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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA RENAN THEODORO DE OLIVEIRA Banalidades e brigas de bar: Estudo sobre conflitos interpessoais com desfechos fatais (São Paulo: 1991 1997) Versão Corrigida MESTRADO EM SOCIOLOGIA SÃO PAULO 2016

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA

RENAN THEODORO DE OLIVEIRA

Banalidades e brigas de bar: Estudo sobre conflitos interpessoais com desfechos fatais

(São Paulo: 1991 – 1997)

Versão Corrigida

MESTRADO EM SOCIOLOGIA

SÃO PAULO

2016

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RENAN THEODORO DE OLIVEIRA

Banalidades e brigas de bar: Estudo sobre conflitos interpessoais com desfechos fatais (São

Paulo: 1991 – 1997)

Dissertação apresentada à Faculdade de

Filosofia, Letras e Ciências Humanas da

Universidade de São Paulo para obtenção do

título de Mestre em Sociologia.

Área de Concentração: Sociologia

Orientador: Sérgio França Adorno de Abreu

São Paulo

2016

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FICHA CATALOGRÁFICA

Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio

convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

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THEODORO, Renan. Banalidades e brigas de bar: Estudo sobre conflitos interpessoais com

desfechos fatais (São Paulo – 1991 – 1997)

Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da

Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Sociologia

Aprovado em: 26 de janeiro de 2016.

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr._______________________________________ Instituição: ___________________

Julgamento: ____________________________________ Assinatura: ___________________

Prof. Dr._______________________________________ Instituição: ___________________

Julgamento: ____________________________________ Assinatura: __________________

Prof. Dr._______________________________________ Instituição: ___________________

Julgamento: ____________________________________ Assinatura: __________________

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Dedico esse trabalho a Maria de Lourdes de

Oliveira e Rubens Theodoro de Oliveira

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à CAPES pela bolsa concedida, apoio fundamental para que eu pudesse me dedicar

à pesquisa, estudos e reflexão que tem como um dos muitos frutos a presente dissertação.

Pela paciência e atenção, agradeço também a toda equipe do Programa de Pós-Graduação em

Sociologia da Universidade de São Paulo.

Agradeço ao professor Sérgio Adorno por todas as oportunidades que me foram confiadas. Suas

leituras e sugestões demostraram seriedade, capacidade e dedicação científica. Aproveito para

agradecer ao Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV-USP). Ali tive, e ainda tenho, a

sorte de contar com apoio e convívio de profissionais que figuram entre os melhores

pesquisadores e pesquisadoras do país. Larissa, Igor, e Francisco, amigos com quem desenvolvi

a primeira experiência de pesquisa com entusiasmo. Nesse sentido, agradeço também a Wânia

Pasinato pelos ensinamentos naquela primeira fase. A Gorete agradeço pela constante

disposição a uma boa conversa sobre os avanços e retrocessos de nossas pesquisas. A Debora,

Caren e Herbert, minha atual equipe de trabalho, agradeço pela compreensão e apoio. Agradeço

a Sérgia, uma grande profissional que possibilitou o funcionamento desse núcleo responsável

pela formação de pesquisadores e pesquisas os mais importantes no campo acadêmico.

Tenho muitos amigos e amigas de longa data que, de uma forma ou de outra, fizeram parte da

minha trajetória até aqui. A eles, devo sobretudo agradecer à fraternidade e paciência por tantas

vezes em que recusei uma visita com “não posso, estou ocupado com o mestrado”. Adrian,

“Lolli” e Tali, “Vitinho” e Carol, Bruno e Marcela, obrigado por fazer das visitas a minha

cidade natal um retorno ao lar. Agradeço também a Henrique e “Nat”, a quem admiro pela

firmeza de suas escolhas e pelo carinho com que cultivam o futuro de seu Antonio.

Por sorte, há também amigos recentes que certamente me foram igualmente fundamentais.

“Pedrão” e Fernanda, pelos jantares e agradáveis discussões, para não mencionar o auxílio às

questões teóricas do Direito. A Letícia e João, amigos com quem a conversa é livre e

inspiradora, obrigado pelos inúmeros convites à descontração. Nesse sentido, agradeço também

a Barbara e Matheus, cuja parceria “musical” faz o tempo correr mais leve.

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De tantas pessoas com quem convivi intensamente durante o período de graduação, agradeço

especialmente a Nathalie, Thiago, Evelin, Eduardo, Bárbara e tantas outras companheiras e

companheiros que admiro, que me ensinaram que é possível e necessário combater as injustiças

e cujo convívio deu sentido à célebre frase “um sonho que se sonha só, é só um sonho que se

sonha só, mas sonho que se sonha junto é realidade”.

Algumas pessoas me ensinaram que o sentimento de pertencimento a uma família não tem nada

a ver com “conta sanguínea”. Com essas, aprendi as tarefas domésticas e sobretudo a cultivar

um lar confortável e agradável de se viver. À “primeira geração da Pitangueira”, Charles,

Daniel, Fernanda, Sharlene e Yana, sou grato pelas noites de festa, pelas manhãs de ressaca ou

de estudos, pelas brigas e pela disposição ao diálogo. À “segunda geração Pitangueira”,

“Jacaré”, Eduardo, Maiara, Renato, agradeço igualmente por compartilharem suas vidas

comigo e pelo apoio que me prestaram em momento decisivo da vida adulta.

A Renata e Paula, minhas irmãs por consideração, agradeço por me apresentaram a

possibilidade de estudar na Universidade de São Paulo, por me incentivarem a retomar os

estudos e me encorajarem a dar novos rumos na vida, por me emprestarem um lar quando vim

a primeira vez para esta cidade; pelos tempos de “Pitangueira”, pelo apoio emocional, afetivo,

acadêmico. Admiro a forma como essas mulheres fortes dominam seus caminhos. Agradeço

também a sua mãe Káthya e seu pai Claudir, que me apresentaram um modelo de família lindo,

divertido e que, sobretudo, está por perto em todas as circunstâncias.

A minha mãe e meu pai agradeço por apoio incondicional em todas as decisões que eu tomei

até aqui. Sem seu incentivo aos estudos, sua compreensão às dificuldades, o carinho e a

amizade, eu não teria conseguido chegar até aqui.

Agradecer a Amanda parece mais difícil do que concluir toda a dissertação. Não fosse sua

presença carinhosa, talvez não houvesse conquistas, as descobertas seriam sem sabor, as

alegrias seriam efêmeras e os momentos de angústia seriam insuportáveis. Obrigado por

compartilhar sua família e seus amigos, pessoas a quem também agradeço. Obrigado por pela

leitura crítica, pela disposição em ouvir, pela atenção ao comentar. Obrigado por tudo!

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RESUMO

A cidade de São Paulo registrou altas taxas de homicídio durante os anos 1990 e 2000. Este

fenômeno está profundamente relacionado com os elevados níveis de criminalidade urbana no

final de 1970. Em geral, os estudos sobre crimes violentos enfatizam o impacto da distribuição

desigual de direitos, o domínio do crime organizado, e incapacidade do Estado para fazer

cumprir a lei e manter a ordem. No entanto, há uma falta de literatura sobre os crimes violentos

como resultado de conflitos interpessoais. Esta dissertação propõe transitar do o nível macro ao

nível micro de análise, bem como mudar o foco dos estudos de homicídios para os estudos sobre

conflito. Os dados utilizados foram autos de processo penal para crime de homicídio registrados

entre 1991 e 1997 em 16 delegacias das regiões Norte e Oeste do município de São Paulo;

foram selecionados 30 processos de conflitos ocorridos em bares. Este estudo analisou também

o entendimento jurídico da banalidade. Nos últimos anos, aumentou o discurso de certos meios

de comunicação sobre as “razões triviais” dos crimes violentos. Identificou-se que os conceitos

banais e fúteis são manipulados a fim de qualificar tipos aceitáveis de sensibilidade e emoções

sociais envolvidos em crimes violentos. Por fim, foi examinado como agressores, vítimas e

testemunhas justificam os conflitos e as violências deles resultantes. Identificou-se que as

hostilidades são consequência de brigas ou desafios públicos; isso significa que o conflito surge

como uma forma de estabelecer limites e fronteiras para as autoridades sociais. Neste cenário,

tem-se como resultado que a desconfiança interpessoal parece sustentar o uso da violência

Palavras-chave: conflito interpessoal, violência urbana, bares, motivo fútil, motivo torpe

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ABSTRACT

The city of São Paulo recorded high rates of homicide during the 1990s and 2000s. This

phenomenon was deeply related with the high levels of urban crime in the late 1970s. In general,

the violent crime studies emphasize the impact of unequal distribution of rights, the domain of

organized crime, and the state's inability to enforce the law and maintain the order. However,

there is a lack of literature on the violent crimes as result of interpersonal conflict. This master

thesis proposes to move from the macro level toward micro level of analysis, and change the

focus from homicide studies into interpersonal conflict studies. The data used were criminal

records of murders between 1991 and 1997, gathering in 16 police stations located in the North

and West areas of São Paulo; it was selected 30 violent crimes committed in bars. This study

also examined the legal understanding of banality. In recent years, certain media discourse has

increased around "trivial reasons" of violent crimes. It was identified that the banal and futile

concepts are manipulated in order to qualify acceptable types of sensibilities and social

emotions involved in violent crimes. Lastly, it is examined how offenders, victims and

witnesses justify the conflicts and the interpersonal violence outcomes. It was identified that

the hostilities is consequence of quarrels or public challenges; it means the conflict arises as a

way of setting limits and boundaries for the social authorities. As a result, – in this scenario –

interpersonal distrust seems to sustain the use of violence.

Keywords: interpersonal conflict, urban violence, bars, futile motives, sordid motives

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LISTA DE TABELAS

Gráfico 1 Taxa de Ocorrências Policiais para crimes contra pessoa e crimes

contra propriedade Município de São Paulo, 1984 - 2000

p. 23

Gráfico 2 Taxa de Ocorrências de crimes contra pessoa Município de São Paulo,

1984 - 2000

p. 23

Gráfico 3 Evolução das Taxas de Homicídio Município de São Paulo, 1984-2000 p. 24

Figura 1 Área geográfica abrangida pela 3ª. Seccional Polícia, município de São

Paulo

p. 56

Figura 2 Fluxo do Sistema de Justiça p. 73

Tabela 1 Distribuição de Inquéritos Policiais segundo natureza e os Distritos

Policial. Município de São Paulo (1991 - 1997) - 3ª Seccional de

Polícia (%)

p. 58

Tabela 2 Distribuição de desfechos por acusados em três etapas do processo

penal

p. 73

Tabela 3 Contagem de qualificadoras por suspeito denunciado p. 78

Tabela 4 Contagem de qualificadoras por suspeito pronunciado p. 79

Tabela 5 Proporção de qualificadoras entre duas fases do processo penal p. 80

Tabela 6 Contagem de qualificadoras por réu condenado p. 81

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 13

CAPÍTULO I .......................................................................................................................... 21

Dos crimes de homicídio aos conflitos interpessoais ........................................................... 21

Criminalidade violenta e crimes de homicídio como questão sociológica ............................... 21

Mudanças na sociedade e nos padrões de delinquência .......................................................... 26

Incapacidade de o sistema de justiça criminal controlar o crime e a violência ...................... 27

Crime, violência, pobreza e desigualdades .............................................................................. 27

Crime de homicídio e conflitos interpessoais ........................................................................... 31

Conflito interpessoal e violência: definições ............................................................................ 36

Questões da pesquisa ................................................................................................................ 40

CAPÍTULO II ......................................................................................................................... 42

O processo de pesquisa e a pesquisa com processos penais ................................................ 42

Autos de processo penal como fonte de dados ......................................................................... 42

O processo de pesquisa com autos de processo penal .............................................................. 54

Caracterização geral dos processos pesquisados ...................................................................... 54

As peças do auto de processo penal ......................................................................................... 60

As etapas da leitura e descrição ............................................................................................... 62

CAPÍTULO III ....................................................................................................................... 69

A banalidade nos discursos jurídicos .................................................................................... 69

Descrição geral do fluxo dos processos e desfechos ................................................................ 72

Descrição geral das qualificadoras do crime de homicídio ...................................................... 75

Descrição dos processos ........................................................................................................... 84

O relatório do delegado ........................................................................................................... 84

O oferecimento da denúncia ..................................................................................................... 86

As alegações finais e o embate entre acusação e defesa .......................................................... 91

A decisão intermediária ......................................................................................................... 100

O Júri ...................................................................................................................................... 103

Recursos pelas partes ............................................................................................................. 106

CAPÍTULO IV ...................................................................................................................... 114

Brigas de bar e conflito interpessoal ................................................................................... 114

Os significados do bar ............................................................................................................ 120

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Os bares e os bairros ............................................................................................................... 124

Perfil dos protagonistas .......................................................................................................... 126

A dinâmica das brigas............................................................................................................. 129

Brigas entre conhecidos ......................................................................................................... 130

Brigas entre desconhecidos .................................................................................................... 147

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 157

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 161

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INTRODUÇÃO

O Brasil registra marcas significativas de mortes violentas. Há cerca de três décadas o

país registra altas taxas de homicídio, latrocínio e execuções sumárias, em especial nas grandes

cidades. As vítimas são principalmente homens jovens entre 18 e 30 anos. O homicídio tem

sido considerado uma das principais causas de morte de jovens adultos em São Paulo (CARDIA

et al., 2003, p. 43).

Na década de 1990, o homicídio doloso se confirmou como a modalidade criminal com

as taxas de crescimento médio mais altas (CALDEIRA, 2000, p. 116 - 119), saltando dos 12,8

por cem mil habitantes em 1980, até alcançar os 83 óbitos por cem mil habitantes em 1999

(MAIA, 2000, p. 122). As principais explicações são encontradas na persistência de

desigualdades sociais, econômicas e políticas, bem como nas transformações ocorridas nos

padrões de delinquência social – com especial atenção para as formas contemporâneas de

organização criminal –, e ainda na incapacidade de o sistema de justiça controlar o crime e a

violência.

Esta dissertação representa um esforço de compreender a conflitualidade e a violência

contemporâneas sob uma perspectiva pouco explorada entre os estudos do campo das ciências

sociais. A proposta inicial surgiu durante minha participação na pesquisa Violência,

Impunidade e Confiança na Democracia, São Paulo 1991-1997, realizada pelo Núcleo de

Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), cujo objetivo era identificar

a magnitude e as características sociológicas da produção da impunidade penal.

O estudo do NEV-USP teve como base uma amostra probabilística de inquéritos

policiais registrados em 16 delegacias da 3ª Seccional de Polícia do município de São Paulo,

todas localizadas na região noroeste no município, em bairros distintos do ponto de vista

socioeconômico. A pesquisa identificou 344.767 boletins de ocorrências (BOs) registrados

naquelas delegacias em diversas modalidades criminais. Segundo Adorno e Pasinato (2010, p.

73), desse total de registros, apenas 5,5% foram convertidos em Inquérito Policial (IP); os

crimes violentos somaram 117.418, dos quais 8,1% foram convertidos em IP. Dentre os crimes

violentos, 67,2% dos BOs registrados como latrocínio foram convertidos em IPs; e 60.1% dos

BOs para crimes de homicídio foram convertidos em IPs.

O estudo identificou ainda que os principais fatores para conversão de BO em IP

baseavam-se na presença do flagrante e o conhecimento da autoria. Quando comparados os

fatores, indica-se o flagrante como “poderoso estímulo à investigação policial” (ADORNO et

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al., 2010, p. 75). Finalmente, os autores identificaram que “é maior a inclinação da agência

policial para a investigação de crimes violentos, porém os agentes e a agência policiais

privilegiam os de autoria conhecida”. (Idem, p. 78). Há, portanto, marcante seletividade no

trabalho da Polícia Civil em suas atribuições de investigação à medida que “Crimes violentos

de autoria desconhecida não constituem meta a ser alcançada pelos agentes policiais em suas

tarefas de esclarecimento de casos e de apuração de responsabilidade criminal” (Ibidem).

Durante o período em que participei, um dos objetivos da pesquisa compreendia

identificar os mecanismos da seletividade policial e os fatores determinantes para a não

investigação policial, bem como as justificativas que Juízes e Promotores do Ministério Público

(MP) apresentavam para dar prosseguimento ou não às ações penais. Optou-se por centrar o

estudo em casos de homicídio, tendo como pressuposto que, pela gravidade dos crimes, haveria

maior empenho das instituições em promover Justiça. Para desenvolver aquela fase do estudo,

estabeleceu-se uma amostra estatisticamente representativa do total de ocorrências de

homicídio e tentativa de homicídio registradas, entre 1991 e 1997, nas 16 delegacias do

município de São Paulo. Foram encontrados 197 casos entre inquéritos policiais arquivados e

processos penais com distintos desfechos.

As histórias e os dilemas envolvidos nos casos de homicídio me impressionaram desde

as primeiras leituras daqueles autos de processo penal. Destaco a seguir alguns trechos do caso

número 133-97 – um dos muitos processos penais para crime de homicídio lidos durante a

pesquisa – referente à briga entre Adeildo e Elenilson, ambos habitavam uma pensão para

homens na Vila Leopoldina. Adeildo, pernambucano de 51 anos, não completou o ensino de 1º

grau; trabalhava como agente escolar, mas sua renda não era suficiente para arcar com as

despesas do aluguel da residência em que vivia com Maria, sua “amásia”. Ela passou a morar

na casa em que trabalhava como empregada doméstica e ele se mudou para a pensão. Elenilson

era alagoano de 25 anos, analfabeto que vivia dos bicos de pedreiro e havia dois meses morava

na mesma pensão que Adeildo.

Conforme depôs Adeildo, era quinta-feira à noite e ele estava assistindo a alguma partida

de futebol no seu quarto junto a Laércio, Everaldo e o Sr. Zé. Em suas palavras: “o tal indivíduo

[Elenilson] parou na porta de seu quarto e pediu-lhe arroz; Que o informou que não tinha; [...]

Que, passados dez minutos, o tal indivíduo voltou pedindo farinha de mandioca [...]” ao que ele

também negou alegando que estava evitando aquela dieta por razões de saúde. Ainda segundo

Aldeido, passados mais dez minutos, o indivíduo retornou e disse: “ô velho filho-da-puta,

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amanhã eu vou comprar dez carradas1 de farinha e vou estufar sua boca porque você me negou

farinha”. Adeildo disse ao delegado que respondeu a Elenilson “vá a puta que o pariu porque

eu não estou precisando de farinha, eu não te conheço e você vem na minha porta encher o

saco”, mas diante do juiz, Adeildo afirmou que sua resposta foi “desse [a farinha] para sua mãe,

pois ela é que estava precisando”. A versão de Elenilson para a discussão foi diferente e seus

depoimentos apresentaram seguidas alterações de conteúdo desde a delegacia à plenária do Júri.

Aos policiais, disse que “viu que aquele hóspede tinha, pois viu o arroz e o feijão sobre o fogão

e a farinha no armário do quarto dele”, ao que Adeildo teria respondido que “não era obrigado

a lhe fornecer, pois não era obrigado a lhe sustentar e que não lhe devia satisfação alguma,

proferindo-lhe palavras de baixo calão”. Na Instrução Criminal, Elenilson negou participação

no caso. Diante do Júri, assumiu as agressões, mas mudou o teor da declaração. Disse que teria

pedido a Adeildo que lhe comprasse arroz e farinha, ao que Adeildo não atendeu.

Na noite do domingo seguinte a pensão estava vazia. Adeildo estava em seu quarto

quando por volta das 23h00 bateram três vezes à sua na porta. Elenilson estava lá parado, “com

as duas mãos para trás”. O jovem pediu desculpas: reconheceu o que dissera anteriormente e

não queria que Adeildo pensasse mal dele. Adeildo então disse que ficasse tranquilo, não era

nada, esquecesse tudo. Adeildo se despediu, pediu “licença” e tentou fechar a porta do quarto.

Naquele momento, Elenilson sacou de seu revólver calibre 38 e tentou disparar contra Adeildo,

mas os três disparos falharam. Adeildo declarou que “foi de encontro com o tal indivíduo a fim

de tirar dele a arma, e, no contato físico, o tal indivíduo pulou para trás e efetuou um disparo

em sua direção, atingindo-lhe o braço direito”. Tentou segurar seu agressor, que conseguiu

escapar. Cobriu o ferimento e saiu à rua pedindo por socorro. Elenilson disse que bateu à porta

de Adeildo para perguntar sobre as compras e então foi surpreendido por um ataque à faca de

Adeildo. Elenilson disse que conseguiu evitar a facada segurando o braço esquerdo de Adeildo.

Só atirou para se defender e porque estaria embriagado.

1 Carrada é a quantidade de carga que um veículo pode transportar. Medida muito utilizada para se referir à carga

de areia transportada por caminhões para construção civil.

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Neste caso, ainda é interessante destacar como os promotores públicos e advogados de

defesa interpretaram os acontecimentos. O representante do Ministério Público se posicionou

afirmando que “o crime foi praticado por motivo fútil, posto que seu móvel fora a negativa da

vítima em fornecer-lhe farinha e arroz”. Já o advogado de Elenilson, elaborou uma defesa em

outro sentido. Em suas palavras:

Na realidade, este caso tem a ver com a extrema ignorância que grassa entre o povo

deste país, notadamente entre os nordestinos das classes baixas, do interior do sertão.

Como se pode ver pela assinatura, Elenilson, o acusado, ‘desenha’ o nome, mal sabe

escrever. Como todo ignorante, é absurdamente melindroso, qualquer coisa ofende,

fica cheio de ‘não me toques, não me reles’. Para nós, pessoas de bom nível cultural,

é inadmissível o fato do acusado ter pedido arroz e farinha de mandioca à vítima e

tendo esta negado, desse causa a tamanho desatino. Porém, para um alagoano inculto,

analfabeto, sozinho nesta cidade tão cruel e indiferente, o fato da vítima ter aqueles

mantimentos e negá-los a ele, que tinha fome, era algo de muito grave, ofensivo,

mesmo.

Como todo ignorante, todo mal-educado, cada vez que encontrava a vítima, fazia

piadinhas a respeito: ‘amanhã vou comprar um saco de farinha para o senhor’[...]

Como a vítima não era nem um pouco mais evoluída, pertencendo ambos ao mesmo

extrato social, sua resposta era tão grosseira quanto à piada. E isto foi criando um mal-

estar entre os dois.

O que aconteceu, na realidade, foi que o acusado, no dia dos fatos, ao entrar na pensão,

passou pela porta do quarto da vítima e disse-lhe outra piadinha, sendo que, conforme

já havia acontecido, a vítima esbravejou, soltando palavrões e dizendo-lhe ‘que

enfiasse no ... da mãe a farinha, que ele não precisava disso’. Como todo nordestino,

que tem os nervos à flor da pele, não admitem que sua mãe seja xingada, atracaram-

se, sendo que a certa altura houve um disparo, que atingiu o braço da vítima”.

Ao longo da pesquisa realizada pelo NEV-USP, houve frequentes leituras de histórias

muito parecidas com esta. Aos poucos, algumas recorrências eram anotadas, como a

semelhança do perfil social das partes envolvidas, homens, trabalhadores das classes populares.

Estes “iguais” se envolvem em brigas surgidas nos bares, nos quintais ou habitações coletivas

que compartilham, no interior de suas residências com os familiares, no ambiente de trabalho

com colegas, nas ruas com desconhecidos. As justificativas, as mais comuns e corriqueiras

possíveis: um “olhar mal-encarado”, uma questão envolvendo o uso de quintal coletivo, ofensas

e xingamentos trocados entre amigos.

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Outro elemento frequente nas histórias foi bem exemplificado acima, o discurso da

banalidade dos conflitos que aparece nas peças dos advogados, promotores e juízes. No

exemplo acima, para o promotor, o fato de Elenilson agredir Adeildo porque este lhe negou

farinha se configurava coma futilidade. Para o defensor, pelo contrário, as ações não eram

fúteis, mas também não eram mais nobres: justificavam-se pelas características próprias dos

sujeitos e seu meio social que, “naturalmente”, por sua posição em uma suposta “evolução

social”, seriam incapazes de controlar suas emoções e apelavam para a violência por qualquer

coisa.

Por meio das leituras dos autos, comecei a notar como a futilidade dos conflitos

violentos aparece também em outros discursos. Por exemplo, em maio de 2013, um diário

gratuito de grande circulação na capital paulistana alertava: “Motivos banais estão em um terço

dos homicídios”. A matéria informava que entre janeiro de 2012 e abril do mesmo ano haviam

sido registrados cerca de dois mil homicídios qualificados como “motivos fúteis”.

Esta tensão entre a futilidade dos conflitos e a naturalização da violência provocou-me.

Passei a estranhar essas ideias de banalidade e naturalização. Não demorou para surgirem os

primeiros questionamentos sobre as limitações explicativas das grandes tendências de estudos

na área. O que aguçava minha imaginação sociológica era que através das explicações

“macrossociais” quase nada sabemos sobre as motivações e os significados destas mortes para

as partes nela envolvidas. E, se por um lado diversas pesquisas acadêmicas encontraram

explicações “estruturais” para o problema da conflitualidade e violência contemporâneas; de

outro, pouco sabemos dos conflitos e seus desfechos fatais como produto também das dinâmicas

das relações interpessoais.

Como já antecipava Maria Célia Paoli (1982, p. 45-48) as explicações macro acabam

por tomar a violência como fenômeno secundário e sua lógica social acaba silenciada.

Perguntei-me então: seria possível identificar outros significados para aquelas mortes geradas

“por questão de somenos” importância? A resposta não parecia residir nas grandes explicações,

mas sim no exame detido das relações e interações em que as brigas e mortes foram produzidas.

O principal objetivo da pesquisa tornou-se interpretar os sentidos que deram nexos

causais às interações em que foram produzidos conflitos com desfechos violentos. Para tanto,

nestes anos de pesquisas deparei-me com desafios conceituais e metodológicos que me

exigiram empenho, paciência e cautela e constituíram-se fundamentais no processo de

formação intelectual. O primeiro desafio impôs-se pela necessidade de superar a compreensão

do problema a partir da noção “homicídio”, categoria que domina os discursos jurídicos,

midiáticos e as estatísticas, mas acaba por esconder os conflitos interpessoais.

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O primeiro capítulo da dissertação resulta numa tentativa de transitar da compreensão

dos crimes de homicídio às tensões e disputas que geram conflitos. Partindo dos estudos sobre

homicídio, aponto as possibilidades e limitações dos estudos de conflito interpessoal. Tal

transição não ocorreu sem gerar outros desafios, como a pouca definição teórica do que são

“conflitos interpessoais”. Recorri a Georg Simmel, Lewis Coser e outros autores do campo da

“microssociologia”, para compreender o conflito interpessoal como categoria que possibilita

analisar o conflito social a partir dos indivíduos que se posicionam de forma antagônica. São as

interações sociais em que se produzem e desenvolvem os conflitos que vão para o centro da

análise.

Ainda no primeiro capítulo, empreendo uma diferenciação inicial entre conflito social e

violência, dois conceitos que aparecem confundidos, um explicado pelo outro. Em geral, a

violência é compreendida como um recurso para a resolução dos conflitos e, dentre tantas

explicações, a de que resulta de certa perda de autolimitação do uso da força, ou mesmo da

ausência deste processo social de autocontrole. Com o intuito de esclarecer as diferenças

possíveis entre conflito e violência, mostrou-se essencial o contato com teorias mais recentes,

como as de Randall Collins, além de outros autores brasileiros. Uma pergunta fundamental

então surgiu: aquilo que explica o conflito explicará também a violência? Neste sentido, todo o

presente estudo foi permeado pela tentativa de compreender como os conflitos interpessoais

são produzidos e como ocorre a passagem entre conflito e violência interpessoal. Sem dúvida,

essas diferenciações necessárias receberam aqui apenas um tratamento inicial e deverão ser alvo

de reflexões mais aprofundadas.

Como antecipado, a pesquisa foi elaborada a partir das 197 cópias de inquéritos policiais

e autos de processo penal, para crimes de homicídio e tentativa de homicídio, registrados no

município de São Paulo entre 1991 a 1997 – documentação coletada e disponibilizada pelo

NEV-USP. Do total de casos, 68,02% são homicídio consumado e 25,89% tentativa. São 234

vítimas e 243 infratores e o padrão é de conflito entre duas pessoas - destes, 25 mulheres como

vítimas e 5 como infratoras. Dos vínculos entre as partes, em apenas 24,78% dos casos eram

desconhecidos entre si sendo, portanto, a maioria de conflitos entre pessoas conhecidas

(relações conjugais, familiares, vizinhança e amizade).

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No tocante à idade, repetiram-se resultados de pesquisas similares: maioria de homens

jovens de até 29 anos. Quanto à cor, na pesquisa realizada pelo NEV-USP, não foram notadas

discrepâncias, respeitando-se as distribuições conforme a população no município. Predomina

entre agressores e vítimas a baixa escolaridade. Quanto às ocupações, os dados fornecidos pelos

autos são insuficientes. No geral, são homens que desenvolvem ocupações de baixa

remuneração, de vínculos informais, passageiros, com pouca ou nenhuma estabilidade.

Das circunstâncias, os dados gerais da pesquisa apontam que a maior parte dos casos foi

registrada em “logradouro público” (50,8%), o que quer dizer que o corpo da vítima foi

encontrado em alguma rua, pavimentação, terreno baldio; outros 24,9% ocorreram em

residências e 13,7% em estabelecimentos comerciais, notadamente bares. A maioria das

ocorrências deu-se no período da noite (41,1%), seguido pela madrugada (22,3%).

Confirmando indicações de pesquisas congêneres o principal instrumento são as armas de fogo

(76,1%), seguidas das armas brancas (20,8%). Em 23,4% dos casos a autoria é desconhecida2.

Há também os desafios impostos pelo trabalho com os autos de processo penal, como

fonte de pesquisa, tema do segundo capítulo. A primeira dificuldade refere-se à leitura das

peças. Acessar os atos que provocaram os autos de processo penal foi uma tarefa que me exigiu

algum treinamento, em especial familiarização com a linguagem jurídica, de forma a conseguir

transpor a retórica própria desta documentação que, como lembra Bourdieu, se impõe pela

impessoalidade e neutralidade, pelas construções passivas, frases impessoais características de

um texto que constrói à sua maneira um enunciador que é universal, imparcial e objetivo

(BOURDIEU, 1989).

Os discursos capturados e reorganizados pelos depoimentos e interrogatórios são

versões em disputa na tentativa de impor uma visão de mundo ou visão dos atos. Por isso, os

autos não podem ser tratados como meros atalhos para acessar os fatos, nem a realidade social

ser reduzida a apenas duas interpretações: culpado ou inocente; certo ou errado. Nesse sentido,

a fim de interpretar os conflitos interpessoais por trás dos autos precisamos tentar romper com

o binarismo entre “vítima e agressor”.

2 Os dados aqui utilizados podem ser conferidos nos relatórios da pesquisa desenvolvida pelo NEV-USP

(ADORNO; PASINATO 2008)

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No terceiro capítulo iniciamos a descrição das realidades sociais construídas pelos autos

de processo penal. Revisamos as peças dos autos que contêm as justificativas e decisões

realizadas pelos promotores públicos, advogados de defesa e juízes. São estes personagens que

definem nos autos quais são as mortes banais. Primeiro tentamos dimensionar a participação da

banalidade no conjunto inicial de 197 casos; a seguir, a partir de um número menor de casos

selecionados, recuperamos os discursos dos delegados, promotores, juízes e advogados sobre

as circunstâncias, as motivações e os sujeitos envolvidos naqueles conflitos. A pergunta central

do capítulo consiste em: o que é o banal nos discursos jurídicos? Através das definições do que

figura ou não banal, os discursos jurídicos e as sessões de julgamento definem tipos aceitáveis

de sociedade e de sujeitos sociais.

As ocorrências que subsidiaram a pesquisa estão distribuídas por 24 distritos censitários

do município, a maioria entre as regiões Oeste e Norte, muitos em distritos que estavam entre

os de maior contingente populacional do município na década de 1990, como: Campo Limpo,

Capão Redondo, Freguesia do Ó, Pirituba. Bairros nos quais identificamos algumas

circunstâncias constantes: brigas nas relações familiares, de vizinhança, de trabalho, em

espaços de lazer, como bares ou casas noturnas, alguns em espaços coletivos, como campos de

futebol, inúmeros em espaços públicos, como ruas ou vielas. Optamos por nos dedicarmos à

análise em uma parcela menor de 30 casos, todos que envolveram, em alguma medida, “brigas

de bar” ou situações bastante semelhantes – nas brigas de bar os vínculos sociais entre as partes

do conflito eram os mais diversos possíveis, desde desconhecidos que se cruzaram naquela

ocasião até familiares, amigos de bairro ou colegas de trabalho.

Assim, no capítulo 4, caracterizamos os protagonistas, as circunstâncias e os cenários

sociais e descrevo as situações em que foram produzidos os conflitos interpessoais; buscando

delinear a natureza social das tensões e disputas, nas quais foram gestados os antagonismos e

os antagonistas desses conflitos, bem como identificar a dinâmica dos conflitos desde seu

surgimento ao desfecho violento. Quando contrastados os discursos jurídicos com os

depoimentos dos envolvidos direta ou indiretamente nos conflitos interpessoais, as justificativas

e explicações que se encontram são outras, e as categorias associadas à banalidade das ações

perdem um pouco o seu sentido. Os autos de processo penal narram histórias de lutas por

diferenciação e reconhecimento de limites e fronteiras, em que questões de ordem pessoal

aparecem como essenciais na vida cotidiana.

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CAPÍTULO I

Dos crimes de homicídio aos conflitos interpessoais

Neste capítulo, revisamos os principais estudos sociais desenvolvidos no Brasil sobre

homicídio. Ao longo das últimas 3 décadas, as pesquisas na área enfrentaram a questão da

persistência das altas taxas dessa forma de mortalidade violenta nas grandes capitais. Identifico

que os principais esforços explicativos tentaram compreender o problema pelo paradigma das

“macro explicações”, enquanto foram pouco abordadas as dinâmicas e situações em que os

conflitos se produziram e resolveram-se por um desfecho violento. Em conexão com os achados

da abordagem “macro” apresentamos o conceito de conflito interpessoal como alternativa

analítica e estabelecemos algumas delimitações necessárias ao estudo, como as diferenciações

entre crime, conflito e violência. A seção final do capítulo elenca as principais questões que

orientaram a caracterização sociológica dos conflitos realizada na dissertação.

Criminalidade violenta e crimes de homicídio como questão sociológica

Se é possível apontar um período no Brasil em que a criminalidade e a violência a ela

associada se tornam tema de preocupação pública e popular, certamente a data inicial remonta

à década de 1960. Até então, os crimes que ganhavam maior destaque na imprensa nacional

eram os casos passionais, a vingança pessoal e os crimes políticos, contudo notícias desta

natureza eram pouco frequentes. Nesse sentido, “estavam os crimes quase confinados ao mundo

privado, restrito ao comportamento de alguns indivíduos que desafiavam a lei e a ordem”,

atraindo pouco interesse dos produtores de cultura e das ciências sociais em geral (BARREIRA;

ADORNO, 2010, p. 303-305).

A partir daquela década, a sociedade brasileira começou a registrar profundas alterações

nos padrões de criminalidade e delinquência, especialmente nas capitais do país, que também

passavam por intensa expansão e urbanização. Época em que surgem as primeiras notícias sobre

os “esquadrões da morte”. A partir dos anos 1980, crescem vertiginosamente tanto as taxas de

crimes contra o patrimônio quanto as de mortalidade por homicídio.

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A emergência e a consolidação desse fenômeno que hoje se concebe como

“criminalidade” ou “violência urbana” foi acompanhada de perto pelos estudos sociais,

consolidando um amplo campo de investigações sociais conhecido como “sociologia da

violência”. De maneira geral, o objeto de estudos que funda este campo de conhecimento pode

ser definido como:

[...] formas de conflito e conflitualidade social, cuja resolução converge para o

emprego de violência, mediante meios determinados, segundo modalidades singulares

e no contexto de particularidades históricas. Entender essas formas requer considerar

não apenas estruturas, mas também processos sociais, requer considerar quem são os

protagonistas dos conflitos violentos, seja do ponto de vista da posição que ocupam

nas hierarquias sociais, com seus interesses particulares e com suas representações

sobre crime, justiça, punição, segurança, seja da perspectiva de suas configurações

históricas (BARREIRA; ADORNO, 2010, p. 310).

Um dos principais desafios deste campo de estudos tem sido o de compreender a

dinâmica, o movimento, as tendências temporais e as características da criminalidade urbana.

Informadas sobretudo pelas expressivas e alarmantes taxas de ocorrência de diversos tipos de

atividades criminais, pesquisas no campo das ciências sociais tentam compreender desde as

causas da criminalidade e violências contemporâneas às possibilidades de políticas públicas de

controle social e prevenção ao crime; incluindo o exame dos perfis sociais dos “delinquentes”,

as representações sociais que emergiram neste contexto, bem como as relações entre Estado,

política e criminalidade.

Se comparadas, as taxas das ocorrências policiais de crimes contra a propriedade são

mais acentuadas, com valores instáveis, mas crescentes ao longo dos últimos 30 anos, o que

revela peso na curva de evolução das taxas brutas de aumento da criminalidade. O gráfico a

seguir compara as taxas para ocorrências policiais de crimes contra a propriedade e de crimes

contra pessoa.

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Mas se as diversas modalidades criminais se diversificaram e intensificaram, é

sobretudo a violência a ela associada que marca esse movimento (BARREIRA; ADORNO,

2010, p. 306-307). As taxas das ocorrências de crimes violentos cresceram mais que as formas

não violentas. Em que pesem dificuldades e limitações ao se trabalhar com os dados oficiais de

ocorrências criminais, as estatísticas apontam que ao longo dos anos 1980 os crimes violentos

(homicídios consumados ou tentados, lesão corporal dolosa, estupro, roubo e latrocínio)

aumentaram de 20% do total registrado, passando a 30% em 1984 e 36,28% em 1996

(CALDEIRA, 2000, p. 116).3

3 Como apontado por Fausto (2014 [1984], pp. 28 - 30), estatísticas de prisões, processos criminais, são indicadores

da atividade policial judiciária e refletem mais as políticas e práticas repressivas do que alterações da realidade

0300600900

12001500180021002400270030003300

1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000

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itan

tes

Gráfico 1: Taxa de Ocorrências Policiais para crimes contra pessoa e crimes contra

propriedade Município de São Paulo, 1984 - 2000

Crimes contra Pessoa Crimes Contra Propriedade

0

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400

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10

0.0

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hab

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tes

Gráfico 2: Taxa de Ocorrências de crimes contra pessoa

Município de São Paulo, 1984 - 2000

Crimes de Homicídios e Tentativas Crimes de Lesão Corporal

Fonte: Secretaria da Segurança Pública - SSP/Delegacia Geral de Polícia - DGP/ Departamento de

Administração e Planejamento - DAP/ Núcleo de Análise de Dados; Fundação Seade

Fonte: Secretaria da Segurança Pública - SSP/Delegacia Geral de Polícia - DGP/ Departamento de

Administração e Planejamento - DAP/ Núcleo de Análise de Dados; Fundação Seade

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Seguindo o gráfico anterior, quando isoladas, as taxas de crime contra a pessoa revelam

uma dinâmica peculiar. São as ocorrências de crime de lesão corporal as que mais contribuíram

para as altas taxas de crime contra a pessoa. Ademais, aponta-se que entre 1991 e 1992,

enquanto diminuía a incidência de crimes de lesão corporal, subia a curva de homicídio

(consumado e tentado).

Compreender as dinâmicas subjacentes às taxas de ocorrência de homicídio constitui o

desafio à explicação científica. Em primeiro lugar, pela magnitude do fenômeno, com cifras

nunca antes registradas e comparáveis com a mortalidade de guerras ou conflitos civis ao redor

do globo. O homicídio doloso se confirmou como a modalidade criminal com as taxas de

crescimento médio mais altas no período (CALDEIRA, 2000, p. 116-119). A taxa de homicídio

foi dos 12,8 por cem mil habitantes em 1980, passando a marca dos 30 por cem mil em 1982,

crescendo gradativamente a partir de 1993, até alcançar os 83 óbitos por cem mil habitantes em

1999 (MAIA, 2000, p. 122). O gráfico a seguir ilustra como cresceram essas ocorrências ao

longo dos anos 1990.

criminal, são reflexo de sua maneira de agir frente a eventos sociais (CALDEIRA, 2000, p. 104). Contudo, há

certo consenso que as estatísticas para os crimes de homicídios sejam as mais confiáveis porque “relativamente

imunes a problemas de definição ou a variações devido a práticas policiais escusas”, ainda que parcela das mortes

não sejam registradas como homicídio, a exemplo das execuções cometidas por policiais, registradas como

“resistência seguida de morte” (Idem, p. 109 - 110). Para maiores informações na crítica às estatísticas criminais,

sugere-se a tese de Renato Sérgio de Lima (2008).

30

45

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75

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Gráfico 3: Evolução das Taxas de Homicídio

Município de São Paulo, 1984-2000

Fonte: Secretaria da Segurança Pública - SSP/Delegacia Geral de Polícia - DGP/ Departamento de

Administração e Planejamento - DAP/ Núcleo de Análise de Dados; Fundação Seade

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Além da magnitude do crime de homicídio, mudou também o perfil dos envolvidos. Até

a década de 1980, as ocorrências desses crimes envolviam sobretudo adultos entre os 20 e 29,

30 e 39 e 40 e 49 anos, respectivamente. Este padrão se alterou a partir de 1984 e os jovens

entre 15 e 19 e 20 a 29 anos se encontram entre os principais grupos etários vitimados

(ADORNO, 1994, p. 137). No mesmo período, houve uma expansão das organizações

criminosas e a polícia passou a atuar de maneira mais violenta na contenção da criminalidade

(ADORNO, 1994).

Assim, afirmava-se que naquele momento a criminalidade urbana se tornava também

mais violenta, sublinhando uma mudança não apenas em quantidade como em qualidade. Além

da maior incidência de crimes contra a pessoa, os conflitos passam a ser mais letais. Frisemos

que a diminuição relativa das ocorrências de lesão corporal foi acompanhada de elevação nas

taxas de homicídio.

De maneira geral, podemos identificar que a mortalidade por homicídio movimentou ao

menos três grandes tendências explicativas,4 como sugeriram Caldeira (2000) e Adorno (2002).

A primeira perspectiva identifica relações causais com mudanças na sociedade e nos padrões

de delinquência. A segunda tendência explica a partir da incapacidade do sistema de justiça

criminal em controlar o crime e a violência. É consenso entre estes autores uma terceira

tendência, que relaciona o fenômeno a alguns fatores associados à urbanização e

industrialização, especialmente em São Paulo, cuja faceta negativa revelou aumento das

desigualdades sociais e pobreza (CALDEIRA, 2000; ADORNO, 2002).

4 Teresa Caldeira recorda as explicações psicológicas, que enfocavam a personalidade dos criminosos individuais

(CALDEIRA, 2000, p. 126). Compreendendo estas explicações autônomas aos estudos das ciências sociais, esta

perspectiva não será explorada.

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Mudanças na sociedade e nos padrões de delinquência

A principal transformação nos padrões de delinquência reside na emergência do

chamado “crime organizado”, que se tornou mais profissional, bem equipado com armamento

poderoso, com forte articulação econômica através do tráfico de drogas, além da expansão de

assaltos a grandes empreendimentos e sequestros de figuras públicas importantes (CALDEIRA,

2000, p. 132).

Alba Zaluar (1999) observou que no Rio de Janeiro a consolidação das organizações

criminosas fizeram surgir em torno dessa nova economia do crime um padrão de violência que

viria a caracterizar novas formas de sociabilidade urbana. Aquele emergente “mundo do crime”

se configurava como uma referência moral, o ethos masculino e a violência, como regra de

conduta a se espraiar entre jovens moradores dos bairros que conformavam os aglomerados

urbanos como favelas.

Considerando as limitações na produção de registros oficias pela polícia, a rigor é difícil

diagnosticar a correta medida em que os crimes de homicídio se relacionam com o tráfico de

drogas, para além dos casos em que há mortes declaradas como ocasionadas em disputas por

territórios ou em decorrência de ação policial (LIMA, 2000, p. 17). Ademais, é preciso ter

cuidado com a validade do dado que associa a expansão dos homicídios ao envolvimento com

o tráfico de drogas ou ao crime organizado.

Em primeiro lugar porque é muito baixa a taxa de esclarecimento dos casos de

homicídio. Relacionado a este fato, conforme observamos em estudo desenvolvido pelo NEV

(ADORNO et. al., 2010), as investigações policiais privilegiam conflitos com desfechos fatais

ocorridos entre pessoas conhecidas. Uma das principais hipóteses que movimenta os trabalhos

policiais é a possível relação entre as mortes por homicídio e o envolvimento da vítima com

atividades criminosas, fato poucas vezes comprovado, porque não é investigado.

De todo modo, a emergência dos novos padrões de delinquência possivelmente teve

como elemento determinante a maior circulação de armas de fogo. Em 1980, 20,7% dos

homicídios praticados no Estado de São Paulo tiveram como meio armas de fogo. Cerca de 20

anos depois, acompanhando a gradativa elevação das taxas de homicídio, as armas de fogo

foram responsáveis por aproximadamente 50% dos homicídios em 1999 (MAIA, 2000, p. 125).

Somente no período 1991-2000 a participação de armas de fogo em homicídios cresceu de

28,9% para 59,5% (PERES; SANTOS, 2005, p. 62).

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Incapacidade de o sistema de justiça criminal controlar o crime e a violência

À medida que o crime cresceu e se transformou, aumentou o fosso entre a criminalidade

e a capacidade do Estado de impor a “Lei e a Ordem” (ADORNO 2002, p. 103). Na opinião

pública que se deixa entrever nas reportagens policiais, na mídia eletrônica e imprensa, parece

ser generalizada a sensação de impunidade. Possivelmente, essa sensação tem contribuído para

agravar a descrença nas instituições encarregadas de promover justiça e exercer controle legal

dos crimes (Idem, p. 104).

Enfrentando dificuldades de acesso igualitário à Justiça, pode ser que os cidadãos

estejam buscando alternativas próprias para proteção e resolução de conflitos nas relações

interpessoais. Outra consequência desta distribuição desigual de acesso à Justiça pode residir

na expansão do mercado de vigilância com alternativa de proteção. Essas hipóteses sinalizam

que a visão que se tem da Justiça é a de que ela seria incapaz de resolver a conflitualidade social

(ADORNO, 2002, p. 105).

Crime, violência, pobreza e desigualdades

O terceiro eixo abriga, sem dúvida, o debate mais profícuo desta literatura e também as

principais controvérsias. A primeira delas trata da relação entre pobreza e criminalidade. Os

primeiros estudos, elaborados em meados dos anos 70, viam o crime como resultado das

contradições e exclusões inerentes à organização social capitalista (ADORNO, 2002). Contudo,

esta hipótese não encontra suporte em evidências empíricas sólidas, principalmente porque

grande parte dos conflitos fatais envolvem personagens sociais que compartilham de

semelhante perfil socioeconômico (ZALUAR, 1999, p. 64).

Ademais, ínfima parcela das populações pauperizadas enveredava pelo caminho da

criminalidade violenta; e inúmeros trabalhos sublinharam que municípios e países com menores

incidências de crimes são os mais pobres. Em contrapartida, a maior incidência de violência e

crimes tinha lugar naqueles municípios e regiões metropolitanas de intensa circulação de

riquezas e de concentradas desigualdades sociais (ADORNO, 2002). Dessa forma, o enfoque

se deslocou para a relação entre mortalidade violenta e concentração de renda e desigualdades

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sociais, em especial a situação de vida precária em algumas regiões e municípios (ADORNO,

2002, p. 112).

Nesta seara, é possível destacar alguns estudos desenvolvidos no campo da

epidemiologia, que apontam para a mortalidade por homicídio como resultante de um processo

complexo de determinação, no qual atuam vários fatores sociais, econômicos, culturais,

familiares e psicológicos (BARATA; RIBEIRO, 2000). Nesta perspectiva, a concentração de

renda se apresenta como potencializadora de conflitos em lugares de intensidade populacional

e de baixos índices de qualidade de vida. A desigualdade pode explicar as elevadas taxas de

morte violenta, porque sociedades com grandes disparidades na distribuição de renda tendem a

investir insuficientemente em capital humano, dando pouca atenção às áreas sociais, como

saúde, educação e outros aspectos de promoção e desenvolvimento das potencialidades

humanas (Idem, p. 123).

Chama atenção que os homicídios não atinjam as cidades de forma homogênea, pois as

vítimas de mortalidade violenta estão concentradas em algumas regiões com características

específicas, justamente aquelas que apresentam os piores indicadores socioeconômicos

(GAWRYSZEWSKI; COSTA, 2005, p.195).

O desdobramento dos estudos epidemiológicos conduziu à observação de que os

homicídios estão desigualmente distribuídos pelo espaço urbano, embora tenha se generalizado

o sentimento coletivo de que o crime violento não alcança vítima preferencial ou conheça lugar

específico pela cidade. Parece atingir cada um em particular, independentemente de gênero,

riqueza, poder ou quaisquer outras clivagens socioeconômicas. Os estudos, contudo, não

confirmam tais sentimentos.

De todo modo, as tendências do debate público e acadêmico revelam que as fronteiras

entre aquelas três perspectivas se encontram presentemente ofuscadas ao combinar a

persistência de desigualdades sociais profundas e a insuficiência das instituições responsáveis

por lei e ordem. Combinando desigualdade com insuficiência das instituições públicas, Cardia

(et. al 2003) distingue os cenários sociais que mais favorecem as taxas de homicídio na Região

Metropolitana de São Paulo, identificando que as taxas de homicídio mais elevadas se

encontram em regiões de intensa concentração de jovens, ausência de idosos (responsáveis pela

supervisão de crianças), marcadas pela falta de empregos e pelo baixo grau de escolaridade,

com ausência de investimento em habitação, infraestrutura urbana e saúde – políticas que

poderiam amenizar o impacto da pobreza extrema (CARDIA et al., 2003, p. 56). Neste contexto

de desigualdades, a sobreposição entre violências e violações de direitos econômicos e sociais

pode tornar alguns grupos mais expostos e, portanto, mais vulneráveis. Como conclui:

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Todavia, aqui também a relação não é direta, mas mediatizada pelo mundo das

instituições privadas e públicas. Cenários de graves violações de direitos humanos -

quer direitos civis, como sociais e econômicos - tendem a enfraquecer a relações dos

grupos sociais com as instituições de proteção social. Nestes cenários, os vínculos

institucionais entre a população e as autoridades sociais encarregadas de implementar

políticas sociais e de distribuição de justiça social, nisto incluído o direito à segurança

pública, são caracterizados por tensões, mútua desconfiança ou até mesmo quase

inexistência (CARDIA et al. 2003, p. 62).

A conjugação destes fatores pode ocasionar transformações no comportamento moral,

nas crenças e nos valores dos jovens, em particular quando esses “têm a oportunidade de

comparar a situação na qual se encontram submetidos com aquelas próprias das classes médias

e elevadas da sociedade” (CARDIA et al., 2003, p. 63).

Caldeira (2000, p. 134) sugere relacionar a expansão dessas formas de violência a uma

complexa combinação de outros fatores, tais como: a) o apoio (difuso) da população à violência

enquanto instrumento de repressão e punição; b) a condição e estatuto dos direitos individuais

no Brasil; c) o convívio de parcelas da população com o padrão violento de intervenção da

polícia; d) as concepções do corpo que historicamente tolera intervenções violentas; e) esses

elementos combinados com outras explicações como a descrença nas capacidades do Judiciário

em mediar conflitos ou de assegurar justas sanções.

Trata-se, portanto, de um ciclo de violações no qual o crime se expande, persistindo

abusos praticados no interior das instituições da ordem, estimulando com forte apelo popular o

recurso a meios privados e ilegais de autoproteção. Desta forma, consolida-se um devastador

círculo de vinganças privadas, cuja persistência destas práticas coloca em jogo a capacidade e

a legitimidade do regime democrático em mediar conflitos (CALDEIRA, 2000, p. 204-206).

Mais recentemente Manso (2012, p. 13) sugere compreender o significado do homicídio

no interior das mudanças no contexto social, o que transformaria o desfecho violento de

conflitos numa escolha moral: “os homicídios começam a se propagar em São Paulo justamente

quando ganham um novo significado e se transformam em escolhas atraentes e toleradas pela

sociedade e pelas instituições de segurança”.

Tal processo de transformação na moralidade pública teria início entre 1960 e 1970 com

o surgimento da figura do bandido como um inimigo social. Neste novo cenário, a prática

homicida se expande e se transforma em instrumento de controle do crime (MANSO, 2012, p.

15). E é precisamente do interior das instituições responsáveis pela segurança que surgem novas

práticas violentas de controle, como os já citados grupos de extermínio que se propagavam entre

os policiais militares do estado de São Paulo, e os justiceiros que surgem a partir dos anos 1980.

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De acordo com Manso (2012, p. 181), “a violência começa a se tornar um fenômeno

territorial em São Paulo graças a essa capilaridade dos representantes do Estado, impregnados

da subcultura da violência, que se tornam parceiros ou cúmplices dos justiceiros, encarregados

do patrulhamento ostensivo em pontos remotos de São Paulo”. Não à toa, nos anos 1990, os

homicídios teriam se intensificado justamente naqueles bairros em que se concentravam, na

década anterior, a violência policial e os justiceiros.

Ainda segundo a tese de Manso, o efeito mais perverso do homicídio como prática de

controle social está no fato de que em vez de a presença das autoridades coibir a violência, sua

atuação acaba por disseminá-la no corpo social como alternativa viável para grupos

potencialmente vulneráveis – os jovens em especial. Daí em diante, já não é somente a morte

de “bandidos”, como a eliminação de potenciais matadores que passa a ser aceita.

Cada vez mais presentes no cotidiano da juventude das periferias, o medo do crime e o

risco real da morte transformariam a forma como os indivíduos consideram o homicídio como

escolha viável (MANSO, 2012, p. 24). Nas palavras do autor, o medo da morte é “indutor de

escolhas assassinas, já que, quanto maior a chance de um indivíduo ser assassinado em

determinado conflito, maior é o incentivo para que ele mate primeiro para sobreviver”. (Idem,

p. 179). Dessa forma, a convivência tensa entre moral do extermínio e moral da sobrevivência

transformaria o “matar para não morrer” em hábito.

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Crime de homicídio e conflitos interpessoais

Esses amplos processos de exclusão social, econômica e política são compreendidos

como os principais condicionantes para as altas taxas de registro de crime de homicídio.

Entretanto, à medida que explicam as características gerais das estruturas de relação que

possibilitam ou estimulam as dinâmicas criminais, as macroanálises não esclarecem porque um

mesmo conflito pode propiciar diferentes desfechos, parte dos quais não resulta em desfechos

fatais.

Se, por um lado, as pesquisas conseguem encontrar as características sociais das regiões

e do período histórico em que as taxas de homicídio são mais significativas; por outro, através

desse sólido corpo de pesquisas pouco se consegue desvendar da dinâmica social de produção

dessas mortes violentas e os elementos sociais que geram tensões e antagonismos a ponto de

levarem ao choque agressivo e fatal. Propomos a seguir o trânsito das macro às micro estruturas,

sublinhando o “caráter construído e interacional ou situacional do conflito”, em que o viés

sociológico não se confunde com a explicação a partir de indivíduo, mas das situações ou

interações conflitivas (MISSE; WERNECK, 2012, p. 10).

Ao longo dessa pesquisa, a leitura dos autos de processo penal revelou que as situações

e os conflitos são mais diversificados e complexos do que os macroestudos permitem entrever.

Cada história contada nos crimes de homicídio revela situações de tensão entre pessoas comuns,

acontecimentos que parecem irromper no decurso de uma vida ordinária. São trabalhadores

mal remunerados brigando no momento de trabalho ou nas poucas horas que lhes restam de

lazer; vizinhos que se chocam devido a interesses antagônicos seja pela posse do terreno, seja

por causa de comportamentos sociais reprováveis.

Enfim, um “crime de homicídio” pode ser compreendido como resultado ou expressão

de um conflito interpessoal:

[...] um infindável número de situações, em geral envolvendo conflitos entre pessoas

conhecidas, cujo desfecho acaba, muitas das vezes até acidental e inesperadamente,

na morte de um dos contendores. Compreendem conflitos entre companheiros e suas

companheiras, entre parentes, entre vizinhos, entre amigos, entre colegas de trabalho,

entre conhecidos, que frequentam os mesmos espaços de lazer, entre pessoas que se

cruzam diariamente nas vias públicas, entre patrões e empregados, entre comerciantes

e seus clientes (ADORNO, 1994, p. 138).

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Em um primeiro momento, quando a literatura faz menção aos conflitos interpessoais,

ela trata de uma modalidade de homicídio entre tantas outras, classificando-o pelas motivações

dos conflitos que ensejaram as mortes violentas. Nessa acepção do termo, conflito interpessoal

tem sido mobilizado por diversos discursos como sinônimo de situações de “homicídio por

impulso” ou “homicídio por motivo fútil”. De fato, há pelo menos 20 anos detecta-se que

concomitantemente à violência policial e ao aumento da criminalidade violenta do período,

cresceu o número de casos de homicídios classificados como “conflito interpessoal”.

Manso (2012) indica que em 2003 (segundo estudo publicado pelo Departamento

Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa – DHPP-SP) 85,5% de 576 Inquéritos Policiais

de Homicídio, com autoria identificada, das vítimas e dos agressores se conheciam; em 80%

dos casos a vítima morava próxima ao local do crime (menos de um quilômetro) (DHPP, 2006,

p. 126 apud MANSO, 2012, p. 80).

Por sua vez, Lima (2000, p. 77), a partir de casos registrados no Município de São Paulo

em 1995, identificou que a maior parte dos “motivos desencadeadores” eram os “conflitos

interpessoais diversos”: 92% para os crimes de autoria conhecida e 56% para os de autoria

desconhecida.

Porém, esse é apenas um dos significados do conceito, e possivelmente o de menor

potencial analítico. Além de uma categoria para enquadrar crimes de homicídio, o conflito

interpessoal diz respeito a uma forma de compreender os conflitos sociais. O conflito em

sociedade é tema presente nas obras de todos os reconhecidos fundadores da disciplina, de Marx

a Weber, passando por Durkheim. Se seus estudos e reflexões lidam com diversas formas de

conflito e identificam algumas causas fundamentais da conflitualidade social, em nenhum outro

pensador a categoria conflito chegou mais perto de uma definição própria, e nenhum outro

esteve tão próximo do que consideramos aqui “conflito interpessoal” do que o alemão Georg

Simmel.

É em sua obra “Sociologia” (1939), que a “luta” aparece como forma de socialização,

concebida como uma das “mais vivas ações recíprocas”. A novidade talvez seja que Simmel

não considera a priori o conflito social como um elemento dissociador, o que só é possível em

virtude de uma diferenciação radical entre a forma conflito e os seus conteúdos ou resultados.

Simmel realiza uma sociologia formal nesse sentido. Há no conflito – ou na luta –, como forma

de relação social, uma “positividade sociológica”, porque através dele se definem os limites de

grupos ou personalidades pela repulsa entre os grupos ou entidades sociais e, como tal, a luta

pode ser via para alcançar unidade na sociedade, ainda que resulte no aniquilamento de uma

das partes (SIMMEL, 1939, p. 247).

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Como se sabe, os textos de Simmel impactaram a produção sociológica do começo do

século XX nos Estados Unidos, num momento em que o conflito social era um dos temas

centrais. Lewis Coser, então um dos principais leitores de Simmel, foi um dos mais importantes

propagadores do autor alemão na sociologia norte-americana. Em “As funções do conflito

social” (1964), na tentativa de atualizar as contribuições sociológicas de Georg Simmel para a

sociologia do conflito, o define como: “luta por valores e reinvindicações de status, poder e

recursos escassos em que os objetivos dos adversários são neutralizar, ferir ou eliminar seus

rivais” (COSER 1964, p. 8).

Simmel (1939, p. 55-56) deixaria claro que “o comportamento sempre ocorre num

campo social e que o conflito como fenômeno social pode ser entendido apenas como ocorrendo

num padrão de interação” e, por sua vez, a “agressividade pode ser definida como um conjunto

de predisposições diante de atos de agressão.

O conflito, pelo contrário, sempre denota uma interação entre duas ou mais pessoas”

(SIMMEL, 1939, p. 58). Ademais, o conflito segundo Simmel coloca as pessoas numa relação

que, de outro modo, poderia não existir. O conflito estabelece entre as partes uma forma

específica de relação e interação social – efeito socializador que ele identificou em diversos

níveis de organização da vida social: na guerra, no matrimônio, nos partidos ou nas seitas

políticas, nas brincadeiras de criança.

Sugestão fundamental sobre a definição do conflito como padrão de interação social,

que influenciou tanto escritos em língua inglesa (FINK, 1968) como textos brasileiros (MISSE;

WERNECK, 2012), é encontrada também em Mack e Snyder (1957) e pode ser resumida nos

seguintes tópicos:

a) Ao menos duas unidades sociais, ou entidades, com contato e visibilidade mínimas;

b) Uma forma de disputa em torno de valores mutuamente exclusivos, incompatíveis

ou opostos, baseados em escassez de recursos ou de posições;

c) Os objetivos do conflito podem ser de destruir, prejudicar, machucar ou controlar a

outra parte, e em uma relação na qual uma parte só pode ganhar em detrimento da

outra (escassez);

d) As ações e reações devem ser mutuamente opostas;

e) Ações orientadas pela tentativa de adquirir poder (ou aumentar o controle de fontes

escassez de recursos) ou exercer poder (no sentido de influenciar comportamentos)

(MACK; SNYDER, 1957, p. 217- 19 apud FINK, 1968, p. 432)

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Muitas vezes, as definições de conflito social são ambíguas. Nas “proposições” de

Lewis Coser sobre as funções do conflito no pensamento de Simmel, há uma observação

contundente nesse sentido. De acordo com Coser, Simmel não diferenciou “conflito” das

“hostilidades”: enquanto as atitudes hostis são predisposições ao comportamento conflituoso,

o conflito é uma ação que ocorre na interação entre duas ou mais pessoas (COSER, 1964, p.

37).

O caminho das hostilidades ao conflito depende, por exemplo, se uma distribuição

desigual de direitos e/ou bens é considerada legítima ou não no interior do grupo. Nesses

termos, em uma relação entre grupos sociais, a hostilidade é resultado possível de uma situação

de desigualdade, enquanto o conflito emerge à medida que o grupo menos privilegiado

compreenda como injusta tal distribuição. Ou seja, a situação de privilégio de um grupo ou

parcela precisa ser questionada ou não aceita pelo outro grupo (COSER, 1964, p. 37).

Outra ambiguidade baseia-se na relação entre conflito e antagonismos latentes. Essa

polêmica é interessante porque ajuda a esclarecer quais tipos de questionamentos científicos se

pretende elaborar a partir do conflito, que pode ser abordado quanto às motivações ou basear

um estudo centrado nas ações ou dinâmicas do conflito.

Conforme aponta Fink, as pesquisas que enfocam na ação tendem a considerar as

motivações do conflito relacionadas com padrões psicológicos de hostilidade (não no sentido

que se depreende de Simmel-Coser) ou “interesses antagônicos”. Já as pesquisas centradas na

motivação tendem a tomar os padrões de interação como expressões da luta ou conflito

manifesto e, para essas abordagens, seria mais importante detectar quando ocorrerá o conflito,

a fim de se tentar prever como serão resumidos. Assim, o conflito social pode ser compreendido

em dois aspectos distintos e complementares. Por um lado, pelas motivações ou justificativas

que dão sentido ao estabelecimento dos conflitos. Por outro, pelas ações, pelas formas como os

conflitos são resolvidos.

Outra diferenciação que deve ser feita é entre conflito e competição, confusão que pode

emergir da consideração do conflito como disputa. Para Mack e Snyder, competição não pode

ser confundida com o conflito propriamente, tampouco é uma forma de conflito, mas uma

possível causa de conflitos: competição visa o objeto; conflito, o oponente. A competição está

relacionada à escassez e o conflito à incompatibilidade.

Segundo Ralf Dahrendorf (1982, p. 135), tal diferenciação entre conflito e competição

é de menor importância, pois sua definição é bastante ampla: “todas as relações entre conjuntos

de indivíduos que envolvem uma diferença incompatível de objetivos”, portanto, o que importa

no estudo do conflito é sua forma de interação antagônica.

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De maneira geral, as principais tentativas de definição conceitual do conflito

interpessoal inserem-se no debate acadêmico sobre a validade ou a necessidade de uma teoria

geral do conflito social (FINK, 1968). Há cerca de 40 anos, Fink elaborou um extenso

levantamento sobre o “estado da arte” deste debate, apontando argumentos, os quais

identificava como favoráveis à teoria geral do conflito, bem como suas objeções.

Como demonstramos, a delimitação de conflito interpessoal como objeto de

preocupações sociológicas parte do pressuposto que no interior de uma estrutura social definida

as diferentes ‘unidades sociais’ (classes, famílias, grupos, Estados, indivíduos) apresentam

maneiras próprias de interação e padrões específicos de conflito, correspondendo a cada nível

da estrutura social mecanismos sociais e institucionais de resolução e controle (FINK, 1968, p.

417).

A partir da extensiva revisão da literatura sobre conflito realizada por Fink, ele afirmou

que, por mais diferentes que sejam as teorias sobre conflito, há uma dicotomia simples a partir

da qual diversas possibilidades de combinação surgem entre indivíduos ou entidades coletivas.

Por exemplo, Sorokin (1928 apud FINK, 1968, p. 417) classifica os conflitos em interpessoais

e intergrupo (Estados, classes, ordens, religiões); Levine (1961 apud FINK, 1968, p. 418-419)

parte de níveis coletivos, considerando o interior desses os conflitos interpessoais: conflitos

intrafamiliares (interpessoal entre membros de uma mesma família), conflitos intracomunidade

(interpessoal no interior de uma mesma comunidade), intercomunidades e intercultural, ambos

assumindo entidades coletivas como unidades sociais em conflito; Boulding (1962 apud FINK,

1968, p. 420) distingue os conflitos entre pessoas, grupos e organizações, formando uma lista

de oito categorias: i) entre pessoas; ii) pelos limites de grupos; iii) conflito ecológico entre

grupos; iv) conflito entre organizações homogêneas (entre Estados); v) ou heterogêneas (entre

Estado e Igreja); vi) indivíduos contra grupos; vii) pessoas contra organizações; viii) grupos

contra organizações.

Por sua vez, Galtung (1965 apud FINK, 1968, p. 421) resume as possibilidades de

conflito em natureza das partes contra relação estrutural entre as partes: intrapessoal (conflito

ao nível individual e com referência a questões do sistema psicológico); interpessoal (ao nível

individual e com referência ao sistema social); intranacional (no interior de um mesmo sistema

social e ao nível coletivo); e internacional (entre sistemas distintos e ao nível coletivo).

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Conflito interpessoal e violência: definições

Outra ambiguidade conceitual pode ser percebida nas definições de conflito e violência.

Em diversas ocasiões um acaba sendo tomado como sinônimo do outro, a violência explicada

pelo conflito e vice-versa. A indefinição do conceito chama atenção principalmente porque

violência é um dos temas de maior interesse das ciências sociais desde sua fundação. No Brasil

esteve presente já nos primeiros escritos que buscaram compreender a natureza e as

características da sociedade brasileira, conforme apontam clássicos estudos no campo da

sociologia política e da história do pensamento social. Barreira e Adorno (2010, p. 313)

identificam que já em 19495 Oliveira Vianna apontava que na história colonial as liberdades

civis sempre estiveram sujeitas à violência das autoridades locais. Outro exemplo é Sérgio

Buarque de Hollanda, em Raízes do Brasil,6 que mostrou como, no domínio rural, a autoridade

do proprietário de terra era irreplicável e por vezes violenta na resolução de conflitos mesmo

domésticos (BARREIRA; ADORNO, 2010, p. 314).

O trabalho de Maria Sylvia de Carvalho Franco em Homens livres na ordem

escravocrata, (1997 [1969], p. 30) pode ser considerado um marco pela centralidade que a

violência social ocupa na obra. Franco demonstra como os “caipiras” da velha civilização do

café no Vale do Paraíba, em fins do século XIX, compartilhavam de um código do sertão, termo

cunhado pela autora para se referir ao padrão de interação social que tinha na violência um

modelo de conduta, uma “forma rotinizada de ajustamento nas relações” ou um “modelo de

padrão de comportamento corresponde a um sistema de valores centrados na coragem pessoal”

(Idem, p. 51).

Franco utiliza “violência” como uma categoria para analisar as condições sociais mais

amplas que permitiam a reprodução da organização social dos homens livres. A autora busca

nestas lutas “ingentes na relação comunitária, as determinações que definiram o sentido das

relações na sociedade mais ampla de que fizeram parte” (1997 [1969], p. 27).

Como a autora identifica a incorporação da violência a este modelo de conduta e como

explica sua emergência? Analisando autos de processos criminais de agressões e homicídios,

recuperou as características das relações comunitárias dos “caipiras”: relações de vizinhança

(“proximidade espacial”), familiar-parentesco (o “ser comum”), cooperação no trabalho (“a

vida apoiada em condições comuns”) e lazer. Em um meio social marcado pela escassez

5 Oliveira Vianna, Francisco José. Instituições políticas brasileiras. Rio de Janeiro: José Olympio, 1949. 2v. 6 Hollanda, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: José Olympio, 1949.

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material e cultural, os “mínimos vitais” definem as condições de vida: ao mesmo tempo em que

a sobrevivência dependia de uma complementariedade nas relações comunitárias, expandiam-

se nessas relações “áreas de atrito” (FRANCO, 1997 [1969], p. 27-28).

Porém, nas relações de vizinhança os ajustes violentos não se operam apenas em função

das lutas por sobrevivência, o que levou a autora a concluir que “o uso da força é difundido,

como a ela se recorre mesmo quando estão em jogo meios de vida inteiramente prescindíveis”

(Idem, p. 28). Já no trabalho, a violência é uma forma “institucionalizada” de resolução de

conflitos. Como aquelas populações eram aproveitadas residualmente pela economia “caipira”,

a busca por atividades que garantissem sua sobrevivência as colocavam em constante

movimentação territorial, o que por sua vez tanto desfavorecia a estabilidade de vínculos quanto

dificultava a cristalização da disciplina do trabalho (Idem, p. 36 - 39).

Tais condições ligavam a “rixa” às situações de trabalho: o desafio entre companheiros

de trabalho tornava-se uma técnica fundamental de controle de comportamento mútuo (Idem,

p 36). Os mesmos componentes são revividos nas atividades lúdicas e festividades,

circunstâncias que tanto estreitam laços de solidariedade como reanimam e liberam as tensões.

Por sua vez, no ambiente familiar, a violência aparece como “necessária”. Se por um lado a

tensão e conflitualidade era alvo de “controles ‘tradicionais” que “favorecem a preservação do

grupo e dissimulam as tensões neles existentes”, por outro, “tais controles eram facilmente

rompidos, pondo a descoberto uma contrapartida de antagonismo ao sentimento de

identificação que está na base do laço comunitário” (FRANCO, 1997 [1969], p. 41; 46-47).

À exceção do trabalho de Franco, até pelo menos a década de 1970 a violência

dificilmente alcançava status de objeto sociológico, sendo em geral compreendida como

“recurso de poder e mando, instrumento de dominação e sujeição políticas” (BARREIRA;

ADORNO, 2010, p. 315). Mesmo com o posterior desenvolvimento dos estudos especializados

em conflito de violência e criminalidade urbana a noção não foi objeto de reflexão mais

aprofundada, permanecendo certa vinculação entre crime e violência. Se os estudos disponíveis

bem explicam a expansão do crime, pouco elucidam sobre o aumento da violência

(CALDEIRA, 2000, p. 101). Paoli (1982, p. 45-48) também já antecipava a crítica: a violência

é tida como um fenômeno secundário, cuja lógica social é silenciada, analisada como mero

sintoma das conhecidas injustiças sociais, que fatalmente estaria superada a partir do momento

em que os problemas nas diversas esferas sociais também o fossem.

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Certamente esta pesquisa não tem a pretensão de resolver os grandes impasses

conceituais implicados na sociologia da violência, todavia algumas dificuldades deverão ser

enfrentadas. A primeira diz respeito à definição do que se compreende sociologicamente por

violência. Como recorda Michaud (1989, p. 14), “o surgimento do tema da violência nos

discursos políticos ou nas preocupações de opinião pública não é neutro: traduz avaliações

positivas ou negativas que, por sua vez, pesam sobre as situações assim entendidas e sobre as

ações efetuadas”.

Tentamos escapar dos juízos de valor sobre o que é ou não violento delimitando o

conceito inicialmente como “há violência quando, numa situação de interação, um ou vários

atores agem de maneira direta ou indireta, maciça ou esparsa, causando danos a uma ou várias

pessoas em grau variáveis, seja em sua integridade física, seja em sua integridade moral, em

suas posses, ou em suas participações simbólicas e culturais” (Idem, p. 11).

Acima de tudo, convém frisar que o que deverá ser caracterizado nas páginas seguintes

são as situações de interação nas quais a violência emerge. Como tentamos definir até aqui,

importa-nos a violência em sua correlação direta com o conflito, por isso a reduzimos, ao menos

temporariamente, a sinônimo de danos à integridade física, expressa na tentativa ou

consumação da eliminação de um antagonista ou simplesmente a agressão física como método

de resolução de conflitos. O problema, portanto, refere-se a compreender como no interior das

relações que gestam conflitos são processadas, distribuídas e controladas as agressões físicas

Há ainda uma segunda dificuldade, provavelmente a menos explorada pela sociologia,

qual seja, a de identificar as motivações e dinâmicas da violência como forma de interação

social. Muito recentemente, coube ao sociólogo norte americano Randall Collins a tentativa de

formular uma “teoria da violência”. Seu ponto de partida torna-se duplo: primeiro tentou

desmitificar a violência como atributo individual e atribui-la como produto de condições

específicas da interação social. Segundo, apontou que os estudos sobre violência seriam

incapazes de precisar a medida em que “condições de fundo” (pobreza, desigualdade,

criminalidade, estrutura jurídica, etc.) incidem sobre as relações e interações a ponto de

tornarem a violência física factível.

Sua tese respalda-se na questão de que “a violência não é fácil”: não basta que

condicionantes se façam presentes para que, como se automaticamente, os indivíduos decidam

por ceifar a vida de alguém quando envolvidos num conflito. A violência, em seus termos, é

difícil de surgir numa interação porque há no momento do conflito interpessoal uma contradição

entre emoções sociais (“confrontational tension/fear”) que possuem como maiores efeitos a

inibição da ação violenta.

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A dificuldade da violência seria uma característica das sociedades modernas cujos

indivíduos estejam “[...] hard-wired for interactional entrainment and solidarity [...]” e que

“violent situations are shaped by an emotional field of tension and fear”, portanto, “any

successful violence must overcome this tension and fear”. (COLLINS, 2009, p. 19-26).

Estas barreiras sociais que coíbem a violência não são atributos individuais, mas

conquistas sociais: “Confrontational tension/fear is the evolutionary price we pay for

civilization” (COLLINS, 2009, p. 27). É dessa forma que Collins desarma os argumentos de

que haveria “indivíduos violentos”: mesmo aqueles que acumulariam um histórico de estupros

ou assassinatos, por exemplo, vivenciam a violência em momentos particulares da rotina, em

parcelas restritas do dia ou da jornada de uma vida, em situações de interação social específicas.

Em suas palavras, “[…] even people that we think of as very violent—because they have been

violent in more than one situation, or spectacularly violent on some occasion—are violent only

in very particular situations” (Idem, p. 3).

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Questões da pesquisa

Pelo exposto, assinalamos adiante os questionamentos que guiaram o trabalho de

caracterização sociológica proposto nesta dissertação. Para os propósitos deste estudo,

compreendemos que conflito interpessoal diz respeito ao deslocamento do enfoque analítico

entre níveis diversos da divisão social, permitindo a ligação entre as macro e as micro

explicações. Compreender o conflito nesta perspectiva exige analisá-lo através do contexto

relacional, articulando os protagonistas, seus vínculos e interações, com os espaços sociais em

que ocorrem e buscando compreender o significado do conflito para as partes envolvidas

(COSTA, 2011).

Nesse sentido, a primeira questão que se pode formular diz respeito às características

das “unidades sociais” em conflito, ou seja, o primeiro objetivo assenta-se em caracterizar os

protagonistas destas histórias, investigando tanto seu perfil social, localizando-os na estrutura

social, sublinhando as características dos vínculos que mantinham entre si. Quem são e como

se relacionavam os antagonistas dos conflitos?

A segunda pergunta se relaciona com as circunstâncias do conflito, ou seja, a

investigação sobre a situação de interação propriamente dita, perseguindo as possíveis

motivações. As circunstâncias de um conflito dizem respeito às causas sociais que geraram a

tensão, as hostilidades, os antagonismos, as competições. Como aponta Wheaton Blair, em

estudo que é referência no tema, os conflitos interpessoais podem ser resultado de disputas por

princípios, resultado da quebra de consensos sociais. Como conflito, por princípio, está-se no

plano do dever fazer e envolve tons normativos, objetivos que são desejáveis em um

comportamento, valores morais gerais, comportamentos apropriados (BLAIR, 1974, 328).

Como questão de consenso básico, o conflito está no plano da ação e pode surgir “como

resultado de uma necessidade por reafirmar um acordo num princípio recentemente violado”

(Idem, p. 331). Ainda no plano das motivações, há que se questionar em que medida os conflitos

explodem a partir de rupturas de relações hierárquicas nas relações interpessoais. Por relações

hierárquicas aqui compreendo “modalidades de reciprocidade que supõem autoridade e

obediência, mando e aceitação, dominação e subordinação”, relação cuja preservação de

fronteiras pode ser rigidamente punida ou controlada (ADORNO, 2010, p. 78 – 79).

Enfim, o segundo objetivo é justamente desvendar quais são os elementos sociais que

ajudam a justificar tensões, hostilidades, antagonismos que constroem o conflito, ou seja, o que

gera as tensões e antagonismos, o porquê ou pelo que lutam. Para tanto, convém rastrear os

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antecedentes nas relações que explicariam um o conflito como resultado de um acúmulo de

tensões, identificar se as motivações das tensões e hostilidades são anteriores, acumuladas nas

relações mútuas – ou se as tensões surgem de imediato, no decorrer das interações que

rapidamente escalam até o choque.

Finalmente, uma terceira questão manifesta-se no desenrolar das ações do conflito, ou

o conflito propriamente dito, a luta aberta, o choque, a briga. Nesse interim, há de se responder

como as tensões se desenvolvem e assumem a forma de confronto físico, buscando os sentidos

das ações para os protagonistas, bem como refletindo sobre os freios e controles sociais

presentes ou ausentes no espaço onde a luta ocorre.

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CAPÍTULO II

O processo de pesquisa e a pesquisa com processos penais

Este capítulo descreve como os dados do estudo foram acessados, além dos parâmetros

estabelecidos para fazer a leitura das informações. O estudo é consequência de experiência de

pesquisa documental com autos de processo penal para crimes de homicídio. No texto que

segue, respaldados por experiências de pesquisa que são referências no campo acadêmico,

justificamos como a fonte de dados possibilita o estudo dos conflitos interpessoais, e descritos

outros limites da fonte que a pesquisa descobriu. Na segunda seção do capítulo, apresentamos

as principais características do conjunto de dados escolhido para o estudo, esclarecendo os

parâmetros que guiaram a leitura.

Autos de processo penal como fonte de dados

A primeira questão comum a qualquer fonte de dados é a forma de acesso. Em especial

no caso de autos de processo penal, obter permissão para acessá-los, transpondo os

“micropoderes” do funcionalismo de cartório pode ser um grande obstáculo à pesquisa. De mais

a mais, os documentos físicos circulam por várias instâncias da Justiça, dificultando sua

localização. O presente estudo utilizou os autos de processo penal reunidos pelo projeto

Violência, Impunidade e Confiança na Democracia (ADORNO et al., 2008).

São 197 processos penais e inquéritos arquivados para homicídio doloso, consumado ou

tentado, registrados entre 1º de janeiro de 1991 a 31 de dezembro de 1997, nas 16 delegacias

que compõem a 3ª Seccional de Polícia do Município de São Paulo. A pesquisa acompanhou

os inquéritos ao longo do fluxo do sistema de justiça penal, a fim de analisar as razões pelas

quais os crimes eram ou não convertidos em processos penais, de forma a identificar os

“gargalos” através dos quais os processos “escapavam” de fluxo do sistema de justiça, ou seja,

os momentos e decisões-chave em que as ações penais deixavam de obter continuidade, logo

julgamento e, por conseguinte, produzindo-se a impunidade penal (ADORNO et al., 2009, p.

20).

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Os autos de processo penal são uma das mais indicadas fontes empíricas para acessar as

relações e interações sociais de conflitos interpessoais violentos, apesar de não serem muitas as

fontes de dados alternativas disponíveis. É claro que se podem empregar pesquisas etnográficas

e modalidades assemelhadas para observar narrativas de violência, inclusive com a

possibilidade de uma inesperada presença do observador durante os acontecimentos. Mas, é

menos provável de fato que isto possa acontecer. Por isso, os principais estudos na área da

sociologia da violência recorrem às ocorrências de forma indireta, através de fontes

documentais, jornais, autos de processo entre outros, como são exemplo as pesquisas sobre

linchamento.

De um ponto de vista mais geral, ao desenvolver o objeto de estudo aqui proposto

através dos autos de processo um desafio metodológico se impôs: em que medida é possível

acessar os conflitos interpessoais por meio da leitura de processos judiciais penais? Qual é a

relação entre as informações contidas naqueles documentos e a “realidade” dos fatos ali

narrados? Como qualquer fonte de pesquisa, é fundamental saber como os dados foram

produzidos para que se possa delimitar o alcance das informações. Assim, o primeiro passo é

ser cuidadoso como um historiador e tentar apreender a lógica de constituição e as regras

próprias que presidiram a produção das fontes de dados escolhidas (GRINBERG, 2009, p. 121).

No caso dos crimes de homicídio, há um procedimento previsto em legislação, no qual

estão definidas as etapas e as responsabilidades de apuração da ação penal. Resumidamente,

uma vez que chega ao conhecimento da autoridade policial a ocorrência de morte por homicídio

(ou tentativa de) deverá ser instaurado um procedimento administrativo – o Inquérito Policial -

para coleta de informações sobre o caso.

Este procedimento deve ter como resultado indícios da materialidade (comprovação da

morte ou das agressões que tiveram como intuito a morte); as motivações (circunstâncias que

ensejaram a morte) e os indícios de autoria. Kant de Lima (1989, p. 2) afirma que esta fase

preliminar tem características inquisitoriais: não há direito à defesa porque não há acusação

formal. Se na tradição acusatorial a investigação é pública com participação do acusado

(características da fase propriamente judicial no processo penal brasileiro), na tradição

brasileira do contraditório inquisitorial são realizadas “pesquisa sigilosas” antes de se efetuar

uma acusação: “O sistema inquisitório não afirma o fato; supõe sua probabilidade, presume um

culpado e busca provas para condená-lo. O sistema procura fornecer ao juiz indícios para que

a presunção seja transformada em realidade” (Idem, p. 3).

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A peculiaridade do sistema brasileiro reside na presunção de culpabilidade, não de

inocência, que acompanha o réu desde o princípio. E não só: também recai sobre as testemunhas

a suspeita de que mentem, e suas audiências transformam-se em interrogatórios. Desconfiada,

a população pode deixar de cooperar, gerando certa dependência de confissões que serão bem

ou mal obtidas (KANT de LIMA, 1989, p. 6).

A seguir, as informações coletadas pela polícia serão encaminhadas ao MP, através do

relatório do delegado. Caberá ao MP oferecer uma Denúncia – ou decidir pelo pedido de

arquivamento – e encaminhá-la ao Juiz da Vara. Uma vez realizada a denúncia, está instaurado

o processo penal propriamente dito, que deverá produzir as conhecidas “provas do crime”:

depoimentos e interrogatórios coletados frente ao juiz, acusação e defesa. Juntam-se aos autos

outras provas, as perícias, produzidas pela Polícia Judiciária (Polícia Civil), laudos médicos ou

realizados a pedido do Juiz. Após esta etapa de produção de provas, conhecida também por

“instrução criminal”, que tem o dever de demonstrar seu convencimento a partir dos autos,

caberá ao Juiz apurar se há provas suficientes para encaminhar o indiciado ao Júri Popular.7 O

Júri realiza-se em Fórum específico, compreendendo um ritual, uma disposição espacial dos

participantes na sala do júri.

Segundo o Código do Processo Penal, apenas as informações registradas nas peças dos

autos podem ser consideradas como provas ou indícios. A “verdade jurídica” nos processos

penais é uma composição de narrativas fornecidas por testemunhas, oculares ou não, vítimas e

acusados. Constam nestes procedimentos não os fatos sociais, mas a leitura que deles se faz,

submetidos a um tratamento lógico-formal característico e próprio da cultura jurídica (KANT

DE LIMA, 1989, p. 2).

Do ponto de vista de sua constituição histórica, o processo penal, em certa medida,

produz uma verdade tal como a do Inquérito no Renascimento europeu: um procedimento de

se chegar à verdade, questionando, inquirindo, tentando reconstituir os fatos ocorridos, como

evidenciado por Foucault. As práticas judiciárias, e em grande medida seus registros escritos,

trazem consigo a ideia de periculosidade dos “desviantes”, que são ao mesmo tempo

considerados inimigos sociais, “o indivíduo deve ser considerado pela sociedade ao nível de

suas virtualidades e não ao nível de seus atos; não ao nível das infrações efetivas a uma lei

efetiva, mas das virtualidades de comportamento que elas representam”. (FOUCAULT, 1996,

p. 85). Em outras palavras, a verdade jurídica produz o delinquente, aqueles que carregarão o

símbolo das regras descumpridas.

7 Homicídios, consumados ou tentados, constituem uma das atribuições do Tribunal do Júri. Outros crimes, como

os crimes contra o patrimônio, são julgados pelos tribunais togados, comuns.

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As práticas e os discursos jurídicos compreendem um campo relativamente autônomo,

no qual atores específicos concorrem para impor o monopólio do direito de dizer o direito, uma

disputa pelo poder de interpretação das leis e práticas jurídicas. Portanto, a verdade produzida

no Sistema de Justiça deve ser compreendida como resultado do campo de disputas pelo direito

de impor uma visão de mundo, cujo principal efeito reside na “manutenção da ordem” ao tentar

universalizar práticas dominantes na sociedade (BOURDIEU, 1989). Tal disputa, no entanto,

não se dá entre iguais: os agentes do campo jurídico estão desigual e hierarquicamente

distribuídos conforme a propriedade de capitais simbólicos. Desta forma, o campo jurídico

opera uma fronteira entre aqueles preparados para competir no jogo e aqueles que, mesmo em

seu meio, seguem de fato excluídos.

Os autos de processo penal são expressão da relação social entre os profissionais e os

indivíduos que foram sujeitados ao mundo do Direito. A cisão entre a visão vulgar do “cliente”

e a científica do perito, juiz, e advogado não é acidental, mas constitutiva de uma relação de

poder fundamentada sobre “dois sistemas diferentes de pressupostos, de intenções expressivas,

numa palavra, duas visões de mundo” (BOURDIEU, 1989, p. 226).

Nos discursos jurídicos estão contidas representações sociais, produto de um

“pensamento coletivo” (OLIVEIRA; SILVA, 2005, p. 251). Portanto, é preciso considerar,

desde a primeira leitura dos autos, que esta documentação preserva na escrita visões de mundo,

compreensões da realidade.

Na literatura especializada, identificamos que os autos de processo como fonte

documental têm sido utilizados como base para dois tipos de estudo. No primeiro tipo, que

remonta a estudos clássicos das ciências humanas, os arquivos da justiça são mobilizados para

reconstruir uma certa “história da vida cotidiana”, fonte de dados de valores e normas sociais

presentes no cotidiano das classes populares de uma dada época. Destacamos novamente o

trabalho de Maria Sylvia Carvalho Franco, considerado referência obrigatória, assim como os

não menos indispensáveis Corrêa (1983), Fausto (2014 [1984]) e Chalhoub (1986).

O segundo tipo, por sua vez, retorna aos arquivos para investigar a Justiça do ponto de

vista seja da reconstituição histórica, seja a análise sociológica das atividades dos agentes

jurídicos, suas crenças, representações. Logo, os processos são caminho para compreender

como o Sistemas Jurídico e Penal reconstroem a realidade (RIBEIRO, 1995, p. 25). Dessa

forma, os autos são considerados mais pela construção da verdade que processam do que pelos

conflitos violentos que constituem objeto da intervenção penal.8

8A historiadora francesa Arlete Farge arriscaria ainda uma terceira possibilidade: os arquivos permitem reconstituir

as cidades, captando em flagrante seus desafios corriqueiros à ordem: “Com toda minúcia de seus regulamentos,

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Tomemos primeiramente o exemplo de Homens Livres na Ordem Escravocrata, no qual

a autora que a leitura dos autos que lhe chamou atenção para as relações violentas entre os

caipiras da região do Vale do Paraíba. Para ela, os processos não são uma fonte tendenciosa

porque são gerados justamente de um conflito:

Ao examinar essa documentação, de início pretendi apenas localizar os aspectos

sociais que porventura estivessem registrados, desprezando as situações propriamente

de tensão. Tal procedimento revelou-se impossível: ao passo que a pesquisa ia

progredindo, a violência aparecia por toda parte, como elemento constitutivo das

relações mesmas que se visam conhecer. Assim, não cabe a arguição de que a

violência ressaltou porque esquadrinhei uma documentação especializada nela. O

contrário é verdadeiro: foi a violência entranhada na realidade social que fez a

documentação, nela especializada, expressiva e válida (FRANCO, 1997 [1969], p.

17).

Sua maneira de manipular os processos-crime não dá voz aos agentes públicos,

dedicando-se aos depoimentos de agressores, vítimas e testemunhas com vistas a captar o

“modo típico de viver das populações rurais brasileiras” (FRANCO, 1997 [1969], p. 23). Os

processos-crime são fonte para depoimentos, reveladores das dinâmicas sociais; expõem os

elementos que serão interpretados na busca por significações mais amplas. Além do exposto,

não se encontra em seu texto maiores reflexões sobre as implicações dos processos como fonte.

Para a segunda perspectiva, destacamos Morte em Família, de Mariza Corrêa (1983).

Citado por centenas de artigos, o livro resulta de sua tese para obtenção de título de mestre em

Antropologia Social em 1975. Seu objeto de pesquisa, como o de Franco, não é a violência.

Segundo Corrêa, o que se apreende dos autos são as representações de papéis sociais definidos

para homem e mulher. Como afirma, “ao examinar os processos de homicídio entre homens e

mulheres, estou basicamente interessada em observar quais os elementos de que se utilizam os

atores jurídicos para a apresentação de acusados e vítimas e quando essa apresentação coincide

com uma aceitação pelos julgadores” (CORRÊA, 1983, p. 33).

Atores jurídicos e julgadores compõem a noção, forjada na primeira metade do livro, de

manipuladores técnicos, que abrangem delegados, advogados, promotores e juízes. São atores

sociais que detêm técnica específica – o conhecimento dos mecanismos internos ao Direito – e

dela fazem ferramenta para produção de uma verdade que não se resume à verdade do ato

criminoso. A originalidade do livro reside na capacidade de demonstrar os efeitos simbólicos

destas construções sociais e na constatação da autora de certa transferência do julgamento das

os relatórios policiais a descrevem [a cidade] ora inquieta, ora febril ou ainda suplicante; mostram-na também

impassível ou enfurecida, reagindo com tenacidade e vigor a tudo o que acontece” (FARGE, 2009, p. 30).

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normas jurídicas descumpridas (não matarás) para o desvio das normas que regem a relação

social entre homens e mulheres – especialmente às últimas: não adulterarás.

Corrêa levanta um enigma: é cabível ao conhecimento sociológico realizar o

deslocamento dos autos aos atos? A realidade dos atos a que se referem os autos é “despojada

de seu peso concreto” e o que sua leitura permite acessar são as “fábulas” criadas pelos

“manipuladores técnicos” (CORRÊA, 1983). Nelas “estão contidas todas as mortes possíveis

de acontecer neste mundo para o qual se volta a visão jurídica, uma visão que ordena a realidade

de acordo com normas legais (escritas) preestabelecidas, mas também de acordo com normas

sociais (não escritas) ” (Idem, p. 24). Nos atos, não se registram declarações espontâneas, mas

“respostas a perguntas feitas com a intenção de provar a legitimidade das ações cometidas

conforme o objetivo desejado” (Idem, p. 93).

Dessa maneira, as relações sociais que ensejaram o drama social são afastadas, a

diversidade e a realidade social “são negadas no momento em que os fatos e relações passam

pelo crivo de uma linguagem formalizada que transforma a possibilidade de interpretações

múltiplas, reduzindo-as à possibilidade de apenas duas interpretações, ambas tributárias do

mesmo modelo” (CORRÊA, 1983, p. 301). E, quanto mais avançam os autos no fluxo do

sistema de justiça, maior a distância dos atos: os policiais ordenam as informações à sua

maneira, selecionando e excluindo quem, e o que, será ouvido; os envolvidos falam através do

Juiz. A autora acentua que os cidadãos, constrangidos a prestar depoimentos perante a lei, são

“estranhado[s] do controle do seu passado, da sua história, seus motivos e sua situação sendo

redefinidos a partir de interesses que não são os seus” (Idem, p. 303).

Após o trabalho de Mariza Corrêa tornou-se impossível buscar nas páginas dos autos a

“realidade dos atos” sem questionar o que os discursos fornecidos pelos processos permitem

afirmar sobre a realidade social que os forja. Para acessar os fatos através dos relatos contidos

nos autos, é preciso entender como se articulou a narrativa entre o poder de julgar, o desejo de

convencer que motiva os “manipuladores técnicos” pelo uso de palavras muitas vezes estranhas

aos modelos culturais daqueles que participaram como testemunha. Com intenção de que os

arquivos possam ser tratados como um observatório social (FARGE, 2009, p. 92), é essencial

colocar-se diante de esferas sociais sobrepostas: entre o pesquisador e o conflito que se quer

investigar impõe-se a realidade própria do processo, com suas regras, jogos, disputas.

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Como se afirmava anteriormente, as considerações de Corrêa sobre a “suspensão dos

atos” não impossibilitariam o ímpeto de recuperar, através desta fonte, sinais do cotidiano,

conforme alguns autores incorporam as considerações de Corrêa. Destaco dois exemplos.

O primeiro, Crime e Cotidiano: A Criminalidade em São Paulo (1880-1924) (FAUSTO,

2014 [1984]), no qual o autor buscou desenvolver tanto uma análise quantitativa das grandes

linhas da criminalidade no período quanto analisar os delitos de homicídio, furto/roubo e os

“crimes contra os costumes” (Idem, p. 28). A segunda parte do livro, em que são analisados os

“crimes específicos”, é realizada a partir de processos penais. Segundo o autor, os processos

criminais dizem respeito a dois “acontecimentos”: o ato, que produziu a “quebra da norma

legal”, e o auto, aquilo que “se instaura a partir da atuação do aparelho repressivo” (Idem, p.

31). Considerando a contribuição de Corrêa, Fausto aponta que a passagem de uma a outra

dimensão não é linear (Idem, p. 32). A essas observações conviria acrescentar ainda que a fala

do acusado é reduzida e constrangida, uma vez que deve se ajustar não à reconstituição dos

atos, mas às disputas de versões entre defesa e acusação (Idem, p. 35).

Fausto admite que a lógica de produção destes arquivos pulveriza os fatos originais à

medida que enquadra, positiva ou negativamente, os indivíduos aos termos das normas que

deveriam ser cumpridas. Todavia, Fausto não fecha o caminho para a discussão dos temas

tratados nos conflitos – outra noção forjada por Corrêa. Os processos, desta maneira, permitem

acessar o que os indivíduos compreendem pelas “normas sociais de comportamento vigentes,

expectativas de conduta que estabelecem uma gradação do ato homicida” (FAUSTO, 2014

[1984], p. 119). Assim, o fato de se trabalhar com discursos não impede ao autor inferir as

condições mais amplas da vida social. A todo tempo, Fausto aponta que os dados “sugerem”

características das relações sociais mais amplas, das condições de solidariedade entre os grupos

estudados. Em outras palavras, o procedimento analítico busca o significado do homicídio no

contexto social.

O segundo exemplo que destacamos refere-se ao livro Trabalho, lar e botequim: O

cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque, de Sidney Chalhoub (1986).

Possivelmente em decorrência dos objetivos de seu trabalho (compreender os mecanismos de

controle social no cotidiano da classe trabalhadora na sociedade capitalista), em especial nas

situações de trabalho, amor e lazer, o autor apresenta uma perspectiva que se afasta de Corrêa,

apesar de dever sérias considerações a ela: admite que está em julgamento “um sistema de

normas visto como universal e absoluto”, que procura adequar o comportamento dos

investigados às normas e regras de conduta moral legitimadas (CHALHOUB, 1986, p. 180).

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Assim, aparecem nos processos modelos ideais de conduta para homem (trabalho,

provedor) e mulher (docilidade, submissão, dedicação ao marido e família). Porém, o que

realmente interessa a Chalhoub nos processos são as contradições, o “emaranhando de versões

conflitantes” (CHALHOUB, 1986, p. 36). O historiador está convencido de que os processos

funcionam como uma neblina aos fatos que procurará reconstituir (Idem, p. 38-39), o que não

impede a realização do conhecimento histórico. Nesse sentido, ele é levado a considerar que

existem certezas e fatos que não devem ser ceticamente julgados pelo pesquisador como mera

ficção. Como para Franco e Fausto, cabe desvendar interpretativamente as diferentes versões

apresentadas nos processos.

De acordo com seu paradigma teórico, Chalhoub toma os processos como manifestação

da particularidade e que, portanto, são incapazes de, por si, recompor a totalidade do real. O

que neles se percebe são manifestações específicas que devem ser consideradas do ponto de

vista do conjunto mais amplo das relações sociais. Os significados destes depoimentos, destas

narrativas podem não ser encontrados apenas através da leitura de processos, em suas palavras:

Estes significados devem ser buscados nas relações que se repetem sistematicamente

entre as várias versões, pois as verdades do historiador são estas relações

sistematicamente repetidas. Pretende-se mostrar, portanto, que é possível construir

explicações válidas do social exatamente a partir das versões conflitantes apresentadas

por diversos agentes sociais, ou talvez, ainda mais enfaticamente, só porque existem

versões ou leituras divergentes sobre as ‘coisas’ ou ‘fatos’ é que se torna possível ao

historiador ter acesso à lutas e contradições inerentes a qualquer realidade social

(CHALHOUB, 1986, p. 40).

Não há ingenuidade: a leitura dos processos não permite acessar o que “realmente se

passou”, mas é pouco factível supor que ali se contam apenas mentiras. Fundamental atenção

deve ser dirigida às repetições, tanto naquilo que se diz quanto naquilo que se esconde

(CHALHOUB, 1986, p. 41). Destas histórias, o pesquisador deve partir “em direção aos atos e

às representações que expressam, ao mesmo tempo que produzem, estas diversas lutas e

contradições sociais” (Idem, p. 42). Ou seja, não se trata de ignorar que os processos apresentam

representações sociais; trata-se de encontrar nelas outros significados.

Frente a estas construções, o olhar do cientista social deve ser distinto do olhar do jurista:

enquanto estes “analisam os atos de tais personagens a partir de um sistema rígido de valores,

procurando avaliar até que ponto eles se enquadram nas normas dominantes ou se constituem

em indivíduos criminosos ou desviantes”; o historiador irá considerar “a possibilidade de esses

indivíduos regerem sua conduta por normas ou padrões de comportamento alternativos àqueles

valorizados pelos monopolistas da virtude” (CHALHOUB, 1986, p. 304).

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O que não significa de modo algum anotar acriticamente o que contam os autos. É

preciso cuidado com as alegações, que podem apresentar como causa dos conflitos os

antecedentes. A estratégia contra esta “armadilha” respalda-se na “leitura exaustiva e

comparativa dos autos, o que acaba explicitando quase sempre o que está efetivamente em jogo

na contenda, ou seja, a leitura atenta do processo esclarece geralmente o caráter político do

surgimento das rixas e dos conflitos nestas instâncias microscópicas do social” (CHALHOUB,

1986, p. 314).

Os autos de processo penal são espaços de conflito, de lutas constantes, entre visões que

procuram legitimar não apenas discursos, representações, como também determinadas formas

de comportamento social. Dessa forma, os autos são permeáveis às visões de mundo daqueles

que são constrangidos a deles participar. Nas respostas e explicações neles subjacentes deixa-

se entrever um saber a respeito dos comportamentos subjetivos e coletivos. Trata-se, portanto,

de conseguir captar nestas respostas e explicações o que os diferentes grupos sociais

investigados compreendem como comportamentos e esquemas de ação permitidos e interditos.

Essas falas, no entanto, não são capturadas espontaneamente. Não fosse por uma

“perturbação” em sua rotina, jamais estes personagens seriam ouvidos de tal maneira (FARGE,

2009, p. 15). Falta espontaneidade também no que se conta: nos autos, não se registram opiniões

livres, e sim respostas a perguntas formuladas pelo Juiz (ou pelo delegado, na fase inquisitorial),

e suas respostas são ditadas pela autoridade ao escrevente.

Note-se, ademais, que estas narrativas serão objeto de “manipulação” interpretativa

pelos “operadores técnicos do Direito” na redação das peças no curso do processo penal. Em

relação ao drama social (CORRÊA, 1983), isto é, à trama de conflitos na qual os personagens

destas histórias estiveram envolvidos, a realidade que os autos registram é esquadrinhada de

forma a revelar se o fato configura ou não desvio às regras sancionadas. Afinal, a razão de ser

do arquivo é servir às forças sociais de vigilância e punição (FARGE, 2009, p. 14).

Informados pela literatura especializada, nossa investigação se deparou com limitações

específicas suscitadas pelos autos ao realizar o estudo que fundamenta esta dissertação. De

forma a buscar os contextos nos quais os crimes de homicídio são cometidos, descrever as

circunstâncias e situações e interpretar os conflitos interpessoais por trás dos autos precisamos

tentar romper com o binarismo entre “vítima e agressor”, “inocente ou culpado”;

principalmente tratando-se de processo instaurado para apurar um caso de homicídio em que, a

rigor, a “vítima” ou foi morta ou foi gravemente ferida, sua imagem está fortemente associada

aos atributos próprios de quem supostamente desfruta de inocência absoluta.

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Nos autos, a vítima não representa tão somente a parte que, envolvida num conflito, dele

saiu ferida. Alvo de agressões, que são consideradas injustas a priori, despropositadas,

desonestas, exageradas, a vítima entra para os autos como símbolo de candura e pureza. Daí

que a leitura dos autos nos leve à falsa impressão de que a todo tempo não estamos diante do

choque entre duas partes, entre dois antagonistas, briga que, por alguma razão, foi encerrada

com a morte de um em detrimento de outro; os autos parecem nos colocar diante de ataques

inesperados de um bandido cruel contra uma vítima indefesa.

Por parte do outro lado da contenda, o suspeito ou o agressor confesso aparece como

um carrasco cabal; daí também porque a leitura dos autos sugira a desconfiança dos operadores

do direito quanto às versões e justificativas arroladas pelo réu, tidas como mentirosas ou

estrategicamente elaboradas para se safar da pena. Algoz cruel, assassino frio e quase

desumano, importam menos as situações que o conduziram a tal posição e mais o estatuto do

mal que a sociedade infringiu.

Isso não se explica pelas particularidades da produção das peças, ou seja, pelo fato de

os funcionários transcreverem os depoimentos e redigirem os documentos que compõem os

autos; tampouco se explica por um viés devido às práticas específicas dos operadores do direito.

Deve-se compreender o estatuto dos réus, vítimas e testemunhas como resultado da

ambiguidade do sistema processual, ora fundado em princípios acusatórios, ora em princípios

inquisitórios, que presume um culpado e prevê procedimentos jurídicos e técnicos cujo objetivo

é comprovar sua culpabilidade e condená-lo (KANT DE LIMA, 1989).

A razão desta espécie de “relativismo metodológico” é a possibilidade de suspender,

interditar mesmo, a intervenção de qualquer juízo de valor ao observar e explicar as ações

desenroladas pelas partes. E assim, pôde-se perceber que nem sempre quem matou foi quem

deu início à discussão ou às agressões físicas e acabou por romper uma ordem de relações e

interações.

Esse exercício foi fundamental para a proposta de compreender como o conflito é

produzido na interação entre as duas partes. A todo o tempo, os discursos capturados e

reorganizados pelos depoimentos e interrogatórios são versões em disputa na tentativa de impor

uma visão de mundo, ou visão dos atos. É justamente por isso que os autos devem ser

considerados como campos de batalha onde as posições de quem vence e quem perde não estão

previamente definidas.

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Como aponta Chalhoub (1986), a contradição entre as versões constitui-se elemento

essencial na compreensão do conflito. Não seria por menos: é justamente um dos objetivos

desta pesquisa descrever como os conflitos são socialmente produzidos e, para tanto, torna-se

fundamental considerarmos que os conflitos observados envolvem dois lados em situação de

oposição, de antagonismo, portanto, de desacordo e contradição. O que interessa é justamente

recuperar as diferentes versões e explicações para os atos que circulam pelas páginas dos autos

de processo penal, de forma a depreender quais são os elementos sociais que se chocam.

Por fim, convém enumerar alguns obstáculos específicos trazidos pela qualidade da

produção das peças presentes nos autos, sinais das condições de trabalho na polícia investigativa

brasileira, pelo menos à época. Já foi antecipada a dificuldade de localização dos autos nas

malhas da justiça. Outra questão é a qualidade das informações, bastante precárias, no que diz

respeito ao perfil biográfico-social ou jurídico dos envolvidos, especialmente quanto à cor,

ocupação, ao grau de escolaridade. No mesmo sentido, as provas técnicas geralmente são

poucas e de baixa capacidade de esclarecimento. Já as provas testemunhais podem fornecer

uma história oficial que esconde versões silenciadas, ignoradas ou apagadas.

Não foram poucos os casos estudados em que houve reviravolta nas versões, de

testemunhas, de agressores ou vítimas, modificações de conteúdo diversas justificadas ora por

alguma suposta irregularidade na coleta do depoimento (os agressores com frequência alegam

terem sofrido violências corporais para confessar), ora por possíveis ameaças sofridas nos

bairros, na vida corriqueira além dos muros do fórum, ou sem justificativa aparente.

Nas fontes de dados judiciais, também deve-se considerar a questão da morosidade, um

problema tanto para sua localização dos arquivos quanto para a qualidade das informações,

conforme o tempo da justiça, se demasiado alongado, pode comprometer a materialidade das

provas, desmobilizando as testemunhas, suscetíveis aos lapsos de memória (ADORNO et. al.,

2008).9

Assim, os autos revelam um complexo universo social que envolve um sem número de

agentes responsáveis pela vigilância ou punição, signatários de práticas já arraigadas na cultura

jurídica e que definem quem é agressor, quem foi vítima, quem merece ser investigado, quem

não precisa ser ouvido. Além destes, incluem-se outros agentes ávidos pelo poder de dizer a

verdade, ou a sua verdade, sobre os fatos expostos nos atos. São estes operadores do direito que

reconstroem a realidade dos fatos, lançando luz – e ao mesmo tempo obscurecendo – elementos

9 Referência disponível em: <http://www.nevusp.org/downloads/down116.pdf>. Acesso em: 16 nov. 2015.

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do torvelinho de relações sociais em que a morte de um dos protagonistas foi apenas um dos

acontecimentos.

Há, ainda, os próprios envolvidos como vítimas ou agressores que acabam entrando para

a história de maneira inesperada, ao mesmo tempo confusa e trágica. O arquivo configura-se,

neste sentido, a oportunidade de imortalizarem suas representações sobre os papéis sociais que

foram ou não cumpridos, bem como seu próprio julgamento sobre comportamentos sociais

cotidianos. Suas palavras deverão ecoar de forma inteligível, deverão convencer as autoridades

de quais as regras e os papéis sociais de seus grupos foram descumpridas.

Não restam dúvidas de que os autos compreendem material simbólico. Confinam visões

da realidade social e dessa forma a afastam dos objetivos últimos dos autos. No entanto, o

pesquisador, em sua reconstituição da teia de relações e interações sociais não pode se

aprisionar aos documentos. Deve compreendê-los no contexto das lutas pela coerência das

representações de si e de outros, na resistência ao poder, como justificativas para as formas de

sociabilidade própria dos depoentes, “pois aquele que responde ao comissário, com uma

imprecisão voluntária ou não, exprime-se forçosamente por meio de imagens que veicula dele

mesmo, de sua família e de seus vizinhos” (FARGE, 2009, p. 80). Que não se perca de vista:

as narrativas são acontecimentos históricos, porque surgem para persuadir, convencer quem

ouve e quem julga, “de comportamentos e práticas regulares de interação entre pessoas” (Idem,

p. 83).

Carlo Ginzburg (1989, p. 206) afirma que o pesquisador nutre com os depoentes a

mesma relação que com elas tinham os Juízes da Santa Inquisição: queriam arrancar-lhes a

verdade, ainda que por meios violentos e em vista de fins distintos. Vale ressaltar que os meios

de que dispõem as ciências sociais para compreensão da sociedade não podem ser aprisionados

pelos autos, caso contrário há o risco de não perceber que os processos pervertem a natureza

dos conflitos. Por isso, observar os processos apenas em seus próprios termos resume-se em

verdadeira armadilha. O que permite à sociologia recorrer aos dados é seu caráter de evidência

histórica, que deve ser contrastado com outros fenômenos sociais e históricos, sem perder de

vista que entre os autos e os atos há um mundo vasto e muito mais complexo do que a leitura

nos permite supor (MARTINS, 1992).

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O processo de pesquisa com autos de processo penal

A seguir, passaremos à caracterização geral do conjunto de processos penais

pesquisados e apontamos os procedimentos da pesquisa.

Caracterização geral dos processos pesquisados

Para compor a amostra de 197 autos de processo penal e inquérito policial, a pesquisa

realizada pelo NEV-USP identificou um universo de 3415 casos e outros 999 Boletins de

Ocorrência que foram enviados ao Departamento de Homicídio e Proteção à Pessoa (DHPP),

somando 4414 registros convertidos em inquéritos policiais. A partir deste universo foi definida

nova amostra, estatisticamente representativa, de seleção aleatória, que resultou em 600

inquéritos para localização.10

Contudo, a partir de 2003, uma série de impedimentos determinou alterações na

amostra. Naquele ano, por determinação da Secretaria de Segurança Pública, pesquisadores

foram impedidos de prosseguir com atividades de campo na 3ª Seccional de Polícia. Em 2005,

com apoio do Grupo de Atuação Especial de Controle Externo de Atividade Policial (GECEP)

do Ministério Público foi possível ter acesso a informações, momento em que a equipe avaliou

por ampliar a amostra para 720 inquéritos policiais. Devido ao tempo em que esta coleta esteve

paralisada, foi possível rever as informações para 418 inquéritos. Os demais inquéritos não

foram localizados por diversos fatores, como mudança na natureza do crime (desclassificação

de doloso para culposo, por exemplo).

Novamente, outra dificuldade enfrentada pela equipe de pesquisa foi a não localização

física de 245 inquéritos policiais e processos penais concluídos e arquivados pelo Tribunal de

Justiça, seja porque alguns estavam em andamento ou suspensos pela fuga do réu, seja porque

haviam sido redistribuídos, desclassificados ou, ainda, por incompatibilidade entre informações

fornecidas pelas autoridades.

10 Nos relatórios publicados pelo NEV-USP encontram explicações detalhadas das premissas que balizaram a

definição da amostra, como o tempo do processo, índice de variância amostral, margem de erros (ADORNO;

PASINATO, 2009).

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Por fim, a partir de 2008, ocorreu outro ciclo de impedimentos, como mudança no

sistema de informática do Arquivo do Tribunal de Justiça e falta de atendimento à equipe.

Nestas circunstâncias, dos 245 exemplares iniciais foi possível localizar 197 casos, entre

processos penais e inquéritos arquivados (ADORNO; PASINATO, 2009, p. 27-36), que

correspondem a 243 infratores (em alguns casos há mais de um agressor).

A pedido do Ministério Público, 71 casos foram arquivados. Conforme verificado pela

Pesquisa do NEV-USP, a principal motivação para que um inquérito policial para crime de

homicídio seja arquivado reside em não esclarecimento da autoria (55 de 75 infratores tiveram

inquérito arquivado por esta razão), mas também figuram outras razões, como a morte do

agente. Foram constatados os principais pontos deste fluxo em que se encontram gargalos,

como o arquivamento de inquérito policial, a decisão de absolver sumariamente um indiciado

ou mesmo os resultados de absolvição ou condenação pelo Júri.

Representam especial interesse as considerações sobre o papel das investigações

policiais atravessadas por formas de seletividade, que fundamentam quais casos merecem ou

não apuração. As primeiras investigações são essenciais para a continuação e apuração dos

crimes, entretanto, como foi demonstrado pela pesquisa, o trabalho de investigação policial

privilegia casos em que há claros indícios de autoria e motivações, desde o registro da

ocorrência, ou que “estejam à mão”, quer dizer, sejam facilmente recuperáveis a partir de

depoimentos de testemunhas presenciais ou não. Do contrário, o esclarecimento necessário dos

acontecimentos para prosseguimento dos procedimentos penais fica prejudicado em razão da

pouca produção de provas técnicas, no geral de baixa qualidade, quando presentes.

Os casos foram registrados entre 1991 e 1997, anos de uma década que, como foi

observado no capítulo anterior, apresentou as mais altas taxas para crimes violentos na cidade

de São Paulo e em outras capitais do Brasil. Período que testemunhou uma série de “processos

desestabilizadores” responsáveis por transformações e instabilidades nas relações sociais

(CALDEIRA, 2000, p. 44). As alterações políticas, como a democratização e expansão de

direitos civis e políticos, contrastavam-se com a persistência de distribuição desigual de riqueza

e serviços básicos nas grandes cidades e violação de direitos humanos.

A região em que estes crimes de homicídio foram registrados compreendia 24 distritos

censitários da capital paulista, localizados em sua maioria nas regiões Oeste e Norte, com alguns

casos registrados nas bordas da Zona Sul; distribuídos pelas Subprefeituras de Vila Mariana,

Pinheiros, Barra Funda, Lapa, Pirituba, Freguesia do Ó, Campo Limpo e Butantã.

Em 1991, a região abrigava, de acordo com dados do IBGE, 1.982.883 habitantes,

correspondente a 20,63% da população de todo o município de São Paulo, proporção que se

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manteve relativamente inalterada até o final daquela década. Alguns dos distritos desta região

estão entre os de maior contingente populacional do município, como Campo Limpo, Capão

Redondo, Freguesia do Ó, Pirituba.

A pesquisa empreendia pelo NEV-USP privilegiou um recorte da cidade que garantisse

a diversidade de composição socioeconômica do município: regiões nobres, de famílias de alta

renda, com ampla disponibilidade de espaços culturais, teatros, diversificadas alternativas de

lazer, além de equipamentos de saúde – os bairros de Moema e Alto de Pinheiros, por exemplo.

Outros são bairros de precárias condições de vida, expressas nas condições habitacionais de

favelas, como Paraisópolis, ou nas altas concentrações populacionais nas casas autoconstruídas

nos bairros do Campo Limpo, Pirituba, ou Capão Redondo. Entre estes extremos, bairros

habitados por classes médias, como o Butantã.

O mapa a seguir ilustra a região geográfica atendida pela 3ª Seccional de Polícia.

Figura 1: Área geográfica abrangida pela 3ª Seccional Polícia, município de São Paulo

Fonte: Violência e Punição: Estudo da impunidade penal no município de S. Paulo, 1991-1997 (NEV-USP,

2008, p. 38).

Limites:

Distritos Policiais

Principais Vias

Rios

Matas

Piritub

Quilômetr

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Verificamos que a distribuição dos 197 processos é variada pela região. No geral,

observamos que os Distritos Policiais (DPs) mais ao sul e oeste do município são os que

catalogam a maior parte das ocorrências. Somados, os 37º, 89º, 75º, 51º Distritos Policiais são

responsáveis por mais de 50% dos casos da amostra. Os bairros equivalentes são: Campo

Limpo, Rio Pequeno, Vila Andrade, Pirituba, Vila Sônia, Raposo Tavares e Capão Redondo,

todos apresentando entre 10 a 28 ocorrências. Outros bairros aparecem em pouquíssimos casos,

como Alto de Pinheiros, Freguesia do Ó, Jaguará, Moema e Perdizes. Se observada tal

distribuição pelos distritos policiais, notamos igualmente maior concentração de registros em

algumas unidades específicas.

Tal concentração de registros não é particularidade da construção desta amostra. No

período em questão, os DPs dessa região acumularam elevados índices destes registros. A

seguir, duas tabelas adaptadas de estudo elaborado pelo Núcleo de Estudos da Violência. Na

tabela 1 a seguir, a distribuição de 21.886 Inquéritos Policiais pelos 14 distritos policiais desta

3º Seccional de Polícia. A distribuição está organizada pela proporção percentual das

ocorrências no período 1991-1997. Em ambos os quadros foram sublinhadas algumas cifras.

Em destaque, os índices para os registros de homicídio e da ocorrência “resistência seguida de

morte”.

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Tabela 1: Distribuição de Inquéritos Policiais segundo natureza e os Distritos Policial.

Município de São Paulo (1991 - 1997) - 3ª Seccional de Polícia (%)

Fonte: Adaptado de Violência e Punição: Estudo da impunidade penal no município de S. Paulo, 1991-1997.

NEV-USP, 2008.

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Nas duas tabelas é possível verificar que os distritos localizados em regiões mais

centrais do município, os 7º, 14º, 15º, e 23º DPs - respectivamente, Lapa, Pinheiros, Itaim Bibi

e Perdizes - concentraram os maiores índices de crimes não violentos: furto, furto qualificado

e uso de entorpecentes. Já os distritos mais ao sul do município registram maiores índices de

crimes violentos. Como se verifica pela Tabela 1, somados, os DPs 37º, 51º, 75º e 89º

(respectivamente Campo Limpo, Rio Pequeno/Butantã, Jardim Arpoador e Portal do Morumbi)

foram responsáveis por 46% dos Boletins de Ocorrência para homicídio (nas formas tentada e

consumada) no período em questão.

Quanto ao perfil dos agressores e vítimas dos autos de processo penal, os dados não

destoam de outros estudos. A distribuição que se verifica é: 6,41% menores de 18 anos; 57,69%

entre 18 e 30 anos; 34,18% entre 31 e 60 anos; 1,7% com mais de 60 anos. A distribuição etária

de agressores, é: 46,91% entre 18 e 30 anos; 26,74% entre 31 e 60; 1,23% maiores de 60 anos;

e em 25,12% não se tem esta informação. Em geral, o agressor é mais velho que a vítima; a

maioria das vítimas é branca; e em geral, representam mais de 50% dos casos, quaisquer que

sejam as fases do fluxo do sistema de justiça penal em que estes dados estão disponíveis (no

Boletim de Ocorrência, no Inquérito Policial ou no Processo Penal).

Seguindo o número de brancos tem-se a participação de pardos e, em menor medida,

negros ou pretos (variando entre 4,27% e 8,54%). Também os agressores são em sua maioria

brancos. Porém, nestes casos, há uma margem maior de dúvida, já que é expressiva a parcela

de casos em que a cor não é informada. Assim como entre as vítimas, seguem aos brancos os

agressores pardos e posteriormente negros ou pretos (em torno dos 5%).

Entre agressores e vítimas predomina a baixa escolaridade. Contudo, esta informação

está indisponível para 61% das vítimas e 37,44% dos agressores. Geralmente, ambos se

concentram ao nível do 1º grau incompleto: 25,21% das vítimas e 41,15% dos indiciados/réus.

Em segunda posição, aqueles que completaram apenas esta etapa do ensino fundamental: 4,7%

e 9,87% respectivamente. Entre os infratores, é significativo o número de analfabetos, 8,23%,

enquanto a vítimas são 2,56%. O nível superior completo ou incompleto, nos dois casos, não

chega a 2,5% da amostra.

No que diz respeito às origens, a maioria das vítimas, 43,16%, nasceu no Estado de São

Paulo. Dos agressores que se obteve tal informação, 30,34% eram de São Paulo. Além de do

estado de São Paulo, tanto para vítimas quanto para agressores, o principal estado de origem é

a Bahia, seguida por Pernambuco e Minas Gerais. Pelos dados gerais da amostra, a diferença

de origens não prediz nenhum padrão de conflito.

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As peças do auto de processo penal

Para alguém que não pertença ao campo do Direito, os autos de processo penal

apresentam algumas dificuldades práticas. A primeira delas consiste em compreender a

linguagem cifrada por meio da qual os autos foram elaborados, característica deste restrito

campo de disputas pelo “direito de dizer a verdade” (BOURDIEU, 1989).

Outra questão está em se adaptar à estrutura das peças dos autos. O tamanho médio de

um processo varia em função de alguns elementos, dentre os quais o desfecho dos casos é fator

importante. Se arquivado após o relatório do delegado, provavelmente será mais curto que um

processo que chega a julgamento pelo júri. Assim, o volume de páginas em um processo será

função do número de peças anexadas. Basicamente, os autos consistem em:

a) “Denúncia” (ou pedido de arquivamento), oferecida pelo Ministério Público após a

conclusão das investigações policiais iniciais. Pode ser considerada a decisão

fundamental sobre o estabelecimento ou não de um processo penal. Neste

documento, devem constar as informações sobre autoria, materialidade e

circunstâncias e a justificativa do convencimento do promotor público quanto à

veracidade destes elementos, concluindo na denúncia propriamente dita. Caso

contrário, ao se avaliar que as informações disponíveis não são capazes de esclarecer

o caso, tal documento traz o pedido de arquivamento, que deverá ser analisado pelo

Juiz da Vara. O pesquisador que recorrer aos processos se deparará com este

documento antecedendo todos os demais, inclusive aqueles que foram produzidos

anteriormente, como os boletins de ocorrência ou o relatório do delegado de polícia;

b) “Auto de Prisão em Flagrante Delito”, no qual se registram os primeiros

depoimentos, em geral dos policiais que atenderam à ocorrência, de testemunhas que

tenham sido identificadas e do suposto agressor (que pode gozar do direito de se

manter calado). Caso não se trate de flagrante-delito, a peça que segue à “Denúncia”

na ordem de apresentação dos autos é a “Portaria instaurada pelo Delegado de

Polícia”, na qual esta autoridade determina providências a serem tomadas na

investigação policial, em geral a “juntada” de outras peças, como laudos e relatórios

de investigação;

c) “Boletim de Ocorrência”, peça informativa com dados básicos do indiciado

(agressor), vítima, testemunhas com “histórico” resumido do registro;

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d) Peças de qualificação e informação sobre a vida pregressa do indiciado, bem como

folhas de antecedentes criminais (em geral anexadas no decorrer das investigações,

não no ato do registro);

e) As peças de depoimentos, declarações, interrogatórios realizados pela equipe

policial;

f) “Relatório do Delegado” com resumo dos procedimentos tomados pela equipe e as

informações que formam a “verdade” policial – a autoria e a materialidade.

Inaugurada a etapa judicial – Instrução Criminal – com oferecimento da “Denúncia”

pelo Ministério Público, agregam-se novas peças de interrogatórios e depoimentos prestados,

desta vez, diante do Juiz da Vara Criminal e em presença de Promotor e Advogados de Defesa.

Em meio a esta “papelada” podem ser encontrados novos laudos técnicos. Ao final da Instrução

Criminal, o Promotor do caso redigirá peça em que expõe seu convencimento a respeito da

materialidade, autoria e circunstâncias.

Em geral, ao menos nos casos da amostra observada, o representante do Ministério

Público é favorável à “pronuncia” do réu (julgamento pelo Júri), sendo frequente a alegação

que, mesmo diante de dúvidas, há de se agir “em prol da sociedade” naquela fase, restando ao

Júri a função de dirimir possíveis questionamentos quanto à autoria e, na dúvida, decidir “pró

réu”. Em resposta à peça do Promotor, o defensor responsável pelo caso apresentará sua versão,

geralmente sustentando uma tese em oposição à da acusação, na qual apresenta as razões para

não se prosseguir o processo penal, uma vez que as provas seriam insuficientes na comprovação

da autoria.

Nos casos de confissão por parte do réu, resta ao defensor solicitar absolvição por

legítima defesa (e deverá demonstrar como as provas colhidas nos autos o autorizam a esta

versão), ou a desclassificação do delito. Pode ainda destacar circunstâncias que deveriam

atenuar a culpabilidade do réu, na tentativa de convencer o Juiz a, por exemplo, excluir da

acusação elementos do Código Penal que podem aumentar a pena após julgado (as ditas

“qualificadoras”).

Em resposta a este debate, o Juiz apresenta peça em que deve demonstrar o

convencimento prévio sobre o caso, cabendo-lhe o dever de “pronunciar”, “impronunciar”,

“absolver sumariamente” ou “desclassificar” o delito (além de extinguir o caso, por morte do

agente, por exemplo). Conforme demonstram os relatórios finais da pesquisa realizada pelo

NEV-USP não é raro que o convencimento do juiz nesta peça seja sumário, na maioria das

vezes concordando com o promotor do caso.

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Na sessão do Júri, a sentença para o crime será lavrada pelo Juiz com base na

condenação ou não pelo Júri popular e, em caso de punição, o quantum e a natureza do regime

serão calculados e registrados nesta peça. Finalmente, os autos podem ainda registrar os

recursos das partes, em geral pedidos de revisão da pena, realização de novo Júri, bem como a

decisão por órgão superior (desembargadores) sobre os pedidos.

As etapas da leitura e descrição

A principal questão que norteou a pesquisa desta dissertação foi “Por que desses

conflitos resultam, na maioria das vezes, na morte de um ou mais envolvidos? ” A esta, outras

se somaram, como “Por que, com frequência, as razões que apareciam como motivações eram

consideradas pelos operadores do direito como ‘banais’ ou ‘fúteis’? ” À primeira impressão

tudo acontece por pouco: uma pisadela no pé num ônibus que atravessa a cidade; a negação de

pagar uma cerveja a mais ou a falta de porção de manjuba frita no bar; o desentendimento de

vizinhos que compartilham exíguos espaços de habitação e escassos serviços coletivos, como a

distribuição de água entre seus barracos; agressões que surgem ao longo de negociações

econômicas – como a concessão de exploração comercial de um bar, ou birosca, nas periferias

da cidade; insatisfação com um servidor público que aplica uma multa de trânsito.

Por pouco também parecem sobreviver estes personagens frente às vicissitudes da

rotina: o bar como extensão da casa do proprietário e provável única alternativa de lazer a vários

setores da cidade; a privacidade possível entre as finas paredes que dividem as moradias nos

quintais ou cortiços; as insuficientes e inseguras condições disponíveis pelas transformações no

mundo de trabalho.

No intuito de compreendermos sociologicamente os conflitos, ou seja, entendermos os

atritos e as agressões como resultado de interações e relações sociais, precisamos estabelecer

algumas perguntas que guiassem a leitura e permitissem descrever e caracterizar as situações.

Dessa forma, a primeira tarefa da pesquisa foi listar, a partir de fichamentos dos processos

penais, as possíveis motivações que se depreendiam de cada caso. Como, de fora, numa grande

distância espaço-temporal dos acontecimentos, arriscar responder o que motivou a briga ou a

agressão física? Do ponto de vista estritamente sociológico, importa menos saber os padrões

cognitivos que operacionalizaram a ação individual e mais compreender como o conflito é

produto de uma interação entre dois indivíduos que atribuem sentido socialmente informado às

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suas ações. Assim, em vez de procurar em vão as “reais motivações” dos crimes de homicídio,

o trabalho procurou identificar os “temas” dos conflitos – Mariza Corrêa identificara, nos casos

de crime de homicídio “em família”, a “infidelidade da mulher” como argumento recorrente

para explicar os atos (CORREA, 1983, p. 97).

Na presente pesquisa, os temas envolvidos nestes quase duzentos casos de homicídio e

tentativa de homicídio compõem uma vasta gama de situações. Há um volume generoso de

casos em que os motivos do crime são de acesso praticamente impossível. Trata-se daqueles

casos em que se tem um “corpo encontrado” em terrenos baldios, espaços públicos e até mesmo

em suas residências ou trabalho (estes dois em escala reduzida na amostra) sem que fosse

possível esclarecer indicações para autoria da agressão.

Nestes casos, classificados como “corpos encontrados”, o desfecho de praxe consistiu

em arquivamento do inquérito policial. Neste conjunto de histórias, as investigações policiais

não lograram em encontrar informações capazes de indicar o possível autor da agressão, a

natureza da relação entre agressor e vítima, a interação entre as partes ou mesmo os temas do

conflito. Não raro, as vítimas destes casos permanecem “sem história”, ou seja, sem

identificação de parentes ou amigos que possam esclarecer informações sobre sua vida social

de forma a recompor as possibilidades do conflito.

Neste amplo agrupamento há ao menos 39 histórias de “corpos encontrados” em locais

públicos, em terrenos baldios ou mesmo em residências, e que não tiveram as circunstâncias do

conflito, os possíveis antecedentes e os envolvidos na contenda esclarecidos pelos autos. Em

geral, o desfecho destes casos foi o arquivamento de inquérito policial pela não identificação

da autoria.

Da mesma maneira, outros tantos (ao menos 50 casos) de brigas ocorridas entre

conhecidos e desconhecidos em vielas, ruas, avenidas, terrenos baldios, praças públicas, por

reação a assalto ou a abordagem policial, por dívida com drogas, como desfecho para delações

(ou suas suspeitas), empréstimos de armas ou dinheiro, execuções sumárias, disputa por poder

ou influência sobre territórios em alguns bairros. São histórias de brigas de trânsito, conflitos

no interior de ônibus, de vingança ou da má sorte que pode ocorrer ao tentar apartar uma briga

entre desconhecidos.

Entre os demais casos, quais são, afinal, os temas? Pelo que se morria e pelo que se

matavam naquela São Paulo da década de 1990? Novamente, é fundamental entender que

conflito e violência não devem ser tratados como sinônimos, como permitem entrever os casos

em que os antagonistas de uma briga e as vítimas fatais não coincidem: podem morrer terceiros

que se envolvem num conflito interpessoal no sentido de apaziguar ou defender uma das partes.

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O conflito pode ocorrer após os desentendimentos correntes e comuns na vida cotidiana:

o mal-entendido que um copo quebrado ou um sorriso desconfiado pode causar a determinada

hora da noite em um boteco qualquer. Mas também se morre ao tentar fugir de um assalto ou

de uma abordagem policial; morrem “delatores”; ameaças efetivam-se; vinganças são

consumadas; uma provocação de familiar, de amigo ou de desconhecido pode ser também fatal;

o rumor envolvendo o roubo de animais de criação pode gerar um conflito mortal, assim como

podem ser letais algumas dívidas, seja para o uso de entorpecentes, seja para saldar empréstimos

informalmente negociados; venda fiado ou trabalho não remunerado; agressões após

desentendimentos no trânsito.

É frequente a defesa, com sangue, da honra masculina, às vezes colocada em xeque por

um olhar “torto” ou “feio”. Morrem trabalhadores, alguns no exercício de sua profissão de

segurança particular, outros por conflitos com colegas de trabalho por razões diversas. Morre

um passageiro de ônibus que não gostou de receber um “pisão” no pé; agridem-se cobradores

ou motoristas, pelo troco ou pelo modo de conduzir ao volante. Morrem mulheres sob a

justificativa do crime passional, do ciúme ou numa discussão sobre a separação do casal. O

desemprego, problemas familiares, questões das habitações coletivas em que residem, histórico

de violências domésticas, temperam essas questões.

Morrem familiares, por dívida, por uma vaga na garagem. Morrem vizinhos na luta

diária pelo abastecimento de água prejudicado por outro habitante do mesmo terreno, pelo uso

do único chuveiro do local, pela dispensa de lixo em terreno alheio. Morre-se e mata-se por

questões aparentemente surgidas de momento, como o não pagamento de mais uma cerveja

num boteco; a recusa de enfrentar outra partida de “palitinhos”; pela ocupação de uma mesa ou

por “brincadeiras de mau gosto”. Enfim, há histórias de execução, de mortes em disputa por

influência nos negócios criminais, por poder em alguns bairros e favelas.

O primeiro resultado de nossa pesquisa demonstrou que seria pouco efetivo diferenciar

os autos pelos temas, porque eram múltiplos os personagens e as circunstâncias dos conflitos.

A resposta então residia numa característica que variava em menor medida na totalidade de

casos, qual seja, os cenários dos conflitos. A princípio, compreendíamos por cenário as

localidades em que os conflitos aconteciam, mas para as primeiras definições desse estudo foi

fundamental categorizá-los dessa forma: conflitos na casa, no bar, na rua.

Entretanto, conforme avançava na formação acadêmica, identificamos a limitação da

noção de “cenário”, conceito no qual o espaço parece surgir apartado das pessoas que o ocupam

e das relações sociais que o produzem, reproduzem e lhe conferem sentido. Assim, aos poucos

percebemos a necessidade de ampliar a compreensão para além dos lugares físicos, das

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localidades, e passamos a compreender cenário também como uma analogia a padrões de

relações, interações e vínculos sociais.

Essa duplicidade do termo, suscitado pelo curso da pesquisa, faz-se presente, por

exemplo, nos conflitos interpessoais de vizinhança que, por sua vez, a princípio faz referência

à contiguidade da moradia, mas que também pode ser compreendida como um padrão de

relação e interação. O mesmo pode ser tido do trabalho: por um lado, há o local de trabalho

onde que se desenvolvem atividades laborais; por outro, há o espaço do trabalho, que

independente do endereço, diz respeito a relações, interações, expectativas, normas, regras.

Esta constatação, aliada a provocações de ordem teórica, conduziram nossa reflexão a

considerar a espacialidade das relações sociais observadas. Por mais diversos que sejam os

temas e os protagonistas, percebemos a recorrência de um número mais ou menos definido de

relações sociais no interior das quais estes conflitos acontecem. Relações estas que, por sua vez,

estão associadas a certos ambientes que se confundem.

Diante de alguns espaços sociais, no interior dos quais as discussões, brigas, tiroteios

são produzidos, um dos propósitos desta investigação residiu em verificar se há diferenças

marcantes na produção social do conflito nestes diferentes ambientes.11 Com as seguidas

leituras dos autos, identificamos que seria possível dividir os autos em pelo menos 5 espaços

sociais que são, em grande medida, os principais espaços sociais desta pesquisa, que remetem

às “esferas” da vida em comunidade, conforme apontado no clássico estudo de Franco (1997

[1969]): o trabalho, a família, a vizinhança e o lazer.

De maneira geral, os conflitos interpessoais em vizinhança revelam conflitos que

explodem no convívio, muitas vezes forçado, no decorrer do compartilhamento de

determinados espaços físicos: o roubo de um bicicleta em numa pensão na região de Perdizes

ou discussão por comida num cortiço do Jaguaré; confusão com vizinho que joga areia de

construção no terreno alheio em São Domingos; bate-boca entre moradores de barracos colados

em favela de Pirituba por causa do volume do “som”; um vizinho embriagado que discute com

moradora de outro barraco por conta da distribuição de água, em região da Vila Sônia. Foram

identificados 23 casos considerados como conflito entre vizinhança.

11 Para compreender a violência interpessoal a partir da situação interacional em que ocorre, como sugere Randall

Collins, é preciso considerar o espaço como algo além de mero substrato físico de relações, ou como “espaço-

receptáculo” - categoria mobilizada para se falar das relações que se dão no espaço (GOTTDIENER, 1997, p.

125). Ou seja, não se deve ter o descuido de tomar o espaço apenas como “cenário empírico” no qual as relações

e interações ocorrem mas considerar o espaço em si e sua relação com a vida social. Ou como sugere Pierre

Bourdieu, como o espaço social se projeta ou retraduz no espaço físico (BOURDIEU, 2013, p. 133 - 134).

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Em família desenvolvem-se brigas entre casais, pais e filhos, parentes mais ou menos

distantes. São ao menos 40 casos identificados neste grupo e que versam igualmente sobre os

mais variados temas: cunhados que começam o dia bebendo juntos no quintal, adentram a tarde

em mútuas provocações e encerram a jornada às garrafadas; irmãos que se digladiam por uma

vaga na garagem; outros que resolvem a venda de um negócio comercial aos tiros; ciúmes que

levam homens a justificarem o assassinato de esposas. Nestes casos, a mulher aparece como

protagonista, na maioria das vezes vítima de violações e abusos anteriores por parte de seus

companheiros.

O trabalho surge em menor medida, mas não deixa de chamar atenção. São 11 casos em

que o conflito entre trabalhadores se resolveu mesmo no espaço laboral. São seguranças de

agência bancária que nutrem histórico de provocações e humilhações; operários da construção

civil que se “estranham” após “brincadeiras de mau gosto” envolvendo sua sexualidade. Desde

o início da pesquisa chamou atenção a baixa incidência de homicídios envolvendo questões de

trabalho e/ou em ambientes de trabalho.

Finalmente, os conflitos em espaço de lazer, que são geralmente brigas que ocorrem em

momentos de festividades, confraternizações familiares ou de amigos, em casas noturnas e

especialmente nos bares da cidade. O que explicaria o desenvolvimento de tensões e

antagonismos em momentos em que supostamente as relações sociais pareceriam mais

horizontalizadas, em que se acreditava tratar de ocasiões de equilíbrio nas tensões?

Aqui mais uma lição da sociologia a desconfiar de todos os pressupostos a respeito da

natureza das relações sociais: com o desenvolver da pesquisa, foi possível perceber que a

categoria lazer era insuficiente para definir o grupo de casos que descrevemos, porque não

abrange a diversidade das relações e atividades sociais surgidas nesses ambientes. Além do

mais, a partir da categoria de lazer pudemos perceber um elemento constante que liga essas

histórias: normalmente são brigas de bar em que se confrontam clientes entre si ou com os

funcionários e proprietários destes estabelecimentos comerciais.

Considerar as brigas de bar transcende a categoria simples de lazer, pois é preciso

compreender os usos sociais desses espaços, que não se reduzem à diversão. As fronteiras entre

espaço e momento da diversão, da conversa séria, do desinteresse, do trabalho se confundem

nos bares. Ali tomam lugar histórias de desforra da honra masculina, de consumação de uma

amarga vingança, de eliminação de delatores.

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No total de autos, há ao menos 30 histórias identificadas inicialmente como conflito em

ambiente de lazer, sendo a maioria em bares ou botequins, com alguns exemplares em festas

familiares ou casas noturnas. Conforme avançávamos na leitura e interpretação destes casos,

percebemos um segundo motivo pelo qual a aposta parecia correta: nos conflitos nos bares estão

representados diversos dos temas. Nos bares brigam conhecidos e desconhecidos, familiares,

amigos, colegas de trabalhos, homens e mulheres; são histórias de conflitos que parecem

resultar tanto de um longo processo de tensões quanto de rixas que parecem surgir de imediato,

tão rápidas quanto uma partida de sinuca.

Uma vez superada as classificações dos autos pelos temas e pelos espaços sociais,

precisávamos definir algumas indagações que conduziriam a leitura de forma a captar as

condições da “produção social do conflito” (CHALHOUB, 1986, p. 262). O que a natureza de

suas relações tem a dizer sobre as tensões, o conflito e a violência? Assim, questionamos os

autos a fim de saber se os temas eram produzidos por antecedentes nas relações entre as partes.

Se sim, era possível discernir etapas no desenvolvimento do conflito?

São pertinentes as sugestões de Sidney Chalhoub (1986) de identificar o surgimento de

uma rixa - e em torno de quê - passando por uma escalada de tensões até se chegar ao último

estágio, um desafio (Idem, p. 307 - 308). Ou haverá, como anotara Franco, razões de imediato,

irrompendo a violência de momento? Os autos passados em revista foram, portanto,

questionados sobre o estopim do conflito e se este se ancora em tensões anteriores ou se surge

de imediato. Nesse sentido, os dados nos levaram a questionar sobre as diferenças entre

conflitos envolvendo conhecidos e desconhecidos. Como os diferentes laços sociais

influenciam o desenvolvimento destas contendas?

Optamos por dividir o total de casos envolvendo brigas de bar em dois grupos que são

mutuamente excludentes, em razão dos vínculos dos envolvidos. Dessa forma, pudemos

identificar e avaliar possíveis diferenças na produção dos conflitos, que ocorrem entre: i)

conhecidos, abrangendo desde relações familiares, de amizade, de vizinhança e trabalho, nestas,

os conflitos parecem resultar tanto de questões antecedentes quanto imediatas; e ii)

desconhecidos ou não conhecidos em que, num primeiro momento, o material empírico não

fornece informações sobre os vínculos entre os envolvidos ou mesmo sugere não serem

conhecidos, sendo o próprio conflito o que os vincula naquele lapso temporal. Nestes casos, as

tensões surgiram no decorrer dos atos. Este último grupo de casos pareceu ser de especial

importância para compreendermos a dinâmica da conflitualidade e a violência, porque nos

permitiram perceber como as agressões e violências físicas são produzidas na própria interação,

e não são, aparentemente, explicadas por elementos anteriores.

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Também questionamos os autos sobre a influência de outros personagens, no mais das

vezes tomados como meros figurantes, mas que travam relações com os atores principais e têm

suas vidas afetadas pela proximidade de uma morte violenta. Ainda, e na medida do possível,

foram investigadas as maneiras como essas parcelas da população interagem com as autoridades

policiais, buscando identificar suas visões de mundo sobre as forças da ordem e os relatos de

suas experiências cotidianas com agentes do Estado. Da mesma forma, que papel cumpriram

os outros membros dos grupos em que se deu o conflito? Houve intervenção por terceiros? Se

houve, estimulou intervenção de outros participantes ou deu por encerradas as contendas?

Ainda, do que se reconstitui dos autos, houve facilitação da fuga, omissão, proteção do agressor

frente à justiça? (FRANCO, 1997 [1969], p. 53 - 58).

Portanto, estas foram, as questões que balizaram a leitura e permitiram o

desenvolvimento da pesquisa empírica, cujos objetivos imediatos consistiram em responder às

seguintes indagações: i) qual o perfil social da vítima e do agressor; ii) qual a natureza dos seus

vínculos (conhecidos ou não); iii) quais os usos sociais do botequim – o que os autos permitem

dizer sobre as atividades que ali se desenvolvem, o que faziam os protagonistas naquele local,

quais relações mantinham com os demais frequentadores e os envolvidos no conflito; iv) o que

é possível depreender sobre o papel da polícia na produção ou contenção dos conflitos

interpessoais; v) o que os autos permitem afirmar sobre a relação entre alcoolismo e conflito

interpessoal; vi) o que gerou o “estopim” da briga (é possível identificar as etapas do conflitos

e o momento em que se dão as transições das tensões às agressões?); vii) se havia tensão

anterior; viii) estavam armados e como conseguiram as armas; ix) houve competição ou disputa

e em torno de quais objetos (abstratos, concretos); x) se há disputa em torno das relações

hierárquicas e xi) qual o envolvimento de “terceiros” na situação de maneira geral e na briga

em específico (se há interferência no desenvolvimento dos conflitos e em qual sentido, além da

aprovação dessa participação). Além dessas, outras questões secundárias surgiram e serão

listadas no desenvolvimento do trabalho.

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CAPÍTULO III

A banalidade nos discursos jurídicos

O quadro de banalização da violência no país é

extremamente preocupante. Grande parte dos

homicídios – os crimes de efeitos mais graves, porque

são praticados contra a vida – poderiam ser evitados

com um pouco mais de reflexão sobre a gravidade do

ato e das suas consequências.

(Conselho Nacional do Ministério Público)

O trecho destacado acima abre um documento do Conselho Nacional do Ministério

Público (CNMP) no âmbito de uma campanha da Estratégia Nacional de Justiça e Segurança

Pública (ENASP). Lançada em novembro de 2012, a campanha “Conte até 10”, articulada com

objetivo de “reverter a situação trágica da violência no Brasil”, teve como ponto de partida o

diagnóstico de que “grande parte” dos homicídios realizados no Brasil estaria relacionada à

“banalização da violência”. Suas peças publicitárias traziam atletas das artes marciais mistas

(MMA, na sigla em inglês), como o campeão internacional Anderson da Silva (“Anderson

Silva” ou “Spider”) e frases do tipo “Conte até dez. A raiva passa. A vida fica. Paz, essa é a

atitude”.

A iniciativa propunha estimular à “reflexão” para evitar os homicídios “por impulso”,

mortes que seriam não “premeditadas” e fruto de conflitos momentâneos. Por isso, a campanha

apostava na calma e no ato de “contar até dez” que funcionaria como uma maneira de recuperar

nos cidadãos a racionalidade para resolver conflitos e evitar tais mortes. Nesta proposta,

subentende-se que a solução para a violência urbana estaria no controle social das emoções.12

12 O ato de contar até dez não seria apenas simbólico à medida que implicaria um exercício de respiração, levando

os “briguentos” à concentração individual que lhes permitiria tanto dirimir a “raiva” gerada no conflito quanto

“desviar” a atenção dos indivíduos do foco do conflito. No plano científico, em especial na psicologia, não são

raros estudos que apontam que o “auto distanciamento” em interações conflituosas, através de experiências como

a de contar até 10, diminuiria os pensamentos e sentimentos agressivos e, consequentemente, reduziria os

“comportamentos agressivos” (MISCHKOWSKI et. al. 2012). Destaco esse debate para apontar certa confluência

entre os saberes médicos e jurídicos como forma de controle social.

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No estudo divulgado como subsídio para a campanha,13 o CNMP apontou o que

identificou como “os principais motivos para o crime de homicídio no país”. Uma tarefa difícil,

pois como admite no início do estudo, não há um “critério uniforme para a categorização das

causas de homicídio”, ficando a caráter das unidades federativas sua classificação. Outro

desafio na classificação das motivações dos homicídios está na não padronização do registro

nas delegacias de polícia, além de acentuado grau de subjetividade na escolha das categorias da

parte de quem preenche os registros.

Segundo as estimativas divulgadas para o estado de São Paulo, no período entre 2011 e

2012, com base em dados fornecidos pelo DHPP, fez-se possível identificar uma “causa

provável” para 81,90% dos homicídios registrados.14 Desses, 16,20% foram por “motivo fútil”;

16,50% por motivo de “vingança”; 20,10% por “desavença”; 15,20% por motivo “passional”;

dentre outros motivos identificados como “dívida”, “obter patrimônio”, “drogas”.

Em que pesem as limitações do estudo do CNMP, os dados tanto para o estado de São

Paulo quanto para as demais regiões do Brasil indicam algumas questões. Em certo sentido, as

preocupações do CNMP se coadunam com uma percepção corrente e um tanto esparsa de que

as cidades são cada vez mais violentas, perigosas, onde se corre o risco de morrer “por pouco”.

É possível deparar-se com tais discursos nos produtos mais diversos do meio de comunicação,

seja nas folhas de “cotidiano” de jornais de grande circulação ou em conversas corriqueiras.

A ampla circulação desses discursos traz um primeiro questionamento: o que é o fútil?

Quem define o que é ou não fútil? Este capítulo é um primeiro passo na tentativa de adensar a

compreensão do que é socialmente definido como fútil, banal ou torpe. Essa recorrência de

aparente banalidade salta à vista também nos processos penais que subsidiam essa pesquisa,

desde as primeiras leituras. Contudo, antes de qualificar dessa maneira as brigas e as mortes,

cabe perguntar: o que é a “violência banalizada”? Quem e por que se define que uma morte foi

causada por futilidades? Para tanto, optamos por identificar como a “banalidade” aparece nos

discursos jurídicos nos autos de processo penal para crime de homicídio.

A partir de provas periciais e testemunhais, e limitados pelo Código de Processo Penal,

os promotores públicos são as primeiras figuras dentre os “operadores técnicos do direito” a

quem legalmente se atribui o direito de definição do que é um homicídio fútil, torpe e aquele

que apenas não o é, o “homicídio simples”. Após as investigações policiais, quando um

13 Disponível em: <http://www.cnmp.mp.br/portal/images/stories/Noticias/2012/Apresentao2.pdf>. Acesso em:

22 jun. de 2015. 14 A cifra inclui apenas os crimes de homicídio com autoria esclarecida, ou seja, grande parcela dos casos não

entrou na classificação do estudo. Aliás, o número total de homicídios registrados com que o estudo trabalha não

foi divulgado. De todo modo, destaco os números apenas de forma ilustrativa.

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inquérito policial é encaminhado ao Tribunal, cabe a essas autoridades legais “denunciar” ou

não um suspeito de incorrer na conduta típica demarcada pelo artigo 121 do “Código Penal”, a

ação de “matar alguém”. Contudo, fazem mais do que apenas julgar se houve a quebra da norma

social “não matar”.

Na mesma peça de “denúncia”, os promotores devem analisar as circunstâncias em que

o crime foi cometido e, se for o caso, oferecer a denúncia como “homicídio qualificado”. As

ditas “qualificadoras” (motivo fútil, torpe, entre outras), implicarão em penas de maior duração,

se apreciadas pelo Júri Popular. No entanto, para além da lógica interna do “mundo do direito”,

compreende-se que as qualificadoras do crime de homicídios expressam os “valores morais”

através dos quais se define “o que socialmente legitima ou não um homicídio”

(SCHRITZMEYER, 2008, p. 77).

Em diferentes fases do fluxo do sistema de justiça criminal para crimes de homicídio

surgem debates sobre a futilidade, torpeza ou não dos homicídios, nas “vozes” de diferentes

operadores técnicos. Como afirmou Mariza Corrêa (1983, p. 24), “se o crime é um

questionamento, uma quebra de determinada regra jurídica, ele servirá ao mesmo tempo como

pretexto para o escrutínio da adequação ou não do acusado (e da vítima) a outras normas do

convívio social”.

Desse modo, quando se investigam os argumentos e contra-argumentos dos operadores

técnicos nas definições das qualificadoras objetiva-se primeiramente identificar quais são essas

outras “normas de convívio social” que seriam quebradas. Por isso, são dois os objetivos desse

capítulo: primeiro entender o papel que as qualificadoras do crime de homicídio cumprem na

lógica interna do fluxo do sistema de justiça para crimes de homicídio. Segundo, quais são os

valores e convenções sociais que as autoridades jurídicas tentam reafirmar a partir das

qualificadoras.

Na primeira seção deste capítulo, apresentamos quais os “desfechos processuais” dos

197 processos penais e inquéritos policiais que compõem a amostra inicial da pesquisa, de

forma a apresentar um panorama de quantos casos foram arquivados e/ou condenados, além

daqueles que receberam outros desfechos. Na segunda seção, apresentamos de que maneira

casos, que se converteram em processos penais, foram “qualificados” em três momentos-chave

do fluxo de processos.

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Como se verá, é significante o número de homicídios qualificados como “fútil” ou

“torpe”, mas outras possibilidades se desenham no desenrolar dos processos. Na terceira seção,

enfocamos de forma qualitativa os casos de “briga de bar”, examinando como delegados,

promotores, defensores, juízes e o júri manipulam o conjunto probatório para classificar e

qualificar os homicídios. Pretendemos deixar claro em que medida a “banalidade das mortes”,

o “motivo fútil” ou “motivo torpe” representam formas de classificar as ações e interações

sociais, mediante observação das disputas internas que se deixam flagrar no processo penal, as

quais têm como referência a construção de verdade jurídica e de modelo de sociedade.

Descrição geral do fluxo dos processos e desfechos

No processo penal para crime de homicídio a pena deve ser individualizada por réu.

Portanto, todos os “desfechos processuais” possíveis são individualizados. Assim, se dois ou

mais suspeitos forem denunciados no mesmo processo penal, cada suspeito será julgado

individualmente, sendo possíveis vários desfechos para o mesmo processo. Em virtude da

individualização da pena, a melhor forma de se compreender como o fluxo de processo penal

produz as decisões e punições consiste em realizar o acompanhamento caso a caso, perfilando

as informações dos acusados.

A Figura a seguir, apresenta a distribuição total de infratores pelas fases decisivas do

processo penal para crimes de homicídio. Elaboramos a figura de modo a ilustrar o aspecto de

“funil” do fluxo do sistema de Justiça. As “setas” representam os gargalos do fluxo. Vale

lembrar que outros gargalos não estão representados na figura, quais sejam, o não registro de

uma ocorrência através do BO e a não conversão de um BO em Inquérito Policial.

Assim, na figura abaixo, o primeiro gargalo representa o não oferecimento de denúncia

por parte do Ministério Público e o consequente pedido de arquivamento do Inquérito Policial.

O segundo gargalo encontra-se ao final da chamada “Instrução Criminal”, momento em que o

Juiz decide se um suspeito deve ou não ser julgado pelo Tribunal do Júri.

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Figura 2 - Fluxo do Sistema de Justiça

Enviados a Júri

115 infratores

Sentenciados

96 infratores

Inquérito Policial

243 infratores

Denúncia

159 infratores

Fonte: Estudo da Impunidade Penal, 1991 – 1997, NEV-USP

A Tabela a seguir, detalha os destinos que os infratores receberam em três fases do

fluxo: a denúncia, a “decisão de pronuncia” e o Júri.

Tabela 2: Distribuição de desfechos por acusados em três etapas do processo penal

Desfecho Total Desfecho Total Desfecho Total

Denunciado 159 Pronunciado 115 Absolvido 21

Arquivado 75 Absolvição Sumária 8 Condenação 75

Excluído 9 Impronuncia 19 Desclassificado 4

Total 243 Morte do Agente 13 Desmembrado 6

Desmembrado 4 Morte do Agente 9

Total 159 Total 115

Acusados por desfecho -

Denuncia

Acusados por desfecho -

Decisão de PronunciaAcusados por desfecho - Júri

Fonte: Estudo da Impunidade Penal, 1991 – 1997, NEV-USP

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Dos 243 indivíduos que tiveram seus nomes associados ao papel de agressor em um

crime de homicídio, 9 foram excluídos do fluxo ainda na primeira etapa. Em todas as etapas do

processo, a principal razão para a exclusão de um suspeito é a “morte do agente”. Outros 75

suspeitos tiveram o IP arquivado. Como antecipado, a principal razão para o arquivamento de

um Inquérito Policial é o não esclarecimento de autoria.

Como visto no capítulo 2, após a denúncia oferecida pelo representante do Ministério

Público, tem-se início a produção das provas do processo. Ao contrário dos indícios levantados

pela polícia na etapa inquisitorial, as provas do processo devem ser produzidas “sob o crivo do

contraditório”, dando oportunidade ao acusado, através de advogado ou defensor, contraditar e

questionar as provas, como previsto no artigo 155 do Código de Processo Penal.

Uma vez concluídas as investigações judiciais com a presença do contraditório, encerra-

se a “Instrução Criminal” com as “alegações finais” de defesa e acusação e subsequente

“decisão intermediária” pelo Juiz, peça em que decide pelo prosseguimento da ação penal,

encaminhando o réu a Júri Popular (pronúncia), encerramento/suspensão do processo penal

(absolvição sumária, impronúncia) ou extinção do processo, em virtude da morte do agente ou

mesmo desclassificação do homicídio para outra forma de crime.

A indicação da materialidade do crime (laudo que comprove que a morte foi provocada)

e a autoria são os elementos que fundam o processo penal e, se não forem esclarecidos ou

indicados, um caso não merece denúncia ou, como, indicam os processos impronunciados, a

ação penal tem poucas chances de persistir. Assim, a comprovação da autoria é decisiva para o

desfecho penal, determinante para que haja ou não punição legalmente prevista.

Na figura acima, a decisão intermediária aparece ao centro. Na primeira fase, foram

denunciados 159 suspeitos, destes, 115 foram “pronunciados”. Outros 8 acusados receberam

absolvição sumária cuja principal justificativa foi a “legítima defesa” em que, grosso modo, se

reconheceu que o acusado foi autor das agressões, mas a motivação da agressão fatal foi a

defesa da própria vida por parte do agressor. Na mesma etapa do processo, outros 19 suspeitos

foram impronunciados pelo Juiz. A principal explicação para a impronúncia é o não

esclarecimento de autoria, cujos indícios, no geral, foram considerados insuficientes ou mesmo

inexistentes desde a fase policial, demonstrando que é possível um processo chegar à Justiça, a

despeito das provas frágeis.

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Ainda, na decisão intermediária, há os casos “desmembrados”, aqueles em que as peças

dos autos de processo penal são separadas quando há mais de um infrator. Cabe aos magistrados

solicitarem ou não o desmembramento do processo penal. Em referência à figura acima, não

estão disponíveis as peças dos processos para os 4 suspeitos que tiveram o processo

desmembrado na instrução criminal e os outros 6 que tiveram o mesmo destino antes da sessão

do Júri.

Por fim, dos 115 réus encaminhados a Júri Popular, além dos desmembramentos dos

processos ou da morte do agente, para 4 deles o julgamento resultou em desclassificação do

delito. São em geral casos de tentativa de homicídio e que o Júri entendeu a ação não como um

crime de homicídio, porém de lesão corporal leve. Outros 21 obtiveram a sentença de

absolvição pelo Júri, seja por conseguir comprovar a não autoria do delito ou a legítima defesa

da causa. Finalmente, para outros 74 réus houve condenação por crime de homicídio, cujas

sentenças variam do mínimo previsto (2 anos, a depender da identificação de circunstâncias

atenuadoras) a algumas dezenas de anos, tanto nos regimes abertos ou fechados.

Descrição geral das qualificadoras do crime de homicídio

Demonstrada a materialidade e autoria, há um terceiro elemento fundamental no

processo penal para crimes de homicídio: as circunstâncias em que o crime foi cometido. Tais

circunstâncias podem ser atenuantes ou agravantes “em razão da maior ou menor gravidade do

injusto penal” (PRADO, 1999, p. 128). Por circunstância, define-se “todo fato, relação ou dado

concreto, determinado, que é considerado pela lei para medir a gravidade do injusto ou da

culpabilidade” (Idem, p. 128).

Para o caso dos crimes de homicídio, as circunstâncias da ação “matar” podem ser

qualificadas ou privilegiadas, o que na prática significa alterações no cálculo do tempo da pena

que deverá ser aplicada ao réu acusado e sentenciado pelo Tribunal do Júri. Um homicídio

classificado pelo Júri popular como “qualificado” impõe ao juiz maior rigidez no cálculo penal.

Portanto, as qualificadoras do crime de homicídio são objeto de uma segunda e fundamental

disputa entre a acusação e a defesa.

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A qualificação do processo de homicídio deve ser realizada no momento da denúncia

pelo promotor público e de acordo com os ditames do artigo 121 da Lei N.º 2848, de 7 de

dezembro de 1940 (versão atualizada):

Art. 121. Matar alguém:

Pena - reclusão, de seis a vinte anos.

Caso de diminuição de pena

§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou

moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação

da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.

Homicídio qualificado

§ 2° Se o homicídio é cometido:

I - mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;

II - por motivo fútil;

III - com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso

ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum;

IV - à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte

ou torne impossível a defesa do ofendido;

V - para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime:

Feminicídio (Incluído pela Lei nº 13.104, de 2015)15

VI - contra a mulher por razões da condição de sexo feminino: (Incluído pela Lei nº

13.104, de 2015)

VII - contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal,

integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no

exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou

parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição: (Incluído pela Lei

nº 13.142, de 2015)

Pena - reclusão, de doze a trinta anos.

Na tabela a seguir, organizamos as distribuições de qualificadoras para os 159 suspeitos

denunciados pelo Ministério Público. Antes, convém esclarecer alguns pontos. Grosso modo,

as qualificadoras do crime de homicídio são usualmente diferenciadas entre subjetivas, que

dizem respeito às motivações do indivíduo, e objetivas, que dizem respeito aos móveis ou as

formas como o crime foi concretizado. De cunho subjetivo, seriam os motivos torpe e fútil; as

de cunho objetivo alcançam outros incisos, como o de meio cruel ou emprego de recurso que

dificultou a defesa do réu.

15 Convém notar que os processos aqui examinados são anteriores à introdução da lei do feminicídio.

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Seguindo a lógica interna do processo penal, não é possível que duas motivações

subjetivas se sobreponham. Portanto, ou o crime é classificado pelo Ministério Público como

fútil ou como torpe. No entanto, as qualificadoras subjetivas podem se combinar com as

qualificadoras objetivas. Além disso, o artigo 121 pode aparecer combinado com outros artigos

do Código Penal, em especial os artigos 14 e 29, sendo que o primeiro versa sobre a forma

tentada do homicídio, o segundo diz respeito à participação na incidência do crime. Na tabela,

essas combinações não aparecem em destaque por serem de menor relevância aos propósitos

do capítulo.

Outro esclarecimento reside em que um mesmo indivíduo, quando envolvido num crime

contra duas ou mais pessoas, receberá qualificação correspondente ao número das vítimas. Na

maioria dos casos em que um mesmo indivíduo é acusado de crime contra mais de uma pessoa,

as qualificadoras são repetidas por vítima.

Para fins de inteligibilidade da apresentação, optamos por contabilizar cada infrator

apenas uma vez. Pelo observado nos processos, habitualmente o acusado recebe as mesmas

qualificadoras quando há mais de uma vítima. Para os poucos casos em que um mesmo

indivíduo recebeu qualificadoras diferentes na mesma denúncia, os casos foram separados na

tabela pelo símbolo “;”. Por fim, agregamos ao final da Tabela 2 o total de ocorrências das

qualificadoras “torpe”, “fútil”, “meio cruel” e “recurso que impossibilitou a defesa”

contabilizadas individualmente.

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Tabela 3: Contagem de qualificadoras por suspeito denunciado

Qualificadora atribuida ou desfecho Total

Simples 30

Torpe 8

Torpe e meio cruel 1

Torpe e recurso que dificulta defesa 40

Torpe, meio cruel e recurso que dificulta defesa 3

Torpe; Torpe e recurso que dificulta defesa 2

Fútil 16

Fútil e meio cruel 2

Fútil e recurso que dificulta defesa 26

Fútil e recurso que dificulta defesa; recurso que dificulta defesa; para assegurar

impunidade2

Fútil, meio cruel, recurso que dificulta defesa 4

Fútil; Fútil e recurso que dificulta defesa 2

Meio cruel e recurso que dificulta defesa 1

Recurso que dificulta defesa 21

Recurso que dificulta defesa; Fútil, meio cruel e recurso que dificulta a defesa 1

Total Geral 159

Qualificadoras agregadas

Motivo Torpe 54

Motivo Fútil 52

Meio Cruel 12

Recurso que Impossibilitou defesa 102

Fonte: Estudo da Impunidade Penal no Município de São Paulo, 1991 - 1997, NEV-USP

Para os casos registrados nessa amostra, apresentou-se alta a incidência de denúncia

com definição de qualificadoras. Como podemos notar, naquela fase o Ministério Público

deixou de qualificar o crime em apenas 30 dos 159 denunciados. Cerca de um terço dos casos

denunciados foram definidos como torpes e outro um terço como fútil. O motivo torpe apareceu

sozinho poucas vezes. Sua principal ocorrência foi combinada com a qualificadora do “recurso

que impossibilitou a defesa”, em 40 casos. Já o motivo fútil, apareceu 16 vezes sozinho e 26

vezes combinado com o “recurso que impossibilitou a defesa”, qualificadora que é a que mais

aparece, seja sozinha (N=21), ou combinada com outras, totalizando 102 ocorrências, ou dois

terços dos denunciados.

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Na tabela 3, repete-se a contagem realizada na anterior, mas dessa vez o enfoque está

na decisão intermediária. Como visto acima, a julgar pelas provas dos autos, o juiz pode não

encaminhar o réu a Júri, decidindo pela impronúncia ou absolvição sumária do caso. Na tabela

a seguir, organizamos apenas os dados dos 115 réus pronunciados e encaminhados a Júri pelo

Juiz.

Tabela 4: Contagem de qualificadoras por suspeito pronunciado

Qualificadora atribuida ou desfecho Total

Simples 33

Torpe 8

Torpe e deixa de prestar socorro (Art. 121 § 4º) 1

Torpe e recurso que dificulta defesa 23

Torpe, meio cruel e recurso que dificulta defesa 3

Fútil 7

Fútil e deixa de prestar socorro (Art. 121 § 4º) 1

Fútil e meio cruel 2

Fútil e recurso que dificulta defesa 18

Fútil e recurso que dificulta defesa; para assegurar impunidade 2

Fútil; Fútil e recurso que dificulta defesa 1

Meio cruel e recurso que dificulta defesa 1

Recurso que dificulta defesa 15

Total Geral 115

Qualificadoras agregadas

Motivo Torpe 35

Motivo Fútil 31

Meio Cruel 6

Recurso que Impossibilitou defesa 63

Fonte: Estudo da Impunidade Penal no Município de São Paulo, 1991 - 1997, NEV-USP

Com relação às combinações das qualificadoras, não há muitas inovações. Em apenas

dois casos o juiz qualificou o crime de acordo com o parágrafo 4º. do artigo 121 do Código

Penal, no qual a pena pode ser aumentada se o crime for em virtude da “inobservância de regra

técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima,

não procura diminuir as consequências do seu ato, ou foge para evitar prisão em flagrante”

(Decreto Lei nº 2.848 de 07 de dezembro de 1940, artigo 121, parágrafo 4º).

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Chama atenção que as qualificadoras tenham se mantido em proporções estáveis entre

as duas fases. Na tabela 4 abaixo, apresentamos algumas destas proporções para qualificadoras

selecionadas. Houve alternância significativa apenas para a qualificadora do motivo fútil,

quando não combinada com nenhuma outra, e do meio cruel no geral.

N % N %

Simples 30 18,87% 33 28,70%

Torpe 8 5,03% 8 6,96%

Torpe e recurso que dificulta defesa 40 25,16% 23 20,00%

Fútil 16 10,06% 7 6,09%

Fútil e recurso que dificulta defesa 26 16,35% 18 15,65%

Recurso que dificulta defesa 21 13,21% 15 13,04%

Total Geral 159 115

Qualificadoras Agregadas

Motivo Torpe 54 33,96% 35 30,43%

Motivo Fútil 52 32,70% 31 26,96%

Meio Cruel 12 7,55% 6 5,22%

Recurso que Impossibilitou defesa 102 64,15% 63 54,78%

QualificadoraDenuncia Pronuncia

Tabela 5: Proporção de qualificadoras entre duas fases do processo penal

Fonte: Estudo da Impunidade Penal no Município de São Paulo, 1991 - 1997, NEV-USP

A variação entre as fases ocorre por dois motivos. O principal deles, pela exclusão do

fluxo do sistema de justiça daqueles casos que receberam decisão diferente da pronuncia. O

segundo, que alguns casos receberam outra qualificação pelo Juiz. Acessando o banco de dados

identifiquei que foram exatamente 12 agressores que tiveram a qualificação alterada entre a

fase da denúncia e pronúncia. Desses, em oito casos o Juiz pronunciou os réus qualificando

como homicídio simples.

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Na tabela 6, apresentamos a distribuição para as decisões do Tribunal do Júri, última

etapa do processo penal.

Tabela 6: Contagem de qualificadoras por réu condenado

Qualificadora atribuida ou desfecho Total

Caput 24

Torpe 7

Torpe e deixa de prestar socorro (Art. 121 § 4º) 1

Torpe e recurso que dificulta defesa 5

Torpe, meio cruel e recurso que dificulta defesa 2

Fútil 1

Fútil e deixa de prestar socorro (Art. 121 § 4º) 1

Fútil e meio cruel 1

Fútil e recurso que dificulta defesa 5

Recurso que dificulta defesa 6

Violenta Emoção 20

Violenta Emoção e Meio Cruel 1

Total Geral 74

Qualificadoras agregadas

Motivo Torpe 15

Motivo Fútil 8

Meio Cruel 4

Recurso que Impossibilitou defesa 18

Violenta Emoção 21

Fonte: Estudo da Impunidade Penal no Município de São Paulo, 1991 - 1997, NEV-USP

Dos réus levados a júri popular, a maioria das sentenças foram para crime de homicídio

simples (33,3%), ao contrário da tendência observada para os casos de denúncia e decisão

intermediária. No geral, 20% das decisões foram qualificadas como motivo torpe

(individualizado ou combinado) e 11% como fútil, quedas significativas em relação às fases

anteriores. Houve drástica redução da participação do “recurso que impossibilitou a defesa”,

que nas fases anteriores aparecia em pelo menos metade dos casos, mantida em apenas 24%

das decisões do Júri Popular. Contudo, há uma inovação que chama atenção. Trata-se do

surgimento dos “casos de diminuição de pena”, representado pela qualificadora “violenta

emoção”: apareceu 21 vezes, em quase um terço do total de condenações (28% dos casos).

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Para os casos que tiveram o desfecho do benefício da violenta emoção, não foi

identificada nenhuma tendência nas decisões anteriores (denúncia e pronúncia) que pudesse

explicar a mudança no júri: as denúncias-pronúncias receberam desde a classificação simples,

passando por motivo torpe, fútil, recurso que impossibilitou defesa e a combinação dessas.

Provavelmente, somente um estudo dedicado às dinâmicas da sessão do Júri poderia esclarecer

essa mudança.

Possível explicação aponta para a existência de acordos (informais) entre as partes

interessadas no processo, evidência difícil de ser comprovada, todavia sugerida pelo seguinte

fato: em alguns processos penais, defesa e acusação passam a defender uma tese comum diante

dos jurados, contrariando suas teses anteriores sustentadas diante do mesmo corpo de

julgadores.

Esses dados preliminares indicam algo para nossa pesquisa. Primeiro, há uma tendência

de o Ministério Público compreender as motivações dos crimes de homicídio como desprezível,

infame, repulsiva (torpe) ou desimportante, frívolo, superficial, banal, fútil, o que levanta a

questão: a “futilidade” está nos conflitos ou na interpretação dos promotores públicos?

Segundo, a alta incidência do inciso 4º do segundo parágrafo do artigo 121 indica a tendência

de o Ministério Público compreender os conflitos como ocorrências surpreendentes,

inesperadas por parte das vítimas, como verdadeiros ataques repentinos. Dessas constatações

imediatas, é possível recuperar a pergunta já elencada de início: o que é o banal, o fútil ou o

torpe na interpretação dos promotores? Além disso, o que, nas ações registradas nos autos,

permitem a esses operadores alegar a surpresa das ações?

Quanto aos Juízes, os dados parecem indicar uma tendência desses atores aceitarem o

pedido de pronúncia, em concordância com os termos expostos pelo Ministério Público, em

suas alegações finais. A leitura dos autos de processo penal poderia indicar em que medida esta

tendência se confirma e em quais situações o juiz contraria a denúncia e segue eventuais pedidos

sugeridos pelo próprio Ministério Público.16 Contudo, o mais importante nesse capítulo é

examinar como os Juízes compreendem o que é o fútil e torpe, o que se verá mais adiante.

Outra indicação: na decisão do Júri, há certo deslocamento da classificação dos

homicídios como fútil ou torpe para a classificação como “violenta emoção” ou homicídio

simples. Há, em alguma medida, atenuação da culpabilidade nos processos. Como apontou

Mariza Corrêa:

16 Convém destacar que em todos os casos, não foi possível quantificar os pedidos que a defesa realizou antes da

sentença de pronuncia, a sua participação nessa fase também ficará para a parte qualitativa que se realiza à diante

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Os advogados acusam os promotores de capitularem o crime sempre como

qualificado, para depois conseguirem pelo menos alguma pena (‘pedem os mais para

conseguir o menos’), o que os promotores negam. Na maioria dos casos, no entanto,

os homicídios, e até as tentativas, são realmente apresentados na denúncia com pelo

menos uma qualificadora. E assim como os advogados reservam para o momento

público argumentos inesperados, também os promotores, tendo um homicídio

qualificado à sua disposição, poderiam se estender mais sobre os motivos anti-sociais

do crime (CORRÊA 1983, p. 69).

Portanto, diante da percepção de que a violência de torna cada vez mais generalizada

nas cidades brasileiras, há de se fazer algumas ressalvas: de que lugar social surge esse

discurso? Quais são as outras lógicas a que a classificação das mortes como banais atende? Ora,

ao que parece, estamos novamente diante dessa prática de “pedir o mais para conseguir o

menos”. Assim, no que concerne à atribuição de qualificadoras pelos promotores públicos na

denúncia, e em alguma medida a manutenção dessas pelos juízes nas decisões intermediárias,

a manipulação técnica das motivações cumpre um papel estratégico na disputa pelo desfecho

final dos processos conforme amplia a disputa para os “motivos antissociais do crime”.

As qualificadoras fazem parte do idioma do processo penal. “a linguagem jurídica é a

metáfora de um inscritor, que, neste processo de leitura do real, por meio de categorias

específicas, produz inscrições nos autos do processo penal” (FIGUEIRA, 2010, p. 94).17 Uma

vez compreendendo que os motivos fúteis e banais são construções jurídicas a partir da

realidade social e, por isso mesmo, são elementos que constroem a própria percepção do que

“acontece” na vida e morte em sociedade, torna-se possível retomar a pergunta central do

capítulo: O que é classificado como fútil e torpe?

17 A noção de “inscritor” aparece em Figueira (2010) tomada de empréstimo de Latour e Woolgar (1997). Inscritor

é “todo elemento de uma montagem ou toda combinação de aparelhos capazes de transformar uma substância

material em uma figura ou em um diagrama diretamente utilizáveis por um daqueles que pertencem ao espaço do

‘escritório’” (LATOUR; WOOLGAR, 1997, p. 44). O conceito faz referência às atividades realizadas no

“laboratório” e Figueira (2010) a estende ao meio jurídico.

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Descrição dos processos

Para examinar mais detalhadamente como os operadores do direito definem o que é o

fútil e torpe, recorremos aos 30 processos de “briga de bar”. A apresentação da seção

acompanha as principais peças que desfilam no fluxo do sistema de justiça criminal, desde a

esfera da polícia através do “relatório do delegado” prosseguindo: pelo Ministério Público no

oferecimento da denúncia que inaugura a ação penal; no embate entre os operadores técnicos

nas suas “alegações finais”; na decisão do juiz, pelo encaminhamento ou não do réu a Júri

(decisão de intermediaria); na sessão do Júri até alcançar os recursos que as partes propuseram

para questionar algum dos desfechos processuais.

Com o intuito de melhor esclarecermos cada caso, além dos debates sobre as

qualificadoras, procuramos delinear os debates também pela afirmação ou negativa de autoria.

O relatório do delegado

Como antecipado no capítulo anterior, o relatório do delegado encerra o IP informando

ao Tribunal do Júri a materialidade do crime e as “diligências” realizadas em busca dos indícios

de autoria: as testemunhas que depuseram na delegacia, os “populares” ouvidos pelos agentes

policiais na busca de nomes e localizações de suspeitos, além dos laudos técnicos produzidos.

Por isso, pode ser considerado o documento que confere fundamento ao estabelecimento da

ação penal. Sua narrativa da reconstituição dos fatos é crucial na construção da verdade jurídica.

Ao que se pode constatar, o principal obstáculo das diligências policiais baseia-se mesmo em

conseguir reunir indícios suficientes que permitam ao menos levar ao Juiz um nome a que se

possa indiciar.

Além de servir de base para a peça da denúncia, o relatório cumpre com o papel de

tornar público o trabalho policial como sendo aquele que detém a ‘verdade oficial’. Percebe-se,

através da leitura do relatório, que a confissão é altamente valorizada como prova dos autos,

conferindo crédito à tese do delegado. E, em que pesem queixas de maus tratos, torturas ou

abusos de poder policial como forma de obtenção da confissão, denúncias desta natureza jamais

são apontadas na peça do delegado.

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São poucos os casos em que aparece no relatório do delegado qualquer valorização do

perfil social dos agentes ou das ações que ensejaram o conflito e morte. Como ilustração, tem-

se o processo 1293-92, no qual o delegado afirma em sua peça que “cabe ressaltar que são

agentes perigosos, com práticas delituosas várias, revelando ostensivo perigo à segurança

pública conforme cópias das principais peças de outros inquéritos instaurados em desfavor

desses indivíduos, inclusive por latrocínio” (Processo 1293-92).

Com o intuito de provar a periculosidade daqueles suspeitos o relatório do delegado

recorreu aos antecedentes criminais, destacando o envolvimento anterior do acusado em crime

de latrocínio. A seguir, o delegado solicitou ao juiz a decretação da prisão preventiva dos dois

indiciados, não porque tenham apresentado qualquer ameaça ao desenvolvimento das

investigações e da segurança das partes interessadas em investigar e aplicar a lei, e sim porque

seus antecedentes seriam prova suficiente de que “eles não podem ficar impunes, ao invés,

devem responder pelos atos praticados e, caso sejam colocados em liberdade, certamente

continuarão delinquindo” (Processo 1293-92).

No único exemplar em que a autoridade policial tece comentários no sentido de

qualificar as circunstâncias do conflito (Processo 297-96), afirma que “o crime em questão,

homicídio qualificado, demonstrou ser de enorme gravidade pois uma vida humana foi perdida

por motivo fútil, uma desinteligência ocorrida momentos antes, aonde Edson efetuou vários

disparos contra a vítima sem a mínima chance de defesa” Reparemos que o delegado associou

a “enorme gravidade” do crime ao motivo fútil, uma “desinteligência” qualquer, sem expô-la

ou justificá-la. Mais adiante, o delegado destacou a crueldade das ações: “acionou o gatilho por

diversas vezes demonstrando requintes de crueldade e clara intenção de dissuadir eventuais

testemunhas de falar o que presenciaram” (Processo 297-96).

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O oferecimento da denúncia

Dos 30 processos, cujos conflitos ocorreram em bar, 5 foram arquivados a pedido do

promotor, 6 foram denunciados como homicídio simples, um como torpe, 9 como torpe

combinado com recurso que impossibilitou defesa, 2 fúteis, 3 fúteis combinados com recurso

que impossibilitou defesa, 4 apenas recurso que impossibilitou defesa, sendo que, no total, tal

qualificadora aparece em 16 casos.

O pedido de arquivamento segue um padrão bem definido. O primeiro motivo encontra-

se no não esclarecimento de autoria: “Ante a autoria desconhecida, muito embora a

materialidade do crime esteja comprovada, não há elementos suficientes para se intentar ação

penal” (Processo 2161-97); “Desta forma, não logrando identificar o autor dos fatos, requeiro

o arquivamento do presente inquérito policial” (Processo 0546-94). Em caso de identificação

da autoria, outra possibilidade é alegar que não ficou evidente a “vontade de matar” ou “animus

necandi”: “Por primeiro, mesmo com a oitiva das partes, não se pode constatar a existência de

animus necandi na conduta levada a cabo pelas mesmas, o que vem a ser corroborado pela

pequena gravidade das lesões (leves) descritas no laudo” (Processo 0573-96). Nesse caso

específico, as provas técnicas tiveram papel determinante no desfecho, mas geralmente os

processos persistem pelo fluxo do sistema de justiça, pelo menos até a decisão intermediária,

mesmo com dúvidas quanto à autoria.

Nos casos em que o promotor compreende o homicídio na sua forma simples, suas

declarações se resumem a apresentar o convencimento sobre a materialidade e autoria e não há

nenhuma menção às circunstâncias do crime. As denúncias de homicídio simples são em geral

sumárias, com recuperação das informações do inquérito policial sobre a data, o local, a autoria

e modo como os ferimentos foram provocados.

Consta do incluso inquérito policial que [...] Aparecido [...] utilizando-se de arma

branca - faca, golpeou Gonçalo [...] nele fazendo os ferimentos [...] causando assim a

sua morte. Consta ainda que, nas mesmas condições, hora e local, Antonio [...] agindo

com manifesta intenção homicida, utilizando-se de arma de fogo, disparou-a contra

Aparecido [...] nele fazendo os ferimentos [...] iniciando assim a execução do delito

de homicídio que só não se consumou por circunstâncias alheias à sua vontade. /

Apurou-se que Gonçalo e Aparecido tinham discutido, antes, num estabelecimento

comercial, em função do que este feriu mortalmente aquele, com golpes de faca. /

Após tais fatos, aproximou-se o irmão de Gonçalo, indiciado Antonio, e portando uma

arma de fogo, disparou-a contra Aparecido, ferindo-o./ O crime praticado por Antonio

contra Aparecido só não se consumou em virtude do imediato e eficiente socorro

prestado a este (Processo 182-93).

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O promotor faz menção às circunstâncias dos conflitos sem, contudo, debate-las ou faz

menção a qualificações. Outro exemplo é o processo 3066-96, muito mais intrigante:

Gilson não quis vender a bebida, fiado, a Moises. Surgiu daí uma desinteligência. O

denunciado, para pôr fim a esta, armou-se com um revolver e disparou várias vezes

contra seu desafeto. Assim agindo, Gilson, deu início a execução de um crime de

homicídio que só não se consumou por motivo alheio à sua vontade, qual seja, ter

terceira pessoa segurado sua mão quando efetuava os disparos, fazendo com que os

tiros desviassem da trajetória desejada (Processo 3066-96).

Gilson era proprietário do bar e Moisés um cliente que insistia em consumir mais uma

dose deixando o pagamento para outro momento. Com o desenrolar do processo veio à tona a

versão de que o tiro que Gilson disparou foi para cima, a fim de afugentar o cliente “indesejado”.

Ao final, o Júri Popular desclassifica o crime para lesão corporal.

Chama atenção que os processos denunciados como homicídio simples não necessitem

apresentar argumentos que demonstrem o convencimento do promotor quanto a possíveis

qualificadoras. Assim, não é possível constatar se os promotores consideram as circunstâncias

do crime irrelevantes, se desconsideram as circunstâncias ou se estas não foram reveladas pelo

Inquérito Policial. De todo modo, o contraste entre as formas simples e qualificadas dos crimes

de homicídio indica que aos promotores se reserva ampla margem de interpretação a partir das

ações que ensejaram o delito.

O Código Penal de 1940 considera na qualificação do homicídio certos “motivos

determinantes” e “modos de execução”, além de “certos fins” visados pelo agente (assegurar

impunidade ou vantagem de outro crime, por exemplo, figura que não aparece nos casos

examinados) (HUNGRIA, 1979, p. 31). Na “Exposição de Motivos da Parte Especial do Código

Penal”, a respeito dos crimes contra a vida, as qualificadoras: “Umas dizem com a intensidade

do dolo, outras com o modo de ação ou com a natureza dos meios empregados; mas todas são

especialmente destacadas pelo seu valor sintomático: são circunstâncias reveladoras de maior

periculosidade ou extraordinário grau de perversidade do agente” (BRASIL, 1999, p. 23)

Entre os processos denunciados com qualificadoras, o “motivo torpe” surgiu

principalmente como sinônimo de “sentimento de vingança”. Além da própria ação de matar,

os sentimentos vingativos que teriam motivado o crime são reprováveis. São inúmeras as

situações consideradas como vingança. Pode ser que a vingança surja nos autos como

justificativa muito antes de o promotor assim classificar as circunstâncias.

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No processo 143-94, os depoimentos indicaram que Juraci jurara se vingar das vítimas

porque uma semana antes o haviam ofendido. Resumindo as peças, o promotor apontou que

“Juraci, tomando conhecimento do ocorrido, também movido por vingança, começou a espalhar

a notícia de que iria pegar os ofendidos, ajustando a morte das vítimas com o denunciado José”.

Numa situação em que José e os acusados discutiam, “Juraci sacou de um punhal que trazia

consigo, desferindo um violento golpe no peito de José Filho, enquanto o denunciado José

Hipólito o auxiliava, ‘dando-lhe cobertura’” (Processo 143-94).

Notemos que a “vingança” não surge nos autos de forma nominada pelas testemunhas,

vítimas ou réus, mas antes de uma interpretação que faz o promotor público a respeito dos atos.

O processo 0841-91 tem como ponto de partida a narrativa de disputa por poder territorial em

favela da região do Jaguaré, envolvendo Luiz, que seria “chefe da favela do Palmolive” e

“Cheiroso”, “chefe da favela do Jaguaré”.

Segundo consta da denúncia, o indiciado teria afirmado que a vítima fiscalizava a favela

do Palmolive a mando de Cheiroso. Na ocasião dos fatos, Luiz teria chamado a vítima para uma

conversa e cobrado o fato de sua família ter sido expulsa da favela. Para o promotor, “apesar

das insistentes negativas do ofendido a respeito dos fatos que lhe eram imputados pelo

indiciado, este resolveu matá-lo por vingança, motivo torpe, já que era ele ligado ao rival do

indiciado na disputa pelo “poder” (Processo 841-91, grifo nosso).

Como veremos no próximo capítulo, os depoimentos são também narrativas que

constroem a verdade dos fatos, lançando luz sobre comportamentos e atitudes na mesma medida

em que outras ações podem ser ensombradas. A “torpeza” ou o sentimento de vingança são

uma forma possível de interpretação dentre as que foram narradas pelas partes.

Outros exemplos de motivo torpe podem ser citados. No processo 170-95, que bastante

se assemelha nas circunstâncias com o referenciado anteriormente (3066-96), o acusado foi um

jovem do bairro que teve recusado o pedido de compra de uma cerveja porque, segundo o

proprietário do bar, já se encontrava bêbado. À diferença do anterior, em que Gilson atirou para

cima e não acertou ninguém, no processo 170-95 o denunciado atingiu um cliente do bar nas

costas e, segundo o promotor, “Ante a recusa do proprietário em servi-lo, resolveu vingar-se,

disparando contra os frequentadores do bar” (Processo 170-95).

No processo 513-94, o promotor falou do “anelo de desforra”, sinônimo que o Promotor

utiliza para anseio de vingança com que Antonio “teria ouvido a vítima Edmundo manifestar

malfazeja intenção em relação ao comparsa Paulo. Narrou-lhe o fato e ambos resolveram dar

cabo à vida da vítima. [...] Agiram, pois, por anelo de desforra, vale dizer, torpemente

motivados” (Processo 513-94).

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Não é incomum que o alegado sentimento de vingança respalde o promotor a julgar não

somente as ações dos agressores, mas também o seu “caráter”. No processo 369-96, o promotor

identificou na mesma ação “questão de somenos” e vingança. Em uma briga no interior do bar

que, aparentemente, se iniciou pela ocupação de uma das mesas, houve discussão entre um casal

jovem e o irmão da moça com outro grupo de adolescentes. Sandra e seu namorado foram

embora, mas seu irmão, Cesar “permaneceu no local e passou a tirar satisfações de ‘Chorão’ e

seus acompanhantes, até que acabou por dar uma cabeçada em um dos menores inimputáveis”

o que teria “irritado” ao “menor” que “sacou de um revólver e desferiu um tiro em César que,

ferido, caiu no chão”.

Vale destacar como o promotor interpretou a ação da vítima no conflito, “acabou por

dar uma cabeçada”, uma agressão praticamente impulsiva, incidental, inocente, enquanto que

o “menor inimputável” se irritou e perdeu a razão, ou seja, se descontrolou e foi vingativo:

“resolvendo vingar-se [...] Renato, João, Marcos e seus comparsas [...] sacaram de suas armas

de fogo e, aproveitando-se da circunstância de a vítima encontrar-se caída, contra ela

dispararam, atingindo-a mortalmente” (Processo 369-96).

Já no processo 564-91 “no mesmo dia e algumas horas antes, o denunciado esteve no

bar local dos fatos o qual era de propriedade da vítima, sendo certo que Valdir praticava

desordens no local, fato que levou o ofendido a expulsar o imputado de lá, atitude totalmente

correta e lícita”. O réu, diante do comportamento da vítima, teria ficado “inconformado” e

resolvido se vingar, “achando-se (errada e arrogantemente) injustiçado, o increpado preferiu

fazer ‘justiça’ com as próprias mãos, vingando-se da vítima via de sua sumária execução, à

bala” (Processo 564-91).

Já o motivo fútil retrata expressão que encontra sentido aproximando na desproporção

entre uma ação da vítima e a reação do agressor. Como alegou o promotor do processo 297-96,

“A futilidade do motivo que levou à prática do crime consistiu na desproporcionalidade entre

suas condutas delitivas e o simples fato de a vítima ter supostamente acusado o indiciado Edson

de haver subtraído documentação” (Processo 297-96). No processo 693-93, os envolvidos

estavam num bar “jogando palitinhos” e compartilhando cervejas ao longo da jogatina. Em

determinado momento, o acusado oferecia mais um copo de cerveja à vítima, que se recusava.

O acusado então foi até sua casa, buscou uma faca e atingiu a vítima quando saía do bar. O

promotor, na denúncia, resume os fatos: “O denunciado agiu por motivo fútil, vez que cometeu

o crime pelo simples fato de a vítima ter rejeitado a sua oferta” (Processo 693-93).

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Ainda, para os promotores de justiça, o motivo fútil assume o sentido de crime sem

motivo aparente, classificação que é certamente controversa nas interpretações judiciais. Tomo

como exemplo o processo 1293-92, “segundo se apurou, os increpados, conhecidos ‘matadores

da região’, adentraram ao estabelecimento comercial do ofendido, e sem nada dizer, na ausência

de motivo aparente, passaram a desferir tiros na direção de João” (Processo 1293-92).

Também o motivo fútil pode ser manipulado para tecer um perfil antissocial do agressor,

como também ocorre nos casos em que se aponta motivo torpe. No caso 98-95, houve um

desentendimento em que Robson, acusado, acreditava que um grupo de amigos presente no bar

estava rindo dele. Segundo o promotor, “esta reação desagradou a Robson, razão pela qual

passou a provocá-lo e iniciou discussão com eles, encerrada momentos após com a intervenção

de terceiros”. Alguns minutos depois, insatisfeito com o resultado da briga, “em resposta ao

incidente acima descrito, resolveu matar aquelas cinco pessoas. Agiu, portanto, por mero

espírito emulativo, revelando invulgar prepotência e intolerância. Em suma, atuou futilmente

motivado” (Processo 98-95).

Entre os processos denunciados, seja como simples, torpe ou fútil, não se destaca

nenhuma influência direta dos perfis sociais dos acusados sobre a decisão das qualificadoras.

Mas convém recordar que os perfis sociais dos envolvidos nos processos examinados são

semelhantes o que, portanto, poderia dificultar análise nesse sentido.

A qualificadora ‘recurso que impossibilitou a defesa’, por sua vez, independente da

identificação das possíveis motivações do crime de homicídio. Trata do modo como foram

perpetradas as agressões e, portanto, é uma classificação que põe em relevo a forma como a

interação violenta ocorreu: “como se apurou o denunciado chegou ao local dos fatos em

companhia de terceira pessoa e imediatamente dominaram a vítima colocando-a de costas sobre

a parede”, mas quanto ao conflito, “os motivos do crime não foram suficientemente esclarecidos

e o serão durante o curso da instrução criminal” (Processo 1691-97).

A agressão que dificulta a defesa é tida como uma ação em que se aproveita de uma

debilidade da vítima, momentânea ou duradora: “sacaram de suas armas de fogo e,

aproveitando-se da circunstância de a vítima encontrar-se caída, contra ela dispararam,

atingindo-a mortalmente” (Processo 369-96). Outras circunstâncias poderiam ser listadas, como

a vítima estar de costas para o agressor (Processos 475-95, 170-95, 143-94) ou ter o agressor se

aproximado sorrateiramente por trás (467-92), a entrada rápida e repentina na cena do crime

(Processo 564-91), de forma disfarçada ou “furtivamente” (Processo 829-91). O tempo entre o

conflito e o desfecho fatal parece ser também avaliado, como deixa entrever a palavra

“incontinenti”: “de modo surpreendente e inesperado, apontou-o em direção à cabeça da vítima

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e, estando dela distante cerca de um metro, incontinenti, acionou o gatilho, atingindo-a e

matando-a” (Processo 445-91).

A qualificadora do “recurso que impossibilitou a defesa” refere-se também a sinônimo

da surpresa do ataque. O crime é compreendido como uma agressão de ação repentina: “foi o

crime supra praticado com o emprego de recurso que dificultou a defesa do ofendido, eis que o

indiciado desferiu os disparos [...] atingindo a vítima de inopino, que não possuía motivos

próximos de que seria agredida”. (Processo 227-97). Ao ser surpreendida, presume-se, a vítima

não esperava a agressão, que pode ser compreendida como ataque.

No exemplo mencionado acima, em que o réu Robson atirou contra um grupo de amigos

num bar na região de Pinheiros, houve um conflito inicial e tudo parecia ter sido resolvido. Os

homens seguiram no bar com suas conversas e bebidas, “convictas de que tudo houvera

terminado. Jamais poderiam imaginar ou desconfiar fossem ser tão barbaramente agredidas.

Destarte, sofreram subitâneo e inesperado ataque” (Processo 98-95).

As alegações finais e o embate entre acusação e defesa

Ao final da instrução criminal, a par do conjunto probatório, as partes do processo,

acusação e defesa, oferecem suas “alegações finais”, advogando pela pronúncia do réu,

impronúncia, absolvição sumária ou desclassificação do delito. A tendência do Ministério

Público é reafirmar o pedido da denúncia, pedindo a pronúncia ainda que os indícios de autoria

não se apresentem “líquidos e certos”.

Vale lembrar, a confissão do réu aparece nos processos penais como elemento de certeza

da autoria, seguida dos depoimentos de testemunhas oculares. É bastante comum que na

Instrução Criminal ocorram alterações de conteúdo nos depoimentos de testemunhas-chave, no

sentido de se negar ou suspender o que foi dito na fase policial. Da parte do réu, uma

justificativa comum é a alegação de que a confissão na delegacia foi obtida através de tortura.

Da parte das testemunhas, há indícios de que a mudança no depoimento se explica por ameaças

que sofreram por alguma parte interessada no processo.

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Tanto as ameaças quanto as torturas dificilmente foram alvo de investigação nos

processos penais estudados. Portanto, não raro um processo penal chega à decisão intermediária

com sérias dúvidas quanto à autoria. Não se faz incomum que, mesmo diante de conjunto

probatório precário, o promotor peça a pronúncia, substituindo nessa fase a clássica expressão

“na dúvida pró réu”, que expressa o princípio jurídico da presunção de inocência, pela “in dubio

pro societate”, na dúvida pró sociedade: ainda que haja dúvidas, cabe ao Júri apreciar a

qualidade das provas.

É nas alegações finais que se percebe maior empenho da defesa nos debates.18 Primeiro

o defensor negará a autoria e, para isso, o conjunto probatório é mobilizado ora de forma a

comprovar sua tese, ora questionado por não apresentar suficientes indícios que permitam

apontar a autoria ao réu. Faz parte de sua tática jogar com a dúvida das provas a seu favor.

Outro movimento é o de aceitar a autoria, mas alegando legítima defesa. Da mesma forma,

deverá identificar no conjunto probatório elementos que comprovem que o réu agrediu para se

defender de outra agressão, que sua vida também corria perigo.

Portanto, vejamos como as partes disputam, em suas alegações finais, em torno da

autoria e a seguir em torno das qualificadoras. Nas alegações finais para os homicídios simples,

não aparecem novidades: em 4 dos casos o promotor requer a pronúncia do réu pelos indícios

da autoria. Percebe-se que a fase policial teve peso considerável no esclarecimento dos fatos e

as investigações realizadas na instrução criminal apenas confirmam a denúncia.

Os processos 355-96, 182-93 e 504-92 receberam alegações finais da promotoria em

termos muito similares. Sua tática foi apontar que as provas coligidas na Instrução Criminal

confirmaram seu pedido na denúncia: “O crime foi elucidado ainda na fase de inquérito policial.

E, posteriormente, com o auxílio das partes, que não apresentaram versões muito distantes uma

da outra. A autoria restou confirmada na confissão do acusado” (Processo 3066-96).

Se o caso representa tentativa de homicídio, o depoimento da vítima permitirá à

acusação elaborar uma peça muito mais breve (Processo 355-96). Um exemplar de exceção à

essa regra é o processo 57-97, no qual, ao contrário dos demais, é o promotor quem solicita a

absolvição por legítima defesa. A defesa adere aos termos da acusação, reiterando o pedido de

absolvição sumária. Este trecho da alegação final do promotor evidencia o que se compreende

no mundo do direito por “legítima defesa”:

18 Na verdade, a primeira aparição da defesa é na “defesa prévia”, peça que sucede à decisão de denúncia. Naquele

momento, sua participação é geralmente protocolar e se resume a alegar que “protesta pela inocência do acusado,

sendo que o mesmo provará sua inocência em regular instrução criminal, demonstrando desta forma que são

totalmente infundadas as denúncias que a ele estão sendo imputadas” (Processo 841-91).

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Deve-se observar que todos os requisitos da legítima defesa foram preenchidos: 1º) o

réu defendeu-se de uma agressão injusta, eis que não tinha brigado com a vítima

anteriormente; 2º) Osvaldo utilizou-se do meio pelo qual dispunha, qual seja, uma

arma de fogo; 3º) os dois disparos de arma de fogo foram disparados, enquanto Paulo

investia com uma faca contra sua vida, demonstrando moderação na utilização deste

meio, bem como evidenciou a intenção de que se fizesse cessada a agressão injusta

contra si praticada. Assim, indiscutível a caracterização da excludente de ilicitude em

questão (Processo 57-97).

A legítima defesa se diferencia de outras circunstâncias, porque diz respeito à reação a

uma “agressão injusta”, inesperada, não precedida de nenhum conflito ou briga anterior. Há

ainda a compreensão da precisão da defesa: Osvaldo demonstrara moderação, precisão na

reação. A legítima defesa não se confundiria com o crime de homicídio pelo fato de não se

configurar como uma agressão, mas a resposta imediata e necessária a um ataque.

À defesa cabe, nos processos denunciados como simples, requerer a absolvição,

impronúncia ou desclassificação. Por exemplo, para o processo 504-92, a defensoria requereu

nova produção de provas porque estariam ausentes laudos residuográficos e os dos projéteis,

bem como o de reconstituição dos fatos que poderiam dar plausibilidade a quaisquer das

versões. No caso 3066-96, em que o agressor era o proprietário do estabelecimento e que se

recusara a vender bebida a um cliente, acabando por afugentá-lo a tiros, a defesa seguiu o

caminho de questionar o conjunto probatório que não apresentou “prova cabal e insofismável”

do “animus necandi” da ação.

No processo 182-93, questionou-se a autoria pelo fato de as testemunhas não terem

presenciado as agressões. Outra tática da defesa objetiva afrontar a figura da vítima com a do

agressor, relativizando as ações de forma a inverter os papéis. Assim, no processo 182-93, o

defensor afirmou que a vítima era “uma pessoa violenta, agressiva e, armada de uma faca,

intentou agredir o acusado. Dizem as testemunhas que, Antonio, unicamente se restringiu a se

defender” (Processo 182-93). Aparecido que era “pessoa negativa”, ao contrário de Antonio,

“pessoa pacata, calma, trabalhador e de família, não tendo fama de valente”.

Em processo (143-94) em que o Ministério Público foi contrário à pronúncia, o

promotor reconheceu que houve conflito entre as partes: “a prova colhida na instrução criminal

revelou que, provavelmente em razão de briga anterior, o ofendido José realmente atacou e feriu

Juraci com uma faca”. Contudo, uma vez instalada a briga, Juraci apenas se defendeu de José,

seu parente, com uma faca. Há interferência de terceiros na briga e outros indivíduos saíram

feridos. Para os que interferiram, a acusação pede a impronúncia e para Juraci, que se defendia,

a absolvição sumária. Nesse caso, a defesa não viu outra opção além de fazer coro ao pedido

da acusação: “Pouco há a acrescentar às ponderadas palavras do culto e zeloso Representante

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do Ministério Público quando em exposição retro narra os fatos e os define, optando sabiamente

por um pedido absolutório para o acusado” (Processo 143-94).

Também nos processos com qualificadoras, afastar a autoria é o mais importante para a

defesa. Um exemplo típico de uma alegação final pela defesa é encontrado no processo 170-95.

A peça foi escrita à mão no momento da nomeação do defensor. Seus argumentos resumem

quais são os elementos mais comuns que uma alegação deverá trazer: “em sede de alegações

finais a defesa requer a impronuncia do acusado, dada a precariedade do conjunto probatório

que não pode suportar um decreto de pronúncia” (Processo 170-95).

A principal tática consiste em questionar a qualidade das provas técnicas e testemunhais

coletadas nos autos. A título de exemplo, o processo 320-95, no qual o defensor opta pela

impronúncia do réu alegando não haver materialidade delitiva, pois não havia prova de exame

de corpo de delito nos autos. E, “não sendo este o entendimento” do Juiz, o defensor recorre ao

pedido de desclassificação do delito porque o que se tem de prova coligida evidenciaria

“ausência de animus necandi”: “o acusado teria efetuado disparos de arma de fogo para o alto,

não tendo em nenhum momento intenção de lesionar mortalmente a vítima” (Processo 0320-

95).

A inexistência de testemunhas oculares em geral representa oportunidade de

questionamento. Nesse sentido, percebemos o papel central que os rumores ocupam na

produção da verdade jurídica, como no processo 841-91 no qual as testemunhas apenas teriam

ouvido falar o nome do autor do crime. Como se posicionou o defensor, “boato nada mais é do

que a notícia que corre no público, e geralmente não possui fundamento, muito menos

confirmação, portanto, a notícia atordoada, vaga, e rumorosa, não deve ser de forma alguma

levada em consideração” (Processo 0841-91).

O mesmo se percebe no processo 0564-91 em que as testemunhas não eram oculares,

“tendo eles, apenas, ouvido comentários. Isto é, algumas delas fazem somente suposições,

inaceitáveis em se tratando de processo criminal, acerca da autoria do delito” (Processo 0564-

91); “Não houve quem, categoricamente, tenha atribuído ao acusado a autoria do crime. Todos

apenas ouviram dizer ou leram pelos jornais que, possivelmente, o autor do crime tenha sido o

acusado, mas controversas estas afirmações” (Processo 445-91). Ao contrário do que atestou a

defesa, nos processos examinados, tanto na seleção quanto na amostra completa, a regra é outra:

as investigações policiais são frágeis porque apoiadas em “ouviu-se dizer”; as investigações na

instrução criminal se fragilizam ao reproduzir ou simplesmente buscar confirmar o que foi

produzido na fase inquisitiva.

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Uma forma de a defesa negar a autoria por um homicídio é questioná-lo como crime,

alegando legítima defesa. No processo 98-95 o defensor afirmou que “Tal atitude por parte do

acusado é perfeitamente compreensiva tendo em vista o número de pessoas que tencionavam

agredi-lo, não tendo ficado clara a motivação de cada um para assim agir”. Não teria o acusado

outra alternativa além de se defender sozinho num estabelecimento onde, frisou o defensor,

estavam “todos ingerindo bebidas alcoólicas, portanto sem condições de prever aquele trágico

fim, representado pelas vidas ceifadas a vários jovens” (Processo 98-95). Em suas alegações,

os defensores defendem a suposição de que o consumo de bebida alcoólica revela um lado

obscuro das personalidades de seus clientes. Sob influência das bebidas, os envolvidos

apresentariam comportamento descontrolado e violência, beirando à selvageria.

No processo 1364-93, para validar sua versão de legítima defesa, o defensor optou por

manipular a imagem dos envolvidos em sentindo similar:

Pelo exposto, MM Juiz, evidentemente, estamos diante de mais um caso de bebedeira,

em que dois amigos, após beberem juntos por boa parte do dia, culminaram por se

desentender, onde o acusado, pai de família, de bons antecedentes, acabou por, em

legítima defesa, matar seu amigo, que conforme afirmou nos autos, um de seus irmãos,

quando bebia, tornava-se valente (Processo 1364-93).

A construção moral é, portanto, elemento constante nesses discursos jurídicos. Em outro

exemplo, o defensor do processo 1691-97 iniciou suas alegações: “o acusado sempre foi um

homem correto e trabalhador, com família constituída”, prosseguindo “é primário, não somente

no âmbito jurídico, mas também, por mais que se alargue o entendimento do vocábulo, no

aspecto moral, haja vista ter sempre se conduzido na mais absoluta consonância com os

princípios éticos, o que é dever de uma pessoa humilde, porém honrada” (Processo 1691-97).

No momento em que o Ministério Público versa sobre as qualificadoras, a tendência

também se inclina pela manutenção do conteúdo da denúncia. Geralmente, as alegações finais

são breves, chegando a ser sumárias. Em diversos casos, as alegações finais dos promotores

confirmam que a fase judicial não é necessariamente o momento de produção de provas, mas

de confirmação dos indícios que foram coletados na fase policial: “confirmados sob o crivo do

contraditório, os elementos de convicção oriundos da fase inquisitiva, o que se aguarda é a

Pronuncia do acusado” (Processo 829-91).

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Provavelmente, pelo fato de já haver exposto sua posição na peça da denúncia, a

tendência das peças de alegações finais será não trazer nenhuma novidade em relação à peça

inicial. Em alguns casos típicos sequer a acusação reviu os argumentos, apenas se referindo às

qualificadoras nos seguintes termos: “as qualificadoras devem ser levadas a julgamento perante

o Egrégio Conselho de Sentença, uma vez confirmadas pela prova judicial” (Processo 320-95);

“confirmados sob o crivo do contraditório, os elementos de convicção oriundos da fase

inquisitiva, o que se aguarda é a Pronuncia do acusado” (Processo 829-91); “o testemunho de

fls [...] endossa a qualificadora” (Processo 88-91); “Por fim, as qualificadoras encontram-se em

total consonância com as testemunhas acusatórias devendo permanecer, por conseguinte, para

apreciação do T. J., juízo natural da causa” (Processo 1293-92). O mesmo se repetiu nos

processos, 98-95, 1691-97, 1364-93, 0227-97, 0445-91, 475-95, e 369-96.

Mas há alguns outros casos em que a acusação rediscute o significado das qualificadoras

atribuídas ao crime de homicídio. Ainda assim, não se notam reconsiderações ou adensamento

nas argumentações. No Processo 297-96 o promotor reviu a qualificadora com justificativa

igualmente sumária: “No que respeita à qualificadora alinhada na exordial, entendo que ela

deve ser afastada posto que nada há na fase processual que a confirme” (Processo 297-96).

No que concerne ao motivo torpe combinado com recurso que impossibilitou defesa, as

alegações do promotor responsável pelo processo 513-94 são bastante similares à denúncia: “a

vítima ‘nem teve tempo de falar nada e o Gari já atirou com espingarda’, bem como o fato de

que a vítima teria sido a seguir atingida pelas costas por um segundo disparo” (Processo 513-

94). Novamente, “ficou claro ter sido ela surpreendida em subitâneo ataque dos acusados. Além

disso, os dois agiram ‘por espírito de vingança’, uma vez que, segundo informou Antonio,

Edmundo teria manifestado desejo de ‘causar mal’ a Paulo” (Processo 513-94).

Ou no processo 170-95, em que o acusado “agiu por reprovável e imoral vingança, em

face de, no dia anterior, não ter gostado de resposta que a vítima, no exercício de seu comércio,

dera a ele” (Processo 170-95). Por último, o processo de número 693-93 em que para o acusador

“verifica-se a futilidade na conduta do réu, esfaqueando uma pessoa desconhecida

simplesmente porque não bebia” e, “aproveitando-se que a vítima estava de costas, já subindo

uma escadinha, chamou-a e quando esta se voltou, desferiu um golpe violento” (Processo 693-

93).

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Da parte da defesa, há duas ocasiões nas quais serão discutidas as qualificadoras. A

primeira delas ocorre nos casos em que não se pode negar a autoria, geralmente porque houve

a confissão do réu. Na segunda, o pedido de retirada ou atenuação das qualificadoras aparece

de forma complementar: o defensor inicia negando a autoria ou alegando a legítima defesa e

“se esse não for o entendimento” do julgador, apresentam-se as teses que negam as

qualificadoras, que serão examinadas adiante. Contudo, a depender das escolhas da defesa, é

possível que apenas a autoria seja questionada.

Dos 10 casos denunciados como torpe, em 7 deles a defesa optou ou por atacar apenas

as provas de autoria ou a qualificadora (caso 513-94). Os outros três casos “torpes” em que a

defesa se manifesta não configuram um padrão. No processo 320-95, a negativa das

qualificadoras apresenta-se mesmo como uma tática complementar à negativa de autoria e a

tese apresentada é bastante resumida: “não restou demonstrado pela prova carreada, não

havendo nada nos autos que confirme a suposta vingança do réu para com a vítima” (Processo

320-95).

Conforme exposto acima, um movimento tático apreciado pelos operadores do direito

parece ser o de “rebaixar” o acusado ou a vítima aos olhos dos julgadores. Para que o operador

possa relativizar o peso das ações da vítima ou do réu, primeiramente se constrói um perfil

social que o inferioriza em virtude de suas características “culturais” naturais. É o caso do

processo 564-91, cujos trechos são destacados em transcrição adiante. O defensor inicia as

alegações finais justificando a legítima defesa, mas emenda:

(Outrossim, por amor ao argumento) poder-se-ia dizer que o tapa no rosto dado pela

vítima no acusado fora motivo forte o suficiente para sua reação, tendo então

retornado ao bar para tirar satisfações e salvaguardar sua honra, manchada, no seu

entender e em razão do seu nível cultural e procedência - é cidadão vindo do Nordeste,

onde, seguramente, ser estapeado em público é humilhação intolerável - pela agressão

da vítima. Vendo esta armada e revoltado pela violência que há pouco sofrera,

misturando assim um clima de inconformismo com temor, realizou os disparos

(Processo 564-91).

Uma vez mais, a tática do defensor para sensibilizar o julgador é a de demonstrar que o

réu apenas agiu de acordo com o esperado, um estado “selvagem” proveniente de sua matriz

cultural. O ponto central do conflito teria sido a defesa da honra masculina. Para homens da

estirpe do defensor a defesa da honra poderia parecer mera torpeza, mas não o seria para o réu,

homem pobre, de baixa escolarização, ou baixo ‘nível cultural’, e migrante, o que naturaliza

seu comportamento destemperado, incivilizado, incapaz de lidar com velhos temas da honra de

forma diferente. Aqui, a mesma repugnância que, ao promotor público seria motivo de severa

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punição, é mobilizada pelo defensor para legitimar as agressões. Sua tese não foi aceita pelo

juiz.

A partir de conversas informais com promotores públicos e magistrados, durante

pesquisa de campo realizada em colaboração com Ana Lúcia Pastore, Adorno (1994) sintetiza

a circulação de certas teorias não oficiais que informam a maneira pela qual as autoridades

legais interpretam a realidade dos fatos. Tais teorias estariam apoiadas em preconceitos: réus

são recrutados preferencialmente entre “pobres, pretos ou prostitutas”; a delinquência se deve

à “miséria, ignorância, bebida”; e réus são “infelizes migrantes nordestinos que não conseguem

se adaptar aos padrões civilizatórios da metrópole” (ADORNO, 1994, p. 140).19 Mais que um

ponto fora da curva, os trechos destacados acima constituem exemplo corrente que parecem

confirmar essa tendência preconceituosa, reunindo formulações de diversas ordens: o réu era

pobre, migrante e estava bêbado.

Já no processo 467-92, a tática da defesa foi a de discutir a relação entre vingança e a

qualificadora do motivo torpe. Para tanto, o defensor recorreu à jurisprudência:

É certo que vingança, por si só, não torna torpe o motivo do delito. Não é qualquer

vingança que o qualifica, conforme a precisa e sempre lembrada lição de Pedro

Vergara, que saliente a necessidade de se pesquisar sua origem, sua natureza: ‘a morte

de uma pessoa, ainda que fosse causada por vingança, em represália a atitude sua,

seria um ato grandemente reprovado, mas não se poderia considerar uma torpeza,

senão através dos fatos que determinaram o ato vindicativo’ (RJTJSP - 73/314): a

vítima teria ameaçado, por dois dias seguidos, ‘ofendendo-o, chamando-o de maricas

e de que não honrava seu bigode’ (Processo 467-92).

Na interpretação da defesa, ainda que a morte da vítima pudesse ser um ato reprovável,

não se configurou como mera vingança, senão como reação a injustas ameaças ou provocações.

Não seriam, novamente, provocações quaisquer, mas relacionadas à honra masculina,

simbolizada no bigode do réu. O ato de matar é que deve ser reprovável, mas suas motivações

são compreensivas.

19 Segundo Adorno, Pastore, cuja dupla formação em direito e antropologia lhe facultou observar essas sutilezas

da prática judicial, sugeriu a ele o quanto tais teorias conformam a interpretação dos fatos e colaboram na

composição dos desfechos processuais.

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Para os cinco processos denunciados como motivo fútil, a defesa apresentou

argumentações bem elaboradas para apenas um caso, 693-93:

Não podemos falar em motivo fútil, tendo em vista que o réu estava embriagado e

nesse sentido: ‘A embriaguez exclui a futilidade do crime’ (TJSP – RT 609/3222) e

‘A perturbação que produz na mente do réu a embriaguez, mesmo incompleta, não

permite juízo de proporção entre o juízo e a sua ação. Daí a incompatibilidade

existente entre a qualificadora do motivo fútil e aquele estado’ (TJSP – RT 575/358)

(Processo 693-93).

Quanto ao “recurso que impossibilitou defesa”, a qualificadora é compreendida como

circunstâncias em que a vítima não saberia ou não esperava ser ferida no conflito. Assim, para

afastar a qualificadora, a tática consiste em buscar nos autos elementos que demonstrem que o

ataque ou o desfecho não era inesperado. O processo 1293-92 narra que João, proprietário de

bar, estava em seu estabelecimento quando um grupo de jovens desceu de um veículo e passou

a disparar em sua direção. Segundo se apurou, os jovens pertenceriam a uma quadrilha que

constrangia comerciantes daquela região a pagarem para não sofrerem assaltos ou ataques. De

posse de tal informação, o defensor primeiro negou a autoria e, em seguida,

[...] considerando-se hipoteticamente que os acusados faziam parte de tais quadrilhas,

não há de se falar em recurso que dificultou ou impossibilitou a defesa do ofendido,

vez que, conforme se depreende dos mesmos depoimentos, havia receio destes com

relação a tais quadrilhas (Processo 1293-92).

O mais comum é a defesa questionar a preexistência de tensão entre as partes (Processo

467-92). No processo 513-94, segundo o defensor, “observa-se que havia entre este e a vítima

antiga divergência, motivando a que ambos permanecessem prevenidos em relação ao outro”.

E mais, [...]“é possível que a antiga diferença existente entre ambos, acrescida das ameaças da

vítima, tenha se aflorado no dia do evento, culminando com a morte desta” (Processo 467-92).

Por isso, as qualificadoras apresentadas pelo Ministério Público na denúncia não

deveriam prevalecer, uma vez que “sérias suspeitas mútuas existiam entre acusado e vítima,

não havendo surpresa na conduta do primeiro” (Processo 513-94).

O processo 693-93 fornece peça em que a defesa questiona o sentido da “surpresa”:

Também não há que se cogitar o recurso que impossibilitou a defesa da vítima, pois a

mesma em seu depoimento em juízo, disse que o acusado chegou a ameaçá-la de

agressão, não agindo, pois, com o intuito de surpreendê-la. Nesse sentido: “Não basta,

para configurar a surpresa, que a vítima não espere a agressão. É preciso, também,

que o agente aja com insídia, isto é, procure, com ação repentina, impossibilitar ou

dificultar a defesa do ofendido (TJSP – RT 512/375) (Processo 513-94).

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A decisão intermediária

Apresentadas e incorporadas aos autos as alegações finais, é o momento de o juiz decidir

se o caso deve ou não ser enviado a Júri Popular. A peça do juiz inicia com breve revisão das

principais provas coligidas nos autos para, a seguir, ser proferida decisão. Usualmente, no que

concerne à autoria, a principal tendência identificada reporta-se ao Juiz acompanhar o pedido

da acusação.

No processo 57-97, o Ministério Público, em suas alegações finais, advoga pela legítima

defesa do réu e outro não foi o entendimento do Juiz. Para justificar sua posição, recorreu a

provas técnicas “Provou-se pelo laudo de exame de corpo de delito que o réu possuía cicatrizes

de ferimentos provocados por instrumento corto-contundente” e aos depoimentos “a vítima

ainda lhe desferiu mais duas facadas, foi então que o réu efetuou o disparo que causou a sua

morte”, “confirmam plenamente os fatos relatados pelo réu, informando que o acusado apenas

se defendeu”.

Assim, o juiz acolhe o pedido da acusação e da defesa absolvendo sumariamente ao réu.

Destino semelhante receberam os réus do processo 143-94: “impronuncio José [...] com relação

às duas acusações que lhe são feitas na denúncia, nos termos do artigo 409 do Código de

processo Penal, por falta de indícios fundados de autoria” e “absolvo sumariamente Juraci [...]

com relação a acusação de homicídio consumado, nos termos do artigo 411 do Código de

Processo Penal, ante a existência de circunstância que exclui o crime”. No processo 98-95, com

dois réus denunciados, o juiz decidiu pela impronúncia para participação de Cassio,

coadjuvante, afirmando que: “Entretanto, mesmo que se cogite – em tese – de comportamento

relevante de partícipe, temerário reputo e reconhecimento de vínculo psicológico. Não há prova

séria de liame subjetiva” (Processo 98-95).

Um exemplo padrão de decisão de pronúncia transcorre quando o juiz recupera todas as

versões e provas produzidas na Instrução Criminal e demonstra quais elementos do conjunto

probatório embasam seu convencimento. No processo 513-94, Paulo admitiu a autoria das

agressões, incriminando o corréu Antônio, posteriormente alegando legítima defesa própria.

Antônio, por sua vez, negou participação, mas para o juiz, “sua negativa foi contraditada pelo

denunciado Paulo, e ainda pelo depoimento de testemunha presencial”; a autoria atribuída a

ambos estaria respalda nos depoimentos da esposa da vítima, da delegada de polícia que

registrou a ocorrência e de uma terceira testemunha.

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Contudo, nos processos examinados, foi possível constatar que, na maior parte do

tempo, o juiz apresenta o convencimento de forma sumária: “os indícios de autoria são

suficientes” para encaminhar o réu ao Júri Popular (Processo 504-92); “em que pese a negativa

da autoria, os indícios de autoria são suficientes a remeter o réu perante seus pares” (Processo

564-91); “Havendo indícios convincentes, impõe-se a pronuncia” (Processo 170-95). No

processo 227-97, o Juiz pontuou que tanto a versão do réu quanto a da vítima encontravam

respaldo nos autos, o que gerou dúvida, imperando na decisão de pronúncia o “in dubio pro

societate”.

Foi observado ainda que, para os juízes, as investigações realizadas na fase policial

também são valorizadas, principalmente nas ocasiões em que os depoimentos coletados na fase

judicial não apontam indícios suficientes de autoria, se comparado com os depoimentos

colhidos na delegacia de polícia. É exemplo o processo 3066-96, em que, diante do conjunto

probatório, o Juiz optou por centrar sua decisão nos depoimentos da vítima e de outra

testemunha coletados pela polícia: “a versão do réu foi flagrantemente contrariada pelos relatos

policiais do ofendido e da testemunha presencial Élcio” (Processo 3066-96).

Outros exemplos podem ser citados: “A matéria coligida no inquérito policial guarda

correspondência com o conjunto deduzido em Juízo” (Processo 841-91). O “flagrante delito”

representa, dentre os elementos produzidos na fase policial, aquele que maior atenção recebe

dos operadores técnicos. Segundo afirmaram os policiais que atenderam à ocorrência que

subsidiou o processo 1691-97, o réu fora encontrado em terreno baldio próximo ao local dos

tiros, ferido e com um revólver próximo de si, indícios de autoria que foram suficientes para o

juiz encaminhar o caso a Júri, pois, em suas palavras, “o juízo de certeza não é necessário para

a pronuncia, sendo que as dúvidas e contradições existentes são resolvidas em favor da

sociedade mediante a submissão do julgamento ao Juiz Natural do feito” (Processo 1691-97).

O cenário não difere muito no que tange às qualificadoras e, nesta matéria, é possível

que as decisões sejam muito mais sumárias, sendo padrão o juiz determinar que devem ser

mantidas as qualificadoras para apreciação dos jurados, porque são plausíveis e têm amparo na

prova dos autos (Processo 1293-92) ou na dúvida, “pró sociedade”. Para citar outros exemplos:

“as qualificadoras não foram alijadas pelas provas carreadas para os autos, ao revés, nestes

encontram respaldo, razão pela qual deve, sua análise, ser remetida ao Tribunal Popular”

(Processo 369-96). No processo 841-91, o Juiz inicia afirmando que “A qualificadora elencada

na denúncia não se encontra divorciada da matéria coligida e assim, ao Colendo Conselho de

Sentença caberá valorá-la”; e complementa: “Diante desse conjunto probatório, descabe ao

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Magistrado, nessa fase, realizar detida análise da prova para avaliação do réu, essa é matéria de

competência do Juiz Natural, que é o Tribunal do Júri” (Processo 841-91).

Finalmente, examinam-se os casos em que o juiz questionou ou modificou a

qualificadora apresentada pela denúncia. Novamente, o juiz poderá seguir o pedido do

Ministério Público nas alegações finais, como no processo 297-96 em que o réu é pronunciado

como incurso no artigo 121 “caput”, ou seja, sem qualificadoras. Ainda, nas peças decisórias,

o juiz pode afastar as qualificadoras sem apresentar dedicada argumentação. Um modelo com

argumentação mais refinada corresponde à formulação, como segue: “a qualificadora constante

da denúncia não pode persistir por não ter sido demonstrada, considerando-se que nenhuma das

testemunhas ouvidas em Juízo presenciou os fatos” (Processo 1364-93).

São raros os casos em que o juiz se manifesta a respeito de seu entendimento das

qualificadoras. Somente foram identificados dois casos, dentro 30 observados. Porém,

igualmente de forma bastante sumária. Para o processo 475-95, caso em que um jovem dispara

contra o bar, supostamente porque o proprietário lhe recusou a venda de cerveja, o magistrado

é levado a discordar do Ministério Público, no tocante à natureza da notificação: em lugar de

torpe, fixa a qualificação como fútil.

Em seus termos: “Ao que parece, não se trata de gradação de perversidade, mas sim de

egoísmo intolerante (recusa em servir mais bebida gerou o comportamento prepotente). Logo,

reputo fútil a delibação típica”. Nesse caso, a ação criminosa teria sido motivada por “egoísmo”

e “intolerância”, demonstrando o agressor tanto um comportamento que excluiria qualquer

consideração pela vida do outro quanto uma reação odiosa e agressiva. E o processo 88-91, em

que o Juiz afirma que “o crime teria sido cometido por motivo fútil, seja porque houve uma

discussão de bar ou porque o réu resolveu 'tomar as dores' de seu amigo Paraíba”. Já nesse caso,

para o juiz, a futilidade não se demonstra nas ações específicas, mas em toda e qualquer

discussão possível e hipotética que possam vir a ocorrer em bares.

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O Júri

Dos 30 autos de processo penal examinados, 25 foram julgados pelo Tribunal do Júri.

Desses, 7 foram absolvidos, dois foram desclassificados, um prescreveu e os demais foram

sentenciados da seguinte forma: cinco como homicídio simples; dois torpes; dois torpes

combinados com recurso que impossibilitou defesa; um fútil combinado com recurso que

impossibilitou defesa; dois apenas como recurso que impossibilitou defesa; e outros três foram

sentenciados com reconhecimento do privilégio de ter agido o réu sob o domínio de violenta

emoção. Como já apontamos na primeira seção deste capítulo, o surgimento dessa última forma

de classificação se dá apenas no Júri e constitui uma das principais inovações trazidas por essa

fase ao processo penal.

É impossível saber como o Conselho de Sentença interpretou as ações dos conflitos e as

codificou em qualificadoras, porque os debates entre os jurados são sigilosos e não constam das

atas oficiais. A partir das atas pode-se saber se o Conselho aceitou a legítima defesa ou negou

a autoria. No mesmo sentido, elas possibilitam saber como o juiz realizou o cálculo (‘quantum’)

da pena a partir da decisão do Conselho de Sentença (trata-se da dosimetria, que será examinada

a seguir).

Primeiramente, dentre os casos em que houve desclassificação, destaca-se o processo

3066-96, no qual o proprietário do estabelecimento se negou a vender bebida e afugentou o

cliente a tiros. De acordo com a sentença proferida pelo juiz, “no curso dos debates, as partes

requereram a desclassificação para contravenção penal de disparo de arma de fogo”. O conselho

de sentença, por unanimidade, aceitou a tese defendida em comum acordo pelas partes.

Para o processo 320-95, o Conselho de Sentença, “afirmou não se tratar de crime doloso

contra a vida” e coube ao Juiz desclassifica-lo como crime de lesão corporal e crime de furto.

E, pela ata de julgamento, sabe-se que tanto acusação quanto defesa sustentaram a tese da

“desistência voluntária” que, prevista no artigo 15 do Código Penal “O agente que,

voluntariamente, desiste de prosseguir na execução ou impede que o resultado se produza, só

responde pelos atos já praticados” ou “Arrependimento posterior”.

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Em ambos casos, defesa e acusação defenderam a mesma tese. Ainda que o acordo entre

as partes não seja previsto pela legislação penal brasileira, em alguns casos é possível identificar

tal prática, evidenciada por manobras semelhantes de coincidir as teses das partes. A presença

do prévio acordo entre as partes não torna a sessão um mero “faz de conta” “pois as sustentações

orais, de qualquer modo, deverão persuadir os jurados a votarem e, para tanto, elas deverão ser

bem desenvolvidas ao longo de todo o julgamento” (SCHRITZMEYER, 2008, p. 76).

Dos 7 réus absolvidos, em apenas um caso foi reconhecido que o réu agiu em legítima

defesa (Processo 182-93), enquanto os demais foram absolvidos pela negativa da autoria. Para

o caso da legítima defesa, foram denunciados dois réus, mas as peças apresentam o desfecho

apenas para um, Antonio, que disparara contra Aparecido, o segundo réu, porque este havia

atentado contra Gonçalo. Desde as alegações finais desse processo 182-93, a defesa defendia a

tese da legítima defesa, enaltecendo as características de Antonio como pai de família e homem

trabalhador, o qual apenas se defendia. Nesse caso, a decisão do Júri não inovou em relação à

tese da defesa, que alegava ser Antonio a vítima das agressões.

Para os demais, à exceção do processo 693-93 em que o defensor concorda com a

pronúncia, a tese da defesa também prevaleceu no julgamento do Júri: a negativa de autoria

porque não teria havido nos autos provas suficientes de que o réu fora mesmo o agressor daquela

morte em julgamento. Em todos esses casos, não constava nos autos testemunha presencial;

tampouco, se confirmou o reconhecimento do réu.

No universo observado, destaca-se o processo 1691-97, no qual o acusado fora preso

em flagrante, encontrado ferido em terreno baldio próximo ao local dos fatos. De acordo com

a peça do juiz, o Conselho de Sentença “decidiu acatar a tese defensiva, negando por maioria

de votos, o primeiro quesito do questionário, impondo a absolvição sob fundamento de não

existir prova suficiente de ter o acusado concorrido para a consecução da infração penal”

(Processo 1691-97). Também, nesse caso, a tese defendida pela defesa nas alegações finais era

a da negativa da autoria.

Foram observados ainda 3 casos que obtiveram, como desfecho, o reconhecimento da

“violenta emoção”. Todos foram denunciados com qualificadora da “surpresa”, sendo que dois

também pelo motivo torpe. Tanto promotoria quando defesa foram muito atuantes, a julgar

pelas qualidades e profundidades das alegações finais, com debates sobre autoria e

qualificadoras. Nos quatro casos, a defesa apresentou a tese da legítima defesa. Quanto às

circunstâncias do crime, tem-se que, em dois casos, o conflito se deu entre conhecidos; e outros

dois entre desconhecidos.

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No processo 297-96, o que teria motivado o conflito exprimiu-se pela desconfiança do

réu quanto a vítima ter lhe roubado documentos pessoais; no 98-95, Robson, figura conhecida

nos bares de Pinheiros e suspeito de envolvimento em atividades ilegais, como tráfico de

drogas, brigou com um grupo de amigos naquela região após o grupo ter discutido com o dono

de um dos bares. Nesse caso, é possível que o fato de Robson ter enfrentado um grupo de amigos

tenha contado a seu favor na definição da “violenta emoção”. Por fim, no processo 1364-93, o

conflito surgiu quando dois amigos estavam conversando e bebendo enquanto negociavam a

venda de um bar. O agressor desistira da transação e, em dado momento, a vítima teria partido

para cima dele, xingando de “corno, safado”; e então Marcos atirou para se defender.

No que diz respeito ao cálculo das penas, é possível sustentar que a disputa em torno

das qualificadoras ou circunstâncias de privilégio foi fundamental para a definição do quantum

da pena. Dos 13 processos sentenciados pelo Tribunal do Júri, a menor sentença foi definida

em dois anos com benefícios de suspensão condicional de pena; e a maior foi de a 17 anos e

nove meses de pena de supressão de liberdade em regime fechado. Os casos com menos de seis

anos de prisão representaram condenações por homicídios simples (processo 88-9: pena de dois

anos); homicídio duplamente qualificado na forma de tentativa (processo 170-95: quatro anos

e oito meses); homicídio simples na forma tentada (processo 227-97: quatro anos); participação

de menor importância em crime de homicídio e homicídio privilegiado (processo 297-96:

respectivamente, quatro anos de regime aberto e cinco anos em regime semiaberto); homicídio

privilegiado (processo 1364-93: cinco anos em regime semiaberto).

As penas entre seis anos em regime aberto e oito anos em regime fechado foram,

respectivamente, homicídio simples (processo 504-92) e duplamente qualificado por motivo

fútil, e recurso que impossibilitou a defesa (processo 475-95). Finalmente, os processos com

sentença final maior que 12 anos: duplamente qualificado (processo 98-96); motivo torpe com

afastamento da qualificadora da surpresa (processo 467-92); qualificado pelo recurso que

impossibilitou defesa da vítima (processo 445-91), todos esses últimos a 12 anos; dois casos

pelo reconhecimento das qualificadoras do motivo torpe e recurso que impossibilitou defesa

(processos 513-94 e 564-91) e um por motivo torpe com reincidência do réu (processo 841-91),

todos a 14 anos. O processo 98-95 teve a maior pena, 17 anos e nove meses de reclusão em

razão do “concurso material”, quer dizer, o fato de o agressor ter ferido ou assassinado a cinco

vítimas.

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Recursos pelas partes

Do conjunto de 30 processos examinados, em seis casos houve interposição de recurso,

dentre os quais um após a decisão de pronúncia, e três após a decisão pelo Júri; e dois tanto

após a decisão de pronúncia quanto após o Júri. Em apenas um caso houve recurso apresentado

pelo Ministério Público; o mais comum são recursos interpostos pela defesa. A existência de

recursos a favor do acusado é indicador de que o amplo acesso ao direito de defesa, prerrogativa

constitucional, foi assegurado nos casos observados.

A principal estratégia dos operadores do direito nesses processos é afirmar que as

decisões (pronúncia ou sentença) são contrárias ao conjunto probatório. Nesse sentido, é

frequente a defesa alegar não serem as provas comprobatórias de autoria; por sua vez, torna-se

igualmente frequente a acusação questionar a absolvição, nos mesmos termos. Nessas peças, o

que se denota é um longo e dedicado esforço em manipular trechos dos depoimentos e

reinterpretar laudos técnicos de forma a reforçar a tese das partes, conforme procuramos

demonstrar a seguir.

A princípio, faz-se menção ao processo 1293-92. Não foram localizadas, entre as peças

dos autos, as “razões de recurso em sentido estrito” da defesa; todavia, sabe-se pelo “Acórdão”

do colegiado do tribunal que a defesa do réu Roberto questionou tanto a autoria quanto a

inexistência da denúncia relativamente às justificativas para qualificadora de motivo fútil. O

colegiado deu provimento parcial ao pedido, retirando a qualificadora do motivo fútil pois:

“Nota-se que o motivo fútil não ficou descrito na denúncia e nem esclarecido quando da decisão

de pronúncia”.

Para os julgadores, os autos revelavam que o motivo se referia à vingança (torpe), não

à futilidade, à medida que os réus “pretendiam dinheiro para dar guarida ao ofendido

comerciante, o que é torpe e não fútil”. Porém, mantiveram a qualificadora do recurso que

impossibilitou defesa “eis que entraram no bar quando estava escuro e foram atirando de forma

inesperada, sem que a vítima pudesse defender-se”.

Recurso contra a decisão intermediária também está presente no processo 504-92, cujo

réu é policial militar. Nele, a defesa se apresentou extremamente atuante. Sua tática foi a de

atacar tanto irregularidades processuais quanto alegar que a decisão fora imotivada. As

irregularidades teriam cerceado o direito de defesa pela ausência de laudos: exame

residuográfico para verificar pólvora nas mãos; laudo de reconstituição dos fatos. No mesmo

sentido, questionou o papel que cumpria nos autos à assistente de acusação, representando a

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viúva de uma das vítimas e que, sem provas, estaria influenciado o processo ao denunciar

supostas ameaças sofridas, além de introduzir provas alheias aos autos (houve denúncia de que

o policial estava envolvido em atos de “resistência seguida de morte”, prática reconhecidamente

associada a execuções sumárias por parte de policiais).

Quanto à alegação de “sentença imotivada”, afirmou que o magistrado selecionou no

conjunto probatório dos autos o que lhe era conveniente para motivar o decreto da pronúncia e,

com isso, “mais que selecionar provas (isto é, valorizá-las), o douto Magistrado ‘ad quo’ está,

com seu édito, a direcionar o entendimento dos jurados”. Por último, mas não menos

importante, a defensora enfocou o fato do réu ser policial militar, para demonstrar que estava

havendo um deslocamento do objeto mesmo do julgamento: o foco estaria no julgamento da

personalidade do réu, não em seus atos:

Pergunta-se: por que é tão difícil acreditar na versão do acusado, perfeitamente

enquadrada na lógica e com indícios verificáveis pelos ferimentos do acusado e da

vítima sobrevivente? Por que é mais fácil acreditar em ameaças, desacompanhadas de

provas, pelo simples fato de ser o acusado policial militar? / Repetimos: talvez a

Justiça preferisse, nesse momento, estar julgando dois homens, que teriam matado,

por motivo fútil, um policial militar à paisana (Processo 504-92).

No mesmo caso, em resposta ao recurso, o Ministério Público protestou que, em nenhum

momento, foi violado o contraditório e a ampla defesa, por isso mesmo as nulidades arguidas

se mostravam infundadas: “é de todo cediço que a sentença de pronuncia encerra o princípio

do in dúbio pro societate, já que não é licito excluir os crimes dolosos contra a vida da

apreciação de seu juiz natural, qual seja, o júri”. O colegiado negou provimento ao recurso.

Após a sessão do Júri, “irresignado o Réu apela da decisão do Conselho de Sentença

que o apenou com 6 (seis) anos de reclusão”, porque “Malgrado o brilho da decisão, o Juízo de

fato e do fato, não atentou para ponto relevantes do processo”. Em suas palavras, “A míngua

de outras provas robustas, há de prevalecer a tese de defesa que foi legitima defesa própria,

porque sem motivo algum Júlio e Rogério invocaram-se com o réu, e partiram para a agressão”.

No Acórdão,20 os desembargadores concluíram favor do pedido do réu, no sentido de que: “É

incontroverso, igualmente, que Júlio disparou por duas vezes a arma, sendo plausível então a

versão dos apelantes, segundo a qual fora obrigado a sacar do segundo revolver para defender-

se” e, portanto, são pelo provimento ao recurso, sendo esse o único caso em que a decisão se

inclinou para esse desfecho.

20 O Acórdão é a sentença final proferida por uma instância superior. Os acórdãos estabelecem modelos para

solução de casos similares.

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Outros dois processos, o 513-94 e o 445-91 apresentaram apelações à decisão do Júri

em termos bastante semelhantes, pedindo anulação do julgamento porque teria contrariado os

autos. Interessa-nos destacar o processo 1364-93, no qual a defesa apelou à reforma da sentença

questionando a dosimetria (cálculo do tempo da pena) porque no cálculo o juiz teria diminuído

ao mínimo legal,21 argumentando não haver nos autos provas de que o acusado tivesse agido

sob domínio de violenta emoção e em reação à injusta provocação da vítima; mas “esta decisão

[ter] sido completamente contrária à decisão dos jurados já que estes ao reconhecer o privilégio,

o fizeram porque entenderam que o acusado agiu sob o domínio de violenta emoção, logo em

seguida à injusta provocação da vítima.”

A defesa aproveitou para solicitar o regime inicial aberto, fundamentando seu pedido na

“personalidade” do réu, pai de família, trabalhador. Os desembargadores negaram provimento

ao pedido, justificando que, apesar de ter a vítima proferido ofensas ao réu, a redução de pena

não poderia ser menor do que um sexto “mormente porque partiram de um bêbado e lhe

impunha comedimento e não desferir vários tiros na cabeça da vítima”. Nota-se que a imagem

de bêbado da vítima teve peso fundamental na decisão do colegiado, pois que, se a vítima estava

incapacitada de responder por si, teria sido esperado que o réu considerasse esse elemento e

dosasse sua reação diante da briga.

Para encerrar, retornamos ao processo 1293-92, cujo único mérito é o de inovar em

relação aos anteriores por apresentar recurso interposto pelo Ministério Público, o qual se

indignou com a absolvição proferida pelo Tribunal do Júri. Em sua peça, ressaltou que a vítima

reconhecera o réu como um dos autores do crime, além de destacar a extensão de folha de

antecedentes, que traria claros indícios de se tratar de justiceiro e matador. O Acórdão nega o

recurso pois “existindo versões antagônicas, não se pode dizer que a decisão do Conselho de

Sentença, por maioria de votos, aceitando uma das versões, decidiu de forma manifesta contra

a prova e evidência dos autos”.

***

21 Diz o parágrafo 1ª do artigo 121 do Código Penal que em caso de “domínio da violenta emoção” o juiz pode

reduzir a pena base (6 anos) de um sexto a um terço.

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Na “Exposição de Motivos da Parte Especial do Código Penal”, o motivo torpe

representa “o motivo que suscita a aversão ou repugnância geral, v. g.: a cupidez, a luxúria, o

despeito da imoralidade contrariada, o prazer do mal, etc.”; o fútil consiste no crime que “pela

sua mínima importância, não é causa suficiente para o crime”; já, a agravante que considera o

modo como o crime é executado, a “impossibilidade de defesa”, cobriria a “traição, a

emboscada, a dissimulação, etc.” (BRASIL, 1999, p. 23).

Consoante o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Hungria, em seus

comentários ao Código Penal,

O motivo é fútil quando notavelmente desproporcionado ou inadequado, do ponto de

vista do homo medius e em relação ao crime de que se trata. Se o motivo torpe revela

um grau particular de perversidade, o motivo fútil traduz o egoísmo intolerante,

prepotente, mesquinho, que vai até a insensibilidade moral (HUNGRIA, 1979, p.

164).

Por um lado, o motivo fútil não pode ser confundido com “motivo injusto”, porque este

“embora desconforme com a ética ou com o direito, pode não ser desproporcionado como

antecedente psicológico do crime” (HUNGRIA, 1979, p. 164). Por outro, pode se tornar

“relevante” (o oposto do fútil) a depender das circunstâncias: “um apelido inofensivo, mas que

se sabe do desagrado de quem o recebe, pode concretizar até mesmo a provocação injusta que

torna privilegiado o ‘homicídio emocional’” (ibidem).

Como visto na seção anterior, o homicídio simples exprime-se naquele nos quais

promotores públicos e demais operadores do direito não qualificam a natureza da motivação.

Por isso, é a “violenta emoção” que aparece como oposto ao “motivo fútil” ou “motivo torpe”.

A linha que separa ‘violenta emoção’ do ‘fútil’ ou ‘torpe’ não está apenas na “realidade dos

fatos”, no conflito interpessoal que gerou as mortes: constitui-se produto da combinação, por

um lado, da estratégia adotada pelos operadores do direito que “jogam” ou “manipulam”

documentos, peças, fotografias, trechos de depoimentos, pedaços de histórias a favor de uma

tese; de outro, com a sensibilidade dos jurados, seu afastamento ou aproximação com o réu, as

vítimas, e as circunstâncias que lhes são narradas.

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Pois, os operadores do direito estão envolvidos em constantes disputas pelo direito de

dizer a verdade dos fatos e o fazem segundo circunstâncias muito determinadas. Já afastados

da realidade imediata das relações sociais, familiarizados com a oralidade dos depoimentos

transformados em narrativas, por fim convertidas linguisticamente no universo dos autos e,

portanto, da lógica jurídica, tais operadores dão sentido às disputas que se travam nas arenas

dos tribunais (FIGUEIRA, 2010, p. 305). Utilizando das mesmas provas técnicas, dos mesmos

textos que abrigam histórias de vida e de morte, os operadores do direito entram em embates

para afirmar a existências de “fatos diferentes”.

As narrativas são trabalhadas “objetivando a produção de determinados efeitos de

poder” (FIGUEIRA, 2010, p. 307). No caso específico das qualificadoras, é possível concordar

que, apesar de os operadores do direito a elas referirem-se como “entidades objetivas”,

acontecimentos concretos, são, na verdade, “artefatos altamente editados pela complexa malha

discursiva e procedimental que constitui um processo criminal” (Idem, p. 308). Portanto, assim

compreendendo que as qualificadoras são fatos jurídicos, é possível afirmar que o “motivo

fútil”, o “motivo torpe”, o “recurso que impossibilitou a surpresa”, a “violenta emoção” não se

encontram nos fatos cotidianos, e sim nas metáforas jurídicas.

Adorno (1994, p. 135) já apontara que o desfecho processual “resulta da conexão de

duas ordens de motivação da conduta institucional”, sendo a primeira em virtude da lógica

burocrática do processo penal em que “o objeto do litígio gravitava em torno do crime, das

informações processuais, dos documentos anexados aos autos, do estrito comprimento dos

dispositivos legais”; e a segunda:

[...] o mundo dos homens com seus comportamentos, seus desejos, suas virtudes e

vícios, suas grandezas e fraquezas, os pequenos dramas da vida cotidiana, a violência

endêmica entre iguais, a pobreza de direitos que caracteriza a vida dos protagonistas

[...] enfim, a trama que enreda homens comuns e agentes da ordem em uma

esquizofrênica busca de obediência a modelos de comportamento considerados

dignos, justos, normais, naturais, universais e desejáveis (ADORNO, 1994, p. 136).

Ao mesmo tempo em que as narrativas e os discursos operam na produção da verdade

jurídica, a vida social “lá fora” está no radar dos operadores do direito. Para além da proteção

da vida como um “valor capital da cultura ocidental”, nas páginas dos autos de processo penal

e nos plenários dos Tribunais dos Júri, as autoridades legais são também autoridades sociais em

luta por assegurar que as moralidades públicas e privadas de que são signatárias sejam validadas

como comportamentos universais.

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Todavia, vale lembrar que, se por um lado os operadores do direito são os principais

“jogadores” no Júri, por outro, nos plenários, os “julgadores leigos” participam da construção

da realidade social à medida que “códigos, interpretações e atuações se compõem fazendo

sentido como um novo conjunto formado em uma dimensão específica de trocas e interações”

(SCHRITZMEYER, 2007, p. 125). Nas trocas e interações entre todos esses personagens,

constroem-se e se legitimam normas de convívio social e um modelo de sujeição moral. Por

trás dos debates e julgamentos das qualificadoras do crime de homicídio se revela uma categoria

de construção social que tem por base valores morais e expectativas dos operadores do direito

conjugados às crenças dos julgadores, membros das classes médias da sociedade.

As qualificadoras do crime de homicídio são fatos jurídicos e, como tal, além de

categorizar a realidade de acordo com a linguagem específica e excludente para os “não

jogadores” do campo jurídico, recorta a realidade social, a realidade que produziu os conflitos

e as agressões fatais, com vistas a obter os resultados almejados nas disputas internas desse

campo. E, mais que isso, no caso das qualificadoras, estabelece valores à realidade do conflito.

Como um produto do mundo do direito, guarda relação com a realidade social: não são

os operadores que “inventam” o que é fútil, mas quando mobilizam tais categorias, constroem

um modelo ideal de sociedade. Como autoridades legais, os operadores detêm o “direito de

dizer a verdade” e, como autoridades sociais, disputam o direito de dizer o que é ou dever ser a

vida associativa sob o prisma dos comportamentos coletivos e subjetivos em lugares públicos,

redutíveis aos detalhes da vida privada.

E que sociedade e quais sujeitos sociais são construídos nos processos penais e nas

sessões de julgamento? Nos processos examinados, a “vingança” é o principal elemento que

caracteriza o motivo torpe, enquanto os motivos fúteis são mais fluídos, beirando a

incompreensão, a “ausência de motivo”. O que é nomeado como “vil sentimento de vingança”

pelos promotores públicos parece ser as tensões entre as partes, gestadas em conflitos

anteriores, e que persistiram no tempo vindo a ser resolvida através da morte de uma delas.

Pressupõe, portanto, algum conflito anterior entre as partes.

O “fútil” é “um simples fato” se comparado à gravidade do crime. O fútil é uma

qualidade daquilo que é insignificante, superficial. Não está excluída da noção de futilidade o

elemento do discernimento, do cálculo racional. À proporção que a embriaguez altera o juízo,

a futilidade não poderia ser confundida com irracionalidade, mas como um cálculo racional,

porém desproporcional, entre as causas do conflito e suas reações. Em todos os casos fúteis a

desproporção entre ação e reação é também a medida do afastamento entre os valores médios

que os operadores do direito julgam proteger e os valores que os réus supostamente defendem.

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Desde que matar alguém prevê uma espécie de margem para além da qual todos os

sujeitos e as ações são reprováveis, as futilidades estabelecem outra fronteira, um pouco mais

além, na qual as ações, além de reprováveis, são repugnantes. Em uma escala, os sujeitos que

incorrem no “homicídio simples” são desviantes graves, porque tiram à força a vida de alguém.

Os que cometem “homicídio fútil” ocupam um patamar muito mais baixo na hierarquia social:

não são apenas assassinos, são também signatários de valores de pouca importância, ridículos.

Estão abaixo do grau zero da civilidade.

Os debates em torno das qualificadoras do crime de homicídio revelam que os

operadores do direito estabelecem explicações, os porquês de tais sujeitos cometerem

“atrocidades”, futilidades, torpezas. A primeira explicação residiria em características

intrínsecas aos indivíduos julgados. Nos discursos jurídicos, com frequência os réus aparecem

como agentes perigosos que representam ostensivo perigo à segurança pública e que, através

de suas ações, demonstram requintes de crueldade.

São “menores” arrogantes, homens vingativos que, ciosos de si, se acham injustiçados

em qualquer questão de somenos que cruze seus caminhos. Dispostos e preparados para fazer

justiça com as próprias mãos, são bandidos desconfiados de que tenham sido entregues à

polícia. Agem guiados pela prepotência e arrogância que lhe são “naturais” ou fruto de suas

origens sociais, do ‘baixo nível cultural’. São os homens que, ao contrário do “homo medius”,

defendem a honra como bem maior.

Conforme os comentários especializados do campo do direito, as qualificadoras revelam

ainda a “insensibilidade” do criminoso para com a moralidade média. Portanto, para além da

afirmação de quais comportamentos são legitimáveis, a construção dessas modalidades de

sujeição moral passa, no mundo do direito, por modelos de sensibilidade e emoções que são

aceitáveis e desejáveis. Os réus são revelados como egoístas natos, que não compartilham de

qualquer respeito ou consideração pela vida do outro; aproveitam-se da distração da vítima ao

acertá-las pelas costas; indivíduos que não aprenderam as normas capazes de materializar o

controle de si. Seus motivos para tirar a vida de alguém são fúteis ou torpes e expressam sua

inclinação ao comportamento derivado de emoções.

Os sujeitos indesejáveis são incapazes de se guiar pelas normas que regulam a expressão

e a contenção das emoções nos espaços públicos; e o banal não é apenas o crime, mas também

aquele que se deixa levar por uma “questão de somenos”, que por qualquer coisa se melindra,

perde a cabeça, agride a facadas ou tiros quem afete sua pessoa, sua honra, seu domínio e mando

sobre outros, independentemente do respeito às leis. Acima de tudo, o que os fragmentos de

Processo Penal examinados nesse capítulo indicam é que a emoção e seu autocontrole configura

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uma dimensão importante das disputas jurídicas em torno dos comportamentos e sujeitos

desejáveis. Vejamos no próximo capítulo se as emoções são dimensão importante também para

compreender como os agentes justificam os conflitos interpessoais.

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CAPÍTULO IV

Brigas de bar e conflito interpessoal

Para o depoente o motivo do crime é banal, mas qual

banalidade desconhece. Disputa de mesa seria a razão

do delito.

(Sinval)

A frase acima reproduz trecho do depoimento prestado por Sinval no decorrer da

Instrução Criminal do processo penal de número 369-96. Sinval era dono do bar “Big Family”,

estabelecimento conhecido pelos moradores do Jardim Arpoador, Zona Oeste de São Paulo,

como “Boate do Sinval”. Com capacidade para cerca de 150 pessoas, na madrugada de sábado,

dia 4 de maio de 1996, havia ali entre dez a 15 clientes. Sinval conhecia “de vista” boa parte

dos frequentadores do bar, a maioria moradores do bairro. Manteve o estabelecimento por oito

anos e encerrou as atividades pouco tempo depois dos acontecimentos que levaram à morte de

Cesar.

Cesar, 26 anos, solteiro, 1º grau incompleto e desempregado se envolveu em uma briga

contra um grupo de seis rapazes que ele desconhecia. A ocorrência foi registrada no 75º Distrito

Policial. Foi o primo de Cesar, Valmir, quem compareceu à delegacia para o registro de

ocorrência. Ao ser comunicado por vizinhos, Valmir saiu de casa em direção ao bar e lá

encontrou Cesar baleado e caído na calçada. Os vizinhos e os clientes do bar já haviam

informado o ocorrido à Polícia. Valmir acompanhou os policiais ao Pronto Socorro

Bandeirantes. Cesar não resistiu aos ferimentos.

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Por meio dos depoimentos reunidos nos autos, Sandra, irmã de Cesar, estava no bar do

Sinval junto com o namorado, Luciano. Cesar também estava lá, mas não junto ao casal e não

se sabe se ocupava outra mesa, se estava junto ao balcão ou o que fazia no bar na ocasião.

Sandra e Luciano se levantaram para ir ao banheiro, quando retornaram os seis jovens estavam

sentados à mesa que o casal ocupava. Tanto na fase policial quanto nas plenárias da Instrução

Criminal, as testemunhas afirmaram que quando o casal voltou à mesa, teve início um “bate-

boca” entre Luciano e o grupo. Luciano e Sandra reclamavam o direito de ocupar aquela mesa.

Durante a discussão, teriam sido surpreendidos por uma agressão física por parte de um

dos jovens: “quando então o declarante foi cercado por aproximadamente cinco indivíduos,

todos desconhecidos, sendo que um dos mesmos veio a agredir o declarante com uma

coronhada na cabeça”, afirmou Luciano. Alguns anos depois, na plenária do Júri, em agosto de

2000, então na condição de ex-namorado de Sandra, Luciano traz uma informação diferente:

“ao retornarem, a mesa estava ocupada por uma mulher e uns meninos ocasião em que Sandra

se alterou, a mulher acabou caindo e uns rapazes vieram para cima dela e até mesmo o depoente

recebeu uma coronhada, sangrando”. Em outra passagem, Luciano afirma “que a discussão da

Sandra com a outra moça seria em virtude da posse da mesa”. Essa versão surgiu nos autos

apenas na sessão do Júri e por isso não houve investigações a respeito da participação da mulher

no conflito entre Luciano, Sandra e o grupo.

As diferentes narrativas reunidas nos autos deixam dúvidas quanto ao princípio do

conflito entre o casal e o grupo. É recorrente a expressão “iniciou-se uma discussão” e a forma

indeterminada do sujeito na frase não permite afirmar com certeza de qual dos dois lados da

briga partiram as primeiras reclamações, agressões verbais ou físicas. De todo modo, as

informações do processo esclarecem que a tensão que se estabeleceu entre Sandra, Luciano e o

grupo rapidamente avançou e se generalizou entre todos os personagens da história. Luciano,

mais velho que os rapazes do grupo, talvez fosse maior e mais forte que os “meninos”, mas

àquela época a força física já não era mais o principal quesito para se vencer uma briga corporal.

Os adolescentes estavam armados e um deles acertou Luciano com uma “coronhada” de

revólver. O casal então resolveu abandonar a briga e sair do bar.

Sandra e Luciano já se distanciavam do bar quando ouviram o som de tiros, mas

afirmaram não terem desconfiado do que se tratava e seguiram. Mais tarde, um morador

conhecido do bairro passou pelo casal e noticiou a Sandra que seu irmão havia sido baleado no

bar do Sinval. Juliana, prima de Cesar e Sandra, também estava no bar e contou que não chegou

a ver briga alguma, mas que em dado momento percebeu que havia alguma coisa “estranha” na

movimentação do bar, “um entra e sai”. Tentou deixar o lugar, mas foi barrada por um homem

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armado que estava à porta. Instantes depois, houve “tumulto generalizado” e a moça viu

oportunidade de sair correndo. Sinval também contou não ter notado a briga entre Sandra,

Luciano e os demais. Quando houve tumulto, notou que a situação estava fora da ordem

cotidiana do bar, mas não entendia o que acontecia. Correu para fechar as portas e encerrar as

atividades, mas foi impedido por um grupo de homens armados.

Os depoimentos narram que Cesar teria se envolvido na briga para proteger a irmã e

Luciano. Na versão de Sandra, enquanto ela ainda estava no bar, Cesar fez menção de intervir,

entretanto foi desencorajado por Luciano, e por isso não viu o irmão em nenhuma briga

corporal. Para Adriano, um dos adolescentes, tudo aconteceu muito rápido: “em dado momento,

surgiu uma confusão por motivos que o declarante não sabe explicar” e “de repente um

desconhecido se aproximou dele e deu uma cabeçada e começou a dar garrafadas, sozinho

contra o grupo”. O desconhecido era Cesar.

Pessoas que estiveram no bar naquela noite contaram a Valmir que seu primo Cesar não

apenas tentou intervir na discussão como “veio em apoio à irmã e teria desferido um soco em

uma pessoa”. A participação de Cesar é reconhecida também pelo Ministério Público: “O

ofendido Cesar, no entanto, permaneceu no local e passou a tirar satisfações de ‘Chorão’

[supostamente um dos adolescentes daquele grupo] e seus acompanhantes, até que acabou por

dar uma cabeçada em um dos menores inimputáveis”. Pelo que Valmir soube, os rapazes

prometeram matar Cesar, saíram do bar, foram a uma favela próxima dali, voltaram

rapidamente, “ingressaram no bar lhe espancaram atiraram contra o mesmo e jogaram o corpo

para fora do bar”. De acordo com o laudo do Instituto Médico Legal (IML), o jovem faleceu

em decorrência dos sete ferimentos causados por disparos de armas de fogo dos calibres oito

milímetros e 0.32 polegadas. Todos os disparos acertaram Cesar pelas costas.

No decorrer das investigações, através de “perguntas aqui e ali”, os policiais que

atenderam à ocorrência identificaram que “Ferrugem”, suposto controlador do tráfico na região,

teria fornecido armas a uma quadrilha cujos membros seriam responsáveis pela morte de Cesar.

Segundo relatou o delegado ao final do Inquérito Policial, os oficiais daquele distrito foram

atender a uma ocorrência de assalto em favela da região e naquela ocasião chegaram aos nomes

de alguns adolescentes, bem como de João e Renato, todos supostos membros da quadrilha. Os

antecedentes criminais de João e Renato foram anexados aos autos, sendo que ambos estiveram

envolvidos em crimes de roubo e João em crimes de homicídio.

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Outra fonte de informações sobre a autoria foi a família da vítima. Sandra “ouviu dizer”

que um dos adolescentes era apelidado “Chorão”. Valmir conta que no velório “circulavam

boatos” indicando a autoria de Renato, João, “Quinha” e “Chorão”. É interessante notar que

todas os boatos conduziam a “Chorão”, adolescente, inimputável, e justamente o único jamais

encontrado pela investigação. Mais de um mês depois dos fatos, Adriano, menor de 18 anos

que estava recolhido na antiga FEBEM durante o processo, foi ouvido pela polícia e assumiu a

responsabilidade pelos tiros, ao menos em parte.

Contou que estava naquele bar em companhia de seu irmão Renato, “Quinha”, “Chorão”

e um outro Luciano22, que houve uma confusão em que foi atingido por uma cabeçada de um

desconhecido, o que lhe resultou em um dente quebrado, e por isso sacou o revólver que trazia

consigo e disparou. Todos do grupo teriam atirado contra Cesar, menos seu irmão Renato, que

foi protegido em suas declarações. Renato também foi ouvido naquele mesmo ano de 1996 e

alegou que estava no bar, ouviu os disparos, todavia não participou de nada. Foi o desconhecido

e inalcançável “Chorão” quem atirou.

Luciano, então com 17 anos, apresenta versão curiosamente muito parecida à de

Adriano. As cópias dos autos a que tivemos acesso apenas trazem a sessão do Júri para João,

figura que foi secundária em todos os depoimentos, não chegando sequer a ter sido reconhecido

por testemunhas. Se havia um João naquela história, não era o mesmo João sentado em frente

ao Júri em agosto de 2000. O João lá presente foi absolvido por negativa de autoria pela maioria

dos votos.

Em geral, as ocorrências entre pessoas desconhecidas possuem pouco sucesso no

esclarecimento da autoria, ao contrário daquelas originadas entre conhecidos. As investigações

são seletivas e atuam principalmente sobre fontes primárias de informações – amigos,

familiares, eventuais espectadores. Testemunhas oculares e a vítima que por ventura sobreviva

são as figuras centrais nos processos. Mas como são raras, ou sujeitas a constrangimentos, os

boatos e rumores que circulam pelos bairros assumem papel central na formulação de hipóteses

para a autoria. As provas técnicas produzidas são poucas e não permitem muitas conclusões.

22 Há dois homens com o nome Luciano nesta história. Um é amigo de Adriano e figura como suspeito, outro é

namorado de Sandra, irmã da vítima.

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Assim, com imprecisões e incertezas quanto à autoria e às circunstâncias do crime, o

delegado encerrou a investigação e encaminhou à Vara de Justiça Criminal. O promotor, ao

realizar a denúncia afirmou que Renato, João e os demais agiram impulsionados pelo

sentimento de vingança contra Cesar, qualificando o crime como torpe. Nos autos de processo

penal, é comum que os depoimentos e interrogatórios sejam registrados no discurso indireto e

por isso não constem nas peças as perguntas elaboradas pelo juiz, promotor ou defensor.

Contudo, a forma pela qual as respostas são transcritas pelos funcionários da Vara

Criminal permite levantar algumas hipóteses sobre o que é perguntado. A frase que abre este

capítulo é a resposta que Sinval deu ao Ministério Público quando questionado sobre o motivo

do crime, e é possível presumir que a pergunta do promotor foi algo como “o motivo do crime

foi banal?”, ao que Sinval teria respondido que sim, mas “qual banalidade” desconhecia, sendo

certo que o que motivou a briga foi “disputa de mesa”.

Nesse sentido, o processo 369-96 é exemplar sobre como as “banalidades” não surgem

espontaneamente nas declarações de quem se envolveu na briga, quem viu ou ficou sabendo

dos ocorridos. Nos depoimentos de amigos, vizinhos, parentes, conhecidos, transeuntes,

clientes de bar são outras as justificativas para aqueles conflitos interpessoais que irromperam

e marcaram suas trajetórias e histórias de vida. À sua maneira, as testemunhas também tentam

organizar e dar sentido à realidade dos fatos – não na forma das categorias jurídicas “fútil” ou

“torpe”, nem mesmo no mais popular e indefinido “banal” – mas através das explicações que

circulam por conversas e comentários nas ruas, nas calçadas, nos bares.

Outras características podem ser sublinhadas no caso acima. Primeiro, a proximidade

social entre os antagonistas nessas lutas. A julgar pelas informações que constam nos

formulários dos processos, são homens, muitos jovens, de mesmo perfil socioeconômico.

Porém, a essa semelhança formal se sobrepõem diferenciações, que se acessam ao observar as

construções morais em torno de vítimas e agressores. Nos processos, ambos os lados do conflito

são categorizados como vítima e agressor e a partir daí estabelecem-se discursos, narrativas,

memórias e informações que atribuem a uns a fama de bandido, valentão, louco, perigoso,

enquanto outros eram trabalhadores, bons moços, pacíficos, ordeiros.

É importante notar desde já que tais construções são produções da própria lógica interna

dos autos de processo penal. Por essa razão, não fica muito claro se aquilo que foi narrado nos

autos como uma briga entre “mocinhos e bandidos” correspondia de fato a hierarquizações

presentes naquelas ocasiões sociais em que o conflito foi produzido. Não são apenas as

construções morais em torno dos envolvidos que revelam as hierarquias sociais que foram

perturbadas pelo conflito, mas também o exame do conflito em si.

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A história recontada acima ainda serve de exemplo que será aprofundada no presente

capítulo. Da disputa em torno da mesa à luta pela defesa de dois grupos distintos, tem-se um

exemplo da produção, dinâmica e desenvolvimento do conflito interpessoal; de como se

estabelecem as hostilidades entre as partes, e como essas hostilidades podem surgir da disputa

de objetos materiais que rapidamente se transmutam em objetos simbólicos.

No processo visto acima, a discussão pelo uso de uma mesa de bar estabeleceu a

hostilidade entre dois polos que passaram a se relacionar de forma antagônica. Se a princípio

era a ocupação da mesa o foco da disputa, em seguida é direcionado para a defesa da família,

de um lado, e do grupo formado pelos jovens – ao que tudo indica, organizado em torno de

diversas atividades criminosas.

Quanto às dinâmicas, observa-se que um processo penal narra a história de diversos

micro conflitos que se desenvolvem no decorrer das interações. A violência interpessoal

também aparece como sucessão de outras violências. Foi no interior de uma “escalada de

tensões” que a violência surgiu. Ademais, a violência ocorre às vistas de todos, ainda que por

medo muitas testemunhas afirmem não ter certeza sobre o que foi visto.

Este capítulo pretende aprofundar a caracterização dos conflitos interpessoais ocorridos

nos bares. Na primeira seção, fazemos breve reconstituição de como as ciências sociais no

Brasil pensam o “significado” que os bares possuem na vida social. A seguir, com base nas

informações dos autos, verificamos quem são os protagonistas das histórias, tentando traçar

quais são as diferenças e semelhanças que se estabelecem entre os envolvidos. Por último,

passamos em revista os casos selecionados para o estudo, destacando aqueles que julgamos os

mais representativos, objetivando compreender como surgem e se resolvem os conflitos que

estão por trás dos crimes de homicídio.

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Os significados do bar

Ainda que a vida nos bares da cidade, seus tipos sociais, suas práticas, sua estética e sua

linguagem sejam temas frequentes tanto na literatura quanto na música popular brasileira, há

pouca reflexão sociológica a respeito de seu significado. O dicionário Aurélio mostra que a

palavra botequim é adaptada de botica. Os boticários representam uma das figuras sociais a qual

se poderia recorrer em caso de doenças infecciosas e suas boticas, até meados do século XIX,

eram lojas onde se encontravam elixires, tônicos, vinhos, e diversos outros preparados

terapêuticos. Enquanto os clientes esperavam a preparação daquelas drogas, os homens livres

se encontravam ao balcão, e nesse sentido os botequins são espaços sociais em que o consumo

desses produtos era mais um dos motivos para se estar lá, além da jogatina de cartas ou dados,

e da discussão política, religiosa ou de quaisquer outros assuntos, proibidos ou nãos (EDLER,

2006).

Alguns estudos fazem referência às farmácias e confeitarias como “ponto de encontro”,

e como os bares ocupariam esse papel entre os membros da classe média no centro da São Paulo

das décadas de 1930/40 (GAMA, 1998). Porém, toda a história que existe entre o fim das

boticas e o surgimento dos bares e botequins como os conhecemos hoje, de ocupação popular,

ainda está para ser escrita.

No que se refere à relação entre bares e conflitualidade urbana, os bares são alvo de

estudos epidemiológicos e de intervenções políticas. Nesse sentido, entre os anos 2001 e 2006,

ao menos 16 municípios da Região Metropolitana de São Paulo implementaram políticas de

controle sobre o consumo de álcool através da “Lei Seca”, restringindo o horário de

funcionamento dos bares como forma possível da redução de crimes de homicídio (MOURA,

2011, p. 47). Alguns dados apontam certa correlação entre álcool, bares e homicídio, mas não

há estudos aprofundados sobre o tema.

Sabe-se, por exemplo, que em 2001, São Paulo e cidades da Região Metropolitana como

Diadema tiveram aproximadamente 50% dos registros de homicídio próximos a bares ou com

diagnóstico de ingestão de álcool pelos envolvidos (MOURA, 2011, p. 50). No município de

São Paulo a “Lei Seca” não foi implementada como legislação específica, e sim na forma de

acordos firmados entre órgãos públicos e estabelecimentos comerciais, em especial nas regiões

mais ao sul da capital, como Campo Limpo e Capão Redondo.

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Os argumentos que subsidiam iniciativas como a “Lei Seca” parecem repousar

exclusivamente em considerações epidemiológicas e da psiquiatria social. O álcool em

determinadas quantidades altera funções cognitivas e consequentemente a capacidade de

avaliação de risco, diminuindo a capacidade de autocontrole e expondo os consumidores a

situações de conflito no qual as reações podem ser mais explosivas.

Contudo, a mesma explicação cabe tanto para mortes provocadas por brigas de bar

quanto para óbitos por acidente de carro. Esses discursos ignoram o papel social e cultural do

consumo do álcool. Em que pese a relativa influência da restrição ao consumo de álcool na

diminuição das ocorrências de homicídio, medidas como essa acabam por reforçar a imagem

dos botequins como espaço social violento, naturalizando os conflitos e enfocando a ação

pública não nas causas das hostilidades interpessoais, mas nos meios que potencializam os

desfechos violentos.

Em um dos estudos pioneiros sobre os bares no Brasil, Luiz Antônio Machado da Silva

(1978) realizou etnografia em dois bares, um localizado em favela de Fortaleza, outro na zona

sul da cidade do Rio de Janeiro. Para Machado da Silva, antes de tudo a bebida alcoólica é

atividade social rotineira que aquece e facilita as rodas de conversa – participativas e abertas,

que não devem excluir nem mesmo os mais embriagados, respeitados certos limites de

embriaguez.

Estudos mais recentes sublinham no consumo de álcool as “maneiras de beber”

(NEVES, 2003). Nesses estudos, a ingestão de bebida alcoólica e o ato de frequentar bares

aparecem associados à construção de identidades viris, sendo o álcool mediador e o bar lócus

de sociabilidade masculina adulta (NEVES, 2003, p. 77; 80). Nesse sentido, abre-se a

possibilidade de explorar consumo de bebidas alcóolicas pela ótica das relações sociais, como

prática em torno da qual vínculos sociais são criados, mantidos ou rompidos.

Nas etnografias de Machado da Silva (1978, p. 83), uma das principais características

dos botequins está no perfil social dos frequentados: em geral a “classe baixa”, que o autor

compreende como formada pelos trabalhadores ocupados na construção civil, trabalhadores

temporários, funcionários públicos de baixo escalão, ambulantes, todos com semelhante baixo

nível de instrução e reduzido poder aquisitivo. A homogeneidade dos perfis sociais esconde

uma pluralidade de figuras sociais que se relacionam a partir das diferenças: os frequentadores

assíduos e os passageiros; os trabalhadores de “carteira assinada” e os biscateiros à procura de

ocupações; os “bêbados” e os que mantêm o “autocontrole”.

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Os assuntos mais frequentes são o trabalho – em geral atividades “rudimentares” de

eletricista, bombeiro, pedreiro, carpinteiro - sobre as habilidades técnicas e a resistência física

exigida na ocupação (MACHADO DA SILVA, 1978, p. 99). Circulam nestas conversas,

informações sobre legislação trabalhistas, garantia de direitos, cálculos de indenização. Outro

assunto é o futebol, tema que aliás tem a capacidade de atravessar qualquer conversa em

qualquer classe social. Fala-se também sobre casos amorosos, em especial das “proezas

masculinas à cama”. Também se contam as histórias policiais e os crimes da região (Idem, p.

106).

O “sentido do botequim” explorado por Machado da Silva (1978, p. 108) acha-se no

papel do bar como resposta à constante perda de eficiência da família como sistema de

referências para o indivíduo. Deslocada do contexto “original” rural, a família passaria a

constituir-se sobre bases funcionais, pragmáticas e contratuais. Nem as comunidades

encontrariam espaço em meio urbano, nem as novas vizinhanças seriam capazes de se

consolidar como organizações de apoio aos indivíduos na busca por um sentido na vida. Em

contrapartida, consoante o autor, os fregueses dos botequins encontravam naqueles espaços

sociais solidariedades que auxiliavam a enfrentar os problemas familiares (Idem, p. 109). Um

personagem essencial para se compreender o bar é o proprietário, sobre quem recai o poder de

decidir quais empréstimos são ou não legítimos, além de exercer certo papel de controle

policialesco (idem, p. 91).

O historiador Sidney Chalhoub (1986) identifica nos botequins da “Belle Époque”

carioca o exercício de processos de disciplinamento ao trabalho das classes populares, cujos

donos de bares cumpriam papel quase tão importante quanto a polícia no controle social. Como

espaços sociais de controle dos comportamentos, a restrição de certos hábitos populares era

central na estratégia de disciplinamento da nova classe trabalhadora que surgia. Pelo fato de

Chalhoub ter realizado seu estudo com base em autos de processo criminal, a experiência do

conflito no botequim é evidentemente presente.

Neste sentido, o autor percebeu nos conflitos de botequim o antagonismo latente entre

proprietário e fregueses, que revelaria uma luta pela manutenção da ordem social nos bares o

que, por sua vez, acabaria por colocar os proprietários, muitas vezes, ao lado das ordens oficiais

de força, os “meganhas”, além de conflitos que apresentavam “rivalidades de raça e

nacionalidade”, no interior da classe trabalhadora e entre seus membros e os proprietários.

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Estudos mais recentes destacam a masculinidade como um traço marcante de

diferenciação entre os frequentadores. Gestaldo (2005, p. 110) identifica, através de pesquisa

em alguns bares gaúchos, a formação de uma Homossociabilidade, forma lúdica de interação

entre homens. O futebol e a torcida, enquanto práticas sociais, inserem na sociabilidade de bar

certa dose de competitividade (Idem, p. 110).

Como espaço masculinizado, os bares se tornam “territórios de expressão de

expectativas, gostos e valores compartilhados entre homens, acerca de significados

relacionados ao gênero masculino” e “sobre os quais os homens negociam significados e

percepções quanto ao modo adequado de estar, ocupar e apresentar-se naquele espaço”

(JARDIM, 1991, p, 88). O homem de bar espera encontrar lá iguais com os quais compartilhar

certas proximidades e também distinções (Idem, p. 92). Nos estudos e pesquisas compulsados

nesta dissertação, a participação das mulheres na vida de bar não é investigada.

Nos autos de processo penal, os bares são espaços de múltiplos usos e significados.

Local de encontro nos bairros pobres, onde se desenvolvem atividades ligadas ao lazer e ao

trabalho, às vezes de forma concomitante. Jogam palitinhos, sinuca, cartas, assistem ao futebol

pela televisão, acompanhados de cerveja ou “pinga”. Jogam conversa fora, discutem

amenidades, compartilham oportunidades de trabalho – em canteiros de obra ou como

segurança particular – ou trocam informações sobre oportunidades ligadas ao comércio de

drogas. O bar fica ao lado de casa ou muito próximo a ela, é o lugar onde se circula sem motivo

aparente, sem razão espacial, em que se está sempre de passagem, para ver o que está

acontecendo na vida fora de casa, para “espairecer”, “tomar um ar”.

Além de local de descanso e diversão, os protagonistas e os coadjuvantes das histórias

encontram nos bares espaço para reforçar laços de amizade e solidariedades. Muitas vezes, é

no nódulo das relações “harmônicas” que se estabelecem hostilidades. Os bares são espaços

sociais onde a colaboração e a harmonia convivem em proximidade com antagonismos e

competição – a linha divisória é tênue. Amizades se transformam em oposições, quando o

assunto é o pagamento de bebidas, e a intenção de se favorecer pagando menos rodadas de

cerveja pode fraturar laços de amizade.

Portanto, para explicar as brigas de bar, mais do que simplesmente associar aos efeitos

biológicos da ingestão alcoólica, é preciso compreender os conteúdos e as expectativas

presentes nas sociabilidades, nas relações e interações que se desenvolvem no bar. As práticas

sociais desenvolvidas nos botecos o constituem como um espaço de construção de autoimagem,

de conquistar o respeito entre os demais. O que nos leva a questionarmos em que medida os

conflitos são expressões de reciprocidades rompidas, de disputas em torno dos modos

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adequados de se comportar, de estar em presença mútua, de ocupar o bar. O exame das brigas

de bar buscará identificar as proximidades e distinções que alimentam hostilidades e geram

conflitos.

Os bares e os bairros

Esta seção apresenta algumas características socioeconômicas dos distritos

administrativos onde os casos de briga de bar foram registrados. A proposta reside em fornecer

um panorama geral das condições de vida da população naquelas regiões, pois não pretendemos

explicar os conflitos a partir das condições mais gerais. Os trinta processos que envolveram

“brigas de bar” ocorreram em 14 dos 24 distritos delimitados pela pesquisa realizada no NEV-

USP. As ocorrências foram registradas segundo o endereço dos bares.

Os 14 distritos censitários da cidade de São Paulo abrangem uma área de 17.810

hectares, com população de 1.355.173 habitantes no ano de 1991, e 1.535.338 habitantes no

ano 2000, segundo dados dos censos demográficos de 1991 e 2000 do IBGE. Os bares estão

localizados em alguns dos distritos mais populosos da capital: Campo Limpo, Capão Redondo,

Freguesia do Ó, Pirituba e Rio Pequeno, entre outros, todos com mais de cem mil habitantes e

com destacada densidade populacional. Contrastam com distritos menores, como Barra Funda,

Itaim Bibi, Vila Andrade, Jaguaré, Perus todos com população abaixo dos 50 mil habitantes

naquele período. Há ainda distritos intermediários a esses polos, com população entre 50 a 100

mil habitantes, Jaraguá, Pinheiros, Raposo Tavares, Vila Sônia.

A maioria dos autos fornecem os endereços das vítimas e dos agressores, para casos de

autoria esclarecida, o que nos permitiu verificar se vítimas e agressores eram moradores dos

mesmos distritos dos bares, ou se moravam em outros bairros de São Paulo, ou mesmo em

outros municípios. Verificar tal correlação importou para compreendermos melhor os usos dos

bares pelos envolvidos nas histórias, bem como ter alguma noção do papel do bairro na vida

cotidiana destes personagens.

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Na maior parte das ocorrências (N=24), tanto vítima quanto agressor morava até 2km

de distância do bar onde ocorreu o crime de homicídio, sendo que em muitos casos a distância

não ultrapassava mil metros. Da mesma maneira, vítima e agressor moravam próximos um do

outro. Em poucos casos, a distância entre vítima, agressor e o local dos acontecimentos não

supera os 5km, nos distritos de Pinheiros e Barra Funda. Em número reduzido de ocorrências

um dos envolvidos morava próximo ao bar e o outro habitava distrito ou município diferente

(Jardim Ângela e nos municípios de Taboão da Serra, Juquitiba, Osasco) ou ambos moravam

mais afastados dos locais dos fatos (no distrito de Sapopemba ou no município de Juquitiba).

Os casos registrados nos distritos de Pinheiros, Barra Funda e Itaim Bibi se destacam

por não serem os distritos de habitação dos envolvidos. A leitura dos autos evidencia o caráter

passageiro dessa clientela naqueles estabelecimentos. O distrito de Pinheiros abriga ao menos

dois polos de intensa concentração desse tipo de serviço na cidade: a Vila Madalena, destino de

jovens adultos de classe média; e, mais abaixo, a região do Largo da Batata, palco do processo

98-95, que concentra bares mais populares e de intensa circulação devido à oferta de transporte

público. As situações de conflito que ocorreram na Barra Funda também destacam a capacidade

daquele distrito em atrair visitantes pelos serviços de lazer. Contudo, há ao menos um caso em

que a Barra Funda se apresenta ainda como polo industrial na cidade de São Paulo, uma

característica que o distrito vem perdendo nos últimos anos, transformando-se em área marcada

pelos terrenos vazios (PUBLIFOLHA, p. 181).

Nos demais distritos, em que os endereços das ocorrências são próximos aos endereços

declarados pelos envolvidos, um traço marcante é a presença de população de classe média e

popular. Segundo dados do Censo 2000 realizado pelo IBGE,23 naqueles distritos

predominavam domicílios com faixa de renda per capita inferior a 5 salários mínimos, faixa

abaixo do “salário mínimo necessário” para o período,24 conforme cálculo do Departamento

Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE).25

23 Disponível em: <http://produtos.seade.gov.br/produtos/msp/ren/ren2_001.htm>. Acesso em: 02 nov. 2015 24 Disponível em: <http://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo.html#2000>. Acesso em: 02 nov.

2015. 25 Em dezembro do ano 2000, segundo informações do DIEESE, o salário mínimo nominal era de R$ 151,00,

sendo o salário mínimo necessário o equivalente a 6 vezes esse valor, R$ 1.004,26. Destaca-se que os dados do

Censo 2000 para rendimento salarial por distrito administrativo do município de São Paulo foram obtidos através

de consulta ao “Infocidade”, website Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (SMDU) de São Paulo.

Os dados de rendimento foram organizados por faixas salariais: domicílios com até 3 salários mínimos, de 3 a 5,

de 5 a 10, de 10 a 20 e acima de 20 salários mínimos. Portanto, uma comparação rigorosa entre os valores

projetados pelo DIEESE e os rendimentos domiciliares por distrito administrativos, seria necessário desagregar os

dados do Censo, algo que foge ao escopo de nossa pesquisa.

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Alguns exemplos podem ser listados. Os dados que foram reunidos sobre o Capão

Redondo apresentam o distrito como região de domicílios e famílias com baixo rendimento

(cerca de 91% dos domicílios com renda per capita inferior a cinco salários mínimos). No que

diz respeito à moradia, estima-se que 13% da população do Capão Redondo residia em

domicílios em favelas, ocupando uma área de mais de um quilômetro quadrado. De fato, tais

condições foram retratadas nos autos de processo penal registrados naquela região.

Na região Oeste do município, destaca-se o Jaguaré, distrito com mais de 60% dos

domicílios com faixas de renda inferior a cinco salários mínimos. Nos casos examinados, o

distrito esteve representado por conflito ocorrido no interior da favela Vila Nova Jaguaré, que

à época abrigava cerca de 12 mil pessoas em aproximadamente 3500 barracos (KOWARICK,

2009, p. 327). A noroeste, destaca-se o distrito de Pirituba, com ao menos três histórias e cujas

características em muito se assemelham aos anteriores.

Assim, a fim de aprofundar a compreensão da relação entre os bares e os arredores da

cidade seria necessário realizar estudo qualitativo específico nos bairros. Os dados gerais para

os distritos administrativos tratam grandes áreas como espaços homogêneos e acabam por

ocultar as nuances internas nas paisagens dos distritos. Geralmente são bairros residenciais com

condições de moradia que variam das ocupações populares às residências de classe média.

Perfil dos protagonistas

Nos processos aqui examinados, os protagonistas são aqueles que se envolveram como

vítima, agressor ou tiveram alguma participação na produção das hostilidades e do conflito. As

informações para idade, naturalidade (estado de origem), ocupação ou cor foram obtidas a partir

dos formulários policiais. Na maior parte dos casos, as vítimas e os agressores são homens,

quase sempre jovens até cerca de 30 anos de idade – em alguns casos mais velhos, entre 50 e

60 anos, oriundos da classe trabalhadora, moradores dos bairros mais populares da cidade, de

baixa escolarização e com ocupações muitas vezes instáveis. Muitos são migrantes de outras

regiões do país, em especial estados do Nordeste, como Bahia e Pernambuco.

Como a vítima do processo 369-96, alguns se encontravam desocupados naquela época,

seja porque ainda eram jovens estudantes por volta dos 18 anos de idade, seja porque estavam

desempregados. Das vítimas em que se obteve informação quanto à ocupação, aparecem

pedreiros, serventes, mestres de obra, ajudante-geral, pintor ou mecânico de automóveis,

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metalúrgicos em empresas pequenas, chapeiros, motoboy, carregador, “maçariqueiro”, vigilante

ou segurança de bairro.

Em alguns casos, figuram como vítimas também pequenos empresários ou

comerciantes, estes em geral donos do bar, em muitos casos pequenas lojas que se

desenvolveram como extensão da própria habitação, improvisadas na garagem ou em algum

outro cômodo anexo. Também aparecem como vítimas das brigas de bar policiais militares fora

de serviço. Os “agressores” são do mesmo perfil das vítimas em idade, escolarização,

naturalidade e ocupação: pedreiros, balconistas, desempregados, ajudante-geral, operador de

máquinas, vendedor ambulante, mecânicos, vigilante noturno, caseiro, feirante, desempregados

ou desocupados. Alguns comerciantes. Um policial militar.

Quanto à cor, a maioria das vítimas ou agressores são pardas ou brancas, poucos são

pretos. No entanto, as informações sobre cor são dúbias por falta de critérios claros do tipo de

registro. Observa-se uma “dança das cores” (ADORNO, 1995): a cor aparece no boletim de

ocorrência, no inquérito policial, e nos formulários de instauração do processo penal e não é

estranho que em cada uma dessas peças uma mesma pessoa tenha mais de um registro diferente

para cor. Por exemplo, o infrator no processo 98-95 aparece como “pardo” no boletim de

ocorrência e “branco” no processo penal.

Frequentemente, os formulários da polícia são documentos limitados para captar a

dinâmica social no que diz respeito às ocupações e formas de sobrevivência dos protagonistas

destas histórias. São registros formais, declarações fornecidas pelos interrogados, parentes ou

pela vítima no ato de coleta dos depoimentos/interrogatórios. Não obstante, na leitura dos

processos se percebe a frequência com que essas pessoas transitam entre ocupações. Este é um

elemento fundamental, de difícil mensuração e que demonstra as intermitências e

descontinuidades a que estavam sujeitos os envolvidos nesses casos. Se, de um ponto de vista

formal, os protagonistas apresentam perfis que os aproximam socialmente, a leitura dos casos

demonstra outras possibilidades de diferenciação que o “olhar” macro não consegue captar.

São as construções morais que diferenciam e hierarquizam vítimas e agressores. Como

no caso narrado inicialmente (Processo 369-96), Cesar era um bom filho, irmão, vizinho

enquanto os rapazes do grupo que ele enfrentou eram “bandidos”. Os discursos das testemunhas

e as informações que a polícia recolhe através dos “boatos” associam as vítimas à inocência,

pureza, justeza e retidão e os acusados, em contraste, aos excessos, à crueldade. Como resumiu

o delegado do caso 369-96, Renato e João, “demonstram com suas atitudes serem pessoas frias

e impiedosas” demonstrado pelos antecedes criminais e pela “maneira e os motivos que deram

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causa ao presente crime de morte”. Para o delegado, além de frios, os indiciados não mostraram

constrangimento em corromper os adolescentes para atividades violentas.

Outra construção moral constante é a do “valentão”, “encrenqueiro”. No processo 445-

91, os depoimentos apontam que o agressor, Eliseu, 23 anos, natural de SP, pintor de autos,

desempregado, era “justiceiro” no bairro e todos comentavam de outros assassinatos que ele

teria cometido. Um dos depoentes daquele caso afirmou que, em certa ocasião, Eliseu chegou

na padaria do bairro e disse aos ali presentes que, em comemoração ao seu aniversário, todos

iriam beber cerveja– e quem recusasse teria de se ver com ele depois. Pelos autos é impossível

saber se Eliseu era de bravatas ou de ameaças reais, de todo modo, a sua principal característica

registrada nas peças é a valentia. No processo 320-95 o agressor é um “louco”, que já tinha

“tentado agarrar uma mulher na rua tempos antes”. E no processo 297-96, vítima e agressores

seriam trabalhadores, mas a vítima era conhecida por “não levar desaforo para casa”,

principalmente quando bebia.

A bebida aparece nos processos como algo que altera a índole, a personalidade real.

Também aparecem as “drogas”, mas em menor medida. Segundo informam os depoimentos,

no processo 475-91 o réu disparou contra o bar porque o proprietário havia recusado vender

cerveja. Os depoentes, em geral vizinhos ou amigos, contam que o rapaz estava com “seu

comportamento alterado”, não se sabe se “pelo uso de drogas ou bebidas alcoólicas”. No

processo 182-93, enquanto a vítima era “gente boa, gente trabalhadora”, Aparecido, “Cidão”,

era o oposto: “além de briguento, metido a valentão, tentava intimidar as pessoas na rua”, era

“violento e procurador de brigas”, e que “bebe muito e fica descontrolado”.

Não raro, a personalidade moral reprovável dos acusados está associada a características

próprias do “meio social” em que viviam. Para a mãe de Cesar (Processo 369-96), o bairro não

era seguro, “trata-se de local violento sede de diversas outras mortes também violentas e matam

muito”. Uma das fontes de insegurança coletiva reside na presença de uma favela nas

imediações. As imagens negativas do bairro circulam e se misturam à figura de “moradores

indesejados”. Ao menos é como aparecem nos depoimentos dos processos penais. De acordo

com os familiares de Cesar, durante o velório circulavam comentários de que os “menores”

eram “moradores da favela próxima dali”, lugar violento, perigoso.

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Assim, sabe-se que os envolvidos nas “brigas de bar” eram socialmente próximos pelas

características socioeconômicas, condições de sobrevivência muito similares, com as mesmas

dificuldades e oportunidades cotidianas. O perfil social é também composto pelas “construções

morais”, mas há dúvidas se tais distinções e hierarquizações impactaram na produção do

conflito, ou se sua presença nos depoimentos é fruto da estrutura de disputas internas ao

processo penal. Ou seja, pela leitura dos autos apenas não se faz possível ter a medida correta

se os conflitos foram organizados pela tensão entre “bandido” e “mocinho” e, em que medida,

tais caracterizações sejam posteriores ao conflito em si.

Portanto, a leitura dos perfis sociais revela que os homicídios são resultado de conflitos

entre pessoas de características sociais muito parecidas, ou melhor, características que podem

ser assemelhadas quando se observam tais indivíduos e interações por uma perspectiva macro,

que tenta compreender a sociedade a partir de condições que estruturam as relações sociais. O

que as macro explicações não parecem ser suficientes para responder é: o que transforma os

iguais em diferentes? Se o conflito social pode ser compreendido como o estabelecimento de

fronteiras que separam unidades associativas, quais são os limites e quais são os subgrupos que

se formam entre os membros da chamada “camada popular” ou “classe trabalhadora”?

A dinâmica das brigas

Visando facilitar a compreensão da produção social dos conflitos, os casos narrados a

seguir foram organizados a partir de uma categorização básica: a natureza dos vínculos sociais

entre os envolvidos. Diferenciamos entre casos nos quais os vínculos eram conhecidos daqueles

que eram desconhecidos. Entre os conhecidos, descobrem-se vínculos os mais diversos:

familiares, de trabalho, vizinhança. Já entre os “desconhecidos” encontram-se tanto casos em

que os autos foram incapazes de fornecer a informação sobre os vínculos entre vítima e agressor

quanto aqueles cujo vínculo entre os protagonistas foi justamente a relação conflituosa, como

no caso 369-96 destacado acima. Cesar, sua irmã e seu cunhado não conheciam o grupo oposto,

e todo o conflito se desenvolveu a partir do momento que se estabeleceu a interação entre os

dois lados. Merecem especial atenção os desconhecidos, pois, sem dúvida, é entre esses que o

conflito interpessoal aparece como surgido “no momento”, no “calor dos acontecimentos”, de

“imediato”.

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Brigas entre conhecidos

Ao examinar os conflitos entre pessoas que se conheciam, identificamos outra

diferenciação possível. Também entre os conhecidos há casos em que o conflito se justificou

tanto por tensões “imediatas” quanto por causas antecedentes. É entre esses últimos que surgem

histórias de conflitos previamente arquitetados pelos agressores, em que houve planejamento

por uma das partes.

Alguns dos casos com hostilidades antecedentes apresentaram indícios de execução

sumária: intenção prévia de eliminar a vítima, um modus operandi tal que a vítima não teve

condições de se sobrepor às agressões (disparos pelas costas, através de imobilizações). Dos

depoimentos, o que se recupera é que não houve discussão entre as partes, nem uma “escalada

de tensões” e sim um “ataque” de uma parte contra outra.

Um dos casos examinados (Processo 1691-97) configura um exemplo extremo pelo fato

de as investigações não conseguirem indícios das motivações para a morte de José, 22 anos,

natural de São Paulo, analfabeto e desocupado. Sabe-se que o jovem estava sempre no bar

porque o estabelecimento funcionava em prédio alugado por sua família, e José mesmo morava

na parte superior daquele imóvel. As investigações conduziram a um suspeito, João, 26 anos,

natural do Ceará, 1º grau incompleto e pedreiro desempregado.

João foi encontrado próximo ao local dos fatos com um ferimento na perna causado por

disparo de revólver. Negou a autoria o tempo todo e foi absolvido pelo tribunal do Júri. Das

ações contra a vítima José, tudo o que se sabe é que dois homens adentraram o bar com as armas

já em punho, foram na direção de João e já com o jovem rendido, “voltaram-se para os presentes

e perguntaram se aquele indivíduo possuía apelido, mas ninguém falou o apelido de José então

passaram a desferir vários tiros contra o mesmo”.

Outros exemplos merecem ser mencionados. No processo 1293-92 um grupo de jovens

estacionou um carro em frente ao bar de João, 25 anos, desceu e disparou várias vezes contra

ele. Segundo o promotor de Justiça, “sem nada dizer, na ausência de motivo aparente”, atiraram

e fugiram. As investigações policiais conduziram a Vanderlei, vulgo ‘Delei’, 21 anos, primeiro

grau incompleto, casado, pai de um filho, ajudante-geral e vendedor ambulante; e Roberto,

vulgo ‘Tito’, analfabeto, solteiro, vendedor ambulante. Cogitou-se ainda a participação de

Eduardo, “menor inimputável” que à época estava recolhido na FEBEM. Foi Eduardo quem

assumiu a responsabilidade pela autoria.

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De acordo com os policiais, aqueles jovens formavam um grupo de “justiceiros” do

Campo Limpo. João sobreviveu aos disparos e sua versão é a principal fonte de informações no

processo. Estava sozinho aquela tarde no bar quando “entraram dois indivíduos armados e

passaram a atirar em sua direção”, João reconheceu “Delei” como autor dos disparos e informou

que estava devendo dinheiro a ele porque os “justiceiros” cobravam “pedágios” dos

comerciantes. Segundo Antônio, sócio de João, o grupo estava “extorquindo os comerciantes

do bairro e matando quem se negasse a pagá-los”. Roberto “Tito” e Vanderlei “Delei” negaram

as acusações durante todo o processo.

No segundo exemplo, processo 841-91, uma suposta briga por domínio em uma favela

da Zona Oeste aparece amalgamada a questões de cunho familiar. Os depoimentos são apoiados

em “boatos” que circulavam pelo bairro, o “ouviu dizer”. Segundo a peça da denúncia, Messias,

43 anos, pernambucano, comerciante, trabalhava para “Cheiroso”, “chefe da favela do Jaguaré”

e Luiz “Preto”, paraibano de 35 anos, “chefe da favela do Palmolive”. Ainda de acordo com o

Ministério Público, Luiz “Preto” e “Cheiroso” “disputavam o controle sobre aquelas favelas”.

Segundo os boatos, Luiz “Preto” acusava Messias de vigiar a favela do Palmolive em nome de

“Cheiroso”. Naquela noite de sábado de 1991, havia cerca de dez pessoas em um bar na favela

do Palmolive e, segundo alguns frequentadores, Luiz “Preto” chegou avisando que seu assunto

era com Messias e pediu que os demais se afastassem; levou a vítima para fora do bar, passou

a discutir, afirmando a Messias “você expulsou os meus parentes lá de cima” e “cadê as armas

que você tomou?”.

Messias negava e Luiz disparou com espingarda de “calibre 12”. Outras testemunhas

teriam presenciado, mas não depuseram por medo de retaliações na favela. A estratégia do

acusado foi alegar que não seria o autor dos disparos, e seu defensor questionava o conjunto

probatório: “boatos nada mais é do que a notícia que corre no público, e geralmente não possui

fundamento, muito menos confirmação, portanto a notícia atordoada, vaga, e rumorosa, não

deve ser de forma alguma levada em consideração”. Contrariando a indignação do advogado

de defesa, o que se observa nos processos penais para crime de homicídio é o rumor como uma

fonte prioritária para as investigações policiais. Luiz foi condenado a 14 anos de prisão. A

defesa recorreu e perdeu em todas as instâncias (pelo menos nas peças a que tivemos acesso).

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Outro caso bastante semelhante é o processo 513-94 em que Paulo “Gari” foi acusado

de matar Edmundo. Segundo os depoimentos, Paulo “Gari” matou “Paulinho”, primo da

primeira esposa de Edmundo. Circulavam pelo bairro muitos boatos de que Edmundo teria dito

que mataria Paulo “Gari” por aquilo. No dia dos fatos, de acordo com os moradores da favela

do Jardim Jaqueline, “Gari” circulava armado com espingarda dizendo que “iria cobrar uma

bronca”. “Gari” chegou ao bar acompanhado de Antônio, que acaba figurando como coautor,

mas não se sabe ao certo sua participação. Segundo depoimentos, no bar de Edmundo, “Gari”

disse a Antônio, “agora cabeleira, fala o que o Edmundo falou que eu vou acertar ele”. Edmundo

tentou correr, mas “Gari” atirou à curta distância. Boatos apontavam que “Gari” reivindicava

certo controle sobre a “favela do Jaqueline”.

No plano das motivações, à primeira vista, as justificativas para os casos vistos até aqui

parecem tão distintas entre si quanto são particulares cada caso. No processo 1293-92, a suposta

“cobrança de pedágio” revela que antes dos ataques acontecerem os dois lados da história já se

relacionavam de forma antagônica, existia um conflito latente ou uma hostilidade que se

mantinha pela extorsão praticada pelos “justiceiros”. No processo 841-91, Messias e Luiz se

conheciam e mantinham relação tensa, ainda que distanciada, em virtude de suas supostas

posições na hierarquia de controle do crime naquela região. Nesse caso, o estopim ocorreu

quando Luiz soube que Messias havia expulsado sua família da favela, além de supostamente

ter roubado armamento seu. No caso 513-94, Edmundo e “Gari” também nutriam rixa antiga e

os boatos de que Edmundo prometia “pegar” “Gari” foram decisivos para que este último se

antecipasse a “cobrar a bronca” do primeiro.

Ao mesmo tempo, podemos delinear alguns traços comuns. Primeiro quanto às

construções morais em torno dos agressores: “bandidos violentos” ligados a atividades como o

tráfico ou outras formas de domínio sobre o território. Quanto às motivações, parecem estar em

jogo relações sociais marcadas por mando-obediência e a hostilidade surge quando há

desrespeito ou desafio às posições através de ameaças ou do descumprimento de expectativas

de conduta. Os agressores nesses casos seriam mandatários de posições sociais que se

pretendem estabelecer de forma hierárquica e o desafio à autoridade do “dono do pedaço”

fundamenta o estabelecimento do conflito. O comerciante João desafiou os “justiceiros”;

Messias desafiou Luiz quando expulsou sua família da favela; Edmundo desafiou “Gari”

quando ameaçou se vingar.

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Quanto à dinâmica do conflito, foi destacada a característica de ataque e não de “briga”,

nesses exemplos. O objeto dos ataques consistiu na eliminação do oponente e a violência

interpessoal foi produzida antes mesmo das interações e planejada pela parte executante.

Destaquemos que a eliminação planejada dos oponentes se realizou às vistas de todos os

frequentadores do bar e, nesse sentido, embora as agressões buscassem um alvo específico, elas

ao mesmo tempo compreendiam mensagens endereçadas ao conjunto dos espectadores,

moradores dos bairros, frequentadores do bar.

Adiante, prosseguimos com os casos nos quais os vínculos entre as partes eram

conhecidos e cujas tensões também foram antecedentes, porém as dinâmicas do

desenvolvimento do conflito foram diferentes dos “ataques” ou das execuções examinados

acima. Os agressores desses casos foram ao bar à procura da vítima, para “cobrar” um bem

material ou simbólico, uma quantia em dinheiro, um objeto pessoal, um comentário considerado

ofensivo ou algum comportamento considerado inadequado.

O processo 467-92 representa um exemplo de conflitos que se resolvem nos bares,

todavia, suas raízes residem em outros pontos nodais das relações cotidianas. Adilson, de idade

desconhecida, “operador de extrusor”, trabalhava na mesma indústria de metalurgia que

Lairton, 30 anos, prensista. Suas rotinas eram muito parecidas: chegavam à empresa numa das

diversas levas de ônibus que transportavam os funcionários, moravam ao menos a duas horas

de distância do emprego, assumiam o turno das 6 às 14 horas, almoçavam no refeitório da

empresa. Conheciam-se de vista, não trabalhavam no mesmo setor e não mantinham relação de

hierarquia em função da profissão.

Os autos contam que dois dias antes dos atos, Adilson e Lairton tiveram um “entrevero”

no refeitório da empresa durante o horário de almoço. Lairton passou por Adilson, esbarrou em

seu cotovelo e teria reclamado da forma como Adilson estava sentado, ocupando muito espaço

à mesa, como quem “tem asas, não braços”. Segundo Adilson, houve breve discussão, Lairton

o mandou “calar a boca” e o ameaçou com uma faca pequena. Após aquele episódio, Adilson

reclamou a um funcionário no “Departamento de Pessoal” da empresa. O funcionário foi ouvido

nos autos e disse que “chamou a atenção de Lairton” e “ambos foram chamados

individualmente e orientados de que tal fato não podia mais ocorrer, uma vez que violava as

normas da empresa”.

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Lairton então teria ficado inconformado com a atitude de Adilson e passou a ofendê-lo,

“não honrava o bigode” e “você é mariquinha mesmo, não tem nada a ver colocar no

departamento pessoal”. Lairton também ameaçaria “pegar” Adilson “de qualquer jeito”. Na

quarta-feira seguinte, mês de julho de 1992, como de costume os funcionários que chegavam

nos ônibus (os “fretados”) paravam na lanchonete em frente à empresa para comprar cigarros,

tomar café, fazer um lanche, conversar. Segundo contam as testemunhas, Adilson chegou,

olhou para o rosto da vítima, puxou de dentro da blusa sua arma e atirou. A versão do acusado

foi a da legítima defesa contra menção da vítima de sacar um revólver. Adilson foi condenado

a 12 anos de reclusão por “prática de homicídio singelamente qualificado”.

No que diz respeito às ações, o processo narrado acima se assemelha aos vistos

anteriormente pela premeditação do ataque e pela ausência de registro de luta corporal. Ao

contrário dos anteriores, em que a disputa por poder ligada à realização de atividades criminais,

ou atividades às bordas da criminalidade, o conflito entre Lairton e Adilson revela outras fontes

de tensão. O que os autos permitem concluir é que a hostilidade entre os dois se estabeleceu no

refeitório porque Lairton se irritou com o comportamento de Adilson. Mas o que traçou a rota

do conflito foi o fato de Adilson ter reclamado de Lairton ao departamento de pessoal da

empresa, atitude que expôs Lairton e seu emprego.

A partir daí as tensões são levadas a outro patamar, porque Lairton teria ficado

inconformado com a maneira de agir de Adilson: não era daquela forma que homens deveriam

resolver suas questões, envolvendo terceiros, muito menos ligados aos empregadores,

manchando a imagem de bom trabalhador, potencialmente desestabilizando sua posição no

emprego. Outro elemento interessante é como o bar surge nessa história. O espaço do bar

aparece em contraposição ao do trabalho, espaço de maior liberdade de ações e reações, ao

contrário do espaço da disciplina e da submissão às regras impessoais. Mas até aqui, o bar é um

ponto de encontro e a escalada de tensões e o desfecho fatal pouco se explicam pelas relações

e interações desenvolvidas naquele espaço social.

Com muita frequência os conflitos são justificados como provocados por “ofensas”

trocadas entre as partes. As ofensas podem ser compreendidas como formas de ataque verbal

que lançam dúvidas sobre a conduta ou o comportamento dos opositores, atribuindo às pessoas

a que se destinam qualidades que são moralmente reprováveis. Em grande medida, como no

caso visto acima, as ofensas estão ligadas a temas da honra masculina. Além disso, nos autos

examinados, percebe-se uma associação explosiva entre ofensa e boato.

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O processo 143-94 conta a briga que envolveu alguns familiares. Dias antes dos fatos,

houve uma discussão entre os envolvidos após uma “queda de braço” que todos disputavam em

um bar. O conteúdo da primeira discussão não foi revelado nos autos, mas tem-se a informação

de que, em razão daquele desentendimento, Juraci “jurou de morte” seus primos José F. e José

A. Juraci teria espalhado pelo bairro que iria “pegar” José F. e José A.

Segundo consta dos depoimentos, em uma noite de sábado do mês de maio de 1994,

José F. entrou no bar e “intimou” Juraci se ele “queria o pegar”, ao que prontamente Juraci

responde “que o pegaria e o pegaria agora se for o caso”. José F. então teria se antecipado com

um soco, mas Juraci conseguiu agarrar uma faca e o golpeou no peito. Alguns depoimentos

isentam Juraci ao afirmar que teria sido apenas um golpe de faca, mas o exame necroscópico

aponta cerca de oito ferimentos em José F.

Segundo o proprietário do bar, Juraci reagiu com facada porque estava sendo “bastante

humilhado e sendo também agredido fisicamente por José F.”. José A. acompanhou a briga e

acabou sendo atingido com uma “facada nas costas”, e não se sabe ao certo se por Juraci ou por

seu tio, José H., que segundo o promotor “dava cobertura” à briga. A participação de José A.

foi fundamental para o destino do processo, porque na fase policial essa vítima silenciou sobre

o desenrolar da briga e na fase judicial seu depoimento confirmou que Juraci agiu em legítima

defesa. Os réus foram sumariamente absolvidos.

O Processo 182-93 também conta a história de “acerto de contas” após o surgimento de

boatos e ofensas. De acordo com os depoimentos, cerca de um ano antes dos fatos surgiu um

“desentendimento” entre Manoel e Aparecido, cujo teor não foi esclarecido nos autos. No dia

dos fatos, estavam todos bebendo no bar de Luís, na região de Perus, quando se iniciou uma

discussão. Gonçalo, irmão de Manoel, se deslocou até os fundos do estabelecimento e chamou

Aparecido para conversar. Manoel apareceu e Gonçalo teria dito a ambos “vão dar as mãos ou

não?”, em tentativa de reconciliá-los. Segundo Aparecido, a reação de Manoel foi a de apontar-

lhe o dedo na cara e dizer “esse aí tem que morrer”. Houve discussão e um dos irmãos disse a

Aparecido “chegou sua hora”.

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Luís contou que em seguida viu Aparecido sair correndo, perseguido pelos irmãos

Gonçalo e Manoel. Uma das vizinhas do bar disse que viu Aparecido entrar correndo em uma

casa, “com um copo de pinga na mão” e que “momentos depois chegou Gonçalo, batendo na

porta”. Segundo a depoente, “Aparecido abriu e desferiu uma facada em Gonçalo, que caiu na

escada da depoente”. Nesse interim surgiu Antônio, irmão de Gonçalo e Manoel, que atirou

contra Aparecido, acertando-lhe uma bala no rosto. Consta dos autos apenas o processo penal

referente a Antônio pela “tentativa de homicídio” contra Aparecido. O “homicídio consumado”

de Gonçalo foi tratado por outros autos a que não tivemos acesso. Antônio foi absolvido.

Os boatos são comentários que circulam nos bairros a respeito das ofensas e das ameaças

que as sucedem. Propagam as hostilidades e ao mesmo tempo as alimenta, reforçando as tensões

conforme circulam entre os demais membros daquela “comunidade” (frequentadores do bar,

amigos, vizinhos) notícias e histórias que são interpretadas como ameaças à honra pessoal.

Nesse sentido, o conflito interpessoal não é uma questão que envolve duas pessoas com

interesses incompatíveis ou excludentes apenas, é também uma tentativa de reconstituir as bases

sob as quais as posições sociais e as imagens pessoais estavam assentadas antes de serem

perturbadas pelos rumores.

As fontes de tensão podem ser tanto simbólicas como materiais, mas em geral essa

diferenciação perde sentido no desenrolar das ações. No processo 297-96, o conflito ocorreu

nas imediações da “Favela do Jaguaré”, em maio de 1996. Pedro, 36 anos, natural da Bahia,

primeiro grau incompleto, “pardo”, morador do Jaguaré e “carregador”, acusou Edson, 30 anos,

natural de Pernambuco, analfabeto, “pardo”, também morador do Jaguaré e vigilante, de ter

roubado uma documentação sua, o que o deixou “muito irritado”. No dia dos fatos, Pedro estava

no “Bar do Pernambuco” bebendo cervejas com seus amigos. Quando saia dali se encontrou

com Edson.

Manoel, amigo de Pedro, disse ter visto Pedro e Edson discutirem e, em seguida,

“trocando socos”, contudo logo se dispersaram. Os moradores da rua também ouviram e viram

a cena. Entre trinta minutos e uma hora após a briga corporal, Pedro já estava na casa de seu

pai, perto do bar, quando Edson retorna, armado e acompanhado de seu irmão, Jailson, 33 anos,

natural de Pernambuco, primeiro grau incompleto, também vigilante. Segundo Edson, Pedro

segurava uma faca contra ele. Edson então teria atirado para o alto para assustar a Pedro, mas

Pedro continuava tentando agredi-lo com a faca. Foi então que atirou “para se defender”. Os

irmãos fugiram abandonando os “barracos” em que viviam. Posteriormente, Edson foi

condenado por homicídio qualificado e Jailson por “participação de menor importância”.

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Os depoimentos dos moradores daquela favela afirmavam que Pedro sempre provocava

Edson, que havia entre ambos uma hostilidade antiga, em razão da qual Pedro desconfiava de

Edson. Pedro resolveu cobrar publicamente Edson dos documentos que teria roubado, ocasião

em que se estabeleceu a briga corporal entre os dois. Edson voltou armado para resolver aquela

briga inicial e o que ocorreu foi uma nova rodada de brigas.

À violência física que irrompe na “troca de socos” sucede outra forma de violência,

letal, pela introdução da arma de fogo. É interessante notar que a sucessão de tensões e conflitos

é acompanhada por renovações dos objetos em disputa no conflito. As desconfianças

antecedentes mantinham ambos em uma relação de tensão e, se o documento subtraído pode ter

sido o “estopim” para a briga de Pedro e Edson, foi a “troca de socos” o que definiu o desfecho

fatal que aconteceu instantes depois.

Outro caso que se assemelha a esse é o 320-95. Numa segunda-feira à noite de junho de

1995, José, 19 anos, natural de São Paulo, primeiro grau incompleto, “pardo”, morador do

distrito do Rio Pequeno e desocupado à época, estava sentando em frente ao bar próximo de

sua casa assistindo televisão. Ali apareceu Valdeck, 32 anos, natural de Pernambuco, primeiro

grau completo, “pardo”, também morador do Rio Pequeno. Valdeck suspeitava que José havia

furtado sua bicicleta, então foi ao bar armado à procura do rapaz.

Valdeck pegou o revólver do patrão escondido e, segundo afirmou, sua intenção era a

de amedrontar a vítima e no máximo “atirar para o alto”. José disse que Valdeck chegou

apontando o revolver para sua cabeça e cobrou o suposto furto – responsabilidade que o jovem

negou em todas oportunidades. José então reagiu e buscou afastar a arma. Naquele instante,

houve um disparo que atingiu José na perna. Valdeck fugiu e os clientes do bar prontamente se

mobilizam para prestar socorro ao jovem, que foi levado ao Hospital Universitário da USP. O

réu foi levado a Júri que julgou a ação improcedente, não se configurando como tentativa de

homicídio, e sim lesão corporal.

O melhor exemplo de desconfiança que gera conflito é relatado no processo 829-91. O

conteúdo da tensão pode ser resumido na expressão “você não é polícia? Então venha me

prender”, frase atribuída a “Alemão”, apelido do acusado. Numa tarde de outubro de 1991,

Mauro, sua “amante” Sandra e Marcos pararam em um bar no Rio Pequeno. O casal havia

vendido uma cômoda de quarto a Mauro e com o dinheiro viajaria para o Rio de Janeiro.

Alemão e Mauro se conheciam daquele mesmo bar e a principal versão era que Alemão era

traficante de cocaína e fornecia a Mauro. A relação de Mauro com a cocaína foi reafirmada por

seus familiares.

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Naquele dia, Alemão passou pela mesa que o grupo ocupava e se dirigiu a Sandra, “te

conheço morena”, ao que Mauro teria respondido “não conhece não. Ela é minha mulher” e

Alemão, por sua vez, teria respondido “quem não vai se lembrar de uma morena gostosa como

esta?” Teodorico, proprietário do bar, afirmou que interveio para acalmar os ânimos. De acordo

com Sandra, Alemão voltou à mesa do grupo em seguida mostrando a Mauro um pacote de

cocaína, e teria dito “venha me prender que estou cheirando, você não é policial? Então me

prenda”. Alemão afirmava que vários amigos seus “haviam rodado” desde a última vez que

Mauro esteve no bar. Houve discussão “acalorada” e ambos se empurraram.

Antes de sair, Alemão teria dito para Mauro: “então eu sou mentiroso?” Instantes depois,

Mauro orienta os amigos a deixarem o bar. Já estavam entrando no veículo de Marcos quando

Alemão surgiu no sentido oposto da rua, acompanhado de um desconhecido. Marcos contou

que, naquele momento, ouviu diversos disparos de arma, e viu Alemão com arma em punho.

Marcos foi atingido por um tiro no ombro, Sandra conseguiu fugir. Mauro foi atingido na região

da cabeça e não resistiu aos ferimentos. Para o promotor, o motivo do crime foi torpe, vingança.

Giuseppe foi levado a Júri, acusado de ser o tal Alemão da história, mas os julgadores

entenderam que aquele homem presente no tribunal não era o “Alemão” da história. Giuseppe

foi absolvido.

Nesse segundo grupo de casos, os boatos se confirmam como meio de disseminação das

tensões. As fontes das hostilidades são tanto objetos materiais quanto simbólicos, sendo comum

que no decorrer do conflito o foco da luta transite dos objetos iniciais à figura do próprio

opositor. Pode haver uma disputa inicial em torno de um objeto material (documento) ou

simbólico (honra do trabalhador), entretanto, na escalada de tensões os focos vão mudando dos

objetos para os opositores e tem-se propriamente o conflito interpessoal. Nesse cenário, a

desconfiança que faz do outro uma ameaça potencial à integridade individual (que não diz

respeito apenas ao plano físico como também simbólico, da honra pessoal) é mais um elemento

explosivo.

Outro traço característico é que as hostilidades se tornam conflitos porque há uma

cobrança por uma das partes que se sente ofendida. A princípio, “cobrar uma bronca” é exigir

do outro o cumprimento de uma conduta moral: não delatar, não denunciar, não ameaçar, não

expor a honra em público, não espalhar ofensas. As hostilidades, nesse sentido, surgem a partir

da quebra de certas expectativas que orientam as ações sociais. É interessante notar a forma

como a cobrança se desenrola. O “cobrar uma bronca” é sinônimo de reparação de um mal

causado à imagem de pessoa na forma de briga corporal e, no limite, através da eliminação do

outro.

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Quanto à dinâmica do conflito, notamos que estes casos não poderiam ser tomados por

“duelos”, uma forma em que se poderia identificar algum ajustamento de sentidos entre as

partes de se engajarem no combate. Nesse sentido, é pouco evidente que haja luta física entre

as partes. O mais comum é que os enfretamentos interpessoais sejam provocados por uma

espécie de “cobrança” que uma parte faz à outra, rapidamente acompanhada de um ataque.

Por fim, destacamos o papel da família nas brigas, que tanto expande o conflito para

além das fronteiras interpessoais quanto determina os rumos da briga. A família reaparecerá em

outros casos, seja pela solidariedade entre seus membros na resolução do conflito, seja como

grupo social que se deve defender de ofensas ou ameaças.

Até aqui, os bares apareceram como “cenário” dos conflitos, lugares nos bairros onde

se podem encontrar as pessoas para resolver rixas anteriores. As hostilidades em geral surgiram

antes e em outros espaços sociais e, por isso, a produção do conflito pouco tem a ver com as

características peculiares daqueles espaços sociais. Talvez seja diferente para os casos em que

os conflitos surgem “de imediato”.

Para tentar abranger o significado sociológico do “imediato”, fazemos referência ao bar

como “ocasião social”, conceito que aparece no estudo de Goffman sobre os “comportamentos

em lugares públicos” e pode ser definido como:

[...] acontecimento, realização ou evento social mais amplo, limitado no espaço e no

tempo e tipicamente facilitado por equipamentos fixos; uma ocasião social fornece o

contexto social estruturante em que muitas situações e seus ajuntamentos têm

probabilidade de se formarem, dissolverem e reformarem, e um padrão de conduta

tende a ser reconhecido como o padrão apropriado e (frequentemente) oficial– um

‘padrão de comportamento estabelecido’ para usar o termo de Becker (GOFFMAN,

2010 [1963], p.29).

A ocasião social é uma festa social, um dia de trabalho no escritório, um piquenique,

um funeral. Para o presente estudo, as interações que se estabelecem no período de permanência

no bar são “estruturadas” por aquela “ocasião social”, com começo e fim estabelecidos. O

conflito “imediato” pode ser compreendido como o enfrentamento, cujas motivações e

justificativas surgiram no decorrer de interações que se estabeleceram no interior da própria

situação e, portanto, não têm como referência situações prévias, ou hostilidades e conflitos

anteriores.

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Goffman (2010 [1963], p. 28) define situação como “ambiente espacial completo em

que ao o adentrar uma pessoa se torna um membro do ajuntamento que está presente, ou que

então se constitui” e por ajuntamento, “qualquer conjunto de dois ou mais indivíduos cujos

membros incluem todos e apenas aqueles que estão na presença imediata uns dos outros num

dado momento”.

Convém destacar que Goffman não estava preocupado propriamente com o conflito e a

violência interpessoal nos espaços públicos. Suas questões são de ordem teórica, portanto

abstratas e gerais, sobre comportamentos considerados “não apropriados” para algumas

situações, em que a relevância sociológica está nas “regras e círculos sociais que são ofendidos”

(2010 [1963], p. 28, p. 13), nos “atos que são aprovados e os atos que são considerados

inapropriados” (Idem, p. 14) e que somente podem ser categorizados como tal “de acordo com

os juízos de um grupo social específico”, por menor ou mais unido que seja” (Idem, p. 15).

Se podemos compreender o bar como “ocasião social” que estrutura as “situações”, esta

inspiração se deve a Goffman, entretanto, sem a pretensão de tentar replicarmos sua análise.

Antes tomamos alguns questionamentos levantados pelo autor como ponto de partida, em

especial o de saber como as tensões e os conflitos de bar são produtos de “regulamentações da

conduta características em situações e seus ajuntamentos” (2010 [1963], p. 28, p. 30),

investigando as regras e os atos não aprovados que estariam nas raízes dos conflitos.

O caso tratado no processo penal de número 564-91 é exemplo que sintetiza vários dos

elementos que surgem nos conflitos “imediatos” entre pessoas que se conhecem. Numa mesma

história, que não durou mais do que cinco horas, podemos observar diferentes vínculos sociais

que circundam o conflito, como família, vizinhança, amizade, afetividade e trabalho.

Kátia, jovem de idade desconhecida, tinha acabado de começar a trabalhar no bar de

Rosely e José Roberto. Era tarde de uma quinta-feira de julho de 1991. Kátia entrou na casa de

Rosely avisando que havia chegado seu primeiro cliente. Era “Val”, Valdir, 18 anos, feirante

(ou autônomo), conhecido pelo pessoal do bairro. Rosely aproveitou e pediu que Kátia cobrasse

de Val as três cervejas que ele ficara devendo. A moça voltou ao bar. Um pouco mais tarde,

José chegou em casa questionando Rosely se ela havia jogado água contra Kátia, que estava

toda molhada no bar. Rosely negou e ambos saíram de casa e foram ao bar para saber o que

houve. Rosely e José encontram Kátia molhada nos cabelos, rosto e camiseta. Diante de José,

Katia disse que não era nada, mas Rosely a puxou pelo braço para longe do centro das atenções

e perguntou o que era.

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Pelo depoimento de Rosely, “Val pediu (que) colocasse na vitrola um disco do Martinho

da Vila, e como Kátia estava demorando, pois não encontrava o aludido disco, este pegou o

copo de cerveja e jogou no seu rosto.” Para Val, Kátia “estaria fazendo pouco caso dele”,

segundo contam os depoentes. José retornou e questionou Kátia, porque “aquela história estava

mal contada”. José então deduziu que tinha sido Val quem jogara cerveja na moça. José

começou a discutir com Val e o expulsou do bar. Durante a discussão, José acertou Val com

um tapa no rosto e, segundo Rosely, o fez porque o rapaz estava “muito agressivo”. Val então

ameaçou José de morte na frente de todos: “no rosto de um homem, tem mais que ir para o

saco”. Saiu.

As notícias circularam pelo bairro e logo chegaram às irmãs de José, “Moa” e “Branca”,

que eram conhecidas de Val. Para Moa, ou Maria de Fátima, Val e Kátia “tinham um caso” e à

época “estavam brigados”. “Branca” foi falar com Val para tentar acalmá-lo e pedir

“encarecidamente que deixasse essa história para lá”. Em resposta, Val “disse que não podia,

pois José havia dado um tapa em seu rosto” e perguntou a Branca “você acha que eu mato seu

irmão ou a nega Kátia?”. Branca então ficou um tempo sondando os passos de Val, mas teve

de retornar a casa para dar de comer ao filho.

Mais à noite, por volta das 19 horas, Valdir estava atendendo no balcão do bar. O

sobrinho de José estava no bar e ouviu quando Val chegou e disse “Aí Lolinho, vamos

conversar”. “Lolinho” era José, e pelo que contou o sobrinho, quando José se virou, Val “de

uso de uma arma que estava já na sua mão, deu quatro tiros em direção a seu tio José”. Rosely

havia saído, mas estava perto do bar quando ouviu o som de quatro tiros. Voltou correndo ao

bar e viu Val sair correndo de lá. Encontrou seu marido caído ao chão, e suas últimas palavras

teriam sido “olha o que Val me fez”.

É possível delinear diversos núcleos de conflito que se sucedem, um superando em

hostilidade o anterior. Há um primeiro núcleo de tensão, uma singela hostilidade que estabelece

certo antagonismo entre os proprietários do estabelecimento comercial e o cliente endividado.

Dias antes, Val havia consumido cervejas no bar e ainda não havia quitado a dívida. Na primeira

oportunidade que teve, Rosely cobrou Val, e o fez através de Kátia. Mas nesse caso, não foi

possível confirmar se a dívida estabeleceu uma hostilidade na relação cliente-proprietários.

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O segundo núcleo de tensão se estabelece entre Val e Kátia. Essa tensão foi o que

estabeleceu todos os conflitos que vieram a seguir. Pela leitura dos autos, não fica muito claro

se houve hostilidades anteriores entre Val e Kátia. Quem afirmou que sim foi uma irmã de José.

Kátia fugiu, com medo de retaliações e não foi ouvida no processo. Sua mãe, Benedita, nada

sabia a respeito. De todo modo, o que se sabe é que Val esperava que Kátia atendesse a seu

pedido, e como a moça demorava a entregar o tal disco de samba, Val se sentiu no direito de

agredi-la jogando contra seu rosto a cerveja do copo. Neste ponto, os autos mais escondem

informações do que revelam.

Há pouca informação sobre o significado que aquela agressão teve para Kátia e quanto

à participação das demais mulheres envolvidas. Rosely é quem vai ao apoio de Kátia. Ao puxar

a moça para conversar, Rosely deixou entrever algumas características importantes das relações

sociais. Primeiramente, a possibilidade de ter sido acionada a solidariedade entre mulheres.

Rosely certamente era sensível às opressões contra mulheres. Tanto que, em determinado

momento do processo, deixa vir à tona como era sua vida com José Roberto, afirmando que,

após sua morte “passou a viver no céu”. Em vida, ele só “judiava” dela, pois era mulherengo e

só não largou dele em virtude das três filhas que tiveram juntos.

Em menor medida, operam-se também os lados de amizade e vizinhança. Kátia, assim

como Val, era pessoa conhecida naquela vizinhança. Rosely, mais velha, poderia ter sobre

aquela moça algum sentimento de responsabilidade ou de referência de conduta. Eram

mulheres, vizinhas ou amigas e mantinham uma relação hierárquica em virtude do trabalho.

Solidariedade, mando e obediência, ao mesmo tempo. Retrato da ambivalência entre a

intimidade e o público, os limites entre os grupos e os sujeitos sociais se sobrepõem, intercalam,

rearranjam num curto espaço de tempo; os mesmos indivíduos ocupam diversas posições

sociais e deles é esperado que desempenhem papéis sociais diversos.

E, nessa sobreposição de papéis e espaços sociais, as hostilidades avançam para os

conflitos como forma de tentar reposicionar limites, tanto no plano das ações, dos

comportamentos aceitáveis quanto das personalidades moralmente aprovadas. A luta que opôs

Valdir a José é o principal caso em que se pode notar o surgimento de um duelo entre as partes

e é o terceiro núcleo de tensão e conflito. Trata-se de uma disputa entre dois homens tentando

firmar o limite de suas autoridades. Assim como é possível que entre Kátia e Rosely tenham se

estabelecido vínculos de diversas naturezas, o mesmo pode ter ocorrido entre José e a moça.

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Como conhecido do bairro, José poderia exercer certa referência, e como patrão, era

responsável por garantir a integridade da funcionária. Val, por sua vez, quebrou com algumas

regras no bar de José. Em relação a Val, José era sobretudo o dono do bar, e por isso cobrava o

direito de dizer o que pode e o que não pode fazer no bar. Ao estapear Val, José avançou o

limite que Val tentava estabelecer. A relação que explica a participação do jovem é com a Kátia.

O gesto de jogar cerveja na cara de Kátia é uma expressão do homem que cobra a submissão

da mulher que o serve. A respeito do tapa que levou do José, Val teria dito “você poderia ter

me dado um tiro, mas não um tapa no rosto”.

Como afirmando anteriormente, o processo 564-91 reúne num só caso histórias de

diversos vínculos sociais que são caracterizados por tensões. Os conflitos surgem, por exemplo,

as relações entre os proprietários e os clientes.

No processo 3066-96, Moisés, paulistano de 25 anos, era conhecido no bar de Gilson,

baiano de 35 anos. Numa noite de setembro de 1996, Moisés foi àquele estabelecimento do

Campo Limpo e pediu uma “pinga no fiado”. Mas Moisés já estava devendo 10 reais naquele

bar e, por esse motivo, Gilson negou a venda de pinga; contudo, Moisés insistia. O dono do bar

já não aguentava mais o “cliente chato” e resolveu expulsá-lo: pegou o revólver que guardava

no bar e ameaçou o cliente disparando alguns tiros para o alto. O Júri desclassificou o caso.

Gilson tentou dar um “susto” em Moisés, deixando claro para aquele e para os demais

frequentadores que ali no bar quem mandava era Gilson, e que sua ordem seria obedecida ainda

que à força.

Este processo 3066-96 merece ainda uma breve anotação sobre outro elemento

importante do processo penal, mas que não tem sido enfatizado no trabalho: a produção da

verdade judicial e a participação das autoridades policiais. Segundo afirmou na delegacia, o

oficial Aparecido estava em patrulhamento pelo local quando ouviu o barulho de disparos de

arma de fogo. Percorreu as ruas e encontrou no local Moisés e um terceiro indivíduo que

afirmava que Gilson havia tentando matar a vítima. Elsio, o porteiro, confirma a versão policial

do Inquérito Policial, que “segurou as mãos de Gilson impedindo assim que os disparos

efetuados por Gilson atingissem Moisés; que Gilson, mesmo com as mãos presas pela de Elsio

efetuou ao chão cerca de cinco disparos, disparos estes que foram destinados a atingir Moisés”.

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Diante do Juiz, Elsio apresenta história completamente distinta. Em suas palavras, “o

depoente informa que os policiais que mandaram dar a versão mentirosa do auto de flagrante

são os mesmos que efetuaram a prisão, que conduziram o depoente, Moisés, ora vítima e o réu

para a delegacia de polícia”. No Júri, Elsio culpa os policiais de forjarem sua versão: “os PMs

responsáveis pela detenção do réu queriam que ele dissesse determinadas coisas tais como: que

tinha sido o réu que efetuou os disparos de arma de fogo contra o declarante. O declarante disse

que não poderia fazer tal afirmação, porque nada tinha visto”. Os autos deste processo não

esclarecem se a contradição entre os testemunhos foi resolvida nem o destino que teriam

recebido os envolvidos na forja de depoimento falso.

A história de Kátia também é exemplar no que diz respeito ao papel reservado às

mulheres nos processos penais. Pela forma como os autos de processo penal abrem espaço para

o protagonismo da mulher, reforçam-se posições na hierarquia social. É nos interlúdios dos

conflitos masculinos que a mulher aparece no processo penal, mas sempre como personagem

secundária de uma história em que os principais personagens são os homens que lutam entre si.

No processo narrado acima, o protagonismo de uma mulher somente é destacado quando

“Branca” vai procurar Val para acalmar os ânimos, e reafirma-se o papel feminino de estacar

as feridas nas relações pessoais. Nessa lógica, nesses conflitos cotidianos, as mulheres

aparecem como secundárias nos autos, quando não silenciadas.

Neste sentido, no processo 573-96, Gedeon era um cliente que estava no bar ao lado de

seu “barraco” bebendo com Adriano. Tereza, esposa de Gedeon chegou e pediu cigarros ao

marido. Gedeon afirmou que a mulher “adentrou o bar e passou a insultar o declarante” e que,

em reação, “não satisfeito e não suportando mais as ofensas deu um empurrão em sua esposa”.

Segundo Tereza, ela e o marido haviam discutido havia pouco tempo em sua casa. Ela afirmou

que foi ao bar “onde realmente encontrou Gedeon bebericando, juntamente com Adriano” e

“que foi procurar Gedeon para pedir-lhe que voltasse para casa e ainda que lhe desse cigarro”.

O depoimento de Tereza registrou ainda que “Gedeon estava nervoso devido à discussão

e devido a insistência da depoente, ele acabou por dar um empurrão da depoente”. Conforme

visto no caso 369-96, a expressão “acabou por acertar” ou “acabou por agredir” é frequente nos

depoimentos. É necessário recordar que o que se lê nos autos de processo penal não são os

depoimentos como foram proferidos pelas testemunhas, todavia como foram capturados pelos

oficiais na polícia ou no tribunal.

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No caso narrado acima, é interessante notar o modo como se dá a construção do discurso

atribuído a Tereza: seria ela quem insistia, provocava o esposo, enquanto que ele apenas reagiu,

“acabou” por dar um “empurrão”. Nesse caso, à mulher coube a responsabilidade pela irritação

e destempero do esposo. Segundo os autos, após o empurrão no bar, Tereza voltou para casa e

Gedeon a perseguiu. Adriano interferiu naquela briga e acertou uma facada nas costas de

Gedeon. O caso foi desclassificado para “agressão por legítima defesa”. Relações entre homens

e mulheres também parecem indicar que o mundo dos conflitos, especialmente os fatais, não é

“lugar” para elas. É como se fosse legítimo expulsá-las desse mundo, como se elas não fizessem

parte dele, mesmo sob a condição de assujeitamento e dominação.

O terceiro exemplo a ser destacado refere-se a forma como os conflitos surgidos nos

bares revela sobreposição de papéis e espaços sociais. O bar aparece muitas vezes como

extensão da residência, e a frequência com que questões de ordem doméstica são transpostas

para esses espaços públicos parece indicar como as tensões são facilitadas. Destacamos o

processo 447-94, mas outros poderiam ser descritos.

Genarino era dono do bar que ficava na garagem de sua casa. A esposa de Genarino,

Noemia, não gostava ele bebesse e naquele dia ela viu o marido bebendo enquanto conversava

com um cliente dele, o Sr. Euclides. Noemia desceu ao bar e mandou que o marido parasse de

beber. Segunda a esposa, houve “pequena discussão” entre os dois. O filho do casal, Ricardo,

passava pelo local e, “pela porta entreaberta”, presenciou a cena, “achou” que o pai estava

agredindo sua mãe e foi para cima do Pai. Ricardo disse que empurrou o pai para dentro do bar

para que ele se acalmasse. O pai não aceitava que o filho o empurrasse; tiveram início agressões

físicas entre os dois. Genarino pegou a arma e o filho tentava desarmá-lo. A arma disparou e

um tiro acertou no filho e outro no cliente. Todos os presentes afirmaram o caráter acidental

das ações e o Inquérito foi arquivado.

Não há testemunhas oculares no processo 1364-93. A principal informante é a esposa

de Marcos, um dos envolvidos, que ouviu certa discussão que acontecia no bar que também

ficava no mesmo imóvel de sua residência. Marcos, pernambucano de 29 anos, autônomo, havia

alugado o bar para seu conterrâneo Manoel, 28 anos. Segundo o depoimento da esposa, o início

da briga ocorreu porque Mário havia negociado com Manoel a locação ou venda do bar, mas

estava arrependido porque encontrou quem pagasse mais e resolveu desfazer o acordo. Houve

luta corporal, mas as únicas informações foram prestadas pelo réu, acusado e condenado a cinco

anos em regime inicial semiaberto.

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Segundo o processo 57-97, Joanice, o marido Paulo, sua filha de quatro anos, Arlindo,

Carlos e Osvaldino eram todos membros da família, na maioria primos, e estavam no bar

próximo de casa jogando dominó, palitinhos e “apostando cerveja” numa tarde de natal. O

grupo já havia consumido seis cervejas quando Paulo resolveu ir embora. Iniciou-se uma

discussão entre os primos e, segundo os autos, Osvaldino e Arlindo tentaram tomar à força a

carteira de Paulo, que rapidamente a entregou a sua filha de quatro anos e pediu que fosse

correndo para casa.

Os autos apresentam diversas versões que se diferenciam sobre quem teria dado início

às agressões físicas e todos narram que houve confusão generalizada. De acordo com algumas

testemunhas Paulo estava provocando seus primos antes da “garrafada”; segundo outras

testemunhas Paulo estava sendo provocado pelos primos. Essa “confusão” cessou e em seguida

Paulo retornou ao bar com uma faca do tipo peixeira. Os presentes no bar afirmaram que Paulo

foi para cima de Osvaldino com a faca e então Osvaldino atirou. Ele foi absolvido

sumariamente.

Os exemplos acima demonstram como é constante a luta entre os personagens no sentido

de estabelecer os limites das suas autoridades. Mas nesses últimos, um novo elemento se

acrescenta ao caldeirão tensões em que se produzem os conflitos. A narrativa dos processos

penais representa como tensa a relação entre o espaço público e o espaço da vítima íntima: “As

casas vulneráveis, promíscuas e cheias de frestas, inviabilizavam (e ainda inviabilizam) a

intimidade como a concebemos hoje e sobretudo os ritos próprios da vida privada” (MARTINS,

2012, p. 87). Os bares e as casas se confundem como os papéis e as posições hierárquicas se

intercambiam e se sobrepõem, gerando pontos nodais de hostilidades.

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Brigas entre desconhecidos

Observando os casos de brigas entre desconhecidos, há pouco a se acrescentar quanto

às motivações e justificativas que dão sentido às ações. Reaparecem, por exemplo, questões de

disputas entre grupos de jovens, como no caso 369-96 que abriu este capítulo. A “disputa pela

mesa” que fundou as hostilidades entre Cesar e seus parentes contra o grupo de jovens

desencadeou um processo em que a principal disputa gravitou em torno das fronteiras entre

grupos.

Em seus escritos sobre a luta, Simmel já apontou essa característica “positiva” do

conflito social. De acordo com o sociólogo alemão, os conflitos sociais possuem elementos

positivos porque dão forma permanente às relações. Por isso, o conflito não é pensado apenas

em seu aspecto disfuncional ou destrutivo. Os aspectos positivos e negativos estão integrados

e só podem ser separados empiricamente. Em Simmel, conflito é categoria de análise e como

tal um elemento essencial na compreensão da formação de grupos. Os conflitos mantêm

determinada estrutura social, fundada em relações hierárquicas, à medida que estabelecem

linhas divisórias entre os grupos sociais. Internamente aos grupos, estes conflitos externos

possuem o papel de integração, de manutenção da centralização (STRASSER; SILVEIRA,

1978).

Um exemplo que pode ser mencionado sob esta perspectiva encontra-se no processo

0546-94. Numa noite de sábado, em 1994, um grupo de amigos saiu para se divertir em uma

festa na região da Barra Funda. As amigas Vera e Margarida dançavam com os namorados

quando uns rapazes de outro grupo “passaram a mão na bunda” das moças e, em seguida,

começaram a chamá-las de “lindinhas”, “passando a mão em seus cabelos”. Vera avisou o

ocorrido ao namorado Fabiano, que resolveu “tirar satisfações” com os outros rapazes.

De acordo com os depoimentos, Fabiano recebeu alguns murros do outro grupo e, nesse

momento, os amigos de Fabiano entraram na briga e os murros, chutes e empurrões se

generalizaram entre os dois grupos. Novamente, os autos não informam qual foi a participação

das mulheres no desenvolvimento da briga. Vando, amigo de Fabiano, era o mais alto da turma,

por isso chamava atenção e foi retirado do local pelos seguranças. Em solidariedade a Vando,

os amigos se retiram do lugar. Do lado de fora, o conflito persistiu e tomou proporções ainda

mais agressivas. Vando foi atingido por uma garrafa de cerveja quando saía e outros dois

amigos relatam que apanharam até perderem os sentidos.

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Uma vez mais, os amigos intercederam na confusão e os opositores se separam. O grupo

de amigos de Vando se deslocou ao ponto de ônibus para aguardar a condução. Vando viu que

alguns rapazes do grupo oponente saiam de carro e disse, “ninguém vai pegar este ônibus”.

Atravessou a rua em direção àquele veículo. Quando estava ao lado do carro, recebeu um tiro

que o feriu mortalmente. A autoria do disparo não foi esclarecida.

Como observado nos conflitos entre conhecidos, o conflito é também definidor de

fronteiras entre sujeitos sociais. O desafio é um elemento sempre presente nas sociabilidades

de bar. Entre os desconhecidos, o desafio consiste em forma de apresentação e de reafirmação

das identidades. Como ação, o desafio pode estar nos atos mais prosaicos possíveis, como sorrir

diante de uma ameaça. Como acontecimento social, o desafio exige uma resposta que

recomponha a imagem do ofendido perante o grupo social a que pertence.

Segundo narram as testemunhas do processo 445-91, Elizeu estava no bar bebendo com

seu amigo Eduardo quando avistou Flávio. Elizeu teria ido até Flávio e começaram uma

conversa que ninguém ouviu praticamente nada, além de uma ameaça de Elizeu: “sabe que você

pode até morrer rapidinho”. Segundo as testemunhas oculares, a reação de Flávio foi “sorrir”

para o que Elizeu dizia. Em seguida, Elizeu sacou do revólver que levava consigo e disparou

em Flávio, que caiu morto. Não se sabe ao certo qual foi o conteúdo da discussão anterior, nem

porque Elizeu ameaçou Flávio. Também não fica claro se ambos se desconheciam. Os

depoimentos são pouco conclusivos e, segundo Gentil, testemunha do caso, era porque “Eliseu

tem família grande e todas as pessoas que estavam no bar naquele dia estão com medo e estão

fugindo ou estão dando outra versão para os fatos, com medo que lhes aconteça alguma coisa”.

Em sentido similar de desafio, o processo 98-95 conta a história de um grupo de amigos

que bebia no bar de Nildo, na região do Largo da Batata, e que teve com o comerciante uma

discussão em torno do pagamento da conta. Robson, figura conhecida pelos comerciantes da

região, com fama de briguento e valentão, teria “assumido as dores’ de Nildo e foi atrás do

grupo em outro bar. Sentou numa mesa ao lado e começou a provocá-los e ofendê-los. Não se

sabe ao certo qual foi a reação do grupo. Sabe-se que em seguida Robson saiu do bar e retornou

armado, atirando contra o grupo de amigos. Fez duas vítimas fatais e outras ficaram feridas.

Pelos depoimentos, Robson distribuía cocaína a clientes dos bares e casas noturnas da região e

mantinha certa fama de “dono do pedaço”.

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Reaparecem entre os desconhecidos a cobrança dos combinados de mesa de bar, as

dívidas de cerveja que se contraem em apostas de palitinhos ou dominó. É o caso do processo

693-93, em que Edvaldo, pernambucano de 35 anos, mecânico, estava no bar ao lado de sua

casa, numa noite de domingo, em 1992, jogando com o desconhecido Edres, paulistano de 25

anos, pintor de automóveis, e outros amigos do bairro. Quem perdia no jogo do palitinho pagava

a próxima cerveja. Em dado momento, Edres se disse satisfeito e decidiu largar as apostas.

Edvaldo saiu do bar e foi para sua casa. Edres contou que, quando saía do local, foi abordado

pelo Edvaldo que voltava armado, afirmando, “esta é a cerveja que você merece beber”,

golpeando-o a seguir. Edvaldo saiu correndo e desapareceu da região.

O que os casos entre desconhecidos revelam com maior clareza é o conflito como

resultado de uma “escalada de tensões”. Essa noção aparece no estudo Sidney Chalhoub sobre

conflitos no Rio de Janeiro no começo do século XX:

O ajuste violento nunca surge de um momento para outro, de maneira fútil e

imprevista. Estes conflitos são em geral resultado de um processo relativamente longo

de escalada de tensões, de disputas e de troca de provocações entre os indivíduos ou

grupos em confronto. E, principalmente, a eclosão desses conflitos revela geralmente

uma grande valorização dos diversos rituais de solidariedade e ajuda mútua que unem

as pessoas. Em certo sentido, portanto, o surgimento do ajuste violento nesse contexto

significa uma reafirmação de valores essenciais para a estratégia de sobrevivência dos

homens e mulheres, possuindo, assim, um caráter construtivo e organizador das

relações sociais entre seres essencialmente iguais (CHALHOUB, 1986, p. 202).

Conforme demonstramos acima, as hostilidades que opõem e antagonizam as partes

podem se transformar em conflitos abertos a partir de desafios, provocações. De início, disputas

em torno de objetos simbólicos, como a honra, a cobrança de respeito a posições sociais, esses

conflitos geram novas tensões e desencadeiam novos conflitos, como, por exemplo, o processo

227-97.

Era noite de um sábado em 1997. Alex estava sentando ao balcão em um bar no Itaim

Bibi. Atendia ao balcão o proprietário do bar, Yao, africano natural do Togo. Enquanto atendia

ao balcão, Yao conversava com seu amigo, o também togolês Aklobessi. Nos depoimentos,

Yao conta que se comunicavam na “língua do Togo”. Alex estava atento à conversa e sem

compreender palavra daquela conversa ao seu lado, se dirigiu ao dono do bar e perguntou se o

estariam xingando. Em todos os momentos em que foi ouvido, Alex afirma que estava apenas

“brincando” com o dono do bar. Alex conta também que a reação de Yao é que foi agressiva.

Yao teria dito, “aquela conversa não tem nada a ver com ele”. Aklobessi também foi ouvido

nos autos e afirma que Alex teria dito que “estavam no Brasil, deveriam falar o português”.

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Conquanto não seja patente de quem partiu as primeiras respostas ríspidas, pelos

depoimentos é notório que se estabeleceu uma tensão entre Alex e Yao. Aklobessi afirmou que,

tentado “acalmar os ânimos”, ofereceu uma cerveja para Alex e seu pai, Augustinho, que estava

no bar o tempo todo, mas sentado a uma outra mesa. Pai e filho se retiraram do bar e voltaram

cerca de dez minutos depois. Segundo Yao, Augustinho estava bastante irritado e cobrava que

Yao se desculpasse pela forma como tratou seu filho. Mas, ainda de acordo com Yao,

Augustinho exigia “é para pedir desculpas lá fora”.

Não se sabe ao certo qual era intenção de pai e filho ao exigir que Yao saísse do bar para

pedir desculpas. Segundo Yao, percebeu certo “volume” na cintura de Alex. Em realidade, os

primeiros passos desse segundo conflito não foram bem esclarecidos pelos autos. Alex e

Augustinho dizem que era Yao quem chamava o rapaz para o lado de fora. Alguns depoimentos

dizem que Yao e Alex saíram “abraçados”. Yao diz que era conduzido para fora, praticamente

empurrado por Alex. Os autos também são reticentes quanto às motivações do estopim que se

conta a seguir.

Do lado de fora, Tigre, um conhecido de Yao e que sempre estava pelo bar interveio na

história. O que é incerto nos discursos é como Tigre foi introduzido no conflito. Alex e

Augustinho disseram que Yao o chamou, o que o dono do bar nega. Tigre disse que viu que seu

conhecido Yao enfrentava problemas com o jovem e resolveu ajudar. Tigre chegou próximo

aos dois e imobilizou Alex com um golpe marcial “chave de braço”. Tigre suavizou e disse que

só puxava o rapaz para longe de Yao para conversar. Ocorreu que, diante daquele quadro,

Augustinho puxa o revólver que levava na cintura e disparou um tiro que atingiu Tigre próximo

ao pescoço.

Os conflitos que conhecem seu desfecho do lado de fora do bar apontam outra faceta

dos antagonismos que existem entre fregueses e proprietários. A luta pela manutenção da ordem

em seus estabelecimentos acaba por colocar os proprietários ao lado das ordens oficiais de

força. Não é incomum que os bares recebam proteção de policiais fora de horário de serviço,

enquanto os oficiais aproveitam para lanchar, encontrar amigos, fechar oportunidades de

trabalho temporário como segurança particular.

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O bar de Yao ficava muito perto do 15º Distrito de Polícia da Capital. Era ponto de

encontro de policiais que operavam naquela região. O sábado à noite era data escolhida pelos

oficiais para se encontrarem no bar, antes ou após a troca de seus turnos. Portanto, aquele

conflito foi observado por vários policiais fora de serviço. Tigre era um deles, encontrava-se

em trajes civis, sem identificação de seu ofício, com um grupo de outros policiais que

receberiam ali o contato de um serviço de segurança particular em festa de estudantes recém-

formados em Direito. Todos estavam devidamente armados.

Dessa maneira, se estabeleceu o terceiro núcleo do conflito, algo inesperado por

Augustinho quando atirava naquele desconhecido para proteger seu filho. Como em outros

casos, tudo aconteceu “muito rápido” e aqui a rapidez com que os presentes percebem a

sucessão dos acontecimentos é certamente sinal do inesperado e não calculado desenrolar das

ações. Imediatamente, os policiais à paisana em frente ao bar reagem com disparos de arma de

fogo contra Augustinho e Alex que fogem em seu veículo Volkswagen Voyage estacionado ali

em frente.

Pelos depoimentos, houve perseguição implacável pelas ruas do Itaim Bibi, com os

policiais atirando contra o carro de dentro das viaturas, pedidos de reforços e intensa

mobilização de outros oficiais. Após ter seu veículo atingido 21 vezes pelos policiais militares

Augustinho, ferido, parou o carro em frente a um bingo. Augustinho e Alex contam nos autos

que foram agredidos e ameaçados de morte no interior das viaturas a caminho dos hospitais. Os

policiais agressores teriam sido impedidos por um colega de fardas, que disse “não fez isso

antes, não vai ser aqui que vai fazer”.

Os autos do processo penal 227-97 averiguam tanto a agressão sofrida por Tigre quanto

as sofridas por Alex e Augustinho. Porém, o processo foi desmembrado e por isso não se sabe

o desfecho para os policiais. Augustinho foi condenado a quatro anos de reclusão em regime

aberto (prisão albergue domiciliar) pela tentativa de homicídio. Os diversos conflitos coligidos

nos autos de processo penal 227-97 também encontram semelhança em outros processos.

Houve um primeiro núcleo de conflito, entre Alex e Yao. Nos termos de Chalhoub, é

possível perceber algum resquício de “rivalidade étnica e nacional” na hostilidade que se

estabeleceu entre Alex e os africanos. A justificativa de Alex, de que “apenas brincava”, fornece

uma boa imagem das linhas que separam a brincadeira da ofensa. Neste mesmo sentido, esse

núcleo de conflito revela um pouco dos enfretamentos diários que passam os donos dos

pequenos comércios. Durante a rotina diária, longe de exercerem atividades exclusivamente

administrativas, desdobram-se nas funções de atendimento, limpeza, servem as mesas, limpam

os copos.

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Confirmando o que havia sido exposto anteriormente neste capítulo, o processo 227-97

também apresenta a ambiguidade que marca a relação entre o proprietário e os fregueses dos

bares, “separado de seus fregueses pela sua condição de pequeno proprietário, está intimamente

unido a eles pelas relações pessoais” (CHALHOUB, 1986, p. 267). Na maioria dos casos, ao

mesmo tempo em que é proprietário, é membro também das classes populares, compartilhando

com eles de visão de mundo (CHALHOUB, 1986).

Sob esse aspecto, vejamos outro exemplo. Passava pouco das 0h00 de um sábado em

agosto de 1995, quando Carlos entrou num bar da Avenida Engenheiro Heitor Antônio Eiras

Garcia. Foi ao balcão e pediu uma cerveja a José, dono do bar e conhecido do bairro. José disse

nos depoimentos que o rapaz estava embriagado e por isso negou a cerveja. Carlos foi embora

e voltou pouco tempo depois, armado. Não chegou a entrar no bar. Ficou do lado de fora e,

“sem fazer mira”, disparou alguns tiros no interior do bar.

Givaldo, cliente do bar que estava tomando cerveja em uma das mesas, foi atingido nas

costas e Carlos fugiu. Givaldo era açougueiro na região e Carlos foi até o comércio pedir

desculpa um tempo depois. Carlos era frequentador do bar – segundo o proprietário, visitava o

bar ao menos três vezes por semana, “pagava bem”, sem nunca ter apresentado comportamento

violento.

Algo similar ocorreu no processo 0170-95. Trata-se de um caso no qual o cliente,

insatisfeito com o tratamento que recebeu pelo comerciante – que, segundo consta, teria

informado ao cliente que não possuía a “porção de manjuba frita” desejada – disparou com

revólver em sua direção. Neste caso, não houve feridos e o agressor foi capturado após breve

perseguição pelas imediações do “Memorial da América Latina”, na Barra Funda. Foi deixado

de lado por não apresentar elementos novos. Nessa perspectiva, o antagonismo entre

proprietário e freguês revela uma luta para manutenção da ordem. No papel que coube a Carlos

nesta história, a luta era para ser reconhecido e tratado não apenas como um cliente qualquer,

mas como alguém de confiança do bairro.

No segundo conflito narrado nos autos do processo 227-97 o que estava em jogo era a

luta de um pai na proteção do filho. Em outros casos vistos acima, a família está presente nos

conflitos de diversas formas como rede de solidariedade, a “família providência” cujos

membros “unidos por fortes laços de solidariedade e por uma densa trama de deveres e favores,

são partes da estrutura que organiza a família como um eficiente sistema assistencial”

(FERREIRA 2006, p. 57). É também fonte de tensão, seja pelas hostilidades internas ou devido

à necessidade de defender enquanto grupo prioritário.

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A proteção de um familiar é o tema central do caso 225-97. O empresário Francisco, 47

anos, natural do Ceará, aguardava seus filhos do lado de fora da casa noturna “Broadway” em

um domingo de 1997. Segundo relataram as testemunhas, o filho de Francisco, Marcos, esteve

envolvido numa briga no interior da casa noturna e por isso foi expulso. O pai viu o filho ser

retirado da casa noturna. Marcos reclamou ao pai que os seguranças o haviam agredido.

Francisco então se lançou na direção dos seguranças para “cobrar satisfações”.

Houve discussão e Francisco exigiu entrar no local para buscar sua filha, que não havia

saído. Segundo afirmou em esclarecimentos na delegacia, “enquanto pedia que fossem buscar

a menina ou que deixassem que o declarante entrasse para buscá-la, tais seguranças o

impediram”. Francisco então passou a ameaçar os seguranças com uma arma que, segundo os

laudos técnicos, sequer chegou a disparar. Francisco quase foi linchado pelos seguranças e

outras pessoas que estavam naquele local, o que foi evitado por um policial militar que passava

por ali.

Finalmente, o terceiro conflito envolvendo Alex, Augustinho e os policiais, colegas de

farde de Tigre. Ao menos nos casos de briga que foram examinados, pouco se nota a

participação de policiais na produção dos conflitos. E, quando estão presentes, como no caso

acima, seria impreciso afirmar que sua participação nos conflitos foi em razão de algum desafio

à autoridade de seu cargo. Tigre estava “à paisana” e Alex afirmou que não o haveria agredido

se soubesse que se tratava de um policial. Mas uma vez que um membro da corporação foi

ferido, todos os demais policiais próximos da cena e outros que estavam “em serviço” se

mobilizaram.

Outros dois exemplos envolveram policiais em conflitos. No processo 504-92, Rony, de

24 anos, policial militar havia passado a tarde bebendo com alguns amigos e se deslocou para

outro bar. Ali, os cunhados Cesar e Rogério também bebiam com um grupo de amigos. Não se

sabe ao certo como começou a briga entre Cesar, Rogério e Rony. Alguns afirmam que foi

porque Rony havia deixado cair um copo de cerveja perto dos carros estacionados em frente ao

bar, o que teria irritado a Rogério ou César, frequentadores daquele bar. Rogério, primo do dono

bar, queria que Rony pagasse pelo copo.

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A favor de Rony, depoimentos apontaram que foram os rapazes sabiam que Rony era

policial militar e aquele bar era “lugar de bandido, não de policial”. De todo modo, Rony

deixava o local de carro quando quase acertou outros veículos. Os depoimentos contam que

viram então Rogério e César lutando com Rony do outro lado da rua. Os três brigavam pela

arma que Rony portava, até que um dos cunhados consegue retirar-lhe o revólver. Enquanto

tentavam manusear, Rony sacou outro revólver que levava escondido. Houve troca de tiros,

mas Cesar e Rogério não conseguem disputar na pontaria com Rony. Cesar foi fatalmente

baleado, Rogério recebeu um tiro na perna e Rony saiu ferido também.

De fato, o único caso em que um policial se envolveu em conflito durante trabalho está

no processo penal 2161-97. Marcelo, 21 anos, investigador de polícia, parou num bar em

Pinheiros para fazer um lanche. O policial afirmou que chegou ao local, desceu do carro,

algumas pessoas o olhavam. Voltou imediatamente ao carro, momento em que este grupo de

desconhecidos teria iniciado disparos em sua direção. A autoria não foi esclarecida.

***

No capítulo anterior, apontamos como os operadores do direito interpretam os indícios

coletados nos autos e classificam a maioria das brigas de bar como “fúteis” ou “torpes”. Os

casos nos quais não há classificação são, em geral, aqueles em que os motivos não ficaram tão

evidentes, por isso a não qualificação. Como parte da estratégia na disputa pelos desfechos dos

processos penais as banalidades dizem respeito à ausência de motivos justificáveis, do ponto de

vista dos valores morais dos operadores do direito. Referem-se também a emoções que

deveriam ser controladas pelos sujeitos dos autos.

Neste capítulo, procuramos identificar o que haveria por trás dos motivos “fúteis”,

“torpes” e “simples”. A primeira constatação demonstra que a banalidade não está presente nos

discursos de quem brigou, de quem viu ou ouviu falar de uma briga. São outras as justificativas

para os conflitos. Aqui, como em outros estudos precedentes, o que é tipificado como banal por

juízes e promotores públicos diz respeito a “conflitos costumeiros, discussões cotidianas” e

“quase sempre litígios da vida de todos os dias” (FERREIRA, 2006, p. 71). Revelando a luta

para reafirmar papéis e identidades sociais e garantir a aprovação dos demais (Idem, p. 72).

Contudo, é mais que isso. Os casos banais revelam lutas frequentes para estabelecer

limites e manter intactas posições sociais. Portanto, em certa medida podem ser compreendidos

como atitudes conservadoras diante de cenários desconhecidos, como a chegada de estranhos,

as incertezas que emergem através dos boatos.

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Em certo sentido, a estratégia de recorrer aos casos de briga se mostrou correta. Os bares

são espaços sociais onde a harmonia e a tensão são constantes, revezam-se, intercalam-se. Os

frequentadores estão a todo tempo construindo suas identidades individuais e estabelecendo

diferenciações. A preservação da autoimagem e o respeito aparecem como elementos essenciais

de regras de conduta e comportamento dos bares.

Contudo, quanto aos conflitos examinados aqui, é cabível afirmar que alguns são brigas

no bar e outros, brigas do bar. Esta diferença não se faz meramente semântica, senão revela

que, em muitos casos, as hostilidades que opunham duas pessoas foram provocadas em outros

lugares, outros ambientes ou espaços sociais; enquanto em outros casos as hostilidades e os

conflitos foram produzidos nas próprias situações.

Nos bares, ao menos nos que foram retratados nas páginas dos autos de processo penal,

as brigas se processam entre pessoas cujo perfil socioeconômico as aproxima. O que levou à

pergunta: quais outras diferenciações os conflitos revelam? Quando se observam as

justificativas dos conflitos, cada história aparece como uma particularidade em si, no entanto,

algumas características são transversais.

Entre os casos de pessoas que se conheciam, primeiro foram destacados aqueles

identificados como casos de “execução”, seja pelo planejamento prévio, seja pelo modus

operandi das agressões. Chamou atenção nesses casos que as hostilidades eram características

das próprias relações entre as vítimas. Nesse sentido, a tensão estrutura o vínculo entre

“comerciantes e justiceiros”, entre “gangues rivais”. O conflito surge pelo desafio e revela

fraturas em posições de poder, que correspondem em algum sentido a mando e obediência.

Aqueles que tiveram suas posições ou imagens individuais ameaçadas resolvem o desafio pela

“cobrança”.

Em outros casos de conflitos antecedentes diferentes de “execuções”, o desafio e a

cobrança também estão presentes. As hostilidades já não são elementos próprios das relações

entre as partes, porém se estabelecem a partir de alguma quebra na expectativa de

comportamento de um dos lados. Entre esses, ficou claro o papel dos boatos que circulam entre

os bairros, colocando em dúvida os atributos que legitimam posições de poder ou status social.

Os boatos, as ofensas e os desafios que os sucedem revelam ainda a forte desconfiança

interpessoal, que multiplica os pontos de hostilidade tanto quanto facilita o desafio.

Os casos de conflito imediato, entre desconhecidos ao menos, destacaram outra fonte

de hostilidade nas relações sociais. Primeiramente, a ambivalência entre público e privado e a

constante exposição da intimidade, em especial para os familiares dos donos de bar, mas não

só. Nos bares, se misturam as expectativas de amigos, vizinhos, familiares, colegas de trabalho.

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Há sobreposições de vínculos e consequentemente a sobreposição de expectativas de ações. Ao

mesmo tempo é cobrado de um indivíduo diversos papéis sociais. As hostilidades surgem aí

como tentativas de impor limites e a luta pela diferenciação é também a luta pela manutenção

de posições hierárquicas. Ocorre, porém, como no exemplo da briga entre Valdir e José, que as

hierarquias, por não se configurarem como fixas e definidas em termos de estratos

socioeconômicos diferenciados, são em si objeto de disputa.

Entre os desconhecidos, além de todos esses elementos citados, surge com mais clareza

a escalada de tensões. É entre os desconhecidos que melhor se focalizam as dinâmicas que

transformam as hostilidades em conflito. A violência “sem sentido”, ou de “sentido

desprezível”, aparece como resultado de vários conflitos que se sucedem em curto espaço de

tempo. As motivações iniciais, em geral disputas por objetos materiais e simbólicos, tomam

outras proporções quando se estabelece um desafio entre as partes, e já não são mais os objetos

o que está em jogo, e sim as posições que os protagonistas, vítimas ou agressores ocupam nesse

universo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

À primeira leitura, a impressão que se pode formar dos conflitos representados nos autos

de processo penal é de que a violência resulta de questões meramente fúteis, questões de

somenos importância.

Michel Wieviorka (1997) chama atenção para os processos sociais de longo prazo que

transformaram a forma como a violência social é produzida e compreendida. A partir de meados

dos anos 1970, a violência social passa a ser considerada menos pelo que há de concreto e mais

pelas representações que a descrevem, surgindo no cenário público como um “mal absoluto”

que toda e qualquer sociedade deve enfrentar. Portanto, mais do que um conjunto de práticas

objetivas, a principal característica da violência é sua forma de representação que em geral

grupos dominantes atribuem a grupos despossuídos (WIEVIORKA 1997, p. 7).

Nesse novo “paradigma” da violência, seus agentes são considerados figuras

“naturalmente violentas”. A natureza social dos conflitos é ocultada e a violência deixa de ser

considerada como reflexo ou resultado dos movimentos internos dos sistemas sociais.

Autônoma, a violência seria meramente destruidora, banal. E na esteira desse novo paradigma,

deixa-se de reconhecer os atores sociais, os problemas que os opõem e os mecanismos sociais

disponíveis para resolução do conflito.

Ao longo do trabalho, a pretensa banalidade das mortes deixou de ser apenas um motivo

inicial da pesquisa e tornou-se um eixo fundamental. Assim, este trabalho transitou entre duas

ordens de problemas sociológicos. O ponto de partida foram as interpretações sociais e

institucionais para homicídio e o principal objetivo foi mapear como tais interpretações geraram

respostas penais. O ponto de chegada foi a tentativa de explicar os mecanismos do conflito

social violento em que, para além da banalidade atribuída às mortes, tratava-se de buscar

explicações para o uso da violência física nos conflitos interpessoais, destacando os atores e

aquilo que os opunha no emaranhado de relações conflitivas.

No primeiro capítulo, ao buscar as principais explicações sociológicas para o fenômeno

da mortalidade violenta, a revisão bibliográfica revelou que as taxas de homicídio nos anos

1990 resultavam de uma complexa combinação de fatores: as ocorrências concentram-se em

cenários de distribuição desigual de riqueza, nos quais se acumulam formas de acesso desigual

a direitos sociais básicos, o que expunha parcelas da população a determinadas formas de

violência; a cada vez maior presença do crime organizado em certas localidades possibilitou

maior circulação de armas e o convívio com padrões violentos de relações sociais, tornando os

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conflitos mais letais; o ajustamento entre grupos rivais e as disputas por territórios e um

histórico de desrespeitos e agressões policiais fariam esta população conviver com a violência;

ainda, a transformação e o crescimento do crime não foram acompanhados pela capacidade do

Estado de impor “Lei e Ordem”.

Todavia, em que pesem as contribuições desses estudos para compreensão geral do

problema da mortalidade violenta, identificou-se também que as principais explicações

estiveram assentadas em descrições e análises de características gerais e estruturantes da

sociedade, abrindo-se pouco espaço para compreender, por exemplo, porquê conflitos de

mesma natureza apresentam desfechos diferentes, muitos dos quais fatais.

O primeiro desafio foi transitar dos homicídios para os conflitos interpessoais, o que se

configurou como árduo processo de aprendizagem. Sem dúvida, o conflito social mostra-se um

dos conceitos mais caros ao pensamento sociológico. Não se configurou simples a tarefa de

tentar atualizar o conceito sem perder a densidade das análises históricas. Explorar tal conceito

levou a pesquisa e o pesquisador a enfrentarem definições e dúvidas de diversas ordens.

Metodológicas, porque o conflito social, mais que um “fenômeno da sociedade” pode

ser pensando como uma categoria analítica para explorar os processos pelos quais a sociedade

se transforma ou se mantém. Ademais, acrescentar ao conflito a dimensão das relações

interpessoais exige compreender as consequências, possibilidade e limitações se de transitar da

estrutura social para as agências interpessoais como unidade de análise.

Manifestaram-se também desafios teóricos. Buscamos apoio em autores como Simmel

e demais pensadores dedicados ao conflito em microescalas e, com eles, encontramos a

necessidade de diferenciar o conflito como luta deflagrada entre duas ou mais pessoas das

hostilidades que impulsionam tais atores a criarem representações uns dos outros e interagirem

entre si de maneira antagônica.

Nesse sentido o aprendizado fundamental desse período foi a dimensão produtiva dos

conflitos sociais, que não necessariamente destroem ou decompõe laços e relações, mas também

constroem, afirmam e reforçam vínculos sociais. Outro desafio teórico residiu em diferenciar

conflito de violência, esta geralmente pensada como reação àquele, em razão de atributos

psicológicos individuais e não raro atribuída às características culturais de determinados

“grupos” sociais.

No capítulo 2 buscou-se uma maneira de ler autos de processo penal de forma a não se

deixar cair nas suas armadilhas discursivas. Essa fonte de estudos não pode ser considerada um

mero atalho aos fatos investigados. A produção discursiva dos autos atende a lógicas específicas

na produção daquela fonte. Os processos fornecem modelos idealizados dos atores sociais.

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Porém, são permeáveis também às visões de mundo daqueles que são constrangidos a declarar

o que viram ou sabem a respeito dos fatos.

O mundo do direito compõe-se de normas e códigos e pelos “operadores do direito”,

agentes que detêm o poder de interpretar a realidade dos fatos e categorizá-las de acordo com

tais códigos. Há também o ordenamento jurídico, o plano de como as coisas funcionam de fato.

É então que os operadores se tornam manipuladores do direito e a sociedade, com suas

diferenças, se impõe na condução do processo. O direito à ampla defesa não é garantido porque

as provas produzidas pela polícia possuem enorme peso na condução do processo, fase em que

se produz indícios sem o direito à contradição, e a maioria dos réus só terá garantias de produzir

provas e contrapesos às classificações jurídicas quando conseguir atendimento pela defensoria.

As categorias jurídicas foram tema do capítulo 3. A pergunta central expressou-se no

significado do que é o banal nos discursos jurídicos. Identificamos tanto uma forte tendência

do Ministério Público de atribuir as qualificadoras subjetivas nos processos como também certa

tendência de o Júri amenizar as punições através das qualificadoras de diminuição de pena, a

violenta emoção como principal exemplo, o que abre uma possibilidade de compreender as

qualificadoras como elemento do jogo interno dos processos.

Recorrendo às justificativas dos operadores do direito para as qualificadoras o banal

aparece como classificação não apenas das ações como também dos agentes. Para o “homo

medius” representado pelos operadores do direito, agressor ou vítima são homens prepotentes,

egoístas, com tendências para o envolvimento em brigas, conflitos, mortes que são naturais –

senão psíquicas, do “meio social” de que são origem. O modo como as categorias jurídicas de

banal e fútil são manipuladas revelam tipos aceitáveis ou não de sensibilidades e emoções.

O capítulo 4, no qual as brigas de bar são examinadas pelos depoimentos dos envolvidos,

aponta que mais que “banalidade”, as hostilidades são produzidas em pontos de contato

delicados das relações cotidianas. Resultam de lutas diárias e constantes pela definição de

limites em uma sociedade com dificuldades de universalizar direitos. As hostilidades alimentam

conflitos que carecem de mediadores institucionais reconhecidos. As brigas entre o dono do bar

e um jovem do bairro, dois clientes numa partida de palitinhos, os membros da família parecem

indicar que esses e outros agentes similares não lograram garantir desfechos não fatais para os

conflitos, revelando cenários de crise e de mudança nas relações interpessoais.

Como compreender a violência interpessoal nessas circunstâncias? A circulação de

armas antes do “desarmamento” é sobretudo um fator determinante para a mortalidade dos

conflitos interpessoais. Esse, um elemento fundamental que não deve ser ignorado pelos

legisladores e pelos defensores do “porte de armas” no Brasil. Um possível retrocesso.

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Mas a “tecnologia” empregada na resolução dos conflitos deve ser considerada também

à luz das mecânicas sociais que geram os conflitos e apresentam a violência interpessoal como

alternativa viável e não raro desejável para sua resolução.

Ademais, o desenvolvimento do presente estudo levou o pesquisador a questionar a

atualidade de se pensar a violência apenas como um “código de conduta” de determinadas

parcelas da população. O quadro que se pode esboçar a partir daquelas histórias destaca a

solidariedade como elemento ainda fundamental e estruturante na vida social, demonstrada seja

pelas redes de ajuda mutua nos bairros pobres, seja no socorro das vítimas feridas nos hospitais

públicos da cidade de São Paulo. Há pouca valorização dos atos considerados violentos,

agressivos bem como não se detectou a intervenção de terceiros nas brigas entre dois homens.

Se considerada a violência um código de conduta, se poderia confundir a não intervenção nas

brigas como valorização da violência.

Contudo, a solidariedade social convive e disputa espaço com outros sentimentos sociais

que merecem atenção sociológica especial. Naqueles processos reúnem-se histórias de pessoas

que transitam frequentemente da confiança para a desconfiança, pessoas que não sabem o que

esperar do outro que está avançando sobre os limites, que não sabe o que esperar da reação

alheia. Os que os dados aqui interpretados parecem indicar é que a violência ocorre entre

pessoas que tem poucas oportunidades de obter reconhecimento público. O bar torna-se palco

e a violência instrumento na luta pela respeitabilidade. Em cenários em que a desconfiança

mútua parece caracterizar as relações e interações, a violência encontra terreno fértil para se

desenvolver.

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