universidade de são paulo história noturna de nossa ... · pdf filena periferia...

24
Estudos Feministas, Florianópolis, 17(1): 296, janeiro-abril/2009 135 História noturna de Nossa Senhora História noturna de Nossa Senhora História noturna de Nossa Senhora História noturna de Nossa Senhora História noturna de Nossa Senhora do Risca-F do Risca-F do Risca-F do Risca-F do Risca-Faca aca aca aca aca Resumo Resumo Resumo Resumo Resumo: No Jardim das Flores, sobre as cinzas do antigo bairro do Risca-Faca, vivem as filhas – ou netas e bisnetas – de escravas e “índias laçadas no mato”. Muitas delas também se consideram filhas de Nossa Senhora. A justaposição das linhagens maternas pode suscitar um efeito de montagem. Nas inervações corporais de Nossas Senhoras não lampejam, também, os gestos de índias e escravas? Nos subterrâneos dos símbolos se encontram indícios de “histórias noturnas” de Nossa Senhora. Sobre esse terreno, o estudo de processos de povoamento em Piracicaba, no interior paulista, requer uma espécie de arqueologia: um duplo deslocamento, de um bandeirante povoador a Nossa Senhora, e de Nossa Senhora às índias e escravas “laçadas no mato”. Nesses fundos, o gesto de uma mulher “boia-fria” que “fez picadinho de um homem” agita as sombras de uma nação. Palavras-chave Palavras-chave Palavras-chave Palavras-chave Palavras-chave: gênero; Nossa Senhora; mulher abjeta; teatro da crueldade; “boias-frias”. Copyright 2009 by Revista Estudos Feministas. 1 Meus agradecimentos às/aos duas/dois pareceristas da Revista Estudos Feministas pela leitura cui- dadosa do artigo e suas valiosas sugestões. As lacunas e insuficiên- cias continuam sendo de minha inteira responsabilidade. Agrade- ço à Fundação de Amparo à Pes- quisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) por apoios recebidos para o desenvolvimen- to desta pesquisa. O título deste ensaio inspira-se no livro de Carlo Ginzburg História Noturna (GINSBURG, 1991a). Os procedi- mentos indiciários inspiram-se em um dos artigos do mesmo autor (GINSBURG, 1991b). 2 Os nomes próprios que constam do texto podem ser considerados John C. Dawsey Universidade de São Paulo “O feminino é tonitruante e terrível.” Antonin Artaud Introdução Introdução Introdução Introdução Introdução Neste ensaio pretendo revisitar registros de cadernos de campo feitos nos anos de 1980, numa pequena ravina na periferia de Piracicaba, São Paulo, onde uma centena de famílias do Norte de Minas Gerais e de outras regiões construiu seus barracos. 1 Diante das forças de erosões geológicas e sociais que deram origem ao lugar, a poesia popular o batizou de “buraco dos capetas”. Ela também deu-lhe um nome lírico. Neste ensaio, vou lhe chamar de Jardim das Flores. Quanto ao casal de mineiros que me acolheu, ao lado de cujo barraco morei, vou chamar-lhes de Anaoj e Mister Zé. 2 Mister Zé era “boia-fria”, assim como Anaoj, antes de os netos nascerem. Em meados dos anos de 1970, com a “crise do petróleo” e o esgotamento do “milagre econômico” brasilei- ro, foram criados o Proálcool e o Planalçúcar. Nesse cenário,

Upload: buithien

Post on 03-Feb-2018

215 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: Universidade de São Paulo História noturna de Nossa ... · PDF filena periferia de Piracicaba, São Paulo, onde uma centena de famílias do Norte de Minas Gerais e de outras regiões

Estudos Feministas, Florianópolis, 17(1): 296, janeiro-abril/2009 135

História noturna de Nossa SenhoraHistória noturna de Nossa SenhoraHistória noturna de Nossa SenhoraHistória noturna de Nossa SenhoraHistória noturna de Nossa Senhorado Risca-Fdo Risca-Fdo Risca-Fdo Risca-Fdo Risca-Facaacaacaacaaca

ResumoResumoResumoResumoResumo: No Jardim das Flores, sobre as cinzas do antigo bairro do Risca-Faca, vivem as filhas– ou netas e bisnetas – de escravas e “índias laçadas no mato”. Muitas delas também seconsideram filhas de Nossa Senhora. A justaposição das linhagens maternas pode suscitar umefeito de montagem. Nas inervações corporais de Nossas Senhoras não lampejam, também, osgestos de índias e escravas? Nos subterrâneos dos símbolos se encontram indícios de “históriasnoturnas” de Nossa Senhora. Sobre esse terreno, o estudo de processos de povoamento emPiracicaba, no interior paulista, requer uma espécie de arqueologia: um duplo deslocamento,de um bandeirante povoador a Nossa Senhora, e de Nossa Senhora às índias e escravas “laçadasno mato”. Nesses fundos, o gesto de uma mulher “boia-fria” que “fez picadinho de um homem”agita as sombras de uma nação.Palavras-chavePalavras-chavePalavras-chavePalavras-chavePalavras-chave: gênero; Nossa Senhora; mulher abjeta; teatro da crueldade; “boias-frias”.

Copyright 2009 by RevistaEstudos Feministas.1 Meus agradecimentos às/aosduas/dois pareceristas da RevistaEstudos Feministas pela leitura cui-dadosa do artigo e suas valiosassugestões. As lacunas e insuficiên-cias continuam sendo de minhainteira responsabilidade. Agrade-ço à Fundação de Amparo à Pes-quisa do Estado de São Paulo(Fapesp) e ao Conselho Nacionalde Desenvolvimento Científico eTecnológico (CNPq) por apoiosrecebidos para o desenvolvimen-to desta pesquisa. O título desteensaio inspira-se no livro de CarloGinzburg História Noturna(GINSBURG, 1991a). Os procedi-mentos indiciários inspiram-se emum dos artigos do mesmo autor(GINSBURG, 1991b).2 Os nomes próprios que constamdo texto podem ser considerados

John C. DawseyUniversidade de São Paulo

“O feminino é tonitruante e terrível.”Antonin Artaud

IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntrodução

Neste ensaio pretendo revisitar registros de cadernosde campo feitos nos anos de 1980, numa pequena ravinana periferia de Piracicaba, São Paulo, onde uma centenade famílias do Norte de Minas Gerais e de outras regiõesconstruiu seus barracos.1 Diante das forças de erosõesgeológicas e sociais que deram origem ao lugar, a poesiapopular o batizou de “buraco dos capetas”. Ela tambémdeu-lhe um nome lírico. Neste ensaio, vou lhe chamar deJardim das Flores. Quanto ao casal de mineiros que meacolheu, ao lado de cujo barraco morei, vou chamar-lhesde Anaoj e Mister Zé.2 Mister Zé era “boia-fria”, assim comoAnaoj, antes de os netos nascerem.

Em meados dos anos de 1970, com a “crise dopetróleo” e o esgotamento do “milagre econômico” brasilei-ro, foram criados o Proálcool e o Planalçúcar. Nesse cenário,

Page 2: Universidade de São Paulo História noturna de Nossa ... · PDF filena periferia de Piracicaba, São Paulo, onde uma centena de famílias do Norte de Minas Gerais e de outras regiões

JOHN C. DAWSEY

136 Estudos Feministas, Florianópolis, 17(1): 135-158, janeiro-abril/2009

irromperam os “boias-frias” cortadores de cana. Multidõesde pessoas do Norte de Minas Gerais, Paraná, Bahia, Cearáe de outros estados vinham a cidades do interior paulista,tais como Piracicaba, para produzirem as fontes de energiarenovável que alimentavam a indústria automobilística. Emmeio a um clima de embriaguez, de uma nação movidapor sonhos de progresso, os “boias-frias” tomavam o lugardos sheiks do petróleo. Em Piracicaba, conforme relatos depessoas do “buraco dos capetas”, elas construíram o parqueindustrial e “caíram no buraco”. Também “caíram na cana”,virando “boias-frias”.

Por que revisitar estes registros desbotados? Ali encon-tro, como veremos a seguir, a cena de um crime. E umaarma: um podão de cortar cana. Creio que esse crime, talcomo o teatro imaginado por Antonin Artaud, coloca emmovimento, anos após seu registro em cadernos de campo,as sombras de uma nação.

Quem fizesse uma arqueologia do Jardim das Floresdescobriria que os barracos foram construídos sobre ascinzas de um antigo bairro de periferia: o Risca-Faca. Comfoices providas pela prefeitura para fazer a “limpeza” dolugar, as primeiras famílias mineiras que ali chegaramderrubaram o mato e construíram seus barracos de madeirite.Mas no local já havia barracos ainda mais precários, escon-didos “no mato”, pertencentes a famílias de estratos piraci-cabanos. Ao falarem de suas origens, algumas das pessoasque conheciam histórias antigas do lugar compunham oque parecia ser o mito de um paraíso às avessas. Falava-sede um casal primordial. Mas, ao estilo de uma história decriação da antiga Mesopotâmia, ou de uma nova variantedas histórias de Lilith, surgia uma figura insólita envolta emum clima de horror: uma mulher que, com um podão decortar cana, “fez picadinho” de um homem.

A fogueira vai baixando. Pagé lembra-se de umahistória:“Dez anos atrás aqui era um breu, tudo escuro. Sóhavia mato. Tinha uns eucaliptos e um pé de goiaba.E essa nascente. Mas asfalto não existia. Não tinhanada. O Itapuã era canavial. Havia alguns barracosde barro e bambu. Um dia, uma mulher cortou umhomem, rasgando-o com um facão, de baixo, entreas pernas, até em cima. Fez picadinho. Aí deram onome de ‘Risca-Faca’. O nome pegou. Quem moravaaqui era tudo nêgo, como se diz, de alta periculosi-dade... Chupeta, Capeta, Bertaia, Fião, Noel...”(16.6.83)

Nessa história de origens, nos deparamos com umcorpo em pedaços. Se o sentido do mundo se forma atravésdos sentidos do corpo, essa história pode produzir uma espé-

como ficções literárias do pesqui-sador. O termo “buraco dos cape-tas”, assim como o nome “JoãoBranco”, do pesquisador, não dei-xam de ser ficções reais, nascidasda poesia dos moradores.

Page 3: Universidade de São Paulo História noturna de Nossa ... · PDF filena periferia de Piracicaba, São Paulo, onde uma centena de famílias do Norte de Minas Gerais e de outras regiões

Estudos Feministas, Florianópolis, 17(1): 135-158, janeiro-abril/2009 137

HISTÓRIA NOTURNA DE NOSSA SENHORA DO RISCA-FACA

cie de atordoamento. Um homem vira picadinho. Não setrata, ao que parece, da história de um povoador. O que di-zer da mulher? Mulher capeta dos infernos, ela exala o fedordas flores do mal. Aqui não se cria; destrói-se. Não se formaum casal; ele se desfaz. Não se dá à luz; produz-se o breu.

Em relatos antropológicos sobre a criação de teiassociais em populações urbanas de baixa renda, imagensde mães são recorrentes. Às vezes elas vêm carregadas deaura. Em torno delas criam-se redes de reciprocidadecapazes de oferecer proteção e cuidado. As próprias forçasdo caos, como se movidas pela ação de alguma oleiraoculta, transformam-se em cosmos. Em meio a umapaisagem inóspita e movediça, onde se sabe que viver éperigoso, irrompem formas matrifocais de sociabilidade evizinhança. A vitalidade dessas formas pode surpreender.

A imagem de mulher que surge na história sobre asorigens do Risca-Faca, porém, não se associa à dádiva davida. Qualquer aura de mãe nessa história se dissipa. Aquilampeja uma mulher capaz de matar. O seu gesto, diriam,vem das trevas. É coisa do demônio. Leva jeito de forçahedionda. Ou de coisa ruim, capaz de fazer estremecerimagens de santas e Nossas Senhoras que povoam os altarescaseiros e improvisados de barracos do Jardim das Flores.Curiosamente, no entanto, o gesto também pode evocarimagens de santas capazes de fazer estremecer os homens,como a de Joana D’Arc, guardada embaixo de uma cama.

Ao passar pelo barraco de Maria e Gabriel, vejo aDiolíndia, mulher viúva do sertão do Norte de MinasGerais, que também havia “caído no buraco doscapetas”. Ela fala com entusiasmo sobre um filmeque acaba de assistir na televisão: “Joana D’Arc...!Aquela era mulher de verdade, uma santa! Ela nãotinha medo de homem nenhum. Ela punha aquelaarmadura e ia pro fogo da batalha. Defendia o povodela. Enfrentava flecha, espada, e tiro de canhão!‘Não tenham medo! A vitória é nossa!’, gritava. Ela iana frente, os soldados atrás. Vinha inimigo, vinhalegião, ela enfrentava. Não corria não. Lutava,matava. É uma mulher guerreira!”Antes de eu seguir caminho, Diolíndia sussurra: “AMaria tem um retrato da Joana D’Arc. Antes elapendurava em cima da porta. Agora ela põedebaixo da cama. Falaram que essa santa é acausadora das brigas entre ela e o Gabriel”. (21.1.84)

Em registro brechtiano, sob o signo do “buraco doscapetas”, a personagem do filme assistido por Diolíndiatalvez evoque mesmo os traços de uma Joana Dark.

Nos anos de 1980, em uma excursão a Aparecida doNorte, fui surpreendido por um parque de diversões estranha-mente localizado ao lado da catedral. Ali relampeavam

Page 4: Universidade de São Paulo História noturna de Nossa ... · PDF filena periferia de Piracicaba, São Paulo, onde uma centena de famílias do Norte de Minas Gerais e de outras regiões

JOHN C. DAWSEY

138 Estudos Feministas, Florianópolis, 17(1): 135-158, janeiro-abril/2009

imagens capazes de fazer irromper, com horror, o baixocorporal da santa: “mulher gorila”, “mulher lobisomem”, e“mulher cobra” (a que pica!). Evocavam, acredito, a própriaimagem da senhora do Risca-Faca. Nessa viagem ouvi dizerque a “mulher monga” teria sido filha de índia.

Neste ensaio, tenho interesse especial em discutir umaimagem: a “índia laçada no mato”. Ao narrar um incidentesobre uma disputa com a segunda mulher do seu irmão,Diolíndia diz:

“Sou mulher de destino. Aquela capeta quis me endoi-dar, mas não tem nada não. Também sou capeta.Sou filha de índia que laçaram no mato. Minha mãeera índia, índia brava que não tinha medo doshomens. Enfrentava qualquer arma ou nação. Sócanhão pra derrubar aquela índia do mato! E meupai até jagunço foi. Era baiano, sabia lidar com tudoque era arma: carabina, garrucha, Mausa, M-14... Jánasci capeta, uma diabinha. Por isso, não tenho medodos capetas. Pode vir quantos quiserem que vamosnós explodir no meio dos infernos. Enfrento os diabose expulso tudo de lá. Tenho fé. Deus está comigo!Solto tudo de lá!” (25.5.83)

A imagem de mulher que irrompe na história deorigens do Risca-Faca evoca uma das personagens centraisde narrativas sobre a formação de gente do sertão: a “índialaçada no mato”.

MontagemMontagemMontagemMontagemMontagem

Um detalhe merece atenção: as personagens princi-pais dos registros de cadernos de campo feitos no “buracodos capetas” – incluindo Anaoj e Diolíndia – são devotasde Nossa Senhora. O que dizer dessa sobreposição de linha-gens – filhas de Nossa Senhora e de índias laçadas no mato?

A seguir, o gesto da Senhora do Risca-Faca lampejaem outro relato de Diolíndia:

“Então ele agarrou aqui na goela e me deu um tapa.Corri pra cozinha, apanhei uma peixeira desse tama-nho. Ela brilhando...! Falei: ’Você está brilhando, masagora você vai vermelhar!’ Se Bitinha e Elza não meseguram, eu ia deixar defunto naquele barraco. Seique eu morria, mas para a Santa Casa ele ia! Eu iarasgar assim, ó, de baixo pra cima, da virilha até nagarganta, para a cabeça não atrapalhar. Eu costura-va ele – ah, costurava! – pra nunca mais ele fazer oque fez comigo!” (6.9.83)

O gesto de “costureira” também lampeja em brigasentre mulheres, conforme a narrativa de uma das vizinhasde Diolíndia:

Page 5: Universidade de São Paulo História noturna de Nossa ... · PDF filena periferia de Piracicaba, São Paulo, onde uma centena de famílias do Norte de Minas Gerais e de outras regiões

Estudos Feministas, Florianópolis, 17(1): 135-158, janeiro-abril/2009 139

HISTÓRIA NOTURNA DE NOSSA SENHORA DO RISCA-FACA

“Um dia ela pegou uma foto do Moisés [filho danarra-dora] e cortou em pedacinhos aqui ao ladodo meu barraco. Vieram falar pra mim. Fui ver. Faleipara a rapariga: ’Vem aqui que vou ensinar comocortar direito. Vou enfiar essa faca debaixo de suaspernas e fazer picadinho!’” (28.5.85)

Num gesto de “cozinheira”, uma mãe ameaça o filho:

“Não agüento mais. Ele só pirraça eu. Eu nunca pirra-cei meu pai e minha mãe. Nunca! Ele sabe que eusou doida, que eu não sou gente! Ou ele sai daquiou eu furo ele! [A mãe, que está limpando um frangopara o almoço, empunha a faca e faz um gestobrusco como se estivesse enfiando a faca emalguém]. Furo aquela peste! Furo e dou risada! Ai,meu Deus do céu...! Será que ele não sabe que eusou mãe?” (12.11.83)

Violência costumeira. Cotidiano assustador. O reinoda loucura não pertence ao extraordinário, tanto quanto aocotidiano. O riso, combinado com o desvario da violência,revela um excesso. Transgride. Agride. Na inervação do corpouma imagem se produz. Chama atenção a sobreposiçãodos planos. O lampejo de uma oposição.3 E uma montagemcarregada de tensões: a Virgem Nossa Senhora e a “índialaçada no mato”.

Pureza e perigoPureza e perigoPureza e perigoPureza e perigoPureza e perigo

Quais sombras se agitam nessa história? Perigosalampeja a imagem da índia no corpo da devota. Pureza eperigo. A junção das imagens evoca o título de um livro deMary Douglas.4 E, em estado de fricção, dois escritos deJúlia Kristeva: Pouvoirs de l’horreur e “Stabat Mater”.5

Em Pouvoirs de l’horreur, Kristeva interpreta a experiên-cia primordial do feminino: lugar hediondo, sujo, ambíguo,e liminar. Corpo de mãe. Fecundante e estranhamente fami-liar. Nem eu, nem outro, nem nada. O abjeto não se apresentasimplesmente como um objeto, contrapondo-se ao eu. Noabjeto o próprio eu se decompõe. Anterior à ordem simbó-lica, o abjeto coloca toda ordem em estado de risco. Sob aluz negra da abjeção, a mãe-mulher se revela. Perigosa!Irrompem poderes do horror. Seria a Senhora do Risca-Facauma de suas manifestações?

Em “Stabat Mater”,6 Kristeva discute o lugar da VirgemNossa Senhora na constituição do universo social e simbólicodo Cristianismo. Afinidades com o trabalho de Mary Douglastambém aqui são notáveis. A formação de ordens simbólicasenvolve processos de purificação. Para fins deste ensaio,uma observação de Kristeva merece atenção especial: aatribuição de virgindade a Maria, mãe de Cristo, surge de

3 Cf. Sergei EISENSTEIN 1990, p.41.

4 DOUGLAS, 1976.5 KRISTEVA, 1980 e 2002a.

6 Publicado originalmente como“Herethique de l’amour”(KRISTEVA, 1977).

Page 6: Universidade de São Paulo História noturna de Nossa ... · PDF filena periferia de Piracicaba, São Paulo, onde uma centena de famílias do Norte de Minas Gerais e de outras regiões

JOHN C. DAWSEY

140 Estudos Feministas, Florianópolis, 17(1): 135-158, janeiro-abril/2009

um “erro de tradução”.7 Haveria nesse “erro” um drama detraição? Purificada do “pecado”, Maria torna-se mãe deDeus. Vira rainha. No imaginário das cortes medievais, edos poderes que se associam às senhoras da nobreza feudal,ela vira Nossa Senhora. Um detalhe: com a transformaçãode Maria em Virgem, o corpo materno se reduz ao silêncio.8

Na passagem da mulher abjeta à Virgem Nossa Senhora seproduziria um esquecimento?

Em um registro benjaminiano – cujas afinidades como pensamento de Kristeva chamam atenção – seria aSenhora do Risca-Faca uma imagem do passado que searticula ao presente em um momento de perigo?9 No corpoe podão de cortar cana de uma mulher “boia-fria”? Tallampejo teria a ver com processos de purificação de NossaSenhora e suas relações com os poderes?

Tendo em mente essas questões, proponho doisexercícios referentes à história de origens do Risca-Faca,situando-a, primeiramente, em relação ao contexto socialdos anos de 1970 e 1980 em Piracicaba, e, depois, emrelação ao seu próprio contexto narrativo das históriashediondas, ou de pasmo, que se encontram em registros decadernos de campo.

Os dois exercícios evocam um imaginário social. Aliirrompem “os homens” da Senhora do Risca-Faca: a figurado “bandeirante”, no primeiro exercício, e, no segundo, o“homem de alta periculosidade” (o que virou picadinho).Nesse triângulo amoroso repleto de tensões encontramos assombras de um teatro metafísico onde se desenvolve umdrama de traição. Formulam-se novas questões. A primeiratem a ver com uma das personagens centrais de históriasde povoamento e seu lugar na formação de uma identidadenacional e constituição de uma ordem simbólica. O quedizer das relações de Nossa Senhora com o bandeirante? Aoutra nos leva aos subterrâneos dos símbolos e amoresnoturnos da Senhora do Risca-Faca: o que significa “virarum perigo”? Nos dois casos, uma questão de fundo: quemirá povoar a terra? Busca-se detectar um lugar de passagem,que se revela em forma de montagem carregada de tensões,envolvendo a Virgem Nossa Senhora e a “índia laçada nomato”. Seria a mulher hedionda do Risca-Faca a manifes-tação de uma história noturna de Nossa Senhora? Por que,afinal, ela fez picadinho de um homem? E, particularmente,deste pobre diabo?

Bandeirantes e “boias-frias”Bandeirantes e “boias-frias”Bandeirantes e “boias-frias”Bandeirantes e “boias-frias”Bandeirantes e “boias-frias”

A busca de fontes de energia renovável ganhaimpulso, no Brasil, em meados dos anos de 1970, após a“crise do petróleo”. Nesse cenário, a cana-de-açúcar

7 Cf. KRISTEVA 2002a, p. 312.

8 Cf. KRISTEVA 2002b, p. 296-297.

9 Cf. Walter BENJAMIN 1985, p.226.

Page 7: Universidade de São Paulo História noturna de Nossa ... · PDF filena periferia de Piracicaba, São Paulo, onde uma centena de famílias do Norte de Minas Gerais e de outras regiões

Estudos Feministas, Florianópolis, 17(1): 135-158, janeiro-abril/2009 141

HISTÓRIA NOTURNA DE NOSSA SENHORA DO RISCA-FACA

adquire a aura de um produto moderno, energizando aindústria automobilística e, supostamente, fazendo despertarum gigante adormecido, o Brasil.

Rondando o imaginário social, os “boias-frias” provo-caram um estremecimento. Em meio a uma tempestadechamada “progresso”, evocaram em cidades imagens docampo e de um Brasil arcaico. Vinham dos sertões. Surgiamcomo assombrações.

Seres do passado fadados a desaparecer... Assimprofetizaram, desde os anos de 1970, estudos de sociologiarural. Os “boias-frias” viraram fósseis da produção acadêmi-ca nos anos de 1980. Nos canaviais, supostamente logoseriam substituídos por máquinas cortadoras de cana – asmesmas que ainda reluzem em vitrines de usinas. O defeitodessas máquinas? Fazem da cana picadinho. De acordocom a literatura, há uma impureza nos “boias-frias”: nemcamponeses, nem operários, ou ambos ao mesmo tempo.Os “boias-frias” são seres liminares. Virar “boia-fria”, ou “cairna cana”, evoca um rito de passagem insólito: a passagempara um estado de passagem.10 O “boia-fria” é um ser abjeto.

Nos anos de 1970 e 1980, um imaginário bandeirantese avoluma em Piracicaba. O governo municipal se propõea urbanizar a periferia da cidade. Com a força de máquinase tratores que abrem uma avenida, emerge a figura de umdos “grandes” bandeirantes: Antonio Raposo Tavares. Talcomo uma lança comprida e retilínea, a Avenida RaposoTavares corta o antigo bairro do Risca-Faca, repartindo-oem pedaços e quadriculando os seus espaços. Quase naponta dessa lança, emerge uma outra avenida do imaginá-rio bandeirante: a Avenida das Monções. Enquanto aRaposo Tavares atravessa o Risca-Faca, a Avenida dasMonções cerca as suas franjas.

Ao longo da Raposo Tavares se estendem fios de forçaelétrica. A periferia se ilumina. Afasta-se o breu. Com foicesprovidas pela prefeitura, famílias que chegam dos sertõesdo Brasil fazem a “limpeza” do lugar. Constroem seusbarracos. Sobre as cinzas de mato queimado surgem novosbairros, menores e delineados, retirados a fórceps das entra-nhas do Risca-Faca. Entre os novos bairros encontra-se oJardim das Flores, ou “buraco dos capetas”. Em seus subs-tratos, como visto, se alojam os restos do Risca-Faca. Emmeio aos processos de urbanização da periferia, registra-seem cadernos de campo do antropólogo a história de origensdo Risca-Faca: com um podão de cortar cana, uma mulherfez picadinho de um homem. Lampeja a imagem de uma“índia laçada no mato”.

Bandeirantes, sabe-se bem, eram caçadores de ín-dios. Conforme algumas das histórias que se contam a res-peito do povoamento do Brasil, muitas “índias laçadas no

10 Cf. DAWSEY 1999.

Page 8: Universidade de São Paulo História noturna de Nossa ... · PDF filena periferia de Piracicaba, São Paulo, onde uma centena de famílias do Norte de Minas Gerais e de outras regiões

JOHN C. DAWSEY

142 Estudos Feministas, Florianópolis, 17(1): 135-158, janeiro-abril/2009

mato”, assim como “negas de senzala”, viraram mães deuma nação.11

Nos anos de 1980, a prefeitura de Piracicaba aumen-ta esforços de “preservação da memória” da cidade, cen-trando atenções na restauração da “Casa do Povoador”.Avulta a imagem do “povoador”. O seu nome é português:Antônio Correa Barbosa. Não virou picadinho. Ao contrário,abriu picadas, desbravou sertão. Embora à sombra de outrossonhos e Antônios, como o Raposo Tavares – o mesmo daavenida que recorta o antigo bairro do Risca-Faca –, AntônioCorrea Barbosa também virou símbolo do bandeirantismopaulista e penetração do interior. Em sua história também seevoca o imaginário de um processo civilizador.

As histórias que se contam sobre o povoamento dePiracicaba não deixam de evocar rivalidades de gênero,transferidas, nesse caso, para o plano do sagrado. Umdetalhe: na história de Antônio Correa Barbosa, uma santase retira. Em 1767, sob a invocação de Nossa Senhora dosPrazeres, o povoado de Piracicaba foi fundado, à margemdireita do rio, em local onde habitavam posseiros e índiosPaiaguás. Alguns anos depois, por iniciativa do “povoador”,o povoamento transferiu-se para a margem oposta. Diz-seque a Nossa Senhora dos Prazeres, ao estilo curupira,12

deixou Piracicaba andando de costas. Santo Antônio viroupadroeiro. O bandeirante virou povoador.

No início da Rodovia dos Bandeirantes, saindo deSão Paulo em direção a Piracicaba, ergue-se um monumen-to impressionante: um obelisco. De acordo com algumasdas mais imaginativas (ou “picantes”) interpretações, ali serevela a imagem fálica – de uma imensa pica.

Em Étrangers à nous-mêmes,13 Julia Kristeva fala deuma estranheza familiar. O estrangeiro evoca o outro dentrode nós. Creio que a imagem da “índia laçada no mato”seja particularmente interessante para se discutir tal espéciede estranheza. Num momento de abertura da AvenidaRaposo Tavares na periferia de Piracicaba, em meio aossonhos de progresso, sua imagem irrompe com um podãode “boia-fria”, fazendo picadinho de um homem. Mãe pri-mordial: uma estranha.

O que dizer de suas relações com o imagináriobandeirante? E de suas relações com Nossa Senhora?Considerando o “erro de tradução” apontado por Kristeva arespeito do percurso de Maria mãe de Deus no imagináriocristão, não haveria nos rostos de Virgens Senhoras as feiçõesde “índias laçadas no mato” e “negas de senzala”?

Seria a Senhora do Risca-Faca uma manifestaçãoda memória involuntária da cidade? Num momento em quemuitos dos seus filhos e filhas “caem na cana” ou em “buracosde capetas”, virando “boias-frias” e fornecendo fontes de

11 Cf. Gilberto FREYRE, 1933, eDarcy RIBEIRO 1997.

12 Ou do anjo pasmado de PaulKlee, interpretado por WalterBenjamin. Cf. BENJAMIN, 1985, p.226.

13 KRISTEVA, 1988.

Page 9: Universidade de São Paulo História noturna de Nossa ... · PDF filena periferia de Piracicaba, São Paulo, onde uma centena de famílias do Norte de Minas Gerais e de outras regiões

Estudos Feministas, Florianópolis, 17(1): 135-158, janeiro-abril/2009 143

HISTÓRIA NOTURNA DE NOSSA SENHORA DO RISCA-FACA

energia que impulsionam sonhos de uma nação e as máqui-nas de “filhinhos de papai”, lampeja uma imagem de mulherabjeta. Filha da mãe.

Trata-se, me parece, como Kristeva sugere, de umaquestão de tradução – num registro teológico. Às margensda Santa Trindade, Maria se aproxima do Pai. Vira Virgem.Afasta-se do “pecado”. Copulando com o Espírito Santo,toma distância de homens “marginais”.14 O corpo de Mariase cala. A mulher abjeta, diz Kristeva, coloca em polvorosaa ordem social e simbólica.

Narrativas de pasmoNarrativas de pasmoNarrativas de pasmoNarrativas de pasmoNarrativas de pasmo

O que dizer das relações entre Nossa Senhora doRisca-Faca e o homem que virou picadinho? Além do quese enuncia de imediato no gesto hediondo? Para exploraressa questão, pretendo situar a história de origens do Risca-Faca no contexto narrativo de histórias hediondas – ou depasmo – que se encontram nos cadernos de campo.

Trata-se de uma tentativa de interpretar as relaçõesentre as duas personagens da história de origens do Risca-Faca narrada por Pagé. Sabe-se pouco sobre as persona-gens. A informação sobre a mulher vem na forma de um gesto.Mas qual seria o perfil do homem antes de virar picadi-nho?O comentário do narrador é lacônico: “Era tudo nego, comose diz, de alta periculosidade... Chupeta, Capeta, Bertaia,Fião, Noel...” Dois casos, onde se configuram perso-nagenscom esse perfil, emergem dos cadernos de campo. O primeiroapresenta a figura de Rei dos Olhos e as suas relações comuma mulher que vou chamar de Ana Terra. O segundo narraos acontecimentos envolvendo um rapaz, que chamaremosde Mestre Bimba, e suas relações com um “bobinho”.

RRRRRei dos Olhos e Ana Tei dos Olhos e Ana Tei dos Olhos e Ana Tei dos Olhos e Ana Tei dos Olhos e Ana Terra. erra. erra. erra. erra. Na verdade, esse casotambém envolve uma terceira personagem: uma “moça”(mulher virgem). Rei dos Olhos matou duas lindas mulheres.A tragédia, coincidentemente, ocorreu em maio de 1978,na mesma época em que vi o Jardim das Flores, ou “buracodos capetas”, pela primeira vez.

Ana Terra era uma mulher linda. Filha de mãeafricana e pai português, ela tinha os olhos verdes ea pele da cor morena clara. Ana Terra deixou o seumarido legítimo para morar no Jardim das Florescom Rei dos Olhos. Seu marido juntou-se com outramenina. Depois de um tempo, Ana Terra decidiuvoltar para o marido. Rei dos Olhos ameaçou. “Elebatia nela bastante, deixava marca pra ela não sairde vergonha.”Mesmo assim, Ana Terra deixou Rei dos Olhos. Adesgraça aconteceu quando ela foi com seumenino buscar as suas coisas. [De acordo com outra

14 Um deles, com o valor semânti-co de José, transforma-se na per-sona de um pai menor. A seu res-peito surgem rumores: não seriaJosé uma espécie de corno? TeriaMaria botado chifres em José?

Page 10: Universidade de São Paulo História noturna de Nossa ... · PDF filena periferia de Piracicaba, São Paulo, onde uma centena de famílias do Norte de Minas Gerais e de outras regiões

JOHN C. DAWSEY

144 Estudos Feministas, Florianópolis, 17(1): 135-158, janeiro-abril/2009

versão, ela voltava do corte da cana]. Estava escuro.“Rei dos Olhos a atacou com uma peixeira. Ele jogouo menino no mato e cortou a Ana Terra bastante,rasgando o seio e a barriga, as vísceras saindo... Olugar onde ela foi morta... sabe que o capim nãovoltou a crescer e as bananeiras murcharam?”O menino da Ana Terra, de 6 anos, jurou “fazer abarrigada do Rei dos Olhos”. (2.5.83)

Depois de um tempo, Rei dos Olhos e alguns rapazesmataram outra linda mulher. Trechos dos cadernos de camporelatam os acontecimentos. “Rei dos Olhos fugiu para SãoPaulo. Quando voltou, ‘ele e mais uns’ mataram uma moça.‘Bagunçaram com ela. Puseram maconha na boca dela,arrancaram a sua língua. Fez o que quis [a narradora cospeno chão]. Aí onde fica o cruzeiro’” (3.5.83). Anaoj comenta:“Ela voltava da missa. Era noite. [...] Uma judiação... Era boaque só vendo. Era a mais bonita daqui de dentro” (17.9.83).

Rei dos Olhos e seus comparsas, Nego Preto e Nicolau,apresentam o perfil apontado por Pagé: eram “negos dealta periculosidade”. Aqui, porém, não se invertem imagensrecorrentes de boletins de ocorrência. Há duas mulheresvítimas, e um homem violento: ele “cortou a Ana Terra bastan-te, rasgando o seio e barriga, as vísceras saindo...” Tal comoas narrativas de alegoristas barrocos, conta-se o caso deAna Terra através de imagens da história natural. A próprianatureza expressa por encanto uma tristeza e melancoliaprofunda: “O lugar onde ela foi morta... sabe que o capimnão voltou a crescer e as bananeiras murcharam?”

No caso da segunda vítima, emerge a imagem deuma “moça” (virgem). Envolta em aura, ela volta da missa.No local do crime, ergue-se uma cruz.

Talvez o aspecto mais intrigante das narrativas sobreRei dos Olhos, porém, tenha a ver com a oscilação dos sig-nos. Em alguns relatos surgem imagens que não seencontram facilmente em boletins de ocorrência. Nessaspassa-gens, narradoras evocam os sofrimentos (e acoragem) de Rei dos Olhos. Nelas se encontram até mesmoalguns indícios de uma via crucis.

“Entrou polícia. Veio investigador. Bateram. Judiaramde um mineirinho que não tinha culpa de nada,quase deixaram ele morto. Levaram o Rei dos Olhose o Nêgo Preto. Na pedreira, que fica aí, ó [anarradora ‘aponta’ fazendo bico com o seu lábioinferior]. Puse-ram aqueles fios para dar choque.Dependuraram ele de cabeça para baixo. Do jeitoque ele fez com a Ana Terra fizeram com ele. Umavez minha menina foi na delegacia. Falaram quepunham seis pra bater nele, e ele não se entregava.Iam de dois em dois pra bater. Os dois cansavam,punham outros dois pra bater.” (3.5.83)

Page 11: Universidade de São Paulo História noturna de Nossa ... · PDF filena periferia de Piracicaba, São Paulo, onde uma centena de famílias do Norte de Minas Gerais e de outras regiões

Estudos Feministas, Florianópolis, 17(1): 135-158, janeiro-abril/2009 145

HISTÓRIA NOTURNA DE NOSSA SENHORA DO RISCA-FACA

As imagens se acumulam nos comentários de narra-doras e narradores: “Bateram nele... Foi lá na pedreira, né?”“Ficou pendurado de cabeça para baixo, amarrado.”“Deixaram ele passar a noite com os braços assim, em voltado eucalipto, algemado” (5.9.83). “Dizem que agora eleamoleceu. ‘Se vocês vissem ele agora vocês não iam dizerque é esse o Rei dos Olhos’” (3.5.83).

Vários elementos se destacam no conjunto de narra-tivas sobre Rei dos Olhos. Observa-se a atração que eleexerce sobre Ana Terra, a ponto de fazê-la deixar seu marido.Também merece atenção a via crucis de Rei dos Olhos, emnarrativas que evocam uma espécie de “vítima sacrificial”.

Por que essa linda mulher teria deixado o seu maridopara morar com Rei dos Olhos? Um detalhe: antes de juntar-se a Ana Terra, Rei dos Olhos já fazia o seu aprendizado comNego Preto e Nicolau, tornando-se, como eles, um “nego dealta periculosidade”.

“O Rei dos Olhos? Ele vem de gente boa. Lá em Minasele tinha terra, e muitas cabeças de gado. [...] Ele ficouassim aqui, depois que ele comprou um livro de SãoCipriano. Acho que ele leu só aquelas partes ruins. Ah,ele tinha leitura. [...] Quem ensinou ele as malan-dragensforam o Nêgo Preto e o Nicolau.” (17.9.83)

A referência ao livro de São Cipriano, com destaqueàs “partes ruins”, chama atenção. Evocam-se os poderesdas trevas, o baixo mundo. “Buraco dos capetas”. Antes daconversão ao Cristianismo, Cipriano faz um aprendizadocom Évora, uma poderosa bruxa. Invoca os poderes deLúcifer. Seus feitos? Mesmo sendo homem vulgar, Ciprianoseduz lindas e virtuosas virgens da nobreza. Humilha os pais.Até mesmo reis caem aos seus pés.

Seria Cipriano uma espécie de inverso simétrico deNossa Senhora? Conforme discussão de Kristeva em “StabatMater”, Maria, uma mulher comum, vira a Virgem Rainha enobre Senhora copulando com o Espírito Santo, ou seja, cor-rompendo o sagrado e transformando em corno um homemvulgar. Cipriano, por sua vez, vulgar e pagão, humilhahomens poderosos, seduzindo e corrompendo mulheresvirgens e nobres – Nossas Senhoras. Dramas de traição.

Mestre Bimba e o “bobinho”.Mestre Bimba e o “bobinho”.Mestre Bimba e o “bobinho”.Mestre Bimba e o “bobinho”.Mestre Bimba e o “bobinho”. Nos cadernos háainda uma segunda personagem com um perfil de “altapericulosidade”. O caso, que também consta de boletinsde ocorrência, apresenta uma particularidade. Um rapaz,que chamaremos de Mestre Bimba, amigado com uma dasmoças mais belas do Jardim das Flores, mata um “bobinho”a pedradas.

Mestre Bimba passa pelo trilho em frente ao barracode Anaoj, que o chama para conversar. Ele olha ao

Page 12: Universidade de São Paulo História noturna de Nossa ... · PDF filena periferia de Piracicaba, São Paulo, onde uma centena de famílias do Norte de Minas Gerais e de outras regiões

JOHN C. DAWSEY

146 Estudos Feministas, Florianópolis, 17(1): 135-158, janeiro-abril/2009

chão com um sorriso envergonhado. Anaoj parece estardando-lhe um “pito”. Dois dias atrás, Anaoj tam-bémconversara com ele. Disse-lhe, então, que havia pensadonele ao ouvir pelo rádio a notícia de que a políciamatara “um rapaz bonito”. Mestre Bimba pare-ceu sentir-se lisongeado. Em voz baixa, aparentando timidez, elerespondera, modestamente, “não sou bonito não...”Assim que Mestre Bimba seguiu caminho,desaparecendo entre os barracos, Anaoj virou-se paramim, dizendo: “Esse é ruim! Ele é ruinhento! Uns quatromeses atrás ele matou um bobo a pedradas. Ali mesmo,ó [ela ‘aponta’ com o bico dos seus lábios]. Naquelanoite ele apareceu aqui com os miolos do boboescorrendo pelas pernas da calça. Ele saiu da cadeiafaz pouco tempo.” (27.5.83)

Outra narradora confirma: “A Florbela [mulher doMestre Bimba] falou que ele passava a mão na calça. Tiravamiolo e passava na boca” (3.7.83). Gesto antropofágico.

Nesse caso, como também visto nas narrativas demulheres que ameaçam, ao mesmo tempo, dar risada e“fazer picadinho”, há sinais estranhamente lúdicos.

“Dizem que o bobinho estava no bar do Risadinha quandoMestre Bimba falou, ‘Vamos bater nele?’ Os outros nãofalaram nada. Mestre Bimba começou a bater. Obobinho ainda falou, ‘Você está batendo em mim debrincadeira ou de verdade?’ Mestre Bimba foi ficandocom raiva, catando pedra pra bater no bobinho, atéque o matou.” (23.8.83)

As versões se confirmam: “Ele batia na cabeça dobobo com a pedra e o bobo falava, ‘Mestre Bimba, nãoquero brincar’. Pro bobo, aquilo era uma brincadeira”(12.6.84).

Tal como Rei dos Olhos, que encontrou uma segundavítima, Mestre Bimba atacaria outro vizinho com fama de“coitado” e de “bobo”: “Quando Mestre Bimba chegou, estavao Sabiá comendo. O Mestre Bimba avançou em cima delecom a faca. ‘Não mata eu não, Mestre Bimba, não mata eunão...!’ O Mestre Bimba dando facada e rindo ao mesmotempo... Ele deu vinte-e-três facadas no Sabiá” (25.8.83). Aprópria matemática parece expressar um desvario.

Mestre Bimba mata dois “bobos”. Seria essa maisuma manifestação de um teatro da crueldade?15 Ou aexpressão de um “demolidor humor negro”, tal como às vezesaflora no teatro de Bertolt Brecht?16 Os relatos sobre MestreBimba e os “bobos” evocam um dos fenômenos recorrentesdas festas populares da Idade Média e Renascimento: oriso macabro em meio à degradação e despedaçamentode um corpo.17 A interpretação do primeiro bobo mereceatenção: “Pro bobo, aquilo era uma brincadeira”.18

15 Cf. Antonin ARTAUD, 1987.16 Em uma das cenas de A peçadidática de Baden-Baden sobre oacordo, dois palhaços “ajudam”o “gigante Sr. Schmitt”, serrando-lhe pernas, braços, orelha ecabeça. Cf. BRECHT, 1992, p. 195.17 Cf. BAKHTIN, 1993, p. 167, 168,230, 307.18 Na “festa dos tolos”, estes viramsábios. BAKHTIN, 1993, p. 227.

Page 13: Universidade de São Paulo História noturna de Nossa ... · PDF filena periferia de Piracicaba, São Paulo, onde uma centena de famílias do Norte de Minas Gerais e de outras regiões

Estudos Feministas, Florianópolis, 17(1): 135-158, janeiro-abril/2009 147

HISTÓRIA NOTURNA DE NOSSA SENHORA DO RISCA-FACA

Tal como no caso de Rei dos Olhos, algumas narrati-vas também evocam os sofrimentos de Mestre Bimba. Suavia crucis. Os signos oscilam. O próprio Mestre Bimba transfi-gura-se em um “coitado”: “Quando pegaram o Mestre Bimbabateram demais. O seu corpo está todo inchado. A sua foto-grafia saiu no jornal” (25.8.83). “A calça dele está com aFlorbela. Eles levaram ele pelado” (24.8.83). “A políciapegou o Mestre Bimba. Vi ele tremendo no carro, sem camisa...Nem olhava. Naquela hora me deu um negócio nocoração...” (3.7.83).

Há laços de afeto: “Quando soltaram da cadeia, elefalou assim, ‘Lá até que não é ruim não. É ruim no dia quepega, só. Se não fosse a saudade até que era bom. Asaudade do povo daqui que é demais’” (30.8.83).

Como interpretar essas narrativas tecidas às margensde boletins de ocorrência? Seriam histórias que famílias doJardim das Flores contam sobre elas próprias para si mesmas?Ou, quem sabe, seriam formas de impedir o esquecimentode histórias que ainda não vieram a ser?

O causo sugere dois enigmas, discutidos a seguir.Por que Florbela, uma das moças mais lindas do Jardim dasFlores, apaixonara-se por Mestre Bimba? A solução do enig-ma – caso alguma luz seja possível em meio ao breu – nosajudaria a iluminar um dos mistérios do causo anterior: aatração de Ana Terra por Rei dos Olhos. Ajudaria a esclareceras relações que se encontram em elipses na história deorigens do Risca-Faca, entre a mulher que fez picadinho deum homem e o homem que virou picadinho. Antes disso,porém, será preciso discutir um segundo enigma. Diantedas perguntas insistentes do pesquisador, os registros serepetem: “Ele é normal. […] Ele mata à toa” (23.8.83). “Ele atétem um jeito bom. A única desvantagem dele é os olhos. […]Ele mata à toa” (17.9.83). “Ele é normal. Mas ele pegouimplicância com aqueles que tinham fama de bobo, nãofoi?” (12.6.84). Por que Mestre Bimba “pegou implicânciacom aqueles que tinham fama de bobo”?

Virando peão: ser ou não serVirando peão: ser ou não serVirando peão: ser ou não serVirando peão: ser ou não serVirando peão: ser ou não ser

Os registros dos cadernos oferecem poucos, emborainteressantes, indícios.

Ao anoitecer, a caminho do bar do Risadinha, sousurpreendido por Mestre Bimba, que anda na mesmadireção. Depois de um silêncio constrangedor, MestreBimba pergunta: “O quê a Anaoj falou de mim pra você?”Hesitante, respondo: “Ela disse que você é um amigo dafamília. Ela gosta de você”. [Não foi bem isso. Ela haviadito que Mestre Bimba é “ruinhento” e que aparecerana porta do barraco “com os miolos do bobo escorrendo

Page 14: Universidade de São Paulo História noturna de Nossa ... · PDF filena periferia de Piracicaba, São Paulo, onde uma centena de famílias do Norte de Minas Gerais e de outras regiões

JOHN C. DAWSEY

148 Estudos Feministas, Florianópolis, 17(1): 135-158, janeiro-abril/2009

pelas pernas da calça”.) Mestre Bimba se anima: “Éverdade!” Em seguida, ele comen-ta: “Desse povo queestá aí é o melhor que tem”.Fico aliviado. A tensão diminui. Procurando aproveitar obom momento da conversa, comento que nunca vialguém trabalhar tão duro quanto o Mister Zé. Eu apenasrepetia uma frase que ouvira de diversas pessoas, emtom de admiração. Mas ela não produziu o efeitodesejado. Mestre Bimba reage com raiva e desprezo:“O Mister Zé é um coitado!” Ele ainda diz: “Eu não sou demexer com os outros. Mas se mexer comigo... ó, nãolevo desaforo para casa!” (10.6.83)

“Coitado”... A própria Anaoj dizia: “Mister Zé, coitado,está morrendo de tanto trabalhar” (8.2.85). “Olha o Mister Zéchegando. Coitado... Como está magro o Mister Zé...! Estámorrendo de trabalhar” (8.2.85). “Nós não estamos agüen-tando mais. Eu estou pra endoidar. O Mister Zé, coitado, estáse acabando, morrendo aos pouquinhos de tanto trabalhar”(17.5.85).

A seguir, um registro evoca imagens de Minas Gerais,associando o bobo ao trabalho. E um fazendeiro se apresen-ta como paródia de um santo casamenteiro.

“O fazendeiro quer que o empregado dele seja bobo.Porque bobo não pensa. Só trabalha. Tem bobo quetrabalha que nem cavalo. O fazendeiro deixa o bobocom medo. Ele fala: ‘Trabalha mais, senão eu chamo apolícia. Você está trabalhando pouco’. Então o bobofica com medo e trabalha pra dois. O fazendeiro muitasvezes quer que casamento seja feito dentro da própriafamília por causa disso, pra dar bobo.” (26.5.78)

No Jardim das Flores, a fama de trabalhador gerapolêmica. Sinaliza admiração. Ao mesmo tempo, vira infâ-mia. Virar “peão”. Eis a questão: ser ou não ser. O trabalhadoré um “coitado”. Os “bobinhos” que Mestre Bimba matoutambém eram “coitados”. Já eram “vítimas” antes que MestreBimba os matasse. O ato atroz confirma a fama da “vítima”que o precede. Até que ponto a fama chama o ato, e avítima o seu algoz?

Um dos filhos de Anaoj e Mister Zé, que chamaremosde João de Barro, tinha fama de “coitado”. E de “peão”.Conforme os rumores, que provocavam calafrios em Anaoj,ele constava da lista dos dez de Mestre Bimba. João deBarro também estava, como se dizia, “marcado para morrer”.Na época ele trabalhava nos canaviais, catando cana quea carregadeira deixava para trás. A seguir, seu relato:

“Corro atrás de máquina. A vagabundagem não levaa nada. Que nem o Carlinhos Vinte que foi morto. [...]Eu não sinto preguiça. Se o patrão manda fazer isso,eu faço. Se ele manda fazer aquilo, eu faço. Porque

Page 15: Universidade de São Paulo História noturna de Nossa ... · PDF filena periferia de Piracicaba, São Paulo, onde uma centena de famílias do Norte de Minas Gerais e de outras regiões

Estudos Feministas, Florianópolis, 17(1): 135-158, janeiro-abril/2009 149

HISTÓRIA NOTURNA DE NOSSA SENHORA DO RISCA-FACA

sou pobre. E pobre tem que pegar no trampo atémorrer, indo de trampo em trampo até o grito final.”(20.5.83)

A experiência de “pegar no trampo” e de virar “peão”pode suscitar uma espécie de atordoamento. Palavras deJoão de Barro: “Estou acostumado a sofrer, dar cabeçadano mundo...” (13.7.84). Era disso que se tratava? Seria o MestreBimba como um dos “palhaços” da peça de Brecht, comrisos e pedradas ao crânio, “ajudando” gente como Joãode Barro a sentir o impacto do mundo em suas cabeças?19

Um detalhe: Anaoj também se preocupava com o pesqui-sador, “João Branco” (eu mesmo), que ela considerava “tolo”.

Virando um perigo: ser Virando um perigo: ser Virando um perigo: ser Virando um perigo: ser Virando um perigo: ser eeeee não ser não ser não ser não ser não ser

O segundo enigma se apresenta: por que Florbela,uma das moças mais lindas do Jardim das Flores, apaixo-nara-se por Mestre Bimba? Haveria no Jardim das Flores umaatração por personagens perigosas? Teriam Ana Terra eFlorbela se apaixonado, respectivamente, por Rei dos Olhose Mestre Bimba quando eles viravam “um perigo”?

Virar peão, ou “pegar no trampo”, não deixa de serperigoso. Afinal, morre-se de trabalhar. Mas “virar um perigo”tensiona ainda mais a personagem. Brinca-se com o perigo.Intensifica-se uma condição liminar. Vive-se em estado desubjuntividade como se fosse outro. A questão de ser ou nãoser transforma-se em outra: ser e não ser.

Zé do Mar, um dos genros de Mister Zé e Anaoj, nãochegava a ser um “nego de alta periculosidade”. Mas elebrincava com o perigo. A seguir, numa cena carregada detensões, ele arruma o seu cabelo: “Zé do Mar arruma-separa tocar sanfona num baile. Sua esposa, Maria, que temfama de brava, permanece calada. Meio rindo, Anaoj [mãede Maria] diz: ‘Nunca vi vagabunda [sic] para caminharigual Zé do Mar’. O genro comenta: ‘Quando faço blacktenho que pisar com cuidado’” (24.7.83).

Outro registro também é revelador: “Zé do Mar está searrumando para sair. Admirando quem se admira, Anaojcomenta: ‘Zé do Mar apruma, apruma esse cabelo. Olha noespelho... Ele é um perigo!’” (27.7.83). Um detalhe: Zé do Marnão passa “Wellin” no cabelo. Uma bula descartada do“alisante” de cabelo, encontrada pelo pesquisador numavaleta do Jardim das Flores, dizia: “Lisos, macios, dóceis...”(30.6.84).

As an-danças de Zé do Mar suscitavam tensões: “Elepensa que a vida é fácil. Quer viver fácil, mas peão tem quetrabalhar” (7.4.84). “O Zé do Mar falou que o lugar onde eleestava indo é pra quem quer melhorar de vida. Você acha?Eu acho que pobre não tem que pensar nisso não” (7.4.84).

19 Cf. nota número 16.

Page 16: Universidade de São Paulo História noturna de Nossa ... · PDF filena periferia de Piracicaba, São Paulo, onde uma centena de famílias do Norte de Minas Gerais e de outras regiões

JOHN C. DAWSEY

150 Estudos Feministas, Florianópolis, 17(1): 135-158, janeiro-abril/2009

Em meio à polêmica, comparava-se Zé do Mar (Z Mr)ao Mister Zé (Mr Z), o genro ao sogro, como se fossem inversõessimétricas um do outro: “O Mister Zé criou os filhos dele foicom o suor dos braços, não foi com uma sanfona nos braçosnão” (7.4.84). A respeito do genro dizia-se: “Ele é bom defesta, mas não é bom pra trabalhar” (26.5.83).

“Os homens”“Os homens”“Os homens”“Os homens”“Os homens”

Zé do Mar gostava de festa. Às vezes parecia que elese esforçava para viver em estado de festa. Em festa seinterrompe um cotidiano de trabalho. Mas, no Jardim dasFlores, a própria experiência do trabalho consiste deinterrupções constantes. Vive-se de passagem entre bicos etrampos. As passagens são perigosas. Nelas é preciso “pisarcom cuidado”. A qualquer instante, inclusive, pode-se depa-rar com “os homens”: a polícia. No Jardim das Flores, apren-de-se desde cedo a natureza cotidiana das interrupções.

São aprox. 20h. Ouve-se a chuva. Após mais um dia detrabalho, os membros da família já se deitaram. Estãocansados. Zé do Mar, o genro de Mister Zé, batepandeiro. Dirigindo-se ao seu neto de dois anos de idade,Mister Zé diz: “Andorinha, fala polícia!” Andorinha nãoresponde.Mister Zé comenta com Zé do Mar a respeito da pontena baixada do Jaraguá: “Vai morrer gente lá”.[Caminhões de “bóias-frias” passam por essa ponte acaminho da roça.] Zé do Mar responde: “Vai mesmo”.Zé do Mar começa de novo a bater pandeiro. Mister Zérepete: “Andorinha, fala polícia!” Zé do Mar diz: “Falapolícia, senão não bato [o pandeiro]”. Ouve-se a chuva,e o silêncio. De repente, Andorinha diz: “Poliça”. A batidado pandeiro recomeça.Dez minutos depois, ouço de novo a voz de Mister Zé:“Ô, Andorinha, polícia Andorinha! Polícia, Andorinha!”Logo surge uma coreografia de pai e filho, com batidasde pandeiro sendo interrompidas pela palavra “polícia”.(20.7.83)

A lição de Andorinha é produzida em forma demontagem: batidas do pandeiro, a palavra “polícia”, obarulho da chuva e conversas sobre uma “ponte da morte”.

Pela “ponte da morte” passavam turmas de “boias-frias”. Da periferia da cidade deslocam-se para uma periferiamais distante: os canaviais. Mas a passagem em direçãoinversa, da periferia ao centro, pode ser para o “peão” atémais perigosa. “Maria brinca: ‘Eu nunca vi o Pagé tomarônibus pra ir pro centro’. Pagé responde: ‘Eu ir pro centro?! Obicho pega eu!’” (4.6.83).

Eis o perigo: a inversão ou suspensão de papéis. Odeslocamento. A irrupção de personagens liminares – e de

Page 17: Universidade de São Paulo História noturna de Nossa ... · PDF filena periferia de Piracicaba, São Paulo, onde uma centena de famílias do Norte de Minas Gerais e de outras regiões

Estudos Feministas, Florianópolis, 17(1): 135-158, janeiro-abril/2009 151

HISTÓRIA NOTURNA DE NOSSA SENHORA DO RISCA-FACA

periferia! – no centro. A polícia estava atenta aos indícios detais deslocamentos e inversões nos corpos.

Nas mãos: “Maria quer ver minhas mãos, inspecio-nando-as, como uma espécie de vidente, vendo se elastêm calos. Era assim, ela diz, que a polícia fazia pra verquem era malandro, ou trabalhador. Quem tivesse mãosfinas (como as do pesquisador) era levado embora” (2.9.83).

Nos pés (de peão):

Pagé foi à boate do Carlitos no sábado à noite. Alichegando, viu a polícia. Ficou com medo. Toda vezque ia ao centro, a polícia implicava com ele. Dessavez, decidiu fazer um teste. Ao estilo da personagemde cinema que deu nome à boate, Pagé sentou-sena sarjeta. Tirou os chinelos [“havaianas”], ficandode pés descalços. Distraidamente, com um chinelona mão, bateu na calçada. Como a polícia nãoreagiu, Pagé sentiu-se mais seguro para entrar naboate. Mister Zé riu ao ouvir essa história. (20.11.84)

E no cabelo: “Quando faço black tenho que pisarcom cuidado”. Uma observação: estudos de psicanálise epesquisas etnográficas que se interessam por manifestaçõessimbólicas chamam atenção, como mostra Edmund Leach,para as associações persistentes entre o cabelo e o falo.20

Pica de boi e de Pica de boi e de Pica de boi e de Pica de boi e de Pica de boi e de boyboyboyboyboy

“Puseram aqueles fios para dar choque...” Narrativasevocam a via crucis insólita de Rei dos Olhos, o “nego dealta periculosidade” que matara Ana Terra. O falo, ou apica, recebe atenção especial dos policiais. Sabe-se queum dos lugares onde a polícia costuma colocar os fios é aregião do pênis e testículos.

Retornamos, cara leitora e leitor, às origens desteensaio, onde se esboçam questões de povoamento. Quemirá povoar a terra? Uma mulher, diz a história originária doRisca-Faca, fez picadinho de um homem.

De acordo com um imaginário que se tece em tornoda figura do bandeirante, o processo civilizador é visualiza-do em termos de um movimento que vai do litoral ao sertão,da cidade ao campo, e do centro à periferia. Em sociedadesconsideradas periféricas, o litoral tende a ser visto como lu-gar que se aproxima aos verdadeiros centros, que se proje-tam além mar. O processo civilizador também se pensa emtermos de metáforas de gênero. A pica vira uma das imagensdesse processo.

Nos termos desse imaginário, a experiência de virarum perigo associa-se especialmente à pica de quem vaida periferia em direção ao centro. Pois, então, corre-se o

20 Cf. LEACH, 1983a.

Page 18: Universidade de São Paulo História noturna de Nossa ... · PDF filena periferia de Piracicaba, São Paulo, onde uma centena de famílias do Norte de Minas Gerais e de outras regiões

JOHN C. DAWSEY

152 Estudos Feministas, Florianópolis, 17(1): 135-158, janeiro-abril/2009

risco de produzir uma inversão: a periferia penetra o centro.“Eu ir pro centro?!”, dissera Pagé. “O bicho pega eu!”

A seguir, um registro de cadernos de campo:

Quanto ao “pinto de boi”... Os meninos engraxatesque conheci em 1978 e 1979 haviam me dito que apolícia às vezes os levava para uma “bica” do “outrolado do rio”, na sua margem direita, onde ela batiacom “pinto de boi”. Também diziam “pica de boi”,rimando com “bica”.Eu: “É o pinto mesmo?”Anaoj: “É o pinto mesmo. Preto e comprido, é a rôlado boi. Eles deixam secar, depois usam pra bater.Aquilo corta, rasga o corpo, dói muito.” (8.11.83)

Um segundo registro sobre acontecimentos namargem direita do rio aparece sete anos após os relatosiniciais: “Pegaram o filho do Chicão. Levaram..., sabe lá nabica, do outro lado do rio? Fica perto da usina velha. Bateramnele. Os gritos eu ouvia da margem de cá. ‘Ai, pelo amor deDeus! Ai, minha mãe...!’ Foi só pancadaria” (6.3.85).

Haveria nesses registros, tal como no avesso doavesso, a manifestação invertida de uma festa carnava-lizante? Em seus escritos, Mikhail Bakhtin descreve o jogo deum “boi violado”, mencionado por François Rabelais. “Poisesse boi violado, destinado ao matadouro, era a vítima docarnaval. Era o rei, o reprodutor (encarnando a fertilidadedo ano) e ao mesmo tempo a carne sacrificada, que ia sergolpeada e cortada para fabricar salsichas e patês.”21 Oautor também diz: “O espancado (ou morto) é ornamentado;a flagelação é alegre; ela começa e termina em meio arisadas” (itálicos de Bakhtin).22

Na margem direita do Rio Piracicaba, as coisas seinvertem. Trata-se, aqui, de um jogo de “menino violado” –ou diríamos de boy violado? – onde “o espancado (oumorto)” recebe os golpes de um “pinto de boi”. Os corpos demeninos levam as marcas do animal domesticado ecastrado. Viram vítimas da vítima. Não se sabe se as vítimassão ornamentadas, se “a flagelação é alegre”, ou se “elacomeça e termina em meio a risadas”. Um detalhe, porém,faz desse jogo uma paródia de festa popular: busca-seimpedir inversões.23 De acordo com Kristeva, a castração –que envolve uma experiência de separação e, nos termosda linguística estrutural, de criação de afastamentosdiferenciais – sinaliza o processo de constituição de ordenssimbólicas.

Chama atenção, no espantoso cotidiano de meninosdo Risca-Faca, a cumplicidade entre bois e boys. Em turmasde “boias-frias”, passando por caminhões de transporte degado, rapazes às vezes provocavam risos, fazendo gracejose gritando: “Ê boi! Boia-fria! Sou boy!”24

21 BAKHTIN, 1993, p. 176.

23 Seria a inversão da inversão umaforma de transformar uma festapopular em ritual de terror?

24 Em outro texto escrevi sobre as-sociações insólitas entre imagensde bois, boias-frias e boys. Cf.DAWSEY, 2005, p. 26.

22 BAKHTIN, 1993, p. 176.

Page 19: Universidade de São Paulo História noturna de Nossa ... · PDF filena periferia de Piracicaba, São Paulo, onde uma centena de famílias do Norte de Minas Gerais e de outras regiões

Estudos Feministas, Florianópolis, 17(1): 135-158, janeiro-abril/2009 153

HISTÓRIA NOTURNA DE NOSSA SENHORA DO RISCA-FACA

Haveria no jogo de “boy violado” a inversão dobumba-meu-boi, ou boi-bumbá, cujas toadas o pesquisa-dor ouviu numa festa de São João, no Jardim das Flores?25

No boi-bumbá, em meio à alegria popular, um boi picadorenasce. Isso, através das artes de um bricoleur: o xamãindígena. Às margens do Rio Piracicaba, porém, uma “picade boi” impede que filhos (ou netos e bisnetos) de escravase “índias laçadas no mato” venham a fazer uma festa, irrom-pendo no meio da cidade.

Voltamos a nossa inquietação inicial: como interpretara história de origens do Risca-Faca? O que dizer sobre anarrativa da mulher que fez picadinho do homem? E dogesto que se associa à imagem de uma “índia laçada nomato”?

Um registro merece atenção: “Eu queria ser homempor modo de poder matar!” (28.11.83). Esta frase, dita, nummomento de tensão, por uma das filhas de Anaoj, ilumina ainversão possivelmente mais óbvia que fulgura numa ima-gem da história de origens do Risca-Faca: a mulher capazde matar.

Além dessa, haveria uma segunda inversão emelipses? Estaríamos, na verdade, diante de uma história ina-cabada? A imagem culinária do “picadinho”, envolvendoo despedaçamento dos corpos, é recorrente em festas dacultura popular.26 Associa-se à “abertura grotesca do corpo”e ao sistema de imagens da “morte prenhe”.27 “O homemnão é algo fechado e acabado; ele é inacabado e aber-to.”28 Em festas da Idade Média e do Renascimento o ato defazer “picadinho” anuncia, a contrapelo de um escatolo-gismo sombrio, a alegre recriação do mundo.29 O ser“picado” vira protagonista. Ele é “o representante do velhomundo, prenhe, dando à luz”.30 O breu se ilumina. Em rituaisde passagem inversões dessa espécie também se revelam:túmulos (tombs) viram úteros (wombs).31 Seria a mulher dahistória do Risca-Faca uma mãe, no sentido mais forte e sur-preendente do termo? Através do seu gesto, até mesmo um“mundo velho”, tendo como representante um “nego de altapericulosidade”, torna-se “prenhe, dando à luz”. A configu-ração de uma mulher capaz de matar – com efeitos vulcâni-cos de inversão – permitiria a irrupção de matéria incandes-cente de substratos mais fundos da experiência materna?

Subterrâneos dos símbolos: NossaSubterrâneos dos símbolos: NossaSubterrâneos dos símbolos: NossaSubterrâneos dos símbolos: NossaSubterrâneos dos símbolos: NossaSenhora e a índiaSenhora e a índiaSenhora e a índiaSenhora e a índiaSenhora e a índia

Num momento em que o ensaio ameaça sedecompor, questões não resolvidas retornam em remoinhos.No Jardim das Flores, sobre as cinzas do antigo bairro doRisca-Faca, vivem as filhas – ou netas e bisnetas – de escra-

25 Bumba ou bumbá tem sentidoambivalente. Quer dizer surrar,bater e dançar. Cf. Hermilo BORBAFILHO, 1966, p. 10. “Bumba é docongolês, significando pancada,golpe, batida.” Cf. Luís de CâmaraCASCUDO, 2006, p. 465. Significapancadaria, mas, também,“viva!”, “anime-se!”, “dance, meuboi!”. Cf. João Denys LEITE, 2003,p. 127. Ao boi se associam potên-cia reprodutiva e riqueza social.Cf. Maria Laura CAVALCANTI,2006, p. 78-82.

26 Cf. BAKHTIN, 1993, p. 168.27 Cf. BAKHTIN, 1993, p. 315.

28 Cf. BAKHTIN, 1993, p. 320.

29 Cf. BAKHTIN, 1993, p. 206.

30 Cf. BAKHTIN, 1993, p. 180.

31 Cf. TURNER, 1967, p. 99, e 1969,p. 96.

Page 20: Universidade de São Paulo História noturna de Nossa ... · PDF filena periferia de Piracicaba, São Paulo, onde uma centena de famílias do Norte de Minas Gerais e de outras regiões

JOHN C. DAWSEY

154 Estudos Feministas, Florianópolis, 17(1): 135-158, janeiro-abril/2009

vas e “índias laçadas no mato”. Muitas delas também seconsideram filhas de Nossa Senhora. A justaposição daslinhagens maternas pode suscitar um efeito de montagem.Nas inervações corporais de Nossas Senhoras não lam-pejam, também, os gestos de índias e escravas?

Num artigo sobre Hidalgo e a revolução mexicana,Victor Turner ressalta que Nossa Senhora de Guadalupe, umdos símbolos poderosos de uma nacionalidade emergente,é a sucessora de Tonantzin, a mãe dos deuses na cosmologiaasteca, cujo culto, anteriormente celebrado no mesmo lugaragora dedicado ao culto de Nossa Senhora de Guadalupe,havia sido eliminado pelos espanhóis.32 As histórias do Risca-Faca chamam atenção menos pelos símbolos do que pelasimagens e montagens ali produzidas, carregadas de ten-sões. Nesses palcos revelam-se os elementos soterrados daspaisagens sociais. Símbolos decompõem-se em fragmentosnum campo energizado, trazendo à luz os aspectos nãoresolvidos da vida social, tais como se encontram numapossível “história noturna” de Nossa Senhora de Guadalupe.

De acordo com Victor Turner, símbolos poderosos recri-am-se às margens das estruturas sociais.33 Dessas margens,surgem Nossas Senhoras. Mas talvez seja preciso ir àsmargens das margens para captar outras imagens, tais comoas de mães “laçadas no mato”. Estas emergem, acredito,de estratos ainda mais distantes, ou profundos. Pertencemaos subterrâneos dos símbolos. Em sua descida aos fundosde construtos simbólicos, Kristeva encontra a mulher abjeta.Creio que a mulher que fez picadinho de um homem irrompede tais fundos.

Agitam-se as sombras de uma nação. E da própriaCristandade. Kristeva nos leva a pensar, em registro teológi-co, nos duplos das personagens da história de origens doRisca-Faca. Às margens da Santa Trindade, Maria. Por obrado Espírito Santo, Maria vira mãe de Deus. E se transforma naVirgem Nossa Senhora. Erro de tradução? Drama de traição?O que dizer das relações de Maria com José? Desenha-seum triângulo amoroso. Os cultos à Virgem ganham força, dizEdmund Leach, em sociedades patriarcais altamente hierar-quizadas, tais como a do Brasil colonial, onde “senhoresjamais se casam com pessoas de classes inferiores, mas [...]graciosamente se dignam a tomar escravas como concubi-nas e a elevar seus filhos à altura da elite”.34 Em bastidoresde palcos de história, nos fundos do imaginário socialbrasileiro, bandeirantes e senhores de escravos fantasma-góricos às vezes rondam as ruas e beiras de rios como duplosdo Espírito Santo. Nesse registro assombroso, o Espírito Santotambém foi caçador de índios e escravos. “Índias laçadasno mato” e “negas de senzala” também se transformaramem Nossas Senhoras e Virgens mães de Deus. Mães de uma

34 LEACH, 1983b, p. 129.

32 TURNER, 1974, p. 105.

33 TURNER, 1969, p. 128.

Page 21: Universidade de São Paulo História noturna de Nossa ... · PDF filena periferia de Piracicaba, São Paulo, onde uma centena de famílias do Norte de Minas Gerais e de outras regiões

Estudos Feministas, Florianópolis, 17(1): 135-158, janeiro-abril/2009 155

HISTÓRIA NOTURNA DE NOSSA SENHORA DO RISCA-FACA

nação. Padroeiras. Mitos poderosos surgem de crimeshediondos.

No solo onde se encontra o antigo bairro do Risca-Faca, o estudo de processos de povoamento requer umaespécie de arqueologia: um duplo deslocamento, tal comosugerido, de um bandeirante povoador a Nossa Senhora, ede Nossa Senhora às índias e escravas “laçadas no mato”.Ou da Virgem à mulher abjeta. Dessa forma podem aflorarhistórias de povoadoras, muitas das quais ainda não vierama ser. Afloram sombras como as flores do mal.

Histórias têm contextos. Nos anos de 1970 e 1980,fantasmas de bandeirantes povoam as ruas do Risca-Facae beiras do Rio Piracicaba. Busca-se preservar a memóriada cidade. Também lampejam elementos de uma memóriainvoluntária: índios Paiaguás e Nossa Senhora dos Prazeresno exílio. Os “boias-frias” surgem como assombrações. Nogesto de uma mulher “boia-fria”, num momento em que ima-gens do passado se articulam ao presente, irrompe uma“índia laçada no mato”. Com assombro e fontes de luz sub-terrâneas, ilumina-se um dos vértices do triângulo amoroso:Nossa Senhora e o bandeirante.

Em narrativas de pasmo de cadernos de campo, outrovértice do triângulo se revela: os amores noturnos de NossaSenhora. E o poder de sedução de “negos de alta periculosi-dade”. São Cipriano fulgura, sob signo da magia negra,como rival do Espírito Santo. Se o Espírito Santo transformauma mulher comum em mãe de Deus revestida de glória,São Cipriano corrompe mulheres nobres e virgens, humilhan-do os poderosos. O Espírito Santo eleva; Cipriano rebaixa.Na história de São Cipriano se enunciam as relações agonís-ticas entre deuses e homens em torno da mulher. Chamaatenção nos registros de cadernos de campo a atração deAna Terra por Rei dos Olhos, o aprendiz de Cipriano. E deFlorbela por Mestre Bimba.

De onde vem esse poder de sedução? Na medidaem que se brinca com o perigo, o próprio corpo sinaliza atransformação. Cabelo, mãos, pés – e pica! O feio vira belo.O fraco revela seu poder. Personagens liminares – de periferia– irrompem no centro. “O diabo na rua, no meio doredemunho...”35

Coisa de demônio? Do capeta! O mundo no avesso.De ponta-cabeça. No entanto, os próprios capetas têm suavia crucis. Em narrativas que se tecem às margens de boletinsde ocorrência, Mestre Bimba e Rei dos Olhos quase viramdeuses agonizantes. Na história de origens do Risca-Facaum “nego de alta periculosidade” vira picadinho. Gestoantropofágico. De índia laçada no mato. “Vou fazer a tuabarrigada!” Seriam os deuses canibais? Corpos agonizantes– feitos de sangue, suor, saliva e esperma – também se

35 João Guimarães ROSA 1988.

Page 22: Universidade de São Paulo História noturna de Nossa ... · PDF filena periferia de Piracicaba, São Paulo, onde uma centena de famílias do Norte de Minas Gerais e de outras regiões

JOHN C. DAWSEY

156 Estudos Feministas, Florianópolis, 17(1): 135-158, janeiro-abril/2009

transformam em ceia. Seu despedaçamento prenuncia atransformação do cru em cozido.

A história de origens do Risca-Faca se conta sob osigno da crueldade. Nossa Senhora vira uma “índia” ou“nega” perigosa. No registro carnavalizante de quem brincacom o perigo, o gesto dessa Senhora não deixa de ser he-diondo. Coisa ruim. Desprezível. No fim, o horror. Assim seaprende a dizer “Nossa!” A mulher abjeta, diz Kristeva, seafunda no inconsciente. Repudiada, no entanto, ela tam-bém se torna fundante. Fecundante. Mãe. Do breu à luz.Tomb and womb, túmulo e útero.

Amores noturnos não resolvidos. Questões de tradu-ção. Dramas de traição. Gesto paradoxal. Em elipses, ondeas narrativas parecem desmanchar, há indícios de históriasque ainda não vieram a ser.

Enigmas. Nesse relato de horror, chama atenção ogesto mais carnavalizante e macabro. No princípio do gesto,que se afunda no “baixo-corporal”, deparamo-nos com umainversão capaz de fazer estremecer o próprio obelisco dosbandeirantes: uma pica vira picadinho. Mas seria a picade um bandeirante? O homem que vira picadinho não seria,como alma gêmea da mulher, um “índio” ou “nego laçadono mato”? Se a pica vira picadinho, o que dizer das esperan-ças de quem brinca com o perigo? E dos anseios virandosonhos de periferias penetrando centros em festas de boi-bumbá, ou bumba-meu-boy? Até mesmo a questão – quemirá povoar a terra? – parece que se afunda. No fim, um “corposem órgãos”. Haveria nessa imagem delirante de Artaudalgumas das esperanças mais fundas da liberdade do ser?36

E uma percepção de que, afinal, bandeirantes tambémtêm suas histórias noturnas? Não seriam bandeirantesverdadeiros “negos de alta periculosidade”?

Observa-se a arma do crime: um podão. A Senhorado Risca-Faca é uma mulher “boia-fria”. Na luta com oscanaviais, a experiência de degradação dos corpos. E acumplicidade entre o “boia-fria” e o “pé-de-cana”. “O boia-fria é um pé-de-cana”, assim se dizia. A trajetória da canavira metáfora do percurso dos “boias-frias” que voltam docampo moídos; “pés-de-cana” e “boias-frias” viram baga-ço. O “boia-fria” é um ser abjeto. Há máquinas cortadorasde cana que permanecem nas vitrines de usinas. O defeitodessas máquinas? Fazem da cana picadinho. Essa cananão presta. Não serve para usina. Em meio à experiência demortificação dos corpos, em carrocerias de caminhões tam-bém irrompia um clima carnavalizante. E um riso escato-lógico. “Boias-frias” brandiam podões. No dia em que MisterZé “caiu na cana”, em 1983, ele disse, com um leve sorriso:“Hoje, na roça, a polícia ficou parada nos olhando. Cinquen-ta homens, mulheres e crianças... tudo de facão. E os homens

36 Cf. ARTAUD 1976, p. 571.

Page 23: Universidade de São Paulo História noturna de Nossa ... · PDF filena periferia de Piracicaba, São Paulo, onde uma centena de famílias do Norte de Minas Gerais e de outras regiões

Estudos Feministas, Florianópolis, 17(1): 135-158, janeiro-abril/2009 157

HISTÓRIA NOTURNA DE NOSSA SENHORA DO RISCA-FACA

olhando..., re, re” (6.7.1983). Em caminhões andavam filhase filhos de Nossa Senhora do Risca-Faca.

Referências bibliográficasReferências bibliográficasReferências bibliográficasReferências bibliográficasReferências bibliográficas

ARTAUD, Antonin. “To have done with the judgment of God, ARadio Play (1947).” In: ARTAUD, A. P. Antonin Artaud: Selec-ted Writings. Ed. Susan Sontag. Berkeley, Los Angeles:University of California Press, 1976. p. 555-571.

______. O teatro e o seu duplo. São Paulo: Max Limonad,1987.

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e noRenascimento. São Paulo: Hucitec; Brasília: Ed. da UnB,1993.

BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história”. In: ______.Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. Trad.Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. p.222-232.

BORBA FILHO, Hermilo. Apresentação do bumba meu boi: oboi misterioso de afogados. Recife: Imprensa Universi-tária, 1966.

BRECHT, Bertolt. “A peça didática de Baden-Baden sobre oacordo”. In: ______. Teatro completo 3. Rio de Janeiro:Paz e Terra, 1992. p. 187-212.

CASCUDO, Luís de Câmara. Literatura oral no Brasil. 2. ed.São Paulo: Global, 2006.

CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. “Tema e varian-tes do mito: sobre a morte e a ressurreição do boi”. Mana:Estudos de Antropologia Social, v. 12, n. 1, p. 69-104,2006.

DAWSEY, John C. De que riem os “bóias-frias”? WalterBenjamin e o teatro épico de Brecht em carrocerias decaminhões. 1999. Tese (Livre-Docência) – Faculdade deFilosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidadede São Paulo.

______. “O teatro dos ‘bóias-frias’: repensando a antropologiada performance”. Horizontes Antropológicos, ano 11, n.24, p. 15-34, 2005.

DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva,1976.

EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Rio de Janeiro: JorgeZahar, 1990.

FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. Rio de Janeiro:José Olympio, 1933.

GINZBURG, Carlo. História noturna. São Paulo: Companhiadas Letras, 1991a.

______. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”. In:______. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história.São Paulo: Companhia das Letras, 1991b. p. 143-180.

Page 24: Universidade de São Paulo História noturna de Nossa ... · PDF filena periferia de Piracicaba, São Paulo, onde uma centena de famílias do Norte de Minas Gerais e de outras regiões

JOHN C. DAWSEY

158 Estudos Feministas, Florianópolis, 17(1): 135-158, janeiro-abril/2009

KRISTEVA, Julia. “Herethique de l’amour”. Tel Quel, n. 74, p.30-49, 1977.

______. Pouvoirs de l’horreur. Paris: Editions du Seuil, 1980.______. Étrangers à nous-mêmes. Paris: Fayard, 1988.______. “Stabat Mater”. In: KRISTEVA, Julia. The Portable

Kristeva. Ed. Kelly Oliver. New York: Columbia UniversityPress, 2002a. p. 310-332.

______. The Portable Kristeva. Ed. Kelly Oliver. New York:Columbia University Press, 2002b.

LEACH, Edmund. “Cabelo mágico”. In: ______. EdmundLeach. São Paulo: Ática, 1983a. p. 139-169.

______. “Nascimento virgem”. In: ______. Edmund Leach. SãoPaulo: Ática, 1983b. p. 116-138.

LEITE, João Denys de Araújo. Um teatro da morte: transfi-guração poética do bumba-meu-boi e desvelamentosociocultural na dramaturgia de Joaquim Cardozo.Recife: Fundação da Cultura na Cidade de Recife, 2003.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido doBrasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janei-ro: Nova Fronteira, 1988.

TURNER, Victor. “Betwixt and Between: The Liminal Period inRites of Passage.” In: ______. The Forest of Symbols:Aspects of Ndembu Ritual. Ithaca and London: CornellUniversity Press, 1967. p. 93-111.

______. “Liminality and Communitas.” In: ______. The RitualProcess: Structure and Anti-Structure. Ithaca, New York:Cornell University Press, 1969. p. 94-130.

______. “Hidalgo: History as Social Drama.” In: ______.Dramas, Fields and Metaphors: Symbolic Action in Hu-man Society. Ithaca and London: Cornell University Press,1974. p. 98-155.

[Recebido em maio de 2006e aceito para publicação em setembro de 2008]

Dark History of Our Lady of the Slash-KnifeDark History of Our Lady of the Slash-KnifeDark History of Our Lady of the Slash-KnifeDark History of Our Lady of the Slash-KnifeDark History of Our Lady of the Slash-KnifeAbstractAbstractAbstractAbstractAbstract: In the Garden of Flowers, over the ashes of the old Slash-Knife District, live the daughters– or granddaughters and great-granddaughters – of slaves and native South-American women“lassoed in the woods”. Many consider themselves also to be the daughters of Our Lady. Thejuxtaposition of maternal lineages may produce a montage-like effect. Do gestures of Indiansand slaves flash in the bodily innervations of Our Lady? Signs of “dark histories” of Our Lady arefound in subterranean regions of symbols. On this terrain, the study of historical patterns ofsettlement in Piracicaba, a city of the interior of São Paulo, may require a certain type ofarchaeology, involving a double dislocation, from bandeirante explorers to Our Lady, and fromOur Lady to Indian and slave women “lassoed in the woods”. In these substrata the gesture of aboia-fria woman who “cut a man into pieces” stirs up the shadows of a nation.Key WordsKey WordsKey WordsKey WordsKey Words: Gender; Our Lady; Abject Woman; Theater of Cruelty; Boia-Fria Sugarcane Cutters.