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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS Centro de Ciências Humanas - CCH Departamento de Comunicação e Letras - DCL Curso de Letras Português ___________________________________________________________________________ ELSON DIAS DE OLIVEIRA AMIZADE DE AMOR OU ULTRA-AMIZADE: UMA LEITURA MONTAIGNIANA DE GRANDE SERTÃO: VEREDAS Montes Claros MG Novembro de 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS

Centro de Ciências Humanas - CCH

Departamento de Comunicação e Letras - DCL

Curso de Letras Português

___________________________________________________________________________

ELSON DIAS DE OLIVEIRA

AMIZADE DE AMOR OU ULTRA-AMIZADE:

UMA LEITURA MONTAIGNIANA DE GRANDE SERTÃO: VEREDAS

Montes Claros – MG

Novembro de 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS

Centro de Ciências Humanas - CCH

Departamento de Comunicação e Letras - DCL

Curso de Letras Português

___________________________________________________________________________

ELSON DIAS DE OLIVEIRA

AMIZADE DE AMOR OU ULTRA-AMIZADE:

UMA LEITURA MONTAIGNIANA DE GRANDE SERTÃO: VEREDAS

Monografia apresentada ao curso de Letras Português da

Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontes,

como parte dos requisitos para obtenção do grau de

licenciado em Letras, com habilitação em Português.

Orientadora: Professora Doutora Telma Borges da Silva

Montes Claros – MG

Novembro de 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS

DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO E LETRAS - CCH

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO - MONOGRAFIA

DEFESA PÚBLICA DO TRABALHO DE MONOGRAFIA

LETRAS PORTUGUÊS

FOLHA DE APROVAÇÃO

Autor: Elson Dias de Oliveira

Título: Amizade de amor ou ultra-amizade: uma leitura montaigniana de Grande sertão:

veredas

Monografia defendida e aprovada com recomendação de publicação em 18 / 12 / 2015,

com NOTA 100 (cem), pela comissão julgadora:

(Assinatura)__________________________________________

Orientadora

Profa. Dra. Telma Borges da Silva/UNIMONTES

(Assinatura)__________________________________________

Profa. Dra. Ivana Ferrante Rebello e Almeida/UNIMONTES

(Assinatura)__________________________________________

Prof. Dr. Élcio Lucas de Oliveira/UNIMONTES

______________________________________

Prof.ª Ms. Sandra Ramos de Oliveira

Coordenadora do Curso de Letras Português

______________________________________

Prof. Dr. Dorival Barreto Jr. e

Prof.ª Dra. Arlete Ribeiro Nepomuceno

Coordenadores do Trabalho de Conclusão de Curso

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AGRADECIMENTOS

Ao Criador Incriado; alfa e ômega; eterno, onipotente e onipresente; razão e alegria dos meus

dias; consolo maior em minhas noites “no Getsêmani”.

À professora Telma Borges da Silva, não só pela valiosíssima orientação, mas também por ter

me acolhido graciosamente em meio a alguns dissabores e contratempos.

Aos professores Ivana Ferrante Rebello e Élcio Lucas de Oliveira, por terem aceitado o

convite para comporem a banca examinadora, dedicando-se à apreciação desse trabalho.

À minha família, pela força e pelo apoio incondicional, perdoando as minhas ausências,

compreendendo o meu “cavernoso” período de estudos.

Ao Nonada, Grupo de pesquisa em literatura e afins, pelo estímulo e pelo compartilhamento

de experiências e produções científicas sobre o sertão rosiano.

Aos colegas do 8º período do curso de Letras Português, pelo companheirismo e respeito,

proporcionando riquíssimas conversações sobre língua e literatura.

Aos professores do Departamento de Comunicação e Letras da Unimontes, pelo

encorajamento e pela dedicação tanto em sala de aula quanto fora dela.

Aos colegas de trabalho e gestores do IFNMG – Campus Pirapora, pela “torcida” e estima e

pelo incentivo à minha formação acadêmica e qualificação profissional.

À Associação Universitária de Pirapora – AUP, pelas memoráveis viagens de 340 km diários,

na poltrona 27 do “Ônibus 03”, onde pude realizar parte dos afazeres monográficos.

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Se insistirem para que eu diga por que o amava, sinto que

o não saberia expressar senão respondendo: porque era

ele; porque era eu.

Montaigne

Amigo, para mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente

gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O de que

um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos

sacrifícios. Ou – amigo – é que a gente seja, mas sem

precisar de saber o por que é que é...

Guimarães Rosa

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RESUMO

Este trabalho analisa a constituição da amizade entre os personagens Riobaldo e Diadorim no

romance Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, demonstrando pontos de

convergência em relação à concepção de amizade no pensamento do filósofo francês Michel

de Montaigne. Verificamos que muito se tem dito e discutido sobre a “paixão” existente entre

os personagens Riobaldo e Diadorim, mulher travestida de jagunço. Mas, dada a total

impossibilidade de “concretização” de um eros, por que não problematizar a relação de

amizade estabelecida? É o que propomos e, para tanto, partimos do seguinte princípio: não

obstante o desejo físico em voga, o qual nem o próprio Riobaldo compreendia, o vínculo

instaurado entre eles, imersos no regime de jagunços, é um vínculo de amizade. O narrador-

protagonista propõe que revisitemos as duas faces de seu amor: mesmo não podendo se

entregar efetivamente aos poderes de Eros, ele pôde gozar uma amizade verdadeiramente sem

reservas, encantadora e indivisível: “amizade de amor”. Perquirindo as principais

contribuições teórico-filosóficas sobre o tema da amizade, percebemos uma estreita

correlação entre as propriedades da amizade “riobaldiana” e as da amizade montaigniana,

quais sejam: o império da intimidade ou, nas palavras do Montaigne, da “frequentação

prolongada”; a preeminência da amizade relativamente aos códigos ético-político-sociais, isto

é, a primazia do âmbito particular; uma suplantação da prática da virtude, indo de encontro a

muitas concepções clássicas; a questão da inexplicabilidade ou imensurabilidade, no sentido

de encantamento; a radicalização da limitação da quantidade de amigos “verdadeiros”,

cabendo aos demais compartilhar de amizade outras, “comuns”, ou outras formas de amor.

PALAVRAS-CHAVE: Amizade. Grande sertão: veredas. Riobaldo e Diadorim. Michel de

Montaigne.

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ABSTRACT

This work analyzes the establishment of the friendship between the characters Riobaldo and

Diadorim in the novel Grande sertão: veredas, by João Guimarães Rosa, showing possible

points of convergence with regard in the design of friendship in the thought of the French

philosopher Michel de Montaigne. We verified that much has been said and discussed about

the “passion” between the characters Riobaldo and Diadorim, woman disguised as gunmen.

But given the utter impossibility of a “concretion” of an eros, why not problematize the

established friendly relationship? It is what we propose and to this end, we start from the

following principle: despite the physical desire in vogue, which neither Riobaldo himself

understood, the bond established between them, immersed in the gunmen regime, it is a bond

of friendship. The narrator-protagonist proposes to revisit the two sides of his love. That is,

even not being able to deliver effectively to Eros powers, he could enjoy a truly friendship

without reservation, enchanting and indivisible: “the friendship of love”. Thereby, inquiring

the main theoretical and philosophical contributions on the theme of friendship, we realized a

close correlation between the properties of “riobaldian” friendship and the “montaignian”

friendship, namely: the intimacy empire or, in the words of Montaigne, the “prolonged

frequenting”; the preeminence of friendship with respect to ethical, political and social codes,

that is, the primacy of the private sphere; a supplanting of the practice of virtue, going against

many classical concepts; the question of inexplicable or countless in the sense of

enchantment; the radicalization of limiting the quantity of “true” friends, leaving the others to

share other friendships, “ordinary”, or even other forms of love.

KEYWORDS: Friendship. Grande sertão: verdas. Riobaldo and Diadorim. Michel de

Montaigne.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 9

CAPÍTULO 1. (DES)CAMINHOS DA AMIZADE ............................................................ 11

1.1 A philia no diálogo Lísis: o revés da conceitualização ................................................... 12

1.2 Dimensão ética da philia: o projeto aristotélico ......... Erro! Indicador não definido.14

1.3 De Amicitia: o legado exortativo de Cícero ................ Erro! Indicador não definido.17

1.4 Amizade versus adulação em Plutarco .......................................................................... 21

1.5 Cristianismo e modernidade(s): a supressão e o retorno da amizade .... Erro! Indicador

não definido.23

CAPÍTULO 2. AMIZADE SEM RESERVAS: MONTAIGNE E LA BOÉTIE ........ Erro!

Indicador não definido.29

2.1 Pinceladas de um ceticismo moderado ........................................................................... 30

2.2 Um pintar-se escrevendo ................................................................................................ 31

2.3 Amizades destoantes ....................................................................................................... 32

2.4 Matizes perfeitos: amizade sem reservas ........................................................................ 36

2.5 Descoramento: amizade ceifada ..................................................................................... 42

CAPÍTULO 3. AMIZADE DE AMOR: RIOBALDO E DIADORIM .............................. 44

3.1. Grande sertão: veredas ou elogio à amizade ................................................................ 45

3.2. Amizade “na lei dela”: amigos e mais amigos do que jagunços.................................... 47

3.3. Nem philos nem eros: “amizade de amor” ou ultra-amizade ........................................ 50

3.4. “Amizade de amor” e demais formas de amizade ......................................................... 54

3.5. Saudade de amizade: a clave da perda ........................................................................... 57

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 59

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 61

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INTRODUÇÃO

Philia (grego), amicitia (latim), amitié (francês), amistad (espanhol), amicizia

(italiano), friendship (inglês), freundschaft (alemão), etc.: seja qual for a forma gráfica ou o

significante (na acepção saussuriana), o signo “amizade” sempre integrou as relações

humanas e, por conseguinte, não só o seu conceito, mas, sobretudo, a sua prática, que vem

sendo problematizados ao longo da história da humanidade. Quer seja nos mitos, nas artes, na

filosofia, na política, na religião, na literatura ou em outros “painéis” da vida humana, o

problema do “exercício” da amizade tem gerado as mais diversas discussões, tratados e

controvérsias. Dentre as múltiplas formas de estudar a amizade, optamos pelas “veredas” da

literatura brasileira, em sintonia com a abordagem filosófica, numa relação interdisciplinar.

O presente trabalho, que integra o projeto “Enciclopédia do Grande Sertão”, do Grupo

Nonada, objetivou analisar a constituição da amizade entre os personagens Riobaldo e

Diadorim no romance Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, demonstrando

possíveis pontos de convergência em relação à concepção de amizade no pensamento do

filósofo francês Michel de Montaigne. Para tanto, pretendeu-se estudar as principais

contribuições teórico-filosóficas sobre a amizade, da antiguidade à contemporaneidade;

examinar o ensaio “Da amizade”, no qual se encontra o substrato montaigniano de amizade;

enfim, estabelecer uma comparação entre a amizade “riobaldiana” e a amizade montaigniana,

evidenciando as correspondências ou correlações e, naturalmente, os contrastes existentes.

A investigação configura-se como bibliográfica e de natureza analítica. Num primeiro

momento, realizamos um mapeamento do corpus teórico-metodológico da pesquisa. Além

dos textos-chave, que são o romance Grande sertão: veredas e o ensaio “Da amizade”,

recorremos aos principais tratados filosóficos que versam sobre o tema da amizade.

Posteriormente, concentramos na leitura, fichamento e análise desses escritos filosóficos.

Nesse entrementes, empenhamo-nos no exame dos ensaios de Montaigne, mormente o ensaio

“Da amizade”. No terceiro momento, dispensamos toda a atenção ao romance em epígrafe,

analisando a relação de amizade entre os referidos personagens. Consoante a trajetória

metodológica, este estudo encontra-se dividido em três grandes momentos.

No primeiro capítulo, realizamos um percurso relativo às principais contribuições

teórico-filosóficas sobre o tema da amizade, transmitidas ao longo da história do pensamento

ocidental, quais sejam: o legado grego-clássico (Platão, no diálogo Lísis, e Aristóteles, em

Ética a Nicômago); as reflexões dos romanos (Cícero, em Da amizade, e Plutarco, em Como

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distinguir o bajulador do amigo); a reorientação cristã medieval (Santo Agostinho, em

Confissões) e moderna (Kierkegaard, em As obras do amor e Diário de um sedutor); o ideário

renascentista e iluminista (René Descartes, em As paixões da alma, Voltaire, no seu

Dicionário filosófico, e Immanuel Kant, na Metafísica dos costumes); e o viés contemporâneo

de Friedrich Nietzsche, em Assim falou Zaratustra, Aurora e Humano, demasiado humano.

No segundo capítulo, analisamos o ensaio “Da amizade”, no qual Montaigne “pinta”

seu “quadro” da amizade. Introduzem este capítulo alguns apontamentos sobre o pensamento

montaigniano. Na segunda seção, esclarecemos a questão do “pintar-se escrevendo”, metáfora

utilizada por Montaigne no exórdio do ensaio em questão. Em seguida, discutimos sobre as

amizades que, segundo o autor, não compõem uma amizade verdadeira. Na seção seguinte,

problematizamos a concepção montaigniana de amizade, na qual o pensador toma a si próprio

como modelo, em seu relacionamento com Etienne de La Boétie. Por fim, tratamos de

delinear a experiência da perda do amigo e suas implicações no exercício da escrita ensaística.

No terceiro e último capítulo, indo ao ponto crucial de nossa investigação, analisamos

a constituição da amizade entre os personagens Riobaldo e Diadorim. Inicialmente, situamos

a narrativa rosiana com suas especificidades, bem como a “problemática” da qual brotou esta

pesquisa. Na sequência, encetamos a análise propriamente dita da amizade entre os “heróis”

de Grande sertão: veredas, fazendo as analogias necessárias em relação à visão

montaigniana. Exploramos o conceito de “amizade de amor” ou ultra-amizade na narrativa,

diferenciando-a das demais formas de amizade. Por último, versamos sobre as circunstâncias

e as implicações da “descoberta” da real identidade de Diadorim, incluindo a clave da perda.

À guisa de conclusão, observar-se-á que, tal como entre Montaigne e La Boétie, o

grande móbil da amizade entre Riobaldo e Diadorim é a “intimidade”, a proximidade no

convívio. A convivência dos amigos, em ambos os casos, concentra-se, acima de tudo, no

domínio particular, indo de encontro à esfera “pública”. O movimento de evasão aos

julgamentos, de incompreensão dos “motivos”, permite-nos afirmar, ainda, que a amizade em

pauta não está fundada da virtude. Há que observar, também, uma recusa à tentativa de

encontrar a “razão primeira”, semelhantemente à concepção montaigniana. Mas isso deve ser

pensado em relação à “veia erótica” que Riobaldo, às vezes, tentava ocultar ou anular; em

virtude do “potencial andrógino” de Diadorim, mulher travestida de jagunço. Em meio a essa

ambiguidade, Riobaldo opta por tolerar, enveredando-se nas possibilidades da relação,

suportando os ímpetos físico-sensuais, mas também se comprazendo da companhia e da

proximidade, reinventando o amor-paixão sob a forma de uma “supra” ou “ultra-amizade”.

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CAPÍTULO 1

(DES)CAMINHOS DA AMIZADE

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Nas linhas que se seguem, realizaremos um percurso relativo às principais

contribuições teórico-filosóficas sobre o tema da amizade transmitidas ao longo da história do

pensamento ocidental. Comporão este curto traçado: o legado grego-clássico (Platão e

Aristóteles); as reflexões dos romanos (Cícero e Plutarco); a reorientação cristã medieval

(Santo Agostinho) e moderna (Kierkegaard); o ideário renascentista e iluminista (Montaigne1,

René Descartes, Voltaire e Immanuel Kant); e o viés contemporâneo (Nietzsche).

1.1 A philia no diálogo Lísis: o revés da conceitualização

Em busca das primeiras abordagens teórico-filosóficas sobre a amizade, dirigimo-nos

à escritura de um dos principais pensadores gregos: Platão (427-347 a. C.). O “filósofo das

formas ideais” foi o primeiro a dedicar-se ao tema da amizade, apresentando-a como objeto de

discussão do diálogo Lísis. Contudo, suas considerações não compuseram um quadro

substancial de definições e conceitualizações. Juntamente com o Eutífron (sobre a piedade), o

Hípias Maior (sobre o belo), o Cármides (sobre o autocontrole) e o Laquês (sobre a coragem),

o Lísis compõe o conjunto dos chamados “diálogos aporéticos”, os quais instituem esboços

inconclusos de certas virtudes, deixando muitas questões em aberto. Por isso, não

estenderemos muito nossa exposição sobre a visão platônica. Optamos por comtemplar mais

detalhadamente (na próxima seção) o viés aristotélico, pois, entre os textos filosóficos sobre a

amizade no período grego-clássico, esse é o mais completo e consistente.

O curto diálogo Lísis, que propõe uma discussão acerca da philia (traduzida como

“amizade”), desenrola-se numa cena dialógica e os próprios participantes da conversa, no

espaço da “palestra” (ambiente de discussões filosóficas), são os exemplos perquiridos. Tem

Sócrates (filósofo emblemático e supervalorizado por Platão) como figura central e os jovens

Hipótales, Ctesipo, Menexeno e Lísis como interlocutores. Para início de conversa, Menexeno

e Lísis são profundamente amigos, e Hipótales encontra-se atraído pelas qualidades (tanto

físicas quanto espirituais) de Lísis. Por isso, Sócrates enceta uma preambular orientação no

sentido de se agir com prudência e comedimento ao elogiar os atributos do outro, sobretudo se

se trata potencialmente de um amigo, para que não o afaste ao invés de atraí-lo.

No desenrolar da conversa surge, pois, a indagação: “Quando alguém ama a alguém,

quem é amigo de quem: o amante do amado, ou o amado do amante? Ou não se diferenciam

em nada?” (PLATÃO, 1971, p. 234, tradução nossa, do espanhol)2. A discussão continua na

1 Por adequações metodológicas, trataremos da visão montaigniana no próximo capítulo.

2 PLATON. Obras completas. Tomo 02. Ed. de Patricio de Azcárate: Madrid, 1871.

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tentativa de resolver tal impasse, mas não se chega a uma resposta precisa, uma vez que

“amigo” não seria necessariamente aquele que ama, nem aquele que é amado, e nem aquele

que ama e é amado; a realidade da amizade envolveria também outras questões, ultrapassando

a reciprocidade de sentimentos. Essa discussão permanece por quase todas as linhas da obra.

O diálogo explora muito mais o modo como alguém se torna amigo do outro do que a

forma da amizade como um todo. Sócrates leva os demais a afastarem a ideia de que a

afinidade nasce da semelhança. Ora, os maus não poderiam amar nem ser amados, e os bons

não serão amigos por serem semelhantes, mas por serem bons. E, dado que não existe quem

seja perfeitamente bom, pois há de haver algum bem que lhe escapa, Sócrates conduz os

jovens a admitirem uma possível razão para a amizade: a identificação com uma virtude que

se apresenta (parousia) no outro e que se deseja possuir ou desenvolver em maior grau.

Em dado momento, Sócrates interpela Lísis e Menexeno, distintos e inseparáveis

amigos, sobre o lugar da utilidade na amizade. Aplicando seu método maiêutico, o filósofo os

leva a afastarem a noção de amigo como aquele a quem se recorre em caso de necessidade.

Cabe destacarmos, inclusive, a posição de conselheiro atribuída a Sócrates quando dirige

censuras e recomendações aos amigos Lísis e Menexeno, mostrando-os que se deve tomar

cuidado tanto com a presunção quanto com a posse de bens, no campo da amizade.

Destacamos, ainda, a discussão em torno da proximidade entre a amizade (philia), o

desejo (epithymía) e o amor (eros). Sócrates confere uma estreita ligação entre esses

sentimentos, de forma que um desejo em excesso na amizade tenderia para uma relação

erótica. Haveria, portanto, certa continência na intensidade da philia, donde é possível

irromper o eros (tema de O Banquete). Mas o filósofo não trata de esclarecer as medidas

dessa “intensidade”, ou seja, quais seriam as linhas demarcadoras do desejo na amizade.

Se não encontramos tantas delimitações conceituais, ao menos uma coisa está muito

bem acertada no diálogo em epígrafe: o valor da amizade. É Sócrates quem mais a enaltece:

“Eu preferiria mais ter um bom amigo a ter a melhor codorna do mundo ou o melhor galo, e,

até mesmo – por Zeus! – mais do que o melhor cavalo, ou o melhor cão. Creio que eu

preferiria ter um companheiro a ter o ouro de Dario” (PLATÃO, 1971, p. 233-234). Nesse

sentido, o cultivador da amizade é concebido como um sábio, como alguém que optou por

aquilo que, estando entre os bens mais estimáveis, proporciona uma vida feliz.

Vê-se que o Lísis não traz delimitações conceituais para o problema da amizade; ao

contrário, exibe inúmeras interrogações e caminhos incertos. Seria uma falha discursiva ou

estaria nas intenções do próprio Platão? A aporia relativa à amizade é congruente com o

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idealismo platônico, que ressalta a contingência das coisas em contraste com o mundo

paradigmático das “formas ideais”? Sendo falha ou não, a bem da verdade o diálogo convoca

o leitor a (re)pensar o lugar da amizade; sua formação e seus múltiplos desdobramentos. O

Lísis merece destaque também por ser o primeiro documento teórico-filosófico a abordar esse

tema, legando à posteridade uma base que se poderia chamar de socrático-platônica.

1.2 Dimensão ética da philia: o projeto aristotélico

Não se pode traçar um panorama histórico sobre os conceitos de amizade sem buscar

referência no principal discípulo de Platão e “pai de todas as ciências”. Eminente pensador

grego, nascido em Estagira (motivo do epíteto “o Estagirita”), região da Macedônia,

Aristóteles (382-322 a. C.), ao cunhar sua vastíssima e sistemática doutrina filosófica,

também não se furtou a teorizar sobre a amizade, inserindo-a em suas preleções sobre os

fundamentos da ação humana, isto é, sobre a ética. Os escritos aristotélicos, com enfoque na

ética, são Ética a Eudemo e Ética a Nicômago, mas pautar-nos-emos nesta última, porquanto

nela o discurso relativo à amizade é tanto mais completo quanto mais detalhado.

Nas lições constantes da Ética a Nicômago (1991), Aristóteles apresenta os caminhos

para se viver de maneira virtuosa (areté) e, assim, alcançar a finalidade da vida humana: a

felicidade (eudaimonia). Mas o que é viver virtuosamente? É buscar o meio-termo, “aquilo

que é equidistante de ambos os extremos”, de modo que, do ponto de vista ético, é o

equilíbrio das ações e emoções: “o excesso e a falta são característicos do vício, e a mediania

da virtude” (ARISTÓTELES, 1991, p. 37-38). Estamos diante de um projeto ético baseado

nos padrões greco-atenienses de cultura e de política. No espaço da polis é que se daria o

desenvolvendo da “arte do viver bem”. Como parte dessa vida virtuosa, vem o

estabelecimento de relações amigáveis. Disso provém a amizade como questão ética.

As valorosas contribuições aristotélicas concernentes à amizade encontram-se nos

Livros VIII e IX da obra em estudo. Nas linhas introdutórias do primeiro deles, a amizade é

concebida como sendo, antes de tudo, uma virtude ou algo que implica a virtude. No

desenrolar da discussão, Aristóteles se concentra em três problemas, considerados por ele

como imprescindíveis: se a amizade pode se manifestar entre duas pessoas quaisquer; se as

pessoas más podem ser amigas; se existe uma só espécie de amizade, ou mais de uma. Já

respondendo ao terceiro problema supracitado, o Estagirita admite três tipos de amizade, dado

que diferem as formas de amar e querer bem: 1) a amizade segundo o interesse; 2) a amizade

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segundo o prazer; 3) a amizade perfeita, fundamentada na virtude. E, à medida que ele

desenreda essa classificação, as duas primeiras questões mencionadas vão sendo resolvidas.

Dissertando sobre tais acepções, o pensador considera que aqueles que apoiam sua

amizade no interesse, amam-se por causa da utilidade. Diz-se que tal amizade seria comum

entre os mais velhos, que “tendem” a buscar favores, e também seria própria das pessoas

mercenárias. Ademais, “parece ser a que mais facilmente se forma entre contrários, como, por

exemplo, entre pobre e rico, entre ignorante e letrado; porque um homem ambiciona aquilo

que lhe falta e dá algo em troca” (ARISTÓTELES, 1991, p. 183). Em outras palavras, a

amizade seria apenas um pretexto; seria acidentalmente e não essencialmente, pois não amam

um ao outro, mas o proveito. Amar-se-ia não pelo que o amigo é, mas pelo que ele concede.

Igualmente acontece com os amigos que se unem somente em função do prazer, em

razão da “sensação aprazível” que o outro propicia. Se uma das partes deixa de fornecer essa

agradabilidade, a outra simplesmente deixa de amá-la. Seria comum encontrar essa amizade

entre os jovens, que “tendem” a visar o prazer no mais das vezes. Conforme o tempo passa, os

prazeres também passam e as amizades não se sustentam. Dizendo em outros termos: não são

agradáveis porque se amam, mas amam-se porque se consideram agradáveis.

Já com relação à terceira e mais importante acepção, Aristóteles distingue a amizade

como reflexão ética, existindo apenas entre os homens bons, fundamentada na virtude:

A amizade perfeita é a dos homens que são bons e afins na virtude, pois esses

desejam igualmente bem um ao outro enquanto bons, e são bons em si mesmos. Ora,

os que desejam bem aos seus amigos por eles mesmos são os mais verdadeiramente

amigos, porque o fazem em razão da sua própria natureza e não acidentalmente. Por

isso sua amizade dura enquanto são bons – e a bondade é uma coisa muito durável.

E cada um é bom em si mesmo e para o seu amigo, pois os bons são bons em

absoluto e úteis um ao outro (ARISTÓTELES, 1991, p. 174).

Conforme percebemos, o filósofo considera a amizade como ilação da vida virtuosa,

provável somente entre os bons e justos, visto que ela (a amizade) implica a justiça, o

altruísmo, a bondade e a reciprocidade. Poder-se-ia dizer, acreditamos, que nessa amizade,

como nos dois primeiros tipos (inferiores), visa-se ao interesse e ao prazer, mas não como fins

em si, como forças motrizes; aqui, o útil e o agradável são apenas efeitos, como o são tantas

outras coisas. Porque se conhecem e são semelhantes em qualidades e virtudes, as pessoas

boas serão também agradáveis e úteis reciprocamente. O pensador acentua que um

relacionamento assim há de ser raro tanto quanto contínuo e duradouro.

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Valendo-se de um provérbio, Aristóteles destaca que as pessoas não podem conhecer-

se umas às outras se não tiverem “provado muito sal juntas”. Por isso, também não poderiam

apressadamente se apresentar como amigas. Não serão amigas enquanto não se saberem

verdadeiramente dignos e confiáveis, pois “o desejo da amizade pode surgir depressa, mas a

amizade não” (ARISTÓTELES, 1991, p. 175). Sobre a proximidade da relação, o filósofo

destaca que a distância, pode até não fazer desaparecer a amizade, mas “se a ausência dura

muito tempo, parece realmente fazer com que os homens esqueçam a sua amizade; daí o

provérbio ‘longe dos olhos, longe do coração’” (ARISTÓTELES, 1991, p. 177).

Respondendo ao segundo problema apresentado, sobre se as pessoas más podem ser

amigas, Aristóteles, assim como Platão, afiança que é impossível. Aliás, podem ser amigas

por interesse ou por prazer, como o pode qualquer tipo de pessoa, mas isso já não é ser

verdadeiramente um amigo, dado que não se alegram com o convívio, salvo se a relação lhes

oferece algum proveito. Definitivamente, apenas os homens bons podem ser propriamente

amigos. Nesse sentido, o autor de Ética a Nicômago não faz outra coisa senão fundamentar o

seu discurso sobre a amizade inserindo-o coerentemente no sistema ético de sua filosofia.

Defendendo que o amor é um sentimento e que a amizade é uma disposição de caráter,

Aristóteles sustenta que “se pode sentir amor mesmo pelas coisas inanimadas, mas o amor

mútuo envolve escolha, e a escolha procede de uma disposição de caráter” (ARITÓTELES,

1991, p. 178). Quer dizer: os amigos se amam porque são, ambos, bons para si mesmos e para

o outro. O desafio será retribuir proporcionando o bem ao amigo na mesma medida.

Num tom incisivo, o pensador declara que as pessoas idosas e as mal-humoradas

dificilmente arranjarão amigos: “os homens não se tornam amigos daqueles em cuja

companhia não se compraz. Também as pessoas acrimoniosas não se tornam amigas

facilmente” (ARISTÓTELES, 1991, p. 178). Há que ressaltar o caráter “aprazível” da

amizade no viés aristotélico: há de haver o comprazimento na companhia do outro. Veremos,

mais adiante que, no período renascentista, Montaigne realçará ainda mais essa condição.

Nessa esteira de arguição, fica também afastada a possibilidade de se ser

verdadeiramente amigo de muitas pessoas, ainda que pareçam boas aos olhos do indivíduo. É

possível que se tenha uma afeição ou um sentimento de agrado por várias pessoas, mas por

um prazer passageiro ou por utilidade. A amizade perfeita exige “adquirir alguma experiência

da outra pessoa e familiarizar-se com ela, e isso custa muito trabalho” (ARISTÓTELES,

1991, p. 179). Torna-se cara a familiaridade, a experiência prolongada, o que fica difícil se se

trata de várias pessoas. Mas o pensador não delimita uma quantidade de amigos.

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No ponto seguinte, Aristóteles diz da dificuldade de alguém na posição de mando “ter”

e “ser” amigo de verdade. Mais fácil seria se deparar com quem lhe fosse útil e quem lhe

fosse agradável; não a mesma pessoa. Só o homem bom seria útil e agradável a um só tempo,

mas alguém desse naipe “não se torna amigo de quem lhe é superior em posição, a menos que

lhe seja superior também pela virtude; mesmo assim, não poderia estabelecer-se uma

igualdade por ser ele ultrapassado em ambos os respeitos” (ARISTÓTELES, 1991, p. 179).

No que diz respeito às relações entre pais e filhos, entre marido e mulher, entre jovens

e velhos, discorre o Estagirita que fica difícil estabelecer uma amizade perfeita, pois o vínculo

que os une é outro: “a virtude e a função de cada uma dessas pessoas são diferentes, e por isso

também diferem as suas razões para amar”. Vale destacar, inclusive, que Aristóteles, como

homem de seu tempo, compara a relação entre marido e mulher com a relação entre senhor e

súdito, posto que o patriarca era tido como um “governante” de sua família, de seu clã. Tratar-

se-ia de uma amizade entre quem rege e quem é regido. A proposta aristotélica, no campo

familiar, é encontrar os termos da proporção. O amor deveria ser proporcional ao

merecimento das partes, construindo, assim, certa igualdade: “o melhor deve receber mais

amor do que dá, assim como deve ser mais útil” (ARISTÓTELES, 1991, p. 180-181).

É nessa perspectiva que, se um amigo deseja o bem ao seu amigo, por ambos serem o

que são e aspirarem à virtude, e se a amizade depende mais de amar do que de ser amado, as

pessoas desiguais (em posições distintas) podem ser amigas, desde que se estabeleça certa

igualdade entre elas. Aristóteles chama a isso de “princípio da proporcionalidade” na

amizade. O que significa? Quer dizer que os amigos, cada um à sua maneira, ajudar-se-ão a

serem bons no que fazem, já que são próximos na virtude e fiéis um ao outro.

Diante do exposto, ressalte-se o valor ético dessa “amizade verdadeira”, passível de

acontecer tão-somente entre os bons; a bondade e a amizade encontrar-se-iam ambas, a um só

tempo, na mesma pessoa. Um amigo seria aquele que parece desejar e fazer o bem no

interesse de seu amigo. Ou seja, a pessoa boa em relação a si mesma relacionar-se-á com seu

amigo como se relaciona consigo mesmo; aqueles que agem dessa forma podem ser

considerados verdadeiramente amigos. Enfim, como algo tão nobre quanto necessário, a

amizade ajudaria a evitar os erros, a viver retamente; estimularia a prática das boas ações.

1.3 De Amicitia: o legado exortativo de Cícero

Séculos mais tarde, quem se propôs a tecer considerações outras sobre a amizade foi o

orador, político e filósofo latino Marco Túlio Cícero (106-43 a. C.), o mais significativo

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defensor do ecletismo3 (escola filosófica do período helenístico

4) em Roma. A filosofia

ciceroniana é “a mais significativa ponte através da qual a filosofia grega se introduziu na área

de cultura romana e, depois, em todo o Ocidente; esse também é um método não teorético,

mas de mediação, de difusão e de divulgação cultural” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 281).

Logo, Cícero não apresenta muitas novidades em suas formulações sobre a amizade, o que

não quer dizer que seus apontamentos não sejam pertinentes e não mereçam destaque. Aliás, a

amizade, aqui, está ainda mais subjugada ao domínio público. Segundo o filósofo italiano

Massimo Baldini, “no mundo latino a palavra amizade é sinônimo mais de solidariedade

política do que de relação afetiva entre duas pessoas” (BALDINI, 2001, p. 18).

O legado ciceroniano referente à amicitia encontra-se na obra Diálogo sobre a

amizade (2013), De Amicitia (título original), na qual temos o emprego de um processo

dialógico; à maneira platônica de narrar, podemos dizer. O personagem central é Caio Lélio,

cognominado “o sábio”, figura eminente da Roma republicana. Num estilo exortativo, Lélio

expõe seus princípios, valendo-se de seu caso de amizade com Cipião. Salta à vista umas das

características mais importantes do pensamento de Cícero: sua tentativa de conciliar filosofia

com retórica. Assim, tomamos a liberdade de não nos referirmos a Lélio, mas às concepções

do próprio autor, como geralmente se faz com os diálogos platônicos.

O pensador latino segue uma linha análoga à de Aristóteles, qual seja, a ideia de que

amizade e virtude se imbricam e se completam. Os que merecem o título de amigo não podem

ser outros senão os bons. E se não é comum encontrar pessoas de bem, logo, são incomuns os

amigos de verdade: “E não falo agora de uma amizade vulgar ou mediana (embora também

esta deleite e aproveite), mas da verdadeira e perfeita” (CÍCERO, 2013, p. 16). Concebendo a

amizade como um conjunto harmonioso de coisas divinas e humanas, Cícero a coloca entre os

mais preciosos dons que o ser humano pode ter: “não sei se os Deuses concederam (exceto a

sabedoria) outro dom maior aos mortais” (CÍCERO, 2013, p. 15). Tamanho é o

enaltecimento, que Baldini considera a passagem a seguir como “a mais célebre definição da

amizade que jamais foi escrita” (BALDINI, 2001, p. 25, tradução nossa)5:

3 Escola filosófica que visava reunir e fundir o que fosse considerado “de melhor” das várias correntes de

pensamento. Principais representantes: Cícero, Fílon de Larissa e Antíoco de Áscolon.

4 (323 a 146 a. C) Período de propagação da cultura grega nos territórios conquistados por Alexandre Magno,

com seu ideal cosmopolita; época de transição para o domínio e o apogeu do Império Romano. Escolas

filosóficas deste período: cinismo, epicurismo, estoicismo, ceticismo e ecletismo.

5 BALDINI, Massimo. La storia dell'amicizia. Roma: Armando, 2001.

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Quantas coisas se apetecem, cada uma tem o seu uso particular: a riqueza, para o

uso; o poder, para a veneração; as honras, para o aplauso; os prazeres, para o gozo; a

saúde, para não sentir dores e ser expedito nos exercícios corporais. A amizade

abarca muitas coisas; para qualquer parte que nos volvamos a encontramos solícita;

em todos tem lugar; nunca é impertinente, jamais molesta. De modo que não usamos

mais da água e do fogo, como dizem, que da amizade (CÍCERO, 2013, p. 15).

Questiona-se como pode ser suportável uma vida sem amizade, pois “esta faz mais

abundantes as prosperidades e as adversidades, rompendo-as e unindo-as, tornando-as mais

suportáveis” (CÍCERO, 2013, p. 15). Falar com um amigo deveria ser como falar consigo

mesmo, sem fingimentos, uma vez que “o verdadeiro amigo vê o outro como a uma imagem

de si mesmo. E, assim, se fazem presentes ou ausentes, fartos ou necessitados, poderosos ou

fracos, e o que é mais difícil de crer, vivos ou mortos” (CÍCERO, 2013, p. 16).

Dissertando sobre a origem da amizade, diz-se que é mais filha da natureza do que da

necessidade: “Para que Cipião tinha necessidade de mim? Para nada. Nem eu dele tão pouco.

Mas eu o amava, admirado, em certo modo, da sua virtude” (CÍCERO, 2013, p. 19).

Depreendemos que essa “necessidade” da qual Cícero fala corresponde, de certa maneira, à

“utilidade” de que trata Aristóteles. Não haveria porque se preocupar com serventias ou tentar

explicar a amizade segundo níveis de recompensas. Assumir essa “necessidade” seria atentar

contra a natureza da amizade, contra seu caráter livre e "descompromissado".

O filósofo latino critica os que propagam uma postura individualista, segundo a qual

bastaria a cada um seus próprios cuidados e o mais cômodo seria manter bem frouxos os laços

da amizade, a fim de poder estreitá-los quando quiser. Alegam que o essencial para bem viver

é a tranquilidade e, portanto, a alma não poderá gozar dessa calma se está sempre preocupada

com outrem. Num tom incisivo, Cícero redargue: “Não renunciaremos à amizade, unicamente

pelos aborrecimentos que possam advir de nossos amigos, assim como não renunciamos à

virtude pelas inquietações e angústias que a acompanham” (CÍCERO, 2013, p. 27).

Dizendo dos limites da amizade, o filósofo discorda de três ideias comumente aceitas:

1) que sejamos para os nossos amigos assim como somos para nós mesmos; 2) que a nossa

afeição por eles seja tal e qual à que eles têm por nós; 3) que estimemos nossos amigos assim

como eles se estimam a si próprios. Contestando a primeira, ele defende que é necessário que

façamos por nossos amigos coisas que jamais faríamos para nós. Sobre a segunda assertiva,

ele diz que seria fazer da amizade uma ideia bem limitada, sujeitando-a a um balanço entre

custo e benefício. A verdadeira amizade, ao contrário, não se deve temer “que se vá dar

demais ou que se vá perder alguma coisa” (CÍCERO, 2013, p. 30). E, considerando a terceira

máxima como a mais leviana de todas, ele aplica o mesmo argumento da segunda.

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Assim como na ética aristotélica, temos aqui o reconhecimento da dificuldade de se

encontrar pessoas constantes na virtude e, consequentemente, na amizade. O desafio proposto,

então, seria “dar um voto de confiança” (expressão nossa) e experimentar aos poucos a

companhia do amigo, suas ações e costumes. Com efeito, vejamos:

Aquele que, numa e noutra sorte, se mostrou firme, constante e inflexível, deve ser

considerado raro e quase divino. O fundamento desta estabilidade e desta constância

que procuramos na amizade é a confiança: sem ela, nada é estável. Escolhemos,

pois, um amigo de costumes simples e fáceis, que pense e sinta como nós; tudo isto

conserva a fidelidade. Uma alma dissimulada e tortuosa não pode ser fiel. Aquele

que não tem o mesmo gosto, nem os mesmos sentimentos nossos, não pode ser um

amigo certo e constante (CÍCERO, 2013, p. 34).

Ratificando a ideia de que a amizade não pode existir senão entre as pessoas de bem,

Cícero aponta, ainda, duas “regras” para a amizade: a primeira, nada dissimular, pois seria

mais autêntico divergir francamente do que ocultar sua opinião sob um semblante enganador;

a segunda, repudiar as acusações dirigidas contra seu amigo, sem ficar suspeitoso,

desconfiado, e sempre disposto a acreditar que o amigo faltou em alguma coisa. Atrelado a

isso, há de haver certa “docilidade” na linguagem: “a amizade deve ser mais indulgente, mais

franca e mais doce; é mais inclinada para a cortesia e a afabilidade” (CÍCERO, 2013, p. 34).

Outra reflexão suscitada e qualificada como “embaraçosa” diz respeito ao grau de

diferenciação entre os antigos e os novos amigos. Enaltecendo as antigas amizades, Cícero

está de acordo com Aristóteles, citando o mesmo provérbio mencionado em Ética a

Nicômago: “é verdadeiro o dito comum de que, para serem perfeitos amigos, é necessário que

tenham comido juntos muitos alqueires de sal” (CÍCERO, 2013, p. 35). Mas ressalta também

que, apesar da necessidade de conservar o “espaço” das amizades antigas, não se deve deixar

de investir em amizades novas, se estas proporcionam e prenunciam “bons frutos”.

Algo que Cícero não também abre mão no que concerne à amizade é a defesa da

verdade. Esta não deveria ser motivo de ofensa, mas, se for preciso, que se repreenda ao

amigo. A verdade seria um “mal necessário” (expressão nossa): mal porque pode complicar a

relação; necessário porque evita que o amigo se “desvirtue”. Dizer a verdade é agir sem

“adulação”, pois “é próprio da verdadeira amizade dar e receber conselhos, dá-los com

franqueza e sem azedume, recebê-los sem repugnância” (CÍCERO, 2013, p. 44).

Em síntese, a visão ciceroniana da amizade muito se aproxima da aristotélica. Em

alguns pontos são apresentadas algumas peculiaridades, mas, de fato, o cerne da discussão (a

amizade como auxiliar da virtude) é seguramente de matriz aristotélica, uma vez que Cícero

foi um propagador da cultura e da filosofia grega em territórios latinos. Tal como se manifesta

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em Ética a Nicômago, o Diálogo sobre a Amizade apregoa que somente entre homens

virtuosos se pode estabelecer uma amizade verdadeira. Estes serão unidos pela benevolência,

guiar-se-ão pela justiça, não farão nada que seja considerado desonesto, corrigir-se-ão quando

se fizer necessário, enfim, ambos se ajudarão a trilhar um caminho virtuoso.

1.4 Amizade versus adulação em Plutarco

O pensador romano neoplatônico Plutarco (46-120 d. C.) não propôs uma discussão

teorética; seus apontamentos são de ordem um tanto livre, tal como fizera Platão no Lísis.

Trata-se de reflexões de ordem prática, focalizando os percalços a que a amizade está sujeita,

mormente o problema da adulação. Faz transbordar a ironia, não economiza da linguagem

proverbial, cita uma vasta gama de histórias, conclama figuras de renome na história do

pensamento (Homero, Pitágoras, Platão, Aristóteles, Cícero e outros) a fim de ilustrar seu

discurso. Vale sublinhar, de antemão, que esta discussão sobre a amizade está estreitamente

relacionada aos meandros da vida pública, às vicissitudes das relações comerciais e políticas.

Aceita-se o ideal da amizade, seu caráter gratuito e edificante, sua dimensão ética e

social, enfim, sua importância nas relações interpessoais enquanto propiciadora de bem-estar.

Tais aspectos são tomados como resolvidos. O que importa mesmo às considerações

plutarquianas é elucidar uma série de erros e de obstáculos que poderão surgir na relação

amical, principalmente a armadilha da adulação ou falsa admiração. É mais uma questão de

como “manter” a amizade do que propriamente de especular sobre os sentidos e fundamentos.

Daí a frequente recorrência a narrativas literárias, histórias e abordagens sobre o cotidiano.

Segundo Plutarco, amar em demasiado a si mesmo é propiciar um largo terreno ao

adulador, que seria aquele que enaltece as virtudes do amigo visando seus próprios interesses.

Mas esse, aparentemente vitimado, não é menos culpado, pois quanto maior for seu

consentimento, menos virtuoso será. Contudo, o filósofo adverte que não se deve julgar

obstinadamente aos que tecem elogios. Não só as advertências, mas também os louvores,

quando oportunos, contribuem para a edificação do amigo. Ora, não seria difícil distinguir o

bajulador do amigo? O pensador salienta que a adulação “dá mostras de seriedade”.

Cumpre-nos destacar que Plutarco faz algumas referências a Cícero, uma vez que o

pensador latino já havia se preocupado, mesmo que ligeiramente, com o problema da

adulação, conforme expusemos anteriormente: “não há defeito maior na amizade que a

lisonja, a adulação, as baixas complacências” (CÍCERO, 2013, p. 44). Assim, as visões de

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ambos os autores se convergem especialmente nesse ponto: a atitude do adulador não é menos

depreciável do que a do “amigo”, que se ilude com as falsas admirações.

Plutarco comunga da ideia de que a amizade se forma pela semelhança de objetivos e

de costumes. Mas, o adulador, levando isso ao extremo, “toma para si os mesmos interesses e

o mesmo modo de opinar sobre as mesmas coisas, as mesmas preocupações e o mesmo modo

de agir, adotando a mesma cor, até que, numa dada ocasião, o outro lhe entrega um jugo e se

torna prisioneiro” (PLUTARCO, 2010, p. 86). Quer dizer: o adulador empenha-se em

construir uma harmonia fingida; condenando as atitudes e comportamentos daqueles de quem

o outro não gosta; as coisas que o outro aprecia, elogia‑as exageradamente.

Um ponto recorrente em Como distinguir o bajulador do amigo é a valorização da

parrésia6, termo de cariz retórico, significando franqueza, confiança ou ousadia para falar em

público. Ao lançar mão desse termo, Plutarco o aplica à relação amical, dizendo da coragem

em falar a verdade. Ao insistir nisso, observa que o adulador abre mão de admoestar aquele

que tanto admira, ao passo que o verdadeiro amigo pode censurar às vezes, sendo

desagradável, não deliberadamente, mas como uma tentativa de correção em algum aspecto.

Sob a ótica da parrésia, o amigo pode ser um digno conselheiro, agindo com lealdade. Mas

em que circunstâncias sê-lo? Sempre que for necessário, salienta Plutarco.

Plutarco insiste na franqueza como sendo um dos grandes meios para se distinguir o

bajulador do amigo. Todavia, tem de ser cuidadoso ao repreender o amigo na presença de

outrem. O pensador ilustra: “Contam que, quando Pitágoras ralhou mais duramente com um

discípulo em público, o jovem se enforcou e que, desde esse episódio, Pitágoras nunca mais

admoestou ninguém na presença de outra pessoa” (PLUTARCO, 2010, p. 150). Assim, o

ideal seria que a advertência fosse feita em segredo. Plutarco sugere duas formas de “detectar”

uma falsa admiração: notar a falta de coerência entre o que se diz e o que se faz, e perceber a

falta de firmeza nas convicções. Interessante pensar que, ao dizer desse cuidado perante o

adulador, os conselhos plutarqueanos são dirigidos aos “não aduladores”. É o que nos afigura.

No breve tratado Acerca do Número Excessivo de Amigos (2010), de apenas nove

pequenos capítulos, Plutarco continua nessa linha pragmática de pensamento, pautada nos

entraves que impossibilitam uma amizade genuína. O eixo dessa reflexão é a defesa do não

acúmulo de amigos. Não exploraremos os pormenores desse tratado, já que não difere tanto

da tese aristotélica, como vimos. Sintetizando: ao reprovar a polifilia, Plutarco sustenta que

uma grande quantidade de amigos traz ilusão de amizade. Os motivos dessa censura afluem

6 Nas versões portuguesas, inclusive na obra que utilizamos, esse termo aparece traduzido como "franqueza",

mas os próprios tradutores não se abdicam de apresentar, em nota, a origem desse termo tão basilar em Plutarco.

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para um ponto basilar: não obstante as aparentes vantagens, possuir amigos demasiadamente é

privar-se da virtude e da familiaridade, bem como estar apto para muitos riscos e malefícios.

Em suma, apesar de Plutarco não ter proposto uma definição de “amizade ideal”, seus

apontamentos se revelam como importante referencial de estudos. Há que reconhecer sua

preocupação com os perigos que põem em xeque a integridade da relação amical. Centrando-

se nas reais possibilidades de desencaminhamento da amizade, demonstra uma visão atenta à

vida prática, à realidade das relações interpessoais. Não podemos, é claro, desvencilhar suas

contribuições do cenário histórico-político-social de produção, mas é possível justapô-las a

outras realidades e formas de pensamento, como o fez Michel de Montaigne e tantos outros.

1.5 Cristianismo e modernidade(s): a supressão e o retorno da amizade

“Jesus respondeu: ‘o primeiro é amarás o Senhor teu Deus de todo teu coração, de

toda a tua alma, de todo o teu entendimento, e como toda a tua força. O segundo é este:

Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não existe outro mandamento maior do que este’”

(MARCOS, 12: 30-31). Podemos dizer que, desde os primórdios do cristianismo, essa

passagem tem servido como verdadeiro pedestal da mensagem cristã, influenciando

decisivamente no modus vivendi de numerosas gerações crentes no “Messias”. Como ao longo

de toda a Idade Média o cristianismo foi sendo cada vez mais difundido, naturalmente

encarou-se o mandamento do “amor ao próximo” com muito mais afinco (ao menos nos

púlpitos!) nessa época, em comparação com os anos pós-renascimento e pós-iluminismo.

Nesses mais de dez séculos de cristianização de mundos e culturas, o legado greco-

latino foi sendo tolhido e reformulado. Daí que, dentre os conceitos gregos relativos ao

“amor”, a doutrina cristã apoderou-se do ágape, adaptando-o aos seus moldes, suprimindo,

portanto, o eros e o philos. Transmutado para o universo cristão medieval, o ágape adquiriu

um sentido bem mais “carregado”, passando a significar “amor incondicional”, um doar-se

ilimitadamente pela causa do “próximo” (qualquer próximo!). O eros ficou restrito apenas à

intimidade conjugal, aos sentimentos carnais. E o philos foi quase que totalmente obliterado

em função do ágape. Francisco Ortega, em Genealogias da Amizade, observa que “o amor

ocupa o lugar principal e a amizade o secundário no cristianismo, invertendo a hierarquia

pagã” (ORTEGA, 2002, p. 58). Ortega nos lembra, inclusive, que os participantes da

“comunidade de Cristo” se denominam “irmãos”, no sentido de fraternidade, e não “amigos”,

que implicaria a proximidade de alguns em detrimento do distanciamento de outros.

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Um dos baluartes do pensamento cristão, Santo Agostinho (354-430), em sua obra-

prima Confissões, relatou sua participação nas amizades “mundanas”, “inimigas”. O filósofo

confessou que, em sua juventude pagã, conheceu um amigo a quem amou demasiadamente.

Tinham a mesma idade, estudavam e se divertiam juntos, compartilharam bons momentos,

mas a morte levou prematuramente o venerado amigo: “Esse homem já errava em espírito

comigo, e minha alma não podia viver sem ele. Mas eis que, seguindo de perto no encalço de

teus servos fugitivos, ó Deus das vinganças, eis que tu o arrebataste desta vida, quando eu

apenas havia gozado um ano de sua amizade” (AGOSTINHO, 2001, p. 29). Apesar de toda a

aprazibilidade e da sensação de completude, o autor de Confissões realça a dimensão errática

dessa amizade, que não foi cultivada sob os olhos da fé cristã, não tendo sido “verdadeira

amizade, uma vez que esta só existe entre os que se unem por meio da caridade, derramada

em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (AGOSTINHO, 2001, p. 29).

Mas essa “supressão”, de base cristã, do sentido da amizade perdeu força quando do

declínio das estruturas medievais, quando do “renascimento” das referências culturais da

antiguidade clássica, na “redescoberta” do humano. Os paradigmas cultivados a partir de

então (quais sejam: o humanismo, o racionalismo, o neoplatonismo, o hedonismo e o

individualismo, dentre outros valores) naturalmente influenciaram na maneira de pensar as

relações afetivas. Erguiam-se, assim, novos “projetos” filosófico-literários sobre a amizade,

os quais punham em relevo o âmbito particular das relações, valorizando os sentimentos,

paixões e “aventuras” amicais. É nesse novo cenário que emerge o modelo montaigniano de

amizade, ao qual dispensaremos toda a atenção somente no próximo capítulo.

Também fruto desse ideário humanista e considerado um dos fundadores da “filosofia

moderna”, ou até mesmo da Idade Moderna, o filósofo racionalista francês René Descartes

(1596-1650), mesmo que timidamente, deixou sua contribuição para os “estudos da amizade”,

já num horizonte um tanto “modificado”. No seu texto As paixões da alma, o pensador

afiança que “não há homem tão imperfeito que não possamos ter por ele uma amizade muito

perfeita, quando pensamos que somos amados por ele e quando temos a alma

verdadeiramente nobre e generosa” (DESCARTES, 2005, p. 85). O pensador do cogito, ergo

sum adverte que há muitas diferenças entre a simples afeição, a amizade e a devoção,

havendo, pois, a necessidade de distingui-las: “Quando estimamos o objeto de nosso amor

menos que a nós mesmos, temos por ele apenas uma simples afeição; quando o estimamos

tanto quanto a nós mesmos, isso se chama amizade; e quando estimamos mais, a paixão que

temos pode ser denominada devoção” (DESCARTES, 2005, p. 84). Vê-se, então, que a

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amizade se estabeleceria numa relação equitativa, numa correspondência de sentimentos e

ações, sem a sobreposição ou o predomínio de nenhum dos dois lados.

No século seguinte, o filósofo iluminista Voltaire (1694-1778), também francês,

dedicou um verbete ao tema da amizade. No seu Dicionário filosófico, concebe a amizade

como sendo um “contrato tácito entre duas pessoas sensíveis e virtuosas. Sensíveis porque um

monge, um solitário, pode não ser ruim e viver sem conhecer a amizade. Virtuosas porque os

maus não adjungem mais que cúmplices”. Ancorando-se, sobretudo, na ética

nicomaquea/aristotélica, Voltaire possuía profunda admiração pelo legado grego-clássico: “O

entusiasmo da amizade foi mais forte entre gregos e árabes que entre nós. São admiráveis as

histórias que teceram esses povos em torno deste sentimento. Não temos iguais. Somos em

tudo um pouco secos” (VOLTAIRE, 1984, p. 13). No seu polemismo sátiro, o filósofo refere-

se a uma “secura” de afetos, estando em “extinção” as amizades enraizadas em si mesmas,

cultivadas na virtude, na cumplicidade, na confiança e na reciprocidade. Reivindica-se uma

espécie de retorno daquela amizade, por assim dizer, hegemônica para os gregos.

Outro importante subsídio para o problema da amizade, já no auge do iluminismo e da

chamada “era moderna”, insere-se no suntuoso espólio filosófico de Immanuel Kant (1724-

1804), o pensador que levou a razão humana ao “tribunal de si própria”; que pretendeu

mostrar que a razão, não podendo ir além dos limites da experiência, deve fundamentar por si

mesma as capacidades do homem. Sem a pretensão de esmiuçar, por ora, uma proposta tão

complexa como o é o criticismo kantiano, em seu gigantesco esforço de formular uma “crítica

da razão”, centramo-nos ligeiramente em seu constructo moral, no qual se acha o substrato da

amizade. No livro Fundamentação da Metafísica dos Costumes, notamos que a pedra angular

da doutrina moral de Kant é o princípio do “dever”, que “é a necessidade de uma ação por

respeito à lei” (KANT, 2005, p. 31). Mesmo que as leis morais não procedem do exterior,

sendo a priori (um imperativo da razão), todo dever envolve (auto)coerção. Por aí se percebe

que até mesmo fazer o bem (ser benevolente, sobretudo respeitador, etc.) é um dever.

Mas, em que consiste a amizade nesse conjunto moral? Ora, ela é uma forma de amor;

envolve sentimento, e não se pode ter o dever de amar. A amizade nasce de um “fogo-

cruzado” (expressão nossa): está entre o poder avassalador do sentimento (amor) e as

possibilidades da razão prática (os “deveres”); será preciso transcender a pura sensibilidade

sem desembocar numa “obrigação”. Kant considera o amor como uma atração e o respeito

como repulsa; se o primeiro admite a aproximação, o segundo impõe certa distância. Na obra

Metafísica dos costumes: princípios metafísicos da doutrina da virtude, o pensador observa:

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O homem (embora também insociável) é um ser talhado para a sociedade; ao

cultivar a sua condição social, sente intensamente a necessidade de se abrir a outros

(inclusive, sem nada intentar com isso); mas, por outro lado, coibido e acautelado

também pelo medo frente ao mau uso que os outros poderiam fazer dos seus

sentimentos, se os revelar, vê-se obrigado a guardar para si uma boa parte do seu

juízo (...). Se, pois, ele encontrar um entendimento, de quem não deve recear aquele

perigo, antes se pode abrir a ele como toda a confiança, e que, ademais, tem um

modo de julgar as coisas que coincide como seu, então pode desabafar; não está

totalmente só com os seus sentimentos como num cárcere, mas saboreia uma

liberdade de que carece no meio da multidão (KANT, 2004, p. 120).

Ademais, o filósofo prussiano diferencia duas formas de amizade: a estética, olhada na

sua perfeição, e a moral, fincada da realidade. A primeira “é a união de duas pessoas graças a

um amor e a um respeito idênticos e recíprocos” (2004, p. 118). Entrevemos aí uma crítica a

um ideal de identificação pura e imediata, a uma ilusão de integridade e igualdade. Na

verdade, está chamando a atenção para as dificuldades da amizade, havendo a necessidade de

muita contenção e respeito para que não advenha uma ruptura. A segunda (moral) “é a

confiança total entre duas pessoas na comunicação recíproca dos seus juízos e sentimentos

íntimos, na medida em que ela pode coexistir como o respeito recíproco”. Com se pode notar,

há de haver a observância do respeito mútuo; rechaçando um entregar-se cegamente. O

filósofo observa que essa amizade não é um ideal, mas “às vezes, (o cisne negro) existe

realmente na sua perfeição” (KANT, 2004, p. 120-121). Quer dizer: embora não carregue uma

pureza inerente, pode ocorrer, dentro das limitações, uma espécie de “sintonia fina”.

Na visão kantiana, fazer o bem é um dever (a máxima da benevolência),

correspondente à máxima cristã “amar ao próximo como a ti mesmo”. É um amor “prático-

moral”, uma lei universal. Mas Kant também admite que alguns sejam mais próximos do que

outros e, destarte, o grau de amor (e amizade!) será mais elevado nesses casos. Isso nos

remete imediatamente à problemática da moral cristã: as implicações do “amor ao próximo”

(a caridade, o perdão, a compaixão e ações altruístas correlatas) foram sendo defendidas ora

em maior ora em menor grau. Muitos cristãos viveram relações tanto de amor quanto de

amizade desvirtuadas da doutrina; tiveram sentimentos para como um “próximo” que não era

qualquer próximo, mas seu admirador, seu companheiro, seu íntimo. Por conta disso, os

defensores de um “genuíno” cristianismo travaram calorosos discursos contra a

“paganização” dos afetos e sentimentos; enfatizando a dissenção entre “amigo” e “próximo”.

É o caso do filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard (1813-1855) que, já na atmosfera

contemporânea, via-se como um “missionário” cuja tarefa seria “purificar” o cristianismo da

“cristandade” (mera institucionalização). Sua crítica recai sobre os que tentam conciliar a

religião com as experiências “éticas” (convenções sociais) e “estéticas” (com vistas ao gozo

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do “aqui e agora”): “Não era terrível estar sentado à mesa com ele [Jesus]? Era assim tão fácil

ser apóstolo? Mas o resultado, dezoito séculos de cristianismo, serve para alguma coisa: para

esta abjeta burla pela qual cada um se engana a si e engana os outros” (KIERKEGAARD,

1988, p. 149). Como precursor da filosofia dita existencialista, ele via no cristianismo, antes

de tudo, uma forma de existir; um portar-se perante o mundo e as contradições da realidade.

Em As obras do amor, Kierkegaard considera que o amor e a amizade “profanos”

pertencem ao paganismo, enquanto o cristianismo promove acima de tudo o “amor ao

próximo”; propõe, inclusive, uma cisão entre amizade e caridade, para que as pessoas não as

confundam a ponto de se “desviarem”. O amor ao próximo “é amor entre dois seres

eternamente determinados como espírito cada um para si; amor ao próximo é amor segundo o

espírito, mas dois espíritos jamais podem tornar-se um, no sentido egoístico” (2005, p. 77). O

verdadeiro cristão deveria fugir das amizades que não levam à vivência da fé; evitar os

relacionamentos “passionais”, porque encerrados em si mesmos, descompromissados com o

“projeto de Deus”. Na visão kierkegaardiana, tão-somente o “amor ao próximo” envolveria a

dimensão do eterno, do transcendente; possibilitando ao homem “aproximar-se” de Deus.

Encaminhando-nos para os arremates deste capítulo, resta-nos discorrer sobre as

considerações de Friedrich Nietzsche (1844-1900), que não poupou censuras ao mandamento

do “amor ao próximo”. Nos aforismos de Assim falou Zaratustra, o filósofo alfineta que “o tu

é mais antigo do que o eu; o tu foi santificado, mas eu ainda não: assim, o homem se apressa

em acudir ao próximo” (NIETZSCHE, 2005, p. 87). O cristianismo teria menosprezado o

valor da amizade, seu caráter edificante, sua importância para a vida dos homens vivendo em

sociedade: “Não o próximo, eu vos ensino, mas o amigo. Que seja o amigo, para vós, a festa

da terra e um presságio do super-homem. Eu vos ensino o amigo e seu transbordante coração.

Mas é preciso que saibas ser uma esponja quem quer ser amado por corações transbordantes”

(NIETZSCHE, 2005, p. 88). Temos aí uma equivalência com o pensamento de Voltaire, o

qual criticou a modo “seco” como se encontravam as relações interpessoais.

Por que o amigo é um presságio do “super-homem”? Este não seria qualquer um no

meio da multidão, mas o consciente e intelectualmente superior, mais responsável, descrente

nos costumes metafísico-religiosos que provocaram “a morte de Deus” (a decadência da

interpretação “moral cristã” do mundo). Efeito desse esgotamento, a sociedade ultrajou a

amizade, os amigos passaram a “receber” muito pouco: “Oh, quanta pobreza há em vós,

homens, e quanta avareza de alma! Tanto quanto dais vós ao amigo, eu ainda, algum dia,

darei ao meu inimigo, sem ficar mais pobre por isso” (2005, p. 84). Ao dizer isso, Nietzsche

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volve seu olhar para os gregos que, segundo ele, deixaram as medidas para o renovado

florescimento da amizade. Em Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais, ele diz que “a

antiguidade viveu profunda e fortemente a noção da amizade, levando-a quase para o túmulo”

(2004, p. 309), estando presente nas dimensões da vida. Também em Humano, demasiado

humano, o pensador assevera que “os gregos é que sabiam tão bem o que é um amigo. Só eles

tiveram uma discussão filosófica profunda e variada sobre a amizade” (2005, p.118).

Nietzsche avalia os nossos tempos como carentes de mais intensidade nos laços

afetivos: “Como é inseguro o terreno em que repousam as nossas alianças e amizades, como

estão próximos os frios temporais e o tempo feio, como é isolado cada ser humano!” (2005,

p.123). Por nossas palavras: o ”próximo” é, na verdade, um distante; o devotamento ao

“próximo distante” refletiria um escapamento, uma fuga de si mesmo. Não quer dizer que não

teria de haver a “caridade” necessária, mas isso ganhou tamanhas proporções que o homem

“subordinou-se” totalmente ao “distante”, esquecendo-se do verdadeiramente “próximo”, tão

necessário para o compartilhamento de experiências enriquecedoras e para o revigoramento

nas provações: ”És, para o amigo, ar puro e solidão e pão e medicamento? Há quem não pode

livrar-se de seus próprios grilhões e, ainda, assim, é um salvador para o amigo” (2005, p. 83).

Encerramos o presente capítulo com esses apontamentos sobre a amizade no decorrer

da era cristã ocidental, evidenciando o contrate entre os pontos de vista do cristianismo e das

correntes filosóficas modernas. Esperamos ter feito um resgate das principais contribuições

teórico-filosóficas relativas à amizade, sem, é claro, pretendermos esgotar ou abarcar todo o

“patrimônio da amizade” no terreno da filosofia. Se tencionamos trabalhar o tema da amizade,

quer na forma ensaística de Montaigne quer na ficção literária de Guimarães Rosa, torna-se

indispensável esse traçado histórico, que nos permitirá compreender melhor o problema da

amizade nas escrituras de ambos os autores; perceber não só como os dois textos dialogam

entre si, mas também pô-los em relação às demais perspectivas fixadas na história da

“filosofia da amizade”. Como dissemos acima, exploraremos as propriedades montaignianas

da amizade no próximo capítulo, dedicando toda a atenção ao ensaio "Da amizade".

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CAPÍTULO 2

AMIZADE SEM RESERVAS: MONTAIGNE E LA BOÉTIE

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Analisaremos o ensaio Da amizade, no qual Michel de Montaigne, tomando a si

próprio como modelo, “pinta” seu “quadro” da amizade. Nosso esforço consiste não só em

pontuar a singularidade da visão montaigniana, seus elementos sui generis, mas também em

explorar o modo como o filósofo-ensaísta dialoga com a tradição filosófica.

2.1 Pinceladas de um ceticismo moderado

Ensaísta considerado o inventor do ensaio pessoal, político, jurista e filósofo francês,

Michel de Montaigne (1533-1592) foi o maior representante renascentista do ceticismo7. Num

estilo ensaístico em que, no mais das vezes, toma a si próprio como objeto de discussão, em

atitude autobiográfica, Montaigne envereda pelos mais variados campos da filosofia moral.

Sua obra fundamental é Ensaios (1987), no qual as ideias são postas por meio de um “fluxo

de consciência” tendente tanto à análise objetiva quanto aos devaneios subjetivos. O autor se

nos apresenta num complexo de vida e prática filosófica, num processo de autodescoberta.

Não intentou construir um vasto sistema filosófico, mas suas ideias influenciaram, inclusive,

as teorias de Francis Bacon, René Descartes (“pai” da filosofia moderna) e Blaise Pascal.

Notemos que se trata de uma perspectiva bem diversa daquela delineada no universo

medievo, sob as influências do cristianismo. Nesse novo contexto histórico, o do início da

modernidade, destacam-se o declínio do sistema feudal, o progresso das cidades, a ascensão

da burguesia, o auge das navegações, o impacto das reformas religiosas, o enfraquecimento da

visão teocêntrica, dentre outras marcas. Mas o que mais nos importa é o chamado

“humanismo renascentista”, movimento intelectual que propôs o “revigoramento” de alguns

paradigmas da antiguidade clássica, dentre os quais a valorização da ciência, da cultura e da

filosofia. Como expressão dessa nova tendência, emerge o ceticismo de Montaigne.

Que sais-je?8 Dúvida, interrogação e incerteza compõem a espinha dorsal de sua

filosofia, defendendo a insuficiência da razão em construir verdades absolutas. O homem,

com todo seu conhecimento, é tido como um simples fragmento dentro do universo, estando,

pois, sujeito a infinitos efeitos naturais, que escapam à sua compreensão. Abordando o

ceticismo montaigniano, Sérgio Milliet diz que o homem, “perguntando-se a si próprio sobre

sua essência, constata um cerco de coisas insólitas. Tudo o que vê parece estranho e bizarro”

7 Há inúmeras vertentes do ceticismo filosófico e sua origem remonta à Grécia antiga, com Pirro de Élida, o qual

defendia que, como os sentidos e opiniões não podem dizer nem o verdadeiro nem o falso, o homem deve abster-

se de julgar, permanecendo “sem opinião”, indiferente, imperturbável (REALE; ANTISERI, 1990, p. 268).

8 “O que sei eu?” Tal é a máxima do ceticismo montaigniano (REALE; ANTISERI, 2004, p. 62).

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(MILLIET, 1987, p. 15). Daí a postura cética tornar-se-ia positiva, pois tenderia a retirar do

homem qualquer presunção de superioridade, levando-o a “aceitar” sua miserável condição.

Mas como um pensador cético, sob a égide do relativismo, pode ter deixado uma

exposição idealizadora da amizade? Se o homem deveria se saber imperfeito, entregue a

dúvidas e incertezas, como poderia Montaigne crer na existência de uma “amizade perfeita”?

Isso vem causando estranheza nos estudiosos de sua obra, sendo quase unânimes em enxergar

certo desajuste entre as “certezas” postuladas no ensaio “Da amizade” e o tronco da filosofia

do ensaísta. E, de fato, Montaigne confere à sua amizade com o Monsieur Etienne de La

Boétie um caráter de constância e imperturbabilidade estranho à perspectiva cética.

Para todos os efeitos, vale esclarecer que Montaigne não era defensor de um ceticismo

radical, ao contrário de que fizeram, por exemplo, os céticos pirrônicos gregos. Nos termos de

um ceticismo moderado, importaria a condição do homem singular, já que não se pode chegar

a uma resposta sobre a essência do Homem (universal): “cada um deve construir para si uma

sabedoria conforme sua própria medida. A grandeza do homem está em reconhecer e aceitar

sua própria mediocridade, em dizer sempre sim à vida, aprendendo a aceitá-la e amá-la assim

como ela é” (REALE; ANTISERI, 2004, p. 61). Por nossas palavras: só seria possível

conhecer verdadeiramente se autoconhecendo; num contínuo processo de espelhamento, o

homem deveria voltar-se para si próprio e se perguntar Que sais-je? É aí que Montaigne se

distingue como um exímio humanista: embora imerso em dúvidas, o homem deveria estar em

contínua disposição para descobrir-se, lançando-se e reconhecendo seus limites. O que o

pensador não admitia era uma posição de submissão perante o mundo; seria preciso

prevalecer sobre este, uma vez que não há nada universalmente necessário.

Contudo, não mais nos prenderemos a esse problema de domínio, sobremaneira,

filosófico, porquanto nosso propósito consiste em explorar as propriedades da amizade

montaigniana, que se nos apresenta como uma experiência do homem singular Montaigne.

2.2 Um pintar-se escrevendo

Ater-nos-emos, então, às considerações montaignianas sobre a amizade. Há que

pensar, inicialmente, no método ensaístico, que não é um tratado fincado com regras claras e

objetivas. Ensaiar é, primordialmente, registrar ideias sob a pena da experiência, da

autorreflexão; um amálgama entre visão de mundo e valores intuitivos; um “pintar-se

escrevendo”, metáfora utilizada por Montaigne no exórdio do ensaio Da Amizade. São,

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portanto, com os fios da anamnese, da meditação, da introspecção e, mormente, da vivência

que se tece a urdidura do referido ensaio, objeto de análise do presente capítulo.

Em contraste com a visão greco-latina, a esfera de convivência dos amigos ganha nova

dimensão, sobressaindo o âmbito privado. Em Montaigne, a amizade “se diz primeira e

propriamente no âmbito das relações particulares e não no domínio público” (CARSOSO,

1987, p. 160). Esse recuo confere à amizade um caráter essencialmente descompromissado

com relação a fins exteriores. Imersa em si mesma, a relação se sustenta por um bem-estar

gerado pela máxima familiaridade. E o que mais dá credibilidade a esse postulado, quimérico

à primeira vista, é o tom confessional atribuído pelo autor. O filósofo declara ter vivido uma

amizade verdadeira com Etienne de La Boétie e ousa assegurar que a relação foi tão “inteira”

que certamente não se acharia igual entre os homens de seu tempo. E diz mais: seria muito ver

um sentimento desse “uma vez a cada três séculos” (MONTAIGNE, 1987, p. 92).

Étienne de La Boétie (1530-1563) foi também um filósofo humanista francês. Seu

tímido legado filosófico gira principalmente em torno de questões políticas, como liberdade

versus opressão; consideram-no um precursor do pensamento anarquista. Sua obra mais

famosa é Discurso da Servidão Voluntária, na qual impõe um tom incisivamente radical,

defendendo a liberdade e a igualdade humanas naturais. O texto teve grande repercussão em

sua época, influenciando muitos movimentos intelectuais vindouros. No Discurso também são

feitos alguns apontamentos sobre o valor da amizade, conforme veremos mais adiante.

Quando da iminência de morte prematura, La Boétie legou, além de sua biblioteca pessoal,

todos os seus manuscritos ao amigo Montaigne, que tratou de publicá-los posteriormente.

2.3 Amizades destoantes

Montaigne, conferindo à amizade o mais alto ponto de perfeição da sociedade,

concorda com Aristóteles quando este afirma que certamente os bons legisladores se

preocupam mais com as relações de amizade do que com a justiça, afirmando a preeminência

da primeira em detrimento da segunda. E, tal como fizeram os antigos, o ensaísta destacou o

que não comporia uma amizade verdadeira, contestando a frequente utilização da palavra

“amigo” quando da ocorrência de outros sentimentos e relações. A seu ver, as afeições ditadas

pela natureza (pais e filhos), pela sociedade (relações de negócios e outros fins), pela

hospitalidade (simples cordialidade) ou pelas “exigências dos sentidos” (amor erótico e/ou

conjugal) não atingem o ideal. Montaigne discorre, por vias austeras, sobre esses tipos, para,

posteriormente, desfiar seu modelo de amizade “perfeita”.

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Primeiramente, o ensaísta ajuíza que nas relações entre pais e filhos é mais o respeito

que impera. Ancorando-se na visão aristotélica, postula que a amizade, nutrindo-se da

comunicação, não poderia estabelecer-se nesse domínio em virtude das diferenças existentes.

Nesse campo de relacionamentos, “o intercâmbio de ideias e emoções poderia por vezes

chocar os deveres recíprocos que a natureza lhes impôs, pois se todos os pensamentos íntimos

dos pais se comunicassem aos filhos, ocorreriam entre eles familiaridades inconvenientes”

(MONTAIGNE, 1987, p. 92). Acrescenta-se a isso o fato de que os filhos não podem dar

conselhos aos pais ou censurá-los, o que seria um dos encargos da amizade. E, referindo-se

aos laços fraternais, o filósofo menciona o comuníssimo costume de se chamar um amigo pelo

nome de “irmão”; inclusive Montaigne e La Boétie o faziam. Nesse caso, seria apenas uma

referência à proximidade (física) e à comunhão de bens. Dando voz própria ao ensaísta:

É a correspondência dos gostos que engendra essas verdadeiras e perfeitas amizades

e não há razão para que ela se verifique entre pai e filhos, ou entre irmãos, os quais

podem ter gostos totalmente diferentes. É meu filho, meu parente, mas isso não

impede que se trate de um indivíduo pouco sociável, um mau, um tolo. Nas

amizades que nos impõem a lei e as obrigações naturais, nossa vontade não se

exerce livremente; elas não resultam de uma escolha, e nada depende mais de nosso

livre arbítrio que a vontade e afeição (MONTAIGNE, 1987, p. 92).

Com se pode observar, Montaigne acredita que as ligações familiares são obrigações

naturais por excelência e, destarte, não resultam de uma livre escolha. Muito além do

sentimento ou de uma inclinação, a amizade dependeria do livre-arbítrio. Sem poupar rigor

nas demonstrações, o ensaísta ilustra que “houve filósofos que afetaram não levar em

consideração os laços de família. Aristipo [discípulo de Sócrates], por exemplo, a quem

falavam da afeição que devia aos filhos, saídos dele, pôs-se a cuspir dizendo que isso também

saía dele” (MONTAIGNE, 1987, p. 92). Todavia, convém salientar, Montaigne não trata com

menosprezo os vínculos familiares; ele próprio diz ter gozado o que de melhor pode haver nas

“amizades familiares”, tendo uma excelente relação com seus pais. O que se ressalta, na

verdade, é que não é próprio do vínculo familiar proporcionar uma plena relação amical.

Mais rigorosa, e não menos polêmica, é a declaração de que as mulheres são incapazes

de participar da amizade “verdadeira”: “Nossa afeição pelas mulheres, embora proveniente de

nossa escolha, não poderia comparar-se à amizade nem substituí-la”. “Impulsos”, “chama

temerária e volúvel”, ”chama agitada e versátil”, “chama febril sujeita a intermitências de

temperatura e que só nos prende por uma parte de nós” são algumas das adjetivações

conferidas a esse amor-paixão. Contrastando, “o calor da amizade estende-se a todo o nosso

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ser; é geral e igual; temperada e serena; soberanamente suave e delicada, nada tendo de áspero

nem de excessivo” (MONTAIGNE, 1987, p. 92).

Assim como os amigos estão para a philia, as mulheres estariam para o eros.

Montaigne não utiliza tais termos, mas podemos claramente depreendê-los, uma vez que, em

suas explanações, focaliza a dimensão carnal do amor para com as mulheres: “O gozo apaga-

o, porque seu objetivo é carnal, e a saciedade o extingue. A amizade, ao contrário, cresce com

o desejo que temos dela; eleva-se, desenvolve-se e se amplia na frequentação, porque é de

essência espiritual e sua prática apura a alma” (MONTAIGNE, 1987, p. 93). Quer dizer:

enquanto o vínculo “amoroso”, fundamentalmente erótico, revelaria um prazer (físico)

naturalmente oscilante, a amizade revelaria um prazer contínuo e inextinguível.

No tocante a esse “desmerecimento”, consideramo-lo como um reflexo dos entraves

historicamente erguidos por uma sociedade que preteria as mulheres, relegando-as ao segundo

plano. Subordinadas ora aos pais ora aos maridos, não participavam de certas conversas, nem

dos negócios, nem da vida público-política, etc. Também o casamento, com já é sabido,

erguia-se, volta e meia, como um contrato, forjado por escolhas e relações extrínsecas. Nesse

universo patriarcal, difundia-se a ideologia da “incapacidade” feminina para determinadas

relações. E Montaigne, ao dissertar sobre a amizade, surge como reprodutor desse

pensamento. A seu ver, as mulheres seriam inaptas a participar de conversações “necessárias à

prática dessas relações de ordem tão elevada que a amizade cria; a alma delas parece carecer

do vigor indispensável para sustentar o abraço apertado desse sentimento de duração ilimitada

e que tão fortemente nos une”. Defende, ainda, que na relação conjugal se avultam muitos

outros objetivos, encargos e incidentes, o que bastaria para “perturbar o curso da mais viva

afeição e romper o fio a que ela se prende” (MONTAIGNE, 1987, p. 93).

Não nos cabe, pois, travar aqui uma reflexão depreciativa em face desse

posicionamento. Montaigne, inclusive, revela-se um tanto à frente de sua época: “se se

pudesse formar com uma mulher, livre e voluntariamente, semelhante ligação, em que não

apenas a alma provasse plena satisfação, mas também o corpo encontrasse seu prazer, em que

cada qual assim se entregasse por inteiro, a amizade seria mais perfeita e total”. O que, é

claro, não deixa de ser um modelo excludente, pois, encerrando-se num efeito hipotético, faz

valer o discurso da impossibilidade feminina de gozar uma amizade “verdadeira”: “mas não

há exemplo de mulher que a tanto tenha chegado e, de comum acordo, todas as escolas

filosóficas da antiguidade concluíram ser isso impossível” (MONTAIGNE, 1987, p. 93).

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Notemos, no excerto acima, que o autor menciona a ligação tanto “espiritual” quanto

“carnal” como possibilitadora de uma amizade ainda ”mais perfeita e total”. Ora, tal

declaração ressoa estranhamente, uma vez que o ensaísta não admite uma amizade “ideal”

envolvendo a mulher. Além do mais, logo nas linhas posteriores, enceta subitamente uma

reflexão sobre a pederastia. Surge, pois, a indagação: “Que significa, afinal, esse amor de

amizade? Por que não se ama de amor nem um adolescente feio nem um belo ancião?”

(MONTAIGNE, 1987, p. 93). Enquanto o leitor espera uma discussão sobre a não

necessidade da união carnal para uma plena relação amical, desde que centrada na

identificação e nas escolhas propriamente ditas, Montaigne principia um longo parágrafo

sobre o homoerotismo grego. Cardoso considera que, nesse ponto, “o texto parece enveredar-

se de forma desvencilhada pelos caminhos do seu bel-prazer. Como entender tudo isso? Na

verdade, Montaigne não se descuida de seu plano” (CARDOSO, 1987, p. 181).

Inicialmente, reprova-se tal “licenciosidade”: “esse delírio inspirado pelo filho

[Cupido, equivalente a Eros] de Vênus [...] era simplesmente provocado pela beleza das

formas exteriores e uma falsa semelhança com o ato do amor”. Mas a censura parece se dar

tão-somente em virtude da falta de maturidade espiritual do amado: “não era pelo espírito que

o adolescente, objeto dessa paixão, podia inspirá-lo; não estava em condições de mostrá-lo,

porque jovem demais e em vias de desenvolvimento”. Prossegue discorrendo sobre a

importância das qualidades morais em detrimento do prazer e da beleza física: “Era, então,

pelas graças do espírito e a elevação da alma, compensando a beleza física já gasta, que o

amante procurava ser aceito por aquele a quem propunha uma espécie de associação mental

na esperança de acordo mais sério e duradouro” (MONTAIGNE, 1987, p. 93). E, nas palavras

que completam o raciocínio, já não fica tão evidente a reprovação à pederastia:

Desta ligação moral e física, e da afeição dela decorrente, elemento essencial e

confessável, diziam eles que resultavam consequências muito úteis tanto para os

interessados como para o país. Que contribuíam, antes de mais nada, para o

fortalecimento da nação que aceitava o costume, e se constituía em principal defesa

da justiça e da liberdade, como o testemunhavam os salutares amores de Harmódio e

Aristogíton9. Daí, tacharem-na de divina, não tendo sido hostilizada senão pelos

tiranos e a covardia do povo. Todavia, pode-se alegar em favor da Academia o fato

de que tais amores acabavam por se tornar amizades, o que se adapta bastante bem à

definição que os estoicos dão do amor: “O amor é o desejo de alcançar a amizade de

uma pessoa que nos atrai pela beleza” (MONTAIGNE, 1987, p. 94).

9 Famosa relação pederástica entre dois soldados gregos: Aristogíton (erastes) e Harmódio (eromenos). Werner

Jaeger os menciona na Paideia: “Segundo a lenda histórica, a democracia ateniense foi fundada por uma dupla

de tiranidas, unidos pelos eros para a vida e para a morte. Talvez tenha sido o culto que sempre se prestou em

Atenas a estes dois amigos o que sancionou igualmente o eros. O orador [Pausânias] esforça-se por provar que é

o espírito ideal que inspira nestas amizades aquilo que nos hábitos atenienses e espartanos as distingue da

satisfação de apetites meramente sensuais e as torna aceitáveis para a opinião pública” (JAEGER, 1995, p. 728).

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Ora, ao discorrer sobre essa prática comum entre os gregos, acaba por valorizar a fase

em que se dá a elevação espiritual do eromenos (amado) sob a influência das qualidades

morais do erastes (amante). Apesar de prenunciar uma criteriosa admoestação, progride

elogiando o processo de conquista da maturidade espiritual, o que, a seu ver, deveria se

sobrepor à beleza física (contrariando a visão grega, que supervalorizava tal aspecto); esta não

deveria passar de acidente. Cardoso pondera que, “recorrendo à pederastia, Montaigne a busca

não nas suas manifestações, mas nas suas próprias condições de possibilidade” (CARDOSO,

1987, p. 182). Quer dizer: não está louvando a ação pederástica, suas implicações todas, mas

destacando a disposição dos amantes para um estado de espírito plenamente desenvolvido, no

qual se descortinam as virtudes. Tanto é que, em seguida, o ensaísta ressalta: “Volto à minha

tese que diz respeito a uma amizade mais natural e estimável: a amizade atinge sua irradiação

total na maturidade da idade e do espírito” (MONTAIGNE, 1987, p. 94).

2.4 Matizes perfeitos: amizade sem reservas

No ponto seguinte, o filósofo dedica-se a apresentar sua concepção de amizade,

tomando a si próprio como modelo. Acenando para suas contestações anteriores, assevera que

muitas amizades não passam de ligações familiares, travadas pela oportunidade e pelo

interesse e contribuem apenas para um vago entretenimento. Ao passo que, na amizade

proposta por ele, e vivenciada com La Boétie, “as almas entrosam-se e se confundem numa

única alma, tão unidas uma à outra que não se distinguem, não se lhes percebendo sequer a

linha de demarcação” (MONTAIGNE, 1987, p. 94). Nota-se uma sensação de profundo

maravilhamento, de modo que o “motor” da amizade consiste, enigmaticamente, numa “força

inexplicável” que nem o próprio Montaigne conseguia definir: “Se insistirem para que eu diga

por que o amava, sinto que o não saberia expressar senão respondendo: porque era ele; porque

era eu” (1987, p. 94). Ora, se ele mesmo conseguia esclarecer a causa desse vínculo, como

podemos compreender ou mesmo explicar tudo isso? Cardoso vem nos advertir: “Impossível,

na verdade, explicar sua experiência da amizade, dar-lhe motivos e razões, podemos apenas

‘clarificar’ essa experiência, localizá-la e pontuá-la” (CARDOSO, 1987, p. 185).

Com efeito, trata-se de uma amizade bastante afetuosa, em que se exalta a

proximidade da relação, a intimidade mesma: “Em nosso primeiro encontro casual em

Bordeaux, por ocasião de uma festa pública em numerosa companhia, sentimo-nos tão

atraídos um pelo outro, já tão próximos, já tão íntimos que desde então não se viram outros

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tão íntimos quanto nós” (MONTAIGNE, 1987, p. 87). Por mais que Montaigne se respalde

nos filósofos da antiguidade clássica, não encontramos, seja na ética nicomaquea/aristotélica

seja nas demais concepções, referência à tamanha intimidade. Tal noção afirma-se mais como

uma característica desse novo modelo: “nascia em nós uma afeição em verdade fora de

proporções com o que nos era relatado” (MONTAIGNE, 1987, p. 94).

Montaigne avança confessando que não havia tempo a perder separados um do outro e

não podiam se espelhar em amizades “banais e moles que não necessariamente precedidas de

frequentação mais ou menos prolongada”. Envolve tanta intimidade no convívio, na

“frequentação”, que desemboca num entrelaçamento das vontades: “a ela [amizade] fomos

levados por não sei que atração total, a qual em se assenhoreando de nossas vontades as

impeliu a um impulso simultâneo e irresistível de se perderem uma na outra”. Montaigne

justifica a utilização da forma verbal “perderem-se” dizendo que “essa associação de nossas

almas se efetuou sem reserva de espécie alguma; nada tínhamos mais que nos pertencesse

pessoalmente, que fosse dele ou meu” (MONTAIGNE, 1987, p. 94).

Mas, afinal, em que medida se daria essa intimidade sem reservas, essa harmonização

plena? Ora, não buscamos aferir as considerações montaignianas por aquilo que “poderia ser”,

alinhavando uma interpretação psicanaliticamente pós-moderna. Não procuramos vestígios de

homossexualismo, conforme o fez alguns críticos, como Francesco Alberoni: “Lendo essas

páginas, tem-se a impressão de um grande enamoramento. É típico do amor querer sempre

mais a mesma pessoa, de aspirar a uma fusão total que lhe escapa. Montaigne é fascinado

somente pelas formas de amizade-amor homossexual dos gregos” (ALBERONI,1984, p. 74,

tradução nossa)10

. Mesmo que fosse possível esse tipo análise, optamos por não “medir de

fora”, corroborando a apreciação de Sérgio Cardoso: “Se não os parece ilegítimo trafegar por

este livro no veículo desenvolto de nossa recente psicologia, não podemos esquecer que o

autor servia-se do comboio mais pesado – por muitos irremediavelmente abandonado e

desprezado – da metafísica e da ética” (CARDOSO, 1987, p. 166).

Não nos convém mensurar o grau da intimidade em pauta, inserindo-o nas categorias

de “homoerotismo”, de “homoafetividade” ou de “homossexualismo”, uma vez que a amizade

montaigniana escapa a cada uma delas. Tal relação não é “homoerótica” porque não há

referência a um “amor-paixão”, a um desejo “físico”, tipicamente sensual. Não podemos usar

a hodierna denominação de ligação “homoafetiva” porque simplificada demais, designando

qualquer demonstração de afeto entre quaisquer pessoas do mesmo sexo (inclusive entre

10

ALBERONI, Francesco. La amicizia. Milano: Garzanti, 1984

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irmãos ou entre pais e filhos). Nem tampouco lançaremos mão do termo “homossexualismo”

(que só surgiu no século XIX), usado com referência a uma “condição” de atração erótica, ou

sexual, por pessoas do mesmo sexo. Por ora, desgarremos do estatuto freudiano.

Com muita cautela, podemos até conferir à amizade montaigniana “alguns traços” de

“erotismo” (sem todas as chancelas da homoerotização), mas no sentido originalmente grego

da palavra: “O eros nasce do anseio metafísico do Homem por uma totalidade de Ser,

inacessível para sempre à natureza do indivíduo. O amor por outro ser humano é aqui

focalizado à luz do processo de aperfeiçoamento do próprio ‘eu’. Esta perfeição só é atingível

na relação com um ‘tu’” (JAEGER, 1995, p. 732). Apoiamo-nos na perspectiva de Cardoso

que, mesmo rechaçando terminologias pós-modernas, percebe pinceladas de “erotização” na

tela montaigniana: “Os interesses se combinam não discretamente, mas sintetizados e

unificados, totalizados como desejo, o que lhes dá no plano empírico e imaginativo algum

parentesco como o que a amizade faz num registro puro e superior” (CARDOSO, 1987, p.

182). Não é necessariamente o (desejo de) contato físico que Sérgio Cardoso quer focalizar,

mas a presença proporcionadora de prazer, de bem-estar, numa espécie de ascensão espiritual.

Atentemos, pois, para o sentido de “absoluta identificação”, de complementaridade e,

por que não dizer, de recíproca contemplação. Interessa, até mesmo, perceber e ressaltar o

forte contraste entre teor do discurso montaigniano e os valores do humanismo cristão “em

queda” naquela época. Alberoni alfineta que nós podemos tentar amar o nosso inimigo, mas,

no máximo, poderemos fazer ações ao seu favor: “Posso expulsar todos os pensamentos maus

que me venham à mente; oferecer-lhe a outra face, dar-lhe todo o meu dinheiro. Mas não

poderei suscitar em mim ternura e simpatia, sincera amizade” (ALBERONI, 1984, p. 44-45,

tradução nossa)11

. Assim, o ensaio “Da amizade” pode ser lido como uma espécie de atentado

ao mandamento do “amor do próximo” (que é um distante!). Eis, em Montaigne, o próximo

dos próximos, exaltado, comtemplado, “erotizado”, verdadeiramente desejado: o amigo.

Ademais, reconhecemos que algumas ideias montaignianas coadunam-se às

concepções dos filósofos antigos. Esse novo modelo tem inspiração greco-latina,

principalmente no que se refere à vivência da virtude. O próprio amigo La Boétie, mesmo que

sendo num texto de cunho político (Discurso da Servidão Voluntária) e sem se referir a sua

amizade com Montaigne, reconhece a importância da disposição para a virtude na amizade,

dizendo que ela só acontece entre pessoas de bem: “o que torna um amigo seguro do outro é o

conhecimento que tem de sua integridade; as garantias que tem são sua bondade natural, a fé e

11

ALBERONI, Francesco. La amicizia. Milano: Garzanti, 1984.

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a constância”. Tanto para La Boétie quanto para Montaigne a amizade não pode se estabelecer

entre sujeitos que não semeiam a benevolência, pois se assim o for “eles não se entreamam,

mas se entretêm” (LA BOÉTIE, 1999, p. 36). Quer dizer: baseia-se “também” na bondade, na

prudência, na justiça, enfim, no cultivo dos princípios éticos em geral.

Todavia, é possível dizer que, para Montaigne, a amizade não depende absolutamente

do cultivo da virtude; o que a impulsiona não são as obrigações externas ou a busca pela

excelência moral. É de cunho peculiarmente montaigniano considerar que a amizade não

esteja subordinada a qualquer outra coisa, porquanto seja fundamento “ela mesma”.

Montaigne, até mesmo, enaltece a seguinte história:

Quando após a condenação de Tibério Graco, em presença dos cônsules romanos

que intentavam processo contra os que haviam acompanhado, perguntou Lélio a

Caio Blóssio, o mais íntimo amigo do condenado, até que ponto teria acedido às

solicitações de Graco, respondeu-lhe Blóssio: – “Até o fim.” – “Como até o fim? E

se houvessem mandado incendiar os templos?” – “Jamais o houvera feito.” – Mas se

o fizesse?” – “Eu obedeceria.” [...] Graco e ele eram amigos e mais amigos do que

cidadãos, e mais do que amigos ou inimigos de seu país. Sua ambição, seus projetos

subversivos vinham depois da amizade; tinham-se dado inteiramente um ao outro,

suas vontades marchavam lado a lado (MONTAIGNE, 1987, p. 94, grifo nosso).

Sendo gigantesca a comunhão das vontades, a amizade de Graco e Blóssio

ultrapassava as medidas de seus atos (não) virtuosos. Verificamos também nesse ponto um

significativo desalinhamento em relação à baliza greco-latina, apesar de Montaigne ter se

apoiado nas concepções dos antigos, sobretudo na de Aristóteles. A amizade perfeita continua

sendo uma amizade virtuosa, mas não há mais uma espécie de subordinação, uma absoluta

dependência da virtude. Ousamos dizer, em termos lógico-filosóficos, que os amigos não são

amigos porque são virtuosos e nem são virtuosos por serem amigos; eles simplesmente são

amigos e são também virtuosos. Há, ainda, total disposição para a virtude e a busca do bem,

mas isso já não é o fator determinante da amizade: “Mais amigos do que cidadãos!”.

Não fosse o caráter testemunhal, talvez a tessitura montaigniana relativa à amizade

tivesse sido tachada de utópica e não tivesse recebido a atenção de tantos leitores, estudiosos

ou “descompromissados”. Em alguns pontos, o estado de perfeição conferido à relação amical

soa, de fato, meio destoante da realidade e seus contratempos. Senão, vejamos: “Nossas almas

caminharam tão unidas, tomadas uma pela outra de tão ardente afeição que penetra e lê no

fundo de nós mesmos, que não somente eu conhecia a sua como a minha, mas teria, nas

questões de meu interesse pessoal, mais confianças nele do que me mim mesmo”. Ora, como

pensar numa “inteira confiança” num mundo marcado pelas suspeições e conflitos? Como

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pensar numa completa identificação em meio aos transtornos e aborrecimentos das relações

sociais? Mas devemos admitir que são justamente essas pinceladas de plenitude, de excelso,

que conferem singularidade à tela da amizade montaigniana.

Nesse entrelaçamento de vontades, não haveria nem mesmo a noção de serviços e

favores, pois ninguém seria grato por um serviço prestado em favor de si mesmo. Montaigne

está de acordo com algumas das linhas aristotélicas quando diz que a união dos amigos

atingiria tamanho grau de perfeição que os levaria a afastar a ideia de se deverem alguma

coisa; consequentemente, evitariam o uso de termos que indicam divisão e contraste, como

“obrigação”, “reconhecimento”, “pedido”, “agradecimento”, etc. Nas palavras do ensaísta:

“Em tudo lhes sendo comum, vontade, pensamento, maneira de ver, bens, mulheres, filhos,

honra e até a vida, e em procurando ser apenas uma alma em dois corpos, na expressão muito

certa de Aristóteles, nada se podem pedir ou dar” (MONTAIGNE, 1987, p. 95).

Aliás, se se pudesse dar algo, a satisfação estaria no favorecedor e não no favorecido.

Invertem-se surpreendentemente os papéis: “Colocando ambos, acima de tudo, a felicidade de

obsequiar o outro, quem dá a seu amigo a oportunidade de fazê-lo é quem se mostra mais

generoso, pois lhe outorga a satisfação de realizar o que mais lhe apraz”. Com o intuito de

exemplificar tal inversão, altamente idealista, o ensaísta conta, com ares de humor, que,

“quando o filósofo Diógenes precisava de dinheiro dizia que ia reclamá-lo aos amigos, e não

que lhes ia pedir”. Narra, ainda, um espirituoso episódio sobre o corintiano Eudâmidas que, às

vésperas de morrer, assim redigiu seu testamento: “Lego a Areteu o cuidado de tomar conta

de minha mãe e suprir-lhe as necessidades durante a velhice; a Charixênio a obrigação de

desposar minha filha e constituir-lhe um dote tão elevado quanto possível. No caso em que

um deles venha a morrer, lego sua parte ao outro” (MONTAIGNE, 1987, p. 95). Diz que,

apesar da zombaria, os amigos aceitaram e cumpriram alegremente o pedido.

Compreendemos que, por esse viés, a mais penosa das tarefas, se feita mercê do

amigo, seria cumprida com toda a presteza, considerando o deleite provocado no próprio

benfeitor; e, paradoxalmente, o favorecido não se sentiria nem um pouco lisonjeado ou

agradecido. Ao por em relevo o bem-estar gerado naquele que “concede”, Montaigne acaba

por valorizar a exaltação do outro, num estado de maravilhamento. Ora, rechaçando o caráter

de servilismo, comprazer-se em “obsequiar acima de tudo” não é senão contentar-se em

promover, sob as mais diversas formas, o enaltecimento do amigo.

A noção montaigniana de amizade também não comporta a divisibilidade, isto é, ter

mais do que um amigo. Não haveria como se entregar completamente a dois, a três ou a mais

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amigos, e apenas as amizades “comuns” admitem essa possibilidade: “pode-se apreciar a

beleza num certo amigo, e noutro o bom gênio. Num a liberalidade, noutro o modo por que se

conduz como pai, e em outro ainda a sua afeição fraternal, etc.”. Já a amizade ideal não

suporta subdivisão: “Se temos dois amigos e ambos ao mesmo tempo pedem socorro, a quem

acudiremos? Se solicitam favores antagônicos, qual deles atenderemos? Se um nos exige

silêncio acerca de alguma coisa que interessa ao outro, que faremos?”. Tal perspectiva

corrobora as concepções dos filósofos antigos, como a de Aristóteles e a de Plutarco. Se bem

que Montaigne é muito mais rigoroso em sua restrição, reivindicando a condição de serem

apenas dois os amigos. O ensaísta objeta que “já é grande milagre dobrar-se assim. Os que

falam em triplicar-se não percebem a grandeza” (MONTAIGNE, 1987, p. 95), privilegiando a

total disposição para a relação e, por conseguinte, a desobrigação quanto a fins outros.

Montaigne enfatiza a dissenção existente entre sua proposta de amizade e a aquela

que, conservando-se por um único aspecto, permite uma miscelânea de relacionamentos.

Nesta não influem as demais qualidades do outro, como a boa conduta, a religião, os dons,

etc., pois só importa determinado atributo, que é o ponto de interesse. Uma vez comprometida

a solidez desse ponto, desfaz-se o laço de amizade, não gerando forte pesar, pois há uma série

de outros “amigos”. Nesse momento, o ensaísta revela: “A familiaridade da mesa associo a

pessoa agradável, não o sábio; para o leito procuro a beleza e não a bondade; para conversar o

homem competente, ainda que careça de nobreza de alma. E em tudo penso da mesma

maneira” (MONTAIGNE, 1987, p. 96). Tal fragmento nos remete à célebre declaração de

Lord Harry, personagem de O Retrato de Dorian Gray, romance de Oscar Wilde: “Eu

diferencio muito bem as pessoas. Escolho meus amigos pela boa aparência, meus conhecidos

pelo caráter e meus inimigos pela inteligência” (WILDE, 2012, p. 19). Não dispensaremos

maior atenção ao clássico wildiano, mas é pertinente destacar a correlação entre as assertivas

no que tange ao cultivo de amizades ditas comuns, erguidas sob a base de qualidades isoladas.

Vê-se que as referidas relações configuram-se como “rasas” e, de certo modo, unilaterais.

Encaminhando-se para as linhas finais, o filósofo reitera o princípio da intimidade na

relação amical, para o qual convergem todas as demais propriedades. De fato, a tônica das

considerações montaignianas é a condição de máxima “estreiteza”: “Se encontramos

facilmente homens aptos a travar conosco relações superficiais, o mesmo não se verifica

quando procuramos uma intimidade sem reservas. É preciso então que tudo seja límpido e

ofereça segurança total”. Notemos que a linguagem montaigniana não admite termos

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“moderados”, como que “sóbrios”; ao contrário, desenham-se expressões com muita

intensidade, com teor de radicalização: “sem reservas”, “límpido”, “segurança total”.

Sabendo que sua exposição ecoa um tanto insólita, Montaigne fala da raridade em se

encontrar uma amizade assim, tal como a vivida com La Boétie e, posteriormente, descrita.

Ousa até mesmo sobrepô-la aos postulados greco-latinos: “As próprias obras que a esse

respeito nos legou a antiguidade parecem-me insossas se comparadas com os sentimentos que

experimento e cujos efeitos ultrapassam até os preceitos dos filósofos” (MONTAIGNE, 1987,

p. 96). A esse respeito, Sérgio Cardoso delineia que, em Montaigne, “a grandeza daquelas

amizades se expande num elemento mais vasto, desafia a moderação, vai ao superlativo. A

estreita proximidade das almas que parecia ser o núcleo das grandes amizades aqui se

ultrapassa; chega à fusão e assim toca o sublime” (CARDOSO, 1987, p. 163).

2.5 Descoramento: amizade ceifada

O ensaísta finaliza o ensaio "Da amizade" discorrendo sobre o desgosto provocado

pela morte de La Boétie. Nos arranjos finais, investe numa linguagem figurativa, explorando

termos que conotam dor/pesar e citando inúmeros versos de escritores antigos. Ao demarcar

sua vida em dois momentos (um, com o amigo, o outro, sem o amigo), o ensaísta compara

todo o tempo sem a companhia do amado a uma “fumaça” e a uma “noite escura e

aborrecida”, apesar das vantagens de que despunha e da tranquilidade de espírito. O dia da

perda é definido como a data mais infeliz, o início de um “arrastar-se melancolicamente”.

Montaigne afirma que não se sentia nem um pouco envergonhado por sofrer de forma tão

prolongada e afiança que certamente, em caso semelhante, o outro também sofreria.

Incompletude é a palavra-chave: “Os próprios prazeres que se me oferecem, em vez de

me consolar ampliam a tristeza que tenho da perda, pois éramos de metade em tudo e parece,

hoje, que lhe sonego a sua parte”. Sem temer o lugar-comum, persiste na tese das partes que

se completavam e foram separadas: “Já me acostumara tão bem a ser sempre dois, que me

parece não ser mais senão meio: ‘como uma morte prematura roubou-me a melhor parte de

minha alma, que fazer com a outra? Um só e mesmo dia causou a perda de ambas’ [citando

Horácio]”. Conclui assegurando que, a despeito da separação, o amor (de amizade)

permanecia vivo: “Ah, ao menos amar-te-ei sempre!” (MONTAIGNE, 1987, p. 96).

Vê-se que a questão da amizade, aqui, não é fruto de um simples propósito de refletir

sobre um tema clássico, como fizeram tantos outros pensadores. Por esse viés, Sérgio Cardoso

delineia que Montaigne “pensa sua experiência da amizade e pensa nela. Decifra-a e decifra-

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se, traçando, como diz, em carne viva (auf vif) seu autorretrato”. Assegura, ainda, que não só

a dissertação sobre a amizade, mas todos os ensaios de Montaigne têm sua origem nesse luto:

“Perda e busca tramarão essa vida extravagante que se recusa a aderir a si mesma, que não

descansa mais numa identidade, e por isso se ensaia sempre, na indeterminação” (CARDOSO,

1987, p. 160-161). Os traçados sobre a amizade surgem, portanto, de um doloroso labor

ensaístico; brota da experiência da perda, da morte do outro. E é, justamente, esse pano de

fundo que confere originalidade e intensidade ao modelo montaigniano; que faz romper com

muitos dos preceitos da tradição filosófica, relegando-os o status de “insossos”; que dá

consistência e ares de vida ao relato, ainda que por vias melancólicas.

Portanto, ao examinar o ensaio “Da Amizade” foi possível perceber, afora os

predicados herdados da filosofia greco-latina, novos e importantes sentidos para o signo

“amizade”, os quais serão retomados quando da análise de Grande Sertão: Veredas. Convém,

pois, ressaltá-los: a primazia do domínio particular, não permitindo que os meandros da vida

pública se sobreponham à relação amical; corroborando o item anterior, considera-se que a

amizade, nutrindo-se de si mesma, não esteja absolutamente dependente do cultivo da virtude;

a relação é sustentada pelo gozo da proximidade, da intimidade mesma (esse é o eixo da

amizade montaigniana); a sensação de profundo encantamento, dispondo-se para um contínuo

“obsequiar”; por último, a radicalização da limitação do número de amigos (dois, apenas),

podendo os demais participarem de uma amizade “comum”, “menor”. Tais são, a nosso ver,

os atributos sui generis, que concorrem para uma arquitetura montaigniana da amizade.

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CAPÍTULO 3

AMIZADE DE AMOR: RIOBALDO E DIADORIM

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Indo ao ponto crucial de nossa investigação, analisaremos a constituição da amizade

entre os personagens Riobaldo e Reinaldo/Diadorim no romance em estudo, demonstrando

possíveis pontos de convergência em relação à concepção de amizade no pensamento do

filósofo francês Michel de Montaigne.

3.1 Grande Sertão: Veredas ou elogio à amizade

Interessa-nos destacar, antes de tudo, que estamos diante de um processo de

composição bastante diverso daquele inerente ao modelo ensaístico. Embora a “matéria-

prima”, em ambas as tessituras, sejam as palavras, a linguagem e os recursos estéticos são,

sobremaneira, distintos. Por mais que Montaigne também se oriente pelos caminhos da

subjetividade e da introspecção, além das vias propriamente filosóficas e objetivas, o

horizonte literário, que ora se presta à nossa análise, é, indubitavelmente, mais “aberto” e

mais carregado de figurações, de polissemias, de enigmas, de poeticidades, etc. Nosso olhar,

aqui, não pode desconsiderar os elementos arranjados nas malhas da ficção literária.

Nessa conformidade, debruçar-nos-emos sobre um clássico contemporâneo, sobre uma

narrativa que transplantou o “sertão das gerais” (sul da Bahia, norte de Minas Gerais, norte e

nordeste de Goiás) para os rincões da literatura universal. Em Grande sertão: veredas, o

narrador-protagonista Riobaldo, também cognominado Tatarana e Urutu-Branco, já no regaço

da velhice, autobiografa suas andanças e experiências sertão adentro; exibe suas peripécias

como jagunço e, posteriormente, como chefe de seu bando; expõe suas dúvidas e

questionamentos quanto à operância de Deus e quanto à existência ontológica do diabo;

descreve sobre o ambivalente relacionamento afetivo para com seu companheiro Diadorim, “o

nome perpetual” (ROSA, 2001, p. 387); narra seu amor por Otacília, com quem se casou, no

final das contas; apresenta o sertão com tudo o que há de imanente e transcendente, de real e

simbólico, de abjeto e sublime, de (in)compreensível e (in)decifrável.

Todavia, muito mais do que simplesmente “escriturar” sobre seu passado, Riobaldo

ambiciona compreender o sentido da existência, ou melhor, quer por em relevo a condição

humana, suas contradições, seus limites e potencialidades. Concorre para isso, seguramente, a

revolução rosiana da linguagem: através dos recursos estéticos (semânticos, sintáticos,

estilísticos, etc.), o narrador pode compartilhar tanto suas angústias quanto seus regozijos.

Dessa maneira, podemos dizer, inclusive, que, assim como Montaigne, Riobaldo ceticamente

investe num jogo de autodescoberta, de autoconfronto, na tentativa de captar algum sentido

em meio à “ilogicidade” da existência, dos sentimentos e das relações humanas.

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É nesse processo de captação de sentido que reside a importância da participação do

leitor e da construção de múltiplas leituras. Como estratégia do romancista, a narrativa nos

convida a tentar preencher os hiatos com os quais podemos nos deparar. Pensando essa

questão, tomamos a sexta assertiva de Ítalo Calvino, em Por que ler os clássicos: “um

clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer” (CALVINO,

2007, p. 11). Devemos notar que em Grande sertão: veredas, especificamente, isso se dá de

maneira ainda mais manifesta: Riobaldo, propositalmente, oferece-nos um quadro repleto de

perspectivas e possibilidades; conclama-nos a cooperar ativamente com os vestígios

apresentados; elege-nos contínuos construtores de um mosaico, o da (re)significação.

Posto isso, verificamos que muito se tem dito e discutido sobre a “paixão” existente

entre os personagens Riobaldo e Reinaldo/Diadorim, mulher travestida de jagunço. Não são

poucas as abordagens que, mesmo evidenciando o caráter antagônico, focalizam um “amor

transgressor”, uma “paixão intensa e perturbadora”, um desejo, sobretudo, físico-sensual. É

bem verdade que o sentimento existente entre eles alcançava o nível do desejo físico. Mas,

dada a total impossibilidade de “concretização” de um eros, por que não problematizar a

relação de amizade estabelecida? É o que propomos e, para tanto, partimos do seguinte

princípio: não obstante o desejo físico em voga, o qual nem o próprio Riobaldo compreendia,

o vínculo instaurado entre eles, imersos no regime de jagunços, é um vínculo de amizade.

Mesmo sabendo que Diadorim era, na verdade, Maria Deodorina da Fé Bettancourt

Marins, revelação que só ocorre – para o leitor – ao final do romance, Riobaldo quer mostrar

o que ele próprio sentiu e viveu durante todo o tempo em que estiveram juntos; quer permitir

ao leitor uma “experimentação” daquele relacionamento. O narrador-protagonista propõe que

revisitemos as duas faces de seu amor. Isto é: mesmo não podendo se entregar efetivamente

aos poderes de Eros, ele pôde gozar um gigantesco companheirismo, de uma amizade

verdadeiramente sem reservas, encantadora e indivisível. Daí o Grande sertão: veredas se nos

revela como uma primorosa ode, como um hino de elogio à amizade.

Buscando compreender melhor esse relacionamento, fomos levados a moldar uma

relação interdisciplinar entre os discursos literário e filosófico. Perquirindo as principais

contribuições teórico-filosóficas sobre o tema da amizade, transmitidas no decorrer da história

do pensamento ocidental, percebemos uma estreita correspondência entre as propriedades da

amizade “riobaldiana” e as da amizade montaigniana, como veremos adiante.

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3.2 Amizade “na lei dela”: amigos e mais amigos do que jagunços

“Conforme pensei em Diadorim. Só pensava era nele. Um joão-de-barro cantou. Eu

queria morrer pensando em meu amigo Diadorim, mano-oh-mão, que estava na Serra do Pau-

d’Arco, quase na divisa baiana, com nossa outra metade dos sócandelários...” (ROSA, 2001,

p. 37). Eis a primeira menção ao companheiro Reinaldo/Diadorim. A partir daí, o leitor se

deparará com a confissão de um afeto e de uma cumplicidade surpreendentes: “Com meu

amigo Diadorim me abraçava, sentimento meu iavoava reto para ele... Ai, arre, mas: que esta

minha boca não tem ordem nenhuma” (ROSA, 2001, p. 37). Que ser humano é esse capaz de

provocar um sentimento sublime e ignominioso a um só tempo? Como é possível um homem

tão forte e corajoso ser também tão afetuoso e delicado? Como poderia um bravo jagunço

ensinar a outro a apreciar as belezas “sem dono” do sertão? Ora, jagunço não é de ficar

delongando conversas e estreitando amizades. Nisso diferenciavam-se dos demais:

Eu estava todo o tempo quase com Diadorim. Diadorim e eu, nós dois. A gente dava

passeios. Com assim, a gente se diferenciava dos outros – porque jagunço não é

muito de conversa continuada nem de amizades estreitas: a bem eles se misturam e

desmisturam, de acaso, mas cada um é feito um por si. De nós dois juntos ninguém

nada não falava. Tinham a boa prudência. Dissesse um, caçoasse, digo – pois podia

morrer. Se acostumavam a ver a gente permanente. Que nem mais maldavam

(ROSA, 2001, p. 44).

Reconhecemos, primeiramente, que, tal como entre Montaigne e La Boétie, o grande

móbil da amizade entre Riobaldo e Diadorim é a intimidade. Conforme vimos, já no primeiro

encontro entre os referidos pensadores houve uma extraordinária simpatia, relevou-se

tamanha afinidade, que não poderia desembocar senão num posterior transbordamento de

intimidades: “sentimo-nos tão atraídos um pelo outro, já tão próximos, já tão íntimos que

desde então não se viram outros tão íntimos quanto nós” (MONTAIGNE, 1987, p. 87).

Também no primeiro encontro entre os heróis de Grande sertão: veredas, quando da travessia

do rio de-Janeiro, houve um imenso prazer de companhia, como nunca por ninguém Riobaldo

havia sentido: “Porque ele falava sem mudança, nem intenção, sem sobejo de esforço, fazia de

conversar uma conversinha adulta e antiga. Fui recebendo em mim um desejo de que ele não

fosse mais embora, mas ficasse, sobre as horas” (ROSA, 2001, p. 119). Deflagra-se um forte

encantamento pela singularidade daquele menino, pela sua coragem, simplicidade, feições e

aptidões, pois “tudo nele era segurança em si” (ROSA, 2001, p. 120).

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O tempo passou, muitas coisas mudaram, mas o destino se encarregou de aproximá-los

novamente. Riobaldo havia fugido do grupo de Zé Bebelo, de quem era uma espécie de

secretário, e estava desorientado, sem rumos. Sentado à mesa, conversando com o pai de uma

mulher com a qual dormira na noite anterior, avista um homem tropeiro entrando na soleira da

porta. Riobaldo logo sentiu um “aceleramento” no coração, um “estremecer de alegria” por

estar revendo aquele que marcara indelevelmente sua história, isto é, o menino com quem

atravessara o porto do de-Janeiro: “O Menino me deu a mão: e o que mão a mão diz é o curto;

às vezes pode ser o mais adivinhado e conteúdo; isto também. E ele como sorriu. Digo ao

senhor: até hoje para mim está sorrindo. Digo” (ROSA, 2001, p. 154). Riobaldo aceita seguir

o bando do qual o “Menino” fazia parte e entra, de uma vez por todas, para a jagunçagem.

Doravante acontecerá um progressivo estreitamento de laços, uma constante intensificação

dos afetos, que já existiam desde o primeiro encontro: “‘Desde aquele dia é que somos

amigos’. Que era, eu confirmei” (ROSA, 2001, p. 171). A despeito de não entender a

absurdidade daquela aproximação, a convivência foi possibilitando a formação da confiança,

a confluência de vontades, ideias e aspirações: “Depois, conversamos de coisas miúdas sem

valor alheio, e eu tive uma influência para contar artes de minha vida, falar a esmo leve, me

abrir em amáveis, bom. Tudo me comprazia por diante” (ROSA, 2001, p. 160).

Ergue-se, pois, uma amizade que visa precipuamente ao bem-estar “dela mesma”,

descompromissada com relação a fins exteriores. Nesse ponto, Riobaldo e Montaigne também

estão de acordo: em contraste com o viés greco-latino e com o humanismo cristão, a

convivência dos amigos concentra-se, acima de tudo, no domínio particular, indo de encontro

à esfera “pública”. Apesar de Riobaldo e Diadorim integrarem um grupo de jagunços com

costumes e objetivos em comum, a amizade estabelecida entre eles estava acima de qualquer

outra questão. A única coisa de que Riobaldo possuía completa certeza, em meio aos perigos e

aflições da jagunçagem, era a amizade de Diadorim: “E foi ele mesmo, no cabo de três dias,

quem me perguntou: – ‘Riobaldo, nós somos amigos, de destino fiel, amigos?’ – ‘Reinaldo,

pois eu morro e vivo sendo amigo seu!’– eu respondi” (ROSA, 2001, p. 164). Parafraseando a

assertiva de Montaigne, o qual afirmou que os romanos Graco e Blóssio “eram amigos e mais

amigos do que cidadãos” (MONTAIGNE, 1987, p. 94), consideramos que Riobaldo e

Diadorim eram amigos e mais amigos do que jagunços. É o próprio Tatarana quem confessa

que “tinha vindo para jagunço só mesmo por conta da amizade!” (ROSA, 2001, p. 244).

Tendo-se em mente essa ideia, de que há uma total soberania da amizade

relativamente aos códigos ético-político-sociais, podemos dizer também que a amizade entre

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Riobaldo e Diadorim suplanta as dimensões de suas atitudes (não) virtuosas. Não

pretendemos afirmar, com isso, que eles são maus, vis, não virtuosos, etc. Se tem um sujeito

que merece tais adjetivações é, certamente, o antagonista Hermógenes, jagunço cruel e

trapaceiro, que tirava seu prazer do medo dos outros. Os epítetos “Belzebu”, “filho do Demo”,

“pactário”, “fel dormido”, “flagelo com frieza” dão uma pequena amostra de que esse, sim,

estava propenso a ações não virtuosas; um ser humano cuja “natureza” não favorecia “que

tivesse pena de ninguém, nem respeitasse honestidade neste mundo” (ROSA, 2001, p. 424).

Embora cometessem crimes e outras exigências da jagunçagem, Riobaldo e Diadorim

perpetravam ações nobres e verdadeiramente altruístas, tanto entre si quanto com relação a

outrem: “Diadorim, sempre atencioso, esmarte, correto em seu bom proceder” (ROSA, 2001,

p. 202). Havia entre eles uma sintonia de princípios e valores: “De meus sacrifícios, ele me

pagava com seu respeito, e com mais amizade” (ROSA, 2001, p. 208). Mesmo quando

Riobaldo pensava numa possível “traição” do amigo, que estava sumido, podendo ter fugido

com Joca Ramiro, aí é que aumentava sua confiança no companheiro: “Ao meio do meio

duma coisa eu tinha certeza: que Diadorim não ia me mentir. O amor só mente para dizer

maior verdade” (ROSA, 2001, p. 503). E Tatarana, sempre preocupado com o zelo do amigo,

transparecia certa retidão de caráter: “O que eu gostava tanto de Diadorim, tinha um escrúpulo

– queria que ele permanecesse longe de toda confusão e perigos” (ROSA, 2001, p. 434).

Vê-se, pois, que Riobaldo e Diadorim diferenciavam-se dos demais no que diz respeito

à prática de ações imbuídas de benevolência. Mas acreditamos que não se pode medir

inexoravelmente o nível de bondade dos referidos personagens, afiançando que eles cultivam

ou não a virtude. Não cabe, em Grande sertão: veredas, uma apreciação aos moldes da ética

aristotélica, pois “neste mundo tem maus e bons – todo grau de pessoa. Mas, então, todos são

maus. Mas, mais então, todos não serão bons?” (ROSA, 2001, p. 328). Esse movimento de

inconstância nas ações, de evasão aos julgamentos, de incompreensão dos “motivos”, que é

uma constante na narrativa, permite-nos afirmar que a amizade em pauta não está fundada da

virtude. Vale, pois, cotejar essa perspectiva com o disposto no pensamento montaigniano,

destacando a insubordinação da amizade frente à defesa da virtude ou à dita prática do bem.

Riobaldo e Diadorim se amavam e se entendiam sem se preocupar com preceitos ou

“mandamentos”, sem depender da “arte do bem viver” ou de alguma “mediania”: “Amizade,

na lei dela. Como a gente estava, estava bem” (ROSA, 2001, p. 264).

Aliada a essa questão, há que observar uma recusa à tentativa de encontrar a “razão

primeira” da amizade, semelhantemente à concepção montaigniana: “Se insistirem para que

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eu diga por que o amava, sinto que o não saberia expressar senão respondendo: porque era

ele; porque era eu” (MONTAIGNE, 1987, p. 94). O narrador-protagonista de Grande sertão:

veredas também se esquiva de encontrar o “motor” de sua amizade, pois sabe que aquela

“força de afeto” ultrapassava o puro entendimento, estava para além de um “porquê”:

“Amigo, para mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o

igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos

sacrifícios. Ou – amigo – é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por que é que é”

(ROSA, 2001, p. 196). Não cogita buscar as “causas” para seu sistema de amizade. Nota-se

um sentimento de gratuidade, imensurável pelas vias da razão, de modo que o próprio gozo da

relação também se sobreponha à “explicação”: “Pois minha vida em amizade com Diadorim

correu por muito tempo desse jeito. Foi melhorando, foi. Ele gostava, destinado, de mim. E eu

– como é que posso explicar ao senhor o poder de amor que eu criei?” (ROSA, 2001, p. 209).

3.3 Nem philos nem eros: “amizade de amor” ou ultra-amizade

A questão da inexplicabilidade ou imensurabilidade deve ser pensada em relação à

própria “veia erótica” que Riobaldo, não compreendendo, às vezes tentava ocultar ou anular.

Temos de levar em conta o conflito provocado pelo “potencial andrógino” de Diadorim:

Mas ponho minha fiança: homem muito homem que fui, e homem por mulheres! –

nunca tive inclinação pra aos vícios desencontrados. Repilo o que, o sem preceito.

Então – o senhor me perguntará – o que era aquilo? Ah, lei ladra, o poder da vida.

Direitinho declaro o que, durando todo tempo, sempre mais, às vezes menos, comigo

se passou. Aquela mandante amizade. Eu não pensava em adiação nenhuma, de pior

propósito. Mas eu gostava dele, dia mais dia, mais gostava. Diga o senhor: como um

feitiço? Isso. Feito coisa-feita. Era ele estar perto de mim, e nada me faltava. Era ele

fechar a cara e estar tristonho, e eu perdia meu sossego. Era ele estar por longe, e eu

só nele pensava. E eu mesmo não entendia então o que aquilo era? Sei que sim. Mas

não. E eu mesmo entender não queria (ROSA, 2001, p. 162-163).

Malgrado o enigmático lado feminino de Diadorim e, por conseguinte, o latente amor

carnal, o vínculo estabelecido entre eles é um vínculo de amizade. Em Grande sertão:

veredas, a amizade “riobaldiana”, através da qual há uma sublimação do desejo pelo outro do

mesmo sexo, aparece como um subterfúgio, uma espécie de artimanha da razão, já que não

haveria a possibilidade de “concretização” de um eros: “Primeiro, fiquei sabendo que gostava

de Diadorim – de amor mesmo amor, mal encoberto em amizade” (ROSA, 2001, p. 305).

Essa “amizade de amor” surge como um apoio, uma redenção, um bem que não o deixa

concretizar um “amor de amante”, pois “nem para se definir calado, em si, um assunto

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contrário absurdo não concede seguimento. Voltei para os frios da razão (ROSA, 2001, p. 77).

Tensão ocasionada pela própria identidade contraditória de Diadorim, fazendo Riobaldo

(re)lutar contra um querer gostar mais do que cabe a um amigo (jagunço!) gostar.

Conforme expusemos num estudo intitulado “Deus e o Diabo no Grande sertão:

veredas: uma leitura antimaniqueísta”, a masculinidade e a feminilidade de Diadorim são, a

um só tempo e paradoxalmente, céu e inferno, salvação e condenação para Riobaldo: “o lado

feminino é atração e encanto (um bem), mas também ilusão e desvario (um mal – dada a

impossibilidade de efetivação); o lado masculino é empecilho, obstáculo (um mal), mas

também apoio e redenção (um bem que não o deixa cometer o absurdo da concretização)”

(OLIVEIRA, 2014, p. 150). O “Urutu-Branco” se vê perdido numa armadilha do destino,

numa espécie de aprisionamento ou, por suas palavras, de “coisa-feita”. Matutava

constantemente sobre o que provocava os intensos ciúmes que sentiam um pelo outro: o amor

de amigo ou o amor de amante? Philos ou eros? Oscilava entre as rédeas da emoção e as da

razão: “Tanto também, fiz de conta estivesse olhando Diadorim, encarando, para duro, calado

comigo, me dizer: ‘Nego que gosto de você, no mal. Gosto, mas só como amigo!...’ Assaz

mesmo me disse. De por diante, acostumei a me dizer isso, sempres vezes” (ROSA, 2001, p.

308). Ora se condenava e se envergonhava daquele sentimento, ora se entregava

embaraçosamente ao bem-querer, nem que fosse pelo troféu da proximidade.

A narrativa vai se construindo, também, nesse movimento de recusa a uma paixão e de

entrega a uma amizade, num jogo de ocultação e desvelamento: “Acertei minha idéia: eu não

podia, por lei de rei, admitir o extrato daquilo. Ia, por paz de honra e tenência, sacar

esquecimento daquilo de mim. Se não, pudesse não, ah, mas então eu devia de quebrar o

morro: acabar comigo! – com uma bala no lado de minha cabeça” (ROSA, 2001, p. 308).

Como se percebe, tamanha é a negação de um amor erótico por outro homem que, em

determinado momento, Riobaldo, bastante perturbado, pensa em tirar a própria vida. Não quer

renunciar a sua simpatia, confiança e estima, mas recusa a aceitar o componente carnal e

voluptuoso, que seria, como ele mesmo diz, uma “senvergonhagem” (ROSA, 2001, p. 330).

Conhecendo a simbologia do arco-íris, transmitida pela tradição popular, Riobaldo

fantasia, em sonho, uma verdadeira “transfiguração” do amado: “Noite essa, astúcia que tive

uma sonhice: Diadorim passando por debaixo de um arco-íris. Ah, eu pudesse mesmo gostar

dele – os gostares...” (ROSA, 2001, p. 66). Somente assim, Diadorim sendo mulher, é que se

poderia resolver o conflito, cessando qualquer ilogicidade daquele gostar. Até mesmo no

campo dos afetos, Riobaldo queria que tudo estivesse muito bem demarcado, já que “este

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mundo é muito misturado”: “Como é que se pode gostar do verdadeiro no falso? Amizade

com ilusão de desilusão. Vida muito esponjosa” (ROSA, 2001, p. 77). Há que sublinhar a

importância das contínuas interrogações na produção do efeito de incompreensão. Riobaldo

interpela constantemente o leitor, mostrando-o a impossibilidade de um maior estreitamento

de laços: “De que jeito eu podia amar um homem, meu de natureza igual, macho em suas

roupas e suas armas, espalhado rústico em suas ações?! Me franzi” (ROSA, 2001, p. 511).

Em meio a toda essa imprecisão e ambiguidade, Riobaldo opta por tolerar,

enveredando-se nas possibilidades da relação, suportando os ímpetos propriamente físico-

sensuais, mas também se comprazendo da companhia e da proximidade, reinventando o amor-

paixão sob a forma de uma “supra” ou “ultra-amizade”: “Diadorim disse, e a voz dele, ecosa,

me rodeou; as certas sinceridades. Amizade de amor surpreende uns sinais da alma da gente, a

qual é arraial escondido por detrás de sete serras?” (ROSA, 2001, p. 484). Até mesmo a

confissão do nome Diadorim, sendo que para os demais era somente Reinaldo, revelava o

esplendor, o caráter extraordinário da amizade: “Mas havendo o ele querer que só eu

soubesse, e que só eu esse nome verdadeiro pronunciasse. Entendi aquele valor. Amizade

nossa ele não queria acontecida simples, no comum, sem encalço. A amizade dele, ele me

dava. E amizade dada é amor” (ROSA, 2001, p. 172). Não ambicionamos defender que a

amizade resolve o conflito advindo do caráter duplo de Diadorim. Ao contrário, a tensão

permanece e é uma constante, mas é preciso entender que Riobaldo, não podendo se entregar

a uma “paixão absurda”, consegue vislumbrar uma eminente e sublime amizade.

A “amizade de amor” não elimina o desejo conflitante, antes, tende a intensificá-lo,

uma vez que se nutre da proximidade. Mas, dialeticamente, esse desejo aparece

“espiritualizado”. Tomando de empréstimo um termo caro à filosofia idealista alemã,

podemos dizer que a amizade entre Riobaldo e Diadorim constitui o aufheben da relação

contraditória. Não há, em português, uma palavra ou expressão que traduza fielmente esse

termo, sendo “suprassumir” a que mais se aproxima. Outros verbos relacionados são “erguer”,

“suspender”, “elevar”, “suplantar”. Conforme explicita Hegel, na Fenomenologia do Espírito,

“o suprassumir apresenta sua dupla significação verdadeira: é ao mesmo tempo um negar e

um conservar” (HEGEL, 2002, p. 96). Pensando o modo como se configura a amizade

“riobaldiana”, verificamos que ela não remove ou suprime a vertente erótica, mas

“suprassume-a”, permitindo o surgimento de um estado mais “verossímil”.

É uma amizade que, analogamente à visão montaigniana, caminha na contramão de

muitos dos discursos-cânones legados pela tradição filosófica. Não sabe ser comum, ordinária

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ou moderada. Exige toda a intensidade e arrebatamento emanados da proximidade e

admiração, ou melhor, da apoteótica intimidade: “Aquilo me transformava, me fazia crescer

dum modo, que doía e prazia. Aquela hora, eu pudesse morrer, não me importava” (ROSA,

2001, p. 307). Não encontraremos, facilmente, em outras narrativas, semelhante

deslumbramento/êxtase provocado pelo simples pensamento e contemplação: “Eu pudesse

morrer!”. Em conformidade com o “caso Montaigne”, a relação de amizade aqui

problematizada se constrói ao reverso daquelas “banais e moles que são necessariamente

precedidas de frequentação mais ou menos prolongada” (MONTAIGNE, 1987, p. 94).

Mas ao contrário do que demonstramos com relação ao modelo montaigniano,

privando-o das categorias de “homoerotismo”, “homoafetividade” e “homossexualismo”,

porque resiste a cada uma delas, devemos admitir que a amizade em Grande sertão: veredas

não escapa, de todo, à primeira. Aqui, exclui-se também a segunda e a terceira acepções pelos

mesmos motivos apresentados, mas cabe reconhecer uma tendência à homoerotização.

Enquanto o ensaio “Da amizade” não nos outorga elementos que nos permitiriam “alargar”

nossa interpretação, o romance em epígrafe, com os recursos que lhes são próprios,

proporciona-nos, inegavelmente, uma leitura mais “ampliada”. Leitura essa que não pode

desconsiderar nem o encantamento nem o estranhamento relativos ao “gostar” de Diadorim.

Verificamos que a amizade entre Riobaldo e Diadorim imputa-se muito mais

pinceladas de erotismo do que a amizade entre Montaigne e La Boétie. De qualquer forma,

ambas confrontam com a perspectiva greco-latina de independência da philia/amicitia em

relação ao eros. Mesmo porque não nos parece legítimo enquadrarmos a amizade no Grande

sertão: veredas dentro daquele ordenamento grego relativo aos tipos de amor. Aristóteles,

maiormente, chama a atenção para a importância da philia na formação de cidadãos virtuosos,

esboçando, pois, um projeto ético-político. Em contrapartida, vimos que a amizade entre os

personagens supracitados não se destina ao cumprimento de funções moralizantes. Além

disso, o romancista imprime na referida amizade pontos de erotização; leia-se virtual desejo

ou, na poética de Riobaldo, “o irremediável extenso da vida” (ROSA, 2001, p. 45).

Sim, a relação de amizade entre Riobaldo e Diadorim, sob o viés dos sentimentos e

ações do narrador-protagonista, arroga-se traços homoeróticos, em consequência da própria

masculinidade, ou melhor, da masculinização de Diadorim. Negar esses traços seria atentar

contra a “androginia” que advém do travestimento e é fonte de angústia para Riobaldo: “Que

vontade era de pôr meus dedos, de leve, o leve, nos meigos olhos dele, ocultando, para não ter

de tolerar de ver assim o chamado, até que ponto esses olhos, sempre havendo, aquela beleza

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verde, me adoecido, tão impossível” (ROSA, 2001, p. 78). Mesmo que não haja uma

materialização, isto é, alguma união física entre eles, o flutuante e variável desejo de contato

corporal já é o bastante para que possamos entrever um potencial homoerótico.

Todavia, sublinhem-se os termos “tendência”, “traços” e “potencial”; abstemo-nos de

um juízo categórico. Não reconhecemos, pois, uma homoerotização, por assim dizer, em

sentido pleno e definitivo, em virtude do enérgico enfrentamento de Riobaldo face ao latente

desejo físico: “A vai, coração meu foi forte. Sofismei: se Diadorim segurasse em mim com os

olhos, me declarasse as todas as palavras? Reajo que repelia. Eu? Asco!” (ROSA, 2001, p.

78). Poder-se-ia objetar: o desejo de contato físico já não é forte indício de uma supremacia

homoerótica? Ora, consoante o projeto romanesco de figurar, sob as mais diversas formas, um

“caos cósmico” no sertão-mundo, no qual Diadorim emerge como emblema da

indeterminação de gênero, como uma coincidência de contrários, postular um totalizante

homoerotismo, ou homossexualismo, seria conferir uma objetivação e essencialismo que não

são próprios; seria querer estender e tornar perene um evanescente ímpeto. Se assim o

fizéssemos, estaríamos considerando todas as negações e estranhamentos, por parte de

Riobaldo, como mera dissimulação. Não é, evidentemente, o desejo de contato físico-corporal

nem tampouco os variáveis “embalos” de prazer sensível que norteiam tal relacionamento.

3.4 “Amizade de amor” e demais formas de amizade

Nesse nosso intuito de afirmar e problematizar a amizade, é necessário, ainda, trazer à

baila a dissenção existente entre a “amizade de amor” por Diadorim e a “amizade de afeto”

por Otacília. A moça que Riobaldo conheceu nas serras dos gerais, em nascente de vereda, era

“fina de recanto, em seu realce de mocidade, mimo de alecrim, a firme presença” (ROSA,

2001, p. 205). Enquanto Diadorim proporciona um “gostar” impreciso e oscilante, mas não

menos edificante e elementar, Otacília aparece com sua “continuação de amor”, promessa

esponsal, futuro remanso fora dos combates da jagunçagem: “No escasso, pensei. Nela, para

ser minha mulher, aqueles usos-frutos. Um dia, eu voltasse para a Santa Catarina, com ela

passeava, no laranjal de lá. Otacília, mel do alecrim” (ROSA, 2001, p. 330).

Aqui, sim, é possível conjecturar o império de um desejo, acertadamente, sob a égide

de Eros. Segundo Benedito Nunes, “Nela [em Otacília] o amor espiritual é o esplendor, a

refulgência do amor físico, aquilo em que a sensualidade se transforma, quando se deixa

conduzir pela força impessoal e universal de eros” (NUNES, 2009, p. 141). Nesse sentido,

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depreendemos que enquanto o amor por Otacília envolve uma declarada força libidinal, uma

manifesta volição carnal, além do caráter de espiritualização e mistificação próprio de uma

totalidade erótica, o amor por Diadorim, por prescindir de uma determinação de gênero, ou

melhor, por se constituir num “entre-gênero”, escapa à lógica paradigmática de eros. Não

cabe, em Diadorim a ótica do eros completo, que exige a ascensão do corpóreo ao espiritual.

Otacília, misto de donzela e “mulher madura”, suscita um ideal de aliança

matrimonial: “Sofreado de minha soberba, e o amor afirmante, eu senti o que queria,

conforme declarado: que, no fim, eu casava desposado com Otacília – sol dos rios... Casava,

mas que nem um rei” (ROSA, 2001, p. 561). Ideal que se concretiza postumamente ao

combate que ocasionou a morte de Diadorim: “Que eu estou bem casado de matrimônio –

amizade de afeto por minha bondosa mulher, em mim é ouro toqueado” (ROSA, 2001, p.

538). Não é sem razão que Tatarana qualifica seu amor por Otacília como sendo “amizade de

afeto”, uma vez que “amizade de amor” era tão-somente por Diadorim. Quer dizer: seu

relacionamento com Otacília, insígnia de devoção e de honradez matrimonial, não poderá

jamais suprir sua veemente e inolvidável amizade com Diadorim. Da mesma forma, o dúbio,

enevoado e intenso sentimento por Diadorim não pode substituir seu amor esponsal. Os

vínculos que unem Otacília e Diadorim a Riobaldo são diferentes entre si: “De mim, pessoa,

vivo para minha mulher, que tudo modo-melhor merece, e para a devoção. Bem-querer e

minha mulher foi que me auxiliou, rezas dela, graças. Amor vem de amor. Digo. Em

Diadorim, penso também – mas Diadorim é a minha neblina...” (ROSA, 2001, p. 40).

Por aí se percebe mais um ponto de convergência entre o romance Grande sertão:

veredas e o ensaio “Da amizade”. Os dois textos incidem naquilo que chamamos de

radicalização da limitação da quantidade de amigos “verdadeiros”, podendo os demais

compartilhar uma amizade “comum” ou outras formas de amor. Vários tratados filosóficos

sublinham a impossibilidade de se ser verdadeiramente amigo de muitos. Não só a philia

socrático-platônico-aristotélica e a amicitia ciceroniana e plutarqueana, mas também muitas

acepções modernas e contemporâneas reivindicam tal condição. Mas, no constructo

montaigniano, essa restrição é levada ao extremo, e, no terreno da ficção literária, Riobaldo

também assimila essa restrição. É possível verificar que assim como somente Etienne La

Boétie está para Montaigne, somente Diadorim está para Riobaldo. Tanto o filósofo-ensaísta

quanto o narrador-protagonista são refratários a uma divisibilidade de relações amicais em

plenitude. Põem a amizade, pensada em seu ideal de “máxima entrega”, como privilégio de

apenas duas “almas” com total disposição para o convívio e a reciprocidade de afetos.

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Cercado por sertanejos e jagunços de toda estirpe e qualidade, Riobaldo possuía

grande apreço por alguns deles, como, por exemplo, o Garanço, sempre próximo, cordial e

prestativo, “com minúcia de valentia. Rapaz de como se querer, homem de leal qualidade”

(ROSA, 2001, p. 228); o Alaripe, que, nas palavras de Riobaldo, “era de ferro e de ouro, e de

carne e osso, e de minha melhor estimação” (ROSA, 2001, p. 334); o Marcelino Pampa,

querido porque “não se vê outro assim, com tão legítimo valor, capaz de ser e valer, sem

querer parecer” (ROSA, 2001, p. 598); o Fafafa, “que estimava irmãmente os cavalos, deles

tudo entendia, mestre em doma e em criação” (ROSA, 2001, p. 331); o Sesfredo, “assoviando

imitado de toda qualidade de pássaros, este nunca se esquecia de nada” (ROSA, 2001, p. 334-

335). Contudo, apesar dessas amizades de “companheiragem”, se assim podemos chamá-las,

Riobaldo tem plena consciência de que sua amizade com Diadorim é suprema e exclusiva.

Dentre tais amigos-jagunços, há que destacar o caso de Garanço que, em seu jeito

agradável e descontraído (até punha nome em suas armas), insistia em participar da amizade

entre Riobaldo e Diadorim, sempre procurando estar próximo deles. Quando da iminência de

fugir da jagunçagem, tentado a se apartar, de uma vez por todas, daquela vida de incertezas,

Riobaldo convida Diadorim a fugir também, juntos. Este, determinado a vingar a morte de seu

pai, Joca Ramiro, resistia à proposta, considerando-a uma “fraqueza”, um contrassenso. Daí

que, por um momento, Riobaldo se imaginou seguindo viagem com Garanço:

Bom, o Garanço, esse ia comigo, me seguia em tudo, era pobre homem à espera de

qualquer ordem cordial. Isto ele mesmo nem sabia, mas era: que carecia era de

alguma amizade (...). Ao que bastava um meu maior cochicho, e o Garanço vinha,

servia de companheiro para fugirmos. O mais que pudesse haver, era ele primeiro

perguntar: – “E o Reinaldo?” –; porque já estava acostumado com eu e Diadorim

sermos dois, e ele querer ser o três. Então, eu respondi: – “Segredo, eh, Garanço.

Segredo, eh, e vamos!” – e que Diadorim era para vir depois. O Garanço tinha

alguma diferença, por alguma banda de sua natureza ele se desapartava da

jagunçagem (ROSA, 2001, p. 198, grifo nosso).

Com se percebe, bastaria um pequeno sinal e Garanço aceitaria o chamado. Mas

Riobaldo não chegou a propor absolutamente nada, pois aquele só saberia cumprir ordens, não

proporcionando efetiva amizade e real prazer de companhia. Podemos dizer que ele seria mais

um “fiel escudeiro” ou “ajudante de ordens de um cavaleiro andante”, nos termos de um

Sancho Pança constante da obra-prima cervatina, do que propriamente um amigo: “Ele só

sabia cumprir obediência, no que eu riscasse, governado por meu querer e por minha ideia.

Quero sombra? Quero eco? Quero cão? (...). – ‘Eh, eh, nós... ’ – o Garanço reproduzia, tão

satisfeito. Minha amizade sobrou um pouco para ele, que era criatura de simples coração”

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(ROSA, 2001, p. 199-200). Não faria sentido um empreendimento como esse se somente

Diadorim proporcionaria uma fuga ideal e completa, se somente junto com Diadorim era que

Riobaldo gostaria de rumar para os altos Gerais, numa continuação de amizade: “‘... Mas,

porém, quando isto tudo findar, Diá, Di, então, quando eu casar, tu deve de vir viver em

companhia com a gente, numa fazenda, em boa beira do Urucuia’....” (ROSA, 2001, p. 604).

Nesse processo de diferenciação da amizade “verdadeira”, comparativamente a outras

formas de amizade e de amor, realçamos ainda que, no que tange às relações familiares, as

ideias de Riobaldo estão em conformidade não só com as de Montaigne, mas também com as

de toda a tradição da “filosofia da amizade”: “Ele tinha conversado, de me dizer: –

“‘Riobaldo, eu gostava que você pudesse ter nascido parente meu...’ Isso dava para alegria,

dava para tristeza. O parente dele? Querer o certo, do incerto, coisa que significava. Parente

não é o escolhido – é o demarcado” (ROSA, 2001, p. 443-444). Quer dizer: a família é um

conjunto imediato e natural, determinado pelos laços sanguíneos e pela hereditariedade. Nessa

imediatez familiar, todos são, sim, como que “demarcados”, carentes de inter-relações

conscientemente escolhidas. Há, acima de tudo, a existência biológica do homem, do pai, do

filho, do irmão, etc. Ora, a amizade, para além de um forte sentimento, exige livre disposição

das partes envolvidas; brota muito mais de escolhas do que de inclinações e de dependências.

3.5 Saudade de amizade: a clave da perda

Mesmo quando Riobaldo desvenda o mistério sobre a real identidade de Diadorim, o

conflito não é resolvido, pois a “moça perfeita” está morta: “E subiram as escadas com ele,

em cima de mesa foi posto. Diadorim, Diadorim – será que amereci só por metade?” (ROSA,

2001, p. 614). Os sinais/indícios do feminino são confirmados: “Diadorim era o corpo de uma

mulher, moça perfeita...” (2001, p. 615); mas a imagem do masculino, do Diadorim jagunço e

“amigo todo leal” permanecerá viva nos labirintos da memória. A grande revelação não apaga

nem modifica as experiências outrora “deliciosamente” vivenciadas. Mesmo percebendo que

fora enganado, Tatarana não renega ou renuncia seu sentimento por Diadorim, ao contrário,

suportará o sofrimento da perda irreparável: “Para que eu ia conseguir viver?” (2001, p. 615).

Assim como o trabalho ensaístico de Montaigne, a narrativa testemunhal de Riobaldo

emerge da experimentação da perda, da morte do outro: “E pobre de mim, minha tristeza me

atrasava consumido. Eu não tinha competência de querer viver, tão acabadiço, até o

cumprimento de respirar me sacava. E, Diadorim, às vezes conheci que a saudade dele não me

desse repouso; nem o nele imaginar” (ROSA, 2001, p. 615). O recontar, em ambos os casos e

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cada um a seu modo, não apenas inscreve, mas faz “imortalizar” a relação amical, numa

espécie de suspensão ou retardamento da morte. No ensaio e no romance, prolonga-se o

encantamento e o deleite do relacionamento, facultando um “aditamento” da amizade. Mesmo

depois da “revelação”, Riobaldo sente saudades “dele”, lembra-se “dele”, do amigo.

Mas se o drama montaigniano diz respeito à morte prematura de La Boétie, o drama

“riobaldiano” (à tragédia grega!) diz respeito não só à morte prematura de Diadorim, mas à

peça que a vida lhe pregou: tornar-lhe incapaz de compreender a totalidade do “Ser” amado.

A morte não levou consigo apenas um “sujeito”, mas, com ele, as chaves para muitas

respostas e definições. O que subsiste são as recordações da convivência, de uma amizade

que, “na lei dela”, representa a fluidez e a inconstância no sertão-mundo, revelando-se como

um ponto de referência, no espaço e no tempo, da vida que “nunca tem termo real” (ROSA,

2001, p. 615). O que permanece são as rememorações e, com elas, a sensação de ter vivido

uma amizade extraordinária, “encharcada” pela intimidade e pela reciprocidade de afetos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Acreditamos ter realizado uma leitura da amizade em Grande sertão: veredas à luz da

concepção de amizade no pensamento de Michel de Montaigne, buscando também relacioná-

las (ambas as formas de amizade) com outras abordagens teórico-filosóficas. Sublinhe-se que

as equivalências – razão primeira deste trabalho – entre o texto de Montaigne e o texto de

Guimarães Rosa não devem ofuscar os fatores intrínsecos a cada um deles. As conjunturas

tanto estético-composicionais (ensaio versus romance) quanto histórico-sociais (renascimento

versus pós-modernidade) são, naturalmente, distintas e bastante específicas. Há que realçar,

inclusive, que, enquanto no ensaio “Da amizade” rejeita-se a possibilidade de as mulheres

enredarem relações amicais em plenitude, no Grande sertão: veredas a amizade ultrapassa as

fronteiras do gênero. Tamanha a atitude inovadora do romancista: oferecer-nos a estória de

uma amizade entre um homem e um “Ser” no qual se entremesclam o masculino e o feminino.

Por esse viés, a “amizade de amor” da narrativa rosiana contraria muitos discursos

filosóficos tradicionais (antigos, medievais e modernos), incluindo o montaigniano, que

conservam uma mentalidade patriarcal: Riobaldo vivencia uma amizade com um homem que,

apesar de agir como tal, “biopsicologicamente” trata-se de uma mulher (que se sabe mulher,

apesar do optado travestimento). Ora, se Diadorim é capaz de resguardar uma extraordinária

amizade, regada a lealdade, confiança e cumplicidade, isso não se dá graças à mulher “Maria

Deodorina” que subjaz por sob o véu da masculinização? Eis um jeito mimeticamente

inovador de afirmar que as mulheres são aptas para o cultivo da amizade. Mesmo que com um

“pincel” masculino, as mãos que tracejam e pintam essa “amizade de amor” são femininas.

Para além desse ponto de diferenciação, ressalte-se que, tal como avaliamos a relação

entre Montaigne e La Boétie somente sob o olhar do primeiro deles, que é o “pintor de si

mesmo”, não pudemos exceder o que está posto pelo viés de Riobaldo, que é o narrador-

protagonista, a figura que conduz o leitor à “terceira margem” daquele amor, contradizendo os

paradigmas de philos e de eros. À vista disso, utilizamos as expressões “amizade

montaigniana” e “amizade riobaldiana”. Ao problematizar a relação entre Riobaldo e

Diadorim, deparamo-nos com uma força de afeto e cumplicidade que só encontraremos nas

raras e protuberantes amizades, ao avesso daquelas comuns e triviais, como diria Montaigne.

Considerando tanto o vir-a-ser masculino quanto o enigmático e perturbador vir-a-ser

feminino de Diadorim, é possível vislumbrar uma eminente relação amical com toque de eros.

Frente a uma identidade contraditória, a “amizade de amor” tanto desveste quanto (re)veste o

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incompreensível desejo físico-sensual. Enlevado não só pela beleza física, mas, sobretudo,

pelo caráter, advindos da persona dúbia de Diadorim, Riobaldo se vê cada vez mais próximo

(leia-se amor de amigo) e cada vez mais distante (leia-se amor de amante) do amado:

“Naqueles dias, então, eu não gostava dele? Em pardo. Gostava e não gostava. Sei, sei que, no

meu, eu gostava, permanecente. Mas a natureza da gente é muito segundas – e – sábados.

Tem dia e tem noite, versáveis, em amizade de amor” (ROSA, 2001, p. 196).

Em meio aos movimentos de entrega/desvelamento e de recusa/velamento que são

uma constante, entrecruzando-se como um leitmotiv da própria relação, o amor de amigo

surge como um subterfúgio, um artifício da razão, já que não haveria a possibilidade de

consumação de um eros. O que subsiste é a amizade, a existência mediada, relativamente

positivada. Ocorre a transmutação de uma condição caótica, aparentemente insuperável, para

uma condição, em termos, mais ordenada. E Riobaldo se orgulha disso: “E ele, o Reinaldo,

era tão galhardo garboso, tão governador, assim no sistema pelintra, que preenchia em mim

uma vaidade, de ter me escolhido para seu amigo todo leal” (ROSA, 2001, p. 165).

Ao comparar a amizade entre Riobaldo e Diadorim com a amizade entre Montaigne e

La Boétie, pudemos perceber as seguintes correlações: o império da intimidade, ou, nas

palavras do ensaísta, da “frequentação prolongada”; a preeminência da amizade em relação

aos códigos ético-político-sociais, isto é, a supremacia do âmbito particular; uma suplantação

da prática da virtude, indo de encontro às concepções greco-latinas; a noção de

inexplicabilidade ou imensurabilidade (no sentido de encantamento), numa recusa à tentativa

de encontrar a “razão primeira”, a qual – para muitos pensadores – deveria ser a própria

virtude; a radicalização da limitação da quantidade de amigos “verdadeiros”, cabendo aos

demais compartilhar de amizade outras, “comuns”, ou mesmo outras formas de amor.

Fica evidenciado, portanto, após essa empreitada crítica, que a tematização da amizade

em Grande: sertão veredas deve levar em conta os elementos que a faz destoar de muitas das

tipologias clássicas ou tradicionais. Se pudemos ler tal romance com algumas lentes próprias

do ensaio “Da amizade”, isso se deve ao fato de encontrarmos, em ambos os textos, um

declarado elogio ao transbordamento de intimidades. Compreender Montaigne não é tarefa

fácil, compreender Riobaldo também não o é, mas uma coisa está muito bem acertada: apesar

do ceticismo que lhes é próprio, as figuras de La Boétie e de Diadorim, cada uma à sua

maneira, surgem como um bálsamo, um verdadeiro refrigério em meio à “crueza” e à

“secura” da existência e das relações humanas; seja em Bordeaux, na França do século

dezesseis, seja no “sertão das gerais” ficcional dos séculos dezenove e vinte.

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