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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES MILENA LEITE PAIVA A DIREÇÃO DE ARTE NO AUDIOVISUAL BRASILEIRO: UMA ABORDAGEM SOBRE SUBURBIA CAMPINAS 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

MILENA LEITE PAIVA

A DIREÇÃO DE ARTE NO AUDIOVISUAL BRASILEIRO:

UMA ABORDAGEM SOBRE SUBURBIA

CAMPINAS

2015

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MILENA LEITE PAIVA

A DIREÇÃO DE ARTE NO AUDIOVISUAL BRASILEIRO:

UMA ABORDAGEM SOBRE SUBURBIA

Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual

de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do

tìtulo de Mestra em Multimeios.

ORIENTADOR: GILBERTO ALEXANDRE SOBRINHO

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO

FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA

ALUNA MILENA LEITE PAIVA, E ORIENTADA PELO

PROF. DR. GILBERTO ALEXANDRE SOBRINHO.

CAMPINAS

2015

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Maria Nivaldina Nascimento Leite e Aroldo Araújo Leite, pelo amor e

incentivo aos estudos.

À Cilene Canda e Anderson Paiva, por despertarem o meu interesse pela pesquisa

acadêmica.

À Fundação de Amparo À Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), por financiar e

acompanhar o desenvolvimento desta pesquisa.

À CAPES, pela Bolsa Emergencial de Pesquisa obtida no perìodo inicial do curso.

Ao Professor Doutor Gilberto Alexandre Sobrinho, pela orientação dedicada e precisa.

Aos Professores Doutores Esther Império Hamburger e Március César Soares Freire

pela gentileza e disponibilidade em participar da minha Banca de Defesa e por toda a atenção

dispensada a esta dissertação.

Ao Programa de Pós-Graduação em Multimeios, por acreditar no potencial deste estudo.

À Rede Globo de Televisão e ao Globo Universidade, em especial a Juan Crisafulli,

pelo apoio a esta pesquisa.

Ao professor e diretor de arte Luiz Fernando Pereira, pelo depoimento instigante e

valioso a esta investigação.

À minha querida amiga Thaìs Vanessa Lara, por compor comigo uma dupla de “ratas de

biblioteca” e pelas nossas infindáveis conversas “acadêmicas”.

Aos demais colegas do Instituto de Artes, Felipe Bonfim, Álvaro André Zeini Cruz,

Regiane Ishii, Renan Chaves, Carol Manabe, Janaìna Welle, Viviana Echávez Molina, Lilian

Bento, Letizia Nicoli, Jennifer Jane Serra, entre outros nomes, pelos momentos vividos e

conhecimentos compartilhados.

Aos bibliotecários do Instituto de Artes, Carlos Eduardo Gianetti e Silvia Shiroma, pelo

atendimento sempre eficiente e gentil.

Aos amigos Renato Kuteken, Rayane Floriano e Sabrina Areco, e aos demais vizinhos

da Casa do Sol, pelo acolhimento e apoio mútuo e, principalmente, pelas inesquecìveis rodas

de conversa nas tardes e noites de Barão Geraldo.

E, por fim, agradeço ao universo, pela oportunidade de realizar o que amo: pesquisar;

pelos caminhos percorridos através desta pesquisa de mestrado e pelas pessoas especiais que

conheci nesta fase da minha vida tão fecunda e especial.

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RESUMO

Esta dissertação apresenta uma sistematização dos conceitos e das práticas da direção de arte

na produção audiovisual brasileira, com especificidade na teledramaturgia, tendo como

corpus a minissérie Suburbia (2012), dirigida por Luiz Fernando Carvalho para a Rede Globo

de Televisão. A abordagem apresentada contempla um levantamento de dados teóricos e

empìricos oriundos do universo produtivo da direção de arte, assim como um mapeamento de

produções acadêmicas focadas nesta temática, para posteriormente traçar um entendimento

dos processos da função na cadeia produtiva de uma emissora de televisão, em especial no

contexto institucional da Rede Globo. Com base neste repertório, a pesquisa então se

direciona a uma definição do “lugar” da direção de arte no processo criativo do diretor Luiz

Fernando Carvalho, em cuja obra os principais elementos estruturantes do projeto de arte – a

cenografia, o figurino e a maquiagem – são potencializados pela experimentação visual de

linguagens. Para corroborar as constatações alcançadas, o estudo é finalizado com a análise da

visualidade construìda em Suburbia, considerando as relações conceituais entre narrativa,

encenação e direção de arte, e as suas projeções visuais nas imagens da minissérie. Este

trabalho traz uma compreensão da direção de arte como um campo de pesquisa autônomo, por

se tratar de uma das principais instâncias estéticas da imagem audiovisual, responsável pela

concepção material dos espaços da diegese e atuante na construção de camadas de

significação nos quadros fìlmicos e televisivos.

Palavras-chave: Direção de arte; Audiovisual; Cinema e televisão; Luiz Fernando Carvalho.

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ABSTRACT

This thesis presents a systematization of the art direction concepts and practices in the

Brazilian audiovisual production, with specificity in television drama works, with the research

corpus the miniseries Suburbia (2012), directed by Luiz Fernando Carvalho for Globo

Network TV. The presented approach includes a survey of theoretical and empirical data

derived from the production universe of art direction, as well as a mapping of focused

academic productions on this theme, to subsequently draw an understanding of the role's

processes in the supply chain of a television station, particularly in the institutional context of

Globo Network. Based on this repertoire, the research is directed towards a definition of the

'place' of art direction in the director Luiz Fernando Carvalho's creative process, whose work

on the main structural elements of the art project - the scenery, the costumes and the makeup -

are enhanced by the visual experimentation of languages. To corroborate the findings reached,

the study ends with an analysis of the visuals built in Suburbia, considering the conceptual

relations between narrative, staging and art direction, and its visual projections in the

miniseries images. This work brings an understanding of the art direction as a research field

by itself, since it is one of the main aesthetic instances of audiovisual image, being

responsible for the material design of the spaces of diegesis, and being active in the building

of layers of meaning in filmic and television pictures.

Key Words: Art direction; Audiovisual; Cinema and television; Luiz Fernando Carvalho.

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SUMÁRIO

Introdução ................................................................................................................................. 1

1. A direção de arte: conceitos e práticas ............................................................................... 5

1.1. Direção de arte e encenação ......................................................................................... 15

1.2. Direção de arte: conceito e projeto ............................................................................... 21

1.3. Paleta de Cores ............................................................................................................. 25

1.4. Cenografia ..................................................................................................................... 30

1.5. Figurino ......................................................................................................................... 36

1.6. Maquiagem ................................................................................................................... 38

1.7. Efeitos Especiais ........................................................................................................... 40

1.8. Premissas teóricas da análise visual ............................................................................. 42

2. O “lugar” da direção de arte na direção autoral de Luiz Fernando Carvalho ............ 50

2.1. A direção de arte na teledramaturgia da Rede Globo ................................................... 54

2.2. O atual panorama da direção de arte na Rede Globo .................................................... 63

2.3. A direção de arte e o percurso criativo de Luiz Fernando Carvalho ............................ 74

3. A direção de arte da minissérie Suburbia ...................................................................... 105

3.1 Considerações sobre a narrativa de Suburbia ............................................................. 108

3.2 O projeto de arte da minissérie ................................................................................... 118

3.2.1 Pesquisa e Referências visuais............................................................................. 119

3.2.2 Paleta de Cores .................................................................................................... 123

3.2.3 Cenografia, Figurino e Caracterização ................................................................ 123

3.3. Direção de arte e visualidade em Suburbia ................................................................. 124

Considerações Finais ............................................................................................................ 137

REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 139

APÊNDICE ....................................................................................................................... 143

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1

Introdução

Esta pesquisa nasce de um fascìnio pessoal pela matéria das visualidades. Construìda a

partir de bases teóricas e empìricas, representa uma tentativa de compreensão das criações

visuais humanas que, através de uma apropriação sensorial das luzes, cores, formas e texturas

do mundo tangìvel, se propõem a representá-lo, deformá-lo ou simplesmente reinventá-lo em

recortes espaciais particularizados. A imagem audiovisual pertence a esta linhagem criativa.

As imagens sonoras em movimento e os seus “efeitos de realidade” capturam violentamente

“as cores do mundo”, iludem e rendem os sentidos humanos de tal forma que hoje, podemos

constatar, somos seres audiovisuais, completamente cativos destas linguagens.

Desta conjuntura deriva o fato de vivermos em contextos sociais, concretos ou virtuais,

imageticamente saturados, onde observamos uma acelerada banalização da produção e da

reprodução de imagens, sejam estas privadas, publicitárias, televisivas ou cinematográficas.

Isto não impede, entretanto, que o poder da imagem de transcender o cotidiano e tecer novas

leituras sobre a subjetividade humana ainda se mantenha, sobretudo nas obras artìsticas. Não

seria este, então, o papel da arte? O de fragmentar, deslocar e reorganizar os sentidos da nossa

trajetória existencial, construindo narrativas e visualidades que delineiam novos olhares sobre

a realidade sensìvel e sobre nós mesmos?

Uma das principais instâncias estéticas das imagens cinematográficas e televisivas, a

direção de arte se alinha a esta assertiva ao cooperar na criação de pontos de vista particulares

sobre histórias, seres e espaços. Atuando no processo de configuração de formas audiovisuais

singulares, a função, uma das bases criativas do fluxograma profissional da produção

audiovisual, é a responsável pela transcriação de diretrizes textuais em conceitos,

materialidades e visualidades, sendo a sua matéria-prima principal o mundo concreto

acessado e manipulado pelas sistemáticas da pesquisa e do projeto e reconfigurado pelos

elementos compositivos do espaço diegético: cenário, figurino e maquiagem. A direção de

arte pode ser definida como o principal alicerce plástico da imagem, já que o posterior

registro fotográfico de uma cena está direcionado de certa forma pelas suas bases visuais.

O reconhecimento da importância da função na feitura audiovisual, associado à

constatação da quase inexistência de um campo de pesquisa acerca da direção de arte, nos

estimulou a empreender um estudo que contribuìsse para a ampliação de um repertório de

dados sobre este universo produtivo, tanto em suas questões conceituais quanto práticas. A

estruturação de uma abordagem da função no contexto da produção audiovisual brasileira

mostrou-se, assim, fundamental. Para Aumont (2003, p. 25), o termo audiovisual “(...) designa

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2

(...) as obras que mobilizam, a um só tempo, imagens e sons, seus meios de produção, e as

indústrias ou artesanatos que as produzem”. Esta definição contempla uma gama de produtos

midiáticos produzidos para serem veiculados não somente pelas telas tradicionais, mas

também por aparelhos celulares, webcams, internet etc. A abordagem aqui apresentada se

restringe às narrativas ficcionais concebidas nos contextos produtivos do cinema e da

televisão, interessando-nos os seus dispositivos, processos padrões de produção e exibição.

Entende-se que as particularidades da linguagem cinematográfica são referenciais aos demais

formatos, e que, por isso, as obras televisivas mantem um estreito diálogo com os seus

procedimentos, tanto estéticos quanto produtivos.

É preciso não perder de vista, contudo, que a televisão brasileira, por conta do seu

alcance geográfico, social e ideológico, teve durante muito tempo um papel destacado em um

processo de “formação audiovisual” das massas. E que apesar do aumento no consumo de

produtos narrativos para a web, somos um paìs ainda marcado pela influência estética de uma

intensa carga de narrativas televisuais. Entender a construção das visualidades televisivas em

seus pormenores processuais e estéticos mostra-se assim uma investigação premente, tanto

quanto uma abordagem da direção de arte neste contexto produtivo.

A minha formação no campo das artes visuais e das artes aplicadas, propiciada por uma

graduação em Design Visual teve um papel fundamental no desenvolvimento desta pesquisa.

Os estudos da História da Arte, da Estética e da Linguagem Visual e o aperfeiçoamento

técnico nas áreas do desenho, da composição plástica e do projeto gráfico contribuìram para a

apreensão de um repertório teórico e prático essencial na construção de um olhar especìfico

sobre as imagens audiovisuais, deslocado de uma decodificação restritiva somente às

narrativas textuais e imersivo na estrutura visual dos quadros. A este estudo da estética da

imagem se articulou ainda um interesse profissional pelas práticas produtivas na área do

cinema e da televisão, em especial pelos processos criativos da direção de arte, um

conhecimento que é então adquirido em cursos, inicialmente na Academia Internacional de

Cinema e posteriormente em aulas com a diretora de arte Vera Hamburger em São Paulo.

Todo este aprendizado será reiterado pela experiência na realização de curtas.

Daì, então, decorre a ideia de uma investigação sobre o “lugar” da direção de arte no

processo criativo do diretor Luiz Fernando Carvalho. Partindo da concepção de que o

conjunto da sua obra evidencia um forte investimento em visualidades que agregam densidade

estética aos discursos propostos, objetivamos traçar um entendimento do espaço ocupado pela

direção de arte no seu percurso como diretor, em especial nos seus trabalhos na produção de

teledramaturgia da Rede Globo de Televisão. Nas suas minisséries em particular, a percepção

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de uma direção de arte que aflora na superfìcie da imagem nos arrebata intuitivamente para a

relevância de uma leitura dramática e simbólica dos elementos materiais estruturantes da

espacialidade cênica. São trabalhos que evidenciam uma aposta em projetos de arte

conceitualmente coesos que junto a uma forte estrutura de encenação corroboram a

construção de atmosferas únicas. Todas essas obras mantem ainda traços estéticos recorrentes

que ressaltam um processo criativo de contornos autorais.

Nos resultados finais alcançados nestas produções, observa-se um respeito tanto à

essência dramática do texto quanto aos processos e às demandas das suas equipes técnicas do

departamento de arte, de fotografia, elenco, preparação de atores, montagem, e etc. Sem

preconceitos midiáticos, o diretor demonstra entender e acreditar no potencial estético da

televisão, não somente em termos comunicacionais, mas principalmente educativos. Pelas

suas mãos a produção televisiva toma contornos de obras de arte e promove importantes

reflexões que passam tanto por questões existenciais e ideológicas, quanto por estéticas,

sociais e ambientais.

Assim, escolhemos como objeto de pesquisa a minissérie Suburbia. Com tendências

realistas, em negação ao artificialismo e aos grafismos das produções anteriores de Luiz

Fernando Carvalho, o projeto de arte da minissérie é construìdo por outra chave conceitual. A

direção de arte ainda se instaura na superfìcie da imagem, mas a sua expressividade resulta do

forte investimento em um elemento cênico em especial: a cor. E não à toa. Suburbia de certa

forma traz “novas cores” ideológicas à programação televisiva. A obra não somente aposta no

protagonismo de personagens negros como propõe uma representação ìmpar do subúrbio

carioca, marcado pela violência e pela desigualdade, mas também pelo colorido e riqueza das

manifestações culturais e religiosas afrodescendentes.

Nesta dissertação todos esses conhecimentos e percepções se entrelaçam. O texto final

está estruturado em três capìtulos concebidos de forma a permitir uma ordenação lógica e

objetiva do conjunto de ideias sistematizadas e dos resultados alcançados durante o percurso

de desenvolvimento da pesquisa. Inicialmente apresentamos uma sistematização dos dados

conceituais, teóricos e empìricos que envolvem o tema e o campo de pesquisa abordado, e a

partir disso traçamos as premissas da análise a ser realizada. Já em um segundo momento,

discorremos sobre as particularidades do contexto especìfico onde se localiza o nosso objeto

de estudo, as implicações decorrentes desta inserção nos moldes formais próprios à sua

linhagem criativa para, por fim, realizarmos a análise proposta.

No primeiro capìtulo, apresentamos uma exposição didática dos conceitos e das práticas

que norteiam o universo da direção de arte na produção audiovisual brasileira, tendo como

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base uma revisão bibliográfica realizada sobre o tema, tanto de abordagens teóricas quanto

empìricas, e um mapeamento de produções acadêmicas que contemplam este campo de

pesquisa. Todo este repertório é então correlacionado ao conceito de encenação

cinematográfica proposto por Aumont (2005), considerando a sua relação estrutural com os

elementos da direção de arte. Por fim, somamos a esta estruturação teórica um apanhado de

conceitos da teoria da imagem, acessados nos trabalhos de Butruce (2005), Aumont (1993;

2004), Block (2010), Dondis (2007) e Arnheim (2004), que serão aplicados na análise visual.

O segundo capìtulo traz uma abordagem histórica concisa da direção de arte no contexto

da teledramaturgia brasileira, em especial na Rede Globo de Televisão. Considerando que a

busca por uma compreensão do “lugar” da direção de arte no processo criativo de Luiz

Fernando Carvalho demandou um entendimento consistente das particularidades processuais e

técnicas da função na televisão, traçamos um panorama do seu desenvolvimento desde os

primeiros anos das transmissões televisivas no paìs até a sua atual configuração na cadeia

produtiva da referida emissora. Por conta dos poucos tìtulos bibliográficos disponìveis sobre o

tema, parte dos dados sistematizados é resultante também de observações e de registros

fotográficos realizados em uma pesquisa de campo na Central Globo de Produção (Projac),

quando visitamos as instalações e os departamentos da emissora ligados à área de arte.

A partir daì, traçamos então o percurso do diretor na teledramaturgia da Rede Globo,

focando em um diagnóstico da relação do seu processo criativo com os elementos da direção

de arte, em suas particularidades formais e potencialidades narrativas. Construìmos, assim,

um painel analìtico das suas principais produções a partir das projeções conceituais e técnicas

da direção de arte nas visualidades construìdas. Toda a discussão proposta foi alicerçada ainda

por relatos pessoais do diretor acerca dos seus processos de criação nas obras, cujos dados

foram acessados nos livros e nos making of‟s dos produtos, e por pesquisas acadêmicas já

realizadas sobre o trabalho do diretor, como a de Collaço (2013), que é dedicada a uma

compreensão do seu processo criativo.

E por fim, no terceiro capìtulo apresentamos a análise da visualidade de Suburbia, que

se sustenta na sistematização de dados e de teorias realizada nos capìtulos anteriores, e em

uma investigação dos processos criativos de Luiz Fernando Carvalho e da equipe de arte na

produção, além de ser substanciada por uma pesquisa de campo realizada no bairro de

Madureira. A abordagem será focada na relação conceitual entre a narrativa e o projeto de arte

da minissérie e na sua expressividade nos espaços pictóricos das imagens.

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1. A direção de arte: conceitos e práticas

Nos domìnios das narrativas audiovisuais, a direção de arte é uma das instâncias

criativas do projeto estético que define a visualidade de uma obra cinematográfica ou

televisiva1. Responsável pela transcriação de diretrizes textuais em materialidade cênica, a

função atua em conjunto com a direção de fotografia para definir as bases da linguagem visual

da obra - a criação de atmosferas, climas, texturas e cores - que delineadas espacialmente nas

imagens corroboram, assim, a construção de universos diegéticos verossìmeis e a

caracterização das personagens que ocupam e interagem nestes espaços. No contexto das

práticas produtivas, os processos e técnicas envolvidos na função apontam para a elaboração

de um conceito visual adequado à proposta de encenação indicada pelo roteiro (ou outra fonte

textual) e pela direção, e a sua expressão na plasticidade da imagem fìlmica ou televisiva. Em

sìntese: “A direção de arte é a regente maior de toda a estética do filme, da “arte”, do visual. É

ela quem dá a linguagem plástica de determinado filme.” (PEREIRA, 1993, p. 34).

Segundo Hamburger (2014), a primeira creditação da direção de arte no cinema

brasileiro se deu no filme O Beijo da Mulher Aranha (1985), de Hector Babenco, no qual a

função foi assinada pelo diretor de arte Clóvis Bueno, a cenografia por Felippe Crescentti e o

figurino por Patrìcio Bisso. Anteriormente, as demandas relacionadas à concepção da

materialidade e visualidade fìlmicas eram exercidas e creditadas principalmente aos

cenógrafos, que podiam atuar tanto na criação de cenários, quanto na produção de figurino e

de maquiagem. Um dos principais profissionais deste perìodo anterior, citado pela autora, é

Pierino Massenzi, reconhecido pelos seus projetos cenográficos para filmes da Companhia

Cinematográfica Vera Cruz2, entre eles Tico-tico do fubá (1952) e Ângela (1952).

Segundo pode-se apurar, a adoção da função deu-se, pela primeira vez, em 1985,

quando Clóvis Bueno, contando com Felippe Crescentti na cenografia e Patrìcio

Bisso nos figurinos, assinou a direção de arte do filme O beijo da mulher aranha,

dirigido por Hector Babenco. No mesmo ano, Adrian Cooper figurou com o mesmo

tìtulo nos créditos de A marvada carne, de André Klotzel, tendo como colaboradores

Beto Mainieri e Marisa Guimarães, respectivamente, cenógrafo e figurinista.

Atualmente, a formação do departamento de arte, sob a coordenação desse

profissional, tornou-se constante na estrutura da produção cinematográfica

brasileira. (HAMBURGER, 2014, p. 19)

1 A direção de arte está presente em gêneros diversos da programação televisiva, nas diferentes categorias de

informação, entretenimento e educação. Trata-se de uma área de amplo alcance para o audiovisual, no

entanto, vamos nos limitar ao estudo da Direção de Arte em narrativas ficcionais em que há uma produtiva

interface entre cinema e televisão. 2 “Um dos mais importantes profissionais do perìodo anterior à direção de arte, Pierino atravessou diferentes

momentos e escolas do cinema brasileiro entre as décadas de 1950 e 1960. Influenciou com seu trabalho

gerações de cineastas pelo primor técnico embasado no sólido conceito de uma cenografia intrinsecamente

ligada à dramaturgia.” (HAMBURGER, 2014, p. 57)

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Na televisão, apesar de até hoje a instituição da direção de arte nas produções não ser

uma constante, já há um registro de creditação à função na novela Os Imigrantes de 1981,

produzida e veiculada pela Rede Bandeirantes. Na obra, os trabalhos de direção de arte,

cenografia e figurino são assinados conjuntamente por Gianni Ratto, Augusto Francisco e

Luiz Fernando Pereira3. Contudo, acreditamos que o maior desenvolvimento da função se deu

de fato nas produções cinematográficas, cujos processos têm fortes influências na indústria

televisiva, conforme nos deteremos no próximo capìtulo.

Em uma produção audiovisual, o diretor de arte é o profissional responsável por

coordenar toda a equipe do Departamento de Arte e principalmente por conceber e executar o

projeto de arte: uma sistematização dos conceitos e determinações técnicas que vão orientar

todo o processo de criação da visualidade de uma narrativa fìlmica ou televisiva, em

alinhamento aos prazos estabelecidos no cronograma e às limitações de ordem orçamentária;

e que compreende desde a definição da paleta de cores, alinhada ao desenho da luz, até o

planejamento técnico da cenografia, do figurino, da maquiagem - conceitualmente ampliada

pelo termo visagismo4 (maquiagem, cabelo e gestualidade) - e dos efeitos especiais. Como

define Vera Hamburger (2014, p.18):

Quando falamos em direção de arte, estamos referindo-nos à concepção do ambiente

plástico de um filme, compreendendo que este é composto tanto pelas caracterìsticas

formais do espaço e objetos quanto pela caracterização das figuras em cena. A partir

do roteiro, o diretor de arte baliza as escolhas sobre a arquitetura e os demais

elementos cênicos, delineando e orientando os trabalhos de cenografia, figurino,

maquiagem e efeitos especiais. Colabora, assim, em conjunto com o diretor e o

diretor de fotografia, na criação de atmosferas particulares a cada novo filme e na

sua impressão de significados visuais que extrapolam a narrativa.

A concepção de um projeto de arte eficiente prescinde de uma minuciosa pesquisa do

universo a ser abordado: o contexto histórico, cultural e social a partir do qual se desenvolve a

narrativa, e seus desdobramentos nos comportamentos, gestualidades, costumes e aspectos

materiais retratados. A imersão na subjetividade das personagens e das ações descritas no

roteiro, além de uma extensa iconografia acessada em livros, filmes e revistas de arte, são

importantes fontes de inspiração para a criação do conceito visual que articula os planos da

narrativa ficcional, através da correlação estilìstica das atmosferas e da materialidade cênica

das imagens, definindo o que chamamos de visualidade. Para Barnwell (2013, p. 106) o

3 Informação concedida em depoimento pelo diretor de arte, professor e pesquisador Luiz Fernando Pereira,

podendo ser constatada no seguinte endereço eletrônico http://novelaosimigrantes.blogspot.com.br/. 4Termo adotado recentemente nas produções cinematográficas brasileiras, originado da palavra francesa

visage/visagism que significa rosto.

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conceito é “(...) o princìpio unificador que cria coerência na identidade visual do filme. [...]

Esses conceitos adicionam profundidade ao filme e operam em um nìvel metafórico e visual”.

Nas etapas da realização de um filme ou de um produto televisivo, o trabalho do

diretor de arte se inicia no perìodo da pré-produção, quando a leitura e a decupagem do roteiro

e as reuniões com a direção e a direção de fotografia vão determinar as primeiras impressões e

orientações sobre a visualidade da obra (na televisão, este processo frequentemente conta com

a interferência conceitual do autor: o escritor da novela ou série). A partir da definição das

referências visuais e dos dados coletados nas pesquisas, a direção de arte tem, então, subsìdios

para elaborar o conceito visual e construir o projeto de arte. Finalizado o perìodo de

planejamento e conceituação, objetiva-se que durante a produção todas as ideias e indicações

do projeto de arte sejam concretizadas. O storyboard5, os mood boards

6, as maquetes, esboços

e desenhos criados segundo as determinações projetuais articulam conceitualmente a

linguagem visual pretendida e orientam o trabalho de toda a equipe do Departamento de Arte.

A partir de um trabalho de grande entrosamento entre o diretor, o diretor de arte e o

diretor de fotografia, que juntos formam a “cúpula do filme”, a “diretoria”, ou seja, o

que chamamos de triunvirato, vamos ter o perfil do filme, a “cara” do filme, suas

tonalidades, suas marcas, seus contornos, sua estética, o produto final. (PEREIRA,

1993, p. 12)

No atendimento a estas demandas projetuais, e considerando-se que a definição e a

atuação da equipe de cinema/vìdeo/televisão pode variar a cada projeto, o diretor de arte atua

em relação direta com o cenógrafo, o figurinista, o maquiador/visagista, o técnico em efeitos

especiais, o continuìsta, o designer gráfico, o produtor de arte e o produtor de locação. Cada

um desses profissionais é responsável pelo processo de criação da sua área especìfica e, a

depender do tamanho da produção supervisiona outros profissionais com funções adjacentes:

o cenógrafo concebe o projeto de cenografia, seleciona e produz os objetos de cena, e

supervisiona um ou mais assistentes, além do cenotécnico, do marceneiro, do produtor de

objetos e do pintor de arte; o figurinista desenha os trajes das personagens e supervisiona um

ou mais assistentes, além da costureira e da camareira; o maquiador/ visagista produz o cabelo

e a maquiagem das personagens; o técnico em efeitos especiais atua no set criando “truques”

mecânicos para cenas em que as ações são “extraordinárias” ou de risco, como no caso das

5 O storyboard pode ou não ser criado pela Arte, sendo normalmente realizado por um desenhista especializado a

partir das orientações do diretor, do diretor de arte e do diretor de fotografia. 6 “Os mood boards (quadros de referência) são montados usando esboços e páginas retiradas de revistas; tudo

isso ajuda a ilustrar o conceito e o clima geral. Isso geralmente inclui indicações de aspectos estilìsticos do

design e comunica ao restante da equipe de que maneira o designer gostaria que fosse a aparência do filme”.

(BARNWELL, 2013, p. 117)

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8

explosões e tiros; o continuìsta é encarregado de assegurar a continuidade do cenário e dos

objetos de cena para evitar que seus itens apareçam ou desapareçam de um frame para outro;

o designer gráfico cria a comunicação visual necessária para compor cenários e ações; o

produtor de arte7 é o responsável por administrar todo o orçamento destinado ao

Departamento de Arte; e o produtor de locação, por procurar e selecionar locações, ou seja,

espaços arquitetônicos previamente existentes adequados à encenação proposta. Porém este

último normalmente integra a equipe de produção e atua subordinado às decisões do produtor

executivo, ainda que a partir das indicações do diretor de arte. Todos estes especialistas

trabalham em conjunto para cumprir as proposições visuais estabelecidas no projeto de arte.

A pelìcula irá registrar e fixar o trabalho de Direção de Arte. Portanto, é aqui que

mais se faz necessário sua constante atuação, sua presença ativa em todos os

detalhes, o acompanhamento e a atenção deverão ser redobrados, pois tudo ficará

registrado. Um bom Diretor de Arte não se faz notar somente por seus projetos e

desenhos, mas também pela sua presença no “set” de filmagens, por seu apoio à

direção e por sua participação direta nas soluções de problemas que, com certeza,

aparecerão nessa etapa. (PEREIRA, 1993, p. 64)

Contudo, apesar da grande demanda criativa incumbida à equipe de arte no contexto

das práticas audiovisuais, ainda é possìvel constatar no meio certa minoração da importância

dos processos da direção de arte na construção da linguagem de um filme ou programa

televisivo. O diretor de fotografia é com frequência o mais solicitado e valorizado no set de

filmagem, detendo neste momento o domìnio conceitual no registro das imagens enquanto o

papel conceptivo do diretor de arte nesta etapa é, por vezes, negligenciado.

(...) os fotógrafos realizam um processo de conversão de uma cena que já é

encontrada pronta. Eventualmente pode-se até modificar alguns elementos, mas no

geral, não se pode simplesmente trocar a cena por outra diversa. De certa forma, o

fotógrafo já está condicionado pelo cenário que lhe é apresentado. [...] Isso significa

que boa parte do conceito da imagem do filme já foi estabelecido. A intervenção do

fotógrafo será para transformar tal conceito em informações definitivas com relação

a cor, contraste, profundidade, mas não informações em termos do sentido básico da

cena, em sua natureza. (BUTRUCE, 2007, p.125)

Este status se reflete ainda no perìodo da pós-produção e de finalização da obra.

Normalmente a equipe de arte tem o seu trabalho encerrado ao fim das filmagens e da

chamada “desprodução” da arte (quando os cenários são desmontados e os objetos cênicos são

retirados do set) e o diretor de arte não participa da etapa de edição/montagem, de produção

de efeitos visuais e de tratamento das imagens. A maior parte destes profissionais só visualiza

o resultado final do seu trabalho quando da estreia e veiculação da obra.

7 Na televisão, a função do produtor de arte corresponde ao do produtor de objetos.

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9

No entanto, numa situação a ser revista, a participação do diretor de arte nessa etapa

ainda não é uma prática adotada pelas produções nacionais. Coloristas, modelistas

de 3D e especialistas em efeitos digitais seguem as orientações do diretor e do

fotógrafo, muitas vezes com forte interferência no trabalho anteriormente concebido.

(HAMBURGER, 2014, p. 24)

Ademais, embora o investimento nos conceitos da direção de arte seja essencial em

qualquer formato de produto audiovisual, geralmente os resultados alcançados pela função

são reconhecidos somente em determinados gêneros, como em narrativas “de época”, por

evidenciar uma reconstituição de ambientes, indumentária e arquitetura de perìodos históricos

especìficos, e em ficções cientìficas, musicais e fantásticas, nas quais é perceptìvel a aposta

em visualidades extravagantes. Neste sentido, esta pesquisa busca questionar as perspectivas

conceituais e profissionais acerca dos processos da direção de arte, ao defender que a parcela

expressiva que cabe à função nas etapas da realização audiovisual não é tão limitada, cabendo

ao diretor de arte metaforizar e projetar sentidos estéticos que extrapolam os clichês

cinematográficos8. Assim, entende-se que a materialidade manipulada pela direção de arte se

configura como elemento essencial no arranjo compositivo da imagem fìlmica e televisiva,

nos diversos gêneros narrativos, incorporando camadas de significação à narrativa visual e

essência formal à encenação. Pretende-se estabelecer uma relação dialógica entre os processos

empìricos do fazer audiovisual e os conceitos teóricos articulados pela análise fìlmica,

apontando nos elementos da arte a inscrição de uma intensa carga de significados.

Ressaltamos que o conceito de metáfora aqui empregado se alinha ao proposto por

Aumont (2001, p.85) no seu Dicionário Teórico e Crítico de Cinema, que a define como “um

tropo (uma figura de retórica) fundado na „transferência‟ de uma noção ou de uma coisa para

outra noção ou coisa, por substituição de um termo por outro”, e se aplica neste trabalho à

especificidade de determinadas representações visuais construìdas na obra que, alicerçadas em

metáforas visuais, expressam significados e simbologias inerentes à narrativa.

O argumento desta pesquisa é que o uso eficaz dos processos e das técnicas investidas

para a configuração plástica da encenação, aliado à concepção da direção de fotografia, pode

enfatizar a dramaticidade dos elementos visuais e, juntamente à sonoridade e à narrativa,

tornar-se essencial para a fruição da obra. O projeto de arte pode representar, portanto, uma

importante etapa na construção de narrativas audiovisuais, e deve dialogar intensamente com

a proposta estética do diretor, abrangendo os diversos gêneros e estilos narrativos. Para

Pereira (1993, p. 8), por meio da direção de arte

8 Como clichês cinematográficos, entendemos as fórmulas ou estereótipos visuais consagrados principalmente

por produções audiovisuais estritamente comerciais, de fácil absorção pelos diversos públicos.

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10

(...) pode-se estabelecer caminhos a serem seguidos que irão caracterizar o desenho

geral do filme, dando subsìdios tanto para o diretor, o fotógrafo e o montador,

resultando um trabalho de conjunção, de união que se traduzirá em mais uma das

texturas do filme. Cada filme, um universo em si, é elaborado e pensado como uma

única peça: o diretor de arte cria e traduz, através do trabalho visual, as concepções

do diretor sobre determinado roteiro.

É importante pontuar que o cinema industrial dos Estados Unidos traz um avanço na

área quando cria e formaliza a função de Production Designer9, um profissional que

corresponderia conceitualmente ao diretor de arte no sistema de produção audiovisual

brasileiro, mas que no âmbito das etapas práticas e projetuais da produção americana tem uma

interferência criativa ampliada. O termo Production Design foi criado pelo produtor David O.

Selznick para o filme “... E o vento levou” (1939), de forma a enfatizar a importância do

projeto de arte construìdo por William Cameron Menzies, que segundo Selznick, extrapola a

sua função de diretor de arte ao conceber a visualidade do filme plano a plano e ao participar

ativamente de todo o processo de construção da imagem audiovisual. O projeto de arte de “...

E o vento levou” é até hoje considerado um dos mais complexos e relevantes da

cinematografia mundial.

Os termos “decoração de interiores”, “direção de arte” e “design de produção”

ilustram a evolução do conceito de se elaborar visualmente um filme. Na primeira

cerimônia do Oscar, em 1927, já existia a categoria “decoração de interiores” que,

em 1947, passou (e continua) a ser “direção de arte”. “Design de Produção”

(production design) surgiu com o filme “... E o vento levou”. (COUTO, 2004, p. 07)

Na estrutura norte-americana, o production designer tem uma atuação essencialmente

conceitual e de estreita parceria projetual com o diretor, o diretor de fotografia e o produtor

executivo, e, além disso, supervisiona os diretores de arte, profissionais que neste contexto

tem uma atuação mais prática relacionada à execução dos projetos no set. O designer participa

de todas as etapas da produção, interferindo amplamente no planejamento da sua linguagem

visual desde o perìodo da pré-produção até a pós-produção, supervisionando inclusive as

etapas da montagem, de efeitos visuais e de tratamento da imagem.

Com base nas particularidades do sistema de produção audiovisual americano, muitos

pesquisadores brasileiros se dedicaram a estudos sobre a direção de arte que acabam traçando

paralelos conceituais e processuais entre as funções, ou ainda estabelecem uma relação entre a

direção de arte e o campo do design a partir do production design. Alguns autores inclusive

propõem uma tradução do referido termo para o português como design de produção, como é

possìvel ser constatado nos seguintes trabalhos: O design do filme (COUTO, 2004) que

9 Traduzido para a lìngua portuguesa como Design de Produção.

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emprega o termo design de produção em sua abordagem e apresenta uma investigação sobre a

aplicação do conceito de design no cinema e nas suas relações com a tecnologia; Design e

linguagem cinematográfica: narrativa visual e projeto (MACHADO, 2011), um trabalho que

aponta na prática projetual do production design uma aproximação entre o design e a

linguagem cinematográfica; e Um lugar para ser visto: a Direção de arte e a construção da

paisagem no cinema (JACOB, 2006) que não sistematiza conceitos de design, mas considera

a direção de arte como “base estruturante do trabalho fotográfico” a partir da análise dos

filmes Dogville (2003) e A Vila (2004), obras na realidade construìdas sob as perspectivas

projetuais do production design.

Design de produção (production design) é o termo que define a visualidade do filme.

A “atmosfera” geral é formada, principalmente, pela coordenação entre cenografia,

luz e figurino. A concepção cuidadosa desse conjunto enriquece a experiência

cinematográfica. A criação de um “pedaço de espaço” na tela do cinema pode ser

potencializada com a utilização de camadas de significado que comunicam

visualmente aspectos da narrativa. (COUTO, 2004, p. 8-9)

Nesta pesquisa, consideramos que as duas funções, a direção de arte (conforme a

definimos no Brasil) e o production design, são conceitualmente correspondentes, mas devido

às diferenças estruturais e organizacionais dos sistemas de produção em que estão inseridas,

articulam perspectivas projetuais e profissionais distintas. Alguns autores acreditam inclusive

que com os avanços da tecnologia digital no cinema brasileiro, a função de diretor de arte irá

se expandir para a de production designer, agregando ferramentas do design à produção

audiovisual nacional. Como explica Baptista no seu artigo O Design de Produção em Jackie

Brown, de Quentin Tarantino (2010, p. 10):

Nossa hipótese central é que as novas tecnologias de finalização da imagem

favorecem a mudança de uma direção de arte tradicional, onde cenários e objetos

eram organizados para ser captados por uma câmera, para um conceito de Design de

Produção, onde cenários e objetos continuam sendo organizados antes da filmagem,

porém são objeto de importantes transformações na etapa de pós-produção.

Esta dissertação considera que o estudo da direção de arte abrange um amplo campo

de pesquisa que relaciona diversos elementos do universo das artes visuais, da comunicação,

da moda, do design, do teatro, da arquitetura e do cinema para contemplar as especificidades

envolvidas na construção de visualidades e estéticas audiovisuais. Embora acreditemos que

alguns princìpios do design estejam presentes nas perspectivas teórica e empìrica da função,

principalmente nas ideias de conceito e projeto, este trabalho não pretende aprofundar esta

relação, pois isto demandaria tempo e espaço não disponìveis. Iremos considerar aqui o

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conceito de direção de arte como é entendido nos processos da realização audiovisual

brasileira, e nos deteremos nas teorias do cinema e da análise da imagem audiovisual para

trazer uma discussão sobre a potencialidade expressiva da direção de arte na construção da

encenação fìlmica e televisiva.

No que concerne às diretrizes conceituais e processuais da direção de arte brasileira,

há, contudo, poucos trabalhos referenciais para um estudo sobre o tema. As publicações em

lìngua portuguesa dedicadas à temática são escassas e a maioria dos livros, artigos e manuais

técnicos disponìveis está publicada em lìngua estrangeira, tratando de experiências e

conceitos resultantes, principalmente, de práticas da indústria cinematográfica norte-

americana e do cinema europeu10

. No contexto dos estudos sobre audiovisual no Brasil, um

levantamento de publicações indica uma escassez de pesquisas sobre a direção de arte e a

constatação de uma quase supressão dos seus domìnios como um campo de estudo.

Das investigações já realizadas diretamente sobre o tema, um dos trabalhos pioneiros é

a dissertação de Luiz Fernando Pereira A direção de arte: construção de um processo de

trabalho (1993), que traz uma abordagem empìrica, estruturada a partir das experiências do

autor como diretor de arte, cenógrafo e figurinista em filmes nacionais da década de oitenta.

Além desta pesquisa, consideramos outra importante referência acadêmica a dissertação de

Débora Lúcia Vieira Butruce intitulada A Direção de arte e a imagem cinematográfica. Sua

inserção no processo de criação do cinema brasileiro dos anos 1990 (2005), que traça uma

discussão sobre o papel conceitual da direção de arte na estruturação da imagem

cinematográfica e da sua conjuntura histórica no cinema brasileiro, com foco em uma

alteração no status da função a partir de filmes brasileiros realizados na década de 1990. Das

publicações mais recentes, destacamos aqui o livro Arte em Cena: a direção de arte no

cinema brasileiro (2014) da diretora de arte Vera Hamburger, uma obra que se configura

como a primeira publicação a sistematizar de forma didática as diretrizes conceituais e

técnicas da direção de arte no contexto da produção cinematográfica brasileira, a partir das

experiências da autora e do seu diálogo com outros profissionais da área11

.

10

Entre outras publicações, destacam-se os tìtulos: Le décor du film (BARSACQ, 1970), Décors du Cinéma: les

studios français de Méliès a nous jours (DOUY, 1993); What an Art Director Does. An introduction to

Motion Picture Production Design (PRESTON, 1994); The Filmaker’s Guide to Production Design

(LOBRUTTO, 2002); e Production Design: Architects of the screen (BARNWELL, 2004). Dessa última

autora, foi recentemente lançado no Brasil o livro Fundamentos da Produção Cinematográfica

(BARNWELL, 2013), que dedica um capìtulo a uma abordagem empìrica sobre a função Production Design. 11

Sobre o livro Arte em Cena: a direção de arte no cinema brasileiro, ver resenha da minha autoria publicada

em: http://www.asaeca.org/imagofagia/index.php?option=com_content&view=article&id=460%3Aarte-em-

cena-a-direcao-de-arte-no-cinema-brasileiro&catid=56%3Anumero-10&Itemid=174 .

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No que concerne à produção televisiva, uma das referencias desta pesquisa é o livro

Cenário televisivo: linguagens múltiplas fragmentadas (2009) de João Batista Freitas

Cardoso, resultante da pesquisa do autor acerca das particularidades históricas e técnicas da

cenografia na televisão. Além desta, outra publicação fundamental para a abordagem aqui

proposta é o livro Entre tramas, rendas e fuxicos (MEMÓRIA GLOBO, 2007) que embora

não acadêmico apresenta dados empìricos relevantes sobre os processos e práticas da criação

de figurinos na Rede Globo.

Constatamos que há, portanto, uma limitação de fontes de pesquisa sobre a direção de

arte no contexto brasileiro e uma premência acadêmica na estruturação de investigações

teóricas e empìricas convergentes à temática. Por isso, além das referências citadas, para o

direcionamento teórico deste trabalho consideramos também o livro Production Design:

Architects of the screen (BARNWELL, 2004) e Fundamentos da Produção Cinematográfica

(BARNWELL, 2013), que embora estejam focados nas práticas projetuais do Production

Design, traz um arranjo conceitual alinhado aos objetivos deste estudo.

E é neste sentido que tomando como ponto de partida o domìnio dos conceitos

pertinentes a uma compreensão da direção de arte em produtos narrativos ficcionais

cinematográficos e televisivos, onde se verificam fortes pontos de contato, que a presente

dissertação estrutura uma investigação sobre o papel da direção de arte no processo de

realização de obras da teledramaturgia brasileira, focando especificamente na minissérie

Suburbia (2012), dirigida por Luiz Fernando Carvalho para a Rede Globo de Televisão.

Diretor de cinema e televisão, Carvalho tem um longo percurso na direção de produtos

de teledramaturgia e é reconhecido por construir narrativas visuais que rompem com os

padrões tradicionais, destacando-se do conjunto de suas produções, as novelas: Renascer

(1993), O Rei do Gado (1996), Esperança (2002) e Meu pedacinho de chão (2014); e as

minisséries, Os Maias (2001), Hoje é dia de Maria (2005), primeira e segunda jornadas, A

Pedra do Reino (2007), Capitu (2008) e Afinal, o que querem as mulheres? (2010). No

cinema, assina a direção do curta-metragem A Espera (1986), o longa-metragem Lavoura

Arcaica (2001), além do documentário Que teus olhos sejam atendidos (1997).

A partir dos conceitos e práticas da direção de arte, propomos uma análise da

visualidade construìda em Suburbia, com o intuito de demonstrarmos a relevância criativa e

qualitativa da função na construção de narrativas audiovisuais e, consequentemente, como

campo de estudo autônomo. A escolha desta obra como objeto de estudo se fundamenta na

perspectiva autoral das produções realizadas por Luiz Fernando Carvalho e nos processos

criativos investidos na construção do estilo do diretor, compreendendo que um forte

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diferencial da sua direção está no entendimento da potencialidade da direção de arte como

elemento de renovação da linguagem televisiva e como uma dimensão rica em significação,

essencial na estruturação da encenação e na produção de sentido na obra.

As minisséries do diretor, em particular, se caracterizam como percursos estéticos

originais, cujos projetos de arte revelam um uso criativo da materialidade cênica. A profusão

de citações e o uso de recursos pouco comuns na teledramaturgia geram uma rica

intertextualidade por dialogar com dinâmicas visuais caracterìsticas de outras formas de

expressão artìstica, como o cinema de animação, a ópera, a arte popular e o teatro. O apuro

visual dos seus trabalhos revela ainda uma busca quase obsessiva por alta qualidade técnica e

estética e expressa um amplo domìnio conceitual conquistado por um árduo processo de

trabalho que envolve muita pesquisa e inovação, em todos os campos da criação. Isso se deve,

sobretudo, a uma intensa preparação do elenco e da equipe técnica no que Fernando Collaço

(2013, 17-8) define como período laboratorial da pré-produção:

Os primeiros contornos desse projeto estético podem ser ilustrados mediante a opção

por uma metodologia de extensão e intensificação do perìodo laboratorial de suas

obras. Essa prática facultativa de pré-produção de um produto audiovisual consiste

em um pontapé inicial do processo, uma imersão do elenco e equipe envolvida no

roteiro e na temática que será trabalhada. O laboratório fornece inicialmente aos

envolvidos um panorama amplo sobre o universo da narrativa, buscando abordar

aspectos históricos, sociais e polìticos que tocam a trama, além das múltiplas

referências com os quais se pretende dialogar no decorrer do processo. A visão geral

sobre a produção serve como um guia de criação para os diferentes núcleos da

produção.

Este estudo considera que a construção de visualidades nas minisséries dirigidas por

Luiz Fernando Carvalho está estritamente vinculada a sua percepção estética, e entende a

criação dos conceitos visuais das suas obras como um processo autoral com total ressonância

na atuação das equipes de arte e nos projetos de arte desenvolvidos, o que constitui um traço

convergente da sua produção audiovisual. Portanto, o conjunto das minisséries dirigidas por

Carvalho para a Rede Globo será considerado também como referência ao estudo, assim

como serão relevantes, os estudos sobre a especificidade da direção de Luiz Fernando

Carvalho, como o desenvolvido por Collaço (2013) que analisa o processo criativo do diretor

na minissérie Capitu (2008), e por Pucci Jr (2011, p.98), estudioso da televisão brasileira, que

afirma: “Pode-se ver Luiz Fernando Carvalho como um autor, com recorrências temáticas ou

estéticas de um produto para o outro, autorrevelando a própria essência, em confronto com as

pressões da indústria televisiva”.

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Este primeiro capìtulo da dissertação é dedicado a uma sistemática dos conceitos e dos

processos da direção de arte. Dividido em subitens, inicialmente apresentamos uma discussão

sobre as relações estruturais entre direção de arte e encenação na construção de visualidades

fìlmicas e televisivas, tendo como base teórica as ideias desenvolvidas por Jacques Aumont

no livro A encenação cinematográfica (2005). Nos próximos subitens, apresentamos uma

descrição das principais etapas criativas de um projeto de arte, base estruturante das práticas

da direção de arte. No último subitem, traçamos as premissas teóricas que irão sustentar a

análise visual do nosso objeto de estudo a ser apresentada no terceiro capìtulo.

Com o intuito de exemplificar esta abordagem, realizaremos ainda análises pontuais de

visualidades construìdas em minisséries do diretor Luiz Fernando Carvalho. Estas produções

não são o objeto de estudo direto desta pesquisa, mas consideramos pertinentes estas

anotações por entendermos que a inserção de questões especìficas sobre o seu processo de

criação contribui para um entendimento das etapas de construção de um projeto de arte.

Destas inserções analìticas, pretendemos estruturar um conteúdo de considerável relevância

para o encaminhamento desta abordagem, o que não seria alcançado caso optássemos por

utilizar exemplos externos ao presente estudo.

1.1. Direção de arte e encenação

Podemos definir a encenação ou mise-en-scène12

como as escolhas formais de um

realizador/diretor sobre o conjunto de procedimentos formado pelo ponto de vista da câmera,

pela iluminação, pelo espaço cênico, pelo figurino, pela caracterização (visagismo) e pela

atuação e gestualidade dos atores, objetivando a estruturação de um discurso fìlmico ou

televisivo; o que implica, portanto, em decisões relativas à localização da câmera e da duração

de planos, em “organizar as deslocações, os movimentos, a „coreografia‟ dos corpos dos

atores, os ritmos de elocução, os olhares” e “pensar na cenografia, no guarda-roupa e nas

iluminações” (AUMONT, 2005, p. 51). Nos processos da realização audiovisual, a encenação

é construìda como uma tradução do roteiro e como a substância formal do fabrico de mundos

artificiais, coerentes ao discurso narrativo e suficientemente verossìmeis para capturar os

sentidos do espectador.

12

É recorrente nos estudos audiovisuais brasileiros, a opção pelo uso da palavra mise-en-scène (termo originário

da tradição cinematográfica francesa) ao invés de encenação.

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A encenação é, pois, nem mais nem menos, o instrumento que permite construir, a

partir dos elementos do mundo (mesmo que totalmente teatrais), a apresentação

convincente de uma história, que nos permite recebê-la com prazer, compreendê-la e

atribuir-lhe um estatuto ontológico muito particular (o da simulação lúdica, ou

ficção). Definição enganadora? Sim e não. Tem contra si a sua evidência aparente;

mas insiste, justamente, no logro que pode constituir essa evidência, e o necessário e

permanente regresso à consciência do fabrico, como parte do contrato que o

espectador deve celebrar com o filme (AUMONT, 2005, p.163)

Este estudo traz um entendimento da encenação como a base estruturante dos conceitos

e práticas da direção de arte, considerando esta uma relação fundamentada em aspectos

conceituais e empìricos da feitura fìlmica, com importantes desdobramentos na composição

da imagem e da visualidade audiovisual. Na medida em que os processos circunstanciados na

construção da materialidade cênica estão estritamente ligados às definições do diretor acerca

da proposta cênica de transcrição do texto ficcional em realidade sensìvel, a direção de arte

pode ser interpretada como a função que alimenta as premissas materiais da encenação, pois,

se o roteirista e o realizador idealizam universos diegéticos, cabe ao Departamento de Arte

materializá-los. Como base teórica-chave desta investigação, determinamos o alicerce

conceitual estruturado nas discussões de Jacques Aumont (2005) acerca da encenação

cinematográfica13

, para, a partir das suas considerações, alcançarmos uma instrumentalização

para a análise do corpus desta pesquisa.

A encenação como “lìngua” do cinema, enquanto forma espontânea de apresentar

mundos possìveis – e, ao mesmo tempo, portanto, como o próprio exercìcio da arte.

Mas isto significa também que é um instrumento formal, que não fabrica apenas

imagens credìveis de mundos, sequências de acontecimentos de ficção – mas que

produz também algo como estruturas, mais ou menos abstratas [...] as principais

opções que se oferecem ao encenador têm consequências imediatas sobre o universo

diegético, sobre os sentimentos que nos serão sugeridos, sobre as nossas reações,

mas são também os parâmetros das estruturas possìveis. (AUMONT, 2005, p.163)

Para Aumont (2005), a encenação, como um conceito associado ao princìpio do cubo

cenográfico teatral criado sob uma perspectiva datada do teatro, se fundamenta em um ponto

de vista sobre personagens que dialogam e se deslocam em tempo e espaço definidos; e se

materializa no palco italiano, composto por um cenário em que os atores, caracterizados como

personagens, se movimentam e gesticulam no tempo narrativo, e podem entrar ou sair de cena

por bastidores à direita e à esquerda. Esta caixa, aberta apenas em um dos seus lados, permite

que o espectador na plateia possa assistir à cena, que emoldurada por um quadro, se estrutura,

por fim, em uma composição essencialmente pictórica.

13

AUMONT, Jacques. O cinema e a encenação. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2005.

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17

Oriundo das tradições pictórica e teatral, o cinema ficcional herdou, desde as suas

origens, esta estrutura de encenação como sustentáculo narrativo, concebendo a disposição

dos planos como quadros. Mas, se no primeiro cinema a encenação fìlmica era essencialmente

teatral, caracterizada pelo enquadramento fixo e por uma atuação caricata do elenco, com a

estruturação da linguagem cinematográfica e as transformações formais advindas de novas

concepções da feitura fìlmica alcançadas pelo desenvolvimento dos dispositivos técnicos de

produção, pela experimentação de realizadores engajados e pelo surgimento de estilos

particulares de encenação, o cinema desenvolveu e conquistou uma encenação com feições

próprias, adaptada às suas especificidades.

Desde A saída dos operários da fábrica (1895), contudo, explica Aumont, quando os

Lumière decidiram pelo ângulo do qual iriam filmar os operários saindo da fábrica, o cinema

já dava indicações de possuir uma perspectiva cênica própria, pois se a estrutura do palco

teatral condiciona a um ponto de vista fixo sobre a encenação, no registro fìlmico o realizador

cinematográfico tem liberdade de escolher onde montar a câmera para capturar o ponto de

vista que melhor convém na sua representação da narrativa.

[...] a encenação de cinema, oriunda da do teatro, conservou, apesar de todas as suas

transformações, a noção genérica de um condicionalismo ligado ao ponto de vista;

mas, por outro lado, a natureza profundamente documental do cinema leva-o a

mimar a liberdade mais total do ponto de vista, porque se trata sempre de sugerir –

mesmo e, sobretudo nos filmes fantásticos – que um filme é a exploração de um

mundo por um observador que, sobre nós, tem apenas uma superioridade, a da

ubiquidade. (AUMONT, 2005, p.51)

A encenação pode ser entendida, assim, como um ponto de vista. O ponto de vista de

um realizador sobre um determinado recorte de mundo, estruturado, segundo Aumont, a partir

de três pontos de sustentação: o espaço, o tempo e o acaso, cabendo ao cineasta gerir estas

unidades no seu percurso criativo. O espaço seria, assim, o espaço cênico que abriga a

encenação; o tempo, o “molde de ponto de vista-duração” 14

; e o acaso, os acontecimentos ou

ações inesperadas que poderiam vir a surgir no momento da filmagem, sendo normalmente

associado ao desempenho dos atores.

A direção de arte manipula essencialmente dois dos pontos acima descritos: o espaço e

o tempo. A concepção do espaço cênico, em todas as suas nuances, é de inteira

responsabilidade do Departamento de Arte, cabendo diretamente ao cenógrafo e à sua equipe

projetar materialmente as representações espaciais definidas no roteiro através da construção

de estruturas tridimensionais concretas e da seleção de objetos cênicos, sempre em

14

AUMONT, 2005, p. 158

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18

conformidade às orientações do diretor. Já o tempo, é manipulado nos processos da direção de

arte segundo duas perspectivas. Primeiro, na representação temporal da narrativa a partir da

materialidade cênica construìda, e segundo, na representação das suas mudanças, que pode

não somente ser expressa pelas intervenções da iluminação sobre a cenografia, mas também

pelos desgastes temporais gravados nas estruturas materiais da cena, alcançados

principalmente pela manipulação de texturas e da paleta de cores.

O processo de estruturação da encenação esteve durante muito tempo atrelado ao que

Aumont denomina de planificação, método de escrita do roteiro criado no contexto das

práticas do studio system hollywoodiano. Surgido na época de ouro da indústria

cinematográfica dos Estados Unidos, este método consiste no planejamento sistemático e

meticuloso das cenas, articulando, “a história, mas já contada em pequenos pedaços, cada um

dos quais corresponde, pelo menos potencialmente, a um plano, a uma unidade de

filmagem”,15

de forma a facilitar o trabalho dos realizadores no perìodo das filmagens. A

planificação referencia diretamente a já citada encenação teatral, caracterizada por uma inteira

dependência ao texto literário, e deve sintetizar um ponto de vista especìfico sobre a narrativa,

expressando, por vezes, a sua essência discursiva. Como explica o autor: “[...] uma “boa”

planificação é a que sabe associar a lógica e a inventividade, a coerência dos pontos de vista e

a sua variedade, a continuidade do olhar e a sua expressividade” 16

.

A grande maioria dos cineastas, pelo menos os que trabalham na indústria,

preocupa-se especialmente com o domìnio e com o cálculo. Se o studio system de

Hollywood previa a possibilidade de ensaios com os actores, era certamente para

permitir que o realizador aperfeiçoasse as suas ideias de encenação, confrontando-se

com a prova dos corpos e dos cenários efectivos – mas era também para evitar as

derrapagens, para limitar o imprevisto, para que o resultado obtido fosse tão

próximo quanto possìvel do resultado esperado. (AUMONT, 2005, p.170)

Para a direção de arte, a perspectiva industrial do cinema representou uma maior rigidez

e controle dos processos criativos, e o estabelecimento de regras e sistemas de atuação

profissionais. O formato exigiu a organização produtiva e funcional das equipes e dos ofìcios

que favoreceu o surgimento de nomenclaturas e termos apropriados para as práticas da

função. Além disso, com o desenvolvimento do studio system, observou-se um

aprimoramento tanto nos métodos de construção de cenários quanto no desenho e na

confecção de figurinos e nas técnicas de maquiagem. Neste esquema de produção, o trabalho

da equipe da arte tendia a ser condicionado ao ponto do vista do texto e da direção.

15

Ibid, p. 52 16

Ibid, p.52

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19

O cinema norte-americano, o primeiro a criar um sistema de produção, tomou por

base a representação naturalista do mundo real, o mundo observado através de uma

janela. Era o studio system norte-americano, onde todos os cenários eram

construìdos em estúdio e as paisagens reproduzidas por pintura ou projeção. Como

resultado, o diretor tinha o controle total da realidade criada, ao mesmo tempo que o

que estava por trás das câmeras era totalmente invisìvel ao espectador. A palavra de

ordem era “parecer verdadeiro”. Esse naturalismo de base conferia uma sensação de

realidade aos gêneros projetados na tela: o faroeste, o musical, o filme de gângster.

(AYRES, 2011, p.86)

No entanto, quando ao final da segunda guerra mundial surge o neorrealismo

italiano, essas estruturas de produção são completamente repensadas. O movimento, que

marca um momento-chave da história do cinema, questiona as produções fìlmicas realizadas

até então e defende uma concepção da encenação enquanto um gesto autônomo do realizador.

Esta nova perspectiva da criação cinematográfica institui uma mudança radical no

pensamento do cinema e doravante a estrutura cênica deixa de ser tão milimetricamente

calculada e dominada pelas asserções do texto, dando ao ator uma maior liberdade de criação

sobre diálogos e gestualidades. Além disso, o surgimento de equipamentos mais leves

possibilitou a realização de filmagens longe dos estúdios fechados e controlados, e assim o

espaço cênico passou a ser o próprio mundo real: os realizadores saìam às ruas e capturavam

seus “recortes de mundo” sem tantas amarras técnicas, engajados em retratar a realidade

social e econômica da sua época, propondo uma estética mais documental e construindo o que

Aumont define como segundo cinema.

Influenciados por estes ideais neorrealistas, jovens crìticos da revista francesa Cahiers

du Cinema, entre eles, Jean Luc Godard e François Truffaut, que posteriormente viriam a ser

diretores de destaque da Nouvelle Vague francesa, criam na década de 1950 a chamada

política dos autores, uma perspectiva ideológica que define o fazer cinematográfico como

uma arte de expressão da individualidade do realizador, agora entendido como um autor. Os

textos exaltavam a especificidade da encenação de grandes diretores do cinema clássico,

como Orson Welles e Alfred Hitchcock, e ao propagarem o ideal da autoria no cinema, não só

valorizavam o trabalho solitário do artista que pensava a encenação fìlmica, como também o

inseria na mesma categoria de valor da literatura e da pintura.

No inicio, o cinema não tinha qualquer termo para designar o homem responsável

pelo carácter do filme. Com o crescimento das ambições artìsticas e da

especialização das tarefas, o vocabulário desenvolveu-se e diversificou-se, segundo

dois eixos – o do oficio e o da arte: havia, de um lado, o realizador e encenador; do

outro, cineasta e, depois, autor. (AUMONT, 2005, p. 20)

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O movimento neorrealista e a política dos autores influenciaram toda uma geração de

crìticos e cineastas e transformaram substancialmente o ideal da encenação cinematográfica.

No Brasil, esta nova conjuntura propiciou o surgimento do Cinema Novo, movimento de

vanguarda da década de 1960 que teve no cineasta Glauber Rocha um dos seus maiores

expoentes, e que propôs por meio de sua estética da fome uma produção fìlmica adaptada às

condições materiais do subdesenvolvimento latino-americano. Os filmes cinemanovistas,

realizados a partir da máxima de Glauber “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, se

particularizaram por uma encenação estruturada na opacidade do discurso e no

experimentalismo para representar politicamente questões nacionais, propondo uma reflexão

crìtica sobre problemáticas sociais do paìs.

A encenação, nos anos 30, era uma disciplina de ferro, que decorria do respeito total

exigido por um texto; em certas circunstâncias, podia-se retocar o texto, mas a

encenação continuava a ser secundária. Nos anos 50, o advento de formas

cinematográficas nas quais se fazia a economia do tempo da encenação

propriamente dita, a evolução para uma leveza cada vez maior, por um lado, e cada

vez mais sofisticação dos meios técnicos, por outro, transformaram profundamente o

caráter daquilo a que se continua a chamar de “encenação”. (AUMONT, 2005,

p.173)

Alteradas as convenções estruturais da encenação, mudanças significativas se

processaram também nos domìnios da direção de arte, principalmente no que concerne a uma

percepção profissional sobre as suas práticas. Este estudo não se propõe a dar conta das

minúcias históricas envolvidas neste processo, mas apontar nestas transformações algumas

alterações significativas. Inicialmente é fácil imaginar que a partir destes filmes que

questionavam conceitualmente a estrutura dos estúdios, os realizadores passaram a

compreender a cenografia, o figurino e a maquiagem de forma completamente diversa. Como

explica Butruce (2007) “A artificialidade, para eles, da cenografia de estúdio, contrapõe-se ao

desejo de apreender a realidade tal como ela é” e, ademais, “[...] o diretor é quem estará no

cerne do processo criativo, havendo uma certa negligência em relação às outras funções que

pudessem contribuir com a criação, como a direção de arte”. À encenação nas ruas se opunha

todo o aparato cenográfico do studio system, os figurinos e acessórios glamorosos, e a

maquiagem densa. Agora o mundo e a sua materialidade natural era o cenário que comportava

a encenação fìlmica. Os figurinos seguiam uma tendência ao improviso, assim como a

produção de maquiagem e cabelo, e as equipes de arte perdem espaço no processo de

concepção e realização das imagens cinematográficas.

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No contexto da produção audiovisual contemporânea, após o declìnio deste modelo

ideológico, o conceito de encenação adquire um novo sentido. Para Aumont (2005, p.177)

“[...] a falência deste programa estético deixou o encenador e a encenação livres de qualquer

dependência – e órfãos de qualquer projecto artìstico particular”. Hoje não há regras estéticas

definitivas. Cada realizador segue o seu próprio modelo de encenação, e os sistemas técnicos

que melhor convém à sua narrativa. Mas nesta equação contemporânea, a liberdade de

estruturação do ponto de vista não cria necessariamente autores. A encenação estaria

onipresente nas produções atuais, mesmo nas documentais, porém de forma pontual, sem

inventividade.

Este estudo considera Luiz Fernando Carvalho como um realizador que se destaca neste

panorama. As suas obras demonstram uma perspectiva particular de estruturação da

encenação que conduz a narrativas audiovisuais originais e inovadoras no contexto televisivo.

E, neste sentido, podemos defini-lo como um autor, com um estilo recorrente no conjunto da

sua produção. Para uma conceituação de estilo, utilizamos aqui como referência o conceito

definido por David Bordwell (2013, p.17), assim elaborado:

No sentido mais estrito, considero o estilo um uso sistemático e significativo de

técnicas da mìdia cinema em um filme. Essas técnicas são classificadas em domìnios

amplos: encenação (encenação, iluminação, representação e ambientação),

enquadramento, foco, controle de valores cromáticos e outros aspectos da

cinematografia, da edição e do som. O estilo, minimamente, é a textura das imagens

e dos sons do filme, o resultado de escolhas feitas pelo(s) cineasta(s) em

circunstâncias históricas especìficas.

Esta pesquisa pretende definir o “lugar” da direção de arte no estilo de Carvalho,

realizando uma investigação sobre os processos de criação das visualidades das suas obras e

uma análise das especificidades do projeto de arte de Suburbia. Nos próximos subitens

apresentamos uma sistematização dos conceitos e das práticas que norteiam a estruturação de

um projeto de arte, em suas relações teóricas com os estudos de Aumont.

1.2. Direção de arte: conceito e projeto

No âmbito dos processos da direção de arte, conceito e projeto são palavras-chave. A

concepção da materialidade cênica fìlmica ou televisiva resulta de práticas recorrentes nas

produções audiovisuais, mas que se relacionam inteiramente às premissas conceituais

particulares do projeto de arte. Esta perspectiva projetual pode ser definida, como já dito,

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como uma sistematização dos conceitos e determinações técnicas que vão orientar todo o

processo de criação da visualidade de uma narrativa fìlmica ou televisiva, em alinhamento aos

prazos estabelecidos no cronograma e às limitações de ordem orçamentária; compreendendo

desde a definição da paleta de cores, alinhada ao desenho da luz, até o planejamento técnico e

conceitual da cenografia, do figurino, da maquiagem e dos efeitos especiais. A partir dessas

diretrizes, e com base na proposta da encenação, a direção de arte concebe visualidades de

mundos ficcionais, mas totalmente crìveis.

A composição da imagem ficcional, seja estática ou em movimento, sempre carrega

em si o registro de um processo de criação pautado na manipulação de materialidades

especìficas para expressar uma ideia ou sentido, que aqui definimos como conceito visual. Em

uma obra audiovisual, o conceito visual norteia todo o processo de construção da

materialidade cênica, tornando-se essencial para a estruturação da encenação, e agregando

novas camadas de significação à composição imagética. Operando no nìvel subjetivo e

metafórico das obras, a força conceitual das imagens de um filme ou produto televisivo é

expressiva nos seus planos, concebendo a obra como um produto de linguagem visual única.

Como explica Barnwell (2004, p.52, tradução nossa): “Sem conceito não há um projeto total,

apenas elementos de configurações distintas. Portanto, uma função do designer é evocar a

ideia que vai unir todos os elementos em um todo compositivo”. Assim, a criação conceitual é

uma etapa essencial do projeto de arte, pois uma visualidade construìda sob um forte conceito

promove a imersão do espectador na diegese, estruturando a narrativa por um sentido abstrato

que permeia a atmosfera das cenas.

Após a pesquisa, o designer projeta o conjunto de elementos que atuam e criam

sentido junto ao roteiro, fortalecendo o produto final. O conceito pode ser muito

variado, extraìdo de uma conexão feita pelo designer com o roteiro, e como tal uma

resposta excepcionalmente individual. Não há um modo certo ou errado de

conceituar, apenas a percepção de algo que se possa trabalhar com um maior êxito,

que tende a ser aquilo que nós recordaremos […] (BARNWELL, 2004, p. 53,

tradução nossa)

Segundo Aumont (2005, p.164,166), “a obsessão pela estrutura e pela estruturação

começou muito cedo na história do cinema”, e se manifestou inicialmente na plasticidade e

nos grafismos da composição do quadro fìlmico principalmente na época do cinema mudo. O

autor cita os filmes alemães do inìcio da década de 1920 como obras que evidenciam esta

tentativa de estreitamento da relação formal entre cinema e pintura, ao buscarem na estética

do expressionismo pictórico, as principais referências para a estruturação das suas imagens; o

que “resulta certamente em formas simples e surpreendentes, mas que a sua própria natureza

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de imitação limitava a efeitos superficiais”. Já os cineastas soviéticos são mais convincentes

“e menos pictóricos” quando tentam desenvolver regras de enquadramento e composição do

quadro que são especificamente cinematográficas. Na década de 1960, Noël Burch propõe

uma abordagem formalista, buscando um entendimento acerca das “estruturas” próprias da

encenação cinematográfica que “pensa menos em fenômenos de composição na superfìcie do

quadro do que numa espécie de composição musical, no tempo, no que diz respeito à

sucessão, ao encadeamento e às relações entre os planos”.

Consideramos neste estudo, a proposição de uma estruturação da encenação a partir do

conceito visual, definindo-o como um elemento subjetivo que interrelaciona planos, tanto no

que tange aos aspectos materiais quanto aos compositivos, e constrói a visualidade. Esta

criação conceitual perpassa não somente as asserções projetuais da direção de arte, mas se

complementa nos processos da direção de fotografia, que é a responsável pelo posicionamento

e deslocamento da câmera e pelas relações estabelecidas entre iluminação e paleta de cores.

A direção de arte é a responsável por construir o conceito visual que irá nortear toda a

criação do Departamento de Arte. Correlacionando visualmente desde a escolha da paleta de

cores até a construção do projeto cenográfico e a caracterização das personagens, esse

processo deve se fundamentar no entendimento das diretrizes dramáticas do texto, na

compreensão do ponto de vista do diretor sobre a narrativa, na percepção particular do diretor

de arte e em uma intensa pesquisa de referências visuais.

As indicações da estrutura da encenação da obra a partir do roteiro é um método ainda

recorrente nas produções audiovisuais brasileiras, e se integra inteiramente aos processos

produtivos da direção de arte. A descrição formal das cenas aliada ao storyboard apresenta

uma articulação de dados narrativos essenciais para a criação dos conceitos. Uma das

primeiras etapas do processo criativo do diretor de arte consiste em realizar uma decupagem

do texto e desta análise extrair as principais indicações cênicas sobre personagens e ações, e

as definições de espaço-tempo que irão orientar a construção do projeto de arte.

E neste ponto, a determinação da época em que se passa a narrativa traz questões

cruciais à representação. Se a narrativa se contextualiza na contemporaneidade, o processo de

criação da direção de arte poderá ser mais simples, pois possivelmente a equipe de arte terá

menos restrições na seleção dos elementos materiais para a composição do espaço cênico. No

entanto, se a história retratar épocas remotas, como nas narrativas sobre o passado ou o futuro,

novas necessidades emergem para a encenação. Na produção das narrativas “de época” a

equipe de arte provavelmente deverá se debruçar em pesquisas históricas bem mais

especìficas e detalhadas de processos, materiais e visualidades do perìodo (buscando

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referências visuais principalmente em livros, revistas e filmes), demanda que em algumas

produções determina a contratação de profissionais apenas para esta função. Além disso, as

necessidades materiais do projeto provavelmente implicarão em mais custos de produção,

principalmente no que se refere à comercialização de antiguidades e de materiais raros, além

da contratação de mão-de-obra especializada para serviços muito especìficos.

Conceitualmente cabe ao diretor e ao diretor de arte decidir: pela reconstituição

histórica rigorosa (o que implicaria em uma fidelidade à arquitetura, roupas, objetos e móveis

do perìodo); ou retratar apenas o espìrito da época, ou seja, representar a atmosfera visual do

perìodo, mas não se ater aos detalhes de uma materialidade datada. Já as narrativas

ambientadas no futuro permitem uma maior liberdade de criação no set, pois a direção de arte

terá menos implicações quanto à autenticidade visual, já que não existem certezas quanto às

condições futuras. Seja qual for o contexto temporal representado, a etapa da pesquisa de

referências visuais será essencial, pois, se bem realizada, acrescenta profundidade e

intensidade visual às imagens.

Mas se o roteiro é ambientado no passado ou no futuro, o designer tem que pensar

muito cuidadosamente sobre as opções disponíveis. Se o filme for ambientado no

passado, a filmagem em locação vai exigir que qualquer coisa que não seja daquela

época seja removida, como postes de eletricidade e linhas amarelas nas estradas. A

pesquisa histórica ajudará a informar o designer sobre a aparência de uma época

específica. Assistir a outros filmes ambientados no mesmo período também

permitirá que o designer veja como eles foram representados. (BARNWELL, 2013,

p. 115)

Contudo, as diretrizes conceituais da direção de arte são fundamentadas não somente

no texto, mas, sobretudo, no diálogo construìdo entre o diretor de arte e o realizador. O nìvel

do entrosamento entre ambos pode definir todo o percurso criativo do Departamento de Arte e

ter importantes desdobramentos na visualidade da obra. Este estudo pressupõe que em

projetos audiovisuais mais autorais, o estilo do diretor tem influência direta na criação do

conceito visual da obra, sendo quase inteiramente o responsável pela criação dos conceitos, e

que, em alguns casos, pode determinar um intenso investimento nos elementos da direção de

arte como um meio de expressão. Luiz Fernando Carvalho se encaixa neste perfil de diretor.

Como um autor, o conjunto das suas obras revela um estilo pessoal que potencializa

conceitualmente as construções materiais da direção de arte e a estruturação da encenação,

dilatando a força expressiva das imagens.

Capitu, minissérie dirigida por Carvalho e veiculada pela Rede Globo no ano de 2008,

é, por exemplo, uma obra de força conceitual. Adaptada do livro Dom Casmurro (1900), do

escritor Machado de Assis, é perceptìvel no resultado final alcançado nas imagens o intenso

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processo de pesquisa e imersão do diretor e da sua equipe no universo literário do escritor e na

conjuntura histórica, de fatos, hábitos e costumes sociais, da arquitetura, dos objetos e da

indumentária da época retratada na obra; enfatizando, todavia, as suas projeções na

contemporaneidade. Com base na análise da sua narrativa, e nas informações coletadas a

partir do material suplementar ao produto de teledramaturgia, livro e making of, este estudo

considera que o conceito visual articulado para a construção da visualidade da minissérie se

baseia na essência da obra de Assis, sintetizada na frase extraìda do seu texto literário “A vida

é uma ópera”, que, como viés conceitual determina como principais referências visuais para a

direção de arte o universo operìstico, o contexto social do advento da modernidade no Rio de

Janeiro e suas reverberações no texto de Machado de Assis. No segundo capìtulo desta

dissertação iremos apresentar dados, conceitos e ideias que nortearam o processo criativo de

Luiz Fernando Carvalho e da sua equipe e seus resultados formais na visualidade da obra.

1.3. Paleta de Cores

Na concepção de visualidades cinematográficas ou televisivas, a paleta de cores pode

ser definida como a composição cromática que estrutura formas e texturas da materialidade

cênica, e se constitui como uma camada expressiva essencial na construção da encenação e na

criação da atmosfera e do clima da narrativa, interferindo diretamente na plasticidade da

Figura 01. Conceito visual em Capitu: “A vida é uma ópera”.

Fonte: Capitu, 2008. (Frame)

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imagem audiovisual. A escolha da paleta de cores deve estar relacionada ao conceito visual

que se pretende expressar e é uma das etapas mais importantes da criação do projeto de arte,

já que definir as cores de um filme ou minissérie é definir o elemento visual que perpassa toda

a construção da direção de arte, desde a cenografia e a luz, até a maquiagem e efeitos

especiais. Para a análise a ser apresentada nesta dissertação, iremos considerar, sobretudo, as

particularidades plásticas da cor e a sua potencialidade em estimular sensações especìficas no

espectador, considerando a sua inserção nos processos criativos da direção de arte e os

princìpios que regem a veiculação da cor pelos meios audiovisuais.

É importante pontuar, contudo, que enquanto fenômeno óptico a cor não tem

existência material17

. A cor ou matiz é uma sensação visual resultante do estìmulo fìsico da

luz (radiação eletromagnética) sobre o olho humano e corresponde a comprimentos de onda

do espectro luminoso, sendo sete os matizes principais identificados na decomposição da luz

branca: vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, anil e violeta; as cores do arco-ìris. Como

explica Guimarães18

(2000, p. 12):

O estímulo físico ou meio, carrega consigo a materialidade de uma das fontes, ou

causas da cor – a cor-luz ou cor-pigmento. O cérebro – e o órgão da visão como sua

extensão – é o suporte que decodificará o estímulo físico, transformando a

informação da causa em sensação, provocando, assim, o efeito da cor.

As principais caracterìsticas que determinam a aparência de uma cor são o matiz

(coloração definida pelo comprimento de onda), o croma (saturação ou pureza da cor) e o

valor (luminosidade ou o quanto a cor se aproxima do branco ou do preto)19

. As cores podem

ser classificadas em cor-luz (incidência dos raios luminosos), que tem como cores-primárias o

vermelho, o verde e o azul violeta, e em cor-pigmento (substâncias corantes opacas) que tem

como cores-primárias o ciano, o magenta e o amarelo. O cinema e a televisão, cada qual com

as suas particularidades técnicas, são mìdias que se caracterizam pela reprodução de imagens

compostas por cores-luz. Assim, é possìvel afirmar que nos processos criativos da direção de

arte, a equipe de arte manipula os dois tipos de cores: cores-pigmento, no figurino, na

cenografia e na maquiagem, e cores-luz, na relação entre iluminação e espaço cênico. O

resultado final, o desdobramento das construções materiais da arte nas imagens da obra é

visualizado em cores-luz.

17

O que se percebe como a cor de uma coisa ou objeto é a reflexão da luz sobre a quìmica da matéria. 18

Ver: GUIMARÃES, Luciano. A cor como Informação. A construção biofísica, lingüística e cultural da

simbologia das cores. São Paulo: Annablume, 2000. 19

GUIMARÃES, 2000, p. 54.

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A cor-luz (luz colorida) é a radiação luminosa visível que tem como síntese aditiva a

luz branca. Sua melhor expressão é a luz solar, por reunir de forma equilibrada todos

os matizes existentes na natureza. [...] A cor-pigmento é a substância material que,

conforme sua natureza, absorve, refrata e reflete os raios luminosos componentes da

luz que se difunde sobre ela. É a qualidade da luz refletida que determina a sua

denominação. O que nos leva a chamar um corpo de verde é a sua capacidade de

absorver quase todos os raios da luz branca incidente, refletindo para nossos olhos

apenas a totalidade dos verdes. (PEDROSA, 2010, p.20)

Mas independente de qual tipo de cor está sendo manipulada, para uma concepção

eficiente da linguagem visual de uma obra é essencial que se invista na harmonização das

cores que compõem os elementos visuais da materialidade cênica. Em um arranjo cromático,

a interação entre as cores pode acarretar diferentes e inesperados sentidos na visualidade

construìda, como intensos contrastes entre figura-fundo, e diferentes sensações, como as de

temperatura, proporcionadas pelo uso de cores quentes (matizes da faixa amarelo-laranja-

vermelho) ou cores frias (matizes da faixa verde-azul). Cabe a Direção de arte saber explorar

a potencialidade expressiva das cores, sem limitações criativas e ideológicas pré-concebidas.

Embora tenha-se feito muitos testes de cores e luz, precisa-se ficar muito atento

neste momento, pois vai acontecer aqui a mescla de todos os elementos visuais,

cenário, figurino, representados pelas cores-pigmento, e iluminação, representada

pela cor-luz. O Diretor de Arte e o Diretor de Fotografia devem estar em grande

afinidade para resolverem quaisquer problemas que envolvam tal formalização.

Muitas vezes será necessário trocar alguma roupa ou mudar alguma gelatina para se

chegar à harmonia entre cores e iluminação. (PEREIRA, 1993, p. 72)

A observação destes aspectos é determinante para a definição da paleta de cores. O uso

da cor em uma obra audiovisual demanda planejamento e conhecimento acerca dos seus

aspectos técnicos, culturais e sensoriais, pois a manipulação eficiente da sua expressividade e

dos seus significados amplia a potencialidade estética das imagens, e podem direcionar a

construção do sentido da narrativa. Como afirma Barnwell (2013, p. 112): “O designer de

produção tem todo o espectro de cores para escolher, e suas escolhas podem influenciar como

o público vivencia o clima, a atmosfera e a emoção em uma cena”. Cada projeto estrutura a

sua paleta de cores conforme os seus próprios conceitos, e o que pode parecer simplesmente

inadequado para uma determinada narrativa se encaixa perfeitamente em outra.

Uma composição cromática, como toda experiência visual, é dinâmica. As cores

apresentam características de peso, distância e movimento que, combinadas à

proporção e localização das formas, constroem uma informação complexa cuja

totalidade provoca reações diversas no observador (GUIMARÃES, 2000, p.75).

Entretanto, é fundamental salientar que a construção social das cores e dos seus

significados não pode ser entendida como algo pré-definido ou padronizado. Longe dos

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clichês e das fórmulas prontas veiculadas por manuais de uso ou sites focados na temática, o

significado de uma cor pode variar drasticamente a depender do contexto visual. No processo

de pré-produção, as pesquisas da direção de arte devem dar conta de aprofundar estas

questões conforme o contexto social e temporal a ser abordado na narrativa, e a escolha da

paleta de cores deve estar alinhada a estas informações e ao conceito visual proposto.

A paleta de cores da minissérie Hoje é dia de Maria, por exemplo, traz uma associação

cromática direta da obra com a visualidade do sertão brasileiro, contexto sociocultural da

narrativa. O uso da cor remete a terra, sol e calor, e ao colorido das festas, das feiras regionais

e da arte populares. Há uma predominância dos tons terrosos, de amarelos e laranjas, com

fortes pinceladas de vermelhos saturados. As cores são essenciais para a concepção do

universo narrativo construìdo a partir de elementos visuais oriundos do imaginário nacional

da cultura popular, construindo camadas de significação ligadas subjetivamente aos

sentimentos e emoções das personagens.

Já na minissérie Afinal, o que querem as mulheres?, as escolhas da direção de arte em

relação à paleta de cores não apresenta uma associação tão evidente. De forma geral, as

imagens apresentam uma profusão de cores quentes saturadas que correlacionam espaços e

objetos aos figurinos e a caracterização das personagens e à plasticidade das pinturas da

personagem Lìvia. As cores ora são empregadas harmoniosamente pelo contraste entre

figurinos e maquiagens coloridas, frente a espaços neutros ou, de forma oposta, por espaços

Figura 02. Paleta de cores de Hoje é dia de Maria: cores terrosas.

Fonte: Hoje é Dia de Maria, 2005. (Frame)

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extremamente coloridos ocupados por personagens visualmente neutros. Assim, a

manipulação das cores na minissérie determina uma visualidade expansiva que remete ao

dinamismo visual da contemporaneidade, sendo possìvel observar uma criação cromática livre

de amarras simbólicas pré-definidas.

A direção de arte, por meio dos seus esquemas conceituais e processuais, extrai desta

contingência ideológica toda a riqueza visual para a concepção de universos ficcionais. Tintas,

tecidos, fitas, corantes naturais, resinas, madeiras e maquiagens são algumas das matérias-

primas multicores que nas mãos da equipe de arte são transformadas em visualidade. Na

atualidade, o desenvolvimento cientìfico e os avanços tecnológicos só favoreceram o

surgimento de novos processos e ferramentas que potencializam o emprego das cores nas

artes e nos meios de comunicação, cabe ao audiovisual tomar partido destas inovações.

Por fim, após a leitura e a decupagem do roteiro e da definição das principais

referências visuais, do conceito visual e da paleta de cores a equipe de arte já terá o alicerce

fundamental para a construção da visualidade De uma obra fìlmica ou televisiva. Inicia-se

então a etapa da concepção da materialidade cênica propriamente dita, em que a direção de

arte deverá dar conta de compor o set de filmagem com os elementos que darão suporte

material à encenação. Aqui que se encaixam os trabalhos de cenografia, figurino, maquiagem

e efeitos especiais.

Figura 03. Paleta de cores de Afinal, o querem as mulheres: cores saturadas.

Fonte: Afinal, o que querem as mulheres?, 2010. (Frame)

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1.4. Cenografia

Uma das principais diretrizes projetuais da direção de arte, a cenografia é uma

concepção técnica originária dos palcos teatrais que se pauta na projeção e na montagem do

espaço cênico que irá, não só abrigar a encenação, mas representar estruturas espaciais

tridimensionais como paisagens, cidades e habitações. No campo estético das produções

audiovisuais a criação do espaço cênico deve se relacionar conceitualmente ao roteiro fìlmico

e televisivo, à proposta de encenação indicada pela direção e ao conceito visual definido pelo

diretor de arte, cooperando sensorialmente para a criação de atmosferas.

Continuo defendendo o conceito de espaço cênico considerado como uma atmosfera

que atua no espetáculo de forma sensorialmente dramática. Ataco violentamente o

decorativismo gratuito, tudo o que procura agradar, o pleonástico, o adjetivado, o

pomposo, enfim tudo o que se sobrepõe pretensiosamente à correta interpretação do

texto e do espetáculo que o intermedia. (RATTO, 2001, p. 19)

A projeção e a construção do espaço cênico compreendem uma correlação visual e

material entre iluminação, cenários e objetos, e deve se fundamentar na proposição de

interpretações textuais que se expressam visualmente nas formas, cores e texturas articuladas

espacialmente, corroborando assim a criação da visualidade e dos seus desdobramentos

formais nas imagens da obra. „O componente mais visìvel do conjunto visual do filme é o que

delimita e define o espaço de ação, ou seja, o cenário, que funciona como uma espécie de

“âncora” para os outros elementos‟ (COUTO, 2004, p. 8).

A cenografia pode ser considerada uma composição em um espaço tridimensional –

o lugar teatral. Utiliza-se de elementos básicos, como cor, luz, formas, volumes e

linhas. Sendo uma composição, tem peso, tensões, equilíbrio ou desequilíbrio,

movimento e contrastes. (MANTOVANI, 1989, p. 6)

No contexto das práticas audiovisuais, o cenógrafo é o profissional responsável pela

concepção e execução do projeto cenográfico, e suas ações devem estar alinhadas às

demandas do roteiro e às orientações do diretor de arte e do diretor geral, além de seguir as

determinações práticas impostas por limitações de cronograma e de orçamento. Nas etapas da

realização fìlmica ou televisiva, a equipe de cenografia poderá variar em tamanho e funções, a

depender do meio e da dimensão do projeto audiovisual realizado, e normalmente é formada

não somente pelo cenógrafo, mas também por seus assistentes, pelo produtor de objetos, pelo

pintor de arte, pelo cenotécnico e pelo marceneiro, entre outros profissionais. No meio

cinematográfico normalmente as equipes são montadas a cada novo projeto e são compostas

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por profissionais freelancers da área, enquanto que nas emissoras de televisão costuma-se ter

um quadro fixo de funcionários para atuar nas produções.

Nas etapas iniciais da concepção e projeção cenográfica a leitura e a decupagem do

roteiro são procedimentos fundamentais, pois é a partir da observação das principais questões

e indicações espaciais do texto que o cenógrafo irá formatar as suas primeiras impressões do

projeto. A atenção à descrição formal do roteiro para as cenas, seja em uma produção de

cinema ou de televisão, permite apreender as principais unidades dramáticas normalmente

articuladas na narrativa: o desenvolvimento da ação por uma ou mais personagens no contexto

de um espaço em particular de uma determinada época. Além disso, é possìvel se observar

nesta fase as principais indicações referentes às particularidades da linguagem audiovisual

(como movimento de câmera, ângulos e enquadramento), também importantes para o

entendimento da espacialidade proposta pelo texto.

As informações extraìdas são então compiladas em listagens técnicas que abarcam um

levantamento das principais necessidades materiais da cenografia. Com base nestes dados, e a

partir das definições do conceito visual e da paleta de cores propostas pelo diretor de arte, o

cenógrafo tem então subsìdios para criar o projeto cenográfico. Independente se a cena ocorre

em um ambiente natural ou arquitetônico, interno ou externo, cabe à cenografia encontrar as

soluções ideais para atender às determinações espaciais descritas no roteiro.

O designer desmembra o roteiro em locações, ambientes internos e externos e

perìodos de dia e noite. A partir de cada um desses elementos, ele pode ver quantos

ambientes são necessários para o filme – de somente um até quantos o orçamento

permitir. Para cada ambientação, um novo desmembramento é produzido para todos

os itens que aparecem durante a ação. Além desses itens essenciais, o designer lista

tudo o que quer ver em cada ambiente para apoiar as personagens e a história, como

móveis e decoração. (BARNWELL, 2013, p.102)

Inicialmente, é preciso entender o(s) perfil(s) da(s) personagem (s): a sua condição

socioeconômica, descrição fìsica, personalidade e profissão, e o que a motivou a participar de

tal ação, além da época em que se passa a narrativa, para que destes pontos possamos

entender a sua relação emocional e funcional com o espaço descrito. Esta relação

personagem-espaço-tempo definirá conceitualmente a materialidade cenográfica, desde o uso

da paleta de cores e texturas no espaço, até os aspectos formais e visuais dos objetos cênicos.

Se bem produzido, cada elemento da composição cênica irá expressar o tipo de relação

proposta entre personagem e espaço e colaborar na construção da atmosfera para a encenação.

Cada unidade cenográfica carregará em si um significado próprio, e toda a composição em

conjunto determinará novas camadas de significação na superfìcie da imagem audiovisual.

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Um designer deve criar sets, prédios, cidades ou até mesmo mundos inteiros,

conectando-os à narrativa do filme. Em um sentido prático, ele constrói um lugar

para que a ação aconteça e, em um sentido criativo, ele torna esse lugar apropriado

para o filme e as personagens que vivem lá. (BARNWELL, 2013, p. 101)

Além dessas definições, é essencial também o ajuste do projeto cenográfico à encenação

proposta pelo diretor. Se a direção conceber uma encenação realista, a cenografia terá um

perfil complemente diferenciado de uma encenação que tende ao artificialismo. A construção

dos cenários e a definição dos elementos que o compõem seguirá assim uma funcionalidade

visual e material com a encenação, e este aspecto é determinante no trabalho da equipe

técnica e na atuação do elenco, além de ser essencial para as interpretações do público.

O primeiro nìvel do design do espaço é o estabelecimento do local. Em seguida a

ambientação do local de acordo com a situação sócio-econômica-cultural. Depois

entra a personalidade do usuário daquele espaço. O quarto nìvel incorpora elementos

que dizem respeito a aspectos da narrativa, indicando, sutilmente ou não,

sentimentos ou ações futuras. O quinto nìvel diz respeito à interpretação pessoal do

espectador em relação ao espaço visto na tela. Ele pode perceber todos os nìveis de

significado adicionados ao espaço e ainda identificar outros de acordo com a sua

interpretação pessoal, ou simplesmente ficar no nìvel básico, do cenário como

simples pano de fundo para a ação. (COUTO, 2004, p.9)

Todas as determinações conceituais deste perìodo de planejamento do projeto cênico

são normalmente articuladas pelos mood boards, esboços e desenhos do cenógrafo e dos seus

assistentes, e, por vezes, são sintetizadas em maquetes tridimensionais, reais ou virtuais. A

depender do orçamento da produção, é ainda recorrente o uso de softwares de pré-

visualização como o Pre-Viz, que possibilitam a concepção virtual de toda a estrutura visual e

espacial do set, assim como a caracterização e a deslocação dos atores. Esses recursos visuais

serão essenciais na orientação do trabalho da equipe de cenografia. No momento da

transposição do projeto cenográfico para a realidade concreta, o cenógrafo e a sua equipe

seguem os desenhos espaciais definidos neste perìodo de conceituação.

O Pre-Viz é um software que cria sets e atores virtuais em um computador. Esse

estúdio virtual oferece um storyboard em tempo real e adequado à lente, com

movimentos que podem ser editados em conjunto, como um filme finalizado.

Existem vários programas disponìveis que permitem construir sets virtuais ou inserir

as medidas das locações, adicionar atores em movimento e escolher posições de

câmera e lentes adequadas.

Sequências de ação complexas para filmes com efeitos especiais normalmente são

testadas no Pre-Viz, para que os problemas possam ser resolvidos durante a

preparação. (BLOCK, 2010, p. 275)

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Contudo, é importante considerar as divergências estruturais entre a construção

cenográfica no teatro e na produção audiovisual. Enquanto na montagem teatral todo o espaço

construìdo é delimitado à encenação e concebido para ser visualizado em sua totalidade pela

plateia e por apenas um ângulo de visão, nas obras audiovisuais o espaço cênico é

representado por diferentes ângulos, enquadramentos e zooms. O que implica na concepção

de um cenário adaptado para o deslocamento da câmera, com espaços mais amplos e

estruturas móveis, como paredes e janelas falsas. Assim, as particularidades da linguagem

audiovisual impõem uma concepção cenográfica ajustada aos seus processos especìficos.

A consciência da natureza da imagem cinematográfica impõe ao designer algumas

condições especiais. Primeiro, sua característica temporal: todo o quadro deve ser

composto a todo instante e de forma completa; o projeto cênico deve considerar a

todo momento o movimento do olhar da câmera, e portanto, a evolução temporal do

espaço projetado. O segundo aspecto é a sucessão de mudanças de planos, deve-se

considerar a possibilidade de organizar essas mudanças em função da plasticidade

dos “conjuntos enquadrados”, e assim criar uma rede estrutural. (MACHADO, 2011,

p. 75)

No contexto das produções audiovisuais, a construção do cenário pode ser pensada

segundo duas opções de execução: estúdio ou locação. A opção pela montagem do set de

filmagem em estúdio costuma acarretar menos problemas para a produção, pois a estrutura do

estúdio possibilita um maior controle do ambiente de filmagem. Para a cenografia, esse tipo

de montagem permite a construção de um espaço cênico com maior precisão às descrições do

roteiro, além de facilitar a logìstica de ferramentas, equipamentos e materiais. A desvantagem

é que este processo demanda um tempo maior de trabalho, pois todo o cenário necessitará ser

erguido do zero. Já ao optar pela locação, a equipe de cenografia ganha mais tempo, pois a

estrutura material básica já estaria pronta. No entanto, perde em fidelidade às determinações

espaciais do roteiro, além de estar mais suscetìvel à interferência de circunstâncias externas à

produção, principalmente as referentes à iluminação e à acústica.

Há prós e contras em ambas as escolhas, mas frequentemente os designers preferem

construir porque eles podem ter um controle exato dos ajustes necessários, ao passo

que em locações muitas vezes há uma conflito de imagens que pode confundir e

prejudicar o conceito de design. (BARNWELL, 2004, p. 19, tradução nossa)

A partir das indicações projetuais e sob a supervisão do cenógrafo, uma variada equipe

de profissionais atua na construção do cenário propriamente dito. Deste quadro de atuação

prática destacam-se duas funções: o cenotécnico e o pintor de arte. O cenotécnico é quem

realmente põe “a mão na massa”, manipulando madeiras, pregos e tintas. O pintor de arte,

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como o nome já diz, é o responsável pelas pinturas de superfìcies com efeitos, como o de

texturização e de envelhecimento, por exemplo. Além dos especialistas na construção do

cenário, também atua na composição do espaço cênico outra equipe de profissionais: a de

produção de objetos, conduzida pelo produtor de objetos e seus assistentes. A partir das

definições conceituais do diretor de arte e do cenógrafo, estes profissionais tem a tarefa de

preencher todo o cenário com objetos e mobiliário.

No contexto da narrativa, o objeto cênico deve expressar a relação da(s) personagem (s)

com o espaço da encenação, podendo dar indicações sobre a sua personalidade e experiências

pessoais, além de transmitir sentimentos que cooperam na criação da atmosfera e do clima da

narrativa. A valorização destes itens como elementos materiais que trazem significados para a

visualidade da obra só contribui para criar novos sentidos narrativos e para promover a

imersão do espectador na obra, aprofundando o conceito visual proposto.

Portanto, demonstra-se ser inevitável e essencial a interferência material-metafórica do

objeto nos processos da encenação, cabendo à direção de arte, a partir das pesquisas de

referências realizadas, selecionar e compor os objetos cênicos que melhor dialogam com a

narrativa. Assim uma das primeiras ações do produtor de objetos será estruturar, a partir da

leitura e da decupagem do roteiro, uma listagem de objetos de cena segundo as indicações

descritivas de cenários e ações; um levantamento que abrange desde os props20

, o mobiliário,

os objetos gerais até os adereços21

. Definido o perfil das personagens, da ação, do espaço e da

época, a equipe fará então uma pesquisa visual e estética para compor esses objetos e

apresentará ao cenógrafo e ao diretor de arte. Se aprovados, esses itens poderão ser

comprados, alugados ou emprestados em brechós ou lojas especializadas. Adquiridas as

peças, inicia-se a etapa do dressing, momento em que é realizada a composição e a decoração

do espaço cênico para as filmagens. Após, segue-se a etapa da desprodução, perìodo em que

todos os cenários e objetos cênicos são desmontados e retirados do set.

No projeto cenográfico concebido para a minissérie Hoje é Dia de Maria, sempre

citado pelo seu caráter experimental e por romper com os moldes naturalistas das produções

televisivas contemporâneas, a potencialização cênica de objetos e adereços contribui para a

estruturação de uma encenação inovadora, fundamentada no que Collaço (2013) denomina de

artificialismo explícito, um procedimento recorrente no estilo de Luiz Fernando Carvalho.

20

Pertences das personagens 21

Os adereços são objetos cênicos com caracterìsticas especìficas, imaginados e concebidos especialmente para

uma narrativa em particular.

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O termo escolhido remete à adoção de um tom não-realista para a composição dos

elementos da encenação da minissérie, com partes da visualidade e sonoridade do

discurso da obra demonstrando de forma explícita sua condição enquanto objetos

artificiais, aproximando-se da representação cênica de cenários e objetos sobre um

palco único. Ao optar por esta estratégia, sublinha-se o tom farsesco e dialoga-se,

principalmente, com o teatro mambembe de palcos improvisados em espaços

públicos. (COLLAÇO, 2013, p.32)

A visualidade construìda na minissérie, cuja perspectiva conceitual referencia o

universo visual do sertão e da cultura popular brasileira, e transita pela ludicidade dos contos

infantis, direciona o trabalho da equipe de cenografia da minissérie, que concebe objetos e

adereços que extrapolam a sua funcionalidade na narrativa e constroem novas camadas de

significação na encenação. A opção pela representação artificial do mundo da pequena Maria

orienta o trabalho do artista plástico Raimundo Rodrigues, que transforma parte do lixo

reciclável da Rede Globo em materialidade cênica, ao compor, entre outros elementos,

cavalos de fibra de vidro em tamanho real através da reutilização de retalhos de tecidos e de

marmitas de alumìnio.

O mesmo princìpio artificialista orienta o trabalho do grupo mineiro de teatro de

bonecos Giramundo na confecção dos tìteres que encarnam as criações do sitio e também no

“pássaro incomum” (o “Amado”, que na forma humana é interpretado por Rodrigo Santoro).

Adereços que se alinham ao conceito visual da minissérie, na medida em que remetem às

formas e cores do artesanato nordestino brasileiro. Todos os animais contracenam com as

Figura 04. Adereço cênico de Hoje é Dia de Maria: novas camadas de significação.

Fonte: Hoje é Dia de Maria, 2005. (Foto Still)

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personagens como seres reais: os cavalos são “cavalgados” pelos atores em cena e os patos

“brincam” com a menina Maria; e assim ganham força expressiva, contribuindo para a

opacidade do discurso construìdo e para o distanciamento do telespectador da narrativa.

Nos processos de composição da imagem audiovisual, a cenografia pode ser então

definida como o espaço que abriga a encenação, que formado por estruturas arquitetônicas ou

ambientes naturais articula objetos e adereços que trazem uma estreita relação com a

narrativa, com as ações e com a construção psicológica das personagens, interferindo

diretamente na encenação e no registro imagético. Concluìmos, portanto, que a partir do

intenso trabalho de composição da cenografia é possìvel alcançar a materialização do mundo

imaginário concebido pelo roteiro e dos mundos particulares de cada personagem, um

processo conceptivo que articula visualmente cenário, figurino e caracterização, sempre em

alinhamento ao desenho da luz e à paleta de cores.

1.5. Figurino

Definimos como figurino, as roupas e acessórios que vestem os atores em cena,

articulando valores e significados que sustentam a construção psicológica e visual de

personagens, e a criação de sentido na narrativa ficcional. O termo figurino se refere, assim,

aos trajes produzidos para a composição da encenação e abrange os conceitos de vestuário e

de indumentária; o vestuário se referindo ao conjunto de peças de roupas usuais e a

indumentária ao vestuário especìfico de uma época e cultura.

Nos processos da direção de arte cinematográfica, a concepção do figurino se alinha às

diretrizes conceituais do projeto de arte, e deve estabelecer uma relação formal e cromática

com o espaço cênico de forma a articular uma estrutura compositiva que se desdobra na

visualidade e nas imagens da obra. Como elemento de estruturação da encenação fìlmica e

televisiva, o desenho do figurino deve seguir a proposta conceitual do diretor, tornando

verossìmil o seu ponto de vista e a construção do discurso visual pretendido.

O designer trabalha diretamente com o figurinista para que a aparência e o clima do

ambiente e dos figurinos combinem. Se há uma paleta de cores específica, então

figurinos e ambientes deve seguir essa paleta. As roupas de uma personagem

fornecem muita informação, desde a sua personalidade até a sua situação financeira.

A pesquisa é essencial para se conseguir um guarda-roupa que apoie a personalidade

e a situação de cada personagem. (BARNWELL, 2013, p.124)

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O figurinista e a sua equipe, assistentes, camareira e costureiras, são os responsáveis

pela concepção e execução do projeto de figurino da obra, que deve propor uma leitura

especìfica do perfil psicológico das personagens no contexto sociocultural e espacial-temporal

da narrativa e estar condicionada às demandas práticas de orçamento e cronograma. “Em um

filme com um grande orçamento, figurinos extravagantes são possìveis. Por outro lado, atores

de filmes com orçamento baixo podem precisar trazer itens adequados de seus próprios

guarda-roupas”. (BARNWELL, 2013, p.124)

A decupagem do roteiro é uma das etapas iniciais do processo criativo. A partir deste

procedimento, a equipe de figurino acessa as principais indicações cênicas para a concepção

dos trajes, e após a pesquisa de referências estabelece a diretriz conceitual que irá nortear o

desenho dos croquis, a escolha dos tecidos e demais materiais e a confecção ou compra das

peças. O figurino deve ser composto sob a intenção de movimento do ator, pois, a depender

da dinâmica cênica, a roupa pode interferir nos seus deslocamentos e gestualidades, ou até

mesmo aprisionar os seus movimentos.

A criação do conceito deve se ater à essência do texto e às orientações do projeto de

arte, e se fundamentar em uma intensa pesquisa de referências visuais. Livros, revistas de

moda, fotografias, entre outros itens, articulam uma iconografia fundamental neste processo.

Quanto à contextualização de época, o figurino deve corresponder aos princìpios narrativos

estabelecidos e pode se orientar pelas seguintes linhas de representação: realista, com

exatidão de época; para-realista, referenciada a uma época, mas com estilizações; ou

simbólica, sem qualquer compromisso com épocas.

O segredo da arte de fazer figurinos é a transformação. Ou a reapropriação, um

termo comum no vocabulário do figurino, o que implica retrabalhar os códigos da

moda e os símbolos da indumentária com o único intuito de traduzir para os

telespectadores quem é aquela pessoa do outro lado da tela e o universo em que ela

vive [...] daí o uso de licenças poéticas, tão comuns no trabalho dos figurinistas.

Como nos generosos decotes presentes no figurino de muitas mocinhas fictícias de

séculos passados e que costumam gerar controvérsias entre os estudiosos. Mais do

que uma cópia fiel de documentos históricos, o que importa é comunicar.

(MEMÓRIA GLOBO, 2007, p.15)

Estruturadas as referências, a equipe monta os mood boards e as ideias são sintetizadas

em croquis. As roupas, a depender do perfil da produção, são confeccionadas, compradas ou

alugadas. A próxima etapa será a prova do figurino no corpo do ator para se detectar

necessidades de ajustes e alterações de corte, largura ou comprimentos. Após, são feitos os

testes das peças junto ao cenário e a iluminação, que podem determinar exclusões ou

alterações cromáticas. Finalizada a filmagem, todas as peças serão retiradas do set.

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O figurino da minissérie Capitu se encaixa no tipo de representação que definimos

como para-realista. O conceito visual articulado na obra referencia o contexto social

brasileiro do século XIX, como já dito, mas os trajes traçam uma representação da

indumentária da época alinhada aos procedimentos do artificialismo explícito (COLLAÇO,

2013) proposto pelo diretor Luiz Fernando Carvalho, se caracterizando por uma visualidade

próxima à época retratada, mas livremente adaptada às metáforas visuais propostas na obra.

A criação de figurinos articula uma composição visual de linhas, cores, texturas, volume

e movimento, a partir de uma perspectiva conceitual que sublinha e aprofunda a construção da

personagem. A sua expressividade na obra se dá no arranjo formal com os demais elementos

da materialidade cênica, estabelecendo uma relação de figura-fundo com o cenário e objetos

que pode ser de contraste ou harmonização. A sua relação com a maquiagem é crucial, pois se

define em um diálogo essencial para a elaboração da caracterização das personagens, como

veremos no subitem a seguir.

1.6. Maquiagem

O frame apresentado na figura 05 retrata umas das cenas finais da minissérie Capitu,

selecionada para a análise por evidenciar um arranjo material composto por figurino,

Figura 05. Figurino da minissérie Capitu: veìculo das metáforas visuais da obra.

Fonte: Capitu, 2008. (Frame)

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maquiagem e cabelo, cuja articulação formal promove uma caracterização radical da

personagem Bentinho e conduz a uma estruturação metafórica da encenação. Nesta imagem

observa-se uma potencialização da caracterização, ou visagismo, em sua estreita relação com

o figurino, o que insere complexidade visual na narrativa.

O termo visagismo se origina da palavra francesa visage, que pode ser traduzido como

rosto, e nos procedimentos da direção de arte se refere a uma ampliação conceitual da

maquiagem, que passa a englobar a produção de cabelo, de próteses e máscaras com o intuito

de se alcançar uma caracterização necessária à construção das personagens. Assim como o

espaço cênico e o figurino, o visagismo pode se tornar um dos aspectos estruturantes da

encenação por propor interferências visuais na cena e agregar expressividade à visualidade

construìda na obra. Na televisão o visagismo corresponde à função da supervisão de

caracterização que assim como no cinema é a responsável pela criação da imagem da

personagem e é pensada em conjunto com o figurino.

Os responsáveis pelos cabelos e a maquiagem dos atores são os supervisores de

caracterização, cuja equipe trabalha em íntima parceria com os figurinistas para que

os projetos tenham unidade visual. Os estudos acompanham a mesma linha de

pesquisa que norteia a elaboração e escolha das roupas. Não se pode imaginar um

trabalho dissociado do outro. Livros, revistas, fotos, publicações importadas,

catálogos de moda, muitas são as fontes de referência dos profissionais.

(MEMÓRIA GLOBO, 2007, p.32)

O visagista, ou o supervisor de caracterização, junto com assistentes são os profissionais

responsáveis por compor fisicamente uma personagem a partir da realização de interferências

visuais no rosto, no cabelo e no corpo do ator. A sua atuação compreende a manipulação de

maquiagens, perucas, acessórios de cabelo, máscaras, próteses, lentes de contato, entre outros

materiais, para a concepção, não somente de penteados e maquiagens com fins estéticos, mas

também de transformações mais radicais como envelhecimento, rejuvenescimento, mudanças

nas silhuetas dos atores, além de ferimentos e cicatrizes. A depender da produção, o visagista

pode atuar diretamente com o técnico de efeitos especiais mecânicos, sendo o responsável

pela criação do sangue cenográfico e por sua aplicação no corpo dos atores em cena de tiros,

por exemplo.

O processo criativo do visagista envolve desde o levantamento das necessidades da

maquiagem pela decupagem do roteiro até a realização de pesquisas de referências visuais

para a caracterização de cada personagem, buscando-se um entendimento aprofundado sobre

o seu perfil psicológico e condição sociocultural e econômica no contexto espaço-temporal da

narrativa. Assim como nas demais funções já conceituadas, a definição de época e de

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procedimentos narrativos trará questões cruciais na caracterização das personagens, além das

determinações de orçamento e de cronograma. O visagista juntamente com o diretor de arte, e

com base nas diretrizes conceituais do projeto de arte, deverá optar pelos procedimentos que

melhor convém à proposta cênica da obra. Todos os visuais criados para as personagens

deverão ser aprovados a partir de prova de maquiagem nos atores, seguido por testes do seu

arranjo visual com os figurinos.

Na indústria cinematográfica dos Estados Unidos, a atuação destes profissionais é bem

fomentada e valorizada. A equipe de caracterização é responsável por construir

transformações incrìveis nos atores, tornando-os, por vezes, irreconhecìveis quando

caracterizados como as personagens. Além de contar com materiais e técnicas mais

avançadas, atualmente, com o desenvolvimento da computação gráfica e dos efeitos visuais

da pós-produção, o trabalho destes profissionais se expandiu para a etapa da pós-produção,

momento em que os retoques nas imagens permitem alcançar transformações ainda mais

radicais. Estas experiências ainda são restritas a produções de imensas estruturas e

orçamentos, e cuja construção da visualidade é norteada pela perspectiva projetual do

production design, que abrange desde a etapa da pré-produção até a pós-produção. Na

produção audiovisual brasileira, mais artesanal, ainda estamos em um estágio anterior, embora

seja possìvel se atingir ótimos resultados com a criatividade e o recurso disponìveis.

1.7. Efeitos Especiais

Neste subitem iremos apresentar um breve apontamento acerca de outro elemento que

consideramos relevante na concepção do projeto de direção de arte: os efeitos especiais

mecânicos, que embora não seja compreendido por Aumont (2005) como uma das bases

estruturantes da encenação, ao serem inseridos nos processos técnicos da feitura audiovisual

se configuram como importantes atributos de sentidos visuais.

Os efeitos especiais mecânicos abrangem as técnicas de produção de ações e estruturas

cênicas das filmagens, que podem envolver riscos, como explosões e tiros, ou representações

fantásticas, como a confecção e articulação dos corpos de seres imaginários, além de situações

“extraordinárias”, como uma chuva de sapos, por exemplo. O técnico em efeitos especiais é o

profissional responsável pela função, e a depender da produção, pode atuar junto ao visagista.

Seus processos estão condicionados ao roteiro, à estrutura da encenação e ao conceito visual,

além de se alinhar ao orçamento e ao cronograma.

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Um efeito especial é uma imagem criada por meio de meios técnicos. Há dois tipos

diferentes de efeito especial: os efeitos visuais, que usam processos fotográficos

especiais (criados pela câmera), e os efeitos mecânicos ou ópticos, que são criados

na frente da câmera. [...] Os efeitos especiais têm sido usados nas telas desde os

primórdios do cinema. Os tradicionais incluem fundos pintados, maquetes, planos de

efeito com vidro, planos de efeito com máscara, projeção frontal e retroprojeção.

(BARNWELL, 2013, p.122)

Na produção audiovisual brasileira os processos da direção de arte abrangem somente

os efeitos especiais mecânicos. Os efeitos visuais são da responsabilidade de equipes

especializadas na área atuantes na etapa da pós-produção. Atualmente, com os avanços

tecnológicos da computação gráfica, a criação de efeitos visuais tem sido cada vez mais

aprimorada, com ótimos resultados alcançados no cinema e na televisão. “No Brasil, os

baixos orçamentos das produções dificultam o desenvolvimento nessas áreas, que envolvem

altos custos, além de muito tempo e experimentação. Mesmo assim, formam-se, a cada ano,

equipes especializadas de alto nìvel técnico” (HAMBURGER, 2014, p. 51). As etapas da

produção de efeitos visuais e da finalização da imagem normalmente não seguem as

orientações do diretor de arte, apenas aos direcionamentos do diretor e do diretor de

fotografia, embora promova interferências significativas no âmbito criativo da equipe de arte,

como na paleta de cores22

, por exemplo.

22

O colorista é o profissional responsável pela correção da cor das imagens no perìodo da pós-produção.

Figura 06. Efeitos especiais mecânicos em A Pedra do Reino: cavalos esguicham fogo e fumaça em cena.

Fonte: A Pedra do Reino, 2007. (Foto Still)

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42

1.8. Premissas teóricas da análise visual

Após a sistematização dos conceitos e das práticas que norteiam o universo da direção

de arte no audiovisual brasileiro, neste subitem apresentamos as premissas teóricas que

sustentam uma concepção desta função, não somente como o planejamento técnico de

processos produtivos profissionais, mas como uma das principais instâncias estéticas da

imagem audiovisual. Na feitura cinematográfica e televisiva, a direção de arte se caracteriza

como uma atividade de caráter multidisciplinar que articula um amplo repertório material e

visual do cinema e do teatro, mas também de áreas criativas correlatas, tais como as artes

visuais, a arquitetura, o design, as artes gráficas, a moda e a história da arte; incorporando

nessa articulação noções técnicas como o desenho, a pintura, o artesanato e a costura, além de

parâmetros teóricos e processuais. Trata-se de uma ampla gama de referências e de aplicações

que empregada sob as diretrizes do projeto de arte materializa o universo narrativo de uma

obra audiovisual, contextualizando, dimensionando e “vestindo” espaços e personagens para

compor visualmente os quadros, e, por fim, imprimir significados na imagem.

Com base nisso, e seguindo o propósito deste capìtulo de traçar uma base teórica

pertinente à análise a ser desenvolvida, estruturamos uma abordagem das diretrizes visuais

que regem este amplo campo de pesquisa ainda em construção e dos pontos de contato entre a

direção de arte audiovisual e o universo formal da comunicação visual e das artes visuais (de

onde inclusive se origina a terminologia aplicada à função). É importante enfatizar, porém,

que se trata de uma introdução à referida discussão, pois não temos tempo e nem espaço para

aprofundarmos tais questões, cabendo aqui somente a estruturação concisa de um quadro

teórico relevante a uma projeção conceitual da direção de arte de uma função empìrica do

fazer audiovisual a uma instância estética da imagem.

Inicialmente constatamos, com base no levantamento bibliográfico realizado, que

poucos são os teóricos e os trabalhos acadêmicos no campo do cinema e da televisão que se

propõem a traçar paralelos formais entre o audiovisual e as demais artes visuais, o que

inclusive explica a quase inexistência de pesquisas ou a superficialidade das abordagens que

tocam nestas temáticas ou em temáticas relacionadas, tal como a direção de arte. Diante deste

panorama, consideramos então necessário um levantamento de obras que já trazem um

direcionamento nesta discussão. A essência teórica do presente estudo deriva, assim, das

ideias desenvolvidas por Jacques Aumont acerca das relações formais entre o cinema e a

pintura (2004) e das especificidades das imagens visuais (1993); das orientações didáticas de

Bruce Block (2010) sobre as estruturas expressivas da narrativa visual; no repertório

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conceitual construìdo por Rudolf Arnheim (2004) e por Donis A. Dondis (2007) acerca da

linguagem visual; e ainda na pesquisa desenvolvida por Butruce (2005) acerca do papel da

direção de arte na criação da imagem cinematográfica.

Ao traçar um paralelismo histórico e plástico entre o cinema e a tradição pictórica,

Aumont (2004) define Lumière23

como “o último pintor impressionista”, pois, para o autor, ao

inventar o cinema, mais especificamente o dispositivo cinematográfico, e ressaltar os seus

efeitos de realidade, tal personalidade traz a resolução de um problema pictórico, pois

computa o real de forma impecável, enquanto os pintores mais virtuosos se esmeravam tanto

em termos de tempo quanto de técnica para alcançar este objetivo. Segundo o teórico, a

pintura, especialmente a pintura acadêmica do século XIX, tinha como principais questões de

representação: o impalpável, como a luz atmosférica, por exemplo; o irrepresentável, tal

como as nuvens; e o fugidio “(...) enfim, o infinitamente lábil, e portanto, em profundidade, a

irritante questão do tempo.”24

. O cinematógrafo resolve visualmente estes problemas. Os

efeitos de realidade são alcançados principalmente por conta da natureza técnica do cinema de

registro e reprodução automática da realidade, uma possibilidade inicialmente viabilizada com

a invenção da fotografia, mas ampliada com as imagens cinematográficas, tanto que após a

sua popularização, os pintores vanguardistas, do inicio do século XX, não mais se dedicarão a

pintar realisticamente os elementos e fenômenos da natureza, mas passam a ironizá-los ou

parodiá-los em suas obras, vide as pinturas de Salvador Dalì e Magritte.

É tudo isso que o cinematógrafo vira de cabeça para baixo, que ele ultrapassa

definitivamente com seus efeitos de realidade, inocentes, e inocentemente perfeitos.

A atmosfera continua aì impalpável, e, se se quiser, irrepresentável; mas não deixa

de estar presente no cintilar das folhas (agitadas pelo vento, pelo ar, concluem

infalivelmente os crìticos: é mesmo o vento que eles querem ver). Mas sobretudo, é

claro, o fugidio é enfim fixado, e sem labor. É de acordo com o trabalho pictórico

que se mede o melhor do milagre do cinematógrafo: ele substitui, com efeito, as

centenas de folhas duramente pintadas, uma por uma, em um Théodore Rousseau,

pelo aparecimento imediato de todas as folhas. E além do mais, elas se mexem...

(AUMONT, 2004, p.36)

Além de concretizar os anseios estéticos da pintura, o cinema se alinha ainda à tradição

pictórica nos aspectos formais que tangem a representação visual. Para Aumont, contudo, o

principal objetivo da sua pesquisa não é tratar de uma descendência ou de uma transposição

de formas, mas sim de “estimar o lugar que o cinema ocupa, ao lado da pintura e com ela, em

23

No seu livro, o autor se refere aos pioneiros do cinema apenas como Lumière e não define no texto se é uma

referência a Auguste ou a Louis Lumière, ou a ambos. 24

AUMONT. O olho interminável: cinema e pintura. Cosac e Naify: São Paulo, 2004, p. 35.

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uma história da representação, em uma história, portanto, do visìvel” 25

. E é neste ponto que

inserimos aqui a direção de arte. Como este campo estético atua na construção de

visibilidades? Em quais domìnios os seus elementos - a paleta de cores, a cenografia, o

figurino e a maquiagem - se inserem expressivamente na representação e na estruturação da

imagem audiovisual?

A imagem é definida neste contexto teórico como um objeto visual que carrega em si

uma representação de espaço e tempo a partir das intenções dramáticas de uma narrativa. Este

espaço e tempo são de natureza diegética e o trabalho de representação atua na transformação

destes elementos diegéticos em imagem26

. Para Aumont (1993), a “(...) diegese é uma

construção imaginária, um mundo fictìcio que tem leis próprias mais ou menos parecidas com

as leis do mundo natural, ou pelo menos com a concepção, variável, que dele se tem” 27

.

Consideramos aqui que a visualidade é uma expressão da diegese construìda na obra, e se

alinha a uma determinada opção estética de manipulação dos componentes visuais básicos da

imagem, com vistas à construção de uma plasticidade particular. Esses componentes visuais

básicos seriam: espaço, linha, forma, tonalidade, cor, movimento e ritmo28

, que

essencialmente constituem ou se articulam aos elementos da direção de arte.

Esses componentes visuais são encontrados em todas as imagens que vemos, sejam

elas fixas ou em movimento. Os atores, as locações, os acessórios, os figurinos e os

cenários são formados por esses componentes visuais. Um componente visual

transmite estados de ânimo, emoções, ideias e, mais importante ainda, proporciona

estrutura visual às imagens. (BLOCK, 2010, p.01)

Como instância imagética, a direção de arte sustenta a representação a partir da

concepção de um arranjo de elementos cênicos dotados de linhas, formas, cores e texturas,

cuja interação formal ocupa e define o espaço da encenação, inserindo movimento e ritmo na

narrativa visual e estruturando os quadros audiovisuais, sua atmosfera e expressividade. Esses

quadros criados em parceria conceitual com a direção de fotografia determinam a linguagem e

a estrutura visual da obra que será inscrita na composição da imagem.

Ao desdobrar para a prática da criação cinematográfica o conceito de que sua

estruturação é conformada em dois nìveis, pode-se afirmar que ao primeiro nìvel

corresponderia o trabalho da direção de arte e ao segundo nìvel o trabalho da direção

de fotografia. Estas práticas integram um intrincado processo que configura como a

imagem cinematográfica será vista em sua forma final, ou seja, sua visualidade (...)

(BUTRUCE, 2005, p. 20)

25

Ibid, p. 45. 26

AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas, SP: Papirus, 1993, p. 259. 27

Idem. 28

BLOCK, Bruce. A narrativa visual: criando a estrutura visual para o cinema, TV e mídias digitais;

tradução Cláudia Mello Belhassof. São Paulo: Elsevier, 2010.

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45

Para os fins desta abordagem, iremos considerar um entendimento do nìvel de interação

dos elementos de um projeto de arte no âmbito das três dimensões formais principais da

representação audiovisual: espaço da representação, luz e cor e quadro fílmico. O espaço é

um conceito complexo compreendido como um produto da percepção humana. Trata-se de

uma construção baseada na nossa interação visual com o mundo real e concreto, na qual

espaço e tempo estão entrelaçados, pois a percepção espacial não é contìnua, mas se relaciona

a uma ocupação em volume por um corpo móvel, o que se traduz em profundidade. Assim, o

espaço não é “(...) um percepto, como são o movimento ou a luz, ele não é visto diretamente,

e sim construído, a partir de percepções visuais, como também cinésicas e táteis” 29

.

(...) o espaço é uma “categoria fundamental de nosso entendimento” (Kant), aplicada

à nossa experiência do mundo real. Do ponto de vista perceptivo, o espaço refere-se

sobretudo à percepção visual e à percepção “háptica” (percepção ligada ao tato e aos

movimentos do corpo); dessas duas percepções, é aliás a segunda que nos dá o

essencial de nosso “sentido do espaço”, e a vista aprecia sempre o espaço em virtude

de sua ocupação por um corpo humano móvel. (AUMONT, 1993, p.220-1)

Ocupado por objetos, o espaço se transforma então em um lugar, dotado de uma

linguagem especìfica. No contexto de uma produção audiovisual, as equipes de cenografia e

da produção de objetos são as responsáveis pela concepção do desenho e da materialidade do

espaço da encenação, construindo uma representação especìfica do universo delineado pela

narrativa e pelas indicações do roteiro. Assim, as suas ações práticas corroboram diretamente

a construção do espaço diegético da obra. „Se a cena é, em primeiro lugar, uma construção,

uma “skêné”, a cenografia é, antes de tudo, a arte de desenhar em perspectiva essas

construções, e geralmente, todos os lugares habitáveis‟ 30

.

O campo é o recorte do espaço imaginário em três dimensões que é delimitado pela tela

ou quadro. “O quadro é, antes de tudo, limite de um campo (...). O quadro centraliza a

representação, focaliza-a sobre um bloco de espaço-tempo onde se concentra o imaginário, ele

é a reserva desse imaginário (...) ele é o reino da ficção (...)” 31

. A imagem cinematográfica e

televisiva é definida, assim, por uma realidade espacial dupla, já que envolve a percepção de

um espaço tridimensional interno ao espaço bidimensional do quadro. Ainda que consciente

da ilusão de tridimensionalidade criada, o espectador aceita a imagem audiovisual como real.

Dupla realidade, já que o olho percebe ao mesmo tempo o espaço plano da

superfìcie da tela e a visão parcial sobre um fragmento de espaço “em

profundidade”, produzido, entre outras coisas, pelo emprego da perspectiva. Dupla

29

AUMONT, 2004, p. 142. 30

Ibid, p. 159. 31

Ibid, p. 36.

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realidade, já que ambos os espaços são realmente percebidos, e, até certo ponto,

percebidos como reais. (AUMONT, 2004, p.144)

Para Aumont (1993), “A representação do espaço nas imagens planas (pintura, foto,

filme) só pode reproduzir alguns (...) traços da visão do espaço, em particular, (...) os relativos

à profundidade”. A perspectiva, técnica de projeção oriunda da pintura, é uma forma

simbólica da experiência espacial humana e é empregada na concepção das imagens no intuito

de se criar a ilusão de profundidade. Mas, ainda segundo o autor, nem a profundidade e nem a

perspectiva são o espaço “(...) Primeiro porque este se dirige de modo coordenado a nossas

sensações visuais e táteis; depois porque, mesmo no interior do visìvel, a expressão icônica do

espaço mobiliza muitos outros fatores além da perspectiva (em particular todos os efeitos de

luz e de cores)” 32

.

Para Arnheim (2004), a luz cria o espaço, pois “Todos os gradientes têm a capacidade

de criar profundidade e os gradientes de claridade se encontram entre os mais eficientes. Isto é

válido para os conjuntos espaciais, tais como interiores e paisagens, mas também para objetos

isolados” 33

. A luz é a responsável por definir a composição tonal da imagem, ou seja, o brilho

dos seus elementos estruturantes, delineando, expondo formas e contornos, aplainando ou

ressaltando volumes e texturas, e, sobretudo, definindo a atmosfera geral. Manipulada pela

produção, através dos recursos técnicos e artifìcios da iluminação, a depender do seu desenho

esta interfere tanto visualmente na concepção do espaço da representação, quanto pode definir

significados e sentidos na narrativa visual da obra.

(...) este espaço estruturado primeiramente pela direção de arte, ou seja, o espaço

cenográfico, sofre a ação de um elemento durante seu registro que atua de maneira

significativa nesta operação: a luz. A luz que incide sobre este espaço e seus objetos

constituintes determinará uma relação de consonância com a direção de arte ou não.

A direção de arte visa uma intenção plástica, de certa forma inerente dado seus

elementos de trabalho, essencialmente visuais, que pode ser desestruturada ou não

de acordo a uma determinada atuação da iluminação. (BUTRUCE, 2005, p.32)

Para Aumont (2004), a luz pode apresentar três funções na representação: a função

simbólica, que relaciona a concepção de luz da imagem a um sentido subjetivo; a função

dramática, ligada a uma estruturação formal do espaço como cênico; e a função atmosférica

“(...) que não passa, talvez, de um longìnquo bastardo da função simbólica, lá onde esta se

32

AUMONT, 1993, p.228. 33

ARNHEIM, Rudolf. Arte & percepção visual. Uma Psicologia da Visão Criadora. Tradução de Ivonne

Terezinha de Faria. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2004.

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torna fraca demais, já não responde a uma codificação forte, facilmente compreensìvel”34

.

Essas três funções podem, contudo, coexistir na estruturação de um mesmo quadro.

Segundo Block (2010), nos processos produtivos a tonalidade pode ser controlada por

três maneiras: pelo controle da reflexão dos valores tonais reais dos objetos, aspecto que

compreende o campo da direção de arte; pelo controle de incidência pela iluminação; e pela

exposição, através dos ajustes de câmera e lente. No caso especìfico do controle tonal ser de

total responsabilidade da direção de arte durante todo o perìodo da produção, a iluminação

deve ser plana, evitando-se sombras. “Deve haver a mesma quantidade de luz em toda parte,

porque a escala de cinza será controlada pelo valor real de brilho dos objetos e não pela

iluminação” 35

. A estruturação da composição tonal de uma imagem está relacionada,

portanto, às escolhas da paleta de cores.

Se uma produção requer um visual escuro, pinte sua cena com tons escuros, vista

roupas de cores escuras, use apenas objetos de cores escuras e remova todos os

objetos claros da tomada. A escuridão das imagens será determinada pela escuridão

dos objetos existentes na tomada. A produção será escura, porque tudo que será

filmado é escuro. Um ator não pode usar uma camisa branca; ela deve ser cinza ou

preta. Em contraposição, para criar um visual claro, remova todos os objetos escuros

e substitua-os por objetos claros. Para dar a uma produção um visual contrastante,

use apenas objetos muito escuros e muito claros nas tomadas. (BLOCK, 2010,

p.129)

A luz e a cor praticamente definem a visualidade de uma obra audiovisual.

“Estritamente falando, toda a aparência visual deve sua existência à claridade e cor. Os limites

que determinam a configuração dos objetos provêm da capacidade dos olhos em distinguir

entre áreas de diferentes claridade e cor”36

. As cores interagem diretamente com a luz

construìda para o espaço cênico e seus valores de matiz, brilho e saturação corroboram a

estruturação espacial através da criação de nuances, contrastes e afinidades formais e

texturais. Assim, a luz e a cor são elementos de grande relevância na estruturação do espaço

da representação, embora haja outros aspectos que definam diferenças perceptivas e

compositivas, determinando diferentes formatos e sentidos.

É preciso considerar ainda a coexistência de três tipos de espaços em uma obra

audiovisual acabada: o espaço arquitetônico, aquele oriundo do mundo natural ou construìdo

artificialmente para a obra e que será posteriormente recortado pela câmera e pela montagem,

e que remete ao trabalho da cenografia; o espaço pictórico, proveniente do registro

34

AUMONT, 2004, p. 175 35

BLOCK, 2010, p. 129. 36

ARNHEIM, 2004, p.323.

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fotográfico, um elemento estruturante do quadro ou frame; e o espaço fílmico, um espaço

virtual e ilusório construìdo a partir da estruturação da encenação e da montagem, sendo o

espaço construìdo após a filmagem. A abordagem visual que propomos, será realizada a partir

de uma análise das estruturas materiais dos espaços arquitetônicos da obra (considerando

ainda informações referentes aos processos produtivos), tendo como base os recortes

estabelecidos no seu espaço pictórico, ou seja, a composição dos frames.

Em sua abordagem, Block (2010) considera que o espaço (pictórico) em uma produção

audiovisual pode apresentar quatro subcomponentes: o espaço profundo, o espaço plano, o

espaço limitado e o espaço ambìguo. O profundo se define pela ilusão da tridimensionalidade

na tela bidimensional, sendo que uma das principais informações de profundidade é a

perspectiva com a ênfase em planos longitudinais, na diferença do tamanho dos objetos, nas

separações tonais, cromáticas e texturais, nos movimentos dos objetos, de câmera dolly in/out,

travelling à esquerda/direita e grua para cima/para baixo e no foco, entre outros aspectos. O

espaço plano traz informações contrárias ao espaço profundo, pois “enfatiza a qualidade

bidimensional da superfìcie da tela” e se pauta no emprego dos planos frontais, na constância

do tamanho dos objetos e em movimentos de câmera panorâmica, tilt e zoom.

O espaço limitado combina as caracterìsticas dos dois tipos de espaços anteriores,

evitando duas informações de profundidade: planos longitudinais e movimento do objeto

perpendicular ao plano da imagem. Já o espaço ambìguo se baseia em uma desestruturação

visual do espaço, que “ocorre quando o espectador é incapaz de entender o verdadeiro

tamanho ou a relação espacial entre os objetos que estão na imagem”. Para o referido autor, é

interessante considerar ainda o espaço na sua relação com a tela ou o quadro, tais como a

relação de aspecto (relação de tamanho da largura e altura do quadro), as divisões de

superfìcie da tela e a tensão entre espaço fechado (campo) e espaço aberto (fora do campo),

fatores que interferem diretamente na estruturação visual de uma obra.

A função da direção de arte é a responsável por compor a matéria visual do espaço da

representação, e se transforma em instância imagética na medida em que as suas escolhas são

a essência estrutural da composição do quadro. A direção de fotografia faz o registro desta

estrutura formal criada, e ainda que interfira em alguns pontos durante a filmagem, a

linguagem visual criada pelo projeto de arte será a essência da visualidade da obra por ser

sublinhada pela relação da encenação com a paleta de cores, a cenografia, o figurino e a

maquiagem, estando todos estes elementos intrinsecamente ligados à narrativa, mas

construindo cada um deles suas narrativas particulares.

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49

*

Neste primeiro capìtulo, apresentamos uma sistematização dos conceitos e das práticas

que norteiam os processos criativos da direção de arte, além de uma abordagem teórica das

premissas que regem este campo de pesquisa, com o intuito de construir um repertório

conceitual imprescindìvel à análise da visualidade do objeto de estudo desta pesquisa. O

nosso objetivo especìfico foi discorrer sobre papel do projeto de arte na estruturação da

encenação e da imagem audiovisual, considerando a proposição estética de obras de

teledramaturgia dirigidas Luiz Fernando Carvalho.

No próximo capìtulo, partiremos para a contextualização midiática desta pesquisa no

universo da televisão brasileira, mais especificamente no da Rede Globo de Televisão,

estabelecendo uma relação do meio com os processos da direção de arte e buscando entender

como esta conjuntura se expressa no estilo do referido diretor.

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50

2. O “lugar” da direção de arte na direção autoral de Luiz Fernando Carvalho

Neste capìtulo, apresentamos uma abordagem do papel e da relevância conceitual dos

processos da direção da arte nos projetos audiovisuais do diretor Luiz Fernando Carvalho,

buscando uma compreensão do perfil do diálogo estabelecido entre o realizador, o diretor de

arte e os demais integrantes da equipe de arte na concepção da visualidade das suas obras

televisivas, e um entendimento das circunstâncias da inserção dos seus processos autorais no

contexto industrial da teledramaturgia da Rede Globo de Televisão.

É importante pontuarmos que a construção de visualidades no âmbito das narrativas

televisivas demanda uma concepção produtiva especìfica, que diverge relativamente da

produção cinematográfica, não somente pela natureza da imagem televisual, mas, sobretudo,

no que se refere à estruturação da encenação. Na televisão, de uma forma geral, os elementos

que estruturam a encenação - a cenografia, o figurino e a maquiagem – podem adquirir

contornos diferenciados, tanto devido ao caráter da representação cênica quanto ao ritmo de

produção próprios do meio.

A direção de arte no contexto televisivo, além de ser concebida a partir de uma

perspectiva industrial da função, organizada funcionalmente por departamentos e acervos

exclusivos e pela composição de um quadro fixo de funcionários da arte, se fundamenta ainda

em processos técnicos especìficos ao meio, indissociáveis das particularidades da linguagem

televisiva; o que se aplica às práticas da construção dos espaços cênicos no contexto das

cidades cenográficas e dos estúdios televisivos ou a uma maquiagem adaptada à imagem de

alta definição, com ressalvas principalmente ao uso da cor, essencial na concepção visual das

narrativas e que deve ser planejado especificamente para a composição da imagem televisual.

Convém considerar, ainda, o fato de que esses produtos audiovisuais devem ser

concebidos visualmente de forma a atingir a uma audiência considerada “dispersa”, na medida

em que o público televisivo normalmente não se concentra apenas em assistir à programação

da TV, mas realiza outras atividades em paralelo, como rodas de conversa em famìlia,

atividades domésticas ou ações interativas com outros meios de comunicação, como a

internet, o que demanda estratégias de linguagem diferenciadas das do cinema, por exemplo,

cuja fruição envolve todo um ritual de concentração e imersão nas imagens.

Demonstrou ser coerente, portanto, para o prosseguimento desta pesquisa, discorrermos

sobre as particularidades da mìdia televisiva, mas focando principalmente nos aspectos que

tangem à especificidade do repertório técnico e conceitual que define os processos inscritos

nos domìnios da direção de arte no meio, considerando a sua projeção no percurso histórico e

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social do desenvolvimento da teledramaturgia da Rede Globo.

Atualmente, a televisão ainda é o principal veìculo de informação e de entretenimento

para a maior parte da população brasileira, e a sua importância social se reflete não somente

na sua influência sobre os gostos, opiniões e hábitos de consumo populares, mas

principalmente no intercâmbio simbólico estabelecido entre a programação televisiva e a

sociedade: “A televisão na sociedade e a sociedade na televisão não existem como meros

reflexos de um no outro, mas como balizas dinâmicas, intercambiáveis, negociáveis e em

disputas. É uma dialética que não se pode perder” (RIBEIRO; SACRAMENTO; ROXO,

2010, p.08). E, nesse sentido, os produtos de teledramaturgia da Rede Globo, cuja construção

de significados é pautada nesta mediação entre produtores e receptores, são os que mais se

destacam qualitativamente no cenário televisual brasileiro. Considerando que o nìvel

alcançado nestas produções resulta de um longo processo histórico que remonta às origens

teatrais, radiofônicas e cinematográficas da dramaturgia televisiva, entendemos que a

compreensão deste recorte da história da televisão no Brasil é essencial para a realização de

uma análise sobre as produções televisivas contemporâneas.

Hoje onipresente, a televisão era uma incógnita quando sua primeira transmissão foi

ao ar, em setembro de 1950. Ao longo de sua existência, foi se firmando como a

mìdia de maior impacto na sociedade brasileira. Ela é a principal opção de

entretenimento e de informação da grande maioria da população do paìs. Para

muitos, é o único. Suas imagens pontuam – mobilizam em muitas formas – a vida e

as ações de milhares de pessoas. A televisão faz parte, enfim, da vida nacional. Ela

está presente na estruturação da polìtica, da economia e da cultura brasileiras.

(RIBEIRO; SACRAMENTO; ROXO, 2010, p. 07)

A primeira transmissão televisiva em território brasileiro ocorreu em 18 de setembro de

1950, e marcou a inauguração da TV Tupi de São Paulo, emissora que integrou o primeiro

oligopólio da informação do Brasil, os Diários Associados, de propriedade do jornalista e

empresário Assis Chateaubriand. Inicialmente com um quadro técnico formado

majoritariamente por profissionais oriundos do rádio, a televisão se configurou como um

formato hìbrido entre este meio e o cinema, pois, devido à sua natureza audiovisual, buscou

referências nas imagens cinematográficas, mas em essência se caracterizou como uma

sucessão midiática do rádio com contornos cênicos dos espetáculos teatrais e circenses,

mantendo como traços principais a ênfase na linguagem verbal, o investimento nas narrativas

novelescas e a determinação dos núcleos familiares brasileiros como principal público-alvo.

No inìcio das transmissões, os programas televisivos já tinham no patrocìnio

publicitário o seu principal suporte financeiro, e as imagens, em preto-e-branco, eram exibidas

ao vivo, com uma programação sempre veiculada à noite e com intervalos longos entre os

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programas. Com o aumento nas vendas de receptores e a ampliação da grade de programação,

a televisão se molda cada vez mais à rotina doméstica, e assim como o rádio, o televisor

conquista um espaço cativo nos lares brasileiros.

Em São Paulo, nos dias que se seguiram ao da inauguração, paulatinamente é

colocada no ar a programação da emissora: musicais, teleteatros, programas de

entrevistas e um pequeno noticiário, “Imagens do Dia”. As transmissões ocorriam

entre as cinco da tarde e às dez da noite, com grandes intervalos entre os programas,

para que pudessem ser preparados para ir ao ar, sempre ao vivo. Ainda em novembro

de 1950 é autorizada a concessão da TV Record de São Paulo e da TV Jornal do

Comércio de Recife. (RIBEIRO; SACRAMENTO; ROXO, 2010, p. 20)

Na primeira década de história da televisão, embora a TV Tupi de São Paulo já

houvesse, em 1951, produzido e exibido a primeira telenovela brasileira Sua Vida me

pertence, dirigida por Walter Foster, o principal sucesso da grade de programação televisiva

eram os teleteatros, um formato dramatúrgico veiculado principalmente pela TV de

Vanguarda, programa da TV Tupi, que se caracterizava como peças teatrais adaptadas de

clássicos do cinema, do teatro e da literatura, filmadas e exibidas na ìntegra para o público.

Realizados por profissionais, atores e cantores do rádio e do teatro, os teleteatros marcam um

perìodo de intensa experimentação da linguagem televisual, e de uma conjuntura cênica

pautada na improvisação e em processos televisivos ainda em construção, já que a

especificidade do meio era praticamente desconhecida pela maior parte dos realizadores.

[...] não há dúvidas de que o teleteatro, nas duas primeiras décadas de instalação da

TV brasileira, foi o desbravador do desconhecido terreno da linguagem televisiva.

Os pioneiros traziam técnicas oriundas do rádio e do cinema para aplicá-las à TV.

Foi um lento aprendizado atrás das câmeras, no qual mergulharam profissionais

oriundos de várias áreas da comunicação. Atuavam como bandeirantes que

experimentaram diversas linguagens estéticas até descobrirem como fazer televisão

[...] O teleteatro, de certa forma, carregou consigo uma tendência que ainda persiste

na nossa televisão, qual seja, a de fazer a simbiose entre as obras-primas da literatura

ou do teatro à comoção de maiores e heterogêneas plateias. (RIBEIRO;

SACRAMENTO; ROXO, 2010, p. 38)

A década de 1960 é marcada por uma renovação da estrutura televisiva nacional. Os

“profissionais da televisão” começam a dominar os processos e práticas televisivas e os

teleteatros vão sendo gradativamente substituìdos por programas criados especificamente para

a nova mìdia: “produções cuja viabilidade estava ligada de forma indissociável a esse novo

veìculo”37

. Antigas práticas são abandonadas, enquanto outras vão sendo criadas e adaptadas

às particularidades da linguagem televisiva. As telenovelas ganham espaço na programação e

37

RIBEIRO; SACRAMENTO; ROXO, 2010, p. 60

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se tornam diárias, e mais populares. Com a chegada do videoteipe, os programas passam a ser

gravados; o que permite um maior planejamento das filmagens e diminui a margem de

imprevistos. A TV começa a se popularizar e as pesquisas conseguem traçar o perfil do seu

público-alvo, tornando possìvel medir o ìndice de audiência da sua programação. A televisão

se consolida, nesta década, como um veìculo de comunicação de massa.

A TV Excelsior de São Paulo, fundada em 1960, é, neste ponto, a pioneira entre as

outras emissoras em transformar o modo de se fazer televisão no paìs, quando, a partir de uma

visão empresarial inovadora, cria um slogan e logotipo institucional, reestrutura a sua grade

de programação, estabelecendo dias e horários fixos dos programas, e exibe a primeira novela

diária da televisão brasileira. Além disso, oferece melhores salários para os atores e equipe

técnica e implanta os departamentos especializados em cenografia e figurino. A criação destes

departamentos é a primeira iniciativa até então de profissionalizar a área de direção de arte no

meio televisivo brasileiro. Antes, as produções televisivas, marcadas pelo improviso,

buscavam nas práticas do teatro as suas principais referências para a construção dos cenários e

para o desenho de figurinos, concepções nem sempre adequadas ao novo meio. A partir da TV

Excelsior, todos os processos passam a ser pensados exclusivamente para a linguagem

televisiva e os profissionais passam a se especializar na área. “Finalmente, a TV Excelsior

implantou na televisão brasileira uma mentalidade profissional que pressupunha o

rompimento com o tipo de produção artesanal”38

.

Ao mesmo tempo, o rompimento com as antigas formas de produção trouxe renovações

de linguagem para a teledramaturgia. A telenovela Beto Rockfeller (1968), escrita por

Cassiano Gabus Mendes e exibida pela TV Tupi, representou, neste sentido, uma ruptura na

linguagem televisiva da época, por investir no realismo e em diálogos coloquiais, e em uma

narrativa próxima ao cotidiano do público, em um contexto em que os padrões tradicionais da

dramaturgia eram definidos por enredos artificiais e fantásticos. O sucesso da produção levou

a que as outras emissoras seguissem na mesma direção.

A ideia de que a dramaturgia de televisão havia chegado ao ridìculo, nos anos 1960,

só faz sentido se levarmos em conta que a referência utilizada para pensa-la era o

teatro consagrado. Esse é o momento, então, que a ficção – aquela feita pelos

profissionais vindos do rádio – começa a, deliberadamente, se distanciar do teatro,

em especial aquele consagrado, e a se aproximar do “povo” e da “realidade”.

(RIBEIRO; SACRAMENTO; ROXO, 2010, p. 70)

38

Ibid, p. 54

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Em 26 de abril de 1965, é inaugurada a TV Globo. Inicialmente marcada por uma

programação popularesca de programas de auditórios e pelo investimento nos tradicionais

teleteatros, a partir da década de 1970, a emissora promove uma renovação estética na

linguagem televisiva, quando, sob a perspectiva do chamado “padrão globo de qualidade”,

cria uma reestruturação inovadora na sua grade de programação, segue e constrói tendências

de sucesso na teledramaturgia e investe seriamente em tecnologia apropriada ao meio

televisivo39

; o que possibilita que hoje, ao completar cinquenta anos de existência, a emissora

sustente uma imensa estrutura organizacional. Atualmente, a teledramaturgia da Rede Globo é

reconhecida e premiada internacionalmente pela qualidade técnica das suas produções, e a

telenovela, o seu principal produto, é o programa responsável pela maior parte da audiência

da emissora. Trata-se de uma indústria mantida por um ritmo acelerado de produção e por

toda uma estrutura de apoio ao seu quadro de profissionais, inclusive no que concerne aos

processos da direção de arte, nosso interesse neste estudo.

Nos subitens a seguir, iremos aprofundar as questões apontadas nesta breve introdução,

com a preocupação de traçar, como já dito, o percurso histórico da teledramaturgia da Rede

Globo, mas focando essencialmente no desenvolvimento dos conceitos e processos da direção

de arte neste contexto institucional, apontando, inclusive, as nomenclaturas e estruturas

próprias da função no meio televisivo. Com base nesta sistematização, pretendemos ainda

delinear a trajetória profissional do diretor Luiz Fernando Carvalho na teledramaturgia da

Rede Globo, para que, a partir deste panorama, possamos entender a sua inserção no âmbito

da indústria televisiva e definir o “lugar” da direção de arte nas suas obras.

2.1. A direção de arte na teledramaturgia da Rede Globo

Inaugurada na década de 1960, a Rede Globo investiu nos seus primeiros anos de

transmissão em um modelo de produção tradicional e na reprodução de fórmulas televisuais

consagradas à audiência popular – e ao mercado de consumo que esta representava -, tais

como programas de auditório, de variedades e jornalìsticos pautados no sensacionalismo e na

39

„A televisão brasileira, e principalmente a do Rio de Janeiro, se consolida com base na ideia de que o “fazer

televisão” é fazer programas “ajustados à rotina de horários de trabalho e de lazer de uma casa”. Daì que o

“público” por excelência da televisão é a “famìlia”. Esse é um detalhe da maior importância. Quando a TV

Globo, nos anos 1970, se consolida como a maior emissora no Brasil, graças ao projeto de integração

nacional promovido pelo regime militar, ela estende a ideia de que a televisão é um “produto familiar” em

nìvel nacional‟. (RIBEIRO; SACRAMENTO; ROXO, 2010, p. 64).

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exploração do chamado “mundo cão”, e nas cada vez mais populares telenovelas e seriados;

dando inicio à sua produção de teledramaturgia já em 1965, quando veiculara os seus

primeiros produtos: o seriado Rua da Matriz, dirigido por Otávio da Graça Mello e inspirado

na novela inglesa Coronation Street (1960); e a novela Ilusões Perdidas, com texto de Enia

Petri e direção de Lìbero Miguel e Sérgio Brito.

Quando surgiu, a emissora seguiu um modelo mais tradicional de produção.

Procurou se identificar de forma mais direta com o público popular que, naquele

momento, já tinha condições de dispor de aparelhos de televisão. Com essa

proposta, investiu numa dramaturgia tradicional e contratou diversos “animadores de

auditório” – como eram conhecidos os apresentadores dos programas de variedades.

(RIBEIRO; SACRAMENTO; ROXO, 2010, p. 110)

Entre as produções desta fase inicial predominou o gênero conhecido como “capa e

espada”: tramas de forte apelo melodramático adaptadas de clássicos da literatura universal

por Glória Magadan, a então diretora de dramaturgia da emissora. Essas obras apresentavam

narrativas fantásticas e fantasiosas, contextualizadas em espaços e épocas distantes da

realidade dos telespectadores brasileiros, e que, embora ainda fossem veiculadas em preto-e-

branco, se caracterizavam por uma visualidade luxuosa e extravagante, expressiva nos

aspectos formais dos desenhos do figurino, da cenografia e da maquiagem. Entre as principais

produções do perìodo, podemos citar as novelas Eu compro esta mulher (1966), O Sheik de

Agadir (1967) e A Última Valsa (1969).

Figura 07. O Sheik de Agadir

Fonte: Memória Globo

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Adaptações de clássicos da literatura universal e tramas fantasiosas ambientadas em

terras distantes davam o tom visual das histórias. Como as tramas não tinham uma

época definida e outras eram marcadamente fantásticas, não havia o compromisso de

reproduzir fielmente um perìodo histórico, embora houvesse uma tentativa de seguir

a linha e o corte da roupa de época, usando códigos visuais de identificação,

subordinados aos recursos e improvisos já comuns nessa fase. Muitas anáguas e

babados compunham os vestidos das atrizes, alguns repletos de detalhes aplicados

aos tecidos, como bordados, fitas, laços, rendas e outros adereços. “Era uma fase

rica visualmente, de muitos panos, brilho e luxo”, conta a atriz Yoná Magalhães.

[...]. (MEMÓRIA GLOBO, 2007, p. 41)

As produções “capa e espada” exigiram da emissora um considerável investimento nos

recursos e processos da direção de arte. Segundo Cardoso (2009, p. 42), “a dramaturgia da

época – que fazia muito uso de referências de ambientes externos de outros paìses – levou a

TV Globo a iniciar a produção de cenários mais complexos”. Neste perìodo a Rede Globo

ainda não havia estruturado departamentos especìficos para a área e o seu quadro de

funcionários era composto principalmente por profissionais oriundos do rádio e do teatro, que

ainda se adaptavam aos procedimentos e às potencialidades da linguagem televisiva, e que,

por vezes, acumulavam as funções de cenógrafos e figurinistas. “[...] o figurinista ainda era

um profissional em formação. Não era raro um único profissional assinar o guarda-roupa e os

cenários de um programa. A área de figurino, aliás, era vinculada à cenografia”40

.

A partir desse momento, a emissora passou a investir a cada ano na produção de uma

dramaturgia televisiva, concentrando, consequentemente, grande parte dos esforços

na pesquisa dos elementos cenográficos. O gênero passou a ser, na TV Globo, o

grande laboratório de experiências cenográficas (CARDOSO, 2009, p. 41).

A falta de estrutura adequada e o ritmo frenético da indústria televisiva impuseram aos

profissionais de figurino e cenografia a aprendizagem e o domìnio do “como fazer televisão”

a partir da prática e da experimentação diária, dos improvisos e da criação de soluções visuais

rápidas. Na novela O Homem Proibido (1968), por exemplo, sob a direção de Daniel Filho e a

supervisão de cenografia de Mário Monteiro, os cenógrafos Leila Moreira e May Martins

montaram no próprio terraço do prédio da emissora o cenário das cenas ambientadas nas ruas

da Índia, contexto espacial da trama. Já para a novela A Cabana do Pai Tomás (1969), as

necessidades da encenação e a complexidade dos cenários, exigiram que TV Globo

construìsse dois estúdios especialmente para a produção.

40

MEMÓRIA GLOBO. Entre tramas, rendas e fuxicos: o figurino na teledramaturgia da TV Globo. São

Paulo: Globo, 2007.

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Na área de figurino, Arlindo Rodrigues foi o principal responsável por vestir as mais

importantes estrelas da época, como Glória Menezes, Leila Diniz e Yoná Magalhães. “Arlindo

é quem ditava o estilo das roupas, maquiagens e penteados dos atores da teledramaturgia da

TV Globo em seus primórdios [...] assinou os figurinos – e muitas vezes os cenários – da

maioria das novelas produzidas na emissora nessa época”41

. Neste perìodo inicial os

profissionais ainda não contavam com instalações e estruturas de guarda-roupas e de acervo

adequadas, mas “[...] cerca de 90% dos figurinos eram confeccionados na própria emissora, e

raramente as roupas eram alugadas ou compradas. Excepcionalmente, faziam-se encomendas

a algum ateliê de costura”42

.

O acervo de roupas, calçados e acessórios, da forma organizada como é mantido

hoje, não existia nessa época. Nos primeiros anos, os figurinistas tinham de se virar

com um guarda-roupa geral, localizado a um corredor próximo a um dos estúdios,

com três andares de roupas penduradas e uma escada móvel para facilitar a procura

de peças. No final dos anos 1960, passaram a contar com um anexo ao prédio da

emissora, no Jardim Botânico (zona sul do Rio), que juntava a sala de costura no

térreo, e um guarda-roupa no andar superior. Por falta de local adequado para

guardar os figurinos, muitas vezes as roupas eram doadas. Sörensen jura que havia

dias em que a Rocinha, a maior favela do Rio, estava “vestida de novela”.

(MEMÓRIA GLOBO, 2007, p. 47-8)

Na área de caracterização, o principal nome era o do maquiador Eric Rzepecki, um

polonês que imigrou para o Brasil na década de 1940 e trabalhou nos estúdios

cinematográficos da Cinédia, Atlântida, Vera Cruz e Herbert Richers, e em outras emissoras

de televisão, antes de ser contratado para a TV Globo, onde atuou das décadas de 1960 a

1980. “Sua estreia na emissora foi em 1967, apenas dois anos depois de sua inauguração, com

a novela Sangue e Areia adaptação de Janete Clair do romance homônimo de Blasco Ibañez.

Na produção, com o uso de pesada maquiagem, fez com que a atriz Arlete Salles, então com

22 anos, parecesse uma mulher de 45”43

.

Em 1969, com a estreia da novela Véu de Noiva, de Janete Clair, e Verão Vermelho, de

Dias Gomes, uma nova proposta narrativa, de abordagem realista, deu inìcio a uma

reestruturação estética das produções de dramaturgia da TV Globo. Seguindo a tendência

iniciada com a novela Beto Rockefeller, da TV Tupi, a emissora demite Glória Magadan e

passa a investir em produções que retratam a realidade contemporânea brasileira, traçando

assim as bases para a consolidação do paradigma realista/naturalista da teledramaturgia

televisiva. Para Cardoso (2009, p. 43), Beto Rockefeller “[...] tornou-se um marco na televisão

41

MEMÓRIA GLOBO, 2007, p. 40 42

Ibid, p. 42 43

Disponìvel em: http://memoriaglobo.globo.com/perfis/talentos/eric-rzepecki/trajetoria.htm. Acesso em: 21.

Out. 2014.

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por utilizar, como pano de fundo para a trama, referência do cotidiano das pessoas e

ambientações cenográficas naturais. A telenovela começou a ter, então, uma linguagem

própria”. As equipes de arte da emissora necessitaram acompanhar o novo conceito.

Seguindo essas novas diretrizes, a figurinista Marìlia Carneiro, que chegou à Rede

Globo em 1973, cria um conceito de figurino inovador. As roupas das personagens, além de

serem confeccionadas na emissora, passam também a ser acessadas no mercado da moda, o

que contribui para uma projeção ainda maior de realismo na teledramaturgia. „Calcados na

realidade, nos anos 1970 os figurinistas foram aprendendo a trabalhar com o que se costuma

chamar de “vivência”, tentando aproximar os figurinos do cotidiano vivido fora da tela. A

estética urbana e naturalista tomou conta de novelas e seriados‟44

.

A figurinista achava que se perdia muito tempo com a confecção de roupas e teve

carta branca para fazer um garimpo pelo mercado da moda. [...] “Tive oportunidade

de fazer o link da moda com o figurino, porque eu vinha desse universo, e as pessoas

que estavam na emissora tinha outra formação. Era tudo mais enfeitado, talvez

porque eles lidassem mais com a época do que com o cotidiano”, afirma Marìlia,

que lançou na TV Globo uma nova função: a de caçadora de tendências. Na época, a

novidade provocou resistência, mas acabou sendo adotada na produção de histórias

contemporâneas. (MEMÓRIA GLOBO, 2007, p. 54)

44

MEMÓRIA GLOBO, 2007, p. 54

Figura 8. Véu de Noiva, de Janete Clair.

Fonte: Memória Globo

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O figurinista Carlos Gil e o diretor de arte e artista plástico Carlos Haraldo Sörensen,

profissionais considerados fundamentais na criação dos figurinos da TV Globo, chegaram à

emissora no inicio destas mudanças, que implicaram também na valorização de uma maior

simplicidade na caracterização das personagens. “Com um colete de couro, compus o João

Coragem” 45

, relata Sörensen se referindo ao figurino da novela Irmãos Coragem, escrita por

Janete Clair e dirigida por Daniel Filho e exibida em 1970.

Essa produção se destaca também por apresentar a primeira cidade cenográfica da

Rede Globo46

, construìda numa área de 5.000 m² 47

na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio.

Era o inìcio da implantação deste tipo de projeto cenográfico nas suas produções. Apesar dos

problemas técnicos iniciais, após a experiência, os cenógrafos e cenotécnicos tornaram-se

mais instrumentados na concepção e execução dos projetos, e outras cidades cenográficas

foram construìdas para produções posteriores, configurando-se atualmente como uma forte

tradição da teledramaturgia da emissora.

Para Daniel Filho (2001: 255-260) os cenógrafos, nesse momento, ainda não

dominavam completamente as técnicas necessárias para construções desse porte.

Como resultado disso, a cidade desabava semanalmente, e os acabamentos não eram

feitos de forma adequada, gerando uma série de problemas na captação de imagem e

som. (CARDOSO, 2009, p. 44)

A proposta de reestruturação da teledramaturgia foi ainda mais intensificada quando

todos os esforços da Rede Globo estiveram voltados para a consolidação do chamado “padrão

globo de qualidade”, uma perspectiva que trouxe mudanças significativas na programação e

grandes investimentos em tecnologia e na profissionalização dos funcionários. Essas

mudanças institucionais foram iniciadas já em 1966, um ano após a inauguração da emissora,

quando Roberto Marinho nomeou Walter Clark como o diretor-geral da TV Globo e Joe

Wallach como responsável pelas finanças, e juntos esses executivos implantaram uma

administração de foco estritamente empresarial. Em 1967, Clark contrata José Bonifácio de

Oliveira Sobrinho, o Boni, para o cargo de diretor da área de programação/produção, e a sua

gestão se destaca pela implementação de significativas mudanças formais e estruturais na

grade de programação da emissora, e no conteúdo e na estética dos programas, que

posteriormente influenciaram na consolidação da TV Globo como lìder de audiência.

45

MEMÓRIA GLOBO, 2007, p. 49 46

A primeira cidade cenográfica do Brasil, e da América do Sul, foi construìda pelo cenógrafo Pierino Massenzi

(1925 -2009) nos estúdios da Companhia Cinematográfica Vera Cruz para as gravações do filme Tico-tico no

fubá (1952). (HAMBURGER, 2014) 47

CARDOSO, João Batista Freitas. Cenário televisivo: linguagens múltiplas fragmentadas. São Paulo:

Annablume; Fapesp, 2009.

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Juntos, Boni e Clark estruturam na emissora uma grade de programação, segundo o

conceito já utilizado pela TV Excelsior. Seguiam os princìpios de horizontalidade e

de verticalidade: o primeiro consistia na reserva de horário para determinados

programas ao longo da semana, e o outro dizia respeito à organização diária em

diferentes faixas de horários: de manhã, programação infantil; à tarde, programas

femininos; e à noite, telejornal e telenovelas. Essas práticas permitiram a

sistematização e o aumento da venda de espaço publicitário, além da fidelização do

público. [..] As mudanças propostas por eles levaram a TV Globo ao primeiro lugar

na audiência e foram, aos poucos, consolidando a sua liderança absoluta. (RIBEIRO;

SACRAMENTO; ROXO, 2010, p. 112)

Na década de 1970, a telenovela se estabelece como o principal produto comercial da

programação da TV Globo e as produções passam a ser veiculadas na grade da emissora em

faixas de horário definidas por público-alvo e perfil das tramas: a faixa das 18h fica reservada

a histórias leves e românticas, além das tramas de épocas; a das 19h é direcionada às

comédias; e a das 20h, que hoje passou para as 21h, para os dramas mais densos. Durante um

perìodo havia ainda as novelas da faixa das 22h, reservadas a propostas teledramatúrgicas

mais inovadoras e experimentais, um espaço posteriormente ocupado pelas minisséries.

Em 1973, a inauguração das transmissões televisivas em cores promove outra revolução

de linguagem na televisão brasileira e uma remodelação de todo o pensamento dos

profissionais da arte, que agora tinham que adaptar as suas criações ao novo padrão estético e

tecnológico. A primeira produção de teledramaturgia exibida em cores foi a novela O Bem-

Amado (1973), um desafio para cenógrafos, figurinistas e maquiadores, que após muitas

tentativas e erros, conseguiram adequar visualmente os elementos cênicos às especificidades

das imagens coloridas. “Os figurinos e maquiagens saltavam aos olhos em cores berrantes,

principalmente tonalidades fortes para o vermelho, imediatamente banido dos manuais”48

.

Toda a concepção de figurinos e cenários foi repensada conforme as limitações do uso da cor

no veìculo, assim como a maquiagem, que nas novelas em preto-e-branco eram

supercarregadas, e com o surgimento das imagens coloridas tiveram que ser amenizadas.

O novo “padrão” se firmou através de um processo pulverizado, mas teve um marco

simbólico: o inìcio das transmissões regulares em cores, em 1973, com a telenovela

“O Bem Amado” de Dias Gomes. O projeto vinha sendo encampado pela Globo há

algum tempo. Já em 1970, a emissora já havia enviado engenheiros, técnicos,

coreógrafos e maquiadores à Alemanha para estudarem o uso da cor na televisão.

(...) Uma vez estabelecida a televisão colorida, a Globo soube muito bem encarnar o

sìmbolo do progresso que ela trazia. A emissora abusava de videografismos, das

edições velozes baseadas em planos curtos, de chromakey para realizar pirotecnias

visuais e de figurinos bastante coloridos. (RIBEIRO, 2010, p.123)

48

MEMÓRIA GLOBO, 2007, p. 81.

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Já na década de 1980, o grande destaque da teledramaturgia da Rede Globo foram as

minisséries, um formato fechado que permitiu às equipes de arte um trabalho mais apurado de

pesquisa e concepção artìstica e se consolidou como o principal produto de experimentação de

linguagem e processos produtivos. A primeira minissérie da emissora foi Lampião e Maria

Bonita (1982), da autoria de Aguinado Silva e Doc Comparato, uma obra que se destaca pela

concepção de figurino e caracterização das personagens. “Pesquisas detalhadas sobre a

indumentária de Lampião e Maria Bonita serviram de referência para a caracterização dos

personagens”49

. A minissérie foi premiada com medalha de ouro no Festival Internacional de

Cinema e Televisão de Nova York50

As minisséries são uma das grandes novidades da década de 1980, a começar por

Lampião e Maria Bonita, a pioneira. Os figurinistas passam a trabalhar com

produções requintadas e mergulham em pesquisas históricas para a caracterização

dos personagens, saìdos da literatura ou representativos de momentos marcantes da

história do Brasil. Um dos destaques é Grande Sertão: Veredas, cujos figurinos

foram idealizados pelo próprio diretor Walter Avancini. (MEMÓRIA GLOBO, 2007,

p.39)

49

MEMÓRIA GLOBO. Guia ilustrado TV Globo: novelas e minisséries. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,

2010. 50

MEMÓRIA GLOBO, 2010, p.249.

Figura 09. O Bem-Amado: primeira telenovela transmitida em cores.

Fonte: Memória Globo

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A década de 1990 é marcada pela inauguração do Projac, a Central Globo de Produção

(CGP), um complexo integrado de prédios administrativos, estúdios, cidades cenográficas,

acervos e departamentos da Rede Globo, considerado atualmente o maior centro de produção

televisual da América Latina, ocupando uma área total de 1 milhão e 650 mil m² no bairro de

Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. O Projac reuniu em um mesmo espaço toda a infraestrutura

de apoio à produção dos programas de entretenimento da emissora, encubando todas as etapas

da criação das produções de teledramaturgia. Já nos anos 2000, a grande novidade foi a

introdução da digitalização na televisão e o surgimento da imagem HD, que determinou uma

adequação nos processos da direção de arte ao novo padrão tecnológico. Atualmente a

imagem HD está entrando em processo de obsolescência, e abre espaço para imagem 4k, de

resolução quatro vezes maior.

Em 2015, ao completar cinquenta anos de existência, a Rede Globo já construiu, ao

longo da sua história, uma enorme estrutura institucional de atendimento às necessidades das

equipes de arte, estruturando departamentos e acervos exclusivos para as áreas de figurino,

cenografia, caracterização e efeitos especiais, e dando subsìdios para que os profissionais

melhor se adaptem ao surgimento de novos padrões e recursos tecnológicos. No próximo

subitem iremos discorrer sobre as atuais especificidades da direção de arte televisiva no

contexto da teledramaturgia da emissora, considerando as suas particularidades conceituais e

processuais na construção de visualidades ficcionais.

Figura 10. Lampião e Maria Bonita: primeira minissérie da TV Globo.

Fonte: Memória Globo

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63

2.2. O atual panorama da direção de arte na Rede Globo

A direção de arte é uma função originada essencialmente de necessidades decorrentes

dos processos produtivos cinematográficos. A adoção do termo no cinema brasileiro, no inicio

da década de 1980, introduz uma nova perspectiva profissional no meio, com a reestruturação

hierárquica das equipes e uma revisão de processos, o que resulta em ganhos qualitativos na

concepção das imagens e na conceituação estética de visualidades. A televisão posteriormente

se referencia neste padrão funcional, ajustando-o às particularidades das suas estruturas

organizacionais. Interessa-nos neste estudo uma compreensão desta configuração da direção

de arte no contexto televisivo e, sobretudo, da sua inserção nos padrões processuais e técnicos

da produção de teledramaturgia da Rede Globo de Televisão, para, a partir desta investigação,

apontarmos as suas projeções nas minisséries do diretor Luiz Fernando Carvalho.

Neste sentido, apresentamos neste subitem uma abordagem das particularidades da

direção de arte televisiva na atualidade, considerando as suas proximidades e divergências

com a direção de arte cinematográfica. É importante pontuar, contudo, que as informações

aqui descritas foram coletadas e sistematizadas a partir da consulta a bibliografia, acervos e

sites especializados em televisão, mas com especial foco na infraestrutura institucional da

Rede Globo, contexto de produção do objeto de análise desta pesquisa, além de resultar de

observações obtidas por pesquisa de campo realizada nas instalações desta emissora51

. Os

dados podem, portanto, divergir dos padrões de outras redes de televisão.

Com base no estudo realizado, observamos inicialmente que embora assinaladas, as

distinções formais entre as linguagens do cinema e da televisão não determinam uma

diferença conceitual da direção de arte, já que em ambos os meios a função é concebida como

atividade projectual de criação de visualidades. Assim, embora no cinema a direção de arte

possa alcançar um espaço maior de refinamento e experimentação se comparado ao da

televisão, com raros casos de projetos de arte televisivos que se destacam pela criatividade e

originalidade52

, as diferenças mais perceptìveis entre os dois meios são aquelas relativas à

estrutura de atuação profissional, na qual nomenclaturas, hierarquias e processos de trabalho

podem divergir consideravelmente.

No contexto especìfico do audiovisual brasileiro, enquanto os princìpios comerciais da

televisão determinam uma organização mais industrial do trabalho da equipe de arte,

51

Pesquisa de campo realizada no PROJAC, a Central Globo de Produção, no dia 27.10.14, com visita guiada a

estúdios de gravações, cidades cenográficas, acervo de figurinos e departamento de efeitos especiais. 52

É importante destacar que a Direção de Arte representa um dos principais incrementos da experimentação de

linguagem nas narrativas seriadas televisivas.

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estruturada por um quadro fixo de funcionários e pelo acesso a estúdios, acervos e

departamentos exclusivos, no cinema, as equipes, contratadas a cada novo projeto, não

contam com uma estrutura permanente de instalações, materiais e mão-de-obra, e seus

processos são definidos por uma perspectiva mais artesanal da produção.

Na pesquisa realizada acerca dos processos produtivos da teledramaturgia da TV Globo,

verificamos, no entanto, que não existe uma nomeação regular do cargo de diretor de arte nas

produções, sendo a função mencionada na ficha técnica de algumas obras e omitida em

outras. A listagem de funções técnicas apresentada no Guia Ilustrado TV Globo: novelas e

minisséries53

reforça esta constatação, quando ao apontar as atribuições dos profissionais que

atuam no set (interessando-nos aqui os oriundos do campo da arte), não menciona o cargo do

diretor de arte, mas somente o do cenógrafo, do cenotécnico, do produtor de arte, do

contrarregra, do figurinista, do camareiro, do maquiador e do cabeleireiro, do supervisor de

caracterização e do continuísta. Entendemos neste estudo que apesar da instituição da função

da direção de arte nos programas de teledramaturgia da TV Globo ser irregular, é perceptìvel a

lógica conceitual da atividade nas produções da emissora, ainda que a linguagem visual de

muitas destas obras resulte de projetos visuais fragmentados.

Embora seja especifico da direção de arte dirigir e alinhar as equipes de arte a partir de

perspectivas criativa e estética, além de orçamentária e cronológica, possibilitando assim a

construção de um projeto de arte integrado, o corriqueiro no contexto televisivo é que, não

havendo a nomeação deste cargo, caiba ao diretor da obra, não somente pensar na

estruturação da encenação, mas se responsabilizar também por nivelar esteticamente os

trabalhos de cenografia, figurino e caracterização a partir dos conceitos visuais previamente

estabelecidos. Este acúmulo de funções pode, porém, tornar o trabalho de concepção visual da

obra televisiva deficitário, sujeito a reprodução de padrões “prontos” ou sem força e coerência

expressiva e conceitual, um problema que pode vir a ser agravado ainda mais devido ao

imediatismo imposto pelo ritmo produtivo da televisão.

Os diretores dizem que uma de suas principais funções é harmonizar o grupo,

respeitando as individualidades. Em termos de criação artìstica, a delicadeza está em

saber conceituar as diversas áreas e buscar uma unidade estética entre elas, sem

tolher o potencial de criatividade de cada um.

Durante as gravações, as funções do diretor são múltiplas. Além de dirigir os atores,

é ele quem pensa no melhor enquadramento da cena, incluindo a alternância das

câmaras e dos planos, mais abertos ou fechados. Ainda é o olhar do diretor que cuida

para que cenário, figurino e iluminação estejam em harmonia e respeitem a

linguagem da produção. (MEMÓRIA GLOBO, 2010, p. 11)

53

MEMÓRIA GLOBO. Guia Ilustrado TV Globo: novelas e minisséries. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.

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Atualmente pode-se entrever, contudo, uma ampliação de espaço para o diretor de arte

na TV, na medida em que o surgimento da imagem em alta definição demanda um

aprimoramento das equipes televisivas e requer maiores cuidados com a concepção imagética.

Já é possìvel inclusive vislumbrar em uma gama de produções recentes a nomeação de

diretores de arte, tanto em obras oriundas do contexto experimental das minisséries - este é o

caso de Hoje é Dia de Maria, que tem a direção de arte creditada a Lia Renha, e de Suburbia,

com direção de arte de Mário Monteiro - quanto em produções irrestritas a este campo – nas

novelas Lado a lado (2012), de Dennis Carvalho, e Império (2014), de Aguinaldo Silva,

ambas também assinadas pelo diretor de arte Mário Monteiro. Assim, a direção de arte

televisiva parece estar se estruturando e se encaixando na hierarquia de funções da Rede

Globo, e embora se organize, na maioria das obras, por uma cadeia de produção industrial,

cumpre premissas conceituais análogas às do cinema, atuando inclusive na construção de

visualidades instigantes, catalizadoras de significados extratextuais.

Segundo consta no Guia da TV Globo54

, o processo de concepção de um produto de

teledramaturgia da emissora segue como etapas produtivas a elaboração de sinopse, a pré-

produção, a produção, a pós-produção e o lançamento. O recorrente é que no perìodo da pré-

produção, após a escrita da sinopse e dos primeiros capìtulos ou episódios (ou de todo o texto

no caso de minisséries, unitários e especiais), o autor (denominação que aqui se refere à

autoria do texto narrativo) e o diretor da obra determinem juntos a forma como a história será

contada através das imagens, definindo os conceitos que irão nortear a sua estética e que serão

repassados para o restante da equipe.

[...] vem a fase de pré-produção. Autor e diretor, juntos, definem como aquela

história será contada através das imagens. Quanto maior é a afinidade artìstica dessa

dupla, maiores são as chances de o projeto ser bem-sucedido. A partir daì, as

escolhas conceituais – por exemplo, que estética terá a obra – são transmitidas às

equipes de cenografia, produção de arte, figurino, caracterização, fotografia e efeitos

visuais, que começam a fazer as pesquisas especìficas de suas áreas. Paralelamente,

ocorre a escalação do elenco e a seleção de locações externas. (MEMÓRIA

GLOBO, 2010, p. 8)

Observamos então que “a criação na teledramaturgia surge essencialmente a partir da

parceria entre autor e diretor”55

, o que aponta uma participação efetiva do dramaturgo na

concepção visual do produto televisivo e sugere uma diferença substancial ao que ocorre na

produção cinematográfica brasileira, na qual o roteirista, não sendo o próprio diretor, de uma

54

MEMÓRIA GLOBO, 2010, p. 8 55

MEMÓRIA GLOBO, 2010, p. 11

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forma geral, pode dar indicações estéticas no texto, porém não interfere diretamente nos

processos de concretização da obra. No cinema, o diretor é o autor da obra e a sua estética

resulta da parceria entre a direção, a direção de fotografia e a direção de arte, um tripé

profissional que conceitua e direciona a criação da visualidade fìlmica; cabendo aqui, no

entanto, uma relativização destes processos de acordo com o perfil da produção.

Assim, é na etapa de pré-produção de uma novela ou minissérie, que a equipe de arte

tem acesso aos conceitos e ideias definidas pelo autor e diretor, e sob estas orientações segue

para a pesquisa de referências visuais, de iconografia, de técnicas e de materiais, e para a

construção de esboços, maquetes e protótipos, sempre em alinhamento com a estética

proposta. Após este perìodo de reuniões, de conceituação e de pesquisa, parte-se então para a

etapa de produção, que ocorre de dois a três meses antes da estreia da obra e se caracteriza

como o momento da montagem dos cenários e de seleção de objetos de cena, confecção ou

compra de figurinos, de definição da maquiagem e penteados das personagens e de

planejamento dos efeitos especiais, além das gravações propriamente ditas, com o

envolvimento dos demais profissionais atuantes no set. Neste perìodo é prevista ainda a

realização dos ensaios e provas com o elenco e equipes, e de testes com os elementos cênicos

construìdos ou adquiridos, considerando a sua relação expressiva no conjunto, com a paleta de

cores e com a iluminação.

É importante destacar que a produção de teledramaturgia atual demanda um intenso

rigor estético na concepção formal de cenários, figurinos e maquiagens, na medida em que a

influência visual destes elementos na composição imagética foi intensificada com a alteração

do padrão televisivo do analógico para o digital e com o inìcio da veiculação das imagens em

alta definição, que favorecem uma maior percepção dos detalhes, texturas e acabamentos do

quadro televisual, e determina assim novos parâmetros técnicos e processuais para as equipes.

Logo após as gravações das cenas, o material capturado segue para a pós-produção,

etapa que contempla a edição e sonorização das imagens, os ajustes e tratamentos de cor e de

textura, e da produção de efeitos visuais, além da criação das aberturas dos programas. Com

os avanços tecnológicos das ferramentas digitais da computação gráfica, as técnicas da pós-

produção tem interferido cada vez mais nos processos da equipe de arte televisiva,

principalmente no que concerne a concepção da paleta de cores e da iluminação, e nos

procedimentos das áreas de cenografia, caracterização e efeitos especiais, pontos que

voltaremos a discutir no decorrer deste texto.

A Rede Globo produziu e veiculou nos últimos anos uma série de produções marcadas

por uma intensa estetização da imagem, promovida principalmente pelo uso de modernas

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câmeras digitais e pela manipulação e experimentação das potencialidades expressivas das

visualidades. A novela Meu Pedacinho de Chão (2014) se encaixa neste conjunto de

produções. Dirigida por Luiz Fernando Carvalho, a obra apresenta uma estética instigante e

inovadora para o formato, pautada por uma radicalização do uso expressivo da materialidade

cênica, da paleta de cores e dos efeitos visuais.

Finalizado o produto, contando um mês para a sua estreia tem inìcio a etapa das

campanhas de lançamento, que contempla a criação de peças publicitárias impressas e

digitais, a realização de eventos promocionais e a divulgação do produto nas mìdias sociais,

em reportagens e nas chamadas na própria emissora. “Por fim, essa roda continua a girar

durante todo o perìodo de exibição das produções, que varia de seis a oito meses para as

novelas e de uma semana a três meses para as minisséries, aproximadamente”56

. As

minisséries são um caso especifico de produções que vão ao ar após o produto estar

completamente acabado, com todas as etapas de criação finalizadas, sem intervenções

posteriores por questões de conteúdo ou audiência.

Neste processo de produção, as equipes atuam convencionadas às particularidades da

linguagem televisiva, ao chamado padrão globo de qualidade e sob as diretrizes dos

departamentos e acervos da Central Globo de Produção. Com infraestrutura e tecnologia para

56

MEMÓRIA GLOBO, 2010, p. 9

Figura 11. Efeitos visuais na novela Meu Pedacinho de Chão

Fonte: TV Globo

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atender a todos os programas de entretenimento da emissora, a CGP disponibiliza para as

equipes de arte os acervos de figurinos, de peças cenográficas e de contrarregra, as fábricas de

cenários e de costura de figurinos, um departamento de efeitos especiais e uma central de pós-

produção, equipadas com ilhas de edição, sonorização e estações de efeitos visuais, além do

acervo digital da emissora, onde estão os arquivos de imagens, de processos de pesquisas e de

projetos já realizados, que poderão vir a auxiliar na concepção dos novos.

A cenografia na Rede Globo se pauta principalmente pela montagem de cenários nos

estúdios e nas imensas cidades cenográficas da emissora, opções projetuais que permitem um

maior controle dos processos produtivos e cuja logìstica se encaixa na dinâmica industrial da

televisão. Os cenários em estúdio, por exemplo, são montados e desmontados diariamente

para que as instalações possam atender ao fluxo das gravações, e as cidades são construìdas

para as produções, sendo desmontadas após a finalização das filmagens. A opção por locações

é mais pontual. Para a realização dos projetos, as equipes contam com a infraestrutura do

Projac, com suas três cidades cenográficas, que totalizam uma área de mais de 160 mil metros

quadrados e dez estúdios acusticamente tratados e equipados com recursos avançados de

iluminação, além da fábrica de cenários, o acervo de peças cenográficas e o acervo digital.

Além das cidades cenográficas, são construìdos, por novela, de 40 a 80 cenários que

reproduzem os interiores dos espaços.

Figura 12. Vista aérea da CGP / Projac

Fonte: TV Globo

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Ao longo de uma semana de gravação, mais de 20 ambientes são montados e

remontados no piso de pinho abrasivo dos estúdios, o que permite o “prega e

desprega” diário da madeira.

Na fábrica de cenários, são produzidos, por ano, cerca de 60 mil m² de cenários e 86

mil m² de cidade cenográfica, em área projetada. (MEMÓRIA GLOBO, 2010, p. 20)

Nos últimos anos, o uso das ferramentas da computação gráfica permitiu inovações na

área de cenografia. A utilização do digital backlot, recurso tecnológico que possibilita a

criação de cenários virtuais para compor visualmente as cenas, solucionou os transtornos

logìsticos e os custos de deslocamento decorrentes da necessidade de gravação de cenas em

lugares ou paìses distantes do Projac. A técnica consiste na captação de imagens em locações

reais, com profundidade de campo e textura análogos ao ambiente real, e na sua inserção nas

imagens, artificialismo praticamente imperceptìvel para o público. “Essas técnicas aplicadas

na pós-produção dependem do uso do cromaqui nas gravações, um painel geralmente na cor

verde ou azul que permite a posterior inserção de imagens pela computação”57

. Há, portanto, a

coexistência na televisão de dois tipos de cenários, a que Cardoso (2009, p. 54) define como

cenários corpóreos, construìdo com recursos materiais como madeira, ferro, tecidos e etc,, e

cenários virtuais construìdos digitalmente por computação gráfica.

Em termos conceituais e funcionais, o cenário televisivo, mesmo submetido às

convenções das representações televisuais, apresenta ainda uma configuração que remonta às

suas origens teatrais e cinematográficas: conceitualmente alinhada às premissas do texto

narrativo e à encenação. Nas práticas televisivas os espaços cênicos são construìdos de forma

a permitir o deslocamento de duas ou mais câmeras grandes e pesadas, além dos seus

adicionais técnicos, como fios, cabos e monitores (uma realidade em processo de

transformação com a introdução de câmeras digitais avançadas na rotina da emissora). Esses

espaços têm ainda o seu alcance comunicacional minorado na maior parte das produções,

devido principalmente a composição do quadro televisivo, no qual prevalecem os primeiros

planos de rostos dos atores ou detalhes dos seus corpos, com foco essencialmente nas suas

expressões, nos seus gestos e nas suas falas. Segundo Cardoso (2009, p. 18):

A edição dinâmica das cenas, que leva o telespectador em minutos de um lugar a

outro – ambientes internos, regiões distantes ou, até mesmo, épocas distintas -,

somada à importância que se dá ao diálogo nesse gênero faz que, como ressalta

Machado, o primeiro plano comande o recorte dos quadros (1995:50). Essa

tendência interferirá diretamente na escolha das padronagens e texturas de

composição das formas do cenário, assim como fará que o cenógrafo passe a se

preocupar com as partes, com os detalhes. Dependendo do enquadramento da cena,

um pequeno detalhe pode trazer, por meio da figura da sinédoque, o cenário para o

primeiro plano.

57

MEMÓRIA GLOBO, 2010, p. 18

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Já o processo de criação dos figurinistas tem etapas e diretrizes análogas ao das

produções cinematográficas, porém está sujeito às práticas e ao ritmo acelerado da cadeia de

produção televisiva. Envolvendo muita pesquisa e criatividade, a concepção dos trajes se

alinha à narrativa e à caracterização das personagens, em conformidade com os

direcionamentos conceituais do diretor e do autor da obra, mas está submetido também à

conjuntura mercadológica da televisão, determinante na reprodução de padrões e valores

estéticos, de acordo com interesses comerciais. Os figurinos podem ser confeccionados na

própria emissora, acessados no acervo (reaproveitamento ou reforma de peças antigas) ou

comprados, e neste caso, as peças adquiridas seguem, na maior parte das produções, as

últimas tendências da moda, ou ditam modismos de forte influência no consumo do público.

Cada personagem da novela ou da minissérie tem um guarda-roupa criado conforme o

seu perfil social e estatura, composto por um determinado número de peças, que podem ser

repensadas ou renovadas, a depender do seu desgaste natural, do percurso narrativo das obras

e do seu número de capìtulos. “Um guarda-roupa básico é o ponto de partida da montagem do

enxoval dos personagens [..] Nas histórias contemporâneas, o figurinista cria um repertório de

roupas com o que está disponìvel no mercado, montando araras e prateleiras de sapatos que

contemplam vários tamanhos e medidas”58

.

Na infraestrutura do Projac estão disponìveis às equipes um acervo com “cerca de 200

mil itens de figurino, entre roupas, calçados, bolsas, cintos, chapéus, echarpes, lenços,

58

MEMÓRIA GLOBO, 2010, p. 139

Figura 13. Acervo de Figurinos da Rede Globo

Fonte: Memória Globo

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gravatas, óculos e bengalas”59

, e uma fábrica de costura, onde são confeccionados os trajes e

são realizados o tingimento e desgastes das peças, dando-lhes vivência. “A média é de 1.340

peças por mês. Tramas de época são freguesas assìduas [...] Nos últimos anos, são as

minisséries que lideram os pedidos de confecção: cerca de 80% de seus figurinos são

confeccionados na fábrica”60

.

Vestidos, calças, camisas, paletós, saias, casacas, transformação de adereços. A

fábrica de costura da TV Globo segue o ritmo das indústrias de produção em série,

mas com uma caracterìstica peculiar: as peças são únicas e exclusivas, feitas sob

medida para vestir mocinhos e vilões de diferentes tramas e épocas. Pelas mãos dos

talentosos costureiros e alfaiates dessa fábrica atìpica já passaram diversos tecidos,

modelos e modelagens dos programas da teledramaturgia [...] (MEMÓRIA GLOBO,

2007, p. 151)

Ligada à cenografia, a função da produção de arte é a responsável por selecionar os

objetos que irão compor os cenários, equivalendo na televisão ao que na produção

cinematográfica se denomina de produção de objetos. Embora desempenhe papéis similares, o

produtor de arte encontra na infraestrutura da Rede Globo, com seu acervo de contrarregra e

sua fábrica de cenários, condições estruturais favoráveis à construção dos projetos propostos.

A depender da narrativa e das referências definidas, principalmente em produções históricas,

poderá ser ainda necessário se buscar objetos em estabelecimentos externos, como brechós e

antiquários. Assim como o trabalho de figurino, a produção de arte na teledramaturgia está

submetida à lógica comercial da televisão, sendo por vezes veìculo publicitário de marcas e

produtos através de estratégias do merchandising.

Quanto à maquiagem televisiva, o supervisor de caracterização é o profissional

responsável por pensar o conceito da maquiagem e do penteado dos atores, conforme a

proposta de composição visual das personagens e o direcionamento estético do autor e do

diretor. Após a chegada da imagem de alta resolução, as preocupações desses profissionais

foram ampliadas, já que o rosto do ator e seus cabelos se destacam nas imagens televisivas, e

teve inicio ao uso da maquiagem com airbrush “(...) técnica que cria um plano uniforme e

confere suavidade ao rosto, fazendo desaparecer as sombras e os inchaços dos olhos”61 em

conjunto com um emprego corretivo da luz. O desenvolvimento das técnicas de efeitos visuais

trouxe também consequências para área, na medida em que através da computação gráfica é

possìvel realizar intervenções nas imagens dos atores, como correções e transformações na

pele, rejuvenescimento ou envelhecimento, entre outras.

59

Ibid, p. 159 60

Ibid, p. 152 61

Ibid, p. 82

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Neste processo de concepção de visualidades televisivas, as equipes de arte devem estar

atentas ainda às particularidades expressivas próprias do veìculo. É preciso considerar que a

imagem televisual é veiculada em dimensões inferiores às do cinema e que há no meio um

predomìnio de composições com pouca profundidade de campo, com figuras em primeiro

plano. Portanto, os elementos da caracterização e do figurino permanecem como figuras, e o

cenário como fundo. Essas imagens se dirigirem ainda para públicos dispersos, o que

determina a criação de estruturas visuais que atraiam a atenção do telespectador, mas também

um cuidado redobrado nas escolhas estéticas, evitando-se os exageros e a poluição visual.

Assim, o uso de formas, cores, texturas e padronagens na televisão é um ponto que

demanda muita atenção. Com o inicio das transmissões em cores na década de 1970, os

profissionais da TV tiveram muito problemas com a definição da paleta de cores e de texturas,

e a partir dessas primeiras experiências, muitas cores e padronagens tornaram-se proibidas. O

uso do vermelho em cenários e figurinos foi proibido porque a cor se expandia na tela, assim

como o branco, que por isso passou a ser substituìdo pelo bege. Proibiram-se ainda os padrões

de linhas, bolas e xadrez, além do conjunto de cores e estampas em uma mesma composição.

Hoje, com os avanços tecnológicos, algumas dessas proibições foram descartadas.

A palavra “proibido” não existe no figurino de dramaturgia da televisão. Mas a regra

básica é fugir do moiré, porque as tramas do tecido provocam um efeito de ondas

que confunde o olho do público. Linhas e grafismos muito próximos e estampas

muito contrastantes e pequenas – como o pied de-poule (tecido em quadriculado

geométrico, imitando os dedos dos pés de galinhas) e o pied-de-coq (tecido

semelhante ao pied-de-poule, com efeitos geométricos maiores) – podem borrar a

imagem, isto é, dar uma leitura ruim. Isso ocorre devido ao processo ótico da

televisão, que, no entanto, ficou mais sofisticado com os avanços tecnológicos.

(MEMÓRIA GLOBO, 2007, p. 86)

Os processos, conceitos e práticas descritas nos parágrafos anteriores se aplicam à

feitura da maior parte das produções de teledramaturgia da Rede Globo, nos seus diversos

formatos. Há, no entanto, diretores que preferem atuar a partir de processos criativos

particulares. “Diante de tantas possibilidades, há diretores que têm saudades da adrenalina da

televisão ao vivo, outros que gostam do frenesi do ritmo industrial de produção e, ainda, os

que preferem confeccionar as obras de forma mais artesanal”.62

Aqui se encaixa o diretor Luiz Fernando Carvalho. No conjunto das suas produções é

possìvel vislumbrar não somente opções conceituais e estéticas inovadoras, que seguem uma

perspectiva experimental, e por vezes radical da construção da materialidade cênica,

determinando a impressão de traços autorais nas suas obras; mas também os resultados

62

MEMÓRIA GLOBO, 2010, p.12

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visuais de um uso diferenciado das técnicas e processos produtivos da direção de arte

televisiva. Das minúcias dos detalhes à composição das imagens, as equipes seguem uma

opção metodológica diferenciada da lógica industrial televisiva, pautada por práticas

artesanais, aproximadas aos procedimentos cinematográficos.

Tanto que, no ano de 2013, Luiz Fernando Carvalho obteve da Rede Globo um espaço

exclusivo no Projac para o seu núcleo de produção, denominado por ele de “teveliê”, um

galpão onde, segundo o diretor, criação e formação se conjugam. Neste espaço, o seu grupo

de colaboradores trabalha sob o estìmulo de um intenso rigor técnico e estético, em diálogo

com as diversas linguagens artìsticas, e de forma inclusiva: não há divisões de salas e setores,

e as reuniões da criação e ensaios podem ocorrer tanto nas mesas de trabalho como entre as

costureiras e bordadeiras; o que permite a concepção de projetos integrados entre as diversas

áreas criativas. Este formato produtivo reflete, sobretudo, um ponto de vista particular do

diretor sobre a função da produção da dramaturgia na televisão brasileira, pois, ao investir na

construção de processos mais “lentos” e meticulosos, antenados à experimentação estética e

às linguagens audiovisuais contemporâneas, as suas obras corroboram não só a transformação

de conceitos e processos no âmbito organizacional da Rede Globo, mas também em uma

renovação de discursos e visualidades na teledramaturgia nacional.

No subitem a seguir, com base em um levantamento da sua produção audiovisual,

pretendemos discorrer sobre a trajetória profissional de Luiz Fernando Carvalho na Rede

Globo, com o intuito de alcançarmos uma compreensão das suas perspectivas pessoais sobre o

“fazer televisão” e das condições da sua inserção neste contexto produtivo.

Figura 14. Atriz posa entre costureiras em ensaio fotográfico no “teveliê”

Fonte: TV Globo (Foto: Leandro Pagliaro)

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2.3. A direção de arte e o percurso criativo de Luiz Fernando Carvalho

Considerado atualmente um dos diretores mais inventivos e inovadores da televisão

brasileira, Luiz Fernando Carvalho apresenta um percurso criativo inusitado dentro da Rede

Globo de Televisão. Da experiência dos seus primeiros trabalhos na emissora, concebidos nos

moldes tradicionais da produção de teledramaturgia, o diretor imerge em uma reflexão acerca

do fazer televisivo e propõe, continuamente, inovações estéticas e conceituais nas suas obras,

estruturando, a partir destas, novos processos de criação, para além dos formatos e padrões

televisuais. Uma perspectiva criativa que conquista progressivamente uma ampliação de

espaços na tevê, tanto estruturais quanto discursivos. Os seus últimos trabalhos, reconhecidos

pela crìtica especializada como produtos singulares no ininterrupto fluxo da programação

televisiva, não somente subvertem os limites da linguagem televisual tradicional, ao promover

uma experimentação de narrativas, estéticas e visualidades, como ainda discutem de forma

original temáticas de relevância social e cultural.

O caráter artìstico e autoral dessas obras, que se destacam no universo da dramaturgia

industrial e comercial em que estão inseridas e, sobretudo, o pouco alcance em números de

audiência de grande parte destas produções, estimulam ainda questionamentos sobre a

liberdade criativa do diretor e os seus “privilégios” no âmbito da cadeia produtiva da

televisão, o que representa para muitos uma chancela institucional da Rede Globo para

justificar o chamado “padrão globo de qualidade”, além de um investimento da emissora em

produtos de competitividade na disputa por prêmios internacionais. “Queridinho” dos crìticos,

dos intelectuais e dos acadêmicos, o fato é que as suas produções desempenham uma

importante função na conjuntura midiática contemporânea: suscitar questionamentos sobre o

real papel da televisão frente às demandas da sociedade brasileira.

Com base nestes dados, estruturamos neste subitem um panorama da trajetória

profissional de Luiz Fernando Carvalho na referida emissora, destacando as suas principais

fases, influências e produções. Além do entendimento das particularidades dos ciclos de

“invenção” e “reinvenção” do seu processo criativo e das suas posturas ideológicas frente à

produção de teledramaturgia, pretendemos compreender ainda o seu pensamento acerca da

construção de visualidades na tevê, principalmente no que se refere aos aspectos que tangem

aos processos da direção de arte, que consideramos aqui relevantes na construção do seu estilo

e de um determinado status dos seus projetos no contexto institucional da Rede Globo.

Após a compreensão das particularidades processuais e técnicas da direção de arte

televisiva e do seu percurso de desenvolvimento no decorrer da história da teledramaturgia da

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Rede Globo, consideramos então termos alcançado neste estudo um repertório teórico e

empìrico fundamental para construirmos um entendimento das condições da inserção do

diretor Luiz Fernando Carvalho neste contexto industrial e analisarmos o quanto a direção de

arte das suas produções refletem estas variáveis produtivas. Assim, neste subitem iremos

também discorrer sobre os projetos de arte desenvolvidos nas suas obras, mas com um foco

principal no conjunto das minisséries que dirigiu.

É importante pontuarmos que o conteúdo sistematizado está estruturado a partir de uma

descrição das escolhas do diretor e das equipes de arte nas produções e na definição do

conceito visual desenvolvido em cada uma delas, priorizando, nesta análise, os dados

empìricos referentes aos processos de concepção e fabrico dos elementos da cenografia, do

figurino e da caracterização, além das suas reverberações na encenação e na visualidade das

obras. Não pretendemos aqui apresentar uma análise visual ampliada de cada uma dessas

produções, principalmente por conta do tempo e do espaço disponìvel; com exceção

obviamente de Suburbia, objeto de análise desta pesquisa, cuja narrativa, processos criativos

da direção e da equipe de arte, e visualidade serão pormenorizados no terceiro capìtulo.

Considerando ainda os objetivos propostos para esta pesquisa, o intuito de lançarmos

um olhar sobre a direção de arte destas minisséries está não somente em uma busca do

entendimento da relação conceitual da função com a estruturação da encenação e das

visualidades, mas também em pontuarmos de qual modo cada uma dessas obras isoladamente

representa uma postura estética diferenciada no percurso da construção do estilo do diretor

Luiz Fernando Carvalho, e como a relação do diretor com a direção de arte se articula neste

processo. Não podemos afirmar, no entanto, que estas obras foram produzidas dentro de uma

lógica evolutiva, em que a estética da produção mais recente nega a da anterior ou que há um

crescimento qualitativo a cada nova produção. As minisséries simplesmente dialogam,

podendo, por vezes, se referenciar, se opor ou se complementar. Mas cada uma delas detém o

seu espaço e valor neste conjunto de estéticas diversas.

Ao defendermos neste estudo o diretor Luiz Fernando Carvalho como um autor no

âmbito da produção industrial televisiva, se faz necessário definir como os projetos de arte das

suas obras expressam essa perspectiva autoral. Assim, se a autoria se revela na forma singular

e, por vezes inovadora, de como o realizador estrutura a encenação, os elementos da direção

de arte alimentam essas premissas conceituais, refletindo as suas opções visuais e estéticas ao

manipular criativamente ou mesmo subverter linguagens. Nesse sentido, Carvalho é um

diretor que visualiza a potencialidade criativa de todas as matérias que ocupam o espaço da

encenação. Sejam a atuação e a coreografia dos corpos dos atores, a fotografia ou os

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elementos da cenografia, do figurino ou da caracterização, com seu repertório de cores,

texturas e padronagens, todos tem uma participação efetiva no processo da criação

audiovisual. São todos coautores63

, e essa coautoria faz das suas obras o resultado de uma

articulação criativa intensa, que dá liga e coesão às visualidades construìdas.

Luiz Fernando Carvalho de Almeida nasceu no Rio de Janeiro, no dia 28 de julho de

1960. Cineasta e diretor de televisão, a sua relação com a imagem surgiu desde cedo. Ainda

na infância demonstrou ter aptidão para o desenho, chegando, inclusive, na adolescência, a

realizar trabalhos de ilustração para jornais, centros acadêmicos e revistas, como o semanário

O Pasquim. Na universidade cursou Arquitetura e, posteriormente Letras. O interesse pelo

audiovisual surge nessa época de estudante, quando estagia em produções de cinema. Cinéfilo

e assìduo frequentador da cinemateca do MAM - RJ, as suas primeiras influências estéticas

foram os grandes diretores do cinema nacional e mundial.

Cinemateca do MAM. Rato de Cinemateca do MAM. Pegava meu onibusinho,

atravessava o Aterro, ia com uma cadernetinha e ficava lá, duas, três sessões

seguidas; uma assistindo pela câmera, outra assistindo pelo som, outra assistindo só

sobre a montagem, outra para a fotografia... Passava o dia por ali...” (CAVALHO,

2001, p.20)

63

Afirmativa do diretor em palestra proferida no dia 12/11/14 sobre a novela Meu Pedacinho de Chão dentro da

programação do Festival Internacional de Televisão 2014, realizada na FAAP (Fundação Alves Penteado) em

São Paulo.

Figura 15. O diretor Luiz Fernando Carvalho

Fonte: TV Globo

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A trajetória de Luiz Fernando Carvalho na Rede Globo teve inìcio na década de 1980,

época em que a crise na produção cinematográfica nacional e a escassez de novas produções,

o levaram a migrar do cinema para a televisão. Integrando a equipe do projeto Usina de

Teledramaturgia da Rede Globo de Televisão, estreou na emissora como assistente de direção

das minisséries O Tempo e o Vento (1985), de autoria de Doc Comparato e direção de Paulo

José, e Grande Sertão: Veredas (1985), uma adaptação da obra homônima de Guimarães

Rosa, dirigida por Walter Avancini. Sobre esta fase inicial, assim declara o diretor:

Então chegou o dia em que esses trabalhos foram rareando, rareando, e caìmos

naquela crise conhecida, onde uma grande quantidade de cineastas migrou para a

televisão ou para a propaganda. Eu fui parar naquele núcleo da Globo Usina, que era

um núcleo, digamos assim, da nata do que poderia se chamar de televisão. Não era

um núcleo formado apenas por técnicos da televisão, era composto também por um

número grande de profissionais vindos do cinema: Zé Medeiros, Dib Lutfi, Walter

Carvalho [...] Entrei como assistente de direção das minisséries e Quartas Nobres.

(CARVALHO, 2001, p. 16)

Após esses primeiros trabalhos, Carvalho atuou em diversas produções da emissora,

entre minisséries, unitários e telenovelas. Subordinado inicialmente a outros diretores, ou

mesmo envolvido em codireções, o diretor foi se aprimorando através da experiência prática e

adquirindo o domìnio da linguagem televisiva64

. São desta fase, em ordem cronológica, as

novelas Vida Nova (1988), Tieta (1989), Gente Fina (1990), a minissérie Riacho Doce (1990),

além do unitário Os Homens Querem Paz (1991) e da novela Pedra Sobre Pedra (1992). “[...]

então você trilha um caminho dentro da televisão como dentro de uma indústria mesmo. Você

vai passando por vários diretores, sendo co-diretor de vários diretores, vai lidando com vários

procedimentos. E você vai se exercitando lá dentro [...].”65

A sua estreia na direção geral de uma telenovela será em Renascer (1993), obra de

grande sucesso de crìtica e audiência, com texto de autoria de Benedito Ruy Barbosa. Logo

depois, notadamente um diretor já experiente, assina respectivamente a direção geral dos

unitários Uma Mulher Vestida de Sol (1994) e A Farsa da Boa Preguiça (1995), das

telenovelas Irmãos Coragem (1995), O Rei do Gado (1996), da minissérie Os Maias (2001) e

da telenovela Esperança (2002), passando posteriormente a dedicar um longo perìodo

somente à produção de minisséries: Hoje é Dia de Maria (2005), primeira e segunda jornadas,

A Pedra do Reino (2007), Capitu (2008), Afinal, o que Querem as Mulheres? (2010) e

64

Luiz Fernando Carvalho também realizou trabalhos de direção para a extinta Rede Manchete, as novelas

Helena (1987) e Carmen (1987/88), esta última em direção conjunta com José Wilker e Denise Saraceni. 65

CARVALHO, Luiz Fernando. Sobre Lavoura Arcaica, Ateliê Editorial, SP, 2001, p.18.

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Suburbia (2012). Em 2013, dirige para o Fantástico o especial Correio Feminino e após, o

especial de final de ano Alexandre e outros heróis. Em 2014, o diretor retorna à produção de

telenovelas realizando Meu Pedacinho de Chão, com texto de Benedito Ruy Barbosa. No

perìodo de finalização desta pesquisa, a minissérie Dois Irmãos, baseada na obra de Milton

Hatoum, se encontrava em processo de produção.

A partir dos interesses deste estudo, cuja análise está centrada nos processos de

construção de visualidades, selecionamos aqui, deste conjunto de produções, as obras que

consideramos representativas na formação profissional do diretor e na construção do seu

estilo na televisão, apontando, em cada uma delas, as nuances de uma fase especial na

trajetória de Luiz Fernando Carvalho e, principalmente, uma postura diferenciada do diretor

acerca da concepção visual de produtos de teledramaturgia. Para fins de embasamento desta

abordagem, convém incluir ainda, junto à listagem realizada anteriormente, o longa-metragem

Lavoura Arcaica (2000), que embora seja um produto oriundo de processos estritamente

cinematográficos, tem grande relevância no quadro de produções artìsticas do diretor, por

exercer uma forte influência nas suas produções televisivas realizadas posteriormente, tanto

em termos estéticos quanto produtivos.

A minissérie Grande Sertão: Veredas, dirigida por Walter Avancini, um dos primeiros

trabalhos de assistência de direção de Luiz Fernando Carvalho na tevê é uma obra

determinante na sua formação televisiva, justamente por proporcionar a sua primeira

experiência na direção de um programa. „Num determinado dia, lá no meio do sertãozão, ele

(Avancini) tinha acabado de dar o almoço, reuniu toda a equipe e o elenco: “Olhem, estou

indo embora, o Luiz Fernando vai fazer o resto” [...]‟66

. Para além da sua formação prática na

concepção e produção de imagens audiovisuais, os frutos positivos desta experiência inicial

de Carvalho na tevê se evidenciam, sobretudo, na sólida influência de Avancini na perspectiva

criativa e profissional do diretor frente ao exercìcio televisivo e, possivelmente, nas suas

reflexões acerca do papel social da televisão.

Avancini foi uma figura importante também na minha formação prática, porque veio

nesse momento em que eu buscava fazer essa transfusão entre cinema e televisão, o

que eu poderia receber como ensinamento de uma linguagem e de outra, sem ser

preconceituoso: “Ah, televisão é ruim, cinema é bom...” Eu não acredito nisso. No

caso especìfico da dramaturgia, eu percebo que existem coisas boas tanto num

veìculo quanto no outro, e coisas ruins num quanto noutro. (CARVALHO, 2001, p.

18)

66

CARVALHO, 2001, p. 17

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Profissional remanescente dos programas de rádio e atuante na televisão brasileira

desde os seus primórdios, já que a sua estreia (como ator) em um programa televisivo se deu

justamente no dia 18 de setembro de 1950, na TV Tupi de São Paulo, Walter Avancini (1935-

2001), que é considerado um diretor pioneiro no propósito de trazer inovações à linguagem

televisiva, teve a sua estreia na direção de novelas somente em 1965, na TV Excelsior, com A

indomável, de autoria de Ivani Ribeiro. A partir de então, o diretor construiu uma extensa

carreira na direção de produtos de teledramaturgia, na qual se destacam obras marcantes e

exponenciais da experimentação estética na tevê, como Beto Rockfeller, da TV Tupi, e o

unitário poético Morte e Vida Severina (Rede Globo, 1981).

Na Rede Globo, Avancini estreou em 1972, substituindo Daniel Filho na direção da

novela Selva de Pedra67

. Na década de 1980, o diretor se dedicou à produção de minisséries

que alcançaram grande repercussão junto aos telespectadores e sucesso de crìticas, entre elas,

Anarquistas, Graças a Deus (1984), baseada no romance de Zélia Gattai, Rabo de Saia

(1984), de autoria de Walter George Durst, além da já citada Grande Sertão, Veredas, uma

obra que considera de grande importância na sua carreira.

Realmente, eu me preparei muito para realizar Grande sertão, e esse trabalho foi,

sem dúvida, o meu grande momento, um momento em que consegui sintetizar toda a

minha experiência como diretor e realizador de televisão.

[...] Para perceber o grande sertão do Guimarães era preciso ter o olhar mágico que

ele teve. [...] descobrir toda a magia do Grande sertão no fragmento de uma luz

filtrada através das folhas das árvores, no ruìdo cantante de um riacho, no voo de um

pássaro sobre os campos, enfim, numa série de fragmentos que refletem todo o

encantamento do Grande sertão [...] (AVANCINI, 2004, p. 170)

No que se refere aos processos da direção de arte, é possìvel apontar nas produções

dirigidas por Avancini, uma preocupação do diretor com a dimensão prática e criativa do

projeto de arte e, neste sentido, com a linguagem visual construìda nas obras. A criação do

projeto de arte resultava da realização de minuciosas pesquisas sobre o universo a ser

retratado na narrativa, para, a partir destas referências, investir-se na construção de projetos de

cenografia, figurino e caracterização calcados na vivência sobre a temática abordada, ou seja,

concebidos a partir de um forte laço conceitual entre texto, realidade e imaginário social, sem

distorções ou exageros visuais supérfluos.

Sobre o seu processo criativo, assim relata a figurinista Marilia Carneiro, se referindo

ao processo de criação do figurino da novela Gabriela (1975): “[...] Walter Avancini não

67

Disponível em: http://memoriaglobo.globo.com/perfis/talentos/walter-avancini/trajetoria.htm. Acessado em:

20de janeiro de 2015.

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suportava muitos enfeites, gostava de representar a vida como ela é. Ele queria vivência.”68

.

Na minissérie Rabo de Saia, é a paleta de cores dos trajes das personagens que ganha

destaque na narrativa, ganhando autenticidade e protagonismo em determinadas cenas: “As

cores do figurino de Quequé (Ney Latorraca), sempre de terno de linho e chapéu-panamá,

mudavam de acordo com o perfil de cada esposa”69

. Já em Grande Sertão: Veredas, a

preocupação com a visualidade da obra era tamanha, que o próprio diretor foi o responsável

pela idealização e escolha dos materiais para a confecção dos figurinos.

Assim como Avancini, Luiz Fernando Carvalho extrai da pesquisa e da vivência das

suas equipes sobre o roteiro e o universo temático da obra, tal como da experimentação da

linguagem televisual e da direção de arte, a chave para a construção narrativa e visual das suas

produções, o que reflete não somente as particularidades do processo criativo do diretor, mas,

sobretudo, a sua visão particular sobre a teledramaturgia. Carvalho demonstra estar totalmente

comprometido com a ideia de qualidade, por acreditar ser a televisão um importante

instrumento educacional, cabendo aos profissionais da tevê conceber produtos de relevância

sociocultural. Um dos principais traços dos seus trabalhos é, inclusive, a adaptação de textos

literários, cujas narrativas e imagens são construìdas de forma a instigar no público o valor

68

MEMÓRIA GLOBO, 2007, p. 56 69

Id., 2010, p. 256

Figura 16. Grande Sertão Veredas: figurinos idealizados por Walter Avancini.

Fonte: Memória Globo

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artìstico da literatura. “Sinto que se faz necessário aos artistas e aos especialistas que

trabalham na televisão pensarem numa nova missão para a televisão” 70

e que “Esta nova

missão estaria, no meu modo de sentir, diretamente ligada à educação, a uma reeducação a

partir das imagens e dos conteúdos” 71

.

A visualidade de Renascer, o seu primeiro trabalho na direção geral de uma telenovela

já é, neste sentido, um resultado das indagações do diretor sobre a função e a qualidade das

representações concebidas e veiculadas pela televisão. Sobre o seu processo criativo na obra,

Carvalho explica que estava “... mergulhado na questão da brasilidade, da necessidade de

colocar na televisão alguma coisa menos estereotipada, mais humanizada, com mais verdade,

privilegiando o rosto local...” 72

. As escolhas formais das equipes de fotografia e de arte da

novela refletem esta premissa conceitual, além de se alinharem à proposta da direção de

investimento no refino e na experimentação da linguagem televisiva, o que se evidencia na

concepção fotográfica das imagens e dos movimentos de câmera. Já a estruturação do projeto

de arte é pautada essencialmente pela pesquisa, definindo, deste modo, a vivência sobre o

universo temático do texto como o conceito que direciona todo o processo de concepção da

visualidade, e que confere densidade à narrativa.

Esta trama tinha como cenário a região cacaueira de Ilhéus, no sul da Bahia, e um

protagonista cujo visual lembrava a velha imagem dos coronéis baianos, vestido

com roupas de linho claro e botas de couro. [...] Os trabalhadores das lavouras de

cacau, por sua vez, traziam estampada a rudeza da vida no campo, com uma

caracterização que valorizava o tom curtido da pele e roupas carregadas de vivência,

como jeans e chapéus de couro surrados. Assim se vestia o jovem herói João Pedro

(Marcos Palmeira), o filho mais novo e rejeitado de José Inocêncio. (MEMÓRIA

GLOBO, 2007, p. 244)

E se nas produções televisivas de Luiz Fernando Carvalho realizadas até então, já é

possìvel vislumbrar uma obsessão do diretor pelo caráter verossìmil das narrativas visuais

construìdas, em Lavoura Arcaica o investimento no conceito de vivência é radicalizado.

Baseado no livro homônimo do escritor Raduan Nassar publicado em 1975, um texto de

intenso lirismo e densidade psicológica, o filme apresenta a narrativa em primeira pessoa das

memórias e angústias de André, jovem que se rebela contra as tradições cristãs e patriarcais

impostas por seu pai e foge da fazenda onde vive com a famìlia de origem libanesa.

Considerado uma obra-prima do cinema nacional, Lavoura Arcaica é o resultado de

um processo criativo cuidadosamente planejado. No perìodo da pré-produção, Luiz Fernando

70

CARVALHO, 2001, p. 31 71

Ibid, p.31 72

Ibid, p. 29

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Carvalho seguiu a opção por uma extensão e intensificação das etapas de pesquisa e do

período laboratorial, que são estruturados segundo dois momentos: inicialmente o diretor

realizou, juntamente com a sua produtora e com o próprio Nassar, uma viagem ao Oriente

Médio, especificamente ao Lìbano e à Sìria, com o objetivo de empreender uma imersão no

universo cultural sugerido no texto literário e desse modo coletar referências para a produção

do filme. O registro audiovisual da viagem resultou no documentário Que teus olhos sejam

atendidos (1997), exibido pelo canal de televisão GNT.

Já em um segundo momento, após reunir uma série de referências materiais, visuais e

gestuais conforme as indicações da narrativa, o diretor investiu na intensificação da

preparação conceitual e técnica do elenco e da equipe de produção, conduzindo todos os

profissionais envolvidos no projeto a um confinamento na fazenda/ locação do filme por três

meses. Nesse perìodo, os atores executaram todas as tarefas atribuìdas às suas personagens, de

forma a promover uma apropriação dos tipos pelas relações estabelecidas no cotidiano: a

rotina diária do elenco envolvia a lida com a terra, com as plantações e com os animais, além

do uso de trajes, objetos e utensìlios da época retratada e da participação em oficinas teóricas

de temáticas relevantes à composição das cenas e de aptidões especìficas.

Toda a filmagem foi realizada ainda sem roteiro prévio e as cenas foram construìdas a

partir de uma leitura direta do texto do livro e da experimentação cênica coletiva. “Eu ficava

com eles, trabalhando junto com eles, ora observando, anotando as movimentações, ora

estimulando fisicamente os acontecimentos, criando situações... porque as improvisações, elas

eram muito ricas enquanto mise-en-scène, os atores não paravam de criar imagens.”73

, explica

o diretor. Neste processo de criação, subjetivo e colaborativo, esquematizado por Luiz

Fernando Carvalho, o diretor de fotografia Walter Carvalho, a diretora de arte e cenógrafa

Yurika Yamasaki e a figurinista Beth Filipecki se dedicaram à criação de uma visualidade

fìlmica que avança o nìvel expressivo recorrente na maior parte das produções

cinematográficas nacionais.

Em diálogo com o desenho da fotografia, caracterizado por intensos contrastes de luz e

sombra, o projeto de arte, um retrato dos hábitos e costumes de imigrantes libaneses no

contexto rural, cristão e patriarcal do Brasil da década de 1940, não se atem apenas a uma

reconstituição de época, mas atua ainda na concepção visual e material da atmosfera lìrica do

livro, enfatizando a opção estética por uma linguagem extremamente sensorial, sobretudo na

composição dos espaços, das texturas e do figurino. Todos os processos técnicos de seleção,

73

CARVALHO, 2001, p.111-12

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confecção e produção de materiais, trajes e objetos foram desenvolvidos de forma artesanal,

seguindo o tempo da criação coletiva estimulada pelo diretor.

A intenção da direção não era só retratar, copiar ou documentar, mas promover uma

vivência daquele universo retratado. “[..] Este trabalho ajudou a criar um clima que deu

densidade ao filme, contribuiu para o próprio entendimento do filme. De alguma forma isso

vai ser passado para o espectador74

, relata Yamazaki. A criação visual teve como principais

referências, não somente a cultura árabe, mas também as pinturas do poeta e artista plástico

brasileiro Jorge de Lima, a pintura tenebrista espanhola e as pinturas de El Greco, Caravaggio,

Tiziano, Van Gogh, Degas, Munch, Millet e Cézanne75

.

A questão da visualidade e tal tem a ver com essa necessidade de criar uma

fabulação [...] E essa fabulação tornará também invisìvel o aparato técnico da

captação das imagens, tornando a “costura do terno” invisìvel, o que, em outras

palavras, significa que você precisa encontrar uma alma pra imagem, pra que ela se

sustente, senão ela fica ali, didática, explicativa, não se sustentará enquanto vida,

não ficará de pé sozinha, tomba, cai. Esta é a questão mais difìcil para mim. Como

pôr uma imagem de pé, e ela ficar ali, viva! (CARVALHO, 2001, p. 104)

Após mais de uma década de atuação na cadeia produtiva da indústria televisiva, a

implementação desta lógica de criação colaborativa e de um ritmo artesanal de produção em

Lavoura Arcaica76

se originou principalmente das reflexões do diretor sobre os seus trabalhos

na teledramaturgia baseadas em variáveis conceituais como repetição e inovação. O resultado

alcançado neste processo fìlmico possivelmente acabou o estimulando a repensar a dinâmica

dos seus projetos e a sua postura criativa frente à concepção audiovisual.

Agora, o que isso talvez represente na minha trajetória como diretor... talvez uma

estafa em relação à televisão. Chegou um momento em que realmente eu não

consegui sair de uma certa convenção que eu havia proposto.

[...] O que eu propunha dava o tal retorno pra TV, o Ibope, mas eu parei por aì. Não

consegui mais me renovar dentro disso. Me senti repetindo, me copiando.

(CARVALHO, 2001, p. 30)

Acreditamos neste estudo que a partir de Lavoura Arcaica inicia-se um perìodo de

revisão e reinvenção na produção artìstica de Luiz Fernando Carvalho, que irá se refletir

posteriormente nas proposições estéticas e nos processos de criação de todo o conjunto das

suas minisséries. Fora a investidura na pesquisa e na vivência, nas suas próximas produções

serão recorrentes a extensão e a intensificação do período laboratorial (COLLAÇO, 2013) de

pré-produção, o emprego de processos colaborativos de criação artìstica, o sólido

74

Declaração extraìda do Making of do filme acessado no DVD de Lavoura Arcaica. 75

CARVALHO, 2001, p.101. 76

O diretor assina não somente a direção, mas também o trabalho de montagem do longa-metragem.

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84

investimento na experimentação de linguagens, além da inscrição de um ritmo

cinematográfico nas produções, com a valorização e a amplificação expressiva dos elementos

da direção de arte.

O nìvel estético alcançado em Lavoura Arcaica, além dos prêmios conquistados

nacional e internacionalmente, contribuiu ainda para o reconhecimento e a valorização da

obra no meio da crìtica especializada, como coloca Mattos: “A soma de admiração,

perplexidade e objeções angariada à época do lançamento reflete o diálogo oblìquo do filme

com a cultura brasileira, sua posição singular de objeto sagrado em meio ao trânsito de

produtos.”77

. E esta conjuntura provavelmente contribuiu para a criação de um “status” do

diretor na Rede Globo e para a viabilização de seus projetos experimentais na emissora.

Após dedicar um perìodo da carreira à realização de Lavoura Arcaica, Luiz Fernando

Carvalho retorna à televisão e dirige, em 2001, a minissérie Os Maias, uma coprodução da

Rede Globo de Televisão com a emissora portuguesa SIC (Sociedade Independente de

Comunicação). Da autoria de Maria Adelaide Amaral, a partir do livro homônimo do escritor

Eça de Queiroz, a obra discorre sobre a trajetória de uma tradicional famìlia lisboeta e traça

uma crìtica social às tradições e aos valores morais da decadente aristocracia portuguesa do

século XIX, construindo uma história de vaidades, paixões e mortes.

77

MATTOS, Carlos Alberto em CARVALHO, 2001, p.7.

Figura 17. Lavoura Arcaica: projeto de arte sensorial.

Fonte: Lavoura Arcaica, 2001. (Frame)

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85

Com um processo de produção diverso ao desenvolvido em Lavoura Arcaica, adaptado

às especificidades técnicas e às estruturas industriais da dramaturgia televisiva, o elenco e a

equipe de arte de Os Maias contaram com um imenso aparato cênico disponibilizado pela

Rede Globo e com vultosos recursos para a criação e execução de sofisticados projetos de

figurino, cenografia e caracterização. Sob a condução do diretor de arte Mário Monteiro, e

alinhado ao conceito de vivência e às minuciosas pesquisas de referências visuais, materiais e

comportamentais do contexto espaço-temporal da narrativa, o seu projeto de arte cumpriu as

diretrizes realistas da direção na reconstituição impecável de Portugal do século XIX.

Com o intuito de fomentar e assinalar o realismo da minissérie, o projeto cenográfico,

assinado pelos cenógrafos Danilo Gomes, Ana Maria Mello e Mauricio Rohlfs, se pautou na

ambientação de grande parte das cenas na própria Lisboa e em outras cidades de Portugal,

entre as quais, Coimbra e Sintra. Segundo o site Memória Globo78

, as seis primeiras semanas

das gravações foram realizadas em locações portuguesas e, por isso, Os Maias é considerada a

primeira produção da Rede Globo a passar um perìodo tão extenso fora do Brasil. Outra parte

das sequências foi gravada também no Rio de Janeiro, tendo como cenários o Theatro

Municipal, o Palácio do Catete e o Museu do Açude, entre outros.

Alinhado a essas diretrizes realistas do projeto de arte e da cenografia, o projeto de

figurino criado por Beth Felipeck teve o propósito de construir um retrato da indumentária da

referida época. Os trajes cênicos foram inteiramente confeccionados na própria oficina de

costura da Rede Globo e algumas peças e adereços foram comprados em Londres, Espanha e

Portugal. Já a equipe de caracterização, sob a supervisão de Marlene Moura, e contando

também com a contribuição da maquiadora inglesa Joan Hills79

, foi a responsável por

transformações radicais nos atores, investindo-se no tingimento de cabelos e no uso de lentes

de contatos, e em cabelos volumosos, bigodes e cavanhaques (visagismo masculino),

compondo as personagens conforme o usual no contexto temporal da narrativa.

A indumentária dos atores seguiu as detalhadas descrições de Eça de Queiroz. As

roupas das atrizes contavam com crinolina (armação), blusa de baixo, calçola,

botina, espartilho, vestido, luvas, bolsinha, leque e adereços de cabelo. As dos

homens compunham-se de sobrecasaca, capote, cartola, luvas, bengala, botas, calça,

camisa, gravata e colete80

.

78

Disponível em: http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/minisseries/os-maias/producao.htm

Acessado em: 21de março de 2015. 79

Para conhecer o trabalho da maquiadora Joan Hills, acessar: http://www.imdb.com/name/nm0385130/ 80

Disponível em http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/minisseries/os-maias/figurino-e-

caracterizacao.htm Acessado em: 21de março de 2015.

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86

Toda a linguagem visual desta obra resultou de um sensìvel trabalho de conjunção entre

a plasticidade realista concebida pela direção de arte e a fotografia definida por um intenso

contraste de luz e sombra (de aproximação à estética de Lavoura Arcaica). A visualidade de

Os Maias foi concebida de forma a construir uma atmosfera cênica de contornos operìsticos,

potencializada principalmente pela paleta de cores, figurinos e desenhos espaciais, em

conjunto com a atuação dos atores. Esta particularidade conceitual aponta para uma tendência

estética que será ainda mais radicalizada nos trabalhos posteriores do diretor Luiz Fernando

Carvalho: o investimento cênico em elementos da representação teatral.

É importante pontuar, contudo, que embora a direção de arte em Os Maias revele o

resultado de um projeto primoroso, essencial na composição das personagens e na

estruturação da encenação, é somente a partir das minisséries posteriores do diretor que será

possìvel observar uma maior experimentação das potencialidades expressivas deste campo

estético, dando continuidade a algo já estabelecido. A minissérie Hoje é Dia de Maria,

primeira e segunda jornadas (exibidas em 2005), pode ser definida, nesse sentido, como o

trabalho mais emblemático dessa fase de reestruturação de seu processo criativo.

Concebida a partir da obra de Carlos Alberto Soffredini e com texto escrito por Luiz

Fernando Carvalho em parceria com Luìs Alberto de Abreu, a narrativa da minissérie associa

os contos e as cantigas de roda da cultura popular brasileira ao imaginário infantil e à

Figura 18. Os Maias: visualidade de contornos operìsticos.

Fonte: Os Maias, 2001. (Frame)

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linguagem dos sonhos, para traçar a trajetória mágica de Maria: a menina que migra do sertão

em busca das “franjas do mar”. Na primeira jornada, a protagonista vivencia as mais diversas

experiências e provações, é guiada pela Virgem Maria, enfrenta o Diabo, se torna mulher e

conhece o amor verdadeiro. Já na segunda jornada, a menina Maria encontra o mar, mas se

perde na cidade grande, onde conhece as grandes mazelas da humanidade.

A partir de uma imersão conceitual neste universo simbólico, Luiz Fernando Carvalho

propõe uma minissérie de perfil totalmente experimental, que vai além das convenções

televisivas e extrapola os padrões visuais até então construìdos na televisão e nas suas

produções anteriores. Substanciada por elementos estéticos da linguagem teatral e pela

concepção de uma materialidade cênica composta por elementos originais para uma

encenação televisiva, pautados no artificialismo e por um intenso diálogo criativo com

diferentes linguagens artìsticas, como o artesanato, o circo, os folguedos, as artes plásticas e a

animação, Hoje é Dia de Maria inova em termos de teledramaturgia. E, no que concerne a

visualidade da obra, o diferencial da minissérie de Luiz Fernando Carvalho está

essencialmente na densidade do conceito visual proposto.

A opção por uma estruturação não-realista da encenação e, para tanto, dos elementos da

direção de arte, cenários, figurinos e caracterização, está inteiramente alinhada à concepção

cênica do diretor, que definiu a linguagem visual da obra a partir de um mergulho vivencial no

texto e nas atmosferas e repertórios ideológicos que este articula. „“A infância me interessa

pelo primeiro olhar, o que me leva para o plano dos mitos, dos arquétipos” [...] “Não poderia

abordar esse tema de forma naturalista. E estou propondo ao espectador um jogo, um

exercìcio com as visibilidades.”81

. Toda a configuração cênica de base artificialista, desde a

atuação e gestos dos atores até a fotografia e a materialidade concebidas, extrai do improviso

do teatro mambembe os elementos para a construção de um grande palco improvisado de

teatro no espaço midiático da tevê, o que impulsiona a construção de uma visualidade

original. “Eu digo que Hoje é Dia de Maria é o teatro mais antigo do mundo. A questão é

como esse teatro mais antigo, como esse circo, dialoga com algo novo que é a linguagem

eletrônica, a linguagem da televisão”. 82

No processo de criação da minissérie, o ritmo da produção se distanciou da lógica

industrial da televisão e se caracterizou por uma perspectiva artesanal dos processos

produtivos. No período laboratorial da pré-produção, uma etapa de peso na concepção da

81

PIZA, D. Um cineasta no paìs da infância. In: O Estado de São Paulo, 15.11.04.

Disponìvel em: http://www.danielpiza.com.br/interna. asp?texto=1764. Acessado em 05 de abril de 2011. 82

Depoimento extraìdo do Making of da minissérie acessado no DVD de Hoje é dia de Maria.

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88

obra, foram meses de ensaios e de preparação corporal e vocal dos atores.

Concomitantemente, todos os profissionais envolvidos na confecção da materialidade cênica,

tiveram tempo para pesquisar, desenhar e executar figurinos, objetos, adereços e cenários,

concebendo projetos tecnicamente bem elaborados. O projeto de arte da minissérie, sob a

direção de arte de Lia Renha, constitui-se em um elemento fundamental na criação do mundo

propositalmente fantástico e lúdico proposto pela direção, sendo totalmente concebido sob o

vetor conceitual do artificialismo explicito (COLLAÇO, 2013), da experimentação e da

expressividade cênica. “A gente precisa começar um conceito e perseguir ele até as últimas

consequências... e dar certo”83

, explica Renha.

A obra teve como principais referências visuais a iconografia da cultura popular

brasileira, as particularidades formais da arte popular e os hábitos e costumes do povo

sertanejo, além dos trabalhos de artistas e pensadores brasileiros, entre os quais, Câmara

Cascudo, Mário de Andrade, Portinari e Silvio Romero. E ainda, em citações à cultura

universal, a minissérie reúne elementos visuais oriundos do universo dos sonhos, da literatura

e da magia dos contos de fadas, além de transitar entre os mundos mágicos de Cinderela e de

Alice no paìs das Maravilhas, pelas aventuras de Dom Quixote e pelo improviso cênico da

commedia dell`arte. Na paleta de cores de Hoje é Dia de Maria há um predomìnio dos tons

terra e ocres, com fortes pinceladas de cores quentes, como amarelos, laranjas e vermelhos,

em referência à luz e à visualidade sertaneja.

Embora contasse com a disponibilidade de toda a estrutura técnica da Central Globo

de Produção, Luiz Fernando Carvalho optou por realizar as gravações de Hoje é Dia de Maria

fora do Projac, e montou toda a estrutura de produção em um terreno externo ao complexo de

estúdios (em uma área também de propriedade da Rede Globo). Neste espaço, foi montado

um grande domo de lona (reutilizado do Festival Rock in Rio) de 26 metros de altura e 55 de

diâmetro, e dentro deste construìdo todo o cenário. Ao redor dos 170 metros do perìmetro da

cúpula foi instalado ainda um grande ciclorama de 10 metros de altura com pinturas das

paisagens cênicas feitas à mão. “Assim posso construir os planos, fugir do linear, ter uma

perspectiva livre como numa pintura em movimento. Todos os elementos do quadro ganham

função. [...]”84

, diz Carvalho. O projeto cenográfico da minissérie foi criado por Lia Renha e

João Irênio. Todos os ateliês de arte foram montados no espaço exterior do domo.

83

Depoimento extraìdo do Making of da minissérie acessado no DVD de Hoje é dia de Maria. 84

PIZA, D. Um cineasta no paìs da infância. In: O Estado de São Paulo, 15.11.04.

Disponìvel em: http://www.danielpiza.com.br/interna. asp?texto=1764 Acessado em 05 de abril de 2011

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89

A ideia de usar o domo, a cúpula, a sucata de um palco de show de rock em vez de

um estúdio tradicional é a ideia de trabalhar em um espaço que não fosse a realidade

em si, mas que se constituìsse como sendo a representação emocional de uma

determinada realidade, assim como os sonhos85

.

Outro diferencial da produção foi o emprego de materiais recicláveis para a elaboração

de objetos, adereços e figurinos. Nesta alçada, Luiz Fernando Carvalho contou com a atuação

do artista plástico Raimundo Rodriguez, cujo trabalho artìstico é pautado no reaproveitamento

de sucatas e materiais descartados, que na minissérie foram reutilizados criativamente para a

composição da materialidade cênica, tais como restos de papeis, fibra de vidro, embalagens de

alumìnio, retalhos, tampinhas de garrafa, serragem, entre outros. Este é o caso, por exemplo,

das traquitanas dos cavalos montados nas cenas, que criados com madeira e fibra de vidro,

foram revestidos com resìduos de tecidos, alumìnio e serragem. Na segunda jornada, há uma

reutilização de objetos antigos, principalmente brinquedos, que são reavivados no contexto

narrativo da obra. Como já citado no primeiro capìtulo desta dissertação, em Hoje é dia de

Maria ocorre ainda um investimento cênico na interação dos atores com tìteres e bonecos,

essenciais na criação do tom artificial da encenação da minissérie. Estes artefatos foram

criados pelo teatro de bonecos Giramundo.

Já a concepção dos figurinos da minissérie, um trabalho da figurinista Luciana Buarque,

impressiona pelo apuro visual e pela pujante riqueza simbólica. A primeira jornada teve como

principal referência temporal o século XIX, além de épocas históricas anteriores, e a segunda

jornada, o século XX em diante. Assim como o ocorrido na produção de arte, na criação dos

trajes da minissérie também é possìvel vislumbrar o uso de materiais recicláveis. Um dos

destaques nesta área é o figurino de papel criado por Jum Nakao para a Maria adulta, usada na

sequência em que esta abandona o Prìncipe no altar (primeira jornada). Outro traje que

merece ser citado é o de Dom Chico Chicote, na segunda jornada, cuja confecção envolveu o

uso de restos de metais e retalhos, e teve como principal referência o trabalho do artista

plástico Bispo do Rosário86

; há ainda o traje de Alonsa, personagem vivida por Leticia

Sabatella, que foi construìdo com papeis de bala descartados e pedaços de plásticos, entre

outros materiais. A caracterização das personagens, sob a supervisão de Vavá Torres, buscou

também as suas referências na expressividade teatral, se alinhando à paleta de cores, ao

figurino e à proposta experimental da minissérie.

85

Depoimento extraìdo do Making of da produção acessado no DVD de Hoje é dia de Maria. 86

Sobre o artista, acessar: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa10811/arthur-bispo-do-rosario.

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90

Por fim, consideramos neste estudo que o diferencial de Hoje é dia de Maria está

principalmente na linguagem visual estruturada pela composição de planos e esquemas da

encenação criada por Luiz Fernando Carvalho, que não resulta de um simples esteticismo,

mas do seu processo criativo, responsável por não somente adaptar de forma original o texto,

como articular todos os elementos sob um conceito visual unificador, rico em simbologias e

significados que envolvem e tocam o imaginário social e cultural dos telespectadores. A

minissérie obteve sucesso de crìtica e de público, e abriu portas para a realização de outros

trabalhos inovadores do diretor no âmbito da Rede Globo de Televisão.

O direcionamento estético construìdo em Hoje é Dia de Maria será o cerne da nova fase

criativa do diretor na televisão. A partir desta produção, Luiz Fernando Carvalho se dedicará a

projetos cuja essência narrativa visual se fundamentará no diálogo entre o teatro e a

linguagem televisiva, sob as premissas conceituais do artificialismo explícito. Este é o caso

das minisséries A Pedra do Reino e Capitu, obras pertencentes ao Projeto Quadrante, que

idealizado e coordenado por Luiz Fernando Carvalho, tinha por objetivo a realização de

adaptações de obras literárias de diferentes regiões do Brasil, buscando a construção de uma

reflexão sobre a cultura brasileira através da teledramaturgia.

O projeto contemplava a realização de quatro minisséries, a partir dos seguintes textos

literários: Romance D'A Pedra do Reino e do Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, de Ariano

Suassuna (Paraíba); Dom Casmurro, de Machado de Assis (Rio de Janeiro); Dois Irmãos, de

Figura 19. Hoje é dia de Maria, segunda jornada: figurino confeccionado com papeis de bala.

Frame: Hoje é Dia de Maria, 2005. (Still)

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Milton Hautom (Amazonas); e Dançar Tango em Porto Alegre, de Sérgio Faraco (Rio Grande

do Sul). Suspenso devido aos baixos ìndices de audiência, somente as duas primeiras

minisséries foram produzidas em um primeiro momento. Luiz Fernando Carvalho retomou o

Projeto Quadrante em 2014, com a produção da minissérie Dois Irmãos.

Com o projeto, o diretor objetiva resgatar textos de destaque da literatura brasileira,

visando aproximá-los do veículo de comunicação de massa mais presente nos lares

do país, a televisão, adotando para isso o uso de narrativas seriadas através de um

formato consolidado, as minisséries, balizadas principalmente por uma visão

renovada da obra, um viés educativo, uma aproximação visual com a geografia das

cidades representadas nos livros e por um modus operandi que passa pela

incorporação ao elenco e equipe de produção de um efetivo majoritariamente

constituído por mão-de-obra proveniente do local onde a trama se passa e é gravada.

(COLLAÇO, 2013, p. 07)

A minissérie A Pedra do Reino, veiculada pela emissora em 2007, foi gravada na cidade

de Taperoá, interior da Paraìba. Seguindo os princìpios produtivos estabelecidos pelo Projeto

Quadrante, a base de produção da minissérie foi toda montada na cidade e mobilizou a

economia e a mão-de-obra local e da região: artesãos, costureiras, bordadeiras, músicos,

marceneiros, pedreiros, mamulengueiros, artistas plásticos, entre outros profissionais; além de

contar com um elenco composto, em sua grande parte, por atores nordestinos. Estruturada por

uma narrativa circular, a minissérie se caracterizou ainda por uma estética marcada pelo uso

excessivo de grafismos, texturas e sonoridades, sob as diretrizes cênicas do artificialismo

explícito e da experimentação formal da linguagem televisiva. O projeto de arte da obra, cuja

direção de arte foi assinada por Raimundo Rodriguez (que já havia trabalhado com o diretor

Luiz Fernando Carvalho em Hoje é dia de Maria), teve as suas principais referências visuais

extraìdas do universo sertanejo e da essência ibérica/medieval da obra de Ariano Suassuna.

A partir desta perspectiva estética, o projeto cenográfico, assinado por João Irênio,

resultou do conceito criado por Luiz Fernando Carvalho de construção de uma cidade- lápide,

que assimilou referências visuais de cemitérios da região para conceber uma atmosfera de

morte e eternidade, se alinhando, desta forma, ao imaginário do texto de Suassuna. Concebida

como um espaço desenterrado por uma escavação, na montagem da cidade, a pavimentação

original de Taperoá foi coberta por areia e as fachadas originais das casas ocultadas por

tapadeiras que articulavam visualmente o conceito proposto pela direção. “[...] é como se

tivéssemos transformado em fachada aqueles pequenos oratórios que toda casa simples do

terceiro mundo traz em algum canto mágico da casa”87

, explica Carvalho. Toda a cidade

cenográfica demorou em torno de 25 dias para ser erguido.

87

Relato extraìdo do Making of integrado ao DVD da minissérie.

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Outro aspecto fundamental na concepção artificialista da minissérie, a produção de

objetos seguiu a mesma proposição do realizado em Hoje é dia de Maria, cuja inovação

esteve na ressignificação de sucatas e materiais recicláveis, recursos pouco usuais na

encenação televisiva. Na composição da materialidade cênica de A Pedra do Reino, tanto na

criação dos adereços quanto na composição dos trajes das personagens, foram reaproveitadas

latas de tinta usadas, tampinhas de garrafa, chapa de fotolito, metal, palitos de picolé, além de

elementos regionais, como ossos, sisal, palha, carnaúba, couro, entre outros.

O projeto de figurino, concebido pela figurinista Luciana Buarque (que também já vinha

de experiências anteriores com o diretor), teve como principais referências as artes, as cores e

as texturas da Idade Média. Considerando ainda os universos particulares de cada

personagem, foram criados trajes tanto com tecidos nobres como a seda quanto por tecidos

próprios da região, como algodão e rendas. Entre as peças confeccionadas para a minissérie,

destacamos aqui o figurino da personagem Margarida, que teve uma máquina datilográfica

acoplada ao corpete (criado em gesso), pesando em torno de sete quilos e meio. Dialogando

com os cenários e os figurinos, a caracterização dos atores, supervisionada por Vavá Torres,

seguiu também a estética medieval e a plasticidade das maquiagens circenses e teatrais.

Já a segunda produção do Projeto Quadrante, a minissérie Capitu, veiculada pela Rede

Globo no ano de 2008, foi toda gravada na cidade do Rio de Janeiro. Neste trabalho, o diretor

Figura 20. A Pedra do Reino: visualidade com referências à Idade Medieval.

Fonte: A Pedra do Reino, 2007. (Still)

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mantem a sua aposta em uma configuração cênica não realista e artificialista, substanciada

pela sua pesquisa acerca da linguagem teatral - iniciada em Os Maias e evidenciada aqui,

sobretudo, pela concepção de um espaço único de encenação e de uma materialidade cênica

de contornos operìsticos -, e define este direcionamento estético como uma homenagem à

seguinte frase de Machado de Assis: “A realidade é boa, o realismo é que não presta para

nada.” 88

. Para Luiz Fernando Carvalho, a minissérie não é uma adaptação do livro Dom

Casmurro, de Assis, mas uma aproximação ao referido texto literário e ao conjunto da obra do

escritor. “Costumo dizer que não acredito em adaptações, acho que as adaptações sempre são,

de certa forma, um achatamento da obra, um assassinato do texto original.” 89

.

As principais diretrizes conceituais da produção se originam, assim, de uma crença na

essência atemporal da obra do escritor que, enfatizada esteticamente, se torna expressiva nos

anacronismos que permeiam os planos de Capitu, desde os elementos materiais até a atuação

do elenco (além de se evidenciar na sua sonoridade), e no forte investimento do diretor no

caráter existencial e trágico da dúvida e da transitoriedade do tempo, ou seja, aspectos

narrativos presentes no livro que definem todo o esquema de encenação da minissérie. Neste

processo criativo, as principais referências visuais são os comportamentos e os costumes

sociais do século XIX e o advento da modernidade no Rio de Janeiro - abordado em

construções imagéticas que remetem ao surgimento do trem e do cinema, e à popularização da

ópera -, junto a uma evocação estética de movimentos artìsticos do inìcio do século XX, o

surrealismo e o dadaìsmo, que, segundo o diretor, têm forte diálogo com o texto de Machado

de Assis e o inspiram na sua opção pelo emprego de “[...] assemblages, colagens, repetições,

afiches, cartazes, cartelas e com a proposta de distanciamento entre obra e espectador” 90

.

Este conjunto de elementos visuais é então articulado cenicamente a dispositivos

deslocados da contemporaneidade, que determinam novos sentidos narrativos na obra e

contribuem para a concepção de uma visualidade de pleno diálogo com o século XXI. Assim,

dentre as cenas construìdas na minissérie, é possìvel ao telespectador assistir a um suntuoso

baile do século XIX, cujo estranhamento estético se dá pelo fato dos convidados acessarem a

música através de modernos fones de ouvidos; e já em outras sequências, vislumbrar planos

que assumem a tatuagem (contemporânea) da atriz que interpreta Capitu adolescente (Leticia

Persiles), em total conflito cronológico com o traje da personagem com inspiração na

indumentária de época. Tais direcionamentos definem implicações estéticas no trabalho de

88

CARVALHO, Luiz Fernando. O processo de Capitu. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008, p. 76 89

CARVALHO, 2008, p. 75 90

Ibid, p. 80

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concepção da materialidade cênica da obra e interferem diretamente na sua visualidade,

corroborando a opacidade do discurso audiovisual proposto. Todo este repertório material e

visual é sensivelmente articulado sob o ponto de vista particular de Luiz Fernando Carvalho,

que concebe a minissérie como um grande espetáculo de ópera, tanto nas escolhas referentes à

paleta de cores e ao desenho da luz, quanto nos espaços, nos trajes e na caracterização dos

atores. Sob uma nova perspectiva de linguagem, o diretor cria e estrutura na obra a encenação

de uma ópera-bufa no espaço midiático da televisão brasileira.

A ópera teve um papel nessa aproximação que proponho. Machado era um

apaixonado pela ópera, ele escreveu e afirmou que a vida é uma ópera bufa com

entremeios sérios, com alguma música séria... Quando Machado afirma isso, ele está

também querendo refletir sobre o mundo das aparências, onde muitas vezes a

verossimilhança conta mais do que a própria verdade. Esse é o mundo das máscaras,

é o mundo da ópera como metáfora do mundo social. (CARVALHO, 2008, p. 77)

Atuando novamente ao lado do diretor, Raimundo Rodriguez assina a cenografia e a

produção de arte da minissérie. Todas as cenas foram gravadas em um único espaço cênico, o

salão de um palacete abandonado no centro do Rio de Janeiro. Neste ambiente, os cenários

foram criados sem divisões por paredes ou portas fixas (estas são móveis e deslocadas pelos

próprios atores conforme as necessidades das cenas), esvaziados e compostos por poucos

objetos, permitindo a liberdade de improvisação de atuação e de movimento dos atores em

cena. Trabalhando sob a ideia do artificialismo explícito, as paredes do imóvel foram cobertas

por camadas de papel, para se criar e evidenciar as texturas de ruìnas.

Figura 21. Criação espacial sob as diretrizes do artificialismo explícito em Capitu.

Fonte: Capitu, 2010. (Frame)

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No centro da cidade, na rua do Passeio, em frente ao Passeio Público e ao lado da

Escola Nacional de Música, encontrei um cenário, que é um palácio. Praticamente

em ruínas, decadente e abandonado, infelizmente, mas que serviu como uma luva às

nossas necessidades de produção da minissérie. Estou falando do Automóvel Clube

do Brasil. Quando percebi que o orçamento da minissérie não possibilitaria gravar

nas diversas ruas e casarões antigos que eu havia pensado e pesquisado, o velho

palácio em ruínas passou a representar um pouco da alma da história de Dom

Casmurro, se não um pouco da própria visão machadiana, e então me pareceu

interessante contar a história toda lá dentro, encenando todos os ambientes e

situações. (CARVALHO, 2008, p. 82)

Já o figurino da minissérie, criado por Beth Filipeck, traz referências da indumentária

do século XIX e se caracteriza por desenhos alinhados à dramaticidade da ópera, mas

modernizados nos cortes, ornamentos e efeitos visuais artificialistas. Um dos destaques é o

figurino da protagonista Capitu, que na infância vestia roupas claras e em tons pastel, com

aplicações de flores e folhas, em uma alusão às suas brincadeiras no quintal. Na fase adulta, a

personagem veste trajes e acessórios em cores quentes e com formas que ressaltam o seu

perfil enigmático e a sua feminilidade. “As roupas de Capitu foram cortadas obliquamente, tal

como seu olhar enviesado de cigana. O volume de seus vestidos se expandia em novas cores

através de efeitos especiais”. 91

. Em atuação complementar ao figurino, os responsáveis pela

caracterização foram Marlene Moura, Rubens Libório e Deborah Levis, que, entre outras

ações, envelheceram o ator protagonista/narrador a partir de técnicas da maquiagem teatral,

definindo ares de cinema mudo à minissérie.

Após a suspensão do Projeto Quadrante, a próxima produção de Luiz Fernando

Carvalho na Rede Globo será a minissérie Afinal, o que querem as mulheres?, exibida pela

emissora entre novembro e dezembro de 2010. Embora ainda seja possìvel vislumbrar, na sua

estrutura de encenação, elementos oriundos das linguagens concebidas nas produções

anteriores do diretor, principalmente no que concerne ao conceito de artificialismo explícito,

norteador de parte das suas cenas, esta minissérie já apresenta, porém, uma concepção

audiovisual que rompe parcialmente com a sua fase teatral. A sua visualidade, mais próxima

às estruturas da encenação televisiva, se fundamenta em um hibridismo de linguagens,

articulando elementos formais dos videoclipes, da animação e da publicidade, além de um

forte diálogo com as artes visuais contemporâneas.

Escrita por João Paulo Cuenca com coautoria de Michel Melamed e Cecìlia Giannetti, e

texto final do próprio Carvalho, a obra apresenta a história de André (Michel Melamed), um

pesquisador que se propõe a responder, na sua tese de doutorado, à famosa pergunta do

91

Disponível em: http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/minisseries/capitu/figurino-e-

caracterizacao.htm. Acessado em: 25de março de 2015.

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psicanalista Sigmund Freud a qual se refere o tìtulo da minissérie. O protagonista é

apaixonado por sua esposa Lìvia (Paola Oliveira), uma artista plástica que termina este

relacionamento devido à falta de diálogo entre os dois.

Segundo o site Memória Globo92

, o conceito de hiper-realidade norteou todo o trabalho

das equipes de arte e de fotografia da minissérie, que tiveram como principais referencias

visuais a iconografia da pop art, em especial da pintura de Andy Warhol, o universo kitsch e a

fotografia erótica de David LaChapelle. A paleta de cores da obra policromática, expressiva

na composição dos planos e em total diálogo com o desenho da luz, foi extraìda das pesquisas

visuais realizadas, e se configura como um importante elemento narrativo das cenas. Assim

como a cenografia, assinada por João Irênio, que se caracteriza por uma detalhada

composição conceitual de espaços. O cenário construìdo para a casa da mãe do protagonista

André, por exemplo, se pauta na disposição excessiva de objetos e elementos decorativos

oriundos da estética kitsch, tais como anões de jardim, samambaias e flores de plástico,

concebendo-se, dessa forma, um quadro fìlmico irreverente e instigante. Observa-se que,

nesta produção, há um retorno de Luiz Fernando Carvalho aos estúdios televisivos, o que é

inclusive sinalizado na narrativa por cenas que assumem a presença fìsica da câmera e da voz

off do diretor, imprimindo um caráter metalinguìstico à obra.

92

Disponível em: http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/seriados/afinal-o-que-querem-as-

mulheres-/cenografia-e-arte.htm Acessado em: 20de abril de 2015.

Figura 22. Afinal, o que querem as mulheres?: cenário com referências ao universo kitsch.

Fonte: Afinal, o que querem as mulheres?, 2010. (Frame)

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97

Já o projeto de figurino criado por Beth Filipecki, segue a proposição estética da

minissérie e se caracteriza por combinações criativas de formas e cores. Os trajes e adereços

são desenhados conforme o perfil de cada uma das personagens e sob as diretrizes de um

meticuloso trabalho de criação artìstica, cujos significados extrapolam o seu papel de

composição das personagens, tornando-se, por vezes, um elemento dramático das cenas, e

central na estruturação dos planos. Em uma determinada sequência do casamento de Lìvia

com o Homem Perfeito, por exemplo, observa-se um alto grau de interação entre a

personagem e o seu traje (um véu de material plástico) que metaforicamente a aprisiona,

conforme o delìrio amoroso do protagonista André. Dialogando com todo este repertório e

com toda a visualidade construìda na obra, a caracterização das personagens, realizada

por Rubens Libório, se pauta, nas personagens femininas, pelo realce dos penteados e traços

faciais, principalmente os olhos, sob o prisma do erotismo e da sensualidade.

Com base nesta sistematização de informações, podemos concluir que a partir de Hoje é

dia de Maria, seguindo nas minisséries posteriores do diretor, A Pedra do Reino, Capitu e

Afinal, o que querem as mulheres, é perceptìvel a implementação de uma nova postura

estética de Luiz Fernando Carvalho frente à construção de visualidades na produção

televisiva, que se reflete, sobretudo, em um intenso investimento nos processos da direção de

arte, cujos elementos ganham relevância expressiva e protagonismo na composição dos

planos. Isso se deve, principalmente, às estruturas de encenação destas obras, que, por

seguirem percursos não realistas fundamentados no artificialismo explícito, abriram espaço

para uma maior experimentação nos diversos campos da criação visual.

A minissérie seguinte Suburbia, de 2012, já representa, porém, uma ruptura estética

frente a este conjunto de produções. Seguindo uma proposta cênica que se referencia na

linguagem documental cinematográfica, com influências estéticas, inclusive, do cinema novo,

nesta obra o diretor volta a se aproximar do realismo, e embora crie uma visualidade ainda

alimentada pelas experiências criativas vivenciadas nas últimas minisséries, se distancia

totalmente do artificialismo explícito. Uma nova diretriz conceitual que se reflete nos

processos da direção de arte, que, assinada por Mário Monteiro, aposta em projetos de

cenografia, figurino e caracterização de forte correlação visual com a realidade social

retratada na obra: o subúrbio carioca.

Se eu for fazer uma reflexão sobre os meus últimos dez anos, encontro ali uma

tendência muito forte, uma pesquisa com o teatro, com a ideia da representação, do

mundo como representação: Hoje é Dia de Maria, A Pedra do Reino, até mesmo

Capitu, que foi encenada em um só lugar, e ainda Os Maias, em que já havia uma

busca de um espaço operìstico com os pés-direitos dos cenários, a forma como eu

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enquadrava, a luz teatral, a presença da ópera na trilha sonora. Por definição, eu

chamaria esse perìodo de “tetralogia teatral” que vai desde Os Mais até Capitu, no

qual, misturando várias linguagens – teatro, cinema, literatura, folguedos populares,

circo, ópera, investiguei esses limites da representação na televisão, me apoiando

nessas convenções não televisivas, mas acreditando que a televisão é uma mistura de

tudo isso. [...] Ao pensar Suburbia, de certa forma, sim, eu já estava fazendo uma

autocrìtica em relação àquele perìodo. (CARVALHO; CADERNO GLOBO

UNIVERSIDADE, 2012, p. 82-3).

Ao propor uma representação televisual da cultura e das condições de vida das

populações negras suburbanas, a obra reflete ainda o comprometimento do diretor com o que

acredita ser do papel social e educacional da televisão. Escrita por Luiz Fernando Carvalho,

em parceria com o escritor Paulo Lins, apresenta a história de Conceição, uma moça negra, de

beleza escultural e com talento para a dança, que enfrenta na infância a miséria e a exploração

do trabalho nas carvoarias do interior de Minas Gerais, mas foge para o Rio de Janeiro em

busca de melhores condições de vida. A sua narrativa aponta para questões caras à sociedade

brasileira, tais como escravidão, racismo e violência, fomentando, dessa forma, discussões e

debates crìticos sobre as temáticas abordadas. A escolha de Suburbia como objeto de análise

desta pesquisa se justifica tanto pelo discurso construìdo quanto pelo papel de ruptura que esta

obra desempenha na carreira do diretor. Pretendemos, assim, no terceiro capìtulo desta

dissertação, entender o processo de criação da minissérie, principalmente a articulação entre

narrativa e direção de arte, e suas reverberações na visualidade da obra.

Figura 23. Suburbia: proposta estética fundamentada no realismo.

Fonte: Suburbia, 2012. (Still)

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99

Todavia, em 2013, com a montagem do teveliê, ocorre uma reorganização dos processos

produtivos do Núcleo de Teledramaturgia de Luiz Fernando Carvalho. Neste novo contexto

espacial, os resultados finais alcançados nas obras se particularizam como decorrentes de um

processo em que toda a equipe - figurinistas, cenógrafos, produtores, animadores, músicos,

atores, costureiras, maquiadores, e etc. - atuaram de forma conjunta e colaborativa na criação

da sua narrativa, do primeiro ao último capìtulo. O ateliê, projetado sem paredes, foi

concebido sob o conceito de eliminação de hierarquias e de imposições criativas, no qual os

processos de criação, ensaios e reuniões são abertos a toda equipe, permitindo e estimulando

que todos os profissionais envolvidos no projeto opinassem criativamente em todas as áreas

da feitura audiovisual. “Aqui no galpão sou apenas um alquimista, um sujeito que recolhe

tudo isso e busca um sentido estético”93

, declara o diretor.

[...] Aprendendo uns com os outros, todos atuam como coautores da obra a ser

realizada, tornando assim o aprendizado um momento lúdico e rigoroso que seguiu

até o último capìtulo da novela. Ao estimular profissionais de diferentes áreas a

trabalharem num mesmo espaço, o diretor potencializou a criação de ideias e

soluções para dar forma nova à Meu pedacinho de chão, incentivando sempre o

cruzamento dos conhecimentos e da criatividade de cada integrante da equipe.

(CARVALHO, 2014, p. 3-4)

As primeiras produções inteiramente concebidas no teveliê compreendem a série

Correio Feminino (veiculada na grade do Fantástico) e o especial Alexandre e outros heróis,

ambos os programas exibidos em 2013, além da novela Meu Pedacinho de Chão, exibida em

2014. Baseado nos textos jornalìsticos de Clarice Lispector escritos sob o pseudônimo de

Helen Palmer, nos quais a escritora aborda temáticas direcionadas ao público feminino, como

amor, casamento e beleza, o seriado Correio Feminino apresenta uma visualidade concebida

sob as diretrizes conceituais do artificialismo explícito e inspirada na estética da propaganda

de moda dos anos 1960. No programa, o diretor cria uma estrutura de encenação que assume a

artificialidade do estúdio televisivo e articula uma materialidade cênica inspirada nos hábitos,

comportamentos e objetos da referida época. “Naqueles anos, predominava um tipo de

anúncio com fotografias muito coloridas. A ideia é resgatar o visual dos anúncios daquela

época e dar tridimensionalidade à propaganda, numa homenagem aos designers do passado e

numa tentativa de revelar uma outra Clarice para além da imagem da grande escritora.”,

define Luiz Fernando Carvalho. O figurino foi criado a partir de uma parceria entre Luciana

Buarque e Thanara Schönardie e a produção de arte é creditada a Marco Cortez.

93

CARVALHO, Luiz Fernando. Meu pedacinho de chão. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2014, p.4.

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Em Alexandre e outros heróis, uma adaptação do livro de contos de Graciliano Ramos,

o diretor aposta em uma encenação de contornos realistas. As gravações foram realizadas na

cidade de Pão de Açúcar, no sertão alagoano, a terra do escritor, e teve como locação uma

casa antiga às margens do rio São Francisco. Com a direção de arte assinada por Raimundo

Rodriguez, o especial constrói um retrato do universo sertanejo na década de 1940, e a partir

destas demarcações são concebidos os projetos do figurino, creditado a Luciana Buarque, e a

produção de arte, assinada por Mario Cortez. A caracterização, criada por Rubens Libório, dá

o tom imaginativo e cômico à obra. Na paleta de cores há um predomìnio de cores terrosas

para as cenas do presente da narrativa, e de tons claros, acentuados pelo emprego de luz

branca difusa e do contraluz, para as lembranças da infância do protagonista Alexandre.

Figura 25. Paleta de cores de Alexandre e outros heróis: cores terrosas.

Fonte: Alexandre e outro heróis, 2013. (Foto de divulgação)

Figura 24. Correio Feminino: proposta de artificialismo explìcito.

Fonte: Correio Feminino, 2013. (Still)

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Já a telenovela Meu Pedacinho de Chão, de autoria de Benedito Ruy Barbosa, demarca

uma dilatação do nìvel experimental das produções de Luiz Fernando Carvalho. Apontada

como uma das visualidades mais extravagantes e inovadoras da teledramaturgia brasileira, a

obra transcende os limites da experimentação e do hibridismo de linguagens até então

construìdos pelo diretor, que retoma a sua pesquisa sobre a linguagem teatral e reúne

elementos estéticos de todas as suas produções anteriores, principalmente o artificialismo

explícito. A visualidade de Meu pedacinho de chão mantém inclusive fortes referências à

minissérie Hoje é dia de Maria, mas as supera em termos de expressividade cênica,

concebendo uma encenação marcada pelo uso ousado e transgressor de formas, cores e

sonoridades. O que evidencia, sobretudo, uma radicalização dos processos da direção de arte,

decorrente possivelmente da ampliação criativa e discursiva proporcionada pelo teveliê.

A pesquisa sobre o imaginário infantil é o que dá o tom visual à novela, cuja

plasticidade remete a ludicidade e a poesia pueril. A obra teve como principais referências as

pinturas surrealistas pop americanas, o Vaudeville, a Commedia Dell‟Arte, a Ópera, os

mangás japoneses, as histórias em quadrinhos, os contos de fadas, o circo e o Bang Bang;

uma miscelânea imagética determinante na criação de um conceito coeso e denso que

direciona todo o processo de composição das personagens e da cenografia, do figurino, da

caracterização, da animação, da montagem e da trilha sonora: “[...] equipe e atores receberam

Figura 26. Meu Pedacinho de Chão: radicalização expressiva da direção de Arte.

Fonte: Meu Pedacinho de Chão, 2014. (Foto de divulgação)

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de seu „maestro‟ conceitos que passavam pela fábula, pela memória da infância de cada um da

equipe, pelos brinquedos antigos e pela atemporalidade dos contos de fadas”94

.

A estruturação da encenação se articula, assim, a esta premissa conceitual para

materializar o universo narrativo construìdo pelo texto: uma pequena vila rural situada no

interior do Brasil, na qual os acontecimentos são narrados pelo ponto de vista de uma criança.

Na obra, este contexto espaço-temporal é estilizado e a cidade cenográfica da novela toma as

feições de um mundo “de brinquedo”, cujas peças teriam sido criadas e montadas pelo

menino/protagonista. Toda a materialidade cênica é então pensada de forma a expressar a

ideia de artificialidade, definindo-se o plástico e a sucata como as principais matérias-primas

da produção. A maior parte dos elementos compositivos de cenários, objetos de cena e

figurinos resultam do reaproveitamento de lixo e artefatos em desuso, por vezes da própria

emissora, reciclados pela equipe de arte dentro do teveliê. Os espaços da cidade cenográfica

montada no Projac são compostos, entre outros elementos, por árvores forradas de crochês

multicoloridos, jardins de flores de plásticos e construções revestidas por latas de alumìnio,

recortadas com diferentes formas e cores a depender do perfil do morador/ personagem. Para

Meu pedacinho de chão o diretor mantem dois cenários montados nos estúdios da emissora do

inicio ao final da novela, o que em si representa uma situação inusitada, já que estes tipos de

cenários são normalmente montados e desmontados diariamente.

Já o trabalho de figurino e caracterização cooperou intensamente na composição das

cenas e das personagens. Os trajes, concebidos pela estilista e figurinista Thanara Schönardie,

foram um dos principais destaques da produção. Os desenhos e cortes inovadores foram

pensados a partir de um forte conceito de design que seguiu uma opção pelo uso de materiais

originais à encenação televisiva, tal como o plástico, em suas diversas variedades. O processo

de criação das peças determinou ainda a necessidade da execução de procedimentos técnicos

incomuns a costureiras e bordadeiras, que precisaram costurar e alinhavar não apenas tecidos,

mas também canudos, papéis de bala, papel celofane, entre outros materiais. O resultado final

visto na tela encanta e deslumbra os telespectadores, refletindo uma concepção de figurino

ousada e criativa, que revela o empenho de toda a equipe.

O departamento de figurino foi primordial no processo de criação de todos os

setores da novela. A tal ponto que, a pedido do diretor, a mesa de trabalho das

costureiras, modelistas, bordadeiras e contra-mestras foi instalada na parte central do

galpão de criação. Todos os dias, todos os olhos de todas as pessoas da equipe de

Meu Pedacinho de Chão passavam ali e viam profissionais desfiando celofane,

bordando com canudos, recortando tapetes de borracha e aplicando balas e doces em

sapatos femininos. Era uma área de intensa experimentação, produção e criatividade,

94

CARVALHO, 2014, p.5

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que alimentou de alguma maneira todos os setores da novela – da cenografia à

animação, das artes plásticas à edição, da produção de arte ao elenco. (CARVALHO,

2014, p. 27)

Diante da trajetória de Luiz Fernando Carvalho na Rede Globo, entendemos, por fim,

que as linguagens visuais concebidas nas suas obras resultam de uma intensa parceria entre o

diretor e a suas equipes de arte, pouco diversificadas no panorama das suas produções. Assim

como, os nìveis estéticos alcançados resultam de seus questionamentos sobre a essência da

produção teledramatúrgica e de uma notável subversão da estrutura industrial televisiva, que o

leva a expandir os limites de recursos, espaços e formatos da representação. Trabalhando com

diretores de arte ou exercendo ele próprio indiretamente a função em simultaneidade com a

direção geral, o fato é que é perceptìvel uma valorização estética e um empoderamento da

materialidade cênica nas suas obras: os cenários não são simples panos de fundo, e sim

coadjuvantes das cenas, assim como os figurinos e as maquiagens deixam de ilustrar e passam

a significar, corroborando a construção de atmosferas únicas. A direção de arte é, assim, um

dos principais instrumentos nas mãos criativas deste autor, que inquieto e em busca de novos

pontos-de-vista narrativos, brinda os telespectadores a cada nova produção com visualidades

que acolhem e estimulam a sensibilidade, e que o refletem como um artista atuante na

construção de marcos estéticos da televisão brasileira.

Neste sentido, para concluir, recordemos uma frase de autoria do poeta Jorge de Lima

(1893-1953), e sempre citada por Carvalho em seus depoimentos, por ser usada como um

estìmulo poético aos atores no processo de preparação e dos ensaios, mas que parece resumir

bem a essência do processo criativo do diretor tanto em obras televisivas quanto em

cinematográficas: “Como conhecer as coisas, senão sendo-as?”. No conjunto da obra de Luiz

Fernando Carvalho, ser o outro, seja ele, alma ou matéria é essencial. A materialização de uma

fábula resulta de um mergulho vivencial sobre o texto, que é “dissecado” em todas as suas

potencialidades e particularidades estéticas, visuais, sonoras e materiais; para que então seja

materializado a partir de uma criação artìstica compartilhada, alimentada não somente por

suas experiências de vida, mas também as das suas equipes.

Mas então, quando você reúne esse grupo todo, a linguagem fica sendo um conjunto

de coisas que você viveu até então na sua vida, conjunto do que você ouviu, do que

você leu, do que você experimentou – é um conjunto muito vasto e amórfico

mesmo, da sua experiência de vida, orientado pela necessidade de expressar tudo

isso que você viveu até o momento de bater a claquete. Bateu a claquete, você faz de

tudo isso a tua arte e traduz: “Vai! Pula!” (CARVALHO, 2001, p. 18)

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Todo este trabalho de “afinação de orquestras” resulta, portanto, de um processo de

criação particular do diretor, pautado no perfeccionismo, na experimentação estética e na

“vivência”. Seja qual for o universo a ser construìdo, este será uma equação destes três

fatores, que juntos definem o estilo de Luiz Fernando Carvalho. E cabe à direção de arte,

nesta conjuntura, uma carga substancial de potência sensìvel e criativa para a concepção de

materialidades e de nuances ìmpares, e o que é mais interessante, resultantes de processos

dilatados e singulares, concebidos no âmbito da produção de teledramaturgia da Rede Globo:

um sopro artesanal na célere indústria televisiva.

*

Neste segundo capìtulo, apresentamos uma sistemática histórica e empìrica dos

conceitos e das práticas que norteiam os processos criativos da direção de arte no contexto da

indústria televisiva, em especial na Rede Globo de Televisão. Todo este repertório foi traçado

de forma a construirmos uma abordagem da direção de arte no percurso criativo de Luiz

Fernando Carvalho na teledramaturgia, buscando-se tanto um entendimento da sua trajetória

na referida emissora quanto do espaço ocupado pela direção de arte nas suas obras.

A partir das conclusões alcançadas, partiremos então para a análise da visualidade de

Suburbia, que produzida sob os moldes particulares do processo criativo do diretor se integra

assim ao conjunto de produções analisado. Mas, embora se alinhe aos seus direcionamentos

processuais, principalmente à ideia da vivência sobre a narrativa e da experimentação de

linguagens, a obra traz também rupturas estéticas frente a esta linhagem criativa, o que é

evidenciado pela direção de arte, como será discutido no próximo capìtulo.

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3. A direção de arte da minissérie Suburbia

Neste capìtulo, apresentamos a análise do objeto de estudo desta pesquisa, a minissérie

Suburbia, como o resultado do percurso investigativo realizado neste trabalho, que teve como

principal objetivo abordar os conceitos e as práticas da construção de visualidades a partir da

função da direção de arte. Tendo como base o repertório teórico e conceitual sistematizado

nos capìtulos anteriores, partimos da perspectiva empìrica dos processos da direção de arte no

contexto da teledramaturgia da Rede Globo de Televisão e do entendimento do “lugar” da

direção de arte no processo criativo de Luiz Fernando Carvalho, para realizar, assim, a análise

da visualidade de Suburbia, considerando a sua relação com o texto e a estrutura de

encenação construìda.

Para tanto, no primeiro momento deste processo analìtico, nos deteremos em uma

interpretação da narrativa da obra para compreendermos as escolhas estéticas e a estrutura da

encenação propostas pela direção, e os seus desdobramentos no projeto de arte e na

visualidade da minissérie. Exibida em oito capìtulos pela Rede Globo, entre novembro e

dezembro de 2012, Suburbia, como já dito, focaliza parte do contingente social vinculado à

população afro-brasileira, principalmente no Rio de Janeiro: a vida comunitária nos subúrbios,

as condições precárias de trabalho, a violência policial e do tráfico de drogas, a religiosidade

sincrética e uma série de manifestações culturais ligadas à música e à dança. E, neste sentido,

para além das perspectivas criativas dos autores sobre a narrativa, mostrou-se relevante

também nesta abordagem, um entendimento das particularidades da realidade urbana retratada

e do imaginário social circunscrito na representação do negro na televisão, em especial na

teledramaturgia, tendo como base as discussões propostas no livro A Negação do Brasil: o

negro na telenovela brasileira (2004), de Joel Zito Araújo, sem, contudo, nos aprofundarmos

teoricamente nestas questões, já que este não é o objetivo deste trabalho.

Situando ainda a realização desta minissérie no atual panorama da televisão brasileira,

em que se evidencia uma série de transformações processuais do meio, em decorrência da

incursão para a convergência técnica e estética da linguagem televisiva com o cinema,

podemos relacionar a criação do argumento desta minissérie com uma tendência recorrente na

produção cinematográfica nacional, que é a de retratar, através de narrativas documentárias ou

ficcionais, acontecimentos vivenciadas por moradores de morros, favelas e subúrbios

dominados pelo tráfico de drogas; uma proposta que teve inìcio na década de 1990 com o

filme Notícias de uma guerra particular (1999), dos cineastas João Moreira Salles e Kátia

Lund, e que tem no filme Cidade de Deus (2002), dirigido por Fernando Meirelles e Kátia

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Lund, baseado no livro homônimo de Paulo Lins, um dos seus principais expoentes.

Em Suburbia, uma obra considerada de ruptura com a linha conceitual das minisséries

anteriores do diretor Luiz Fernando Carvalho, há uma aposta na experimentação de

linguagens a partir da criação de uma estética predominantemente cinematográfica, pautada

pela opacidade no discurso audiovisual e no uso dos meios técnicos de produção, com fortes

traços do cinema moderno, como a câmera na mão e jump cut’s95

. O realismo96

proposto se

pauta ainda por uma intensa carga de lirismo que permeia esteticamente os planos e se

circunscreve principalmente na concepção espacial e cromática das cenas, corroborando a

criação de uma atmosfera de contornos sensoriais.

A ficção televisiva brasileira está em rápido processo de transformação, rumo a um

paradigma narrativo e de composição audiovisual imprevisìvel até há pouco mais de

uma década, quando a crìtica e os estudos acadêmicos não davam mostras de que se

pudesse distanciar muito do que até então se fazia. As minisséries dirigidas por Luiz

Fernando Carvalho são casos privilegiados para detectar o processo. Hoje é dia de

Maria (2005), A Pedra do Reino (2007) e Capitu (2008) romperam com o prescrito

em manuais de realização televisiva, quase sempre aristotélicos e narrativamente

clássicos. Não que essas minisséries sejam os únicos produtos a destoar, mas são os

frutos mais bem-sucedidos da decantação de experiências e trocas entre televisão,

cinema e outras artes, midiáticas ou não. Em conjunto com produtos de outros

realizadores, inclusive de telenovelas, as minisséries de Luiz Fernando Carvalho

abrem possibilidades antes negligenciadas. Suburbia é mais um passo nesse sentido.

(PUCCI JR; CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE, 2013, p. 47)

Para contextualizar Suburbia na estrutura institucional e discursiva da teledramaturgia

da Rede Globo, é importante considerar também que a minissérie - um formato narrativo que

se enquadra no gênero das narrativas seriadas por ser estruturado em capìtulos e blocos e

exibida em dias distintos - é um produto que ocupa um espaço privilegiado na programação

da referida emissora, marcado por uma tendência à experimentação da linguagem televisiva e

por produções com propostas narrativas inovadoras, que mantêm uma forte relação com a

estética e o rigor da criação cinematográfica97

. Como define Balogh (2002, p.127):

95

Raccord entre dois planos quase idênticos, entre os quais a distância espaço-temporal é muito fraca.

(AUMONT; MARIE 2001) 96

Utilizamos a ideia de realismo, próxima à consideração ao chamado realismo crìtico (XAVIER, 2005, p. 64);

“Em geral, tais propostas combinam-se com a tentativa de romper o mecanismo de identificação,

estabelecendo-se certos procedimentos cujo objetivo é produzir o distanciamento crìtico do espectador. Neste

caso, fica evidente também a inspiração de Brecht, o que não significa uma garantia de realização de um

cinema que se poderia definir como brechtiano. Tal cinema não tem ainda claramente equacionadas suas

próprias condições de possibilidade e, consequentemente permanece extremamente discutìvel a validade

desta qualificação, mesmo quando aplicada a filmes saturados de procedimentos ditos de distanciamento” 97

É importante pontuarmos que, devido, provavelmente, a uma confusão na conceituação e no emprego de

terminologias para a programação televisiva, é recorrente que Suburbia seja definida pela Rede Globo em

produtos associados à obra como um seriado, o que entendemos como o equìvoco, já que a sua estrutura

narrativa linear, dividida em capìtulos inter-relacionados, é bem caracterìstica de uma minissérie.

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Como se trata de um conjunto de obras de acabamento mais apurado e estrutura

mais coesa e menos esquemática do que as demais obras ficcionais da TV, são

frequentes os momentos em que a minissérie pode se tornar um espaço para testar os

limites do televisual e enfrentar o desafio de inovar a linguagem ou de ultrapassar as

próprias servidões da linguagem televisual.

Neste capìtulo, definiremos quais foram as principais referências visuais que orientaram

a estruturação da direção de arte de Suburbia e como estas se expressam no seu projeto de

arte, considerando como principais pontos de investigação: conceito visual, paleta de cores,

cenografia, figurino e caracterização. A partir deste repertório, e com base nas premissas

teóricas definidas no primeiro capìtulo desta dissertação, analisaremos as camadas de

significados construìdas no seu discurso audiovisual, além do nìvel de interação dos

elementos da arte com a estrutura da encenação. Embora a metodologia investida neste estudo

houvesse previsto ainda, para fundamentar as conclusões alcançadas, um mapeamento do

processo criativo da direção e da equipe de arte, e dos desdobramentos destas escolhas

formais na obra a partir não somente da análise fìlmica, mas também da realização de

pesquisas de campo e de entrevistas, infelizmente não foi possìvel obter os depoimentos do

diretor Luiz Fernando Carvalho e dos demais profissionais atuantes no projeto, devido

principalmente às suas agendas comprometidas.

No entanto, para suprir à demanda por estes dados, contamos com as informações

disponibilizadas tanto pelo site Memória Globo, quanto pelo próprio Site Oficial da

Minissérie98

, mas principalmente pela edição n.2 do Caderno Globo Universidade99

, que com

o tema “Subúrbios e identidades”, estruturou uma discussão sobre a história e a cultura do

subúrbio a partir da sua representação na minissérie Suburbia100

. Esta publicação da Rede

Globo traz uma sistematização dos depoimentos do diretor Luiz Fernando Carvalho, do

escritor Paulo Lins e de parte do elenco sobre o processo de concepção e de feitura da

minissérie, e estes relatos, de suma importância para a discussão aqui desenvolvida, foram

essenciais para um entendimento estrutural visual da obra e para a realização da análise

pretendida. A pesquisa de campo realizada no bairro de Madureira, principal contexto espacial

da minissérie, se mostrou também fundamental neste processo analìtico, pois a imersão no

universo social e cultural da narrativa possibilitou a elucidação dos percursos visuais

definidos pelas pesquisas da equipe de arte na criação da visualidade da minissérie.

98

http://gshow.globo.com/programas/suburbia 99

CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE. Subúrbios e identidades. Vol.1, n.2. Rio de Janeiro: Globo, 2013. 100

A referida publicação apresenta como tema de capa “Subúrbios e identidades”, que tem como subtìtulo: “Um

olhar multidisciplinar sobre a história e a cultura do subúrbio e sua representação na construção do imaginário

social brasileiro. Uma reflexão com base na minissérie Suburbia”.

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3.1 Considerações sobre a narrativa de Suburbia

Escrita por Luiz Fernando Carvalho em coautoria com o escritor Paulo Lins, e a

colaboração de Carla Madeira, Suburbia é originalmente baseada nas memórias afetivas de

Carvalho sobre uma mulher negra, Betânia, com quem conviveu, por muitos anos, no seu

cìrculo familiar, e cuja história de vida inspirou a narrativa da minissérie101

. Dessa simbiose,

entre a referência pessoal do diretor e a experiência literária de Lins, surge Conceição, a

menina cuja trajetória é traçada em conformidade com a intenção dos autores de construir

uma representação social da população negra brasileira, e que, não à toa, traz no seu nome,

uma homenagem a Nossa Senhora da Conceição Aparecida, santa padroeira do Brasil que

alimenta forte devoção, historicamente, por parte da população afro-brasileira, e cuja

representação iconográfica é de uma negra.

“[...] grande parte das histórias que Suburbia narra são casos reais de uma mulher

negra que conviveu comigo por praticamente 25 anos e que foi uma espécie de mãe

negra que eu tive. Essa mulher era analfabeta. Foi uma menina que fugiu, assim

como a do seriado, de trabalhos forçados, uma relação quase escravocrata no interior

de Minas Gerais. E aqui no Rio ela foi passando por aquelas agruras todas e foi

vencendo”. (CARVALHO; CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE, p.81).

Suburbia se destaca no atual panorama da produção audiovisual brasileira por estar

entre as poucas produções televisivas a abrir espaço para o protagonismo de personagens

negros (a minissérie apresentou um elenco majoritariamente afrodescendente e contou com

dois importantes nomes do rádio, do teatro e do cinema nacionais, Rosa Marya Colin e

Haroldo Costa, este último um dos precursores do Teatro Experimental do Negro fundado na

década de 1940) e, sobretudo, por construir uma representação verossìmil da vida da

população negra residente em territórios urbanos marginalizados, os subúrbios e as favelas,

com um especial enfoque na valorização das suas manifestações religiosas e culturais; além

de tocar em problemáticas sociais que atingem diretamente a estes grupos, e que são

decorrentes, em parte, do racismo e da discriminação.

101

Segundo consta no site Memória Globo: “Suburbia era uma ideia antiga. Luiz Fernando Carvalho contou que

estava trabalhando sobre outro texto, quando lhe foi pedido um projeto para entrar no ar em 2012. Ele abriu a

gaveta e se deparou com as anotações sobre a vida de Betânia, uma mãe preta que teve por mais de 25 anos.

Betânia começou a trabalhar como faxineira na casa do diretor, mas logo se tornou fundamental na sua vida, pela

carga de afeto que nutriam um pelo outro. Negra, analfabeta, mas cheia de vida e inteligência, rememorava a sua

trajetória de vida com muitas riquezas de detalhes. Um dia, ele começou a anotá-las, sem ter a menor noção do

que faria com aquilo tudo. No inicio deste ano, encontrou os escritos, que já eram, em si, uma sinopse. A ideia

antiga de tematizar o subúrbio ganhou, então, um personagem central. Betânia morreu em 2009.” Disponível em:

http:// http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/seriados/suburbia/curiosidades.htm. Acessado

em: 06 de novembro de 2013.

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Suburbia é um projeto, acima de tudo, sobre a escravidão e a cultura. Nossa

preocupação é discutir a situação do negro no Brasil hoje, depois de 400 anos de

escravidão, 300 de colonização, e o valor da cultura que os descendentes de escravos

criaram e preservaram para se estabelecerem dentro da sociedade – ainda que

lentamente.

A inclusão plena deveria ter ocorrido pelo trabalho nas lavouras, na pecuária, na

construção das cidades ou através do ensino, mas a escola pública – que o negro

frequenta – também não funciona como deveria. A integração se dá pela cultura.

Cultura vista não só como entretenimento, mas como um pilar de sobrevivência de

um grupo social. É por meio dela que o negro consegue se manter unido para

encarar todos os desmandos que sofreu e sofre ao longo da história. (LINS;

CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE, 2013, p.55)

Para Joel Zito Araújo (2004), a origem da ideologia do branqueamento nos finais do

século XIX e, posteriormente, da teoria da miscigenação racial nos anos 1930 do século XX a

partir das ideias perpetradas por Casa-grande & senzala (1933), do antropólogo Gilberto

Freire, de onde se originou ainda o mito da democracia racial brasileira, tem nas suas

consequências ideológicas uma relação direta com a supressão e deturpação da imagem do

negro e do mestiço na publicidade e nas mìdias, principalmente na televisão. A telenovela, em

especial, um dos principais produtos culturais brasileiros, de forte diálogo popular e de

reconhecida influência no cotidiano e na formação dos valores sociais do público, se pauta na

reprodução de fórmulas narrativas alienadas da realidade social do paìs, ao tratar de enredos

baseados nos gostos e modos de vida das elites, com um predomìnio quantitativo de

personagens brancos, oriundos, em sua maioria, da classe média alta, e de personagens negros

concebidos de forma caricaturada ou estereotipada.

Ao ator afrodescendente normalmente são atribuìdos papeis considerados coadjuvantes,

subalternos ou subservientes a personagens brancos, como empregadas domésticas,

motoristas, operários e escravos, ou bem secundários e mesmo marginais, como favelados,

mendigos, assaltantes e prostitutas, por exemplo; o que determina a criação e reprodução de

estereótipos racistas. Para Araújo, esta conjuntura ideológica, que se propaga até os dias

atuais, teve consequências negativas impactantes na construção da identidade racial do povo

negro brasileiro, afetando a autoestima destes indivìduos e suscitando uma postura social de

rejeição à estética, à cultura e à religiosidade de origem afro-brasileira.

Durante o Carnaval, a televisão brasileira, em dezenas de horas de imagens

transmitidas dos desfiles carnavalescos nos sambódromos do Rio de Janeiro e de

São Paulo, apresenta, para todo o paìs e para o turista estrangeiro, um “espetáculo da

miscigenação” e da participação dos negros na sociedade brasileira, semelhante

àquele espetáculo que nos finais do século XIX chamou a atenção dos viajantes

europeus que desembarcaram por aqui. Entretanto, durante o ano inteiro, a

telenovela brasileira e os comerciais continuam confirmando a vitória simbólica da

ideologia do branqueamento e da democracia racial brasileira. (ARAÚJO, 2004, p.

34)

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As minisséries, assim como as telenovelas, tendem a seguir estas mesmas premissas

ideológicas. Suburbia, no entanto, apresenta outra assertiva. Estando os autores engajados em

fugir aos estereótipos e aos exotismos que rondam este tipo de representação para construir

uma diegese realista, focada no modo de vida da população negra residente no subúrbio de

Madureira, Zona Norte do Rio de Janeiro, a produção da minissérie investiu em uma

concepção audiovisual fundamentada em uma minuciosa pesquisa acerca de dados e

materialidades concretas, buscando, dessa forma, na realidade corpórea, os principais

referenciais para a composição dos espaços e das personagens. O objetivo era construir um

discurso com densidade humana e vivencial, e o fato, inclusive, de Paulo Lins ser o coautor da

obra definiu também um novo status ao discurso, já que o seu olhar de dentro do universo

social retratado legitima as escolhas e as formas de representação concebidas na obra.

De Cidade de Deus (1997) a Desde que o samba é samba (2012), Paulo Lins se

dedica a mesclar observação etnográfica com elaboração narrativa ficcional. Sua

experiência biográfica enriquece a etnografia, transmitindo ao olhar reflexivo um

sabor testemunhal, ao mesmo tempo que confere ao testemunho densidade analìtica.

Por isso, seus escritos são tão ricos e fortes. Por isso, sua linguagem promove

empatia sem perder a acuidade crìtica, jamais. (SOARES; CADERNO GLOBO

UNIVERSIDADE, 2013, p. 41)

Contextualizada entre o inìcio e meados da década de 1990, perìodo de forte

instabilidade na economia brasileira, a narrativa de Suburbia une amor e drama social a

referências da história, do cinema e da literatura brasileira, em uma abordagem televisual de

Figura 27. O ator Haroldo Costa no cenário da minissérie.

Fonte: Suburbia, 2012. (Foto Still)

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temáticas como escravidão, racismo e violência, na qual os autores se apropriam do espaço

sensorial do subúrbio carioca para contextualizar, através da musicalidade, dos costumes e da

religiosidade da população afrodescendente brasileira, uma égide da identidade negra. O

universo suburbano é, neste sentido, concebido na minissérie como um território simbólico

circunscrito em intensa cor, poesia e espiritualidade, e formatado pelo contraste social de duas

coordenadas espaciais: a de um subúrbio bucólico, inspirado em uma época em que ainda

mantinha contornos rurais, com ruas de terra, casas grandes de muro baixo, quintal, galinheiro

e pomar, no qual os moradores valorizavam as relações de compadrio baseadas na ajuda

mútua e na união de todos como a uma grande famìlia fraterna (um aspecto que, embora

atenuado, ainda se estende até os dias atuais); e a outra, a do novo subúrbio, corrompido pelas

ilusões do consumo, pela violência e pela disputa de poder pelo tráfico de drogas.

No subúrbio, o seu espaço nunca se limita essencialmente à sua casa. Ele se estende

para a rua em frente, a praça, até mesmo para o quintal do vizinho. [...] Em suma, há

um sentimento democrático espontâneo. Isso é uma percepção de um modo de vida

que certamente em alguns pontos pode ter se adulterado. Porque a pressão que existe

hoje do consumo, oferecendo outros significados para a felicidade, que vai desde

comprar determinado carro ou uma bolsa de marca, promove o aparecimento de um

novo suburbano, um sujeito hìbrido, fruto das contradições do progresso econômico.

(CARVALHO; CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE, 2013, p.56)

Para Paulo Lins, é neste espaço urbano oprimido pelas contradições sociais que a

cultura afro-brasileira é germinada, preservada e ganha força expressiva, não somente como

entretenimento, mas também como elemento de ascensão, união e resistência racial para a

população negra. “O que querìamos mostrar em Suburbia era isso: que a cultura assegura a

ascensão social do povo negro e a união em si. Foi o que discutimos para criar a trajetória da

personagem” 102

. Assim, se em sua superfìcie folhetinesca, a trama de Suburbia beira as

convenções das novelas e dos contos de fadas: a história de uma menina ingênua e virgem,

que sofre com os percalços da vida e com a maldade dos seus inimigos, até conseguir realizar

o seu sonho: casar com o homem que ama e ter filhos (e até mesmo nesta opção narrativa é

possìvel identificar uma reivindicação de espaços na dramaturgia para o protagonismo negro,

já que normalmente os papéis de mocinhas meigas e recatadas são destinados a protagonistas

brancas), uma imersão em sua narrativa evidencia um ponto de vista extremamente crìtico.

Nascida no sertão de Minas Gerais, Conceição passou a infância ao lado do pai, da mãe

e do irmão em um espaço social marcado pela extrema carência material e pela necessidade

102

LINS, Paulo. Cultura como arma de resistência. In: CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE. Subúrbios e

identidades. Vol.1, n.2. Rio de Janeiro: Globo, 2013, p. 56.

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da famìlia de sujeição ao trabalho quase escravo nas carvoarias. “[...] toda famìlia trabalhava

nos carvão, era todo dia, sem descanso, de sol a sol, no meio daquela fuligem toda.”. 103

Neste

recorte narrativo, apresentado no prólogo da minissérie, já é possìvel apontar para um dos

seus temas principais: a escravidão. O perìodo da escravatura, que marca a história dos negros

e que ainda tem reverberações na atualidade social do Brasil, é evocado neste retrato das

estruturas precárias de trabalho no paìs, replicantes de valores racistas e excludentes. Sob os

contornos de uma atmosfera atemporal e onìrica, que evidencia a ancestralidade dos

problemas sociais abordados, a menina, que perde a infância nas extensas horas de trabalho,

vive o peso de uma realidade de opressão e de aflições, embora encontre no afeto e na fé

maternal em Nossa Senhora Aparecida o sustentáculo da sua força e esperança. Com

Rapunzel, a sua égua branca e cega, mas que enxerga no escuro, cria uma parceria de

aventuras fantásticas, exercitando o pouco que lhe resta da sua imaginação infantil.

Certo dia, porém, a morte do filho mais velho, vìtima de um acidente nos fornos, leva a

sua mãe, zelosa pelo futuro da menina, a incentivá-la em uma fuga de trem até a cidade do

Rio de Janeiro, para que tente a sorte na “cidade do pão de açúcar” e deixe para trás esse

mundo de agruras e dificuldades. Ao chegar à cidade, Conceição se descobre em um universo

de novas e intensas cores, mas que, porém, se inscreve na mesma lógica opressiva anterior e

reserva para a protagonista uma série de “provações”: a prisão injusta como “trombadinha”, a

rotina de abandono e violência em uma instituição para menores infratores e, logo após, o

trabalho precário como babá e empregada doméstica para uma famìlia da Zona Sul da cidade,

quando é vìtima de uma tentativa de estupro pelo seu patrão. Situações a que é socialmente

submetida principalmente pela cor da sua pele. O tema da escravidão retorna então à narrativa

nos seus reflexos sociais mais visìveis. Inicialmente no descaso do governo com as crianças

de rua abandonadas à própria sorte, em sua grande maioria negra, e nas condições precárias

das instituições que acolhem jovens infratores, também majoritariamente negros e, em

sequência, na relação patriarcal e desigual entre patrões e empregados domésticos.

A intervenção maternal de uma intelectual exporá as contradições brasileiras mais

agudas, materializadas na perversa instituição que é o emprego doméstico. A

proteção maternal traz consigo seu avesso. A sombra da generosidade é o cativeiro

inconsciente de si. A marca ostensiva da violência virá com o estupro dentro de casa.

O sexo que abre portas para a mulher belìssima cumpre papel de algoz, bloqueando

sua passagem e aniquilando perspectivas. Não é o sexo a fonte da violência, por

óbvio, mas a cultura machista, associada ao racismo e ao preconceito social.

(SOARES; CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE, 2013, p.44)

103

Texto da personagem extraìda da narrativa da minissérie.

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É somente ao chegar à Madureira que Conceição encontra realmente um lar. No espaço

social do subúrbio, onde prevalece uma luta constante pela sobrevivência e o enfrentamento

diário das contradições sociais, é colocado ao telespectador o outro lado da moeda. Os

estereótipos das personagens negras - os trabalhadores, os marginais, os operários e as

empregadas domésticas - agora são seres humanos de carne e osso e têm raìzes, antepassados,

e, principalmente, sonhos e identidade cultural. Na casa da famìlia do Sr. Aloisio, “uma

famìlia negra organizada, com a força da cultura e da religião tomando conta de uma estrutura

familiar” 104

, a protagonista vivencia a intensidade de um laço ancestral, afetivo e identitário.

A sua trajetória, a partir de então, será pautada pelo autoconhecimento e, sobretudo, pelo

reconhecimento das suas origens, desveladas pela estética, pela música, pelas danças e pela

religiosidade da população afrodescendente do subúrbio; retratado aqui como um contexto

urbano de expressiva diversidade cultural, mas marcado por intensos contrastes, não somente

sociais e econômicos, mas principalmente morais. Do segundo capìtulo ao último, a narrativa

da minissérie propõe, assim, um deslocamento de olhares na televisão brasileira, passando a

focar nos perìmetros urbanos situados para além da linha de trem.

Quando chega ao Rio de Janeiro, Conceição vai viver a escravidão atual,

trabalhando como babá, empregada doméstica. Em seguida ela se encontra: vai para

uma sociedade onde consegue, depois de tanto tempo, se unir, se reunir para cantar,

dançar e ter, acima de tudo, aconchego familiar. Aquilo que Nietzche diz, em

Demasiado humano, sobre a “alegria de entender o que o outro quer dizer”.

Conceição terá a estabilidade social por meios da cultura, em Madureira, terra do

samba, terra do funk. (LINS; CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE, 2013, p.56)

O Sr. Aloìsio, torneiro mecânico aposentado e amante de música clássica, vive em

Madureira com a esposa Mãe Bia, a rezadeira do bairro, e os seus cinco filhos: a evangélica

Vera, os adolescentes Lorival e Maria Rosa, o mestre de obras Moacyr e a sua esposa Bete, e a

dona de casa Amelinha e o marido Lila, além dos netos Andreisse e Leandro. Amiga de Vera,

Conceição foi acolhida na famìlia após a sua fuga da casa da patroa, a intelectual Sylvia,

devido à tentativa de estupro do seu marido, Cássio, como já relatado. A moça é então

registrada pelo patriarca e passa a integrar a Famìlia Santos, na qual as relações, apesar das

diferenças de crenças e interesses, são pautadas no amor, no respeito e na união.

A musicalidade negra originária de Madureira dará o tom a esta nova fase da história da

protagonista ao lado da famìlia do Sr. Aloisio. Recém-chegada no bairro, Conceição logo é

iniciada pelos mais jovens no universo musical do funk, ritmo que despontava com força nos

anos 1990. No funk, a moça então se destaca pelo seu talento para a dança e pela sua beleza, e

104

LINS; CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE, 2013, p. 57

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desbanca Jéssica, dançarina profissional dos bailes e bicampeã do concurso de Miss Subúrbio.

Convidada pelo empresário Costa para dançar com a dupla musical Lulu e Dudu, Conceição

adota o nome artìstico de “Suburbia”, e passa a ser apontada como a próxima rainha do

subúrbio. A protagonista brilha nos palcos, mas desperta também a inveja e o desejo de

vingança da sua antagonista Jéssica, que com a ajuda do namorado, o traficante Tutuca,

investe na violência para retomar o seu lugar nos bailes. Por este viés narrativo, a minissérie

retrata os esquemas e a massificação de uma nova cultura musical suburbana, ainda nascente

no inìcio da década de 1990, evidenciando a linha tênue que separa a diversão dos bailes funk

da corrupção policial, da prostituição e da violência ligadas ao tráfico; uma problemática

social decorrente principalmente das desigualdades sociais e da luta injusta entre opressores e

oprimidos nestes espaços.

E é, no contexto efusivo do baile funk, que Conceição conhece Cleiton, seu par

romântico na trama. Morador de um morro de Madureira e amigo da Famìlia Santos, Cleiton é

um rapaz honesto, trabalhador e estudioso, mas marcado por uma tragédia familiar.

Abandonado pelo pai ainda na barriga materna, ele perde posteriormente também o irmão,

inocente, em uma troca de tiros entre traficantes, o que acarreta a depressão e a dor da sua

mãe Margarida e a sua completa entrega ao alcoolismo. Com a sua estrutura familiar desfeita,

o rapaz é perturbado por fortes sentimentos de rejeição e de vingança, que se intensificam

com o passar do tempo. E é por conta das suas questões emocionais que o romance com

Conceição toma rumos inesperados.

Figura 28. Conceição como “Suburbia” em baile funk de Madureira.

Fonte: Suburbia, 2012. (Frame)

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Embalado pelas canções de Roberto Carlos, o namoro que inicialmente se baseava na

confiança e no companheirismo, se desfaz não somente em decorrência dos acessos de ciúmes

de Cleiton em relação ao trabalho de Conceição como dançarina, mas, sobretudo, pela sua

ansiedade para com os desejos da namorada, que pretende manter-se virgem até o casamento.

Ao tentar abusar sexualmente de Conceição, o rapaz vivencia o fim do romance e, conflitado,

toma atitudes impensadas que o levam a se envolver em uma briga com Tutuca, a quem é

então atribuìdo o assassinato do seu irmão. Jurado de morte pelo agora seu inimigo pessoal,

Cleiton acaba então por assassiná-lo, torna-se chefe do tráfico de drogas do morro e se

envolve em um relacionamento com Jéssica.

A história de Cleiton representa mais uma das facetas sociais de um subúrbio marcado

pela violência e pelos desvios morais. Assim como Margarida, diversas mães negras, com

baixa escolaridade e precárias condições de trabalho e renda, são abandonadas pelos

companheiros e se vêm sozinhas para manter financeiramente e emocionalmente os seus lares.

Ao enfrentamento diário das necessidades materiais junta ainda o medo e a dor originados da

insegurança instaurada nas comunidades onde vivem, estando seus núcleos familiares sujeitos

a perderem filhos e parentes, direta ou indiretamente, pelo domìnio do tráfico de drogas. A

inserção do tráfico nos morros é retratada, assim, como um problema social que resulta não

somente na violência fìsica, mas também na violência moral e afetiva. Por outro lado, as

circunstâncias que levam um jovem ao tráfico podem passar tanto pela carência material

quanto por questões emocionais, originárias de uma desestruturação familiar.

Figura 29. Cleiton nos braços da mãe Margarida.

Fonte: Suburbia, 2012. (Frame)

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Assim, na trama construìda em Suburbia o antigo e o novo subúrbio se entrelaçam nas

circunstâncias do romance entre Conceição e Cleiton. No desfecho da sua narrativa, no

entanto, não há espaço para prognósticos pessimistas, mas sim para uma grande reverência à

população negra brasileira, tanto à sua força ancestral quanto à sua capacidade de renovação

frente às dificuldades impostas no subúrbio de hoje. No penúltimo capìtulo, a Famìlia Santos

comemora o aniversário de oitenta anos do Sr. Aloisio, e as cenas trazem o cerne não só de

uma homenagem aos artistas negros, mas de uma celebração do legado cultural da população

afrodescendente de raìzes no subúrbio brasileiro. A festa coloca em cena a musicalidade dos

integrantes da velha guarda das escolas de samba Portela e Império Serrano, ambas oriundas

de Madureira, em uma roda de samba no quintal da casa da famìlia. Em sequência, as

personagens protagonizam uma roda de jongo comandada pelo Grupo Cultural Jongo da

Serrinha e pela a sua matriarca Tia Maria do Jongo. A cena traz a sonoridade marcante de um

ponto de jongo de origens ancestrais, cuja letra se alinha ao discurso ideológico da minissérie:

“Pisei na pedra, a pedra balanceou/ levanta meu povo, cativeiro se acabou”105

.

Mas se de um lado, o subúrbio antigo reina na casa da Famìlia Santos, do outro, Cleiton,

ao ser alvejado pela polìcia, torna-se vìtima de um espaço urbano que cresce sob o estigma da

opressão, da injustiça e das desigualdades. Recorrendo ao que podemos definir como uma

105

Acessado em: http://jongodaserrinha.org/pontos-de-jongo/

Figura 30. Roda de jongo com o Grupo Cultural Jongo da Serrinha em Suburbia.

Fonte: Suburbia, 2013. (Frame)

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solução narrativa de tendências fantásticas, os autores optam, no entanto, pela ressurreição da

personagem, que se redime dos seus erros e encontra a paz e a felicidade na religião,

reerguendo ainda a sua mãe Margarida, que ao ver o filho vivo, deixa o vìcio e redescobre o

sentido da vida. A redenção espiritual de Cleiton reafirma a ideia da religiosidade como um

dos pilares existenciais do povo negro e dos moradores dos subúrbios brasileiros, que

habitados tanto por evangélicos, católicos ou praticantes do candomblé, são definidos pelas

diferenças e pelo sincretismo religioso.

E a mocinha da história tem o seu final feliz. Conceição ganha uma grande baile de

noivado no qual, ao lado do homem que ama e junto aos seus familiares e amigos, vê seus

sonhos serem realizados. Assim como em Hoje é dia de Maria, a nossa protagonista supera as

adversidades da sua jornada pela coragem e pela fé. Mas se a menina Maria saiu do sertão

para conhecer o mar, a pequena Conceição deixa o mundo de desejos cativos e conquista a

sua liberdade de sonhar, o reconhecimento das suas raìzes e da sua identidade cultural. E

através da dança, inicialmente pelo funk e depois pelo samba, se torna a rainha do subúrbio,

contexto onde a cultura negra encontra um espaço sólido. A protagonista, por fim, agradece a

Nossa Senhora Aparecida as graças alcançadas.

Figura 31. Conceição é coroada a rainha de bateria da escola de samba do bairro.

Fonte: Suburbia, 2012. (Frame)

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118

3.2 O projeto de arte da minissérie

Neste subitem, apresentamos as principais diretrizes conceituais e técnicas do projeto de

arte de Suburbia, a partir da definição do conjunto de referências visuais que norteou os

processos de criação da equipe de arte da minissérie e suas implicações na composição da

paleta de cores e nos projetos de cenografia, de figurino e de caracterização. Em termos

conceituais, a direção de arte da obra, assinada por Mário Monteiro, se alinha ao texto e à

estrutura de encenação proposta por Luiz Fernando Carvalho, para conceber uma

materialidade cênica calcada no real, cujos elementos articulam um registro material do

contexto espaço-temporal da narrativa, evitando o artificialismo explícito, e em adequação à

estética cinematográfica adotada, assumindo ainda uma tendência ao lirismo e à poesia visual,

conforme a intenção ideológica da narrativa.

É importante pontuar, neste sentido, que devido a esta proposição de cunho documental,

a produção se particularizou por ter uma base e logìstica totalmente extra Projac, e por esse

motivo, não conta com peças cênicas, tais como trajes e objetos, disponibilizados no acervo

da emissora. Portanto, por não ter sido possìvel realizar uma observação e registro de

materiais resultantes da produção, as informações aqui sistematizadas se originam tanto de

uma interpretação baseada na análise fìlmica, quanto de imagens e dados da produção

divulgados pela equipe e pela emissora. No próximo subitem, todo este repertório será

analisado no âmbito do discurso fìlmico, buscando-se, a partir desta análise, definir a

correlação formal entre a direção de arte e a visualidade da obra.

Figura 32. Mood board de Suburbia.

Fonte: Suburbia, 2012. (Divulgação)

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119

3.2.1 Pesquisa e Referências visuais

Imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida

Desde a primeira até as últimas sequências da minissérie, a imagem de Nossa Senhora

Aparecida é citada visualmente em Suburbia. Seja na força espiritual das rezas, bênçãos e

cânticos religiosos maternos, na pequena imagem guardada com cuidado por Conceição nos

primeiros dias da sua chegada ao Rio de Janeiro, nas suas orações em um pequeno altar

pessoal ou na delicadeza de um pingente. Seja ainda na evocação direta do traje da sua

coroação como rainha da escola de samba ou simplesmente pela difusão das cores da imagem

nos elementos componentes da materialidade cênica da obra. Permeando desde os objetos

cênicos e a pintura de cenários, até os trajes das personagens, a padroeira do Brasil inspira a

criação da obra; definindo tanto o nome da protagonista até a estruturação da sua visualidade.

Esta referência se evidencia, inclusive, na HQ106

criada a partir do programa, no qual uma das

ilustrações das páginas iniciais é justamente a da santa, que tem as suas cores pinceladas nos

desenhos, delineando e estruturando toda a composição gráfica.

106

Suburbia/ texto e ilustrações de Pedro Franz; adaptação da obra de Paulo Lins e Luiz Fernando Carvalho. - -

Rio de Janeiro: Retina 78, Aeroplano Editora, 2012. 64p. : il., color.

Figura 33. Ilustração na HQ de Suburbia.

Fonte: Suburbia, 2012.

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120

Zona Norte do Rio na década de 1990 e na contemporaneidade

A definição do contexto espacial e temporal de uma narrativa direciona toda a etapa de

pesquisa de uma produção, determinando, assim, as escolhas da cenografia, do figurino e da

maquiagem. Em Suburbia, a proposta de encenação fundamentada no realismo exigiu das

equipes uma maior atenção ao caráter verossìmil destas opções materiais e visuais. Neste

sentido, para a definição da linguagem visual das personagens e dos espaços da encenação, os

profissionais envolvidos no projeto realizaram um mergulho nos hábitos e costumes dos

moradores da Zona Norte do Rio de Janeiro, em especial do bairro de Madureira, extraindo

desta região as principais referências arquitetônicas e materiais para a criação dos cenários,

dos figurinos e da caracterização. Devido ao fato da narrativa se passar nos anos 1990, a

pesquisa foi direcionada aos elementos de época, mas sem abrir mão de registros visuais

destes espaços na contemporaneidade.

A fotografia de Walter Firmo

Walter Firmo é um fotógrafo nascido no subúrbio do Rio de Janeiro no ano de 1937,

que, formado no fotojornalismo, se dedicou, a partir da década de 1960, a viajar pelo paìs e

retratar a população negra de diferentes cidades, subúrbios e periferias brasileiras com o

intuito de valorizar a expressividade e as cores das suas manifestações culturais e religiosas. O

conjunto da sua obra revela um tratamento estético particular sobre a identidade e o corpo do

povo negro, tratando-se de uma iconografia dotada de autêntica força expressiva.

O Brasil é um desvario de cor. É ornamento, é febril, alucina. Fazer fotografia

brasileira é tirar partido deste patrimônio. É ignorar os tons pastéis e endeusar os

verdes e os rosas, nacionalizando os temas. É esquecer o olho europeu e o americano

e valorizar o que é nosso. (FIRMO; 1989, p. 5).

Os seus registros coloridos, iluminados e espontâneos do subúrbio carioca, assim como

a sua representação da estética negra, inspiraram diretamente Luiz Fernando Carvalho na

concepção visual de Suburbia, na qual é possìvel apontar citações explìcitas da sua obra

fotográfica, o que pode ser atestado pelo seguinte depoimento do diretor:

Todos os subúrbios são um único subúrbio, vejo todas as periferias se encontrando,

articulando os mesmos sistemas morais, de sobrevivência e justiça. Refletindo sobre

essas questões, você encontra uma produção de imagens de tremendo valor estético,

como é o caso do Walter Firmo, que me inspirou explicitamente. (CARVALHO;

CADERNOS GLOBO UNIVERSIDADE, 2013, p. 80).

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A história de vida do escritor Paulo Lins

O escritor Paulo Lins nasceu em 1958, na cidade do Rio de Janeiro, e entre as suas

principais produções literárias se destacam os livros Cidade de Deus (1997) e Desde que o

Samba é Samba (2012). Não somente pela a sua experiência literária acerca das temáticas

abordadas em Suburbia, mas, sobretudo por ser negro e oriundo da comunidade de Cidade de

Deus, tendo vivenciado desde cedo as contradições sociais e a violência do tráfico de drogas,

assim como as manifestações culturais e religiosas presentes neste contexto urbano, a

trajetória e experiências de vida do escritor serviu de referência e orientação, não apenas para

a criação da narrativa da minissérie, mas também para a concepção da sua materialidade

cênica e da sua visualidade. O seu olhar testemunhal serviu, assim, de base para as escolhas

formais e processuais da direção e da equipe de produção da obra.

A história de vida dos atores

A história de vida dos atores, em sua maioria de origem nos subúrbios cariocas, serviu

de inspiração para a composição dos comportamentos, atitudes e gostos das personagens, e

ainda para a concepção visual dos espaços da encenação. Destacamos aqui um trecho do

depoimento da atriz Dani Ornellas, que na minissérie interpreta a personagem Vera, a filha

evangélica do Sr. Aloìsio, no qual ela descreve a sua casa de infância localizada no subúrbio

de Duque de Caxias. Acreditamos que o seu relato pessoal serviu de inspiração direta à equipe

de cenografia para a criação da casa da famìlia do Sr. Aloisio.

Nossa casa foi mudando. Porque nossa famìlia foi crescendo e meu pai precisou

construir uma casa, no mesmo quintal, que era um terreno grande. A gente até

brincava, chamava de “quilombo dos Ornellas”, porque morava uma negada, a

famìlia inteira.

Meu quintal tinha galinheiro, horta, árvore frutìfera. Era o nosso refúgio. O portão

ficava aberto e a gente se frequentava, as pessoas se conheciam. A Baixada

Fluminense da minha infância tinha muita poesia. De poder brincar na rua, de

decorar a rua para a Festa Junina, fazer bandeirinha, enfeitar na Copa do Mundo.

(ORNELLAS; CADERNOS GLOBO UNIVERSIDADE, 2013, p. 100).

Durante o perìodo de produção de Suburbia, parte do elenco cedeu relatos pessoais das

suas histórias de vida para o Museu da Pessoa107

, instituição virtual e colaborativa, que

mantem um acervo com depoimentos de mais de 15 mil entrevistados.

107

Para acessar ao acervo do Museu da Pessoa: http://www.museudapessoa.net

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A musicalidade negra

O investimento em uma sonoridade marcante é um dos principais traços das produções

de Luiz Fernando Carvalho. A trilha sonora de Suburbia é composta principalmente por

músicas de apelo popular, alinhadas ao universo temático da minissérie, e contempla desde

canções de Roberto Carlos (a sua fase dos anos 1970), passando por um repertório da Black

Music, do samba, do jongo, até aos maiores sucessos do Funk carioca dos anos 1990.

O Funk, por ser originário do subúrbio e ter alcançado evidência nacional no perìodo

em que é contextualizada a narrativa, além de ter uma forte influência na linguagem e na

estética da juventude pertencente a esta região da cidade, é um elemento chave na obra, e por

isso tem o seu peso dramático ampliado ao nortear a concepção de elementos da materialidade

cênica. A Black Music também inspira a narrativa visual de Suburbia, o que é evidenciado na

composição gráfica e sonora da vinheta de abertura da minissérie, de forte referência à

Cultura Black (consideramos importante assinalar aqui este dado visual, apesar deste trabalho

não estar vinculado à função da direção de arte).

A musicalidade negra de raiz também define a visualidade de determinadas cenas.

Considerado o berço do samba no Rio de Janeiro, no bairro de Madureira há duas grandes

escolas: a Portela e a Império Serrano. É também originário do bairro o Jongo da Serrinha,

grupo cultural que preserva o ritmo do jongo: uma dança de roda e de umbigada que remete

aos escravos. A pesquisa acerca da história e da visualidade da musicalidade negra foi

essencial na instrumentalização da equipe de arte com um repertório imprescindìvel na

resolução das demandas decorrentes dos seus processos de criação.

Fig. 34. Referência a Black Music na vinheta de abertura da minissérie.

Fonte: Suburbia, 2012.

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123

3.2.2 Paleta de Cores

A paleta de cores da minissérie é composta predominantemente pelos matizes azul,

vermelho, amarelo e verde, que são empregados tanto em saturação como em atenuação

(principalmente ascendente), com um especial predomìnio da cor rosa. Há também inserções

das cores secundárias laranja e violeta. Esta composição interage na maior parte das cenas

com a incidência de luz branca difusa ou determina o cromatismo de luzes artificiais.

Neste estudo, consideramos que a definição desta paleta de cores tem origem

principalmente nas cores da imagem de Nossa Senhora Aparecida, e mantêm fortes relações

com o cromatismo e à luminosidade da fotografia de Walter Firmo e do bairro de Madureira.

As cores das imagens são resultantes ainda de um competente trabalho de tratamento e

correção realizado pelo colorista Sergio Pasqualino, alinhado aos propósitos estéticos da

direção. No próximo subitem iremos analisar a articulação entre paleta de cores, direção de

arte e visualidade na minissérie.

3.2.3 Cenografia, Figurino e Caracterização

O projeto cenográfico de Suburbia é assinado pelos cenógrafos Isabela Urman, Kaká

Monteiro e João Irênio. O direcionamento realista e documental da obra determinou a criação

de cenários em locações externas, fora dos estúdios do Projac, evitando-se uma representação

notoriamente cenográfica. As principais locações da minissérie são oriundas da cidade de

Quem Quem, em Minas Gerais (prólogo); da cidade do Rio de Janeiro, nos bairros de

Madureira, Oswaldo Cruz, Quintino, Curicica e Tijuca (representação do bairro de

Madureira); e na Ilha de Paquetá (representação da casa da Famìlia Santos). A produção de

arte é creditada a Marco Cortez e Lara Tausz.

Assinado por Luciana Buarque, os figurinos de Suburbia seguiram o objetivo de retratar

o modo de vestir dos moradores de Madureira. A figurinista, inclusive, fez compras em lojas

do bairro, investindo em roupas de intenso colorido. No entanto, algumas peças produzidas

fogem a esta perspectiva, por terem sido criadas em alinhamento às construções metafóricas

propostas na narrativa visual da obra, conforme citaremos no próximo subitem.

Já o trabalho de caracterização na minissérie, sob a supervisão de Fabìola Gomes e

Bárbara Santos, se pautou no naturalismo e na valorização dos traços e da estética negra. Em

determinadas cenas retrata a visualidade funk, caracterizando as personagens com o brilho, as

cores e a sensualidade das maquiagens dos bailes.

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3.3. Direção de arte e visualidade em Suburbia

Neste subitem, apresentamos a análise da visualidade de Suburbia, considerando a sua

inter-relação com a narrativa, a estrutura de encenação e as particularidades do projeto de arte

da minissérie. Com base nas premissas teóricas definidas no subitem 1.8 do primeiro capìtulo

desta dissertação, a análise aqui apresentada se fundamenta em uma investigação da

linguagem visual construìda na obra, focando na articulação estética entre cor, luz, cenários,

figurinos e caracterização, e nas suas implicações na construção do espaço da representação.

Todo este repertório é analisado tanto em suas particularidades técnicas, decorrentes dos

processos práticos da produção, quanto nas suas especificidades teóricas e conceituais,

buscando-se, a partir das conclusões alcançadas, uma definição da parcela expressiva destes

elementos na atmosfera e na estrutura visual da composição dos quadros construìdos na obra.

Enquanto nas suas produções anteriores, principalmente Hoje é Dia de Maria, A Pedra

do Reino e Capitu, Carvalho constrói uma representação calcada nas premissas da cena

teatral, e sob o conceito do artificialismo explícito, em Suburbia o diretor opta por conceber

um universo diegético assentado no real, estruturando uma encenação fundamentada em um

tratamento realista da narrativa e na opacidade do discurso audiovisual, com referências a

procedimentos estéticos do cinema moderno. E neste sentido, os elementos da direção de arte,

enquanto estruturantes das cenas e coadjuvantes das ações, seguem a proposição estética do

diretor e as necessidades da diegese por ele criada.

Assim, diferente das minisséries citadas, onde se observa uma construção cênica

estilizada tanto no uso de materiais e na aplicação de cores e texturas, quanto na criação de

formas inusitadas - princìpio ainda mais radicalizado na novela Meu pedacinho de chão

(2014) - o projeto de arte de Suburbia segue diretrizes realistas ao optar pela montagem dos

cenários em locações reais, pela composição de um figurino essencialmente análogo ao

vestuário usual do contexto social retratado e pela maquiagem de proposta naturalista, o que

colabora para que a representação da vida da protagonista Conceição tenha o peso da

realidade tangìvel, conceitualmente extraìda da realidade social brasileira.

[...] a minha preocupação permanente foi a de fazer uma aproximação com o real de

forma mais epidérmica, menos cenográfica, menos oficial, menos industrializada,

digamos assim. Ao fazer uma aproximação mais documental, você estaria arrastando

com esse olhar uma série de crìticas ao contexto da sociedade em relação a essas

minorias. E, de uma forma muito espontânea, acaba incluindo uma reflexão social

dentro da dramaturgia, trazendo para o texto uma função social importante: um

vìnculo. [...] Suburbia conta uma trajetória folhetinesca, mas ela não se exime de

sublinhar certas passagens, certas condições desse ser humano excluìdo. E aì vem

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toda a questão dos negros, da famìlia dos negros, de um elenco formado de negros,

de um elenco desconhecido... (CARVALHO; CADERNO GLOBO

UNIVERSIDADE, 2013, p.81)

Suburbia é uma obra que se propõe a retratar visualmente a atmosfera social de um

espaço urbano em particular; não somente em suas nuances econômicas, sociais e culturais,

mas também espaciais sob uma concepção diegética de intensa carga subjetiva. Pois, embora

a tendência realista defina esteticamente a minissérie, a estruturação da narrativa visual da

obra, construìda a partir do olhar e dos sentimentos da protagonista/narradora, permite em

determinados domìnios da linguagem, certas soluções visuais que podem ser consideradas

como não realistas, com tendências artificialistas. Esses desvios estéticos no discurso

construìdo interferem diretamente nas escolhas da direção de arte e da fotografia, agregando

complexidade à visualidade da obra, sobretudo na sua composição cromática, já que a

manipulação de luz e cor converge em direção oposta ao realismo108

.

Assim, embora a materialidade cênica da minissérie revele um intenso investimento em

pesquisas sobre o contexto sociocultural da narrativa, a sua força expressiva e o seu

diferencial estético está principalmente na manipulação da paleta de cores, responsável por

definir uma visualidade original perpassada por um intenso lirismo. A relação entre cor e

espaço é, neste sentido, a base da narrativa visual de Suburbia, e promove uma estetização

expressiva das imagens, assegurando a coesão do conceito visual construìdo. Trata-se, no

entanto, de uma concepção formal que não se prende a definições simbólicas pré-

estabelecidas e que está associada efetivamente à narrativa e às interações entre personagens,

ações e contextos espaciais, determinando, assim, a criação de uma significação singular que

norteia todo o discurso audiovisual.

Nesta análise, interpretamos que a composição cromática da minissérie é inspirada,

como já dito, tanto nas cores de Madureira e na imagem de Nossa Senhora Aparecida, quanto

no colorido das fotografias de Walter Firmo. Mas é importante salientar, que não somente na

composição cromática da obra é explìcita a referência às imagens de Firmo. Os quadros de

Suburbia revelam ainda uma forte referência à sua iconografia, e são estruturados, por vezes,

como citações aos seus quadros fotográficos, evidenciadas não somente pelas cores, mas pela

concepção dos espaços da representação (Fig. 35 e 36).

108

Parte desta análise já resultou na publicação do artigo Cores suburbanas na visualidade televisiva: uma

análise dos processos da Direção de Arte na minissérie Suburbia de Luiz Fernando Carvalho na I Jornada

Internacional Geminis – Entretenimento Transmìdia e na participação no XVIII Encontro da Sociedade

Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual - SOCINE com a apresentação do trabalho A Suburbia de

Luiz Fernando Carvalho: Direção de Arte e mise-en-scène.

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Com base na análise das imagens da minissérie, é possìvel afirmar ainda que a cor

adquire um status de personagem na obra, exercendo um protagonismo visual nas cenas e na

composição dos quadros. Com uma paleta de cores composta como já dito: pelo predomìnio

do azul, vermelho, amarelo e verde, que interagem na maior parte das cenas com a incidência

de luz branca difusa; a visualidade da obra evidencia, para além de uma expressividade

cromática, a relação da cor com a narrativa por definir particularidades dramáticas às

sequências e traduzir as emoções e o ritmo dos acontecimentos vividos pela protagonista. O

emprego desses matizes, ou das suas variações tonais, nos elementos materiais é

predominante; pincelando figurinos, cenários e objetos, e se integrando à encenação. O que se

configura como um reflexo do trabalho visual da direção de arte e da direção de fotografia na

composição dos planos109

.

Identificamos na estrutura visual de Suburbia, quatro tendências cromáticas que atuam

em conformidade com o conteúdo articulado nas cenas e com a proposta de encenação do

diretor: no prólogo, a representação da infância de Conceição, as sequências intercalam cores

terrosas ao predomìnio luminoso do azul; na chegada da protagonista ao Rio de Janeiro, é

109

É preciso ainda considerar o trabalho de pós-produção digital de correção das cores das imagens.

Fig. 35. Citações visuais em Suburbia.

Fonte: Casa do Maestro Pinxinguinha em Ramos (WALTER FIRMO, 1968); Suburbia, 2012. (Frame)

Fig. 36. A chegada de Conceição no Rio de Janeiro

Fonte: Rio de Janeiro, 1980 (WALTER FIRMO); Suburbia, 2012. (Frame)

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notável uma alteração brusca na paleta de cores, que agora ganha um colorido carnavalesco;

nas cenas que retratam o subúrbio, a profusão de cores se mantem, mas com um predomìnio

dos tons pastéis, ou seja, há uma atenuação cromática ascendente (clareamento); nas demais

cenas, há uma saturação das cores e luzes, intensificada em cenas especìficas.

No prólogo, a pobreza e a exploração vividas pela menina Conceição se expressa nos

planos por uma atmosfera sombria e “queimada”. A paleta é composta por cores terrosas e

cobreadas, que delineia toda a materialidade cênica. A casa pobre nos arredores dos fornos de

carvão e os figurinos são concebidos em tons rústicos que se camuflam na paisagem hostil em

que vive a famìlia. Há, no entanto, uma oscilação cromática marcante, o emprego do azul em

sequências especìficas aliado ao uso da luz difusa e do contraluz que parece sublinhar neste

inìcio da história uma atmosfera atemporal e sobrenatural.

.

Após a sua fuga do sertão, Conceição acorda em um vagão de trem no Rio de Janeiro e

outra fase da história se inicia. A virada no percurso narrativo de Suburbia é então expressa

por uma nova demarcação estética na visualidade da minissérie: a concepção da paleta de

cores e da luz muda em contraste com as imagens anteriores. Nestas sequências os planos são

estruturados por uma profusão cromática que delineia os cenários e os figurinos, enfatizada

pelo carnaval, perìodo em que a cidade está colorida e as pessoas fantasiadas. Estes quadros

evidenciam a interferência da materialidade cênica na composição visual da obra, devido à

expressividade das cores saturadas que definem os trajes das figuras em cena.

Fig. 37. Paleta de cores do prólogo: predominância do azul e de cores terrosas e cobreadas.

Fonte: Arquivo de Photoshop

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Já a visualidade da maior parte das sequências que retratam o bairro de Madureira segue

a opção conceitual da direção de arte de retratar um subúrbio colorido e iluminado, e, por

vezes, com certo ar bucólico, estruturando, desta forma, uma atmosfera de contornos lìricos.

A composição cromática das cenas é caracterizada por tons “pastéis”, que definem o

tratamento visual dos espaços, figurinos e objetos, ainda mais atenuados pela incidência de

uma luz branca e difusa; o que estrutura uma visualidade arrebatadora, que parece traduzir o

fascìnio da protagonista com o novo lar. Esta opção estética define principalmente as

sequências da rua e da casa da famìlia do Sr. Aloisio, mas também marca as cenas da casa de

Cleiton no morro, podendo se estender a outros espaços de ação destes personagens.

Fig. 38. Paleta de cores da chegada de Conceição ao Rio de Janeiro: contraste cromático com o prólogo

Fonte: Arquivo de Photoshop

Fig. 39. Paleta de cores composta por tons “pastéis”: concepção de um subúrbio lìrico.

Fonte: Arquivo de Photoshop

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Se opondo a esta concepção estética, na maior parte das sequências que se passam em

espaços cênicos diversos aos citados, é possìvel observar uma saturação dos matizes. Em

algumas destas cenas, a intensificação cromática, de cores-pigmento e de cores-luz, parece se

relacionar tanto ao ritmo quanto a carga dramática da narrativa. Assim ocorre, por exemplo,

nas cenas que retratam a efervescência dos bailes funks e do ensaio da escola de samba do

bairro, em especial, na cena da coroação de Conceição como rainha de bateria.

Fig. 41. Cores saturadas na coroação de Conceição como rainha de bateria.

Fonte: Arquivo de Photoshop

Fig. 40. Predomìnio da cor rosa nas sequências da procissão de São Benedito em Madureira.

Fonte: Arquivo de Photoshop

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De uma forma geral, os espaços cênicos de Suburbia se estruturam visualmente, na

maior parte dos planos, como espaços profundos (BLOCK, 2010) desenhados pelo forte uso

da perspectiva. A narrativa audiovisual é, assim, estruturada por quadros que evidenciam a

profundidade de campo, sendo compostos por linhas e planos longitudinais que dirigem o

olhar para a espacialidade dos cenários. E os elementos estruturantes destes espaços,

fortemente alinhados à narrativa, definem novos sentidos nas cenas e expressam o conceito da

minissérie para, consequentemente, intensificar a experiência visual.

A concepção dos cenários em locações reais, tanto dos espaços arquitetônicos quanto

das paisagens, se alinha a proposta documental da direção, embora a intervenção material e

cromática da direção de arte nos ambientes seja essencial para uma articulação destes espaços

com a visualidade da obra. Alguns espaços cênicos da minissérie mantêm, porém, um

conceito visual próprio, particularizado na estrutura da narrativa, sendo este o caso das terras

do sertão de Minas Gerais e da instituição para menores infratores. Já outros espaços mantem

uma relação cromática entre si, alinhada a uma identidade visual geral da obra; sendo este o

caso da casa da intelectual Sylvia, do posto de gasolina onde Conceição trabalha junto com

Cleiton, do quarto de motel visitado pelo casal e da casa de shows onde são realizados os

bailes funk. Há ainda várias inserções de paisagens reais de Madureira na obra, como, por

exemplo, as imagens da linha do trem e das passarelas do bairro que intercalam as imagens

pela montagem ou contextualizam as cenas.

Fig. 42. Cores saturadas e identidade visual em Suburbia.

Fonte: Suburbia, 2012. (Frame)

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131

Para uma análise formal dos cenários principais de Suburbia, além das tendências

cromáticas identificadas na visualidade da minissérie, devemos considerar ainda a concepção

da narrativa de um subúrbio marcado pelos contrastes sociais e econômicos, que se expressa

no projeto cenográfico da obra pela representação material e visual de um espaço suburbano

estruturalmente dìspar. De um lado há um subúrbio que ainda mantem aspectos rurais, de

casas espaçosas com calçadas, jardins e quintais, de espaços abertos ao convìvio entre

vizinhos e amigos, por conta da relação de compadrio ainda existente na vizinhança. Em

oposição a esta concepção espacial, há os morros, onde as construções se caracterizam como

habitações precárias, cerradas e dispostas desordenadamente no espaço comunitário, e que

mantêm ainda marcas materiais da insegurança decorrente do domìnio do tráfico de drogas.

Analisaremos aqui os espaços pictóricos de imagens que trazem uma representação de

dois cenários em particular: o da casa do Sr. Aloìsio e o da casa de Cleiton e Margarida.

Inspirada na casa do músico Pinxinguinha, a partir do registro fotográfico de Walter Firmo

(Fig. 35), a casa da Famìlia Santos é antiga e espaçosa, tem muro baixo, jardim com flores e

vasos de plantas, varanda, além de janelas de madeira sem grades. A construção arquitetônica

é sólida e bem planejada. O quintal é amplo, com terra batida, árvores frutìferas e galinheiro,

onde a famìlia se reúne para comemorações e datas festivas.

O interior da casa é simples e amplo, e os cômodos são bem divididos. As paredes são

coloridas, e a pintura de cada cômodo é definida por uma cor especìfica. O tratamento visual

do cenário se alinha à paleta de cores da minissérie e segue a tendência cromática dos tons

“pastéis” e da incidência da luz branca e difusa, que iluminam e ampliam os ambientes, e

Fig. 43. Conceição e Vera transitam pela passarela de Madureira.

Fonte: Suburbia, 2012. (Frame)

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definem certa atmosfera bucólica e lìrica ao ambiente. A concepção do cenário da casa se

alinha, assim, ao conceito da representação do subúrbio antigo, onde a maior parte da

população, mesmo com simplicidade, vivia em construções mais confortáveis, com mais áreas

verdes e com mais segurança.

A produção de arte segue estas mesmas diretrizes. Os ambientes internos da casa são

compostos por uma profusão de objetos e utensìlios, que preenchem de cores e simbolismos

os espaços da encenação. Este repertório material contextualiza a trama espacialmente e

temporalmente, e ainda traz indicações socioculturais das suas personagens. Mas, embora a

minissérie retrate os anos 1990, é possìvel identificar neste conjunto tanto objetos mais

antigos quanto mais contemporâneos; não somente para pontuar o fluxo natural dos desgastes

e das aquisições materiais, mas principalmente para apontar uma percepção especial sobre o

tempo alinhada ao conceito visual construìdo pela direção de arte.

O cenário delineia uma atmosfera que remete a história de vida de Sr. Aloisio e de Mãe

Bia, suas crenças e ideais, com peças marcadas por uma intensa carga de valores e

significados. Outros objetos remetem aos seus antepassados como os retratos de famìlia

emoldurados nos quartos e na sala da casa. Todos esses elementos são sìmbolos de uma

postura ideológica construìda em Suburbia de reconhecimento e valorização da história e da

ancestralidade da população negra brasileira.

Fig. 44. Varanda da casa da Família Santos: representação bucólica de um subúrbio antigo.

Fonte: Suburbia, 2012. (Frame)

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Ao mesmo tempo, a narrativa visual da obra indica um processo de desgaste e

transformação neste espaço. Nos fundos da casa, no entorno do quintal, foram construìdos

dois “puxadinhos” onde vivem os filhos já casados, e uma escada que leva às suas lajes, onde

as crianças tomam banho de mangueira. Estas construções já determinam uma ruptura com a

estética e o desenho original da casa. Além disso, no quintal há um excesso de objetos, entre

sucatas e móveis antigos, abandonados nos cantos ou utilizados de forma improvisada. Com

estas soluções visuais, a direção de arte parece apontar não somente para a obsolescência

destas peças, mas também para o modelo de vida que tanto estes itens quanto a estrutura da

casa representam. O antigo aos poucos já cede espaço para o novo subúrbio.

Fig. 45. Retratos de família na sala de estar da Família Santos.

Fonte: Suburbia, 2012. (Frame)

Fig. 46. Excesso de objetos descartados no quintal da Família Santos.

Fonte: Suburbia, 2012. (Frame)

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Representativa deste novo subúrbio, a casa de Cleiton e da sua mãe Margarida já traz

uma concepção espacial totalmente diversa. Não somente a situação financeira da famìlia,

mas também o fato da residência estar situada em um morro dominado pelo tráfico, já

determina a criação de um cenário representativo destas condições materiais e sociais nas

quais as personagens estão inseridas. Internamente, o “barraco” da famìlia tem um espaço

bastante reduzido, com poucos e pequenos cômodos, que apontam para uma falta de

planejamento arquitetônico. As paredes não têm reboco ou pintura, e o chão é de cimento

batido. Os móveis são bem simples, assim como os utensìlios domésticos. Na fachada da casa,

assim como na parte interna, ainda falta acabamento geral. A janela e a porta, ambas de um

material mais moderno, provavelmente de alumìnio e vidro, são gradeadas, o que aponta para

a cultura do medo e da insegurança na qual os moradores estão inseridos. Na janela da casa

estão pendurados pequenos vasos de flores improvisados, feitos com lata de alumìnio e

plástico. Diferente da casa da Famìlia Santos, falta espaço e natureza neste ambiente.

O trabalho de produção de arte é também muito cuidadoso na composição dos

ambientes internos, preenchendo o espaço com cores e objetos, que dialogam com as

condições materiais da famìlia e com a sua história. Amante da Black Music, Cleiton tem um

cantinho na casa que traduz a sua personalidade e os seus interesses. A atmosfera geral do

cenário, no entanto, remete a dor de uma famìlia desfeita pela violência. As fotos de famìlia

colocadas no espelho da casa sublinham estas marcas emocionais nas imagens.

Fig. 47. Fachada da casa de Cleiton no morro em Madureira.

Fonte: Suburbia, 2012. (Frame)

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No que concerne ao figurino e à caracterização, estes seguem as mesmas diretrizes

documentais propostas para a concepção cênica da minissérie e se alinham às tendências

cromáticas já definidas. Como peças mais representativas desta proposta de retratar a

materialidade suburbana são as roupas cotidianas dos mais jovens, que remetem tanto a uma

estética do funk quanto à moda do inìcio dos anos 1990. De uma maneira geral, no entanto, as

roupas das personagens não demarcam uma caracterização rìgida de época, remetendo mais a

uma atmosfera atemporal, de forte diálogo com a estética suburbana atual.

Fig. 48. Criação de sentidos pela produção de arte.

Fonte: Suburbia, 2012. (Frame)

Fig. 49. Figurinos de forte diálogo com a estética suburbana contemporânea.

Fonte: Suburbia, 2012. (Frame)

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É possìvel apontar ainda nos trabalhos das equipes de figurino e de caracterização de

Suburbia, cuja orientação segue um projeto visual de tendências realistas, algumas soluções

visuais que recaem na poesia visual e, em direção oposta, no artificialismo; uma tendência já

apontada no inicio deste subitem. O traje criado para a coroação de Conceição como rainha da

escola de samba é um exemplo desta proposição (Fig. 31). A devoção da protagonista a Nossa

Senhora Aparecida, que é evocada desde a primeira sequência da minissérie e, de certa forma,

delineia todas as suas imagens através da paleta de cores, está sintetizada neste desenho de

figurino, cuja força expressiva e formal alude à representação iconográfica da santa. A peça

traz uma intensa carga de significação, que remete à história de vida de Conceição, suas

crenças e fé, e se alinha a proposta dos autores de reconhecimento da história da população

negra e de valorização da sua cultura.

Já os trajes do baile de noivado de Conceição e Cleiton revelam um trabalho apurado da

equipe de figurino, tanto na criação de desenhos, quanto na escolha de materiais e na

confecção que determinam um resultado estético mais singularizado e, sobretudo, mais cênico

e artificialista. As peças e adereços, e a caracterização das personagens se aproximam,

inclusive, de projetos de arte realizados em trabalhos anteriores do diretor Luiz Fernando

Carvalho norteados pela pesquisa da linguagem teatral, embora em Suburbia não haja um

direcionamento conceitual ao artificialismo explícito. Nestas cenas finais, a expressividade

dos elementos da direção de arte corrobora a construção da atmosfera lìrica pretendida, um

desfecho visual que dialoga com a visualidade dos bailes dos contos de fadas.

Fig. 50. Baile de noivado de Conceição: atmosfera de contos de fadas.

Fonte: Suburbia, 2012. (Frame)

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Considerações Finais

Esta pesquisa circunscreve o universo criativo da direção de arte em limites tênues.

Parte do amplo contexto da produção audiovisual brasileira e se desvia ao âmbito industrial da

cadeia produtiva televisiva, para traçar um panorama dos seus processos e potencialidades

estéticas, sempre alinhadas ao papel criativo da função na construção de imagens ficcionais.

Seus termos funcionais, no entanto, parecem não se engessar totalmente às especificidades

dos distintos meios audiovisuais, mas, ao contrário, são sempre passìveis de novos diálogos e

de serem revistos, distendidos ou transformados. Afinal, ao que parece, a tentativa de

delimitar ou rotular processos criativos não tem efeito, pois no ato de criar há sempre um

impulso de avanço a novas direções estéticas.

Assim como no cinema, a direção de arte e os seus profissionais na televisão também

tendem a seguir a este impulso da renovação. A história da direção de arte televisiva reforça

esta assertiva. Ainda que englobe processos mais automatizados e um ritmo de produção mais

opressivo, a serviço de narrativas mais tradicionais, a televisão ainda assim consegue

subverter as suas próprias regras e redefinir os seus próprios padrões visuais. A conjuntura

operacional da produção de teledramaturgia tem suas imposições estéticas, não se pode negar,

mas tem também as suas brechas, cabendo aos artistas mais obstinados encontrá-las.

Um destes artistas é o diretor Luiz Fernando Carvalho. O seu gênio inovador está

justamente em perceber e transcender esses limites da linguagem televisiva, construindo

novas possibilidades estéticas e discursivas. E a direção de arte tem “lugar” de destaque nesta

sua obstinação estética. O entendimento dos processos de criação das suas obras corrobora

esta constatação. Realistas ou não, de traços teatrais ou cinematográficos, as suas produções

de teledramaturgia revelam um reconhecimento da força expressiva e conceitual do projeto de

arte, transcriando textos e discursos audiovisuais densos e coesos. Neste processo, as equipes

de arte vêm seus espaços e recursos criativos ampliados, com expressividade dilatada nos

resultados finais das obras.

E assim prossegue em Suburbia. Através da análise visual das suas imagens apontamos

nas “entrelinhas” do discurso audiovisual proposto, os elementos da direção de arte, em

diálogo com a fotografia, como mecanismos de construção de sentidos nas imagens. As

configurações dos quadros evidenciam um cuidadoso trabalho de estruturação imagética,

focada na criação de uma ligação estrutural entre a sua visualidade e a narrativa de forte teor

social. Suburbia é, assim, uma obra original, cujo discurso transcende os limites ideológicos e

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midiáticos no qual está inserido, e vai além das restrições ao promover uma invasão de cores

suburbanas na visualidade televisiva.

Este estudo se encaixa em um propósito maior de contribuir para a concepção da

direção de arte como um campo de pesquisa autônomo, cujo repertório de conhecimentos

coopera para o desenvolvimento de teorias, conceitos e percursos metodológicos próprios.

Para Butruce (2005) a direção de arte possui “uma autonomia técnica, estética e conceitual

frente ao todo cinematográfico, que lhes permitem serem tomadas como objeto diferenciado”.

Uma perspectiva que se alinha ainda a um questionamento sobre a desvalorização dos

processos profissionais da direção de arte nas rotinas dos sets e dos estúdios, e,

principalmente, da quase omissão, no âmbito das crìticas e dos trabalhos acadêmicos, das

formas e relações estruturais dessa instância conceptiva da imagem audiovisual,

intrinsecamente relacionada ao campo das artes visuais e das artes aplicadas. Diante deste

cenário, é possìvel pensar, então, na existência de uma “limitação” de olhares, que podem e

devem ser ampliados em novas direções visuais. É essencial na experiência de assistir a um

filme ou o programa televisivo, olhar e realmente ver, ir além das suas indicações textuais e

imergir nas suas matérias visuais, buscando sentidos velados.

A televisão é outro contexto carente de explorações e abordagens. Este perìodo

dedicado ao desenvolvimento da pesquisa evidenciou o número reduzido de trabalhos que são

dedicados a este universo temático, em parte devido a preconceitos estéticos, sociais e

polìticos. Mas, por que não pensar a televisão? Apontar sim os seus problemas, mas também

reconhecer as suas conquistas e papéis sociais? Concordo com Luiz Fernando Carvalho

quando este diz que vê coisas boas sendo produzidas tanto no cinema quanto na televisão.

Sim, as produções estão sendo realizadas e o fluxo nunca é interrompido. Trata-se de um

panorama de grande repercussão social, que não deve ser ignorado ou simplesmente rotulado.

É importante assistir, analisar e de alguma maneira investigar percursos e prerrogativas de

mudanças, tendo a pesquisa acadêmica o seu papel neste território em constante construção.

Esta pesquisa não se esgota aqui. No percurso investigativo realizado foi possìvel

detectar novas possibilidades investigativas acerca da direção de arte no contexto do

audiovisual brasileiro. As inovações tecnológicas impõem a cada época novos desafios a este

campo profissional, assim como a conjuntura produtiva do cinema e da televisão está em

constante transformação, sempre assimilando novas técnicas, processos e perspectivas

projetuais. Demonstra assim ser essencial o estudo da direção de arte, entendendo-a como

uma função centrada não somente na estruturação de visualidades, mas também como uma

das esferas criativas da construção de imaginários sociais no audiovisual.

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AFINAL, o que querem as mulheres?. Direção de Luiz Fernando Carvalho. Rio de Janeiro:

Globo Marcas; Som Livre, 2011. 2 DVD .

A PEDRA do reino. Direção de Luiz Fernando Carvalho. Rio de Janeiro: Globo Marcas; Som

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LAVOURA Arcaica. Direção de Luiz Fernando Carvalho. Rio de Janeiro: Europa Filmes,

2004. 1 DVD.

OS MAIAS. Direção de Luiz Fernando Carvalho. Rio de Janeiro: Globo Marcas; Som Livre,

2001. 4 DVD.

SUBURBIA. Direção: Luiz Fernando Carvalho. Texto: Paulo Lins e Luiz Fernando Carvalho.

Direção de fotografia: Adrian Teijido. Direção de arte: Mário Monteiro. Figurino: Luciana

Buarque. Cenografia: João Irênio, Isabela Urman e Kaka Monteiro. Caracterização: Fabíola

Gomez e Bárbara Santos. Efeitos visuais: Rafael Ambrosio. Efeitos especiais: Marcos Soares.

Produção de arte: Marco Cortez e Laura Tausz. Direção musical: Mariozinho Rocha. Edição:

Marcio Hashimoto. Supervisão executiva de produção: Tatynne Lauria e Willian Barreto.

Núcleo Luiz Fernando Carvalho. Rio de Janeiro: Globo Marcas; Som Livre, 2013. 2 DVD

(360min), widescreen, color.

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APÊNDICE

Produção audiovisual de Luiz Fernando Carvalho na Rede Globo

Inicio dos anos 1980 Projeto Usina de Teledramaturgia da Rede Globo de Televisão

Assistência de Direção

1985 Minissérie: O Tempo e o Vento, da obra de Érico Verìssimo.

Assistência de Direção: Luiz Fernando Carvalho. Direção: Paulo José.

1985 Minissérie: Grande Sertão: Veredas, da obra de Guimarães Rosa.

Assistente de Direção: Luiz Fernando Carvalho.

Direção: Walter Avancini.

1988/89

Telenovela: Vida Nova, de Benedito Ruy Barbosa.

Direção: Luiz Fernando Carvalho e Ronaldo Boury.

1989/90

Telenovela: Tieta, de Aguinaldo Silva, Ana Maria Moretzsohn e Ricardo Linhares.

Direção: Luiz Fernando Carvalho, Reinaldo Boury e Ricardo Waddington.

Diretor Geral: Paulo Ubiratan.

1990 Minissérie: Riacho Doce, de Aguinaldo Silva.

Direção: Luiz Fernando Carvalho e Ronaldo Boury.

Diretor Geral: Paulo Ubiratan.

1990 Telenovela: Gente Fina, de Luìs Carlos Fusco.

Direção: Luiz Fernando Carvalho, Milton Gonçalves e Lucas Bueno.

Direção Geral: Gonzaga Blota.

1991 Unitário: Os Homens Querem Paz, de Péricles Leal.

Direção Geral: Luiz Fernando Carvalho.

1992 Telenovela: Pedra sobre Pedra

De Aguinaldo Silva, Ana Maria Moretzsohn e Ricardo Linhares.

Direção: Luiz Fernando Carvalho, Carlos Magalhães, Gonzaga Blota e Paulo Ubiratan.

Direção Geral: Paulo Ubiratan.

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1993 Telenovela: Renascer, de Benedito Ruy Barbosa.

Direção: Luiz Fernando Carvalho, Mauro Mendonça e Emìlio di Biasi.

Direção Geral: Luiz Fernando Carvalho.

1994 Unitário: Uma Mulher Vestida de Sol, adaptação da obra de Ariano Suassuna.

Direção Geral: Luiz Fernando Carvalho.

1995 Telenovela: Irmãos Coragem, de Janete Clair.

Direção: Luiz Fernando Carvalho, Carlos Araújo, Ary Coslov e Reynaldo Boury.

Direção Geral: Reynaldo Boury.

1995 Unitário: A Farsa da Boa Preguiça, da obra de Ariano Suassuna.

Direção Geral: Luiz Fernando Carvalho.

1996 Telenovela: O Rei do Gado, de Benedito Ruy Barbosa.

Direção: Luiz Fernando Carvalho, Carlos Araújo, Emìlio di Biasi e José Luìs Villamarin.

Direção Geral: Luiz Fernando Carvalho.

2001 Minissérie: Os maias, de Maria Adelaide do Amaral.

Direção: Emìlio di Biasi e Del Rangel.

Direção Geral: Luiz Fernando Carvalho.

2002 Telenovela: Esperança, de Benedito Ruy Barbosa.

Co-Direção: Luiz Fernando Carvalho, Carlos Araújo, Emilio di Biasi e Marcelo Travesso.

Direção geral: Luiz Fernando Carvalho e Carlos Araújo.

2005 Minissérie: Hoje é Dia de Maria, primeira e segunda jornadas.

Da obra de Carlos Alberto Soffredini.

Autoria: Luiz Fernando Carvalho e Luìs Alberto de Abreu.

Direção: Luiz Fernando Carvalho

2007 Minissérie: A Pedra do Reino, da obra de Ariano Suassuna.

Autoria: Luiz Fernando Carvalho, Luìs Alberto de Abreu e Braulio Tavares.

Direção: Luiz Fernando Carvalho.

2008 Minissérie: Capitu, da obra de Machado de Assis.

Texto: Euclydes Marinho.

Colaboração: Daniel Piza, Luìs Alberto de Abreu e Edna Palatnik.

Texto Final e Direção: Luiz Fernando Carvalho.

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2010 Minissérie: Afinal, o que Querem as Mulheres?

Texto: João Paulo Cuenca, Cecìlia Giannetti e Michel Melamed.

Texto Final e Direção: Luiz Fernando Carvalho.

2012 Minissérie: Suburbia

Texto: Luiz Fernando Carvalho e Paulo Lins.

Colaboração: Carla Madeira.

Direção: Luiz Fernando Carvalho.

2013 Série exibida no Fantástico: Correio Feminino

Da obra de Clarice Lispector.

Texto: Maria Camargo.

Colaboração: Carla Madeira.

Direção: Luiz Fernando Carvalho.

2013 Especial: Alexandre e outros heróis

Das obras de Graciliano Ramos.

Texto: Luiz Fernando Carvalho e Luìs Alberto de Abreu.

Direção: Luiz Fernando Carvalho.

2014 Telenovela: Meu Pedacinho de Chão, de Benedito Ruy Barbosa.

Texto: Luiz Fernando Carvalho e Luìs Alberto de Abreu.

Direção: Luiz Fernando Carvalho, Carlos Araújo, Henrique Sauer e Pedro Freire.

Direção Geral: Luiz Fernando Carvalho.