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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS (MESTRADO E DOUTORADO) IBRAHIM ALISSON YAMAKAWA APRENDER A REZAR NA ERA DA TÉCNICA: AS FORMAS DO SILÊNCIO E OS SILÊNCIOS DAS FORMAS MARINGÁ - PR 2017

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Page 1: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ - ple.uem.br · Muitos desafios se impuseram, mas nunca tivemos de enfrentá-los sozinho. Por isso, seguem meus mais sinceros agradecimentos:

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS (MESTRADO E

DOUTORADO)

IBRAHIM ALISSON YAMAKAWA

APRENDER A REZAR NA ERA DA TÉCNICA: AS FORMAS DO

SILÊNCIO E OS SILÊNCIOS DAS FORMAS

MARINGÁ - PR

2017

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IBRAHIM ALISSON YAMAKAWA

APRENDER A REZAR NA ERA DA TÉCNICA: AS FORMAS DO

SILÊNCIO E OS SILÊNCIOS DAS FORMAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras da Universidade Estadual de

Maringá, como requisito parcial para a obtenção do

grau de Mestre em Letras.

Orientadora: prof. Dra. Luzia Aparecida Berloffa Tofalini

MARINGÁ

2017

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Biblioteca Central - UEM, Maringá, PR, Brasil)

Yamakawa, Ibrahim Alisson

Y19a Aprender a rezar na era da técnica: as formas do

silêncio e os silêncios das formas / Ibrahim Alisson

Yamakawa. -- Maringá, 2015.

186 f. : il. color., figs., tabs., mapas

Orientador: Prof.ª Dr.ª Luzia Aparecida Berloffa

Tofalini.

Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de

Maringá, Centro de Ciências Humanas, Letas e Artes,

Departamento de Letras, Programa de Pós-Graduação em

Letras, 2017.

1. Tavares, Gonçalo Manuel de Albuquerque, 1970-

Literatura portuguesa. 2. Literatura portuguesa - Analise.

3. Aprender a rezar na era da técnica - Romance portugues -

Análise critica. I. Tofalini, Luzia Aparecida Berloffa,

orient. II. Universidade Estadual de Maringá. Centro de

Ciências Humanas, Letas e Artes. Departamento de Letras.

Programa de Pós-Graduação em Letras. III. Título.

CDD 21.ed.801.95

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AGRADECIMENTOS

Realizar esta pesquisa foi uma tarefa muito difícil. Muitos desafios se impuseram, mas

nunca tivemos de enfrentá-los sozinho. Por isso, seguem meus mais sinceros agradecimentos:

A Deus, por me dar forças para concluir esta dissertação.

À minha mãe, Isabel Pila, por seu apoio incondicional e por me escutar

incansavelmente.

À minha orientadora e professora Dr.ª Luzia A. Berloffa Tofalini por ter, desde o

início, confiado em mim, por sua dedicação e por ter me incentivado a querer fazer um

trabalho cada vez melhor.

À professora Dr.ª Evely Libanori e ao professor Dr. Altamir Botoso por suas

prestimosas contribuições no desenvolvimento desta pesquisa.

Aos meus amigos, em especial, à Raquel Cassiano de Freitas, por sua inestimável

ajuda e por seu apoio.

A todos aqueles que direta ou indiretamente contribuíram, de diversas formas e em

diversos momentos, para que este trabalho pudesse caminhar, com destaque para secretário do

Programa de Pós-Graduação em Letras Adelino Marques.

Sabemos que não existem palavras que possam traduzir tudo o que sentimos neste

momento. O alfabeto é pequeno demais para conter nossa gratidão. Assim, que nesse instante

o silêncio seja muito mais eloquente que as palavras. Que ele possa significar todo o

contingente de reconhecimento que levaremos vida afora. Fica, então, o resto para o silêncio.

Afinal, aprendemos que nada pode “dizer mais” e superar um silêncio significante.

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I prefer silence to sound, and the image produced by words occurs in silence. That is, the thunder and the music of the prose take place in silence”.

(William Faulkner)

"Sempre tive muito mais medo do silêncio. O silêncio assusta. No silêncio podem estar todos os ruídos. E isso não é bom. (silêncio prolongado) Das palavras é que não tenho medo nenhum. Blá-blá-blá. Blá-blá-blá. Não adianta nada".

(Gonçalo M. Tavares)

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RESUMO

A presente dissertação elege Aprender a Rezar na Era da Técnica (2008), de Gonçalo M.

Tavares, como objeto de análise para investigar e demonstrar o caráter positivo do fenômeno

do silêncio no texto literário. Esta dissertação está fundamentada na hipótese de que o silêncio

significa (ORLANDI, 2007). Para os estudos literários, compreender os sentidos advindos do

silêncio é tão importante quanto compreender os sentidos sugeridos pelas palavras

(TOFALINI, 2012). O silêncio é uma potência que é inerente à obra literária e toda obra

literária, inclusive o romance, é uma arquitetura de silêncios. Logo, a atividade de criação do

texto artístico consiste no equilíbrio entre palavra e silêncio. Em Aprender a Rezar na Era da

Técnica, há uma confluência de palavras e silêncios que se unem na tarefa de significar,

buscando a representação genuína do homem e do mundo. À medida que são decifrados os

significados dos silêncios do texto, amplia-se a compreensão e, consequentemente,

aprofunda-se a mensagem. O aporte teórico necessário para orientar e fundamentar as

discussões sobre o status positivo do silêncio fica a cargo dos estudos realizados por Eni

Puccinelli Orlandi (2007), Santiago Kovadloff (2003), David Le Breton (1999), Bernard

Dauenhauer (1980), Michele Sciacca (1967), Georg Steiner (1988) entre outros autores. Ao

reunir tais autores, buscou-se embasamento necessário em diferentes entendimentos e

concepções para dar suporte ao processo de análise que permitiu realizar a aproximação a esse

fenômeno que é por natureza indizível, intraduzível e inesgotável. Espera-se que a possível

confirmação do caráter fundamental e primordial do silêncio em Aprender a Rezar na Era da

Técnica dê um novo alento às questões relativas ao ser humano e à sua essência frente aos

problemas do mundo. Espera-se, também, que o leitor, em face das descobertas dos

significados dos silêncios no texto artístico, rume em direção ao semblante inexplicável da

linguagem (composta por palavras e silêncios) e descubra o silêncio mais significativo.

Palavras-chave: Aprender a Rezar na Era da Técnica; silêncios, Gonçalo M. Tavares;

Romance; Literatura portuguesa.

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ABSTRACT

The present dissertation elects Learning to Pray in the Age of Technique (2008), by Gonçalo

M. Tavares, to analyze and investigate and also demonstrate the positive nature of the

phenomenon of silence in the literary text. This dissertation is based on the hypothesis that

silence means by itself (ORLANDI, 2007). For literary studies, understanding the meanings

of silence is as important as understanding the meanings suggested by words (TOFALINI,

2012). Silence is a power that is inherent in the literary work and every literary work,

including the novel, is an architecture of silence. Therefore, the activity of creating the artistic

text consists of the balance between word and silence. In Learning to Pray in the Age of

Technique, there is a confluence of words and silences that unite in the task of meaning,

seeking the genuine representation of man and the world. As the meanings of the silences of

the text are deciphered, there is the widening of understanding and, consequently, widening

message. The theoretical framework necessary to guide and ground the discussions on the

positive status of silence is in charge of the studies carried out by Eni Puccinelli Orlandi

(2007), Santiago Kovadloff (2003), David Le Breton (1999), Bernard Dauenhauer (1980),

Michele Sciacca (1967), Georg Steiner (1988) among others. When gathering such authors,

we sought the necessary basis in different understandings and conceptions to support the

process of analysis that allowed us to approach the phenomenon that is by nature

unspeakable, untranslatable and inexhaustible. It is desired that the possible confirmation of

the fundamental and primordial nature of the silence in Learning to Pray in the Age of

Technique may give a new impetus to the questions concerning the human being and his

essence in the face of the problems of the world. It is also desired that the reader, in the face

of the discoveries of the meanings of the silences in the artistic text, may turn towards the

inexplicable semblance of language (composed of words and silences) and discover the most

significant silence.

Keywords: Learning to Pray in the Age of Technique; silence; Gonçalo M. Tavares; Novel;

Portuguese literature.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11

1. Considerações iniciais..................................................................................................... 11

2. Autor e obra .................................................................................................................... 19

CAPÍTULO I .......................................................................................................................... 24

1.1 Silêncio e Linguagem ................................................................................................. 24

1.2 Silêncio e Silêncios ..................................................................................................... 35

1.2.1 O silêncio na filosofia .............................................................................................. 37

1.2.2 O silêncio na psicanálise .......................................................................................... 41

1.2.3 O silêncio na teologia ............................................................................................... 43

1.2.4 O silêncio na literatura ............................................................................................. 45

1.3 Silêncio primordial e silêncio fundante: semelhanças e diferenças ........................... 49

1.4 Política do silêncio: silêncio constitutivo e censura ................................................... 65

CAPÍTULO II ......................................................................................................................... 73

2.1 Silêncio e discurso romanesco .................................................................................... 73

2.2 A forma do romance: silêncios ................................................................................... 77

2.2.1 Aprender a Rezar na Era da Técnica: entre silêncios e ambivalências ................... 82

2.3 As formas do silêncio nas formas do romance ......................................................... 108

CAPÍTULO III ..................................................................................................................... 125

3.1 Personagens entre censura e silêncios .......................................................................... 126

3.1.1 Lenz e o silenciamento .............................................................................................. 127

3.1.2 O silêncio de Júlia e Gustav Liegnitz ........................................................................ 147

3.1.3 O silêncio de Fredrich Buchmann ............................................................................. 162

3.1.4 Lenz e Hamm: silêncio e o silenciamento ................................................................. 165

3.2 Aprender a Rezar na Era da Técnica rumo ao silêncio Primordial ............................. 167

3.3. Aprender a Rezar na Era da Técnica e leitor â caminho do silêncio. ......................... 173

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CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 180

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 185

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INTRODUÇÃO

“Mas todo silêncio humano contém uma fala [...] sentido latente”.

(Octavio Paz)

1. Considerações iniciais

O silêncio é, primordialmente, irrepresentável e definitivamente intraduzível, mas

significa, é o que adverte Eni Orlandi em As formas do silêncio: no movimento dos sentidos

(2007). O silêncio, portanto, nunca é vazio ou desprovido de sentido, embora, ele, muitas

vezes, seja, erroneamente, associado a essa ideia. Entretanto, o exame pormenorizado dos

fatos da linguagem irá demonstrar que o silêncio é matéria significante por excelência

(ORLANDI, 2007). O silêncio é a possibilidade de existência de sentidos.

A linguagem, dessa forma, reveste-se de silêncio e o silêncio reveste-se de sentido. Por

isso, “a linguagem não existe sem a pontuação do silêncio, que a torna inteligível [...]” (LE

BRETON, 1999, p. 26). A linguagem então parece caminhar pelo silêncio e fazer sentido pelo

silêncio. Com efeito, adentrar o campo da linguagem significa trabalhar dialeticamente a

relação entre silêncio e signo. Pois, conforme afirma Maurice Merleau-Ponty (2006, p. 47),

“temos de considerar a palavra antes de ser pronunciada, o fundo de silêncio que não cessa de

rodeá-la, sem o qual ela nada diria, ou ainda pôr a nu os fios de silêncio que nela se

entremeiam”. Porque, se a linguagem se sustenta sob um fundo de silêncio, este é,

definitivamente, uma instância plena de sentido que não se confunde com a linguagem, que

não pode ser traduzido pela linguagem, pois ele demonstra ser maior que ela.

Segundo Eni Orlandi (2007), o silêncio é um espaço fundamental entre as palavras

para que o dizer possa fazer sentido. Michele Sciacca (1967) acrescenta que o silêncio

corresponde ao fôlego da significação. Além do que, “sem um reverso de silêncio, a

comunicação é impensável, ficaria obstruída num fluxo contínuo de palavras que conduziriam

à impotência da palavra condenada à partida” (LE BRETON, p. 1999, p. 25). Reiterando as

palavras de David Le Breton, o silêncio é o que permite à linguagem ser discernível

segmentável e inteligível. Sem um espaço que se interpusesse entre os signos, os sentidos

jamais se construiriam.

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Com efeito, não há nada na linguagem que não implique silêncio, pois, estar em

silêncio é estar com os sentidos. “O real da significação é o silêncio” (ORLANDI, 2007, p.

29). Entretanto, o silêncio não é o “tudo” da linguagem, como esclarece Eni Orlandi (2007).

O silêncio não é como uma gaveta onde estão todos os sentidos guardados esperando palavras

serem ditas. O silêncio é um estado incontornável, independente da palavra pronunciada,

portanto, possui sua própria materialidade. Significa pelos seus próprios meios. É evidente

que os sentidos não estão prontos no silêncio esperando serem depreendidos. Pelo contrário,

eles se constroem nesse espaço fundamental e lá significam. Por essa razão, Martin Heidegger

(2002) admite que não é necessário evocar palavra para exprimir sentido, pois o sentido se

constrói no silêncio, pelo silêncio e com o silêncio.

Ao privilegiar o silêncio como elemento significativo por natureza, percebe-se o seu

caráter indispensável à linguagem. Portanto, pensar a linguagem é também pensar o silêncio

fundante e primordial a ela. Essa potência significativa, ubíqua e indefinível perpassa por

todos os caminhos da linguagem, transcendendo-a. O silêncio é dinâmico e errático. E sendo

maior que a linguagem não se deixa aprisionar e se conceituar por ela. A linguagem é, como

Georg Steiner argumenta em Linguagem e Silêncio (1988), limitada e restrita a certos

domínios da representação. A linguagem verbal, para esse autor, demonstra não ser capaz de

expressar e conter toda a realidade. De tal modo que o silêncio se apresenta muito mais

eloquente que a própria palavra.

Daí decorre que essa potência significativa instiga inúmeros pesquisadores de outras

áreas, tais como filosofia, sociologia, psicanálise, análise do discurso, teologia e literatura a

conceberem o silêncio como objeto de reflexão. Reconhecendo o silêncio como modalidade

de sentido, esses diferentes campos de conhecimento empreenderam diferentes métodos com

intuito de operar e aludir a algo que não poderá jamais ser conceituado e definido, dado o seu

caráter fugaz e indômito. Por esse motivo, esse fenômeno tão revelador e ao mesmo tão

misterioso despertou em inúmeros pesquisadores o empenho necessário para lidar com uma

matéria tão complexa e escorregadia. Como consequência, a concepção do silêncio ficou

dispersada em inúmeras áreas de conhecimento. Cada uma, à sua maneira, empenhou e

empenha incontáveis esforços, tentando abranger o máximo de significados possíveis, para

poder compreender uma matéria tão fugidia. Em vista disso, conciliar esses diferentes

entendimentos e áreas do conhecimento no intuito de aprender mais sobre o silêncio torna-se

tarefa crucial para esta dissertação.

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Evidentemente, a literatura também se ocupou do silêncio. Poetas, romancistas e

críticos literários já se detiveram sobre o texto literário tentando desvendar os segredos que lá

habitam e demonstrando, mais uma vez, que o silêncio significa. Gilberto Mendonça Teles em

a Retórica do silêncio (1979), por exemplo, afirma que “a linguagem comum só se transforma

em linguagem literária renunciando o seu sentido puramente linguístico [...] e refugiando-se

no silêncio da obra [...]” (TELES, 1979, p. 20). Maria Lúcia Homem, em seu estudo sobre a

obra clariceana intitulado No limiar do silêncio e da letra: traços de autoria em Clarice

Lispector (2012), propõe que “não há como escrever um livro com uma só palavra de infinitas

letras” (HOMEM, 2012, p. 34). É que a literatura é palavra e silêncio juntos.

O equilíbrio resultante do conluio entre a palavra e o silêncio erige a obra literária.

Segundo Adam Jaworski (1993, p. 161) 1, “quando as palavras dos poetas falham, quando os

artistas encontram uma linguagem inadequada para se expressar, eles encontram refúgio no

silêncio. [...] A solução para o artista é tentar se libertar e mover para o silencio como a forma

mais adequada e ‘casta’ de expressão artística”. O ensaísta Georg Steiner escreve que, “o

escritor de hoje tende a usar muito menos palavras, e muito mais simples, tanto porque a

cultura de massa diluiu o conceito de instrução como porque diminuiu extraordinariamente o

conjunto de realidades das quais as palavras podem dar conta de modo necessário e

suficiente” (STEINER, 1988, p. 44). Dito de outro modo, o mundo tornou-se grande demais

para caber nas palavras. Qualquer que seja o repertório as palavras não dão conta mais da

expressão da totalidade.

O romance, ao que parece, dá provas da falência da matéria verbal que Georg Steiner

argumentava em seu livro. Admitindo que o romance seja um gênero de representação do

universo burguês e que, portanto, esse gênero é inteiramente marcado pela fragmentariedade e

pela ‘insuficiência’ (LUKÁCS, 2006), torna-se patente a presença do silêncio em suas formas.

O romance, nesse sentido, parece ter se apropriado do silêncio para significar uma realidade

demasiadamente rica e complexa. Constata-se nessa presença a tentativa do escritor de se

soltar das amarras restritivas da linguagem verbal e buscar no silêncio aquilo que não é

verbalizável. Representando o mundo por outro meio que não a palavra.

Ferenc Fehér em O romance está morrendo?: contribuição à teoria do romance

defende que o romance criou dinâmicas de adaptação e que por essa razão esse gênero é plena

1 “When words fail poets, when artists find language inadequate to express themselves, they fund refuge in

silêncio [...] The solution for the artist is trying to get free from the limitations of language is to move on to

silence as the most adequate and “chaste” from of artistic expression” (JAWORSKI, 1993, p. 161 – tradução

nossa).

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representação da sociedade do qual ele é decorrente. Sob esse enfoque, acredita-se que o

silêncio atua como um importante elemento à emancipação mencionada por Ferenc Fehér. O

silêncio parece operar dentro das dinâmicas de adaptação do gênero romanesco. Assim sendo,

o romance, conforme argumenta Ferenc Fehér, não é um gênero inferior. Ao contrário, esta

dissertação defende que o romance “comporta acréscimos de emancipação” (FEHÉR, 1972, p.

17) graças ao silêncio em suas formas.

Tendo em vista essas premissas, o romance Aprender a Rezar na Era da Técnica de

Gonçalo M. Tavares mostra-se bastante adequado à compreensão do silêncio no texto

literário. Nesse romance, o autor ousa um trabalho inédito com a linguagem. Libertando-se

das formas tradicionais e usuais do romance, busca no silêncio todo espaço e toda força para

alcançar com sua obra a máxima expressividade.

A presente dissertação propõe, portanto, desvelar os modos de construção e operação

dos silêncios, bem como os seus significados presentes na narrativa literária Aprender a rezar

na Era da Técnica, do autor português Gonçalo M. Tavares, observando a maneira como

silêncios manifestam-se na obra e que sentidos eles trazem ao texto no momento da leitura.

Para tanto, tenciona-se investigar minuciosamente as ocorrências dos silêncios na narrativa a

fim de melhor compreender a obra. Para atender a esse objetivo, esta dissertação está dividida

em três capítulos.

O capítulo primeiro desta dissertação intitulado Por uma teoria do silêncio faz um

levantamento de diversos autores e obras que focalizam o caráter fundamental do silêncio

para construção do sentido e para a organização do universo da linguagem. O quadro teórico

deste primeiro capítulo se organiza em quatro seções distintas, com o objetivo de demonstrar

as propriedades expressivas do silêncio.

A primeira seção examina a relação entre silêncio e linguagem. E demonstra que este é

um estado/condição constante que excede o poder de controle do homem. O silêncio, dessa

maneira, é inevitável e indomável. Para corroborar essas afirmações, foi necessário recorrer à

Eni Orlandi em As formas do silêncio: no movimento dos sentidos, cujo trabalho foi essencial

para execução dessa dissertação, pois com a precisão que lhe é característica, essa autora

demonstra que na linguagem o silêncio não é simplesmente acessório, mas fundante. Além

dessa autora, recorreu-se à obra Do Silêncio de David Le Breton que soube explorar as

propriedades do silêncio em uma extensa gama de contextos, permitindo reconhecer o poder

imensurável desse fenômeno e perceber que este não se opõe à palavra, mas alia-se a ela.

Além desses autores, Martin Heidegger em A caminho da linguagem, também se torna peça

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chave para compreensão desse fenômeno e sua relação com a linguagem e, sobretudo, a sua

relação com o homem.

A segunda seção do primeiro capítulo foi influenciada, sobretudo, por O silêncio

Primordial de Santiago Kovadloff. Foi Santiago Kovadloff que apelou primeiro ao "espírito

interdisciplinar" (KOVADLOFF, 2003, p. 12), apontando para a necessidade de conjugar

diferentes áreas do conhecimento e poder tangenciar2 o silêncio de maneira mais substancial.

Afinal, segundo esse mesmo autor, “todos convergem no final em uma avaliação equivalente

de seu sentido” (KOVADLOFF, 2003, p. 12). E ao fazer um levantamento bibliográfico que

versasse sobre silêncio, enquanto elemento significativo, apareceram livros e teses

anunciando o poder edificante do silêncio em diferentes áreas e empregando diferentes

olhares e com diferentes objetivos. São elas, o silêncio na filosofia, o silêncio na psicanálise,

o silêncio na teologia e o silêncio na literatura.

Considerando o extenso repertório e a multiplicidade de entendimentos sobre o

silêncio na filosofia, busca-se explorar a concepção do silêncio na linguagem a partir de

estudos de Bernard Dauenhauer (1980) e Maurice Merleau-Ponty (1992) e conferir a

contribuição desses estudiosos para essa matéria. Bernard Dauenhauer, cujo estudo intitulado

Silence: the phenomenon and its ontological significance (1980) resultou em uma das mais

bem elaboradas obras sobre a questão do silêncio e sua relação com a linguagem. Nessa obra,

observa-se a significação ontológica do silêncio e a sua relação entre homem e mundo. E,

como não poderia deixar de ser, o clássico ensaio de Maurice Merleau-Ponty intitulado A

linguagem indireta e as vozes do silêncio (1992) também será abordado devido à sua

interpretação luminosa da presença do silêncio na linguagem, pois para ele, a linguagem está

envolta em silêncio. Concepção que vem corroborar os estudos aqui realizados.

No campo da psicanálise, esta dissertação tem como principal componente norteador a

obra de Juan-David Nasio intitulada O silêncio na psicanálise (2010). São louváveis os

esforços desse autor que reúne alguns dos estudos mais relevantes e notáveis realizados sobre

o silêncio em psicanálise. Considerando sua fluência e sua busca pertinaz no entendimento do

silêncio, O silêncio na psicanálise converte-se em uma leitura obrigatória para a compreensão

do silêncio de forma mais ampla e clara. Evidente que não é objetivo deste estudo traçar um

histórico do silêncio em psicanálise, assim como fez Juan-David Nasio (2010), tampouco

2 O silêncio não é imediatamente apreensível. O silêncio é líquido. O silêncio é fugidio. O silêncio é fugaz e

escapa por todos os lados significando e ressignificando de muitas maneiras. Então, ao lidar com uma matéria

tão efêmera o pesquisador apenas resvala no silêncio ou no que restou de sua presença. Por essa razão, o silêncio

torna-se tangenciável, porém, imperscrutável.

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registrar as ocorrências clínicas do silêncio. Mas explorar a concepção de silêncio neste

campo de estudo significa apenas perceber de que maneira essa concepção se encontra com as

demais concepções aqui discutidas. Portanto, sobre esse aspecto é importante destacar apenas

algumas posições que são cruciais para a compreensão da obra que se pretende para essa

pesquisa.

Finalmente, no campo dos estudos literários procura-se entender os modos de

construção e operação dos silêncios dentro de um texto literário, e discutir alguns estudos

densos e luminosos que trataram dessa questão. Destaca-se assim Maria Lúcia Homem com a

obra No limiar do silêncio e da letra: traços de autoria em Clarice Lispector (2012), Gilberto

Mendonça Teles com Retórica do silêncio (1979) e o notório ensaio de Benedito Nunes

intitulado Linguagem e silêncio (2009).

Considerando que cada um desses autores procurou a melhor forma de compreender

esse silêncio que, segundo Octavio Paz “não é dissolução, e sim resolução da linguagem”

(PAZ, 2012, p. 314, grifo do autor). E ainda conforme Octavio Paz (2012) a atividade

literária, a criação poética, então, “nasce do desespero pela impotência da palavra e culmina

no reconhecimento da onipotência do silêncio” (PAZ, 2012, p. 314). Mediante essa

descoberta, ao potencializar o silêncio em um texto literário, esses autores percebem que,

entendê-lo como procedimento essencial para a literatura significa dar um novo olhar para as

questões propostas pelo autor, além de abrir o texto a um mar de possibilidades.

Ainda no primeiro capítulo também se buscou sublinhar as duas mais importantes

concepções de silêncio para essa dissertação: o silêncio fundante proposto por Eni Orlandi e o

silêncio primordial cunhado por Santiago Kovadloff. Afinal, um dos propósitos deste trabalho

consiste em averiguar as particularidades das concepções kovadloffiana e orlandiana do

silêncio para melhor tangenciá-lo e aludi-lo em Aprender a Rezar na Era da Técnica. Para

tanto, é importante contrastar e aproximar essas duas concepções a fim de ver quais são as

suas contribuições no âmbito literário, no sentido de favorecer e guiar esta pesquisa. Nesse

sentido, a modo de ilustração, o silêncio primordial será discutido mais aprofundadamente na

poesia (entendo-a como linguagem poética em geral) e, sucintamente, os demais modos de

alusão ao silêncio primordial eleitos por Santiago Kovadloff.

Na última seção do primeiro capítulo: Política do Silêncio: Silêncio Constitutivo e

Censura, discute-se a operacionalização do silêncio, ancorando-se, sobretudo, nas

considerações de Adam Jaworski e de David Le Breton a partir das obras The Power of

silence: social and pragmatic perspectives e Do silêncio, respectivamente. Devido ao fato de

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os autores terem trabalhado com inúmeros aspectos do silêncio no âmbito político e social,

discutindo as estratégias do silêncio e os seus efeitos nesses contextos políticos, seus trabalhos

têm grande relevância para a compreensão do contexto de Aprender a Rezar na Era da

Técnica. Eni Orlandi, por sua vez, descreveu a política do silêncio a partir de uma perspectiva

discursiva proporcionando a esta dissertação uma compreensão mais detalhada dessa outra

face do silêncio: o silenciamento e a censura.

No segundo capítulo intitulado Estrutura formal e silêncios em Aprender a Rezar na

Era da Técnica se discute a dinâmica do silêncio na forma de Aprender a Rezar na Era da

Técnica. Observa-se como o silêncio interfere na fórmula clássica do romance e quais são as

consequências do silêncio na narrativa. Em linhas gerais, o segundo capítulo aprofunda as

discussões sobre a presença do silêncio na literatura, mais especificamente, e discute a relação

entre o silêncio e o romance.

A fim de abordar as formas do silêncio no romance contemporâneo tendo como

principal referência Aprender a Rezar na Era da Técnica – obra do escritor português

Gonçalo M. Tavares – é necessário fazer um percurso entre os principais teóricos acerca do

romance, entre eles Georg Lukács A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre

as formas da grande épica (2006) e Ferenc Fehér O romance está morrendo?: contribuição à

teoria do romance (1972). Estes dois estudiosos foram fundamentais para a observação do

silêncio em Aprender a Rezar na Era da Técnica, pois seus trabalhos ofereceram as condições

necessárias para compreender e analisar os elementos de composição do romance, bem como,

suas formas e poder identificar de que maneira o silêncio é coparticipante nas formas do

romance.

De fato, conforme constatam Georg Lukács e Ferenc Fehér, o século XX promoveu

contundentes mudanças no gênero romanesco que perduraram até a atualidade e entre essas

mudanças destaca-se o silêncio na forma do gênero que surgiu na era burguesa. Diante dessas

considerações, pode-se afirmar que há inúmeros silêncios que fazem parte da constituição do

romance, pois a forma e o conteúdo do romance são produtos históricos que sintetizam um

determinado momento histórico. Sob a luz das discussões sobre as ambivalências feherianas é

possível perceber como o silêncio converte-se em um importante ingrediente para a

manutenção desse gênero literário.

O terceiro e o último capítulo desta dissertação – Desdobramentos dos silêncios de

Aprender a Rezar na Era da Técnica – demonstra como o silêncio se desdobra no romance.

As discussões sobre silenciamento e censura, e sua relação com o conjunto de personagens,

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são ampliadas. Busca-se, portanto, expor a face do sujeito autoritário que se apropria da

linguagem e, mais ainda, do silêncio para firmar seu poder. Além disso, ao recobrar as

discussões sobre o silêncio fundante e o silêncio primordial, o terceiro capítulo promove um

diálogo envolvendo Aprender a Rezar na Era da Técnica e o silêncio fundante e primordial.

O aporte teórico dessa última seção fica a cargo dos teóricos já mencionados, Eni Orlandi

(2007) e Santiago Kovadloff (2003), entre outros.

A proposta desta dissertação se justifica no meio acadêmico devido à relevância dos

estudos sobre os silêncios no campo literário e a carência de pesquisas realizadas nesta área.

Empreender uma pesquisa acerca deste assunto é de suma importância, visto que, a literatura,

de modo geral, é vazada de lacunas, de não ditos, de interstícios que, por sua vez, são

imprescindíveis à significação. O discurso literário cumpre sua função de representar a

sociedade e todos os fatores a ela ligados. Consoante Antonio Candido (2006, p. 20), "[...] a

literatura, como fenômeno de civilização, depende, para se constituir e caracterizar, do

entrelaçamento de vários fatores sociais [...]", e a necessidade do silêncio configura-se

enquanto um desses fatores. Além disso, o silêncio está cada vez mais presente na produção

literária contemporânea, que aborda a dificuldade de suportar o silêncio e a tentativa de contê-

lo, por meio do excesso da linguagem gerando ruído.

Questiona-se na literatura, o caráter primordial do silêncio, capaz de inscrever no

homem uma sensibilidade mais profunda que lhe permite confrontar a si mesmo e o mundo. E

é nesse sentido, que a obra do romancista português Gonçalo M. Tavares fora contemplada

para este projeto. A obra selecionada como corpus desta pesquisa intitula-se Aprender a rezar

na Era da Técnica (2008), ela narra a história de um médico, Lenz Buchmann, obcecado pela

técnica, precisão e a disciplina da guerra, fazendo tudo ao seu alcance, inclusive, perdendo a

própria humanidade, para sobreviver em uma sociedade igualmente cruel, fria e insensível.

Repleta de lacunas, interstícios e discursos não ditos, esta obra transborda o silêncio do

horror, da barbárie, do caos, da opressão, da angústia e da humanização, que necessitam ser

lidos e interpretados, pois corroboram para a melhor compreensão do texto.

A proposta em foco alicerça-se na concepção de que o silêncio significa no romance

tanto quanto a palavra. Dito isso, ao ressaltar a potência do silêncio no texto literário espera-

se que a percepção do silêncio possa inscrever no homem uma sensibilidade mais profunda,

permitindo que ele possa confrontar a si mesmo e o mundo. Espera-se que o leitor reconheça

não apenas o explícito, o nítido e o evidente ancorado nas palavras, mas o essencial à

constituição do homem que é, por natureza, irredutível ao verbo.

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2. Autor e obra

Gonçalo M. Tavares causa espanto aos leitores habituados àquela leitura linear e

estratificada que diverte e encanta. A obra tavariana, pelo contrário, e em especial o romance,

é desconcertante e perturbadora, não só pela forma chocante como ela apresenta o mundo ao

leitor, expondo as mazelas do mundo contemporâneo em pormenores, e quebrando, de tal

maneira, a passividade do leitor diante do objeto lido, mas, especialmente, pela forma como

ela envolve os leitores, transformando-os em coautores e coparticipantes da narrativa. Por

tudo isso, a obra de Gonçalo M. Tavares é simultaneamente bela e sombria. Bela, porque sua

obra tem provado ser geométrica e harmoniosa, repleta de requintes e sofisticação no trabalho

com a linguagem. Sombria, porque ela é capaz de explorar os cantos mais sombrios do “eu”,

sondando sítios que parecem ser insondáveis.

Movendo-se livremente entre os gêneros literários, tais como romance, conto, poesia,

teatro, ensaio, o leitor não deixará de notar o experimentalismo estético e formal, além do

intenso trabalho com a linguagem. É notável, então, o rigor e a precisão técnica dispensadas a

cada obra, criando algo completamente inédito no cenário literário contemporâneo. Sem

dúvida alguma, Gonçalo M. Tavares consagra-se como um novo fenômeno literário mundial,

graças à sua versatilidade literária e, sobretudo, sua genialidade e visão de mundo.

Ora, foi José Saramago que em ocasião do Prêmio Literário José Saramago em 2005,

em Portugal fez a seguinte colocação: “Gonçalo M. Tavares não tem o direito de escrever tão

bem com apenas 35 anos. Dá vontade de lhe bater” 3. Foi também José Saramago que disse:

“Vaticinei-lhe o prêmio Nobel para daqui a trinta anos, ou mesmo antes, e penso que vou

acertar. Só lamento não poder dar-lhe um abraço de felicitações quando isso suceder” 4.

Admirado e respeitado no meio literário, por sua obra singular, Antônio Guerreiro também

defendeu que Gonçalo M. Tavares “vale por uma literatura inteira” 5, pela riqueza que o

conjunto de sua obra encerra. Em todo caso, a literatura de Gonçalo M. Tavares, seja ela em

prosa, poesia, ensaio, teatro ou mesmo um gênero completamente novo e, por conseguinte,

3 Texto extraído de Entrevista: Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2010/07/767901-

portugues-goncalo-m-tavares-fala-sobre-maldade-saramago-e-o-brasil.shtml?mobile>

4 Texto extraído de Entrevista: Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2010/07/767901-

portugues-goncalo-m-tavares-fala-sobre-maldade-saramago-e-o-brasil.shtml?mobile>

5 Texto extraído de: <http://www.nosrevista.com.br/2013/11/29/antonio-guerreiro-%E2%80%9Cgoncalo-m-

tavares-vale-por-uma-literatura-inteira%E2%80%9D/>

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inclassificável, ilustra o espírito e desassossega o leitor. Instigando cada vez mais estudiosos a

desvendar os seus mistérios.

Nascido em agosto de 1970, em Luanda, Angola, Gonçalo Manuel de Albuquerque

Tavares, ou Gonçalo M. Tavares, como prefere, estreou na literatura em 2001, com O Livro

da Dança. Uma obra inclassificável que transita entre poesia e ensaio. De lá para cá, publicou

mais de trinta obras inéditas em Portugal e está sendo traduzido para trinta e seis idiomas e

publicado em pelo menos cinquenta e um países. Seus livros compreendem os mais diversos

gêneros: romance, conto, poesia, teatro e ensaio. Além desses, Gonçalo M. Tavares é criador

de gêneros híbridos inéditos e inclassificáveis. Segundo informações fornecidas em seu blog6,

além das inúmeras traduções publicadas ao redor do mundo, a obra de Gonçalo M. Tavares

tem inspirado outras artes. Até agora, da obra desse autor, surgiram peças teatrais, ópera,

peças de artes-plásticas, vídeos de arte, além de teses e dissertações acadêmicas.

Atualmente, aos quarenta e seis anos, considerado pela crítica como um dos grandes

nomes da literatura contemporânea, Gonçalo M. Tavares vem arrebatando leitores ao redor do

mundo com obras de grande expressividade e originalidade. Escritor premiado em mais de 11

ocasiões, com destaque para o Prémio LER/Millennium BCP 2004, o Prémio José Saramago

em 2005, o Grande Prémio de Conto da Associação Portuguesa de Escritores "Camilo Castelo

Branco" em 2007, o Prémio Melhor narrativa Ficcional da Sociedade Portuguesa de Autores,

edição de 2010, em Portugal, e internacionalmente reconhecido com o Prémio Portugal

Telecom 2007, no Brasil, Prémio Belgrado Poesia de 2009, na Sérvia, Prix Du Meilleur Livre

Étranger em 2010 na França. Gonçalo M. Tavares impressiona público e crítica a cada nova

publicação.

O repertório de Gonçalo M. Tavares é bastante vasto. E ele está organizado em:

Canções, Enciclopédia, Poesia, Teatro, Ensaios, Estórias, Investigações, Epopeia, além das

séries O Reino – os Livros Negros –, O Bairro e Bloom Books.

Os Livros Negros – O Reino – chamam especial atenção por sua riqueza e

complexidade. Composto de quatro volumes: Um homem: Klaus Klump (2003), A máquina de

Joseph Walser (2004), Jerusalém (2005) e Aprender a Rezar na Era da Técnica (2007), esta

tetralogia leva o leitor a confrontar o lado mais escuro da humanidade. Inquietante e

perturbador, na medida em que conduz o leitor pelas veredas da maldade, da violência e do

medo, os quatro romances juntos formam uma impressionante unidade capaz de suscitar no

leitor um imenso desconforto. No entanto, o próprio autor adverte que esses quatro romances

6 Blog de Gonçalo M. Tavares: <http://goncalomtavares.blogspot.com.br/>

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podem ser lidos separadamente ou por qualquer ordem, pois entre eles não há nenhuma

relação de dependência. Valendo-se de uma prosa intrincada, descontínua e com alto teor

filosófico, Gonçalo M. Tavares constrói uma teia narrativa repleta de interstícios e

intertextualidades.

Aprender a Rezar na Era da Técnica: posição no mundo de Lenz Buchmann é último

romance da série dos Livros Negros – O Reino, publicado inicialmente em 2007, pela

Editorial Caminho em Portugal e em 2008 pela Companhia das Letras no Brasil. Esse

romance narra a trajetória de Lenz Buchmann, um renomado médico cirurgião que abandona

o exercício da medicina para se dedicar à atividade política e, assim, estabelecer a sua posição

no mundo. Dividido em três grandes partes: Força, Doença e Morte, Aprender a Rezar na Era

da Técnica narra episódios insólitos da vida de Lenz Buchmann. Filho de uma família

burguesa tradicional, Lenz é criado sob um rígido código moral estabelecido pelo pai militar:

Frederich Buchmann.

No início do romance, antes de tornar-se um médico cirurgião renomado, o narrador

em terceira pessoa descreve brevemente alguns momentos excepcionais da vida de Lenz

Buchmann. Lenz é conduzido pelo pai até a criada da casa para “fazê-la” (TAVARES, 2008,

p. 18) e, assim, provar a sua masculinidade. Esse momento, no entanto, é traumático para a

personagem e irá influenciá-la no decorrer de toda narrativa. Além disso, a primeira cena é a

chave para compreensão de muita das atitudes de Lenz na vida adulta. Vítima da repressão, da

violência e do medo, Lenz nessa e em muitas outras cenas submete-se à vontade do pai.

Com um misto de reverência e medo, Lenz tenta esconder e lidar com o pânico que a

figura do pai provoca. A cada novo episódio narrado a voz do pai reverbera com força em

Lenz, tal como ocorreu na cena inicial. Os ensinamentos do pai misturam-se às elucubrações

filosóficas de Lenz Buchmann. E estas são frequentemente retomadas pelo narrador, de modo

que, toda fase adulta de Lenz será influenciada pela postura fria e violenta de Frederich

Buchmann. Como médico cirurgião, Lenz, então, imagina-se como um soldado, assim como

seu pai. Um soldado, que na Era da Técnica aliado à máquina e à própria técnica combate

ferozmente a doença.

Tendo a técnica como sua aliada, Lenz acredita que tem a natureza como sua inimiga.

E no entendimento de Lenz, na batalha travada entre homem e natureza existe um complexo

jogo de forças, segundo o qual, o homem se opõe naturalmente à natureza. A imutabilidade da

natureza e a mutabilidade e dinâmica do homem patenteiam diferenças irreconciliáveis.

Segundo Lenz, apenas as emoções e as paixões humanas pareciam imutáveis como a natureza.

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E como Lenz estava ao lado da técnica e da medicina, não poderia conceber qualquer

sentimento de empatia ou mero sinal de emoção que correspondesse à natureza, porque

naquela conjuntura paixões humanas eram incompatíveis, logo inaceitáveis.

Assim, Lenz cumpre sua função enquanto médico magistralmente. Apenas porque

compete a ele, enquanto médico, combater as doenças que afligem o ser humano como um

verdadeiro soldado em campo de batalha combateria o inimigo. Lenz frequentemente

perturba-se quando sua competência profissional é confundida com um gesto de bondade. A

cada nova frustração da personagem no exercício da medicina, vem acompanhada de

complexas observações e divagações filosóficas que revelam o alto grau de pragmatismo,

frieza e insensibilidade que conduz Lenz Buchmann. O apurado raciocínio lógico que é

conduzido pela personagem para sustentar e, ainda, justificar as suas atitudes com relação a si

próprio e as demais personagens do romance alcança um engenhoso domínio do jogo

intelectual e de sutilezas lógicas que extrapolam a esfera desse romance e permitem ao leitor

estabelecer relações com diferentes textos do cenário literário e filosófico.

Logo após o funeral de Albert Buchmann, o irmão mais velho de Lenz, o último

Buchmann percebe que a sua luta contra a natureza e que sua luta em prol da técnica poderia

ser estendida para toda cidade, que ao invés de tratar de casos individuais e ter a sua área de

influência restrita e limitada, poderia ser um político. E como político teria o poder necessário

para transcender as fronteiras que a medicina não lhe permitiria jamais transpor. Motivado,

então, por uma ambição pessoal, a de determinar a sua posição de centro no mundo, Lenz

converte-se em um dos mais poderosos políticos do Partido.

O Partido sem nome e que parece não enfrentar nenhuma oposição, exceto a dos

homens que se refugiaram na natureza e que, portanto, têm a natureza como sua aliada, é o

Partido que Lenz busca para ampliar a sua luta contra a natureza e estabelecer o seu Reino.

Sua atividade no Partido, embora curta, proporcionou o encontro com Hamm Kestner, o

homem forte do Partido. Hamm Kestner era o homem que foi capaz de despertar e inspirar em

Lenz a confiança necessária para poder operar o organismo da cidade inteira, asssim como

fazia quando era cirurgião, mas agora em proporções maiores, nem que para isso custasse o

equilíbrio e a estabilidade da mesma.

Convencido de seu potencial, sem dizer expressamente, considerava-se a si próprio o

“espírito da cidade”, arrebatado por uma vontade militar de transformação, Lenz tinha planos

junto com Hamm Kestner para a cidade. Mas os seus planos foram ameaçados por uma

doença: um cancro no cérebro. É interessante observar que um homem que vive orientado,

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sobretudo, por uma perspectiva racionalista e prática da vida, é acometido por um doença no

cérebro que compromete todo o seu estilo de vida. Essa mancha negra cresce e se espalha

afetando suas capacidades mentais e cognitivas.

Certamente, após a evolução de seu quadro clínico, Lenz já não era mais capaz de

assegurar a sua racionalidade, sua independência e sua própria dignidade. A descoberta da

doença, em um primeiro momento, porém, não foi capaz de abalar a Lenz e impedir que ele e

seu colega de Partido arquitetassem planos e fizessem maquinações perversas repletas de

sutilezas lógicas e de um requintado teor filosófico. Lenz plantou uma bomba e explodiu uma

estátua em local estratégico para disseminar o medo na cidade. E mesmo doente, torna-se o

número dois nesse Partido sem nome. Inclusive, Lenz havia cogitado assassinar seu colega

Hamm Kestner, mas a evolução da sua doença impediu que muitos de seus planos se

realizassem.

Na última e terceira parte do romance, narra-se a luta de Lenz Buchmann contra a

doença que, gradativamente, consome as suas forças deixando-o complemente dependente e

debilitado. A batalha travada entre Lenz e natureza, nessa última parte, vai dando sinais de

esgotamento, que se materializa no esgotamento físico e psíquico da personagem. A fase final

da vida de Lenz, entretanto, é invadida novamente por uma série de observações, de delírios,

de cogitações filosóficas a respeito da vida, dos outros homens e do mundo.

Aprender a Rezar na Era da Técnica é um desses romances que inquieta o leitor pelo

modo como trabalha meticulosamente com a linguagem. Entretanto, não só o trabalho com a

linguagem, que, por sinal, é impecável e sofisticado, é levado em conta, mas também aquilo

que está além da linguagem, aquilo que excede a dimensão do verbo, mas que ainda assim é

contemplado no romance. Em outras palavras, leva-se em conta o silêncio que o romance

evoca. Tudo isso confere a este romance uma riqueza incomensurável.

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CAPÍTULO I

POR UMA TEORIA DO SILÊNCIO

“O silêncio é fuga de tudo, sem separação de coisa alguma, porque tudo está dentro do próprio silêncio: nele, vestidas de eternidade, estão todas as palavras despojadas de tempo”.

(Michele Frederico Sciacca)

O primeiro capítulo desta dissertação versa sobre o caráter fundamental do silêncio na

constituição da linguagem. Ao reconhecer a imprescindibilidade do silêncio, considera-se que

ele está presente na linguagem, embora não se confunda com ela. Assim, a linguagem

atravessa o silêncio e caminha por ele. Provando ser maior que a linguagem, o silêncio,

inevitavelmente, perpassa por todas as esferas da linguagem e passa a ser objeto de interesse

das Ciências Humanas e da arte. A atitude das Ciências Humanas – diante de um fenômeno

tão denso e tão complexo – dispersa a concepção do silêncio na linguagem, evidenciando o

caráter fluído dos sentidos dos silêncios e provando mais uma vez ser um fenômeno obscuro e

indômito. Em decorrência disso, uma vasta gama de concepções surgiu tentando abordar o

poder absoluto e edificante do silêncio e observar como essa potência opera diretamente na

linguagem, mas que não se deixa conquistar por ela.

Dessa força, aliás, surgiu uma série de formulações e conceitos que homologam o

caráter constante, fundador e primordial do silêncio. Sob a forma de um silêncio potente e

ubíquo que fala obliquamente, que diz sem dizer, ou sob a forma de um silenciamento que

apaga certos sentidos em detrimento de outros, mas que, ainda assim, não deixa nada sem

significar, este capítulo dedica-se ao exame do silêncio da forma mais abrangente possível: o

silêncio e o silenciamento; com o intuito de que os apontamentos teóricos realizados aqui

possam orientar os capítulos subsequentes.

1.1 Silêncio e Linguagem

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O silêncio é inerente à linguagem, de modo que ele não está fora, mas dentro dela e

também além. O silêncio revelador, inquietante e obscuro se mostra assim como um elemento

preliminar para tangenciar aquilo que é, por assim dizer, inefável, inexprimível, indizível e

irredutível a qualquer explicação. Isso porque o silêncio é sentido absoluto em si mesmo, ou

seja, o silêncio traduz-se em si mesmo. Eni Orlandi (2007, p.23) esclarece que “se a

linguagem implica silêncio, este, por sua vez, é o não dito visto do interior da linguagem”. O

que se pode inferir é que o silêncio trabalha no interior da linguagem, e se a linguagem

significa e expressa algum sentido, é por meio do silêncio que esse sentido se constrói e se

manifesta. Em outras palavras, o silêncio é o caminho da linguagem, caminho este que se faz

necessário para não cair em um abismo e pairar em um nada, no vazio sem sentido.

Na transcendência da linguagem o silêncio também encontra repouso, de tal modo que

o inominável e o intraduzível se fazem ressoar vibrantes e inesgotáveis. O silêncio que

transcende a linguagem é um silêncio maior, completamente incógnito, cujo semblante

sempre permanecerá, em certa medida, ignoto e repleto de reservas para as quais a sua

apreensão total será, definitivamente, impossível e inapreensível. Esse silêncio além da

linguagem consagra-se infinito e originário, sugerindo a ideia de um silêncio absoluto

(KOVADLOFF, 2003). Tal como o silêncio de Aprender a Rezar na Era da Técnica, um

silêncio que nada exclui e que é envolvente e abrangente em sentido, pois para esse silêncio

não existe “[...] um único ouvido surdo ou um único olho cego: tudo seria envolvido”

(TAVARES, 2008, p. 156). O indizível em sua essência, portador de uma atmosfera

infranqueável no entender de Santiago Kovadloff (2003) joga com o real e com o irreal e

transcende o limite da significação e da própria linguagem.

Independentemente de sua manifestação, seja na linguagem ou na transcendência da

linguagem, fica suficientemente claro, até aqui, que o silêncio não é um fenômeno físico em

que há completa e total ausência de som, ruído ou manifestação verbivocal. O silêncio é “uma

modalidade de sentido” (LE BRETON, 1999, p. 141), capaz de alcançar o irrepresentável,

sendo, portanto, ele também irrepresentável. Em Aprender a Rezar na Era da Técnica, por

exemplo, o leitor é confrontado com a incontestável presença do silêncio na linguagem.

Silêncio que é pura potência, evidentemente, não se traduz por palavras ainda que esteja

acompanhado delas. “A sensação era de que, se aqueles dois homens falassem entre si, ela

não entenderia uma única palavra. Mesmo que falassem a língua comum [...]” (TAVARES,

2008, p. 298). Daí reside sua potencialidade e também a dificuldade em administrá-lo, pois

ele não se permite conceituar, pois ele é inapreensível em sua plenitude.

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Etimologicamente, a palavra silêncio deriva do latim, Silentium, que significa silêncio,

descanso, repouso e quietude. Eni Orlandi em seu célebre livro intitulado As formas do

silêncio: no movimento dos sentidos (2007), diz que Silentium do latim deriva de Silens “que

significa que se cala, silencioso, que não faz ruído, calmo, que está em repouso, sombra, etc.”

(ORLANDI, 2007, p. 33). A autora ainda recorda que os latinos possuíam duas palavras para

exprimir a ideia contemporânea de silêncio; essas palavras eram sileo e taceo.

Embora, os latinos não distinguissem sileo de taceo, cuja distinção mais precisa seria

que o primeiro remete ao que hoje é entendido como silêncio, enquanto que, o segundo

remete ao ato de calar, Eni Orlandi observa que, “primitivamente, sileo não designava

propriamente ‘silêncio’ mas ‘tranquilidade’, ausência de movimento ou ruído” (ORLANDI,

2007, p. 33). Silentium é uma palavra que sugere um estado que o homem tem ao seu alcance,

uma condição que pode ser vislumbrada, ou seja, a vivência de calma e de quietude. Em

contrapartida, taceo sugere uma renúncia da ação do homem de emitir som ou ruído, uma

atitude que tanto pode ser facultativa ou impositiva, mas resultante da ação do homem

(GRÜN, 2010). Enfim, Silentium é, por sua natureza, inevitável, involuntário e essencial. Em

suma, Silentium é um estado necessário, enquanto que taceo é uma atitude ou uma ação em

relação a alguma coisa.

Sileo originou no português a palavra “silêncio”, que faz menção a um estado de

calma, de tranquilidade e de quietude, no espanhol, “silencio” e no catalão “silenci”, ambos

designam o estado de completa ausência de som ou ruído e calma, no inglês “silence”, remete

a “stillness” que é traduzido por tranquilidade, no francês “silence”, é apontado no dicionário

como ausência de ruído em um lugar calmo e, metaforicamente, designa paz, no grego

“σιωπή/ siōpḗ”, frequentemente associado ao verbo latino silentium, figurativamente, remete à

ideia de eloquência ou quando se expressa muito sem dizer nada, e no italiano, “silenzio”,

pode se referir a uma condição ou estado caracterizada pela ausência de ruído, além de que

pode ser agradável e relaxante.

O silêncio é, de fato, para todas essas línguas, um estado ou uma condição de paz e

tranquilidade, além de que para o grego, o silêncio também evoca a ideia de um estado

positivo e significativo. Enquanto que “taceo” originou no português a palavra “tácito”, no

francês “taire”, no italiano “tacere” e no romeno “tăcea” e todas sugerem a ideia de calado,

de apagamento ou de um vazio. Jean Jacques Lacan em seu Seminário, A Lógica do

Fantasma (2008), também tratou de distinguir sileo de taceo, e para o psicanalista francês,

taceo é a palavra não dita, o calar, o emudecimento ou o fato de ser silenciado.

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Anselm Grün (2010) acredita que calar é um agir. Cala-se para omitir, para cessar o

sentido, para conter o fluxo contínuo de sentidos que se deixam ir pelos caminhos do silêncio

na linguagem. “Calar é um ato humano. O homem exercita-se no sentido de conter a fala, não

apenas exteriormente, mas também se calando internamente [...] parte do princípio de calar os

pensamentos que vêm continuamente à tona” (GRÜN, 2010, p.9). O silêncio, por outro lado,

simplesmente existe entre nós, ele convive conosco. O silêncio não se opõe à condição de

significar, mas o calar sim. Muito embora, o calar oponha-se à condição se significar, ele não

consegue conter o silêncio, de modo que até o calar significa pelo silêncio. De fato, a atitude

de Frederich Buchmann confirma esse poder do silêncio em relação ao calar. Frederich

Buchmann cala o medo existente em seus filhos, mas o medo nunca deixou de significar. O

medo, para Lenz, era um interdito que se manifesta em cada silêncio seu.

A ideia de que o silêncio, portanto, não é uma prática ou uma ação, mas um estado ou

uma condição contínua fica reforçado pelos esclarecimentos feitos por Eni Orlandi (2007) e

Anselm Grün (2010). David Le Breton, em seu renomado livro Do silêncio (1999), também

explora essa propriedade do silêncio apontada por Eni Orlandi (2007) e explica que:

Qualquer meio ressoa com manifestações sonoras características, mesmo que

sejam, por vezes, espaçadas, ténues, longínquas [...] Há sons que se juntam

ao silêncio sem perturbar a sua ordem. Às vezes mesmo revelam sua

presença e salientam a qualidade auditiva que antes não tinha sido percebida.

Ainda que o murmúrio do mundo não pare nunca, conhecendo apenas

variações de grau, com o passar do tempo, dos dias e das estações, há lugares

que não deixaram de dar a impressão da chegada do silêncio [...] A sua

manifestação acentua a sensação de paz que emana do lugar. (LE BRETON,

1999, p.141-2).

E é justamente por isso, que para os latinos “emprega-se sileo para falar de coisas, de

pessoas, e, especialmente, da noite, dos ventos e do mar. Silentium, mar profundo. E aí,

deparamos com o aspecto fluído e líquido do silêncio” (ORLANDI, 2007, p. 33). À vista

disso, vê-se que o silêncio, em nenhuma dessas designações, remete à ausência de som ou à

mudez, em vez disso, o silêncio é interpretado como um estado. Gilberto Mendonça Teles, em

Retórica do Silêncio (1979), lembra que a própria palavra silêncio exprime silêncio como

também faz transparecer esse aspecto líquido e fluído até em seu significante.

O silêncio é um daqueles ‘vocábulos expressivos’, de que fala J. Mattoso

Câmara Jr., vocábulos cuja estrutura fonológica se apresenta ‘como

apropriada ao significado’: a repetição das sibilantes surdas (si...ci), a tônica

anasalada, o ditongo crescente a prolongar a sibilação reiterada, a consoante

constritiva e lateral da sílaba tônica, situada exatamente entre as sílabas

repetidas, tudo isso concorre para que a significação comum da palavra

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silêncio se enriqueça de possibilidades rítmicas como se nessa palavras

houvesse ao mesmo tempo, o som e o não-som, a música da fala e a pausa

melodiosa de outra fala em perspectiva. (TELES, 1979, p. 8).

Por isso, acredita-se que o silêncio permeia a comunicação e que se inscreve na

linguagem, de tal maneira que se deixa perceber até em seu significante. Vibrante e inevitável

o silêncio evidencia de uma vez por todas a possibilidade de que a vida se constitui em

harmonia com silêncio. Embora não pareça tão evidente observá-lo por ser inapreensível, a

experiência com o silêncio desperta uma consciência sobre os fatos da linguagem. Além

disso, “em vez de ausência de fala, o silêncio se deixa ler como o espaço de outras ‘falas’, de

outras linguagens, como a pausa na música, como a página branca ou o espaço em branco de

um livro [...] criando tensões e expectações” (TELES, 1979, p.12). Esse silêncio cria uma

atmosfera que, de certo modo, envolve toda linguagem e toda forma de expressão. O domínio

do silêncio é o domínio de todas as linguagens. Não há linguagem que não exprima silêncio.

Tendo observado sua natureza contínua e permanente, fica mais evidente que não é

possível evitar o silêncio de modo absoluto. O silêncio convive com o homem, ele está

presente em nossa realidade de maneira constante. E Aprender a Rezar na Era da Técnica

homologa essa afirmação, pois nesse romance tudo implica silêncio. Destarte, o exercício da

linguagem é marcado pela presença inconteste do silêncio. O silêncio é uma condição

fundamental para o dizer e, por conseguinte, fundamental para a linguagem de modo geral.

Tal teorização tem uma implicação fundamental nos estudos da linguagem, uma vez

que se elege o silêncio como um estado constante e permanente, fica excluída a possibilidade

de ele ser entendido como um mero acidente na linguagem ou como algo circunstancial e que

pode ser evitado. Eni Orlandi (2007) postula que se deve pensar o silêncio como um estado

primeiro, anterior à própria palavra. Segundo a autora, observa-se que essa condição está

representada em expressões da língua como: “estar em silêncio/ romper o silêncio; guardar o

silêncio/ tomar a palavra; ficar em silêncio/ apropriar-se da palavra” (ORLANDI, 2007, p.

31). Expressões tais que evidenciam o estatuto primeiro do silêncio frente à linguagem verbal.

O que consiste em dizer que pensar a linguagem implica considerar o silêncio que nela se

encontra para construir os sentidos, visto que não há nada na linguagem que seja

simplesmente dado e que dispense a necessidade de interpretação.

A construção do sentido impõe sobre o homem o peso do silêncio e da contemplação

silenciosa, não se podendo, portanto, extrair sentido sem o exame inevitável do silêncio. O

silêncio é inaugural e originário para o sentido, sendo que não há sentido sem a sua presença.

Entende-se o silêncio como um lugar ou espaço fundamental que permite à linguagem

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significar. Então, como não reconhecer a presença indelével do silêncio na linguagem? Ao

indagar acerca do silêncio na linguagem, percebe-se que não se pode escapar do silêncio que

tangencia a linguagem, porque o silêncio é incontornável e a linguagem inaugura em si o

estatuto irrevogável do silêncio. E a linguagem apresenta-se ao homem no caminho do

silêncio, porque ela se encontra assentada em silêncios. A título de ilustração, destaca-se em

Aprender a Rezar na Era da Técnica a seguinte passagem: “Dá-me um nome para te

substituir [...] mas o mundo não parava e o Dr. Lenz Buchmann foi interrompido nestas

considerações mentais [...] com os seus chamamentos sucessivos, o silêncio que se instalara

no hospital” (TAVARES, 2008, p. 50). Patenteando a presença constante desse silêncio.

Muito frequentemente se atribui à linguagem a ideia de que ela é o limite do que pode

ser dito. Restringe-se o poder da linguagem apenas ao domínio verbal. Não obstante, percebe-

se que a linguagem excede a experiência verbal. Nota-se, por exemplo, que, muitas vezes, o

homem é arrebatado por uma sensação que atormenta o seu “eu” ou que o homem é inspirado

por um sentimento que lhe aviva o espírito, e que em ambos os casos essas sensações parecem

ser impossíveis de ser traduzidas. Fato que se torna recorrente entre os poetas e os escritores,

mas também pode o ser para os homens comuns. Homens, cujas vidas impressionantes,

presenciaram ou presenciam situações inacreditáveis, indescritíveis e extraordinárias, e diante

de tais situações, sejam elas traumáticas ou sublimes, parece que a linguagem lhes falta, que

há uma falha na linguagem. Mas se a linguagem é como se diz e como bem lembra Octavio

Paz em O Arco e a Lira (2013, p. 112): “significado: sentido disto ou daquilo”, como poderia

haver uma falta na linguagem?

Vê-se na impossibilidade de verbalizar uma situação, como uma falha da linguagem,

na impossibilidade de a linguagem em dar conta do real. Entretanto, é preciso pensar que

tanto experiências inenarráveis ou sensações inexprimíveis não caem, simplesmente, no vazio

ou no abismo do esquecimento por não haver palavras o suficiente para descrever ou

transmitir essas experiências. Perante momentos inenarráveis ou inexprimíveis, ainda que

faltem palavras e, com certeza, faltarão, não faltará silêncio que manifeste a magnitude

daquilo que se quer transmitir. De fato, não é a linguagem que falha, mas as palavras que se

mostram insuficientes. Tal como acontece ao policial ao lamentar a morte de Maria

Buchmann, a esposa de Lenz assassinada por ele mesmo.

Com a falta de palavras, o silêncio expressa com grande eloquência o que se pretende

dizer sem que se tenha de dizer. “Assim, na ausência do signo verbal, outro signo se impõe: o

do silêncio” (TELES, 1979, p. 9). Nesse sentido, é um equívoco pensar que a linguagem falha

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ou que a linguagem tem lacunas ou, ainda, que ela não é capaz de suprir e traduzir momentos

únicos e importantes, porque até aqui, a linguagem parece se valer do silêncio. E o silêncio,

por sua vez, parece ser o melhor e o único meio de narrar o inenarrável e exprimir o

inexprimível. Não se deve, dessa forma, culpar a linguagem por supostamente haver uma

lacuna, porque são as palavras que são limitadas e insuficientes. Independente da língua ou do

repertório do sujeito, as palavras sempre faltam, o que não falta jamais é silêncio.

Georg Steiner, em sua obra referencial Linguagem e Silêncio (1988, p.40), afirma que

“a linguagem (verbal) só pode lidar, de modo significativo, com um segmento especial e

restrito da realidade. O resto, e é provável que seja a parte maior, é silêncio” Georg Steiner

(1988, p. 39) chega a essa conclusão, a partir da indagação proposta por Ludwig Wittgenstein,

em que o filósofo alemão se pergunta “se a realidade pode ser expressa pela fala”. A fala, em

sentido estrito, não é capaz de representar a realidade como um todo, mas a linguagem é,

porque ela (a linguagem) se nutre do silêncio. A linguagem não se faz só de palavras, a

linguagem extrapola o universo das palavras. Ao tratar da intrínseca relação entre linguagem e

silêncio, Steiner estabelece o silêncio como elemento fulcral na relação do homem com a

linguagem.

Em vários ensaios, Georg Steiner descreve uma falência da matéria verbal. Para ele "o

mundo das palavras encolheu" (STEINER, 1988, p. 43), não porque o vocabulário tenha sido

reduzido ao longo dos séculos, mas porque as palavras, conforme esse autor, não são mais o

bastante para representar o mundo hoje e, talvez, nunca tenham sido. Assim, a linguagem

verbal demonstra não ser capaz de expressar e conter toda a realidade, mas onde faltam

palavras, vibra silêncio, de modo que o silêncio não deve ser encarado numa perspectiva

negativa, mas positiva, como argumenta Eni Orlandi.

A profusão do conhecimento levou a sociedade, sobretudo, aqueles que trabalham com

a linguagem, os escritores e os poetas, os filósofos e até o analista do discurso a perceber a

existência de uma lacuna entre a realidade empírica e os fatos da linguagem verbal. A palavra,

assim, manifesta a sua limitação frente aos significados e aponta para uma única saída: o

silêncio. O retrato da crise da linguagem verbal traçado por Georg Steiner evidencia que "uma

civilização de palavras é uma civilização atormentada. Palavras criam confusão. Palavras não

são expressão" (STEINER, 1988, p. 72). As palavras, ainda segundo esse autor, mostram-se

inadequadas à revelação e à essência da linguagem.

Georg Steiner cita o filósofo e ensaísta francês Brice Parain que elege a linguagem

como "limiar do silêncio" (STEINER, 1988, p. 72). Visto dessa maneira, é possível admitir

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que o silêncio não é um aparte da linguagem e que o silêncio não é linguagem. O silêncio está

na linguagem, mas não se confunde com ela. O silêncio cumpre o papel de um “caminho”

pelo qual a linguagem se aproveita para significar. O silêncio é o espaço de significação e de

expressão da linguagem. Mesmo nutrindo a linguagem, não se exclui a possibilidade de o

silêncio também excedê-la.

Entretanto, Eni Orlandi (2007), por exemplo, afirma que dentro de abordagens

formalistas e estruturalistas da linguagem, não há espaço para o silêncio enquanto elemento

significante. Consonante a autora, as noções de meta e ausência não compreendem o silêncio

dentro dos fatos da linguagem. Não obstante, é preciso considerar a linguagem e o silêncio

que é nela constitutivo e fundante (ORLANDI, 2007). A linguagem manifesta a

impossibilidade de dizer tudo de uma só vez e sobre tudo e, assim, esgotar os sentidos. Por

isso, elementos mais significativos em Aprender a Rezar na Era da Técnica não estão

evidentes, eles se deixam descobrir aos poucos nos silêncios, nas lacunas, nas fissuras do

texto. Basta considerar o capítulo “Reflexões sobre a doença” (TAVARES, 2008, p. 61), onde

Lenz associa a doença a uma flor negra. A linguagem na sua relação com a totalidade do

mundo é inconcebível e, portanto, marcada por silêncios e interditos. Convém lembrar

também que a linguagem, para Fábio Elias Tfouni (2008), se organiza não só a partir do

silêncio, mas também pelo interdito. O interdito, para esse autor, é entendido como um

operador de corte fundamental na produção de sentidos que revela a incapacidade de dizer

tudo.

Segundo essa perspectiva, a busca da completude da linguagem – o que

implicaria a ausência do silêncio – leva à falta de sentido pelo muito cheio,

mesmo se, do ponto de vista estritamente sintático, há gramaticalidade [...]

Para falar o sujeito tem a necessidade do silêncio, um silêncio que é

fundamento necessário ao sentido e que ele reinstaura falando. (ORLANDI,

2007, p. 69).

A concepção do silêncio enquanto modalidade de sentido faz supor que sem a

presença do silêncio, a linguagem verbal converte-se em um vozerio, saturado por discursos

vazios e sem sentido. E, ao mesmo tempo, em que se sugere que há muito mais no mundo e

no próprio homem que não é passível de ser verbalizado, nem por isso, é impossível de

significar para o outro além daquele que vivencia. É pelo silêncio do outro que se intui e que

se conhece a magnitude de um evento quando as palavras se mostram insuficientes e

insatisfatórias.

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É incontestável que a linguagem excede em muito a ordem das palavras, porque para

Eni Orlandi (2007), a linguagem nasce do silêncio e é no silêncio que a linguagem se

desdobra. Além do que é impossível conceber a palavra sem a marca do silêncio. Michele

Sciacca (1967) acredita que as palavras são geridas no silêncio e que morrem no silêncio. O

autor ainda defende que “a palavra nasce do silêncio, vive no silêncio, culmina no silêncio,

última palavra, além de qualquer palavra” (SCIACCA, 1967, p. 23). Como se pode

reconhecer ao final do romance, quando Lenz rende-se ao silêncio e sua última palavra fica

impronunciada. Isso quer dizer que as palavras só são expressivas porque nascem do silêncio

e porque são costuradas por silêncios que se deixam distinguir entre significantes os sentidos.

A partir dessa concepção, pode-se chegar à proposição de que o silêncio é, além de

inevitável, necessário à organização da linguagem. É ele que garante o movimento dos

sentidos. Como se sabe, “a significação não se desenvolve sobre uma linha reta, mensurável,

calculável, segmentável. Os sentidos são dispersos, eles se desenvolvem em todas as direções

[...] entre as quais se encontra o silêncio” (ORLANDI, 2007, p. 46). Nessa perspectiva,

entende-se que o silêncio infinito e imensurável surge como a possibilidade na linguagem de

polissemia e da multiplicidade de sentidos, porque a linguagem se desdobra através do

silêncio e, gradualmente, deixa-se revelar, mas nunca inteiramente, sempre à tutela do

silêncio. Assim, fica postulado que a linguagem é, indubitavelmente, atravessada por silêncio.

Todas as múltiplas linguagens passam pelo domínio do silêncio.

Adam Jaworski afirma em The Power of Silence (1993) que o silêncio se faz presente

o tempo todo, ainda que se apresente de múltiplas formas e modos, o silêncio sempre significa

pela linguagem verbal e não verbal. Às vezes, “em alguns casos, certos silêncios são mais

facilmente reconhecidos e identificados do que outros que aparecem escondidos em uma

multidão de palavras” (JAWORSKI, 1993, p. 8, tradução nossa) 7, mas ainda que cercado de

palavras, o silêncio sempre está lá. Em decorrência disso, Adam Jaworski (1993) entende que

o silêncio não se opõe ao discurso, ou às palavras, o silêncio, também, não se opõe a

linguagem verbal, mas ambos formam um fluxo contínuo. “A linguagem não é somente

palavras faladas, pictóricas, musicais; é palavra e silêncio juntos” (SCIACCA, 1967, p. 29).

Toda linguagem, para Michele Sciacca (1967), independente de sua modalidade, nasce do

silêncio infinito e intraduzível, cuja potência significativa não pode ser contida, a não ser pelo

próprio silêncio e, tampouco, alcançada plenamente, apenas entreluzida, porque o silêncio é

7 “Some instances of silence are easily recognized and identified than other that appear concealed in a multitude

of words” (JAWORSKI, 1993, p.8 – tradução nossa).

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força contínua e incessante, e, a não interrupção desse fluxo possibilita a linguagem

(SCIACCA, 1967).

De fato, não se pode contê-lo, mas não seria por isso que não se pode percebê-lo e

estudar seus efeitos, seu(s) sentido(s), sua(s) forma(s). Muito embora, o silêncio seja um fluxo

incessante de sentidos, laivos de silêncio deixam-se perceber na linguagem. Essas marcas

formais do silêncio, que se insinuam na linguagem, permitem que o pesquisador possa intuir

os seus efeitos de sentido. O silêncio, de acordo com Santiago Kovadloff (2003, p. 11), “[...]

tem de residual o que guarda de refratário aos enunciados que se empenham em subjugá-lo”,

restando traços e marcas formais que permitem tangenciá-lo. Sinais e rastros de sua presença

que se manifesta constantemente na comunicação humana.

Essas marcas do silêncio são percebidas e intuídas em toda linguagem e pensar o

silêncio significa propor um mergulho no interior da linguagem e alcançar no silêncio os seus

mais profundos sentidos. Assim, ao refletir sobre a linguagem é importante adentrar em seus

caminhos silenciosos fazendo ressoar o silêncio que nela se encontra e que a nutre, porque no

silêncio a linguagem significa, retomando a hipótese de Eni Orlandi (2007). Então, para

adentrar os caminhos da linguagem, Martin Heidegger, em A caminho da linguagem (2003),

entende que é necessário, primeiramente, fazer uma experiência com a linguagem, na medida

em que essa experiência implica o fato de “deixarmo-nos tocar propriamente pela

reivindicação da linguagem, a ela nos entregando e com ela nos harmonizando”

(HEIDEGGER, 2003, p. 121), a fim de que se possa verdadeiramente adquirir conhecimentos

sobre a linguagem e perceber os sentidos que se guardam em seu âmago.

Por meio de vários escritos, o filósofo alemão considera que pensar a linguagem

significa percorrer pelos seus caminhos, sem pretender alcançar um fim. Os caminhos da

linguagem são em sua essência caminhos que se fazem por ela mesma para explorá-la em seu

próprio meio. Seus desdobramentos sugerem que a linguagem fala, mesmo sem estar

facultada com os órgãos da fala e mesmo sem emitir qualquer som. Simplesmente, a

linguagem fala, no sentido de que ela fala dizendo, ou seja, mostrando-se, desdobrando-se.

Então, pode-se inferir que a linguagem fala enquanto que o silêncio significa. Martin

Heidegger sugere, ao longo de sua obra, a linguagem como propiciadora do homem, de modo

que se o homem fala, ele fala a partir da linguagem. Assim, nessa perspectiva, o homem seria

a grande promessa da linguagem. A linguagem que é propiciadora da fala do homem. É a

linguagem que faculta a fala ao homem.

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É exatamente esse o pressuposto básico para o filósofo: a linguagem fala, mesmo sem

falar. Ela fala se mostrando. Talvez, por essa razão, Julia Liegnitz compreende o irmão

Gustav, o surdo-mudo. Dessa forma, “o homem fala à medida que corresponde à linguagem.

Corresponder é escutar. Ele escuta à medida que pertence ao chamado da quietude”

(HEIDEGGER, 2003, p. 26). Assim, intui-se que a linguagem, enquanto manifestação do ser

se deixa perceber pela relação entre escuta e silêncio, o que garante a harmonia na linguagem.

Além de tudo, o filósofo afirma que “nossa relação com a linguagem mantém-se

indeterminada, obscura, quase indizível” (HEIDEGGER, 2003, p. 122), o que vem

demonstrar uma consciência de que a relação do homem com a linguagem é atravessada pelo

silêncio, bem como, se evidencia a recusa de que a linguagem é um mero instrumento de

transmissão de informações.

Mas como conceber o silêncio na linguagem se a linguagem fala? É óbvio, que “dizer

e falar não são, porém, o mesmo. Alguém pode falar, falar sem parar e não dizer nada. Por

outro lado, alguém pode ficar em silêncio, não falar e nesse não falar dizer muito”

(HEIDEGGER, 2003, p. 201), porque, para Martin Heidegger, “a linguagem fala como

consonância do quieto” (HEIDEGGER, 2003, p. 24), prescindindo da emissão de sons para

falar. Então, a linguagem fala também no silêncio. O silêncio, dessa forma, no entendimento

de Martin Heidegger, é constitutivo da linguagem. Para ele,

A linguagem, que fala à medida que diz, cuida para que nossa fala,

escutando o não dito, corresponda ao seu dito. Assim também o silêncio, que

se costuma considerar como origem da fala, é prontamente um corresponder.

O silêncio corresponde à consonância do quieto, ela mesma sem som,

inerente à saga do dizer, essa que mostra e apropria. Mostrando, a saga do

dizer, que repousa no acontecimento apropriador, é o modo mais próprio de

tornar próprio. O acontecimento apropria em dizendo. (HEIDEGGER, 2003,

p. 211).

A caminhada empreendida por Martin Heidegger considera que a linguagem fala

também entremeada pelo silêncio. Em Martin Heidegger, ela significa na medida em que se

escuta o que ela está dizendo, deixando ressoar a sua voz não sonora e ouvir o que ela está

mostrando. Deixa-se revelar aquilo que é próprio do silêncio: o sentido.

Mas onde a linguagem como linguagem vem à palavra? Raramente, lá onde

não encontramos a palavra certa para dizer o que nos concerne, o que nos

provoca, oprime ou entusiasma. Nesse momento, ficamos sem dizer o que

queríamos dizer e assim, sem nos darmos bem conta, a própria linguagem

nos toca, muito de longe, por instantes e fugidiamente, com o seu vigor.

(HEIDEGGER, 2003, p. 123).

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Em vez, portanto, de esclarecer a linguagem tentando olhá-la por fora dela e propor

uma discussão sobre a linguagem, o que se tem na proposta de Martin Heidegger é alcançar a

linguagem a partir da própria linguagem, ou seja, buscar na linguagem aquilo que pertence à

linguagem. Nessa reflexão, destaca-se que para discutir sobre o silêncio e suas propriedades,

deve-se observá-lo a partir dos fatos da linguagem. Não se pode conceber o silêncio

excluindo-o da linguagem. A proposta heideggeriana defende um mergulho nos fatos da

linguagem, a partir de uma busca de uma experiência com a linguagem e permitir que a

linguagem fale mostrando o que foi dito e o que ainda não foi dito.

Mas, o próprio filósofo reconhece que essas concepções de linguagem não se bastam

por elas mesmas, que elas são insuficientes para alcançar a essência da linguagem. Ademais,

tampouco é de seu interesse criar uma concepção de linguagem que possa ser aplicada em

toda a parte esgotando a potência criadora da linguagem, que é fomentada pelo silêncio, sendo

essas mesmas perspectivas marcadas pela passagem indelével do silêncio. Só é possível falar

do silêncio a partir do próprio silêncio, assim como, só é possível falar da linguagem a partir

da própria linguagem porque a linguagem é inspirada pelo silêncio e, de certa maneira, falar

da linguagem implica evocar o seu silêncio. Assim como, para falar do silêncio implica em

evocar a sua manifestação na linguagem.

Situado assim como um dos elementos estruturadores e fomentadores da linguagem, o

silêncio é norteador para compreender as condições para a linguagem significar. Sendo uma

modalidade de sentido, o silêncio da linguagem é inquietante. Assim, em uma sociedade cada

vez mais saturada pela multiplicidade de linguagens, a busca do silêncio na linguagem torna-

se mais do que uma tentativa de alcançar o silêncio na linguagem, mas uma necessidade, uma

obsessão.

1.2 Silêncio e Silêncios

O silêncio é instigante e já desafiou inúmeras áreas do conhecimento a recobrar em

sua plenitude o seu significado. As Ciências Humanas tentaram alcançar em seu âmago a

essência do silêncio e a sua relação com a linguagem. Tanto a filosofia, a sociologia, a

psicanálise, a análise do discurso, a teologia e entre tantas outras áreas do conhecimento se

debruçaram sobre essa matéria e constataram, acompanhadas de muita observação e análise,

que o silêncio é uma abertura na possibilidade da compreensão do homem e do mundo.

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Atrevendo-se a ir mais além, o silêncio converte-se em uma abertura para vislumbrar o

intraduzível do ser e da linguagem.

Para aquilo que nas Ciências Humanas, na arte e na poesia o homem ainda não

conseguiu representar pelo signo verbal, convocou-se o signo do silêncio para preencher as

lacunas e aparar as arestas, de modo que nada fique desprovido de sentido, nem pelo vazio e

nem pelo muito cheio, inclusive o irrepresentável (TELES, 1979). Sobre o silêncio, pode-se

percebê-lo, pode-se intuí-lo, mas o que não se pode, de modo algum, é capturá-lo. É trabalho

inútil tentar conter o silêncio e fixar-lhe um sentido, tendo visto que o silêncio além de

irrepresentável é fugaz e os seus sentidos são múltiplos e inesgotáveis, pois escapam para

todos os lados, tornando-se, dessa forma, incontroláveis. Fica, assim, suficientemente claro,

que o empenho realizado pelas Ciências Humanas em administrar o silêncio é um trabalho

inesgotável e infindável.

Embora cada área, à sua maneira, empenhe incontáveis esforços, tentando abranger o

silêncio em sua plenitude, por intermédio de diferentes metodologias, esses campos do

conhecimento, ao final, acabam inevitavelmente dispersando a concepção do silêncio através

de diferentes áreas do saber, onde cada uma se ocupa de um fragmento e com um viés

diferente da ideia de silêncio. A ideia sui generis do silêncio, assim, converte-se em um

entendimento plural e diversificado da mesma matéria. Têm-se, desse modo, silêncios

múltiplos e significativos, em um amplo conjunto de imagens mais ou menos equivalentes

que se entretecem e que se interconectam podendo estabelecer relações de contiguidade com

perspectivas diversas.

O que há em comum entre todas essas concepções escolhidas é que o silêncio significa

ou que é essencial à constituição de sentidos. O silêncio permite lançar um olhar para o

interior do sujeito. Crê-se que nesse olhar interior o homem é capaz de vislumbrar mais longe

e despertar sentidos que não podem ser tangenciados pelo domínio verbal. Assim, o que se

tem a seguir é um panorama dos vários silêncios abordados nas Ciências Humanas.

Obviamente, nas linhas que se seguem não há nenhuma pretensão de abarcar tudo que foi

discutido e estudado sobre o silêncio dentro desses campos, além do que, isso é simplesmente

impossível. O que se propõe é apenas um recorte de algumas abordagens que pareceram

interessantes no seu trato com o silêncio e que porventura ajudarão as leituras e as análises

neste trabalho.

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1.2.1 O silêncio na filosofia

A fascinação do homem gerada pelo silêncio é de grande interesse dos estudos

filosóficos. O silêncio é insondável, desconcertante e se reveste de um ar de mistério e de

potência que inscreve nele uma aura de impenetrabilidade e, ao mesmo tempo, conserva algo

de instigante e de irresistível, que a filosofia se esforça em muito para alcançar, mas parece

ser uma tarefa infactível adentrar o silêncio. A filosofia conta com algumas das obras mais

célebres já produzidas sobre as propriedades do silêncio, que vem confirmar o seu caráter

fundamental, essencial e primordial na linguagem.

Sob muitos aspectos o silêncio já foi observado, por contraste ou por analogia.

Bernard Dauenhauer (1980) e Maurice Merleau-Ponty (1992), porém, se lançam a uma

empreitada hercúlea no sentido de escrever sobre o silêncio e desvelar esse mesmo silêncio

que nutre a linguagem e que se configura como elemento primordial e indispensável para a

produção de sentidos. A sua empreitada permite conceber o significado ontológico do

silêncio, bem como perceber os vários modos que o silêncio se apresenta ao homem, pois

esses modos são repletos de significados em si mesmos corroborando para o alto grau de

significação no discurso.

Escrever sobre o silêncio, então, não significa se opor a ele. Na verdade, escrever

sobre o silêncio significa, ao contrário, propor um exercício de linguagem ao fazer o silêncio

se revelar através das palavras, pois o estudo do silêncio consiste na observação da palavra e

do silêncio em busca de seu sentido mais amplo. Escrever sobre o silêncio é de fato um

exercício, pois equivale a um mergulho na linguagem para se abeirar do limite da

interpretação.

Em se tratando de Bernard Dauenhauer, no primeiro capítulo de sua obra, o filósofo

realiza as primeiras aproximações ao fenômeno do silêncio. E sob a luz da análise

fenomenológica, Bernard Dauenhauer distingue vários tipos e modos de silêncio que são

positivos e significativos em primeira instância. Há o silêncio da intromissão, há o silêncio

anterior e posterior, assim, como há o silêncio profundo que embora não seja tão identificável

quanto os demais modos de silêncio, o silêncio profundo para Bernard Dauenhauer está

intimamente ligado a qualquer elocução e já foi percebido e intuído por outros pensadores.

Sua concepção do silêncio distingue-se inteiramente da noção do silêncio enquanto

ausência de som. O silêncio, para Bernard Dauenhauer, caracteriza-se por ser pleno em

sentido e por ser fundamentalmente necessário em qualquer elocução. Em suas palavras, o

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“silêncio é um fenômeno rico e complexo. Alguns de seus aspectos são óbvios e largamente

reconhecidos. Outros podem ser detectados apenas através de um exame minucioso [...]”

(DAUENHAUER, 1980, p. 3). Enfim, independentemente da maneira como o silêncio se

apresenta ao homem, obviamente ou obliquamente, Bernard Dauenhauer reconhece que ele

não é uma mera ausência ou uma lacuna de alguma coisa, qualquer interpretação do silêncio

nesse sentido desqualificaria o valor e o estatuto positivo atribuído a ele. Assim como Eni

Orlandi, o silêncio na concepção de Bernard Dauenhauer é um fenômeno positivo e rico em

significados, de maneira que o próprio filósofo admite ser impossível dar um caráter

definitivo e qualificador do silêncio. Contudo, mesmo o silêncio sendo inconquistável, é

válido qualquer empreendimento que procura se lançar a uma compreensão mais profunda do

fenômeno do silêncio (DAUENHAUER, 1980). E é nesse sentido que o estudioso Bernard

Dauenhauer propõe uma série de categorias de silêncio, mostrando que o silêncio cumpre um

papel imprescindível para o discurso.

O primeiro conceito do silêncio a ser pontuado é o silêncio da intromissão como

aquele que se interpõe e pontua as palavras e as frases de um determinado discurso. Apenas

para trazer um exemplo de Aprender a Rezar na Era da Técnica: “– Veja, – insiste Lenz –

duas manchas, enormes. – Lenz aponta para as manchas. – Vou buscar uma régua, vou medi-

las” (TAVARES, 2008, p. 58). Sem a presença desse silêncio, o discurso seria complemente

caótico e inarticulável. O silêncio da intromissão tem um caráter muito distintivo em relação

aos demais silêncios pontuados por Bernard Dauenhauer, pois esse silêncio garante um efeito

rítmico e melódico ao discurso. Outro aspecto interessante a respeito do silêncio da

intromissão, segundo Bernard Dauenhauer, é que ele possui uma estrutura temporal. Tal

estrutura é bastante complexa, mas no instante em que o silêncio A se instaura, segundo

Bernard Dauenhauer, ele é preenchido com o sentido de uma frase A e enquanto o silêncio A

perdura, o sentido da frase A se esvazia, mas não totalmente, de modo que, o silêncio de A

liga-se à frase B e interconecta os sentidos e, assim, sucessivamente. É o que se pode chamar

de um tempo de preenchimento e de esvaziamento do silêncio da intromissão. Na verdade,

O silêncio da intromissão parece ter um objetivo característico de qualificar

as elocuções como “minhas”, “de ninguém” etc. Mas, aparentemente, ele

deve marcá-los de alguma forma. A interpretação pelo público da duração do

silêncio da intromissão empregada pelo autor e da consequente qualificação

do enunciado não envolve menos dificuldades do que a interpretação de

qualquer outro componente de enunciados. Mas também não há nada de

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particularmente misterioso ou subjetivo sobre ele. (DAUENHAUER, 1980,

p. 9 – tradução nossa) 8.

O silêncio anterior e posterior, por sua vez, foca no discurso como um todo, em vez de

se concentrar no discernimento entre uma frase e outra. Este silêncio evidencia que qualquer

elocução é cercada por silêncio, que no silêncio está o seu limite e a sua origem. Então, uma

elocução é antecedida por silêncio e também sucedida por silêncio. Essa modalidade de

silêncio atesta que o silêncio é início e fim dos sentidos. Embora, esse silêncio se assemelhe

ao silêncio da intromissão em sua função, Bernard Dauenhauer, esclarece que:

O silêncio anterior e posterior está envolvido em fazer uma elocução

particular distinta de outras elocuções. O silêncio da intromissão está

envolvido em fazer uma determinada frase distinta de todas as outras frases.

A semelhança das suas funções aponta para uma unidade básica que engloba

esses dois aspectos do silêncio. (DAUENHAUER, 1980, p. 15 – tradução

nossa) 9.

Tal afirmação ainda vem corroborar a ideia de que a concepção do silêncio é, nesse

sentido, indivisível e que as linhas traçadas em torno dele, com o intuito de qualificá-lo e

contê-lo, são tênues e de maneira alguma definitivas. O estudo do silêncio para Bernard

Dauenhauer não é transparente. O que quer dizer que o silêncio não se deixa aprisionar.

Assim, pode-se afirmar que o silêncio transborda além dos limites de qualquer classificação.

E por isso, essas reflexões sobre as formas do silêncio permitem multiplicar e agregar

sentidos a um determinado discurso. O silêncio é livre e trabalha com os sentidos

independentemente do discurso. Há, por assim dizer, uma primazia do silêncio sobre o

discurso (DAUENHAUER, 1980). O silêncio profundo por sua vez, evidencia essa

característica, de modo que o silêncio profundo se divide em mais três subcategorias: o

silêncio íntimo, o silêncio litúrgico e o silêncio a ser dito (um tipo de silêncio normativo).

Mas, o que mais interessa sobre o silêncio profundo é que:

O silêncio profundo é encontrado como o silêncio que permeia um

enunciado. Atravessa um enunciado [...] o silêncio profundo não está

8 Intervening silence appears to have the objective characteristic of stamping utterances as “mine”, “anyone’s”

etc. But apparently it must mark them somehow. The interpretation by the audience of the duration of the

intervening silence employed by the author and of the consequent stamping of the utterance involves no fewer

difficulties than does the interpretation of any other component of utterances. But neither is there anything

peculiarly mysterious or subjective about it. (DAUENHAUER, 1980, p. 9 – tradução nossa).

9The fore-and-after silence is involved in making a particular utterance distinct from every other utterance.

Intervening silence is involved in making a particular sound phrase distinct from every other sound phrase. The

sameness of their functions points to a basic unity which embraces these two aspects of silence.

(DAUENHAUER, 1980, p. 15 – tradução nossa).

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intrinsecamente relacionado a algum enunciado determinado. Ocorrências de

silêncio profundo, portanto, não se equiparam com qualquer outra coisa que

não seja as pessoas que incorrem no profundo silêncio. (DAUENHAUER,

1980, p. 21– tradução nossa) 10

.

Assim, a questão crucial levantada pelo autor de Silence: the phenomenon and its

ontological significance (1980), ao apresentar esses distintos modos de silêncio, mas que em

última instância também são correlatos um do outro, tende a mostrar que todo enunciado,

“Requer o uso da palavra certa, no momento certo, para a pessoa certa, sobre o tema certo,

pelo motivo certo. Fala autêntica é a fala adequadamente adquirida a partir do silêncio ou, em

outras palavras, fala que atende ao princípio da limitação que separa a fala do silêncio”

(DAUENHAUER, 1980, p. 111 – tradução nossa) 11

. O discurso, portanto, deriva do silêncio

e retorna ao silêncio e é no silêncio que encontra o seu propósito, bem como o seu equilíbrio.

“Ficou demonstrado que o discurso sem o silêncio seria meramente uma linguagem atemporal

e que o silêncio sem o discurso colapsaria em qualquer mudez vazia ou visão não

significativa” (DAUENHAUER, 1980, p. 96-7 – tradução nossa) 12

. Por isso, o silêncio não se

opõe ao discurso, mas estabelece e mantém a oscilação entre os vários níveis de discurso.

Além disso, o filósofo concebe o silêncio como fundador para qualquer enunciado.

Maurice Merleau-Ponty acrescenta que o discurso se faz discurso muito antes da

palavra dita; o discurso é considerado ainda no silêncio que precede a palavra. Com isso, o

filósofo francês, quer tão somente dizer que o sentido não está na frase ou no enunciado

propriamente dito, nem que há um sistema de significações reservadas à linguagem esperando

para ser traduzida por palavras. O que ele quer dizer é que a linguagem fala por meio do

silêncio, porque a linguagem trabalha obliquamente. O silêncio é operador da linguagem. “A

ausência de signo pode ser um signo” (MERLEAU-PONTY, 1992, p. 44). O signo do silêncio

está sempre no discurso, entretanto, o signo do silêncio sobressai, especialmente, quando o

signo linguístico não se faz presente. Isto é, a linguagem também se faz pelo silêncio. De

10

“Deep silence is encountered as the silence which pervades utterance. It runs through utterance [...] deep

silence is not intrinsically related to some determinate utterance. Occurrences of deep silence are thus not

measured against anything other than the persons participating in deep silence” (DAUENHAUER, 1980 – p.

21, tradução nossa).

11

“It requires the use of the right word at the right time to the right person about the right topic for the right

motive. Authentic speech is speech properly procured from silence or, in other words, speech which observes the

principle of limitation separating speech from silence [...]” (DAUENHAUER, 1980, p. 111 – tradução nossa).

12

“There it was shown that discourse without silence would be merely atemporal language and silence without

discourse would collapse into either empty muteness or nonsignitive vision” (DAUENHAUER, 1980, p. 96-7 –

tradução nossa).

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modo que, a linguagem é alusiva e fala indiretamente (MERLEAU-PONTY, 1992), destaca-

se o caso dos textos literários que trabalham o limite da significação deixando muito mais

sentidos nas entrelinhas e no signo do silêncio do que nas próprias palavras.

Não há, nesse caso, significados prontos que se fixam aos significantes. A palavra é

sempre provisória e parcial. Todo signo é cifrado de silêncio. Portanto, a lição reflexiva de

Maurice Merleau-Ponty refere-se à ideia de que “a linguagem vai além do signo rumo ao

sentido deles” (MERLEAU-PONTY, 1992, p. 43). A partir dessa perspectiva, um exemplo

privilegiado para a compreensão dessa proposição de Merleau-Ponty, é justamente a pintura.

A pintura, para esse autor, é comparável à linguagem literária; “um romance exprime

tacitamente como um quadro” (MERLEAU-PONTY, 1992, p. 80). O que tem de

insubstituível na literatura e que pode ser comparado a uma pintura, segundo Maurice

Merleau-Ponty, é que a linguagem literária coloca o sujeito diante de um pensamento que

nunca está absolutamente desenvolvido e acabado. Essa perspectiva conduz a um pensamento

crucial para compreensão da linguagem e sua relação com o silêncio: “a linguagem não é

como uma prisão onde estejamos presos, ou como um guia que precisamos seguir cegamente”

(MERLEAU-PONTY, 1992, p. 85), a linguagem é caminho de possibilidades múltiplas. O

signo do silêncio confirma essa possibilidade; não pela sobreposição de um sentido por outro,

mas pela possibilidade de coexistir um sentido com o outro, sentidos equivalentes da mesma

estrutura.

1.2.2 O silêncio na psicanálise

A psicanálise, segundo Theodor Reik (2010), comprova o poder das palavras, mas

também comprova o poder do silêncio. Sábias são as palavras de Theodor Reik, porque nesse

campo de pesquisa, o silêncio cumpre um papel fundamental. Reconhecendo, portanto, que o

silêncio é uma presença obrigatória e incontestável em sessões de psicanálise e que ele, além

de tudo, é “entidade teórica fundamental” (NASIO, 2010, p. 7). Isso quer dizer, tão somente,

que o silêncio é tão instigante para o psicanalista quanto o é para o estudioso da linguagem,

porque ao invés do vazio que o senso comum atribui ao silêncio, o psicanalista sabe e

reconhece que o silêncio carrega em si sentidos que não podem ser simplesmente traduzidos

por palavras. Juan-David Nasio (2010) entende que o silêncio é originário à palavra e que, por

conseguinte, aquele pode ser tão expressivo e significativo quanto ela.

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O conjunto de conceitos usados para representar a ideia do silêncio alarga-se a cada

nova área de estudo, na psicanálise não é diferente. No sentido em que é tratada a questão do

silêncio em psicanálise, entendem-se os silêncios como produtos da própria verdade que se

pronuncia no sujeito. O silêncio é uma instância plena de sentido. Provocador, implacável,

apavorante ou, simplesmente, harmonizador. Seja como for, o silêncio é caminho para

compreender as profundezas do sujeito, para descobrir o que estava encoberto.

Evidentemente, a psicologia distingue muitas espécies de silêncio; há o silêncio do analista,

há o silêncio do paciente, há o silêncio que impera entre ambos durante a sessão e antes,

durante e após a análise, mas para efeito deste trabalho serão discutidas apenas três

concepções, são elas: o silêncio da escuta, o silêncio da pausa e o silêncio transferencial

propostas por Juan-David Nasio em seu ensaio intitulado Crônica Psicanalítica de um

Silêncio (1989).

O primeiro aspecto a se observar antes de tudo é que há uma proposição lacaniana que

diz que “o inconsciente é estruturado como linguagem”, no entanto, isso não quer dizer que o

inconsciente seja estruturado de palavras e de sons. Obviamente, “o inconsciente não é uma

língua, ainda que nasça por meio de uma língua” (NASIO, 2010, p. 7). O inconsciente é, na

verdade, “discurso sem palavras” (NASIO, 2010, p. 8). A rigor, o discurso sem palavras

proposto por Jean Jacques Lacan não é um discurso mudo, vazio que compete ao registro do

sonoro. Pelo contrário, o “sem palavras” remete às formações do inconsciente que se realizam

na transferência. O discurso sem fala é feito também de palavras, mas, sobretudo é feito de

escuta. A escuta (do analista) que possibilita ir além das palavras (do paciente) e faz ressoar a

voz silenciosa que gradualmente se silencia no interior do paciente. A escuta dessa voz que é

capaz de confrontá-lo com o real. Então, é possível afirmar que o íntimo do sujeito se exprime

primeiramente por silêncio e as palavras vêm depois, elas são acessórias.

Por isso, Juan-David Nasio destaca o papel fundamental do silêncio em psicanálise.

Consonante esse autor, há o silêncio da escuta, que para ele, se concentra em absoluto no

ouvir. O silêncio é o espaço potencial da escuta que permite ouvir o que está entre as palavras

e também aquilo que as palavras silenciam. Como em Aprender a Rezar na Era da Técnica,

em que Júlia interpreta Lenz a partir de seu silêncio. “Percebia que ele apenas não dizia uma

palavra, estava em completo silêncio, o que para ela significava que era para continuar”

(TAVARES, 2008, p. 303). Porque não há palavra que fique sem resposta, como acredita

Lacan, mesmo que a resposta seja silêncio. Conquanto que haja alguém que se dedique à

escuta da voz silenciosa desse Outro, ela jamais ficará desprovida de significado.

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Para Juan-David Nasio, há um segundo silêncio, o silêncio da pausa “que pontua o

relato do analisando e toma o valor significante de determinar em ato a posição subjetiva do

paciente e, correlativamente, a do psicanalista” (NASIO, 2010, p. 204). O silêncio é a pausa

da palavra. A pausa que habita na sessão pode assumir diferentes significados, ela tanto pode

incomodar como ela pode tranquilizar. As pausas que pontuam o chamado de Lenz para

morte “ela tranquilizava-o e chamava-o” (TAVARES, 2008, p. 356). Enfim, qualquer que

seja a sua dimensão, “o silêncio que habita a sessão não é um silêncio de espera, mas um

silêncio de esperança” (VIVES, 2012, p. 61). As pausas denotam ser fundamentais para o

ritmo e a harmonia do discurso. O que mais importa para o analista, dessa forma, não são as

palavras ditas, mas como elas são ditas e marcadas por certa harmonia e musicalidade.

Sobre o terceiro silêncio, conforme Juan-David Nasio, “trata-se de um silêncio muito

particular, alojado no seio da relação transferencial e que, para ser acolhido, requer uma

orelha esticada até os limites do sentido” (NASIO, 2010, p. 204). Em suma, esse silêncio é

um silêncio aberto ao acolhimento dos sentidos na relação entre analista e analisando. Trata-

se de um silêncio que possibilita ao analista a interpretação do silêncio do paciente, no sentido

que ao incorporar o silêncio do paciente o analista será capaz de ressignificá-lo.

Nos limites dessa exposição, surge a percepção de que o silêncio não se opõe à

palavra. O silêncio diz mais do que se pode apreender por meio das palavras. O silêncio

impressiona. “Os processos inconscientes agem em silêncio, insistem silenciosamente em se

fazerem ouvir” (VILLA, 2010, p. 184). Em sua dimensão fundamental, o silêncio é a

promessa da palavra inédita. A compreensão do silêncio em psicanálise é bastante

contundente, no sentido de que o silêncio se apresenta para significar e resignificar as

formações do inconsciente.

1.2.3 O silêncio na teologia

O cristianismo está comprometido com o silêncio. A tradição religiosa cristã assume o

silêncio como parte de sua herança judaica. O silêncio, dentro da perspectiva teológica, vem

confirmar tudo aquilo que já foi discutido até aqui sobre a propriedade significativa e

indispensável do silêncio. German Doig Klinge (1991) defende o silêncio não como uma

atitude em relação a alguma coisa, mas como um estado harmônico, contínuo e permanente.

No âmbito dos estudos teológicos de orientação cristã trabalha-se com a possibilidade de que

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o silêncio é ascese. Não só os cristãos, mas grupos religiosos de diferentes denominações,

culturas e de crenças inteiramente distintas atribuem ao silêncio o poder de se comunicar com

a divindade (LE BRETON, 1999). Trata-se, enfim, de um silêncio que é caminho para a

expressão genuína com a divindade, em outras palavras, trata-se de um silêncio que remete a

uma ascensão espiritual.

Assim como as demais perspectivas que já foram apresentadas até aqui, o silêncio na

teologia não se refere ao seu uso corrente, cujo significado é a ausência de ruído ou

manifestação verbi-vocal. Ao contrário, a teologia entende-o como “presença de paz, de

harmonia, de equilíbrio exterior. O silêncio nos faz, em primeiro lugar, presentes a nós

mesmos; e nos faz logo presentes a Deus [...]” (DOIG, 1991, p.19). Esse silêncio que coloca o

homem diante da divindade não se opõe à palavra. “A palavra (o Filho) traduz todo o Silêncio

(o Pai); adequam-se perfeitamente; um só Deus, duas Pessoas” (SCIACCA, 1967, p. 23). Há

harmonia entre ambos. A palavra é fruto do silêncio. Segundo Michele Sciacca, “qualquer

palavra nossa gera-se do silêncio, da nossa interioridade, que é a sua matriz” (SCIACCA,

1967, p. 23). A palavra que não nasce do silêncio é palavra vazia; palavra que vem do vazio e

volta ao vazio, sem efeito, sem sentido. É uma palavra inautêntica (SCIACCA, 1967). “O

silêncio, pai da palavra: do Silêncio divino procede a Palavra criadora do universo; a geração

do Verbo, a Palavra redentora [...]” (SCIACCA, 1967, p. 25). A palavra que procede do

silêncio é Palavra Criadora, isto é, palavra autêntica, operante e viva. O silêncio habita a

palavra, porque ele também nesta perspectiva não está fora da linguagem.

Michele Frederico Sciacca (1967) explica também que a linguagem é constituída na

relação dialética entre palavra e silêncio. Toda palavra que nasce do silêncio retorna ao

silêncio, porque ela tem necessidade de silêncio. Ela própria está revestida de silêncio. A

palavra em si não é nada, ela precisa do silêncio, mas mesmo revestida de silêncio, ela é

incapaz de conter em si tudo aquilo que o silêncio expressa porque o silêncio se dispersa. De

maneira alguma a linguagem consegue contê-lo. Excelso da significação, o silêncio fermenta

as palavras para que elas vão significando uma a uma (SCIACCA, 1967). Qualquer palavra

que chega ao conhecimento do homem invade seu silêncio e no silêncio significa. Portanto,

não há palavra que baste. Só o silêncio cria e só o silêncio basta. “Encantador ou insuportável,

aceito ou rejeitado, sofrido ou evitado, o silêncio tem uma potência tão infinita quanto o

infinito da nossa interioridade” (SCIACCA, 1967, p. 35). Por isso, o silêncio é entendido

como revelação. Acesso à interioridade do homem. Em “Diálogo sem testemunhas. De que se

terá falado? Quem falou?” (TAVARES, 2008, p. 297), é possível compreender como o

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silêncio dá acesso à interioridade do homem. Quem se descobre nele encontra-se a si mesmo.

Eis o silêncio gerador e frutífero, que permeia a vida do homem e que inunda o seu interior.

Se o interior do homem é silêncio, então a dor profunda e interior não se faz de

palavras. A dor verdadeira é silêncio. A dor interior e a angústia são recatadas, conforme

sugere Michele Sciacca. Segundo ele, “nos sofrimentos essenciais, nas esperanças

desiludidas, nas tristezas radicais, as palavras que urgem e premem sufocadas na garganta são

retidas pelo silêncio” (SCIACCA, 1967, p. 44). O que torna a dor silenciosa é porque ela se

guarda no mais profundo do ser. E Michele Frederico Sciacca citando Kierkegaard arremata:

“o silêncio grita até o céu” (SCIACCA, 1967, p. 45), porque o silêncio é o meio pelo qual o

homem se manifesta a Deus.

Por tudo isso, pode-se dizer que o silêncio é plena expressividade, pois ele excede a

palavra mundana e vazia. O silêncio é a língua de Deus, é o que afirma David Le Breton,

porque assim como a concepção de Deus, o silêncio é o inesgotável; o princípio e fim. Ainda

de acordo com esse autor, o silêncio é busca de um encontro genuíno com Deus, que não fala

com o homem por meio de palavras, mas pelo seu silêncio. Assim, é no seu silêncio que o

homem encontra Deus. E havendo aprendido estar em silêncio, medir a palavra, saber escutar,

saber falar e saber estimar o silêncio, o homem finalmente alcançará o caminho da retidão, da

serenidade e do equilíbrio interior. No desenvolvimento dessa ideia, Le Breton entende que o

pleno estado de silêncio, recolhimento e harmonia é a pedra fundamental da espiritualidade

em que o homem exercita a virtude da prece da oração e da mediação que visa proporcionar a

ascese espiritual e, consequentemente, ampliar sua relação com Deus.

1.2.4 O silêncio na literatura

Há um vínculo indissolúvel entre linguagem e silêncio. Na medida em que se

constroem os sentidos, há simultaneamente a presença indelével do silêncio na linguagem. À

medida que o sujeito significa, ele estabelece uma relação primordial com o silêncio. Por isso,

é extremamente importante para os estudos literários considerar o silêncio como parte do

processo da criação literária, pois o silêncio ocupa um lugar privilegiado. Ora, se a literatura

tem como princípio o trabalho com a linguagem, tem também como princípio o trabalho com

o silêncio, visto que ambos são constituídos por uma relação necessária e mútua. Na

literatura, linguagem e silêncio representam uma unidade que é o texto literário. O texto

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literário transpira silêncio. A partir dessa perspectiva, a linguagem literária deixa de ser

simplesmente palavra e passa a ser um conjunto harmônico de palavras e silêncios, ambos

operando concomitantemente para produzir o mais alto grau de significação.

O silêncio para Gilberto Mendonça Teles é um espaço de possibilidades que

transcende o homem. O silêncio no campo literário é fértil e rico em significados, portanto, o

estudo do texto literário precisa partir do exame da palavra e do silêncio. O que está dito e o

que não está dito são extremamente relevantes para a compreensão da obra literária, que

muitas vezes diz alusivamente e fala obliquamente assim como o silêncio, porque o silêncio é

um dos seus caminhos de expressão. Em síntese, o texto literário fala silenciosamente e pelo

silêncio deixa escapar mais sentidos que se complementam na obra literária. Assim, o

desmembramento do texto literário põe em evidência o silêncio que o alimenta.

Uma face particularmente importante sobre a questão do silêncio na literatura é que

existe na arte literária uma estreita relação entre palavra e silêncio e, estendendo essa

proposição para o campo dos estudos literários, entre literatura e silêncio. A literatura é

constituída por uma dialética entre silêncio e palavra e a linguagem literária trabalha nesta

dialética a produção dos sentidos. Entretanto, não se pode deixar de negar que o silêncio se

revela muito mais eloquente do que a própria palavra, embora a literatura tenha como matéria

prima a linguagem literária, há no texto literário uma primazia do silêncio sobre a palavra,

porque as palavras literárias são alimentadas pelo silêncio e, consequentemente, são frutos do

silêncio. Assim, o silêncio que se manifesta no texto é tão intenso e vivo que atravessa a

linguagem, não fora dela, mas dentro dela, permitindo assim, a convergência dos sentidos

para o silêncio. Assumindo que a literatura está ancorada no silêncio, Octavio Paz afirma que,

Apaixonado pelo silêncio, o poeta não tem outro recurso senão falar. A

palavra se apoia num silêncio anterior à fala - num pressentimento de

linguagem. O silêncio, depois da palavra se ancora numa linguagem - é um

silêncio cifrado. O poema é a passagem de um silêncio e outro - entre o

querer dizer e o calar que funde querer dizer. (PAZ, 2012, p. 315).

Assim, está assente que o silêncio é tão ou mais importante que a palavra para a

compreensão de um texto literário. Contudo, assim como nos demais campos do

conhecimento, o silêncio na literatura é indomável. Nem autor nem leitor são capazes de

administrar o silêncio do texto. Os sentidos que preenchem a narrativa não são estanques, pelo

contrário, exploram outros sentidos que estão muito além do domínio verbal ou do signo

linguístico. Conforme defende Luzia A. B. Tofalini (2012):

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Na literatura, o silêncio é tão importante quanto a palavra. Assim como a

palavra, ele é pleno de significação e se configura como uma forma de

expressão, não raro mais eloquente que o discurso verbal. Há situações em

que a própria palavra se apresenta sob os véus do silêncio, sob a sombra da

mudez. O escritor, as personagens e o próprio leitor sabem que se existem

coisas que se podem dizer apenas através das palavras, há outras que só

podem ser sugeridas, ditas ou intuídas, por meio do silêncio (TOFALINI,

2012, p.1-2).

O silêncio preenche várias instâncias do texto literário, sendo fundamental à sua

estrutura, há silêncios entre palavras e palavras entre silêncios. A primeira página, a página

em branco assim como as divisões entre os capítulos já pertencem ao espaço literário e o

branco das páginas é marcado pelo silêncio. No corpo do texto sua presença torna-se notável

pela fragmentação do eu, especialmente no caso de uma obra lírica, pela fragmentação do

processo narrativo, especialmente no caso de uma obra narrativa, e a fragmentação da ação

das personagens, no caso de uma peça dramática, além da presença de lacunas, de interstícios,

de vazios e de capítulos organizados em fragmentos que realçam o semblante do silêncio

como integrante estrutural do texto literário independente do gênero.

Na dispersão de seus fragmentos o texto literário projeta incontáveis possibilidades de

leitura e significados admiráveis, isso porque tanto o escritor quanto o leitor agrupam e

reagrupam sentidos durante o processo de composição e leitura da obra. As vozes literárias

falam pelos silêncios. A escrita literária consiste, portanto, na condensação desses fragmentos

repletos de silêncios porque busca exprimir o máximo de sentidos possíveis.

Pode-se dizer que o texto se constrói em silêncio e sua relação com o leitor também se

dá no silêncio, assim como os sentidos depreendidos do texto literário também se formulam

no silêncio. É na liberdade concedida pelo silêncio que o leitor de um texto literário pode

conceber um objeto por diversos ângulos sem reduzi-lo ou limitá-lo, mas apenas estendendo-o

ao máximo a sua significação. Leitor e texto se entretecem no silêncio. A leitura é um dos

breves momentos do dia a dia em que é possível mergulhar no silêncio, a leitura proporciona

um encontro do leitor com o silêncio, pois “ler é fazer falar os silêncios da linguagem”

(TELES, 1979, p. 10). Diante de tais ponderações, pode-se chegar à conclusão que se há uma

relação indissolúvel entre literatura e silêncio, o silêncio interfere não apenas na relação entre

texto e leitor, mas interfere igualmente ou mais na relação de construção do próprio texto.

Esse caráter não deve obscurecer o fato de que o silêncio continua indômito e as formas que o

silêncio adquire no texto literário são apenas parcialidades, que orientam o leitor durante o

processo de análise literária.

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No limiar do silêncio e da letra (2012), Maria Lúcia Homem confronta uma questão

fundamental para os estudos literários: a relação entre palavra e silêncio. A autora crê que

existe uma tensão insolúvel entre esses dois fenômenos e que a tensão entre eles é o que

conforma o texto literário. Segundo essa autora, “A própria literatura é estruturalmente

presença e ausência, letra e espaço, categorias que forjam palavras, palavras que, por sua vez,

forjam frases e assim sucessivamente. Não há como escrever um livro contendo uma só

palavra de infinitas letras” (HOMEM, 2012, p. 34). O silêncio é inerente à obra literária.

Porque se a própria escrita literária prescinde do silêncio para que lhe pontue o ritmo, a obra

literária implica outro silêncio em uma dimensão que remete ao seu caráter de incompletude,

ou seja, na incapacidade de o texto literário ser definitivo e acabado. O texto literário, ainda

segundo Maria Lúcia Homem coteja o inacabado, porque a escrita literária lida com a

“impronunciável, com significantes vizinhos, tais como indizível, inefável, inexprimível,

impalpável, insondável, volátil..., marcando a relação de oposição entre a escrita e aquilo que

ao mesmo tempo anima e norteia” (HOMEM, 2012, p. 20). De tal modo que a literatura joga

com o irrepresentável o tempo todo. A literatura adere ao silêncio e o silêncio converte-se em

um dos seus vetores.

Sobre a questão da inevitabilidade do silêncio, recorre-se a Benedito Nunes (2009),

que retoma importantes considerações propostas por Ludwig Wittgenstein, quando esse autor

se pergunta se a linguagem verbal é capaz de conter toda a realidade e, a partir de sua

resposta, Benedito Nunes chega a seguinte conclusão: “o romancista fracassa com a

linguagem, isto é, com a experiência levada ao seu último limite, à sua extrema consequência,

do confronto decisivo entre realidade e expressão” (NUNES, 2009, p. 132). Disso resulta, a

impossibilidade do artista expressar com palavras toda a complexidade de sua realidade e a

realidade de sua obra, que o obriga a um encontro com o silêncio. “É preciso falar daquilo que

nos obriga ao silêncio” (NUNES, 2009, p. 134). É preciso fazer com que a linguagem literária

seja o veículo do silêncio por excelência.

O silêncio, independentemente da modalidade sob a qual se apresenta, possui um

poder fundador e edificante. Ele será sempre potente e ubíquo, no sentido de que seu status é

primordial ou fundante. Ao tomar-se o texto literário como objeto de estudo, percebe-se que a

leitura, a compreensão e a interpretação do fenômeno do silêncio exigem a investigação de

todo o seu processo, seus efeitos e o modo como ele se insinua na linguagem, para então

vislumbrar essa atmosfera densa e rica em sentidos que envolvem toda a obra.

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1.3 Silêncio primordial e silêncio fundante: semelhanças e diferenças

Inúmeros são os estudiosos que demonstraram sobejamente o valor e o estatuto

positivo do silêncio. De dois modos diversos, porém correlatos, os estudiosos Santiago

Kovadloff e Eni Orlandi procederam, por assim dizer, um esplêndido e vasto estudo sobre o

silêncio resguardado de sentido desde a sua primeira concepção. Ambos os autores

preocuparam-se em observar o silêncio, em como observá-lo, para assim, discutir o seu papel,

a(s) sua(s) formas(s), e os meios necessários para aludir a esse silêncio refratário e irrefreável.

Daí a relevância de justapor duas concepções de silêncio distintas, mas que em certa medida

se encontram, observando sempre as limitações e as conquistas de cada uma. Dito isso, é

válido discutir a seguir as especificidades de ambas as acepções do silêncio, visto que a

concepção do silêncio primordial e a do silêncio fundador pertencem a diferentes campos do

conhecimento, a diferentes contextos histórico-sociais e, por isso, têm objetivos específicos

diferentes em sua relação com o silêncio. Assim, o que se tem a seguir, não é uma

comparação a fim de invalidar uma ou outra proposta, mas aproximá-las e refletir sobre a

natureza do silêncio e o seu caráter revelador.

Santiago Kovadloff em sua brilhante coletânea de ensaios intitulada O silêncio

primordial (2003), percebeu que há um silêncio que é, por sua natureza, extremo e absoluto,

elevando o silêncio à categoria de um silêncio originário. Trata-se de um silêncio maior:

inominável, inalcançável, insuperável e irredutível ao verbo. Tangenciável, embora

intransponível. Referível, ainda que inconcebível. Inteligível, embora inexplicável. O silêncio

primordial é o silêncio extremo que possibilita uma abertura para a compreensão do silêncio

na transcendência da linguagem. Eni Orlandi, por sua vez, em seu livro As formas do silêncio:

no movimento dos sentidos, com uma precisão que lhe é característica, propõe o conceito de

silêncio fundador que, por sua vez, é condição crucial de significação para o discurso.

Superando a velha dicotomia entre dito e não dito, presença e ausência, sentido e vazio, Eni

Orlandi, destaca-se, principalmente, por explorar os entremeios da linguagem e perceber

como esse contínuo significante se articula ao discurso e se converte em “fôlego” necessário à

significação.

Ambos os autores buscaram tratar do silêncio que não encontra equivalência em

nenhum outro meio que não seja o próprio silêncio. Buscaram investigar as raízes da

significação e dos sentidos que se guardam tão somente no silêncio e em nenhum outro lugar.

Eles também destacaram o papel crucial do silêncio na configuração do homem enquanto

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sujeito. O trabalho consistente e claro empreendido por Santiago Kovadloff e Eni Orlandi

demonstra que embora o silêncio, quando se manifesta ainda permanece silêncio, ou seja, o

silêncio não se traduz, ele deixa marcas de sua presença na linguagem e no homem. Assim,

tanto o silêncio primordial quanto o silêncio fundante se permitem observar por caminhos

variados. O silêncio é o caminho das possibilidades múltiplas. Dito isto, não há sentidos

fixados ao silêncio. O silêncio na proposta desses autores é imprescindível ao sentido. Os

silêncios, dentro da perspectiva do silêncio primordial e do silêncio fundante, sobressaem no

trabalho de perceber e de alcançar os sentidos.

Santiago Kovadloff propõe-se a alcançar o silêncio por via alusiva. Ele se dispõe a

sondar esse silêncio que é inaugural e derradeiro à linguagem. Sinalizando que “o resto é

silêncio” (KOVADLOFF, 2003, p. 11). Que quer dizer, o início e o fim, retomando as últimas

palavras de Hamlet antes de se entregar à morte. De resto não se deve confundir com o

silêncio da morte ou o silêncio dos mortos, o resto ao qual Santiago Kovadloff se refere é

aquilo que excede à palavra, que remete ao silêncio, ou melhor, à palavra proveniente do

silêncio primordial. Refere-se àquilo que é capaz de exceder a linguagem. O princípio e o fim,

o originário e o inaugural, tal é o resto a que ele se refere. “O silêncio primordial é um

suposto ‘nada de sentido’ e a palavra uma suposta ‘totalidade de sentido” (KOVADLOFF,

2003, p.44). Esse resto ao qual o filósofo se refere remete ao “vazio que nada esconde, que

nada guarda nem nada nega e que nessa palavra, no entanto, acumula a memória de sua

poderosa revelação” (KOVADLOFF, 2003, p. 49). Nesse resto, afirma Santiago Kovadloff, o

homem se encontra e se vê refletido. Ao se vislumbrar, o homem depara-se com uma parte de

si irreconhecível e dada a sua impenetrabilidade o silêncio extremo é o único capaz de

alcançá-lo.

Contudo, é preciso assinalar que o filósofo argentino destaca que a concepção do

silêncio não é indivisível. Pelo contrário, logo de início, o autor sugere a presença de outro(s)

silêncio(s), lançando-o no campo da dualidade e da dicotomia. Para o filósofo, há,

primeiramente, “o semblante explicável do silêncio” (KOVADLOFF, 2003, p. 9), que o autor

já descarta ser o seu objeto de interesse e se lança para “falar de um fundo irredutível”

(KOVADLOFF, 2003, p. 10) e é aí que reside o que ele denomina como o resto: o silêncio

primordial.

O semblante explicável do silêncio opõe-se ao silêncio primordial porque ele se

configura como ausência de som, mudez, omissão, ocultação e interdição. É o que se pode

chamar de modo tacitífluo da linguagem. Os dizeres, nesse ângulo, são interditos e os

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sentidos, por sua vez, tornam-se ausentes. É o que se pode dizer, mas não se diz. Evita-se o

dito para se evitar os sentidos. O silêncio traduzível e explicável recorre à interdição de

sentidos e à interdição de palavras, por isso, remete-se à mudez, à omissão e à ocultação. Esse

processo de subtração dos sentidos, para Santiago Kovadloff, corresponde a um efeito de

mascaramento ou uma simples ocultação. Seria tudo aquilo que pertence à palavra e que

ficaria silenciado, mas sugerindo que esse silêncio “poderia ser dito alguma vez”

(KOVADLOFF, 2003, p. 9), ainda podendo revelar-se futuramente. Ademais, esse silêncio é

explicável porque é passível de encontrar equivalência na palavra, na verdade, é a palavra não

dita. O silenciamento, independentemente da conjuntura, inscreve-se na linguagem como

parte essencial constitutiva e estruturadora da linguagem a partir dessa perspectiva.

Por outro lado, o interesse de Santiago Kovadloff recai no silêncio "que constitui o

substrato ontológico do próprio homem, essa tela de fundo, jamais atingível a não ser pela

alusão [...]" (PEREIRA, 2009, p. 62). O que ele defende é o silêncio primordial que remete ao

"silêncio de uma ausência originária: a que impede que o homem se sinta totalizado”

(KOVADLOFF, 2003, p. 45). O silêncio primordial é aludido por esse autor como uma

imagem sem forma que o homem é capaz de contemplar sem se ver: uma totalidade

vislumbrada, porém jamais alcançada, que permite ao homem ver além da imagem refletida

de si mesmo. O silêncio que não pode ser traduzido pelas palavras. É o inefável.

O silêncio primordial diferencia-se daquele semblante explicável do silêncio no

sentido de que não se trata de mudez ou de apagamento. Trata-se de um silêncio maior que

não pode ser alcançado, mas que pertence ao mais íntimo do sujeito, constituindo-o e

fundando-o. É um silêncio que nada tem de negativo, porque é condição necessária em

qualquer elocução. Essa substância sem forma, irredutível ao verbo equivale ao absoluto.

Como já foi dito anteriormente, o silêncio aqui proposto não se trata da inexistência de

fenômeno verbi-vocal. “O silêncio extremo, então, não cresce no lugar onde a ausência de

som se expande; cresce, em compensação, onde irrompe a presença do inqualificável, graças

ao som” (KOVADLOFF, 2003, p. 77). O silêncio primordial não se limita na presença do

som, pelo contrário, o som o prolonga.

É claro que por não se referir a um fenômeno físico, esse silêncio não pode ser

representado. Seria fácil registrar a não presença do som, mas registrar a presença do silêncio

primordial é simplesmente impossível. A sua não representatividade, no entanto, realça a sua

eloquência. Como atributo da existência do homem, o silêncio extremo é o que anuncia a não

totalidade do ser. “Essa falta primordial é a condição fundamental de sua identidade. O

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homem só é possível como projeto porque é incompleto como realidade” (KOVADLOFF,

2003, p. 42). Assim sendo, o silêncio primordial é essencial à configuração do homem

porque, de certa forma, o silêncio originário, vem preencher essa ausência.

Fato que não se pode olvidar é que o silêncio proposto pelo filósofo argentino

Santiago Kovadloff encontra na subjetividade o seu solo radical (KOVADLOFF, 2003).

Assim, o reconhecimento do inominável não exige objeto, apenas sujeito. Ao que tudo indica,

o sentido do silêncio está no esforço que se faz para compreendê-lo, o esforço empreendido

pelo sujeito protagonista dessa experiência com o silêncio originário.

Portanto, se é verdade que o silêncio expressa, também é verdade que aquilo

que expressa nem sempre é igual, nem vale a mesma coisa. O silêncio pode

ser, então, tanto o corolário excelso da lucidez, como a bruma irremediável

na qual se dilui a aptidão – e às vezes a necessidade – de articular uma ideia

ou uma emoção com a qual deixar para trás o mundo do previsível e do

codificado. (KOVADLOFF, 2003, p. 23).

Qualquer que seja a interpretação do silêncio primordial deve-se considerar “examinar

seus matizes por pressupostos, além de variados, profundos” (KOVADLOFF, 2003, p. 23), no

sentido de que qualquer leitura do silêncio é parcial e, inevitavelmente, acaba produzindo

mais leituras fracionárias e incompletas do mesmo fenômeno. É nesse ponto, que Santiago

Kovadloff anuncia sete caminhos que levam o homem a conceber a transcendência do silêncio

primordial. São eles: a poesia através da metáfora; a psicanálise por meio do real; a

matemática pelo zero; a música pela melodia; a pintura por meio do movimento; a mística

através da fé e o amor, cujo silêncio primordial é consignado pela amada.

Naturalmente, em cada caminho há uma proposta diferente, aludindo ao silêncio de

maneiras diferentes, mas, como foi dito anteriormente, todas essas propostas convergem e se

complementam mutuamente. Enveredar pelos caminhos do silêncio originário implica a

evocação do "espírito interdisciplinar". Em outras palavras, procura-se conjugar diferentes

áreas do saber para realizar a aproximação ao silêncio no intuito de apreender os seus

sentidos. Não obstante, a evocação do silêncio primordial por quaisquer que sejam os

caminhos trilhados são sempre impotentes em conceber a profundidade do assunto em sua

plenitude. A pluralidade desses caminhos a serem tomados apenas é válida na medida em que

o seu repertório analógico e alusivo permitem estabelecer uma relação de correspondência e

“registrar uma emoção partilhada: a do inconcebível” (KOVADLOFF, 2003, p. 13), por meio

da aproximação de cada uma dessas disciplinas.

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No fazer poético, parte-se de um silêncio para outro, como um movimento contínuo.

Há “o silêncio do qual o poema parte, o silêncio do qual se arranca ao constituir-se como

poema, é fruto de uma trama verbal, de uma linguagem [...]” (KOVADLOFF, 2003, p. 23). E

há “um segundo silêncio. É aquele ao qual chega o poema: o silêncio onde ele desemboca.

Trata-se, neste caso, de um silêncio que o poema ajuda a preservar como presença”

(KOVADLOFF, 2003, p. 24). Essa é outra qualidade de silêncio. À diferença do anterior,

aquele que precede o poema e o hostiliza, esse segundo silêncio o nutre e o fomenta. Estar

diante desse silêncio é estar diante do significado que significa muito mais do que se pode

dizer. O próprio ato poético realiza-se na expressão de um silêncio que vai do apagamento do

real quotidiano e de um silêncio que se realiza na expressão mimética. Dito isso, pode-se

inferir que há silêncios que se fundam como matéria da composição poética, e eles são: o

silêncio da oclusão e o silêncio da epifania.

O silêncio da oclusão que, de uma maneira ou outra, está atrelado ao silenciamento,

consiste na “[...] palavra encoberta, palavra rejeitada, enunciação possível, mas evitada [...]

pelo medo, pelo hábito ou pelo preconceito. E desse silêncio, invariavelmente, afasta-se a

poesia” (KOVADLOFF, 2003, p. 26). Já o silêncio da epifania consiste no silêncio do qual a

linguagem poética nasce: “O silêncio da epifania situa o homem diante da totalidade indizível

que, como tal, o silêncio encarna” (KOVADLOFF, 2003, p. 26). Esse silêncio, para Santiago

Kovadloff, é maior porque nada tem a ocultar, mas sim a exceder. É um silêncio

imprescindível à transcendência da linguagem poética, cujas margens instáveis também

transcendem quaisquer limites, pois nada quer dizer em particular a não ser tangenciar o

incógnito e o inapreensível: o silêncio primordial.

O segundo modo de aludir ao silêncio primordial, segundo Santiago Kovadloff, é

através da psicanálise. O silêncio da cura, conforme este autor, evidencia-se através do

encontro com o real. “O real, essa totalidade que por ser inconcebível acaba sendo

inabordável, se deixa, porém, pressentir, embora não se deixe manipular” (KOVADLOFF,

2003, p. 39). O silêncio quando remete ao inabordável, a partir dessa perspectiva, denota ser

um silêncio revelador daquilo que não pode ser enunciado. O paciente na sua relação com o

psicanalista se vê mudo. A sua incapacidade de enunciação não se trata de uma resistência, de

uma palavra subtraída e subjugada, o seu silêncio é, na verdade, o silêncio primordial e o seu

processo de cura, “consiste em ajudá-lo a perceber que o silêncio, que em primeira instância

acredita ser estranho a ele, é, na verdade, seu mais íntimo silêncio” (KOVADLOFF, 2003, p.

41). A jornada do paciente, a caminho da cura, leva-o a perceber que ele é um sujeito

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inacabado e que sua totalidade jamais foi concebida. Trata-se de uma totalidade ilusória. Ter

consciência de sua incompletude configura um passo preliminar para realizar uma experiência

com o silêncio primordial, porém, a falta de consciência a respeito da incompletude que

caracteriza o “eu” afasta o homem de poder realizar uma experiência com o silêncio

primordial. O silêncio do paciente mudo “não remete à palavra que falta e sim ao que falta à

palavra; ao seu resto dissonante” (KOVADLOFF, 2003, p. 44). O trabalho do psicanalista,

assim, consiste em recobrar esse silêncio extremo.

O silêncio extremo, ao ser vivenciado em sua nudez, aniquila tanto a palavra

encobridora como o silêncio encobridor. E só então devolve a palavra ao

paciente. Palavra expurgada. Palavra limpa que se gesta na intimidade do

silêncio primordial e que, mais que interromper o silêncio alcançado,

prolonga seu influxo, em outra ordem complementar e contígua a da alusão

(KOVADLOFF, 2003, p. 49).

Por outra perspectiva, o silêncio da música, para Santiago Kovadloff, carece de forma

e fundo, mas mesmo dotado de certa insubstancialidade se faz notável na consagração de sua

experiência. À semelhança do silêncio da psicanálise, a música em si é uma forma de silêncio

que devolve a quem ouve a “palavra expurgada” (KOVADLOFF, 2003). A música é um

arrebatamento de silêncio. Ao contrário do que se pode imaginar, “a música não designa o

silêncio: o prolonga” (KOVADLOFF, 2003, p. 64). Assim como na poesia, a música vive

uma experiência direta com o silêncio, porque tal como a poesia, ela é alimentada pelo

silêncio. “O silêncio revela a voz inaudível da ausência, que recobre o estrondo ensurdecedor

das presenças” (KOVADLOFF, 2003, p. 69). Semeia-se silêncio por meio da música. De

forma que a música impõe a condição da escuta e a escuta, como se sabe, está intimamente

ligada ao silêncio. E nisso, o silêncio da música encontra-se com o silêncio da psicanálise; a

percepção do silêncio primordial na música possibilita ao homem reconhecer a sua ausência.

A música constitui-se na presença do silêncio – nos sons e nas notas contidas no silêncio –

assim como o homem se constitui na presença do silêncio e se reconhece como

fundamentalmente marcado por uma ausência originária que é o silêncio primordial. E a

verdadeira experiência com a música conduz o homem a uma experiência genuína com o

silêncio primordial.

Entretanto, a experiência com o silêncio primordial na música não tem relação com a

ausência de som ou mesmo com o silêncio intersonoro que marca a cadência e o ritmo da

música através de pausas, “porque se o silêncio não é necessariamente ausência de som, e sim

presença de um sentido que excede nossa compreensão, então a música pode ser expressão do

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silêncio” (KOVADLOFF, 2003, p. 75). Ao passo que, escutar música é fazer alusão

metafórica ao silêncio, aproximar-se do silêncio e no silêncio descobrir somente aquilo que no

silêncio se encerra. A música força o homem a reconhecer-se como um sujeito inacabado,

invisível. O ato de escutar provoca um descentramento do sujeito e ao prestar atenção à

música o sujeito deixa de prestar atenção em si mesmo, fazendo-o perceber uma falta que lhe

é inerente. “A música nos restitui ao silêncio que nos constitui” (KOVADLOFF, 2003, p. 80),

de modo que esse parece ser o papel da música com relação à transcendência do silêncio

primordial.

Até aqui, viu-se que o silêncio primordial pode se manifestar de múltiplas formas. A

matemática, por exemplo, que é um dos caminhos escolhidos por Santiago Kovadloff para

alcançar a transcendência do silêncio primordial, concebe através do conceito de zero a

magnitude dessa transcendência. “O zero, ao que tudo indica, é a expressão matemática do

silêncio primordial [...]” (KOVADLOFF, 2003, p. 98). O zero sinaliza que há muito mais

além da linguagem verbal, e os números entram nesse conjunto, do que se é capaz de

enunciar. O que o zero incorpora é a capacidade de enunciação do incalculável e do

inexequível. O zero, assim como o silêncio primordial, está no campo do impossível. O zero

não é antecedente nem precedente do um. O zero transcende os numerais. Os numerais

ordenados são infinitos, o zero não. Portanto, o silêncio primordial não pode ser confundido

com infinito, sugerindo de tal maneira um movimento inesgotável. No silêncio primordial não

há movimento, ele está no campo do impossível, do intransitável e do irremediável. O zero,

nesse sentido, serve muito ao propósito da analogia ao silêncio primordial, porque não há

nada na matemática, ou melhor, no campo do enunciável capaz de registrar o valor de zero.

Zero é ausência. “O zero denuncia uma falta, encarna uma ausência irremediável, um silêncio

intransponível” (KOVADLOFF, 2003, p. 109). Por isso, o filósofo entende que o zero é

compatível com a ideia do silêncio primordial, ou seja, o silêncio que transcende da

linguagem.

Para ter condições mais seguras para tratar do silêncio que ele chama de monástico, as

considerações precedentes foram essenciais e esclarecedoras no que diz respeito a uma

compreensão mais ampla do silêncio primordial, e, complementar àquelas, Santiago

Kovadloff, no quinto caminho escolhido para aludir ao silêncio primordial, distingue duas

modalidades de silêncio cruciais: o silêncio de Deus e o silêncio diante de Deus. Para o

filósofo:

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O silêncio de Deus impera onde a sede de poder converteu o homem em um

ser hostil ao mistério de sua própria criação. O silêncio diante de Deus, por

sua vez, reina onde o homem, liberado de sua despótica ânsia por deter a

supremacia, consegue se reconhecer como criatura e recupera, assim, a

presença de seu Criador. (KOVADLOFF, 2003, p. 115).

Santiago Kovadloff acredita que a parábola do silêncio se desdobra entre esses dois

silêncios. Na parábola referida por esse autor, um peregrino cansado da agitação da cidade e

desejoso de paz e quietude decide abandonar a celeuma do mundo urbano e caminhar em

direção a um monastério afastado. O peregrino queria experimentar a quietude, a solidão, em

suma viver o silêncio extremo. Ao chegar ao monastério, o peregrino encontrou um monge à

beira do poço coletando água; foi então que o peregrino perguntou ao monge: o que ele

poderia aprender com o silêncio. O monge, então, lançou o balde na água e perguntou ao

homem o que ele conseguia ver. O peregrino respondeu que não era capaz de ver nada. O

monge, após alguns instantes, pediu ao peregrino que olhasse novamente para a água

refazendo a mesma pergunta: o que ele era capaz de ver? O peregrino admirado se viu

refletido na água tranquila e pode ver a si mesmo. Tal é o silêncio primordial, descrito por

Kovadloff. O silêncio de Deus, nessa perspectiva, é o falso silêncio, é a presunção do homem.

O silêncio diante de Deus é “aquele que pressupõe ter superado a identificação do real e da

verdade com o superável e puramente inteligível” (KOVADLOFF, 2003, p. 126). Do ponto

de vista teológico metafísico, conforme Anselm Grün (2010), o homem foi criado à imagem e

semelhança de Deus e se se admitir que Deus é invisível, o homem em seu contato real com o

ser também o é. Desse modo, o silêncio monástico é entendido como uma acepção do

encontro com Deus e do encontro consigo mesmo.

Se um destino possível à pintura é ser uma referência ao silêncio primordial, ou seja,

“pintar uma experiência inclassificável. De valer-se das formas para insinuar nelas o que não

consegue ser formalizado. E, para isso, o ponto central é que os elementos plasmados se

convertam em manifestação paradoxal não mais daquilo que se pode ver, mas sim daquilo que

não se pode ver” (KOVADLOFF, 2003, p. 134), tem-se, assim, a estética do inqualificável,

em que se suscita na tela a impressão do invisível a partir do que é visível. Vislumbrar o

silêncio primordial exige exceder as formas que surgem apenas para extralimitar o alcance do

homem na transcendência do silêncio primordial. Por isso, Santiago Kovadloff projeta dois

caminhos possíveis: afastar-se do limite das formas ou forçando o seu limite e aproximando-

se delas. Porque o reconhecimento do silêncio primordial na pintura é um repertório de

possibilidades cujas formas sugerem que aquilo que não pode ser representado, também é

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expressivo e cheio de sentido. Exceder as formas se faz necessário, de modo que Santiago

Kovadloff sugere que:

Toda formalização é uma imposição de limites que segmenta o absoluto.

Mas, por sua vez, neste segmento chamado forma, o ausente – o absoluto em

questão – se faz evidente ao menos como falta. É aquilo que se nota como

ausência. Estamos, em outros termos, diante do silêncio primordial [...] O

homem não pode abandonar o mundo das formas para chegar ao fundamento

do real – amorfo por excelência. Mas, através do mundo das formas por ele

produzidas ou interpretadas, pode remeter àquilo que as ultrapassa.

(KOVADLOFF, 2003, p. 144).

Nessa proposta se encara a forma como movimento e o movimento como princípio

gerador do silêncio primordial. Leia-se movimento como algo que ganha dinamicidade e

fluxo ao transcender o universo das formas, movimento este que projeta uma ruptura com o

objeto natural e se abre a múltiplas leituras. Nesse processo, o traço, a combinação das cores

não conduz a uma forma pronta e acabada, conduz o homem à percepção do movimento que o

faz recordar de uma falta que não pode ser preenchida: uma presença que homologa a não

presença. A impressão causada pela imagem da pintura deixa vestígios do inalcançável pelo

mundo das formas e das limitações. O não movimento, neste caso, seria uma limitação

imposta pelas formas, em outras palavras, um refreamento dos sentidos inspirados pelo

silêncio primordial. Na sugestão do silêncio primordial, o artista constrói a sua obra a partir

de um descentramento ou de um paradoxo em que o invisível que se faz visível a partir de

fronteiras imprecisas e inacabadas asseguradas pelo movimento.

Algo análogo ao que se tem discutido até agora no que se refere a uma ausência

originária, Santiago Kovadloff vê a amada como uma possibilidade para a concretização do

silêncio primordial através do amor. Em última instância, a amada, na medida em que ela

cumpre o papel de preenchimento do vazio que é inerente àquele que ama, pode-se admitir

que “para o amante, a amada encarna esse outro que é silêncio primordial, que é sentido

irredutível a um significado” (KOVADLOFF, 2003, p. 162). O amante projeta na amada uma

totalidade inconcebível. O desejo pelo outro se converte, em última instância, no

reconhecimento de um vazio em si próprio. Para Santiago Kovadloff, o amor está além do

inteligível, então, a expressão do amor recaí no domínio do impossível, do atemporal. Assim

como o silêncio matemático, o silêncio amoroso não é infinito e inesgotável; as palavras do

amante convertem-se em restos, fragmentos. “É que amar implica atrever-se a suportar uma

presença naquilo que ela tem de indecifrável; a suportar o indecifrável naquilo que tem de

revelador; a suportar o revelador naquilo que tem de angustiante” (KOVADLOFF, 2003, p.

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165). O ato de amar desloca o sujeito de si mesmo, ele não se reconhece, porque o que ele tem

diante de si é o semblante do silêncio primordial.

Muito se tem falado e escrito sobre o silêncio até aqui, mas diferentemente do que foi

proposto até agora, Eni Orlandi em seu livro As formas do silêncio: no movimento dos

sentidos, com a precisão que lhe é habitual, situa no campo do discurso a concepção de

silêncio fundante. Para essa autora, essa concepção de silêncio implica em considerá-lo

independente à linguagem. O silêncio para ela atua por meios próprios e, portanto, possui a

sua própria materialidade. Com efeito, o silêncio simplesmente significa. De tal modo, seria

possível defendê-lo como condição determinante para as produções de sentido no discurso

(ORLANDI, 2007). Sendo assim, o silêncio de As formas do silêncio: no movimento dos

sentidos possui sentido próprio, ou melhor, sentidos próprios.

Ao conferir ao silêncio o status de elemento positivo e significante por natureza, Eni

Orlandi lança o silêncio como um espaço necessário à significação. Os silêncios, na proposta

dessa autora, são cruciais na produção de sentidos. Quer tão somente dizer que o silêncio tem

um caráter próprio, portanto, ele simplesmente significa. Assim, ela rompe com os modelos

estruturalistas e positivistas da linguagem que encaram o silêncio como matéria secundária ou

que consideram o silêncio como "resto", e lança o silêncio como espaço da significação na

linguagem. Visto desse modo, o silêncio é necessário e a linguagem verbal é um excesso. O

silêncio, além de tudo, atravessa a linguagem e garante a ela sentidos múltiplos que apontam a

todas as direções. Portanto, não há silêncio que seja desprovido de sentido como não há

sentido que não tenha sido concebido do silêncio.

Sabendo que os sentidos se originam no silêncio e para o silêncio retornam, Eni

Orlandi, busca compreender as formas dos silêncios, bem como o seu modus operandi, a sua

funcionalização. O silêncio para Eni Orlandi, assim como para Santiago Kovadloff não é

diretamente observável. Ambos os autores propõem a concepção de um silêncio fugaz,

inapreensível, impalpável e inobservável. E por tudo isso, ambos também concordam que o

silêncio se revela na linguagem através de traços e pistas que ficam ao alcance do pesquisador

que podem intuir os seus sentidos. Cabe ao pesquisador, assim, observar indiretamente o

silêncio. Contudo, à diferença do silêncio primordial, os sentidos dos silêncios são intuídos

através do seu modo de funcionalização, que consiste na observação das formas dos silêncios

no discurso (ORLANDI, 2007).

Semelhante ao entendimento de Santiago Kovadloff, Eni Orlandi também divide a

concepção do silêncio em duas. Visto dessa perspectiva, Eni Orlandi, demonstra que há um

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espaço de silêncio que se interpõe entre o sujeito e a linguagem, permitindo ao sujeito assumir

diferentes formações discursivas, o que possibilita a elaboração de múltiplos sentidos no

discurso, e há um espaço de silêncio no discurso que determina os sentidos da linguagem por

meio do processo de interdição, ocultação e apagamento.

No primeiro caso, “há um modo de estar em silêncio que corresponde a um modo de

estar no sentido [...]” (ORLANDI, 2007, p. 11). De um silêncio que está antes das palavras,

entre as palavras e também depois das palavras. Essa modalidade do silêncio é denominada de

silêncio fundante. É fundante porque é capaz de edificar toda linguagem e estabelecer a

significação. Como fundante deve ser entendido como aquele que é basilar à linguagem;

matéria significante por excelência que perpassa por todo o discurso e instaura o sentido, ou

seja, "princípio de toda significação" (ORLANDI, 2007, p. 68). Com isso, coloca-se essa

modalidade de silêncio como uma instância produtora de sentidos, cujos modos de significar

são determinantes à linguagem e ao sujeito.

Por outro lado, há outro silêncio, conforme Eni Orlandi, que indica a insuficiência da

linguagem e denota o seu caráter de incompletude. A impossibilidade de dizer tudo no plano

verbal manifesta a presença de um silêncio, bem como, reforça o estado de constância e

permanência do silêncio na linguagem, (embora a autora não considere o silêncio como

linguagem, é válido ressaltar que ela entende o silêncio como instância atuante permanente e

imprescindível à organização da linguagem). Portanto, o silêncio remete à ideia de

silenciamento, de apagamento, de ocultação, de interdição etc. A autora ainda subdivide esse

conceito em duas concepções: o silêncio constitutivo e o silêncio local que serão discutidos

mais adiante neste trabalho.

A rigor, a divisão proposta por Eni Orlandi relaciona-se com a divisão proposta por

Santiago Kovadloff, inclusive no papel que cada um dos silêncios desempenha. A possível

correspondência entre essas duas propostas é que ambas lançam o silêncio no campo da

dicotomia. Distinguindo o silêncio inexplicável do silêncio explicável. De maneira que há um

silêncio repleto de sentidos, porém inapreensível e intraduzível, cuja característica

fundamental é a multiplicidade de sentidos, enquanto que há outro silêncio fugaz como o

primeiro, embora esteja no domínio do explicável e do traduzível, cuja característica

fundamental se dá no plano do apagamento de sentidos. Qualifica-se essa modalidade de

silêncio em As formas do silêncio: no movimento dos sentidos como política do silêncio.

Assim como o semblante explicável do silêncio a que Santiago Kovadloff se refere, a política

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do silêncio também trabalha com o efeito do mascaramento, por meio de cortes do plano da

linguagem verbal.

Em linha análoga à proposta de Santiago Kovadloff, Eni Orlandi também diz que não

se pode encarar o silêncio como linguagem. O silêncio, para ela, assim como para ele, não é

linguagem, pois este pertence a outro domínio e possui uma materialidade significante distinta

da linguagem. O silêncio sempre permanece silêncio. O silêncio não se traduz pela linguagem

verbal. “Com efeito, a linguagem é passagem incessante de palavras ao silêncio e do silêncio

às palavras” (ORLANDI, 2007, p. 70). A linguagem, como já foi dito, caracteriza-se pela

presença irrevogável do silêncio. O silêncio nutre a linguagem, mas não é linguagem. A

compreensão do silêncio não quer dizer que o silêncio precisa ser colocado no âmbito do

verbal e traduzido por palavras. O sentido do silêncio, para a autora, consiste em reconhecer

os processos de significação que ele põe em jogo (ORLANDI, 2007).

Detendo-se um pouco mais sobre a relação entre silêncio e linguagem, ambos os

autores também concordam que o silêncio atesta uma relação de incompletude constitutiva da

linguagem, além disso, o próprio sujeito também tem uma relação fundamental com essa

incompletude. Embora a “falta” para Santiago Kovadloff seja fundamental à constituição da

identidade do sujeito. Para Eni Orlandi (2007, p. 68), a noção de falta é compreendida

ligeiramente diferente: “O silêncio não é o vazio, ou o sem-sentido; ao contrário, ele é o

indício de uma instância significativa. Isso nos leva à compreensão do ‘vazio’ da linguagem

como um horizonte e não como falta”. O que significa que o silêncio que está ligado à noção

de incompletude da linguagem é visto como um espaço de possibilidades múltiplas por onde o

sujeito se move, construindo significados. É pelo silêncio que o sujeito se movimenta entre

diferentes formações discursivas. Nesse sentido, fica evidente que cada uma dessas

modalidades de silêncio apresentadas até aqui correspondem a dois sistemas diferentes.

Quando Eni Orlandi (2007, p. 23) elege o silêncio como princípio de significação do

discurso, a autora esclarece que se refere apenas ao silêncio que trabalha no interior da

linguagem, ou melhor, “o não-dito visto do interior da linguagem”. Em termos concretos, o

silêncio de Eni Orlandi distingue-se totalmente do silêncio primordial, porque este não se

configura como uma ausência originária, mas como um espaço de possibilidades para a

significação. Muito embora, Wania de Souza Majadas (2007) afirme que o silêncio fundador

e o silêncio primordial são sinônimos, é preciso destacar a perspectiva que orienta o estudo de

Eni Orlandi e, em que sentido, os estudos de ambas acerca de silêncio se distanciam e se

diferenciam.

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O trabalho da análise do discurso da escola francesa, pelo viés de Eni Orlandi,

consiste em compreender o discurso como lugar de contato entre o linguístico e o ideológico.

E o silêncio entra, justamente, nesse movimento que existe no discurso entre o “um” e o

“múltiplo”, entre língua e ideologia e entre reduplicação e deslocamento. De modo que o

silêncio caracteriza um movimento contraditório “tanto do sujeito quanto do sentido, fazendo

o entremeio entre ilusão de um sentido só [...] e o equívoco de todos os sentidos” (ORLANDI,

2007, p. 17). Esse movimento ou esse deslocamento então é o que possibilita os sentidos.

Além disso, sujeito e sentido são constituídos mutuamente a partir da sua relação com o

silêncio. E tanto o sujeito quanto o sentido são dispersos no silêncio. Os sujeitos e os sentidos

movem-se pelo silêncio, mesmo que a identidade do sujeito se conforme com uma ilusão de

unidade e linearidade. O sujeito, entretanto, é fragmentado e disperso e, por conseguinte, sua

identidade é atravessada por múltiplos discursos fazendo o sujeito tão errático quanto os

sentidos. Portanto, a relação do sujeito com os sentidos, nessa perspectiva também é movente,

dispersa e divergente, o que significa que os sujeitos não estão fechados dentro de uma

formação discursiva específica, eles, ao contrário se movem entre diferentes regiões

produzindo sentidos múltiplos.

Essa caracterização é importante, porque, dessa forma, o sujeito pode atribuir

diferentes sentidos a um mesmo objeto simbólico e ele mesmo pode ser constituído de

diferentes sentidos. E nisso, o silêncio primordial é significativamente diferente do silêncio

fundante proposto por Eni Orlandi em seu livro As formas do silêncio: no movimento dos

sentidos. Porque para Eni Orlandi (2007), o silêncio é concebido a partir de uma perspectiva

discursiva e se converte em um espaço de possibilidade à significação, enquanto que o

silêncio primordial “não conforma um discurso, o silêncio primordial insinua o indizível, mas

sem cruzar as margens do enunciável” (KOVADLOFF, 2003, p. 167). Mais precisamente, o

silêncio do qual Eni Orlandi fala é o não dito que estabelece laço entre sujeito, história e

discurso, que não fala, mas que significa.

Há, portanto, algo de incontornável e misterioso em qualquer uma dessas concepções

de silêncio, porém para alcançar o silêncio fundador, diferentemente do silêncio primordial

que implica um mergulho na subjetividade, o silêncio fundante, por sua vez, exige refazer

toda a trama discursiva e desconstruir todos os processos de construção dos sentidos. Para

tanto, requer rever como se elaboram as formações discursivas e ideológicas para que, dessa

forma, possa transparecer a historicidade inscrita no tecido textual (ORLANDI, 2007). É

apenas desse modo que é possível salientar os silêncios e os processos oriundos do silêncio na

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construção dos sentidos. Partindo desse pressuposto, observar o silêncio fundante implica em

“observá-lo indiretamente por métodos (discursivos) históricos, críticos, desconstrutivistas

[...] sem considerar a historicidade do texto, os processos de construção dos efeitos de

sentidos, é impossível compreender o silêncio” (ORLANDI, 2007, p. 45). O que é comum nos

estudos dos signos, conforme aponta Eni Orlandi (2007, p. 30), é que se considera que toda

linguagem está “repassada de linguagem verbal, ou como se diz, todo sistema de signos (de

qualquer natureza) é atravessado (interpretado) pela linguagem verbal”. Obviamente que isso

não é possível quando se atribui ao silêncio o estatuto de elemento significante por

excelência. Tal é precisamente a compreensão do silêncio nessa acepção, como o recuo

necessário que existe nas e entre as palavras e que possibilita a elas significar, que se

distingue de outras modalidades de silêncio.

Para Eni Orlandi, “é nessa perspectiva que consideramos a linguagem como

categorização do silêncio, isto é, ela é gregaridade, a possibilidade de segmentação, ou

melhor, recorte da significação em unidades discretas” (ORLANDI, 2007, p.71). O mais

importante é que, mesmo o silêncio resistindo à domesticação e à representação, é possível,

através da linguagem, perceber pistas e traços de silêncio no discurso. Eni Orlandi distingue

figuras retóricas do silêncio e que são presenças do silêncio no plano textual. A autora elenca

cinco figuras fundamentais para a compreensão da categorização do silêncio, ou seja, uma

forma retórica em que o silêncio se manifesta.

A primeira delas é denominada por Eni Orlandi como elipse. Elipse é omissão ou

supressão de uma ou mais palavras que não comprometem a clareza da frase. A autora ainda

menciona a descontinuidade temática como outra figura retórica de silêncio que se caracteriza

por rupturas súbitas no plano temático e quebra de linearidade. Subdeterminação semântica

seria aquilo que é dito e tem o significado subdeterminado, ou seja, elas não exprimem uma

proposição completa (VARGAS, 2014). Acrescentam-se às figuras já mencionadas, as

reticências como omissão voluntária do que se podia dizer. E, finalmente, Eni Orlandi coloca

a preterição como última figura retórica do silêncio que se define, por o sentido estar além

daquilo que é dito. Dessa maneira, a retórica demonstra ser muito relevante para o estudo das

formas do silêncio.

A bem dizer, quando Eni Orlandi propõe que a linguagem é categorização do silêncio,

a linguagem verbal como domesticadora dos sentidos, ou seja, a identidade na sua relação

com a linguagem é disciplinada, coerente, avizinhando-se da unicidade, por outro lado, na sua

relação com o silêncio, a identidade remete à divergência, à multiplicidade, à contradição, ao

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absoluto etc. Por isso, o silêncio, assim como na perspectiva de Santiago Kovadloff, não tem

objeto, na perspectiva do silêncio fundante também não. Não havendo objeto, cabe observar o

sujeito para o primeiro e observar e analisar as formações discursivas para o segundo.

Certamente, fica claro que o silêncio não é diretamente observável, conforme já foi

dito anteriormente, então o silêncio também não é o objeto ideal para compreendê-lo. “Em

consequência, é preciso deslocar a análise do domínio dos produtos para os processos de

produção de sentidos” (ORLANDI, 2007, p. 55). A aplicação desse critério é de extrema

relevância para se alcançar o silêncio fundante, pois se permite trabalhar a noção de

incompletude da linguagem, bem como a necessidade do silêncio é expressão, além do que

permite também trabalhar com as figuras retóricas do silêncio como “’sintomas’ da

marginalização do silêncio dos processos de significação” (ORLANDI, 2007, p. 55). Assim,

salienta-se a necessidade de trabalhar o silêncio através de sua funcionalização e levar em

consideração a sua materialidade histórica.

Com isso saltam aos olhos duas questões fundamentais que distinguem o silêncio

fundador do silêncio primordial: primeiramente o silêncio fundador deve ser observado

levando em conta a sua historicidade, os seus modos de construção, bem como a relação entre

as formações discursivas e ideológicas que comprometem os significados do discurso. A

segunda questão fundamental, que caracteriza o silêncio fundador, é a questão do movimento

que caracteriza este e o caráter absoluto e originário daquele. “No silêncio [fundador] o

sentido se faz em movimento, a palavra segue seu curso, o sujeito cumpre a relação e sua

identidade (e da sua diferença)” (ORLANDI, 2007, p. 153). Como já foi expresso, o

movimento ao qual Santiago Kovadloff se refere é completamente distinto do movimento

atribuído ao silêncio fundador de Eni Orlandi.

A fórmula básica do silêncio fundante é que ele sempre significa: “com ou sem

palavras, diante do mundo, há uma injunção à “interpretação”: tudo tem de fazer sentido

(qualquer que ele seja). O homem está irremediavelmente constituído pela sua relação com o

simbólico” (ORLANDI, 2007, p. 29-3). Portanto, o silêncio é fundador, na proposta de Eni

Orlandi, porque tem caráter próprio. “Fundador não significa aqui ‘originário’, nem o lugar do

sentido absoluto” (ORLANDI, 2007, p. 23). Fundador significa apenas que o silêncio é o

espaço que garante ao sujeito deslocar e realocar sentidos dentro de uma determinada

formação discursiva, o que permite a um determinado objeto simbólico significar de múltiplas

formas.

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Eis o silêncio que confirma a relação contraditória entre historicidade e materialidade

linguística. Esse é o silêncio fundador, “princípio de toda significação” (ORLANDI, 2007, p.

68), equivale dizer: essencial à linguagem. Eni Orlandi ainda destaca que o silêncio fundador

é entendido como um continuum absoluto. E como continuum absoluto entende-se que ele

trabalha nessa constante movência de sentidos. Para a linguista,

Essa possibilidade de movimento, de deslocamento de palavras em presença

e ausência, leva-nos a fazer um paralelo que mostra ao mesmo tempo uma

relação fundamental entre linguagem e tempo. Em latim, o tempo marcado

(tempus) tem uma relação com o “evo” (aevum), que é o tempo contínuo. O

tempo é que marca o “evo”. A definição do tempo medieval (em São Tomás)

é numerus motus secundum prius et posterius, ou seja, o número do

movimento segundo o que vem antes e depois (medioevo = evo médio).

Assim é que vemos a relação entre palavra e silêncio: a palavra imprime-se

no contínuo significante do silêncio e ela o marca, o segmenta e o distingue

em sentidos discretos, constituindo um tempo (tempus) no movimento

contínuo (aevum) dos sentidos do silêncio. Podemos enfim dizer que há um

ritmo no significar que supõe o movimento entre silêncio e linguagem.

(ORLANDI, 2007, p. 25).

Essa relação do silêncio com o movimento contínuo reflete a sua condição intemporal,

que subtrai a sucessão, porque o silêncio é o que vem antes e o que vem depois. Já para

Santiago Kovadloff, o silêncio primordial está no domínio do atemporal. “Na atemporalidade,

pelo contrário, a quietude não implica realização e sim ausência. Nada culmina ali porque ali

nada se inicia, nem está precedido por indício algum” (KOVADLOFF, 2003, p.103). Para Eni

Orlandi, o silêncio fundador não é uma ausência, mas o real do discurso, o real da

significação. “Quando o homem em sua história percebeu o silêncio como significação, criou

a linguagem para retê-lo [...] A linguagem estabiliza o movimento dos sentidos” (ORLANDI,

2007, p. 27). O que Eni Orlandi salienta é que o silêncio fundador é movimento e a linguagem

como segmentadora desse movimento é que assegura pelo movimento os sentidos à

linguagem. Os sentidos, assim, não param nunca. Eles estão sempre em movimento e mesmo

que se tente conter os sentidos pelo silenciamento, recorrendo à política do silêncio, eles se

rearranjam e tomam outro caminho.

Então, para compreender em que sentido o silêncio primordial se distancia do silêncio

fundante é preciso ressaltar algumas dessas características já mencionadas. Não é apenas o

movimento que coloca o “um” em relação ao “múltiplo” e que produz o sentido em sua

pluralidade, que separa uma concepção da outra, a diferença entre essas duas concepções é

plural, como se pode perceber. O silêncio fundador intervém como parte da configuração do

silêncio, do sujeito e do sentido, tal como o silêncio primordial. No entanto, o silêncio

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primordial não conforma o mesmo movimento em que possibilita espaço para o sujeito

deslocar-se, assim como no silêncio fundador. Por outro lado, o silêncio fundador não

transcende a categorização do silêncio imposta pela linguagem, mas apenas observa os limites

que segmentam o absoluto. Isso implica considerar uma distinção fundamental entre as duas

concepções, o silêncio fundador sendo dotado de forma, é observável a partir de suas formas

visto do interior da linguagem. Santiago Kovadloff se propõe a sondar o silêncio sem rosto

que carece de forma e de fundo.

Outro fator concorre para a distinção entre essas duas concepções, é que a identidade

do sujeito se firma no silêncio, segundo Eni Orlandi. Estar no silêncio é ser capaz de

significar em silêncio. Enquanto que esse silêncio “fundamenta o movimento de

interpretação” (ORLANDI, 2007, p. 156), assim, o silêncio converte-se em um “lugar em que

o sujeito ‘se’ significa para significar” (ORLANDI, 2007, p. 156). No entanto, o silêncio

primordial revela na identidade do sujeito um vazio inevitável, uma ausência originária de seu

próprio ser que não se configura como espaço de interpretação e atribuição de sentidos, mas

reflete uma carência em sua condição básica enquanto sujeito. É de encontro com esse vazio

arrebatador que o eu se vê colocado diante de um nada de sentido determinante à sua

identidade.

O que se tem percebido e intuído nos trabalhos desses dois estudiosos são as

diferentes, porém, ricas formas com as quais eles concebem o silêncio, sejam como ausência e

resto, ou como real e necessário ao discurso. Levando em conta as particularidades de suas

disciplinas e traçando um paralelo entre suas semelhanças e diferenças, percebe-se que os

aspectos levantados até aqui são capitais para a compreensão do funcionamento do silêncio,

dos seus modos de alusão e aproximação a esse silêncio que é refratário e fugaz. Permitindo,

dessa maneira, desnudar suas formas e meios de significação, com o intuito de compreender

os sentidos que se guardam no silêncio, sem a necessidade de subjugá-los à linguagem verbal.

Em todas essas concepções, nota-se um deslocamento de interesses e de objetivos, mas todas

essas modalidades, como se pode notar, são legítimas e fecundas ao se referir ao silêncio sem

ignorar, no entanto, a sua potencialidade criadora.

1.4 Política do silêncio: silêncio constitutivo e censura

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Há uma instância do silêncio que é reconhecida por um modo particular de

operacionalizar o silêncio. O silêncio deixa de ser encarado como um estado contínuo e

permanente e passa a ser visto como uma atitude ou ação em relação a alguma coisa. Essa

instância do silêncio está intimamente ligada ao exercício e manutenção do poder. O exercício

do poder é marcado pelo domínio da linguagem. É sabido que “a linguagem é poder” (LE

BRETON, 1999, p. 78), e se ela é potência, o silêncio – componente intrínseco da linguagem

– é poder também. O tamanho do poder de alguém depende, basicamente, do tamanho do

controle que esse alguém exerce sobre a linguagem. E esse controle está na capacidade que o

sujeito tem em administrar o silêncio que habita na linguagem, na administração do silêncio

que é inaugural para os sentidos.

A autoridade do sujeito se manifesta a partir do silêncio que se dá por meio do

controle que o sujeito exerce sobre o fluxo contínuo de sentidos oriundos do silêncio. O poder

assemelha-se, dessa forma, a uma válvula de silêncio que regula o movimento fluido dos

sentidos. A habilidade em administrar o silêncio se confirma na habilidade de controlar os

sentidos de si e do outro, seja pela retenção do silêncio ou pela retenção da palavra, o cultivo

do silêncio e a imposição de um calar fazem parte do que se pode chamar aqui de política do

silêncio.

Em linhas gerais, Adam Jaworski compreende que a política do silêncio se dá de

múltiplas formas e em múltiplos contextos, mas, especialmente, como ferramenta

sociopolítica de opressão, controle e manutenção do status quo. Esse autor pressupõe que a

política do silêncio opera por dois caminhos: seja por meio da ausência de palavras ou da

saturação de palavras que é o caso da repetição. Aprender a Rezar na Era da Técnica ilustra

ambas as modalidades. No que diz respeito à suspensão da palavra para manutenção do poder

destaca-se a seguinte passagem: “Depois de uma discussão Lenz rasga o contrato quando

estava precisamente a meio da sua assinatura [...] O nome interrompido e a negociação

interrompida” (TAVARES, 2008, p. 24). Em se tratando da saturação da palavra, basta

destacar o seguinte exemplo: “[...] e Lenz respondia: Não. Não, não. Sim, sim, sim”

(TAVARES, 2008, p. 43). Firmando dessa maneira o seu poder, se deixar que os outros se

manifestem. Impede-se a manifestação da palavra do outro. Ambos os procedimentos,

quaisquer que sejam, correspondem a um conjunto de estratégias que canalizam os sentidos e

ou os apagam.

Naturalmente, a política do silêncio torna-se um elemento chave para o

empoderamento, mas evidencia a tirania, o infortúnio e o crime, porque ela se impõe sobre o

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indivíduo a contrafeito. O silêncio e o silenciamento dentro da perspectiva da política do

silêncio trabalham juntos. A imposição, a consolidação do poder é sustentada pelo silêncio

assim como também pelo controle da informação. Daí decorre a ideia de que o silêncio pode

ser opressor, no sentido de que ele é operado para dominar um determinado grupo. “O

silêncio da opressão é um estado desejável para todos os grupos de poder que têm medo de

que a mera expressão e troca de opiniões ou livre fluxo de informação irá ameaçar o status

quo existente” (JAWORSKI, 1993, p. 116 – tradução nossa) 13

. Os mecanismos dessa

opressão ocorrem de várias maneiras. O grupo dominante altera a percepção clara da

sociedade sobre o grupo dominado para uma percepção ambígua e obscura. A imagem do

grupo silenciado se distorce e se enfraquece frente ao grupo dominante e este se vê subjugado

pelos discursos do grupo dominante. Fica explícito esse mecanismo ao observar a maneira

pela qual Lenz trata o mendigo que frequenta sua casa.

David Le Breton define a política do silêncio como “[...] o fato de, se certas coisas são

próprias para serem ditas, outras são menos, ou nem são, em função das situações e dos

protagonistas” (LE BRETON, 1999, p. 20). Em essência, a política do silêncio, para esse

autor, trata do controle exercido por um determinado sujeito ou grupo sobre a linguagem.

Esse controle é exercido, certamente, na comunicação do outro, mas também em si próprio. O

autor crê que as relações de poder são baseadas no controle do fluxo de palavras e de silêncios

assim como define Adam Jaworski. Mas em David Le Breton, a política do silêncio pode ser

entendida de duas formas, ampliando a perspectiva de Adam Jaworski: o silêncio da oposição,

aquele silêncio que é empregado como forma de resistência, contra o sujeito que em

determinada conjuntura parece deter o poder, e o silêncio da opressão, que foi abordado por

Adam Jaworski, que trata do silêncio que encobre a palavra e retém os sentidos.

O silêncio da oposição ou da recusa, por sua vez, manifesta-se como uma forma de

domínio da linguagem e resistência frente a um poder coercitivo que visa a poder realocar e

reorganizar o discurso do indivíduo dominado. O silêncio da recusa implica uma atitude de

calar como forma de defesa, com o intuito de poder equilibrar as relações de poder. “Calar-se

é um forma extrema de defesa, em que se equilibram vantagens e inconvenientes. Aquele que

se cala, sem dúvida que não se entrega, mas dá a impressão de ser mais perigoso do que é”

(LE BRETON, 1999, p. 84). Sob essa perspectiva, acredita-se que o calar torna-se um

importante mecanismo de manter a estabilidade, bem como, assegurar o equilíbrio de poder.

13

“The silence of oppression is a desirable state for all power groups that are afraid that the mere expression

and exchange of opinions or free flow of information will threaten the existing status quo” (JAWORSKI, 1993 –

p. 116, tradução nossa).

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O silêncio desafia a estrutura dominante e o envolve com um ar de mistério e de força àquele

que é subjugado. O silêncio autoimposto é demonstração de poder, podendo ser, também,

uma marca de violência e hostilização. Nesse último caso, por exemplo, interromper

subitamente a partilha da comunicação e cessar a alternância de silêncios e palavras na

comunicação é banir aquele que fala de interagir com aquele que está em silêncio, portanto,

restringindo o alcance do poder daquele que fala.

O fechamento sobre si pode se referir não somente a uma relação desproporcional de

poder em que o outro se obriga a adotar o silêncio como forma de resistência, mas também

pode refletir o desprezo e o rancor. “Uma súbita abstenção de palavra entre indivíduos que

têm o hábito de conversar entre si marca uma ruptura de relações, aumenta o ‘frio’ que surgiu

com uma recusa de comunicação” (LE BRETON, 1999, p. 86). Em síntese, esse silêncio

supõe a completa exclusão daquele que fala. E por não se permitir sua inserção na partilha da

comunicação, apaga-se o outro e recusa-se em reconhecer o outro enquanto sujeito negando-

lhe o direito de representação.

No que diz respeito ao silêncio da opressão, este elimina a dúvida, apaga os sentidos e

não deixa espaço para a polissemia do discurso. Em suma, reduz-se o outro ao silêncio do

vazio e do apagamento. David Le Breton (1999, p. 88) lembra que o “o silêncio é um

instrumento de resistência, mas também de poder, de terror, uma forma de controlar uma

situação com mão de ferro”. Trata-se de uma violência que se reveste do poder oficial e

institucionalizado e impõe sobre a sociedade a univocidade, a unilateralidade e a

uniformidade do pensamento. Nesse caso, recorre-se à censura como meio mais eficaz de

restringir o uso da palavra. “A censura produz silêncio em negativo, um defeito de

comunicação, retira-se o valor à palavra, privando-a de consistência, por não ter ninguém para

ouvir e transmitir” (LE BRETON, 1999, p. 88). Apagando-se, assim, os sentidos indesejáveis

e instalando a desconfiança mútua. Mas além da censura, há outras formas de reduzir os

indivíduos ao silêncio.

As práticas sociais da linguagem pressupõem doses equilibradas de palavra e silêncio.

A falta de conversa, porém, rompe com o equilíbrio da linguagem e reduz o indivíduo ao

ostracismo. Tal atitude configura-se como uma forma coercitiva de impor o silêncio, e esse

golpe pungente na linguagem nega ao individuo o direito de se inserir no vínculo social, tal

como ocorre com Gustav Liegnitz em Aprender a Rezar na Era da Técnica. Aliás, a recusa da

escuta impõe o status negativo do silêncio. Um silêncio poderoso que como uma névoa densa

encobre os sentidos. Paulatinamente, o indivíduo que fala é relegado ao vazio da linguagem e

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condenado ao mutismo e isso se dá por duas razões: ou porque o que se está sendo dito é

incompreensível para os falantes dentro de uma determinada comunidade linguística, ou

porque, o que está sendo dito é, supostamente, irrelevante e, por conseguinte, não digno de ser

ouvido. “A impossibilidade de ser ouvido, por falta de valor próprio, conduz ao mutismo ou

então à inflação de uma linguagem que ocorre como uma hemorragia de existência sem

nenhum ouvido que consiga parar” (LE BRETON, 1999, p. 102). David Le Breton demonstra

que a política do silêncio se manifesta de múltiplas formas e em múltiplos contextos.

Independentemente dos agentes serem políticos, sujeitos institucionalizados ou não, a política

do silêncio, de qualquer forma que ela se manifesta, se mostra arrebatadora e coloca o

indivíduo subjugado em confronto com a linguagem, perante palavras e silêncios em excesso.

Sem dúvida, essas reflexões ampliam a concepção da política do silêncio e conduzem

a um aprofundamento dessa questão. Eni Orlandi dedicou páginas luminosas e esclarecedoras

sobre a política do silêncio e expande essa concepção. A autora reconhece que essa concepção

deve ser compreendida a partir de sua perspectiva discursiva e que para compreender a

política do silêncio deve-se contextualizá-la sócio-historicamente.

Conforme a autora, “a política do silêncio se define pelo fato de que ao dizer algo

apagamos necessariamente outros sentidos possíveis, mas indesejáveis, em uma situação

discursiva dada” (ORLANDI, 2007, p.73). Com precisão e aspecto distintivo, Eni Orlandi,

distingue a política do silêncio da concepção do silêncio fundador. A diferença capital entre

um e o outro é que o silêncio fundador, discutido já em páginas anteriores, significa por si

mesmo e não estabelece nenhuma divisão. Enquanto que a política do silêncio, ao observar o

termo político, remete à divisão que reincide sobre a linguagem, à divisão de sentidos, à

divisão de sujeitos entre eles, à divisão do sujeito nele mesmo. A política do silêncio então se

caracteriza por um recorte entre aquilo que é dito e aquilo que não é dito e se divide em dois

planos: o silêncio constitutivo e o silêncio local. Além do mais, a autora também aprofunda as

relações entre censura, opressão, resistência e discute o importantíssimo papel das vozes

sociais.

O silêncio constitutivo representa a concepção de que todo dizer implica não dizer

alguma coisa, que todo dizer apaga necessariamente outros sentidos. A correspondência entre

o silêncio fundador e o silêncio constitutivo não é mera coincidência, já que este é

indispensável à produção dos sentidos. A indispensabilidade do silêncio constitutivo imprime

a ele um papel primordial na linguagem. O silêncio constitutivo é, assim, essencial à

estruturação da linguagem. O mecanismo de operação do silêncio constitutivo é definido por

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Eni Orlandi como o “antimplícito” (ORLANDI, 2007, p. 73). Ora, se o implícito é aquilo que

não está dito, mas que remete ao dito, o anti-implícito é o fenômeno contrário, que apela ao

silêncio em que o que está dito nega outros dizeres. “se diz ‘x’ para não (deixar) dizer ‘y’, este

sendo o sentido a se descartar do dito. É o não-dito necessariamente excluído” (ORLANDI,

2007, p. 73). Para clarificar essa proposição, é preciso considerar que o dizer e o

silenciamento são indispensáveis um para o outro, que há, de fato, uma relação de

incompletude com a linguagem. Assim,

[...] o esquema "dizer x para não dizer y" aponta para a necessidade da

enunciação em se constituir a partir da exclusão de outros sentidos possíveis.

Se fosse possível dizer tudo, não se diria nada. Assim, podemos ir além, e

até dizer que, paradoxalmente, se fosse possível dizer tudo seria impossível

dizer qualquer coisa (TFOUNI, 2008, p. 363).

Ao afirmar que a linguagem se estrutura a partir da noção do silêncio constitutivo e,

nesse sentido, o não dito é essencial para a constituição do discurso. É importante não

confundir o papel do silêncio constitutivo e do silêncio fundante. O silêncio fundante é

indivisível e permanece silêncio, ou seja, não se traduz em palavras, porque, inclusive, ele

está entre elas e as atravessa, de modo que ele apenas significa. O silêncio fundante não

promove apagamentos de sentido, mas é condição da produção de sentidos. E o silêncio

fundante tem sempre sentidos a dizer, decorrendo daí a noção de polissemia do discurso.

Em contrapartida, o silêncio constitutivo se afirma a partir do não dito. O silêncio

constitutivo é incontornável, muito embora o silêncio constitutivo suponha uma divisão na

linguagem. É quando não se diz algo, em determinada conjuntura, justamente para apagar

certos sentidos que, naquele contexto, parecem indesejáveis. No mundo judaico, por exemplo,

prefere o termo Shoah, que significa catástrofe em hebraico a Holocausto, para não recorrer a

conotações sacrificiais (SELIGMANN-SILVA, 2003). E, no contexto latino-americano, por

muito tempo referiu-se à ditadura como Regime Militar, para apagar o sentido negativo que a

palavra ditadura implica. Inclusive, Eni Orlandi recorda que após a redemocratização adotou-

se o termo Nova República. A ideia de uma Nova República apaga os sentidos de que a Nova

República foi precedida por uma ditadura. Assim, o sentido depende justamente do

apagamento necessário que promove o silêncio constitutivo. O silêncio constitutivo

caracteriza-se, dessa forma, pela escolha que está relacionada ao contexto sócio histórico e à

impossibilidade de dizer tudo, reincidindo na incompletude que caracteriza a linguagem

verbal.

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O silêncio como procedimento político guarda no silêncio local “a manifestação mais

visível dessa política: a interdição do dizer” (ORLANDI, 2007, p. 74), que se manifesta,

especialmente, através da censura, que se caracteriza pela proibição de dizer algo em uma

determinada conjuntura. No silêncio local o sujeito é impedido de dizer o que pode ser dito.

Eni Orlandi procura entender a censura como um fato da linguagem, de maneira que se

possam observar os seus mecanismos de funcionamento e de operação do silêncio na

linguagem. Consonante tal autora:

A censura tal como a definimos é a interdição da inscrição do sujeito em

formações discursivas determinadas, isto é, proíbem-se certos sentidos

porque se impede o sujeito de ocupar certos lugares, certas posições. Se se

considera que o dizível define-se pelo conjunto de formações discursivas em

suas relações, a censura intervém a cada vez que se impede o sujeito de

circular em certas regiões determinadas pelas suas diferentes posições

(ORLANDI, 2007, p. 104).

Por isso, a autora concebe a censura enquanto silêncio local, porque ele é discernível e

é possível detectar as suas marcas e formas no interior da linguagem. Em linhas gerais, a

censura, de forma localizada e ostensiva, atua no cerceamento das formações discursivas do

indivíduo, de modo que aquilo que pode ser dito, não deve ser dito quando o indivíduo fala. O

esquema da censura obriga o sujeito a dizer x para não dizer y. De tal modo, a censura tenta

vetar que o sujeito ocupe diferentes lugares e diferentes posições discursivas.

Sabe-se que o sujeito e o sentido se constituem ao mesmo tempo, então, ao interditar

que o sujeito ocupe determinadas posições discursivas, tal atitude afeta imediatamente a sua

identidade. De forma que para a autora, é possível traçar um paralelo entre a relação de Poder

(censura) e a relação de Desejo (Narcísea) (ORLANDI, 2007). No autoritarismo, a censura

fixa um sentido e não concebe outros sentidos possíveis, criando uma espécie de “narcísea

social” (ORLANDI, 2007, p. 80), no qual um sentido só é imposto para toda sociedade.

O conceito de língua de espuma proposto por Eni Orlandi tem muito a acrescentar à

noção de retórica da opressão que advém do silêncio local. A noção de língua de espuma

corresponde a “uma língua ‘vazia’, prática, de uso imediato, em que os sentidos não ecoam. É

uma língua que os sentidos batem forte, mas não se expandem [...] Na língua de espuma os

sentidos se calam” (ORLANDI, 2007, p. 99). A língua de espuma não compromete nenhuma

realidade e, nesse sentido, ela também opera em favor do silenciamento. No autoritarismo os

sentidos manifestados e permitidos pela censura se enquadrariam dessa maneira à concepção

de língua de espuma. Ao instituir um único discurso, o regime autoritário perde a força

porque se fecham os caminhos da linguagem e se interditam as posições discursivas que o

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sujeito pode assumir para preencher esse discurso de significados. Por isso, o autoritarismo

recorre à repetição. Sem a repetição e a saturação de palavras, a língua de espuma se esvanece

e com ela a sua mensagem.

Entretanto, em relação à censura por mais que se tente interditar os caminhos da

linguagem não se é capaz de conter o fluxo de sentidos. Ainda que a censura tente impedir

determinada formação discursiva, os sentidos tomam outro caminho e significam de outras

maneiras. Segundo Eni Orlandi (2007, p. 80), “os sentidos são erráticos e podem migrar de

uma região para a outra”. É assim que se dá a produção dos sentidos, pelo movimento que

também constitui sua identidade.

Com efeito, a censura é o lugar da negação e ao mesmo tempo da

exacerbação do movimento que institui a identidade. Por isso é um lugar

privilegiado para ‘olhar’ a relação do sujeito com as formações discursivas.

Porque nos faz apreciar melhor os processos de identificação do sujeito ao

inscrever-se na região do dizível para produzir(-se) sentido. Essa situação

corresponde a uma forma direta e sem sutilezas da política do silêncio, ou

melhor, do silenciamento: se obriga a dizer ‘x’ para não deixar de dizer ‘y’.

No entanto, pela natureza dispersa do sujeito pelo movimento que constitui

sua identidade veremos que esse ‘y’ significará por outros processos

(ORLANDI, 2007, p. 81).

Assim, têm-se os discursos de resistência indicando deslocamentos de sentido,

possibilitando um fenômeno que Eni Orlandi qualifica como retórica da resistência. Os

sentidos não ficam parados. Eles sempre tomam outros caminhos. Ao retomar a concepção de

que o silêncio simplesmente significa e que o sujeito desenvolve uma relação necessária com

o silêncio, não há censura que seja capaz de conter os sentidos. Então, no entender de Eni

Orlandi, a retórica da resistência é uma resposta necessária e inevitável à retórica da opressão.

Os sentidos silenciados, portanto, arrumam outros meios para significar. Eles migram.

“Aquilo que não dissemos durante a censura – bem ou mal, de um modo ou de outro –

significou” (ORLANDI, 2007, p. 129), muito embora, os sentidos passem por transformações.

Entretanto, os sentidos são incontidos. Assim, de acordo com a autora não há censura

completamente eficaz na medida em que ela não pode conter os sentidos. O que fica

demonstrado é que a censura não procura impedir que determinados sentidos viessem à tona,

mas impedir que esses sentidos sejam trabalhados historicamente promovendo uma

identificação com os sujeitos. A censura, assim, procura distorcer essa identificação. No

entanto, qualquer forma de censura pressupõe uma forma de resistência. Além disso, fica

patenteado que, independente da interdição, há silêncio e o silêncio significa.

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CAPÍTULO II

SILÊNCIOS E ESTRUTURA FORMAL EM APRENDER A REZAR NA ERA DA

TÉCNICA

“Onde cessa a palavra do poeta, começa uma grande luz”.

(Georg Steiner)

A característica distintiva do silêncio, como ficou demonstrado no primeiro capítulo, é

que o silêncio se confirma como elemento significativo por natureza, prescindindo de

qualquer outra materialidade para significar. Por isso, o silêncio é essencial à linguagem. Esse

seu lado intrínseco à linguagem suscita três importantes questionamentos a respeito da relação

entre silêncio e o romance Aprender a Rezar na Era da Técnica, do aclamado escritor

português Gonçalo M. Tavares, que serão discutidos neste segundo capítulo.

O primeiro questionamento é que, partindo do pressuposto de que o silêncio é inerente

à linguagem, em que medida esse silêncio se incorpora e se impregna à linguagem literária e

se constitui como elemento estético e literário? Em segundo lugar, admitindo que o silêncio se

desdobra na linguagem literária e que ele cumpre um papel não apenas primordial a esta, mas

cumpre, inclusive, um papel estético, como o silêncio se apresenta ao gênero romanesco e

como ele interfere nas formas do romance, mais especificamente, nas formas de Aprender a

Rezar na Era da Técnica? E finalmente, quais são os efeitos que se podem verificar e quais as

consequências desses efeitos no plano geral da obra?

Muito embora, nenhum desses questionamentos possa ser respondido em caráter

absoluto, o segundo capítulo desta dissertação detém-se na difícil tarefa de analisar a

manifestação do fenômeno do silêncio no texto literário, a partir de Aprender a Rezar na Era

da Técnica, e discutir as formas do silêncio nas formas do romance, além de observar, em

suas ocorrências, os seus efeitos de sentido.

2.1 Silêncio e discurso romanesco

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O romance, que chegou aos leitores do século XXI, tem uma longa trajetória de

transformações em seu conteúdo e em sua forma. A história do romance remonta à

Antiguidade Clássica e tem na epopeia a sua origem. Evidentemente, o tempo não poupou

mudanças no gênero clássico e deu lugar a uma nova forma de expressão literária mais

compatível com a nova realidade: o romance. Ao contrário do que foi o mundo helênico, o

mundo burguês do qual o romance é decorrente, não conservou o equilíbrio de uma estrutura

fechada e de uma linguagem totalizante, o mundo burguês rompe com essa harmonia e a

totalidade de outrora é apenas um projeto a ser pretendido (LUKÁCS, 2006). Diferentemente

do seu antecessor – a epopeia –, o romance refugia-se no silêncio para significar. Dito de

outro modo, o silêncio instaura-se em suas formas e inaugura o seu sentido.

Após seu resplendor entre os séculos XVIII e XIX, o romance nos séculos XX e XXI é

marcado pela crise e então passa a ser saturado pela informação e rodeado por uma

multiplicidade de linguagens e mundividências. No entanto, o silêncio jamais abandonou as

formas do romance. O silêncio sempre esteve com o romance, permeando as suas estruturas.

Mas consonante Eni Orlandi (2007), na atual conjuntura, o silêncio é relegado a uma posição

subalterna. Assim, o silêncio presente no romance não tem a devida atenção que merece.

Paulatinamente, o silêncio vem sendo posto em adjacência à ideia de vazio, de tácito e de sem

sentido e, gradativamente, subordinando-se à verbalização.

A comunicação, que tece interminavelmente os seus fios na malha da trama

social, não tem lacunas, apresenta-se no modo da saturação, não sabe calar-

se para poder ser ouvida, falta-lhe silêncio, que lhe daria um peso, uma

força. E o paradoxo deste fluxo interminável é que ela encara o silêncio

como sendo seu inimigo principal: não há espaços vazios na televisão ou na

rádio, por exemplo, é impossível deixar passar, por batota, um instante de

silêncio, impõe-se sempre um fluxo permanente de palavras ou de música,

como que para esconjurar a ameaça de ser finalmente escutada. (LE

BRETON, 1999, p. 15).

Nesse cenário, muito frequentemente, “coloca-se o ‘império do verbal’ em nossas

formas sociais: traduz-se o silêncio em palavras” (ORLANDI, 2007, p. 30 – destaques da

autora). Diante dessas constatações, João Batista Ferreira (2009, p. 18) sugere que “a riqueza

que o silêncio encerra é de difícil administração; daí o pânico que provoca, gerando o ruído

como escape, calando com o barulho a voz. Essa fuga ruidosa é uma prática que se alastra no

contemporâneo”. E o que vem sendo percebido e intuído por vários estudiosos

contemporâneos da linguagem além dele é que, muito embora, o mundo esteja cada vez mais

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saturado por barulho e por múltiplos discursos, o silêncio ainda resiste à urgência da palavra

(ORLANDI, 2007).

Não obstante, o gênero romanesco resistiu à pressão das múltiplas linguagens que

tentaram conter o silêncio a todo modo significando de outras maneiras. E entre essas novas

maneiras de significar, refletiram-se, na forma do romance, silêncios que deixaram marcas

indeléveis, de modo que ninguém poderá contestar a presença do silêncio no romance,

qualquer que ele seja. O silêncio é uma potência, e se a proliferação da palavra não consegue

contê-lo e refreá-lo, é porque então mais potente e mais profundo o silêncio se manifesta no

meio literário.

O silêncio está intrincado às formas do romance. Não é por menos, quando se

considera que o mundo é fragmentário, é estilhaçado, é rarefeito e grande demais para o

registro verbal. Assim é o romance: fragmentário, estilhaçado, rarefeito e, além disso, é

repleto de silêncios em sua estrutura como jamais se viu, demonstrando ser representante por

excelência do mundo burguês. O equilíbrio e a estabilidade inerentes à poesia épica dão lugar

a uma série de interstícios, de não ditos, de lacunas que transbordam silêncios e que se

entretecem às instâncias narrativas. Referindo-se a essa constatação, acredita-se que o

romance, à diferença do seu antecessor, a epopeia tem no silêncio seu fundamento e o seu

equilíbrio.

Georg Lukács (2006) defende que “o romance é a epopeia de uma era para a qual a

totalidade extensiva da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do

sentido à vida tornou-se problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade”

(LUKÁCS, 2006, p. 55). Através da forma, o romance tenta recobrar a totalidade perdida e o

romancista vê-se obrigado a reconfigurar as técnicas de composição do romance buscando

novos experimentos formais capazes de abarcar o novo mundo, bem como, expressar o novo

paradigma social.

O romancista, assim, explora caminhos ainda inexplorados, buscando representar seu

mundo de maneira plena, expondo toda contradição dos ideais burgueses, além de todas as

fissuras e ambiguidades que compõem a sua realidade. As circunstâncias históricas que

condicionavam os ideais de completude e segurança esvaneceram-se e em seu lugar pairou a

incerteza sobre todas as crenças e suposições dos homens.

Tal desorientação denuncia que o mundo e quase tudo que rodeia o homem é

irrealizável sem a presença do silêncio, e que o signo garante uma estabilidade ilusória. Mas,

o mais importante, é que a multiplicidade de linguagens que segmentou e dispersou a

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experiência com o real, pôs em xeque a crença paralisante sobre o poder irrefutável da

linguagem verbal, sinalizando, na verdade, que a experiência com o real se dá por meio de

uma massa de fragmentos inominada e que a sua compreensão é, indubitavelmente, pontuada

pelo silêncio que envolve a sua forma.

No caso do romance, o obstáculo do romancista consiste, justamente, em lidar com

uma massa proteiforme de fragmentos da linguagem atravessada por silêncios. Essa

linguagem verbal estilhaçada se mostra completamente insuficiente para conceber a nova

realidade plural e multifacetada. Incapaz, destarte, de recorrer à espontaneidade da linguagem

para representar esse novo mundo imensurável, que, na verdade, se tornou grande demais para

caber na linguagem verbal, o romancista refugia-se no silêncio. É pelo caminho do silêncio

que o romancista tenta abranger o novo mundo em toda sua diversidade.

O trabalho do romancista equivale, portanto, ao trabalho de um artesão que com

persistência, dedicação e dotado de precisão e rigor técnico experimenta ao máximo a sua arte

e recria a linguagem a partir de fragmentos. Tornando a linguagem cada vez mais

significativa, cada vez mais eloquente. Sem se deixar seduzir pelo furor da multiplicidade de

linguagens, o romancista empreende a incrível tarefa de transformar a realidade em signo,

porém consciente da impossibilidade da representação da liberdade humana a partir do signo

linguístico. E diante desse caos sígnico que se encontra o romancista, o silêncio apresenta-se

como o signo ideal para a forma romanesca. O que se pode presumir é que o romancista reúne

e arranja artisticamente esses fragmentos de linguagem regados de silêncio que vem

harmoniosamente, em fim, compor a forma do romance.

Forma e conteúdo, assim, são atravessados por uma série de silêncios e hiatos na

narrativa com funções múltiplas e significados distintos que serão tratados mais adiante.

Ambos, no entanto, sintetizam a percepção de uma comunicação imperfeita e dilacerada e que

requer silêncio para poder forjar a representação de uma realidade complexa, dinâmica que

está em permanente transformação. Em relação à linguagem romanesca, forma e o conteúdo

são produtos históricos que representam um determinado momento e que, portanto, também

registram uma força dinâmica complexa. A crescente presença do silêncio na forma

romanesca é um indício de que o romance também se transforma e que cada vez mais

necessita não só da palavra, mas especialmente do silêncio para existir.

Embora a forma, muitas vezes, não acompanhe as transformações de conteúdo, pois

mais lentamente se transforma e se ajusta à nova realidade social, é inegável que a forma do

romance contemporâneo manifesta uma estrutura mais compatível com a mudança no

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paradigma ideológico e social. Sem dúvida, a forma do romance está cada vez mais impactada

pela velocidade, pela dinamicidade e pela imprevisibilidade das estruturas sociais. A forma do

romance adquire novos contornos e reveste-se de silêncio para poder significar em um mundo

cada vez mais carente de silêncio.

Além de sua expressiva manifestação na estrutura narrativa, na medida em que

desempenha um papel primordial para a configuração do gênero literário, o silêncio desperta

fascínio no sentido de que ele permanece refratário. Eis que o poder encantatório dos silêncios

na forma do romance fundamenta-se no fato de os silêncios conterem uma imensa variedade

de sentidos irrefreáveis que permitem que a pluralidade e dinamicidade do mundo burguês

contemporâneo continuem sendo representadas na forma desse gênero literário. Pois, o

silêncio, plausivelmente, indica que não há um limite do que pode ser dito, que o silêncio é

um anúncio de uma realidade impensável que jamais poderia ser assegurada em sua

completude. “Porque nem sempre haverá palavra adequada para dar conta de uma

experiência, porque nem tudo é passível de ser expresso, há interstícios que não alcançamos

por meio da linguagem, entrelinhas que se sobrepõem às linhas” (PEREIRA JÚNIOR, 2007,

p. 49). E sendo o romance o veículo de expressão de uma era para o qual a totalidade e a

completude configuram uma visão infactível, o silêncio surge como seu principal vetor.

Então, sem o silêncio o romance não existiria.

E é precisamente esta a visão de Georg Lukács, proposta em sua obra referencial A

teoria do Romance (2006), perpassada pela ideia de que o romance é um produto típico do

mundo burguês. Consequentemente, essa forma de expressão literária reflete o novo

paradigma ideológico e social marcado pela fragmentariedade de suas estruturas. Apesar de

todo o conhecimento acumulado pela sociedade burguesa, o homem do romance ainda não é

capaz de apreender toda a dimensão que configura sua realidade e os elementos que, na sua

totalidade, determinam as formas do romance na atualidade. Pois a civilização burguesa

fragmentou-se e com ela surgiu uma imensa pluralidade de experiências que se torna, em

última instância, impossível para o leitor se identificar com elas, tornando-se imperativa a

presença do silêncio para as formas desse gênero literário. De tal forma que o leitor se

encontra e se identifica nas fendas e nos silêncios do romance.

2.2 A forma do romance: silêncios

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Influenciado, sobretudo, pelos escritos de Georg Hegel, Georg Lukács (2006) inicia

sua discussão do romance a partir de gêneros clássicos, sendo eles; a tragédia e a epopeia –

esta última da qual o romance é decorrente, conforme o autor. O percurso empreendido por

Georg Lukács (2006) consiste em entender o romance através de sua forma e sua história

transcendental. O estudioso ao contrapor a grande épica com a epopeia moderna, evidência

uma série de características primordiais no gênero romanesco que traduzem, no seu entender,

uma crise.

Ao afirmar que no mundo helênico – pautado pelo equilíbrio perfeito entre matéria e

substância, homem e mundo, onde tudo era conhecido e pleno – a existência se fazia essência,

cada realização na existência do herói da epopeia sintetizava sua essência. Nesse mundo

governado pelos deuses tudo estava pré-estabelecido. A cultura fechada, o equilíbrio e a

segurança – dos quais fazia parte o herói helênico – deixaram de existir. A epopeia também

foi destronada para dar lugar a uma nova forma de expressão literária mais compatível com a

nova realidade conturbada, caótica e plural: o romance.

Diferentemente do modelo clássico, o romance está inserido em um mundo

fragmentado. A distância entre existência e essência não pode ser mais suprida. Enquanto que

o herói da epopeia constitui sua essência a partir de sua existência, o herói romanesco, que

nada mais tem de heroico – pois está estabelecido no seio da vida quotidiana, recolhido em

sua própria individualidade –, converte-se em um herói problemático. O herói do romance,

para Georg Lukács (2006), é cindido com o próprio mundo e busca constantemente restaurar

a imanência do sentido à vida. Confrontado com a própria realidade, refugia-se na

subjetividade e, a partir dela, procura resignificar o seu mundo. A questão primordial, que se

coloca em relação ao herói problemático, é que ele jamais conseguirá redimir a cisão existente

entre o eu e o mundo, pois ele se opõe ao seu próprio mundo. Surge daí o problema da forma

do romance. De fato,

Nosso mundo tornou-se infinitamente grande e, em cada recanto, mais rico

em dádivas e perigos que o grego, mas essa riqueza suprime o sentido

positivo e depositário de suas vidas: a totalidade. Pois, totalidade como prius

formador de todo fenômeno individual, significa que algo fechado pode ser

perfeito [...] A totalidade do ser só é possível quando tudo já é homogêneo,

antes de ser envolvido pelas formas quando as formas não são uma coerção,

mas somente conscientização [...] (LUKÁCS, 2006, p. 31).

É incontestável que a totalidade espontânea do ser é inconcebível na medida em que a

noção de unidade e de uma linguagem totalizante se esvaneceu. O mundo do qual o romance é

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decorrente é repleto de mundividências que abalam sua forma. A saturação da nova realidade

sobrecarregou as formas do romance e o romancista se vê diante de uma realidade plural e

completamente estilhaçada e, em certa medida, irrealizável. De tal maneira, o romance

moderno promove maior fragmentação das estruturas narrativas, tornando mais patente a

presença do silêncio que vem preencher de sentidos as fendas da forma romanesca. Portanto,

nessa linha de raciocínio, a forma do romance cumpriria um papel coercitivo, limitador e

restritivo. Ao contrastar a grande épica com o romance, Georg Lukács afirma:

Ora, esse exagero da substancialidade da arte tem também de lhe onerar e

sobrecarregar as formas: elas próprias têm de produzir tudo o que até então

era um dado simplesmente aceito; antes, portanto, que sua própria eficácia

apriorística possa ter início, elas têm de obter por força própria suas

condições o objeto e o mundo circundante. Uma totalidade simplesmente

aceita não é mais dada às formas: eis porque elas têm de estreitar e

volatilizar aquilo que configuram, a ponto de poder sustentá-lo, ou são

compelidas a demonstrar polemicamente a impossibilidade de realizar seu

objeto necessário e a nulidade intrínseca do único objeto possível,

introduzindo assim no mundo das formas a fragmentariedade da estrutura do

mundo. (LUKÁCS, 2006, p. 36).

Postulado que o romance é inteiramente marcado pela fragmentariedade e

“insuficiência” e que as formas do gênero vem cumprir um papel essencial, no sentido de que

a apropriação do objeto e do mundo se dá pela forma, há nele, necessariamente, a marca do

silêncio, pois em conformidade com a proposta de Eni Orlandi (2007), o silêncio está muito

mais evidente, pois ele reage às múltiplas linguagens e significa. Indiferente às circunstâncias,

o silêncio sempre irá significar. Então, não há forma que seja capaz de conter o absoluto. Em

contrapartida, Santiago Kovadloff (2003) defende que: “Toda formalização é uma imposição

de limites que segmenta o absoluto. Mas, por sua vez, neste segmento chamado forma, o

ausente – o absoluto em questão – se faz evidente ao menos como falta. É aquilo que se nota

como ausência” (KOVADLOFF, 2003, p. 144). Não obstante, é válido propor que o mundo

das formas não é apenas coercitivo ou que a forma apenas detém e aprisiona o silêncio.

Ao contrário, a forma torna-se uma experiência obstinada do romancista em recobrar a

totalidade perdida. Pode-se entender que o silêncio, nesse sentido, também é dado pela forma.

As formas são o limiar do silêncio. Através do silêncio contido nela, o romancista busca

transcender os significados (KOVADLOFF, 2003). Definitivamente, o silêncio na forma do

romance não decorre da incomunicabilidade apenas. O silêncio não é para o romance senão

outra instância de significação repleta de sentidos vivos, cuja potência significativa jamais

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poderá ser absolutamente apreendida. Além de ser um indício do silêncio, a forma do

romance é, indiretamente, uma referência a ele.

Também sobre a forma do romance, Ferenc Fehér (1972), discípulo de Georg Lukács,

viabiliza uma nova maneira de entender como o romance na modernidade trabalha com a

fragmentariedade partindo de uma perspectiva sociológica. Ao contrário de seu mestre,

Ferenc Fehér (1972) rejeita a tese de que A teoria do romance propõe a epopeia como

superior à forma literária burguesa enquanto que, ao mesmo tempo, decreta a esta o seu fim.

Em seu livro intitulado O romance está morrendo? (1972), o filósofo e estudioso húngaro da

Escola de Budapeste, defende o romance enquanto gênero e postula que a fragmentariedade

dele é indício de sua plasticidade.

E podemos resumir deste modo a constatação final antecipada de nossa

análise: com sua ‘informidade’, seu prosaísmo, seu caráter não-canônico, o

romance não ocupa uma lugar inferior nesta escala de valores das formas

artísticas estabelecida a propósito da substancialidade humana. (FEHÉR,

1972, p. 10).

O romance, consonante Ferenc Fehér (1972, p. 10) “é uma expressão adequada de sua

época, que serve à autoexpressão da sociedade burguesa”. Isso significa que o romance está

ajustado à essência de uma sociedade que é puramente social, que experimenta. O progresso

caótico, a evolução desigual, a emancipação humana, a fragmentação das instituições e o

desagregamento da família e que projeta tudo isso em suas formas sob a regência do silêncio.

O autor também acredita que o romance está em posse de uma liberdade inimaginável e tal

emancipação garante ao romance uma orientação para o futuro, ou seja, o romance está em

plena evolução.

Deste modo, o romance exprime uma etapa de emancipação do homem não

somente em seu ‘conteúdo’, isto é, nas noções coletivas estruturadas por suas

categorias, mas também em seu ‘continente’, a forma. Essa forma do

romance não poderia aparecer sem o surgimento das categorias de sociedade

‘puramente social’; ora o nascimento desta sociedade significa um

enriquecimento, mesmo levando em conta sua evolução desigual. [...] O

romance não é problemático, é ambivalente. Entendemos por esta distinção

que o conjunto de suas estruturas comporta, em parte, traços que derivam do

mimetismo da construção de uma ‘sociedade social’ concreta (o capitalismo

no qual se enraíza) e, por outro lado traços que caracterizam todas as

sociedades desta espécie (FEHÉR, 1972, p. 11- 12).

Entende-se aqui que a liberdade da qual Ferenc Fehér (1972) propõe em seu magnífico

ensaio é concedida e consolidada pelo silêncio e que a fragmentariedade, as lacunas, o

estilhaçamento das estruturas narrativas por onde os silêncios entretecem-se então, não dão

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sinais do fim do romance, mas garantem-lhe liberdade plena na forma e liberdade plena para

construção dos sentidos. E o que é especificamente próprio do romance é ter uma

correspondência formal e estrutural compatível com a realidade do mundo o qual ele

representa que é em si fragmentado e, por conseguinte, assaltado por uma profusão de

linguagens ineficientes e inexpressivas, diante do potencial significativo do silêncio. Nada

mais natural à forma do romance contemporâneo do que acomodar, portanto, esse princípio

transformador que no meio do clamor de uma multidão de vozes, signos ou linguagens

ineficazes convoca o silêncio para se libertar.

O romance, dessa maneira, é produto de uma sociedade puramente social ambivalente

e está em constante transformação, mantendo, no entanto, as características primordiais da

épica (FEHÉR, 1972). O romance leva ao conhecimento de seu leitor o máximo de

possibilidades de humanização que essa sociedade é capaz de absorver. Imaginar a

transformação das formas épicas e pensar como o romance conseguiu sobreviver ao longo dos

anos em uma sociedade marcada pela fragmentação da ordem social, pelo desenvolvimento

caótico da técnica, pelo estilhaçamento do “eu”, das instituições – enfim, do mundo, significa

levar em consideração o silêncio presente na forma como elemento imprescindível à

construção romanesca, uma vez que o silêncio não trata de um paradoxo ou um empecilho ao

escritor, mas um recurso inestimável para a representação dessa sociedade pautada pelo

movimento ininterrupto e perseverante da linguagem.

Não há dúvida de que o romance está em constante evolução. Dito isto, deve-se

entender que o silêncio, em certa medida, está contido nessa linha evolutiva; quando se

evidencia a fragmentação da narrativa, a intensificação da subjetividade, o recolhimento no

“eu” da personagem, bem como as dinâmicas de adaptação do romance, tais como: na criação

de uma meio artificial, na humanização do espaço humano, mostrando que as instituições são

apenas humanas, e no desagregamento do caráter público do homem do romance.

Essas são as dinâmicas que, na sociedade moderna, se valem os romancistas em seu

intento para a representação de uma sociedade, que segundo Ferenc Fehér (1972), é

puramente social. Diante de tudo isso, os romancistas se obrigaram a reconfigurar as técnicas

de composição do romance buscando, através de novos experimentos formais, abarcar o novo

mundo e expressar o ideal da sociedade burguesa, bem como explorar as suas falhas e as suas

contradições. Evidencia-se nesse novo século uma narrativa ladeada de silêncios que se

instauram nas formas do romance e, cada um à sua maneira, desempenha um papel

fundamental para o conjunto da obra.

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Em face disso se compreenderá que a realização do romance no silêncio está tanto

mais ligada à latitude de suas formas, quanto à possibilidade de seu encaminhamento além

das margens, onde não se reconhece nem o seu princípio e tampouco seu fim. Eis, portanto, o

desconhecido para onde o romance caminha, onde toda experiência inenarrável encontra o seu

meio. O romance, de tal modo, é um gênero que está em constante desdobramento e tal

afirmação confirma-se com a crescente manifestação do silêncio em suas bases.

Aprender a Rezar na Era da Técnica, nesse sentido, é um gênero prometido ao

silêncio, pois o romance está, sem dúvida, comprometido com a pluralidade e vastidão do

mundo burguês e oferece ao leitor o máximo de possibilidades de significação cuja totalidade

só os silêncios podem encerrar. Esse romance tavariano, assim, explora essa possibilidade e

lança-se à amplidão do silêncio para dar espaço às vozes que não têm mais espaço no mundo

contemporâneo.

O texto de Aprender a Rezar na Era da Técnica põe em operação uma sofisticada e

dinâmica experiência com o indizível, na medida em que torna inteligível o absurdo da

experiência humana. A palavra falada ou a palavra escrita são, de toda forma, insatisfatórias,

para a construção de um romance comprometido com o inenarrável, com o dizível e que flerta

com o absurdo necessitando assim mais de silêncio. E este se manifesta por meio de uma

linguagem despojada, porém capaz de expressar com mais sensibilidade a natureza humana,

do que uma linguagem carregada e incapaz de alcançar em profundidade a dimensão da alma

humana. A palavra, assim, mostra-se antes como impossibilidade que como alternativa de

expressão. É nesse sentido, que se crê que Aprender a Rezar na Era da Técnica tem o silêncio

como parte de procedimento literário e estético, no sentido de que esse romance desenvolve o

que se pode chamar de uma arquitetura do silêncio.

2.2.1 Aprender a Rezar na Era da Técnica: entre silêncios e ambivalências

A arquitetura do romance tavariano está empenhada em um diálogo silencioso que

intervém na forma do romance e manifesta o sempiterno silêncio que se incorpora à narrativa.

Prenhe de silêncios, o romance aspira assumir um significado transcendental às suas formas.

As formas, por sua vez, apesar de darem a ligeira impressão de que elas são coercitivas e que,

portanto, buscam conter o projeto de transcendencialidade do romance e com ele os silêncios,

muito pelo contrário, elas aliam-se aos silêncios e somam-se ao projeto do romancista no

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sentido de recobrar uma totalidade irrecobrável e de representar um mundo irrepresentável,

fazendo falar o indizível através da forma romanesca.

Tendo isso em conta, Aprender a Rezar na Era da Técnica é um romance, aliás, que

em todos os sentidos, trabalha com o inexprimível e com o inenarrável tanto no plano

estrutural quanto no plano conteudístico. As formas desse romance se empenham em

expressar pelo silêncio aquilo que não é possível mais de ser expresso pelo domínio verbal.

Tal empreendimento resultou, talvez, em um dos mais ousados romances do século XXI,

porque esse romance encontrou na forma a liberdade da qual necessitava para comunicar uma

experiência que é, precisamente, incomunicável.

Aprender a Rezar na Era da Técnica explora os mais sombrios e recônditos anseios e

medos de uma alma atormentada pela violência e pela barbárie, tornando-se, possivelmente,

um romance do absurdo, cuja matéria prima não poderia ser outra coisa a não ser o silêncio.

Eis então o que faz com que esse romance estabeleça um equilíbrio assimétrico obtido através

do contraste entre palavra e silêncio nas suas formas. O silêncio demonstra, dessa maneira, ter

tanto peso quanto a palavra e isso se confirma na constatação das formas desse romance.

Basta averiguar a maneira como o silêncio interfere na obra e abala as formas da narrativa

tradicional.

Há, por parte de Aprender a Rezar na Era da Técnica, um notável esforço de

representação do mundo e do homem pelo silêncio. Contudo, o mergulho no subjetivismo

parece destoar da realidade e ir à contramão do mundo burguês moderno. Justamente em um

contexto onde o imperativo é comunicar, pois absolutamente, tudo aquilo que demanda

silêncio profundo, recolhimento do “eu”, ou introspecção, vem sendo, gradativamente, banido

de nossas formas sociais. O autor de Aprender a Rezar na Era da Técnica tenta alcançar

aquilo que tanto o homem e o mundo têm de mais profundo; aquilo que não pode ser

verbalizado, o que não é passível de ser expresso por arte alguma sem recorrer ao silêncio.

Assim, sabe-se apenas que a palavra não basta para tal empreendimento, porque ela é

limitada e de todo modo incapaz de representar a pluralidade do mundo burguês e a

complexidade de seus agentes. Consciente disso, o escritor Gonçalo M. Tavares busca então,

na profundidade do silêncio, recursos para uma representação plena do homem e do mundo

burgueses que são, por sua natureza, extremamente complexos e plurais e, por assim dizer,

indizíveis e inexprimíveis.

Essa complexa diversidade que caracteriza o mundo burguês, no entanto, esconde-se

atrás de uma multiplicidade de linguagens e formas que, inutilmente, buscam uma

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representação total e definitiva. Não obstante, esse fluxo interminável de discursos não

consegue conter a potencialidade do silêncio que funda a significação e instala-se nas formas

do romance suprindo no romance aquilo que falta na palavra. O romance, nesse sentido,

parece ser uma das últimas guaridas do silêncio, destacando-se, sobretudo, o silêncio que

instaura as formas de Aprender a Rezar na Era da Técnica.

A técnica romanesca em Aprender a Rezar na Era da Técnica traduz o terror do

homem diante do progresso caótico da técnica e da turbulência da palavra, fazendo falar

experiências inexprimíveis e, assim, no silêncio, dá acesso a novas possibilidades de

significação que decorrem de uma nova compreensão do “eu” dilacerado pela realidade

caótica que age sobre o homem. Nesse romance o narrador joga com o efeito devastador da

cultura tecnocrática que se abate sobre a sociedade e, especialmente, sobre o indivíduo,

impondo, violentamente, um comportamento mecânico e pragmático, levando o leitor, muitas

vezes, a questionar a sua humanidade.

Ligando os fios de uma cadeia não simétrica, observando conjuntamente o caráter

ambivalente das formas do romance e evidenciando o desequilíbrio imanente da sociedade e

das personagens representadas, a trama de Aprender a Rezar na Era da Técnica alia-se ao

silêncio para encontrar a força necessária para reconstruir um mundo completamente

estilhaçado e inenarrável, pondo à mostra um homem completamente dilacerado pelas suas

estruturas. Desse modo, a interpelação da palavra e a interpelação do caos das múltiplas vozes

que se manifestam nesse romance respondem ao chamado do silêncio do gênero romanesco.

Com efeito, a obra apresenta-se carregada de silêncios que se incorporam às suas formas e

transformam as instâncias narrativas, apresentando um aspecto rígido e despojado, inspirando

silêncio desde a primeira linha e retrata com excelência a experiência humana diante do

absurdo e do horror.

Centralizado na figura de Lenz Buchmann – o filho caçula de uma família burguesa

tradicional que almeja conquistar o seu lugar no mundo, primeiramente, através do exercício

da medicina e depois através da dedicação à vida pública e à atividade política – o romance

retrata a trajetória de ascensão e de decadência de um homem adepto e promotor da cultura

tecnocrática. Sob uma malha de fragmentos, delineia-se um homem pragmático, calculista e

frio, vivendo em situações-limite que acabam expondo, paulatinamente, entre fissuras, o seu

verdadeiro eu. A sua essência é, gradativamente, revelada assim como suas experiências

primordiais também se desnudam lentamente diante do leitor a cada página, porém não

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através de palavras, mas por meio de silêncios que habitam entre essas palavras e que cifram o

caráter inumano e desumano dessa narrativa.

Esse conjunto de experiências inexprimíveis, com as quais o romance Aprender a

Rezar na Era da Técnica parece lidar, exerce um poder incomensurável sobre toda a

narrativa, pois se percebe que todas as suas estruturas têm uma relação irrevogável, inevitável

e imprescindível com o silêncio que está atrelado ao projeto de emancipação das formas do

romance, segundo aquele proposto por Ferenc Fehér (1972). Entende-se, então, que as formas

do romance “não podem mais atingir uma realização artística de alto nível” (FÉHER, 1972, p.

15), sem recorrer ao silêncio. Daí a importância da compreensão das técnicas de composição

do romance a partir do silêncio.

É consabido que conforme se radicaliza a linguagem mais se identifica o silêncio na

forma desse romance. Procedendo dessa maneira, o autor de Aprender a Rezar na Era da

Técnica, na esteira do experimentalismo estético e formal, propõe soluções específicas

capazes de construir um romance tendo como matéria prima o silêncio e como inspiração um

mundo carente dele. Parte-se, portanto, de uma linguagem pulverizada, de um herói

dilacerado pelo horror e pelo medo, estilhaçado, cindido, especialmente, pelo seu próprio

meio para representar “a decadência do Reino humano” (TAVARES, 2008, p. 78) e tecer

algumas considerações indispensáveis sobre a natureza humana. Em uma inovadora e, talvez,

inédita operação com a linguagem, o autor de O Reino, Gonçalo M. Tavares, recusa as

limitações impostas pelas formas dos gêneros literários e deixa-se livre para poder desnudar o

mais intimo do ser apropriando-se de todos os recursos que a linguagem, inclusive que o

silêncio pode oferecer para tal, possibilitando ao leitor perceber como funciona o ser humano

além do gesto e da palavra.

Gonçalo M. Tavares, então, crê que está antes de tudo escrevendo um texto e não

propriamente um romance, pois o texto não se prende a rótulos, não se prende às formas de

um gênero em particular. Para ele, o texto é aberto e franqueável por outras vozes e outros

sentidos que não aqueles do romance tradicional. Citando suas próprias palavras: “eu nunca

penso: ‘Agora vou escrever um romance’. Eu gosto muito da palavra ‘texto’, que não tem

essa marca do gênero literário, que eu acho que é uma marca limitadora do potencial enorme

do alfabeto” (TAVARES, 2011, s/p). De fato, etimologicamente, a palavra texto que deriva

do latim, textum guarda o sentido de entrelaçamento, de tessitura, de tecido ou teia verbal, o

que remete à ideia de que o processo de escrita é mais complexo e ousado em relação às

formas usuais. Tudo sugere que Gonçalo M. Tavares recorre a múltiplas formas e múltiplos

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textos e, especialmente, ao silêncio porque seu projeto de representação e de denúncia da

decadência do Reino humano é grande demais para a palavra e grande demais para as formas

tradicionais do gênero romanesco. Por isso, o que parece é que esse autor busca transcender as

formas do romance tradicional e nessa busca se encontra com o silêncio.

Pela sua ruptura inevitável com as formas do romance tradicional, Aprender a Rezar

na Era da Técnica tem uma relação especial com o silêncio que opera na linguagem.

Desconstrói-se, assim, por meio do silêncio que se incorpora às formas do romance tavariano,

a lógica perversa e alienante do sistema representado na epopeia burguesa bem como o culto à

cultura tecnocrática. Ora, se a missão funcional do romance de Gonçalo M. Tavares, Aprender

a Rezar na Era da Técnica, é de destruir a tranquilidade contemplativa, por meio da forma,

essa ideia coincide com a afirmação de Ferenc Fehér (1972, p. 82) de que no romance se

“rompe a harmonia passiva e, desse modo, sustenta o progresso humano”. Com efeito, em

Aprender a Rezar na Era da Técnica constata-se essa ruptura, e tanto progresso quanto

emancipação estão assegurados.

O ponto de partida para confirmação dessa afirmação consiste em perceber que, forma

e o conteúdo confluem em uma impressionante unidade capaz de representar, em ambos os

níveis, a maneira pela qual a personagem protagonista lida com a realidade e as pessoas ao

seu redor, além de que, a organização interna do romance reflete tanto a obsessão de Lenz

Buchmann, pela precisão e técnica, quanto o desdobramento da personagem na ordem natural

da vida. Aliás, essas duas palavras, precisão e técnica, vibram ao longo da obra como um

mote contendo toda verdade do mundo onde as personagens estão inseridas e configura a

maneira pela qual a personagem protagonista reage ao silêncio. Essa relação, inclusive, pode

ser detectada claramente no plano formal.

Fruto de uma visão profunda sobre a crise da representação do mundo burguês e do

dilaceramento do “eu” da personagem, a tônica do romance tavariano é excepcionalmente

marcada por fragmentação e enormes lacunas, especialmente no que diz respeito à divisão do

romance entre as três partes, Força, Doença e Morte que se instalam entre silêncios.

Na maioria dos casos, a crise conduziu a um impasse acompanhado por uma

transformação perfeitamente amorfa da forma original; em outros alimentou

iniciativas que representaram, conjuntamente, a recriação específica de

vastas possibilidades antigas da forma e inovações indo além do gênero

épico da primeira ‘sociedade social. (FEHÉR, 1972, p. 14).

Essas iniciativas encontraram alento nas formas de Aprender a Rezar na Era da

Técnica. O que se percebe é que há certa progressão do silêncio nas formas desse romance. E

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essa constatação está expressa tanto no plano estrutural do próprio capítulo como na forma de

intervenção do silêncio na narrativa. Isso quer dizer que as técnicas de apropriação e de

representação do silêncio são dinâmicas e ao longo da obra movem-se e enriquecem as formas

do romance. É preciso reconhecer que, portanto, o silêncio cumpre um papel fundamental no

que diz respeito às ambivalências feherianas do romance. O silêncio tem engendrado

dinamicidade, possibilidades de leitura múltiplas, o que justifica de tal modo o seu caráter

ambivalente. E, acima de tudo, o silêncio tem possibilitado um caráter renovador e libertário

para as formas do romance.

Enfim, tendo isso em conta no romance, o herói é a primeira instância a demonstrar

esse “acréscimo de emancipação” (FEHÉR, 1972, p. 14). E em Aprender a Rezar na Era da

Técnica, Lenz Buchmann corresponde em todos os sentidos a essa aspiração de liberdade.

Lenz Buchmann é um herói que luta por si. As suas ações não são “diretamente dadas,

assimiláveis, utilizáveis”, (FEHÉR, 1972, p. 15), mas ainda assim, o herói desse romance

tavariano é, geralmente, representado em situações que exigem o máximo de si e pelos seus

próprios meios supera os obstáculos e as adversidades de seu mundo. Entretanto, ele não age

segundo vontades superiores. Lenz age segundo os seus próprios desígnios.

O herói do romance é um herói solitário, um homem sem a companhia dos deuses ou

de Deus, o homem individual que se faz sozinho. O homem desse romance tavariano

experimenta o silêncio de Deus referido por Santiago Kovadloff. “Não há dúvida alguma de

que Ranke não tinha razão: todas as épocas não são igualmente próximas de Deus” (FEHÉR,

1972, p. 11). O papel de Lenz Buchmann homologa essa afirmação. Lenz rejeita qualquer

noção da existência de Deus ou de que Deus tem controle sobre sua vida em absoluto. Lenz

crê estar no controle “avançava assim lentamente, com passos decididos, transmitindo a

informação de que domina a situação [...]” (TAVARES, 2008, p. 225). E sua convicção sobre

tal ideia sustenta-se no fato de que ele, antes de cada passo, calcula, avalia, mede precisa e

sistematicamente suas atitudes.

Orientado por uma visão pragmática e calculista, “Lenz não tinha ilusões acerca da

terra que pisava: havia entre a natureza e o homem um ponto de ruptura que há muito fora

ultrapassado [...] Lenz não confiava na natureza” (TAVARES, 2008, p. 46). O equilíbrio

imanente existente entre homem e natureza na épica clássica agora, no romance e observado

em Lenz, parece irreconciliável. Ao contrário, Lenz confiava apenas em si mesmo e no

domínio que ele tem da técnica. Os artifícios humanos são os únicos que ele reconhece como

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genuínos para realizar os seus propósitos. Para Lenz não há destino tampouco sorte, há apenas

vontade, atitude, precisão e domínio da técnica.

O entendimento de que existe algo além do alcance de Lenz é simplesmente

perturbador para ele. Lenz rechaça ao longo de todo o romance a ideia de Deus, pois nada

pode estar além do seu controle. Muito embora, no final do romance ele questione novamente

a possibilidade de ele estar no controle total da situação. Mas “desde cedo se apercebera que o

sistema de crédito que a cidade havia criado ao redor de Deus começava a esgotar-se”

(TAVARES, 2008, p. 207). A figura de Deus não se fazia presente para Lenz. Em outras

palavras, a voz de Deus, para Lenz, não se apresenta, ela não é apreciável, ela não é

discernível em meio à multidão de vozes que o rodeia. Pelo exposto verifica-se que a voz de

Deus está no silêncio. Nessa obra, a voz de Deus não abandona o silêncio. Ela não se

verbaliza no romance e Lenz, em um primeiro momento, não está disposto a buscar no

silêncio a voz de Deus, por isso há o que se pode chamar de “ausência”. Muito embora, tal

“ausência” não represente um vazio em absoluto. Na seguinte passagem, por exemplo, o herói

questiona, portanto, a necessidade de Deus, já que Deus está “ausente” e que a sua voz não se

apresenta a ele.

Claro que afundar ou eliminar o Espírito Santo que alguém, sem autorização,

colocara no seu organismo, não era fácil quanto a decisão de nunca mais

entrar numa igreja. É que no fundo se tratava de um mecanismo concreto

debaixo de um nome sugestivo: o Espírito Santo fora transformado pelos

filósofos da Igreja numa espécie de proteína da fraternidade, proteína não

humana, pelo contrário, feita de uma outra substância, de uma outra

qualidade, feito de um raciocínio perfeitamente humilhante para os humanos,

mas que estes, pensava Lenz, estupidamente agradeciam com sorrisos vagos.

O que em ti é mais digno, não te pertence, tinha dito a Igreja, com a

invenção desse espírito não humano que Frederich Buchmann dizia ocupar

um espaço onde antes nada faltava. O Espírito Santo era um excesso, uma

substância especializada numa substância que não era indispensável a sua

existência. (TAVARES, 2008, p. 165).

Segundo Lenz, Deus é acessório e, portanto, desnecessário; um excesso. A ideia de

Deus é relegada a um segundo plano. A mera menção a Deus revolta a Lenz que compara o

sinal da cruz a um “gesto do dono do boi” (TAVARES, 2008, p. 143) marcando o rebanho

para conduzi-lo; privá-lo da liberdade. A presença de Deus aniquila a liberdade que Lenz

tanto almeja. A “ausência” de Deus, ou melhor, a presença de Deus no silêncio, nesse sentido,

possibilita a liberdade apreciada e desejada então pelo herói desse romance.

Lenz, por sua vez, passa quase toda a sua existência recusando o silêncio, recusando

ouvir o que o silêncio tem a dizer e opondo-se, por conseguinte, ao silêncio de Deus. Então,

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de certa forma, o Gottverlassenheit (o abandono de Deus) na forma do romance, não se dá de

maneira absoluta. O romance não expulsou Deus de suas formas, mas o destinou ao silêncio.

A sociedade puramente social, não obstante, expulsou Deus de suas estruturas e daí decorreu

um imenso vácuo onde o silêncio acomodou-se, o que possibilitou, de fato, uma liberdade

incomensurável, no que diz respeito às ações do herói. Entretanto, como se verá esse silêncio

não implica ausência, porém conteúdo; sentido pleno.

Lenz, na primeira parte da narrativa, procura reafirmar essa liberdade por meio da

exclusão completa da figura de Deus. No subcapítulo intitulado “Os pés na Igreja”, lê-se o

seguinte: “[...] ficara-lhe a noção clara de que matar os vestígios do Espírito Santo que

existem no corpo de cada um era o inicio de uma existência [...]” (TAVARES, 2008, p. 164).

Uma existência que implica liberdade total e abandono de zonas neutrais. Apagar os vestígios

de Deus e alcançar finalmente a liberdade. “Claro que afundar ou eliminar o Espírito Santo

que alguém, sem autorização, colocara em seu organismo, não era tão fácil quanto a decisão

de nunca mais entrar em uma igreja” (TAVARES, 2008, p. 165). Observa-se, nitidamente,

nessa passagem, que Lenz se sente violado com a presença “sem autorização” do Espírito

Santo. Excluí-Lo, em princípio, é, pois uma libertação. Deixá-Lo é uma violação a sua

liberdade, um impedimento à emancipação humana. Fica nítido, portanto, que o herói nesse

romance rejeita o poder da divindade, mas a sua rejeição não implica que Deus está

completamente excluído, pois a própria personagem admite a dificuldade de excluir a figura

de Deus em caráter absoluto.

O Gottverlassenheit na forma do romance não se dá de forma concreta. A voz de Deus

manifesta-se no silêncio do romance. Em certa passagem de Aprender a Rezar na Era da

Técnica, Lenz está a olhar por uma janela e admirar a multidão que passa. Nesse momento de

silêncio e contemplação o narrador explica:

E Lenz sentiu-se aquele momento novamente observado. Viu-se como o

padre que abençoa ou perdoa, de modo magnânimo, uma multidão de

crentes, mas que agora tem, atrás de si, sem se aperceber, um outro homem

que o abençoa e perdoa; e este homem tem ainda outro atrás de si, e este

outro ainda um outro; e assim até ao fim dos dias e do espaço numa linha

que coincidia com a sucessão das gerações que haviam antecedido e o

haveriam de seguir. Alguém fará sobre ti o gesto da cruz, pensou Lenz, e a

imagem concreta deste pensamento de novo o revoltou. (TAVARES, 2008,

p. 142-3).

Esse gesto infinito, como se pode perceber ao final da citação, insinua a presença de

Deus que se mostra, consequentemente, inevitável, já que se trata de algo que perdurará “até

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ao fim dos dias e do espaço” como algo que escapa à condição humana e que excede o âmbito

do enunciável, pois traz consigo a marca do indizível. Segundo, Santiago Kovadloff (2003,

p.102) “o infinito consigna o caráter inesgotável da sucessão” que “coincidia com a sucessão

das gerações” (TAVARES, 2008, p. 142) sugerindo, assim, um movimento possível e

sugerindo a presença de Deus como parte desse movimento. Santiago Kovadloff (2003, p.

107) também supõe que “o infinito só prospera onde prospera a formalização [...]”. E é, pois,

essa forma que só se realiza no silêncio, no infinito silêncio que se converge a presença de

Deus nas formas do romance.

O Gottverlassenheit absoluto é o silêncio de uma ausência originária, o silêncio sem

atributos e sem forma, ou seja, “o campo do impossível; o insondável campo do impossível”

(KOVADLOFF, 2003, p. 102). Quer dizer, onde o infinito não é possível. Onde a presença de

Deus é nula, pois “nada falta a Deus, ou, em todo caso, lhe falta nada, que é, justamente, o

que sobra ao zero. Conceito de Deus conota capacidade de conter, de contenção, de conteúdo”

(KOVADLOFF, 2003, p. 105). A progressão aludida pela personagem não se confunde com o

vazio, mas com esse silêncio repleto de conteúdo que a apavora e a angustia. Esse silêncio se

constitui enquanto presença e não enquanto falta. Trata-se de um silêncio infinito inteiramente

significativo que reflete a incompletude do “eu”.

Após a morte de seu irmão, Lenz vai à biblioteca dele recolher os livros que haviam

pertencido a seu pai. Naquele momento, Lenz sentia-se realizado, pois estava diante de um

legado só seu e que de alguma forma também representava a força da família Buchmann. A

morte de Albert Buchmann, definitivamente, representava outro nível de libertação para Lenz

Buchmann – ele tornara-se, finalmente, o último Buchmann. “Lenz podia utilizar em

exclusivo o nome que publicamente apresentava o sangue forte de onde nascera”

(TAVARES, 2008, p. 92). Lenz, assim, parecia portador de uma liberdade incomensurável,

porque não estava ligado a mais ninguém e a mais nada; o seu nome era todo seu e só a si

pertencia.

No entanto, durante a tarefa de separação dos livros, ou como ele preferia chamar,

distinguir “o trigo do joio” (TAVARES, 2008, p. 127), Lenz sente-se incomodado por outra

presença. “Poderia sorrir assim, não tinha espectadores, senão Deus, e neste ele desconfiava

da competência de observador. Algo não funcionava nesse Deus. Uma espécie de totalidade

incompleta [...]” (TAVARES, 2008, p. 128). Essa “totalidade incompleta”, a qual se refere

Lenz, corresponde em grande medida à incompletude da personagem. A respeito do

“observador” que Lenz “desconfiava” de sua presença, pois este nada mais é senão uma figura

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silenciosa que nada fala, que não intervém e que se deixa perceber enquanto silêncio, reafirma

a noção de incompletude que caracteriza o homem burguês. E é justamente na biblioteca um

espaço de culto à palavra e ao signo e em um momento em que a personagem está

enaltecendo os livros que a fortalecem é que Lenz é confrontado com o silêncio.

Há também um silêncio místico que assola Lenz e o persegue, inclusive na hora de sua

morte. Esse silêncio reascende a presença de Deus nas formas do romance. Trata-se de um

silêncio que carece de forma, mas um silêncio de outra natureza que não é o silêncio

primordial que se caracteriza enquanto ausência. Esse silêncio que também é uma potência se

manifesta na qualidade de presença e de sentido; enquanto presença encaminha-se em direção

à voz de Deus que se refugiou no silêncio das formas do romance, esse “silêncio habitado

pela presença de Deus é o inefável” (LE BRETON, 1999, p. 199) e enquanto sentido, “o

silêncio torna-se então a maneira menos desajeitada de preservar a imensidão de sentido” (LE

BRETON, 1999, p. 199), possibilitando, de tal forma, a emancipação do homem viabilizando

a pluralidade de ações do herói.

O silêncio assinala a sua presença com extraordinária pujança. De dentro do silêncio,

Lenz ouve chamarem o seu nome e é no silêncio que Lenz entrega sua vida. O silêncio da voz

de Deus – que em um primeiro momento é angustiante e parece transtorná-lo – conforta Lenz

em seus últimos momentos. Ao final da vida, percebe-se que o herói procura cada vez mais no

silêncio algum Deus; o herói que passa grande parte de sua existência combativo e hostil ao

silêncio, na verdade, pouco antes de sua morte se rende ao poder encantatório do silêncio. Na

última cena do romance, Lenz agoniza sozinho em seu quarto e ele experimenta o silêncio

como nunca havia feito antes.

Estava, pois, só: Lenz Buchmann, deixado para trás, sozinho, com seus

olhos. A luz, essa não parava de o chamar. Queria sentir ódio, mas não

conseguia. Ela tranquilizava e chamava-o. Depois talvez tenha existido uma

pausa e de novo da televisão veio uma luz forte que o chamou pelo nome. E

agora ele foi; deixou-se ir. (TAVARES, 2008, p. 356).

O fato de estar só reforça a ideia de ambiente quieto e sereno, acentuando a presença

do silêncio. Conforme Lenz perde forças, o silêncio se fortalece. Todavia, o silêncio se

fortalece não a partir da fraqueza da personagem, mas devido à sua força interior e sua

capacidade de entregar-se ao silêncio. Então nesse quarto onde está o leito de morte de Lenz,

o silêncio parece reinar. Nesse ponto, o silêncio demonstra ser a última instância para se

referir a Deus plenamente. David Le Breton (1999, p. 199) afirma que “Deus está além das

palavras ou do pensamento [...]”. É no silêncio, portanto, que o homem encontra-se com

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Deus. Assim, o reino de silêncio que se estabelece em seu quarto não é um silêncio vazio ou

um vácuo, mas se trata de um silêncio pleno de significado e possibilidade de ascese.

Conteúdo, substância, essência é o que caracteriza o silêncio que se instala ao redor de

Lenz antes da morte. Esse rico silêncio chama insistentemente pelo seu nome três vezes. O

silêncio paradoxalmente chama, não com palavras, mas com sentido pleno. “E, aliás, o que

estava a acontecer agradava-lhe; da televisão vinha uma tranquilidade nada habitual”

(TAVARES, 2008, p. 355). A tranquilidade que emana da televisão chama pelo nome de

Lenz. É interessante perceber que a tranquilidade emana de um aparelho que é transmissor de

múltiplas linguagens, de sons e de imagens. Mas: “Não havia qualquer som e, de qualquer

maneira, estava tão concentrado naquela luz que mesmo que alguém, do interior da casa,

gritasse, ele não ouviria” (TAVARES, 2008, p. 355). Nesse momento o tempo desacelera e

tanto leitor quanto personagem parecem ser transportados para outro plano; um plano onde o

silêncio impera e os elementos da técnica ao invés de produzirem ruído, somam-se ao

silêncio.

O último chamado do e no silêncio é marcado por uma pausa, outra modalidade de

silêncio. Uma pausa, porém, que não é uma ausência. Essa pausa está no âmbito do

explicável; caracterização da linguagem. A bem dizer, essa pausa circunscreve o silêncio

fundante. Muito embora, independente da modalidade que se apresenta, percebe-se que o

silêncio encarna na personagem e se inscreve nela assim como se inscreve nas formas do

romance.

O silêncio, nessa cena final, confirma, além de tudo, o caráter dinâmico e excelso do

silêncio nas formas de Aprender a Rezar na Era da Técnica. O silêncio de antes da morte não

assusta e não perturba Lenz. Na verdade, esse longo silêncio, conforme aponta o narrador,

tranquiliza-o. E enquanto o tranquiliza, chama-o. Esse poder encantatório do silêncio fascina

Lenz, pois ele simplesmente se rende ao seu poder e se deixa ir. Encaminha-se para o silêncio

da morte, que é plena expressividade por onde a voz de Deus se manifesta. Afinal, o silêncio é

o meio pelo qual Deus e homem se encontram. O romance, assim, não excluiu Deus de suas

formas, mas reserva Deus ao silêncio. Apartado de Deus pela profusão ruidosa de múltiplas

linguagens, o herói do romance encontra no silêncio a possibilidade de transgredir os limites

de seu mundo e de superar as fronteiras limitadoras das sociedades naturais.

O isolamento transcendental do herói, em parte caracterizado pelo Gottverlassenheit

ou o “abandono” de Deus parcial das formas do romance acentua-se também no sentido do

herói do romance fundar seu próprio mundo e se entregar a seu próprio individualismo e

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fundar em torno de si um imenso silêncio. E, por isso, conforme aponta Ferenc Fehér (1972,

p. 19) “[...] o homem do romance, suporta cada vez menos [...] os poderes dominantes do

universo [...]”. Lenz, por exemplo, está ciente de que em seu próprio universo só se pode

recorrer a ele mesmo. Como se pode constatar na obra: “Lenz era já o famoso portador dessa

mão direita que destrói para depois construir à sua maneira” (TAVARES, 2008, p. 205).

Destaca-se a expressão utilizada pelo narrador “construir à sua maneira” como imagem de

vontade, de força e, sobretudo, de liberdade.

Assim, Lenz edifica o seu mundo e constrói para si os seus dias. Lenz isola-se e reduz

os outros ao silêncio e instaura sua própria linguagem e o seu próprio regime de silêncio.

Lenz impõe, por meio do hábil domínio do silêncio, o silenciamento. Edifica o seu mundo

edificando a sua própria linguagem com seu próprio turno de silêncio. No tocante a essa

questão, o narrador afirma: “Lenz Buchmann gostava de estar vivo, orgulhava-se mesmo do

modo violento e não negociado de tomar posse dos seus dias e até dos dias dos outros [...]”

(TAVARES, 2008, p. 182). Acentua-se o individualismo da personagem e demonstra a busca

por emancipação e liberdade. “Lenz Buchmann exigia, cada vez mais, a presença dessa

liberdade excitante [...]” (TAVARES, 2008, p. 233). Liberdade plena capaz de transpor

qualquer obstáculo pela não negociação e pela falta de palavra, o que implica o aniquilamento

de outras liberdades e de outras vozes. Recorre-se ao apagamento e ao silenciamento a partir

do “modo violento” de impor sobre si e sobre os outros certos sentidos.

Fica evidente, então, o monopólio da palavra que aniquila a palavra do outro, a partir

de uma linguagem autossuficiente que se alimenta de silêncio e silenciamento. Naturalmente,

a emancipação proporcionada pelo silêncio nas formas do romance confere ao herói certo

empoderamento e com isso a tirania. A partir do silenciamento, Lenz constrói um mundo todo

seu a contrafeito, onde ele rege os sentidos. Evidentemente, o universo criado pelo herói de

uma sociedade puramente social corresponde em todos os sentidos à gama de valores dessa

sociedade.

A técnica romanesca em jogo em Aprender a Rezar na Era da Técnica, a fim de

corresponder aos valores morais da sociedade burguesa recria, portanto, todos os sistemas de

valores e os processos de produção burgueses. Admirado e respeitado pelos colegas de

trabalho, Lenz – o médico na Era da Técnica –, no terceiro capítulo da primeira parte da

narrativa, é visto em ação por seus colegas. De fato, este é um dos raros momentos em que é

registrado o doutor Lenz Buchmann exercendo sua atividade profissional.

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O registro do trabalho e de outras atividades práticas que satisfazem às necessidades

do quotidiano é gradativamente banido do romance. Essas atividades impregnam-se de tal

modo na forma romanesca que se tornam cada vez mais etéreas. Assim, logo que Lenz se

converte em um renomado político do Reino, a personagem já não é mais retratada exercendo

atividade alguma. A atividade concreta desaparece e em seu lugar há mais espaço para a

abstração e para a exploração de caminhos não verbalizáveis.

Mas a cena a seguir ainda retrata um homem de capacidades extraordinárias

desenvolvendo, com muita técnica e habilidade o seu ofício, porém, entrecortado por silêncios

e marcado por divagações. O silêncio, mesmo em momento que Lenz exerce sua atividade

profissional, permeia as suas formas.

O Dr. Lenz é recebido por duas enfermeiras solícitas à entrada da sala de

operações. O médico na Era da Técnica é encarado como um habilidoso

condutor de automóveis [...] Lenz é cirurgião, o Dr. Lenz B., e sua

habilidade contida, concentrada na sua mão direita, bem apoiada por uma

mão esquerda que faz de observador especializado, ganhou fama em poucos

anos. A sua mão direita tem uma aura, uma cintilação não científica um dedo

suplementar, digamos, dedo invisível que dá o toque último que nos casos

extremos salva. O Dr. B. já salvou muitos homens e muitas mulheres.

(TAVARES, 2008, p. 29-3).

Lenz é esse herói que enfrenta as adversidades de seu quotidiano por seus próprios

meios e por suas próprias forças, já que ele é detentor de habilidades extraordinárias e que

prescinde de auxílios superiores. E por essa razão, também se enfatiza que:

Fazer era o grande verbo humano, aquele que claramente tinha separado o

homem da formiga, do cão ou das plantas: os seus fazeres eram gigantescos,

poderosos; nunca imortais mas bem mais permanentes que qualquer outra

construção de qualquer outra espécie. O fazer tornara o homem digno de um

grande inimigo, de um outro inimigo que ainda estava por surgir, já que

todas as espécies animais há muito haviam baixado a guarda e se rendido.

Tinha sido esse fazer, aliás, que destruíra os vínculos que inicialmente

haviam existido entre homem e paisagem. (TAVARES, 2008, p. 53).

Esse excerto destaca o papel do homem livre. “Fazer”, conforme afirma o narrador na

passagem anterior, é verbo humano, no sentido de que o homem constrói, destrói e transforma

o mundo ao seu redor por seus próprios meios, sem necessidade de qualquer intervenção

externa, ou melhor, sem o auxilio de forças superiores. O fazer fundara o homem. O fazer

libertara o homem, inclusive de seus laços naturais com a natureza. Apesar da importância

que a personagem destaca para o “fazer” como parte essencial da constituição humana, Lenz,

raramente é retratado fazendo algo concreto. Na verdade, suas atividades dissipam-se diante

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de tantas divagações e conjecturas. Quando Lenz abandona a medicina para ingressar na

política Lenz é retratado fazendo nada de concreto. Assim, o fazer por ele enaltecido também

é destinado ao silêncio.

Mas com frequência o narrador assinala a atitude ativa do herói: “A janela do gabinete

do já importante elemento do Partido Lenz Buchmann era uma janela para um homem de

ação, não para um espectador” (TAVARES, 2008, p. 141). Mas: “naquela tarde de clima

ameno, encostado à janela, depois dos inúmeros afazeres transferidos para sua secretária Julia

Liegnitz [...]” (2008, p. 141), Lenz continuava à mesma janela apenas observando o

movimento da cidade como um simples espectador. Há de se considerar que o não dizer ou o

ficar em silêncio sobre as realizações concretas do herói é, em certa medida, uma atitude que

exprime o afastamento do universo natural onde o herói cumpriria as suas atividades

imediatas para determinar a sua posição no mundo. No entanto, nesse universo social, o herói

do romance isola-se para fundar o seu próprio mundo. Há, dessa maneira, um esforço de

autocriação que se mostra longamente nos reflexos morais da atividade objetiva dessa

sociedade que Lenz representa.

Esses vínculos naturais já não mais existiam. O romance põe no silêncio o fazer do

herói que, gradativamente, é representado reproduzindo valores da sociedade burguesa, porém

em quase nenhuma atividade concreta. O narrador representa-o como um firme representante

da precisão e da técnica, tendo o seu bisturi como seu principal instrumento.

Na sua mão direita o bisturi brilha; há um mais na combinação do

instrumento médico com a mão de Lenz que provoca nos assistentes de

qualquer operação um direccionar do olhar em exclusivo para aquela mão

direita. Numa situação de frio intenso, aquela mão, segurando o bisturi, seria

o fogo [...] O bisturi dentro do organismo procurava reinstalar uma ordem

que fora perdida. Trazia de novo as leis: conhecendo-se sua causa

adivinhavam-se os efeitos; tratava-se – Lenz por vezes dizia-o – de implantar

uma nova monarquia; o bisturi anunciava o novo Reino [...] (TAVARES,

2008, p. 30-1).

Entretanto, a representação concreta e objetiva da atividade profissional de Lenz

Buchmann se esvanece na forma do romance e em seu lugar paira silêncio. Lenz Buchmann

não é pintado realizando tarefas que visam cumprir necessidades imediatas do quotidiano, ao

contrário, Lenz é retratado reproduzindo os “reflexos morais” (FEHÉR, 1972, p. 24) da esfera

da produção econômica e do modelo burguês; seja por meio de uma atividade profissional

definida, seja por meio da transmissão do dinheiro e de vínculos contratuais, mas

especialmente pela reprodução dos valores e dos ideais da sociedade burguesa (FEHÉR,

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1972). Nesse diapasão, a abstração da condição humana fomentada pelo silêncio e permeada

pelos valores dominantes da sociedade burguesa facultam questionamentos centrados

basicamente na compreensão da tensão existente entre o Eu e o mundo.

Assim, tem-se a necessidade de criar um meio artificial, que se opõe ao meio natural

da épica clássica, para representar uma atmosfera social em que o trabalho se incorpora à vida

e cumpre um fim em sim mesmo. Nesse sentido, “relegadas a segundo plano” (FEHÉR,

1972), as atividades de subsistência aparecem indiretamente nas formas do romance como

reflexos do silêncio e não constituem elemento fundamental à representação romanesca.

Sobretudo, o seu individualismo exemplar exige do romancista a criação de um meio artificial

que se traduz pela “capacidade que permite criar uma ambiência humana autêntica num meio

excepcional” (FEHÉR, 1972, p. 25). Recorre-se, assim, a um intenso psicologismo para

“emprestar-lhes um ar natural” (FEHÉR, 1972, p. 58) e, especialmente, ao silêncio para

assegurar a representação do herói isolado, rumo à emancipação.

Seguindo o percurso do silêncio nas formas do romance, constata-se o “abandono” de

Deus das formas da epopeia burguesa que se caracteriza por um imenso silêncio, além do

isolamento transcendental do herói romanesco que também se fundamenta em silêncio.

Destaca-se outro importante aspecto debatido por Ferenc Fehér (1972): a desagregação das

instituições humanas. Segundo Ferenc Fehér (1972, p. 26), “o romance rejeita a autoridade de

qualquer Olimpo e considera as instituições humanas”. E a partir dessa constatação, o homem

do romance cria suas próprias instituições e fica claro, portanto, que estas são entidades

meramente humanas, frágeis e efêmeras.

Aprender a Rezar na Era da Técnica trabalha inclusive com a humanização do espaço

que antes era divino, o que de fato, colabora para emancipação das formas do romance. É

flagrante, pois, a maneira pela qual o homem do romance dessacralizou seu mundo. O

seguinte excerto manifesta claramente a ruptura existente entre sagrado e profano.

A igreja já não tinha a antiga força. As pedras sagradas, que a publicidade da

Igreja dizia serem portadoras daquela energia incorruptível dos primeiros

tempos, estavam a muito cobertas de panos fabricados pelas máquinas mais

recentes, tecidos feitos não para durar um século, mas para brilhar de forma

intensa apenas alguns meses. A Igreja transformara-se – ou deixara que o

mundo a tivesse transformado – em apenas mais uma associação, como no

país existiam não centenas mas milhares. (TAVARES, 2008, p. 212).

Pelo exposto verifica-se que a igreja, nesse romance, é uma instituição humana e

arcaica. A Igreja perdera o seu status e se confundia com qualquer outra mera “associação”,

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como se pode perceber na citação anterior. A Igreja é apenas mais uma em meio a milhares de

outras “associações” de modo que o caráter excelso e divino da Igreja também se esvanecera.

As referências sagradas e atemporais que a Igreja portava agora se misturam às coisas

mundanas como os “panos fabricados pelas máquinas mais recentes” que servem tão somente

para brilhar por “apenas alguns meses”. No excerto seguinte, Lenz, desenvolve um

interessante raciocínio sobre a condição humana da Igreja.

A Igreja, pensava Lenz, não pertencia ao grupo de aliados orgânicos dos

homens, pertencia ao grupo daqueles a quem exigiremos apenas uma mudez

bem comportada; as armas deles só enfraqueceriam o nosso arsenal, somos

de outro Reino e as batalhas políticas não utilizam o método de caminhar

por cima da água para impressionar. (TAVARES, 2008, p. 169 – grifos do

autor).

Destaca-se nesse excerto a necessidade de a Igreja ser muda para Lenz. “Uma mudez

bem comportada”, uma voz submissa e inexpressiva, uma voz silenciada por outros. De

acordo com David Le Breton (1999, p. 90), “o vencido é reduzido ao silêncio. Os deuses não

são poupados, quando derrotados, calam-se”. E a Igreja há muito tempo havia sido derrotada.

Para Lenz, a Igreja era uma associação de homens que se enfraquecera frente a outras

instituições humanas, por isso, Lenz considerava a Igreja como uma criança: “de força

dispensável” (TAVARES, 2008, p. 214), mas ele ainda observa: “deixemo-las estar”

(TAVARES, 2008, p. 207). Para Lenz Buchmann a Igreja “têm armas que só disparam depois

de nos ouvirem” (TAVARES, 2008, p. 207). Indicando que esta poderia estar sob seu controle

ou dos homens de forma geral. Sugerindo ainda que essa instituição apenas existe enquanto

cumpre os interesses da sociedade onde ela está inserida. Em outro excerto destaca-se o

seguinte:

Não se tratava de um edifício, a Igreja não fora construída por homens tão

estúpidos que dissessem: este edifício é o nosso Deus. Eles sabiam bem que

um edifício que vive num século que ainda não tem tecnologia que o

derrube, sobrevivendo, acabará por ser derrubado pelas armas mais certeiras

do século seguinte. (TAVARES, 2008, p. 207).

Aqui se compreende perfeitamente o sentido humanizado e efêmero das instituições

humanas do qual fala Ferenc Fehér (1972). Há nesse excerto a comprovação de que o homem

é o princípio que faz com que essa instituição exista. O homem cria meios de manter essa

instituição e também cria meios de derrubá-la “pelas armas mais certeiras”. Está claro que ela

foi construída por homens não “tão estúpidos”, mas de todo modo por homens. É evidente

que as instituições são uma criação humana que reflete o homem livre em seu sentido mais

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pleno. Essa liberdade inventada é uma possibilidade genuína da representação do universo

burguês. E nesse universo, “os castelos começavam a desmoronar-se e os Reinos perdiam as

forças e multiplicavam os reis até ao ponto em que estes se confundiam com empregados de

mesa. [...] Lenz percebia-o finalmente” (TAVARES, 2008, p. 78). Compreendia o quão

frágeis são as instituições humanas que representavam o seu mundo.

Essa declaração corrobora o fato de que elas são essencialmente humanas e por isso,

são mais suscetíveis ao silenciamento e ao controle da palavra. Ora, é definitivamente, por sua

vulnerabilidade e por permeabilidade ao silêncio, ao silenciamento e ao controle da palavra

que as instituições humanas se tornam frágeis e efêmeras. No entanto, para Lenz, “Deus, esse,

não era derrubável. Daí o seu poder” (TAVARES, 2008, p. 207). A Igreja, como instituição

humana é frágil e derrubável, porém Deus “os homens jamais conseguirão derrubar um

edifício que não chegou a ser construído. Para Lenz estava aí o truque” (TAVARES, 2008, p.

207). Não se pode imaginar como derrubar o que nunca foi enunciado e o que nunca foi

construído. Mas é certo que o que fora construído pelo homem é vulnerável à fluidez do

silêncio e não alcança o grau de intangibilidade que se observa no silêncio do

Gottverlassenheit.

Percebe-se que a entrada de Lenz no Partido tem um impacto crucial na vida da

personagem e acentua a ruptura entre o Eu e o mundo exterior que mostra de maneira mais

contundente a dimensão frágil e efêmera das instituições humanas representadas no romance.

O ingresso de Lenz no Partido proporcionou o encontro e a convivência com Hamm Kestner,

o homem forte do Partido. Esse homem foi capaz de despertar e inspirar em Lenz a confiança

necessária para poder operar o organismo da cidade inteira como fazia quando era cirurgião,

mas agora em proporções maiores, nem que para isso custasse o equilíbrio e a estabilidade da

mesma. Convencido de seu potencial, sem dizer expressamente, considerava-se a si próprio o

“espírito da cidade” (TAVARES, 2008, p. 154). Arrebatado por uma vontade militar de

transformação, Lenz tinha planos junto com Hamm Kestner para a cidade. E entre esses

planos Lenz “[...] lançara a ideia-base da campanha de Kestner: «É necessário forçar o

movimento.» [...]” (TAVARES, 2008, p. 206). Transformando a cidade e o espaço humano a

seu bel prazer, acentuando o caráter dinâmico e efêmero desse espaço humanizado.

A grande vantagem nesta mudança de sistema era sem dúvida o número de

pessoas que conseguia agora influenciar – ou mesmo tocar, no sentido físico,

no sentido do bisturi que interfere no tecido. De facto, Lenz sentia-se o

militar que pousa a pistola – pistola que guarda uma espécie de eficácia

circunscrita, efeito único de um ódio individual – e se senta depois ao

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comando de um bombardeio que pode transformar em ruínas, num só

segundo, uma cidade inteira e dez ou vinte séculos. (TAVARES, 2008, p.

106).

Na qualidade de médico, é fato que ele tinha poder de decisão sobre a vida ou a morte

de seus pacientes, mas esses eram indivíduos sem nome, com pouca ou nenhuma importância

social e esse fato comprometia a grandeza da tarefa de Lenz, transformando-o em um mero

homem individual. Nivelando-o no meio social. Embora ele tivesse o controle sobre o destino

de seus pacientes, isso não era o bastante, pois ele era o homem individual, “estava cansado

de tratar com homens individuais e de ele mesmo ser um homem individual; aquela não era

sua escala; queria operar a doença da cidade inteira e não de um único e insignificante ser

vivo” (TAVARES, 2008, p. 93). Lenz queria poder que alcançasse todo o Reino. Centrado em

sua individualidade, Lenz queria transcender esse domínio. Lenz queria libertar-se totalmente

e exercer poder sob o espaço que é definitivamente humano vencendo suas limitações.

Ainda sobre essa questão, o contraponto feito pelo narrador ao comparar o espaço

humanizado e o espaço natural reforça a ideia de que o espaço humano é marcado pela

velocidade, pela mudança e pela transformação caótica enquanto o espaço natural, embora

movente, é lento demais para o homem. “A natureza, aliás, não tinha história, tudo se repetia

[...]” (TAVARES, 2008, p. 47). E essa imutabilidade da natureza ofendia Lenz e ao mesmo

tempo o assustava. Enquanto os homens já haviam inventado a roda e o fogo, a natureza

permanecia estável. A natureza que está em um estado de silêncio, opõe-se à condição ruidosa

e caótica que caracteriza o espaço humano.

Não havia uma única diferença histórica entre o vento que ele podia perceber

agora da janela do hospital e o vento que tocara no rosto de um imperador

romano. E esta imutabilidade não era um sintoma de fraqueza. Pelo contrário

a impermeabilidade à historia, à mudança das condições era a grande arma

da natureza e, nesse sentido, aí residia o seu perigo: a ponta que

queimava.(TAVARES, 2008, p. 47).

E no Reino Humano, Lenz detém o controle e determina a sua posição no mundo

fazendo oposição à Natureza. A personagem opõe-se ao silêncio da natureza. Esse tal poder

capaz de influenciar o Reino a partir de um enfrentamento direto à natureza e ao mesmo

tempo de “transformar em ruínas” (TAVARES, p. 106) o espaço e o tempo mostra o quão

mais fecundo está a humanização do espaço humano e quanto mais patente torna-se a

presença do silêncio e do silenciamento. O desencadeamento da separação entre homem e

natureza fica confirmado na seguinte passagem e essa ruptura faz emergir outras vozes. Vozes

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não verbalizáveis. Vozes que reacendem uma crise da condição humana marcada pelo

abandono e pelo isolamento.

Lenz não tinha ilusões acerca da terra que pisava: havia entre a natureza e o

homem um ponto de ruptura que há muito fora ultrapassado. Existia uma luz

nova nas cidades, a luz técnica, luz que dava saltos materiais que antes

nenhum animal conseguira dar; e essa nova claridade aumentava o ódio os

elementos mais antigos do mundo pareciam ter guardado, desde sempre, em

relação ao homem. [...] Sabe-se bem para onde cada coisa vai. Mas o que era

ordem para a natureza era estranho para a cidade [...] Lenz não confiava na

natureza” (TAVARES, 2008, p. 46).

O processo civilizatório isola cada vez mais o homem e em decorrência disso fica

evidente em todo o romance a impossibilidade da conciliação entre homem e natureza e a

seguinte passagem ilustra isso: “Sozinho e errando por sítios estranhos e sem um único

vestígio de metal nas proximidades, Lenz sentia-se um soldado, de outro país que, perdido,

vai parar ao meio de um exército que fala outra língua e que avança em formação de ataque

em direção a uma cidade” (TAVARES, 2008, p. 66-7). Entende-se que pelo fato de a natureza

falar outra língua, uma língua não audível e não compreensível para Lenz, porém perceptível,

é que se reconhece o silêncio da natureza. É que o “silêncio da natureza tem a profundidade

do homem que a escuta” (SCIACCA, 1967, p. 42). O silêncio da natureza é intangível e

magistral, mas Lenz Buchmann parece incapaz de escutá-lo, pois o silêncio da natureza

embora vibrante e inevitável só se faz inteligível na medida em que o homem se exercita na

tarefa de conter a fala, exercitando o ato da escuta. Só o silêncio pode aproximar o homem da

natureza, mas Lenz tem confiança apenas nas palavras. E Lenz sabe que o silêncio da natureza

não é indiferente a ele.

Para o homem da cidade cuja vida é essencialmente ruidosa, a experiência com o

silêncio da natureza implica ausência. Ainda segundo David Le Breton (1999, p. 144), “em

oposição à vida ruidosa do citadino, o silêncio apresenta-se como ausência de ruído, como um

horizonte que a técnica ainda não penetrou com seu poder, como uma zona em descanso, que

a modernidade não absorveu [...]”. Por isso, para o homem na era da técnica, a experiência

com o silêncio é combatível. Por oposição à atitude silenciosa da natureza Lenz, ainda na

primeira parte do romance, sente-se como um soldado que vem transformar aquilo que está

além de seu controle em algo controlável.

Ao afirmar que “não há ordem na natureza” (TAVARES, 2008, p. 96), admite-se uma

espécie de caos irreproduzível, incomunicável que faz com que a natureza seja, para Frederich

Buchmann, “nos seus dias comuns, uma máquina lenta, uma máquina que parecia igual a

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qualquer outra das que o homem havia inventado [...]” (TAVARES, 2008, p. 97). E ainda

para Frederich Buchmann “o erro, precisamente, era ver a natureza semelhante a um museu

que cresce. Museu cujas peças mudam de posição de modo quase imperceptível, parecendo

fruto da timidez ou simplesmente da fraqueza desses elementos” (TAVARES, 2008, p. 97). É

esse, justamente, o silêncio da natureza que perturbava Lenz. Ao desenvolver o seu raciocínio

sobre a natureza, Lenz propõe o seguinte: “A natureza está à espera, lá fora, mas mantém

exatamente a mesma força: recuou, é certo, mas não está sequer prisioneira. Está num outro

sítio, num outro ponto de batalha, e afia as lâminas; não reza, não suplica, não pede piedade.

Não reza, afia as lâminas” (TAVARES, 2008, p. 77). É preciso, portanto, mencionar que esse

silêncio em que opera a natureza não é a ausência da manifestação de som. “A percepção do

silêncio num lugar não tem a ver com som, com ausência de manifestações de ruído, mas com

sentido [...] O silêncio é uma das emanações temporais da natureza” (LE BRETON, 1999, p.

147). E na seguinte passagem se ilustra a presença desse silêncio da natureza:

E isto porque aquelas armas não eram entendidas: a tempestade que ativara

árvores e pessoas contra o chão, devorava casas e animais domesticados, o

mar que iluminando por movimentos que pertenciam ao domínio do não

razoável afundava barcos e homens, esses sons grotescos dos relâmpagos,

sons reveladores de uma indisposição fundamental, de uma inconformidade

com a calma e a segurança da cidade, onde edifícios como instrumentos de

defesa contra cataclismos se tornavam ridículos quando verdadeiras forças

desse museu falso se libertavam, a sensação, enfim, de que o homem, nessas

alturas, envolvido pelo absurdo pegaria até num martelo para combater o

fogo, não como um louco mas parecendo simplesmente ter ficado

desprovido de raciocínio técnico, não percebendo, minimamente, o

mecanismo das forças de ataque. Em suma: nada era entendido pelos

homens que se defendiam. E daí a manifesta posição de fragilidade face à

natureza indisposta. (TAVARES, 2008, p. 98-9).

Do ponto de vista de Lenz, os “sons reveladores” da natureza insurgiam-se contra a

falsa calma e a pseudo segurança das cidades. As “armas” da natureza operavam de tal forma

que nada ficava inteligível para os homens. Por isso, Lenz identifica-se tão perfeitamente com

as salas de cirurgia, apenas porque naqueles espaços tudo é controlável. E motivado com essa

ideia de exercer controle em larga escala, Lenz assume um posto no Partido. No Partido, Lenz

percebera que o poder decorrente de sua posição de destaque assegurava-lhe liberdade

inimaginável, pois permitia a ele estar não acima da lei, mas ser, de certa forma a lei. De

modo que lei alguma pudesse se antepor a ele e ao seu projeto. Portanto, não há divindade e

coisa humana que Lenz não esteja disposto a exceder com intuito de assegurar sua

emancipação.

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Todos os homens estavam sob a mesma lei, e a cidade e cada um dos seus

habitantes orgulhavam-se disso. Porém era evidente que a lei mais

importante, a lei básica, era outra que não a das frases que no papel tentavam

criar equilíbrio entre dois homens. Havia uma hierarquia prática que

esmagava por completo a hierarquia teórica que as leis tentavam impor.

Aliás o problema das leis, para Lenz, era precisamente este: não se

impunham, argumentavam. As leis da cidade, em tempo de paz, haviam

substituído as ordens pelos argumentos como se no limite uma boa conversa

fosse suficiente para convencer um violador a ir para a prisão durante seis

anos ou um assassino a cumprir a pena de morte, pelo seu próprio passo,

saindo de casa de manhã e chegando com pontualidade à parede de

fuzilamento [...] Lenz não pôde mesmo deixar de pensar que até nas

sociedades mais equilibradas e aparentemente mais justas, os homens

poderosos só não matariam na rua, à frente de todos, um vagabundo, com as

próprias mãos ou com uma arma, porque não queriam humilhar em público

as leis do país, já que de certa maneira eram estas que, em alguns

pormenores, os protegiam. (TAVARES, 2008, p. 196-7).

De fato, as leis da cidade estavam à sua disposição. Lenz não se sentia nivelado a

outros homens. No mundo de Lenz, a força era a lei. O domínio da linguagem assegurava o

poder de Lenz e essa era a sua lei. A capacidade de suscitar no homem palavra e silêncio e

poder abalar esse equilíbrio fascinava-o. Lenz que “parecendo um predador imóvel e

silencioso” (TAVARES, 2008, p. 228) tinha plena consciência do poder de dizer e de poder

silenciar. “Suspender era o verbo por excelência do poder [...]” (TAVARES, 2008, p. 221).

Assim, Lenz pertence a um mundo onde a força faz-se imprescindível para firmar a sua

posição no mundo. A forma como Lenz e Kestner manobravam as instituições para alcançar

os seus desígnios reforça a noção dinâmica e volátil das instituições humanas. Lenz havia

matado em sua casa, mas estava protegido pela força de seu nome. “Ilibado de consequências

penais pelo assassinato do louco Rafa por ater agido «provadamente em legítima defesa»,

Lenz Buchmann não só não viu atingida a sua reputação como, pelo contrário, ganhou a

dimensão humana «de quem sofreu muito»” (TAVARES, 2008, p. 244). As leis, assim, não

só o protegiam como legitimavam suas ações.

Ao discutirem seus planos para a cidade, Lenz conclui: “São surdos e mudos, o que

não é bom se queremos conversar com eles – concluiu” (TAVARES, 2008, p. 189), referindo-

se, pois, aos homens da cidade. Dito isto, Kestner replica: “Podemos apenas dar ordens, não

precisamos de conversar” (TAVARES, 2008, p. 190). Sugerindo, nessa passagem, a

imposição da censura e do silenciamento como princípio para conduzir as instituições

humanas e cumprir o seu projeto de emancipação e de controle. Dizia Lenz: “o meu pai

repetia várias vezes que a articulação que antes unia a população aos reis antigos está há

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muito partida” (TAVARES, 2008, p. 188). Essa articulação que antes havia já não é mais

concebível.

A harmonia consignada de outrora já não existe e a ruptura entre o Eu e o mundo se

manifesta patentemente. Certo é que os desígnios superiores que antes controlavam o coletivo

explicitamente e regulavam o seu destino deram lugar a um imenso silêncio. “Havia a

sensação de que as massas, se as deixassem à solta, não tomariam qualquer palácio [...]”

(TAVARES, 2008, p. 187-8) e não tomariam lugar algum, porque “o homem do romance não

sabe mais o que fazer com as instituições de seu mundo” (FEHÉR, 1972, p. 29). O homem do

romance está livre de vozes do Olimpo e de vontades superiores, para ele resta apenas

silêncio.

De certa maneira, a terceira ambivalência feheriana que caracteriza a emancipação da

forma romanesca complementa-se às duas anteriores. Inspirada pela fratura entre o Eu e o

mundo externo, a separação do herói do romance da esfera pública para refugiar-se na esfera

privada vivifica o silêncio como parte de um procedimento técnico formal em que o Eu do

romance mergulha em silêncio e institui o seu próprio regime de silêncio de modo que este se

converte em seu principal meio de expressão.

O fato de o público estar excluído das formas do romance “favoreceu ainda mais a

separação definitiva do herói do romance do domínio da atividade realizada entre as

objetivações” (FEHÉR, 1972, p. 33) e “a qualidade ilusória, comunitária e pública da família

estava fundada, em grande parte, na proteção que oferecia face ao mundo exterior hostil”

(FEHÉR, 1972, p. 33). A esse respeito, vê-se no aniquilamento do público no romance e o

desagregamento da família como uma força libertária, capaz de comportar a imensa

diversidade de elementos que caracteriza o universo burguês. Ainda segundo Ferenc Fehér:

“[...] o desagregamento da família monogâmica é um dos fenômenos mais notáveis e mais

amplamente analisados do século passado, ainda que, na verdade, suas consequências só se

tornassem flagrantes em nosso tempo” (FEHÉR, 1972, p. 34). A construção da dissolução

familiar em Aprender a Rezar na Era da Técnica dá-se gradualmente no silêncio e no

silenciamento que se deixa entrever no isolamento do Eu.

O ideal de família nesse romance torna-se opaco, indistinguível, oscilante; não é

possível encontrar contornos nítidos da esfera íntima familiar em suas objetivações. Cada

acontecimento é solitário e irredutível e nesse microcosmo “a família monogâmica burguesa

tinha se transformado em um pseudolaço consanguíneo [...]” (FEHÉR, 1972, p. 25-6). A

família Buchmann está em uma zona de indeterminação, pois em nenhum momento revelou-

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se como princípio motivador das ações do herói, Lenz Buchmann. Os membros da família

Buchmann são como fantasmas na vida de Lenz. O que significa que o reino de Lenz é um

reino individual.

O fato é que Lenz “não sofreria pela espécie da mesma forma que não sofreria se o seu

bisturi, por acidente, se partisse” (TAVARES, 2008, p. 66). Por conseguinte, o herói reduz a

sua família ao silêncio, limitando as suas possibilidades de atuação, fundando o seu próprio

silêncio e isolando-se do mundo externo, com o intuito de privilegiar sua própria

emancipação. As vozes externas dificilmente rompem o reino de silêncio erigido pelo herói

em seu isolamento.

No entanto, Lenz cedo percebera que era necessário um suporte, um sítio ao

qual o corpo se encoste sem medo de ser atraiçoado; no fundo, uma parede

que não corra o risco de desabar. A família seria sua parede, o ponto a que

poderia encostar a nuca (pois mesmo num ataque vigoroso quem ataca tem

nuca, e essa fragilidade jamais poderia ser esquecida). (TAVARES, 2008, p.

21).

Apenas aparentemente a família Buchmann representa um abrigo “em face ao mundo

hostil” (FEHÉR, 1972, p.33) ou “enquanto refúgio da humanidade” (FEHÉR, 1972, p. 35),

mas, na verdade, a família é para Lenz apenas um obstáculo para sua ascensão. O caminho

para o progresso da emancipação de Lenz Buchmann consiste, primeiramente, em superar

essa condição de dependência e de submissão ao meio familiar. Os membros da família

Buchmann, nesse sentido, cumpriam um papel ilusório. Nesse trecho de excepcional

importância para o esclarecimento da dissolução da família burguesa no romance fica claro o

ideal do “herói do romance como produto da sociedade burguesa, e não da família” (FEHÉR,

1972, p. 35). No capítulo intitulado “Um episódio com uma doente terminal”, Lenz divaga

sobre a força do nome Buchmann, tornando nítido ao leitor o verdadeiro papel da família

Buchmann em sua constituição.

E para Lenz era fundamental o nome de família: Buchmann. Lenz

Buchmann só não o exibia e só não exigia ser tratado pelo nome de família

porque Albert, Albert Buchmann, irmão alguns anos mais velho, bem antes

de si, havia começado a exibi-lo, parecendo pousá-lo numa mesa antes de

iniciar qualquer diálogo. Lenz jamais aceitaria ser o segundo Buchmann, até

porque considerava que no seu irmão o nome Buchmann se tornara um nome

defensivo e, pelo contrário, nas suas mãos, a anteceder as suas ações, o nome

Buchmann tomava inegavelmente feições guerreiras, de ataque. E por isso,

ele era simplesmente Lenz, tratando também o seu irmão pelo primeiro

nome, recusando-se a explicitar o apelido de família. (TAVARES, 2008, p.

74-5).

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Observa-se nas entrelinhas o verdadeiro valor de um nome Buchmann que certamente

não tem nenhum compromisso com a família, mas com o homem individual, com o homem

que é produto de sociedade burguesa. Lenz perturba-se com o fato de ser o segundo

Buchmann. Para ele a importância do nome não recai sobre a família, mas sobre suas próprias

atitudes. O que tudo indica é que nem Albert tampouco Frederich, seu pai, enriquecem e

fortalecem o nome Buchmann. Buchmann, para ele, é um nome individual.

Por isso, como ele poderia ser o segundo ou o terceiro Buchmann? Para o sujeito

isolado do romance, a família não representa empoderamento. Ao contrário, são atitudes

individuais que tornam o nome Buchmann como um nome de força singular. Lenz não é

representante da família Buchmann, mas representante de si mesmo, representante do homem

individual fruto da sociedade puramente social. E isso se confirma quando Lenz propõe

“estancar a produção de fracos”, pois ele crê que a força do nome individual morre junto com

o indivíduo que o carrega.

Na verdade, Albert não casara e não tivera filhos e para Lenz os filhos eram

também uma aplicação desnecessária da energia, um método ingênuo de

baixar o fuzil [...] Diga-se que a sua mulher Maria Buchmann, já há vários

anos se conformara com a decisão – nas palavras de Lenz – de estancar a

produção de fracos. Não quero que um médico da geração seguinte venha a

salvar a vida de uma criança com o meu nome. Numa família, e Lenz

sentira-o na pele, formava-se um amplo sistema de hierarquias, protecções e

compaixões que repetia, por vezes até de um modo mais intenso, a ligação

de intensidades de poder que existem num Reino completo. Mas, por ele, o

Reino iria terminar ali. (TAVARES, 2008, p. 83-4).

O valor da linhagem desaparece. O indivíduo em seu isolamento transcendental anula

os poderes da família; e assim se dá progressivamente o processo de aniquilamento da família

burguesa. Em sua aspiração de emancipação e liberdade, o homem do romance gradualmente

reduz o papel da família através do silenciamento e no romance amplia-se o silêncio

decorrente da construção da dissolução familiar. São pequenos gestos simbólicos que Lenz

recorre para reduzir o papel da família em seu campo de atuação. Talvez o mais importante

deles seja o episódio que Lenz pede à Gustav Liegnitz, o surdo-mudo, que apague o nome do

irmão mais velho – Albert Buchmann, de uma placa de bronze que continha o brasão da

família.

Nessa mesma cena, a personagem também decide sobre os outros nomes que se

encontravam no brasão Buchmann: “o nome da mãe era um nome fraco, sem dúvida, mas a

mistura com o sangue do pai demonstrara que havia sido, pelo menos, um nome capaz de

gerar a ele. Fraco, mas que deixa a força continuar forte [...]” (TAVARES, 2008, p. 209) e por

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essa razão, o nome de sua mãe foi poupado. Entretanto, cabe lembrar que o nome da mãe

nunca fora dito e Lenz jamais a mencionara durante toda a narrativa. Por outro lado, o nome

de sua esposa, Maria Buchmann, sequer precisou ser apagado. Eis diferença entre o nome da

mãe de Lenz que jamais foi silenciado, o nome da esposa de Lenz fora completamente

apagado: “Não fora necessário apagar o nome da sua mulher Maria Buchmann, pois esse

nome não fora sequer inscrito” (TAVARES, 2008, p. 273). O nome da mãe era um silêncio;

um silêncio que significa de muitas maneiras, apenas por ser silêncio, por ser não dito e por

ser uma instância positiva que traduz uma presença. O nome Maria Buchmann, contudo, não

é um silêncio; é palavra que ruma ao silenciamento e ao vazio; um apagamento sem dúvida. O

lugar que Maria Buchmann ocupava na escala de valores de Lenz era do vazio, do que jamais

existiu. O silêncio para onde Maria Buchmann é condenada não é o mesmo silêncio para onde

a mãe de Lenz é destinada. “Com clareza: desde sempre ela ocupara um lugar insignificante e

tal ficara ainda mais visível com a recente tarefa de Gustav na placa de bronze da família”

(TAVARES, 2008, p. 273). Nessa perspectiva, nota-se o alheamento de Lenz às coisas

relativas de sua esposa na seguinte passagem:

Em nenhum objecto do mundo que ocupasse realmente espaço apareceria o

nome da mulher de Lenz. Certamente em muitos documentos – em inúmeras

folhas de papel – estaria o nome da mulher; e até, a altura da sua morte, do

seu assassinato, em muitos jornais o seu nome, Lenz recordava-se bem,

ocupara a primeira página e, nos dias seguintes à tragédia, página interiores.

Mas como se chamava ela? (TAVARES, 2008, p. 273).

Naturalmente, nessa citação pode-se se identificar inúmeras estratégias do silêncio

com o intuito de apagar a imagem de Maria Buchmann. Os mecanismos que envolvem esse

processo, apesar de estarem operantes em todo romance com relação à Maria Buchmann,

apenas nesse trecho se tornam totalmente evidentes. Consonante Adam Jaworski (1993),

existem meios bastante efetivos de regular sentidos e controlar informação pelo silêncio.

Entre esses meios se destaca o silenciamento sutil onde se cria uma imagem distorcida; a de

um sujeito submisso, inferior, impotente, de modo que não haja nada de relevante para ser

dito sobre esse indivíduo.

De fato, há em jogo um silêncio opressor que desconstrói a imagem de Maria

Buchmann progressivamente até chegar ao ponto de seu nome nem ao menos ser digno de

constar nas páginas do jornal ou de lugar algum. Essa censura, embora sutil, proíbe Maria

Buchmann de ocupar certos lugares de sentido, proíbe que ela se inscreva em formações

discursivas e que “consequentemente a identidade do sujeito é imediatamente afetada [...]”

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(ORLANDI, 2007, p. 76). A sua morte representa o estágio final de um processo de

apagamento e silenciamento que ocorreu durante toda sua vida. “Qual era mesmo o nome

dela?” (TAVARES, 2008, p. 275), perguntava novamente Lenz, que havia conscientemente

apagado o nome de sua esposa para sempre.

Apenas o nome do pai permanece vivo em suas lembranças, mas não porque entre

Frederich e Lenz havia um vínculo indissolúvel de pai e filho. Na verdade, tal vínculo jamais

existiu. Frederich Buchmann mantém-se vivo nas lembranças de Lenz, por causa do medo e

do terror que aquele lhe incutira durante a infância e durante a adolescência de Lenz. “Nesta

casa o medo é ilegal – era uma das frases mais marcantes de Frederich Buchmann”

(TAVARES, 2008, p. 94). E nesse ambiente dominado pelo medo, Lenz cresce sob o domínio

do silenciamento e aprende a ter medo.

Ainda sobre a família Buchmann, lê-se o seguinte: “Nesse pequeno Estado

monárquico que era aquela família, Lenz era de longe o mais talhado para receber a coroa, no

momento de sua transmissão. Aliás, Albert nem sequer a desejava” (TAVARES, 2008, p.

100). Mas, Lenz também não desejava ser senhor da família Buchmann, pois “por ele, o

Reino iria terminar ali” (TAVARES, 2008, p. 84). E Frederich Buchmann também parecia

saber disso. Sobre os dois filhos, ele concluíra: “Tenho um cão e um lobo” (TAVARES,

2008, p. 101). O cão era Albert, o filho mais cauteloso, precavido e manso. O lobo era Lenz

que era dotado de um singular instinto de luta e sempre em posição de ataque. “O cão não

poderá proteger o lobo porque não tem força para isso, e o lobo nunca poderá proteger o cão

porque tal não está na sua natureza” (TAVARES, 2008, p. 101). A supressão definitiva dos

laços de sangue assim, já era esperada pelo próprio chefe da família Buchmann que via nos

dois filhos tanto a impossibilidade quanto a incapacidade de manter a unidade familiar.

Com efeito, a tese de Ferenc Fehér (1972) demonstra que a distância do indivíduo em

relação ao mundo exterior leva a duas importantes constatações; primeiramente, nota-se que

nome e genealogia nada acrescentam a esse indivíduo isolado; “o indivíduo se realiza através

dos acidentes da concorrência e da luta que esta acarreta [...]” (FEHÉR, 1972, p. 62). E “o

ponto de partida das condições das relações no romance é um conjunto de pessoas privadas

burguesas que vivem em casas ou apartamentos isolados um do outro, que não podem se

considerar senão como reciprocamente desconhecidos” (FEHÉR, 1972, p. 86). E como

consequência disso, a representação do exclusivamente privado, do fortuito, do acidental

permite para além do imprevisto um direcionamento para o futuro. Observa-se a constante e

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progressiva atuação do silêncio como parte de um procedimento formal de solução no

aniquilamento da esfera pública do romance a partir da esfera privada.

É possível então, no silêncio, escapar à condição humana, buscar em sua essência

ascese e libertação, tão almejada pelo herói do romance, a fim de renunciar a exploração da

realidade perversa que se impõe sobre o homem? Diante do exposto, pode-se dizer que sim,

se se considerar que as concessões feitas pelo silêncio na forma do romance possibilitaram ao

gênero burguês ter maior compatibilidade de representação desse universo caótico, hostil,

estilhaçado e sobrecarregado por múltiplas vozes, assim como auxiliou, sobremaneira, na

conservação da universalidade da obra. O romance, a partir do silêncio, mostra-se como

produto de sua sociedade puramente social fundamentada pela pluralidade que encontra no

silêncio o princípio de sua potência. Encontram-se no silêncio os processos de construção dos

sentidos, salientando, dessa maneira, formações discursivas e ideológicas que permitem ao

homem reflexionar e, assim, libertar-se.

2.3 As formas do silêncio nas formas do romance

Examinando mais de perto esse romance, o leitor, consequentemente, é conduzido por

um emaranhado de fragmentos organizados, aparentemente, dentro de uma lógica temporal

em que as ações das personagens são sucedidas por uma ordem de causalidade estável, porém,

o que na verdade ocorre é rememoração do passado, recordação de traumas e de medos,

elucubrações filosóficas que fazem uma avaliação do presente, marcadas todas elas por

grandes intervalos de silêncio. A organização do romance, porém, cria uma ilusão de uma

progressão temporal retilínea e uma estabilidade inexistente. Cada fragmento, no entanto, é

marcado por um hiato temporal, ou seja, uma lacuna que não é preenchida por nada a não ser

pelo silêncio causando, assim, uma grande ruptura na trama.

A técnica romanesca em jogo sugere que os episódios narrados são, na verdade,

inenarráveis, indizíveis e que, portanto, precisam transcender a linguagem discursiva. Nesse

sentido, o silêncio não está apenas entre fragmentos e lacunas; o silêncio não está às margens

da linguagem. O silêncio é primordial e fundante à linguagem e, portanto, ele está presente

enquanto fundamento da narrativa, no que diz respeito à constituição das formas do romance

que modelam a figura do narrador, que tangenciam as personagens, que colaboram com a

construção do tempo e do espaço e preenchem de sentidos cada linha do romance. Enfim,

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subentende-se que as formas do romance carregam um fardo pesado demais para confiar à

linguagem verbal, necessitando assim do silêncio para transpô-las. Constrói-se o sentido no

silêncio. E assim, o romance inspira-se com o silêncio em suas formas e expira silêncio em

suas estruturas.

O narrador de Aprender a Rezar na Era da Técnica caminha, deste modo, por entre

silêncios e recompõe através de fragmentos a vida e a morte de Lenz Buchmann,

precisamente nessa ordem. Há três grandes blocos narrativos – Força, Doença e Morte –

dispostos meticulosa e rigidamente dentro de uma suposta ordem temporal que, por um lado,

procura dar a falsa ideia de completude e linearidade sobre toda a dimensão de vida de um

homem burguês representando os ciclos da vida, e, por outro, reforça o caráter fragmentário

da narrativa, bem como reflete uma crise na representação do mundo marcada indelevelmente

pelo signo do silêncio. Investe-se, portanto, em uma estabilidade que não é a da palavra.

Impõe-se o silêncio como senhor soberano das formas desse romance.

Certamente, sem a presença do silêncio encadeando os episódios do romance, as três

partes da narrativa assim como os seus respectivos capítulos fragmentados dispersariam

totalmente e a narrativa deixaria de fazer sentido, ou seja, deixaria de ser um romance, pois, o

que separa e o que une cada parte de Aprender a Rezar na Era da Técnica é simultânea e

paradoxalmente o silêncio. Em outras palavras, o silêncio é o elo e é a ruptura da trama.

O silêncio estabelece um espaço vital de diálogo e de sentido entre cada uma das três

partes desse romance constituindo assim uma unidade narrativa. Daí, também, decorre uma

mobilidade impressionante no tocante à figura do narrador e das demais personagens e a

ambiguidade em relação ao tempo e ao espaço. Constata-se isso à medida que as formas da

narrativa mostram-se fragmentárias e líquidas; acresce-se a isso o ritmo galopante, bem como

o seu estilo fleumático e paratático.

O projeto de Gonçalo M. Tavares realiza-se, uma vez que o conflito do romance

desenrola-se no silêncio, libertando-se das amarras restritivas da linguagem discursiva e

possibilitando ao leitor encontrar no silêncio o espaço necessário para poder encarar a tensão

existente entre homem e mundo, racionalidade e absurdo, técnica e natureza, convicção na

ciência e confiança na fé. O engenhoso processo ao qual o autor recorre, equilibra

assimetricamente palavra e silêncio. Gonçalo M. Tavares parece conseguir encontrar

harmonia no encontro do silêncio com a palavra ao representar a tensão entre duas forças

aparentemente opostas, mas que se equilibram dentro da totalidade da obra e se

complementam mutuamente na dialética da linguagem.

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Concebido com perfeição formal, Aprender a Rezar na Era da Técnica propõe a

recriação da linguagem na medida em que equilibra palavra e silêncio e se consagra como um

romance que tem plenas condições de representar o homem e o mundo burgueses

posicionando-se de maneira crítica e reflexiva. O texto rejeita aquela linguagem retilínea,

estável e uniforme. Dinamizam-se as formas da narrativa por meio do emprego de uma

linguagem que guarda em si as marcas da violência e da brutalidade. A rigor, apela-se para

uma linguagem impassível. Convocam-se silêncios que apagam, consequentemente, as

fronteiras do romance tradicional.

Por meio de um acurado tratamento conferido à linguagem, o alto grau de

desumanização e indiferença do homem para com o seu semelhante resulta em uma

linguagem fleumática, seca, paratática, entrecortada, metonímica, fria e híbrida, sinalizando

na forma a organização do mundo burguês contemporâneo, cuja configuração é marcada pela

desigualdade, pelo estilhaçamento e pela saturação de múltiplas linguagens, onde o

imperativo é comunicar. A linguagem de Gonçalo M. Tavares permite ao leitor reconhecer a

importância daquilo que está além das palavras e lançar um olhar para o subtexto: o silêncio.

Admite-se, então, uma progressão que se desenrola no silêncio e apenas no silêncio.

Quando esses mesmos fragmentos são observados sem se considerar o silêncio que os

atravessa, tudo que resta são episódios incompletos da vida de Lenz e que pouco contribuem

para o desenvolvimento da trama, pois retardam o desenrolar da ação, no sentido de que há

alguns episódios dessa narrativa que estão completamente deslocados e desconexos.

Evidentemente, o estilhaçamento persiste em toda a narrativa e se acentua gradualmente ao

longo das três partes que compõem Aprender a Rezar na Era da Técnica, reforçando o caráter

dinâmico das formas do silêncio nas formas do romance.

Na primeira parte do romance – Força –, há maior alternância de palavra e silêncio, o

que fragmenta o fluxo narrativo tendo maior incidência de lacunas e de cortes no plano

espacial e temporal. A personagem central é forte e enfrenta o silêncio impondo o seu próprio

silêncio. Lenz Buchmann estabelece um regime de gestão de sentidos de si e dos outros a

partir do silenciamento. Em função disso, o silêncio na primeira parte do romance aparece de

maneira mais intensa e autoritária; como uma linguagem mutilada. A ideia de conferir à

linguagem o poder de representação de uma sociedade devastada pela violência, pelo caos e

por múltiplas linguagens só é possível à medida que o romance resiste à barreira interposta

pela linguagem retilínea e tradicional e se mantêm firme na potência silêncio.

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Em Doença, a segunda parte de Aprender a Rezar na Era da Técnica, à diferença da

primeira parte, convoca-se o silêncio para desacelerar o tempo narrativo e se aprofunda mais

no interior das personagens, sobretudo Lenz. Há menos tempo para combater o silêncio e

mais tempo para deixar-se levar pelos caminhos dele. Com efeito, o silêncio no decorrer da

narrativa torna-se menos opressor e menos autoritário. Ao contrário, a segunda parte do

romance dá lugar a um silêncio mais contemplativo e compenetrante, porém, não menos

significativo. Provavelmente, conforme a personagem se torna debilitada e frágil e sua relação

com o silêncio se altera, é possível que a forma do silêncio também se altere na forma do

romance.

Por fim, na última parte de Aprender a Rezar na Era da Técnica, concentrando-se no

modo como o silêncio opera na linguagem, há mais ênfase na dimensão subjetiva da

personagem, o silêncio proporciona ao leitor um encontro com uma realidade desfigurada que

se traduz no eu da personagem. Abre-se ao leitor a possibilidade de contato com um silêncio

tanto mais profundo e que nada tem de transparente; silêncio então que se entrelaça ao

romance e ruma a um caminho irresolúvel (DAUENHAUER, 1980). Talvez rumo ao silêncio

primordial. A fascinação pelo silêncio ao final do romance permite compreender que o

silêncio, embora se ocultando atrás de uma cortina de palavras, tem o poder de desintegrar as

frágeis palavras e colocá-las frente ao inefável, ao inexprimível, ao indizível.

Para que seja representada a unidade do romance é necessário silêncio. Sobre essa

questão é preciso retomar um conceito proposto por Bernard Dauenhauer (1980) que é o

silêncio anterior e posterior. Segundo a classificação desse autor, o silêncio anterior e

posterior é aquele silêncio que antecede e precede qualquer elocução. Ele é inaugural e último

em toda realização da linguagem (DAUENHAUER, 1980).

Então, definitivamente, essa modalidade de silêncio pode ser constatada nas três

grandes partes que compõem Aprender a Rezar na Era da Técnica. A estrutura desse silêncio

é expressa da seguinte maneira: “[...] se a descrição anterior da estrutura temporal do silêncio

anterior e posterior está correta, o sentido do enunciado A é mantido em um silêncio do

depois A’, qualquer que seja o conteúdo do enunciado A, este já chegou ao fim”.

(DAUENHAUER, 1980, p. 14). 14

O que significa que o enunciado é como uma figura e o

silêncio além dele o fundo; o limite do que pode ser dito. Nada pode ser enunciado, sem antes

partir do silêncio e voltar para ele. Na primeira parte do romance, por exemplo, intitulada

14

if the foregoing description of the time structure of fore-after silence is correct, the sense of the utterance A is

retained in after-silence A', whatever the content of the utterance A, has now come to an end. (DAUENHAUER,

1980, p. 14 – tradução nossa).

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“Aprendizagem” e subintitulada “O adolescente”, Lenz conhece a crueldade, narra-se um

episódio em que a personagem principal é obrigada pelo pai a ter relações sexuais com a

criada da família como um gesto de afirmação da sua masculinidade e demonstração de poder

e de força. As primeiras linhas narram o seguinte: “O pai agarrou nele e levou-o ao quarto de

uma empregada, a mais nova e a mais bonita da casa” (TAVARES, 2008, p. 17).

Evidentemente o silêncio é quebrado, mas as linhas iniciais do romance não renunciaram

totalmente ao silêncio. Enfim, há muito silêncio ainda nessas poucas linhas.

Há um não dito sobre a ação que antecede essa ação, outro não dito sobre o “eu” que

sofre a ação; “O pai agarrou nele e levou-o”, pois, quem é esse que o narrador não pode

revelar nas primeiras linhas? E para onde o levou? Há outro não dito sobre a identidade do pai

etc. Há muitos não ditos e muitos silêncios. E assim, fica confirmada a impossibilidade de

começar qualquer enunciado sem a presença do silêncio ou a impossibilidade de enunciar

tudo de uma só vez e de esclarecer tudo ao leitor. E nesse momento, é válido recordar a

metáfora de Gilberto Mendonça Teles, em Retórica do Silêncio (1979), afirmando que as

palavras parecem flutuar em um mar de silêncio e, quando são ditas espirram silêncio.

O silêncio não termina ali. Na segunda frase que inicia esse romance, diz-se o

seguinte: “– Agora vais fazê-la, aqui, à minha frente” (TAVARES, 2008, p. 17). A entrada de

um travessão é um sinal visual de que uma personagem fala, mas sem qualquer indicação do

narrador. De qualquer forma, rompe-se o silêncio do espaço. Tem-se o discurso direto. A voz

do narrador volta ao silêncio por um breve instante e traz do silêncio outra voz: a voz do pai

que ainda não se manifestara. E tanto o narrador quanto o pai deixam que o silêncio fale por si

mesmo. Não há preocupação em momento algum em traduzir esse silêncio.

Além disso, outros elementos chamam a atenção no momento da leitura desse

primeiro capítulo: o primeiro deles é a linguagem empregada pelo pai: “–Vais fazê-la à minha

frente – repetia” (TAVARES, 2008, p. 17); “– Despe as calças – foi a segunda frase do pai. –

Despe as calças” (TAVARES, 2008, p. 18) e “– Avança – disse o pai com rudeza”

(TAVARES, 2008, p. 18). A ausência de diálogo é em si um silêncio; o silêncio do outro

através do apagamento dele. Só o pai de Lenz fala e ninguém mais. A repetição que reverbera

em todo capítulo e persegue Lenz durante toda sua vida e não dá espaço à contestação. As

ordens de Frederich recusam-se a voltar ao silêncio, pois logo se nota a repetição insistente

das ordens nesse primeiro capítulo.

Em suma, são palavras que calam e que apagam a presença do outro e que reificam a

presença de Lenz e, especialmente, da criada. “[...] e os gestos seguintes foram os gestos de

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um trabalhador, de um empregado que obedece às indicações de um encarregado mais

experiente, neste caso o seu pai [...]” (TAVARES, 2008, p. 18). As ordens de Frederich, em

última instância, tentam proibir outras palavras, outros silêncios, outros sentidos. “E todas as

ordens que se seguiram foram dirigidas exclusivamente a si; ou seja: o pai não dirigiu uma

única frase a criadita [...]” (TAVARES, 2008, p. 18). O silêncio diante da empregada e o

silêncio da empregada que, simplesmente, assiste à cena passivamente confirmam o processo

de reificação: pressupõe-se a descida do homem-sujeito ao extrato de homem-objeto. É, pois

flagrante, a maneira como a narrativa parece incorporar os elementos da violência e da

rudeza, criando um ambiente impressionante, usando os recursos da linguagem.

O segundo elemento que chama bastante atenção, nesse primeiro momento, é a forma

como o narrador apresenta a cena criando um expediente híbrido em que a presença da

narração e os recorrentes comentários do narrador dão mais “voz” ao silêncio. No contexto

dessa interpretação, acredita-se que os comentários tecidos pelo narrador permitem ao leitor

estender a sua compreensão sobre o fato narrado, ou seja, se vai além dos limites da esfera

verbal construindo no silêncio outras relações de sentido.

A criadita estava assustada, claro, mas o estranho é que parecia que ela

estava assustada com ele, e não com o pai: era o facto de Lenz ser um

adolescente que assustava a criadita e não a violência com que o pai a

disponibilizava ao filho, sem qualquer pudor, sem sequer ter o cuidado de

sair. O pai queria ver. (TAVARES, 2008, p. 17- grifo nosso).

Os comentários feitos pelo narrador nesse excerto exemplificam como a palavra dele

direciona ao silêncio. Porque se a palavra significa o silêncio significa muito mais sem

dúvidas. O narrador pela palavra quebra a tranquilidade contemplativa do leitor forçando-o a

ir além do que é dito, direcionando o leitor para o silêncio. “A criadita estava assustada,

claro” (TAVARES, 2008, p. 17): o emprego do advérbio destacado significa algo que não

desperta dúvidas, que está evidente, sem ambiguidades, mas a frase que se tem a seguir revela

que: “mas o estranho é que parecia que ela estava assustada com ele, e não com o pai”

(TAVARES, 2008, p. 17). Então, a razão de seu medo não é evidente; ela não se manifesta

claramente, surpreendendo até mesmo o narrador.

O narrador abre as portas para o silêncio. Palavras e silêncio misturam-se nessa cena.

Confundem-se inclusive com o medo da empregada. As ordens do pai parecem intimidar e

amedrontar a empregada, mas não é o que ele fala que a assusta, mas aquilo que ele não fala.

O pai, que até aqui, é uma figura sem rosto, inibidora, símbolo de autoridade, impõe silêncio.

Suas palavras calam e tentam conter outros sentidos, mas suas palavras (ou ordens) também

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despertam silêncios. É, justamente, o seu silêncio e o silêncio que ele impõe a Lenz que

assusta a criada.

Mas o mais interessante é o comentário do narrador, que expressa não somente o

sentimento de empatia em relação ao sentimento confuso da criada que é oferecida a Lenz

Buchmann, como uma escrava que seria oferecida ao seu senhor ou como um objeto de pouco

valor que é oferecido a outrem, mas acima de tudo, o seu imenso desconforto sobre tudo isso.

O narrador desloca-se entre múltiplos silêncios e envolve o leitor com a narrativa e harmoniza

suas estruturas estabelecendo outros silêncios, criando uma unidade na qual coexiste tanto o

silenciamento quanto o indizível.

A par da técnica incomum assumida pelo narrador, o romance, muitas vezes, guarda

um ritmo paratático através do encadeamento de construções paralelas que sintetizam a ação,

por exemplo: “Primeiro o ritual do domínio sobre os pequenos objectos imóveis: as botas, a

arma, o colete pesado” (TAVARES, 2008, p. 19). Assim, economizam-se palavras e o

silêncio predomina. Ao invés de: “calçar as botas, carregar a arma e vestir o colete pesado”;

as orações tornam-se mais breves e mais impactantes dando dinamicidade e velocidade à

narrativa.

O estilo usado pelo escritor traduz a violência que não pode ser posta em palavras; a

violência narrada evoca outros traumas da personagem. No próximo excerto lê-se o seguinte:

“Lenz levanta a saia da mulher, vira o rabo dela para si, empurra-a contra o lavatório, baixa as

suas calças, baixa-lhe as cuecas (ela ajuda) tira o pénis e com rapidez penetra a mulher”

(TAVARES, 2008, p. 28). Com a mesma violência que o pai lhe impusera na adolescência,

Lenz impõe a violência à mulher na vida adulta à frente de um “vagabundo, que mal levanta

os olhos para eles” (TAVARES, 2008, p. 28). E essa violência consiste de uma violência

física e moral, cujos resultados não são evidentes porque são mascarados pelos silêncios.

O estilo paratático, cadencial e fragmentado das frases que dinamizam a ação e

aceleram os movimentos: os gestos soam mais brutos. Na sequência: “o homem, sem se

dirigir a ninguém, parece falar sozinho; murmura algo, imperceptível” (TAVARES, 2008, p.

28). A ocorrência dessas construções segmentadas, repletas de silêncios cumpre um papel

estilístico fundamental porque traduz a violência do gesto. A presença de frases incompletas

caracterizado por um estilo fleumático transmite a ideia de incapacidade de narração dos fatos

narrados.

Eventos que representam atos cruéis, absurdos e de todo modo violentos requerem a

presença do silêncio para traduzi-los. É consabido que o absurdo é inassimilável, portanto,

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indizível, silêncio. O silêncio, nesse sentido, apenas sugere e alude a determinado evento

absurdo, mas não o reconstrói, pois a impossibilidade de enunciá-lo recai na impossibilidade

de compartilhá-lo com o outro em sua plenitude.

Não se transmitem ao outro as sensações e as impressões de forma clara e discernível.

Talvez seja por isso que o vagabundo, que está diante de Lenz e Maria Buchmann, murmura

algo que é imperceptível tanto para o narrador, quanto para o casal Buchmann e também para

os leitores, porque o que ele tem diante de si é, simplesmente intraduzível: o indizível.

Pode-se observar ainda, alguns traços que Eni Orlandi (2007) chama de figuras do

silêncio e que são caracterizadas por elipses, descontinuidade temática, subdeterminação

semântica e também preterição. Além dessas figuras, as lacunas no texto, os vazios deixados

pelo narrador e os significados escondidos nas entrelinhas realçam a presença do silêncio

dentro da obra. E o leitor tem toda possibilidade de identificar essa tal presença. Em uma

análise específica dessa presença, deve-se considerar a seguinte passagem.

Lenz, furando por completo os seus hábitos, decidiu naquela noite deixar

entrar um pedinte. Lenz ria-se.

– Dou-lhe o seu pão.

A pedido de Lenz, a mulher trouxe o jornal do dia. Enquanto o entregava,

disse-lhe:

– Por favor, dá-lhe o que ele quer e manda-o embora.

Lenz acariciou ao de leve o rabo da mulher e riu-se para o vagabundo. Pediu

que ela saísse:

– Conversas de homens – e sorriu de novo.

– Já viu estas notícias? – perguntou Lenz ao vagabundo, enquanto lhe

estendia o jornal com a primeira página virada para cima.

– Estou com fome – disse o homem. (TAVARES, 2008, p. 22).

A maneira como Lenz conduz a conversa é bastante significativa, pois há ausência

completa de diálogo e o silêncio se manifesta nas frestas. As falas das personagens são

marcadas por descontinuidade temática. Enquanto a esposa de Lenz pede ao marido que

mande o mendigo embora, ele simplesmente responde: “Conversas de homens” quando,

simplesmente não há nenhuma conversa. Há, pelo contrário, silêncios. Em “Conversas de

homens”, por exemplo, há omissão de palavras sinalizando a presença de elipse. Para o

mendigo faminto Lenz pergunta: “Já viu estas notícias?”. É claro que Lenz não esperava que

o mendigo faminto respondesse à sua pergunta. Este apenas afirma que está com fome. E, em

contrapartida, “Lenz não respondeu. Tinha ainda o jornal na mão” (TAVARES, 2008, p. 22).

Entretanto, Lenz continua:

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– Veja isto: o presidente diz que a população finalmente começa a ter algum

sossego. Vê? Que sossego é este? Conhece-o?

– Por favor... – repetia o homem.

Lenz continuou a ler os títulos da primeira página [...]

– Não me humilhe – disse o homem.

Lenz pediu-lhe para não ser ridículo.

– Deve respeitar o país. Sabe o hino? Vou dar-lhe comida. Quer? E dinheiro?

O vagabundo mexeu-se ligeiramente. Estava em pé: Lenz ainda não

permitira que ele se sentasse no pequeno banco que estava vazio, ao seu

lado. (TAVARES, 2008, p. 23).

A fala do mendigo é interrompida por reticências. Sabe-se que as reticências são uma

omissão voluntária do que se pretende dizer: um sinal gráfico da presença do silêncio. Mas

também, essas reticências indicam uma oclusão. Afinal, Lenz não permite que o mendigo fale

consigo. As palavras do mendigo são premidas pelo silêncio e constantemente esvaziadas de

sentido. “Não me humilhe”, repete o mendigo, mas Lenz despreza completamente o pedido

deste. Ao dizer para ele não ser ridículo, fica subentendido que o silêncio e palavra expressos

pelo mendigo são insignificantes para Lenz. O “por favor” e o silêncio do pedinte para Lenz

correspondem ao vazio. Entretanto, sabe-se que após esse “por favor”, há o silêncio de um

sofrimento que não cabe em palavras. E o silêncio persiste em formas de elipse: “Sabe o

hino? Vou dar-lhe comida. Quer? E dinheiro?” e em forma de subdeterminação semântica: “–

Mas cante primeiro o hino – pediu Lenz. – Em qualquer situação... Não perder o sentido da

existência, percebe?” (TAVARES, 2008, p. 23). O que o hino representa, senão uma ideia

vazia de coletividade, onde o canto coletivo apaga a diferença e silencia o outro (o mendigo).

Além disso, é bastante interessante reparar que o mendigo não poderia sentar no banco

que estava vazio ao lado de Lenz. Primeiramente, porque o banco, segundo o narrador era

pequeno. Lenz teria que dividir um espaço escasso com alguém que está abaixo de si na

escala social e para Lenz tal ideia é inaceitável. Ademais, sentar ao lado de Lenz, colocaria o

mendigo à mesma altura deste. Lenz, então, ficaria nivelado ao mendigo. Mas esse excerto

não esconde a sensação de superioridade que domina Lenz nesse encontro com o mendigo.

Aliás, são inesgotáveis os mistérios guardados do silêncio da linguagem, porque a

linguagem, como se tem afirmado até aqui, tem como princípio fundador o silêncio. Não há

nada que seja enunciado nesse romance que não implique silêncio. Toda linguagem implica

silêncio (ORLANDI, 2007). Fábio Elias Tfouni (2008), em seu ensaio intitulado Interdito e o

silêncio: duas abordagens do impossível na linguagem, propõe o seguinte: “Antes da

enunciação, onde não há movimento, todos os dizeres são possíveis. Já, no movimento da

enunciação, o que é dito é uma “escolha” contingente do enunciatário [...]” (TFOUNI, 2008,

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p. 357). De outro modo, qualquer enunciação implica um conjunto de escolhas e, certamente,

evidencia a presença de uma forma de silêncio no discurso.

Na última parte do capítulo intitulado “O Médico na Era da Técnica”, Lenz que havia

tratado de uma mulher no hospital com bastante perícia, precisou silenciá-la. Pois, para

expressar certa imagem é preciso silenciar outras. E a moribunda, após o sucesso da operação,

conduzida por Lenz em um gesto de gratidão e reconhecimento afirma: “Você é um homem

bom!” (TAVARES, 2008, p. 36). Lenz, ao invés de aceitar o cumprimento e acolher as

palavras da mulher, coloca-as no silêncio.

Apaga-se o registro daquilo que foi dito. Afinal, ele não poderia aceitar um

cumprimento que menosprezasse a sua técnica. Por isso, Lenz responde-lhe friamente:

“Desculpe, não sou nada disso. Sou médico” (TAVARES, 2008, p. 36). Lenz reduz a mulher

ao silêncio e com isso reduz também o final do capítulo ao silêncio, no sentido de que

nenhuma palavra é mais bem-vinda.

Todo desenrolar narrativo implica de certa maneira um silenciamento estrutural e

constitutivo. Por isso, Eni Orlandi (2007, p. 74) entende que: “o silêncio trabalha assim os

limites das formações discursivas, determinando consequentemente os limites do dizer”, mas

não apenas isso, ainda segundo essa autora, o silêncio “[...] põe em funcionamento o conjunto

do que é preciso não dizer para poder dizer” (ORLANDI, 2007, p. 74). Ora, a disposição

fundamental do silêncio é a pulsante paralisia da linguagem discursiva diante de fatos que

são, por natureza, grandes demais para linguagem comum. Esta não é capaz de transmitir as

ações, as sensações e as impressões do sujeito que vê.

No último capítulo de Força, intitulado, “O diagnóstico a doença”, Lenz tem um

encontro com o seu médico, pois ele fora diagnosticado com uma mancha negra no seu

cérebro. Visivelmente transtornado, a cena que se segue é uma breve conversa que Lenz tem

com o seu médico após a confirmação do diagnóstico.

– Já vi vezes sem conta imagem destas – disse, irritado, Lenz Buchmann,

enquanto segura nas mãos as radiografias da cabeça.

– Senhor Buchmann, sim... – disse o médico – mas agora é na sua cabeça.

– Isso não me assusta! – disse Buchmann.

– Nós não podemos fazer nada. A única coisa...

– Não me interrompa – disse Lenz –, ainda não tinha terminado.

– Peço desculpa, doutor Buchmann. (TAVARES, 2008, p. 250).

A estrutura aplicada nesse capítulo se assemelha ao esquema do silêncio anterior e

posterior e o silêncio da intromissão proposto por Bernard Dauenhauer (1980). É preciso não

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perder de vista de que esse capítulo, seguindo o raciocínio do silêncio da intromissão é

paulatinamente esvaziado para que os próximos capítulos também possam fazer sentido.

Constrói-se uma trama baseada no silêncio de cada capítulo e entre cada capítulo. Dessa

forma, o silêncio que se interpõe entre cada capítulo da trama alimenta de significados o

capítulo seguinte.

O diálogo entrecortado cede espaço ao silêncio e tem o significado prolongado para

preencher de sentido a próxima fala. A estrutura das frases que antecedem as reticências é

pontuada pelo silêncio. As reticências, nesse caso, representam graficamente o silêncio, uma

modalidade específica que se interpõe entre cada fala de cada uma das personagens. As falas

entrecortadas do médico que faz o diagnóstico de Lenz complementam-se com as falas de

Lenz. Percebe-se o esquema do silêncio da intromissão de Bernard Dauenhauer onde: “o

sentido da primeira frase é orientado para o da segunda e o sentido da segunda remonta o

sentido da primeira” (DAUENHAUER, 1980, p. 7) 15

. Entretanto, esse capítulo não deixará

de demonstrar que há muitos silêncios em jogo.

O próprio subtítulo desse capítulo transcrito anteriormente sugere silêncio: “Olhar para

o mesmo de maneira diferente”. Ora, o que é o silêncio senão conferir diferentes sentidos a

um mesmo objeto e reconhecer a fluidez dos sentidos? Eni Orlandi (2007), brilhantemente,

propõe que os sentidos migram para diferentes objetos simbólicos, que há na linguagem

movimento dos sentidos. “Uma vez estancado um processo de sentidos, numa posição em sua

relação com as formações discursivas, o sentido emigra (e se desloca) para qualquer outro

objeto simbólico possível” (ORLANDI, 2007, p. 124). Benedito Nunes, em seu ensaio

intitulado Linguagem e silêncio (2009), reconhece que a linguagem poética, a linguagem

criadora, “[...] dá acesso a novas possibilidades, a possíveis modos de ser que, jamais

coincidindo com um aspecto determinado da realidade ou da existência humana, revelam-nos

o mundo em sua complexidade e profundidade” (NUNES, 2009, p. 125). Na segunda parte do

romance, Lenz já não é mais o mesmo e o silêncio também não é. Lenz não é mais capaz de

impor o silêncio, de reduzir os outros ao silenciamento, como ele fazia quando ainda tinha

pleno controle de suas forças.

Em Doença, Lenz perde o controle sobre a linguagem e, consequentemente, perde o

controle sobre o silêncio. A habilidade que antes ele demonstrava em operacionalizar a

linguagem e pôr as demais personagens em completo silêncio, parece ter se esvaído depois da

15

“The sense of the first sound phrase is oriented to that of the second and the sense of the second harks back to

that of the first” (DAUENHAUER, 1980, p. 7 – tradução nossa).

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cirurgia. “Está sem força [...] ainda sem as suas capacidades por completo” (TAVARES,

2008, p. 254) é o que constata o narrador. A decadência física de Lenz, portanto, era

acompanhada por uma gradual perda de capacidade e destaca-se, sobretudo, a capacidade que

a personagem tinha em administrar o silêncio. E essa mudança radical que se observa em

Lenz, pode ser percebida inclusive no plano estrutural.

Lenz, por exemplo, teme o seu encontro com o silêncio, pelo menos o silêncio

profundo que o levaria de encontro com o silêncio primordial. Logo se percebe esse medo,

pois Lenz não deixa que o silêncio do seu médico seja maior que o seu. Ao ser notificado pelo

médico sobre o cancro no cérebro, Lenz, naturalmente, sabe das consequências e as suas

constantes interrupções demonstram certo pavor e medo do protagonista. E, sobretudo,

demonstram um desejo intenso de reforçar o seu poder que se manifesta na capacidade de

fundar o seu próprio silêncio, um silêncio encobridor que apaga os sentidos do médico e o

afasta da sua realidade trágica. Lenz estabelece turnos de sentido entre ele e o seu médico. Ele

é quem decide quando o médico deve falar, mas a cada pequena sentença pronunciada pelo

seu médico, provoca em Lenz uma sensação de fraqueza e de vulnerabilidade.

Depois desse breve diálogo entre Lenz e o médico lê-se o seguinte: “O que deveria,

pois, dizer naquela situação? Isso nunca Lenz Buchmann havia aprendido” (TAVARES,

2008, p. 250). O esquema do silêncio de Bernard Dauenhauer (1980) fica nítido ao se lançar

um olhar com atenção para o final desse capítulo. A própria personagem provoca o seu

próprio silêncio e esse silêncio se prolonga até a segunda parte do romance: “Doença”.

A primeira coisa a se observar na passagem da primeira para a segunda parte, cujo

capítulo inicial é intitulado “Acordar no meio de máquinas e ficar agradecido”, é a distância

que o silêncio impôs entre “Força” e “Doença”. Houve um corte no plano da ação e eventos

importantes deixaram de ser narrados, confiando, assim, apenas no poder de expressão do

silêncio. Apenas um exemplo:

Rodeado de tubos que à primeira vista e à primeira sensação parecer partir

do interior de si mesmo e não vir de fora, envolvido ainda por diversos

outros apetrechos mecânicos, com luzes vermelhas e verdes que assinalam

estados que num primeiro olhar ninguém poderia interpretar com rigor, Lenz

Buchmann acorda, meio estremunhado, na cama do hospital, várias horas

depois da operação na cabeça. Não percebe de imediato onde está nem o que

lhe aconteceu e o único instinto nasce de um acontecimento que ele localiza

de forma vaga, no lado direito do corpo. (TAVARES, 2008, p. 253).

Lenz acorda no meio de máquinas e fica agradecido logo após realizar uma cirurgia.

Entre o diálogo de Lenz e seu médico e o momento que ele acorda um pouco desorientado na

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cama de um hospital há apenas silêncio: um silêncio radicalmente irredutível e necessário

para estabelecer a relação entre essas duas grandes partes “Força” e “Doença”.

Diferentemente do silêncio que encerra a primeira parte do romance que é hostil,

repleto de interrupções, pausas, reticências, o silêncio que se complementa ao capítulo final

de Doença e transcrito logo acima é, definitivamente, menos hostil e com ares de

grandiloquência. O próprio fazer do silêncio, nesse capítulo, implica o reconhecimento de

finitude. Conforme, Bernard Dauenhauer (1980, p. 25) 16

, “o silêncio anterior e posterior

vincula a elocução dentro de uma unidade”. Contudo, por mais impermeável que se revele o

silêncio nessa passagem, é possível em seus desdobramentos reconhecer o seu modo de

funcionamento.

O teor enigmático e visceral do silêncio na segunda parte do romance intensifica-se no

decorrer de suas páginas. Como se sabe, a doença de Lenz tem caráter incapacitante e

progressivo. Ele perde, assim, a firmeza no seu trato com a operacionalização da linguagem.

Consequentemente, essa personagem é confrontada com o silêncio maior. Há uma passagem

do romance em que Lenz se perturba quando ouve o barulho dos homens que recolhiam o

lixo. Os ruídos no meio da noite eram demasiado altos.

O que mais o irritava naquilo tudo era o facto de aqueles homens agirem

com total indiferença em relação ao seu estado. Certamente saberiam que

aquela era a casa de Lenz Buchmann e certamente saberiam – toda a gente

sabia já – que ele estava doente, com uma doença grave, e por isso era

inconcebível aquela descontracção, aqueles ruídos constantes e repetidos;

acima dos mais, aquelas vozes que se ouviam, manifestando um total

distanciamento em relação ao seu sofrimento. Por que precisavam eles falar?

O que tinham a dizer uns aos outros? O que tinha a dizer um homem que

carrega às costas um saco de onde sai um fedor absolutamente não humano,

ou humano de mais, ou o fedor que resta depois do humano se saciar, o que

tinha afinal a dizer um homem desses a outro homem desses – homens que

carregavam lixo? Que contariam eles uns aos outros?, pensava Lenz.

Anedotas? Comentariam uma notícia do jornal? Falariam dos filhos? Por que

tinham eles de falar? Por que é que aquele ofício não era feito, pelo menos,

por surdos-mudos? Gustav, o pobre do Gustav Liegnitz seria perfeito para

aquele ofício. Para que precisa de falar e ouvir um homem que carrega lixo?

Um homem que tem, primeiro de, com os olhos, localizar os sacos pretos à

entrada dos edifícios e que depois simplesmente os tem de levar de um ponto

para outro – fazê-los desaparecer da vida normal das pessoas e enxotá-los

para não se sabe onde, mas para um local que, pelo menos, tem a qualidade

de ser distante: não suportaríamos menos o cheiro que uma única semana da

nossa vida deixa atrás. Que bom, sim, para longe; deitem o lixo para o longe,

mas façam-no em silêncio! (TAVARES, 2008, p. 279-0).

16

“Fore-and-after silence binds the utterance into a unit” (DAUENHAUER, 1980, p. 25 – tradução nossa).

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As palavras de Lenz provam que ele quer silêncio. Mas o que o silêncio contido nessas

palavras grita? Lenz pede silêncio tentando encobrir o próprio silêncio. É evidente nesse

entrecho narrativo o ritmo galopante e incessante observado nesse excerto. Há, claramente,

uma tentativa fracassada de conter o silêncio. O que esse excerto demonstra é, na verdade, a

dilatação do silêncio da intromissão de Bernard Dauenhauer (1980). As perguntas acumulam-

se umas sobre as outras reduzindo o espaço do silêncio entre elas, porém sem eliminar o

silêncio de todo modo. É evidente a insatisfação de Lenz com relação ao barulho produzido

pelos homens do lixo, mas o que o silêncio nessa passagem permite constatar é que não é a

falta de silêncio que incomoda Lenz, mas a possibilidade real de vivenciá-lo.

Lenz sozinho em seu quarto tem um momento quase inédito. Quando ele tinha saúde

esses momentos eram praticamente inexistentes. Doente, ele tem oportunidade de ter uma

experiência real e profunda com o silêncio, aquele silêncio profundo capaz de alcançar a

dimensão mais substancial da existência humana e, assim, levar Lenz ao conhecimento, cada

vez mais aprofundado, de si mesmo. Diferente daquele silêncio ao qual Lenz estava

acostumado desde criança que apaga sentidos.

Definitivamente esse silêncio assusta Lenz. Por isso, a personagem usa o ruído como

mero pretexto para sair do estado de silêncio em que ele se encontrava. Afinal, se é de silêncio

que a personagem precisa por que então suas perguntas são basicamente a mesma coisa? “Por

que precisavam falar [...]”; “O que tinham a dizer [...]”; “Que contariam eles [...]” e “Por que

tinham eles de falar [...]”. Confrontado com essa modalidade de silêncio mais profundo e

contemplativo, Lenz, gradualmente, rende-se ao poder do silêncio e tudo isso não deixa de

transparecer na forma desse romance.

De maneira análoga ao procedimento adotado no movimento da primeira para a

segunda parte, pode-se reparar esse mesmo movimento do silêncio ao relacionar a segunda

com a terceira parte desse romance. No último capítulo da segunda parte, o leitor é informado

sobre a real condição de saúde de Lenz Buchmann e o primeiro dado que se pode extrair é a

dilatação da ação. O médico dá instruções pontuais à Lenz, porém, nada é dito sobre ele. O

narrador não pode retratar Lenz seguindo as instruções médicas, porque Lenz não é capaz de

segui-las. Lenz era puro silêncio deitado em sua cama.

– Faça uma forte inspiração – pedia já o Dr. Selig – e, depois, com toda a

força que tiver, expulse o máximo de ar cá para fora. O Dr. Selig pedia isto a

Lenz e, ao lado da cama, em pé, a uns metros deste exame implacável, deste

exame que, como se disse já, parecia de escola, colocando questões básicas,

mas, ao mesmo tempo, julgado com um rigor neutro e impenetrável,

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enquanto este exame decorria era, então, Júlia que, parecendo um aluno

melhor a sussurrar a matéria ao aluno mais fraco, ao lado da cama e em pé,

sem disso ter consciência, inspirava com o máximo de profundidade e

expirava depois, fazendo com a contenção possível mas desnecessariamente,

o que o Sr. Buchmann já não era capaz de fazer. (TAVARES, 2008, p. 330).

O narrador, por sua vez, insere descrições (“ao lado da cama, a uns metros”, “ao lado

da cama e em pé” “inspirava com o máximo de profundidade e expirava”); introduz

novamente comentários no discurso narrativo (“julgado com um rigor neutro e impenetrável”,

“fazendo com a contenção possível, mas desnecessariamente”), faz comparações (“como se

disse já, parecia de escola”, “Júlia que, parecendo um aluno melhor”) com o intuito de

administrar o silêncio que assalta o final desse capítulo. O capítulo ruma ao silêncio, mas um

silêncio diferente daquele identificado na primeira parte do romance, como se pode observar.

O início da terceira parte é marcado por uma lacuna na relação da ordem dos

acontecimentos da narrativa. Há, como se pode perceber, uma concentração maior de silêncio

entre Doença e Morte. Todavia, não há incongruência entre os fatos narrados, mas

intensificação do silêncio na obra. Por se tratar da morte, o silêncio assume outra

configuração. Conforme David Le Breton (1999, p. 247), “A morte vem mostrar que, para

além do silêncio que por vezes afoga a fala da vida quotidiana, se estende um outro silêncio,

ainda mais profundo, relacionado com o próprio sentido da presença do homem no mundo”. E

esse silêncio tem consequências notáveis para a compreensão da narrativa. No capítulo “O

suicídio prepara-se”, lê-se o seguinte:

Os pequenos momentos que ainda tinha de consciência haviam permitido a

Lenz Buchmann tomar uma decisão. Falara a Julia, como não podia deixar

de ser, e ela, embora chocada, não reagiu de forma irracional [...] O pai,

Frederich, suicidara-se com um tiro na cabeça e para ele, um Buchmann, a

ideia de que tinha o dever de só morrer sob a força do metal era uma ideia

fixa e inegociável. Mas Lenz, naquele momento da doença, já precisava de

ajuda para a cumprir. (TAVARES, 2008, p. 333).

O cuidado do narrador manifesta um tanto de espanto e hesitação. Pois tanto o

narrador quanto a personagem tentam retardar a ação e assim suspender o avanço da morte.

Observa-se a manobra narrativa encontrada pelo narrador para poder dar conta da expressão

do silêncio da morte que se aproxima: um retrospecto fragmentado da vida da personagem

além de questionamentos sobre sua trajetória até ali.

Como chegara ele ao ponto de não conseguir, exclusivamente, pelos seu

meios, com o seu corpo, cumprir uma determinação antiga? De facto, para o

jovem Lenz, com dezoito anos, para o depois conceituado médico, como

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depois ainda para o político, nunca a dúvida se instalara. Pela educação que

recebera do pai Frederich e depois, mais tarde, pelo próprio exemplo prático

deste, ficara claro que nenhum verdadeiro Buchmann poderia morrer de

doença, de forma gradual. (TAVARES, 2008, p. 334).

É uma escolha bastante razoável dizer “determinação antiga” ao invés de suicídio.

Apesar do pedido de Lenz, o suicídio é um interdito. Lenz parece temer a morte que se

aproxima e o narrador reproduz esse temor retardando a ação. Tentando adiar o inevitável: a

morte de Lenz. Evita-se dizer suicídio. “Nunca a dúvida se instalara”, mas agora, Lenz parece

hesitar sobre essa decisão, talvez seja por essa razão que o pedido só é feito no final desse

capítulo, duas páginas depois entre reflexões, retrospectos e questionamentos. A esperança de

sua melhora sinaliza um desejo não verbalizado de que quer viver e de que, além de tudo, ele

teme a morte. “Fora então este o seu erro: a sensação falsa de que ainda conseguia, de que isto

ainda não estava terminado” (TAVARES, 2008, p. 335). Lenz não consegue cometer suicídio.

Depois dessa cena, o narrador assume o controle da voz de Lenz. Ele não se

manifestará mais pelos seus próprios meios. Na verdade, após esse episódio nenhuma

personagem falará diretamente. O silêncio condensa-se. O narrador traduz o ambiente, o

tempo e o espaço em seu próprio ritmo e por seus próprios meios. A visita do sacerdote na

casa de Lenz, embora intitulada: “Ultima tentativa para a Palavra ser ouvida” (TAVARES,

2008, p. 347), Lenz e leitor não ouvem nada. “[...] o padre já estava em pleno processo,

mergulhado num discurso ininterrupto, discurso de tal forma sólido que parecia constituído

por uma única palavra” (TAVARES, 2008, p. 349). Mas Lenz está compenetrado em silêncio

e o seu silêncio subjuga a palavra:

No entanto, Buchmann, sem saber bem o que estava naquele momento a

dizer o sacerdote – ele parecia ter na boca a palavra ou o vocábulo mais

longo do mundo –, sem o ouvir já, Buchmann pensava em dizer Não, Não

em voz alta. Porém, sentiu logo que tal era um esforço inconsequente. Não

conseguiria. (TAVARES, 2008, p. 351).

Assim, muito sutilmente o narrador suprime a voz de Lenz e a encaminha a um

silêncio profundo inquietante. O silêncio, nesses momentos finais da narrativa, goza de uma

primazia sobre o discurso verbal. O silêncio aproxima o leitor da experiência narrada. Embora

a morte do protagonista seja inundada por palavras, o narrador por sua atitude demonstra que

a palavra é frágil e se desfaz perante o inefável.

Nessa direção, o romance é, definitivamente, a forma literária da era burguesa. Sendo

assim, esse gênero é sobrecarregado por múltiplas linguagens e por múltiplas vozes que visam

uma representação total e definitiva do mundo e do homem burgueses. No entanto, ao analisar

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as formas de Aprender a Rezar na Era da Técnica consta-se que esse romance carrega um

fardo pesado demais para confiar à linguagem discursiva. É aí que o surge o silêncio como

possibilidade de representação de um mundo e de homens extremamente complexos e

heterogêneos. O silêncio é, muito provavelmente, o único fenômeno capaz de traduzir o

indizível e o inefável.

Aprender a Rezar na Era da Técnica é o romance da desumanização que se sustenta

sobre o indizível. A sociedade representada nesse romance celebra um parlapatório no qual a

verborragia carece de sentido. O romance sugere, de certa maneira, que há de ter que aprender

a rezar e recobrar o silêncio na era em que a técnica alija o silêncio. É, portanto, pela

proximidade inquietante com o silêncio ao incorporar o silêncio em suas formas, que se

confere a Aprender a Rezar na Era da Técnica, de Gonçalo M. Tavares, um caráter mais

abrangente e pleno na representação de um mundo cruel. Ainda que o mundo contemporâneo

seja arrebatado pela multiplicidade de linguagens e celebre com grande fervor o poder da

palavra, em Aprender a Rezar na Era da Técnica, por outro lado, assiste-se ao triunfo do

silêncio.

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CAPÍTULO III

DESDOBRAMENTOS DOS SILÊNCIOS DE APRENDER A REZAR NA ERA DA

TÉCNICA

“O silêncio é uma via em direcção a nós próprios, à reconciliação com o mundo".

(David Le Breton)

O processo de composição de Aprender a Rezar na Era da Técnica obedece, de certa

forma, aos contornos do silêncio. Muitos dos seus aspectos formais e estéticos são, como se

pode observar no capítulo anterior, influenciados e transformados pelo silêncio. O terceiro

capítulo desta dissertação detém-se, predominantemente, na análise do desdobramento desses

silêncios. No segundo capítulo, pode-se observar como as formas do romance cedem ao poder

encantatório dos silêncios e como esse fenômeno irredutível se prende ao gênero. Enquanto

que o silêncio se incorpora à forma, o conteúdo converge para o mesmo ponto (o silêncio) e lá

dá forma a novos sentidos.

Observa-se, nesse último capítulo, o combate feroz e vivificante das personagens de

Aprender a Rezar na Era da Técnica ao silêncio. Para dar a conhecer as formas tirânicas do

silêncio, aprofundam-se, assim, as discussões sobre silenciamento e censura. É consabido que

a representação da violência, do autoritarismo e da censura pede registro de uma linguagem

igualmente fria, autoritária e, é claro, repleta de interditos. Ao lançar um olhar mais apurado

às personagens de Aprender a Rezar na Era da Técnica ficam evidentes as formas de silêncio

que caracterizam as relações entre as personagens.

E, muito provavelmente, essas formas brutas e tirânicas de silêncio têm um efeito

arrebatador no leitor. A fim de cumprir o último objetivo dessa dissertação, será necessário

recobrar as discussões sobre silenciamento, política do silêncio, além de fazer um paralelo

entre silêncio fundante, silêncio primordial e Aprender a Rezar na Era da Técnica de Gonçalo

M. Tavares. De tal forma, propõe-se o encontro do leitor com o aquilo que é

fundamentalmente e primordialmente essencial à linguagem e, por conseguinte, ao homem: o

silêncio.

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3.1 Personagens entre censura e silêncios

Aprender a Rezar na Era da Técnica é um impressionante painel da violência e da

maldade. Uma originalidade sem precedentes que desponta no cenário literário

contemporâneo com uma linguagem instigante e ao mesmo tempo obsessiva com relação ao

silêncio. É que de fato, o silêncio é a pedra fundamental de Aprender a Rezar na Era da

Técnica, por isso não se pode conceber esse romance sem recorrer ao silêncio. E o leitor,

desde a primeira página, é defrontado com um silêncio provocante e perturbador. Como

reação ao tecnicismo, ao parlapatório e ao ruído que se alastraram no mundo contemporâneo,

Gonçalo M. Tavares concede maior espaço ao silêncio significativo, que é, sem dúvida,

irredutível ao verbo e inquebrantável ante o ruído e ao barulho sem sentido que imperam na

contemporaneidade.

A radicalização desse procedimento resulta em uma linguagem equilibrada e

geométrica, porém repleta de silêncios e lacunas; cirúrgica e dura, porém, ao mesmo tempo,

profundamente subjetiva. Essa obra investe, portanto, radicalmente nessa subjetivação

prescindindo da palavra e caminhando em direção ao silêncio. Não obstante, o silêncio não é

apenas um ingrediente para descobrir a subjetividade humana e lá encontrar a libertação e,

consequentemente, alcançar a iluminação (DAUENHAUER, 1980). O silêncio é sim paz e

tranquilidade que permeia a vida do sujeito de diferentes formas e acarreta diferentes sentidos,

mas também é expressão de poder. O exercício do silêncio é, sem dúvida, uma forma de

influenciar e de determinar os rumos da linguagem (DAUENHAUER, 1980).

Sabe-se que controlar o silêncio é, incontestavelmente, demonstração de poder. O

silêncio, como se tem defendido até aqui, é um fenômeno amplo, cujos efeitos são, entre

outros, opressão e controle sociopolítico, partindo da perspectiva política do silêncio

(JAWORSKI, 1993); (LE BRETON, 1999); (ORLANDI, 2007). Do controle do silêncio, é

possível determinar os sentidos da linguagem e estabelecer relações de imposição e de

submissão. E a partir da operacionalização da linguagem é possível gerenciar os sentidos das

personagens e interferir na percepção que o leitor tem sobre toda a narrativa.

Aprender a Rezar na Era da Técnica é, entre todos os livros de Gonçalo M. Tavares,

quiçá, o mais comprometido com a representação do silêncio da opressão, o silenciamento e a

censura. Há, pois, silêncios que fazem parte da linguagem, que expressam a dor, o medo, a

complexidade do ser, frente às angústias do quotidiano. E, por outro lado, há outros silêncios

que derivam de um ambiente sociopolítico com características muito específicas, e esses

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silêncios caracterizam-se opressores e políticos. De acordo com Adam Jaworski (1993), são

condições necessárias para despontar esse silêncio opressor: 1) a existência de uma crise

externa que justifique a concentração de poder; 2) a identificação de um inimigo comum; 3) o

alastramento do medo; 4) a confiança geral na capacidade da figura do líder de resolver o

problema (JAWORSKI, 1993). Tudo isso confere a uma determinada conjuntura o

surgimento de atores na tarefa de reprimir e controlar os sentidos manifestados por um

determinado grupo social.

Em um ambiente com essas características, é incontestável a presença de uma força

dominadora que combinada a um silêncio opressor procura apagar certos sentidos e

estabelecer dominância. No Reino de Gonçalo M. Tavares, essa força dominadora é

representada por duas personagens: Lenz e Frederich Buchmann. A primeira personagem, sob

o efeito do medo e da repressão sofrida pela segunda leva o seu projeto de repressão de

sentidos e de censura até as últimas consequências. Para dar a conhecer as formas despóticas e

tirânicas de Lenz Buchmann é preciso entender que esta personagem amplia a sua rede de

censura e opressão a todo universo do romance, valendo-se de algumas estratégias que ficarão

mais claras ao longo deste capítulo.

Frederich Buchmann, por sua vez, à diferença do filho – Lenz –, continua exercendo

controle sobre ele e censurando as atitudes dele mesmo após a sua morte. Assim, todas as

personagens, com exceção de seu pai, sofrem com a censura da protagonista. Frederich

Buchmann é o único resistente ao poder de Lenz, porque ele é, de certa forma, responsável

pela maneira como o filho reage ao silêncio. Sempre em “posição de ataque” (TAVARES,

2008, p. 226). Daí decorre que quase todo desenrolar de Aprender a Rezar na Era da Técnica

advém de um silenciamento; um ataque de Lenz à manifestação dos sentidos.

No entanto, onde há silêncio há sentido. Qualquer que seja sua modalidade, o silêncio

significa. Por essa razão, censura e silenciamento não podem, de maneira alguma, ser

entendidos como a antítese do silêncio, opostos ao sentido, pois os sentidos censurados

significam por outros meios e por outras formas. Em outras palavras, o silenciamento e a

censura não invalidam os sentidos, mas produzem outros sentidos e guiam o leitor por novos

caminhos. Assim, esta dissertação passa a discutir os significados do silenciamento e da

censura em Aprender a Rezar na Era da Técnica, a partir da perspectiva da política do

silêncio focalizando a reação e a relação de cada personagem ao e com o silêncio.

3.1.1 Lenz e o silenciamento

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Lenz Buchmann é uma personagem dominadora com perfil autoritário, cruel e

megalomaníaco. Médico renomado substitui as atividades clínicas para se entregar com total

dedicação à atividade política. E como político, ele demonstra ser um homem com inclinação

para o terror, para a violência e para crueldade. A fim de realizar o seu plano de firmar a sua

posição no mundo e estabelecer o seu próprio Reino, Lenz desconsidera totalmente quaisquer

limites morais para dar cabo de sua monstruosa intenção. Todos os homens que o rodeiam

convertem-se em meros instrumentos (objetos) para que ele possa realizar os seus projetos

arbitrários e egoístas. Disposto a tudo, inclusive a matar, Lenz destaca-se das demais

personagens por essa e por outras características exclusivas.

Lenz domina a linguagem e domina, especialmente, o silêncio contido nela. Sua

habilidade na administração dos sentidos por meio do silêncio é singular, visto que não há

nenhuma personagem que demonstre ter tanto domínio do silêncio quanto ele. Como

protagonista da narrativa e em posição de poder, Lenz tem certamente o controle do tamanho

do seu silêncio e do silêncio do outro. Seu controle excede inclusive o poder do narrador. A

sua capacidade de controlar o fluxo de sentidos dos outros e de si próprio é, justamente, o que

distingue Lenz das demais personagens que compõe Aprender a Rezar na Era da Técnica.

Analisar a estratégia da política do silêncio empreendida pela protagonista de

Aprender a Rezar na Era da Técnica consiste em levar em conta o que David Le Breton

conclui sobre a linguagem. Para ele:

A linguagem é poder, poder de obrigar o outro, de lhe impor idéias, de lhe

dar ordem de se calar ou de falar. A palavra não é inocente naquilo que

implica que um outro se cale e se subordine a ela, principalmente às suas

consequências que podem ser mais ou menos pesadas. É muitas vezes um

monopólio ou uma prioridade que aproveita ao detentor do poder ou da

autoridade hierárquica. Numa instituição, a distribuição do tempo de palavra

ou de silêncio depende da distância social que separa os diferentes membros.

(LE BRETON, 1999, p. 78).

No hospital, Lenz “ganhou fama em poucos anos” (TAVARES, 2008 p. 30), porque

dominava a linguagem mais que qualquer outro. Médico habilidoso no manejo do bisturi

impressionava todos os colegas e deixava os enfermeiros à sua volta espantados com tanta

concentração e domínio de técnica. Lenz era um artista nessa: “[...] arte de procurar estilhaços

de metal no meio do corpo [...]” (TAVARES, 2008, p. 42). E sendo excelente nessa arte “[...]

Lenz por vezes dizia-o – de implantar uma nova monarquia [...]” (TAVARES, 2008, p. 31)

onde ele seria ou estaria no centro do Reino. Para determinar essa posição, cada palavra

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pronunciada era repleta de silêncio que minava e arruinava a palavra do outro e, sobretudo,

arruinava os sentidos produzidos pelo outro.

O uso abundante do silêncio está, de certa maneira, ligado ao contexto de repressão e

de medo do pós-guerra. Muito antes de conhecer Hamm Kestner, colega de Lenz no Partido,

que aconselhava: “Podemos apenas dar ordens, não precisamos de conversar” (TAVARES,

2008, p. 190), Lenz sabia-o bem. Estava plenamente consciente disso, pois só a sua presença

bastava para se instalar um silêncio insistente e rigidamente sólido. No hospital, Lenz só

pronunciava ordens monossilábicas, frases breves e cortantes, que traduziam no plano da

linguagem a assimetria de poder. Naquela instituição não existia conversa em absoluto.

O silenciamento aparece sob a forma da falta de diálogo. Negar ao outro o direito de

resposta, de intervenção ou mesmo de participação naquilo que se diz reduz o poder daquele

que está condenado apenas a ouvir. Aquele que só ouve, demonstra submissão àquele que

fala. Diante disso, para aquele que fala, está outorgado o direito de manifestar sentidos quase

que exclusivamente ou pelo menos o direito de dirigir os sentidos. Assim, o individuo que

apenas ouve assume uma postura passiva e derrotada. David Le Breton esclarece que “o

vencido é reduzido ao silêncio” (LE BRETON, 1999, p. 90). Aquele que tem menos poder

tem mais chances de ser censurado, pois, muitas vezes, ele se exime de concorrer com os

sentidos produzidos por aquele que tem mais autoridade, no caso, Lenz Buchmann.

A presença de Lenz já provoca quase que instantaneamente o enxugamento das

palavras dos demais funcionários no hospital. Não existe passagem que represente outro

médico ou mesmo outro enfermeiro falando entre si. O narrador intervém por essas

personagens. No hospital, só aparecem sob a forma de um discurso implícito ou de um

discurso indireto. As personagens do hospital são personagens sem voz. Nessa circunstância,

leem-se as personagens sem voz como figuras que não tem capacidade de articular sentidos da

mesma forma que a personagem protagonista. A voz corresponde em grande medida, como a

voz do próprio silêncio que se traduz na sua capacidade de expressão.

Para contribuir com essa caracterização considera-se a seguinte passagem: “[...] Lenz

gritou para a enfermeira: Não! E com um gesto rude apontou-lhe o caminho para fora da sala”

(TAVARES, 2008, p. 44). A enfermeira expulsa da sala por Lenz não diz uma única palavra.

Sabe-se apenas que “nela havia um nervosismo tal que a fazia esquecer tudo o que aprendera

[...]” (TAVARES, 2008, p. 44). E o final desse mesmo capítulo encerra com os seguintes

dizeres: “Que vá rezar lá para fora. Ali não [...]” (TAVARES, 2008, p. 44). A tensão da cena

fica por conta do não dito da enfermeira e de todos que trabalham freneticamente na sala.

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Ao olhar atentamente para o silêncio contido nessa cena, o leitor verá que a enfermeira

foi expulsa porque os sentidos que ela produzia no silêncio concorriam com os sentidos do

Dr. Buchmann. E esses sentidos, por sua vez, manifestavam-se contra a vontade do doutor. A

enfermeira não estava na condição de silenciada, mas de silenciosa, embora dominada por um

nervosismo tal que perturbava Lenz.

Na ausência de um silêncio alinhado ao seu e de uma postura adequada aos olhos do

devotado representante da técnica, ele expulsa a enfermeira. O fato de ela estar nervosa e de

não compartilhar da mesma postura fria e impassível dos demais funcionários presentes na

sala, faz com que ela se torne, imediatamente, uma ameaça ao seu poder. Por não ter se

rendido ao poder encantatório e opressor daquele que fazia da sala um Reino e por,

justamente manifestar sentidos livremente, ou seja, na contramão dos sentidos produzidos por

Lenz que ele “não precisava dela, da sua irracionalidade” (TAVARES, 2008, p. 44). Não

podendo controlá-la, os sentidos da enfermeira precisavam ser interditados; ela precisava ser

expulsa.

Isso explica porque Lenz repele a assistente dizendo: “quer rezar lá fora”, porque ela

continua produzindo sentidos e porque sua atitude é incompatível com a postura exigida por

um fiel representante da técnica. "O silêncio da censura não significa ausência de informação

mas interdição” (ORLANDI, 2007, p. 107). Lenz impede que os sentidos, considerados por

ele subversivos, ocupem certas posições discursivas, mas não consegue apaga-los. “Manter

silêncio sobre determinadas questões é uma grande ferramenta política de controle e de

imposição do status quo” (JAWORSKI, 1993, p. 110) 17

. Entretanto, trata-se de silenciamento

apenas e não de apagamento.

E, para Lenz, ao agir descontroladamente em um ambiente onde se exige técnica,

precisão e concentração, se compromete toda técnica e todo esforço “extra-humano”

(TAVARES, 2008, p. 66) empreendido pela personagem com o intuito de canalizar os

sentidos e centralizá-los em si mesmo. A enfermeira, por outro lado, ao produzir outros

sentidos destoantes do poder central ameaça tanto a posição quanto o poder de Lenz naquela

sala. Ora, o que significa rezar, nesse contexto senão enfrentar os sentidos produzidos por

aquele que é incapaz de fazê-lo na Era da Técnica?

Quando a posição de um grupo de poder é potencialmente ou efetivamente

ameaçada, este grupo muitas vezes opta por não manter um diálogo genuíno

17

“Mantainning silence over certain issues is a major political tool of control and imposing the status quo”

(JAWORSKI, 1993, p. 110 – tradução nossa).

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com os grupos dominados (a fonte do perigo real ou potencial para o status

quo) para defender a sua posição. Em vez disso, a voz da oposição é

reprimida (silenciada). (JAWORSKI, 1993, p. 124). 18

Outro elemento bastante relevante para compreensão da estratégia de silenciamento

empregada por Lenz são as suas ordens que aparecem sempre em discurso direto, tal como no

excerto seguinte. “Lenz gritou para a enfermeira: Não!” (TAVARES, 2008, p. 44); “– Sim –

respondeu Lenz, sem levantar a cabeça [...]” (TAVARES, 2008, p. 45); “Lenz respondia: Não.

Não, não. Sim, sim, sim” (TAVARES, 2008, p. 43). As palavras da personagem protagonista

fluem no texto impedindo que outras palavras e outros sentidos a não ser as dele sejam

construídos. As palavras pronunciadas por ele não precisam de mediação. Elas não precisam

ser narradas, elas bastam por si. Elas não precisam ser acompanhadas de outros silêncios. As

ordens de Lenz não enfrentam oposição. Em uma análise específica sobre essa condição da

linguagem leia-se o seguinte:

Lenz estava vivo, em pé, com a sua razão intacta, e domina ainda a

linguagem: era ele que naquela sala determinava cada Sim e cada Não – e

ele há muito sabia que dominar essas duas palavras extremas era a mais

incontestada manifestação de poder. (TAVARES, 2008, p. 42).

Na verdade, o sim e o não considerados isoladamente não representam, de modo

algum, “a mais incontestada manifestação de poder” (TAVARES, 2008, p. 42). O que Lenz

ainda não havia percebido é que o silêncio era, de fato, o elemento que garantia o seu poder. É

como se Lenz colocasse palavras na boca dos enfermeiros e ajudantes a sua volta e essas

palavras viessem repletas de silêncio opressor que impedia que os funcionários formulassem

suas próprias ideias. O doutor não esperava por resposta. Cada ordem ou cada pergunta era

pontuada por um silêncio que não se abre ao diálogo. Por essa razão, os comandos de Lenz

prescindem de intervenção do narrador.

Ele nem mesmo olha no rosto daqueles que estão ao seu redor. Conforme se lê, ele

trata com os seus auxiliares “sem levantar a cabeça” (TAVARES, 2008, p. 45), pois, para o

doutor Buchmann eles não são dignos de atenção. A única coisa digna de atenção é a

atividade exercida por ele “[...] que provoca nos assistentes de qualquer operação um

direccionar do olhar exclusivo para aquela mão direita” (TAVARES, 2008, p. 30). O poder

18

“When the position of a power group is potentially or actually threatened, this group often chooses not to

engage in genuine dialogue with the dominated groups (the source of the actual or potential threat to the status

quo) to defend its position. Instead, the opposition's voice is suppressed (silenced)” (JAWORSKI, 1993, p. 124 –

tradução nossa).

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exercido pela protagonista distorce e engana aquilo que os seus subordinados devem

realmente ver.

Sem dúvida, “sendo um mestre naquela linguagem que não levantava a cabeça”

(TAVARES, 2008, p. 67), o silêncio dentro do hospital torna-se cada vez mais intenso,

porém, esse silêncio tem apenas um objetivo: apagar o outro e ressaltar a presença do doutor.

A equipe de Lenz é hipnotizada pelo silêncio opressor durante a cirurgia. “As enfermeiras

assistentes e os médicos mais jovens fixavam o seu instinto de observação mais digno e

suspendiam a respiração como se assistissem a um filme” (TAVARES, 2008, p. 30). E

enquanto toda força hospitalar concentra sua atenção em Lenz, este transforma os outros em

meros espectadores ou em meros objetos. O grupo de jovens médicos e enfermeiros assume

uma postura passiva e se torna impotente, submisso e o seu papel, de certa maneira, mostra-se

irrelevante sem a presença de Buchmann.

Com relação aos pacientes, Lenz procedia da mesma forma. Manifestava total

indiferença. Até porque para Lenz, seus pacientes não eram vidas humanas. Eram objetos

quaisquer que ele precisava consertar. “O médico na Era da Técnica é encarado como um

habilidoso condutor de automóveis. O automóvel, esse, aguarda, serenamente, a chegada do

seu dono [...]” (TAVARES, 2008, p. 29). Os pacientes de Lenz quando chegam ao hospital

transformam-se, imediatamente, em máquinas com peças em disfunção. As personagens que

chegam mutiladas por uma explosão ou gravemente doentes são, para Lenz, apenas

engrenagens que precisam se reestabelecer e “endireitar do desvio” (TAVARES, 2008, p. 33).

Em última análise, a imagem do silenciado se distorce e, por conseguinte, perde,

paulatinamente, sua relevância.

Lenz era um defensor da técnica. “Em poucos anos de actividade Lenz percebera que

na medicina se combatiam as duas mais espantosas capacidades da técnica: a explosão e a

precisão” (TAVARES, 2008, p. 33). Por isso, Lenz considera-se muito mais “um soldado”

(TAVARES, 2008, p. 46), que se empenha em atacar a doença e, por consequência, a natureza

que se opõe naturalmente à precisão e a técnica que ele tanto admirava e defendia.

Por isso era para Lenz muito estranho quando as intervenções cirúrgicas se

deviam a uma explosão – como meses antes havia ocorrido numa fábrica.

Uma máquina em desordem interna explodira e a explosão provocara a

desordem interna de um indivíduo. Lenz conseguira salvar a vida desse

homem, e nessa operação sentira, com invulgar intensidade, o combate entre

os dois extremos da técnica: o seu bisturi encarnava a precisão, a moral, a

legalidade que uma parte da técnica instala de imediato, quer a nível amplo –

num campo de soldados – quer a nível pessoal, uma desordem, um pânico

celular, que não é mais do que a instalação temporária de uma

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impressionante imoralidade: não há uma única linha recta intacta num corpo

que acabou de sofrer os efeitos de uma explosão. Bomba que, no fundo, de

um ponto de vista esquemático - tal como uma fotocopiadora era uma

máquina de tirar fotocópias –, era simplesmente uma máquina feita para

explodir [...] Era filhos, não do mesmo Deus, mas do mesmo homem, e tal

fascinava Lenz. (TAVARES, 2008, p. 33).

Assim, o que poderia ser um dilema para Lenz, enfrentar a técnica pela própria técnica

era na verdade uma ótima oportunidade para ele assegurar o seu poder e afirmar a sua

competência. Lenz tinha sob seu controle o poder de decisão sobre a vida e sobre a morte.

“No direcionar do bisturi Lenz via a possibilidade de manter ligada ou de desligar uma

aparelhagem de som” (TAVARES, 2008, p. 34). E associar o organismo humano a uma

“aparelhagem de som”, significa entendê-lo como uma ameaça ao seu silêncio opressor.

Essa aparelhagem de som, se ligada torna-se um provável opositor aos sentidos

produzidos por aquele disposto à censura. “O Dr. Lenz Buchmann não conseguia deixar de

pensar naquela outra possibilidade que, uma vez mais, tinha ao seu dispor” (TAVARES,

2008, p. 35). Ter o poder de desligar essa “aparelhagem de som” que, eventualmente, poderia

concorrer com ele, era, indiscutivelmente, o que mais fascinava Lenz em seu ofício. “E era

Lenz quem manipulava o botão decisivo” (TAVARES, 2008, p. 34). Era ele que tinha então o

poder de silenciar para sempre. Isso o deixava absolutamente poderoso enquanto médico. E

ele sabia disso.

Por essa razão, é muito eficiente o modo como Lenz Buchmann emprega o silêncio no

hospital. “O burburinho, entretanto, aumentava e diminuía, as salas do hospital pareciam

obedecer aos mesmos ritmos das marés” (TAVARES, 2008, p. 43). O silêncio, assim,

aumenta e diminui conforme a vontade de Lenz. Cultiva-se no hospital a criação de uma

imagem fraca e passiva incapaz de iniciar um diálogo com Lenz, pois todos são apenas

objetos para ele. E descartáveis, portanto.

Para confirmar essa hipótese, destaca-se que: “Para Lenz estava claro, cada vez que

através de uma operação cirúrgica salvava alguém, que estava a salvar estatisticamente um

homem; e a estatística era uma forma exacta de se manifestar indiferença” (TAVARES, 2008,

p.48 – grifo nosso). Em outras palavras, Lenz não lida com pessoas, mas lida com números,

com estatísticas. Cada vida salva e cada vida não salva são movimentos previstos

estatisticamente. Em síntese, são ganhos e perdas calculadas. É evidente o processo de

apagamento do paciente, pois sua identidade e seu nome são substituídos por um número

pouco expressivo.

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No hospital se trabalha com estatísticas, conforme se lê no romance: “Os números

formavam uma intensidade negativa que anulava em absoluto a eventual proximidade entre

dois corpos” (TAVARES, 2008, p. 49). Desta forma, a indiferença referida por Lenz

anteriormente é apenas uma das consequências da cultura tecnocrática; neutralizar a presença

do paciente. “Olhar para uma tabela estatística da população, com as colunas sucessivas de

números, sempre fora para ele uma experiência que o fazia entender cada um dos actos que

regimes mais violentos haviam cometido” (TAVARES, 2008, p. 49). Porque a estatística,

grosso modo, refere-se a um processo de generalização, de apagamento do indivíduo

impedindo o sujeito de ver o outro e dar sentido ao outro. Definindo leis de comportamento e

médias de perdas e ganhos, o médico que trata um paciente segundo essa regra ignora por

completo a singularidade de cada caso e anula em absoluto a presença do paciente enquanto

sujeito, impondo-lhe um silêncio hostil.

E quando “Lenz Buchmann declara abandonar definitivamente a profissão de médico

cirurgião para se dedicar por completo aos problemas da cidade [...]” (TAVARES, 2008, p.

102), para então se tornar uma figura pública, ele sabe que poderá ampliar consideravelmente

a latitude de seu poder. E por poder, entende-se a força de expressão do seu silêncio, sabendo,

é claro, que “às vezes, o silêncio pode ser considerado como um sinal de poder ou controle de

alguém em relação a outros [...]” (JAWORSKI, 1993, p. 69). 19

Sua adesão ao Partido é

marcada pela quebra de silêncio. Inicia-se, assim, uma nova fase do poder de Lenz. Quebra-se

o silêncio para recomeçar.

O dia em que ele decidira ingressar no Partido foi na ocasião da morte de seu irmão

Albert. Durante o funeral, Lenz vira “os homens que acabavam de cumprimentar aquele

representante máximo do poder [...]” (TAVARES, 2008, p. 91), – um político – de maneira

tão subserviente que ele viu o mundo da política como uma nova oportunidade para criar

novos laços e empreender uma estratégia mais eficaz de silenciamento e interdição. E quando

ele cogitou essa ideia lhe ocorreu: “Algum pão e algum medo, disse Lenz, em voz alta, por

impulso, cortando um longo período de silêncio” (TAVARES, 2008, p. 93). O silêncio

quebrado por Lenz nessa passagem marca a transição do poder de Lenz para uma nova escala.

Apropriando-se para si da estratégia empregada por seu pai, Frederich Buchmann,

Lenz passa a utilizar o medo como uma forma de despertar silêncio. À diferença da prática da

medicina em que o médico precisa concentrar toda a atenção da equipe para si e impor sobre

19

“Sometimes, silence may be regarded as a sign of someone's power or control over other [...]” (JAWORSKI,

1993, p. 69 – tradução nossa).

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eles total silêncio para assegurar a predominância de seus sentidos, o político pode-se valer de

algo mais eficiente; Lenz opta pelo medo e pelo pão. A estratégia do político, pela sua

complexidade, pela sua riqueza e diversidade de efeitos precisa ser considerada pela maneira

como ele procura a articulação entre esses dois elementos: o pão e o medo.

Desde o início, as possibilidades são infinitas. O ponto de partida é a distração obtida a

partir do terror e do caos. Ao invés de tentar impor apagamento e distorção de sentidos, como

fazia quando era médico cirurgião, o político propõe o deslocamento desses sentidos valendo-

se da distração e, sobretudo, do medo.

Finalmente, ele, como político, superara sua limitação “[...] de tratar com homens

individuais e de ele mesmo ser um homem individual [...]” (TAVARES, 2008, p. 93). Ele

saíra de sua própria zona de silêncio e estava pronto para alcançar a cidade e lançar sobre ela

mais silêncio. Mas um tipo de silêncio opressor que nada tem a acrescentar ao silêncio dos

outros cidadãos da cidade. Sobre essa transformação, lê-se o seguinte:

Mas uma transformação importante ocorreu no espírito de Lenz durante o

funeral do seu irmão. E tal transformação profunda deveu-se a um conjunto

de factos, imperceptíveis e aparentando não ter qualquer volume, quando

analisados um a um, mas que na sua cabeça e na sua vontade se juntaram

resultando numa fenda que subitamente surgiu numa parede até ali intacta.

(TAVARES, 2008, p. 88).

Os fatos imperceptíveis que se somam um após o outro se traduzem em silêncios. Eles

não têm volume. Eles não têm forma. Mas são tão profundos e tão arrebatadores que

romperam a cortina de palavras que a prática da medicina impusera. Ele finalmente enxergava

que a forma como ele impunha silêncio aos pacientes e aos colegas do hospital era pequena se

comparada ao poder que um político qualquer tinha em mãos. O doutor, por fim, percebia que

sua estratégia era completamente ineficaz, mas entendia também que se somassem pequenas

atitudes visando o silenciamento e a interdição poderia romper de vez a parede que restringia

o seu poder. Sentia-se como “alguém que esteve preso anos e anos em salas de operações, em

compartimentos fechados de rigorosa higiene, e que sentia agora necessidade absoluta de ar

puro” (TAVARES, 2008, p. 102) e tendo despertado essa consciência, surgia, enfim, uma

“fenda”, por onde Lenz poderia disseminar o seu poder.

A sua entrada no Partido possibilitou a Lenz estabelecer uma nova posição no mundo.

“A vida de Lenz mudou. Não por completo, é certo [...]” (TAVARES, 2008, p. 104), mas

mudara o bastante para ele poder perceber que “a grande vantagem nesta mudança de sistema

era sem dúvida o número de pessoas que conseguia agora influenciar – ou mesmo tocar, no

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sentido físico, no sentido do bisturi que interfere no tecido” (TAVARES, 2008, p. 106). O

instrumento cirúrgico que permitia fazer incisões e “marcava o primeiro ponto de ataque”

(TAVARES, 2008, p. 32), era, agora de outro tipo. Lenz agora estava pronto para começar

“essa operação coletiva, que era a política, nesse acto (quase monstruoso quando pensadas as

dimensões) que colocava milhares de pessoas debaixo do bisturi [...]” (TAVARES, 2008, p.

105). Sua eficácia não era mais a mesma do bisturi cirúrgico, como se constata no excerto

seguinte:

Esta hipótese surpreendente de reduzir um largo espaço e um largo tempo a

um ponto negro, vazio, a hipótese de eliminar séculos – igrejas, por

exemplo, que tinham marcas que se diziam ser do próprio Cristo –, esta

hipótese, portanto, de eliminar tempo sempre fascinara Lenz [...] Antes

tínhamos armas que interferiam em órgãos ou, quando muito, em famílias,

agora temos armas que interferem em países [...] (TAVARES, 2008, p. 106).

Os símbolos nessa passagem são bastante pertinentes porque eles representam uma

realidade que se propõe reduzir o tempo e o espaço a “um ponto negro, vazio” e poder então

“eliminar séculos” e fundar silenciamento e censura de forma mais ampla. “Eliminar séculos”

remete a uma nova dimensão de operacionalização do silêncio na linguagem. Trata-se de

empreender táticas de silenciamento eficientes e que sejam praticáveis além do meio familiar

e além dos muros da cidade. Exige-se silêncio capaz de interferir nos destinos de países

aliados e inimigos. É claro que as armas mencionadas não se referem apenas ao silêncio em

si, mas a qualquer arma capaz de “eliminar séculos”, “eliminar tempo”, reduzir algo “a um

ponto negro, vazio”, tem o silenciamento e o vazio como últimas consequências.

No caso do Partido ao qual Lenz é filiado, o silêncio não é tão somente uma arma para

combater os inimigos, mas para influenciar os seus próprios aliados. O silêncio nesse contexto

refere-se ao silêncio político constitutivo da linguagem e ao silêncio local, que está mais

relacionado com a censura propriamente dita.

Esses símbolos, em maior ou menor grau, são silêncios que apagam certos sentidos

para expressar outros, que por sua vez são plurissignificativos e inesgotáveis e são

extremamente caros para a compreensão de Aprender a Rezar na Era da Técnica, pois

salientam sua natureza expressiva e projetam uma realidade complexa, enigmática e,

sobretudo cruel. Os processos de significar uma realidade censurada requerem a presença não

só do silêncio opressor, mas igualmente do silêncio que inspira a linguagem, nesse caso, o

silêncio inspira símbolos que traduzem o desejo de estrangular os sentidos manifestados por

outros, eliminando as marcas do tempo dentro de um vasto espaço.

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Com relação à atividade política, Lenz Buchmann muda de ponto de vista em face à

abordagem do silêncio e do silenciamento. Há como que uma recomposição das estratégias

empregadas por essa personagem que agora precisa se adaptar à nova escala. O que está mais

saliente nesse novo momento da vida da personagem é certa inadaptação de Lenz que “se

sentia ainda em estágio” (TAVARES, 2008, p. 105). No entanto, “dois meses depois de entrar

em algumas atividades políticas do Partido já era conhecido por mais pessoas do que antes

fora em mais de quinze anos na sua função de médico” (TAVARES, 2008, p. 105). Nesse

ponto de vista, a atividade médica provava ser uma atividade incompatível com o perfil

autocentrado de Lenz Buchmann que colocava os seus interesses e suas necessidades em

primeiro lugar, ignorando por completo os interesses e as necessidade dos outros. Na política,

era diferente ou pelo menos era o que Lenz sentia. No Partido ele sentia-se livre:

queria sentir o prazer de dar aquela comida estranha que o poder dava aos

seus soldados e funcionários, aquela comida de energia quase mágica,

comida que saciava os estômagos da população de uma modo não material,

mas igualmente eficaz. (TAVARES, 2008, p. 93).

É um trabalho de leitura indispensável ao leitor de Aprender a Rezar na Era da

Técnica, reação e interpretação diante dessa passagem. Ora o que é essa comida não material,

“de energia quase mágica” que sacia os homens senão a relação entre poder/silêncio e

silenciamento? Quem tem o poder de conceder a palavra, tem também o poder de tomá-la. O

que quer dizer “Algum pão e algum medo” (TAVARES, 2008, p. 93), senão o poder de

insuflar na população o silêncio persuasor e subtrair o silêncio criador? Saciar os estômagos

da população com uma substância não material é poder conceder silêncio em doses reguladas.

Para aquele que detém o poder, dar essa “comida de energia quase mágica”, é o mesmo que

inspirar na população silêncio, conceder-lhe uma sensação de falsa emancipação, de falsa

liberdade. Todavia, o sujeito de poder regula o fluxo do silêncio, de modo que o fluxo de

sentidos, nesse caso, também não é livre e a sensação de liberdade é apenas ilusória. Admite-

se nessa passagem “o silêncio como ação e reação: o silêncio da cesura e o da censura, o

espaço ideológico do silêncio” (TELES, 1979, p. 9). No âmbito das discussões sobre o

silêncio, trata-se de considerar o silêncio em suas implicações ideológicas; o silêncio que

jamais é neutro.

Entende-se o silêncio como sendo “uma zona não trabalhada, em expectativa [...]

aquilo que o ruído ainda não penetrou nem alterou, aquilo que os meios ou as consequências

das técnicas ainda poupam” (LE BRETON, 1999, p. 172-3). Ascender como político, de certa

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forma, significava ampliar a sua rede de influência sobre o silêncio. Ele poderia trabalhar com

o silêncio e com o silenciamento em um nível mais técnico e eficiente, rompendo as fronteiras

ainda não alcançadas pela técnica. Para isso, Lenz precisa alcançar novos patamares. E a

política, no entendimento de Lenz, era de fato, um ponto de partida para poder penetrar em

zonas mais profundas de silêncio além da linguagem. A fim de alcançar uma dimensão do

silêncio ainda não encontrada e dominada pela técnica lê-se o seguinte:

Lenz percebera a existência de um ponto central naquilo que chamava

energia de domínio. Havia, no fundo, uma questão técnica, exactamente

como a que lhe surgira, na vida anterior, quando à frente do bloco

operatório. Assim, da mesma forma que numa operação delicada certos

gestos prévios eram indispensáveis para que o gesto decisivo se tornasse

eficaz – há sempre um último toque que salva ou que falha, costumava dizer

Lenz –, também nessa operação colectiva, que era a política [...]

(TAVARES, 2008, p. 105).

A “energia de domínio” apareceu sob a forma de medo. Apesar de Lenz ainda não ser

completamente fluente nessa linguagem, até essa passagem, o medo ele conhecia muito bem.

O medo era primeiro recurso para impor o silêncio às massas. Assim como fizera seu pai a

ele, o medo era o meio mais eficiente encontrado por esse novo político do Partido. O medo

era um gesto prévio que se mostrava “indispensável” para o gesto final: o silenciamento e o

controle dos sentidos manifestados pelos outros. Ao provocar o medo no outro, Lenz

encontrava a força para conduzir seus projetos autoritários e egoístas sem enfrentar oposição

alguma, o medo apartava possíveis opositores. Mas, o que ele ainda não estava plenamente

consciente era que o medo também despertava silêncio.

Do seu gabinete, Lenz observa que “aquela janela alta tinha, no fundo, uma altura feita

ao milímetro para permitir uma especialização do olhar, um olhar que conseguia ver

quinhentas pessoas [...]” (TAVARES, 2008, p. 140). Uma janela grande o suficiente que

permitia a Lenz, com seu olhar clínico, realizar essa “operação colectiva” na cidade.

Estava, pois, perante uma combinação extraordinária entre afastamento e

proximidade, parecendo que, por um acaso, que só poderia ser efeito das

grandes forças que dominavam o mundo, lhe tinham atribuído a ele, Lenz

Buchmann, a única janela do observador que observa para agir, a janela das

grandes existências, a janela de quem sabe que foi feito para influenciar um

a um os homens, e ainda todos, no seu conjunto. (TAVARES, 2008, p. 141).

A janela ilustra perfeitamente o tamanho do poder de Lenz. Sob o ponto de vista da

cultura tecnocrática, a janela representa a difusão massiva de ideias, a propagação da voz em

larga escala, resultando na centralização do individuo e, consequentemente, causando o

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apagamento gradual daquele que se encontra em posição subalterna. A esse respeito, a

imagem da janela corrobora a “hipótese surpreendente de reduzir um largo espaço e um largo

tempo a um ponto negro, vazio, a hipótese de eliminar séculos” (TAVARES, 2008, p. 106).

Nessa posição, “daquela janela de atirador” (TAVARES, 2008, p. 145), Lenz é capaz de

provocar e estimular as massas. “O poder procura, desta forma, desenraizar a propagação da

dissidência, forçando-a ir por caminhos obrigatórios, impossibilitando-a de utilizar outros”

(LE BRETON, 1999, p. 88). Nesse sentido, “Ele estava no centro, todos precisavam de

alguma coisa do centro da cidade” (TAVARES, 2008, p. 143). O centro era o novo e único

caminho possível para a construção dos sentidos.

No entendimento de Lenz, esses homens que estavam “a passar de um lado para o

outro, com um tamanho mínimo [...]” (TAVARES, 2008, p. 140) e com uma “fisionomia de

pedinte” (TAVARES, 2008, p. 136) e precisavam de um sentido em suas vidas. Precisavam

de uma voz de comando. Precisavam, enfim, de medo.

Havia, portanto, dois medos, e não apenas um. O primeiro medo arrancava

as coisas da sua imobilidade e o segundo, o mais poderoso, mantinha as

coisas em movimento. Quando dez mil habitantes de uma determinada etnia,

desprotegidos e constituídos quase por completo por velhos, mulheres e

crianças, fugiam de um local ao receber essa terrível informação do avanço

dos outros, quando tal acontecia, esse primeiro movimento de abandono das

terras natais era impulsionado por um primeiro medo. Porém, o que fazia

com que esses refugiados, depois de caminharem a pé duzentos quilómetros

ainda avançassem o mais velozmente possível, esquecendo já os mais fracos

e os que começavam a desfalecer, o que fazia com que isso acontecesse,

duzentos quilómetros mais tarde, era o segundo medo, o mais poderoso,

aquele que mantém em movimento o que está já há muito, em movimento.

Este segundo medo é tão forte que faz vencer a fadiga limite: chegará a noite

e nenhum elemento desejará descansar. (TAVARES, 2008, p. 223-4).

O medo desloca as pessoas de um estado de quietude e mantêm as pessoas em

movimento. O medo justifica-se, pois ele mantém as pessoas distantes de uma vivência de

calma e de tranquilidade, cuja característica primordial é a acentuada presença do silêncio.

Ora, se o silêncio sugere um estado que o homem tem ao seu alcance desde que este se

entregue à paz, à tranquilidade e à calma, não apenas no seu sentido físico e verbi-vocal, mas

em relação à busca de harmonia e equilíbrio dentro da própria linguagem, o movimento

frenético causado pelo medo afasta o homem, definitivamente, de qualquer experiência real

com a linguagem e de aproximação ao silêncio que insinua o indizível nos limites da própria

linguagem. O movimento acentuado impõe o deslocamento dos sentidos e causa,

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consequentemente, sua distorção. O medo em abundância produz um movimento coletivo,

centralizado e que possibilita a canalização dos sentidos.

E nesse ponto de vista, é patente a diferença entre o médico na Era da Técnica e o

político na Era da Técnica. O médico na era da Técnica tem algo de “extra-humano”

(TAVARES, 2008, p. 66) que inspira movimento em si mesmo e se coloca sempre em ação.

Lenz Buchmann, enquanto médico, assume uma postura reptante e agressiva com relação ao

silêncio. Sua atitude provocante desloca a atenção de sua equipe que permanece calada e

inerte enquanto Lenz trabalha. O sujeito de autoridade produz o movimento enquanto os

subordinados rendem-se ao ritmo do mais forte. De seus subordinados ele só espera silêncio

reticente, que retém as palavras sufocadas na garganta, que não permite que elas se formem e

se propagem. Quem não está em silêncio é forçado ao silêncio. E ainda quem não se rende de

maneira nenhuma ao silenciamento, tal como a enfermeira expulsa da sala de cirurgia por

Lenz, é censurado.

O exílio é outra forma de invalidar a palavra, reduzindo-a ao silêncio, por

causa do afastamento. [...] A sua fala é oprimida, ao ficar privada de

imediato de um outro para a ouvir e responder. Não suscita qualquer

reciprocidade, seja qual forma a intensidade da pergunta. A vítima torna-se

muda, devido ao descrédito que envolve os seus actos e gestos. (LE

BRETON, 1999, p. 91).

O político na Era da Técnica, ao contrário do médico, mantém as pessoas em

movimento, porque o que distingue o médico do político é a necessidade de despertar esse

segundo medo. O médico na Era da Técnica prescinde de despertar medo nos pacientes, pois

eles já são vítimas de um medo natural da doença e da morte. Os pacientes, ao contrário dos

cidadãos da cidade não vão a lugar algum, eles são reféns da situação. O movimento causado

pelo segundo medo nos cidadãos da cidade cumpre a mesma finalidade do medo natural dos

pacientes do hospital. O medo torna-os reféns da situação. O medo que os cidadãos da cidade

sentem faz com que eles precisem de um político, assim como os pacientes precisam do

médico.

Então, manter as pessoas em movimento e tirá-las de um estado contemplativo requer

daquele que provoca medo, ou seja, o movimento uma experiência um tanto mais profunda

com o silêncio, pois implica compreender o que há no silêncio dos outros e de si que é

necessário deslocar. É preciso desconstruir, deslocar e até mesmo banir os sentidos

produzidos por aqueles que ameaçam o status quo (JAWORSKI, 1993).

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O político na Era da Técnica procura o “movimento forçado, movimento provocado

[...] que descontrolava por completo o sentido de posicionamento e orientação do corpo e

permitia à voz e de comando fazer o que quisesse daquele que fugia” (TAVARES, 2008, p.

226). O medo está situado no interior do movimento, o medo é a dinâmica do movimento.

Fazendo um paralelo com o ensaio de Georg Steiner, O milagre vazio, que trata da relação

entre desumanidade e linguagem política com o político na Era da Técnica de Gonçalo M.

Tavares há inúmeras semelhanças, no que diz respeito à selvageria, à brutalidade e ao horror

construídos no interior da própria linguagem.

Georg Steiner, em seu ensaio, defende que as palavras perderam o seus significados

humanos perante a barbárie. Segundo esse autor, “a linguagem foi virada do avesso para dizer

‘luz’ onde havia negrume e ‘vitória’ onde havia derrota” (STEINER, 1988, p. 137). A

linguagem do político na Era da Técnica foi tomada por “não silêncio ou evasão, mas um

imenso despejar de palavras precisas e serviçais” (STEINER, 1988, p. 138). A reticência

verbal foi apenas uma das consequências dessa linguagem construída na Era da Técnica para

consolidar a voz de comando.

A apreciação e análise dessas novas estratégias empregadas por Lenz para realizar o

seu plano de ampliar a sua rede de silêncio e censura implica considerar os seguintes dizeres:

“Com o gesto do dono do boi que marca com o símbolo da sua propriedade o dorso do

animal, assim também Lenz Buchmann, antes de desaparecer, marcaria o seu nome no dorso

da população. Era esse o seu destino. Estava certo disso” (TAVARES, 2008, p. 143-4).

Refere-se aqui, incontestavelmente, à necessidade de Lenz vencer o seu próprio silêncio: “[...]

ele escrevia a preto, por cima, o seu nome. Lenz Buchmann, Lenz Buchmann, Lenz

Buchmann” (TAVARES, 2008, p. 144). Apelando à repetição e a saturação de um silêncio

não comunicativo.

Lenz sabe que as massas precisam estar expostas frequentemente à repetição para

estarem condicionados à voz de comando. O que também se destaca nessa passagem é que

Lenz escrevia o seu nome em preto em cima de outra coisa. Está claro que para ele firmar o

seu nome, ele precisa apagar outra coisa. Precisa impor silêncio de alguma maneira, neste

caso silêncio encobridor. Essa passagem é bastante simbólica, pois revela a intenção de deixar

a sua marca onde havia outras marcas. Sobrepor o seu nome onde havia outros nomes.

Em se tratando especificamente dessa cena, Lenz recorda que ele roubava cartelas com

os horários dos comboios quando ainda era jovem. “E sobre aquelas tabelas de números

exactos que dirigiam e condicionavam, tal como a luz, a vida de milhares de pessoas [...]”

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(TAVARES, 2008, p. 144), ele teria o seu nome por cima. Seria ele a dirigir e condicionar a

vida de milhares de pessoas no futuro. Era bastante acertada a decisão do político Buchmann

para atingir esse feito.

E com esse intuito, Lenz “[...] continuava, a passo lento e com poucas correrias (uma

lentidão associada ao bom direcionar das botas, eis a descrição do bom caçador) [...]”

(TAVARES, 2008. p. 225). Ele precisava avançar a passos lentos mesmo, para marcar a ferro

com o seu nome o rebanho através da excessiva exposição de sua voz e de suas ideias.

Necessitava de considerar cada movimento e tudo o que ele implicava. Necessitava de

silêncio absoluto, porque o silêncio seria o instrumento pelo qual Lenz construiria uma

imagem forte de si e destruiria a imagem do outro. Lenz “[...] utilizava em seu proveito o

mistério terrível que quem foge carrega no seu centro” (TAVARES, 2008, p. 227), o medo,

que não se manifesta por meio das palavras ou gestos objetivos, mas por meio do indizível

apenas.

Era esse, aliás, o verdadeiro sentido de forçar o movimento das coisas. Este

movimento forçado, movimento provocado pelo medo, era um movimento a

mais que descontrolava por completo o sentido de posicionamento e

orientação do corpo e permitia à voz de comando fazer o que quisesse

daquele que fugia. (TAVARES, 2008, p. 226).

A análise desse excerto irá demonstrar que embora os sentidos não fiquem parados, e

que em situação de censura os sentidos silenciados sempre arrumam outros meios para

significar (ORLANDI, 2007). O movimento caótico dos homens que tem medo os afasta do

silêncio. Por isso, há de se forçar o movimento para que haja maior distorção da sua

identificação com outro meio simbólico. Essa passagem traduz bem a ideia de que enquanto

se persistir em um movimento forçado os sentidos se descontrolarão e estarão mais sujeitos à

voz de comando.

Entretanto, “os processos de significação não estacionaram [...] está por toda a parte e

os sentidos vazam por qualquer espaço simbólico que se apresente. Eles migram”

(ORLANDI, 2007, p. 129). Mas, precisam do silêncio novamente para se reorganizar. Por

isso, Lenz não dá trégua ao medo. O medo é fundamental para que o movimento jamais

encerre. Os homens precisam sentir a necessidade de confiar em uma voz forte e inabalável.

Os homens também precisam sentir-se confiantes para se abster de seu silêncio e render-se a

voz de comando na esperança de que ela possa conduzi-los para regiões onde eles não

sentirão mais medo. Contudo, o político que inicia o movimento a partir do segundo medo

jamais irá pará-lo.

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E o fato de Lenz ser cauteloso com tudo que ele fazia em política revela que ele

também sabia que: “Tudo avançava, no mundo exterior, como ele previra. E a posição de

Lenz Buchmann no mundo seria perfeita [...]” (TAVARES, 2008, p. 228). Lenz, a essa altura,

dominava perfeitamente aquela linguagem política que a princípio ele tanto carecia de

habilidades fundamentais. Agora, ele era um mestre nessa arte de calar e de dar ordens aos

outros. “Lenz Buchmann continuava ainda entretido com os mecanismos das suas armas e

com a definição dos seus alvos” (TAVARES, 2008, p. 229). E por novas armas, leiam-se as

novas estratégias de emprego do silenciamento e da censura, legitimadas por uma instituição.

De certa maneira, era isso que Buchmann desejava: ser portador de um

sistema legal cujas leis só fossem aplicadas a si; ser portador de uma moral

que não é a do mundo civilizado nem a do mundo primitivo; que não é a

moral da cidade ou sequer a moral da sua família mas a moral que tem o seu

nome, apenas o seu, escrito por cima. (TAVARES, 2008, p. 231).

O que fica latente na passagem anterior é que a figura autoritária (Lenz) precisa de

uma instituição forte (o Partido) que legitime e alimente as suas ações despóticas. A

instituição (o Partido) escamoteia o rosto do sujeito autoritário (Lenz) e permite a ele valer-se

do “rosto” da instituição para disseminar as suas ideias e propagar a sua voz. As massas

projetam-se na instituição e tem a ilusão de que a voz autoritária é o clamor coletivo. O

avanço da técnica, no entanto, como destaca Walter Benjamin, permite a projeção do sujeito

em larga escala e favorece a auto alienação. O contato que ele tem com as massas “estimula o

culto do estrelato” (BENJAMIN, 1987, p. 180) e massa assume uma postura passiva e

resignada mediante a grande exposição. O poder de Lenz sobre a cidade decorre do próprio

Partido que alimenta a voz autoritária que desencoraja quaisquer outras vozes não alinhadas a

essa única voz. A autoridade de Lenz nasce no silêncio do Partido e reverbera entre as massas

que absorvem tudo caladas. E essa nova voz atua com intenções silenciadoras.

Assim, para “aqueles dois homens não queriam apenas ganhar a autoridade através do

voto; sabia que a autoridade da velha coragem e da velha força era a única que resistia às

flutuações provocadas pelos múltiplos acontecimentos” (TAVARES, 2008, p. 240). Eles,

Lenz e Hamm, sabiam que a autoridade mais legítima não se obteria nas cédulas de voto. Não

precisavam, em absoluto, de autoridade escrita em papel, mensurável em palavras, bastante

limitada, portanto. Ambos precisavam cunhar a sua autoridade no medo e no silêncio. Sobre

isso leia-se o seguinte excerto:

Lenz Buchmann e Hamm Kestner haviam falado já da hipótese de uma

explosão no edifício do Teatro principal, no meio talvez necessário para

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instalar o estado de tensão na cidade. O tal primeiro medo útil para o Partido.

O tédio só pode ser limpo com explosões localizadas, uma explosão perto de

cada indivíduo, uma explosão para cada cidadão, disse Buchmann naquele

momento, divertido, a Kestner. (TAVARES, 2008, p. 240).

A pretexto de estimular as massas e incitar-lhes medo, Lenz e Hamm plantaram a

bomba na frente do edifício. “Buchmann e Kestner queriam ganhar as eleições” (TAVARES,

2008, p. 241) e até então esse parecia o caminho mais curto para isso. A bomba era a espoleta

para iniciar na população o primeiro medo e dar-lhes o movimento de partida para o segundo

medo. A explosão criara o clima de que a “«a existência real de perigo» mostrava que era

fundamental a presença de um líder forte no Partido [...]” (TAVARES, 2008, p. 243) e Lenz

despontava como um dos mais importantes expoentes do Partido e da cidade. “Um conjunto

de forças não contabilizáveis estavam ao seu dispor” (TAVARES, 2008, p. 241). O medo se

alastrava e com ele um silêncio arrebatador.

As pessoas com medo se absteriam de seu silêncio e, consequentemente, de seu poder

e o entregariam a uma figura forte. Lenz esperava que ele fosse essa figura forte a quem as

pessoas da cidade iriam recorrer. Elas, em função do medo, se calariam diante da voz de um

líder forte e se submeteriam a sua vontade para poderem se livrar do medo que as perseguia.

Não haveria qualquer oposição. Seria uma forma de impor silenciamento coletivo com

assentimento geral. E sobre isso destaca-se o seguinte:

A diferença entre a arma com um único cano que dirige a bala lembrando a

voz do professor que chama o nome do menino e lhe dá assim autorização

para se levantar da cadeira e a bomba que não sabe ainda o nome dos «seus

alunos» estava à vista: o caos e a ausência de sentido ou de explicação da

violência varriam de uma forma eficaz a segurança da cidade. (TAVARES,

2008, p. 243).

A ausência de sentido é um efeito do primeiro medo, do caos e da movimentação

provocada pela bomba. A ausência de sentido é o “mal necessário” para Lenz poder dar

sequência ao segundo movimento, ou seja, o segundo medo e manter as pessoas

completamente alheias ao próprio silêncio. A explosão não escolhe nomes. A explosão é uma

violência coletiva que instantaneamente propõe o apagamento do indivíduo e, nas

considerações de Lenz, a explosão “[...] embriagava os homens e os obrigava a serem como

que um outro tipo de animais [...]” (TAVARES, 2008, p. 37-8). Inclusive, “[...] ao

rebentamento de uma bomba, os homens em redor ligavam-se por um sentimento inexplicável

[...]” (TAVARES, 2008, p. 37), que se traduzia no esvaziamento de sentido da ação em si.

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Todavia, o momento de desespero sempre aviva o silêncio e um silêncio que nem

sempre Lenz ou qualquer outro pode controlar. “Esse é o risco dos sentidos. Não há discurso

estanque [...]” (ORLANDI, 2007, p. 117). Depois da explosão, o estado de tensão já estava

instalado. “Na explosão morrera um actor secundário, um nome desconhecido do público, que

por azar passara naquele local na altura errada” (TAVARES, 2008, p. 242). Como se tratava

de um ator secundário o seu nome não tinha a menor importância, já que ele ocupava uma

posição inferior na escala de valores de Lenz. Por isso, o seu nome sequer é mencionado, já

que se trata de um ator completamente desconhecido do grande público. É bastante

interessante notar que um ator, ou seja, uma figura que se apresenta perante um público e está

exposta às massas era desconhecida. O que corrobora a ideia de distorção de imagem

fomentada por Lenz e seus colegas de Partido. O político fez-se mais visível que o ator,

graças ao controle observado por Lenz e pelo Partido. É, justamente, esse conjunto de homens

secundários que o Dr. Buchmann pretende controlar primeiro, mas não apenas eles.

O anonimato do ator colocado em perspectiva reflete a miopia da massa transformada

pela técnica. A capacidade de projeção em larga escala transforma a população em rebanho.

Nesse sentido, a repetição, a saturação de informação, o apagamento, o silenciamento

provocados por Lenz são, na verdade, efeito da própria técnica sobre o sujeito. De inspiração

da cultura tecnocrática, Lenz e o Partido creem que os problemas precisavam ser

administrados com técnica e precisão, a partir da subordinação, da hierarquização e da

sistematização. O que implicava, de certa forma, distanciamento. “Lenz Buchmann, que

nascera já com os genes dominados pela lucidez, aprendera depois, pela medicina a reservar

certa distância em relação ao sofrimento do outro, distância essa que poderia ser [...] puro

profissionalismo” (TAVARES, 2008, p. 216). De fato, “No mundo havia um muro, em que a

localização e a altura permitiram aos homens decisivos [...] subirem acima dele, e, desse

ponto importante, obterem uma melhor posição para vigiar ou disparar” (TAVARES, 2008, p.

214). A esses homens cabiam o dever de interferir na vida da população, porém, sem se

deixar misturar a ela.

Na noite das eleições, Hamm Kestner havia sido eleito presidente. E enquanto ele

comemorava e cumprimentava velhos colegas, Lenz abandona a sala discretamente,

acompanhado da secretária Júlia e diz a sua última frase de poder: “–Não vai ficar neste cargo

por muito tempo. Vou matá-lo” (TAVARES, 2008, p. 249). Depois desse momento as dores

de cabeça haviam aumentado e no capítulo seguinte – O diagnóstico da doença – Lenz havia

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perdido a sua velha força. E o modo de operar o silêncio para controlar os sentidos dos outros

muda consideravelmente.

É quase inacreditável que após o agravamento da doença, Lenz consiga conduzir o

silenciamento, ainda que em uma escala menor e localizada. Para delinear as novas estratégias

encontradas pelo protagonista será preciso considerar as novas condições de produção de

sentido da personagem. “Lenz Buchmann, conseguia ser absolutamente imoral. Um indivíduo

único, sem cópia” (TAVARES, 2008, p. 233) portador de força e inteligência inigualáveis.

Nos estágios preliminares do desenvolvimento de sua doença, o processo involutivo de seu

poder manifesta-se em expressões e gestos da personagem e do narrador.

Ficar encerrado em casa era para Lenz era semelhante a estar no exílio. E ao ficar

privado de poder e tomar parte dos assuntos do Partido, devido à cirurgia a que ele se

submetera, “O Dr. Lenz Buchmann nem chegara a entrar nas novas instalações a que a vice-

presidência da cidade dava direito” (TAVARES, 2008, p. 254). Do hospital fora encaminhado

diretamente para casa. E junto com ele foram os irmãos Liegnitz. E “Julia tomara o centro das

operações” (TAVARES, 2008, p. 256). Mas “que acontecera a Lenz Buchmann, ao orgulhoso

Lenz Buchmann, para assistir a tudo com uma placidez admirável?” (TAVARES, 2008, p.

265). Teria ele se rendido à “coisa” (TAVARES, 2008, p. 255), que se alastrara em todo o seu

organismo e comprometia todo o seu poder? Como um doente poderia transformar todas as

suas ideias delirantes em palavras de ordem e em silêncios opressores?

Uma ordem é, simplesmente, uma frase que deve ser obedecida, um pedaço

de linguagem; e quem o recebe deve, à custa da sua vida se necessário, fazê-

lo existir na realidade. Uma ordem expressa a vontade de quem sabe mais, e

assim, a uma voz de comando deve corresponder um conjunto de

movimentos que procuram que o mundo conforme a visão clarividente

daquele que mandou. A cada vez que se cumpre uma ordem por completo

confirma-se a hierarquia já existente e, nesse sentido, o coração tranquiliza-

se. (TAVARES, 2008, p. 114).

Uma ordem é um pedaço de linguagem, que rompe o equilíbrio de palavra e silêncio e

instaura mais silêncio que palavra. Uma ordem se traduz na capacidade de engajar o outro

dentro do seu silêncio, trata-se da capacidade de interagir e de influenciar esse alguém em um

nível interpessoal. Uma ordem implica escuta e silêncio. É o silêncio do mais forte agindo

sobre o mais fraco. Por isso, cumprir uma ordem confirma a hierarquia para Lenz, confirma

os valores da cultura tecnocrática. O sujeito que transmite ordens espera do outro que o ouve

uma postura passiva e obediente, de quem simplesmente acata ordens e as cumpre. Para que

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uma ordem exista em si é necessário existir o silêncio do outro. Um silêncio que não conteste.

Um silêncio que não anula o poder daquele que transmite a ordem. E Lenz encontrava esse

silêncio nos irmãos Liegnitz.

3.1.2 O silêncio de Júlia e Gustav Liegnitz

Os irmãos Liegnitz, Júlia e Gustav, tinham uma ligação especial com a família

Buchmann. Ambas as famílias eram unidas por um laço inominável. Sua ligação era inumana

e fundamentada por silêncio e silenciamento. Júlia e Gustav representam perfeitamente o

poder esmagador das palavras e do silêncio de Lenz Buchmann. Essas duas personagens dão

novo significado ao silêncio decorrente do horror e da barbárie. Julia e, especialmente, Gustav

carregam em si as marcas e os efeitos da censura, do apagamento, da violência da guerra, do

trauma sobre o ser humano. Esses efeitos, a partir dessas personagens, são explorados em

detalhes tanto na forma quanto no plano conteudístico a partir do tratamento e do

aprofundamento do interior da personagem.

No plano formal, esses efeitos aparecem sob a forma de frases interrompidas,

discursos entrecortados, momentos suspensos, espaços vazios no plano da linguagem, como

se pode observar no capítulo segundo desta dissertação. No plano conteudístico, aparecem sob

a forma de trauma, medo, mutismo, submissão e servilismo. É recorrente, no caso dos irmãos

Liegnitz, a linguagem pobre, fraca, inexpressiva. Em suma, tudo isso é forçosamente

decorrente do exercício de autoridade e da manifestação de poder de Lenz sobre a família

Liegnitz; poder, cujos efeitos perdurarão por muito mais tempo em Julia mesmo após a

decadência física e mental de Lenz.

O primeiro episódio em que aparece um Liegnitz em Aprender a Rezar na Era da

Técnica é logo na primeira parte do romance. “Frederich Buchmann relatara um importante

episódio passado consigo, num raro momento em que descrevera um pormenor concreto da

sua participação na guerra” (TAVARES, 2008, p. 118). Durante a guerra, um soldado, cujo

apelido era Liegnitz, conforme relata Frederich, fora assassinado por ele. “Não era uma

confissão, era um relato neutro, parecendo, ele próprio, Frederich, a mera testemunha de um

acidente de viação no qual não tinha qualquer responsabilidade ou envolvimento emocional

[...]” (TAVARES, 2008, p. 118). O assassinato do soldado Liegnitz marca o primeiro

encontro de um Buchmann e um Liegnitz. E sobre esse evento destaca-se o seguinte:

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Não sem consequências, Lenz Buchmann ouvira do seu pai histórias sem

conta nas quais dois soldados, ou um soldado e um oficial, aproveitavam

instantes e circunstâncias que os colocavam sozinhos, isolados por completo

do restante do exército, para se vingarem pessoalmente um do outro,

disparando sobre as suas costas, e alegando depois uma emboscada, em que

o outro, por infelicidade, caíra. Nessas histórias que o pai contara, Lenz

intuíra algo de significativo: o homem era um, não dois, não três, não vinte;

um; e nada, em nenhum momento, apagaria esse traço. Quando se matava

alguém do próprio exército, por uma razão puramente individual, tornava-se

visível que se odiava muito menos o inimigo do país ou das suas ideias sobre

o mundo do que o seu inimigo pessoal. O ódio pessoal tinha uma potência

inigualável. (TAVARES, 2008, p. 116-7).

Fica nítido, portanto, que a relação entre dois homens ou mais se dá por um

movimento de ligação e outro de separação. A causa de ligação ou de separação entre dois ou

mais homens não é, como se pode observar em Aprender a Rezar na Era da Técnica, nem um

pouco fundamental. O que importa é apenas a forma como se dá a ligação e a separação. Um

homem é apenas um homem, como diz o excerto anterior, então, toda ligação entre dois ou

mais impõe uma separação futura. A ligação entre o primeiro Buchmann e o primeiro

Liegnitz ocorreu durante a sua experiência no exército. Portanto, o encontro desses dois

homens foi um encontro fortuito. Definitivamente, não há ligação decisiva. Sobretudo, em se

tratando de encontros fortuitos. Na guerra, Frederich Buchmann e Gustav Liegnitz serviam ao

mesmo exército; o que quer dizer que eles deveriam ser partes de uma unidade. A ligação

entre esses dois homens era uma ligação forçada pelas circunstâncias, pois serviam no mesmo

regimento. Logo, a separação dessas duas figuras era algo totalmente esperado. Mas o que

chama mais atenção é que a separação em si não diz muito, mas sim a maneira como ela se

dá.

[...] o pai contou-lhe como que matara um soldado do seu exército.

Com o meu próprio punho reduzi os efectivos do meu regimento – na sua

própria expressão. E porquê? Simplesmente por isto: o olhar dele - disse o

pai Frederich. E continuara:

Foi por causa disso que, num momento em que estávamos os dois

sozinhos, o matei. Ninguém se apercebeu do que aconteceu. Pus no relatório

que, por desleixo, ele morreu com uma bala da sua própria arma. E foi

verdade: a bala era da sua própria arma. Só que quem disparou fui eu.

O olhar dele quando de mim recebeu uma ordem – insistiu o pai –, foi

essa a causa. Nada de essencial dirás tu, agora, muitos anos depois, rodeado

de elementos pacíficos. Mas em guerra as ordens são essenciais, são a base,

e há olhares que têm consequências. Se ele tivesse tido a oportunidade tinha

feito o mesmo. Depois daquele olhar agi mais rapidamente do que ele.

Quanto a ele, não percebeu o meu olhar ou foi apenas mais lento.

(TAVARES, 2008, p. 118-9).

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Esse excerto comprova que a causa que liga e separa dois homens é o que há de menos

relevante. São dois homens muito diferentes, com status diferentes, com patentes diferentes

sendo obrigados a conviver continuamente. A convivência contínua obrigava Frederich a se

nivelar ao outro homem – o soldado Liegnitz – durante o período em que o seu regimento

estava estacionado. Evidentemente que Frederich Buchmann não suportava a ideia de estar

nivelado a alguém que, para ele é nitidamente inferior. Por isso, o soldado Buchmann dá

ordens a Liegnitz, como forma de reestabelecer a hierarquia e demarcar autoridade.

Entretanto, Liegnitz não é neutro naquilo que ouve e, mesmo em completo silêncio,

ele responde a Buchmann com um olhar subversivo ou pelo menos foi o que Frederich

Buchmann interpretara na ocasião. E por causa de seu olhar, o soldado Liegnitz fora morto. O

olhar é um silêncio que diz muita coisa. O olhar enfrenta autoridade; “olhares têm

consequências” (TAVARES, 2008, p. 119), porque dizem através do silêncio. Como os

sentidos produzidos por Liegnitz enfrentavam a autoridade do oficial Buchmann, este mata

aquele com a sua própria arma.

E com isso, salta aos olhos silêncios fundamentais sobre essa passagem; por que

Frederich mata o colega com a sua própria arma? Por que Frederich insiste em assinalar que

olhares têm consequências? Porque, metaforicamente, a arma de Liegnitz é, na verdade, o seu

silêncio. O silêncio de Liegnitz é cortante, perturbador e ameaçador, cujas consequências

foram fatais. E, com o intuito de deter esse silêncio ameaçador, Frederich Buchmann

apropria-se dessa “arma” e o silencia para sempre. A arma de um torna-se a arma do outro. O

silêncio foi a arma usada por ambos, porém de maneiras distintas. O que distingue um do

outro nessa ocasião foi a capacidade de reconhecer e ler o silêncio que outro manifestara.

Frederich lera e percebera o silêncio fulminante contido no olhar do colega de

regimento. Ele, por sua vez, também devolvera o olhar com a mesma ou maior intensidade. E

Frederich sabia que Liegnitz não fora capaz de perceber o seu olhar. Isto é, Liegnitz não

reconhecera o silêncio do seu superior e os sentidos que ele manifestava. Por isso, foi

eliminado, pois não conseguiu responder a esse outro olhar. Não conseguiu dar sentido ao

silêncio de seu superior. A morte de Liegnitz, além disso, ficou registrada em relatório. O

relatório é um gesto simbólico para decretar o fim do silêncio produzido por Liegnitz.

Enterra-se a arma que assassinara Liegnitz. Cobre-se o silêncio com palavras. Buchmann

registra a palavra final. Depois do olhar e do silêncio de Liegnitz, Frederich atulha o silêncio

de seu subordinado com palavras de um relatório falso.

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Lenz, de facto, nunca mais esqueceu o nome do soldado que o pai havia

morto. Tinha sido a sua curiosidade, aliás, a desenterrar esse nome.

Como é que ele se chamava pai?

Quem?

O soldado.

Há nomes que não interessa manter na cabeça - respondeu Frederich.

Diga-me como é que ele se chamava.

Não me recordo do nome próprio; o apelido era Liegnitz. (TAVARES,

2008, p. 119).

Essa passagem exprime muito bem a lógica empregada por Frederich Buchmann ao

usar a “arma” de Liegnitz contra ele. Frederich havia enterrado simbolicamente o

acontecimento escrevendo um relatório falso, impregnando o relatório com palavras vazias

com o simples propósito de enterrar o silêncio produzido pelo companheiro de exército e

jamais permitir que o silêncio de sua morte causasse quaisquer tipos de dúvidas ou

questionamentos.

Mas quando Lenz pede ao pai que revele o nome do soldado, este precisa

“desenterrar” o nome, porque o nome estava encoberto com palavras. “Há nomes que não

interessa manter na cabeça” (TAVARES, 2008, p. 119), ou seja, há nomes que não precisam

ser preservados na memória ou porque não expressam, em absoluto, qualquer significância ou

porque o nome Liegnitz despertava incontáveis memórias que por sua significância não

podiam ser verbalizadas; trata-se de memórias que jamais se perderam e que habitam no

silêncio de seu nome: Liegnitz. E este era justamente o caso. Quando, após muitos anos, a

família Buchmann e a família Liegnitz encontraram-se novamente, sob novas circunstâncias,

conforme se lê no seguinte excerto: “Meu caro Dr. Buchmann, apresento-lhe a sua secretária;

de uma competência extrema, asseguro-lhe: Julia Liegnitz” (TAVARES, 2008, p. 120), Lenz

identifica imediatamente o silêncio do pai e recupera e reconstrói o significado dele.

Julia Liegnitz era filha do soldado assassinado por Frederich e, surpreendentemente,

herdara do pai o silenciamento imposto pelo primeiro Buchmann. Agora, na condição de

secretária, evidentemente, as formas de imposição de autoridade e manutenção de poder

seriam diferentes daquelas dirigidas ao seu pai, mas isso não interferia na condição de

submissão e censura a qual Julia e o seu pai antes dela estavam expostos. O que havia sido

separado, em condições totalmente diferentes, estava novamente unido. “A ligação entre os

dois acelerou-se devido a uma série de acções urgentes que o Partido colocara nas mãos do

novo homem público” (TAVARES, 2008, p. 134). E a ligação entre os Liegnitz e os

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Buchmann só aumentaria daí em diante, porém, marcada por uma relação de poder totalmente

assimétrica.

Ela conservava uma distância que existia não para possibilitar um salto mas

uma aproximação por pequenos passinhos, transmitindo a sensação de não

querer acordar uma coisa má que dorme. Eis a postura de Julia que

francamente agradava a Lenz. Nela era natural essa inclinação atenciosa, no

limite quase subserviente. (TAVARES, 2008, p. 135).

A distância entre os dois era a distância necessária. Era o espaço vital que o sujeito

subalterno sabe que não pode ocupar. Inclusive, acentuado pelo medo. Era marcante a sua

atitude subserviente. No dia a dia de trabalho, essa figura tímida e silenciosa agia com a

intenção de proteger o patrão de uma torrente de palavras. Ela – Julia – ouvia “convicções

pessoais de gente desinteressante, atendia telefonemas, selecionava a informação relevante

dos jornais [...]” (TAVARES, 2008, p. 135). Em outras palavras, Lenz não era consumido por

palavras vazias durante os seus afazeres. Julia, ao contrário, era atulhada todos os dias por

uma torrente de palavras insignificantes. Ela era engolfada pela verborragia do quotidiano, eis

a sua função como secretária; preservar o silêncio do patrão.

Além desse trabalho, Julia tinha uma série de outras funções que com o passar do

tempo foram aumentando em volume e também em responsabilidade. “Buchmann tinha dado

ordem a Julia Liegnitz para escrever frases que eram o oposto da verdade [...] Claro que Julia

Liegnitz não se atrevera a recusar a tarefa que fora atribuída [...]” (TAVARES, 2008, p. 167-

8), afinal, ela não tinha essa possibilidade. Julia tinha muito medo de enfrentar Lenz, porém

durante essa tarefa Julia revela o seu imenso desconforto em redigir uma mentira: a “ideia que

tinha de si própria enquanto pessoa que de modo intencional não mente – pelo menos nas

situações que não a envolvam emocionalmente –, essa incomodidade foi tão explícita [...]”

(TAVARES, 2008, p. 168), que Lenz não teve alternativa senão repreender a secretária.

“Lenz Buchmann não teve outro meio que não expor de um modo quase incivilizado – o que

lhe dava algum prazer – a doutrina da sua relação com o mundo. E Julia ouviu” (TAVARES,

2008, p. 168). A secretária, mais uma vez, estava sendo sufocada por palavras, porém as

palavras que vinham em sua direção eram diferentes das palavras com que ela lidava todos os

dias.

As palavras de Buchmann tinham um efeito sobre ela. Julia ouvia, mas ouvia em

silêncio. As palavras de Lenz causavam silêncio e impregnavam-se no silêncio de Julia.

Depois da reprimenda, Julia fica sem palavras, sem reação. Ela era toda silêncio. Como

consequência, todo resto da página é branco. Definitivamente, a secretária não demonstraria

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novamente suas opiniões tão explicitamente. E a partir daí, seria mais fácil para a jovem

secretária silenciar a verdade em favor do silêncio opressor de seu patrão.

Após esse episódio, a relação entre esses dois personagens intensifica-se bastante. Há,

inclusive, um capítulo dedicado às “ligações que não se cortam” (TAVARES, 2008, p. 171).

Julia e o irmão mais velho estavam atados à família Buchmann novamente, por “razões de

sangue” (TAVARES, 2008, p. 171). Tratava-se de um vínculo inominável; uma relação que

nenhuma das partes sabe explicar as forças que os mantêm unidos, mesmo Lenz sabendo o

que havia acontecido com o pai da sua secretária durante a guerra, havia algo de inominável

que alimentava a relação entre ambos e que destacava o papel de Julia e, posteriormente, de

seu irmão Gustav na vida de Lenz. Por que os Liegnitz são tão suscetíveis ao poder de um

Buchmann?

Lenz Buchmann desde o início respeitara aquela mulher, Julia Liegnitz, por

razões de sangue que só ele conhecia. Tinha sido o seu pai a abrir a fenda

decisiva naquela família. Era pois a sua missão, no cumprimento de uma

dignidade cujas regras eram apenas definidas por si, continuar o trabalho de

seu pai – Frederich. No fundo, tratava-se do mesmo acto, mascarado de outra

forma: proteger aquela mulher e toda a família Liegnitz – em especial o

irmão, Gustav Liegnitz – era interferir, na existência daqueles indivíduos –

tal como fizera o seu pai. No fundo, Lenz Buchmann colocava-se num plano

tal, em relação àquelas existências, que matar ou proteger se tornavam

acções semelhantes. (TAVARES, 2008, p. 171).

É interessante observar que apesar do narrador destacar nesse excerto que Lenz

respeitava Julia, esse respeito jamais ocorreu de igual para igual. Lenz respeitava a secretária,

porque ela tinha um ar submisso. Ela era calada naturalmente. Apesar de sua relação estreita,

há poucos momentos na narrativa que Julia dirige-se diretamente ao patrão. Julia perdeu a sua

linguagem. Ela é forçada a adotar a perspectiva de Lenz sobre o mundo e, consequentemente,

forçada a adotar a sua linguagem e com ela as tácticas de silenciamento. Fica explícito,

também, que Lenz trataria Julia e o irmão da mesma maneira com que o pai tratou o soldado

Liegnitz.

Está assente que a família Liegnitz é vítima da violência e do autoritarismo imposta

pelos Buchmann. Detendo-se um pouco mais sobre essa questão, “matar ou proteger se

tornavam acções semelhantes”, no sentido de que a vida dos irmãos Liegnitz não pertencia

mais a eles. A rigor, a relação entre eles era marcada por uma série de regras definidas por

Lenz que impediam que tanto Julia quanto Gustav se projetassem e se expressassem enquanto

sujeitos. Mantê-los por perto era um gesto fundamental para poder continuar exercendo poder

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sobre aquela família. O que Lenz percebera era que a separação anulava em absoluto o poder

daquele que está em situação vantajosa.

Quando Frederich Buchmann matou Liegnitz, Buchmann puniu o soldado que

ameaçava o seu poder, mas ao mesmo tempo Frederich abdicou do poder de controlá-lo

quando o matou. Após a morte, Frederich não exerceria poder algum sobre aquele soldado

com olhar subversivo. Estava anulada a hierarquia. Por outro lado, Lenz sabia que precisava

manter forte a ligação entre ele e os irmãos Liegnitz para que a hierarquia jamais se

desfizesse. A proximidade cultivada por Lenz tinha apenas um objetivo: “era interferir, na

existência daqueles indivíduos – tal como fizera o seu pai” (TAVARES, 2008, p. 171), de

modo tão decisivo que a “fenda” aberta por Frederich jamais se fecharia novamente.

Não importava a causa, o certo é que as duas famílias, a mais alta –

Buchmann – e a vulgar – Liegnitz –, haviam sido ligadas, amarradas, por

uma acção de grande intensidade, e essa ligação deveria ser respeitada pelas

gerações seguintes. Era isso que Lenz Buchmann estava a fazer quando

ignorou o roubo provado, levado a cabo pela sua secretária, de uma certa

quantia de dinheiro – e com isso conquistou Julia uma fidelidade definitiva –

e também quando, ao longo de alguns anos, assumiu o objetivo de ensinar os

mecanismos da existência a Julia Liegnitz. (TAVARES, 2008, p. 172).

Calar-se sobre o roubo comprara o silêncio de Julia. Assim, Lenz tinha uma secretária

cada vez mais submissa. Ele era o senhor de seu silêncio. “O empregado não dispõe da

mesma latitude de palavra ou de silêncio que o patrão [...]” (LE BRETON, 1999, p. 79). Julia,

após esse evento, não poderia dizer ou calar sobre mais nada sem o consentimento dele; ele

conquistara uma “fidelidade definitiva [...]” (TAVARES, 2008, p. 172). Fidelidade que se

definia por um contrato de silêncio. O que ela tinha de mais significativo e essencial já não

era mais dela. “Foi pois com um orgulho quase paterno que viu, mais tarde, o sorriso de

entendimento que a menina Liegnitz exprimiu no final do primeiro texto político em que

inequivocamente mentia [...]” (TAVARES, 2008, p. 173). Lenz sentia-se como mentor de sua

secretária, alguém que lhe ensinara uma nova linguagem.

Lenz via em Julia uma extensão de seu poder. “Lenz Buchmann sentia a cada dia que

passava uma ligação mais forte com a menina Julia Liegnitz. Estava, de certa maneira, a fazê-

la, como em tempos fizera a criadita que servia na casa dos pais” (TAVARES, 2008, p. 173-

4). A comparação é bastante pertinente, pois quando Lenz era jovem e teve que “fazer” a

criadita ao comando de seu pai, Lenz pode ver com clareza a concretização do poder e da

autoridade sobre o outro. Ele via no mutismo e na submissão da criadita o poder do silêncio

sobre o sujeito rebaixado. E Julia, embora em circunstância um pouco diferente, estava

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rebaixada ao poder do patrão e provava mais uma vez o poder arrebatador da censura e do

silêncio sobre o sujeito.

E mais satisfeito ainda assistiu depois, com o tempo, à diluição gradual desse

sorriso que caracterizava contrabandistas ou espiões; pois tal diluição ou

desaparecimento significava que mentir conquistara um segundo estatuto na

existência pública de Julia Liegnitz. Já não era algo que a consciência

detecta mas sim uma tarefa profissional, um atividade de oficina que se faz

mais rápido ou mais lentamente, que se aperfeiçoa ou não, mas que jamais

causa espanto ou é sequer significativa. Ela aprendera a tirar motor do

pântano. (TAVARES, 2008, p. 173).

Julia, conforme se constata nesse excerto, já não era mais a mesma, ela não era livre

para se expressar segundo as suas convicções morais. A nova secretária apenas repetia uma

forma de agir que era imposta por Lenz Buchmann.

É notável o seu progresso no trabalho, porque com o passar do tempo Julia começa a

aplicar as mesmas estratégias de silêncio e silenciamento tal como Lenz faz. À diferença do

patrão, Julia não faz em benefício próprio mais em benefício de outro. Sobre esse aspecto

destaca-se o seguinte momento: “Em dois anos o político Lenz Buchmann e a sua secretária

Julia Liegnitz tornaram-se inseparáveis. Como no processo de osmose: uma única substância”

(TAVARES, 2008, p. 174). O processo de ligação entre Buchmann e Liegnitz nesse momento

da narrativa está consolidado.

Lenz conseguira reduzir Julia a uma parte de si. Fizera com que Julia reproduzisse o

seu silêncio e garantia que não haveriam olhares dirigidos a ele, como foram os olhares do

soldado Liegnitz dirigidos a seu pai. Lenz, nesse sentido, fora muito mais bem sucedido no

processo de apagamento e de neutralização de sentidos do que seu pai. Mas Lenz ainda não

controlava todos os Liegnitz. Controlava apenas a caçula do soldado assassinado pelo pai. O

filho mais velho – Gustav Liegnitz – cujo nome era idêntico ao nome do pai, estava ainda fora

do alcance de Lenz. Por essa razão:

Logo no início da relação profissional, o político Lenz Buchmann

manifestara desejo de conhecer o irmão da secretária: Gustav Liegnitz [...]

aquele nome representava um outro tipo de monumento, não material mas de

igual importância simbólica. (TAVARES, 2008, p. 175).

Gustav era o monumento decisivo para Lenz concretizar a vitória do pai. A vitória do

mais forte sobre o mais fraco. Para Lenz, “um nome de família concentrava um conjunto de

experiências antigas que jamais podiam ser colocadas num cesto e contadas como peças de

fruta” (TAVARES, 2008, p. 176). Portanto, o que Lenz fazia em relação aos irmãos Liegnitz

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tinha uma significação que excedia a ordem da palavra e a ordem dos tempos. A relação

construída com os Liegnitz não era um somatório de ações em que se complementavam as

ações de seu pai, pois elas não precisavam ser continuadas por seus descendentes. “Não se

tratava, e ele aprendera isso com o pai, de uma operação do gênero /+/ /+/” (TAVARES,

2008, p. 176), pois o que ligava Lenz aos irmãos Liegnitz era um processo de subtração e

apagamento do sujeito, cujas estratégias superaram a experiência do pai no regimento.

Tratava-se de algo não verbalizável, logo porque as estratégias de Lenz eram estratégias

construídas no silêncio para impor outro silêncio.

Definitivamente, trata-se de algo completamente inenarrável que se comprova a partir

do seguinte excerto. “O alfabeto e a contabilidade não eram capazes de segurar essa força que

uma única palavra encerrava [...]” (TAVARES, 2008, p. 176). Essa força era o nome:

Buchmann e do lado mais fraco, Liegnitz. “O nome tornava-se cada vez mais denso. A cada

geração o nome de família acumulava mais intensidade no mesmo espaço” (TAVARES,

2008, p. 176). A intensidade dos nomes Buchmann e Liegnitz não eram, assim, intensidades

materiais, mas eram forças inenarráveis que se concentravam cada vez mais e,

paulatinamente, reunindo forças para atacar. E outro fato que chamava a atenção de Lenz era

o nome do seu “adversário”.

[...] qualquer destes nomes não era uma palavra neutra, igual a cadeira ou

mesa, mas uma palavra que precisamente odeia a neutralidade, uma palavra

firme, única, não se confunde com outra [...] o encontro com o irmão de

Julia, Gustav Liegnitz, já que este tinha exactamente o mesmo nome do pai,

e só este facto levava-o estar ciente de que a história entre as duas famílias

ainda não terminara. Ainda não tinha sido dado o último tiro, pensava.

Embora lhe parecesse, também, altamente improvável que algo de

semelhante ao que acontecera no passado voltasse a suceder. Mas um nome,

próprio e de família, que se repete na geração seguinte não era apenas uma

homenagem ao que já não existe ou àquilo que, em princípio, vai deixar de

existir primeiro, era também uma manifestação pública de que o trabalho

estava incompleto [...] (TAVARES, 2008, p. 177).

Gustav Liegnitz, também chamado surdo-mudo, representava sob muitos aspectos a

continuidade dessa relação simbólica entre Buchmann e Liegnitz. O soldado Liegnitz fora

morto por Frederich por expressar sentidos através de seu silêncio; um olhar silencioso. Nas

considerações de Lenz o filho representava a incompletude dos atos passados, sua existência

era a continuidade, no entanto, que superava qualquer noção de sucessividade como de pai

para filho. Ele representava uma chance de provar a intensidade dos nomes Buchmann e

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Liegnitz, através de uma continuidade que se manifestava no fortalecimento e no

empoderamento de uma personagem e no mutismo da outra.

É da mais alta significação que as condições do segundo Buchmann e do segundo

Liegnitz eram mais intensas. Lenz havia alcançado mais poder que o pai graças à técnica e ao

seu processo de ascensão política. Gustav devido a sua condição tornava-se imensamente

mais submisso e apagado que seu pai no regimento. E a esse respeito, David Le Breton

discute que: “A impotência das palavras é a medida de um silêncio que se impõe como única

forma de resposta possível à violência sofrida” (LE BRETON, 1999, p. 105). E,

continuamente, Gustav Liegnitz continua a sofrer uma violência, especialmente de

Buchmann. Assim como o pai sofrera nos tempos de guerra, o filho sofreria com a geração

seguinte. Lenz conseguiu reduzir a capacidade de significação de Gustav Liegnitz ao seu

controle impondo o seu silêncio.

Essa personagem só emite “mmms” que a impedem de se impor socialmente e tinha a

irmã como o seu último sustentáculo. Apenas a irmã de Gustav, Julia, é capaz de entendê-lo e,

assim, traduzir o que o irmão expressava. Enquanto Lenz está no auge do seu poder, na

primeira parte do romance, Gustav Liegnitz é incapaz de significar de forma independente,

chamado sempre de surdo-mudo, inclusive pela irmã, e em alguns momentos com tom

escarnecedor. A irmã tornara-se uma extensão do poder de Lenz, então, era mais que natural

que ela também ridicularizasse o irmão às vezes. O amparo que Gustav tinha parecia já não

mais existir graças ao efeito de Lenz sobre a irmã.

Os sentidos produzidos por Gustav são subalternizados. “Se ele – o filho do soldado

Gustav – soubesse ler a escrita não visível que o encontro entre dois homens deixa no ar,

proporia logo um duelo e de imediato pegaria na arma” (TAVARES, 2008, p. 185). Em outras

palavras, se Gustav fosse capaz de ler o silêncio do seu encontro com Lenz Buchmann ele se

tornaria um inimigo digno. Ele “era um homem que tinha legitimidade histórica para ser seu

adversário. Era um homem com esse direito, que ultrapassa em muito a lei, o direito de

vingança” (TAVARES, 2008, p. 185). Entretanto, o fato de Gustav ser surdo-mudo

comprometia completamente o seu direito de vingança reconhecido por Lenz. Aquele que

poderia ser um “potencial inimigo” (TAVARES, 2008, p. 185), tornara-se, devido a sua

condição, um perfeito subordinado.

O contato de Liegnitz com Lenz mudara sua história definitivamente. Antes, “[...] o

jovem Liegnitz era classificado de preguiçoso, pouco inteligente e portador de mau caráter”

(TAVARES, 2008, p. 200). Mas mesmo um homem com essas qualidades, sob a proteção de

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Lenz Buchmann conseguiu ascender socialmente. “Por influencia expressa de Buchmann, não

apenas foi admitido num emprego adequado às suas condições físicas e muito bem

remunerado como também rapidamente subiu duas categorias [...]” (TAVARES, 2008, p

199). Mas só conseguiu subir porque “transformara-se numa pessoa obscenamente

subserviente quando na presença de alguém poderoso” (TAVARES, 2008, p. 200). Gustav era

surdo-mudo, mas não era um sujeito desprovido de sentido. “Se ele falasse tal já seria, há

muito, evidente para os outros. Mas não” (TAVARES, 2008, p. 200). Contudo, na presença

de Lenz, ele esvaziava-se completamente.

Gustav Liegnitz falava um pouco, dir-se-ia. Os seus mmms eram na verdade

uma tentativa de esboçar palavras, de distinguir letras; tentativa que a sua

irmã, há muito com os ouvidos treinados, conseguia discernir quase por

completo. Julia funcionava muitas das vezes como uma espécie de tradutora

do seu irmão. Diga-se ainda que Gustav, quando concentrado, conseguia

perceber o que os lábios das pessoas diziam. Não ouvia, mas parecia ver as

palavras a formarem-se mesmo ali, na origem. Via o esculpir, utilize-se esta

expressão, das palavras – não as escutava. (TAVARES, 2008, p. 257).

Considerando que Gustav não escutava as palavras, a habilidade de esculpi-las era

uma capacidade que demonstrava o pouco silêncio que reverberava dentro de si. Afinal, nem

todo o seu silêncio pertencia ao Dr. Buchmann. Gustav era capaz de formular sentido e dar

forma à linguagem porque ele não era completamente desprovido de silêncio. De modo que,

ser mudo não significava ser calado. O seu mutismo era um forma de ele poder se manifestar

uma violência indizível. Sobre isso, destaca-se o seguinte: “As crianças de guerra, que

assistiram à execução dos seus parentes, que viram homens e mulheres serem torturados ou

violados, indivíduos que sofreram um traumatismo pessoal, ficam sem voz, escondem-se fora

da linguagem [...]” (LE BRETON, 1999, p. 106). O mutismo de Gustav apresentava-se como

uma resposta inconsciente à violência sofrida. E os ouvidos treinados de Julia são os únicos

que conseguem dar forma a esses “mmms” de Gustav, porque Julia também é vítima dessa

mesma violência.

No capítulo subintitulado Mudanças íntimas, Lenz vê a sua casa ser ocupada pelos

irmãos Liegnitz, e Lenz era consciente de que os “mmms” de Gustav não eram desprovidos

de sentido. Com efeito, Lenz sentenciava constantemente Gustav ao silenciamento: “– Deixa

lá os mmms - disse mesmo, nessa altura, grosseiramente, Lenz” (TAVARES, 2008, p. 256),

como forma de neutralizar quaisquer sentidos que Gustav pudesse manifestar, e que,

consequentemente, estariam além de sua compreensão. O silêncio de Gustav, nesse sentido, se

mostra tanto mais profundo e significativo que o silêncio exercido pelo patrão. A latitude de

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seu silêncio é de outra natureza, trata-se de um silêncio que significa e se sobrepõe ao

silenciamento. A partir de Gustav Liegnitz percebe-se, segundo a afirmação de Eni Orlandi

(2007), que o silêncio não pode ser contido e sempre significa de múltiplas maneiras, é

comprovado.

Nas partes subsequentes à decadência física e mental de Lenz Buchmann, os irmãos

Liegnitz adquirem maior espaço na casa de Lenz e, consequentemente, maior poder. O

silêncio opressor de Lenz vai perdendo força, permitindo assim que Julia e Gustav Liegnitz se

manifestem mais livremente. À medida que o patrão perde a força e a autonomia, a secretaria

e o surdo-mudo passam a ser de uma nova forma a extensão do poder silenciador de Lenz. É

consequente, então, o empoderamento dessas duas personagens. “Gustav Liegnitz ajudava no

que era necessário, mas era Julia quem dirigia e organizava tudo. Julia tomara o centro das

operações” (TAVARES, 2008, p. 256). Com isso, mesmo com o deslocamento de centro de

Lenz para Julia, ela criara um sistema pelo qual Lenz ainda era capaz de incluir e excluir

significados.

Foi pois com naturalidade que os dois irmãos Liegnitz se mudaram para a

grande casa dos Buchmann – Julia com as funções aparentes de secretária

mas, a cada semana que passava, cada vez mais transformada numa

enfermeira [...] A decadência física de Lenz Buchmann era assim

acompanhada por uma presença cada vez mais vigorosa e por uma força que

se impunha a cada metro quadrado da casa – a presença dos dois irmãos

Liegnitz. Em suma, a família Liegnitz avançava. (TAVARES, 2008, p. 259).

A entrada dos Liegnitz na casa “poderia parecer uma invasão, uma conquista hostil.

No entanto, tudo se passava com uma harmonia invulgar” (TAVARES, 2008, p. 260). O

avanço Liegnitz era acompanhado por Lenz em completo silêncio, não um silêncio de quem

está desinteressado e neutro, mas um silêncio atento de quem sabe o que o outro faz e que não

dá espaço às ações promovidas pelo outro. O silêncio de Lenz tem intenções inibidoras;

silencio cerceador. “Lenz enfraquecia e, do outro, Julia e Gustav Liegnitz se tornavam mais

fortes para o segurar melhor; no fundo para que o par de opostos, no seu conjunto não caísse”

(TAVARES, 2008, p. 260). Todo avanço dos Liegnitz era de certa forma controlado por Lenz

nesse primeiro momento. Lenz transferia poder para os irmãos para que ele pudesse continuar

exercendo de alguma forma o seu poder.

Nesse sentido, no capítulo intitulado A importância dos nomes, Lenz que já estava

muito debilitado pelo cancro que tinha no cérebro, pedira para Gustav eliminar o nome do seu

irmão mais velho da placa de bronze que continha o brasão da Família Buchmann. Gustav,

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como era incapaz de expressar palavras por si mesmo, tornara-se ele também uma extensão do

poder silenciador e censurador do patrão. “Que ficasse apenas o brasão, o nome completo do

pai – Fredrich Buchmann, o da mãe e o seu: Lenz Buchmann. Como se ele tivesse sido filho

único” (TAVARES, 2008, p. 269). Nessa passagem, nota-se a importância que Lenz

Buchmann atribuía ao nome da família, mas, especialmente, ao nome do pai e ao seu. O nome

da mãe nem é mencionado: “O nome da mãe era um nome fraco” (TAVARES, 2008, p. 269).

A atitude de Lenz ao observar o surdo-mudo, Gustav, polindo o brasão e, finalmente,

apagando o nome do irmão mais velho de Lenz, traz grande satisfação. Gustav convertera-se

em uma ferramenta de silêncio e apagamento para Lenz.

Mas para que esses irmãos continuassem a exercer poder por ele, Lenz tinha que fazer

concessões. Os irmãos Liegnitz trouxeram mobília, “transportaram para casa de Buchmann

um certo mau gosto” (TAVARES, 2008, p. 262). Trouxeram, inclusive, livros da biblioteca

Liegnitz que poderiam se misturar aos livros da biblioteca Buchmann. “Eram livros de

historietas miseráveis, consumidas aos milhares por adolescentes tontos e por famílias

diversas com pouca cultura, como os Liegnitz” (TAVARES, 2008, p. 263). Esses eram os

livros que Lenz desprezava, por não conterem potência e intensidade. Lenz acreditava que a

biblioteca Buchmann conservava força e que os livros reunidos por ele e por seu pai, eram

livros cuja força da linguagem aumentava sua força; Lenz dizia: “a biblioteca aumenta a sua

força” (TAVARES, 2008, p. 244). Ao proibir que os livros de Liegnitz não saíssem de seus

respectivos quartos, Lenz impusera outro silêncio aos jovens irmãos. Para que aquela

linguagem vulgar não contaminasse a força de seus livros e que a verborragia dos livros dos

outros não se confundisse com o silêncio de sua biblioteca.

Mesmo doente Lenz conseguia exercer o poder de silenciamento sobre os irmãos. E

exercer esse poder não exigia o mesmo vigor de antes. Julia e Gustav haviam, em grande

medida, absorvido os “ensinamentos” de Lenz, assim como Lenz fizera com relação aos

“ensinamentos” de seu pai. Os irmãos haviam perdido muito do seu poder de expressão. Em

certa ocasião, Lenz pedira à secretária que fosse tratar com o presidente do Partido Hamm

Kestner. Julia ia até à liderança do Partido não como Julia, mas como Lenz. “Julia chegou

nesse mesmo fim de tarde com um rosto que, à primeira vista, não deixava transparecer nada

– nem de positivo nem de negativo” (TAVARES, 2008, p. 281). O que se lê nessa passagem é

que Julia havia se esvaziado. Sua expressão não carregava a mesma energia de antes. No seu

semblante não havia silêncio, apenas vazio.

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Ela ouvira as palavras de Hamm sem refletir sobre elas. Ao transmitir para Lenz,

transmitia palavra por palavra, sem deixar transparecer qualquer silêncio seu. Ela convertera-

se em uma máquina desprovida de silêncio, carente de autenticidade. “Foi então que Lenz

Buchmann fez um sinal firme para Julia se calar. E Julia calou-se” (TAVARES, 2008, p.

282). Mas mesmo transmitindo as palavras de Kestner para Lenz, Julia, porém, já estava

calada.

Lenz e Frederich dominavam uma linguagem que Julia jamais chegou a conhecer

verdadeiramente. “A sensação era de que, se aqueles dois homens falassem entre si, ela não

entenderia uma única palavra. Mesmo que falassem a língua comum, ela, Julia, como uma

tonta ou uma atrasada mental, pensou, não perceberia o sentido de uma única frase”

(TAVARES, 2008, p. 298). Essa sensação era justificada pela carência de silêncio em Julia.

Ela não saberia reconhecer e tampouco ler o silêncio que se apresentava entre aqueles dois

homens. Apesar de corresponder a certas formas significativas de silêncio, a sua relação com

esse fenômeno é bastante limitada e varia de acordo com o contexto, pois o silêncio que Julia

absorve e compreende mais facilmente é o silêncio arrebatador e violento ou decorrente de

violência.

Quando Lenz e ela visitavam o túmulo de Frederich, ao contemplar ao silêncio de

Lenz “Julia pensou nela, agora apenas nela” (TAVARES, 2008, p. 298). Finalmente Julia

percebera no que tinha se tornado: muda, completamente sem expressão, carente de silêncio,

consequentemente, carente de sentido. Fora o silêncio de Lenz diante do túmulo do pai que

despertara a secretária de sua condição de muda. Apesar de diferente do irmão, Julia era muda

não no sentido físico, mas no sentido da capacidade de expressar sentidos fluentemente. O

contato com o silêncio do outro despertara brevemente a sua consciência sobre a sua total

alienação. No entanto, a tomada de consciência não durou por muito tempo. Julia estava

completamente rendida ao poder do patrão. “Há já duas semanas que Lenz Buchmann deixara

de ter qualquer controlo para além do metro quadrado em seu redor – e mesmo essa vigilância

era apenas visual” (TAVARES 2008, p. 305), porém Julia ainda estava completamente

entregue e resignada.

Lenz não tinha mais forças para executar qualquer tarefa, porém as forças de quando

ainda era jovem tinham um efeito invulgar sobre Julia. Ela assumia cada vez mais as tarefas

do patrão, inclusive tarefas menores, como continuar dar a esmolas para o mendigo que

costumava visitar a casa de Lenz. Julia “[...] tinha ainda a maior parte das suas forças

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direcionadas para os cuidados que Lenz requeria [...]” (TAVARES, 2008, p. 306). Julia

tornara-se, finalmente, o que Lenz realmente desejava: uma extensão sua.

Gustav, ao contrário, “aperfeiçoava com grande rapidez as suas capacidades de

decisão” (TAVARES, 2008, p. 306). Ele estava, paulatinamente, libertando-se do silêncio

opressor. O surdo-mudo era cada vez mais ativo. A ligação entre eles, Lenz e Gustav, porém,

não estava acabada; “estava ainda em ebulição: as coisas avançavam” (TAVARES, 2008, p.

307). E avançaram de tal maneira que Gustav decidira invadir a biblioteca Buchmann.

A biblioteca de Lenz permanecia selada desde que Julia e Gustav haviam se instalado

na casa. A biblioteca, após a invasão dos Liegnitz na casa Buchmann, consagrava-se como

um espaço inviolado. Ela era o último reduto de força de Lenz. A biblioteca para Lenz era um

depósito de silêncio, de força de linguagem. Os livros que lá estavam conservavam uma

potência inexplicável para Gustav e Julia. Por essa razão, a biblioteca permaneceu, por muito

tempo, longe dos olhares de Gustav. Contudo, arrombar aquela porta, tal como Gustav a

arrombou, significava perturbar o silêncio do patrão com golpes sucessivos, essa era “[...]

uma tarefa de grande esforço físico que para ele era passada quase em silêncio [...]”

(TAVARES, 2008, p. 310). Portanto, a decisão de derrubar a porta representava uma dupla

vitória para Gustav: ele experimentava o silêncio tirando o silêncio do seu patrão.

No último estágio da doença de Lenz, o centro deslocara-se e Gustav tornara-se senhor

de seu próprio silêncio. Lenz sempre controlava o que era dito e o que não era dito pelos

irmãos Liegnitz durante quase todo o tempo em que conviveram juntos, mas quando Gustav

percebera que Lenz já não era mais capaz de controlar a linguagem, ele decidira se vingar.

Aproveitando a ausência da irmã por dois dias, Gustav substituiu o bilhete com o nome

completo de Frederich Buchmann que Lenz lia todos os dias por uma frase.

O certo é que Buchmann, já sem qualquer noção da realidade e desprovido

de qualquer arma de defesa, durante duas noites leu aquela frase patética,

vergonhosa, que atentava contra os seus valores mais íntimos mas de uma

forma infantil, sem consequências, e leu-a, embora com estranheza, com a

convicção de que lia e repetia o nome do pai. (TAVARES, 2008, p. 320).

Gustav colocava palavras na boca de Lenz, assim como Lenz fizera com ele durante

quase todo o tempo em que estiveram juntos. Julia, ao contrário do irmão, jamais se libertaria

do poder opressor. Refém de um silêncio para sempre, a jovem secretária revelava uma

fraqueza inevitável, a mesma fraqueza com que se deixara dominar por Lenz Buchmann. “A

Igreja tinha ali uma nova conquista [...]” (TAVARES, 2008, p. 353). A mesma Igreja que

Lenz por tanto tempo combatera, lançara sua atenção aos irmãos Liegnitz. Evidentemente,

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que Lenz tinha culpa naquilo que estava para acontecer, pois a fraqueza característica de Julia

havia sido promovida e incentivada por ele. Após a morte de Lenz, Julia rendia-se novamente

a outro silêncio opressor.

3.1.3 O silêncio de Fredrich Buchmann

Em Aprender a Rezar na Era da Técnica, só há uma personagem que é irresistível ao

poder encantatório e silenciador de Lenz, essa personagem é ninguém menos que: Frederich

Buchmann, seu pai. Frederich Buchmann é militar reformado que leva para casa tudo o que

havia aprendido com sua experiência no exército e no campo de batalha: disputa, violência,

medo e silêncio. A soma desses elementos transformara a família Buchmann em um “pequeno

Estado Monárquico” (TAVARES, 2008, p. 100), onde Frederich colocava-se no centro e seus

filhos apenas acompanhavam o movimento de suas ordens. Para Frederich, não havia palavra

dita que não fosse palavra cumprida. E, assim também, para Frederich, também não havia

silêncio que não fosse uma ordem absoluta a ser cumprida. “Uma ordem é, simplesmente,

uma frase que deve ser obedecida, um pedaço de linguagem; e quem o recebe deve, à custa de

sua vida se necessário, fazê-lo existir na realidade” (TAVARES, 2008, p. 114). Uma ordem é

apenas um conjunto de palavras e de silêncios que alguém espera que seja materializada.

Consiste em passar tanto a palavra e o silêncio para o mundo das ações, para o campo

material, sígnico e realizável.

Frederich Buchmann ensinou aos filhos da forma mais difícil, ou seja, através da

disputa, da violência, do medo e do silêncio, como confirmar a hierarquia. Frederich

Buchmann queria filhos fortes e acreditava que esse era o melhor caminho. Suas ordens e seus

ensinamentos são paralisantes, repletos de silêncio que explicam porque suas ideias são

frequentemente retomadas pelo narrador e perpassam por toda juventude e fase adulta da

personagem. A voz do pai, silenciosamente, ecoa em Lenz durante toda a sua vida, inclusive

nos momentos de grande decadência mental e isso só foi possível porque Frederich incutira

silêncio e silenciamento no mais profundo interior de Lenz. Um silêncio tão profundo que a

personagem protagonista jamais foi capaz de superá-lo e esse silêncio tornou-se um silêncio

embrionário, cuja essência configurou toda forma de Lenz lidar com o seu silêncio e o do

outro.

É evidente que as consequências dessa educação não foram as mesmas para os irmãos

Buchmann: Albert e Lenz. Albert era o filho mais velho, portanto, o mais cobrado dos irmãos.

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“No entanto, Albert era o Buchmann mais velho, e a idade revelava um indício de outras

forças não muito explicáveis que contrabalançavam os actos da existência de cada um”

(TAVARES, 2008, p. 100). Ainda que tivessem recebido do pai a mesma educação e recebido

ordens iguais: “Em relação ao seu irmão, por exemplo, não havia qualquer laço de dívida:

eram construções diferentes [...]” (TAVARES, 2008, p. 74). E isso era algo que Frederich

jamais previra. “Havia, sem dúvida, a sensação de luta por um espaço. O patrimônio material,

e também o nome de família [...]” (TAVARES, 2008, p. 74). Frederich que estimulara entre

os filhos a disputa causara entre eles uma tensão irreconciliável, pois “para Lenz era

fundamental o nome de família: Buchmann” (TAVARES, 2008, p. 74), mas Albert usava o

nome primeiro; Albert era o primeiro Buchmann.

Lenz jamais aceitaria ser o segundo Buchmann, até porque considerava que

no seu irmão o nome Buchmann se tornava um nome defensivo e, pelo

contrário, nas suas mãos, a anteceder as suas acções, o nome Buchmann

tomava inegavelmente feições guerreiras, de ataque. E por isso ele era

simplesmente Lenz, tratando também o irmão pelo primeiro nome,

recusando-se a explicitar o apelido de família. (TAVARES, 2008, p. 75).

Sobre os dois filhos, Frederich concluíra: “Tenho um cão e um lobo – dizia Frederich

Buchmann, directamente, aos filhos” (TAVARES, 2008, p. 101). O cão era Albert, porque

para Frederich, ele era fraco e submisso; não existia nele a mesma força e potência que se

manifestava em Lenz. Em Albert, via-se uma figura calada de rosto inexpressivo que,

definitivamente, faltava silêncio, ou pelo menos, silêncio da mesma natureza de Lenz. Lenz,

ao contrário, era mais parecido com ele. Lenz e Frederich não precisavam pronunciar palavra

para se fazerem ouvir. Albert, no entanto, precisava pronunciar o nome Buchmann em cada

conversa para ser ouvido. “Eis a questão mais relevante. Porque aqui não havia possibilidade

de divisão: um nome não era um terreno, que uma régua mais ou menos bem intencionada

possa dividir, mantendo dois lados minimamente satisfeitos. Um nome não se pode dividir”

(TAVARES, 2008, p. 74). Ao usar o nome Buchmann para “iniciar qualquer diálogo”

(TAVARES, 2008, p. 75), como constata Lenz, Albert desperdiçava o que havia de mais

importante no nome de família: seu silêncio.

O nome não era para ser usado indiscriminadamente. O nome Buchmann era um nome

que evocava silêncio e que ao ser usado em uma conversa fazia uma série de implicações que

não precisavam ser explicitadas; estava tudo contido no silêncio daquele nome. Buchmann era

um nome de força. De fato, não havia nada de especial naquele conjunto de letras que

formavam o nome: Buchmann. Contudo, ele guardava uma herança não dita. “Lenz respeitava

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de tal forma a história de cada nome que se revoltava cada vez que via o vocábulo Buchmann

no seu sítio – na letra B – incluído numa enorme lista, como se fosse apenas isso, uma palavra

que começa por uma letra determinada” (TAVARES, 2008, p. 178). Entretanto, Lenz

acreditava que o nome herdara a força do pai. Trata-se de forças que jamais se perderam e que

habitam no silêncio de seu nome. Justamente em função do silêncio que opera na linguagem

que a vitalidade e a força que o nome Buchmann contém tornam-se alcançáveis para o leitor e

para o universo das personagens. E também por essa força que Lenz é capaz de retomar as

ideias do pai muito frequentemente.

O pai de Lenz havia então penetrado na estrutura fundamental de seu filho e o

transformado de dentro para fora, tocado em seu interior e abalado sua essência. “Lenz, diga-

se, já não estranhava que o final de seus pensamentos terminasse em imagens militares. A

estrutura fundamental de uma educação fora dada por um militar [...]” (TAVARES, 2008, p.

107). O que se pode depreender dessa passagem é que Lenz fora treinado pelo pai para agir

como um soldado em um campo de batalha e cultuar a técnica e a atividade bélica. Lenz “era

alguém que nascera e fora educado para matar e por devaneio intelectual decidira exercer a

medicina” (TAVARES, 2008, p. 107). Apesar de ter se transformado em médico, a voz do pai

condicionava Lenz a combater a agir como um soldado; “a natureza ainda não inventou o

fogo, costumava dizer Lenz, repetindo a ideia do pai, Frederich Buchmann” (TAVARES,

2008, p. 47). Enquanto médico, Lenz assumia a posição de um soldado capaz de interferir no

organismo e destruir a ação da natureza no interior dos corpos. Por isso,

[...] no fundo, mesmo nos vários anos em que exercera medicina, Lenz havia

sido um militar. Alguém com um sentido tenso dos deveres e que conhecia

todo o comprimento de uma decisão – percebia bem que qualquer vontade,

depois de desencadeada, deve ser aplicada em cada ponto até ao final, sem

uma única indecisão ou abrandamento. Sabia que não se pode mudar no

último momento a direção do bisturi ou da bala, pois é assim que se sucedem

os erros, as grandes falhas – esse pecado não apenas técnico, mas também

moral, de se atingir por inabilidade, por exemplo, um aliado. A ética de

Frederich Buchmann sobre este assunto era também clara, e Lenz absorvera-

a por completo: Quem mata um amigo por acidente, se for honrado, a seguir

escolherá o suicídio. Mas se matar um amigo por uma decisão consciente, é

porque escolheu já o caminho do diabo, e se assim fez, só lhe resta continuar

a avançar. (TAVARES, 2008, p. 108).

O romance inicia com uma cena reveladora e bastante marcante: o encontro de Lenz

Buchmann com a criadita. Nesse encontro, Lenz vê o pai como uma figura máxima exercendo

uma autoridade inexcedível. Ele vê a concretização do silêncio na criadita. Enquanto o pai lhe

dá ordens e instruções, para a criadita ele não diz nada. O seu silêncio já era óbvio. O seu

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silêncio se bastava por si mesmo. Quando o silêncio de Frederich não era o suficiente para

exercer controle, ele instalava no outro o medo. No caso dos filhos, Frederich trancava os

filhos em um quarto escuro chamado “a prisão” para que os filhos entrassem em contato com

esse mesmo silêncio de outra forma. Dizia ele:

Nesta casa o medo é ilegal – era uma das frases mais marcantes de Frederich

Buchmann. Esta frase, diga-se ainda, foi determinante para Lenz – o seu pai

sabia bem a importância de ser consequente. Frederich castigava as

manifestações de medo de qualquer dos seus filhos fechando-os à chave num

compartimento da casa, «a prisão», em que tapara as janelas, em que não

havia uma única peça de mobília ou objecto [...] Era em absoluto um espaço

neutro, onde as funções dos gestos se tornavam nulas [...] As paredes não

eram estimulantes para um humano. (TAVARES, 2008, p. 94).

A prisão de Frederich era um espaço de pleno silenciamento e de censura. Mediante

esse tratamento, Lenz “aprendeu a existir assim. Preparou-se, cresceu, tornou-se forte”

(TAVARES, 2008, p. 95), tal como o pai esperava. A incapacidade de enfrentar o discurso da

autoridade se confirma na rendição completa da personagem protagonista em relação ao pai.

A incapacidade de superação desse estado de medo e censura criado por Frederich Buchmann

alimentou em Lenz a sua verdadeira essência; a face do sujeito autoritário incapaz de rezar na

Era da Técnica e se expressar com eloquência “o signo da liberdade criadora" (TELES, 1979,

p.10), o silêncio que põe fim à sua submissão em relação à vontade do pai.

3.1.4 Lenz e Hamm: silêncio e o silenciamento

A ligação existente entre Hamm Kestner e Lenz Buchmann evidencia a tirania, o

infortúnio e o crime que se abate sobre uma sociedade vítima da censura e do silenciamento

levado às últimas consequências. A sua ligação era diferente daquela existente entre os

Liegnitz e Buchmann. Enquanto a ligação dos Liegnitz com Lenz era uma união inumana,

fundamentada por uma relação assimétrica de poder que imperava silêncio e silenciamento e,

por isso, tratava-se de algo inominável e inenarrável, a relação de Lenz e Hamm era uma

vinculação social e frágil destinada à inevitável separação e à incontestável irreconciliação de

suas forças. A ligação desses dois homens servia apenas para uma finalidade estratégica e

tecnicista.

No encontro dessas duas figuras “o cumprimento de mãos foi vigoroso, um acto quase

solene e que impressionou Julia Liegnitz [...]” (TAVARES, 2008, p. 146), que nunca vira

pessoalmente Lenz tratar um homem como Lenz estava a tratar com Hamm. O que Julia vira,

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contudo, não passava de uma encenação. A aproximação dessas duas figuras tirânicas

lembrava um conflito básico de que dois corpos de mesma intensidade não podem ocupar o

mesmo espaço. “Mas aquele homem – Hamm Kestner –, embora não viesse da mesma árvore

(não era um Buchmann) viera da mesma floresta. Era o seu irmão, com a vantagem de não ser

portador do mesmo apelido” (TAVARES, 2008, p. 155). Apenas por isso, poderiam conciliar

as suas forças por um breve período.

O tempo em que estiveram juntos evidenciava que ambos compartilhavam o “mesmo

grau de civilização útil” (TAVARES, 2008, p. 155). Isso significa que ambos tinham a mesma

competência técnica e as mesmas estratégias para lidar com os “problemas” da cidade. Isso

fica assente no capítulo intitulado Outro diálogo entre Buchmann e Kestner.

Caminhavam os dois pelas ruas mais agitadas da cidade como tantas vezes

naqueles últimos tempos. Era a passo que acertavam estratégias políticas.

Sem o explicitar, os dois homens haviam intuitivamente assumido que as

conversas significativas seriam realizadas em andamento: a andar, sempre a

andar. E havia uma espécie de fé: a direcção do movimento muscular, após

uma tradução de energia mais ou menos misteriosa, passaria para as

palavras. As palavras ditas enquanto se agia transportavam logo a marca da

impaciência, indispensável para o início de qualquer acontecimento

significativo. Lenz Buchmann e Hamm Kestner entendiam-se, assim na

perfeição, nos dois movimentos: o andar e o pensar. (TAVARES, 2008, p.

187).

A comunicação deles era um comunicação que se dava antes em silêncio e depois se

manifestava em palavras e em ações. Tudo era implícito em suas conversas. Eles estavam em

sintonia com o silêncio um do outro. Ressalta-se que em função disso ambos empregavam as

mesmas estratégias de controle dos sentidos. Era Hamm que dizia que: “Podemos apenas dar

ordens, não precisamos de conversar” (TAVARES, 2008, p. 190), sugerindo a Lenz que as

melhores estratégias para enfrentar a oposição seria a partir da escassez do diálogo. Esses dois

homens eram portadores de uma força silenciadora singular e inigualável. E a união de suas

forças tinha um único propósito: enfrentar a natureza. Sobre isso se lê o seguinte:

Esses dois homens que, sem o expressar se consideravam a si próprios os

espíritos da cidade, sabiam dever essa sua autoridade não à fidelidade que os

materiais de arquitectura devem à vontade humana mas à rebelião que a

floresta não pára de dirigir contra as máquinas que a dizimam, mesmo que

essa rebelião seja clandestina, secreta, não visível, paciente. Rebelião,

acrescente-se, que usa os meios de quem foi vencido – a obscuridade –, mas

usa-os com confiança de quem não sabe que, mais tarde ou mais cedo vai

vencer. (TAVARES, 2008, p. 154).

Nesse excerto, Hamm e Lenz não precisavam dizer expressamente para que se notasse

que eles eram os “espíritos da cidade” ou os agentes a serviço da técnica. Na verdade, eles não

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precisavam dizer expressamente para se fazerem entender. Ambos eram conscientes disso. A

ligação deles era uma ligação estabelecida por silêncio de igual latitude com propósitos

silenciadores, por isso era uma ligação frágil. Eles eram políticos com energia de

conquistadores e tudo que os aproximava um do outro era o que, consequentemente, os

apartava. Por fim, Lenz dissera: “Vou matá-lo” (TAVARES, 2008, p. 249), porque Hamm

Kestner era o único com força capaz de neutralizá-lo. Era o único com vida que conhecia suas

estratégias e sabia como empregá-las.

Em virtude de sua decadência física, Lenz não pôde cumprir os seus planos para o

presidente do Partido. As suas estratégias de silenciamento já estavam em vias de

esgotamento. A sua linguagem estava prestes a colapsar quando Lenz fez o último contato

com Hamm, por intermédio de Julia. O silêncio que Lenz e Hamm combateram juntos por fim

triunfara.

3.2 Aprender a Rezar na Era da Técnica rumo ao silêncio Primordial

É característico de Aprender a Rezar na Era da Técnica a proximidade inquietante

com o silêncio. Essa proximidade se concretiza na medida em que a obra propõe a

representação do silêncio pela escrita. O silêncio ganha forma no romance e o romance ganha

significado a partir do silêncio. E por sua escrita e forma singulares o leitor é confrontado

com uma visão contemplativa do silêncio primordial de Santiago Kovadloff (2003). O

silêncio primordial é uma instância de silêncio superior a todas as palavras e também anterior

a quaisquer outros silêncios. Ele é o inefável em sua forma mais pura e, literalmente,

primordial à linguagem.

O silêncio primordial é “o que não tem forma nem medida; o que não pode ser

significado, agrupado nem separado; o que nada quer dizer [...]” (KOVADLOFF, 2003, p. 98)

e mesmo assim, diz tudo. O silêncio primordial é um “[...] pronunciamento em si mesmo

inconcebível” (KOVADLOFF, 2003, p. 32), porque ele está além da linguagem. Sua

ressonância, porém, reverbera no mais profundo recanto da linguagem e inspira o dito e o não

dito em qualquer nível e em qualquer forma. O silêncio primordial é “[...] fluxo de uma

singularidade tenaz, inquietante e anônima” (KOVADLOFF, 2003, p. 77). Ele é “resíduo de

uma plenitude sem nome [...]” (KOVADLOFF, p. 166), cuja significação para Aprender a

Rezar na Era da Técnica é de uma primazia inequívoca.

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Aprender a Rezar na Era da Técnica, por meio do silêncio primordial, acresce

potência à linguagem e ilustra a fragilidade das palavras. O romance evoca que por trás de

uma cortina de palavras, o silêncio primordial tem o poder de desintegrá-las, frágeis como

são, e colocar o leitor frente ao inefável, ao inexprimível, ao indizível. A propósito da

aproximação do silêncio primordial com Aprender a Rezar na Era da Técnica, sobressai,

então, como uma metáfora desse fenômeno irredutível os seguintes dizeres: “É que havia nele

um circuito duplo: um exterior, constituído pelas suas acções e pelos seus diálogos, e um

outro, interior, invisível e não partilhável que, afinal, era o mais relevante” (TAVARES,

2008, p. 73). É possível, a partir dessa passagem, indiretamente, aí não somente, ter um

vislumbre do silêncio primordial.

O ponto de partida dessa reflexão consiste em entender o que é o circuito interior e o

que é o circuito exterior expostos nesse excerto. O que representa esse circuito “dos

pensamentos” (TAVARES, 2008, p. 73)? Qual a sua relação com o significado de silêncio

primordial? E afinal, por que este é mais relevante que aquele? Com isso, coloca-se como

questão: esclarecer que o silêncio com o qual esta leitura se propõe é o silêncio autêntico que

faz o retrato do sujeito que se recolhe no silêncio de sua alma; o silêncio que coloca o sujeito

diante de sua própria nudez. Trata-se, portanto, de considerá-lo enquanto “o suposto nada de

sentido” (KOVADLOFF, 2003, p. 48) que fundamenta toda a existência.

Em referência ao trabalho de Martin Heidegger, Santiago Kovadloff (2003) diz que

existir significa reconhecer-se dentro desse nada que não é nem positivo e nem negativo, mas

que aciona a percepção de uma presença e de uma ausência. Martin Heidegger acredita que

“Existir (exsistir) significa: estar sustentando-se dentro do nada (...)” (HEIDEGGER, apud

KOVADLOFF, 2003, p. 48). Existir, para ambos os autores, significa reconhecer a

incompletude que caracteriza o “eu”. Existir implica alcançar um silêncio cuja potência

“detectasse verdadeiramente uma existência próxima” (TAVARES, 2008, p. 73), ou seja, o

reconhecimento do outro enquanto ser, e, talvez, pudesse acionar a percepção da existência de

si mesmo. Assim, por sua excepcional intensidade ele poderia suprir uma carência de imagem

e permitir ao homem o reconhecimento de si mesmo diante de seu próprio vazio.

Na qualidade de nada, “uma vez liberada de sua função prototípica” (KOVADLOFF,

2003, p. 132), a palavra essencial que inunda o ser e nutre o romance ganha uma autonomia

notável. As formas de Aprender a Rezar na Era da Técnica libertam-se a partir do silêncio

primordial. Seria impensável Aprender a Rezar na Era da Técnica sem essa substância

inominável e originária. Nessa conjuntura, é possível propor a inesgotabilidade de sentidos

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que podem ser depreendidos do silêncio, uma vez que este repousa no fato de que é ele a

origem de toda significação e, conforme afirma Martin Heidegger, "a origem é o inesgotável".

(HEIDEGGER apud FERREIRA, 1999, p.106) congregado ao mistério que condiciona toda

linguagem.

Portanto, também nesse último aspecto, ser/existir em um nada de sentido é

reconhecer-se como parte de algo maior, além da compreensão; estar em “outro, interior,

invisível e não partilhável” (TAVARES, 2008, p. 73). E essa forma “invisível e não

partilhável” (TAVARES, 2008, p. 73), que ainda é “o mais relevante” (TAVARES, 2008, p.

73), desponta como uma forma originária de expressão que dá sentido à linguagem e

singulariza suas formas. O silêncio extremo é “o mais relevante” (TAVARES, 2008, p. 73)

porque permite abordar o inabordável e lançar o sujeito de volta à significação após um longo

período de vazio de si mesmo, um vazio que, por outro lado, não tem nada de sentido, que se

opõe a ideia de silêncio. Nesse sentido, existir é, então, corresponder ao silêncio.

No silêncio, a expressão do ser se constitui enquanto fala autêntica. E o homem fala à

medida que corresponde à escuta do silêncio, pois escutar, conforme afirma Martin Heidegger

(2005), é a forma mais profunda e autêntica de falar. Para o ser, a palavra essencial é o

silêncio. É o nada. E o nada é, portanto, “o mais relevante” (TAVARES, 2008, p. 73).

Recordando o que Bernard Dauenhauer disse sobre o silêncio que “o que é fundamentalmente

dito e ouvido não são palavras humanas, mas sim infinito silêncio que é voz e que é palavra

[...]” (DAUENHAUER, 1980, p. 111) 20

. Isso equivale dizer que toda fala autêntica nasce do

silêncio primordial. E que, portanto, “o silêncio tem fundamento existencial. Quem silencia

no discurso da convivência pode dar a entender com maior propriedade" (HEIDEGGER,

2005, p. 223). Daí reside sua maior relevância naquilo que é expresso pelo silêncio.

Consoante Santiago Kovadloff, “o contato com o próprio ser como instância

primordialmente invisível, ou seja, inabordável [...]” (KOVADLOFF, 2003, p. 117) pressupõe

o contato com o silêncio primordial. A palavra poética, assim, surge como caminho para o ser

abordar o inabordável, de modo a poder reconhecer a si mesmo como entidade incompleta,

carente de silêncio e carente de conteúdo. Ora, o que é então esse “um outro, interior,

invisível e não partilhável que, afinal, era o mais relevante” (TAVARES, 2008, p. 73), senão

o silêncio primordial de que fala Santiago Kovadloff (2003)?

20

“What is fundamentally said and heard is not human words but rather the infinite silence which is the voice

and word [...]” (DAUENHAUER, 1980, p. 111, - tradução nossa)

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Ao entrar em contato com o silêncio primordial, o homem entra em contato com a

totalidade de seu silêncio. A partir desse contato, o homem entrará em vias de aproximação

com a totalidade dos elementos interiores e exteriores do mundo. E em decorrência disso, o

homem estará diante da totalidade de si mesmo, que é necessariamente “[...] indizível que,

como tal, o silêncio encarna. Totalidade que, em consequência, surge nesse silêncio,

certamente, como o que é: inviável para a fala como objeto de apreensão direta [...]”

(KOVADLOFF, 2003, p. 26). Por isso, tal totalidade é inconcebível no circuito exterior, nos

diálogos e nas ações de Lenz e das demais personagens. Essa totalidade não cabe em palavras,

cabe apenas em silêncio. Trazendo, assim, o silêncio à luz.

O que ele vê naquele momento é apenas uma sucessão de disparos de luz,

disparos que parecem vir na sua direcção. Ele vê a luz que aparece,

desaparece e volta a aparecer. Vê também que a luz não mantém sempre a

mesma cor: que às vezes é mais escura, outras vezes azul, outras vezes mais

clara. É uma luz estranha, aquela, que não parece ser da mesma família da

luz eléctrica da lâmpada. É uma luz completamente diferente. O que parece

estar a acontecer naquela televisão, assim, ele o pensa, é uma avaria: algo

falhou e já não se vê o mundo, mas apenas um foco de luz que acende e se

apaga [...] E, aliás, o que estava a acontecer agradava-lhe: da televisão vinha

uma tranquilidade nada habitual. Não havia qualquer som e, de qualquer

maneira, estava tão concentrado naquela luz que mesmo que alguém, do

interior da casa, gritasse, ele não ouviria [...] A luz que vinha da televisão era

inegavelmente uma luz forte, mas o prazer provocado em Lenz não parava

de crescer. (TAVARES, 2008, p. 354-5).

No decorrer desta análise, é bastante justificada essa citação que representa

metaforicamente a abertura da personagem protagonista ao silêncio primordial. Nessa

passagem, Lenz finalmente, entrega-se à luz. Os elementos do circuito exterior e do circuito

interior colidem e a luz é o ponto de encontro desses elementos. “Na verdade, Lenz

Buchmann já não vê as imagens” (TAVARES, 2008, p. 354), porque nada mais se apresenta

de forma direta. “[...] algo falhou e já não se vê o mundo” (TAVARES, 2008, p. 355), ou não

se vê mais o mundo da mesma maneira limitada e restrita. Os movimentos da luz naquela

situação “convertem-se em poderosas insinuações que nos expressam em nossa condição de

desejosos, de seres ávidos por uma totalização jamais cumprida” (KOVADLOFF, 2003, p.

132). A luz não se apresenta sob uma determinada forma. Ela é completamente despojada de

forma. O que é mais marcante na luz é a intensidade, ora mais fraco ora mais forte, com

diferentes tonalidades, projetando uma perspectiva de finitude da personagem: luz que

“desaparece e volta a aparecer” (TAVARES, 2008, p. 354). É preciso assinalar que, o homem

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não consegue suportar por muito essa experiência com a totalidade do ser, por isso a luz vai e

volta; ela não é uma força contínua. Sobre esse aspecto lê-se o seguinte:

Reconheçamos, porém que costuma ser escassa a nossa aptidão para suportar

o silêncio proposto pelo poema – quer dizer, silêncio gerado pelo contato

com o real incógnito. Nossa tolerância nesse sentido é pouca. E por isso que

o silêncio a que se chega através do poema costuma ser rapidamente

transfigurado – o correto seria dizer reduzido – nesse outro silêncio, o da

oclusão, no qual a sensibilidade habitava antes que a inspiração fizesse sua

irrupção. (KOVADLOFF, 2003, p. 34).

Em contrapartida, o circuito exterior que é constituído “pelas suas acções e pelos seus

diálogos” (TAVARES, 2008, p. 73), embora não seja desprovido de silêncio ou carente de

sentido, ele é a fuga necessária a esse silêncio que é de matriz ontológica. Cabe, por isso dizer

que, um silêncio de outra natureza se apresenta nesse exterior. Pois, se o silêncio é elemento

integrante da linguagem e fonte de sentidos, sendo que o discurso apenas adquire sentido por

meio de sua relação intrínseca a esse fenômeno, tanto esses diálogos quanto essas ações

também remetem ao silêncio, em maior ou menor grau, porém um silêncio de um aspecto

diferente do silêncio primordial. Esse circuito exterior é um espaço transformado pelo

silêncio, no entanto, acessível no campo do enunciável. Por isso, exterior, porque está à

superfície e é evidente para quem está do lado de fora. Esse circuito exterior não tem nada em

comum com silêncio primordial, mas também não se opõe a ele.

O circuito exterior, nesse sentido, expressa silêncio que de uma maneira ou outra está

atrelado ao silenciamento que consiste na “[...] palavra encoberta, palavra rejeitada,

enunciação possível, mas evitada [...] pelo medo, pelo hábito ou pelo preconceito”

(KOVADLOFF, 2003, p. 26), que caracteriza tanto as ações quanto os diálogos do conjunto

de personagens que compõe Aprender a Rezar na Era da Técnica, sobretudo, Lenz

Buchmann. Há no circuito exterior uma força que procura:

Não deixar ninguém de fora, eis, aliás, como Lenz Buchmann poderia definir

a ambição que colocava em cima das suas decisões: desejava uma decisão

que não permitisse neutralidade, que de cada coisa fizesse um aliado ou

inimigo. Decisão para a qual não existisse um único ouvido surdo ou um

único olho cego: tudo seria envolvido. (TAVARES, 2008, p. 156).

Fiel, portanto, à ideia de uma palavra que não é transparente naquilo que fala e naquilo

que intende, Lenz desvencilha-se da “palavra interior, que em vão procura sua equivalente

[...] mas é a pausa vital de toda palavra poética” (SCIACCA, 1967, p. 59). Em vão, Lenz tenta

se desbastar do silêncio primordial à constituição do ser e à constituição do romance. Ele

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elege, em seu lugar, a palavra “que nunca pára: (que) não tem necessidade dos silêncios da

meditação, das pausas da reflexão” (SCIACCA, 1967, p. 54) que é envolta de um silêncio

encobridor de um significado possível, e que caracteriza, não apenas o seu modo de falar

como o das demais personagens de Aprender a Rezar na Era da Técnica.

Aparentemente, a palavra não dita se contrapõe à ideia de vazio sustentada pelo

silêncio primordial. Não obstante, a palavra não dita ainda não alcançou a plenitude de

significações possíveis, ela tampouco conseguiu superar o seu limite. Ela não se equipara ao

silêncio primordial. A palavra não dita apenas sustenta a ilusão de que se esgotaram todas as

possibilidades de significação. Com efeito, o horizonte que separa a palavra evasiva da

palavra essencial é, justamente, preenchido por um nada de sentido que pressupõe o encontro

desse duplo circuito: do circuito exterior, transformado pela técnica, e do circuito interior,

ainda intangível. Assim, a partir do movimento de ambos infunde no romance um mar de

possibilidades de sentido.

Ao aproximar-se da morte, Lenz finalmente se cala. E faz com que os outros também

se calem. Torna-se carente de silêncio. “Que bom, sim, para longe; deitem o lixo para o longe,

mas façam-no em silêncio!” (TAVARES, 2008, p. 279); “Foi então que Lenz Buchmann fez

um sinal firme para Julia se calar. E Julia calou-se” (TAVARES, 2008, p. 282); “Buchmann

pensava em dizer Não, Não em voz alta” (TAVARES, 2008, p. 351). Transmitindo a ideia de

que não há palavra que soe melhor que o silêncio. “Calai! Esta ordem do silêncio é, ao mesmo

tempo, ordem à auscultação. Faz-se silêncio, todos escutam, ninguém fala: instaura-se uma

profunda comunicação como entre pessoas que se comunicam desde a eternidade”

(SCIACCA, 1967, p. 69). Por tudo isso, o romance sugere, de certa maneira, que há de se ter

que aprender a rezar e recobrar essa potência primordial que a era da técnica ocultou.

E sobre esse aspecto, o que há de verdadeiramente novo sobre o silêncio em Aprender

a Rezar na Era da Técnica que se pode aprender nessa abordagem do silêncio primordial é

que toda elaboração dessa narrativa implica esse contato paradoxal: onde há um impulso

ensurdecedor provocado pela euforia causada pela técnica, que impõe censura e cesura à

linguagem, que escamoteia sentidos possíveis e outro, cujo conteúdo inominável desperta

silêncio e o inefável se faz falar pelo silêncio primordial.

Entretanto, ao abordar aspectos que levam a personagem protagonista, Lenz

Buchmann, a um gradual processo de desumanização e as demais personagens a um processo

de reificação, a narrativa adquire contornos mais hostis e o furor da técnica se sobrepõe à

natureza humana. Consequentemente, o circuito exterior, transformado pela mão da técnica,

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sobrepõe-se ao circuito interior, onde a técnica ainda não alcançou. Esse circuito composto

por diálogos e ações destaca-se em detrimento do circuito invisível, inominável e “não

partilhável” (TAVARES, 2008, p. 73), intangível.

Ainda assim, esse circuito exterior jamais foi indiferente e transparente em relação ao

silêncio. Ele, por si só, pressupõe silêncio ainda que diferente do silêncio primordial, “o

silêncio é um isolador, mas, ao mesmo tempo, o condutor mais eficaz. Não repele os raios,

simplesmente os faz escorregar para o seu fundo sem fundo” (SCIACCA, 1967, p. 69), ou

seja, de volta para silêncio primordial.

O trajeto percorrido pelo romance, assim, perpassa tanto pelo circuito exterior quanto

interior, e, muitas vezes, Lenz Buchmann é confrontado com esse circuito interior que é mais

relevante. “Embora o homem não possa, em consequência, deixar de estar exposto,

ocasionalmente, a essa intempérie ontológica, tampouco pode deixar de impugná-la, de

rejeitá-la, de rebelar-se contra o seu domínio” (KOVADLOFF, 2003, p. 35). Assim, ainda que

obstinadamente Lenz tenha tentado rumar para outra direção, o silêncio primordial mostra-se

como um caminho inevitável.

3.3. Aprender a Rezar na Era da Técnica e leitor a caminho do silêncio

Há várias maneiras de experimentar o silêncio e, com certeza, uma delas, é a leitura da

literatura 21

. Ler é entregar-se ao silêncio. Ler é impor a si mesmo silêncio. Ler é traduzir o

silêncio de cada palavra. Ler pressupõe o silêncio do leitor e da palavra poética. O leitor de

Aprender a Rezar na Era da Técnica registra, assim, um movimento de silêncio duplo; o

primeiro resume-se no esforço de aderir a uma prática que foi, há muito, enjeitada de nossas

formas sociais: o estar em silêncio; o segundo requer do leitor a capacidade de se projetar

além das palavras do autor e adentrar no silêncio da obra literária.

Ambas as tarefas não são fáceis. “A nossa época ruidosa é uma época sem harmonias,

sem silêncio, nem sons. Pobre de ‘palavras’ rica de ‘vozes’” (SCIACCA, 1967, p. 52). Por

isso, colocar-se em silêncio representa um enorme esforço. A literatura, por outro lado, é rica

de palavras ricas de silêncio e, nesse sentido, a leitura de um texto literário supre essa falta de

21

Destaca-se a literatura dos mais textos, pois os textos literários têm uma particularidade que os torna únicos;

essa particularidade é justamente a sua linguagem. Segundo a ótica formalista, o que torna um texto obra de arte,

portanto, literatura, seria o uso de vários procedimentos que resultariam na desautomatização da linguagem, ou

seja, a apropriação de vários recursos que tornariam a linguagem literária distante daquela linguagem comum,

usada em atividades quotidianas. Sendo a sua linguagem única, ela não pode ser mudada ou parafraseada. Ela

carrega consigo silêncios que não se traduzem fora do seu meio.

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silêncio referida por Michele Sciacca. David Le Breton (1999) avalia que a

contemporaneidade é marcada por “um imperativo de dizer tudo” (LE BRETON, 1999, p.

12). Ainda segundo esse autor, “a modernidade é a chegada do ruído. O mundo faz ressoar,

constantemente, instrumentos técnicos cujo uso acompanha a vida pessoal e colectiva” (LE

BRETON, 1999, p. 14). O homem tornou-se refém do barulho e do sem sentido em quase que

todos os instantes do seu dia a dia.

A proliferação da técnica e do ruído causa a embriaguez da palavra e desqualifica o

silêncio como instância primeira de sentido. É precisamente o fato de o mundo governado

pela técnica e marcado pela verborragia que se sustenta a ilusão de que a palavra é suficiente

em si mesma e de que a palavra é inesgotável para se referir as coisas do homem e do mundo.

Muito embora, “o palavreado destrói a linguagem [...]” (LE BRETON, 1999, p. 69) e asfixia o

silêncio. Por isso, a leitura surge como um escape a esse caos sígnico que caracteriza o mundo

contemporâneo. Aprender a Rezar na Era da Técnica, inclusive, ilustra muito bem, através de

suas personagens, o peso esmagador da palavra sobre o sujeito carente de silêncio.

É bastante compreensível, portanto, que Lenz e seu irmão mais velho, Albert, sejam

tão dedicados à leitura. Destaca-se que “(os dois eram excelentes leitores)” (TAVARES,

2008, p. 75). As visitas de Albert à casa do irmão eram marcadas por conversas sobre os

livros da biblioteca Buchmann. “Numa visita rara, sempre preenchida com alguma dissertação

sobre literatura [...]” (TAVARES, 2008, p. 75); “O irmão Albert era também um homem de

cultura robusta, alguém que sabe quais os livros que pesam na prateleira e quais os livros que

parecem flutuar não parecendo ser coisas [...]” (TAVARES, 2008, p. 125); “a biblioteca

aumenta a sua força” (TAVARES, 2008, p. 244); “A biblioteca de família [...] aumentara

naqueles últimos tempos a um ritmo invulgar” (TAVARES, 2008, p. 245); “Eram raros os

autores contemporâneos que não lhe enviavam os seus livros e alguns eram incorporados na

parte principal da biblioteca já que Lenz via neles um instinto novo e forte [...]” (TAVARES,

2008, p. 245). Enfim, todas essas passagens sugerem que os irmãos Buchmann eram hábeis e

ávidos leitores.

Eles reconheciam a importância de se ler e estar em silêncio em um contexto em que

não pronunciar palavra é sinônimo de estar sem sentido, ou seja, um desvio do padrão. Não

obstante, ao ler, o homem não está mudo, mas está em silêncio. Está pensando e construindo

sentidos dentro de seu silêncio.

Para o nosso contexto histórico-social, um homem em silêncio é um homem

sem sentido. Então, o homem abre mão do risco da significação, da sua

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ameaça e se preenche: fala. Atulha o espaço com sons e cria a idéia de

silêncio como vazio, como falta. (ORLANDI, 2007, p. 34).

Porque a atual conjuntura estabelece que construir sentidos é o mesmo que produzir

sons e signos (ORLANDI, 2007). Segundo essa autora, “isso se expressa pela urgência do

dizer e pela multidão de linguagens a que estamos submetidos no cotidiano. Ao mesmo

tempo, espera-se que se estejam produzindo signos visíveis (audíveis) o tempo todo”

(ORLANDI, 2007, p. 35). Entretanto, a leitura demonstra que não existe relação direta entre

falar e significar. Sabe-se que alguém pode falar o tempo todo sem conseguir dizer coisa

alguma. E alguém pode ficar em silêncio com a intensão de dizer muito. “O poeta mergulha

no silêncio” (STEINER, 1988, p. 66). O silêncio do poeta e da palavra poética diz muito,

porque o seu silêncio é uma abertura para o leitor descobrir em seu próprio silêncio e o que há

de mais profundo em sua interioridade. “O mais elevado e puro grau do ato contemplativo é

aquele em que se aprendeu abandonar a linguagem. O inefável encontra-se além das fronteiras

da palavra” (STEINER, 1988, p. 30). Por isso, a leitura silenciosa de um livro constitui, por si

só, uma atividade construtora de sentidos. Além disso, ao ler, o silêncio nos interpela e o

leitor é confrontado com o silêncio que inspira a palavra poética e estabelece novas relações

de sentido.

Assim, ao entrar em seu próprio silêncio o leitor embarca no silêncio do romance. “É

preciso sublinhar: o poeta jamais nos dirá o que ouviu. E o silêncio extremo se prolongará em

suas palavras como eco de um encontro decisivo” (KOVADLOFF, 2003, p. 32). Leitor e obra

se enredam no silêncio. Na obra literária, “a língua é deliberadamente levada ao seu limite”

(STEINER, 1988, p. 59). Exige-se do leitor reflexão sobre cada palavra lida no romance,

fazendo com que o silêncio cultivado pelo leitor se converta em um esforço de leitura e

interpretação do silêncio cultivado pelo poeta.

Da relação estabelecida entre leitor e Aprender a Rezar na Era da Técnica surgem

uma série de significados que são depreendidos do contato do silêncio da obra com o silêncio

do leitor. Desse modo, a leitura em profundidade de Aprender a Rezar na Era da Técnica

implica necessariamente o reconhecimento desse diálogo fundamental. Assim, “se a

linguagem e o silêncio se misturam na expressão da palavra, podemos dizer também que todo

o enunciado nasce do silêncio interior do indivíduo em permanente diálogo consigo mesmo”

(LE BRETON, 1999, p.17-8). Dependendo do repertório de cada leitor, as possibilidades de

leitura de um romance são incomensuráveis, pois o leitor precisa, primeiramente, estar em

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pleno silêncio e dentro de si construir sentidos para então poder significar os silêncios

contidos no interior da obra.

Portador de múltiplos sentidos que apontam a todas as direções, esse fenômeno plural

e multifacetado homologa a impossibilidade de fixar significado ao silêncio. Realizar uma

leitura em que pese tanto o silêncio do leitor quanto o silêncio da obra significa entender a

literatura como um produto de expressão social interativa, capaz de estabelecer laços e

significados com o silêncio do leitor. Em entrevista, Gonçalo M. Tavares explica que os

leitores cumprem um papel fundamental no processo de significação de suas obras, dando a

elas significados diferentes em cada contexto. Ao tratar do conjunto de Livros Pretos,

Gonçalo M. Tavares faz a seguinte menção.

Não me interessa muito situar no holocausto ou não holocausto, ou seja, uma

experiência que eu tive, tenho tido, felizmente, com os leitores de diferentes

países é a identificação. Por exemplo, pessoas da Europa, do meio da Europa

identificam-se, pessoas da ex-Iugoslávia identificam esse livro com o seu

mundo, pessoas da Argentina ou pessoas da América do Sul identificam

alguma ideia da violência imanente dos livros com a sua experiência.

Portanto, vários leitores remetem com o seu mundo esses acontecimentos. E,

infelizmente, lamenta, digamos, o que está nestes livros é uma reflexão sobre

o medo, sobre a violência, sobre a agressividade, como é que isso gera, não é

especifico de nenhum período histórico nem de nenhum espaço concreto

geográfico (TAVARES, 2013, s/p).

É patente, assim, que o romance adquire a possibilidade de significar de muitas outras

maneiras graças ao silêncio que invade a realidade do leitor e se mistura ao silêncio poético.

Tanto se tem discutido essa relação que se faz necessário destacar alguns dos desdobramentos

do silêncio no leitor real. Aqui se intenta entender os efeitos de sentido do silêncio sobre o

leitor e entender também quais são as suas consequências para a leitura e interpretação de

Aprender a Rezar na Era da Técnica. Para não ser redundante, pensa-se que é necessário

sublinhar apenas algumas leituras, a fim de que elas possam ir ao encontro das leituras

anteriores sem pretender, jamais, esgotar as possibilidades de leitura de Aprender a Rezar na

Era da Técnica.

O primeiro aspecto a se destacar é o título pouco convencional: Aprender a Rezar na

Era da Técnica. Os leitores, ainda que acostumados, a leitura de romances modernos, como é

o caso da obra de Gonçalo M. Tavares, surpreendem-se com esse título não descritivo e nem

um pouco evidente. O título do romance é, forçosamente, causa de estranhamento para os

leitores. Para Antônio Guerreiro, o título tem “ressonâncias científico-filosóficas bem

marcadas” (GUERREIRO, 2007, s/p). Destaca-se, assim, o ensaio de Walter Benjamin

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intitulado A obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica (1987) o leitor

reconhecerá, instantaneamente, o espelhamento em ambos os títulos (GUERREIRO, 2007).

Entretanto, apenas um leitor dedicado à leitura como Lenz e Albert perceberia que os títulos

extrapolam em todos os níveis qualquer relação de causalidade ou coincidência.

Certo é que Gonçalo M. Tavares confere ao romance uma densidade à escrita que

acaba imprimindo dificuldade para o leitor alcançar no silêncio a herança textual do qual o

romancista se apropria. Embora haja laivos do texto benjaminiano que se manifestam entre as

frestas do romance, o silêncio do leitor precisa estar em consonância com o silêncio que se

manifesta no interior da obra.

No ensaio A obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica, Walter Benjamin

(1987) discute, em poucas páginas, o aprimoramento da técnica como um fenômeno capaz de

transcender o hic et nunc da obra de arte. Em outras palavras, isso significa que a técnica

acessibiliza e populariza o que antes estava restrito a apenas alguns grupos sociais. O

aprimoramento da reprodutibilidade técnica poderia ser capaz de estimular a participação das

massas e vir a ser de controle popular. Por outro lado, ao longo de sua discussão sobre a

cultura tecnocrática e os seus notáveis avanços, Walter Benjamin, adverte que o progresso do

domínio da técnica favorece o surgimento de figuras autoritárias e opressoras. A difusão de

ideias em larga escala, a projeção da voz também em escala sobre humana, por exemplo,

possibilita a massificação e a centralização do individuo.

É o que pode ser observado em Aprender a Rezar na Era da Técnica, a partir do

processo de ascensão de Lenz Buchmann, da medicina para a política, e a sua gradativa

exposição às massas. A soma desses eventos correlaciona-se com o ensaio alemão. Lenz é

tomado pela ideia de alcançar as massas, de sair de seu próprio silêncio e ser ouvido por toda

a cidade e assim estender o seu poder como nunca poderia fazer enquanto médico. “Estava

cansado de tratar com homens individuais e de ele mesmo ser um homem individual; aquela

não era sua escala; queria operar a doença da cidade inteira e não de um único e insignificante

ser vivo” (TAVARES, 2008, p. 93). Substitui a técnica da medicina por outra técnica. Uma

técnica que não estava sujeita às mesmas restrições de primeira.

A nova técnica, a técnica que o político tem ao seu alcance, mobiliza as massas e dá a

Lenz o poder de provocar nelas o primeiro e o segundo medo. O político do Partido é

investido de poder, poder capaz de criar a ilusão de inclusão e de participação nas massas.

Embora, na realidade a massificação favoreça, nesse sentido, a alienação. As massas

controladas por Lenz e Hamm Kestner não estão conscientes do movimento causado pelo

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primeiro medo ou pelo movimento do segundo. O comportamento das massas é moldado pela

voz dessas figuras autoritárias.

Diante de tais fatos, entende-se que a relação estabelecida entre Aprender a Rezar na

Era da Técnica e A obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica se dá no silêncio

da obra no contato com o silêncio do leitor. Verifica-se que os procedimentos que unem uma

obra a outra não são ditos expressamente, portanto, se manifestam no silêncio que se instala

na narrativa, silêncio este que apenas alude e joga com os argumentos tecidos por Walter

Benjamin (1987) em seu ensaio. E que a personagem protagonista deixa transparecer em suas

atitudes algumas das observações feitas pelo filósofo alemão. A experiência com o silêncio é

irredutível às palavras e só no silêncio essa experiência se manifesta. Entretanto, chegar a essa

leitura só é possível a partir do silêncio do leitor, pois os elementos da obra, quaisquer que

sejam, ditos ou não ditos, não são suficientes para, obrigatoriamente, estabelecer relações

dessa natureza.

Outra face particularmente importante sobre o silêncio do leitor que se desdobra em

significações para Aprender a Rezar na Era da Técnica é o nome da personagem

protagonista. A personagem Lenz é inspirada na narrativa homônima alemã de Georg

Büchner (GUERREIRO, 2007). Na obra de Georg Büchner (1994), a personagem Lenz,

inspirada no poeta Jakob Michael Reinhold Lenz, padece de uma doença psíquica e a

narrativa acompanha o agravamento dessa doença. Não é por coincidência que a personagem

Lenz de Gonçalo M. Tavares também sofre de uma doença no cérebro que se agrava

progressivamente no decorrer da narrativa.

O ponto fundamental dessa questão, no entanto, não é apenas a relação entre essas

duas personagens distintas que o leitor pode estabelecer, mas há uma característica muito

mais importante que o leitor de ambas as obras poderá reconhecer: o estilo narrativo

desconexo e não linear na obra do poeta Lenz. Tal estilo narrativo influenciou bastante Georg

Büchner que ao compor a sua narrativa sobre Lenz, pensou que seria bastante compatível com

a condição mental da personagem Lenz, reproduzir: “sequências interrompidas, entrelaçadas,

curtas e abruptas, diálogos repentinos, sem introdução, descritos em tempo apurado,

acelerados, descrições vivas, agitadas e caprichosas, formas poéticas com o fim de revelar a

psicologia de uma alma torturada” (SCHWARZ, 2008, p. 103). A pesquisa de Bernhard

Johannes Schwarz intitulada No Caminho de Georg Büchner (2008) afirma também que o

estilo adotado por Georg Büchner é resultado de uma extensa pesquisa sobre a vida e obra do

poeta Jakob Michael Reinhold Lenz, Büchner dedicou longos anos de sua vida para dar a

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forma da narrativa Lenz. E, conforme foi discutido no segundo capítulo dessa dissertação,

Aprender a Rezar na Era da Técnica conserva muitas dessas características elencadas por

Bernhard Johannes Schwarz (2008).

A intertextualidade permite ao leitor de Aprender a Rezar na Era da Técnica fazer

correspondência com inúmeras obras do cenário filosófico e literário e, muitas vezes, essas

relações intertextuais extrapolam o domínio verbal e somente podem ser percebidas e

abordadas por meio da leitura silenciosa e atenta dos silêncios que emergem do romance.

Essas leituras, por sua vez, são bastante pertinentes, pois refletem o papel do leitor na sua

relação com o texto literário e enfatizam que os leitores depreendem significados múltiplos e

variados. Ler é um entendimento, uma interpretação que se realiza por partes e o silêncio

prova ser fundamental para o processo de leitura.

A princípio, as frases que se apresentam no ato da leitura dão a falsa impressão de que

a voz do poeta se dirige ao leitor, e que a palavra acolhida faculta ao leitor a visão do poeta.

Nessa direção, a leitura de Aprender a Rezar na Era da Técnica levaria o leitor a contemplar a

palavra poética tal como ela foi concebida. Muito embora, o silêncio prova que a voz do poeta

manifesta se não em suas palavras, mas através de seu silêncio. Eis que o silêncio é o

fundamento de Aprender a Rezar na Era da Técnica.

A voz do poeta é um eco silencioso que reverbera na palavra poética. A voz do poeta,

o leitor jamais reconhecerá em sua totalidade. Por isso, Aprender a Rezar na Era da Técnica é

uma obra inacabada. Antes e depois das palavras há apenas silêncio, potência criadora

imensurável. No silêncio da obra, o mundo do leitor se abre e no silêncio do leitor a obra se

desdobra e se reconstrói. Nas formas do romance ecoa um murmúrio inominável ou uma

potência decisiva que sempre foi considerada inexplicável e intangível. Completo mistério.

Entretanto, essa força jamais pareceu ser um problema insolúvel para o leitor conseguir

embarcar na obra. Aliás, é justamente essa força inominável que possibilita ao leitor a

capacidade de alçar esse Reino tavariano. A essa força dá-se o nome de silêncio.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

"O silêncio extremo, ao ser vivenciado em sua nudez, aniquila tanto a palavra encobridora como o silêncio encobridor".

(Santiago Kovadloff)

A representação da violência demanda uma linguagem igualmente violenta, capaz de

desnudar pela forma a assimetria de poder e expor a crueldade, a barbárie e a indiferença que

marcam a relação entre as personagens de Aprender a Rezar na Era da Técnica. Essa

assimetria de poder manifesta-se no romance sob a forma de uma linguagem rascante e

entrecortada, edificada sobre silêncio e apagamento. À medida que o romance compromete-se

com a representação da violência e da maldade em sua forma mais plena sondando o lado

mais obscuro e inexprimível da face humana, o silêncio se impõe de maneira mais decisiva

sobre toda a narrativa. Os esforços empreendidos pelo autor combinam o resgate da potência

necessária para traduzir o obscurantismo de um mundo intraduzível por meio do silêncio e da

gestão de sentidos ou da operacionalização do silêncio que resulta no apagamento de sentidos

possíveis mediante o silenciamento (censura).

Destarte, toda trama de Aprender a Rezar na Era da Técnica está comprometida com

um duplo movimento do silêncio. Um silêncio que enche e outro que apaga. O primeiro que é

plena potência criadora e o outro, cuja função encobridora, não obstante, também é essencial à

trajetória do romance, como, pertinentemente, constata Santiago Kovadloff (2003). Um

constitui-se a partir da articulação primordial da linguagem “[...] já que o silêncio é o espaço

diferencial que permite à linguagem significar (discretamente). No silêncio, o sentido se faz

em movimento, a palavra segue seu curso [...]” (ORLANDI, 2007, p. 153). Enquanto o outro

se fundamenta no caráter político da linguagem que “[...] está na base da divisão dos sentidos

[...]” (ORLANDI, 2007, p. 107). E o funcionamento desse duplo movimento do silêncio em

Aprender a Rezar na Era da Técnica organiza o universo do romance.

Essa organização consiste, portanto, no equilíbrio assimétrico obtido pelo autor, onde

o silêncio que enche e o silêncio que apaga não se opõe um ao outro. Ambos complementam-

se na dialética da linguagem. Afinal, tanto este quanto aquele é silêncio. Independentemente

de sua forma, o silêncio é comunicação e “[...] o silêncio tem sempre a última palavra” (LE

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BRETON, 1999, p. 265). Quer se considere silêncio, silenciamento ou censura, tanto num

caso quanto no outro, coloca-se a questão fundamental defendida nesta dissertação: o silêncio

significa.

Eis que ao se debruçar sobre as formas tirânicas do silêncio, nas formas do romance,

descobre-se uma linguagem que equilibra plena potência e uma inevitável interdição.

Descobre-se uma linguagem com ganas de superar a impossibilidade de se referir ao

tecnicismo, à barbárie e ao horror do mundo e, sobretudo, o horror que reina no interior do

homem. O que requer, então, uma linguagem de ação. Uma linguagem que não caia no

abismo do vazio ou do eco, que não fique refém desse mundo onde a “[...] proliferação

técnica da palavra [...]” (LE BRETON, 1999, p. 15) cede ao parlapatório sem sentido.

A esse respeito, Georg Steiner recorda “[...] que a beleza e a verdade da linguagem são

inadequadas para lidar com o sofrimento humano e o avanço da barbárie. O homem tem de

encontrar uma poesia mais imediata e mais útil para o homem do que a poesia de palavras:

uma poesia de ação” (STEINER, 1988, p. 141-2). Gonçalo M. Tavares em entrevista

concedida no ano de 2007 para a revista Entre Livros faz a seguinte colocação: “Interessa-me

perceber o medo, o mal, a violência, mas também os gestos surpreendentemente bondosos;

interessa-me ainda a lógica da linguagem etc” (TAVARES, 2007, s/p). Essa colocação remete

à tarefa do autor que está a trabalhar com algo ainda a ser decifrado, ainda a ser descoberto.

Porque o que o autor busca na linguagem não se dá de maneira evidente.

Há uma mensagem cifrada na linguagem que precisa ser descoberta pelo poeta para a

representação do mundo tavariano. A palavra, nesse sentido, está muito aquém da

representação do autoritarismo, da violência, da maldade e da bondade no Reino tavariano. O

silêncio, ao contrário, está além da palavra e se constitui parte essencial na relação com

Aprender a Rezar na Era da Técnica.

O mal e o bem são coisas que estão misturadas e muitas vezes se confundem.

Tal como a beleza e o horror. Julgo que a lucidez passa muito por chamar a

atenção de que a beleza esconde por vezes coisas terríveis e que no terrível

há por vezes coisas que merecem ser olhados com atenção e que nos

ensinam muito. (TAVARES, 2007, s/p).

E para conseguir discernir o bem e o mal no Reino é necessário explorar as zonas de

indeterminação do romance. Olhar além da palavra dita. É necessário superar o dualismo:

bem/mal e claro/escuro e palavra/silêncio. Porque em Aprender a Rezar na Era da Técnica

predomina uma linguagem oblíqua e silenciosa, que supera a tendência contemporânea do

falatório, da instantaneidade e da superficialidade. O romance sugere que todo dito pressupõe

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um não dito na linguagem. E ainda mais aquilo que não é evidente requer esforço, reflexão e

meditação. Do contraste obtido pelo silêncio com a palavra, o leitor é instigado a se lançar em

direção à maldade e à bondade do Reino, de forma mais penetrante e rigorosa, com intuito de

desnudar essa voz silenciosa que permeia toda a narrativa e refazer todo o trajeto empenhado

pelo romancista para a representação desse mundo degradado. O leitor torna-se coparticipante

desse duplo movimento que compõe a trama de Aprender a Rezar na Era da Técnica. É

nítido, portanto, o engajamento do leitor proporcionado pelo silêncio vivo e desconfortante. E

o sentido do silêncio está no esforço que se faz para compreendê-lo. Ao fazer uma reflexão

sobre a linguagem, Gonçalo M. Tavares afirma que:

A linguagem para mim é muito física. E acho que quando vem uma frase eu

sinto muito a descolar-me em relação à frase. A ver de lado a frase. A ver a

nuca da frase. A levantar as saias da frase, ou seja, a ideia de tentar ver o que

está escondido na frase. E de alguma maneira, é muito difícil para mim,

quase apreender uma frase de uma forma direita, literal. Estou sempre a ver

um pouco os ângulos [...] (TAVARES, 2015, s/p).

Esse é, muito provavelmente, um dos principais ingredientes na obra Aprender a

Rezar na Era da Técnica de Gonçalo M. Tavares. Esse autor busca outros ângulos em cada

frase com que trabalha. O que são esses outros “ângulos” senão espaços possíveis para a

plurissignificação, espaços ricos de silêncios, espaços inexplorados pela palavra quotidiana. O

autor de Aprender a Rezar na Era da Técnica encara a linguagem obliquamente. Modela e

constrói a sua prosa usando o silêncio como recurso. Explora o que não está evidente, constrói

uma linguagem que pressupõe o olhar atento e oblíquo e que excede, em todos os sentidos,

qualquer apreensão direta e literal.

Portanto, Gonçalo M. Tavares edifica a sua obra a partir de um paradoxo em que o

invisível que se faz visível a partir de fronteiras imprecisas e inacabadas da linguagem

asseguradas pelo movimento constante do silêncio. Assim, a própria linguagem supera suas

limitações imanentes. Segundo o próprio autor, o romance “[...] é um pouco como se

investigássemos os limites do mundo e da linguagem. E, por exemplo, os paradoxos lógicos

são muito importantes a esse nível: mostram-nos as limitações da nossa forma de ver o

mundo” (TAVARES, 2007, s/p). É bastante significativo, nesse ponto de vista que, as

limitações impostas na forma de compreender o mundo põem autor e leitor em experiência

direta com o silêncio. Em uma busca obstinada para superar as limitações que fundamentam a

estrutura do romance, o romancista é chamado a enveredar por caminhos ainda inexplorados.

Impulsionado pelo sopro silêncio, o autor inspira a obra. “Trata-se de projetar nas palavras a

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insinuação de uma presença intangível; de plasmar num enunciado consequente a vigorosa

vivência de uma proximidade que não admite ser apreendida a não ser como mistério”

(KOVADLOFF, 2003, p. 29). Por força dessa capacidade, Gonçalo M. Tavares dinamizou as

formas do romance e deu ares de um direcionamento para o futuro, conforme se pode concluir

a partir da leitura das considerações de Ferenc Fehér sobre o romance.

É precisamente a consciência da existência do silêncio que faz com que o homem

recorde de sua incompletude, e à luz de sua incompletude o leitor é instigado a desnudar essa

voz silenciosa que permeia toda a narrativa e que caracteriza em grande medida a

incompletude dessa narrativa. O romance, assim, está aberto à plurissignificação. O silêncio

em suas formas é um convite a uma leitura rica de possibilidades. Considerando que em uma

abordagem literária a partir do silêncio:

[...] preferimos ver o silêncio não em torno da linguagem, mas dentro dela,

no espaço ocupado pela figura e por todos os elementos que transformam a

linguagem comum numa linguagem literária, que fazem da linguagem

sonora da comunicação coloquial a linguagem silenciosa da comunicação

escrita e intencionalmente artística. (TELES, 1979, p. 12).

O desvelar dessa linguagem silenciosa torna-se para o leitor totalmente desconcertante

que é confrontado com a face inapreensível da linguagem e ao mesmo tempo luminosa, pois,

não raro, essa mesma face prova ser uma força reveladora do mundo que: “[...] dá acesso a

novas possibilidades, a possíveis modos de ser que, jamais coincidindo com um aspecto

determinado da realidade ou da existência humana, revelam-nos um mundo em sua

complexidade e profundeza” (NUNES, 2009, p. 125). A questão fundamental que daí surge é

como que uma linguagem completamente silenciosa e intransponível é mais significativa que

a comunicação coloquial e sonora?

E como aquela linguagem silenciosa que inspira a palavra poética de Aprender a

Rezar na Era da Técnica poderá superar o ruído incessante daquela linguagem quotidiana?

Ora essa indagação nesse momento parece ratificar a potência criadora do silêncio,

assegurando que o sentido de qualquer linguagem implica o contato com o silêncio. O

silêncio é o ato fundador da linguagem; primordial ao sentido, inevitável por natureza e

incessante por sua impreterível imprescindibilidade.

À medida que as palavras dão forma ao romance percebe-se nela, simultaneamente, a

forma do silêncio. É que a linguagem é composta por palavras e silêncios. O processo de

construção do romance levou a um processo maior de organização pelo silêncio. Daí, surgiu a

ideia de uma arquitetura de silêncio proposta no segundo capítulo. Aprender a Rezar na Era

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da Técnica está determinado em construir um romance empenhando o silêncio no mais

profundo de sua estrutura. Renuncia-se às formas do romance tradicional e ajusta-se a nova

realidade social, marcada pela urgência da palavra que procura recobrar, a todo custo, a

totalidade perdida. No entanto, diante de um fluxo contínuo de palavras cada vez mais

ineficazes surge o silêncio, a não palavra, que dá força a linguagem e liberta-a da

impossibilidade de representação.

Enfim, sob a luz do silêncio Aprender a Rezar na Era da Técnica dá forma ao que já

não era mais possível de conceber através das palavras. Se o mundo se tornou grande demais

para caber na extensão do nosso alfabeto, conforme constata Georg Steiner (1988). Aprender

a Rezar na Era da Técnica confirma o fracasso da representação do mundo pela palavra. A

falência verbal discutida por esse autor se torna, a partir desse romance, patente. Mediante

essas constatações, a tessitura silenciosa de Aprender a Rezar na Era da Técnica supera

qualquer impossibilidade de representação e liberta o romance da fixidez imposta pela forma

verbal.

Com efeito, as formas do silêncio permitem ao romance elevar-se e projetar-se além

da escrita. O impossível do ponto de vista narrado torna-se possível do ponto de vista do

silêncio. O silêncio integrado às formas é mais do que um simples recurso técnico de

representação literária, é um percurso fundamental que é empreendido pelo poeta que

pretende uma ruptura com o espaço invadido pelas máquinas e pela técnica. Aprender a Rezar

na Era da Técnica ressalta uma linguagem literária em que o leitor assiste ao fracasso da

palavra e ao triunfo do silêncio.

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