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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES DEPARTAMENTO DE ARTES PLÁSTICAS BOLSISTA: DANILO PATZDORF CASARI DE OLIVEIRA PROF.ª ORIENTADORA: DÁLIA ROSENTHAL Prática transdisciplinar, Formação e Arte - II São Paulo Julho de 2013

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES

DEPARTAMENTO DE ARTES PLÁSTICAS

BOLSISTA: DANILO PATZDORF CASARI DE OLIVEIRA

PROF.ª ORIENTADORA: DÁLIA ROSENTHAL

Prática transdisciplinar,

Formação e Arte - II

São Paulo

Julho de 2013

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES

DEPARTAMENTO DE ARTES PLÁSTICAS

BOLSISTA: DANILO PATZDORF CASARI DE OLIVEIRA

PROF.ª ORIENTADORA: DÁLIA ROSENTHAL

Prática transdisciplinar,

Formação e Arte - II

São Paulo

2013

Relatório final entregue à Comissão de

Pesquisa ECA-USP, como requisito para

conclusão do Programa Institucional de

Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) do

Conselho Nacional de Desenvolvimento

Científico e Tecnológico (CNPq).

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RESUMO

A tecnologia digital, mais do que aproximar pessoas de diferentes regiões geográficas,

cria novos paradigmas de sociabilidade e de interação sujeito-objeto. As antigas fronteiras

entre emissor-receptor, público-privado, sujeito-ambiente, corpo-mente são anuladas pela

sociedade em rede quando todos os elementos, humanos e não-humanos, tornam-se atores da

estrutura social. A virtualização do corpo revela que nossas antigas definições para corpo e

sujeito se tornaram inválidas numa época em que podemos intercambiar as partes de nossos

órgãos ou habitar diferentes espaços sem nos deslocarmos fisicamente. A imbricação

natureza-cultura-tecnologia passa a se influenciar horizontalmente, negando os postulados do

pensamento humanista e retirando o homem do centro do universo. Conduzida por uma

metodologia transdisciplinar, a pesquisa bibliográfica foi a principal plataforma de estudo

para esta pesquisa, atravessando diferentes áreas do saber (filosofia, história, artes e

sociologia) na tentativa de se compreender o corpo humano influenciado pela tecnologia

digital. A prática artística em dança e artes visuais do autor também se constituiu como

importante fonte alternativa de reflexão dos conteúdos examinados. Objetivando pesquisar os

documentos da teoria da transdisciplinaridade e refletir o estatuto do corpo humano

influenciado pela tecnologia, sobretudo a digital, concluímos que o mundo contemporâneo

exige novos princípios epistemológicos capazes de compreenderem sua complexidade, posto

que as vertigens sociais de nossa época e do chamado pós-modernismo resultam exatamente

do descompasso entre as rápidas transformações (sociais, tecnológicas e científicas) e nossa

tentativa de compreendê-las com princípios do pensamento moderno. Por fim, a pesquisa

repousa na proposição de um termo - aqui intitulado transcorpo - que define o novo estatuto

do corpo humano no contexto dos ecossistemas informativos digitais (Internet), reivindicando

uma nova relação entre corpo-sujeito, sua materialidade e sua virtualização.

Palavras-chave: Corpo. Tecnologia Digital. Transdisciplinaridade.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ..................................................................................................01

2. OBJETIVOS ...........................................................................................................03

3. METODOLOGIA ................................................................................................04

4. RESULTADOS ........................................................................................................04

4.1 Transdisciplinaridade .............................................................................................05

4.1.1 Aparição do termo e seus documentos ..................................................................05

4.1.2 Conceitos e problematizações ..............................................................................08

4.2 O que é o virtual? ....................................................................................................13

4.2.1 O conceito de virtualização ..................................................................................13

4.2.2 A virtualização e o surgimento do ser humano .......................................................15

4.3. Breve panorama histórico da relação entre corpo e mente no ocidente ............18

5. ANÁLISES ........................................................................................................23

5.1 Sobre a pós-modernidade ..................................................................................23

5.2 A web 2.0: uma revolução despercebida ............................................................27

5.3 A virtualização do corpo: sensibilidade extracutânea .........................................34

6. CONCLUSÃO ..................................................................................................42

6.1 Transcorpo: o novo estatuto do corpo contemporâneo .......................................42

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...............................................................52

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1. INTRODUÇÃO

O atual estágio dos desenvolvimentos tecnológicos e culturais de nossa sociedade

revela a tendência intrínseca que temos à coletividade. A recente tecnologia eletrônica

inaugura a capacidade do ser humano de se comunicar instantaneamente com qualquer outro

indivíduo e em qualquer parte do universo, desde que ambos estejam conectados a algum

dispositivo digital (celular, tablet, computador e outros gadgets).

A modernidade, apesar de sua aparência caótica, leva a uma aproximação entre as

culturas. Ela faz ressurgir, com infinitamente mais intensidade que antes, a

necessidade de unidade do ser e do mundo. A potencialidade do nascimento de uma

cultura da esperança está à altura do desafio de autodestruição provocado pelo

abismo do sem sentido.1

Metrópoles, arquibancadas de estádios, festas e eventos que reúnem milhares de

pessoas e outras aglomerações percebidas cotidianamente representam esta “necessidade de

unidade do ser e do mundo”, apontada por um dos autores da Carta da Transdisciplinaridade,

Basarab Nicolescu. Da mesma forma, sites de redes sociais, chats online e tantos outros

espaços de comunicação coletiva inaugurados pela tecnologia digital facilitam a aproximação

de diferentes pessoas e culturas. A “cultura da esperança” beira o “abismo do sem sentido”

porque o alicerce social se oferece maleável a nossas vontades; isto é, a cultura e a

humanidade corresponderão aos usos e finalidades que conferirmos à tecnologia e à

globalização.

Na mesma esteira, o corpo, antigo fator de presença, também foi transformado:

podemos estar em vários lugares ao mesmo tempo, sem nos deslocarmos fisicamente.

Sabemos que o corpo foi relegado pelos séculos anteriores por conta da supremacia concedida

à razão em detrimento dos sentidos como forma de apreensão do mundo. A famosa frase de

René Descartes - “Penso, logo existo” - exprime a filosofia cartesiana que concebe os sentidos

e a materialidade do corpo humano como entraves para o desenvolvimento do pensamento.

Pensadores do século XX (Nietzsche, Freud, Merleau-Ponty) revogaram grande parte desta

concepção do corpo como mero invólucro de um sujeito superior, reivindicando outro estatuto

para a relação corpo-mente.

Mas a popularização dos dispositivos digitais no século XXI solicita, além da relação

desierarquizada entre corpo e mente, uma nova relação destes com a tecnologia.

1 NICOLESCU, Basarab. O Manifesto da Transdisciplinaridade. Trad. Lúcia Pereira de Souza. São Paulo:

TRION, 1999, p. 106.

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O corpo – secularmente recalcado pelo fantasma do sujeito – não retornou para

ocupar o lugar deixado por esse sujeito, como ingenuamente pensam alguns. O

corpo retornou como um problema, uma interrogação em busca de respostas. Daí o

corpo ter se tornado presença constante nos discursos atuais. Para alguns, trata-se

simplesmente de encontrar um substituto para ocupar o lugar vazio deixado pelo

sujeito. Para outros, trata-se de explorar um território cuja geografia ainda não está

reconhecida. (...) Como nos diz Tadeu da Silva (2000: 12), é no confronto com

clones, ciborgues e outros híbridos tecnonaturais que a ‘humanidade’ de nossa

subjetividade se viu colocada em questão. Aquilo que caracteriza a máquina nos fez

questionar aquilo que caracteriza o humano: a matéria de que somos feitos.2

Transformados em imagens, podemos circular livremente pelos info-espaços da

Internet. É lícito, então, perguntarmos: prescindimos do nosso corpo físico, já que a

comunicação, a relação social, sexual, econômica, intelectual e afetiva podem se dar à

distância? Este novo corpo (digitalizado e multiplicado), experimentado toda vez que

habitamos o mundo intercedido pela tecnologia digital, exige uma nova forma de percepção

espaço-temporal e um modo inédito de lidar com a fisicalidade e com a imagem dos nossos

próprios corpos.

As formas contemporâneas de comunicação em rede modificam não somente as

relações sociais, quebrando as históricas separações entre emissor e receptor, entre

meio e indivíduo, mas superam o mesmo conceito de território e, portanto,

modificam qualitativamente a relação analógico-dialética entre sujeito e espaço.3

Assim sendo, a Internet não apenas aproxima pessoas de diferentes regiões

geográficas, mas cria novos paradigmas de sociabilidade e interação sujeito-objeto. Oscilando

constantemente entre a virtualização e a materialidade, o sujeito contemporâneo não consegue

mais distinguir com clareza os limites e interferências de suas ações realizadas no plano físico

e no espaço virtual. Os info-espaços digitais se tornam “habitáveis, portanto, na medida em

que passam a instaurar uma forma de interação transorgânica entre sujeito, interfaces,

informações e territórios, e não somente uma simples reterritorialização do espaço, realizada

por um sujeito navegador-ator”.4

Neste sentido, as fronteiras dualistas do pensamento moderno não são capazes de

compreender um mundo cada vez mais interconectado ou, menos ainda, um corpo tensionado

ontologicamente pela oscilação entre sua materialidade e sua virtualização. O habitar

contemporâneo, constituído de múltiplos elementos corporais, sociais, tecnológicos e

informativos, e a atual cultura, constituída de divergentes crenças, histórias e costumes,

invalidam o pensamento racionalista - do qual somos tributários - que interpretava o mundo

2 SANTAELLA, Lucia. Corpo e comunicação: sintoma da cultura. São Paulo: Ed. Paulus, 2004, pp. 24 e 25.

3 DI FELICE, Massimo. Paisagens pós-urbanas: o fim da experiência urbana e as formas comunicativas do

habitar. São Paulo: Editora Annablume, 2009, p. 240. 4 Ibidem, p. 252.

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de maneira objetivada, separando sujeito e observador; mecanicista, acreditando que as partes

representavam o todo; e antropocêntrica, preservando o homem como medida de todas as

coisas - daí nossa predatória dominação da natureza na tentativa de conformá-la à

antropometria.

A transdisciplinaridade, neste sentido, é um princípio epistemológico que surge para

abordar e compreender o cenário contemporâneo através da unidade e interação dos

conhecimentos, através da valorização da heterogeneidade do corpo social, do respeito aos

diferentes níveis de realidade dos indivíduos em uma mesma comunidade, a fim de nos

beneficiarmos da complexidade inerente ao mundo contemporâneo em vez de nele nos

prejudicarmos reciprocamente.

Enfim, considerando que tais transformações só podem influir diretamente sobre os

usuários da tecnologia digital – e que sua utilização está mais relacionada à acessibilidade

financeira que geográfica – este trabalho quer refletir o estatuto do corpo contemporâneo das

pessoas que fazem uso cotidiano dos dispositivos eletrônicos e digitais.

2. OBJETIVOS

Esta pesquisa teve como principais objetivos:

a. Pesquisar os documentos da transdisciplinaridade e avaliá-la como princípio

epistemológico capaz de compreender as características do mundo contemporâneo.

b. Refletir o estatuto do corpo humano influenciado pela tecnologia, sobretudo a

digital.

c. Perceber possíveis transformações no espaço social, no comportamento e nas

relações interpessoais operadas a partir da utilização cotidiana dos dispositivos digitais.

Considerando que o acesso à tecnologia digital está mais relacionado à acessibilidade

financeira que geográfica,

d. Estudar a validade de se propor um termo - aqui intitulado transcorpo - que

defina o novo estatuto do corpo do ser humano no contexto dos ecossistemas informativos

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digitais (Internet): um corpo, e, portanto, um indivíduo, que transita e percebe suas ações e

consequências no espaço físico e virtual.

3. METODOLOGIA

A pesquisa foi conduzida por uma metodologia transdisciplinar, pois o tema abordado

- o corpo físico e digitalizado - não poderia se esgotar analisando-se uma única disciplina:

discutir o corpo é discutir o ser humano através de diferentes áreas dos saberes que nos

compõem.

Para tanto, a pesquisa bibliográfica foi umas das principais plataformas de estudo,

fornecendo dados e informações históricas, sociológicas e filosóficas.

Refletir sobre o fazer artístico pessoal do bolsista, tanto nos suportes das artes visuais

quanto na dança, estabeleceu uma relação prática-teoria necessária para uma pesquisa de

caráter imersivo.

Por fim, a observação diária do organismo social no espaço urbano e nas redes sociais

digitais foi outra importante fonte de pesquisa utilizada para se compreender as influências

operadas pela tecnologia virtual sobre o cotidiano, vice-versa.

4. RESULTADOS

Falar estritamente de resultados, análises e conclusões para uma pesquisa na área de

comunicações e artes retiraria o caráter poético que preside a motivação desta pesquisa. Ainda

que abordados cientificamente, os temas e os livros estudados remontam à pesquisa poética e

pessoal do bolsista; consistindo, a pesquisa em si mesma, sua prática artística.

Assim sendo, para se conformar às normas exigidas pela Comissão de Pesquisa da

ECA-USP e às normas PIBIC-CNPq, optou-se por, na seção 4. Resultados, apresentar os

principais estudos bibliográficos, expondo informações e dados necessários para a

compreensão dos assuntos discutidos doravante; na seção 5. Análises, o conteúdo exposto na

seção anterior será comentado e criticado, somando-se a outros levantamentos bibliográficos

que só poderiam ser compreendidos após a leitura dos resultados; na seção 6. Conclusão, por

meio de um texto em tom ensaístico, será apresentado, definido, justificado e debatido o

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termo transcorpo, conceito este que resulta dos estudos científicos somados à pesquisa

poético-artística do bolsista.

4.1 Transdisciplinaridade

O livro Manifesto da transdisciplinaridade, de Basarab Nicolescu, e os documentos

gerados nos eventos sobre transdisciplinaridade foram as principais fontes de estudo para a

elaboração deste capítulo.

4.1.1 Aparição do termo e seus documentos

O termo “transdisciplinaridade” foi apresentado pela primeira vez por Jean Piaget em

1970 no “I Seminário Internacional sobre Pluri e Interdisciplinaridade”, realizado na

Universidade de Nice - França, ao declarar que as etapas pluri e interdisciplinares deveriam

ser sucedidas pela etapa transdisciplinar.

O mesmo termo reaparece em 1986 no colóquio “A ciência Diante das Fronteiras do

Conhecimento", organizado pela UNESCO na cidade de Veneza - Itália, no qual cientistas

discutem a real aplicação dos resultados de suas pesquisas, denunciando a defasagem em

relação ao que é ensinado nas escolas e ao que se tem descoberto na atualidade, reivindicando

uma “troca dinâmica entre as ciências ‘exatas’, as ciências ‘humanas’, a arte e a tradição”.

Percebem que

Somos testemunhas de uma revolução muito importante no campo da ciência,

provocada pela ciência fundamental (em particular a física e a biologia), devido à

transformação que ela traz à lógica, à epistemologia e também, através das

aplicações tecnológicas, à vida de todos os dias. Mas, constatamos, ao mesmo

tempo, a existência de uma importante defasagem entre a nova visão do mundo que

emerge do estudo dos sistemas naturais e os valores que ainda predominam na

filosofia, nas ciências do homem e na vida da sociedade moderna. Pois estes valores

baseiam-se em grande parte no determinismo mecanicista, no positivismo ou no

niilismo. Sentimos esta defasagem como fortemente nociva e portadora de grandes

ameaças de destruição de nossa espécie.5

Interessante notar que tal reivindicação provém também dos cientistas - dos

pesquisadores das “exatas” -, os quais são julgados pelo senso comum como desprovidos de

5 Declaração de Veneza, 07 de março de 1986. Disponível em: SOMMERMAN, A.; MELLO, M. F. de;

BARROS, V. M. de (Org.). Educação e Transdisciplinaridade II. In: Encontro Catalisador do Centro de

Educação Transdisciplinar, III, 2001, São Paulo. São Paulo: Trion, 2006, p. 187.

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reflexão humanística e social. O próprio nome do colóquio já denuncia a insuficiência das

fronteiras do conhecimento para a real aplicação das ciências na vida acadêmica e cotidiana.

Recusando qualquer projeto globalizante, qualquer sistema fechado de

pensamento, qualquer nova utopia, reconhecemos ao mesmo tempo a urgência de

uma procura verdadeiramente transdisciplinar, de uma troca dinâmica entre as

ciências “exatas”, as ciências “humanas”, a arte e a tradição. Pode-se dizer que este

enfoque transdisciplinar está inscrito em nosso próprio cérebro, pela interação

dinâmica entre seus dois hemisférios. O estudo conjunto da natureza e do

imaginário, do universo e do homem, poderia assim nos aproximar mais do real e

nos permitir enfrentar melhor os diferentes desafios de nossa época.6

Para aprofundar estudos deste caráter, em 1987 foi criado o Centre International de

Recherches et Études Transdisciplinaires (CIRET), oficializando a existência de um grupo

interessado em pesquisar e aplicar esta nova abordagem científica e cultural.

Em 1991 o “Congresso Ciência e Tradição: Perspectivas Transdisciplinares para o

século XXI”, realizado em Paris - França, dá continuidade às reivindicações de uma nova

relação entre a maneira de articular os conhecimentos e as condições contemporâneas da

sociedade:

Uma das revoluções conceituais desse século veio, paradoxalmente, da ciência, mais

particularmente da física quântica, que fez com que a antiga visão da realidade, com

seus conceitos clássicos de continuidade, de localidade e de determinismo, que ainda

predominam no pensamento político e econômico, fosse explodida. Ela deu à luz a

uma nova lógica, correspondente, em muitos aspectos, a antigas lógicas esquecidas.

Um diálogo capital, cada vez mais rigoroso e profundo, entre a ciência e a tradição

pode então ser estabelecido a fim de construir uma nova abordagem científica e

cultural: a transdisciplinaridade.7

Em 1994, Basarab Nicolescu, Edgar Morin e outros pensadores desenvolveram e

formularam o conceito de transdisciplinaridade no “I Congresso Mundial da

Transdisciplinaridade “, convento de Arrábida - Portugal. Deste evento resultou a Carta da

Transdisciplinaridade, redigida e assinada pelos participantes, visando formalizar e tornar

público o que nela se discute: os métodos de lidar com o conhecimento, sua transmissão e

aplicação; o respeito e a valorização das diferentes culturas, sobretudo quando estas se

chocam; a possibilidade de se criar, enfim, um mundo onde todos os indivíduos - bem como a

natureza, a tecnologia, a política, a ciência e a religião - encontrem seu espaço de expressão

sem interferir negativamente no desenvolvimento dos outros.

Considerando que somente uma inteligência que se dá conta da dimensão

planetária dos conflitos atuais poderá fazer frente à complexidade de nosso mundo e

ao desafio contemporâneo de autodestruição material e espiritual de nossa espécie;

6 Ibidem, p. 187.

7 Comunicado final do Congresso Ciência e Tradição: Perspectivas Transdisciplinares para o século XXI de

1991, Paris. Disponível em: <http://www.ufrrj.br/leptrans/arquivos/Congresso_Ciencia_Tradicao_1991.pdf>.

Acessado em: 10 de julho de 2013.

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(...) Considerando que a ruptura contemporânea entre um saber cada vez mais

acumulativo e um ser interior cada vez mais empobrecido leva à ascensão de um

novo obscurantismo, cujas consequências sobre o plano individual e social são

incalculáveis; (...) Considerando simultaneamente que todos os desafios enunciados

[na Carta da Transdisciplinaridade] possuem sua contrapartida de esperança e que o

crescimento extraordinário do saber pode conduzir a uma mutação comparável à

evolução dos hominídeos à espécie humana, (...) os participantes do Primeiro

Congresso Mundial de Transdisciplinaridade (...) adotaram o presente Protocolo

entendido como um conjunto de princípios fundamentais da comunidade de espíritos

transdisciplinares, constituindo um contrato moral que todo signatário deste

Protocolo faz consigo mesmo, sem qualquer pressão jurídica e institucional.8

No mesmo documento, os seguintes artigos explicitam que:

Artigo 2: O reconhecimento da existência de diferentes níveis de realidade,

regidos por lógicas diferentes, é inerente à atitude transdisciplinar. Qualquer

tentativa de reduzir a realidade a um único nível regido por uma única lógica não se

situa no campo da transdisciplinaridade.

Artigo 3: A transdisciplinaridade é complementar à aproximação

disciplinar: faz emergir da confrontação das disciplinas dados novos que as

articulam entre si; oferece-nos uma nova visão da natureza e da realidade. A

transdisciplinaridade não procura o domínio sobre as varias outras disciplinas, mas a

abertura de todas elas àquilo que as atravessa e as ultrapassa.

Artigo 10: Não existe um lugar cultural privilegiado de onde se possam

julgar as outras culturas. A abordagem transdisciplinar é ela própria transcultural.

Artigo 11: Uma educação autêntica não pode privilegiar a abstração no

conhecimento. Deve ensinar a contextualizar, concretizar e globalizar. A educação

transdisciplinar reavalia o papel da intuição, da imaginação, da sensibilidade e do

corpo na transmissão dos conhecimentos.

Artigo 14: Rigor, abertura e tolerância são características fundamentais da

atitude e da visão transdisciplinar. O rigor na argumentação, que leva em conta

todos os dados, é a melhor barreira contra possíveis desvios. A abertura comporta a

aceitação do desconhecido, do inesperado e do imprevisível. A tolerância é o

reconhecimento do direito às ideias e verdades contrárias às nossas.9

No Brasil, o Centro de Estudos Transdisciplinares (CETRANS) foi criado em 1998,

formando pesquisadores e professores, promovendo encontros e produzindo várias

publicações sobre os resultados alcançados em nosso país e no mundo. Em 2005, ainda no

Brasil, ocorreu o “II Congresso Mundial de Transdisciplinaridade”, nas cidades de Vila Velha

e Vitória - Espírito Santo, para “recordar, valorizar, ampliar e contextualizar a Carta da

Transdisciplinaridade”, conforme os signatários afirmam no preâmbulo do documento gerado

neste congresso. Analisando criticamente as experiências transdisciplinares anteriores,

postularam a “necessidade de articular a atitude, a pesquisa e a ação transdisciplinares como

base para a projeção de ações presentes e futuras”.

8 Carta da Transdisciplinaridade elaborada no I Congresso Mundial da Transdisciplinaridade; Convento de

Arrábida, Portugal, 06 de novembro de 1994, disponível em SOMMERMAN, A.; MELLO, M. F. de; BARROS,

V. M. de (Org.). Op. Cit., p. 193. 9 Ibidem, p. 193.

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8

A Ação Transdisciplinar propõe a articulação da formação do ser humano

na sua relação com o mundo (ecoformação), com os outros (hetero e co-formação),

consigo mesmo (autoformação), com o ser (ontoformação), e, também, com o

conhecimento formal e o não formal. Procura uma mediação dos conflitos que

emergem no contexto local e global, visando a paz e a colaboração entre as pessoas

e entre as culturas, mas sem desconsiderar os contraditórios e a valorização de sua

expressão.10

Mais que reafirmar os postulados anteriores, este congresso foi o primeiro a apontar a

necessidade de se criarem “universidades transdisciplinares virtuais”, reconhecendo as redes

digitais como potentes ambientes de discussão e democratização do conhecimento.

4.1.2 Conceitos e problematizações

A transdisciplinaridade, como o prefixo ‘trans’ indica, diz respeito àquilo que está

ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de

qualquer disciplina. Seu objetivo é a compreensão do mundo presente, para o qual

um dos imperativos é a unidade do conhecimento.11

Em outras palavras, o que Nicolescu aponta como “unidade do conhecimento” é a

superação da lógica da ciência e do pensamento modernos. A ciência moderna nasceu da

ruptura em relação à antiga visão teocêntrica do mundo. Ela está fundamentada na ideia da

separação total entre o indivíduo conhecedor e a realidade, tida como completamente

independente do indivíduo que a observa. A partir de princípios racionais e de verificação, a

ciência moderna estabeleceu três postulados fundamentais: 1) a existência de leis universais;

2) a descoberta destas leis pela experiência científica; 3) a reprodutibilidade perfeita dos

dados experimentados.12

Daí provém a noção de objetividade na maneira de lidar com os fatos

naturais e sociais e a decorrente ideia de progresso.

Mas não interpretemos a ideia de progresso apenas pelo viés do senso comum que o

julga como desumanizante e alienante. Os homens que detiveram o poder, durante toda a

história, usurparam da disposição alheia para obter suas próprias benesses – isto não é

apanágio deste evento. É necessário recordar que nesta época o planeta passava por um

aumento populacional cada vez maior em números: enquanto em 1500 D.C. éramos

aproximadamente 500 milhões de humanos sobre a Terra, em 1800 alcançamos a casa do 1

bilhão e em 1975, éramos 4 bilhões. Hoje, somos aproximadamente 7 bilhões.13

Assim sendo,

10

Mensagem de Vila Velha/Vitória do II Congresso Mundial de Transdisciplinaridade, 2005. Disponível em

<http://www.ufrrj.br/leptrans/arquivos/MENSAGEM_VILA_VELHA_VITORIA_2005.pdf>. Acessado em: 10

de julho de 2013. 11

NICOLESCU, Basarab. Op. Cit., p. 46. 12

Ibidem, p. 14. 13

Naturalmente estes números não são confiáveis, já que não ocorriam contagens populacionais unificadas em

todo o globo terrestre. Todavia, estes dados foram extraídos do site <

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apesar de cruel e agressivo, o “progresso” se fez necessário na tentativa de permitir a

sobrevivência de tantos seres humanos sobre a Terra.

O próprio iluminismo foi uma tentativa de reformar a situação social e conferir

direitos iguais a todos os cidadãos - sobretudo à classe que engendrou tal revolução, a

burguesia - por meio da racionalização e do progresso técnico, os quais conduziriam a novas

condutas morais. O “big bang disciplinar” combatido pela transdisciplinaridade foi iniciado

nesta época, ao separar as diversas disciplinas e instâncias da vida para verificá-las e

manipulá-las com mais facilidade e precisão (evitando desperdícios de qualquer natureza).

Nicolescu reconhece também a eficácia desta especialização dos conhecimentos:

O crescimento contemporâneo dos saberes não tem precedentes na história humana.

(...) A soma dos conhecimentos sobre o Universo, e os sistemas naturais,

acumulados durante o século XX, ultrapassa em muito tudo aquilo que pôde ser

conhecido durante todos os outros séculos reunidos.14

Mas se pergunta:

Como se explica que quanto mais sabemos do que somos feitos, menos

compreendemos quem somos? (...) Como se explica que quanto mais conheçamos o

universo exterior, mais o sentido de nossa vida e de nossa morte seja deixado de

lado como insignificante e até absurdo? A atrofia do ser interior seria o preço a ser

pago pelo conhecimento científico? A felicidade individual e social, que o

cientificismo nos prometia, afasta-se indefinidamente como uma miragem.

As catástrofes sociais do século XX são entendidas pelo autor como consequências de

uma ciência triunfante e de um pensamento objetivista que lançaram o ser humano para fora

do centro das aplicações do que se tem descoberto.

A objetividade, instituída como critério supremo de verdade, teve uma consequência

inevitável: a transformação do sujeito em objeto. (...) O ser humano torna-se objeto:

objeto da exploração do homem pelo homem, objeto de experiências de ideologias

que se anunciam científicas, objeto de estudos científicos para ser dissecado,

formalizado e manipulado. (...) os dois massacres mundiais [do século XX], sem

levar em conta as inúmeras guerras locais, que também fizeram incontáveis

cadáveres, não passam do prelúdio de uma autodestruição em escala planetária. Ou,

talvez, de um autonascimento.15

Mais que denunciar as desgraças do século XX, o autor demonstra as causas destes

eventos e aponta para outra saída, para além do niilismo e do desespero. Analisar estes

eventos e entendê-los como “prelúdios de uma autodestruição” muitos dos teóricos pós-

modernos já o fizeram, culpando principalmente a tecnologia mecânica e analógica e

demonizando a crescente tecnologia digital que causaria danos em maiores escalas. Mas

http://mercadoetico.terra.com.br/arquivo/crescimento-populacional-e-desenvolvimento-economico/>. Acessado

em 11 de julho de 2013. 14

NICOLESCU, Basarab. Op. Cit., p. 11. 15

Ibidem, p. 18.

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interpretar tais eventos como o anúncio de um “autonascimento” é desnudar o delay entre

teoria e prática; isto é, Nicolescu e a transdisciplinaridade mostram que as características do

mundo contemporâneo estão em descompasso com nossa forma de se relacionar com o

conhecimento, com a tecnologia, com a natureza e com as pessoas que nele habitam.

Do ponto de vista da transdisciplinaridade, qualquer sistema fechado de pensamento,

não importa se de natureza ideológica, política ou religiosa, está fadado a ruir. Um

sistema fechado de pensamento coloca inevitavelmente ênfase na noção de massa,

indistinta e disforme, conceito abstrato que elimina toda a importância do

desenvolvimento interior do ser humano. A ideologia nazista colocava ênfase na

massa que constitui uma “raça”, desprezando a nobreza interior de todo ser humano

e isto conduziu à abominação dos campos de extermínio e aos fornos crematórios. A

ideologia comunista, em nome de nobres ideais, divinizava “as massas populares”,

constituídas por idênticos “homens novos”, desprezando a heterogeneidade

intrínseca dos seres humanos, e isto levou aos crimes da época stalinista.16

Em suas palavras, a transdisciplinaridade seria também a “ressurreição do indivíduo”,

considerando o repertório de toda pessoa em sua plenitude. Para tanto, Nicolescu evidencia os

três pilares da transdisciplinaridade: 1) os diferentes níveis de realidade, 2) a lógica do

terceiro incluído e 3) a complexidade.

Isto significa que podemos com isso obter uma teoria completa capaz de dar conta

de todos os resultados conhecidos e vindouros? A resposta a esta pergunta tem

apenas um interesse teórico, pois toda ideologia ou todo fanatismo que tenha como

ambição mudar a face do mundo estão baseados na crença de que seu enfoque é

completo. As ideologias ou os fanatismos em questão acreditam deter a verdade,

toda a verdade.17

Perceber os diferentes níveis de realidade é reconhecer que uma única interpretação de

um determinado fato não é capaz de esgotar sua complexidade, conquanto a vida seja

constituída de diferentes conjunturas somadas a repertórios díspares.

Sobretudo nas últimas décadas, os meios de comunicação estão sendo os responsáveis

por aproximarem diferentes culturas, fazendo colidirem conceitos e realidades adversas.

Afinal, quanto mais se popularizam os meios de comunicação (especialmente a Internet), mais

as consideradas “subculturas” podem insurgir contra o sufocamento causado pela

superioridade histórica da cultura erudita e pela intransigente exposição da cultura de massa.

Neste sentido, o indivíduo da sociedade urbana digitalizada deve por si próprio buscar suas

referências, as quais antes eram encontradas facilmente na religião, nas instituições ou na

própria cultura, radicalmente menos fragmentada que a de hoje. Mas é exatamente esta atual

fragmentação da cultura que enriquece a experiência do individuo contemporâneo.

16

Ibidem, p. 142. 17

Ibidem, p. 51.

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11

A colisão de diferentes culturas é o que nos permite enxergar a essência de nossa

própria condição. É no confronto com o outro, na experiência da alteridade, que nos

percebemos integralmente. A Reforma Protestante de Martinho Lutero (século XVI) seria

impensável sem as grandes navegações - e o decorrente encontro com os índios e seus

costumes -, sem o mercado abastecido pelas mesmas expedições marítimas - que

intercambiava produtos e comportamentos africanos e orientais -, sem a invenção da imprensa

de Gutenberg - que acelerava a circulação da informação -; colocando em xeque hábitos

aparentemente normais e verificando a legitimidade das (até então incontestáveis) atitudes da

igreja católica; por exemplo, a venda de indulgências. Muito mais complexo seria perceber o

confronto de diferentes informações, costumes e conhecimentos na atual paisagem, interferida

pelos celulares, pela Internet, pela televisão, pelo rádio, pelo avião, pelo correio, pelos jornais

e pela economia (meios de comunicação e locomoção que correspondem a diferentes vozes,

ou seja, diferentes realidades).

Coabitação, troca, intercâmbio, compartilhamento tornam-se as palavras-chave do

contexto contemporâneo. Das intensas migrações, o mais sábio seria extrair destas diferentes

realidades o que melhor pode nos servir na interpretação e transformação do mundo (o

referido autonascimento da cultura nas linhas anteriores) em vez de nos fecharmos frente à

caótica colisão das múltiplas realidades (que implicaria no prelúdio de uma autodestruição).

A lógica do terceiro incluído, outro pilar da transdisciplinaridade, é demasiadamente

complicado para se explicar em poucas palavras; mas, muito resumidamente:

O terceiro incluído não significa de modo algum que se possa afirmar uma coisa e

seu contrário, o que, por anulação recíproca, destruiria toda possibilidade de

predição e, portanto, toda possibilidade de abordagem científica do mundo.

Trata-se antes de reconhecer que, em um mundo de interconexões irredutíveis (como

o mundo quântico), realizar uma experiência ou interpretar os resultados

experimentais reverte inevitavelmente em um recorte do real que afeta o próprio

real. A entidade real pode, desse modo, mostrar aspectos contraditórios que são

incompreensíveis, absurdos mesmo, do ponto de vista de uma lógica fundada sobre

o postulado “ou isso ou aquilo”. Esses aspectos contraditórios deixam de ser

absurdos em uma lógica fundada sobre o postulado “e isso e aquilo”, ou antes, “nem

isso nem aquilo”. 18

A complexidade a que se refere Nicolescu como o terceiro pilar da

transdisciplinaridade seria o relacionar-se com o conhecimento superando a lógica operante

na ciência e no pensamento modernos, discutidos acima.

18

Para uma compreensão aprofundada, indica-se a leitura do artigo “Contradição, lógica do terceiro incluído e

níveis de realidade, do mesmo autor discutido neste capítulo, Basarab Nicolescu. Disponível em

<http://cetrans.com.br/textos/contradicao-logica-do-terceiro-incluido-e-niveis-de-realidade.pdf>. Acessado em

11 de julho de 2013.

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12

(...) no início do século XX, Max Planck fez uma descoberta que começou a demolir

o paradigma científico vigente na época. Ele descobriu que a energia tem uma

estrutura descontínua: ela se move por saltos, “sem passar por nenhum ponto

intermediário” (NICOLESCU, 2001, p. 18). Essa descoberta, que derrubou um dos

pilares da física clássica, a ideia de continuidade, colocou em questão outro dos seus

pilares, a causalidade local. Mas foi apenas na década de 70 que o tipo de

causalidade do mundo quântico foi esclarecido e verificado: a causalidade global.

No mundo subatômico “as entidades físicas continuam a interagir qualquer que seja

o seu afastamento” (ibid., p. 25). Essa comprovação da causalidade global derrogou

um dos pilares metodológicos da ciência moderna, a separabilidade (por exemplo,

entre sujeito e objeto), e um novo conceito emergiu na física, a não-separabilidade.

No entanto, isso não colocou em dúvida a causalidade como um todo, mas mostrou a

existência de outro tipo de causalidade, além da local, que não nega a objetividade

científica, mas apenas “uma de suas formas: a objetividade clássica, baseada na

crença de ausência de qualquer conexão não-local” (ibid., p. 26). Algumas décadas

mais depois da descoberta de Planck, outro dos pais da física quântica, Werner

Heisenberg, derrubará o terceiro pilar da física clássica, a ideia de determinismo,

pois suas equações mostraram que as entidades quânticas encontradas por Planck (os

quanta: os pacotes de energia que se movem por saltos) não podem ser localizados

num ponto preciso do espaço e num ponto preciso do tempo. Essas entidades

quânticas, muito diferentes dos dois tipos de objetos bem distintos que eram

estudados pela física clássica, os corpúsculos e as ondas ⎯ pois são as duas coisas ao

mesmo tempo ⎯, não podem ter sua trajetória prevista. Portanto, na escala

subatômica (o interior do átomo) reina um indeterminismo. No entanto, este não

significa acaso ou imprecisão, pois, por um lado, as entidades quânticas não

respeitam, como vimos, as ideias fundamentais da física clássica, a continuidade e a

causalidade local, e, por outro, as previsões probabilísticas da mecânica quântica são

muito precisas no que diz respeito a essas entidades.19

Novamente, vale destacar: a reivindicação de uma nova postura frente ao

conhecimento e ao mundo veio não somente dos pensadores das áreas “humanas” mas

também dos pesquisadores das “exatas”, ao constatarem a invalidez dos postulados clássicos

da ciência moderna para interpretar dados contemporâneos e a insuficiência da mesma para

compreender, sozinha, os acontecimentos sociais.

Mesmo no interior da ciência, distingue-se com cuidado as ciências exatas das

ciências humanas, como se as ciências exatas fossem desumanas (ou super-

humanas) e as ciências humanas - inexatas (ou não exatas). A terminologia anglo-

saxônica é ainda pior: fala de ciências duras (hard sciences) [ciências naturais] e de

ciências suaves (soft sciences) [ciências sociais].20

A transdisciplinaridade, neste sentido, por meio da união dos saberes terminaria

unificando cultura, ciência e tecnologia sem distinções hierárquicas e considerando as

diferentes realidades de cada indivíduo, sem reducionismos.

A Realidade engloba o Sujeito, o Objeto e o sagrado, que são as três facetas de uma

única e mesma Realidade. Sem uma dessas três facetas, a Realidade deixa de ser real

e torna-se uma fantasmagoria destrutiva. (...) A Realidade reduzida ao Sujeito gerou

as sociedades tradicionais, que foram varridas pela modernidade. A Realidade

reduzida ao objeto leva aos sistemas totalitários. A Realidade reduzida ao sagrado

19

I Encontro brasileiro de estudos da complexidade, 2005, Curitiba. SOMMERMAN, Américo. Complexidade e

transdisciplinaridade. Disponível em: <http://www.ufrrj.br/leptrans/arquivos/complex.pdf>. Acessado em 12 de

julho de 2013. 20

NICOLESCU, Basarab. Op. Cit., p. 92.

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13

leva aos fanatismos e integralismos religiosos. Uma sociedade viável só pode ser

aquela onde as três facetas da Realidade estejam reunidas de maneira equilibrada.21

Por fim, "A cultura transdisciplinar é a cultura do eterno questionamento

acompanhando respostas aceitas como temporárias”.22

4.2 O que é o virtual?

Muito se fala da “virtualização” de nossa sociedade sem se conhecer ao certo o

significado deste conceito. O livro “O que é o virtual?” do filósofo contemporâneo Pierre

Lévy se presta a esclarecer as más interpretações deste termo que parece adjetivar nossa

época. Para aprofundarmos a reflexão sobre a influência da tecnologia digital no corpo

humano, apresenta-se aqui um resumo crítico de alguns capítulos desta obra.

4.2.1 O conceito de virtualização

A palavra virtual vem do latim medieval virtualis, derivado por sua vez de virtus,

força, potência. Na filosofia escolástica, é virtual o que existe em potência e não em

ato. O virtual tende a atualizar-se, sem ter passado no entanto à concretização efetiva

ou formal. (...) Em termos rigorosamente filosóficos, o virtual não se opõe ao real

mas ao atual: virtualidade e atualidade são apenas duas maneiras diferentes de ser.23

Associamos o conceito do virtual quase sempre a uma ausência, inexistência ou, até

mesmo, irrealidade. Como se viu acima, virtual e real não são da mesma ordem, portanto não

se opõem. Ao longo do livro o autor mostrará que enquanto o atual se relaciona com o

virtual, o real se relaciona com o possível. Lévy pauta as diferenças: o possível é aquilo que já

está constituído, mas que ainda permanece no limbo. “O possível se realizará sem que nada

mude em sua determinação nem em sua natureza. É um real fantasmático, latente. O possível

é exatamente como o real: só lhe falta a existência. A realização de um possível não é uma

criação (...)”.24

Já o virtual - diferente do possível, estático e já constituído - é um complexo

problemático, um acontecimento, que evoca um processo de resolução: a atualização. “A

21

Ibidem, p. 74. 22

Ibidem, p. 123. 23

LÉVY, Pierre. Trad. Paulo Neves. O que é o virtual?. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2011, p. 15. 24

Ibidem, p. 16.

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14

atualização aparece então como a solução de um problema, uma solução que não estava

contida previamente no enunciado. A atualização é criação, invenção de uma forma a partir de

uma configuração dinâmica de forcas e de finalidade”.25

Assim, o real assemelha-se ao possível; no entanto, o atual em nada se assemelha ao

virtual: responde-lhe; pois a realização é a ocorrência de um estado predefinido, enquanto a

atualização é a invenção de uma solução exigida por um complexo problemático. Neste

sentido, o que seria a “virtualização” de um elemento? Simplesmente o movimento inverso da

atualização; ou seja, a passagem do atual ao virtual não poderia ser uma desrealização

(transformação de uma realidade num conjunto de possíveis), pois a virtualização está

relacionada a uma “mutação de identidade, um deslocamento do centro de gravidade

ontológico do objeto considerado (...). Virtualizar uma entidade qualquer consiste em

descobrir uma questão geral à qual ela se relaciona, em fazer mutar a entidade em direção a

essa interrogação e em redefinir a atualidade de partida como resposta a uma questão

particular”.26

Lévy se utiliza do hipertexto para exemplificar e facilitar a compreensão. Um texto

qualquer disponibilizado online na Internet se torna um elemento ubíquo, desprovido de

inércia que se atualiza de diferentes maneiras a cada vez que solicitado. A atualização

(resolução) do hipertexto (elemento virtual) se dá nas múltiplas formas de sua exibição: na

tela do meu computador, do celular ou de um tablet; projetado num grande telão no centro de

uma cidade ou nas águas de um chafariz; ou mesmo impresso em papel sulfite, em banners,

em outdoors. O fato é que o texto está por inteiro em cada uma de suas versões: cópia e

original não são mais parâmetros de valoração.

Deste modo, depreendemos que a principal característica da virtualização é a

desterritorialização, e na senda desta, a acessibilidade - tornar público. A virtualização difere

essencialmente do espaço-tempo clássico, articulando “unidade de tempo sem unidade de

lugar”. Ora, os que consideram a virtualização uma irrealidade são exatamente estes que não

conseguem conceber além da metafísica clássica e que não enxergam tais características em

outras instâncias cotidianas da vida.

(...) o fato de não pertencer a nenhum lugar, de frequentar um espaço não designável

(onde ocorre a conversação telefônica?), de ocorrer apenas entre coisas claramente

situadas, ou de não estar somente “presente” (...), nada disso impede a existência.

Embora uma etimologia não prove nada, assinalemos que a palavra existir vem

25

Ibidem, p. 16. 26

Ibidem, p. 18.

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15

precisamente do latim sistere, estar colocado, e do prefixo ex, fora de. Existir é estar

presente ou abandonar uma presença? Dasein ou existência? Tudo se passa como se

o alemão sublinhasse a atualização e o latim a virtualização.27

4.2.2 A virtualização e o surgimento do ser humano

Outro “mito” que o livro analisado se propõe a derrubar é o de que a virtualização é

um atributo necessariamente contemporâneo, nascido junto com a tecnologia digital ou com

os meios de comunicação eletrônicos. Porém, o autor nos apresenta sua teoria da

“antropogênese por virtualização”, mostrando que o surgimento de nossa espécie se deu

conjuntamente aos processos de virtualização do presente, da ação e da violência.

Vale lembrar o que foi dito acima com outras palavras: a virtualização é o processo

inverso da atualização: processo de heterogênese, capaz de tornar contingentes condições que

antes estavam determinadas. Deste modo, virtualizar o presente seria tornar variável sua

principal característica, a temporalidade incapturável, para poder transportá-lo, comunicá-lo.

Assim, surge a linguagem:

A linguagem, em primeiro lugar, virtualiza um “tempo real” que mantém aquilo que

está vivo prisioneiro do aqui e agora. Com isso, ela inaugura o passado, o futuro e,

no geral, o Tempo como um reino em si, uma extensão provida de sua própria

consistência. A partir da invenção da linguagem, nós, humanos, passamos a habitar

um espaço virtual, o fluxo temporal tomado como um todo, que o imediato presente

atualiza apenas parcialmente, fugazmente.28

Eventos que ocorrem no presente podem ser transmitidos ou revividos por meio da

linguagem (verbal, visual, escrita, musical etc.). É por meio desta é que conseguimos

estabelecer o fluxo público-privado das emoções de um determinado sujeito ou da mensagem

contida num recado e numa obra de arte. Aprendemos, simulamos, imaginamos e projetamos

“coisas ausentes” através da linguagem. “Sem as línguas, não poderíamos nem colocar

questões, nem contar histórias, duas belas maneiras de nos desligarmos do presente

intensificando ao mesmo tempo nossa existência”.29

Outro processo de virtualização que fez emergir o ser (verbo) humano foi, segundo

Lévy, a elaboração da ação: a técnica.

De onde vêm as ferramentas? Primeiro, uma função física ou mental dos seres vivos

(bate, pegar, caminhar, voar, calcular) é identificada. Depois, essas funções são

27

Ibidem, p. 20. 28

Ibidem, p. 71. 29

Ibidem, p. 72

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16

separadas de um agregado particular de ossos, carne e neurônios. Assim elas são

separadas, ao mesmo tempo, de uma experiência interior, subjetiva. A função

abstrata é materializada sob outras formas que não o gesto habitual. O corpo nu é

substituído por dispositivos híbridos, outros suportes: o martelo para a batida; a

armadilha, o anzol ou a rede para a captura; a roda para o andar; o balão inflado de

ar, as asas de avião ou as pás de helicóptero para o voo; o ábaco ou a régua de

cálculo para as operações matemáticas... Graças a essa materialização, o privado

torna-se público, partilhado. O que era indissociável de uma imediatidade subjetiva,

de uma interioridade orgânica, agora passou por inteiro ou em parte ao exterior, para

um objeto. Mas, por uma espécie de espiral dialética, a exterioridade técnica muitas

vezes só ganha eficácia se for internalizada de novo. A fim de utilizar uma

ferramenta, deve-se aprender gestos, adquirir reflexos, recompor uma identidade

mental e física.30

Daí que um motorista, um ciclista, um esquiador tenham não somente seus músculos

mas todo seu sistema nervoso modificado, a fim de integrar estes instrumentos em uma

espécie de corpo ampliado, virtualizado.

De acordo com o que foi proposto por Marshall McLuhan e André Leroi-Gourhan,

diz-se às vezes que as ferramentas são continuações ou extensões do corpo. Essa

teoria não me parece fazer justiça à especificidade do fenômeno técnico. Você pode

dar pedras talhadas a seus primos. Pode produzir milhares de bifaces. Mas lhe é

impossível multiplicar suas unhas ou emprestá-las a seu vizinho. Mais que uma

extensão do corpo, uma ferramenta é uma virtualização da ação. O martelo pode dar

a ilusão de um prolongamento do braço; a roda, em troca, evidentemente não é um

prolongamento da perna, mas sim a virtualização do andar.31

A técnica - representada pelas ferramentas - não pode ser compreendida como

extensão de corpos individuais porque resulta de combinações transversais, entre órgãos e

gestos; materializando parcialmente uma função genérica e não um estímulo particular: criam

um ponto de apoio para a resolução de uma classe de problemas. “A ferramenta que

seguramos na mão é uma coisa real, mas essa coisa dá acesso a um conjunto indefinido de

usos possíveis”.32

O próprio fogo, hoje, é um artefato virtual - desde que inventamos técnicas

de acendimento, carregamos o fogo para onde quisermos. Novamente um processo de

virtualização, ou seja, uma coerção (a única existência do fogo era na natureza) foi

transformada em variável (o fósforo transportando o fogo para qualquer lugar).

A última antropogênese por virtualização demonstrada por Lévy é o surgimento do

contrato: a virtualização da violência.

Os rituais, as religiões, as morais, as leis, as normas econômicas ou políticas são

dispositivos para virtualizar os relacionamentos fundados sobre as relações de força,

as pulsões, os instintos ou os desejos imediatos. Uma convenção ou um contrato,

para tomar um exemplo privilegiado, tornam a definição de um relacionamento

independente de uma situação particular; independente, em princípio, das variações

30

Ibidem, p. 74. 31

Ibidem, p. 75. 32

Ibidem, p. 75.

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17

emocionais daqueles que o contrato envolve; independente da flutuação das

relações de força.33

Assim, a complexificação dos relacionamentos sociais resulta da virtualização da

violência, na tentativa de assegurar a vida em comunidade. O contrato assinado na venda de

um produto ou a cerimônia de um casamento tornam público (desterritorializam) um

determinado acordo para fixar sua identidade e prescindirmos de uma constante reinvenção ou

negociação a cada nova ocasião semelhante.

Através da linguagem, a emoção virtualizada pela narrativa voa de boca em boca.

Graças à técnica, a ação virtualizada pela ferramenta passa de mão em mão. Do

mesmo modo, na esfera das relações sociais, pode-se organizar o movimento ou a

desterritorialização de relacionamentos virtualizados. Um título de propriedade,

ações de uma companhia ou um contrato de seguro se vendem e se transmitem. Um

reconhecimento de dívida, uma letra de câmbio ou uma obrigação, que na origem

diziam respeito a apenas duas partes, podem circular entre um número indefinido de

pessoas. Pode-se do mesmo modo eleger um porta-voz, ensinar uma oração ou

comprar um fetiche.34

O autor demonstra que os processos de virtualização do tempo e do espaço não

suprimem os contatos “presenciais”, físicos; conforme creem os que consideram a

virtualização um processo desrealizante. Sobretudo a Internet (o telefone não foi tão criticado

neste sentido) é acusada de substituir a vida “real” do usuário por uma fictícia, sem encontros

pessoais. Contudo:

Reichholf observa que “o número de pessoas que se deslocam através dos

continentes nos períodos de férias, hoje em dia, é superior ao número total de

homens que se puseram a caminho no momento das grandes invasões”. A aceleração

das comunicações é contemporânea de um enorme crescimento da mobilidade física.

Trata-se na verdade da mesma onda de virtualização. O turismo é hoje a primeira

indústria mundial em volume de negócios. O peso econômico das atividades que

sustentam e mantêm a função de locomoção física (veículos, infraestruturas,

carburantes) é infinitamente superior ao que era nos séculos passados. A

multiplicação dos meios de comunicação e o crescimento dos gastos com a

comunicação acabaram por substituir a mobilidade física? Provavelmente não, pois

até agora os dois crescimentos sempre foram paralelos. As pessoas que mais

telefonam são também as que mais encontram outras pessoas em carne e osso.

Repetimos: aumento da comunicação e generalização do transporte rápido

participam do mesmo movimento de virtualização da sociedade, da mesma tensão

em sair de uma “presença”.35

Destarte, o processo de virtualização, não é apanágio deste momento da tecnologia

digital/virtual - surgiu junto da constituição de nossa espécie. Lévy propõe que percebamos a

virtualização não como uma inédita condição das relações humanas, mas continuidade de um

processo antigo, processo este que nos gerou.

33

Ibidem, p. 77. 34

Ibidem, p. 78. 35

Ibidem, p. 23.

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18

A força e a velocidade da virtualização contemporânea são tão grandes que exilam

as pessoas de seus próprios saberes, expulsam-nas de sua identidade, de sua

profissão, de seu país. As pessoas são empurradas nas estradas, amontoam-se nos

barcos, acotovelam-se nos aeroportos. Outros, ainda mais numerosos, verdadeiros

imigrados da subjetividade, são forçados a um nomadismo do interior. Como

responder a essa situação? Resistindo à virtualização, crispando-se sobre os

territórios e as identidades ameaçadas? Este é o erro fatal que não deve ser cometido

de forma alguma. Pois a consequência só pode ser, com o tempo, o

desencadeamento da violência brutal, como os terremotos devastadores que resultam

da inelasticidade e do bloqueio mantido por demasiado tempo por alguma placa da

crosta terrestre. Devemos antes tentar acompanhar e dar sentido à virtualização,

inventando ao mesmo tempo uma nova arte da hospitalidade. A mais alta moral dos

nômades deve tornar-se, neste momento de grande desterritorialização, uma nova

dimensão estética, o próprio traço da criação. A arte, e portanto a filosofia, a política

e a tecnologia que ela inspira e atravessa, deve opor uma virtualização

requalificante, inclusiva e hospitaleira à virtualização pervertida que exclui e

desqualifica.36

4.3. Breve panorama histórico da relação entre corpo e mente37

no ocidente

Na ausência de uma bibliografia traduzida e reconhecida, diferentes livros foram

utilizados na tentativa de se levantar um breve panorama histórico da relação corpo e mente

no ocidente, dentre eles: O homem-máquina: a ciência manipula o corpo, organizado por

Adauto Novaes; A fragmentação da cultura e o fim do sujeito, de Rogério Miranda de

Almeida; e a tese de mestrado O salto de volta à multidimensionalidade: perspectivas de

compreensão do corpo na cibersociedade, escrito por Ana Elisa Antunes Viviani.

O corpo do sujeito ocidental, antes mesmo do surgimento do cristianismo, foi

considerado como inferior ao espírito, à alma ou à razão. Historicamente, é a filosofia

socrático-platônica no século IV A.C. que inaugura a contenda corpo versus alma: o livro

Fédon aconselha anularmos o corpo se quisermos conhecer a verdade:

(...) aquele que se servir do pensamento sem nenhuma mistura procurará encontrar a

essência pura e verdadeira sem o auxilio dos olhos ou dos ouvidos e, por assim

dizer, completamente isolado do corpo, que apenas transtorna a alma e impede que

encontre a verdade.38

36

Ibidem, p. 150. 37

Os conceitos de espírito, alma, mente e razão embaralham-se ao longo da história. Não convêm explicações

demoradas de cada conceito para o que se quer apresentar. 38

Platão, 1999, p.12 apud VIVIANI, Ana Elisa Antunes. O salto de volta à multidimensionalidade:

perspectivas de compreensão do corpo na cibersociedade. São Paulo: USP, 2007. 165 p. Tese (Mestrado) –

Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação, Escola de Comunicações e Artes, São Paulo, 2007,

p. 84.

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19

O conceito da ensomatose (uma alma que “caiu” sobre um corpo, aprisionando-se)

também revela a superioridade conferida aos nossos atributos imateriais quando comparados a

nossa fisicalidade, nossa condição material de existência.

Imbuídos de neoplatonismo, os filósofos cristãos dos primeiros séculos tiveram de

lidar com duas verdades reveladas que pareciam, nesse quadro, verdadeiro absurdos:

a encarnação e a ressurreição dos corpos. Como poderia o divino assumir um corpo,

passar por um processo de crescimento e corrupção, morrer, ressuscitar – enfim: ter

uma história, e no entanto permanecer divino?39

O filósofo responsável por diluir este paradoxo e instaurar o cristianismo, Santo

Agostinho (século V D.C.) determinará a conduta da chamada Idade Média40

ao afirmar que

“Não é o corpo corruptível que tornou a alma pecadora, mas a alma pecadora que tornou o

corpo corruptível”.41

Assim, todo esforço humano será em torno do aprimoramento (ascese)

da alma para anular os impulsos dos corpos que conduzem ao pecado.

No período conhecido como Renascimento, o conhecimento científico prospera e

passa a ser utilizado na verificação e explicação dos fenômenos naturais. Paulatinamente, o

pensamento teológico é deposto pelo pensamento científico-antropocêntrico e racional. É

nesta época que Descartes (século XVII) elege a razão como superior ao corpo ao proferir seu

famoso aforismo “Penso, logo existo” e ao demonstrar em sua obra Meditações Metafísicas

que os sentidos não são confiáveis na investigação da verdade - eles nos enganam e alteram a

realidade porque não são objetivos.

Para Descartes a máquina, o mundo e o corpo são aquilo que se subtrai ao nosso ser

e não se relaciona com ele, opondo-se à essência do cogito. O corpo cartesiano é

uma máquina sem alma, incapaz de servir, nem mesmo como metáfora, para a

compreensão de nossa constituição; o ser humano é um ser inorgânico, desprovido

de corpo, de mundo, de história; e a natureza, algo com que nos relacionamos não

por simpatia, mas pela vontade de dominá-la.42

La Mettrie, médico e filósofo pouco conhecido do século XVIII, inaugura em 1748 o

termo que intitula sua obra: Homem-máquina. Inspirado pelas ideias iluministas, ele compara

o funcionamento do corpo humano com o da máquina, mostrando também a alma (antigo

donativo divino) como mais um dos mecanismos do funcionamento ordinário do corpo.

Na concepção religiosa tradicional, o homem era filho de Deus, sujeito à

heteronomia da lei divina. Se é uma máquina, uma máquina autorregulável, um

relógio que dá corda a si mesmo, não necessita nem de maquinista nem de

relojoeiro. Com isso, o homem passa a ser dono do próprio destino. Do mesmo

39

MAMMÌ, Lorenzo. In: NOVAES, Adauto (Org.). O homem-máquina: a ciência manipula o corpo. São Paulo:

Companhia das Letras, 2003, p. 111. 40

Optou-se por utilizar os termos mais conhecidos na historiografia, apesar de se reconhecer o reducionismo

pejorativo que algumas terminologias carregam consigo (Idade Média, Renascimento etc.). 41

Santo Agostinho apud MAMMÌ, Lorenzo. In: NOVAES (Org.), op. cit., p. 113. 42

BRANDÃO, Carlos A. L. In: NOVAES (Org.), op. cit., p. 279.

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modo como não precisa de Deus, o homem não precisa de uma alma espiritual. Sua

alma é um princípio de vida, que dirige as funções do corpo, tão material quanto o

próprio corpo. (...). Uma alma material capaz de pensar é superior a uma alma tola e

estúpida, por mais divina que seja sua proveniência. (...) o homem vale pelo que faz,

e não pelo que herdou. O valor do homem está no que ele faz de si mesmo a partir

de sua condição material, e não na posse de uma grandeza inata que ele não fez nada

para merecer.43

Isto é, pela primeira vez na história ocidental o corpo do homem foi nivelado à mesma

categoria de sua alma. Mas tal operação não resulta de um reconhecimento de que ambas as

partes (corpo e alma/razão) constituem um todo orgânico e dialógico: resulta da radicalização

do pensamento cartesiano que organiza a vida de maneira mecanicista. Até então, o corpo

tinha a derradeira função digna de abrigar algo superior (alma). Agora, dessacralizado,

permite-se ser explorado, instrumentalizado, mercantilizado.

Os séculos XVII, XVIII e XIX sofrem diversas revoluções sociais por conta do avanço

tecnológico e da ciência moderna. É deste período também o surgimento de novas disciplinas

em diferentes áreas do conhecimento e sua consequente especialização: anatomia, física

mecânica, astronomia, biologia, antropologia, história. A concepção do tempo, do espaço e do

homem se resume a uma relação objetivada conforme a cultura: a sociedade e o corpo

humano entendidos numa lógica de causa e efeito, sempre mensuráveis e previsíveis. Vale

lembrar que já no século XVIII o relojoeiro suíço Henri Maillardet inventou um autômato

com formato humano, capaz de escrever e desenhar - ilustração perfeita das engrenagens que

movimentariam o corpo humano idealizado. Neste cenário, o sujeito moderno é o homem

livre, íntegro, consciente de seus atos e o único responsável por suas ações. Regido

integralmente pela razão (negando os sentidos do seu corpo e qualquer outra coerção que lhe

fosse externa), é capaz de criticar sua própria situação para se livrar do que Kant chamava de

“menoridade”, ou seja, “a chegada do homem à sua condição adulta, pela qual o próprio

indivíduo se autodetermina, sem direção alheia. ‘A menoridade é a incapacidade de servir-se

de sua razão sem ajuda de outrem’”.44

É somente no século XX que a hierarquia da razão sobre o corpo será revisada pelas

teorias, sobretudo, de Nietzsche, Freud, Foucault, Merleau-Ponty e outros. Desconstruindo a

noção iluminista do sujeito, Nietzsche entoa elogios desmedidos ao querer, desejar e sentir do

corpo:

Não fosse tão mais forte o conservador vínculo dos instintos, não servisse no

conjunto como regulador, a humanidade pereceria por seus juízos equivocados e seu

43

ROUANET, Sergio P. In: NOVAES (Org.), op. cit., p. 41-42. 44

ROUANET, Sergio P. In: NOVAES (Org.), op. cit., p. 46.

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fantasiar de olhos abertos, por sua credulidade e improfundidade, em suma, por sua

consciência; ou melhor: sem aquele há muito ela já teria desaparecido!45

Freud revela que o sujeito não é regido somente pela razão; pelo contrário, seus

impulsos irracionais são mais decisivos que os racionais na composição do caráter dos

homens e mulheres. O controle que antes estava totalmente sob o domínio do sujeito agora

está subordinado aos desejos do corpo e à imprevisível reação do superego.

Foucault percebe que o corpo é também utilizado como ferramenta de controle da

sociedade capitalista. As coerções que antes se davam de forma exemplar nas torturas,

esquartejamentos e enforcamentos públicos, agora são operadas a partir das instituições do

Estado Moderno (escolas, hospitais, prisões):

Minha hipótese é que com o capitalismo não se deu a passagem de uma medicina

coletiva para uma medicina privada, mas justamente o contrário: que o capitalismo,

desenvolvendo-se em fins do século XVIII e início do XIX, socializou um primeiro

objeto que foi o corpo enquanto força de produção, força de trabalho. O controle da

sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou

ideologia, mas começa no corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que,

antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica.

A medicina é uma estratégia biopolítica.46

O controle interno dos impulsos deixou de ser condição necessária para a manutenção

da vida em sociedade. O estado e a sociedade se encarregaram de fazê-lo.

Para [Wilhelm] Reich, o recalque não é inerente a qualquer ordem social, e sim a

uma ordem social específica, a baseada na injustiça, na distribuição assimétrica do

excedente. É só com o princípio de realidade imposto pelo capitalismo que a

repressão da sexualidade genital é necessária. No momento em que os controles

fossem suprimidos, os indivíduos teriam um ego mais forte e mais capaz de lutar por

uma sociedade justa. Marcuse afirma que, na vigência de outro principio de

realidade, não haveria mais necessidade de represar a libido: ela se autolimitaria.47

Merleau-Ponty reclama o estatuto de um corpo que pensa e que sente, produtor de

conhecimento, ativo e determinante na relação com o mundo. Negando ponto a ponto,

Merleau-Ponty vai questionar a validade das asserções de Descartes quanto à função dos

sentidos do corpo humano na apreensão da realidade:

Não é o olho que vê. Não é a alma. É o corpo como totalidade aberta. (...) a visão

dos sons ou a audição das cores ocorre como a unidade do olhar pelos dois olhos: [a

visão e a audição ocorrem] na medida em que meu corpo não é uma soma de órgãos

justapostos, mas uma síntese sinérgica na qual todas as funções são retomadas e

ligadas ao momento geral do ser no mundo. (...) Quando digo que vejo o som, quero

dizer que à vibração do som faço eco por todo meu ser sensorial.48

45

NIETZSCHE apud VIVIANI, op. cit., p. 91. 46

FOUCAULT, 1979, p. 80 apud MAIA, Antônio C. In: NOVAES (Org.), op. cit., p. 80. 47

ROUANET, Sergio P. In: NOVAES (Org.), op. cit., p. 45. 48

MERLEAU-PONTY apud NOVAES (Org.), op. cit., p. 12.

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Embora a fenomenologia do século XX compreendesse e exaltasse o corpo como

fundamento último da significação e do relacionamento humanos, as teorias de Husserl,

Merleau-Ponty e outros filósofos não foram suficientes para apaziguar a disputa entre corpo e

mente e definir o lugar do ser humano no mundo. Neste sentido, os três golpes que infligiram

uma humilhação ao narcisismo da humanidade, verificados por Freud, esclarecem como,

paulatinamente, o homem foi se sentido apenas mais uma partícula inserida no emaranhado de

elementos que compõem a complexa rede natural e social, retirando-o de sua estabilidade

ontológica.

(...) o primeiro golpe (...) foi de natureza cosmológica, quando, com a

descentralização da terra, o homem foi também abalado na sua propensão a sentir-se

senhor do universo. A segunda humilhação foi de natureza biológica, na medida em

que – a partir das teorias de Darwin – o homem descobriu que, à semelhança dos

outros animais, ele também tinha uma ascendência animal, e não divina ou como

que saída diretamente das mãos do Criador. Finalmente, com o terceiro golpe, de

natureza psicológica, o homem se viu des-locado dentro da própria casa, ou seja, na

sua vida psíquica, a qual é governada por um jogo de forças ou de pulsões que dele

fazem um sujeito da fala e, portanto, da falta, da falha, da errância, da

incompletude.49

No final do século XX, podemos destacar um quarto golpe que desestabiliza as definições

e os próprios limites do corpo e da mente. A tecnologia digital supera a lógica espacial e

temporal na qual o corpo e a mente estavam instalados historicamente. O sujeito não se

reconhece mais soberano neste cenário incomensurável, complexo e composto de múltiplos

elementos desconhecidos.

Assistimos em nossos dias a uma guerra sem quartel contra o sujeito, o homem e o

humanismo. Na origem dessa guerra está sem dúvida a crítica da modernidade de

Heidegger. Para ele, todos os males da época moderna vêm da instauração da

subjetividade humana como fundamento e centro do mundo. Foi o grande Putsh

cartesiano que colocou o homem na posição de Deus e inverteu o pensamento grego,

para o qual, longe de ser onipotente, o homem era parte de uma natureza concebida

como cosmos, como ordem substancial e hierarquizada, significativa em si mesma,

que atribui aos seres humanos, como a todos os outros seres e coisas, o lugar que

lhes é próprio. Com o advento do sujeito soberano, a natureza se transforma em

material inerte que só do homem pode receber sua significação. Só o que é

representável à consciência do sujeito é real, e a totalidade do real é definida como

representável. Pelo principio da razão - nibil est sine ratione - tudo o que existe pode

em direito ser explicado pela razão, e com isso o sujeito assegura seu domínio

cognitivo sobre a natureza. Mas a moderna metafísica da subjetividade não é apenas

teórica e especulativa, ela também está associada a um projeto prático, mobilizando

a vontade, mais que a razão. Com isso, o sujeito não se limita a conhecer o real. Ele

controla e transforma. No início, essa vontade de transformação ainda está ligada a

algum fim externo, como a felicidade ou a liberdade. Ainda é vontade de alguma

coisa. Com o tempo, a vontade passa a incidir sobre si mesma - converte-se na

vontade de potência, de Nietzsche, ou, como prefere Heidegger, na vontade-de-

vontade, busca do poder pelo poder.”50

49

ALMEIDA, Rogério Miranda de. A fragmentação da cultura e o fim do sujeito. São Paulo: Edições Loyola,

2012, p. 247. 50

ROUANET apud MAIA, Antônio C. In: NOVAES (Org.), op. cit., p. 94.

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O século XXI se inicia carente de uma definição de sujeito capaz de esgotá-lo e

satisfazer a filosofia ou o indivíduo contemporâneos; somado a isso, a noção de corpo,

antigamente limitada pela superfície cutânea que nos envolve, é frequentemente extrapolada

pela comunicação à distância e pelos relacionamentos que se estabelecem virtualmente,

prescindindo de nossa corporeidade; pela cirurgia plástica que reconfigura nossa aparência

(nossa imagem) em menos de 24 horas; pelos implantes e próteses que restauram ou

amplificam nossa capacidade motora; pelos remédios que requalificam nossa expressão

afetiva, independentemente de nossas reações orgânicas a um meio, por vezes, inóspito. A

constatação da não-centralidade do ser humano na cadeia de processos biológicos e

informativos termina por ferir o narcisismo humanista, abrindo um século e um milênio que

requerem novas definições para um corpo e para um sujeito inéditos na história da

humanidade.

5. ANÁLISES

5.1 Sobre a pós-modernidade

Frente às múltiplas posturas em relação ao conceito de pós-modernidade, optou-se por

uma reflexão crítica e pessoal sobre o conceito, não reforçando as ideias de nenhum autor,

embora este capítulo se apoie nas discussões dos livros O que é pós-moderno, de Jair Ferreira

dos Santos; O pós-modernismo, organizado por Ana Mae Barbosa e Jacó Guinsburg; e A

fragmentação da cultura e o fim do sujeito, de Rogério Miranda de Almeida.

A propalada pós-modernidade é o momento cultural em que a sociedade começa a

sentir, com mais intensidade e em maior quantidade, os efeitos da globalização e da

popularização dos meios de comunicação. Caracteriza-se como um movimento sócio-cultural

crítico aos padrões éticos e estéticos herdados dos períodos anteriores.

Pós-modernismo é o nome aplicado às mudanças ocorridas nas ciências, nas artes e

nas sociedades avançadas desde 1950, quando, por convenção, se encerra o

modernismo (1900-1950). Ele nasce com a arquitetura e a computação nos anos 60.

Cresce ao entrar pela filosofia, durante os anos 70, como crítica da cultura ocidental.

E amadurece hoje, alastrando-se na moda, no cinema, na música e no cotidiano

programado pela tecnociência (ciência + tecnologia invadindo o cotidiano com

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desde alimentos processados até microcomputadores) sem que ninguém saiba se é

decadência ou renascimento cultural.51

Simbolicamente, o pós-modernismo se inicia às 8h15 do dia 06 de agosto de 1945 com

a explosão das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, representando a derrocada dos

valores iluministas que fundamentaram a cultura moderna. Prenunciado por Nietzsche em

outras palavras, o pós-modernismo é a constatação de que os pilares da cultura ocidental

moderna não podem continuar a vigorar: a noção de Fim, representado por Deus e pelo

cristianismo, a ideia de Unidade, simbolizada pelo conhecimento científico e a Verdade,

crença em conceitos universais e eternos.

Cabe perguntar até que ponto o pós-modernismo não passa de uma

mistificação ideológica, ao pressupor uma superação da modernidade que não se

realizou em parte alguma. Nem nos países mais avançados a informatização da

sociedade e a robotização da produção libertaram o homem do trabalho alienado ou

substituíram as relações reprodutivas por relações eróticas. Mais ignorantes do que

nunca, apesar de mergulhadas num oceano de informações, as elites contemporâneas

refugiam-se nos shoppings centers enquanto os trabalhadores, tornados supérfluos

pela automação, são desempregados em massa e empurrados para a criminalidade.52

A cultura do pós-modernismo é, majoritariamente, a reação das sociedades pós-

industriais - isto é, as nações que tem como principal atividade econômica o comércio e o

consumo de bens e serviços - frente às incoerências de suas próprias ideologias.

O caráter “elevado” da cultura ficou para sempre abalado desde que a política

biológica, que se esboçou desde a metade do século XIX na Alemanha, foi

implementada pelo Partido Nacional-Socialista de Adolf Hitler, levado ao poder por

um dos povos mais cultos da Europa: nesse berço de Goethe, Schiller, Bach e

Beethoven, milhares de doentes mentais, malformados, homossexuais e ciganos

foram assassinados; e milhões de judeus foram despojados de seus direitos e

propriedades, torturados anos a fio, reduzidos a mortos-vivos pelo isolamento, pela

fome, pelas doenças, pela escravidão e pelas brutalizações das SS e, por fim,

gaseados em instalações industriais que adaptavam a dedetização de insetos à escala

humana, segundo determinações médicas e sanitárias do “Terceiro Reich”.53

Assim, nem mesmo as nações mais ricas e regidas pela “razão” conseguiram se

emancipar da crueldade inerente ao ser humano, assumindo as mais irracionais e inexplicáveis

atitudes em favor do desejo peculiar dos poucos que detinham o poder.

Como escreveu Hannah Arendt, com o advento do totalitarismo, “já não podemos

nos dar ao luxo de extrair aquilo que foi bom no passado e simplesmente chamá-lo

de nossa herança, deixar de lado o mau e simplesmente considerá-lo um peso morto

que o tempo, por si mesmo, relegará ao esquecimento. A corrente subterrânea da

história ocidental veio à luz e usurpou a dignidade de nossa tradição”.54

51

SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é Pós-moderno. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986. (col. Primeiros

Passos), p. 8. 52

NAZARIO, Luiz. Quadro histórico do pós-modernismo. In: GUINSBURG, Jacó; BARBOSA, Ana Mae

(Org.). O Pós-Modernismo. São Paulo: Perspectiva, 2005, p.24. 53

Ibidem, p.25. 54

Ibidem, p.25.

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25

A descoberta do DNA, a conquista do espaço extraterrestre, a invenção da Internet e a

popularização dos meios de comunicação são algumas das conquistas da ciência no pós-

Segunda Guerra Mundial que reconfiguraram a organização social.

A hipótese de [Gianni] Vattimo é que a modernidade chega ao fim quando não é

mais possível falar da história como de um fenômeno unitário, em virtude,

principalmente, da multiplicidade de culturas e de povos que adentram a cena

mundial com a descolonização e o fim do imperialismo (?!), e da multiplicidade de

visões de mundo suscitada pela explosão fenomenal da comunicação.55

Vattimo atribui às mídias de massa a causa deste processo de exposição das culturas e

realidades antes ocultadas pelo desinteresse dos monopólios informativos. Não somente a

comunicação, mas as migrações populacionais de diversas naturezas põem em contato

culturas distintas, relativizando ainda mais as verdades aparentemente universais. Jean-

François Lyotard caracterizará, assim, a pós-modernidade como a época do fim das

metanarrativas.

A “crise” do saber científico, cujos sinais se multiplicam desde o fim do século XIX,

não provém de uma proliferação fortuita das ciências, que seria ela mesma o efeito

do progresso das técnicas e da expansão do capitalismo. Ela procede da erosão

interna do princípio de legitimação do saber. Essa erosão opera no jogo

especulativo, e é ela que, ao afrouxar a trama enciclopédica na qual cada ciência

devia encontrar seu lugar, deixa-as se emanciparem.56

A decadência das cosmovisões totalizantes do mundo resultam da fragmentação do

sentido e do sujeito, e portanto, da realidade, derivada da complexificação extrema das

estruturas culturais, quando comparadas às anteriores.

O choque entre a racionalidade produtiva e os valores morais e sociais já se

esboçava no mundo moderno, o industrial. Na atualidade pós-moderna, ele ficou

agudo, bandeiríssimo, porque a tecnociência invade o cotidiano com mil artefatos e

serviços, mas não oferece nenhum valor moral além do hedonismo consumista. Ao

mesmo tempo, tais sociedades fabricaram fantasmas alarmantes como a ameaça

nuclear, o desastre ecológico, o terrorismo, a crise econômica, a corrupção política,

os gastos militares, a neurose urbana, a insegurança psicológica. Elas têm meios

racionais, mas só perseguem os fins irracionais: lucro e poder.57

Um profundo pessimismo caracteriza o pós-modernismo, imobilizando a cultura e

fazendo-a comentar si mesma parodicamente. Não raro, a nostalgia dos conservadores castra

qualquer tentativa de proposição, os cientistas descobrem não existir verdades universais e os

pensadores se frustram por não encontrarem explicações plausíveis para o atual quadro social.

O niilismo pós-moderno é o sentimento resultante desta incapacidade de articulação de um

mundo que escapou ao domínio do homem e de deus.

55

SANTOS, Laymert Garcia dos. Modernidade, pós-modernidade e metamorfose da percepção. In:

GUINSBURG, Jacó; BARBOSA, Ana Mae (Org.), op. cit., p.75. 56

LYOTARD apud SOUZA, Ricardo Timm de. A filosofía e o pós-moderno: algumas questões e sentidos

fundamentais. In: GUINSBURG, Jacó; BARBOSA, Ana Mae (Org.), op. cit., p.92. 57

SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é pós-moderno, op. cit., p. 72.

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26

Este tipo de niilismo se apresenta como a única ação possível para o homem quando

não há outros caminhos concebíveis. Muitos teóricos tentaram encontrar a causa desta

imobilidade, culpando o consumo, a tecnologia virtual, a deserção política e a fragmentação

do sujeito como responsáveis pela alienação e catástrofes das últimas décadas; no entanto, um

dos autores utilizados nesta pesquisa, Rogério Miranda de Almeida, formula em seu livro a

tese de que a fragmentação do sujeito, na realidade, é resultado de uma cultura fragmentada

que remonta não à pós-modernidade ou à modernidade - como se afirma em quase todas as

obras que se põem a analisar o sujeito contemporâneo - mas à própria cultura grega da qual

descendemos. Na obra, relata o “paradoxo que tipicamente permeia e anima o niilismo”:

Este movimento que, na visão de Heidegger, “move a história segundo um processo

fundamental de difícil identificação no destino dos povos ocidentais” é ambíguo na

medida em que, por ele, se perpetua uma sempre recomeçada e sempre renovada

destruição-construção de valores. Com efeito, por ele se destroem os velhos valores

- aqueles que não têm mais a força para se imporem como valores - mas, ao mesmo

tempo, se criam, se forjam e se erigem novas tábuas, novas leituras e novas

interpretações indicando que o que está na base do nascimento e perecimento das

ideias é, em última análise, o entrelaçamento de forças que não cessam de se

superar, de se destruir e de se recriar mutuamente.58

E mais à frente assevera que:

(...) a história da filosofia e da cultural em geral é a história do niilismo, porquanto

esta se desenvolve através de uma contínua revaloração que, por sua vez, trai um

jogo de forças e de relações de forças que não cessam de se imbricar, de se incluir,

de se excluir e de se superar mutuamente.59

Nietzsche pregava a destruição dos valores contemporâneos a ele (dos quais muitos

ainda vigoram em nossa cultura) não pelo simples prazer da desordem, mas pela possibilidade

de reinvenção, de recriação, que o caos contém. Hoje, sobreviventes do pós-modernismo,

podemos dizer que Baudrillard, Virillio e outros autores pessimistas da época se apressaram

em julgar as consequências da nossa cultura, alardeando um futuro desgraçado - a versão

mais negativa do niilismo. A aflição coletiva dos anos 1970, 80 e 90 advinha do descompasso

entre a nova realidade do mundo contemporâneo e nossa maneira de enfrentá-lo a partir das

premissas modernas, conforme discutido no capítulo 4.1 Transdisciplinaridade.

Metaforicamente, podemos entender o pós-modernismo como uma árvore encontrada

no outono: seca, sem folhas, aparentemente moribunda, logo seus galhos devem ser

arrancados desde a raiz, pois não é mais capaz de fornecer frutos - sequer sombra -,

atrapalhando o desenvolvimento das outras ao seu redor; entretanto, se esperarmos mais seis

58

ALMEIDA, Rogério Miranda de. A fragmentação da cultura e o fim do sujeito. São Paulo: Edições Loyola,

2012, p. 48. 59

Ibidem, p. 60.

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27

meses, veremos a mesma árvore frondosa, provendo flores e frutos aos montes, alimentando

pássaros, multiplicando-se: tornar-se o mesmo endereço de vários ninhos. Assim, o pós-

modernismo foi o período de vertigem causada pelos efeitos de uma cultura que apagou as

fronteiras estáveis da modernidade, exigindo - instantaneamente - novas formas de pensar e se

relacionar com a sociedade, com a cultura e com o mundo.

5.2 A web 2.0: uma revolução despercebida

O sociólogo Massimo di Felice analisa em sua obra Paisagens pós-urbanas: o fim da

experiência urbana e as formas comunicativas do habitar a influência dos meios de

comunicação na maneira como habitamos a cidade e as implicações nos relacionamentos

sociais.

Segundo M. Baldini, historicamente, a humanidade passou por três grandes

revoluções comunicativas, três momentos importantes que marcam não apenas o

nascimento de novas formas de comunicar, mas também de novas formas de

percepção e de construção de significados: “Três foram as revoluções mais

importantes que se sucederam no tempo, isto é: a revolução quirográfica (com a

invenção da escrita ocorrida no quarto milênio A.C.), a revolução gutenberguiana

(com a invenção da imprensa que aconteceu por volta da metade do século XV) e a

revolução elétrica e eletrônica (com a invenção do telégrafo, e sucessivamente do

rádio e da televisão)”. (BALDINI, 1995, p. 9)60

Di Felice constata que para estes períodos sucederam quatro culturas comunicativas

nos últimos seis milênios: a cultura oral, a cultura manuscrita ou quirográfica, a cultura

tipográfica e a cultura eletrônica. Ao longo livro, o autor demonstra que a introdução de novas

técnicas comunicativas originam novas formas de percepção, instaurando novas formas de

interação com o território e engendrando novas dinâmicas habitativas.

Neste ponto cabe ressaltar que o autor compreende o “habitar” na dicção

heideggeriana, isto é: mais que um “morar em cima da terra, embaixo do céu, perante os

homens, na frente dos divinos, junto aos mortais. O habitar, ao contrário, é desde sempre um

morar perto das coisas.”61

- o habitar heideggeriano, mais que um residir ou estar, remonta a

um relacionar-se e, portanto, a um comunicar. Mas em que sentido o homem habitaria perto

das coisas?

60

DI FELICE, Massimo. Paisagens pós-urbanas: o fim da experiência urbana e as formas comunicativas do

habitar. São Paulo: Editora Annablume, 2009, p. 65. 61

Ibidem, p. 251.

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Para explicar melhor Heidegger usa a metáfora da ponte que desliza sobre o

rio. Sua função não seria somente instrumental; a ponte não apenas uniria as duas

margens, mas as criariam enquanto tal. Ou seja, seria a ponte, que opõe uma

margem à outra, a criá-las e a defini-las como margem. Acompanhemos seu

raciocínio: “As pontes conduzem de várias formas (...). Assim a ponte não se põe

num lugar que já existe, mas é o lugar que passa a existir a partir da ponte. A ponte é

uma coisa que reúne a quadratura, mas a reúne no sentido que a ela confere um

lugar. (...) As coisas de tal forma são lugares, são as coisas que determinam os

espaços”.62

O habitar, assim definido, elimina a concepção antropocêntrica e dualista que opunha

sujeitos-objetos e que determinava uma relação hierárquica e de dominação típica do

pensamento moderno. Neste sentido, a construção de significados desloca-se do sujeito para o

universo, reconhecendo a ação dos objetos sobre o mundo e sobre nossa vida: no exemplo

dado, é a ponte quem cria o lugar e possibilita novas interações que, sem ela, jamais

existiriam.

Di Felice, relacionando os fenômenos comunicativos e as interações sujeitos-território

ao longo da história, constata que à experiência ligada à cultura escrita corresponde à forma

comunicativa do habitar empática - expressão de uma forma de habitar que projeta o

indivíduo, os seus ideais e a sua criatividade construtiva no espaço para dominar a natureza -;

à cultura eletrônica corresponde à forma comunicativa do habitar exotópica - resultado de

uma interação midiática que não busca mais confirmar a natureza, mas, dilatando e

diminuindo tecnologicamente as distâncias, descobrir e criar novos mundos.63

A mais atual transformação na comunicação, como se sabe, se deve à tecnologia

digital que põe em contato instantâneo com a rede todo indivíduo conectado a um aparelho

digital, superando as imposições espaciais e temporais que determinaram a comunicação

durante toda a história. A esta nova revolução comunicativa, Di Felice intitula sua forma

habitativa correspondente de atópica.

A palavra grega a-topos é composta pelo prefixo a, que no início da palavra

anula o significado do termo que o segue, e pela palavra topos que significa

“espaço”, “lugar”. Portanto, a tradução literal remeteria a um significado de perda e

de ausência de espaço e de território. Existem, todavia, outras possibilidades de

tradução que apontam para significados “oximorosos”, como “lugar estranho”, “fora

de lugar”, “lugar anormal”, “lugar atípico”, indizível.64

Assim, a nossa condição habitativa contemporânea (ou melhor, das pessoas que se

utilizam diariamente dos aparelhos digitais para se comunicar) está intrinsecamente

62

Ibidem, p. 251. 63

Massimo di Felice utiliza 220 páginas para esclarecer o significado e os atributos destas condições habitativas,

o que torna impossível explicá-las em poucas linhas. Ademais, este capítulo tem por objetivo discutir uma outra

forma comunicativa do habitar, a atópica. Para entendê-las integralmente, recomenda-se a leitura completa do

livro aqui discutido. 64

Ibidem, p. 228.

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relacionada a uma localidade informativa e interativa, a qual torna-se habitável a partir do

momento que estimulamos interfaces digitais e ativamos as redes informativas.

A constituição de redes informativas gera uma forma de habitar distinta das

anteriores, nas quais era o território a se deparar na nossa frente, isto é, na frente do

nosso horizonte visual, seja ele topográfico ou arquitetônico. A cidade, enquanto

arquitetura, e a metrópole, enquanto circuitos eletrônicos e espaços flutuantes fazem

do olhar e da visão as formas principais de apropriação das suas distintas paisagens.

Tanto a cidade quanto a metrópole constituem-se como metageografias e territórios

visuais nos quais o transeunte e o flaneur transitam, olhando a paisagem externa,

seja ela arquitetônica estática ou eletrônica e deslocativa. Daqui a possibilidade de

descrever e de narrar os territórios urbanos por meio da visão e das interpretações do

seu visitante e do seu olho mecânico recortador. As pós-geografias e as redes

digitais não são espacialidades na nossa frente, mas experiências imersivas que nos

convidam a ir além da nossa vista. A paisagem pós-urbana, portanto, não é mais

visual. Se a cidade e a metrópole podem ser escritas, fotografadas e filmadas,

prestando-se de distintas formas à experiência do narrador, embora

fragmentariamente, a experiência atópica do habitar, por sua vez, resulta em algo

irrepresentável e indizível (atópico) para a narração do sujeito.65

Este “lugar incomum” (atópico) seria o local que todos acessamos (habitamos) ao

interagir com a rede informativa invisível que atravessa todos os espaços da cidade,

instaurando novas sociabilidades. Essencialmente “irrepresentável e indizível” porque é

invisível, incomensurável e ubíquo; está em toda parte para quem o acessa, como não existe

para quem não utiliza celulares e computadores. Ao inaugurar e transformar as relações entre

pessoas, territórios e informações, as redes digitais, mais que reterritorializarem o espaço,

mais que se constituírem como um duplo substituto do real (simulacro), instauram novas

formas de comunicação e sociabilidade e, consequentemente, novas formas de habitar.

É necessário destacar a diferença entre espaço e lugar: espaço seria a denominação

genérica para uma porção tridimensional de um território; lugar seria a característica

resultante do uso/finalidade que conferimos a um determinado espaço. Deste modo, um

mesmo espaço pode conter vários lugares. O conceito de Genius Loci Tecnológico

desenvolvido pelo autor também dá suporte às interpretações da condição habitativa atópica.

O conceito de genius loci difundido na época romana indicava a divindade presente

em um determinado lugar que protegia, custodiava e santificava o espaço,

exercitando uma ação especial e ativa sobre aqueles que ali chegavam ou, mesmo

temporariamente, passavam a habitá-lo. (...) As interfaces [digitais], que constituem

uma nova interação entre sujeito e território, alternando continuamente o tipo e a

forma de diálogo com o ambiente informativo, podem ser pensadas como um novo

genius loci, tecnológico e vivo.66

Genius loci tecnológico, portanto, é o “espírito do lugar”, digitalmente criado, capaz

de multiplicar a experiência habitativa dos indivíduos instalados em um espaço. Hoje, quando

65

Ibidem, p. 226. 66

Ibidem, p. 247.

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ligamos o MP3 player, o DVD, a televisão ou acessamos as redes sociais por meio do

computador ou do celular, nossa experiência habitativa com o espaço é transformada: abre-se

um novo lugar. Sentados na frente da tela do computador em nossa casa, de repente, saltamos

para uma arquitetura informativa imaterial com todos nossos amigos presentes; ou, conectado

ao celular dentro do ônibus, de repente, não estamos mais chacoalhando no assento, mas

conversando com um amigo em intercâmbio num país distante. À mudança da percepção que

antigamente exigia uma transformação física do espaço, hoje, corresponde o momento em que

ativamos nossos dispositivos eletrônicos supracitados.

A eletrificação e a digitalização dos espaços produziram, de um lado, a emancipação

do lugar, rendendo-o fluido e móvel e, de outro, novas formas de interações entre

sujeito e território nas quais se produz um dinamismo técnico capaz de alterar

continuamente o sentido da localidade e as práticas do habitar.67

As tecnologias digitais constroem novos e múltiplos lugares no mesmo espaço, num

processo de contínua heterogênese da experiência perceptiva, comunicativa e, portanto,

habitativa dos indivíduos que delas se utilizam. Mais que apenas a percepção - a qual ainda

poderia ser pautada numa relação visual com o mundo, remetendo à exotópica -, estas novas

relações possibilitadas pela tecnologia digital afetam diretamente o cotidiano social. Para

utilizar um exemplo macroscópico dessa intervenção direta na vida: existem dezenas de

programas gratuitos para celulares que, ao ativá-los, são exibidos os perfis das pessoas que

estão próximas do usuário interessadas num parceiro sexual, mostrando dados e fotos dos

corpos que estão próximos, bem como a distância em metros dos dois aparelhos celulares (ou

seja, dos dois usuários). Estes programas põem em contato pessoas com interesses

convergentes sem os quais a atividade desejada não se realizaria. Neste exemplo, o sexo entre

essas duas pessoas usuárias de tais programas, não ocorreria sem a mediação tecnológica

destes aparelhos e da rede digital em que estão integrados. Se estivessem em calçadas opostas,

talvez jamais se vissem durante toda a vida: foi a rede quem criou esta possibilidade e sua

utilização que os aproximou, reconfigurando suas agendas, quiçá suas vidas. “Nessa

concepção, portanto, as interfaces digitais, como na coisa de Heidegger, mais do que

pertencer a um lugar e a uma instrumentalidade, o criariam: ‘Deveríamos aprender a

reconhecer que as coisas são os lugares e não somente pertencem a estes’”68

. Destarte, o

deslocamento informativo que a tecnologia digital promove na experiência habitativa do

indivíduo está relacionado a uma localidade on demand69

que reestrutura a noção de território

67

Ibidem, p. 288. 68

Ibidem, p. 252. 69

Ibidem, p. 229.

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e a própria vida social individual e coletiva por meio das informações que absorve e emana

constantemente.

Segundo Di Felice, à introdução da tecnologia digital devemos associar uma nova

cultura comunicativa, não mais a oral, a escrita ou a eletrônica, mas a cultura de interação.

No entanto, acabamos de atravessar uma outra revolução tecnológica (que, neste sentido,

implica numa revolução cultural) que passou despercebida por nós: a Web 2.0.

A transição da Web 1.0 para a Web 2.0 se iniciou por volta de 2004 e não está

relacionada a atualizações técnicas, mas à maneira como os usuários e seus desenvolvedores

se relacionam com ela após a difusão das conexões de Internet banda larga (broadband). As

conexões rápidas, diferentemente da Internet nos anos 1990, facilitaram o envio e

recebimento de dados, sons, fotos, vídeos; mais que isso, a Web 2.0 “Consiste na

possibilidade de os usuários poderem alugar um serviço na rede em vez de adquirir o

software, economizando conhecimento e dinheiro e, sobretudo, alterando a estrutura da rede,

transformando-a de máquina a centro dos processos informativos”70

- elementos que alteraram

qualitativamente o uso e a percepção da Internet e seus serviços.

Como exemplificado por Enrico Beltramini, a diferença entre a Web 1.0 e a Web 2.0

é associável com aquela entre os softwares Netscape [antigo programa de busca] e

Google: “o primeiro foi o símbolo da internet original, aquele que aprendemos a

conhecer na segunda metade dos anos de 1990. Na prática, era um software simples

que podia ser baixado no próprio computador pela internet. O Google, ao contrário,

possui um software extremamente complicado e oferece serviços acessíveis pela

internet. A acessibilidade pela internet é o único elemento em comum que une

Google e Netscape. A diferença é que antes se baixava o software no próprio

computador, agora se usa o serviço na internet. Parece uma banalidade, mas não é; o

centro do universo deslocou-se do PC para a rede. Contextualmente, o business

deslocou-se dos softwares (e das empresas de software) para os serviços (das

empresas de internet). (BELTRAMINI, Internet: mutazioni antropologiche del web

2.0, 2006)71

Enquanto os sites da Web 1.0 funcionavam como uma espécie de livro digitalizado, o

qual podíamos apenas abrir e ler (pois a interação só era possível via e-mail), a Web 2.0 se

caracteriza pela interação mútua e horizontal entre a interface e os usuários. Para exemplificar

os impactos desta transformação, o autor utiliza o exemplo do jornal online. Em sua primeira

versão, o jornal era apenas uma matéria escrita em algum site, acessada por quem desejasse

lê-la, impedindo qualquer possibilidade de expressão pessoal sobre seu conteúdo. Já na Web

2.0, o jornal online pode criar uma arquitetura com a qual se estabelecem várias formas de

70

Ibidem, p. 267. 71

Ibidem, pp. 267 e 268.

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participação do usuário, aproximando-se de uma redação coletiva do jornal e determinando o

surgimento de um novo tipo de leitor-jornalista:

O jornal se torna assim um elenco sempre crescente de artigos que profissionais e

diletantes publicam. (...) O sucesso de um artigo é dado pelo número de links que

produz, isto é, do número de sites que rementem àquele do artigo e não da

autoridade do nome do autor. O ponto parece bizarro, mas não é: confere autoridade

a quem lê e não a quem escreve. Um artigo sem audiência é um artigo que

tristemente desfloresce e logo desaparece na Web. (BELTRAMINI, Internet:

mutazioni antropologiche del web 2.0, 2006)72

A rede deixa de ser um projeto, uma reterritorialização do social, para se tornar um

lugar habitado por seus usuários, deslocando-se a ênfase do conteúdo informativo para as

conexões.

A rede configura-se como um conjunto de diferentes nós que interagem livre e

autonomamente entre si. A partir de tais conexões espontâneas se produz muito mais

que um simples repasse de informações: torna-se possível a realização de eventos

inteligentes e de processos criativos de criação colaborativa de significados. Estes

últimos são o resultado, não mais de um processo comunicativo planejado, e sim de

um percurso autopoético que se desenvolve de maneira imprevisível, tomando forma

à medida que se espalha na rede, através das conexões.73

Assim, as redes sociais (Facebook, Twitter etc.) e os outros diversos espaços sociais

virtuais (jornais online, fóruns de discussão, sites de compras etc.) se transformam em

arquiteturas informativas construídas por seus membros, continuamente modificadas e

ressignificadas pelos atores desta rede. Não mais um projeto dado e objetivo, a rede digital

assume as distintas finalidades que lhe atribuem de acordo com as conexões que se formam,

isto é, das características e dos desejos dos usuários que, por acaso ou por convergência de

interesses, se encontram na Internet.

À esta condição contemporânea fomentada pela Web 2.0, Di Felice identificará uma

nova cultura comunicativa: a cultura da colaboração. Diferentemente da “polifonia de vozes”

que o analógico permitia, o social digital, mais que uma estrutura comunicante, torna-se um

espaço de atuações múltiplas e de criações híbridas. A palavra-chave do social contemporâneo

seria, dessa maneira, o “compartilhar”.

O resultado das hibridações das relações e da circulação das informações sociais em

rede é um social expandido em mil direções que, na linha do pensamento de Deleuze

e Guattari, podemos definir como “rizomático”. (...) O rizoma, segundo Deleuze, se

assemelharia a uma raiz, mas na verdade é um tipo de caule, geralmente subterrâneo

e sem forma definida. Essa raiz gera diversos nós, de onde brotam folhas e ramos -

portanto a raiz da sociedade em rede não seria central, mas alimentada por uma rede

descentralizada de microrraízes que se reproduzem continuamente (...).74

72

Ibidem, p. 268. 73

Ibidem, p. 269. 74

Ibidem, pp. 277 e 278.

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A cultura colaborativa, inscrevendo-se nos processos contemporâneos de superação da

dicotomia moderna, sinaliza um social desierarquizado ao suplantar a lógica centro-periferia

(emissor-receptor) com a ideia de um social em rede, que implica a negação das causalidades

lineares e que reconhece todo ponto sobre a rede, ao mesmo tempo, uma causa e um efeito.

As relações sociais vêm, assim, produzidas pelas modalidades tecno-comunicativas

que articulam e transformam suas características. O conceito de interface se

transforma, portanto, num conceito básico para pensar um social em rede sem centro

nem periferia, sem beneficiários nem assistidos, mas feito de setores que, com a

manipulação de informações e a junção de ideias e projetos, constroem novos

significados-mundos.75

A teoria Ator-Rede (ou em inglês, ANT, Actor-Network Theory) desenvolvida por

Bruno Latour e outros pensadores é uma tentativa de reformular algumas balizas da sociologia

tradicional para se compreender o tecido social como um resultado de conexões, alianças,

fluxos e mediações entre humanos e não-humanos. Até então, os atores sociais eram

considerados estritamente aqueles capazes de atribuir um sentido a sua ação; ou seja,

compreendiam que apenas nós, humanos, éramos os únicos agentes capazes de articular e

transformar o complexo social. Di Felice comenta que, para Bruno Latour,

(...) a noção de rede é introduzida pelo seu sentido de ligação e vínculo em que a

conexão e a articulação ocorrem entre elementos híbridos, orgânico e inorgânico,

humano e técnico. O social, para Latour, é uma rede heterogênea constituída não

apenas de humanos, mas também de não-humanos, de modo que ambos devem ser

igualmente considerados. (...) Os princípios de funcionamento do rizoma - conexão,

heterogeneidade, multiplicidade, ruptura e cartografia - são reinterpretados por

Latour para destacar as características da rede como mapa, aberta e heterogênea, de

modo que seja possível estabelecer todo e qualquer tipo de conexão.76

Ampliando a noção de ação social para além do humano, a teoria Ator-Rede reconhece

como “ator” todo elemento que interfere, que produz efeito, que deixa rastro, que influência e

que é influenciado, enfim, que requalifica o desenvolvimento da rede social em qualquer

escala. De tal modo, a “fabricação” do mundo não provém mais apenas da ação dos humanos

sobre a natureza ou sobre os fenômenos sociais: estes são somados aos elementos não-

humanos (coisas, máquinas, objetos, animais, instituições), reconhecendo o sistema social não

mais como interações em que um elemento determina todos os outros, mas como um

complexo de conexões em que todos elementos tem a possibilidade de atuarem sobre os

outros.

Assim, a revolução despercebida que intitulou este capítulo, aquela promovida pela

Web 2.0, é a transposição de uma cultura de interação para uma cultura de colaboração -

75

Ibidem, p. 279. 76

Ibidem, pp. 281 e 282.

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iniciada pelos meios de comunicação digital - que requalificou as características da rede

digital e a maneira que seus usuários interagem com ela e entre si, ilustrando e testando

coletivamente as propriedades do complexo social contemporâneo.

5.3 A virtualização do corpo: sensibilidade extracutânea

Partindo do conceito de virtualização do filósofo Pierre Lévy, discutido no capítulo

4.2 O que é o Virtual?, o texto a seguir quer refletir o estatuto e os limites do corpo humano

contemporâneo transformados pela tecnologia, especialmente a digital. Os livros Corpo e

Comunicação, da pesquisadora em semiótica Lúcia Santaella, e Adeus ao Corpo, do

antropólogo francês David Le Breton forneceram dados e reflexões fundamentais (muitas

vezes antagônicas entre si) para as palavras que seguem.

Muitos textos das últimas décadas se dedicam a analisar a introdução de aparatos

tecnológicos na superfície e no interior de nossos corpos, noticiando o temeroso início da

artificialização do ser humano. A ficção científica se juntava a estes autores para disseminar a

ideia de uma robotização do corpo humano e prenunciar, com fantasia e gozo, um futuro

distópico para a humanidade semelhante ao dos filmes Blade Runner (de Ridley Scott, 1982),

Videodrome (de David Cronenberg, 1983), 1984 (de Michael Radford, 1984), entre outros -

reflexos de uma angústia perante novas conjunturas sociais e ontológicas.

De fato, a noção que ainda temos sobre a definição de corpo é muito próxima àquela

de Platão - o qual entende o corpo como manifestação visível e delimitável de uma essência

imaterial (espírito) que navega pelo universo e prestes a se desprender da carne - ou do

humanismo - que, representado por Descartes, considera o corpo mero invólucro infeliz do

sujeito. Quando, no século XX, a tecnologia começa a penetrar esta carne, rompendo o lacre

de segurança que preservou tais conceitos durante milênios, as fronteiras entre homem,

máquina e tecnologia começam a se con-fundir.

Até há pouco tempo, era só sua aparência, seus gestos e comportamentos que

podiam ser, até certo ponto, mudados. Os remédios ingeridos e as operações

cirúrgicas realizadas visavam apenas recompor o estado supostamente natural do

corpo. Hoje, entretanto, continua Bruno (1994: 104), quando as técnicas penetram

no interior do corpo para não apenas reparar funções normais, mas também ampliá-

las, estimulá-las, transformá-las ou mesmo criar novas funções, “o corpo torna-se

fonte de problematização na medida em que entra nos cálculos do que o indivíduo

pode ser, experimentar, sentir e tornar-se. Assim como a medicina e a engenharia

genéticas fazem com que os traços genéticos do nosso corpo deixem de ser a nossa

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herança irremediável e tornem-se problemáticos, ingressando no domínio de nossas

ações, cálculo e reflexões éticas, as práticas de intrusão tecnológica tornam o espaço

interno do corpo um campo a ser modulado por nossos desejos, temores,

expectativas etc.”.77

29

A pretensa naturalidade do corpo humano (a linguagem, os gestos, sua aparência) se

revelaram resultados de uma construção cultural e tecnológica imbricada às propriedades de

cada época. A confortável definição de sujeito - uno, soberano e consciente - e os limites do

corpo - orgânico e cutâneo - foram extrapolados com as teorias do século XX e com a

popularização da tecnologia digital no século XXI.

Como nos diz Tadeu da Silva (2000: 12), é no confronto com clones, ciborgues e

outros híbridos tecnonaturais que a “humanidade” de nossa subjetividade se viu

colocada em questão. Aquilo que caracteriza a máquina nos fez questionar aquilo

que caracteriza o humano: a matéria de que somos feitos. A imagem do ciborgue nos

estimulou a repensar a subjetividade humana; sua realidade nos obrigou a deslocá-

la.78

Os cientistas Clydes e Kline inventaram em 1960 o termo ciborgue (Cybernetic

somado a Organism) para se referir à criação de um ser humano capaz de sobreviver em um

ambiente alheio às condições da Terra, hibridizando corpo e máquina para que suas

qualidades orgânicas fossem realçadas pelas próteses tecnológicas (inorgânicas). Hoje,

podemos entender por ciborgue toda tecnologia que vem de fora para dentro do corpo,

buscando retificá-lo ou estimulá-lo. Neste sentido, Santaella reconhece não só as próteses

pesadas e visíveis como estruturas estranhas que se fundem ao corpo, mas também as

tecnologias biomédicas que “penetram, de modo não invasivo, em regiões cada vez mais

profundas e cada vez menores dos órgãos, tecidos, membranas, células, genes”.79

Hoje somos todos ciborgues: quando ingerimos comprimidos de vitaminas, ampliamos

tecnologicamente nossa expressividade imunológica; quando ingerimos remédios

antidepressivos, reprogramamos nossa afetividade; quando nos utilizamos de recursos

químicos para tratamento de pele ou cabelo, estetizamos nossa aparência conforme a última

descoberta científica. E o fenômeno não é tão recente: já no ano de 1953 uma máquina foi

utilizada para controlar a circulação sanguínea de uma mulher de 18 anos durante uma

operação e o primeiro implante de marca passo foi realizado em 1958.80

Tornou-se impossível pensar o estatuto do corpo contemporâneo separado dos

desenvolvimentos tecnológicos. Se antes as tecnologias do corpo, por serem criadas em seu

interior (como o andar, sorrir, falar), passavam despercebidas, e se ontem elas se tornaram 77

SANTAELLA, Lucia. Corpo e comunicação: sintoma da cultura. São Paulo: Ed. Paulus, 2004, p. 29. 78

Ibidem, pp. 24 e 25. 79

Ibidem, p. 63. 80

Ibidem, p. 61.

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flagrantes ao se acoplarem nos corpos (como próteses mecânicas), hoje elas compõem o

interior e o exterior de nossos corpos: desde a mão biônica até o remédio para gripe, todos

eles podem se tornar parte integrada de nós. Um cientista chamado Hables Gray chega a

sugerir como “’semiciborgues’ os inúmeros instrumentos, decerto desligados do corpo, mas

hoje impensáveis para a vida cotidiana e sem os quais os indivíduos se sentiriam deficientes

(automóveis, telefone, televisão, computadores etc.)”.81

Mas em que sentido o corpo teria se virtualizado?

O corpo se virtualizou justamente quando, junto destas transformações, suas duas

principais características determinantes se tornaram contingentes: sua suposta unidade e a

noção de presença atada à fisicalidade.

A virtualização do corpo incita às viagens e a todas as trocas. Os transplantes criam

uma grande circulação de órgãos entre os corpos humanos. De um indivíduo a outro,

mas também entre os mortos e os vivos. Entre a humanidade, mas igualmente de

uma espécie a outra: enxertam-se nas pessoas corações de babuínos, fígados de

porco, fazem-nas ingerir hormônios produzidos por bactérias. Os implantes e as

próteses confundem a fronteira entre o que é mineral e o que está vivo: óculos,

lentes de contato, dentes falsos, silicone, marca passos, próteses acústicas, implantes

auditivos, filtros externos funcionando como rins sadios.82

Socializadas, as partes de nossos corpos não pertencem mais a um único indivíduo:

podem ser intercambiadas. As fronteiras do corpo individual (unidade) são anuladas no

momento em que o sangue e os órgãos podem ser transplantados para se tornarem corpos de

outras pessoas; junto disso, a noção de que o corpo é definido pelo amontoado de peças

orgânicas também se torna inválido no momento em que próteses inorgânicas (de plástico ou

metais) passam a reabilitar o corpo que perdeu uma de suas partes.

(...) hoje nos associamos virtualmente num só corpo com os que participam das

mesmas redes técnicas e médicas. Cada corpo individual torna-se parte integrante de

um imenso hipercorpo híbrido e mundializado. Fazendo eco ao hipercórtex que

expande hoje seus axônios pelas redes digitais do planeta, o hipercorpo da

humanidade estende seus tecidos quiméricos entre as epidermes, entre as espécies,

para além das fronteiras e dos oceanos, de uma margem a outra do rio da vida.83

O hipercorpo experimentado quando coletivizamos nossa carne é também

experimentado nas redes digitais: fomos estendidos para além de nossa pele, habitamos vários

espaços ao mesmo tempo. A percepção foi ampliada e externalizada pelos meios de

comunicação, aproximando-nos dos ambientes distantes de nossos terminais nervosos

orgânicos:

81

LE BRETON, David. Trad. Marina Appenzeller Adeus ao corpo: Antropologia e sociedade. Campinas-SP:

Papirus, 2003, p. 204, nota de rodapé número 7. 82

LÉVY, Pierre. Trad. Paulo Neves. O que é o virtual?. São Paulo: Ed. 34, 2011, p. 30. 83

Ibidem, p. 31.

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O telefone para a audição, a televisão para a visão, os sistemas de telemanipulações

para o tato e a interação sensório-motora, todos esses dispositivos virtualizam os

sentidos. E ao fazê-lo, organizam a colocação em comum dos órgãos virtualizados.

As pessoas que veem o mesmo programa de televisão, por exemplo, compartilham o

mesmo grande olho coletivo. Graças às maquinas fotográficas, às câmeras e aos

gravadores, podemos perceber sensações de outra pessoa, em outro momento e outro

lugar. Os sistemas ditos de realidade virtual nos permitem experimentar, além disso,

uma integração dinâmica de diferentes modalidades perceptivas. Podemos quase

reviver a experiência sensorial completa de outra pessoa.84

É neste sentido que podemos entender a virtualização da presença do corpo humano.

Anteriormente às tecnologias analógicas e digitais, perceber estava determinado pela presença

do corpo humano no local do evento: os terminais nervosos do sistema háptico85

(a pele)

deveriam estar em contato direto com o objeto, os olhos deveriam ter acesso visual à

manifestação, os odores deveriam ser transportados pelo ar até as narinas do indivíduo, as

ondas sonoras deveriam adentrar os ouvidos e a língua deveria tocar o que desejasse sentir.

Com os aparelhos de comunicação trazemos o mundo para mais próximo de nós ou

estendemos nossos sentidos para além dos limites cutâneos: nossa presença se descolou da

fisicalidade que antes nos determinava espacialmente.

Por conta desta anulação das distâncias, o senso comum costuma julgar a utilização,

sobretudo da Internet, como maléfica para o corpo. É claro que qualquer atividade exercida

com os olhos e com a mente, se executada somente ela e por toda vida, atrofiará os músculos -

embora o livro nunca tenha sido apontado como um vilão do corpo saudável e os gadgets

cada vez menores e mais potentes tenham como principal característica sua portabilidade para

se deslocar constantemente com seu proprietário. Mas Santaella se esforça para mostrar que,

na verdade, há muitos movimentos sutis e complexos que ocorrem ao mesmo tempo quando

estamos conectados à Internet.

Minha hipótese é que tal crença está alicerçada no conhecimento precário que se tem

do sistema háptico humano, precariedade que é muito provavelmente explicável

pelo recalque do toque e da palpabilidade que é próprio das culturas ocidentais,

especialmente as anglo-saxônicas.

Contra uma tal crença, proponho que, por trás da aparente imobilidade corporal do

usuário plugado no ciberespaço, há uma exuberância de instantâneas reações

perceptivas em sincronia com operações mentais. Estão em atividade mecanismos

cognitivos dinâmicos, absorventes, extremamente velozes, frutos da conexão

84

Ibidem, p. 28. 85

“(...) as unidades e células receptivas do sistema háptico são mecanorreceptoras, sendo, portanto, afetadas por

energia mecânica. Todo tecido vivo é sensível à deformação, isto é, mudança de forma e movimento não-rígido.

Os receptores enraizados na pele, músculos, juntas e outros tecidos são excitados através de estiramento,

compressão, inclinação, tração, fricção e similares. O suprimento nervoso do corpo consiste de um numero

enorme de fibras nervosas, tanto aferentes quanto eferentes, as primeiras terminando em receptores e as últimas

em músculos. Os receptores estão presentes em cada milímetro do corpo, com exceção do cérebro que é

insensível à estimulação mecânica ou a corte.” In: SANTAELLA, op. cit., p. 43.

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indissolúvel, inconsútil, do corpo sensório-perceptivo à mente, sem os quais o

processo perceptivo-cognitivo inteiramente novo da navegação não seria possível.86

Costuma-se interpretar esta teoria da autora da maneira mais superficial e simplista

possível: entendem que Santaella considera o simples apertar repetitivo do dedo indicador no

mouse como atividade física. O fato é que a autora, em nenhum momento, defende este

simples movimento como o substitutivo dos movimentos realizados durante uma prática

esportiva. Estes leitores, no fundo, não conseguem pensar fora da dicotomia moderna: ou se

utiliza o computador, ou se é um atleta: uma prática não substitui a outra. O que Santaella

demonstra é que, para além do simples clicar, quando se está navegando (o que implica

observar e agir) todo o corpo participa deste processo.

Santaella relembra-nos que a sensibilidade de nosso corpo se encontra, especialmente,

nas nossas extremidades – na ponta dos dedos das mãos e dos pés - e que estes são órgãos

sensórios/exploratórios ao mesmo tempo que funcionam como órgãos motores/performativos.

Isto quer dizer que o equipamento para sentir, tocar, apalpar é anatomicamente o

mesmo equipamento para se fazer coisas, agir no ambiente. Tal combinação não se

encontra no sistema visual nem no auditivo. Podemos explorar coisas com os olhos,

mas não podemos alterar o ambiente com os olhos. Entretanto, podemos tanto

explorar quanto alterar o ambiente com as mãos.87

Daí a autora começa a diferenciar o tato do sistema háptico quando interagimos com o

ambiente.

As extensões cutâneas são unidades receptoras. Essas são os pelos com que a pele é

suprida e as unhas como extensões dos dedos. Assim, o tato é uma perturbação

mecânica indireta da pele mediada por uma extensão, e não uma impressão direta na

pele por um objeto, como tendemos a pensar. Os folículos dos pelos e as raízes das

unhas estão embrulhados em fibras nervosas, de modo que a menor pressão na

extensão é estimulante, mas o contato real entre o indivíduo e o ambiente se dá na

extremidade da extensão, não na sua base. Assim, o sistema tátil não é estritamente

um sentido de proximidade, como tradicionalmente assumido, pois as extensões são

protuberâncias voltadas para o ambiente. A capacidade dos pelos do corpo para

sentir à distância não é muito diferente da habilidade do ser humano para usar uma

vara, bastão ou bengala para detectar os encontros mecânicos na extremidade dessa

extensão artificial de sua mão. Isso explica a habilidade humana no uso de

ferramentas e dispositivos.88

Apoiando-se nas teorias de James J. Gibson, importante psicólogo pesquisador da

percepção, Santaella garante que quando seguramos um objeto (por exemplo, uma vara) e

tocamos algo com ela, percebemos o que é tocado com a ponta da vara e não com as mãos.

A hipótese plausível explica que isso ocorre porque a informação da perturbação

mecânica na extremidade da vara é obtida pela mão como um órgão perceptivo, que

inclui, no seu processo, a informação sobre o comprimento e a direção da vara. Em

86

Ibidem, p. 37. 87

Ibidem, p. 45. 88

Ibidem, p. 45.

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suma, a superfície do organismo é uma fronteira entre o organismo e o seu ambiente,

cujos limites não são rígidos, nem muito bem demarcados.89

O corpo, assim entendido, tem suas fronteiras cutâneas superadas, podendo agregar-se

com qualquer objeto existente: torna-se um núcleo infinitamente plástico e pronto a

estabelecer conexões de diversas naturezas para se relacionar com diferentes ambientes. Mas

não somente objetos materiais: o computador, neste sentido, estende nosso sistema nervoso

para muito além de nossa pele e a Internet transporta sensações que estão a quilômetros de

distância até o interior de nossa mente, incitando reações químicas e emocionais. Ademais, as

sensações do corpo nunca vêm separadas, independentes:

Costuma-se conceber a percepção como resultante da ação dos diferentes órgãos dos

sentidos, estes produtores de sensações visuais, auditivas, táteis, olfativas e

gustativas. Contrariamente a essa concepção atomística, para Gibson, a percepção

não é algo computado pelo cérebro a partir de uma somatória de sensações. Os

órgãos sensórios não são apenas canais de sensações, receptores passivos que

respondem, cada qual (mecanorreceptores, quimiorreceptores e fotorreceptores), à

sua forma de energia apropriada (mecânica, química, radiativa) mas constituem-se

também em sistemas perceptivos complexos que, além de ativos, são inter-

relacionados, fornecendo ao organismo informação contínua estável que torna a vida

adaptativa possível. A dinâmica perceptiva, portanto, vai além de uma mera

experiência sensorial resultante da ativação de receptores passivos. Não obstante a

importância das pesquisas laboratoriais voltadas para a ativação dos órgãos

receptores, tal ativação não é, por si mesma, capaz de explicar a percepção.90

Podemos conceber o corpo, então, como uma polissensorialidade perceptiva que, para

captar uma informação ou confirmar um estímulo exterior, utiliza uma complexa combinação

dos sistemas perceptivos. “Os inputs em combinação e co-variação podem especificar uma

impressionante variedade de fatos sobre o mundo adjacente. O tato e a visão em combinação

fornecem um input redundante da informação com dupla garantia (Gibson 1996: 51-54)”.91

Vem justamente daí a habilidade que se desenvolve para o uso do mouse em

conexão com o plano da tela. Através do toque do mouse, toca-se literalmente a tela,

apalpa-se a tela. Por isso, o movimento dentro dela torna-se muito rapidamente tão

natural, envolvente, absorvente. Nessa medida, a absorção aparentemente hipnótica

que a navegação produz não vem apenas da percepção visual, mas também da

sensorialidade háptica, pois ambas estão indissoluvelmente ligadas aos movimentos

lógicos do pensamento.92

A tecnologia touchscreen é bastante lúdica ao demonstrar, na prática, o

entrelaçamento da visão com o sistema háptico na utilização de aparelhos digitais. Enquanto o

mouse faz a transposição de uma ação mecânica (clique) para uma ação visual na tela, o

touchscreen consiste na alteração do conteúdo informativo/visual da tela diretamente por

89

Ibidem, p. 45. 90

Ibidem, p. 38. 91

Ibidem, p. 43. 92

Ibidem, p. 50.

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meio do toque: o dedo (sistema háptico) se transforma no instrumento capaz de alterar um

conteúdo imaterial (visual).

Como resultado da ação contínua da ponta do dedo no mouse, os estímulos que, em

situação normal, independeriam do observador, passam também a depender

inteiramente de sua ação. É isso justamente que recebe o nome de interação. Uma

interação cuja base está localizada não apenas na exploração sensório-motora do

ambiente, mas na compreensão e avaliação semiótica do conteúdo informacional e

conceitual desse ambiente.93

Desta forma, a noção de corpo contemporânea deve ser repensada no momento em que

nosso organismo é tecnologicamente estendido: nosso corpo se inicia na esfera biológica mas

suas fronteiras estão em contínua expansão na medida em que se agrega temporariamente a

diferentes ferramentas (como a vara) e a aparelhos digitais (isto é, sensores informativos).

Alguns autores se aprazem em criticar o trabalho do artista Bruce Stelarc como

exemplo de aplicações patéticas e redentoras dos desenvolvimentos tecnológicos para o

corpo. David Le Breton diz que:

Para Stelarc e muitos outros contemporâneos, o corpo é uma espécie de carapaça

anacrônica da qual é urgente se livrar. Sua mortificação, sua transformação em puro

material é uma etapa preliminar antes de sua eliminação ou da fusão necessária de

um resto de carne com as técnicas da informação. Para Stelarc, a estrutura

fisiológica do homem determina sua relação com o mundo; modificando-a, o

homem modifica o mundo.94

Realmente, Stelarc é bastante claro na sua opinião quanto a nossa condição orgânica

atual: considera o corpo obsoleto, anacrônico, e reivindica uma era pós-evolucionista na qual

o corpo seria remodelado pela tecnologia. Em seu famoso trabalho The third hand acopla uma

terceira mão para amplificar suas capacidades motoras e em Ping body conecta seu corpo a

eletrodos, disponibilizando o controle das descargas elétricas em um site na Internet para que

outras pessoas no mundo interajam, causando movimentos involuntários em seu corpo.

Deliberadamente polêmico, Stelarc - antes de qualquer leitura moralista - está

discutindo de maneira radical as condições do corpo humano contemporâneo e testando as

assertivas da ontologia do ser. O que os autores que o criticam não percebem é que a arte é a

parcela da cognição humana que elabora e investiga a vida por meio de outros atributos que

não os lógico-racionais. Necessariamente resultada do homem e da mulher culturais, a arte

opera como um dos espaços para explanação da condição existencial contemporânea. Assim,

a arte pode ser entendida como uma virtualização da cultura, ou seja, heterogênese dos

93

Ibidem, pp. 51 e 52. 94

LE BRETON, David. Trad. Marina Appenzeller Adeus ao corpo: Antropologia e sociedade. Campinas-SP:

Papirus, 2003, p. 50.

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contingentes sociais - ou, em outras palavras, um meio pelo qual hiperbolizamos as

idiossincrasias da nossa cultura para revelar as latências do alicerce social.

A situação de estar presente num lugar sem o estar fisicamente, a clonagem à beira de

nos duplicar e o compartilhamento de nossos órgãos se tornam antíteses dos postulados da

fenomenologia do corpo.

O devastador desmoronamento que isso provoca nas confortantes noções de

identidade nunca poderá ser suficientemente enfatizado. Um fenomenólogo como

Husserl nos fez crer que a um ego corresponde apenas um corpo próprio e que esta é

a própria condição da unidade do ego. É inquietante a violência com que uma tal

noção cai hoje por terra. Nem mesmo a rica noção fenomenológica de “corpo

próprio”, forjada por Merleau Ponty (1945), consegue resistir à violação de sua

integridade pressuposta. Eis, portanto, a considerável ruptura filosófica e cultural

que enfrentamos. Quando o corpo e todos os seres vivos tornam-se informação

codificada, o que permite a manipulação e replicação da própria vida, é a

transformação ontológica do humano que está em jogo.95

A questão principal é que experimentamos atualmente uma nova etapa da autocriação

de nossa espécie. Vivenciamos a virtualização de nossos corpos - ou seja, O interior passa ao

exterior ao mesmo tempo em que permanece dentro.96

-, mas interpretando-a a partir de

premissas antigas. Este descompasso entre teoria e prática é apontado novamente como a

causa das angústias e das imobilidades individuais e coletivas frente a conjunturas

(inicialmente) incompreensíveis - nos capítulos 4.1 Transdisciplinaridade e 5.1 Sobre a pós-

modernidade mostramos o mesmo delay entre teoria e prática e as consequentes vertigens

sociais.

A virtualização do corpo não é portanto uma desencarnação mas uma reinvenção,

uma reencarnação, uma multiplicação, uma vetorização, uma heterogênese do

humano. Contudo, o limite jamais está definitivamente traçado entre a heterogênese

e a alienação, a atualização e a reificação mercantil, a virtualização e a amputação.

Esse limite indeciso deve ser constantemente considerado, avaliado com esforço

renovado, tanto pelas pessoas no que diz respeito a sua vida pessoal, quanto pelas

sociedades no ambiento das leis.97

É claro que a tecnologia não traz apenas benefícios para nossa espécie: apenas as

classes mais abastadas e intelectualizadas do planeta têm acesso as suas facilitações. E se

formos falar em real necessidade, veremos que muitas delas são supérfluas em sua própria

existência. Mas a questão não é ser pró ou contra; não é lamentar em discursos nostálgicos um

passado salubre ou proclamar a nossa salvação por meio dos computadores. A virtualização

de nossos corpos é somente mais uma etapa de transformação do ser humano que será

aplicada conforme as finalidades que atribuirmos a estes processos.

95

SANTAELLA, op. cit., p. 31. 96

LÉVY, op. cit., p. 30. 97

Ibidem, p. 33.

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Não se trata de pensar a substituição do ser humano pelas máquinas, nem de destruí-

las para retornarmos ao momento em que as ferramentas apenas potencializavam nossos

membros. Trata-se, isto sim, de percebermos a virtualização do corpo como a inauguração de

uma sensibilidade extracutânea, capaz de sentir o mundo inteiro - prescindindo do

deslocamento físico dos nossos corpos - e em temporalidades emancipadas do relógio e do

calendário. É necessário repetir: tudo isso, sem substituir o saudável contato humano pele-

com-pele pelos relacionamentos estritamente virtuais; sem substituir as práticas esportivas

pelos videogames; sem anular o próprio corpo físico em favor de sua imagem digital - mas

somando-se.

Meu corpo pessoal é a atualização temporária de um enorme hipercorpo hibrido,

social e tecnobiológico. O corpo contemporâneo assemelha-se a uma chama.

Frequentemente é minúsculo, isolado, separado, quase imóvel. Mais tarde, corre

para fora de si mesmo, intensificado pelos esportes ou pelas drogas, funciona como

um satélite, lança algum braço virtual bem alto em direção ao céu, ao longo de redes

de interesses ou de comunicação. Prende-se então ao corpo público e arde com o

mesmo calor, brilha com a mesma luz que outros corpos-chamas. Retorna em

seguida, transformado, a uma esfera quase privada, e assim sucessivamente, ora

aqui, ora em toda parte, ora em si, ora misturado. Um dia, separa-se completamente

do hipercorpo e se extingue.98

6. CONCLUSÃO

Este último capítulo, antes de querer concluir qualquer coisa, condensará os estudos

apresentados nas seções anteriores para, somando-se à poética do bolsista, discutir o estatuto

do corpo contemporâneo e aventar uma nova definição que dê conta de sua condição

extracutânea: o transcorpo. Abrindo mão do compromisso científico-acadêmico assumido nos

capítulos anteriores, o texto a seguir assume características de um ensaio para debater

livremente o conteúdo estudado e as reflexões desenvolvidas ao longo da pesquisa.

6.1 Transcorpo: um novo estatuto para o corpo contemporâneo

O corpo tem sido o tema central de muitos trabalhos artísticos e filosóficos porque sua

condição está sendo constantemente testada e seus antigos limites, extrapolados. Para os

98

Ibidem, p. 33.

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pesquisadores Arthur e Marilouise Kroker, “na sociedade tecnológica, o corpo alcançou uma

existência puramente retórica: sua realidade é aquela do resíduo expelido como substância

excedente, não mais necessária para o funcionamento autônomo da paisagem técnica”.99

De

fato, nosso corpo se tornou supérfluo para o funcionamento de muitos sistemas - os quais nós

programamos para executarem tarefas que, sem eles, não daríamos conta de toda produção

atual. Mas essa assertiva só é válida para as tecnologias industriais; a tecnologia digital que

utilizamos para nos comunicar diariamente requer nossa interação constantemente: funciona

justamente com nossa participação ativa.

Conforme discutido no capítulo 5.2 A web 2.0: uma revolução despercebida, devemos

considerar as tecnologias para além de sua instrumentalidade, reconhecendo as

transformações pelas quais passamos ao utilizá-las. Arthur e Marilouise Kroker não estão

equivocados ao perceber que o homem não está mais no centro dos eventos, mas se enganam

ao postular que fomos excluídos como excedentes deste processo. É que estes autores ainda

concebem a tecnologia como instrumento do homem, dominada por ele, e, portanto,

subordinada aos seus comandos. O que está ocorrendo não é uma inversão desta lógica - o

homem subordinado à tecnologia - mas uma desierarquização destes processos na constituição

da cultura e do ser humano.

A técnica não é necessariamente contraposta à natureza; ao contrário, deriva dela, no

sentido de que a natureza humana apresenta uma tecnicidade originária, assim como

técnico é, per se, cada movimento do nosso corpo e cada som da nossa voz. E não só

isso: cada resultado, do mais simples ao mais sofisticado, influi de maneira oposta

sobre a nossa natureza. Desse ponto de vista, portanto, medida sobre o plano

filogênico, cada tecnologia é, a princípio, biotecnológica. Certamente, e justamente

por isso, a técnica não é só produção de manufaturados, mas também transformação

daquele que os produz, é alteração, além da matéria e do ambiente, também do

homem.100

Ocorre que a tecnologia, sobretudo a digital, põe a nu processos humanos e sociais

complexos, revelando a imbricação natureza-cultura-tecnologia - a ordem destas palavras

pode ser alterada livremente - de modo explícito e descentrando o ser humano como único

agente no mundo. Foi com o telescópio que Galileu Galilei confirmou que a Terra não era o

centro do universo, mas apenas um dos muitos planetas orbitando em torno do Sol; ainda que

operado e inventado pelo físico, ele não poderia ter tal confirmação a olho nu. E não apenas

99

Arthur e Marilouise Kroker apud VIVIANI, Ana Elisa Antunes. O salto de volta à multidimensionalidade:

perspectivas de compreensão do corpo na cibersociedade. São Paulo: USP, 2007. 165 p. Tese (Mestrado) –

Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação, Escola de Comunicações e Artes, São Paulo, 2007,

p. 42. 100

ESPOSITO, Roberto. A natureza humana depois do humanismo. In: DI FELICE, Massimo; PIREDDU,

Mario (Org.). Pós-humanismo: as relações entre o humano e a técnica na época das redes. São Caetano do Sul:

Editora Difusão, 2010, p. 246.

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confirmou sua hipótese, como reformulou toda ciência, abalou a crença cristã e retirou o ser

humano do centro do universo. Neste sentido, Massimo di Felice constata que

(...) não somente a técnica e os instrumentos de observação – como demonstra

amplamente a física – passaram a alterar a nossa concepção de natureza, mas

começaram também a estender o homem para fora de si e, sobretudo, a produzir

alterações técnicas da percepção do humano e a torná-lo não mais o centro da

natureza, mas parte de um processo revelador que acabava reinventando cada vez

mais o próprio humano por meio das alterações da percepção da natureza produzida

através da técnica. (...) a parte “vencedora” do humanismo, aquela que mais se

impôs e se tornou hegemonia cultural, foi um longo parêntese do antropocentrismo,

a síntese e o ápice do nosso narcisismo de espécie. Pensarmo-nos como medida de

todas as coisas teve efeitos e consequências sobre o nosso “falar de nós”, sobre a

nossa “autoconstrução” e, também, tem permitido a edificação de uma estrutura

conceitual certamente forte e útil, mas ao mesmo tempo rígida e exclusiva, fundada

sobre a pretensão de autarquia em relação ao mundo, à vida e às coisas. As

tecnologias da comunicação ajudam-nos agora a lembrar que o lugar do homem no

mundo é algo diferente do que definimos a partir do humanismo e durante toda a

modernidade.101

Reconhecer as descobertas realizadas a partir da técnica não é diminuir o ser humano,

mas reconhecê-lo em sua característica mais marcante: a capacidade de hibridação. A

tecnologia digital eleva esta potência ao máximo ao diluir as fronteiras entre público e

privado, lazer e trabalho, real e virtual; na mesma senda, as antigas dicotomias entre natureza

e cultura, popular e erudito, corpo e mente, indivíduo e meio, sujeito e objeto deixam de fazer

sentido, invalidando os princípios do Humanismo.

O homem não só não pode mais se considerar a medida do mundo, mas está

descobrindo não ser nem a medida de si mesmo: essa perspectiva grávida de

oportunidades e de problematicidade é talvez o fardo mais oneroso e fascinante para

o futuro. (...) a crítica não é só em relação à pretensão de considerar o homem como

protótipo explicativo do mundo, mas sim de considerar que se possa encontrar uma

explicação exaustiva das características humanas fazendo um simples

reconhecimento das características da espécie homo sapiens. O humano não tem

mais um perfil pré-definido, (...), mas se estrutura de modo declinatório, ou seja,

hibridando-se com as alteridades. O humano é, portanto, um limiar de

desenvolvimento consequência do diálogo com o não humano, diálogo de que não

se pode prescindir caso se deseje entender o caráter mais autêntico da dimensão

cultural.102

A pós-modernidade, discutida no capítulo 5.1 Sobre a pós-modernidade, é o pano de

fundo das transformações culturais e tecnológicas que ocorreram ao mesmo tempo e

determinaram um novo quadro social: um mundo de interações complexas mas interpretado

por indivíduos formatados segundo o pensamento moderno. É claro que nossas interações

101

DI FELICE, Massimo. Prefácio do livro DI FELICE, Massimo; PIREDDU, Mario (Org.). Pós-humanismo:

as relações entre o humano e a técnica na época das redes. São Caetano do Sul: Editora Difusão, 2010, pp. 28 e

29. 102

MARCHESINI, Roberto. Contra a pureza essencialista, rumo a novos modelos de existência. In: Massimo;

PIREDDU, Mario (Org.), op. cit., p. 177.

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sempre se deram de maneira complexa, não-linear; mas, além de terem se intensificado nas

últimas décadas, as interpretávamos de maneira determinista, linear e reducionista.

A Transdisciplinaridade, debatida no capítulo 4.1 Transdisciplinaridade, se anuncia

como a atualização de nossa postura frente ao conhecimento - postura esta que não ocorrerá

naturalmente: resulta de uma escolha, de uma decisão por abandonar os pressupostos

modernos nos quais fomos educados.

O que é um diálogo entre dois seres na falta de pontes, de uma linguagem comum?

Dois discursos paralelos levando a mal-entendidos intermináveis. O que é um

diálogo social na falta de pontes entre os parceiros sociais? Um mercado de

ludibriados que só agrava as rupturas sociais. O que é um diálogo entre as nações, os

estados e os povos desta Terra na ausência de pontes entre eles? Um adiamento

temporário do confronto final. Um verdadeiro diálogo só pode ser transdisciplinar,

baseado em pontes que ligam, em sua natureza mais profunda, os seres e as

coisas.103

Interpretar os fenômenos sociais e naturais a partir da postura moderna, hereditária do

Humanismo, impede que nossa relação com o mundo se dê plenamente. Ora, as vertigens

sociais do último século resultam não mais do que a incapacidade coletiva de abertura ao

novo, à co-habitação e às diferentes realidades que se revelaram na nossa frente com a

globalização. A transdisciplinaridade, mais que o reconhecimento da não-centralidade do ser

humano no universo, é o reconhecimento da não-centralidade do nosso ego: é perceber o

mundo como criação coletiva de sentido por meio da hibridação das disciplinas, das culturas e

das tecnologias.

Se as mídias de massa disseminavam com agilidade elementos de sua cultura, a

tecnologia digital constrói uma paisagem de culturas heterogêneas no mesmo plano de

visibilidade. Enquanto a televisão e o rádio divulgam poucas realidades, impedindo a

interação de seu espectador e noticiando o que lhes convêm financeiramente, o computador e

a Internet possibilitam a autoexpressão e os agrupamentos de indivíduos segundo seus

interesses pessoais.

A virtualização do corpo, discutida no capítulo 5.3 A virtualização do corpo:

sensibilidade extracutânea, é um processo atrelado ao surgimento e à utilização da tecnologia

digital, que faz seus usuários se relacionarem com o mundo por meio de uma sensibilidade

extracutânea, isto é, tecnologicamente mediada, estendendo nossos sentidos para além da

localização geográfica de nosso corpo físico.

103

NICOLESCU, Basarab. Trad. Lúcia Pereira de Souza. O Manifesto da transdisciplinaridade. São Paulo:

Triom, 1999, p. 92.

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É importante percebermos que a popularização das mídias digitais se deu numa

extraordinária velocidade, se comparada às antigas mídias de preservação e disseminação de

informações. O livro, por exemplo, pôde começar a se popularizar com a invenção da

imprensa por Gutenberg no século XV - contudo, passados mais de 500 anos, ainda há uma

parcela da população que não tem acesso a esta mídia. Já a Internet, em apenas 40 anos - a

primeira conexão entre dois computadores ocorreu em 1969 através da Arpanet -, conseguiu

alcançar aproximadamente 25% da população mundial. Segundo o IBGE, no ano de 2000, 9,8

milhões de brasileiros (5,7% da população nacional) tinham acesso à internet, em dezembro

de 2012, este número saltou para 94,2 milhões de brasileiros (48% da população nacional)

com acesso à Internet, sendo que 50 milhões de brasileiros são usuários ativos (que utilizam a

Internet todos os dias).

Assim popularizada, a tecnologia digital nos faz experimentar diariamente esta nova

condição corporal extracutânea, mas ultrapassando nossa capacidade de compreendê-la, posto

que ainda entendemos o corpo conforme a doutrina socrático-platônica ou segundo as

premissas da filosofia cartesiana, expostas no capítulo 4.3 Breve panorama histórico da

relação entre corpo e mente no ocidente. O problema, novamente, reside no delay entre teoria

e prática: experimentamos diariamente um corpo ubíquo, de sensibilidade extracutânea,

habitando diversos espaços sem se deslocar fisicamente, contudo, interpretando-o por meio de

definições antigas e, portanto, insuficientes; causando angústias - inclusive doenças - pela

incapacidade de representá-lo.

A anorexia, por exemplo, é uma doença de origem inorgânica que visa à supressão do

corpo, diminuindo-o ao mínimo de carne possível. Os body builders, ao contrário, trabalham

seus corpos injetando hormônios nocivos à saúde apenas para se tornarem uma fortaleza de

músculos inúteis numa sociedade cada vez mais automatizada. Ambos os casos são reações

frente à sensação de insuficiência perante a tecnologia: o primeiro reforça seu definhamento

em relação à tecnologia, enquanto o segundo tenta superá-la.

Mas essas reações não são exclusividade da tecnologia digital. Platão fizera Sócrates

narrar uma história em que questionam os benefícios da escrita.

O rei - conta Sócrates - perguntou-lhe qual seria a utilidade de cada uma das artes e,

durante a explicação do deu, segundo lhe parecia bom ou mau, concordava ou

discordava (...). Mas, quando chegou à escrita, Theuth disse: esta invenção tornará

os egípcios mais sábios e mais capazes de lembrar, porque com ela se encontrou o

fármaco da memória e da sabedoria. E o rei respondeu: Oh, Theuth! Quem é capaz

de criar as artes e que é capaz de, ao contrário, analisar quais as vantagens e quais

danos terão aqueles que as utilizarão... (...) A descoberta da escrita terá o efeito de

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produzir o esquecimento na alma daqueles que a aprenderão, porque, confiando na

escrita, acostumar-se-ão a lembrar exteriormente, através de signos, e não

interiormente (...). Da sabedoria, depois, resultaria somente a aparência e não a

verdade: de fato, os discípulos tornando-se, através da sua invenção, ouvintes de

muitas coisas sem ensinamento, acharão ser conhecedores de muitas coisas, mas, na

verdade, não o serão; e será bem difícil conversar com eles, porque serão portadores

de opiniões, mas não sábios.104

A transposição da cultura oral para a cultura escrita também teve vertigens quanto às

inovações na relação do ser humano com o mundo e consigo mesmo: a memória deixava de

ser orgânica; tornava-se um híbrido entre técnica e corpo. É natural que as revoluções

ocasionadas pela tecnologia digital também levante questões ontológicas, entretanto, sua

rápida popularização instaura desconfortos coletivos que comprometem cada vez mais o

funcionamento do organismo social.

Nilo Odalia, filósofo e professor, refletindo sobre a violência na história da

humanidade, constata que a violência, antigamente, ocorria por motivos mais evidentes,

geralmente associados ao controle ou a uma conquista material, operado a partir de uma

classe social contra outra classe superior ou inferior. “É curioso observar-se que a sociedade

capitalista que coloca tantos entraves e mediações nas relações diretas entre os homens produz

uma violência que restitui esse contato direto e imediato. Na violência, o homem encontra o

outro homem, diretamente”.105

Deste modo, a violência restitui o contato direto entre dois

seres humanos, eliminando a mediação capitalista (ou, no nosso caso, a mediação tecnológica,

virtual) que vem interpolando a comunicação e o relacionamento atuais. A violência

proporciona, mais que um contato, o choque entre dois corpos que, para se encontrarem,

deveriam obedecer aos protocolos impostos pela sociedade. Assim podemos entender que, a

violência gratuita, aquela que não visa conquistar ou revolucionar nada, é também uma reação

desregulada da incompreensão quanto à materialidade e imaterialidade de seus corpos

experimentados diariamente na Internet e nas mídias digitais.

Pierre Lévy, apresentado no capítulo (com o mesmo nome do seu livro) 4.2 O que é o

virtual?, conjectura que os esportes radicais, pouco praticados antes do século XX, sejam

também formas de reação à virtualização que nos assalta.

Os mais emblemáticos dentre os esportes extremos de devir e de tensão são as

praticas de queda (paraquedas, asa delta, salto com elástico) e de deslizamento

(esqui alpino, esqui aquático, surfe e windsurfe). Em um certo sentido, são reações à

virtualização. Esses esportes, puramente individuais, não necessitam de grandes

equipamentos coletivos e com frequência utilizam apenas artefatos discretos. Acima

104

PLATÃO, Fedro apud DI FELICE, Massimo. Paisagens pós-urbanas: o fim da experiência urbana e as

formas comunicativas do habitar. São Paulo: Editora Annablume, 2009, pp. 77 e 78. 105

ODALIA, Nilo. O que é a violência. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983. (col. Primeiros Passos), p. 90.

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de tudo, intensificam ao máximo a presença física aqui e agora. Reconcentram a

pessoa em seu centro vital, em seu “ponto de ser” mortal. A atualização parece

reinar aqui.106

A arte parece flagrar e denunciar com mais intensidade as alterações na definição do

homem irrompidas pela tecnologia. Situado entre a Renascença e o Barroco, o Maneirismo,

mais que um período de transição, constitui-se numa revolução que criou padrões estilísticos

inteiramente novos na história da arte europeia. No século XVI, momento da famosa Alta

Renascença - com seus representantes: Leonardo da Vinci e Rafael Sanzio -, valorizava-se o

equilíbrio, a harmonia e a representação fidedigna da natureza. Mas o maneirismo vem para

suspender esta lógica: pela primeira vez a arte divergia deliberadamente da natureza,

preferindo conscientemente se utilizar de formas não-naturalistas (ou antinaturalistas),

desafiando e questionando o natural (ou seja, o próprio pensamento humanista). As

deformações na representação do homem nas pinturas maneiristas reagem às certezas do

Humanismo quando a ciência (os postulados de Copérnico e Galileu), a religião (Reforma

Protestante) e a tecnologia (grandes navegações e o início do capitalismo) reconfiguram o

alicerce social.

O mesmo processo de reação se deu no pós-modernismo com a tecnologia digital. Os

performers e body artists - não mais sobre a representação do corpo, como no Maneirismo -

perscrutam, indagam, exploram, distorcem e dilaceram seus próprios corpos na tentativa de

re-significá-los sobre as novas condições humanas: neste caso, como já se disse

exaustivamente, a condição corporal extracutânea.

Certamente o sexo virtual, neste sentido, é um duplo tensionar ontológico. Duplo

porque o sexo é o maior enfrentamento da alteridade do corpo já experimentado na história

humana - daí sua repressão, e não porque praticado sem intenções reprodutivas, conforme

preceitos judaico-cristãos - e porque as definições de corpo, tão estáveis e táteis até então, são

invalidadas no momento em que se consegue gozar de uma prática que há poucos anos, para

acontecer, necessitava do contato pele-com-pele. De forma absurda, os indivíduos que

praticam o sexo virtual conseguem realizar o que lhes sempre foi reprimido sem o confronto

de seus corpos - muitas vezes nem com a imagem de outra pessoa, mas diretamente com um

software que simula o sexo.

Tais fenômenos não serão compreendidos pela sociedade enquanto os abordarmos a

partir da ótica do Humanismo. A noção de homem desenvolvida por Francis Bacon (século

106

LÉVY, Pierre. Trad. Paulo Neves. O que é o virtual?. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2011, p. 32.

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XVI e XVII) como “ponto estático no devir do universo”107

nega sua potência de hibridação,

colocando-o na posição de dono do universo, pronto a dominar a natureza e subjugar até a

menor das partículas inanimadas.

A autossuficiência não é do humano não porque nossa espécie seja carente, mas

porque é abundante, requer/consente uma especificação declinatória, e igualmente

porque é invocada à conjugação e ao zelo, ou seja, à hospitalidade. Os outros

animais, e depois as máquinas, representaram historicamente o parceiro hibridador

capaz de dialogar com o homem e de afastá-lo da sua herança etográfica, ou seja, de

consentir sempre novas declinações às competências filogenéticas. O não humano,

longe de ser um simples instrumento nas mãos do homem, sempre foi um parceiro,

um interlocutor, uma referência capaz, através da hibridação, de consentir tal

processo descentralizador.108

Avaliando as catástrofes humanas do século XX - principalmente as duas grandes

guerras e Auschwitz - alguns filósofos apontam a origem destes e de outros conflitos na

concepção antropocêntrica do ser humano, conclamando uma nova filosofia, denominada por

eles de Pós-humana.

Erra quem lê a filosofia post-human como uma simples superação do homem ou

como definição de obsolescência do humano, mesmo se alguns autores referem-se

explicitamente a isso. A meu ver, o traço comum das diversas filosofias post-human

está em considerar o homem não mais autossuficiente para fundar o humano; mais

que uma filosofia de superação do humano, julgo que seja correto considerar o pós-

humanismo um pensamento inclusivo do não humano, assumir o débito que o

homem contraiu com as alteridades na construção dos seus predicados.109

O termo é de fato infeliz:110

pós-humano nos faz pensar num mundo regido para

questões além dos humanos - ou voltadas às futilidades ou voltadas a deuses imaginários e

superiores a nós. O pós-humanismo, antes de tudo, é se posicionar no mundo sem a ilusão de

nos considerarmos os principais atores para os quais todos os olhos se voltam. É “Passar de

(...) uma leitura de pertencimento - e, nesse sentido, estável e opositora em relação ao exterior

- a uma conjugação transitiva, enquanto aberta à declinação hibridadora (...)”.111

Antropodescentrar-se significa alargar a própria porta de intersecção com o mundo

aumentando as contribuições externas ou hibridadoras e diminuindo as tendências

eletivas. Antropodescentrar-se não significa destruir a dimensão ôntica do ser

humano, mas dar novas declinações a essa casa e admitir que o humano transcende

tal dimensão porque é fruto hibrido de conjugações contingentes, ou seja, históricas

ou reconhecíveis nas características da espécie Homo sapiens. A palavra-chave da

107

MARCHESINI, Roberto. Contra a pureza essencialista, rumo a novos modelos de existência. In: Massimo;

PIREDDU, Mario (Org.), op. cit., p. 166. 108

MARCHESINI, Roberto. Contra a pureza essencialista, rumo a novos modelos de existência. In: Massimo;

PIREDDU, Mario (Org.), op. cit., p. 179. 109

Ibidem, p. 181. 110

(...) o “pós-humano” é uma definição infeliz, que deve ser superada, mas que, por enquanto, nos é útil como

categoria semântica, como instrumento heurístico, para definir um conceito tão simples que se aproxima da

banalidade: pós-humano como pós-humanismo, isto é, como a crise do pensamento humanocêntrico. In: DI

FELICE, Massimo. Prefácio do livro DI FELICE, Massimo; PIREDDU, Mario (Org.), op. cit., pp. 29 e 30. 111

MARCHESINI, Roberto. Contra a pureza essencialista, rumo a novos modelos de existência. In: Massimo;

PIREDDU, Mario (Org.), op. cit., p. 182.

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abordagem pós-humanística é, sem dúvida, a palavra hibridação, quando se faz

referência a uma hetero-organização do humano a partir do exterior, operada pelas

alteridades e não por objetos fruídos. Assim eram considerados animais e máquinas

até quase final do século XX, quando se tornam parceiros ativos penetrando a

fortaleza do humano e dando-lhe uma conotação xeno-ontológica.112

A transdisciplinaridade, no mesmo sentido do pós-humanismo, é uma postura

deliberadamente diferente frente ao conhecimento (que agora deve se dar na intersecção das

áreas e voltadas para o ser humano), à natureza (que de escrava de nossas vontades se

transforma em cúmplice) e às diferentes realidades dos outros seres humanos (que, antes de

rechaçá-las, devemos buscar integrá-las às nossas). Mas, se admitirmos que corpo e mente

constituem faces de um mesmo ser e que se interinfluenciam, então só atingiremos tal

capacidade de entendimento no momento em que nossos processos intelectuais e corporais se

derem nessa mesma perspectiva.

É nesse sentido que se sugere aqui o termo transcorpo para se denominar uma outra

concepção na relação corpo-mente que o mundo contemporâneo nos solicita. Hoje não faz

mais sentido separar as ações corporais das mentais porque os infoespaços digitais, ativados

por processos mentais, são habitados também pelos nossos corpos digitalizados. Devemos

reconhecer a expressividade de nossas ações operadas à distância e que neste mesmo lugar

atópico se encontram também nossos sentidos, tecnologicamente estendidos. Percebemos o

mundo com nosso corpo digitalmente ampliado, mas interpretando-o a partir de epistemes

antigas que impedem uma maior fruição de toda sua potência.

A sugestão de outro termo para se compreender este processo contemporâneo da

relação corpo-mente se justifica no momento em que novos fenômenos solicitam novas

terminologias para impedirem possíveis desentendimentos semânticos.

C. S. Peirce é o autor de um breve tratado sobre a ética terminológica que faz parte

de sua doutrina pragmaticista. Para ele, muitas disputas estéreis poderiam ser

evitadas pelos pesquisadores, se alguma atenção fosse dada à questão terminológica.

Muitas vezes, as confusões e controvérsias intelectuais são geradas por um ou vários

dentre os seguintes equívocos: dar nomes novos para fenômenos já conhecidos e

com nomes consagrados; manter os nomes antigos para fenômenos novos; utilizar

diversos nomes para um mesmo fenômeno ou o mesmo nome para fenômenos

diversos.113

Doze meses de pesquisa, naturalmente, não foram suficientes para se investigar a

validade deste termo e sua inscrição histórico-cultural. No entanto, o que se quer concluir aqui

é a necessidade de se repensar nossa relação com nosso próprio corpo na contemporaneidade:

qual seu sentido quando podemos habitar diferentes espaços sem nos deslocarmos

112

Ibidem, p. 180. 113

SANTAELLA, Lucia. Corpo e comunicação. 3.ed. São Paulo: Paulus, 2008, p.54.

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fisicamente; qual sua “essência” quando podemos nos transformar no que quisermos com a

cirurgia plástica e com as identidades virtuais; quais seus limites quando nos juntamos a

diferentes máquinas - desde a mão biônica para um acidentado às próteses visíveis e invisíveis

que amplificam nosso desempenho físico?

O corpo, mais do que nunca, se tornou altamente plástico: hoje podemos nos tornar o

que quisermos. O elemento mais excitante e mais aterrador, nosso corpo, passa por

transformações ontológicas por conta da tecnologia digital que nos obriga a repensar as

antigas e confortantes definições que tínhamos para o ser humano. O que o transcorpo sugere

não é um lançar-se às cegas às inovações tecnológicas, tampouco evitá-la. A virtualização do

corpo e todos os outros processos desencadeados pela tecnologia digital não são bons nem

maus para nossa espécie: adquirem os traços das finalidades que lhes atribuirmos. O

netativismo (ações políticas operadas a partir das mídias digitais) e as enciclopédias digitais

são uma das poucas finalidades positivas que demos até hoje para a Internet - há muito por

vir.

“Creio que o sofrimento de submeter-se à virtualização sem compreendê-la é uma das

principais causas da loucura e da violência de nosso tempo”.114

O próprio filósofo entusiasta

das mídias digitais alerta para uma urgente necessidade coletiva de se repensar o virtual (isto

é, desterritorialização) em nossas vidas para que, por meio da consciência de seu

funcionamento, façamos da “hospitalidade ampliada sua virtude cardinal”.115

Destarte, o transcorpo é a tomada de consciência dos processos materiais e digitais

que nos atravessam diariamente na construção de nossa significação do mundo, individual e

coletiva. O prefixo deste termo faz referência tanto às balizas da teoria transdisciplinar -

diferentes níveis de realidade, lógica do terceiro incluso e a complexidade - quanto a sua

etimologia - trans: o que está entre, através e além -, na tentativa de se reivindicar a definição

do corpo e do sujeito contemporâneos como devir perpétuo inscrito nas contingências

orgânicas, inorgânicas, sociais e tecnológicas. Somente assim, sem nos perdermos em

especulações sobre futuros imaginários ou em apegos inúteis às estruturas que herdamos do

passado, extrairemos todos os benefícios de nossas consecuções tecnológicas das últimas

décadas.

114

LÉVY, Pierre, op. cit., p. 147. 115

Ibidem, p. 14.

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7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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