universidade estadual de campinas instituto de filosofia e ... · palavras-chave: desenvolvimento,...

351
Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Inácio de Carvalho Dias de Andrade “Tem um espírito que vive dentro dessa pele”: feitiçaria e desenvolvimento em Tete, Moçambique CAMPINAS 2016

Upload: others

Post on 20-Oct-2020

10 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • Universidade Estadual de Campinas

    Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

    Inácio de Carvalho Dias de Andrade

    “Tem um espírito que vive dentro dessa pele”: feitiçaria

    e desenvolvimento em Tete, Moçambique

    CAMPINAS

    2016

  • INÁCIO CARVALHO DIAS DE ANDRADE

    "TEM UM ESPÍRITO QUE VIVE DENTRO DESSA PELE":FEITIÇARIA

    E DESENVOLVIMENTO EM TETE, MOÇAMBIQUE

    Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade

    Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título

    de Doutor em Antropologia Social.

    Supervisor/Orientador: Prof. Dr. Omar Ribeiro Thomaz

    ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À

    VERSÃO FINAL DA TESE

    DEFENDIDA PELO ALUNO INÁCIO

    DE CARVALHO DIAS DE ANDRADE,

    E ORIENTADA PELO PROF. DR.

    OMAR RIBEIRO THOMAZ .

    CAMPINAS

    2016

  • Universidade Estadual de Campinas

    Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

    A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese composta pelos

    Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada no dia 29 de

    março de 2016 considerou o candidato Inácio de Carvalho Dias de Andrade

    aprovado

    Prof Dr Omar Ribeiro Thomaz (orientador)

    Profa. Dra. Paula Montero

    Prof. Dr. Peter Henry Fry

    Prof Dr. Gustavo Sérgio Lins Ribeiro

    Prof Dr. Ronaldo Rômulo Machado de Almeida

    A Ata de Defesa assinada pelos membros da Comissão Examinadora

    consta no processo de vida acadêmica do aluno

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeço, primeiramente, às agências de financiamento que permitiram

    minha dedicação exclusiva à tese. Em tempos de cortes de verbas e redução de

    incentivos à pesquisa, fica cada vez mais claro o papel crucial de tais agências na

    ampliação, universalização e democratização da universidade pública brasileira —

    sem o apoio da CNPq e da Fapesp, o texto que se segue não teria sido escrito.

    Em segundo lugar, agradeço ao meu orientador Omar Ribeiro Thomaz.

    Desde o primeiro momento em que propus o tema do projeto para o ingresso no

    processo seletivo da Unicamp, Omar tem sido um grande amigo. Esteve sempre

    pronto para apoiar e incentivar todas as etapas da pesquisa e sempre me deu

    completa liberdade para explorar um campo de pesquisa completamente novo que,

    então, se abria para mim. Soma-se à sua generosidade intelectual a singular erudição

    e invejável conhecimento com que entusiasticamente descreve Moçambique e sua

    gente. As longas e informais reuniões de trabalho em sua casa foram momentos em

    que a amizade, o trabalho intelectual e a militância política andavam juntas,e o entra

    e sai de novos colegas e velhos amigos demonstrava que, apesar da escrita da tese

    ser um momento solitário, a vida acadêmica pode ser repleta de alegres encontros

    e infindáveis parcerias. Omar é um tipo de intelectual difícil de encontrar, para

    quem a pesquisa e orientação deixam-se conduzir pela camaradagem e afeição.

    Orgulho-me de tê-lo como professor e amigo.

    Agradeço também aos demais professores do PPGAS que, quer na

    graduação, quer no doutorado, contribuíram, em muito, para minha formação:

    Ronaldo Almeida, Bibia Gregori, Nádia Farage, Emília Pietrafesa, José Maurício

    Arruti, Guita Grin Debert e o saudoso John Monteiro, e ao professor Marko

    Monteiro do IG com quem também tive aulas.

    As valiosas sugestões de Mauro Almeida e Catarina Vianna durante a banca

    de qualificação foram essenciais para conclusão do texto e permitiram-me repensar

    grande o material apresentado. As apresentações de partes deste trabalho em

    diferentes congressos também foram de imensa valia. Agradeço a Maria Barroso-

    Hoffmann e Renata Curcio Valente por aceitarem meu trabalho na 28º RBA, a

    Deborah Bronz e Analía Garcia, com quem pude dialogar durante a XI RAM,a

    Andréa Lobo e Omar Ribeiro Thomaz pelo GT “Estudos africanos em perspectiva”

    na RBA 2014, em Natal. Do mesmo modo, gostaria de estender minha gratidão aos

  • organizadores do II Seminário de Antropologia da Ufscar; sou também grato

    a Igor José de Renó Machado, coordenador do GT “Parentesco, Família e

    Relacionalidade”.

    Gostaria de fazer uma menção especial aos colegas com quem trabalhei na

    organização das duas primeiras edições da Jornadas de Antropologia da Unicamp e

    a José Maurício Arruti, que comentou meu trabalho apresentado na ocasião.

    A todos funcionários do IFCH, pela paciência e carinho. Sou especialmente

    grato, à Maria José, à Márcia, aAlexandre e ao Benetti, cujas agradáveis conversas

    e cafés oportunos constituíram um dos pontos altos do processo de doutoramento.

    Fui extremamente agraciado por ter participado de uma pequena, mas

    animada turma de doutorado. A amizade nascida ali é um dos bens mais valiosos

    que levo comigo. A Pati, mulher de poucas, mas certeiras, palavras. Dona das caras

    e bocas mais expressivas que conheço, responsável por inúmeras risadas e

    questionamentos precisos. O Carlos, sério e engraçado na medida certa e um

    amálgama de pompa acadêmica e mineirice cujo resultado nunca pôde dar errado

    — foi o primeiro a defender o doutorado, e sua única falha foi ter se ausentado cedo

    demais de Barão Geraldo e ter interrompido, por forças maiores, essa convivência

    que espero ver perdurar no tempo. A Desirée é uma daquelas pessoas com quem

    temos uma empatia automática, e cujo jeito turrão e marrento é apenas a casca de

    seu apaixonado interior. Entusiasmada por seus ideais e amigos, círculo do qual me

    hoje me orgulho de fazer parte, a Desirée é a brother carioca que nunca tive. O Igor

    é como um irmão: afetuoso, presente e carente. Parceiro das baladas, das conversas

    e do chorume, tornou o doutorado mais simples e divertido. Também faço um

    agradecimento especial ao Alan e Natália, dois agregados à turma que só

    enriqueceram nossa formação e fortaleceram nosso grupo.

    Outros tantos colegas também foram imprescindíveis nesses cinco anos:

    Rodrigo Bulamah, Diego Bertazzoli, Ana Elisa, Tani, Catarina, Hugo Ciavatta,

    Stella, Diego Amoedo, Lucybeth Luciana Wilm, Aline Tavares, Lari, Fabi, Otávio

    Calegari, Julian Simões, Mateus Zani, Rafael Cromonini Barbosa, Mari Petroni,

    Ernenek e tantos outros que não consigo listar.

    Sou grato especialmente à Bruna Bumachar, que me acompanhou numa

    primeira viagem a Moçambique. Seu apoio foi essencial e imprescindível. À

    Fernanda Gallo e Biu, cuja companhia em Tete foi um vento fresco na escaldante

    planície zambeziana.

  • Agradeço aos amigos antigos que, mesmo que à distância, apoiaram-me

    nessa caminhada: Carlos Filadelfo, Enrico Spaggiari, Daniel de Lucca e Rodrigo

    Lobo. Agradeço aos amigos de toda vida que desde sempre estiveram presentes

    nos momentos mais difíceis: Pablito, Kelly, Fabinho, Aline, Dudu, Marcelão,

    Marcelinho, Tira e tantos outros cujos nomes não caberiam em uma só tese. Ao

    André Oliveira, camarada, cartógrafo e pau pra toda obra, autor do mapa de Tete

    que ilustra essa tese, e ao Chico, colega e irmão, que me acompanhou do jardim de

    infância ao doutorado.

    Em Moçambique não posso deixar de fora o apoio recebido de Catarina

    Trindade e seus pais, Isabel Maria Casemiro e João Trindade. A estadia em Maputo

    não seria a mesma sem eles. A ajuda de José Luís Cabaço e da UDM foi essencial

    em todos os momentos da pesquisa. Agradeço especialmente a todo o corpo técnico

    e membros da UNAC e a UPCT sem os quais nada poderia ser feito. O apoio da

    Missão Salesiana de Moatize foi essencial, e os funcionários e diretores da Jugend

    Eine Welt foram suficientemente gentis e amáveis para deixar-me bisbilhotar seus

    trabalhos e acompanhá-los em suas viagens.

    A todos amigos que deixei em Tete, tatenda.

    A minha família que sempre me apoiou em todas escolhas que fiz, mesmo

    quando em um arroubo de loucura decidi viajar por meses para outro continente.

    Sou grato demais para poder expressar em palavras a gratidão por tudo aquilo que

    um dia recebi.

    A Gabi, companheira de todos esses anos, sem a qual não teria forças ou

    sanidade para tanto. Sua paixão e comprometimento foram fontes inspiradoras e

    seu apoio indispensável. Agradeço sua paciência infindável pelos longos meses de

    ausência física e de isolamento forçado pelo processo de escrita. Espero que

    reconheça nas linhas que se seguem todo o amor e a generosidade que lhe são

    característicos.

  • RESUMO:

    A presente tese aborda as conformações atuais do projeto modernizante em

    Moçambique. Localizada na província de Tete, a cidade de Moatize encontra-se

    acima das maiores jazidas de carvão não exploradas do mundo cuja recente extração

    é capitaneada pela empresa brasileira Vale. Entretanto, antes de receber os grandes

    empreendimentos extrativistas, durante segunda metade da década passada, os

    tetenses, ao longo de quatro séculos de colonização e alguns anos de independência

    política, já haviam sido alvo de inúmeros projetos de desenvolvimento local. O

    aparato técnico da indústria da cooperação internacional, que chegara a região

    durante a guerra civil moçambicana (1978-1992), implementou-se integralmente

    após as reformas econômicas neoliberais da década de 90.

    De modo diverso, o governo socialista do presidente e ex-guerrilheiro Samora

    Machel instaurado após a guerra colonial (1964-1974), também já havia tentado

    reestruturar a produção agrária do campo. Durante seu governo, imerso nas

    intempéries e incertezas da guerra civil, Samora implementou centenas de aldeias

    comunais e cooperativas de produção em áreas remotas de Moçambique que,

    através da ética e da rotina do trabalho, deveriam dar vazão ao “novo homem

    socialista”, arauto dos tempos modernos no país.

    No entanto, mesmo antes disso, o sistema colonial português, especialmente

    durante o período tardo colonial, buscou trazer os novos ventos do progresso para

    a região conhecida como Vale do Zambeze. Nos últimos dias do julgo português, a

    província de Tete recebeu especial atenção com a construção de Cabora-Bassa, à

    época, a maior hidroelétrica da África Austral. Concomitantemente, o governo

    metropolitano imaginava povoar toda área com um assombroso número de brancos

    e dinamizar a economia do Baixo Zambeze através de um plano integrado

    coordenado por um gabinete especificamente criado para tanto.

    Todos esses acontecimentos só podem ser entendidos em sua plena totalidade por

    meio de um mergulho na história da colonização da região. O débil projeto

    português para o centro de Moçambique esbarrou durante toda sua existência na

    falta de recursos, infraestrutura e material humano, fazendo com que os pioneiros

    colonizadores da região costurassem acordos com os chefes locais e adentrassem

    numa complexa rede de obrigações e reciprocidades que dão o tom das atuais

    relações entre autóctones e vindouros, zobuera em língua local. Nesse sentido, a

    feitiçaria, pensada em seu encontro colonial com os missionários cristãos, ofereceu

    e oferece até hoje o substrato fundante por meio do qual as populações locais

    pensam a si mesmo, os outros e os novos tempos de desenvolvimento.

    A etnografia abaixo tenta dar conta de todos esses acontecimentos, demonstrando

    como os novos projetos internacionais de modernização são incorporados em

    relações raciais seculares cuja perenidade assenta em na capacidade de incorporar

    projetos exógenos em dinâmicas políticas locais expressas na linguagem da

    feitiçaria.

    Palavras-chave: desenvolvimento, feitiçaria, Moçambique, África, ONGs

  • ABSTRACT:

    The thesis analyzes the configuration of the current modernizing projects in

    Mozambique. The Village of Moatize is situated in Tete’s province above the

    largest coal deposits of the world which recent extraction has been headed by

    Brazilian mining company Vale. However, before receiving big extractive projects

    during the second half of the past decade, tetenses have been experience numerous

    projects of local development over four centuries of colonization and a few decades

    of political independence. Before the coal economy, the technical structure of

    international cooperation reached the region during mozambican civil war (1978-

    1992) and it was fully implemented after the neoliberal estructural adjustment in

    1990´s.

    In different circumstances, the socialist government of president and former

    guerrilla Samora Machel established after the colonial war (1964-1974) also

    attempted to reorient the rural production system. During his troubled government

    affected by the uncertainties of civil war, Samora implemented hundreds of

    communal villages and cooperatives of production in remote areas of Mozambique.

    Influencing individuals through ethics and work routine the new labour system

    should give rise to the "new socialist man” who would modernizing the country.

    However, even before that, the Portuguese colonial system, especially during the

    late colonial period, tried to modernize the Zambezi Valley. In the last days of

    Portuguese rule the colonial government built the power plant of Cahora Bassa, the

    largest dam in Southern Africa at the time. Concomitantly, the metropolitan

    government aimed to colonized the valley with an astonishing number of white

    settlers and boost the Lower Zambezi economy with an integrated plan coordinated

    by an bureau specifically created for this purpose.

    In order to understand these developments, the thesis seeks to comprises them in its

    historical dimension. The weakness of Portuguese colonial project in central

    Mozambique was accompanied by the lack of resources, infrastructure and human

    material. To counterbalance this fragility, the first settlers were obliged to negotiate

    with local leaders and to take part in a complex network of reciprocities that set the

    tone for the current relations between autochthonous people and foreigners –

    zobuera in local language – in the Zambezi Valley. In this sense, the witchcraft

    discourse offers the commom ground through which local people think themselves,

    others and the new times of development and progress.

    The ethnography that follows tries to account for all these events in order to

    demonstrate how the new international modernizing projects are embedded in

    secular race relations whose longevity lies on the ability to incorporate exogenous

    projects in local dynamics and expressed it in the witchcraft discourse.

    Keywords: development, witchcraft, Mozambique, Africa, NGOs

  • LISTA DE ACRÔNIMOS

    AC – Aldeia Comunal

    ABC – Agência Brasileira de Cooperação

    ADELT – Associação para o Desenvolvimento Local de Tete

    AGRA – Alliance for Green Revolution in Africa

    AMETRAMO – Associação de Médicos Tradicionais de Moçambique

    APN – Ajuda Popular da Noruega

    Carbomoc – Companhia Carbonífera de Moçambique

    CADECO ou Projeto CO-1 – Centro de Apoio ao Desenvolvimento Cooperativo,

    programa de desenvolvimento rural dos países nórdicos.

    CDR – Centro de Desenvolvimento Rural

    CNAC – Comissão Nacional de Aldeias Comunais

    CNE – Comissão Nacional de Eleições

    CRED ou Projeto CO-2 – Centro Regional de Experimentação e

    Desenvolvimento, programa de implementação de centros rurais dos países

    nórdicos.

    CSM – Church of Sweden Mission

    DFID – Department for International Development, agência britânica para o

    desenvolvimento.

    DPAT – Direção Provincial de Agricultura de Tete

    EFTA – European Free Trade Association

    FAO – Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura

    FRELIMO – Frente de Libertação de Moçambique

    GD – Grupo Dinamizador

    GPZ – Gabinete do Plano do Zambeze

    GODCA – Gabinete de Organização e Desenvolvimento das Cooperativas Agrárias

    ITC – Iniciativa para Terras Comunitárias

    KIEC – Kurasini International Education Center

    MDM – Movimento Democrático de Moçambique

  • MONAP – Mozambique-Nordic Agricultural Programme

    NIB – Namnden for Bistand (Comitê de assistência internacional), agência sueca

    de desenvolvimento internacional substituída pela SIDA em 1965.

    NMS – Norwegian Missionary Society

    ONU – Organização das Nações Unidas

    ONUMOZ – Operação das Nações Unidas em Moçambique

    OUA – Organização da Unidade Africana

    PAIGC – Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde

    PICP – Programa Integrado de Combate à Pobreza através do Desenvolvimento

    Rural

    PRE – Programa de Reestruturação Econômica

    RENAMO – Resistência Nacional Moçambicana

    RNLB – Rhodesian Native Labour Bureau

    SIDA – Swedish International Development Authority

    SNV – Stichting Nederlandse Vrijwilligers (Fundação Holandesa de Voluntariado),

    agência de desenvolvimento da Holanda.

    UCG – União Geral de Cooperativas de Maputo

    UNAC – União Nacional de Camponeses

    UNIDO – United Nations Industrial Development Organization

    UPCT – União Provincial de Camponeses de Tete

    Usaid – United States Agency for International Development, Agência Norte-

    Americana para o Desenvolvimento.

    ZAMCO – Zambeze Consórcio Hidroeléctrico Ltda

    WLNA – Witwatersrand Native Labour Association

  • GLOSSÁRIO

    akoporo – escravos tradicionais

    amambos – chefes territoriais

    achikunda – soldados dos prazos responsáveis pela captura de novos escravos,

    coleta de imposto dos colonos e policiamento do territórios

    chibalo – regime de trabalho forçado sem pagamento ou com ordenados mínimos

    chitukuko – desenvolvimento, autoajuda

    colonos – habitantes autóctones dos prazos

    kulima – plantar

    lobolo – compensação paga à família da noiva para a incorporação dos filhos do

    casal na linhagem paterna

    luane – complexo principal dos prazos onde moravam o prazero, sua família e os

    escravos domésticos

    malombo/marombo – cerimônia de cura que invoca espíritos ancestrais revoltados

    mathema – limpeza da área para o plantio

    madalitso – desenvolvimento, abençoado

    manamuzungos – nome local para os luso-goeses

    Mfiti – feiticeiro

    mfumu – autoridades políticas locais

    mizimu – espíritos ancestrais

    Monomopata – monarca do reino karanga de mutapa

    Mulungu – Deus

    mussambazes – comerciantes negros que trabalhavam para os prazeros

    mussoco – imposto cobrado dos colonos pelos concessionários dos prazos. Pago em

    cereais e produtos, o mussoco era uma forma de reconhecer a autoridade do foreiro,

    enquanto o não-pagamento era o sinal de rebelião.

    mutupu – nome do clã

    Muzungu – branco

    ndomba – sistema de trabalho coletivo tradicional pago com pombe

  • prazeros – concessionários de terras portugueses ou luso-asiáticos

    phondoro – espírito do leão associado aos grandes chefes

    pombe – bebida fermentada de cereais utilizada em comemorações e rituais

    raids – esquadrões de caça de escravos

    ufulu – liberdade

    zobuera – estrangeiros, vindouros

  • MAPAS 1. O Vale do Zambeze

    (fonte: Isaacman, 1972)

  • 2. A Província de Tete

  • Sumário

    Agradecimentos...................................................................................................... 5

    RESUMO ................................................................................................................ 8

    ABSTRACT: .......................................................................................................... 9

    Lista de Acrônimos .............................................................................................. 10

    Glossário ............................................................................................................... 12

    Mapas .................................................................................................................... 14

    Introdução ............................................................................................................ 18

    PARTE I ............................................................................................................... 33

    Capítulo 1 ............................................................................................................. 34

    O vale do zambeze: o contexto histórico da colonização portuguesa .............. 34

    A colonização portuguesa e o advento da sociedade dos prazos ........................... 36

    Expansão marítima, interiorização da colônia e negociações locais ..................... 40

    A inserção autóctone entre foreiros brancos e a rede de comércio indiana ........... 48

    A saída da comunidade branca .............................................................................. 60

    Independêndencia política e dependência econômica: duas facetas de Moçambique

    pós-revolução ......................................................................................................... 65

    Capítulo 2 ............................................................................................................. 69

    Manyungwes e Zobueras: as relações entre colonos e colonizadores ............. 69

    Escravidão como projeto de ascensão social: a constituição colonial da etnia

    nyungwe ................................................................................................................. 71

    Miscigenação, assimilação e riqueza: estratégias de desenvolvimento e ascensão

    social ...................................................................................................................... 86

    A sociedade muzungu e a estratificação social local ............................................. 95

    O conflito e o oculto: perseguindo a feitiçaria, perseguindo o conflito............... 107

    Capítulo 3 ........................................................................................................... 113

    Sobre Deuses e Macacos .................................................................................... 113

    “Feitiçaria é um tema muito atual” ...................................................................... 128

    “Eles querem nos ver pobres”.............................................................................. 131

    “Lá os macacos vão presos!”: a disputa pelo poder nas terras altas .................... 136

    Quando dois leões brigam, o capim sofre ............................................................ 142

    “Deus fugiu com os brancos?” ............................................................................ 153

    Interstício ............................................................................................................ 161

    O idioma do parentesco e a “filosofia africana” .................................................. 161

  • Feitiçaria e desenvolvimento ............................................................................... 166

    PARTE II ............................................................................................................ 181

    Capítulo 4 ........................................................................................................... 182

    Cooperativismo, associação e movimento social: diferentes organizações para

    o desenvolvimento .............................................................................................. 182

    As cooperativas rurais nos tempos do socialismo ............................................... 183

    As Aldeias Comunais .......................................................................................... 189

    “Cada um por si, Deus por todos” ....................................................................... 221

    Capítulo 5 ........................................................................................................... 236

    “Tem um espírito que vive dentro dessa pele” ................................................ 236

    Mameme: um caso de sucesso ............................................................................. 247

    Tensões, conflitos e apropriações entre os métodos modernos e tradicionais ..... 254

    A ajuda e a escalada das tensões dentro do ambiente associativo ....................... 262

    “Nós, negros, nos odiamos!” ............................................................................... 270

    O carvão ............................................................................................................... 280

    Capítulo 6 ........................................................................................................... 299

    Política Mata! ..................................................................................................... 299

    Movimento e desenvolvimento............................................................................ 307

    Democracia e desenvolvimento ........................................................................... 318

    A guerra e o desenvolvimento ............................................................................. 322

    Conclusão ........................................................................................................... 334

    Bibliografia ......................................................................................................... 339

  • 18

    INTRODUÇÃO

    Symplício colocou seu tronco para fora do chapa1 e puxou-me com tanta

    facilidade para dentro que era difícil imaginar que havia passado a noite inteira

    bebendo pombe2 com seus amigos. Seu semblante cansado e seu andar trôpego de

    poucos minutos atrás tinha dado lugar a uma figura ágil e imponente. Assim que

    percebeu que, devido a um erro da atendente da empresa na Beira, eu havia perdido

    meu maximbombo3 para Tete, engajou-se numa série de conversas e negociações

    com o motorista da pequena van. Enquanto eu ainda repassava o recente diálogo

    em minha mente e tentava adivinhar quais eram as relações ali envolvidas e,

    principalmente, o quanto tudo aquilo iria me custar, minha mala voou por cima de

    minha cabeça e, devido aos anos de perícia e treinamento de um dos cobradores,

    aterrissou suavemente em um dos assentos atrás de mim. O veículo arrancou em

    resposta aos gritos de “Vamos! Vamos!” e o banco que escolhi, o único

    desparafusado do chão do chapa, quase tombou para o divertimento de todos. Eu

    também ria e Symplício olhava extasiado para estrada tentando avistar o

    maximbombo perdido.

    O entusiasmo de todos contrastava com a seriedade com que Symplício havia

    me abordado horas antes. Eu estava em Chimoio, à mais de mil quilômetros de

    distância de Maputo, onde eu havia iniciado meu segundo período de pesquisa de

    campo duas semanas atrás. Acordara as cinco da manhã e estava esperando o

    maximbombo que vinha de Beira e levar-me-ia até Tete. O carro havia quebrado no

    meio do caminho dali e a atendente da empresa orientou-me a esperá-lo em frente

    a Estação dos Caminhos de Ferro de Chimoio. E foi ali que Symplício encontrou-

    me quando desceu do chapa que chegava de Tete. Aproximou-se da minha mesa e

    disse qualquer coisa em Cinyanja para o outro homem que, como ele, tentava

    entender o que eu, um branco, estava fazendo por ali. Symplício, no entanto, falava

    português e, embora o homem tentasse protestar, pouco pude fazer para tentar

    intervir na situação, completamente dominada por Symplício enquanto mediador

    de dois mundos.

    _______________________________________

    1 Pequenas vans usadas, em geral importadas da China, usadas como transporte público em todo

    país.

    2 Bebida fermentada de grãos. Em Tete é usualmente feita de mexoeira, sorgo e milho.

    3 Termo moçambicano para ônibus.

  • 19

    “Estava grosso!” disse, sem conseguir esconder sua própria voz, também

    embargada da noite anterior. “Queria levar sua mala para o maximbombo em troca

    de algumas moedas, mas aqui tem muita bandidagem”. Assenti com a cabeça e

    enquanto ele convencia-me a pagar-lhe uma cerveja. “Esses aqui vivem no mato”,

    dizia-me à medida em que íamos em direção ao bar. “Não estão acostumados com

    estrangeiros”, sentenciou.

    As horas se passaram dentro do bar da estação. Sem qualquer sinal do ônibus,

    pus-me a contar o que fazia ali para Symplício e uma pequena plateia. As notícias

    sobre os novos megaempreendimentos que chegavam a província de Tete se

    espalharam pelo país e, em muitos lugares, não se falava sobre outro assunto desde

    2007, ano em que a Vale assinou o bilionário contrato para exploração de carvão

    na região. E ali estava eu, no pequeno bar a meio caminho do meu destino, tentando

    explicar a nova pesquisa que iniciara sobre o desenvolvimento na região.

    “Sim, em Tete há muito desenvolvimento” contou-me Symplício enquanto

    dois de seus primos assentiam positivamente com a cabeça. “Os brasileiros estão lá

    agora, tem muitos carros pelas estradas e empregos”

    Em Moçambique, a exploração de carvão na província de Tete atraiu bilhões

    de reais brasileiros em investimentos. Estão sendo construídas estradas, pontes,

    linhas de ferro, portos de escoamentos, casas para deslocados, novos bairros para

    empregados e além de uma série de atividades que floresceram junto a maior

    reserva inexplorada de carvão mineral do mundo. A Vale iniciou a extração do

    material em 2011 na vila de Moatize, localidade à cerca de 20 quilômetros da capital

    Tete e planeja atingir em 2018 o auge da produção do minério exportando 22

    milhões de toneladas anuais. Segundo estimativas, somente na área concedida à

    Vale, encontram-se 1,87 bilhão de toneladas do produto bruto.4 Atualmente, cerca

    de 11 milhões de toneladas são extraídas por ano, mas a produção promete dobrar

    quando a mina Moatize II for concluída e a linha férrea até o porto de Nacala estiver

    finalizada. Por enquanto, a maior quantidade de carvão retirada do local é um

    minério de baixa qualidade, vendido a baixos preços para a queima nas fornalhas

    siderúrgicas, entretanto, no pico da produção mais de 70% do material extraído

    _______________________________________

    4 A concessão é de vinte e cinco anos, renováveis por mais vinte e cinco. A primeira fase da

    concessão termina em 2032. Os demais termos do contrato entre a Vale e o governo

    moçambicano são secretos e estão classificados como confidenciais.

  • 20

    deverá ser de carvão metalúrgico, que ao ser misturado com ferro produz aço. Esse

    outro tipo de carvão é de grande valia no mercado internacional e aumentaria os

    ganhos da empresa de modo exponencial.

    Toda essa movimentação é extremamente notória para todos os

    moçambicanos. Os moradores de Tete e Moatize testemunharam um crescimento

    avassalador das cidades e do fluxo de pessoas e mercadorias que vieram na esteira

    das indústrias extrativas, além do mais, centenas de vagões carregados de carvão

    saem diariamente em direção à costa enquanto imensas montanhas do minério

    acumulam-se ao lado da cidade à espera de um melhor preço no mercado

    internacional. Mesmos aqueles que moram em outras províncias estão sempre

    informados sobre as novas notícias do “desenvolvimento”. Muitos acompanham

    atentamente os noticiários televisivos e radiofônicos sobre os novos investimentos,

    que se somados equivaleriam a metade do PIB moçambicano5, outros tantos não

    satisfeitos em acompanhar os acontecimentos à distância, saíram de suas terras em

    busca das promessas propagandeadas nas rádios e em conversas com familiares e

    amigos.

    Entretanto, nem tudo são flores em Tete. A chegada das indústrias extrativas

    nos país aumentou o abismo econômico entre uma pequena elite nacional e a vasta

    maioria da população que vislumbrava a sua admissão ao mundo de consumo e

    progresso prometido pelas empresas e governo.6 Denúncias de corrupção de

    _______________________________________

    5 Entre 2008 e 2016 a Vale planeja investir 8,2 bilhões de reais, cerca de 54% do PIB nacional

    de Moçambique em 2012. Para efeitos de comparação, o investimento da Vale no país é 60%

    maior do que a Petrobras deve alocar em toda sua área internacional entre 2013 e 2017 (ROSSI,

    2014).

    6 Para Mosca e Selemane: “O crescimento rápido, por implantação de grandes projectos, cria

    expectativas de emprego, oportunidades de negócio e percepção, muitas vezes sem

    correspondência real, de ganhos rápidos e fáceis. O problema é que as expectativas provocam

    movimentos migratórios superiores à capacidade de absorção de mão de obra, geralmente não

    qualificada. Assim se compreende o grande crescimento visível da população no corredor Tete-

    Moatize, a incapacidade de reposta dos serviços aos cidadãos (educação, saúde, etc.), a ruptura

    e aceleração da degradação de infraestruturas (já anteriormente com deficiente manutenção),

    como grande parte do imobiliário, saneamento,arruamentos, estradas e outras. Os desequilíbrios

    econômicos, o défice de oferta de serviços e a ruptura de infraestruturas desenvolvem as

    desigualdades sociais e criam pobreza nas famílias não integradas nos processos produtivos.

    Como forma de sobrevivência à pobreza, desenvolve-se a economia informal para satisfação de

    uma demanda segmentada e de baixa renda, que cria desemprego e, simultaneamente, reproduz

    a pobreza. Desenvolve-se uma economia dual 23 , nestes casos com poucas relações econômicas

    ou comerciais entre si, mas com possíveis grandes funcionalidades, porque o modelo de

    acumulação principal (ou dominante) beneficia-se da transferência de recursos do sector menos

    eficiente e de produtividade mais baixa. A pobreza é acompanhada de um custo de oportunidade

    do emprego baixo, o que permite a prática de salários reduzidos e consequente redução dos

  • 21

    membros da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique)7 e deslocamentos

    forçados de comunidades inteiras têm ajudado a aumentar o clima de desconfiança

    e incongruência entre os desejos de ascensão social da população local e os

    interesses econômicos de uma elite econômica e política alocada no sul do país. A

    província de Tete está localizada no centro de Moçambique e a sua capital, a

    homônima cidade de Tete, dista mais de 1500 quilômetros de Maputo, sede do

    governo central situada quase na fronteira com a África do Sul. Desse modo, para

    muitos habitantes de Tete que não conseguem ter acesso aos benefícios do

    desenvolvimento, grande parte dos empregos, melhorias e investimentos trazidos

    pela mineradoras têm sido desviados para o benefícios de poucas pessoas, quer

    sejam membros de uma elite local, quer sejam gananciosos estrageiros.

    “Eh!” exclamou Symplício como fazem muitos moçambicanos quando

    querem chamar atenção para algo “Aqueles lá do sul estão a comer tudo sozinhos!”

    A referência comensal, recurso linguístico amplamente difundido no país,

    _______________________________________

    custos.” (Mosca e SELEMANE, 2011, 42)

    7 A Frente de Libertação Nacional de Moçambique foi fundada em 1962 na Tanzânia. A

    FRELIMO é resultado da junção de cinco movimentos nacionalistas que visavam o fim da

    colonização portuguesa. Tendo como seu primeiro presidente Eduardo Mondlane, assassinado

    em pela polícia secreta portuguesa em 1969, a Frelimo inicia a luta armada em Moçambique em

    1964, entrando pelo norte do país com apoio da já independente Tanzânia e de seu presidente

    Julius Nyerere. Depois de dez anos de conflitos, a Frelimo assume o controle do estado em 1975

    pelas mãos do então presidente Samora Machel. Um ano antes, em 25 de abril de 1974, com a

    deflagração da Revolução dos Cravos que derrubaria o regime fascista até então instalado em

    terras lusitanas, Portugal havia finalmente reconhecido a independência de suas colônias.

    Depois do seu III Congresso em 1977, a Frelimo, em resposta ao isolamento internacional que

    suas posições contrárias aos regimes segregacionistas da Rodésia de Ian Smith e da Africa do

    Sul lhe causaram, declara adesão aos princípios marxista-leninista e passou a ser o único partido

    político moçambicano. Entretanto, o apoio logístico que Moçambique passou a fornecer para a

    guerrilha zimbabuana, a adoção das sanções econômicas proteladas pela ONU ao governo

    rodesiano e a suspensão de seu acesso aos portos do país induziu a uma guerra de

    desestabilização financiada pela vizinha Rodésia. Assim, em 1976, os primeiros ataques da

    então MNR (Mozambique National Resistance), depois rebatizada de Renamo (Resistência

    Nacional Moçambicana), eclodiram em alguns pontos do país. Esses eram os primeiros sinais

    de uma guerra que tomaria quase que 80% do território nacional e duraria 16 anos, quando, em

    1992, os Acordos de Paz de Roma entre FRELIMO e Renamo, mediados pela Igreja Católica,

    fossem assinados. A partir de então os ambos movimentos guerrilheiros se reconstruíra-se como

    partidos políticos democráticos e disputaram a primeira eleição livres de Moçambique em 1994.

    Embora, a FRELIMO tenha ganhado todas disputas nacionais até então, o grande apoio que a

    RENAMO conseguiu granjear já nos primeiros pleitos demonstrou como a guerra de

    desestabilização moçambicana pôde ganhar dinâmicas locais que ajudaram os guerrilheiros

    renamistas nos longos esforços de guerra nas zonas rurais do país. Muitos autores (GEFFRAY,

    1990 WEST, 2009, NEWITT, 2012 E MINTER, 1998) sustentam que o apoio local aos

    guerrilheiros foi uma resposta aos projetos de modernização socialista impostos pelo governo

    de Machel, que, ao incentivar a criação do “novo homem socialista”, condenou práticas e ritos

    locais e deslegitimou autoridades tradicionais, acusadas de colaboracionismo com o

    colonialismo.

  • 22

    nunca é apenas uma metáfora. Imagens de grandes políticos beneficiando-se de

    opulentos banquetes e referências às suas portentosas silhuetas estão sempre

    presentes nas falas cotidianas das pessoas e o universo da comensalidade busca

    identificar a ruptura que ocorre dentro de uma determinada coletividade, seja o

    universo familiar, seja a esfera nacional.

    O presidente e ex-guerrilheiros da RENAMO, Afonso Dhlakama, líder do

    maior partido de oposição à FRELIMO, em alusão a uma distribuição mais

    equitativa da riqueza nacional, afirmou que pretendia “dizer a Guebuza [presidente

    de Moçambique desde 2005] que você come bem. Nós também queremos comer

    bem”.8

    O centro do país, região delimitada pelas províncias de Tete, Manica, Sofala

    e Zambézia, foi sempre tido como área de influência da RENAMO (Resistência

    Nacional Moçambicana)9, local onde seus eleitores estão mais concentrados e

    reduto de difícil penetração frelimista. Nesse sentido, à discrepância entre ao

    crescente cenário de desigualdade social encontrado em Tete e as imagens correntes

    de uma opulenta elite na bem servida capital Maputo soma-se a uma outra oposição:

    a de adversários políticos históricos cuja dissensão ultrapassa, em muito, o tamanho

    das urnas democráticas.

    “Esses comboios da Vale estão cheias de armas e fardamentos”, comentou

    Symplício quase que sussurrando dentro do bar da estação. “A RENAMO está

    treinando soldados na Gorongosa e pagam pessoas lá no porto para isso. A guerra

    vai voltar se a FRELIMO não dividir o dinheiro do desenvolvimento”

    As Serras da Gorongosa serviram de base militar para os exércitos da

    Renamo10 quando seus soldados tomavam as zonas rurais moçambicanas vindas da

    Rodésia do Sul, atual Zimbábue, espalhando o temor no campo e sitiando as grandes

    _______________________________________

    8 “Queremos dizer a Guebuza você come bem, nós também queremos comer bem” 13/11/2012.

    Agência France Press disponível em:

    http://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2012/11/queremos-dizer-a-guebuza-

    voc%C3%AA-come-bem-n%C3%B3s-tamb%C3%A9m-queremos-comer-bem.html [último

    acesso em 04/02/2016]

    9 A RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana) nasceu como movimento guerrilheiro nos

    primeiros anos de Moçambique independente. Depois do fim da guerra transformou-se no maior

    partido de oposição à FRELIMO. Ver nota 6.

    10 Utilizo os acrônimos RENAMO e FRELIMO em maiúsculas para referir-me aos partidos

    políticos formados após os Acordos de Paz de Roma em 1992. Para referir-me aos movimentos

    guerrilheiros utilizo-me das siglas em letras minúsculas.

  • 23

    cidades em uma guerra que durou dezesseis anos. Já em 2013, em meio a rápida

    escalada das tensões no país, a RENAMO acusava a FRELIMO de fraudes

    eleitorais e pedia paridade partidária na CNE (Comissão Nacional de Eleições)11

    para a realização das eleições autárquicas12. A FRELIMO, por sua vez, dizia que a

    comissão deveria ser formada através da proporcionalidade dos membros de cada

    partido na assembleia.

    Naquele momento, Symplício já notava as dificuldades que se aproximavam

    e a partir de então tropas renamistas começaram a se movimentar pelo país.13

    Afonso Dhlakama dizia que o reposicionamento dos seus soldados visava garantir

    a transparência do processo de recenseamento eleitoral, das eleições propriamente

    ditas e das contas governamentais, maculadas pelos dinheiro do desenvolvimento,

    ao tempo em que membros do governo acusavam a RENAMO de chantagear o país

    com a eminência de uma nova guerra. Tete, em especial, foi cenário privilegiado

    para o novo estratagema militar que se anunciava, deixando os habitantes da

    província e do país em polvorosa e dando margem para toda sorte de rumores.

    “A RENAMO está a posicionar seus soldados perto dos caminhos de ferro.

    Se a FRELIMO não dividir o dinheiro do desenvolvimento, eles vão atirar nos

    comboios da Vale. Se não podem atingir os pais, vão sequestrar o filho”, murmurou

    Symplício, fazendo uma referência amplamente difundida em Moçambique sobre

    _______________________________________

    11 “Artigo 2 – A Comissão Nacional de Eleições é um órgão do Estado, independente,

    responsável pela direcção e supervisão dos recenseamentos, dos actos eleitorais e dos

    referendos.” (Assembleia da República , Lei n. 20/2002 de 10 de Outubro de 2002). A CNE,

    entre outras atribuições, é responsável garantir que o recenseamento sem o qual os eleitores não

    podem votar, receber e decidir sobre a regularidade das candidaturas às eleições legislativas e

    autárquicas, inscrever partidos políticos e coligações para a disputa das eleições, determinar os

    locais e condições do recenseamento e dar parte ao Ministério Público qualquer irregularidade

    que, por ventura, possa ocorrer durantes as eleições.

    12 As eleições em Moçambique ocorrem em dois momentos. As eleições autárquicas, que visam

    escolher os representantes dos distritos, e as eleições gerais nas quais os membros da assembleia

    e o presidente são eleitos. Não há eleições provinciais. As províncias são administradas por

    governadores nomeados pelo Presidente da República

    13 Os Acordos de Paz de Roma, que puseram fim na guerra moçambicana em 1992, permitiu que

    alguns membros da Renamo, agora um partido político, pudessem portar armas para garantir a

    segurança de Afonso Dhlakama. Os restantes deviam ser desmilitarizados à medida que iam

    sendo desmobilizados pela ONUMOZ (United Nations Operations in Mozambique – Operação

    das Nações Unidas em Moçambique), missão de paz das Nações Unidas para Moçambique. O

    acordo também previa a formação de um exército nacional apartidário com 15 mil homens de

    cada partido, no entanto, a Frelimo recusou-se a receber homens da RENAMO nos quartéis.

    Assim como, desde 1992, no início da pacificação do país, a Renamo é acusada de entregar

    armas velhas para os observadores internacionais, atualmente Dhlakama afirma que as únicas

    armas que a Renamo possuí são aquelas permitidas pelos acordos de paz.

  • 24

    o universo familiar.

    “Aqueles gajos da FRELIMO são perigosos”, continuou seu primo,

    “lembram o que fizeram com Samora?”

    Samora Machel foi o primeiro presidente de Moçambique independente,

    líder do movimento guerrilheiro de libertação após a morte de Eduardo Mondlane

    em 1969, assumiu a presidência em 1975 para só deixá-la morto, após um acidente

    de avião em circunstâncias ainda pouco esclarecidas em 1986.14

    “Esses que estão aí hoje o mataram para poder comer sozinhos. Samora não

    permitiria isso no governo dele!” conclui.

    “Mataram-no como?”, perguntei ciente da controvérsia em relação a sua

    morte.

    “Botânica!”, comentou Symplício. “Esses gajos são perigosos”

    Harry West (2005), em sua etnografia no norte de Moçambique, demonstrou

    como o poder em Moçambique atua em duas esferas separadas mas influenciáveis

    entre si, uma relativa ao mundo visível e outra referente ao âmbito do invisível.

    Nesse sentido, ao contrário da esfera pública racional na qual vivem as democracias

    ocidentais15, em Moçambique o poder só pode ser devidamente exercido por meio

    de práticas ocultas de pessoas poderosas que influenciam a vida visível das pessoas

    _______________________________________

    14 O avião presidencial de Samora Machel caiu em 20 de outubro de 1986 em Mbuzini, na África

    do Sul. A morte do presidente da república, no auge da guerra civil moçambicana, quando a

    RENAMO já havia tomado grande parte do território moçambicano causou um grande conflito

    diplomático entre a nação socialista de Moçambique e o regime do apartheid da África do Sul.

    As autoridades sul-africanas, as primeiras a chegar no local, concluíram que a queda do avião

    teria sido uma falha humana. O piloto teria começado a aterrissagem muito cedo e o tempo

    fechado teria levado o avião a colidir nas montanhas que percorrem a fronteira entre os dois

    países antes de chegar ao aeroporto de Maputo. Entretanto, o clima ameno da noite do acidente

    e a vasta experiência de voo da tripulação soviética, que já havia aterrissado 65 vezes na capital

    moçambicana, ajudaram a fragilizar essa versão. A imprensa sul-africana chegou a entrevistar

    o engenheiro de voo Vladimir Novoselov, sobrevivente do desastre, como o piloto do fatídico

    voo na tentativa de conferir credibilidade a versão oficial, porém, Novoselov nem ao menos

    estava na cabine, mas sim nas poltronas traseiras onde dormiam todos aqueles que conseguiram

    sobreviver. Em Moçambique, aventou-se a hipótese de que tropas sul-africanas encontravam-

    se perto do local do acidente com um radiofarol capaz de confundir os instrumentos de pouso

    do avião presidencial e fazê-lo descer em direção as montanhas, momento em que teriam

    disparado um tiro de bazuca em uma de suas asas. Essa história tão pouco pode ser comprovada,

    mas o mistério que cerca a morte de Machel é um dos assuntos mais polêmicos em Moçambique.

    Para maiores detalhes, conferir Favet e Mosse (2004).

    15 Importante lembrar que o caráter transparente e racional do poder nas sociedades ocidentais é

    parte de uma autoimagem socialmente aceita que visa edificar o sistema político dos estados

    dito civilizados em oposição as nações atrasadas em relação as quais foram construídos. West e

    Sanders (2003) demonstram como o poder nas sociedades ocidentais, à exemplo da feitiçaria

    em Moçambique e demais países africanos, também percorre caminhos obscuros e relações

    inescrutáveis.

  • 25

    comuns.16 A botânica, a qual Symplício se referia, era uma dos modos mais

    poderosos de exercer o poder em Moçambique. Imersos em dinâmicas feiticeiras,

    os habitantes de Tete escrutinavam o mundo comum em busca de relações de poder

    que davam forma ao cotidiano visível, assim como seus antepassados que

    observaram curiosamente a atenção com que cientistas portugueses catalogavam as

    plantas nativas do país. Essa atividade foi associada com o poderio militar e

    econômico dos colonizadores e ligado às atividades secretas de feiticeiros que

    usavam das flora local para elaborar poderosos medicamentos com os quais

    controlavam o mundo visível. Botânica passou, assim, a ser sinônimo de

    medicamentos tradicionais e feitiçaria.

    O cuidado com que Symplício sussurrava sobre acontecimentos passados e

    presentes ganhava então um novo elemento. Até o momento, pensava que estaria

    preocupado com o simpatizantes ou membros da FRELIMO que poderiam estar no

    bar conosco. Eu mesmo tinha sido alertado diversas vezes antes de começar o

    campo por colegas de Maputo sobre a incerta situação de Tete. A abertura da mina

    obrigou a Vale a reassentar mais de 2 mil pessoas e, entre indenizações pagas pela

    metade, casas novas que apresentavam rachaduras com poucos meses de usos e

    denúncias de desvio de dinheiro, militantes ambientais começaram a acusar a Vale

    de desrespeito aos direitos humanos e crimes ambientais em fóruns internacionais.

    Desse modo, a atenção da imprensa internacional virou-se para Tete e a FRELIMO

    começou a exercer um severo controle sobre os reassentamentos e as minas.

    Pesquisadores e jornalistas eram vistos com desconfiança, tanto pelo governo, que

    tentava dar legitimidade para os megaprojetos, como pelas populações afetadas que

    temiam novos conflitos com os estrageiros.

    “Ali é quase o velho oeste”, diziam-me antes de eu embarcar rumo ao centro

    do país. “As pessoas andam armadas pelas ruas.”

    Excetuando o flagrante exagero sobre tiroteios à plena luz do dia, a situação

    _______________________________________

    16 “De acordo com este esquema, o poder é, por definição, a capacidade excepcional de

    transcender o mundo que a maioria das pessoas conhece, com o objetivo de obter influência

    sobre ele para fins extraordinários. Os feiticeiros movem-se num reino para além do mundo

    visível. Deste ponto de observação privilegiado, visionam o mundo diferentemente das pessoas

    normais e tornam as suas visões realidade, geralmente ao serviço dos seus próprios interesses

    egoístas e em detrimento de vizinhos e parentes. Embora o poder produza, de facto, disparidades

    visíveis e, tempos de riqueza e bem-estar, segundo este esquema, os mecanismos e a dinâmica

    explícitos do poder permanecem ocultos das pessoas comuns, que são, por definição, destituídas

    de poder.” (West, 2009, 45)

  • 26

    em Tete era, evidentemente, acompanhada de perto pela FRELIMO. Visitas aos

    alojamentos construídos pelas empresas eram rigorosamente controlados e

    estrangeiros interessados em visitar os locais que eram foco das tensões passavam

    por certos constrangimentos. Entretanto, não era essa o maior temor de Symplício

    e seus primos. Os múrmuros e sussurros diziam respeito a um mundo invisível que

    refere-se tanto ao grande mundo da política nacional como reflete preocupações

    cotidianas com as quais estão acostumados a lidar

    “Tome muito cuidado em Tete” continuou “podes ir para lá e não conseguir

    mais voltar”

    Seus primos concordavam:

    “Ali há muita feitiçaria. As mulheres são perigosas, fazem feitiços com os

    homens, especialmente os estrangeiros. Podes ficar preso em Tete e nunca mais

    voltar, sem nem mesmo saber o por quê”.

    Jorge, seu primo, contou que o homem enfeitiçado por uma dessas mulheres

    sente o corpo quente e não consegue mais sair da água. Catatônico, dentro de uma

    banheira ou uma bacia, o homem vai definhando até não poder levantar e morrer.

    “As mulheres seguem a trilha dos homens e pegam a areia dos seus passos.

    Com aquela areia fazem um medicamento e não consegues mais levantar-se. Ficas

    preso!”

    Contavam que tais feitiçarias são muito usadas pelas mulheres para

    conseguir marido, mas elas não são as únicas com as quais precisaria ter cuidado.

    “Outras pessoas constroem raios. Atiram-nos nas casas dos outros que ficam

    a queimar até não restar mais nada dentro dela”

    Recebi avisos sobre feiticeiros capazes de se transformar em hiena e

    crocodilos e fui aconselhado que em Zumbo, vila no limite oeste da província,

    nunca deveria cumprimentar as pessoas com um aperto de mão.

    “Somente cumprimente-os com acenos”, levantou a mão para o alto

    demonstrando como deveria fazer.

    “Se cumprimentares um feiticeiro de Zumbo com as mãos, vás sentir um

    ardor percorrendo seu braço” fez um gesto indicando o calor saindo de seu braço e

    indo em direção ao meu, “Se soltares antes de o calor voltar para ele, ficarás

    enfeitiçado!”

    “Sim, Tete é muito perigoso! Por isso gostei de como chegou aqui. Estava te

    observando em frente da estação”.

  • 27

    Antes de conhecer Symplício, resolvi sentar na mesa na entrada da estação

    por um minuto para tentar entender quanto tempo ficaria esperando o ônibus por ali

    e observar a movimentada vida local que começava a acordar com o frenético

    mercado que se instalava na praça central.

    “Quando chegas em uma terra estrangeira não podes chamar muita atenção”,

    continuou, talvez ignorando o fato de um branco chamar atenção em qualquer lugar

    do Chimoio, “deves parar e observar o costume dos locais, o que eles comem e o

    que vestem. Não podes aparecer muito, nem despertar inveja, se não vais acabar

    enfeitiçado”

    Envolvido pela conversa acabei perdendo a noção do tempo. Vasculhei com

    os olhos as ruas ao redor e não encontrei o ônibus. Ele estava cinco horas atrasado,

    mas sem qualquer informação, resolvi ligar para a atendente da empresa novamente

    que, para minha surpresa, indicou um local diferente para o embarque. Symplício,

    que conhecia a cidade, levou-me até o lugar indicado só para vermos o

    maximbombo virando a esquina em direção ao seu destino final. Antes que eu

    tivesse tempo para imaginar qualquer coisa, Symplício já engajou-se em uma

    envolvente negociação com o motorista do chapa mais próximo. Depois de alguma

    conversa, ele aceitou perseguir o carro por cem meticais. Após alguns quilômetros

    em alta velocidade, encontramos o ônibus parado em um posto de gasolina

    abastecendo o tanque.

    Symplício desceu do carro triunfante. Vibrou com o êxito que acabara de

    lograr e ajudou a transferir minhas malas para o bagageiro do maximbombo. Ao

    lado do chapa, cambaleante pela adrenalina e pela cerveja que eu havia pagado no

    bar, puxou-me de lado enquanto o motorista terminava de abastecer o veículo. Com

    a voz embargada pediu meu telefone, falou:

    “Inácio, gostei de ti! Gostaria de te falar uma coisa, mas sinto que se eu

    revelar isso vou estar revelando de toda minha africanidade...”

    Nesse momento, o motorista gritou dizendo que deveríamos ir.

    Symplício olhou-me e disse:

    “Eu tenho o seu contato. Vou te ligar quando for para Tete”

    “Sim, continuamos a conversa de onde paramos” respondi, intrigado com

    aquela conversa e irritado pela interrupção inoportuna.

    Entretanto, já não podia fazer mais nada, tinha que partir e os passageiros,

    curiosos, já começavam a se aglomerar na janela tentando descobrir que algazarra

  • 28

    era aquela do lado de fora. E assim entrei no ônibus em direção à Tete atrás de uma

    africanidade enigmática em uma terra perigosa.

    ***

    Passei grande parte do campo imaginando o que Symplício gostaria de me

    dizer antes de ser interrompido e esperando que me ligasse quando retornasse da

    Beira. De qualquer modo, sabia que não poderia tomar aquela frase como expressão

    de uma identidade essencializada referente a um universo africano ou nacional

    originários. No decorrer da pesquisa fui entender que a preocupação que aquela

    sentença carregava relacionava-se com tensões históricas entre uma ancestralidade

    autóctone e seus seguidos encontros com estrangeiros.

    Nesse sentido, Symplício expressava uma preocupação comum a todos

    aqueles que encontrei no Vale do Zambeze, o imenso rio que corta Moçambique

    pela metade e estabeleceu a rota de interiorização da colonização portuguesa no

    centro do país. Em Tete, como em diferentes lugares que visitei, a relação com a

    história e grandes acontecimentos passados, desde a grande batalha entre o rei

    Shaka Zulu e os britânicos da colônia sul-africana de Natal, passando pela

    concessões reais a grandes foreiros portugueses por todo o Vale do Zambeze e as

    intervenções do regime socialista de Moçambique independente, são parte

    integrante da rotina de elites urbanas e pequenos camponeses do interior das

    províncias.

    Dessa forma, em pouco tempo, pude compreender que se queria estudar as

    mudanças trazidas pela grande indústria mineira e o novo discurso do

    desenvolvimento, eu precisaria compreender profundamente os processos

    históricos por quais aquelas pessoas e seus antepassados passaram e com os quais

    devem lidar cotidianamente.

    Portanto, antes de receber os grandes empreendimentos extrativistas, os

    tetenses já haviam sido alvos da cooperação internacional, que chegara a região

    ainda durante a guerra civil moçambicana e implementara suas estruturas de modo

    integral durante as reformas econômicas neoliberais promovidas com a chegada da

    paz em 1992.

    Entretanto, antes mesmo desse processo, o governo socialista de Machel,

    instaurado após a guerra colonial, também já havia tentado propagar uma reforma

  • 29

    modernizante no pais, enviando milhares de moçambicanos para aldeias comunais

    instaladas nas áreas remotas do país. Através da ética e da rotina do trabalho, a

    “colonização mental” imposta por anos de regime português deveria ser superada

    para a construção de uma nova sociedade. Samora incentivou, concomitantemente

    às aldeias de trabalho forçado, a formação de cooperativas de agricultores que se

    espalharam pelo país sob o ideal de um “socialismo real africano” ligeiramente

    vislumbrado na experiência tanzaniana de Julius Nyerere. A política socialista

    visava destruir a ordem colonial que ainda persistiria em organizar as vidas dos

    moçambicanos. A prática e a crença na feitiçaria passaram a ser vistas como

    “crenças obscurantistas” inconcebíveis ao homem novo socialista que o governo de

    Machel tentava construir e as autoridades tradicionais, alicerces do indirect rule da

    administração portuguesa foram abolidas.

    No entanto, anteriormente, o próprio sistema colonial português já buscara,

    a sua maneira, modernizar e desenvolver as suas colônias no período tardo colonial.

    Durante o regime salazarista, as posses lusitanas em África, pensadas como parte

    integrante do território português, foram alvos de um programa de nacional-

    desenvolvimentista que criou uma empresa de exploração mineira na região de

    Moatize, estabeleceu uma agência estatal para o desenvolvimento do Vale do

    Zambeze17 e financiou a construção da maior hidroelétrica em solo africano à

    época.

    Ironicamente, as relações que as populações autóctones guardaram com

    todos esses processos estrangeiros de modernização local são devedoras de

    acontecimentos muito mais antigos que buscaram, nas palavras de Allen Isaacman

    (1972), “africanizar” instituições exógenas, incorporando-as dentro do sistema

    político local. Foi assim que o sistema de concessão de prazos – áreas pacificadas

    por súditos da coroa portuguesa as quais eram asseguradas a posse legal e direitos

    de exploração econômica por até três gerações –, foi relido por meio das relações

    de suserania e vassalagem típicas das estruturas de mando locais. Desse modo, ao

    realocar representantes do estados português como mediadores políticos entre um

    mundo autóctone de escassez e conflito, regrado pelo sistema da feitiçaria, e um

    universo exógeno, fantástico e abastado; os habitantes do Baixo Zambeze

    buscaram, sucessivamente, cultivar alianças e estratégias para acessar o mundo dos

    _______________________________________

    17 O Gabinete do Plano do Zambeze (GPZ).

  • 30

    brancos e ascender socialmente. No entanto, se de um lado, tais relações permitiam

    à admissão a uma esfera de consumo e poder, guardavam também um lado sombrio

    de violência e submissão inerente ao sistema colonial.

    Assim, a tese por trás do texto que aqui segue é a que o desenvolvimento

    propalado pelas novas indústrias mineiras e o sistema de cooperação internacional

    presente em Tete atualmente, ao invés de estabelecer uma ruptura com o sistema

    colonial e demarcar novas relações entre brancos e negros, estrangeiros e

    autóctones e the west and the rest, são, para os habitantes do Vale do Zambeze,

    parte integrante do processo de colonização que começou a mais de quinhentos anos

    atrás e as práticas e estratégias de ascensão social que elaboraram na apropriação

    de sua estrutura guardam uma incrível correspondência com as dinâmicas passadas

    de seus antepassados no trato com o sistema colonial.

    Assim, se para grande parte da leitura crítica ao desenvolvimento inspirada

    nas obras de Ferguson (1990) e Escobar (1995), o aparato da cooperação

    internacional é parte integrante de um projeto de expansão burocrática das malhas

    do estado e da estrutura do sistema de ajuda, tornando os beneficiários do

    desenvolvimentismo em objetos passivos ou ativistas resistentes desse processo,

    sugiro que, no Vale do Zambeze, a expansão da rede tecnocrática de ONGs, das

    agências internacionais, do corpo estatal e da indústria mineira é acompanhada por

    ativos processos locais de indigenização dessa rede que buscam reverter seus

    objetivos finais e perpetuar essas ramificações dentro da disputa política local.

    Entretanto, essa aliança só pode ser feita por meio de um contínuo processo

    local de reposição da diferença e construção política da alteridade. Nesse sentido,

    ao contrário do discurso humanista do desenvolvimento que busca colocar

    beneficiários e cooperantes dentro do mesmo patamar de igualdade, o processo de

    construção de alianças entre autóctones e estrangeiros necessita da perpetuação de

    um discurso nativo de clivagem racial. Assim, a pesquisa aqui presente nasceu de

    um profundo desconforto oriundo da discrepância entre premissas básicas do

    trabalho de qualquer antropólogo e a fala nativa que buscava, a todo momento,

    instaurar uma hierarquia entre pesquisador e interlocutores baseado em suas

    pertenças raciais. No fim das contas, o que meus interlocutores e amigos me diziam

    eram que eu era melhor do que eles por ser branco- Era essa discrepância que

    justificava a atual situação do Baixo Zambeze e dava as linhas gerais através das

    quais os seus habitantes buscavam se inserir nos novos tempos de desenvolvimento.

  • 31

    Assim, se a antropologia é parte de uma dinâmica histórica do sistema

    mundial, na qual o papel da diferença e da diversidade são cada vez mais centrais

    para a construção de unidades políticas, ao mesmo tempo em que vemo-nos

    obrigados a reconhecer o limite de nossos discursos sobre ela a incorporar outras

    cosmopolíticas sobre a alteridade e sua importância (RIBEIRO, 2006). Como lidar

    com estruturas de alteridade que pregam não a positividade de sua existência, mas

    a incontornável impossibilidade de sua superação? Como lidar com unidades

    políticas construídas não pela positividade de um direito humano, mas pela

    impossibilidade racial de sua inscrição em um sistema universal e igualitário? Com

    qual estatuto deve-se incorporar afirmações locais que buscam inserir uma ruptura

    essencial no discurso universal dos direitos humanos e na base humanista, que de

    uma forma ou de outra, a antropologia é devedora?

    Deparando-me constantemente com ideias que suscitavam uma diferença

    intransponível entre o mundo do branco, ordenado e pacífico, e o domínio do negro,

    perigoso e amaldiçoado, decidi-me levá-las tão à sério quanto possível de modo a

    tomá-las como parte de um processo de produção e reposição da diferença (Montero

    et alli, 2011) envoltos em relações práticas-discursivas de violência enunciatória,

    econômica e política do sistema colonial. Práticas, que devido a longevidade dos

    sistemas políticos locais e sua capacidade de incorporar e repor a diferença, ainda

    são essenciais para o entendimento da atual conformação do desenvolvimento em

    Tete.

    Desse modo, organizei a tese em seis capítulos e um interstício.

    Nos dois primeiros capítulos faço uma recuperação histórica da colonização

    portuguesa na região de modo a esclarecer como os estrangeiros formaram um

    grupo privilegiado na manutenção de uma economia moral na região. Inseridos

    enquanto mediadores entre o sistema mercantil do Índico e as sociedades locais, os

    portugueses ganharam status de grandes chefes locais e fortaleceram o sistema

    político que encontraram no momento de sua chegada. Enquanto o primeiro

    capítulo oferece uma visão geral sobre a conformação da sociedade muzungu no

    Vale do Zambeze, o segundo capítulo busca explicitar os meios pelos os quais os

    negros tentavam inserir-se em posições privilegiadas dentro do sistema colonial.

    O terceiro capítulo, por meio de relatos de viajantes e dados de campo, sugere

    que o campo da feitiçaria e da religião ofereceu o substrato simbólico e o campo

    prático por meio do qual os europeus e autóctones pensaram uns aos outros e através

  • 32

    do qual o campo do desenvolvimento é pensado atualmente.

    Os três primeiros capítulos são construídos intercalando dados históricos e

    relatos etnográficos, na tentativa de ressaltar processos e imaginários sociais que se

    mantiveram ao longo dos séculos. Espero que tal estratégia de escrita possa

    proporcionar uma visão mais profunda dessas dinâmicas e que os riscos de uma

    leitura labiríntica tenham sido evitados.

    De modo a reatar possíveis conexões que possam ter ficado pelo caminho,

    inseri, entre o terceiro e quarto capítulos, um pequeno interstício que não pretende

    funcionar como um capítulo autônomo, mas levantar alguns pontos essenciais e

    retomar o fôlego necessário para o restante da tese.

    Os capítulos posteriores detém um caráter mais etnográfico e buscam

    conectar as percepções sobre a história local com a chegada dos novos tempos do

    desenvolvimento. O capítulo quatro problematiza a construção das primeiras

    estruturas do sistema de ajuda a partir da experiência socialista de coletivização do

    campo em Moçambique. O quinto capítulo descreve a nova estrutura

    desenvolvimentista presente em Tete e sua transformação a partir da chegada da

    indústria mineira e o sexto capítulo retira as consequências mais gerais sobre a

    percepção local sobre a democracia a por meio das experiências históricas dessas

    populações.

  • 33

    33

    PARTE I

  • 34

    34

    CAPÍTULO 1

    O VALE DO ZAMBEZE: O CONTEXTO HISTÓRICO DA

    COLONIZAÇÃO PORTUGUESA

    Debaixo do forte sol do meio-dia, Seu Godinho conduzia-me pelas diferentes

    machambas18 do Vale do Nhartanda, nas cercanias da cidade de Tete. Ele seguia

    em frente indicando o caminho e, enquanto passávamos em meio a couves, alfaces

    e batatas-doces, olhava para trás e dizia-me onde pisar.

    “Cuidado para não estragar a machamba do dono”, aconselhou.

    Naquela tarde, conheci alguns dos membros da Cooperativa 25 de Setembro,

    associação de agricultores criada em meados da década de 80 para receber ajuda

    dos programas de desenvolvimento nórdicos. Muitos deles já tinham participado

    das Cooperativas Agrícolas durante o período de modernização socialista pós-

    independência, o projeto estatal de reorganização da produção rural durante o

    governo de Samora Machel (1975-1986), e viram com bons olhos a chegada das

    ONGs em Tete.

    Um dos agricultores retirou um pepino grande e amarelo da machamba,

    trouxe um pouco de sal com piri-piri19 e começou a cortá-lo em pedaços.

    “Já estamos no século XXI”, disse um dos agricultores quando perguntei

    sobre as técnicas tradicionais para kulima – plantar em cinyungwe, língua mais

    falada em Tete –, “precisamos de técnicas modernas”.

    Pegou um pedaço do pepino que lhe foi oferecido, mergulhou na mistura de

    sal com pimenta e começou a relatar as condições em que se encontravam enquanto

    os outros se serviam: faltavam motobombas d'água para regar suas machambas,

    sementes e adubos melhorados e apoio do governo e das ONGs. Apesar da ajuda

    escandinava ter chegado ali em 1983, ou trinta anos antes de mim, todos

    unanimemente concordaram que, apesar de algumas melhorias nas últimas décadas,

    ainda havia muito a ser feito em Tete.

    De volta a sua machamba, Seu Godinho mostrou-me sua plantação de

    hortaliças. Havia aprendido a cultivá-las com os projetos de desenvolvimento rural

    _______________________________________

    18 Machamba é o termo moçambicano para horta, plantação.

    19 Pimenta

  • 35

    35

    que chegaram à cidade durante a “guerra entre irmãos”20. Ali, antigamente, só se

    plantava milho durante a época das chuvas, de novembro a março. Assim, uma vez

    feita a colheita, o milho era moído e conservado como farinha pelo resto do ano.

    Dessa farinha estocada, faz-se a xima, uma papa de milho e água que constitui a

    base da alimentação familiar em Tete e em Moçambique, de uma maneira mais

    geral. Desse modo, os projetos internacionais especializaram-se na produção de

    hortaliças por meio de técnicas ocidentais durante a época de seca, no intuito de

    aumentar a variedade e quantidade de alimentos disponíveis e estimular o comércio

    local, complementando a renda dos agricultores.

    Seu Godinho fazia questão de mostrar suas alfaces. Ressaltava a qualidade

    delas quando foi interrompido por um grito conhecido em cinyungwe. Era seu

    amigo que passava de bicicleta. Seu Godinho gritou de volta. Deram risadas.

    Perguntei o que haviam falado. Seu Godinho, constrangido, confidenciou:

    “Estava brincando. Perguntou se eu era amigo de branco agora”

    Era, obviamente, uma referência ao período colonial, quando Portugal

    dividiu todo Vale do Zambeze em Prazos da Coroa, administrados por portugueses

    e suas famílias por até três gerações.21 Ao retirar os rumos da colonização local das

    mãos de particulares e colocá-los sob responsabilidade de administradores

    escolhidos pela coroa, o regime dos prazos foi a primeira tentativa do Estado

    português de se fazer efetivamente presente na região. A presença de reinóis deveria

    desenvolver a área aproveitando-se da fertilidade de suas terras e do trabalho

    forçado dos habitantes do local.22 Todavia, as precárias condições oferecidas pela

    _______________________________________

    20 “Guerra entre irmãos” é como a guerracivil entre a Renamo (Resistência Nacional

    Moçambicana) e a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) é referenciada em campo.

    Em 1977, dois anos após a independência moçambicana, quando o movimento guerrilheiro

    Frelimo assumiu o poder, a Renamo, inicialmente um movimento financiado pela África do Sul,

    iniciou uma sangrenta guerra civil que só terminaria em 1992 com mais de um milhão de

    vítimas. A dinâmica da guerra, primeiramente financiada do exterior como uma tentativa de

    desestabilização do novo regime, ganhou apoio interno nas zonas rurais do país pelo

    descontentamento com as políticas frelimistas. Para maiores informações ver Geffray (1991).

    21 “Prazo is a Portuguese word meaning a period of time. It designated the estates "conceded" or

    occupied by these individual settlers, from the 17th century on, as a result of Portuguese

    conquest or of the initiative of the settlers themselves. The occupied lands came to be designated

    this way in the Portuguese legislation because the settlers were supposed to possess them during

    a period of time of three generations. In order to have legitimate access to one Prazo the settler

    had to fulfil specific conditions and duties, such as to marry a Portuguese woman, to collect the

    head-tax and to administer the area, to pay an annual rent to the government and to provide

    military support to the authorities." (BORGES COELHO, 1993, 55)

    22 “Que 'gente' seria essa; que carências ela iria suprir? De certa forma, podemos adiantar que, em

  • 36

    36

    Coroa tornaram a exploração dos camponeses — através da cobrança de impostos,

    da venda de sua mão de obra e do trabalho forçado nas minas — muito mais

    lucrativa do que a produção para o mercado externo.23 A violência do período é

    uma referência constante no dia a dia dessas populações.

    Seu Godinho tinha sofrido essa violência na pele; tinha idade suficiente para

    ter testemunhado as privações do colonialismo que só teve o seu fim decretado em

    1975. Portanto, sabia que a referência que seu amigo havia feito não me era nem

    um pouco lisonjeira. Construir uma amizade com um branco dentro de tal contexto

    nunca foi uma tarefa inocente. Vi-o afastar-se ainda rindo. Virei para o Seu Godinho

    e perguntei:

    “E o que o senhor respondeu? ”

    “Disse que era o desenvolvimento”, respondeu.

    Rimos os dois

    A COLONIZAÇÃO PORTUGUESA E O ADVENTO DA SOCIEDADE DOS PRAZOS

    Em 30 de outubro de 1797, o Governador dos Rios de Senna24, Francisco

    _______________________________________

    linhas gerais, eram necessários homens adultos, para a defesa do território e para o

    desenvolvimento de atividades administrativas, comerciais e agrícolas, e mulheres, para enlaces

    matrimoniais, na medida em que os casamentos constituíam um importante elemento de fixação

    dos indivíduos. ” (WAGNER, 2011, 525).

    23 Ou como coloca Malyn Newitt: “At first the prazos probably had rather a negative function in

    the mind of the authorities. They were designed to check the monopoly of lanalling into the

    hands of a few lawless clans by introducing a larger white population and by securing the

    reversion of all land to the crown. Only the eighteenth century did the idea of increasing the

    population of the Zambezi become more closely associated with the idea of developing the area

    agriculturally. The experience of Brazil and the West Indies was draw on to show what could

    be done, and experiments in sugar production were actually undertaken. By the nineteenth

    century most writers on Portuguese colonial affairs assumed that the prazos were intended to

    be plantations. ” (NEWITT, 1969, 74)

    24 Durante o processo de expansão colonial, iniciada no século XV, os portugueses atingiram o

    interior da África no século XVI; vinham atraídos pelo ouro do Império de Monomopata, que

    ocupava parte da atual zona fronteiriça entre Moçambique e Zimbábue. A partir do século XVII,

    uma das rotas privilegiadas para o interior do continente era a navegação do Rio Zambeze, que,

    embora constituísse uma árdua empreitada — cheio de bancos de areia, épocas de seca, doenças

    e, por vezes, habitantes hostis —, foi, durante quase todo período colonial, a porta de entrada

    para a região. Desse modo, os portugueses ocuparam uma grande área por toda margem sul do

    Zambeze e ao Norte do delta do rio, em terras conquistadas ou cedidas por grandes chefes

    africanos, em geral, em troca de ajuda militar. A ocupação portuguesa, muitas vezes composta

    por agrupamentos de algumas dezenas de europeus, estendia-se da foz do Zambeze até 120

    léguas da costa, cerca de 800km subindo o rio em direção ao interior africano, uma viagem cujo

    último grande enclave português era a então Vila de Tete. O Vale do Zambeze era conhecido

    durante os seiscentos como Rios de Sofala ou Rios de Cuama. No século XVII, a região passou

  • 37

    37

    José de Lacerda e Almeida, partiu de Quelimane para uma vistoria das áreas sob

    sua jurisdição no Vale do Zambeze. O governador esperava encontrar benfeitorias

    portuguesas espalhadas de Chinde a Tete, chegando até mesmo ao longínquo

    Zumbo, que deveriam trazer os cafres, como os negros eram chamados, para o

    caminho da luz e da civilização europeia.

    No entanto, já no início de sua viagem, na boca do Zambeze, via que sua

    missão não seria fácil. A chegada do governador naquelas paragens, um fato tanto

    raro, estimulou uma grande recepção por parte dos seus habitantes, que tocaram

    tambores e dançaram em diferentes grupos demonstrando a satisfação que tinham

    em receber tão alta autoridade. Infelizmente, a recíproca não era verdadeira, e o

    governador não se furtou em anotar em seu diário a “horrenda e enfadonha

    trovoada” que ouviu, acompanhada de “gritos e palmadas” que só poderiam

    representar “a ruína do universo”. Lamentou ainda que não havia ali alguém que

    poderia tomar para si o papel de mestre daquelas populações, ensinar-lhes a arte do

    pastoreio e retirar-lhes essa inclinação para a dança e a música, atividade de

    “movimentos desordenados, convulsos e extremamente nervosos” para a qual

    estariam sempre prontos e adornados.25

    Quarenta e seis anos antes, o antigo governador dos Rios de Senna, Francisco

    de Mello e Castro, havia feito o mesmo percurso de seu sucessor e já apontava a

    escassez de moradores portugueses em Quelimane, uma vila costeira e de fácil

    acesso. A parca colonização das áreas da Conquista era feita por exilados,

    criminosos e condenados de Goa ou Portugal e, segundo Mello e Castro, “(...) desta

    qualidade de gente mui pouco se deve esperar”.26 Durante todo o século XVIII, a

    população católica de Rios era quase ínfima27. Em 1779, havia 1 138 cristãos em

    todo Rios de Sena, uma região de mais de 40 mil km2. Em 1787, o crescimento

    atingiu um pico e foram contabilizadas 1958 pessoas, mas, em 1796 — depois de 4

    anos de seca e fome na região —, o número caiu para 603.28

    _______________________________________

    a fazer parte da zona administrativa dos Rios de Senna, respondendo ao Governador Geral

    instalado na Ilha de Moçambique, norte do país, e, no século XIX, tornou-se a Zambézia. (Cf.

    NEWITT, 1969 e RODRIGUES, 2000)

    25 LACERDA E ALMEIDA, 1889, p.13.

    26 MELLO E CASTRO, 1861 ,p. 12.

    27 Ser cristão era uma condição necessária para ser considerado súdito do rei de Portugal, no

    entanto, dentro dessa designação poderiam ser encontrados portugueses, mestiços (afro-

    portugueses ou indo-portugueses) e asiáticos convertidos ao catolicismo. (WAGNER, 2009)

    28 Dados de Wagner (2009).

  • 38

    38

    Em 24 de novembro de 1797, ao chegar em Tete no auge de uma das

    recorrentes secas na região, Lacerda e Almeida descreveu uma situação alarmante.

    Os rebanhos de ovelhas, cabritos e vacas quase se extinguiram, os de porcos não

    existiam mais e as casa de pedra e barro já não tinham teto; as muitas coberturas de

    palhas haviam sido comidas por cupim há algum tempo, e as poucas casas com

    telhados tinham perdido suas peças com os fortes ventos. As ceias eram feitas na

    completa escuridão por falta de velas e óleo. Todos os dias, amanheciam negros

    mortos pela fome nas ruas da vila, e, apesar dos mínimos cuidados a eles

    dispensados, muitos foreiros libertaram seus escravos por não poderem mais

    sustentá-los. Moradores com mais recursos conseguiam trazer alguns gêneros de

    Sena, capital da província a 60 léguas ao sul, que, por se situar em terras mais baixas

    e úmidas, sofreu menos com as intempéries. Entretanto, as péssimas condições das

    estradas, do rio e dos meios de transporte só permitiam que essa distância fosse

    vencida com muito custo.29

    A situação era mais difícil em Zumbo, a última feira portuguesa no Zambeze,

    localizada em meio às chefaturas africanas e quase sem nenhum destacamento

    militar. Estabelecida além de Tete no começo dos 1700 através de negociações com

    chefes Nsenga — um dos grupos maraves que ocupava aquela região —, chegou a

    ter, em 1749, 478 cristãos, sendo 80 pessoas ricas o bastante para serem

    consideradas moradores (RODRIGUES, 2013). Entretanto, em 1795, durante a

    fome que assolava a região, o governador recebeu a informação de que, em Zumbo,

    não existiam mais de seis mercadores e um nenhum morador, sendo o juiz

    responsável “quase um cafre” (WAGNER, 2009, 97). A passagem dos mercadores,

    – geralmente agentes africanos, que atendiam pelo nome de mussambazes

    (corruptela de mussambadzi, negociante com o pural vashambadzi) –, a exploração

    das minas de ouro, a posse de escravos e a própria existência da vila dependiam

    inteiramente das habilidades de negociação dos senhores com as chefaturas

    africanas.

    Além do mais, nos fins do setecentos, as povoações dos Rios de Sena

    passavam por constantes sobressaltos. Inflados pelo crescimento das incursões

    _______________________________________

    29 LACERDA E ALMEIDA, 1889, p.29.

  • 39

    39

    portuguesas e seus famigerados achikunda30, exércitos de soldados escravos dos

    prazeiros, que vinham atrás de novos homens para satisfazer o crescente mercado

    negreiro em direção às Américas31, os povos autóctones retaliavam as

    desguarnecidas fortificações portuguesas. As caravanas comerciais que cruzavam a

    região, à época encravada entre, pelo menos, três grandes estados africanos — o

    império karanga de Monomopata na fronteira atual de Moçambique e Zimbábue, o

    estado marave Undi na margem norte do Zambeze e o Reino do Báruè, facção

    karanga ao sudoeste da vila de Sena —, eram alvo de constantes saques.

    (RODRIGUES, 2013).

    Não é, portanto, de se admirar que, por toda segunda metade do século

    XVIII, os governadores dos Rios de Sena tenham escrito sucessivamente para o

    reino relatando as precárias condições em que se encontrava a capitania —

    agravadas pela parca povoação, as péssimas condições comerciais, a quase

    inexistente estrutura administrativa, os sucessivos ataques sofridos, a falta de

    religiosidade e a limitada inclinação para o trabalho que possuíam seus habitantes

    (WAGNER, 2011).

    Tais reclamações, registradas quase 300 anos depois da chegada portuguesa

    à costa moçambicana, sintetizam a cadência do empreendimento colonial no Vale

    do Zambeze. A débil presença lusitana, ao invés de ser parte inicial de um projeto

    civilizador ainda por vir, constituiu-se como regra na povoação da região. Na

    realidade, a sobrevivência de qualquer pretensão portuguesa na região só foi

    possível pela capacidade adaptativa dos prazeiros às dinâmicas políticas locais. No

    entanto, a bem-sucedida inserção dos foreiros acabou por vinculá-los de maneira

    ______________________________________