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UNIVERSIDADE DE LISBOA Departamento de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores ANÁLISE DE CIRCUITOS & ELETROMAGNETISMO — NOTAS INTRODUTÓRIAS — J. A. Brandão Faria 2019/2020

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  • UNIVERSIDADE DE LISBOA

    Departamento de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores

    ANÁLISE DE CIRCUITOS & ELETROMAGNETISMO

    — NOTAS INTRODUTÓRIAS —

    J. A. Brandão Faria

    2019/2020

  • ACIR e Eletromagnetismo J. A. Brandão Faria

    2

    ÍNDICE

    I. Prefácio 03

    II. Campo Eletromagnético 05

    1. Introdução e motivação 05

    2. Conceito de campo vetorial 08

    3. Equações de Maxwell do campo eletromagnético 10

    III. Circuitos Elétricos 17

    1. Noções básicas 17

    2. Engenharia vs. Física 22

    3. Modelização 23

    IV. Bibliografia 28

  • ACIR e Eletromagnetismo J. A. Brandão Faria

    3

    I. PREFÁCIO

    Na disciplina de Física do ensino secundário foram ministrados os rudimentos de ‘Eletricidade’.

    Agora, como estudantes do IST, futuros engenheiros eletrotécnicos, vão ter de aprofundar os

    conhecimentos nesse tema; vão não só aprofundá-los nos primeiros anos, mas também aplicá-los

    mais adiante nas disciplinas da especialidade, sejam elas da área do Controlo, da Eletrónica, da

    Energia ou das Telecomunicações e, mais tarde, na vossa tese de graduação.

    A unidade curricular (uc) de Eletromagnetismo e Ótica, no 1o semestre do 2

    o ano, oferecida pelo

    Departamento de Física, comum a todos os cursos de Engenharia do IST, fornece as bases da

    teoria do campo eletromagnético.

    A uc de Análise de Circuitos (ACir), também no 1o semestre do 2

    o ano, é oferecida pelo Depar-

    tamento de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores (DEEC). É a vossa primeira disciplina

    de eletrotecnia, comum a todos os ramos da Engenharia Eletrotécnica. Porém, como é lecionada

    ao mesmo tempo que a uc de Eletromagnetismo e Ótica, não é ainda possível tirar proveito da

    última. Por outras palavras: os objetivos e o programa da uc de Análise de Circuitos, bem como

    o seu nível de profundidade, estão condicionados. Não sendo possível fazer uso da linguagem

    própria do campo eletromagnético, ACir tem de confinar-se ao domínio dos fenómenos lenta-

    mente variáveis no tempo.

    A uc de Eletrotecnia Teórica, no 2o semestre do 2

    o ano, está já virada para as aplicações da enge-

    nharia eletrotécnica, em geral. Aí irão encontrar a descrição e a explicação rigorosa dos fenóme-

    nos do campo eletromagnético, lentos ou rapidamente variáveis no tempo.

    Segue-se, no 3o ano, a uc de Propagação e Radiação de Ondas Eletromagnéticas, onde o foco

    incide especificamente nos fenómenos rapidamente variáveis no tempo, com aplicações em pro-

    pagação guiada e em antenas.

  • ACIR e Eletromagnetismo J. A. Brandão Faria

    4

    Nas unidades curriculares referidas, a ferramenta/linguagem utilizada é a da Matemática, desig-

    nadamente a Análise Diferencial e Integral, a Álgebra Linear, a Análise Complexa, bem como a

    Análise Vetorial. Uma preparação deficiente nestas ‘linguagens’ pode, decerto e infelizmente,

    comprometer o vosso sucesso na aprendizagem das matérias lecionadas em Eletromagnetismo e

    Ótica, Análise de Circuitos, Eletrotecnia Teórica, Propagação e Radiação de Ondas Eletromagné-

    ticas, etc.

    Este texto introdutório, preliminar à lecionação de ACir, tem duas finalidades.

    A primeira (Cap. II) é despertar/incentivar o interesse dos estudantes para o tema do campo ele-

    tromagnético, salientando a sua importância, apresentando exemplos e enunciando as leis que o

    descrevem — as equações de Maxwell. A parte final da tarefa não é muito fácil, pois a lingua-

    gem matemática requerida ainda não está inteiramente ao vosso dispor. Mas... vamos tentar, va-

    mos (todos) esforçar-nos.

    A segunda (Cap. III) centra-se na aplicação do eletromagnetismo aos circuitos elétricos. Introdu-

    zem-se as noções de intensidade de corrente, tensão e potência. Destaca-se que ao engenheiro

    eletrotécnico não basta o domínio das leis físicas do eletromagnetismo, sendo-lhe também exigi-

    da a arte de, judiciosamente, simplificar essas leis, com vista à obtenção de soluções exequíveis,

    tão próximas da realidade quanto possível, embora não 100% exatas. A esse propósito, refere-se

    o importante aspeto da modelização dos componentes de circuitos elétricos.

  • ACIR e Eletromagnetismo J. A. Brandão Faria

    5

    II. CAMPO ELETROMAGNÉTICO

    1. Introdução e motivação

    As primeiras contribuições de natureza científica para o eletromagnetismo devem-se sobretudo a

    André-Marie Ampère (1775-1836) e a Michael Faraday (1791-1867). Há, porém, um nome in-

    contornável que tem de ser retido na memória, o de James Clerk Maxwell (1831-1879), físico

    escocês, que formulou a teoria moderna do eletromagnetismo1, unificando a eletricidade, o mag-

    netismo e a ótica — ciências até então consideradas distintas.

    De facto, foi em 1873 que Maxwell publicou a sua obra Treatise on Electricity and Magnetism,

    onde foram dadas a conhecer as equações que governam o campo eletromagnético — as chama-

    das Equações de Maxwell, que mais adiante apresentaremos.

    No que respeita a essas equações, há pelo menos quatro factos notáveis que merecem realce:

    Primeiro: A sua longevidade! Apesar de estabelecidas há quase século e meio, não houve ainda

    qualquer evidência experimental que as pusesse em causa.

    Segundo: O conteúdo das equações permite, por via puramente dedutiva, prever a existência de

    ondas eletromagnéticas (de que a luz é um caso particular). A demonstração experimental da

    existência de ondas eletromagnéticas2 foi feita por Hertz em 1889.

    Terceiro: As equações são intrinsecamente relativistas. Verificou-se, a posteriori, que elas estão

    de acordo com os resultados da Teoria da Relatividade desenvolvida por Einstein em 1905.

    Quarto, e talvez mais importante: As equações de Maxwell aplicam-se indistintamente a todos os

    fenómenos macroscópicos do eletromagnetismo, fenómenos lentos ou rápidos, com corpos em

    repouso ou em movimento.

    1 Maxwell é também conhecido pela sua contribuição para a Teoria Cinética dos Gases, teoria que veio a revelar-se

    crucial no desenvolvimento da Termodinâmica Estatística e da Mecânica Quântica. 2 Também conhecidas por ondas hertzianas.

  • ACIR e Eletromagnetismo J. A. Brandão Faria

    6

    Na verdade, com base nessas equações, é possível explicar e analisar todos os fenómenos do

    campo eletromagnético que interessam à engenharia eletrotécnica, por exemplo, o funcionamen-

    to de motores e geradores elétricos (Fig. 1), a transmissão de sinais elétricos nas placas de circui-

    tos eletrónicos (Fig. 2), a transmissão de energia ao longo das linhas de alta tensão (Fig. 3), a

    transmissão de sinais luminosos em fibras óticas (Fig. 4), a radiação das antenas (Fig. 5), as co-

    municações em espaço livre (Fig. 6), etc., etc.

    (a) (b)

    Fig. 1 Conversão eletromecânica de energia. (a) Motor elétrico. (b) Gerador elétrico. No funcionamento

    como motor, a máquina é alimentada no estator por correntes elétricas e a peça móvel no seu interior (o rotor)

    adquire movimento de rotação. No funcionamento como gerador, ocorre o inverso; o rotor é colocado em mo-

    vimento de rotação (via energia hídrica, eólica ou outra) e no estator surgem tensões elétricas.

    Fig. 2 Placa de circuito impresso utilizada na montagem de componentes eletrónicos, onde se observa a

    complexidade das pistas metálicas que servem de interligação entre componentes. Os sinais elétricos transmi-

    tidos pelas diversas pistas interagem entre si por acoplamento eletromagnético, indutivo e capacitivo.

  • ACIR e Eletromagnetismo J. A. Brandão Faria

    7

    Fig. 3 Torre e linha aérea de alta tensão. As linhas de transmissão operam a 50 Hz e podem ter comprimentos

    de centenas de km. As cargas e correntes elétricas dos condutores da linha dão origem a um campo eletromag-

    nético que viaja ao longo da estrutura com uma velocidade próxima da velocidade da luz.

    Fig. 4 Feixe de fibras óticas, cortado numa extremidade, emitindo luz visível. Nas fibras utilizadas em co-

    municação ótica a luz não é visível, situa-se na zona do infravermelho, com comprimentos de onda cerca de

    1300 nm e 1500 nm, a que correspondem frequências na zona do THz.

  • ACIR e Eletromagnetismo J. A. Brandão Faria

    8

    Fig. 5 Antena Yagi-Uda utilizada nas bandas de VHF (50 a 200 MHz) e UHF (0,3 a 3 GHz). A radiação do

    elemento principal (dipolo dobrado) é reforçada pela presença de hastes refletoras e diretoras, que conferem a

    esta antena notáveis características direcionais.

    Fig. 6 Antena parabólica para comunicações via satélite (3 a 30 GHz). O satélite está colocado numa órbita

    geoestacionária cerca de 36 mil km acima da Terra (nível médio do mar). No foco da parábola encontra-se o

    elemento emissor/recetor.

    2. Conceito de campo vetorial

    O conceito intuitivo de força, como quantidade vetorial, já é conhecido do ensino secundário.

    Vamos agora falar um pouco sobre a noção de campo vetorial3, isto é, de funções que definem

    vetores cujas componentes escalares variam continuamente de ponto para ponto no espaço 3D

    em função das coordenadas de espaço (x, y, z) e, eventualmente, do tempo (t).

    3 Ao longo deste texto, as entidades vetoriais serão representadas por letras em negrito. Por exemplo, a letra F sim-

    boliza uma força (um vetor).

    http://www.google.pt/imgres?imgurl=http://www.aandjantennas.com.au/images/dv310.jpeg&imgrefurl=http://www.aandjantennas.com.au/antennas.html&h=193&w=480&tbnid=z9CjFG-UwQXDVM:&zoom=1&docid=5NsdfsmWKEMZcM&hl=pt-PT&ei=s1hyU6erFqnW0QWwyIHoDg&tbm=isch&ved=0CCIQMygaMBo4rAI&iact=rc&uact=3&dur=1680&page=13&start=299&ndsp=28

  • ACIR e Eletromagnetismo J. A. Brandão Faria

    9

    A Fig. 7 exemplifica um atleta no exercício do lançamento de martelo4.

    O corpo esférico é tracionado por uma força F exercida pelo atleta ao rodopiar. A força é trans-

    mitida por um cabo de arame.

    F

    Fig. 7 Lançamento de martelo. A força F é transmitida pelo cabo de arame.

    Porém, há situações em que o movimento dos corpos ocorre sem que haja qualquer força visível

    e sem a necessidade dum meio de transmissão, como o referido cabo de arame.

    Na Fig. 8 ilustra-se a passagem duma sonda espacial perto dum planeta.

    A sonda, de massa m, liberta de qualquer influência, seguiria uma trajetória retilínea (a traceja-

    do). No entanto, a presença do planeta de massa M provoca uma alteração dessa trajetória (a tra-

    ço cheio). Na vizinhança de M está presente uma força gravitacional atrativa. Essa força manifes-

    ta-se em qualquer ponto do espaço e, apesar de ela não ser detetável diretamente pelos nossos

    sentidos, podemos inferir a sua existência analisando a trajetória da sonda de massa m — dire-

    mos, assim, que estamos perante um campo gravitacional G. As linhas de ação desse campo são

    radiais, com simetria esférica, e estão representadas na Fig. 9.

    M

    G r

    m

    Fig. 8 Trajetória de uma sonda espacial (de massa m) perto de um planeta de massa M.

    4 O martelo é uma esfera metálica com 7,26 kg de massa, provida dum cabo de arame com cerca de 1 m.

  • ACIR e Eletromagnetismo J. A. Brandão Faria

    10

    G

    M

    Fig. 9 Linhas de ação do campo gravitacional G criado pela massa M.

    O campo gravitacional G atuante sobre m é caracterizado por um vetor força Fg cuja orientação é

    a das linhas de ação desse campo:

    g mF G (1)

    O campo G, com as dimensões de uma aceleração (m/s2), originado pela massa M, é proporcio-

    nal a M e inversamente proporcional ao quadrado da distância r, isto é,

    2( ) r

    Mr

    r G e ;

    116,67 10 Nm2/kg2 (2)

    onde é a constante de gravitação universal e re é o vetor unitário da direção radial.

    3. Equações de Maxwell do campo eletromagnético

    Enquanto os fenómenos gravitacionais são originados por distribuições de massa, os fenómenos

    do eletromagnetismo são desencadeados por distribuições de carga elétrica e por distribuições de

    corrente elétrica5.

    Ao redor dessas distribuições de carga e de corrente surge também um campo — o campo ele-

    tromagnético — que, tal como o campo gravítico, exerce uma força atuante sobre qualquer partí-

    cula com carga elétrica (positiva ou negativa) que fique sob a sua influência.

    5 As correntes elétricas estabelecem-se no interior de materiais condutores (como o cobre) e correspondem a um

    movimento quase caótico, ligeiramente ordenado, de partículas livres com carga elétrica negativa (eletrões) em

    colisão permanente com a estrutura atómica do meio condutor. A essas correntes de condução adicionam-se outras,

    as ‘correntes de deslocamento’ cuja importância se torna crescentemente notória à medida que aumenta a rapidez do

    fenómeno eletromagnético.

  • ACIR e Eletromagnetismo J. A. Brandão Faria

    11

    Ao contrário do campo gravitacional, o campo eletromagnético requer não um, mas dois vetores

    para o caracterizar: o campo elétrico E e o campo de indução magnética B.

    A título ilustrativo, apresenta-se na Fig. 10 um conjunto de linhas de campo dos vetores E e B ao

    redor de dois filamentos (fios) condutores cilíndricos paralelos, carregados com carga elétrica

    Q e percorridos por correntes elétricas de intensidade i. As linhas do campo E são abertas,

    nascem e morrem à superfície dos fios onde se acumula a carga elétrica. As linhas do campo B

    são fechadas, abraçando os fios condutores de corrente.

    E, D

    B, H

    Fig. 10 Campo eletromagnético de um par de fios condutores cilíndricos paralelos (corte transversal). Os fios

    condutores são os círculos a negro. As linhas de força do campo elétrico são os arcos de circunferência a azul;

    ortogonais a estes encontram-se as linhas de força do campo magnético a vermelho.

    Também a título ilustrativo, apresenta-se na Fig. 11 um conjunto de linhas de campo dos vetores

    E e B criados por uma antena do tipo dipolo (peça central vertical, a negro). As linhas de campo,

    quer de E, quer de B, são agora fechadas6.

    6 A existência de linhas fechadas do campo elétrico só é possível quando o campo de indução magnética B for variá-

    vel no tempo (como no caso duma antena) envolvendo, necessariamente, a presença de correntes de deslocamento.

  • ACIR e Eletromagnetismo J. A. Brandão Faria

    12

    Fig. 11 Perspetiva tridimensional do campo eletromagnético radiado por uma antena do tipo dipolo.

    A força F associada ao campo eletromagnético é usualmente decomposta em duas parcelas, a

    força elétrica Fe e a força magnética Fm, a primeira dependente do campo elétrico E, a segunda

    dependente do campo de indução magnética B.

    e m= ( ) + ( )E BF F F (3a)

    Quando se coloca uma partícula de massa m, com carga elétrica q, animada de velocidade v, nu-

    ma região onde exista um campo eletromagnético, observa-se uma alteração da trajetória dessa

    partícula causada simultaneamente por Fe e Fm. Essas duas forças calculam-se através de:

    e qF E (3b)

    m ( )q F v B (3c)

    A força elétrica é de cálculo trivial; de acordo com (3b), tem direção paralela a E se q > 0, e an-

    tiparalela se q < 0. Em todo o caso, a intensidade de Fe é diretamente proporcional à intensidade

    do campo elétrico E atuante sobre q.

    Por exemplo, se tivermos uma esfera metálica, no ar, carregada com uma carga elétrica Q, o

    campo E existente em seu redor é radial, com simetria esférica, dado por

    2( ) r

    Qr

    rE e ;

    99,0 10 m/F (4)

    devendo realçar-se a semelhança entre as equações (1) e (3b) e, também, entre (2) e (4).

  • ACIR e Eletromagnetismo J. A. Brandão Faria

    13

    A Fig. 12 mostra a trajetória de uma partícula móvel com carga elétrica q positiva, quando sub-

    metida à ação dum campo elétrico E originado por uma esfera carregada com carga Q.

    A força elétrica é atrativa se qQ < 0, mas repulsiva se qQ > 0. É de destacar a evidente parecen-

    ça entre as figuras 8 e 12a.

    (a)

    E

    Q

    v

    (b)

    E

    Q

    v

    q q

    Fig. 12 Força elétrica atuante sobre uma partícula com carga q positiva. (a) Trajetória da partícula, caso

    Q < 0. (b) Trajetória da partícula, caso Q > 0.

    A análise da força magnética Fm, especificada em (3c), é um pouco mais complicada. Nessa

    equação, a operação v B traduz um novo vetor: o produto externo de v com B.

    O módulo deste vetor calcula-se multiplicando o módulo de v, o módulo de B e o seno do ângulo

    entre esses vetores.

    A direção do vetor é perpendicular ao plano definido por v e B e o seu sentido é definido pela

    «regra dos três dedos da mão direita»: alinhando o dedo indicador com v, alinhando o dedo do

    meio com B, o produto externo fica alinhado com o polegar — ver Fig. 13.

    Assim, pode concluir-se que se v e B forem paralelos ou antiparalelos ( 0, 180º ) a força

    magnética não se fará sentir; ao invés, se v e B forem perpendiculares ( 90º ) a força magné-

    tica será máxima.

    v × B

    B

    v

    Área = vB sen= |vB|

    Fig. 13 Produto externo v B .

  • ACIR e Eletromagnetismo J. A. Brandão Faria

    14

    A Fig. 14 ilustra a trajetória duma partícula com carga elétrica positiva, animada de velocidade v,

    ao passar entre as peças polares N/S dum eletroíman onde existe um campo de indução magnéti-

    ca B (originado pela corrente i da bobina) responsável pela força magnética Fm.

    B

    i

    Ferro

    N

    S

    (a)

    (b) Plano da trajetória

    v

    B

    N

    S

    Fig. 14 (a) Eletroíman em cujo entreferro de ar existe um campo de indução magnética B. (b) Trajetória da

    partícula móvel com velocidade v, entre as peças polares, sob ação da força magnética associada a B.

    Vamos concluir este capítulo apresentando as equações de Maxwell.

    Como já foi dito, o comportamento do campo eletromagnético é regido e descrito pelas equações

    de Maxwell, que se escrevem na seguinte forma

    Equações de Maxwell: 0

    rott

    div

    rott

    div

    BE

    B

    DH J

    D

    (5)

    Os alunos vão encontrar estas equações já no 2o ano e delas farão uso intensivo nos anos que se

    seguem7.

    7 Sem ser exaustivo, citam-se, por exemplo, as seguintes unidades curriculares do 2o ciclo do MEEC onde a utiliza-

    ção das equações de Maxwell desempenha papel importante: Máquinas eléctricas (4o ano); Regimes transitórios em

    redes (4o ano); Microondas (4

    o ano); Antenas (4

    o ano); Fotónica (4

    o ano); Sistemas de telecomunicações por fibra

    óptica (4o ano); Alta tensão (5

    o ano); Radiopropagação (5

    o ano).

  • ACIR e Eletromagnetismo J. A. Brandão Faria

    15

    Neste momento, não é ainda possível abordar o significado e alcance das equações de Maxwell;

    no entanto, podemos, desde já, identificar as grandezas físicas que nelas constam — quando mais

    não seja, para poderem começar a familiarizar-se com a terminologia.

    O par E e D é de natureza elétrica.

    E é o vetor campo elétrico, D é o vetor deslocamento elétrico8.

    O par H e B é de natureza magnética.

    H é o vetor campo magnético, B é o vetor campo de indução magnética9.

    A origem, fonte, do campo eletromagnético é a carga elétrica10, seja em repouso ou em movi-

    mento. A sua descrição é feita à custa de duas densidades, e J, a primeira escalar e a segunda

    vetorial. A grandeza é a densidade de carga elétrica; a grandeza J, associada ao movimento de

    carga, é o vetor densidade de corrente elétrica11.

    O símbolo / t traduz a derivada parcial em ordem ao tempo t.

    Os símbolos rot e div são mais complicados; referem-se, respetivamente, aos operadores rotacio-

    nal e divergência. Ambos estão associados a operações de diferenciação12 em ordem às coorde-

    nadas de espaço, x, y, z. Pode, talvez, acrescentar-se a seguinte informação, que virá a ser útil.

    Quanto às equações que envolvem o operador divergência:

    0div B — revela que as linhas de campo B são linhas fechadas.

    div D — revela que as cargas elétricas criam campo elétrico.

    Quanto às equações que envolvem o operador rotacional:

    /rot t E B — revela que um campo magnético variável no tempo cria campo elétrico.

    /rot t H J D — revela que correntes elétricas e/ou campos elétricos variáveis no tempo13

    criam campo magnético.

    8 Em muitos casos, os vetores D e E são proporcionais, podendo escrever-se D = E, onde é a permitividade.

    9 Em muitos casos, os vetores B e H são proporcionais, podendo escrever-se B = H, onde é a permeabilidade.

    10 Não existem cargas magnéticas.

    11 Em muitos casos, os vetores J e E são proporcionais, podendo escrever-se J = E, onde é a condutividade.

    12 Por exemplo, a equação div B = 0 escreve-se por extenso, em coordenadas x, y, z, na forma 0.yx z

    BB B

    x y z

    13 A parcela / t D , denominada ‘corrente de deslocamento’, tem um papel crucial na teoria do eletromagnetismo

    desenvolvida por Maxwell.

  • ACIR e Eletromagnetismo J. A. Brandão Faria

    16

    O facto de um campo magnético variável no tempo originar campo elétrico variável no tempo e o

    facto de este último também originar campo magnético variável no tempo, e assim sucessiva e

    repetidamente, é o motivo que leva a considerar-se o campo eletromagnético como uma entidade

    una e autossustentável, ou seja,

    ( ) ( ) ( ) ( ) ( ) ( )

    ( ) ( ) ( ) ( ) ( ) ( )

    t t t t t t

    t t t t t t

    B E B E B E

    H D H D H D

    Logo que desencadeado, o campo eletromagnético sustenta-se a si próprio, transportando energia

    consigo, propagando-se desde a fonte que o espoletou até aos confins do universo sob a forma de

    ondas14 — ver Fig. 15.

    Fig. 15 Campo eletromagnético uno e autossustentável. Ondas eletromagnéticas.

    O processo ondulatório não é instantâneo, as ondas eletromagnéticas viajam com uma velocidade

    finita dependente do meio material onde se propagam,

    1/v (6)

    por exemplo, se o meio for o espaço livre, essa velocidade é próxima de 300 000 km/s.

    Quanto à energia transportada pela onda, pode acrescentar-se que a correspondente densidade de

    potência (W/m2) é descrita por uma entidade vetorial (o vetor de Poynting) determinada através

    do produto externo dos campos elétrico e magnético,

    S E×H . (7)

    14

    Ou sob a forma de fotões, se se preferir a abordagem quântica.

    E, D E, D E, D E, D E, D E, D

    ~

    B H ,B H ,B H

    S E × H

    v

    . . .

    ,B H ,B H

    . . .

    S E × H

    v

  • ACIR e Eletromagnetismo J. A. Brandão Faria

    17

    III. CIRCUITOS ELÉTRICOS

    1. Noções básicas

    A noção de corrente elétrica já surgiu na pág. 10 (nota de rodapé no 5): «As correntes elétricas

    estabelecem-se no interior de materiais condutores (como o cobre) e correspondem a um movi-

    mento quase caótico, ligeiramente ordenado, de partículas livres com carga elétrica negativa

    (eletrões) em colisão permanente com a estrutura atómica do meio condutor.»

    Em consequência dessas colisões, observa-se que a velocidade média do movimento da popula-

    ção de eletrões livres ao longo de um fio de material condutor é muito pequena, da ordem do

    cm/s. Observa-se também a libertação de calor no fio condutor — efeito de Joule.

    A presença de eletrões livres no fio condutor resulta da existência dum campo elétrico E imposto

    aos átomos do material, com energia e força (Fe = qE) suficientes para libertar da atração dos

    núcleos positivamente carregados os eletrões das órbitas mais periféricas. Estes, já livres, passam

    a deslocar-se com velocidade média ve na direção oposta à do campo E.

    Porém, dum ponto de vista formal, é preferível imaginarmos um movimento equivalente de car-

    ga livre positiva com velocidade média v ve na direção de E — ver Fig. 16.

    A densidade de corrente J é um vetor proporcional à velocidade média v da carga móvel e ao

    campo elétrico E que lhe deu origem, isto é,

    J v E (8)

    onde é a densidade volúmica da carga livre em movimento, com velocidade v, no interior do

    condutor, e é a condutividade do material condutor.

  • ACIR e Eletromagnetismo J. A. Brandão Faria

    18

    n

    i S

    Carga elétrica móvel, com densidade e velocidade v

    J E v

    ()

    Fig. 16 Corrente num fio condutor de condutividade . Densidade de corrente J. Intensidade de corrente i.

    Contrariamente a J, a intensidade de corrente i no fio condutor não é um vetor; trata-se duma

    grandeza escalar (integral) que mede a quantidade de carga elétrica móvel que, na unidade de

    tempo, atravessa a secção transversal S do fio, num dado sentido, ou, por outras palavras, é o

    fluxo do vetor J através da superfície de área S, isto é,

    ( )

    S

    dqi dS

    dt J n (9)

    O vetor n, em (9), é um vetor unitário perpendicular à superfície S, cujo sentido é fixado arbitra-

    riamente15. Contudo, para evitar ambiguidades, esse sentido arbitrário tem de ser explicitado — o

    que se faz, convencionalmente, pondo junto à letra i uma seta paralela à de n — ver Fig. 16. Se a

    intensidade de corrente i for positiva, tal significará que há carga elétrica positiva a fluir através

    de S no sentido de n, ou seja, eletrões a fluir em sentido oposto ao de n.

    Escolhendo, em (9), uma superfície de integração S que intersete J perpendicularmente e, tam-

    bém, se em todos os pontos de S o módulo J = |J| for constante, obtém-se simplesmente: i = JS.

    A colisão das cargas móveis com a estrutura atómica do fio condutor justifica não só a reduzida

    velocidade média v do movimento da carga, mas também a libertação de energia w, sob a forma

    de calor. A essa energia corresponde uma potência p que sabemos ser proporcional ao quadrado

    da intensidade de corrente

    2J

    dwp Ri p

    dt (10)

    onde R é um parâmetro físico, designado resistência, que caracteriza o troço de fio condutor, e

    que depende da sua condutividade e da sua geometria (comprimento e secção do fio).

    15

    Se n e J forem paralelos, a operação ( )J n dá J. Uma operação do tipo ( )a b onde a e b são vetores designa-se ‘produto interno’. Dessa operação resulta um escalar dado por ( ) cosab a b , onde a e b são os módulos dos vetores e é o ângulo entre eles. Não confundir com a operação ‘produto externo’ ( )a b mencionada na pág. 13.

  • ACIR e Eletromagnetismo J. A. Brandão Faria

    19

    O resultado apresentado em (10) pode ser reescrito na forma

    ( )dw dq

    p Ri i ui udt dt

    (11)

    implicando que

    p dw dt dwu dw udq

    i dt dq dq (12)

    onde a grandeza escalar u é a tensão elétrica entre os terminais a e b do fio condutor.

    De acordo com (12), a tensão elétrica u pode ser interpretada como o fator de proporcionalidade

    entre duas quantidades infinitesimais: a carga elétrica elementar dq e a energia elementar dw

    despendida no seu transporte entre os terminais a e b.

    A existência de tensão elétrica u entre dois pontos a e b numa dada região do espaço é uma ma-

    nifestação da presença de campo elétrico E nessa região — ver Fig. 17. A relação entre u e E

    estabelece-se do seguinte modo

    ab

    u d E s (13)

    onde ds é um vetor de comprimento elementar ds tangente ao caminho de integração s e orienta-

    do de a para b.

    E ds

    E

    a

    +q

    b

    u

    q

    Fig. 17 Tensão elétrica u entre o ponto a e o ponto b.

    A tensão elétrica u e a intensidade de corrente i são grandezas escalares, porém, tal como na úl-

    tima, também é usual associar-se à tensão uma seta, um sentido de referência. Essa seta serve

    apenas para tornar evidente qual a orientação do caminho de integração ab . Se u for positiva,

    isso significará que o campo E está tendencialmente dirigido de a para b.

  • ACIR e Eletromagnetismo J. A. Brandão Faria

    20

    Escolhendo, em (13), um caminho de integração s coincidente com uma linha de campo E vem

    abEdsu e se, porventura, ao longo desse caminho, de comprimento l, também o módulo do

    campo, E = |E|, permanecesse constante, obter-se-ia o resultado trivial u = El.

    Já antes referimos que o movimento de carga livre no interior dum fio condutor é devido à força

    do campo elétrico imposto aos átomos do fio.

    Mas... afinal, qual é a origem desse campo, ou da tensão elétrica que lhe está associada?

    De onde provém a energia necessária para criar o campo e produzir calor no fio percorrido por

    corrente?

    Provém de um gerador, ou fonte, isto é, de um dispositivo ativo, externo ao fio condutor, dotado

    da capacidade de produzir eletricidade16

    .

    A pilha seca17

    , ou bateria, é talvez o exemplo de gerador mais conhecido — cujo funcionamento

    se baseia na conversão de energia química em elétrica, através de reações redox.

    A Fig. 18 descreve o circuito elétrico mais básico possível, correspondente à ligação de uma ba-

    teria a uma resistência, usando um interruptor bipolar S.

    Filamento resistivo

    (a)

    S

    S

    i = 0

    u

    + +

    E

    +

    Ânodo

    Cátodo

    Eletrólito

    a

    b

    OFF

    ON

    +

    i

    + + + +

    a

    b

    u E E

    (b) i

    H H

    H H

    Fig. 18 Ligação de uma bateria a um filamento condutor resistivo empregando um interruptor bipolar S.

    (a) S aberto: campo elétrico e tensão. (b) S fechado: campo eletromagnético, tensão, corrente e calor.

    16

    A energia fornecida pelos geradores não é consequência de qualquer processo interno de autocriação. Resulta, somente, de fenómenos locais de transformação duma forma de energia noutra, i.e., da conversão de energia quími-

    ca, nuclear, hídrica, térmica, eólica, solar, etc., em energia eletromagnética. Como já Lavoisier reconhecia no sécu-

    lo XVIII, nada se cria, tudo muda e se transforma. 17

    De forma breve, pode dizer-se que uma pilha é um pequeno contentor metálico (ânodo ou elétrodo negativo, usu-almente de zinco) preenchido por um gel ácido ou alcalino — eletrólito (contendo dióxido de manganês) — onde mergulha uma haste metálica de outro material (cátodo ou elétrodo positivo, usualmente de grafite). As reações

    químicas, energéticas, entre o eletrólito e os elétrodos levam à oxidação do ânodo e concomitante acumulação de

    carga negativa nesse elétrodo e sua rarefação no cátodo.

  • ACIR e Eletromagnetismo J. A. Brandão Faria

    21

    Enquanto S estiver aberto (Fig. 18a) a circulação de carga no circuito está impedida. A intensi-

    dade de corrente é nula, i = 0.

    Apesar disso, à esquerda do interruptor, observa-se já a presença duma população estática de

    carga positiva (q) distribuída ao longo da superfície do fio que contacta o cátodo e duma carga

    complementar negativa (q) ao longo do fio que contacta o ânodo. Conforme já indicado na

    Fig. 17, entre as duas distribuições de carga estabelecem-se linhas de força do campo elétrico E

    que, de acordo com (13), dá origem a uma tensão elétrica 0u entre os terminais a e b.

    Depois de se fechar o interruptor (Fig. 18b), o campo elétrico pré-existente à esquerda de S

    transmite-se à direita deste, passando a exercer a sua ação (força) sobre os átomos do filamento

    condutor resistivo, libertando-lhe eletrões e colocando-os em movimento, isto é, assegurando a

    presença duma corrente elétrica com intensidade 0i e concomitante produção de calor.

    Por sua vez, a presença de corrente elétrica dá origem a um campo magnético H com linhas de

    força fechadas em torno dos fios do circuito.

    A intensidade de corrente i e o campo magnético H estão relacionados através de

    i d H s (14)

    onde ds é um vetor de comprimento elementar ds tangente e alinhado com o caminho fechado de

    integração em torno do condutor — ver Fig. 19.

    H

    H

    ds

    + i

    i

    Fig. 19 Campo magnético H originado por uma corrente elétrica de intensidade i.

  • ACIR e Eletromagnetismo J. A. Brandão Faria

    22

    Escolhendo, em (14), um caminho de integração s coincidente com uma linha fechada de campo

    H, vem Hdsi e se, porventura, ao longo desse caminho, de perímetro l, também o módulo

    do campo, H = |H|, permanecesse constante, obter-se-ia o resultado trivial i = Hl.

    Repare-se na semelhança entre a relação i = i(H) em (14) e a relação u = u(E) em (13).

    Por fim, de acordo com (7), o fluxo de energia dirigido da bateria para a resistência pode ser de-

    terminado usando o vetor de Poynting, S E×H , com base no qual é possível confirmar que a

    potência de Joule na resistência vem dada por pj = ui =Ri2.

    É oportuno recordar que a Fig. 10 do Cap. II mostra, precisamente, em corte transversal, o con-

    junto de linhas de força do campo eletromagnético originado por distribuições de carga e de cor-

    rente elétrica num par de fios condutores cilíndricos paralelos, tal como os que ligam a bateria à

    resistência na Fig. 18b.

    2. Engenharia vs. Física

    A descoberta e formulação das leis e equações que governam o comportamento de qualquer es-

    trutura física, material, bem como o seu contínuo questionamento e avanço de novas ‘afinações’,

    são tarefas nobres que à Física competem.

    À Engenharia compete conhecer/dominar/usar essas leis, aplicando-as na procura de soluções

    para os problemas técnicos/científicos que interessam à sociedade numa dada época.

    As equações de Maxwell são do reino da Física, mas a sua aplicação à multitude de problemas

    que interessam à eletrotecnia (ver Fig. 1 a Fig. 6) está a cargo das especialidades que compõem a

    Engenharia Eletrotécnica.

    Contudo, a aplicação exata e rigorosa das equações de Maxwell a qualquer problema concreto de

    eletrotecnia, por mais simples que seja, é virtualmente impossível, não tanto pela complexidade

    dessas equações mas, sobretudo, por causa da dificuldade em explicitar com rigor as condições-

    fronteira dos problemas e de conhecer com exatidão as propriedades eletromagnéticas dos mate-

    riais envolvidos.

    Estas reflexões servem para consciencializar-vos de que a tarefa dos engenheiros vai além da

    aplicação das leis da Física. Implica o emprego de simplificações e aproximações que viabilizem

    uma solução do problema a resolver, satisfatória, tão exata quanto possível.

  • ACIR e Eletromagnetismo J. A. Brandão Faria

    23

    Se as simplificações e aproximações forem muitas e grosseiras, poderá chegar-se rapidamente a

    uma solução do problema, mas o resultado alcançado será inexato e de pouca utilidade. Ao invés,

    se as simplificações e aproximações forem poucas e cautelosas, poderá chegar-se (ou não) a um

    resultado fiável e sólido, mas com custos elevados.

    A arte da Engenharia consiste em saber identificar e usar as aproximações/simplificações mais

    adequadas a cada problema e, após encontrada uma solução, exercitar o indispensável sentido

    crítico para questionar a solução obtida, verificando se é viável, consistente e compatível com os

    princípios e leis da Física — que o engenheiro tem de compreender/dominar.

    3. Modelização

    Na análise do circuito trivial da Fig. 18, referente à ligação dum gerador a uma resistência, es-

    crevemos:

    u = Ri , p = ui = pJ = Ri2 (15)

    Estes resultados não são, decerto, novidade — já os conhecem do ensino secundário.

    Mas... será que eles descrevem com rigor a realidade física? Obedecem às equações de Maxwell?

    São exatos? São aproximações fiáveis?

    A resposta às primeiras perguntas é: não. A resposta à última é: talvez, depende...

    Perceberão porquê, se tiverem paciência para continuar a ler estas notas.

    As equações de Maxwell reúnem as leis que determinam as relações intrínsecas entre os campos

    elétrico e magnético, assim como a sua origem em cargas e correntes elétricas. Essas equações

    têm, é claro, de satisfazer princípios físicos mais universais, como o princípio da conservação de

    energia, que afirma que, numa região fechada do espaço, a energia total tem de permanecer cons-

    tante; dito de outro modo: a energia que em qualquer instante do tempo atravessa a fronteira des-

    sa região, fluindo para o seu interior, tem de igualar o total da energia dissipada e armazenada na

    região, o mesmo se dizendo das correspondentes potências:

    diss armz

    diss armz

    d

    dt

    w w w

    p p w

    (16)

  • ACIR e Eletromagnetismo J. A. Brandão Faria

    24

    A manipulação das equações de Maxwell, em (5), conduz ao seguinte resultado integral18

    12V V VS

    dS V V

    dtd d d

    E H n E J E D B H (17)

    onde V se refere ao volume da região, SV à superfície da fronteira que a limita e n ao vetor unitá-

    rio perpendicular a SV orientado para o seu interior.

    A comparação dos resultados em (17) e (16) permite revelar a faceta energética dos fenómenos

    eletromagnéticos em jogo. Temos, assim:

    Fluxo de energia (potência): VS

    Sp d E H n (18)

    Dissipação de energia (potência de Joule): V

    J Vp d E J (19)

    Armazenamento de energia elétrica: 1e 2V

    Vw d E D (20)

    Armazenamento de energia magnética: 1m 2V

    Vw d B H (21)

    Ora, durante a discussão do problema apresentado na Fig. 18, só falámos em duas energias, a

    fornecida pela bateria e a dissipada na resistência, a primeira relativa ao termo (18), a segunda ao

    termo (19). A energia elétrica we armazenada no campo elétrico E e a energia magnética wm ar-

    mazenada no campo magnético H foram ignoradas. Foram desprezadas, apesar de os campos não

    serem nulos, 0 , E H nem na zona da resistência, nem no espaço entre os fios de ligação.

    Poderá dizer-se que não, que as energias we e wm não foram ignoradas, que o resultado p = pJ é

    exato, pois o que interessa na equação (17) é a derivada d/dt, das energias armazenadas, que são

    invariantes no tempo por a bateria ser de tensão contínua. O argumento faz algum sentido, pese

    embora não ser inteiramente correto19.

    18

    Teorema de Poynting. O vetor ,E×H que já surgiu em (7), é o vetor de Poynting, .S E×H 19

    Repare-se que, antes de o interruptor fechar não há campo H em lado algum, nem campo E na resistência. Depois de fechar, passa a existir campo eletromagnético em todo o circuito, significando que as energias we e wm terão,

    necessariamente, de ter variado no tempo, devido à manobra do interruptor.

  • ACIR e Eletromagnetismo J. A. Brandão Faria

    25

    De qualquer modo, fica já a perceber-se que, se o gerador não for uma bateria de tensão contínua,

    se o campo eletromagnético por ele produzido variar no tempo, a relação p = pJ = Ri2 não pode

    ser exata, será uma aproximação.

    Se a aproximação é boa ou má é outro assunto. Depende da quantidade e ritmo de variação no

    tempo da energia armazenada, e m( ),ddt

    w w quanto maior o ritmo, pior a aproximação.

    Para se poder compreender, analisar, projetar ou conceber qualquer dispositivo/componente ele-

    tromagnético real e concreto, é essencial nunca esquecer que os fenómenos de dissipação e de

    armazenamento de energia estão interligados e coexistem num continuum 3D + tempo. Porém,

    nesse quadro de trabalho, é, como já dissemos, virtualmente impossível obter soluções exatas das

    equações de Maxwell.

    Felizmente, não precisamos de soluções exatas, bastam-nos soluções ótimas, obtidas, claro, à

    custa de simplificações/aproximações judiciosas — chama-se a isto ‘modelização’.

    Trata-se de um processo mental onde se idealiza a decomposição duma realidade física complexa

    nas suas partes mais essenciais, fáceis de analisar separada e individualmente20. Cada uma das

    partes é descrita por um ‘modelo’ matemático baseado numa equação tão simples quanto possí-

    vel, esforçadamente simples.

    A modelização mais usual em Engenharia Eletrotécnica consiste em desagregar o processo ele-

    tromagnético em três parcelas distintas e independentes, concentradas em regiões separadas do

    espaço. Essas parcelas respeitam ao armazenamento de energia elétrica, ao armazenamento de

    energia magnética e à dissipação de energia.

    A primeira é proporcional ao quadrado da tensão elétrica u, a segunda e terceira proporcionais ao

    quadrado da intensidade de corrente i. A cada uma das parcelas atribui-se um símbolo gráfico,

    uma letra e uma designação — ver Tabela I.

    O símbolo gráfico da resistência (dissipação de energia) não é novidade, já apareceu na

    Fig. 18.

    O símbolo gráfico da capacidade (armazenamento de energia elétrica) reporta a um com-

    ponente físico designado ‘condensador’, constituído por duas placas metálicas paralelas separa-

    das por um material isolante como, por exemplo, o ar.

    20

    Mais um exemplo da velha estratégia de ‘dividir para reinar’...

  • ACIR e Eletromagnetismo J. A. Brandão Faria

    26

    O símbolo gráfico da indutância (armazenamento de energia magnética) reporta a um

    componente físico designado ‘bobina’, constituído por um enrolamento helicoidal de fio condu-

    tor em torno dum núcleo de ferro — recorde-se a Fig. 14a.

    Tabela I

    Desagregação do processo eletromagnético em efeitos capacitivo, indutivo e resistivo

    Armazenamento de

    energia elétrica

    Armazenamento de

    energia magnética

    Dissipação de energia

    por efeito de Joule

    2e1 12 2

    V

    Vw d Cu E D

    C = Capacidade

    2m1 12 2

    V

    Vw d Li B H

    L = Indutância

    2JV

    Vp d Ri E J

    R = Resistência

    dui C

    dt

    diu L

    dt u Ri

    Efeito capacitivo

    C i

    u

    Efeito indutivo

    L i

    u

    Efeito resistivo

    R i

    u

    Note-se ainda, na Tabela I, o formato idêntico das expressões das energias elétrica e magnética,

    21

    2e= Cw u ,

    21

    2m= Lw i

    bem como a sua parecença com a equação mecânica da energia cinética, 212c

    .Mw v

    Tendo, então, em conta as considerações anteriores, é razoável concluir-se que o estudo aproxi-

    mado do comportamento do circuito da Fig. 18 poderá ser conduzido usando o modelo apresen-

    tado na Fig. 20.

    Fig. 20 Modelo de parâmetros concentrados para o problema da ligação de uma bateria a um filamento con-

    dutor resistivo (Fig. 18).

    +

    R

    L

    C C

  • ACIR e Eletromagnetismo J. A. Brandão Faria

    27

    No circuito da Fig. 18, o gerador encontra-se ligado a um utilizador de energia dissipativo — um

    filamento resistivo. No entanto, o utilizador poderá ser de outro tipo, onde dissipação e armaze-

    namento de energia coexistam. Nesse caso, mais geral, o dispositivo utilizador poderá ser mode-

    lizado à custa de um dos esquemas equivalentes apresentados na Fig. 21, correspondentes a vá-

    rias combinações possíveis dos parâmetros R, L e C.

    Fig. 21 Vários exemplos de esquemas de parâmetros concentrados R, L e C, utilizáveis na modelização dum

    dispositivo simultaneamente dissipador e armazenador de energia.

    Qual dos modelos é o melhor? Depende.

    Depende de muitas e variadas circunstâncias. A pergunta não tem uma resposta taxativa.

  • ACIR e Eletromagnetismo J. A. Brandão Faria

    28

    IV. BIBLIOGRAFIA

    Livros

    J. Brandão Faria, Análise de Circuitos, IST Press, 2016.

    J. Brandão Faria, Electromagnetic Foundations of Electrical Engineering, Wiley, 2008.

    L. Solymar, Lectures on Electromagnetic Theory, Oxford University Press, 1984.

    S. Ramo, J. Whinnery, T. Duzer, Fields and Waves in Communication Electronics, Wiley, 1965.

    J. Maxwell, A Treatise on Electricity and Magnetism, Dover, 1954.

    K. Simonyi, Foundations of Electrical Engineering, Academic Press, 1950.

    Artigos

    J. Brandão Faria, “Inception of transients and transient suppression methods”, International

    Transactions on Electrical Energy Systems, vol. 24, no 1, pp. 141-152, 2014.

    J. Brandão Faria, “The role of Poynting’s vector in polyphase power calculations”, European

    Transactions on Electrical Power, vol. 19, no 5, pp. 683-688, 2009.

    J. Brandão Faria, “Electromagnetic field approach to the modeling of disk-capacitor devices”,

    Microwave and Optical Technology Letters, vol. 48, no 8, pp. 1467-1472, 2006.

    J. Brandão Faria, “A pedagogical example of the application of transmission-line theory to

    conductor grounding effects”, IEEE Transactions on Education, vol. 47, no 1, pp. 141-145, 2004.

    Autor: J. Brandão Faria

    Revisão de texto: CSC.Reticências, Lda

    Data: Setembro 2019

    Local: Instituto Superior Técnico, Lisboa, Portugal