador. Essa análise é realizada para que haja
diálogo entre o saber produzido pelo grupo pesquisador e os outros saberes
existentes. Realizamos essa análise de forma separada para destacar a produção
filosófica do grupo-pesquisador.
Por último, a análise maquínica. Essa análise está sendo proposta devido à
percepção de agenciamentos entre o que foi produzido pelo grupo-pesquisador e os
cuidados prestados pela equipe de enfermagem. Mesmo sabendo que o método
escolhido não contempla tal análise, resolvemos nos aventurar e propor uma análise
que gere a partir dos confetos produzidos pelo grupo, reflexões que contribuam com
os cuidados espirituais de enfermagem.
3.5 Análise e Contra-análise dos dados
Esse é o momento em que o facilitador apresenta ao grupo-pesquisador a
análise realizada e solicita ao grupo que ele realize sua análise, além de oferecer a
possibilidade para que este possa aceitar acrescentar, alterar, rejeitar ou propor uma
contra-análise. Os co-pesquisadores eram paciente que permaneciam um curto
período de tempo na casa de apoio. Suas idas e vindas de suas residências no
interior do estado para o acompanhamento no hospital, impossibilitaram reuni-los
novamente, inviabilizando a realização da contra-análise. Dessa forma, realizamos
apenas a análise do grupo-pesquisador a partir da produção plástica e verbal do
grupo.
52
3.6 Socialização da pesquisa
O fim da pesquisa acontece com a elaboração de uma proposta de
socialização do conhecimento produzido, envolvendo também o grupo pesquisador.
Na sociopoética, há produção final também dos participantes. Foi decidido pelo
grupo pesquisador que a produção plástica deve fazer parte do acervo de outras
produções da casa de apoio, com o objetivo de mostrar às pessoas, que forem se
hospedar nessa casa, saibam o que foi feito.
3.7 Aspectos éticos
Todos os procedimentos da pesquisa foram rigorosamente realizados
seguindo os princípios éticos contidos na Resolução n° 196/96 do Conselho
Nacional de Saúde, que trata de pesquisas com seres humanos.
Inicialmente, escolhemos um local reservado, confortável e seguro para os
co-pesquisadores. Mesmo, posteriormente, mudando o local da realização das
oficinas, tivemos as mesmas preocupações. Solicitamos o consentimento dos
participantes na oficina de negociação e asseguramos a autonomia, a beneficência,
a não maleficência e o favorecimento da justiça e da eqüidade no transcorrer do
estudo.
Após os esclarecimentos e o acordo verbal com os participantes, solicitamos
a permissão formal por escrito, através do termo de consentimento livre e
esclarecido. Foi solicitada também à instituição autorização para realização da
pesquisa, além de ter sido submetido anteriormente à apreciação do Comitê de Ética
e incorporadas suas sugestões pertinentes.
53
Oficina de negociação: os primeiros passos da
pesquisa
“Vamo lá que eu tô contando separando direitim. Uma pra mim, uma pra mim, uma pra tú, outra pra mim. Uma pra mim, outra pra tú, uma prá mim, outra pra mim.”
(Luis Gonzaga/ João Silva)
54
4 OFICINA DE NEGOCIAÇÃO: OS PRIMEIROS PASSOS DA PESQUISA
A realização da pesquisa aconteceu em meio a uma série de sentimentos
próprios do processo: a ansiedade do inicio; o medo de não conseguir; a angústia de
achar que as coisas não se desenvolveram de forma correta ou esperada e, em
meio a isso, houve espaço também para o prazer de descobrir o novo, da aventura
de trilhar um caminho nunca antes percorrido. Assim foi se construindo essa
pesquisa: primeiro, os contatos com o hospital escolhido; depois com o serviço de
psicologia; e algumas reuniões se seguiram para selecionarmos os interessados em
participar.
Por sugestão de profissionais desse serviço, fomos conhecer a casa de
apoio, instituição ligada ao referido hospital, local onde pessoas do interior que não
possuem parentes em Fortaleza ficam para realização de exames e de tratamentos
como radioterapia e quimioterapia. Percebemos que a Casa Vida, como é
conhecida, reunia fatores convenientes para a pesquisa, por cumprir com os critérios
exigidos na seleção dos participantes, além de contar com o fato de estarem todos
no mesmo local, passarem dias e sem haver necessidade de deslocamento para as
oficinas.
Durante o mês de agosto de 2007, tive encontros com profissionais da casa
de apoio para conhecer a dinâmica do serviço, a estrutura física, o perfil dos
pacientes atendidos e o trabalho desenvolvido. Foram discutidas as possíveis
dificuldades da realização das oficinas devido ao fluxo muito grande de pacientes,
ao baixo nível educacional e às suas atividades rotineiras no curso da doença e do
seu tratamento.
55
No dia 04 de setembro de 2007 tivemos nosso primeiro encontro com os
pacientes. A psicóloga e a terapeuta ocupacional da instituição realizaram as
devidas apresentações. Em seguida comuniquei o motivo da minha presença e a
proposta da pesquisa, expliquei os objetivos e o método que seria utilizado. Muito
solícitos, os pacientes se mostraram interessados imediatamente, mas alguns, logo
depois, desistiram porque lembraram que não ficariam na casa de apoio no tempo
da realização das oficinas. Doze pessoas confirmaram que queriam e podiam
participar do estudo. Foram explicados novamente os objetivos e o método utilizado
e respondidas as dúvidas remanescentes. Marcamos os dias 12 e 13 de setembro
para as duas oficinas de produção.
56
Primeira oficina de produção: os lugares geomíticos “Minha vida tem sentido, cada vez que eu venho aqui, e te faço meu pedido de não me
esquecer de ti.”
(Pe. Zezinho)
57
5 PRIMEIRA OFICINA DE PRODUÇÃO: OS LUGARES GEOMÍTICOS
Nossa primeira oficina aconteceu em 12 de setembro de 2007. Nesse
momento, mostraram realmente interesse em participar apenas oito pessoas das
doze anteriormente interessadas. Devido à falta de espaço adequado na casa de
apoio, que conta apenas com um salão amplo sem nenhuma privacidade e uma
salinha minúscula para a terapia ocupacional, optamos por realizar a primeira oficina
em uma sala do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal do Ceará
que fica a poucos metros da casa de apoio e que nos cedeu o espaço.
Nessa oficina, contei com a presença e a ajuda de uma aluna de graduação
que já havia participado de outras pesquisas sociopoéticas, e da terapeuta
ocupacional do serviço, esta especificamente recomendada pela instituição para
acompanhar o processo. A oficina estava marcada para as 14h, horário apropriado,
pois, no período da tarde, os pacientes, em sua maioria, já cumpriram suas
atividades do dia, entre elas: exames, curativos, sessões do tratamento e
fisioterapia.
Percebi nesse momento que os pacientes não estavam muito à vontade na
sala reservada para a realização da oficina. Foram reiterados os objetivos da
pesquisa e agradecida a disponibilidade de todos em participar da oficina.
A sala estava devidamente preparada para recebê-los, os colchonetes
dispostos em círculo, o som ambiente e o material da oficina organizado no centro
do círculo. Convidamos a ficarem à vontade, pedimos que escolhessem um dos
colchonetes e se sentassem. Alguns ficaram resistentes, devido seu
comprometimento físico e preferiram sentar em cadeiras, fato acatado sem maiores
dificuldades.
58
Iniciamos com um relaxamento, que se tratava de uma visualização, onde foi
pedido que imaginassem uma estação de trem e cada um à espera da oportunidade
de embarcar. Após o embarque, era solicitado que fossem observando a saída e a
entrada de pessoas nas estações que se seguiam, pessoas significativas em suas
vidas. Solicitamos também que observassem tudo o que havia no trem, até que
chegasse a vez de cada um descer e se despedir dos outros que ficariam. A partir
daí, foi solicitado que começassem a mexer o corpo e, vagarosamente, voltassem
para a sala onde nós estávamos.
Depois do relaxamento, demos prosseguimento à oficina com a técnica de
produção de dados conhecida como “Vivências dos Lugares Geomíticos”. Essa
técnica foi criada inicialmente por Gauthier inspirado nas culturas indígenas de
povos das ilhas do Pacífico, utilizada e adaptada posteriormente por outros
pesquisadores. Gauthier (1999) ressalta que essa técnica causa estranhamento e,
por isso, propicia o surgimento do novo, do diferente e do autêntico, frente àquilo
que está bem organizado racionalmente no pensamento, dando vazão à expressão
de energias imaginativas, criadoras, do indivíduo e do grupo.
Utilizamos um formulário que continha sete lugares: Vereda, Cacimba,
Ponte, Túnel, Sertão, Açude, Serra e uma pergunta que deveriam responder. Cada
co-pesquisador recebeu esse formulário que lhes dirigia a pergunta: como seria o
sentido da vida se fosse... em seguida os lugares citados. Todos responderam o
formulário, alguns com a ajuda dos facilitadores, porque nem todos sabiam ler e
escrever. Alguns lugares foram escolhidos por tratarem de lugares comuns ao grupo
e outros lugares já utilizados em pesquisas sociopoéticas.
Esse momento foi o mais angustiante de toda a pesquisa para mim. Os co-
pesquisadores mostraram-se inquietos, demonstrando não entender o que eu havia
solicitado. A dificuldade de abstrair era enorme, muitos questionamentos me
perturbaram: estava eu exigindo demais deles ou estava-os subestimando?
Passado, essa fase, pedimos que escolhessem, dos sete lugares, um lugar que
mais se relacionasse com o sentido da vida e o representasse utilizando tinta e
59
tecido. Mais uma vez, demonstraram resistência, principalmente os dois homens que
participavam. Muitos relataram nunca ter tido a oportunidade de pegar em um pincel,
tinta, lápis e muito menos desenhar.
Confesso que fiquei envergonhado e constrangido com aquela situação:
como convivemos com tantas desigualdades e somos tão omissos com a usurpação
dos direitos dos outros e sua exclusão? Uma coisa que nos chamou atenção foi
quando solicitado que os co-pesquisadores escolhessem e pintassem um lugar
dentre os sete do formulário. Alguns se recusaram, não porque não quisessem
participar, mas porque se consideravam incapazes de pegar em um pincel e pintar
ou desenhar qualquer coisa. Incentivei-os a brincar com as tintas e pensar no
sentido da vida e fazer relação com os lugares propostos, depois dos argumentos se
dispuseram a participar.
Feito o desenho cada co-pesquisador apresentou sua produção
relacionando com o sentido da vida. Em seguida, foram feitas discussões acerca do
desenho, da vida e do sentido atribuído a ela. A oficina teve a duração de duas
horas aproximadamente.
Para minha surpresa (e dos co-pesquisadores), como veremos na oficina de
análise, aqueles desenhos que, aparentemente, eram simples e primários,
mostraram-se inimaginavelmente profundos e significativos. Esses relatos foram
gravados e transcritos posteriormente. Finalizamos a oficina com um lanche e
marcamos o próximo encontro para o dia seguinte.
A seguir, apresentamos o material produzido pelo grupo e suas respectivas
descrições. Decidimos apresentar as pinturas em forma de quadro, com os
respectivos co-pesquisadores e seus comentários em seguida, para facilitar a
compreensão e a organização do material plástico. A transcrição completa das falas
do grupo-pesquisador encontram-se nos apêndices:
60
Co-Pesquisador
Produção Comentários
Co-
pesq
uisa
dor 1
O que eu fiz do sentido da minha vida, o túnel com as luzes, porque é claro, né? Que eu gosto muito de claridade, só isso mesmo. (...) Ele representa pra minha vida porque, é claro por causa da minha saúde né? porque eu gosto muito de claridade. E aí eu representei isso.
Co-
pesq
uisa
dor 2
Eu desenhei uma lagoa, um açude. (..) O sentido da lagoa é pro caba pescar, quando tiver vontade, pegar peixe, comer o peixe. Pegar o peixe pra comer, sem comer ninguém vive né? É o sentido de sobreviver, trabalhando.
Co-
pesq
uisa
dor 3
A serra representa a força, exatamente a força que faz eu cuidar dos meus filhos, um casal de filhos que eu tenho e minha mãe (...) Essa serra é exatamente isso. Essa serra sou eu de pé pra ter força pra continuar tudo isso.
Co-
pesq
uisa
dor 4
Essas plantas são as frutas da serra. Eu penso ser... através de muitos problemas, muitas dificuldades que eu passei e estou passando, eu tento viver feliz.
61
Co-
pesq
uisa
dor 5
Eu? Eu acho que eu desenhei uma ponte, eu acho que foi uma ponte, que a gente precisa está apoiada em alguém, principalmente eu que não posso andar sozinha, eu tenho que ter uma ponte, onde eu tô eu sempre ando com pessoas que eu me comunico, então eu me acho assim, o seguinte, quero andar seguro pra não cair.
Co-
pesq
uisa
dor 6
O desenho representa o túnel e a cacimba, e a linha de pau que eu fiz é pra me segurar e aqui é a luzinha do túnel, mode eu passei e cheguei onde eu cheguei... (choro) vim sozinha, passei por dentro desse túnel e cheguei e tô aqui e vou vencer. Esse desenho representa minha vida, porque desde 2004 que eu luto, por esse tratamento e eu não consegui, e agora eu fiz, o túnel e a luzinha, que eu disse né? Pra passar pra lá e vencer.
Co-
pesq
uisa
do7
Eu fiz esse sertão porque eu não tenho nem um canto pra eu morar, só moro nas casas dos outros, aí eu escolhi logo um sertão por aí no meio do mundo, pelo menos é um canto pra eu morar né? Por isso eu desenhei isso aqui, um lugar, agora não sei onde que no mundo, onde eu possa construir um canto pra morar e viver. Pois bem, né?
Co-
pesq
uisa
do8
Minha vó mora numa serra, ela planta muita flor, e a minha mãe é muito religiosa manda eu pegar flor pra fazer reza lá em casa. E aí eu retratei isso aqui.
A seguir, apresentaremos as análises das produções do grupo-pesquisador
realizadas de acordo com a proposta da sociopoética. Inicialmente apresentamos a
62
análise da produção plástica e, em seguida, desenvolvemos a análise do sentido da
vida atribuído a cada lugar geomítico, das falas transcritas através da análise
classificatória, transversal e surreal.
5.1 Oficina I: Análise da Produção Plástica
A análise da produção plástica do grupo se revelou um momento importante
da pesquisa, visto que constitui um dispositivo para o surgimento do novo e do
estranho, nunca pensado ou verbalizado, além de permitir a imaginação fluir, sem
saber conscientemente onde ela levaria.
Observando atentamente as figuras, percebemos que se tratavam de
pinturas com aspectos primitivistas, devido ao seu traçado despretensioso, à
ausência de técnica e à mistura para originar cores secundárias. A riqueza e a
expressividade são marcas da simplicidade das pinturas.
As cores são expressivas, nada de cores escuras e tons neutros, vemos
cores vibrantes, verde, amarelo, rosa, azul, cinza, preto e, discretamente, o
vermelho. Foi utilizada basicamente apenas uma cor nas obras, em outras, cores
levemente associadas. O verde é a cor que mais está presente e se repete em
quatro pinturas.
Há nas pinturas muitos espaços vazios. Os desenhos em sua maioria estão
nos centros das telas, dispostos ora de forma a possibilitar uma similaridade, ora de
forma irregular e descentralizada. Percebemos em duas obras um contorno feito na
tela e, em outra, que é um quadro, a delimitação dos desenhos, dando a idéia de
continuidade e fechamento, o que não ocorre nas demais.
Algumas obras contêm apenas um único desenho, que ressalta a análise de
figura e fundo. Nesse contraste, a figura assume importância fundamental ou apenas
63
enriquece e focaliza o fundo. Os múltiplos desenhos de outras obras trazem a idéia
de diversidade e, ao mesmo tempo, a composição de uma única coisa,
proporcionando os sentidos e as interpretações de maneira a condensar-se.
Tratando-se dos quadros pintados em relação ao sentido da vida, vemos a
presença de vegetação em cinco das oito pinturas. Isso nos remete ao viçar das
plantas e a algo que precisa ser regado e cuidado para que possa dar frutos no
tempo oportuno, mas traz também a noção de fragilidade e de algo processual.
Pode muito bem representar a noção de vida e seu sentido, ao passo que contempla
um paradoxo de vigor e vulnerabilidade.
Percebe-se a falta de base de apoio ou sustentação nos diversos desenhos.
Vemos o quadrado, os círculos, as plantas, as flores, a figura azul, sem que haja
uma linha de continuidade e noção de estabilidade, exceto em duas das pinturas
que vemos uma linha verde de contorno e um chão cinza. Representa isso a falta de
chão no momento vivido pelos co-pesquisadores? É certo que pode significar
exatamente o contrário, um estágio além da necessidade de apoio, de segurança e
estabilidade. Um nível onde os elementos flutuam, transcendem e existem por si
mesmos, sem que isso faça sentido ou dependam de uma lógica.
As figuras circulares devem ser destacadas. Os grandes e pequenos
círculos oferecem a visão de totalidade, de algo completo, mas também
antagonicamente de algo incompleto, pois a continuidade é vista nesta figura e pode
se perpetuar, como um ciclo de idas e vindas, de caminho e encontro e caminho
novamente. O circulo nesta visão de completude, totalidade não somente representa
isso: muitas vezes representa estagnação, comodismo e por vezes aprisionamento.
O sentido da vida pode estar representado pelo círculo nessas diversas perspectivas
e é interessante questionarmo-nos sobre como se apresentam os sentidos
atribuídos.
64
É preciso citar a coisa azul com suas garras, que imprime medo e, ao
mesmo tempo, admiração em quem a vê. Seu rosto, sua boca enorme e suas garras
estão prontos para o ataque ou seria a defesa? Seria um monstrinho carente e
amigo, que, apesar de sua aparência, pede para viver e não ser cassado? Seja
como for, a figura transmite um sentido, a vida que se tem, com suas agruras e
sabores, comportamento de predador e presa, de ação e de espera. Sim uma fera
ávida por vida, e vida com abundância.
O jardim de flores amarelas também chama atenção. Flores de tamanhos
variados, enquadradas em um jardim fechado, sem chão, suas pétalas caem, será
por falta de algo que as possa nutrir? Ou será pelo processo natural da vida? Uma
mancha macula o jardim, isso pode ser coisa do próprio ambiente, estrumes, pedras,
espinhos fazem parte, mas um inimigo sorrateiro pode aparecer, as ervas daninhas,
e começar a minar a vida e a beleza do jardim. Ora, a presença e a grandiosidade
do jardim enchem de alegria uma vida e dão sentidos a ela, mesmo que um dia ele
não mais exista, mas o que dura para sempre?
Essas reflexões podem proporcionar uma autenticidade à vida, à medida
que vivenciamos os processos cotidianos. As pinturas oferecem infindáveis
caminhos de análise. Optamos por nos deslocarmos das situações vividas pelos co-
pesquisadores, como forma de evitar o reducionismo e valorizar as possibilidades da
obra em si, mas não esquecer seu contexto histórico e social. Entendemos que a
análise plástica amplia nossa visão, que tende a ser focalizada, passando-se a ver
além das circunstâncias, em um verdadeiro exercício de transcendência.
5.2 Oficina I: Análise do Formulário dos Sete Lugares Geomíticos
Ao solicitarmos que cada co-pesquisador respondesse “como seria o
sentido da vida se fosse... uma vereda, uma cacimba, uma ponte, um túnel, um
sertão, um açude e uma serra”, foi possível encontrar respostas importantes para o
surgimento de conceitos de sentido da vida.
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Organizamos essa análise seguindo a seqüência dos lugares geomíticos,
fazendo um movimento de encontro das convergências e das divergências, sendo
traçados caminhos de percepção do sentido da vida, imbricado na própria vida e
nela identificando-se.
A Vereda...
Esse caminho de sentido confunde-se com a vida sentida e vivida no
momento atual, percebida como caminhada difícil, cheia de buracos, de altos e
baixos, muitas vezes longa e estreita, com curvas, com rampas, com pedras, com
espinhos e de vez em quando sem passagem. Seria a impossibilidade de encontrar
um sentido na vida e no sofrimento experienciado, que faz o trajeto penoso?... Mas
há saída, é preciso ter paciência, é preciso força para continuar enveredando pela
vida e encontrar sentido nela. Olhe que já foi mais difícil, hoje até que o caminho
está limpo, sem muitos espinhos, é possível até vislumbrar sentido nessa
caminhada. A vigilância é importante para não deixar nascer mais espinhos que
aumentem o sofrimento ou impeçam o caminhar.
A Cacimba...
A cacimba é a fonte de onde jorram águas de sentido, não é tão fácil
encontrar essa água, por vezes a cacimba é funda, exige algo que ajude na retirada.
O sentido qual água limpa, sustenta e faz vencer àqueles que conseguem encontrá-
lo e sem desistir o procuram... Procuram tirar a água para viver. Extraem da sua vida
e de sua história sentido para continuar. É necessário estar atento para reformar a
cacimba, não permitir que essa água fique suja, turva e perca sua função de manter
a vontade de viver e de vencer.
66
A Ponte...
A ponte como sentido deve ser bem feita, bonita, forte, para a passagem
de pessoas e coisas no percurso da vida. É importante que o sentido qual ponte
esteja bem alicerçado, com colunas para sustentar e para agüentar o peso da dor e
do sofrimento que constantemente passam por ela. Essa ponte liga coisas
naturalmente separadas, passa por cima de outras e está pronta para o que der e
vier. Sua força de sentido está em lutar, prosseguir, conseguir e vencer... Sim, por
ser larga e comprida a passagem nem sempre é tranqüila, o sentido precisa ser
firme o bastante para ultrapassar dificuldades e possibilitar a ligação e o encontro
com outros, que trazem consigo novas formas de passagem.
O Túnel...
O sofrimento, a dor e a doença nos lançam em um túnel escuro, de
incertezas e perigos, mas mesmo vivenciando esse momento sombrio é possível
encontrar uma luz no fim do túnel e esse lugar é também a saída da situação
adversa. Mister que adentremos na busca de sentido: primeiro vivendo a aparente
falta de sentido, a escuridão e depois havendo o encontro do sentido, surge à luz.
Para isso o esforço, o sacrifício se faz necessário, é preciso enfrentar o túnel, é de
se esperar que no decorrer da travessia haja sempre bicos de luz que apontem para
a iluminação natural do fim. Nisso atravessam-se serras de dificuldades e
problemas, sempre na esperança que exista uma luz e que leve para alguma coisa
melhor.
O Sertão...
A vida pode ser melhor que o sertão por este parecer feio, triste e seco,
mas nele se esconde um lugar também de resistência e de luta, no sertão luta-se
com o que se tem. O sentido da vida é o próprio sertão que resiste às dificuldades.
Sua força está em poupar à escassa e preciosa água de sentido, importante para
vencer e sobreviver à longa estiagem, evitando que o homem desista e abandone
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sua terra, tornando-se retirante sem sentido. Há também períodos de abundância,
chuvas de sentido transformam o sertão em um lugar feliz, tranqüilo e farto, onde é
fácil viver e vencer.
O Açude...
O açude é apresentado como nenhum outro lugar geomítico. Referido
como espaço de fartura, muita água e peixes, sinônimo de sobrevivência e
manutenção da vida. Parece que o sentido da vida é visto como um grande açude,
pois sacia a sede de viver, imprime a alegria, a abundância de água e de
simplesmente estar vivo, onde todos querem morar perto e conservar esse lugar
para os momentos de necessidade.
A Serra...
A serra como sentido da vida traz a idéia de força, de altivez e também de
abundância. Como ela, o sentido ventila o calor abrasador das situações difíceis e
com isso relativizam-se os sofrimentos vividos. O sentido produz frutos como
tranqüilidade e paz, tal qual a serra com suas arvores frutíferas e sombras. Mas a
serra pode ser de difícil acesso, é preciso ajuda para subir, o trabalho de chegar até
lá exige disposição de enfrentar a solidão e muitas vezes o cansaço. Uma vez
escalado o sentido, proporciona uma posição privilegiada na vida, de lá é possível
ver as possibilidades de vencer as barreiras e superar o sofrimento.
Os sentidos produzidos através desse formulário trazem uma riqueza de
conceitos que servirão de apoio para as análises seguintes. Traduzem
especialmente o desejo dos co-pesquisadores de “vencer” as limitações, o
sofrimento, a doença, a possível morte e por fim todos juntos possam cantar o “Hino
da Vitória”.
68
5.3 Oficina I: Análise Classificatória
A análise classificatória consiste em agrupar as falas dos co-pesquisadores
em categorias, não na tentativa de homogeneizar o discurso produzido na oficina,
mas encontrar linhas de análise que convergem, que divergem, que são ambíguas e
as que se mostram únicas.
As categorias identificadas nesta oficina foram: sentidos atribuídos aos
desenhos dos lugares, sentidos atribuídos ao processo de adoecimento e sentidos
atribuídos aos aspectos importantes da vida. Em seguida, apresentaremos os
quadros das categorias, suas falas e as linhas de análise.
Sentidos atribuídos aos desenhos dos lugares.
1. O que eu fiz do sentido da minha vida, o túnel com as luzes, porque é claro, né? Que eu gosto muito de claridade, só isso mesmo. (...) Ele representa pra minha vida porque, é claro por causa da minha saúde, né? Porque eu gosto muito de claridade. E aí eu representei isso.
2. Eu desenhei uma lagoa, um açude. (..) O sentido da lagoa é pro caba pescar, quando tiver vontade, pegar peixe, comer o peixe. Pegar o peixe pra comer, sem comer ninguém vive né? É o sentido de sobreviver, trabalhando.
3. A serra representa a força, exatamente a força que faz eu cuidar dos meus filhos, um casal de filhos que eu tenho e minha mãe (...) Essa serra é exatamente isso. Essa serra sou eu de pé pra ter força pra continuar tudo isso.
4. Essas plantas são as frutas da serra. Eu penso ser... através de muitos problemas, muitas dificuldades que eu passei e estou passando, eu tento viver feliz.
5. Eu? Eu acho que eu desenhei uma ponte, eu acho que foi uma ponte, que a gente precisa estar apoiada em alguém, principalmente eu que não posso andar sozinha, eu tenho que ter uma ponte, onde eu tô eu sempre ando com pessoas que eu me comunico, então eu me acho assim, o seguinte, quero andar seguro pra não cair.
6. O desenho representa o túnel e a cacimba, e a linha de pau que eu fiz é pra me segurar e aqui é a luzinha do túnel, mode eu passei e cheguei onde eu cheguei... (choro) vim sozinha, passei por dentro desse túnel e cheguei e tô aqui e vou vencer. Esse desenho representa minha vida, porque desde 2004 que eu luto, por esse tratamento e eu não consegui, e agora eu fiz, o túnel e a luzinha, que eu disse né? Pra passar pra lá e vencer.
7. Eu fiz esse sertão porque eu não tenho nem um canto pra eu morar, só moro nas casas dos outros, aí eu escolhi logo um sertão por aí no meio do mundo, pelo menos é um canto pra eu morar né? Por isso eu desenhei isso aqui, um lugar, agora não sei onde que no mundo, onde eu possa construir um canto pra morar e viver. Pois bem, né?
8. Minha vó mora numa serra, ela planta muita flor, e a minha mãe é muito religiosa manda eu pegar flor pra fazer reza lá em casa. E aí eu retratei isso
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aqui. 1 e 6 convergem ao relacionar o túnel ao sentido da vida com a saúde e a luz no fim do túnel.
3, 4 e 8 convergem ao relacionar a serra ao sentido da vida, 3 e 4 relacionam a serra a força e 8 as flores da serra que as tira para rezar.
2 relaciona a lagoa ao sentido da vida pela busca do peixe e a sobrevivência.
5 e 7 convergem ao relacionarem os lugares, a ponte e o sertão, ao sentido da vida e por referirem apoio e segurança.
Sentidos atribuídos ao processo de adoecimento.
1. (...) eu quero viver muito, por isso tô fazendo o tratamento porque eu gosto muito de viver.
2. Eu tô sendo uma doente feliz, eu encontrei vocês ó, meus amigos aí tudinho, né? E essa casa maravilhosa ali, então eu tô tirando de letra, eu não tô nem pensando em doença. Vou levando.Você acredita que eu tô me sentido melhor de que quando eu estava boa, acredita? Eu não tô sofrendo. Eu não me acho doente, e é porque eu tô morrendo de dor nas minhas costas, tá latejando, mas não me acho doente. Se eu puder andar eu tô feliz, eu sou assim, eu acho que é por isso que eu ainda não morri, eu ainda me alimento, pior os que vivem num fundo de uma rede, ou num fundo de uma cama, que não podem andar (...)Porque eu estava doente e não sabia, três anos que eu tinha esse caroço, um nódulo no seio, mas não sabia, levava uma vida normal, sentia uma dor nas costa, uma dor aqui outra aculá, inchava meu braço, mas não sabia o que era, não ia pra médico. Aí minha filha foi trabalhar, fez um curso de enfermagem, foi trabalhar num posto de saúde, ela falou pro médico que eu sentia essa dor, ele passou pra mim fazer uma mamografia e aí eu descobri. Eu fiquei assim também, eu não estava com muita confiança, as pessoas chegavam e aí como vai? Eu chorava, as vezes eu tava sentindo dor, mas agora graças a Deus né? Venci, e aí eu espero que ela vença também né? Pra cantar o hino da vitória. Agora tá com seis meses que eu fiz a cirurgia, graça a Deus se fosse por esse ponto me considerava boa. Procuro logo, desde criança que eu peguei essa paralisia. Sempre, de vez em quanto eu caía, de vez em quanto eu caía, aí meu irmão mais velho disse pra mim: minha irmã quando você for andar, você levante bem os pés como soldado, pra você não caí, e no que você vai topando você vai caindo. Aí ficou isso na minha cabeça. Aí eu preciso saber onde eu tô pisando.
3. Eu não tô melhor...tô nas mãos dos médicos, nas mãos de Deus, tô fazendo os exames e o que for descobrindo eu tenho fé que vou tirando, fazendo e agradecendo a Deus por tá viva pronto, nunca quero me preocupar não.
4. Por que no início dessa doença eu chorava muito, peguei um trauma, aí foi passando e no fim nem liguei mais, quando fiz um exame tava boa e fui desenganada. Agora é continuar o tratamento e ir embora, ir pra casa, e viajar e pronto.Que meu menino teve que ir embora, e tiraram meu menino de mim mode eu poder me cuidar, desde abril, tô bem graças a Deus. Depois da doença mexi com tudo na minha vida, quero outra vida, até meu marido eu deixei, quando eu vivia com ele eu vivia pior, além de estar doente ele não
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deixava me cuidar, dizia que eu estava inventando, quando eu fui procurar ajuda, já estava desenganada (...).
5. Tenho tido força em Deus, porque quando eu comecei a vir pra Casa Vida, eu pedia esmola, aí sozinha, sem parente, sem ninguém, me achei só com estranhos aí, aí fiquei num horror de tempo aí (...).
6. Se for pra me dá, é Deus, minha mãe reza muito, faz promessa, eu acredito quem me curou foi São Francisco, foi muita promessa que a mãe fez, rezava terço lá em casa, graças a Deus, ontem eu fiz um exame, a Dra. olhou, ficou maravilhada. Graças a Deus tô feliz.
7. Só Deus mesmo que dá força e coragem a gente. 1,3 e 4 convergem ao referirem fazer o tratamento e querer viver.
2 e 4 convergem ao referirem que a vida mudou após o adoecimento.
2 e 4 divergem, 2 refere ter mudado pra melhor, ao encontrar pessoas e ver que outros tem sofrimentos maiores, 4, no entanto, enfrentou muitas dificuldades como: separação do filho e problemas conjugais.
3, 5, 6 e 7 convergem ao referirem que Deus e a fé são fontes de força para superar o sofrimento e a doença.
Sentidos atribuídos aos aspectos importantes da vida
1. [o pesquisador pergunta sobre se há algo na vida pelo qual vale a pena viver] Vale sim, porque eu gosto muito da minha família, dos meus amigos, e bom agente viver por causa disso, né? É bom a gente viver pra ter comunicação com o pessoal, com outras coisas também né? É isso.
2. O que me dá força pra continuar a viver são meus filhos, eu tenho um casal de filhos, pra mim é tudo de mais importante, eles dão muita força pra continuar. Esse é o maior objetivo ficar boa pra cuidar dos meus filhos. Um caminho que me dá a maior força pra vencer tudo isso é minha mãe e meus dois filhos.
3. Eu gosto muito da minha família, gosto e quero muito bem. 4. Tem sentido de ser feliz, com minha família que eu amo muito, né? Será que
tá certo? 5. Não quero falar não. Gostaria de falar não. A minha vida tá representada aqui
mesmo. Eu gosto de estar sempre junto das pessoas, só olhar mesmo, conversar mesmo. Mas a respeito de serra, de coisa, tô muito ligada não.
6. [indagado se a vida tem sentido] Tem sentido, meus filhos. 7. [indagado se a vida tem sentido] Primeiramente Deus, segundo meu marido e
meus filhos, eu tenho filhos criança em casa que depende de mim, de ficar boa. Eu tô aqui, mas eu não sei nem o que eles estão passando em casa (...)
8. Eu espero achar um dia, um lugar que nem um sertão, pra morar lá, né? Hora meu sentido é um lugar pra morar, pode ser num sertão, pode ser em qualquer lugar pra eu morar. Eu estou esperando da minha vida esse lugar.
9. Minha saúde, eu procuro viver, eu gosto muito de viver né, a gente é pobre, mas a vida da gente é muito importante (...).
10. Eu gosto muito de árvore, de planta, de flores. Eu quero muito viver (...)E também, em primeiro lugar Jesus, a gente ama primeiro que tudo, depois segundo vem tudo.
11. Porque é bom viver né? Viver com as pessoas, conversar, com a família da gente, e mesmo que não seja a família da gente, a esposa, os filhos, tudo é bom né? Pra gente viver.
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12. A vida é importante. Deus consente eu viver, se não consentisse já tinha me tirado a muito tempo.Tem sentido sim, se for pra mim mudar, eu mudo, me tira bem facinho, me tira bem ligeiro.
1,2,3,4,6,7 e 11 convergem ao referirem que a família é um aspecto importante da vida constituindo fonte de sentido.
5 diverge dos demais ao não querer falar, mas refere que estar com pessoas e conversar com elas é importante.
8 diverge dos demais ao relatar que um lugar para morar é sua motivação para viver.
9,10 e 11 convergem ao referirem querer viver é fator importante.
10 diverge dos outros ao relatar que gosta de arvores, plantas e flores.
10 e 12 convergem ao referirem que Deus é um aspecto muito importante da vida.
5.4 Oficina I - Análise Transversal
No percurso que o grupo traçou, os lugares nos levam a mundos
totalmente diferentes e, por mais contraditórios que sejam, são partes da mesma
coisa, pois perscrutam um sentido para a vida.
Quem sabe um sertão por aí, no meio do mundo, pelo menos é um canto
para morar. Afinal, todo mundo precisa de um território firme, um lugar pra morar,
algo que dê segurança. Essa segurança pode ser buscada em Deus. Em meio a
tantas dificuldades, só mesmo Deus para dar força e coragem à gente, e para
consentir viver. Como uma ponte, tenho que ter uma ponte, levando a vida, seguro
firme para não cair.
Mas o sertão também é a seca. As dificuldades enfrentadas na dor e no
adoecimento: onde não estou melhor, entrego-me nas mãos dos médicos e de
Deus. Lugar desolado, de sofrimento e privação, sem ninguém. Só com estranhos
aí, nesse lugar, num horror de tempo. Ora, nem tudo está perdido nesse sertão
brabo: tem a reza da mãe, o terço lá em casa, os filhos que dependem da gente, de
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ficar bem. Eu sigo caminhando, mas é preciso que Deus consinta viver. Se não
consentisse, já tinha tirado há muito tempo.
A serra se mostra altiva, quem a pode encontrar? Essa serra do sentido sou
eu de pé pra ter força pra continuar tudo isso. Como em um constante vai-e-vem de
altos e baixos, nem sempre tudo está bem. Mas continuamos levando a vida,
chorando, às vezes sentindo dor, às vezes vencendo. Por que no início se chora
muito, pega trauma. Mas aí vai passando e, no fim, nem ligamos mais e vamos
tirando de letra. Vamos levando. Tem até quem se sinta melhor do que quando se
estava bem. Não sofre.
Em meios a sertões e serras há túneis, que escondem as agruras da vida,
como um grande espaço tenebroso, porque desde muito se luta, por esse
tratamento e não se consegue. Mas quando se quer viver muito, busca-se o
tratamento, pois se gosta muito de viver. Essa vontade de viver é como uma
pequena luz que se avizinha à medida que se enfrenta a escuridão desse túnel e
muitas são as formas de luzes no fim do túnel: a família, os filhos, os amigos... isso é
que faz ser bom a gente viver! É também um lugar, pode ser qualquer lugar, um
lugar para morar, onde se conquista força para vencer tudo. É isso que se espera da
vida: esse lugar.
Chegamos, pois, à lagoa. O sentido da lagoa é “pro caba pescar”, quando
tiver vontade, pegar peixe, comer o peixe. Pegar o peixe pra comer, pois sem comer
ninguém vive. É o sentido de sobreviver, trabalhando. Sim, o sentido da vida motiva
e constrói, traz a busca e o encontro. Mesmo na dor da doença ou na saúde,
procuramos viver, pois gostamos de viver. Mesmo sendo pobre, mesmo com muitas
dificuldades, a vida é muito importante. Dessa lagoa se extrai vida, mas é preciso ter
cuidado: muitos podem se afogar, as águas desse reservatório podem ser revoltas e
mexer com tudo na vida, é preciso querer outra vida. É preciso deixar marido,
afastar-se do filho amado.
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A ponte é aquela que tudo liga: liga a vida a seu sentido ou à falta de
sentido; liga pessoas que se comunicam; gente indo, gente voltando, em um eterno
comunicar de vontade e sentido. Essa ponte é que une no amor, em primeiro lugar,
Jesus! Depois vem tudo: filhos, família, amigos... Ora, eles dão muita força pra
continuar. A doença pode ser um transeunte na vida. Os problemas que vão
aparecendo a gente vai tirando, e vai passando. Com fé, e agradecendo a Deus por
estar vivo, e pronto. Não precisa se preocupar não. Ainda pensando nesse que
passa, ele não passa despercebido. Deixa-nos marcas profundas. Traz muitas
coisas: desafios, convites a mudanças. E respondendo que a vida tem sentido, sim,
se for preciso mudar, a gente muda.
O sentido da vida transita onde houver vida, mesmo em lugar ermo como o
sertão, ou grandes altitudes das serras, calmas e perigosas águas de lagoa,
profundos e desconhecidos túneis. Sempre se espera o inverno no sertão, o clima
agradável e a fartura da serra, os peixes da lagoa e a luz no fim do túnel.
5.5 Oficina I: Análise Surreal
Nessa análise, resolvemos trazer uma cartografia dos lugares geomíticos,
dispositivo este escolhido na oficina. Podemos, através desta, juntar, tirar e
acrescentar elementos que contribuam com a análise.
Escolhemos a partir dos lugares descritos pelo grupo, juntar todos em um
lugar, “A Ilha dos Sentidos”, e ao mesmo tempo deixar separado em áreas
levemente demarcadas.
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A ILHA DO SENTIDO DA VIDA
75
Segunda oficina - o filme da minha história “Ah! Se o mundo inteiro me pudesse ouvir, tenho muito prá contar, dizer que aprendi... ver na
vida algum motivo prá sonhar, ter um sonho todo azul, azul da cor do mar...”
(Tim Maia)
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6 SEGUNDA OFICINA: O FILME DA MINHA HISTÓRIA
No dia seguinte à primeira oficina, 13 de setembro de 2007, estava no
horário combinado na casa de apoio. Notei certo esquivar dos co-pesquisadores,
senti que aquele momento não era o mais apropriado para a realização da segunda
oficina, pois alguns tinham outras obrigações no mesmo horário, outros não haviam
chegado de seus acompanhamentos terapêuticos, além dos que demonstraram
desinteresse de participar da oficina no momento.
Conversei com a terapeuta ocupacional do serviço e ela, que havia estado
presente no primeiro encontro, relatou que muitos sentimentos e sensações haviam
sido mobilizados naquela oficina. Ela não conseguiu especificar, mas relacionou as
questões de saúde e a idéia de não serem capazes de realizar as atividades.
Além disso, conversei brevemente com alguns co-pesquisadores sobre
nossos encontros e pude perceber que naquela data era inviável a realização da
oficina, pois alguns ainda não haviam chegado das atividades terapêuticas, outros
tinham consulta ou exames nesse mesmo horário, impossibilitando qualquer
produção. Depois de avaliar a situação, decidi remarcar nossa segunda oficina e
avisei-os que iríamos nos encontrar dia 18 de setembro, no mesmo horário.
Ainda comentando nossa primeira oficina com a terapeuta ocupacional, ela
relatou que os co-pesquisadores haviam confidenciado que esse tema “o sentido da
vida” era muito difícil e que nunca tinham parado e pensado nisso. Sempre levaram
a vida com dificuldade, trabalhando arduamente, não tinham tempo de pensar no
sentido de suas vidas.
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Comentamos que o Departamento de Enfermagem, local escolhido para os
encontros, apesar de confortável, poderia ser impessoal e resolvemos realizar a
segunda oficina ali mesmo na casa de apoio, na sala pequena do andar de cima.
Além disso, comentamos a possível ausência de alguns co-pesquisadores, pois a
permanência na casa de apoio dependeria da continuidade ou pendências no
tratamento.
Sendo assim, realizamos, no dia 18 de setembro de 2007, nossa segunda
oficina, na sala reservada para guardar o material da terapia ocupacional, que
mesmo sendo pequena, mostrou-se aconchegante e favoreceu o sentimento de
pertença do grupo. Como havíamos previsto, o grupo não se configurou o mesmo,
pois alguns co-pesquisadores já haviam retornado para suas casas e outros
estavam em suas atividades terapêuticas.
Compareceram sete (07) co-pesquisadores, dentre eles 02(dois) novatos.
Ressaltamos que esse fato não compromete a pesquisa, pois a sociopoética não
exige os mesmos componentes em todas as oficinas, por procurar valorizar e
acentuar as diferenças e não busca a homogeneização, busca, antes, a
singularidade, o heterogêneo e a criação de novas possibilidades.
Iniciamos a oficina com o relaxamento, pedimos que se sentassem
confortavelmente e, ouvindo minhas sugestões, visualizassem o que se pedia. Ao
fundo uma música relaxante que induzia ao relaxamento e à visualização. Solicitei
que começassem a lembrar a infância, suas brincadeiras, seus brinquedos, os
amigos, as atividades que realizavam, o convívio familiar, os sonhos e as fantasias
de criança. Depois disso, prossegui pedindo que fossem para a juventude, que
relembrassem os primeiros relacionamentos, amizades, namoros, trabalhos,
diversões e obrigações da época e, em seguida, fossem para a vida adulta, agora
com a constituição ou não da família, o trabalho, as atividades de lazer, as
dificuldades, os prazeres, as novas gerações e solicitei que lembrassem da situação
de estar doente e realizar os tratamentos necessários. Finalizamos o relaxamento
tentando encontrar fatos importantes da suas histórias de vida. Pedi que mexessem
78
lentamente os dedos das mãos e dos pés, abrissem lentamente os olhos e
retornassem para a sala onde estávamos.
Após o relaxamento, iniciamos a técnica “O filme da minha história”1, com o
objetivo de reconstruir os principais fatos da vida dos co-pesquisadores e, a partir
desses, extrair os sentidos da vida de cada um e possibilitar a construção coletiva do
grupo pesquisador. A técnica consiste em desenhar um filme contando a história de
vida, destacando aquilo que lhe confere sentido.
Participou também como co-facilitadora a terapeuta ocupacional que
estava na primeira oficina. Sentimos claramente que o grupo fluiu muito melhor
nessa segunda oficina. Atribuímos a alguns fatores: o local ser nas dependências da
casa de apoio; as reflexões sobre o sentido da vida produzidas pela primeira oficina
e a técnica facilmente entendida pelos co-pesquisadores.
Mesmo tendo fluído com mais facilidade, nem por isso esteve livre de
resistências. Alguns co-pesquisadores negaram-se mais uma vez a realizar a
técnica. Ressaltamos que não era necessário saber desenhar, bastava representar
sua história em forma de símbolos e poder contar depois, encorajamos e
valorizamos suas capacidades, tendo como exemplo a produção plástica anterior.
Tendo realizado o filme de sua história, solicitamos que cada um
apresentasse seu filme fazendo relação com o sentido de cada cena e passamos a
discutir em grupo os sentidos da vida atribuídos nessas histórias. Esses relatos
foram gravados e, posteriormente, transcritos.
Finalizamos a oficina com um lanche e marcamos o último encontro para o
dia 24 de setembro de 2007, agora para realizarmos a oficina de análise do grupo-
pesquisador. 1 Esta técnica foi desenvolvida por mim, especialmente para esta pesquisa.
79
Dispomos a produção em um quadro que contém: os co-pesquisadores, os
desenhos e seus comentários, respectivamente.
Co-pesquisadores
Produções Descrições
Co-
pesq
uisa
dor 1
Esse fogão representa o sustento da minha família, o fogão, o que eu aprendi a fazer no fogão, né? O sustento da minha família era tirado por aqui.
Co-
pesq
uisa
dor 2
Minha vida sempre foi procurando, procurando um, um algo melhor, então eu desenhei um caminhão, por que eu gostava muito de andar, de um vizinho quando eu era jovem, aí eu desenhei (...) E meu filme é esse, gosto muito de viajar, de conhecer lugares e trabalhar também. (...). Isso é o que me faz bem, que eu posso. Aqui sou eu pedindo uma rosa, né? Essa rosa que eu peço é que eu tenha muito amor pra dar as pessoas, que possa ajudar, entendeu?
Co-
pesq
uisa
dor 3
Meu desenho representa meu sofrimento e aqui minha vida, agora né? Que é um mar de rosas(...).
80
Co-
pesq
uisa
dor 4
Eu desenhei meu pai também, que brigava com a gente, não deixava a gente sair pra canto nenhum (...). Isso aqui era quando eu era criança, eu brincava com as crianças de bonecas, de baixo das moitas, das moitas de mufumo que tem nos matos, eram verdinhas que pareciam umas casinhas e aí nós brincava de casinha.
Co-
pesq
uisa
dor 5
Eu vou começar na roça, por que comecei a trabalhar na roça, quando eu era criança gostava de brincar, comecei a trabalhar logo. Essa mesa representa o trabalho na roça, minha infância não foi muito sofrida não.
Co-
pesq
uisa
dor 6
(Meu desenho é...) Trabalhando de padaria, sapataria, né? Minha vida não foi sofrida não (...).
Co-
pesq
uisa
dor 7
É assim, mas o papel não apresenta nada, daqui não conto nada.
Após descrevermos a oficina e apresentarmos a produção plástica, seguem
em ordem as análises: plástica, classificatória, transversal e surreal.
81
6.1 Oficina II: Análise da Produção Plástica
Prestando detida atenção nos desenhos expostos, temos a impressão de
tratar-se de desenhos infantis, seus traços não são medidos, nem muito menos
articulados intencionalmente, são despretensiosos como orientado na oficina. Os
desenhos foram dispostos em uma ou mais folhas de papel A4, como um filme.
As cores também nessa produção nos impressionam, são cores diversas e
expressivas, os desenhos que utilizam basicamente uma ou duas cores não deixam
transparecer indiferença com sua história, mas dão um tom de clareza e
simplicidade.
Há muitas similaridades percebidas nos desenhos, devido à continuidade
das obras individuais, proposta com a técnica do filme. As cenas se desenvolvem e
a similaridade de uma para a outra fica evidente no desenrolar de algumas histórias.
Em outras descrições artísticas, essa similaridade está ausente, como se não
houvesse relação nenhuma das folhas que compõem o filme. Apenas um trabalho é
composto de uma única folha ou cena.
Quase todos os desenhos são planos, dando idéia de apenas uma
dimensão, exceto o primeiro desenho apresentado, no qual se nota uma perspectiva
de profundidade e de movimento.
Os desenhos são permeados de sentidos. Percebemos ao analisarmos que
estes estão imbricados intimamente com as experiências de vida, experiências de
felicidades e de sofrimentos, de privações e de abundâncias, de limitações e de
potencialidades dos co-pesquisadores. Sim um aparente paradoxo, mas uma
representação real e fiel da vida.
82
A infância é algo presente no filme da vida. Fica evidente em boa parte
dos desenhos que essa fase da vida representa o começo da história. As vivências
de amor, sofrimento, luta, trabalho, crescimento e privação dessa época também se
fazem presentes. Essas vivências costumeiramente ressoam na vida adulta como
recordações marcantes e que possivelmente as influencia.
A única cena do primeiro filme dá-nos a idéia de um portal mágico, que nos
leva para uma outra dimensão. Com seus movimentos luminosos, ofuscam quem se
atrever a atravessar. Antes de chegar ao outro lado, faz-se necessário caminhar por
um túnel e escolher um lugar entre seis possibilidades. Essa descrição nos remete
ao percurso natural da vida. Somos constantemente impelidos a buscar novos
caminhos, podemos ser impedidos, como se estivéssemos ofuscados e paralisados,
ou continuando e ultrapassando os túneis escuros das incertezas, das dificuldades,
chegarmos a novas escolhas. Essas, por sua vez, trarão mudanças e realidades
boas ou más que nos levarão novamente a enfrentar um novo portal.
Há, entre os filmes, a história de um monstrengo. Percebemos que esse
pobre coitado sangra, enfraquecido quase sucumbe mas, na cena seguinte, ele
adquire super-poderes, utilizando seus óculos e seu cajado mágicos. Cria alma nova
e passa a esbanjar poder e vitalidade. Essa historinha não nos parece familiar? A
vida não se processa de forma muito parecida? São faces de uma mesma moeda:
em um momento, sentimos-nos derrotados e humilhados e, em outro, estamos fortes
e dispostos a enfrentar os obstáculos. Essas mudanças estão intimamente ligadas
aos sentidos atribuídos às situações e mesmo à vida.
Duas histórias são bem parecidas, merecem destaque. Os desenhos contam
a história de uma menina que vive em um campo minado, onde só há tristeza e dor.
Aos poucos, ela descobre como desarmar as minas e planta um lindo jardim de
flores vermelhas, até descobrir que as flores têm espinhos e fere quem as toca,
causando sofrimento e dor. Precisamos estar receptíveis aos possíveis desfechos
dos processos da vida e encontrar o sentido de cada coisa em seu devido momento
ou circunstância.
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Uma história chama atenção com o desenho do filme em duas folhas que
demos o nome de “A história do sapo que vira príncipe e que não deixa de ser
sapo”. Esse sapo utiliza várias máscaras e uma delas é a de príncipe. Usando a
máscara, até mesmo se convence que é príncipe, mas não se contém ao se deparar
com um inseto: cai em si e lembra de sua real condição. Esse filme nos faz lembrar
que uma vida experimentada e saboreada deve ser buscada e vivida por todos. Isso
propicia um valor maior à vida e, sem dúvida, só pode ser alcançado esse marco ao
encontrar um sentido para a vida.
Essas releituras das histórias proporcionam um olhar diferenciado dos
processos de atribuição de sentido de vida dos co-pesquisadores, claro que de
forma arbitrária, realizada por nós pesquisadores oficiais. Tencionamos com isso
não estipular um único sentido, antes disso, levantar muitas outras possibilidades de
uma mesma descrição, compondo a análise plástica da produção da oficina II.
6.2 Oficina II: Análise Classificatória
Na análise classificatória da segunda oficina, surgiram cinco categorias:
sentidos atribuídos ao adoecimento; sentidos atribuídos aos desenhos; sentidos
atribuídos a forma de ver e viver a vida; sentidos atribuídos a forma de enfrentar o
sofrimento e sentidos atribuídos à família. Foram feitos os movimentos para
descobrir as linhas de análise nas convergências, nas divergências, nas
ambigüidades e nas de sentido único.
Sentidos atribuídos ao processo de adoecimento.
1. [indagada sobre o que há de importante na vida] O importante, até agora é minha saúde, por que quando cheguei aqui, cheguei muito doente, pra hoje tá contando a minha história, o que mais marcou foi minha saúde. Quando cheguei, cheguei muito doente, eu pensava que não voltava mais nem viva, quando eu saí lá de casa eu disse logo, eu sei que eu vou mais não volto com os meus pés não, aí tô contando a vitória. Por isso é que eu disse minha vida agora é uma rosa, minha vida ta maravilhosa, tô me recuperando, tô com saúde, tô bem.
2. Depois da doença, quando cheguei aqui muito abatida, graças a Deus tô
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pensando que estou bem, vou fazer uns exames agora, mas de cabeça erguida e se der qualquer coisa seja da vontade de Deus, né? Tô nas mãos dele.
3. (...) aí depois que casei e constituí família, pra criar os filhos, aí foi mais preocupado. Aqui tô com mais de mês que tô aqui, me preocupando todo dia com minha família no interior, como é que estão por lá, né? Ora não sei como eles estão lá e eles não sabem como eu tô aqui, né? Aí é que tá, a gente não é adivinho, não imagina como nós estamos, os pensamentos nos de lá. (...) Hoje tô preocupado, pois tô meio-lá-meio-cá vê se melhoro, mais tô me tratando, os homens pediram pra fazer o tratamento aí eu tô por aqui, mas só por minha vontade eu tava lá em casa, mas os homens disse que se eu me trato aumenta os anos de vida, aí eu tô cuidando, pra vê se dá certo.
4. Aí quando eu dei fé, Deus levou ela [a mãe], aí fui pra luta, lavar roupa de ganho, aí apareceu um caroço no meu útero, um mioma, tive que operar, operei, o doutor disse que se eu não operasse ia virar um CA, operei e parei de trabalhar, aí quando dei fé apareceu esse problema, levei uma queda, machuquei o queixo, aí saiu esse problema no meu dente, aí mais um sofrimento, e eu vencendo” (...).
5. O tempo de passarmos mais tempo separados foi em 2005 quando tive que me separar, tive que me operar, veio um filho meu, e ela ficou na casa de apoio sem poder vir, com problema de coluna, pressão alta, pra você ver, né? A gente vinha da casa de apoio do centro, qualquer carrinho era caro, vinha do interior 500 km., numa ambulância pequena, sentada ali atrás e ela agüentava, é um milagre, né? Vai saber mais de vinte anos lutando, né? Não sei quantas cirurgias e ainda vou fazer outras, a vida não é boa, mas tem que agüentar, né? Porque quando o cabra tá com uma certa idade as pernas não podem com o corpo, né? A vista ruim, não ouve bem, fazer o quê?
6. Só choro se tiver dor, se não tiver dor não choro não. 1 e 2 convergem ao relatarem que seu estado de saúde já foi muito difícil, mas que agora está melhor.
1 e 5 divergem ao referirem como está à vida hoje, 1 diz que a vida é uma rosa e 5 diz que a vida não está boa.
3 e 5 convergem ao relatarem a distancia e a preocupação com a família como dificuldade em lidar com o adoecimento e suas famílias.
4 relata como aconteceu seu adoecimento.
1 e 2 divergem de 3 e 5 ao referirem que a vida está melhor hoje, 3 e 5 referem que não, hoje a vida não está boa.
3,2 e 4 divergem ao referirem a motivação para fazer o tratamento, 1 refere querer viver um pouco mais, enquanto que 2 refere querer ficar bem e de cabeça erguida, 4 refere querer vencer os problemas de saúde.
6 relata que somente chora quando sente dor.
Sentidos atribuídos aos desenhos.
1. Esse fogão representa o sustento da minha família, o fogão, o que eu aprendi a fazer no fogão, né? O sustento da minha família era tirado por aqui.
2. Minha vida sempre foi procurando, procurando um, um algo melhor, então eu
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desenhei um caminhão, por que eu gostava muito de andar, de um vizinho quando eu era jovem, aí eu desenhei (...) E meu filme é esse, gosto muito de viajar, de conhecer lugares e trabalhar também. (...). Isso é o que me faz bem, que eu posso. Aqui sou eu pedindo uma rosa, né? Essa rosa que eu peço é que eu tenha muito amor pra dar as pessoas, que possa ajudar, entendeu?
3. Meu desenho representa meu sofrimento e aqui minha vida, agora né? Que é um mar de rosas(...).
4. Eu desenhei meu pai também, que brigava com a gente, não deixava a gente sair pra canto nenhum.(...) Isso aqui era quando eu era criança, eu brincava com as crianças de bonecas, de baixo das moitas, das moitas de mufumo que tem nos matos, eram verdinhas que pareciam umas casinhas e aí nós brincava de casinha.
5. Eu vou começar na roça, por que comecei a trabalhar na roça, quando eu era criança gostava de brincar, comecei a trabalhar logo. Essa mesa representa o trabalho na roça, minha infância não foi muito sofrida não.
6. (Meu desenho é...) Trabalhando de padaria, sapataria, né? Minha vida não foi sofrida não (...).
7. É assim, mas o papel não apresenta nada, daqui não conto nada. 1,5 e 6 convergem ao atribuir aos desenhos algo relacionado ao trabalho.
2 atribui seu desenho do caminhão a procura, por isso anda e compartilha com outros.
4 atribui seu desenho às brincadeiras de criança.
3 diverge de 5 e 6 ao referir que a vida representada no desenho foi sofrida apesar de hoje estar um mar de rosa.
7 diverge dos demais ao referir que seu desenho não representa nada.
Sentidos atribuídos à forma de ver e viver a vida.
1. Tudo que eu fiz, sempre me agradei do que eu fiz, sabe? Sempre suando assim, era um prazer medonho, sempre eu era assim, mesmo aleijada, minha mãe dizia: menina para, tu não é pra andar no meio dos outros não. Eu ia evangelizar com um bocado de gente, vai menos no meio, ela dizia, tu vai lá na frente, mesmo cachingando, todo mundo vendo tu cachingando, e eu dizia deixa eu ir assim mesmo. (...) Eu sempre fui feliz, mesmo assim, pessoal mangava de mim eu tirava de letra, sempre fui assim. Aí então, aqui era na minha infância, fiz tudo, pesquei, quebrei lenha, lavei roupa, tudo eu fiz como uma pessoa normal (...) Nunca me queixei, “ai como tô com dor! Não sei quê!” Nunca senti essas coisas, chegava em casa tomava banho, almoçava, ia brincar ou me deitar na rede até dizer chega e de noite ia pra igreja (...) mas sempre foi assim, metida, minha história é metida. Você acredita que com doze anos fui pro Cauípe á pé, cinco léguas, de madrugada escondida de que ia a frente no trabalho, entendeu? Fiquei no meio do povo, me escondendo, me escondendo, porque eu sabia que ele não ia deixar eu ir, sabia que eu não botava lá, né? Lá na frente eu parei, já cansada ele me avistou e disse que não acreditava quem tava aí, me colocou no jumento. [indagada e sua deficiência foi marcante na sua vida] Justamente, até a própria minha mãe dizia você não vai, não vai, e eu dizia mãe eu vou, eu insistia, eu viajava de caminhão.
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2. Hoje a vida não tá muito boa não, mas da pra levar, um dia a gente tá mais alegre, outro dia a gente tá mais triste, um dia a gente ri, outro a gente chora (...).
3. (...) tomando conta dela (a mãe) ainda ganhava dinheiro do aluguel da minha casa, porque tomava conta dela e tomava conta dos outros e cada qual me agradava no que podia, aí quando chegava o mês de pagar minha casa, meu marido ia visitar ela e eu dizia olha meu filho o dinheiro da casa, arrumou aonde? Ele perguntava, eu dizia tomando conta dos doentes, eu tomava conta da minha mãe e tomava conta dos outros.
4. (...) mas dizer que eu quero coisa boa, importantes, pra minha vida, não quero não. O que eu quero é ficar perto dela (da esposa), né? Dizer que eu quero carro, fortuna depois de velho, que nem meu amigo, depois de velho quero riqueza não, pra fazer o quê? Um carro bonito e importante com um motorista, pra ir pra onde? Com um velho! Fazer o quê? Deixe pros novos, pros filhos, pros netos e outros.
5. Meu futuro é isso mesmo, que eu tô pelejando pra ir pra frente. Não tem mais o que pensar não, é pensar em durar mais e pronto.
6. (Quando era criança) Fazíamos as bonecas com os ossos, amarrava um no outro, brincava de correr e fazer medo os outros, eu tinha muito medo de gafanhoto e mane mago. Minha infância não foi muito boa não, tudo era muito difícil, se a gente ia pra escola era difícil. Tudo era longe, o maior sacrifício pra estudar e os pais da gente eram muito duros, por tudo em quanto brigavam com a gente, passear era a coisa mais difícil, era muito presa, depois que eu fui crescendo fui me animando mais arranjei o primeiro namorado, gostava muito dele, mas não deu certo, gostava de ir pra festa.
7. Eu não quero falar nada não. [solicitado que mostre seu desenho e fale um pouquinho sua história] Minha infância foi boa, foi trabalhando, minha preocupação era muito pouca (...).
8. É pra contar desde que a gente era criança? [o facilitador esclarece deve mostrar o desenho que conta a sua história, que fez sentido] Pra mim é um sentido grande, porque é a profissão que eu tenho, né? Trabalhei de cozinha, eu fazia muitos pedidos e graças a Deus todo mundo gostava, os pedidos podiam ser, lagosta, camarão, filé mignone, ou outro peixe, tem muitos tipos de comida, né? Cada dia saía as coisas e vinha outros pedidos. A minha vida foi isso, meu trabalho, que eu aprendi foi isso, até o dia que eu adoeci, mas ainda hoje se eu me meter a fazer, cozinho do mesmo jeito. Ora se não fizesse isso, cozinhando na cozinha, eu trabalharia na roça, né? Minha profissão era trabalhar na roça (...). Trabalhei de cozinheiro, de chefe de cozinha, aqui em Fortaleza dez anos, né? Tudo que eu aprendi fazer, sei fazer muitas coisas, não faço aqui porque não é permitido a gente fazer as coisas, porque a gente é paciente, mas eu tenho prazer em trabalhar em cozinha, muitas coisas eu sei fazer. [o facilitador indaga se isso marcou muito sua vida] Marcou, marcou porque o que eu aprendi, na minha juventude foi o que eu aprendi a trabalhar, desde rapaz novo que eu fui embora pro Rio, passei lá quinze anos, foi lá que comecei a trabalhar em cozinha, comecei lavando prato, e foi aprendendo, aprendendo, até que aprendi, né? Muitos tipos de macarrão, aprendi macarrão a bolonhesa não sei se vocês conhecem, muito gostoso, foi lá que eu aprendi a fazer muitos tipos de massa, e esses tipos de comida, né? Marcou minha vida porque eu aprendi, né? Sustentei minha família e as coisas que eu tenho hoje em dia ainda, foi comprado com meu trabalho com esse negócio de cozinha, né? Algum móvel que eu não podia dar, né? Eu tinha as férias, o décimo terceiro, eu comprava e dava de presente a mulher, a gente gosta de fazer uma surprezinha, né? Eu usava minhas férias, décimo terceiro, né? É isso.
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9. Eu trabalhava também, trabalhava na roça, eu plantava e colhia, melancia, frutas, né? Feijão, milho, cheguei até quebrar pedra, aquelas pedrinhas pra encher as latas pra vender? Vendi pedra, catei búzios, vendi búzios, os japoneses iam lá pra Barra do Ceará pra comprar, mesmo aleijada ia assim mesmo, pescava de rede no mangue, por isso que teve essas coisinhas sequinhas aqui (no desenho) (...) aí quando eu cheguei na minha idade de me assumir, de trabalhar, aí fui botar barraca, na praia vender comida, conhecer muita gente, fiz muita amizade (...) depois me acomodei porque já não agüentava mais, né? Fui cuidar de casa, comecei a ter filho, não podia caminhar tanto assim, minha caminhada é um quarteirão e meio o máximo.
1,2 e 5 convergem ao levarem a vida de forma a superar as limitações, a tristeza e esperar viver dentro das possibilidades.
3 diverge dos demais ao relatar que aproveitava as oportunidades mesmo cuidando da mãe doente, para conseguir a manutenção do lar.
5 diverge de 4 ao referir que quer viver mais, enquanto que 4 refere não ter muitas aspirações na vida, deseja apenas ficar perto da esposa.
6 diverge dos demais ao relatar as brincadeiras e as dificuldades vividas na infância.
7 diverge de 1 e 6 ao relatar que não tinha preocupação na infância.
7,8 e 9 convergem ao citarem que o trabalho marcou como forma de levar a vida.
Sentidos atribuídos às formas de enfrentar o sofrimento.
1. (...) sempre tive muitos amigos sabe? Se eu ia lavar roupa, tinha minhas amigas que me ajudavam, com pena de mim me ajudavam, qualquer atividade eu fazia.
2. (Eu quero poder ajudar) contar para as pessoas, o que eu já passei e que as pessoas possam saber que a gente pode superar, com confiança em Deus a gente supera, né?
3. (...) quando a gente lembra coisa que a gente passou ou ainda tá passando dá vontade de chorar.
4. Aí eu procuro os amigos, procuro conversar, passear, ir pra casa de uma amiga, pra não ficar parada em casa, por que se ficar só não serve, por que eu sou bem dizer só (...)
5. Aí na doença dela eu trabalhava, tomava conta de um senhor, carteira assinada e tudo, aí me obrigaram a sair do emprego pra tomar conta da minha mãe que ninguém quis ficar com ela no hospital, acho que tinham medo da doença dela. Eu, quer dizer, bem, fui obrigada assim, eu entreguei o emprego pra tomar conta da minha mãe, quer dizer, eu não ia deixar ela no hospital sem ninguém, aí deixei tudo, meu marido disse: minha filha você vai sair do emprego? Eu disse vou, mas ele disse: eu tô parado. Mas eu disse a gente leva a vida assim mesmo, aí eu tomei conta dela três meses no hospital (...) trabalhava tomando conta de idoso, passei três meses com minha mãe no hospital, minha mãe com CA, morreu nos meus braços. Ela me desprezou, mas morreu nos meus braços, a filha que ela criou não quis saber dela, eu tomei conta dela até na hora da morte. Cuidar dela foi muito importante, porque ela me desprezou, levou a minha irmã mais velha pra morar com ela e
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meu irmão mais velho, aí ela morava com meu irmão mais velho. 6. (...) aí pra eu vencer, já doente, catei duas filhas, três filhas dos outros, pra
criar, com mais três filhas dos outros, lavando roupa de ganho. Essas meninas, o pai delas morreu, a mãe irresponsável, uma delas eu peguei na maternidade, ela me deu, eu registrei no meu nome, aí tinha duas irmãs, uma com 11 anos e a outra com 08, aí moravam em Recife, aí eu fui pra Paraíba e aí as outras duas disse eu vou embora com tu também, aí a mãe delas disse “pode levar se não eu vou jogar tudo na rua”, aí eu trouxe as três, uma é registrada em meu nome, duas não é. Aí eu criei, duas estão casadas, na casa delas, elas são melhores pra mim que minha própria filha, a que eu criei. O que minha mãe não fez por mim eu fiz pra essas três. [indagada se sua história fazia sentido] Fez muito sentido, eu fiz com elas, o que não fizeram comigo, judiavam, e eu criei com maior carinho, como se fosse minhas filhas, elas gostam muito de mim, mas nenhuma podem vir. O que me dá muita força ainda é criar meus netinhos ainda, eu tenho um neto e uma neta que eu crio, meu neto tem seis anos e minha neta tem nove e minha filha que eu crio, irmã das casadas tem onze anos. Eles me amam muito, e quando ele liga pra cá, ele diz vovó fique boa (choro) que a gente ama muito a senhora.
1 e 4 convergem ao referirem encontrar nos amigos forma de enfrentar o sofrimento. Mas 4 diverge de 1 ao citar também os passeios e não ficar em casa sozinho como forma de enfrentamento.
2,5 e 6 convergem ao relatar que ajudar a outros constitui uma forma de enfrentar o sofrimento. Mas divergem na forma de ajudar, 2 refere ajudar contando sua experiência, 5 refere que foi cuidando de quem a desprezou e 6 refere que foi adotando três filhas.
3 diverge dos demais ao referir que enfrenta o sofrimento chorando.
6 diverge dos outros ao relatar que criar os netinhos dá forças para enfrentar o sofrimento.
Sentidos atribuídos à família.
1. (...) nunca me casei, não tenho filho, não tenho mais pai, nem mãe, sou uma pessoa bem dizer só, né? As vezes eu fico triste pensando, todo mundo tem filhos, tem marido, tem pai, mãe e eu não tenho nada? Se eu ficar pensando assim eu começo a chorar, fico nervosa.
2. Minha história é aquela que eu lhe contei fui muito judiada, minha mãe abandonou meu pai, eu tinha três anos de idade, essa mulher aqui do desenho é a mulher que me criou, era da minha família, era minha tia. Agora ela judiava muito comigo, meus primos com quem eu vivia, me queimavam com ponta de cigarro, botava pimenta no meu café, aí eu fui crescendo, sendo judiada até meus dezesseis anos.
3. Aí, nessa idade, conheci um rapaz, comecei a namorar e não passou dois meses. Aí eu fugi com ele de tanto sofrimento que eu sofria, aí eu fugi, aí foi quando eu comecei a ser feliz, agora tô com 52 anos, tô com ele ainda (...) pra mim apesar da minha doença, é um mar de rosas, porque meus filhos me amam muito, meu marido também, ele só não veio ainda aqui, porque ele não tem condições, porque se ele tivesse ele já tinha vindo me visitar.
4. Pensando o que mais marcou minha vida foi ter casado com ela, foi. Até
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hoje, 45 anos de casado, né brincadeira não, né? Hoje é um mês, um ano, 45 anos sem separação, parece que eu casei hoje, satisfeito, quatro filhos, não me deram trabalho. Ela é minha sombra, onde eu vou ela vai, a sombra né assim, né? É tudo na vida, uma mãe de família, deixar a casa um ano fora, eu nunca vi.
5. Ele [o pai] me ensinou muitas coisas, reza, oração, toda noite rezava, a gente sentava toda noite ao redor dele e ele ficava ensinando a respeitar as pessoas, a cumprimentar os mais velhos.
1 e 2 divergem de 5 ao relatarem sofrer pela falta do apoio da família, enquanto que 5 refere à presença e os ensinamentos do pai.
1 diverge de 3 e 4 ao referir que chora e fica nervosa ao pensar na família, enquanto que 3 e 4 referem estar satisfeitos e felizes com a família que tem.
1 diverge de 2 ao referir que sofre por não ter família, enquanto que 2 refere ter sido muito judiada por sua família.
3 e 4 convergem ao referirem que encontrar um companheiro(a) os ajudou a superar os problemas.
5 relata que seu pai ensinava coisas importantes da vida.
6.3 Oficina II: Análise Transversal
Encontrar o sentido da vida pode se dar de diversas formas e aqui trazemos
algumas delas. Por mais incrível que pareça, o sentido da vida pode estar no fogão.
É nele que se ganha o sustento da família. O fogão, a roça, o trabalho fortalecem o
homem. Esse fogão tem que render, pois o peso é grande. Principalmente depois
que se casa e se constitui família, filhos para criar, mais preocupação... Mas essa
mesma família que se preocupa, torna a vida um mar de rosas, apesar da doença.
E quando falta a família? É triste pensar que todo mundo tem filhos, tem
marido, tem pai, mãe, quando você não tem. Se pensarmos assim começamos até a
chorar. Devem-se criar estratégias, procurar... procurar um algo melhor pra vencer:
nos amigos, criando os filhos (mesmo que sejam os filhos dos outros), qualquer
coisa que afaste essa tristeza.
Mas nem sempre a família é mar de rosas, também pode ser um mar
turbulento. Ela também judia, maltrata. Ao invés de apoio e estímulo, encontramos
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maus tratos e tolhimento: no pai que briga, nos limites que não deixam a gente sair
pra canto nenhum. Um ambiente hostil de sofrimento e da dor.
Não se pode esquecer que essas experiências difíceis são novos caminhos
que se abrem na busca incessante por sentido. Das situações mais desafiadoras,
emergem sentidos desconhecidos ou ressignificados. O mesmo pai que tolhe é o
que ensina a rezar; o que a mãe não faz pelo filho, ele faz pelos seus; e, nesse
movimento, supera-se tudo.
O mar de rosas também pode ser o conformismo de nunca se queixar,
nunca se perguntar: por que será que não tenho tantas aspirações como antes?
Será que eu quero mesmo é ficar perto dela? Meu futuro é isso mesmo, seguir
pelejando pra ir pra frente? Não tem mais o que pensar não, é pensar em durar mais
e pronto.
Mesmo nos jardins floridos, as flores escondem espinhos que machucam e
nos deixam a sensação de não voltar mais nem vivo: é saber que vou, mas não volto
com os meus pés, não. Sim, ficamos sem chão, sem rumo, perdidos e entregues a
própria sorte. Mas quando nos sentimos meio-lá-meio-cá, avistamos caminhos de
melhora, formas de tratar a ferida aberta, talvez contando para as pessoas o que eu
já passei e que as pessoas possam saber que a gente pode superar. Pode ser
cuidando de quem nos desprezou, ou compartilhando o amor, a amizade como uma
sombra presente em todos os momentos. É preciso entender que um dia a gente
está mais alegre, outro dia a gente está mais triste. Um dia a gente ri, outro a gente
chora.
Em meio a esse emaranhado de formas de ver e trilhar o caminho, podemos
encontrar “um” para quem viver. Um sentido para além de si próprio: a esposa que é
tudo na vida, as lembranças do pai e de seus ensinamentos, a criação dos netinhos,
a oportunidade de aproveitar os momentos e pensar em viver mais e o trabalho
desenvolvido em toda uma vida são inquestionavelmente linhas de aproximação dos
sentidos da vida.
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6.4 Oficina II: Análise Surreal
Optamos na análise surreal utilizar uma paródia da bela música de
Gonzaguinha, “O que é, o que é?”, misturando relatos, expressões e criações à
letra da música, criando uma lógica impensada, como é próprio dessa análise.
O QUE É O QUE É O SENTIDO DA VIDA?
Eu fico com a pureza dos sentidos da infância É a vida, é bendita e é bendita.
Lutar e lutar e lutar
A presteza de um ser eterno que diz Ah! Bem sei, eu sei
Que a vida já foi bem pior Mas que mal há?
Se ela foi vivida, bem vivida e bem vivida.
Mas e o sentido da vida? Encontre se puder meu irmão
Ele pode ser encontrado em um fogão Ele pode ser uma bela visão, ê ô
Mas na vida
Se puder encontrar maravilha e também sofrimento Ela é alegria e muitas vezes lamento.
Encontre se puder meu irmão.
Há quem diga que o sentido, É um sertão no meio do mundo.
São os pais, os filhos, os amigos, Uma historia passada,
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E um encontro profundo.
Há quem diga que é Deus, Em seu amor fecundo.
É o beijo de um grande amor Ou a resposta extraída da dor.
Você diz que o sentido é viver
Mas digo que também é o morrer. Talvez seja o Criador
Numa atitude, no sentido amor.
Sentido, sempre encontrado!!
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Análise do grupo pesquisador
“Quem disse que não somos nada, que não temos nada para oferecer, repare nossas mãos abertas, trazendo as ofertas do nosso viver.”
(Zé Vicente Ceará)
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7 ANÁLISE DO GRUPO PESQUISADOR
A análise do grupo-pesquisador é, sem dúvida, parte de fundamental
importância para a pesquisa sociopoética. Nesse tipo de pesquisa, os participantes
são considerados co-pesquisadores e, por tanto, vozes ativas no processo. Essa
análise contempla a forma de perceber e analisar a produção feita por eles mesmos.
A oficina de análise aconteceu em 24 de setembro de 2007 na sala de
material da Terapia Ocupacional, às 14hs, na própria casa de apoio, onde
participaram dessa oficina 07 (sete) co-pesquisadores que estiveram presentes nas
oficinas de produção, o facilitador e a terapeuta ocupacional da instituição.
Iniciamos a oficina como de costume, com um breve relaxamento. Esse
consistia em retornar aos primeiros encontros, tentar rever o que foi dito, pensar nas
primeiras sensações, apreensões e curiosidades, depois passamos na visualização
proposta para retomar o que foi produzido, tanto na primeira como na segunda
oficina de produção. Finalizamos o relaxamento com um alongamento. Após o
relaxamento, dispomos o material plástico produzido. Iniciamos com as pinturas
realizadas na primeira oficina e mostramos, através da leitura, os comentários feitos
por cada participante. Todos os co-pesquisadores tiveram oportunidade de comentar
e analisar a produção do grupo. Procedemos da mesma forma com o material da
segunda oficina.
Resolvemos apresentar através de carta, que costumamos ver em fins de
conferências, reuniões, para mostrar as resoluções ou contribuições que ficaram
acertadas após os encontros. Assim fizemos. Essa proposta trata da voz e da forma
de pensar sobre tudo o que foi realizado durante os encontros do grupo-
pesquisador.
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Carta Espiritual de Fortaleza
Realizamos no dia 24 de setembro de 2007, às 14h, o encontro de análise das oficinas de produção. Estiveram presentes 07 (sete) participantes, além do pesquisador oficial e da terapeuta ocupacional, que esteve acompanhando todo o processo.
Após observarmos a produção plástica e ouvirmos as transcrições dos nossos próprios comentários, tanto da primeira oficina como da segunda oficina de produção, foi possível analisar que:
1- Produzimos sem nos apercebermos, uma arte muito bonita, que representa nosso sentido de vida;
2- À medida que vemos as pinturas, percebemos que a vida é maravilhosa. Isso representa o bom da vida, seu sentido;
3- Se juntarmos tudo, o sertão, a serra, o túnel, a lagoa, a ponte podemos dizer que somos e temos esperança, de melhorarmos, de ainda trabalhar e lutar pela vida;
4- Percebemos que cada um tem uma história para contar, as experiências e se prestarmos atenção, essa história dá sentido à vida, como é o caso do trabalho;
5- Ouvir e contar essas histórias nos deixa mais atentos, para não desperdiçarmos nosso tempo e cultivarmos as coisas boas da vida;
6- Participar desses encontros trouxe tanto crescimento que fez mais leve nosso sofrimento e iremos repassar aos nossos filhos e parentes o que aprendemos aqui;
7- Vencemos as dificuldades e limitações na realização das oficinas, descobrimos-nos capazes de muitas coisas, sentimos-nos valorizados. Quase todos nunca tinham pegado em um lápis para escrever ou desenhar nada e também nunca ninguém tinha perguntado como nos sentíamos ou como queríamos as coisas.
Estamos certos que foi importante para nós tudo o que vivemos nesses encontros e esperamos que seja uma resposta a todos os envolvidos nesse processo de saúde e de doença, nossos familiares, profissionais e nós mesmos, que a vida tem sentido e que é muito bom viver.
Grupo-pesquisador
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Diálogo filosófico-espiritual sobre o sentido da vida
“A vida é frágil e viver é um lindo momento, quando se sabe amar, notar a poesia perdida... Os
nossos momentos, as nossas idéias presentes em todas as canções, o que nós sentimos, os
nossos desejos seguirão em nossos corações.”
(Kim/Julio)
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8 DIÁLOGO FILOSÓFICO-ESPIRITUAL SOBRE O SENTIDO DA VIDA
Nesse capítulo, iremos realizar a análise filosófica proposta pela
sociopoética, que compreende o diálogo entre os saberes que foram produzidos
pelo grupo-pesquisador e o saber acadêmico que outros autores trazem. O diálogo
que iremos desenvolver não tem por objetivo descobrir e revelar quem está certo, ou
quem dos dois tem a verdade. Antes busca as intercessões desses saberes e,
nestas, encontrar pontos que clarificam e que se complementam. Nisso consiste a
análise filosófica proposta pela sociopoética.
Para Deleuze e Guatarri (1997), a filosofia não deve ser confundida com
reflexão, contemplação ou comunicação. Antes, a filosofia se detem a criar conceitos
e estes, por sua vez, não devem ser fechadas em verdades. Antes, são
aproximações de uma realidade possível. Através dos dispositivos propostos nas
oficinas, ocorre a mobilização dos corpos e, a partir do tema proposto, as
associações livres culminam na produção de conceitos inesperados e inusitados.
Gauthier (2005) concebe esses conceitos como sendo produções
desterritorializadas, contextualizadas no encontro exótico do afeto com a razão,
passando a serem chamados de “confetos.” A análise filosófica traz a perspectiva de
que o grupo-pesquisador é capaz de filosofar, à medida que cria confetos.
Cabe salientar que o que foi produzido pelo grupo-pesquisador é fruto de
saber construído em suas experiências e nas formas de compreender a vida, seus
processos e suas significações. Para isso, os co-pesquisadores empreenderam um
caminho de construção a princípio individual e, posteriormente, coletivo.
O primeiro confeto que destacamos é o Sentido Sertão. Neste,
entendemos que o sentido da vida é percebido como um lugar desejado, sonhado,
onde se pode descansar, um pouso certo nas horas de aflição. O sentido da vida é
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esse lugar, que corresponde à paz e a tranqüilidade, não importando que localização
ele tenha, se o tenho, estou seguro e pronto para viver as possibilidades.
Esse sertão proporciona satisfação na vida, apesar de vivenciar o câncer
ou qualquer outra coisa. Para Frankl (2002), a procura desse lugar pode muito bem
ser a busca de um sentido de vida, aquilo que ele chama de “vontade de sentido”. O
homem está sempre desejoso de encontrar um sentido na vida e nas situações.
Essa motivação é, às vezes, conseqüência do vazio existencial vivido no sofrimento,
que o faz procurar e, ao encontrar sentido, acha-se forte o bastante para enfrentar
qualquer sofrimento ou dificuldade, transcende a isso e é capaz de dar sua própria
vida por esse sentido.
Os diversos problemas enfrentados na vida, inclusive o adoecimento,
tornam a depressão, a drogadicção e a agressão, fugas do sofrimento e um
fenômeno comum em nossos dias. O confeto Sentido Serra pode ser uma resposta
a isso. Esse confeto traz a idéia de que o sentido da vida é algo maior, alto, no
sentido de ser uma resposta ao sofrimento, à culpa e à morte. Fica também claro
que o grupo-pesquisador produz e associa esse confeto à força, força representada
pela serra, que enfrenta bravamente as adversidades e não sucumbe. Em
consonância com isso, Giovanetti (2001) diz que o sentido da vida é o elemento
central na vida humana e que sustenta o homem em tempo de dificuldade. Frankl
(2003), por sua vez, ressalta que mesmo o homem vivendo o fracasso, pode estar
bem se, em sua vida, conseguir extrair um sentido em sua história, algo que lhe
fortaleça e o faça transcender.
Outro confeto produzido foi o Sentido Túnel/ Luz. Segundo o grupo-
pesquisador, o sentido da vida é concebido como um túnel com sua luz no final.
Esse confeto tenta dar conta da existência de um sentido no próprio sofrimento. É
como se dissessem: “só há escuridão se houver luz”. O túnel em si representa o
desconhecido, o sofrimento, as dificuldades, a possibilidade de morte, a situação
vivida. Mas não é só isso: esse túnel tem uma saída, há uma luz que pode e precisa
99
ser buscada. E mais: passar pelo túnel é uma esperança certa de enfrentar a
escuridão para, enfim, encontrar a luz.
Lukas (1992) nos fala que o sofrimento inevitável é vivenciado de forma
plena quando encontra um sentido para ser, ou seja, quando um sentido é
descoberto. Faz crítica aos que consideram alguns casos na saúde sem perspectiva
ou esperança e faz as seguintes perguntas: perspectiva e esperança de quê? Para
ela, há sempre esperança, mesmo que não haja possibilidades terapêuticas, há
esperança de uma vida com sentido, tal como nunca houve em toda uma vida.
Nenhuma vida humana, nenhuma única é sem sentido ou perspectiva, há sempre
algo para contribuir e que possua sentido no mundo.
Para Frankl (1994), é a partir da aflição que surge um olhar de
interrogação, de queixa, de desafio ou de súplica, empreende-se uma luta para
compreender o que aconteceu ou está acontecendo e, nessa busca para entender,
encontra-se o sentido. Como uma luz no fim do túnel, o sofrimento transmuta-se em
contribuição, a culpa em transformação e a morte em estímulo para agir
responsável. Da mesma forma, todas as fases ruins da vida podem ser apreendidas
como tempo de provação, de amadurecimento e de reflexão.
Um outro confeto produzido é o Sentido Lagoa. Neste, destacamos o que
o grupo-pesquisador trouxe como confeto. Essa lagoa é compreendida como
sentido, garantindo a sobrevivência, pois produz vida que é oferecida a quem se
dispor a pescar. Essa pesca é nossa eterna busca por sentido na vida e nas
situações e a lagoa é a fonte de onde se pode extrair o sentido.
Mas porque o grupo pesquisador associou o sentido da vida à
sobrevivência? Ora, o sentido da vida proporciona a quem o encontra um estado de
graça, um sentimento de plenitude e de transcendência, como se o tempo tivesse
parado e o que restasse era apenas a complementação do todo. Vasconcelos
(2006) corrobora no tocante ao sentido da vida ser a forma de o homem se
100
preservar. Do contrário, ele mesmo se autodestruiria. A falta de sentido ou o vazio
existencial descrito por Frankl (1991) é a principal causa da drogadicção, violência e
depressão, formas de autodestruição tão comuns em nossos dias. Em sua
experiência nos campos de concentração nazistas, Frankl (1991) relata que apenas
os que tinham “um [sentido] para que viver” conseguiam superar o horror do cárcere
e sobreviver, os que não conseguiam encontrar um sentido ou achavam que a vida
era desprovida de sentido, sucumbiram pela fome, pelos maus-tratos ou pelas
doenças.
Há um outro confeto produzido pelo grupo-pesquisador, o Sentido Ponte.
Esse confeto mostra-nos que o sentido da vida é apreendido como forma de ligação,
uma verdadeira ponte que conecta duas partes diferentes que necessariamente
precisam uma da outra. A ponte está bem representada pelo amor que faz ligações
entre o “eu” e o “outro”. Nessa ligação, a profundidade de sentido está representada
pelos diversos relacionamentos, sejam familiares, de amizade, de companheirismo,
de responsabilidade ou de interesse. O grupo-pesquisador elegeu o amor como
ponte que liga a vida e seu sentido. Por esse amor vive-se e morre-se. Nele,
encontra-se força para viver e superar tudo e, através dele, a vida se torna algo que
vale a pena viver.
Frankl (1992) concebe o amor não como forma de obter prazer ou
vantagens, mas como expressão que supera a satisfação de uma necessidade, um
verdadeiro ato coexistencial. Para ele, quando existe amor, a pessoa liga-se a outra
na mesma totalidade físico-psíquico-espiritual que é composta, de uma existência
para outra existência. Lukas (1992) refere-se a quem ama de verdade, ama não
somente algo que a pessoa tem, ama a própria pessoa, portanto, não o que a
pessoa amada tenha, mas, precisamente, o que a pessoa é. Esses autores alertam
que as relações nem sempre se dão nessa profundidade e não se chega a um ato
coexistencial.
De acordo com Crema (2002), há outras formas de amor, estarmos
atentos a essa formas podem nos ajudar a procurar sempre concretizar o ato
101
coexistencial. A primeira é a Porneia, o mais elementar de todos, representado pelo
bebê que suga sua mãe sem ao menos se preocupar com ela e com seus
sentimentos, seu interesse está em si próprio. Dessa palavra derivam pornografia e
prostituição. Se houver uma fixação nessa fase ou estágio evolutivo, nunca
chegaremos a um ato coexistencial e tão pouco viveremos o sentido da vida que
esse ato proporciona. A segunda forma de amor é o Eros, o amor do encantamento
e da posse, representado dessa vez pelo amor adolescente, que busca no outro a
felicidade e o preenchimento da carência dos pais. Esse amor pode não tem força
em si e também pode não concretiza o ato. A terceira forma, o amor Philia, é
descrito como o amor da troca, que vai à direção do outro para aprender a ser
humano com o outro e aprender também a amar com o outro. Esse amor é
considerado o da sinergia é a forma da concretização do ato coexistencial. Mas, há
além desse, o amor Ágape, o amor incondicional, gratuito e divino. O autor descreve
esse amor como maior que o coração humano, mas possível de ser vivido. Esse
amor seria a vivência plena desse ato coexistencial. Essa descrição nos faz pensar
que no amor há muitas configurações e que não necessariamente são boas ou más,
antes são formas de viver esse processo e de buscarmos através do encontro do
outro, extrair um sentido.
Para Frankl (2005), o caminho a ser trilhado para algo vivenciado e amado
constitui os valores vivenciais que, por sua vez, ao serem cumpridos, tornam-se
fonte de sentido. Podem ser concretizados no encontro com o outro e esse outro
pode ser a natureza, o belo, a cultura, as virtudes e as pessoas. Frankl (2005) ainda
refere-se ao fato de que esse amor autêntico, definido pelo grupo pesquisador como
ponte que a tudo liga, enriquece a vida do homem em todos os casos, mesmo no
caso de não ser retribuído. A experiência e o bem que esse amor proporciona ficará
para sempre gravado na sua história.
O sexto confeto produzido pelo grupo-pesquisador é o Sentido Fogão.
Esse conceito associa o sentido da vida à realização de algo, ou seja, o trabalho.
Para o grupo-pesquisador, esse trabalho personifica o próprio sentido, nele se pode
realizar algo. E essa realização proporciona àqueles que trabalham um sentimento
102
de utilidade, de importância social e de sobrevivência tanto de si como dos que
dependem deles. O sentido fogão representa o suor, o esforço de transcender as
dificuldades e a dureza do trabalho em si para um algo intencional que representa a
finalidade que se atribui essa ação e que nunca acaba ou nunca se conclui.
Observando o trabalho realizado durante toda uma vida, e destacando aquilo
conseguido através dele, é possível dizer que há valor nisso e nada, ou ninguém,
poderá destruir, pois está plasmado para sempre na história. O grupo-pesquisador
ressalta isso ao propor o trabalho como sentido da vida e o faz através da figura
“fogão”.
Segundo Lukas (1992), o trabalho oferece oportunidades próprias,
realizando-se de forma única, imprimindo-lhe uma nota pessoal, fazendo dele um
pedaço de vida vivida que do contrário, permaneceria sem ser vivida. Assim,
concebe-se o trabalho como uma transformação do ser-homem substancial no ser-
homem funcional que confluem na eficácia a temporalidade e a corporeidade.
Para Mondin (1980), o trabalho constitui uma forma de
autotranscendência, visto que está numa busca incessante de superação, procura
sempre romper os limites do tempo e da matéria, em busca do duradouro, perfeito e
eterno. O trabalho constitui os valores criativos para um algo a ser feito ou
produzido, a saber: o trabalho em si, as artes, as descobertas e as invenções.
Mas o trabalho pode gerar não só sentido, por vezes, gera desvios
também. Frankl (2003) analisou dois fenômenos que considerou opostos e
extremos. A esses deu o nome de “neurose do desempregado” e “doença do
executivo”. O primeiro sente-se um inútil e por isso considera a vida sem sentido.
Essa carência de sentido cria um campo fértil para as reações neuróticas e
depressivas e impede a pessoa de ter experiências na situação e dela extrair um
sentido. O segundo, apesar do nome, não trata de doença apenas de executivos,
mas de todos que fazem do trabalho um fim em si mesmo, degeneração do trabalho
pelo trabalho. É preciso enxergar o verdadeiro sentido do trabalho, aquele que
identificar a que o trabalho serve estará livre do excesso.
103
Lukas (1992) estabelece que o verdadeiro milagre do trabalho é falta aos
que fogem dele, opressão para quem nele se afoga, e asas à pessoa que o realiza
buscando fazer o melhor não somente para si, mas, sobretudo, para o outro.
O confeto Sentido Mar de Rosas, também produzido pelo grupo-
pesquisador, traz mais esclarecimentos sobre o sentido da vida. Essa perspectiva
encontra, nas situações difíceis, fonte de sentido. Ao vivenciar o câncer ou qualquer
outra doença grave, a pessoa sofrerá, mas traz consigo, em sua história de vida,
muitas lutas, batalhas, vitórias e fracassos vividos que ajudam a enfrentar e a
superar mais um obstáculo. Para o grupo-pesquisador, o sentido da vida
proporciona esse conforto, esse prazer, tal e qual um mar de rosas, onde a vida
parece estar melhor com a doença do que antes, quando estava são.
Esse confeto mostra-nos que não importa o que passamos. Se a vida tiver
sentido estaremos bem e nossa vida, preservada do desespero. O mar de rosas é o
sentido da vida que transforma as dores em pequenos sentidos e, ao vivenciá-los,
relativiza-se e minimiza-se tudo em conseqüência, dando a impressão de não mais
sofrer.
Vasconcelos (2006) corrobora com essa mesma concepção de sentido
mar de rosas, ao referir a capacidade que o homem tem de transcender o
sofrimento. Transcende ao encontrar em sua história dores maiores, ao ter a certeza
de que poderá ultrapassar mais uma dor e envolver de sentido a situação.
Lukas e Eberle (1993) referem-se ao homem como primeiramente capaz
de buscar um sentido até na doença, na culpa e no sofrimento, elevando-se
espiritualmente acima deles e encontrando sua determinação mais específica. Isso
comunga amplamente no que o grupo-pesquisador traz como sentido mar de rosas.
Neste sentido, Frankl (1991) fala da possibilidade de manter-se otimista diante da
tragédia. Dá-nos a noção de transformar o sofrimento numa conquista ou realização
104
humana e extrair da dor a oportunidade de mudar e fazer da transitoriedade da vida
um incentivo para realizar ações responsáveis.
O último dos confetos é o Sentido Deus. Essa produção do grupo-
pesquisador tem seu foco não só em Deus, mas, especialmente, na fé, na
esperança e na entrega total. O confeto traduz, em última análise, a segurança de
não entender nada e, mesmo assim, estar bem. O sentido está presente no
incognoscível, pois há um despojamento de tudo, inclusive da própria vida. Para o
grupo-pesquisador, Deus é o sentido por si mesmo, a primeira e a última forma de
se agarrar à vida e não sucumbir ao desespero, à solidão, ao sofrimento e à possível
morte.
Valle (2005) refere-se ao fato de que antes mesmo de sermos religiosos,
procuramos um sentido para nós mesmos e que o homem, ao tentar entender a
vida, o tempo e o universo depara-se com o mistério e o inefável, obrigando-o a
calar e humildemente tentar empreender caminhos espirituais que dêem conta de
suas demandas, primordialmente através da fé. Para ele, a fé deve ser entendido
em seu sentido original, que vem do grego Pistis e Pisteuo, que quer dizer “eu
assumo, eu confio, coloco meu coração, empenho minha fidelidade”. Jamais poderia
ser desvinculada ou separada da vida. É ela que dá propósito para as lutas e
esperanças, para o pensar e o agir. É uma forma ativa de ser e comprometer-se,
também forma de conhecermos e modelarmos nossas experiências, estão ligadas
as relações, na fé, sempre há um outro.
Vasconcelos (2006) afirma que a espiritualidade vivenciada através da
religião ou de fé pressupõe conhecimento dos próprios limites e possibilidades, não
é um ato de simples resignação e, sim, uma atitude corajosa e humilde de alguém
que sabe que sua vida está voltada para um ser mais, um partilhar mais, um
desprender-se. Para Frankl (1992), a religião é a consciência de que o homem
possui uma dimensão sobre-humana. Ao ver-se como ser no mundo, vislumbra o
infinito e isso o faz cheio de esperança e de fé na vida e em seu sentido último.
105
O grupo-pesquisador traz o “Sentido Deus” não como imagem, mas como
realidade viva, existente e conhecida dele, ajudando inquestionavelmente no
enfrentamento e superação do sofrimento, da culpa e da morte, muito embora não
se possa comprovar fisicamente.
Ao dialogarmos sobre o sentido da vida, faz-se necessário entendermos
que esse tema está intrinsecamente ligado à transcendência, à liberdade e à
transitoriedade da vida, posto que torna o sentido da vida expressão importante da
espiritualidade humana.
Nossa forma de conceber a transcendência não se exclui em momento
nenhum a idéia de imanência. Antes, propõe sua integração naquilo que Boff (2002)
chama de transparência. Percebemos que a produção do grupo pesquisador está
mergulhada nessa transcendência, visto que seu movimento de encontro do sentido
e sua plena expressão acontecem na vida cotidiana e no interesse de algo além das
suas necessidades psicofísicas.
O poder decidir-se também precisa ser destacado e está atrelado à
transcendência. Esse poder nada mais é que a liberdade humana frente aos
condicionantes biopsicossociais, que imprimem no homem um caminho já traçado a
percorrer, mas que a todo o momento é impelido a decidir entre esse e outros
caminhos. Os confetos produzidos pelo grupo-pesquisador mostram de forma clara
e simples que a liberdade é utilizada para dar uma resposta à vida. O grupo-
pesquisador declara que há um sentido, mesmo vivenciando situações difíceis como
o adoecimento e as diversas dificuldades da vida. A liberdade possibilita que, em
face às adversidades, o homem responda de forma otimista a fim de encontrar um
sentido para a vida.
A transitoriedade da vida também é responsável por essa busca
incessante de sentido. Para Frankl (2005), é inegável essa transitoriedade, mas,
106
sendo possível dar um sentido, as oportunidade de criar, de experienciar, e de
sofrer, o homem concretiza essas possibilidades e finda a transitoriedade, pois
essas experiências estarão para sempre presentes, conservadas no passado e
ninguém poderá destruir. Poderíamos dizer que o sentimento de transitoriedade é
mola impulsionadora para um sentido e está também ligada à liberdade e à
transcendência. O grupo-pesquisador em sua produção tem noção disso e traz as
experiências de vida como arquivadas no passado, retornam como fonte de sentido
que, ao responder as aguilhoadas dessa transitoriedade, permitem a continuidade
dessa busca.
Fica evidente que, em toda a produção de confetos do grupo-pesquisador,
as concepções de transcendência e liberdade humana estão presentes e estão
frente à transitoriedade da vida. Os conceitos de sentido da vida elaborados são
produzidos a partir do sofrimento vivido durante a vida e, sobretudo, no atual
adoecimento. Dentre os confetos que podemos chamar gerais estão: o “Sentido
Sertão”, o “Sentido Serra”, o “Sentido Túnel /Luz”, e o “Sentido Lagoa”. Há também
os confetos que trazem os valores: criativos, “Sentido Fogão”; vivenciais, “Sentido
Ponte”; e atitudinais, “Sentido Mar de Rosas”, além do confeto que trata do último-
sentido, o “Sentido Deus”.
Percebemos que houve muitas intercessões e complementaridade dos
saberes do grupo-pesquisador e dos saberes produzidos na academia. Os confetos
apresentados mostram-nos a riqueza da produção coletiva e, especialmente, da
capacidade de vivenciar a espiritualidade no processo de adoecimento. O sentido da
vida é apreendido nas pequenas coisas que agora se tornam coisas relevantes da
vida e, ao se realizar a formação do grupo-pesquisador e as oficinas em si, dá-se
então o efeito maquínico que proporciona mudanças e torna a vida pronta para ser
vivida em sua plenitude por todos que se deixaram tocar por esse efeito, mesmo que
isso não seja a intenção primária da produção de conhecimento do grupo.
107
Análise maquínica: um agenciamento entre o
pensamento do grupo e a clínica de enfermagem
“Há esperança para o ferido, como arvore cortada, marcada pela dor... Há esperança pra você!
Ao cheiro das águas brotará, como planta nova, florescerá, seus ramos se renovarão, não
cessarão os seus frutos e viverá...”
(Ana Paula Valadão)
108
9 ANÁLISE MAQUÍNICA: UM AGENCIAMENTO ENTRE O PENSAMENTO DO GRUPO E A CLÍNICA DE ENFERMAGEM
Durante um dos encontros que tivemos, um dos co-pesquisadores me
fez duas perguntas: para que vai servir essa pesquisa que nós estamos fazendo? E
por que você resolveu saber de nós essas coisas? Essas perguntas ficaram em
minha mente e, a partir de então, incorporei-as como minhas. Uma das formas de
responder a tais perguntas foi trazer uma análise dos efeitos maquínicos da
pesquisa sociopoética.
Antes de nos aventurarmos nessa nova proposta de análise,
precisamos antes esclarecer porque demos o nome de maquínica. Essa palavra,
conforme proposto por Guatarri e Rolnik (1986), origina-se da idéia de máquinas,
considerando suas evoluções históricas, comparadas ao das espécies vivas. Elas se
relacionam, engendrando-se umas nas outras, selecionam-se, eliminam-se, fazendo
surgir novas possibilidades. Além disso, essas máquinas nunca funcionam
isoladamente, sempre há uma outra máquina para formar uma agregação ou um
agenciamento. Tratam de maquínico aquilo que cria novas linhas ou perspectivas,
idéias talvez impensadas, um desejo produtivo, criativo e agenciador de elementos,
excluindo, portanto, a idéia de mecanicismo ou maquinismo, resquícios de um
racionalismo que faz apologia ao mecânico em detrimento do humano.
Mesmo sabendo que o efeito maquínico não é o foco principal da
pesquisa sociopoética, não poderíamos negar ou esquecer que este está sempre
presente, como ressonância do saber produzido. Sendo, portanto, imprescindível um
olhar mesmo que sucinto desse aspecto da pesquisa, trazendo para nós um desafio
ao propor uma outra análise.
Gauthier (2005) revela que o efeito maquínico surge da própria produção
do conhecimento do grupo-pesquisador, ao afirmar que as expressões trazidas por
109
cada co-pesquisador modificam os corpos e as paixões para produzirem novas
expressões. Para ele, a sociopoética torna-se uma agência clínica e espiritual ou,
ainda, uma micropolítica do desejo, com efeitos potentes de transformação da
realidade: primeiramente do grupo e, por conseqüência, dos mundos onde andam
essas pessoas.
O efeito maquínico que vamos nos deter nessa análise é o que Gauthier
(2005) descreve como relacionado com as ressonâncias que os mesmos produzem
no mundo no qual estão inseridos os envolvidos. Como ressalta Gauthier (2005),
após sociopoetizar, os corpos são transformados e induzem transformações nos
seus ambientes. Cria-se um novo corpo, coletivo, desterritorializado, que, por certo,
transmuta-se continuamente e tele-transporta-se para espaços de contextos de
tempo, onde estão também nossas reservas de significados e onde possivelmente
afeta todos os que estiverem no mesmo círculo de efeito.
Os confetos produzidos pelo grupo-pesquisador composto por pacientes
com câncer constituem peças importantes para aqueles que lhes prestam cuidados.
Não nos furtaríamos de tecer alguns comentários a este respeito, visto que
analisarmos os confetos na perspectiva dos cuidadores podem, sem dúvida,
proporcionar um novo olhar para a pessoa com câncer e para seus cuidados.
Os efeitos maquínicos ressoam em todos os que estão em contato com o
grupo-pesquisador ou com a pesquisa quando esta for socializada. Especificamente,
para os cuidadores e mais precisamente, para os enfermeiros e profissionais com
contato direto e contínuo, com os pacientes, muitas lições podem ser extraídas.
Os confetos produzidos pelo grupo-pesquisador nos ensinam muito.
Apesar da produção ser específica desse grupo pesquisador e, portanto, não
generalizável, com certeza os efeitos maquínicos nos atingem ao ponto de
traçarmos questões importantes para o cuidado clínico de enfermagem.
110
Ao buscarmos nos co-pesquisadores seus conceitos sobre o sentido da
vida como forma de expressão de espiritualidade, vemos que esta pessoa
acometida pelo câncer, ao encontrar e vivenciar um sentido na vida, passa pelo
adoecimento e enfrenta inclusive a possibilidade de morte.
Um fator presente nos confetos Sentido Sertão, Sentido Serra, Sentido Túnel/Luz, Sentido Deus, Sentido Lagoa, e relevante para os cuidados de
enfermagem, é a “Esperança”, não necessariamente na cura da doença em si, mas
na espera de algo melhor, no trabalho que torna útil o homem, na fé e na entrega
total a Deus e na possibilidade de acrescentar vida aos dias. Destruir tal esperança
seria algo desastroso, trazendo, sem dúvida mais sofrimento.
Conforme Sá e Pereira (2007), durante a história da enfermagem, a
espiritualidade é, na maioria das vezes, associada ao aspecto religioso. Os confetos
trazem uma contribuição às formas de ver a espiritualidade pela enfermagem, no
que tange ao sentido de a vida ser esperança em algo, motivo e força de superação.
O enfermeiro deve incentivar em seus pacientes a esperança em uma vida plena de
sentido, mesmo ao deparar-se com o sofrimento, a culpa e a morte iminente. Há
sempre possibilidades de se retomar algo, pedir e dar perdão, revisitar sua história
de vida e suas experiências, extrair da situação um sentido, construir alguma coisa
por menor que seja e, por fim, esperar uma outra vida, quem sabe!
Os confetos apresentados impactam a enfermagem ao mostrar que o
sentido da vida significa fonte de sobrevivência, força que mantem alguém firme
para travar a luta pela vida, energia motivadora que faz o homem buscar
incessantemente uma coisa que faça a vida valer a pena ou achar em Deus e na fé
a última possibilidade de viver a vida com sentido.
Os confetos Sentido Ponte, Sentido Deus, Sentido Mar de Rosas, Sentido Fogão nos fazem refletir em como propiciar o encontro dos pacientes com
seus sentidos de vida. Vemos nitidamente que o sofrimento vivido anteriormente, as
111
realizações durante a vida, as relações afetivas e as crenças ou a fé são fontes onde
podem ser extraídos sentidos para a vida.
Vemos que a produção do grupo-pesquisador encontra paralelo na
enfermagem no que diz respeito às crenças, a fé em Deus. Mas vai além quando
propõe um “Sentido Mar de Rosas” encontrado nas situações inevitáveis de
sofrimento. Tal concepção possibilita que o indivíduo saia de uma condição passiva
e vitimizada para uma condição ativa e uma postura libertária frente à doença e aos
sofrimentos da vida. Esse confeto mostra quão importante é fazer as pessoas se
posicionarem como sujeitos, mostrando o que desejam e o que pensam sobre a
vida. Assim fazendo, não nos deixam outra alternativa, a não ser cuidar da forma
como querem ser cuidados.
Uma outra contribuição é o confeto “Sentido Ponte” que mostra que o
sentido da vida pode ser encontrado nas relações que se estabelecem durante a
vida. Apesar de alguns estudos sobre espiritualidade na enfermagem fazerem essa
associação, fazem-no atrelado principalmente aos aspectos psicossociais (DANIEL,
1989; GUIMARÃES,1984). Esse confeto abre um leque de possibilidades de
cuidados espirituais de enfermagem que precisa ser construído e discutido junto
com o paciente.
A história de vida da pessoa cuidada constitui uma das possíveis chaves
para a descoberta do sentido da vida. Vasculhando seu itinerário espiritual e sua
trajetória, podem ser achados fatos importantes que trazem sentido as experiências
vividas no hoje, como constatamos no “Sentido Fogão”. Percebemos que esse
confeto traz algo original para a enfermagem, pois vincula as realizações e o
trabalho como fontes de sentido para a vida e acrescenta mais um aspecto para ser
levado em consideração na avaliação das necessidades espirituais dos pacientes,
aspecto não visto nas produções de enfermagem.
112
Muitas vezes a pessoa doente não consegue viver plenamente, pois está
limitada em suas possibilidades, devido ao comprometimento da sua estrutura
psicofísica. O enfermeiro oportunamente precisa ajudá-lo a compreender todas as
oportunidades, especialmente as subjacentes, que só se mostram no decorrer da
relação terapêutica e assim abrem-se caminhos e novas possibilidades de escolhas,
caracterizando a liberdade e a responsabilidade humana, advindas da dimensão
espiritual como observamos claramente nos confetos produzidos.
Tanto Travelbee (1979), como Fish e Shelly (1988), referem-se, que o
enfermeiro só poderá propiciar ou favorecer o encontro do sentido da vida de seus
pacientes, através do estabelecimento e desenvolvimento de uma relação
terapêutica efetiva, não só individual, mas também coletiva, exigindo do enfermeiro
conhecimento de crenças, valores e atitudes de si próprio e das pessoas
relacionadas. Os confetos produzidos ampliam e acrescentam o conhecimento já
estabelecido.
O grupo-pesquisado teve a oportunidade de pensar e de ser estimulado a
encontrar seu sentido, quando criou conceitos sobre o sentido da vida. Gauthier
(2005) prevê tal possibilidade afirmando que, ao juntar facilitador ou pesquisador
oficial com co-pesquisadores na produção de confetos práticos, e por serem
geralmente super-contextualizados, afetam diretamente os contextos de inserção
das práticas sociais, proporcionando um agenciamento maquínico de corpos.
À medida que começaram a produzir conceitos para o sentido da vida, não
o fizeram de forma apenas cognitiva ou intelectual, mas o fizeram com sentimento,
com verdade e de forma vivencial. O grupo-pesquisador foi atiçado pelo próprio
movimento dos co-pesquisadores, diante de uma situação adversa, a refletir e a
traçar um itinerário espiritual, como Gauthier (2005) chamou esse efeito de “terapia
profana”, por não ser intencional, mas, presente e pulsante.
113
Conceituar o sentido da vida como algo ligado à força, à sobrevivência, às
relações de amor, a Deus, ao trabalho, às experiências de sofrimento e fonte de
prazer, possibilitou uma aproximação do sentido de cada co-pesquisador. Dar-se aí
um outro efeito maquínico, desta vez, individual/grupal da produção de
conhecimento da pesquisa sociopoética.
114
Possíveis considerações para um novo começar
“Eu perdi o meu medo, o meu medo da chuva. Pois a chuva voltando pra terra traz coisas do
ar. Aprendi o segredo, o segredo, o segredo da vida. Vendo as pedras que choram sozinhas no
mesmo lugar.”
(Raul Seixas)
115
10 POSSÍVEIS CONSIDERAÇÕES PARA UM NOVO COMEÇAR
Chegamos a um momento importante da pesquisa, momento de rever
intenções, analisar implicações e avaliar se o objetivo proposto foi cumprido. Nosso
objetivo era produzir conceitos sobre o sentido da vida, aspecto revelador da
dimensão espiritual junto do grupo-pesquisador formado por pessoas com câncer.
Ao fazer um paralelo entre nossa proposta e o caminho feito pelo grupo-
pesquisador, percebemos que, com a sociopoética, atingimos de forma bela e
natural nosso objetivo demonstrado nos diversos confetos criados. A partir dos
confetos, foi possível encontrar pontos relevantes do sentido da vida para aqueles
que enfrentam o câncer e a maneira que esse sentido pode contribuir com o bem-
estar dessas pessoas.
Destacamos que os confetos produzidos foram tecidos com experiências
práticas, e talhados no cotidiano de quem viveu e tem muito para contar, mesmo que
muitas vezes desvalorizados no seu modo simples de ser. Cada co-pesquisador e,
mais ainda, o grupo mostraram que são capazes de produzir e filosofar. Sua filosofia
não deixa a desejar em relação às filosofias acadêmicas. Ela é tão valiosa quanto e,
portanto, merecedora de crédito de todos aqueles que querem entrar em contato
com seu mundo de coisas.
Inicialmente o grupo-pesquisador me trouxe certo receio, perguntava-me:
será que entenderiam a proposta? Permaneceriam em todas as atividades?
Mobilizariam muitos conteúdos dolorosos ao ponto de desistirem? As respostas
podemos ver nos confetos produzidos. Esses mostram que o sentido da vida é algo
propiciador de um enfrentamento da doença, mesmo em fase de sofrimento, da dor
e da possível morte. Ao serem mobilizados a pensar, repensar e elaborar conceitos
116
sobre o sentido da vida, o grupo apresentou-se otimista e consciente da realidade
vivida.
Consideramos que os confetos gerais Sentido Serra, Sentido Sertão,
Sentido Lagoa, Sentido Túnel/Luz traduzem um sentido de força ao deparar-se
com a doença. Nisso, a reza, um lugar para viver, a saúde ou mesmo a
sobrevivência também trazem um sentido de espera e esperança àquilo que pode
ser modificado. O sentido está na força de não se dar por vencido, de buscar algo
que faça continuar na luta, buscando uma luz no fim do túnel, a motivação
necessária para não sucumbir ao desespero, ao sofrimento de toda espécie e ao
medo da morte.
Há os confetos que chamamos específicos. São eles: criativos, vivenciais,
atitudinais e o último-sentido. O confeto Sentido Fogão está no grupo dos valores
criativos, representado pelo trabalho do homem, suas realizações, seu papel social,
sua sobrevivência. Esse conceito pode responder as indagações que, vez por outra
fazemos: “o que eu fiz da minha vida?” Ou, ainda, “qual a minha contribuição para a
vida?” Encontrar tais respostas pode tornar a vida plena de sentido.
Os valores vivenciais são representados pelo Sentido Ponte. Nele
encontramos o ato co-existencial pelo qual se vive e se morre, representação do
amor, concretizados no encontro com a natureza, com o belo, com a cultura, com as
virtudes e com as pessoas.
Os valores atitudinais são representados pelo Sentido Mar de Rosas.
Este confeto traz a perspectiva de traduzir o sentido da vida, as lições tiradas do
sofrimento inevitável. A partir de experiências difíceis, é possível extrair sentido que
torna a vida mais fácil e proporciona prazer em viver, mesmo enfrentando o câncer.
117
O último-sentido foi representado pelo Sentido Deus. Nele encontramos
não só a figura de Deus, mas a fé, a última esperança que não me deixa desistir.
Por piores que sejam as circunstâncias, é um ato corajoso que me faz forte, mesmo
sendo fraco.
Ao contemplarmos a riqueza produzida pelo grupo-pesquisador, não
poderíamos nos esquecer de mencionar que todo esse processo nem sempre
aconteceu de forma tranqüila. Além da possibilidade de os co-pesquisadores não
permanecerem no grupo pela breve estadia na casa de apoio, dependendo do
tratamento e acompanhamento realizado no hospital, os co-pesquisadores
achavam-se incapazes de realizar as oficinas. Muitos relataram que nunca haviam
tido a oportunidade de pegar em um pincel, de desenhar ou de pintar qualquer coisa
e que não tinham nada de interessante para compartilhar.
À medida que o grupo foi se integrando e valorizando tudo o que era
produzido, os encontros tornaram-se mais agradáveis e descontraídos. Foram se
descobrindo importantes, começaram a analisar que suas histórias de vida eram
ricas de significados e o que haviam vivido servia de experiência para superar as
dificuldades que surgiam. Isso fica bem claro nos depoimentos espontâneos do
grupo, no final da última oficina, como vemos nas transcrições:
Eu gostei, no começo da pesquisa eu fiquei meio assim...você explicou, eu me senti... nunca peguei num lápis pra desenhar nada, né? Aí era pra eu desenhar minha vida, e eu fiquei pensando, pensando e deu certo o que eu fiz, né? Porque desde criança eu tinha vontade de vencer, dei conta do meu problema na perna, porque eu queria mostrar que não era peso pra ninguém e incomodo pra mim. Mesmo sofrendo eu iria enfrentar (CP2).
Eu achei ótimo nós sermos convidados, porque ninguém pensava nisso, foi três reuniões, né? Foi muito bom, eu nunca tinha pego num pincel pra desenhar nada, né? Eu achei importante, porque eu aprendi, a gente tem que dizer o que a gente quer. Quero me
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desculpar se não participei bem, é que nós não somos sabido, não tem curso. Eu me achei muito importante, porque o que eu sabia era cozinhar e, nunca tinha pensado nisso. Eu aprendi a relaxar, respirar e cheirar a fulo (CP1).
O que eu achei importante foi conhecer vocês, a gente vive junto e não se conhecia (CP6).
Eu fui a primeira a dar o nome pra pesquisa. Pra mim foi muito bom, quando eu chegar em casa vou ensinar aos meus filhos tudo o que eu aprendi aqui. Eu aprendi a ser mais forte e tocar a vida pra frente. Se eu não tivesse com vocês, eu estaria num canto chorando. Até me distrai com essas reuniões, porque no primeiro dia do encontro, tava só chorando, era Maria Chorona (CP3).
Pra mim, eu gostei muito, fiquei importante de participar, fiquei mais alegre do que eu era, com tanto problema (CP4).
Foi ótimo participar, fizemos um grupo, a gente discutiu o que a gente achava. Pelo menos o que a gente achava que era importante dizer, né? Pra mim foi ótimo (CP7).
Para mim, o percurso também não foi tranqüilo: primeiro, porque, apesar
da pesquisa sociopoética ser fascinante e estimulante, estava acostumado a
pesquisar com métodos tradicionais. Não é fácil deixar as formas práticas, indo
como par ao encontro do outro, percebendo-o rico em saberes e passarmos juntos a
produzir conhecimento.
Confesso que cada passo desta pesquisa foi para mim um desafio,
começando pela formação do grupo-pesquisador, a realização das oficinas e,
especialmente, as análises. Nas análises é onde se mostra toda a beleza e a
riqueza da sociopoética. Uma a uma, foram batalhas vencidas. Mesmo com grande
dificuldade, esse processo não deixou de ser prazeroso.
Nesse ínterim, o assunto “Sentido da Vida” foi ganhando grandes
proporções, não só porque estava teoricamente mergulhado na temática, mas por
mobilizar conteúdos que surgiam e outros que não havia me dado conta.
Questionamentos vieram à tona e me fizeram pensar e repensar crenças, atitudes e
posturas.
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Não poderia deixar de relatar que minha orientadora e amiga Lia Carneiro
Silveira me acompanha e me orienta desde a minha primeira especialização e foi ela
quem me apresentou e me introduziu na sociopoética, tendo em todos os momentos
me incentivado, ajudado, corrigido e produzido comigo. Tudo o que era produzido
era valorizado por ela, mesmo que muitas vezes não concordasse com o que eu
havia escrito por termos concepções diferentes sobre espiritualidade, sentia seu
apoio e respeito. Sua paciência é também algo a ser destacado, sempre soube
entender que, além de realizar a pesquisa, ainda tinha que trabalhar e administrar
outras atividades acadêmicas. Nossas orientações sempre foram rápidas, mas
profícuas.
É necessário ressaltar a importância que esse estudo tem para a
Enfermagem, utilizando a sociopoética como caminho metodológico. Primeiramente,
porque nos ensina que não somos os detentores do saber. Percebemos que há
outros saberes tão ricos e profundos quanto aqueles que aprendemos na academia
e estes provem das pessoas que menos consideramos como ativas no processo de
cuidar: o “paciente”.
Este estudo também nos mostra a grande oportunidade de favorecer o
cuidado naquilo que chamamos de efeito maquínico, através do agenciamento entre
os confetos trazidos pelo grupo e os cuidados de Enfermagem. Podemos perceber
que, ao analisarmos esse agenciamento, os confetos trouxeram contribuições
importantes para a enfermagem e para a sua assistência espiritual. Não temos a
pretensão de encarar ou apresentar esses confetos como a última verdade, não,
foram apenas construções possíveis para o momento vivido. Esperamos que tudo o
que foi apresentado aqui possa agenciar novas possibilidades e mobilizar novas
pesquisas sobre o assunto.
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125
APÊNDICES
126
12 APÊNDICES
APÊNDICE - I
PRIMEIRA OFICINA DE PRODUÇÃO: OS LUGARES GEOMÍTICOS (12/09/2007)
F1-Nosso objetivo agora é fala um pouquinho sobre o sentido da vida, como eu falei pra vocês a vida está cheia de dificuldade, ainda mais vivenciando a doença, o sofrimento, as dificuldades, isso nos traz uma séria de coisas que passam pela cabeça da gente, e a gente vai vendo um filme como o trem, desde quando éramos criancinhas, com os pais, com os amigos, depois com a namorada, o namorado, o casamento, o trabalho, os filhos. E a aí podemos fazer umas perguntas: A vida vale a pena? Há algum sentido na vida? Apesar de toda dificuldade, o que nos faz ficar vivos? Aquilo que vocês representaram no papel, a minha serra, esse sentido pode ser minha serra, minha lagoa, meu sertão, meu túnel, a minha ponte, tudo representa meu sentido. Vocês falam um pouquinho do desenho, e como esse desenho representa o sentido da vida de vocês. O que foi o desenho que vocês fizeram que diz alguma coisa sobre vocês e sobre o sentido? O Sr. quer começar?
CP1-O que eu fiz do sentido da minha vida, o túnel com as luzes, porque é claro, né? Que eu gosto muito de claridade, só isso mesmo.
F1-Certo, esse túnel que Sr. desenhou, o que tem a ver com o sentido da sua vida? O que o Sr. pensa sobre isso? Tem alguma relação com seus problemas? Sua doença? O que representa o escuro, as luzes e o túnel todo, que o Sr. desenhou?
CP1-Ele representa pra minha vida porque, é claro por causa da minha saúde né, porque eu gosto muito de claridade. E aí eu representei isso.
F1-E o que esse túnel tem a ver com o sentido da sua vida? Deixa eu lhe dizer o seguinte, eu estou vivo e quero lutar, quero ser feliz, quero viver bem ou não, o que tem na sua vida que Sr. procura como sentido, que foi mostrado no seu desenho?
CP1-Minha saúde, eu procuro viver, eu gosto muito de viver né, a gente é pobre mas a vida da gente é muito importante, eu quero viver muito, por isso tô fazendo o tratamento porque eu gosto muito de viver.
F1-O Sr. disse que gosta de viver, o que tem na sua vida que o faz gostar tanto de viver?
CP1-Porque é bom viver né? Viver com as pessoas, conversar, com a família da gente, e mesmo que não seja a família da gente, a esposa , os filhos.tudo é bom né pra gente viver.
F1-Há algo na sua vida que o Sr. diga viver vale a pena?
CP1-Vale sim, porque eu gosto muito da minha família, dos meus amigos, e bom agente viver por causa disso né, é bom a gente viver pra ter comunicação com o pessoal, com outras coisas também né? È isso.
F1-Quem gostaria de mostrar agora seu desenho?
CP2-Eu desenhei uma lagoa, um açude.
F1-O que tem a ver essa lagoa ou o açude com sentido da sua vida?
CP2-O sentido da lagoa é pro caba pescar, quando tiver vontade, pegar peixe, comer o peixe.
F1-Mas o que tem a ver a lagoa com o sentido da vida do Sr.? Há algo na vida que vale a pena, que o Sr. desenhou?
CP2-Pegar o peixe pra comer, sem comer ninguém vive né? É o sentido de sobreviver, trabalhando.
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F1-Há algo na sua vida que faz sentido que o Sr. tentou desenhar?
CP2-É importante.Deus consente eu viver, se não consentisse já tinha me tirado a muito tempo.Tem sentido sim, se for pra mim mudar, eu mudo, me tira bem facinho, me tira bem ligeiro.
F1-Alguém gostaria de mostrar seu desenho?
CP3-O que me dá força pra continuar a viver são meus filhos, eu tenho um casal de filhos, pra mim é tudo de mais importante, eles dão muita força pra continuar. Esse é o maior objetivo ficar boa pra cuidar dos meus filhos.
F1-E o desenho que a Sra. pintou o que tem a ver com isso que você acabou de me dizer?
CP3-A serra representa a força, exatamente a força que faz eu cuidar dos meus filhos, um casal de filhos que eu tenho e minha mãe. Um caminho que me dá a maior força pra vencer tudo isso é minha mãe e meus dois filhos. Essa serra é exatamente isso. Essa serra sou eu de pé pra ter força pra continuar tudo isso.
F1-Quem mais quer falar? A Sra. quer falar?
CP4-Eu gosto muito de árvore, de planta, de flores. Eu quero muito viver, eu gosto muito da minha família, gosto e quero muito bem. E também, em primeiro lugar Jesus, a gente ama primeiro que tudo, depois segundo vem tudo.
F1-E essas plantas representam o quê?
CP4-Essas plantas são as frutas da serra.
F1-E o sentido da vida da Sra. como ficou pintado, como já foi comentado aqui, que relação tem a pintura com a vida da Sra.?
CP4-Eu penso ser... através de muitos problemas, muitas dificuldades que eu passei e estou passando, eu tento viver feliz. Tem sentido de ser feliz, com minha família que eu amo muito, né? Será que tá certo?
F1-É isso mesmo, é a Sra. que sabe o seu sentido. Quem gostaria de continua? A Sra. quer falar sobre sua pintura?
CP5-Não quero falar não. Gostaria de falar não.
F1-Não, é só mostrar o desenho e falar o que tem a ver com o sentido da sua vida.
CP5-A minha vida tá representada aqui mesmo. Eu gosto de estar sempre junto das pessoas, só olhar mesmo, conversar mesmo. Mas a respeito de serra, de coisa, tô muito ligada não.
F1-Está certo, mas tinha aqueles lugares que a gente colocou, a Sra. escolheu que lugar?
CP5-Eu? Eu acho que eu desenhei uma ponte, eu acho que foi uma ponte, que a gente precisa estar apoiada em alguém, principalmente eu que não posso andar sozinha, eu tenho que ter uma ponte, onde eu tô eu sempre ando com pessoas que eu me comunico, então eu me acho assim, o seguinte, quero andar seguro pra não cair.
F1-Então a ponte que a Sra. falou representa segurança, é isso?
CP5-Justamente, é. Procuro logo, desde criança que eu peguei essa paralisia. Sempre, de vez em quanto eu caía, de vez em quanto eu caía, aí meu irmão mais velho disse pra mim: minha irmã quando você for andar, você levante bem os pés como soldado, pra você não caí, e no que você vai topando você vai caindo. Aí ficou isso na minha cabeça. Aí eu preciso saber onde eu tô pisando.
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F1-E a respeito da vida, dos problemas, da doença do sentido da vida?
CP5 -Eu tô sendo uma doente feliz, eu encontrei vocês ó, meus amigos aí tudinho né, e essa casa maravilhosa ali, então eu tô tirando de letra, eu não tô nem pensando em doença. Vou levando. Você acredita que eu tô me sentido melhor de que quando eu estava boa, acredita? Eu não tô sofrendo. Eu não me acho doente, e é porque eu tô morrendo de dor nas minhas costas, tá latejando, mas não me acho doente. Se eu puder andar eu tô feliz, eu sou assim, eu acho que é por isso que eu ainda não morri, eu ainda me alimento, pior os que vivem num fundo de uma rede, ou num fundo de uma cama, que não podem andar, porque eu estava doente e não sabia, três anos que eu tinha esse caroço, um nódulo no seio, mas não sabia, levava uma vida normal, sentia uma dor nas costa, uma dor aqui outra açula, inchava meu braço, mas não sabia o que era, não ia pra médico. Aí minha filha foi trabalhar, fez um curso de enfermagem, foi trabalhar num posto de saúde, ela falou pro médico que eu sentia essa dor, ele passou pra mim fazer uma mamografia e aí eu descobri. Eu não tô melhor...tô nas mãos dos médicos, nas mãos de Deus, tô fazendo os exames e o que for descobrindo eu tenho fé que vou tirando, fazendo e agradecendo a Deus por tá viva pronto, nunca quero me preocupar não.
F1-E agora quem vai continuar? A Sra.? O que representa seu desenho?
CP6-O desenho representa o túnel e a cacimba, e a linha de pau que eu fiz é pra me segurar e aqui é a luzinha do túnel, mode eu passei e cheguei onde eu cheguei... (choro) vim sozinha, passei por dentro desse túnel e cheguei e tô aqui e vou vencer.
F1-E o sentido de vida representado nesse túnel?
CP6-Tem sentido, meus filhos. Primeiramente Deus, segundo meu marido e meus filhos, eu tenho filhos criança em casa que depende de mim, de ficar boa. Eu tô aqui, mas eu não sei nem o que eles estão passando em casa, eu sozinha, sem ninguém, só Deus mesmo e a casa de apoio que me apoiou. E agradeço muito a Deus e a vocês que estão me ajudando.
F1-E o desenho?
CP6-Esse desenho representa minha vida, porque desde 2004 que eu luto, por esse tratamento e eu não consegui, e agora eu fiz, o túnel e a luzinha, que eu disse né? Pra passar pra lá e vencer.
F2-Isso aqui é o quê?
CP6-Isso aqui é a luzinha e isso aqui é o túnel e aqui e o galho de pau pra me segurar, pra Deus me dá forças pra eu me segurar e não desistir.
CP5-Eu fiquei assim também, eu não estava com muita confiança, as pessoas chegavam e aí como vai? Eu chorava, as vezes eu tava sentindo dor, mas agora graças a Deus né? Venci, e aí eu espero que ela vença também né? Pra cantar o hino da vitória.
F1-E agora quem gostaria de falar? A Sra.? A Sr. fez o sertão o que isso tem a ver com o sentido da vida?
CP7-Eu fiz esse sertão porque eu não tenho nem um canto pra eu morar, só moro nas casas dos outros, aí eu escolhi logo um sertão por aí no meio do mundo, pelo menos é um canto pra eu morar né?
F2-Como a Sra. vê o sentido da vida dentro desse sertão?
CP7-Eu espero achar um dia, um lugar que nem um sertão, pra morar lá, né? Hora meu sentido é um lugar pra morar, pode ser num sertão, pode ser em qualquer lugar pra eu morar. Eu estou esperando da minha vida esse lugar. Tenho tido força em Deus, porque quando eu comecei a vir pra Casa Vida, eu pedia esmola, aí sozinha, sem parente, sem ninguém, me achei só com estranhos aí, aí fiquei num horror de tempo aí, agora tá com seis meses que eu fiz a cirurgia, graça a Deus se fosse por esse ponto me considerava boa. Por isso eu desenhei isso aqui, um lugar, agora não sei onde que no mundo, onde eu possa construir um canto pra morar e viver. Pois bem, né?
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F1-Agora a Sra. mostre seu desenho e fale sobre o sentido da vida.
CP8-Minha vó mora numa serra, ela planta muita flor, e a minha mãe é muito religiosa manda eu pegar flor pra fazer reza lá em casa. E aí eu retratei isso aqui.
F1-E a relação que a Sra. faz de seu desenho com o sentido?
CP8-Só Deus mesmo que dá força e coragem a gente, por que no início dessa doença eu chorava muito, peguei um trauma, aí foi passando e no fim nem liguei mais, quando fiz um exame tava boa e fui desenganada. Agora é continuar o tratamento e ir embora, ir pra casa, e viajar e pronto, que meu menino teve que ir embora, e tiraram meu menino de mim mode eu poder me cuidar desde abril, tô bem graças a Deus. Depois da doença mexi com tudo na minha vida, quero outra vida, até meu marido eu deixei, quando eu vivia com ele eu vivia pior, além de estar doente ele não deixava me cuidar, dizia que eu estava inventando, quando eu fui procurar ajuda, já estava desenganada, se for pra me dá é Deus, minha mãe reza muito, faz promessa, eu acredito quem me curou foi São Francisco, foi muita promessa que a mãe fez, rezava terço lá em casa, graças a Deus, ontem eu fiz um exame, a Dra. olhou, ficou maravilhada. Graças a Deus tô feliz.
F1-Agora vamos pegar as pinturas e vamos fazer um painel, como nós gostaríamos que fosse com todos os panos juntos, pra gente finalizar. Como vocês querem a disposição dos panos aqui no chão? È assim que vocês escolheram? Observem que cada um encontrou na forma de desenhar a expressão do sentido da vida.
CP5-Tem muita coisa em branco ainda.
F1-Realmente, tem muita coisa na vida que a gente pode ainda colocar, mas é no decorrer da vida que a gente vai pintando.
Co-pesq
Vereda Cacimba Ponte Túnel Sertão Açude Serra
CP8 É difícil, muitas vezes cheia de buracos, sem passagem.
Eu busco água até encontrar, sem desistir.
Bem feita, bonita, forte, e os carros passam por ela.
A saída da escuridão, do perigo, da incerteza.
No sertão a gente luta com o que tem, não desisti, não
abandona
Muito peixe e água sacia a sede, mantem a vida.
È verde, com mata cheia de frutas e muito forte.
CP6 Sem espinhos, não é difícil andar, tem asfalto, já foi difícil, mas hoje é fácil, muita força pra continuar andando, mas estou conseguindo.
Tentar sempre pegar água, ela é funda, mas pego a corda e pego a água.
Forte pra lutar, conseguir, prosseguir e vencer.
É escuro, mas existe a luz, a saída é a luz que me leva pra alguma coisa melhor.
Lugar de luta pra sobreviver, tem nesse lugar varias coisas pra gente lutar e vencer.
Grande, com muita água, é fonte de sobrevivência, de conseguir se manter.
Alta, com muitas frutas, ventilada, é um meio de vencer as barreiras, sempre subir.
CP3 Cheia de altos e baixos, é longa, caminho difícil, mas com paciência os altos tornam-se
Seria uma cacimba cheia de água limpa. É a vontade de viver, de vencer.
Seria uma ponte forte e muito firme pra agüentar.
Precisa ser claro e iluminado
Sendo um sertão teria sua dificuldade e força.
Cheio de peixe, muita fartura.
È alta e verde, cheia de muitas frutas e bem ventilada.
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baixos.
CP5 Minha vereda é sempre limpa, não deixo nascer espinhos.
Uma reforma seria preciso pra a água não ficar suja, talvez alguns anéis.
Uma ponte bem alicerçada, bem forte, onde passam carros e pessoas, bem larga.
Me acho ainda no túnel, lutando pra vencer, confio que vou sair pro outro lado.
Meu sertão é difícil, falta água, é uma luta, poupar água é como vencer.
Meu açude é muito fundo, abriga muitos peixes, lugar de muita coisa.
Essa é muito distante, sozinha não posso subir, preciso de ajuda .
CP4 Essa é difícil, cheia de buracos e barreiras altas e baixas, cheia de desafios. Porque a vida da gente é assim mesmo, já passei por muitos problemas e agora de saúde. Caminho estreito.
Tem água pouca, cacimba funda e estreita, como as dificuldades.
Ela é comprida e difícil de passar.
Seria longo, escuro. Com muito esforço e sacrifício enfrento o túnel.
O sertão está muito feio, seco e triste.
È diferente, esse seria cheio de água, sinto mais alegria, mais fartura.
A serra seria cheia de frutas, muita sombra, muito ventilada, mas pra isso, precisa muito trabalho.
CP7 Difícil, caminho com muitos problemas.
Seria pra buscar água, pra sustentar.
Serve pra eu passar por cima.
Um túnel escuro.
Um sertão feliz, tranqüilo, com água. Uma casa, muitos animais e bichos.
Um açude seria bom morar perto dele, eu seria feliz. A água eu usaria pra tudo.
Bem verde e alta, com muita coisa nela.
CP2 Caminho limpo, sem problema.
Eu iria puxar água, usar um motor e conseguir.
Pra mim e pro que der e vier.
Tem água e é escuro.
A minha vida tá melhor que o sertão agora, né?
È uma lagoa bem grande, cheia de peixe, nesta lagoa tem muita história.
Como uma serra é uma tranqüilidade, sem preocupação, o que penso é como sair daqui.
CP1 Estreita, cheia de curva, com pedras, rampas e espinhos.
É muito funda, onde eu pego água pra viver.
Essa é comprida, larga, cheia de colunas pra sustentar o peso.
Bem feito, cheio de bico de luz, sai debaixo de uma serra pro outro lado.
Muito seco, falta água, cheio de altos e baixos.
É grande tem muita água, a parede é larga, comprida e estreita em cima.
Ela é alta, bem grande, muito verde.
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APÊNDICE – II
SEGUNDA OFICINA DE PRODUÇÃO: O FILME DA MINHA VIDA (13/09/2007)
F-No relaxamento nos vimos à vida, desde a infância, a adolescência e a vida adulta, pudemos ver o que construímos, aquilo que vivemos, aquilo que experimentamos, todas essas coisas estão escritas na história de vida da gente, algumas coisas foram bem marcantes na vida da gente, que marcou e podemos dizer eu sou quem sou hoje porque eu vivi isso. Temos aqui papel e canetinhas pra desenhar esses momentos marcantes e podemos contar um pouco a nossa história, como um filme em várias cenas.
CP1- Eu nunca desenhei nada. Eu não sei.
F- Não precisa saber desenhar, basta pensar na vida e representar no papel esse momento, mesmo que isso não diga nada pra ninguém. É você que vai dizer.
Momento de produção...
F- Quem gostaria de começar a contar sua história, e mostrar como foi o filme da vida de vocês? Quem gostaria de começar?
CP1- É pra contar desde que a gente era criança?
F-Não, o senhor fez esse desenho, o que esse desenho conta a sua história, que fez sentido?
CP1- Pra mim é um sentido grande, porque é a profissão que eu tenho, né? Trabalhei de cozinha, eu fazia muitos pedidos e graças a Deus todo mundo gostava, os pedidos podiam ser, lagosta, camarão, filé mignone, ou outro peixe, tem muitos tipos de comida, né? Cada dia saía as coisas e vinha outros pedidos. A minha vida foi isso, meu trabalho, que eu aprendi foi isso, até o dia que eu adoeci, mas ainda hoje se eu me meter a fazer, cozinho do mesmo jeito.
F-O senhor desenhou um fogão como fato marcante na sua vida, e se não houve esse fogão, a culinária como seria sua vida? O senhor já parou pra pensar?
CP1- Ora se não fizesse isso, cozinhando na cozinha, eu trabalharia na roça, né? Minha profissão era trabalhar na roça, mas como eu saí de casa, aí aprendi a trabalhar no Rio de Janeiro, aí minha profissão é essa. Eu sou grato porque ganhava meu dinheiro, me aposentei com quatro salários nesse trabalho de cozinha né? Trabalhei de cozinheiro, de chefe de cozinha, aqui em Fortaleza dez anos, né? Tudo que eu aprendi fazer, sei fazer muitas coisas, não faço aqui porque não é permitido a gente fazer as coisas, porque a gente é paciente, mas eu tenho prazer em trabalhar em cozinha, muitas coisas eu sei fazer.
F- O senhor olha e vê que isso marcou muito sua vida?
CP1- Marcou, marcou porque o que eu aprendi, na minha juventude foi o que eu aprendi a trabalhar, desde rapaz novo que eu fui embora pro Rio, passei lá quinze anos, foi lá que comecei a trabalhar em cozinha, comecei lavando prato, e foi aprendendo, aprendendo, até que aprendi, né? Muitos tipos de macarrão, aprendi macarrão a bolonhesa não sei se vocês conhecem, muito gosto, foi lá que eu aprendi a fazer muitos tipos de massa, e esses tipos de comida, né? Marcou minha vida porque eu aprendi, né? Sustentei minha família e as coisas que eu tenho hoje em dia ainda, foi comprado com meu trabalho com esse negócio de cozinha, né? Algum móvel que eu não podia dar, né? Eu tinha as férias, o décimo terceiro, eu comprava e dava de presente a mulher, a gente gosta de fazer uma surprezinha, né? Eu usava minhas férias, décimo terceiro, né? É isso. Esse fugão representa o sustento da minha família, o fugão, o que eu aprendi a fazer no fugão, né? O sustento da minha família era tirado por aqui.
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F- Quem agora gostaria de mostrar sua história? A senhora pode continuar, mostrei seu desenho, conte do início do seu filme, o que a senhora quis representar, como já foi comentado, há algo marcante em sua história?
CP2-Eu vou começar na roça, por que comecei a trabalhar na roça, quando eu era criança gostava de brincar, comecei a trabalhar logo.
F- Nesse seu primeiro desenho a senhora desenhou o quê?
CP2- Essa mesa representa o trabalho na roça, minha infância não foi muito sofrida não.
F- Aquilo que a senhora pode destacar, falar de importante na vida?
CP2- O importante, até agora é minha saúde, por que quando cheguei aqui, cheguei muito doente, pra hoje tá contando a minha história, o que mais marcou foi minha saúde. Quando cheguei, cheguei muito doente, eu pensava que não voltava mais nem viva, quando eu saí lá de casa eu disse logo, eu sei que eu vou mais não volto com os meus pés não, aí tô contando a vitória, por isso é que eu disse minha vida agora é uma rosa, minha vida ta maravilhosa, tô me recuperando, tô com saúde, tô bem.
F- A senhora quer continuar?
CP3-Minha vida sempre foi procurando, procurando um, um algo melhor, então eu desenhei um caminhão, por que eu gostava muito de andar, de um vizinho quando eu era jovem, aí eu desenhei. Eu trabalhava também, trabalhava na roça, eu plantava e colhia, melancia, frutas, né? Feijão, milho, cheguei até quebrar pedra, aquelas pedrinhas pra encher as latas pra vender? Vendi pedra, catei búzios, vendi búzios, os japoneses iam lá pra Barra do Ceará pra comprar, mesmo aleijada ia assim mesmo, pescava de rede no mangue, por isso que teve essas coisinhas sequinhas aqui (no desenho).
F-Houve alguma coisa marcante, que a senhora queira falar?
CP3-Tudo que eu fiz, sempre me agradei do que eu fiz, sabe? Sempre suando assim, era um prazer medonho, sempre eu era assim, mesmo aleijada, minha mãe dizia: menina para, tu não é pra andar no meio dos outros não. Eu ia evangelizar com um bucado de gente, vai menos no meio ela dizia, tu vai lá na frente, mesmo cachingando, todo mundo vendo tu cachingando, e eu dizia deixa eu ir assim mesmo. Eu sempre fui feliz, mesmo assim, pessoal mangava de mim eu tirava de letra, sempre fui assim. Aí então, aqui era na minha infância, fiz tudo, pesquei, quebrei lenha, lavei roupa, tudo eu fiz como uma pessoa normal, sempre tive muitos amigos sabe? Se eu ia lavar roupa, tinha minhas amigas que me ajudavam, com pena de mim me ajudavam, qualquer atividade eu fazia. Nunca me queixei, aí como tô com dor! Não sei quê! Nunca senti essas coisas, chegava em casa tomava banho, almoçava, ia brincar ou me deitar na rede até dizer chega e de noite ia pra igreja mas sempre foi assim, metida, minha história é metida. Você acredita que com doze anos fui pro Cauípe á pé, cinco léguas, de madrugada escondida de que ia a frente no trabalho, entendeu? Fiquei no meio do povo, me escondendo, me escondendo, porque eu sabia que ele não ia deixar eu ir, sabia que eu não botava lá, né? Lá na frente eu parei, já cansada ele me avistou e disse que não acreditava quem tava aí, me colocou no jumento.
F-A senhora fala muito de sua deficiência, isso foi marcante na sua vida?
CP3-Justamente, até a própria minha mãe dizia você não vai, não vai, e eu dizia mãe eu vou, eu insistia, eu viajava de caminhão. E meu filme é esse, gosto muito de viajar, de conhecer lugares e trabalhar também, aí quando eu cheguei na minha idade de me assumir, de trabalhar, aí fui botar barraca, na praia vender comida, conhecer muita gente, fiz muita amizade, depois me acomodei porque já não agüentava mais, né? Fui cuidar de casa, comecei a ter filho, não podia caminhar tanto assim, minha caminhada é um quarteirão e meio o máximo. Depois da doença, quando cheguei aqui muito abatida, graças a Deus tô pensando que estou bem, vou fazer uns exames agora, mas de cabeça erguida, e se dever qualquer coisa seja da vontade de Deus, né? Tô nas mãos dele. Só choro se tiver dor, se não tiver dor não choro não. Aqui sou eu pedindo uma rosa, né? Essa rosa que eu peço é que eu tenha muito amor pra dar as pessoas, que possa ajudar, entendeu? Isso é o que me
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faz bem, que eu posso contar com as pessoas, o que eu já passei e que as pessoas possam saber que a gente pode superar, com confiança em Deus a gente supera, né?
F-A senhora gostaria de falar agora sobre sua história?
CP4-Isso aqui era quando eu era criança, eu brincava com as crianças de bonecas, de baixo das moitas, das moitas de mufumo que tem nos matos, eram verdinhas que parecia umas casinhas e aí nós brincava de casinha, fazíamos as bonecas com os ossos, amarrava um no outro, brincava de correr e fazer medo os outros, eu tinha muito medo de gafanhoto e mane mago. Minha infância não foi muito boa não, tudo era muito difícil, se a gente ia pra escola era difícil. Tudo era longe, o maior sacrifício pra estudar e os pais da gente eram muito duros, por tudo em quanto brigavam com a gente, passear era a coisa mais difícil, era muito presa, depois que eu fui crescendo fui me animando mais arranjei o primeiro namorado, gostava muito dele, mas não deu certo, gostava de ir pra festa.
F- Seu desenho representa o quê da sua história?
CP4- Eu desenhei meu pai também, que brigava com a gente, não deixava a gente sair pra canto nenhum. Ele me ensinou muitas coisas, reza, oração, toda noite rezava, a gente sentava toda noite ao redor dele e ele ficava ensinando a respeitar as pessoas, a cumprimentar os mais velhos. Hoje a vida não tá muito boa não mas da pra levar, um dia a gente tá mais alegre, outro dia a gente tá mais triste, um dia a gente ri, outro a gente chora, quando a gente lembra coisa que a gente passou ou ainda tá passando dá vontade de chorar. Aí eu procuro os amigos, procuro conversar, passear, ir pra casa de uma amiga, pra não ficar parada em casa, por que se não ficar não serve, por que eu sou bem dizer só, nunca me casei, não tenho filho, não tenho mais pai, nem mãe, sou uma pessoa bem dizer só, né? As vezes eu fico triste pensando, todo mundo tem filhos, tem marido, tem pai, mãe e eu não tenho nada? Se eu ficar pensando assim eu começo a chorar, fico nervosa. Aqui eu desenhei muitas plantas e flor, por que eu gosto muito de flor, meu futuro quero que seja feliz, ficar boa, possuir uma casa eu ainda moro com meu irmão e minha cunhada, morava com minha irmã mas não deu certo.
F- O senhor quer mostrar seu desenho?
CP5-Eu não quero falar nada não.
F-O senhor desenhou e representou o seu desenho sua história, fale um pouquinho.
CP5-Minha infância foi boa, foi trabalhando, minha preocupação era muito pouca, aí depois que casei e constituí família, pra criar os filhos, aí foi mais preocupado. Aqui tô com mais de mês que tô aqui, me preocupando todo dia com minha família no interior, como é que estão por lá, né? Ora não sei como eles estão lá e eles não sabem como eu tô aqui, né? Aí é que tá, a gente não é adivinho, não imagina como nós estamos, os pensamentos nos de lá. É assim, mas o papel não apresenta nada, daqui não conto nada. Hoje tô preocupado, pois tô meio-lá-meio-cá vê se melhoro mais, tô me tratando, os homens pediram pra fazer o tratamento aí eu tô por aqui, mas só por minha vontade eu tava lá em casa, mas os homens disse que se eu me trato aumenta os anos de vida, aí eu tô cuidando, pra vê se dá certo. Meu futuro é isso mesmo, que eu tô pelejando pra ir pra frente. Não tem mais o que pensar não, é pensar em durar mais e pronto.
F-Diga lá a senhora mostre seu filme e conte sua história.
CP6-Minha história é aquela que eu lhe contei fui muito judiada, minha mãe abandonou meu pai, eu tinha três anos de idade, essa mulher aqui do desenho é a mulher que me criou, era da minha família, era minha tia, agora ela judiava muito comigo, meus primos com quem eu vivia, me queimavam com ponta de cigarro, botava pimenta no meu café, aí eu fui crescendo, sendo judiada, até meus dezesseis anos, aí nessa idade conheci um rapaz, comecei a namorar e não passou dois meses aí eu fugi com ele de tanto sofrimento que eu sofria, aí eu fugi, aí foi quando eu comecei a ser feliz, agora tô com 52 anos tô com ele ainda, trabalhava tomando conta de idoso, passei três meses com minha mãe no hospital, minha mãe com CA, morreu nos meus braços, ela me disprezou, mas morreu nos meus braços, a filha que ela criou não quis saber dela, eu tomei conta dela até na hora da morte. Cuidar dela foi muito importante, porque ela me disprezou, levou a minha irmã mais velha pra morar
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com ela e meu irmão mais velho, aí ela morava com meu irmão mais velho, aí na doença dela eu trabalhava, tomava conta de um senhor, carteira assinada e tudo, aí me obrigaram a sair do emprego pra tomar conta da minha mãe que ninguém quis ficar com ela no hospital, acho que tinham medo da doença dela.
F-A senhora foi obrigada a sair do emprego, ou a senhora quis?
CP6- Eu, quer dizer, bem, fui obrigada assim, eu entreguei o emprego pra tomar conta da minha mãe, quer dizer, eu não ia deixar ela no hospital sem ninguém, aí deixei tudo, meu marido disse: minha filha você vai sair do emprego? Eu disse vou, mas ele disse: eu tô parado. Mas eu disse a gente leva a vida assim mesmo, aí eu tomei conta dela três meses no hospital, tomando conta dela ainda ganhava dinheiro do aluguel da minha casa, porque tomava conta dela e tomava conta dos outros e cada qual me agradava no que podia, aí quando chegava o mês de pagar minha casa, meu marido ia visitar ela e eu dizia olha meu filho o dinheiro da casa, arrumou aonde? Ele perguntava, eu dizia tomando conta dos doentes, eu tomava conta da minha mãe e tomava conta dos outros. Aí quando eu dei fé, Deus levou ela, aí fui pra luta, lavar roupa de ganho, aí apareceu um caroço no meu útero, um mioma, tive que operar, operei, o doutor disse que se eu não operasse ia virar um CA, operei e parei de trabalhar, aí quando dei fé apareceu esse problema, levei uma queda, machuquei o queixo, aí saiu esse problema no meu dente, aí mais um sofrimento, e eu vencendo” aí pra eu vencer, já doente, catei duas filhas, três filhas dos outros, pra criar, com mais três filhas dos outros, lavando roupa de ganho. Essas meninas, o pai delas morreu, a mãe irresponsável, uma delas eu peguei na maternidade, ela me deu, eu registrei no meu nome, aí tinha duas irmãs, uma com 11 anos e a outra com 08, aí moravam em Recife, aí eu fui pra Paraíba e aí as outras duas disse eu vou embora com tu também, aí a mãe delas disse pode levar se não eu vou jogar tudo na rua, aí eu trouxe as três, uma é registrada em meu nome, duas não é. Aí eu criei, duas estão casadas, na casa delas, elas são melhores pra mim que minha própria filha, a que eu criei. O que minha mãe não fez por mim eu fiz pra essas três. Meu desenho representa meu sofrimento e aqui minha vida, agora né? Que é um mar de rosas, pra mim apesar da minha doença, é um mar de rosas, porque meus filhos me amam muito, meu marido também, ele só não veio ainda aqui, porque ele não tem condições, porque se ele tivesse ele já tinha vindo me visitar.
F- Toda essa história que a senhora contou faz algum sentido?
CP6-Fez muito sentido, eu fiz com elas, o que não fizeram comigo, judiavam, e eu criei com maior carinho, como se fosse minhas filhas, elas gostam muito de mim, mas nenhuma podem vir. O que me dá muita força ainda é criar meus netinhos ainda, eu tenho um neto e uma neta que eu crio, meu neto tem seis anos e minha neta tem nove e minha filha que eu crio, irmã das casadas tem onze anos, e eles me amam muito, e quando ele liga pra cá, ele diz vovó fique boa (choro) que a gente ama muito a senhora.
F-Agora o senhor mostrar seu desenho e fala um pouco sua história.
CP7- Trabalhando de padaria, sapataria, né? Minha vida não foi sofrida não, só depois de velho, doente, né? Isso tá com mais de vinte anos nessa luta, a primeira viagem foi pro Hospital das Clínicas, já passei ano fora com minha esposa, passei de ano fora mais ela. Com os filhos ainda pequenos, mas na luta, né? O que eu representei foi o meu trabalho, a padaria, a sapataria, as pescarias nas horas de folga, que eram poucas. Pensando o que mais marcou minha vida foi ter casado com ela, foi. Até hoje, 45 anos de casado, né brincadeira não, né? Hoje é um mês, um ano, 45 anos sem separação, parece que eu casei hoje, satisfeito, quatro filhos, não me deram trabalho. Ela é minha sombra, onde eu vou ela vai, a sombra né assim, né? É tudo na vida, uma mãe de família, deixar a casa um ano fora, eu nunca vi. O tempo de passarmos mais tempo separado foi em 2005 quando tive que me separar, tive que me operar, veio um filho meu, e ela ficou na casa de apoio sem poder vir, com problema de coluna, pressão alta, pra você ver, né? A gente vinha da casa de apoio do centro, qualquer carrinho era caro, vinha do interior 500 km., numa ambulância pequena, sentada ali atrás e ela agüentava, é um milagre, né? Eu fico pensando, meu futuro eu não penso muito não, na idade que eu tô e doente, é só dos meus filhos e netos mas dizer que eu quero coisa boa, importantes, pra minha vida, não quero não. O que eu quero é ficar perto dela, né? Vai saber mais de vinte anos lutando, né? Não sei quantas cirurgias e ainda vou fazer outras, a vida não é boa, mas tem que agüentar, né? Dizer que eu quero carro, fortuna depois de velho, que nem meu amigo, depois de velho quero riqueza não, pra fazer o quê? Porque quando o cabra tá com uma certa idade
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as pernas não podem com o corpo, né? A vista ruim, não ouve bem, fazer o quê? Um carro bonito e importante com um motorista, pra ir pra onde? Com um velho! Fazer o quê? Deixe pros novos, pros filhos, pros netos e outros.
APÊNDICE – III
OFICINA DE ANÁLISE DO GRUPO PESQUISADOR (24/09/2007)
F-Depois desse relaxamento gostaria que prestassem detida atenção nas pinturas que realizaram no nosso primeiro encontro, estão lembrados? Agora eu vou ler cada comentário... Nosso encontro hoje é diferente, pois, vamos analisar o que o grupo fez. Quem quer começar?
CP1 Você leu ai o que a gente disse, eu achei uma arte muito bonita, muito bem feita, valeu! Pro sentido da vida, né?
F-O que a Sra. destaca, no que foi feito e o que foi dito que, serve de análise?
CP1-Eu aprendi muito, o sentido da vida é viver e aproveitar, agradecer a Deus todo dia, né? Olha, você sabe que eu nunca fui chegado a esse negócio de arte!
CP2-O que eu acho é que a vida é maravilhosa, isso representa o bom da vida, as lutas, a gente tem mais é que lutar pela a vida. Tudo isso que vemos representa o motivo de viver, é por que por pior que esteja um sentido, como uma luz no fim do túnel, é uma esperança, é ou, não é? Se é a luz, imagine uma ruma de luz dessa, junto com um monte de planta da serra, um jardim, a vida é maravilhosa. Resumindo é ter uma vida maravilhosa.
CP3-Tudo ta ligado, o túnel e a serra, as plantinhas, o sertão, a ponte e a lagoa. Representa o sentido da vida nas coisas do sertão, menos o túnel, que lá nós não tem. Isso representa a vida e o motivo de viver.
F-A Sra. gostaria de falar? O que a Sra. tira de tudo que foi mostrado e lido? Agora pensando como o grupo acha, não como eu sozinho penso.
CP3-O sentido da vida é tudo isso misturado. É não deixar cair, sobreviver os problemas, alcançar a serra, pescar o peixe. Tudo isso representa nosso sentido, maravilhoso, trabalho lindo!
F-O que Sr. pode analisar, comentar do papel e das falas lidas?
CP4-Tá bom demais, agora não vou dizer nada não, tem tanta coisa pra dizer, mas sobre isso não sei, quase nada vou dizer. Quero falar não.
F-A Senhora?
CP5-Eu amei, foi maravilhoso, eu gostei. Eu já disse pra você, nunca gostei de olhar quadro, que minha mente é tapada, né? Eu digo pra minhas filhas que gostam dessas coisas, sei nem o que é isso! Mas olhando assim, eu até criei...fiquei até com vontade de ... de olhar mais coisas e até de fazer. Eu entendi aqui, que todos nós no grupo estamos esperançosos, esperançosos de voltar pra casa, de fazer nossas atividades, se não pudermos trabalhar mas, pelo menos de aproveitar a vida. Eu tô entendendo que cada um de nós tamo lutando pra ser feliz e, continuar nossas vidas, né?Como a gente ta em comunidade, formando um corpo só, né? Achei interessante a serra, a força de subir... é o sentido da vida, subir, se esforçar. A ponte e o túnel é nosso sentido, que todos nós enfermos, se tratando no Hospital do Câncer, né? É a esperança, sabendo que a gente vai vencer e vai poder passar por essas atividades que nós criamos aqui, né?
F-A Sra. pode falar agora.
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CP6-Cada um fez seu sentido, aí agora juntou os sentidos tudinho, só num só. Acho tudo interessante, trás tudo o sentido da vida. O grupo procura um sentido, vencer os problemas, ficar bem, com saúde e ser feliz. Viver e aprender com a vida.
CP3-Achei tudo interessante, porque tudo faz parte do sentido da vida da gente, né? Por que a vida pode ser um túnel escuro, mas o sentido é a luz. É sempre ir pra frente. Representa o sentido de nós todos, não deixar cair não, tem que levantar a cabeça e ir em frente, lutar.
CP7-As vezes vem um sentido, depois vem outro, a cada momento da vida.
CP5-Na pesquisa eu me achei meio tonta. Depois eu notei que nós tudinho, fizemos uma coisa grande, diferente. Tamo passando uma tormenta de doença, e podemos vencer, e tamo com esperança de viver melhor. Parece que é isso.
F-Agora vamos passar para a produção da outra oficina. Observem que eu à medida que for mostrando o filme que vocês produziram, vou lendo os comentários de vocês. Vamos começar...
CP1-É um filme bonito, cada um tem uma história pra contar, porque se cada um fez é porque a história é importante. Cada um tem seu trabalho, suas coisas, pra se sustentar, viver. O trabalho dá sentido.
CP5-Todos comentaram sua vida, desde criança. O que fizemos, que dá pra tirar uma experiência. Aprendi não deixar o tempo passar, passar desapercebido pelo tempo. A gente tem... o resto de tempo que a gente tem, saber cultivar as coisas boas da vida e aproveitar, apesar da vida não estar tão boa assim. Tem coisas na vida da gente como o trabalho, a família, um lar que dá esperança de sobreviver e lutar. A pessoa passar por cima do orgulho, cuidar de quem desprezou e pegar filho dos outros pra criar, tudo isso é lição de vida pra gente aprender.
CP4-Achei muito bom, legal. Pra mim tudo foi importante.
CP5-A história mostra o sentida da vida da gente. Cada história que você não acredita, com certeza ensina que a vida é boa, mesmo sofrendo, o negócio é não desistir, é lutar. Ter saúde, coragem e fé em Deus, sem Deus nada disso valia.
Depoimentos...
CP2-Eu gostei, no começo da pesquisa eu fiquei meio assim...você explicou, eu me senti... nunca peguei num lápis pra desenhar nada, né? Aí era pra eu desenhar minha vida, e eu fiquei pensando, pensando e deu certo o que eu fiz, né? Porque desde criança eu tinha vontade de vencer, dei conta do meu problema na perna, porque eu queria mostrar que não era peso pra ninguém e incomodo pra mim. Mesmo sofrendo eu iria enfrentar.
CP1-Eu achei ótimo nós sermos convidados, porque ninguém pensava nisso, foi três reuniões, né? Foi muito bom, eu nunca tinha pego num pincel pra desenhar nada, né? Eu achei importante, porque eu aprendi, a gente tem que dizer o que agente quer. Quero me desculpar se não participei bem, é que nós não somos sabido, não tem curso.
CP6-O que eu achei importante foi conhecer vocês, a gente vive junto e não se conhecia.
CP3-Eu fui a primeira a dar o nome pra pesquisa. Pra mim foi muito bom, quando eu chegar em casa vou ensinar aos meus filhos tudo o que eu aprendi aqui. Eu aprendi a ser mais forte e tocar a vida pra frente. Se eu não tivesse com vocês, eu estaria num canto chorando. Até me distrai com essas reuniões, porque no primeiro dia do encontro, tava só chorando, era Maria chorona.
CP1-Eu me achei muito importante, porque o que eu sabia era cozinhar e, nunca tinha pensado nisso. Eu aprendi a relaxar, respirar e cheirar a fulô.
CP4-Pra mim, eu gostei muito, fiquei importante de participar, fiquei mais alegre do que eu era, com tanto problema.
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CP7-Foi ótimo participar, fizemos um grupo, a gente discutiu o que a gente achava. Pelo menos o que a gente achava que era importante dizer, né? Pra mim foi ótimo.
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ANEXOS
139
13 ANEXOS
ANEXO-I
Termo de Consentimento
A presente pesquisa intitulada O SENTIDO DA VIDA: DESVELANDO A ESPIRITUALIDADE ATRAVÈS DA SOCIOPOÈTICA, desenvolvida pelo pesquisador
Michell Ângelo Marques Araújo, tem por objetivo produzir conceitos de sentido da vida junto
ao grupo pesquisador composto de pacientes com câncer. Para isso, necessitamos de seu
consentimento em participar da pesquisa que será realizada através de oficinas. Será
assegurado seu direito de negar-se a participar da pesquisa ou dela retirar-se quando assim
desejar sem nenhum prejuízo moral, físico ou social e o anonimato com relação à sua
identidade, bem como qualquer informação que possa identificá-lo (a). Fica garantido ainda
que a pesquisa não irá causar nenhum risco à sua saúde nem irá interferir no seu
tratamento. A participação na pesquisa é atividade voluntária e os participantes não
receberão remuneração. A responsabilidade pela realização da pesquisa é do Enfermeiro
Michell Ângelo Marques Araújo, orientado pela Profª. Dra. Lia Carneiro Silveira, que podem
ser contatados na rua Walter Bezerra de Sá, Edson Queiroz. Cep: 60 811420 - Fortaleza –
CE. Qualquer informação adicional poderá ser obtida junto aos pesquisadores através do
telefone (0xx85) 32786585.
Eu,_______________________________________________________________________
_ , ______anos, sexo __________, de naturalidade ____________________, domiciliado
em _____________________________________________________________, de
profissão ___________________ e portador do RG nº _____________________, fui
informado detalhadamente sobre a pesquisa intitulada ”O SENTIDO DA VIDA:
DESVELANDO A ESPIRITUALIDADE ATRAVÉS DA SOCIOPOÉTICA” e concordo em
participar da mesma. Permito que os dados produzidos pro mim durante a mesma (falas,
fotos, desenhos) sejam divulgados desde que garantidos meu anonimato.
Fortaleza, _______ de _______________de 2007.
______________________________________________________ Informante
______________________________________________________
Pesquisador
ANEXO-II