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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS UNIDADE UNIVERSITÁRIA DE CIÊNCIAS SÓCIO-ECONÔMICAS E HUMANAS CURSO DE LETRAS PERSPECTIVAS DE LEITURAS EM LADRÕES DE HISTÓRIAS DE JOÃO ANZANELLO CARRASCOZA JULIANA RANGEL FONSECA ANÁPOLIS 2009

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS

UNIDADE UNIVERSITÁRIA DE CIÊNCIAS SÓCIO-ECONÔMICAS E HUMANAS

CURSO DE LETRAS

PERSPECTIVAS DE LEITURAS EM LADRÕES DE HISTÓRIAS DE JOÃO ANZANELLO

CARRASCOZA

JULIANA RANGEL FONSECA

ANÁPOLIS

2009

JULIANA RANGEL FONSECA

PERSPECTIVAS DE LEITURAS EM LADRÕES DE HISTÓRIAS DE JOÃO ANZANELLO

CARRASCOZA

Artigo apresentado à Coordenação do Curso de Letras para fins

de obtenção do grau de licenciado em Letras com Habilitação

em Línguas Portuguesa e Inglesa e Literaturas pela Universidade Estadual de Goiás.

Orientadora: Profª Ms. Euda de Fátima de Castro

Co-orientadora: Profª Ms. Keila Matida de Melo Costa

ANÁPOLIS

2009

FOLHA DE APROVAÇÃO

Autora: JULIANA RANGEL FONSECA

Título: PERSPECTIVAS DE LEITURAS EM LADRÕES DE HISTÓRIAS DE JOÃO

ANZANELLO CARRASCOZA

Data de Defesa: 10 de dezembro de 2009.

BANCA EXAMINADORA CONCEITO

_________________________________________________ ___________

Profª. Ms. Euda de Fátima de Castro

Orientador

_________________________________________________ ___________

Profº Dr. Ewerton de Freitas Ignácio

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo analisar aspectos estéticos e ideológicos no romance infanto-juvenil

Ladrões de histórias (2003) de João Anzanello Carrascoza. Procura-se discutir questões relativas à construção da

narrativa, à materialidade do livro, ao papel atribuído ao leitor, à discussão entre imaginação e realidade

(fantástico, estranho e maravilhoso) e à intertextualidade que a obra proporciona. A metodologia utilizada é o

estudo bibliográfico por meio de uma revisitação teórica em alguns autores da literatura infanto-juvenil, como

Coelho (2000) e outros críticos literários.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura Infanto-Juvenil. Imaginação. Realidade. Fantástico. Leitor. Intertextualidade.

ABSTRACT

This article aims to analyse aesthetic and ideological aspects in the juvenile novel Ladrões de histórias by John

Anzanello Carrascoza.It's been tried to discuss issies related to the book narrative and materiality , the role

played by the reader, the discussion between imagination and reality ( fantastic, weird and wonderful) and to the

intertextuality provided by the work. The bibliographic methodology was used through a revisitation to some

children's authors, like Coelho (2000) and others.

KEYWORDS Children Literature. Imagination. Reality. Fantastic. Reader. Intertextuality.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 06

REVISÃO DE LITERATURA 08

1 Literatura Infanto-Juvenil 08

2 O texto: do manuscrito ao eletrônico 09

3 O texto e o leitor 11

4 O fantástico, o estranho e o maravilhoso 11

DISCUSSÃO 12

1 O texto e o leitor em Ladrões de histórias 12

2 Imaginação X Realidade 16

3 Intertextualidade 19

CONSIDERAÇÕES FINAIS 25

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 26

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa se propõe a investigar alguns aspectos significativos presentes na obra

Ladrões de histórias de João Anzanello Carrascoza. Dentre esses aspectos, estão a relação

entre imaginação e realidade (o maravilhoso e o estranho), o suporte material no qual a obra é

apresentada, a estrutura da narrativa e a presença da intertextualidade em relação a algumas

obras, como Alice no país dos espelhos.

Ladrões de histórias foi escolhida porque se trata de uma obra infanto-juvenil que

possui uma estrutura inovadora e interessante. É um livro que, embora impresso, apresenta

características do texto eletrônico, que envolve o leitor de maneira diferenciada, fazendo-o

participar ativamente do processo de leitura, assumindo, por vezes, também, o papel de autor.

O enredo gira em torno de um fenômeno sobrenatural e inesperado. Em um

determinado dia, as pessoas percebem que coisas estranhas estão acontecendo, como, por

exemplo: sumiço de legendas de filmes, de folhas de revistas, de pedaços de cartas. Os

professores em sala de aula se esqueciam do conteúdo e deixavam os alunos com dúvidas

sobre as matérias, dentre outros. Tudo isso acontecia, porque os Trevosos, seres imaginários,

haviam invadido a Terra e estavam comendo as letras que encontravam pela frente. Jorge e

Alice recebem a missão de detê-los e levá-los de volta ao País da Imaginação. O processo

dessa busca de apreensão dos Trevosos se dá ora no plano do maravilhoso (naturalização do

sobrenatural) ora no plano do estranho ao encontrar no sonho da personagem uma explicação

racional para o fenômeno. Tem-se ainda a perspectiva do autor que, no final, se revela como

personagem-narrador, reforçando o aspecto ideológico da obra ao criticar os comportamentos

sociais perante a leitura e a desvalorização do imaginário.

O autor da obra em análise, João Anzanello Carrascoza, nasceu em 1962 na

cidade de Cravinhos – SP. É graduado em Publicidade e Propaganda pela Universidade de

São Paulo (1983), com mestrado (1999) e doutorado (2003) em Ciências da Comunicação

pela Universidade de São Paulo. O escritor tem publicado coletâneas de contos e romances,

além de obras para crianças e jovens, que lhe valeram alguns dos mais importantes prêmios

literários do país. Para Carrascoza:

A literatura é uma espécie de declaração de amor. Escrevo para partilhar com meu

semelhante a aventura de existir. Narro uma história para que a dor de meu leitor seja esquecida por alguns instantes, e que ele possa ter contato com a minha

experiência. Nesse sentido, creio que a literatura é uma entrega. (CARRASCOZA,

2004, p.79)

7

Como metodologia, buscou-se apoio na pesquisa bibliográfica. Os principais teóricos

utilizados no decorrer do artigo foram: Coelho (2000), Lajolo (1996) e Zilberman (1996) que

realizam pesquisas constantes acerca da literatura infanto-juvenil. Chartier (1999) que levanta

questões em torno da materialidade do livro, e Eco (1986), que discute questões relativas ao

texto e ao leitor. Sobre o fantástico, o estranho e o maravilhoso, buscou-se apoio teórico em

Todorov (2008) e Chiampi (1980).

Para melhor compreensão deste estudo, decidiu-se iniciá-lo com uma revisão de

literatura em torno das teorias que foram utilizadas, para, a seguir, proceder a análise em torno

da transição que se dá na obra entre imaginação e realidade (o maravilhoso e o estranho), do

aspecto material no qual a obra é apresentada, da estrutura da narrativa e da presença da

intertextualidade.

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REVISÃO DE LITERATURA

1 LITERATURA INFANTO-JUVENIL

A literatura infantil surgiu concomitantemente com o conceito de família e criança

reformulado pela classe burguesa no século XVIII. A função dessa literatura tinha caráter

moralizante e servia como um recurso da família e da escola para educar.

Com o desenvolvimento da Pedagogia e da Psicanálise, sobretudo da Psicologia, a

Literatura infanto-juvenil começou a dar ênfase ao aspecto lúdico da leitura desse gênero.

Somente a partir do século XX é que a literatura infanto-juvenil brasileira surgiu e se

firmou. Na década de 20, Monteiro Lobato rompe com a concepção utilitarista do discurso

ficcional dirigido aos leitores mirins.

Na atualidade, muitos autores se preocupam com o estatuto artístico da produção

literária voltada para crianças e adolescentes. Dentre eles podemos citar Lygia Bojunga, Ruth

Rocha, Ana Maria Machado, Marina Colassanti, Bartolomeu de Campos Queirós, e muitos

outros.

A literatura infanto-juvenil, em essência, compartilha da mesma natureza da literatura

dirigida ao público adulto. Os aspectos diferenciados que há na literatura infanto-juvenil são

determinados, de acordo com Coelho (2000, p.29), “pela natureza de seu leitor/receptor: a

criança”.

O livro infantil é visto como um meio de transmitir uma mensagem. Essa mensagem é

transmitida de um autor adulto para um leitor criança/adolescente. Em meio a essa situação, o

ato de ler acaba por se transformar em um ato de aprendizagem. Soriano comenta acerca

desse fenômeno dizendo:

Ela pode não querer ensinar, mas se dirige, apesar de tudo, a uma idade que é a da aprendizagem e mais especialmente da aprendizagem lingüística. O livro em

questão, por mais simplificado e gratuito que seja, aparece sempre ao jovem leitor

como uma mensagem codificada que ele deve decodificar se quiser atingir o prazer

(afetivo, estético ou outro) que se deixa entrever e assimilar ao mesmo tempo as

informações concernentes ao real que estão contidas na obra [...] Se a infância é um

período de aprendizagem, [...] toda mensagem que se destina a ela, ao longo desse

período, tem necessariamente uma vocação pedagógica. A literatura infantil é

também ela necessariamente pedagógica, no sentido amplo do termo, e assim

permanece, mesmo no caso em que ela se define como literatura de puro

entretenimento, pois a mensagem que ela transmite então é a de que não há

mensagem, e que é mais importante o divertir-se do que preencher falhas (de conhecimento). (SORIANO, Apud: COELHO, 2000, p.31)

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Deve-se ter em mente que para haver sucesso no convívio do leitor com a literatura,

precisa-se adequar os textos às diferentes fases do desenvolvimento infantil/juvenil. Coelho

também salienta que:

dentro do sistema de vida contemporâneo (pressionado pela imagem, pela

velocidade, pela superficialidade dos contatos humanos e da comunicação cada vez

mais rápida e aparente...), acreditamos que a literatura (para crianças ou para

adultos) precisa urgentemente ser descoberta, muito menos como mero

entretenimento (pois deste se encarregam com mais facilidade os meios de

comunicação de massa), e muito mais como uma aventura espiritual que engaje o eu

em uma experiência rica de vida, inteligência e emoções. (COELHO, 2000, p.32)

Percebe-se que a literatura infanto-juvenil cumpre dois papéis: o de instruir e o de

divertir. Enquanto se mostra como um instrumento com intenção educativa, diz-se que ela

pertence à área da pedagogia, tem o papel de instruir. Entretanto, quando essa mesma

literatura se configura como um objeto que diverte, dá prazer ou provoca emoções, e que além

disso, é capaz de mudar a consciência de mundo de seu leitor, ela é entendida como arte.

2 O TEXTO: DO MANUSCRITO AO ELETRÔNICO

Em tempos antigos, mais ou menos na década de 1450, somente era possível

reproduzir um texto copiando-o manualmente. Posteriormente, surge uma técnica nova,

baseada na prensa e nos tipos móveis, mudando essa relação com a cultura escrita. Entretanto,

essa transformação não modifica completamente todos os padrões. Conforme afirma Chartier:

um livro manuscrito (sobretudo nos seus últimos séculos, XIV e XV) e um livro

pós-Gutenberg baseiam-se nas mesmas estruturas fundamentais – as do códex.

Tanto um como outro, são objetos compostos de folhas dobradas um certo número

de vezes, o que determina o formato do livro e a sucessão dos cadernos.

(CHARTIER, 1999,p.7).

Observa-se que a forma como o texto é distribuído na superfície da página, os

instrumentos que lhe possibilitam ser identificado (paginação, numerações, índices e

sumários) existem desde a era do manuscrito. Assim, de acordo com Chartier (1999,p.9), “há

uma continuidade muito forte entre a cultura do manuscrito e a cultura do impresso, embora

durante muito tempo se tenha acreditado numa ruptura total entre uma e outra”.

Com relação ao suporte eletrônico, Chartier afirma que há um objeto sobre o qual é

lido o texto: a tela. Contudo, esse objeto não é mais manejado de forma direta, imediata, pelo

leitor. Segundo Chartier:

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o fluxo seqüencial do texto na tela, a continuidade que lhe é dada, o fato de que suas

fronteiras não são mais tão radicalmente visíveis, como no livro que encerra, no interior de sua encadernação ou de sua capa, o texto que ele carrega, a possibilidade

para o leitor de embaralhar, de entrecruzar, de reunir textos que são inscritos na

mesma memória eletrônica: todos esses traços indicam que a revolução do livro

eletrônico é uma revolução nas estruturas do suporte material do escrito assim como

nas maneiras de ler”. (CHARTIER, 1999,p. 12 e 13).

Tratando-se do leitor desse novo tipo de texto, Chartier afirma que ele se parece com o

leitor medieval ou com o leitor do texto impresso, pois o suporte eletrônico conserva certos

referenciais desses outros tipos de texto, como: a paginação, o índice e o recorte do texto, ou

seja, o leitor do texto eletrônico é ao mesmo tempo esses outros dois leitores. De certa forma é

um leitor mais livre, pois o texto eletrônico lhe permite maior distância com relação ao

escrito.

O leitor do livro em forma de códex coloca-o diante de si sobre uma mesa, vira suas páginas ou então o segura quando o formato é menor e cabe nas mãos. O texto

eletrônico torna possível uma relação muito mais distanciada, não corporal”

(CHARTIER, 1999,p.13 e 14).

Chartier afirma ainda que o suporte é que torna possível uma leitura diferenciada.

Percebe-se então que a história relacionada às práticas de leitura, do século XVIII para frente,

se configura como uma história de liberdade. Conforme afirma o autor:

No século XVIII as imagens representam o leitor na natureza, o leitor que lê andando, que lê na cama, enquanto, ao menos na iconografia conhecida, os leitores

anteriores ao século XVIII, liam no interior de um gabinete, de um espaço retirado e

privado, sentados e imóveis. (CHARTIER, 1999, p.78 - 79).

Partindo dessa idéia, nota-se que o leitor de um texto eletrônico é mais livre, pois esse

gênero é maleável e aberto à reescrituras múltiplas. Para exemplificar essa idéia, Chartier traz

o exemplo do jornal. Segundo ele, nos séculos XVII e XVIII, a estrutura de um jornal era

igual a de um livro. A partir do momento em que o jornal ganha um grande formato, uma

distribuição mais ampla, e passa a ser vendido na rua a cada número, foi possível haver uma

atitude mais livre: o jornal pode ser carregado, dobrado, rasgado e lido por muitos.

Quanto ao suporte eletrônico, Chartier (1999, p.88) afirma que ele nos “permite usos,

manuseios e intervenções do leitor infinitamente mais numerosos e mais livres do que

qualquer uma das formas antigas do livro”.

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3 O TEXTO E O LEITOR

Na concepção de Lajolo e Zilberman (1996, p.17) o leitor “se configura como sujeito

dotado de reações, desejos e vontades, a quem cabe seduzir e convencer”. Nota-se certa

cumplicidade do autor com as necessidades do leitor, que não é um sujeito inerte, mas alguém

que atribui sentido ao texto.

Dessa forma o texto e o leitor estão interligados. Eco (1986,p. 36) afirma que “um

texto de uma forma ainda mais decisiva do que qualquer outra mensagem, requer movimentos

cooperativos, conscientes e ativos da parte do leitor”. Afirma ainda que o texto depende da

valorização de sentido que o destinatário (leitor) atribui. Em relação à função estética, o texto

requer a iniciativa interpretativa do leitor, ou seja, o papel do leitor é o de produtor de sentido.

Logo, percebe-se o papel do leitor como produtor de sentido.

As idéias do destinatário (leitor) podem não ser as mesmas do remetente (escritor). E

como solucionar esse problema? Ao escrever um texto o autor deve se certificar de que as

competências às quais ele se refere coincidem com as que se referem o próprio leitor. E para

tal, ao escrever um texto é necessário que o autor tenha em mente um “leitor-modelo” que,

como afirma Eco (1986, p.39), seja “capaz de cooperar para a atualização textual como ele, o

autor, pensava, e de movimentar-se interpretativamente conforme ele se movimenta

gerativamente”. Contudo, nem sempre existe um leitor-modelo, ele precisa ser construído. E

os meios para se construir esse leitor-modelo são muitos, como exemplo, a escolha de uma

língua, do léxico e do estilo. O autor deve então escolher um público-alvo que tenha

condições de usufruir e respaldar sua criação.

Portanto, ainda de acordo com Eco (1986, p.45),“o leitor-modelo constitui um

conjunto de condições de êxito, textualmente estabelecidas, que devem ser satisfeitas para que

um texto seja plenamente atualizado no seu conteúdo potencial”.

4 O FANTÁSTICO, O ESTRANHO E O MARAVILHOSO

Há um gênero que se situa entre os limites do maravilhoso e do estranho: o fantástico.

O mundo onde ocorre o fantástico é exatamente o nosso, no qual, em determinado momento,

pode surgir um fato que não encontra explicação pelas leis deste mundo familiar. Fato que

pode ser percebido como um produto da imaginação ou como produto de uma realidade não

conhecida por nós. Contudo, o fantástico se configura ao existir essa incerteza perante o

acontecimento (realidade ou produto da imaginação?). De acordo com Todorov (2008, p. 31)

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“ o fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a

um acontecimento aparentemente sobrenatural.”

No fantástico, as personagens, de acordo com o ponto de vista do narrador, sempre

oscilam entre uma explicação racional e lógica para os acontecimentos sobrenaturais e a

aceitação da existência de fatos que escapam à realidade conhecida, racional. Se, ao contrário,

ocorrer a escolha de uma das hipóteses (imaginação ou realidade) penetra-se no gênero do

maravilhoso ou do estranho.

O estranho acontece quando os acontecimentos que pareceram sobrenaturais ao longo

de toda a narrativa recebem ao seu final uma explicação racional. Segundo Todorov (2008,

p.51) “se esses acontecimentos por muito tempo levaram a personagem e o leitor a acreditar

na intervenção do sobrenatural, é porque tinham um caráter insólito”.

Em relação ao maravilhoso, esse se caracteriza por ser o “insólito”, o “extraordinário”,

os acontecimentos que não estão de acordo com o natural, com o humano. De acordo com

Chiampi (1980, p.48) “o maravilhoso difere radicalmente do humano: é tudo que é produzido

pela intervenção dos seres sobrenaturais”.

Esses fenômenos sobrenaturais não provocam nenhuma reação nos personagens e nem

no leitor implícito. Como afirma Chiampi (1980,p.61) “os personagens do realismo

maravilhoso não se desconcertam jamais diante do sobrenatural, nem modalizam a natureza

do acontecimento insólito”.

No realismo maravilhoso não há explicação racional para os acontecimentos, esses

pertencem à esfera não natural, não humana. Os fenômenos sobrenaturais deixam de ser o

desconhecido para se juntarem à realidade. Ou seja, no maravilhoso ocorre a “naturalização

do sobrenatural”, o sobrenatural se naturaliza.

DISCUSSÃO

1 O TEXTO E O LEITOR EM LADRÕES DE HISTÓRIAS

A partir dos estudos de Eco(1986), Chartier (1999), Lajolo (1996) e Zilberman (1996)

busca-se a compreensão da estrutura da narrativa, da materialidade do livro e do papel do

leitor em Ladrões de Histórias de João Anzanello Carrascoza.

Quanto à materialidade do livro, percebe-se que na obra em análise Carrascoza

mesclou as características do texto impresso aos do eletrônico.

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No que se refere às características do texto impresso, o autor utilizou certos elementos

como: paginação, numerações, índices e sumários. Além disso, escolheu a forma de livro

impresso para veicular sua obra, porém, inovando ao utilizar os elementos de um texto

eletrônico.

Logo no início da obra, um “mapa de leitura” já mostra aos leitores os possíveis

caminhos que poderão percorrer. Os capítulos não se seguem de forma linear (estrutura

física), o que não impede a linearidade da narração e da narrativa. Assim como é permitido no

suporte eletrônico, o leitor manuseia o livro de forma que pode ir e voltar nas suas páginas.

Ao final de cada capítulo são dadas ao leitor sugestões de percursos, ele (o leitor) é quem

escolhe o enredo que deseja trilhar. Os capítulos, então, são interligados em forma de links.

Assim como no texto eletrônico, cada opção de leitura é dada de forma “sublinhada” da

mesma forma que ocorre quando lemos algo na internet. O leitor é direcionado através de um

link para a leitura do capítulo seguinte, como no exemplo abaixo.

- Acho que são coqueiros mesmo – disse Jorge.

- Onde será que estamos? – Indagou Alice, intrigada.

- Sei lá, respondeu ele, vacilante. – Pode ser uma praia (p.110) ou um deserto (p.49)

(CARRASCOZA, 2003, p. 22)

No fragmento acima, pode-se perceber que as palavras praia e deserto vêm

sublinhadas, de forma semelhante ao que acontece com os links na internet.

Assim, mesmo tendo sido veiculado através de um suporte impresso (livro), a leitura

de Ladrões de histórias é mais “livre” que a de qualquer texto “comum”. A obra tem o

formato de livro, mas o seu manuseio é o de um texto em suporte eletrônico, pois é maleável e

aberto à reescrituras múltiplas, cujo responsável é o próprio leitor. Carrascoza permitiu essas

reescrituras ao leitor a partir do momento em que dá a ele opções para compor o enredo que

deseja. O leitor, assim como se estivesse fazendo a leitura em uma tela, participa mais

efetivamente como leitor interativo. Desse modo, percebe-se que mesmo em formato de livro

(impresso),a obra possibilita manuseios e intervenções do leitor mais livres do que qualquer

uma das formas antigas dos livros.

Vale dizer, no entanto, que apesar dessa abertura dada ao leitor, através desse

manuseio mais livre, também encontra-se a característica da leitura mais “presa”, imposta

pelo texto impresso. Isso se evidencia em alguns momentos da história em que, mesmo o

leitor tendo optado por um determinado caminho para prosseguir na leitura da narrativa,

algumas vezes é necessário trilhar o caminho não escolhido por ele, pois só esse permite dar

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continuidade à história. Conforme exemplo retirado da obra em análise no final do capítulo

estranhos acontecimentos:

- O mundo pode virar um caos!

- Caos? – perguntou Jorge. – O que é isso?

- Confusão,filho.

- Ora, confusão? (p.40) – sorriu ele – Acho que pode virar é uma boa diversão

(p.56). (CARRASCOZA, p.10)

Supondo que o leitor escolha ir para o capítulo diversão, ele precisará retornar ao não

escolhido, confusão.

Jorge e Alice também vibraram.

- Nem precisamos cabular aula – comentou ela. - Nunca ri tanto! – disse ele.

Estavam adorando aquela grande confusão(p.40). (CARRASCOZA,2003,p.58)

Há também aqueles capítulos nos quais são oferecidas ao leitor somente uma opção de

leitura, como em Abram a porta:

- Nossa, que beleza! – exclamou ela, admirada.

- É mesmo – disse Jorge.

- Bem que podia ser a Serra Quieta! (p.127). (CARRASCOZA, 2003, p.11).

Desse modo, mesmo tendo características de um texto eletrônico, Ladrões de

Histórias conserva algumas do texto impresso, entrecruzando formas materiais e estruturais

que inovam e motivam a literatura infanto-juvenil.

Autores como Manuel Antônio de Almeida e Machado de Assis já se utilizavam de

técnicas para conquistar o leitor e assim supunham o leitor-modelo que pretendiam atingir.

Em Manuel Antônio de Almeida, por exemplo, percebe-se o recurso da retomada de eventos,

para deixar o leitor atento aos acontecimentos. O mesmo autor também optava por

superestimar o saber que seu leitor já possuía e fazendo assim conferia ao leitor certa

superioridade. Já em Machado de Assis podemos encontrar as “famosas” conversas que ele

tem com o leitor. Em Ladrões de Histórias notam-se alguns recursos de “sedução” ao leitor,

como a própria característica de texto eletrônico, que permite a ele realizar reescrituras

múltiplas, a leitura que se mostra mais “livre” e a própria forma como o leitor manuseia o

livro, com possibilidade de “ir e voltar” através de “links” e , ainda, a escolha do percurso

que se deseja seguir.

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Outra característica interessante são os jogos propostos na obra. Em um determinado

momento da história, o narrador lança adivinhas e dá as dicas em forma de desenhos para que,

assim, o próprio leitor possa respondê-las e chegar à palavra que abre o capítulo seguinte. Há

ocasiões em que o narrador joga com palavras, fornecendo ao leitor consoantes e vogais de

forma embaralhada, como pistas para a solução do mistério. Enfim, a obra é composta de

enigmas que podem ser solucionados. Verifica-se isso no exemplo abaixo:

Examinaram a seguinte e econtraram igualmente dois grupos de consoantes e

vogais: cmnhs e aio.

- Tá vendo? – disse a menina – É só combinar umas com as outras e conseguiremos a palavra que abre essa porta.

- Certo – disse o garoto. – Mas antes vamos ver a terceira...

Na última porta estava escrito o seguinte: slçs e ouõe.

Havia, portanto, três portas, e cada uma delas poderia ser aberta com uma palavra:

problemas, (p.113) _____ (p.31) e _____ (p.138). Bastava escolher uma e ir em

frente. (CARRASCOZA, 2003, P.144).

Outro aspecto importante é a participação de personagens de outras histórias como

Batman, Chapeuzinho vermelho, A bela adormecida, Branca de Neve, Dom Quixote, dentre

outros. É possível observar esse fenômeno no trecho citado abaixo:

- O que é isso? – gritou Alice, assustada, com algo que veio do céu e passou

raspando pelo seu ombro. – É um pássaro, um avião?

- Não – disse o garoto. – É o Super-Homem!

- Pior que é mesmo – disse a menina. E arrematou, assustada: - Mas ele está sem cabeça!

- Ele também está desaparecendo - comentou o garoto. – Temos de agir logo..

- Se a gente contar, ninguém vai acreditar!

- A essa altura só deve existir a Branca de Neve e dois ou três anões.

(CARRASCOZA, 2003, p.99).

Carrascoza construiu um texto em que o leitor de forma consciente, através da

interatividade, coopera para que a obra adquira sentido e se realize em sua totalidade. Ao

escolher essa forma de seduzir o leitor, o autor elegeu também um leitor-modelo.

Relembrando o conceito de Eco (1986, p.45) “leitor-modelo constitui um conjunto de

condições de êxito, textualmente estabelecidas, que devem ser satisfeitas para que um texto

seja plenamente atualizado no seu conteúdo potencial”. Nesse sentido, Carrascoza, ao

escolher o jovem como seu público e essa forma de construir o texto (um misto entre

eletrônico e impresso), elege como leitor o jovem da atualidade, que é criativo e aprendeu a

realizar várias coisas ao mesmo tempo, enfim, um jovem dinâmico. Essa forma de manusear o

livro faz com que o leitor se interesse pelo que está lendo. Ele pode ir e voltar como se

estivesse em frente a um computador visitando diversos sites através de links que se abrem.

Para aqueles que preferem uma leitura mais objetiva e rápida, a obra traz um “mapa de

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leitura” que o leitor pode observar e a partir daí, escolher um caminho mais curto. Mas,

aqueles que preferem aventuras, podem, também, consultar o mapa e assim traçar o seu

percurso.

2 IMAGINAÇÃO X REALIDADE

A obra analisada possibilita ao leitor leituras diferenciadas. Na construção dos

enredos, percebem-se três finais diferentes. Em dois deles, há a predominância do

maravilhoso e em outro a do estranho e isso só fica claro para o leitor ao final da história.

Verifica-se que até então o que predomina é o fantástico, pois apesar dos

acontecimentos sobrenaturais, não há a certeza se eles realmente são produtos de outra

realidade ou se podem ser explicados pelas leis comuns.

Observa-se isso no capítulo Sim, no qual Zelão se propõe a contar a Alice e Jorge o

que estava acontecendo:

- Ta legal! – disse o velho, sentando-se em cima de uma pilha de pesados e enormes

volumes de livros. – O problema todo está nas garrafas!

- Que garrafas, meu Deus? – perguntou Alice, novamente desconfiada de que Zelão

era mesmo um maluco.

(...)

- O que isso tem a ver com a amnésia das pessoas e esse caos que está aí? –

perguntou o garoto.

- Tem tudo a ver – disse Zelão. – Posso continuar? Com cara de resignação, os dois amigos menearam a cabeça afirmativamente.

(CARRASCOZA, 2003, p. 131-133)

Em um dos desfechos há uma explicação racional para os acontecimentos insólitos:

Jorge acredita que toda a aventura vivenciada havia sido sonho e que Ladrões de histórias

poderia ser o tema de uma história que estava criando. Nesse final existe então a opção pelo

gênero estranho. Verifica-se isso no capítulo Responsável, no qual Jorge se sente,

inicialmente, confuso. Mas, no final, constata que o sonho que tivera naquela noite causou-lhe

a confusão entre ficção e realidade:

- Será que foi tudo um sonho? – ele perguntou a si mesmo.

- Acho que você teve um pesadelo – disse dona Ziza. – Você comeu melancia antes

de dormir?

Jorge não respondeu. Sentia-se atordoado, confuso.

(...) Jorge saltou da cama e recolheu os gibis. Folheou alguns e não notou nada estranho.

Mas, de súbito, sobressaltou-se ao ver os balões de uma das revistas em quadrinhos

preenchidos a lápis com sua própria letra. Aí tudo se clareou: aquele não era mesmo

um gibi comum, mas interativo – que viera por acaso no meio dos outros, criado

para estimular a imaginação do leitor, propondo-lhe o desafio de escrever uma

história a partir de um tema. E lá estava o tema, bem visível, na primeira página:

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Ladrões de histórias. [...] O garoto suspirou: fora tudo fruto de sua própria

imaginação. Misturara ficção e realidade. [...] (CARRASCOZA, 2003, p. 115-116)

Em outro desfecho, o responsável pela confusão gerada no mundo era seu Jijo, pois ele

havia trazido algo do mundo da imaginação e isso não era permitido. Entretanto, quando seu

Jijo percebeu que os Trevosos estavam no mundo real os prendeu em uma gaveta com a

intenção de levá-los de volta. Jorge e Alice, porém, ao procurar um atlas para fazer a lição de

casa abriram a gaveta, espalhando os Trevosos pelo mundo e gerando toda a confusão. E o

motivo de terem sido escolhidos para solucionar o problema era justamente o fato de também

serem os culpados pela bagunça. De acordo com esse fim, Ladrões de histórias seria o nome

do livro que Jorge escreveria quando crescesse e aprendesse a arte de narrar com seu Jijo para

contar as peripécias vividas por ele e Alice no País da Imaginação. Percebe-se isso no capítulo

Culpado:

- Daí que seu pai resolveu dar um giro por aquelas bandas, em busca de inspiração, e

foi parar na Serra Quieta. Descobriu um grupo de Trevosos ali no Rio das Letras e o

trouxe para cá. Desrespeitou as leis. Ninguém pode trazer nada que é do outro lado

pra cá, exceto histórias. Mas ele não é o único culpado. Aliás, seu pai nem sabe que

os Trevosos foram se reproduzindo e comendo letras por aí, ele os guardou muito bem numa gaveta de seu escritório e ia levá-los de volta.

(...)

- Esqueceu que um dia antes de começar a bagunça, você e Alice andaram

revirando as gavetas do escritório de seu pai?

- Fomos procurar um atlas para fazer a lição de casa – respondeu Jorge.

- Os Trevosos estavam lá dentro no escuro e morreriam de fome porque não havia

letras pra eles comerem – disse o velho. – Mas vocês deixaram a gaveta aberta...

(...)

- Por isso, vocês foram os escolhidos pra resolver a situação – continuou o velho. –

Afinal, quem fez a burrada, tem de desfazer.

(...) O garoto deu meia-volta e foi para casa. Apesar da fadiga, sentia-se realizado.

Vivera uma aventura tão incrível que daria até para escrever um livro. Quando

crescesse e aprendesse melhor com seu Jijo a arte de narrar, iria pôr tudo no papel.

As musas o ajudariam. Já tinha até o nome: Ladrões de histórias. Mas, por enquanto,

queria mais é que o dia chegasse ao fim. (CARRASCOZA, 2003, p.46-48)

Ainda, em outro final, Alice volta para o mundo real sem saber como espalhar

novamente as histórias pelo mundo e, então, decide procurar Zelão. O velho diz a ela que

bastaria abrir a garrafa, que tudo voltaria ao normal. Zelão comenta que o livro que estava

lendo, agora estava completo e, tinha o título Ladrões de Histórias. Alice iria procurar Jorge,

mas o garoto aparece, não havia esquecido nada. Segundo ele, o anjo da verdade o ajudara.

Observa-se esse desfecho no capítulo Ponto Final:

- [...] Mas uma dúvida a inquietava: como espalhar as histórias pelo mundo

novamente? (...)

18

Rumou imediatamente para a casa do velho. Encontrou-o deitado no sofá da sala,

lendo as poucas linhas escritas que haviam restado de um livro. Ao vê-la com a

garrafa na mão, ele pulou, lépido como um gato, e se levantou, sorrindo.

(...)

- Em contato com o ar, as letras voltam ao seu tamanho natural e voam numa

velocidade incrível para as páginas dos livros e para a mente das pessoas.

(...)

- Olhe – disse Zelão. E mostrou a página do livro que estava lendo – chamava-se

Ladrões de Histórias – antes em branco e agora totalmente reescrita, como se por

um milagre.

(...) [...] E quando sua mãe se virou e deu um passo à frente para ir embora, a menina

segurou o amigo pelo braço e, em voz baixa, perguntou de que maneira ele

conseguira regressar ao mundo real com a memória intacta. (CARRASCOZA,

p.2003, 107-109)

Nesses dois últimos desfechos, há então a predominância do realismo maravilhoso.

Percebe-se que as personagens têm consciência de que se trata de mundos distintos. Elas

transitam entre a realidade e a fantasia com tranquilidade, sem estranhanhamentos, pois como

afirma Chiampi (1980, p. 61) “os personagens do realismo maravilhoso não se desconcertam

jamais diante do sobrenatural, nem modalizam a natureza do acontecimento insólito”.

Constata-se, então, que o autor oferece três tipos de leituras, duas que enveredam para

o maravilhoso e outra que acha no sonho uma explicação racional para a aventura de Alice e

Jorge.

Essa é uma obra que através da utilização da fantasia (do imaginário) critica aspectos

inerentes a nossa realidade. A não valorização da imaginação é algo que o autor critica. Nos

dias de hoje tudo tem sido muito concreto e objetivo, até mesmo as crianças em meio ao

mundo virtual e eletrônico (internet e jogos em vídeo game) tem se esquecido desse lado

imaginário e infantil que havia antigamente, como as brincadeiras de casinha e carrinhos. As

historinhas que ouviam antes vêm sendo deixadas de lado em nome de uma cultura que tem

pregado um amadurecimento antes da idade e apresentado obras, filmes e jogos inapropriados

para a idade. Critica também a sociedade que tem se esquecido de obras clássicas, que se

fazem necessárias para compreender toda uma humanidade e que tem dado prioridade a

entretenimentos às vezes pobres, como programas de televisão e livros que não tem muito a

acrescentar. O próprio título da obra Ladrões de histórias pode ter essa interpretação: pessoas

(sociedade) que vem deixando de lado aspectos importantes e necessários para um

desenvolvimento saudável, seja de crianças, jovens ou adultos. Critica também o fato de que,

ao serem crianças, as pessoas se permitem ir até o País da Imaginação, permitem-se sonhar,

mas que, ao se atingir a idade adulta, se esquecem do valor que isso e detalhes simples como

esses têm. Acerca disso, é referência a seguinte passagem do livro na qual o autor diz estar em

19

risco a existência do País da Imaginação, devido ao modo de vida que o homem

contemporâneo vem levando:

Creio que a maioria das pessoas não sabe mais encontrar as passagens para ir até o

País da Imaginação e desfrutar de suas maravilhas, como faz o Zelão, o seu Jijo e

você mesmo. As portas entre os dois mundos continuam abertas, mas, depois que

crescemos, estranhamente deixamos de vê-las. Se continuarmos incentivando as

crianças a fazerem essas viagens até lá, penso que nenhum dos dois lados corre

riscos. A chave está em nossas mãos. A magia só desaparece se faltar imaginação e

se a gente deixar. Mas não vamos deixar, não é? (CARRASCOZA, 2003, p.160).

Na obra também se percebe a utilização da fantasia para discutir a importância da

linguagem verbal para nossa civilização. Apresenta isso aos jovens leitores de forma criativa

fazendo com que esses se interessem pelo assunto e se atentem para essa realidade. E, além

disso, é uma obra que mexe com a questão da própria criação de narrativas, pois não se

apresenta como um texto comum, pelo contrário, se mostra como um texto interativo que

exige realmente a ajuda do leitor para que o mesmo se efetive como tal.

3 INTERTEXTUALIDADE

Na obra percebemos intertextos com outros textos que fazem parte da literatura e do

conjunto de obras que influenciaram e influenciam a humanidade.

Um desses textos, com o qual a obra dialoga, é Alice no país dos espelhos de Lewis

Carrol. Essa intertextualidade já começa a se evidenciar pelo nome da personagem. No texto

de Carrol, Alice vive uma aventura permeada por seres sobrenaturais no país dos espelhos. Já

na obra de Carrascoza, Alice também viverá uma aventura cheia de seres e eventos insólitos,

contudo isso se dá na companhia de Jorge e no País da Imaginação. Entretanto, apesar de

Jorge a acompanhar percebe-se que é a menina quem terá a “chave” para resolver os

principais acontecimentos. É possível verificar isso em alguns fragmentos:

No episódio da corda, Alice e Jorge percebem que, por sorte, a tinham levado.

Precisavam passar por uma abertura estreita e, para isso, precisariam de uma corda. Na

aventura de tentar aumentar a abertura, Jorge acaba deixando cair seu frasco com a poção do

amanhã. Alice consola o garoto e acaba avistando a saída que poderia os levar até a Serra

Quieta:

- Pensei que fosse vomitar – disse Jorge, ainda zonzo. E notou que, com os

solavancos, seu frasco com a poção do amanhã havia se quebrado e manchara toda a

sua mochila. A menina tentou consolá-lo, dizendo que talvez não fossem precisar mesmo daquele

líquido mágico.

20

- Veja – completou ela e apontou para uma saída que revelava parte de uma serra

azulada avultando lá fora.

Saíram da caverna e circularam a fileira de árvores floridas que a ladeava, de

variadas espécies, bem distinta da monotonia das tamareiras.

- Acho que conseguimos – disse Alice. – Deve ser a Serra Quieta (p.127).

(CARRASCOZA, 2003, p. 43).

No capítulo “de volta”, Alice e Jorge acreditam ter resolvido tudo ao capturar os

Trevosos, e é Alice quem faz a captura:

Abriram a caixa de escuridão para capturar os trevosos e, mal cruzaram o jardim da

casa tomado pelo mato e pelas ervas daninhas, viram no céu uma nuvem negra,

zumbindo como gafanhatos, deslocando-se velozmente em sua direção.

- Acho que vai dar certo – disse a menina. – É um bando de Trevosos. – E segurou firme a caixa de escuridão.

A nuvem se aproximou, veio baixando e, depois, atraída pela caixa como se por um

aspirador, foi sugada de uma só vez, glub!

- Nossa, como couberam tantos Trevosos nesta caixinha? – perguntou o garoto,

estupefato. – Parece um buraco negro... (CARRASCOZA, 2003,p.53)

Já em Memória, Alice e Jorge precisavam arrumar um jeito de sair do País da

Imaginação sem ter que passar pelo Rio do Esquecimento, e Alice acaba encontrando a

solução:

Voltaram ao salão, desanimados. Alice sentou-se numa pedra que servia de banco e

ficou pensativa, olhando as garrafas que as musas devolviam as prateleiras. Então

teve um estalo. Lembrou-se de seu frasco que ainda continha a poção do amanhã.

Abriu às pressas a sua mochila, revirando o conteúdo ansiosamente e por fim o

encontrou. - Ooooba! – exclamou ela. – Achei a solução!

Jorge deu um salto de alegria e a abraçou. O anjo da verdade os observava sem

entender nada.

- É uma poção mágica – explicou a menina. – Com ela posso levar a garrafa com as

histórias concentradas sem passar pelo Rio do Esquecimento.

- Mas como? – perguntou o anjo.

- Saltando no tempo e no espaço – respondeu ela. E nem precisou dizer mais nada,

porque o anjo sabia que era verdade. (CARRASCOZA, 2003, p.78).

O autor também faz referência à obra de Carrol ao utilizar um dos mesmos jogos

propostos no livro desse autor. Alice e Jorge recebem uma mensagem de Zelão, porém para a

identificarem precisariam da ajuda de um espelho. Verifica-se em “Alice no país dos

espelhos” que fenômeno semelhante a esse também ocorre com a personagem.

- Está tudo escrito em algum tipo de linguagem que eu não conheço!” – murmurou

para si mesma.

O que estava escrito era o seguinte:

(...)

Ela ficou olhando para o livro por algum tempo, completamente confusa, mas

finalmente teve uma idéia brilhante.

21

- Ora, é um livro do Espelho, naturalmente! Se eu colocar as páginas em frente a um

espelho, ou até mesmo diante de um vidro com fundo escuro, as palavras vão ficar

do jeito certo e vai dar para ler perfeitamente. (CARROL, 2004, p.33)

O episódio descrito no fragmento acima pode ser comparado ao que ocorre em

Ladrões de histórias

- É verdade – confirmou ela. – Conheço essas revistas linha por linha e não me

lembro desse trecho.

- Que será que está escrito? – perguntou Jorge.

- Vou pegar um espelho – disse ela. É mais fácil pra gente ler. (...)

- Espere aí que eu já volto – disse Alice, entregando a revista ao amigo. Em seguida,

voltou com um espelho nas mãos.

- Pronto. - Vamos ver o que está escrito – disse ele.

- Vamos – disse ela. E aproximou o espelho da folha onde apareciam as seguintes

letras invertidas:

(...) (CARRASCOZA, 2003, p.19)

Outro aspecto semelhante é que no texto de Carrol, em um dado momento da história,

Alice se depara com alguns caminhos e precisa optar por um deles. A menina, porém, volta

diversas vezes ao ponto inicial:

[...] Que engraçado! Como esse caminho para se retorcer! É mais um saca-rolhas do

que uma aléia! Bem, esta volta conduz à colina, suponho eu. Ora, pois não é que vai

para outro lado! Por aqui voltarei direto para a casa! Bem, então vou virar e tentar o

contrário.

E foi o que ela fez; vagueou para cima e para baixo e experimentou curva após

curva, mas, não importa o que fizesse, sempre acabava retornando para a casa.

(CARROL, 2004, p.37)

Carrascoza, em sua obra, também fez referência a esse episódio quando Alice e Jorge

se depararam com três portas que lhes davam opções de caminhos distintos. A porta dos

problemas, caminhos e das soluções. Contudo, apenas uma delas realmente proporcionaria a

eles seguir em frente. No caso da obra, cabe ao leitor decidir por qual caminho irão Alice e

Jorge. Porém, se fizerem a opção pela porta caminhos perceberão que os personagens não

poderão sair dali, eles sempre irão parar em lugares parecidos. Verifica-se tal fato nos trechos

abaixo:

Adentraram um largo vestíbulo de onde se podia ver uma escada que subia em

espiral a se perder de vista. Não havia o que fazer senão enfrenta-la. Os dois amigos

se entreolharam, conformados, e sem delongas iniciaram a escalada. Depois de subir

inumeráveis degraus, já cansados e ofegantes, chegaram a um patamar que apontava

para duas escadas, uma para a esquerda, outra para a direita. Era uma bifurcação. (...)

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Pegaram a escada da direita e subiram, subiram, subiram, até que atingiram um novo

lance do qual se originava outras quatro escadas. Escolheram uma delas e

continuaram a caminhar, desconfiados. Alguns degraus acima deram com outro

patamar de onde nasciam dezesseis escadas. Novamente, optaram por uma e logo

chegaram a um novo lance, onde encontraram trinta e duas escadas.

(CARRASCOZA, 2003, p. 32-33)

Outro texto com a qual a obra de Carrascoza dialoga é o mito de Pandora. Segundo

esse mito, quando Pandora abre a caixa de Epimeteu, deixa escapar para o mundo tudo o de

ruim que havia ali, fazendo com que males se espalhassem.

Epimeteu tinha em sua casa uma caixa, na qual guardava certos artigos malignos, de

que não se utlizara, ao preparar o homem para sua nova morada. Pandora foi tomada

por intensa curiosidade de saber o que continha aquela caixa, e, certo dia,

destampou-a para olhar. Assim, escapou e se espalhou por toda a parte uma

multidão de pragas que atingiram o desgraçado homem, tais como a gota, o

reumatismo e a eólica, para o corpo, e a inveja, o despeito e a vingança, para o

espírito. ( BULFINCH, 2002, p. 20 e 22)

Na obra, temos um acontecimento semelhante a esse quando Alice e Jorge vão buscar

o atlas para fazer a lição de casa. Em uma gaveta (que representaria a caixa), estavam

guardados os Trevosos (seres que causariam a confusão no mundo). Percebe-se que o próprio

nome desses seres já supõe ser algo ruim. Trevosos é uma palavra derivada de Trevas, que

significa, de acordo com Luft (2009,p.651): escuridão, ignorância, falta de luz, noite. Alice e

Jorge abrem a gaveta à procura do atlas e, em consequência, os Trevosos são liberados,

gerando assim a confusão. Esses seres começam a comer as letras, fato que provoca o

desaparecimento de trechos de livros e revistas, legendas de filmes, amnésia das pessoas,

entre outros. Como resultado disso, a humanidade, caso tudo não fosse solucionado, seria

extinta uma vez que perderia sua identidade: a língua.

- Esqueceu que um dia antes de começar a bagunça, você e Alice andaram revirando

as gavetas do escritório de seu pai?

- Fomos procurar um atlas para fazer a lição de casa – respondeu Jorge.

Os Trevosos estavam lá dentro no escuro e morreriam de fome porque não havia

letras para eles comerem – disse o velho. – Mas vocês deixaram a gaveta aberta...

Jorge mirou o Anjo da Verdade e ele novamente confirmou que Zelão não mentia.

- Por isso, vocês foram os escolhidos para resolver a situação – continuou o velho. –

Afinal, quem fez a burrada, tem de desfazer. (CARRASCOZA, 2003,p. 47).

É interessante perceber, também, que o autor faz referência a Mnemosine, a deusa

grega da memória. Na história tal alusão se demonstra através da personagem Mnémose, a

responsável por organizar as histórias no arquivo da Terra.

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- E você? – perguntou a menina. – Quem é?

- Sou Mnémose – respondeu a jovem.

- Puxa, que nome engraçado – comentou o garoto.

- Significa memória, em grego – continuou ela. – Eu organizo nas prateleiras do

Arquivo da Terra as histórias que as musas colhem em garrafas no mar das letras.

(CARRASCOZA, 2003,p. 77)

Algo interessante a se notar também é o nome da personagem Zelão. O nome parece

ser derivado da palavra Zelo, que significa, de acordo com Luft (2009,p.686), “interesse

cuidadoso, dedicação, diligência”. A partir dessa constatação entende-se o porquê do nome da

personagem: Zelão era quem tinha grande amor pelos livros, a vontade de desafiar e

incentivar os jovens para sempre irem ao País da Imaginação. Na obra, ele é responsável pela

aventura de Jorge e Alice em busca da salvação do País da Imaginação e, é ele também, quem

os incentiva ao longo de todo o trajeto. No capítulo Sim, por exemplo, Zelão revela aos

meninos o que estava ocorrendo:

- Vamos, seu Zelão, conta logo – disse Jorge.

- Ta legal! – disse o velho, sentando-se em cima de uma pilha de pesados e enormes

volumes de livros. – O problema está todo nas garrafas! (CARRASCOZA, 2003, p.

131)

Constata-se então a preocupação do autor em utilizar a intertextualidade para dialogar

com importantes obras que fazem ou poderão fazer parte do universo de seus jovens leitores.

Esse fato também é percebido quando são citados personagens de outras obras, como: Super-

Homem, Bela Adormecida, Chapeuzinho Vermelho, Sherlock Holmes e outros que se fazem

importantes para o imaginário infanto-juvenil.

- O que é isso? – gritou Alice, assustada, com algo que veio do céu e passou

raspando pelo seu ombro. – É um pássaro, um avião? - Não – disse o garoto. – É o Super-Homem!

(...)

- A essa altura só deve existir a Branca de Neve e dois ou três anões.

- E a Bela Adormecida? Só devem restar os olhos dela.

- E só o cachimbo de Sherlock Holmes. Que pena... (CARRASCOZA, 2003, p. 99)

Verifica-se, também, um intertexto no próprio título da obra (Ladrões de histórias)

com seu conteúdo, pois o autor se utiliza de várias outras histórias para compor a sua: Alice

no país dos espelhos, Pandora e faz referência a Cervantes ao utilizar sua frase – “parece que

o mundo conspira contra nós” – além de citar inúmeros personagens que fazem parte do

imaginário infantil e juvenil.

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Percebe-se, então, que o autor buscou valorizar e trazer à tona o conhecimento literário

para seus jovens leitores, procurando despertar-lhes o interesse para que procurem conhecer

aqueles personagens ou histórias com os quais a obra faz intertexto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo destaca alguns aspectos da obra Ladrões de histórias de João

Anzanello Carrascoza. Dentre esses, buscou-se discutir acerca da materialidade do livro. Em

relação a isso, viu-se que a obra, embora impressa,carrega algumas características do texto

eletrônico, como, por exemplo, os capítulos que se abrem em forma de links. O texto possui

uma estrutura interativa que, talvez até então, nunca havia sido apresentada em formato de

livro impresso.

Também foi possível observar as características dos gêneros fantástico, estranho e

maravilhoso presentes na obra. É uma narrativa que tem em sua constituição diferentes

enredos, o que possibilitou ao autor optar, no desfecho, entre o sobrenatural (maravilhoso) e o

real (estranho). Em alguns momentos, percebe-se também a hesitação de personagens diante

de alguns fatos, configurando-se assim o fantástico.

Foi interessante perceber que o autor utiliza-se do diálogo entre imaginação X

realidade para criticar alguns comportamentos sociais, como, por exemplo, a não valorização

da imaginação. Talvez a causa disso seja o mau uso que se tem feito das novas tecnologias

que a cada dia vão surgindo.

É uma obra que dialoga com outras que fazem parte da humanidade, como, “Alice no

país dos espelhos” e o mito de Pandora. Além de citar inúmeros outros personagens presentes

em diferenciadas histórias, como: Chapeuzinho Vermelho, Branca de Neve e Cervantes. Esse

intertexto pode despertar ainda mais o interesse do leitor e chamar a atenção dele para

personagens ou histórias que ainda lhe são desconhecidas.

Há ainda muito o que ser pesquisado em relação à obra Ladrões de histórias. A leitura

dessa obra propicia outras leituras e discussões que, com certeza, poderão contribuir para

ampliar o seu estudo crítico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia – histórias de deuses e heróis. Rio de

Janeiro: Ediouro, 2002.

CARRASCOZA, João Anzanello. Ladrões de histórias. São Paulo: Ática, 2000.

______. Meu amigo João. São Paulo: Melhoramentos, 2004.

CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: editora Unesp,

1999.

CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso. São Paulo: Perspectiva, 1980.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna,

2000.

ECO, Umberto. Lector in Fabula. São Paulo: Perspectiva,1986.

LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. São Paulo: Ática,

1996.

LUFT, Celso Pedro. Minidicionário Luft – conforme a nova ortografia. São Paulo: Ática,

2009.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2008.