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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Centro de Educação e Humanidades – Instituto de Artes

Programa de Pós-graduação em Artes

Mônica Maria Linhares Castrioto

Artes de Exu

Intervenções artísticas e representações afro-brasileiras

no Rio de Janeiro: Tridente de NI e Exu dos Ventos

Rio de Janeiro

2010

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2010

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Mônica Maria Linhares Castrioto

Artes de Exu

Intervenções artísticas e representações afro-brasileiras

no Rio de Janeiro: Tridente de NI e Exu dos Ventos

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação

em Artes do Instituto de Artes da Universidade do

Estado do Rio de Janeiro como requisito para obtenção

do título de mestre em História e Crítica de Arte, da

Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

Orientador Prof. Dr. Roberto Luís Torres Conduru

Rio de Janeiro

2010

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CATALOGAÇÃO NA FONTE

UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/Instituto de Artes

999 Castrioto, Mônica Maria Linhares.

Artes de Exu – Intervenções artísticas e representações afro-

brasileiras no Rio de Janeiro: Tridente de Ni e Exu dos Ventos /

Mônica Maria Linhares Castrioto. – 2010.

120 fls.

Orientador: Roberto Luís Torres Conduru.

Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de

Janeiro, Centro de Educação e Humanidades, Instituto de

Artes.

Bibliografia: f. 101-107.

1. Artes – Dissertação. 2. Intervenção urbana. 3. Arte e

política. 4. Arte afro-brasileira. I. Conduru, Roberto Luís

Torres. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Centro

de Educação e Humanidades. Instituto de Artes. III. Título.

CDU 999.99

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial dessa

dissertação.

_______________________________________ ___________________

Assinatura Data

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Mônica Maria Linhares Castrioto

Artes de Exu Intervenções artísticas e representações afro-brasileiras

no Rio de Janeiro: Tridente de NI e Exu dos Ventos

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação

em Artes do Instituto de Artes da Universidade do

Estado do Rio de Janeiro como requisito para obtenção

do título de mestre em História e Crítica de Arte.

Aprovado em ____________________

Banca examinadora ____________________

________________________________________________________

Professor Doutor Roberto Luís Torres Conduru (Orientador)

Instituto de Artes – UERJ

________________________________________________________

Professor Doutor Ricardo Gomes Lima

Instituto de Artes – UERJ

________________________________________________________

Professor Doutor Paulo Knauss de Mendonça

História – UFF

Rio de Janeiro

2010

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DEDICATÓRIA

A

minha família, querida…

base da minha vida…

e razão de tudo isso.

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AGRADECIMENTOS

Ao orientador Roberto Conduru pela sintonia, paciência e carinho.

Alexandre Vogler pelo Tridente de NI. Muito bom.

Mário Cravo Jr. pela baianidade, recepção e crédito dado à pesquisa.

Aos professores convidados da banca, Paulo Knauss e Ricardo Lima, que fizeram da

qualificação um momento extremamente profícuo para o desenvolvimento da pesquisa.

A Vera Dias e à equipe do setor de Monumentos e Chafarizes da Fundação Parques e

Jardins do Rio de Janeiro.

A pai Celso de Omolu e Junior de Odé pelo assento de Exu.

Ao compadre Aderbal Axogum e minha irmã Clarice.

A todos os informantes, comunidade do Bairro São João e da Ilha do Fundão.

Não poderia me esquecer de Jorge e Roberto (ilustríssimo torcedor do América),

ambos da secretaria do PPGARTES que com tanta cordialidade foram parceiros nas

burocracias e nos acordes tensos nesses dois anos. E também ao pessoal da biblioteca do 11º

andar da UERJ – Bruno, Christina e Eliane.

Para Jeferson e Iara Góes pela calorosa acolhida, na Bahia, que me permitiu ter outro

olhar sobre Salvador.

Para Nara, irmã, comadre, amiga querida, cúmplice que mesmo de longe foi uma

grande incentivadora.

Professora de inglês querida, dona Maria.

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Aos professores Marcos Varella, Eliane Mattozo e Isis Braga pela recomendação. Em

especial a Anita Fiszon pelo carinho e observações no projeto.

Minha fomo-de-mel, Virgínia, irmã, amiga do peito e poeta… Pelas leituras e

suavização do texto.

Chiquinho, que fez o mestrado parecer um lugar possível, Marília pelas dicas e

Mônica pelo excelente trabalho de revisão. Sem este último certamente haveria muitas

vírgulas fora do lugar, inclusive o título. Grata pela ―Arte de Exu‖. São pessoas funfun, do

algodão, que sempre clareiam as minhas águas turvas.

Maria José que me ajuda a desatar os nós e a definir as prioridades.

Ao padrinho Luis Henrique e ao pai Moacyr pela continuidade.

Ao meu pai Ricardo, mãe Olga e grande irmão Júnior por tudo e por quem são. Em

especial a minha mãe, que mesmo durante as dificuldades está sempre ao meu lado.

Patrícia e Luana, as tias mais queridas lá em casa.

Ana Maria e vô Beto pela parceria e grande incentivo em todas as horas.

Rodrigo Sinoti por compartilhar a vida e a construção desse trabalho.

Miguelito, menino trovão, por compartilhar atenções.

Aos meus queridos avôs Luzinete e Álvaro, Lígia e Carlos. E a todos os meus

antepassados.

Minha mãe Oxum por permitir a travessia nesse rio.

A Ifá por cuidar de mim.

A Exu – Elegbara – por tudo.

Laroyé!

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RESUMO

CASTRIOTO, Mônica Maria Linhares. Artes de Exu – Intervenções artísticas e

representações afro-brasileiras no Rio de Janeiro: Tridente de NI e Exu dos Ventos. 2010.

120 fls. Dissertação (Mestrado em Artes) – Instituto de Artes, Universidade Estadual do Rio

de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

Artes de Exu trata os objetos de arte não só pelos aspectos artísticos e sociológicos,

mas também pelos aspectos que ligam as obras a Exu, além do enunciado. Como coisa

contida na concepção, na execução e imbricada na própria história da obra. As obras

escolhidas são: Tridente de NI (2006) de Alexandre Vogler e Exu dos Ventos (1992), de

Mario Cravo Júnior. As obras contêm conflitos que envolvem a mídia, religiosos e políticos.

A partir de pesquisas etnográficas é feita uma análise dos olhares que se cruzam na construção

dos sentidos na disputa pelo espaço simbólico, considerando ainda o trânsito percorrido pelas

obras entre a oficina, o espaço de exposição e a rua. Pertence ainda ao corpo das análises as

referências na mídia impressa, forma de veiculação das imagens, apropriações e discursos. As

artes de Exu se evidenciam no desenrolar dessas tramas, conforme os objetos artísticos

oferecem um lugar para pensar na conciliação entre diferentes: entre a cruz e o tridente, entre

Cristo e Exu e entre cristãos e religiões de matriz africana.

Palavras-chave: intervenção urbana, arte e política, arte afro-brasileira.

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ABSTRACT

CASTRIOTO, Mônica Maria Linhares. Artes de Exu – Intervenções artísticas e

representações afro-brasileiras no Rio de Janeiro: Tridente de NI e Exu dos Ventos. 2010.

120 fls. Dissertação (Mestrado em Artes) – Instituto de Artes, Universidade Estadual do Rio

de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

Artes de Exu deals with art objects not only by its artistic and sociological aspects, but also by

the aspects that connect these works to the divinity Exu. As if something is contained in the

conception, execution and within the history of these works. The chosen objects are:

Alexandre Vogler‘s Tridente de NI (2006) and Mario Cravo Junior‘s Exu dos Ventos (1992).

These works brought conflicts involving press, religion and politics. From ethnographic

researches it‘s built an analysis of the different meanings that have been crossed in the

construction of senses that struggle for the symbolic space, also considering the movement

between street and gallery, performed by these works. It‘s also present in Artes de Exu the

references collected from the printed press, the image circulation, appropriations and

discourses. Some ―works of Exu‖ appear themselves in the upbringing of these conflicts, as

the referred art objects offer the condition to think about the conciliation between different

aspects such as: the cross and the trident, Christ and Exu and Christians and African related

religions.

Keywords: Artistic intervention and urban; Art and politics; Afro-brazilian art.

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Lista de ilustrações

1 Foto da reportagem ―Entre a cruz e o tridente‖ ....................................................... 25

2 Dirigível Olho Grande, 2002 .................................................................................. 28

3 Fé em Deus / Fé em Diabo, 2001 ............................................................................ 30

4 Trabalho pra Maria Padilha, Rainha da Encruzilhada .......................................... 32

5 detalhe Macumbanonsite - Trabalho pra Maria Padilha ....................................... 33

6 Alexandre Vogler estudando o ―plano C‖ ............................................................... 35

7 Mirante do Cruzeiro e o Tridente ............................................................................ 46

8 Fonte de Netuno na Plaza de Canovas. Foto Marcelo Teson, 2006 ........................ 48

9 Montagem da escultura Exu dos Ventos, 1998 ........................................................ 56

10 Cristo atado na Coluna, Francisco Chagas. ............................................................ 58

11 Senhor Morto, Francisco Chagas ............................................................................ 58

12 Exu a Villa Lobos. Bahia ......................................................................................... 60

13 Cabeça de Candomblé, 1952 ................................................................................... 61

14 Cabeça de Exu, 1956 ............................................................................................... 61

15 Exu mola de Jeep, 1958 ........................................................................................... 62

16 Cristo Baiano, 1955 ................................................................................................ 63

17 Cruz caída, 2009 ..................................................................................................... 64

18 Sede da Fecomércio, Bahia ..................................................................................... 65

19 Montagem de Exu, 1992 .......................................................................................... 66

20 Vista aérea, Exu dos Ventos .................................................................................... 77

21 Foto da base da escultura Exu dos Ventos, 2009 ..................................................... 78

22 Inauguração da obra, 2000. Cortesia de Roberto Conduru ..................................... 84

23 Escultura Exu dos Ventos, 2009 .............................................................................. 81

24 Foto da retirada de parte da escultura pela FJP, 2005 ............................................. 87

25 Parte superior da escultura Exu dos Ventos acorrentada à cruz, 2009..................... 88

26 Cristo em ascensão e Cristo amarrado, 1987 ......................................................... 90

27 Exu, Cravo Junior, 2009 .......................................................................................... 91

28 Fotos Cravo Neto. Catálogo Espaço Cravo, 1998 ................................................... 92

29 Esculturas do Espaço Cravo, 2009 .......................................................................... 94

30 O artista e seu Exu assentado .................................................................................. 95

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Sumário

INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 15

CAPÍTULO I – ENTRE A CRUZ E O TRIDENTE ...................................................... 25

I Tridente: uma descrição densa ............................................................................... 26

II O Artista ................................................................................................................. 28

III A Obra .................................................................................................................... 34

IV A Cidade................................................................................................................. 37

V Etnografia ............................................................................................................... 39

VI O Cruzeiro .............................................................................................................. 45

VII Tridente .................................................................................................................. 47

VIII Entre Exu, Netuno ou Diabo .................................................................................. 52

IX Observações finais ................................................................................................. 54

CAPÍTULO II – O GIGANTE DA ENCRUZILHADA ................................................. 56

I Cristos crucificados, Exus e Mário Cravo Júnior................................................... 57

II Exu dos Ventos parte do Sinal da Cruz .................................................................. 65

III A encomenda de Exu e a Cidade Maravilhosa:

conciliações e conflitos políticos ........................................................................... 68

IV Polêmica de Exu dos Ventos na mídia.................................................................... 72

V Os olhares obre Exu dos Ventos no Rio de Janeiro ................................................ 77

VI Imagem assento ...................................................................................................... 83

VII Exu ―perde a cabeça‖ ............................................................................................ 86

VIII Cruz, Cristos e Exu ................................................................................................ 90

IX Conciliações ........................................................................................................... 95

CONCLUSÃO ................................................................................................................. 98

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 101

ANEXO A – Itá ............................................................................................................. 108

ANEXO B – Reportagens ............................................................................................. 111

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Ao final

É como se tivesse ouvido

Ìyá, Ìyá Ng o je Iya Nike

E então tivesse sido devorada, digerida e vomitada.

Eis-me aqui consubstancializada por Exu.

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INTRODUÇÃO

Cerca de treze anos atrás eu estava a caminho do hospital, em Copacabana; ia visitar

meu avô quando um mendigo na rua me parou. Era um dia em que estava excepcionalmente

calma, e assim, parei para ouvir. O homem trazia na mão folhetinhos de santos católicos.

Apesar de sua condição, o sujeito tinha uma aparência simpática. Perguntou o meu nome e

respondi. Disse que era muito bonito. Em seguida perguntou o dia do meu aniversário e

respondi. Disse que era uma data muito bonita. Olhou-me longamente, segurou na minha mão

e disse que havia gostado muito de mim. Disse ainda que a partir daquele dia ele passaria a

cuidar de mim. Que eu não me preocupasse com mais nada e que a partir dali os meus

problemas eram dele. Deu-me dois folhetinhos: um de Santo Antônio e outro de Nossa

Senhora e se despediu. Segui meu caminho e logo que encontrei com meu namorado (atual

marido) – disse: ―– Hoje eu encontrei Exu.‖

Tempos depois, o ônibus em que estava foi assaltado; daquela vez, eu não reagi. O

celular foi, mas a carteira com os santinhos que eu ganhei do mendigo-Exu ficou. E fiquei

olhando aqueles santos, lembrando…

Naquela época, haviam começado as minhas primeiras incursões na Umbanda e,

posteriormente, no Candomblé. Lembrando agora, essa história me parece um pouco pueril.

Ainda assim, penso que guarda um pouco dessa aura do imaginário popular sobre Exu. Não o

de demônio, diabo ou o que o valha, mas uma figura do povo que habita a rua com seus

disfarces. Irônico, brincalhão e ambíguo. Figura controversa, eu sei. Mas naquela época, eu

começava a descobrir esse orixá e acabei guardando em algum lugar da memória essa história

que surgiu quando pensava em como escrever esta introdução.

Lembro-me da primeira vez que fui consultar os búzios. Trocando em miúdos, me

aconselharam a ―despachar Exu porque ele atrapalha‖. Não entendi muito bem e partir dali

fiquei tentando entender Exu. Já havia visto algumas giras de Exu em Umbanda e ficava meio

intrigada com aquela coisa muito galhofeira. Na casa de Candomblé que começava a

freqüentar, ouvia muito que não se iniciava uma pessoa para Exu: ―porque era muito difícil‖,

diziam.

Se não me engano, em 2000, na festa de 30 anos de iniciação da Iyalorixá da casa,

vieram muitos convidados – pessoas antigas do santo. Até que num momento do xirê, Exu

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incorporou num homem que lá estava. Vestiram Exu com um tipo de abadá e um filá, todo

roxo, parecendo àquelas roupas tradicionais iorubás (abadás compridos, bem estampados).

Fiquei encantada. Era o auge da controvérsia de tudo que havia ouvido sobre Exu. E, a partir

dali, observei atentamente algumas mudanças nessa relação de Exu, mesmo com os

praticantes da religião. Muita coisa também foi publicada de lá pra cá. Reginaldo Prandi

(2005, p. 67-100) e Stefania Capone (2004, p. 53-88) falam dessa mudança. Depois, vim a

conhecer pessoas iniciadas para Exu, também conheci pessoas de Exu iniciadas para outros

orixás. Mas sempre sem haver um consenso acerca desse orixá.

Em 2002, numa cerimônia para saber meu orixá, logo depois de sair o odu, a primeira

pergunta que fizeram era se eu era filha de Exu. Naquele momento torci o nariz. Hoje acho

graça dessas coisas, pois penso que é o orixá mais interativo. Sempre nas encruzilhadas

indicando caminhos, avisando do perigo, com senso de humor ímpar. Foi isso que vi quando

li o material do Tridente de NI publicado no ensaio de artista da revista Concinnitas,1 quando

surgiu a idéia deste trabalho.

Assim sendo, este ―Artes de Exu‖ pretende tratar objetos de arte não só pelos seus

aspectos artísticos ou sociológicos, muito também pelos aspectos que ligam as obras a Exu,

para além do enunciado. Como coisa contida na concepção, na execução e imbricada na

própria história da obra.

Os objetos escolhidos são o Tridente de NI (2006) de Alexandre Vogler e Exu dos

Ventos (1992), de Mário Cravo Junior. São obras que de alguma forma têm em suas histórias,

conflitos que envolvem a mídia, religiosos e políticos. Nesse sentido foram analisados

conteúdos da mídia e a forma de veiculação das imagens, apropriações e discursos. Algumas

artes de Exu vão se evidenciando no desenrolar dessas tramas, conforme os objetos artísticos

são introduzidos na cidade, tendo os conflitos como produto.

As características de Exu vão se moldando na medida em que as relações entre política

e arte desenvolvem alianças. No caso do Tridente de NI, o poder público propõe o projeto de

oficinas de arte pública na Cidade, mas não sustenta de maneira satisfatória a aliança feita

com artistas. Após algumas tentativas de adaptação do projeto e muito ―jogo de cintura‖ no

fazer artístico, a inscrição a cal na encosta se transforma: de uma crítica a cooptação e

consumo – com o dizer INI; para cooptação e consumo por parte da mídia e religiosos, por

conta do enorme tridente atrás do Mirante do Cruzeiro no Centro de Nova Iguaçu. A essas

análises será dedicado o ―Capítulo I – Entre a cruz e o tridente‖.

1 Revista Concinnitas, ano 8, vol. 1, nº 10, julho de 2007.

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Já em Exu dos Ventos, a aliança ganha ares periclitantes quando o grupo empresarial

baiano – dono da empresa responsável pelo pedágio da Linha Amarela – juntamente com o

prefeito, Luiz Paulo Conde, resolvem oferecer ao Rio de Janeiro, escultura de renomado

artista baiano Mario Cravo Junior. A escultura representa Exu. As análises sobre Exu dos

Ventos serão tratadas no ―Capítulo II – O gigante da encruzilhada‖.

Além do mais, o cenário político carioca vinha numa grande disputa por votos nas

comunidades confessionais, conforme nos aponta Maria das Dores Campos Machado. (2006,

p. 28.)

Quarto estado em população evangélica do Brasil, o Rio de Janeiro se destacou no processo

eleitoral de 1998 por eleger o governador, a vice-governadora, nove deputados estaduais e dez

deputados federais dessa tradição religiosa. E mais, tanto no plano regional quanto federal,

verificou-se o crescimento da participação dos pentecostais e neopentecostais nos cargos

públicos. [...] a comunidade evangélica, na ocasião do pleito, representava 21% do eleitorado

da capital do estado.

Assim, a mídia se torna palco e estratégia de disputas simbólicas na cidade do Rio de

Janeiro entre políticos, religiosos e artistas. Embora Mário Cravo não se aproprie do material

midiático sobre Exu dos Ventos, como foi feito por Alexandre Vogler, o que se observou ao

longo da pesquisa foi que quanto maior a repercussão na mídia, quanto maior a aura de

polêmica, maior o alcance da imagem ao grande público. Além da divulgação do nome do

artista.

Os objetos artísticos aqui estudados contêm referências diretas e indiretas às tradições

religiosas afro-brasileiras. E a questão que me coloco é saber qual a importância dessas obras.

Como diferentes grupos sociais se relacionam com a inserção dessas obras no acervo da

cidade, significando e demarcando simbolicamente o espaço? O que está em jogo quando os

objetos de arte transpõem o espaço da oficina, da galeria, do mundo da arte, para o espaço

urbano?

Exu surge como eixo narrativo que perpassa a temática das obras. É o elemento

catalisador do conflito pela própria definição ou indefinição de suas propriedades no senso

comum. As tentativas de censura às obras podem ser classificadas de iconoclastas, em que o

medo da imagem envolve a idéia de consubstancialidade (SALGADO, 2008, p. 47.) – a

divindade incorporada à matéria – provocando idolatria em oposição à simbolização da figura.

Existem outros estudos acerca da imaginária urbana e de disputas simbólicas,

principalmente quando essa imaginária envolve ícones afro-brasileiros. Roger Sansi (2007)

faz estudo de caso dos ataques iconoclastas às esculturas Orixás, de Tatti Moreno, instaladas

no Dique do Tororó, em Salvador (BA).

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No Monumento a Zumbi, Mariza de Carvalho Soares (1999) busca a história desde o

planejamento, passando por alianças políticas entre o movimento negro e governo do Estado.

Em seguida analisa como a homenagem se converte em monumento na medida em que

lentamente o grupo social homenageado se apropria espaço simbólico da cidade. Em relação

ao mesmo monumento, Roberto Conduru (2007) observa que apesar de ter se tornado local de

celebrações e protestos relativos aos afro-brasileiros, isso não o protege contra atos de

vandalismo durante o ano, chegando a ser inclusive cercado, no período do carnaval. Analisa

também os processos de apropriação artística operados por Darcy Ribeiro e João Filgueiras

Lima ao propor a cópia de uma escultura em bronze do Benin como representação de Zumbi

dos Palmares.

Em artigo, Fábio Macedo Velame (2009) propõe uma crítica à apropriação e

agenciamento do patrimônio afro-brasileiro, contrapondo o ―olhar cosmológico‖ do povo-de-

santo sobre a natureza ao modo como é agenciado, mutilado, deturpado e substituído pelo

conceito de paisagem presente nos espaços públicos com temáticas afro-brasileiras na cidade

de Salvador. Se a obra de arte não passa pelos ritos de apropriação e consubstacialização do

sagrado, não vira objeto de culto. O que coloca certa distância entre as esculturas públicas dos

orixás e os objetos de culto do povo-de-santo. Segundo o autor, no caso de Salvador, o

patrocínio das esculturas afro-brasileiras em local público se deve mais pelo setor turístico do

que pelo religioso.

Vale a pena citar os ataques ao grupo escultórico, também de Tatti Moreno em

Brasília, semelhantes aos do Dique do Tororó, instaladas às margens do Lago Paranoá – ou

Prainha dos Orixás como ficou conhecido. Acontecia no entorno a tradicional festa da virada

do ano com homenagens à Iemanjá organizada pelos terreiros, desde 1963. A praça ganhou,

em 1992, as imagens. Em 2002, os ataques tiveram início com o desaparecimento do orixá

Nanã. Dias depois, foi localizada em um lixão. A escultura de Oxóssi desapareceu

completamente. Depois disso, ocorreram sucessivos apedrejamentos das imagens até que, em

2005, uma Iemanjá apareceu incendiada. O local virou palco de manifestações contra a

intolerância religiosa e, em 2009, as esculturas foram restauradas e a praça reinaugurada.

Situação semelhante ocorreu em Belo Horizonte. Em 1982, a pedido dos umbandistas,

a prefeitura inaugurou uma estátua de Iemanjá, numa praça na orla da Lagoa da Pampulha. No

local acontecia, desde 1957, a Festa de Iemanjá organizada pela Federação Espírita de

Umbandistas do Estado de Minas Gerais. Durante as comemorações eram feitos rituais de

purificação da estátua, que segundo Nelson Mateus Nogueira, presidente da mesma federação,

―nos fazia lembrar a Lavagem do Bonfim, na Bahia‖ (NETO, 2006, p. 3) Apesar de a festa ter

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se incorporado ao cotidiano da cidade isso não impediu que a escultura sofresse atos de

vandalismo. Como resultado a escultura recebeu um projeto de reforma que a deslocou 20

metros para dentro d‘água, em local inacessível, além da instalação, em 2006, do Portal de

Iemanjá,2 feito pelo artista mineiro Jorge dos Anjos. Talvez as motivações desse portal

passem por uma maneira inteligente de salvaguardar a distância com a escultura, mantendo a

referência no local, permitindo a continuidade dos ritos de purificação.

São pesquisas e situações de arte que lidam com a recepção da imaginária afro-

brasileira por diferentes setores da sociedade com motivações distintas. Nesse sentido,

desenvolveram-se as análises nos capítulos numa clave antropológica. Isso, a princípio, me

incomodou um pouco. Fiquei com uma cobrança interior de ter que dar conta de uma análise

crítica dos aspectos artísticos e formais, não só sociológicos. O que atrapalhou um pouco o

adensamento das questões e a escolha dos pressupostos teóricos, principalmente do segundo

capítulo (que trata de Exu dos Ventos), dadas as especificidades complexas coletadas no

trabalho de etnografia.

Essa opção pela etnografia aconteceu não só pelos caminhos percorridos durante o

mestrado, por uma orientação bem sucedida, mas também pela demanda dos objetos

escolhidos. Acho que foi uma escolha absolutamente feliz por toda afinidade sentida com o

aspecto didático como os textos em antropologia se desenvolvem. Isso me ajudou bastante na

estruturação do capítulo dedicado ao Tridente de NI.

Quando comecei a escrever o segundo capítulo, do Exu dos Ventos, contava com a

experiência do primeiro capítulo e com os conselhos da qualificação. Ainda assim tentei

seguir um caminho diferente, mesmo porque apesar das aproximações entre as duas obras,

existem aspectos muito peculiares a cada uma delas e também a cada artista. Senti

necessidade de atender a essas questões, além buscar uma análise formal sobre a construção

temática contida na obra de Mário Cravo Junior. Escolhi também colocar um pouco de minha

experiência com a Literatura de Ifá. Nesse sentido, o segundo capítulo conta com um mito de

gênese, sobre a criação de Exu, que a meu ver explica muito bem a natureza desse orixá. É

dessa natureza que me aproprio como fio condutor na leitura do processo artístico.

O título do trabalho ―Artes de Exu‖ lida com essa tensão de uma arte que representa

efetivamente Exu e, ao mesmo tempo, reconhece as artes que vêm carregadas de aspectos

circunstanciais, que descrevem as artimanhas desse personagem. A ambigüidade e o conflito

2 O Portal de Iemanjá é uma escultura composta de recortes em chapa de aço, com os símbolos religiosos geometrizados, nas

dimensões 600x500x20cm, instalado na beira da Lagoa da Pampulha, em frente à escultura de Iemanjá, conforme

CONDURU, 2007, p. 76-77.

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são apenas o começo. Existe muito mais de Exu nessas obras de arte do que a mera atitude

contemplativa pode revelar. Apesar desse tremendo ímpeto de querer dar conta no panorama

intelectual dos problemas fundamentais que vão se descortinando, alguns pontos ainda

permanecem obscuros.

Como ―etnógrafa de primeira viagem‖ não poderia deixar de me ver em alguns

momentos entre a cruz e o tridente, diante de algumas armadilhas e até por cair nelas. Nesse

sentido lidei de maneira demasiadamente crédula com os dados coletados dos meus

informantes. No decorrer da pesquisa algumas informações não se confirmaram. Tudo bem,

lugar comum advertido pelo orientador o tempo todo. Como conseqüência foi preciso rever a

metodologia do trabalho. Afinal essa pesquisa não representa um ―tribunal da verdade‖ e

precisei ter isso bem claro ao procurar um caminho para compor as análises sobre os dados

coletados, sendo eles verídicos ou não.

Voltei-me então ao texto de Clifford Geertz: ―A interpretação das culturas‖. Ao

debater a prática da antropologia, por uma teoria interpretativa da cultura, cita Max Weber em

que ―o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a

cultura como sendo essas teias e a sua análise‖ (p. 15). Geertz toma emprestado ainda o

exemplo de Gilbert Ryle sobre piscadelas no olho direito e laboriosamente diferencia a

piscadela involuntária proveniente de tique nervoso de uma piscadela conspiratória. Embora

aparentemente as duas sejam idênticas, o piscador-conspirador está se comunicando de uma

forma precisa e especial enquanto o primeiro apenas contrai um músculo involuntariamente.

Os desdobramentos dessas piscadelas e as outras possibilidades de piscadelas é que compõem

a descrição densa das complexidades possíveis. E conclui:

O que chamamos de nossos dados são realmente nossa própria construção das construções de

outras pessoas, do que elas e seus compatriotas se propõem – está obscurecido, pois a maior

parte do que precisamos para compreender um acontecimento particular, um ritual, um

costume, uma idéia, ou o que quer que seja está insinuado como informação de fundo antes da

coisa em si mesma ser examinada diretamente. [...] Nada há de errado nisso e, de certa forma,

é inevitável. Todavia, isso leva à visão da pesquisa antropológica como uma atividade mais

observadora e menos interpretativa do que ela realmente é. Bem no fundo da base fatual, a

rocha dura, se é que existe uma, de todo empreendimento, nós já estamos explicando e, o que

é pior, explicando explicações. Piscadelas de piscadelas de piscadelas... (GEERTZ, 1978,

p. 19)

E como foi bem observado na orientação da pesquisa, nos dois casos tanto no Tridente

de NI quanto no Exu dos Ventos não houve uma relação direta minha com nenhuma das duas

obras. No Tridente, lembro-me que na época olhei alguma coisa nos jornais corriqueiramente

mais por conhecer o Alexandre do que por ser estudante de arte ou por afinidade religiosa. E,

como a intervenção se apagou, lidei apenas com a memória do evento através de relatos e

fotos, sem nem mesmo ter a oportunidade ver esses registros na galeria.

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Com o Exu dos Ventos a mesma coisa, embora o tenha visto algumas vezes, já que

estudava no Fundão na época e a escultura ficava no trajeto. Eu a observava da janela do

ônibus, o que não significou muita coisa, pois a escultura em pouco tempo se quebrou e só

restou a metade dela no local. Logo, as análises que faço das obras partem da memória das

pessoas que de alguma forma se relacionaram mais efetivamente com elas. É desta maneira

que enfrento as estruturas conceituais para apreender, estruturar a pesquisa de campo,

entrevistar os informantes, fazer deduções, para poder construir uma leitura não só das obras

enquanto objetos de arte, mas também os comportamentos que estão em jogo.

O que torna o Tridente de NI e o Exu dos Ventos tão singulares são os sincretismos de

Exu e os discursos contrários que se dão abertamente nas páginas dos jornais, não ataques

velados e anônimos. Os opositores chamam Exu de demônio e nesse ponto embasam seus

argumentos. Fico pensando em que termos se dariam as manchetes caso as esculturas

representassem Oxalá – que é sincretizado com Jesus Cristo? Ou mesmo Iemanjá, cuja festa

na praia recentemente ganhou dia específico no calendário da cidade do Rio de Janeiro.

Importante salientar que existe processo movido pelo Ministério Público Federal

(POMPEU, 2005) contra publicação neopentecostal3 que resultou na proibição da venda do livro

no Brasil, em novembro de 2005. A obra é ―impregnada de afirmativas preconceituosas e

discriminatórias desferidas contra outras formas de manifestações religiosas e credos, em

especial aos cultos afro-brasileiros‖, afirmam os procuradores da República, autores da ação.

Ainda assim é possível acessar o conteúdo do livro em diversos sites ou adquiri-lo em sebos;

todos anunciando na Internet.

Entretanto, não nos propusemos a fazer levantamento historiográfico ou coletar as

várias formas de significação religiosa ou sincréticas de Exu. Porém, algumas considerações

se fazem necessárias para melhor compor as análises.

Pierre Verger inicia seu capítulo ―Esu Elegbara, Legba‖ (VERGER, 2000) relatando a

dificuldade de apreensão e definição coerente deste orixá, enumerando rapidamente suas

principais características: mensageiro dos outros orixás, tanto que nada pode ser feito sem ele;

guardião dos templos, casas e cidades; portador da cólera dos orixás e das pessoas; de caráter

suscetível, violento, irascível, astucioso, grosseiro, vaidoso e indecente.

Descreve Exu como o mais humano dos orixás, pois apesar de gostar de provocar

acidentes e calamidades públicas e privadas, desencadeando brigas, dissensões e mal-

3 MACEDO, Edir. Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios? Rio de Janeiro: Universal Produções, 2004. Versão não

oficial, disponível apenas em http://livrosgratis.net/download/929/orixas-caboclos-e-guias-deuses-ou-demonios-edir-

macedo.html. Acessado em 25/2/2010.

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entendidos, sendo o companheiro oculto das pessoas, levando-as a fazer coisas insensatas,

atiçando maus instintos, tem igualmente seu lado bom. Não é completamente bom nem

completamente mau. Tem suas qualidades e seus defeitos. É também fiel mensageiro dos que

lhe fazem oferendas e responsável pela revelação da arte da adivinhação aos homens.

Pierre Verger nos fala, ainda, que os primeiros missionários ao chegarem à África e

encontrarem esse conjunto ambíguo de signos e representações em Exu, logo o associaram ao

Diabo, fazendo deste orixá símbolo de tudo que é maldade, perversidade, abjeção e ódio, em

oposição à bondade, pureza, elevação e amor a Deus. Vale ressaltar nessa atitude um

mecanismo sincrético utilizado como medida de cooptação. Ao associar Exu ao Diabo, dentro

de uma lógica maniqueísta, o objetivo é minar a identificação das pessoas com aquela

divindade, tornando mais fácil a conversão e o apagamento de referências anteriores. Basta

lembrar que a conversão dos negros africanos figurava entre os motivos evocados no século

XVI para legitimar e justificar a escravidão.

Para Kabenguele Munanga (2000, p. 104) ―Exu reúne em si todos os elementos de

uma metáfora expressiva que simboliza a cultura negra em situação hostil‖. Justifica a

utilização de símbolos antagônicos na representação de Exu ainda na época da escravidão

como contestação de uma estrutura da desigualdade. Encontram os negros nessa divindade, o

mais importante aliado na luta contra seus algozes. Daí a necessidade de traduzir um caráter

sinistro e cruel – um justiceiro – posto à frente das iniquidades.

Reginaldo Prandi (2005), ao falar de Exu, destaca a adaptação dos negros aos valores

católicos, estranhos à lógica africana, durante o século XIX. De como o sincretismo e as

noções de bem e mal tornaram similar Oxalá e Jesus Cristo, empurrando Exu para o diabo,

sob um código de ética que transformou os tabus iorubá, fon e banto em pecado e vestiu os

orixás com as virtudes cristãs, cobrindo e substituindo o falo de Exu pelo tridente. Prandi

analisa ainda de que forma o Exu orixá foi apropriado para umbanda e quimbanda,

disseminando a imagem de Exu-diabo no mercado de soluções mágicas.

No ―Capítulo I – Entre a cruz e o tridente‖, dedicado ao Tridente de NI, serão revistas

as estratégias midiáticas utilizadas por Alexandre Vogler em outros trabalhos de sua autoria e

em que medida a sua obra se relaciona com questões afro-brasileiras. Além de outras

possibilidades de sentido que circunscrevem o tridente enquanto símbolo – Jean Chevalier,

1996, Juan Eduardo Cirlot, 1984, Pierre Grimal, 2000, Hendrik Willem Van Loon, 1981.

Através de uma etnografia, analisar os olhares que se cruzam e motivam as ações entre os

indivíduos de Nova Iguaçu em relação ao Mirante do Cruzeiro – Gilberto Velho, 2007 e 2008,

Myriam Lins de Barros, 2003, Georg Simmel, 1903, e Roger Sansi, 2007. Outro ponto

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importante será a análise do fenômeno da pseudomorfose através do confronto das

interpretações do conteúdo da imagem do tridente em diferentes contextos – Yve-Alain Bois,

2006. Ao final, esperamos entender de que maneira o impacto desse fenômeno aciona redes

sociais distintas e modifica a relação da comunidade com o território urbano – Paulo Knauss,

1999 e Mariza Soares, 1999.

No ―Capítulo II – O gigante da encruzilhada‖, dedicado a Exu dos Ventos, como apoio

à compreensão das características de Exu que pretendo elencar, foi utilizado um mito de

gênese, na tradução de Juana Elbein dos Santos (2002, p. 133), pertencente à literatura e aos

versos de Ifá.4 Em todo o processo de apresentação da temática entre Cristo e Exu de Mário

Cravo Junior foram utilizados os escritos publicados do artista – Cravo Jr., 1998, 2001, 2002 e

2006 –, a entrevista concedida em 22/9/2009, além entender a relação da obra de Mário Cravo

com o universo afro-brasileiro e no modernismo – Roberto Conduru, 2007, Marta Heloísa

Leuba Salum, 2000, e Stella Teixeira de Barros e Ivo Mesquita, 1985.

Para perceber como o deslocamento da escultura da galeria ao espaço público

modifica a forma de contemplação da presença cênica de Exu dos Ventos – Rosalind E.

Krauss, 2007 e Benjamin H. D. Buchloh, 2000. Analisar essa inserção em novo lugar (na

Linha Amarela, no Rio de Janeiro) adquirindo forma e função social, na disputa do espaço

simbólico além de avaliar a dinâmica do olhar na narrativa do poder de centro – Paulo

Knauss, 1999 e 2006, Gilberto Velho, 2007 e 2008. Foram analisadas ainda as reportagens da

época, publicadas em meio impresso e arquivadas em sites na internet.

Para compreender a dinâmica do olhar que está em jogo no Exu dos Ventos –

especificamente na estrutura narrativa da Linha Amarela – é preciso considerar a interação do

observador com a obra e com sua orientação espacial. Paulo Knauss afirma, em ―Olhares

sobre a cidade: as formas da imaginária urbana‖,(KNAUSS, 2001, p. 10) que os aspectos

formais escultóricos podem ser abordados a partir de sua relação com a forma urbana,

organizando a construção dos olhares sobre a cidade, dando sentido à imagem escultórica que

se define como imagem urbana.

Knauss parte da prerrogativa de centralismo, em que o poder de centro (ARNHEIM,

1990) pode se desenvolver na escultura tanto em relação de posição na malha urbana como

em relação da posição observadora. Nesse sentido, Exu dos Ventos, na Linha Amarela, vai

4 Ifá (Orúnmìlà) é a divindade da sabedoria e do desenvolvimento intelectual. Kólá Abímbólá se refere a ele em ―Sacred Text

Yorùbá Religion‖; conta que Ifá viveu por longos anos e visitou muitas partes do mundo coletando histórias de problemas

vividos pela humanidade e soluções encontradas, de onde criou o sistema divinatório composto por 256 odus, também

conhecido como literatura de Ifá. Cada odu contém aproximadamente 800 histórias conhecidas como Itan ou ese Ifá. (KÓLÁ,

2006, p. 119)

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recusar o poder do centro conferido pela localização central não só em relação às avenidas da

Linha Amarela e Linha Vermelha, mas também em relação à planta do entorno onde está

instalado. Outra característica passa pela sua posição viária, percebida do ponto de vista do

veículo em velocidade, somando ao olhar mais um dinamismo sensível, potencializando suas

características cinéticas.

Em anexo está o mito da gênese de Exu; composto por cinco personagens: Olodumare,

Oxalá, Orunmilá, Yebìírú e Exu. Kóla Abimbola (2006) descreve esses personagens –

Olodumare, Oxalá, Orunmilá e Exu – como sendo os quatro pilares da criação. De alguma

forma, esses quatro participam dos 256 odus da literatura de Ifá. Olodumare seria a fonte de

força que compõe o todo. Orunmilá, a inteligência de estruturação. Oxalá o artesão, o ímpeto

criador, fazedor dos seres humanos. Exu, o princípio dinâmico, o elemento de ligação que faz

com que a potência possa se transformar em movimento; o movimento em saber; e o saber em

obra.

Embora Olodumare seja a mais alta divindade, ele não transgride as regras do mundo.

Muitas vezes, na literatura de Ifá, Olodumare ou Olofim aparece consultando Orunmilá ou

orientando os orixás nos assuntos do mundo, dentro da estrutura de que foi mentor. Exu,

entretanto, como princípio dinâmico, é aquele que vai a todos os lugares, e tem a necessidade

de não se prender a regras, de não ter interditos no seu caminhar. No mito que transcrevo

neste trabalho, em determinado momento, diz que Exu ficou mais forte e mais difícil que seus

criadores. Bruno Reinhardt em sua dissertação dá um parecer interessante sobre a mesma

história:

O mito parece figurar em Exu um poder levado às últimas conseqüências, à antissocialidade, e

mesmo à autodestruição. Por outro lado, essa fonte ―natural‖ de poder passa a ser canalizada

graças ao estabelecimento de uma aliança, que socializa e codifica a sua capacidade de

intervenção ao conformar aquilo que antes era mobilidade predatória em uma força de

mediação comunicativa. Assim, declara-se a paz da guerra que é Exu, mas uma paz fundada

em um contrato nem um pouco perpétuo, já que fadado à renovação cotidiana.

(REINHARDT, 2007)

Apesar de todas as controvérsias e sincretismos sobre Exu, o que é necessário ter em

mente para fazer a leitura deste Artes de Exu é esse caráter dinâmico, que não sossega, é

transgressor, subverte as alianças e as regras. Mostra o que estava escondido e esconde o que

não quer mostrar. Entre todas as controvérsias que cercam Exu, apenas uma é unânime: Exu

pode até não ser, mas ―faz o diabo‖.

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Capítulo I

ENTRE A CRUZ E O TRIDENTE

“Nenhum signo transmite sentido, muito menos representa algo por si mesmo, mas

torna-se significante apenas por meio de uma estrutura complexa de relações.”

(Kudielka, 2002)

1 Foto da reportagem de Helvio Lessa “Entre a cruz e o tridente” Jornal O Dia 15 de agosto de 2006

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I

Tridente: uma descrição densa

Numa manhã de domingo, em meados de agosto de 2006, a população da Baixada

Fluminense, no Rio de Janeiro, foi tomada de susto, quando percebeu, na encosta do morro da

Serra do Vulcão, imediatamente atrás do Mirante do Cruzeiro, próximo ao Centro de Nova

Iguaçu, um enorme tridente desenhado a cal branca em contraste com a cruz já existente. Esta,

situada no mirante, faz parte da paisagem urbana do Centro de Nova Iguaçu e de alguns

bairros vizinhos, todos na Baixada Fluminense. Moradores sentiram-se afrontados com o

símbolo, oriundo das oficinas de intervenção urbana promovidas pela Prefeitura. A obra,

intitulada ―Tridente (I love NI)‖, foi realizada pelo artista Alexandre Vogler.

O jornal Meia Hora,5 tablóide carioca, pertencente ao jornal O Dia, produziu uma

série de três reportagens associando o tridente ao diabo, provocando uma verdadeira celeuma

em torno da obra, acionando redes sociais distintas. O prefeito Lindbergh Farias, diante do

conjunto de acontecimentos e temendo perder grande parte de seu eleitorado, mandou

funcionários da Prefeitura até o local para tentar, em vão, apagar o tridente. Participou de

orações coletivas com representantes das igrejas católica e evangélica, distribuiu, inclusive,

uma nota para o jornal O Dia: ―Faremos uma cruz com plantas e ela será iluminada para todos

entenderem que sou do bem‖. (Galvão, 2009) No final das contas o tridente foi lavado da

encosta pelas intensas chuvas que abateram a cidade dias depois.

Em declaração ao mesmo jornal, Alexandre Vogler protesta contra a recriminação

imposta ao seu trabalho, que ele chama de censura, alegando que a arte deva provocar

reflexões. Afirmou, também, que apesar de ter feito o tridente de Netuno, depois de pronto,

passou a enxergar nele uma possível relação com as religiões afro-brasileiras. Citou outras

inscrições religiosas espalhadas pela cidade que não receberam o mesmo tratamento negativo

da Prefeitura.

Ao fim, o artista se apropriou do material midiático produzido pelo jornal como

registro de seu próprio trabalho. Deslocou esse material para a esfera da arte como obra,

expondo-o na galeria, emoldurado. Nesse processo, operou nos termos dos readymades

duchampianos. No momento seguinte, o autor do tridente publica o mesmo material na sessão

5 O jornal Meia Hora de Notícias é o irreverente diário popular do grupo O Dia que prima por suas manchetes espirituosas –

e, às vezes, apelativas. É o sexto jornal em circulação do país, conta com 2,8 milhões de acessos mensais ao site e uma rádio

FM de sucesso. Alegou Alexandre Freeland, editor-chefe, em entrevista a Lívia de Almeida, Revista Veja, em outubro de

2009.

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Ensaio de artista da revista Concinnitas, constando na capa e contracapa suas serigrafias em

lambe-lambe intituladas Fé em Deus / Fé em Diabo, potencializando a leitura do conteúdo do

material entre a crítica social e a ironia.

Tomo a obra Tridente de NI para pensar em como se desenvolvem as estratégias de

apropriações nos circuitos midiáticos ao longo da produção artística de Alexandre Vogler e

em que medida a sua obra se relaciona com questões ligadas a religião. O caminho percorrido

na pesquisa tinha o objetivo de compreender as várias produções de sentido que

circunscrevem o tridente (Jean Chevalier, 1996, Juan Eduardo Cirlot, 1984, Pierre Grimal,

2000, Hendrik Willem Van Loon, 1981) tensionado pelos olhares que se cruzam e que dão

sentido às ações entre os indivíduos de Nova Iguaçu em relação ao Mirante do Cruzeiro

(Gilberto Velho, 2007 e 2008, Myriam Lins de Barros, 2003, Georg Simmel, 1903, e Roger

Sansi, 2007). Este estudo faz a análise do fenômeno da pseudomorfose através do confronto

das interpretações do conteúdo da imagem do tridente em diferentes contextos (Yve-Alain

Bois, 2006). No sentido de entender de que maneira o impacto desse fenômeno aciona redes

sociais distintas e modifica a relação da comunidade com o território urbano (Paulo Knauss,

1999 e Mariza Soares, 1999).

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II

O Artista

Utilizando a cultura visual das cidades como matéria-prima e suporte, Alexandre

Vogler encontra nos meios de comunicação um contato mais direto com o público. O teor

polêmico é uma das táticas de alcance ao público externo aos circuitos da arte. Questões

ligadas ao consumo, à imagem da mulher e à política são processadas em intervenções

urbanas mesclando o lúdico, o sociológico e o documental.

Os aspectos descritos ganham teor de provocação ao lançar pelos ares um dirigível

com cinco metros de comprimento, contendo a imagem de um enorme olho – o Olho

Grande6. Satirizando o projeto da Secretaria de Segurança Pública, ―Um Olho no Céu‖, que

originalmente contou com dirigível usado na guerra da Bósnia.7 O vigia voador manteve um

itinerário de 16 horas diárias, captando imagens de alta qualidade, com câmeras especiais de

grande resolução, para as 380 ―áreas de risco‖ demarcadas pela Secretaria de Segurança

6 Cf. VOGLER, Alexandre, 2003. (Obras de arte visuais/Vídeo)

Olho Grande é um dirigível criado para monitoramento urbano.

Na verdade trata-se de um balão plástico de 5 metros de comprimento com um grande olho prateado gravado em sua

superfície. Essa nova arma contra o crime foi lançada pela primeira vez no dia 7 de setembro de 2002, mesmo dia do

lançamento do dirigível ―Olho no céu‖ (Zepelim controlado pela Secretaria de Segurança Pública, sob o governo de Benedita

da Silva, para monitorar áreas de risco).

Desde então venho lançando meu dirigível no ar, a perder de vista, confrontando sua função com as do dirigível da Polícia

Militar do Rio de Janeiro. (Vogler, 2003)

7 Folha Online, de 2/9/2002. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u58241.shtml.

2 Dirigível Olho Grande, 2002

Alexandre Vogler Foto do site do artista.

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Pública. Ao final, Alexandre Vogler edita as imagens apropriando-se do RJ TV8 com toda a

austeridade do noticiário.

Levando a idéia do ―olho vigilante‖ adiante, editou Guarda Municipal Olho Grande9,

em que novamente apropria-se das imagens do RJ TV, simulando a notícia da criação de um

―novo efetivo‖ da guarda municipal. Narra o objetivo de controlar a desordem causada pelos

camelôs no Centro do Rio. Este efetivo – composto de bonecos do tipo ―João-bobo‖ em preto,

com um metro de altura aproximado, contendo um ―olho grande‖ estampado – foi espalhado

em grande número pelos principais pontos de confronto entre a Guarda Municipal e os

camelôs nas ruas do Centro. Além da ação do novo efetivo entre os passantes, ambulantes e

comerciantes, o vídeo mostra alguns depoimentos de vendedores ambulantes e outras imagens

das frequentes vistorias feitas pela Guarda munida de seus acessórios de contenção.

Em outro trabalho, de 2009, não menos polêmico, o artista apropria-se dos muros e

dos outdoors, potencializando uma leitura publicitária ao seu trabalho, imprime a imagem das

mãos de uma mulher casada, de unhas pintadas em vermelho, cobrindo parcialmente o órgão

sexual feminino, sustentando um vidro de esmalte sem rótulo, contendo ao lado, a sugestiva

legenda ―Base para unhas fracas‖. (VELASCO, 2008) A proposta era estimular a discussão

sobre as artimanhas publicitárias acerca da fetichização da mulher e denunciar o olhar sedado

do espectador.

Entretanto, a fase que marca o início da produção artística de Vogler culmina com o

que classificou de ―fenômeno‖ dos coletivos de artes. A partir do uso comum do Atelier 491,

em Santa Teresa, surgiu a coletividade de quem divide o mesmo espaço. Nos trajetos até o

Fundão, o artista ficava atento à disseminação de cartazes na rua e, assim, surgiu a idéia de

Atrocidades Maravilhosas.10

As ações do grupo que, de certa forma, buscava alternativas de

inserção acabam acolhidas pelas instituições ao participarem de duas grandes mostras, Rumos

2001-2002 e Panorama da Arte Brasileira 2001. Nessa mesma época surgiram vários coletivos

de artistas em todo o Brasil.

8 Jornal diário da Rede Globo de Televisão.

9 VOGLER, Alexandre. Guarda Municipal Olho Grande, 2004. (Obra de artes visuais/Vídeo)

10 Vogler conta ter imaginado uma potência maior no trabalho se os cartazes viessem de um movimento maior, de diversos

artistas, trabalhando na mesma mídia em vários pontos sobre a cidade. Convidou 20 artistas e cada um produziu sua imagem

e mapeou onde e de que forma colá-los. Houve autonomia na autoria dos cartazes, sendo o processo de produção, coletivo.

Do Atrocidades vieram os filmes Atrocidades Maravilhosas (RJ) e Atrocidades Grandes (SP).

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Houve ainda o RRadial11

e o espaço coletivo Zona Franca,12

que funcionava na

Fundição Progresso, ambos com efetiva participação de Alexandre Vogler. Nesse último, o

espaço é definido no filme A (Re)Volta do Zona Franca como território de liberdade e espaço

coletivo experimental onde todos tivessem a oportunidade de experimentar coisas, em que a

prioridade da produção eram as artes visuais e era necessário criar um espaço que fizesse fluir

essa produção.

O caráter flutuante da forma e do conteúdo da dimensão pública das obras de Vogler

deságua no site da internet, como registro permanente das imagens do trabalho. Apropria-se

da linguagem visual da rede digital, utilizando formato similar ao site líder no setor de vídeos

online – o YouTube. O artista declarou ainda ―Minhas referências estão na comunicação de

massa, na televisão, na forma como a imagem circula, na redundância da imagem da cidade, o

lambe-lambe, o outdoor...‖.13

11 O RRadial produziu Fumacê do Descarrego (2002), que já conta com várias edições no Rio. Trata-se de caminhão aberto

em que integrantes do grupo e artistas voluntários queimam, em cima da caçamba do caminhão em movimento, 100 kg de

defumador (mesmo usado nas Umbandas) em uma grande chaminé de metal construída sob a forma de um tablete de

defumador. Desde 2003 defuma a cidade nos sábados de carnaval.

12 Zona Franca, Fundição Progresso, Lapa, Rio de Janeiro, 2001. O espaço funcionava às segundas-feiras.

13 VOGLER, informação contida no site do artista.

3 Fé em Deus / Fé em Diabo Cartaz lambe-lambe (serigrafia). Alexandre Vogler Produzido em Atrocidades Maravilhosas. Panorama das Artes, São Paulo, 2001.

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O artista transforma o território urbano da cidade em suporte onde transitam suas

intervenções utilizando os mesmos mecanismos de publicidade em larga escala, procurando

um diálogo com um público mais amplo, para além das esferas e circuitos da arte. O produto

final da polêmica, seja através de intervenções do público nas suas obras ou das notícias de

jornal impresso ou televisionado, vai funcionar como dinamizador do trabalho, como matéria-

prima disponível à conveniência do artista. Essa mesma lógica foi observada no Tridente de

NI, embora sua idéia inicial tenha sido outra.

Ao expor o Tridente de NI em seu site, o artista faz um recorte das reportagens em

quatro links: Cruz vs Tridente; Oração vs Tridente; Religiosos vs Tridente e Tridente na Capa.

Interessante observar como a escolha das imagens, assim como os títulos dos links

relacionados, potencializam o conflito entre a cruz, o tridente e os religiosos. A imagem

Religiosos vs Tridente faz um recorte minucioso do prefeito ao fundo do ato fervoroso das

orações. Na última imagem da seqüência, não por acaso, consta o Tridente triunfante na capa

do jornal.

Entre as investidas midiáticas e coletivas, entre o circunstancial e site specific, outra

possibilidade de abordagem seria a temática religiosa afro-brasileira presente em alguns

trabalhos. O artista lembra Macumba non site, de 2001, na mesma época do Zona Franca. A

idéia para Macumba non site era compor um trabalho elegendo esse caráter estético dos

despachos como um processo de escultura, como um processo de instalação. A intenção era

fazer uma intervenção urbana e, ao mesmo tempo, não fazer uma coisa totalmente estética.

Então pensou em fazer uma solicitação à entidade e colocar a obra sob outros aspectos. Os

materiais utilizados não foram determinados pelo artista, sugerindo que a subjetividade da

obra inicia-se na própria espiritualidade, em que a Pomba-gira Maria Padilha foi parceira no

processo artístico. As imagens da instalação compõem, ainda, o filme A (Re)Volta do Zona

Franca – parte 1 no site do artista.

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4

Em conversa sobre alguns dos seus referenciais, Vogler descreve a produção do

trabalho.

É de pemba, rosa – pétalas – o pessoal faz muito tapete de rosas vermelhas – foram 400 rosas

que comprei, tirei o caule, fiz o desenho com a pemba e coloquei uma garrafa de anis. Esses

materiais não foram de determinação do artista. Eu falei com a entidade mesmo. Uma pomba-

gira, Maria Padilha, que queria fazer um trabalho de escala de intervenção pública oferecido a

ela, e que me disse os materiais que deveria usar para ofertá-la e tal. E ela me falou do tapete.

Naturalmente a localização, um pouco essa coisa do círculo foi gerência minha ali na hora, de

intuição pra ver o que tinha mais a ver com escultura e land art. Então acho que esse trabalho

dá pra perceber o atravessamento com o trabalho do Smithson.14

Logo depois, continuando um pouco nessa tendência, ao participar da exposição

Rumos, em Belo Horizonte, monta outra instalação, porém na galeria, chamada

Macumbanonsite – Trabalho pra Maria Padilha, Rainha da Encruzilhada. O trabalho

composto por seis bonequinhas pomba-giras (de papelão) interligadas por uma linha num

aparelho de movimento intermitente, com as pernas de lã a balançar ao som de funk e aroma

de anis espalhado pelo chão. Essa instalação esteve em mostras internacionais. Embora com

boa aceitação, no circuito internacional ganhou ares de exotismo.

14 VOGLER, Alexandre. Entrevistado por Mônica Linhares em 29/1/2010. Rio de Janeiro (RJ).

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Quando questionado sobre a insistência na temática envolvendo Exu ou a religião, o

artista conta seu encanto com a umbanda e com o candomblé, afirmando que se apropria dos

procedimentos de forma quase irresponsável. Apesar de seus pais serem da umbanda e de ter

frequentado essa religião desde pequeno, o seu interesse é artístico e não se vê com a

responsabilidade de levantar bandeiras sobre a religião nem de atender expectativas das

pessoas em relação a isso.

Conta, ainda, ter sido convidado a participar de exposição intitulada Despacho (2009),

no Ateliê da Imagem, no Rio de Janeiro. A curadora pediu que os artistas trabalhassem sobre

panos de morim (pano virgem usado nos trabalhos espirituais) e, justamente, para que não

fizessem uma instalação que lembrasse um despacho, para assim criarem um enunciado em

suas produções. Vogler optou por uma releitura da bandeira de uma cidade no interior da

Bahia, chamada Bom Despacho.

Alguns destes trabalhos de temática afro não estão no site do artista. Há uma seleção

que privilegia um cunho muito mais político que o ativista religioso propriamente dito. A

própria inserção do Tridente de NI, embora seja o trabalho de abertura do site, mantém o tom

de quem problematiza a realidade social e cultural. E o trabalho Abre Caminho da exposição

Gira, de 2002, é o único que mantém uma relação maior, tanto no enunciado quanto no

conteúdo, com as culturas afro-brasileiras.

5 Macumbanonsite - Trabalho pra Maria Padilha, Rainha da Encruzilhada. Alexandre Vogler Instalação apresentada na galeria Itaú Cultural, Belo Horizonte (2002) e Grande Orlandia (2003). Impressão, fios, motor, anis, batom e som amplificado.

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III

A Obra

Alexandre Vogler nos revelou que ao ser convidado pela Funarte e pela Secretaria de

Cultura da Prefeitura de Nova Iguaçu para o projeto anual de oficinas e arte pública pensou

em escrever ―I love Nova Iguaçu‖ na forma parodiada de New York ―I ♥ NY‖; substituindo,

porém, o y pelo i – ―I ♥ NI‖. O objetivo era propor uma reflexão sobre cooptação e consumo

– os próprios moradores denominam a cidade de New Iguaçu. A instalação teria

aproximadamente 150 metros de gambiarras e lâmpadas na encosta do Morro do Cruzeiro. O

projeto foi aceito, mas a Prefeitura não pediu um orçamento, como é de praxe e, além disso,

contratou uma produtora do Rio de Janeiro, que não conhecia a cidade. Mais adiante, faltando

apenas três dias para a montagem do evento informaram que não haveria verba suficiente para

a montagem e que seria necessário mudar o projeto.

O ―plano B‖ seria utilizar o desenho do ―Olho grande‖ feito com cal, na encosta do

morro. Foi calculada a quantidade de cal para dar visibilidade ao desenho na paisagem urbana

da Baixada. Ele lembra ainda que, no dia marcado para o evento, a Prefeitura não tinha feito

qualquer divulgação: havia vários pacotes fechados com os folhetos publicitários das oficinas.

Como resultado, além da oficina ter sido um fracasso, a população não tomou conhecimento

do evento. Apareceram apenas três pessoas, que acabaram se envolvendo na produção da

obra. Quando chegou a cal, mandaram muito menos quantidade do que foi solicitado. O

artista sentiu certo descaso da Prefeitura e da Secretaria de Cultura com o que estava

acontecendo, afirmando que, no dia do evento, o secretário de Cultura estava ausente da

cidade por motivos pessoais.

Alexandre Vogler conta ainda que, ao chegar à ladeira do mirante e olhar a subida da

encosta, juntamente com os três participantes da oficina, percebeu que não tinham como subir

a ladeira a pé com aquela quantidade de cal. Solicitaram um burro à produção do evento,

porém mandaram apenas uma égua prenhe, como lembra o próprio artista em entrevista.

O cara [dono do animal] quando olhou a quantidade de cal e a pirambeira, se mandou e nem

falou conosco. Já estava quase invalidando o projeto quando encontramos um cara esquisito

que disse que subiria tudo por dez reais. Acabei pagando oitenta para um grupo de pessoas da

comunidade que se dispuseram. Porém, ainda faltava pensar o desenho e acabei seguindo o

caminho da articulação formal. Eu tinha a encosta e queria articular com a questão da tela e o

pincel, sendo a encosta o meu suporte e iria pintar com o cal. Queria dialogar com a cruz –

que é enorme. Nas fotos você vê pequeno, mas de perto é uma enormidade. Então o desenho

precisava ter um tamanho equivalente.

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No segundo dia, ao chegarem ao local, viram que faltava subir ainda algumas sacas.

Ao procurar o pessoal que havia subido no dia anterior, perceberam que faziam um churrasco,

provavelmente por conta dos oitenta reais, mas mesmo assim ajudaram a levar o que faltava.

Depois de toda essa dificuldade, no dia seguinte conseguiram acabar o desenho no cair da

noite. Alexandre Vogler e a cidade só contemplaram trabalho pronto com o nascer do dia. E

descreve que se não tivesse sido dessa maneira, talvez nem pudesse ter terminado o desenho.

Quando retornou a Nova Iguaçu para fotografar a obra foi que recebeu os telefonemas

dizendo que alguma coisa não havia sido bem entendida pela população, e que jornalistas

estariam no local fotografando.

Ao ser questionado sobre a concepção do trabalho o artista nos relata:

Pensei em articular com a verticalidade e horizontalidade da cruz. Pensei em fazer uma

grande sombra se projetando em perspectiva. Pensei em colocá-la de cabeça para baixo. Tive

a idéia de colocar um tridente com querosene e colocar fogo – para ter a visualidade durante a

noite – já que a idéia inicial era trabalhar com luzes. O pessoal da Secretaria disse que achava

melhor não utilizar o fogo, pois iria acarretar problemas com ecologistas. O que comprova,

que ao contrário do que a Secretaria alegou nos jornais, eles estavam por dentro de todo o

projeto dialogando essas questões. 15

E conclui lembrando o mau tratamento da produção do evento ―me deram um limão e

eu fiz uma limonada‖. No final das contas não achou que iria criar toda essa celeuma e não se

15 VOGLER, Alexandre. Entrevistado por Mônica Linhares em 15/6/2008. Rio de Janeiro (RJ).

6 Foto de Alexandre Vogler estudando o “plano C”. Nova Iguaçu-RJ Cortesia do artista.

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preparou para se cercar de argumentos. Tanto que a idéia do tridente de netuno veio de um

amigo, momentos antes de ser contatado pelo jornal O Dia. Lembra que estava mais

interessado nessa questão de dialogar com dois polos, opostos, como em Fé em Deus / Fé em

Diabo. E quando mencionou o teor irônico do trabalho nos revela,

Tem humor... um pouco escrachado também. Tem um viés político nessas coisas. É como se

apropriar dessas coisas políticas, que não são sérias [...] É uma forma de você encarar a

situação diante da história, porque a poucos interessa um ativismo carrancudo. Muito mais

escrachado porque é uma forma de desmerecer o trabalho deles... porque são uns palhaços.

Ainda assim, o horror das pessoas, o preconceito das pessoas... A foto da evangélica com

raiva porque o diabo invadiu a terra dela... Certamente a gente tá lendo aquilo com humor,

mas lendo aquela matéria... não tem graça nenhuma. Acha graça porque é tão bizarro, né?

Essa posição dos evangélicos... radical e fundamentalista, a gente acha graça. Mas se em

algum momento eles adquirirem um pouco mais de poder a gente não vai achar tanta graça.

No dia que o Crivela for governador não vai ser tão engraçado.

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IV

A Cidade

Nova Iguaçu é o segundo maior município da Baixada Fluminense no Rio de Janeiro,

tanto em termos demográficos quanto em extensão, fica atrás apenas de Duque de Caxias. O

Centro de Nova Iguaçu compõe uma referência comercial importante para a região, tem

terminais rodoviários margeando a via férrea, além da própria estação ferroviária de Nova

Iguaçu, constituindo, desta maneira, local de trânsito intensificado de pessoas, de trocas e

convivência de diferentes visões de mundo. O trem acaba sendo a forma de transporte mais

barata e eficiente entre o município do Rio de Janeiro e as demais localidades da Baixada.

Vamos encontrar na Baixada um grande número de igrejas universais, pentecostais,

evangélicas, messiânicas e católicas, entre centros espíritas kardecistas e casas de umbanda,

além de ser endereço da maioria das casas tradicionais de candomblé. A esse respeito, o

escritor Juarez Barroso afirma que

Se a Bahia é a sementeira dos cultos afro-brasileiros, a Baixada Fluminense é, hoje em dia, o

seu mais fértil terreno de cultivo, que a migração religiosa iniciada na segunda metade do

século passado, acompanhando a migração de trabalhadores baianos para a região do Rio de

Janeiro, não cessou, embora se possa dividi-la em duas fases de maior intensidade. Aquela,

primeira, canalizada principalmente para as áreas mais pobres do centro da cidade (‗conheci

as casas das ruas de São Diogo, Barão de São Félix, Hospício, Núncio e da América, onde se

realizam os candomblés e vivem os pais-de-santo‘), escrevia o jornalista João do Rio em

1905, em seu escandalizado francesismo e outra canalizada para a Baixada, na medida em que

essa área periférica — municípios de Caxias, Nilópolis, São João de Meriti e Nova Iguaçu —

integram-se à cidade para formar o Grande Rio, nos últimos trinta anos.16

A partir desse quadro podemos concluir que, apesar de a Baixada Fluminense

apresentar uma sociedade heterogênea, complexa e diversificada em termos étnicos,

econômicos e culturais, destaca-se também nesse território a grande influência das religiões

afro-descendentes.

O palco de nosso objeto de estudo fica localizado no esquecido bairro de São João,

numa subida íngreme do Centro de Nova Iguaçu até o Cruzeiro. As ruas que vêm do Centro e

dão acesso à ladeira mantêm um contraste de ordem econômica com a rua de maior

proximidade do Cruzeiro, que tem um asfaltamento irregular, sem pinturas laterais, como

seria de praxe, e calçamento somente em parte da subida, ladeada por casas de tijolos

aparentes e algumas construções abandonadas.

16 Referência a texto de Juarez Barroso, sobre os primeiros terreiros de candomblé no Rio de Janeiro.

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O cruzeiro, no mirante, tem uma base, uma espécie de patamar onde está apoiado, de

uns dois metros de altura aproximadamente, com acesso pela terra. Não há escadas. A cruz

em si chega a ter uns três metros de altura e dois metros de largura, também aproximados. O

asfalto termina numa curva depois do cruzeiro. O local é bem alto e dá para ter uma visão

privilegiada de parte da Baixada: o Centro de Nova Iguaçu, atravessado pela linha do trem; e

a fachada da Catedral de Santo Antônio de Jacutinga (1862). O cemitério fica logo atrás.

Alexandre Vogler conta que ao propor I NI pediu à produção a indicação de uma

encosta e lhe ofereceram o Morro do Cruzeiro, apontado do local das oficinas: ―Está ali o

morro que você pediu‖. O que conferiu esse choque simbólico foi o Cruzeiro, o artista conta

ignorar que era usado como local de culto. Embora comente que não teria feito o tridente se

não houvesse a cruz. A idéia do tridente surgiu exatamente por conta da cruz.

Em nova conversa17

ao ser questionado sobre o tridente como símbolo de Exu, Vogler

diz na hora ter pensado mais na oposição entre a cruz e o tridente do que propriamente em

Exu. Tomou como referência seu trabalho anterior Fé em Deus / Fé em diabo. Cartazes

lambe-lambe, de um projeto em São Paulo, espalhados lado a lado, ficavam vários Fé em

Deus, intercalados com apenas um cartaz Fé em Diabo. A ideia era aproveitar, na passagem

do observador, a alternância subliminar entre Deus e Diabo. Na época, estava lendo sobre

mensagem subliminar e trabalhou essa mesma alternância em uma animação – resultante da

filmagem de uma instalação – em que coloca um frame com a imagem do Diabo em meio a

uma gravação de velas vermelhas queimando em fundo verde, até a cera reunida cobrir o chão

e virar preto.

17 VOGLER, Alexandre. Entrevista concedida a Mônica Linhares. Ateliê do artista em Santa Teresa, Rio de Janeiro (RJ),

29/1/2010.

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V

Etnografia

Dadas as peculiaridades dessa obra, foi realizada uma pesquisa de campo de cunho

etnográfico com objetivo de entender as relações de ânimo entre a população local, o mirante

e, posteriormente, com o Tridente. Que tipo de implicações simbólicas foram postas em jogo

com o evento. A princípio, planejar um trabalho etnográfico sobre um evento que ocorreu já

há dois anos me trouxe algumas questões, pois teria que lidar com a memória das pessoas do

local sobre um fato passado. Apoiei-me no artigo de Myriam Moraes Lins de Barros

intitulado ―A cidade dos velhos‖, onde trabalha a construção social da memória da cidade.

Resolvido esse primeiro impasse metodológico, tinha que pensar num mapa a ser percorrido.

Os diferentes grupos socioculturais que iria abordar eram outra preocupação, pois o

medo do contato dos neopentecostais – fruto de ataques sofridos há alguns anos – foi outra

questão a ser resolvida antes de ir a campo. A impossibilidade de dialogar era algo a ser

pensado. Então priorizei abordar os moradores do alto, passantes do cruzeiro, alguns

moradores das duas principais ruas de acesso à ladeira, comerciantes de utensílios religiosos

afro-brasileiros, comunidades católicas, comunidades de candomblé de conhecidos da

baixada. A princípio, ficaria com as reportagens veiculadas em jornais como referência do

grupo evangélico e algumas observações locais feitas durante minhas idas e vindas (as três

reportagens estão anexadas ao corpo do trabalho).

Comunidade São João

Segui para o Mirante. Na subida, bastante íngreme por sinal, conforme ia me

aproximando do alto, o perfil econômico das casas ia mudando. Todas eram muradas e tinham

portões, apesar de algumas serem de tijolos aparentes. Mais acima tinha uma casa com uma

placa anunciando vender sacolé. No quintal, uma senhora sentada, descansava. A senhora me

pareceu muito simpática, perguntei se lembrava do tridente. Dizia que tinha sido uma coisa

ruim. Que ninguém se lembrava do lugar. A prefeitura nunca fazia nada e quando teve alguma

iniciativa, aprontou aquilo. Perguntei se não achava que o tridente havia dado visibilidade ao

local frente aos órgãos públicos, na organização da comunidade. Disse que não. Morava ali há

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50 anos. Conhecia todo mundo. Eram todos calmos e gente boa. Que era um morro muito

calmo.

Podia caminhar tranqüilamente. Mataram um sujeito na semana passada, mas não

eram gente de lá. E que há dois anos nem era asfaltado. Caminhão de lixo ia só até o asfalto.

A pavimentação que eu via não tinha sido fruto da prefeitura, mas da união da comunidade.

Perguntei se havia alguma organização de moradores. Disse que não. As pessoas apenas

combinavam de fazer as coisas. Perguntei se ela também achava que o tridente era do diabo.

Respondeu que quem tinha dito isso eram os crentes. Também respondeu negativamente a

indagação quanto ao mirante ser um lugar simbólico para a cidade ou ser um local de culto.

Disse que há muito tempo atrás poderia ser, porém agora estava esquecido. Observava um

crente ou outro, mas não é assim para tanto.

Sobre a relação com os cultos afro-brasileiros expressou sua ignorância no assunto,

que apesar de não ter religião, respeitava todas. Relatou o caso de um despacho colocado na

esquina em frente ao seu portão, que tratou com respeito, alegando que cada um tem sua fé.

Identificou-se como Aparecida, as pessoas a chamavam de dona Cida.

A subida se intensificava a partir da casa de Dona Cida tornando-se ainda mais

íngreme. Havia uma casa imediatamente ao lado do cruzeiro com um rapaz consertando um

carro. Um casal de namorados passava de moto. Várias crianças sem camisa nem chinelo

faziam de um papelão um escorrega, deslizando num gramadinho que descia do patamar do

cruzeiro. Algumas delas estavam soltando pipa. Nove, no total, entre o que pareceu terem de

oito a doze anos.

A vista alcançava grande parte da cidade. As duas igrejas se destacavam, o cemitério

recortava uns dois lotes adiante da catedral de Santo Antônio de Jacutinga. A linha do trem

atuava como divisora também na paisagem do bairro, a via Dutra ao longe. A vista encontrava

seu limite com outro morro mais a frente, de bastante vegetação. A impressão que tive foi de

um vale mais aberto com certo ar bucólico, sem arranha-céus. Muito verde ao redor com

aquela massa urbana cinza no meio. Apesar da vegetação ao redor do mirante ser rasteira,

com algumas poucas árvores e arbustos esparsos. O conjunto formava uma vista bem

agradável.

Conversei com um senhor que se lembrava bem do tridente. Disse que foi muito bom,

pois o evento trouxe a consciência para a comunidade de que eles precisavam de união.

Alguns rapazes da igreja estavam organizando as coisas agora. Pouca gente sabia, mas ali era

o bairro de São João. Em sua opinião o evento tinha sim, trazido visibilidade ao local, que

estava esquecido. Lembrou que tinha um cruzeiro, da necessidade de reflorestamento da

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encosta etc. Porém, na época, não era morador, mas sua mãe da casa 130 residia ali havia

mais de 30 anos.

Conversei também com outro senhor idoso, disse que sofria do ―mal de Parkinson‖,

seu Antônio. Tinha uma casa com um muro muito bonito com uma textura trabalhada pintada

de verde claro. Lembrava bem do tridente. Disse que a obra não vingou. Em dois dias foi feita

e em dois dias tiraram tudo. Mencionou a bandidagem. O medo que os moradores tinham que

aumentasse por ali. Mencionou a vinda de cem homens da Prefeitura para o reflorestamento.

Tinham plantado muitas árvores. Apontou mostrando. Realmente havia algumas poucas

árvores que eu poderia descrever como agrupamentos esparsos. Mas agora, dizia ele, queria

ver, pois estava chegando à época das queimadas, e não era só plantar. O mato seco, com

muito calor, queima. De religião ele não sabia não, mas tinha o jornal Meia Hora, evangélico;

disse que eles teriam tudo lá se me dispusesse a procurar. Encerrou dizendo ainda que a obra

de arte não vingou porque nada havia mudado. Disse que estava aposentado e montava um

barco na garagem.

Igreja de Santo Antonio de Jacutinga

A igreja em si estava vazia. Algumas poucas pessoas, a maioria com roupas muito

humildes dormiam sentadas. Isoladas. Uma em cada banco. Uma moça, que parecia uma

pedinte rezava logo a minha frente. Perfil bem diferente da outra igreja que era obviamente

mais moderna, de outro estrato social. Fui até a secretaria e conversei com as duas moças,

apresentação igualmente diferente da moça da outra igreja, estavam na faixa dos 20 anos,

vestiam camisetas. Foram muito simpáticas, porém lembravam-se vagamente do tridente. Mas

disseram que a igreja não se envolveu com o fato. Eles não haviam sido afetados em nada.

Orientaram-me a conversar com o padre, deram o nome e telefone da igreja. Agradeci e saí.

Na saída deparei-me com um homem com cabelos e barbas muito compridos e mal cuidados,

roupas rasgadas, que carregava uns sacos. Perguntei sobre o evento, disse que lembrava

vagamente, pois estava fora na época. Mas outras pessoas comentaram bastante. Disse que

havia chegado do interior na década de 80 e o cruzeiro já existia. Que achava que o tridente

não era coisa de Deus. Foi solícito. Agradeci e segui meu caminho.

Comunidades de Candomblé da Baixada

Meu informante de candomblé da baixada é o organizador do Treme-terra e Cia Omo

Aro, que é um projeto de educação ambiental para terreiros. Disse que o pessoal de

candomblé da Baixada tinha gostado muito, de uma forma geral, pois os crentes sempre

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atacam através de inscrições do tipo ―só Jesus expulsa Exu das pessoas‖. Pensava-se uma

forma responder a isso. Que era um símbolo sim de Exu, e ainda, era óbvio que os crentes

sabiam disso e atacavam dizendo que era o diabo, mas sabiam muito bem que era Exu.

Perguntei que tipo de medidas tomaram em defesa da obra, se houve algum

movimento nesse sentido. Disse que não. Pois apesar do tridente ser um símbolo de Exu,

simbolizava também outras coisas. Não era uma coisa clara como um Ogó,18

por exemplo. Se

fosse, estariam todos lá. Porém, num tridente cabem várias interpretações. Os crentes

chamavam de diabo e

nós não iríamos defender ―o diabo‖ que não era o nosso. Agora, o que é muito engraçado é a

Prefeitura ter uma cidade com o maior número de terreiros, promover uma coisa desse tipo e

não se articular com essas comunidades. Poderiam ter nos contatado, teríamos ido lá, feito um

evento, colocado o Treme-terra, que é uma orquestra de atabaques, provavelmente levaríamos

Mãe Beata e faríamos um evento envolvendo os fundamentos necessários para uma obra

dessa natureza, como deveria ter sido. A Secretaria de Cultura banca uma coisa assim

ignorando grande parte da cultura do lugar, sem o menor cuidado com ninguém. Outra coisa

são os crentes se utilizando mais uma vez da máquina pública para manipular a vizinhança de

acordo com suas vontades. Na Baixada, não conseguiríamos apoio para promover os eventos

que promovemos aqui no Centro do Rio. É isso que está errado. Tem que ter lugar para todos.

Quer dizer, o prefeito e a secretaria que estavam bancando o evento, quando viram o jornal

dos crentes, ficaram com medo de perder eleitorado e tiraram o corpo fora. Tinham que ter

sustentado sua posição.19

Sobre a etnografia

Apesar de certo tom de pessimismo presente no discurso de alguns moradores e

comerciantes, de alguma forma a obra de arte Tridente (I love NI) despertou um campo de

possibilidades nas interpretações de identidades e pertencimento do bairro. Se a comunidade

não se identificou com o tridente, a relação desta com o mirante e com o cruzeiro passou por

uma reconstrução. Isso se torna claro com o fato de a ladeira estar asfaltada, não por iniciativa

externa, da Prefeitura, mas pela união dos próprios habitantes. A tomada da consciência de

compor uma associação de moradores que os representasse e defendesse junto à Prefeitura se

fortaleceu depois do evento.

A relação dos moradores e dos comerciantes com o Tridente não pode ser definida em

termos de experiência estética, nem de mercantilização, nem de imagem diabólica. São tipos

de relações pessoais, formadas a partir de experiências e opiniões particulares. ―Ninguém, de

fato, pode controlar as formas nas quais a gente se apropria dos monumentos nas suas

18 Ogó: cetro, ferramenta ritual do orixá Exú. É o falo representado. Copia o órgão sexual masculino ou, então, visualmente

faz variações sobre um bastão de madeira antropomorfo, em que se destaca a cabeça de cabeleira alongada lembrança do

caracol akotó. Símbolo da mobilidade e da dinâmica do orixá Exu. (Lody, 2003).

19 Cia Omo Aro, membros entrevistados por Mônica Linhares, em 29/6/2008.

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trajetórias quotidianas, às vezes em clara contradição com os seus objetivos iniciais. E com o

tempo, essa abertura é cada vez maior.‖ (Sansi, 2007).

Ficou bastante clara a forte disputa e apropriação do território público como

instrumento de representação do imaginário coletivo por diferentes setores sociais. Todas

essas apropriações são formas particulares de construir a experiência cotidiana. Não são

simplesmente formas de resistência a uma visão hegemônica, mas uma tentativa de

democratização na interseção e coexistência de diferentes visões de mundo no processo de

negociação da realidade.

Ao levantar um estudo sobre os monumentos da cidade do Rio de Janeiro, Paulo

Knauss (1999) discute os sentidos da cidade a partir do seu acervo de imagens de caráter

histórico como monumentos, fontes, estátuas, chafarizes etc. Conclui que não há uma

unanimidade que defina o campo dos monumentos, podendo abranger todos os objetos que se

inscrevem no espaço da cidade, a partir do reconhecimento de seu valor artístico. O conceito

de monumento se torna elástico ao caráter efêmero do Tridente de NI, pela impermanência

física, além do enunciado de arte. A atribuição de sentidos dada tanto ao Tridente quanto ao

Mirante não passa somente pelo sentido de monumentalidade presente na obra, mas na

mudança de tratamento que recebe decorrente dessa operação artística, potencializando uma

reconfiguração do imaginário, das identidades e experiências cotidianas.

Quais são as questões presentes na relação de um artista que vem de fora de uma

esfera urbana complexa, com uma rede de relações igualmente externas e propõe uma

reinscrição das representações dadas nesse local? O olhar do artista sobre o outro, externo,

seria o que Hal Foster (2005), em seu ensaio ―O artista como etnógrafo‖ trabalha, como troca

entre sujeitos em termos econômicos e culturais. Esse olhar seria sempre em relação ao

―outro‖ cultural, oprimido, pós-colonial, subalterno ou subcultural, colocado como um ente

passivo. A imagem do artista comprometido em nome do outro cultural ou étnico se realiza no

discurso de Vogler ao propor ―I ♥ NI‖ com intuito de lançar luzes sobre a cooptação

ideológica realizada através da mídia e do consumo.

Num terceiro momento, Vogler adapta seu projeto às condições impostas, trazendo à

tona um símbolo de caráter ambíguo, que além de dialogar com os já existentes e

incorporados no cotidiano citadino, potencializa-os a alcançar novos status nas redes de

relações envolvidas. Roberto Conduru observa essa obra através das seguintes questões:

Quer agradar ao público? É para seu próprio proveito o trabalho? Aumentando o tom e o

risco, sem abandonar a ironia crítica, ele parece propor Exu como patrono das mídias táticas.

Explora a ambigüidade do signo, que remete ao cetro de Netuno, mas também ao tridente dos

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Exus afro-brasileiros, para desafiar a intolerância religiosa e o populismo político.

(Conduru, 2007)

Vale lembrar que há certas inscrições religiosas que utilizam os muros da cidade,

encostas e pedras, funcionando como meio de comunicação e de intervenção em larga escala,

atingindo a todos, com seu teor político e ideológico. Ao transitar pela metrópole do Rio de

Janeiro vamos perceber que esse é um espaço de tensão, e, ao mesmo tempo, de troca, já que

acaba sendo um espaço democrático de comunicação com a sociedade. Em algumas situações,

esses escritos recebem até patrocínio das esferas públicas.

No entanto em que difere essa inscrição do tridente das demais inscrições espalhadas

pela cidade? Há, nesse caso em particular, imposição de limites que atravessam um campo de

valores morais. Segundo Gilberto Velho (2000, p. 2), ―O desenvolvimento dos valores

individualistas está associado à possibilidade do indivíduo poder transitar entre diferentes

grupos, não sendo englobados, apenas por um deles‖. Essa tensão, esse embate simbólico

causado pelo diálogo entre a cruz e o tridente nos abre um campo de possibilidades de

interpretações e de identidades.

Outro fato interessante é que durante a etnografia, informantes de Nova Iguaçu e o

próprio artista, acreditavam que o jornal Meia Hora de Notícias era evangélico. Não é fato

verdadeiro. Porém, acredito que devido ao direcionamento dado às matérias sobre o tridente,

privilegiando a visão evangélica, o jornal tenha criando esse estigma.

Por ser um tablóide sensacionalista, de que o público alvo são as classes sociais mais

baixas, e para tal se apropria de uma linguagem popular. Independentemente do conteúdo, as

manchetes pendem para a pilhéria.

Numa reportagem (KAZ, 2009) sobre o tablóide o editor do jornal, Humberto Tziolas,

decalra que desde o início, apesar do sensacionalismo, não explorara imagens de violência

para não criar um estigma negativo, encontrando suas influências no Pasquim, do Planeta

Diário e na Casseta Popular.

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VI

O Cruzeiro

Há uma tradição de cruzeiros em Portugal que remonta ao século X e há desde

cruzeiros localizados na beira da estrada para proteção dos viajantes até demarcações

fronteiriças aos mosteiros. Também encontraremos locais com mais de um cruzeiro como é o

caso da região de Ferreira do Zêzere com um conjunto de catorze Cruzeiros, constituintes da

Via Sacra que se desenvolve desde Casal da Mata até Dornes, terminando junto da escadaria

da igreja de Nossa Senhora do Pranto.20

A maioria das cidades e vilas de Portugal contém um

cruzeiro. Podem simbolizar a proteção religiosa do espaço da comunidade e, colocado sobre

um monte, pode nos remeter ao Calvário21

de Cristo.

O cruzeiro de Nova Iguaçu é feito de concreto, sem ornamentações, pintado a cal.

Destaca-se como referencial na paisagem. De superfícies lisas e patamar retangular, ergue-se

em contraste com a vegetação. Sua força simbólica aumenta quando inevitavelmente olhamos

o cruzeiro e o vemos em meio ao verde, acima da cidade. Esse posicionamento constitui a

lógica do olhar do monumento em questão. Esse olhar se altera somente caso adentremos a

mata – pois não há pavimentação de qualquer ordem acima dele que nos possibilitaria olhá-lo

de cima para baixo. Desta forma, o observador olharia o cruzeiro em meio à paisagem urbana.

Nada ao acaso. A hierarquia religiosa aqui se expressa nesse olhar que projeta a imagem da

cruz acima de todos, da cidade inclusive. Subterfúgios da linguagem visual que nos indicam o

lugar em que o simbolismo do cruzeiro – ou do crucifixo – deve ocupar no imaginário.

Invertendo essa ordem de olhar, poderíamos nos deleitar com outros sentidos e leituras, como

talvez remeter a religiosidade do homem ao cerne da vida vivida, não como antíteses ou algo

em separado.

Ao desenhar o Tridente, necessariamente o artista inverte a lógica do olhar do cruzeiro

porque precisou se postar no alto da encosta da Serra do Vulcão. E é nesse olhar que surge a

idéia do tridente. Porém, o intuito de fazer o tridente como um prolongamento da cruz se

20 Ana Torrejais, ―Olhar o Património. Crónica nº 6: Cruzeiros e Alminhas", in Jornal Despertar do Zêzere, edição de 26 de

março de 2008, p. 2. Disponível em http://tactiboqueando.blogspot.com/2009/04/cruzeiros-e-alminhas.html. Acessado em

19/10/2009.

21 Calvário (em aramaico Gólgota) é o nome dado à colina que na época de Cristo ficava fora da cidade de Jerusalém onde

Jesus foi crucificado. Calvaria em latim, Κρανιοσ Τοπος (Kraniou Topos) em grego Gûlgaltâ em transliteração do aramaico.

O termo significa ―caveira‖, referindo-se a uma colina que contém uma pilha de crânios ou a um acidente geográfico que se

assemelha a um crânio. In Freguesia da Parada do Coá, http://paradadocoa.blogs.sapo.pt, blog disponível em 20 de fevereiro

de 2010.

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perde pelo tamanho do desenho. Seria necessária certa distorção na imagem para que

funcionasse efetivamente como sombra alterada da cruz. Ao invés disso o que nós vemos é

um tridente formalmente simples, estendido sobre a encosta do morro, localizado acima do

cruzeiro.

Há certa tensão entre a imagem tridimensional do cruzeiro e a imagem pintada do

tridente. Embora o tridente sobressaia à cruz pela extensão que ocupa, o cruzeiro permanece.

Entre permanências e transitoriedades, em termos de memória, o cruzeiro tem o seu lugar na

cidade como escolha do que se quer preservado. Já o tridente é circunstancial. Encontra seu

lugar em outros contextos enquanto o artista ou as gerações futuras fizerem uso do material

que foi apropriado para o campo das artes.

7 Mirante do Cruzeiro e o Tridente

Nova Iguaçu-RJ Cortesia do artista.

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VII

Tridente

Segundo Jean Chevalier (1996, p. 310) a cruz é um dos símbolos cuja presença é

atestada desde a mais alta Antiguidade, havendo registro de uma peça em mármore, datando

século XV a. C. Esse artista vai descrevê-la como o mais totalizante dos símbolos, contendo

uma função de síntese e medida, sendo a grande via de comunicação com o sagrado (terra-

céu), símbolo ascensional, recortando, ordenando e medindo os templos, desenhando praças,

atravessando cemitérios. A interseção dos seus braços marca a encruzilhada, de onde emana

sua força centrípeta e ao mesmo tempo centrífuga. A despeito de seus significados comuns,

universais, ele acrescenta ainda que ―a iconografia cristã se apoderou dela [da cruz] para

exprimir o suplício do Messias, mas também sua presença. Onde está a cruz, aí está o

crucificado‖. Ressalva que dos diversos sentidos que a simbologia atribui à cruz, não há um

que seja absoluto. Os significados não se excluem uns aos outros, concluindo que ―Exprimem

cada qual, uma percepção vivida e interpretada em símbolo‖. Cita a lista cruces dissimulatae

feita por Justino, na Apologia I, 55, em que a cruz está representada no arado, na âncora, no

tridente, no mastro do navio com sua verga, na cruz gamada etc.

Por outro lado, o tridente, a lança de três pontas, é das mais antigas armas de pesca e

de uma categoria de gladiadores. Emblema de Posídon, deus grego dos oceanos sincretizado

pelos romanos com Netuno. Chevalier (1996, p. 905) nos indica também que quando aparece

com uma rede representa Cristo – o pescador de homens, podendo representar a trindade caso

seus dentes tenham o mesmo tamanho. Cita a possibilidade de ter servido como representação

oculta da Cruz.

Netuno é o deus romano do elemento úmido identificado com Posídon. Pierre

Grimmal (2000, p. 327) destaca a inexistência de lendas que lhe sejam próprias antes da

associação com o deus grego que reina nos mares. Este último, juntamente com Zeus,

pertence à segunda geração divina da gênese grega.

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O Titã Cronos após ter sido advertido pelo oráculo de que um de seus filhos o

destronaria, passou a devorá-los. Sua esposa Réia grávida do sexto filho, cansada de ter seus

bebês devorados, recorreu à astúcia e decidiu salvá-lo. Pariu na calada da noite e escondeu o

bebê. Ao nascer do dia, ofereceu uma pedra enrolada em mantos ao esposo para ser devorada.

Tendo confiado Zeus às Ninfas, este cresceu e atingiu a idade adulta. No entanto quis

conquistar o poder de Cronos. Ao aconselhar-se com Métis (a Prudência) recebeu uma droga

que deveria ser ingerida por Cronos para fazê-lo vomitar os outros filhos. Ao conseguir drogar

Cronos e reviver os irmãos Hades, Posídon, Hera, Deméter e Héstia, apoiando-se nos irmãos e

nas irmãs que haviam voltado à vida, Zeus atacou Cronos e os outros Titãs. A luta durou dez

anos. No final, Zeus e os Olímpicos foram os vencedores e os Titãs foram expulsos do céu.

Para poder prender Cronos, Zeus libertou os Ciclopes. Em gratidão, estes lhe forneceram

ferramentas poderosas que haviam forjado: o trovão e o raio foram legados a Zeus; um

capacete mágico da invisibilidade ficou para Hades; e a Posídon coube o tridente, cujo embate

agita a terra e o mar. Ao partilharem o poder, tirando na sorte, Zeus obteve o domínio do céu,

Posídon, o do mar e Hades, o do mundo subterrâneo. Entretanto, as relações entre Zeus e

Posídon nem sempre são amistosas, havendo disputa entre as cidades dos mortais. Enquanto

os descendentes de Zeus eram heróis favoráveis à humanidade, os filhos de Posídon, tal como

os de Hades, eram geralmente gigantes violentos e perigosos (Polifemo – o ciclope, o gigante

Crisaor e o cavalo alado Pégaso).

Grimmal revela-nos ainda o tridente como arma por excelência dos pescadores de

atum e que Posídon geralmente é representado deslocando-se num carro puxado por animais

8 Fonte de Netuno na Plaza de Canovas, no Castelo de Madrid (Espanha). Projetada por Ventura Rodríguez e esculpida por Juan Pascual de Mena, mármore branco, de 1780 a 1784. Foto Marcelo Teson, 2006.

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monstruosos, híbridos de cavalo e de serpente, tendo ao redor, um cortejo de gênios, peixes,

golfinhos e seres do mar.

O tridente é a vigésima terceira letra do alfabeto grego Ψ (minúscula: ψ),

correspondente a ―psi‖ do alfabeto romano, de onde deriva ―psique‖ que significa estudo da

alma. Das representações mais antigas do tridente teremos o trisula da Índia, emblema de

Xiva, descrito por Chevalier (1996, p. 905) como o transformador do mundo e o destruidor

das aparências. As três pontas representam o trikala ou tempo tríplice (passado, presente e

futuro).

Chevalier ressalta, ainda, que de acordo com a tradição cristã, o tridente na mão de

Satanás é um instrumento de castigo. Sendo também um símbolo da culpa, pois seus três

dentes representam as três pulsões (sexualidade, nutrição, espiritualidade) e, ainda, o perigo

de perversão, a fraqueza essencial que abandona o homem.

Embora não seja objetivo deste trabalho, mas relevante para entendimento da lógica de

apropriações de uma cultura por outra, Hendrik Willem Van Loon (1981, p. 122) analisa a

estada dos judeus na Pérsia, em 330 a. C. Até então, os judeus reconheciam Jeová como único

senhor e quando as coisas não iam bem atribuíam os problemas à falta de devoção do povo.

Entretanto, sob a influência das doutrinas de Zoroastro, cuja crença consistia na eterna luta do

bem e do mal,22

passaram a crer numa força contrária à obra de Jeová. A palavra satanás vem

do hebraico shaitan, significa adversário.

O tridente no Brasil, para algumas das religiões de matriz africana, representa Exu.

Exu é um orixá de importância primordial, pois é dinamismo, transformação e comunicação.

W. Abimbola (2006, p. 2) nos ensina que para se viver em paz é preciso apaziguar, manter o

equilíbrio com a natureza e com o cosmos. Este é composto pelas entidades benevolentes e

malevolentes. Exu não se encaixaria em nenhum dos dois lados, pela sua habilidade de

transitar entre ambos, além da função de levar as oferendas que vão garantir esse delicado

equilíbrio. Reginaldo Prandi (2005) descreve que

Para um iorubá ou outro africano tradicional, nada é mais importante do que ter uma prole

numerosa, e para garanti-la é preciso ter muitas esposas e uma vida sexual regular e profícua.

É preciso gerar muitos filhos, de modo que, nessas culturas antigas, o sexo tem um sentido

social que envolve a própria idéia de garantia da sobrevivência coletiva e perpetuação das

linhagens, clãs e cidades. Exu é o patrono da cópula, que gera filhos e garante a continuidade

do povo e a eternidade do homem. Nenhum homem ou mulher pode se sentir realizado e feliz

sem uma numerosa prole, e a atividade sexual é decisiva para isso. É da relação íntima com a

reprodução e a sexualidade, tão explicitadas pelos símbolos fálicos que o representam –

instrumento ogó – que decorre a construção mítica do gênio libidinoso, lascivo, carnal e

desregrado de Exu-Elegbara. (Prandi, 2005)

22 O deus do Bem, Ormuzd, estava sempre em guerra contra o deus do Mal e da ignorância, Ariman. (Van LOON, 1981)

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Raul Lody (2003, p. 192) vai descrever também que o ogó – instrumento de madeira

que representa o falo – não é muito comum no imaginário brasileiro; o tridente de ferro é seu

principal substituto, como um símbolo de poder e de força.

No entanto, dada a historicidade dos mecanismos sincréticos utilizados durante os

longos anos do regime escravocrata no Brasil, os cristãos associaram essas características de

Exu, apontadas por Prandi, ao diabo bíblico, inimigo de Deus e da humanidade. Esse seria um

dos principais pontos – em que irei me deter nesse trabalho – que impedem o trânsito ou

conciliação dos neopentencostais com as religiões afro-brasileiras e impossibilitam qualquer

cristão de se identificar com o símbolo do tridente exposto na obra.

Desta forma, na obra Tridente de NI, a tensão despertada pela ambigüidade desse

símbolo é potencializada não só pela grandeza do desenho, como também pelo local

escolhido, pela visibilidade que alcançou, e, principalmente, pelo diálogo com a cruz. Essa

potência não só impediu a identificação dos moradores com a obra como criou um conflito

com os neopentencostais, que se utilizaram de todos os mecanismos para finalmente, sob os

mesmo auspícios da Prefeitura que apoiou a construção, subir ao mirante e tentar a destruição,

ao apagar a obra.

Há outros exemplos de arte urbana que sofreram processos análogos. O artigo de

Roger Sansi, de 2007, cita alguns casos.

O monumento aos Orixás do Dique de Tororó, em Salvador na Bahia, inaugurado no mês de

abril de 1998. […] formado por um grupo de imagens dos Orixás. A Igreja Universal

protestou contra a instalação do monumento até mesmo com ataques físicos, sob a acusação

de que seria um conjunto de fetiches e ídolos diabólicos. O ataque finalizou com a

intervenção pessoal dos poderes públicos da Bahia, depois do qual, a Universal reconhecera

―o erro‖ de confundir uma obra de arte com um fetiche. Esse foi, de fato, só o mais

espetacular dos ataques iconoclastas de pentecostais contra obras de arte pública que fazem

referência aos Orixás na Bahia. Um [...] caso interessante é o de uma escultura do orixá Exu

do escultor baiano Mario Cravo Jr. que devia ser instalada num lugar público no Rio de

Janeiro, comissionado pela Prefeitura do Rio. Cravo Jr. é um escultor de ampla trajetória, e

Exu é um motivo recorrente na sua produção. A diferença dos casos anteriores, a escultura

estava projetada para um espaço de propriedade pública. Mas contrariamente ao caso do dique

de Tororó, esse projeto finalmente não foi realizado. Na opinião do artista, a escultura não foi

aceita por pressões das igrejas neopentecostais. É possível argumentar que na época, os

neopentecostais e protestantes em geral já tinham mais influência no Rio do que na Bahia, a

começar pelo governador Garotinho. (Sansi, 2007)

Outro caso de vertente afro-brasileira é o Monumento a Zumbi. Nos Atalhos da

memória de Mariza de Carvalho Soares em que a tensão entre o monumento cuja

representatividade pertenceria em grande parte à negritude como um todo, teve sua construção

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social e aceitação por esses grupos de forma fragmentada. Há um processo contínuo de

construção simbólica que no final do texto é amadurecido e assumido pelo tempo. Este último

é que confere força não só de permanência como de apropriação de novos significados pelo

próprio grupo social. O monumento a Zumbi acaba extrapolando os enunciados do acervo da

cidade utilizados na metodologia de pesquisa descritos por Knauss, transitando entre as

categorias ―excluído‖ e ―gratidão‖. Escamoteando uma homenagem, tenta fixar

simbolicamente uma aliança entre Estado e sociedade.

Já no trabalho de Vogler não vamos encontrar esse tempo de permanência, e a

intenção de compor alianças simbólicas entre Estado e sociedade toma caminhos inusitados.

Há resíduos na memória. Os evangélicos se apropriam desse recurso simbólico para projetar-

se no tecido social da cidade. Sem esvaziar o sentido político da imagem, escamoteando uma

universalização da imagem, modificam o tridente na tentativa de apagá-lo. Há a ação natural

das chuvas que efetivamente desgastam a cal, fazendo o tridente sumir. As apropriações

acontecem ali no limiar da obra, quando poderia acabar. Simplesmente ser esquecida e não

passar de um lampejo de memória. Sua permanência fixa lugar na memória coletiva graças ao

burburinho criado para apagá-lo. As matérias do jornal evangélico, que podem ser entendidas

como instrumento de mobilização e aniquilação, são apropriadas pelo artista e expostas como

obra em uma galeria de arte, circulando em revistas ou nas outras formas que o artista decida.

Esses tipos de trabalhos artísticos abrem um campo de possibilidades para repensar

não só a problemática afro-brasileira na disputa pelo espaço no imaginário social, como na

questão da intolerância religiosa que vem agindo num crescente descompasso, utilizando a

mídia e o poder público nos seus ataques massivos.

As tensões entre ―excluído‖ e ―gratidão‖ são inversamente exploradas na medida em

que o então prefeito altera sua posição de patrocinador da obra para interditor. A ironia do

artista se revela. A ambigüidade do tridente, entre Posídon, Exu e o Diabo, colocam o poder

público ―entre a cruz e o tridente‖, ou melhor, entre Deus e o Diabo. Parodiando esse dito

popular, publica o ensaio na revista Concinnitas constando as matérias jornalísticas do

tridente, constando na capa e contracapa da edição suas serigrafias dos cartazes lambe-lambe

Fé em Deus / Fé em Diabo – sendo Fé em Deus na capa e Fé em Diabo na contracapa.

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VIII

Entre Exu, Netuno ou Diabo?

Ao transitar pela metrópole do Rio de Janeiro vamos perceber que esse é um espaço de

tensão, e, ao mesmo tempo, de troca e reciprocidade, já que acaba sendo um espaço

democrático de comunicação com a sociedade. Alcança, em alguns casos, a legalidade por

receber patrocínio das esferas públicas – como a obra objeto deste estudo. Essa tensão,

embate simbólico causado pelo diálogo entre a cruz e o tridente nos abre um campo de

possibilidades de interpretações e de identidades. A apropriação do mirante para intervenção

funciona como uma reanimação do sentimento de pertencimento do lugar propondo uma

contramemória histórica ou redescobrindo histórias suprimidas que estão situadas de maneira

particular.

Embora os tridentes – tanto de Exu, quanto de Netuno e do diabo – tenham a mesma

morfologia acabam se distinguindo semanticamente. O tridente dos Exus de alguma forma

traz em sua leitura o peso da construção social e histórica de um espaço de reconhecimento

dos afro-descendentes e sua arte, cultura e signos, que vêm contornando ações empreendidas

para aniquilar suas referências, com pouca visibilidade, mesmo com as políticas afirmativas e

criação de espaços museológicos.

Podemos classificar a ambiguidade simbólica da obra Tridente como um caso de

pseudomorfose. Como afirma Yves Alain Bois, ―quanto menos se sabe do contexto, a gênese,

mais facilmente pode-se tornar vítima do tranco da pseudomorfose‖ (2006). Aqui, para essa

situação, tomaremos a definição do fenômeno da pseudomorfose como ―o surgimento da

forma A, morfologicamente análoga ou mesmo idêntica à forma B, que, no entanto, não

mantém relação alguma do ponto de vista genético‖ (Bois, 2006). Contém a mesma forma,

mas conteúdos diferentes.

O fato do fenômeno da pseudomorfose estar relacionado à situação que envolveu a

obra aqui estudada nos sugere que tipo de juízo entra nesse jogo de relações. Vale observar os

depoimentos recolhidos classificando o tridente como ―feio e agressivo‖, entre outras

sentenças, que aqui poderíamos tratar como juízos estéticos, obtidos a partir da experiência

imediata da arte. À primeira vista, o tridente pode até não agradar, porém seria necessário

conhecer melhor o que está em jogo, muito embora não se chegue à experiência estética

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através da reflexão do pensamento. As análises feitas pelo jornal impregnam a obra de juízos

obtusos, fazendo uma domesticação do olhar.

O que torna aqui a obra desconcertante é a tensão despertada pela pseudomorfose,

potencializada, como já apontei, não só pela monumentalidade do desenho, como também

pelo território simbólico do cruzeiro, pelo diálogo com a cruz, e, acrescento, principalmente,

pela sexualidade mal compreendida em relação ao orixá em questão, acionando por outro lado

o conceito do tradicional ―pecado‖, explorado pelas entidades católicas e evangélicas. Se o

tridente é um símbolo que representa Exu, ligado à sexualidade, como resolver essa

aproximação de idéias tão contrárias trazidas pela cruz, que representa o martírio de Cristo

para expiar os pecados da humanidade, com suas idéias de privação e castidade?

Há certa frustração nas expectativas do público, não só na forma de apresentação que

foge do âmbito tradicional das belas artes, mas como também na flutuação entre o decoro das

contradições que envolvem a construção da memória do espaço físico, potencializado pelo

Mirante do Cruzeiro. Toda uma carga simbólica religiosa foi tensionada pela apropriação

repentina, como se um símbolo fosse negação do outro. O que para as tradições afro-

brasileiras também não chega a ser um problema, uma vez que dentro dessa lógica religiosa e

cultural, tudo que existe tem o seu Exu pessoal: inclusive o prefeito, o artista, os vendedores,

as comunidades evangélicas etc.

Por outro lado, o subjetivo do tridente não é encontrado em lugar algum, nem

escamoteando a moral cristã, nem subvertendo o símbolo, mas no seu teor que pode avivar o

sentido da sexualidade. Desta forma, pode ser percebido como um afrontamento onde

―concebe a deflagração semântica da imagem menos como um simples afastamento do que

uma violência, um ‗desublimizatório‘ ato de agressão‖. (BOIS, 1996).

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IX

Observações finais

É em sua escala imponente que o tridente se afirma no jogo desencadeado pela

articulação formal com a cruz e com a paisagem em si. Analisando a estrutura do tridente e da

cruz dentro de uma perspectiva formal vamos articular as concepções tradicionais de linha e

superfície. As linhas do cruzeiro e do tridente, não percebidas como formas autônomas,

independentes, mas numa dimensão plástica de profundidade, como se a cruz se projetasse em

prolongamento, morro acima, pela encosta verde. Os elementos aqui se relacionam com a

ecologia urbana. Pontos brancos no verde. Linhas brancas que se desdobram. A inscrição no

chão. Chão de mato verde inclinado. Apropriação do mirante.

Na ressignificação, o cruzeiro e o tridente que, do alto, observam Nova Iguaçu: a

estação, a fachada frontal da Igreja de Santo Antônio e o cemitério igualmente branco, o cinza

da cidade inscrita na paisagem, e seu curso cotidiano. Porém, por pelo menos três dias, a

cidade que olhou o mirante. A arte aqui se torna um campo ampliado, joga com as relações

entre as coisas e pessoas. Sacode o campo político e religioso. E depois? A chuva leva a

inscrição e plantam cem mudas de árvores. A comunidade do bairro toma a iniciativa de

asfaltar a ladeira até o mirante. O sentimento de pertencimento se altera. Parafraseando

Greenberg (2002), é uma situação de arte de desordem, em que o tempo e o lugar impõem

certo tipo de ordem na forma de probabilidades negativas.

O que sobressai nesse trabalho não é nem a substância, nem o conteúdo, e, nem a

concepção da obra em si, mas uma operação. Bataille (1968, p. 177) chamaria essa operação

de informe. A forma final do tridente será o resultado do processo, uma circunstância, que vai

além da concepção, do conteúdo e de sua substância, não só pelo aspecto de sua

imaterialidade recuperada pelas reportagens e posteriormente expostas como resultado final,

mas como também pela quebra de um ideal de arte. Transpõem limites pré-estabelecidos da

esfera estética e do senso comum a respeito da própria arte. O formal e o informal aqui

aparecem nessa operação.

Embora o artista se utilize de um discurso laico em seu trabalho a receptividade

religiosa do público inicial teve maior impacto e ganhou foco nas páginas do jornal, que

acabou recebendo a alcunha de evangélico.

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Na obra Tridente de NI vamos encontrar um conjunto de operações: a apropriação de

uma prática extremamente comum, pintura de cal sobre encostas e pedras; a apropriação do

símbolo carregado de ambiguidades; a ressignificação desse símbolo – o tridente; a

ressignificação e a consequente valoração do cruzeiro; sua enunciação: intervenção urbana. A

inversão da própria lógica do monumento, a sensação de fim e o reaparecimento da obra

reapropriada em diversas mídias.

Seja lá qual tenha sido a escolha do artista para o monumento entre a cruz e o tridente,

cooptação e consumo, sensacionalismo e propaganda religiosa ou denúncia do populismo mal

engendrado, não homenageia, satiriza.

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Capítulo II

O GIGANTE DA ENCRUZILHADA

Olódùmarè e Òrìsànlá estavam começando a criar o ser humano. Assim criaram

Esú, que ficou mais forte, mais difícil que seus criadores. Olódùmarè enviou Esú

para viver com Òrìsànlá; este o colocou à entrada de sua morada e o enviava como

seu representante para efetuar todos os trabalhos.

9 Montagem da escultura Exu dos Ventos na entrada do Parque Metropolitano de Pituaçu (BA), 1998. Foto cedida por Mário Cravo Jr.

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I

Cristos crucificados, Exus e Mário Cravo Júnior

Para Mário Cravo a temática de Exu surge da ―persistência da memória‖ (CRAVO,

2009). Em estreito contato com fontes do candomblé, do folclore e do barroco brasileiro, o

artista elaborou uma pesquisa visual em busca de soluções plásticas que adequassem essas

dinâmicas na modernidade que começa a germinar na Bahia na década de 40.

Em Exu, nenhum outro santo baixa em cima. É um personagem magnífico e eu transformei

isso numa espécie de força simbólica. Primeiro de agitação e inquietação, segundo, como um

personagem de força estimulante: agitado, criativo, imperativo e rebelde. São atributos que fui

apascentando, cuidando e emprestando nas minhas persistências da memória. Ele me

acompanha juntamente como os Cristos crucificados. Que são certos símbolos religiosos. Eu

fui educado num mundo católico, década de 30, minha adolescência. Você não pode resistir a

isso. São questões sobre nós. A não ser que você se abstenha completamente, num purismo tal

de geometrização ou abstração, num total suprassumo de autonomia, digamos assim. Nós

sentimos aquilo: nossa geração foi a primeira geração que penetrou e mergulhou de cara

nessas questões [capoeira e candomblé], não apenas histórica, mas herança viva.23

Mário Cravo desempenha ainda importante papel na consolidação do modernismo

baiano integrando o grupo que ficou conhecido como ―a primeira geração de modernos‖,

unindo em seu entorno Genaro de Carvalho, Carlos Bastos, Jenner Augusto, Rubem

Valentim, Maria Célia Calmon Du Pin Almeida e Carybé. Ao instalar seu ateliê no Largo da

Barra, num prédio projetado para funcionar como cassino, criou um ponto de encontro entre

artistas, literatos e críticos de arte.

Ao falar sobre suas referências, cita Frei Agostinho da Piedade (1580-1661) como

primeiro grande escultor brasileiro. Consciente de sua potencialidade plástica e unidade

estilística, que vão adiante de seu tempo, assinando e datando suas peças – figuras opulentas,

voluptuosas e envolventes. Do Menino Jesus até Senhora Santana há uma grande

desenvoltura no tratamento plástico com uma poderosa carga mística e sensual. Cita ainda,

São Pedro Arrependido24

como grande estímulo para execução de vários Cristos, Iemanjás e

capoeiristas.

23 CRAVO Jr, Mário. Entrevista concedida a Mônica Linhares. Oficina do Espaço Cravo, Parque Metropolitano de Pituaçu,

Salvador (BA), 21/9/2009.

24 São Pedro Arrependido, Frei Agostinho da Piedade, século XVII. Terracota, Museu de Arte Sacra, Salvador. Foto de

Cravo Neto. Essa citação e foto aparecem em sua autobiografia de 2001, p. 80.

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10

Na década de 40 se aproximou das oficinas de santeiros e assim se familiarizou com o

entalhe em madeira, além do grande acervo contido nessas oficinas. E quando começa a

colecionar objetos esculpidos. Esse gosto e cuidado o levaram, juntamente com Carybé,

Jenner e Mirabeau, a fazer coleções desses objetos, chegando mesmo a se aventurar em

viagens pelo interior para adquirir objetos religiosos, santos de madeira, ex-votos e cerâmicas

populares.

Cravo conta que num episódio foi juntamente com Carybé até a oficina de Mestre

Valentim. Ali adquiriram uma grande quantidade de estatuetas e objetos em cerâmica.

Quando retornaram a Salvador, estava tudo em cacos, devido ao sacolejo da caminhonete na

estrada. Esse material servia como modelo de estudo nas suas várias experimentações.

11

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Outro artista citado por Mário Cravo é Francisco Chagas – O Cabra (séc. XVIII). Nas

imagens anteriores podemos ver o Cristo atado na coluna25

e o Senhor Morto do Carmo26

que

influenciaram principalmente pelas soluções plásticas nas interpretações da anatomia,

inteiramente próprias e heterodoxas. Os ritmos indicadores de movimentos musculares num

sentido espiral ascendente foram referências constantes para as confecções dos vários Cristos.

Em relação ao vocabulário plástico de elementos da cultura e religião de matriz

africana não defende nem uma arte negra, afro-brasileira ou descendente. Insiste que a arte é

linguagem da humanidade, e escreve: “a tradição cultural e religiosa abriga em seu seio um

caldo de herança antropológica rica e diversificada em níveis variados‖ (2002, p. 55). Dessa

forma, pelo dinamismo da arte e pelos vastos fenômenos da sensibilidade expressiva se opõe a

denominações que defendam um conceito racial para caracterizar maneiras de se fazer arte.

Vale ressaltar que dentre as principais referências bibliográficas que tratam a arte afro-

brasileira – como Mão afro-brasileira e o material produzido pelo Museu Afrobrasil (São

Paulo, 2006) – não há citação a Mário Cravo neste contexto. Já no material da Associação

Brasil 500 Anos Artes Visuais, integrante da Mostra do Redescobrimento, Marta Heloísa

Leuba Salum escreve: ―As epopéias sobre Cristo e Exu, bem como seus ex-votos formalmente

associados a esculturas de origem africana, não são suficientes para fazer do eloqüente e

polêmico Mário Cravo Jr. um artista afro-brasileiro‖. Em outro trabalho que trata

especificamente o tema da arte afro-brasileira (Conduru, 2007, p. 66) também não restringe a

produção de Mário Cravo ao universo afro-brasileiro, embora não seja negada a sua

importância e contribuição como ―múltiplo experimentar derivado da crença moderna na

aplicação dos meios artísticos e no potencial da criatividade humana pautados na idéia de

ação‖.

Exu, enquanto temática de Mário Cravo, aparecerá não como ícone religioso resultante

de fé, mas da estreita relação com o ato de criação. Supõe a criatividade mais próxima da fé

de ofício do que da fé religiosa. De maneira categórica, afirma que elegeu como temática em

sua obra, mais de meio século atrás, o orixá do candomblé, o personagem mitológico; e que

essa figura em que vem trabalhando nada tem a ver com o catolicismo apostólico romano, o

cão ou o demônio. Sua escolha se faz pela similitude com o comportamento do homem na

sociedade, e escreve:

25 Cristo atado na Coluna, Francisco Chagas. Século XVIII, madeira policromada, Museu do Carmo, Salvador, BA. Foto de

Cravo Neto.

26 Senhor Morto, Francisco Chagas. Século XVIII, madeira policromada, Museu do Carmo – Salvador, BA. Foto de acervo

pessoal.

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Aos personagens humanizados da minha Bahia, da minha Baía de Todos os Santos, costumo

com freqüência ―vesti-los‖ de Exu, porque para mim parecem figuras rebeldes, galhofeiras,

brincalhonas e de certa maneira muito moleques. Meu Exu ideal é um arquétipo da

baianidade. Uma espécie de logos de minha cidade, e por isso os interpreto de mil e uma

formas: vestidos, nus, carregando centenas de filhos agarrados à sua pele ou balançando ao

vento como um espantalho. Às vezes o vejo estruturado e amarrado em feixes de grossas

madeiras como um corpo descomunal surgindo como uma hecatombe atômica. (Exu segundo

Mário Cravo, 2002, p. 83)

Quando questionado sobre o porquê dos chifres, descreve que em nada têm eles de

demoníaco, que algumas vezes ―representam as antenas, os para-raios que captam energia

cósmica‖ (CRAVO, 2001, p. 65). Revela que a criação pode tanto ser um ato prazeroso quanto

sofrível: ―quando há dor, há chifres‖, afirma. Muitas vezes seu processo de criação pode

simplesmente fluir, outras vezes pode implicar em um processo de dor. Esses chifres, os

córneos, são elementos que saem involuntariamente em seu trabalho; são decorrentes de o

artista passar tantos anos envolvido com essa temática; são referências constantes tanto nas

esculturas quanto nas pinturas, gravuras e desenhos. Algumas vezes aparecem em meio a uma

miscelânea que inclui o imaginário popular, os ex-votos e as manifestações culturais

regionais.

Seus personagens compõem sincretismos das religiões, mitos,

histórias e folclore com seus pares na identidade baiana. Vamos

encontrar desde Exus cangaceiros a variados Exus diabo, eleitos por

Mário Cravo como ápice da temática em ferro. ―Semelhanças dentre

algumas e outras deidades cultuadas no culto Católico Apostólico e

Romano… e não havia nenhum [similar] pro Demo. Então puseram

essa idéia de chifres que é baiana.‖27

A escolha no sentido de utilização da sucata se deu pela

escassez de ―recursos apropriados‖, uma vez que, na Bahia, logo nos

primeiros trabalhos, o artista não dispunha de fundições de bronze, o

que encarecia o custo de produção, buscando então, na inventividade

das práticas artesanais e na utilização de materiais disponíveis, uma

opção de patrocínio da sua autossuficiência artística.

As primeiras citações sobre a temática de Exu na obra de

Mário Cravo pela imprensa surgirão, no final da década de 1950,

através da obra Exu a Villa Lobos.28

Embora os primeiros trabalhos

27 CRAVO Jr, M. Entrevista concedida a Mônica Linhares, 21/9/2009. Salvador (BA).

28 Revista Casa & Jardim, nº 135, março de 1966. Reportagem do acervo do antigo Espaço Cultural Desembanco, hoje no

Museu da Bahia.

12 Exu a Villa Lobos,

vergas de ferro soldadas. Bahia.

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com Exu remontem aos anos 1940,29

entre litografias e xilogravuras partindo da observação

direta das filhas de santo nos candomblés do Engenho Velho – nos tempos de Tia Massi,30

Opô Afonjá e do Bate Folha, entre outros.

Descreve essa primeira fase como ―documentação da parte de expressão facial no

momento de transe, os movimentos abertos ou hieráticos‖ (Cravo, 2002, p. 62). Fixa imagens

perceptivas que não demandem esforço de interpretação, como na imagem seguinte Cabeça

de Candomblé, de 1952, sem especificar qual seja o orixá. À medida que vai mergulhando

nesse universo e desvendando sua riqueza poética, as formas do artista vão se tornando mais

intensas, mais íntimas e desmistificadas, como vemos adiante, no desenho da Cabeça de Exu,

de 1956. A distância hierática do primeiro desenho do momento do transe se transforma,

ganha potência e se impõe quando a personalidade inerente ao personagem Exu se apresenta,

com certo desalinho na dinâmica dos traços em tinta pilot, como se a dinâmica de Exu

entrasse na forma plástica do desenho.

Algumas dessas obras participaram da 18ª Bienal Internacional de São Paulo,31

no ano

de 1985,32

em que a curadoria revisita o modernismo. No catálogo da exposição, Stella

Teixeira de Barros e Ivo Mesquita citam o ateliê de Mário Cravo como um importante grupo

29 Por ocasião da exposição comemorativa dos 70 anos do artista na Fundação Jorge Amado, em 1993, Mário Cravo descreve

no material publicado de maneira didática e cronológica sua pesquisa visual em torno de Exu. Publicado também no livro

Esboço, de 2002, p. 62.

30 Maria Maximiana da Conceição, quinta ialorixá da Casa Branca do Engenho Velho – Ilê Axé Iyá Nassô Oká.

31 Obras que constaram na XVIII Bienal de SP 1985: Filha de Xangô, (53x36) desenho, 1947. Homem (Figura de

Candomblé), (0,50 x 0,46) desenho, 1948. Rosto de Mulher (0,41x 0,25) desenho, 1952. Cabeça (0,30 x 0,21) desenho, 1949.

Rosto de Mulher (0,53x 0,45) desenho, 1949.

32 Vale lembrar que, no Rio de Janeiro, em 1984, sob o governo de Leonel Brizola, iniciam as comemorações do Movimento

Negro a Zumbi no dia 20 de novembro (SOARES, 1999, p. 117). Em meados do ano seguinte, a Rede Globo estréia a

minissérie Tenda dos Milagres de Jorge Amado, situando a Bahia como pequena África e centro da luta dos negros contra a

intolerância religiosa e racial.

13 Cabeça de Candomblé

Monotipia, 1952. (0,46 x 0,65)

14 Cabeça de Exu

Tinta pilot, 1956. (0,56 x 0,77)

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de gravura, entre outros igualmente importantes, que vão aparecer dentro de uma clave

expressionista de envolvimento político-social e ao final os descreve.

No entanto, esta ―crônica‖ [sobre a exaltação do popular e costumes regionais como fonte

fundamental integradora do homem e da terra brasileira] tende muitas vezes a folclorizar e

mitificar seus conteúdos, na medida em que os esteticiza e faz deles um recorte idealizado da

cadente realidade.33 (Mesquita, 1985, p. 18)

Essa crítica generaliza e não atende especificidades tanto dos grupos de gravadores

citados no texto34

e presentes na exposição, quanto dos conteúdos. No caso dos orixás e de

Exu, considero já serem estéticos e míticos na sua fonte e em sua essência. Ao propor essa

fala há certa superficialidade tanto sobre os conteúdos tratados, como com o envolvimento

político-social dos grupos de gravura dentro da realidade em que estão inseridos. Talvez aos

olhos dos curadores, no conjunto de uma exposição sob o título ―Expressionismo no Brasil:

heranças e afinidades‖, de atenção voltada às influências europeias, temas como o candomblé

tenham sofrido estranhamento, ficando à mercê desse impacto sem um tratamento adequado

que o resguardasse do malgrado.

Num segundo momento, Mário Cravo inicia uma série de esculturas em pedra sabão e

ferro, inserindo em sua pesquisa os aspectos referentes à personalidade de Exu, contendo certa

brutalidade e sensualidade, misto de temperamento brincalhão e mordaz. Imbuído desses

predicados é que Mário Cravo torce, separa e torna a unir com fogo o ferro, em formas que

revelam Exu. E nesse trabalho revela também sua busca por um ―figurativismo brutal‖

(CRAVO, 2002), expandindo suas interpretações por caminhos sincréticos não só com outros

orixás, mas também com outra temática de sua predileção: o Cristo crucificado.

33 Catálogo da Bienal: Expressionismo no Brasil – heranças e afinidades. Catálogo XVIII Bienal de São Paulo, 1985, p. 18.

34 Ateliê Coletivo do Recife – Abelardo da Hora, Gilvan Samico, Wellington Virgolino, Ionaldo; Clubes de Gravura Gaúchos

– Carlos Scliar, Glauco Rodrigues, Glênio Bianchetti, Danúbio Gonçalves, entre outros; além do grupo que gravitou em torno

da revista Joaquim de Curitiba – Guido Viaro, Poty, etc.

15 Exu mola de Jeep, escultura de sucata de ferro, 1958. Parque do Ibirapuera (SP).

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A partir dos anos 1950, suas experimentações plásticas se voltam para a unificação

entre personagem e símbolo surgindo assim misturas entre a cruz e o Cristo e entre Exu e o

tridente. Une orgânica e intrinsecamente o símbolo pelo personagem. No Exu mola de Jeep,

como se surgisse do próprio tridente, Exu aparece fincado na terra tomando para si o

significado do tridente – a cruz invertida num sentido de agressividade –, compõe toda a

estrutura e confere forma e sentido à escultura.

A cruz se torna ausência presente na forma do corpo, em Cristo Baiano. Cristo, cujo

corpo representa o cordeiro de Deus, também é crucifixo. Ao olhar a obra vemos braços e

pernas abertos formando uma cruz na diagonal, cabeça pendida para trás olhando o céu e o

falo apontando o chão. Essa ausência da cruz leva o observador a uma encruzilhada visual e

nos perguntamos: esse corpo luta para manter-se em cruz? Ou luta para se libertar dela?

Olhando melhor nos perguntamos ainda se esse corpo luta. Talvez esteja entregue à fadiga,

muito embora o aspecto truculento dos músculos sugira uma tensão no sentido de força e

movimento. O artista ainda comenta a obra: ―Então você vê um Cristo que é meio Cristo,

meio Exu. Eu fiz um Cristo meio Pedro, crucificado de cabeça para baixo, e coloquei ele

assim em pé, com os braços abertos, com sexo em riste. Olha, a crítica aqui foi um inferno‖.35

Nesse jogo de representações e personagens tidos como antagônicos, Mário Cravo

incorpora cada vez mais a questão mitológica e sincrética à materialidade do objeto. Quer que

a madeira fale por si e não simule. Seja a madeira, madeira, a pedra, pedra e o metal, metal.

Mesmo que a escultura represente o homem, o personagem ou o que for. Que sejam a

35 CRAVO Jr, M. Entrevista concedida a Mônica Linhares, 21/9/2009. Salvador (BA).

16 Cristo Baiano, ferro em fusão. 1955. Bahia

(Catálogo revisitando cravo, fig. 2) A peça participou da III Bienal de SP, em 1955.

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madeira, o metal ou a pedra a falarem primeiro ao olhar. Sem falar em pneus, poliuretano,

fibra de vidro, vidro e sucata em geral ou no que mais puder ser apropriado, aproveitado e

manipulado pelo artista.

Nos anos seguintes, Mário Cravo descreve o ganho de uma leveza em relação aos

Exus torcidos. Algumas vezes com conotações construtivistas armazenando ritmos

compactos, como pode ser visto no Exu a Villa Lobos, 1962.

Há a série de Cristos, de 1987, feitos com a madeira da demolição do antigo prédio do

Mercado Modelo – resultante do incêndio de 1969. Relata sua inquietude quanto à

conformidade das formas da cruz e dos crucifixos. Então retira a imagem de Cristo de sua

complacência resignada para agonizante luta com a cruz,

por vezes tentando libertar-se dela, onde a cruz e o Cristo

mantêm as mesmas materialidade e essência.

Em Mário Cravo, a cruz nunca é simplesmente cruz.

Há sempre algo a mais na economia do símbolo que a

distingue. Até mesmo a cruz – o mais totalizante dos

símbolos (CHEVALIER, 1996, p. 310), contendo uma

função de síntese e medida, sendo a grande via de

comunicação com o sagrado – não encontra sossego em sua

forma: reluta, é complexa, conflituosa. Além da série de

Cristos já descrita, há também a Cruz caída, da Praça da Sé,

em Salvador, feita em memória das demolições que foram

toleradas de obras arquitetônicas singulares pertencentes ao

patrimônio cultural da cidade de Salvador.36

36 São informações de CRAVO Jr., conforme entrevista concedida a Mônica Linhares, em Salvador (BA).

17 Cruz caída

Praça da Sé, em Salvador Foto de arquivo pessoal, 2009.

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II

Exu dos Ventos parte do Sinal da Cruz

Òrúnmìlà, desejoso de ter um filho, foi pedir um a Òrìsànlá. Este lhe diz que ainda

não tinha acabado de criar seres e que deveria voltar um mês mais tarde. Òrúnmìlà

insistiu, impacientou-se querendo levar a qualquer preço um filho consigo. Òrìsànlá

repetiu que ainda não tinha nenhum.

Mário Cravo fez ainda o Sinal da Cruz e descreveu: ―O eixo da grande cruz penetra no

sentido vertical, o retângulo gerado pelos braços, e apóia-se no piso, no chão, tal qual um

feixe energético, um para-raios, unindo o céu, a terra e vice-versa‖ (CRAVO, 2002, p. 75).

Escultura em relevo, de proporções monumentais, com ritmos e planos construtivos em

soluções simétricas. No interior da cruz forma-se outra cruz em fenda com iluminação interna.

Trata-se de uma cruz para a fachada do distinto edifício da Casa do Comércio da Bahia.37

18

Interessante observar como o sentido de monumentalidade é uma constante em Mário

Cravo, como algo que quer persistir na memória e não ser esquecido. Não só no sentido de ter

grande parte de sua obra em monumentos públicos espalhados principalmente pela Bahia, mas

pela escala em que se apresentam. Acontece nas esculturas públicas de nem sempre a autoria

ficar patente para o grande público e, independente disso, a obra reúne sentidos, simbolismos,

37 Sede da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado da Bahia – SESC, SENAI e SECEC – fundada em

1947, e também conhecida como Casa de Comércio Deraldo Motta. O edifício está na Av. Tancredo Neves e foi construído

na década de 80 pelo arquiteto Fernando Frank. A estrutura metálica do prédio foi projetada pelo engenheiro José Luis de

Souza. Fonte: www.fecomercio-ba.com.br, em 15/11/2009.

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idéias e ações de quem a produz. Interage no espaço, no cotidiano dos passantes que

convivem com sua presença, enriquecendo-a de outros sentidos, podendo ainda ser admirada,

ignorada ou desafiada.

Das sobras do recorte do aço usado para o Sinal da Cruz foi criado o Exu dos Ventos,

em 1992, no ateliê da avenida Anita Garibaldi, em Salvador. Com seus quase dez metros de

altura, com um alongado braço indicador, parte da escultura é móvel, de corpo fixado ao chão,

num tripé. Guarda a mesma simetria e articulações angulares utilizadas em Sinal da Cruz.

Nesse mesmo corpo, podemos ver as costelas que servem de escada para manutenção da peça.

O autor a descreve:

E tem o Exu aqui no canto. O parque na frente. Essa escultura é móvel. Esse elemento é

móvel: a estrutura e os braços. A escultura toda é móvel. O corpo cola os braços e a cabeça,

que estão apoiados aqui em dois pontos de articulação: um aqui que balança o corpo e na

parte de cima, os braços. Apoiada aqui balança os braços. E em cima tem outro elemento de

apoio, um eixo e o outro elemento da cabeça, que faz a cabeça e os chifres, que é outro

independente. É um movimento interessante que faz ele ficar assim... como que chamamos

aqui na Bahia de mané-gostoso38.39

Desejoso de poder exibir suas obras permanentemente, Mário Cravo idealiza a criação

de um ambiente que acolha também atividades educacionais em integração de arte e natureza.

Inicia a criação do Espaço Cravo, em que a intenção é fugir do modelo vigente de museologia

38 Mané-gostoso – brinquedo infantil do artesanato popular em madeira que mexe braços e pernas.

39 CRAVO Jr, M. Entrevista concedida a Mônica Linhares, 21/9/2009. Salvador (BA).

19 Montagem de Exu com

Mário Cravo ao topo, no ateliê da Av. Anita

Garibaldi, 556, Salvador, 1992. Foto

cedida pelo artista.

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e propor um museu a céu aberto sob o sol e a chuva em diálogo constante com a natureza.

Mário Cravo mantém relações políticas estreitas, que garantem lugar para seu trabalho

artístico. Nesta prática, doa ao Estado da Bahia um acervo de 800 esculturas – com mais 200

em consignação – num pleito entre artista e poder público; espaço didático e espaço oficina;

administração, conservação e patrocínio. Instala-se organicamente no Parque Metropolitano

de Pituaçu,40

em 1994, com totens vegetais, objetos alados, tridimensionais, móbiles,

desenhos, pinturas, produção em multimídia e também obras de outros artistas.

Algumas vezes o artista recebe pessoalmente as crianças em excursão de visitação ao

espaço didático e ao espaço oficina; além de outros grupos, mais raros, de alunos e

professores da Escola de Belas Artes, da Universidade Federal da Bahia.

Nesse contexto, de espaço e tempo, nosso protagonista – o Exu dos Ventos – foi

instalado, triunfante, à entrada do parque ―como a mais importante escultura, por sua

característica e monumentalidade‖ (CRAVO, 2002, p. 76) e lá permaneceu por mais seis anos.

40 O Parque Metropolitano de Pituaçu foi criado pelo decreto 23.666/77 do executivo estadual e é a maior reserva

ecológica com remanescente de Mata Atlântica da cidade de Salvador, Bahia. São 15 km de trilhas pavimentadas,

restaurantes, parques infantis, quadras poliesportivas, quiosques, esportes náuticos, além do museu a céu aberto.

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III

A encomenda de Exu e a Cidade Maravilhosa:

conciliações e conflitos políticos

Então perguntou: “Que é daquele que vi à entrada de sua casa?” É aquele mesmo

que ele quer. Òrìsànlá lhe explicou que aquele não era precisamente alguém que

pudesse ser criado e mimado no àiyé. Mas Òrúnmìlà insistiu tanto que Òsàlá

acabou por aquiescer.

Òrúnmìlà deveria colocar suas mãos em Esú e, de volta ao àiyé, manter relações

com sua mulher Yebìírú, que conceberia um filho. Doze meses mais tarde, ela deu à

luz um filho homem e, porque Òsàlá dissera que a criança seria Alágbára, Senhor

do Poder, Òrúnmìlà decidiu chamá-la de Elégbára.

No ano de 1998, o prefeito do Rio de Janeiro, Luiz Paulo Conde visita Salvador por

ocasião da cerimônia de inauguração do Memorial Luis Eduardo Magalhães41

. O monumento

foi por ele projetado. Compareceu o então presidente da República Fernando Henrique

Cardoso, além de familiares e aliados políticos. Posteriormente, ao visitar o Espaço Mário

Cravo, Conde conta em declaração ao jornal O Dia42

que chegou a fazer uma oferta ao

escultor pelo Exu dos Ventos, com o intuito de colocá-lo às margens da Lagoa Rodrigo de

Freitas. Teria se interessado também por um Cristo, que Cravo Junior não aceitou vender.

Logo depois, a empresa Lamsa43

– concessionária responsável pela Linha Amarela e

pertencente à empreendedora baiana Construtora OAS Ltda. – adquire a escultura para

oferecê-la ao município do Rio de Janeiro. A previsão de instalação da peça era junho de

2000. Porém, quando foi anunciado na imprensa em fevereiro do mesmo ano, sendo ainda ano

eleitoral para os cargos municipais, a instalação da escultura acionou redes sociais distintas

41 O monumento, localizado na avenida Luis Viana Filho – Paralela, possui três monólitos de pedra polida, um espelho

d‘água e uma estátua representado Luís Eduardo. Na base, uma placa indica que ali foi enterrado o coração do ex-deputado:

―Aqui se encontra o coração do deputado Luís Eduardo Magalhães‖. Vale lembrar que o coração foi retirado, sem

autorização da família, pelos médicos que acompanharam o político. A polêmica que envolveu o destino do órgão chegou ao

fim com a encomenda do monumento. Este foi projetado pelos arquitetos Luiz Paulo Conde, prefeito do Rio de Janeiro, e

Mauro Neves Nogueira. A estátua foi esculpida por Edgar Duvivier. A verba utilizada na construção do monumento foi

obtida através de doações feitas à Associação de Amigos de Luís Eduardo Magalhães.

42 Reportagem de Luiz Ernesto Magalhães ―Exu à base de restos de cruz‖, jornal O Dia, 14/2/2000.

43 ―Concessão da via urbana Lamsa – Linha Amarela, no Rio de Janeiro, oficialmente Avenida Governador Carlos Lacerda,

trecho que compreende o quilômetro 6 (Cidade de Deus – Barra) até a Ilha do Fundão (ligação com a Linha Vermelha),

incluindo operação e manutenção. Este é um dos primeiros investimentos sob a modelagem de participação pública e privada

do Brasil (tendo de um lado a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, com suporte institucional, e de outro a OAS, com

aparato empresarial e recursos para o financiamento da obra). A Lamsa é a única concessão rodoviária municipal do país.‖

Trecho retirado do site OAS Investimentos, disponível em http://www.oas.com.br, em 15/11/2009.

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numa acirrada disputa não só pelo espaço simbólico na Cidade, mas também pela utilização

do espaço na mídia impressa.

A notícia da encomenda da escultura baiana ao cenário carioca movimentou

autoridades religiosas. A Cidade Maravilhosa, que tem a imagem do Cristo Redentor em seu

ponto mais alto da paisagem – abraçando todos os cidadãos – passaria a ter Exu dos Ventos

em seu importante e mais novo entroncamento viário. Embora o prefeito tenha justificado seu

intento como homenagem às culturas afro-brasileiras, isso não foi suficiente para conter os

ânimos.

Importante entender o Rio de Janeiro além Cidade Maravilhosa cantada e contada nas

marchinhas de carnaval e nos cartões postais, mas como uma grande cidade moderna definida

por características materiais e imateriais próprias, com expressiva heterogeneidade e

diversidade sociocultural, como tão bem nos apresenta Gilberto Velho em Metrópole, cultura

e conflito (2007). As diferenças em termos de visão de mundo e estilos de vida entre

categorias sociais que convivem e interagem cotidianamente não são sempre óbvias. E nos

adverte

Reconhecer as diferenças, estranhar o que está próximo, relativizá-lo são meios de ter uma

visão mais complexa do mundo em que vivemos e, simultaneamente, buscar indagar sobre as

possibilidades de negociação e diálogo entre valores, interesses e atores diferenciados. A

tensão e o conflito fazem parte desse cenário. Cabe ser capaz de identificá-los e, em termos de

uma ação pública, valorizar a possibilidade de uma conciliação, como já nos falava Cícero, há

mais de dois mil anos, no contexto conflituoso da República Romana de então. (p.16)

Acompanhar o trânsito, incluindo os cruzamentos e o fluxo entre os diferentes

mundos, nem sempre se torna possível. Voltando-se para Georg Simmel, Gilberto Velho

descreve ainda o conflito não só como recorrente, mas com uma dimensão constitutiva da

vida social como um todo. Em consequência, a sociedade estaria sempre em mudança,

embora apresente estabilidade e continuidade, com maior ou menor velocidade de conflito.

Nesse sentido, o termo ―mudar‖ sublinha a expressão do dinamismo inerente à sociedade.

Descreve, ainda, o crescimento desordenado das cidades associado ao

desenvolvimento das sociedades de massa, com padrões incompatíveis com as sociedades

tradicionais. A coexistência aparentemente contraditória entre valores individuais e

hierarquizantes é um dos principais eixos onde esse crescimento se manifesta.

Nesse sentido, a metrópole carioca apresenta aspectos de desigualdade social,

violência e falência dos serviços públicos aliados a uma desorganização urbana decorrente de

má administração, descaso e incompetência por parte dos governantes. Velho (2007) assinala

ainda o sentimento de exclusão, a vivência da pobreza e as frustrações diante da sociedade de

consumo como experiências que aumentam o potencial de conflito. Esse sentimento pode ser

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canalizado para movimentos socioculturais, ações políticas (como o movimento negro) e

iniciativas para melhorar as condições de vida das comunidades; em que as Igrejas e ONGs

desempenham um papel importante, principalmente nas iniciativas vindas das camadas

populares. Nesse sentido, a luta pela sobrevivência, por reconhecimento e inclusão social

funcionarão como motores desses movimentos. A religião, com suas variações e conflitos,

constitui dimensão fundamental da visão de mundo da maioria desse universo.

Ao falar sobre a violência que se instaura no Rio de Janeiro, Gilberto Velho anuncia o

desenvolvimento de uma cultura de violência em que a civilidade mais elementar se esfuma

diante da agressividade. Ficando a coexistência, a convivência e a interação entre diferentes

segmentos sociais, tradições e estilos à exigência de um complexo processo de negociação da

realidade, que requerem medidas e ações reguladoras para o conflito. A política seria a

atividade fundamental para a constituição de um poder público com legitimidade junto com a

sociedade como um todo. Porém, a dificuldade de regular esses conflitos dentro dessa

complexidade sociocultural – o compartilhamento de crenças e valores –, aliados a violência

radical e contínua, põem em xeque as possibilidades de comunicação e relacionamento. Velho

conclui que sem um grande esforço coletivo envolvendo a sociedade civil – com seus diversos

grupos, segmentos e categorias –, o Estado em diversos níveis e o governo Federal, o Rio de

Janeiro – com toda sua riqueza cultural e atores sociais criativos –, ficarão condenados a

sobreviver precariamente no meio da desordem, do medo e dos desencontros.

É dentro desse cenário conturbado e socialmente complexo que a cidade do Rio de

Janeiro, em pleno ano eleitoral, recebe Exu dos Ventos.

Importante situar que a iniciativa do poder público em homenagear as culturas afro-

brasileiras com uma peça na imaginária urbana não é novidade dentro da história política do

Rio de Janeiro, como nos lembra Mariza de Carvalho Soares Nos Atalhos da Memória –

Monumento a Zumbi. Houve, em 1982, uma aliança entre o Partido Democrático Trabalhista

(PDT) e o Movimento Negro. A candidatura de Leonel Brizola ao governo do Estado reuniu

importantes lideranças e militantes do Movimento Negro. Não por acaso, no último ano de

seu mandato, a apenas poucos dias das eleições, Brizola inaugurou o Monumento a Zumbi.

Darcy Ribeiro, idealizador da apropriação da cabeça de bronze do Benin por Zumbi, era o

candidato do PDT que concorria à sucessão de Brizola. Entretanto, não conseguiu ultrapassar

o favoritismo de Moreira Franco (PMDB).

A disputa eleitoral, no ano de 2000, para a Prefeitura do Rio de Janeiro, foi bem

interessante; apresentava em pesquisa um ―empate técnico‖, ainda no primeiro turno, entre os

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candidatos Conde, César Maia e Benedita, como nos assinala Marcus Figueiredo, Luciana

Fernandes Veiga e Alessandra Aldé.44

Conde estreou na política como secretário de Urbanismo de César Maia, entre 1992 e

1996. Conde venceu as eleições seguintes apadrinhado por César Maia e administrou a

Prefeitura do Rio de Janeiro entre 1996 e 2000. Ambos dividiam méritos e deméritos dos

programas Favela-bairro, Rio-Cidade, na construção da Linha Amarela e na criação da

Guarda Municipal, entre outros. Se nas eleições de 1996 ambos buscavam convencer o

eleitorado carioca que Conde era César e vice-versa, nas eleições seguintes, após um

rompimento entre eles, o objetivo era disputar o mérito dos projetos: Conde pelo PFL e César

pelo PTB. Além de outros candidatos, a Prefeitura também estava sendo disputada com a

Benedita da Silva (PT) – cuja plataforma eleitoral contava com apoio de parte do Movimento

Negro tanto quanto contava com parte dos evangélicos. Essa configuração de apoio político é

compartilhada com o candidato Conde, efetivamente eleito.

Geralmente no período pré-eleitoral, compreendido entre março e julho, os políticos e

a mídia começam a mobilizar o eleitorado. É nesse período que iniciam a formação de

alianças. O envolvimento do eleitorado cresce ao longo processo eleitoral, e como nesse início

a propaganda política eleitoral ainda está proibida, a alternativa é a promoção de

acontecimentos ―eleitoreiros‖ para difusão na mídia. Nesse sentido, dentro da sociedade de

massa que compõe o Rio de Janeiro, a mídia assume um importante papel informativo, dando

maior ou menor visibilidade, a depender da importância que atribui a determinados assuntos

ou personalidades.

É nesse momento, e não em outro, que Exu dos Ventos ganha grande relevância pela

mídia impressa. E é nesse período que Exu fica mais forte e mais difícil que seus criadores. O

fato é que sendo pelas preocupações eleitoreiras ou por outro motivo qualquer, a inauguração

da escultura que estava prevista para meados do ano 2000 foi adiada para depois das eleições

pelo prefeito.

44

FIGUEIREDO, Marcus; ALDÉ, Alessandra; VEIGA, Luciana Fernandes. Cesar versus Conde e a nova política carioca: a

disputa eleitoral no Rio de Janeiro, 2000. In: SILVEIRA, Flavio (org.). Persuasão, estratégia e voto: as eleições municipais

de 2000. Porto Alegre, 2002.

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IV

Polêmica de Exu dos Ventos na mídia

Assim desde que Òrúnmìlà pronunciou seu nome, a criança,

Esú mesmo, respondeu e disse:

Ìyá, Ìyá Ng o je Eku

mãe, mãe eu quero comer preás.

A mãe respondeu:

Omo na jeé

Omo na jeé

Filho come, come

Filho come, come

Omo l’okùn

Omo ni jìngìndìnríngín

A um se yì, mú s’òrun

Ara eni

Um filho é como contas de coral vermelho,

Um filho é como cobre,

Um filho é como alegria inestinguível.

Uma honra apresentável, que nos representará depois da morte.

Com a notícia da chegada da escultura de Exu ao Rio, a imprensa marca presença com

uma série de reportagens nos principais jornais cariocas, nos períodos de fevereiro, março e

dezembro de 2000. O jornal O Dia, dos mais populares e de maior circulação no Rio de

Janeiro, publica um total de doze matérias no período. É o jornal que dá maior destaque ao

conflito religioso, abrindo espaço para as opiniões dos evangélicos e para a Bancada

Evangélica da Assembléia Legislativa. Conta ainda com a seção ―Cartas na Mesa‖, onde

expõe várias opiniões de seus leitores.

O Dia inaugura a refrega em 16 de fevereiro de 2000, de forma provocativa, reunindo

a opinião de líderes religiosos sob a chamada ―Evangélicos e católicos reagem‖. Já no

primeiro parágrafo descreve a ofensiva do presidente da Igreja Prebisteriana, o pastor

Guilhermino Cunha, anunciado sua intenção de pedir audiência pública ao prefeito para

impedir a instalação da escultura. Em contrapartida, nesse mesmo texto, líderes católicos não

se opõem claramente demonstrando certa preocupação ―com a possibilidade de gerar mal-

estar‖. Em declaração pública, padre Jesus Hortal, reitor da PUC, complementa ―pode ofender

as convicções de alguém‖. A reportagem conta com declarações favoráveis de representantes

das religiões de matriz africana – os babalorixás Paulo de Oxalá, do candomblé, e, Jair de

Ogum da umbanda. Este último esclarece que Exu dos Ventos é uma entidade boa, mostrando-

se preocupado com a incompreensão de outros, que provavelmente passariam a chamar a

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Linha Amarela de ―via do demônio‖. Fecha o texto com sugestão dos leitores de instalar, além

do Exu dos Ventos, obras de outras religiões tornando a Linha Amarela uma ―linha

ECUMÊNICA‖. Até Paulo Casé, autor do obelisco de Ipanema – obra feita durante a gestão

de Conde, no projeto Rio-cidade –, prestou seu depoimento defendendo o enriquecimento do

cenário urbano com a arte.

Dois dias depois, o jornal O Dia torna a incitar a cizânia através da chamada: ―Exu à

base de resto de cruz‖. Complementa logo abaixo, em destaque ―Escultura polêmica com um

olho e dois chifres foi feita com mesmo material usado em símbolo do cristianismo‖.

Contrapõe as falas do artista, do prefeito, do público e, com certa malícia, descreve ―o local

escolhido já ganhou até apelido de gozadores: seria a maior encruzilhada do mundo. Isto por

estar entre a avenida Brasil e a Linha Amarela, por onde passam 200 mil carros por dia.‖

Em geral ao final das reportagens é dada grande ênfase na intenção da bancada

evangélica de entrar com um processo na Justiça e utilizar o plenário em audiência pública

para tentar impedir a instalação da escultura.

No dia 22 de fevereiro de 2000, o mesmo jornal publica a chamada ―Motoristas

decidirão a instalação do Exu – Conde realizará plebiscito no pedágio‖. A reportagem

esclarece a decisão de Conde de realizar o plebiscito ―em data ainda a ser marcada‖, entre os

usuários da Linha Amarela, devido às pressões feitas pelos evangélicos. Seria feito um

questionário para distribuição na Praça de pedágio, oferecendo as opções do instalar a

escultura nos jardins do MAM ou no Parque do Flamengo.

Instigando ainda mais a polêmica, o jornal anuncia que o reverendo Guilhermino

Cunha, presidente da Igreja Presbiteriana, recebeu a oferta de uma empresa, cuja intenção era

fornecer dez mil adesivos em campanha contra o Exu dos Ventos na Linha Amarela, com os

dizeres: ―A linha é consagrada a Exu. Evite acidentes‖. Ainda anuncia que um grupo de

pastores irá ao local da escultura para ungir a via. O jornal contrapõe a opinião principal no

final do texto citando outras esculturas de entidades de candomblé existentes na cidade do Rio

de Janeiro, mantidas pela Prefeitura, que não receberam o mesmo tratamento.

No dia seguinte, o mesmo jornal publica na primeira página ―Xô, Exu‖ sob a foto dos

pastores com as mãos levantadas em oração e bíblia em punho, a imagem privilegia os dizeres

da placa ao fundo: ―Ampliação da Linha Amarela – por um Rio cada vez melhor.‖ Há quase

um trocadilho visual entre a manchete de capa e o texto no interior do jornal, que na realidade

informa sobre a falta de obras de drenagem na via; mas que, inicia o texto com ―Queima e

destrua todo mal!‖.

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O jornal O Dia fecha o conjunto de reportagens no dia 2 de março de 2000, sob o

título ―Conde admite que Exu vai para o MAM. Prefeito quer evitar polêmica religiosa‖.

Entretanto, no corpo do texto, transcreve a fala do prefeito citando que ainda não havia

decidido sobre o local, mas que se houvesse muita resistência iria acabar indo para o MAM.

Cita ainda uma matéria de outro jornal evangélico, escrita pelo próprio bispo Edir Macedo,

abordando o assunto como uma afronta, sugerindo a perda de votos do prefeito entre os

evangélicos na tentativa de reeleição.

Exu dos Ventos voltará às páginas do jornal O Dia somente no final do ano, após as

eleições e em ocasião de sua inauguração em 16 de dezembro de 2000, sob a chamada

―Escultura de Exu inaugurada‖. O texto, além de recontar a polêmica, insiste que o pastor e

deputado estadual Mário Luiz (PMDB) líder do movimento contra a instalação no início do

ano, ainda iria à Justiça tentar impetrar um mandado de segurança. Em depoimento, declara

que a derrota de Conde nas urnas se deve a sua associação com Exu, complementando que

isso ainda iria trazer maldição para a vida dele, o prefeito.

No dia seguinte, Exu dos Ventos aparece com destaque na fotografia com o prefeito

comemorando juntamente com grupos ligados às comunidades religiosas de matriz africana.

Curiosamente, o conjunto aparece sob a chamada ―Grade na Linha Amarela – Depois de

morte de empresária, Conde quer que passarelas sejam cercadas‖.

O Jornal do Brasil, de maior circulação entre as classes mais altas do Rio de Janeiro,

publicou apenas uma matéria no dia 15 de dezembro de 2000, com uma foto sob o título ―Exu

dos Ventos‖. O texto trata de maneira informativa sobre a inauguração da obra pelo prefeito, a

aquisição da escultura pela empresa Lamsa, além de passar rapidamente pela polêmica com

evangélicos.

O jornal O Globo, um dos maiores jornais do Rio de Janeiro, apresenta matérias sobre

o evento, com destaque para a visão católica. Na primeira reportagem, abre polêmica entre a

representação católica do Cristo Redentor em contrapartida ao Exu dos Ventos afro-brasileiro.

Em outra reportagem, faz uma retrospectiva da obra do artista sobre os temas do candomblé e

de representações católicas de Cristos crucificados. Dá uma grande ênfase em quase todas as

reportagens ao posicionamento do Cardeal Dom Eugênio Salles, contra a escultura.

O jornal Extra, mais popular e de grande circulação na cidade do Rio de Janeiro,

Grande Rio e Baixada Fluminense, inicia suas reportagens no dia 20 de fevereiro de 2000

com a chamada ―Figa de Guiné para benzer a Linha Amarela‖, aparentemente favorável à

instalação da escultura. Logo no primeiro parágrafo, situa o leitor sobre as características

positivas de Exu: ―Se depender da ação do Exu, uma entidade que entre outras coisas protege

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os motoristas, é guardiã dos caminhos e leva para longe a maldade, brevemente os tiroteios,

alagamentos, protestos, acidentes e outros problemas que rondam alguns trechos da Linha

Amarela ficarão para escanteio‖.

Informa erroneamente que o prefeito autorizou a confecção da escultura pelo artista

plástico Mário Cravo Junior e que o Exu dos Ventos estaria sendo produzida em Salvador.

Descreve ainda a ida de 30 espíritas ao local para agradecer e abençoar, comandados por Jair

de Ogum, ―rei dos babalorixás‖.

Segundo Maria Clara Baltar (2005, p. 29), o jornal cria uma disputa de espaço na

cidade entre os católicos e espíritas, como são chamados os representantes das religiões afro-

brasileiras. Abre espaço aos representantes das religiões afro-brasileiras de se manifestarem

sobre o caso. Os evangélicos são citados, mas em nenhum momento foram exibidas suas

opiniões sobre o ocorrido.

Em outra reportagem, de 2 de março de 2000, o Extra exibe: ―O prefeito do Rio, Luiz

Paulo Conde, decidiu acender uma vela para Deus e outra para o Diabo: para não desagradar

umbandistas, católicos e nem evangélicos, ele decidiu que a escultura vai para o MAM‖. No

corpo da reportagem, cita a manifestação contrária de Dom Eugênio Sales.

Exu dos Ventos voltara às páginas desse jornal somente em 15 de dezembro de 2000,

um dia antes da inauguração, informando o local e a hora do evento, justificando que a

informação não foi divulgada anteriormente para evitar protestos de católicos e protestantes.

Entretanto, durante a realização desta pesquisa não foi localizado nenhum projeto,

ementa, petição ou ata de reunião nos sistemas de processamento do Legislativo ou do

Judiciário que dispusesse alguma referência sobre Exu dos Ventos. Foi encontrada somente:

uma Moção de Protesto45

contra a empresa Lamsa pela iniciativa de instalar Exu dos Ventos,

de autoria do deputado Alessandro Calazans, seguida ainda de discurso proferido pelo

deputado pastor Mário Luiz (PFL).46

Este último esclarece em seu discurso o desejo de tornar

pública sua indignação com a instalação da escultura de Exu. Sua perplexidade se dá, em suas

palavras, ―quando tentam agredir e utilizar imóveis públicos para impor a religião, agredindo

a religião dos outros‖. E complementa: ―porque Exu já é religião, com todo o respeito ao

religioso e com todo o ódio pelo trabalho negativo que isso proporciona à sociedade‖. O

pastor recebe um ―aparte‖ do deputado Carlos Dias, inicialmente corroborando com o

45 Moção de Protesto contra a iniciativa da Lamsa, de instalar uma escultura de Exu dos Ventos na Assembléia Legislativa do

Estado do Rio de Janeiro, protocolada sob o número 20001201802, de autoria do deputado Alessandro Calazans, publicado

no Diário Oficial no dia de 23/2/2000.

46 Discurso da Sessão Ordinária Inicial, publicado no Diário Oficial do dia 22/2/2000.

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discurso do pastor para logo em seguida partir para uma disputa entre catolicismo e

protestantismo. Ironicamente, ao final, já tinham até se esquecido de Exu.

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V

Os olhares obre Exu dos Ventos no Rio de Janeiro

Então Òrúnmìlà trouxe todas as preás que pôde encontrar. E Esú acabou com elas.

No dia seguinte a cena se repetiu com peixes. No terceiro dia, Esú quis comer aves.

Gritou e comeu até acabar com todas as espécies de aves. Sua mãe cantava todos os

dias os versos acima e ainda acrescentava:

Mo r’omo na

Ají logba aso

Omo máa

Visto que consegui ter um filho

O que acorda e usa duzentas vestimentas diferentes,

Filho, continue a comer.

No quarto dia, Esú quis comer carne. Sua mãe cantou como de hábito, e Òrúnmìlà

trouxe-lhe todos os animais que pôde achar: cachorros, porcos, cabras, ovelhas,

touros, cavalos, etc.; até que não sobrou nenhum. Esú não parou de chorar.

A cidade universitária da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) está

localizada na Ilha do Fundão e seus dois únicos acessos são através da Linha Vermelha.47

O

primeiro acesso é compartilhado pela Linha Amarela, e outro, mais adiante, em frente ao

Hospital Universitário, intercepta ainda os

acessos à Ilha do Governador, ao Aeroporto

Internacional e à continuação da Linha

Vermelha, até a avenida Presidente Dutra.

Nosso personagem mora no

entroncamento viário da Linha Amarela com

a Vermelha, na parte interna da ilha.

Olhando por esse aspecto, Exu dos Ventos

está no encontro de duas importantes vias da

cidade. Fica numa espécie de canteiro, em

frente ao viaduto que permite acesso à Linha

Amarela, às comunidades de Vila Pinheiros,

47 As duas linhas, Vermelha e Amarela, fazem parte do ―Plano Doxiadis‖, também conhecido como Plano Policromático, foi

publicado em 1965 e concebido pelo arquiteto e urbanista grego Constantino Doxiádis, sob encomenda do então governador

do estado da Guanabara, Carlos Lacerda (1960-1965). Destinava-se à reformulação das linhas mestras do urbanismo da

cidade do Rio de Janeiro. Informação disponível em http://www.urbanismobr.org/bd/documentos.php?id=2765, em

19/1/2010.

20 Vista aérea do final da Linha Amarela. Foto do site

da Lamsa. O Exu dos Ventos está situado no “chifre” direito da imagem, circulado em amarelo.

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Baixa do Sapateiro e Timbau (pertencentes ao Complexo da Maré)48

e à cidade universitária

(ilha do Fundão). Logo atrás, existe uma das avenidas mais movimentadas do Fundão –

notadamente pelas aulas de cursos noturnos, nos prédios do Centro Ciências Matemáticas e da

Natureza (CCMN), Centro de Tecnologia (CT) e Instituto de Alberto Luiz Coimbra de Pós-

graduação e Pesquisa de Engenharia (COPPE).

21 Foto da base da escultura Exu dos Ventos

RJ, Junho/2009. Foto acervo pessoal.

Há trânsito intenso de veículos, nos dias úteis. Apesar da pouca quantidade de

pedestres, eles são constantes. Não há exatamente um calçamento para pedestres – como

acontece no acesso à avenida Brasil, em frente ao HU, além de considerar as extensas obras

da Linha Amarela que não contemplaram esse calçamento – de onde podemos concluir que

essa ausência seja intencional. São vias expressas somente para veículos, não para pedestres.

48 Complexo da Maré (ou simplesmente Maré) é um bairro da Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. Foi desmembrado

de Bonsucesso pela Lei Municipal 2.119, de 19 de janeiro de 1994. A região, também conhecida como Favela da Maré, reúne

diversas comunidades e favelas às margens da Baía de Guanabara. Com cerca de 130 mil moradores (dados de 2006), possui

o maior complexo de favelas do Rio de Janeiro, conseqüência dos baixos indicadores de desenvolvimento humano que

caracterizam a região.

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Para compreender a ―dinâmica do olhar‖ que está em jogo no Exu dos Ventos –

especificamente na estrutura narrativa da Linha Amarela – é preciso considerar a interação do

observador com a obra e com sua orientação espacial. Paulo Knauss afirma em ―Olhares sobre

a cidade: as formas da imaginária urbana‖ (2001, p. 10) que os aspectos formais escultóricos

podem ser abordados a partir de sua relação com a forma urbana, organizando a construção

dos olhares sobre a cidade, dando sentido à imagem escultórica que se define como imagem

urbana.

Knauss parte da prerrogativa de centralismo, onde o ―poder de centro‖ (ARNHEIM,

1990) pode se desenvolver na escultura tanto em relação a sua posição na malha urbana como

em posição com o observador. Nesse sentido, Exu dos Ventos na Linha Amarela vai recusar o

poder do centro conferido pela localização central não só em relação às avenidas da Linha

Amarela e Linha Vermelha, mas como também em relação à planta do entorno onde está

instalado. Outra característica passa pela sua posição viária, percebida do ponto de vista do

veículo em velocidade, somando ao olhar mais um dinamismo sensível, potencializando suas

características cinéticas.

Lembro-me bem de quando o Exu dos Ventos foi instalado. Na época, fazia a minha

graduação na UFRJ e, quando pude observar a escultura, foi através da janela de um ônibus

em movimento. Fiquei feliz de ver Exu dos Ventos. Enquanto adepta de culto afro, senti-me

orgulhosa. Entretanto, não atentei para o detalhe de ser uma escultura móvel. E como o local é

quase exclusivamente de passagem viária, fui naturalizando esse personagem no cotidiano,

nas minhas idas e vindas. Depois de certo tempo recordo-me, de repente, de ter olhado a

escultura e achado sem graça. E ainda pensei na hora: ―Caramba, que coisa sem graça. Tanto

bafafá… e a escultura, de Exu só tem o nome‖. Depois é que me dei conta de que pelo menos

metade dela estava faltando.

Acredito que o nosso personagem Exu dos Ventos careça de uma vista adequada.

Minha grande dificuldade em compor essas análises é de não ter contemplado a obra como

platéia, e assim me relacionado com a espécie de presença cênica oferecida pelos movimentos

da escultura. Rosalind Krauss (2007, p. 244) chama nossa atenção para a temporalidade

estendida como conceito de tempo. Nos caminhos da escultura moderna há uma fusão da

experiência temporal da escultura com o tempo real, conferindo ao trabalho certa teatralidade.

Um dos aspectos mais notáveis da escultura moderna é o modo como manifesta a consciência

cada vez maior de seus praticantes de que a escultura é um meio de expressão peculiarmente

situado na junção entre repouso e movimento, entre o tempo capturado e a passagem do

tempo. É dessa tensão, que define a condição mesma da escultura, que provém seu enorme

poder expressivo.

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Essa teatralidade, de certa forma, foi suspensa quando Exu dos Ventos se muda para a

Linha Amarela. Porém, o sentido cinético é deslocado do eixo da estrutura da obra – afinal

trata-se de uma escultura móvel – para aquele que a contempla. A dinâmica do olhar se

inverte e subverte a temporalidade pensada pelo artista. Artes de Exu? Talvez. Como já ouvi

dos mais velhos: ―Exu mata o pássaro hoje com a pedra que atirou ontem‖. Nessa nova

situação, é o olhar que se movimenta e não a obra, conferindo um novo caráter cinético ao que

antes era fixo.

Na tentativa de melhor compreender os olhares que se cruzam e que conferem sentido

à escultura Exu dos Ventos, fui até a Linha Amarela. Assim como no trabalho de campo do

Tridente de NI, minha intenção também passava pela recuperação da memória dos

funcionários de empresas vizinhas à escultura, que tivessem convivido com a obra inteira. No

entanto, durante a incursão percebi que era dada maior ênfase à questão simbólica de Exu do

que à apreciação estética.

Conversei com um dos técnicos da ambulância UTI Vida que presta serviço à Lamsa.

Logo de início, o entrevistado falou o nome do autor e da obra. Estava fazendo um curso para

pastor da Igreja Evangélica. Conta ainda que recentemente, Exu dos Ventos havia sido tema

das aulas, entre outras esculturas da cidade. Então insisti em questionar sobre o problema com

esta imagem, exatamente porque já existem, no Rio de Janeiro, outras imagens de referências

religiosas – como o próprio Cristo Redentor –, perguntei se não havia um pouco de

preconceito por se referir ao universo afro-brasileiro. Por que esse segmento religioso não

teria também o direito de figurar seus mitos em obras de arte distribuídas pela cidade? No que

o entrevistado respondeu: ―Por ser Exu e por ser associado ao diabo, o que deixa a situação

bem complicada‖. Insisti sobre a questão do preconceito e ele sentenciou:

Isso simplesmente não combina com o lugar. Esse negócio de mexer com o vento – o que isso

tem haver com esse lugar? É um local que tem toda uma questão ecológica e a meu ver não

combina com nada aqui, nem na forma e nem na idéia. Poderiam ter arrumado um lugar mais

adequado.

Um dos funcionários da Cedae, quando abordado sobre a escultura, com bom humor

respondeu: ―Isso aí é macuuumba!‖ Não contive o riso e perguntei o que entendia por

macumba: ―É, dona,... é macumba. Volta e meia vem um grupo aqui e deixa um monte de

‗sujeira‘ ali‖. Então, surpreendida, perguntei: ―Mas, na escultura?‖ E meu interlocutor

respondeu que sim, além de toda a volta e em todos os lugares da ilha. Que havia algum

tempo que não faziam nada, mas que era rotineiro deixarem oferendas aos pés da escultura.

Agradeci e, intrigada, me despedi. Algumas funcionárias do CCMN que descansavam de

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frente para a avenida Seis também reclamaram da sujeira deixada com as oferendas, sem

entrar em maiores detalhes sobre a escultura.

Resolvi ponderar algumas questões nas narrativas coletadas. A primeira delas foi sobre

Exu dos Ventos não dialogar com o entorno da ilha, sugerindo que a idéia da instalação no

MAM encontraria local mais apropriado. Para sair do Fundão, qualquer ônibus precisa dar a

volta em toda ilha e, nesse percurso, observei a arquitetura dos prédios existentes,

principalmente em toda a avenida Um. Há um centro de pesquisas da Petrobrás, o Cenpes, e

em frente, na mesma avenida, está sendo erguido um enorme pavilhão todo em estrutura

metálica, em que a cobertura tem um formato de uma única onda. Logo na frente construíram

uma cúpula que confere um aspecto ainda mais futurista ao conjunto. Isso para utilizar de

linguagem leiga.

Dessa forma, é possível fazer uma abordagem da narrativa visual da escultura com a

forma urbana do Fundão. Exu dos Ventos afeta o espaço como um ator mecânico, que dialoga

com a passagem do tempo, inclusive pela estrutura de aço em moldes construtivos. Tudo isso

animado por uma fonte de energia externa. Esse aspecto cibernético encontra eco nos

modernos edifícios e centros de pesquisas de complexas tecnologias que compõem o campus

universitário, propondo um novo olhar sobre a ilha.

Rosalind Krauss (2007, p. 253) chama atenção ainda sobre o papel ideológico de toda

a arte. De que as obras de arte projetam uma imagem particular do mundo, ou de como é estar

no mundo. Esse ―mundo‖ é compreendido fundamentalmente diferente quando observado de

diferentes pontos de vista ideológicos. Embora haja toda uma construção histórica e

ideológica que levaram os cristãos católicos a traduzirem Exu como diabo no século XIX,

(VERGER, 2000, p. 119) essa construção ganha força com os neopentecostais.

Esse ataque às imagens de santos e orixás – que volta e meia são noticiados nos jornais

– em parte se baseiam numa concepção iconoclasta de que as imagens não possuem

legitimidade com os assuntos sagrados, numa disputa entre palavra (Bíblia) e imagem na

representação do sagrado.

Há uma clara tensão entre as concepções de imagem contida na escultura Exu dos

Ventos. Embora o artista afirme que não utiliza qualquer conotação religiosa ou ortodoxa

quando elege figuras religiosas como tema em suas esculturas. Porém esse sentido místico é

incorporado pelo público devoto no Rio de Janeiro. E, ironicamente, a escultura passa a ser

―alimentada‖ pelo povo-de-santo.

Na busca pela essência da escultura como imagem, Cristina Salgado (2008) chega à

concepção de imagem como espectro invisível, consubstanciado com o indizível, que encarna

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em diferentes suportes. Entretanto, no exercício do enigma, problematiza que ―a atribuição de

valor a um ícone se relaciona com legitimidade, e esta, com a fidelidade à imagem que é seu

modelo original e fundador‖ (SALGADO, 2008, p. 141).

Entretanto no universo cultural do povo-de-santo, as dinâmicas religiosas da prática de

representação alcançam sua legitimidade como valor nos processos que se operam no seio da

vida religiosa. Essas representações são consubstancializadas nos assentamentos dos

ancestrais míticos, gerando ainda uma

Subdivisão que pode induzir a pensar em um sistema de representação fragmentador, no qual

o indivíduo se subdivide em muitos objetos. Ao renascer no culto, em vez de se dividir, a

pessoa iniciada se multiplica; em vez de se diluir em outros, reforça os traços de sua

personalidade. Assim, seu corpo passa a estar ligado a outros, a indivíduos compostos de

outra carne, que devem ser tratados já que os assentos demandam abrigo, asseio, alimentação,

convívio – práticas que implicam em educação e reintegração social. (CONDURU, 2007,

p. 30)

A lógica do monumento de arte em espaços públicos para contemplação não participa

da lógica dos assentamentos. A cultura material constante nas práticas das religiões afro-

brasileiras geralmente é mantida inacessível aos não iniciados, havendo algumas situações

específicas em que são expostas. Seguindo por essa linha, o Exu dos Ventos de Mário Cravo

não se caracterizaria como objeto sagrado para o povo-de-santo, sem que para isso passasse

pelo tratamento adequado. Talvez as oferendas se justifiquem devido a sua privilegiada

localização no que se configurou como um jardim, uma enorme encruzilhada, morada da

energia de Exu.

São situações que podem vir a colocar a legitimação da escultura como artefato

religioso pelo povo-de-santo. Esse é um dos argumentos utilizados por Roger Sansi ao tratar

as esculturas dos orixás do Dique do Tororó, de Tatti Moreno. O fato das esculturas

representarem orixás não significa que contenham um valor religioso para os adeptos das

religiões de matriz africana. E argumenta, por uma função cultural e social, na medida em que

podem ―estimular a sensibilidade estética da cidadania‖, palavras suas. Sansi conclui que os

ataques iconoclastas dos pentecostais constituem uma forma mais combativa de ocupar o

espaço público, em disputa com as outras religiões. Complementando,

Identificando-os como ídolos, com os seus ataques iconoclastas, os crentes tomavam uma

atitude com relação às esculturas absolutamente oposta à experiência estética, que esse

monumento esperava suscitar. Poderíamos explicar essa contradição nos termos seguintes: na

experiência estética temos uma consideração fundamentalmente sensitiva da aparência das

coisas observadas, independentemente da ―coisa-em-si‖ e do interesse do observador.

Idealmente, no juízo de gosto, sequer tocamos o objeto – é uma experiência muito visual,

subjetiva e intelectualizada. Diferenciamos o símbolo – o que a escultura representa – da coisa

em si; podemos apreciar a beleza do objeto independentemente da nossa fé religiosa – não

importa se acreditamos nos orixás ou não. A atitude do iconoclasta é totalmente diversa: a

aparência das coisas, para o iconoclasta, é engano e deve ser evitada; o que importa realmente

é o que está por dentro e, neste caso, não seria outra coisa além do Diabo.

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VI

Imagem assento

Até que no quinto dia, Esú disse:

Ìyá, Ìyá,

Ng ó je ó!

Mãe, mãe,

Eu quero comê-la!

A mãe repetiu a canção... e foi assim que Esú engoliu a própria mãe.

Òrúnmìlà, alarmado, correu a consultar Ifá que lhe recomendou fazer oferendas

contendo uma espada. Assim foi feito.

Encontramos ao longo da pesquisa algumas nuanças bem interessantes sobre a escolha

do ponto de morada da escultura na Linha Amarela que merecem lugar aqui. Através da

etnografia em torno da obra, das indicações provenientes da orientação da pesquisa e dos

atores presentes na inauguração da escultura, foi possível coletar relatos sobre a escolha do

local dentro da Linha Amarela.

Mário Cravo Neto, filho do escultor, manifestou o desejo de assentar Exu no local de

instalação da escultura a um dos assessores do prefeito do Rio, seu conhecido, que se

prontificou a ajudar. Havia ficado acordado com Cravo Neto que esse assessor entraria em

contato com uma casa de santo aqui mesmo do Rio de Janeiro para poder realizar o intento.

Assim foi feito. O assessor foi até a casa do pai Celso de Omolu e Júnior de Odé, que

gentilmente me cederam essas informações em entrevista.

Através do jogo de búzios, Exu fez algumas exigências e escolheu o local da

instalação da obra, além de ter dado algumas orientações sobre o dia da inauguração. A parte

ritual foi prontamente combinada. Talvez por conta de toda a troça midiática sobre Exu dos

Ventos, houve um adiamento da cerimônia que foi concluída somente após as eleições.

Infelizmente Mário Cravo Neto, filho do escultor, veio a falecer em agosto de 2009.

Ao conversar com Mário Cravo Júnior, em setembro do mesmo ano, sobre o assentamento da

escultura, este logo diz: ―Isso é coisa de Mariozinho, meu filho. Ele que gosta muito... Eu não

me envolvo com essa coisa de religião. Nunca quis saber‖.49

E conta que foi suspenso ogã

pelo menos três vezes, mas que não foi adiante. Mostrou a tatuagem no braço feita por

Carybé, de Omolu. Contou que um havia tatuado o outro com o Orixá de que seriam filhos.

49 CRAVO Jr., entrevista concedida a Mônica Linhares, em 21/9/2009.

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Na época em que começaram a frequentar as casas de candomblé da Bahia haviam lhe dito,

que ele, Cravo Junior era filho de Omolu. Carybé se envolveu mais profundamente com a

religião, completando suas iniciações. Porém Mário Cravo foi categórico em se colocar

apenas como um simpatizante ou visitante, sem maiores comprometimentos, de interesse

puramente artístico.

De acordo com Pai Celso o Exu assentado foi Exu Sete Encruzilhadas, que é uma

entidade da Umbanda ligada a Oxalá. Através dos búzios a entidade recomendou, ainda, que a

inauguração fosse feita pela manhã, com uma festa simples, sem bebida alcoólica e de poucos

convidados.

A assessoria do prefeito recomendou discrição para que não houvesse nenhuma

manifestação com cartazes contrários à escultura nem nada do tipo, uma vez que o

22 Inauguração da obra. Foto Luis Carlos da Silva. RJ, 16/12/2000. Dentre os presentes foi possível identificar: o Prefeito Conde no centro; Mário Cravo Neto do lado direito em segundo plano (óculos escuros); Junior de Ode e Pai Celso logo à esquerda do prefeito em primeiro plano.

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assentamento ocorreu no foro íntimo dos atores aqui descritos. A escultura foi montada no dia

15 de dezembro, pelo filho mais novo de Mário Cravo, Ivan. A cerimônia religiosa foi

realizada nesse mesmo dia, bem cedo, antes mesmo da chegada da escultura. Estavam

presentes apenas os sacerdotes envolvidos. E, assim, assentaram Exu no local que foi

destinado à escultura Exu dos Ventos.

No dia da inauguração, antes da chegada da comitiva e dos convidados, Pai Celso

conta que Mário Cravo Neto veio acompanhado de um sacerdote da Bahia, deram um obi50

a

Exu que respondeu satisfatoriamente sobre os procedimentos religiosos realizados.

Na hora marcada chegaram outras pessoas ligadas aos segmentos religiosos afro para

participar da inauguração, trajados com a indumentária religiosa observada na foto. O prefeito

pôde contemplar a escultura e comemorar essa instalação depois de todo o impasse que se

colocou diante da bancada evangélica e da mídia, mesmo após perder as eleições.

50 Obi – semente de noz de cola, originária da África, presente nas cerimônias e na prática do jogo de confirmação, cf.

BENISTE, 2000, p. 192.

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VII

Exu “perde a cabeça”

No sexto dia depois de seu nascimento, Esú disse:

Bàbá, bàbá,

Ng ó je ó ó!

Pai, Pai,

Eu quero comê-lo!

Òrúnmìlà cantou a canção da mãe de Esú e quando este se aproximou, Òrúnmìlà

lançou-se em sua perseguição com a espada e Esú fugiu.

23 Escultura Exu dos Ventos Ilha do Fundão, RJ Agosto de 2009. Foto Mônica Linhares.

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Durante todo o tempo que durou esta pesquisa a escultura permaneceu no estado desta

foto: destituída de parte da estrutura móvel. Durante as entrevistas sobre o Tridente de NI

coletei a informação de que Exu dos Ventos teria sido danificado por vandalismo. Disseram

que traficantes da Favela da Maré – talvez simpatizantes das Igrejas Neopentecostais, teriam

arrancado a parte superior da escultura a tiros. Após a queda, parte da escultura teria sido

levada ao Pamplonão, como chamavam, na época, o galpão de pintura da Escola de Belas

Artes, no prédio da Reitoria.

Havia o intuito da Companhia Omo Aro de propor um projeto de restauração do Exu

dos Ventos, uma vez que mantém como missão principal ―resgatar o saber tradicional das

religiões afro-brasileiras e promover a preservação do meio ambiente a partir desse resgate‖.51

Fiquei alguns meses tentando contato com a Lamsa. Até que finalmente consegui falar

com o engenheiro responsável pela conservação que, gentilmente, informou que a escultura

era de responsabilidade da Fundação Parques e Jardins e que a parte faltante estaria guardada

num galpão na Praça Onze.

Entrei em contato com Fundação Parques e Jardins, na divisão responsável por

monumentos e chafarizes fui muito bem recebida pela equipe. Prontamente colocaram à

minha disposição os arquivos das reportagens, bem como fotografias da retirada da escultura

do local.

24 Foto da retirada de parte da escultura pela FJP. Rio, maio de 2005. Cortesia de Vera Dias.

51 Texto extraído do folheto educativo Oku Abo Espaço Sagrado – Educação ambiental para religiões afro-brasileira,

produzido em parceria com a Fundação Cultural Palmares e Ministério da Cultura, com tiragem de 15 mil exemplares para

distribuição nas comunidades de Axé.

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A arquiteta Vera Dias, responsável pelo setor, estava presente quando da retirada dessa

parte da escultura e esclareceu que foi derrubada por um forte vento, em maio de 2005.

Apontou, na foto, pela direção como está caída, que é contrária à direção do vento Sudoeste,

causador da queda. Disse ainda desconhecer indício de tiros ou algo do tipo. Também

desconhecia que a escultura tivesse passado pela Barra da Tijuca, como eu havia sido

informada, no Fundão.

Encontrei a parte superior da escultura abaixo do elevado por onde passa a avenida

Trinta e Um de Março. Por conseqüência da proximidade com áreas de risco e dos frequentes

furtos, todas as peças na parte externa do galpão estavam amarradas com correntes ou cabos

de aço. Surpreendentemente, deparei-me com a parte superior de Exu dos Ventos amarrada a

outra peça que, anteriormente, compunha uma cruz.

Não consegui maiores detalhes sobre a cruz. Mesmo na hora fiquei confusa, sem

conseguir identificar a parte completamente, pois que não tenho na memória a imagem da

escultura Exu dos Ventos inteira. Apesar de ter estudado no Fundão e ter passado diversas

25 Parte superior da escultura Exu dos Ventos acorrentada à cruz. Fundação Parques e Jardins, Praça

Onze, RJ. Agosto de 2009.

Foto Mônica Linhares.

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vezes e observado, tive dificuldade de montar a imagem inteira. A minha relação com a

escultura passou a ser pela identificação do que está lá atualmente. E quando olhei a cruz,

fiquei sem saber se era outra cruz ou se eram indícios da tal ―sucata da cruz‖ que Mário Cravo

havia mencionado em sua carta. A partir de então fiquei pensando sobre essa insistência na

cruz.

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VIII

Cruz, Cristos e Exu

Quando Òrúnmìlà o reapanhou, começou a seccionar pedaços de seu corpo, a

espalhá-los, e cada pedaço transformou-se em um Yangi.

Òrúnmìlà cortou e espalhou duzentos pedaços e eles se transformaram em duzentos

Yangi.

Exu e Cristo. Porque não Jesus? Cristo. Sutilezas da linguagem, onde há insistência na

cruz. Força do símbolo. A palavra Cristo contém em si a plasticidade dinâmica da ação.

Violência do homem. Homem crucificado. Homem contra a matéria numa luta sem fim. Na

cruz. Em cruz. Crucificado, mas não passivamente. Tudo constitui essa inquietude. O fazer do

artista, o homem, o espírito, a matéria. Reinterpreta a iconografia e o ícone com a matéria e a

forma, dando certo tratamento bruto à superfície, conferindo ineficiência à visão. É preciso

tato. Essa materialidade do humano na obra cria um potente jogo entre forma e símbolo.

Outro escultor, Alexander Calder cria seus móbiles jogando com o balanço do peso das

26 Cristo em ascensão e Cristo amarrado

Madeira pintada, sucata de peças de madeira do incêndio do Mercado Modelo, 1987. Bahia. (Catálogo Revisitando Cravo, fig. 2)

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formas. Nesses Cristos, Mário Cravo joga com o balanço do peso dos símbolos. Entremeando

presenças, ausências e transfigurações, insere índices que tornam a matéria carnal: olhos,

dentes e pênis. Mede, mas não meticulosamente, esses artifícios, num equilíbrio estonteante.

E Exu? Paradoxalmente, em sua obra são quase antítese de seus Cristos, os Exus são

soberanos, serenos, combativos, galhofeiros, altivos. No mito, precede o humano, pois é

princípio dinâmico. Impermanente e inconstante, Exu não se fixa em forma nem em lugar.

Está sempre de passagem. Mário Cravo capta essa essência e seus Exus apresentam uma

harmonia volitiva na forma. Não há conflito entre o espírito e a matéria. O espírito

inconformado que opera em seus Cristos encontra certa plenitude nos Exus.

27 Exu Cravo Junior Escultura em cobre rebatido Parte do grupo escultórico do Correio, na Pituba, em Salvador (BA), 2009. Foto Mônica Linhares

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O hercúleo Exu, integrante do grupo escultórico encomendado especialmente para o

prédio dos Correios de Pituba, em Salvador, feito a partir de recortes de cobre rebatido, se

conectam na superfície criando vazios, aparentando um simulacro muscular corpóreo,

compondo uma escultura de aproximados três metros de altura. Deixa à mostra espaços entre

um recorte ou outro, atravessados pela luz em alguns lugares. Há um espaço vazio que

corresponderia à região do diafragma, como se a musculatura estivesse contraída, retesada,

insuflado de ar e energia, como se Exu estivesse pronto para agir. Sustenta vigorosamente um

tridente sugerindo um estandarte – tem 4,5 m de altura – que está apoiado no chão e que

completa a firmeza de um tripé. Na outra mão, carrega um ―ocô‖.52

Um dos pés está apoiado

num banquinho. Na cabeça, sustenta os chifres e a lâmina. Mais uma vez Mário Cravo joga

esteticamente com a iconografia, reinterpretando-a entre sincretismos e ortodoxia, porém não

vertiginosamente como nos Cristos, mas numa estabilidade afirmativa sobre o lugar, o espaço.

Assim representa e reinterpreta Elégbára – o senhor do poder. Cravo, ao descrever essa

escultura, comenta

52

Não foi encontrada qualquer sugestão de significado para a palavra, por agora, ficamos com a definição do

próprio artista, um instrumento (em forma de concha) de comunicação com o Orum e que concede a Exu a

velocidade. Pode ser entendido como o caracol (okotô) que, de um ponto inicial, abre-se em espirais até o

infinito, cf. LODY, 2003.

28 Fotos Cravo Neto. Catálogo Espaço Cravo, BA, 1998.

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Esse elemento se chama ocô. Que é um dos símbolos que ele carrega para levar a mensagem

entre os deuses. Pois tem que ter a velocidade instantânea. O banquinho onde ele coloca o pé:

é o privilégio, a autoridade. Que é coisa de uma metáfora africana, não? O assento que é o

sexo. Tem que ter uma deidade fálica. Como você pode entender isso, minha filha,

racionalmente? Que Oxalá, que é a deidade da limpeza, da procriação... Obviamente a

procriação está dentro da mecânica sexual com o Cristo crucificado. O que tem que ver a

procriação com Cristo crucificado? 53

Já no Exu dos Ventos, Mário Cravo parte para a economia formal de recortes

geométricos em sentido construtivo, encimado por uma condição cinética. Construtivo no

fazer, sem eliminar totalmente o figurativo e o simbólico; não nesse trabalho. Aqui, a pujança

do cadinho sincrético baiano aflora na organização simétrica das formas geométricas. Anima

sua escultura com movimento dos ventos. E quais ventos? Não foi feita para um lugar

específico. Seu projeto segue livre o curso da criatividade. Do ateliê vai para o Espaço Cravo,

em Salvador, e de lá para o Rio de Janeiro, como Exu, que caminha. Nessa obra podemos

reconhecer um pouco de outro semblante de seu trabalho, que encontraremos espalhado nos

gramados do Espaço Cravo.

O artista, imbuído de seu fascínio pelas máquinas, recicla equipamentos da indústria e

constrói esculturas-brinquedo para o Parque de Pituaçu, onde fica o Espaço Cravo, numa

experimentação lúdica, por vezes delicada, com o espaço, com o entorno e com o público.

Pelo telefone e com bom humor o artista descreveu ―você venha pela orla e logo verá um

parque com umas coisas esquisitas…‖ Entretanto, à primeira vista, as esculturas guardam a

memória dos brinquedos da infância: são bambolês que se equilibram... um bilboquê gigante,

piorras e piões aquáticos, trepa-trepas, cata-ventos, escorregas, dobraduras, divertidos Exus

que lembram piratas, e por aí vai. Há uma descontração com a matéria e logo esquecemos a

dureza e violência do processo escultórico.

Talvez o Exu dos Ventos de Mário Cravo seja um Exu menino, brincalhão como ele

só. Daquele mesmo, à entrada da casa de Òsàlá e querido por Òrúnmìlà. Talvez, ao ser colocado

à entrada do parque, com seu alongado braço, estivesse sempre a convidar ou a cumprimentar

aqueles que passassem por ali, indicando o caminho. A estrutura que sustenta a parte móvel

lembra um foguete, daquele que as crianças desenham, pronto para levantar vôo. Ainda, visto

por inteiro, aqueles robôs extraterrestres futuristas de um olho só que se movem sozinhos, que

estão prestes a caminhar mecanicamente. E na verdade, foi inspirado num brinquedo popular

infantil: o Mané-gostoso.

Pode parecer um tanto alheio, dada sua autonomia de movimentos. Mas é justamente o

lugar que envolve o observador numa relação de tempo e espaço ao som do mar e do vento.

53

Cravo Jr., em entrevista concedida a Mônica Linhares em 21/9/2009, Salvador (BA).

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Assim como as outras esculturas do parque, Exu dos Ventos guarda esse intenso diálogo com

a natureza. É uma observação que requer ―outros tempos‖. Esse ―tempo‖ não é percebido

quando a obra passa a ter morada no Rio de Janeiro. Mas, na história, Òsàlá avisa: ―esse não é

propriamente alguém que possa ser mimado no Àiyé.‖ São referências sutis, que requerem um

olhar atento. Talvez o Rio de Janeiro não estivesse preparado para receber o Exu dos Ventos.

29 Esculturas do Espaço Cravo.

Fotos Mônica Linhares. BA, 2009

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IX

Conciliações

Quando Òrúnmìlà se deteve, o que restou de Esú ergueu-se e continuou fugindo.

Òrúnmìlà só pode reapanhá-lo no segundo òrun e lá Esú estava inteiro de novo.

Òrúnmìlà voltou a cortar duzentos pedaços que se transformaram em duzentos

Yangi. Isto se repetiu nos nove espaços do òrun que ficaram assim povoados de

Yangi. No último òrun, após ter sido talhado, Esú decide compactuar com

Òrúnmìlà: este não devia mais persegui-lo; todos os Yangi seriam seus

representantes e Òrúnmìlà poderia consultá-los cada vez que fosse necessário

enviá-los a executar os trabalhos que ele lhes ordenasse fazer, como se fossem seus

verdadeiros filhos. Esú assegurou-lhe que seria ele mesmo que responderia por

meio dos Yangi.

Mario Cravo Neto é um fotógrafo que também constrói uma visualidade do Candomblé com

múltiplas representações da religião, ora através de imagens simbólicas, unívocas que operam

como ícones, ora através de imagens fragmentadas da realidade, que juntas, constituem um

corpus poético. [...]―Laroyé‖ é, para os Yorubás, a saudação a Exu. Este livro do autor,

Laroyé, é, como ele mesmo disse, uma homenagem, uma oferenda para Exu. (Eliane Coster,

2007, p. 94)

Cruz, cruzeiro, encruzilhada: essa é a grande metáfora de interseção entre Exu e

Cristo. Ambos moram na cruz: Exu na encruzilhada e Cristo na cruz. Embora eu tenha

entendido na conversa com Mário Cravo, que o caminho percorrido por ele para conectar e

30

Assentamento de Exu no ateliê do artista Mário Cravo Neto, filho do escultor. Foto de abertura do site oficial do artista.

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reinterpretar essa relação entre Cristo e Exu passe mais pelo sincretismo entre Cristo e Oxalá

que qualquer outra coisa. Assim, descreve Oxalá como orixá da criação e procriação. Sendo a

procriação intrinsecamente ligada à mecânica do sexo, ao sêmen; e sabendo-se Exu

historicamente representado – em seus assentos na África – pelo falo, entendido como patrono

da cópula.

Cristo e Exu são dois temas fortes na obra de Mário Cravo e se unem no Exu dos

Ventos. Afinal é um Exu feito com o refugo da escultura de uma cruz cristã. Instalado numa

encruzilhada. O Exu assentado é um Exu ligado a Oxalá. E, inevitavelmente, é a cidade do

Cristo Redentor que recebe Exu dos Ventos.

Esse jogo entre Cristo e Exu é inserido no olho do furacão dos conflitos de

intolerância religiosa e participa ativando o diálogo com a sociedade. Várias disputas estão

presentes nessa polêmica. Nas palavras de Maria Clara Baltar (2004, p. 35)

Disputas essas tanto pelo domínio do espaço público (urbano) da cidade do Rio de Janeiro

como uma disputa ideológica e moral presente em cada umas das religiões. Há até mesmo

uma disputa política já que a colocação da obra poderia ser responsável pela perda de apoio

de um partido, no caso o do prefeito Conde, e por outro lado o fortalecimento de partidos que

fazem parte das bancadas evangélica ou cristã. Dessa forma, podemos concluir que a religião

e seus símbolos são peças fundamentais para o entendimento da realidade social, já que além

de um poder sobrenatural elas trazem consigo poderes políticos, econômicos e sociais.

Muitos são os pontos que ainda permanecem obscuros em torno de Exu dos Ventos.

Porém, quanto maior o mistério e a polêmica em relação à obra, tanto melhor para o artista.

Pois amplia o poder de alcance enquanto objeto estético e produtor de sentidos na cidade.

O que nos exige Exu dos Ventos nada mais é do que um esforço de pensar os mundos

sociais existentes na cidade, desconfiando criticamente do senso comum e das certezas

dogmáticas, como nos ensina Gilberto Velho (2007, p. 13) ao propor o estranhamento do

familiar.

Reconhecer as diferenças, estranhar o que está próximo, relativizá-lo são meios de se ter uma

visão mais complexa do mundo em que vivemos e, simultaneamente buscar indagar sobre as

possibilidades de negociação e diálogo entre valores, interesses e atores diferenciados.

Talvez essas interreferências entre Exu e Cristo – personagens tão familiares no

imaginário carioca – sejam um caminho, ou ainda, a tal ação pública valorizando a

conciliação, da qual nos falava Cícero (e nos lembra Gilberto Velho). Se o fenômeno da

heterogeneidade é parte da sociedade complexa moderno-contemporânea, sendo o conflito

não só recorrente – mas também parte constitutiva da vida social como um todo – podemos

ver nele uma oportunidade de conciliação. Em que situações limite vão requerer mudanças.

Como o que acontece na história onde Exu devora tudo até que Orunmilá consegue uma

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conciliação. Porém, essa conciliação requer sempre o encontro dessa aliança entre Exu e

Orunmilá que passam a trabalhar juntos.

Podemos relacionar ainda a queda da parte móvel da escultura com o assentamento

que foi feito, na medida em que os assentamentos demandam cuidados, uma boa manutenção

na parte física da obra se faz necessária. A cidade demanda cuidados com Exu dos Ventos e

com o assentamento de Exu.

Talvez a Cidade Maravilhosa consiga representar a sua complexidade tendo o Cristo

católico de braços abertos e o Exu dos afro-brasileiros indicando o caminho conciliatório

entre cristãos e religiões de matriz africana.

Ficam registrados aqui os apelos às autoridades competentes, uma vez que tanto Mário

Cravo Junior quanto a Fundação Parques e Jardins demonstraram grande interesse em colocar

o Exu aos ventos, novamente.

Essas artimanhas – símbolos, sincretismos e personagens de fé – que se encontram no

campo da arte são artes de Exu.

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CONCLUSÃO

Artes de Exu se evidenciam nas obras, no seu diálogo com a cidade, nos acordos e

desacordos. Mais do que propor um olhar sobre a cidade, a imaginária de Exu no Tridente de

NI e no Exu dos Ventos propõe um diálogo com a cidade.

Quando Exu dos Ventos e o Tridente de NI passam pela galeria de arte essa ocupação

cria uma distância ao teor religioso. E isso se evidencia quando os próprios evangélicos

propõem que o Exu dos Ventos ficaria melhor nos jardins do Museu de Arte Moderna

(MAM). Nesses espaços artísticos – tanto o Espaço Cravo, em Salvador, quanto a Gentil

Carioca, no Rio, e, possivelmente, os jardins do MAM – o olhar sobre as obras dialoga com o

universo da arte. Os trabalhos adquirem um estatuto definitivo como objeto de arte.

Ao habitar a rua, a produção de sentidos dialoga livremente com as culturas. As obras

tornam-se públicas assim como os sentidos atribuídos. O sentido religioso se sobrepõe.

A imprensa multiplica a imagem das obras. Fomenta desacordos e expõe opiniões

contrárias nos jornais. As manchetes mobilizam o público em atos fervorosos contrários e

favoráveis. As tentativas de aniquilação das obras proporcionam sua multiplicação, como no

mito em que Orunmilá avança sobre Exu com a espada para cessar sua voracidade. E o

espalha em todos os espaços. Somente após a multiplicação de Exu é que foi possível

conciliar todo o conflito que é Exu. E assim também acontece com Exu dos Ventos e Tridente

de NI.

Talvez tenha sido arte de Exu essa catalisação dos conflitos que aconteciam de forma

velada, passar às principais manchetes dos jornais, na ordem do dia, com nome e sobrenome.

Apesar da veiculação da imagem do Tridente de NI ficar restrita ao jornal O Dia e ao seu

tablóide, o discurso contido nas notícias causa confusão em relação à própria imagem do

jornal: em que informantes moradores de Nova Iguaçu apontaram o jornal Meia Hora de

Notícias como se fosse evangélico, e isso não é verdade.

Dentre os jornais que veicularam as notícias sobre Exu dos Ventos, o jornal O Dia deu

mais espaço para a opinião dos evangélicos, enfatizando o não apoio de outras vertentes

religiosas à instalação da obra por representar entidade de culto não-cristão em lugar público,

denominando a situação de ―guerra santa‖. Certamente esse posicionamento se deve à

concorrência com o jornal O Globo.

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Os administradores públicos foram postos diante de uma grande encruzilhada: ficaram

entre o apoio ou a censura aos objetos de arte. Porém, a Carta Magna, no

artigo 215 da Constituição prevê que ―o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos

direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional e apoiará e incentivará a valorização e

a difusão das manifestações culturais‖. Também determina que o Estado ―protegerá as

manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos

participantes do processo civilizatório nacional‖, pois ―constituem patrimônio cultural

brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,

portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da

sociedade brasileira‖ (BRASIL, 1988).

Assumir posição contrária aos objetos de arte poderia significar um retrocesso no

processo de ampliação da presença pública de valores afro-descendentes. Embora a

intervenção do prefeito, ao levar funcionários para apagar a obra, se cumpra no caso do

Tridente de NI, essa oposição à vertente afro não fica clara pela própria ambiguidade do

símbolo que é assumida pelo artista. Vogler conta que assumir o tridente como sendo de

Netuno foi inclusive sugestão de um amigo, pelo telefone, antes de falar com o repórter. E

assim se defendeu. Caminhar por cima do muro entre vizinhos com um chapéu vermelho de

um lado e preto do outro para fazer-los brigar é arte de Exu.

Em Exu dos Ventos não há ambigüidade. A temática utilizando os orixás do

candomblé é antiga no trabalho do artista. Apesar do discurso laico, há os relatos referentes ao

assentamento da escultura. Acredito que para esse dado participar da atribuição de sentidos na

imaginária urbana afro-brasileira seria necessário a divulgação do assentamento,

principalmente entre os adeptos das religiões de matriz africana.

Seria preciso levar estudos posteriores, de cunho mais documental, histórico, em que

os atores envolvidos se posicionassem no sentido de reconhecer o assento e lhe fornecer

status de patrimônio da cidade. Buscar entender essa construção de sentido do espaço sagrado

dentro da cidade, buscando situações similares. Seguindo por essa linha de pensamento,

porque não citar o próprio Cristo Redentor? Cuja escultura jaz sobre pequena capela que

simboliza o espaço sagrado católico? Ou ainda buscar esses similares na arquitetura utilizada

e na quantidade de igrejas neopentecostais enquanto espaço sagrado e como forma de

ocupação simbólica na cidade?

Talvez esse enredo de tantos desencontros desembocados numa arte circunstancial

entre a cruz e o tridente seja outra arte de Exu. Assim também como a insistência na cruz –

autorreferências contidas no Exu dos Ventos entre Cristos e Exus. São formas de lembrar

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antigas conciliações simbólicas entre afro-descendentes e cristãos. A mesma conciliação que

associou Oxalá a Cristo e deu os cornos e o tridente a Exu.

No mito, a conciliação de Exu requer uma convivência cotidiana com Orunmilá. Artes

de Exu – assim como suas artimanhas – símbolos, sincretismos e personagens da vida e de fé

–, de certa maneira, lidam com a convivência entre diferentes. Parafraseando Marília Soares,

vão-se os palanques, as pessoas, os artistas, os partidos, influências religiosas e a arte

permanece.

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CIRINO, Flávia. ―Figa de guiné para benzer a Linha Amarela‖. Jornal Extra, primeiro

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―CONDE inaugura a escultura Exu dos Ventos na Linha Amarela‖. Jornal O Dia, edição

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―ESCULTURA de Exu inaugurada‖. Jornal O Dia, edição metropolitana, seção Geral, p. 8.

Rio de Janeiro, 16/12/2000.

―ESCULTURA de Exu vai para o museu‖. Jornal O Globo, p. 5. Rio de Janeiro, 14/6/2000.

―ESCULTURA do Exu vai para o museu‖. Jornal O Dia, seção Geral. Rio de Janeiro,

14/6/2000.

―EVANGÉLICOS e católicos reagem‖. Jornal O Dia, seção Geral. Rio de Janeiro, 15/2/2000.

―EXU dos Ventos vai para o MAM‖. Jornal Extra, seção Extra. Rio de Janeiro, 2/3/2000.

―EXU dos Ventos‖. Jornal do Brasil, p. 22. Rio de Janeiro, 14/12/2000.

―INAUGURAÇÃO Exu dos Ventos‖. Jornal do Brasil, seção Cidade, p. 22. Rio de Janeiro,

15/12/2000.

KAZ, Roberto. ―Mulher filé dá capilé a repórter nerd – com bom humor, sensacionalismo,

invenções e vulgaridade o Meia Hora resiste às organizações Globo no Rio‖. Revista Piauí,

edição especial para Flip, p. 16-18, julho, 2009.

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―LIGAÇÃO entre as cores. Prefeitura inaugura hoje conexão entre as Linhas Amarela e

Vermelha‖. Jornal O Dia, seção Geral, p. 6. Rio de Janeiro, 24/2/2000.

LOCKMANN, Paulo. ―Metodistas desaprovam a estátua de Exu‖. Jornal O Dia, seção

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LOPES, Ésio. ―Imagem de Exu causa polêmica‖. Jornal O Dia, edição metropolitana, seção

Opinião – Cartas na mesa, p. 6. Rio de Janeiro, 20/12/2000.

MAGALHÃES, Luiz Ernesto. ―Exu contra os ‗tranca-ruas‘: empreiteira baiana quer instalar

estátua gigante de entidade do candomblé em acesso à via expressa‖. Jornal O Dia, seção

Geral. Rio de Janeiro, 15/2/2000.

MAGALHÃES, Luiz Ernesto. ―Exu será tema para Câmara – audiência pública vai discutir

instalação de escultura na ligação das vias expressas‖. Jornal O Dia on-line. Rio de Janeiro,

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MAGALHÃES, Luiz Ernesto. ―Fé na Linha Amarela: Exu será esculpido com restos de

cruz‖. Jornal O Dia, seção Geral, p. 7. Rio de Janeiro, 17/2/2000.

MAGALHÃES, Luiz Ernesto. ―Polêmica na Linha Amarela: Evangélicos não querem Exu na

pista. Escultura Baiana na via expressa provoca indignação de vereadores e deputados da

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MARTINS, João Gilberto. ―Respeito às entidades religiosas‖. Jornal O Dia, seção Opinião –

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MERCANTE, Marcio. ―Grade na Linha Amarela – Depois de morte de empresária, Conde

quer que passarelas sejam cercadas‖. Jornal O Dia, edição metropolitana, p. 22. Rio de

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―MONUMENTO: Conde admite que Exu vai para o MAM‖. Jornal O Dia, seção Geral, p. 2.

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MORAES, Carlos. ―Motoristas decidirão a instalação de Exu. Conde realizará plebiscito no

pedágio‖. Jornal O Dia, seções Capa e Geral, p. 1 e 8. Rio de Janeiro, 22/2/2000.

NETO, Lívia. ―Restauração da Mãe Água‖. Jornal da Associação Pro-Civitas, seção Notícia,

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NETO, Lívia. ―Restauração da Mãe d‘Água‖. Jornal da Associação Pro-Civitas, seção

notícia, p. 3, outubro de 2006. Belo Horizonte. Disponível em http://www.pro-

civitas.org.br/JornaisPDFs/Pro_Civitas_Jornal09_Out06final.pdf. Acessado em 23/2/2010.

―NOTA 10 para prefeito Luiz Paulo Conde que autorizou a instalação da escultura Exu dos

Ventos na Linha Amarela‖. Jornal O Dia, seção Dia a dia, p. 4. Rio de Janeiro, 18/2/2000.

POMPEU, Carolina. ―Justiça suspende circulação de livro de Edir Macedo no Brasil‖.

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XÔ Exu! Pastores exorcizam Exu‖. Jornal O Dia, seção Geral, p. 4. Rio de Janeiro,

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ANEXO A – Itá

Por Juana Elbein dos Santos

I

Olódùmarè e Òrìsànlá estavam começando a criar o ser humano. Assim criaram

Esú, que ficou mais forte, mais difícil que seus criadores. Olódùmarè enviou

Esú para viver com Òrìsànlá; este o colocou à entrada de sua morada e o

enviava como seu representante para efetuar todos os trabalhos.

II

Òrúnmìlà, desejoso de ter um filho, foi pedir um a Òrìsànlá. Este lhe diz que

ainda não tinha acabado de criar seres e que deveria voltar um mês mais tarde.

Òrúnmìlà insistiu, impacientou-se querendo levar a qualquer preço um filho

consigo. Òrìsànlá repetiu que ainda não tinha nenhum.

III

Então perguntou: ―Que é daquele que vi à entrada de sua casa?‖ É aquele

mesmo que ele quer. Òrìsànlá lhe explicou que aquele não era precisamente

alguém que pudesse ser criado e mimado no àiyé. Mas Òrúnmìlà insistiu tanto

que Òsàlá acabou por aquiescer.

Òrúnmìlà deveria colocar suas mãos em Esú e, de volta ao àiyé, manter relações

com sua mulher Yebìírú, que conceberia um filho. Doze meses mais tarde, ela

deu à luz um filho homem e, porque Òsàlá dissera que a criança seria Alágbára,

Senhor do Poder, Òrúnmìlà decidiu chamá-la de Elégbára.

IV

Assim desde que Òrúnmìlà pronunciou seu nome, a criança,

Esú mesmo, respondeu e disse:

Ìyá, Ìyá Ng o je Eku

mãe, mãe eu quero comer preás.

A mãe respondeu:

Omo na jeé

Omo na jeé

Filho come, come

Filho come, come

Omo l’okùn

Omo ni jìngìndìnríngín

A um se yì, mú s’òrun

Ara eni

Um filho é como contas de coral vermelho,

Um filho é como cobre,

Um filho é como alegria inestinguível.

Uma honra apresentável, que nos representará depois da morte.

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V

Então Òrúnmìlà trouxe todas as preás que pode encontrar. E Esú acabou com

elas. No dia seguinte a cena se repetiu com peixes. No terceiro dia, Esú quis

comer aves. Gritou e comeu até acabar com todas as espécies de aves. Sua mãe

cantava todos os dias esses versos e ainda acrescentava:

Mo r’omo ná

Ají logba aso

Omo máa

Visto que consegui ter um filho

O que acorda e usa duzentas vestimentas diferentes,

Filho, continue a comer.

No quarto dia Esú quis comer carne. Sua mãe cantou como de hábito, e

Òrúnmìlà trouxe-lhe todos os animais que pôde achar: cachorros, porcos,

cabras, ovelhas, touros, cavalos, etc.; até que não sobrou nenhum. Esú não

parou de chorar.

VI

Até que no quinto dia, Esú disse:

Ìyá, Ìyá,

Ng ó je ó!

Mãe, mãe,

Eu quero comê-la!

A mãe repetiu a canção... e foi assim que Esú engoliu a própria mãe.

Òrúnmìlà, alarmado, correu a consultar Ifá que lhe recomendou fazer oferendas

contendo uma espada. Assim foi feito.

VII

No sexto dia depois de seu nascimento, Esú disse:

Bàbá, bàbá,

Ng ó je ó ó!

Pai, Pai,

Eu quero comê-lo!

Òrúnmìlà cantou a canção da mãe de Esú e quando este se aproximou,

Òrúnmìlà lançou-se em sua perseguição com a espada e Esú fugiu.

VIII

Quando Òrúnmìlà o reapanhou, começou a seccionar pedaços de seu corpo, a

espalhá-los, e cada pedaço transformou-se em um Yangi.

Òrúnmìlà cortou e espalhou duzentos pedaços e eles se transformaram em

duzentos Yangi.

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IX

Quando Òrúnmìlà se deteve, o que restou de Esú ergueu-se e continuou

fugindo. Òrúnmìlà só pode reapanhá-lo no segundo òrun e lá Esú estava inteiro

de novo. Òrúnmìlà voltou a cortar duzentos pedaços que se transformaram em

duzentos Yangi. Isto se repetiu nos nove espaços do òrun que ficaram assim

povoados de Yangi. No último òrun após ter sido talhado, Esú decide

compactuar com Òrúnmìlà: este não devia mais persegui-lo; todos os Yangi

seriam seus representantes e Òrúnmìlà poderia consultá-los cada vez que fosse

necessário enviá-los a executar os trabalhos que ele lhes ordenasse fazer, como

se fossem seus verdadeiros filhos. Esú assegurou-lhe que seria ele mesmo que

responderia por meio dos Yangi.

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ANEXO B – Reportagens

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