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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ
FERNANDA MARTINS
OS PODERES INSTRUTÓRIOS DO JUIZ NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: da superação do modelo inquisitório em prol de um
sistema acusatório de base garantista.
São José2010
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FERNANDA MARTINS
OS PODERES INSTRUTÓRIOS DO JUIZ NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: da superação do modelo inquisitório em prol de um
sistema acusatório de base garantista.
Monografia apresentada à Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI , como requisito parcial a obtenção do grau em Bacharel em Direito.
Orientador: Prof. MSc. Juliano Keller do Valle
São José2010
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FERNANDA MARTINS
OS PODERES INSTRUTÓRIOS DO JUIZ NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: da superação do modelo inquisitório em prol de um
sistema acusatório de base garantista.
Esta Monografia foi julgada adequada para a obtenção do título de bacharel e
aprovada pelo Curso de Direito, da Universidade do Vale do Itajaí, Centro de
Ciências Sociais e Jurídicas.
Área de Concentração:
Direito Penal, Direito Processual Penal
São José, 03 de novembro de 2010.
Prof. MSc. Juliano Keller do ValleUNIVALI – Campus de São José
Orientador
Prof. MSc. NomeInstituiçãoMembro
Prof. MSc. NomeInstituiçãoMembro
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AGRADECIMENTOS
Este trabalho tem por maior mérito e felicidade ser o determinante no fim da
minha vida como graduanda. Através desta monografia concluo duas graduações e
todo o processo inerente a esse tempo.
Nesta trajetória conquistei diversas coisas, mas as mais importantes devem
ser aqui mencionadas como forma de agradecimento por toda ajuda prestada
durante todo este período.
Aos amigos, que já não se dividem mais entre os do dia e os da noite, que
já se misturam e fazem do passado e do presente a união de um dia repleto de
felicidades, desde a hora que amanheço até hora que venho a dormir. Sou
absolutamente grata pelo companheirismo, sinceridade e tudo que é intrínseco aos
laços de amizade, por ter do meu lado historiadores e “advogados” tão honestos
quanto aos seus sentimentos e a suas vidas, e que fazem cada minuto ao lado deles
ser um minuto mais vivo.
Sou eternamente grata aos meus pais que são inexplicavelmente
importantes e essenciais no fim de mais essa etapa. Foram eles os responsáveis por
tudo isso e cabe a eles colherem todos os méritos desta monografia e a conclusão
de mais uma graduação.
Ao meu digníssimo namorado fica sempre um obrigada aliado ao eu te amo
de todos os dias... o agradecimento e o amor são resultado de toda paciência, todo
amor retribuído, da excelente companhia, dos planos, das fugas e dos ouvidos,
bocas e abraços. É você, Dani, que faz a previsão do futuro ser mais gostosa de ser
pensada.
Aos professores Juliano Keller do Valle e Rodrigo Mioto dos Santos a
gratidão é imensa. Agradecer exclusivamente aos dois pelo auxílio na produção
desta monografia não explicita a importância que vocês tiveram ao longo da
graduação. Resta a vocês o agradecimento por terem me tornado uma pessoa
melhor e mais aberta ao processo penal, por terem me possibilitado ver que a ilusão
construída pelo senso comum nada mais é do que o senso comum e que a crítica é
mais bem estruturada e significante quando se estuda e se conhece pessoas
pensantes.
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Agradeço, como último fator e também o mais importante, à vida. Sou a ela
grata por ser a mesma uma fonte eterna de movimento e oportunidades e que só ela
deixa-me levá-la pra onde eu bem a quiser.
7
Eu nunca fui uma moça bem-comportada.
Pudera, nunca tive vocação pra alegria tímida,
pra paixão sem orgasmos múltiplos
ou pro amor mal resolvido sem soluços.
Eu quero da vida o que ela tem de cru e de belo.
Não estou aqui pra que gostem de mim.
Estou aqui pra aprender gostar de cada detalhe que tenho.
E pra seduzir somente o que me acrescenta.
Adoro a poesia e gosto de descascá-la
até a fratura exposta da palavra.
A palavra é meu inferno e minha paz. [...]
Eu acredito em profundidades. E tenho medo de altura,
mas não evito meus abismos.
São eles que me dão a dimensão do que sou.
Maria de Queiroz
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TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade
pelo aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do
Vale do Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o
Orientador de toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.
São José, 03 de novembro de 2010.
Fernanda Martins
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RESUMO
O objetivo deste trabalho é verificar se a figura atual do juiz no processo penal está em conformidade com o sistema processual adotado pela Constituição Federal de 1988; o Acusatório. Com tal finalidade, apresenta-se a partir da construção histórica sobre o Sistema Inquisitorial, quem é o personagem que permeia até os dias de hoje o pensamento dos magistrados que formam o corpo jurídico da atualidade; o juiz inquisidor. A partir desta exposição quanto à inquisitoriedade do juiz, evidencia-se o contraponto doutrinário, o qual se trata da explanação sobre a teoria do garantismo penal, cuja finalidade deste no presente trabalho é traçar o marco doutrinário adotado, além de expor as qualidades necessárias que devem estar intrínsecas ao juiz do sistema acusatorial. Reflete-se, então, em meio ao garantismo, qual a construção jurídica que deve ser implementada para se estabelecer uma democracia social e processual, a qual esteja devidamente consolidada sobre as garantias constitucionais. A fim de solucionar essa discutida questão, aborda-se também o sistema acusatório em si. No tocante ao processo acusatório, explana-se sobre a função do magistrado em tal sistema e analisa-se minuciosamente se as normas infraconstitucionais estão devidamente de acordo com o exigido pela Carta Magna. Expõe-se, ao fim, a problemática decorrente da participação do juiz como sujeito legítimo para requer provas, de ofício, no processo, assim como, evidencia-se a possibilidade, dentro do formato atual que se tem consolidado nas leis infraconstitucionais, de se construir juízes vingadores e atuantes no meio processual.
Palavra-chave: Juiz inquisidor; garantismo penal; sistema acusatório; juiz de
garantias; ilegitimidade de intervenção probatória do magistrado.
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RESUMEN
El objetivo do siguiente traballo es verificar si la figura actual de juez en el proceso penal se encuentra en cumplimiento con el sistema procedimiental adoptada por la Constitución brasileña de 1988, el acusatorio. Para este propósito, el traballo se desprende a partír de la construcción histórica del sistema inquisitorial, que busca identificar se el carácter que impregna hasta hoy en el pensamiento de los jueces que forman el cuerpo de la ley actual és el juez inquisidor. A partir de estaperspectiva inquisitorial, la exposición sobre el juez, se convierte em un exposición sobre la teoría del garantismo penal, con el propósito de este estudio en trazar la doctrina utilizada como a teoria principal de este traballo, además, el segundo capítulo és de exhibir las cualidades necesarias que se debe ser intrínseca al sistema judicial acusatorial. Se refleja, entonces, en medio de la teoria del garantismo, sobre la interpretación jurídica que debe aplicarse para establecer una democracia social y de procedimiento, que debe estar bien consolidada sobre lasgarantías constitucionales. En el fin, abordarse e se discute también el sistema acusatorio en sí. Con respecto al proceso acusatorio, se explica el papel de los jueces en un sistema acusatorial y analizase a fondo si las normas son totalmente formado en conformidad con las disposiciones de la Constitución. Expone, al final, los problemas derivados de la participación del juez como un sujeto que requiere la prueba de oficio en el proceso, así como, se expone la posibilidad, en el formato actual que se ha consolidado en las leyes bajo la Constitución, que se produzca jueces vengadores y activos en el processo.
Palabras clave: El juez inquisidor; El garantismo penal; El Sistema Acusatorio; El
juez de garantía; la ilegitimidad de la intervención probatoria del juez.
11
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................................12
1 SISTEMA INQUISITORIAL E A INFLUÊNCIA NA CRIMINOLOGIA...........................16
1.1 A FORMAÇÃO DO SISTEMA INQUISITORIAL COMO FORMAÇÃO DE
SISTEMA PROCESSUAL ........................................................................................... 17
1.2 O SISTEMA INQUISITORIAL NO BRASIL ......................................................... 24
1.3 A CRIMINOLOGIA E O SISTEMA INQUISITORIAL .......................................... 29
1.4 O PAPEL DO JUIZ INQUISIDOR ......................................................................... 34
2 CARACTERIZAÇÃO DA TEORIA DO GARANTISMO PENAL...................................38
2.1 AS 03 ACEPÇÕES DE GARANTISMO PENAL ................................................. 39
2.2 ESTADO DE DIREITO, DIREITOS FUNDAMENTAIS E GARANTISMO COMO
BASE DEMOCRÁTICA ................................................................................................ 45
2.2.1 Garantias negativas e positivas na formação dos Estados de direito
..........................................................................................................................46
2.2.2 Democracia formal e substancial .........................................................48
2.3 O JUIZ “ATIVISTA” ................................................................................................ 52
3 O SISTEMA ACUSATÓRIO E A FIGURA DO JUIZ NO PROCESSO PENAL............58
3.1 SISTEMA ACUSATÓRIO ...................................................................................... 59
3.1.1 O Sistema Acusatório na Antiguidade.................................................59
3.1.2 O Acusatório na teoria do Common Law.............................................60
3.1.3 A modernidade e as características do Processo Acusatório...........62
3.2 A FIGURA DO JUIZ GARANTE ........................................................................... 67
3.2.1 A diferença da neutralidade e da imparcialidade na figura do
magistrado.......................................................................................................72
3.2.2 O Princípio do Juiz Natural ...................................................................76
3.3 DA ILEGITIMIDADE DA INTERVENÇÃO DO JUIZ NA INSTRUÇÃO
PROCESSUAL ............................................................................................................. 77
3.3.1 A verdade real inaplicável ao processo penal acusatório..................81
3.3.2 O juiz justiceiro ......................................................................................83
CONCLUSÃO..................................................................................................................87
BIBLIOGRAFIA ...............................................................................................................94
12
INTRODUÇÃO
Este trabalho possui como um de seus objetivos discutir a compatibilidade da
produção de provas de ofício e a livre iniciativa do magistrado no processo penal,
frente ao Sistema acusatório adotado pela Constituição da República e ao modelo
de Estado Democrático de Direito assegurado pelas garantias fundamentais. Faz-se
necessário discutir a formação conceitual de Estado inquisidor e do personagem do
juiz dentro desta realidade, haja vista a manifestação inquisitiva do magistrado
quando o mesmo se posiciona proativamente no processo.
Diante da discussão existente no campo doutrinário jurídico sobre o sistema
processual penal adotado pelo judiciário brasileiro, retirou-se a perspectiva de qual
seria o posicionamento dos magistrados quanto ao sistema processual adotar na
prática jurídica. Questiona-se aqui, então, não qual é o sistema em vigência, mas
sim que juiz é o mais adequado para responder a demanda processual determinada
pela Constituição Federal. Por essa razão, o escopo desta monografia é de
identificar a ilegitimidade da intervenção probatória do juiz no processo penal,
demonstrando através do juiz de garantias uma possibilidade mais democrática e
garantidora para assegurar o devido processo legal e demais princípios
contemplados pelo sistema acusatório.
A opção por esse tema se deu através do estudo historiográfico proveniente
da minha outra graduação. Ao escrever minha monografia para alcançar o grau de
bacharel e licenciada em História abordei dois processos de infanticídio ocorridos no
início do século XX, cuja análise se deu principalmente sobre as sentenças do
magistrados dos respectivos processos.
Ao verificar tais sentenças pude observar um posicionamento claro dos juízes
quanto ao que se dispunha no decorrer dos autos, observando também a
interferência criminológica e o contexto brasileiro sobre tais decisões. Frente à figura
do magistrado percebi que este posicionamento não se resumia aos casos do início
do século XX e que as relações históricas e legislativas interferiam diretamente no
trabalho destes juízes.
A partir desta relação da realidade social e do que legislado, será buscado no
que ainda está por ser integrado ao direito penal brasileiro (juiz de garantias) para
13
demonstrar que o juiz até então conhecido nos âmbitos jurídicos trata-se ou não de
um magistrado vinculado a sistemas diversos, que não o evidenciado pela Carta
Magna.
Para evidenciar o que se busca dizer quando se utiliza a expressão “juiz
inquisidor”, será abordada na primeira parte do trabalho uma construção conceitual
pautada, sobretudo, na História do Direito, a qual identificará sobre o que se tratava
o processo inquisitorial no contexto da sua existência, ou seja, no período medieval.
Após uma conceitualização abrangente no tocante ao sistema inquisitorial
como forma processual, identificar-se-á a inserção no Brasil deste método de
desenvolver o processo, a partir das visitações da Inquisição às Colônias
portuguesas, trabalhando-se ainda com os porquês de terem sido necessárias tais
intervenções católicas no Brasil. Em sua continuidade, o presente trabalho
demonstrará o surgimento da criminologia como resposta a esta forma processual,
já que os primeiros estudos criminológicos focavam-se na segregação e
identificação do outro como meio de constituir uma razão ao problema da
criminalidade.
O estudo do primeiro capítulo finalizar-se-á com a explanação sobre a função
do juiz inquisidor e sobre os atos por este praticados como inerentes a essa
titulação.
Adentrando-se no segundo capítulo, buscar-se-á evidenciar o marco teórico
deste trabalho, o garantismo penal. A composição desta parte da monografia inicia-
se com o desenvolvimento das acepções demonstradas por Luigi Ferrajoli como
forma de explicar qual a definição da teoria do garantismo.
As três acepções evidenciadas pelo jurista são diversas, todavia, conexas
entre si. A primeira acepção será abordada no sentindo da normatividade e das
relações legislativas, Constitucional e infraconstitucional, já a segunda acepção será
evidenciada como relativa à teoria do direito, onde se trabalhará com as idéias de
efetividade e validade da norma, e a terceira e última acepção tratará sobre a
perspectiva filosófica do direito, haja vista a existência de uma finalidade
externa/política para a existência do garantismo.
Ainda com o foco no garantismo se determinarão os conceitos de Estado
Democrático de Direito e Direitos fundamentais, e para assim conceituá-los serão
identificados os significados atribuídos às garantias, como positivas e negativas, e à
própria definição de democracia, evidenciando-se a diferença entre a democracia
14
formal e a substancial.
O fim do segundo capítulo ocorrerá com a explanação sobre a existência da
figura do juiz “ativista” dentro das perspectivas do garantismo. Será nesta fase
demonstrada a possibilidade da ação do magistrado dentro do processo de forma
que cumpra com a sua função maior, a efetiva aplicação das garantias ao longo do
processo penal.
No terceiro capítulo, apresentar-se-á o Sistema Acusatório e as garantias por
ele asseguradas, além de que serão evidenciadas as diversas fases pelo qual
passou tal forma processual.
A explanação perpassa um traçado histórico a partir da idéia de sistema
acusatorial primeiramente identificado na antiguidade. Ao tratar sobre a antiguidade
e os conceitos de acusação, serão demonstradas quais as características que
diferirão essa fase das demais. O segundo momento do processo acusatório será
elencado dentro dos princípios e da realidade do Common Law, seguindo então para
a identificação do sistema acusatorial na sua concepção moderna.
Em seguida, analisar-se-á a figura do juiz de garantias, um personagem que
está proposto dentro do anteprojeto do código de processo penal (PL 156/2009, do
Senado Federal), o qual terá como função agir na fase pré-processual, decidindo
cautelarmente sobre as medidas de restrição dos direitos fundamentais do
investigado. Será também evidenciada a relação deste magistrado com o desígnio
da prevenção e com a contaminação do juiz que trabalha na fase que antecede o
processo em si.
A abordagem do juiz de garantias passará pela análise do conceito de
imparcialidade do juiz frente à idéia de neutralidade e pelo princípio do juiz natural,
cuja finalidade resguardar a garantia de que o acusado desde logo saberá quem
será competente pelo seu julgamento.
Por fim, será problematizada a idéia de juiz interventor ou proativo no
desenvolvimento do processo. Questionar-se-á os dispositivos presentes no Código
de Processo Penal que possibilitam o requerimento de produção de provas de ofício
por parte do magistrado e que rompem diretamente com os princípios contemplados
pela Constituição Federal, os quais sejam o direito ao contraditório, a ampla defesa
e principalmente à separação dos poderes de acusar e julgar, evidenciados pelo art.
129, I da Constituição Federal.
No terceiro capítulo, restará assim demonstrado que se faz incabível uma
15
relação de intervenção do magistrado nos casos de existência de um sistema
plenamente acusatório, haja vista a incompatibilidade da vinculação dos poderes
acusar e julgar frente as garantias e princípios determinados pela Constituição
Federal.
Vale ressaltar que o presente trabalho será realizado seguindo tanto o
método indutivo quanto o dedutivo. O método dedutivo parte da construção geral da
historicidade e conceitualização dos sistemas processuais para uma figura
específica, o juiz. Já a aplicação do método indutivo ocorre devido à motivação do
presente trabalho, ou seja, da análise de algumas sentenças proferidas pelos
magistrados do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. A partir de tais sentenças,
casos pontuais, questionou-se a intervenção dos juízes sobre a Ação penal numa
perspectiva do processo de modo geral.
16
1 SISTEMA INQUISITORIAL E A INFLUÊNCIA NA CRIMINOLOGIA
De que me vale
Ser filho da santa
Melhor seria
Ser filho da outra
Outra realidade
Menos morta
Tanta mentira
Tanta força bruta
Chico Buarque de Holanda
O Processo Penal e o Direito Penal na forma que se conhece atualmente
são resultados de um processo histórico, cuja influência é proveniente de diversos
movimentos jurídicos ocorridos ao longo dos séculos na parte Ocidental do mundo.
Entre eles pode-se citar a Retórica grega, o Direito Germânico regido pelo jogo de
prova, o Inquérito grego, a renovação do Inquérito medieval, a reforma Iluminista de
se pensar o Direito e o desenvolvimento do sistema liberal jurídico1.
Abordar-se-á aqui o Inquérito medieval como fonte de análise para se
entender o Sistema Inquisitorial2, o qual começa a se consagrar a partir da Alta
Idade Média, e cuja formação provém de um movimento modificador dos costumes,
de consciência e do processo judiciário em si durante o medievo, como também será
objeto de análise o processo histórico que permeou a construção deste Sistema.
1 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Ed., 2003. p. 53 a 78.2 O Sistema Inquisitorial é uma vertente processual que tinha como finalidade a solução de conflitos. Esta forma de solução abrangia desde as questões que se referiam desde os campos procedimentais da área administrativa, civil e penal. Seu surgimento se deu originariamente no continente Europeu. Todavia, sua atuação seguiu o movimento das monarquias que se constituíam e dos Impérios e futuras Colônias que iriam se formar. O Sistema Inquisitorial teve como base uma formação jurídica conectada ao Clero e a Nobreza, modificando, entretanto, ao longo do tempo para um Sistema propriamente processualista, cuja vigência ocorreu até pouco tempo atrás.
17
1.1 A FORMAÇÃO DO SISTEMA INQUISITORIAL COMO FORMAÇÃO DE
SISTEMA PROCESSUAL
Foucault identifica que “guerra, litígio judiciário e circulação de bens fazem
parte ao longo da Idade Média, de um grande processo único e flutuante”3, o que se
compreende no sentido que durante este período começam a se formar poderes
constituídos que passam a serem agregados nos mesmos indivíduos. Trata-se de
mudança significativa, pois se falava da Baixa Idade como uma sociedade que até
então possuía diversos pólos de poder dispersos, o que caracterizava o momento
chamado de Feudalismo.4
Para que a constituição desta nova perspectiva de poder se acumulasse
definitivamente nas mãos de uns poucos, o processo judiciário foi determinante.
É evidenciado por Foucault que
a acumulação da riqueza e do poder das armas e a constituição do poder judiciário nas mãos de alguns é um mesmo processo que vigorou na Alta Idade Media e alcançou seu amadurecimento no momento da formação da primeira grande monarquia medieval, no meio ou final do século XII5
e é diante deste momento que se desenvolve uma justiça completamente distinta da
até então evidenciada durante o período feudal e das épocas antecedentes.
A autora Samyra Haydée Naspolini ao traçar historicamente o surgimento e
o desenvolvimento do Sistema Inquisitorial identifica que durante a Baixa Idade
Média o poder clerical vigia sobre toda a sociedade ocidental e que o poder da
nobreza estava diretamente vinculado com a aceitação do Clero sobre a figura dos
3 FOUCAULT, Michel. Op. Cit. p. 644 Feudalismo trata-se de um período cujo modo de produção era “regido pela terra e por uma economia natural, na qual nem o trabalho nem os produtos do trabalho eram bens. O produtor imediato – o camponês – estava unido ao meio de produção – o solo – por uma específica relação social. A fórmula literal deste relacionamento era proporcionada pela definição legal de servidão gleba adscripti ou ligados à terra: os servos juridicamente tinham mobilidade restrita. Os camponeses que ocupavam e cultivavam a terra não eram seus proprietários. A propriedade agrícola era controlada privadamente por uma classe de senhores feudais”. Eram esses senhores feudais que possuíam espaçadamente o poder de forma fragmentada, detendo assim o domínio sobre as terras e seus servos e vassalos. ANDERSON, Perry. Passagens da antiguidade ao feudalismo. São Paulo: Brasiliense, 2004.5 FOUCAULT, Michel. Op. Cit. p. 65
18
“novos” reis, podendo o poder clerical consagrar ou excomungar um nobre, como
desejasse.6
O início da Inquisição se deu na Baixa Idade Média e o foco deste
procedimento estava voltado para o combate das heresias, ou seja, das práticas que
contestavam os dogmas católicos7. Para que se concluísse se havia sido ou não
praticadas condutas hereges deveria ocorrer um processo, no qual a peça chave era
o Inquérito.
O Inquérito teve seu processo de “recriação” a partir do século XII, quando
em momentos de conflitos “os representantes do soberano tinham de solucionar um
problema de direito, de poder, ou uma questão de impostos, de costumes, de foro ou
de propriedade”8 e buscavam em “algo perfeitamente ritualizado e regular”, o que
era chamado de “inquisitio, o Inquérito”9. O Inquérito veio com a proposta de ser um
método jurídico para a obtenção da verdade, o qual foi classificado como um
processo de dupla origem, uma com base na forma administrativa e outra na forma
religiosa.
A forma administrativa consistia num questionamento aos “notáveis”,
pessoas de conhecimento notório e de reputação ilibada, sobre os fatos
controversos, cujo objetivo era sempre a obtenção da “verdade real”. Tal forma de
inquérito estava ligada ao surgimento do Estado e ao exercício do poder em si. No
entanto, a outra forma, a eclesiástica, consistia num Inquérito vinculado aos dogmas
clericais, e neste método buscava-se também a dita “verdade real”, todavia o foco
era a ocorrência de crimes religiosos e/ou heresias.10
O Inquérito é por Aury Lopes Junior, no tocante a sua forma religiosa,
dividido em duas fases, na qual “a primeira fase (geral) estava destinada à
comprovação da autoria e da materialidade, e tinha um caráter de investigação
preliminar e preparatória com relação à segunda (especial), que se ocupava do
processamento (condenação e castigo)”11
6 NASPOLINI, Samyra Haydêe. Aspectos históricos, políticos e legais da Inquisição. In: WOLKMER, Antonio Carlos. Fundamentos de História do Direito. Belo Horizonte: Ed. Del Rey, 2003. p. 2417 Idem8 FOUCAULT, Michel. Op. Cit. p. 689 Idem10 FOUCAULT, Michel. Op. Cit. p. 69 a 7111 LOPES Jr., Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, 2006. p. 168
19
As novas regras e novos personagens dessa “nova justiça” que vem a se
formar no período medieval são indicados por Foucault como os seguintes:
1. Uma justiça que não é mais contestação entre indivíduos e a livre aceitação por esses indivíduos de um certo número de regras de liquidação, mas que, ao contrário, vai-se impor, do alto, aos indivíduos, aos oponentes, aos partidos. [...] Os indivíduos então não terão mais o direito de resolver, regular ou irregularmente, seu litígios; deverão submeter-se a um poder exterior a eles que se impõe como poder judiciário e poder político.12
2. Aparece um personagem totalmente novo sem precedentes no Direito Romano: o procurador. Esse curioso personagem, que aparece na Europa por volta do século XII, vai se apresentar como o representante do soberano, do rei ou do senhor. Havendo crime, delito ou contestação entre dois indivíduos, ele se apresentar com representante de um poder lesado pelo único fato de ter havido um delito ou um crime. [...] O soberano, o poder político vêm, desta forma, dublar e, pouco a pouco, substituir a vítima. Esse fenômeno, absolutamente novo, vai permitir ao poder político apossar-se dos procedimentos judiciários. O procurador, portanto, se apresenta como representante do soberano lesado pelo dano. 3. Uma noção absolutamente nova aparece: a infração. [...] A partir do momento em que o soberano ou seu representante, o procurador, dizem “Também fui lesado pelo dano”, isto significa que o dano não é somente uma ofensa de um indivíduo ao outro, mas também uma ofensa de um indivíduo ao Estado; [...]. A infração não é um dano cometido por um indivíduo contra o outro; é uma ofensa ou lesão de um indivíduo à ordem, ao Estado, à lei, à sociedade, à soberania, ao soberano.4. Há ainda uma última descoberta, uma última invenção tão diabólica quanto a do procurador e da infração: o Estado ou melhor, o soberano (já que não se pode falar de Estado nesta época) é não somente a parte lesada mas a que exige reparação. [...] Vai-se exigir do culpado não só a reparação do dano feito a um outro indivíduo, mas também a reparação da ofensa que cometeu contra o soberano, o Estado, a lei.13
Esses novos mecanismos vão se tornar determinantes para a compreensão
dos princípios que regerão o Sistema Inquisitorial e que determinarão o
fortalecimento e a manutenção do poder nas mãos do Clero e da Nobreza, ao longo
do medievo.
Salo de Carvalho atribui o surgimento do Sistema Inquisitorial na forma
medieval e a sua afirmação como sistema válido e vigente neste período como
resultado também da necessidade de “ampliação da malha repressiva”14. Com base
12 Grifos da autora.13 FOUCAULT, Michel. Op. Cit. p. 65 - 6714 CARVALHO, Salo de. Revisita à desconstrução do modelo jurídico inquisitorial.Disponível em
20
em Levack, o referido autor determina como processo histórico significante para a
consolidação deste sistema a
“redescoberta” do Direito Romano, sobretudo com a revitalização do“Corpus Iuris Civilis” no século XII pela Universidade de Bolonha e a posterior inserção das glosas, o clero instiga a formalização e a mudança nos procedimentos – “a Igreja se aproveita do texto do corpus iuris civilis para escorar sua própria organização e desenvolver mecanicamente sua teocracia radical”.15
Tal processo garantiu certas vantagens, no que entende o autor, dentre as quais
se destacam:
(a) o caráter público das denúncias, não mais restritas à vítima ou aos seus familiares, aliada (b) ao sigilo da identidade do delator; (c) a inexistência de separação entre as figuras de acusador e julgador, sendo lícito a este realizar a imputação, produzir a prova e julgar o acusado; (d) o sistema tarifado de provas e sua graduação na escala da culpabilidade, recebendo a confissão o máximo valor (regina probatio), e (e) a autorização irrestrita da tortura como mecanismo idôneo para obtenção de confissões.
É diante destas vantagens que se começa a se compreender o porquê da
consolidação de tal estrutura e é também com base nas mesmas que se desenvolve o
Sistema Processual Inquisitorial mais conhecido a partir da modernidade.
Aury Lopes Jr. ao identificar a institucionalização do Processo Inquisitorial como
forma processual vigente determina que tal consolidação é proveniente de um processo
de substituição dos defeitos da inatividade das partes, levando à conclusão de que a persecução criminal não poderia ser deixada nas mãos dos particulares, pois isso comprometia seriamente a eficácia do combate à delinqüência. Era uma função que deveria assumir o Estado e que deveria ser exercida conforme os limites da legalidade.16
O Sistema Inquisitorial surge, a partir da compreensão de Coutinho, como
“uma resposta defensiva contra o desenvolvimento daquilo que convencionou se
chamar de ‘doutrinas heréticas’.Trata-se, sem dúvida, do maior engenho jurídico que
o mundo conheceu; e conhece”17. Para o mesmo, tal sistema permaneceu vigente
durante tanto tempo, e ainda vige, às vezes veladamente às vezes nem tanto,
http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/index.php/buscalegis/article/viewArticle/32639 Acesso em 11 mai 2010 p. 3915 CARVALHO, Salo de. Anti Manual de Criminologia. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, 2008. p. 5816 LOPES Jr. Aury. Op. Cit. p. 166 – 167. 17 COUTINHO, Jacinto. O papel do novo juiz no processo penal. In: ___ . Crítica à teoria geral do direito processual penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 18
21
porque a Inquisição “veio com a finalidade específica e, porque serve – e continuará
servindo, se não acordarmos – mantém-se hígido.”18
O Sistema Inquisitorial era, e pode-se dizer que ainda é, instituído através
de uma “máquina repressiva”19, caracterizado pela “exclusão do contraditório, pela
ausência de ampla defesa e pela inversão da presunção de inocência”20.
O processo inquisitorial ou causa, como é chamada por Eymerico21, poderia
começar de três modos: “por acusação, por delação e por pesquisa”. 22 O método da
acusação se dava quando alguém do povo acusava o réu, sendo que nesta forma
de causa deveria o delator provar o que afirmava sobre o acusado, e ele mesmo
deveria ser o responsável pela persecução penal. Ou seja, o acusador enfrentaria o
acusado pessoalmente e caso não se provasse os fatos incursos ao réu, aquele
quem acusara sofreria sanções severas. 23
Já no que se aborda a delação, o delator deveria contar ao juízo
competente o motivo da acusação, mas não seria ele quem deveria provar tais
alegações, e jamais seria este confrontado com o acusado, devendo o acusador de
oficio ser responsável pelo trâmite processual.24
Destarte, a terceira forma tratava-se da pesquisa, cuja utilização ocorria
quando não havia nem delator, nem acusador. A pesquisa poderia ocorrer de duas
maneiras:
uma geral, que é uma pesquisa de hereges que, de quando em quando, mandam fazer os inquisidores em um bispado ou em uma província. [...] A outra espécie de pesquisa se faz quando por voz pública chega aos ouvidos dos inquisidores que fulano ou sicrano disse ou fez alguma coisa contra fé, o que faz com que o inquisidor cite testemunhas e lhes tome declarações acerca da má fama do acusado.25
18 COUTINHO, Jacinto. Op. Cit. p. 19.19 CARVALHO, Salo de. Op Cit. p. 6020 Ibidem. p. 6121 Nicoulau Eymerico foi um teólogo católico romano e Inquisidor Geral da Inquisição da Coroa de Aragon, no final da metade do século XIV. Ele é mundialmente conhecido pela autoria da obra Manual da Inquisição, haja vista a sua repercussão e notoriedade quanto aos procedimentos inquisitoriais. Disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/Nicholas_Eymerich Acesso em 11 set 2010.22 EYMERICO, Nicolau. Manual da Inquisição. Curitiba: Juruá, 2001. p. 1623 Idem24 Ibidem p. 1725 Ibidem p. 17 – 18.
22
Ambas as formas de pesquisa possibilitavam o início do processo de ofício
pelo inquisidor.
Como base fundamental desta “forma processual”, observa-se a “gestão da
prova”26 e a figura do juiz como acusador e julgador, objetos que serão a frente
tratados mais afundo quando for abordada a figura do juiz inquisidor. Todavia, no
que trata desta perspectiva vale ressaltar que a gestão probatória trazia valorações
para as provas evidenciadas ao longo do “processo” e que o dinamismo processual
ocorria sempre em virtude da busca da verdade.
As provas eram divididas entre “diretas, indiretas, manifestas, imperfeitas,
provas plenas, indícios próximos e indícios longínquos”27. Para a autora Samyra
Haydêe Naspolini as “provas plenas poderiam acarretar qualquer condenação, as
semiplenas ensejar suplícios, mas nunca a pena capital, e os indícios bastavam para
declarar um suspeito e iniciar as investigações”28. A combinação destas formas
probatórias criava o que a mesma chama de “aritmética penal”, devendo, entretanto,
ao longo do processo sempre se buscar a confissão, já que esta era a única maneira
de “provar” efetivamente que o indivíduo cometera crimes de heresias que não
deixavam vestígios.
Para Alexandre Morais da Rosa, entre as características do Sistema
Inquisitorial se encontra a tarifação das provas e a acusação de ofício, como
exposto, porém adiciona-se aos mesmos outros pontos fundantes deste sistema,
tais como a presença de um único julgador, o poder de julgar, acusar e direcionar a
ordem do processo nas mãos do magistrado e a realização de um processo escrito e
secreto.29
A perspectiva de Salo de Carvalho sobre as características de tal Sistema
permeia a mesma abordagem de Alexandre Morais da Rosa, já que aquele expõe
que se destacam no método inquisitorial
(a) o caráter universal das denúncias, ou seja, não mais restritas à vítima ou aos seus familiares e interessados; (b) o sigilo da identidade do delator (noticiante); (c) a inexistência de separação entre as figuras de acusador e julgador, sendo lícito ao magistrado realizar a imputação, produzir a prova e decidir o caso; (d) o sistema tarifado de provas, com a conseqüente graduação da culpabilidade,
26 COUTINHO, Jacinto. Op. Cit. p. 2427 NASPOLINI, Samyra Haydêe. Op. Cit. p. 24828 Ibidem p. 24929 ROSA, Alexandre Morais da. Decisão Penal: a Bricolage de Significantes. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006. p. 135
23
na qual a confissão recebe valor supremo (regina probatio); e (e) a autorização irrestrita para o uso da tortura como mecanismo idôneo de obtenção da verdade.30
A incessante meta de alcançar a verdade na estrutura Inquisitorial admitiu
as maiores barbáries “processuais” conhecidas ao longo dos tempos. Ao valorar a
confissão como a rainha das provas se permitiu que em sua busca ocorresse a
tortura como método lícito e científico de extração desta.
Aury Lopes Jr. também entende que essa busca pela verdade é o que
determinou a crueldade do sistema, quando diz:
a lógica inquisitorial está centrada na verdade absoluta e, nessa estrutura, a heresia é o maior perigo, pois atacava o maior núcleo fundante do sistema. Fora dele não havia salvação. Isso autoriza o “combate a qualquer custo” da heresia e do herege, legitimando até a mesmo a tortura e a crueldade nela empregada.31
As regras para a utilização do “tormento”, como também é chamada a
tortura, estão tratadas no Manual dos Inquisidores. É evidenciado que para a
aplicação do tormento o réu reputado como herege deveria o mesmo ter cometido
“um testemunho de vista, um mau comportamento em matéria de fé, um indício
veemente, uma só não basta, duas são necessárias e bastantes para dar
tormento”32.
Identifica-se também a possibilidade do uso da tortura quando
após ter sido apurado, sem frutos, todos os demais meios para se averiguar a verdade, porque, muitas vezes, basta para fazer com que confesse o réu apenas os bons modo, a manhã, suas próprias reflexões, as exortações de sujeito bem intencionados e o desconforto do cárcere.33
É fato tão notório que a confissão tinha um poder predominante sobre os
outros métodos probatórios que Eymerico, no Manual dos Inquisidores, identifica
que “quando confessa um acusado o seu delito pelo qual foi preso pela inquisição, é
diligência inútil outorga-lhe defesa, sem que obste que nos demais tribunais não seja
bastante a confissão do réu, quando não há corpo delito formal”34.
No tocante ao crime religioso é explanado também que “em se tratando de
heresia, a confissão do réu basta por si só para condená-lo, porque como a heresia
30 CARVALHO, Salo de. Op. Cit. p. 5931 LOPES Jr., Aury. Op. Cit. p. 16932 EYMERICO, Nicolau. Op. Cit. p. 4633 Ibidem p. 4734 Ibidem p. 39
24
é um delito da alma, muitas vezes não pode haver dela outra prova que não a
confissão do acusado”35.
Destarte, percebe-se que a tortura era utilizada como mecanismo para
“arrancar” a verdade na forma em que se desejava. A utilização de tal “instrumento”
traduz uma perspectiva própria do Sistema Inquisitorial, sendo esta a percepção de
que o poder determinava não somente a verdade, mas também como obtê-la,
identificando-se aí o exercício do poder, na compreensão pura do que ele significa.
1.2 O SISTEMA INQUISITORIAL NO BRASIL
O Sistema Inquisitorial foi um processo de mudança de mentalidade e
construção dogmática basicamente originado na Europa, contudo, trata-se de um
processo exclusivamente Ocidental. Estabeleceu-se o mesmo de forma mais
fortificada e duradoura na Espanha e em Portugal e teve a sua consolidação como
um sistema processual em meio a uma estrutura jurídica e de uma finalidade penal.
A estrutura referida acima se tratava da organização do Tribunal do Santo
Ofício da Inquisição, posteriormente reconhecido apenas como Inquisição, e a
finalidade do mesmo tratava-se do fim punitivo deste sistema representado pela
aplicação de uma pena ao condenado.
O processo histórico pelo qual passou Portugal está vinculado com o
fortalecimento da Nobreza e da vinculação desta com o Clero. A Expansão Marítima,
a Colonização e exploração do continente americano, exploração do continente
africano e as demais repercussões históricas da modernidade trazem consigo o
movimento jurídico e religioso da Inquisição.
O Brasil teve como vertente primária, aos olhos de Portugal, a perspectiva
exclusiva de Colônia de Exploração. A partir de tal consciência era de suma
importância para os Estados colonizadores que se extraíssem todas as matérias
primas e fontes de riqueza que fosse possível da localidade, de forma que não
houvesse qualquer preocupação mais precisa com aqueles que faziam tal extração.
35 EYMERICO, Nicolau. Op. Cit. p. 39
25
Porém, as descobertas provenientes da exploração (e outros diversos
acontecimentos históricos) traçaram para o “Brasil” um caminho distinto daquele
inicialmente planejado à Colônia. Descobriu-se nas terras americanas a solução
para alguns problemas sociais dos povos europeus, e foi nela, principalmente, que
Portugal encontrou a possibilidade de enriquecer.
Ao focar nesta visão, a Metrópole observou que para o funcionamento da
Colônia seria necessário estabelecer hierarquias e para que se consolidasse o poder
e o domínio territorial seria necessário colonizá-la. Assim, a colonização requereu da
Metrópole um cuidado com a população que se encontrava na Colônia e o devido
controle desta.
O exercício de poder vem, então, mediante as primeiras manifestações da
presença da Inquisição no Novo Mundo: as visitações.
A estrutura do Sistema Inquisitorial era formada pela existência de alguns
Tribunais fisicamente instituídos em “Lisboa, Coimbra, Évora, Lamego, Tomar e
Porto”36, todos devidamente estabelecidos em Portugal. Outros locais tiveram
estruturas inquisitoriais, entretanto, é mais relevante ao objetivo deste trabalho o
reconhecimento da Inquisição em Portugal, já que foi ela a responsável pela
implementação desta forma processual no Brasil.37
As Visitações foram o resultado de um processo de “sedentarização” da
Justiça tanto no âmbito do poder clerical quanto do poder monárquico. As visitações
religiosas consistiam numa
inspeção periódica, que, por determinação do Conselho Geral do Santo Oficio, realizava um delegado seu para inquirir do estado das consciências em relação à pureza da fé e dos costumes. Um patrulha de vigilância. Oferecia misericórdia aos confitentes, e, ao mesmo tempo, sob ameaça, incitava os denunciantes. Um levantamento geral do momento dos espíritos. Uma operação de coleta de material para alimentação da máquina da Justiça do Santo Ofício.38
36 CIDADE, Rodrigo Ramos Amaral. Direito e Inquisição: o processo funcional do Tribunal do Santo Ofício. Curitiba: Juruá, 2001. p. 2237 Idem38 SIQUEIRA, Sonia A. A inquisição portuguesa e a sociedade colonial. São Paulo: Editora Ática, 1978. p. 183.
26
As terras brasílicas não se viram livres das Visitas do Tribunal do Santo
Ofício.39 Entende alguns historiadores que escolha das localizações pelas quais
passariam as visitações estava conexa com a importância econômica da região.
A motivação real do surgimento das Visitações foi proveniente de um
movimento de compreensão sobre a realidade das Colônias. É percebida por
Portugal a necessidade do controle sobre as pessoas e sobre a realidade
encontradas em suas terras distantes, e vê-se, dentro da composição do Tribunal do
Santo Ofício, que a figura apropriada para tal repressão seria os Visitadores.
A composição orgânica da Inquisição se dava através de uma organização
judiciária, na qual inicialmente era composta pelas figuras dos
Inquisidores, dos Notários, do Meirinho, de outros funcionários de uma importância mais técnica como os médicos e ainda os guardas e porteiros para garantir a segurança e também os Visitadores das Naus.40
A figura dos Visitadores das Naus surge então
devido ao desenvolvimento do comércio e da navegação. Em virtude desses fatores, multiplicavam-se os contatos com outros povos e a criação dessa função deve-se à consciência de perigo que o contato com os estrangeiros representava em relação à integridade da fé católica.41
É ele um antecessor da figura do Visitador das Colônias. O Visitador de
Naus era o responsável pela investigação de uma navegação quando esta ao voltar
dos mares aportava nas cidades portuguesas, sendo necessário para o Tribunal do
Santo Ofício que se averiguasse a origem e as intenções daquelas novas pessoas
que chegavam às terras de Portugal.
O desenvolvimento das navegações e do processo migratório e colonizador
nas terras americanas criaram assim a necessidade desta verificação também sobre
as intenções e sobre a origem daqueles que fossem habitar as novas terras
portuguesas. Assemelhando-se em função e finalidade criam-se os Visitadores das
Colônias, os quais serão responsáveis pela averiguação do “caráter e da conduta”
daqueles que lá se instalassem.
39 NOVINSKY, Anita Apud OLIVEIRA, Halyson Rodrygo Silva de. O Tribunal do Santo Ofício: primeira visita do Tribunal às parte do Brasil Bahia e Pernambuco (1591- 1595). Disponível em http://www.cchla.ufrn.br/humanidades/ARTIGOS/GT26/ Acesso em 12 mai 2010. p. 140 CIDADE, Rodrigo Ramos Amaral. Op. Cit. p. 2241 Ibidem. p. 25
27
As Visitações então ocorreram como um reflexo do desenvolvimento de
Portugal e de suas conquistas. Assim, no que se refere à localização destas
Visitações percebe-se esse mesmo reflexo, já que a razão da escolha dos locais
onde estas iriam ocorrer também derivava do desenvolvimento da região em
importância econômica e política perante à Metrópole.
Oliveira, baseando-se na autora Anita Novinsky, entende que
o envio da visitação esta ligada a vigilância das terras mais prósperas da colônia – sobretudo as capitanias da Bahia e Pernambuco – bem como a manutenção da ordem e da fé católicas,ou seja,para Novinsky a instalação das visitas do Santo oficio ao Brasil estão intimamente ligadas a uma real necessidade de uma vigilância ativa sobre as áreas de maior prosperidade colonial, onde se encontrava uma grande parcela dos cristãos novos saídos do reino.42
Todavia, há autores que entendem que as localizações não estão
relacionadas diretamente com o desenvolvimento econômico, mas sim com o
crescimento populacional e a necessidade de se cristianizar tais indivíduos43, pois o
objetivo maior das Visitações era de encontrar cristãos-novos e integrar o Brasil ao
mundo cristão.44
As primeiras visitações ocorreram inicialmente em Pernambuco e na Bahia
entre os anos de 1591 – 1595. O objetivo principal dos Visitadores em terras
brasílicas era o de encontrar principalmente práticas judias provenientes dos
cristãos-novos.
Os cristãos-novos eram um grupo de judeus que foram compulsoriamente
convertidos em novos cristãos em conseqüência do
decreto real em 1496-7 e que viveriam, a partir de 1536, constantemente ameaçados de prisão e confisco pelo Tribunal do Santo Oficio da Inquisição, cujo mote principal era a punição dos cristãos-novos “judaizantes”, ou seja, que continuavam a praticar ocultamente o judaísmo.45
42 OLIVEIRA, Halyson Rodrygo Silva de. O Tribunal do Santo Ofício: primeira visita do Tribunal às parte do Brasil Bahia e Pernambuco (1591- 1595). Disponível em http://www.cchla.ufrn.br/humanidades/ARTIGOS/GT26/ Acesso em 12 mai 2010. p. 143 Ibidem p. 244 OLIVEIRA, Halyson Rodrygo Silva de. Op. Cit. p. 245 VIEIRA, Fernando Gil Portela. Análise historiográfica da primeira visitação do Santo Ofício da Inquisição do Brasil (1591 – 5). In: Revista História, imagem e narrativas. N. 2, ano 01, abr 2006 – ISSN 1808 – 9895. Disponível em http://www.historiaimagem.com.br/edicao2abril2006/visitacaosantooficio.pdf Acesso em 01 jun 2010. p. 45 – 47.
28
Os cristãos-novos estiveram muito presentes nas Colônias portuguesas,
principalmente nas encontradas no continente americano, pois ao fugirem da
Inquisição muito estabelecida fortemente no Velho Mundo, encontraram nas terras
ultramar a possibilidade de praticarem ocultamente as suas filosofias religiosas e de
buscarem uma ascensão econômica através do domínio de terras.46
Outra finalidade evidente da vinda das Visitações, além do combate das
práticas de heresias, foi a de extinguir com os crimes contra a moral. Os focos de
pesquisa do Santo Ofício, no tocante as práticas imorais, foram sobre os atos
homossexuais e sodomíticos.
Destarte, sobre as condutas homossexuais entendia-se que
estes tipos de práticas seriam recorrentes entre as sociedades indígenas; tanto de homens, em que alguns efeminados viviam entre as mulheres, como de índias que viviam entre os homens, casavam e guerreavam, fazendo questão de serem tomadas por machos. O primeiro caso a ser registrado pela Inquisição aqui no Brasil foi o do negro Francisco denunciado em 1591, na Bahia. Praticante do “pecado nefando” foi denunciado por se recusar a vestir roupas de homem. Na própria Península Ibérica este tipo de delito seria comum entre os membros da Igreja, chegando a ser conhecido como o “vício dos clérigos”47
A segunda Visitação ao nordeste brasileiro ocorreu em 1618, onde
Visitadores do Santo Ofício percorreram novamente as mesmas regiões buscando
os mesmos delitos e as mesmas práticas hereges. Ocorreram também Visitações
em 1627 no Nordeste, 1606 e 1627 ao Sul e em 1763 ao Pará.
Numa perspectiva geral pode-se entender que as Visitações do Santo Ofício
vieram com o propósito de controle, conforme entende Oliveira, que percebe que
a visita do Santo Oficio é a tentativa de controle da ordem e vigilância acerca dos “desvios” da fé católica, em um novo lugar e em uma nova realidade seria nada mais natural o surgimento de outros tipos de “desvios”, de práticas ditas “erradas”, de sincretismos e de adaptações de elementos da fé oficial às realidades peculiares existentes na colônia. Vemos nas Santidades a mistura da hierarquia católica a elementos da religiosidade Tupinambá, percebemos também nos casos de práticas criptojudaicas a tentativa de conservação e manutenção da religiosidade outrora praticada por antepassados. A lógica Inquisitorial consistia em seguir valores e atitudes ditas corretas, desvalorizando o diferente, geralmente visto como errado e desviante.Nos caminhos trilhados pela Inquisição em terras basílicas, é vista uma realidade nova e multifacetada, através de um centro de significado, caracterizado na
46 VIEIRA, Fernando Gil Portela. Op. Cit.47 OLIVEIRA, Halyson Rodrygo Silva de. Op. Cit. p. 4
29
figura da fé oficial, percebemos o controle das práticas dos colonos através da intolerância da fé, misturada com a fé da intolerância.48
Assim, a partir da premissa da Inquisição, no Brasil e no mundo, e de
identificação da normalidade, vê-se uma construção do outro como punível. A
exclusão e determinação de certas práticas e condutas como aceitáveis à sociedade
passa a ser vista como situações formadoras do conceito de Criminologia, a qual vai
coexistir ao longo da história brasileira com o conceito de Sistema Penal, mais
propriamente aqui identificado pelo Inquisitorial.
A busca incessante pela condenação do diferente numa sociedade tão
mestiça como a que existia nos anos da modernidade no Novo Mundo caracteriza a
relação de segregação que vai resultar dessa mentalidade construída sob a
influência da vigilância da Inquisição.
1.3 A CRIMINOLOGIA E O SISTEMA INQUISITORIAL
Aparentemente pode ser difícil identificar a relação que há entre o Sistema
Inquisitorial e o estudo da Criminologia. Ao se deparar, contudo, com a relação de
indivíduos e acusados no processo penal, começa-se a traçar uma conexão entre o
estudo do crime e as relações de poder que determinam quem é o criminoso.
Faz-se presente uma relação que permeia os dois conceitos o objetivo
existente nos dois momentos: ambos possuem um objetivo segregador. Khaled Jr
discorre sobre este objetivo expondo que
apesar da diferença aparente de foco, um objetivo comum aproxima os dois saberes: a tentativa deliberada de erradicar a diferença e anular o outro. A pretensão de homogeneização do corpo social efetivamente permite a percepção de continuidade entre uma prática dogmático-religiosa e a constituição de um campo de saber científico. De fato, a própria elaboração de uma Criminologia oitocentista que tinha – por excelência – o homem como objeto, se vale dos pressupostos inquisitórios em alguma medida, ainda que de forma velada. O que muda, essencialmente, é o padrão desejável de indivíduo e o que é considerado uma ameaça para a funcionalidade do sistema e da estrutura de poder dominante.49
48 OLIVEIRA, Halyson Rodrygo Silva de. Op. Cit. p. 4 – 5.49 KHALED Jr, Salah H. A gênese do saber criminológico oitocentista. Disponível em http://www.seer.furg.br/ojs/index.php/juris/article/viewFile/934/380 Acesso em 12 mai 2010. p. 110
30
A Inquisição focava sua atenção nos hereges, e como observado acima, a
Igreja, como órgão regulador da Santa Inquisição, segregava aqueles que pensavam
ou criam de forma diferente daquilo que era imposto pela mesma. Verifica-se então
a partir do conceito de herege o surgimento da identificação do outro como
“anormal”, como perigoso, como aquele que é diferente do desejado, traços que
serão determinantes para o conceito contemporâneo de criminoso.
Como expõe Foucault
Toda a penalidade do século XIX passa a ser um controle, não tanto sobre se o que fizeram os indivíduos está em conformidade ou não com a lei, mas ao nível do que podem fazer, do que são capazes de fazer, do que estão sujeitos a fazer, do que estão na iminência de fazer.Assim, a grande noção da criminologia e da penalidade em fins do século XIX foi a escandalosa noção, em termos de teoria penal, de periculosidade. A noção de periculosidade significa que o indivíduo deve ser considerado pela sociedade ao nível de seus atos; não nível das infrações efetivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades de comportamentos que elas representam.50
A partir do conceito de Criminologia explorado por Foucault sobre a
construção do sujeito criminoso e sua periculosidade, pode-se abordar, sem o receio
de se cometer anacronismo, que a figura do sujeito “perigoso” está presente na
construção do conceito de Herege, palavra importantíssima dentro do Sistema
Inquisitorial.
Salo de Carvalho ao trabalhar com as perspectivas de criminologia diante
da Inquisição aborda que o livro Malleus Maleficarum (Martelo das feiticeiras) iniciou
a formação do conceito de criminologia. O autor evidencia que Heinrich Kramer e
James Sprenger, escritores do livro citado, constroem ao longo do texto uma nova
percepção, a qual aborda o crime através do criminoso ao identificar certos
indivíduos como propensos a prática de delitos. Explana Salo de Carvalho que
no âmbito criminológico, estabelece (a Inquisição) discurso etiológico plurifatorial baseado na potencialização da gravidade do delito, na inferioridade do homo criminalis (dos homens infames, dos degenerados sexualmente e das mulheres) e na predestinação ao crime. Em relação ao discurso penal, submete-o de forma extremada aos modelos de autor – inaugurando a lógica do direito penal da periculosidade -, estabelecendo amplo conjunto de signos que permitem identificar o crime no criminoso.51
50 FOUCAULT, Michel. Op. Cit. p. 8551 CARVALHO, Salo. Op. Cit. p. 64
31
No contexto contemporâneo da criminologia percebem-se estudiosos que
visam identificar no movimento social exatamente a relação entre o crime e o
criminoso, observando mais especificamente a periculosidade do mesmo.
Como resposta a esse movimento conhecido como criminologia vê-se
acadêmicos de diversas áreas, como antropólogos, médicos, juristas que formulam
no fim do século XIX uma tese de dosimetria da pena, na qual a pena a ser
estipulada ao criminoso deveria ser medida proporcionalmente com a sua
“temibilidade”52, termo esse definido por Darmon como “a quantidade de mal que
podemos temer da parte do criminoso em razão da sua pervesidade”53.
A Criminologia Clássica, trabalhada principalmente por Beccaria ao longo do
século XVIII, rompe com as tradições medievais. Esta nova perspectiva do crime
aborda uma proposta que desassocia a pena dos castigos corpóreos e analisa o
crime sob a ótica do livre arbítrio, no qual o homem tinha condições e discernimento
necessários para decidir sobre a prática do delito. Era também característica dessa
Escola criminológica ter como foco de estudo a pena em si e as suas conseqüências
sociais.54
Contudo, a partir do sec. XIX houve uma modificação nas reflexões sobre o
fato ilícito, tornando-se o centro das atenções novamente o criminoso e não mais a
punibilidade até então presente na Escola Clássica. Com a abordagem do criminoso
e dos conceitos que permeavam suas condutas, percebe-se um retorno às formas
inquisitoriais de se identificar o delinqüente.
Esta “nova” proposta no século XIX de periculosidade e de análise do
infrator é proveniente principalmente de Cesare Lombroso55, considerado precursor
52 DARMON, Pierre. Médicos e assassinos na “Belle Époque”: a medicalização do crime. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 143 53 Idem. 54 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 11ª Ed. São Paulo: Ed. Hemus, 1996.55 Carlos Martins Júnior apresenta um texto no qual identifica Cesare Lombroso como “Professor catedrático da cadeira de Medicina Legal da Faculdade de Turim, Cesare Lombroso (1836-1906) é considerado o fundador da antropologia criminal italiana. Sua principal obra, O Homem Delinquente, publicada em Milão, em 1876, expõe as concepções sobre o criminoso nato que, segundo ele, estaria predisposto ao crime desde o nascimento em razão de fatores biológicos atávicos, os quais podiam ser identificados em algumas características físicas e psicológicas do indivíduo. Segundo Lombroso, o correspondente feminino do delinquente nato seria a prostituta, figura que recebeu dele um estudo no livro A Mulher Criminosa e a Prostituta, publicado em 1895, considerado o principal trabalho até então escrito sobre a condição da meretriz. LOMBROSO, Cesare – L´ Uomo Delinquente. 2ª edição. Turim : Livraria Boca, 1878. LOMBROSO, Cesare e FERRERO, Guilaume – La Femme Criminelle et la Prostitutée. 2ª edição. Paris: Felix Alcan, 1896.” MARTINS JÚNIOR,
32
da Criminologia positivista e ditador de personalidades essencialmente “normais” e
“morais”.
O citado autor fundou uma nova perspectiva para a criminalidade, afastando
o crime da lente objetiva e colocando sob esta o criminoso, os quais eram
interpretados sobre três fatores “phisicos, anthropologicos e sociais”56, os quais
distinguiam o sujeito normal do anormal.
Para esta interpretação
O tipo físico do criminoso era tão previsível que seria possível delimitá-lo de forma objetiva. Lombroso, por exemplo, criou uma minuciosa tabela, subdividida em: “elementos anathomicos” (assimetria cranial e facial, região occipital predominante sobre a frontal, fortes arcadas superciliares e mandíbulas além do prognatismo); “elementos physiologicos” (tato, embotado, olfato e paladar obtusos, visão e audição ora fracas ora fortes, falta de atividade e de inibição); e “elementos sociológicos” (existência de tatuagens pelo corpo)57
O crime feminino também foi bastante abordado por Lombroso e Ferrero, e
por eles é visto “como uma dupla exceção”, pois a mulher se torna um monstro58.
Nessa perspectiva de dupla exceção observa-se que a transgressão à ordem pela
mulher é vista como um crime que “vem duplamente: por estar (a mulher) saindo da
ordem e por ser uma mulher saindo da ordem, e por ser um sujeito biologicamente
imprevisto para ser criminoso.”59
Para os já acima citados autores o senso de justiça da mulher também não
era confiável, pois
Relativamente a nós [homens] a mulher é um ser imoral. Ela está sempre de um e de outro lado da justiça; ela não tem nenhuma inclinação para o equilíbrio dos deveres e dos direitos que fazem a preocupação do homem; sua consciência é antijurídica como seu
Carlos. Mulheres “honestas” e mulheres “impuras”: uma questão de Direito. p. 1. Disponível em http://www.anpuh.uepg.br/xxiii-simposio/anais/anais.html. Acesso em 12 fev 2010 p. 2.56 Revista Acadêmica de Direito do Recife apud SCHWARCZ, Lilia Moritz. . O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 16657 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Op. Cit. p. 166 58 VENERA, Raquel Alvarenga Sena. Cortinas de Ferro: quando o estereótipo é a lei e a transgressão feminina - processos crime de mulheres, em Itajaí - décadas de 1960 a 1990. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2003. p. 5759 Idem
33
espírito é antifilosófico. Sua inferioridade moral junta-se a sua inferioridade física e intelectual como conseqüência necessária.60
Mesmo quando os autores abordavam a “normalidade” feminina não se
tratava de algo benéfico, mas sim, como se a mulher, por natureza, fosse diferente
pelo simples fato de não ser homem. Lombroso assim descrevia:
A mulher normal, em resumo, tem muitas características que a aproximam do selvagem e da criança e em conseqüência do criminoso (irascibilidade, vingança, ciúme, vaidade) e outras diametralmente opostas que neutralizam as primeiras, mas que a impedem entretanto de se comparar ao homem no equilíbrio entre direitos e deveres, o egoísmo e o altruísmo que é o termo supremo da evolução moral.61
Como modelo estrutural para a formação do conceito de condutas normais,
se utilizava o termo padronizador “homem médio”62, sendo que este homem não
cometeria homicídios, não roubaria, não praticaria infrações, pois as práticas que
extrapolassem o limite das imposições destinados ao “homem médio”, tratar-se-iam
de condutas de “pura infração ou anormalidade”63.
Assim, é a partir destes conceitos formulados por Lombroso que podemos
identificar a relação existente entre a Criminologia nos padrões da
contemporaneidade, com a perspectiva de crime e criminosos estabelecida pelo
Sistema Inquisitorial.
No Sistema Inquisitorial tem-se como objeto máximo de fragilidade diante da
possibilidade de cometer uma heresia a mulher. Esse conceito volta, como
demonstrado, predominando no discurso dos juristas criminológicos do século XIX.
Destarte, visa-se a percepção em ambos os momentos de uma segregação
de certos grupos e certos indivíduos, identificando aí a relação que se tem da
criminologia positivista, que até hoje vige veladamente sobre o Judiciário quando a
relaciona com o Sistema Inquisitorial de análise do processo, o qual também vige
sobre o Judiciário, entretanto, não tão veladamente assim.
60 Lombroso apud SOIHET, Rachel. Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem urbana (1890-1920). Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 1989. p. 11261 Idem62 VENERA, Raquel Alvarenga Sena. Op. Cit. p. 4263 Idem
34
1.4 O PAPEL DO JUIZ INQUISIDOR
Um sujeito muito singular no sistema inquisitorial é o Juiz. A sua função
como julgador de conflitos identifica uma das características mais próprias desse
sistema: a unificação do acusador e do julgador em uma única pessoa.
A persecução jurídica vem configurada na pessoa do juiz, assim como a
própria resolução do conflito. Tal fato traz, como já foi evidenciado, a razão
determinante de ser do Sistema Inquisitorial. Devido a esta junção de funções é
possível observar a inexistência de garantias protetoras ao acusado, tais como a
ampla defesa, o contraditório e a presunção de inocência.
Esta aglomeração de funções num único indivíduo foi uma das razões para
ocorrência reiterada das torturas e a intensidade das mesmas, haja vista a
possibilidade de se buscar a verdade a qualquer custo, não havendo, assim, limites
processuais para a obtenção de provas favoráveis à condenação. A partir dessa
gestão probatória percebe-se o poder real de controle do processo nas mãos no
julgador proveniente dessa união que havia na figura do magistrado.
Para Jacinto Coutinho o Sistema Inquisitorial tem como característica
principal a gestão das provas. O autor identifica que
a característica fundamental do sistema inquisitório, na verdade, está na gestão da prova, confiada essencialmente ao magistrado que, em geral, no modelo em análise, recolhe-a secretamente, sendo que “a vantagem (aparente) de uma tal estrutura residiria em que o juiz poderia mais fácil e amplamente informar-se sobre a verdade dos factos – de todos os fatos penalmente relevantes, mesmo que não contidos na ‘acusação’ - , dado o seu domínio único e omnipotente do processo em qualquer das suas fases.64
O Manual do Inquisidor é um livro escrito por Nicolau Eymerico no século
XIV, cuja função era determinar e identificar as práticas da Santa Inquisição com
intuito de direcionar os inquisidores ao caminho mais eficiente de “livrar o mundo dos
hereges”. É neste manual identificado qual o papel do juiz na perseguição dos
acusados e quais os procedimentos que por ele deveriam ser adotados para que se
“conquistasse” o maior número de confissões e, conseqüentemente, condenações.
64 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz. In:______. Crítica à teoria geral do direito processual penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 24
35
O juiz, nos termos do livro exposto, deveria, para obter a “verdade real” dos
fatos, fazer o papel de interrogador e através de 06 formas distintas buscar a
confissão do réu sem a necessidade dos suplícios.65 Estas formas eram identificada
por Eymerico como “artes e manhas que usarão os inquisidores para saber a
verdade pela boca dos hereges, gratiose, sem usar mão do potro66”67
Entre estas formas pode-se citar o fingimento do inquisidor em se tratar ele
mesmo de um herege para obter a confiança do acusado, ou a multiplicidade de
interrogatórios e perguntas até levar o réu à exaustão ou ameaçá-lo de mantê-lo
preso por tempo indeterminado.68
Fica assim evidenciado que o juiz “atua como parte, investiga, dirige, acusa
e julga” 69 e que no decorrer do processo “ele e os demais oficiais do tribunal
assumiam a investigação dos crimes e determinavam a culpabilidade ou não do
réu”70, o que determinava exatamente o que hoje chamamos de cerceamento de
defesa.
Outra perspectiva do cerceamento de defesa no processo inquisitório está
no segredo que envolvia o procedimento, tanto ao público quanto ao acusado.
Foucault discorre que
todo o processo criminal, até a sentença, permanecia secreto: ou seja, opaco não só para o público, mas para o próprio acusado. O processo se desenrolava sem ele, ou pelo menos sem que ele pudesse conhecer a acusação, as imputações, os depoimentos, as provas (...) era impossível ao acusado ter acesso às peças do processo, impossível conhecer a identidade dos denunciadores, impossível saber o sentido dos depoimentos antes de recusar as testemunhas, impossível fazer valer, até os últimos momentos do processo, os fatos justificativos, impossível ter um advogado, seja para verificar a regularidade do processo, seja para participar da defesa.71
Quanto à figura do advogado é também relevante identificar que o mesmo
deveria ser indicado pelo próprio inquisidor do processo e que não haveria qualquer
garantia de paridade entre os sujeitos processuais.
Eymerico discorre que
65 EYMERICO, Nicolau. Op. Cit. p. 3666 Cavalo de madeira em que se torturavam os acusados ou condenados. EYMERICO, Nicolau. Op. Cit. p. 36.67 Idem.68 Ibidem. p. 30 – 38. 69 LOPES Jr., Aury. Op. Cit. p. 16870 NASPOLINI, Samyra Haydêe. Op. Cit. p.12 71 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir - nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1991.p. 35
36
O advogado há de ser um homem justo, douto e zelador da fé. Nomeia-o o inquisidor e lhe toma juramento de defender o réu conforme a verdade e o direito, e de guardar como inviolável o quanto vir e ouvir. Será seu principal esmero exortar seu cliente a declarar a verdade e pedir perdão do seu delito se for culpado. Responderá o acusado de palavra ou por escrito, de acordo com o seu advogado e se passará a sai resposta ao fiscal do Santo Oficio. O preso não se comunicará com o advogado sem a presença do inquisidor.72
Percebe-se assim que não há qualquer chance para o acusado neste
sistema, este fica a margem do poder discricionário do juiz e das imposições da
Inquisição, visto que toda a linha “processual” é voltada para a condenação.
Fica também evidenciado que o personagem do magistrado no sistema
inquisitório trata-se da figura principal, haja vista a importância que o mesmo possui
perante o processo da Inquisição.
Ao agregar funções e ser o sujeito que dita todas as regras do jogo
processual, o juiz rege o ritmo do processo e decide de antemão a culpabilidade do
acusado, passando desta convicção para busca das provas, o que caracteriza aí o
manuseio probatório da forma que convém ao juiz.73
Outra perspectiva importante deste sujeito é a subjetividade com que o
magistrado vem a trabalhar no sistema inquisitório, já que fica à disposição do
mesmo a possibilidade de decidir da forma que achar mais conveniente sobre todos
os fatos presentes no processo.
O livre convencimento do juiz permitia desde então que houvesse um
caráter discricionário e subjetivo do juiz quanto aos seus sentimentos e “intuições”
em relação ao acusado, demonstrando-se aí mais um artifício de poder atribuído ao
magistrado neste sistema.74
Pode-se assim concluir que o sistema inquisitorial em si é uma máquina de
poder, desde a construção do inquérito, da seleção dos acusados até a
determinação do juiz sobre a culpabilidade do mesmo e da discricionariedade com
que o magistrado trabalha na gestão das provas.
Vê-se na Inquisição a identificação do fim da Idade Média e do poder
determinante que teve a Igreja neste período, entende-se nela a construção da
mentalidade repressora que está até então agregada ao Sistema penal e ao
72 EYMERICO, Nicolau. Op. Cit. p. 3673 LOPES Jr., Aury. Op. Cit. p. 16874 Idem
37
processo penal. Percebe-se o quão relevante a figura do juiz é a partir do
autoritarismo exercido por ele e quão vulnerável fica o réu quando se encontra sem
qualquer garantia, diz-se então que o papel do juiz no Sistema Inquisitório é o de
domínio completo sobre o processo e o seu procedimento.
38
2 CARACTERIZAÇÃO DA TEORIA DO GARANTISMO PENAL
Como aceitara ir
no meu destino de mar,
preferi essa estrada,
para lá chegar,
que dizem da ribeira
e à costa vai dar,
que deste mar de cinza
vai a um mar de mar.
João Cabral de Melo Neto
O processo penal e o direito penal foram conceitualmente estabelecidos a
partir de um processo histórico, construído substancialmente sobre as teorias do
sistema inquisitorial. Entretanto, com a mudança da mentalidade proveniente da
modernidade designou-se aos mesmos novas perspectivas de funcionamento e
finalidade. Foi a partir da ruptura da época Medieval com a Moderna que se passou
a estabelecer uma nova base teórica ao sistema, na qual se vigoravam (ou deveriam
vigorar) garantias igualmente distribuídas a todas as partes presentes no processo.
Para estabelecer essa teoria de garantias como fundamentação
propriamente teórica e marco estruturante para um pensamento, foi preciso produzir
uma teoria propriamente designada à finalidade de identificar quais os significados
atribuídos ao Estado de Direito como meio garantidor dos direitos fundamentais da
sociedade.
Neste sentindo, Luigi Ferrajoli constrói um entendimento doutrinário sobre a
formação de um sistema cercado de garantias e princípios, e para isto o mesmo
aborda todas as perspectivas e todos os passos para concretização deste Estado
garantidor, haja vista a necessidade complexa da existência e da efetuação prática
destas garantias como meio para o fim último que nada mais é do que a existência e
a vigência do Estado de Direito no seu estrito significado.
39
2.1 AS 03 ACEPÇÕES DE GARANTISMO PENAL
A formulação teórica produzida por Luigi Ferrajoli foi denominada de
garantismo penal e para identificá-la como uma teoria estabelecida e devidamente
fundamentada, cabe discorrer sobre as acepções do próprio autor sobre o que se
trata, propriamente, o garantismo.
Para discorrer um significado sobre a própria teoria, o autor identificou que é
impossível desvirtuar três entendimentos sobre a própria doutrina. Luigi Ferrajoli
estabelece que “da palavra ‘garantismo’ é, então, possível distinguir três significados
diversos, mas conexos entre si”75.
O primeiro significado atribuído à proposição teórica é na perspectiva da
normatividade. O autor explana que
“garantismo” designa um modelo normativo de direito: precisamente, no que diz respeito ao direito penal, o modelo de “estrita legalidade”, próprio do Estado de direito, que sob o plano epistemológico se caracteriza como um sistema cognitivo ou de poder mínimo, sob o plano político se caracteriza como uma técnica de tutela idônea a minimizar a violência e a maximizar a liberdade e, sob o plano jurídico, como um sistema de vínculos impostos à função punitiva do Estado em garantia dos direitos dos cidadãos.76
No que tange a explanação do doutrinador, fica evidente que para que haja
uma construção de leis que realmente limitem o poder punitivo e possibilitem a
efetividade das garantias e dos princípios, faz-se necessário não apenas a produção
normativa legal por meio da Constituição, mas também identifica-se uma
necessidade de se produzirem leis infraconstitucionais que possibilitem a efetivação
do exercício dos limites impostos pela Carta Magna, ou seja, pelas garantias
asseguradas pela mesma.77 Na prática isso significa que de nada adianta estarem
vários direitos garantidos na constituição se não houver um poder prático coercitivo
às forças estatais.
No sentido estabelecido pelo primeiro significado dado ao garantismo,
percebe-se que é na norma ou na aplicação desta que se pode encontrar a
dificuldade de garantir um estado de direito, porém, em caso de uma norma
75 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. Teoria do garantismo penal. 6 ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais Ltda., 2002. p. 68476 Idem77 Idem
40
constituída e efetiva, percebe-se que é através da mesma que se pode identificar a
formação de um Estado consolidado sobre garantias.
Para a construção eficaz deste Estado de direito, afirma Alexandre de Maia
que o significado dado por Ferrajoli a este sistema que garante e limita consiste num
certo paradigma, já que as garantias são estabelecidas por intermédio do Estado e
os limites são a eles estabelecidos através destas garantias. É abordado pelo prof.
Alexandre de Maia que
no aspecto jurídico, percebe-se um dado curioso: o de se criar um sistema de proteção aos direitos dos cidadãos que seria imposto ao Estado. Ou seja, o próprio Estado, que pela dogmática tradicional tem o poder pleno de criar o direito e todo o direito, sofre uma limitação garantista ao seu poder. Assim, mesmo com sua "potestade punitiva", o Estado deve respeitar um elenco sistêmico de garantias que devem por ele ser efetivados. Este é o primeiro passo para a configuração de um verdadeiro Estado Constitucional de direito.78
Em suma, para a conquista do Estado Constitucional de direito deve estar
bem identificado diante da legalidade quais atribuições são dadas a cada
organização presente na sociedade, o que só assim, possibilitaria a limitação do
poder exacerbado da máquina estatal sobre as garantias sociais.
Entretanto, não é apenas na legalidade em que se encontram as falhas ou
as virtudes deste sistema, já que a existência do garantismo penal e o seu
significado podem ser encontrados em outros níveis do direito. É a partir destas
variáveis que se designam as outras acepções próprias à teoria.79
A segunda acepção ao garantismo penal é na vertente da “teoria do direito e
crítica do direito”80. Nesta conceitualização estabelece-se que
“garantismo” designa uma teoria jurídica da “validade” e da “efetividade” como categorias distintas não só entre si, mas, também, pela “existência” ou “vigor” das normas. Neste sentido, a palavra garantismo exprime uma aproximação teórica que mantem separados o “ser” e o “dever ser” no direito; e, aliás, põe como questão teórica central, a divergência existente nos ordenamentos complexos entre modelos normativos (tendentemente garantistas) e práticas operacionais (tendentemente antigarantistas), interpretando-a com a antinomia – dentro de certos limites fisiológica e fora destes patológica – que subsiste entre validade (e não
78 MAIA, Alexandre da. O Garantismo jurídico de Luigi Ferrajoli: notas preliminares. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=17 Acesso em 01 out 201079 FERRAJOLI, Luigi. Op. Cit. p. 68480 Idem
41
efetividade) dos primeiros e efetividade (e invalidade) das segundas.81
Através desta formação conceitual do autor sobre a segunda concepção do
que se trata o garantismo, identifica-se uma questão fundamental relacionada às
normas, a validade e a efetividade.
O autor busca demonstrar que o fato de uma norma ser válida não assegura
que a mesma terá efetividade, haja vista que há a possibilidade de haver
propriamente uma validade normativa sem que exista a efetividade da mesma ou
vice-versa.82
Explana sobre o significado desta relação entre validade e efetividade de
forma eficientíssima Alexandre da Maia quando evidencia o seguinte exemplo que
aborda a possibilidade de um ato efetivo, entretanto inválido:
pode-se verificar que certas práticas adotadas por policiais não são dotadas de validade, como no caso de uma confissão obtida por meios não permitidos pelo Estado, como a tortura. Então, observando-se o sistema jurídico de modo tradicional, não-garantista, verifica-se que os graus de garantismo podem variar conforme o compasso (ou o descompasso) que vai existir entre a normatividade e a efetividade do direito.83
Quando Luigi Ferrajoli aborda a questão da validade e da efetividade tem o
mesmo como escopo definir que é através da discussão, da crítica, da reflexão
sobre as mesmas que se define um direito garantista, já que é a partir da validade
propriamente da norma que se possibilita efetivamente a garantia aos sujeitos de
direitos de todos os direitos fundamentais que existem84. Entende também o
doutrinador da teoria que o garantismo opera de forma que para se fazer legitimado
deve sempre “requerer dos juízes e dos juristas uma constante tensão crítica sobre
as leis vigentes”85.
Sobre o assunto, Luiz Flávio Gomes expõe a sua posição quanto ao Estado
democrático e garantidor no que aborda a limitação da validade da lei como
premissa de existência do mesmo, ao explanar que
O Estado constitucional e democrático de Direito não é apenas um"Estado de Direito". Como enfatiza Luigi Ferrajoli, ambos são regidos per lege e sub lege, mas com diferenças marcantes: no Estado de
81 FERRAJOLI, Luigi. Op. Cit. p. 68482 Idem83 MAIA, Alexandre da.Op. Cit.84 FERRAJOLI, Luigi. Op. Cit. p. 68485 Idem
42
Direito clássico, é a "lei" que condiciona a forma e o conteúdo do ordenamento jurídico; no Estado constitucional e democrático de Direito, é a "Constituição" que estabelece a forma e que dá os limites substanciais do ordenamento jurídico; no primeiro, toda lei vigente tem "validade" e é presumida de interesse geral; no segundo, a validade da lei vigente depende de sua coerência com a Constituição; qualquer lei, inclusive as autoritárias e abusivas, deve ser observada (dentro do positivismo clássico); as leis que violam a Constituição, para o sistema garantista atual, são inválidas e não podem ser aplicadas. A primazia da Constituição, proclama Ramon Peralta, “produz o efeito de invalidar as normas infraconstitucionais que violam os preceitos que estão na norma fundamental".86
A teoria garantista do direito penal fica evidenciada por Luigi Ferrajoli como
fundamentada tanto na realidade do direito, quanto na normatividade do mesmo.
Neste sentido o autor descreve que “referida ao funcionamento efetivo do
ordenamento, o qual se exprime nos seus níveis mais baixos, autoriza revelar-lhes
os lineamentos de validade e, sobretudo de invalidade”87. Ou seja, não basta que a
norma exerça sua função somente no campo abstrato da validade, ela deve além de
ser válida, estar possibilitada de se concretizar no plano da efetividade.
Dando continuidade às acepções da teoria do garantismo penal, o terceiro
significado aplicável à teoria é exposto pelo autor como uma acepção filosófica e
crítica do direito. Segundo esta perspectiva de abordagem da teoria o
“garantismo” designa uma filosofia política que requer do direito e do Estado o ônus da justificação externa com base nos bens e nos interesses dos quais a tutela ou a garantia constituem a finalidade. Neste último sentido, o garantismo pressupõe a doutrina laica da separação entre ponto de vista interno e ponto de vista externo na valoração do ordenamento, ou mesmo entre o “ser” e “dever ser” dodireito.88
Quando o doutrinador aborda essa vertente filosófica de justificação para a
existência do garantismo e identifica além de tudo a perspectiva externa como
justificativa para o significado do mesmo, percebe-se que é atribuído à teoria um
olhar político para o garantismo que vai além da estrita normatividade.
É possível compreender, com base neste terceiro significado dado ao
garantismo, que não se justifica a implementação do mesmo apenas para a
concretização de um universo jurídico edificado em garantias, mas também para que
86 GOMES, Luiz Flávio. Legislação penal emergencial e seus limites constitucionais. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8216 Acesso em 12 set 201087 FERRAJOLI, Luigi. Op. Cit. 68488 Ibidem p. 685
43
se estabeleça uma sociedade elaborada sobre estas bases fortificadas em princípios
e direitos fundamentais no que tange a formação política deste Estado.
Alexandre de Maia, neste sentido expõe a seguinte visão da terceira
acepção da teoria:
O terceiro entendimento ou acepção que o termo "garantismo" pode estabelecer é o de uma busca de justificativa externa dos parâmetros garantistas adotados internamente pelos Estados. Assim, Ferrajoli determina que a legitimidade dos comandos e práticas garantistas são de cunho "ético-político"; externos, portanto, ao sistema interno, propriamente jurídico no pensamento do autor (ou, como afirma em seu livro,a distinção entre o ser e dever-ser nodireito, de cunho político, em relação ao ao mundo do ser e dever-ser do direito, próprios do âmbito interno de observação). Diz Ferrajoli que tais elementos políticos são as bases fundamentais para o surgimento dos comandos jurídicos do Estado. Seriam, pois, bases metajurídicas, algo como uma "metafísica jurídica", de acordo com os dados de metafísicas estudados anteriormente.89
Isto posto, compreende-se que a relação externa trabalhada por Luigi
Ferrajoli rege a construção de um Estado Constitucional de Direito que se estrutura
nas garantias muito além da formação do judiciário, mas também na fundação de
doutrinas políticas, onde os valores do garantismo não sejam meios justificadores
deste Estado, mas sim a finalidade deste.
Neste sentindo, o citado autor explicita claramente a idéia de Estado como
meio de garantir a sua finalidade, quando aborda os sistemas políticos autopoiéticos
e heteropoiéticos. No primeiro caso, Luigi Ferrajoli define que “o Estado é um fim, e
encarna valores ético-políticos de característica supra-social e supra-individual cuja
conservação e reforço para o direito e os direitos hão de ser funcionalizados”.
Porém, o segundo significado doutrinário identifica que “Estado é um meio,
legitimado unicamente pelo fim de garantir os direitos fundamentais do cidadão, e
politicamente ilegítimo se não os garante, ou pior, se ele mesmo os viola”90.
Em suma, no terceiro significado apresentado pelo doutrinador, a
perspectiva filosófica ou externa do garantismo penal fica devidamente
fundamentada na relação do Estado como garantidor dos direitos dos cidadãos, e se
não desta forma o for, torna-se o mesmo ilegítimo.91
Identificados, então, os significados atribuídos à teoria, reflete-se que a
formação do garantismo está baseada na legalidade, na normatividade, através da 89 MAIA, Alexandre de. Op. Cit. 90 FERRAJOLI, Luigi. Op. Cit. p. 70691 Idem
44
validade e da efetividade desta, além de também ser razão justificadora para a
criação do Estado de direito estruturado sobre uma visão garantidora “externa”, a
qual vai além da conjuntura penal e atinge a própria formação política deste Estado.
Resumindo os significados expostos por ele mesmo, Luigi Ferrajoli dispõe
que
num primeiro de nossos três significados a palavra “garantismo” designa modelo de ordenamento dotado de meios de invalidação de cada exercício de poder em contraste com normas superiores postas para tutela de direitos fundamentais, e no segundo designa uma teoria jurídica que permite a crítica e a perda da legitimação desde o interior das normas vigente inválidas, no terceiro significado designa uma doutrina filosófico-política que permite a crítica e a perda da legitimação desde o exterior das instituições jurídicas positivas, baseadas na rígida separação entre direito e moral, ou entre validade e justiça, ou entre ponto de vista jurídico ou interno e ponto de vista ético-político ou externo ao ordenamento.92
Pode-se ver, então, quando se trabalha com a questão da legalidade no
garantismo, que a mesma trata-se tanto de um meio solucionador de alguns
problemas que envolvem o garantismo - quando esta exerce a função de limitadora
do Estado e estabelece garantias - como também um meio de vacilo para aplicação
das garantias - quando mesmo estabelecida tais seguranças pelas normas
constitucionais, não existam leis infraconstitucionais que não possibilitem sua
aplicação.
No seguinte significado ficou visto que a normatividade é conceituada sobre
uma relação de validade e efetividade e que a existência de uma não representa a
ocorrência da outra, e que é diante do questionamento sobre a validade, sobre a
vigência e sobre a efetividade das normas que se desenvolve um corpo jurídico mais
crítico, ponto absolutamente necessário no meio do garantismo.93
Finalizam-se os significados da teoria quando se aborda a relação externa
ou filosófica como aquela que vai além da abrangência penal. Por externa entende-
se a constituição política do Estado que se busca construir com a aplicação das
garantias e dos princípios, e que é através da formação destas novas políticas,
também garantidoras, que se fará possível efetivar a prática da teoria do garantismo
penal na sociedade atual. Percebe-se nesta acepção que as garantias assumem
92 FERRAJOLI, Luigi. Op. Cit. p. 70593 Idem
45
não apenas um meio de se alcançar o Estado de direito, mas que se tornam as
mesmas (as garantias) a sua finalidade.94
2.2 ESTADO DE DIREITO, DIREITOS FUNDAMENTAIS E GARANTISMO COMO
BASE DEMOCRÁTICA
Em conformidade à terceira acepção atribuída ao garantismo, discute-se a
relação do Estado e das suas construções doutrinárias, fundamentadas
propriamente nas garantias que o permeiam.
Neste sentindo, quando se discute o termo Estado de direito, é possível
levantar diversos entendimentos para tal expressão. Contudo, no tocante ao foco
deste trabalho, que visa explanar sobre a teoria do garantismo, define-se assim, sob
o modelo do garantismo, o Estado de direito como
não simplesmente um ‘Estado legal’ ou ‘regulado pelas leis’, mas um modelo de Estado nascido com as modernas Constituições e caracterizado: a) no plano formal, pelo princípio da legalidade, por força do que todo poder público – legislativo, judiciário e administrativo – está subordinado às leis gerais e abstratas que lhes disciplinam as formas de exercício e cuja observância é submetida a controle da legitimidade por parte dos juízes delas separados e independentes [...] b) no plano substancial da funcionalização de todos os poderes do Estado à garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, por meio da incorporação limitadora em sua Constituição dos deveres públicos correspondentes, isto é, das vedações legais de lesão aos direitos de liberdade das obrigações de satisfação dos direitos sociais.95
Para se compreender propriamente o significado deste Estado de direito,
deve-se trabalhar inicialmente a idéia de direitos fundamentais e o quão estes estão
relacionados à construção de tal Estado e à formação de sua definição. É válido
dizer que também se deve abordar a idéia de democracia como um resultado do
próprio garantismo, para só assim ser possível definir o que é substancialmente o
Estado de direito garantidor.
94 FERRAJOLI, Luigi. Op. Cit. p. 70595 Ibidem. p. 688
46
2.2.1 Garantias negativas e positivas na formação dos Estados de direito
Estado de direito nada mais é do que uma sociedade regida por leis que
auxiliam o seu desenvolvimento, estipulam controles e determinam funções aos
agentes sociais. Porém, a forma destas leis serem dispostas no ordenamento
jurídico da cada sociedade é determinante para se identificar que garantias foram
abraçadas pela mesma.
Para diferenciar as garantias que perpassam os modelos de Estado de
direito, Luigi Ferrajoli identifica duas vertentes que definem os direitos fundamentais
e conseqüentemente a doutrina política adotada pela aquela sociedade. As tradições
políticas que o autor utiliza para identificar a presença de certas garantias são
identificadas através da tradição liberal e da tradição social.96
Luigi Ferrajoli determina que o Estado de direito liberal, no que se abordam
as garantias que vigem esta sociedade
foi concebido como limitado somente a vedações legais, em garantia do indivíduo de não ser privado de bens pré-políticos da vida e da liberdade (além da propriedade). As garantias liberais ou negativas consistem unicamente nos deveres públicos negativos ou de não fazer – de deixar viver e de deixar fazer – que têm por argumento prestações negativas ou não prestações.97
O sentido que se pode traduzir ao aludido pelo autor, é que num Estado de
direito liberal o escopo das garantias é tão somente impedir que o poder estatal
interfira nas garantias consagradas como máximas no âmbito dos direitos
fundamentais, a liberdade, a vida e também a propriedade.
É devido a esta característica de apenas impedir algo que o Ferrajoli chama
estas garantias de negativas ou de vedações, pois elas nada mais são do que
limitadores de interferência dos órgãos estatais sobre os direitos fundamentais da
população.98
No sentido oposto, o autor apresenta o Estado de direito social, que além de
incorporar apenas as prestações negativas, incorpora “também obrigações, que
requerem prestações positivas para a garantia dos direitos dos direitos sociais”99. Ou
96 FERRAJOLI, Luigi. Op. Cit. p. 69097 Idem98 Idem99 FERRAJOLI, Luigi. Op. Cit. p. 691
47
seja, na tradição política social o que se consagram não são as garantias negativas,
e sim as positivas, ou também chamadas de expectativas.
As garantias típicas do Estado de direito social são denominadas de
expectativas ou garantias positivas, pois são direitos fundamentais que devem ser
prestados pelo Estado ou que são esperados pela sociedade. Deve haver, assim,
uma prestação positiva, um movimento do Estado para a que sejam efetivamente
aplicados os direitos fundamentais.
Por direito fundamental no âmbito da política social entende-se como
aqueles que há tempos vêm sendo adotados pelas Constituições mais recentes,
sendo estes os direitos “à subsistência, à alimentação, ao trabalho, à saúde, à
instrução, à habitação, à informação e similares”100.
A diferença destas formas políticas reside então no fato de que o Estado
liberal fica entendido como “um Estado limitado por normas secundárias101
negativas, isto é, por vedações legais dirigidas aos seus órgãos de poder”102,
enquanto ao Estado social ficam atribuídas “normas positivas, isto é, por comandos
igualmente dirigidos aos poderes públicos”103. Destarte, a divergência fundamental
das duas tradições está na imposição aos órgãos de poder, uma no sentido de que
se impõem apenas limites ao exercício de seus órgãos (liberal), enquanto na outra
no sentido de que devem estipular obrigações de “agir” aos mesmos.
A conseqüência prática, efetivamente, do exercício de cada forma estatal
consiste na percepção dos direitos sobre o desenvolvimento do Estado. No que
tange as tradições políticas, Luigi Ferrajoli expõe que a mudança também ocorre na
base de legitimação do Estado “enquanto o Estado de direito liberal deve somente
não piorar as condições de vida dos cidadãos, o Estado de direito social deve ainda
melhorá-las, deve não somente não ser para eles uma desvantagem, mas,
outrossim, ser uma vantagem”104.
Na perspectiva da teoria do garantismo e do seu significado de Estado
limitador, como meio para assegurar sua finalidade, é possível interpretar que a
adoção do Estado social como mais próximo a sua realidade. Faz-se tal afirmação
100 Idem101 normas de direito púbico que disciplinam a atividade do Estado. FERRAJOLI, Luigi. Op. Cit. p. 691102 Idem103 Ibidem p. 691 - 692104 FERRAJOLI, Luigi. Op. Cit. p. 692
48
com base no fato de que a tradição social além de agregar limites aos órgãos
estatais, ela também adiciona a manifestação efetiva de agir deste Estado, o que
garante ainda mais a aplicação dos direitos fundamentais.
Sobre o assunto, Ferrajoli explana que
a técnica garantista é sempre aquela da incorporação limitativa de direitos civis e correlativamente de deveres públicos nos níveis normativos superiores do ordenamento: a declaração constitucional dos direitos dos cidadãos, repitamos, equivale à declaração constitucional dos deveres do Estado.105
Assim, quanto mais garantias forem aderidas pela Constituição, mais
deveres possuirá o Estado e mais garantidor será o mesmo, tornando-se o Sistema
ainda mais vinculado aos direitos constitucionais.
2.2.2 Democracia formal e substancial
Este Estado direito até então discutido é conceituado também como “um
resultado do conjunto das garantias liberais e sociais”106. Referindo-se a este
resultado, Luigi Ferrajoli dispõe o seguinte:
O Estado de direito [...] pode ser, pois, configurado como um sistema de metaregras em relação às regras mesmas da democracia política. Precisamente, se a regra do Estado liberal de direito é que nem sobre tudo se pode decidir, nem mesmo em maioria, a regra do Estado social de direito é aquela a qual nem sobre tudo se pode não decidir, nem mesmo em maioria: sobre questões de sobrevivência e subsistência, por exemplo, o Estado não pode não decidir, mesmo se não interessarem à maioria107.
A aplicabilidade em conjunto das duas doutrinas políticas, liberal e social,
fica evidentemente possível quando se discute a democracia do estado de direito,
sendo possível afirmar que a utilização de uma não anula a da outra, já que é
possível a construção de “Estados ao menos normativamente tanto liberais como
sociais enquanto enunciam e garantem seja os direitos fundamentais a prestações
105 Idem106 Ibidem p. 693107 Idem
49
negativas que aqueles, igualmente fundamentais, a prestações positivas
também”108.
Entretanto, quando se aborda a adoção de umas destas tradições, cria-se
uma nova discussão teórica quanto à vigência das garantias - que democracia
garante maior aplicabilidade dos direitos?
A relação da constituição democrática no Estado de direito garantidor é
abordada por Luigi Ferrajoli como constituída por duas formas distintas de
democracia, a democracia formal e a democracia substancial. O autor assim as
define:
Chamarei de democracia substancial ou social o “Estado de direito” dotado de efetivas garantias, sejam liberais ou sociais; e democracia formal ou política o “Estado político representativo”, isto é, baseado no princípio da maioria como fonte de legalidade. Substancial, relativamente àquelas formais da democracia política [...]. E sociais relativamente àquelas políticas em matéria de representação, podem ser consideradas as suas funções: enquanto o Estado representativo consente que a soberania resida no povo, e que portanto o seu exercício seja legítimo, enquanto represente a vontade da maioria, o Estado de direito requer que as instituições políticas e jurídicas sejam instrumentos voltados à satisfação dos interesses primários de todos, e sejam, outrossim, legítimas enquanto concretamente tutelam e realizam tais interesses.109
No sentido da democracia substancial, a formação do Estado de direito é
regido pelos interesses da população. O autor determina que o próprio conceito de
Estado de direito equivale à democracia, propriamente dita. Tal colocação é feita no
sentido que a democracia substancial ou social “reflete, além da vontade da maioria,
os interesses e necessidades vitais de todos”110. Ou seja, esta perspectiva de
democracia social determina que a democracia em si não está fundamentada
exclusivamente na questão da decisão coletiva, mas sim, sobre o interesse da
mesma.
No que tange, contudo, a democracia formal, de acordo com o conceito
supraevidenciado, analisa-se a existência desta como aquela presente no
pensamento comum da coletividade. Entende-se majoritariamente que democracia
nada mais é do que um resultado da manifestação coletiva sobre um determinado
assunto.111
108 FERRAJOLI, Luigi. Op. Cit. p. 692109 Ibidem p. 694110 Ibidem p. 693111
50
É válido identificar que o Estado de direito democrático e garantidor é o
resultado de uma relação entre as garantias previstas na Constituição, que devem
ser utilizadas como limites ao poder estatal e como resposta às necessidades da
sociedade, e a formalidade democrática por ele adotada. Se a democracia social é a
que propriamente vigora, este Estado possui uma tendência a responder
constantemente aos anseios sociais, haja vista o caráter garantista inerente ao
mesmo.
É identificado por Luigi Ferrajoli que as garantias constitucionais dos direitos
fundamentais são também base de segurança para a existência da democracia e
que ambos estão entrelaçados em sua significância. Neste sentido o autor evidencia
que
varias vezes é desagregada a noção de democracia constitucional vinculando-as quatro classes de direito nas quais divido na categoria de direitos fundamentais. A democracia política, assegurada pela garantia dos direitos políticos; a democracia civil, assegurada pela garantia dos direitos civis, a democracia liberal, assegurada pela garantias dos direitos de liberdade; a democracia social, assegurada pela garantia dos direitos sociais. Daqui resulta uma noção quadridimensional da democracia como modelo normativo que articula quatro dimensões: as primeiras dos “formais”, por quanto são relativas à forma dos direitos-poder de autonomia política e civil; as outras dos substancias, pois são reativas a substancia da decisão ) ao “que coisa” está permitida ou não está permitido decidir), ao qual está assegurada pelos direitos substancias de liberdade e sociais. Neste sentido, o garantismo, o qual está decomposto em suas quatro dimensões – política, civil, liberal e social, segundo a classe de direitos garantidos -, é a outra cara do constitucionalismo e forma o pressuposto da democracia.112
Ainda sobre a conexão própria ao significado da democracia social e da
aplicação do garantismo, ambos como mecanismos de defesa ao interesse da
sociedade, é explicitado por Luigi Ferrajoli o que segue:
o garantismo, como técnica de limitação e disciplina dos poderes públicos, voltado a determinar o que estes não devem e o que devem decidir, pode ser bem concebido como a conotação (não formal, mas) estrutural e substancial da democracia: as garantias, sejam liberais ou sociais, exprimem de fato os direitos fundamentais dos cidadãos contra os poderes do Estado, os interesses dos fracos respectivamente aos dos fortes, a tutela das minorias marginalizadas ou dissociadas em relação às maiorias integradas, as razões do alto.113
112 FERRAJOLI, Luigi. Las Garantias constitucionales de los derechos fundamentales. In: Cadernos de Filosofia del Derecho. n. 29, 2006. p. 22 – 23. Disponível em http://www.cervantesvirtual.com/portal/doxa/cuadernos.shtml Acesso em 11 out 2010 113 FERRAJOLI, Luigi. Op. Cit. p. 693
51
Interpreta-se, então, que o conceito construído pelo autor no que tange a
idéia de democracia está associado à idéia de garantismo, visto que ambos se
constituem e se entendem por projetos de tutela dos mais fracos diante dos mais
fortes. Neste aspecto não é tão importante identificar qual tradição política está
associadas às garantias asseguradas pelo Estado, e sim se certificar de que as
mesmas estejam ali presentes.
A aplicação desta forma democrática social condiz com uma realidade de
garantias aplicáveis em todos os graus de poder, seja no legislativo, seja no
executivo, como no judiciário. Tornar-se-ia nada utópica já que os problemas seriam
solucionáveis pela finalidade deste Estado, haja vista que a aplicação destas
garantias seria o meio para a obtenção da uma efetiva resposta aos interesses do
povo. É chamado, essa idéia, de projeto de democracia social e o mesmo entende
que seria tal Estado formado “todos aqueles elementos com os quais se faz um
Estado social de direito”114, este Estado traria, então, “a expansão dos direitos dos
cidadãos e correlativamente dos deveres do Estado, ou se preferir, a maximização
da liberdade e das expectativas e a minimização dos poderes”.115
Para exemplificar a idéia de maximização das garantias e minimização dos
poderes de intervenção do Estado, Luigi Ferrajoli ainda expõe sobre a possibilidade
de se aplicar tal teoria e de que forma deveria ser a mesma implementada:
Com uma fórmula sumária podemos representar um semelhante ordenamento como Estado liberal mínimo e ao mesmo tempo como Estado social máximo: Estado (e direito) mínimo na esfera penal, graças à diminuição das restrições da liberdade aos cidadãos e à correlativa extensão das vedações legais impostas a sua atividade repressiva; Estado (e direito) máximo na esfera social, graças à maximização das expectativas materiais dos cidadãos e à correlativa expansão das obrigações públicas de satisfazê-las.116
Desta forma, faz-se possível sistematizar a aplicação da teoria do
garantismo num âmbito muito mais abrangente que somente no meio penal. A
minimização da utilização da esfera penal viria então como um resultado das
liberdades proporcionadas aos cidadãos, haja vista a interferência mínima do Estado
como órgão de poder. Neste sentido o processo penal também adotaria esse caráter
114 FERRAJOLI, Luigi. Op. Cit. p. 695115 Idem116 Idem
52
garantista, cuja finalidade seria a mesma do Estado, porém na proporção do seu
espaço; o poder judiciário.
As garantias ao processo e ao direito penal são uma conseqüência deste
Estado composto por garantias constitucionais inerentes a própria formação do
Estado, haja vista que a democracia por este adotada se trata de mais um instituto
garantidor das necessidades do povo.
2.3 O JUIZ “ATIVISTA”
Para caracterizar sobre o que se trata a teoria do Garantismo é necessário
também abordar a questão da “fidelidade do juiz à lei”117 e a função do jurista como
espectador e avaliador do direito vigente. É necessário, assim, discutir-se sobre a
possibilidade da utilização da subjetividade do juiz no momento da aplicação de uma
lei quando se trabalha com a idéia de vigência, validade ou efetividade desta norma,
assim como se deve também discutir sobre a função do jurista como alguém que
determina a valoração das leis que se fazem vigentes na sociedade.
É válido iniciar a explanação sobre assunto identificando que vigência e
validade não são palavras sinônimas e que vigência, validade e efetividade são
situações diversas no âmbito do direito. No tocante a tal situação, explana Luigi
Ferrajoli que
“direito vigente” não coincide com “direito válido”: é vigente, ainda que inválida, uma norma efetiva que não obtempera todas as normas que regulam a sua produção. Nem coincide, de outra parte, com “direito efetivo”: é vigente, ainda que não efetiva, uma norma válida não obtemperada pelas normas às quais regula a produção118
Ainda no que se abordam a vigência e a validade das normas, vale-se dizer
que Aury Lopes Jr., com base em Luigi Ferrajoli, expõe que “a vigência guarda
relação com a forma dos atos normativos; é uma questão de subsunção ou
correspondência entre seus atos produtivos e as normas que regulam sua forma”, já
no que se aborda a validade, a mesma “refere-se ao seu significado; é uma questão
117 FERRAJOLI, Luigi. Op. Cit. p. 700118 Ibidem p. 699
53
de coerência ou compatibilidade das normas produzidas com as de caráter
substancial sobre sua produção”.119
É evidenciado por Aury Lopes Jr., também no que tange a compreensão do
que se trata a vigência e a validade de uma norma e com base em Luigi Ferrajoli,
uma forma de identificar a invalidez de uma lei, consubstanciado na distinção das
seguintes dimensões:
a) regularidade ou legitimidade das normas: que se pode chamar de vigência ou existência, dizendo respeito á forma do ato normativo, e depende da conformidade ou correspondência com normas formais sobre sua produção; b) validade propriamente dita: ou, em se tratando de leis, a “constitucionalidade, que, ao contrário, tem a ver com seu significado ou conteúdo, e que depende da coerência com as normas substanciais de sua produção120
Luigi Ferrajoli determina, então, que a teoria do Garantismo, para consolidar
um Estado de direito democrático e garantidor, deve distinguir essencialmente as
normas que o regem, estando implícita a tal teoria a idéia de distinção das leis
quanto a sua validade e a sua efetividade, propriamente dita, visto que se trata de
uma função do garantismo a busca pela identificação de práticas ilegítimas por parte
dos poderes inerentes ao Estado. Isto não significa apenas caçar tais ilegitimidades
no que se refere ao poder externo, ou seja, no poder político, mas também na
própria aplicação do direito, no que se constituem estas invalidades ou não
efetividades da lei. 121
Tal perspectiva se configura na “crítica do direito positivo vigente”, onde se
procura não apenas apontar os problemas de ordem externa do Estado de direito,
mas também os seus problemas internos, ou seja, quanto à aplicação deste direito
em si. Porém, no que tange a idéia de verificar a efetividade ou validade de uma
norma, constrói-se a teoria do “juspositivismo crítico”, o qual “reflete o modo de
conceber o trabalho do juiz e do jurista, pondo em questão dois dogmas do
juspositivismo dogmático122: fidelidade do juiz à lei e a função meramente descritiva
e valorativa do jurista na observação do direito positivo vigente.”123
119 LOPES Jr, Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, 2006. p. 291120 LOPES Jr, Aury. Op. Cit. p. 290121 FERRAJOLI, Luigi. Op. Cit. p. 699122 Juspositivismo dogmático é conceituado por Luigi Ferrajoli como as orientações teóricas que ignoram o conceito de vigor das normas como categoria independente da validade e da efetividade: sejam os ordenamentos normativos, que assumem como vigentes somente às
54
No tocante ao primeiro dogma, sobre a fidelidade do magistrado à norma
vigente, deve-se levantar o questionamento quanto à obrigatoriedade do mesmo em
aplicar uma lei, pelo simples fato desta se fazer válida e em vigor. Luigi Ferrajoli
expõe que mesmo quando a lei cumpre com todos os seus requisitos de vigência é
função do juiz não aplicá-la caso entenda que existe algum traço de invalidade sobre
a mesma. O autor identifica que no caso de entender o magistrado sobre a não
validade da norma “devem não aplicá-la”124, ou seja, trata-se de um dever do juiz
não usar desta lei em possível caso de invalidez.
O entendimento de Ferrajoli fica ainda mais explícito quanto ao assunto
quando o mesmo evidencia que “já que os juízes têm o poder de interpretar as leis e
de suspender-lhes a aplicação se as consideram inválidas por contraste à
Constituição, não se pode dizer, a rigor, que tenham a obrigação jurídica de aplicá-
las.”125
Em relação ao segundo dogma, indaga-se sobre a função dos juristas no
âmbito do garantismo ao que se refere aos seus posicionamentos quanto ao juízo de
validade no tocante ao direito positivo vigente.
A partir da análise sobre o pensamento comum entre as doutrinas
positivistas que interpretam o direito como alheio à moral e aos juízos de valor
quanto a sua forma, Luigi Ferrajoli analisa que as idéias predominantes entre Bobbio
e Kelsen são construídas no sentido de serem isentas de subjetivismo, respaldando-
se na separação absoluta entre direito e moral.126 Para o pensamento juspositivista,
como explana Luigi Ferrajoli, “indubitavelmente é vedado aos juristas, em sede
científica, valorar as normas jurídicas no exterior e condicionar-lhes o juízo de
validade a valoração ético-políticas, ou ainda, de qualquer maneira,
extrajurídicas.”127
A doutrina em questão além de figurar uma separação de apreciação do
direito no sentido externo, ou seja, um olhar do âmbito político sobre o direito
vigente, veda também a análise crítica do ponto de vista interno, no tocante à própria
validação das normas vigentes.
normas válidas, sejam os ordenamentos realistas, que assumem como vigentes apenas as normas efetivas. FERRAJOLI, Luigi. Op. Cit. p. 699123 Ibidem p. 700124 FERRAJOLI, Luigi. Op. Cit. p. 700125 Idem126 Idem127 Idem
55
Contudo, a perspectiva de Ferrajoli, e do que o mesmo acredita ser próprio
do garantismo, é ao contrário da exposta pelos doutrinadores citados acima, haja
vista o seu posicionamento de que essa valoração quanto à validade da norma trata-
se efetivamente de um dever dos juristas. Expõe o referido autor que “é tarefa – não
só civil e política, mas antes científica – do jurista valorar a validade ou invalidade
das normas sob a base dos parâmetros de validade, tanto formais quanto
substanciais, ditadas pelas normas jurídicas a elas superiores”128. Em suma, sua
perspectiva é exatamente no sentido de que a análise sobre a validade e a vigência
das leis é também função dos juristas, assim como dos magistrados.
Destarte, para avaliar a visão de Ferrajoli sobre a posição do magistrado e
do jurista neste funcionamento normativo, é válido expor a seguinte explanação
sobre a possível atribuição da subjetividade no desenvolvimento legislativo:
Quanto menos um juiz é vinculado pela lei à simples denotação ou conotação dos fatos por ela previstos como crimes, tanto menos ele é vinculado à Constituição para a sua aplicação, e tanto mais ele é autorizado a censurar nelas a invalidade. Esta aporia reveste, de forma geral, toda estrutura garantista do Estado Constitucional de direito. Sabemos mesmo que a técnica garantista consiste na inclusão de valores, sob forma de limites ou deveres nos níveis mais altos do ordenamento129, donde excluí-los na forma de poderes nos níveis mais baixos130. Mas, uma vez incorporados nos níveis mais altos, os valores tornam valoráveis os juízos de validade sobre as normas de nível mais baixo, que são afetas dos órgãos judiciários de nível, por sua vez, mais baixo, respectivamente às normas que são chamados a aplicar.131
Luigi Ferrajoli identifica então em sua teoria que a isenção do magistrado
deve ser na formação de juízo de valor quanto à aplicação do direito propriamente,
porém fica mais que evidenciado pelo doutrinador que quando a Constituição possui
um complexo leque de direitos sociais, que são efetivamente subjetivos, possibilita-
se ao juiz valorar a invalidade da norma que vier a aplicar.
É neste sentido que Ferrajoli expõe que os juízos de valores devem ser
empregados nos níveis mais altos, para que nos níveis mais baixos os critérios de
avaliação fiquem somente à disposição da avaliação sobre a invalidade ou a
vigência da lei, não sendo possível neste nível moralizar a norma. Não moralizar a
norma também não significa não atribuir o seu ponto de vista sobre a questão, a
128 Ibidem p. 701129 Constituição130 Leis infraconstitucionais 131 FERRAJOLI, Luigi. Op. Cit. p. 703
56
moralização da norma é a seletividade que se faz quando da aplicação desta com
base em preconceitos e predecisões.132
Aury Lopes Jr. aborda a nova face do magistrado no campo do direito
democrático estabelecido sobre garantias constitucionais como um juiz que assume
a sua personalidade e se movimenta no processo em direção as garantias. Para o
citado autor
o juiz assume uma nova posição no Estado Democrático de Direito, e a legitimidade de sua atuação não é política, mas constitucional, consubstanciada na função de proteção dos direitos fundamentais de todos e de cada um, ainda que para isso tenha que adotar uma posição contrária à posição da maioria. Deve tutelar o indivíduo e reparar as injustiças cometidas e absolver, quando não existirem provas ilícitas e suficientes.133
Em continuação a esta abordagem, Ferrajoli analisa a função do juiz como
“ativista” na aplicação do direito e do processo penal, quando este crítica, avalia e
raciocina sobre aquilo que vai usar normativamente. A figura exposta pelo jurista é a
que segue:
Visto que o Estado de direito vincula o legislador penal à enumeração exaustiva das previsões legais, excluindo os juízos de valor dos níveis mais baixos para incorporá-los exclusivamente nos níveis mais altos, deve admitir paradoxalmente um poder de disposição do juiz, se não na qualificação dos fatos como crimes, ao menos na qualificação como inválidas das leis que consentem a qualificação dispositiva dos fatos como crimes. 134
No tocante aos juristas, a posição de Luigi Ferrajoli é na mesma
perspectiva, cuja visão é de que o direito e aplicação da norma devem ser criticados
em todos os seus níveis quanto a sua validade. O jurista tem assim como dever, da
mesma forma que o magistrado, criticar e avaliar o ordenamento, não há espaço
num Estado democrático e garantista para um jurista enquadrado nos termos do
juspositivismo conservadores, onde não era cabível qualquer construção valorativa
sobre as leis. Sobre o assunto explana Ferrajoli que
a tarefa do jurista, em uma perspectiva juspositivista de tipo crítico, não é ainda aquela de sistematizar e reelaborar as normas do ordenamento para apresentá-las com uma coerência e uma completude que efetivamente não têm, mas, ao contrário, de explicar-lhes, a incoerência e a não completude mediante juízos de invalidade
132 FERRAJOLI, Luigi. Op. Cit. p. 703133 LOPES Jr., Aury. Op. Cit. p. 293 - 294134 FERRAJOLI, Luigi. Op. Cit. p. 703
57
sobre aquelas inferiores e correlativamente de não efetividade sobre aquelas superiores.135
Desta forma, consolida-se outra característica do Garantismo, a qual trata a
relação do magistrado e do jurista com a vigência, a validade e a efetividade da
norma, na perspectiva minimizada e do direito, no âmbito máximo.
O garantismo possui, também, como premissa a presença de um juiz ativo
no que se refere ao posicionamento do mesmo quanto aos problemas normativos e
aplicação da lei.136
Deve, então, o magistrado, neste sistema, se posicionar quando entender
que existe afronta da lei infraconstitucional à Constituição ou quando há qualquer
relação de invalidade na lei em vigor, e ao jurista cabe doutrinar prevendo uma
crítica sobre a relação normativa. Assim sendo, ambos não devem ser analisados
como isentos de valores ou de construções filosóficas, na perspectiva do garantismo
a produção jurídica tem a função de assegurar a aplicação de garantias ao processo
e ao indivíduo, não só como litigante, mas também sujeito social.
135 FERRAJOLI, Luigi. Op. Cit. p. 704 136 Ibidem p. 704
58
3 O SISTEMA ACUSATÓRIO E A FIGURA DO JUIZ NO PROCESSO
PENAL
A porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil da meia verdade.
Carlos Drummond de Andrade
O Sistema Acusatório é uma vertente processual penal, cuja fundamentação
básica para a existência do mesmo na perspectiva atual do que é chamado de
sistema acusatório reside na verificação e proteção de garantias ao acusado durante
a tramitação do processo.
O Sistema Acusatório encontra-se fundamentado doutrinariamente na
mesma vertente do Garantismo Penal quando se discute a possibilidade do primeiro
também estar baseado na utilização dos direito individuais como mecanismos para
limitar o poder estatal sobre o indivíduo social.
Pode-se dizer que uma das relações que conecta a existência do sistema
acusatório ao denominado Garantismo penal está consagrada na recepção das
garantias dos indivíduos e a delimitação de poderes e da discricionariedade do
Estado, representado aqui pelo Poder Judiciário, pela Constituição Federal de 1988.
São também norteadores destes os axiomas que doutrinam tanto um processo penal
quanto um direito penal garantidores, o que pode restar caracterizado a construção
de uma nova ordem de proteção à sociedade através da inserção de restrições ao
abuso do poder jurídico.
Configura-se no Sistema Acusatório como peça fundamental de
desenvolvimento deste sistema processual a pessoa do magistrado. É através da
posição desta figura que em meio ao desenvolvimento do processo se pode
demonstrar a forma acusatória do sistema, assim como, é através também do juiz
que se pode determinar a aplicação das garantias asseguradas pelo Garantismo
penal.
59
Será traçada, ao longo deste capítulo, a vinculação do Sistema Acusatório
aos atos do magistrado como relações jurídicas que se envolvem para a formação
do Estado Democrático de Direito baseado num sistema de garantias do indivíduo
como freio ao poder da máquina Estatal.
3.1 SISTEMA ACUSATÓRIO
3.1.1 O principio acusatório na Antiguidade
O Sistema Acusatório tem suas origens na concepção jurídica grega, na
qual havia a participação do povo tanto no exercício das funções de acusador como
de julgador.137 Aury Lopes Jr. identifica que neste tempo “vigorava o sistema de
ação popular para os delitos graves (qualquer pessoa podia acusar) e acusação
privada para os delitos menos graves, em harmonia com os princípios de Direito
Civil”.138
O processo de adaptação deste Sistema resultou na formação do Direito
Romano presente na Alta República, no qual o processo penal de dividiu em duas
formas chamadas de cognitio e accusatio139.
No primeiro caso o processo de conhecimento dos acontecimentos a serem
julgados estava nas mãos do magistrado, que tinha poderes discricionários
suficientes para decidir sobre os fatos da forma que lhe conviesse e na segunda
forma, a acusação poderia ser assumida por um cidadão que teria o direito da
persecução penal.140
Durante este mesmo período republicano do Império Romano ocorreu uma
inovação processual, a qual foi denominada de delicta publica141. Na delicta publica
a “persecução e o exercício da ação penal eram encomendados a um órgão distinto
137 LOPES Jr. Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, 2006. p. 162138 Idem139 Idem140 Idem141 Idem
60
do juiz, não pertencente ao Estado, senão a um representante voluntário da
coletividade (accusator)”142.
Aury Lopes Jr. destaca as características marcantes do sistema processual
vigente durante o período conhecido como Antiguidade:
a) a atuação dos juízes era passiva, no sentido de que ele se mantinha afastado da iniciativa e gestão da prova, atividades a cargo das partes; b) as atividades de acusar e julgar estão encarregadas a pessoas distintas; c) adoção do princípio ne procedat iudex ex officio143, não se admitindo a denúncia anônima nem processo sem acusador legitimo e idôneo. d) estava apenado o delito de denunciação caluniosa, como forma de punir acusações falsas e não se podia proceder contra réu ausente (até porque as penas são [eram] corporais); e) acusação era por escrito e indicava as provas; f) havia contraditório e direito de defesa; g) o procedimento era oral; h) os julgamentos eram públicos, com os magistrados votando ao final sem deliberar.144
Esta fase processual é um marco pela qual a sociedade ocidental passou no
tocante à história do direito. A partir desta concepção jurídica do princípio acusatório
construiu-se novas bases processuais para formar, então, no interior na Inglaterra a
partir do Século XII, o Sistema Acusatório propriamente dito, através do chamado
Common Law.
3.1.2 O Acusatório na teoria do Common Law
O common law é o resultado de um processo de organização da estrutura
política que a Inglaterra teve implementada como conseqüência das disputas de
poder que ocorriam entre os barões e o reis lá presentes.145
Para fortalecer o poder nas mãos dos reis, Henrique II
organiza com eficiência a justiça e o exército. Para tanto, sofistica um sistema de controle social (...).”146 Com tal intuito a majestade
142 LOPES Jr. Aury. Op. Cit. p. 162143 Termo que representa o princípio atual da Inércia do juiz.144 ALONSO, Pedro Aragoneses. Apud LOPES Jr., Aury. Op Cit. p. 163145 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal. In:_____. Crítica á teoria geral do direito processual penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 32 146 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Op. Cit. p. 33
61
em questão criou o Tribunal real, que posteriormente foi “destacado em Secções Especializadas147.
Desta divisão formaram-se diversos Tribunais com diferentes funções,
sendo que o Tribunal do Tesouro era responsável pela apreciação das questões de
finanças e fiscais, o Tribunal das Queixas Comuns restava cuidar dos problemas
referentes à posse de terras e disputas familiares e o Tribunal do Banco do Rei que
tinha a sob sua tutela os casos em que envolviam a paz do reino.148
O procedimento ocorria da seguinte forma:
Qualquer pessoa que quisesse pedir justiça ao rei, podia endereçar-lhe um pedido; o Chanceler, um dos principais colaboradores do rei, examinava o pedido e, se o considerasse fundamentado, enviava uma ordem, chamada writ (em latim: breve, em francês: bref) a um xerife (agente local do rei) ou a um senhor para ordenar ao réu que desse satisfação ao queixoso; o facto de não dar esta satisfação era uma desobediência a uma ordem real; mas o réu podia vir explicar a um dos Tribunais reais por que razão considerava não dever obedecer à injunção recebida149
Deste sistema criou-se o que hoje é chamado de Tribunal do Júri, no qual
um grupo de cidadãos pertencentes à comunidade local perante a um juiz real
itinerante deveria denunciar aos juízes os crimes mais graves. Estes jurados
“dev(er)iam decidir segundo o que sabiam e segundo o que se dizia; não deviam
ocupa-se com as provas”150, as provas deveriam ser colidas e decididas por um
segundo júri. Com o desenvolvimento desta forma processual desconstitui-se nos
séculos XV-XVI o caráter de iniciativa probatória deste júri de provas e determinou-
se que o mesmo seria apenas responsável pela oitiva de testemunhas e pelo
julgamento daquilo que tivesse sido provado.151
A relação histórica evidenciada é permeada por a ascensão ao poder por
João Sem Terra, quem vai trazer uma das garantias mais determinantes do Sistema
Acusatório atual ao formular a Magna Charta Libertatum que determinava que
“nenhum homem livre será preso ou despojado ou colocado fora da lei ou exilado, e
não se lhe fará nenhum mal, a não ser em virtude de um julgamento legal dos seus
pares ou em virtude da lei do país”152.
147 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Op. Cit. p. 33148 Idem149 GILISSEN, John. Apud COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Idem.150 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Op. Cit. p. 34 151 Ibidem p. 35152 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Op. Cit. p. 36
62
Diz Jacinto Coutinho que
o processo penal inglês, assim, dentro do common law, nasce como um autêntico processo de partes, diverso daquele antes existente. Na essência, o contraditório é pleno; e o juiz estatal está em posição passiva, sempre longe da colheita da prova.153
O Common Law se sustentou ao longo dos tempos mais efetivamente na
justiça dos Estados Unidos e da própria Inglaterra. Ambos divergem levemente entre
si, porém, entre as características originárias da teoria do século XV permanece
mais vivamente o papel do juiz, que “no curso do julgamento em audiência” deve
“fazer com que as partes se mantenham dentro dos objetivos do processo, isto é,
que as provas estejam diretamente ligadas aos fatos disputados”154. Além desta
posição do juiz faz inerente também ao common Law da contemporaneidade a
inércia do magistrado, haja vista, que nesta forma processual as partes
duelam perante o juiz e o júri, esgrimem argumentos e apresentam provas. Um julgamento, nestes termos, pode contar com surpresas e elementos dramáticos e deve terminar, necessariamente, com a decisão.155
Destarte, faz-se necessário então evidenciar que a construção histórica do
Sistema Acusatório e o desenvolvimento de seus princípios e garantias norteadores
vigiram em diversos períodos, porém a construção doutrinária da atualidade do que
é o Sistema Acusatório em si, fomenta-se a partir das teorias Iluministas de
valorização do homem, devidamente consagradas na Revolução Francesa.
3.1.3 A modernidade e as características do Processo Acusatório
Geraldo Prado ao abordar o processo histórico do Sistema Acusatório no
período da Modernidade identifica que foram os pensadores modernistas os
responsáveis pela ruptura com o antigo sistema, cujo propósito principal era de
153 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Op. Cit. p. 36154 LOPES, José Reinaldo de Lima. Uma introdução à História social e política do processo. In: WOLKMER, Antonio Carlos. Fundamentos de História do Direito. . Belo Horizonte: Ed. Del Rey, 2003. p. 423155 Idem
63
manutenção do poder absolutista156. O Sistema Inquisitorial tinha como base a
retenção do poder nas mãos de alguns e para que se alcançassem tais fins faziam-
se legitimadas as práticas de torturas para obtenção da “verdade” e as penas
corpóreas como modo de punição.
O supracitado autor com base em Julio Maier expõe que a mudança da
mentalidade a partir do período Moderno ocorre então como conseqüência dum
movimento, no qual foram precursores os filósofos iluministas. Estes entenderam
que para houvesse a libertação do povo daquilo que era chamado de Ancien
Regime157 devia-se partir
do reconhecimento da necessidade de substituir o sistema absolutista monárquico pela república, com repercussões no campo do processo penal, por meio da abolição da tortura e da adoção de um sistema processual inspirado nos aplicados pela Roma Republicana e pela Inglaterra.158
Construíram também, tais filósofos, uma nova proposta, a qual estava
baseada na “oralidade e a publicidade no lugar da escrituração e do segredo
(predominantes no Sistema Inquisitorial) assegurando-se a defesa e a liberdade de
julgamento pelos jurados, com a proscrição do sistema de provas legais.”159
Um novo Sistema então se formou no momento pós-revolucionário francês.
Este sistema tinha o propósito da formulação de um novo processo penal
disciplinado em duas fases.
Na primeira delas, denominada instrução, procedia-se secretamente, sob o comando de um juiz, designado juiz-instrutor, tendo por objetivo pesquisar a perpetração das infrações penais, com todas as circunstâncias que influem na sua qualificação jurídica, além dos aspectos atinentes à culpabilidade dos autores, de maneira a preparar o caminho para o exercício da ação penal; na segunda fase, chamada de juízo, todas as atuações realizavam-se publicamente, perante um tribunal colegiado ou o júri, com a
156 PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório: A conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1999. p. 100157 Antigo Regime é conhecido por um longo passar de tempo no qual o poder provinha da monarquia clássica. Tal poder é vinculado ao absolutismo, cuja a forma política fica identificada através da instituição de todos os poderes nas mãos de um único soberano. Pode-se dizer que o Antigo Regime trata-se de um período vinculado ao surgimento do estado Moderno, já que o regime absolutista se encontrava conectado a um Estado unido politicamente e centralizado, o qual caracterizava a Monarquia Absolutista. RÉMOND, René. Introduction à l`histoire de notre temps: I. l`Ancient Regime et la Révolution 1750 - 1815. Paris: Editions du Seuil, 1974.158 PRADO, Geraldo. Op. Cit. p. 100 159 Idem
64
controvérsia e o debate entre as partes, no maior nível possível de igualdade.160
Ao observar tal construção do processo penal no período Moderno podemos
identificar através da análise desta estrutura processual a formação do Sistema
Acusatório presente na contemporaneidade. Pode-se assim perceber que existe
também na atualidade a elaboração de um processo dividido em duas partes, cuja
segunda consiste na relação do processo em si, cercado de princípios e garantias
voltados à defesa do acusado, direitos estes que caracterizam o que denominamos
o Sistema Processual Acusatório atual.
Luigi Ferrajoli define o Sistema Acusatório como
todo sistema processual que tem o juiz como um sujeito passivo rigidamente separado das partes e o julgamento como um debate paritário, iniciado pela acusação, à qual compete o ônus da prova, desenvolvida com a defesa mediante um contraditório público e oral e solucionado pelo juiz, com base em sua livre convicção.161
A partir do que é definido por Luigi Ferrajoli como Sistema Acusatório fica
possível evidenciar as características deste Sistema. São apontadas como
características processuais por Aury Lopes Jr. os seguintes atos presentes no
processo:
a) clara distinção entre as atividades de acusar e julgar; b) a iniciativa probatória deve ser das partes; c) mantém-se o juiz como um terceiro imparcial, alheio a labor de investigação e passivo no que se refere à coleta da prova, tanto de imputação como de descargo; d) tratamento igualitário das partes (igualdade de oportunidade no processo); e) procedimento é em regra oral (ou predominantemente); f) plena publicidade de todo o procedimento (ou de sua maior parte); g) contraditório e possibilidade de resistência (defesa), h) ausência de uma tarifa probatória, sustentando-se a sentença pelo livre convencimento motivado do órgão jurisdicional; i) instituição, atendendo a critérios de segurança jurídica (e social) da coisa julgada; j) possibilidade de impugnar as decisões e o duplo grau de jurisdição.162
Todavia, para Geraldo Prado não é tão simples apontar as características
do Sistema Acusatório. Para o mesmo “por sistema acusatório compreendem-se
160 PRADO, Geraldo. Op. Cit. p. 100 – 101161 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 452162 LOPES Jr., Aury. Op. Cit. p. 164
65
normas e princípios fundamentais, ordenadamente dispostos e orientados a partir do
principal princípio, tal seja, aquele do qual herda o nome: acusatório.”163
Na perspectiva de que o sistema acusatório é coordenado pelas garantias
de igualdade processual das partes, o referido autor discorre que mesmo que
algumas das características apontadas pelos principais doutrinadores
processualistas estejam ausentes no processo, isto não desconstrói o significado de
sistema processual acusatório, já que o que se faz realmente necessário são apenas
alguns pontos específicos.
Alguns autores abordam a possibilidade do acusado responder o processo
em liberdade164 e a necessidade da decisão fundamentada do juiz como
características formadoras do sistema acusatório. Entretanto, Geraldo Prado
entende que mesmo que estes atos processuais não se façam presentes no
decorrer do processo, o sistema não se perde, haja vista que o princípio que
determina a sua existência encontra-se presente na relação de acusação, defesa e
imparcialidade do juiz.
O citado autor explana o verdadeiro significado do que para o mesmo
consiste em Sistema Acusatório quando expõe que
A natureza verdadeiramente acusatória de um princípio processual constitucional demanda, para verificar-se, não só a existência de uma acusação (mesmo os procedimentos inquisitoriais podem conviver com uma acusação), mas tanto, e, principalmente, que esta acusação revele uma alternativa de solução de conflito de interesses penal oposta à alternativa deduzida no exercício do direito de defesa, ambas, entretanto, dispostas a conformar o juízo ou solução da causa penal. Em outras palavras, ambas, acusação e defesa, surgem como propostas excludentes de sentença.Tal conformação só admitirá a influência das atividades realizadas pela defesa, se o juiz, qualquer que seja ele, não estiver desde logo psicologicamente envolvido com uma das versões em jogo. Por isso, a real acusatoriedade depende da imparcialidade do julgador165, que não se apresenta meramente por se lhe negar, sem qualquer razão, a possibilidade de também acusar, mas, principalmente, por admitir que sua tarefa mais importante, decidir a causa, é fruto de uma consciente e meditada opção entre duas alternativas, em relação às quais manteve-se, durante todo o tempo, eqüidistante.166
163 PRADO, Geraldo. Op. Cit. p. 114164 CONSO, Giovanni Apud PRADO, Geraldo. Op Cit. p. 113165 Grifos da autora166 PRADO, Geraldo. Op. Cit. p. 116
66
Ao que se pode concluir diante do processo histórico, da conceitualização
de Sistema Acusatório e de suas respectivas características é que o
desenvolvimento de tal sistema se fez em perspectivas e momentos diferentes.
É possível, entretanto, constatar que sempre foi diretriz da existência desta
forma processual a corroboração e plenitude de ser de algumas garantias, as quais
se fazem obrigatórias para a denominação de processo acusatório.
Não basta que estejam as garantias processuais presentes, nem mesmo
que os princípios que permeiam tal processo estejam devidamente aplicados; para
que se concretize o acusatório é necessário que seja real e transparente a relação
de paridade de armas entre a defesa e a acusação e que exista uma separação
concreta entre a acusação e o juiz.167
Fica também evidenciado que, além da paridade de forças e a separação de
acusação e julgador, a construção do sistema Acusatório reside em igual
importância na imparcialidade do juiz. Compreende-se como imparcial o juiz que
“não tem por que ser um sujeito representativo, posto que nenhum interesse de
vontade que não seja a tutela dos direitos subjetivos lesados deve condicionar seu
juízo”168 e que o desempenho de “sua função (garantidor) no processo penal deva
estar acima de qualquer espécies de pressão ou manipulação política”, ou seja,
entende-se como imparcial aquele juiz que se faz independente ao processo para
que se forme o chamado livre convencimento.
O livre convencimento do juiz vai ser então uma conseqüência da aplicação
das forças paritárias no trânsito do processo e do distanciamento do mesmo do
personagem de acusador. Para que exista tal equilíbrio as oportunidades cedidas a
uma parte deverão ser igualmente cedidas à outra, que os momentos
disponibilizados sejam os mesmos para ambos e que não haja cerceamento de
direitos de quaisquer formas ao longo do trâmite processual, haja vista a busca pela
formação da convicção do juízo numa realidade de igualdade.
Assim, percebe-se que as demais características apresentadas pelos
diversos doutrinadores são conseqüências ou meios para que a linha condutora do
processo penal construa o convencimento do juiz imparcial diante da relação de
igualdade entre as partes, visto que serão as demais garantias objetos acessórios
para a construção de um processo mais justo e equilibrado, desde que se constitua
167 LOPES Jr., Aury. Op. Cit. p. 77168 Idem
67
a partir do início da relação processual a separação do órgão acusador do órgão
julgador.169
3.2 A FIGURA DO JUIZ GARANTE
A construção do Sistema Acusatório está fundamentada principalmente na
separação total dos poderes presentes no processo judiciário, evidenciado pelo
poder de acusar, de defender e de julgar.
O traço mais marcante desta forma processual consiste assim em identificar
que a acusação não parte em nenhum momento da pessoa do julgador, devendo
este ser apenas um espectador do litígio e garantir que a sua decisão será baseada
e devidamente fundamentada no que foi exposto pelas partes ao longo do trâmite
processual.
Portanto, entende-se que para se faça concreta a eficácia e a própria
existência do Sistema Acusatório, deve haver o que é chamado de Juiz de garantias,
ou Juiz garante, o qual configura um juiz inerte, espectador e interessado na
aplicação das garantias processuais como meio para alcançar o fim chamado
sentença – devidamente fundamentada através do livre convencimento.170
O Juiz do Processo Acusatório e do Garantismo Penal é chamado de Juiz
de Garantias ou Juiz Garante171 pelo simples fato de que o mesmo busca as
garantias processuais como base do desenvolvimento do processo em si, haja vista 169 LOPES Jr., Aury. Op. Cit. p. 77170 Idem171 No tocante ao juiz de garantias é necessário diferenciá-lo do juiz instrutor, ou juiz de instrução. O segundo trata-se uma figura adotada por alguns sistemas jurídicos europeus, no qual o juiz exerce a função de instruir as provas de ofício. Aury Lopes Jr. identifica que “nesse sistema a prova não é apenas produzida na presença do juiz instrutor, senão é colhida e produzida por ele mesmo. Nessa atividade poderá atuar de ofício, isto é, independente de qualquer solicitação do MP, ou do acusador privado.” Ou seja, este juiz está legalmente legitimado para intervir na gestão probatória. Já o juiz de garantias trata-se do juiz DA instrução e não DE instrução, o qual “não realiza tarefa investigatórias ou instrutoras, senão de garantia, como um verdadeiro garante, atuando no controle da adoção e realização das medidas restritivas de direitos fundamentais do sujeito passivo.” É válido explanar que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), já na década de 80, se manifestou pela irregularidade da existência do juiz-instrutor, haja vista a violação ao direito ao juiz imparcial, consagrado no Convênio para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades. LOPES Jr., Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris 2005. p. 71 – 72, p. 244 e p. 76.
68
a necessidade da aplicação destas garantias para que se seja o litígio considerado
paritário e “justo”.
Este juiz é evidenciado por Aury Lopes Jr. como o juiz que
Assume uma nova posição no Estado Democrático de Direito e a legitimidade de sua atuação não é política, mas constitucional, consubstanciada na função da proteção dos direitos fundamentais de todos e de cada um, ainda que para isso tenha que adotar uma posição contrária à opinião da maioria. Deve tutelar o indivíduo e reparar as injustiças cometidas e absolver quando não existirem provas plenas e legais.172
Destarte, vê-se que o juiz de garantias é uma resposta ao Sistema
acusatório e ao garantismo penal, que funciona como uma força protetora aos
direitos inerentes ao indivíduo. Em suma, a presença desta figura representa a
aplicação da justiça como meio efetivo das garantias, finalidade do Estado
Democrático de Direito.
Luigi Ferrajoli questiona quem deve ser o juiz, quem é este sujeito
legitimado e capacitado para julgar os conflitos penais nas condições do Sistema
Garantista e Acusatório173. A resposta pelo citado autor vem através da exposição
de várias características que esse magistrado deve possuir e a primeira elencada
trata-se do “juiz espectador”. Esse juiz espectador nada mais é que um funcionário
“dedicado acima de tudo à valoração objetiva e imparcial dos fatos, e, portanto, mais
prudente que sapiente”.174
O juiz de garantias é um personagem do que Luigi Ferrajoli chama de
“forma triagonal da relação processual”175. Nesta forma triagonal distinguem-se
claramente quem é quem no jogo do processo, ou seja, quem é o agente julgador,
ou o órgão acusador, ou o personagem responsável pela defesa. 176
É, neste jogo, estipulado linhas, das quais o outro sujeito não pode
atravessar; cada qual tem uma função e uma posição a cumprir. Nos ditames deste
jogo processual fica evidenciada a impossibilidade de qualquer iniciativa probatória
do juiz, ou de qualquer cessão de provas construídas pela defesa que acarretem no
seu próprio prejuízo. Em suma, neste sistema fica designado o papel de cada parte
172 LOPES Jr., Aury., Sistemas de investigação preliminar no processo penal. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris 2005. p. 163173 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do garantismo penal. 6 ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais Ltda., 2002. p. 460174 Ibidem p. 461 175 Ibidem p. 465176 Idem
69
do processo e obedece-se o estabelecido como forma de proteção pelas garantias
que constroem a relação processual. Delimita-se e garante-se, assim, a separação
da acusação do agente julgador.
Luigi Ferrajoli afirma que a “garantia da separação representa, de um lado,
uma condição essencial do distanciamento do juiz em relação às partes em
causa”177.
Um exemplo próximo a realidade do que se trata esta figura do Juiz de
Garantias é o magistrado apresentado no anteprojeto do Código de Processo Penal.
No anteprojeto fica estabelecido entre os artigos 15 e 18, que haverá
efetivamente um juiz de garantias, cuja função será agir sobre as investigações e
sobre as prisões pré-processuais. Fica definido também, que se este magistrado
envolvido na fase de Inquérito decidir sobre as seguintes questões:
I – receber a comunicação imediata da prisão, nos termos do inciso LXII do art. 5o da Constituição da República; II – receber o auto da prisão em flagrante, para efeito do disposto no art. 543; III – zelar pela observância dos direitos do preso, podendo determinar que este seja conduzido a sua presença; IV – ser informado da abertura de qualquer inquérito policial; V – decidir sobre o pedido de prisão provisória ou outra medida cautelar; VI – prorrogar a prisão provisória ou outra medida cautelar, bem como substituí-las ou revogá-las; VII – decidir sobre o pedido de produção antecipada de provas consideradas urgentes e não repetíveis, assegurados o contraditório e a ampla defesa; VIII – prorrogar o prazo de duração do inquérito, estando o investigado preso, em atenção às razões apresentadas pela autoridade policial e observado o disposto no parágrafo único deste artigo; IX – determinar o trancamento do inquérito policial quando não houver fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento;X – requisitar documentos, laudos e informações da autoridade policial sobre o andamento da investigação; XII – decidir sobre os pedidos de:a) interceptação telefônica ou do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática; b) quebra dos sigilos fiscal, bancário e telefônico; c) busca e apreensão domiciliar; d) outros meios de obtenção da prova que restrinjam direitos fundamentais do investigado. XIII – julgar o habeas corpus impetrado antes do oferecimento da denúncia; XIV – outras matérias inerentes às atribuições definidas no caput deste artigo. 178
Assim, o magistrado que funcionar nos referidos casos ficará impedido de
funcionar no processo, explicitando assim, a necessidade do distanciamento do
magistrado da fase inquisitória processual e a obrigatoriedade da imparcialidade
proveniente deste distanciamento.
177 FERRAJOLI, Luigi. Op. Cit. p. 455178 Anteprojeto do Código de Processo Penal – PL 156/2009, do Senado Federal.
70
Pode-se perceber que a intervenção do magistrado ocorre como medida
excepcional, sendo necessária apenas quando houver necessidade de decidir sobre
restrição de direitos fundamentais do investigado e que tal atividade pré-processual
do juiz de garantias ocorre como resposta à invocação do MP, assim
o juiz de garante ou de garantias não investiga e tampouco julga no processo, até porque a prevenção deve excluir a competência por claríssimo comprometimento da imparcialidade. Ao livrar-se da função de investigar (alheia a sua natureza), o juiz garante da instrução concreta a sua superioridade como órgão suprapartes, fortalecendo no plano funcional e institucional a própria figura do julgador.179
Essa nova construção processual vem como uma resposta
infraconstitucional para aquilo que já está desde 1988 estabelecido na Constituição
Federal, que é a vigência de um Sistema Acusatório. Essa medida de separar o juiz
da fase pré-processual daquele que funcionará como magistrado no processo em si,
rompe com a idéia de juiz prevento180, evitando assim, a contaminação do
magistrado quanto às provas colhidas antes do processo. 181
Aury Lopes Jr identifica que o desenvolvimento do processo penal com a
participação do juiz de garantias ocorrerá da forma que aqui se expõe:
será esse juiz garante de garantias quem, na fase intermediária e necessariamente contraditória, fará o juízo de pré-admissibilidade da acusação. Uma vez admitida, dará início ao processo penal. Nesse caso, após ser recebida, a acusação será distribuída ao juiz criminal competente para presidir o processo e ao final julgar. Destacamos que a atual posição do juiz frente ao inquérito policial é similar ao modelo garantista aqui propugnado (pois não atua de ofício, não investiga nem dirige a investigação e basicamente está para decidir sobre as medidas restritivas de direitos fundamentais), mas com uma fundamental distinção: o juiz que de qualquer modo intervém na investigação preliminar não poderá atuar (instruir e julgar) na fase processual, ao contrário do modelo em vigor.182
Além do exposto, é também evidenciada como motivação para a adesão
desta separação dos juízes, a imparcialidade do magistrado no momento de decidir
sobre a validade das provas produzidas na fase do Inquérito. Ou seja, não será o 179 LOPES Jr., Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris 2005. p. 270180 Art. 83 (CPP) - Verificar-se-á a competência por prevenção toda vez que, concorrendo dois ou mais juízes igualmente competentes ou com jurisdição cumulativa, um deles tiver antecedido aos outros na prática de algum ato do processo ou de medida a este relativa, ainda que anterior ao oferecimento da denúncia ou da queixa (arts. 70, § 3º, 71, 72, § 2º, e 78, II, c)181 LOPES Jr., Aury. Op. Cit. p. 270182 Ibidem. p. 271
71
juiz que designa a coleta de provas que decidirá se estas foram legalmente
produzidas, o que garante às partes do processo maiores garantias sobre as provas
presentes nos autos.
A figura do juiz garante, além da exemplificada como futuro personagem
presente no âmbito do processo penal brasileiro, já se faz estabelecida no processo
penal paraguaio. O juiz de garantias no referido sistema deve reger os atos da etapa
preparatória do processo, a qual tem por objeto
comprovar, mediante as diligências condizentes com o descobrimento da verdade, a existência da infração, individualizar os autores e os participantes, coletar os elementos probatórios que permitam fundamentar, em seu caso, a acusação ou os querelantes, assim como a defesa do imputado, e verificar as condições pessoais, antecedentes e estado psíquico dos acusado183.
Christian Duarte ao abordar o juiz de garantias no Paraguai identifica que o
que se espera do mesmo na fase preparatória do processo é que
juiz de garantias não interfira diretamente durante a investigação dos atos criminosos, a qual se encontra a cargo do Ministério Público, com auxílio da Polícia Nacional e da Polícia Judicial, senão que se limite ao controle da forma de obtenção das evidências que serão utilizadas no dia do juízo oral e público, a determinação das medidas cautelares contra a pessoa do imputado ou seus bens, a determinação sobre a existência de mérito para ditar ou não o Auto de Abertura da Ação Penal, ou pelo contrário deve denegar tal ordem e aplicar uma saída alternativa concluindo o procedimento, respeitando as garantias do imputado y assegurando as provas que o mesmo produzirá em juízo.184
Fica evidente, de acordo com o que já foi exposto sobre o funcionamento do
juiz de garantias no processo penal brasileiro, que a idéia estrutural do PL 156/2009
é a mesma que se aplica ao processo penal paraguaio. A teoria sobre o juiz de
garantias em ambos os sistemas é de afastamento do magistrado que decide na
fase inquisitorial que antecede ao processo, para evitar qualquer contaminação do
juiz que vier a julgar a causa.
183 Art. 279, 1ª parte, Código de Processo Penal do Paraguai – DUARTE, Christian Bernal. Reforma del processo penal en Paraguay y El juez penal de Garantías y sus funciones. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. (ORG). O novo processo penal à luz da Constituição (Análise Crítica do Projeto de Lei n. 156/2009, do Senado Federal). Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, 2010. p. 141 184 Ibidem p. 143
72
O “juiz garante”, mesmo na forma processual já em efetiva aplicação no
processo penal paraguaio, assim como na forma apresentada pelo Projeto de Lei do
novo CPP brasileiro, deverá, além de ser um espectador distante do papel de
acusação, ter consciência do quão importante se faz a sua imparcialidade ao longo
do processo e deverá também saber distinguir a imparcialidade da neutralidade.
Deverá o mesmo ser eqüidistante, independente e natural.185
3.2.1 A diferença da neutralidade e da imparcialidade na figura do magistrado
A discussão que cerceia a figura do juiz no processo traz um eco histórico e
doutrinário no tocante à neutralidade do sujeito julgador no que tange a causa que
este julga. Entretanto, novas perspectivas do magistrado traçam um novo perfil ao
mesmo, questionando a validade do termo neutralidade e discutindo o significado da
imparcialidade do magistrado no processo.
Jacinto Coutinho expõe que a afirmação da existência da imparcialidade e
da neutralidade no processo por parte do juiz deve ser questionada sobre as suas
reais funções e aplicabilidade.
O autor afirma que criação destes dois princípios processuais norteadores
do juiz são derivados de um processo histórico, cuja base provém da cientificidade
que se atribuiu às ciências e ao judiciário ao longo da Idade Moderna.186
É possível perceber as acepções do autor Jacinto Coutinho, no que tange o
processo histórico pelo qual perpassa a sociedade no tocante à construção do
conceito de neutralidade, quando o mesmo expõe o seguinte trecho:
A busca desta neutralidade do sujeito tinha alguns motivos determinantes: 1º, a crença em um razão que tivesse validade universal, servindo de paradigma para todos (crença esta que, de certa forma, seguiu todo pensamento da história moderna no Ocidente [...]) 2º, a necessidade de legitimar o discurso do Estado moderno nascente, que vinha falar em nome de toda a nação, uma vez que os sujeitos da história passaram a ser “iguais” e não era mais possível sustentar privilégios do clero e da nobreza: o Estado agora é de todos e, finalmente; 3º, a urgência que os interesses do Estado, ao contrário
185 LOPES Jr., Aury., Sistemas de investigação preliminar no processo penal. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris 2005. p. 464186 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal. In:___. p. 42
73
do que se acreditava, eram de classes; e não do povo como um todo.187
A crítica à neutralidade ocorre com o questionamento da realidade desta, já
que se percebe que o entendimento sobre algo neutro se daria sobre a existência de
algo/alguém que não se deixa contaminar por qualquer causa externa. O citado
autor, Jacinto Coutinho, identifica que a neutralidade se faz insustentável, haja vista
a existência do que ele denomina de dialética participativa.
Esta dialética participativa significa que somos todos frutos de um processo
histórico que nos atinge diariamente e sobre o qual também refletimos. Significa
dizer que somos recíprocos na absorção e transmissão de conhecimento, o que
impede categoricamente de nos afastarmos completamente de tudo aquilo que
somos e conhecemos, tornando assim impossível a existência de pessoas neutras.
Diz o autor com base em Marques Neto que
todo conhecimento é histórico e dialético. Histórico porque é sempre fruto de determinado momento de uma certa sociedade. Dialético porque, além de ser reflexo das condições materiais de seu tempo, atua sobre esta materialidade, alterando-a. Em outras palavras todo saber é condicionado e condicionante.188
Faz-se, então, necessário que se rompa com a perspectiva e exigência de
um juiz neutro, visto que o mesmo sempre carregará a sua construção cognoscitiva
em tudo aquilo que tiver que julgar; e os seus valores e suas ideologias continuarão
presentes em cada decisão que tiver que tomar.
Alexandre Morais da Rosa ao discutir a figura deste juiz neutro faz uma
analogia à obra cinematográfica do “Show da vida” (The Truman Show), cuja história
baseia-se na artificialidade e na manipulação da vida do protagonista que vive num
programa de televisão.189
Para o autor os juízes que se dizem neutro vivem também numa realidade
paralela, apenas deles, e que a
difusão, pois, da neutralidade axiológica do julgador não passa de embuste, mito, capaz de funcionar como aplacador de dimensão política do jurídico, deixando o julgador alienado tal qual o “Show da Vida” (The Truman Show), na qual sua existência era artificial, um programa de TC, em que vivia num cenário perfeito e falso. Sua
187 Ibidem. p. 42 – 43.188 MARQUES NETO, A.R. Apud COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Op. Cit. p. 45189 ROSA, Alexandre Morais da. Decisão Penal: a Bricolage de Significantes. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006. p. 299
74
família, sua casa, seus sentimentos, sua situaçã no mundo, nada era, enfim, verdadeiro. O juiz neutro encontra-se neste cenário de plena felicidade por acreditar que está levando sua própria vida, talvez precisando de uma voz, como se deu no filme, para avisar aos incautos, que no cenário onde se desenrola a ação não é falso, mas, sublinhe-se totalmente controlado.190
Em contraposição aos termos da neutralidade discute-se a necessidade do
juiz imparcial.
O magistrado tem como axioma estrutural vinculado à profissão e ao
princípio do juiz natural a sujeição somente à lei. Esta sujeição será a questão
determinante para a construção da imparcialidade do magistrado, visto que será
somente através do que é regido em lei que poderá o juiz atingir o seu objetivo, o
qual se trata da “perseguição da verdade e a tutela dos direitos fundamentais”191.
Este juiz imparcial
não deve ter qualquer interesse, nem geral nem particular, em uma ou outra solução da controvérsia que é chamado a resolver, sendo sua função decidir qual delas é verdadeira e qual é falsa. Ao mesmo tempo ele não deve ser um sujeito representativo, não devendo nenhum interesse ou desejo [...] condicionar seu julgamento, que está unicamente em tutela dos direitos subjetivos lesados.192
Destarte, no que tange a imparcialidade, cabe expor que Luigi Ferrajoli a
subdivide em 03 “perfis” para melhor explicar o seu significado. Ele a divide em
eqüidistância, naturalidade e independência.193
Por eqüidistância o autor entende “o afastamento do juiz dos interesses das
partes em causa”, por independência “a sua exterioridade ao sistema político e em
geral a todo sistema de poderes” e quanto à naturalidade, entende como “a
determinação de sua designação e determinação de suas competências para
escolhas sucessivas à comissão do fato submetido ao seu juízo”194.
Novamente esses perfis são separados em garantias orgânicas que definem
ainda mais a abrangência da imparcialidade do magistrado. Estas separações
consistem no seguinte esquema:
A imparcialidade requer a separação institucional do juiz da acusação pública, a independência requer sua separação institucional dos outros poderes do Estado e por outro lado a difusão
190 ROSA, Alexandre Morais da. Op. Cit. p. 299191 FERRAJOLI, Luigi. Op. Cit. p. 464 192 Idem193 Idem.194 Idem
75
da função judiciária entre sujeitos não dependentes um do outro; a naturalidade requer exclusivamente a sua separação de autoridades comissionadas ou delegadas de qualquer tipo e a predeterminação exclusivamente legal das suas competências.195
A exposição de conceitos devidamente delimitados em separações por Luigi
Ferrajoli tem por objetivo definir até onde consiste o termo imparcialidade. Fica
evidente que o que determina ser ou não o juiz imparcial, de acordo com o exposto
pelo citado jurista, é a relação do magistrado com o poder exercido pelo Judiciário e
demais órgãos estatais, assim como, pela relação íntima que possa haver entre o
mesmo e as partes do processo, sendo esta relação qualquer sintoma de interesse
ou afinidade com quaisquer das partes.
A partir desta conceitualização é que se distingue o conceito de neutralidade
e de imparcialidade. A neutralidade é atribuída ao juiz como uma forma de
“higienizá-lo” de contaminações de caráter valorativo, tais como ideologias próprias.
Entretanto, ao observar no que consiste a imparcialidade percebe-se que nesta não
se descaracteriza a formação ideológica do juiz da causa, e sim o que se pretende
descaracterizar é a intervenção efetiva de poderes externos e influências pessoais.
A formação ideológica de cada pessoa não pode ser extirpada pelo simples
fato desta sentar-se vestindo uma a toga e chamar-se juiz, até porque será esta
ideologia utilizada para fundamentar a decisão no que tange os valores dado ao
caso concreto da causa.
O que se objetiva, então, é evidenciar a imparcialidade do juiz
contemporâneo no Estado Democrático de Direito, o qual deverá ser estruturado
sobre as garantias fundamentais e sobre o Sistema Acusatório; e não fortalecido
sobre a proposta infundada de uma neutralidade, construída exclusivamente para
forjar uma cientificidade e, conseqüente, autoridade das decisões proferidas pelos
magistrados.
195 FERRAJOLI, Luigi. Op. Cit. p. 464 - 465
76
3.2.2 O Princípio do Juiz Natural
Além do questionamento exposto por Luigi Ferrajoli sobre quem deve ser o
Juiz no Processo Penal contemporâneo, abre-se também a discussão de qual deve
ser a sua função196. Para iniciar sua argumentação sobre qual o papel do juiz ou a
serviço de quem o mesmo se encontra, Aury Lopes Jr. levanta o triplo significado do
princípio do Juiz Natural, expondo que
a) somente os órgãos instituídos pela Constituição podem exercer jurisdição; b) ninguém poderá ser processado e julgado por órgão instituído após o fato; c) há uma ordem taxativa de competência entre os juízes pré-constituídos, excluindo-se qualquer alternativa deferida à discricionariedade de quem quer que seja.197
Trata-se assim o princípio do Juiz Natural, evidentemente, de uma garantia
ao acusado, que delimita e determina o órgão julgador diante do fato ilícito cometido,
possibilitando ao acusado, desde logo, saber quem será competente pelo seu
julgamento, qual o juiz que irá julgá-lo ou o Tribunal irá fazê-lo198. Como Aury Lopes
Jr. aborda, a existência de tal princípio assegura, antes de mais nada, que fique o
juízo determinado desde a conduta típica e não a partir do recebimento da
denúncia.199
Luigi Ferrajoli identifica que os critérios para o direcionamento de
competência do delito devem ser rigidamente e legalmente determinados para que
não haja qualquer possibilidade de se dispor de tais critérios, visto que esta
disponibilidade poderia acarretar em perseguições por parte de sujeitos processuais.
Expõe o supracitado autor nesta vertente quando diz que
o princípio do juiz natural impõe que seja a lei o que pré-constitua tais critérios de forma rígida e vinculante, de forma que seja excluída qualquer escolha post factum do juiz ou do colegiado a que as causas são confiadas; e exige além disto que tal pré-constituição se refira também aos órgãos do Ministério Público, de forma que nem mesmo as funções de acusação sejam manobradas ou de qualquer modo condicionadas por órgãos estranhos ao processo.200
196 LOPES Jr., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, 2009. Volume I. p. 110197 Idem198 Ibidem p. 111199 Ibidem p. 112200 FERRAJOLI, Luigi. Op. Cit. p. 473
77
Então, como forma de se pré-determinar quem será competente para o
julgamento de cada causa, Luigi Ferrajoli aborda dois “critérios substanciais”, o
intrínseco, que determina a competência de acordo com a matéria e o extrínseco,
que determina tal competência de acordo com o território201.
O princípio do juiz natural e a regulamentação de um juiz imparcial
fomentam como bases sólidas para construção do denominado “juiz de garantias”,
cuja função, nada mais é, do que “atuar como garantidor da eficácia do sistema de
direitos e garantias fundamentais do acusado no processo penal”202.
Este “juiz garante” é a figura contemporânea que objetiva resguardar o
processo penal nos termos das garantias fundamentais; é ele o magistrado que se
propõe afastar das forças externas do poder político, legislativo e do próprio
judiciário para assegurar o devido processo legal e seguir a ordem deste processo
como espectador de uma relação de forças equiparadas num Sistema processual
que garanta a ordem democrática do Direito do Estado constituído. Em suma, é o
juiz de garantias o sujeito que possibilita determinar a ordem do órgão judiciário
como poder de Justiça.
3.3 DA ILEGITIMIDADE DA INTERVENÇÃO DO JUIZ NA INSTRUÇÃO
PROCESSUAL
A Constituição Federal do Brasil não prevê explicitamente qual é o sistema
processual por ela adotada, entretanto, é disposto ao longo do seu texto garantias
que identificam a vigência de um processo acusatório.
Os artigos e incisos constitucionais que mais caracterizam o Sistema
Acusatório podem ser exemplificados como os expostos no art. 129, inciso I da
citada Constituição, haja vista o caráter obrigatório de propositura de Ações Penais
no caso das públicas e das públicas condicionadas pelo órgão ministerial, no art. 5º,
LIX, que garante o direito do contraditório e da ampla defesa203 e também no art. 5º,
201 FERRAJOLI, Luigi. Op. Cit. p. 474202 LOPES Jr., Aury. Op. Cit. p. 113203 BARRETO, Jovenita de Lima. O Sistema Acusatório e os seus resquícios inquisitoriais. Disponível em http://www.artigos.com/artigos/sociais/direito/o--sistema--acusatorio--e---seus---requicios---inquisitoriais.-1652/artigo/ Acesso em 23 set 2010.
78
contudo, no inciso LVII, que dispõe sobre o princípio da presunção de inocência.
Com essas garantias arroladas na Carta Magna prevê-se que as demais
características deste sistema sejam também adotadas subsidiariamente pela ordem
constitucional brasileira.
Ao formalizar a separação concreta dos poderes de acusação, defesa e
julgamento, a Constituição assegura também a independência das partes no
processo, o que indubitavelmente identifica o Sistema Acusatório na ordem
processual do Brasil. Tal separação se dá primordialmente através do identificado
pela Carta Magna no seu art. 129, I confere privativamente ao Ministério Público o
exercício da Ação Penal.204
Reflete-se, então, que se à ordem jurídica processual penal brasileira está
atribuída à forma acusatória, deve-se concluir que as demais garantias deste
sistema também estarão assim asseguradas. Questiona-se, assim, a partir destas
garantias acusatórias asseguradas pela legislação brasileira, se o juiz brasileiro é
aquele construído sobre as teorias do garantismo penal e do sistema acusatorial.
O juiz do Sistema Acusatório, como demonstrado no item anterior, deve ser
um magistrado espectador, cuja função é de garantidor do processo penal. Deve o
mesmo, nos termos do processo acusatório, sempre se fazer inerte à produção
probatória e concluir o processo com uma sentença devidamente fundamentada
com base no seu julgamento sobre o resultado da disputa infligida entre as parte.205
Porém, o Código de Processo Penal brasileiro dispõe no seu art. 156, que o
juiz de ofício pode requer produção de provas nos casos em que considerar que tal
produção probatória consiste em questão de urgência ou relevância (inciso I) ou
quando achar imprescindível, para sanar qualquer dúvida processual, que sejam
requeridas diligências para tal fim (inciso II).
Esta iniciativa probatória do magistrado rompe totalmente com o que é
proposto pela teoria do Direito abalizada nas garantias fundamentais e nos
princípios constitucionais. Este dispositivo do Código de Processo Penal expõe a
fragilidade da posição do magistrado como espectador, já que ao requer provas ou
diligências a autoridade julgadora se figura como parte da relação litigante, e deixa
204 Constituição Federal - Art. 129 - São funções institucionais do Ministério Público:I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei205 LOPES Jr., Aury. Op. Cit. p. 113
79
de ocupar o seu devido papel de sujeito externo a relação probatória (e ao próprio
processo).
Aury Lopes Jr. trata sobre o assunto expondo que
O art. 156 do CPP funda um sistema inquisitório, pois representa uma quebra da igualdade, do contraditório, da própria estrutura dialética do processo. Como decorrência, fulminam a principal garantia da jurisdição, que é a imparcialidade do julgador. Está desenhado um processo inquisitório.206
O jurista acima citado continua a falar sobre o assunto, afirmando que o
inciso I do art. 156 consagra um
juiz-instrutor-inquisidor com poderes para, na fase de investigação preliminar, colher de ofício a prova que bem entender, para depois, no processo, decidir a partir de seus próprios atos. Decide primeiro a partir da prova que ele constrói e, depois, no golpe de cena que se transforma o processo, formaliza sua decisão.207
Sobre esta abordagem, Marcelo Lessa Bastos se posiciona quanto ao inciso
I do art. 156 do CPP, buscando uma nova perspectiva sobre o assunto. O autor
dispõe que se se entender o artigo em conjunto com a produção de ofício de provas
por parte do magistrado como expõe o caput, o dispositivo se torna análogo aos
inquisitivos, entretanto, se houver uma interpretação constitucional, e houver
requerimento das partes quanto a tal produção, o mesmo não o entende como um
problema ao sistema acusatório. Assim explana na seguinte forma:
Código de Processo Penal, no ponto em que ressalva as provas antecipadas, que são essas que o Juiz pode determinar antes de iniciada a ação penal (art. 156, I, do Código de Processo Penal),mas não de ofício, como parece pretender o caput, o que contrariaria, aí sim, o princípio da inércia, inerente ao sistema acusatório, com o quê mostrar-se-ia incompatível, eis que ainda não iniciada a ação por quem de direito, não cabendo ao Juiz partir em busca da prova antes de ser exercido o direito de ação, posto que, se assim o fizesse, estaria investigando, adotando comportamento tipicamente inquisitivo (nos velhos moldes dos arcaicos Juizados de Instrução), o que lhe é vedado constitucionalmente. Sugere-se, pois, uma interpretação conforme a Constituição, de modo a, na hipótese do inciso I, não permitir que o Juiz aja de ofício, só podendo determinar a produção de prova antecipada se isto for requerido pela parte interessada.208
206 LOPES Jr., Aury. Op. Cit. p. 124207 Idem208 BASTOS, Marcelo Lessa. Processo penal e gestão da prova. Os novos arts. 155 e 156 do Código reformado (Lei nº 11.690/08). p. 8 – 9. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11593 Acesso em 01 out 2010.
80
Marcelo Lessa Bastos traz uma perspectiva quanto ao juiz no sistema
acusatório diverso do até então abordado. O autor com base no que aborda Ada
Pellegrini Grinover defende a teoria de que o juiz neste sistema não precisa ser
somente inerte, mas que o acusatório possibilita também a presença de um juiz
participativo “que conduza e instrua, ainda que subsidiariamente, os processos que
vai decidir, observados, apenas, os limites fáticos impostos pelas partes (naha me
factum, dabo tibi jus)”209. Fica, então, evidente seu posicionamento quando expõe
que
o sistema acusatório não pressupõe, necessariamente, as partes como adversárias, livres para competirem segundo suas exclusivas expensas, ficando o Juiz numa posição de árbitro, passivo, à deriva da condução que as partes resolverem dar aos rumos da demanda, na posição clássica de "O Pensador" (Le Penseur) de Auguste Rondin. O sistema acusatório pode, perfeitamente, conviver com um processo de cunho publicista, tendo o Juiz uma postura ativa, de condutor do mesmo, agindo como timoneiro. É o inquisitorial system, em contraposição ao adversarial system, de que nos fala Ada Pellegrini Grinover, ambos plenamente compatíveis com o sistema acusatório, ficando a opção por um ou outro sistema no âmbito discricionário do Legislador.210
Com um caráter absolutamente acusatório, e sem divergência quanto a isto,
conforme art. 4º 211, o anteprojeto de reforma do Código de Processo Penal
desconstrói essa possibilidade de instrução probatória por parte do juiz, quando no
capítulo que aborda as provas, explicita em seu art. 162 que “as provas serão
produzidas pela parte”; e ainda mais especificamente expõe no parágrafo único
deste referido artigo, que “será facultado ao juiz, antes de proferir sentença,
esclarecer dúvida sobre a prova produzida”. Ou seja, fica explícito que o projeto do
novo CPP almeja concretizar a efetividade do sistema acusatório como ordenamento
processual e eliminar com qualquer dispositivo legal que remeta ao processo
inquisitorial e ao juiz perseguidor de provas.
Ademais, o papel de juiz perseguidor de provas relembra uma forma
processual diversa da disposta pela Constituição Federal. Este juiz que detém a
possibilidade de manejar com ônus probatório, evidencia o magistrado presente no
209 BASTOS, Marcelo Lessa. Op. Cit. p. 11210 Ibidem p. 9 211 Art. 4o do Anteprojeto do Código de Processo Penal – PL 156/2009, do Senado Federal - O processo penal terá estrutura acusatória, nos limites definidos neste Código, vedada a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.
81
Sistema processual Inquisitorial, cuja função do julgador se misturava ao cargo de
acusador.
3.3.1 A verdade real inaplicável ao processo penal acusatório
A persecução penal por via do juiz inquisidor se fazia justificada pelo
discurso da perseguição à verdade real dos fatos (Vide 1.4). É essa a verdade real,
que há séculos era citada como fundamentação do poder repressor do órgão
Judiciário e que também ratificava a prática de tortura, que atualmente ainda traduz
a possibilidade do juiz contemporâneo, de ofício, requer a produção de provas.
A teoria das verdades no processo foi diversas vezes questionada e foi por
Foucault construída uma tese de que a verdade é composta por diversas versões e
por isso, diversas verdades. O autor assim entende, pois para o mesmo, cada um
que tenha presenciado o fato em comum terá, particularmente, a sua perspectiva do
que é verdadeiro.212
Com base na idéia de diferentes versões de um fato, fomenta-se a teoria de
que o discurso da verdade real provém da idéia de que é possível através do
processo alcançar um relato absoluto ou substancial do ocorrido213.
Sandra Negri Cogo aborda que esta verdade real constitui-se num mito que
perpassa a sociedade como forma de “legitimar o discurso repressivo”214 do universo
jurídico. A autora identifica também com base na obra de Jacinto Coutinho que
clamar sobre uma verdade real se faz ilógico num processo, porque não se almeja
no processo a reprodução do fato como momento histórico, e sim a certeza,
representada pela sentença 215.
A idéia de uma verdade real não subsiste nos modelos acusatório e
garantista, já que para tais teorias, a verdade que se persegue no processo penal é
212 FOUCALT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Ed., 2003.213 FERRAJOLI, Luigi. Op. Cit. p. 487214 COGO, Sandra Negri. O mito da verdade real em tempos pós-modernos (uma abordagem a partir da ética weberiana). In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Op. Cit. p. 251215 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda Apud COGO, Sandra Negri. Ibidem p. 250
82
a que Luigi Ferrajoli chama de “relativa ou formal”216. Esta verdade consiste no
resultado da “pesquisa empírica”, da qual se obtém, “através do procedimento por
prova e erro”, o convencimento do magistrado diante da batalha processual
empregada pela acusação e pela defesa.
Destarte, é abordada por Aury Lopes Jr. a verdade real como um mito
justificador de atrocidades processuais. Assim evidencia o autor quando expõe o
seguinte:
Acima de tudo, a verdade real é um mito, que deve ser desconstruído, e apenas serviu (e ainda serve), para justificar os atos abusivos praticados pelo Estado. Falar em verdade real é falar em algo absolutamente impossível de ser alcançado, a começar pela inexistência de verdades absolutas.217
Para Aury Lopes Jr., que segue a mesma perspectiva que Luigi Ferrajoli, o
determinante não é buscar uma verdade no processo, haja vista que o
convencimento do juiz não se faz proveniente do alcance daquilo que é verídico e
sim do que se faz melhor convencimento em meio ao processo218. Para o citado
jurista, o juiz deve eleger a sua versão com base naquilo que se fez mais
convincente ao longo da relação litigante, pois percebe o autor que a “verdade é
contigencial e não estruturante do processo”219 e que
a legitimação da decisão se dá através da estrita observância das regras do devido processo. São essas regras que, estruturando o ritual judiciário, devem proteger do decisionismo e também do outro extremo, onde se situa o processo inquisitório e sua verdade real.220
Percebe-se que tanto no Sistema Acusatório e quanto na teoria do
garantismo penal, o fato de serem designadas funções para cada parte do processo
e para todos os seus sujeitos, determina-se que será este o papel a ser cumprido
por cada um. Como está atribuído à acusação o poder de provar a culpa do réu, não
cabe ao juiz intervir no ônus exclusivo (ou que pelo menos deveria ser) do acusador.
Luigi Ferrajoli expõe que
a separação dos papeis entre os atores do processo [...] impede que tal ônus possa ser assumido por sujeitos que não da acusação; não pelo imputado, a quem compete o contraposto direito de
216 FERRAJOLI, Luigi. Op. Cit. p. 488217 LOPES Jr., Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris 2005. p. 202. 218 LOPES Jr., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, 2009. Volume I. p. 530219 LOPES Jr., Aury. Ibidem. p. 532220 Idem
83
contestação das verificações e das falsificações exibidas. [...] ao juiz devem ser suma vedadas as funções postulantes, sendo inadmissível a confusão de papeis entre os dois sujeitos.221
A abordagem da verdade real não se faz possível num Estado Democrático
de Direito cujas bases doutrinárias fundam-se no garantismo e na acusatoriedade do
processo. A persecução penal cabe legitimadamente apenas ao Ministério Público
como órgão representante da acusação e não ao juiz que se apropria de uma
imagem justiceira e perseguidora da justiça, buscando na possibilidade de
requerimento de provas e diligências o seu meio de punir.
3.3.2 O juiz justiceiro
O juiz como autoridade detentora do poder de julgar e decidir pela punição
de outro indivíduo carrega o fardo de uma decisão que poderá modificar totalmente
o destino de um sujeito.
Com esse poder implícito à profissão do magistrado, costumeiramente é
possível ver juízes ultrapassando o limite de sua função e passando por cima
daquilo que é de direito absoluto do acusado para buscar punição aos crimes.
Esse caráter vingador do juiz é magistralmente refletido por Alexandre
Morais da Rosa no que ele mesmo chama de “Complexo de Nicolas Marshall”222,
quando o mesmo cria uma metáfora a um antigo seriado, no qual o jurista questiona-
se “Considerando que os resultados de controle social da atuação como Juiz não
resultam no que se esperava, será que está justificada a atuação como vingador
social?”.
A resposta negativa trazida por ele próprio é fundamentada da seguinte
forma:
O preço de se viver em democracia é o respeito pela diferença e proibição da vingança privada. O Estado é quem assume a legitimidade para aplicar qualquer sanção, mediante um Juiz
221 FERRAJOLI, Luigi. Op. Cit. p. 488222 ROSA, Alexandre Morais da. O juiz e o complexo de Nicolas Marshall. Disponível em http://alexandremoraisdarosa.blogspot.com/2009_01_01_archive.html Acesso em 11 dez 2009.
84
Imparcial, não se podendo admitir a vingança pessoal, sob pena de configuração de crime (CP art. 345223).224
O personagem do juiz vingador em prol da sociedade é resultado de uma
cultura popular que clama por uma limpeza social no que tange os criminosos, é
resultado de um processo histórico de eliminação do outro como agente anormal e
incapaz de convívio com os demais. É também conseqüência direta do alvoroço
semeado pela mídia no tocante a necessidade de extinguir a criminalidade, ou
resultado daquilo que se denomina a Síndrome do Pânico Penal225, que consiste na
teoria do medo que se divulga através de notícias alarmantes e incluídas
diariamente no cotidiano do cidadão como resposta às necessidades da população,
além de ser uma forma de tentar obter um controle social diante do controle da
mentalidade da massa.
Entende-se também que esta perseguição à “criminalidade” é um ponto
crucial da relação maniqueísta imposta pelas origens do pensamento da sociedade
ocidental, onde se trata o juiz como um ente celestial, cuja função nada mais é do
que fazer justiça e deter bandidos; e esses bandidos, para essa cultura vingativa,
nada mais são do que males sociais que devem ser abolidos dos olhos da
população.226
Os “vingadores sociais”227 não estão apenas presentes na figura do juiz,
todavia, quando se encontram nos magistrados, a crítica deve ser ainda mais
acirrada, haja vista a função constitucional atribuída ao juiz atual. Como já exposto,
o juiz num sistema onde todos são iguais perante a lei, e a lei deve ser aplicada
igualmente na medida das desigualdades, constitui a figura suprema de garantias às
minorias quando no âmbito jurídico.
A pessoa do magistrado numa perspectiva ampla da sociedade e do poder
judiciário, não deve ser vista como alguém inalcançável, ou distante do cotidiano
social, e sim, deve ser observado como uma pessoa absolutamente suscetível de
valores, que, entretanto, quando se senta em sua cadeira para exercer sua função
223 Art. 345 - Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite.224 ROSA, Alexandre Morais da. Op. Cit.225 VALLE, Juliano Keller do. Síndrome do pânico penal: Wacquant x Oprah Winfrey.Disponível em http://direitoforadolugarcomum.blogspot.com/2009/05/sindrome-do-panico-
penal-wacquant-x.html Acesso em 18 set 2010.226 Idem227 ROSA, Alexandre Morais da. Op. Cit.
85
de “garantidor” do processo e decidir “com base no livre convencimento” não se trata
ele de um perseguidor da justiça, e sim de um ser imparcial às partes do processo e
destemido quanto à aplicação das garantias que permeiam a relação processual.228
Aury Lopes Jr. evidencia, no sentido do juiz vingador, que um grave
problema da sociedade é
o juiz que assuma “uma cultura subjacente, de forte conotação de defesa social, incrementada pela ação persistente dos meios de comunicação, reclamando pela impunidade e maior rigor penal, derivada por sua vez, de uma cultura geral política autoritária, como herdada nos países latino-americanos, que afeta o juiz (enquanto homem político e social) fazendo com que ele imponha uma concepção de processo menos dialética e igualitária para as parte.229
Evidencia-se, a partir de tudo que foi exposto, a ilegitimidade desta
persecução penal por parte do magistrado. A ilegitimidade da intervenção do juiz no
processo penal, além de ser completamente incompatível com as categorias teóricas
absorvidas pela Constituição Federal, diz-se garantismo penal e sistema processual
acusatório, trata-se também de uma afronta direta às minorias hiposuficientes que
diariamente estão diante do juiz buscando pelas garantias de um processo igualitário
e imparcial.
Para a concreta garantia de um Estado de direito democrático e garantidor é
necessário que dentro do processo penal se aplique uma linha de diminuição da
interferência daqueles que sistemicamente possuem o poder, aqui representado
pelo magistrado. A aplicação das garantias deve ser a regra e a intervenção a
exceção.230
Faz-se, então, relevante identificar o desenvolvimento de um
comportamento inconstitucional praticado cotidianamente pelos magistrados
brasileiros, ao requererem os mesmos a produção de ofício de provas e agirem
desta forma como vingadores de uma sociedade construída com base num discurso
de defesa social.
Destarte, o que se retira desta amostragem é o quão ilegítima e insegura
(além de absolutamente tendenciosa) é esta ação proativa do juiz; a primeira por ser
evidentemente incompatível com o sistema vigente e a segunda por ter
228 ROSA, Alexandre Morais da. Op. Cit.229 LOPES Jr., Aury. Op. Cit. p. 116230 Idem
86
conseqüências graves num contexto social de desigualdade e de criminalização de
certos grupos da população, característica típica da sociedade brasileira.
87
CONCLUSÃO
Ao olharmos tudo que aqui foi apresentado podemos traçar algumas linhas
de conclusão, as quais se constroem a partir da perspectiva histórica do Sistema
Inquisidor e da sua principal figura, o juiz da Inquisição. Perpassam-se, após a
abordagem do sistema inquisitorial, as garantias e a análise da teoria penal do
Garantismo, cuja finalidade é evidenciar a teoria que fundamenta o trabalho, além de
demonstrar outro personagem relevante, o juiz “ativista” no âmbito do processo
penal.
Finaliza-se então a presente monografia através da demonstração do
sistema processual vigente na Constituição do Brasil promulgada em 1988 (o
Acusatório) e os desdobramentos de ilegitimidade dos magistrados diante desta
forma processual, confrontados à idéia de um juiz de garantias na fase pré-
processual do processo penal.
O início do primeiro capítulo se dá pela análise do processo inquisitorial e a
sua forma histórica. Foram primeiramente abordadas a construção histórica que
permitiu o desenvolvimento de tal forma processual e as características do mesmo.
Pode-se observar que o sistema inquisitório se instituiu através de um controle do
Estado sobre todas as relações processuais, haja vista a repressão absoluta dos
direitos do acusado e do próprio processo em si.
A forma inquisitória é possível de ser identificada quando se demonstra a
ausência dos direitos processuais do contraditório, de ampla defesa e da evidência
absoluta da presunção de culpa do acusado, cabendo ao mesmo o ônus probatório
quanto a sua inocência. Outras características atribuídas ao sistema inquisitorial são
a tarifação das provas e a acusação de ofício, todavia, o ponto crucial para a
identificação do mesmo é a unificação dos poderes de julgar e acusar nas mãos dos
magistrados. Os juízes inquisitoriais são aqueles que colhem as provas, efetivam a
acusação e julgam o processo.
A mais significativa peculiaridade do sistema inquisitório fica a cargo da
possibilidade da tortura como meio de alcançar a verdade processual. Ficou
demonstrado diante do exposto por Eymerico que a prática de tormentos além de
ser algo inerente a esta forma processual, tratava-se de uma obrigação do
88
inquisidor, já que eram tarefas suas a obtenção dos indícios probatórios para acusar
o indivíduo e a efetiva condenação do mesmo.
O Sistema Inquisitorial é uma construção processual do ocidente surgido no
Velho Mundo, entretanto, devido as Colonizações e o processo expansionista dos
países europeus, ele atingiu várias outras localidades, entre elas o Brasil.
Demonstra-se, então, a chegada da inquisição ao Brasil, identificando-a
como resultado de um processo proveniente da necessidade que Portugal teve em
controlar seus colonos e suas práticas.
Numa sociedade distante e sem os olhares diários do rei e da Santa
Inquisição, Portugal percebeu que tal realidade possibilitava uma liberdade de
conduta distinta da que a Metrópole vivia no século XVI e XVII, o que permitia
práticas religiosas e sexuais que eram abolidas em terras portuguesas. Para
controlar então o que ocorria na Colônia, o Santo Ofício foi mandado ao Brasil para
identificar e punir tais comportamentos inaceitáveis, segregando assim certos grupos
de indivíduos e seus costumes.
Como resposta a essa segregação, ficou demonstrado à relação do Sistema
Inquisitorial com a construção da Criminologia positivista surgida no final do século
XVII. Na identificação da normalidade, vê-se uma construção do outro como punível.
A exclusão e determinação de certas práticas e condutas como aceitáveis à
sociedade passa a ser vista como situações formadoras do conceito de Criminologia
O surgimento deste discurso de indivíduos diferentes e anormais no Brasil
deve-se principalmente à divulgação da teoria da criminologia lombrosiana efetuada
pela Faculdade de Direito de Recife através das suas publicações acadêmicas, que
tinham como foco principal compreender o crime através da pessoa do criminoso e
de suas características de periculosidade. Foi, assim, identificado por esta
abordagem criminológica que em determinadas pessoas a criminalidade era produto
de atributos naturais derivados de uma má-formação biológica destes indivíduos, e
era diante de um determinismo biológico que a presente teoria identificava o porquê
das transgressões.
Destarte, evidencia-se a figura principal dentro da realidade inquisitorial, o
juiz inquisidor. As atribuições funcionais e as práticas inerentes a esse personagem
são analisadas como a razão que constitui em si o processo inquisitório.
A junção das funções de acusar e julgar, a possibilidade das torturas para a
obtenção da “verdade real” e a decisão com ausência de quaisquer fundamentações
89
identificavam exatamente a liberdade dos juízes inquisidores, possibilitando assim
que estes praticassem atos absurdos como meio de obter condenações,
caracterizando desta forma a realidade do Sistema processual inquisitório.
Em contraponto, foi abordada a teoria do Garantismo penal, cuja base é a
formação de um Estado, no qual reinam absolutamente, em distinção ao Estado
repressor da Inquisição, as garantias e os direitos fundamentais inerentes ao
homem.
Num sistema em que a realidade é determinada pela aplicação de
garantias, foi identificado a adoção da teoria do garantismo penal como base
doutrinária fundamental para distinguir um Estado, cujas garantias são o fim para
sua existência (o Estado democrático de Direito regido pelo garantismo) do Estado
absolutamente repressor (o Estado Inquisidor).
Isto posto, restaram demonstradas, para identificar sobre o que trata tal
teoria, as 03 acepções que compõe o significado de garantismo penal. Luigi
Ferrajoli, autor da teoria, expõe que os três significados atribuídos à teoria se
completam entre si, ou seja, para que se conclua o que devidamente é o garantismo
penal, devem-se associar os três significados como distintos, porém interligados
pela defesa das garantias.
Destas acepções pode-se extrair a compreensão de que a primeira, que
aborda a idéia de normatividade, evidencia uma perspectiva de que as normas são
necessárias em todos os seus graus de existência. Em suma, a questão da
normatividade para a efetiva segurança das garantias deve ocorrer não só na esfera
constitucional, mas também, através de leis infraconstitucionais, que permitam que a
Carta Magna seja devidamente aplicada.
O segundo significado demonstra, no entanto, a relação de efetividade e
validade das normas, sendo necessário que se questione o quão válida é uma
norma que não é efetiva, assim como, o quão ineficaz é uma norma que não é
válida. Dentro deste significado a distinção se faz do ser e do dever ser das normas,
além de que o que se busca ao identificar a questão da efetividade e da validade
consiste em se discutir a lei.
A validade e a efetividade das normas são coisas distintas e a inexistência
de uma não anula a existência de outra, isto é, não é suficiente que uma norma seja
válida, além de ser válida, ela deve ter efetividade, já que a abstração das normas
não é o caminho prático para assegurar a aplicação de garantias.
90
O terceiro significado do garantismo é construído no sentido da discussão
externa da teoria. A questão se torna filosófica na perspectiva de que a teoria não se
limita ao âmbito da normatividade, mas sim que há também uma abordagem sobre a
idéia do garantismo que é extraída das relações políticas e sociais.
Essa acepção constitui então na formação da teoria das garantias num
âmbito muito mais abrangente que somente o universo jurídico, de acordo com este
significado, a sociedade num contexto amplo deve ser baseada nas garantias e
solidificada desta forma, possibilitando assim a construção de um Estado
democrático de direito consolidado sobre direitos fundamentais do cidadão.
Em análise das três acepções conclui-se que cada uma se difere da outra
no que tange o ponto específico de observação, porém elas se vinculam entre si
quando se trata da finalidade da teoria, a aplicação das garantias, tanto processuais,
quanto normativas, assim como sociais, em diversos níveis. Conclui-se que num
Estado de direito que adotou a teoria do garantismo, tem-se como finalidade das
garantias a restrição do poder estatal, impedindo que o mesmo interfira nas
garantias consagradas como máximas no âmbito dos direitos fundamentais.
Outra oposição da teoria do garantismo ao Sistema Inquisitório ficou
evidenciada na descrição de quem deve ser o juiz e dentro desta concepção
doutrinária. O juiz “ativista”, descrito pela teoria do garantismo penal, é também um
juiz que tem a possibilidade de decidir de forma mais livre no processo penal,
entretanto, opondo-se ao juiz inquisidor, este magistrado “ativista” se manifesta
quando se aborda a utilização de uma norma ou não.
A discricionariedade do juiz garantista se encontra no poder do magistrado
em decidir sobre a aplicação ou não de uma norma, quando este entender que a lei
em vigência viola garantias que protegem o indivíduo. Porém, como então visto, a
discricionariedade do juiz inquisidor se forma no sentido de que o mesmo possui a
sua disposição o poder da máquina estatal, sendo possível por ele ativamente
participar de todas as fases processuais, e não somente da seleção das normas que
serão aplicadas ao caso concreto, particularidade esta do juiz garantista.
O que se conclui então desta relação de atividade dos juízes que presidem
os dois tipos de processo é que a atividade do juiz do garantismo penal se encontra
objetivamente e limitadamente a obrigação de assegurar um processo
fundamentado e em virtude das garantias. É somente nestes casos o juiz está
permitido a usar da sua concepção própria para decidir sobre algo em particular no
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processo, enquanto que o juiz inquisidor está possibilitado de agir ativamente
durante toda relação processual, sendo isto, como exposto, uma das características
inerentes a forma inquisitória do processo.
Ao abordar o Sistema Acusatório ficou demonstrado que este se faz em
completa distinção ao Sistema Inquisitório e que somente existe se respeitar a teoria
do garantismo. A conceitualização do Sistema Acusatório ficou evidenciada numa
perspectiva de que esta forma processual se fundamenta na garantia do acusado de
todos os seus direitos serão aplicados e no fato de que no processo acusatório
serão efetivamente distintos os poderes de acusar e de julgar.
As características básicas da forma acusatorial do processo foram
construídas diante da exposição da sua construção histórica e as particularidades de
cada tempo em que este sistema esteve presente. No que tange a
contemporaneidade pode-se perceber que o sistema acusatório se identifica a partir
da separação de acusar e julgar, da publicidade dos atos processuais e
principalmente pela segurança das garantias constitucionalmente asseguradas ao
acusado.
A Constituição da República do Brasil adotou o Sistema Acusatório quando
descreve em seu texto que o poder de acusar processualmente um indivíduo está
indisponível e individualmente nas mãos do Ministério Público. Outra evidência de
que a Carta Magna adotou esta forma acusatória de processo está no fato de que
esta assegura as garantias da ampla defesa, do contraditório e da presunção de
inocência do acusado.
Diante da análise de que está adotada pela Constituição brasileira o
Sistema Acusatório foi necessário abordar a aplicação destes direitos e garantias
que são inerentes a esta forma processual, já que ficou evidenciado que existem
alguns dispositivos infraconstitucionais que contrariam os direitos fundamentais do
acusado, assim como, demais garantias asseguradas pela Carta Magna.
O dispositivo que aborda a produção de provas de ofício por parte do juiz,
conforme art. 156 do Código de Processo Penal, fere claramente o princípio da
inércia do magistrado, assim como o art. 83 do CPP231, que determina a prevenção
231 Art. 83 (CPP) - Verificar-se-á a competência por prevenção toda vez que, concorrendo dois ou mais juízes igualmente competentes ou com jurisdição cumulativa, um deles tiver antecedido aos outros na prática de algum ato do processo ou de medida a este relativa, ainda que anterior ao oferecimento da denúncia ou da queixa (arts. 70, § 3º, 71, 72, § 2º, e 78, II, c)
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do juiz que decidiu sobre as medidas pré-processuais, ferindo assim o axioma da
imparcialidade do juiz, haja vista, que o mesmo já decidiu sobre questões
processuais antes mesmo do processo existir.
Assim, como forma de confrontar a contaminação dos magistrados e a
interferência dos mesmos nas relações processuais, foi abordada a figura do juiz de
garantias.
O juiz garante trata-se de um sujeito que vem como uma medida paliativa
ao processo penal brasileiro, mediante o anteprojeto do novo CPP, para decidir
sobre as questões pré-processuais. Porém, o termo juiz de garantias não se resume
a esta figura que decide sobre medidas cautelares, mas sim ao fato de que um juiz
de garantias no Sistema Acusatório nada mais é do que um juiz que defende as
garantias como finalidade do processo, e não somente um meio.
O juiz de garantias evita assim que o magistrado que decidiu sobre a
medidas solicitadas e a produção de provas na parte inquisitória, que antecede ao
processo, não seja o mesmo que decidirá sobre a validade de tais provas, e tão
pouco seja o mesmo que definirá a condenação do acusado com base no que foi
pré-julgado na fase pré-processual.
Isto posto, foi necessário evidenciar que o magistrado de maneira
generalizada utiliza do seu poder como figura decisiva no processo para dispor de
suas perspectivas pessoais durante o processo. A partir desta constatação ficou
demonstrado que o processo penal do Brasil está a mercê de dispositivos ainda
vinculados ao sistema inquisitorial e que a percepção dos magistrados comumente é
também neste sentido.
O juiz de garantias veio então como uma forma de tentar combater esta
vinculação do magistrado à inquisição, porém, a grande problemática desta questão
está no fato que não são apenas os dispositivos legais que estão conectados ao
Sistema Inquisitório, mas sim que os valores dos juízes existentes no Brasil se
fazem assim vinculados a essa forma processual que por tanto tempo vigorou.
Desta constatação retira-se a conclusão de que ainda existem dispositivos e
personagem jurídicos vinculados ao Sistema Inquisitorial, entretanto, a adoção de
um sistema que se fundamenta sobre as garantias, não apenas do acusado, mas de
toda a sociedade, permitem expor que o progresso das garantias acusatórias está
em desenvolvimento.
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No sentido de que há uma vertente inquisitória nas práticas dos juízes
atuais, ficou demonstrado também que o mito da verdade real fundamenta ainda as
condutas inquisitórias dos mesmos, visto que é através da concepção de que o juiz
é um perseguidor da verdade dos fatos do processo, que se garante a tais
magistrados a possibilidade de agirem conforme acharem melhor para alcançar a
reprodução exata do ocorrido.
É, assim, válido ressaltar que o problema mais significativo de toda a
relação processual que difere o Sistema Inquisitório do Sistema Acusatório e que
impede a adoção total de um processo garantista, consiste na percepção dos
magistrados atuais de que são eles “vingadores” sociais. Esta perspectiva de tais
juízes e o fato de que eles detêm o poder de decidir sobre a liberdade e os direitos
dos outros fundamenta a continuidade da intervenção ilegítima destes magistrados
no processo penal.
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