cardoso, bruno vasconcelos - briga e castigo, sobre pitboys e canais de fofoca em um sistema...

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Filosofia e Ciências Sociais Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia Briga e Castigo: Sobre pitboys e “canais de fofoca” em um sistema acusatório Bruno de Vasconcelos Cardoso Rio de Janeiro 2005

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Sociologia e antropologia da violência

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  • Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Filosofia e Cincias Sociais Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia

    Briga e Castigo:

    Sobre pitboys e canais de fofoca em um sistema acusatrio

    Bruno de Vasconcelos Cardoso

    Rio de Janeiro

    2005

  • Bruno de Vasconcelos Cardoso

    BRIGA E CASTIGO: sobre pitboys e canais de fofoca em um sistema acusatrio

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia, do Instituto de Filosofia e Cincias Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Sociologia.

    rea de concentrao: Sociologia.

    Orientador: Prof. Dr. Michel Misse

    Rio de Janeiro

    2005

  • Bruno de Vasconcelos Cardoso

    BRIGA E CASTIGO: sobre pitboys e canais de fofoca em um sistema acusatrio

    Rio de Janeiro, 31 de maro de 2005

    ________________________

    (Prof. Dr. Michel Misse, IFCS, UFRJ)

    ________________________

    (Prof. Dr. Gilberto Cardoso Alves Velho, MN /UFRJ)

    ________________________

    (Prof. Dr. Peter Henry Fry, IFCS/UFRJ)

  • Resumo

    Esta dissertao analisa o que se convencionou chamar de ataques de pitboys, ou seja, manifestaes de violncia por parte de jovens de classe mdia (entre 18 e 24 anos, todos do sexo masculino) em situaes classificadas como de lazer. Para isso so realizados trs estudos de caso, buscando, por meio de um drama social, melhor apreender quais valores so exaltados e quais so censurados por aqueles que se pronunciam sobre o assunto, atravs dos dirios O Globo e Jornal do Brasil (que seriam representativos de um estrato mdio superior carioca). A metodologia do trabalho consiste em uma anlise minuciosa do material jornalstico sobre os casos, sendo esses dois jornais tratados como importantes e vultuosos canais de fofoca em um contexto de sociedades complexas, se revelando muito til para captar os discursos das trs partes envolvidas no processo de rotulao (etapa avanada do ato desviante): os acusados, os acusadores e os defensores. Depreende-se ento que a exigncia generalizada de que os pitboys fossem imediatamente punidos faz com que ocorra, nos trs casos, uma mudana de tipificao criminal na qual os jovens so enquadrados. Tal mudana ocorre sempre em direo a um delito que proporcione a deteno imediata dos acusados, no tendo importncia se ocorre de modo arbitrrio ou no. A aparente contradio entre a condenao de um comportamento que no segue o princpio individualista da mediao estatal na resoluo de conflitos, e a aprovao da adoo de medidas punitivas excessivamente rigorosas, com o fim no de cumprir a lei, mas de servir como exemplo da intolerncia contra esse tipo de delito, no se faz sentir em momento nenhum no debate popular. Isto revela como se d de maneira fluida e contnua o trnsito entre diferentes cdigos culturais, permanentemente combinados, confrontados e reconstrudos, desenvolvendo um modus operandi caracterstico do brasileiro urbano.

  • Abstract

    This work analyzes what it was stipulated to call pitboys attack, or either, manifestations of violence on the part of the middle class youth (between 18 and 24 years, all of them male) in situations classified as leisure time. For that, three studies of case are carried through, searching, by means of a social drama, better to apprehend which values are exalted and which are censured for those who pronounced about this subject, through the newspapers O Globo and Jornal do Brasil (that would be representative of a Carioca superior middle class. The methodology used in this work consists of a minute analysis of the journalistic material on the cases, being these two periodicals treated as importants and sizables "gossip channels" in a context of complex societies, revealed as very useful to catch the speeches of the three involved parts in the labeling process (advanced stage of the outsider act): the accuseds, the accusers and the defenders. It infers that the general requirement for immediate punishment of the pitboys suggests, in the three cases, a change of criminal typifycation in which the boys are fit. Such change always occurs in direction to a delict that provides the immediate detention of the accuseds, not mattering if it occurs in an arbitrary way or not. The apparent contradiction between the conviction of a behavior that does not follow the individualistic principle of the state mediation in the conflicts resolutions, and the approval of the adoption of excessively rigorous punitive measures, not regarding laws accomplishment, but to serve as an example of the lack of tolerance against this kind of delict, was never a subject of popular debate. It reveals how fluid and continuous is the transit between different cultural codes, permanently agreed, collated and reconstructed, developing a characteristic urban Brazilian modus operandi.

  • Maria, com todo o amor que houver nessa vida

  • Agradecimentos:

    Gostaria de agradecer queles que, cada um sua maneira, e atravs dos mais diversos

    meios, tornaram possvel este trabalho. Primeiramente, como no poderia deixar de ser, aos

    meus pais, Dulce e Jos Carlos, por terem, inconscientemente e sempre com muito amor, me

    transformado em um cientista social. Meus irmos, Patrcia(s) e Marcus, certamente tambm

    partilham da minha gratido, tendo se mostrado sempre interessados e pacientes (apesar de

    no concordarem muito) com o trabalho que desenvolvo.

    Aos amigos tambm s tenho palavras de reconhecimento, no somente pelos

    momentos de felicidade proporcionados, mas igualmente pelos papos sempre interessantes

    e inusitados. No havendo espao para citar a todos que fazem do IFCS um ambiente to

    propcio para o desenvolvimento de atividades intelectuais, destaco aqueles que, em algum

    momento, leram e comentaram qualquer trecho deste trabalho: meus colegas de turma no

    PPGSA, Marisol Rodriguez Valle, Leonardo Carvalho Couto, Tiago Coutinho, Jlio Naves

    Ribeiro e Carla Ramos (que apesar de nunca ter lido nada que escrevi, tanto me inspira com

    suas idias arrojadas); minha companheira de pesquisa no NECVU Brgida Renoldi; os

    compadres Lgia Julianelli Lyra e Diogo Azevedo Lyra; Patrcia Delgado Mafra, com quem

    tive conversas bastante esclarecedoras na Quinta da Boa Vista; alm de Frederico Policarpo

    de Mendona Filho, amigo antigo a quem devo a idia de trabalhar com os canais de fofoca.

    Tambm agradeo aos colegas e amigos Luciana Barbio (sempre guardando recortes de jornal

    para minha pesquisa) e Jonas Oliveira, igualmente estudioso da ligao entre jovens e

    violncia na nossa cidade.

    No poderia esquecer daqueles que, em um momento embrionrio da pesquisa,

    solicitei para entrevistas relacionadas ao assunto, e que sem dvida me auxiliaram a encontrar

    o caminho que acabei por seguir, em especial Rodrigo Botto, Gabriel Montes e o Gro-Mestre

  • de jiu-jitsu Carlos Rbson Gracie. Todos me receberam com simpatia e responderam de

    forma bastante atenciosa tudo que ousei perguntar.

    Fico feliz de ter tido a oportunidade de estudar no PPGSA/UFRJ, e poder usufruir

    tanto da antropologia como da sociologia, diviso que insisto em ignorar ao longo desta

    dissertao. Os professores do Programa tambm tiveram, obviamente, imensa importncia na

    elaborao deste trabalho. Destaco aqueles que, por meio de suas aulas mais o influenciaram,

    direta ou indiretamente: Jos Reginaldo Santos Gonalves, Bila Sorj, Mirian Goldenberg e

    Elsje Lagrou, alm de Marco Antnio da Silva Mello, cujos cursos tanto me chamaram a

    ateno enquanto graduando. Ressalto tambm a importncia da professora Elisa Reis, minha

    orientadora de iniciao cientfica, responsvel pelos meus primeiros passos seguros dentro

    do universo sociolgico. Agradeo, porm, especialmente aos professores Gilberto Velho e

    Peter Fry, que, atravs da ateno e dos conselhos dados em meu exame de qualificao,

    foram to fundamentais para a feio final desta dissertao, notadamente sua diviso em trs

    casos. Quanto ao meu orientador, Michel Misse, s tenho elogios a tecer, tanto pelas idias,

    comentrios e sugestes, quanto pelo modo to simptico e divertido atravs do qual os

    transmitiu.

    No posso esquecer daqueles que, sempre com muita pacincia, me ajudaram em

    vrios momentos a transpor os muitos obstculos tcnicos e burocrticos que se interpem no

    caminho de um mestrando: Helosa Duarte, secretria do NECVU; Claudinha e Denise, da

    Secretaria da Ps; e os garotos da xerox, Gacho e Renato. Fundamental tambm foi o

    papel desempenhado pelos rgos de fomento pesquisa, CNPq e FAPERJ, que me

    possibilitaram desenvolver o estudo sem maiores crises financeiras.

    Encerro revelando minha eterna e infinita gratido a Maria Raquel Passos Lima, que

    tanto colaborou para a vinda luz deste trabalho, sendo sem dvida merecedora de parcela do

    ttulo de mestre ao qual concorro.

  • SUMRIO

    INTRODUO 1 CAPTULO I: Pitboys ou Beachboys? Sobre o estigma e a sujeio criminal 8

    I.1. O caso e seu desenrolar 8

    I.1.1. O massacre 8 I.1.2. O inferno e a redeno 9 I.2. Conceitos, acusao e personagens 11 I.2.1. A face e a honra: conceitos complementares 11 I.2.2. Sobre a impunidade e o uso do sabe com quem est falando? 13 I.2.3. Personagens da histria 18 I.2.3.1. Os Pitboys 18 I.2.3.2. Os acusadores 19 I.2.3.3. A defesa 22

    I.3. Observaes finais 25 CAPTULO II: Cad minha face que estava aqui? 28 II.1. O caso e seu desenrolar 28

    II.1.1. A guerra 28 II.1.2 A identificao dos culpados e o surgimento de novas informaes 29 II.1.3. Pitboys, os novos inimigos pblicos 30 II.2. Acusaes e personagens principais 32 II.2.1. A culpa dos pais! 32 II.2.1.1. Os pais superprotetores 32 II. 2.1.2. Os pais ausentes 34 II.2.1.3. Sobre modelos pedaggicos: a terceirizao da educao 37

    II.2.2. Personagens principais 40 II.2.2.1. Os pitboys 40 II.2.2.2. Os acusadores 45 II.2.2.2.1 Sobre pitboys e lutadores: uma percepo difundida ao longo dos

    anos 45 II.2.2.2.2. O Conselho Regional de Educao Fsica (Cref) 48 II.2.2.2.3. Comisso 50 II.2.2.2.4. Os lutadores 51

  • II.2.2.2.5. A polcia e a lei 55 II.2.3. A defesa 57 II.3. Observaes finais 58 CAPTULO III: Mas cime, cime de voc...: sobre honra, individualismo e o dilema brasileiro 62 III.1. O caso e seu desenrolar 62 III.1.1. O ataque-surpresa 63 III.1.2. H imagens que dizem mais do que mil palavras 64 III.1.3. A hibernao dos canais de fofoca e a morosidade da justia 65 III.2. Acusaes e personagens principais 67 III.2.1. Mas eu me mordo de cimes!: sobre a honra e a patologia emocional 67 III.2.2. Personagens principais 73 III.2.2.1. O pitboy 73 III. 2.2.1.1. O culto ao corpo e fora fsica: notas sobre o conceito de androlatria 74 III.2.2.1.2. De volta ao ataque-surpresa 76 III.2.2.2. Os defensores 78 III.2.2.3. Os acusadores 81 III.2.2.3.1. A lei 81 III.2.2.3.2. A famlia e seus advogados 83 III.2.2.3.3. O lobby e a lista 85 III.2.2.3.3.1. Compreendendo a evoluo 87 III.2.2.3.3.2. Voltando ao terceiro caso 89 III.2.2.3.3.3. Pau que nasce torto, nunca se endireita: marcando a identidade deteriorada 91 III.3. Observaes finais 95 CONCLUSO 103 ANEXO A 107 ANEXO B 112 ANEXO C 114 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 116

  • 1

    Introduo

    No perodo compreendido entre os dias 19 de maro e 11 de maio de 2004, foram

    noticiados oito casos de brigas ou espancamentos praticados por jovens membros das classes

    mdias cariocas, todos habitantes da Zona Sul ou da Barra da Tijuca. Seis desses incidentes

    aconteceram em casas noturnas (boates), e os outros dois durante festas realizadas em

    condomnios da Barra. Alm do fato de terem sido provocados por jovens classificados como

    pertencendo a um estrato social superior e de terem ocorrido em momentos claramente

    voltados para o lazer, tambm podemos apontar como caracterstica marcante desses casos a

    deflagrao de um pesado sistema de acusaes, tendo por resultado a rotulao dos jovens

    como pitboys. O tema foi assunto dirio (e com considervel destaque) de, pelo menos, dois

    dos jornais de maior circulao da cidade1, O Globo e Jornal do Brasil, suscitando discusses

    acaloradas em suas reportagens, sees de cartas, e mesmo entre alguns de seus mais

    conhecidos colunistas.

    Durante um certo perodo os pitboys estiveram realmente em voga, com emisses

    televisivas dedicadas ao tema, inmeras aparies do assunto em programas de considervel

    audincia, e grande visibilidade para alguns dos personagens envolvidos no caso. Devido a tal

    exposio macia na mdia, decidi realizar em minha dissertao de mestrado uma anlise

    desses sistemas de acusao e defesa surgidos em torno dos casos, mais especificamente

    aqueles ocorridos ao longo do perodo referido, sem dvida o de maior efervescncia do

    assunto pitboys.

    J h algum tempo vinha trabalhando o tema em um sentido completamente diverso.

    Procurava identificar e conhecer um pouco o ethos desse grupo, analisar de modo geral seu

    comportamento, suas atividades dirias e de lazer e acompanh-los em uma espcie de

    observao distante, complementada por entrevistas realizadas com indivduos pertencentes a

    1 E justamente aqueles com maior circulao entre os estratos economicamente privilegiados da populao

    carioca.

  • 2

    essa categoria. Entretanto percebi a inutilidade (e impossibilidade) de tudo isso, por meio de

    um simples questionamento: existem indivduos que se identificam (e se representam) como

    pitboys? Indivduos se associam espontaneamente em torno desse signo? Percebi que, na

    maioria daqueles casos relatados, havia mesmo uma preocupao, por parte dos acusados e de

    seus defensores, de desvincul-los do rtulo de pitboys, ao mesmo tempo em que me

    pareciam muito exageradas e passionais as opinies emitidas publicamente sobre o assunto.

    Partindo destas constataes, atentei para o quo interessante e importante uma

    discusso centrada na criao de um grupo, por parte de indivduos que no se incluiriam nele

    (sendo, ento, acusadores), para marcar a identidade de pessoas que no se reconhecem de tal

    maneira (acusados). Seria algo prximo crtica weberiana em relao s teorias2 que

    ignoram toda a amplitude presente na relao entre conceito e realidade (Weber, 1982;

    102). Poderamos, muito provavelmente, afirmar o carter de tipo ideal da categoria pitboy,

    sempre levando em conta sua inexistncia concreta na vida social. Entretanto, esta distino

    est visivelmente ausente no discurso veiculado na mdia, mesmo que, algumas vezes, isso

    signifique uma tentativa de adaptar, fora, a realidade a um esteretipo ou rtulo3, como

    veremos ao longo deste trabalho.

    As ferramentas

    Sendo assim, realizarei um estudo de caso(s), me utilizando do clebre modelo

    antropolgico que consiste na busca de um drama social, onde os valores presentes na

    sociedade so ressaltados e reafirmados (Epstein, 1969; Turner, 1974). Tais valores seriam

    enfatizados com a criao de um sistema de acusao, ganhando maior visibilidade (uma

    2 No caso, uma crtica teoria marxista.

    3 Prefiro o termo rtulo, por estar j tradicionalmente no debate sociolgico associado ao estudo de

    comportamentos desviantes e sistemas de acusao.

  • 3

    oportunidade realmente interessante e mpar, levando-se em conta serem os valores

    declaraes de preferncia vagas e generalizadas (Becker, 1977; 93) ).

    Base importante do trabalho que desenvolvo a chamada labeling theory (teoria da

    rotulao), em especial a elaborada por Becker, que vincula o estudo do comportamento

    desviante no etiologia do problema, mas relao entre os diversos atores envolvidos em

    um processo de acusao. O desvio, segundo essa teoria, seria o produto de uma transao

    efetuada entre um grupo social e um indivduo que, aos olhos do grupo, transgrediu uma

    norma, e seria considerado como uma propriedade no do comportamento em si, mas da

    interao entre a pessoa que comete o ato e aquelas que reagem a esse ato.

    Juntando essas duas ferramentas, uma terica e outra metodolgica, analisarei trs

    casos ocorridos durante o perodo supracitado, justamente aqueles em que o processo de

    rotulao foi mais intenso, e definitivamente bem-sucedido, por terem, em algum momento de

    seu desenrolar, proporcionado a deteno dos envolvidos. Alm do fator simblico inerente

    priso em si, tal situao provocou um debate bem mais acalorado e generalizado, o que

    torna, sem dvida, o material mais rico e interessante.

    Estrutura do texto

    Ao longo dos trs captulos a seguir foi respeitada uma mesma estrutura de exposio.

    Inicialmente introduzo o caso, iniciando pela briga que deu origem ao processo de rotulao

    do pitboy, e sigo pelos principais acontecimentos posteriores a ela4. A etapa ulterior a

    discusso da principal acusao decorrente da briga, vindo em seguida a apresentao mais

    detalhada dos personagens significativos ao processo de acusao, devidamente divididos em

    pitboys, acusadores e defensores. Finalizo com algumas observaes que, sem gozar ainda do

    carter de concluso, contribuem significativamente para a sua elaborao.

    4 O que chamo de desenrolar do caso.

  • 4

    Conversando com a literatura

    O uso de obras literrias que pouco ou nada teriam, teoricamente, a ver com sociologia

    ou antropologia, tambm acabou por se tornar uma constante neste trabalho. Creio, no

    entanto, que sejam de grande prstimo para nossas disciplinas, por serem capazes de captar e

    reproduzir valores e ambigidades morais, revelando muitas vezes mais do meio social

    referido do que boa parte da produo acadmica sobre o tema. Julian Pitt-Rivers sobre a

    honra (Pitt-Rivers, 1997), e Roberto DaMatta em relao malandragem (DaMatta, 1997), j

    haviam atentado para esse fato.

    A literatura (outra vantagem de se trabalhar com ela), lida com questes que no eram

    consideradas dignas dos grandes pensadores sociais, sendo completamente ignoradas por

    estes. Alguns romances poderiam assim desempenhar, mesmo, o papel de fonte etnogrfica,

    ou ao menos de instrumento auxiliar para se pensar determinados conceitos e situaes.

    Assim sendo, pretendo usar a literatura como uma companheira de conversa, capaz de

    me lanar um exemplo quando menos se espera, colaborando para ilustrar as idias em

    desenvolvimento.

    O Homem-Co

    Significativo tambm observar o rtulo criado para designar esses jovens acusados

    de comportamento violento. O pitboy, hbrido de playboy e pitbull, homem e co, assim

    chamado por sua ferocidade, comparvel dessa raa canina. Como nos assinala Edmund

    Leach em seu estudo sobre insultos verbais baseados em categorias animais, a proximidade

    social em relao aos humanos determina um alto valor de tabu aos animais domsticos

    (Leach, 1983). Vale lembrar a frase por todos j ouvida inmeras vezes: o cachorro o

    melhor amigo do homem.5

    5 No seria absurdo que hibridismos com outros animais ferozes, tigre, lobo ou leo, por exemplo, pudessem

    atuar, dentro da lgica da acusao, no sentido contrrio, conferindo um certo romantismo ao personagem.

  • 5

    preciso informar que, mesmo antes da adoo do termo pitboy, j havia uma

    percepo generalizada em relao ao crescente nmero de jovens dotados de msculos

    hipertrofiados, aprendendo a lutar, e bancando o valento na rua. Exemplos significativos

    disso so as msicas de Gabriel, o pensador (cujos versos so reproduzidos nos Anexos B e

    C), e o personagem de sucesso da TV brasileira, Massaranduba6, um lutador marombeiro

    sempre repetindo o mesmo bordo: Voc obviamente deve estar duvidando da minha

    masculinidade. Eu vou dar porrada!7

    Contudo, inegvel que o rtulo propicia uma dinmica muito maior ao sistema de

    acusaes, aumentando a concretude e a visibilidade de seu foco.

    A imprensa e as camadas mdias: o porqu dos jornais e o porqu desses jornais.

    A imprensa aparece no trabalho no entre os personagens, mas como a voz mais

    audvel destes, proferida com clareza e volume suficientes para que a discusso se estenda

    para toda a populao, que aparece aqui na forma de opinio pblica, representada pelos

    leitores que enviaram mensagens eletrnicas para os jornais emitindo opinies sobre o

    assunto. preciso ter em vista o perfil dos leitores de O Globo e Jornal do Brasil,

    tradicionalmente associados s classes mdia e alta, por oposio aos chamados jornais

    populares, como, por exemplo, O Dia e O Povo. Sendo assim, podemos nos arriscar a dizer

    que a discusso analisada no presente trabalho representa, basicamente, pontos de vista

    oriundos das camadas mdias, que podem ou no se difundir para outras camadas sociais.

    Chamo de camadas mdias ou classes mdias, seguindo as orientaes de Gilberto

    Velho, um estrato da sociedade que, longe de poder ser considerado homogneo, se

    constituiria mais pela certeza de no pertencer s classes altas, no serem ricos (at pela

    6 Do programa humorstico Casseta & Planeta.

    7 A principal acusao contida nesse bordo (homofobia, ligada a uma sexualidade dbia), apesar de muito

    difundida, no chega a ser analisada neste trabalho. Deve-se isso s caractersticas particulares dos casos aos quais me atenho.

  • 6

    impossibilidade material), tambm no podendo ser classificados como pobres, por no se

    identificarem com as classes populares8. Logo, um grupo que se reconhece por excluso ou

    negao de pertencimento aos extremos superiores e inferiores da sociedade. Alm disso, no

    podemos perder de vista que o tomamos aqui como um conceito, elaborado para facilitar a

    anlise, no existindo concretamente na vida real. Constri-se por oposio a outros grupos (e

    tambm a outros conceitos), no tendo como caracterstica marcante um ethos unvoco ou

    grandes unanimidades morais.

    Levando-se em conta a facilidade tipicamente contempornea representada pela

    comunicao via Internet, tornando muito maior e imediata a possibilidade de interao entre

    leitor e veculo de imprensa, podemos dizer que os jornais desempenham papel semelhante

    aos canais de fofoca (gossip) de que falam Norbert Elias e A. L. Epstein (Epstein, 1969; Elias

    & Scotson, 2000). Para ambos a fofoca, dentre outras coisas, desempenharia a funo9 de

    ressaltar os valores considerados positivos no grupo, que atuariam como indicativos de sua

    superioridade moral. o que podemos depreender do seguinte trecho: Os mexericos de censura apelavam mais diretamente para o sentimento de retido e virtude daqueles que o transmitiam. (...) O fato de se mexericar com outros sobre tal assunto era prova da prpria irrepreensibilidade. Reforava a comunho dos virtuosos. (Elias & Scotson, 2000; 124).

    exatamente por estar interessado na dimenso moral das discusses realizadas em

    torno dos casos, que resolvi me ater ao trabalho de pesquisa nos jornais. Enxergar o jornal

    como um entre os diversos canais de fofoca existentes na sociedade, e ainda mais, como um

    dos mais extensos e democrticos10 no contexto da metrpole, me possibilitou usufruir de

    um vasto leque de informaes, opinies, sugestes e, algumas das vezes, simplesmente de

    8 Com as quais no desejam se identificar, sendo importante essa necessidade de distanciamento, levando-se em

    conta a permanente ameaa de proletarizao do que poderamos chamar de baixa classe mdia (Velho, 1981a). 9 preciso ter cuidado para no interpretar essa afirmao por um vis funcionalista, que costuma aproximar

    funo da idia de causalidade.

    10 No sentido de possibilitar, por meio das sees de cartas, uma difuso da opinio de muitas pessoas

    diferentes, no necessariamente envolvidas com a atividade jornalstica.

  • 7

    expresses de repdio e revolta. Exatamente como acontece no contexto da fofoca, prtica

    largamente difundida e utilizada socialmente, e que indubitavelmente, influencia (e, de certa

    forma, organiza) algumas de nossas mais importantes formas de comunicao.

    Sendo assim, no me preocupo com o que realmente tenha acontecido em cada um dos

    casos, nem com o que determinadas pessoas tenham dito textualmente, pois, assim como na

    fofoca tradicional, o importante a verso que passada, aquela que chega discusso

    pblica, mesmo que tenha sido mutilada ou desfigurada (quando no totalmente recriada)

    pelas convices e julgamentos morais dos fofoqueiros.

    Sero utilizadas sempre que possvel, e fazendo jus estrutura mexeriqueira do

    trabalho, diversas declaraes encontradas nas pginas do Globo e do Jornal do Brasil11,

    sempre com a finalidade de ilustrar o desenrolar dos casos, assim como as diferentes opinies

    e verses emanadas destes. Afinal de contas, toda boa fofoca deve despertar a ateno de

    muitas pessoas, e prend-las ao assunto, a fim de manter ininterrupto e sempre vivo o fluxo de

    informaes.

    11 No melhor estilo ih, voc no sabe o que fulano me contou!.

  • 8

    I Pitboys ou Beachboys? Sobre o estigma e a sujeio

    criminal.

    1. O caso e seu desenrolar

    1.1. O massacre

    Por volta das 4 horas da manh do dia 19 de maro de 2004, incio da sexta-feira, a

    boate Baronetti, em Ipanema, foi palco de uma briga envolvendo quase dez pessoas,

    terminando com o espancamento de duas delas e a priso de quatro. Duas horas antes, do lado

    de fora dessa mesma boate, j ocorrera uma pancadaria generalizada, com um rapaz sendo

    levado para o hospital (havia sido alvo de uma garrafada), e quatro supostos agressores

    autuados por leso corporal grave. Alm desses dois incidentes ocorridos na Baronetti, a

    poucos metros dali, em uma boate na Lagoa (Prelude), um jovem de 22 anos foi autuado por

    tentativa de leso corporal e injria, por ter discutido e tentado agredir o matre da casa.

    Dentre esses trs casos, todos noticiados no dia 20 de maro, somente o primeiro mereceu

    acompanhamento jornalstico dirio, tendo o desenvolvimento dos outros dois sido

    completamente ignorado. Para melhor compreender o interesse despertado por esse caso, ele

    ser agora descrito, como foi noticiado nos jornais12 (O Globo e Jornal do Brasil) no dia

    seguinte ao acontecimento.

    Francisco Eduardo Buzar (23 anos) teria puxado o cabelo13 de Roberta Bulco de

    Moraes (22), levando Jos Francisco Borges (22), seu namorado, insatisfeito com o assdio

    indevido, a comear uma discusso, tendo sido, logo em seguida, espancado por cinco jovens

    (amigos de Francisco Eduardo). Jos Francisco teve vrias escoriaes no rosto, no

    chegando a ser atendido em hospital. O policial civil Tlio Souza Alves da Costa (35), agente

    12 No h, no relato do caso, nenhuma diferena substancial entre as informaes apresentadas pelos dois jornais

    analisados. 13

    No caso, puxar o cabelo tem uma conotao especial: diferentemente do significado que adquiriria em um contexto de briga (em que aparece claramente como um comportamento feminilizante, sendo comumente associado briga de mulheres), surge aqui como uma tentativa de conquista, um elogio, quase uma declarao voc bonita e me atrai.

  • 9

    do Core (grupamento de elite da polcia civil), ao tentar apartar a briga, tambm acabou por

    ser espancado, com ajuda de garrafas e cinzeiros, precisando ser atendido no Hospital Miguel

    Couto, onde levou aproximadamente cinqenta pontos no rosto14 (Tlio portava dois

    revlveres, mas, preocupado com possvel pnico dos demais freqentadores, preferiu no

    sac-los).

    1.2. O inferno e a redeno

    Alm de Francisco Eduardo, foram tambm autuados os irmos Carlos Felipe Barros

    (20) e Bruno Vincius Barros (inicialmente havia declarado ter 18 anos, por isso consta seu

    nome no jornal, tendo ficado posteriormente comprovado que sua idade real 16, tornando

    sua simples presena na boate ilegal), alm de Andr Thebit Pfeiffer (20). Todos eram amigos

    e foram juntos para a boate. As unidades policiais responsveis pelo caso foram a 14 DP

    (Leblon) e 23 BPM (Leblon).

    Os jovens foram levados15 para a delegacia e autuados por leso corporal leve16, sendo

    em seguida liberados (na manh do dia 19/03)17. A cena mais marcante, e amplamente

    veiculada pelos noticirios televisivos, foi a de um desses jovens, ao ir embora da delegacia

    no carro da famlia, mandando beijinhos debochados para os reprteres. Esse detalhe, como

    ser visto mais adiante, ter importncia crucial no desenvolvimento do caso.

    Aps o exame de corpo de delito de Tlio (o policial atacado ao tentar apartar a

    briga), o delegado adjunto da 14 DP, Rafael Menezes, faz representao por leso corporal

    grave e formao de quadrilha, sendo tal representao aceita pelos juzes Lus Jos de

    Guimares Filho (planto judicirio) e Guaraci Vianna (2 Vara da Infncia e Juventude). Os

    jovens, que na vspera haviam sido autuados por leso corporal leve, so surpreendidos s 7

    14 A principal diferena nos relatos diz respeito ao nmero de pontos que Tlio precisou levar. O Jornal do

    Brasil fala em 40, enquanto O Globo afirma terem sido 50. 15

    importante salientar que nem todos os agressores foram identificados. 16

    Sobre as tipificaes criminais utilizadas ao longo do trabalho, ver anexo A. 17

    As datas so fundamentais para se compreender o desenvolvimento dos argumentos que vo surgindo.

  • 10

    horas da manh do dia 20/03 (sbado), em suas respectivas casas, por policiais civis do Core,

    sendo todos presos, trs deles levados para a Polinter e o menor para o Instituto Padre

    Severino. A mudana de qualificao do crime (mais especificamente a incluso da acusao

    de formao de quadrilha), permitiu que fosse pedida a priso temporria dos jovens por cinco

    dias, sob a alegao de que, em liberdade, poderiam constranger as testemunhas.

    Na noite de tera-feira (23/03), os trs acusados detidos na Polinter so beneficiados

    por pedido de habeas-corpus, revisto pelo desembargador Luis Leite Arajo, da 6 Cmara

    Criminal do Tribunal de Justia do Rio de Janeiro (TJ), e que havia sido anteriormente negado

    (no dia 21, domingo) pelo desembargador de planto Marcos Belizze. O TJ conclui no haver

    indcios de suposta formao de quadrilha. O menor, por razes burocrticas, s foi liberado

    na manh do dia seguinte, sendo a volta dos quatro jovens para casa muito comemorada por

    famlias e amigos. A reao popular18 contrria deciso da justia bastante veemente e

    apaixonada, contudo comea a aparecer de forma um pouco mais organizada um sistema de

    defesa, j desde o incio ensaiado pelos pais dos jovens e alguns de seus amigos mais

    prximos. Essa estratgia, embora de maneira bem mais discreta, reforada agora por

    diversos setores da sociedade, incluindo delegados, advogados, psiclogos e at mesmo o juiz

    Guaraci Vianna, um dos principais acusadores no incio do processo, e funcionando mesmo

    como atenuantes acusao anteriormente realizada.

    Apesar de no ocorrer mais nenhuma mudana substancial at o fim do perodo

    analisado nesse captulo (de 19 a 28/03)19, as discusses em torno do caso se mostram ainda

    mais frteis a partir da libertao dos acusados. Aumentam as participaes de leitores e

    colunistas dos jornais, colaborando de forma fundamental para os processos de acusao e

    rotulao dos pitboys em questo.

    18 Me refiro, nesse ponto, ao que pode ser captado nas pginas dos jornais, principal foco da ateno, em especial

    as sees de cartas, tendo estas destinado espao considervel ao assunto. 19

    Interrompo no dia 28 de maro a anlise do primeiro caso por ter sido esta a data do ataque que origina o segundo (estudado no captulo II).

  • 11

    2. Conceitos, acusao e personagens.

    2.1. A face e a honra: conceitos complementares

    Para analisar a questo com maior propriedade, preciso conhecer os principais

    indivduos envolvidos no drama social (Epstein, 1969; Turner, 1974), e ter em pauta o

    papel que cada um deles desempenhou dentro do processo de desvio (lembrando sempre a

    situao do desvio, caracterizado como uma interao entre os diversos atores, tanto aqueles

    que cometem um ato, quanto os que reagem a ele). Creio ser imprescindvel ter em conta

    (tanto na anlise do prprio ato da briga quanto no desenrolar do caso) que os indivduos

    envolvidos em qualquer interao, participam dela portando uma face20, que seria uma

    imagem (auto) delineada constituda com alguns atributos sociais aprovados (por algum

    grupo, mesmo que no o seja por uma parcela majoritria da sociedade) (Goffman, 1974). A

    face seria no s um atributo da interao, mas tambm parte importante na construo do

    prprio indivduo, sendo esta desenvolvida no sobre tendncias psquicas interiores, mas

    elaborada a partir de regras morais que lhe so impressas exteriormente(Goffman, 1974;

    41-42). A importncia desse fator nos casos analisados evidente, ainda mais se tratando de

    situaes de tamanha exposio pblica, pois praticamente todos os atos que impliquem

    outras pessoas so modificados (positiva ou negativamente) pela preocupao em manter-se a

    face.

    Sem dvida, parcela fundamental desse trabalho de preservao da face parte dos

    valores identificados por Pitt-Rivers como provenientes de uma masculinidade mediterrnea,

    cuja presena na formao da identidade brasileira indiscutvel, baseada essencialmente no

    conceito de honra (Pitt-Rivers, 1997). A honra seria um fator constitutivo primordial da

    identidade, tanto individual como coletiva (em um grupo de amigos, por exemplo),

    aparecendo como base importante para a compreenso dos comportamentos pessoais quando

    20 Face o termo usado no original, em ingls.

  • 12

    em situaes de interao. o que podemos ver melhor nas palavras do autor (Pitt-Rivers,

    1997; 18):

    Lhonneur est la valeur quune personne possde ses propres yeux mais cest aussi ce quelle vaut au regard de ceux qui constituent sa societ. Cest le prix auquel elle sestime, lorgueil auquel elle prtend, en mme temps que la confirmation de cette revindication par la reconnaissance sociale de son excellence et de son droit la fiert. Les chercheurs qui se sont attachs au dtail des relations personnelles ont observ que celles-ci taient fort influences par la faon dont les uns extorquent aux autres la validation de limage de soi laquelle ils tiennent, les deux faces de lhonneur se trouvant de la sorte accordes. Lhonneur amnage une conexion entre les idaux en vigueur dans une societ et la reproduction que fait de ceux-ci lindividu qui inspire a les incarner.21

    A juventude aparece como um importante fator catalisador em questes de honra, por

    ser este momento marcante (e, muitas vezes, uma experincia angustiante) na formao de

    uma identidade, exemplo clssico de momento de liminaridade, no caso, entre infncia e vida

    adulta. Nesse contexto, as posies sociais ainda estariam, em alguns de seus aspectos mais

    importantes, em formao, ganhando, em muitas situaes, dimenses bastante exacerbadas,

    seja como forma de assegurar um status privilegiado ou como reao direta a um estigma .

    Essa questo, tambm levantada por Norbert Elias (Elias & Scotson, 2000) e Julian Pitt-

    Rivers (Pitt-Rivers, 1997), torna-se patente no estudo realizado por William Foote-Whyte, em

    grupos de amigos que se reuniam em esquinas (street corner societies) de um bairro pobre de

    imigrantes italianos, em Boston, e que seriam tambm herdeiros incontestveis da

    masculinidade mediterrnea. Um exemplo bastante ilustrativo o relato de uma briga na qual

    o grupo se envolveu anos antes, quando eram todos adolescentes, e em muitos aspectos se

    assemelhando ao caso em questo (Foote-Whyte, 1973; 5):

    Once a couple of fellows in our gang tried to make a couple of girls in Main Street. The boy friends os these girls chased our fellows back to Norton Street. Then we got together and chased the boy friends back to where they came from (...) It usually

    21 A honra o valor que uma pessoa possui aos seus prprios olhos, mas tambm o que ela vale visto por

    aqueles que constituem sua sociedade. o preo que ela estima para si, o orgulho ao qual ela aspira, de mesmo que a confirmao desta reivindicao pelo reconhecimento social da sua excelncia e do seu direito altivez. Os pesquisadores que se ativeram aos detalhes das relaes pessoais observaram que estas eram fortemente influenciadas pela maneira segundo a qual uns extorquem aos outros a validao da imagem de si qual se apegam, acordando assim as duas faces da honra. A honra organiza uma conexo entre os ideais em vigor em uma sociedade e a reproduo que o indivduo que deseja encarn-los faz destes.

  • 13

    started this way. Some kid would be beaten up by one of our boys. Then he would go back to his street and get his gang. They would come over to our street, and we would rally them.22

    Como podemos observar, longe de aparecer como uma especificidade de um grupo,

    existente ou inventado, o conflito fsico entre jovens, especialmente em momentos de lazer,

    poderia mesmo ser considerado como uma constante em inmeras sociedades ocidentais.

    procura do que seria a especificidade da briga analisada, capaz de transform-la em assunto de

    destaque nos principais jornais da cidade, uma olhada mais cuidadosa nos personagens

    envolvidos no caso, poderia se mostrar bastante esclarecedora.23

    2.2. Sobre a impunidade e o uso do sabe com quem est falando?.

    Desde o dia seguinte apario da briga nos jornais e na televiso, alguns argumentos

    surgem de forma bastante repetida entre as diversas pessoas que tentam explicar as razes que

    levam jovens de classe mdia a se envolverem em uma briga com tamanha ferocidade, e

    iniciada de forma to inslita e banal. possvel dividi-los em duas categorias mais

    abrangentes: uma delas culparia a sociedade de maneira generalizada, enquanto a outra

    jogaria a responsabilidade sobre a famlia, mais precisamente sobre os pais. Em relao a este

    primeiro caso, contudo, creio ser de maior valia a nfase no argumento que responsabilizaria a

    sociedade brasileira (e suas especificidades), pois a partir do segundo caso, como veremos

    mais adiante, o ncleo familiar cada vez mais passa a ser visto como principal culpado pelo

    surgimento dos pitboys, havendo ento uma sofisticao dos argumentos que, imagino,

    permitir uma discusso mais proveitosa sobre o assunto no captulo a seguir. Da mesma

    22 Uma vez uns camaradas da nossa gangue cortejaram umas garotas de Main Street. Os namorados delas

    enxotaram nossos camaradas de volta Norton Street. Ento nos juntamos e enxotamos os namorados de volta para o lugar de onde eles vieram (...) Normalmente comeava assim. Algum moleque apanhava de um dos nossos garotos. Ele ento voltava sua rua e pegava sua gangue. Eles vinham at nossa rua, e ns brigvamos com eles. 23

    Apesar de j aparecer como importante nesse primeiro caso, nos dois seguintes que aparecero com mais fora, a face caracterizando o segundo, e a honra o terceiro.

  • 14

    forma que a primeira categoria de argumentos, que responsabiliza a sociedade, vai

    progressivamente perdendo fora, apesar de em nenhum momento desaparecer por completo.

    Mas de que forma a sociedade, com toda a generalizao aplicvel ao termo, poderia

    ser vista como a principal explicao para o fenmeno pitboy? Para boa parte dos leitores, e

    dos profissionais ouvidos pela imprensa (psiclogos, delegados, advogados, promotores e

    outros), a violncia dos pitboys seria fruto da impunidade que envolveria todos os crimes

    praticados pela elite24, por esta no ser alcanvel pelo brao da lei. Longe de ser vista

    como conseqncia da atual administrao policial ou da justia, essa impunidade

    considerada como inerente prpria estrutura social brasileira, na qual aqueles que esto no

    topo da pirmide hierrquica sempre so tratados de forma privilegiada, enquanto os

    subalternos receberiam tratamento muito mais rigoroso. Sendo assim, aps a libertao dos

    quatro jovens, a revolta e indignao expressas (de forma bastante veemente) pela opinio

    pblica se direcionam contra os responsveis legais pelo caso. o que podemos ver nas cartas

    a seguir:

    Parabns ao desembargador Guaraci Vianna por suas sbias decises de pr em liberdade os quatro jovens envolvidos na briga na boate Baronetti. Essa a justia que merecemos. Caso os quatro jovens fossem oriundos de comunidades carentes e tivessem protagonizado as mesmas aes, por exemplo, num baile funk, seriam, com toda a certeza, processados por formao de quadrilha e ainda estariam presos. Resta concluir que o smbolo da Justia traduz bem tais fatos: tem a venda nos olhos para no ver crimes praticados pelos abastados; uma balana para aquilatar a importncia dos rus; e uma espada para tanger os pobres.25

    Definitivamente, no d para entender certas decises da Justia tupiniquim. Os pitboys, filhinhos de papais ricos que recentemente promoveram baderna generalizada em boate da Zona Sul, espancando diversos freqentadores e um policial, de forma brutal e animalesca, acabam de ganhar a liberdade graas deciso de ilustre desembargador que fundamentou sua deciso no fato de que os facnoras em questo tm, entre outros atributos, profisso. Fica, ento, estabelecido que, a partir de agora, baderneiro profisso. Simplesmente revoltante.26

    24 Uso a expresso elite por uma questo de fidelidade s categorias nativas, e nela esto includas as camadas

    mdias, alm dos ricos propriamente ditos, encaradas em oposio s camadas populares, percebidas como mais atingidas pela ao da polcia e da justia. 25

    Carta de Lev Inim Miranda ao jornal O GLOBO , publicada no dia 25/03/2004. 26

    Carta de Jos Carlos Vieira rpho publicada no Jornal do Brasil, dia 25/03/2004.

  • 15

    Por outro lado, mesmo aqueles que representam a lei, como o caso do promotor

    pblico Mrcio Moth, apontam a impunidade como principal catalisador do comportamento

    violento dos pitboys, e, reconhecendo a responsabilidade da justia frente violncia social,

    como j havia feito em relao aos consumidores de drogas, pede punio mais rigorosa para

    os envolvidos em brigas em casas noturnas: H uma sensao de impunidade na classe

    mdia. Ao mesmo tempo que cobram do poder pblico solues para a violncia, no sabem

    se comportar na noite. 27

    Apesar do sistema legal brasileiro garantir um tratamento impessoal e igualitrio a

    todos, perceptvel o tratamento diferenciado dado s pessoas que ocupam posies

    diferentes na sociedade. por todos conhecida a expresso tradicionalmente utilizada em

    situaes em que aparece a ameaa de aplicao de tal impessoalidade e igualdade em relao

    queles que ocupam posies hierarquicamente superiores: o sabe com quem est

    falando?, sobre o qual fala Roberto DaMatta (1997; 195):

    Alis, tudo indica que uma das razes sociais do ritual de separao em estudo (o sabe com quem est falando?) exatamente o de permitir e legitimar a existncia de um nvel de relaes sociais com foco na pessoa e nos eixos e dimenses deixados necessariamente de lado pela universalidade classificatria da economia, dos decretos e dos regulamentos. O sabe com quem est falando? e podemos dizer isso sem receio de cometer um curto-circuito sociolgico um instrumento de uma sociedade em que as relaes pessoais formam o ncleo daquilo que chamamos de moralidade (ou esfera moral), e tem um enorme peso no jogo vivo do sistema, sempre ocupando os espaos que a lei do Estado e da economia no penetram. A frmula sabe com quem est falando? , assim, uma funo da dimenso hierarquizadora e da patronagem que permeia nossas relaes diferenciais e permite, em conseqncia, o estabelecimento de elos personalizados em atividades basicamente impessoais.

    No momento em que a crise deflagrada e todos comeam a procurar uma razo para

    um comportamento aparentemente to irracional por parte de quatro jovens de classe mdia, o

    sabe com quem est falando?, retirado do repertrio social de explicaes em relao ao

    comportamento desviante quando no oriundo das classes populares, surge como mal a ser

    expurgado por uma ao enrgica da polcia e da justia nesse caso, uma chance de se

    27 Jornal do Brasil, 21/03/2004.

  • 16

    combater a impunidade, considerada como um dos maiores problemas nacionais. A opinio

    do leitor Gustavo Nagib, publicada pelo Globo no dia 23/03, nos mostra isso claramente:

    Mais uma vez assistimos ao mau exemplo de jovens bem alimentados, bem vividos e de bom poder econmico. Felizmente, parece que desta vez a Justia enxergar um pouco e no mais acobertar os erros de filhos destes ou daqueles, os sabe com quem est falando?. Mas uma pergunta faz-se necessria: o que fazia um garoto de 16 anos na boate, de madrugada? A boate, pois, tem culpa tambm.

    Ou na declarao aparentemente contrria, mas muito semelhante de Maria Fernanda

    da Costa Carvalho28, segundo a qual os jovens no seriam pitboys, mas vtimas de uma

    espcie de sabe em quem est batendo?:

    (...) devemos ter cuidado para no rotular todos os envolvidos como pitboys, que so jovens praticantes de lutas marciais cujo prazer est em usar a violncia. Nesta recente e infeliz ocorrncia, jovens universitrios, sem histrico de violncia, no praticantes de lutas marciais, foram envolvidos na atual onda de violncia e apanhados como exemplo. Devemos ter cuidado para que no seja praticado um julgamento sumrio. Os fatos devem ser apurados e a violncia coibida, mas sem a conduta passional por ter havido a participao de um policial.

    A preocupao com a impunidade toma propores to grandes aps a cena dos

    beijinhos, emblemtica de toda a situao por vir, que os acusados acabam sendo tratados

    com um rigor visivelmente exagerado, culminando na priso preventiva sob acusao de

    formao de quadrilha. A passagem da tipificao inicial, leso corporal leve, para a

    tipificao final, leso corporal grave, realizada sob intensa presso social, tambm pode ser

    considerada rigorosa diante das respectivas definies presentes no Cdigo Penal (ver anexo

    A).

    Creio poder afirmar que, ao contrrio do que todos especulavam e alardeavam, o fato

    de serem membros das camadas mdias, fez com que os quatro acusados fossem julgados

    sumariamente e punidos com rigor excessivo, e no como beneficirios da impunidade que

    acoberta os crimes da elite ou do tradicional sabe com quem est falando?.

    No caso, a nfase na necessidade de punio exemplar aos jovens, com uma exposio

    pblica inimaginvel para um caso de briga sem vtimas fatais acontecido em algum local de

    28 O Globo, 23/03/2004.

  • 17

    lazer popular, demonstra esse fato29. imensa a indignao com o comportamento violento

    quando este parte de jovens de boa famlia, que agem de acordo com um ethos masculino

    tradicionalmente imputado s classes populares, aos pobres (Zaluar, 2000), vistos como

    menos atingidos pelo processo civilizador (Elias, 1994). Podemos ver claramente como

    ocorre tal associao entre violncia e pobreza (ou, ao menos, na distncia imaginada entre a

    violncia e a riqueza), na reportagem publicada no dia seguinte confuso analisada, na qual

    so enunciadas algumas das medidas j utilizadas para transformar as casas noturnas em

    locais mais seguros:

    O empresrio Rick Amaral, dono da Baronetti, disse que a boate muito freqentada nas noites de quinta-feira, sexta-feira, sbado e domingo, mas negou que o local fique superlotado. Ele pretende reforar a segurana e redobrar a ateno na entrada. Para evitar confuses, o empresrio j tinha elevado o preo do ingresso para homens para R$ 70 e fazia pr-seleo na portaria.30

    Ao que tudo indica, todos os envolvidos na briga pagaram a quantia estabelecida na

    entrada e foram aprovados na pr-seleo imposta pelos seguranas.

    Rechaar com fora o comportamento dos pretensos pitboys, defendendo sua punio

    sumria, antes mesmo que o caso seja submetido a julgamento, poderia ser, hipoteticamente,

    uma forma que as classes mdias usariam para afirmar sua diferena (e superioridade) em

    relao s classes populares. A posio scio-econmica dos jovens adquiriria status de

    agravante no caso, constituindo uma mcula incmoda para os demais membros dessas

    camadas mdias, que fazem questo de serem os primeiros a apont-la e conden-la.

    No pretendo com isso insinuar a existncia de uma estratgia consciente de

    segregao ou hierarquizao, preocupada constantemente com a manuteno da ordem social

    e econmica vigente. claro que tais acusaes, divulgadas por jornais ou canais de fofoca,

    29 Sobre a diferena de repercusso entre brigas em boates caras, envolvendo membros das classes privilegiadas,

    e aquelas ocorridas em locais de lazer destinados s classes populares (mais especificamente bailes funk), ver Cecchetto, 2004. 30

    O GLOBO, 20/03/2004. Os selvagens da noite.

  • 18

    acabam estabelecendo, ao ressaltar a superioridade moral de valores civilizados31 (que

    seriam mais visveis nas atitudes concretas), um tipo de hierarquia em que os comportamentos

    que viessem a escapar a esse padro seriam considerados como piores ou inferiores. Como

    esses so comumente associados s classes populares, a transferncia acaba ocorrendo de

    forma natural. Contudo, custo a crer que todos aqueles que defendem o comportamento

    civilizado como moralmente superior sejam entusiastas, ao menos de forma consciente, de

    alguma segregao scio-econmica, ou que se vejam como atores significativos de uma

    estratgia de manuteno do status quo.

    2.3. Personagens da histria.

    2.3.1. Os Pitboys

    Os quatro jovens acusados de comearem a briga e de terem espancado as duas

    vtimas, desde o primeiro momento recebem o rtulo de pitboy, explorado repetidamente pela

    e atravs da imprensa. Mas o que seria um pitboy?

    O termo pitboy foi criado na imprensa carioca em maro de 199932, e se origina da

    fuso das palavras pitbull, uma raa de ces mundialmente conhecida pela fora e ferocidade,

    e playboy, nome dado, inicialmente, a milionrios que viviam sem nenhuma preocupao com

    dinheiro ou com trabalho33, e que hoje conserva mais a idia de no-trabalho do que a de

    riqueza34. Tal categoria foi criada em meio a uma onda de ataques praticados por jovens de

    classe mdia-alta que praticavam artes-marciais (na maioria o jiu-jitsu) e andavam (e

    brigavam) na maioria das vezes em grupo.

    31 Fundamentalmente calcados no (auto)controle dos sentimentos (Elias, 1994).

    32 Os reprteres Tom Leo e Carlos Albuquerque reivindicam a paternidade da expresso, supostamente utilizada

    pela primeira vez no jornal O Globo de 26 de maro de 1999 (curiosamente, exatamente cinco anos antes do auge da discusso provocada pelo caso que est sendo analisado). 33

    O exemplo mais conhecido o de Jorginho Guinle, filho de uma das mais ricas e ilustres famlias do Rio de Janeiro e que, ao longo de uma vida marcada pelo luxo e por suas extravagncias, consumiu todo seu imenso capital. Jorginho, que se gabava de haver namorado as maiores estrelas de Hollywood em sua poca, s trabalhou uma nica vez, j octogenrio, como acompanhante de viagens para milionrios. 34

    Embora tal estilo de vida seja claramente incompatvel com uma vida feita de privaes e pobreza.

  • 19

    Francisco Eduardo, Andr e os irmos Carlos Felipe e Bruno no se adequavam ao

    perfil fsico35 atribudo a um pitboy, e no praticavam nenhum tipo de arte marcial. Tal fato,

    inicialmente no notado ou levado em conta, torna-se, no decorrer da semana, um importante

    argumento usado pelos defensores dos jovens, sendo, posteriormente aceito pelos acusadores

    ao menos como um atenuante de sua culpa. Percebe-se que, pelo simples fato de no se

    adequarem exatamente ao molde j pr-estabelecido de um pitboy, o argumento de seus

    acusadores mais veementes foi tornando-se menos convincente e, em meio de um

    surpreendente consenso legal, antes do fim do prazo previsto na priso preventiva, os quatro

    acusados so soltos e comemoram, sabendo que o pior j passara e que, dali em diante,

    dificilmente voltariam a ser presos. O fato mais surpreendente, entretanto, a mudana da

    postura da justia, que havia, at ento, sistematicamente tomado decises contrrias aos

    jovens.

    2.3.2. Os acusadores36

    Aps o destaque dado pelos jornais no dia seguinte briga, comea a surgir, de modo

    claramente no organizado (com a significante exceo da esfera legal, onde aparece de forma

    ntida uma articulao entre delegados, promotor e juzes), uma srie de grupos trabalhando,

    em diversas frentes, na acusao, rotulao e punio dos pretensos pitboys. Dentre esses

    grupos, pode-se destacar: a imprensa de modo geral, por meio das reportagens, editoriais e

    colunas; a opinio pblica, representada pelas cartas enviadas por leitores e selecionadas

    pelo jornal37; alm de uma comisso de representantes da sociedade civil, formada, entre

    outros, pelo ento presidente da OAB, Otvio Leite, pelo empresrio Ricardo Amaral

    35 Basicamente, fortes, de cabea raspada e orelha inflamada, signos caractersticos de muitos praticantes de jiu-

    jitsu. 36

    Gostaria de chamar a ateno para a definio apresentada por Gilberto Velho de sistema de acusao, que ser utilizada como base do presente estudo: uma estratgia mais ou menos consciente de manipular poder e organizar emoes, delimitando fronteiras (Velho, 1981b) (grifos no original). 37

    O fato de as cartas serem escolhidas em um processo interno do jornal pe uma responsabilidade maior nesse ltimo.

  • 20

    (proprietrio de diversas casas noturnas), pelo deputado federal Jlio Lopes e pelo advogado

    Ary Bergher. Essa comisso da sociedade civil se organizou, a partir do dia seguinte ao

    caso, em torno de algumas reivindicaes especficas, alardeadas como urgentes para o

    combate a episdios como o referido: que os crimes realizados por praticantes de artes

    marciais fossem classificados como mo armada (equivalente ao porte de arma branca); a

    fiscalizao de academias de luta; e da criao de uma delegacia especializada em combater

    crimes praticados por lutadores. Sem levantar a questo referente demanda em si, no deixa

    de ser curioso notar o seu surgimento como reao a um caso praticado por no lutadores, mas

    classificado como ataque de pitboys, estes sim comumente associados a praticantes de artes

    marciais. Uma carta enviada ao jornal O Globo no dia 23/03, nos d uma amostra de como

    reivindicaes bem parecidas emergem dos leitores38:

    preciso dar um basta na violncia dos pitboys, fruto da impunidade que acoberta os crimes da elite. Todos os alunos de academias de luta e de artes marciais devem ser registrados na federao de pugilismo. Fora das academias, dos ginsios e dos campeonatos, s podem usar suas tcnicas de luta em legtima defesa. Nos outros casos, essas agresses devem ser consideradas to graves como o uso de arma branca e punidas com pena de priso. Quem usa a fora bruta para resolver seus problemas deve ser afastado do convvio com a sociedade civilizada.

    Contudo, desde os primeiros flashes, uma pessoa fez questo de atuar e,

    principalmente, se afirmar publicamente, como o grande inimigo dos pitboys e principal

    responsvel pela priso dos quatro em questo: o promotor Mrcio Moth, da Coordenadoria

    de Justia Teraputica do Ministrio Pblico. o que vemos na reportagem de O Globo39, do

    dia 29/03, recheada com vrias declaraes do prprio, como no trecho citado abaixo:

    Na noite de 19 passado, o promotor Mrcio Moth, da Coordenadoria de Justia Teraputica do Ministrio Pblico, assistia televiso quando foi surpreendido pela imagem de um dos quatro jovens envolvidos numa briga na boate Baronetti, em Ipanema. O garoto debochava e mandava beijinhos para a cmera, logo depois de ser liberado pela polcia. Indignado, ele no pensou duas vezes. Deu vrios telefonemas que culminaram com a priso dos quatro na manh seguinte, graas a um mandado expedido depois que os acusados foram indiciados pelos crimes de leso corporal grave e formao de quadrilha.

    38 Carta de Nlson Franco Jobim.

    39 O promotor que vive no centro das polmicas, de Adriana Castelo Branco.

  • 21

    - Fiquei chocado com aquela cena absurda. Apesar de estarem em liberdade eles sero julgados pelo crime. Esse pessoal precisa levar umas pancadas da vida. O garoto na boate foi praticamente linchado. Se eu fosse o juiz classificaria a agresso como tentativa de homicdio afirmou.

    Moth parece bem vontade no papel de empresrio moral (Becker, 1977; 1985), ou

    seja, o indivduo que assume o encargo de cuidar para que a aplicao e a imposio da regra

    ocorram (assim como, em determinados casos, sua prpria deduo de uma norma). Em

    outras palavras, no forosamente a pessoa roubada, e sim aquela que grita pega ladro!,

    que chama ateno para o desvio e toma sua punio como tarefa pessoal. Dentre outros

    casos, Mrcio Moth j havia adquirido uma razovel visibilidade por ser o responsvel pela

    proibio de serem realizadas festas rave no Rio de Janeiro, alm ser importante adversrio da

    adoo da chamada poltica de reduo de danos (que visaria a descriminalizao das drogas

    no pas) (Moth, texto retirado da Internet), tendo inclusive processado (e alardeado

    publicamente esse fato) a atriz Luana Piovani por trfico, aps esta dizer em entrevista que

    fumava maconha40 (informao contida nessa mesma reportagem). Trata-se de atitudes que,

    sem dvida, reforam sua posio de empresrio moral.

    Tambm desempenham esse papel, aparecendo como coadjuvantes de Moth, e

    formando o nico grupo aparentemente organizado de acusao, Rafael Menezes, delegado

    adjunto da 14 D.P. (Leblon) e Guaraci Vianna, juiz da 2 Vara da Infncia e Juventude,

    provavelmente duas das pessoas que receberam os supostos telefonemas do promotor,

    telefonemas estes que teriam sido os pretensos responsveis, segundo o prprio Moth, pela

    deteno dos acusados, s sete da manh do dia seguinte. Entretanto, a lealdade desses dois ao

    caso varivel. O juiz, que chegou a admitir (no dia 22/03) que nunca houvera caso de briga

    entre jovens que tenha levado a uma condenao por formao de quadrilha, a partir de um

    certo momento, passa a admitir um possvel excesso na acusao, e acaba por aceitar o pedido

    40 Coincidentemente, impressionante a semelhana entre o texto de Moth citado e aqueles publicados por

    Harry Ainslinger, diretor do Federal Bureau of Narcotics durante o processo de criminalizao da maconha, exatamente o exemplo escolhido por Becker para ilustrar o conceito de empresrio moral.

  • 22

    de liberao do menor preso no Instituto Padre Severino. J o delegado mantm-se, at o fim,

    empenhado na misso de encontrar antecedentes que comprovem o pertencimento dos jovens

    a uma quadrilha, acreditando, aparentemente, com sinceridade nesse fato.

    2.3.3. A defesa

    possvel dizer que a defesa constituda por dois grupos, aparecendo em momentos

    distintos, sendo o primeiro deles formado pelos pais e amigos dos agressores e atuante desde

    o dia em que foram presos, e o segundo formado pela opinio pblica (cartas no jornal),

    que, j em um segundo momento do caso, passa a considerar exagerada a acusao de

    formao de quadrilha, por no ser possvel a associao mecnica entre os acusados e o

    esteretipo associado aos pitboys.

    Grosso modo, so identificados dois grandes argumentos, um deles de natureza legal,

    e o outro, poderamos dizer, moral. O primeiro diz respeito percepo do exagero contido na

    acusao de formao de quadrilha, que, aps o impacto inicial do caso, apareceu no discurso

    de inmeros representantes da justia (alguns deles tendo mudado de opinio sobre o assunto

    ao longo do processo) e da opinio pblica. o que vemos no discurso do leitor Fernando

    Reis, em carta publicada no dia seguinte soltura dos quatro jovens:41 Sou absolutamente a favor de qualquer medida legal que vise a responsabilizar e mesmo prender baderneiros covardes que temos visto infestando a noite do Rio. No entanto, h uma legislao penal que deve ser respeitada. No respeit-las equivale a nivelarmos nossas instituies policiais e judiciais e o Ministrio Pblico aos arroubos eleitoreiros de muitos polticos. A Polcia e a Justia no podem, para atender a uma cobrana social, ainda que legtima, simplesmente rasgar as leis penais. Se estas esto inapropriadas, modifiquemo-las. O crime de quadrilha, como sabemos, exige a estabilidade de um grupo para praticar crimes (no plural). At onde se sabe, os baderneiros presos no foram identificados por qualquer outro crime anterior. Solues casusticas no qualificam a democracia e o remdio de hoje pode ser o veneno de amanh. O melhor exemplo tivemos do prprio policial civil atingido. No reagiu, preservando terceiros inocentes.

    41 O Globo, 25/03/2004.

  • 23

    No entanto, tal argumento parece s ter ganhado visibilidade pela aceitao do

    argumento moral, baseado na percepo de que os quatro jovens no se adaptavam ao modelo

    socialmente difundido de pitboy. Os amigos e familiares dos acusados se esforam em

    mostrar que h uma contradio entre a identidade social estigmatizada dentro da qual haviam

    sido classificados (pitboys), e sua identidade pessoal42, sendo essa segunda incompatvel (ou

    ao menos bastante distinta) com a primeira. O conhecimento prvio a respeito desses jovens

    leva esse grupo a no aceitar as acusaes a eles feitas, baseando essa recusa em outros

    fatores constitutivos da biografia de cada um deles. Essa situao se evidencia nas palavras de

    Andr de Biase43, cujo filho amigo de longa data dos quatro acusados: um absurdo a forma como alguns jovens se comportam na noite do meu, seu, nosso Rio de Janeiro. tambm um absurdo a forma como a mdia e a Secretaria de Segurana esto conduzindo o caso da briga na boate Baronetti. Em menos de 24 horas a opinio de um par de pessoas, com o apoio da mdia, conseguiu transformar jovens estudantes, responsveis e de boa formao, em viles da pior espcie. Um incidente lamentvel e que realmente no pode acontecer. No entanto, um incidente isolado transformou em bandidos quatro colegas que saram juntos para se divertir. A fala dos que os acusavam na TV e as manchetes dos jornais com as fotos desses garotos so chocantes. Como pode a mdia afirmar que esses estudantes so realmente pitboys sem antes apurar a verdade sobre sua conduta at agora? O que aconteceu grave. Porm no acho vlido, em nome da ordem e do respeito ao prximo, condenar e destruir o futuro desses jovens. Acho sim que eles devem uma satisfao sociedade, e que devem ser condenados prestao de servios comunitrios. As autoridades deviam pensar em uma forma mais justa e construtiva de conduzir esse caso.

    Sobre isso, diz Goffman (1988; 75-76):

    evidente que para construir uma identificao pessoal de um indivduo utilizamos aspectos de sua identidade social junto com tudo mais que possa estar associado a ele. claro ainda que o fato de ser capaz de identificar pessoalmente um indivduo nos d recurso de memria para organizar e consolidar a informao referente sua identidade social um processo que pode alterar sutilmente o significado das caractersticas sociais que lhe imputamos.

    O que os defensores tentam mostrar, essencialmente, que os acusados no eram

    bandidos, mas somente meninos normais que haviam cometido um erro. A identificao do

    42 Sobre os termos identidade social e identidade pessoal, ver Goffman (1988)

    43 curioso notar que esse mesmo Andr de Biase, na dcada de 1980, atuava em uma emisso televisiva

    (chamada Armao Ilimitada) na qual representava o papel de um surfista que, em diversas situaes de conflito, no hesitava em utilizar a violncia fsica, participando de inmeras brigas, sem que a identidade principal do personagem (surfista) fosse em momento nenhum confundida com a de brigo ou pitboy.

  • 24

    bandido no com o crime que cometeu mas com uma pretensa natureza de sua pessoa, como

    se fosse uma condio inata do indivduo sua propenso ao crime, seria uma importante

    caracterstica comum em diversas percepes da criminalidade e da violncia, como foi

    anteriormente observado por Michel Misse, recebendo o nome de sujeio criminal (Misse,

    1999). Para Misse, a sujeio liga e amplifica o tipo social (no caso o pitboy) com a atitude

    do(s) indivduo(s) (os acusados).

    Fica visvel a ligao entre os dois argumentos, sendo mesmo impossvel dissoci-los

    ou encontr-los de modo isolado em algum dos discursos. o que se pode verificar nessas

    declaraes contidas em uma carta de um leitor publicada em O Globo:

    Sou o primeiro a pedir cadeia para os pitboys. Eles so mesmo um ultraje s mais elementares regras de convivncia social e merecem perder a liberdade. Agora, revoltante ver algumas autoridades distorcendo os fatos, em busca de publicidade. Esses quatro rapazes que se envolveram numa briga de boate no deveriam estar presos. Eles no tm sequer as caractersticas bsicas de um pitboy: no so musculosos, nem tm a cabea raspada, nem so praticantes de lutas marciais. O hobby deles, moradores da Barra da Tijuca, pegar ondas. Ou seja, para dar exemplo aos pitboys trancafiaram os beachboys.44

    Ou ainda, no discurso do pai de dois dos acusados, ao dizer que temos notcias de

    que todos esto sendo bem tratados, o que s comprova que so inocentes. Os policiais

    sabem quem bandido, o que no o caso desses garotos.45

    Ao atentar para o fato de que o tratamento respeitoso dispensado pelos policiais da

    Polinter aos jovens funcionava como prova de sua inocncia, enfatizada a idia, bastante

    popular entre policiais (e socialmente difundida), de que estes tm a capacidade, adquirida

    com a prtica do servio, de perceber quem seria ou no bandido. Kant de Lima apresenta tal

    suposta capacidade como a prpria origem da alcunha de tira (Kant de Lima, 1995),

    comumente utilizada na gria policial, como aquele capaz de, somente ao olhar um tipo j ser

    capaz de tir-lo, saber se ou no bandido.

    44

    O Globo, 23/03/2004. E-mail enviado por Mrio Verdi e publicado na seo Cartas do Leitor 45

    O Globo, 22/03/2004.

  • 25

    3. Observaes finais

    Analisando simplesmente alguns dos personagens envolvidos no caso e sua

    organizao em trs grupos46 (acusados, acusadores e defensores), possvel perceber

    algumas caractersticas importantes de um processo de incriminao e julgamento sumrio

    (popular ou jurdico).

    Dentre elas destaco uma: a centralidade do julgamento moral na prpria elaborao e

    articulao do julgamento legal. Tal situao revela-se uma contradio de princpios em

    relao ao direito penal brasileiro, fundamentado na civil law tradition (direito romano),

    segundo a qual a infrao julgada levando-se em conta apenas os fatos e indcios presentes

    nos autos da investigao, independente da identidade do acusado. Seria o princpio que

    garante a igualdade no cumprimento da lei47 (igualdade substantiva) (Kant de Lima, 2001).

    Contudo, dificilmente poderamos afirmar que tal igualdade seja unanimemente aceita

    e posta em prtica, provocando, em muitos casos, distores significativas na aplicao da lei.

    o que vemos na percepo generalizada de impunidade, que, como no caso estudado, pode

    gerar um efeito contrrio, a punio excessiva dos culpados, com o objetivo muito mais

    pronunciado de servir como exemplo de como a impunidade no corroborada ou vista com

    bons olhos, do que em simplesmente se fazer cumprir a lei. Um artigo escrito pelo colunista

    Artur Xexo48, no dia 24/03 (auge da efervescncia provocada pela briga), se mostra bastante

    til para melhor visualizar essas questes, pela clareza e veemncia com que so

    apresentadas:

    No conheo a definio de formao de quadrilha do Cdigo Penal; no conheo a vida pregressa dos quatro jovens que viraram exemplo de violncia na noite carioca. Mas no tenho dvida de que so quadrilhas os grupos que passaram a infernizar, de uns tempos para c, as cercanias das boates do Rio. Afinal, ficar de tocaia nas redondezas de boates conhecidas por sua freqncia homossexual para espancar os fregueses que se aproximam seria o qu? Tudo bem, os jovens da Baronetti no

    46 Recurso metodolgico, no havendo tal organizao de modo consciente ou concreto na vida real.

    47 Consistiria na venda sobre os olhos da Justia, em sua representao clssica.

    48

    O Globo, 24/03/2004. Pitboys no so evoluo da juventude transviada: os meninos que esto sempre na hora errada no lugar errado.

    Poderia mesmo afirmar, em vista dos artigos que escreveu ao longo do caso, que esse jornalista se constitui em um dos principais acusadores dos quatro jovens.

  • 26

    agiram com a ttica conhecida dos pitboys. Mas estar em bando numa boate, atento a qualquer movimento do prprio bando e pronto para cair em cima de quem ousar reagir a uma provocao de algum do bando o qu? quadrilha, sim. E que sirva como exemplo para as outras quadrilhas intolerantes que ameaam o bem-estar de cidados de qualquer idade que procuram a noite para se divertir. (...) Jovens brigam. O Rio j foi delimitado por turmas da Zona Sul. A Turma da Constante no se dava com a Turma da Baro, que se desentendia com a Turma da Miguel... Muitas vezes essas desavenas eram explicitadas por brigas com hora marcada. Mas tambm era diferente. Naquele tempo, quando um dos integrantes das turmas aparecia com um canivete, a briga se desmanchava. Uma arma branca assustava e encerrava a confuso. Hoje, o prprio corpo dos integrantes das quadrilhas uma arma. As academias de ginstica e de lutas marciais vm formando jovens cuja simples presena j uma ameaa. Aquela era a juventude transviada. Os de hoje so neonazistas. A agressividade juvenil transformou-se em intolerncia violenta. (...) O que motivou a briga tambm surpreendente. Nos tempos da juventude transviada, aqueles tempos em que se considerava natural o comportamento agressivo de jovens, o assdio de um rapaz a uma menina era feito atravs de assobio (fiu-fiu) ou frases de gosto duvidoso como voc a nora que mame pediu a Deus ou o cachorrinho tem telefone?. (...) Hoje, rapazes mostram seu interesse por moas puxando seus cabelos. Se algum ainda acha que os pitboys so a evoluo natural dos transviados de dcadas passadas, o ato de puxar o cabelo de meninas comprovaria que esta uma tese equivocada. Ele est mais de acordo com comportamentos da Idade da Pedra, portanto uma involuo, do que com a evoluo de um comportamento juvenil. (...) Se h quem ainda acredite que eles estavam na hora errada no lugar errado, este gesto desmantela tal teoria. Dentro do carro, livre da polcia, aparentemente de volta ao conforto e segurana familiares, um dos rapazes manada um beijo para os reprteres e curiosos que se aglomeravam no local. Ali estava, num simples gesto, a arrogncia de uma quadrilha que investe na impunidade. Foi o gesto errado na hora errada.

    Antes de se tornar perceptvel o carter poltico e exagerado da acusao de formao

    de quadrilha, foi preciso que houvesse um trabalho de convencimento, usando para tal a

    comparao com um esteretipo j atribudo ao pitboy, para, s ento, ao mostrarem como os

    quatro acusados no se adaptavam imagem socialmente veiculada do grupo, o caso tenha

    ganhado um encaminhamento jurdico mais condizente com os argumentos at ento

    conhecidos, isto , o indiciamento por leso corporal grave (mesmo que, de acordo com as

    definies do Cdigo Penal, me parea que o indiciamento inicial por leso corporal leve

    seja mais condizente com o caso). Mesmo assim, como se torna evidente diante do artigo de

    Xexo, continua havendo uma insistncia na priso dos quatro acusados (e mesmo uma

    histeria em torno de sua soltura), baseada na premissa de que, mesmo no estando de acordo

    com o esteretipo socialmente difundido dos pitboys, eles teriam agido como tais,

    caracterizando ento a formao de quadrilha. Em relao a isso, interessante observar a

  • 27

    declarao do delegado titular responsvel pelo caso, falando sobre a criao de uma lista

    visando a barrao de pitboys na entrada de casas noturnas da Zona Sul:

    Vo entrar na lista apenas os baderneiros que estejam no contexto dos pitboys. Os quatro jovens da Baronetti no se encaixam muito bem nesse perfil, mas estavam no dia deles de pitboys

    Assim como acontece com Meursault, personagem principal em O estrangeiro, de

    Albert Camus, julgado e condenado morte por homicdio em um processo em que a nica

    coisa discutida foi se o ru havia ou no chorado no enterro de sua me, os quatro jovens da

    Baronetti foram, primeiramente, condenados e transformados em inimigos pblicos por

    portarem o rtulo de pitboys. Contudo, sorte no compartilhada por Meursault, o trabalho de

    convencimento perpetrado pela defesa, visando demonstrar seu pertencimento no ao grupo

    de lutadores (pitboys), mas de surfistas (beachboys)49, foi capaz de, em poucos dias, mudar

    completamente o tratamento dado a eles e, talvez, tornar o julgamento menos parcial e

    passional.

    49 interessante notar como a categoria beachboy, que diria respeito aos surfistas, sofreu uma relativa

    desestigmatizao em relao a tempos passados. Enquanto agora o fato de serem surfistas atesta a sua normalidade

    dentro dos padres socialmente aceitos de comportamento juvenil, na dcada de 1970 o pertencimento dos filhos a esse grupo (e o comportamento a ele associado, como o consumo de maconha e uma maior liberdade sexual, por exemplo) era visto com muita preocupao pelos pais das camadas mdias, e poderia mesmo ser usado como um agravante na acusao direcionada aos jovens (algumas vezes, frente a esse comportamento dos filhos, os pais optavam mesmo pela internao destes em clnicas psiquitricas, sob acusao de doena mental) (Velho, 1981b; 1998).

  • 28

    II Cad minha face que estava aqui?

    1. O caso e seu desenrolar

    O palco da briga desta vez no foi uma casa noturna, como no primeiro caso, mas o

    condomnio de classe mdia-alta Barra Summer Dream, na Avenida Sernambetiba, ponto

    mais valorizado da Barra da Tijuca (em frente praia). Era domingo noite, dia 28 de maro

    de 2004, e, em uma festa, comemorava-se o aniversrio de um morador.

    1.1. A guerra

    Por volta das 22 horas, com o intuito de no incomodar os demais condminos,

    Ricardo Martins ngelo (41 anos) e Miguel Martins ngelo (18 anos), seu filho, que

    trabalhavam na festa como DJs50, diminuram o volume da msica. Tal atitude desagradou

    algumas pessoas que, logo em seguida, iniciaram uma discusso, que em poucos minutos se

    transforma em briga, ao fim da qual Paulo Roberto Curi (20 anos), inicialmente apontado

    como principal responsvel pela confuso expulso da festa (e com ele partem alguns dos

    amigos que o teriam apoiado na discusso com os DJs). Um importante detalhe o fato de

    que Paulo Roberto nem mesmo havia sido convidado para a festa, e a desfrutava na condio

    de penetra.

    Os garotos se retiram da festa, retornando, porm, pouco depois, acompanhados de

    mais alguns amigos (relatos apontam para, ao todo, nove jovens), sendo todos lutadores51, e

    Paulo Roberto armado com uma faca. A partir de ento iniciada uma briga generalizada, na

    qual Ricardo e Miguel (os DJs da festa) so feridos a chutes, socos e facadas (ainda tentaram

    fugir, mas foram alcanados e violentamente surrados pelos jovens). Miguel levou quatro

    50 Disc-jqueis, responsveis pela msica na festa. Alm desse fato, ambos eram convidados do aniversariante.

    51 Em nenhum momento especificado qual o tipo de luta que os jovens praticariam.

  • 29

    facadas no rosto, enquanto seu pai foi esfaqueado no peito e no abdmen, tendo o pulmo

    perfurado (chegou a correr perigo de vida, sendo submetido cirurgia de emergncia).

    O delegado responsvel pelo caso (Marcus Henrique Alves, da 16 DP) cogita que

    aproximadamente vinte pessoas teriam participado da briga, tendo havido um nmero elevado

    de feridos (ao menos cinco com cortes provocados por faca).

    1.2. A identificao dos culpados e o surgimento de novas informaes.

    Poucas horas depois, na madrugada de domingo para segunda-feira, Paulo Roberto

    Curi preso em flagrante (acusado de esfaquear pelo menos trs pessoas) ao dar entrada no

    Hospital Barra DOr, por ter se ferido no rosto e na barriga durante a briga. O jovem

    autuado por tentativa de homicdio e transferido para a Polinter, deixando o hospital com o

    auxlio de uma cadeira de rodas e sendo hostilizado de forma ostensiva por parentes e amigos

    das vtimas52. So tambm identificados como participantes da briga Anderson Luiz de

    Moraes, Paulo Tassinari, Felipe de Mello e Pedro Humberto Ladeia, todos de 24 anos e

    amigos de Paulo Roberto. Esses ltimos, inicialmente, so indiciados por rixa, crime que no

    prev priso preventiva.

    No dia 31/03, quarta-feira, comeam a surgir algumas informaes at ento no

    divulgadas, e que se tornam fundamentais para uma melhor compreenso dos acontecimentos

    na festa. indiciado tambm por rixa Joo Felicssimo Jr., faixa-preta de jiu-jitsu e primeiro

    autuado por ter participado da briga ao lado das vtimas. Este no somente participou, como

    foi o responsvel direto por seu incio quando, durante a discusso em torno do volume do

    som, teria levado um tapa de Paulo Roberto na mo e, nas palavras do prprio Joo

    52 preciso deixar claro que a expresso vtima foi utilizada pelo jornal, sendo discutvel a possibilidade de se

    identificar vtimas em uma briga que teve possivelmente a participao de duas dezenas de pessoas.

  • 30

    Felicssimo: Eu revidei com uma cabeada e comeou a primeira briga53. Creio ser esse

    ponto de importncia fundamental para se compreender algumas coisas interessantes no caso.

    1.3. Pitboys, os novos inimigos pblicos.

    No dia seguinte briga analisada neste captulo, noticiado na imprensa que o

    subsecretrio estadual de Segurana Pblica, Marcelo Itagiba, desde a semana anterior havia

    determinado que qualquer grupo envolvido em brigas em casas noturnas fosse indiciado por

    formao de quadrilha, ao mesmo tempo em que incitava os seguranas de boate a atuarem,

    em casos de briga, exercendo poder de polcia:

    A polcia tem o dever, mas qualquer pessoa do povo, incluindo os seguranas particulares, pode prender algum em flagrante, desde que ele esteja cometendo um crime.54

    J dois dias depois, o chefe da Polcia Civil carioca, delegado lvaro Lins, determina

    que os casos envolvendo pitboys passem a ser investigados pela Delegacia de Homicdios,

    uma das mais bem equipadas do estado e que seria teoricamente responsvel pelos crimes

    mais graves (ao menos aqueles cuja punio estabelecida no Cdigo Penal mais severa). A

    explicao vem do prprio lvaro Lins: Na Delegacia de Homicdios h mais recursos,

    como por exemplo, o nmero de policiais, para que os casos sejam resolvidos mais

    rapidamente.55 Foi determinado tambm que, a partir da semana seguinte ao caso, policiais

    da Delegacia de Homicdios, acompanhados de equipes das delegacias distritais e

    especializadas, vo fazer rondas pelas boates da Zona Sul e da Barra. 56

    E eis que no dia 31 de maro os esforos da Secretaria de Segurana Pblica e da

    Chefia da Polcia Civil levam priso temporria de mais trs jovens acusados de participar

    da briga, indiciados por formao de quadrilha (j haviam sido, desde o dia seguinte briga,

    53 Depoimento de Joo Felicssimo Jr. ao jornal O Globo, 31/03/2004.

    54 Depoimento do subsecretrio de Segurana Pblica, Marcelo Itagiba, ao jornal O Globo, dia 30/03/2004.

    55 lvaro Lins, em depoimento ao Jornal do Brasil, 31/03/2004.

    56 O Globo, 03/04/2004.

  • 31

    autuados por rixa). Agora, alm de Paulo Roberto Curi, que j respondia por tentativa de

    homicdio e passa tambm a responder por formao de quadrilha, esto igualmente presos

    Paulo Tassinari, Pedro Humberto Ladeia e Anderson Luiz de Moraes. Todos participaram da

    briga do mesmo lado de Paulo Roberto.

    A notcia da deteno de mais trs pitboys muito bem recebida pela opinio pblica e

    pela imprensa, que passam a louvar o trabalho da polcia no caso. A investigao que teria

    apurado o pertencimento dos acusados a uma quadrilha, foi realizada como uma ao

    conjunta da 16 DP e da Delegacia de Homicdios, tendo frente o delegado titular da

    primeira, Marcus Henrique Alves (ao menos ele quem acaba por receber, da imprensa, parte

    significativa do crdito pela priso). No dia 1 de abril, aps dizer que, encerrado o perodo de

    priso temporria dos jovens (cinco dias), pediria a priso preventiva dos mesmos por tempo

    indeterminado, este ltimo declarou:

    Durante a investigao apuramos que eles integravam uma quadrilha de classe mdia que espalhava terror e medo. Eles costumavam participar de crimes, arruaas e badernas. Por isso pedi a priso temporria dos trs por formao de quadrilha. Eles se associavam para arrumar confuso.

    O pertencimento dos jovens a uma quadrilha foi ilustrado por dois episdios: um

    registro de ocorrncia contra Paulo Roberto na De