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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Instituto de Artes Júlia Jenior Lotufo Método Pocha: Práticas de Ensino em Performance para Cruzadores de Fronteiras Rio de Janeiro 2014

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades

Instituto de Artes

Júlia Jenior Lotufo

Método Pocha: Práticas de Ensino em Performance para Cruzadores de

Fronteiras

Rio de Janeiro

2014

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Júlia Jenior Lotufo

Método Pocha: Práticas de Ensino em Performance para Cruzadores de Fronteiras

Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Artes, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Arte, Cognição e Cultura.

Orientadora: Profª. Dra. Denise Espírito Santo

Rio de Janeiro

2014

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CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/CEH-B

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta

dissertação, desde que citada a fonte.

_____________________________________________ _____________________

Assinatura Data

L884 Lotufo, Júlia Jenior. Método Pocha: práticas de ensino em performance para

cruzadores de fronteiras / Júlia Jenior Lotufo. – 2014. 112 f.: il. Orientadora: Denise Espírito Santo. Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio

de Janeiro, Instituto de Letras. 1. Performance (Arte) – Teses. 2. Figura humana na arte

– Teses. 3. Pocha Nostra – Teses. 4. Pocha, Método – Teses. 5. Arte moderna – Séc XXI – Teses. I. Espírito Santo, Denise. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Artes. III. Título.

CDU 7.041

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Júlia Jenior Lotufo

Método Pocha: Práticas de Ensino em Performance para Cruzadores de Fronteiras

Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Artes, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Arte, Cognição e Cultura.

Aprovada em 17 de março de 2014.

Banca Examinadora:

_____________________________________________

Profª. Dra. Denise Espírito Santo da Silva (Orientadora)

Instituto de Artes - UERJ

_____________________________________________

Profª. Dra. Eleonora Batista Fabião

Universidade Federal do Rio de Janeiro

_____________________________________________

Profª. Dra. Eloísa Brantes Bacellar Mendes

Instituto de Artes – UERJ

Rio de Janeiro

2014

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DEDICATÓRIA

A todos pochos e cruzadores de fronteiras.

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais por todo apoio, pelo exemplo e inspiração.

Aos meus irmãos David, André e Gabriel e minhas cunhadas Layza, Dorothee e Leatrice pela amizade

e incentivo.

Aos meus sobrinhos Ian, Max e Vida pelo carinho e alegria compartilhada.

Ao Daniel, pelo companheirismo, pela parceria e beleza do amor construído.

À Roseni por todos os cuidados de segunda mãe que se tornou.

À Tia Martha, minha madrinha.

À Denise pela rica contribuição, dedicação, abertura e interesse por essa pesquisa.

À Eleonora Fabião pelas preciosas considerações, pela leitura cuidadosa, pela disponibilidade e pela

generosidade do material cedido.

Ao Aldo Victorio pela leitura e considerações feitas para a qualificação.

À Mara Leal pela generosidade em ceder o livro ‘Pedagogia de la Performance’.

À Eloísa Brantes por tantas portas abertas e inquietações semeadas.

Ao Coletivo Líquida Ação representado por Evee Ávila, Julia Ariani, Mauricio Lima e Thaís

Chilinque, por tantas águas compartilhadas.

À Ana Emília e João Paulo pelas boas conversas e pelo lar que compartilhamos e que ajudaram a

construir.

Às amigas Ana Lúcia, Camila Duarte, Daniela Moreno, Elisabeth Hess, Elisângela Mira, Gabriela

Martins, Marília Freitas, Mirella Ferraz, Nathalia Gomes pela amizade, pelos projetos e desejos

compartilhados.

Aos amigos Higgor, Jairo e Rodrigo por tornar minha estada no Rio mais doce.

Aos integrantes do coletivo La Pocha Nostra, em especial à Dani D’emilia, Guillermo Gómez Peña e

Roberto Sinfuentes, pela generosidade em compartilhar o processo do La Pocha Nostra, pela

radicalidade do trabalho e pelo desejo de transformação.

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Aos professores de graduação Davi Dolpi, Acevesoreno Flores, Clarissa Alcântara , Tristan Castro-

Pozo, Gobira Gobs pelo conhecimento compartilhado e dedicação.

Aos professores e funcionários do PPGARTES -UERJ.

À Capes, pelo financiamento dessa pesquisa.

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RESUMO

LOTUFO, Júlia Jenior. Método Pocha: práticas de ensino em performance para cruzadores de fronteiras. 2014. 112 f. Dissertação (Mestrado em Arte, Cognição e Cultura) – Instituto de Artes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

A presente dissertação – Método Pocha: Práticas de Ensino em Performance para Cruzadores de Fronteiras – é uma reflexão sobre possibilidades educativas em performance art. Pesquisa que tem como enfoque o Método Pocha – metodologia de ensino em performance desenvolvida pelo coletivo La Pocha Nostra. Nesse sentido, busca-se identificar as propostas metodológicas, procedimentos, temáticas, apontamentos conceituais que sustentam as práticas pedagógicas do La Pocha Nostra, e investigar o processo formativo/educativo por vias da arte da performance. O recorte da presente abordagem prioriza performances que habitem interstícios e espaços fronteiriços. Compreende o performer como um cronista do seu tempo/espaço, que reflete e problematiza os fluxos, formações e composições contemporâneas. As práticas, procedimentos e conceitos desenvolvidos nos programas performativos do coletivo La Pocha Nostra são pensados no contexto da pesquisa enquanto modo de descolonizar nossos corpos e criar complicações em torno de representações vigentes, ampliando noções de identidade e diferença em seu lugar de trânsito: o corpo.

Palavras-chave: Arte da Performance. ‘Método Pocha’. Pedagogia da Performance.

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ABSTRACT

LOTUFO, Júlia Jenior. Method Pocha: teaching practices in performance for border crossers. 2014. 112 f. Dissertação (Mestrado em Arte, Cognição e Cultura.) – Instituto de Artes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

This dissertation – Method Pocha - Teaching Practices in Performance for Border Crossers - is a reflection on educational possibilities in performance art” . Research that has as focus the ' Pocha Method' - performance in teaching methodology developed by the collective La Pocha Nostra . In this sense we seek to identify the methodological proposals , procedures, thematic , conceptual notes that support the pedagogical practices of La Pocha Nostra , and investigate the training / education process by way of performance art. The outline of this approach prioritizes performances that inhabit interstices and border areas. Understands the performer as a chronicler of his time / space that reflects and discusses flows formations and contemporary compositions. Practices, procedures and concepts developed in performative programs La Pocha Nostra collective are thought in the context of research as a way to decolonize our bodies and create complications around existing representations , expanding notions of identity and difference instead of transit: the body .

Keywords: Performance art. Pocha Method. Pedagogy of Performance.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Guillermo Gómez-Peña na performance The Loneliness of the

Immigrant ........................................................................................... 27

Figura 2 – Coco Fusco e Guillermo Gómez-Peña na performance Two

Undiscovered Amerindians Visit the West……................................... 36

Figura 3 – Coco Fusco e Guillermo Gómez-Peña na performance Two

Undiscovered Amerindians Visit the West……................................. 37

Figura 4 – Roberto Sifuentes na performance Corpo/Illicito: The Post-Human

Society 6.9 ………………………………………………………….. 49

Figura 5 – Guillermo Gómez-Peña na performance Corpo/Ilicito: The Post-

Human Society 6.9 ………………………………………………… 50

Figura 6 – Dani d'Emilia em Corpo/Ilicito: The Post-Human Society 6.9........... 52

Figura 7 – Violeta Luna em Corpo/Ilicito: The Post-Human Society 6.9............ 52

Figura 8 – Imagem da capa do livro ‘Exercício para Artistas Rebeldes’.............. 55

Figura 9 – Registro do exercício Criando quadros vivos..................................... 73

Figura 10 – Registro do exercício Criando quadros vivos..................................... 73

Figura 11 – Registro do exercício Altar humano.................................................... 75

Figura 12 – Registro da oficina La Pocha Remix: Psycho-Magic Actions Against

Violence ministrada por Guillermo Gómez-Peña, Dani D´Emilia e

Roberto Sinfuentes no Festival Internacional de Teatro de São José

do Rio Preto. Performers: Júlia Lotufo e Ronaldo Zaphás ................. 107

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................ 10

1 LA POCHA NOSTRA ...................................................................................... 24

1.1 Representações e imagens de identidades/diferenças .................................... 34

1.1.1 Dois ameríndios não descobertos visitam o Ocidente ....................................... 36

1.2 Corpo Pocho/a ................................................................................................... 42

1.3 Corpo/Ilicito: The Post-Human Society 6.9 .................................................... 48

2 MÉTODO POCHA ........................................................................................... 53

2.1 Breve histórico do Método Pocha .................................................................... 59

2.2 Método Pocha – exercícios, rituais e jogos....................................................... 61

2.2.1 Procedimentos e exercícios do Método Pocha .................................................... 66

2.3 Procedimentos e temáticas abordadas............................................................. 80

3 PEDAGOGIAS DA PERFORMANCE........................................................... 85

3.1 Arte e Vida: Corpo, presença e experimentação............................................. 86

3.2 Pedagogias da performance.............................................................................. 89

3.3 Programas de formação em performance........................................................ 93

CONCLUSÃO.................................................................................................... 103

REFERÊNCIAS ................................................................................................ 108

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INTRODUÇÃO

Faço arte... para deglutir minhas entranhas/para explodir sistemas/para desestabilizar o conhecido/para questionar fronteiras/para ser livre

com o mundo/para provocar, celebrar/para enfrentar medos/ para jogar com possibilidades de mim/ para buscar a ressurreição/ para reviver/ para me virar ao avesso/ para purgar o ódio/ para cruzar múltiplas dimensões/ para sair de mim/

para ser sendo outro/ para reinventar os objetos do mundo...1

Lembro-me da insistência de Eleonora Fabião2 ao me instigar a refletir e escrever

sobre meu processo até chegar ao tema e enfoque dessa pesquisa, me perguntando os porquês

da escolha feita. Eloísa Brantes3, ainda nas aulas de graduação, perguntava ‘O que move o seu

desejo?’, é sobre essa questão que tentarei abordar nesse pequeno texto. Pensando o lugar

onde eu me encontro, de encontro pessoal e intransferível com essa pesquisa, com essa

proposta artística, com o La Pocha, como ‘pocha’ que talvez sempre fui, sou, estou. Como

‘pochos’ que talvez todos nós sejamos, assumindo, querendo, ou não.

Sou/estou filha de uma mãe alemã, de um pai paulista descendente de italiano, a irmã

mais nova dos quatro filhos, nascidos entre Kassel - Alemanha, Porto Nacional (TO) e

Goiânia (GO) - Brasil. O atravessamento de fronteira sempre esteve presente na minha

formação e recriação de ser quem sou/estou. Como imaginário ou vivência esses territórios

sempre me habitaram.

Opto por criar algumas pequenas crônicas do tempo, lastros de memória sobre passos

dados que parecem ter contribuído em muito no meu percurso e escolhas feitas até chegar

nesse momento.

A primeira delas faz parte da infância, é sobre uma coleção de livros alemães que eu

passava horas folheando, sem entender uma única palavra, via as imagens de salas de aulas e

escolas dos sonhos, fotografias de lugares educacionais muito distintos das salas sem graça a

que estava acostumada. Espaço de leitura, plantas, brinquedos, janelas grandes, pequenos

grupos de mesas e carteiras, quadros, cores, a professora não se posicionava à frente, mas

passava por entre as mesas, aquilo ali tudo me encantava, e eu desenhava esboços e mais

esboços de projetos para outras salas de aula e escolas que sonhava em um dia criar.

                                                            1 Textos poéticos/performáticos gerados por participantes de diferentes workshops do coletivo La Pocha Nostra, a partir do exercício ‘Poetic exquisite corpse – Mapping new terriotories of inquiery’. (GÓMEZ-PEÑA; SIFUENTES, 2011, p. 79-81). 2 Atriz, performer, pesquisadora e professora na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Membro da banca de qualificação e defesa dessa dissertação. 3 Diretora, performer e professora no Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Membro da banca de defesa dessa dissertação.

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Enquanto filha de professores, críticos do atual modelo de educação e inquietos em

investigar propostas diferenciadas de educação, me lembro de dois dos primeiros livros que

comprei, ainda adolescente, que marcaram minha trajetória. Um deles é o livro de Augusto

Boal, Jogo para Atores e Não-atores e outro Liberdade sem Medo, livro sobre a lendária

escola libertária Sumerhill, escrito por Alexander Neill. O meu desejo em investigar outras

formas de educação, mais instigantes, que incluíssem o corpo, os desejos e as histórias dos

alunos no processo educativo, se desdobrou no enamoro e estudo sobre escolas democráticas

e libertárias e na escolha do curso universitário ao qual me formei: Artes Cênicas –

licenciatura.

Ao terminar o Ensino Médio e tentar reencontrar a parte alemã que de certo modo

parecia fazer parte de mim mudei-me para Kassel, ali pude confirmar que sempre seria

estrangeira, onde quer que eu estivesse. Enquanto imigrante não usufruía de meus direitos, já

que portava uma suposta cidadania alemã, e como cidadã do país eu não possuía os requisitos

necessários, como língua e conhecimentos culturais, era uma alemã muito pouco autêntica por

sinal.

Ao sair de minha cidade natal, radicalizava a experiência de viver esse cruzamento de

fronteiras, de vivenciar situações culturais das mais diversas, me deparando com essa incrível

possibilidade de me reinventar, apropriar e partilhar de experiências de diferentes referências

e fontes possíveis. Descobrir-me ainda mulher é sempre um exercício em meio a uma

sociedade que prescreve modos e condutas a serem cumpridas como pré-requisito de uma

identidade feminina. Por aí começo parte de minha trajetória.

Em 2011 me mudo para o Rio de Janeiro e me torno professora de artes da rede

municipal de ensino e da rede estadual de educação – contexto em que pude atuar em duas

escolas localizadas no Complexo Penitenciário de Gericinó. Convidada por uma amiga e

colega de graduação participei de um workshop do Coletivo Líquida Ação4, que desenvolve

práticas em performance e intervenção urbana, e acabei me integrando ao grupo. Foi da

experiência que vivi em meu corpo, de sensibilização e potencialização em relação a sua

própria presença, ao espaço e ao corpo do outro, que iniciou de forma mais clara minha

vontade em investigar pedagogias da performance. A primeira versão do projeto era mais

ampla, e não focava nenhuma prática específica. Parecia um pouco genérica demais, foi

quando pesquisando me deparei com as propostas pedagógicas e artísticas do La Pocha

                                                            4 Coletivo de artistas, formado em 2006, que realiza performances e intervenções urbanas, sediado no Rio de Janeiro, com direção artística de Eloísa Brantes. Em seus trabalhos propõe a democratização da arte em lugares públicos, trazendo como principais matérias de composição de suas obras o corpo, a água e o espaço.

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Nostra, e fiquei encantada. Apresento aqui uma perspectiva do meu encontro com esse

coletivo, das leituras e questões que me suscitaram e que desejo compartilhar.

Desestabilizar mapas em uso, questionando as delimitações e demarcações vigentes,

desorganizar limites entre os diferentes territórios e seus usos, reinventando cartografias que

dialoguem com as necessidades e características do nosso tempo, são alguns dos objetivos

dessa investigação que busca diluir, borrar e cruzar fronteiras. Cartografia aqui entendida

enquanto escrita experimental que, como Suely Rolnik ressalta, ‘se faz ao mesmo tempo que

os movimentos de transformação da paisagem’:

Para os geógrafos, a cartografia – diferentemente do mapa: representação de um todo estático – é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem. [...] A cartografia, nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos – sua perda de sentido e a formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos.” (ROLNIK, 2007, p.23)

O ‘desmanchamento de certos mundos’ e o surgimento de outros, de novos sentidos e

usos, se faz em meio ao conflito necessário e incessante entre o estabelecido e o surgimento

do novo, motor das transformações do mundo. Novos esboços são traçados na tentativa

sempre provisória de abarcar a complexidade do/no tempo. Desterritorializando papéis sociais

e questionando representações até então vigentes. Diante das novas configurações

geográficas, políticas e culturais da atualidade, a tentativa de um todo – uno, indivisível,

coerente e semelhante entre si – se dissolve perante a ruína de determinados mundos e o

levante de outros, mais híbridos e interconectados.

As tentativas unificadoras de forjar um ‘ser nacional’ soam como mentiras contadas

para manutenção de um corpo social. Nestor García Canclini (1999, p.103), aponta para a

necessária implosão dessa estória narrada sobre as nações e seus concidadãos. “Nesta segunda

metade do século XX, esse simulacro das monoidentidades se torna inverossímil e explode,

com particular evidência, nas grandes cidades.”

Ao passo que o mercado global assume um alcance de transnacionalização nunca antes

visto, pulverizam-se e disseminam-se referências, símbolos, mercadorias, através de uma

indústria cultural que atravessa fronteiras. A dissolução das monoidentidades, e a mudança de

status e peso das culturas tradicionais/locais, também decorrentes de algum modo desse

processo mercantilista, possibilitam, por outro lado, uma maior liberdade na formação de

novas composições identitárias, mais abertas a experimentações.

Faz parte dessa investigação que busca construir pontes, mesmo que precárias,

instáveis, e tampouco decisivas, aproximações entre práticas de artistas que utilizam como

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linguagem a arte da performance, pensadas à luz de teóricos que abordam as formações

sociais da atualidade. Autores como Maurice Merleau-Ponty, Suely Rolnik, Massimo

Canevacci, Nestor García Canclini, Homi Bhabha, Stuart Hall, compõem, nesse sentido, a

bibliografia da presente dissertação, juntamente com outros pensadores que refletem e nos

ajudam a pensar sobre as configurações contemporâneas.

A arte da performance mostra-se como um modo ‘bom para pensar’ a

contemporaneidade. Nesse contexto, como sugere Guillermo Gómez-Peña5, o performer se

apresenta como um cronista do seu contexto imediato6, que reflete e problematiza os fluxos,

formações e composições contemporâneas. Diluir, borrar e cruzar fronteiras faz parte desse

percurso.

As diversas diásporas, sincretismos e demais formações e trânsitos sociais e culturais,

que não se restringem à construção de comunidades unificadas, são marcas dos diversos

encontros transfronteiriços de nosso tempo. Em meio às metrópoles, à intensidade do fluxo de

mercadorias e informações, à proliferação de temporalidades e à sobreposição de espaços

comunicacionais, dilui-se a unidade tempo/espaço supostamente compartilhada, fragmentando

ainda mais as experiências do sujeito com seu meio. As complexas redes próprias da era

digital pulverizam os locais de emissão e fala, descentralizando e complexificando formas

monológicas de comunicação.

Compreendemos assim, como aponta Dwight Conquergood, que ‘o local é algo que

vaza’. O espaço físico é informado por imaginários, culturas e estórias, sua materialidade é

maleável, tomando formas e significações diversas, que carregam consigo os diferentes

itinerários e fluxos que o compõem e alteram. A ideia de localização se amplia quando

percebemos a serie de sobreposições de espaços, trajetórias, memórias, que constam, de certo

modo, implicadas em cada lugar.

A boundary is more like a membrane than a wall. In current cultural theory, ‘location’ is imagined as na itinerary instead of a fixed point. Our understanding of a ‘local context’ expands to encompass the historical, dynamic, often traumatic, movements of people, ideas, images, commodities and capital. [...] We are now keenly aware that the ‘local’ is a leaky, contingent construction, and that global forces are taken up, struggled over, and refracted for site-specific purposes. (CONQUERGOOD apud GÓMEZ-PEÑA, 2005, p. xxv) 7.

                                                            5 Artista chicano, nascido no México e residente nos EUA. 6 Disponível em: <http://idanca.net/o-artista-da-performance-e-um-cronista-do-seu-contexto-imediato/>. Acesso em: 08 mar. 2012. 7 “Uma fronteira é mais parecida com uma membrana do que com um muro. Na teoria cultural corrente, a ‘localização’ é mais imaginada como um itinerário, do que como um ponto fixo. Nossa compreensão de ‘contexto local’ expande para envolver o histórico, dinâmico, frequentemente traumático, movimento das pessoas, ideias, imagens, mercadorias e capital. [...] Nós estamos agora cientes que o local é algo que vaza, construção contingente, e que as forças globais são retomadas, lutam por e são refratadas para fins específicos locais.” (tradução nossa)

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O nomadismo característico desse tempo demonstra quão impraticável é a esperança

de manutenção de uma identidade cultural pura, estável e contínua. Massimo Canevacci

(2009), em sua abordagem em torno dos trânsitos culturais contemporâneos,

transculturalidades, interculturalidades e sincretismos, reflete sobre a mudança que decorre da

diluição das cidades industriais, que se desfazem no ar, um ‘ar de pixels’. É desse contexto

que estamos falando, em que noções de identidade, cultura, pertencimento, tornam-se bem

mais complexas, e o movimento contínuo de reinvenção e negociação de sentidos e valores

parece reinar na terra.

A abordagem proposta em torno de performances transculturais possibilita a

problematização de representações culturais do ‘outro’. Em um momento em que a auto-

representação se torna mais evidente e reivindicada, ressalta-se a importância de repensarmos

os processos de representatividade. Quem representa quem? Quem é representado? Como e o

que é representado?

A presente dissertação, traçada a partir da prática artística do performer Guillermo

Gómez-Peña e do coletivo La Pocha Nostra, traz como enfoque os projetos, procedimentos e

conceitos que marcam os programas em performance desses artistas. O jogo de formações

imagéticas, próprio desse trabalho, questiona e subverte imaginários em torno do ‘outro’, do

estrangeiro, do imigrante, do ‘traidor cultural’.

A abertura de sentido, própria da linguagem performática, permite em meio a desvios,

desacordos, dissonâncias, não encaixes e contradições, a criação de composições feitas a

partir da fragmentação, da descontinuidade, da interrupção e da rachadura no sentido. Questão

que possibilita aos performers experimentar modos de auto-representação, de paródia, de

montagem, que subvertem, sem ter que dar respostas definitivas, os padrões vigentes de

representação.

Ao trazer questões de extrema importância para pensar o consumo, os diversos

fetichismos e hibridizações, tais propostas artísticas não negam esses fluxos, ou sua presença

na constituição das subjetividades contemporâneas, em razão de uma suposta pureza cultural a

ser alcançada, mas tendem a complexificar tais relações. Dessa forma, questionam como

apropriamos e podemos apropriar dessas questões, problematizando essas relações, onde

objetos, mercadorias, pessoas, representações sociais, estereótipos e interesses de mercado, se

confundem.

O performer, como sujeito diaspórico, transita por entre diferentes culturas. A

performance como atitude frente ao mundo, presença intensificada, traz como questão as

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possibilidades de diluição das fronteiras entre arte e vida. Enquanto sujeito de múltiplas

identidades, o performer é pensado como experimentador e educador de si. Evidenciando

formações identitárias complexas que aproximam do que Canevacci (CANEVACCI, 2007,

p.108) nomeia como multivíduos, ao dizer sobre estas novas formações dos sujeitos,

dificilmente categorizáveis:

Não sou mais um indivíduo, mas um multivíduo, dificilmente apreensível ou rotulado a partir das classificações socioantropológicas tradicionais. Não se pode enquadrar em classificações o que é naturalmente vário, fragmentado. Como fixar em tabelas o que é móvel e fugidio? Por outro lado, há de se considerar a emergência das novas identidades diaspóricas, que trazem desafios ao ordenamento jurídico e administrativo dos estados/cidades e mesmo às culturas estabelecidas. Do encontro/desencontro cultural surgem as múltiplas formas de hibridismo cultural.

A formação de novas diásporas, não mais referentes aos fluxos migratórios forçados,

mas às ‘deportações voluntárias’, possibilitam o surgimento do multivíduo, enquanto ‘sujeito

diaspórico’, que não se relaciona mais com as identificações fixas, mas sim com hibridismos e

sincretismos culturais. A possibilidade inédita em ‘viver uma multiplicidade identitária’, faz

com que esse sujeito agora possa assumir-se como criador e experimentador de si, transitando

por entre diferentes códigos, culturas, identidades.

A partir de deslocamentos que aproximam, justapõe e mesclam referências diversas,

deslocam-se signos de seus habitats naturais. Performers, em diferentes programas, práticas e

procedimentos, utilizam objetos de diferentes origens e culturas, recriando símbolos, objetos

rituais, misturando elementos iconográficos e fetichistas de locais diversos. Desse modo, se

apropriam e devoram tudo que encontram no caminho.

Tal fusão de imagens, símbolos, mitos e atitudes, a partir de inversões, travestimentos

culturais e subversão de poderes, desestabilizam as noções identitárias hegemônicas.

Identidade que, nesse sentido, já não é mais compreendida como unidade, fixa, coerente, mas

complexa, mutante, móvel, fluída, composição própria e precária a partir de identificações,

apropriações, montagens.

É, nesse sentido, que esses escritos fronteiriços, desrespeitando delimitações

estanques, segregações e demais separatismos, trazem como objeto de investigação a arte da

performance e seus desdobramentos pedagógicas. Tendo como enfoque o coletivo La Pocha

Nostra, o intuito dessa abordagem é compreender a performance enquanto ‘pedagogia

radical’, trazendo o ‘método Pocha’ enquanto metodologia ‘work in progress’ que investiga

possibilidades de formação performática.

O coletivo La Pocha Nostra, sediado em São Francisco – EUA, se estrutura enquanto

uma organização, rede de artistas de diferentes idades, gêneros, etnias, nacionalidades,

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disciplinas, gerações, dispostos a cruzar e questionar fronteiras entre arte/vida, teoria/prática,

arte/política, artista/espectador. A compreensão de uma colaboração artística que se dá através

de uma rede solta, maleável, de encontros e parcerias, diz sobre a forma disforme em que se

dá tais encontros. A maleabilidade e o constante processo de reinvenção do grupo é marca

importante de seus projetos educativos e performáticos.

O La Pocha Nostra se apresenta como um ‘cartel de bastardos culturais’, trazendo

‘nossas impurezas’ como material a ser experimentado, engajado, transfigurado em seu lugar

de trânsito, o corpo. Enquanto neologismo que subverte uma expressão a princípio

depreciativa – pocho remete ao traidor cultural, aquele que sai de seu território natal – o nome

do grupo trás como pauta a experiência de vida e existência pós-nacional.

It’s essentially a neologism. “Pocho/a” means a cultural traitor, or a cultural bastard. It’s a term coined by Mexicans who never left Mexico to articulate the post-national Mexican experience. It’s slightly derogative, but we have expropriated it as an act of empowerment. And “Nostra” comes from La Cosa Nostra, the Italian mafia. So you can translate it loosely as the cartel of the cultural traitors, or there is another more poetic translation that essentially means “our impurities.”8

Assim tento trazer essas ‘nossas impurezas’ como questões que permeiam a presente

investigação, buscando as vozes dissonantes, identidades disruptivas, e questionando padrões

e representações vigentes. São convocados autores que discutem a partir de uma perspectiva

descentrada em relação ao poder estabelecido, e desafiam as cartografias em uso, criando um

percurso que atravessa os estudos culturais e pós-coloniais, a teoria queer e as filosofias da

diferença, na medida em que dialogam com as interrogações pertinentes ao caminho traçado,

diante das fronteiras que se pretende atravessar.

Tomás Tadeu da Silva (2000, p.133), autor que pensa a educação na perspectiva dos

estudos culturais, articulando abordagens sobre identidade/diferença e currículo, aponta que

“cruzar fronteiras significa não respeitar os sinais que demarcam ‘artificialmente’ – os limites

entre os territórios das diferentes identidades”. Cruzar fronteiras aqui se torna pertinente tanto

à proposta estética/ética/política do La Pocha Nostra quanto à abordagem que se busca traçar.

Habitar espaços fronteiriços se mostra enquanto uma opção política em que reinventar

possibilidades de colaboração e diálogo é parte intrínseca do processo artístico. Ao questionar

as demarcações que visam barrar os fluxos e trânsitos livres entre diferentes territórios,

                                                            8 Disponível em:<http://www.artpractical.com/feature/interview_with_guillermo_gomez-pena/>. Acesso em: 10/11/2012. “É essencialmente um neologismo. ‘Pocho/a’ significa um traidor cultural, ou um bastardo cultural. É um termo cunhado por mexicanos que nunca deixaram o México para articular a experiência mexicana pós-nacional. É um pouco depreciativo, mas o temos expropriado como um ato de poder. E "Nostra" vem de La Cosa Nostra, a máfia italiana. Assim, você pode traduzi-lo livremente como o cartel dos traidores culturais, ou há outra tradução mais poética que significa, essencialmente, ‘nossas impurezas’.” (tradução nossa).

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estabelecendo postos de vigilância e controle das fronteiras, procura-se desestabilizar as ainda

vigentes ‘políticas do medo’, compactuadas com a manutenção do status quo das classes

dominantes.

A presente abordagem, em via contrária a tais medidas segregacionistas, que anseiam

por uma pretensa pureza, evidencia a compreensão contemporânea de descentramento do

sujeito cartesiano, de descrédito da noção de uma possível agência individual, independente e

autossuficiente. Essa crítica ao regime identitário de subjetivação nos leva a uma

compreensão que retoma um sujeito que, encontrando-se entre as coisas, passa a não ser

compreendido como centro a partir do qual se organiza o mundo. O modo de subjetivação

herdado da modernidade, e sua política identitária sofre um abalo sísmico.

Modo de subjetivação este que, como Suely Rolnik (2006) ressalta, requer o

‘constrangimento de nossa vulnerabilidade às forças do mundo em sua irredutível alteridade’.

Vulnerabilidade que nos permite apreender a alteridade em sua condição de campo de forças

vivas que nos afetam, diluindo a distinção entre sujeito/objeto. Sendo esta uma questão de

grande relevância para práticas artísticas, já que a vulnerabilidade “(...) é condição para que o

outro deixe de ser simplesmente objeto de projeção de imagens pré-estabelecidas e possa se

tornar uma pessoa viva.” 9.

[...] só na medida em que anestesiamos nossa vulnerabilidade ao outro é que podemos manter uma imagem estável de nós mesmos e do outro, ou seja nossas supostas identidades. Sem essa anestesia, somos constantemente desterritorializados e levados a redesenhar nossos contornos e nossos territórios de existência. (ROLNIK, 2006, p.2)

A descentralização desse sujeito é acompanhada pela busca de uma desierarquização

das inteligências, desorganização das dicotomias que sobrepõe a mente ao corpo, a teoria à

prática, separação entre corpo e mundo, complicando as noções de verdade e mentira, bem e

mal.

O movimento de desterritorialização em curso e a liquidez de nossa era apontam para

a necessidade de compreender e aceitar o efêmero e o disperso como condição da

subjetividade atual. O nomadismo característico desse tempo demonstra quão impraticável é a

esperança de alcançar um ponto último de chegada, um fundo a ser encontrado ou uma

verdade última a ser descoberta.

Encontramos na arte da performance uma opção estética que permite que as

contradições, ambiguidades e os paradoxos do nosso tempo sejam investigados. Apresenta-se,

                                                            9 Disponível em: <http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/Geopolitica.pdf>. Acesso em: 12/11/2012.

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segundo Guillermo Gómez-Peña (2005, p.204), como um locus privilegiado para nômades,

emigrantes, híbridos, desterrados. Um lugar “(...) para artistas, teóricos e rebeldes expulsos

dos campos monodisciplinares e das comunidades separatistas.”. Mostrando-se, por fim,

aberta às experimentações em torno das complexidades próprias do nosso tempo.

Arte da performance

O termo performance é utilizado por teóricos de diferentes disciplinas, se referindo a

práticas relativamente diversas. Em abordagens derivadas das ciências sociais, tanto a

linguagem, aspectos da cultura e interações sociais são analisadas como performance.

Segundo Richard Schechner (2003, p.39), a performance pode ser compreendida em oito tipos

de situações: na vida diária, nas artes, nos esportes, nos entretenimentos populares, nos

negócios, na tecnologia, no sexo, na brincadeira e nos rituais – sagrados e seculares, podendo

ser combinadas ou vividas separadamente. Nesse sentido, o enfoque dessa investigação

refere-se à performance no campo artístico, a ‘arte da performance’, termo cunhado, segundo

Schechner, “(...) como um guarda-chuva para obras que, de outro modo, resistiram à

categorização.”.

A arte da performance, enquanto arte experimental marcada pelo encontro híbrido

entre diferentes linguagens artísticas, se mostra como gênero aberto a diferentes disciplinas e

materiais, em que o corpo assume papel central no processo de criação e as fronteiras entre

arte e não-arte são amplamente investigadas. De matéria fluida e difícil definição, a

performance, ainda hoje, instiga diferentes abordagens teóricas que buscam estabelecer

semelhanças entre suas diversas manifestações, no intuito de melhor compreender o que une

tais acontecimentos artísticos sob um mesmo campo conceitual.

A performance como gênero artístico se desenvolve ao longo do século XX.

Encontramos marcos inaugurais da performance, como a compreendemos hoje, localizados

nos anos 50. Seus traços iniciais, porém, podem ser vistos já nos happenigs, na body art, e

nas demais vanguardas artísticas do início do século XX. Propostas que alavancaram a

dissolução da separação entre arte e vida, em que a presença do artista, dissociada da

representação e da ilusão, passa a ocupar papel central na constituição da obra e as fronteiras

entre as diversas artes são questionadas e diluídas.

Os desdobramentos da compreensão do ato criador como tema de arte e o processo de

criação como parte integrante da obra levaram a presença do corpo do artista para o centro da

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cena. As investigações da body art, dos limites e das capacidades do corpo, em que o mesmo

é tomado como a própria obra e não mais apenas como instrumento de sua realização,

deságuam na performance na busca de um maior aprofundamento a respeito dos discursos que

envolvem o corpo.

Enquanto evento que propõe e estabelece um tempo/espaço diferenciado daquele

habitualmente vivido no dia-a-dia, a arte da performance convoca ações corriqueiras, objetos

cotidianos, relações estabelecidas, de modo a serem transfigurados, apropriados,

redimensionados. Propiciando experiências onde nossa percepção usual e compreensão do

que nos cerca e das relações em que estamos inseridos - conosco, com o outro, com os

objetos, com o espaço e com o tempo - são alteradas.

Guillermo Gómez-Peña (2005) em seu texto Em defesa del arte del performance, na

busca de refletir sobre sua prática e reconhecer características que também identifica no

trabalho de outros performers, aponta que na performance o espaço do ponto de vista

fenomenológico é vivido através de um aqui e agora hiperintensificado, de uma presença e

atitude intensificada que se estabelece em relação direta com o espaço ambíguo entre tempo

real e tempo ritual, em oposição ao tempo teatral ou fictício.

Lidiamos con la “presencia” y la actitud desafiante em oposición a la “representación” o la profundidad psicológica; con el “estar aquí” en el espacio en oposición al “actuar” o fingir que somos o estamos siendo. Richard Schechner elabora la siguiente idea: “En el arte del performance la ‘distancia’ entre lo real-verdadero (social y personal) y lo simbólico, es mucho menor que en el teatro de drama donde casi todo consiste en fingir, donde incluso lo real (una taza de café, una silla) se convierte en fingimiento.10 (GÓMEZ-PEÑA, 2005, p.220)

Dessa forma, são ativados diferentes modos possíveis de vivenciar e estabelecer a

relação corpo/tempo/espaço como alternativas de experienciar, experimentar e ler a realidade.

De maneira que provocam deslocamentos, tanto no que diz respeito aos performers quanto

aos espectadores que nesse contexto assumem diferentes posições e níveis de interação.

Em seu livro introdutório A arte da Performance (2006) a autora RoseLee Goldberg

reconhece nas Vanguardas Europeias a faísca disseminadora do surgimento da performance.

Aponta ainda, mesmo reconhecendo a dificuldade de uma definição precisa, que em suas

variáveis:

A obra pode ser apresentada em forma de espetáculo solo ou em grupo, com iluminação, música ou elementos visuais criados pelo próprio performer ou em colaboração com outros artistas, e apresentada em lugares como uma galeria de arte,

                                                            10 “Lidamos com a ‘presença’ e a atitude desafiante em oposição à ‘representação’ ou à profundidade psicológica; com o ‘estar aqui’ no espaço em oposição ao ‘atuar’ ou fingir que somos ou estamos sendo. Richard Schechner elabora a seguinte ideia: ‘Na arte da performance a ‘distância’ entre o real-verdadeiro (social e pessoal) e o simbólico, é muito menor que no teatro de drama onde quase tudo consiste em fingir, onde inclusive o real (uma taça de café, uma cadeira) se converte em fingimento.” (tradução nossa)

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um museu, um “espaço alternativo”, um teatro, um bar, um café ou uma esquina. Ao contrário do que ocorre na tradição teatral, o performer é o artista, raramente um personagem, como acontece com os atores, e o conteúdo raramente segue um enredo ou uma narrativa tradicional. A performance pode ser uma serie de gestos íntimos ou uma manifestação teatral com elementos visuais em grande escala, e pode durar de alguns minutos a muitas horas; pode ser apresentada uma única vez ou repetida várias vezes, com ou sem um roteiro preparado; pode ser improvisada ou ensaiada ao longo de meses. (GOLDBERG, 2006, p.VIII)

De forma geral, a autora ainda ressalta o frequente uso de diferentes disciplinas e

mídias como material de performance, na tentativa de ampliar os meios de expressão,

reduzidos muitas vezes na época à pintura e à escultura, e o desejo de sair dos espaços

outorgados dos sistemas de arte: museus e galerias.

A presença viva, a importância e centralidade do corpo do artista na obra, foram

imprescindíveis para o que se configurou então como performance art. No entanto, a despeito

de uma tentativa de conceituação, cada artista cria uma definição própria de performance a

partir dos desdobramentos de seu processo artístico. Disso ressaltamos a importância de

consultar esses documentos e escritos do artista, manifestos e diários, para compreensão de

suas práticas.

Em entrevista concedida ao jornal ‘Diário do Nordeste’ Eleonora Fabião (2009)

corrobora com a ideia da impossibilidade e falta de sentido em se criar uma definição fechada

sobre o que vem a ser performance. Para ela “Definir performance é um falso problema” 11.

Mesmo reconhecendo alguns traços comuns entre as diversas práticas, sugere a existência de

uma a grande variedade entre os diferentes programas, procedimentos e propostas em

performance:

Enquanto gênero, a performance não fixa formas espaciais ou temporais, não utiliza mídias ou materiais específicos, nem estabelece modos de recepção ou critérios de documentação. Alguns performers trabalham em espaços públicos, outros em galerias ou demais espaços destinados à fruição artística, outros em seus próprios estúdios ou casas, enquanto outros preferem espaços rurais. O mesmo sobre a temporalidade da performance: há peças com duração de um ano enquanto outras duram horas, minutos ou mesmo segundos. Quanto às mídias e materiais utilizados pelos artistas, a diversidade também é grande. Quanto à recepção da performance, também impera a indeterminação: alguns artistas performam para espectadores (que tornam-se cúmplices ou testemunhas de seus feitos), outros com os espectadores (que tornam-se assistentes e até mesmo co-realizadores do evento), e outros sem espectadores (e optam por documentar ou não as ações realizadas). Há também aqueles artistas que criam proposições para serem realizadas não por eles, mas pelos próprios “espectadores”. Ou ainda, numa versão radicalmente diferente, aqueles que contratam e pagam pessoas para performar suas propostas.

Eleonora Fabião ainda sugere as vantagens de uma perspectiva histórica, que relativiza

a origem da performance, se mostrando mais interessante do que uma compreensão que

                                                            11 Disponível em: < http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=652907>. Acesso em: 15 dez. 2012.

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busca definir em termos limitadores o seu significado. Para que possamos ter um melhor

entendimento de como o gênero é construído, torna-se necessário o reconhecimento do que se

tem feito ser performance, de onde podemos encontrar uma serie de apontamentos, sempre

provisórios, para a questão ‘o que é performance’.

Guillermo Gómez-Peña (2005) ressalta a natureza escorregadia e em permanente

mudança da performance o que torna extremamente difícil definir em termos simplistas o que

seja essa linguagem artística. Aponta ainda a importância de não se estabelecer postos de

controle sobre o mapa da prática performativa. Ao refletir sobre a sua atividade artística, traz

a performance também como uma atitude frente ao mundo.

El performance es una forma de ser y estar em el espacio, frente a/o alrededor de un público especifico. También es una mirada intensificada, un sentido único de propósito en el manejo de objetos, compromisos y palabras y, al mismo tiempo, una “actitud” ontológica hacia todo el universo. Los chamanes, faquires, coyotes y merolicos comprenden esto muy bien.12 (GÓMEZ-PEÑA, 2005, p.220)

Enxergando o potencial educativo da performance e de deslocamento do conhecido,

seu caráter provocativo e desestabilizador, é que busco investigar práticas pedagógicas em

performance. Acreditando que possam, como aponta Eleonora Fabião (2008, p.236), turbinar

‘a relação do cidadão com a polis; do agente histórico com seu contexto; do vivente com seu

tempo, o espaço, o corpo, o outro, o consigo’, podendo efetivar um importante papel

formativo.

Penso que estas práticas alargam, que estes programas oxigenam e dinamizam nossas maneiras de agir e de pensar ação e arte contemporaneamente. Esta é, a meu ver, a força da performance: turbinar a relação do cidadão com a polis; do agente histórico com seu contexto; do vivente com o tempo, o espaço, o corpo, o outro, o consigo. Esta é a potência da performance: des-habituar, des-mecanizar, escovar à contra-pêlo. Trata-se de buscar maneiras alternativas de lidar com o estabelecido, de experimentar estados psicofísicos alterados, de criar situações que disseminam dissonâncias diversas: dissonâncias de ordem econômica, emocional, biológica, ideológica, psicológica, espiritual, identitária, sexual, política, estética, social, racial...

Ao reconhecer essa potência que remete diretamente à vida e nossa relação estética

com o cotidiano, com a alteridade, com nosso corpo, com o espaço, com o tempo, com a

sociedade, a presença de tal linguagem no contexto formativo se faz pertinente ainda em razão

de suas temáticas, frequentemente relativas às experiências de vida e existência humana. Nas

diferentes performances são trazidos temas e questões pessoais relativas à vida do performer

                                                            12 A performance é uma forma de ser e estar no espaço, frente a/ou ao redor de um público específico. Também é um olhar intensificado, um sentido único de propósito no manejo dos objetos, compromissos e palavras e, ao mesmo tempo, uma ‘atitude’ ontológica com todo o universo. Os xamãs, faquires, coiotes e ‘merolicos’ compreendem isso muito bem.” (tradução nossa)

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ou da coletividade a qual pertence, de modo a vivenciar, expor, redimensionar, ressignificar

tais relações.

Na perspectiva da trajetória escolhida para o desenvolvimento dessa pesquisa, tais

práticas de pedagogia em performance parecem possibilitar que os integrantes do processo

possam a partir de formações, composições, colagens, justaposições, próprias da linguagem

performática, trazer suas questões, biografias, corpos, subjetividades, observações, de modo a

investigar, ressignificar, recriar suas relações e leituras da realidade. Sendo experimentados,

assim, diferentes modos de ser, estar e se relacionar, possibilitando aos participantes se

apropriar de modo próprio, significativo e criativo de suas existências, o que contribui para

uma formação humana, ética, política e estética e ampliação das referências sensíveis,

sensoriais e reflexivas dos mesmos.

Questões, que remetem às narrativas e discursos relativos às construções identitárias e

processos de pertencimentos culturais, emergem como material quando se pretende partir e

levar em consideração a realidade dos participantes. Descortinam-se assim relações de poder

que envolvem dominações, segregações, barreiras e fronteiras, e estabelecem os modelos

identitários reconhecidos e validados e os modos de vida bem sucedidos. Além de oportunizar

espaços de recriação e investigação da subjetividade, referências diversas são combinadas e

novas formas de associação e agrupamento podem ser ensaiadas e experimentadas.

O enfoque no aspecto pedagógico da arte da performance aponta para a necessidade de

investigar como diferentes performers tem lidado com a questão em suas práticas formativas

em performance. Nesse sentido, se faz importante pesquisar quais abordagens e propostas

metodológicas têm sido utilizadas e quais procedimentos e programas são desenvolvidos, no

intuito de elucidar a prática e a compreensão do aspecto educativo da/na performance. O

coletivo La Pocha Nostra encontrou na pedagogia um aspecto primordial de sua atividade, no

momento em que buscava repensar sua prática e reconfigurar sua cartografia poética, para

‘inventar um mapa mais inclusivo para expressar/falar’.

Na tentativa de reunir, organizar, compilar as práticas e procedimentos utilizados ao

longo de sua trajetória, em seus workshops e processos formativos, o La Pocha Nostra

desenvolveu o que é nomeado como ‘Método Pocha’. Essa proposta metodológica, em

processo permanente de reinvenção, é formada por exercícios, jogos e práticas desenvolvidos

ao longo dos anos, em colaboração com performers e pessoas que passaram durante a

trajetória do coletivo, e também apropriados de diferentes fontes, práticas e exercícios

clássicos da performance.

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Em seu senso de urgência a metodologia desenvolvida se mostra inteiramente aberta

às mudanças in situ, relativas às necessidades do momento e do grupo com quem estão

trabalhando, apresentando-se enquanto um ‘método vivo para práticas de performance art em

tempos de crise’. Para isso apropriam-se de diferentes meios para mantê-lo em movimento

continuo de transformação. A utilização das novas tecnologias, e das possibilidades que

oferecem, surge como meio para manter o método vivo, aberto e interativo.

Os procedimentos e temáticas presentes nas oficinas e práticas pedagógicas realizadas

pelo grupo trazem importantes apontamentos para uma prática pedagógica em performance

transcultural. Nesse sentido, a investigação e a complicação das noções de identidade e

diferença, vistas de modo a não fixá-las ou essencializá-las, aponta para uma metodologia da

diferença, trabalhada em seu lugar de trânsito – o corpo. Exemplos dessa relação encontram-

se explícitos nos objetivos de uma de suas oficinas.

El objetivo, o uno de los objetivos pedagógicos del taller, es descolonizar el cuerpo. Reocuparlo intelectualmente, politizarlo, y convertirlo en un sitio de reinvención permanente de la identidad. Y para lograr este objetivo tenemos que empezar a resocializarnos. A dejar de pensar el cuerpo en un objeto de deseo erótico. Y pensar el cuerpo como territorio, como mapa, como lenguaje, como texto abierto, como instrumento musical, como vehículo de identidades múltiples, como metáfora permanentemente mutante, como símbolo; como artefacto estético, también.13

Desse modo, chegamos ao propósito último dessa dissertação: identificar as propostas

metodológicas, procedimentos, temáticas, apontamentos conceituais que sustentam as práticas

pedagógicas do coletivo La Pocha Nostra, e investigar o processo formativo/educativo por via

da arte da performance. É trazido para esse processo as implicações éticas, estéticas e

políticas da performance, sua potência em alargar as noções de identidade e diferença,

descolonizar nossos corpos, reinventar modos de colaboração, atravessar e questionar

fronteiras, deslocar e dissecar estereótipos, símbolos e protótipos.

                                                            13 Disponível em: <http://jolgoriocultural.wordpress.com/entrevistas/> Acesso em: 18/12/2012. “O objetivo, ou um dos objetivos pedagógicos da oficina, é descolonizar o corpo. Reocupá-lo intelectualmente, politizá-lo e converte-lo em um lugar de reinvenção permanente da identidade. E para conseguir esse objetivo, precisamos começar a nos ressocializar. A parar de pensar o corpo em um objeto de desejo erótico. E pensar o corpo como um território, como um mapa, como a linguagem, como texto aberto, como um instrumento musical, como um veículo para múltiplas identidades, como metáfora permanentemente mutante, como símbolo; como um artefato estético também.” (tradução nossa)

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1 LA POCHA NOSTRA

To the Masterminds of Paranoid Nationalism

I say, we say: ‘We,’ the Other people

We, the migrants, exiles, nomads & wetbacks in permanent process of voluntary deportation

We, the transient orphans of dying nation-states la otra America; l’autre Europe

We, the citizens of the outer limits and crevasses of ‘Western civilization’

We, who have no government; no flag or national anthem

We, the New Barbarians We, in constant flux,

from Patagonia to Alaska, from Juarez to Ramalla,

todos somos mojados We, the seventh generation, the fourth world, the third country

We millions abound, defying your fraudulent polls & statistics

We continue to talk back & make art [Shamanic tongues]14

Somos ‘nós’ os bastardos, migrantes, exilados, nômades e imigrantes ilegais, em

permanente processo de deportação voluntária, os sem governo, sem bandeira e sem pátria os

grandes agentes dessa história escovada a contrapelo. Indo contra as versões oficiais da

história e possibilitando que discursos não outorgados sejam escutados. A prática do La Pocha

Nostra busca a ampliação dos locais de emissão de fala e escuta das referências diversas.

Estão interessados nas fissuras, nas fendas e dissoluções de fronteiras, nesses campos

indeterminados, da hibridização e da impureza cultural, por onde o novo entra no mundo,

desestabilizando as cartografias em uso.

Esse primeiro capítulo pretende investigar a prática performativa do coletivo La Pocha

Nostra, em relação à sua proposta artística, aos temas e procedimentos abordados. Nesse

sentido, algumas de suas performances foram analisadas a partir do contexto apresentado,

relacionando-as com questões relevantes para essa temática, como as fronteiras atravessadas e

as impurezas que se pretende habitar. Entre os autores que fundamentam teoricamente esse

                                                            14 “Para mentores do nacionalismo paranoico// Eu digo, nós dizemos://"Nós", as outras pessoas//Nós, os imigrantes, os exilados, nômades e latinos//em permanente processo de deportação voluntária//Nós, os órfãos transitórios dos moribundos estados-nação//A outra América; a outra Europa//Nós, os cidadãos dos limites exteriores e das fendas da "civilização ocidental"//Nós, que não temos governo//nenhuma bandeira ou hino nacional//Nós, os novos bárbaros//Nós, em fluxo constante//da Patagônia ao Alasca//de Juarez para Ramalla//Todos somos mojados//Nós, a sétima geração, o quarto mundo, o terceiro mundo//Nós milhões infestamos//desafiando suas votações fraudulentas e estatísticas//Continuamos a falar de volta e fazer arte//[Línguas xamânicas]” (tradução nossa)

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capítulo estão: Belidson Dias, Coco Fusco, Eleonora Fabião, Guillermo Gómez-Peña, Homi

Bhabha, Judith Butler, Massimo Canevacci, Maurice Merleau-Ponty, Nestor García Canclini,

Nicolas Bourriaud, Stuart Hall, Tomaz Tadeu da Silva e Suely Rolnik.

Em 1978 Guillermo Gómez-Peña, aos 22 anos de idade, muda-se da Cidade do

México para a Califórnia para estudar arte. Sob o peso da pressão das prescrições de como ser

mexicano, ainda muito ditadas pela cultura oficial, pelas noções de território e idioma

nacional, ele decide deixar o país. A identidade mexicana entendida como direito daqueles

que, morando no país, pertenciam à cultura local e tinham o espanhol como única ou principal

língua não deixava, segundo Gómez-Peña (2005, p.5), muitos caminhos para reinventar o que

era ser mexicano.

A complexidade própria da formação do ‘povo mexicano’, latino, e de outros povos

que passaram pelo processo de colonização é marca das culturas nacionais desses países

enquanto culturas híbridas. Historicamente as insistentes retomadas de nacionalismos e

narrativas unificadoras, responsáveis pela manutenção da nação enquanto pretensa unidade

coesa, tentaram apagar o dinamismo da cultura e as muitas misturas que compõem e

recompõem continuamente as identidades nacionais, e que resistem a tais tentativas

homogeneizantes.

A colonização nos diferentes países latino-americanos deixou marcas profundas na

constituição destes países, os lastros são feridas não cicatrizadas, presentes em sua formação,

imaginário social, mobiliário urbano, memórias e constituição social. No México, segundo

Gómez-Peña, o povo indígena, os originários ‘proto-mexicanos’ são representados de modo

infantilizado, como se fossem viventes de um tempo e espaço paralelo e mítico da história e

da sociedade, processo que também podemos reconhecer no Brasil.

No contexto social do país as tradições e imagens indígenas são reconhecidas e

utilizadas de modo folclorizante. Artefatos de sua cultura são vendidos e expostos em

situações turísticas e de curiosidade cultural, enquanto seus problemas – desemprego,

alcoolismo – se avolumam. A situação dos povos indígenas, na maioria dos países que se

configuram como ex-colônias, se mostra enquanto um nervo exposto dos problemas que

envolvem a formação dessas nações.

A relação de pertencimento à cultura oficial de um país demonstra a sua precariedade

não somente entre os povos indígenas, como também em diferentes grupos sociais não

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hegemônicos. Canclini (1999, p.75) corrobora com essa questão quando diz que “(...) não é

necessário ser migrante indígena para experimentar a parcialidade da própria língua e viver

apenas fragmentos da cidade”. De diferentes formas sentimos as fendas que se abrem diante

da suposta cultura oficial de uma nação.

Guillermo Gómez-Peña e outros tantos, que por motivos variados atravessaram a

fronteira, passam a ser considerados diante da cultura oficial como traidores, mexicanos

inautênticos e bastardos: Pochos. Segundo Gómez-Peña, a partir do momento em que a

fronteira é cruzada inicia-se o irreversível processo de pocho-ização ou de des-

mexicanização.

Na verdade eu opto pelo "fronteiriço" e assumo a minha conjuntura: vivo justo na fenda de dois mundos, na ferida infestada, a meio quarteirão do fim da civilização ocidental e a quatro milhas do princípio da fronteira do México com os Estados Unidos de América, no ponto mais ao norte da América Latina. Na minha multi-realidade-fraturada, ainda realidade, co-habitam duas histórias, linguagens. cosmogonias, tradições artísticas e sistemas políticos drasticamente opostos (a fronteira é o enfrentamento contínuo de dois ou mais códigos referenciais)[...]. Nós nos desmexicanizamos para mexicompreender-nos, alguns sem vontade, outros desejando. E um dia a fronteira se converteu na nossa casa, laboratório, Ministério da Cultura (ou contra-cultura). (GÓMEZ PENA, 2002, p. 48 apud CABALLERO, 2011, p.50).

Ao chegar aos E.U.A. Gómez-Peña passa a conviver com chicanos e escrever em

spanglish – a língua dos Pochos – e refletir a respeito da natureza cultural híbrida

compartilhada por eles, excluída pelas duas nacionalidades. Ele utiliza a fita de Moebius como

metáfora dessa condição de desterritorialização inevitável após o cruzamento da fronteira.

Sempre que se tenta o retorno, acaba-se do outro lado, como se estivesse andando sobre a fita.

Desse modo, ao caminhar sobre a fita, o percurso traçado não se encontra localizado em uma

parte ou em outra, mas em trânsito.

Desde a primeira performance realizada por Gómez-Peña – The Loneliness of the

Immigrant – seis meses depois de sua chegada em Los Angeles, é possível identificar como

temática as questões do imigrante, do corpo estrangeiro, invisibilizado em meio às grandes

cidades15. Nessa performance ele permanece durante 24 horas em um elevador público

embrulhado em um tecido indiano amarrado com cordas, impossibilitado de mover ou

comunicar verbalmente, abandonado à completa vulnerabilidade e anonimato. A partir dessa

ação Gómez-Peña percebe que a performance poderia ser um meio muito interessante para

inserir os dilemas existenciais e políticos na esfera social.

                                                            15 GÓMEZ-PEÑA, 2005, p. 6.

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Figura 1 – Guillermo Gómez-Peña na performance The Loneliness of the Immigrant. Fonte: Site do Museu de Arte Contemporânea - MOCA, Los Angeles. Disponível em: <http://sites.moca.org/blacksun/2011/09/27/guillermo-gomez-pena-the-loneliness-of-the-immigrant-19792011>. Acesso em: 08 fev. 2013.

A fronteira entre México e Estados Unidos aparece no contexto da política

internacional como território que deve ser protegido e vigiado desse indesejável encontro com

o ‘outro’ – suposta ameaça da pureza de sua cultura. Nesse sentido, assentam-se políticas anti-

imigração, há tempos em curso, com seus muros e cercas que pretendem dificultar e barrar o

trânsito de imigrantes, cuja influência cultural e política é decisiva em ambos os países.

O fato é que essa população não para de crescer, sujeitos híbridos, fronteiriços, somos

todos nós. Como podemos constatar, são 35 milhões de mexicanos pós-nacionais, aculturados

(ou chicanizados), juntamente com outros tantos latinos, que vivem em território

estadunidense. Para Gómez-Peña a própria existência dessas múltiplas formações identitárias

demanda uma nova cartografia – uma nação virtual em que latinos, com documento ou não,

possam usufruir os mesmos direitos e privilégios dos cidadãos norte-americanos.

Nesse sentido, ele não sugere apenas uma tolerância liberal, mas propõe uma outra

concepção política a respeito da imigração, em que as diferenças sejam encorajadas e palavras

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como ‘estrangeiro’, ‘imigrante’, ‘minoria’, ‘diáspora’, ‘fronteira’ e ‘americano’ se tornem

inúteis para explicar a condição das novas formações identitárias.

A partir do histórico 11 de setembro acirrou-se o fechamento das fronteiras,

justificando a subsequente ‘guerra ao terror’, marcada pela cultura da intolerância, pelo

patriotismo, pela paranoia e isolamento social, sintomas decorrentes do medo exasperado que

se alastrou pela vida privada e pública nos EUA. O país, em estado de alerta máximo, tornou

os negros/não brancos suspeitos, investindo em um patrulhamento da fronteira muito

intensificado e feroz. Essa nova situação exerceu uma forte influência na cartografia

performática de Gómez-Peña.

Por outro lado, os Zapatistas traziam as questões indígenas para a discussão das

políticas nacionais. Utilizavam, para tanto, desde alegorias poéticas, cyber comunicados e

estratégias performáticas como procedimentos de ação. Esse movimento exerceu uma forte

influência nos trabalhos e projetos de Gómez-Peña e do La Pocha Nostra.

Podemos perceber a dificuldade em mapear de maneira precisa a complexidade

contemporânea dos atuais atravessamentos culturais. Paralelamente à diluição das fronteiras e

aos fluxos contínuos entre diferentes culturas, o fortalecimento de barreiras, nacionalismos e

fundamentalismos também marca o cenário geopolítico internacional contemporâneo.

Diante do contexto global e específico dos EUA, da ‘guerra de culturas’ instaurada, do

culto popular das novas tecnologias e da cultura da globalização, Guillermo Gómez-Peña e

Roberto Sifuentes sentiram a necessidade de repensar em sua prática artística noções de

identidade e comunidade. Movidos por questões que começavam a mobilizar cada vez mais a

atenção da sociedade – discussões e investigações em torno de raça, gênero, nacionalidade,

ideologia, novos paradigmas culturais e noções de pertencimento – os dois performers se

unem na busca de fomentar colaborações artísticas e ensaiar novas estratégias de criação de

comunidades temporárias de rebeldes.

A busca de novos paradigmas culturais e o novo senso de pertencimento, em um

tempo em que todas as certezas estavam amolecidas, derretidas, dissolvidas, é o contexto de

surgimento do La Pocha Nostra. Nesse sentido, através de sua prática performativa,

pretendiam fomentar colaborações artísticas como uma forma de ‘diplomacia-cidadã’ e

promover estratégias para o desenvolvimento de comunidades temporárias de rebeldes. Surge

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assim uma poética singular numa espécie de interseção entre performance, teoria,

comunidade, novas tecnologias e ativismo político.

O coletivo La Pocha Nostra surge em 1993, fundado por Guillermo Gómez-Peña, Nola

Mariano e Roberto Sinfuentes, na cidade de Los Angeles. Em 1995 transferem sua sede para

São Francisco – Califórnia. Organização artística em constante processo de reinvenção, o La

Pocha Nostra abrange em sua prática artística tanto performances, como também foto-

performances, instalações artísticas, vídeo, rádio, poesia, configura-se enquanto instituto

conceitual de arte híbrida, em caráter transdisciplinar.

Com objetivo inicial de desdobrar as colaborações entre Guillermo Gómez-Peña,

artista mexicano radicado nos EUA, e outros artistas, hoje o La Pocha Nostra envolve um

grande grupo de colaboradores residentes em diferentes localidades. A partir de um núcleo

mais fixo de artistas (número sempre instável) com dedicação mais exclusiva, se reúnem

cerca de cinquenta colaboradores em todo o mundo. A atuação do La Pocha se dá tanto

através de propostas artísticas realizadas individualmente, como também por meio de um

grande número de artistas que se reúnem em comunidades efêmeras.

Além dos integrantes do núcleo mais fixo, e de artistas que integram o grupo de forma

mais esporádica, a colaboração com outras pessoas/artistas pode se efetivar a partir dos

workshops, de colaborações com artistas locais, e da participação de pessoas do público, que

se tornam também cocriadores da obra. Podemos enxergar na proposição de criação de

comunidades efêmeras a possibilidade de ensaiar novas táticas, estratégias e modos de

colaboração no processo criativo.

Durante os cursos e oficinas do La Pocha, os participantes são convidados a

desenvolver ‘personas híbridas’ baseadas em suas próprias complexidades identitárias,

estéticas pessoais e convicções políticas. O emponderamento e a autonomia são objetivos

centrais dos experimentos pedagógicos do La Pocha, a criação de novos modelos de

produção, mais igualitários, sugere a substituição de processos hierárquicos de produção.

Em spanglish o neologismo La Pocha Nostra se traduz como nossas impurezas ou

como cartel de bastardos culturais. Na base do trabalho desse coletivo se assenta a busca

daquilo que não é puro, claro e cristalino, mas que se encontra nesse entre, nos espaços

fronteiriços, entendidos também como espaços de experimentação, de indeterminação, do

disperso – que não pode ser controlado, categorizado.

La Pocha Nostra é um coletivo de artistas, anti-essencialista, que vai contra as

‘políticas do medo’ e a histeria anti-imigrante, dizendo não às censuras, ao patriotismo, às

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fronteiras, ao estado-nação, à ideologia. Críticos do medo instaurado nos EUA pós-11 de

setembro, promovem a representação de uma América multicultural e diversificada. Ao jogar

com iconografias, estereótipos, desdobrar modos de representação da diferença, investigar

possibilidades identitárias e de travestimentos, abre-se um campo de experimentação onde as

complexidades são aceitas e estimuladas e as relações de poder tornam-se objeto de

investigação.

Exploram em seus diferentes projetos a interface entre globalização, migração,

identidades híbridas, culturas de fronteira e novas tecnologias. Tais temáticas são traçadas a

partir da investigação em torno do atual estado de segurança nacional, da política de exclusão,

dos fluxos migratórios, dos conflitos étnicos e territoriais, dos meios de comunicação em

massa, do medo e da violência utilizados como modo de segregar, dominar, e subjugar o

outro.

No texto La Pocha Nostra: um manifesto em constante processo de reinvenção

Guillermo Gómez-Peña, ressalta o caráter transdisciplinar, anti-essencialista, anti-

nacionalista, trans-cultural do grupo:

La Pocha Nostra es una organización trans-disciplinaria de arte, radicada en San Francisco, y conectada a “grupos asociados” en muchas ciudades y países. Como lo plantea nuestro sitio electrónico, proveemos las bases para una red informal de artistas rebeldes en diferentes disciplinas, generaciones y etnias. Si existiera un común denominador, éste sería nuestro deseo de cruzar y borrar fronteras peligrosas e innecesarias entre el arte y la política, la práctica y la teoría, el artista y el espectador. Luchamos por erradicar los mitos modernistas sobre la pureza en la cultura, y por disolver las fronteras que rodean a las nociones convencionales de la etnicidad, la sexualidad, el lenguaje y los oficios artísticos.16

Em processos performativos, ao cruzar fronteiras e desrespeitar as delimitações

institucionais sobre os territórios, são dissolvidas tentativas de manutenção de supostas

purezas – arte e vida se unem de modo particularmente político. O performer, nesse sentido, é

um cruzador de fronteiras artísticas, nacionais, geracionais e de gênero. A criação de espaços

utópicos temporários parte da ideia de que cruzar fronteiras na galeria é meio passo para

                                                            16 Disponível em: < http://revistas.unisinos.br/index.php/ciencias_sociais/issue/view/21>Acesso em: 06 jan. 2013. “La Pocha Nostra é uma organização transdisciplinar de arte com sede em São Francisco, e conectado a "grupos de parceiros" em muitas cidades e países. Como sugerido pelo nosso site, nós fornecemos a base para uma rede informal de artistas rebeldes em diferentes disciplinas, gerações e etnias. Se há um denominador comum, este seria o nosso desejo de atravessar e apagar fronteiras perigosas e desnecessárias entre a arte e a política, a prática e a teoria, o artista e o espectador. Nós lutamos para erradicar os mitos modernistas sobre a pureza na cultura, e dissolver as fronteiras que cercam as noções convencionais de etnia, sexualidade, linguagem e os ofícios artísticos.” (tradução nossa).

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cruzá-las em âmbito mais amplo. Nessa zona ‘utópica/distópica’ temporária e desmilitarizada,

um dos objetivos é descolonizar nossos corpos.

Nuestros cuerpos también son territorios ocupados. Quizá la meta última del performance, especialmente si eres mujer, gay o persona “de color” (no anglosajona), es descolonizar nuestros cuerpos; y hacer evidentes estos mecanismos descolonizadores ante el público, con la esperanza de que ellos se inspiren y hagan lo mismo por su cuenta. (GÓMEZ-PEÑA, 2005, p.205)17

O corpo do performer em sua rede de relações – implicações semióticas, políticas,

etnográficas e mitológicas – é levado ao centro do altar, de onde o jogo de inversão de

estruturas sociais, étnicas, de gênero se dá como parte intrínseca desse processo de

descolonização. Ao descolonizar esse corpo, entendido também como ‘território ocupado’, em

frente ao público, acreditam poder despertar questionamentos que por vezes podem extrapolar

o momento da performance. Fica a esperança de que a potência das imagens e dos rituais

criados durante as performances possam retornar, rondar e povoar o público, em seus sonhos

e em seu cotidiano, detonando um processo de reflexão, que o inspire também a agir em seu

cotidiano.

Na abordagem de Eleonora Fabião (2009, p. 63), em torno dos temas e procedimentos

presentes em programas de diferentes performers, são enumeradas diversas práticas que,

conforme sustentamos, também podem ser identificadas nas performances do coletivo La

Pocha Nostra:

1) o deslocamento de referências e signos de seus habitats naturais; 2) a aproximação e fricção de elementos de distintas espécies, naturezas e esferas ontológicas; 3) acumulações, exageros e exuberâncias de todos os tipos; 4) aguda simplificação da forma e condensação de materiais e idéias; 5) a aceleração e des-aceleração da noção de identidade até o seu colapso; 7) a recusa de performar personagens fictícios e o interesse em explorar características próprias (etnia, nacionalidade, gênero, especificidades corporais), em exibir seu tipo ou estereótipo social; 8) o investimento em dramaturgias pessoais, por vezes biográficas, onde posicionamentos e reivindicações pessoais são publicamente performados; 9) o curto-circuito entre arte e não-arte; 10) o estreitamento entre política e estética; 11) agudez conceitual; 12) o encurtamento ou a distensão da duração até os limites extremos; e 13) a ampliação dos limites psicofísicos do performer e de sua audiência.

Ao transitar por entre as práticas performáticas elencadas pela autora, podemos

reconhecer nas propostas do La Pocha Nostra praticamente todas elas. O uso de objetos de

diferentes origens e culturas – a partir de deslocamentos e justaposições que mesclam e

deslocam as referências e os signos de seus habitats naturais – possibilita a recriação de

                                                            17 “Nossos corpos também são territórios ocupados. Talvez o objetivo final da performance, especialmente se você é mulher, gay ou uma pessoa "de cor" (não- Anglo saxão), é descolonizar o nosso corpo, e deixar claro estes mecanismos de descolonização para o público, com a esperança de que eles se inspirem a fazer o mesmo por conta própria.”(tradução nossa).

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símbolos e objetos rituais, misturando elementos iconográficos de locais diversos. Desse

modo os performers ‘se apropriam e devoram tudo que encontram no caminho’.

O jogo de imagens criado a partir das noções de identidade/diferença traz o corpo do

performer – em suas diversas implicações, características, marcas, cicatrizes – como potência

que evidencia as complicações e interrupções das construções imagéticas vigentes. Nesse

sentido, os estereótipos relativos às supostas identidades culturais não hegemônicas são

investigados e questionados. A partir da criação coletiva de imagens busca-se recriar essas

relações sociais.

A fusão de imagens, símbolos, mitos e atitudes, a partir de inversões, travestimentos

culturais e subversão de poderes, desestabiliza as noções hegemônicas de identidade.

Estreitam-se assim as relações entre política e estética, arte e vida. A busca em habitar as

fronteiras como espaço de experimentação e como lugar de interseção de realidades múltiplas

se mostra como uma possibilidade fértil de ensaiar novas formas de colaboração. Essa opção

estética, que cruza e questiona fronteiras – criando, atravessando e habitando espaços

fronteiriços – pretende construir outros mundos possíveis.

O aspecto que estreita os laços entre a política e a estética nas performances do La

Pocha Nostra parece se aproximar do que Homi Bhabha (2005, p. 20) ressalta como uma

busca necessária de construção de subjetividades articuladas a partir das diferenças culturais,

nos ‘entre-lugares’, onde novos signos, relações identitárias e modos de colaboração podem

ser traçados.

O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de passar além das narrativas de subjetividades originarias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais. Esses “entre-lugares” fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação - singular ou coletiva - que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade.

A posição do grupo de não dissociar política e estética, presente em seus manifestos e

práticas artísticas, desdobra-se em suas atividades educativas. Nesse contexto, se dá

continuidade à busca de abrir espaços para explorar as construções imagéticas em torno de

identidades e diferenças. Nesse intuito, são realizadas complicações e interrupções das

identidades e referências hegemônicas – responsáveis por atribuir significados, valorar e

estabelecer os incluídos e os excluídos. Possibilita-se, desse modo, um descentramento dos

locais de emissão e das referências vigentes, o que acarreta na multiplicação das vozes de

representação encontradas na sociedade atual. A abordagem proposta em torno de

performances transculturais problematiza as representações culturais do ‘outro’.

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Massimo Canevacci, em aula inaugural do Programa de Pós-Graduação em

Comunicação da Uerj18, aponta a importância de repensarmos os processos de representação

realizados por antropólogos, pesquisadores, em suas incursões de encontro ao outro. Questões

como: quem representa quem, quem é representado, como e o que é representado, surgem

como problematização que visa repensar esse modus operandi. Em um momento em que os

meios e possibilidades de auto-representação são muito mais acessíveis, os métodos de

pesquisa precisam ser repensados.

Atravessar e cruzar fronteiras, habitar espaços fronteiriços, questionar os postos de

controle e outras patrulhas, despistar as vigilâncias fronteiriças, abrir buracos nos muros,

cercas e demais barreiras, é parte do trabalho do performer na prática do La Pocha Nostra.

Para Gómez-Peña, no país da performance há espaço para todos os deportados e os sem

documentos, não é preciso passaporte:

A diferencia de las fronteras impuestas por un estado/nación, las fronteras en nuestro “país del performance” están abiertas a los nómadas, los emigrantes, los híbridos y los desterrados. Nuestro país es un santuario temporal para otros artistas y teóricos rebeldes expulsados de los campos monodisciplinarios y las comunidades separatistas.19 (GÓMEZ-PEÑA, 2005, p. 204)

No intuito de possibilitar a existência de melhores cruzadores de fronteira, ‘desertores

da ortodoxia’ e criaturas intersticiais, é de grande relevância política habitar espaços

fronteiriços, ainda não mapeados. O estímulo à colaboração entre pessoas que confrontam

pontos artísticos, culturais, éticos e políticos diversos, torna possível o encontro entre

diferentes, mostrando-se uma questão importante em meio a uma sociedade onde a

segregação é estratégia política vigente. A fronteira no ‘país da performance’ é entendida

como espaço de experimentação, como lugar de interseção de realidades múltiplas.

É importante enxergar o sentido que a fronteira ocupa no trabalho do La Pocha Nostra:

os seus integrantes, em grande parte sujeitos fronteiriços, imigrantes, desterritorializados e

reterritorializados20, encontram nos espaços híbridos da fronteira uma condição intrínseca de

seu trabalho. Nesses espaços híbridos, formados através do diálogo intercultural e trans-

fronteiriço, confundem-se e misturam-se referências de tempos, culturas, gêneros e lugares

                                                            18 Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=XW7tGLeeO80>. Acesso em: 20 jan. 2013. 19 “Ao contrário das fronteiras impostas por um estado/nação, as fronteiras no nosso ‘país da performance’ estão abertas para os nômades, os migrantes, os híbridos e os desterrados. Nosso país é um santuário temporário para outros artistas e teóricos rebeldes expulsos dos campos mono-disciplinares e das comunidades separatistas.” (tradução nossa) 20 Referência ao que Canclini (2001) define como desterritorialização e reterritorialização. “Com isso refiro-me a dois processos: a perda da relação ‘natural’ da cultura com os territórios geográficos e sociais e, ao mesmo tempo, certas relocalizações territoriais relativas, parciais, das velhas e novas produções simbólicas.”(CANCLINI, 2011, p.309)

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distintos. É nesse viés que aprofundaremos, nos tópicos seguintes, o contágio entre corpos,

objetos, tempos, referências culturais de origens diversas, apontados nas práticas, temáticas e

procedimentos do La Pocha Nostra.

1.1 Representações e imagens de identidades/diferenças

Impossível não se perceber que não se é um – mas vários: pura dispersão, numa sequência aleatória e ilimitada de territórios finitos e efêmeros. 21

Na prática performática e pedagógica do La Pocha Nostra nossas supostas identidades

são interrogadas. Práticas coletivas de construções imagéticas colocam em jogo complicações

e interrupções de identidades e diferenças, em busca da multiplicação das vozes de

representação. Nesse sentido, tal prática performativa se mostra enquanto projeto político

urgente, em que encorajar pessoas a cruzar fronteiras se mostra crucial, em meio aos

nacionalismos paranoicos e ao medo do outro/da alteridade que ainda se efetivam como

discurso vigente.

Os exercícios e práticas propostos confrontam diferentes e controversas questões

artísticas, culturais, éticas e políticas, desafiando a ainda atual ‘política do medo’, que vem

sido afirmada nos diferentes meios de comunicação e posições geopolíticas hegemônicas. Na

prática performativa do La Pocha, questões, desafios pessoais, problemáticas artísticas,

imaginários sociais, são trabalhados em ato.

Os fluxos migratórios decorrentes do atual contexto de globalização possibilitam

figuras complexas de identidade e diferença, processos de formação subjetiva que articulam

os diferentes pertencimentos culturais. Imagens da diferença, enquanto construções

discursivas fixas são construídas, muitas vezes, na tentativa de dominar o disperso, o que não

pode ser controlado, categorizado. O estereótipo nesse sentido estigmatiza as diferenças.

O estereótipo é uma simplificação falsa de representação de uma dada realidade porque é uma forma presa, fixa, de representação que, ao negar o jogo da diferença, constitui um problema para a representação do sujeito nas relações sociais. O estereótipo requer, para uma significação bem-sucedida, uma cadeia contínua e repetida de outros estereótipos. Sempre as mesmas histórias devem ser contadas sobre um determinado elemento da identidade cultural, para garantir sua eficácia.22

A partir da problematização do processo de representação do outro, são questionados

modos folclorizantes da alteridade cultural, que tendem, sob uma visão hegemônica,

eurocêntrica e anglo-saxã, estigmatizar o outro, entendido neste contexto como não-branco,

                                                            21 ROLNIK, 2007, p.186. 22 Disponível em: <http://www.ip.usp.br/laboratorios/lapa/versaoportugues/2c82a.pdf>. Acesso em: 25/01/2013.

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não-homem, não-ocidental. O rótulo de exótico revela uma projeção do outro que ainda

reproduz práticas colonialistas. Os integrantes do La Pocha Nostra, críticos das representações

realizadas por instituições culturais dominantes e pela mercantilização da cultura popular em

situações turísticas, utilizam do humor como estratégia subversiva.

Ao parodiar tais imaginários, expõem não só as representações desse ‘outro’ pela ótica

colonial, como também os desdobramentos e atualizações de tais visões que, ainda hoje,

deturpam e fixam sob estereótipos as diferentes identidades e culturas não-hegemônicas. O

exercício de problematizar e criar fissuras no discurso e imaginário colonial de representação

dos povos não europeus ou anglo-saxões apresenta-se como uma prática de descolonização de

extrema importância ainda hoje.

Durante la última década he estado experimentando con el formato colonial del "diorama". Mis colaboradores y yo elaboramos "dioramas vivientes"(y agonizantes) que parodian y subvierten ciertas prácticas de representación que se originaron en la época colonial, incluyendo a los tableaux vivants etnográficos como los que se encuentran en los museos de Historia Natural y de Antropología, los freak shows o monstruos de feria, las curio shops o tiendas de curiosidades fronterizas y las porno-vitrinas. 23

Práticas artísticas que extrapolam fronteiras nacionais, situadas em contextos

interculturais, trabalhos de artistas que abordam questões de fronteira, identidade nacional,

estéticas da transitoriedade, trazem importantes apontamentos para reflexão sobre as criações

estéticas contemporâneas desterritorializadas de nossa época.

O forte intercâmbio intercultural em nosso tempo extrapola o diálogo entre pessoas de

diferentes nacionalidades, incluindo múltiplas trocas, absorções e influências entre culturas

distintas, além dos diversos sincretismos que estão presentes na formação das culturas. Fato

que nos leva à inviabilização do plano de uma pretensa pureza cultural e à dissolução de

monoidentidades étnicas ou nacionais. A arte da performance, nesse sentido, é entendida

como um território rico para pensarmos formas contemporâneas que colocam em evidencia

nossas múltiplas formações identitárias, migrantes, poliglotas, híbridas.

                                                            23 Disponível em: < http://www.pochanostra.com/antes/jazz_pocha2/mainpages/dioramas.htm >. Acesso em: 01/02/2013. “Durante a última década tenho experimentado com o formato colonial do "diorama". Meus colegas e eu elaboramos "dioramas vivos" (e agonizantes) que parodiam e subvertem certas práticas de representação que se originaram na época colonial, incluindo os tableaux vivants etnográficos como os que são encontrados nos museus de História Natural e Antropologia, os freak shows ou monstros de feira, os curio shops ou tendas de curiosidades fronteiriças e as pornô-vitrines.”. (tradução nossa)

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1.1.1 Dois ameríndios não descobertos visitam o ocidente

A performance realizada por Guillermo Gómez-Peña e Coco Fusco intitulada Two

Undiscovered Amerindians Visit the West, foi criada em 1992 em resposta às comemorações

dos 500 anos de ‘descobrimento’ da América. Configura-se enquanto um trabalho elucidativo

das discussões sobre representação, identidade/diferença preconizadas no trabalho de Gómez-

Peña. Enquanto críticos das representações realizadas por instituições oficiais e pela

mercantilização da cultura popular em situações turísticas, eles utilizam do humor como

estratégia subversiva. A performance relembra e joga com as exposições de seres humanos

realizadas nos EUA e na Europa, desde o século XVII até o início do século XX.

Figura 2 – Coco Fusco e Guillermo Gómez-Peña na performance Two Undiscovered Amerindians Visit the West. Fonte: Site oficial da performer Coco Fusco. Disponível em: <http://www.thing.net/~cocofusco/performance/amerindian/amerindian1.htm>. Acesso em: 14 fev. 2013.

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Figura 3 - Coco Fusco e Guillermo Gómez-Peña na performance Two Undiscovered Amerindians Visit the West. Fonte: Site oficial da performer Coco Fusco. Disponível em: <http://www.thing.net/~cocofusco/performance/amerindian/amerindian1.htm>. Acesso em: 14 fev. 2013.

Em Two Undiscovered Amerindians Visit the West Coco Fusco e Guillermo Gómez-

Peña eram expostos em uma jaula durante três dias como ameríndios não descobertos de uma

ilha do Golfo do México, nomeada Guatinaui. Enquanto habitantes dessa ilha, os performers

realizavam atividades ‘tradicionais’ do local, desde costurar bonecas vudú, até levantar pesos,

assistir televisão e trabalhar em um computador portátil.

Os visitantes podiam, em troca de uma pequena taxa depositada em uma caixa em

frente à jaula, ver a coreografia realizada por Coco Fusco ao som de rap e escutar ‘autênticos’

relatos ameríndios – falados em uma língua sem sentido. Os dois executavam rituais

‘tradicionais’, dançavam, cantavam e contavam histórias da suposta ilha de Guatinaui, como

também, utilizavam o computador para comunicar-se com o ‘xamã’ da tribo, e assistiam

vídeos de sua terra natal. Os visitantes podiam tirar fotos com os nativos.

Guillermo Gómez-Peña vestia-se como um lutador asteca de Las Vegas e Coco Fusco

se apresentava como uma nativa da ilha. Ambos eram alimentados por dois guias/guardas do

museu, que lhes davam frutas e sanduíches, e eram responsáveis por levá-los ao banheiro

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amarrados em coleiras de cachorro. Os guardas também assumiam a função de falar com os

visitantes, já que os dois guatinauis ‘não compreendiam’ o idioma dos visitantes.

Ao lado da jaula havia uma cronologia de exibições de pessoas no ocidente e um mapa

(falso) com a localização da ilha. Em grande parte, as realizações da performance foram

exibidas em museus de história natural, fora do contexto da arte, e não anunciados como tal.

Segundo os performers, grande parte das pessoas que se deparavam com a exposição

acreditava tratar realmente de nativos da dita ilha.

A apropriação de um modelo de prática colonialista, que é subvertido, coloca em

questão relações em torno das imagens coloniais da alteridade. Ao parodiar tais imaginários

são evidenciadas as representações desse ‘outro’ pela ótica colonial. Os desdobramentos e as

atualizações de tais visões, ainda hoje, deturpam e fixam sob estereótipos as diferentes

identidades e culturas não-hegemônicas. Nessa perspectiva, os espectadores são convidados a

participar e se posicionar frente a jogos extremos – repletos de implicações pós-coloniais e

questionamentos éticos. No uso da paródia surgem possibilidades de inversão das relações de

poder e do status quo estabelecido.

Em uma perspectiva pós-colonial, incitando ao reconhecimento dos limites culturais e políticos nos espaços sociais, Bhabha (2002, p. 141) realça a hibridez como "inversão estratégica do processo de dominação" e a define como uma exibição do deforme, como "estratégias de subversão que devolvem o olhar do discriminado ao olho do Poder" (BHABHA, 2002, p. 141). Esta perspectiva transgressora e de certo modo carnavalizada da hibridez - lugar do ambíguo, do duplo - será crucial para ler a obra de alguns artistas. (CABALLERO, 2011, p.50)

Como exercício de uma ‘antropologia inversa’, a ênfase na reação do público

desavisado, é reveladora acerca do imaginário hegemônico sobre o primitivo e selvagem,

evidenciando imagens colonialistas internalizados, que formam as bases de temores, desejos e

fantasias acerca do ‘outro cultural’. O jogo entre ficção e realidade, entre história e

representação dramática, tornava possível, no contexto da performance interativa, visualizar

os diversos modos de leitura da situação.

A reação dos latinos residentes nos EUA e na Europa, ao se deparar com a

performance, mediante o hibridismo da jaula, era na maioria das vezes de certa identificação

com o que viam24. Ao contrário, os estadunidenses e os europeus mostravam-se muito mais

apegados à coerência do que era mostrado. Nesse sentido, questionavam a utilização de

computadores, óculos de sol, tênis e o consumo de cigarros, tendo como base uma imagem

                                                            24 Como o relato de um membro mais velho da etnia pueblo do Arizona, que disse que a exibição era mais real que qualquer outra declaração acerca da condição dos povos nativos no museu, ou mesmo de jovens mexicanos que confidenciaram que a cada dia que passavam na Europa sentiam-se em uma jaula.

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supostamente autêntica que buscavam encontrar. Como se houvesse a vontade de assegurar o

‘verdadeiro primitivo’, identificável visualmente.

Néstor García Canclini (2009, p. 161) contribui com importantes apontamentos sobre

a impossibilidade da construção e da representação de culturas nacionais a partir de

iconografias específicas:

A pretensão de construir culturas nacionais e representá-las através de iconografias específicas é desafiada em nossos tempos pelos processos de transnacionalização econômica e simbólica. Arjun Appadurai agrupa esses processos em cinco tendências: a. os movimentos de populações imigrantes, turistas, refugiados, exilados e trabalhadores estrangeiros; b. os fluxos produzidos pelas tecnologias e pelas corporações transnacionais; c. os intercâmbios das financeiras multinacionais; d. os repertórios de imagens e informações distribuídos por todo o planeta pelos jornais, revistas e canais de televisão; e. os modelos ideológicos representativos do que se pode chamar de modernidade ocidental: conceitos de democracia, liberdade, bem-estar e direitos humanos, que transcendem definições de identidades particulares.

Segundo o autor, muitos artistas latino-americanos colaboram com a elaboração de um

novo pensamento visual que mais se aproxima do panorama cultural contemporâneo, sem

dedicar-se à nostálgica ‘busca de uma tradição inexistente’.

A performance Two Undiscovered Amerindians Visit the West foi inspirada nas

práticas europeias e estadunidenses, populares em algumas épocas, de exibir pessoas do

continente africano, asiático e americano em zoológicos, parques, tabernas, museus, shows de

fenômenos (freak shows) e circos. Em diferentes exposições etnográficas de seres humanos,

que aconteceram ao longo dos séculos, pessoas foram exibidas e obrigadas a vestir-se

segundo a concepção eurocêntrica sobre os vestuários tribais, desempenhando tarefas

supostamente representativas de sua realidade cultural.

Las infames exhibiciones pseudo-etnográficas de seres humanos que fueron tan populares en Europa y los Estados Unidos desde el siglo XVII hasta principios del XX. En todos los casos la premisa era la misma: los "primitivos auténticos" eran exhibidos contra su voluntad como especimenes míticos o "científicos", tanto en contextos populistas (tabernas, jardines, salones y ferias), como en museos de Etnografía y de Historia Natural. Junto a estos "especimenes" humanos había frecuentemente un muestrario de la supuesta flora y fauna del lugar de origen. Los "salvajes" eran obligados a vestir trajes y utilizar artefactos rituales diseñados por el propio empresario, y que poco o nada tenían que ver con su realidad cultural.25

Para Coco Fusco a arte da performance intercultural no Ocidente não começou com os

eventos Dadaístas, mas sim nos primeiros dias da ‘conquista’ europeia, momento em que

foram levadas ‘mostras aborígenes’ de povos da África, Ásia e do continente americano, para

                                                            25 Disponível em: <http://www.pochanostra.com/antes/jazz_pocha2/mainpages/dioramas.htm.> Acesso em 18/01/2013.

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contemplação estética, análise científica e entretenimento na Europa. Essas pessoas eram

frequentemente mostradas juntamente com uma serie de outros ‘estranhos’ fenômenos,

pessoas que apresentavam deformidades físicas, etc.

A necessidade de repensar as implicações entre poder e construção de conhecimento e

de discutir criticamente as noções de representação aponta para uma questão contemporânea

latente: o direito de autodefinição. Homi Bhabha (2002) sugere a liminaridade como espaço

para a representação da diferença cultural. Nesse sentido, em Two Undiscovered

Amerindians Visit the West são abertos interstícios no espaço institucional, onde se forja

possibilidades de discutir a hibridez cultural, sua condição fronteiriça e suas inevitáveis

traduções culturais. Guillermo Gómez-Peña reflete sobre essa opção e condição fronteiriça.

Na verdade eu opto pelo "fronteiriço" e assumo a minha conjuntura: vivo justo na fenda de dois mundos, na ferida infestada, a meio quarteirão do fim da civilização ocidental e a quatro milhas do princípio da fronteira do México com os Estados Unidos de América, no ponto mais ao norte da América Latina. Na minha multi-realidade-fraturada, ainda realidade, co-habitam duas histórias, linguagens. cosmogonias, tradições artísticas e sistemas políticos drasticamente opostos (a fronteira é o enfrentamento contínuo de dois ou mais códigos referenciais)[...]. Nós nos desmexicanizamos para mexicompreender-nos, alguns sem vontade, outros desejando. E um dia a fronteira se converteu na nossa casa, laboratório, Ministério da Cultura (ou contra-cultura). (GÓMEZ PENA, 2002, p. 48 apud CABALLERO, 2011, p.50).

Dessa maneira, criam-se formas para reconfigurar e reparar danos de anos de

colonização, uma difícil tarefa que requer repensar bases geográficas, econômicas, simbólicas

que ainda estão em vigor. Nesse caso, a performance assume a complexidade enquanto

desejada, problematizando os tabus vigentes.

São apresentadas temáticas e problematizações que englobam desde o processo de

representação colonialista, enquanto construções discursivas, que fixam estereótipos e

estigmas, até os modos folclorizantes da alteridade cultural, que tendem, sob uma visão

hegemônica, eurocêntrica e anglo-saxã, estigmatizar o ‘outro cultural’. A performance Two

Undiscovered Amerindians Visit the West problematiza a exibição e representação de culturas

estrangeiras no continente europeu.

Enquanto instituição historicamente criada e localizada em contexto ocidental, os

museus surgem como parte de uma cosmovisão e configuração geopolítica específica de uma

época. Ao longo dos séculos configurou-se uma divisão dos museus em duas abordagens e

enfoques (MIGNOLO, 2011, p. 377), que os separou entre aqueles relacionados à construção

da história interna e da identidade europeia e os que focavam a história externa à Europa, das

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colônias e dos povos estrangeiros. Nesses museus de história natural, materiais de

arqueologia, etnografia, ciências e história eram reunidos em um mesmo acervo.

No contexto da performance de Guillermo Gómez-Peña e Coco Fusco e de outros

artistas que problematizam o museu enquanto instituição histórica e geograficamente

localizada, são questionados os modos de exposição, classificação, apropriação e

deslocamento de objetos, obras e artefatos de outras culturas por essas instituições.

James Clifford (2011, p. 152) retoma a discussão de Susan Stewart em torno da ficção

narrada por museus que, tomando uma parte pelo todo, apresentam alguns elementos de uma

cultura como se representassem o conjunto da mesma. Nesses casos é questionável que uma

determinada seleção, conjunto restrito de obras/peças/objetos não sejam apresentados como

resultados de uma escolha, posicionada – colagem de ‘pedaços cortados de cultura’ – e sim

como substituição de um todo.

Stewart mostra como as coleções, principalmente nos museus, criam a ilusão de serem representações adequadas de um mundo, começando por retirar objectos de contextos específicos (culturais, históricos ou intersubjectivos) e tornando-os ‘representativos’ de todos abstractos – uma ‘máscara bambara’, por exemplo, tornar-se-ia uma metonímia etnográfica da cultura bambara. De seguida, é elaborado um esquema classificativo para armazenar e expor o objecto para que a realidade da própria colecção, a sua ordem coerente, ultrapasse histórias específicas da produção e apropriação do objecto.

Em seu texto intitulado Museums in the Colonial Horizon of Modernity: Fred Wilson´s

Mining the Museum o pesquisador argentino Walter Mignolo (2011, p. 374) aponta que o

museu no mundo moderno/colonial desempenhou um importante papel na colonização de

seres e de conhecimento. Ao pensar a possibilidade de descolonização dos museus, reflete

sobre os possíveis desdobramentos de uma desobediência epistêmica e estética que levassem

à desconstrução do que foram os museus na história moderna/imperial. Nesse sentido,

podemos compreender a performance Two Undiscovered Amerindians Visit the West como

um ato de descolonização que se insere no contexto institucional e subverte-o.

Diferentes estratégias são elaboradas por artistas e curadores na tentativa de repensar,

transfigurar e descolonizar museus e acervos. Uma crítica atual é travada em relação às

diversas formas de fetichização e à acumulação de objetos da alteridade, coleções que

iniciaram com as expedições coloniais. Diversas práticas são atualmente realizadas nesse

sentido, desde o reposicionamento de obras, a investigação da história das coleções dos

museus e dos objetos e documentos de seu acervo e arquivo, até mesmo a repatriação de

objetos ou a criação de museus de grupos, como estratégia de possibilitar a auto-representação

e descentralização.

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A inversão dos postos de poder, que coloca os grupos minoritários enquanto

protagonistas, se mostra como uma opção política em que são ensaiadas novas formas de

colaboração. Homi Bhabha (2005), refletindo sobre as possibilidades da performance, sugere

a importância de evidenciar esses grupos minoritários em detrimento de uma lógica da arte

estabelecida enquanto mundial: “(...) tendo em vista a invisibilidade de certos setores na arte

tida como mundial, se torna necessário voltar a performance como possibilidade de auto-

biografar a experiência de vida de sujeitos localizados em grupos minoritários.”. No contexto

do La Pocha as minorias étnicas ocupam sempre uma posição de poder. As fronteiras culturais

são alocadas no centro, enquanto o suposto mainstream é marginalizado e colocado como

exótico e estranho. O espectador exerce a incomoda posição de estrangeiro ou minoria.

Dessa forma são confundidos papéis, hierarquias e posições sociais. Ao desconfigurar

a ordem dominante, a prática do La Pocha possibilita uma maior vulnerabilidade ao outro. Em

seus diferentes trabalhos as inversões étnicas e de gênero, o travestimento cultural e a

subversão de poderes, são meios de levar ao centro as culturas híbridas e às margens o

suposto mainstream, tratado como exótico e estranho. Na visão do La Pocha Nostra, ao

assumir a personalidade de outras culturas, problematizar o processo de representação do

outro, fazer-se passar pelo outro, invertendo papéis sociais, surge a possibilidade de

estabelecer, através da performance, uma forma de ‘antropologia inversa’.

No intuito de desabituar, deslocar e criar estranhamentos nas relações de dominação

estabelecidas o La Pocha realiza questionamentos em ato. Os papéis sociais desempenhados

por cada suposta identidade cultural no discurso hegemônico, anglo-saxão, europeu e

colonizador, são descentrados. Nesse sentido, a premissa é “(...) asumir un centro ficticio, y

empujar a la cultura Anglo-sajona dominante hacia los márgenes. Tratarla como exótica; "des-

familiarizarla," para así convertirla en un objeto de estudio antropológico.”26 Assim, a

inversão dos poderes torna-se reveladora das estruturas reinantes, e atenta o observador mais

distraído para o reconhecimento das estruturas que tentam subjugar e mapear o disperso.

1.2 Corpo Pocho/a

A importância do corpo na performance, convocado para o centro da cena, sugere a

insubordinação do corpo ao discurso e à visão, abordagem que se configura em oposição a                                                             26 Disponível em: < http://www.pochanostra.com/antes/jazz_pocha2/mainpages/dioramas.htm >. Acesso em: 25/02/2013 “(...) Assumir um centro fictício, e empurrar a cultura anglo-saxônica dominante para as margens. Tratá-lo como exótico, ‘desfamiliarizá-la’, para torna-la um objeto de estudo antropológico.” (tradução nossa).

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uma concepção de ser humano que prioriza a racionalidade em detrimento da corporeidade.

Nos diferentes programas em performance, desdobra-se a presença do corpo de modo bastante

singular, ao testar seus limites, questionar estereótipos exibidos e expor fragilidades e

imperfeições. Esse corpo, colocado muitas vezes em situação de risco, é um corpo real – que

possui peso, sangue, cheiro, suor, excreções e enfermidades – e efetiva a sua carnalidade

como matéria de criação. Por vezes, submetem-no a intervenções cirúrgicas, interferências

físicas, mutilações, próteses.

O corpo, nos projetos do La Pocha, assume grande importância, torna-se matéria

prima, ‘ícone central do altar’. Tendo em vista que o corpo passa a ser entendido como obra

de arte, esse mesmo corpo se abre a diversas interpretações, que envolvem implicações

semióticas, políticas, etnográficas e mitológicas. Apresenta-se enquanto símbolo e metáfora,

desdobrado enquanto território em permanente processo de reinvenção – a ser marcado,

decorado, pintado, repolitizado. O corpo surge como um território de questionamentos acerca

de nossas identidades, de fenômenos sociais e políticos:

(...) el cuerpo humano, nuestro cuerpo, y no el escenario, es nuestro verdadero sitio para la creación y nuestra verdadera materia prima. Es nuestro lienzo en blanco, nuestro instrumento musical, y libro abierto; nuestra carta de navegación y mapa biográfico; es la vasija para nuestras identidades en perpetua transformación; el icono central del altar, por decirlo de alguna manera.27 (GÓMEZ-PEÑA, 2005, p.204)

Dessa forma, é um corpo que se reinventa, se ‘autoconstrói’ constantemente, em meio

aos interstícios da sociedade. Ao investigar as diversas implicações do corpo em suas

diferentes interfaces, características, gêneros, etnias, transgêneros, travestimentos e levar ao

extremo o questionamento em torno dos códigos, valores e modos de representação validados,

o La Pocha aponta aspectos políticos e pedagógicos de grande importância.

Nas proposições do La Pocha Nostra o corpo aparece como sede de oposições

culturais, em sua imensa complexidade, coberto de implicações políticas, inserido em

contexto social mais amplo. Nesse sentido, investigar os códigos dos diferentes corpos é parte

de uma estratégia utilizada pelo coletivo, que consiste em questionar papéis sociais,

representações identitárias, em busca da descolonização:

[…] Todo diálogo intercultural o transfonterizo surge a partir [de éste]. Cuáles son las implicaciones de cubrirlo, descubrirlo, cuáles son las implicaciones de un cuerpo indígena, de un cuerpo desnudo negro, o de un cuerpo desnudo anglosajón. O simplemente el cuerpo desnudo de una mujer. Tienen códigos semánticos totalmente distintos. 28

                                                            27 “(...) O corpo humano, o nosso corpo, e não o palco, é o nosso verdadeiro local para a criação e nossa verdadeira matéria prima. É nossa tela em branco, nosso instrumento musical, e livro aberto, nossa carta de navegação e mapa biográfico, é o vaso para nossas identidades em perpétua transformação, a peça central do altar, de alguma maneira.”(tradução nossa). 28 Disponível em: <http://jolgoriocultural.wordpress.com/entrevistas/>. Acesso em: 24/02/2013.

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A relação entre corpo e mercadoria é complicada nas formações imagéticas criadas nas

diferentes performances, colocando em jogo relações sociais próprias dos trânsitos

contemporâneos. Em diferentes performances do La Pocha Nostra evidenciam-se jogos de

subversão a partir de desdobramentos entre corpo/objeto/mercadoria que levam ao extremo as

relações aí imbricadas, problematizando-as. Nesse sentido, apontam para a criação de novas

formas e procedimentos que possibilitem romper, acelerar, ralentar e elevar ao extremo as

atuais relações em torno das noções de identidade, corpo, objeto, natureza, cultura, política e

educação.

Problemáticas entre corpo, objetos, mercadorias e dispositivos – enquanto mediadores

da relação dos sujeitos com o mundo – surgem no contexto de propostas artísticas atuais

como um rico material complicador dessas noções. Encontramos em diferentes trabalhos

contemporâneos em dança experimental e performance art uma rica investigação em torno do

uso de objetos e coisas, compreendidos e utilizados de formas diversas. André Lepecki

(2012), em seu artigo 9 variações sobre coisas e performance, traz importantes contribuições

para pensar os desdobramentos do uso de objetos nessas criações artísticas. Para o autor,

diversos artistas vêm trabalhando em uma perspectiva que enxerga o objeto além de sua

função meramente utilitária, de modo que permite a investigação da relação objetiva/subjetiva

da coisa.

O autor, ao repensar o estatuto do objeto em sua relação com o corpo, retoma a

abordagem foucaultiana de dispositivo e a compreensão de objetos-dispositifs de Giorgio

Agamben – que determinariam a subjetividade contemporânea. Agamben amplia a

compreensão de dispositivo de Michel Foucault, incluindo em seu domínio não somente as

‘prisões, os manicômios, o Panóptico, as escolas, a confissão, as fábricas, as disciplinas, as

medidas jurídicas’, mas também ‘a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o

cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares’. Objetos que controlam gestos,

hábitos, desejos e movimentos, capturando e modelando comportamentos.

Chamarei de dispositivo literalmente qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar ou assegurar os gestos, comportamentos, opiniões ou discursos dos seres viventes (AGAMBEN, 2009, p. 14 apud LEPECKI, 2012, p.94)

                                                                                                                                                                                          “[...] Todo diálogo intercultural ou transfronteiriço surge a partir [dele]. Quais são as implicações de cobri-lo, descobri-lo, quais são as implicações de um corpo indígena, o corpo nu negro ou de um corpo nu anglo-saxão. Ou apenas o corpo nu de uma mulher. Eles têm códigos semânticos completamente diferentes.”. (tradução nossa)

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A abordagem de André Lepecki sobre as relações entre corpo e objeto, parece se

aproximar mais do modo como essas contaminações são trabalhadas na cena contemporânea.

A compreensão do objeto como mercadoria, dispositivo, é desdobrada a partir da noção de

devir-coisa, como outro modo possível de enxergar essas imbricações, onde as noções de

sujeito e objeto são deslocadas. Aponta-se assim, para a possibilidade de ativação de uma

força ‘despossessiva’, em que sujeitos e objetos possam se tornar menos sujeitos e menos

objetos e mais coisa, mais livres de utilitarismo, significação e dominação.

Perante tal sistema, talvez a contra-força dos objetos (sua resistência) resida exatamente em ser e querer ser mera coisa. Proponho que objetos, quando libertos de utilidade, valor de uso, valor de troca e significação revelam a sua capacidade liberadora, a sua capacidade de escapar totalmente de dispositivos de captura. Livres, objetos deveriam ganhar outro nome próprio: não mais “objeto”, não mais “dispositivo”, não mais “mercadoria”, não mais “lixo” mas simplesmente coisa. (LEPECKI, 2012, p.96)

Partimos da ideia de contaminação, de um corpo instável, que se faz em meio ao

mundo, na relação direta com o seu contexto, no interstício, onde corpo e objeto se

confundem. A divisão entre objeto-passivo e sujeito-ativo, manipulador das coisas ao seu

alcance, passa a ser questionada. Assim, como Merleau-Ponty (2004, p. 17) aponta,

enxergamos aqui o corpo enquanto vidente e visível, que se constitui por confusão, ‘tomado

entre as coisas’.

É um si não por transparência, como o pensamento, que só pensa seja o que for assimilando-o, constituindo-o, transformando-o em pensamento – mas um si por confusão, por narcisismo, inerência daquele que vê ao que ele vê, daquele que toca ao que ele toca, do senciente ao sentido – um si que é tomado portanto entre as coisas, que tem uma face e um dorso, um passado e um futuro...

Tal compreensão localiza a formação do corpo, do sujeito, nessa rede indivisível entre

senciente e sentido, esse corpo soma-se às demais coisas, que passam a ser para o autor ‘um

anexo ou um prolongamento dele mesmo’, ‘incrustadas em sua carne’. As dicotomias entre

externo e interno, ativo e passivo, sujeito e objeto se tornam pouco significativas para tal

compreensão, que enxerga o sujeito constituído diretamente dentro das relações que

estabelece no/com o mundo.

Na conjuntura da sociedade contemporânea, o intercâmbio entre corpo e tecnologia

implica decisivamente no modo de percepção corpórea. A técnica invade e integra o ser

humano, o que implica em modificações corporais mediante o avanço tecnológico e influencia

diretamente as nossas experiências de mundo. Das camadas mais simples de influências dos

objetos manipulados em nosso dia-a-dia, até a utilização de ferramentas de alta complexidade,

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se configuram como presenças intrínsecas na configuração de nossa existência atual, seu uso é

determinante na relação de corpo que estabelecemos.

A experiência contemporânea está diretamente relacionada às contaminações entre

corpo e máquina. Orgânico/inorgânico, passivo/ativo, sujeito/objeto, corpo/ciborgue são

categorias que se confundem e questionam o papel do sujeito enquanto único agente

determinador de sua existência. Das formas mais diversas o desenvolvimento científico e

tecnológico tem influenciado cada vez mais na dissolução dessas dicotomias.

Esta gama de interferências maquínicas e tecnológicas na vida dos sujeitos elevam em

alta potencia a já citada contaminação entre corpo e objeto. Próteses, extensões do corpo,

objetos que transferem seus poderes para o sujeito e autômatos surgem como questões

contemporâneas que discutem de maneiras diversas os desdobramentos dessa influência

irreversível entre corpo e tecnologia. Torna-se importante pensar qual estatuto de

corporeidade forma-se nessa nova configuração de corpo.

Assim como nunca foi possível a distinção idealizada entre sujeito e objeto, que por

algum tempo foi defendida por diferentes teóricos, esse sujeito que não mais nomeia, que não

reconhece a si mesmo nem o objeto fora de si, revela-se também enquanto um ser que perde o

que há nele de humano – um corpo esvaziado, solapado de sua existência.

Em diferentes performances do La Pocha Nostra os objetos invadem, deformam e

integram a constituição do corpo, alteram sua uniformidade. Esses objetos/coisas são

acoplados e redimensionam sua estrutura, constituindo novos corpos que se encontram no

limiar entre o orgânico e o inorgânico, o animal e o humano, o sujeito e o objeto, figuras

híbridas que colocam os dilemas contemporâneos em ato.

Esse corpo que se confunde e se mistura, se faz enquanto corpo impuro. Corpo

híbrido. Corpo mutante. Corpo que tem a sua posição na sociedade continuamente

questionada. Que carne é essa? Esse corpo que subverte e joga com seu estatuto social de

objeto, de corpo capturado, de corpo invadido evidencia o jogo de relações sociais próprias

dos trânsitos contemporâneos. Tais composições criam, a partir de dissoluções, o que

Canevacci apresenta como práticas ‘onde a dicotomia entre a coisa e a criatura se faz

indistinta, penetrada, alterada’.

Tais alterações entre humano e mercadoria (entre sujeito e objeto) são o reino decomposto dos novos fetichismos, que desafiam as interpretações procedentes e conduzem em direção a um além do domínio do ratio dualista e de uma lógica binária. Os fetichismos contemporâneos, em particular quando configurados pela

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cultura digital, estão sempre mais materiais/imateriais. Como as mercadorias visuais. Como a metrópole comunicacional. (CANEVACCI, 2008, p.13)

São construídos, em diferentes performances do La Pocha Nostra, jogos de subversão

entre corpo, objeto e mercadoria, que levam ao extremo tais relações, problematizando-as. Em

diversas práticas performáticas do coletivo a criação a partir de material já pronto, possibilita

que novos sentidos sejam atribuídos. Ao jogar com códigos, símbolo, ícones e justapor

elementos dispares disponíveis na sociedade, o performer assemelha-se ao Dj:

De alguna manera, nosotros nos planteamos como dj´s inter o transculturales. Y nuestras estrategias son las mismas [...]: sampleo, scratch & mix, yuxtaposiciones abruptas, la conexión internacional–local, creación de estructuras alternativas […] en donde pueda acontecer una especie de locura contenida, espacios paganos de liberación. Esta definición es la definición del género. Cada vez nos interesa menos ser concebidos como generadores de imágenes […] Ya no es necesario generar imágenes y objetos.29

O performer através de colagens, justaposições e reciclagens utiliza os produtos

culturais disponíveis, sobrepondo referências díspares e produtos de diferentes procedências,

criando novas conexões representativas de nosso tempo. O artista como Dj e programador

utiliza a montagem e o sampleamento de repertórios em uso, criando assim novos sentidos.

Nicolas Bourriaud, em seu estudo sobre ‘pós-produção’, reflete sobre os usos que não

remetem mais à criação de imagens e objetos, mas aos modos como são apropriados e

reinseridos em novas roupagens:

Dito em outros termos: como produzir singularidades, como elaborar sentidos a partir dessa massa caótica de objetos, de nomes próprios e de referências que constituem nosso cotidiano? Assim, os artistas atuais não compõem, mas programam formas: em vez de transfigurar um elemento bruto (a tela branca, a argila), eles utilizam o dado. Evoluindo num universo de produtos à venda, de formas preexistentes, de sinais já emitidos, de prédios já construídos, de itinerários balizados por seus desbravadores, eles não consideram mais o campo artístico (e poderíamos acrescentar a televisão, o cinema e a literatura) como um museu com obras que devem ser citadas ou ‘superadas’, como pretendia a ideologia modernista do novo, mas sim uma loja cheia de ferramentas para usar, estoques de dados para manipular, reordenar e lançar. (BOURRIAUD, 2009, p.13)

A criação, a partir de material pronto e carregado de significado, traz como matéria-

prima, nas práticas do La Pocha, tanto objetos da arqueologia pessoal dos participantes

relacionados às mitologias e iconografias de cada um, como também artefatos rituais,

vestimentas e adereços étnicos, militares e fetichistas. Tais materiais possibilitam explorar

significados e contra-significados, reinventar e recontextualizar signos e símbolos

convencionados – criando choques, conexões que podem revelar aspectos importantes dessas

relações.

                                                            29 Disponível em: <http://jolgoriocultural.wordpress.com/entrevistas/>. Acesso em: 01/03/2013.

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1.3 Corpo/Ilicito: The Post-Human Society 6.9

Podemos reconhecer um intenso intercâmbio entre os diferentes projetos do La Pocha

Nostra. Ações e situações são retomadas em diferentes contextos, o que torna difícil uma

definição precisa de cada trabalho. Nesse sentido, podemos reconhecer que, a cada realização

de uma performance do grupo, atualiza-se uma nova versão da obra. Eventualmente os

performers são outros ou incluem-se pessoas integradas através de workshops, novas ações

são incorporadas ou excluídas.

Retoma-se em diferentes trabalhos e atualizações das performances, imagens e

procedimentos criados na relação direta com o espaço/tempo específico em que se realiza.

Como estrutura aberta, sessão de improvisação – live jam session – a cada vez que acontece a

performance recria-se de uma nova maneira. Na busca de não descolar teoria e prática opto

por analisar uma performance em específico do La Pocha Nostra.

A performance Corpo/Ilicito é uma performance de grande escala – a terceira da série

Mapa/Corpo – que investiga o corpo como lugar contínuo de espiritualidade radical,

memória, penitência, ativismo e reinvenção corporal. O fim da era Bush se apresenta como

referência contextual da obra. Corpo Ilicito configura-se enquanto uma abordagem em torno

do período de mudança global, de incerteza e esperança que marcou uma época. Com duração

de cerca de uma hora e trinta minutos, a performance é realizada em um espaço amplo, os

espectadores podem circular em torno de duas ou três plataformas, onde as ações acontecem

alternadamente.

A criação de um ambiente em que não existe separação entre palco e plateia possibilita

uma interação real e significativa entre ambos. O espaço é organizado de modo que as pessoas

possam circular e escolher seu percurso entre os diferentes quadros vivos com forte potencial

simbólico. A criação de um espaço ritual, ‘que emerge para fora das ruínas da civilização

ocidental’, ganha força na potência das imagens que, ao investigar as implicações do corpo,

em suas diversas relações e desdobramentos, estabelece um espaço reflexivo repleto de

interrogantes e implicações sociais, éticas, políticas e estéticas.

A potência simbólica das ações realizadas pode ser vista, por exemplo, na ‘acupuntura

política’ realizada em frente ao público durante a performance. Perfuram-se agulhas de

acupuntura, com pequenas bandeiras de países imperialistas, em diferentes partes do corpo de

um dos performers. O público é convidado a descolonizar esse corpo, auxiliando na retirada

das agulhas. A performance/instalação realizada pelo La Pocha Nostra, como ‘oferenda

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poética’ e ‘ritual interativo’, explora as relações neocoloniais e as possíveis formas de

descolonização desse corpo.

Figura 4 – Roberto Sifuentes na performance Corpo/Illicito: The Post-Human Society 6.9 Fonte: La Pocha Nostra Live Arquive. Site de registro de performances e cursos do La Pocha Nostra. Disponível em: <http://lapochanostralivearchive.tumblr.com/>. Acesso em: 05 mar. 2013.

O estabelecimento dessas plataformas como altares e templos performativos traz o

sagrado e o profano como forma de discutir as etnias contemporâneas. Nesse contexto, os

performers do La Pocha se transformam em ‘santos vivos’ e ‘madonas de causas não-

populares’. Essas figuras performáticas trazem para a cena os cruzadores de fronteiras, os

imigrantes sem documentos, os prisioneiros, os enfermos e os demais invisíveis da sociedade.

A performance Corpo/Ilicito: The Post-Human Society 6.9 retoma o corpo

performático como lugar de reinvenção política e profecia poética. Dessa forma, explora-se o

legado do medo do outro, a criminalização do corpo mestiço pela administração Bush e a

cultura de esperança, imaginação e luta que se desenvolveu em resposta a essa ordem de

mundo estabelecida.

O público é inserido como coautor dessa mudança simbólica. Em um determinado

momento da performance, pessoas do público são convocadas a inverter de papel com um dos

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performers vestido com um uniforme militar e a apontar uma arma em diferentes partes do

corpo do performer. Nessa inserção do público como colaboradores/criadores de uma nova

montagem, as características de cada corpo que compõe com o grupo, sua posição social e de

gênero, alteram a rede de sentidos criada.

Figura 5 – Guillermo Gómez-Peña na performance Corpo/Ilicito: The Post-Human Society 6.9 Fonte: La Pocha Nostra Live Arquive. Site de registro de performances e cursos do La Pocha Nostra. Disponível em: <http://lapochanostralivearchive.tumblr.com/>. Acesso em: 05 mar. 2013.

Podemos reconhecer nessa figura que utiliza a farda, no contexto dessa performance,

um guarda da fronteira, que busca estabelecer postos de controle, interromper os fluxos da

hibridização e que teme desterritorializar-se. Representante da força militar, ele se assemelha

ao que Suely Rolnik atenta como o ‘coronel-em-nós’:

(...) por mais caduca que seja sua micropolítica, por mais caduco que sejam seus territórios - aquilo que chamam de ‘identidade nacional’ – o corenel-em-nós não suporta miscigenações. Ele estanca o fluxo do desejo: o outro, para ele, é perigo de

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desagregação, é fluxo que, por arrastá-lo para um além de si, o aterroriza. Tudo o que ameaça de desmanchamento a máscara mortuária de sua identidade, ele vive como força diabólica, que deve anular o mais rápido e eficiente possível – prendendo e até torturando e matando se for necessário. Seu projeto é o de extirpar a diferença com o bisturi de suas armas, para sobreviver tal e qual; para impor-se, vitoriosamente igual a si mesmo, eterno em sua mesmice. (ROLNIK, 2007, p.156)

Desse modo, somos convidados a extirpar esses guardas da fronteira de plantão, e

questionar o poder que lhes é assegurado. Na performance, a abertura para esse corpo ilícito,

que se confunde e se mistura entre diferentes referências, promove um corpo impuro.

Enquanto corpo híbrido, mutante, que tem a sua posição na sociedade continuamente

questionada, os diferentes corpos, criados em meio à performance, atualizam as contradições

contemporâneas. Corpo estatuto de objeto, corpo capturado, corpo que se submete, corpo

invadido, corpos que resistem, corpo animal, corpos que lutam, corpo-máquina, descartável,

produto, corpo estrangeiro, corpo mestiço – são imagens que povoam o espaço ritual criado

durante a performance. Essas figuras que se convulsionam, se exibem, celebram, questionam

e denunciam, interrogam nosso corpo e atitude frente aos complexos trânsitos

contemporâneos.

Durante a performance, projeções de discursos políticos de diferentes líderes do

mundo, de imagens de medo e de esperança, retirados de meios de comunicação em massa e

de momentos da política contemporânea, colocam em choque e problematizam imagens

complexas. Através de procedimentos de montagem evidencia-se, sem dar respostas, a

complexidade de nosso tempo, instigando assim reflexões radicais.

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Figura 6 - Dani d'Emilia em Corpo/Ilicito: The Post-Human Society 6.9 Fonte: Blog oficial da performer Dani D´Emilia. Disponível em: <http://dani-demilia.blogspot.com.br/2011/04/somarts-cultural-center-presents-la.html>. Acesso em 05 mar. 2013.

Figura 7 - Violeta Luna em Corpo/Ilicito: The Post-Human Society 6.9 Fonte: La Pocha Nostra Live Arquive. Site de registro de performances e cursos do La Pocha Nostra. Disponível em: <http://lapochanostralivearchive.tumblr.com/post/21736837370/corpo-ilicito-artcena-festival-tom-jobim>. Acesso em 05 mar. 2013.

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2 MÉTODO POCHA

heterotopia 30 he.te.ro.to.pi.a

1 Deslocamento ou situação anormal de partes ou órgãos. 2 Presença anormal de um tecido em qualquer lugar do corpo.

A presente abordagem se baseia no estranhamento, nas dissonâncias, na heterotopia

para a construção de seu percurso. A partir do que foge à definição e desestabiliza mapas em

curso, confundem-se papéis, funções sociais e usos do espaço. Ao ir além dos repertórios

vigentes e procedimentos reconhecíveis se recriam os modos estabelecidos de ser/estar em

esfera pública. As heterotopias, de diversos modos, apresentam nas diferentes culturas,

momentos de suspensão do sentido e uso cotidiano do espaço. Possibilitando, por vezes, um

respiro em relação às ‘leis da moral e dos bons costumes’.

Há também, provavelmente em todas as culturas, em todas as civilizações, espaços reais – espaços que existem e que são formados na própria fundação da sociedade - que são algo como contra-sítios, espécies de utopias realizadas nas quais todos os outros sítios reais dessa dada cultura podem ser encontrados, e nas quais são, simultaneamente, representados, contestados e invertidos. Este tipo de lugares está fora de todos os lugares, apesar de se poder obviamente apontar a sua posição geográfica na realidade. Devido a estes lugares serem totalmente diferentes de quaisquer outros sítios, que eles reflectem e discutem, chamá-los-ei, por contraste às utopias, heterotopias. (FOUCAULT, 2009, p. 415)

No sentido do conceito elaborado por Michael Foucault, o termo reúne hetero (outro) e

topia (espaço). As heterotopias, assim como as utopias, são espaços em que as relações sociais

são suspensas, neutralizadas e/ou invertidas. Porém, enquanto as utopias se encontram sem

lugar real, as heterotopias estão presentes em todas as sociedades. Ainda que fora de todos os

lugares, sua posição geográfica pode ser localizada. Apresentam-se como momentos em que a

relação de temporalidade vivenciada pelos sujeitos é modificada, criando assim ‘certa ruptura

do homem com sua tradição temporal’, reúnem em um só lugar espaços variados.

Segundo Foucault (2009) todas as culturas criam suas próprias heterotopias, que

podem ser divididas em diferentes segmentos: de crise (lugares sagrados, proibidos ou

privilegiados, para onde são levadas as pessoas que estão em crise em relação à sociedade ou

ao grupo em que vivem); de desvio (lugares onde são levados os que desviam em relação ao

padrão e a norma exigida: hospitais psiquiátricos, prisões); de tempo (lugares ligados à

acumulação de tempo: museus, bibliotecas); crônicas (ligadas ao tempo passageiro, precário:

                                                            30 Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/>. Acesso em: 15 fev. 2013.

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festas, feiras, cidades de veraneio) e de purificação (ligadas às atividades de purificação: casas

de banho, saunas).

A práxis pedagógica do La Pocha Nostra, efetivada em seus cursos e oficinas, é

pensada como heterotopia, onde tempo/espaço se alteram mutuamente, provocando

interstícios, fendas em seu sentido/uso. São trazidos para o jogo em cena desde espaços

sagrados e proibidos, tabus, comportamentos desviantes, bem como a sobreposição de tempos

e lugares. Ainda assim, é um espaço de reinvenção de relações entre mestre e aprendiz, de

emponderamento, de descolonização, de repolitização do corpo e de escuta das diferentes

vozes. Tais momentos, mesmo que efêmeros, podem reverberar no decurso da vida.

Nesse capítulo, a performance é investigada como pedagogia radical. Um breve

histórico do surgimento do ‘Método Pocha’ – proposta pedagógica do La Pocha – é traçado

no contexto do grupo. As temáticas, os pressupostos, os conceitos e os objetivos presentes na

proposta educativa do La Pocha são pensados à luz de questões como pedagogia, política,

estética, arte, vida e ativismo em interlocução com autores como Coco Fusco, Diana Taylor,

Elaine Peña, Guillermo Gómez-Peña, Nestor García Canclini, Roberto Sifuentes, entre outros.

Somado ao material bibliográfico, outras fontes assumiram grande importância para

minha compreensão e reflexão em torno das metodologias de ensino do La Pocha e para o

desenvolvimento desse capítulo, o que inclui os registros em vídeo e fotografia de diferentes

cursos, os relatos dos participantes e de modo singular minha experiência prática em um dos

workshops do La Pocha chamado La Pocha Remix: Psycho-Magic Actions Against Violence,

ministrado por Guillermo Gómez-Peña, Dani D´Emilia e Roberto Sinfuentes no Festival

Internacional de Teatro de São José do Rio Preto em 2012.

A proposta artística/performativa do La Pocha está diretamente relacionada à sua

prática pedagógica, e vice-versa. A pedagogia do La Pocha é parte intrínseca de sua proposta

artística e compreensão de arte. Através de um projeto educativo que se baseia em modelos

formativos abertos, experimentais e democráticos, se reconfiguram cartografias para inventar

um mapa mais ‘inclusivo para expressar/falar’, por meio de práticas pedagógicas em

performance.

Compartilhar a metodologia utilizada nos processos de criação do grupo, através de

cursos, workshops, bibliografias, demonstra uma opção política de democratização do

conhecimento e da informação. De modo radical, disponibilizam-se as ferramentas de

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trabalho/criação, possibilitando o acesso e o aprofundamento da experiência estética dos

participantes.

O Método Pocha é pensado para rebeldes, críticos, experimentais, teóricos,

pesquisadores de raça e gênero, híbridos, queers, imigrantes, outsiders, desterritorializados,

artista de performance ou live art, obsecados com o cruzamento de fronteiras de todos os

tipos. No livro Exercises for Rebel Artists – Radical Performance Pedagogy, escrito por

Guillermo Gómez-Peña e Roberto Sinfuentes, além de reunir textos de base do método, é

possível encontrar uma compilação dos procedimentos utilizados por eles ao longo dos anos.

Os autores apresentam nesse livro a estrutura dos cursos e workshops, jogos, exercícios,

ilustrações, temáticas e fotos de diferentes processos realizados. Mostra-se como um

importante material de apoio para qualquer pessoa e grupo que deseje criar/produzir material

em performance radical.

Figura 8 – Imagem da capa do livro ‘Exercício para Artistas Rebeldes’ Fonte: Liminalities – Um Jornal de Estudos da Performance. Disponível em: <http://liminalities.net/9-3/rebelartists-rev.html> Acesso em: 27 jul. 2013.

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Idealmente o livro foi pensado como uma ferramenta de ensino útil para turmas de

universidades, comunidades e grupos de artistas. Os exercícios mais utilizados ao longo dos

anos de existência do grupo são compartilhados com os leitores, na expectativa de que eles

possam, a partir do livro, reinventar o método e criar seu próprio estilo de realização de

performances rebeldes. Essa obra assume grande relevância como fonte bibliográfica na

presente dissertação que, somada a outras mídias e experiências práticas, possibilitou uma

ampliação do conhecimento e análise sobre o Método Pocha.

As propostas metodológicas apresentadas pelo La Pocha devem ser adaptadas e

repensadas junto ao grupo de participantes e em relação ao lugar específico onde se realiza,

respondendo às especificidades culturais do local e aos desafios in situ. A proposta de

utilização das novas tecnologias, como meio de atualizar a metodologia, permite que o

método mantenha-se vivo, em processo de constante reinvenção, enquanto ‘método vivo para

a prática de performance art em tempos de crise’. Diferentes meios: blog, mídias sociais,

fóruns no site do La Pocha surgem no intuito de facilitar esse diálogo, espaços virtuais onde

podem ser compartilhados relatos, sugestões, e ainda incluir novos textos, referências,

imagens, vídeos.

A criação de uma ‘zona desmilitarizada’, de uma ‘comunidade temporária’, onde é

possível a realização de convivências utópicas, altamente politizadas, anti-autoritárias,

interdisciplinares, multiétnicas, de múltiplas gerações e gêneros, facilita o surgimento de um

espaço multi-, poli-, cross-. A proposta de estabelecer um lugar livre e seguro para a

experimentação, onde as diferenças não são somente aceitas, mas encorajadas, promove uma

área onde os envolvidos são convidados a investigar suas questões, limites e idiossincrasias de

modo radical.

Enquanto comunidades temporárias, os workshops e cursos do La Pocha se

assemelham as propostas de zonas autônomas temporárias (TAZ31). Nesse sentido, são

entendidos enquanto espaços que se propõem livres para a reinvenção de modos de

colaboração e novas formações identitárias e relacionais. O Método Pocha pretende, assim

como essas zonas, ocupar esses interstícios que escapam à ordem vigente, construindo

alternativas dentro de um sistema extremamente controlador.

                                                            31 O conceito de zonas autônomas temporárias pode ser encontrado no livro de Hakim Bey, Temporary Autonomous Zone.

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A TAZ é uma espécie de rebelião que não confronta o Estado diretamente, uma operação de guerrilha que libera uma área (de terra, de tempo, de imaginação) e se dissolve para se re-fazer em outro lugar e outro momento, antes que o Estado possa esmagá-la. Uma vez que o Estado se preocupa primordialmente com a Simulação, e não com a substância, a TAZ pode, em relativa paz e por um bom tempo, "ocupar" clandestinamente essas áreas e realizar seus propósitos festivos. Talvez algumas pequenas TAZs tenham durado por gerações - como alguns enclaves rurais – porque passaram desapercebidas, porque nunca se relacionaram com o Espetáculo, porque nunca emergiram para fora daquela vida real que é invisível para os agentes da Simulação. (BEY, 2001, p.16)

É interessante pensar que a liberação de uma área, além de abrir espaços onde novos

modos de organização são possíveis, permite a reinvenção do uso do tempo e da imaginação,

importantes aspectos a serem descolonizados. Semelhantes às táticas zapatistas e de outros

grupos que estilhaçam os meios de ação transformadora, as zonas autônomas temporárias

apostam na descentralização do poder, no levante, na infiltração.

O La Pocha é pensado como uma forma de pedagogia radical, o que nos leva à

possibilidade de enxergar a performance enquanto pedagogia e o ato de ensinar como ato de

performar, perspectiva que confunde os limites entre ambos territórios. Nesse sentido, nos

aproximamos das questões e discussões levantadas por autores que também investigam

intersecções entre pedagogia e performance, porém, a partir de uma abordagem mais ligada

aos processos educativos de modo mais amplo do que à linguagem artística.

Pensa-se aqui, a performance como posicionamento performativo, como ação expressiva – e não como linguagem, muito embora também isso seja conveniente –, da qual se pode depreender um sentido e uma pedagogia. Dito de outro modo, pensa-se a pedagogia como performance, pedagogia cuja justificação será dada pela performance. Isso porque, supõe-se que a performance permita materializar na palavra o que nela supostamente, como signo, como abstração, se ausentaria, a coisa mesma, a matéria, o sentido dado (a sensação) do sentido na palavra produzido (o significado). (PEREIRA, 2010, p.2)

Tal abordagem busca reinserir o corpo no ato de ensino/aprendizagem, ao enxergar a

importância de extrapolar o entendimento da educação como informação e transmissão de

conceitos. Nesse sentido, o não dito e o não verbal – materializado na carne da palavra, no

gesto, no ato performativo de ensinar e aprender – surge de modo singular.

Assim, são retomados outros órgãos de sentido e inteligências que historicamente

foram menosprezados na área da educação, afirmando a importância de trazer o corpo e a

presença para o centro desse processo. Dessa forma, o reconhecimento da presença

performativa dos agentes envolvidos requer o ato de escuta, de enxergar-se em ato, no

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acontecimento – evento único e irreprodutível – que se torna possível somente pelo conjunto

circunstancial que o determina.

No projeto pedagógico do La Pocha o processo, independente de resultar em

performance pública ou não, é valorizado em seu caráter transformador, vivenciado pela

comunidade temporária que se propõe a experienciar de modo radical com seus corpos. Nesse

espaço as diferenças políticas, raciais, de gênero, estéticas e espirituais são negociadas,

possibilitando o encontro entre pessoas de diferentes origens, referências e convicções.

Diante de um mundo fortemente marcado pela divisão social e pelas diversas

segregações – que estratificam a sociedade em grupos que convivem paralelamente sem

interagir realmente –, o encontro entre diferentes possibilita uma fenda que permite a revisão

de uma serie de relações pré-estabelecidas.

Em via oposta ao benevolente apelo burguês de uma suposta tolerância, e até mesmo à

negação explícita da diferença, cria-se um espaço livre para o encontro entre diferentes, onde

os lugares sociais podem ser confrontados e repensados. Nesse sentido, Gómez-Peña (2005, p.

96) afirma que se a “(...) performance é uma forma de democracia radical então o performer

deve aprender a ouvir outros e ensinar outros a ouvir.”. Prática de fundamental importância

ainda hoje.

No projeto artístico/pedagógico do La Pocha, incentivar pessoas a cruzar fronteiras se

mostra como um projeto político de extrema importância em um tempo marcado por

nacionalismos paranoicos, pelo medo do outro e da alteridade. Um dos objetivos dos cursos é

proporcionar aos participantes que se tornem melhores cruzadores de fronteiras, em múltiplos

territórios. As divisas ultrapassadas durante as práticas do Método Pocha, inspiram os

participantes a extrapolar os limites para além dos terrenos que a arte produz.

Nesse sentido, o Método Pocha está interessado na produção de material performativo

enquanto agente de transformação social, que proporciona experiências negadas dentro de

uma sociedade de controle, fortemente administrada e segregada. É importante ressaltar que a

opção pela diferença se faz em desacordo ao silenciamento sistemático realizado

cotidianamente nas mais diferentes sociedades – pelas relações de poder e pelos rituais de

coesão e coerção social – formas de contato interpessoal baseadas na opressão.

Há dois problemas teóricos muito importantes: o do silêncio e o da diferença. O silêncio é o resultado do silenciamento: a cultura ocidental e a modernidade têm

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uma ampla experiência histórica de contato com outras culturas, mas foi um contato colonial, um contato de desprezo, e por isso silenciaram muitas dessas culturas, algumas das quais destruíram. (SANTOS, 2007, p.55)

Fruto de um colonialismo ainda vigente, a ação de diminuição do ser humano

demonstra uma relação que tenta transformar o outro em objeto e não em agente de criação de

cultura. De diferentes modos deslegitimam-se os saberes que não são os hegemônicos.

Boaventura de Sousa Santos (2007) sugere que essa relação está diretamente ligada ao não

reconhecimento do outro como igual, sentimento de semelhança necessário, nesse caso,

enquanto ponto de partida e não como ponto de chegada. Nesse sentido, torna-se necessário

construir a emancipação a partir desse duplo movimento: o respeito à igualdade e o

reconhecimento da diferença.

2.1 Breve histórico do Método Pocha

Enquanto desdobramento da prática performática do La Pocha Nostra, o Método

Pocha surge em meados de 1990, a partir da necessidade de aprofundar a investigação em

torno de uma metodologia pedagógica condizente com a proposta artística e prática do grupo.

O primeiro workshop organizado por Guillermo Gómez-Peña e Roberto Sifuentes –

The Brown Shep Project – recebeu grande influência das ideias e estruturas de organização

zapatista. Movimento que surge em 1994 no México, o zapatismo causa um forte impacto no

mundo, na sociedade mexicana e nos modos de se fazer política. O uso da internet, a

abordagem e importância dada à política simbólica e às ações performáticas, características de

sua prática contestatória, apontaram para uma nova perspectiva de atuação política.

Naquele tempo, aspectos sociais até então menosprezados passaram a fazer parte da

pauta de reivindicações de diferentes segmentos. As chamadas minorias assumiram uma

postura mais crítica em relação a outros modos de opressão, discriminação e exclusão, não

somente ligados à classe, como também ao gênero e à etnia.

O questionamento da realidade monocultural de certas correntes contestatórias

indicou a necessidade de reinvenção dos modos de se fazer política. Boaventura de Sousa

Santos (2007) corrobora com essa questão ao apontar a necessidade de uma ecologia de

saberes mais condizente com o reconhecimento da nossa realidade intercultural, de modo que

sejam ampliadas as bases epistemológicas vigentes, incluindo outras formas de conhecimento,

não ocidentais e hegemônicas. Novos modos de organização política surgem no cenário

mundial.

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Gómez-Peña conta que na época, ao se deparar com uma nova geração bem informada

sobre as políticas de gênero e raça, com afinidade com computadores, mídias globais,

tecnologias interativas e fluente em cultura pop, sentia falta de certa consistência e reflexão

ética. Ao mesmo tempo em que era visível uma forte desconfiança a todo tipo de governo,

corporação, religião formalizada, estado-nação, fronteiras geopolíticas, tais posições

confundiam-se facilmente com questões de estilo.

De forma espetacular, figuras como o Che Guevara e o Subcomandante Marcos

estavam estampados em camisetas do mesmo modo que astros da música, tornando assim

mais um estilo de vida do que uma convicção política. Diante dessa questão, Gómez-Peña

sentia a necessidade de investigar uma metodologia pedagógica ao mesmo tempo engajada,

sexy, altamente performativa e também com forte sentido ético, de modo que falar de ética e

compromisso pudesse não soar como hipócrita e antiquado.

Algumas etapas podem ser reconhecidas na criação e no desenvolvimento da

metodologia pedagógica do La Pocha, ciclos que marcam o processo do Método Pocha desde

meados de 1990 até os dias de hoje. Esse primeiro workshop realizado – The Brown Sheep

Project –, inspirado diretamente nas ideias e estruturas de organização zapatista e nas técnicas

ecléticas do trabalho de performance do La Pocha, teve como objetivo principal auxiliar

jovens artistas rebeldes a aprimorar sua experiência artística e ativista.

Ao realizar ‘workshops nômades’ em diferentes lugares, eles começaram a se

perguntar como o método se transformava ao atravessar diferentes fronteiras, quais exercícios

sobreviviam a esse cruzamento cultural, e investigaram como seria possível desenvolver uma

‘metodologia de fronteira’ adaptável ao contexto cultural específico de cada lugar.

Paralelo a esse curso o experimento pedagógico Re-group foi realizado enquanto um

laboratório de performance, que aconteceu em São Francisco em resposta direta ao ‘11 de

setembro de 2001’. Esse projeto teve como objetivo e temática ‘reconquistar a liberdade

artística existente apesar da administração Bush’. Tornou-se, naquela época, um espaço onde

comunidades chicanas, latinas e árabe/americanas podiam se encontrar e refletir sobre a

situação política de então e as perseguições recorrentes ao corpo moreno/mestiço. Após ‘11

de setembro’ a comunidade imigrante nos EUA passou a sofrer forte perseguição e as

fronteiras entre México e Estados Unidos foram duramente fortalecidas.

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O desdobramento desse laboratório foi o primeiro Performance Summer School,

realizado em 2005, na cidade de Oaxaca - México, um curso anual, que acontece ainda hoje,

reunindo pessoas de diferentes países. Com duração mais longa, os cursos de verão permitem

um maior aprofundamento no Método Pocha e nas trocas entre essa comunidade temporária,

que é formada por pessoas de diferentes países, etnias, gerações e experiências artísticas.

Em razão das complicações do cenário geopolítico mexicano no ano de 2005,

especialmente no estado de Oaxaca, diante da crise de governabilidade, da insurreição dos

professores seguida de amplo apoio popular e das retaliações e repressões sofridas, o La

Pocha opta por transferir o curso de verão para Tucson, em função de uma preocupação com a

segurança dos inúmeros participantes advindos de vários países. Iniciam, a partir de então, o

Tucson Summer School, no Museum Tucson of Contemporary Art (MOCA), baseados na

proposta de reunir artistas locais e internacionais para engajar-se na troca de arte radical, de

novos vocabulários e linguagens rituais e estéticas. Atualmente o La Pocha continua

realizando os anuais cursos de verão e inverno e workshops em diferentes países.

2.2 Método Pocha’ – exercícios, rituais e jogos.

Nesse item, o ‘Método Pocha’ é analisado de modo estrutural, a partir da organização

do tempo e das metodologias utilizadas. Nesse intuito alguns jogos, exercícios e rituais,

propostos nos workshops do La Pocha Nostra, são apresentados de modo mais descritivo. A

partir da identificação dos procedimentos utilizados busca-se refletir sobre a metodologia

proposta em relação aos objetivos e práticas do grupo. No Método Pocha, a partir do material

performativo criado, investiga-se questões espinhosas e delicadas – latentes tanto entre o

grupo de participantes e a comunidade em que está inserido, quanto em relação à sociedade de

um modo geral. Emergem-se assim problemas e tensões pertinentes e urgentes.

Enquanto metodologia eclética, o Método Pocha inclui exercícios de performance,

rituais e jogos – inventados, emprestados e adaptados de diferentes disciplinas e culturas. No

desenvolvimento de sua prática pedagógica, os integrantes do La Pocha, se apropriam de

referências de fontes diversas – do teatro experimental (Boal, Grotowski), da dança, do

contato improvisação, de performances rituais e das práticas xamânicas. Ao experimentar

essas diferentes propostas metodológicas, desenvolveram novos exercícios e realizaram

adaptações, criando assim outras versões para as práticas vivenciadas.

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Os workshops são ministrados, com maior frequência, por dois ou mais integrantes do

La Pocha, o que evidencia a natureza polivocal e a maleabilidade de formatos dessa proposta

pedagógica. Quando dois instrutores estão presentes, o número ideal de participantes é de até

vinte pessoas, já com três ou quatro instrutores podem ser incluídos cerca de trinta partícipes.

No Método Pocha as distinções entre instrutor/facilitador e participante se encontram

diluídas. Porém, a importância de um olhar externo é ressaltada, por mais que se possa variar

a pessoa que assume esse papel. Repensar modelos de interação entre artista e comunidade,

mentor e aprendiz, que não reproduzam relações coloniais, nem condescendentes, é um dos

propósitos do projeto pedagógico do La Pocha.

Os integrantes do La Pocha ressaltam a importância de que a convocação para os

cursos circule em diferentes lugares e comunidades, para que assim o grupo de participantes

possa ser o mais interessante, interdisciplinar, eclético e rico possível. Eles estão

particularmente interessados em artistas e teóricos rebeldes, com identidades complexas, com

idade entre 18 e 80 anos ou mais.

A relação com o espaço assume um papel importante no desenvolvimento dos cursos

do La Pocha, podem ser realizados em museus, galerias, teatros, universidades, centros

comunitários, etc. Durante o processo tanto a ocupação do espaço quanto o uso da luz são

utilizados como material de criação e composição. A duração de cada processo varia de

acordo com a proposta de cada projeto específico, podendo durar desde um dia até várias

semanas, com cerca de 5 a 8 horas de trabalho por dia.

Iluminação e som devem estar acessíveis, no intuito de que os próprios participantes

possam manipulá-los e regulá-los, criando os efeitos desejados. A iluminação assume um

papel importante na criação da atmosfera performativa, para tanto o espaço deve oferecer

diferentes possibilidades de iluminação. Devem ser utilizadas luzes de intensidade regulável,

de fácil operação e manipulação, que possam ser modificadas a partir de materiais simples,

como o uso de gelatinas de cores diferentes, por exemplo.

A música exerce uma grande importância no Método Pocha, efetuando múltiplas

funções nesse contexto. É utilizada na criação de ambientes, no jogo de colagens feito a partir

de códigos distintos e conteúdos culturais específicos ou mesmo no aumento e mudança do

humor e sentido da ação. Durante o processo criativo, a música tem o poder de potencializar a

imagem, de criar contradições e estranhamentos ou mesmo de modificar o seu conteúdo.

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A seleção de músicas é feita a partir de uma fusão eclética de Drum and Bass,

eletrônica, rock em espanhol, hip-hop e clássico, além de outros ritmos de diferentes culturas.

Os participantes podem levar seu próprio mix ou lista de músicas. Em alguns momentos Djs e

músicos são integrados ao processo. A utilização da música é alternada com momentos de

silêncio.

Os participantes são convidados a levar para os cursos do La Pocha, artefatos e

vestuários que carregam um forte significado pessoal, cultural, político ou espiritual, para que

seja criado o ‘banco pop de arqueologia pessoal’. Podem ser incluídos também figurinos,

talismãs, itens fetichistas, máscaras, perucas, chapéus, sapatos, peças de roupa ou tecidos. Se

algum dos participantes não tiver seus próprios objetos pessoais, pode pegar emprestado ou

comprar em uma ‘loja barata de performance art’ – o que para o La Pocha inclui lojas

beneficentes, lojas de segunda mão, lojas de souvenir nos vizinhos locais étnicos/folclóricos e

lojas de fetiche e de ferramentas. É fundamental que se reserve uma área para dispor esses

acessórios e vestuários, espaço que pode ser criado com duas ou três mesas de trabalho e uma

arara para pendurar as roupas.

A proposta de intercalar ação, contemplação e reflexão de modo complementar é uma

marca da metodologia do La Pocha. Os participantes devem levar o seu próprio diário,

material que pode ser utilizado para registrar pensamentos, observações, exercícios e imagens

descobertas durante o processo, que queiram utilizar novamente. Essa documentação pode ser

feita através de anotações escritas ou mesmo a partir de desenhos.

Durante a realização dos cursos a questão do registro assume um papel importante

dentro do processo, em termos de política de documentação. A discussão sobre a importância

e o risco que acompanha a documentação fotográfica e videográfica introduzida no processo é

muito importante, especialmente em nossa era digital. A rapidez e a falta de limite da

produção e reprodução imagética atingiu um nível de tal alcance, que se perde o domínio de

uso das imagens. A tentativa de assegurar um espaço de livre experimentação, em que haja

certa proteção dos integrantes para que não sejam expostos sem seu consentimento, corrobora

com essa discussão.

Os integrantes do La Pocha Nostra sugerem que o Método Pocha pode ser utilizado

por artistas de teatro, bailarinos, poetas de tradição oral, artistas de instalação, fotógrafos,

artistas de vídeo, ativistas e educadores, e não somente por performers. Segundo Gómez-

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Peña, pessoas interessadas em incorporar o corpo humano como parte integral de sua criação

artística podem se beneficiar dessa prática.

É importante ressaltar que o Método Pocha não é pensado como processo de criação

de trabalhos individuais. Os diferentes jogos e exercícios são feitos em dupla, ou em grupos

maiores, sob o princípio de criações coletivas. Assim como nas performances do La Pocha, os

procedimentos e propostas educativas são realizados em grupos de diferentes tamanhos e os

participantes são incentivados a trabalhar com pessoas que ainda não tenham colaborado. No

momento de divisão das duplas e grupos, convocam-se os integrantes do processo para

escolher seus parceiros de trabalho. O critério de seleção, nesse caso, se dá pela diferença,

pelo estranhamento, pela curiosidade, pelo desafio e não apenas por afinidade imediata ou

identificação.

A proposta de uma vivência intensa faz parte dos cursos do La Pocha. Em busca da

criação de uma comunidade temporária, incentiva-se que sejam extrapolados os momentos em

sala, e que os participantes do curso e os integrantes do La Pocha aprofundem a convivência

entre si, explorando a cidade, fazendo refeições e festejando juntos, estendendo a convivência

para a vida social do grupo. Desse modo, acreditam poder conectar e aprofundar, de maneira

mais informal, o encontro e a troca com o outro, em uma espécie de processo de imersão.

No livro Exercises for Rebel Artists – Radical Performance Pedagogy, dedicado ao

Método Pocha, são apresentadas cinco sessões, que aparecem separadas para fins

pedagógicos, mas que durante o workshop encontram-se entrelaçadas de maneira orgânica.

Nesse livro clarifica-se o desejo do La Pocha de que o/os facilitador/es dos exercícios se

sintam livres para adaptar a linguagem pedagógica descritiva do livro, utilizada para

simplificar o entendimento. Dessa forma, devem recriar o método a partir de sua própria voz e

do estilo de ensinar, assim como das necessidades específicas do local, da comunidade e das

pessoas com quem estão trabalhando. Segue uma apresentação dessas sessões.

Na primeira sessão são incluídos exercícios práticos, físicos e/ou perceptivos que

facilitam que os participantes possam se reconectar com o próprio corpo, experimentar o

‘modo performativo’, explorar estratégias de colaboração, afiar o senso de performance,

exercitar o olhar performativo e estabelecer um vocabulário coletivo em performance.

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A segunda sessão é mais dedicada a exercícios conceituais e poéticos utilizados no

intuito de aprimorar a habilidade analítica e retórica dos participantes e mapear novos

territórios temáticos.

A terceira sessão inclui exercícios criativos que contribuem para que os participantes

possam desenvolver material original em performance e se engajar em diferentes estratégias

de colaboração.

Já a quarta sessão descreve as sessões de improviso, a ‘infame Pocha Jam session’,

que coloca todos os exercícios anteriores em prática.

A quinta e última sessão inclui procedimentos utilizados para a realização de

apresentações públicas do material produzido. Principalmente nos cursos mais longos, com

mais dias de trabalho, são realizadas, ao final do processo, dois tipos diferentes de mostras: os

‘salões abertos de performance’ e as ‘apresentações de grande escala’.

Alguns dos exercícios, jogos e rituais propostos nas diferentes sessões serão

apresentados para que se possa compreender melhor o Método Pocha através de suas

proposições práticas.

O dia de trabalho, durante a realização dos workshops, divide-se preferencialmente em

dois períodos de quatro horas, separados por um intervalo reservado para água, descanso,

alimentação, anotações. A primeira parte do dia é dedicada aos exercícios físicos, perceptivos,

conceituais e poéticos – práticas da primeira e da segunda sessão – já o segundo momento é

reservado para os exercícios criativos – da terceira sessão.

Os exercícios das sessões um e dois são de extrema importância, principalmente nos

primeiros dias, para que o grupo possa conquistar um alto nível de confiança, adquirir um

vocabulário em comum e conhecer um pouco mais das experiências e limites de cada um.

No livro Exercises for Rebel Artists os exercícios, com suas possíveis variantes, são

apresentados e descritos. Algumas dessas práticas são propostas realizadas durante todos os

dias, outras somente em um dia, há ainda aquelas que são retomadas em suas diferentes

versões ao longo do processo, de acordo com os objetivos de cada oficina. No final do livro

são apresentadas sugestões de organização do tempo nos diferentes cursos, com as sequências

a serem utilizadas em cada momento, dia-a-dia, de acordo com o tempo disponível.

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No sentido de tornar possível aos participantes radicalizar o nível de experimentação,

é de extrema importância que se estabeleça uma ética compartilhada. Além disso, reserva-se

aos integrantes do processo o direito de não realizar algum exercício que lhe seja incômodo.

O La Pocha tem consciência de que algumas práticas mexem com camadas de significação

que ativam memórias corporais delicadas tanto positivas quanto negativas, assim como

podem gerar situações embaraçosas a partir da ótica de dada cultura.

2.2.1 Procedimentos e exercícios do Método Pocha

Alguns exercícios são apresentados nesse item no intuito de propiciar uma melhor

visualização e compreensão das propostas, táticas, estratégias e procedimentos utilizados pelo

La Pocha Nostra durante seus cursos, oficinas e demais atividades formativas. Durante as

práticas do Método Pocha ressalta-se o cuidado necessário com o corpo do outro. Estabelecer

um espaço de confiança é fundamental para que os parceiros possam se entregar e viver a

experiência de modo intenso, sem maiores medos e receios.

A primeira sessão tem como objetivo ativar a corrente sanguínea e o fluxo energético e

reterritorializar o corpo no espaço, de modo que se ative uma presença conectada ao ‘aqui e

agora’, no acontecimento singular entre os corpos, o tempo e o espaço específico. Nessa

sessão são incluídos exercícios básicos de alongamento e aquecimento, emprestados da dança,

do teatro, do yoga, das artes marciais, do Tae Bo – prática baseada na mistura de boxe, artes

marciais e ginástica aeróbica –, do Pilates, do Tensegrity – prática organizada por Carlos

Castaneda a partir de passes mágicos de xamãs mexicanos – e do riso induzido.

O exercício O olhar - descobrir os outros “outros” tem duração de cerca de 5 a 7

minutos. Seu objetivo é investigar as diferentes conotações que o contato visual, intenso e

prolongado, assume entre duas pessoas de culturas distintas. Esse exercício é apontado por

Gómez-Peña e Roberto Sifuentes como uma das práticas xamânicas mais antigas que temos

conhecimento. Em sociedades como a nossa, que perderam esse costume, tal experiência pode

ser profundamente radical, reveladora e transformadora.

O olhar configura-se enquanto um aspecto de extrema importância para a investigação

da presença. Ao afirmar a noção de ser/estar em oposição à ideia de atuação evidencia-se o

estar ‘aqui e agora’. O olhar prolongado aproxima as pessoas do reino do tempo ritual. Essa

noção é apontada como um aspecto muito importante no desenvolvimento das ações e

estruturas rituais e criação das personas performáticas.

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Nesse exercício, formam-se duplas que se posicionam em algum lugar da sala a dois

pés de distância um do outro, mantendo um contato visual contínuo, de modo que estejam

presentes e abertos a receber o outro. Os participantes ao andar pelo espaço devem manter um

contato visual consciente. Depois de alguns minutos a dupla pode conversar sobre o que

observaram e sentiram – suas reações emocionais, sensações físicas e perceptivas.

Durante os dias seguintes podem ser realizadas outras versões do exercício – a partir

da ampliação do campo de visão e dos pontos de contato, da mudança de níveis entre os

parceiros (plano baixo, médio e alto) e da aproximação ou distanciamento dos corpos. Como

última variação une-se, em um mesmo exercício, a combinação de todas essas alterações, de

distâncias, níveis, posições corporais, e pontos de conexão física. A partir desse exercício

surge muito material criativo.

O exercício ‘Etnografia Poética’ é um exercício de exploração e manipulação

multissensorial do corpo humano. Essa proposta foi desenvolvida pelo La Pocha em meados

de 1990 e aperfeiçoada desde então. Segundo eles, esse é possivelmente o mais famoso e

arriscado dos exercícios do La Pocha Nostra. Tendo em vista a necessidade de negociar

fronteiras delicadas entre cuidado e ousadia, eu e o outro, negociação de limites que precisam

ser feita pela dupla. O exercício é realizado em duas partes, a primeira de exploração

multissensorial do corpo humano, e a segunda de manuseio e manipulação do corpo no modo

performativo.

O exercício inicia com os participantes andando pelo espaço até escolher um parceiro,

de preferência alguém com quem ainda não tenham trabalhado e que seja diferente em

aspectos óbvios (raça, gênero, idade, tipo de corpo). Os integrantes da dupla, de frente um

para o outro, a dois ou três metros de distancia, escolhem quem exercerá cada papel – um

deve ser o etnógrafo e o outro a espécie – metáforas que descrevem os papéis executados.

O etnógrafo deve explorar o outro como ‘artefato humano’ e estar realmente aberto a

descobrir sua ‘espécie’. A investigação deve manter alguns cuidados, apesar de ousada, áreas

tabus (seios, genitais, etc.) e possivelmente desconfortáveis (pés, interior da boca, atrás das

orelhas, narinas, joelhos, etc.) podem ser vetadas pela espécie que, apesar de ocupar um papel

mais passivo, deve estar totalmente presente e consciente durante o exercício.

De olhos fechados as espécies são examinadas pelos etnógrafos, primeiramente

através da visão, a partir de diferentes perspectivas, ângulos e distâncias, de modo que tenham

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o máximo de informações sociais e culturais sobre a pessoa. Aos poucos são acrescentados os

outros sentidos, um de cada vez, até que todos estejam envolvidos.

Quando o olfato é adicionado deve-se buscar o máximo de detalhes, o cheiro do

cabelo, da face, das mãos, das roupas, do perfume, etc. Ao acrescentar a audição os mais

suaves sons devem ser ouvidos, desde a respiração, o batimento cardíaco, a digestão e outros

sons que emanem do corpo do outro. O último sentido somado é o tato, o etnógrafo pode

sentir as texturas das roupas, da pele, dos músculos, da estrutura óssea, do cabelo, das

diferentes temperaturas, etc. Cada novo sentido deve ser acrescentado sem que sejam

esquecidos os outros.

Depois de todos os sentidos ativados, o etnógrafo segue observando as marcas, sinais e

símbolos específicos da espécie que a diferenciam – marcas interessantes, características

idiossincráticas (cicatrizes, poros, veias, tatuagens, joias, marca de roupa, cor do cabelo,

maquiagem, perfume, esmalte). Passados quinze minutos, o etnógrafo retorna a espécie para a

sua posição neutra inicial. Após se inverterem os papéis, a dupla troca rapidamente

impressões e descobertas feitas.

Na segunda etapa do exercício os duos devem ser desfeitas para que se realize novas

combinações. Momento em que a manipulação e o manuseio do corpo do outro se efetivam

como uma continuação da parte precedente. A primeira coisa que o etnógrafo deve fazer, ao

encontrar a sua nova espécie, é comparar o seu corpo com o de seu parceiro, observando

altura, membros do corpo, cor de pele, textura do cabelo, cicatrizes, roupas, forma e tamanho

das mãos e dos pés, sua estrutura óssea e muscular e suas articulações. Aos poucos os papéis

transformam-se: de ‘etnógrafo’ para ‘artista’ e de ‘espécie’ para ‘matéria-prima’.

Durante a investigação do peso e da gravidade do corpo do parceiro é importante

perceber o peso das diferentes partes de seu corpo e a alteração de seu centro de gravidade –

através da manipulação desse corpo ainda é possível explorar as singularidades do movimento

do outro. A matéria-prima deve colaborar mantendo um papel ativo, permitindo que

transformações e posições inesperadas e interessantes possam surgir.

Ao final de dez ou quinze minutos o artista deve escolher uma imagem ou forma

potente e interessante para sua matéria prima que tenha surgido do processo de exploração.

Ele pode se inserir na imagem ou circular observando as outras matérias-primas, e por fim

retorna seu parceiro à posição inicial.

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O exercício Poetic exquisite corpse – Mapeando novos territórios de investigação,

integra a segunda sessão, mais voltada aos exercícios conceituais e poéticos. Essa prática foi

inspirada no jogo surrealista ‘Cadáver Esquisito’ – exercício ‘cego’ de desenho coletivo – e

nos exercícios utilizados no hip-hop para desenvolver material poético. É apresentado

enquanto um bom exercício introdutório à gnosis poética – uma forma de conhecimento

diferenciada não puramente racional – que ainda se mostra enquanto uma ferramenta útil no

levantamento de questões importantes para a comunidade envolvida.

Nesse exercício um dos performers assume o papel de ‘Dj poético’, sua função é fazer

com que a palavra circule por toda a roda ininterruptamente, de modo que todos possam

participar da feitura desse ‘cântico poético poli-vocal’. No exercício o Dj repete uma

enunciação aberta que deve ser completada com pequenas frases ou palavras poéticas. Sem

racionalizar demais, mantendo a dinâmica rítmica do exercício, os participantes completam a

frase reiterada. Aos poucos se cria um cântico coletivo, em que as frases passam a dialogar

com o sentido anterior de modo orgânico, o poema instantâneo criado pode ser gravado,

transcrito e/ou compartilhado com o grupo, para que posteriormente seja utilizado como

material de criação, ou mesmo como script de uma performance.

Trago aqui alguns exemplos de diferentes frases muito utilizadas por eles nesse

exercício durante os cursos: ‘Performance é...’/ ‘Performance não é...’, ‘Minha comunidade

é...’ / ‘Minha comunidade não é...’, ‘Minha identidade é...’ / ‘Minha identidade não é...’, ‘Eu

faço arte porque...’ / ‘Porque se eu não fizesse...’, ‘Eu tiro a minha força de...’ / ‘Eu luto

contra...’, ‘Eu sou feminina quando...’ / ‘Eu sou masculino quando...’.

Essas frases abertas possibilitam levantar uma gama de material composta de questões

latentes, que surgem não apenas de modo racional, mas que estão aí coladas à pele.

Evidencia-se, desse modo, uma voz que é pessoal, mas também compartilhada, que diz de

cada um, mas também da sociedade em que se vive, tocando questões delicadas de modo livre

e leve. Esse exercício retoma muitas questões conceituais do trabalho do La Pocha.

Outra prática interessante para grupos de pessoas aparentemente muito diferentes

intitula-se Espectro – Comunidades múltiplas e identidades fluidas. Esse exercício salienta os

territórios compartilhados e a construção de comunidades, evidenciando a complexidade das

diferentes identidades e a desconstrução de estereótipos. Pode contribuir ainda para a

percepção das múltiplas comunidades ao qual fazemos parte, em diferentes tempos e por

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diferentes razões, uma ilustração em ato de que nossa identidade é fluida e está em constante

mudança. O exercício é realizado a partir da auto-identificação e auto-percepção e não de

identidades impostas.

Os participantes imaginam uma linha onde devem se posicionar a cada categoria

binária, na sequência de um a dez. Alguns exemplos desses dois pontos extremos da linha

são: culturalmente e artisticamente tradicional x total iconoclasta, mono-racial x multi-racial,

100 % apolítico x 100 % politizado ou militante, puramente estético x artista socialmente

engajado, individualista x comunitário, religioso x ateu ou agnóstico, 100 % masculino x

100% feminino, racista x absolutamente não racista ou ‘pós-racista’, sexista x absolutamente

não sexista, nunca foi censurado x sempre é censurado. Após essa etapa os participantes

podem começar a sugerir outras oposições binárias. Uma possibilidade interessante, sugerida

pelo La Pocha, é que se retome o exercício ao final do curso, para que se perceba as

transformações ocorridas durante o processo.

Ainda nessa sessão acrescenta-se, enquanto exercício, a discussão sobre as

implicações da documentação em vídeo e fotografia durante a oficina. Em seus diferentes

cursos, o La Pocha prioriza que todos discutam a introdução da documentação no processo.

Dessa forma, as questões suscitados se referem à escolha dos momentos que serão

documentados e à destinação dos documentos produzidos.

A terceira sessão, chamada Exercícios para gerar material em performance e imagens

vivas introduz as práticas mais voltadas para a criação de material performativo. O ‘Banco

pop de arqueologia pessoal’ assume um papel muito importante nessa sessão e no Método

Pocha como um todo. Uma das práticas da sessão é justamente organizar esse banco pop.

Dispõem-se duas ou três mesas de trabalho e uma arara em frente a uma parede, onde são

colocadas as roupas, objetos e acessórios trazidos pelos participantes, separados em diferentes

sessões para facilitar o uso.

A cada dia a instalação de roupas e acessórios deve ser reorganizada de uma nova

maneira de modo que outros objetos e roupas sejam evidenciados e surjam novas ideias de

uso e composição. Eles pedem que as pessoas levem para a construção do banco pop: roupas

confortáveis de ensaio, de preferência preta ou de cor neutra, trajes e objetos únicos da

‘arqueologia pessoal’ – objetos icônicos com significado especial para pessoa – e artefatos

que remetam a temas como religião, guerra, sexualidade, cultura pop, etnicidade, turismo, ou

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mesmo adereços, talismãs, objetos fetichistas, perucas, chapéus, roupas, tecidos, maquiagem,

sapatos, máscaras.

As pessoas residentes na cidade em que acontece o curso ficam responsáveis em levar

peças maiores como plataformas e cubos, suportes ou mobília, manequins inteiros ou partes

de manequins, animais empalhados, ou outras coisas não usuais, como ferramentas de jardim

ou construção, partes de máquinas quebradas, placas de circuitos e tecnologias antigas,

materiais de loja de ferragens, como cordas, papel alumínio, filme plástico e fita adesiva, ou

mesmo objetos que são de difícil transporte como réplicas de armas, próteses e instrumentos

médicos. Além disso, solicitam que os participantes levem um mix de músicas de sua coleção

pessoal. O banco pop deve ser constantemente reformulado ao longo do workshop, elementos

podem ser acrescentados, ou mesmo retirados, de acordo com a necessidade do grupo,

pequenas mudanças podem gerar novas combinações e ampliar as possibilidades de jogo.

No exercício Criando quadros vivos duas instruções importantes são dadas antes de

iniciar o exercício, primeiro que sejam abandonados o óbvio e o simplista – incluindo os

clichês, estereótipos, e significados literais – e que a palavra não seja utilizada para direcionar

o parceiro, outro tipo de comunicação deve ser estabelecida.

O exercício é dividido em duas partes, na primeira Um por um: Construindo uma

imagem viva em alguém o ‘artista performer’ cria a partir do corpo do parceiro e dos

acessórios que ele está utilizando no momento: roupas, joias, óculos, cinto, sapatos, somente

depois é que são acrescentados os objetos do banco pop. Esse é um exercício que surgiu

durante os ensaios do La Pocha Nostra nos anos 90 e é a base para a criação da maior parte

das imagens do grupo, segundo eles funciona como uma espécie de caderno de desenho ou

laboratório para a criação de imagens vivas. O objetivo é criar imagens originais de

performance e metáforas vivas que articulem a complexidade de nosso tempo e de nossa

psique.

O exercício inicia com os participantes andando pelo espaço até encontrar um

parceiro, uma das pessoas assume o papel de ‘artista performer’ e o outro de ‘matéria-prima’

ou ‘artefato humano’. A dupla deve manter entre si três passos de distância e, após a divisão

de papéis, o artefato humano deve fechar os olhos. Realizam rapidamente o exercício

‘etnografia poética’ para tornar mais familiar o corpo do outro, após essa etapa o ‘performer’

começa a construção de imagens a partir de sua matéria-prima.

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As roupas e acessórios do parceiro são utilizados para a criação de uma imagem

singular baseada em sua própria estética pessoal. Quando o performer achar que sua imagem

está pronta, pode circular observando as outras imagens, e propor pequenas alterações nas

outras criaturas. Desse modo, a noção de autoria/propriedade de uma imagem se perde e se

estabelece uma relação colaborativa e multicêntrica de criação. As matérias-primas são

cuidadosamente retomadas a posição inicial e os papéis são trocados. A proposta é que

construam imagens originais que gostariam de ver no mundo, imagem de sonhos, de reinos

metafóricos e simbólicos.

Eles sugerem algumas variações para esse exercício, que adicionam outras camadas de

significado, como:

- propor um ou dois temas conjuntamente, como moda e religião, guerra e drogas, crime e

sexo, sagrado e profano;

- incorporar adereços e roupas;

- acrescentar um movimento simples à imagem, uma pequena ação, repetitiva, obsessiva,

enigmática, contraditória;

- pensar o corpo como uma tela ou texto em branco, utilizando maquiagem, materiais de arte e

pintura corporal para marcar, decorar, desenhar e escrever no corpo da matéria-prima

palavras, frases poéticas, desenhos, formas, símbolos;

- inserir o corpo do ‘artista performer’ na imagem;

- explorar a sintaxe e a conexão entre as diferentes imagens, aproximando-as, colocando-as

em uma relação espacial particular, ou as conectando fisicamente de alguma forma, com

corda, tecido ou fita;

- experimentar com a iluminação disponível – focos de luz, luzes de teto, luminárias portáteis,

iluminação natural – pensando a luz como um elemento performativo importante;

- jogar com a relação entre a imagem e a arquitetura da sala, utilizando os recursos

arquitetônicos disponíveis para compor as imagens;

- investigar as consequências de estabelecer um título para a imagem, fato que pode alterar,

expandir ou identificar o significado do conjunto imagético.

Eles sugerem ainda alguns temas que podem ser utilizados para esses quadros vivos

(tableaux vivants): o corpo humorístico, estranho, demonizado, grotesco, historicizado,

mitológico, midiatizado, fetichizado, queer, militante/ativista, torturado, cyborg, temas que

exploram os diferentes desdobramentos possíveis do corpo em seus diversos agenciamentos.

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Figura 9 – Registro do exercício Criando quadros vivos Fonte: La Pocha Nostra Live Arquive. Site de registro de performances e cursos do La Pocha Nostra. Disponível em: <http://lapochanostralivearchive.tumblr.com/>. Acesso em: 5 dez. 2013.

Figura 10 – Registro do exercício Criando quadros vivos Fonte: La Pocha Nostra Live Arquive. Site de registro de performances e cursos do La Pocha Nostra. Disponível em: <http://lapochanostralivearchive.tumblr.com/>. Acesso em: 5 dez. 2013.

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A segunda parte desse exercício chamada de ‘Quadros vivos colaborativos’ é uma

continuação da proposta anterior. Assim como os outros, deve ser realizado sem o uso da fala,

utilizando a ‘inteligência performativa’, de modo que as decisões não sejam feitas somente

racionalmente, mas com o corpo inteiro em ação. Nesse exercício colaborativo, é importante

que se preste muita atenção às propostas estéticas do parceiro, buscando uma interação mais

intuitiva.

Nessa segunda parte do exercício são divididos grupos de quatro pessoas, duas pessoas

criam a imagem a partir das outras duas. O tema é introduzido, e cada um da dupla de artistas

fica responsável por uma matéria-prima. A imagem criada deve estar relacionada com a do

parceiro, mas não necessariamente em sentido literal, juntas devem funcionar como um

díptico. Todo o material disponível deve ser usado nessa etapa da criação, tanto o que a

matéria prima está utilizando no momento quanto o que está disposto no banco pop de

arqueologia pessoal. Deve-se levar ainda em consideração aspectos da arquitetura, da

iluminação e da posição espacial dos corpos. Após a imagem estar terminada, os artistas

circulam pela sala e podem propor pequenas alterações, tirar ou colocar detalhes nas outras

imagens. Invertem-se os papéis e reinicia-se com o mesmo tema. Eles sugerem como variação

que aos poucos se aumente o número de pessoas de cada grupo – primeiro seis, depois oito, e

assim por diante, até que todos os participantes estejam divididos entre dois grupos.

A terceira etapa do exercício, Criações grupais: ‘museus vivos’ instantâneos, é de

ritmo mais rápido e contribui no despertar de um senso de criação instantânea. Todos os

participantes são divididos em dois grupos um de ‘artistas performers’ e outro de ‘matérias-

primas’ e criam coletivamente uma performance/instalação única. Cada artista manipula,

manuseia e veste uma matéria-prima. Como nos outros exercícios, os artistas podem

contribuir, modificando detalhes nas figuras criadas por outros, para que se garanta que todas

as imagens estejam fortes e conectadas.

Os artistas posicionam suas criaturas, atentos ao espaço, à iluminação, à mobília,

podendo utilizar ainda módulos e plataformas para alterar o nível de sua imagem. Devem

cuidar para que o espaço inteiro seja utilizado e não se reduza à sua frontalidade. Nesse

sentido, é importante que tentem enxergar a imagem completa de várias perspectivas,

distâncias e níveis para que, se for preciso, possam alterar posições e direcionamentos de

qualquer uma das imagens.

Uma variação sugerida por eles é a divisão dos grupos em critérios específicos:

homens/mulheres, gays/heteros, moradores locais/estrangeiros, por nacionalidade, raça,

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profissão, idade, ou outros parâmetros. Eles sugerem alguns temas para criar o museu vivo:

contradições culturais, fetiches interculturais, celebridades decadentes, monstros sagrados,

novos bárbaros, selvagens artificiais, tecno-primitivos, identidades estranhas, monstros

culturais, apocalipse ocidental.

O exercício Altar humano: dioramas vivos e mortos aprofunda a noção de sagrado, é

uma prática que envolve um grupo grande de pessoas criando a partir de um só corpo. Pode

ser realizado ao som de músicas religiosas de diferentes religiões – para ajudar a fortalecer a

experiência. Segundo eles, essa é uma versão pós-moderna e pós-colonial da antiga prática de

performance ritual em que o corpo humano se torna peça central de um altar coletivo. Nos

mais diversos lugares pessoas construíram elaborados altares em volta dos corpos dos

membros falecidos de sua comunidade.

Figura 11 – Registro do exercício Altar humano. Fonte: La Pocha Nostra Live Arquive. Site de registro de performances e cursos do La Pocha Nostra. Disponível em: <http://lapochanostralivearchive.tumblr.com/>. Acesso em: 5 dez. 2013.

Após escolhido o tema, um voluntário assume o papel de peça central do altar, o grupo

é dividido em duas equipes: estilistas do corpo e designers do altar. Enquanto uns ficam

responsáveis em vestir e decorar o corpo, os outros escolhem o local do altar e montam a

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instalação ritual – o ambiente sagrado que vai conter o corpo – utilizando para isso objetos,

peças e tecidos. Quando o corpo/cadáver está pronto deve ser inserido nessa instalação ritual,

de modo que esteja estendido no chão, em uma mesa, em um nicho, ou mesmo sentado em

uma cadeira.

Após a preparação do altar e da peça central, os dois grupos devem unir ambas as

partes como uma obra única. Escolhe-se então um título para a imagem. O altar deve ser

ativado com uma ação ritual performática simples. Uma possível variação pode ser realizada

com dois voluntários. Eles sugerem algumas tipologias para a criação dos altares humanos,

figuras como: um trabalhador imigrante, um membro da comunidade imigrante local que

morreu fora de seu país, uma celebridade decaída, uma estrela pornô, um soldado americano

que retornou do Iraque ou do Afeganistão ou uma madona dos cruzadores de fronteiras.

‘Trípticos de composição – lidando com movimento, localização e composição em

performance’ é o primeiro exercício criativo em estúdio em que os participantes ficam de

olhos abertos e tomam suas próprias decisões performáticas. Esse exercício foi ensinado pelo

performer Alisson Wyper e adaptado pelo La Pocha, o objetivo é colocar em prática a

inteligência performativa ao tomar decisões de composição em um contexto da live art.

Uma área de cerca de 5 metros por dois é demarcada em algum lugar da sala, o grupo

deve sentar-se em frente a esse espaço. Uma linha imaginária, ou marcada com fita, separa a

‘zona de performance’ da ‘zona civil’. Alguém entra na zona performática e cria uma imagem

simbólica com seu corpo e o congela, alguns instantes depois que a imagem está estabelecida

outra pessoa entra na área, acha um lugar, cria uma segunda imagem e congela, uma terceira

pessoa entra e compõe o trio, então retornam para a zona civil, e outras imagens em trio vão

sendo formadas. Um aspecto importante do exercício é atentar para a potencialização da

imagem: quando e como entrar, como ocupar o espaço total e não somente uma parte dele,

como estabelecer conexões entre as imagens, como usar os diferentes planos e a as variações

de ritmos entre as diferentes ações.

Eles apresentam algumas variações possíveis para alterar o exercício:

- acrescentar mobiliário – cadeira, pequenas plataformas, cubos, escada – para ampliar as

possibilidades de jogo de níveis e planos;

- adicionar movimento, uma das pessoas do trio pode criar uma imagem em movimento,

realizando gestos ou ações repetitivas;

- utilizar adereços e vestuários;

- manter uma das imagens, que seja potente, durante vários trios;

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- aumentar o número de participantes até que metade do grupo esteja na zona de performance.

A quarta sessão leva o nome de As infames Pocha jam sessions, segundo o La Pocha

nesse momento abandona-se o terreno da metodologia e adentra-se no campo da experiência

de total autonomia artística. Nessa sessão eles mostram algumas das estratégias e

procedimentos que utilizam nos processos de improvisação performática. Existem diferentes

formas de se integrar às jam sessions, aqueles que não querem performar em determinado dia

podem contribuir com intervenções na iluminação, no som ou na organização do banco pop.

O primeiro exercício Jam session básica – começando a deixar a metodologia foi

desenvolvido pelo La Pocha e é utilizado por eles a cerca de quinze anos. Conforme salienta o

La Pocha, a riqueza das imagens e das ações performáticas criadas nesse exercício surge a

partir da combinação entre decisões estéticas individuais dos performer, justaposições

acidentais e intervenções externas.

Para esse exercício podem ser utilizadas cadeiras, cubos, escadas e/ou plataformas.

Com exceção da ‘zona de performance’ e da estação de roupas e acessórios, que devem estar

iluminadas, o restante do espaço se mantém escuro. Sugere-se que seja utilizado um tema não

muito especifico, mas que sirva como um pano de fundo para diferentes entradas, algo como

‘imagens de medo e esperança’, ‘imagens de sonhos e pesadelos’, ‘cabaré de fronteira’,

‘flexão étnica e de gênero’, ‘o fim da civilização ocidental’.

As Jam sessions são introduzidas em várias etapas pedagógicas:

- durante a primeira etapa os participantes escolhem um ou dois adereços ou roupas

para utilizar no exercício.

- na segunda, todos com suas roupas e adereços em mãos devem ficar de frente para a

área delimitada. O exercício inicia com uma sessão avançada de ‘composições trípticas’,

porém alguém sempre deve estar de fora da zona trocando um de seus objetos, roupas ou

acessórios.

- na terceira etapa após a primeira pessoa entrar na ‘zona de performance’, a próxima

pode escolher alterar levemente a primeira imagem e/ou somente se posicionar em relação a

ela, e assim também a terceira.

- na quarta etapa as pessoas que estão fora da zona de performance devem estar

preparadas não só para entrar a qualquer momento, integrando a imagem, como também para

contribuir com pequenas alterações na posição ou direção dos corpos na imagem, mudar sua

localização, trocar alguma peça de roupa ou adereço.

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- na quinta etapa uma das pessoas deve permanecer na zona performática enquanto as

outras duas são alteradas.

- na sexta etapa entra uma quarta pessoa, duas das imagens mais potentes permanecem

enquanto as outras saem, entra então uma quinta pessoa, e três pessoas permanecem enquanto

as outras saem, assim por diante até que tenham sete pessoas na zona de performace.

- na sétima etapa os participantes podem escolher fazer uma intervenção rápida e sair,

decidindo quando entram e quanto tempo permanecem na zona performática.

Nesse exercício é possível perceber como pequenas mudanças transformam a

dinâmica e a multiplicidade de significados da composição e da iconografia formada. O La

Pocha ainda sugere algumas possibilidades que são desdobradas em outras sessões de

improviso, como a possibilidade de ter um microfone ao lado da zona de performance, onde

os participantes podem realizar intervenções sonoras – a partir de textos falados, som, música,

poema, instruções, texto teórico ou do roteiro poético inicial. Um Dj ou musico local pode ser

convidado para uma participação especial, pode-se acrescentar instrumentos musicais à mesa

de adereços e roupas e adicionar projeções.

A jam session final – agindo em múltiplas zonas é a última prática da quarta sessão,

nesse momento são estabelecidos duas ou três zonas performáticas, de diferentes formatos,

uma delas em frente a uma parede, outra em um círculo no meio da sala e a outra próxima a

algum detalhe interessante da arquitetura. Podem ser utilizadas plataformas de diferentes

tamanhos, pedestais, cubos, andaimes e escadas para modelar o espaço. Cada zona

independente é ocupada por um número diferente de performers, de acordo com as

características próprias de cada lugar. Desde que a sessão começa todos os espaços devem

estar ativos o tempo todo, criando múltiplos focos.

A quinta sessão intitulada Preparando a performance pública registra-se no modo

ensaio, e objetiva desenvolver melhor as personas híbridas escolhidas a partir do repertório

surgido no curso. Os exercícios realizados visam prepara-las para serem apresentadas em

público, momento em que todos se engajam na construção de um projeto global de

apresentação que seja excitante e potente.

No exercício Criando estratégias para a performance final e discutindo a natureza do

material da performance eles ressaltam a importância da discussão da qualidade, pertinência e

impacto das imagens e personas criadas durante o processo. Nesse momento, os quadros e os

temas mais fortes e potentes são escolhidos para entrar na performance final. Os participantes

devem rever seus diários e escolher entre as imagens que viu e vivenciou aquelas que deseja

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retomar. Uma pessoa deve ficar responsável por anotar e ler a lista das imagens e personas

que foram retomadas, para que os colegas possam escolher da lista as mais potentes.

Ativando sua persona performática é um exercício importante para que o corpo todo

esteja envolvido no modo performativo. Esse exercício tem como propósito o

desenvolvimento de uma serie de ações icônicas, uma estrutura ritual que pode ser utilizada

durante a performance pela persona criada.

Esse processo acontece em três etapas. Na primeira Internalizando a imagem e o

movimento, os participantes já vestidos devem aos poucos ‘incorporar suas personas’,

trazendo primeiramente sua figura somente para o rosto, incorporando movimentos nos

músculos faciais (boca, nariz, testa, bochechas e língua), aos poucos levam a exploração do

movimento para o pescoço, para os ombros, e então para os braços e mãos, para o torso, para

a pélvis e depois para as pernas, e então para os pés, e assim o corpo inteiro está ativado no

‘modo performance’, somente nesse momento devem abrir os olhos.

Na segunda etapa intitulada Desenvolvendo um vocabulário para suas ações e frases

de movimentos, os participantes devem retomar ou desenvolver três ações, formadas como

uma frase de movimento, e repeti-la até que se torne parte de sua memória recente. Pequenas

transformações do movimento são investigadas a partir de mudanças do ritmo, da intenção, da

alteração na ordem das ações. Após esse momento, é criada uma estrutura ritual que será o

material performativo a ser utilizado na ação final.

Na terceira etapa o instrutor faz algumas sugestões para que se transforme a

velocidade, o comprimento, o ritmo e o estilo de entrega, experimentando intenções diversas.

Cada um deve selecionar para si as modificações consideradas mais relevantes que

potencializem o material que será utilizado por ele.

Uma das possibilidades de apresentação final é o Salão de performance: abertura do

processo para a comunidade local. Se o workshop durou cerca de duas semanas e se as

condições são favoráveis, pode se realizar uma Jam session aberta para um pequeno grupo de

convidados que compartilharão suas impressões.

Ao fim do workshop o La Pocha geralmente realiza uma performance mais elaborada

para a comunidade em geral, momento que acontece em um espaço de arte ou museu local,

são as chamadas mega-jam session. Primeiramente deve ser pensada a natureza da

participação de cada um na performance final. São criadas duas equipes, a equipe da

performance e a equipe de projeto interdisciplinar. Os dois grupos podem alternar as funções,

nesse momento o foco dos participantes passa a ser dirigido para o modo produção e ensaio.

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O objetivo dessa apresentação final é combinar espetáculo e processo, não existem

bastidores, apresenta-se enquanto um work-in-progress. O público vivencia uma parte do

processo, um pouco do universo em confecção criado pelos participantes. São utilizados nessa

apresentação final palcos simultâneos, divididos entre tablado central e as plataformas de

diferentes formatos.

2.3 Procedimentos e temáticas abordadas

Nesse item os conceitos, os pressupostos e os procedimentos utilizados no Método

Pocha são investigados enquanto pilares para a compreensão dessa proposta de metodologia

de ensino em performance. Presença hiperintensificada, sessão de improvisação, jam session,

antropologia inversa, rituais para descolonizar o corpo, espaço utópico/distópico, zona

desmilitarizada, arqueologia pessoal, mitologia e iconografia dos participantes, objetos

fetichistas e étnicos, comunidade, são temáticas e apontamentos que ao longo da prática

educativa/performativa do grupo assumem grande importância.

No meio/entre (in between) é deliberadamente a zona que eles habitam. Aprofundam

dessa forma a experiência da instabilidade, dessa zona liminar, onde a transformação

permanente é aceita e desejada, onde as estruturas, papéis e divisões sociais tornam-se

embaçadas ou suspensas. Victor Turner, importante autor dos Estudos da Performance,

pesquisador de estruturas e antiestruturas rituais, aborda a liminaridade nesses processos,

conceito que nos ajuda a pensar as práticas pedagógicas do La Pocha enquanto espaços

liminares.

Turner tomou a liminaridade num sentido maior, empregando-a para situar tudo o que é/está betwixt and between – entre, em transição, no limiar, em condição passageira - no âmbito social, para além dos ritos de passagem, caracterizando estados transitórios ou transitivos que acometem os indivíduos. Nesse ambiente, tais indivíduos são “marginais”, isto é, encontram-se numa condição inter-estrutural, quando entendemos que toda sociedade articula e vive dentro de uma estrutura, quando pensados os quadros estáveis que a compõem e nela atuam. Complementarmente a essa grande configuração, é preciso lembrar que entre o útero materno e a sepultura – os únicos lugares fixos que um indivíduo efetivamente conhece em sua existência -, um ser humano está sempre em trânsito, entrando e saindo de ritos sociais os mais diversos (nascimento, puberdade, casamento, trabalho, morte etc.), todos eles aquinhoados com alguma parcela de liminaridade. (MOSTAÇO, 2012, p.148)

Ao aprofundar a experiência da instabilidade e da inversão dos papéis sociais vigentes,

os participantes podem, em meio ao jogo, se reinventar nessa zona incerta. Dessa forma, são

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questionadas e investigadas as distinções entre gêneros masculino e feminino, noções que se

transformam ao longo do tempo. Um dos objetivos do La Pocha é criar condições durante o

processo para que os participantes possam desdobrar seus muitos eus performativos – ousar

tornar-se herói, santo, sagrado, xamã, sexy, infantil, lunático, incorporar bruxas, santos

pagãos, monstros culturais e revolucionários estilizados. As figuras criadas trazem as

contradições sociais latentes e mesclam desejos e sentimentos distintos em um único corpo,

de modo que a complexidade do nosso tempo surge metaforizada.

As personas criadas nos cursos do La Pocha são colagens das contradições e

preocupações políticas, religiosas, sexuais, sociais do grupo, tornando-se ‘metáforas vivas’,

‘artefatos humanos’, ‘cyborgs culturais’, que colocam em cena justaposições imagéticas

surpreendentes. Eles sugerem que essas personas combinam em sua composição algo como

‘um quarto de estereótipos’, ‘um quarto de projeções públicas’, ‘um quarto de artefato

estético’ e ‘um quarto de monstro pessoal/social imprevisível’. As imagens são criadas a

partir de um conjunto de fatores, dos momentos descobertos durante o processo, da relação

estabelecida entre os participantes e suas personas, das preocupações sociais e políticas do

grupo, do lugar onde está sendo realizado o workshop e de questões atuais urgentes.

Na prática do La Pocha, como aponta Sara Jane Bailes (apud GÓMEZ-PEÑA;

SINFUENTES, 2011, p. 3), o corpo é o caminho do pensamento e o pensamento intelectual

pode ser uma prática criativa. A dissociação entre teoria e prática, distinção entre intelectual e

corporal, não faz sentido na prática do grupo. A compreensão de um corpo que pensa e do

pensamento que é corpo pode ser enxergada claramente nos escritos de Gómez-Peña, que

emergem de sua prática performática.

Na prática do La Pocha evidencia-se uma inteligência performativa, nesse sentido o

pensamento surge a partir do envolvimento corporal como um todo e não apenas da razão que

medita sobre um tema. O corpo desenvolve sensibilidades próprias ao campo da performance,

da criação em tempo real e do improviso. Esse tipo de pensamento não se encontra mais

ligado ao modelo de razão cartesiano.

O modo performativo– ‘performance mode’ – é compreendido pelo La Pocha como a

consciência intensificada do tempo presente, somada a um senso de corpo performativo total.

Uma ‘presença hiperintensificada’ que coloca o corpo inteiro em estado de atenção, um corpo

que pensa em movimento. Ações enfadonhas ou cotidianas devem manter-se fora do ‘modo

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performativo’, sendo esse um modo ritualizado de desempenho, que retoma outro nível de

complexidade para os performers e a audiência.

O corpo assume, nos workshops do La Pocha, papel central, descolonizar e repolitizar

nossos corpos faz parte da proposta de torná-lo lugar para ativismo e teoria incorporada, para

memória e reinvenção. Investigar uma nova estética híbrida e interdisciplinar, que reflita o

espírito, as tribulações de nosso tempo e as preocupações de cada participante, corrobora

nesse sentido. A criação dessas ‘personas híbridas’, imagens e estruturas rituais baseiam-se

em nossas próprias identidades complexas, estéticas pessoais e preocupações políticas.

No decorrer das propostas práticas do Método Pocha emergem-se temas que

perpassam questões como etnicidade, sexualidade, religião, guerra, cultura pop, subculturas

urbanas, turismo, gênero e identidades étnicas flexíveis. A complexidade e os modos de

acessar esses temas são ativados de maneiras diversas. Desconstruir os estereótipos e os

pensamentos simplistas sobre os temas, de modo que as contradições se tornem aparentes e as

diferentes perspectivas sejam evidenciadas, é uma proposta de grande importância para que as

diferentes vozes sejam escutadas e a relativização dos pontos de vista seja praticada.

Gómez-Peña (2005, p.245) atenta para o cuidado necessário em relação ao

esvaziamento das questões abordadas. Performances de identidade extrema são apropriadas de

modo simplista nos programas midiáticos que utilizam como recurso uma fascinação

superficial em relação à temática. Programas como esses reúnem em um mesmo balaio

imagens de ‘comportamento extremo’, de violência e sexualidade explícita, de revolução

como estilo, de hibridismo estilizado e de transculturas superficiais.

Nesse sentido, na busca de radicalização e de aprofundamento das questões e

implicações das imagens criadas, é de suma importância o questionamento sobre as temáticas

realmente urgentes e vitais para o grupo de envolvidos, inquietações relativas ao âmbito

pessoal, social e comunitário, que discutam temas realmente pertinentes.

No banco pop de arqueologia pessoal objetos fetichistas e étnicos encontram-se ao

lado de artefatos da cultura pop, do consumo turístico e de tecnologias ultrapassadas. Essa

mistura possibilita que colagens sejam feitas, explicitando a complexidade da gama de

referências transnacionais que narram a nossa história. Em diferentes países, em especial em

ex-colônias, como o Brasil e o México, podemos encontrar a coexistência explícita de objetos

de tradições indígenas e da indústria comunicacional, do local e do global, do culto e do

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popular, do nacional e do estrangeiro, são mônadas32 que narram parte das contradições de

nossa formação cultural.

Várias décadas de construção de símbolos transnacionais criaram o que Renato Ortiz denomina uma ‘cultura internacional-popular’, com uma memória coletiva feita com fragmentos de diferentes nações. Sem deixar de estar inscritos na memória nacional, os consumidores populares são capazes de ler as citações de um imaginário multilocalizado que a televisão e a publicidade reúnem: os ídolos do cinema hollywoodiano e da música pop, os logotipos de jeans e cartões de crédito, os heróis do esporte de vários países e os do próprio que jogam em outro compõem um repertório de signos constantemente disponível. (CANCLINI, 1999, p.63)

Assumir um papel saudosista e desejar o retorno a um passado de culturas tradicionais

puras não parece uma opção interessante nem mesmo possível. Torna-se mais viável, nesse

sentido, investigar essa complexidade de referências que compõe cada um de nós,

multiculturais que somos, do que querer retomar um estado de pureza.

Nas práticas pedagógicas do La Pocha abre-se um espaço para os sujeitos pós-

nacionais reinventarem territórios. Lugar não mais relativo à nação, mas aberto a outras fontes

de identificação transnacionais e coletividades pós-nacionais. Articulam práticas de

descolonização que invertem as arcaicas divisões entre norte e sul, centro e periferia, colônia

e metrópole. Segue-se construindo pontes invisíveis entre passado e futuro, Norte e Sul,

memória e identidade, América indígena e alta tecnologia, arte e política.

Nesse sentido, a figura do cartógrafo experimental evidencia a possibilidade de

reinventar lugares e territórios, de redesenhar e cruzar fronteiras, de aproximar áreas e

disciplinas distintas, reconfigurando um mapa aparentemente estabelecido. Na prática artística

e pedagógica do La Pocha, questões de cultura de consumo, política global, noções de

identidade, comunidade e criação artística são questionadas em ato. Surge assim uma nova

cartografia em que as fronteiras entre teoria e crônica, questões pessoais e sociais são

constantemente cruzadas e as implicações entre umas e outras são assumidas e investigadas.

Criam-se crônicas simbólicas e polivocais sobre o nosso tempo, utilizando nesse intuito da

ambivalência.

As sessões de improvisação jam session, inspiradas nas improvisações musicais do

jazz, do blues e do rap, possibilitam a criação de um rico material performativo. Composições

                                                            32 O uso nesse contexto remete ao conceito de Walter Benjamin, pensada como uma unidade simples que contém em si a complexidade do todo.

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coletivas são realizadas a partir das condições especificas entre tempo e espaço, na relação

singular estabelecida por aquela comunidade temporária.

A urgência do improviso instiga o descondicionamento de respostas automáticas e

previamente pensadas. Dessa forma, a alteração do modo de funcionamento habitual revela

possibilidades e reações surpreendentes. O modo performativo é ativado e os participantes

permanecem em estado alerta de criação. Em vários exercícios do La Pocha trabalha-se com a

noção de ritual – ‘rituais para descolonizar o corpo’ são jogos que possibilitam a

desmecanização do corpo e o questionamento de estereótipos, representações, e papéis

sociais.

A proposta de finalização do workshop com uma performance aberta ao público, a partir

de um salão para convidados e/ou de uma sessão de grande amplitude, é entendida apenas

como uma parte do processo. O objetivo pedagógico mais amplo dos cursos é criar

coletivamente e experimentar novos modos de colaboração. Dessa forma, as mostras não são

compreendidas como fim último, mas como possibilidade de compartilhar com o público.

Essas sessões abertas são como um ritual compartilhado, e trazem o elemento da festa, que é

muito presente nas práticas do La Pocha.

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3 PEDAGOGIAS DA PERFORMANCE

Nesse capítulo o ensino da performance é analisado a partir de uma perspectiva mais

ampla. Questões pertinentes aos processos de formação em performance são investigadas

através de práticas educativas, métodos e metodologias utilizadas por diferentes

performers/educadores, no intuito de compreender as diferentes abordagens realizadas. O

potencial educativo e transgressor da performance é afirmado em diálogo com autores como

Antonin Artaud, Charles Garoian, Coco Fusco, Eleonora Fabião, Friedrich Nietzsche,

Guillermo Gómez-Peña, Jacques Rancière, Lúcio Agra, Michel Foucault, Roberto Machado,

Rosa Maria Dias, Valentín Torrens.

Tendo em vista seu caráter de obra aberta, que evidencia o intervalo entre o signo e o

significante, a performance potencializa a brecha existente entre emissão e recepção. Ainda

nesse sentido, é possível verificar que o descolamento das imposições da linguagem e da

lógica pela qual fomos educados desde a infância, permite que a performance desprenda-se

das convenções dominantes, se mostrando aberta à experimentação e ao aprofundamento das

ações pré-linguísticas. Desse modo seu caráter polimorfo e polissêmico é afirmado, tendo em

vista que seu sentido e significado são formados a partir do encontro único entre performers e

espectadores. Valentín Torrens evidencia esse processo.

Imagens deslocadas de seus propósitos e finalidades que geram emoções também não usuais submergidas na incerteza de não poder aplicar reações e experiências prévias nem convocar a memória que nos ajude a voltar ao conhecido, e catalogar a experiência. Sentindo que se trata mais desse processo de derivas que ao produto mental a que tende e não alcança. (TORRENS, 2007, p.40)

Ele ainda acrescenta que ao contrário da convenção que promove o pertencimento

grupal aglutinador e coercitivo, a performance cria uma atração individual emancipadora.

Essa experiência gera um sentido de desagregação do sistema simbólico constitutivo de uma

cultura, em relação ao seu conjunto de valores, imagens e visões de mundo e à sua função de

controle de conduta.

Nesse sentido, Eleonora Fabião aponta os performers como ‘complicadores culturais’.

Ao sugerir a performance enquanto programa33 – entendido como ‘motor de experimentação’

e ‘ativador de experiência’ – a autora identifica uma potência latente de descondicionamento e

                                                            33 Palavra-conceito criado pela autora, inspirada no texto de Deleuze e Guatarri, Como Criar Para Si Um Corpo Sem Órgãos.

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desconstrução do estabelecido. Questões de grande valia para uma formação que se pretende

significativa e criadora.

Ao agir seu programa, desprograma organismo e meio. A inspiração para a inserção da palavra-conceito “programa” na teoria da performance vem do texto “Como Criar Para Si Um Corpo Sem Órgãos” de Gilles Deleuze e Félix Guattari, onde se propõe que o programa é “motor de experimentação” (Deleuze & Guattari, 1999, p. 12). Um programa é um ativador de experiência. Longe de um exercício, prática preparatória para uma futura ação, a experiência é a ação em si mesma. (FABIÃO, 2008, p.237)

A importância da experimentação no campo da performance não pode ser perdida em

sua abordagem pedagógica. A questão do ensino em performance aproxima-se das discussões

em torno de processos de criação, de treinamento e de formação do performer. Os diferentes

performers compartilham em seus cursos parte dos procedimentos que eles próprios utilizam

em seu processo de criação, como é o caso do La Pocha Nostra. Schechner aponta a proto-

performance como um ‘conjunto de preparativos’ do acontecimento, o que varia

enormemente de acordo com cada prática.

Um destes entendimentos pode nos remeter ao próprio processo de preparação para a performance, acepção pela qual Schechner entende a idéia de proto-performance. Segundo este, a proto-performance pode abarcar todo o conjunto de preparativos para um evento de performance, sejam estes ensaios, rituais, treinos corporais (respiratórios, musculares etc) e até mesmo o conjunto de coisas que se vê, lê, ouve e tudo mais que numa lógica tradicional se chamava inspiração (AGRA, 2008, p.248)

Nesse sentido, torna-se evidente a necessidade de compreender a multiplicidade das

propostas e processos de preparação e criação encontrados por diferentes performers. Diante

das temáticas, das propostas políticas, sociais e estéticas de cada processo as diferentes

abordagens selecionam os procedimentos utilizados. Alguns autores tentam reconhecer entre

as diversas perspectivas, pontos em comum compartilhados por esses processos educativos.

Dessa forma, nesse capítulo é realizada uma aproximação entre a evidente variedade de

percursos. É também nesse intuito que se faz uma abordagem histórica da questão.

3.1 Arte e Vida: Corpo, presença e experimentação

É tema recorrente entre performers e pesquisadores a discussão a respeito da

possibilidade de se ensinar performance. Para refletir sobre a questão, é necessário antes de

qualquer coisa, questionar sobre o tipo de processo educativo do qual estamos falando.

Partindo do princípio de que, em sentido estrito, ninguém ensina nada a ninguém, passamos a

compreender o processo de aprendizagem como processo ativo. Assim como na vida, só é

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possível aprender a trilhar o próprio caminho se cada um assume para si seu percurso pessoal,

e nele se envereda enquanto atividade criadora.

Ninguém pode construir em teu lugar as pontes que precisarás passar para atravessar o rio da vida, ninguém exceto tu, somente tu. Existem, por certo, inúmeras veredas, e pontes, e semideuses que se oferecerão para levar-te do outro lado do rio; mas isso te custaria a tua própria pessoa: tu te hipotecarias e te perderias. Existe no mundo um único caminho, por onde só tu podes passar. Para onde ele leva? Não perguntes, segue-o. (NIETZSCHE apud DIAS, 2003, p.71)

Nesse sentido, o performer é pensado como experimentador e educador de si. A

performance enquanto atitude frente ao mundo, presença intensificada, sugere como questão

as possibilidades de diluição das fronteiras entre arte e vida, próprias do gênero. Autores

importantes para essa discussão são trabalhados no intuito de refletir sobre conceitos como

vida como obra de arte e como fenômeno estético. Retoma-se assim algumas imbricações

entre performance como procedimento pedagógico e o artista/performer como educador.

Rosa Maria Dias (2011, p.20), em uma rica investigação em torno do tema ‘vida como

obra de arte’, explicita na obra de Nietzsche a relação entre arte e vida. A arte, nessa

perspectiva, assume sentido enquanto afirmadora da existência. O experimentador aciona em

sua própria vida sua ‘vontade criadora’, e, dessa forma, também a “(...) arte de criar a si

mesmo como obra de arte, isto é, de sair da posição de criatura contemplativa e adquirir os

hábitos e os atributos do criador, ser artista de sua própria existência”. O que requer outra

atitude em relação à arte, entendida nesse contexto não como produção de objetos/obras

artísticas, mas como uma atividade criadora frente ao mundo.

Inquietações latentes no campo da performance, a aceitação e o desejo da

impermanência inerente à existência, são atualizadas na visão nietzscheana. Tal compreensão

contraria uma metafísica que tende a humilhar a realidade em função de um ideal

inalcançável, que não aceita o imprevisto e o perecível, características próprias da vida. No

prisma dessa outra perspectiva a realidade é compreendida a partir do eterno devir, da

mudança como única realidade, do desejo do presente e do inesperado. Será possível preparar-

se para estar aberto, disponível e vulnerável ao transitório?

Diante da impossibilidade e da falta de sentido em estabelecer um manual de ensino

em performance art, que descreva as técnicas, as estratégias e os procedimentos necessários

para a formação do performer, a experimentação de si, a desestabilização de certezas, a

invenção de novos modos de estar e se relacionar com a vida e com o mundo surge como uma

interessante possibilidade de ampliar os domínios e espaços da arte. Lucio Agra sugere que

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um ‘modo de existir’ talvez seja a única forma de proporcionar ao performer que mantenha

seu corpo treinado.

Ao que parece, no artista da performance, um modo de existir seria a única coisa que garantiria o corpo treinado deste artista. Então seria preciso repensar os modos de existir. E não somente a ideia de corpo e de arte que, de resto, são ambas formações de nossa civilização.Trata-se então de buscar modos de existência que sejam produtivos para estados de invenção.Se não houver nenhuma certeza quanto a esses modos, ao menos podemos afirmar que, desde já, devem ser, eles mesmos, invenções. (AGRA, 2012, p.3)

Nietzsche corrobora com essa questão, ao preconizar um tipo de artista, que será

experimentado, ao longo do século XX, nos diferentes movimentos que tentaram unir arte e

vida. Sendo ‘mestre e escultor de si mesmo’ ‘o homem não é mais artista, torna-se obra de

arte’. Na compreensão de Nietzsche (NIETZSCHE, apud DIAS, 20011, p.97), deve-se

aprender com o artista, mas ser mais sábio do que ele, tendo em vista que sua perspectiva

estética se encerra onde termina a arte e começa a vida, “nós, no entanto, queremos ser os

poetas-autores de nossas vidas, principiando pelas coisas mínimas e cotidianas.”.

O performer se aproxima dessa concepção ao buscar em seu processo artístico criar a

si mesmo como obra de arte. Para o surgimento de novas possibilidades, é necessário que o

estabelecido seja destronado, que sejam desconstruídas imagens pré-concebidas de si, que se

reinventem modos de ser/estar, de sentir, de se relacionar, de pensar e de existir – uma nova

forma de vida que priorize a experimentação como única via do ser. Esse sujeito aceita a

inconstância e a impermanência, aproximando da ‘lógica desidentificadora da invenção’ que

Jorge Larrosa (LARROSA, 2009, p.57) aponta em Nietzsche. Sem identidade real ou ideal o

sujeito se apresenta como forma a compor.

É nesse sentido que aparece o performer do qual tentamos ao longo dessa dissertação

abordar, o sujeito do exílio, estrangeiro, no sentido literal do termo, mas não somente.

Incluindo também seu sentido metafórico, enquanto pessoa que cria suas próprias

desidentificações, seus territórios de desentendimento, que se constrói na estranheza e

desencontro de si.

Assim "tornar-se o que se é" nada tem a ver com o saber, o poder e a vontade como atributos de um sujeito que sabe o que é e o que quer; é, ao contrário, um desprender-se de si, uma coragem para lançar-se no sentido do proibido, uma travessia, uma experimentação. Como mostra Jorge Larrosa, na idéia de experimentação está o "ex" do exterior, do exílio, do estranho, do êxtase, contém também o "per" de percurso, do passar através, da viagem, de uma viagem em que o sujeito da experiência se prova e se ensaia a si mesmo. Em suma, a experiência é, nessa compreensão, um passo, uma passagem. (DIAS, 2003, p.130)

O performer se coloca em jogo para experimentar-se no tempo e espaço presente, na

relação direta das presenças que lhe atravessam. A performance se apresenta como um elogio

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da transitoriedade, da materialidade e da corporeidade. O performer tem como matéria seu

próprio corpo – que se faz na relação com o mundo –, corpo sempre incompleto, inacabado e

provisório.

É possível reconhecer alguns artistas que colaboraram intensamente com essa

ampliação dos limites da arte, de modo a diluir as fronteiras entre arte, educação e vida.

Pessoas que conseguiram enxergar o potencial educativo da arte, não entendida somente como

objeto, mas enquanto ações, recortes e enquadramentos estéticos da realidade, do espaço

urbano e de acontecimentos cotidianos. Podemos ressaltar entre eles Allan Kaprow, Joseph

Beuys e os Situacionistas, que de diferentes modos diluíram as fronteiras entre arte e não-arte.

Hans Ulrich-Gumbrecht (2010, p.9), em seu livro Produção de Presença, critica a

herança deixada pelo cogito cartesiano, que marca a modernidade promovendo um excesso de

valor atribuído ao sentido e à interpretação. De ‘vocação hermenêutica’ essa abordagem

estabelece dicotomias entre espírito e matéria, mente e corpo, profundidade e superfície,

significado e significante, hierarquizando o sentido espiritual e a interpretação em relação à

corporeidade e à materialidade. O autor em uma perspectiva ampliada diz que a “(...) presença

refere-se, em primeiro lugar, às coisas que, estando à nossa frente, ocupam espaço, são

tangíveis aos nossos corpos e não são apreensíveis, exclusiva e necessariamente, por uma

relação de sentido.”. A presença é a base das mais diferentes abordagens em torno da

performance.

A arte da performance é marcada por esses momentos de intensidade da presença, que

afirmam a dimensão corpórea e temporal da existência. Nesse sentido, a investigação da

presença e de seu estado de intensificação surge enquanto um aspecto importante a ser

trabalhado nos cursos e oficinas de performance, a partir de diferentes procedimentos e

propostas. A investigação da presença aparece em contraponto às práticas de representação,

que retomam o real através da repetição e da imitação. Em performance a obra se apresenta

enquanto acontecimento, encontro único entre presenças, evidenciando as distinções entre

presentificação e representação.

3.2 Pedagogias da performance

Nesse item um panorama sobre o ensino da performance é traçado, baseado em

teóricos e artistas que discutem a questão, no intuito de refletir sobre como tem sido realizado

e compreendido o ensino de performance e a formação do performer.

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Tendo em vista que existem tantas definições de performance como praticantes, torna-

se inviável pensar em um manual de ensino de performance, enquanto uma seleção de práticas

a serem utilizadas em qualquer contexto e situação. Desse modo, a gama de práticas

pedagógicas se multiplica e passamos a falar em pedagogias da performance, já que os

diferentes praticantes fazem usos de fontes e procedimentos diversos na construção de suas

propostas metodológicas.

Valentín Torrens desenvolveu um importante trabalho em torno de pedagogias da

performance, o que incluiu a investigação e compilação de diferentes proposta e programas

pedagógicos de professores universitários e performers. Em seu livro Pedagogía de la

Performance podemos encontrar esse material que abrange diferentes enfoques, temas,

exercícios e táticas utilizadas, o que o torna uma referência importante para a área. Sua

abordagem, porém, é prioritariamente formada por referências europeias e norte-americanas.

O autor aponta a importância que teve a inserção da performance no currículo de

algumas universidades e institutos de arte norte-americanas nos anos 70 para o

desenvolvimento das investigações em torno da linguagem e de seu ensino. Somente na

década seguinte é que passa a ser mais amplamente incluída em países europeus, e nos 90

amplia seu alcance através de cursos e oficinas em países latino-americanos e asiáticos.

Renato Cohen (2002, p.42), porém, aponta que a Bauhaus, escola de design, artes e

arquitetura sediada na Alemanha, foi a primeira instituição de arte a organizar workshops de

performance. Após seu fechamento, em 1933, durante o período nazista, as investigações em

torno da performance no contexto europeu diminuem a sua intensidade. Muitos de seus

professores transferem-se então para a Black Mountain College, na Carolina do Norte – EUA,

lugar que assume um papel importante no desenvolvimento da formação em performance.

Valentín Torrens investiga no livro em questão a transmissão de conhecimento sobre o

ensino de performance, área que na visão do autor aponta muitas controvérsias, em função da

subjetividade que lhe é inerente e do questionamento sobre a conveniência e possibilidade de

seu ensino.

A prática performativa é incompatível com o papel coercitivo e com a função de

reprodução social próprias ao sistema educativo dominante. Segundo Valentín Torrens, a

desestabilização dos padrões de pensamento possibilita que as práticas formativas em

performance sejam atravessadas por ambiguidades, contradições e incertezas. O autor inclui

tais práticas de ensino no contexto da pedagogia humanista, que situa o indivíduo e seus

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interesses no centro do processo educativo. Desse modo, os programas e planos de curso em

performance são, em sua maioria, criados a partir das especificidades do grupo de

participantes, do local e do tempo de duração.

O livro de Valentín Torrens Pedagogía de La Performance, é uma das poucas

publicações acessíveis que se esforça no intuito de cartografar de modo mais amplo o ensino

da performance. Sua abordagem, claramente mais centrada em oficinas e cursos realizados em

contexto europeu e norte-americano, inclui metodologias e práticas utilizadas por artistas e

acadêmicos, dentro e fora da universidade, trazendo planos de aula e propostas metodológicas

de vários artistas/professores/performers.

Na primeira parte de seu livro, o autor apresenta alguns precursores de questões caras

à temática, aproxima discussões de performance, criatividade e jogo, como fatores relevantes

para compreensão dos processos de formação performativos. Nesse sentido, ressalta

importantes características próprias à performance, como sua natureza comunicativa. Por fim,

aborda as especificidades da pedagogia da ação, e analisa de modo histórico, obras,

pesquisadores, performers e eventos importantes para a constituição da área.

O livro é divido nos seguintes capítulos: Sobre esse livro, A ação, A performance, a

live art, Raízes, micélios e rizomas da performance, Criatividade em ação, A performance

como jogo, Natureza comunicativa da performance, Pedagogia da ação, Estudos sobre a

pedagogia de ação, O ensino da performance na universidade, na oficina. Na segunda parte

do livro, em que são compilados os planos pedagógicos, incluem-se propostas de cursos em

universidades e em oficinas. No final do livro podem ser encontradas ainda breves biografias

dos performers, educadores e pesquisadores que integram a publicação, além de uma extensa

bibliografia sobre psicologia/pedagogia da criatividade e sobre performance, um rico material

de pesquisa.

Entre os autores importantes para a formação da área da Pedagogia da performance,

Valentín Torrens situa Robert Filliou, ex - integrante do movimento Fluxus, que publicou em

1970 Teaching and learning as performing arts. Livro em que reconhece nas táticas da

performance habilidades para o ensino e a aprendizagem, propondo um mundo de artistas, em

que a vida torna-se poética.

Outra publicação importante para a discussão do ensino da performance, que é

evidenciada por Torrens, é o artigo de Janet Frye McCambridge, Ten from Academe,

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publicado na revista High Performance34 em 1981. Nesse texto é possível ter acesso a

entrevistas de dez professores de performance. Entre eles estão Allan Kaprow, Eleonor Antin,

Chris Burden, Cheri Gaulke, Charles Garoian, Michel Meyers, Suzanne Lacy e Linda

Montano. Valentín Torrens ressalta que, já nesse período, havia o receio de uma codificação

da performance em um conjunto de técnicas e regras dentro do mundo universitário.

Outro livro importante para a área é o livro de Charles Garoian Performing Pedagogy:

toward an art of politics, livro que surge a partir das discussões do Simpósio Arte da

performance, cultura, pedagogia organizado em 1966 na Universidade Estatal da Pensilvânia,

instituição em que o autor lecionava. O Simpósio reuniu arte-educadores, críticos culturais,

historiadores, performers e professores no intuito de discutir o significado histórico, teórico e

experimental da arte performática como forma emergente de educação artística. Entre outras

questões, foi discutido o desenvolvimento de uma pedagogia crítica através da performance, o

discurso cultural que a performance promove dentro das comunidades e a investigação dos

métodos interdisciplinares utilizados pelos diversos participantes presentes. Entre os

partícipes estavam Allan Kaprow, Charles Garoian, Henry Giroux, Guillermo Gómez-Peña,

James Luna, Peggy Phelan, Roberto Sifuentes e Suzanne Lacy.

O livro de Guillermo Gómez-Peña Ethno-Techno – Escritos sobre performance,

ativismo, e pedagogia35, de 2005, também exerce um papel pioneiro no contexto das

pedagogias da performance, livro em que, além de sua prática artística com o La Pocha

Nostra, Gómez-Peña discute amplamente sua prática pedagógica.

Em 2006, Marie-Louise Lange publica como editora o livro Descobrir a

performatividade. Ensinar arte de ação – Aprender arte de ação36. Livro que apresenta

programas, exercícios e comentários sobre os objetivos, os procedimentos pedagógicos e os

conteúdos teóricos de diferentes práticas pedagógicas em performance, publicação que segue

acompanhada por um DVD com imagens de alguns exercícios.

Ainda é difícil encontrar bibliografia sobre o tema traduzida para a língua portuguesa,

a grande maioria desses livros está em inglês. Porém, é visível o aumento do número de

pesquisas, artigos e publicações sobre a temática em âmbito nacional. É possível identificar

alguns performers, pesquisadores e professores brasileiros que atualmente investigam a                                                             34 High Performance #13 Vol. IV, No. 1, 1981 35 “Ethno-Techno – Writings on performance, activism, and pedagogy” (tradução nossa) 36 “Performativität erfahren Aktionskunst lehren – Aktionskunst lernen”

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questão, de modo prático e teórico, entre eles destaco Bia Medeiros, Christina Fornaciari,

Eleonora Fabião, Eloísa Brantes, Lúcio Agra, Mara Lucia Leal, Marcos Bulhões, Tânia Alice

e Thaíse Nardim.

3.3 Programas de formação em performance.

Nesse item a pedagogia da performance é analisada a partir de propostas formativas,

programas de cursos e workshops de diferentes performers, na tentativa de uma visão mais

panorâmica do tema. Questões que permeiam as diversas abordagens e que parecem

pertinentes para uma compreensão mais ampla da relação entre ensino e performance. Nesse

intuito, serão investigadas abordagens pedagógicas relevantes à questão, além de

metodologias, técnicas, experiências, procedimentos e programas utilizados na formação do

performer, e na criação de material performativo.

É possível reconhecer na intensificação da experiência um aspecto de fundamental

importância para diferentes abordagens educativas em performance. Jorge Larrosa reflete

sobre o processo de interrupção necessário para que se mobilize a experiência em nosso

corpo, experiência essa geradora de conhecimento. Para que algo

aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (LARROSA. 2002, p.24)

A partir do gesto de interrupção é possível desmecanizar e descondicionar ações,

hábitos e atitudes. A criação de outra relação entre tempo/espaço, em que o corpo se faz

matéria central, abre para os performers e para os espectadores a possibilidade de vivenciar a

ação enquanto ‘rito de passagem’. Nas mais diferentes práticas educativas em performance o

caráter transformador é evidente. Transformação que, de modo geral, está muito ligada a uma

transformação micropolítica. Nesse sentido, Félix Guatarri (GUATARRI; ROLNIK,

2000) sugere que a questão da micropolítica é relativa à maneira de como reproduzimos (ou

não) os modos de subjetividade dominantes. Reinventar novas formas e usos, novos modos de

estar e relacionar, é uma questão de grande importância política. Nesse sentido, Eleonora

Fabião retoma Victor Turner:

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Em Do Ritual ao Teatro, o antropólogo Victor Turner entrelaça diferentes linhas etimológicas do vocábulo “experiência” e esclarece: etimologicamente a palavra inclui os sentidos de risco, perigo, prova, aprendizagem por tentativa, rito de passagem. Ou seja, uma experiência, por definição, determina um antes e um depois, corpo pré e corpo pós-experiência. Uma experiência é necessariamente transformadora, ou seja, um momento de trânsito da forma, literalmente, uma trans-forma. As escalas de transformação são evidentemente variadas e relativas, oscilam entre um sôpro e um renascimento. (FABIÃO, 2009, p.237)

´ Dessa forma, a abordagem da presente dissertação tem em vista uma prática educativa

que requer que os integrantes do processo estejam abertos a perder seu território de segurança

e a vivenciar lugares desconhecidos de si, dos outros, dos objetos, do espaço, do tempo. A

descoberta de novos afetos e de novas possibilidades abre diante de nós um mundo a ser

recriado e ressignificado permanentemente.

Os diferentes cursos e oficinas de performance se aproximam do que Turner sugere

como liminar, como espaço de reinvenção e transformação. O termo é utilizado para referir-

se a um lugar de transformação e de indeterminação dentro dos processos culturais e rituais,

como um espaço oco e vazio. Nesse sentido, o liminar implica em uma etapa de

transformação em que surgem novas formas de identidade e relação.

Nos estudos de cultura e mudança, Victor Turner, em “Anthropology of performance”, sugere que, na condição do liminar, um indivíduo abandona sua velha identidade para experimentar um estado liminar de ambiguidade, abertura e indeterminação. Em virtude da experimentação deste estado ou processo, o indivíduo pode entrar em novas formas de identidade, relação, na vida diária de sua cultura. O liminar é um ponto de transformação, um estado temporal, um reino transformador que conduz a algo mais. Termos como não identidade ou auto abandono são usados para descrever essa experiência. Porém, o liminar também pode ser o lugar permanente onde morar, mantendo-o como um lugar para a prática criativa. (TORRENS, 2007, p.31)

Valentín Torrens nota que diferentes propostas de cursos/oficinas iniciam com a

tentativa de romper alguns bloqueios que dificultam a experiência em performance. Tais

entraves são gerados, muitas vezes, pela ordem social vigente, pela alta especialização, pelo

racionalismo extremo, pela experiência enfraquecida e por uma vivência superficial. São

apresentados ainda como fatores a ser trabalhados no inicio dos cursos a falta de confiança, a

baixa motivação, a falta de escuta, o respeito excessivo à autoridade e os espíritos acríticos e

pouco observadores.

Os métodos e metodologias em performance são compreendidos como propostas

abertas, que se fazem na relação direta dos encontros entre os diferentes integrantes do

processo, na interação do educador com os participantes, na situação e espaço especifico em

que ocorrem. Diferentes práticas de ensino em performance promovem a criação de situações

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estranhas em relação ao sentido e a lógica dominante. Torrens sugere como marca dos mais

diversos procedimentos performáticos, a geração de novas ideias em vez de explicações.

Através da utilização de táticas que potencializam a divergência, que ampliam as opções e que

proporcionam pausas e rupturas no sentido, a fim de desafiar o conhecido, propõem-se

alternativas em ato, provocando a dissolução de padrões mentais apreendidos.

A performance enquanto linguagem artística – ação em tempo presente, que evidencia

presença, tempo e espaço como centralidade da criação – exige que o performer esteja aberto

para adaptar-se rapidamente às situações surgidas, de modo que adapte as suas experiências

anteriores ao novo conjunto situacional. Valentín Torrens aponta como característica

compartilhada entre diferentes propostas em performance a fluidez – manifestada na

capacidade de produzir e associar ideias novas sobre um dado conceito, objeto ou situação.

Ao lidar com o tempo presente e com a originalidade em ver as coisas de forma única e

diferente, os campos discursivos preexistentes são redefinidos e aproveitados para fins

completamente novos.

O autor reconhece três tipos de bloqueios que surgem frequentemente entre os

participantes dos diferentes cursos em performance – bloqueios emocionais, culturais e

perceptivos. O primeiro, relativo ao aspecto emocional, evidencia o medo do ridículo, do

equívoco, e de uma autocrítica negativa; já os perceptivos são fruto de uma ótica reduzida e

limitada em relação ao mundo; e os culturais evidenciam uma visão estreita, marcada pelos

condicionamentos das normas sociais.

Desfazer esses bloqueios e estabelecer uma confiança no grupo de participantes são

fatores essenciais para o desenvolvimento de práticas educativas em performance, esses

aspectos costumam ser trabalhados durante as práticas e exercícios iniciais. Valentín Torrens

ressalta a importância dos comentários e debates ao final das práticas, momento em que

muitas ideias surgem espontaneamente.

Lembramos novamente que não se trata aqui de trazer um conjunto de regras, ou um

manual sobre como ensinar performance, mas de retomar alguns aspectos recorrentes em

diferentes abordagens que parecem pertinentes ao seu ensino. Na criação das personas

performáticas atravessam-se noções de real e fictício de modo que parecem ser estilhaçadas as

distinções entre natureza e artifício. Descobrir a veracidade dos fatos passa a não fazer mais

sentido nesse contexto.

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É matéria do processo criativo e da estética de diferentes performers sua mitologia

pessoal, constituída a partir da reunião de acontecimentos vividos e imaginados, escolhas,

desejos e identificações pessoais, questões recorrentes, materiais, objetos, símbolos, talismãs,

deuses, rituais, mitos e ficções – apropriados, colados, ressiginificados – que marcam a

poética do performer. A investigação e a criação de tais mitologias pessoais são pontos em

comum em diversos cursos e oficinas.

Historicamente o corpo no teatro foi sendo condicionado sob as leis da frontalidade, o

palco italiano, a famosa caixa preta – em que espectadores são alocados em frente ao palco –

é uma concepção que ainda hoje influencia a formação dos atores. As práticas

contemporâneas em torno de um teatro performativo somam à performance na investigação

de um corpo expressivo em sua totalidade, integrado, corpo que assume sua

tridimensionalidade, que se dispõe a ser observado de vários ângulos e que investiga outros

sentidos e sensibilidades. Despertar esse outro corpo faz parte da criação de uma inteligência

performativa. Laura Levin, no programa de seu curso em performance, ressalta os encontros

próprios das arte performática que caracterizam o diferencial da linguagem.

La performance es el aula de clase em donde las dos dimensiones del pintor encuentran las três del bailarín, donde el cartel del activista encuentra la marioneta del escultor, donde el ritual del etnógrafo encuentra el ensayo del actor y donde las palabras del estudiante encuentran el cuerpo del performista37. (LEVIN apud TORRENS, 2007, p.181)

A importância da mudança ressaltada por Renato Cohen (2002), ‘do what para o how

(do que para o como), que ocorre na performance é por conseguinte um ponto muito

trabalhado nos cursos em performance, o modo de feitura de uma ação, nesse contexto, diz

tanto ou mais do que seu significado.

O performer pode ser pensado como um relator, como sugere Renato Cohen (2002)

em seu livro Performance como Linguagem, ou como um cronista de nosso tempo, como

indica Gómez-Peña (2005). Sujeito que capta questões latentes e pertinentes para si e para

outras pessoas. A percepção do performer é trabalhada em diferentes abordagens educativa de

modo que contribua para que ele possa reconhecer e transformar em obra/ato/processo, temas,

questões e desejos contemporâneos.

No livro de Valentín Torrens é possível ter acesso a uma serie de programas de cursos

e oficinas realizadas em contexto acadêmico ou fora dele. Investigaremos, a partir desses

                                                            37 “A performance é a aula da classe onde as duas dimensões do pintor encontram as três do bailarino, onde o cartaz do ativista encontra a marionete do escultor, onde o ritual do etnógrafo encontra o ensaio do ator e onde as palavras do estudante encontram o corpo do performer.” (tradução nossa)

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programas, pontos em comum relevantes para a compreensão das práticas de ensino em

performance.

Em universidades, os cursos tendem a ter duração mais longa, possibilitando um maior

desenvolvimento e aprofundamento dos diferentes temas abordados. Além disso, a parte

teórica recebe uma carga maior de importância, costuma-se cobrar a realização de seminários,

artigos e leituras teóricas sobre performance. Já nas oficinas não acadêmicas, os grupos

tendem a ser mais heterogêneos e advir de linguagens e disciplinas de interesses diversos,

tendo duração mais curta – entre cinco e quarenta horas – em sua maioria são pautadas em

experiências práticas. Em ambos os casos é dada importância que o professor esteja aberto e

preparado para reagir às demandas do grupo, e alterar no que for necessário o programa do

curso. O corpo (presença), o espaço, o tempo e a ação são questões de primeira ordem

retomadas nas diferentes práticas e abordagens.

Há tantos cursos de performance como performers, porém é possível ressaltar nas mais

diferentes propostas a importância dada ao desenvolvimento da escuta, tanto pessoal, quanto

social e política. A identificação de questões urgentes, importantes e vitais é fonte de criação

na performance. As questões e as inquietações pessoais são o foco de diversas abordagens que

ainda priorizam o processo artístico de cada aluno e o desenvolvimento de um vocabulário

performativo próprio baseado nas inclinações pessoais de cada um.

Nos cursos que ressaltam a teoria são trazidos manifestos de artistas, documentos

históricos, ensaios, revistas de arte e catálogos, as leituras são incentivadas como via de

ampliar o conhecimento histórico e criar um vocabulário teórico próprio, de modo que

contribuam para a participação ativa dos alunos durante as discussões. Em alguns cursos são

realizados seminários com apresentações de trabalhos. É ressaltada ainda a importância de

situar essas leituras em uma genealogia artística e teórica mais ampla. Diante desse contexto

passa a ser ressaltada a importância de estimular os alunos a procurar de forma autodidata

outras referências em performance.

Os alunos são incentivados a assistir e vivenciar diferentes performances. Esse contato

se dá por vezes através de vídeo, DVD, slides, web sites de artistas e registros de

performances históricas e atuais. Quando possível promovem encontros com artistas para

dialogar sobre seu trabalho. A análise das performances é feita a partir de diferentes aspectos:

do espaço, da sonoridade, do tempo, do corpo (ação, presença), do visual (a imagem), do

conceito, da relação entre duas ou mais performances estudadas e a partir de algum texto

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teórico, de modo que é ressaltada a importância de aprender a ler performances. Em alguns

casos encorajam-se os participantes dos cursos a mostrar imagens de seu trabalho, falando de

suas motivações e das problemáticas que o movem.

O enfoque dos cursos varia muito, porém, em sua maioria, incentivam que os

participantes possam explorar uma gama de estratégias performativas, a partir de exercícios e

tarefas que visam trabalhar pontos específicos da performance. A abordagem baseada em

problemas e tarefas a serem resolvidas, é realizada em sala, ou mesmo através de projetos que

os alunos têm várias semanas para desenvolver, eles são estimulados a explorar uma

variedade de gêneros e de formas.

Em muitos casos abordagens mais práticas se baseiam em questões e/ou conteúdos

contemporâneos como: identidade/corpo, eu/objeto, temporal/efêmero, autobiografia, ritual,

site-specific, espetáculo, temas políticos e sociais, ou mesmo temáticas escolhidas pelos

participantes como sua história, sua gênese e suas memórias. Essas questões costumam ser

desenvolvidas a partir de performances e exercícios realizados individual ou coletivamente.

Em algumas práticas a cidade assume grande importância no desenvolvimento do

curso – o espaço urbano passa a ser investigado e exercícios são propostos em lugares

públicos e fora da sala fechada. Um exemplo é o exercício em que os participantes vão a

lugares cotidianos usando um figurino/vestimenta não convencional. Esse exercício prioriza a

observação das mudanças de percepção, a níveis sensoriais, psicológicos e sociais, tanto dos

próprios participantes quanto de quem os encontra pela cidade.

A Criação a partir de uma performance já existente, a chamada reperformance,

também é uma prática utilizada em diferentes programas. Nesse caso, o aluno após escolher a

performance que deseja reconstruir, deve utilizar – como partitura ou roteiro – a descrição da

ação, criando sua própria versão da obra e recontextualizando assim o trabalho.

Alguns cursos são realizados em forma de retiro ou imersão. Os processos de criação

em performance possuem uma gama muito grande de variação. A performance possibilita que

cada um encontre seu modo particular de falar sobre as questões que lhe interessa.

La performance ofrece a todo el mundo encontrar uma forma de hablar, encontrar su proprio lenguaje y expresarse com todas sus particularidades personales. La performance tiene el simpático poder de ser honesto en ló que estás haciendo, porque este ‘medio’ ayuda a transformar um ‘problema’ privado em público, donde

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outra gente puede encontrar em esta articulación algo conectado com ellos sin exactamente ‘hablar’ sobre eso.38 (FOJTUCH apud TORRENS, 2007, p. 219)

No final dos cursos, na grande maioria das vezes, são realizadas mostras dos trabalhos

feitos durante o processo, em espaço externo ou interno, para convidados ou para um público

mais amplo. Além dessas mostras feitas ao final, costumam ser regularmente realizadas em

sala apresentações dos trabalhos seguidas de debate. Em muitos casos o professor propõe que

o artista comece descrevendo sua intenção inicial na elaboração de sua performance, suas

preocupações e os temas que o motivaram. Ao falar sobre como foi projetada a ação, o que

queria que os espectadores experimentassem e o que mudaria ao realizá-la novamente, o

artista pode refletir sobre o que pensou e o que sucedeu, além de ouvir dos espectadores o que

a obra os fez sentir e pensar.

Nos cursos de performance apresentados no livro de Valentín Torrens o corpo e a

presença/ausência são elementos de primeira importância. Nesse sentido, busca-se reconhecer

e trabalhar a percepção corpórea. O corpo é investigado como suporte da poética proposta,

como matéria moldada por fenômenos sociais, como objeto e sujeito da obra, como

mensagem viva, como imagem, como instrumento e como signo.

Os dilemas do corpo são explorados enquanto corpo sofrido, enfermo, organizado,

estranho, velho, modificado, negado, esquecido. Investiga-se ainda, nesse contexto, a voz

enquanto materialidade, as coisas como prolongamento de si, a reconexão com o próprio

corpo e com o do outro, os seus discursos e os seus limites, bem como a sua relação com os

aparatos tecnológicos.

Entre as tarefas propostas nos cursos, a criação de performances autobiográficas

assume um papel importante durante os diferentes processos. As memórias, as histórias

pessoais, os objetos, os desejos e os medos dos participantes surgem como material de

criação. A investigação da maneira particular que temos de fazer as coisas, a consciência do

estado momentâneo, das tensões, impulsos, movimentos involuntários, dores e temperaturas

do corpo tornam-se propostas importantes na tomada de consciência de si. Nesse sentido, o

                                                            38 “A performance oferece a todo mundo encontrar uma forma de falar, encontrar a sua própria linguagem e expressar-se com todas suas peculiaridades pessoais. A performance tem o simpático poder de ser honesto no que está fazendo, porque este ‘meio’ ajuda a transformar um ‘problema’ privado em público, onde as pessoas podem encontrar nessa articulação algo conectado a eles, sem exatamente "falar" sobre o assunto.” (tradução nossa)

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trabalho prioriza o movimento espontâneo, além da consciência das emoções, das percepções,

dos fluxos emocionais, dos bloqueios, das resistências e dos limites mentais e físicos.

Em diferentes programas realizam-se exercícios com os olhos vendados, além de

exercícios de autoconhecimento, de respiração, de autocontrole, de exaustão, trabalhos sobre

os próprios limites físicos e psíquicos. Nesse sentido Bartolomé Fernando (2007, p.82) traz,

em seu programa de ensino, alguns pensadores que ampliam essa discussão. Entre outros ele

retoma Gina Pane, que dizia que no sofrimento o corpo fala de maneira especifica de si, e

também Spinoza, que afirmava que não sabemos do que o nosso corpo é capaz.

Rocío Boliver (apud TORRENS, 20007, p.275) em seu programa sugere que a palavra

que melhor descreve o método de ensino é expor-se – a novas sensações, códigos, conceitos,

estruturas de pensamento, comportamentos – é, nesse sentido, que caminham muitas das

propostas educativas em performance.

Ainda são abordadas, a partir do corpo, questões sociais de extrema importância,

diluindo fronteiras entre particular e político. Desse modo, são questionadas e investigadas

relações de dependência e oposição entre gêneros, além da influencia da mídia e do

consumismo contemporâneo, de modo que são experimentadas possibilidades de extrapolar

tais convenções.

A linguagem falada e escrita é questionada em diferentes práticas, nesse caso

valorizam-se linguagens não orais, que utilizem outros códigos, estímulos e sensações. Uma

premissa em muitos cursos em performance é desconfiar das possibilidades do pensamento

científico, lógico ou histórico para explicar a realidade, romper com os códigos impostos,

modelos tradicionais e valores morais, políticos, e/ou religiosos, de modo que a performance

aparece como método de conhecimento de nossas práticas históricas, sociais, e culturais.

Nesse sentido, examinam-se, reescrevem-se e questionam-se os códigos culturais a

partir das inscrições culturais do corpo, de modo que os performers possam decifrar a si

mesmo como mensagens vivas e reconhecer sua identidade como construção.

Outro aspecto muito trabalhado nos cursos e oficinas é a relação do corpo com os

objetos. Nesses exercícios o objeto adquire um grau elevado de importância que, utilizado de

maneira não habitual, em grandes quantidades, a partir de seu significado pessoal ou mesmo

como prótese, potencializa, anula ou resignifica o corpo. Esses objetos podem estar ligados à

infância dos participantes, conter um grande significado na construção do sujeito, ter sido

encontrados ou mesmo ser objetos simbólicos e rituais.

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A relação entre o uso de materiais específicos e seu sentido simbólico – a partir do

qual são criadas as performances – incluem o uso de excreções do corpo como material de

criação: sangue, urina, suor, excremento, lagrimas, sangue menstrual, saliva, vomito, sêmen.

A investigação de outras mídias e tecnologias está presente em diferentes propostas.

Realizam-se exercícios a partir do uso de projeção, slides, retroprojetores, videoprojeções,

imagens da televisão, sombras, fotos. Os exercícios e performances que utilizam objetos e

materiais como questões centrais apontam ainda a possibilidade de utilizar os rastros ao

terminar a obra como instalação, investigando a ressignificação espacial resultante da obra.

O espaço é um aspecto de grande importância na performance e logo nos exercícios e

propostas dos cursos, nesse sentido, todo espaço pode ser entendido como lugar para criação.

Performance site-specific, a desconstrução de espaços – de modo formal, funcional e

estrutural –, a ação do espaço sobre o movimento, as diferenças entre locais fechados e rua,

performance-instalação, psicogeografias e a criação de situações na cidade são questões que

aparecem em torno do espaço nos diferentes cursos.

O tempo é outro aspecto muito trabalhado em processos de investigação em

performance, introduzido nos cursos a partir de exercícios de contagem e de percepção

temporal. Aparecem como elementos compositivos tanto o tempo interno quanto o tempo

perceptivo, físico e psicológico. São propostos exercícios a partir da repetição da ação em

velocidades e ritmos diferentes, de ações cíclicas, da criação de pausas e tempos suspensos, de

resistência e duração, da investigação de ritmo, velocidade e impulso e da tradução do tempo

em imagem. O tempo performativo, em alguns casos, é marcado por ações cujo início e o fim

são definidos por processos orgânicos (ex. o gelo que se derrete, as formigas comendo o

açúcar, a água que ferve e a vela que derrete).

O olhar nesses programas assume grande importância, surge como tentativa de

aprender a observar as coisas de outra maneira, de tentar retomar, ainda que de modo breve e

pontual, uma forma de ver sem condicionamentos prévios. A partir de exercícios que

transformam o modo habitual de ver e observar, a experiência é transformada em um

descobrimento contínuo, redefinindo o ordinário. Desse modo, evidencia-se a percepção de

detalhes ou de insignificâncias e a ruptura da rotina. O corpo observado e observador, a

visibilidade e a invisibilidade, a ampliação do campo perceptivo e a privação da visão,

assumem o papel de investigar outros sentidos possíveis.

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O som é matéria propulsora da criação de diferentes performances e programas de

ensino. Entre algumas propostas de ação, que têm como eixo o som, utilizam-se sons

produzidos (executados em tempo real), reproduzidos (sons gravados e transferidos em

tempo/espaço) e editados (composições a partir de gravação de sons variados, de instrumentos

e de voz).

A questão do registro ainda causa muito debate no campo da performance. Como

manter a vitalidade do processo performático através de outras mídias? Nos programas em

ensino de performance essa questão também é evidenciada, são propostos trabalhos com

tecnologia de gravação, montagem de emissora de radio para transmitir performances sonoras

e o uso das possibilidades oferecidas pela internet. Também se investigam formas de

documentação a partir de outras linguagens: fotografias, escrita, maquetes, objetos resultantes,

de modo que possam ser encontrados modos de registrar além dos convencionais.

Os participantes dos cursos e oficinas costumam registrar em diários o processo

pessoal durante o percurso, a partir de escritas e desenhos. Nos diários de performance são

registradas as experiências do performer, os conceitos, as motivações, as reflexões e as ideias

que o movem. Em alguns casos é sugerido o uso de blogs, com escritas semanais, entendidos

como diários autopublicados, usados para compartilhar seus pensamentos e sua perspectiva

crítica das leituras realizadas, a escrita automática compõe também o acervo de possibilidades

a ser utilizado em alguns processos.

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CONCLUSÃO

Nesse momento uma etapa é finalizada para que novos caminhos possam se abrir. A

amplitude das temáticas – ensino em performance e práticas performáticas transculturais –

sugere a possibilidade de muitas e novas incursões. Entre as diversas abordagens possíveis o

Método Pocha se mostrou uma metodologia que aponta questões necessárias e urgentes, bem

como a proposta artística do La Pocha revelou-se extremamente pertinente em relação à

complexidade contemporânea.

A proposta artística de Gómez-Peña, de construção de um novo mapa, desafia as

barreiras, os muros, as patrulhas e os guardas da fronteira, priorizando o trânsito livre entre

territórios não somente geográficos, mas também entre as áreas de interesse e linguagens

investigadas. O reconhecimento desses limites e demarcações estabelecidas é de grande

importância para que possamos ultrapassá-los e assim reconstruir nossa cartografia pessoal.

Por meio dos mais diversos mecanismos, historicamente construídos, e, reafirmados

na atualidade, nos encerramos em áreas limitadas. Por medo do imprevisível, do diferente, do

inesperado, são criadas inúmeras formas, utensílios, mecanismos para separar, segregar,

delimitar e dividir. Sob o medo da dissolução da farsa de sua identidade, o já mencionado

coronel-em-nós constrói em torno de si grades, muros e cercas que impedem sua livre

circulação, pensa estar finalmente livre do perigo de desagregação, porém esquece que ele

mesmo já não pode mais usufruir de sua liberdade.

Como representante do status quo, do estabelecido, da tradição, o coronel-em-nós

parece reinar no ainda atual sistema de ensino. A educação bancária39 ignora o corpo, ‘aquele

que vibra’, o movimento inerente de reinvenção do corpo no/com o mundo, as novas misturas

e agenciamentos. É de suma importância reinventar postos inovadores de colaboração, afirmar

o corpo em sua potência, desafiar as ‘centrais distribuidoras de sentido e valor’ e investigar

novos afetos.

                                                            39 Referência ao conceito de Paulo Freire, nesse sentido educação bancária é compreendida como um instrumento de opressão, em que o professor deposita conteúdos alheios à experiência do educando, a serem decorados e reproduzidos. Nesse contexto a educação baseia-se no ato de depositar e transferir valores e conhecimentos, do educador para o educando. “Falar da realidade como algo parado, compartimentado e bem comportado, quando não falar ou dissertar sobre algo completamente alheio à experiência existencial dos educandos vem sendo, realmente, a suprema inquietação desta educação. A sua irrefreada ânsia. Nela, o educador aparece como seu indiscutível agente, como o seu real sujeito, cuja tarefa indeclinável é ‘encher’ os educandos dos conteúdos de sua narração. Conteúdos que são retalhos da realidade desconectados da totalidade em que se engendram e em cuja visão ganhariam significação. A palavra, nestas dissertações, se esvazia da dimensão concreta que devia ter ou se transforma em palavra oca, em verbosidade alienada e alienante.” (FREIRE, 1987, p.33).

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A criação de novos modos de reterritorialização, de criação de novas áreas –

desmilitarizadas, desierarquizadas, colaborativas e livres para a experimentação – e a

invenção de altares que celebrem nossa mitologia pessoal, são formas utilizadas para criar

novos territórios, onde possam ser reinventadas maneiras de significar, contestar, conviver e

festejar. Gómez-Peña cria sua própria coleção que integra seus rituais de reterritorialização:

[...] colecciono figuras, souvenirs, talismanes y vestuários poco usual; objetos relacionados simbolicamente a mi ‘cosmologia personal’, la cual se remonta al día que nací. Con Ella, donde quiera que vaya, construyo altares efímeros para anclarme, y ‘re-territorializarme’ como dícen lós acadêmicos. Estos altares resultan tan ecléticos y complejos como mi propria estética y mis múltiples identidades sincréticas.40 (GÓMEZ-PEÑA, 2005, p.214.)

Os meios de se territorializar são os mais diversos, ainda mais nos dias correntes. É

importante lembrar que repensar signos e valores, reinventar identidades, recriar

nomenclaturas, categorias, rótulos, identificações e representações faz parte de um processo

de descolonização.

A possibilidade de autobiografar a experiência de vida de sujeitos localizados em

grupos minoritários, de rever a história oficial e as diversas histórias reprimidas, interrogar a

suposta hegemonia e sua política de identificação do imaginário, identificar os ecos das vozes

emudecidas permite a reconstrução de uma sociedade extremamente desigual e apartada.

Homi Bhabha traz em seu livro uma crônica de Alan Sekula, fotógrafo, escritor e crítico

norte-americano de origem polonesa, que faz uso do porto como lugar privilegiado para

observar as problemáticas dos trânsitos contemporâneos.

As coisas estão mais confusas agora. Um disco arranhado berra o hino nacional norueguês por um alto-falante da Casa do Marinheiro, no penhasco acima do canal. O navio-container, ao ser saudado, desfralda uma bandeira de convivência das Bahamas. Ele foi construído por coreanos que trabalham por longas horas nos estaleiros gigantes de Uslan. A tripulação mal paga e insuficiente, poderia ser salvadorenha ou filipina. Apenas o capitão ouve uma melodia familiar. (SEKULA apud Bhabha, 2005, p. 28).

Nesse caso apenas o capitão escuta uma melodia familiar, quais são as melodias

familiares da morada ou da referência de lar e aconchego desses outros tantos que estão à

deriva? As identidades oficiais, aquelas bem quistas, por quantas pessoas são compartilhadas?

A partir de quanto sangue, hipocrisia e dominação foram forjadas as identidades nacionais? ‘É

melhor ser bi que mono’, e é assim que somos. E, nesse sentido, torna-se necessário, como                                                             40 “Coleciono figuras, lembranças, talismãs e vestuários inusitados, objetos relacionados simbolicamente com minha "cosmologia pessoal", que remonta ao dia em que nasci. Com ela, onde quer que eu vá, construo altares efêmeros para ancorar-me, e ‘reterritorializar-me’, como dizem os acadêmicos. Esses altares são tão ecléticos e complexos quanto minha própria estética e minhas múltiplas identidades sincréticas.” (tradução nossa)

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nos diz Walter Benjamin, ‘escovar a história a contra pelo’, e rever as figuras complexas de

identidade e diferença, passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão que nos

configuram.

Na performance, e por conseguinte em seu ensino há uma maior valorização dos

modos de feitura das coisas. Essa vitória do gesto sobre a coisa, do uso em relação ao

significado, ressalta o ‘como’ e não apenas o ‘o quê’. Em tempos de excesso de imagens, de

objetos, mercadorias, informação, uma educação que prioriza o uso, o modo de utilização e a

particularidade do gesto, aponta para uma via alternativa ao consumismo niilista por qual a

sociedade parece estar passando.

A reciclagem aparece no trabalho do La Pocha Nostra como principal modus operandi,

as instalações-performances surgem como colagens das patologias culturais da globalização,

como um espaço cerimonial, onde participantes e espectadores podem pensar sobre as

complexas redes de dominação, investigar seu próprio racismo em relação às culturas

subalternas e seus temores e desejos interculturais. Através da antropomorfização desses

estereótipos o La Pocha Nostra materializa os monstros presentes no imaginário hegemônico

sobre outras culturas.

En este sentido, nuestros "salvajes artificiales" encarnan los más profundos temores y deseos de los norteamericanos contemporáneos con respecto a los inmigrantes y la llamada equivocadamente "gente de color," y funcionan como una suerte de espejo invertido para que los visitantes observen los reflejos distorcionados de sus propias quimeras psicológicoas, eróticas y culturales.41

Desse modo, buscam explorar os espaços mais ensombrecidos da psique ocidental em

relação às chamadas culturas minoritárias e subalternas. Essas comunidades efêmeras, zonas

intersticiais, espaços de reflexão e interrupção são criadas no intuito de extrapolar as

fronteiras da galeria e alcançar os âmbitos sociais e políticos mais amplos, causando

incômodos e irrupções em terrenos delicados. Guillermo Gómez-Peña, ao pensar a

performance como democracia radical, aponta a necessidade do performer aprender a ouvir os

outros e ensinar os outros a ouvir.

Ao longo da história, diversos encontros interculturais não foram marcados pela escuta

e sim pela dominação e pelo silenciamento, herança de uma violência matricial e das

cicatrizes coloniais que ainda vigoram na construção da sociedade contemporânea.

                                                            41 Disponível em: <http://www.pochanostra.com/antes/jazz_pocha2/mainpages/dioramas.htm> Acesso em: 23 nov. 2013.

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Desconstruir esses lastros coloniais é de suma importância para pensarmos uma nova

cartografia.

Os coiotes aparecem no contexto do La Pocha como guias da travessia dos imigrantes

ilegais, como metáfora de atravessadores de fronteiras, nesse sentido, os performers surgem

como coiotes e poderíamos dizer que também os professores/formadores no contexto da

performance. O educador aqui é entendido como um mediador, um problematizador, um

complexificador, um atiçador e talvez um guia da travessia. A performance não pode perder

sua natureza idiossincrática e anárquica, seria impossível ensinar performance de modo

tacanho. Assim como na performance, o educador no contexto performativo provoca

dissonâncias, contribui para a construção de situações estranhas em seu sentido e em sua

lógica.

A pedagogia do La Pocha se estrutura em forma de pentágono, cujos vértices são a

comunidade, a educação, a política ativista, as novas tecnologias e a estética experimental. Na

oficina já mencionada La Pocha Remix: Psycho-Magic Actions Against Violence, que tive a

oportunidade de participar, eles instigaram os participantes a pensar como seria um outro

mundo, criado por artistas, a partir da questão a ser completada ‘Em um mundo criado por

artistas...’. André Stitt (STITT apud TORRENS, 2007, p.101) sugere a importância de que

cada pessoa se faça criadora, escultora ou arquiteta do organismo social. As práticas do La

Pocha parecem direcionar para esse sentido.

Por meio de práticas pedagógicas em performance são reinventados mundos e

experimentadas novas formas de lidar consigo, com o outro e com o espaço. São incentivadas

pedagogias de confronto, disruptivas, contrárias às pedagogias de assimilação, de concórdia e

reprodução. E isso me parece de fundamental importância para construção de uma outra

globalização, de outros modos de organização, de subjetivação, de autopoiese, aspectos que

deveriam ser caros a qualquer processo educacional.

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Figura 12 – Registro da oficina La Pocha Remix: Psycho-Magic Actions Against Violence ministrada por Guillermo Gómez-Peña, Dani D´Emilia e Roberto Sinfuentes no Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto. Performers: Júlia Lotufo e Ronaldo Zaphás. Fonte: La Pocha Nostra Live Arquive. Site de registro de performances e cursos do La Pocha Nostra. Disponível em: <http://lapochanostralivearchive.tumblr.com/>.

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