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Universidade Estadual de Campinas Mestrado Instituto de Artes 2007 Olhares Devotos

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Universidade Estadual de Campinas

Mestrado

Instituto de Artes

2007

Olhares Devotos

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Anali Cristina Furquim

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Multimeios do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Mestre em Multimeios.

Orientador: Prof. Dr. Antônio Fernando da Conceição Passos.

Campinas, SP

2007

Olhares Devotos

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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMP

Título em inglês “Pious eyes” Palavras-chave em inglês (Keywords): Creativity; Imaginary; Imagination; Contemplation; Devotion; Video Art. Titulação: Mestre em Multimeios Banca examinadora: Prof. Dr. Fernando Passos Prof. Dr. Adilson Nascimento (FE) Profa. Dra. Elisabeth Bauch Zimmermann Profa. Dra. Verônica Fabrini (suplente) Prof. Dr. Nuno César Pereira de Abreu (suplente) Data da Defesa: 28-08-2007 Programa de Pós-Graduação: Multimeios

Furquim, Anali Cristina.

F982o Olhares devotos / Anali Cristina Furquim – Campinas, SP: [s.n.], 2007.

Orientador: Fernando Passos. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas,

Instituto de Artes.

1. Processo de Criação 2. Imaginário. 3. Imaginação Ativa

4. Contemplação 5. Devoção 6. Vídeo-arte I. Passos, Fernando

II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Título.

(em/ia)

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Dedicatória

Àquele que chegando às portas do meu coração como indigente, maltratado,

espezinhado, humilhado, ensangüentado,

por Amor,

fez nascer ali mesmo, uma fonte de consolação sem recompensas, pura, em

seu poético devir

de vida.

Ilustração 2. “Jesus”, pintura de Cláudio Pastro SJ. Fonte: Arquivo digital da Companhia de Jesus, Casa de Santo Inácio, Campinas, SP.

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Ilustração 3. Mãe de Deus, pintura de Cláudio Pastro SJ. Fonte: Arquivo digital da Companhia de Jesus, Casa de Santo Inácio, Campinas, SP.

Àquela que nos trouxe o Amor Permanente enraizado historicamente.

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Agradecimentos

Ao Nosso ABBÁ Uno e Trino de Incomensurável Amor,

MÃE Amorosa de Reciprocidade a Deus - no Céu e na Terra - Única,

Cortes Celestiais dos Anjos, Rosa Abençoada da Comunhão dos Santos,

Ecclesia Universal do Coração de Deus - Sabedoria Eterna,

Amigos da CVX & Humildes Poeiras.

Aos meus Amados Pais, Guilherme & Maria Cássia Furquim,

Amados Irmãos, Flávia Enara & Cristhiano, Guilherme & Aline,

por existirem, serem Pássaros Sonoros Escondidos

e andarem sempre de Mãos Dadas, Sorrindo.

Ao meu Amado Orientador, Antônio Fernando da Conceição Passos,

pelo Despojado Acolhimento, Diálogo Profundo, Caminhada Compartida.

À Amada Amiga Elisabeth Bauch Zimmermann,

pela Amizade, Amparo Anímico, Chás da Tarde, sendo Partes da Família.

E aos Amados Amigos Sr. Arnoldo de Hoyos & Carmelitas,

Braseiros do Coração de Deus no Tempo, Luz Eterna, Tintura da Ternura da Humílima Virgem Maria no Caminho.

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E a todos que belamente iluminaram

este caminhar peregrino,

em especial…

Sérgio Massami Sakai

James José de Novaes

André Luís Moraes

Edison de Lima, SJ

Lucas dos Santos Ribeiro

Coral Jornada de Taizé

Ismael Victor Costa

Aninha Lourenzo

Marcos Luporini

Focolarinas Ilustração 4. “Batismo”, desenho de Claudio Pastro SJ. Fonte: Arquivo digital da Companhia de Jesus, Casa de Santo Inácio, Campinas, SP.

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Quisera vivo testemunho

criativo de amplitude universal e

peso humano singular. Meus pés

se condoem nesta estrada da

vida enquanto perco minhas

“asas” queridas. Vôo em

mergulho profundo e me deparo

– assustada, tão assustada,

embora toda crente - com a

fonte, Coração Pacífico de Deus.

Susto, susto, terror infinito cair e

ser levantada. Andar com os

próprios pés, mesmo que sejam

Outros.

Ilustração 5. Still do vídeo produzido Natura fulgens.

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RESUMO

Broto vital de açucena nascido do imo das entranhas dos elementos imaginais

e corporais, após longo período de dormência e boa luta. Testemunho árduo e

alegre de um processo criativo artístico - e de vida espiritual - empreendido,

resultando no curta metragem em vídeo Natura fulgens, como parte dos

frutos, após intensa dedicação e cultivo das paisagens anímicas, aqui trilhados

via Imaginação Ativa 1 e Orações Contemplativas 2.

O Cântico Espiritual de São João da Cruz e as amorosas qualidades da

Virgem Maria Santíssima como Stella Maris, Pulchra ut Luna e Domus Dei 3

foram inestimáveis fontes de inspiração, estrelas guias. Participaram do

processo a improvisação em dança, práticas de consciência corporal e a escrita

poética de livre curso que reuniu as imagens emergidas.

Na produção em vídeo, o tema da jornada da alma em busca do retorno à

Presença Divina, verdadeira fonte de Água Viva, labora juntamente com a

assunção do corpo criativo, como domus 4 do Coração de Deus no tempo. Nas

incursões teóricas, o tema da cruz e da redenção – do humano olhar, das

imagens produzidas, e da imaginação – antecede e ilumina a realização. A

trama dos Instantes Fecundos de Significado, poéticos, divinos, em imagem e

som, revelados aos devotos olhares da alma-e-coração, constituíram o cerne

da pesquisa.

1 Técnica da Psicologia Analítica desenvolvida por Carl Gustav Jung. 2 Empreendidas através da metodologia de Santo Inácio de Loyola, no contexto da Mística Cristã. 3 Estrela do Mar, Bela como a Lua e Casa de Deus. 4 Casa.

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ABSTRACT

Vital lily bud born in the inmost entrails of the imaginal and body elements,

after long period of dormancy and good fight. Arduous and joyful testimony of

an artistic - and spiritual life - creative process undertaken, resulting in the

short film on video Natura fulgens, as part of the fruits, after intense

dedication and cultivation of the psychic landscapes, here performed via Active

Imagination 1 and Contemplative Prayer 2.

The Spiritual Canticle of St. John of the Cross and the loving qualities of the

Blessed Virgin Mary as Stella Maris, Pulchra ut Luna and Domus Dei 3 have

been invaluable sources of inspiration, guiding stars. Improvisation in dance,

body awareness practices and free course poetic writing, which gathered the

images emerged, were parts of the process.

In the short film, the theme of the soul's journey in search of a return to the

Divine Presence, true source of Living Water, works together with the

assumption of the creative body, like domus 4 of the Heart of God in time. In

the theoretical incursions, the theme of the cross and redemption - of the

human look, of the produced images, of the imagination - precedes and

illuminates the realization. The web of Instants Fertile of Meaning, poetic,

divine, in image and sound, revealed to the pious eyes of soul-and-heart,

formed the core of the research.

_______________________________________________

1 Analytical Psychology technique developed by Carl Gustav Jung. 2 Undertaken using the methodology of St. Ignatius of Loyola, in the context of Christian Mystic. 3 Star of the Sea, Beautiful as Moon, God’s house. 4 House.

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Lista das Ilustrações

Ilustração da Capa. “Mãe do Rosário”, pintura de Cláudio Pastro SJ. 5

Ilustração 2. Jesus .............................................................................. v

Ilustração 3. Mãe de Deus .................................................................... vii

Ilustração 4. Batismo de sementes ........................................................ xi

Ilustração 5. Still do vídeo produzido Natura fulgens ................................ xiii

Ilustração 6. Desenho feito por minha irmã em 1984 ............................... 01

Ilustração 7. Mãe da Contemplação ........................................................05

Ilustração 8. Escultura do Aleijadinho .....................................................13

Ilustração 9. Colagem pessoal ...............................................................17

Ilustração 10. Deus virou Poeta .............................................................18

Ilustração 11. Nuestra Señora de las Angustias.........................................22

Ilustração 12. A Virgem Maria como Pachamama.......................................44

Ilustração 13. Mãe da Luz .....................................................................49

Ilustração 14. Conjunto de imagens do curta metragem Natura fulgens. ......52

Ilustração 15. Fotografia da produção de Natura fulgens ...........................53

Ilustração 16. Cristo Mestre...................................................................57

Ilustração 17. A Samaritana .................................................................58

Ilustração 18. Ecclesia .........................................................................60

Ilustração 19. Mãe de Deus Aparecida ....................................................61

Ilustração 20. Trono da Sabedoria .........................................................62

Ilustração 21. A Moraneta ....................................................................64

Ilustração 22. Coloca-me com o Pai .......................................................67

Ilustração 23. Um coração que voa ....................................................... 75

Ilustração 24. Dracma perdida ..............................................................76

Ilustração 25. Still Ignis Caritatis ..........................................................91

Ilustração 26. Ícone 20/21 do Cântico Espiritual de São João da Cruz........116

Ilustração 27. Ícone 22 do Cântico Espiritual de São João da Cruz.............125

5 Todas as ilustrações de Claudio Pastro SJ foram adquiridas no Arquivo Digital da Companhia de Jesus, Casa de Santo Inácio, Campinas, SP.

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Epígrafe ....................................................................................... xviii

Resumo ....................................................................................... xv

Abstract ......................................................................................xvii

SUMÁRIO

Um novo Outono ........................................................................... 02

I. Stella Maris ...............................................................................21

II. Pulchra ut Luna ..........................................................................43

III. Domus Dei ...............................................................................63

IV. Poema de Amor. Festina Lente ....................................................90

Ternura. Abismo da Graça. Moto Perpetuo. Imo Tempo........................92

Referências....................................................................................93

Bibliografia ....................................................................................95

Glossário Latino .............................................................................98

Apêndices .....................................................................................99

Anexos ........................................................................................104

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Ilustração 6. Desenho feito por minha irmã Flávia em 1984.

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UM NOVO OUTONO

O Praesentis Tempus, o aqui e agora em latim, sempre me

apareceu como um instantâneo do belo e miraculoso jardim de Deus,

fora do movimento cíclico das estações da Mãe Natureza,

particularmente do grande Autumnalis, época outonal da abençoada

gestação dos frutos e doces rebentos, sendo, em si, bastante

escorregadio para mim, por devanear facilmente, desde pequena.

Baú preferido de tesouros, imaginar, criar, silenciar diante da

grandiosidade da vida e suas bonitas relações era o arroz com feijão

de todo-dia. Passava horas e horas no quintal ou na sala, sozinha ou

acompanhada de meus irmãos, inventando histórias, mundos em

fábulas. Anjos, sereias, sacis, boizinhos de batata, pedras raras,

tertúlias fantásticas em miniaturas eram, então, constituídas e

organizadas em deliciosas brincadeiras e sobrevôos infantis.

Desde os quatro, cinco anos de idade, aos domingos, mãos dadas

com os irmãos e amigos, íamos religiosamente à catequese, na

pequena Igreja de Santa Isabel da vila da Fazenda São Francisco,

onde morávamos. Lá estando, a primeira arte sempre sagrada a fazer

era adentrar a sala dos sinos, e subir e descer pelas cordas, tocando

aqueles dois grandes cálices de alto e bom laudo som, em penca

madura e singela de meninos e meninas. Desenhávamos os santos,

recitávamos e compúnhamos versos, encenávamos pequenos trechos

do evangelho com a prestimosa ajuda da Dona Irma, então

aprumados como anjos, pastores e reis magos no Natal e noutras

datas festivas; e pulávamos, também, pelos jardins externos feitos

sapos, contando e ouvindo causos, fazendo piqueniques, molhando os

pés nas águas do rio Atibaia, bem ao lado, escorregando pelas

pequenas colinas de gramado, ríamos e brincávamos a largo. À noite,

como belos vaga-lumes, quase quietinhos, participávamos

afetuosamente das missas.

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Então mergulhada, menina, naquele universo, para mim, útero do

mundo, repassava os olhos atentos pelas sacras esculturas,

inspecionava-as em tom curioso, incomensuravelmente amoroso,

para tentar atestar algum movimento que fosse, uma respiração,

alento dos lábios durante algum canto, oração, dado um simples

descuido dos santos - sempre tão concentrados e bondosos em seus

incansáveis postos - diante dos cenhos ora e ora distraídos da turba,

bem certa de que ativos participantes e zeladores fecundos daquela

bonita e sinfônica ladainha que ali, nos átrios e lares, se entretecia.

Por vezes, quase fechava os olhos, como se fossem me abrir outros

mais capazes de ver - e ouvir - o invisível do mundo no qual

verdadeiramente orbitavam, São Pedro lavando o chão de nuvens,

Santa Isabel oferecendo rosas, a Virgem Maria com seu manto de

estrelas embalando o Menino Jesus.

Crescendo um pouco, a imaginação que sempre ia além do dado

das histórias e tornava cada vez mais familiar este mundo invisível,

teofânico, sensivelmente presente através dos olhos da alma - tal

quais grandes filósofos e pioneiros da mística e da psicologia a

revelaram: alma-medianeira entre o mundo sensível e espiritual,

através das imagens, local significativo da confluência viva dos

símbolos - foi se tornando luz inspiradora dos meus passos, fio

condutor do caminho. Especialmente porque nunca me pareceram

simples abstrações pessoais, mas sentia pisar delicadamente o solo

sagrado do profundo diálogo, cercando-me de significativas e tão

concretas inspirações.

Obviamente, nem tudo eram rosas e eu constantemente escapava

de sufocantes pesadelos. Incrivelmente, muito de tudo o que ainda

hoje me lembro, tanto do belo quanto do feio, permanecem

significativos marcadores de páginas que volto e releio, como brotos

ou pistas de algum futuro e melhor entendimento, sempre que algo

nesta vida bonita me incita a elaborá-los, ou simplesmente lê-los.

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Carl Gustav Jung (1875 - 1961), psiquiatra de inestimável valor

teórico-prático, fundador da Psicologia Analítica, desenvolveu muitas

técnicas visando o afloramento e diálogo fecundo com as imagens

arquetípicas inconscientes que “determinam” o desenrolar de nossas

vidas, interesses e desenvolvimento consciente. Segundo Stein

(1998), Jung trouxe à tona desde a simples associação de palavras,

passando pelo aprofundamento do papel da arte no acesso e

materialização simbólica, inaugurando também a Imaginação Ativa,

prática que possibilita emergirem imagens vívidas e carreadoras de

energia do inconsciente com força consciente de imaginação.

Em si mesma, a Imaginação Ativa não é dotada de atributos

artísticos, mas simbólicos, ultrapassando também a simples

descoberta de complexos em nível da análise pessoal, alcançando as

imagens mais profundas e não-pessoais, de caráter universal como

as forças da natureza, as luzes e as trevas, dentre outras,

reveladoras dos primórdios da ética e da cultura, no âmbito mesmo

dos pilares que estruturam a psique, sendo aconselhada no processo

terapêutico a egos mais maduros e experientes.

Sinceramente, não acorreria a tantos perigos e árduo trabalho de

improviso diante das imagens coletivas se não houvesse um primeiro

e insistente chamado: vem “porque meu jugo é suave e o meu fardo

é leve” (Mc 11, 30); e concomitantemente, pela graça: forças,

iluminações e uma premente e intensa necessidade de verem brotar

no mundo, cada vez mais respostas amorosas a este chamado

interior. Trabalhando na área da Arteterapia, desejando

pacificamente o bem coletivo, o desenvolvimento humano, na

verdade, impossível não desdobrar qualquer grande ou pequeno

enfado para desvelar mesmo que uma pequenina resposta pessoal

neste sentido, uma abertura, sentimento ou visão realmente útil,

uma nova poesia...

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Atualmente, inúmeras linhas de pesquisa do estudo da mente se

dão através de suas reações imaginárias mais complexas, elaboradas,

nas quais as imagens são liberadas e trabalhadas. Invariavelmente,

as práticas espirituais caminham no sentido contrário, do

esvaziamento da atividade mental, do imaginário, egóico, para

mobilizar plenamente o diálogo e comunhão com o divino,

atualizando a vida de maneira significativa. Mesmo práticas

espirituais que conjugam as duas formas sempre lançam suas raízes

no Eterno.

E o Permanente é incrivelmente eficaz, criador, transformador,

tornando testemunho, como contribuição particular deste trabalho, a

expressão de uma imaginação em “vias de redenção”, buscando a

assunção do corpo criativo como símbolo da unidade psicofísica, da

unidade consciente tão almejada entre espírito e matéria com seu

constante apelo ao Praesentis Tempus. Sempre atendendo as

reivindicações éticas das imagens mobilizadas, atendo também as

estéticas, comunicando, assim, em audiovisual, algo deste jovem e

apenas iniciado, percurso.

Ilustração 7. “Mãe da Contemplação”, escultura de Cláudio Pastro SJ.

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Para a realização do curta metragem em vídeo foram dois os

métodos mais formais vivenciados no processo de criação. O

primeiro, vindo do âmbito da espiritualidade, compõe-se da

metodologia inaciana de Oração Contemplativa, presente nos

Exercícios Espirituais 6 de Santo Inácio de Loyola (1491-1556),

fundador da Companhia de Jesus. Como metodologia, inédita na

época, permanece ainda hoje atual, revigorada por publicações

recentes com linguagem adaptada. E o segundo método, a sobredita

Imaginação Ativa, estabelecida por Jung, no campo fecundo da

Psicologia Analítica. Antecipo, porém, que os dois processos, em seus

entremeios, são próximos, parecidos, embora a contemplação de

Santo Inácio - como obra puramente espiritual, cujo objetivo é

promover o diálogo direto da alma com seu Criador, enraizando seus

conteúdos na vida - conte com um diferencial bastante evidente,

como notaremos adiante.

Felizmente, no “campo das artes”, nos trabalhos que envolvem

processo de criação, produz-se conhecimento duas vezes: um

hodierno e um eterno, uma vez que as obras artísticas estão sempre

renovando, a cada olhar, seus dizeres, assim hoje, assim como daqui

a cem, mil ou mais anos, como todos experienciamos diante de uma

obra de valor inesgotável, universal. Não que me arrogue tal

capacidade, fique anotado, mas a arte em si é assim, fala por ela,

porque materialização de um instante poético, divino, conhecimento

íntimo singular e tão universal que atravessa muitas almas. Se

sincera, algum dia ressoará nos ouvidos, coração de alguém.

Na universidade, consequentemente, produzimos o conhecimento

atual, hodierno, e então, quiçá também eterno, posto que ponto de

vista singular, único e não-repetível, encarnado pelas nossas

vivências e reflexões teórico-práticas, artísticas, produtivas, situando

6 LOYOLA, I. Escritos de Santo Inácio – Exercícios Espirituais. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006.

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o mundo e a academia a par das criativas paragens experienciadas,

teorias de base, geradas, reinventadas, assumidas. Assim me propus.

Quando adentrei nesta via mais livre das poéticas expressivas,

pensava ainda voltar e me debruçar, futuramente, no campo da

Neurociência e pesquisar as reverberações fisiológicas das imagens,

daquelas que promovem a saúde e florescimento humano. A Ciência

vem abrindo muitas portas neste campo obscuro do conhecimento.

Certa forma, contudo, agora, para mim, nada como o simples, lento e

eficaz respirar da espiritualidade, no corpo-alma das artes, para

seguir inteira e significativamente o caminho.

James Hillman (1983), um pós-junguiano que inaugurou o que

hoje conhecemos por Psicologia Arquetípica, bebendo tanto das

fontes de Jung como dos filósofos orientais, preocupou-se

prioritariamente com os temas da cultura e da imaginação. Ele nos

fala da Anima como alma presente em tudo, como a “interioridade”

de todas as coisas, sendo justamente esta interioridade perdida

aquilo que precisa ser cultivado na cultura ocidental - uma vez que

houve uma generalizada unilateralidade privilegiada desde os

primórdios da educação formal no sentido da racionalidade,

afastando-nos do contato com o discurso mais mítico, poético e

mesmo religioso, próprios da alma, ainda que muitas instituições

educacionais fossem religiosas. Hillman nos traz os arquétipos como

as estruturas básicas da imaginação, que se apresentam como

imagens através das quais toda a experiência se torna possível: nos

planos físicos, social, lingüístico, estético e espiritual.

Assim, certamente, qual não será a suma importância de

trabalharmos a questão imagética, que viabiliza o desenvolvimento

pessoal, coletivo, sem, contudo, absolutizá-la. Em minha caminhada

até aqui, que inclui trabalhos educacionais desenvolvidos durante

anos com crianças em idade escolar, utilizando o recurso

arteterapêutico de reinventar e encenar espontaneamente histórias

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do folclore popular e mitológicas, realmente só posso concordar que o

discurso mais mítico, poético e naturalmente religioso, próprio da

alma, alcança-nos em primazia, gradativa, mas verdadeiramente,

esta maturidade emocional tão almejada no meio social. Não sendo

somente próprio ao emocional, mas atuando como linguagem

facilitadora de toda uma atualização das potencialidades anímicas

pessoais e interpessoais, dos nossos recursos interiores e exteriores,

múltiplas inteligências. Pude acompanhar inúmeros progressos

individuais, junto às professoras, às crianças.

Digo, contudo, sem absolutizá-la, porque em um contexto de

amplo e histórico descaso pelo seu gradual e pleno desenvolvimento

integrado, um recurso humano que permaneceu tão esquecido na

educação formal ao longo do tempo, quando redescoberto, pode dar

margens a uma euforia mal empregada, ou exagerada, como

particularmente vislumbramos na atualidade, mundos virtuais e

paralelos desconectados da realidade natural e social saudável. Mas

esta questão, que pode se abrir em um leque muito grande de

perspectivas, excede as linhas simples desta introdução, embora

tema bastante discutido no universo teórico atual do imaginário.

E no âmbito da espiritualidade, que tudo permeia, como no da

educação, só posso testemunhar a autenticidade inefável do caminho

que escolhi, que me escolheu. No fluir de um também gradativo,

passo a passo, mas despojamento profundo, de uma descida dos

degraus tão impostos pela sociedade de hoje, de todas as épocas,

para o então, encontro e testemunho de um totalmente Outro

habitando o nosso íntimo, repleto de uma plenitude incalculável de

vida, Fonte Eterna de todo Amor e inusitada humildade, Sabedoria.

Assim como tantos santos católicos sinalizaram, apontando Virgem

Maria como modelo incomparável de alma, humilde serva do “sim”,

ou como os zen-budistas que apontaram simplesmente a lua, que se

deixa iluminar, também eu, com minha vida simples de matéria

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animada, abraçada pela Luz, deixo algumas marcas através das

produções artísticas, particularmente a partir deste não-lugar

simbólico da Fonte, interior, revigorado - quiçá o Coração como sede

do imaginário, como argumentava Henri Corbin (JAMBET, 2006) -

cujo contato, comunicação e comunhão divinas, com licença poética,

pretendo argumentar que nos tornam domus do Coração de Deus no

tempo, fluentes de criatividade significativa, sentido místico de

integração, muito embora atravessando longas noites escuras.

Em nossas veras primaveras, a jornada solar do herói se faz

bastante edificadora do ego, como centro organizador e estruturador

da consciência, de modo vital para adaptação social, aprendizado.

Contudo, num certo momento do amadurecimento pessoal, desponta

em nós uma força que nos leva a tudo abandonar para mergulhar no

desconhecido, viabilizando a tomada de um nível maior de

consciência, novo centro, mais amplo. Assim o foi, por exemplo, no

desvelar do Surrealismo, ou da Vídeo Arte com sua vocação cultural

antitelevisiva. E é justo desta jornada lunar que nos fala, com tanta

primazia, em um nível mais profundo, toda a obra espiritual e mística

de São João da Cruz (2002), Santa Teresinha do Menino Jesus

(1986), Santa Teresa de Ávila (2005), Beata Elisabete da Trindade

(PHILIPON, 1988), e demais religiosos carmelitas descalços.

De fato, tudo na vida mística da Igreja alenta os ideais e valores

mais nobres que já pude vislumbrar. Visivelmente, muitos erros e

enganos na caminhada histórica das comunidades se fizeram notar,

mas é preciso não desistir no confronto com a sombra, e avançar. Há

um veio muito salutar e fecundo, verdadeiras Águas da Fonte, que

nunca param de jorrar, iluminar, santificar aqueles que empreendem

a busca com amor e confiança. E podemos melhorar estas simples

palavras com o exemplo dos grandes santos e santas, mártires,

pessoas cujas histórias de vida comoveram e continuam comovendo,

pois deixaram marcos indeléveis de amor, incomensuravelmente

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altruístas, na nossa super-consciência coletiva, como o fez Madre

Teresa de Calcutá.

Em especial, inúmeras vidas de santos me inflamam o coração de

sublimidade. São Paulo mesmo, padroeiro do nosso Estado, com seu

apaixonado testemunho da Ressurreição após o encontro com a Voz e

Semblante de Jesus Cristo: de perseguidor dos cristãos a um gigante

anunciador do Evangelho. Em seu livro Anatomia da Psique,

Edward Edinger (1990) comenta que a descrição clássica do amor

transpessoal ainda hoje é feita por São Paulo em I Co 13, 1 - 7:

Ainda que eu falasse línguas, a dos homens e dos

anjos, se eu não tivesse amor, seria como o sino

ruidoso ou como o címbalo estridente. Ainda que

tivesse o dom da profecia, o conhecimento de todos

os mistérios e de toda a ciência; ainda que tivesse

toda a fé, a ponto de transportar montanhas, se não

tivesse amor, eu nada seria. Se distribuísse todos os

meus bens aos famintos, e entregasse o meu corpo

às chamas, se não tivesse amor, nada disso me

adiantaria. O amor é paciente, é benigno; não é

invejoso, nem se ostenta, não se incha de orgulho.

Nada faz de inconveniente, não procura seus próprios

interesses, não se irrita, não guarda rancor. Não se

alegra com a injustiça, mas se regozija com a

verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo

suporta.

E São Paulo continua sua descrição do amor transpessoal dizendo

que as profecias desaparecerão, as línguas cessarão, e a ciência

também desaparecerá, mas que o Amor, como força motriz e sentido

da vida, jamais passará...

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Relevantemente para este trabalho, um dos marcos significativos

no processo de transformação de Paulo de Tarso em Apóstolo do

Amor Caritativo, foi um período de cegueira após a visão luminosa de

Jesus. Segundo Martini (1996), ele permaneceu dias sem conseguir

enxergar, travando batalhas com as trevas interiores, para depois

ressurgir, pouco a pouco, durante anos, transformado e agente

transformador na vida das pequenas comunidades.

E toda a Mistagogia para avançarmos na dura experiência da

cegueira ou da noite escura da alma – em primazia, vere beata nox 7

– é algo que só se pode encontrar em uma instância de diálogo

superior, interior, vivência donde jorra a alegria do Eterno, superando

todo transitório, infundado no amor. Nesta instância floresceram

muitas obras de grandes mestres, luzes no caminho.

São João da Cruz, místico e doutor da Igreja, outro homem de

Deus de peso em meu processo pessoal artístico. Em particular,

através de seu Cântico Espiritual 8 – que narra, em quarenta

estrofes, a jornada espiritual da alma em busca e união com seu

Amado – e dos conhecidos poemas A Noite Escura e Chama de

Amor Viva, pude encontrar um continente para algumas imagens

emergidas, um diálogo poético, anímico, forças. Como panorâmica da

poética do Cântico, destacam-se quatro momentos da vida do amor

espiritual: um primeiro de busca ansiosa e murmurante da alma por

seu Eterno Amado; um marcado pelo noivado, mas com muitos

percalços e obstáculos a serem superados; um de completa união,

comunhão espiritual, casamento sagrado, com total e mútua entrega

da alma e de seu Amado; e, por último, um estado de ardentes

desejos por estarem completamente unidos na glória eterna.

Este cântico espiritual, como ode de amor a Deus de beleza

irrefutável, descreve de modo ímpar e atemporal os suspiros, marcas

7 Noite, de fato, feliz. 8 Texto integral nos Anexos.

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e disposições de amor da alma que empreende a jornada espiritual.

São João da Cruz assim inicia seu Cântico “Aonde você se escondeu,

meu Amado, e me deixou suspirando?”...

Segundo Spitzer (2003), a lírica moderna, mesmo a secular, deve

a poetas religiosos como Dante Alighieri e São João da Cruz a força

da carne e do tempo, da intensidade apaixonada, que eles souberam

magistralmente conferir aos seus escritos, revelando os sentimentos

mais íntimos, suas experiências mais insondáveis do divino.

E enveredando mesmo simples passos na via espiritual, poética,

logo percebemos que para colhermos os frutos da interioridade, não

podemos nos desviar dos absurdos próprios de sua linguagem

simbólica, paradoxal, integradora de opostos, que confere ao tempo e

à vida as inflexões atemporais e inefáveis dos caminhos místicos,

espirituais. Até que um auxílio ou sopro divino abrande as feras ou

águas revoltas em significativas calmarias... Mas porquanto tarda a

bonança, continuaremos bradando “Tirem os sapatos, tirem os

sapatos!” 9 uns aos outros, para tocarmos o coração temporalmente

salutar do sagrado, como se descalçou Moisés no Monte Horeb,

diante da Sarça Ardente que não se consumia, adentrando

reverentemente neste solo interiormente fecundo, quando irresistível

e amorosamente atraídos, chamados.

E assim, a humanidade segue compartilhando as suas

experiências...

9 Texto de uma performance teatral, pessoal, desenvolvida em disciplina do Prof. Dr. Ernesto Boccara, 2005.

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Ilustração 8. Escultura de Aleijadinho, Congonhas do Campo,

MG. Fonte: Fotografia pessoal.

Em 2003, realizei minha primeira incursão via Imaginação Ativa,

em ambiente acadêmico 10. Nesta vivência, apareceu-me uma pálida

jovem espanhola, belamente vestida em longo e antiguíssimo vestido

esmeralda aveludado de rendas, a lançar um olhar de profundo pesar

para a humanidade. Desdobravam-se cenas terríveis de abandono

social. Olhei-a novamente e de suas pálpebras fechadas brotavam

rios de lágrimas carmesins. Torrentes vertiginosas de um sangue

púrpura, vivo, que penetrava e reacendia toda aquela dor nas minhas

próprias entranhas. Saí bastante impactada desta experiência, por

aquele olhar cego, interior, que mantendo a ternura sincera de seu

semblante, tanto via das dores do mundo e, como nas aparições da

Virgem Maria, chorava lágrimas rubras de compaixão. Deus e a vida

continuavam me propondo, cada vez mais, uma elaboração, até

mesmo mais formal, da questão do irreal ou anímico, das visões

abertas por um olhar cego, desprendido das formas conhecidas, mas

10 Em disciplina da pós-graduação, sob orientação da Prof. Dra. Elisabeth Zimmermann.

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também enraizado, mantendo, simultaneamente, uma forte conexão

com a realidade vivida. Na realidade, as próprias orações e

caminhada intelectual & artística, conectadas, foram me ensinando

este amarelado e modesto fio-terra, como nos ensinam os bons

guias, citando Anselm Grün (1998, p. 29):

É descendo para dentro de nossa condição terrena

(humus, humilitas) que nós entramos em contato

com o céu, com Deus. Pois à medida que nós temos

a coragem de descer até nossas próprias paixões,

elas nos elevam a Deus. Por ser esta humildade o

caminho mais vil e desprezível para se chegar a

Deus, isto é, por ser ela o caminho da própria

realidade para se alcançar o verdadeiro Deus, é que

ela foi tão exaltada pelos padres monásticos. Aquele,

porém, que almeja o céu com facilidade, nada

encontra além de sua imagem pessoal a respeito de

Deus e suas próprias projeções.

E reduzida ao pó no caminho do amor 11, porque não há como

tomar a via pela metade ou viver parcialmente suas impressões e

declives, espero um dia chegar ao termo da poesia do humus e da

raiz libertadora, porque pressentimos – junto a toda a natureza,

humanidade - que tudo, a partir desta raiz, se manifesta

intensamente como Epifania do Divino, a cada instante e estação

florindo e frutificando Amor, vera beata 12 poesia.

11 Como nos ensina Jesus – então, seus apóstolos e místicos. 12 Feliz, de fato.

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E quanto ao decurso das práticas de Imaginação Ativa, descrevo,

aqui, os passos gerais empreendidos: 1) A partir de um relaxamento

inicial, no qual a consciência vigil tem oportunidade de abrir mais

espaços para o diálogo com o inconsciente; 2) Faz-se um movimento

contínuo de real envolvimento e concentração, participação, ação por

parte do sujeito, naquilo que emerge de seu interior e segue se

transformando em um fluxo autônomo de imagens; 3) Após este

mergulho, realiza-se algum tipo de objetivação do que foi

experienciado, seja na forma de um relato escrito, desenho,

modelagem, dança, composição, tentando ampliar o relacionamento

consciente e a fixação das imagens e seus conteúdos afetivos sem

muita discriminação racional.

A própria Imaginação Ativa pode ser levada adiante diretamente

no exercício das artes sobreditas, incluindo-se a escrita criativa,

guardando-se os demais passos: 4) Neste ponto, conduz-se o diálogo

mais analítico com o que foi vivenciado e realizado até o momento,

buscando-se uma compreensão mais clara, abrangente, associando

elementos pertinentes, seja da história pessoal ou coletiva, que

permitam uma concepção pessoal satisfatória, em confluência com a

dinâmica da própria vida; 5) A integração final do conteúdo produzido

e elaborado é chamada por Jung de “conseqüência ética” do

processo. Trata-se da prática ou realização na vida do auto-

conhecimento adquirido.

Jung (JAFFÉ, 2000) adverte que aquele que não enxerga seus

conhecimentos como uma obrigação ética, elaborando e vivendo suas

reverberações no cotidiano, fica à mercê do princípio de poder e dos

efeitos negativos do inconsciente.

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Muitos anos antes, porém, de conhecer a técnica da Imaginação

Ativa, a Oração Contemplativa Inaciana foi a inauguradora das

minhas incursões mais conscientes no universo anímico. Santo Inácio

de Loyola (2006) dava significativa importância para a imaginação

visiva em sua espiritualidade cristã, propondo, através de seus

Exercícios Espirituais, a contemplação do evangelho e outras mais

temáticas como A Contemplação para alcançar Amor, segundo as

cenas e figuras imaginadas pelo próprio fiel. Santo Inácio já

antecipava que “o que sacia e satisfaz a alma não é o muito saber,

mas o sentir e saborear interiormente” (p. 11).

Ao longo dos séculos, a Igreja educou sua assembléia através das

imagens sacras, das pinturas, esculturas, e em Santo Inácio, esta

lógica se inverte, oferecendo-se conhecer o inefável justamente

através da nossa inerente subjetividade. Diz ele, resumidamente, em

sua metodologia de oração:

1) Colocar-se na Presença de Deus, pedindo a graça de mais o

conhecer para mais amar e servir; 2) Compor, através da

imaginação, o lugar onde se passa a cena do evangelho; 3) Ver, ouvir

o que as pessoas falam, como são, o que sentem; 4) Colocar-se em

cena, participando ativamente (opcional); 5) Encerrar com uma

oração de agradecimento pelas graças e iluminações recebidas; 6)

Anotar aquilo que mais marcou, com maior conteúdo emocional ou de

entendimento; 7) Proceder a mudança de vida.

Sábio santo, este simples “colocar-se na Presença de Deus”

anterior a tudo, fez-se iluminativa diferença para mim. Nutro também

boníssimas e profícuas recordações dos ambientes sacros, das velas

acesas, daquela escuridão acolhedora dos amplos corredores, das

celas humildes, do som dos grilos, às noites. Silêncio, silêncio,

silêncio por dias, no mosteiro jesuíta. Anotando, todas as manhãs,

sonhos claros, quase lúcidos, fazendo sempre muitas colagens,

desenhos.

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Ilustração 9. Colagem pessoal, 2005. Fonte: Arquivo pessoal.

Assim, como “métodos” mais informais de criação, trago e somo

neste bojo, além dos livros, os sonhos e obras plásticas espontâneas,

a performance, a improvisação em dança, a escrita poética de livre

curso.

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Será notável, futuramente, uma parceria mais refletida entre a

essência daquilo que propõe Santo Inácio e as práticas junguianas,

pertinentes às recentes pesquisas do campo do imaginário, como

conhecimento do humano, do divino. Incontestavelmente, para mim,

de Deus, de um Si-Mesmo que se revelou ser um Tu-Mesmo, em

minhas vivências, confluindo significativamente para as artes, ciência,

em todas as atividades “domésticas” e corriqueiras.

Ilustração 10. “Deus virou poeta”, aquarela de

Cláudio Pastro SJ.

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A seguir, apresento esta divisão de temas: I. Stella Maris, II.

Pulchra ut Luna, III. Domus Dei e IV. Poema de Amor - Festina Lente 13. Nos três primeiros, temos: 1) A composição poética escrita -

reunindo as imagens emergidas a partir das Imaginações Ativas e

Orações Contemplativas - como substrato fértil para a criação do

curta metragem Natura fulgens (2005/6); 2) Um detalhamento do

processo de pré-produção, concepção e pós-produção; 3) Uma

reflexão fundamentada em Gaston Bachelard e outros filósofos,

cientistas e poetas do imaginário sobre a experiência do processo

artístico & de vida espiritual empreendido.

Em IV. Poema de Amor - Festina Lente, encontraremos mais um

gesto de carinho e gratidão por toda aprendizagem de vida

compartilhada, seguido do Epílogo: Ternura. Abismo da Graça. Moto

Perpetuo. Imo Tempo.

Antes, porém, de Stella Maris, e fechamento destas primeiras

palavras, ofereço-lhes este pequenino trecho de Jó (Jó 5, 17-20).

Não desprezes a lição do Onipotente, porque fere e

pensa a ferida, golpeia e cura com as mãos, de seis

perigos te salva e no sétimo não sofrerás mal algum.

Em tempo de fome livrar-te-á da morte e, na

batalha, dos golpes da espada.

E estas pétalavras soltas, antevendo, mãos dadas com a Virgem

Maria, uma-estação...

13 Ver, por gentileza, Glossário de Expressões Latinas.

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<< Logo chegará, neste novo ano, o Outono. Tempo de ver os

caquizeiros com seus galhos repletos de vermelhos e robustos

rebentos, a despeito da queda das folhas, da sóbria maturidade e

aparente envelhecimento precoce de seu talo, sempre renovado em

verdes paragens dos pássaros, dada sua adocicada e paciente

sabedoria. Estação da alma, como Drummond bem prescreveu, de

um modo ou de outro, nascida no Outono, algum Novo Outono

sempre aguarda por vir, como início ou fechamento de um ciclo...

Ou dos muitos ciclos e ciclos... >>

<< Se me leva ao simples, ao Instante,

só pode ser bom. >>

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Stella Maris

Modus Operandi I: Composição Poética escrita, reunido uma seleção das

imagens pessoais emergidas na vida de oração contemplativa e nas

práticas de imaginação ativa, durante os anos de 2005 e 2006.

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<< Nela tudo se passava no interior. >>

Ilustração 11. Nuestra Señora de las Angustias, com suas lágrimas de cristal e

seu véu de renda, semelhante ao véu negro usado ainda hoje pelas jovens

sevilhanas nas festas religiosas. Fonte: BOYER, M. F. Culto e Imagem da Virgem.

São Paulo: Cosac & Naify, 2000. 65 p.

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Aquela luz perolada embebia sua pele azul, o ar suave, os ventos

mansos, instantâneo de Deus a lhe tocar o cimo, beijar a fronte.

Perfume intenso das canelas, enternecido pela brancura de renda das

multíplices florinhas entre gramíneas do verde claro ao musgo, tons de

terra roxa também, estendidas, convidativas ao repouso, estrelas e lua

lá no alto, anjos e virtudes velando.

Havia um emaranhado de raízes salientes de uma grande saboarana

secular, encostou-se. Amparou seu peito aberto, e cobrindo-se com

toda extensão de Seu afeto, sucumbiu ao sono, afugentando a dor.

Intermitente furor de paz infundido por uma fagulha de Amor que a

abrasou, atravessou, fecundou, abrindo-lhe sulcos, eternamente. Noite

adentro, o leite manava do céu bem vermelho, águas, águas e águas

abundantes em tons torrenciais. Tudo, após a ferida, penetrava, era

conhecido, e nada, tanto, até agora, como aquelas águas sulfurais.

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Em seus sonhos, belíssimo jovem casto, olhos de um verde-amarelado

cristalino, lançou-se, sorrindo, nos terrenos abismos, chamando-a pelo

nome. Flores púrpuras cresciam de seu leito, besouros transeuntes e

vaga-lumes faceiros conduziam alegremente o pólen em seus cenhos.

Alvorada lunar, saudosa do sempiterno e terreno amado, levantou,

começou a vagar. Seu corpo mais pesado pelas águas, antes do deserto

que se aproximava, um rio corrente, translúcido prateado, repleto de

pescados. Dois homens simples, humildes, tratavam com seus anzóis.

<<Tiramos a Mãe Morena dali, bem do meio, onde os peixes gostam

mais.>> E apontaram. Agradecida pela preciosa guia, adentrou, foi

recebida, na bacia das pratas. <<Achamos depois a cabeça>>

continuavam, proseando, já ao longe. Amenidades deliciosas reveladas

naquele meio, temperado de sol, de um vívido colorido interior,

bastante povoado, tal como nas margens. Sua ferida se fechava, seu

corpo se aquecia docemente flutuando leve, naquelas águas.

Mergulhava, olhos abertos, perplexos, exuberantes na multiplicidade

abscondida. Assim, encantada, tão consciente, mas absorvida.

Aprofundava os mergulhos, raro respirava, salgava-se tanto daquela

vital amplitude azul esverdeada. Azul profundo de mundo, sempre azul.

Azul, azul, azul, intenso azul de uma realeza e natureza mais

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intempestiva nesta obtusa cercania dos mergulhos bons. E tudo

incandesceu outro lugar, revoltas serpentes trouxerem águas de um

mar bravio fervente, com toda ferocidade vulgar dos ataques repentes,

mortíferos. Dilaceraram-lhe a pele, a carne, os membros.

Incompreensível, demasiado e cruel tormento. Sem pensar, combativa,

afastou-as todas na própria ira, numa voz e movimento. As águas

tornaram-se denso e vigoroso sangue; sumiram-se as severas,

serpentinas. Sem enxergar naquele extremo vermelho, alguém lhe

ofereceu apoio, o ar novamente. Segurou firme em sua mão,

transportada de pronto ao éter, deixando o corpo retalhado como a

borboleta de intenso amarelo, enlevada, costumeiro casulo.

Havia apenas aquela cor, intenso amarelo, e a lentidão pacífica do

universo. Dadas as mãos, dançavam, eram luz, resplandeciam amor.

Horas, dias, o tempo sem compasso se ampliava, difundia. Almas que

desde a eternidade se conheciam. Acordou, despertou nas margens do

rio prateado, envolta em manto dulcíssimo, repleto de majestosos

brocados. <<O amor é a substância incorruptível>>, ouviu. Olhou, mas

nada mais viu. Novamente inundada, tal imensidão e beleza das

cascatas, prados, florestas, incomensuráveis desertos, montanhas,

flora e fauna exuberantes de viva harmonia em pacífica matéria,

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generosa natureza em todo o espectro de cores. Seus Olhos eram duas

iluminadas estrelas-irmãs, fontes puras de perfeita candura, bondade,

mansidão em inexprimível proximidade e alvura. Quisera jamais deixar

aquele colo materno, alturas. Os cabelos negros deslizavam-lhe pelos

ombros, como suntuosos espelhos refletindo as divinas maravilhas,

ornados de véus. Toda a abóbada celeste prestava-lhe melífluas

homenagens. Envolta em amorosa luz multiforme, cânticos e louvores,

orquídeas e rosas plenas, hortênsias, violetas, margaridas, e tantas

silvestres inomináveis floradas, reverentes e exalando alegria, aos

Seus pés, quase escondidos.

<< Mãe Morena... >>, entoou. Tendo-a, então, amparado mais

abertamente em Seu divino manto, consolou brandamente << Vivendo no

tempo, tudo cicatrizará. >> Raios transparentes, diamantinos,

encarnaram-na salpicados das luzes que provinham do centro de Sua

Santa Coroa de estrelinhas, repleta de pequeninos rubis, púrpuras da

guia, entranhada beatitude, húmus santo da Misericórdia.

Clara ciência esculpida, naquela tarde, naquele poente. Acolhida para

sempre nas dobras de Seu manto, entre suas palmas santas. Indizível

júbilo, felicidades. Podia morrer, passaria feliz. E justo, continuava

viva, morrendo. Sulcada de todos os lados, sem saber para onde ir.

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Apenas a graça necessária à Salvação, e aceitava, compreendia. Ali

estava o Céu Aberto, na visão gloriosa da Eterna Mãe, e partia,

precisava partir. Acompanhada incomensuravelmente no imo, segura

então, seguia seu caminho, chamada pelo seu amado, por todo e

qualquer prado, Aquele doce coração ardente de paz que se havia

pronto e tão apaixonadamente lançado na via de todos, sagrada via.

<< Siga devagar, respire profundamente o ar; de oração, com coração,

se alimente. >> Aconselhava a Eterna Mãe, admirável Mulher Vestida de

Sol de sabedoria infinita, Stella Maris, Stella Matutina, aqui, a Nossa

Santa Senhora da Conceição Aparecida...

E seguia. Aquele furor santo de paz a conduzia. Antes, a secura do

deserto ainda não havia deleitado a sua boca, ardendo nela a chama da

vida tal como em densa floresta tropical. Agora, caminhava, sim, com a

gravidade dos profundamente abismados pela graça, abençoados tais

como feridos.

Calma e profusamente, fortalecia-se na oração, vestes e vestes

surradas espalhavam-se pelo chão. Pétalas ou gotas, diariamente, do

poético alento do Eterno, caíam-lhe nas sedentas mãos. Tecia colchas e

colchas para serem abrigo nos maus tempos. Tudo nesta casa,

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parturiente, suspirava, gemia. Antigo castelo de sonhos descido

abruptamente das brandas nuvens infantis.

Então, certa manhã de sonho intenso, depara-se com estranha mulher

aturdida. Semblante terrificado, mais punhais do que mãos, pedindo

guarida. Inquilino não grato, amaldiçoado, impelido ao anonimato pela

vizinhança. Relutou em recebê-la, quase impossível perguntar a que

vinha. Um cheiro sombrio de matança impregnava o ar, estampado em

horrendas e cálidas cicatrizes onde prontamente se lia << a violência

deste rubro corpo transpira seu cerne febril, neste ímpeto índigo de se

tornar branco, transparente, dissolvente, penetrante água mercurial

que te confundiu a mente >>... Espadas a postos, cravou-lhe uma

firmemente, à obnublada visão, no teto do abdômen. De primo, fora

amedrontada por toda exposta e gratuita revolta, depois, quieta,

ponderava a cura para aquela morte temerária em seu próprio piso,

insondável fumaça.

Girou com vigor a espada cravada com força de boa intenção de

completar a tarefa: verter-lhe o sangue das águas paradas, abrir-lhe à

luz as obscuras cavidades, lavar-lhe o fígado, o baço. Lençóis brancos e

limpos, deixou-a aos cuidados das santas almas, dos anjos, redigiu-lhe

um bilhete, saiu.

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<<Amada Piedade, adormecida e banhada no leite terreno do meu

coração. Fervores desejosos de cura e alívio da pele redescoberta, eu

verti, jubilosamente grata pela mansa dissolução dos temores. Dói. Esta

espada transpassada no centro, teto do abdômen, abre e escoa o

sangue estagnado de feridas antigas. Sinto o cheiro do sangue

acordado correndo. Caem por terra crostas e líquidos abissais,

enquanto dorme, sonhando com a minha atual presença. De olhos

abertos ou fechados, eu estou aqui, por você. Saiba disso. Meus olhos é

que ainda não podem contemplar os seus. Frio na barriga porque eu

muito anseio. Bem sei que algo em mim pode morrer por suas mãos. Mas

confio no tempero Santo da vida. Peço a Deus, pelo mundo

interiormente povoado, a humildade delicada e forte dos pés que abrem

caminhos. Tem palavra e coração. Amor, alma.>>

Compromisso vital, vitalício. Saiu para encontrar a efetiva cura deste

humano vício, cegueira desconsolada: a aterradora brutalidade,

impiedade desvairada e assassina de prestimosos semblantes.

Dignidade perdida quando da primeira Eva caída. <<Afastada de meu

amado, tudo me assusta, me põe em resguardo.>> E andou, andou.

Cansada em um cume, treliças vertiginosas por entre as matas,

passagens difíceis, feras revoltas. <<Meus olhos já nada mais vêem, a

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não ser o abismo de Suas grandezas, altura, largura e imperscrutáveis,

tão doloridas por vezes, profundezas. Mesmo assim, se esconde de

mim.>> Dor lancinante sentir-se abandonada ao incompreensível fado do

mundo. Olhou para o céu em prece, <<socorre-me Santa Mãe, aparece>>.

Sentia que o Coração de Maria sangrava, escorria. Envolta em névoas,

rasgando as densas neblinas, uma luz clareando seu pranto, consumia.

Surgia a Santa dos Pobres, Maria Menina. De rosas, feitas as faces tão

pálidas, contemplando silenciosamente o lagar. Cenas urbanas de

violência, crianças desoladas, desabrigadas nas sarjetas, pretume

sufocante dos automóveis, panfletos vencidos por todos os lados,

impreteríveis prenúncios do caos, do nada, ausência total de sentido.

Vislumbrou-a novamente e de suas pálpebras fechadas brotavam rios

de um púrpura vivo carmesim. Entranhas vívidas da Misericórdia divina,

Amor tão cálido e cegamente sofrido que lhe fez íntima e

completamente desalojada de si. Impregnada de tão forte ardor, tão

impensável, que mal concebia ser possível sentir tudo aquilo e continuar

existindo. <<Oh, Mãe Menina, tão criança, tão sofrida!>> Calou-se, nada

mais conseguia pensar ou dizer. Emudecia diante da magnitude do amor

de uma Mãe tão menina, tão impensável amor, aberto à humanidade

inteira.

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Articulava mal as palavras, agora, conseqüente mudez. Silenciada pela

magnitude da vida, do amor divino pela vida, ainda que crescendo

silente, gemendo pelas dores do parto, entre os espinhos escondida.

<< Vem pelo amor, vem >>...

Muda, silente. Brotava, crescia por todo seu corpo, vigorosa e esquia,

aquela santa e sonora Voz Eterna em amada semente. << Pai de Amor,

meu Tudo, meu Criador, meu anseio mais profundo, meu fundamento,

Matéria da minha carne, única luz dos meus olhos, meu Espírito, ata-me

com seu vínculo dourado, fio que me tece e adentra pelo alto da cabeça

até as raízes sonolentas viventes no seio da Terra. Ata-me com intenso

desejo e saudade. Amor, alma. >>

Olhavam-na como louca, desatinada. Caída na lama, despida de casca,

descalça. Mas era mesmo a própria imagem do mal que coberta de olhos

abertos por todos os lados, congelador de imagens disformes, acusava,

perseguia. E ela tropeçava nos percalços simples da vida, de afetos

reunidos, interiormente lacrimosos, devotamente apaixonados. <<Oh,

amado, como sobreviver sem estar na sua devera presença e alegria?

Meus dias, todo meu corpo até os ossos se consome neste atual

estado>>. Dissolvida pela saudade de vida plena, lado-a-lado,

compartilhada, verdadeira. Tudo lhe cansava, o cerne condoia, tremor

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amargo que lhe consumia as vísceras, os gostos, os sentidos, toda e

qualquer poética, mesmo agradável, que lhe escondia entre as

folhagens, brumas e ondas dos confins, seu eterno amado.

<<Love shook the body like a devastation>>… Suas forças se esvaiam,

esvaiam, vertidas as lágrimas diluentes que lhe deixavam naquele

incompreensível abismo, impelida, no entanto a ir sempre adiante por

aquela indescritível força amorosa, eco da voz amada, sopro bom

daquele suave olhar, carinhoso chamado. Caída por terra, coração

incandescido de amor, pouco podia, ferida potente que lhe arrebatara

toda a vida. <<Oh, amado, nunca amei tanto e fui tão ferida>>...

Sem sopro de voz, recolhera-se, adormecera ainda mais. Casinha

simples, na areia, capelinha branca encimada pela cruz. Ventava muito.

Passaram dias, meses, como anos. Retirada do mundo fulgurante dos

carros e transeuntes, suspirava, costurava colchas e mais colchas para

os sempiternos valores humanos. Vestir os nus, amparar os

animicamente desabrigados. Profusamente convalida, ansiava pela cura

desta chaga fecunda pelos quatro, cinco, seis, infinitos recantos.

<<Chaga aberta incurável, a não ser pela presença de amor fortuita e,

então, eterna de seu inesquecível e compassivo amado>>...

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Sol escaldante, ventos litorâneos, areinha branca. Olhos parcialmente

cerrados e aquele paradoxal reflexo no pequeno espelho rosa-

amarelado. Quase não se reconhecia, semblante severo, hábito de

monja, verdadeira guerreira lutando com dragões. O primeiro lhe

apareceu nas costas, de um castanho-escuro avermelhado, antipático e

macilento. Tremores, tremores, terremotos. Indizível ungüento, tal

dragão soerguido, bufando mil razões, apetites, labaredas, brasas,

fomentos. Matéria vil caída dos sonhos materiais constrangendo tudo

ao redor. Então, ela mesma caiu de joelhos, contemplou novamente

aquele estranho e paradoxal movimento de almejada paz e santidade, e

então, aquele fogo, fogo amarelado, avassalador.

Terra, uma terra marrom. Foi o que ele virou, de repente. Abria e

fechava os olhos, não acreditava com simplicidade. Nisso, um rasante

de águia levou-lhe os olhos descrentes. Capitulava o episódio, mas

enxergava normalmente. E o que via, agora, diante de si,

majestosamente ornamentado de vermelho e dourado, branquíssimo e

enorme dragão fulgurante. Alto, contra o azul do céu. Pensou consigo

<<este sim é um dragão bem ornado, remido>>...

Ledo e completo engano, o branco dragão, lá no alto, quase não se

movia. Apaixonado por si, exaltando suas douradas algemas, gemia por

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dentro, não era livre, pior sofrimento que alguém podia. Compadeceu-

se, alcançou-lhe um pouco da fofa terra marrom que tinha nas mãos,

húmus do coração original embebido na poça fraterna da água de seu

próprio core, comunicante. Estrelas brincantes, naquele infindável

terreno abrasado de verdadeiro e humano amor.

Ar, um ar respirável, foi o que ele virou, insuflou. Artérias de um vivo

vermelho do novo oxigênio inalado. Suave beatitude, início das bem-

aventuranças...

<<Que todos os espaços por mim habitados, ó meu amado, incluindo

sôfregos pulmões, terras, casas, todas as vísceras do Corpo Único do

cosmos, sejam a Ti consagrados>>... Cantava, respirava devagar o pleno

ar humilde pelos pulmões. Realmente tudo que não fosse Ele ou dele lhe

doía, mesmo e principalmente, as partes, imagens de si mesma. Gostaria

de restituir-lhe todo aquele alvor e rubor, plenitude dos dias santos,

pacíficos e enamorados, despendidos em sua preciosa e sempiterna

presença. Contudo, uma magreza severa a percorria, dissolvida pelos

recônditos de suas azuladas veias. Dores e dores pelo corpo, algo que

aturdia. Aquele penetrante amargor das sulfas noturnas restava, aos

poucos se esvaía, mas consumava, a consumia.

<<Venha por aqui, venha>>...

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E << << Fique firme em Minha Presença >> >> ouviu.

Silêncio. Era algo quase impossível de saber responder, tendo-o ouvido

em voz tão centrada, forte e repleta de verdadeira majestade. Reuniu

forças, levantou, oferente, o coração pulsante. Sentiu a força daquela

Sabedoria infinita que todos os espaços perscrutava, conhecia. Duas

lâminas espelhadas de espadas fortíssimas. Vapt, zumm. Acertaram-lhe

num mesmo instante o pescoço pela frente, outra o sacro, por trás,

ambas pela voz.

Caíra completamente, inundada de um misto de terror e gratidão.

<< Negrume, noite, escuridão. >>

Sem pernas, sem cabeça, sem qualquer abreviação.

<<The Light of my eyes itself is not with me >>…

Prostrada pleno chão das desérticas planícies, ao simples som do

coração, em oração... Mundos imaginários inteiros vieram-lhe cobrar as

águas, costumeira afeição, dedicação. E aquele negrume santo dos olhos

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fechados, colados no chão, plantados cálidos e tão devotamente

apaixonados aos pés da cruz.

Subtraiu-se tudo.

Pó e pó, areia desértica,

desidratada pelo sal <<Peles e peles que me caem, sangue rubro azulado

que se esvai, e eu não O contemplei ainda, despida de mim mesma>>.

Silêncio, silêncio. <<Se não pode servir o vinho puro, sirva ao menos a

pequena dose da mistura, do mosto >>, diziam-lhe vozes, terrores

subalternos, soturnos.

Levantou-se em frente à cruz.

E ela própria era a massa confusa, obtusa ausência de luz.

Ervas amargas. <<Quem as quer?>>

Imperscrutável dor de morte infinitamente profunda, permanecer

velada Àquele incomensurável Amor de Paz, Sabedoria Incriada.

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E ELE a olhava nos olhos, chamando, amando tanto! Impossível não amá-

Lo ainda mais, abrindo-Lhe os olhos, um a um, por vez, à Luz Eterna do

Rei dos Reis.

<< It can see, and wishes to explain, but can find no word that will

suffice; for what it sees is invisible and entirely formless, simple,

completely uncompounded, unbounded in its awesome greatness. What

I have seen is the totality recapitulated as one, received not in

essence but by participation. Just as if you lit a flame from a flame, it

is the whole flame you receive. 14>>

Transpassada em todas as células por aquele, insondável por outra via,

conhecimento. << A cruz é a resposta máxima e curativa do Amor a todo

envenenamento pelo ódio brutal, pelo insosso medo. >>

Nada mais podia que não fosse proveniente daquela Única Raiz da

liberdade, Luz Inapagável, extrema reconexão, insofismável Alegria.

14 SYMEON THE NEW THEOLOGIAN apud GRANGER, I. M. Sacred Poetry Chaikhana, Campinas, 2005.

Disponível em <http://www.poetry-chaikhana.com>. Acesso: 2005

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Voltou, contudo, os olhos abertos sobre si mesma, antes cativa do ouro

falso, insuportável tristeza. Uma vergonha profunda, entranhada, de

poeiras do tempo a cobria. Jamais, jamais soubera amar assim, tão

desimpedida-mente.

Incapaz de levantar-se por si mesma, mendicante, no deserto ali jazia.

Forte apenas naquele insistente e eterno chamado recíproco de Amor.

<< Vem meu Amor, vem, despe-me desta dor >>...

<< DEUS IGNIS CONSUMENS 15>> E todo aquele reavivado ardor de

sol no peito manso que incendiava florestas e fazia brotar mananciais

de águas nobres em única cor. Branco que reunia e remia todos os

istmos. Sal que a transportava ao tão premente e esperado deserto do

gosto somente do Eterno Amado. Ali, só poderia encontrá-Lo,

abandonar-se, oferecer-lhe seu indiviso amor, cobri-Lo de beijos, de

flores, de toda ternura.

Sobrevivia na fé, na esperança, e na almejada, em tudo, caridade.

Mas << Oh, Amado, como poderei vir-Lhe à altura? >>

15 Deus consome pelo fogo.

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<< Faz-me Tu-Mesmo desde as Suas Santas e Amorosas entranhas

corporais e imagéticas neste imo, Amado Esplendor, onde habita

insuperável em Cepas Santas, Eternas Estrelas, fortalezas inesgotáveis

da Misericórdia e Sabedoria Infinita, sustentadoras do mundo,

movedoras da vida >>...

<< Vem renascer em mim qual criança >>.

<< Por amor de Sião, não me calarei, por amor de Jerusalém não

descansarei, enquanto não surgir nela, como um luzeiro, a justiça e não

se acender nela, como uma tocha, a Salvação. As nações verão a tua

justiça, todos os reis verão a tua glória; serás chamada com um nome

novo, que a boca do Senhor há de designar. E serás uma coroa de glória

na mão do Senhor, um diadema real nas mãos do teu Deus. Não mais te

chamarão Abandonada, e tua terra não mais será chamada Deserta; teu

nome será Minha Predileta e tua terra será a Bem-casada, pois o

Senhor agradou-se de Ti e tua terra será desposada. Assim como o

jovem desposa a donzela, assim teus filhos te desposam; e como a noiva

é a alegria do noivo, assim também és tu a alegria de teu Deus. 16>>

16 Is 62, 1-5.

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Por um instante, escondeu-se nas cinzas, nas brumas. Era indigna de

tamanha ventura. Mas agora, nada nunca mais a satisfaria longe dEle,

nem mesmo os gozos oblíquos de uma fecunda imaginação, arborescida

longe da Sua Raiz.

<< We do not wish to be unclothed, but we desire to be clothed over, so

that which is mortal may be absorbed in life. 17 >> Ele não quis

sacrifícios, nem oblações, mas tocou-lhe a testa com Sua Humana Mão,

sorrindo, abrindo-lhe os olhos, os ouvidos, do corpo e coração,

perguntando-lhe quem a havia perturbado tanto.

<< When fortified in love we shall see >>.

<< Eu te restituo a integridade, alma amada, há de me servir >>.

Coração quieto, quase sem bater, nulo e repleto.

Transportado de pronto ao incomensurável. Inimaginável alegria. A

sensação daquele toque tão indelével de Amor, recíproco, carinhoso,

era tudo o que ad aeternum existiu, existia: expansão jubilosa da

17 2 Co 5, 4

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Matéria da vida, Água Viva do Coração de Deus no tempo, eternidade

no corpo, na alma e na mente.

<< Eu dei a Minha Vida por você. Eu dei a Minha Vida por Amor. >>

Abrasados nAquele Vivo e Presente Amor de Paz...

<<Despe ó Jerusalém, a veste de luto e de aflição e reveste, para

sempre, os adornos da glória vinda de Deus! Cobre-te com o manto da

justiça que vem de Deus e põe na cabeça o diadema da glória do Eterno.

Deus mostrará seu esplendor, ó Jerusalém, a todos os que estão

debaixo do céu. Receberá de Deus este nome para sempre: “Paz-da-

Justiça e Glória-da-Piedade”. As florestas e todas as árvores

odoríferas darão sombra a Israel, por ordem de Deus. Sim, Deus guiará

Israel com alegria, à luz de sua glória, manifestando a misericórdia e a

justiça que dele procedem. 18>>

Uma correnteza calma de águas cobria o deserto, molhava-lhe os pés.

Burburinho gentil de brisa mansa. Repousou, recostou a cabeça em seu

peito.

18 Br 5, 1-4; 8-9.

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Águas doces que brotavam límpidas do chão.

<< O amor tudo espera, tudo crê, tudo suporta. 19>>

Mãos dadas, simplesmente ouvindo o som de seu amado...

Não tornaria a voltar os olhos sobre si, e caso sim, Ele ali estava.

Com Seus Olhos de amor, entranhados na misericórdia. Semblantes

vistos a serem redimidos pelo olhar do coração...

<< Perfect charity casts out all fear 20>>.

Sim, descobrira a Raiz.

19 I Co 13, 7 20 1 Jn 4, 18

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Pulchra Ut Luna

Modus Operandi II: Vida corriqueira, poeira, olhares devotos que

brotam de cada fibra e gesto de ternura neste chão, do próprio corpo,

alma e coração, como mananciais, sopros puros...

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<< Virgem Morena de indizível fecundidade temporal:

Vaso Insigne de Devoção, Casa de Deus. >>

Ilustração 12. A Virgem Maria como Pachamama, encarnada na montanha de

minas de prata de Potosí. Autor não identificado. Fonte: BOYER, M. F. Culto e

Imagem da Virgem. São Paulo: Cosac & Naify, 2000. 93 p.

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“Eis porque os Meus Anjos, em verdadeiras multidões, se interrogaram

uns aos outros: “Quem é esta, por detrás do Seu véu?”; “Por quem as cristas

das montanhas se inclinam tão profundamente, saudando-A, à Sua

passagem?”; “Quem é A que é como uma fonte que torna os jardins férteis

pelas Suas graças, esse poço de água viva?”; “Quem é Ela, com um Coração

tão puro, com um amor divino, suspirando por Deus dia e noite, e em

perfeita união com o Altíssimo?”; “Quem é esta Virgem, que é tão humilde,

apesar da Sua grande riqueza de virtudes e graças, que os Olhos do supremo

Deus não A deixam nunca?”

Vassula Ryden 21

A Virgem Maria, Mãe de Deus, é um campo fecundo de

inspirações. Como falar das belezas e auxílios insondáveis que tão

generosamente propaga pela terra, tendo já em si, nos trazido o

Menino Deus? De seu Coração Imaculado partem santos amorosos

abraços, inestimáveis zelos de Mãe Carinhosa, e toda-piedosa para

nos conduzir pelo caminho seguro, via crucis do humus ao abismo da

graça, morrendo e renascendo no Amor, com Jesus.

Maria é a encarnação da argila branca e humilde,

apaixonadamente atenta instante a instante, às propostas e ações do

Criador. Participa da criação entregando-se completamente, sempre

unida ao Pai, transbordando o Cálice do Divino Amor em Obras de

Misericórdia e Glórias do Altíssimo. Em Maria os sedentos de infinito

encontram um oásis de águas cristalinas e refrescantes de uma nova

fecundidade temporal, de Reciprocidade Amorosa Infinita. Humilde, e

despojada de tudo o que não é Amor, Deus a faz morada de Sua

Santidade Trina. 21 RYDEN, V. A Verdadeira Vida em Deus - Encontros com Jesus. Vol. VIII. Joinvile, SC: Edições Boa Nova, 2005. Pg 155.

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Ó Maria, doce luz que alumia e mareja meus olhos, move-me a

vida! Stella Cordis Creatoris 22, move-me ao sopro benfazejo, ao

canto, singelo e sem pranto, de um simples e poético cotidiano, como

empreendido, vivido, sob sua doce tutela, entre tantas pessoas

boníssimas, quase escondidas, em suas pequenas comunidades,

durante este percurso criativo artístico, pondo-me em contato com o

absurdo da fortaleza e simplicidade divinas, movedoras do mundo, e

nelas, em tudo e todos, suas crianças, geradoras de vida divina.

Maria Menina, mulher forte, peregrina, ágil em escutar a voz de

Deus e colocá-la em prática. Grávida, foi ao encontro de sua prima

Santa Isabel atravessando vales e montanhas, levando a Presença de

Cristo, iluminada benção, esperança. Depois, foi com José para o

Egito, quando o Pequeno corria perigo. Adulto, acompanhou-o nas

andanças, nas pregações, contemplativa, pronta e companheira, em

sua vida pública, então, transpassada por espadas de dor, orante e

silente, aos pés da Cruz. Em 1950, foi proclamada, por Pio XII,

Assunta ao Céu em corpo e alma, ao término de sua vida terrestre.

Citada pouquíssimas vezes nos Evangelhos, perduram – como se

multiplicam – títulos e qualidades que os fiéis lhe devotam, existindo

51 invocações diferentes na Ladainha que a Igreja Católica

correntemente lhe dedica, como também 113 variações de títulos

somente no Brasil, sem contar as inúmeras características singulares,

especiais, vislumbradas no interior daqueles que amorosamente a

invocam como Mãe.

Nesta sessão, apresento um detalhamento do processo de

concepção e realização em imagem e som do curta metragem

Natura fulgens (2005-2006), tendo Nossa Senhora como inspiração.

Natura fulgens foi produzido junto a mulheres do Assentamento

Rural “12 de outubro”, ou Horto Vergel, como popularmente

22 Estrela do Coração de Deus.

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conhecido, na cidade de Mogi-Mirim, SP. Contribuíram neste processo

minhas vivências, tanto interiores, compiladas na sessão anterior

Stella Maris, como também exteriores, saboreadas especialmente em

pequenas comunidades ao longo da vida.

Lembro-me que há bastante tempo atrás, perguntaram-me sobre

quem seria se um destino totalmente outro pudesse ser trilhado.

Surgiu-me à frente a imagem de uma senhora que conheci no sertão

do Rio Grande do Norte, com o semblante tranqüilo, os peitos

compridos de amamentar muitos filhos, mãos rústicas, calejadas de

lavar roupas ao sol, pescar no Assu, fazer doces em tachos para as

crianças. Tantas e tantas santas mulheres, ocultas, devotam a vida

ao amor, aos filhos.

Neste ínterim, no caminhar por pequenas comunidades, labor até

então, por vocação, quisera meus olhos fossem vivas câmeras para

desvelar os belos e tantos pormenores significativos do cotidiano-

coração. Fibras e fibras humanas teciduais, laços e fibras de suado

algodão. Risos impressos nas casas, nas paredes rosadas, azuis, nas

folhagens torcidas do cerrado, mesmo e especialmente nas fecundas

areações. Fibras e fibras - quase óticas, sonoras, sempre cardíacas:

visíveis, audíveis, e mesmo entoadas pelos corações.

Que fazer quando o vento leva algumas telhas e sussurra à nossa

alma peregrina: “Desperta menina! Desperta menina!”? Mãos

calejadas de maduro amor, compartilhadas. Saltam aos olhos a

intensa concretude do mundo, a beleza anímica. E nos movemos

como em valsa nupcial com o real, pairando de gesto significativo a

gesto poético, sintético, fecundo, mesmo já habitual: alegria do verbo

emanado. Investidos de luz e ressurreição permanecem o olhar, as

casas, toda a comunidade, entretecidos por laços de afeto, amizade.

Evocam, contudo, as badaladas da ressurreição, as almas-poetas,

inquietas, que mergulharam ou mesmo foram surpreendidas pelo faro

ou própria noite escura da alma: tempo de angústia, de provação,

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mas também de redenção, de esperança, nova luz ulterior, abertura,

novo tempo, além-amor.

Maria como Ecclesia, aparece como a Igreja que, como novo

princípio original de unidade, restaurando a imagem decaída de Eva,

reúne, agora, e alimenta seus filhos com o leite da Sabedoria Eterna,

que vem do coração. Eleva o Amor Misericordioso, capaz de se

debruçar sobre e redimir todos os filhos pródigos que batem à porta

de Seu Imaculado Coração.

Significativamente, nesta jornada, no convívio com a força, beleza

sonora e sabedoria pura dos simples de coração, circulando nos

entremeados caminhos das comunidades, mesmo sem o saber, o

“leite terreno” 23 que vertia de meu peito se adoçou de alguma forma,

pelo que sou incomensuravelmente grata, grata, grata, grata, refeita

sem nenhum pingo de desfeita... Sempre aceitando um cafezinho

bom, num canto manso de só-amor e gratidão.

“Penetrabo inferiores partes terrae et inspiciam omnes dormientes et

inluminabo sperantes in Deo” 24

Ecclesiasticus 24, 45 25

23 Diz o dito popular que “quando os olhos estão sãos, todo o corpo fica são”. 24 Penetro as partes inferiores da terra, considero todos os dormentes e ilumino os que esperam em Deus. 25 Biblia Sacra Vulgata.

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E Pulchra Ut Luna, desponta Sinara, atriz principal do curta

Natura fulgens, como filha da Mãe Terra, como filha de Maria,

mesmo sem o saber, de amor perene, mesmo em Lua Nova, radiante

no íntimo, mergulhada completamente no mistério da vida...26

26 A ilustração “Mãe da Luz” de Cláudio Pastro SJ foi encontrada após a produção de Natura fulgens, configurando-se como imagem de um mesmo universo arquetípico.

Ilustração 13. “Mãe da Luz”, pintura de Cláudio Pastro SJ.

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Pré-produção de Natura fulgens...

Sol entre nuvens brandas, rodovias, estradinha curta de terra, um

laguinho, eucaliptos, pequenas construções espalhadas, chegamos.

Equipe de pós-graduandos para a produção de documentários,

orientados pelo Prof. Dr. Fernando Passos, no Assentamento Rural

“12 de Outubro”, ou Horto Vergel, em Mogi-Mirim, SP.

Neste primeiro dia, num encontro local de jovens, encontrei

Sinara, falando bem, com força, expoente também de algo além,

doçura. Logo conheci sua mãe Sueli, então, o pai, irmãos, amigos.

Apresentou-me as vizinhas, mulheres doces e fortes, mães, avós,

meninas. Decididamente, diante daquela terra vermelha, calor de

paz, poesia encarnada e transpirável de erva-doce, camomila,

alecrim, florinhas púrpuras nos jardins, minha contribuição seria na

produção de um curta metragem com as mulheres do Vergel.

Reunimo-nos muitas e muitas vezes, durante alguns meses,

conversando sobre e fazendo poesia, trabalhando com dinâmicas de

expressão verbal e corporal, tecendo correlações entre o labor do

corpo e da alma, poético, criativo, com o labor da terra.

E assim, dançamos, nos encantamos com exercícios simples de

consciência corporal - entre muitos, tocamos nossas faces, sentimos

o ar ou sopro da humana e tão vital respiração. Realizamos

imaginações ativas, nas quais profundas imagens pessoais e

transpessoais para elas emergiram. Sueli se lembrou da visão que

teve no justo momento do nascimento, parto, de Sinara – um

extenso e bonito gramado verdinho; Ana Paula viu-se amamentando

sua filha, Jéssica, de um modo cotidiano, mas marcante para ela;

outras trouxeram imagens dos muitos frutos da terra, ipês floridos,

cestas de sementes, colheitas reunidas, feiras dos produtos, vidros de

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mel e compotas; já outras mulheres, imagens de abraços, círculo de

pessoas de mãos dadas, momentos de partilha.

Concepção de Natura fulgens...

Particularmente, nesta época, vivia interiormente uma inundação

de imagens arquetípicas com relação ao feminino sagrado e suas

manifestações. Certamente, quando temos uma questão evidente

esta atua como catalisadora, aglutinando impressionantemente o que

há de ressonante entre as pessoas, no ambiente, abrindo espaços de

diálogo, de trocas significativas, de criação coletiva.

Nesta produção, tínhamos como pedra de fundação o despertar da

alma poética e a assunção do corpo criativo - a integração dos

sentimentos, pensamentos, percepções, intuições, memórias e

imaginações com o corpo que labora tanto para o sustento da vida,

no campo, como para a nutrição da alma. E este foi o desafio

lançado: aquilo que fossemos produzir juntas teria de ser significativo

para cada individualidade. Assim, todas eram incentivadas a

contribuir, enquanto eu mantinha a firme esperança de conseguir

trabalhar simultaneamente meus densos conteúdos. Aliás, sempre

tive a consciência de não esperar esgotá-los facilmente, com

uma,duas ou três produções que fossem. Então, a liberdade deu

lugar, com o tempo, a uma assertividade e sentimento interno de

estar a realizar o melhor possível com as pessoas e condições

presentes. Considerei tudo, na verdade, um presente e um

aprendizado, percebendo, felizmente, desta vez, que obteria

resultados.

Então, a produção. Não tínhamos um roteiro claramente definido,

mas imagens que queríamos realizar e conectar umas às outras. Eu

iria realizar esta conexão também a partir da qualidade das imagens

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obtidas. A equipe de alunos da pós-graduação da UNICAMP que

cursavam a disciplina que nos levara até ali, e que também

trabalhavam em seus projetos, ajudou-nos nas gravações.

Gravamos em três dias distintos.

Rose, que permaneceu constantemente em silêncio entrecortado

por risos nas atividades de pré-produção, fora incumbida da cena da

porta, da pequena grade, na produção do vídeo. Neste, Patrícia,

contribuiu alegremente com uma de suas poesias: A Gaivota.

Sinara, a jovem que primeiro conheci e que se encantara com a

imagem do feminino sagrado nascendo da terra, comentado nas

oficinas, dispôs-se a realizá-lo. Ana amamentando sua filha Jéssica.

Cléia, extremamente tímida, mãe de três filhos, apareceu com eles,

brincando, na varanda. Durante as gravações, tivemos a graça de

Ilustração 14. Conjunto de imagens do curta metragem Natura fulgens. Fonte: Arquivo pessoal.

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ouvir, também, inesperadamente, o alegre depoimento de Neuza,

que vive no Horto Vergel desde seu início, repleto de honesta

fortaleza. E Sueli, mãe de Sinara, investida de Grande Mãe.

Em todo este tempo de convívio, participei também de outros

momentos da comunidade, missa de celebração da Coroação de

Nossa Senhora, festa junina, agradáveis visitas. Algumas impressões

destes momentos também foram incorporadas, acolhidas.

Imagens simples, mas, para mim, aglutinadas pela força de

coesão da alma peregrina encarnada por Sinara, aberta, de olhos

abertos ao novo, com vida nova liberando seu sopro, com caminho

previamente iluminado pela Grande Mãe, porém alma-saudosa, já

com traços de quem busca um amor ou algo longínquo, embora

presente, com vontade de viver presentemente.

Assim, meus olhares de futura editora, então diretora, se

embrenharam no solo fecundo da arte de produzir em imagem e som.

Alegria de realizar. E realizamos, todas juntas, certa forma.

Ilustração 15. Fotografia da produção de Natura fulgens. Fonte: Arquivo pessoal.

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Seguem, então, desde já, meus intensos agradecimentos às

participantes pelo chão fértil de imagens e sentimentos

compartilhados, aos quais somo a “poesia-roteiro” deste curta, que

escrevi durante o processo de pré-produção, para materializar

minhas impressões primeiras, servindo-me posteriormente de linha-

base para a edição.

POESIA-ROTEIRO de Natura fulgens...

Arde-nos o coração como chama viva, rocha ígnea, a fecundar os espaços

da vastidão. Parturientes do mundo, corpo inundado do fogo do espírito,

ventre do criativo. Sonhos nos brotos e nos filhos, nas mãos, fortalezas

operantes da alma, da terra. Amor que nos lança ao centro, ao único. Amor

que permeia tudo.

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Pós-produção de Natura fulgens...

Repassando, agora, todo o processo de realização, incluindo a

edição, com relação às minhas vivências e imagens pessoais,

apresentadas em Stella Maris, identifico alguns trechos, logo no início

da composição, que traduzem o sentimento com que criava com as

mulheres do Vergel:

“Noite adentro, o leite manava do céu bem vermelho” (p. 23).

“Chamando-a pelo nome” (p. 24).

“Alvorada lunar, saudosa do sempiterno e terreno amado,

levantou, começou a vagar” (p. 24).

“Seu corpo mais pesado pelas águas, antes do deserto que se

aproximava” (p. 24).

“Mãe Morena...” (p. 26).

“Vivendo no tempo tudo cicatrizará” (p. 26).

“Siga devagar, respire profundamente o ar; de oração, com

coração, se alimente” (p. 27).

“E seguia. Aquele furor santo de paz a conduzia. Antes, a secura

do deserto ainda não havia deleitado a sua boca, ardendo nela a

chama da vida tal como em densa floresta tropical” (p.27).

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“Agora, caminhava, sim, com a gravidade dos profundamente

abismados pela graça, abençoados, tais como feridos” (p. 27).

“Pai de Amor, meu Tudo, meu Criador, meu anseio mais

profundo, meu fundamento, Matéria da minha carne, única luz

dos meus olhos, meu Espírito, ata-me com seu vínculo dourado,

fio que me tece e adentra pelo alto da cabeça até as raízes

sonolentas viventes no seio da Terra. Ata-me com intenso desejo

e saudade. Amor, alma” (p. 31).

Trechos que são marcos indeléveis da minha história de vida

interior. Em Stella Maris, já vislumbrara, por exemplo, que “Retirada

do mundo fulgurante dos carros e transeuntes, suspirava, costurava

colchas e colchas para os sempiternos valores humanos” (p. 32). E

assim me senti, na segunda etapa do processo de criação, retirada da

vida corrida, quiçá da academia, e imersa na vida doméstica e

amorosamente corriqueira, realizando em imagem e som aquilo que

santamente passou a ser mesmo roteiro de vida, passagem

verdadeira: do interior ao exterior, do exterior ao interior, sempre

amando a novidade do instante “revelador”.

Outros leitores podem ainda encontrar novas correlações do curta

Natura fulgens com as imagens presentes em Stella Maris. Ou

mesmo as poderão associar às minhas futuras produções. O valor

inestimável das Imaginações Ativas e Orações Contemplativas

permanece, contudo, para mim, no cultivo das paisagens anímicas,

na aquisição de símbolos vivos que nos colocam em movimento.

Símbolos promotores de busca, de complexidades crescentes, de

simplicidades reluzentes, sempre de um conhecimento humano maior

a partir da experiência desta atmosfera psíquica comum – e tão

inusitada ao mesmo tempo - a todos os homens.

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A metodologia mais formal empregada revelou e ratificou aos

meus devotos olhares a magnitude do substrato anímico, criativo,

fazendo-me desprezá-lo também, quando opulento e infértil, para

alcançar o tesouro mais escondido. Digo e confesso aqui, o tesouro

mais escondido, posto que me sinto transformada profundamente por

este processo de criação, um tanto mais amadurecida – e iluminada

por dentro -, muito mais do que consegui realizar ou produzir neste

período. Mas a vida é longa e há muito a ser lapidado.

Tenho comigo que preciso ir cada vez mais, em novas produções,

driblando o fator “alegórico” da transposição da linguagem do

imaginário mais ligado ao inconsciente e arcaico para as realizações

audiovisuais. Encontrar minha fala autêntica em imagem e som, a

partir deste substrato anímico fértil, mas também independente dele,

vencendo as cruzes e percalços próprias do meu processo pessoal

estético, poético, criativo, singular, como escultora do tempo.

Impressionantemente, o caminho de individuação descrito por

Jung, o caminho espiritual trilhado por Santo Inácio e os carmelitas

descalços - como tantos outros - e o caminho dos artistas, da

autenticidade artística, apontam para uma mesma direção: a da fala

Ilustração 16. “Cristo Mestre”, pintura de Cláudio Pastro SJ.

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autêntica e significativa de cada um, individualmente. Tanto, que

apresento nos anexos (no 04) um trecho do comentário carmelita do

Cântico Espiritual de São João da Cruz - referente às estâncias 20 e

21 deste - que trata da necessidade de superação das inundações

emocionais, ruídos da imaginação, e até mesmo medos espirituais,

para a conquista de uma “pureza de intenção” (esvaziamento até o

mais profundo, cerne único, ao invés de engrandecimento), na

jornada que conduz a alma à sua Luz, à sua Fonte - e na linguagem

de muitos místicos, ao seu Amado...

Ilustração 17. “A Samaritana”, pintura de Cláudio

Pastro SJ.

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E que indescritível paz deixar-se mover, íntima e poeticamente,

mesmo sem perceber, pela Fonte, pelo Amado, por Aquilo dentro de

nós que é mais nobre, mais amoroso e mais despojado, donde

brotam uma fecunda liberdade e alegria espiritual, realizando,

paradoxalmente, nossa devera singularidade, no amor, nos trabalhos,

nas relações que se estabelecem.

Lembrando que para além de uma imaginação redimida, há

também um poético feminino ferido e acuado em quase toda parte,

necessitando de redenção, da sacralização da terra, do espaço

doméstico, do pulsar e agir do próprio Corpo-Coração. Nesta

produção, interagiram imagens interiores, encontros exteriores,

pesquisas dos arquétipos coletivos, sensações, impressões, intuições,

que aos poucos se tornaram também conhecimentos assumidos e

manifestos no corpo criativo que dança, tal como Sinara no vídeo, em

seus primeiros movimentos...

No mundo, percebo, as constantes massificações - que cerceiam

nossa potência poética, de vida - somente reforçam a perda do

espaço habitual onde este feminino reencontra seu vigor: nos círculos

concêntricos que se expandem para o mais universal, partindo do

mais interior. Ali, senhora do próprio íntimo, do próprio corpo, na

beleza anímica melíflua que cuida da terra e da família compondo

poemas e cantigas, as sementes escolhidas - uma a uma – reúnem

forças para a irrupção significativa. E só podemos falar de uma

pluralidade verdadeira a partir de singularidades verdadeiras.

Assim, com força miraculosa de reunião dos filhos dispersos de

Deus, auxiliando cada um que se dispõe no percurso de integração

anímica, de comunhão com o sagrado, nos chega Maria, com Sua

Ternura e Divina Sabedoria, gerando “a vida de Deus em nós”.

Penso que se a humanidade está tão inconsciente da plenitude

espiritual da Vida, que carregamos em humilde semente no peito, é

porque o feminino, alienado de si e da Mãe Ternura, está acuado,

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massacrado, sem o devido espaço para ser em seu poético e divino

devir. E a humanidade inteira, sem verdadeiro cultivo, acolhimento.

Ilustração 18. Ecclesia, de um manuscrito alemão, séc. XII.

Fonte: NEUMANN, E. A Grande Mãe – Um estudo fenomenológico da

constituição feminina do inconsciente. São Paulo: Cultrix, 1999.

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Adélia Prado (1990) 27, em uma de suas entrevistas, nos coloca

esta preciosidade:

Feminista, agora, para mim, só se for filha de

Maria. O problema agora não é Jesus Cristo, é

Maria. A irrupção do feminino. (...) É o papel do

serviço. De servir para que o mundo seja. O

serviço para o grande acontecimento. E o

feminino vai irromper assim. O feminino em

Deus.

Comentário que conflui na irrupção ou despertar da alma poética

feminina, corpo criativo já caminhante, em imagem e som, nesta

criação coletiva. A voz bonita, contudo, de Sinara, no vídeo, ainda

nos vem como um sopro...

27 CANÇADO, J. M. Adélia Prado combate a transparência do mal. Folha de São Paulo, São Paulo, 07 jul. 1990.

Ilustração 19. “Mãe de Deus Aparecida”, aquarela de Cláudio Pastro SJ.

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Por fim, pude demonstrar que não sou muito prática na elaboração

de roteiros. Eles acabam nascendo do frêmito vivo, da palavra-força

que inaugura um novo tempo, sempre reunindo tudo o que calou

profundo na alma, estava disperso e é significativo, na justa alegria

dos encontros, inundando - das sementes certas - as produções. Em

Natura fulgens, as sementes que já carregava encontraram terra

fofa, água fresca, alento; e as outras, também, as certeiras,

ressonantes, trazidas pelos ventos, obtiveram espaço, sendo

gentilmente adubadas.

Imagino seja o modo intuitivo de gerar.

Ilustração 20. “Trono da Sabedoria”, pintura de Cláudio Pastro SJ.

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Domus Dei

Reflexões teóricas do processo artístico – & de vida espiritual -

empreendido.

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<< Mãe Morena de indizível fecundidade temporal:

Causa da Nossa Alegria, Casa de Deus. >>

Ilustração 21. A Moraneta, pintada no século XVII por um

monge beneditino. Fonte: BOYER, M. F. Culto e Imagem da

Virgem. São Paulo: Cosac & Naify, 2000. 39 p.

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“A imagem poética, como algo novo, é puro presente, pura presença. E o

estar presente à imagem no minuto da imagem é que justifica a dispensa de

um prévio saber – mediação geralmente deformadora ou mesmo negadora do

ser da imagem. Melhor receber a imagem como dádiva, no despojamento de

quem se defronta com algo inteiramente original, principal, primeiro – no

despojamento e na fruição prazerosa de quem bebe direto da fonte.”

Gaston Bachelard

1. Intuição-do-uno e alteridade.

A intuição é umas das quatro funções psíquicas descritas por Jung

(1971) na sua teoria dos tipos psicológicos – dentre as quais

encontramos o sentimento, o pensamento e a percepção. Todos os

seres humanos possuem as quatro funções, ordenadas em grau

decrescente de utilização ou importância no seu relacionamento com

o mundo. A função principal, de adaptação do indivíduo ao mundo,

junto com o arranjo ordenado das outras funções, aliada também a

uma característica - atitude ou disposição psíquica – de introversão

ou extroversão, fornece, para Jung, uma tipologia psicológica.

Para Jung (1971), a combinação de uma função principal ou

superior e de uma função auxiliar ou secundária - sendo via de regra

uma introvertida e a outra extrovertida - constitui o melhor modo

para adaptação do indivíduo e interação deste com seus mundos

interior e exterior. A quarta função ou inferior, por outro lado, por ser

menos acessível à consciência, desempenha um importante papel de

ponte com o inconsciente no caminho de individuação, ou seja, no

processo de desenvolvimento psíquico que leva ao conhecimento

consciente da totalidade.

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E foi com esta tipologia que cheguei até aqui: sou uma jovem

Intuitiva Introvertida, tendo por função auxiliar o Sentimento

Extrovertido, com Pensamento também muito utilizado, desde

menina, e por função inferior a Percepção. Esta compreensão me

ajudou a iluminar e potencializar, durante a realização do mestrado,

aspectos do processo criativo artístico, como também foi o

“instrumental anímico” através do qual fui desperta para a vida

espiritual, reconhecendo minha disposição às leituras e metodologias

mais intuitivas e visionárias, e ainda, explorando e selecionando

outros caminhos, mais difíceis para mim, perceptivos, vivenciados na

comunidade e na própria realização em vídeo.

Para a psicologia junguiana, todas as funções psíquicas são

importantes no caminho que leva ao reconhecimento de uma

totalidade, integrada significativamente na vida simbólica e, aos

poucos, na vida quotidiana deste alguém. Para grande parcela dos

místicos 28, entretanto, a intuição possui ampla primazia, por ser um

canal de informações muito aberto e direto sobre “um todo”,

significativo; e ainda mais particularmente por não se deterem,

muitas vezes, na questão da adaptação ao mundo, importando-se

prioritariamente com o relacionamento com o Divino.

Paulo de Tarso Gomes, no prefácio do livro A Intuição do

Instante do querido filósofo da imaginação poética Gaston Bachelard

(2007), antecipa, relembrando, que Hugo de São Vítor (1096 – 1141)

já havia assumido a intuição como conjunção entre uma totalidade e

o vero instante, uma vez que a contemplatio era “a intuição do olhar

contemplativo e o conhecimento último sobre a totalidade e infinitude

divinas” (p. 8). Para Hugo de São Vítor a contemplatio perfazia o

último degrau do conhecimento, precedido pela cognitio – que se

28 Com o devido perdão por esta generalização.

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referia à observação sensível e à imaginação – e pela meditatio –

como reflexão racional cujo ápice é o reconhecimento do Divino.

Para Paulo de Tarso (BACHELARD, 2007), a contemplatio, como

instância do conhecimento, exige uma metafísica mais profunda e

radical, porém sempre Unitiva, ou seja, concebendo o mundo não

como ruptura, mas como continuidade nos prados da divina

consciência, e mesmo ascensão da observação sensível à

contemplação de Deus. A intuição seria, então, para os místicos, o

que as quatro funções desempenhadas de modo integrado são para

os junguianos: uma prévia ou realização da contemplatio, um

lampejo deste Ato-Uno, de consciência e de mundo, e de um modo

profundo, de vivência do Instante na Presença de Deus.

Ilustração 22. “Coloca-me com o Pai”, apresentando Santo Inácio e Jesus Crucificado, pintura de Cláudio Pastro SJ.

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Em outro ensaio de filosofia, intitulado A Fratura Humana, de

Castor Bartolomé Ruiz (2004), a alteridade aparece como paradoxo

que estabelece um distanciamento relacional entre o ser humano e a

natureza, entre esse o seu próximo, unindo e separando sujeito e

objeto, condição sine qua non da constituição da própria identidade,

subjetividade. “Unindo” na medida em que movimenta o desejo de

busca de conhecimento e aproximação do outro, do diferente, de si

mesmo, mas “separando” inequivocamente por uma fratura abismal,

nunca superada porque ontológica, contingente. Assim, para Ruiz,

desde os Homo sapiens, que sentiram que a natureza se afastava

deles e se configurava como alteridade, perambulamos entre a

necessidade de plenitude e a busca de sentido, de relação, e toda

sutura eficaz entre estes dois pólos se manifesta através da

linguagem simbólica, num contexto de subjetividades tramadas em

um mesmo universo simbólico, pois sem isso seria impossível pensar

em uma linguagem que possibilitasse alguma aproximação unitiva.

A plenitude, como geralmente abordada, implica em sentimentos

de repouso e satisfação, de um absoluto que praticamente não se

move, mas em extremo júbilo por dentro se instaura e pacifica.

Enquanto a busca de sentido claramente nos põe em movimento

exterior – também interior - possibilitando o ser humano, na

incompletude, recriar pontes de sentido com o mundo e entre seus

semelhantes através de seus símbolos, da comunicação.

Desta forma, o mundo pode ser novamente “incorporado” pela

representação de nossas subjetividades e olhares de criaturas

hermenêuticas que dotam de significado tudo o que tocam - num

modo ativo, criativo e singular de entreter relações, constituindo as

cosmovisões, modeladas a partir do universo social e pessoal - ou

pode mesmo ser “participado” num movimento de apresentação,

revelação [ativo-passivo], como salienta Ruiz e propõem os místicos.

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Nas diversas situações a integração das funções e potencialidades

anímicas, para alcançarmos simbolismos cada vez mais complexos e

unitivos, como também a inspiração pura, dada pela aparição ou

apresentação de conteúdos, podem estar presentes em diferentes

proporções. São Bernardo de Claraval 29, em consonância, porém,

nos alerta que o ser humano, por mais que usufrua dos elementos do

mundo na tentativa de vivenciá-los e conhecê-los em sua largura e

profundidade, multiplicidade de significados e relações, permanecerá

sempre tocado pela incompletude, de fato, não satisfeito.

Gaston Bachelard (2007) nos ensina que o conhecimento é por

excelência uma obra temporal. E aquilo que transcende o tempo

como o conhecemos – numa conjuntura com o Eterno, mas revelado

histórica e presentemente, no vero instante fecundo (em si

atemporal, dilatado singularmente) - necessita de uma metafísica

superior, inaugurada pela contemplatio através dos olhares devotos,

peregrinos, abertos para o invisível e fonte que o anima.

Em qualquer contexto do conhecimento, todavia, situando a

contemplatio num limite intermediário, mediante a experiência

daquilo que ultrapassa o conhecimento, incluindo as outras

modalidades expostas do “conhecer”: cognitio, meditatio, temos a

linguagem simbólica revelando a cola invisível que une as várias

regiões do real. Assim, um símbolo é sempre unitivo da consciência e

do mundo (ou partes), destes e da consciência de Deus – sendo que

nesta primeira instância, a Comunicação ganha relevo e luz

esclarecedora, e na segunda, de conjunção com a eternidade, a

Comunhão entra completamente em ação, embora participem

numinosamente juntas. E como ainda nos diz Bachelard (2007), uma

intuição fecunda não se explica, vivencia-se, justamente porque

ultrapassa todo conhecimento - temporal - que é parcial.

29 CLARAVAL, São Bernardo de. Traité de l'Amour de Dieu. 1128.

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Felizes, então, como dizem os bons poetas, os olhos-e-corações

que se voltam para a Fonte da Vida e participam do mistério de todas

as coisas, sem desenraizar-se, sendo o corpo e alento donde jorram o

leite e o mel da eterna sabedoria, temporal e historicamente. A

contemplatio, a oratio (que mesmo prescinde da imaginação) são

verdadeiros modos de alcançar a via que conduz a esta comunhão

consciente, dados inúmeros testemunhos dos místicos, santos, de

tantas criancinhas que descobrem o Amor Encarnado no mundo.

Sto. Inácio de Loyola (1997), inaugurador do modo contemplativo

de oração utilizado, cujo propósito principal era o diálogo com Deus,

aproximando a alma de seu Criador, narra em sua autobiografia um

episódio muito especial que ilustra a “apresentação” de um conteúdo,

ou conhecimento que o ultrapassa, extraordinário. Ia ele, certa vez,

por devoção, a uma igreja que estava a mais de uma milha de

Manresa, onde se encontrava, tendo uma forte experiência de Deus.

Escreve seu redator:

Creio que a igreja se chama São Paulo e o caminho segue

junto do rio Cardoner. Indo assim em suas devoções,

assentou-se um pouco com o rosto para o rio, o qual ficava

bem abaixo. Estando ali assentado, começaram a abrir-se-

lhe os olhos do entendimento. Não tinha visão alguma, mas

entendia e penetrava muitas verdades, tanto em assunto de

espírito, como de fé e letras. Isto com uma ilustração tão

grande que lhe pareciam coisas novas. Não se podem

declarar os pormenores que então compreendeu, senão

dizer que recebeu uma intensa claridade no entendimento.

No decurso de sua vida, até os 62 anos, coligindo todas as

ajudas recebidas de Deus e tudo que aprendera por si

mesmo, não lhe parece ter alcançado tanto, quanto daquela

só vez. Ficou com o entendimento de tal modo ilustrado,

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que lhe parecia ser outro homem e ter outro entendimento,

diferente do que fora antes. 30

Muitos filósofos ou outros teóricos, como Ruiz (2004), tratam o

imaginário como o sem-fundo da natureza humana: realidade última

a partir da qual o conhecimento humano descobre os imperativos do

ser. E aqui, definitivamente pisamos o limiar entre filosofia e teologia,

racionalidade epistemológica e o solo fecundo da mística ativo-

passiva, do mistério, pois para uns, trata-se da autonomia criativa do

imaginário e para outros, da Fonte do Ser, de Deus.

Ainda em A Fratura Humana, Ruiz (2004), interpretando o livro

bíblico do Gênesis, relembra que a força criativa de Deus fraturou

Adam [Adamah, que significa terra, humanidade] para que não se

sentisse mais só. Primeiro, a nova criatura saída das mãos de Iahweh

emergiu umbilicalmente unida à terra, formando uma unidade natural

com ela, e então ocorreu uma fissura externa, separando Adam do

mundo natural, trazendo-o à vida. E depois, uma fissura interna,

gerando Eva de uma de suas costelas, evoluindo da gênese da

consciência da identidade – na criação de Adam – para a gênese da

intersubjetividade, uma vez que esta segunda fratura irá implicar, de

fato, o desaparecimento de Adam como realidade auto-suficiente e

fechada em si mesma. A partir de Eva, existiu um outro ser que o

completa em um nível mais interior que o meio natural.

Assim, sem a desindentificação inicial com o mundo a pessoa

estaria eternamente condenada ao encerramento monádico primitivo

e indiferenciado, e sem a intersubjetividade não poderíamos dizer

como Adam algo como “esta sim é osso dos meus ossos e carne da

minha carne”, vislumbrando a unicidade ou continuidade em uma

30 LOYOLA, I. Autobiografia. 5ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 1997. Pg. 41.

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esfera maior, interna e externa, apesar da aparente separação que,

na verdade, foi um bálsamo curativo da solidão.

Muitos filósofos, como Ruiz (2004), tratam da questão metafórica

do Gênesis de modo significativo, mas geralmente sinto falta de algo

essencial, que fica esquecido: que saímos da “Presença de Deus” e

que precisamos também voltar para Ela de um modo mais

consciente, diferenciado. Não só a unidade com o mundo, com o

outro, mas também com Deus. Solidão ontológica, mais profunda

ainda, que foi instaurada após estas duas fissuras da criação de

ambos os seres humanos. Muitos trazem a expulsão do Paraíso como

a gênese da consciência, da alteridade com o mundo, mas reparando

bem, ela é posterior ao fato da ruptura da unidade do homem com a

terra indiferenciada. Para Jung, como para outros teóricos, teólogos,

entretanto, esta questão retrata fielmente a perda da unidade

primordial e não consciente com Deus.

E enquanto não reconhecermos esta necessidade vital de diálogo

com o Criador, retornando à Sua Presença de modo criativo e

diferenciado, ainda percorreremos muitos campos (quase

inanimados) como seres errantes, nas malhas do tempo - sem

tempo, infelizmente, para o instante -, quiçá em uma réplica do

jardim da multiplicidade exuberante, abarrotados de quinquilharias

interessantes, sem, contudo, reencontrar, às significativas

apalpadelas, a fechadura da Porta que nos reconduz ao Reino, e

desta vez, como seres ambulantes, não somente no Jardim Exterior,

mas felizes convidados ao Átrio Interior, à participação infinita,

incomparavelmente bendita, nas fontes de Águas Vivas, adentrando,

amorosamente,

na Domus Dei.

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“Há uma identidade absoluta entre o sentimento do presente

e o sentimento da vida.” Gaston Bachelard

2. O remédio feito da matéria do encontro.

Vida, vida bendita. E como Santo Inácio indo assim em suas

devoções... Abrindo-se lhe a grande panorâmica da vista, os oculi

cordis, olhos interiores da alma-unida-ao-coração, e depois,

espirituais, revelando as inesgotáveis obras de arte divinas da

criação... Primeiro, descobri, caminha-se com o músculo do coração,

inflamando o amor e busca do Outro, e logo depois, com os humildes

e lavados, em lágrimas, pés... pela alegria do Encontro.

Uma alma peregrina está sempre empenhada na jornada. E só há

encontro quando há amor. Combustível do alento, fogo suave do

frêmito da vida, bons ventos. E o respirar vital se transfigura num

despojamento de si que abre amplos espaços para o verdadeiro

encontro com Deus, e nEle com todos.

“Se alguém, através da oração, aliena-se, é porque não procura

Deus, mas a si mesmo” 31, lembra-nos a vida de Edith Stein (1987),

que se tornou a carmelita Madre Teresia Benedicta a Cruce, já

famosa como pensadora e discípula predileta do filósofo Edmund

Husserl. Para ela, o deixar-se conduzir pela verdade encontrada e

abraçada é descobrir riquezas interiores não imagináveis que só

esperam ser dinamizadas e colocadas a serviço dos outros. 32 O

mundo não tem fome do que temos ou sabemos, mas do que somos,

a cada gesto concreto, reunindo o visível e o invisível, nas margens

de uma nascente inesgotável. E quando se abrem “os olhos de Deus”,

31 STEIN, E. Na força da cruz. São Paulo: Cidade Nova, 1987. Pg. 25. 32 Conta-se que São Bernardo, por exemplo, em um mesmo dia na Alemanha, curou nove cegos, dez surdos-mudos, dez coxos ou paralíticos, como o fizeram o próprio Jesus Cristo, Maria e tantos santos.

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os acontecimentos se tornam Kairós de Deus, momentos da graça. E

subitamente compreendemos nossa passagem.

A vida de Edith Stein nos mostra que “cada um de nós tem o seu

Damasco onde a luz fulgurante de Deus lança-nos do cavalo e quase

nos obriga com sua doce e forte violência a aceitar a verdade que

tantas vezes rejeitamos” (pg. 18). Para mim, esta verdade é a de que

nascemos para nos doar, perdendo a nós mesmos, em atos sinceros -

tão ternos! - de extremo e indelével Amor, parindo flores e frutos,

mesmo fora de época, e realizando, assim, nossa devera pluralidade.

Mas essa vocação plural parte de um mergulho e escuta da Voz

Eterna ecoando uníssona às batidas singulares de nosso coração.

Beleza indescritível da diversidade de dons, chamados, vocações.

Quando iniciei o mestrado, nas primeiras linhas do meu projeto de

pesquisa, estampavam-se as palavras: Parir das próprias entranhas

imagéticas, caminhando do simbólico pessoal como portador de

reverberação essencial e coletiva, singular construção em

audiovisual... No intercurso da vida, sempre fui arrebatada de amor,

atraída, ao mesmo tempo em que repelida, pelo ímpeto do sacrifício

[Sacro-Ofício: ofício do sagrado], do “dar de si” na gestação, contato,

realização de todo e qualquer ato significativo, nas artes, na vida.

Caminhando pelas Artes, fica bem claro que toda vez que não

damos algo de nós, morremos uma pequena morte: pelo frêmito ou

pulso de vida não compartido. Morte da qual nos desviamos,

enquanto pudermos, acercando-nos, sob outro aspecto, de outra

morte, esperada, suave, tão desejada pelos místicos, o “dar tudo de

si”, que constela a vida em abundância.

Oportunamente, constelando, também, o Instante... Embora, a

violência do Amor para nos colocar no sagrado caminho 33 pode

mesmo ser grande, porém doce, se o tesouro do Encontro verdadeiro

33 Via Sacra.

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com Deus se inscrever no agora, no instante, pois como um divino

remédio, balsâmico, curadas as feridas, estamos inteiros de novo, e

na verdade, infinitamente mais vivos e repletos do que antes.

Ilustração 23. “Um coração que voa”, de Cláudio Pastro SJ.

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Assim o senti, em parte, dispondo-me a uma vida de oração

contemplativa, desde os dezesseis anos. Aos poucos a pedagogia do

Amor se tornou uma irresistível mistagogia da presença divina. No

júbilo ou na dor, independente, os sentimentos de vida, verdade e

amor são infinitamente enraizados. Sempre que me encontrava com

Deus, dispondo-me conscientemente à Sua presença, e escuta

sincera, havia um diálogo repleto de significativas provisões para a

caminhada. Como o há. E obviamente, Deus não castiga ou machuca

como algumas duras imagens emergidas, expostas em Stella Maris,

podem sugerir; não há o apelo à dor, mas sim, sua substancial e

compreensiva superação. Deus nos faz, acertivamente, amadurecer.

Sair de nós mesmos, com a força de uma gema apical que se rompe,

e estica, para parir nova flor. Daí por diante, até mesmo as

provisões, por viver nEle, são abandonadas.

Ilustração 24. “Dracma perdida”, pintura de Cláudio

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Assim, mais aptos para a pérola escondida, seguimos. Seja

intensamente a vida interior, primeiramente, como se acenou para

mim, seja agora, o labor concomitante do interior e exterior, como

obras do Amor, sempre revelando divinos encontros, nestes instantes

fecundos, de Deus com todos, em todos.

Ruiz (2004), em suas incursões sobre a história bíblica do Gênesis,

lembrou-me que Adam dormiu um sono profundo e Iahweh retirou

parte de suas entranhas... E as orações contemplativas e práticas de

imaginações ativas 34 fizeram, em minha vida, como modalidade de

ação e vivência interior, o papel deste sono profundo, embora ativo,

criativo, maturando-me para “gestar” e agir no amor. Como se cada

vez que tomada por um sentimento de plenitude, imóvel e sonolenta,

uma costela me fosse tirada, aumentando a chama e a necessidade

de unidade com o real, com o outro, com o mundo exterior. Então, o

labor da vida, em contígua correspondência, fez - como o faz -

impulsionar, animar a luz do coração.

Salientando que nas orações cristãs contemplativas, como o disse,

bem ativas, há o encontro de nosso amor peregrino com instâncias

espirituais vivas. Nós sentimos a presença de Jesus Cristo, Maria, dos

Santos, dadas as iluminações da graça, com todo amor, reverência e

devoção. A fé é realmente um substrato ou solo inconfundível, feito

rocha onde podemos assentar convívio com o Altíssimo. E incrível

como nos sentimos amados depois disso. Seja pela claridade e

amorosidade inconfundíveis, seja pela via do fortalecimento da fé

interior, reconhecemos-nos de mãos dadas, caminhantes, com o

Amor de Deus, com todos nós. Sentimento único, alegria vital,

indizível, húmus do coração provado e mesmo, por vezes, ferido.

E o segundo encontro se faz mergulho em busca do outro, amados

amigos, desconhecidos, ambulantes por estes humanos prados.

34 Cada prática com seu diferencial, no entanto.

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Antes, porém, de chegar a todos de modo mais livre e

desimpedido, o interior povoado me fez vários importantes convites.

Por um bom tempo – não sei se muito ou pouco, mas intenso! –,

conforme comentado em Um Novo Outono, debrucei-me sobre as

figuras arquetípicas pessoais e coletivas, objetivando conteúdos,

anotando sonhos, dançando, desenhando, pesquisando e assim

elaborando o que me sobrevinha nas práticas de imaginações ativas,

supervisionada por uma terapeuta da psicologia analítica. Passado,

futuro, como um organizar das malas e mapas com que cheguei ao

mundo. Diários e diários, dias e horas a fio, secretado um casulo,

com muito esforço e trabalho anímico.

Hoje abro meus armários e eles estão vazios. Frêmito bom de

repouso após o trabalho, incansável labor da alma. Não sei até

quando, nem pretendo saber, colhendo, agora, outros convites,

chamados, particularmente para deixar as cascas. E estas duas

práticas 35, tão bonitas em suas diferentes instâncias, continuam,

uma como alento cotidiano, outra como instrumento de trabalho, a

viabilizar a arte, poesia e profundo diálogo, lançando-me ao mundo.

Neste meio-de-campo, também, não faltaram boas prosas

literárias com mestres da jornada da alma, particularmente São João

da Cruz, sem falar da Vita Christi, Santae Mariae, Flos Sanctorum 36.

Inúmeros foram os insights e correspondências, mesmo de pequenas

palavras ou expressões pescadas espontaneamente nas imaginações,

contemplações ou escrita criativa, com as leituras, fatos históricos e

repertório imagético sacro que me sobrevieram durante o processo

criativo ou posteriormente. As ilustrações de Cláudio Pastro, padre

jesuíta e artista contemporâneo, presentes nesta dissertação, são um

belo exemplo disso: encontrei-as nos últimos meses de redação,

embora habituada, ao vivo, a muitas outras de suas obras.

35 Orações contemplativas e Imaginações Ativas. 36 Vida de Cristo, de Santa Maria e de todos os Santos.

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Nossa Senhora Aparecida, também, primeira imagem da Santa

Mãe a aparecer na composição poética Stella Maris, guardando a

alma peregrina nas dobras de seu divino manto, após esta ter o

corpo retalhado pelo ataque de ferozes serpentes 37, resgatando-a

também do éter atemporal, descobri, algum tempo depois, teve sua

imagem concreta, milagrosa, a que foi retirada das águas, retalhada

em quase duzentos pequenos pedaços em um terrível atentado,

havendo de ser restaurada por especialista da área, peritos. O

resumo da história da aparição nas águas do rio de sua sagrada

imagem, e todo seu percurso, incluo nos anexos (n° 2), por coadunar

com o que poeticamente escrito e ampliado diante disto. Em 1967, o

Papa Paulo VI ofertou a Nossa Senhora Aparecida uma rosa de ouro,

símbolo de amor e confiança pelas inúmeras bênçãos e graças por ela

concedidas. Assim também, humildemente, Lhe ofereço.

Riqueza miraculosa de inspirações, intuições, intricada com minha

vida corporal, anímica, espiritual. Há muito que contar, de cada

passagem, detalhe, confrontando, salientando. Desde pequenas

pistas, como meus dois irmãos chorando, ambos, sangue ao nascer.

Mas não o vou fazer. Apresento aqui, então, tudo, como um todo,

indiviso, não segmentado, não racionalizado, como modus vivendi

próprio da arte, arte do ser. Circunscrevendo, como nos alenta

Bachelard (2007), uma Unidade de Força Íntima.

Nos apêndices e anexos, contudo, há alguns escritos pessoais,

pequenos artigos e trechos escolhidos de outros autores, por

dialogarem com o vivido, chegando-me anterior 38, simultânea ou

posteriormente ao processo de criação, conforme salientado.

37 Imagens provenientes de uma Imaginação Ativa empreendida em 2006, em ambiente acadêmico. 38 Anexo n°01. Realizei duas performances, em 2004, inspirada nestes trechos selecionados, escritos por Jean Yves-Leloup.

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“Poned atención: um corazón solitario no es um corazón.”

Antônio Machado

3. Espaço-tempo de comunicatio.

A trágica ferida da perda da unidade, da perceptível unidade com

o Coração de Deus e com o de toda a humanidade, de cada um,

revelada em meus trabalhos pelas extremas saudades, pela questão

do interior / exterior, evidência de grades, e toda costura artística da

trama dos instantes fecundos, em suas reverberações curativas, após

longo período de dormência e boa luta (redenção do olhar, das

imagens concebidas, da própria imaginação, intrincadas de modo

corporal, anímico e espiritual), constituíram cerne vital da pesquisa.

Mas que fazer com um coração que mesmo clama por ter o peito

aberto, transpassado, para viver, até morrer, na potência da junção?

Comunicar o máximo e o minúsculo, a exemplo de Jesus e Maria, até

morrer-viver de amor... E disto tratam os próprios instantes

fecundos, de potência criadora e alegria do indizível: incansáveis

construtores de pontes de vitalidade significativa. De tal sorte que já

não buscamos enfileirar coisas “com significado”, mas sim, coagulá-

los num agora dilatado, dando-lhes ares de uma única substância,

sempre significativa, na dinâmica densidade do devir, e em seu

frescor, na leveza poética da autenticidade, com devera simplicidade

e cumplicidade.

Todos somos construtores. E a duração íntima de cada um de nós,

de cada um dos instantes, é sempre a Sabedoria, como nos diz

Bachelard (2007), que também nos traz o instante fecundo como

uma síntese poderosa entre a totalidade heterogênea da consciência

e a expressão homogênea de um “significado” simbólico.

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Significado, aqui, como um instante de luz: hora em que se

compreende subitamente a própria mensagem, ou o próprio devir,

num emaranhado de possibilidades, iluminando o coração, a razão e

se tornando o sucesso do pensamento, da compreensão, do

entendimento. Assim como da autêntica comunicação daquilo que

pescamos, fazemos, em nossa dinamicidade, ou somos, na esfera do

indizível, particularmente nas artes, vislumbrando, do espaço-tempo-

consciência da Comunicatio, através da linguagem simbólica, um

passo para a Comunio...

Clarice Lispector 39 coloca-nos:

Eu tenho à medida que designo – e este é o esplendor

da linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que

não consigo designar. A realidade é a matéria-prima, a

linguagem é o modo como vou buscá-la – e como não

acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu

não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A

linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho

que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias.

Mas – volto com o indizível. O indizível só me poderá

ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só

quando falha a construção, é que obtenho o que ela

não conseguiu.

E desta união do indizível com o poeticamente sensível, no limiar

do tão incomunicável que se torna aquilo que somos, bem

tautológico, reconhecido na vera presença, nascem inúmeras

manifestações nas artes. E assim, produção: aglutinado de

39 LISPECTOR, C. A Paixão segundo G. H. 1964.

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impressões, percepções, imagens, coaguladas as pertinentes, nos

encontros, nas instantâneas e convergentes tessituras, soluções.

Henri Bergson (BACHELARD, 2007), em seu trabalho inicial Ensaio

sobre os dados imediatos da consciência, propôs um bom

caminho de união entre consciência e totalidade: trouxe-nos como

dado imediato o Tempo Psicológico, por ele nomeado de duração

psicológica, sendo o instante a conjunção entre a duração

compactada, ainda não expressa, e a duração distendida – expressa

em palavras, números e símbolos.

Aqui, modestamente, reconheço aspectos que calam nas minhas

produções. Especialmente por certa fixação e maravilhamento diante

das imagens de esculturas sacras. Sempre compartidas, tão repletas,

imóveis e abarrotadas de palavras, de vida, como úteros fecundos

aguardando o tempo oportuno para se lançarem neste tempo

distendido, penetrado por vozes e sinos.

Imobilidade dramática da plenitude, repleta de conexões,

significados, tão absurdamente fecunda. Fecundo, fecundo. Este

sentimento, muito advindo da contemplação, transbordou ampla e

amorosamente neste realização em vídeo, evidenciado pelos

silêncios, lentos movimentos, tentativa de penetrar e revelar o

abscondido do material, sutil entrelaçamento das fibras de algodão,

ou mesmo imaterial – matéria do coração.

E ainda, com cada pessoa trazendo um universo de possibilidades

consigo: impossível não precipitarmos no desconhecido, com alguma

pauta e direção, sentido, ressurgindo, entre as flores do Paraíso.

Durante a edição também (realizada pessoalmente), o tempo sempre

se faz atual, novo, outro, e tudo se refaz, permanecendo o indizível,

contínuo feito fibra, fiel, porém, aos instantes.

Oh, mas como estou caminhando, aprendendo, o sucesso do

advento nestas pequenas gerações, produções, ora espreita pela

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janela, ora passa rápido pela porta, deixando no ar, saudoso, suas

impressões. E continuamos.

Bachelard (2007) nos fala que um amor profundo sempre acaba

coordenando todas as possibilidades do ser - e dos seres - num ideal

de harmonia temporal. O tempo em cinema e vídeo é uma palavra-

chave, de peso, força. Tal como continuidade e voluntariedade

própria do inefável devir. Então, bem falamos em harmonia – ética,

estética - singular. Desejo singular do encontro, e no próprio, de

súbito: plural.

E aqui, também para mim:

Toda força do tempo se condensa no instante inovador em

que a vista se descerra, junto à Fonte de Siloé, ao toque de

um divino redentor, que nos dá, num mesmo gesto, a

alegria e a razão, e o meio de ser eterno por via da verdade

e da bondade.

Gaston Bachelard 40

As artes, conduzindo-nos ao pronto diálogo, em sua substância

instantânea, sempre curam a fadiga da alma e remoçam as

percepções gastas. Valorizam a polissemia natural, poética da

linguagem, exigindo mais em sua apreensão e, especialmente, em

sua concepção. Convidam-nos ao vôo, ao mergulho, devolvendo o

frescor das jornadas enamoradas. Aliadas à Imaginação Ativa, abrem

também portas e portas para um passo posterior, amadurecimento e,

segundo Erna Von de Winckel (1985), ultrapassagem do simbólico

para adentrar o ilimitado espaço do sagrado. Aliadas à contemplatio,

seguem direto às Fontes da Alegria, ao contato direto e pessoal com

Deus, fazendo ecoar no tempo a Sua Voz.

40 BACHELARD, G. A Intuição do Instante. Campinas, SP: Verus, 2007. Pg. 93.

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Com Roupnel, podemos ainda reconhecer:

A arte é a escuta dessa voz interior. Ela traz o murmúrio

enterrado. É a voz da consciência sobrenatural que habita

em nós no fundo inalienável e perpétuo. Ela nos reconduz

ao sítio primordial do Ser e ao Lugar imenso no qual

estamos no Universo inteiro. Nossa parcela miserável

assume aí seu grau universal e nos entrega a autoridade

que ela detém. Triunfando sobre todos os temas

descontínuos que separam o Ser e compõem o Indivíduo, a

Arte é o Senso de Harmonia que nos restitui ao doce ritmo

do Mundo e nos devolve ao Infinito que nos chama. Então,

tudo em nós se faz partícipe do ritmo absoluto em que se

desenvolve o fenômeno completo do mundo. Assim, em

nosso âmago, tudo se ordena nas supremas direções, tudo

se aclara sob as clarividências íntimas. (...) Um amor

veemente, uma simpatia universal nos busca o coração e

quer ligar-nos à alma que freme em todas as coisas. Um

Universo que assume sua beleza é um Universo que assume

seu sentido; e as imagens desusadas que lhe

emprestaríamos tombam da face absoluta que emerge do

mistério.

Gaston Roupnel 41

Belíssimo, belíssimo! Não se pode fugir para sempre da

experiência do infinito que habita em nós, até que esta se torne uma

verdadeira busca, sendo justo satisfeita na indelével e apaixonada

comunhão com um infinito real...

41 ROUPNEL, G. Siloë. Pg. 198. Apud BACHELARD, G. A Intuição do Instante. Campinas, SP: Verus, 2007. Pg.96.

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Eis que estou à porta e bato: se alguém ouvir minha voz e

abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele e ele

comigo.

Ap. 3, 20

Felizes os ouvidos da alma bem atenta, bem recolhida para

ouvir esta voz do Verbo de Deus. Felizes também os olhos

desta alma que, sob a luz da fé viva e profunda, pode

assistir à chegada do Mestre em seu santuário interior. Mas

qual é esta chegada? “É uma geração incessante, uma

ilustração sem defeito.” O Cristo vem com seus tesouros;

mas tal é o mistério da rapidez divina, que ele chega

continuamente, sempre pela primeira vez como se jamais

tivesse vindo, porque sua chegada, independentemente do

tempo, consiste num eterno “agora”. E um eterno desejo

renova eternamente as alegrias da chegada. As delícias que

ele traz são infinitas, pois elas são Ele próprio. A capacidade

da alma, dilatada pela chegada do Mestre, parece sair de si

mesma para ultrapassar os muros e chegar à imensidão

daquele que chega. E então acontece o seguinte fenômeno:

É Deus quem, no íntimo de nós, recebe Deus vindo a nós. E

Deus contempla Deus! Deus no qual consiste a beatitude.

Beata Elisabete da Trindade 42

42 PHILIPON, M. M. Doutrina Espiritual de Elisabete da Trindade. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 1988. Pg. 270.

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“O tempo já não corre, ele jorra.”

Gaston Bachelard

4. Espaço-tempo de Comunio.

Ó Abbá, Pai Eterno, se incandesce, dilata e estremece assim o

coração de uma pobre alma, como esta pequena poeira, que dirá dos

grandes santos e santas?

Sobre Maria, em Seu Amor, Sóror Maria de Ágreda, em Cidade

Mística de Deus, relata:

Encontro-me em extrema pobreza de conceitos e

expressões, para dizer algo do estado a que chegou o amor

de Maria Santíssima nos últimos dias de sua vida; os

ímpetos e vôos de seu puríssimo espírito, os desejos e

ânsias incomparáveis de chegar ao estreito abraço da

divindade. Não encontro semelhança apropriada em toda a

natureza. Se alguma pode servir para minha intenção, é o

elemento fogo, pela analogia que tem com o amor.

Admirável é a atividade e força desse elemento, superior as

dos outros. Nenhum é mais intolerante para suportar

prisões porque, ou morre nelas, ou as despedaça para voar

com sua rapidez à sua própria esfera. Se estiver

encarcerado nas entranhas da terra, rompe-a, desmorona

os montes, arranca os penhascos e, com violência

impetuosa, os carrega diante de si, até onde chegar o

impulso que sua força lhe imprime. Ainda que o cárcere seja

de bronze, se não o quebra, abre suas portas com

espantosa violência.43

43 ÁGREDA. M. Cidade Mística de Deus. 2. ed. Ponta Grossa, Mosteiro Portaceli, 2000.

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Ó Mãe Santíssima, que dirá, então, a força sublime deste

Incomensurável Amor de Paz que justo se faz prisioneiro, por nosso

amor, nos eventos mais simples e pequenos? Desde o Menino Deus

nascendo em manjedoura?

Deus é inapreensível em Sua Infinita Sabedoria. Sempiterna

Doçura. E eu só posso acreditar, viver enraizada, em um Deus que se

deixa encontrar no simples cotidiano, Amando tanto que se dá por

inteiro,

...oferecendo de Suas Próprias Entranhas.

E Maria Santíssima é modelo Perfeito de Amorosa Reciprocidade.

Ensina-nos a amá-Lo. A conviver com Ele, em ardorosos e jubilosos

incêndios, em sua humilde humanidade, de modo incomparável.

Ensina-nos a ter um ímpeto de Amor que rompe os “cárceres de

bronze”...

Aqui, lembro-me de uma poesia pessoal escrita no início do

mestrado, chamada Olhos-Estrelas, ou cálices de bronze. Desta, e

de uma narrativa poética intitulada Illud tempus, que constituem os

dois apêndices (n° 1 e 2) desta dissertação. Ambas ressoam, agora,

em meus ouvidos.

Cálices de bronze 44. Redenção do olhar, mesmo pela via do

amargo, captando o régio esplendor do sagrado! Mãos, também,

redimidas, em seu fazer artístico, porque opera-escultoras. E o

imobilizado corpo, sendo liberado em circunspeta dança: manancial

de águas vivas brotando do chão, do coração da matéria, em oração,

44 Ler, por gentileza, a poesia Olhos-Estrelas no Apêndice! J

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suaves movimentos, cantantes, unindo o céu e a terra, no despertar

tranqüilo das poeiras, germinar das sementes aladas...

em infinitas e insones cascatas...

Cascatas que caem do céu, jorrando do imo Coração de Deus...

unido ao nosso imo e humanitário coração...

Vôo-mergulho, mergulho-fonte, fonte de vida, palavra-forte. Mãos

dadas, todos os corações unidos, moto perpetuo, abismo da graça,

imo tempo...

Lembrando, ainda esta vez, o que disse a serpente à Eva, no

Gênesis, antes de saírem da Presença: “Seus olhos se abrirão e serão

como deuses” 45. Oh, noite e cegueira abençoada! que nos devolvem

a verdadeira estatura de filhos amados, inebriados no húmus santo

do coração original.

Fechados os olhos da utopia, ou Utopos, para vivermos na Domus

Dei, ou Teostopos: do impossível idealizado, irreal, ao infinitamente

fecundo, palpável, simples e belíssimo. Intenso respirar da realização,

humanamente próximo, verdadeiramente divino,

melífluo caminho compartido.

O germe, em tudo e todos, é benção divina, substância atual,

tempo e espaço atualizados. Bornal repleto, vazio de pretensões.

45 Gn 3, 5b

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Então, peregrinos da jornada da alma: doces instantes sejam bem

coagulados, entretecidos e animados no leite e mel da Eterna

Sabedoria, na substância própria da divina vida, incorruptível no

tempo e espaço: no Amor.

Faço aqui meus votos.

Trazemos, porém, este tesouro em vasos de barro, para que

se veja que este extraordinário poder é de Deus e não

nosso. Em tudo somos atribulados, mas não esmagados;

confundidos, mas não desesperados; perseguidos, mas não

abandonados; abatidos, mas não aniquilados. Trazemos

sempre no nosso corpo a morte de Jesus, para que também

a vida de Jesus seja manifesta no nosso corpo. Estando

ainda vivos, estamos continuamente expostos à morte por

causa de Jesus, para que a vida de Jesus seja manifesta

também na nossa carne mortal. Assim, em nós opera a

morte, e em nós, a vida. Animados do mesmo espírito de fé,

conforme o que está escrito: “Acreditei e por isso falei,

também nós acreditamos e por isso falamos”. 46

“Et sit splendor Domini Dei nostri super nos,

et opera manuum nostrarum dirige super nos,

et opera manuum nostrarum dirige! 47”

Sl 90,17

46 2 Co. 4, 7-15. 47 Faze estar sobre nós, Senhor Nosso Deus, a Tua Doçura, a obra de nossas mãos sobre nós confirmai, a obra de nossas mãos confirmai!

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Poema de Amor

Festina Lente

“As delícias que Ele traz são infinitas, pois elas são Ele Próprio”.

Santa Elisabete da Trindade

FESTINA LENTE

FESTINA LENTE

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Ilustração 24. Still modificado do vídeo produzido Ignis caritatis.

Ilustração 25. Still de minha próxima produção em vídeo Ignis Caritatis.

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TERNURA. ABISMO DA GRAÇA. MOTO PERPETUO. IMO

TEMPO.

<< Ele mudou os espinhos e o triste aspecto do cardo em

Ternura. Fez-me conhecer claramente as profundezas

alegres, as inumeráveis riquezas incrustadas nas abissais

veias douradas dos mares inconscientes, aos primos raios

da Luz matinal... Fez-me mover as entranhas corporais e

imagéticas ao simples Som da sua harpa, em indizível júbilo

atemporal. Fez-me parir maravilhas em Ação de Graças e,

simplesmente, me desfez...

Renasci do Seu Eterno Íntimo. >>

*****************

<<Auditu auris audiui Te, nunc autem oculus meus videt Te 48... >>

48 Tu foste bem ouvido, agora, também meus olhos Te vêem.

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“O Reino é como a semente de mostarda que um homem pega e joga no seu

jardim. A semente cresce, torna-se árvore, e as aves do céu fazem

ninhos nos ramos dela.”

Lu 13, 19-19

REFERÊNCIAS 49

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Mosteiro Portaceli, 2000.

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49 Baseadas na norma NBR 6023, de 2002, da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).

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Trindade. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 1988.

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BIBLIOGRAFIA

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GLOSSÁRIO LATINO

Deus Ignis Consumens – Deus pelo fogo consome.

Domus – Casa

Domus Dei – Casa de Deus.

Ecclesia – Igreja

Festina Lente – Apressa-te lentamente.

Ignis Caritatis – Fogo do amor, da misericórdia.

Illud Tempus – Tempos Imemoriais.

Laus Gloriae – Louvor de Glória.

Modus Operandi – Modo de Operar, Proceder.

Modus Vivendi – Modo de vida.

Moto Perpetuo – Movimento Perpétuo.

Natura fulgens – Natureza fulgurante, ou “A natureza iluminada

desde dentro”.

Oculi Cordis – Olhos do Coração.

Praesentis Tempus – Tempo Presente.

Pulchra ut Luna – Bela como a Lua.

Stella Cordis Creatoris – Estrela do Coração de Deus.

Stella Maris – Estrela do Mar.

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APÊNDICES

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Apêndice 01. Illud Tempus

Dormitava, serena, nas cristas suaves das águas salinas,

translúcidas de sol, relâmpagos de um marinho profundo –

insondável de mundo –, mas mornas, mornas, de desapego,

ondulantes e castas de improviso – como se todo movimento

houvesse em sua ordem cósmica fundamental, natural, dilatado

instante atemporal. Células redondas bailando carinhosamente no

espaço a circundar, matrizes incorporando algas, peixinhos e

aspirantes estrelas do mar. Circuitos paradisíacos de luz, músculos

claros, lisos, estriados, sincícios extensos, brandos conjuntivos,

brincantes osteócitos, e neurônios irradiados a se alongar, girar,

trepidar... Enfim, caiu. Penetrante azul que em sua deslumbrante

tintura visionária a absorveu, envolveu, acolheu, revelando os

infinitos espaços miraculosamente imaginados das netúnias pradarias

– repletas da animosidade da fauna e da flora vicejante de cor

sulfural – naqueles largos espaços, suntuosamente vazios –

imensidão apenas escultora das crostas longínquas das regiões

abissais. Fronteiras movediças no vasto-vertical horizonte a se

desvelar. Um e outro organismo ali, apenas, navegador, desbravador,

orientados pela interna luz. E os sempre cálidos e oceânicos convites

das grutas, da lúcida dormência e da boa luta, ecoando os cânticos

sinceros dos gigantes e fabulosos cetáceos – baleias aladas em seus

mansos e harmoniosos nados - no cerne labiríntico da intensa

matéria escura.

Adentrou, curiosa, enternecida. Caminhando reverentemente pelas

trilhas de um negrume santamente cego, tateando com a carne do

próprio coração, centro pulsante inebriado de amor pela vida,

semblante agora circunspeto de quem afasta as sombras da humana

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história, gemas antigas que já germinaram com falsas raízes suas

quimeras, dores e entregues glórias - algumas sepultadas, outras

ávidas. Saturada de imagens, prolixas reverberações, densas

prisões... Mãos e mãos segurando-a firmemente. Lutas febris,

descompassos, destratos, obsoletas ilusões. Caminhos e

descaminhos, constantes e alternadas visões.

“Olhos abertos

Frio cortando lábios

Alma que voa.”(1)

Cabelos negros,

Sol vermelho poente,

Coração fiel.

Olhos cerrados, imo fiel. Mais adentro, terra adentro, calor

fenomenal. Avançando sempre, mesmo desfazendo-se. Sistemas

arborescentes, ditos grandes saberes, pensamentos, enegrecendo,

carbonificando. Terras e terras, em brancas cinzas, ganhando sua cor

humilde e natural. Sacrificatio; quase somente solutio, quase - sê

mente! - sublimatio (2). Porque do negrume quente da taça ávida de

Sol, entornou - bebeu - o áureo líquido da Luz. Coração-fonte de

Misericórdia infinita, tão visível e abscondita, insones cascatas

límpidas brotando veementemente do terrestre chão, um despertar

de amor cantante. Move-a, agora, apenas um sopro suave, Único

vento.

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Ó Santo Espírito Criador, consciente de uma fagulha de Seu Amor,

a vida é um Supremo e Inigualável Sempiterno Advento...

(1) Haicai feito por uma amiga, Luciana Bonadia, em 1999, para mim. Seguido no

texto por um de autoria própria, da mesma época.

(2) Mortificatio, Solutio e Sublimatio: termos que nomeiam processos da alquimia

medieval, utilizados pela psicologia analítica para designar fases do processo de

amadurecimento psicológico. A mortificatio (no texto designada por Sacrificatio)

simboliza a própria morte, a morte simbólica do ego, os sacrifícios conscientes

necessários ao processo de individuação. A solutio é a operação que provoca o

desaparecimento doloroso de uma forma para o reaparecimento de algo novo, uma

outra forma regenerada. A sublimatio é a operação que pertence ao ar,

transformando o material em questão por meio da sua elevação e volatilização.

Outras operações poderiam ter sido nomeadas no texto, como a calcinatio (atuação

do fogo purificador) ou coagulatio, a materialização das formas dissolvidas, mas

foram suprimidas pela força da expressão poética.

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Apêndice 02. Olhos-estrelas, poesia de autoria própria.

Estrelas castanhas de bronze,

cálices de sagrado e fluente amargor,

rutilam, visionárias, na prata liquefeita,

fecunda paisagem de régio esplendor.

Palmas alvas, escultoras e estacadas,

Aberto a esmo o coração – bendito seja,

Amor Profundo, sábio fogo do céu: clarão!...

Dançam frêmitos, suaves e circunspectos,

Nesta terrena sequidão – são sementes, aladas,

Cascatas insones germinando na escuridão.

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ANEXOS

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Anexo 01. Trechos de O Romance de Maria Madalena, Jean-Yves

Leloup (2004).

“Maria tinha levado seus olhos a essas aberturas fecundas, onde não se

trata de não ver nada, mas de ver todas as coisas na luz Una do Vidente.”

“Mas, para olhar para outros lugares, ainda é necessário que haja em nós

um órgão capaz de perceber. O Evangelho de Maria nos revela que tal olhar

existe – o olhar de um psiquismo aberto à Presença do Espírito.”

“Cada órgão responde a um canto, a um som...”

“Maria buscava um equilíbrio impossível entre todos os contrários. Um

excesso de estudo exigia um excesso de dança. Tempos de recolhimento,

silêncio e jejuns alternavam-se aos tempos de festas e divertimentos...”

“Maria tocava em si uma fonte estranha, não aquela de lágrimas de dor ou

de amargura, mas a fonte das lágrimas de compaixão. Seus olhos estavam

como que inundados de pérolas de luz e ela se sentia mãe pela primeira

vez. Mas seu filho, seu único filho, era o mundo inteiro. Ela gostaria de

confortá-lo, aquecê-lo contra seus seios, dar-lhe leite, cobri-lo de ternura,

livrá-lo de toda maldade e de todo o mal.”

“Ela só tem suas lágrimas para defendê-los e o amor desse homem que

fala, que arrisca sua vida, para fazer ouvir o ruído da fonte que corre no

coração de cada um.”

“Existe uma intimidade mais profunda que a do Mestre e a do discípulo? Os

amantes se tornam um único corpo, o Mestre e o discípulo se tornam um

único coração, um mesmo Espírito...”

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““Não há amor maior do que aquele que dá a vida por seus amigos”...

Desde o primeiro instante, Maria havia dado a sua vida, toda a sua vida a

Jesus.”

“Amava-o como um arco-íris, com todas as suas nuanças, com todas as

cores do amor. Amava-o apaixonadamente, sem reservas, sem condições,

com esse amor forte como a morte...”

“Ele mesmo se apagou na marca que não cessa de cavar, cada vez mais

fundo em mim.”

“Os olhos de Maria não estão nem cegos nem extasiados: eles vêem o que

vêem, as fronteiras abertas do visível e invisível.”

“Eu saí do mundo graças a um outro mundo;

uma representação se apagou

graças a uma representação mais elevada.

De agora em diante eu vou para o repouso

Onde o tempo repousa na Eternidade do tempo.

Eu vou para o Silêncio.”

Evangelho de Maria 17, 1-6

“Suas giestas já estavam esverdeadas e douradas, era suficiente uma

centelha para que ela se tornasse chama.”

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Anexo 02. História de Nossa Senhora Aparecida in Jornal Visão Campinas,

05/10/2006.

No dia 12 de Outubro comemora-se o dia de Nossa Senhora da

Conceição Aparecida, padroeira oficial do Brasil, e embora Sua

devoção remonte aos idos do século XVIII, somente foi decretado em

1980.

Há duas fontes sobre o achado da imagem, que se encontram no

arquivo da Cúria Metropolitana de Aparecida e no Arquivo Romano da

Companhia de Jesus, em Roma. Segundo estas fontes, em 1717, os

pescadores Domingos Martins García, João Alves e Felipe Pedroso

pescavam no Rio Paraíba, denominado, na época, de Rio Itaguaçu.

Ou melhor, tentavam pescar, pois toda vez que jogavam a rede, ela

voltava vazia, até que lhes trouxe a imagem de uma santa, sem a

cabeça. Jogando a rede uma vez mais, um pouco abaixo do ponto

onde haviam pescado a Santa, pescaram, desta vez, a cabeça que

faltava à imagem e as redes, até então vazias, passaram a voltar ao

barco repleta de peixes. Esse é considerado o primeiro milagre da

Santa. Eles limparam a imagem apanhada no rio e notaram que se

tratava da Imagem de Nossa Senhora da Conceição, de cor escura.

Durante os próximos 15 anos, a imagem permaneceu com a família

de Felipe Pedroso, um dos pescadores, e passou a ser alvo das

orações de toda a comunidade. A devoção cresceu à medida que a

fama dos milagres realizados pela santa se espalhava. A família

construiu um oratório, que, logo, constatou-se, era pequeno para

abrigar os fiéis que chegavam a número cada vez maior. Em meados

de 1734, o vigário de Guaratinguetá mandou construir uma capela no

alto do Morro dos Coqueiros para abrigar a imagem da Santa e

receber seus fiéis. A imagem passou a ser chamada de Aparecida e

deu origem à cidade de mesmo nome.

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Em 1834, iniciou-se a construção da igreja que hoje é conhecida

como Basílica Velha. Em 06 de Novembro de 1888, a princesa Isabel

visitou pela segunda vez a Basílica e deixou para Nossa Senhora uma

coroa de ouro cravejada de diamantes e rubis, juntamente com o

Manto Azul. Em 08 de Setembro de 1904, foi realizada a solene

coroação da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida e, em

1930, o Papa Pio XI decreta-a padroeira do Brasil, declaração esta

reafirmada em 1931, pelo presidente Getúlio Vargas.

A construção da atual Basílica iniciou-se em 1946, com projeto

assinado pelo Engenheiro Benedito Calixto de Jesus. A inauguração

acontece em 1967, por ocasião da comemoração do 250º aniversário

do encontro milagroso da imagem, ainda com o templo inacabado. O

Papa Paulo VI ofertou à Santa uma rosa de ouro, símbolo de amor e

confiança pelas inúmeras bênçãos e graças por ela concedidas. A

partir de 1950 já se pensava na construção de um novo templo

mariano devido ao crescente número de romarias. O majestoso

templo foi consagrado pelo Papa, após mais de vinte e cinco anos de

construção, no dia 4 de Julho de 1980, na primeira visita de João

Paulo II ao Brasil.

A data comemorativa a Nossa Senhora Aparecida (aniversário do

aparecimento da imagem no Rio) foi fixada na Santa Sé em 1954,

como sendo 12 de Outubro, embora as informações sejam

controversas. É nesta época do ano que a Basílica registra a presença

de uma multidão incontável de fiéis, embora eles marquem presença

notável durante todo o ano.

A imagem encontrada e até hoje reverenciada é de terracota e

mede 40 cm de altura. A cor original foi certamente afetada pelo

tempo em que a imagem esteve imersa na água do rio, bem como

pela fumaça das velas e dos candeeiros que durante tantos anos

foram os símbolos da devoção dos fiéis à Santa. Em 1978, após o

atentado que a reduziu a quase 200 pedaços, ela foi reconstituída

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pela artista plástica Maria Helena Chartuni, na época, restauradora do

Museu de Arte de São Paulo. Peritos afirmam que foi moldada com

argila da região, pelo monge beneditino Frei Agostinho de Jesus,

embora esta autoria seja de difícil comprovação.

Seja qual for a autoria da imagem ou a história de sua origem, a

esta altura ela pouco importa, pois as graças alcançadas por seu

intermédio têm trazido esperança e alento a um sem número de

pessoas. Para saber mais sobre a Basílica e sua programação, basta

visitar o site www.santuarionacional.com.br.

Além da farta pescaria, muitos outros milagres são atribuídos a

Nossa Senhora Aparecida. Como por exemplo a libertação do escravo

Zacarias, o caso do cavaleiro ateu e a cura da menina cega,

explicitados abaixo.

A libertação do escravo Zacarias: este escravo havia fugido de

uma fazenda do Paraná e acabou sendo capturado no Vale do

Paraíba. Foi caçado e capturado por um famoso capitão do mato e, ao

ser levado de volta, preso por correntes nos pulsos e nos pés, e como

passassem perto da Capela da Santa, pediu permissão para rezar

diante da imagem. Rezou com tanta devoção que as correntes

milagrosamente se romperam, deixando-o livre. Diante do ocorrido,

seu senhor acabou por libertá-lo.

O cavaleiro ateu: era um cavaleiro que passava por Aparecida,

vendo a fé dos romeiros, zombou deles e tentou entrar na Igreja a

cavalo para destruir a imagem da Santa. Na tentativa, as patas do

cavalo ficaram presas na escadaria da Igreja, onde até hoje se pode

ver a marca de uma ferradura, mas já transportada para a sala dos

milagres da Basílica Nova.

A cura da menina cega: esta menina, ao aproximar-se da Basílica,

olhou em direção a ela e, de repente, exclamou “Mãe, como aquela

Igreja é bonita”. Estava enxergando, perfeitamente curada.

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Anexo 03. Cántico Espiritual, de San Juan de La Cruz (1542-1591). In JEHLE, F. Antología de poesía española. Disponível em

<http://users.ipfw.edu/jehle/poesia.htm>.

Cántico espiritual

Canciones entre el alma y el esposo

Esposa: ¿Adónde te escondiste, amado, y me dejaste con gemido? Como el ciervo huiste, habiéndome herido; salí tras ti, clamando, y eras ido. 5 Pastores, los que fuerdes allá, por las majadas, al otero, si por ventura vierdes aquél que yo más quiero, decidle que adolezco, peno y muero. 10 Buscando mis amores, iré por esos montes y riberas; ni cogeré las flores, ni temeré las fieras, y pasaré los fuertes y fronteras. 15 (Pregunta a las Criaturas) ¡Oh bosques y espesuras, plantadas por la mano del amado! ¡Oh prado de verduras, de flores esmaltado, decid si por vosotros ha pasado! 20 (Respuesta de las Criaturas) Mil gracias derramando, pasó por estos sotos con presura, y yéndolos mirando, con sola su figura

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vestidos los dejó de hermosura. 25 Esposa: ¡Ay, quién podrá sanarme! Acaba de entregarte ya de vero; no quieras enviarme de hoy más ya mensajero, que no saben decirme lo que quiero. 30 Y todos cantos vagan, de ti me van mil gracias refiriendo. Y todos más me llagan, y déjame muriendo un no sé qué que quedan balbuciendo. 35 Mas ¿cómo perseveras, oh vida, no viviendo donde vives, y haciendo, porque mueras, las flechas que recibes, de lo que del amado en ti concibes? 40 ¿Por qué, pues has llagado aqueste corazón, no le sanaste? Y pues me le has robado, ¿por qué así le dejaste, y no tomas el robo que robaste? 45 Apaga mis enojos, pues que ninguno basta a deshacellos, y véante mis ojos, pues eres lumbre dellos, y sólo para ti quiero tenellos. 50 ¡Oh cristalina fuente, si en esos tus semblantes plateados, formases de repente los ojos deseados, que tengo en mis entrañas dibujados! 55 ¡Apártalos, amado, que voy de vuelo! Esposo:

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Vuélvete, paloma, que el ciervo vulnerado por el otero asoma, al aire de tu vuelo, y fresco toma. 60 Esposa: ¡Mi amado, las montañas, los valles solitarios nemorosos, las ínsulas extrañas, los ríos sonorosos, el silbo de los aires amorosos; 65 la noche sosegada, en par de los levantes de la aurora, la música callada, la soledad sonora, la cena que recrea y enamora; 70 nuestro lecho florido, de cuevas de leones enlazado, en púrpura tendido, de paz edificado, de mil escudos de oro coronado! 75 A zaga de tu huella, las jóvenes discurran al camino; al toque de centella, al adobado vino, emisiones de bálsamo divino. 80 En la interior bodega de mi amado bebí, y cuando salía, por toda aquesta vega, ya cosa no sabía y el ganado perdí que antes seguía. 85 Allí me dio su pecho, allí me enseñó ciencia muy sabrosa, y yo le di de hecho a mí, sin dejar cosa; allí le prometí de ser su esposa. 90 Mi alma se ha empleado, y todo mi caudal, en su servicio;

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ya no guardo ganado, ni ya tengo otro oficio, que ya sólo en amar es mi ejercicio. 95 Pues ya si en el ejido de hoy más no fuere vista ni hallada, diréis que me he perdido; que andando enamorada, me hice perdidiza, y fui ganada. 100 De flores y esmeraldas, en las frescas mañanas escogidas, haremos las guirnaldas en tu amor florecidas, y en un cabello mío entretejidas: 105 en sólo aquel cabello que en mi cuello volar consideraste; mirástele en mi cuello, y en él preso quedaste, y en uno de mis ojos te llagaste. 110 Cuando tú me mirabas, tu gracia en mí tus ojos imprimían; por eso me adamabas, y en eso merecían los míos adorar lo que en ti vían. 115 No quieras despreciarme, que si color moreno en mí hallaste, ya bien puedes mirarme, después que me miraste, que gracia y hermosura en mí dejaste. 120 Cogednos las raposas, que está ya florecida nuestra viña, en tanto que de rosas hacemos una piña, y no parezca nadie en la montiña. 125 Deténte, cierzo muerto; ven, austro, que recuerdas los amores, aspira por mi huerto, y corran sus olores, y pacerá el amado entre las flores. 130

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Esposo: Entrado se ha la esposa en el ameno huerto deseado, y a su sabor reposa, el cuello reclinado sobres los dulces brazos del amado. 135 Debajo del manzano, allí conmigo fuiste desposada, allí te di al mano, y fuiste reparada donde tu madre fuera violada. 140 O vos, aves ligeras, leones, ciervos, gamos saltadores, montes, valles, riberas, aguas, aires, ardores y miedos de las noches veladores, 145 por las amenas liras y canto de serenas os conjuro que cesen vuestras iras y no toquéis al muro, porque la esposa duerma más seguro. 150 Esposa: Oh ninfas de Judea, en tanto que en las flores y rosales el ámbar perfumea, morá en los arrabales, y no queráis tocar nuestros umbrales. 155 Escóndete, carillo, y mira con tu haz a las montañas, y no quieras decillo; mas mira las compañas de la que va por ínsulas extrañas. 160 Esposo: La blanca palomica al arca con el ramo se ha tornado, y ya la tortolica al socio deseado

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en las riberas verdes ha hallado. 165 En soledad vivía, y en soledad he puesto ya su nido, y en soledad la guía a solas su querido, también en soledad de amor herido. 170 Esposa: Gocémonos, amado, y vámonos a ver en tu hermosura al monte o al collado do mana el agua pura; entremos más adentro en la espesura. 175 Y luego a las subidas cavernas de la piedra nos iremos, que están bien escondidas, y allí nos entraremos, y el mosto de granadas gustaremos. 180 Allí me mostrarías aquello que mi alma pretendía, y luego me darías allí tú, vida mía, aquello que me diste el otro día: 185 el aspirar del aire, el canto de la dulce filomena, el soto y su donaire, en la noche serena con llama que consume y no da pena; 190 que nadie lo miraba, Aminadab tampoco parecía, y el cerco sosegaba, y la caballería a vista de las aguas descendía. 195

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Anexo 04. Stanzas 20 and 21 of Carmelite Commentary of St. John

of the Cross’ Spiritual Canticle. In <http://www.karmel.at/ics/john/cn.html>.

STANZAS 20 and 21

Introduction

1. The attainment of so high a state of perfection as that for which the soul here aims, which is spiritual marriage, requires the purification of all the imperfections, rebellions, and imperfect habits of the lower part, which, by being stripped of the old self [Eph. 4:22-23], is surrendered and made subject to the higher part; but a singular fortitude and a very sublime love are also needed for so strong and intimate an embrace from God. For in this state the soul obtains not only a very lofty purity and beauty but also an amazing strength because of the powerful and intimate bond effected between God and her by means of this union.

2. In order that she reach him, it is necessary for her to attain an adequate degree of purity, fortitude, and love. The Holy Spirit, he who intervenes to effect this spiritual union, desiring that the soul attain the possession of these qualities in order to merit this union, speaks to the Father and the Son in the Song of Songs: What shall we do for our sister on the day of her courtship, for she is little and has no breasts? If she is a wall, let us build upon it silver bulwarks and defenses; and if she is a door, let us reinforce it with cedar wood [Sg. 8:8-9]. The silver bulwarks and defenses refer to the strong and heroic virtues covered with faith, which is signified by the silver. These heroic virtues are those of spiritual marriage, and their

Ilustração 26. Ícone das Estâncias 20 e 21, Cântico Espiritual de São João da Cruz.

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foundation is in the strong soul, referred to by the wall. The peaceful Bridegroom rests in the strength of these virtues without any weakness disturbing him. The cedar wood applies to the affections and properties of lofty love. This lofty love is signified by cedar and it is the love proper to spiritual marriage. The bride must first be a door in order to receive the reinforcement of cedar wood; that is, she must hold the door of her will open to the Bridegroom so he may enter through the complete and true "yes" of love. This is the yes of betrothal that is given before the spiritual marriage. The breasts of the bride also refer to this perfect love that she should possess in order to appear before the Bridegroom, Christ, for the consummation of this state.

3. The text, however, mentions that the bride answered immediately by stating her desire to be courted: I am a wall and my breasts are as a tower [Sg. 8:10]. This means: My soul is strong and my love lofty, and so I should not be held back. Desiring this perfect union and transformation, the bride also manifested this strength in the preceding stanzas, especially in the one just explained, in which to oblige her bridegroom further she sets before him the virtues and preparative riches received from him. As a result the Bridegroom, desiring to conclude this matter, speaks the two following stanzas in which he finishes purifying the soul, strengthening and disposing her in both sensory and spiritual parts for this state. He speaks these lines against all the oppositions and rebellions from the sensory part and the devil.

In the Canticle, the Bridegroom says:

Swift-winged birds,

lions, stags, and leaping roes,

mountains, lowlands, and river banks,

waters, winds, and ardors,

watching fears of night:

By the pleasant lyres

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and the siren's song, I conjure you

to cease your anger

and not touch the wall,

that the bride may sleep in deeper peace.

Commentary

4. In these two stanzas the Bridegroom, the Son of God, gives the bride-soul possession of peace and tranquility by conforming the lower part to the higher, cleansing it of all its imperfections, bringing under rational control the natural faculties and motives, and quieting all the other appetites mentioned in these two stanzas. The meaning of these stanzas is:

First, the Bridegroom conjures and commands the useless wanderings of the phantasy and imaginative power to cease once and for all.

He also puts under the control of reason the two natural powers, the irascible and the concupiscible, which were previously somewhat of an affliction to the soul.1

And, insofar as is possible in this life, he perfects the three faculties (memory, intellect, and will) in regard to their objects.

What is more, he conjures and commands the four passions (joy, hope, fear, and sorrow) so from now on they will be mitigated and controlled by reason.

Such is the meaning of the terms used in the first of these stanzas. The Bridegroom makes these disturbing activities and movements cease by means of the immense delight and sweetness and strength received in the spiritual communication and surrender he makes of himself at this time. Because God vitally transforms the soul into himself, all these faculties, appetites, and movements lose their natural imperfection and are changed to divine. And thus he says:

Swift-winged birds,

5. He calls the wanderings of the imagination "swift-winged birds," for these digressions are quick and restless in flying from one place to

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another. When the will is enjoying the delightful communication of the Beloved in quietude, these wanderings usually displease her by their restless flights and put an end to her satisfaction. The Bridegroom says that he conjures them by the pleasant lyres, and so on (by sweetness and delight so abundant and frequent that they cannot be the impediment they were before she reached so high a state), to cease their restless flights, impulses, and excesses. This should be understood similarly regarding the other verses we will comment on here, such as:

lions, stags, and leaping roes,

6. By the "lions" he refers to the acrimony and impetuosity of the irascible power, for in its acts this power is bold and daring like the lion.

By the "stags" and the "leaping roes" he refers to that other power, the concupiscible, which is an appetitive power. This faculty causes two classes of effects: one of cowardice and the other of daring. It produces the effects of cowardice when things are found difficult, for it then retires, withdraws within itself, and becomes cowardly. Because of these effects this faculty is comparable to stags, for since the stag has a more intense concupiscible power than many other animals, it is very cowardly and withdrawn. This faculty produces the effects of daring when things are found easy, for then it does not withdraw and become cowardly but makes bold to accept these things with its appetites and affections. And because of these effects this faculty is compared to the roes, which have such concupiscence that they do not merely run after their desires but even leap after them. And thus he calls them leaping roes.

7. In conjuring the lions he bridles the impulses and excesses of anger. And in conjuring the stags he strengthens the concupiscible power against the cowardice and pusillanimity that previously made it withdrawn. And in conjuring the leaping roes he satisfies the appetites, previously restless and leaping like roes from one thing to another, trying to satisfy concupiscence. This concupiscence is now satisfied by the pleasant lyres whose sweetness it enjoys, and by the siren's song, the delight of which it feeds on.

It should be observed that the Bridegroom does not conjure anger and concupiscence to cease, for these powers are never wanting to the soul. But he conjures their disturbances and inordinate actions, signified by the lions, stags, and leaping roes, to cease. It is necessary that in this state these inordinate movements be lacking.

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mountains, lowlands, and river banks,

8. These expressions denote the vicious and inordinate acts of the three faculties, memory, intellect, and will. These acts are inordinate and vicious when they reach either a high level or a low level, or even when they are inclined toward one of them without actually reaching it.

Thus the "mountains," which are high, refer to acts that are extreme through an inordinate excess. The "lowlands," being low, refer to acts that are extreme through defect. The "river banks," which are neither high nor low but still not level, participate somewhat in both extremes and refer to the acts that exceed or lack something of the mean or right measure. Although these are not extremely inordinate, as would be the case with mortal sin, they are nonetheless partly so, either through venial sin or through imperfection, however slight, in the intellect, memory, and will.

He also conjures, by means of the pleasant lyres and the siren's song, all these acts in excess of the just measure to cease. These lyres perfect the three faculties of the soul by bringing them to an operation that lies in the just measure, without extremes or even any part in extremes. The remaining verses follow:

waters, winds, and ardors,

watching fears of night:

9. These four references indicate the four passions: sorrow, hope, joy, and fear.2 The "waters" denote the emotions of sorrow that afflict the soul, for they enter like water. David, referring to them, says to God: Salvum me fac, Deus, quoniam intraverunt aquae usque ad animam meam (Save me, my God, for the waters have come in even unto my soul) [Ps. 69:1].

The "winds" allude to the emotions of hope, for like the wind they fly toward the absent object. David also says: Os meum aperui et attraxi spiritum, quia mandata tua desiderabam (I opened the mouth of my hope and drew in the breath of my desires because I longed and hoped for your commandments) [Ps. 119: 131].

The "ardors" refer to the emotions of the passion of joy that inflame the heart like fire. David says: Concaluit cor meum intra me, et in meditatione mea exardescet ignis (My heart grew hot within me, and in my meditation a fire shall be enkindled) [Ps. 39:3]. This is like saying: In my meditation joy shall be enkindled.

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By the "watching fears of night" are understood the emotions of fear, the other passion. These fears are usually very great in spiritual persons who have not reached this state of spiritual marriage of which we are speaking. Sometimes when God wishes to grant them some favors, he causes fear and trembling in the spirit and also shriveling of the flesh and the senses, because the sensory part is not fortified, perfected, and habituated to such favors. Sometimes, too, the devil, being envious and sad over the soul's peace and good when God grants it recollection and sweetness in himself, strives to put horror and fear in the spirit so as to hinder that good. And sometimes he does this as though he were threatening her there in the spirit. When he becomes aware of his inability to reach the inmost part of the soul because of her deep recollection and union with God, he tries to cause distraction, wanderings, conflicts, sorrows, and dread, at least in the sensory part, to see if in this way he can disturb the bride in her bridal chamber.

He calls these emotions "fears of night" because they are produced by the devil, who endeavors by their means to diffuse obscurity in the soul and darken the divine light she enjoys.

He calls them "watching fears" because of themselves they awaken her from her peaceful interior sleep, and also because the devils are always awake and watching for their chance to cause these fears. These fears, as I said, are passively introduced by God or the devil into the souls of those who are already spiritual. I am not speaking here of other temporal or natural fears, for such fears are not characteristic of spiritual people; but these spiritual fears are.

10. The Beloved also conjures these four passions of the soul and makes them cease and be calm insofar as he gives the bride in this state riches, strength, and satisfaction through the pleasant lyres of his sweetness and the siren's song of his delight. He does this so they may not only cease to reign in her but also cease to cause her any displeasure.

If previously the waters of sorrow over something reached the soul - especially concerning her own sins or those of others, since sin is what usually causes the most sorrow in spiritual persons - her grandeur and stability are now so great that even though she knows what these sins are, they do not produce sorrow or grief. And she does not have compassion, that is, the feeling of compassion, even though she possesses its work and perfection. In this state the soul lacks what involved weakness in her practice of the virtues, though the strength, constancy, and perfection of them remains. For the soul in this transformation of love resembles the angels who judge

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perfectly the things that give sorrow without the feeling of sorrow, and exercise the works of mercy without the feeling of compassion. Sometimes, however, and at certain periods, God allows her to feel things and suffer from them so she might gain more merit and grow in the fervor of love, or for other reasons, as he did with the Virgin Mother, St. Paul, and others. Yet in itself the state does not include this feeling of sorrow.3

11. Neither is she afflicted with the desires of hope. Being now satisfied in this union with God insofar as is possible in this life, she has neither anything to hope for from the world nor anything to desire spiritually, for she has the awareness and experience of the fullness of God's riches. In life and in death she is conformed to the will of God, saying in both the sensory and spiritual part without the impulse of any other longing or appetite: Fiat voluntas tua [Mt. 6:10]. Thus her desire for the vision of God is painless.

Neither do the emotions of joy, which usually caused her a feeling of possessing more or less, make her aware of any want; nor do they add a sense of new abundance. What she ordinarily enjoys is so great that, like the sea, she neither decreases by the outflow of waters nor increases by the inflow. For this is the soul in which is established the fount whose waters, as Christ says through St. John, leap up unto life everlasting [Jn. 4:14].

12. Because I asserted that this soul does not receive anything new in this state of transformation, in which it seems that accidental joys are taken from her (which are not lacking even in the glorified), it should be pointed out that even though these joys and accidental sweetnesses are not lacking - ordinarily they are numberless - they do not on this account add anything to the substantial spiritual communication. She already possesses everything that could come to her anew. Thus what she possesses within herself is more than what comes to her anew.

Hence, every time joyous and happy things are offered to this soul, whether they are exterior or interior and spiritual, she immediately turns to the enjoyment of the riches she already has within herself, and experiences much greater gladness and delight in them than in those new joys. She in some way resembles God who, even though he has delight in all things, does not delight in them as much as he does in himself, for he possesses within himself a good eminently above all others. Thus all new joys and satisfactions serve more to awaken the soul to a delight in what she already possesses and experiences within herself than to new delights, for, as I say, what she already possesses is greater than these.

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13. If something gives the soul joy and contentment but she esteems another even more, it would be natural for her, on enjoying the former, to turn her thoughts at once to the latter and find her satisfaction and joy in that. Thus what is accidental in these new spiritual joys is so little in comparison with the substantial good the bride already has within herself that we can call it a nothing. The soul that has attained this fulfillment, which is transformation, in which she has reached full stature, does not grow through these new spiritual things as do others who have not arrived. Yet it is a wonderful thing to behold how, although the soul receives no new delights, it always seems to her that she receives them anew and also that she has had them before. The reason is that she ever takes pleasure in them anew, since they are her good that is ever new. Thus it seems to her that she is always receiving new things without need.

14. Yet were we to desire to speak of the glorious illumination he sometimes gives to the soul in this habitual embrace, which is a certain spiritual turning toward her in which he bestows the vision and enjoyment of this whole abyss of riches and delight he has placed within her, our words would fail to explain anything about it. As the sun shining brightly on the sea lights up great depths and caverns and reveals pearls and rich veins of gold and other minerals, and so on, the Bridegroom, the divine sun, in turning to the bride so reveals her riches that even the angels marvel and utter those words of the Song of Songs: Who is she that comes forth like the morning rising, beautiful as the moon, resplendent as the sun, terrible as the armies set in array? [Sg. 6:10]. In spite of the excellence of this illumination, it gives no increase to the soul; it only brings to light what was previously possessed so she may have enjoyment of it.

15. Finally, the "watching fears of night" do not reach her, for she is now so clearly illumined and strong and rests so firmly in her God that the devils can neither cause her obscurity through their darknesses, nor frighten her with their terrors, nor awaken her by their attacks. Nothing can reach or molest her now that she has withdrawn from all things and entered into her God where she enjoys all peace, tastes all sweetness, and delights in all delights insofar as this earthly state allows. The Wise Man's words refer to this soul: The peaceful and tranquil soul is like a continual banquet [Prv. 15:15]. As one at a banquet enjoys the taste of a variety of foods and the sweetness of many melodies, the soul at this banquet, which she now receives at the bosom of her Beloved, enjoys every delight and tastes every sweetness.

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So little of this is describable that we would never succeed in fully explaining what takes place in the soul that has reached this happy state. If she attains the peace of God that, as the Church says, surpasses all understanding,4 all understanding will be inadequate and mute when it comes to explaining this peace.

Verses from the stanza follow:

By the pleasant lyres

and the siren's song, I conjure you

16. We have already explained that by "the pleasant lyres" the Bridegroom refers here to the sweetness bestowed on the soul in this state. By it he causes all the disturbances we mentioned to cease. As the music of the lyres fills the soul with sweetness and refreshment and so absorbs and suspends her as to keep her away from bitterness and sorrow, so this sweetness takes such an inward hold on her that nothing painful can reach her. These words are like saying: May all bitter things cease for the soul by means of the sweetness I place in her.

We also said that the "siren's song" signifies the soul's habitual delight. He calls this delight the "siren's song" because, as they say, this song is so charming that it enraptures and enamors its hearers and makes them forget all things as though they were in a transport. Similarly, the delight of this union absorbs the soul within herself and gives her such refreshment that it makes her insensible to the disturbances and troubles mentioned. These disturbances are referred to in this verse:

to cease your anger

17. He calls these troubles and disturbances of the inordinate passions and operations "anger." Just as anger is a certain impulse that troubles peace by going beyond its limits, so all the passions and so on that we mentioned exceed by their movements the limits of peace and tranquility, and when they touch the soul they cause disquietude. As a result he says:

and not touch the wall,

18. By "the wall" he refers to the enclosure of peace and the fence of virtues and perfections by which the soul is shut in and protected, for she is the garden mentioned above that is enclosed and protected solely for the Beloved, among whose flowers he browses. In the Song

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of Songs he calls her an enclosed garden: My sister is an enclosed garden [Sg. 4:12]. Thus he tells them here not to touch even the wall of his garden

that the bride may sleep in deeper peace.

19. That she may delight more freely in the quietude and sweetness she enjoys in her Beloved. It should be known that now no door is closed to the soul, but it is in her power to enjoy this gentle sleep of love at will, as the Bridegroom indicates in the Song of Songs: I conjure you, daughters of Jerusalem, by the roes and harts of the fields that you do not stir up or wake the beloved until she wishes [Sg. 3:5].

Ilustração 27. Ícone da Estância 22, Cântico Espiritual de São João da Cruz.

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“The bride has entered

the sweet garden of her desire,

and she rests in delight,

laying her neck

on the gentle arms of her Beloved.”