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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Centro de Educação e Humanidades

Instituto de Letras

Reitor Ricardo Vieiralves de Castro Vice-Reitora Paulo Roberto Volpato Dias Sub-Reitora de Graduação Lená Medeiros de Menezes Sub-Reitora de Pós-Graduação Monica da Costa Pereira L. Heilborn Sub-Reitora de Extensão e Cultura Regina Lúcia Monteiro Henriques Diretor do C. de Educação e Humanidades Glauber Almeida de Lemos Diretora do Instituto de Letras Maria Alice Gonçalves Antunes Vice-Diretora do Instituto de Letras Tania Mara Gastão Saliés

Rua São Francisco Xavier, 524, 11º andar, Bloco B, sala 11.020 - Secretaria dos Departamentos Maracanã, CEP 20559-900, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Tel./Fax:+55( 21) 2334-0245 / 2334-0196 / 2334-0165 - e-mail: [email protected]

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC

I19 Idioma / Centro Filológico Clóvis Monteiro. Ano 1, n.1 (jun. 1981) - . – Rio de Janeiro: UERJ,

Instituto de Letras, Centro Filológico Clóvis Monteiro, 1981 - . v. Semestral. Periodicidade irregular 1981-2012. ISSN 1414-0837 (impresso) | ISSN 2317-5400 (eletrônico)

1. Filologia – Periódicos. 2. Língua portuguesa – Periódicos. I. Centro Filológico Clóvis Monteiro.

CDU 801

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Nº 25, 2º semestre de 2013

ISSN 1414-0837 (impresso) | ISSN 2317-5400 (eletrônico)

CONSELHO CONSULTIVO

Antônio Martins de Araújo – UFRJ / ABF Benjamin Abdala Júnior – USP Bertha Rojas López – Universidad Nacional del Centro del

Perú Bethânia Mariani – UFF Bruno Bassetto – USP Castelar de Carvalho – UFRJ / ABF Claudio Cezar Henriques – UERJ Cristina Rigoni – UNIRIO Darcilia Marindir Pinto Simões – UERJ Dieter Messner – Universidade de Salzburgo Dora Riestra – Universidad Nacional del Comahue Edwaldo Machado Cafezeiro – UFRJ Evanildo Bechara – ABL / ABF Ieda Maria Alves – USP Iremar Maciel de Brito – UERJ

Luiz Cláudio de Medeiros – UFRRJ Magda Bahia Schlee Fernandes – UERJ Maria Aparecida Lino Pauliukonis – UFRJ Maria Teresa Gonçalves Pereira – UERJ Mariângela Rios de Oliveira – UFF Marina Machado Rodrigues – UERJ Mário Eduardo Viaro – USP Monica Rector – University of Noth Carolina, Chapel Hill Nadiá Paulo Ferreira – UERJ Ofélia Paiva Monteiro – Universidade de Coimbra Regina Silva Michelli – UERJ Sérgio Nazar David – UERJ Vania Lucia Rodrigues- Dutra – UERJ Victor Quelca – Universidad Autônoma René Moreno

CONSELHO EDITORIAL

Profª. Drª. Claudia Amorim Prof. Dr. Claudio Cezar Henriques Prof. Dr. Flávio Barbosa

Profª. Drª. Tania Maria Nunes de Lima Camara

PREPARAÇÃO DOS ORIGINAIS E REVISÃO

Felipe Araújo Gomes

Lena Hauer do Rego Monteiro

Wagner Azevedo Pereira

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA

Capa: Mauro Corrêa Filho

Projeto gráfico e diagramação: Elir Ferrari

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE LETRAS

Secretaria dos Departamentos

Rua São Francisco Xavier, 524, 11º andar, Bloco B, sala 11.020, Maracanã

Rio de Janeiro, RJ -- CEP 20559-900.

A correspondência deve ser posta aos cuidados dos professores Claudia Amorim, Tania Camara e Flávio Barbosa.

Tel./Fax: +55( 21) 2334-0245 / 2334-0196 / 2334-0165 - e-mail: [email protected]

A MATÉRIA DA COLABORAÇÃO ASSINADA É DA RESPONSABILIDADE DOS AUTORES.

NIHIL SINE LABORE

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APRESENTAÇÃO ...................................................................................................................................... 5

A METÁFORA Um abreviado percurso histórico-semântico Lucia Helena Lopes de Matos ................................................................................................................... 6 ENTRE A MAJESTADE E O BUFÃO Uma batalha vocabular Denise Salim Santos ................................................................................................................................. 25 MINHA LÍNGUA, MUITAS PÁTRIAS Pesquisa e ensino de português como língua não materna em perspectiva intercultural no âmbito do NUPPLES/UERJ Alexandre do Amaral Ribeiro ................................................................................................................... 35 A COLIP E O IMA João Baptista M. Vargens .......................................................................................................................... 47 O CONTO DE DINA SALÚSTIO Um marco na literatura cabo-verdiana Simone Caputo Gomes ............................................................................................................................. 52 DIÁLOGOS POÉTICOS ENTRE ARMÉNIO VIEIRA E JOÃO CABRAL DE MELO NETO Érica Antunes Pereira e Priscila Genelhú .................................................................................................. 71 A OPOSIÇÃO SIÃO-BABILÔNIA EM CAMÕES E OUTROS AUTORES Ronaldo Menegaz ..................................................................................................................................... 96 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE LIÇÕES DE FILOLOGIA PORTUGUESA, DE CAROLINA MICHAËLIS DE VASCONCELOS Bruno Fregni Bassetto ............................................................................................................................... 112

DICIONÁRIO DE APELIDOS DOS ESCRITORES DA LITERATURA BRASILEIRA, DE CLAUDIO CEZAR HENRIQUES José Luís Jobim .......................................................................................................................................... 123

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Este número 25 da Revista IDIOMA contém relevantes trabalhos de colaboradores das áreas de

Língua, Literatura e Filologia Portuguesa.

Em Língua Portuguesa, Lúcia Helena Matos, que nos apresenta um panorama histórico dos estudos

da metáfora, aprofundando-se na dimensão dos estudos cognitivos; Denise Salim Santos, que desenvolve uma

pesquisa estilístico-vocabular a respeito da construção de personagens no romance O feitiço da ilha do

pavão; e, por fim, Alexandre Ribeiro e João Baptista Vargens, que abordam diferentes aspectos da promoção

da Língua Portuguesa do Brasil no exterior: no primeiro trabalho, o professor Alexandre apresenta o Núcleo de

Pesquisa e Ensino de Português como Língua Estrangeira e Segunda Língua (NUPPLES/UERJ), um espaço de

ensino, investigação e formação de professores de português língua não materna; no segundo texto, o

professor João Baptista relata as providências para a implementação do Departamento de Língua Portuguesa e

Literaturas de Língua Portuguesa na Universidade Abd Al-Malik Es-Saadi, no Marrocos, além de relacionar

algumas das iniciativas e problemas concernentes à difusão do idioma nacional no exterior.

Em Literatura Portuguesa, trazemos o estudo de Simone Gomes a respeito dos contos de Dina

Salústio, escritora cabo-verdiana cujos textos suscitam discussões da problemática de gênero, pondo em

questão preconceitos e estereótipos sociais; ainda na seara cabo-verdiana, Érica Pereira e Priscila Genelhú

desenvolvem uma comparação entre as obras poéticas do cabo-verdiano Arménio Vieira e do brasileiro João

Cabral de Melo Neto; temos também o artigo de Ronaldo Menegaz, que mostra a inter-relação entre o salmo

bíblico 136 e as redondilhas Sôbolos rios, de Camões, revelando como o poeta busca no salmo o mote para

uma revisão de sua vida.

Em Filologia Portuguesa, Bruno Bassetto nos oferece uma homenagem a Carolina Michaëlis de

Vasconcelos. O autor destaca principalmente o conteúdo de uma obra pouco acessível da autora: suas Lições

de Filologia Portuguesa (seguidas das Lições Práticas de Português Arcaico).

Profª. Drª. Claudia Amorim Prof. Dr. Claudio Cezar Henriques Prof. Dr. Flávio Barbosa

Profª. Drª. Tania Maria Nunes de Lima Camara Coordenadores Editoriais e Organizadores

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Lucia Helena Lopes de MATOS1

RESUMO O artigo se propõe ao estudo da metáfora como um aspecto facilitador para a compreensão dos enunciados linguísticos, mostrando que essa concepção esteve, através dos tempos, inscrita nos estudos do significado. Traz, portanto, a visão de alguns teóricos que se debruçaram em tais pesquisas e contribuíram para diversidade de olhares que somaram conhecimento ao assunto. Focaliza, ainda, a metáfora sob a dimensão cognitivista como um caminho para a autonomia interpretativa, pois esta traz como preceito básico o desvelamento das associações que vão embasar nossos esquemas mentais e cujo conhecimento vai habilitando-nos a relacionar sentidos e a perceber que até a mais obscura emissão vai ganhar ares de previsibilidade por conta das nossas experiências, dos textos que buscamos na memória e do contexto que construímos com os dados linguísticos que preenchem a moldura de um dado cenário. São os fundamentos da Semântica Cognitiva que darão suporte teórico ao artigo que se segue. PALAVRAS-CHAVE: metáfora, semântica cognitiva, interpretação.

ABSTRACT The article intend to study the metaphor as a facilitator aspect for the understanding of the linguistics statements, showing that this conception was, through the times, enrolled in the studies of the meaning. It brings, therefore, the vision of some theorists who if had leaned over in such research and had contributed for diversity of looks that had added knowledge to the subject. It focuses, still, the metaphor under the cognitive dimension as a way for the understanding autonomy, because it follows the basic principle of unveiling the associations which will found our mental schema and whose knowledge allows that even the most obscure emission will seem to be predictability based on our own experiences, the texts we retrieve from memory and the context that we build with the linguistics data which fill in the frame of a given scenario. They are the bases of the Cognitive Semantics that will give theoretical support to the article that if follows. KEYWORDS: metaphor, cognitive semantics, interpretation.

1 Doutora em Língua Portuguesa (UERJ ‒ 2006), professora Adjunta da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Coordenadora do Parfor/Letras UFRRJ/IM e líder do grupo de pesquisa Cognição, Linguagens e Construção da Leitura.

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O interesse pelo estudo da metáfora vem trazendo, ao longo do tempo, questões fundamentais para

a compreensão e para legibilidade textual.

Desde Aristóteles ‒ que considerava a clareza como qualidade fundamental da elocução retórica

(voltada para a persuasão) e da poética ‒ a metáfora tem sido discutida. Não obstante o discípulo de Platão

reconhecer que na linguagem cotidiana todos se servem dos recursos metafóricos, esse uso deveria ser útil ao

objetivo do orador quando, ao criar enigmas bem feitos, estaria fugindo da banalidade sem, no entanto, se

afastar das possíveis analogias que o público pudesse fazer. Aquelas que fossem obscuras tornar-se-iam por

demais poéticas, trazendo ao estilo certo ar pitoresco. A eficácia de um discurso estaria na dosagem ideal da

escala dos matizes associativos provocados pelos nomes e verbos usados com fins específicos tanto na prosa

quanto na poesia.

Compreende-se, assim, que, a partir desse tempo, a metáfora circulasse na esfera da Retórica, vista

como um saber independente, e que deveria ser regulada em seu uso para que não se perdesse a objetividade

e provocasse um efeito de afetação ao discurso originando desconfiança e, consequentemente, pouca

credibilidade ao orador. “A Retórica de Aristóteles é já uma disciplina domesticada” que se equilibra entre

dois polos: “não é apenas uma arma em praça pública,” (...) nem “é uma simples botânica de figuras”. Antes

de se tornar apenas ornamento, a Retórica foi perigosa (e nesse aspecto inimiga da Filosofia), porque

a ‘arte de bem dizer’ se liberta do cuidado de ‘dizer a verdade’; a técnica fundada sobre o

conhecimento das causas que engendram os efeitos da persuasão dá um poder extraordinário

a quem a domine perfeitamente: o poder de dispor das palavras sem as coisas; e de dispor dos

homens ao dispor as palavras. (...) Por isso Platão a condenava: para ele a Retórica estava para

a justiça – virtude política por excelência – como a sofística para a legislação; e ambas

estavam para a alma como a culinária para a medicina e a cosmética para a ginástica – isto é,

artes da ilusão e do engano. (RICOEUR, 1983, p. 15-16).

Com o passar do tempo, a Retórica perde a sua importância para se tornar um apêndice da literatura,

limitando-se aos estudos dos tropos, com acento ornamental, mais voltada para a escrita que a sua primeira

vocação, a elocução. A visão aristotélica de metáfora, no entanto, esteve presente, e ainda está, até os nossos

dias, chegando até o último terço do século passado sem grandes alterações e, segundo Miguens (2002),

prenunciando as suas “virtudes cognitivas”, isto é, “os efeitos no espírito de quem as ouve ou produz”, “dando

a conhecer verdades, provocando a aprendizagem de coisas novas”2.

2 Segundo Miguens (2002, p. 75) “para Aristóteles, as metáforas são fenômenos nos quais palavras deslocadas do seu âmbito de ocorrência ‘próprio’ provocam uma iluminação no espírito de alguém, uma

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As várias definições sobre metáfora e as questões que tal conceito levantará já trazem um problema

marcado pelo índice de que há muito mais do que o simplesmente linguístico por trás do aparente enigma

lexical. Se resgatarmos a origem da palavra, verificaremos que a própria palavra metaphora é uma metáfora

marcada pelo movimento, já que “phora é mudança segundo o lugar”, sendo, portanto, no seu sentido literal,

“uma palavra fora do lugar”, condenando a todos que se interessam por seu estudo a andar em círculos.

(MIGUENS, 2002, p. 76).

Esse é um assunto que vem despertando fascínio e polêmica entre aqueles que têm a linguagem

como centro de interesse. Várias perguntas são levantadas quando a questão é a metáfora, a começar pelo

dilema filosófico: as expressões metafóricas veiculam proposições falsas ou verdadeiras? Ou pelo dilema

linguístico: é um fenômeno de interesse essencialmente linguístico ou não? Ou ainda a proposta trazida pelos

teóricos da análise do discurso e questionada por outras correntes: sua indeterminação é construída pelas

máscaras da ideologia e do interdito ou está a serviço da intencionalidade do falante? Ou ainda a pergunta

que interessa a todas as correntes do conhecimento: a linguagem é essencialmente metafórica, premissa que

define o homem como animal simbólico ou é mecanicamente previsível e convencional, geradora de frases

corretas e boas ou anômalas como a metáfora?

O estudo da metáfora ramifica-se à medida que o interesse pelos mistérios da linguagem vai

tomando forma de ciência e passa a interessar a diferentes áreas do conhecimento. A linguística, num

progressivo caminhar, vai se descentrando do sistema saussuriano e recebendo contribuições de outras

disciplinas e o discurso, tanto o espontâneo quanto o elaborado, passou a ser objeto de interesse das ciências

humanas e sociais. É quando a Semântica vai assumir um lugar resultante da convergência de uma série de

trabalhos, de influências e de condições externas durante um período de gestação mais ou menos grande.

A Semântica, disciplina cujo objeto de estudo não possui um perfil discreto e definível, vai ser

agregada por outras ciências que se interessam pelo significado e pelo veículo deste, a linguagem. Desta

forma, a Semântica estará sujeita aos conflitos que dominam as ciências: “fatores como os afetos, a história ou

o contexto nunca serão explicáveis pela ciência” ou “todos esses fatores constituem a essência da experiência

humana” e não são “insusceptíveis de explicação científica” ou ainda “o isolamento artificial destas

dimensões” (GARDNER, 2002, p. 71) seria uma solução para enquadrar as disciplinas na forma da ciência.

compreensão súbita de algo que não seria compreensível de outro modo. Este facto é acompanhado de prazer, o prazer misturado de espanto associado à aprendizagem de algo que era anteriormente desconhecido. Se as metáforas são deslocações ou transportes de palavras, palavras fora do âmbito próprio, é importante notar que essa deslocação de palavras não provoca uma desordenação ininteligível, mas sim uma nova inteligibilidade e que o fenômeno não se restringe à arte e à eloquência, sendo frequente no uso comum da linguagem.”

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A comunidade científica transita pelas correntes do pensamento em ondas cíclicas e cada nova

contribuição, normalmente, não anula as anteriores, mas desloca o olhar para aspectos que ora se

obscurecem, ora se iluminam.

É desta forma que o olhar sobre a metáfora, que se manifesta linguisticamente, anda em círculos e

provoca tanto debate, sendo estudada ao longo dos séculos como um aspecto importante para a decifração

do pensamento e da construção do real e do conhecimento humano ou como irrelevante pela “doutrina do

positivismo lógico cuja noção básica era que a realidade podia ser precisamente descrita através de uma

linguagem que fosse clara, sem ambiguidade e, em princípio, testável.” (ORTONY, 1993, p. 1-16).

O universo de estudiosos sobre o assunto é bastante considerável e dar conta de todas as correntes é

presunção a que esse artigo não se destina. Ainda mais que há especialistas que agrupam os estudos de

acordo com a área de seu interesse.

Com certeza, pode-se dizer que tudo começou com o interesse de Aristóteles pela relação da

metáfora na linguagem e a função da metáfora na comunicação prenunciando além do aspecto cognitivo, já

mencionado, o aspecto pragmático, e heurístico de tal conceito.

Sophia Miguens em um sucinto, mas precioso, artigo faz um levantamento de alguns estudiosos que

trouxeram importantes contribuições principalmente para a sua área de atuação, a filosofia, cujo interesse

pela natureza da linguagem e do pensamento e “acerca da natureza do humano”, leva a concepção de

metáfora ultrapassar o limite do linguístico em seu aspecto retórico.

Para ela (Sophia), os séculos depois de Aristóteles são marcados pela falta de novidade, até bem

recentemente, no que diz respeito à metáfora que, embora tenha surgido nos limites da “lexis (elocução,

estilo)” é comum na linguagem de todo dia, assim como nos nomes comuns e próprios.

Aristóteles nota que onoma é phonê semantiké, som significativo, sem indicação de tempo. É isto

que distingue onoma de rhema, o verbo, no qual existe marca de tempo. Aquilo que é nome opõe-se ainda a

stoikheion, a letra, som indivisível, e a assemos, o que não significa. Mas não são os nomes ou substantivos

que constituem o campo do metaforizável. Nome e verbo, nomeadamente, estão, enquanto sons

significativos, dentro do ‘limiar semântico’, por contraste com as partes antecedentes da lexis que são

assemos, não dotados de significação. Os fenômenos metafóricos dão-se no interior deste limiar semântico. A

ligação da metáfora à lexis a partir do nome dá-se da seguinte maneira na Poética. Quando Aristóteles

pergunta que nomes há, segue-se uma enumeração: há nomes correntes (kyrion), estrangeiros, ornatos,

inventados, alongados e metáforas. É, portanto, no núcleo semântico da enunciação ou lexis que pode haver

metáfora. Metaphora é, assim, até agora, algo que acontece aos ‘nomes‘ (no sentido generalizado de sons

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significativos), que é descrito em termos de um movimento, que transpõe um nome que Aristóteles chama

allotrios (‘estranho‘, que designa outra coisa, de outra forma que é ‘para to kyrion‘, contra o uso vulgar).

(MIGUENS, 2002, p. 76-77).

Aristóteles já subcategorizava a metáfora, considerando-a “transporte de um nome de acordo com

alguma ‘regra‘ ou razão”:

1 – o transporte do gênero para a espécie;

2 – o transporte da espécie para o gênero3;

3 – o transporte da espécie para a espécie4;

4 – o transporte por analogia5.

As duas primeiras são as sinédoques já padronizadas dentro da linguagem comum. As duas últimas

exigem um maior esforço interpretativo e para Aristóteles é a 4ª espécie de metáfora que mais se faz apreciar.

O certo é que em Aristóteles estão as bases para as futuras reflexões sobre a metáfora e os

significados. A rede de propriedades que emergiu de sua estrutura classificatória foi fundamental como

alicerce para alavancar teorias que dão suporte ao pensamento moderno.

Umberto Eco utiliza conceitos do filósofo pragmatista americano Peirce na reflexão de Aristóteles

sobre a metáfora e assegura que o filósofo grego voltava-se mais para a interpretação da metáfora do que para

sua criação, já que a hermenêutica era o enfoque que mais interessava a Eco e, portanto aquele que lhe

interessava pôr em evidência. Para o pesquisador italiano, o enigma que “desambiguava”6 metáforas de 3ª ou

4ª espécies era um fenômeno tanto de ordem dicionarial quanto enciclopédica. O primeiro é marcado por

traços semânticos imediatamente descritíveis de uma palavra (são os traços mais prototípicos7), o segundo,

3 Quando se diz HOMEM (espécie), supõe-se o gênero MORTAL e essa substituição está de tal forma padronizada na língua que, ao se substituir MORTAIS por homens, não se leva em consideração outros seres mortais como os animais irracionais. 4 Esse tipo de metáfora, segundo Umberto Eco, se refere a uma estrutura de 3 termos em que aquele que interpreta a metáfora precisa fazer uma transferência de propriedades entre o 1º e o 2º termo, abduzindo por sua experiência de mundo o que há de comum entre os dois termos. Ex.: ‘O dente da montanha’: dente (1º termo), montanha (2º termo) => pontiagudo (3º termo: propriedade periférica). (ECO, 1992). Nesse caso “é preciso definir quais componentes do significado das palavras em jogo sobrevivem e quais devem cair”. (...) para se estabelecer “um processo em que duas coisas se tornam diferentes de si mesmas e, no entanto, reconhecíveis.” (MIGUENS, 2002, p. 78). 5 Segundo Aristóteles, a metáfora de 4º tipo se verifica na relação entre 4 termos, sendo que A está para B assim como C está para D. Essa relação estabelece uma proporção preenchível por diversos termos da língua, podendo estabelecer catacreses, como ‘perna da mesa’ (X está para mesa, assim como perna está para o corpo humano), ou relações mais transgressivas, chegando muitas vezes a um processo de “desambiguação (...) irredutivelmente ‘aberto’ ” (MIGUENS, 2002, p. 82). 6 Termo utilizado por Sofia Miguens (2002). 7 As categorias são imprecisas e dinâmicas e apresentam uma estrutura prototípica, ou seja, os membros (ou propriedades) de uma categoria se agrupam por similaridades parciais e se diferem por graus de

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por traços semânticos apreendidos do conhecimento de mundo, marcados pela cultura. Nesse caso, a

metáfora não institui uma relação de semelhança entre os referentes, mas uma similaridade sêmica entre os

termos relacionados (quanto mais periféricos forem os traços entre os termos, mais inusitada será a metáfora).

“A interpretação metafórica, na medida em que tem de hipotizar modelos de descrição enciclopédica e tornar

pertinentes algumas propriedades, não descobre a similaridade, mas sim constrói-a” (ECO, 1992).

A interpretação desse tipo de metáfora envolve um processo de abdução8, em que são processadas

inferências muito complexas, já que, dependendo do contexto, são amplificadas algumas propriedades e

embaciadas outras. É esse, de alguma forma, o eixo regulador da “semiose ilimitada”9, pois é o sistema de

relações internas abonadas pela cultura que vai tornar possível a amplificação e o embaciamento das

propriedades na rede de similaridades.

É, ainda, importante na interpretação de uma metáfora, segundo Eco, percebê-la a partir de um grau

zero da linguagem, possibilitando que até as metáforas mortas se tornem desviantes, pois o que faz a metáfora

ser morta é a “sua história sociolinguística e não a sua estrutura semiósica, a sua gênese e a sua possível

reinterpretação” (ECO, 1992).

De acordo com a teoria de Eco, o sucesso de uma metáfora é evidentemente função do formato

sociocultural da enciclopédia, i.e., das crenças de quem as produz e interpreta; logo, não existe nem pode

existir algoritmo para a metáfora, ela não depende apenas de produções ou arranjos dos signos eles próprios,

mas também das situações. O seu sucesso ou insucesso é uma questão pragmática. Esta explicação da

metáfora não exclui que se possam dar metáforas ‘novas‘, nunca ouvidas, fenômenos aurorais como lhes

chama U. Eco, ou, também, ouvidas (nesse momento, por este sujeito que interpreta) como se fossem nunca

ouvidas, o que pode acontecer, por exemplo, com doentes psicóticos, ou quem aprende uma língua

estrangeira. Sendo as metáforas fenômenos pragmáticos, existem contextos estéticos, por exemplo, e fazendo

transições entre aquilo a que Eco chama ‘diferentes substâncias semióticas‘, como substâncias verbais e

pictóricas, isso é relativamente frequente (num exemplo de Eco, é possível dizer que num retrato de mulher de

Modigliani a metáfora verbal ‘pescoço de cisne‘ é reinventada). (ECO, 2001, p. 209 in MIGUENS, 2002, p.

101-2).

saliência (uns membros são mais prototípicos e outros mais periféricos). Essa é a teoria do protótipo, um dos alicerces da Linguística Cognitiva. 8 Termo semiótico peirceano; abduzir é hipotizar sobre um sistema que torne plausíveis indícios que de outro modo seriam desconexos. (ECO, 1992) 9 “Entenda-se por semiose ilimitada (i) o facto de o processo de interpretação dos signos ser ilimitado e (ii) não se restringir a signos verbais”. (MIGUENS, 2002, p. 97).

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Pode-se concluir que para Umberto Eco o valor cognitivo da metáfora está nas relações hipotéticas

necessárias para a interpretação, buscando-se estabelecer na enciclopédia a rede de conhecimentos que

possibilita a inferência dos fenômenos semânticos. Para nós, esse é apenas um dos valores cognitivos da

metáfora. Esse valor também se constrói na busca da similaridade analógica entre as nossas experiências mais

concretas (físicas e corpóreas) que se projetam sobre as mais subjetivas numa rede de mapeamentos.

Miguens, no mesmo artigo, traz, resumitivamente, as teorias de John R. Searle, Donald Davidson e

Paul Ricoeur, as quais ampliaremos trazendo a complementação que buscamos nos próprios teóricos (assim

como fizemos com U. Eco) ou nas releituras feitas de seus trabalhos por outros autores.

Searle, no final da década de 70, inicia seus estudos sobre a metáfora combatendo, em parte, duas

abordagens tradicionais: 1) a que remonta a Aristóteles e que envolve a comparação ou similaridade entre

dois ou mais objetos; 2) a que envolve a oposição verbal ou interação entre dois conteúdos semânticos, isto é,

a interação entre o significado metafórico e o literal. Segundo ele, se tomadas literalmente, elas são

inadequadas, mas deve-se tentar ver o que há de verdade em tais abordagens.

A falha existe quando atribui à comparação “condição de verdade” e quando requer o processo de

inferência para a compreensão dos enunciados metafóricos que os falantes produzem e que os ouvintes

entendem. Para Searle, uma coisa é o que a expressão linguística diz e outra é o que significa. O que de fato é

dito, tem, em algum sentido, uma anomalia, um “non-sense” semântico, estabelecendo uma “óbvia

falsidade”; há, portanto, “um significado da sentença e um significado do falante”.

Os enunciados metafóricos realmente significam alguma coisa diferente das palavras

esentenças, porém isso não é porque tenha havido qualquer troca no significado dos

elementos lexicais, mas porque o que o falante quer dizer é algo diferente daquilo. O

significado do falante não coincide com o significado das palavras ou sentenças. Esse ponto é

essencial porque o principal problema da metáfora é explicar como o significado do falante e

o significado da sentença são diferentes e como eles são, apesar disso, relacionados. (tradução:

ver referência na nota de rodapé10.)

Além disso, o que ele defende é que a similaridade funciona como uma estratégia de compreensão,

não como um componente do significado. Em outras palavras, a similaridade tem a ver com a produção e a

10 The metaphorical utterance does indeed mean something different from the meaning of the words and sentences, but that is not because there has been any change in the meanings of the lexical elements, but because the speaker means something different by them; speaker meaning does not coincide with sentence or word meaning. It is essential to see this point, because the main problem of metaphor is to explain how speaker meaning and sentence meaning are different and how they are, nevertheless, related. (Searle in Ortony, 1993, pp. 90-1). Optamos, nesse trabalho, transcrever os originais somente de textos em inglês.

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interpretação da metáfora, não com o seu significado. Para isso, ele usa como exemplo (no mesmo artigo

citado acima) a frase “Richard é um gorila” e mostra que há diversas características do gorila, que podem estar

sendo levadas em conta, para o efeito da comparação. Cabe ao ouvinte inferir qual a intenção do falante: se

ele está comparando Richard ao gorila por sua força ou por sua doçura.

Searle constrói a teoria da metáfora tentando estabelecer os princípios que relacionam o significado

de sentenças literais e o significado de enunciados metafóricos. Para ele, o conhecimento que capacita

pessoas a usarem e a entenderem enunciados metafóricos está por trás do conhecimento que essas pessoas

têm do significado literal das sentenças e das palavras (inerente à competência semântica do indivíduo), pois

só assim elas podem dar conta da falsidade das proposições e da anomalia de sentido que viola as regras dos

atos de discurso ou viola os princípios conversacionais de comunicação e podem perceber “como é possível

para o falante dizer metaforicamente ‘S é P‘ e querer dizer ‘S é R‘, quando P evidentemente não quer dizer R”

e podem perceber “como é possível para o ouvinte que ouve a enunciação ‘S é P‘ saber que o falante quer

dizer ‘S é R‘. Depois de reconhecer a asserção metafórica, o ouvinte deve ter algumas estratégias para atribuir

possíveis valores a R, assim como restringir, de acordo com o contexto, os limites de R.” (SEARLY in

ORTONY, 1993, p. 102-3).

Ele aborda a metáfora no aspecto funcional em relação à comunicação, apoiando-se na teoria dos

atos de fala, ressaltando, assim, tal como U. Eco, o seu (da metáfora) aspecto pragmático.

Segundo Samuel Levin em Language, concepts and worlds (ORTONY, 1993, p. 112-123), quase na

mesma época da publicação do estudo de Searle, apareceu o artigo de Donald Davidson sobre a metáfora.

Embora os dois tenham se envolvido em acirrada polêmica, há pontos convergentes e divergentes nos seus

enfoques. Ambos afirmam que, como as sentenças literais, as sentenças metafóricas significam simplesmente

o que elas dizem. Enquanto para Searle o processamento de compreensão desses enunciados por parte do

ouvinte envolve uma inferência do significado intencional do falante, para Davidson não há, no processo de

compreensão, lógica alguma ou qualquer fenômeno linguístico relevante; a metáfora provoca no ouvinte

efeitos causativos, ou seja, psicológicos, fora do controle dos sujeitos envolvidos.

...enquanto Searle, no artigo Metaphor, propõe explicitamente várias regras e princípios que guiam

um ouvinte na busca daquilo que uma enunciação metafórica quer dizer, Davidson pretende explicar os

fenômenos metafóricos sem pressupor uma teoria da linguagem que conceba esta como uma questão de

convenções baseadas em regras. De facto, Davidson recusa o apelo a regras em qualquer sentido para

descrever as metáforas, quando declara que não há instruções para fazer ou compreender metáforas, não há

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manuais que digam o que as metáforas significam, não há ‘fechamento definitivo‘ na compreensão de

metáforas, não há ‘testes‘ de metáforas que não façam apelo ao gosto.

Note-se que se Davidson está certo, não se pode nunca dizer que uma metáfora foi mal interpretada:

ela faz o que faz, provoca o que provoca. (Miguens, 2001, p. 106)

Assim como a teoria de Searle tem uma forte dimensão pragmática, a de Davidson estabelece uma

distinção entre o que as palavras significam e o que elas são usadas para fazer. “I think metaphor belongs

exclusively to the domain of use” (DAVIDSON, 1984, p. 33).

Paul Ricoeur, em Metáfora Viva (1983), faz um caminho longo por várias teorias metafóricas. Seu

olhar de filósofo, um dos mais prestigiados do seu tempo, perseguiu o estudo da interpretação paralelo à da

metáfora numa concepção hermenêutica. Sua análise não é excludente, por isso parte dos preceitos

aristotélicos e vai integrando conceitos, disciplinas e metodologias num continuum para demonstrar que a

soma desses conhecimentos conduz a metáfora à instância do discurso. Suas reflexões são tão abrangentes e

profundas que transbordam o meramente conceptual para invadir o campo do existencial e do ontológico em

relação ao pensamento e, por esse motivo, consideramos sua contribuição sobre a metáfora bastante

relevante, principalmente para os estudos de metáfora que privilegiem a metáfora convencional e

lexicalizada, a “inovação semântica”, ou metáfora nova e literária e, por fim, a trama ficcional que, conforme

acreditamos, e Ricoeur confirma, instaura no processo de enunciação um estado metafórico no texto, um

estar-como que faz com que as palavras no grau mais baixo de metaforicidade tracem redes de conexão e

estejam de tal modo arranjadas que passem a ter um novo viço e surja uma significação renovada pelo vigor

da linguagem.

Deste ponto de vista, a linguagem técnica e a linguagem poética constituem os dois polos de uma

mesma escala: numa extremidade, nenhum sentido se estabiliza no exterior do “movimento entre

significações”. É certo que a prática dos bons autores tende a fixar as palavras em valor de uso. Essa fixação

pelo uso está sem dúvida na origem da falsa crença segundo a qual as palavras têm um sentido, possuem o

seu sentido. Do mesmo modo a teoria do uso não inverte, mas finalmente consolidou a pressuposição da

significação própria das palavras. Mas o emprego literário das palavras consiste precisamente em restituir, ao

contrário do uso que as imobiliza, “o jogo das possibilidades interpretativas contidas no todo da enunciação”.

É por isso que o sentido das palavras deve cada vez ser “adivinhado” sem que jamais se possa fixar numa

estabilidade adquirida. A experiência da tradução indica no mesmo sentido: mostra que a frase não é um

mosaico, mas um organismo; traduzir é inventar uma constelação idêntica em que cada palavra recebe o

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apoio de todas as outras e, em última análise, retira benefício da familiaridade com o conjunto da língua.

(RICOEUR, 1993, p. 122).

Ricoeur, em suas pesquisas sobre interpretação, traz à luz uma outra similaridade: a metáfora da

teoria das figuras e a narrativa da teoria dos gêneros literários. Embora sejam de naturezas diferentes,

relacionam-se nos aspectos da inovação semântica, da produção de sentidos, e da construção da imaginação

produtora, processos importantes para a construção de uma nova metáfora ou para a estruturação da ficção

literária.

A ponte que ele estabelece entre a compreensão da metáfora e a interpretação da obra literária

mostra o exercício cognitivo no funcionamento da imaginação que é operado pela criatividade da linguagem,

demandando estratégias de distanciamento e alteridade entre o sujeito e o objeto. Nessa dialética, é preciso

ao mesmo tempo operar uma suspensão do mundo referencial para projetar novas possibilidades, “um deixar-

ver do mundo ou mundos que aparecem nos textos” (SUMARES, 1986, p. 9).

Ricoeur mostra ainda a importância que a cultura, marcada pelo social, e o conhecimento

enciclopédico trazem para a funcionalidade da imaginação criativa, tanto para a metáfora quanto para a

criação da ficção literária.

A implicação da imaginação produtora na inovação semântica e na refiguração narrativa envolve

também estabelecer no seio da história da comunicação entre projetos individuais e coletivos nos quais se

reconhecem “não somente os contemporâneos mas (também) os predecessores e os sucessores” (SUMARES,

1986, p. 10).

Deste modo nada se opõe a que uma palavra signifique mais do que uma coisa; na medida em que

reenvia às partes contextualmente ausentes, estas podem pertencer a contextos opostos; as palavras

exprimem, então, pela sua “sobredeterminação” das “rivalidades de grande escala entre contextos”. Esta

crítica da superstição da única significação verdadeira prepara evidentemente uma apreciação positiva do

papel da metáfora. Mas a afirmação é válida para todas as formas de duplo sentido que podem estar ligadas às

intenções, as pressuposições e as convenções veiculadas pelas partes ausentes do contexto. (RICOEUR, 1983,

p. 121).

Como seu livro Metáfora Viva é de uma densidade que parece ao seu leitor uma árdua tarefa reduzir

sua obra, usaremos aqui o percurso que o próprio Ricoeur traça no prefácio para orientar-nos em relação aos

seus estudos. (1993, p. 5-11).

Ele traça para a metáfora um percurso que passa por diferentes disciplinas e a cada uma delas faz

corresponder uma unidade linguística. Na conclusão ao esquema, afirma que não pretende visitar os três

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enfoques atribuindo a eles juízo de valor, mas “legitimar” cada um deles “num encadeamento progressivo da

palavra à frase e desta ao discurso”.

RETÓRICA CLÁSSICA

PALAVRA

A retórica clássica toma a palavra

como referência.

A metáfora é definida como tropo por

semelhança =>

Consiste num deslocamento e numa

extensão de sentido das palavras; a

sua explicação emana de uma teoria

da substituição => Precursor:

Aristóteles.

A sua análise situa-se no cruzamento

de 2 disciplinas: a retórica e a poética.

Objetivos da retórica: a persuasão no

discurso oral.

Objetivos da poética: a mímesis das

ações humanas na poesia trágica.

A retórica se concentra na figura do

desvio (ou tropo): a significação de

uma palavra é deslocada em relação

ao seu uso codificado. Objetiva a

classificação e a taxinomia. Não dá

conta da produção da significação.

SEMIÓTICA e SEMÂNTICA

FRASE

A metáfora é recolocada no quadro

da frase e tratada não como

denominação desviante, mas

predicação impertinente.

Oposição entre a teoria da metáfora-

palavra e a teoria da metáfora-

enunciado.

Benveniste: a frase é portadora da

significação completa mínima

(semântica) e a palavra é um signo no

código lexical (semiótica).

Frase: Semântica :: Palavra: Semiótica

Semântica: teoria da tensão

(a produção da metáfora no seio da

frase tomada como um todo).

Semiótica: teoria da substituição.

(o efeito de sentido ao nível da

palavra isolada).

HERMENÊUTICA

DISCURSO

Objetivo: integrar a semântica da palavra

na semântica da frase.

É a palavra que, no discurso, assegura a

função de identidade semântica: é esta

identidade que a metáfora altera. Importa,

assim, mostrar como a metáfora produzida

ao nível do enunciado, tomado como um

todo, “se focaliza” na palavra.

Transição entre o nível semântico e o nível

hermenêutico: “o trabalho da semelhança”

agora enfocado sobre o problema da

inovação semântica => uma proximidade

inédita entre 2 idéias é percebida apesar da

sua distância lógica.

Semelhança: uma tensão entre a

identidade e a diferença na operação

predicativa acionada pela inovação

semântica.

Reinterpretação das noções de

“imaginação produtiva” e de “função

icônica”.

Imaginação: uma função da imagem que

consiste em “ver como”, isto é, perceber o

semelhante no dessemelhante.

Novo Ponto de Vista: diz respeito à

referência do enunciado metafórico como

poder de “redescrever a realidade”.

Conexão entre o sentido do discurso (que é

a sua organização interna) e a referência (o

poder de referir-se a uma realidade exterior

à linguagem).

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Em sua compilação sobre teóricos que analisaram a metáfora, Sofia Miguens não deixou de fora os

representantes da Linguística Cognitiva, George Lakoff e Mark Johnson, que, segundo ela trazem “a novidade

que séculos e séculos de comentários a Aristóteles não trouxeram”. Como este enfoque da metáfora foi o que

elegemos como suporte teórico para nossas pesquisas (mesmo que por vezes tenha necessidade de trazer

visões que, segundo cremos, não são excludentes e vão completar algumas lacunas), esmiuçaremos os

conceitos de metáfora conceptual em um item específico.

Faz-se necessário, porém, marcar as restrições de Miguens à visão dos teóricos americanos. Ela

começa por assinalar que, apesar de trazerem alguns aspectos novos, esses estudos também estão inseridos

dentro de uma linha contínua e nada parte do essencialmente diferente, como um padrão nunca antes

percebido. Miguens clarifica que, embora Lakoff e Johnson contestem o mito objetivista, e tenham partido de

uma oposição aos pressupostos de Chomsky, eles repetem a concepção da Linguística chomskyana, isto é,

“como uma teoria da mente e do cérebro” (2001, p. 86). Ainda ressalta que, na medida em que eles pregam

que o conceito metafórico expresso na linguagem espelha um outro conceito numa projeção de propriedades

que ora se escondem, ora se iluminam (processo ‘highlighting and hiding‘), os estudiosos também repetem a

visão aristotélica (pôr debaixo dos olhos as semelhanças).

Ela reconhece, no entanto, que a grande novidade está no aspecto experiencial e corpóreo da

metáfora, que possibilita e dá acesso à compreensão; em sua ubiquidade sistemática nas línguas naturais; na

sua falta de excepcionalidade e, por conseguinte, na sua convencionalidade, e, ainda, na sua natureza não

linguística. “A omnipresença de metáforas em todas as línguas naturais mostraria, assim, que o

‘processamento semântico‘ envolve algo como representações universais não algorítmicas, mas perceptivas”

(2001, p. 88), através de nossas experiências corpóreas primordiais (embodied experience) opondo-se à

Metáfora é uma estratégia do discurso.

Preserva e desenvolve o poder heurístico

desdobrado pela ficção. Liberta o poder

que certas ficções comportam de

redescrever a realidade.

Referência Desdobrada

(Jakobson)

1) Referência de 1o. Grau: redescreve o

real.

2) Referência de 2o. Grau; referência

poética. Redescrição pela ficção.

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proposição do caráter modular da linguagem em que se baseou Chomsky, mas por outro lado identificando-se

com ela quando demonstra o caráter não consciente e não intencional das manifestações linguísticas que

apenas espelham o sistema conceptual dos usuários de uma língua.

Quando em seu artigo Sofia Miguens questiona se todas as metáforas seriam fenômenos cognitivos

da sensorialização, deixa pistas para que o leitor perceba que considera a teoria de Lakoff e Johnson uma

elaboração de “arquiteturas cerebrais inatas” e leva-nos a crer que concebe a compreensão metafórica, vista

pela Semiótica de Eco e pela Pragmática de Searle e Davidson, com dimensões mais amplas, já que, para ela,

os cognitivistas só enfocam as metáforas mais básicas deixando de lado aquelas mais elaboradas e literárias.

Esse é um ponto de vista que teremos oportunidade de discutir quando trouxermos o aporte de outros teóricos

cognitivistas (e até mesmo de Lakoff) para tratar da metáfora que foge da linguagem convencional e traz o

ineditismo, seja através de um novo arranjo enunciativo, seja através de projeções entre domínios com mais

luz em traços periféricos que prototípicos.

Considero, contudo, tanto a seleção de teóricos sucintamente analisados, quanto às questões

levantadas por Miguens, de total relevância e úteis ao meu trabalho. Penso que cada um desses teóricos possa

somar ao objetivo final que é o entendimento do texto por aqueles que estão interessados na eficiência da

leitura.

A Semântica Cognitiva é o campo de maior interesse de um novo paradigma nos estudos da

linguagem que surgiu no final da década de 70 e início da de 80, como uma extensão e aperfeiçoamento da

Semântica Gerativa. Foi o interesse pelo significado que abriu espaço para o surgimento da Linguística

Cognitiva, cujos pioneiros foram os norte-americanos George Lakoff e Ronald Langacker, ambos discípulos de

Chomsky.

Esse novo enfoque semântico que a partir de Lakoff e Johnson recebeu o nome de experiencialismo

(1980) e, mais tarde, na obra Philosophy in the Flesh. The Embodied Mind and its Challenge to Western

Thought, de Lakoff (1987), recebeu o nome de realismo corporizado (embodied realism); procura superar a

divisão empiricismo/racionalismo e dirigir um olhar para uma concepção mais flexível de linguagem, a

começar pelo processo de categorização que é determinante na formação dos conceitos e do mundo que nos

rodeia.

Se antes, como produto, ainda, do pensamento Aristotélico, os membros de uma categoria eram

definidos por propriedades necessárias e suficientes e todos se agrupavam por limites discretos, agora as

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categorias são imprecisas e dinâmicas e apresentam uma estrutura prototípica, ou seja, os membros (ou

propriedades) de uma categoria se agrupam por similaridades parciais e se diferem por graus de saliência (uns

membros são mais prototípicos e outros mais periféricos). Esta é a teoria do protótipo, um dos alicerces da

Linguística Cognitiva, cuja origem deita raízes nas pesquisas psicolinguísticas de Eleonor Rosch (LAKOFF,

1987), cujo interesse pelos modelos formais da memória conceptual humana levou-a à categorização das

cores, das aves, dos frutos e de outras classes que se agrupam em categorias contínuas e heterogêneas, mas

relevantes pelos efeitos de prototipicidade.

Para entendermos melhor a teoria do protótipo, é importante trazer dois conceitos extremamente

relevantes para os fundamentos da Semântica Cognitiva: os modelos cognitivos idealizados (“ICMs”, LAKOFF,

1987, p. 68-76) e os modelos culturais.

Os modelos cognitivos idealizados [“ICMs”, LAKOFF, 1987, p. 68-76] representam nosso

conhecimento de mundo de forma parcial ou simplificada, mas esse é um conceito importantíssimo para a

teoria do protótipo, porque é na tensão entre o modelo cognitivo idealizado e o exemplar de uma dada

categoria que vai se estabelecer a proximidade com o modelo prototípico ou o(s) modelo(s) periférico(s). Essas

estruturas são socioculturalmente construídas pelos sujeitos, podendo ser caracterizadas como modelos de

cenários, molduras comunicativas, enquadres de cenas, scripts e funções sociais.

Os modelos culturais são espécies de modelos cognitivos idealizados que são culturalmente

localizados. Por exemplo, as propriedades prototípicas da roupa de praia feminina no Brasil e na Europa são

diferentes. Tomando-se o enquadre de cena de uma praia no Rio de Janeiro, dificilmente encontraremos

mulheres de seio de fora, enquanto esse é um hábito comum em mulheres de qualquer idade em praias

europeias. Não há necessariamente uma correspondência entre o mundo real e as categorias porque elas

resultam das nossas representações mentais do mundo, de nossos modelos cognitivos idealizados e modelos

culturais11 que podem abonar associações entre membros de uma categoria. O protótipo seria o exemplar

mais representativo de uma determinada categoria, aquele que compartilha mais características com os

11 “Em vez de falar de um ‘objeto-protótipo, de um elemento que é prototípico – o qual nos levaria, por exemplo, à discussão (bizantina) de qual fruta é mais prototípica, a maçã ou a pera, qual animal doméstico é mais prototípico, o cachorro ou o gato –, se fala de ‘entidade-protótipo cognitiva’, ou melhor, de efeitos de prototipicidade. Para cada categoria construímos uma imagem mental, que pode corresponder-se de maneira mais ou menos exata com algum membro existente da categoria, com mais de um ou com nenhum em concreto. Essa imagem mental é o que denominamos protótipo da categoria. Quando falamos de protótipo estamos concretando uma abstração que realmente remete a juízos sobre o grau de prototipicidade. O protótipo não seria mais que um fenômeno de superfície que toma diferentes formas segundo a categoria que estudamos; é, basicamente, o produto de nossas representações mentais do mundo, de nossos modelos cognitivos idealizados” (tradução de CUENCA & HILFERTY, 1999, p. 36).

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demais membros da categoria e ao mesmo tempo essas características o distinguem de outras categorias. Os

limites de uma categoria a outra são difusos e sofrem a graduação dos membros periféricos.

A teoria do protótipo explica por que as categorias não podem ser tomadas como estruturas

invariantes e justifica tanto a polissemia como a compreensão de metáforas novas que ativam nos espaços

mentais um núcleo prototípico responsável pela “estabilidade estrutural que permite interpretar novos fatos

através do conhecimento já existente”. (SILVA, 2004, p. 84)

Passando-se por essas questões, verifica-se que a Linguística Cognitiva, não se volta para o

linguístico, mas para o conceito. Sendo assim, diluem-se também as fronteiras entre o literal e o figurado, pois

é derrubado o bipolarismo que separa a linguagem literal, que serve para veicular a verdade, e a linguagem

figurada, que conduz ao erro e à imprecisão.

Na investigação psicolinguística, Gibbs traz os resultados de pesquisas que mostram que o

entendimento da linguagem figurada não tem necessariamente que passar pelo reconhecimento de uma

paráfrase literal ou o reconhecimento de um significado literal anômalo, ou então o reconhecimento da

figuratividade e a posterior rejeição ao significado literal quando há um contexto que dá apoio aos

conhecimentos sociais partilhados. A facilidade que temos para reconhecer enunciados figurados é,

possivelmente, derivada do nosso sistema conceptual que tende a metaforizar, num processo inconsciente,

nossas experiências mais básicas.

Isso, porém, não prova a inexistência de linguagem não figurada ou literal. O que se pretende é

derrubar alguns mitos que afirmam que toda linguagem convencional cotidiana é literal, que somente a

linguagem literal pode ser falsa ou verdadeira, as categorias gramaticais de uma língua são literais e não

comporta figuratividade.

A linguagem figurada nem sempre requer um esforço cognitivo adicional e muitas expressões

metafóricas (como por ex.: “cirurgiões são açougueiros”12) são mais prontamente compreendidas que sua

paráfrase literal. Na verdade, as investigações (GIBBS, 1994; 2001) trouxeram a evidência de que os

processos de compreensão e interpretação usados para a desambiguação da metáfora são os mesmos usados

para o entendimento da linguagem literal. O processo de compreensão de linguagem figurada ou literal é uma

construção por parte dos sujeitos envolvidos que devem levar em conta a informação disponível, distinguindo

as linguísticas e as extralinguísticas que se ajustam para dar sentido ao todo.

12 O estudo sobre esse exemplo encontra-se no artigo de GIBBS in ORTONY, 1993, p. 254.

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Vale dizer que o real ‒ nessa concepção, uma construção abalizada pela cultura e pela linguagem,

seja literal ou metafórica ‒ vai espelhar as nossas experiências, desde as mais básicas e primitivas até as mais

elaboradas e artísticas, numa linha crescente que vai da convencionalidade e lexicalização até a criatividade

que ilumina aspectos inovadores de um mesmo conceito. Nesse processo ocorre uma estratégia de

conceptualização e categorização do real que se estrutura em redes de projeções entre, no mínimo, dois

domínios, uma fonte e um alvo.

Desde que começamos a interagir com o mundo a nossa volta, fazemo-lo levando em conta as

nossas percepções mais básicas, ou seja, as sensório-motoras, que normalmente provêm do aprendizado que

adquirimos de forma natural a partir das nossas relações com o meio físico e social. Nas relações com o meio

físico, o nosso corpo é a referência para as imagens primárias que formarão os nossos conceitos mais

elementares e nos levarão à categorização através da linguagem, preparando a bagagem mental e cultural que

vai dar suporte para aquisições cada vez mais elaboradas. Essa referência corpórea e essas imagens mais

elementares vão se formando com base em nossas experiências e na troca com o ambiente social ainda

familiar e vão formar as estruturas lógicas do pensamento que são anteriores à aquisição da linguagem13.

É, pois, nessa construção dinâmica do conhecimento que se fundamenta nos esquemas imagéticos

dos nossos movimentos no espaço, da nossa manipulação dos objetos e de interações perceptivas que nos

apropriamos de categorizações figuradas convencionais e criamos redes de significados que se projetam em

um conjunto de correspondências ontológicas e epistêmicas14 entre domínios conceptuais. Por isso,

expressões como “Tenho muita raiva de você” ou “Não posso perder tempo com besteiras” ou “Sua vida

profissional disparou” ou ainda “Meu coração amanheceu pegando fogo, fogo” são manifestações linguísticas

de metáforas conceptuais que, de certa forma, demonstram a nossa capacidade mental de poetizar a nossa

linguagem. Essas projeções entre domínios (termos mais concretos no lugar de outros mais abstratos) guardam,

de certa maneira, a noção tradicional de transferência de elementos, pois, na verdade, os falantes de uma

língua estão sempre tentando instaurar no circuito locucional, termos desviados de uma experiência para

outra, seja por medida de economia – o léxico de uma língua não dá conta de todo o sistema mental – seja

para estabelecer relações de semelhança entre uma situação A e uma situação B. É por isso que a

figuratividade, principalmente a metafórica e a metonímica, são mecanismos cognitivos rotineiros, naturais e

13 Ver Piaget in DOLLE. J. M. Para Compreender Jean Piaget. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara Koogan, 1995. 14 As correspondências são ontológicas porque envolvem as estruturas mais básicas da experiência (as subestruturas) e são epistêmicas porque as correspondências se processam com base no conhecimento adquirido.

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ubíquos que dão forma ao nosso pensamento e se manifestam linguisticamente nas nossas interações

cotidianas, científicas ou poético-expressivas.

Isso é possível porque o nosso sistema conceptual é construído (não só, mas também) através de

metáforas baseadas nas informações que aprendemos e repartimos com os demais membros de uma mesma

comunidade, formando, assim, áreas de cognição que serão acessadas para dar sentido às diferentes práticas

de linguagem.

A compreensão, por esse novo parâmetro, se processa com base em nossas experiências concretas

para dar conta de outras mais abstratas e “implicam sistemas inteiros de conceitos ao invés de palavras ou

conceitos individuais” (LAKOFF & JOHNSON, 2002, p. 206). Quanto mais básicas forem essas experiências,

mais universais e generalizantes serão os conceitos metafóricos, mas, na medida em que os conceitos são

resultantes de esquemas mais elaborados, eles podem também ser mais culturais e específicos de uma

formação discursiva determinada.

É bom lembrar que os sistemas conceptuais podem variar de uma comunidade para outra, pois são

frutos das vivências e experiências de um grupo específico e das diferentes vozes que atravessam aquela

cultura. As categorizações advindas desses sistemas vão variar em seu grau de metaforização, indo de um

grau zero (numa gradação do literal para o literário) até um grau elevado de estranhamento. A linguagem

humana forma, no caso, uma rede inter-relacionada tanto de criações novas quanto de expressões

cristalizadas, sendo que as primeiras são interpretadas com base no sistema metafórico conceptual estruturado

pelo falante ao longo de sua história e usadas no seu cotidiano. Este sistema metafórico revela alguns

conceitos e esconde outros, somente revelados quando há intenção do emissor em trazer à sua emissão algo

de novo.

Comungamos com Ortony, que afirma ser o “uso da linguagem uma atividade essencialmente

criativa, assim como sua compreensão” (ORTONY, 1993, p. 2) e, muitas vezes, a metáfora, assim como outras

figuras, precisa apenas de mais criatividade do que a linguagem literal para sua desambiguação por parte do

receptor. Para ele, a diferença entre o literal e o figurado se estabelece mais no patamar da diferença

quantitativa do que qualitativa. Alinhados a essa afirmação, acreditamos que haja exatamente o mesmo

processo na graduação quantitativa das estratégias para a compreensão e na quantificação da criatividade

para a produção da metáfora literária, da metáfora científica ou dos usos metafóricos da linguagem

convencional, já que há uma imagem que se apoia nas nossas experiências mais básicas e se expande em

desdobramentos até revelar o inusitado que marca a metáfora poética. Na verdade, a metaforicidade já se

estabelece no pensamento que constrói o nosso sistema conceptual e se materializa nas categorizações

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linguísticas, marcando um patamar de grau zero até expansões mais criativas; daí a afirmação de que as

estratégias de compreensão e de produção dos diferentes usos da linguagem são as mesmas. Se o leitor/

ouvinte for capaz de perceber, no nível da consciência, os processos mais básicos de metaforização, levando

em conta suas experiências físicas e corpóreas, seu conhecimento de mundo e o contexto em que as

proposições se inserem, vai também construir as significações mais extensivas e elaboradas por terem

processos semelhantes.

Essa certeza nos faz acreditar que o estudo da metáfora sob o viés da cognição conduz a uma

progressiva competência de compreensão dos enunciados linguísticos em seus diferentes usos.

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____________________________________

Data de submissão: out./2013. Data de aprovação: dez./2013.

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Denise Salim SANTOS1

RESUMO este artigo se dedica especialmente ao estudo da construção do perfil da personagem D. Afonso II, no romance “O feitiço da ilha do Pavão”, a partir da seleção vocabular empregada não só na estratégia discursiva da própria personagem, como também na voz de um narrador que, por meio da ironia, da caricatura participa dessa construção. Através da seleção vocabular, demonstra-se a assimetria discursiva como recurso significativo do poder nas relações entre D. Afonso Jorge II e as demais personagens ainda que de maneira irônica, atingindo o caricatural que constrói o humor presente no texto, sem romper a relação entre a ideologia real e o fetiche da ficcionalidade.

PALAVRAS-CHAVE: estilística, seleção vocabular, variação linguística.

ABSTRACT This article is dedicated especially to the study of building the profile of D. Afonso II characters, in the novel “O feitiço da ilha do Pavão”, from the perspective of word selection, not only on the discourse strategies of the character itself, but also in the voice a the narrator who, through irony and caricature, takes part in this construction. Through word selection, it is possible to demonstrate that there is an asymmetry in discourse, which functions as a significant resource of the power in the relations between D. Afonso Jorge II and the other characters, even though it is made ironically. This discoursive effect becomes charicatural and creates humor in the text, without disrupting the link between real ideology and fetish of fictionality.

KEYWORDS: stylistics, word selection, linguistic variation.

1 Doutora em Letras, Língua Portuguesa, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora Adjunta de Língua Portuguesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e nas Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA).

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Na ilha do Pavão existe um quilombo. Quilombo diferente, governado por um rei despótico que

assassinou o irmão para poder herdar o trono de seu pai Afonso Jorge Nzomba, tendo sido este um negro

congolense, pembeiro, traficante de escravos. Afonso Jorge Nzomba saiu da Vila de São João Esmoler do mar

do Pavão e foi estabelecer-se com sua gente num pedaço de mata, fundando o quilombo do Mani Banto. Por

não suportar mais ver as mudanças dos costumes da ilha, inclusive a existência de escravos libertos. Assim,

assumindo as características do dominador europeu, se autoproclamou D. Afonso Jorge I.

O filho, D Afonso Jorge II, é personagem que surpreende no romance. Vem de uma estirpe que

enriqueceu com o tráfico negreiro. Junto com a coroa, seus antepassados congolenses deixaram-lhe de

herança o preconceito em relação a seus irmãos de raça, por considerar a origem congolesa, que era a sua,

superior às demais. Dos portugueses, incorporou a maneira de viver, a religião, a língua.

Essa personagem tão bizarra vai encontrar no narrador em terceira pessoa o seu antagonista. João

Ubaldo empresta a essa voz um discurso irônico, satírico, para criticar os defeitos não do negro ou do branco,

mas da Humanidade, com suas intolerâncias, preconceitos e excessos.

Presentes no universo ficcional do romance, os topônimos Mbonza Congo, N´Dungo, Luanda,

verdadeiramente cidades da República Democrática do Congo, dão um toque de exotismo e realidade ao

texto. O escritor faz questão de especificar as tribos e nações de africanos que para cá vieram como escravos,

em perfeita sintonia com os estudos históricos e antropológicos que discutem a formação do povo brasileiro,

enriquecendo a literatura em seu aspecto documental:

[...] os outros negros são descendentes dos que pertenciam aos primeiros [congoleses] por

herança de conquista ou foram por eles comprados como escravos, negros uolofes,

mandingas, minas, jagas, todos negros [...]. (FIP, p. 92)

O reino do Congo tinha reis, fidalgos e bispos como os portugueses e seu povo não

compreendia como podiam achar parecido com aquelas raças muito justamente apelidadas

de infectas, raças porcas, estúpidas, atrasadas e fedorentas, os teques, os mpumbu, os mbundu,

imaginem só. (FIP, p. 92)

Seguindo os moldes da corte portuguesa, o reino tem sua corte trazida ao texto pelos títulos

nobiliárquicos: “barões”, “viscondes”, “condes”, “marqueses”. Os símbolos do poder real também lá estão:

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“cetro”, “sala do trono”, “carruagem”, “cocheiro”, “sota-cocheiro”, “escudeiro”, “áulicos”, “aves” (saudação),

“sólio”, “brasão”, “real mordomo”, “reposteiro”, “manto”, “reino”, “súditos”, “arautos”.

O estigma do preconceito se concretiza com a adjetivação impregnada de sentido pejorativo na

caracterização física e moral dos negros pertencentes a outras tribos, aos quais é negado, inclusive, o direito

de serem negros, livres, gente:

[...] todos negros ordinários, todos feios, horrorosos, diferentes, nascidos para a servidão e

agora cheios de liberdades nas outras localidades da ilha do Pavão, como se por acaso fossem

negros do Congo e como estes fossem gente e tivessem direito (FIP, p. 92)

Nenhum congolense vai se igualar a esses bárbaros atrasados e comedores de gente como os

jagas. (FIP, p. 92)

Estilisticamente, a primeira passagem ganha em expressividade pela escolha que o escritor faz

empregando “servidão”, substantivo abstrato, em lugar de “servir”. Já o emprego de “liberdades” joga com o

sentido de liberdade propriamente dito e a maneira petulante, abusada de agir dos negros alforriados,

marcada pela flexão de plural. A presença da expressão “cheio de”, porém, bloqueia o primeiro sentido e

constrói a expressão popular “cheios de liberdades”. O emprego da perífrase “comedores de gente” em lugar

de “antropófagos”, um termo erudito, parece-nos uma escolha entre o erudito, que enobrece, e o popular, que

inferioriza mais ainda a tribo não congolense.

As palavras de origem africana como o nome das tribos, a moeda de Luanda, “nzimbu”, os

topônimos, os antropônimos são o que resta da cultura africana no quilombo de mani banto, onde a língua

oficial é a portuguesa. A dos outros negros é “a língua deles” ou eles falam “na língua de negro”, empanando-

lhes fortemente a identidade.

A religião dos brancos portugueses vem ao texto pela presença de vocábulos e sintagmas como

“missa”, “procissão”, “padre”, “santidade”, “acólitos”, “Santa Cruz”, “Cristo Redentor”, “pecado”, “expiação”,

“Deus”, “cristão”, “bispo”, “imagens de santos”, “altar-mor”, “nave de igreja”, “Irmandade de São Lourenço”,

“andor”, “baldaquim”, “pé de altar”, “leis de Deus”, “benzendo-se”, “rezando”, “rezar missa”, “cristandade”,

“Todo-poderoso”, “Providência”, “potestade”, “vésperas”.

A prepotência e o autoritarismo alimentam a vaidade do mani banto, rei banto na fala do Congo,

que só admite que se dirijam a ele como “majestade”, “Vossa Excelência”, “Sua Excelência” e usa o plural

majestático ao se dirigir a quem quer que seja. Ullmann (1973, p. 171) diz que em algumas sociedades uma

das funções importantes dos pronomes de tratamento é a de servir de símbolos de classe, expressando

diferenças de situação social, ideia muito pertinente neste caso. Outros itens lexicais acentuam a vaidade real

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ao longo da narrativa ao qualificarem-no como “excelso”, “glorioso”, “poderoso”, “importante”, “clemente”,

“belo”, “defensor da justiça e da cristandade”. O narrador exagera essa vaidade quando, ao descrever a sala

do trono, compara-a à nave de uma igreja, colocando em lugar do altar-mor o trono de mani banto:

A sala do trono[...] era ampla como a nave de uma igreja, na verdade, lembrava mesmo uma

igreja, com exceção da presença, no estrado onde ficaria o altar-mor [...], de um sólio de

jacarandá [...]. (FIP, p. 123)

Os substantivos abstratos “coragem”, “nobreza”, “caráter”, “formosura”, “sensatez”, também afinam

a descrição da personagem que, sem qualquer princípio de modéstia, se compara aos imperadores romanos,

lamentando apenas que eles tiveram mais sorte de haverem sido senhores de reinos infinitamente mais vastos

e ricos (FIP, p. 116). Como compensação, o escritor presenteia o rei do quilombo com “árdegas hacaneias” e

mais os ginetes de alguns nobres da corte para compor seu monumental triunfo.

Efetivamente “árdegas” e “hacaneias” são duas palavras que impressionam, tanto pela camada

sonora de cada uma como pela origem que têm. A primeira vem do latim, e seu uso é pouco frequente. A

segunda, também de baixa frequência, chegou-nos pelo francês, embora sua origem seja inglesa. No entanto,

seus significados são semanticamente incompatíveis: “árdega” significa fogosa, irritável, irascível. Já

“hacaneia” é, por definição, cavalgadura de porte médio, mansa e de trote elegante, usada como montaria

especial de mulheres ou atrelada a charretes. A imponência superficial dos significantes ilude. Um presente de

grego do narrador para o vaidoso rei.

Triunfo é uma palavra relativamente comum, quando empregada com a acepção vitória, mas

Ubaldo vai buscar na rubrica histórica a justificativa para seu emprego ‒ entrada solene em Roma de general

vitorioso ‒, pois mani banto se julgava comparável aos maiores imperadores: eis que também somos um

grande soberano, defensor da cristandade e da justiça. (FIP, p. 115)

Na descrição da carruagem real, os ornamentos são cuidadosamente nomeados ora com termos da

linguagem comum, ora com termos de menor emprego, como é o caso de “atavios”, ”broquéis”, “louçainha”,

palavras pouco desgastadas pelo uso, em contraste com “fitas”, “contas”, “vidrilhos”, de emprego comum:

Atrás dos ginetes, em todo o seu esplendor e ornamentada com todos os atavios imagináveis,

fitas, contas, broquéis lavrados, louçainhas, vidrilhos e o que mais representasse glória[...].

(FIP, p. 116)

Uma profusão de cores trazida pelos adjetivos pinta com tons fortes a cena da chegada triunfal do rei

quilombola e justifica o emprego do adjetivo “fulguroso” que contrasta com o substantivo “penumbra”,

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produzindo efeitos de luz e sombra. A escolha da forma concorrente “fulgurante” talvez não fosse tão

produtiva expressivamente quanto a que foi empregada pelo escritor:

Depois de aberta, a porta só mostrava penumbra lá dentro, por trás de janelas encortinadas.

Mas aos poucos a abertura foi se iluminando, nos reflexos de todas as cores vindo do traje

fulgoroso de Afonso Jorge II, o mani banto, chapéu bicorne emplumado e brasonado, túnica

perolada e escarlate com tantos alamares dourados, calças rubras como sangue e pespontadas

de azul, botas de salto alto luzindo como espelhos, colares, medalhas, pulseiras e brincos (FIP,

p. 100)

A sala do trono também é objeto de descrição detalhada, reforçando a suntuosidade que cerca a

majestade. Termos como “sólio” (um latinismo), “baldaquim” (dossel 'cobertura com hastes, ornamentada e

móvel, para proteção', um termo de arquitetura), cuja frequência de uso é bem menor que os termos da

língua comum, “trono” (um helenismo) e “cobertura”, respectivamente, ajudam a construir o ambiente de

ostentação, da mesma forma que o adjetivo “monumental” e a locução adjetiva “de ouro”:

A sala do trono, onde Hans, Crescência e a Degredada esperavam a chegada de D. Afonso,

era ampla como a nave de uma igreja e, na verdade, lembrava mesmo uma igreja, com

exceção da presença, no estrado onde ficaria o altar-mor, sob um baldaquim vermelho com

franjas douradas, de um monumental sólio de jacarandá esculpido e debruado a veludo, com

almofadas púrpuras de bordas e fio de outro cobrindo-lhe o assento, o encosto e os braços.

Encharoladas nas paredes laterais grandes imagens de santos e estátuas de heróis do reino do

Congo. (FIP, p. 123)

O séquito real também tem seus requintes, mas a presença sutil de um adjetivo de sentido

depreciativo usado pelo narrador estabelece a distância social entre a realeza e seus cavaleiros, em contraste

com o modalizador “vistosamente”:

[...] logo um grupo de cavaleiros vistosamente trajados à moda antiga, com camisas rocadas

[surradas] e calções justos, meias, botinas, esporas, trotou terreno abaixo. (FIP, p. 120)

No quilombo, o emprego de formas latinas também é símbolo de grandeza e poder. Por isso o rei

quilombola exigiu que a carruagem real trouxesse no frontispício palavras de vitória. Viessem lá os seus latins

de padre e arranjassem umas palavras para pintar na testa da carruagem (FIP, p. 117). O escritor não se faz de

rogado, e pinta com tinta escarlate na testa da carruagem a expressão latina, muito oportuna para a ocasião,

Vae victis – Ai dos vencidos – numa alusão ao rei dos gauleses, Breno, que atacou Roma em 390 a.C., assim

como mani banto, naquela ocasião, subjugava o filho de Capitão Cavalo e seus acompanhantes.

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Vários empréstimos enriquecem o texto e evocam a influência da cultura francesa nos costumes do

quilombo, deixando transparecer um certo bom gosto e elegância tão próprios dos franceses, tais como

“libré”, “peruca”, estes ligados à maneira de vestir; “falbalás”, “festão”, ligados a vestimenta e decoração,

“broquéis” e “brasão”, termos de heráldica; “carruagem” e “liteira”, meios de transporte; “quartaus”, animais

de pouca estatura (a sonoridade da palavra pode sugerir sentido diverso para quem não conhece o

significado); “escarlate”, “arauto”.

A palavra “escarpins”, de origem francesa, faz referência a um tipo de sapato de sola fina, Os

manuais de estilística apontam o emprego de termos estrangeiros como uma estratégia para dar à fala ou ao

texto um toque de exotismo, quando contribui para dar autenticidade à referência a outras terras e outras

gentes, segundo Martins (1989, p. 81). O trecho a seguir apresenta alguns dos francesismos apontados:

De fato, alguns minutos depois, um reposteiro mulato, vestido de libré branca, afastou e

apresilhou os falbalás da cortina que ocultava a encoberta de onde emergiria D. Afonso Jorge

e, do lado direito, irrompeu um arauto também mulato, de peruca branca e chapéu armado,

que deu três vezes no piso com a ponta de um bastão emplumado e anunciou o ingresso de

Sua Majestade, que envergava trajes distintos dos que usara no triunfo _ manto purpurado com

festões de guirlandas, cetro, bragas acolchoadas, meias brancas e escarpins de veludo azul e

salto alto _ e andava com o peito enfunado, em passadas largas e cadenciadas. Parou junto ao

arauto, retribuiu as saudações com um aceno ríspido e tornou a caminhar, desta feita para

postar-se ao trono, no qual, no entanto, não se sentou. (FIP, p. 125)

Saber se há ou não preocupação do escritor com as eleições que faz quanto aos artifícios estilísticos

que emprega é um questionamento constante entre os estudiosos do estilo. Com relação a essa dúvida, diz

Ullmann (1973, p. 159-160) que

sin duda, esta es una limitación inherente al objeto de la estilística, y no es menester exagerar

su gravedad, porque, después de todo, el valor artístico de las invenciones estilísticas no

depende em absoluto de que el autor se apiercibiera perfectamente de la elección que estava

haciendo2.

Assim fica a dúvida se o adjetivo “purpurado” foi empregado simplesmente como mais um atributo

de cor ou se houve a intenção de acrescentar ao rei do quilombo mais poder, uma vez que a palavra da qual

deriva o adjetivo tem como definição no Dicionário Houaiss “tecido vermelho, tingido com essa substância

2 O trecho correspondente na tradução é “sem dúvida esta é uma limitação inerente ao objeto da estilística, e não é mister exagerar sua gravidade, porque, depois de tudo, o valor artístico das invenções estilísticas não depende em absoluto de que o autor se aperceba da eleição que estava fazendo”. ULLMANN, S. Lenguaje y estilo. Madri: Aguillar, 1973. p. 159-160.

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[Era muito valorizado na Antiguidade e na Idade Média, dava status e era símbolo do poder real e

eclesiástico.]”

Mas, no momento em que o rei do quilombo se encontra com a comitiva enviada por Capitão

Cavalo a fim de negociar a libertação do filho, Iô Pepeu, a fala da régia figura se faz ouvir em discurso direto,

com toda pompa e circunstância, já antes anunciada pela voz do narrador que, com um discurso do mesmo

quilate descrevera a chegada do rei à sala do trono:

Que maus sucessos assolam o grande Capitão Cavalo? Perguntou, sem dirigir-se a alguém em

particular _Que se passa com o grande Capitão Cavalo, terá perdido seus afamados haveres e

sua opulentíssima fazenda? Ou a vida rude que leva o conduziu a esquecer as regras do bom

trato e do respeito, pois que não vejo nenhum entre vós a trazer-nos uma prenda? Ou lhe

sucedeu tanto uma coisa quanto outra? E por que nos remete tão extravagante enviatura? Um

homem branco, que já nos disseram que fala arrevesadamente e vive entre selvagens, uma

mulher branca que segundo todos se aplica em bruxarias e feitiços e, em sítio cristão, devia ser

queimada na fogueira e, se vivesse aqui, expiaria suas malfeitorias indo tostada na grelha velha

de São Lourenço, destinada aos condenados às penas infernais, e uma mulher que não

conhecemos embora felizmente não tivesse ousado mandar uma de má raça, como se vê

desde já que essa não é, pelos seus traços nobres de congolense. Custa-nos perceber em que

intentos isso se assenta, intriga-nos a maquinação que o engendrou, mas já vos demandamos.

(FIP, p. 125)

Eis um discurso produzido de acordo com uso da língua portuguesa em seu padrão culto, no qual se

registra um vocabulário cuidado, marcado por alguns termos de emprego especial como “enviatura”, termo

da diplomacia; “sucesso”, em sua primeira acepção (acontecimento); “assolam” (afligem); “opulentíssima”

intensificado pelo sufixo superlativo; “prenda” (presente); “expiaria” (pagaria a culpa); ”intentos” (objetivos),

“maquinação” (conspiração).

Dominar diferentes maneiras de dizer é uma característica do falante culto. Tal qual Moniz Andrade,

D. Afonso Jorge II demonstra sensibilidade literária quando, tendo seu devaneio invadido pelo narrador, este

descreve a congolense de “traços nobres”, hiperbolizando as qualidades de Crescência que tanto o

impressionaram, pelo emprego de modalizadores e intensificadores:

Sim, airosa _ e de repente deu um passo à frente, juntou as mãos e fechou os olhos num

devaneio inesperado _, com ancas de redondeza tão sedutora, seios tão graciosamente

torneados, pele tão veludínea, lábios tão mimosamente carnudos, dentes alvos, tornozelos

maravilhosamente esculturados, grandes olhos negros e brilhantes, a inexistência de qualquer

defeito. Sim. Acreditava que sabia, decerto que sabia por que Capitão Cavalo, cuja astúcia

nunca pusera em dúvida, fizera compor aquela delegação com a presença dessa

extraordinária mulher. (FIP, p. 129)

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DA CAL (1981, p. 105-6) diz que há certos tipos de palavras que expressam vozes delicadamente

líricas, “mais do que vocábulos, trata-se de conceitos ou sensações, que se manifestam por várias categorias

gramaticais, entre as quais predominam principalmente o adjectivo e o advérbio”. De forma recorrente na

língua, os derivados em -udo atribuem pejoratividade aos substantivos. A habilidade do escritor, ajustada à

necessidade estética do trecho narrativo, atenua a ideia de volume exagerado contida no adjetivo “carnudo”

com o emprego do modalizador “mimosamente” e do substantivo “lábio”, sem que a palavra perca o apelo

sensual que traz ao texto. Assim como “lábios”, há outros termos de uso literário já consagrado, sendo esse o

caso de “seios”, “devaneio”, “airosa”, “veludínea”, “alvos”.

Durante o levantamento que realizamos em torno do vocabulário afeito à personagem D. Afonso

Jorge II, foram encontradas unidades lexicais que exigiram o recurso ao dicionário3. Na dúvida de ser uma

questão de desconhecimento apenas nosso, submetemos uma relação de palavras, a maioria delas imaginadas

por nós como de baixa frequência de uso e algumas outras de uso regular, a um grupo de professores. Foram

convidados a participar da pesquisa 12 informantes, todos pós-graduados (3 mestres em Língua Portuguesa, 1

mestre em Comunicação; 5 doutores em Língua Portuguesa e 3 doutores em Literatura Brasileira).

Intencionalmente, os itens não foram contextualizados, pois nosso objetivo era verificar se tais termos faziam

parte do vocabulário ativo dos informantes, uma vez que todos os informantes são leitores contumazes. Foi-

lhes proposto apontar se conheciam ou não as palavras. Eis o resultado obtido:

Tabela 1: Palavras com 100% de desconhecimento

palavra Significado dicionarizado Amolente-se que se enterneça, enfraqueça retrizes penas grandes que formam uma cauda enviatura ato de mandar alguém em missão especial tarampantão onomatopeia; som do tambor hacaneias cavalo manso, de porte médio carguejar carregar fardos; guiar animais de carga seresma mulher muito feia; bruxa canhembora mesmo que quilombola (origem tupi) buraçanga cacete com que se bate a roupa

3 O recurso ao dicionário ocorreu durante todo o trabalho, porém nesta parte a incidência de palavras de

significado desconhecido foi maior. Daí a escolha do material léxico para elaboração do inquérito, cujo

exemplar se encontra anexado (p. 179-180).

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Tabela 2: palavras desconhecidas com percentual entre 99% e 80%

palavra significado tutear tratar por tu chavo moeda de pouco valor ensancha sobra de tecido falbalá babado; tira de pano franzida cotica listra estreita e diagonal do escudo encharolado posto em charola ou padiola baldaquim dossel; cobertura de tecido casula vestimenta religiosa; paramento eclesiástico fachuda que tem bela figura telhudo tonto; maníaco louçainha traje de gala; o que enfeita, adorna arroteador animal usado para limpar terreno para plantação nefária nefanda; execrável; abominável pembeiro traficante de escravos do interior para a costa arraçado resultado do cruzamento de duas raças; que não apresenta

qualidades morais devido à natureza de um dos pais

Tabela 3: Palavras desconhecidas com percentual entre 79% e 60%

palavra significado presuntivo presumível; provável tarouco idiota; demente empalar espetar pelo ânus uma estaca camarista camareiro sem intimidade com o soberano ajoujado amarrado com cordas como animais ferulada pancada com férula, palmatória

A palavra “pembeiro” não é dicionarizada. O significado foi-nos apresentado por meio de

metalinguagem explicitada pelo próprio escritor na narrativa. “Buraçanga” e “canhembora” são tupinismos,

“enviatura” faz parte da terminologia diplomática. “casula” pertence ao repertório da liturgia; “baldaquim” é

terminologia da arquitetura: “retriz” é termo de zoologia; “tarampantão” é uma formação onomatopaica;

“ferulada” é forma neológica criada pelo processo de sufixação. As demais palavras não apresentam rubrica

especial nos dicionários consultados.

Não ignoramos que, se muitas das palavras apontadas nas tabelas como total ou parcialmente

desconhecidas estivessem contextualizadas, os informantes teriam chegado ao significado adequado ou, pelo

menos, próximo daquele empregado no texto pelo escritor. Mas, de qualquer maneira, podemos afirmar que

esses itens lexicais não fazem parte do vocabulário ativo deles. Estão guardados, porém, no “tesouro

vocabular” do romancista, como disse Haroldo de Campos. Ao empregá-los, João Ubaldo Ribeiro coloca-os

no lugar ideal para preservar a tradição vocabular da língua portuguesa: o texto literário.

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O fato de termos trazido a esta parte da pesquisa o vocabulário empregado pelo escritor João Ubaldo

Ribeiro apenas nas vozes de D. Afonso Jorge II, a majestade, e do narrador, incorporando discursivamente o

papel de bufão, não significa dizer que outras personagens presentes no romance em análise e não só o rei do

quilombo não demonstrem em suas falas o uso culto da língua, bem como outras variedades de uso. Apenas

estabelecemos como critério de escolha o fato de serem aquelas alvos da pena do escritor para exercer sua

análise crítica sobre as elites dominantes na utópica ilha. Em outro momento tais participantes da narrativa

serão convidadas, quando as situações de uso chancelarem o convite.

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Alexandre do Amaral RIBEIRO1

RESUMO Este artigo apresenta o projeto NUPPLES/UERJ e o entende como espaço de ensino, investigação e formação de professores de português língua não materna. Sua apresentação visa não somente a dar conhecimento do projeto em si, mas trazer à luz alguns dos desafios e especificidades da área, relativos especialmente às interações em sala de aula. O texto oferece com isso um cenário em que destaca a interculturalidade como eixo norteador do ensino de português língua não materna, reforçando essa característica, ao mencionar as suas vertentes de investigação possíveis. Os contextos de pesquisa inerentes ao projeto e à área de estudos mostram uma inclinação natural à interculturalidade, pois interessam questões sobre ensino de português para surdos, usuários ou não da língua de sinais, aos índios e a estrangeiros. Por esse motivo, a questão da formação de professores também é tangenciada, uma vez que é cada vez mais crescente a procura por cursos de português do Brasil para os quais ainda há poucos qualificados.

PALAVRAS-CHAVE: português língua não materna, formação de professores de português, NUPPLES.

ABSTRACT This article presents the NUPPLES/UERJ, a project that is understood as a place where education, research and training of teachers of Portuguese as non native language can be promoted. Its presentation aims not only to inform about the project itself, but to bring to light some of the challenges and characteristics of the area, especially the ones related to the interactions inside the classroom. The text offers a kind of scenery that highlights interculturalism as a guideline for teaching Portuguese as a non native language, reinforcing this characteristic by mentioning its possible research areas. The research contexts inherent to the project design and to the mentioned area of studies show a natural tendency to interculturalism. That‘s because it includes different issues on how to teach Portuguese as non native language to learners such as sign language users (deaf people), indians and foreigners. For this reason, the issue of teachers training is also treated since the request for Brazilian Portuguese course has been increased during the last years although there are few qualified professionals in the area.

KEYWORDS: Portuguese as a non native language, portuguese tearchers‘ training, NUPPLES.

1 Doutor em Linguística pela Unicamp e pós-doutor em português como segunda língua pela PUC-Rio; professor adjunto do Instituto de Letras da UERJ e coordenador do Núcleo de Pesquisa e Ensino de Português Língua Estrangeira e Segunda Língua (NUPPLES/UERJ).

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Ao se darem conta da possibilidade de atividades de ensino e de pesquisa no âmbito do “português

língua não materna”, muitos revelam total desconhecimento acerca de tal perspectiva sobre a língua

portuguesa. Não raramente, há ainda aqueles que demonstram certa perplexidade com a existência de tal

campo de trabalho e de investigações, o que se pode inferir por indicarem em suas manifestações jamais lhes

ter ocorrido que “algum estrangeiro pudesse se interessar em aprender português e muito menos o do Brasil.”

Perguntas das mais variadas decorrem dessa falta de conhecimento e de familiaridade com o assunto.

Trata-se de dúvidas sobre as reais diferenças entre ensinar português como língua não materna

(PLNM) e português língua materna; sobre quais são os requisitos mínimos necessários para a atuação nessa

área; entre outras. São recorrentes, por exemplo, comentários que revelam crenças como a de que só é

possível ensinar português para estrangeiros se o professor dominar língua inglesa; a de que as aulas precisam

ser dadas inicialmente na língua materna do aluno estrangeiro; a de que qualquer falante nativo pode ensinar

português mesmo sem ter formação específica etc.

Um “espantamento” ainda mais forte pode surgir quando se dão conta de que há brasileiros que não

têm o português como língua materna. Uma situação que admite, pelo menos, dois contextos: o do ensino de

português como segunda língua para brasileiros índios e para brasileiros surdos. Próprio dessa profusão de

questionamentos é o fato de parecer mais razoável concluir que há comunidades indígenas em que não se

fala o português do que surdos que não o façam. Afinal, para muitos a língua de sinais não passa de uma

forma mimetizada da língua portuguesa, sendo o domínio do português, escrito ou falado, uma consequência

lógica dessa suposta situação.

Como respaldo para essas conclusões equivocadas, encontram-se mitos ainda extremamente comuns

como os de referir-se a um sujeito surdo como “surdo-mudo”, o de considerar que todo surdo é capaz de

fazer leitura labial e, portanto, a comunicação oral ou escrita apresenta as mesmas características seja entre

surdos e ouvintes ou entre ouvintes apenas. Afora esse distanciamento teórico e prático, não é impossível

presenciar comportamentos estranhos, como o de pessoas aumentando consideravelmente o tom de voz

quando tentam se comunicar com um surdo (brasileiro) ou, até mesmo, com um estrangeiro (ouvinte).

De certa forma, esse comportamento (revelador de uma atitude social) em situações de interação

comunicativa conduz a reflexões mais amplas como a das representações de surdos e estrangeiros no

imaginário popular. É acertado propor, a partir da análise dessas situações, pensar sobre a condição de

estrangeiridade de um surdo e da surdez funcional que pode ser atribuída a um estrangeiro. Há surdos

estrangeiros no próprio país em que nasceram e há estrangeiros “surdos”, tentando encontrar oportunidades

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de aprendizagem tais que lhes permitam fazer “usos felizes” da língua, no sentido austiniano da expressão

(AUSTIN, 1990).

No que diz respeito ao ensino de português como segunda língua para índios brasileiros, vale citar

que se trata ainda de grande desafio para o Brasil a aplicação e releitura do Referencial Curricular Nacional

para as Escolas Indígenas (RCNEI). Santos (2005), após análise, conclui que esse documento propõe uma

educação indígena específica e diferenciada e busca para educação uma abordagem intercultural e bilíngue.

Há, contudo, um caminho longo para se discutir o lugar da língua portuguesa no cotidiano de

comunidades indígenas e os aspectos práticos do seu uso para as relações com agentes não índios. Além

disso, não se pode deixar de lado, igualmente, a questão da formação de professores indígenas de língua

portuguesa de modo a facilitar a promoção das relações interculturais, respeitando-se as diferenças

linguísticas e culturais de cada comunidade indígena e dando acesso à língua e à cultura brasileiras. A

exemplo dos surdos, muitas pessoas concebem de maneira totalizante tais sujeitos como se todos fossem

iguais.

Com base nas três perspectivas, brevemente comentadas até este ponto, cabe apresentar de forma

mais clara objeto e objetivos deste artigo de modo contribuir para um olhar mais específico sobre o seu

conteúdo. Assim, este artigo entende o “português língua não materna” como um campo de investigação

específico e o toma como objeto de discussão, fazendo um recorte em que, na perspectiva da

indissociabilidade entre pesquisa e extensão e de políticas linguísticas e educacionais, pensa um projeto de

pesquisa específico e suas ações. Trata-se do Núcleo de Pesquisa e Ensino de Português como Língua

Estrangeira e Segunda Língua (NUPPLES/UERJ), cuja apresentação comentada visa não somente a dar

conhecimento do projeto em si, mas trazer à luz alguns dos desafios e especificidades da área como um todo.

Como objetivos principais encontram-se: apresentar e justificar a existência do projeto em questão e

fundamentar a sua visão e missão.

É importante dizer ainda que as considerações deste artigo privilegiarão a perspectiva do ensino de

português para estrangeiros. Os motivos são teórico-práticos: apesar da área que abarca a ideia de ensino-

aprendizagem de língua portuguesa para surdos, índios e estrangeiros ser comum (PLNM), as características

de cada uma dessas subáreas são específicas e diversas, embora apresentem relações intrínsecas; aliado a esse

fato, a extensão de um artigo não permitiria tratar com consistência suficiente todas as três vertentes, salvo se

proposto outro recorte de discussão.

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O Núcleo de Pesquisa e Ensino de Português Língua Estrangeira e Segunda Língua (NUPPLES), no

âmbito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em última análise, circunscreve-se em uma proposta

mais ampla, a saber, a da internacionalização da Universidade. O desejo de estabelecer relações de

cooperação com outros países e instituições, a possibilidade de receber estrangeiros como alunos na

universidade, entre outros anseios e oportunidades, dependem de políticas linguísticas e educacionais que

estabeleçam metas claras, prevejam desafios e apoiem estratégias para efetivação dos seus propósitos.

Receber estrangeiros nas universidades implica, no mínimo, a decisão de como esses alunos

assistirão às aulas e participarão das atividades cotidianas no ambiente acadêmico de modo produtivo. Uma

possibilidade é a de que existam, nos diferentes cursos, aulas e atividades em uma língua franca, mais

provavelmente, em inglês. Uma realidade que parece mais distante e difícil de ser concretizada em função da

sua operacionalização. Parece bem mais razoável financeiramente investir em ensino-aprendizagem de

português língua não materna para esse público-alvo (estrangeiros), levando-os a aprender a língua da

comunidade em que desejam se inserir, mesmo que temporariamente.

No caso de alunos surdos a situação fica ainda mais complexa, pois – além da mudança de visão em

termos de trabalho e avaliação da produção em uma segunda língua – a condição bilíngue do surdo

exclusivamente sinalizante exige a presença de intérpretes nas salas de aula. Pode ser politicamente

interessante e/ou financeiramente viável equipar toda a instituição com câmeras filmadoras, contratar

profissionais em tempo integral e em quantidade suficiente para atender os surdos em todas as atividades.

Uma realidade facilmente identificável, apesar das leis de inclusão e dos avanços inegáveis que a sociedade

em geral fez nesse sentido.

Todo esse contexto é ainda intensificado pela consciência ainda muito recente de que há uma área

PLNM. Uma tomada de consciência recente em relação ao seu real surgimento (ALMEIDA FILHO, 2011). A

despeito da história externa da língua portuguesa e da história da implantação da língua portuguesa no Brasil,

a dimensão não materna de investigação e de trabalho com a língua aparece quase sempre como algo

desconhecido e distante. Poucos, ao tratarem da história da língua portuguesa, enfocam certos detalhes que

colocam em discussão as formas de aquisição ou aprendizagem de português e proficiência daqueles

primeiros aprendizes, fossem autóctones ou africanos e, portanto, “estrangeiros” no Brasil. Também são pouco

investigadas as cartilhas (materiais didáticos), enviadas por Portugal aos territórios ultramarinos para garantir a

expansão e implantação da língua portuguesa (LEITÃO, 2008).

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Há, no entanto, inegavelmente muitos trabalhos de pesquisa e atividades de ensino-aprendizagem de

PLNM na e sobre a contemporaneidade. Não se pode deixar de citar, no que se refere ao Brasil, o pioneirismo

de universidades como a PUC-Rio, a UnB, a UFBA, a UFF, a UFRJ e tantas outras instituições aqui não

mencionadas e suas produções na área (cf. ALMEIDA FILHO, 2011). Há realmente um grande esforço e

produção na área que impulsionam pesquisas e apoiam ações governamentais com a instituição do CELPE-

BRAS (Certificado de Proficiência em Língua Estrangeira para Estrangeiros).

Contudo, as iniciativas existentes são quase sempre restritas ao âmbito acadêmico e ainda, de certa

forma, modestas, se consideradas as diferentes vertentes que a área oferece e a quantidade de cursos de

graduação, programas de pós-graduação e professores de nível superior da área de Letras e Linguística.

Quantos cursos superiores da área de Letras, de fato, dão formação, mesmo que complementar, nessa área?

Em que medida, alunos e professores das Universidades estão preparados (ou pelo menos disponíveis) para

receber alunos estrangeiros, surdos ou índios, não falantes do português como língua materna?

Essas lacunas e o desejo de encontrar caminhos possíveis às inquietações daqueles comprometidos

com essa área motivaram a criação do NUPPLES/UERJ.

O projeto NUPPLES foi aprovado pelo Setor de Língua Portuguesa (SLP) do Instituto de Letras da

UERJ em julho de 2011 e pelo Departamento de Língua Portuguesa, Literatura Portuguesa e Filologia (LIPO)

em 15/08 do mesmo ano, tendo sido – em seguida – reconhecido oficialmente pelo Conselho Departamental

do ILE/UERJ. Pode-se considerar tal fato como um conquista de vários anos de trabalho. Em anos anteriores,

houve professores que propuseram a execução de projetos nesta área, o que não foi levado adiante por

motivos variados, mas que permitiu a criação de disciplinas eletivas de português como segunda língua no

curso de Letras da UERJ. O trabalho efetivo nesta área dentro do Instituto de Letras da UERJ começou,

contudo, pela iniciativa do coordenador atual através de orientações de trabalhos monográficos e da

coordenação de cursos de extensão já no ano de 2010.

A criação do NUPPLES chamou a atenção de vários alunos de graduação e pós-graduação que

vinham reivindicando um espaço para se especializarem em ensino de PLNM e daqueles que desejavam uma

formação complementar nessa área. Por isso, o NUPPLES contou com bolsistas e estagiários voluntários na

área de Iniciação à Docência, Estágio Interno Complementar e de Extensão.

Entre os anos de 2011 e 2013, o NUPPLES promoveu quatro eventos para divulgação das atividades

na área, a saber, a I e a II Jornada de Estudos sobre PL2E, o I Congresso de (Inter)Nacionalização do Português

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Brasileiro e o Seminário sobre Ensino de PLNM. Além disso, neste mesmo período, duas turmas concluíram o

Curso de Qualificação em Ensino de Português como Segunda Língua, em nível de extensão.

O projeto se fez representar, apresentando resultados de pesquisa, em eventos como UERJ SEM

MUROS, Lusitanistentag (Alemanha) e Encontro de PLE do Rio de Janeiro. Quanto a este último citado, trata-

se de evento de organização interinstitucional e a UERJ passou a integrar a partir de 2013 o grupo de

universidades fluminenses (UFRJ, UFF, PUC-Rio) que o promovem.

Essa produtividade do projeto está de acordo com a sua missão, uma vê que o NUPPLES foi criado

para suprir no âmbito da UERJ uma necessidade de eminentemente prática. Não havia nenhum projeto que se

ocupasse em formar professores de português como segunda língua, nem em promover pesquisa na área,

embora iniciativas de oferecimento de cursos de português para estrangeiros já tivessem existido.

Ocorre que prática e teoria devem ser articuladas e justificava-se um projeto que, além de cumprir

um papel extensionista, pudesse contribuir para construção de sólidas bases teóricas na área. Em especial, há

o compromisso de pensar o ensino de PLNM de forma adequada à realidade da Instituição, pois os

professores em formação precisam não somente refletir sobre novas estratégias didático-metodológicas do

ensino da língua em si, mas precisam dar conta de “ensinar” uma segunda cultura em contento intercultural.

Afinal, língua e cultura são indissociáveis e um trabalho consciente evitará a formação de novos falantes do

português que sejam robotizados por estruturas prontas e descontextualizadas.

Assim, o NUPPLES formula a sua missão da seguinte forma: “Existimos para promover pesquisa e

formação em português língua não materna em constante diálogo interinstitucional e intercultural”.

O próprio entendimento do seu papel e missão impõe o alargamento de sua visão de mundo e do

mundo. A esse respeito, o projeto se mobiliza para “ser reconhecido como um espaço de referência na

produção de conhecimento na área de português língua não materna”. Trata-se do anseio de contribuir de

alguma forma para os estudos da área, tornando-se visível e, portanto, acessível a todos os interessados.

Na base dessa visão que o projeto tem e que deseja que tenham em relação a ele, existem valores

que norteiam as suas atividades diárias. São valores que permitirão receber de maneira mais consciente

estrangeiros, oriundos de diferentes culturas, em uma mesma sala de aula e, equilibradamente, conciliar

ensino da língua e da cultura. Ora não é parece apropriado se permitir crenças, por vezes ingênuas e

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quixotescas, por vezes xenófobas ou ares de “Policarpo Quaresma”, que prejudicam as relações e a boa

qualidade do processo de ensino-aprendizagem.

Para que esse tipo de situação não ocorra será necessário que os professores estejam preparados para

conhecer profundamente a língua, sua estrutura e usos, a cultura e suas formas de manifestação. O professor,

especialmente o nativo, precisa redimensionar as suas percepções sobre própria língua e cultura, o que

justificou a paráfrase “minha língua, muitas pátrias”. Não é raro que alunos estrangeiros relatem choques

culturais vivenciados, expressem não conformação com algum aspecto da cultura brasileira etc. Ainda que

precise se permitir certo grau de “aculturação” para avançar na aquisição ou aprendizagem da segunda língua

e cultura (SCHUMANN apud SADE, 2006), essa não pode ser uma exigência do professor. Ele precisará saber

gerir os conflitos culturais e instrumentalizar seu aluno com informações culturais, ao mesmo tempo em que

ensina a dominar construções linguístico-discursivas.

Não se atinge esse conhecimento e habilidade sem pesquisas e reflexões que norteiem o

planejamento de aula, aperfeiçoando as “competências didático-pedagógicas” do professor. Daí que um

projeto com tal perfil seja constituído por valores como: respeito à diferença intercultural; preservação da

língua e cultura brasileiras; indissociabilidade entre teoria e prática; cultivo de espírito investigativo e

integrador.

O projeto, portanto, para ser coerente com sua missão, visão e valores, propõe-se a abarcar

subprojetos que podem ser divididos nas seguintes vertentes: (1) Pesquisa e Ensino de Português como Língua

Estrangeira ou Segunda Língua para Estrangeiros; (2) Pesquisa e Ensino de Português como Segunda Língua

para Brasileiros Sinalizantes (surdos) ou surdos oralizados; (3) Pesquisa e Ensino de Português como Segunda

Língua ou Língua de Herança para brasileiros e/ou seus descendentes, falantes de outras línguas (4) Formação

de Professores Especializados em Português como Língua Estrangeira e Segunda Língua.

Em decorrência das vertentes de trabalho apresentada acima, o NUPPLES desenvolve atualmente

atividades de apoio à coordenação do Curso de Português para Estrangeiros do LICOM/PLIC (Projeto de

Línguas para a Comunidade do Instituto de Letras da UERJ); promove cursos específicos em parceira com o

projeto LICOM/PELE (Projetos Especiais em Língua Estrangeira) em que oferece Curso de Produção Textual

para Estrangeiros intercambistas que chegam à UERJ por convênios feitos através do Departamento de

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Cooperação Internacional. Apoia ainda o oferecimento de disciplinas de graduação e pós-graduação,

orientando trabalhos de pesquisa na área.

Como as aulas dos cursos mencionados são planejadas especificamente em consideração às

características de cada grupo, o material didático é exclusivamente preparado para cada turma. Para que isso

aconteça de modo satisfatório, são promovidas semanalmente atividades de estudo e treinamento.

As práticas de ensino-apendizagem adotadas em aulas de português para estrangeiros, especialmente

quando os aprendizes estrangeiros residem, mesmo que temporariamente, no Brasil, são colocadas

constantemente em xeque ora pela “falta” ora pela qualidade de materiais didáticos específicos. A essa

realidade sobrepõem-se ainda as dificuldades de se encontrar professores qualificados para a atuação nessa

área específica. Não raro alunos “desafiam” com suas dúvidas e curiosidade professores a responderem

questões sobre as quais nunca tinham pensado ou não tiveram a oportunidade de discutir anteriormente. A

profusão de questões que surge por comparação com a realidade linguística e cultural vivenciadas pelo

aprendiz exige a elaboração e adaptação de materiais didáticos que possam, por um lado, oferecer para os

alunos conteúdos autênticos para a aprendizagem e, por outro lado, um ponto de apoio para que os

professores possam atuar de modo mais eficaz.

É cada vez mais comum encontrar “professores” de português para estrangeiros sem qualquer

formação, nem mesmo na área de Letras. Diz-se isso ao se considerar que mesmo uma formação tradicional é

insuficiente para que o profissional seja bem-sucedido em relação às necessidades do seu aprendiz e ao

contexto de ensino-aprendizagem.

A exemplo do que acontece com o ensino de tantas outras línguas no Brasil, em que várias

instituições contratam seus professores tão simplesmente por serem nativos, o ensino de PLNM vem sendo

tomado pelo mesmo critério. A condição de nativo aparece em geral como “título” a ser aceito por parte das

instituições, especialmente, no exterior. Muitos aprendizes acreditam que “a rua é o melhor professor” e,

portanto, ou não frequentam aulas em uma instituição ou não procuram por professores qualificados em aulas

particulares.

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A formação de professores de PLNM é um dos objetivos do NUPPLES e é operacionalizada pela

própria prática de estudo, treinamento, planejamento de aulas e elaboração de materiais. Todos os professores

em formação são incentivados a desenvolver a capacidade de gestão da aula, aprendendo a planejar e

observando e discutindo uns as aulas dos outros.

O planejamento, por sua vez, segue um roteiro de aula que é construído na perspectiva daquilo que

o professor precisará desempenhar em aula. Esse “roteiro de aula” com status de plano apresenta uma

organização rigorosa que divide as atividades em “tempo”, “descrição da atividade” e “avaliação”. Esta última

relativa ao resultado da atividade em si. No verso da folha do roteiro existem campos a serem preenchidos

com as informações sobre a aula. A maioria desses campos é preenchida ao final da aula como forma de

avaliação do processo de ensino-aprendizagem. Desse tipo de registro são produzidos dados que informam

sobre as principais dúvidas de professores e alunos, fomentando a pesquisa na área de ensino-aprendizagem

de PLNM.

Para o bom funcionamento do “roteiro de aula”, discutido e revisado pelo professor coordenador, os

materiais didáticos são elaborados em conformidade com a proposta de cada atividade descrita. Bons

materiais didáticos, contudo, constituem-se em um desafio quando avaliados à luz de sua validade linguístico-

cultural.

O material didático não se reduz, naturalmente, à produção de exercícios, mas compõem uma parte

importante da atividade proposta no “roteiro de aula”. É que as atividades são propostas para viabilizar a

aprendizagem de terminado conteúdo em contexto específico, seguindo princípios comunicativos. Por isso

mesmo, é imprescindível o estabelecimento de um tempo de duração da atividade, articulado ao nível de

complexidade das competências exigidas para a execução da tarefa proposta.

Em termos de análise da qualidade do material didático produzido, são levados em consideração

critérios como nível de proficiência do aluno, proposta teórico-metodológica, pertinência em relação à

proposta da atividade, se é encadeada logicamente, se representa uma situação-problema etc.

Um dos projetos integrados ao NUPPLES pode ser identificado através da parceria NUPPLES/CEFIL

(Centro Filológico Clóvis Monteiro). Seu objetivo é o de criar um Dicionário específico de Português para

Estrangeiros, uma proposta motivada pelas dificuldades de alunos estrangeiros e professores de PLNM em

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encontrar materiais paradidáticos que lhes proporcionem informações mais consistentes acerca não somente

do léxico, mas das possibilidades de escolhas lexicais adequadas.

A elaboração de um Dicionário de Português para Estrangeiros visa a suprir necessidades específicas

de aprendizagem. Não se pode prescindir de materiais como esses, inclusive porque a demanda social é cada

vez mais crescente, em função dos grandes eventos que serão sediados pelo Brasil.

Para cumprir uma tarefa dessa monta, será necessário fazer levantamentos estatísticos diversificados

para a organização de um material linguístico autêntico, o que implica pesquisa de/em corpora (BERBER,

2004) de gêneros específicos. Tal empreitada exige trabalho de equipe com definição de público-alvo (os

estrangeiros em sua heterogeneidade), compilação de um corpus de referência etc. Não se pode perder de

vista que algumas características se impõem à obra, tais como riqueza de informações pragmáticas,

esclarecendo-se particularidades de uso do vocabulário tratado; registro atento de lexias complexas (locuções,

expressões idiomáticas, marcadores conversacionais, colocações etc.); possibilidade de uso de material

iconográfico para facilitar a compreensão do significado, principalmente em casos de substantivos concretos.

Como uma das principais preocupações está em fornecer para o usuário estrangeiro informações que

o permitam fazer escolhas lexicais adequadas para cada situação de interação que for vivenciada, é

indispensável compilar um corpus de referência que seja composto por textos atuais e cotidianos, sem um

nível de língua excessivamente complexo. O uso de dicionários, pensados como materiais paradidáticos, e

elaborados a partir de critérios como os expostos acima, facilitará que professores e alunos construam juntos

conhecimentos interculturais mais consistentes.

Ao longo do texto, foi apresentado o projeto NUPPLES/UERJ e suas características e ações. A

apresentação apontou para ações e crenças em relação ao ensino de PLNM que constituem o cenário que

envolve o cotidiano dos profissionais que trabalham na área. Para esses, uma das competências mais

importantes, aliadas ao conhecimento da língua, é a capacidade de ensinar em contexto intercultural, dando

acesso a informações linguísticas e culturais relevantes para o desenvolvimento da proficiência em PLNM.

Embora haja aqueles que insistem em buscar “a turma homogênea”, é desnecessário dizer que essas

não existem de fato. Uma tal realidade não parece viável, nem mesmo quando se propõem turmas de falantes

de uma mesma língua, pois há diferenças sociolinguísticas significativas entre tais falantes. A heterogeneidade

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é um fato inquestionável que, contudo, salta aos olhos quando o professor atua em uma sala de português

para estrangeiros. Em geral, trata-se de um espaço privilegiado pelo encontro de culturas diferentes que não

podem ser ignoradas como às vezes acontece nas aulas de língua materna. Lógicas de pensamento diferentes,

pontos de vista opostos, choques culturais etc. marcam a convivência em sala de aula.

Trata-se de muitas línguas e muitas pátrias que tomam a língua materna e cultura “do professor”

como alvo. Nesse sentido, o professor não pode ter como objetivo o simples reproduzir de sua cultura e das

formas de socialização. Ele precisa encontrar estratégias para promover a compreensão intercultural,

entendendo que a “aquisição” de uma segunda cultura pode ser tornar mais desafiadora do que a própria

aquisição/aprendizagem da língua. Seu objetivo deve apontar para o letramento em PLNM e na respectiva

cultura.

ALMEIDA FILHO, J. C. P. de. Fundamentos de abordagem e formação no ensino de PLE e de outras línguas. Campinas, SP: Pontes Editores, 2011.

AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.

BERBER, T. S. Linguística de corpus. São Paulo: Manole, 2004.

BORBA, F. S. Organização de dicionários: uma introdução à lexicografia. São Paulo: UNESP, 2003.

LEITÃO, A. R. B. Dos semeadores da palavra: o ensino do português junto dos ‘gentios‘ (contributo para uma história da didáctica do português língua não materna). In: Anais do VII Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação: Cultura Escolar, Migrações e Cidadania. Portugal: Universidade do Porto, 2008.

MENDES, E. Aprender a língua, aprendendo a cultura: uma proposta para o ensino de português língua estrangeira. In: CUNHA, M. J. C.; SANTOS, P. Tópicos em português língua estrangeira. Brasília: Editora da UnB, 2002.

RIBEIRO, A. A. Sobre a formação de professores de PLE no contexto da nova ‘geração lusofonia‘. In: SIMÕES, D. M. P. (org.). Semiótica, Linguística e Tecnologias de Linguagem. Homenagem a Umberto Eco. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2013.

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____________________________________

Data de submissão: dez./2013. Data de aprovação: dez./2013.

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João Baptista M. VARGENS1

RESUMO Relatam-se, neste artigo, providências tomadas para a criação do Departamento de Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa na Universidade Abd Al-Malik Es-Saadi, em Tetuão, e os esforços empreendidos para difusão do idioma português no Marrocos. Adicionalmente, relacionam-se iniciativas (e dificuldades) do governo brasileiro para promoção do ensino da Língua Portuguesa no exterior, como a COLIP (Comissão para a Definição da Política de Ensino-Aprendizagem, Pesquisa e Promoção da Língua Portuguesa), instituída a partir da Portaria MEC n. 4.056, de 2005. Essa Comissão tem entre suas finalidades estruturar o Instituto Machado de Assis (IMA), que poderá atuar, no que diz respeito ao português do Brasil, de forma semelhante ao Instituto Cervantes e ao Instituto Camões, órgãos dos governos da Espanha e de Portugal responsáveis pela difusão do português e do espanhol.

PALAVRAS-CHAVE: COLIP, IMA, promoção da língua portuguesa no Brasil e no exterior.

ABSTRACT This is a report of the arrangements which were made for the creation of the Department of Portuguese Language and Portuguese Language Literatures, at the University Abd Al-Malik-Es Saadi, in Tetouan, and of the efforts to spread the Portuguese language in Morocco. Additionally, an initiative of the Brazilian government to promote the teaching of Portuguese abroad, with the difficulties involved in it, is also presented: the COLIP (Committee for the Definition of Teaching and Learning Policy, Research and Promotion of Portuguese Language) was established in 2005, by Resolution n. 4.056 of MEC. One of the purposes of this Commission is to structure Machado de Assis Institute (IMA), which may act, with regard to the Portuguese of Brazil, similarly to the Instituto Cervantes and to the Instituto Camões, which are bodies of the governments of Spain and Portugal, responsible for the spread of Portuguese and Spanish.

KEYWORDS: COLIP, IMA, Portuguese Language promotion in Brazil and abroad.

1 Doutor em Letras pela Universidade de Lisboa e Professor Titular da Faculdade de Letras da UFRJ. Com ampla vivência no mundo árabe, morou na Síria – como estudante – e no Marrocos – como professor de língua portuguesa e cultura brasileira. Publicou Léxico português de origem árabe (Almádena, 2007); Português para falantes de árabe (Almádena, 2006 ‒ et alii) e Islamismo e negritude (UFRJ, 1982 ‒ com Nei Lopes), entre outras obras.

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Durante a década de 90 do século passado, estive por três vezes no Marrocos, tendo em vista a

criação do Departamento de Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa na Universidade Abd Al-

Malik Es-Saadi, em Tetuão. A iniciativa partiu do Embaixador do Marrocos no Brasil, o jornalista e escritor

Mohamed Larbi Messari, que proporcionou o intercâmbio de vários acadêmicos dos dois países, por acreditar

ser essa uma das maneiras mais eficazes para um melhor conhecimento e um maior aprofundamento das

relações binacionais.

Após uma breve estada em Fez, na universidade local, ainda nos anos 80, para ministrar palestras

sobre os negros muçulmanos no Brasil e sua liderança nas rebeliões escravas que eclodiram na Bahia nos

últimos anos do século XVIII e prolongaram-se até 1835, quando da famosa Insurreição dos Malês, regressei

duas vezes àquele país norte-africano com o objetivo precípuo de implantar o referido departamento na

Universidade de Tetuão.

Em caráter experimental, estive naquela universidade, em 1990 e em 1991, ministrando cursos de

língua portuguesa, que contaram com a participação de mais de duas dezenas de alunos, entre eles,

professores universitários, em sua maioria do Departamento de História, interessados especificamente na

leitura de documentos escritos em português, encontrados em arquivos marroquinos e portugueses,

pertinentes à presença e ao domínio político daquele país ibérico na faixa litorânea atlântica marroquina, que

se estendeu de 1415, quando da tomada de Ceuta, até 1769, ano em que as tropas locais recuperaram

Mazagão, atual Al-Jadida, após a ordem do Rei de Portugal, Dom José, para que os ocupantes, cerca de dois

mil, evacuassem a cidade e retornassem a Portugal. Após seis meses em Belém, nos arrabaldes de Lisboa,

esses luso-marroquinos foram transportados para a Amazônia, onde construíram uma cidade para abrigá-los,

com o mesmo nome da praça africana abandonada. Convém ressaltar que outro fato de capital importância

para os estudiosos locais se interessarem pela nossa língua é a conhecida e festejada Batalha dos Três Reis, em

1578, em que a vitória dos muçulmanos e a morte de Dom Sebastião, o Desejado, Rei de Portugal, solaparam

a intenção dos adeptos da cruz a continuarem sua marcha pelos territórios dos fiéis ao crescente. A célebre

Batalha de Alcácer Kibir mudou o curso da história e, por isso, a data é comemorada até hoje, sendo feriado

nacional no país.

Em 1992, sob o escopo de um projeto de Acordo de Cooperação Científica e Cultural, que veio a ser

firmado em 30 de junho de 1994, entre a Universidade Abd Al-Malik Es-Saadi e a Universidade Federal do

Rio de Janeiro, retornei ao Marrocos para implantar o departamento supracitado e lá permaneci por três anos.

Minha atuação teve o apoio institucional da Embaixada do Brasil em Rabat e, naquela oportunidade, labutava

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em duas frentes: a pedagógica e administrativa, a partir do nada ou quase nada. Durante o período em que

trabalhei em Tetuão, 136 alunos frequentaram o curso de língua portuguesa e cultura brasileira. A partir do

modelo acadêmico da universidade marroquina, esboçaram-se ementas e programas, que contemplavam

disciplinas de língua portuguesa, literatura, história e cultura dos países lusoparlantes, distribuídas por quatro

anos.

Concomitantemente ao trabalho universitário, circulava no jornal L‘Opinion, de expressão francesa,

uma coluna dominical em português, “Opinião Semanal”, sob minha responsabilidade, versando sobre

assuntos ligados ao cotidiano dos países lusófonos, principalmente sobre o Brasil. Os estudantes interessados

eram incentivados e colaboravam, escrevendo artigos, por mim revisados, o que ensejava grande satisfação

aos autores e os motivava para a aprendizagem da língua.

Nosso trabalho da difusão do idioma do português no Marrocos foi algumas vezes mencionado pela

imprensa local e, também, pela imprensa portuguesa, o que levou o Embaixador do Brasil em Portugal, José

Aparecido de Oliveira, um dos mentores e grande incentivador da Comunidade dos Países de Língua

Portuguesa – CPLP – a me endereçar uma carta, em que tecia elogios àquela iniciativa pioneira.

O sucesso da receptividade do ensino do português na Universidade de Tetuão levou o Ministério da

Educação Superior do Marrocos a abrir uma vaga específica para professor de português, a ser ocupada

mediante concurso público, podendo participar cidadãos estrangeiros com titulação compatível para exercer

a função. Infelizmente, o projeto já vitorioso esbarrou em empecilhos e não seguiu adiante. Quando de meu

retorno ao Brasil, não havia professores capazes ou interessados em assumir as aulas, a Embaixada do Brasil

não podia gerenciar o curso, a abertura de um leitorado no Marrocos não era uma prioridade do Itamaraty, o

Setor de Estudos Árabes da UFRJ não dispunha de um professor para se ocupar da tarefa. Enfim, os esforços

despendidos não tiveram sequência, desdobramentos, em virtude da carência de uma política coordenada

para o ensino do português do Brasil no exterior.

Há algumas ações para a divulgação do idioma nacional no estrangeiro. O Itamaraty mantém

leitores, selecionados pela CAPES, que atuam em comum acordo com universidades estrangeiras, a expensas

do governo brasileiro, com a ajuda da instituição anfitriã. Caso esta denuncie a qualquer momento o Acordo,

o projeto naufraga imediatamente. Existem os Centros de Estudos Brasileiros (CEBs), também mantidos pelo

Ministério das Relações Exteriores, onde o ensino do português está presente, sob a tutela do Departamento

Cultural do Itamaraty. Nesses casos, tudo depende do interesse político daquele órgão da administração

pública e das pessoas a quem são confiadas as missões. Há, também, empresas brasileiras, que atuam no

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estrangeiro, patrocinadoras de cursos de português para famílias de funcionários, sem qualquer interferência

do Estado.

Percebe-se que há intenções para a difusão do idioma nacional no exterior, mas falta uma política,

um órgão capaz de coordenar as diversas ações. Os exemplos de iniciativas abortadas são diversos. Para não

enfadar o leitor, acrescentarei mais uma.

Em visita oficial a países do Oriente Médio, o Presidente Luís Inácio Lula da Silva assinou Acordos

Culturais, os quais previam, entre outras coisas, a criação de cursos de português em universidades locais. Em

seguida, o Ministro da Educação Fernando Haddad esteve na Síria e no Líbano, para verificar a melhor forma

de viabilizar o ensino de nossa língua naqueles países. Por outro lado, o Embaixador da República Árabe da

Síria no Brasil, Prof. Doutor Ali Diab, professor de literatura árabe de Al-Ândalus na Universidade de

Damasco, empenhou-se para que se concretizasse o referido projeto. Após algumas tratativas, o MEC e a UFRJ

encontraram um meio para que fosse iniciado o curso naquela universidade síria. Com recursos específicos

repassados pelo Ministério da Educação, a UFRJ remunerou uma bolsista, professora graduada pelo Curso de

Português-Árabe, que, por dois anos, ministrou aula na capital dos omíadas, utilizando o método Português

para Falantes de Árabe, livro didático, cujos autores são professores ou ex-alunos do Setor de Estudos Árabes

da UFRJ. Infelizmente, a experiência vitoriosa interrompeu-se após o retorno da professora, por falta de um

melhor planejamento.

Para sanar equívocos conforme os citados, um ato ministerial importantíssimo foi lavrado em 2005.

Foi assinada a Portaria 4056 pelo Senhor Ministro da Educação Fernando Haddad, instituindo a COLIP

(Comissão para a Definição da Política de Ensino-Aprendizagem, Pesquisa e Promoção da Língua Portuguesa),

com, entre outras, as seguintes finalidades:

1) Produzir ações culturais que promovam a identidade e representação do Brasil linguístico,

englobando as variedades do Português praticadas no Brasil, as manifestações remanescentes de línguas

africanas, bem como as demais línguas maternas do Brasil as indígenas e as de imigração;

2) Apresentar propostas de promoção internacional do Brasil por meio de políticas governamentais

em coordenação com o Ministério das Relações Exteriores;

3) Estruturar o projeto de criação do Instituto Machado de Assis, nos termos da Declaração Conjunta

do Primeiro Ministro da República Portuguesa e do Presidente da República Federativa do Brasil, por ocasião

da VIII Cimeira Luso-Brasileira, realizada na cidade do Porto em 13 de outubro de 2005.

Entre os professores que compõem o Conselho da COLIP, encontram-se nomes proeminentes, com

larga experiência no ensino e na investigação da língua materna, atuantes nas mais respeitadas universidades

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do país, com passagem por instituições estrangeiras de reconhecido mérito, o que comprova sobremaneira a

seriedade da empreitada.

Durante as reuniões da COLIP, a execução do projeto de divulgação da língua portuguesa no

exterior esbarrou num choque de competências e de responsabilidades entre três ministérios: o MEC, o MRE e

o MINc. Assim sendo, há sete anos, arrasta-se pelos foros institucionais do governo brasileiro uma iniciativa

que recebeu pleno apoio das maiores autoridades na política de ensino, pesquisa e promoção da língua

portuguesa no Brasil e no exterior.

Se o Brasil pretende ter assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, se o

Brasil pretende tornar a língua portuguesa uma das línguas oficiais da ONU, há a necessidade urgente de que

seja traçada uma política vigorosa, organizada, de ensino do idioma nacional no estrangeiro, o que poderá ser

facilitado, sem dúvida, sob a batuta do Instituto Machado de Assis (IMA), que poderá atuar de forma

semelhante ao Instituto Cervantes e ao Instituto Camões, responsáveis pela difusão do português e do

espanhol, órgãos dos governos da Espanha e de Portugal.

É preciso que as linhas instituídas pela Portaria 4056 do MEC transcendam à letra fria do texto e

tornem-se realizações efetivas para impulsionar e consolidar o português no espaço internacional e, por

conseguinte, divulgar esse amplo mosaico cultural, sui generis, desta nação de quase 200 milhões de pessoas.

___________________________________________

Data de submissão: jan./2013. Data de aprovação: ago./2013.

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Simone Caputo GOMES1

RESUMO Os contos de Dina Salústio, reunidos em Mornas eram as noites, lançam novas perspectivas para a série literária cabo-verdiana ao desenhar um retrato crítico da sociedade contemporânea que os textos evocam e em que se inserem. A discussão da problemática social de gênero, fundamental suporte à leitura dessas narrativas breves, busca desmascarar as contradições baseadas em estereótipos e preconceitos para, implodindo-os com uma linguagem incisiva e concentrada, propor outros caminhos para a realização do ser humano. PALAVRAS-CHAVE: conto, literatura cabo-verdiana, Dina Salústio, gênero.

ABSTRACT Dina Salústio‘s short stories, gathered in Mornas eram as noites, cast new perspectives to the Cape Verdean literary production as it draws a critical picture of contemporary society, which is evoked by the texts in which they are inserted. The discussion of issues of gender, the fundamental support for the reading of these short narratives, aims at unmasking the contradictions based on stereotypes and prejudices so that, by imploding them with an incisive and concentrated language, other paths to the accomplishment of the human being are proposed. KEYWORDS: short story, cape verdean literature, Dina Salústio.

1 Pós-Doutora pelas Universidades de Aveiro, Lisboa e Coimbra. Professora da Universidade de São Paulo, de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa. Texto produzido na vigência da Bolsa no Exterior, em nível de Pós-Doutorado, concedida pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, 2012.

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Sete mulheres. Nenhuma médica, nenhuma pianista, nenhuma atriz, nenhuma assunto de notícia. Possivelmente nenhuma delas

mulher má. E se incendiassem a cidade?

(Dina Salústio)

Um novo olhar, agudamente crítico, sobre a sociedade cabo-verdiana e uma nova dicção literária

resumem a coletânea de contos de Dina Salústio, Mornas eram as noites (1994a)2. Desde a minha

“descoberta” de criadora e criatura, em 1994, na cidade da Praia, Cabo Verde, tenho-me dedicado a

acompanhar a trajetória dessa ficcionista sob a forma de pesquisas, publicações, cursos ministrados, palestras,

constatando o efeito de paixão que sua escrita, especialmente a narrativa breve, desperta no público (leitor e

ouvinte) e ainda o grau de questionamento que provoca, ao estabelecer diálogos cáusticos com a Cultura, a

Memória e a História cabo-verdianas (e não somente).

Bernardina Oliveira Salústio, natural da ilha de Santo Antão (1941), inicia seu percurso literário pela

poesia, na antologia Mirabilis, de veias ao sol (1991), enveredando depois pela ficção curta (Mornas eram as

noites, contos, 1994) e pelo romance (A louca de Serrano, 1998, e Filhas do vento, 2009).

Em entrevista concedida a esta pesquisadora na cidade da Praia, capital de Cabo Verde, a 12 de

novembro de 1994, por ocasião do lançamento de seu livro de contos, Dina afirmava que denominá-la

escritora é exagero e complementava: “Sou uma mulher que escreve umas coisas”, desvendando o seu ponto

de vista sobre a matéria narrada. Ainda naquela entrevista, explicando a gênese de sua coletânea de contos

recém-publicada, informava que o livro nasceu da “necessidade de publicar as inúmeras histórias de

mulheres, histórias de vida que passam por mim [...]. Não são ficção, é cá um encontro que é verdade, um

momento só”.

Esse “encontro”, “momento” ou “conversa de comadres” (MEN: p. 71), como Dina Salústio define no

título de um dos contos, gera textos breves e instigantes, capazes de expressar de forma concisa a

complexidade da vida humana, na melhor tradição do gênero discursivo, conforme o concebe Julio Cortázar

(2006: p. 231), aliando condensação e intensidade a um intuito que move a autora: contar “histórias de

mulheres”:

Não fiz uma seleção desses textos, só o primeiro foi intencional, para querer mostrar o meu

reconhecimento a estas mulheres cabo-verdianas que trabalham duro, que fazem o trabalho

da pedra, que carregam água, que trabalham a terra, que têm a obrigação de cuidar dos filhos,

2 Daqui por diante citado como MEN.

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de acender o lume. Quis prestar uma homenagem a estas mulheres. [...] As histórias

acontecem, ao sabor do voo. Falo das mulheres intelectuais, daquelas que não são

intelectuais, daquelas que não têm nenhum meio de vida escrito, falo da prostituta, falo de

todas as mulheres que me dão alguma coisa, e que eu tenho alguma coisa delas. [...] Em Cabo

Verde, quando nasce uma menina, ela já é uma mulher (SALÚSTIO: 1994b).

A opção de trabalhar com o gênero discursivo “conto”, que tem apresentado historicamente tal

complexidade de conceituação que leva Cortázar a propalar a necessidade de sua discussão, visto ser “de tão

difícil definição, tão esquivo nos seus múltiplos e antagônicos aspectos, e, em última análise, tão secreto e

voltado para si mesmo, caracol da linguagem” (CORTÁZAR, 2006: p. 149), conduz Dina Salústio a retratar

situações-limite, em linguagem eivada de um hibridismo que ora beira a poesia, ora a crônica: “Escrevo

poesia, mais em termos de prosa poética. [...] Faço análises sociais, mais para mim do que para publicar”

(entrevista, 1994b); “optei por escrever esta crônica” (MEN: p. 68).

Relembrando as proposições de Gustavo Luís Carrera para a identificação do gênero conto, uma

delas caracteriza-o o como um “guarda-chuva que [...] acolhe sob sua sombra, e com o benefício da dúvida:

o apólogo, a parábola, o exemplo, a patranha, a história fingida, o fato verídico, a fábula, o poema em prosa,

o exercício expressivo, o relato e até o conto mesmo (CARRERA, 1993: p. 54). Armando Moreno (1987: p.

35), em sua. Biologia do conto, refere a “coexistência de narrativa e poética”, que se pode constatar, logo à

primeira leitura, nos contos salustianos; e Noélia Duarte, a respeito das poéticas da brevidade (o poema em

prosa e o conto literário), chega a usar uma denominação oximórica para ressaltar uma variante específica do

gênero conto: o “conto poético ou conto lírico” (DUARTE, 2004: p. 19-20).

Sobre esse hibridismo da composição, enfatiza ainda Dina Salústio (1994b), na entrevista a Gomes:

“a Poesia acontece na minha escrita sem se perguntar se pode entrar. Quero escrever prosa e, quando vou ler,

está poesia. Penso que nunca consigo ser uma narradora de prosa, mas também nunca serei um poeta. E eu

adorava...”

Contudo, a par de sua proximidade com o discurso poético e com o tempo presente e o espaço

cotidiano da crônica3, os contos salustianos apresentam os traços que Moreno destaca como fundamentais à

sua genologia: promessa de brevidade de ação, contração da história, linearidade de entrecho e de

personagens, clareza, expressão condensada4, intensidade de efeito, tensão e expectativa, capacidade de

obter a adesão do leitor e conservá-la (MORENO, 1987: p. 71-170).

3 José Luís Hopffer Almada classifica os textos de Mornas eram as noites como “estórias-crónicas” (1998: p. 179). 4 Ou síntese expressiva, como quer Grau, Isidre, 2001: p. 11.

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A noção de “limite”, proposta por Cortázar (2006: p. 151), demarca em primeiro lugar um limite

físico para o conto, sua breve extensão material, que rejeita digressões e extrapolações; em segundo lugar,

acrescenta-se o que Cortázar retoma de Edgar Allan Poe5, a “economia de meios”, com a eliminação de

elementos acessórios e consequente condensação (da diegese, do tempo e do espaço), que gerará a tensão

interna da narrativa e um efeito máximo (CORTÁZAR, 2006: p. 151-160).

Também por esse motivo, Julio Cortázar compara a intensidade do conto à do poema: “a tensão se

instala desde as primeiras frases para fascinar o leitor, fazê-lo perder o contato com a desbotada realidade que

o rodeia, arrasá-lo numa submersão mais intensa e avassaladora” (CORTÁZAR, 2006: p. 231). Ítalo Calvino

define o conto como “uma operação que se realiza sobre a duração” (CALVINO, s.d.: p. 50), mas em que a

precisão reverte para uma expansão por parte do receptor, podendo-se assim classificar o gênero como “um

exemplo maior de literatura potencial” (MEN: p. 65).

Aprofundando essa discussão sobre questões relacionadas às operações de condensação levadas a

efeito pelo gênero conto e ao consequente papel do leitor, António Manuel Ferreira adverte:

Note-se, porém, que brevidade narrativa não significa ausência de espessura; a brevidade

narrativa exige um minucioso trabalho de escrita, de modo a produzir um efeito de concisão

tensa, não perdulária, mas geradora de mecanismos que propiciam o funcionamento pleno da

linguagem. É por isso que as narrativas breves tendem a ser aproximadas da densidade

semântica do poema ou da fotografia [...]. Como o poema, a narrativa breve pressupõe a

existência de um leitor disponível par ao trabalho de concertação e expansão de sentidos

indiciados pelo texto. Dir-se-á que toda a leitura de um texto literário exige o mesmo

pressuposto. É verdade. Trata-se, no entanto, de uma questão de investimento: revelar a

profundeza subjacente à brevidade, isto é, articular a «densidade do conteúdo» com a

exiguidade da forma, é uma tarefa que captura a atenção do leitor. Talvez resida nesta

exigência de verdadeira cooperação criativa o motivo que leva os leitores a preterirem as

narrativas breves (FERREIRA, s.d., p. 150).

O resultado da conjugação de limite e tensão interna (ou das operações de condensação e duração)

é uma “história completa, fechada, como um ovo” (MOISÉS, 1989, p. 19), metáfora que remete à

“esfericidade do conto” ou “bolha poética” que assemelha os textos do gênero a "criaturas vivas, organismos

completos, ciclos fechados, [qu]e respiram” (CORTÁZAR, 2006: p. 235). Quanto à função do leitor, a ruptura com e a

transgressão do cotidiano atuam sobre aquele como abertura para “muito além do argumento literário contido

no conto” (Ibidem: p. 152), levando-o a uma nova “epifania” sobre o mundo que o cerca: “De um conto

assim se sai como de um ato de amor, esgotado e fora do mundo circundante, ao qual se volta pouco a pouco

5 Da obra Review of twice­told tales, escrita em 1842.

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com um olhar de surpresa, de lento reconhecimento, muitas vezes de alívio e tantas outras de resignação”

(Ibidem: p. 231). No caso dos contos que ora examino, muitas vezes as reações provocadas são de indignação

e revolta, tal a sua carga de denúncia de situações intestinas da sociedade cabo-verdiana em tempos de

globalização.

Carlos Pacheco acrescenta, complementando Cortázar, a respeito do que considera um conto bem

realizado:

[...] sería sobre todo una vía de acesso ( y el ascenso), un posible umbral, hacia esa outra

realidad, presentida a veces por el ser humano como uma suerte de ciego escozor, pero que

sólo es capaz de vislumbrar a través de experiências-límite, rompedoras de la cotidianidad,

como las que se producen - sólo de vez em cuando - en la experiencia estética (como en la

intimidad sexual, la solidaridad humana o la vivencia religiosa). Desde esta perspectiva, un

buen conto sería entonces [...] una posibilidad, tanto para el productor como para el receptor,

de trasceder lo superficial, lo «sabido» y lo «ilusório» (PACHECO, 1993: p. 22).

Como adiante busco demonstrar, os contos produzidos por Dina Salústio preenchem amplamente

esses requisitos.

Outra qualidade do conto, segundo Isidre Grau, é o que chamo de simplicidade qualitativa: “La

recerca de la máxima simplicitat per dir les coses essencials6 (GRAU, 2001: p. 27). Na coletânea Mornas eram

as noites, com a simplicidade de “mulher que escreve umas coisas”, Dina coloca o mundo sob as lentes de

seu olhar crítico ou, muitas vezes, lírico. O título da obra, composta de 35 contos que “condensam a trama

em curta-metragem”7, como ressalta Daniel Spínola (1998: p. 205), reitera a associação da prosa com o

poético ao dar relevo à “morna”, modalidade musical típica de Cabo Verde, que veicula a poesia oral e cuja

tradição remonta a grandes poetas como Eugénio Tavares e B. Léza. Tradicionalmente canto de mulher, o

entendimento do lugar cultural da morna no mundo cabo-verdiano pode lançar outras luzes sobre a

significação do título: "Música eram as noites" é uma leitura possível e plausível para "Mornas eram as noites".

Música de mulheres, em que a mulher é a peça principal. Para além, música de nacionalidade e identidade.

Como preâmbulo à coletânea, a autora assinala:”... De como elas se entregaram aos dias”. E os

textos que se seguem falam de liberdade (“Liberdade adiada” e “O que é isso de liberdade?”), da

cumplicidade e da curiosidade de mulheres (“E porque havia de não gostar”, “Conversa de comadres” e

“Vinganças crioulas”), do grito feminino (“A oportunidade do grito”), do machismo e das novas

6 A busca da máxima simplicidade para dizer as coisas essenciais (tradução livre do catalão). 7 Os gêneros discursivos da brevidade, afectos à cultura de massas, coexistem, a partir dos anos oitenta do século XX, com formas sumárias de expressão artística como a curta-metragem [..], segundo CARMO, 2003: p. 209.

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masculinidades (“Campeão de coisa nenhuma”), de “morrer de amor” e matar em nome dele (“Morrer de

amor” e “Foram as dores que o mataram”), do lugar ideológico da Mãe (“Mãe não é mulher”), da maternidade

precoce (“Forçadamente mulher, forçosamente mãe”), das crianças abandonadas (“Para quando crianças de

Junho a Junho?”), das mulheres viciadas em bebida (Álcool na noite”), da prostituição (“Um ilegítimo desejo”),

da loucura feminina (“Rosa negra”), da violência (“Filho de deus nenhum”), da pedofilia (“Tabus em saldo”),

entre outros temas.

A reivindicação, o lirismo, a tragicidade e o humor mesclam-se nas narrativas, produzindo um efeito

poderoso de comunicação. Daniel Spínola (1998: p. 205) sublinha que Dina Salústio “inaugura uma nova

forma de comunicar e um novo modo de percepção do mundo” na ficção cabo-verdiana. Em Mornas eram as

noites, um discorrer de situações surpreendentes, de sensações, de informações, de acontecimentos

imprevistos envolve o leitor, convocando-o a um enfoque diverso para situações sociais e existenciais

cristalizadas ou estagnadas.

A primeira estória, "Liberdade adiada", conta o drama da mulher anônima cabo-verdiana que

carrega água8 em um país de estiagens longas e recorrentes, exausta pela monotonia e dureza de sua vida, em

busca de uma so1ução ou possibilidade de mudança:

Sentia-se cansada. A barriga, as pernas, a cabeça, o corpo todo era um enorme peso que lhe

caía irremediavelmente em cima. Esperava que a qualquer momento o coração lhe perfurasse

o peito, lhe rasgasse a blusa [...]. Pensou em atirar a lata de água ao chão, esparramar-se no

líquido, encharcar-se, fazer-se lama, confundir-se com aqueles caminhos que durante anos e

mais anos lhe comiam a sola dos pés, lhe queimavam as veias, lhe roubavam as forças.

Imaginou os filhos que aguardavam e que já deviam estar acordados. Os filhos que ela odiava!

Aos vinte e três anos disseram-lhe que tinha o útero descaído. Bom seria que caísse de vez!

Estava farta daquele bocado de si que ano após ano, enchia, inchava, desenchia e lhe atirava

para os braços e para os cuidados mais um pedacinho de gente.

Não. Não voltaria para casa.

O barranco olhava-a, a boca aberta, num sorriso irresistível, convidando-a para o encontro

final. [...] E se fosse agora, no instante que madrugava? A lata e ela, para sempre, juntas no

sorriso do barranco. [...]

Atirar-se-ia pelo barranco abaixo. Não perdia nada. Aliás, nunca perdeu nada. Nunca teve

nada para perder.

Disseram-lhe que tinha perdido a virgindade, mas nunca chegou a saber o que aquilo era.

À borda do barranco, com a lata de água à cabeça e a saia batida pelo vento, pensou nos

filhos e levou as mãos ao peito.

O que tinha a ver os filhos com coração? Os filhos... Como ela os amava, Nossenhor! [...]

Correu deixando o barranco e o sonho de liberdade para trás.

8 Citada pela autora, na entrevista de 1994, como personagem a homenagear.

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Quando a encontrei na praia, ela esperando a pesca, eu atrás de outros desejos, contou-me

aquele pedaço de sua vida, em resposta ao meu comentário de como seria bom montar numa

onda e partir rumo a outros destinos, a outros desertos, a outros natais (MEN: p. 5-6).

Num texto em que a narradora participa, ouvindo aqueles pedaços de vida (e desejando outro modo

de liberdade na terra-longe), Dina Salústio explora temas que constituem uma constante no cotidiano

feminino cabo-verdiano: a maternidade precoce, o elevado número de filhos, a família chefiada por mulher, o

trabalho árduo desta (tão árido quanto a terra), a tragicidade de sua vida e os sonhos que, entretanto, acalenta.

O conto seguinte, "A oportunidade do grito", aborda as “conversas de mulheres”, as “palavras

carinhosas que voam de umas para as outras”9 (MEN: p. 7-8). O diálogo se desenrola entre uma personagem

anônima (tipificada como “a vencedora”) e Elsa, caracterizada pela passividade. “A outra", entre grunhidos e

gritos, incita Elsa a uma postura atuante:

— Tens que largar essa maneira de estar, pôr de lado o marasmo que te envolve. Parece até

que estás a pedir esmolas à vida - dizia a vencedora. [...]

— Mas se eu não faço mal a ninguém! Se eu nem tenho inimigos!

— Ah! Aí é que está — quase gritou a outra — tens que incomodar, mostrar que existes,

perturbar, brigar com o mundo e contigo. Sobretudo contigo. É um treino que atrai bons

fluidos. Os outros, vendo a coragem com que te desafias a ti mesma, respeitam-te e temem-te.

[...]

— Claro que não quero continuar neste vegetar e, para que saibas, luto, esforço-me, rezo, mas

não adianta muito.

— Rezas? E como é que rezas? — grunhiu a outra, já no limite do que parecia a sua paciência.

— Rezo, peço a Deus...

— Pedes a Deus? Idiota! Tens é que discutir com Ele. Enfrenta-O como mulher. Mostra-lhe as

tuas razões. Grita se for preciso. Ele é que te pôs aqui, não é? Pois que assuma a sua parte da

responsabilidade.

— Enfrenta-O. Deus gosta de mulheres fortes — gritou.

De repente eu percebi que ela era uma mulher vencedora porque enfrentava com garra todas

as situações, mesmo que a situação se chamasse Deus. Encostei-me a mim mesma gozando o

prazer da descoberta (MEN: p. 7-8).

Para além de constituir um conto de personagem (segundo a classificação de Massaud Moisés, 1989:

p. 39) feminina, e que confronta uma visão tradicional do feminino frágil com uma nova perspectiva, a

narração, em primeira pessoa, também se dá a partir de um ponto de vista feminino (“mim mesma”). O texto

de Dina Salústio, como é claro perceber, procura, mais do que expressar uma fala íntima, dar voz a todas as

9 Dina busca conservar o caráter oral do conto, que remonta à fase primitiva do gênero (cf. ALMERÍA, 1997: p. 18) e concorre para a brevidade de sua estrutura.

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mulheres (já na antologia Mirabilis: de veias ao sol, em poesia, marcava Dina a “cumplicidade de fêmeas de

mãos dadas”, 1991: p. 155). Esse processo envolve ainda a reflexão sobre o papel do outro e suas

transformações, porque os gêneros sociais definem-se sempre a partir da diferença e, na obra de Salústio,

também numa perspectiva inclusiva (em que o feminino não exclui o masculino e vice-versa), de tentativa de

anulação de uma assimetria ideologicamente imposta e tida como “natural”. As feminilidades e

masculinidades são representadas, nas personagens de seus contos, como processos em trânsito. O conto

seguinte elucidará o que afirmamos.

“Campeão de qualquer coisa” vai refletir sobre os dilemas do homem contemporâneo, dividido entre

a assunção de sua sensibilidade e os comportamentos estereotipados, competitivos e mesmo agressivos que

são dele esperados pelo tipo de sociedade em que vivemos:

A noite ia a mais de meio. Grupos de homens e grupos de mulheres convenientemente

estabelecidos. Eu fazia o protocolo e chegaste e, como manda a praxe, fui-te passando um

copo para as mãos e porque não te conhecia disse-te: os campeões das anedotas estão ao

fundo, ao lado, os campeões da política internacional, à esquerda os do futebol, os do sexo,

debaixo do abacateiro, os dos copos, junto ao bar, e iniciei a retirada porque não havia mais

nada que dizer e já tinha falado demais para uma noite só e sentia uma espécie de

necessidade de dormir ou fugir sei lá para que bandas.

Espantado com o acolhimento [...] disseste que não eras campeão de coisa nenhuma e nem

sequer eras bom em qualquer coisa e que eras um tipo normal.

Não havia tristeza nas tuas palavras e, como pensei que um homem normal o mínimo que se

devia sentir era triste pela revelação e porque já havia percorrido vários grupos onde cada um

era melhor que todos e estava com uma raiva concentrada disse-te não te preocupes, pois há

um campo em que não precisas provar nada. Vai para debaixo do abacateiro. [...] Conta as

tuas fantasias e os teus fantasmas. Os teus e os dos outros, como coisa resolvida. [...] Inventa

situações, viagens e encontros, princesas e prostitutas, virgens e lésbicas, homossexuais,

mulheres casadas, ninfomaníacas, colegiais e o resto. Inventa. Inventa o mais que puderes. Faz

como os outros. Dá nomes e moradas e não te preocupes, porque não te vão julgar pela

baixeza porque é prática aceite. De bom tom é dares nacionalidades diferentes [...] Mente.

Mente muito. E sobretudo exagera. Exagera até o impossível. Vá. Campeão é assim (MEN: p.

11-12).

O retrato estereotipado do gênero masculino é feito pela narradora-personagem, num

comportamento que se desvendará machista (Dina habilmente demonstra como as próprias mulheres

reduplicam o discurso do poder e, com a narrativa, força, sobretudo, a leitora a uma reflexão sobre este ponto

polêmico): com os “grupos de homens e grupos de mulheres convenientemente estabelecidos”, a narradora-

personagem “fazia o protocolo”, “como manda a praxe”. Mas, para sua surpresa, o convidado vai reverter

suas expectativas e certezas e redimensionará o diálogo e a relação entre os gêneros sociais:

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Teimosamente disseste que não podias, que não querias fazer-te de atleta de façanhas tantas,

porque eras adulto [...] e que as tuas necessidades e os teus interesses eram outros e que as

tuas fantasias eram as tuas parceiras e expô-las em público seria como veres-te ao avesso num

grande écran. E acrescentaste que o ridículo te perturbava e, muito sério, ajuntaste: o pior é

que o ridículo de cada um de nós perturba a todos profundamente. Ensinaram-nos que

devíamos ser heróis de qualquer coisa. Exigem que façamos permanentemente exercícios de

auto-afirmação. Não nos educaram para corajosamente debatermos os nossos medos, falhas,

hesitações, infernos. Apetrecharam-nos com o mito de super-machos e esperam que sejamos

sempre vencedores, fazendo-nos inimigos da própria maneira de estar, escamoteando a

verdade, falseando as fronteiras. E porque somos apenas normais e temos vergonha da nossa

normalidade, passamos o tempo todo a pensar numa roupagem que impressione. E vestimo-

nos de atletas, mascaramo-nos de campeões, para, às escondidas, chorarmos a nossa

simplicidade [...] Não temos coragem para dizer não sou o melhor e não tenho que o ser, em

justificar-me da minha fragilidade. Entrar em competição com as minhas fantasias e as dos

outros seria sinal de simples imaturidade e falta de respeito por mim próprio _ prosseguiste

descontraído, quase a rir (MEN: p. 12).

A concepção atual da masculinidade, fundada na desmontagem dos estereótipos sobre o gênero

masculino, veio na esteira dos debates sobre a feminilidade e do movimento gay. Tem havido, principalmente

a partir dos anos oitenta do século vinte (época que abrange a produção de Dina Salústio), um considerável

aumento nos estudos voltados tanto à revisão dos papéis masculinos tradicionais quanto ao questionamento

dos estereótipos de masculinidade, fenômeno que Nolasco (1988, 1993) denominou crise10 de

masculinidade.

A virilidade, valor que definia o modelo ocidental de masculinidade nos últimos quatro milênios,

com traços característicos considerados inerentes como força, coragem, atividade, agressividade,

competitividade, independência, objetividade, racionalidade, competência profissional, sucesso financeiro,

sexualidade donjuanesca11, passa a ser colocada sob suspeição.

O texto de Dina Salústio, de forma concentrada, discute dialogicamente a questão, opondo o

estereótipo do “herói de qualquer coisa” (“super-macho”, “atleta de façanhas”, “vencedor”, “campeão”),

esperado pela anfitriã da festa, ao “homem normal”, que “corajosamente debate” os próprios “ medos, falhas,

hesitações, infernos”.

A personagem masculina refere ainda que o mito do herói super-macho exige um modo de estar em

sociedade como “inimigo” de si mesmo, gerando comportamentos imaturos, artificiais e que falseiam a

10 No sentido positivo de “transição”. A fluidez é uma metáfora que serve para caracterizar o sentimento de transitoriedade que perpassa a experiência subjetiva contemporânea. 11 Qualquer fracasso num desses campos era motivo de vergonha.

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verdade (máscaras) a fim de esconder a vergonha da “normalidade” e as eventuais fragilidades. Estas, eram

antes relacionadas diretamente às mulheres, funcionando a máxima “menino não chora” como uma constante

da construção do masculino provedor12 da família ou da comunidade, limitado a ser macho e oprimido a

negar suas necessidades afetivas: torna-se “seu próprio carcereiro”, como propõe Nolasco (1993: p. 47) ou um

mutilado de afeto.

A descontração e o “quase riso” da personagem masculina composta pela ficcionista indicam

também que, consciente da sua humanidade e imbuída de um desejo de ocupar outros lugares e expandir

suas possibilidades de realização, está à vontade para desmontar pela ironia os paradoxais comportamentos

machistas reproduzidos por mulheres que se julgam feministas, como a narradora-personagem do conto em

foco

Denunciando o preço a pagar para mascarar-se de “campeão de qualquer coisa” (super-homem) e

reafirmando-se “campeão de coisa nenhuma” (homem comum), a personagem masculina passa, ao fim do

conto, a ser admirada pela narradora-personagem (antes dominada por uma “raiva concentrada”), porque

acena com a instauração de uma nova ordem, desconstrutora do paradigma da hierarquia e do autoritarismo

masculinos que fundamentavam todos os aspectos da vida em sociedade. O desfecho do conto indica

ressonâncias, na escritura, de mudanças na sociedade cabo-verdiana, mas segue ecoando para além dela:

“Alguém chamou-me porque meu carro estava impedindo a saída. A conversa não podia ser retomada. Hoje

lembrei-me de ti e pensei como podemos ser tão bonitos quando conseguimos ser nós próprios: homens ou

mulheres (MEN: p. 12).

Num texto curto, de atmosfera sintética e concentração dramática, demonstradas pelos traços

incisivos das falas das personagens, um novo horizonte (inclusivo) de relações sociais de gênero se delineia,

com profundidade, intensidade e riqueza aliadas à capacidade da autora de propor verdades tão profundas

com tanta simplicidade.

A responsabilidade das mães na educação dos filhos, especialmente homens, é também colocada

em exame por Dina Salústio em vários contos, alertando para a reduplicação de um mundo de super-homens

estereotipados. "Filho és, pai serás" e "Mãe não é mulher" desenvolvem o tema do papel conservador e por

vezes descaracterizante da educação em nossa sociedade repressiva e de como a mulher se deixa permear

pela manutenção dos mitos:

Lembro-me que a minha mãe utilizou na nossa educação, além de uma varinha de marmelo

de que fazia uso freqüente, embora sem muita energia, diga-se, uma série de provérbios ditos

12 Poucos são os homens que podem hoje, colocar-se como exclusivos provedores da família.

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em português que, no contexto quotidiano crioulo, adquiriam um peso e um estatuto que nos

amedrontavam.

Depois de solenemente mastigados os provérbios, não havia nem mais um olhar, nem mais

um grito ou gesto: apenas as coisas altivas da minha mãe, orgulhosa, penso, por nos ter

arrumado com a sentença suprema (MEN: p. 19).

Observe-se que o português foi a língua do colonizador em Cabo Verde; portanto, o discurso soa

como duplamente ameaçador, porque veiculado na língua da repressão e, provavelmente, patriarcal. Adiante

comprovarei o argumento.

Tendo esquecido o Dia das Mães, a narradora recebe um telefonema de sua genitora, a “de

geniozinho terrível”, que, depois de “perdoá-la”, sentencia: “Filho és, pai serás, assim como fizeres, assim

acharás”. Mal desliga, telefona um dos filhos da narradora-personagem, “cheio de mimos e ternuras” e...

[...] isso aumentou a minha culpa por não me ter lembrado de telefonar para a minha mãe. [...]

Eu precisava de uma vingança urgente e liguei para outro filho e, sem a diplomacia da minha

velhota, iniciei logo um discurso em que entravam ingratidão e coisas parecidas, sem lhe dar

hipóteses de defesa, por não me ter dado os parabéns, num dia tão importante para a raça

humana e não só se calhar. Perdi o latim e o crioulo, porque esperto como me saiu, foi logo

dizendo que, para ele, todos os dias são o dia da mãe e recorrendo a uma análise relâmpago

das sociedades de consumo e dos seus truques, falou da artificialidade dessas datas que

obrigam o cidadão incauto à compra de mais prendas, mais flores, mais missas, mais postais,

mais impulsos telefônicos...

Ao dar-me conta que estava pendurada ao telefone e sentindo-me uma perfeita idiota, mas

querendo ter a última palavra, disse-lhe o que nunca me ocorrera antes: Filho és, pai serás,

assim como fizeres, assim acharás, e desliguei, não sem uma pontinha de remorso [...].

Meia hora depois ele telefonou: - Mãe, estou confuso. Aquelas coisas todas que falaste sobre o

dia das mães, era a sério?

Conhecia-me bem e as nossas gargalhadas se juntaram quando lhe contei do chá que a avó

me havia passado, um pouco antes.

Ao desligar, pediu-me: por favor, não voltes a dizer aquela do Filho és, pai serás. É que me

sabe a praga.

A mesma sensação que eu sentia em criança, reconheci, pensando em coisas como filhos,

educação, famílias. E na minha mãe. (MEN: p. 19-20, grifos da autora.)

O conto, à semelhança da análise do filho sobre o significado do Dia das Mães na sociedade

capitalista, é apenas um “relâmpago”; porém, nas suas duas páginas, conduz a personagem feminina e o leitor

(leitora) a uma reflexão sobre o papel da mãe na formação dos filhos e na transmissão do conhecimento. A

narrativa, no estilo salustiano de colocar-se sempre como espaço de discussão, apresenta ainda o “homem

doce”, personalizado pelo filho “cheio de mimos e ternuras”.

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Enriquecendo o tema, a narrativa breve "Mãe não é mulher", que se inicia com o mote transmitido

nas reuniões secretas entre rapazes de que “bofetada de mulher em cara de rapaz impedia a barba de

crescer”, desenvolve dois aspectos que concorrem para que a narrativa continue reverberando e se

desdobrando após a “leitura de uma assentada”, como propunha Poe (1976: p. 2). O primeiro aspecto, já

comentado acima, diz respeito ao importante papel da mulher na transmissão de verdades e comportamentos

sociais. Introduzindo o contar dentro do conto, lembrava um amigo da narradora, que apanhava muito da

mãe:

[...] horrorizado, comecei a ver-me um homem sem barba nem bigode pelo resto da vida.

Silenciei-me observando a minha angústia, olhando-me o tempo todo num espelhinho,

rezando para que os pelinhos, que já tinha na cara, não sumissem durante o sono.

Mergulhado na minha tragédia, deixei de estudar, comer e dormir.

Logo que a minha mãe soube do meu desgosto contou-me uma história que não vem na

Bíblia, mas que ela jurava ser verdadeira, como aliás todas as outras que contava (MEN: p. 33).

Os pelos (barba, bigode), associados à virilidade e à obsessão da personagem masculina, são a

ferramenta que a ficcionista usa para desmistificar a visão machista, assim como a figura materna dessacraliza

o ícone católico, Jesus, colocando-o em situações grotescas e inusitadas (falta com respeito à Nossa Senhora e

é castigado) para consolar o filho temeroso:

A minha mãe adaptava a vida de Jesus às suas conveniências, no fundo, jogando com a minha

pouca idade. E continuou a fazê-lo, mesmo depois de eu crescer e de ela ter provas que eu me

deixara impressionar. Contudo, foi às fantasias da minha velha que eu fui buscar forças para

enfrentar o drama de ficar sem barba (MEN: p. 34).

A educação católica, herdada do colonizador português, aliada a um certo machismo cabo-

verdiano, gerará um efeito de surpresa e riso pela solução silogística13 (“Se Jesus dizia que mãe podia bater na

cara, mulheres é que não, então não havia motivo para preocupações”, MEN: p. 34) encontrada pela

personagem masculina, revelada ao final do conto pela narradora: “Ao contar-vos esta história, lembro-me de

uma vez em que um dos meus filhos, ainda adolescente e confuso, me perguntou: Mãe, se fosses mulher, tu

gostavas de mim? (MEN: p. 34)

13 O silogismo é uma forma de raciocínio dedutiva, de inferência rápida (consoante com a brevidade do conto), constituída por três proposições: A) Premissa Maior - aquela que tem o termo maior; B) Premissa Menor - aquela que tem o termo menor; C) Conclusão - aquela que articula o termo menor com o termo maior. Recorrendo ao exemplo clássico: A) Todo Homem é mortal; B) Sócrates é homem; C) Sócrates é mortal.

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O segundo aspecto, pois, reside no silogismo que separa maternidade e sexualidade _ Se bofetada de

mulher em cara de rapaz impedia a barba de crescer e se Jesus apanhou da mãe e é sempre representado com

uma farta barba, conclui-se que MÃE NÃO É MULHER, como ironiza o parágrafo acima, invertendo o mote

inicial do conto e comprovando a sua esfericidade estrutural (o desfecho volta ao início, operando contudo

transformações).

De forma simples, breve e à guisa de metaconto, Dina Salústio dinamita (ou incendeia, como na

epígrafe que escolhi para o meu ensaio) a máxima patriarcal da assexualidade das mães, que propugna que

elas devem servir à procriação e ao prazer apenas dos maridos (em tom jocoso, Fernando Pessoa-Alberto

Caeiro já expressara a opinião de que a Virgem Maria não era mulher, mas uma mala, porque não havia

amado para que Jesus nascesse). Nas sociedades fascistas, especialmente, a superposição mulher-mãe-virgem

tem sido freqüentemente reforçada como um dos mecanismos de repressão do feminino.

Retomando, como diz uma das narradoras de que Dina Salústio frequentemente lança mão nos

contos, sob a forma de “puzzle falado” (MEN: p. 28) ou de discussão “que envolvia todas as mulheres que

mais pareciam estar a pensar em voz alta” (MEN: p. 71 e 38, respectivamente), o conto de Dina Salústio

apresenta mulheres amachucadas, homens maltratados, crianças espancadas, ambientando-se em Cabo

Verde, mas expandindo-se ao sofrimento do mundo.

A violência, sobretudo a masculina contra mulheres e crianças, decorrente do fato de aquelas, em

contextos que elegem a maternidade e a pureza feminina como programa político (ROCHA-COUTINHO,

1994: p. 26), converterem-se em objetos, varia também na correlação com o sentimento de frustração e de

menos valia daqueles que se veem envolvidos em situações em que não se sentem reconhecidos como

homens, de acordo com o padrão viril analisado por Nolasco (1993: p. 47):

Quando um menino nasce, o modelo de comportamento do macho é sua referência. Este

processo começa com mecanismos de negação e desvalorização de toda e qualquer demanda

afetiva que porventura um menino tenha. Em contrapartida, a valorização de respostas

objetivas diante da vida faz com que ele aprenda como deve colocar-se diante das exigências

sociais, mantendo frente a elas uma atitude de senhorilidade e força.

Assim, o modelo de masculinidade que se define meramente em termos de uma virilidade limitada,

empobrecida e que, além de tudo, é associada a características como autoritarismo, dominação, opressão e

violência, será alvo de constantes questionamentos na arte de contar de Dina Salústio. A imagem do tio de

três metros, provedor da família, trazida pela memória infantil, acaba por ser rasurada, pois afinal, “mal

ultrapassava o metro e oitenta” e “nem sabia ler” (MEN: p. 13-14), sua maior fragilidade; as mulheres,

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consideradas pela personagem de Jack Nicholson, num filme14, como “o único erro de Deus”, “sentiram-se

vingadas” porque “um tal de Reich cuspiu-[lhe]: Tu és um Zé Ninguém” (MEN: p. 30). E a mulher que

apanhava seguidamente do marido acaba por solucionar drasticamente o seu cotidiano futuro, no conto

“Foram as dores que o mataram”:

Não matei o meu marido.

Eu amava-o. Porquê matá-lo?

Foram as dores do meu corpo que o condenaram. Foram o sangue pisado, o ventre moído, as

feridas em pus.

Foram as pancadas de ontem, as de hoje e, sobretudo, as pancadas de amanhã que o

mataram.

Eu amava-o. Porquê matá-lo?

Foi o meu corpo recusado e dorido após o uso e os abusos. Foram a tristeza, o desespero e a

dor do amor que não tinha troco.

Eu amava-o. Porquê matá-lo?

Às vezes ficava à janela, meio escondida, vendo-o partir para o trabalho com a roupa que eu

lavara e engomara. Gostava do seu modo de andar, do jeito como inclinava a cabeça. Via-o

partir e ali ficava horas à espera que voltasse e me trouxesse um riso e a esperança de que as

coisas iriam mudar. [...] Mas para mim, não voltava nunca. Apenas para pedaços de meu

corpo que esquecia logo.

Eu amava-o. Porquê matá-lo?

Ele matou-se. Criou um espaço onde coabitavam a violência, a destruição, a miséria, o

animalesco. E nós.

Deu-me armas e fez-me assassina.

... depois ficou tudo escuro.

E o corpo a doer, a doer, a doer, a...

Um soluço frágil absorve a última palavra (MEN: p. 17-18).

A narrativa, trágica, expressa-se contudo com artifícios poéticos: a repetição de palavras para criar

um efeito de concentração enfática (“a doer, a doer, a doer”), o paralelismo a sugerir a incredulidade (“Eu

amava-o. Porquê matá-lo?”) sobre a atitude que leva alguém que ama a eliminar o companheiro, ou ainda o

paralelismo a invocar o tratamento violento sofrido pela mulher e a justificar a sua reação (“Foram as dores”,

“Foram as pancadas”, “Foi o meu corpo recusado e dorido”).

O enclausuramento da mulher ao lar, a falta de retorno ao seu afeto, o fetichismo masculino, a

violência conjugal permanente acabam por gerar um outro desfecho silogístico: “Não matei o meu marido./

14 As bruxas de Eastwick, 1987, tem como argumento a história de três mulheres que vivem numa cidade pacata, mas, um dia, resolvem fazer um feitiço para atrair o seu homem ideal. Daryl Van Horne (Jack Nicholson), rico, excêntrico, carismático e diabólico instala-se em uma das mansões da cidade e encaixa-se nos anseios das três, que passam a disputá-lo. O desfecho, surpreendente, girará em torno da vingança que lhe infligirão as mulheres.

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Ele matou-se. /Deu-me armas e fez-me assassina”. Circularmente, o título do conto conclui: “Foram as dores

que o mataram”, as que o homem infligiu à esposa, evidentemente.

As pombas crioulas, sacrificadas em ritos de feitiçaria, são representadas, com ironia, como mulheres

fêmeas, sujeitas à violência dos machos: “já estão habituadas a maus tratos e injustiças [...] e nem mesmo se

importam mais com as porradas dos machos, as suas gritarias e pressões selvagens (MEN: p. 65-66). No

entanto, no desfecho do conto (MEN: p. 66), que coincide com o mote do título (“Vinganças crioulas”), abre-

se a possibilidade de que elas se vinguem.

Essa violência do mundo atual (e não apenas centrada em Cabo Verde) ecoa nos contos salustianos

como “O grito” expresso plasticamente por Edvard Munch e espraia-se a outros segmentos sociais: concentra-

se nas gangues, nos pedófilos, naqueles que praticam a discriminação. Os textos de Dina, por vezes

semelhantes a um soco na boca do estômago, desvelam essas mazelas sociais:

De repente, uma rua larga, agora estreitada pela violência que transborda e agride os

caminhantes. Uma dúzia. Talvez menos de uma dúzia de rapazes da quarta, que deviam ser

crianças e que se haviam transformado em feras, perseguindo e atacando um doente mental.

Livros e pastas esquecidos na valeta. Nas mãos, pedras. Nos gestos, ódio. [...] Raiva nos

adultos que humilhados fogem às pedras. Excitação nos algozes que procuram derrubar a

vítima. [...] Mais pedradas. Mais gritos. Mais lamentos. Um carro passa. Na confusão, a figura

suja e esfarrapada, de gatas, alcança uma porta onde se esconde, animal acossado. [...]

Nos olhos do chefe do bando, uma indiferença cruel. Que magoa.

‘Se fosse meu pai, eu não teria pena... Se ele morresse, problema dele... Se gosto do meu pai?

Se você o vir pergunte-lhe se ele gosta de mim; ou... se... se me conhece‘.

Nas últimas palavras um soluço abandonado. [...] Apenas uma criança amarga que havia

parido prematuramente um homem. Desencantado (MEN: p. 23-24).

Ressalta a complexidade que a autora consegue imprimir à trama de seus curtíssimos textos, neste,

por exemplo, ao retratar a violência, porém com a apresentação das suas possíveis causas.

O desfecho do conto, bem ao estilo salustiano, indaga (“meu pensamento vagueia em ondas

interrogativas”), pela boca da narradora-testemunha: “Doentes abandonados. Crianças impiedosas. Pais

desconhecidos. Filhos sem amor. Até quando? Para quando crianças de Junho a Junho?” (MEN: p. 24).

A subjetividade da narradora e sua reação à cena vivida cerram as portas do conto, para que o leitor,

a partir dele, continue a refletir: “Uma pedra chutada com raiva. Às vezes a dor acalma a impotência” (MEN:

p. 24).

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Em outro conto, “Ele queria tão pouco”, a narradora-personagem acrescenta: “estava farta de

violências” (MEN: p. 26). E mais adiante, analisando o caso cabo-verdiano e associando-o a um fenômeno

global, interroga:

E as outras crianças espancadas por esse país fora, por esse mundo fora? E os traumatismos que

nunca saberemos, as mortes que não daremos conta? [...] na normalidade do quotidiano a

violência ganha espaço e afirma-se. Alguns defendem que a nossa dureza vem das rochas, da

fome e das secas. Outros encaixam-na na escravatura.

E vamos fabricando teorias para justificar a insensibilidade e o ser cruel que existem em nós.

Em todos nós. [...]

... Para quê celebrar o primeiro de Junho? (MEN: p. 45)

E o desfecho desse conto (“Filho de deus nenhum”) reabre a discussão levantada em “Para quando

crianças de Junho a Junho?”, desvelando uma proposta de unidade entre os textos da coletânea.

A arte de Dina Salústio, enfim, visita “os esconderijos privados da sociedade” (MEN: p. 48) e chega,

num crescendo de indignação, ao exame do processo de transformação, na sociedade de consumo, de

crianças e adolescentes em “objectos de gozo mais sofisticado” de algum “caçador de corpos” que troque

“espiadelas” e “espreitadelas” por “dois rebuçados” (MEN: p. 48-49). O voyeurismo, a pedofilia e a

prostituição infantil no mundo contemporâneo (que, quanto às mulheres, “recorre a proibições, enfatiza

princípios, agrupa-os em tabus”) são enfocados num relance neste conto, que insiste em examinar os

intestinos da “hipocrisia social, em nome do progresso [...]: ... À noite, na televisão, passou um filme sobre

prostituição infantil, em várias nuances. Eram crianças americanas. Podiam ser caboverdianas” (MEN: p. 48-

49).

As incursões no domínio do psicológico, a exploração da subjetividade, do lirismo e do mundo

interior das personagens (e da narradora) constituem, como ressalta Mónica Cabral (2003: p. 165-168),

“tendências modernas do conto, como um gênero inovador e experimental, aberto à mudança”.

Assim concebo os contos de Dina Salústio.

Para finalizar, procurando colar o estilo do meu ensaio à esfericidade do gênero sobre o qual

escrevo, o conto, volto ao título da coletânea (Mornas eram as noites) para visitar mais um texto antológico de

Dina Salústio: “Álcool na noite”.

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Construído à semelhança da estrutura da morna primordial15 cabo-verdiana, a narrativa, brevíssima,

expõe a tragicidade da vida de muitas mulheres em Cabo Verde, com a voz de Cesária Évora (“Ó mar, Ó

mar!”) e a poesia popular de B. Léza (“Mar azul”) ao fundo:

A noite esteava serenamente calma e o calor convidava a estar-se no terraço a olhar para as

estrelas, preguiçosamente [...]. De lá das bandas do cemitério uma voz canta uma morna.

Tudo normal se a voz não parecesse sair dos intestinos de algum bicho em vez de uma

garganta humana, por muito desafinada que fosse. Era de uma mulher, reconheci com mais

cuidado. Aliás, eram as vozes de duas mulheres. A segunda faz coro com obscenidades e a

desarmonia, o desleixo transparecido e o despudor agridem os ouvidos. [...] Vêm-se

aproximando. E estão bêbadas. Depois um palavrão. Talvez uma topada [...] Sinto raiva. Agora

posso velas no arco iluminado pelo candeeiro. Parecem-me jovens. Duas mulheres ainda

novas. [...] Uma vala aberta. Um corpo que cai. E o barulho fere qualquer coisa em mim e não

é pena. Mais palavrões e risos. Ou guinchos? Retomam a morna interrompida. Ó mar, Ó mar!

[...] Elas berram alto provocando os guardas e as gentes.

A noite não tinha mais magia. Acho que nem estrelas. Apenas uma ferida no sentimento antigo

de ver nas mulheres, para além de tudo, seres diferentes. Porque um estatuto de pureza para

elas? Porque esta incompreensão para a sua embriaguez? Porque o preconceito contra as

fraquezas que não são minhas? E vou pensando, enquanto desço as escadas.

E os passos falam vergonha, humilhação e revolta. E pena (MEN: p. 46-47).

Os sentimentos concentrados (pela frase enumerativa) demonstrados pela narradora em primeira

pessoa no desfecho do conto permitem que o receptor faça contato com uma subjetividade que ousa expor

lados sombrios16 dos cotidianos femininos cabo-verdianos. Por minha parte, ouso afirmar que a escritora,

tomando o conto “Álcool na noite” como uma orelha do livro ou um caminho a seguir, alia a música/a fala de

mulheres (representadas pela morna cabo-verdiana) a um cenário soturno (a noite, embora serena e quente, é

invadida por um som que vem “das bandas do cemitério”) para denunciar situações sociais limítrofes

(mulheres bêbadas, animalizadas, sem pudor) e para, certamente, pelo que a exposição me permitiu

demonstrar, por muito mais que já registrei algures e pelo que ainda pode ser dito face à riqueza da coletânea

de contos Mornas eram as noites, construir um espaço socrático de escrita-leitura que possa atuar como

propulsor de conscientização, pedagogia e luta pela inclusão e pela igualdade.

15 Denominação do maestro cabo-verdiano Vasco Martins (1989:19) que, a nosso ver, chega mais próximo da gênese da morna. A estrutura da morna considerada primordial ou tradicional reside numa melopeia cantada somente por mulheres, “cantadeiras”, com solista e coro. 16 E não somente, já que não nos detivemos em alguns contos de cenário ou atmosfera, por exemplo, que privilegiam o espaço (ora de um ponto de vista positivo, ora negativo) e já foram trabalhados em publicações anteriores (GOMES, 1995, 2008).

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______________________________________________

Data de submissão: nov./2013. Data de aprovação: nov./2013.

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Érica Antunes PEREIRA1

Priscila GENELHÚ2

RESUMO O presente artigo compara as obras poéticas do cabo-verdiano Arménio Vieira e do brasileiro João Cabral de Melo Neto, atentando para as concepções sobre o fazer poético – a poesia, o próprio poeta – presente com grande pertinência e para a maneira pela qual o espaço de onde cada um escreve repercute em suas obras. Como principal base teórica utilizada para tais investigações, destacam-se os conceitos de dialogismo e interdiscursividades, propostos por Mikhail Bakhtin, e o de intertextualidade, por Julia Kristeva. PALAVRAS-CHAVE: estudos comparados de literaturas de língua portuguesa, poesia, Cabo Verde, Brasil.

ABSTRACT This article compares the poetic works of the Cape Verdean Arménio Vieira and the Brazilian João Cabral de Melo Neto, attempting to the conceptions of the poetic work – poetry and the poet himself – that is present with great effect and the way in which the space from where each of the writes from affects their works. As the main theoretical frame for such investigations we highlight the concepts of dialogism and interdiscursivities, posed by Mikhail Bakhtin, and intertextuality proposed by Julia Kristeva. KEYWORDS: compared studies of portuguese language literature, poetry, Cape Verde, Brazil.

1 Doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e Pós-Doutoranda na mesma universidade, com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) para o desenvolvimento do projeto “Travessias atlânticas: a literatura de Cabo Verde lê o Brasil”, sob a supervisão da Profa. Doutora Simone Caputo Gomes. Autora da obra De missangas e catanas: a construção social do sujeito feminino em poemas angolanos, cabo-verdianos, moçambicanos e são-tomenses (São Paulo: Annablume; FAPESP, 2013). 2 Graduanda em Letras na Universidade de São Paulo (USP) e bolsista de Iniciação Científica da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) para o desenvolvimento da pesquisa “Diálogos em língua portuguesa: relações intertextuais e interdiscursivas entre Arménio Vieira e João Cabral de Melo Neto”, sob a orientação da Profa. Doutora Érica Antunes Pereira, tendo como um de seus resultados o presente artigo.

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Um poema é o que há de mais instável: ele se multiplica e divide, se pratica as quatro operações enquanto em nós e de nós existe.

João Cabral de Melo Neto

Da indiscutível maturidade das obras dos dois poetas objetos deste estudo, o cabo-verdiano Arménio

Vieira e o brasileiro João Cabral de Melo Neto, surgem tangências, caminhos compartilhados, a começar pelo

ofício da poesia. A trajetória literária de João Cabral tem início ainda em sua juventude em Pernambuco. No

poema “Descoberta da literatura”, de A escola das facas, o poeta conta um pouco sobre suas primeiras

experiências literárias, episódio curioso e bastante inesperado frente à erudição letrada presente em seus

versos:

No dia-a-dia do engenho, toda a semana, durante, cochichavam-me um segredo: saiu um novo romance. E da feira de domingo me traziam conspirantes para que lesse e explicasse um romance de barbante. Sentados na roda morta de um carro de boi, sem jante, ouviam o folheto guenzo, a seu leitor semelhante, com as peripécias de espanto preditas pelos feirantes. Embora as coisas contadas e todo mirabolante em nada ou pouco variassem nos crimes, no amor, nos lances, e soassem como sabidas de outros folhetos migrantes, a tensão era tão densa, subia tão alarmante, que o leitor que lia aquilo como puro alto-falante, e, sem querer, imantara todos ali, circunstantes, receava que confundissem o deperto com o distante, o ali com o espaço mágico, seu franzino com o gigante, e que o acabassem tomando

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pelo autor imaginante ou tivesse que afrontar as brabezas do brigante. (E acabariam, não fossem contar tudo à Casa-grade: na moita morta do engenho, um filho-engenho, perante cassacos do eito e de tudo, se estava dando ao desplante de ler letra analfabeta de curumba, no caçanje próprio dos cegos de feita, muitas vezes meliantes.) (MELO NETO, 2008a, p. 83-84 – grifos nossos)

Este primeiro contato com a literatura vem a João Cabral por meio da literatura de cordel, comum

nas feiras nordestinas e que lhe era trazida pelos trabalhadores do engenho de seu pai. Traziam sempre um

“novo romance” para que João Cabral lesse e eles ouvissem em episódios ‘secretos‘. João Cabral relembra,

neste poema, o medo que tinha de que o pai descobrisse, de que seus ouvintes “fossem contar tudo à Casa-

grade”, o filho de engenho se “dando ao desplante de ler letra analfabeta”.

O “nobre artesanato” que ele observa de uma maneira na literatura de cordel, depois se concretiza em

sua leitura do espanhol “Gonzalo de Berceo, poeta de sua admiração”, do início do século XIII, “autor de versos

assemelhados à literatura de cordel” (NORÕES, 2011, p. 11). Porém, este princípio de formação literária entre

ouvintes analfabetos é o que motiva o poeta a questionar, em seu ensaio “Da função da poesia moderna” (1954),

como a literatura moderna poderia chegar a seu leitor, não só aquele capaz de compreender suas

complexidades, mas também o sem formação escolar, das letras analfabetas. A este projeto João Cabral nunca

chega a responder satisfatoriamente, pois sua literatura, por mais que trabalhe conceitos relacionados ao mundo

destes trabalhadores nordestinos, não atende a um público de formação escolar deficitária.

Na poesia de Arménio Vieira também veremos, de maneira diferente, a reação do pai frente ao filho

poeta:

Meu pai diz para os amigos (gente oca e rasteira, cabecinhas de alfinete): – tenho pena do meu filho: ele é doido, é poeta. Mas se um touro me ataca ou um bruto de matraca meu pai dá um pulo, mais lesto que uma pulga, e torce os cornos ao bovino. (VIEIRA, 1981, p. 28)

Se, para o pai do pernambucano, é loucura o filho misturar-se a gente não letrada, para o pai de

Arménio, um tanto mais radical, o universo das letras e o ser poeta torna o filho um louco: “tenho pena do

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meu filho: ele é doido, é poeta”. Permanece, porém, o conceito familiar de proteção quando, mesmo com este

pensamento, seu pai o protege de qualquer perigo: “se um touro me ataca [...] meu pai dá um pulo [...] e torce

os cornos ao bovino”.

Em João Cabral, a questão do espaço assume grande importância, inclusive como o que o leva a

escrever. Ao longo de sua obra, falar dos lugares por onde passou – principalmente paisagens pernambucanas

e andaluzas (espanholas) – se constituirá como uma maneira de permitir ao leitor identificar o poeta por trás

da objetividade lírica. O falar das coisas do mundo, sem nunca falar de si, é, pelo eixo da memória, inscrever-

se em sua poesia:

Só duas coisas conseguiram (dês)feri-lo até a poesia: o Pernambuco de onde veio e o aonde foi, a Andaluzia. Um, o vacinou do falar rico e deu-lhe a outra desafio demente: em verso dar a ver Sertão e Sevilha. (MELO NETO, 2008a, p. 101)

Neste poema, está explícita a importância de Pernambuco e da Andaluzia, apontados como os dois

únicos elementos que o levaram até a poesia, ou seja, sua presença e sua ausência, respectivamente, o

feriram e desferiram até a poesia. Estes espaços constantemente presentes em seus versos são apontados como

algo que o movem a escrever a vida destes lugares, “em verso / dar a ver Sertão e Sevilha”.

Arménio Vieira, escritor cabo-verdiano nascido em 1941, participou, integrou e contribuiu para a

formação da literatura cabo-verdiana, sendo o primeiro e – até o presente – o único escritor cabo-verdiano a

ganhar o Prêmio Camões. A questão espacial em Arménio Vieira ocorre de maneira diferente. Sua obra o

posiciona muito mais como um cidadão do mundo do que como um cabo-verdiano, propriamente. Não o

identificamos facilmente como pertencente a tal país, a ocorrência de ‘versos cabo-verdianos‘ se dará em um

ou outro poema apenas, como em “Lisboa – 1971”:

Em verdade Lisboa não estava ali para nos saudar. Eis-nos enfim transidos e quase perdidos no meio de guardas e aviões da Portela. Em verdade éramos o gado mais pobre d‘África trazido àquele lugar e como folhas varridas pela vassoura do vento nossos paramentos de presunção e de casta.

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E quando mais tarde surpreendemos o espanto da mulher que vendia maçãs e queria saber d‘onde... ao que vínhamos descobrimos o logro a circular no coração do Império. Porém o desencanto, que desce ao peito e trepa a montanha, necessita da levedura que o tempo fornece. E num camião, por entre caixotes e resquícios da véspera, fomos seguindo nosso destino naquela manhã friorenta e molhada por chuviscos d‘inverno. (VIEIRA, 1981, p. 17)

O poema começa a situar-se em um espaço determinado já pelo seu nome, Lisboa, capital do país

colonizador de Cabo Verde. Também pela dedicatória, “a Ovídio Martins e Osvaldo Osório”, ambos

escritores e figuras ativas na política, no jornalismo e na literatura em Cabo Verde durante a luta pela

independência deste país, ocorrida no período salazarista de Portugal. O poema, aparentemente, trata de uma

visita ou estadia em Lisboa, ressaltando o descaso da cidade (“coração do Império”) para com eles (“Lisboa

não estava ali para nos saudar”). “Em verdade éramos o gado mais pobre / d‘África trazido àquele lugar / e

como folhas varridas pela vassoura do vento / nossos paramentos de presunção e de casta”, nesta sociedade

lisboeta os cabo-verdianos são mirados como uma “casta” inferior, um “gado mais pobre” vindo da África e

sem nenhuma importância, como folhas indesejadas no chão sendo “varridas” pelo vento.

Este poema trata diretamente de um questionamento cabo-verdiano, contrariando a tendência geral

da obra de Arménio, pois além de tratar desta visita a Lisboa, em maior proporção, trata do próprio descaso

da metrópole portuguesa em relação à colônia que Cabo Verde era em 1971. Porém, raros serão estes casos

em sua obra, que tenderá muito mais ao universal do que ao particular.

Mapeando o livro Poemas (1981), encontramos muito mais do que um conjunto de poemas “cujo

traço de união [...] não será fácil descobrir” (VIEIRA, 1981, p. 7), como aponta o autor em texto semelhante a

um prefácio – sua obra obedece a pilares básicos que levarão ao individual de cada “teorema”, será constante

a aparição do humor, do satírico e do irônico em sua obra, por exemplo:

Arre de vida e sua codificação de gestos! O tempo que perdemos atrás dos mortos sem nunca pensarmos nos mortos que somos. (VIEIRA, 1981, p. 27) Enquanto eu te beijo Musa de axilas perfumadas

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Vénus purificada em banho de espuma [...] ontem puta agora diva [...] o marquês-de-sade feito santo de alcova abençoa a nossa união. (VIEIRA, 1981, p. 40)

Neste último poema aparece o elemento da cultura grega clássica, muito explorado não somente

neste livro como em toda a sua obra. Por exemplo, neste poema de Mitografias (2007), “Nietszche versus

Schopenhauer versus Buda e J.C.”:

[...] Sempre que Dioniso se põe a dançar O Céu, suposta morada do Grande Espírito, Fica negro como as viúvas. Buda E Crista são mulheres vestidas de homens [...] Como posso aceitar um deus que dá nirvanas aos escravos? Morreu o grande Pã, viva o Super-Homem! (VIEIRA, 2007, p. 84)

Arménio parece estar sempre a zombar, ironizar e subverter os temas, não apenas da antiguidade

grega, como de crenças e religiões atuais, suas histórias e verdades absolutas mais parecidas com mitos do

que com realidades críveis. Ironiza ao mencionar as imagens de “Céu” (“suposta morada do Grande Espírito”),

“Buda” e “Jesus Cristo” numa mesma estrofe em que menciona o deus grego Dionísio e o elemento moderno

de poder e heroicidade: “Super-Homem”.

Há um “quê” de coerências na composição poética de Arménio Vieira, esta coerência relaciona-se às

características mencionadas, uma valorização da razão em detrimento da crença cega em dogmas de verdade e

religião, este valor da razão está também estendido aos conceitos sobre o fazer poético, como se observa no poema

“Arte poética”:

INTRODUZ MÉTRICA NOS TEOREMAS FAZ DA GEOMETRIA UM LIVRO DE POEMAS. (VIEIRA, 1981, p. 9)

Ou em “Construção na vertical”:

Com pauzinhos de fósforo Podes construir um poema. [...] Não tremas: o teu coração Ainda mais que a tua mão, Pode trair-te. Cuidado!

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Um poema assim é árduo. Sem cola e na vertical, Pode levar uma eternidade. (VIEIRA, 2007, p. 28)

Aqui, semelhantemente a João Cabral, o tratamento e a sofisticação da poesia são dados pela

geometria, como a uma arquitetura ou engenharia, o poema pode ser construído “sem cola e na vertical”,

“com pauzinhos de fósforo”. É a isto que ele chama fazer “da geometria um livro de poemas”, trata-se do

constante trabalho da razão sobre as palavras, organizando-as e colocando-as em papel.

A respeito, João Cabral diz em entrevista a O Estado de S. Paulo no dia 19 de janeiro de 1986:

Eu não tenho ouvido musical para a melodia. Talvez tenha para o ritmo. O ritmo não é só

musical, existe um ritmo sintático. Você diante de uma obra de arquitetura vê que ela tem um

ritmo. Esse ritmo não é musical, porque a arquitetura é muda. Existe um ritmo visual, existe um

ritmo intelectual, que é um ritmo sintático. (In: ATHAYDE, 1998, p. 87)

Sobre o diálogo entre as obras dos dois poetas, veremos a seguir a culminância no que diz respeito à

concepção de poesia.

Em seu terceiro livro de poesia Mitografias (2007), o escritor cabo-verdiano Arménio Vieira –

galardoado, em 2009, com o Prêmio Camões, mais importante prêmio literário de língua portuguesa –

distingue um conjunto de poemas dedicados a João Cabral de Melo Neto.

A poesia de Arménio “dialoga, explícita ou implicitamente” (GOMES, 2011, p. 2) com a concepção

de poesia e com os próprios versos de João Cabral de Melo Neto. Porém, nesse capítulo de Mitografias,

Arménio extrapola quaisquer ecos perceptíveis do que apreendeu das leituras feitas de João Cabral e não só

dedica, como direciona os seus versos a João Cabral, qual este fosse o interlocutor de um diálogo literário ou

até mesmo de um diálogo real. Observemos o que diz Bakhtin sobre o conceito de “diálogo real” e sua

extensão a outras esferas da comunicação verbal:

a forma mais simples e mais clássica da comunicação verbal. A alternância dos sujeitos

falantes (dos locutores) que determina a fronteira entre os enunciados apresenta-se no diálogo

com excepcional clareza. Ora, o mesmo sucede nas outras esferas da comunicação verbal,

[...] o autor da obra manifesta sua individualidade, sua visão do mundo, em cada um dos

elementos estilísticos do desígnio que presidia à sua obra. [...] as obras dos antecessores, nas

quais o autor se apóia, as obras de igual tendência, as obras de tendência oposta, com as quais

o autor luta, etc. (BAKHTIN, 2002, p. 298)

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A maneira como Arménio estrutura os poemas funciona como uma resposta direta ao enunciado

proposto por João Cabral, como se numa conversa entre amigos este falasse e Arménio continuasse e

estendesse o diálogo a outros níveis, comentando, concordando, refutando, de maneira responsiva. Nesses

“Dez poemas mais um”, transbordam as imagens típicas a João Cabral nas referências e no diálogo direto

estabelecido – em que se destaca o último poema, intitulado “João Cabral”. Toda a obra de Arménio guarda

enigmas a serem descobertos, suas palavras estão dispostas a um leitor atento e capaz de descobrir mundos

inteiros em um verso; da mesma maneira esses onze poemas revelarão qual é a leitura que ele faz da obra do

poeta brasileiro.

Um poeta, ao escrever e publicar sua obra, não espera um leitor inerte, deseja um leitor que

concretize o caráter dialógico da linguagem, pois um enunciado pede um retorno. Como destaca Fiorin, “ele

espera uma compreensão responsiva ativa, constrói-se para uma resposta, seja ela uma concordância ou uma

refutação.” (FIORIN, 2006, p. 32). Nesse sentido, não há melhor leitor do que o representado por Arménio

Vieira, a relação entre os dois poetas ilustra perfeitamente a natureza dialógica da língua.

Observemos o primeiro destes onze poemas:

DEZ POEMAS MAIS UM para João Cabral de Melo Neto, pão sem miolo, apenas códea, se é que o finado Severino ainda pode ouvir. (VIEIRA, 2007)

Já neste poema-epígrafe, que explicita ser João Cabral de Melo Neto o destinatário e o homenageado

do conjunto, há o início de um emaranhado de referências a começar pelo próprio nome de João Cabral. A

este interlocutor Arménio dedica o “pão sem miolo, apenas côdea”, verso pertencente ao célebre poema do

pernambucano publicado em Quaderna, “Poema(s) da Cabra”:

[...] O negro é o duro que há no fundo da cabra. De seu natural. Tal no fundo da terra há pedra, no fundo da pedra, metal. O negro é o duro que há no fundo da natureza sem orvalho que é a da cabra, esse animal sem folhas, só raiz e talo,

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que é a da cabra, esse animal de alma-caroço, de alma córnea, sem moelas, úmidos, lábios, pão sem miolo, apenas côdea. [...] (MELO NETO, 2008b, p. 80 – grifos nossos)

Vemos refletidos neste verso princípios básicos das obras de ambos: Arménio dedica a João Cabral a

casca (a côdea), aquilo que ocupa a superfície rígida e dura de uma realidade comparada ao “pão sem

miolo”, ou seja, não existe o que amorteça ou amenize essa rigidez da casca, e é também desta falta de

proteção que os outros poemas falam. A cabra, no poema de João Cabral, representa aquilo que é privado de

qualquer luxo, “sem orvalho”, qualquer adorno, “sem folha”, apenas existe o necessário, “só raiz e talo”. Esse

possuir o necessário é o que a faz forte, resistente, “no fundo da pedra, metal”, mais forte do que a própria

pedra que constrói e delineia a força da linguagem em João Cabral; o fundo da cabra é metal. É também desta

côdea sem excessos que estão compostos os versos e a essência poética cabralina:

A cabra deu ao nordestino esse esqueleto mais de dentro: o aço do osso. (MELO NETO, 2008b, p. 84)

“A cabra deu ao nordestino” a sua força e emprestou ao nordestino João Cabral a força de seus

versos que também têm “alma-caroço”, não há excessos em sua poesia, não há derramamento lírico, por trás

dela está o poeta racional que pesa cada palavra, mede cada significado e leva à exaustão o trabalho da

linguagem. É essa força que Arménio está remetendo a Cabral e é dessa força que se farão, em menor medida,

seus próprios versos.

Dessa forma é que, no verso “Se é que o finado Severino ainda pode ouvir”, Arménio nomeia

Severino, o próprio de Morte e vida Severina, obra mais conhecida de João Cabral, e nomeia também, de

acordo com o sentido que esta palavra leva consigo de sofrimento e força, o próprio poeta. Se o finado João

Cabral pode ouvir, estes versos são destinados a ele e a sua obra, como bem veremos a seguir.

Arménio inicia cada um dos nove poemas dedicados a João Cabral da mesma maneira: “Não há

guarda-chuva, João, / contra...”, o que, sem dúvida, dialoga diretamente com o poema de João Cabral “A

Carlos Drummond de Andrade”, composto por cinco estrofes iniciadas com o verso “Não há guarda-chuva /

contra”, em que as temáticas tratadas são “o poema”, “o amor”, “o tédio”, “o mundo” e “o tempo”, todas as

cinco também discutidas por Arménio Vieira em nove poemas:

Não há guarda-chuva contra o poema

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subindo de regiões onde tudo é surpresa como uma flor mesmo num canteiro. Não há guarda-chuva contra o amor que mastiga e cospe como qualquer boca, que tritura como um desastre. Não há guarda-chuva contra o tédio: o tédio das quatro paredes, das quatro estações, dos quatro pontos cardeais. Não há guarda-chuva contra o mundo cada dia devorado nos jornais sob as espécies de papel e tinta. Não há guarda-chuva contra o tempo, rio fluindo sob a casa, correnteza carregando os dias, os cabelos. (MELO NETO, 2007a, p. 95)

A temática insistentemente perpassada em toda a obra de João Cabral de Melo Neto é a que discute

e reflete sobre conceitos poéticos. Mesmo quando aparentemente ela não está presente, há algum(ns) verso(s)

que nos permite(m) compreender melhor como o poeta a mira. Nas palavras de Lêdo Ivo, seu amigo e

companheiro na formação literária desde Pernambuco,

Desde o início do percurso o problema da expressão poética se impôs a João Cabral. A

organização do poema, sua forma e estrutura constituíam para ele verdadeira obsessão, e de

tal modo que a metapoesia – o poema em que se celebra a criação do poema ou a própria

poesia e que prolifera no lirismo ocidental desde Mallarmé – atravessa insistentemente a sua

obra. (IVO, 2009, p. 16)

A primeira estrofe de “A Carlos Drummond de Andrade” reflete exatamente sobre isso, o poema:

Não há guarda-chuva contra o poema subindo de regiões onde tudo é surpresa como uma flor mesmo num canteiro. (MELO NETO, 2007a, p. 95)

Por estes versos, percebemos que o poema, para João Cabral, é algo difícil, vem de regiões da

instabilidade “onde tudo é surpresa”, não se trata de uma inspiração que imediatamente transcrita ao papel

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resolve-se em poesia. É desde sua origem trabalho racional, cabe ao poeta lidar com as surpresas, é necessário

atenção, estado de alerta sobre esta instabilidade. Como João Cabral postula em seu ensaio “Poesia e

composição”, fruto de uma conferência pronunciada em 1952,

O ato do poema é um ato íntimo, solitário, que se passa sem testemunhas. Nos poetas daquela

família, para quem a composição é procura, [...] diante do papel em branco, exercitam sua

força. Porque eles sabem de que é feita essa força – é feita de mil fracassos, de truques que

ninguém deve saber, de concessões ao fácil, de soluções insatisfatórias, de aceitação resignada

do pouco que se é capaz de conseguir e de renúncia ao que, de partida, se desejou conseguir.

(MELO NETO, 1998, p. 51)

O poema é algo a ser construído passo a passo, domando-o. Ao leitor, pode soar como uma “flor

mesmo num canteiro”; a simplicidade e naturalidade, porém, por trás deste gesto, há uma rede de

complexidades, por que e como nasce a flor/poema no canteiro só os poetas “sem testemunhas” sabem, só

eles “sabem de que é feita essa força”.

Enquanto bom leitor de João Cabral, seria inadmissível em Arménio Vieira a ausência de resposta a

essas proposições poéticas, e a resposta vem no último dos “dez” poemas, em tom mais do que satisfatório:

E, por último, sem que isto seja o fim, não há guarda-chuva, João, contra os enguiços do poema, o qual jamais é a deusa tal como o poeta a viu (em silêncio e na matriz). Razão por que, fingindo, ele inventa pedaços de um canto que ouviu por inteiro. (VIEIRA, 2007, p. 24)

“Sem que isto seja o fim” das relações entre Arménio e João Cabral, sem que seja o fim das coisas

para as quais não há “guarda-chuva” ou proteção, sem que seja o fim das próprias reflexões acerca do fazer

poético: apesar de só aqui Arménio falar diretamente do poema e de cada um dos poemas anteriores ter seu

próprio tema, ao fim veremos que tudo é uma reflexão sobre o fazer poético, como também é a obra de João

Cabral. Por trabalhar a palavra até o seu limite, por debruçar-se até dá-lo – o poema – como resolvido e,

principalmente, por ter plena consciência do ato de composição, o “poema” – como temática – está presente a todo o

momento, mesmo que ausente o tema da composição poética.

Conhecendo a literatura de Arménio Vieira, encaramos este poema como uma proposição irônica

em relação ao tema da deusa e da inspiração poética de seu canto. A inspiração a que João Cabral é tão

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avesso provoca aversão também no cabo-verdiano. Admitir que não há nada que proteja “contra os enguiços

do poema” é imediatamente contrário à crença de que a poesia vem e toma, de modo irracional, o poeta que,

nesta concepção, seria apenas o instrumento pelo qual esta “força superior” inscreve versos no papel. Ambos

creem nestes enguiços, a poesia exige debruçar-se sobre o papel e, tal qual amanhar uma pedra, exige esforço

de quem a faz; é, portanto o trabalho racional.

A representação de uma inspiração que, na tradição da Grécia antiga, é possibilitada pela deusa ou

pelas musas, é subvertida nos versos de Arménio, que aponta esta deusa “em silêncio e na matriz” – ou seja,

apenas um objeto, não tem a capacidade de agir ou provocar ação, não tem qualidades de sujeito e

permanece estática e em silêncio. Os enguiços do poema jamais são relacionados a essa deusa estática, quem

finge e inventa é o próprio poeta, finge ter ouvido o canto da deusa e – ele mesmo e sua própria atividade

racional – “inventa pedaços” dessa poesia, fragmentos de poesia.

É exatamente pela chave do fragmento que leremos estes “Dez mais um” e a poesia moderna como

um todo.

A poesia moderna quebra com conceitos antigamente atribuídos a este gênero, de modo que uma

nova maneira de ver a poesia muito importante para nossa discussão é seu caráter dialógico. Cristovão Tezza

defende, em artigo intitulado “Poesia” (2008), uma atual “contaminação prosaica” que aponta ser “a marca

contemporânea obrigatória de toda poesia”:

vivemos num tempo prosaico [...], a consciência e valorização das linguagens alheias [...] está

presente; e, parece, é cada vez mais difícil a autoridade poética encontrar eco, isto é,

encontrar recepção e ressonância e uma entonação centralizada, marca absoluta do estilo

poético na sua voltagem máxima. (TEZZA, 2008, p. 206-207)

Esta tendência ao diálogo, à descentralização e quebra com a autoridade absoluta do discurso

poético são elementos que exigem um novo tipo de leitor. Além do domínio da linguagem, quem se propõe a

enfrentar textos poéticos modernos tem por necessidade uma erudição. João Cabral defende, em seu artigo

“Da função moderna da poesia” (1954), que “o poema moderno [...] exige do leitor um esforço sobre-humano

para se colocar acima das contingências de sua vida” (MELO NETO, 1998, p. 99). O esforço sobre-humano

vem do excesso de informação da modernidade vinculado à produção de novos recursos poéticos, como os

diálogos que passam a fazer parte do texto poético internamente: “A necessidade de exprimir objetiva ou

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subjetivamente a vida moderna levou a um certo tipo especializado de aprofundamento formal da poesia, à

descoberta de novos processos, à renovação de processos antigos” (MELO NETO, 1998, p. 98).

A literatura dialógica exige a capacidade de estabelecer associações, semelhanças e disparidades

entre leituras, exige a erudição do leitor. É o próprio Cabral quem afirma, em seu ensaio “Da função moderna

da poesia”, que o poeta moderno tem na identidade de sua escrita a inserção da “pesquisa formal” e inserção

de novos conceitos, o poema deixa de ter uma função fixa de comunicar e cabe a cada poeta determinar

como e a que fim produzi-lo. Esta constante inclusão de pesquisas e diálogos traz para a poesia uma

diversidade de visões que está relacionada às “ressonâncias das múltiplas e complexas aparências da vida

moderna” (MELO NETO, 1998, p. 97).

Ambos, Arménio Vieira e João Cabral de Melo Neto, escrevem suas obras artísticas após a crise no

conceito de autoria, a crise do sujeito, e a queda da verdade absoluta, o rompimento moderno com conceitos

até então estáveis. Após a filosofia de Nietzsche, já não se aceita da mesma maneira a existência de uma

verdade absoluta – “as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram

gastas e sem força sensível” (NIETZSCHE, 1999, p. 57). Após a psicanálise com Freud e a descoberta do

inconsciente, já não existe um sujeito unificado e coerente, sua teoria de que nossas identidades, sexualidade

e desejos têm base em processos psíquicos e simbólicos do inconsciente abala o conceito de sujeito racional,

e identidade fixa e unificada, estes processos funcionam segundo uma lógica muito diferente da lógica da

Razão (HALL, 2005, p. 36).

Sob estas perspectivas e sob a multiplicidade da vida moderna, serão escritas as obras dos dois

poetas – céticos e críticos em relação a esta verdade absoluta, a esta coerência que já não existe no mundo

moderno, céticos no que diz respeito a crenças, a Deus e a religiões. Não há como colocar-se diante de um

único poema dessas vastas obras mirando-o como completude, uma proposição cerrada; o olhar desconfiado

nos mostra composições feitas de pedaços – os “pedaços” mencionados por Arménio Vieira no poema analisado

acima (“E, por último, sem que isto seja o fim”): “fingindo, / ele inventa pedaços / de um canto / que ouviu por

inteiro”. Porém, depois de escritos, estes pedaços não pertencem mais a quem os escreveu e o leitor passa,

então, a participar da composição do sentido.

O encadeamento da leitura do conjunto “Dez poemas mais um”, apesar de apresentar-se como uma

unidade, também constrói sentido na leitura individual, em que cada poema pode ser interpretado como um

pedaço ou fragmento. Em O gênero Intranquilo, o crítico literário português João Barrento elabora teorias

sobre a escrita em fragmentos:

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Uma linguagem que é, para Schlegel, a do incompleto, alusivo, obscuro e inacabado, uma

fala própria que provoca uma “irritação” infinita, motor da busca incessante do sentido, fator

de ativação da imaginação e da inteligência do leitor. Do ‘leitor hábil‘‘, [...] já que a escrita do

fragmento é uma daquelas que realmente pensa no leitor e o valoriza. (BARRENTO, 2010, p.

67 – grifos nossos)

O “leitor hábil” referido por Barrento e o leitor erudito observado por João Cabral para a poesia

moderna são semelhantes, leitores que, no enfrentamento com o texto literário, precisam do raciocínio e da

busca de leituras anteriores para a compreensão efetiva do texto em análise.

Estes onze poemas de Arménio Vieira podem, sim, ser lidos e compreendidos sem a obra de João

Cabral. Porém, uma vez com a obra do brasileiro em mãos, os novos e incontáveis sentidos que ganham estes

textos têm imenso valor e expressividade. Cada poema isolado/descolado da “proposição inicial” à qual

responde – não apenas o poema “A Carlos Drummond de Andrade” e, sim, toda a obra do poeta que o

escreve – caracteriza-se enquanto fragmento de diálogo, um fragmento de pensamento literário. Ao realizar

uma leitura conjunta dos onze de Arménio Vieira e outros tantos de João Cabral, o sentido se torna um pouco

mais completo. A intervenção do leitor virá em dois momentos, primeiro o de juntar o fragmento de Arménio

Vieira ao fragmento de João Cabral de Melo e, em seguida, juntá-los com o fragmento próprio e único que

cabe a cada leitor, a interpretação individual da obra literária.

A proposta da leitura de seus poemas como fragmentos baseia-se no fragmento como um gênero

aberto e que assim deve permanecer. Nenhum dos dois autores se propõe a apresentar a obra posta e

definitiva, esta se efetiva como um fragmento pertencente ao mundo literário, o sentido do poema deve ser

dado pela leitura de quem com ele se depara. O fragmento exige a atuação do leitor. Sobre este tema, João

Cabral aponta: “Na sua literatura [do poeta moderno] existe apenas uma metade, a do criador. [...] Nessa

relação o leitor não é apenas o consumidor. O consumidor é, aqui, parte ativa.” (MELO NETO, 1998, p. 68-

69). Os dois poetas, em suas concepções literárias, compreendem que, depois de escrito e publicado, o

poema não deve ser assinado, não pertence ao poeta que o escreveu, há o compartilhamento da “autoria” da

obra com os leitores, veremos isto explicitado nos próprios versos:

Por João Cabral:

Saio de meu poema como quem lava as mãos. (MELO NETO, 2007a, p. 121)

Por Arménio Vieira:

Quando estiver concluído,

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não assines, o poema não é teu. (VIEIRA, 2007, p. 28)

Diante desta postulação, passaremos a ler em modos de fragmentos os poemas de João Cabral e

Arménio Vieira, segundo as temáticas correspondentes.

Não há guarda-chuva contra o mundo cada dia devorado nos jornais sob as espécies de papel e tinta. (MELO NETO, 2007a, p. 95)

Aqui está a temática do “mundo”, João Cabral a trata pelo viés da modernidade, que para ele –

como vemos em seus ensaios mencionados acima – é devoradora em sua multiplicidade de informações

advindas de todas as direções e no tempo limitado que o indivíduo tem para dedicar-se à apreciação da arte.

Porém, o viés de fato explorado nesta temática é o social, principalmente se consideramos que o poema é

dedicado a Carlos Drummond de Andrade, o mundo que devora e “é devorado”, a banalização desta

humanidade por, dia após dia, estarem noticiados em jornais desastres e a má ventura humana, noticiadas

diariamente as mortes e vidas severinas, sofridas, “sob as espécies de papel e tinta”.

A esse tema do mundo devorado, Arménio responderá em mais de um poema; estes, quando lidos

em conjunto, chamam atenção pelo tom de miséria que prevalece. Observemos dois deles:

Não há guarda-chuva, João, contra o azar (que nem chega a ser falta de sorte) pois que, parando a roleta sobre o número com que havemos sonhado, tão parca era a moeda, que nem deu para jogar. (VIEIRA, 2007, p. 17)

O plural em “havemos” é o que leva a ler este poema como expressão de uma coletividade.

Arménio lança mão de imagens fortes acerca dessas vidas severinas, conforme defendemos: até mesmo a

sorte existente e que passa pelos olhos – a “roleta” para sobre o número que “havemos sonhado” – nunca

pode ser agarrada, a miséria é anterior e impede inclusive a possibilidade de “jogar”, por isso “o azar” aqui

“nem chega a ser falta de sorte”.

Outra expressão do “mundo devorado” em Arménio Vieira:

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Não há guarda-chuva, João, contra a pedra que, amanhada embora, pesada cai, após o caixão, como se a terra (que não é terra somente), mas um cardume de bichos que na morte buscam seu dia de sorte, como se o pó, que já foi pedra, e do qual a pedra volta a nascer, fosse coisa pouca ou mesmo ruim, pois que a pedra (mais rija que a terra) serve melhor o que teima em não ter fim. (VIEIRA, 2007, p. 22)

Falar sobre pedra em palavras dedicadas a João Cabral nunca é despretensioso. A pedra representa

não só a razão e a força da composição poética, como a força no ser humano, a força do sertanejo

semelhante à força que vem da metáfora da “cabra” – discutida anteriormente. Nos versos do poema “A

educação pela pedra”:

No sertão [...] não se aprende a pedra: lá a pedra, uma pedra de nascença, entranha a alma. (MELO NETO, 2008b, p. 207).

Arménio não entra neste diálogo passivamente, subverte a valoração desta pedra presente em João

Cabral. O trabalho racional/cultivo da pedra de nada adianta na composição ou na vida em um contexto de

miséria (“amanhada embora / pesada cai, após o caixão”). A pedra representa a racionalidade humana, a

pedra é aquilo que “serve melhor / o que teima em não ter fim”, a miséria humana, como defendido no

poema anterior. A pedra – seja a que representa a racionalidade humana ou a que “cai, após o caixão” –

servirá a ignorar o que há de trágico nesse dia a dia de miséria, a apagar em “papel e tinta” diariamente nos

jornais, como diz o poema de Cabral, essas pessoas de vidas severinas. O “cardume de bichos / que na morte

buscam seu dia de sorte” não são bichos somente, são mesmo estas pessoas, vidas em que a morte é a única

saída de sorte.

Não há guarda-chuva contra o amor que mastiga e cospe como qualquer boca,

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que tritura como um desastre. (MELO NETO, 2007a, p. 95)

Outro fragmento temático de diálogo entre os dois poetas é o amor que está na segunda estrofe de

“A Carlos Drummond de Andrade”. A visão de amor do sujeito poético nesta estrofe é muito semelhante a da

personagem Joaquim da obra Os três mal-amados (1943), que tem como epígrafe o famoso poema de

Drummond, “Quadrilha” (“João amava Teresa que amava Raimundo que amava Joaquim que amava Lili

[...]”). Em Drummond, Joaquim suicida-se; em Cabral, ele se expressa da seguinte maneira:

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de

idade, minha genealogia, meu endereço. [...] O amor veio e comeu todos os papéis onde eu

escrevera meu nome. [...] O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de

meus cabelos. [...] O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. [...] O amor

voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome. [...]

Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. [...] Comeu meu silêncio, minha dor de

cabeça, meu medo da morte. (MELO NETO, 2007a, p. 57-64)

A visão de amor nestes versos de João Cabral é a do amor que consome o indivíduo, corrói. Pode-se

dizer que a revolta expressa em relação ao descontrole do sujeito frente ao amor vem exatamente da vontade

que tem João Cabral de medir e arquitetar tudo, de ter controle racional sobre as coisas. Porém, estes versos

demonstram uma falha da razão, caracterizando o amor – que “mastiga e cospe” – como inevitável, “um

desastre”. O amor priva Joaquim do domínio sobre sua própria “identidade”, sobre seu próprio corpo, seu

“futuro” e até mesmo seu “medo da morte”.

Em Arménio, o amor alcança outros patamares:

Não há guarda-chuva, João, contra quem não te ama já que o amor só se dá quando alguém, como um rio, se alonga e entra no mar, o qual, embora líquido e salgado, não é teu suor nem teu sangue. (VIEIRA, 2007, p. 18)

Estes versos reconhecem, como os de João Cabral, o amor inserido em um campo semântico da falta

de domínio: “só se dá quando alguém, como um rio,/ se alonga e entra no mar”, é incontrolável e inevitável,

o rio não escolhe seu destino ao mar, simplesmente “se alonga e entra”. Apesar de o destino ser “líquido e

salgado”, o que poderia estar em território da familiaridade, representada aqui pelo “suor” e “sangue”

próprios, o amor não está em território confortável e próprio do sujeito, ele deságua no mar – aquilo sobre o

que não se exerce controle jamais. Porém, aqui, o problema central contra o qual não há a proteção não é

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precisamente o amor – este não é assumido como algo corrosivo por si só –, a vulnerabilidade está em “quem

não te ama”. Por mais que seja incontrolável, amar alguém ainda está no campo do sujeito, enquanto ser

amado por alguém se transfere ao campo do objeto, sobre o qual, de fato, não se pode atuar. Arménio

acrescenta à proposição fragmentária de João Cabral a figura do outro, necessária à concretização do amor e

contra a qual não há “guarda-chuva”.

Não há guarda-chuva contra o tempo, rio fluindo sob a casa, correnteza carregando os dias, os cabelos. (MELO NETO, 2007a, p. 95)

O tempo, em João Cabral, é temática frequente, inevitável e a tudo modifica. As imagens utilizadas

nestes versos para caracterizá-lo são dotadas de delicadeza: o tempo é como “rio fluindo” – o rio que,

inclusive como narrador, tanto povoou a obra de João Cabral Em O rio (1953), um dos três livros junto de

Morte e vida Severina (1954-55) e O cão sem plumas (1949-1950) que contam o nordeste através do

Capibaribe, “é o rio que conta a si próprio na primeira pessoa, e o poeta é visto pelo rio que cruza o Recife,

num distanciado vislumbre da memória” (TAVARES, 2007, p. 8).

Nos primeiros versos de O cão sem plumas:

A cidade é passada pelo rio como uma rua é passada por um cachorro; uma fruta por uma espada. [...] (MELO NETO, 2007a, p. 137)

O rio passa pela cidade como um cachorro atravessa a rua. “A cidade é passada pelo rio”, a vida

também o é, como um processo natural, o tempo é este rio lento pelo qual a vida é passada, “fluindo” e

levando consigo “os dias” e a juventude, “os cabelos”.

A naturalidade e suavidade de João Cabral ao tratar o tempo não se reproduz neste poema de

Arménio Vieira:

Não há guarda-chuva, João, contra esse antigo relógio, o qual, se parou de bater por uma avaria qualquer, permanece inteiro e presta,

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com seus dois ponteiros marchando, suas duas pernas de insecto. Indiferente à ferrugem com que o tempo carimba (o homem, bem mais que o ferro). esse velho funcionário, zeloso e pontual, vai cobrando as rendas a que o Império obriga. (VIEIRA, 2007, p. 19)

Em oposição ao tempo tratado com delicadeza, suavidade e lentidão, como o rio, a abordagem pela

qual segue o cabo-verdiano é a de velocidade. O tempo consume o homem, o relógio é colocado como

metáfora, que se explicita no verso “o homem, bem mais que o ferro”, quando se torna ambígua a

caracterização do “velho funcionário”: relógio e homem. O homem confunde-se com o tempo no sentido de

dever, de cumprir obrigações, o tempo desempenha para a sociedade moderna função relacionada à

utilidade, assim também tem obrigações o homem. Se o relógio “parou de bater / por uma avaria qualquer”,

permanece em funcionamento, não há a possibilidade de o tempo parar, ele corre e tem sua produtividade.

O campo semântico deste poema de Arménio se completa quando tomamos em leitura conjunta o

fragmento de João Cabral sobre o “tempo” e o fragmento sobre o “tédio”:

Não há guarda-chuva contra o tédio: o tédio das quatro paredes, das quatro estações, dos quatro pontos cardeais. (MELO NETO, 2007a, p. 95)

Esta maneira de ver o tempo, ou melhor dizendo, “o relógio”, em Arménio Vieira, não está explícita

no poema “A Carlos Drummond de Andrade”, porém está em diálogo direto com o poema “Relógio”, de João

Cabral:

Ao redor da vida do homem há certas caixas de vidro, dentro das quais, como em jaula, se ouve palpitar um bicho. [...] Assim, que não são artistas Nem artesãos, mas operários [...] é simplesmente trabalho, trabalho rotina, em série, impessoal, não assinado, [...]

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de operário que executa [...] proibido (ou sem querer) do mínimo variar. (MELO NETO, 2008b, p. 186-190)

Estes três poemas – “A Carlos Drummond de Andrade”, “Relógio” e “Não há guarda-chuva, João, /

contra esse antigo relógio” – em diálogo produzem sentido relacionado à obrigação, à cobrança de

funcionalidade para toda e qualquer existência no mundo moderno. Não só o homem tem que ser útil, como

o tempo deve estar a serviço como “operário” ou “funcionário” desta produtividade. O mundo de “tédio”

funciona sempre cheio das mesmas regras: “das quatro estações, dos quatro pontos cardeais” e as mesmas

maneiras em “quatro paredes”, está o homem preso entre elas e o tempo preso em uma “caixa de vidro” – ou

“jaula”, palavra do próprio poeta em versos seguintes.

A figura do relógio/tempo “operário” é semelhante à do “velho funcionário” que Arménio trabalha.

O relógio neste poema, assim como o homem, é “proibido [...] do mínimo variar”, está em “jaula” e

desempenha “trabalho rotina, em série”. É o que vemos em outro poema de João Cabral, “Difícil ser

funcionário”, escrito de um funcionário público a outro, Drummond:

Difícil ser funcionário Nesta segunda-feira. [...] É a dor das coisas, [...] É o regimento proibindo Assovios, versos, flores.[...] Carlos, dessa náusea Como colher a flor? Eu te telefono, Carlos, Pedindo conselho. (Cadernos, 1996, p. 60-61)

Assim como ao relógio é proibido variar sua rotina, ao homem, funcionário, há sempre “o regimento

proibindo / Assovios, versos, flores”, e este conjunto de regras e obrigações é motivo de incômodo e

inquietação a Cabral: “Eu te telefono, Carlos, / Pedindo conselho”. Novamente é a vida moderna que lhe

rouba o tempo da poesia para dar ao desempenho das funções, “da dor das coisas”, ou como diria o cabo-

verdiano, “a que o Império obriga”:

esse velho funcionário, zeloso e pontual, vai cobrando as rendas a que o Império obriga. (VIEIRA, 2007, p. 19)

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JOÃO CABRAL Sabido que o voo não se prende ao chão, do qual não é unitário nem tão-pouco afim, já que o pássaro só no sonho encontra sua estação e a razão por que voa, diga-se que o bloco, pesado e concreto, não é substância que inspire quem ao voo se rende João Cabral, no entanto, sendo o Z de uma recta em que Dante é o A, encontra no feijão e na pedra, mesmo na cabra, isto é, na pele da cabra que a seca secou sua musa e seu canto Isso tudo, coisas enfim em que o sem jeito se junta à ausência do ponto em que a linha começa, e mesmo assim, sem que haja casca e gema, o pinto nasce. Sendo um pássaro, completo e canoro, sobe no ar e canta. (VIEIRA, 2007, p. 25-26)

Este poema intitulado “João Cabral” é o momento máximo da ‘homenagem‘ que o cabo-verdiano

presta ao pernambucano. Apesar de, em nenhum momento, Arménio usar palavras que remetem diretamente

à poesia como tema, o poema composto por três estrofes tem, na primeira, uma proposição de lírica oposta à

construção da obra de Cabral. Na segunda, há o postulado do que Arménio enxerga que seja esta construção

poética cabralina e a breve menção a três poemas essenciais da obra de João Cabral. Na terceira, há a síntese

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dessas duas maneiras de ver a poesia: Arménio atribui à poesia de João Cabral característica que a princípio

este não pretendeu dar a ela. Vejamos.

A primeira estrofe lança imagens como “voo”, “pássaro”, “inspire” – estas palavras, usadas para retratar

a poesia, normalmente pertencem a um campo semântico que a considera fruto de uma inspiração, uma força

externa. A oposição entre “voo” e “chão”, “sonho” e razão”, inspiração” e “pesado e concreto” são a chave para

entender esta estrofe. Arménio mostra uma concepção de poesia que defende esta inspiração: “o voo / não se

prende ao chão” – ou seja, à razão, à estabilidade –, com ele não guarda afinidade, “já que o pássaro”, este que

concretiza o voo e, portanto, o poema, só encontra seu lugar no “sonho”, fora da realidade. “O bloco / pesado e

concreto”, que mais tem de chão e realidade que o voo leve do pássaro, “não é substância / que inspire”, a

realidade não é material para a poesia de “quem ao voo se rende”. Esta categoria de poesia é completamente

avessa à categoria na qual se enquadra o poeta da materialidade.

A segunda estrofe é onde Arménio expõe suas leituras e impressões acerca do brasileiro, como se

João Cabral encerrasse uma linha de leituras valorizadas por Arménio a começar por Dante. Fizemos uma

leitura anterior do “Poema(s) da cabra” onde sua côdea, casca, superfície, é representação dos valores de

força racional, na cabra só há o necessário, nenhum adorno está presente. “A seca secou” a pele desta cabra,

e “o nordestino, convivendo-a / fez-se de sua mesma casta” (MELO NETO, 2008b, p. 84), assim como o poeta

nordestino em questão, pois a seca torna seus versos enxutos, só aquilo que é objetivo se concretiza nessa

escrita, de maneira absolutamente consciente e controlada: a “seca secou sua musa e seu canto” – a

inspiração em João Cabral é músculo atrofiado que jamais entra no processo de composição.

As reflexões acerca da composição e os diálogos em pedaços nestes poemas enfatizam-se pelas

imagens da pedra (“A educação pela pedra”) e do feijão (“Catar feijão”) que Arménio menciona, forçando o

leitor novamente a buscar as referências das leituras anteriores:

Uma educação pela pedra: por lições; para aprender da pedra, frequentá-la; captar sua voz inenfática, impessoal [...] A lição de moral, sua resistência fria [...] a de poética [...] a de economia, seu adensar-se compacta [...] (MELO NETO, 2008b, p. 207) Catar feijão se limita com escrever: Jogam-se os grãos na água do alguidar E as palavras na folha de papel; E depois joga-se fora o que boiar. [...] Ora, nesse catar feijão entra um risco:

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O de que entre os grãos pesados entre um grão qualquer, pedra ou indigesto, um grão imastigável, de quebrar dente. Certo, não quando ao catar palavras: A pedra dá à frase seu grão mais vivo Obstrui a leitura fluviante, flutual[...] (MELO NETO, 2008b, p. 222)

“Catar feijão” é retirar os grãos ou as palavras indesejadas, “o que boiar”, sempre em estado de alerta

para que nada escape à perfeição deste trabalho. Porém, com as palavras acontece algo contrário ao que

ocorre com o feijão: se um grão “pedra ou indigesto” permanece e “obstrui a leitura”, aí está uma vantagem,

pois garante a atenção e reflexão racional também do leitor sobre as palavras no poema, a reflexão sobre esta

“pedra”. Pedra da qual – o poeta defende em “A educação pela pedra” – se aprende a “lição de moral”, se

aprende sua voz “impessoal” que é a lição “de poética”, o não derramamento lírico, “economia” da

linguagem.

O que Arménio afirma é que a pedra, o feijão e a cabra – em tudo que suas metáforas carregam de

significação – cumprem, em João Cabral, papéis de substituição da inspiração da musa e do canto que há em

outros poetas. A realidade – dura e seca como ela é – é o objeto de sua escrita, o que o faz escrever.

A síntese deste poema que é a conclusão final desses “Dez poemas mais um” e palavra última de sua

literatura, até o presente, sobre João Cabral de Melo Neto, ocorre na terceira estrofe. A “isso tudo”, ou seja,

concepções poéticas, ele admite um “sem jeito” e a “ausência do ponto em que” tem início a linha dessa

discussão – pois mesmo que não discutida, a poesia sempre estará implícita e subentendida no poema,

principalmente ao falar do consagrado João Cabral. Porém, a necessidade de estabelecer de que maneira isso

ocorre não é objeto de Arménio Vieira com tamanha insistência como foi de João Cabral de Melo Neto. E

parecem não importar tanto as condições, pois de fato nasce o poema, que, ainda avesso às inspirações, torna-se

um pássaro capaz de concretizar o voo, o sonho e o canto. Arménio parece propor novamente que, uma vez

inscrito em livro e na mão do leitor, que este o interprete a seu modo, como voo ou como pedra presa ao chão.

Teoriza Bakhtin, em Marxismo e filosofia da linguagem:

O livro, isto é, o ato de fala impresso, constitui igualmente um elemento da comunicação

verbal. Ele é objeto de discussões ativas sob a forma de diálogo e, além disso, é feito para ser

apreendido de maneira ativa, [...] Além disso, o ato de fala sob a forma de livro é sempre

orientado em função das intervenções anteriores na mesma esfera de atividade, tanto as do

próprio autor como as de outros autores: [...]. Assim, o discurso escrito é de certa maneira

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parte integrante de uma discussão ideológica em grande escala: ele responde a alguma coisa,

refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio, etc. (BAKHTIN,

2006, p. 124-126 – grifos nossos)

Segundo os conceitos bakhtinianos de dialogismo, intertextualidade e interdiscursividade, Arménio

Vieira é um leitor de atitude ativa e responsiva em relação à literatura cabralina. Seu livro Mitografias, com

destaque a estes versos que nos ocupamos em analisar, concretiza-se como Bakhtin aponta como um

elemento de comunicação verbal e está, inevitavelmente, orientado em função das intervenções anteriores a

ele – entre elas as que foram mostradas por esta pesquisa. Arménio não está a retomar João Cabral

passivamente, em simples concordância e repetição de princípios, o que ele propõe é uma chave de leitura

para a poesia do nordestino: nesta leitura, mostra a sua própria maneira de fazer versos, os seus próprios

conceitos. Estende as discussões a patamares que não haviam sido alcançados pelo seu companheiro das

letras e abre espaço para a entrada do leitor em complementação, este podendo, em sua leitura ativa, chegar

a ainda novos patamares e fragmentos de leituras outras.

Um leitor desavisado que pretenda ler a poesia de Arménio Vieira encontrará incessantes

dificuldades no que diz respeito a sua universalidade, às referências constantes em sua obra a escritores e

demais artistas de todo o mundo. João Cabral propôs em “Da função moderna da poesia”:

O leitor moderno não tem a ocasião de defrontar-se com a poesia nos atos normais que pratica

durante sua vida diária. Ele tem, se quer encontrá-la, de defender dentro de seu dia um vazio

de tempo em que possa viver momentos de contemplação. (MELO NETO, 1998, p. 99)

Esta proposição é fato, principalmente ao lidar com obras tão vastas e complexas como são as destes

dois poetas, porém é uma grande oportunidade ao leitor disposto a pesquisar e entender tantos diálogos,

ultrapassar as limitações da vida moderna e adentrar no mundo literário. Foi isto que procuramos fazer ao

longo da pesquisa, passando de um princípio ingênuo de leitura à surpresa e deslumbramento que só a arte é

capaz de provocar.

ATHAYDE, Feliz de (Org.). As idéias fixas de João Cabral de Melo Neto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/FBN; Mogi das Cruzes: Universidade de Mogi das Cruzes, 1998.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Maria Ermantina G. G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

______. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006.

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BARRENTO, João. O gênero intraquilo: anatomia do ensaio e do fragmento. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.

CADERNOS de Literatura: João Cabral de Melo Neto, n. 1. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 1996.

FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006.

GOMES, Simone Caputo. Arménio Vieira: aulas magnas de arte poética.Mulemba: Revista Científica, n. 4, Rio de Janeiro: UFRJ, jul. 2011. Disponível em: <http://setorlitafrica. letras.ufrj.br/mulemba/artigo.php?art=artigo_4_4.php>. Acesso em: 13 jul. 2012.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

IVO, Lêdo. Os Jardins Enfurecidos. In: MELO NETO, João Cabral. Museu de tudo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

MELO NETO, João Cabral de. Prosa. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1998.

______. O cão sem plumas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007a.

__________. Morte e vida Severina. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007b.

__________. A escola das facas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008a.

__________. A educação pela pedra. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008b.

NIETZSCHE, Friedrich. Obras incompletas. São Paulo: Nova cultural, 1999.

NORÕES, Everardo. A constante seta de um rio. In: MELO NETO, João Cabral. Crime na calle Relator, Sevilha andando. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.

TAVARES, Braulio. Arte de ver e de dizer. In: MELO NETO, João Cabral. Morte e vida Severina. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.

TEZZA, Cristovão. Poesia. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2008.

VIEIRA, Arménio. Mitografias. Mindelo: Ilhéu Editora, 2007.

______. Poemas. Lisboa; Praia: África; Ilhéu, 1981.

_____________________________________

Data de submissão: nov./2013. Data de aprovação: dez./2013.

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Ronaldo MENEGAZ1

RESUMO Procuramos mostrar neste trabalho o percurso de um texto sagrado do povo hebreu em direção a um dos mais belos e fortes poemas líricos de Camões. O poeta português, no momento histórico em que a morte se aproxima, e o declínio político de Portugal se acelera, parafraseia o salmo bíblico 136 e faz dele a expressão da revisão de uma vida cheia de aventuras e de amores frustrados. PALAVRAS-CHAVE: lirismo religioso, salmo, paráfrase, oposição Sião/Babilônia.

RÉSUMÉ On a tâché de montrer dans ce travail le parcours d‘un texte sacré du peuple hebreu vers l’un des plus beaux et forts poèmes du lyrisme de Camões. Le poète portugais, au moment historique où la mort s’aproche et le déclin politique du Portugal s’acélère, paraphrase le psaume biblique 136 et en fait l’expression de la révision d’une vie pleine d’adventures e d’amours déçus. MOTS-CLÉ: lyrisme religieux, psaume, paraphrase, opposition Sion/Babylone.

1 Doutor em Letras Vernáculas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Lexicógrafo da Academia Brasileira de Letras (ABL), Professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ) e Pesquisador da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).

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Como seus vizinhos do Egito, da Mesopotâmia e de Canaã, o povo de Israel sempre cultivou a

poesia lírica. Algumas peças desse lirismo estão incluídas nos chamados livros históricos do Velho

Testamento, como o Cântico de Moisés, no livro do Êxodo, 15; o Hino da Vitória de Débora, no livro dos

Juízes, 5; e a elegia de Davi sobre Saul e Jônatas no Segundo Livro de Samuel, 1. No Novo Testamento,

encontram-se os três belos cantos incluídos no Evangelho de São Lucas, a saber, o Magnificat da Virgem

Maria em casa de sua prima Isabel, em Lucas 1, 47-55; o Benedictus, em que Zacarias louva o Senhor pelo

nascimento do seu filho João Batista, em Lucas 1, 68-79; e o curto, mas denso Nunc dimitis, o canto do velho

Simeão ao ver o Deus menino no Templo com seus pais, em Lucas 2, 29-33.

Além desses textos tradicionalmente transcritos em forma de poemas, destacados do texto em prosa

das narrativas a que pertencem, contam-se ainda numerosas passagens dos livros proféticos, sobretudo o de

Isaías, nas profecias messiânicas, que encerram trechos da mais admirável poesia. Mas o tesouro da lírica

religiosa de Israel foi conservado no Saltério, coleção de 150 salmos, que reúne vários séculos de atividade

poética e reminiscências de antigas coleções preexistentes.

A Bíblia de Jerusalém2, [texto crítico resultante do trabalho de exegetas e tradutores católicos e

protestantes a partir dos textos originais hebraicos, aramaicos e gregos], classifica, em estudo introdutório ao

Livro dos Salmos, os salmos em três grandes gêneros: os hinos, as súplicas e as ações de graças. Essa

classificação, no entanto, não comporta todos os tipos, já que ocorrem formas secundárias, aberrantes ou

mistas.

a) Os hinos possuem uma composição bastante uniforme: todos começam por um convite a louvar o

Senhor. O corpo do hino descreve os motivos desse louvor e termina com uma prece ou repetindo a fórmula

de introdução. No conjunto dos hinos podem-se distinguir dois grupos: os Cânticos de Sião, que exaltam a

Cidade Santa, morada do Altíssimo e meta das peregrinações, e os Salmos do Reino e Deus, que celebram o

reinado universal de Javé.

b) As súplicas são salmos de sofrimento ou lamentação. Não cantam as glórias de Deus, mas

dirigem-se a ele, e, nisso, diferem dos hinos. Essas súplicas podem ser coletivas ou individuais.

Coletivas – sua ocasião são os desastres nacionais, as derrotas e destruições ou a necessidade

coletiva, pedem a salvação e a restauração do povo.

2 A Bíblia de Jerusalém. São Paulo, Edições Paulinas, 1985.

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Individuais – são particularmente numerosas e de conteúdo variado: os perigos da morte, da

perseguição, da velhice; os males de que pedem a libertação são especialmente a doença, a calúnia e o

pecado. Essas súplicas são gritos da alma e expressões de uma fé pessoal que entraram no uso comum, o que

significa sua inserção no Saltério.

Os salmos de ações de graças raramente são coletivos: nesse caso, o povo dá graças pela libertação

de um perigo, pelas colheitas, pelos benefícios concedidos ao rei. Com maior frequência são individuais, de

pessoas que exprimem seu reconhecimento pela oração atendida e exortam os fiéis a louvar a Deus com elas.

Essa última parte tem normalmente um cunho didático.

Fora desse esquema tripartido, há os salmos chamados de gênero aberrantes ou mistos. Há, por

exemplo, lamentações que se seguem a uma prece confiante ou que são seguidas de ações de graças. Às

vezes a parte didática que ocorre tradicionalmente num salmo de ações de graças atinge tal dimensão e

importância, que melhor seria chamá-lo de salmo didático.

Ocorre, entre a Bíblia Hebraica, de um lado, e a Bíblia Grega e a Vulgata, do outro, uma diferença

na numeração contínua e crescente dos salmos.

Do Salmo 10 ao Salmo 148, a numeração da Hebraica está um número à frente da numeração da

Grega e da Vulgata. Essas reúnem os salmos 9 e 10 e os 114 e 115, mas dividem em dois os salmos 146 e

147. Isso faz com que salmo Superflumina, da liturgia católica, que Camões conheceu como o de número

136, já que o texto usado em seu tempo era o da Vulgata, seja o 137 da Bíblia Hebraica.

É um salmo de súplica coletiva, embora apenas num versículo o salmista se dirija a Deus e em outros

se dirija a Jerusalém (5 e 6) e a Babilônia (8 e 9). O Salmo evoca o momento histórico da queda de Jerusalém

com o final da monarquia e o exílio da Babilônia, fatos relatados no Segundo Livro das Crônicas, 36:

Mandou contra eles o rei dos caldeus, que matou pela espada seus jovens guerreiros no seu

santuário, e não poupou nem o adolescente, nem a donzela, nem o velho, nem o homem de

cabelos brancos. Deus entregou-os todos nas suas mãos. Todos os objetos do Templo de Deus,

grandes e pequenos, os tesouros do tempo de Iahweh, os tesouros do rei e de seus oficiais,

tudo Nabucodonosor levou para Babilônia. Queimaram o Templo de Deus, derrubaram as

muralhas de Jerusalém, incendiaram todos o seus palácios e destruíram todos os seus objetos

preciosos. Depois Nabucodonosor deportou para Babilônia todo o resto da população que

escapara da espada; tiveram de servir a ele e a seus filhos até o estabelecimento do reino

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persa, cumprindo assim o que Iahweh dissera pela boca de Jeremias: “Até que a terra tenha

desfrutado de seus sábados, ela repousará durante todos os dias da desolação, até que se

tenham passado setenta anos.

No Canto V do Inferno, Francesca da Rimini, fustigada pelo vento tempestuoso que a transporta

como uma palha levada pelo turbilhão, confessa a Dante, penalizado com seu sofrimento:

E quella a me: “Nessunmaggiordolor chericordarsidel tempo felice nellamiseria; e ciòsailtuodottore.

Chorar na miséria presente o tempo feliz que passou é uma constante na literatura, um topos que já

se encontra na Bíblia, como se vê no Salmo 136.

A esse respeito escreve Vasco Graça Moura3 ao tratar do assunto palinódia em sua obra Camões e a

Divina Proporção:

Este ponto é particularmente importante, pois pode demonstrar-se que Sobre os rios é uma

“rapsódia” de lugares comuns e não é das menores genialidades de Camões a de ter feito, a

partir de tantos materiais, um dos poemas mais sublimes do lirismo ocidental. Paradigma por

excelência da intra e da intertextualidade camonianas, em Sobre os rios poderão identificar-se

dezenas e dezenas de topoi e lugares paralelos das mais variadas proveniências, com ecos,

reelaborações e recorrências no poema e quase verso a verso.

Mas, voltando à tópica da lembrança do bem passado na hora da desventura, parece ser esse o

centro nuclear tanto do Salmo quanto das Redondilhas.

O Salmo 136, além de servir de mote às redondilhas de Sôbolos rios, é também a coluna vertebral

do poema, como diz V. Graça Moura4 parafraseando Antonio Sergio. O autor de Camões e a Divina

Proporção estabelece um quadro dos pontos de contato “que serão outros tantos” nódulos da “coluna

vertebral do poema”.

1. SuperfluminaBabylonis illicsedimus et flevimus cumrecordaremurSion

1. Sobre os rios que vão por Babilônia m’achei, onde sentado chorei as lembranças de Sião e quanto nela passei.

3 MOURA, Vasco Graça. Camões e a Divina Proporção. Lisboa, s. ed., 1985, p. 105-106. 4 Ver 2., p. 215, 219-221.

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2. In salcibus in medioeius suspendimusorgananostra

11. Assi, despois que assentei que tudo o tempo gastava, da tristeza que tomei nos salgueiros pendurei os órgãos com que cantava.

3. Quiaillicinterrogaverunt nos, quicaptivosduxerunt nos, verba cantionum: Etquiabduxerunt nos: Hymnumcantatenobis delcanticisSion

25. Mas lembranças da afeição que ali cativo me tinha me perguntaram então: que era da música minha qu’eu cantava em Sião

4. Quomodocantabimus canticumDomini in terra aliena

29. Eu, qu’estas cousas senti n’alma de mágoas tão cheia, Como dirá, respondi quem tão alheio está de si doce canto em terra alheia.

5. Si oblitusfuerotui, Heirusalem, oblivionidetur dexteramea

37. Terra bem-aventurada se, por algum movimento, d’alma me fores mudada, minha pena seja dada a perpétuo e esquecimento.

6. (segunda parte) Si non propusueroHierusalem, In principio laetitiae meae

39. E se eu cantar quiser, em Babilônia sujeito Herusalém, sem te ver, a voz, quando a mover, se me congele no peito.

6. (primeira parte) Adhaereatlinguamea faucibusmeis, si non meminerotui

40. A minha língua se apega às fauces, pois te perdi se, enquanto viver assi houver tempo em que te negue ou que me esqueça de ti

7. Memoresto, Domine, filiorum Edom, in die Hierusalem Quedicunt: Exaninite, exaniniteusqueadfuntamentum in ea.

57. No grão dia singular que na lira o douto som Hierusalém celebrar, Lembrai-vos de castigar Os ruins filhos de Edom.

60. Estes que tão furiosos gritando vêm escalar-me maus espíritos danosos, que querem corno forçosos do alicerce derrubar-me.

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8. FiliaBabylonismisera: beatus, que retribuettibi retributinoemtuan, quam retribuistinobis

63. E tu, ó carne que encantas, filha de Babel tão feia, toda de misérias cheia, que mil vezes te levantas, contra quem te senhoreia.

9. Beatusquiremebit

64. Beato só pode ser quemco a ajuda celeste contra ti prevalecer, e te vier a fazer o mal que tu lhe fizeste.

e em nascendo os afogai por não virem a parar em vícios graves e urgentes.

10. et allidetparvulostuos ad petram

67. Quem com eles logo der na Pedra do furor santo, e, batendo, os desfizer na Pedra, que veio a ser enfim cabeça de Canto.

Trata-se evidentemente de uma utilização muito pessoal do texto bíblico por Camões, mas pode-se

verificar que, nessa transposição, o texto do Salmo segundo a Vulgata encontra-se integralmente contido nas

quintilhas: 1, 11, 25, 29, 37, 39, 40, 57, 60, 63, 64, 65, 66 e 67, numa distribuição inteiramente irregular à

primeira vista, mas Vasco Moura Graça vai demonstrar “que a arquitetura de Sobre os rios foi cuidadosamente

planeada e que a colocação das quintilhas correspondentes ao Salmo 163 desempenhou nela um papel

fundamental, embora não exclusivo”.

A Prof.ª Cleonice Berardinelli5, em Estudos Camonianos, distribui os 365 versos de Sobolos rios pelos

versículos da versão portuguesa do Salmo, da seguinte maneira:

1. Junto dos rios Babilônia, ali nos assentamos a chorar, lembrando-nos de Sião. (1-45) [ou seja, em

quintilhas, de 1 a 9].

2. Nos salgueiros que lá havia, penduramos as nossas cítaras (46-120) [ou seja, era quintilhas, de 10

a 24].

3. Os mesmos que nos tinham levado cativos pediam-nos que cantássemos (os nossos) cânticos. E os

que à força nos tinham levado dizia. “Cantai-nos um hino dos cânticos de Sião” (121-140) [ou seja, em

quintilhas, de 25 a 28].

5 BERARDINELLI, Cleonice. Estudos Camonianos. Rio de Janeiro. MEC – Departamento de Assuntos Culturais, 1973, p. 86.

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4. “Como cantaremos o cântico do Senhor em terra estranha?” (lhes respondemos) (141-180) [ou

seja, em quintilhas, de 29 a 36].

5. Se me esquecer de ti Jerusalém, ao esquecimento seja entregue a minha direita (181-190) [ou seja,

em quintilhas, de 37 a 38].

6. Fique pegada a minha língua às minhas fauces, se eu não me lembrar de ti, se não me propuser

Jerusalém, como principal objeto da minha alegria (191-280) [ou seja, em quintilhas, de 39 a 56].

7. Lembra-te, Senhor, dos filhos de Edom, os quais no dia (da ruína) de Jerusalém diziam: “Destruí,

destruí até os fundamentos” (281-310) [ou seja, em quintilhas, de 57 a 62].

8. Filha desgraçada (população) de Babilônia, bem-aventurado o que te der o pago do que nos

fizeste sofrer (311-325) [ou seja, em quintilhas, de 63 a 65].

9. Bem-aventurado o que apanhar às mãos, e fizer em pedaços contra uma pedra os teus filhinhos

(326-365) [ou seja, em quintilhas, de 6 a 73].

Qualquer uma das “distribuições” do Salmo no texto do poema serve para demonstrar como aquele

está inteiramente contido nesse, servindo-lhe de espinha dorsal e com determinados versículos a servir de

nódulos de desenvolvimento.

Segundo Vasco Graça Moura6, “basta a existência das redondilhas Sobre os rios que vão para

demonstrara que o platonismo de Camões foi intenso e extenso, pelo menos numa dada fase da sua vida”.

Essas redondilhas – forma ligada à tradição medieval – parecem representar na verdade uma tentativa de

síntese entre tradição poética peninsular e as novidades do Renascimento e da influência italiana. Note-se

que, a despeito de Platão ter irrompido tão fortemente na cultura renascentista, já havia uma tradição

platônica que remontava à Idade Média. Teria ocorrido uma revalorização do platonismo no Renascimento,

mas pode-se falar numa tradição platônica europeia contínua, chegando-se a admitir o pensamento da alta

Idade Média como forma cristianizada de platonismo. Essa persistência liga-se ao fato de nunca se terem

perdido as matrizes platônicas dos autores da patrística, sobretudo de Santo Agostinho, veiculadas através de

comentários de determinadas passagens das Escrituras e de certos Salmos.

Objetivamente platônicos vamos encontrar nas redondilhas dois traços dos mais marcantes: a teoria

da preexistência das almas a teoria da reminiscência, ambas inteiramente ligadas.

6 Ver 2, p. 15.

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André Cresson7 escreve a respeito da preexistência das almas:

Qu’estcedoncqui nos permetainsi de sortir de notre caverne et de nos erreurs? Une

particularitéremarquable de notrenature. Avant de naîtresurcette terre, nousavons, dans une

vieantérieure, contempléaumoinsenpartielesidéeseternelles. Nousenavonsgardéun souvenir

latent. C’estcequinouspermet de lesretrouver. La science n’est qu’unereminiscence.

Enfinetsourtout, comments’expliquercetteréminiscencequ’estlaconnaissance si l’âme ne

préexistaitpas à lavie?

É essa a pergunta que o poeta faz:

Mas ó tu, terra de glória, Se eu nunca vi tua essência Como me lembro na ausência? Não me lembras na memória Senão na reminiscência.

A pergunta contém implícita a afirmação de que já foi vista na essência a terra glória.

A Prof.ª Cleonice Berardinelli8 em seu estudo “Sobolos Rios: A Mudança da Mudança” mostra como

“a Babilônia temporal se insere na terra de dor, enquanto que a Sião-tempo passado, é substituída pela terra

da glória”. Assim, a um tempo mau, que é Babilônia, terra da dor, corresponde um tempo passado de

felicidade que pela reminiscência se recupera, como a terra de Glória para a qual se deseja voltar. Não deseja

o poeta ir um dia à terra de Glória, mas para lá voltar.

Não é logo, a saüdade Das terras onde nasceu A carne, mas é do Céu, Daquela Santa Cidade Donde esta alma descendeu.

É ainda dentro de uma visão platônica do mundo que se estabelecem múltiplas correspondências no

poema, entre realidades concretas do mundo objetivo e idealizações de um mundo espiritual.

O mais efetivo exemplo é o que já vimos: Sião = tempo passado, feliz, que será a terra da Glória, o

Céu, pátria natural de onde se desceu. Em contraposição, Babilônia = mal presente, terra do exílio, mundo

visível, a não pátria.

A carne, filha de Babel tão feia, terá de ser ferida pela disciplina para que saia dos vícios e se volva à

Carne divina (Verbum caro factum est). 7 CRESSON, André. Platonsavie, sonoeuvreavec um exposé de saphilosophie. Paris, Presses Universitaires de France. 1962. 8 Ver 4, p. 89.

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A própria passagem da flauta à lira, “A lira santa, e capaz / Doutra mais alta invenção” se inscreve

nesse movimento das coisas terrestres para as celestes. A flauta, instrumento de sopro é o instrumento

dionisíaco, da lascívia e da luxúria; a lira, instrumento de corda, é apolínea e pertence ao reino da razão e da

medida.

A esse propósito, Vasco Graça Moura9 cita J. B. Friedman, Orpheus in theMiddle Age, p. 81: “a lira

era um inimigo dos reinos baixos da terra e da água, onde a humidade faria com que as suas cordas

perdessem a tensão, assim como as preocupações materiais sobrecarregariam a alma e impediriam a sua

jornada para o Uno”. É ainda Friedman quem salienta que “os instrumentos de sopro eram caracterizados

pelo seu poder sobre as paixões concupiscentes e irascíveis, que prendiam à terra”. E finalmente São Gregório

de Nissa, que afirma ser a alma humana uma combinação de flauta e lira, tal como a própria alma é um

composto de razão, – sendo certo que

a música dos instrumentos de sopro deveria evitar-se, pois apelava às partes mais baixas da

alma. Essa afirmação ainda é de Friedman, citado por Vasco Graça Moura, que repete a lição

de São Clemente a partir de Friedman.

Para São Clemente, a flauta é instrumento de idólatras, que para os animais e para a parte

irracional do homem. Santo Ambósio, de acordo com Eric Routley, The Church and the Music,

citado por Vasco Graça Moura10, diz ser a flauta “o mais pernicioso dos instrumentos

musicais.

No poema, a flauta, “instrumento ledo” da “vida passada” fica pendurada do arvoredo representando

o poder do canto do poeta, semelhante ao de Orfeu no domínio da natureza, mas que não pode mudar, fazer

com que o vício se torne grau para virtude é a Graça, a mesma que faz com que

Amor, que tanto se preza, Suba da sombra real, Da particular beleza Para a beleza geral.

É a partir dessa “metanoia” que somente a lira passa a interessar para o canto livre, e não cativo e

aferrolhado, da “pátria minha natural”.

Sobre a oposição flauta X lira, veja-se o que já foi dito sobre a flauta e o texto de Vasco Graça

Moura11:

9 Ver 2, p. 244-47. 10 Ver 2, p. 246. 11 Ver 2, p.242.

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A oposição entre instrumentos, de corda e instrumentos, de sopro começa por ser mitológica e

está relacionada com o “duelo” entre Apolo e Mársias, de que resultou a vitória do deus

tangedor de lira e a derrota do sátiro tocador de flauta, de que há abundante tradução

iconográfica, direta e indireta, na arte do Renascimento.

No conto SuperFluminaBabylonis, Jorge de Sena12 mostra-nos Camões em Lisboa em companhia de

sua mãe após a volta das Índias. A vida nostálgica pontilhada de acontecimentos rotineiros como as visitas

semanais aos frades de São Domingos; as dificuldades para receber a tença que o rei ordenara lhe fosse dada;

os empregados de Rui Dias da Câmara que vêm, por ordem do patrão, cobrar ao poeta a tradução dos Salmos

Penitenciais que lhe fora encomendada; as presenças implícitas de Padre Manuel Correia e de Frei

Bertolameu Ferreira e, sobretudo, a velha mãe, cujo discurso, dominando todo o conto, reflete como o

espelho a luz do ocaso de seu grande filho. É nesse quadro que Jorge de Sena apresenta Camões a iniciar as

redondilhas de Sôbolos rios numa noite, à luz de uma pequena candeia. A narrativa ficcional de Jorge de

Sena é toda baseada em documentação da época, como o próprio contista demonstra em notas.

Vasco Graça Moura13 convence-se de que “tudo concorre a indicar terem as redondilhas sido

escritas em Lisboa e na última fase da vida de Camões”, o que deveria ter ocorrido em 1573, quando houve

grande enchente em Lisboa, segundo vem relatado no Memorial de Pero Roiz Soares. Prossegue Vasco Graça

Moura14:

Sendo altamente provável, como disse, que Sobre os rios tenha sido escrito precisamente em

1573/74 tornar-se-á, nesse caso, também possível pensar que os acontecimentos descritos por

Pero Roiz Soares tenham tido certo papel nessa criação camoniana. Sobre os rios é um poema

“biográfico” a vários títulos e em Camões tudo ou quase tudo, mesmo quando elaboradamente

transfigurado, parece ter a ver com experiências vividas...

Muito provavelmente foi depois que voltou para Portugal que Camões pôde tomar conhecimento de

dois textos que certamente o influenciaram: o Segundo Cancioneiro Espiritual, de Jorge de Monternor, e a

Imagem da Vida Cristã, de Frei Heitor Pinto.

Sobre a influência do primeiro, Graça Vasco Moura15, estabelece alguns paralelos com as

redondilhas camonianas:

12 Sena, Jorge de. Antigas e Novas Andanças do Demônio (Contos) 2.ª ed. Lisboa, Edições 70, 1981. 13 Ver 2, p. 81. 14 Ver 2, p. 83. 15 Ver 2, p. 37-39.

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“É muito possível que a sua precedência explique algumas configurações do texto camoniano cujo

movimento de integração dos versículos na reflexão poética é todavia diferente, mas em que certos aspectos

se tornam assim mais claros. Por exemplo:

a) De vista laciudad, ibanperdiendo, mas no de alma, triste la memoria, asuaflicionlafeanteponondo

(vv 22-224) Cf. a quintilhas 41 e 42 de Sobre os rios. b) Las músicas alegres, e instrumentos, emmedio de lossalzeslas colgamos, y alliplazeres, fiestas, y contentos. No la flautas y órganos, dexamos, maslas alegres causas que tuvinos deloshimnos, y cantos, que cantamos. Alliquedóelplazer, alliquesimos quedase entre lossauzes, y colgado pueslavision de paz perdida vimos.

(vv 122-130) Cf. entre outras, quintilhas, 12, (instrumento ledo da vida passada) e 24 (órgãos e flauta deixava), parecendo ser esta fonte da especificação dos órgãos pendurados nos salgueiros. c) Entonceel criador, hecho criatura, nos mandará losorganos, tomenos, queenlossalzes colgamos, de amargura La gracia que perdimos, entendemos, porestos instrumentos, que colgamos, la qual por medio de él,cobrar podemos.

(vv. 284-239) Cf. quintilhas 50, 51 e 54, “quanto àção da graça e ao tomar da lira dourada para só cantar Jerusalém”.

O poema de Montemor foi incluído no Segundo Cancioneiro Espiritual, editado em Antuérpia, 1558,

quando Camões andava, com toda probabilidade, pelas partes do Oriente. Dificilmente o livro lhe teria

chegado às mãos naqueles confins, de resto, o livro foi proibido no ano seguinte, o que tornaria mais difícil

ainda sua “exportação”. Daí podermos admitir que Camões deve ter tomado conhecimento do texto de

Montemor quando de regresso de Lisboa.

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Mas é sobretudo no livro de Frei Heitor Pinto16, publicado pela primeira vez em 1563, que parece

residir a influência mais apreensível. No “Diálogo da Vida Solitária”, Capítulo III, Frei Heitor Pinto recomenda

que da Babilônia dos trabalhos corporais, a alma suspire pelo espiritual descanso de Jerusalém, e mais, que se

dê o salto da quietação espiritual para o “repouso eterno daquellaJerusalém soberana, q já nunca terá fim”.

Também a obra de Frei Heitor Pinto é profundamente marcada pela influência do platonismo.

Dizem Antonio José Saraiva e Oscar Lopes17: “o autor é um platonizante convicto que cita, constantemente e

com reiterados elogios, Platão e discípulos seus, como Plotino e o pseudo Areopagita... No diálogo “Da

Justiça”, capítulo IV, desenvolve expressamente a teoria platônica das Ideias, que nos permite “pintar e

descrever um princípio justíssimo e perfeitíssimo, não como retrato dos que aí há, mas como ideia que em

nossa alma conhecemos”. E dentro da mesma ideologia, “as cousas do mundo não são substâncias estantes,

mas figuras que passam”.

No “Dialogo da vida Solitária”, Frei Heitor Pinto caracteriza Jerusalém com sintagmas que remetem

à ideia de paz, quietude e segurança, enquanto Babilônia se afirma como agitação, inquietude e insegurança.

Jerusalém Babilônia Visão de paz espiritual descanso formosura da espiritual quietação porto seguro quietação que nasce da vida solitária

corporais trabalhos vida inquieta o mundo e seus enganos embaraços e torvações duvidosas mudanças bravos movimentos desfeitas tormentas perigosas tempestades mar tempestuoso vida tumultuosa

O texto de Frei Heitor Pinto se prende à técnica medieval da pregação, onde o paralelismo entre a

vida física e a vida moral é normalmente o eixo de imagens, comparações e metáforas. A tradição medieval

da pregação através do exemplo estabelecimento de correspondências entre realidades materiais e o mundo

espiritual está cabalmente representada na obra Horto do Esposo, entre o final do século XIV e princípio do

século XV.

16 PINTO, Frei Heitor, Imagem da Vida Chistam, ordenada por diálogo como membros de sva composiçam. Composto por... Lisboa, Typographia. Rollandiana, 1843 17SARAIVA, Antonio José & Lopes, Oscar. Historia da Literatura Portuguesa. Porto, Porto Editora Ltda., s.d., p. 300-301.

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A ação redentora de Cristo, a única que pode recuperar a salvação, representada por Sião, é

apontada tanto em Frei Heitor Pinto quanto em Camões. Ambos conferem ao tema hebraico dimensão

cristológica e soteriológica: através de Cristo se volta a Sião. No entanto a imagem da redenção é diversa no

escritor e no poeta.

Em Frei Heitor, Cristo é o Sol que tira a alma da frialdade do pecado para levá-la ao fervor do amor

&assi a alma da frialdade do pecado mortal torna em fervor damor. Mas isto nam pode ser

senam batendo nella os rayos da justiça: quero dizer q per si não pode sair do pecado mortal

sem fauor de Christo nosso verdadeiro Deos, sol diuino, vencedor & desbaratador das treuas

interiores.

Em Camões, a redenção é enfocada através da transposição da imagem do Salmo: “Bem-aventurado

o que apanhar às mãos, e fizer em pedaços contra uma pedra os teus filhinhos”, passando a pedra referida no

Salmo a ser Cristo, a pedra angular (cf. 1.ª Epístola de São Pedro 2, 4-9) contra a qual se devem lançar os

vícios e os “pensamentos recentes” para os desfazer.

No entanto em outros diálogos da Imagem, Frei Heitor lança mão da imagem de Cristo como pedra:

no “Diálogo da Tribulação”: a firme pedra que é Cristo; no “Diálogo da Verdadeira Amizade”: a pedra firme

que é Cristo; no “Diálogo da Discreta Ignorância”: aquela firme pedra que é Cristo; e no “Diálogo dos

Verdadeiros e Falsos Bens”:

E aos vinte e oito capítulos introduz Deus Padre dizendo que havia de enviar uma pedra

aprovada e de canto, e preciosa, para fundamento da Igreja Católica, significada por Sião. E

esta é a pedra em que tinha dito que os judeus haviam de embicar e cair, que é Cristo nosso

Redentor.

Em As Segundas Três Musas18, D. Francisco Manuel de Melo trata o tema da oposição Sião /

Babilônia a partir das redondilhas camonianas, e não diretamente do Salmo 136.

Ao tratar das Cartas de D. Francisco Manuel de Melo, António Correia de Oliveira19 situa

resumidamente o Canto de Babilônia, do poeta seiscentista, em face das redondilhas de Camões:

A carta X foi escrita para endereçar a D. Francisco de Sousa o Canto de Babilônia

(denominado Saüdades no manuscrito da casa Silvã), um dos mais belos poemas de D.

Francisco Manuel. Camões aproveitara a identidade da sua situação moral com a dos judeus

presos em Babilônia e saudosos da pátria, para traduzir, no quadro do salmo CXXXVI, a

saudade da felicidade passada, em duas fases – a da mocidade e a do céu –, e o seu anseio

18MELO, D. Francisco Manuel de. As Segundas Três Musas. Ensaio crítico, seleção e notas de António Correia de A. Oliveira. Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1944. 19 Ver 16, p. 69-70.

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místico para Deus. D. Francisco Manuel tomou o tema por Camões elaborado e parafraseou-o

ao gosto barroco, em estilizações de motivos e divagações moralistas, para dar também

expressão a um estado de poesia, que, como no poema camoniano, se eleva ao verdadeiro

estado de oração. Há no divino esplendor de Sôbolos rios mais frescura de emoção, mais

intelectualização e mais sublimidade, mas no Canto da Babilônia há uma melancólica

dolência e uma ansiosa religiosidade que nos envolve de místico enlevo, como que o ressoar

plangente do um canto litúrgico nas abóbadas de um templo.

Merece relevo, num rápido paralelo entre o tratamento Camoniano e o do poeta barroco, a diferença

das preocupações maiores dos dois poetas. Enquanto Camões faz de Sôbolos rios um poema de conversão, de

verdadeira metanoia, como se se tratasse de um salmo penitencial, através do qual a alma se voltasse inteira

para Deus em busca da recuperação da graça perdida – a busca de Sião a partir do exílio em Babilônia.

Francisco reaproveita o terma como de exposição de seu pensamento religioso e moral, mais ainda o segundo

que o primeiro. A tônica do “Canto de Babilônia” reside sobretudo na consideração da efemeridade da vida,

dos prazeres e do tempo. Ou mais que isso, o contraste entre a repetição cíclica da natureza a mudança

definitiva da vida humana.

Passa um dia, o outro vem, tal como essoutro o passado. Não é o tempo o mudado: um foi bom, e o outro também; ogôsto, si, que é trocado. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36. Torna a vir outro janeiro eisêste como aquêle ano, ora ordem por derradeiro; porém no gôsto ou no engano nenhum num dia parceiro.

A grande dor é causada pelo fato de querermos nos estabelecer numa felicidade nesta vida, que não

tem “hora de firmeza” e é por nós tão buscada e acreditada; em resumo, fazermos de Babilônia Sião,

tomando as coisas humanas como um fim em si, sem nos determos em sua contingência. Só o amor divino,

aquele que não consente “desejo nem esperança”, pois que é um fim em si, é que nos ajuda a vencer o tempo

e a mudança. É com o pensamento guiado pela virtude divina que o homem ama o que deve amar e cativa “o

fero bruto da liberdade atrevida”. A vitória sobre as fantasias e os sentidos, que se obtém com o auxílio da

graça, dá-nos a esperança de chegar a Sião.

O poema termina no centésimo quinteto com o final da prece ao “Alto Senhor, sempiterno”:

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E, se eu, por vida cruel, idolatrar contra ti, ó Jerusalém fiel, dure eternamente em mi a confusão de Babel!

em que “idolatrar contra ti” remete ao quarto verso do quinteto 97: “manda afastar a lembrança”, isso é, voltar

à lembrança a Babilônia é idolatrar contra Jerusalém.

A preocupação didático-moralista do poeta vem expressa também extratexto, na “Carta X”, através

da qual o “Canto de Babilônia” é enviado a D. Francisco de Sousa. Veja-se o quinteto I:

Cantar mal, e porfiar, dito foi dos nossos velhos, contudo o quero provar, pelo que ganho em vos dar meia dúzia de conselhos.

Procurou-se mostrar neste estudo como um texto poético sagrado do povo hebreu, traçado a partir

de um fato histórico nacional, tem seu conteúdo ampliado na literatura da Península, atingindo seu ponto

culminante em Camões. Tendo muito provavelmente conhecido o tratamento dado anteriormente por outros

escritores – reporta-se aqui sobretudo a Jorge de Montemor e a Frei Heitor Pinto –, Camões parafraseia o texto

hebraico como oportunidade para uma profunda revisão do sentido maior de sua vida, num momento em que

a morte se aproxima e acelera-se a decadência de Portugal; a um Portugal que já havia sido Sião, via suceder

Babilônia. Nesse final de uma vida de aventuras e amores frustrados, como já mostrara ter sentido no final dos

Lusíadas, o poeta sente que o momento atual da Pátria não corresponde às grandezas do passado, já contadas

com tanto engenho e arte. Na Babilônia de um tempo que se impôs, de “uma austera, apagada e vil tristeza”,

o poeta chora a saudade de uma Sião que poderia ter sido. Num processo de sincera penitência e conversão,

ele volta-se através do pensamento platônico a Cristo como uma única força capaz de recuperar para si a

glória perdida de Sião, anulando, também em Cristo, os últimos laços que o prendiam a Babilônia.

No rastro de Camões viu-se ainda como o tema foi tratado por D. Francisco Manuel de Melo, de

uma forma talvez mais ampla e afastada do motivo inicial, mas também com muito menor envolvimento

pessoal, paixão e profundidade. O poeta seiscentista vale-se do motivo bíblico e do tratamento que lhe deu

Camões para desenvolver, dentro dos moldes conceptistas de sua época, uma longa pregação moralista onde

nem sempre as felizes imagens barrocas e os fatos reais de sua biografia evitam as eventuais quedas na

monotonia.

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A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Edições Paulinas, 1985.

BERARDINELLI, Cleonice. Estudos Camonianos. Rio de Janeiro, MEC – Departamento de Assuntos Culturais, 1973.

CRESSON, André. Platon, sa vie, son oeuvre avec un exposé de sa philosophie. Paris: Presses Universitaires de France, 1962.

MELO, D. Francisco Manuel de. As Segundas Três Musas. Ensaio crítico, seleção e notas de Antonio Correia de A. Oliveira. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1944.

MOURA, Vasco Graça. Camões e a Divina Proporção. Lisboa: s. ed., 1985.

PINTO, Frei Heitor. Imagem da Vida Christam, ordenada por diálogos como membros de sva composiçam. Compostos... Lisboa: Typoraphia Rollandiana, 1843.

SARAIVA, Antônio José; LOPES, Oscar. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto Editora Ltda., 1944.

SENA. Jorge de. Antigas e Novas Andanças do Demônio (Contos). 2. ed., Lisboa: Edições 70, 1981.

______________________________________

Data de submissão: dez./2013. Data de aprovação: dez./2013.

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Bruno Fregni BASSETTO1

RESUMO A orientação filológica, haurida pela autora junto aos próceres da Filologia Românica dos séc. XIX e XX, foi aplicada à língua portuguesa com inteligência e arte. É sabido que muitos eminentes romanistas dedicaram pouco espaço ao português, espaço esse ocupado em grande parte por Carolina. Este trabalho destaca alguns aspectos de sua valiosa contribuição. PALAVRAS-CHAVE: português, filologia, Carolina Michaelis.

RÉSUMÉ L’orientation philologique, que l’auteur a trouvée auprès des figures les plus éminentes de Philologie Romanique des s. XIX et XX, a été appliquée à la langue portugaise avec beaucoup d’intelligence et d’art. On sait que plusieurs romanistes, très connus, ont donné bien peu d’attention au portugais; une grande partie de ce creux a été remplie par Caroline. Ce travail cherche à rehausser quelques aspects de sa contribution précieuse. MOTS-CLÉ: portugais, philologie, Caroline Michaelis.

1 Professor Titular (aposentado) de Filologia Românica, junto ao Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP).

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Com toda consideração pelas numerosas obras de Carolina Michaelis, fiz a opção de abordar as

Lições de Filologia Portuguesa, neste simpósio, sobretudo pela grande contribuição que deu aos estudos

filológicos da língua portuguesa. Irmã, digamos, menor, no contexto românico no início do séc. XX, a língua

portuguesa não era estudada de modo mais profundo e amplo pelos grandes romanistas da época. Veja-se,

v.g., a forma apresentada pelo REW (4875) lãa, sem a crase das vogais, na 5ª edição de 1972, quando a única

forma corrente é lã desde o séc. XVI. Carolina Michaelis viveu na época de Friedrich Diez, cujos critérios de

avaliação das línguas românicas são eminentemente geográficos, políticos, literários e culturais, os quais não

conferiam destaque maior ao pequeno Portugal, enquanto seus territórios ultramarinos não tinham maior

expressividade. Despontavam, nessa época em Portugal, os primeiros filólogos, como Francisco Adolfo

Coelho, Augusto Epifânio da Silva Dias, Goncalves Viana e José Leite de Vasconcelos. Ressalte-se que esse

último, médico de formação, defendeu sua tese de doutorado em Paris, com o conhecido Esquisse d‘‘une

dialectologie portugaise, em 1901, ano em que também publicou Estudos de filologia mirandesa. De 1903 a

1909, lecionou na Biblioteca Nacional de Lisboa, cujas preleções foram publicadas, em 1911, na obra Lições

de Filologia.

Nesse cenário filológico em Portugal, insere-se a vinda de Carolina Michaelis de Vasconcelos. É

preciso não relacioná-la com José Leite de Vasconcelos, com o qual não tem qualquer relação de parentesco.

O sobrenome de nossa autora, como é sobejamente sabido, lhe adveio de seu casamento com Joaquim

António da Fonseca Vasconcelos, musicólogo e historiador de arte, em 1876, adquirindo a cidadania

portuguesa e passando a morar na cidade do Porto. Nascida e criada em ambiente favorável, teve o exemplo

do pai, o Dr. Gustav Michaelis, professor de matemática e dedicado aos estudos da ortografia e da

estenografia, era muito bem relacionado com os meios científicos e institucionais da Prússia; foi também, de

1855 a 1889, diretor do Gabinete de Estenografia da Câmara dos Pares do Reino. Entre os cinco irmãos de

Carolina, destacaram-se Karl Theodor Michaelis, pedagogo, que exerceu altos cargos na administração

escolar de Berlim no tempo do Império; e Henriette Michaelis, lexicógrafa e autora dos dois volumes do

Dicionário Alemão-Português e Português-Alemão, ainda hoje valiosos e acessíveis. Carolina completou os

cursos básicos na Luisenschule dos sete aos dezesseis anos; estimulada pelo professor Carl Goldbeck, da

mesma escola, a quem muito interessavam os estudos hispânicos, dedicou-se a eles com afinco. Em vista

desses fatos, ainda que muito resumidos, não parece adequado afirmar, sem mais, que Carolina foi

autodidata, em que pesem suas palavras no Discurso de Apresentação, na Sala dos Capelos em 19 de janeiro

de 1912: “À força tive de ser autodidata, tendo por mestres apenas livros. E os livros, eloquentes embora em

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sua mudez, não nos ensinam a discursar.” Realmente, mesmo não ensinando a discursar, os livros fornecem o

conteúdo, certamente mias importante que sua expressão. Além disso, sempre buscou informações e

orientações junto a destacadas personalidades de seu tempo, segundo comprovam sua farta correspondência

com Eugênio de Castro, Antero de Quental, João de Deus de Nogueira Ramos, José Leite de Vasconcelos,

Teófilo Braga, Sousa Viterbo, Alexandre Herculano, Antônio Egas Muniz, Menéndez y Pelayo, Ramón

Menéndez Pidal e outros não peninsulares. Já era então reconhecida na Alemanha como especialista em

assuntos portugueses, castelhanos e catalães.

Com o casamento e a mudança para Portugal, Carolina dedicou sua inteligência brilhante e grande

aptidão filológica aos assuntos lusos, cujo resultado maior foi a edição crítica e comentada, em dois volumes,

do Cancioneiro da Ajuda; a publicação demorou 27 anos, só concretizada em 1904 em Halle. O respectivo

Glossário saiu em 1920 na Revista Lusitana, XXIII, p.1-95. Contudo, suas atividades filológicas estenderam-se

aos campos da literatura medieval e clássica, camoniana, vicentina, mirandina e romancista. Colaborou com

artigos em jornais importantes da época, como O Comércio do Porto e Primeiro de Janeiro. Dirigiu a revista

Lusitânia, publicada em Lisboa, de 1924 a 1927, com dez números. Apesar da resistência do grupo

conservador, que se opunha à presença de mulheres, Carolina e Maria Amália Vaz de Carvalho tornaram-se

membros da Academia de Ciências de Lisboa.

Nesse cenário de geral consideração e respeito pela incontestável capacidade científica e filológica,

o governo português convidou Carolina Michaelis a assumir o cargo de professora na Faculdade de Letras de

Lisboa; desejando, porém, continuar a residir no Porto com a família, solicitou e obteve sua transferência para

a recém-criada Faculdade de Letras de Coimbra. Ia do Porto a Coimbra toda semana, permanecendo na

Faculdade de segunda a quinta-feira. Foi ali que ministrou Lições de Filologia Portuguesa nos anos de

1911/12 e 1912/13, com grande número de participantes.

Curiosamente, Lições de Filologia Portuguesa não constam na extensa relação de obras de Carolina.

O fato é que a autora não escreveu as Lições para publicar, mas talvez apenas como guia para a exposição

oral, o que se pode inferir de seu tom coloquial, da admirável coesão interna, dos exemplos aduzidos e outros

aspectos. Mesmo o exemplar disponível entre nós foi impresso no Porto, editado por Dinalivro e distribuído

no Brasil pela Martins Fontes Edit., mas sem qualquer indicação de data. Não é possível também conhecer o

autor das notas iniciais de rodapé, de que não há qualquer explicação no volume. Seria interessante conhecer

o roteiro seguido até a publicação, tanto mais que a própria Carolina não pôde fazer possíveis revisões,

conforme sua diligência germânica costumeira. Desse modo, explicam-se pontos obscuros ou imprecisos,

aventados por vários comentaristas.

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O curso segue um roteiro lógico, dentro de uma visão realmente românica em que se insere o

português. Parte dos primórdios da história de Portugal, desde os celtibéricos, os fenícios, os gregos, lígures,

cartagineses e celtas; em seguida, resume as conquistas romanas e a implantação do Império e seu

esfacelamento com as invasões dos povos germânicos, dos árabes e dos mouros. Mostra a expansão do

português e de outras línguas românicas com as grandes navegações do séc. XVI. Dessa história externa, entra

na interna: as línguas românicas derivaram-se não do latim clássico, mas do latim dito vulgar, dos legionários,

dos colonos, dos viajantes, só falado, e por isso de conhecimento só indireto. Nessa primeira aula, a Mestra

apresenta uma visão geral da problemática românica com o foco centrado no português. Nas lições seguintes,

aborda os períodos e as características do português arcaico, com argumentos e periodização geralmente bem

aceitos; faz a distinção entre palavras populares (que preferimos denominar “herdadas”), eruditas e

semieruditas, sempre indicando exemplos das respectivas fontes da literatura portuguesa. Na Lição IV, trata

das formas divergentes ou alotrópicas e faz considerações sobre o problema ortográfico, criticando as grafias

estranhas à língua, sobretudo as sem qualquer fundamento etimológico. Volta ao tema no apêndice da Parte I,

em que expõe, em 23 páginas, sua posição totalmente favorável e a que se deve visar com a reforma. Nas

Lições V a X, mostra a produtividade da língua na utilização dos recursos da própria língua, através do

diversos processos de composição e derivação, sempre com muitos exemplos, quer isolados, quer em textos

de várias épocas.

A Parte II leva o título de Filologia Portuguesa. Revelando ser de fato uma filóloga, Carolina busca as

raízes do termo filologia, praticando o que afirma: “O filólogo deve sempre historiar e, comparando,

retroceder até chegar às origens, aos elementos primários”. (Lições, p. 126) Nas Lições I e II, desenvolve com

maestria as noções etimológicas e semasiológicas e em seguida a história da filologia, com detalhes muito

interessantes. Com muitos exemplos, expõe a grande produtividade das raízes gregas (ϕιλ-eλογ-) que

formam o vocábulo, em admirável amostra de seu conhecimento do grego clássico, para chegar a filólogo.

Por estar ela entre os poucos que buscaram definir o termo, parece conveniente aprofundar um tanto

essa busca, uma vez que se encontram conceituações díspares a respeito. Parece não haver dúvida de que o

termo ‘filólogo‘ precedeu o substantivo ‘filologia‘, assim que filólogo deve ser entendido, inicialmente, com os

significados primeiros de seus componentes, ou seja, ‘amigo da palavra‘, em que λόγος, a palavra,é a

exteriorização do νοϋς, a inteligência. Vocábulos semelhantes, como ϕιλόλαλος, com conotação

pejorativa de ‘tagarela‘, λογόϕιλοςμισόλογος, ‘que odeia a palavra‘, πολύλογος, ‘que fala muito‘,

βραχύλογος, ‘de fala curta‘, e outros, supõem claramente que λόγοςdeva ser entendido no sentido

etimológico de ‘palavra‘ e posteriormente em seus inúmeros desdobramentos polissêmicos, registrados nos

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dicionários. Nessa linha, filólogo é aquele apreende a palavra, a expressão do pensamento alheio e com isso

adquire conhecimentos, cultura e aprimoramento cultural. É sabido que, pelo menos até ao séc. V a.C., essa

palavra era eminentemente oral, obviamente falada e ouvida; todo ensinamento era feito por esse caminho;

basta lembrar a escola peripatética de Sócrates. Foi nesse contexto histórico que surgiu o termo. Portanto, o

filólogo então era falante ou ouvinte, detalhe, que parece importante, ausente na exposição de nossa Autora.

Quando a palavra passou a ser também escrita em papiros e pergaminhos, o filólogo era o amigo da

palavra instrutiva tanto falada como escrita. Em seguida, por ser a palavra escrita mais acessível por sua

permanência, ainda que restrita a um grupo de início mais reduzido, o termo ‘filólogo‘ passou a designar, em

especial, os que escreviam ou liam agora a palavra escrita. Com isso modificou-se, em parte, o significado

inicial do termo de “aquele que gosta de aprender ouvindo”. Posteriormente, o termo designa os detentores de

grandes conhecimentos, os expoentes em qualquer área do conhecimento. Assim são chamados homens

eminentes, como muito bem lembra Carolina, tais como, entre os gregos, Eratóstenes de Cirene, o sábio mais

versátil de seu tempo e, entre os romanos, Ateius Praetextatus, amigo de Salústio, que atribuiu a si mesmo o

designativo de philologus “quia multiplici variaque doctrina censebatur”, segundo informa Suetônio. Esse

historiador registrou ainda uma carta de Ateius ao amigo Herma, em que diz: “Hylen nostram aliis memento

commendare, quam omnis generis coegimos, uti scis, octingentos in libros.” (De gram. et rhet., 5, 10)

Sem pretensão à exatidão, foram registradas 56 ocorrências de filólogo em autores gregos e latinos

desde Platão, Aristóteles e Plotino até Estobeu (450-500 d.C.); menos frequente é ‘filologia’ e bastante raro e

tardio é o verbo ‘filologar’, como em Arriano (séc. II d.C.) e em Ateneu (c. de 200 d.C.), sempre com o

significado de ‘dissertar com erudição’, um parassintético totalmente culto. Nessas ocorrências, filólogo pode

ser entendido, também pelo contexto, como ‘amigo do estudo ou do conhecimento’, ‘amante da leitura‘ e,

algumas vezes, ‘amigo da palavra falada’, remetendo ao significado original. Quase sempre, porém, o termo

está relacionado a homens de letras e a autores de qualquer tipo de obra escrita, significado que ficou

subjacente e aflorou com o Renascimento, quando o termo ‘filólogo’ volta a qualificar os expoentes

intelectuais, como, por exemplo, Guillaume Budé com seu De Philologia Libri II (1532). Nesse período, todos

os que se dedicam ao estudo da linguagem são ditos filólogos, fixando-se então o valor semântico comumente

atribuído ao filólogo: pesquisador da ciência da linguagem e da literatura a partir, sobretudo, dos textos.

Nessa perspectiva, são compreensíveis definições como, entre muitas outras, a de August Boeckh (1758-

1867): “Philologie ist die Erkenntnis der Erkannten.” Filologia é o conhecimento do conhecido. Ou a de Ernest

Renan: “La philologie est la science des produits de l’esprit humain” (L’avenir de la Science, p. 128).

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A Lição III expõe posições diversas sobre terminologia. Francisco Adolfo Coelho pretendeu

estabelecer sutis distinções entre filologia e glotologia; chega a afirmar que filologia não é estudo da língua,

mas glotologia, no que é refutado por Carolina, pois não há clareza na delimitação do conteúdo dos dois

possíveis campos e o próprio Coelho não os distingue em suas obras e cursos. Debatem-se também as

questões, conforme as denominações que lhes dá a Autora e correntes na Alemanha, do alt-philologue, que

pesquisa o mundo clássico até o renascentista, e do neu-philologue, ao qual cabe investigar o mais recente.

De fato, não se vislumbra uma razão para tal distinção; a definição dada de filologia engloba, de modo

eficiente, qualquer atividade do ramo; não importa se se trata do monolinguismo dos gregos ou dos romanos,

que não se interessavam por outras línguas, ou se o objetivo filológico seja uma só ou um grupo ou a

totalidade das línguas, suas respectivas descrições estruturais, sua história externa ou suas literaturas.

Modernamente, a filologia recorre a qualquer ciência que possa oferecer subsídios para o esclarecimento de

algum problema da linguagem; afinal, todo conhecimento é expresso pelos mesmos canais. Com esses

esclarecimentos, ampliou-se consideravelmente a compreensão filológica dos problemas da linguagem,

demonstrando a desnecessidade de novas denominações ou distinções. Carolina encerra a Lição, afirmando:

“Para mim, filologia portuguesa é o estudo científico, histórico e comparado da língua nacional em toda a sua

amplitude, não só quanto à gramática (fonética, morfologia, sintaxe) e quanto à etimologia, semasiologia etc.,

mas também como órgão da literatura e como manifestação do espírito nacional.” (p. 156)

As Lições IV a VII tratam da classificação das línguas do mundo e das línguas românicas. Destaque-

se a visão globalizante da Autora, sempre buscando fornecer aos alunos uma visão completa do assunto,

como a classificação de duas mil línguas, presumivelmente existentes no mundo, de Franz Nikolaus Finck e

as contribuições de Schlegel, Bopp, Pott, Steinthal e Friedrich Müller. Confessa, porém, que uma classificação

completa está ainda distante. Quanto à classificação das línguas românicas, depois de uma breve

contextualização histórica das conquistas e da implantação do latim nas diversas regiões, distingue a România

de hoje do Orbis Romanus Antiquus. Contudo, o conceito de România apresentado não é o mesmo que

temos hoje. Não é apenas “o nome dado ao conjunto das línguas que são filhas da latina” (p. 190); entre nós,

entende-se por România o conjunto dos territórios onde se falou latim ou onde se fala uma língua românica.

Desse modo, distinguem-se historicamente três Românias: a Antiga, que corresponde ao que Carolina chama

Orbis Romanus Antiquus, em que se falou ou se usou de alguma forma o latim; a Medieval, bastante reduzida

pelas perdas dos territórios nos quais o latim não conseguiu lançar raízes mais profundas e, em consequência,

não surgiu uma variedade românica; e a România Moderna, englobando regiões de todos os continentes,

onde se fala uma língua românica por cerca de um bilhão e meio de falantes, segundo dados da ONU.

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Entretanto, a biografia da palavra ‘românico‘ é completa e convincente, desde sua ocorrência em De re

rustica, de Catão, em que significa ‘feito em Roma‘, ou ‘ao modo romano‘ ou ‘trazido de Roma‘ e deixando

muito clara a distinção entre ‘romano‘ e ‘românico‘ nas acepções atuais. Relata ainda um levantamento das

variações desses termos em numerosos autores, até chegar à fixação do termo.

Mantendo a divisão de România Oriental e Ocidental, feita por F. Diez, Carolina começa com o

romeno: apresenta brevemente sua história externa, os vários dialetos (mácedo-romeno, megleno-romeno e o

ístrio-romeno); fala mesmo de daco-romeno e não mais valaco, conforme o denominara Diez, e indica

algumas de suas características morfológicas e sintáticas. Do dalmático, especificamente do veglioto, fala

muito pouco, mas cita a grande obra de Matteo Bartoli, Das Dalmatische. Na apresentação das línguas do

Ramo Ocidental, segue a posição de Meyer-Lübke, indicando que as duas gerações, que o separavam de F.

Diez, haviam feito consideráveis progressos no reconhecimento de quais seriam as línguas românicas. Assim,

trata do rético e de suas três variedades, do italiano e seus dialetos; do sardo diz pouco e não cita suas

variantes, mas pelos exemplos dados, pode-se inferir que se refere ao logudorês. Comenta o francês e o

provençal, já denominado também occitano na França, o catalão (estranhamente chamado também

catalanesco), o espanhol ou castelhano e o português na Ibéria. Também é lembrado o franco-provençal,

como não constituindo uma língua nas classificações de Diez, Meyer-Lübke e no Grundriss der Romanischen

Philologie de Gröber. Quanto ao gascão, reconhecido como língua, v.g., por Carlo Tagliavini e Gerhard

Rohlfs, não há qualquer menção.

Contudo, sua exposição dá sempre uma visão completa: fala da história externa, junta datas, sempre

alguma característica mais marcante na história interna de cada idioma, cita os primeiros documentos e

delineia o trajeto das respectivas literaturas. Não ficava, porém, na teoria; antes de ler, traduzir e comentar Os

Juramentos de Estrasburgo, considerado o primeiro documento numa língua românica, faz a história completa

dele com datas, nomes, motivos e locais; analisa e traduz por frase, apoiando-se nos trabalhos anteriores de

Diez, Gaston Paris, Stengel, Cornu, Meyer-Lübke, Gröber, Jasmund e outros. Por fim, explica os metaplasmos

já havidos e os ainda em curso, no confronto com o francês moderno, demonstrando real conhecimento e

perspicácia, qualidades adquiridas nas transcrições de antigos documentos portugueses, sobretudo na edição

crítica e comentada do Cancioneiro da Ajuda, publicada em Halle, em 1904, e completada, em 1920, pelo

Glossário, saído na Revista Lusitana, Vol. XXIII, p. 1-95.

Ainda que tomando um atalho em relação às Lições e reconhecendo que os pioneiros e

desbravadores podem enveredar por caminhos enganadores, vale a pena lembrar uma tentativa de nossa

respeitável autora, exposta no Glossário do Cancioneiro da Ajuda: apoiando-se em ‘desleixo‘ e ‘desleixado‘,

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deduziu o verbo ‘deixar‘ de laxare + pref. de- > *delaxare > delaixar > deleixar > deeixar > deixar. No

português essa cadeia evolutiva é perfeitamente possível. Comparando-se, porém, com as formas

correspondentes das outras línguas românicas, encontradas no REW (4955): rom. a lasa; it. arc. e sul lassare;

mod. lasciare; log. lassare; eng. lascher; friul. lasá; fr. laisser; prov. laisar; cast. arc. lexar; port. arc. leixar;

enquanto em todas essas línguas as formas se ligam claramente a laxare, as correspondentes no sicil. dassari;

no gasc. daxá, dexá e dixá; cat. dexar; cast. mod. dejar e port. deixar supõem outra forma, daxare. A cadeia

evolutiva para o nosso ‘deixar‘, proposta por Carolina, seria plausível caso fosse ela documentada com a

síncope do /-l-/, *‘deeixar‘, que a explicaria, mas constituiria um problema quando confrontada com as outras

línguas com /d-/, nas quais o /-l-/ intervocálico não sofre síncope. É sabido que os sabinos, povo importante na

formação da população do Império, trocavam o /l/ pelo /d/, como em odor – olor; adipes – alipes; lacrima –

dacrima; língua – dingua; solium – sedes, sem alteração semântica. Sob essa influência sabina, talvez também

grega pelo menos em parte, entre as classes cultas laxare persistiu nos territórios em que se encontra a forma

com /d-/ e, no substrato do latim vulgar, daxare, nas regiões em os sabinos teriam fornecido um contingente

maior de colonos. Considerando que deixar só é registrado em português a partir do séc. XV, parece lógico

concluir que deixar pertencia à língua falada e leixar ao uso mais culto, que acabou por se arcaizar. Desleixo

e derivados são mais antigos e provêm de laxare, mas com outro prefixo dis- ou de + ex. O caráter mais

erudito de laxare se encontra ainda nos derivados modernos, como laxação, laxante, laxativo, laxidão e

outros.

No fim da Lição VIII, apresenta um quadro interessante das “variantes ultramarinas das línguas

românicas e dialetos crioulos” em todos os continentes. Detalha a expansão das línguas românicas no mundo,

dando uma visão completa daquilo que denominamos ‘România Moderna‘. Trata, com muita segurança, das

influências ‘indígenas‘ no vocabulário das línguas românicas transplantadas, da modificação ou supressão de

fonemas difíceis; entretanto, não poucas colocações de Carolina se arcaizaram depois de um século, dadas as

profundas alterações sociais, políticas e econômicas ocorridas, causadas por fatores vários, dentre os quais é

preciso ressaltar a facilidade de comunicação dos meios atuais. As mudanças tornaram-se muito rápidas,

alterou-se bastante a visão do mundo, o que obviamente apresenta reflexos nas línguas e, particularmente, nos

ditos dialetos crioulos.

Um autêntico tratado sobre o latim vulgar e suas características fonéticas, morfológicas e sintáticas e

até seu acento, as causas e a cronologia do surgimento das línguas românicas são os assuntos abordados nas

quatro últimas Lições. Em vários tópicos, aborda a questão da contribuição dos povos germânicos na

formação das línguas românicas, que teria sido tão importante quanto a herança dos substratos dos povos

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romanizados; implicitamente parece aceitar essa tese, ainda que essa influência se restrinja ao léxico, a

algumas influências fonéticas, pouquíssimas morfológicas e praticamente nenhuma na sintaxe. Nesse aspecto,

Carolina revela ter a mesma visão apresentada em Die Ausgliederung der Romanischen Sprachräume de

Walter von Wartburg, cuja aceitação não tem sido pacífica e mesmo contestada por romanistas respeitáveis.

No geral, a exposição é clara, com muitos detalhes adequados e incursões em assuntos afins, que

deviam interessar aos alunos; há busca frequente de diálogos com os participantes, indicações de lugares,

territórios e datas, além de dados e fatos pessoais, que certamente tornavam suas aulas leves e agradáveis.

Entretanto, há nessas aulas alguns pontos que merecem reparo. Assim, nota-se certa imprecisão e mesmo

confusão na designação da Autora relativa ao latim falado pelo povo em geral. No período do séc. I a.C. e I

d.C., havia em Roma e, consequentemente, no Império, três variedades ou três normas da língua. O sermo

litterarius ou classicus, somente escrito, altamente estilizado, puro, artístico e sintético, cujo ápice foi atingido

no chamado período áureo da literatura latina, entre 81 a.C. e 14 d.C., tanto na prosa com Cícero, César e

Salústio, como na poesia, com Virgílio, Horácio, Ovídio, Lucrécio e Catulo. Quanto a essa variedade não há

controvérsias. Se na escrita havia forte unanimidade, mantida durante séculos (tanto que não é fácil

comprovar a patavinitas de Tito Lívio), não é possível dizer o mesmo em relação à língua falada. A classe

culta da sociedade romana, porém, devia usar um linguajar bastante correto do ponto de vista gramatical,

denominado sermo urbanus ou urbanitas, sermo usualis ou apenas usus, sermo cotidianus ou cotidianitas,

sermo consuetudinarius ou consuetudo. Certamente, Cícero se refere a essa norma, ao escrever em Ad

Familiares a conhecida passagem: “Quid tibi in epistulis videor? Nonne plebeio sermone agere tecum?

Epistulas vero cotidianis verbis texere solemus.” Mais claro ainda é em Academica 1,2: “Didicisti enim non

posse nos Amafinii aut Rabirii símiles esse, qui nulla arte adhibita de rebus ante oculos positis vulgari sermone

disputant.” Basta ler as cartas de Cícero: seu latim é perfeitamente correto, gramatical, mas sem o burilamento

estilístico de suas outras obras; também não se pode imaginar que os citados Amafínio (filósofo estoico) e

Rabírio (poeta épico) usassem um latim eivado de erros, mas apenas escrevem nulla arte adhibita, ou seja,

sem o refinamento do sermo litterarius. A essa norma não literária, porém correta, se dá o nome de sermo

urbanus ou urbanitas, falada cotidianamente pelas classes cultas e usada por Cícero em suas cartas, adequada

ao gênero epistolar.

Portanto, o contexto deixa bem nítido que as expressões de Cícero sermo plebeius e sermo vulgaris

não designam o latim falado pela grande massa popular, analfabeta e menos favorecida. Quintiliano dá-lhe o

nome de rusticitas e Aulo Gélio, de barbáries. Em Insitutio Oratoria, o mesmo Quintiliano diz que a rusticitas

difere da norma culta dos oradores in verbis et sono et usu, isto é, no vocabulário, na fonética e na sintaxe,

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sem exemplificação ou comentário. Atesta, contudo, a existência dessa variedade, o que a maioria dos

escritores não fazem, pois simplesmente a ignoraram. Diferenças nos três níveis indicados caracterizam de

fato uma norma bem distinta, cujas fontes foram já devidamente levantadas, tanto que foi possível escrever

uma ‘gramática do latim vulgar‘, ainda que com lacunas. Sem dúvida, não é correto atribuir a essa variedade

falada a expressão sermo vulgaris de Cícero. Como então denominá-lo? Dentre as muitas designações, acabou

por fixar-se a de ‘latim vulgar‘, geralmente aceita pelos romanistas apesar de possíveis confusões,

particularmente entre os não iniciados.

Há ainda muitos aspectos que poderiam ser comentados neste excelente e detalhado curso de

Filologia de Carolina Michaelis, em que situa muito bem o português no contexto românico sob vários pontos

de vista. Para encerrar, parece conveniente comentar um aspecto, citado ocasionalmente algumas vezes pela

Autora, mas merecedor de um destaque e aprofundamento maior: os chamados fatores de latinização (ou

romanização como preferem os italianos). Nesse sentido, é lembrado o papel do exército, presente em todo o

Império, falando o latim vulgar; é ressaltada a contribuição das colônias militares, sobretudo ao longo das

fronteiras, constituídas por veteranos de guerra. As primeiras foram estabelecidas por Mário (157-86 a.C.) e

Silas (138-78 a.C.); embora seja difícil calcular o número dos assentados, sabe-se que, apenas durante os anos

da guerra civil, foram cerca de 500.000. São lembradas também as estradas, viae, a história de dezenove das

quais, pavimentadas, nos é conhecida; facilitavam a movimentação das legiões, o acesso relativamente rápido

às províncias e às cidades, o intercâmbio cultural, o comércio e as comunicações entre as províncias,

promovendo a difusão do latim. Entre as obras públicas, não se pode esquecer as obras de abastecimento de

água, espalhadas por todo o Império; seus monumentais aquedutos são, com justiça, considerados a principal

contribuição de Roma para a arquitetura e a higiene. Nesse serviço gratuito, foram gastos milhões de

sestércios, mesmo em províncias pouco romanizadas, como, v.g., no de Nicomedia, na Bitínia, que custou

3.299.000, nos de Aquae Sulis, Londinium e Cilurnum na Britânia, e de Dura Europus na Síria.

Desde que Pompeu fundou o primeiro teatro em 55 a.C., em Roma, prédios para esse fim foram

construídos nos principais centros; embora calcados nos modelos gregos, os arquitetos romanos aos poucos

lhes deram feições próprias, o que ocorreu também com outras construções públicas, tais como fóruns,

templos, basílicas, monumentos e bibliotecas. Contudo, foram as colônias civis, praticamente esquecidas nas

Lições, um dos fatores fundamentais no processo de latinização. Espalhadas por todo o Império, promoviam o

intercâmbio com os autóctones em todos os campos, obviamente também no linguístico. Instituídas desde as

primeiras conquistas, evitavam pressões sociais e revoltas, além de manter a unidade e a coesão do Império; a

experiência aperfeiçoou sua organização. Os Gracos (séc. III-II a.C.) estabeleceram as colônias ‘agrárias‘, cuja

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finalidade primeira era a produção de alimentos; vieram depois as ‘romanas‘, com aproximadamente três

centenas de pessoas, e dispondo de todos os direitos (ius suffragii e ius honorum); as ‘latinas‘, compostas por

milhares de colonos. É evidente que o processo de latinização foi lento, porém profundo nas regiões

incorporadas mais cedo, com exceção da Dácia, repovoada nos campos e nas cidades por colonos vindos de

todo o Império por ordem do imperador Trajano, segundo relata o historiador Eutrópio. Apenas na bem

romanizada África não surgiu uma língua românica, por contingências históricas como a invasão arrasadora

dos vândalos e depois dos árabes.

Levando tudo isso em consideração, além de outros fatores não aventados aqui, conclui-se que o

Império era bem organizado e funcionava relativamente bem, tanto que a expressão de Carolina “o

conglomerado caótico dos povos conquistados” (p. 185) não parece justo, mesmo do ponto de vista

linguístico. É sabido que os romanos nunca impuseram diretamente sua língua, mas respeitaram a língua e a

cultura dos povos agregados, sempre, porém, procurando integrá-los ao Império como seus cidadãos. Um

Estado caótico não teria estrutura para durar mais de um milênio. Justamente o sentimento de que todos

pertenciam a essa grande comunidade, mesmo depois do desaparecimento político do Orbis Romanus, é que

levou o rei godo Ataulfo (séc. V) a querer edificar a Gótia sobre as ruínas da România, conforme informa

Paulo Orósio em Historiae adversus Paganos. Essa é a primeira atestação do termo ‘România‘, à qual Orósio

acrescenta ut vulgariter loquar, isto é, o termo era popular, uma criação espontânea; pode ter várias

abrangências, mas o conteúdo social e o político não podem ser descartados. Também é correto supor que se

orgulhassem do latim que falavam, ainda que numa norma menos correta, expressão de uma cultura secular e

de uma civilização elevada, ambas superiores às dos dominadores germânicos, superstratos que afinal

desapareceram.

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BASSETTO, Bruno Fregni. Elementos de Filologia Românica. v. 1. ‒ História Externa. São Paulo: EdUSP, 2001.

MEYER-LÜBKE, Wilhelm. Romanisches Etymologisches Wörterbuch. 5. ed. Heidelberg: Carl Winters Universitätsbuchhandlung, 1972.

VASCONCELOS, Carolina Michaëllis de. Glossário do Cancioneiro da Ajuda. Revista Lusitana, v. XXIII, Lisboa: Livraria Acadêmica, 1920.

______. Lições de Filologia Portuguesa (seguidas das Lições Práticas de Português Arcaico). Lisboa: Dinalivro, s.d.

RENAN, Ernest. L‘avenir de la science. Paris: Calmann-Lévy, 1849.

______________________________________

Data de submissão: jul./2013. Data de aprovação: nov./2013.

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José Luís Jobim

HENRIQUES, Claudio Cezar. Dicionário de apelidos dos escritores da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Appris, 2012.

Não é nenhuma novidade lembrar, como já disse Silvain Auroux, que existe uma tecnologia de

apreensão, conhecimento e transmissão de línguas, configurada nas obras que se denominam gramática e

dicionário, pois permitiram e permitem o desenvolvimento de uma tecnologia de tratamento, compreensão e

difusão das línguas. Descrever, compreender e ensinar uma língua seria muito mais difícil e complicado, se

não houvesse esses tipos de obras. Por exemplo, no caso da América do Sul, particularmente do Brasil,

sabemos que, para a colonização ibérica, foi extremamente importante a elaboração de gramáticas e

dicionários das línguas indígenas. Essas obras permitiam que se ensinasse na Europa línguas do Novo Mundo

a europeus que não teriam como aprendê-las lá (os padres que seriam enviados para catequização dos índios

aqui).

Claudio Cezar Henriques, ao longo de muitos anos de carreira como docente e pesquisador da

língua portuguesa, já produziu e organizou uma série de obras relacionadas às gramáticas, enfocando a

estruturação morfológica, sintática, fonética e fonológica de nossa língua, e a história das idéias gramaticais

no país. Mas é importante assinalar aqui que Henriques também investiu nos aspectos da linguagem que

dizem respeito à estruturação do sentido, ao trazer à baila questões de estilística e discurso que remetem à

produção de significados, e à semântica, em um sentido mais amplo. Agora, Henriques segue nessa direção,

investindo em um dicionário.

Sabemos que produzir um dicionário está longe de ser um empreendimento simples. Trata-se de um

tipo de obra que pode ser vista, na perspectiva do pesquisador José Horta Nunes, como um discurso sobre a

língua, mais especificamente sobre as palavras ou sobre um setor da realidade, para um público leitor, em

certas condições sociais e históricas. Nos dicionários especializados, todavia, esse tipo de obra ganha

contornos bem mais definidos.

Por estar incluído nesse último caso, o Dicionário de apelidos dos escritores da literatura brasileira

merece uma série de observações sobre suas peculiaridades, começando com o próprio título. Comecemos

por dizer que a decisão de usar o termo apelido, em vez de outros de âmbito semântico correlato, como

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epíteto, alcunha, cognome, foi o primeiro acerto do autor, pois permitiu a um público leitor não familiarizado

com vocábulos de circulação mais erudita entender mais facilmente a proposta da obra. Epíteto, por exemplo,

provavelmente demandaria desse leitor o uso de outro dicionário.

A opção por uma certa concisão segue o argumento de seu mais famoso antecessor, Sacramento Blake, que

justificou a opção pelo que considerou conciso (seu dicionário “conciso” tinha 7 volumes...) argumentando que, “de

outra sorte, teria de dar à empresa uma amplidão, que não se coaduna com a natureza dela” (Blake, 1970 [1883], p.

XVIII)

Henriques não articulou em sua apresentação e posfácio uma resposta à crítica padrão feita a obras

desse tipo: a de que houve omissões consideradas importantes por eventuais críticos. Poderia, é claro, ter

adotado também a resposta antecipada de Blake, no século XIX: “Prevejo que serei acusado de omitir neste livro

escritores que de direito devem figurar nele, e obras de escritores de quem faço menção. Para ser absolvido dessa culpa

bastar-me-á o que fica exposto no principio destas desordenadas linhas. Sou o primeiro a reconhecer - que há

aqui omissões, e ainda as haveria, se não se dessem as circunstâncias expostas. Que obra se apresentará no gênero

desta, isenta completamente de tais omissões?”

De todo modo, uma crítica produtiva a um dicionário deve, antes de mais nada, concentrar-se no

que lá está, e não no que supostamente falta.

Para fazer esse seu Dicionário de apelidos dos escritores da literatura brasileira, Henriques de algum

modo produziu uma escolha dentro da tradição literária e cultural brasileira, que manteve na memória

cultural latente um certo universo de nomes e não outros. E, claro, também há uma relação com o momento

de produção do dicionário, pela escolha que o dicionarista fez do universo de autores e apelidos incluídos,

visto que não é possível imaginar os verbetes como desligados das circunstâncias que os colocaram em

circulação.

O lexicógrafo, então, circunscreveu claramente o âmbito do que vai considerar como evidência de

apelido. Nesse trabalho teórico, optou por excluir apostos explicativos, apostos denominativos e predicativos

como evidência, considerando apenas estruturas linguísticas em que o apelido substitui completamente o seu

referente. Assim, o autor não considera que Machado de Assis tenha o apelido de Bruxo do Cosme Velho por

frases como: “Machado de Assis, o Bruxo do Cosme Velho, nasceu em 1839.” A evidência para esse apelido

surge, sim, em frases como “O Bruxo do Cosme Velho nasceu em 1839.” Isso porque nessa frase a menção ao

referente aparece sem a alusão ao nome próprio dele, ou seja, como um “substituto textual”.

Na verdade, como também não houve uma preocupação em incluir apenas os apelidos de

circulação mais ampla (Bruxo do Cosme Velho, por exemplo), o Dicionário de apelidos dos escritores da

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literatura brasileira acaba também podendo ser uma leitura de entretenimento, já que contém casos singulares

e histórias saborosas sobre a origem dos apelidos. Veja-se, por exemplo, a do chulé de Apolo, atribuído a

Ledo Ivo por Oswald de Andrade (p. 61).

Assim, ao mesmo tempo em que Claudio Cezar Henriques produziu uma obra importante para os

anais da lexicografia no Brasil, também contemplou os leitores curiosos que gostam de causos literários.

Por tudo o que dissemos, então, o leitor já terá percebido que se trata de obra que deve constar de

suas prateleiras.

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abaixo do título).

• Logo após esse parágrafo sem texto, (na linha imediata abaixo da linha vazia) indica-se a autoria (nome

SOBRENOME, exatamente nessa ordem e dessa maneira), sem negrito ou itálico; parágrafo à direita, espaço simples de entrelinhas, sem qualquer entrada ou recuo (não indicar titulação ou vinculação institucional).

• Junto ao SOBRENOME do autor, em modo sobrescrito (ou índice superior), incluir nota de rodapé,

iniciando em 1. Nessa nota de rodapé, informar a maior titulação acadêmica, os vínculos institucionais de interesse e demais detalhes que julgue necessário sobre o autor, como, por exemplo, vínculos de orientação/supervisão, vínculos com projetos de pesquisa, participação em GTs etc.

• Após a indicação da autoria, tecla-se, deixando-se uma marca de parágrafo sem texto (linha vazia logo

abaixo da autoria).

• Logo após esse parágrafo sem texto (na linha logo abaixo à linha vazia), inicia-se o RESUMO, em

parágrafo sem recuos ou avanços da primeira linha. A palavra RESUMO toda em maiúscula, seguida de dois-pontos <:> e do texto do RESUMO com, no mínimo, 150 e, no máximo, 250 palavras. Deve-se enviar o RESUMO em língua portuguesa.

• Após o RESUMO, tecla-se, deixando-se uma marca de parágrafo sem texto (linha vazia logo abaixo do

RESUMO).

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• Logo após esse parágrafo sem texto (na linha logo abaixo à linha vazia), iniciam-se as PALAVRAS-CHAVE,

em parágrafo sem recuos ou avanços, nem entrada da primeira linha, com a expressão PALAVRAS-CHAVE toda em maiúscula, seguida de dois-pontos <:>; e de, no mínimo, 3 (três) e, no máximo, 6 (seis) .

• Após as PALAVRAS-CHAVE, tecla-se, deixando-se uma marca de parágrafo sem texto.

• Logo após esse parágrafo sem texto (na linha logo abaixo à linha vazia), inicia-se o RESUMO EM LÍNGUA

ESTRANGEIRA (inglês, francês, espanhol ou italiano), em parágrafo sem recuos ou avanços da primeira linha. A palavra RESUMO, na língua estrangeira escolhida, toda em maiúscula, seguida de dois-pontos <:> e do texto do RESUMO com, no mínimo, 150 e, no máximo, 250 palavras.

• Após o RESUMO EM LÍNGUA ESTRANGEIRA, tecla-se, deixando-se uma marca de parágrafo sem texto

(linha vazia logo abaixo do RESUMO).

• Logo após esse parágrafo sem texto (na linha logo abaixo à linha vazia), iniciam-se as PALAVRAS-CHAVE,

em parágrafo sem recuos ou avanços, nem entrada da primeira linha, com a expressão PALAVRAS-CHAVE, na língua estrangeira escolhida, toda em maiúscula, seguida de dois-pontos <:>; e de, no mínimo, 3 (três) e, no máximo, 6 (seis).

• Após as PALAVRAS-CHAVE, tecla-se, deixando-se uma marca de parágrafo sem texto.

• Logo após esse parágrafo sem texto (na linha logo abaixo à linha vazia), inicia-se o texto, que é o CORPO

DE TEXTO.

• O parágrafo de CORPO DE TEXTO deverá ter espaço 1,5 (um e meio) de entrelinhas, ser justificado e

adentrado na primeira em 1,25cm (tabulação padrão do Word).

• O parágrafo de citação (apenas quando a citação exceder em 3 linhas no CORPO DE TEXTO ou for

composta de versos) deverá ter espaço simples de entrelinhas, ser justificado, sem adentramento na primeira linha e ter recuo de 2,5cm à esquerda.

• As citações no CORPO DE TEXTO devem ser feitas “entre aspas” (não em itálico); as citações em

parágrafo de citação não deverão vir nem “entre aspas” nem em itálico. Após as citações, as referenciações devem vir entre parênteses, da seguinte maneira: (SOBRENOME: ano, p. XX). Nas REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, ao final do texto, devem ser incluídos apenas os títulos efetivamente citados ou referenciados ao longo do texto.

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• Nas REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, deve-se seguir o modelo padrão da ABNT NBR 6023 2002:

SOBRENOME, Nome. Título. Cidade: Editora, ano.

Veja exemplo extraído da ABNT NBR 6023 2002:

GOMES, L. G. F. F. Novela e sociedade no Brasil. Niterói: EdUFF, 1998.

• Os artigos devem ser acompanhados de breve biografia do autor, e as notas de rodapé devem ser

evitadas.

• Somente serão publicados os textos que seguirem, rigorosamente, essas normas de apresentação do

original, sendo seu teor e redação – inclusive quanto a eventuais erros de digitação, gramaticais ou conceituais – de inteira responsabilidade do(s) autor(es), não havendo compromisso de revisão dos textos por parte dos Editores.

Os artigos podem ser enviados como anexos para o e-mail: [email protected].

O endereço para correspondência: UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE LETRAS

Secretaria dos Departamentos

Rua São Francisco Xavier, 524, 11º andar, Bloco B, sala 11.020, Maracanã

Rio de Janeiro, RJ -- CEP 20559-900.

A correspondência deve ser posta aos cuidados dos professores Claudia Amorim, Tania Camara e Flávio Barbosa.

Tel./Fax: +55( 21) 2334-0245 / 2334-0196 / 2334-0165 - e-mail: [email protected]