universidade de lisboa faculdade de letras departamento de … · 2010. 6. 23. · universidade de...

202
UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES RECRIADO: DA LOUCURA TRÁGICA DE EURÍPIDES À SERENIDADE ESTÓICA DE SÉNECA Ana Filipa Isidoro da Silva MESTRADO EM ESTUDOS CLÁSSICOS LITERATURA COMPARADA 2008

Upload: others

Post on 19-Apr-2021

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES

UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

Departamento de Estudos Claacutessicos

O MITO DE HEacuteRCULES RECRIADO DA LOUCURA TRAacuteGICA DE EURIacutePIDES Agrave SERENIDADE ESTOacuteICA DE SEacuteNECA

Ana Filipa Isidoro da Silva

MESTRADO EM ESTUDOS CLAacuteSSICOS ndash LITERATURA COMPARADA

2008

UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

Departamento de Estudos Claacutessicos

O MITO DE HEacuteRCULES RECRIADO DA LOUCURA TRAacuteGICA DE EURIacutePIDES Agrave SERENIDADE ESTOacuteICA DE SEacuteNECA

Ana Filipa Isidoro da Silva

DISSERTACcedilAtildeO DE MESTRADO EM ESTUDOS CLAacuteSSICOS ndash LITERATURA COMPARADA

orientada pelos Professores Doutores

Maria Cristina de Castro-Maia de Sousa Pimentel

Frederico Maria Bio Lourenccedilo

2008

Para o meu pai jaacute ausente desta jornada que eacute a vida para minha matildee irmatildeo e afilhado

i

IacuteNDICE

AGRADECIMENTOS iii

RESUMO ABSTRACT iv

LISTA DE ABREVIATURAS vi

INTRODUCcedilAtildeO 1

Capiacutetulo I ndash EURIacutePIDES SEacuteNECA E O ESTOICISMO UM ESTUDO PRELIMINAR 5

1 Euriacutepides Heracles 5

11 Data e Estrutura da Trageacutedia 5

12 Os Deuses 7

13 Inovaccedilotildees em Euriacutepides 9

2 Seacuteneca Hercules Furens 11

21 Data e Estrutura da Trageacutedia 11

22 Os Deuses 13

23 Doutrina Estoacuteica 14

231 Os trecircs ramos da Filosofia Fiacutesica Loacutegica e Moral 15

a) A Loacutegica 15

b) A Fiacutesica 17

c) A Moral 23

Capiacutetulo II ndash HERACLES E HERCULES FURENS ANAacuteLISE DAS PERSONAGENS 36

1 Anfitriatildeo 36

11 Caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides 36

12 Caracterizaccedilatildeo da personagem da trageacutedia de Seacuteneca 39

2 Meacutegara 43

21 Caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides 43

22 Caracterizaccedilatildeo da personagem da trageacutedia de Seacuteneca 45

3 Lico 50

31 Caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides 50

32 Caracterizaccedilatildeo da personagem da trageacutedia de Seacuteneca 52

4 Teseu 58

41 Caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides 58

42 Caracterizaccedilatildeo da personagem da trageacutedia de Seacuteneca 59

5 Coro 63

51 Caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides 63

52 Caracterizaccedilatildeo da personagem da trageacutedia de Seacuteneca 70

6 Divindades 84

ii

61 Caracterizaccedilatildeo de Iacuteris e Lissa na trageacutedia de Euriacutepides 84

62 Caracterizaccedilatildeo de Juno na trageacutedia de Seacuteneca 86

Capiacutetulo III ndash HEacuteRACLES E HEacuteRCULES A (DES)CONSTRUCcedilAtildeO DO HEROacuteI 95

1 Caracterizaccedilatildeo de Heacuteracles na trageacutedia de Euriacutepides 95

11 Imortalidade e Mortalidade a ambivalecircncia do heroacutei 96

12 Luz e Trevas 97

13 Individualidade e Colectivismo 98

14 Solidatildeo e Amizade 100

15 Outras caracteriacutesticas na construccedilatildeo do heroacutei 102

16 Manifestaccedilotildees da loucura de Heacuteracles 106

17 ἀρετή e βία Lico e Heacuteracles pontos semelhantes entre um tirano e o

heroacutei

112

2 Caracterizaccedilatildeo de Heacutercules na trageacutedia de Seacuteneca 114

Capiacutetulo IV ndash HERCULES FURENS E HERCULES OEATEUS 135

1 Meditatio Mortis ndash um estudo preliminar 135

2 Heacutercules ndash a ascese do proficiens 140

21 Heacutercules sob o domiacutenio da ira (estudo sobre o seu comportamento da

personagem no Hercules Furens e no Hercules Oetaeus)

140

211 Linguagem da emoccedilatildeo 144

212 Da decadecircncia da uirtus fiacutesica de Heacutercules agrave elevaccedilatildeo agrave

categoria de sapiens

147

22 Hercules Furens e Hercules Oetaeus ndash o suiciacutedio 149

CONCLUSAtildeO 155

BIBLIOGRAFIA 169

INDEX NOMINUM 172

INDEX LOCORUM 190

iii

AGRADECIMENTOS

Chegou o momento de recordar e agradecer a todos que de algum

modo contribuiacuteram para a conclusatildeo deste trabalho Em primeiro lugar

agradeccedilo aos Professores Doutores Maria Cristina de Castro-Maia de Sousa

Pimentel e Frederico Maria Bio Lourenccedilo pelos seus saacutebios conselhos e

pelas sugestotildees que deram A amabilidade e simpatia com que me

acolheram e afortunadamente me orientaram permitiram que esta

dissertaccedilatildeo chegasse a bom porto

Ao Professor Doutor Arnaldo do Espiacuterito Santo que desde sempre

muito admiro e ao Prof Doutor Joseacute Eduardo Franco pela sua amizade e

simpatia

Agrave Profordf Doutora Serafina Martins pelos seus conselhos e algumas

sugestotildees bibliograacuteficas

Agrave Drordf Eduarda Osoacuterio Lopes e Drordf Fernanda Santos pela boa

disposiccedilatildeo que tornaram os dias da redacccedilatildeo da dissertaccedilatildeo mais alegres e

suaves

Umas uacuteltimas palavras restam para a minha famiacutelia que muito amo

em especial para a minha matildee irmatildeo e avoacute e a bons amigos Bruna

Ferreira Gonccedilalo Henriques Helena Sofia Santos Joana Cardoso Dona

Manuela Domingues Marli Vitorino Nuno Carvalho Agrave Patriacutecia Nuno e

Helder Filipe por estarem sempre presentes na minha vida Finalmente agrave

Cristiana Lucas agrave Paula Carreira agrave Susana Alves e em especial agrave Ana

Matafome Heacutelio Vale e Ricardo Nobre por terem estado sempre presentes

e disponiacuteveis e por terem sido incansaacuteveis comigo os meus gratos

agradecimentos

iv

RESUMO ABSTRACT

Este estudo pretende analisar as trageacutedias Heracles de Euriacutepides e Hercules

Furens de Seacuteneca numa perspectiva comparativa Aleacutem de ver as semelhanccedilas

procura-se descrever os aspectos que tornam as duas trageacutedias diferentes e uacutenicas

vendo a forma como satildeo tratadas e desenvolvidas as personagens e o tema da loucura de

Heacuteracles Heacutercules

O primeiro capiacutetulo mais teoacuterico aborda alguns traccedilos gerais que caracterizam

as trageacutedias dos dois autores nele se inclui tambeacutem um estudo que sintetiza a doutrina

estoacuteica com especial incidecircncia nos aspectos que melhor ajudam a compreender a

funccedilatildeo e objectivos pareneacuteticos do corpus traacutegico de Seacuteneca No segundo capiacutetulo satildeo

contempladas as personagens das duas trageacutedias excepto HeacuteraclesHeacutercules e o

Mensageiro que satildeo estudadas no capiacutetulo seguinte No terceiro capiacutetulo o protagonista

eacute analisado em trecircs momentos antes durante e depois da loucura O quarto capiacutetulo

cinge-se ao estudo sobre a ascese de um proficiens e sobre a meditatio mortis nas

trageacutedias Hercules Furens e Hercules Oetaeus

Palavras-chave Trageacutedia de Euriacutepides Trageacutedia de Seacuteneca Estoicismo

HeacuteraclesHeacutercules Literatura Comparada

This study aims to analyse in a comparative perspective Euripidesrsquo Heracles and

Senecarsquos Hercules Furens Besides recognising the similitude between the two

tragedies we describe the aspects that make them different and unique understanding

how the characters and the theme of madness of HeraclesHercules are treated and

developed The first chapter is more theoretic it deals with some general features that

characterise Euripidesrsquo and Senecarsquos tragedies and studies the Stoic philosophy with

special attention to the aspects that enable the understanding of the paraenetic function

and its objectives In the second chapter characters from both plays are covered except

HeraclesHercules and the Messenger that are studied in next chapter In the third

chapter the main character is analysed in three moments before during and after

madness The fourth chapter studies the meditatio mortis in the plays Hercules Furens

and Hercules Oetaeus reasoning on the ascesis of the proficiens

v

Keywords Euripidesrsquo Tragedy Senecarsquos Tragedy Stoicism HeraclesHercules

Comparative Literature

vi

LISTA DE ABREVIATURAS

Barlow = Euripides Heracles intr trad e comentaacuterio Shirley Barlow (Warminster Aris and Philips 1996) Bond = Euripidesrsquo Heracles intr e comentaacuterio Godfrey W Bond (2ordf Ediccedilatildeo Oxford Clarendon Press 1988) Duclos = EURIPIDE Theacuteacirctre III trad Henri Berguin Georges Duclos (Paris Garnier 1955) ErnoutndashMeillet = ERNOUT Alfred e Antoine Meillet Dictionnaire Eacutetymologique de la Langue Latine Histoire des Mots (4ordf ed Paris Klincksieck 1959 reimpr 1967) Fitch (1) = Senecarsquos Hercules Furens a Critical Text with Introduction and Commentary ed John G Fitch (Ithaca and London Cornell University Press 1987) Fitch (2) = SENECA Tragedies I (Hercules Trojan Women Phoenician Women Medea Phaedra) ed e trad John G Fitch (Cambridge Massachusetts Londres Harvard University Press 2002) Giardina = L Anneo Seneca Tragedie trad G C Giardina Rita Cuccioli Melloni (Torino Editrice Torinese 1987) Herrmann = SEacuteNEgraveQUE Trageacutedies I (Hercule Furieux Les Troyennes Les Pheacuteniciennes Meacutedeacutee Phegravedre) ed e trad Leacuteon Herrmann (Paris Les Belles Lettres 1968) Miller = SENECA Tragedies I-II ed Frank Justus Miller (Londres Cambridge Massachusetts Harvard University Press 1917 reimpr 1968) Parmentier = EURIPIDE Heacuteraclegraves ndash Les Suppliants ndash Ion III trad Leacuteon Parmentier Henri Gregoire (Paris Les Belles Lettres 1976) Viansino = L Annaei Senecae Hercules Furens Troades Phoenissae Medea Phaedra recensuit Ioannes Viansino (Torino Paravia 1968)

1

INTRODUCcedilAtildeO

Heacuteracles eacute um dos heroacuteis que mais popularidade teve ao longo da histoacuteria da

humanidade Os trabalhos a que se submeteu fizeram da sua figura um modelo de

civilizador e protector do Homem destruiu todos os monstros que habitavam a terra e

assolavam o mar Poreacutem a megalomania a insolecircncia e a excessiva confianccedila na sua

forccedila fazem dele uma personagem violenta e cruel que chega a desafiar os deuses e a

lutar contra eles1 Segundo Fitch ldquoFrom the earliest times Herculesrsquo heroism is

ambivalent On the one hand he is ldquothe best of menrdquo endowed with invincible strength

and courage On the other hand any strength that goes so far beyond the human norm is

potentially dangerous and unpredictablerdquo2 Como observou Susan Deacy a respeito de

Heacuteracles ele caracteriza-se por ldquohis tendency to move between opposite categories

including mortal and immortal salvation and destruction masculine and feminine and

sanity and madnessrdquo3 Esta confluecircncia de estados psicoloacutegicos permitiu que ao longo

dos tempos esta personagem mitoloacutegica tivesse recebido um tratamento diverso Walter

Burkert refere

A figura de Heacutercules foi moldada primeiramente pelo mito por um conglomerado de contos populares em que a grande poesia soacute interveio de modo secundaacuterio natildeo existe qualquer poesia grega dedicada exclusivamente a Heacutercules Soacute mais tarde os poetas analisaram o fenoacutemeno Heacutercules envolvendo assim o mito numa atmosfera traacutegica heroacuteica e humana em contraste com a sua tendecircncia proacutepria que transcende despreocupadamente o humano4

Foram poucos os autores gregos que fizeram de Heacuteracles o protagonista dos seus

poemas decerto dado o seu caraacutecter atiacutepico e ambivalente entre os heroacuteis miacuteticos Em

toda a sua histoacuteria mitograacutefica Heacuteracles possui uma forccedila invulgar eacute um heroacutei-deus

solitaacuterio que ocupa ldquothe no-manrsquos-land that is also no-godrsquos-land he is a marginal

transitional or better interstitial figurerdquo5 como diz Silk

1 Vide Homero Ilias 5392-397 403-404 2 Fitch (1) 15 3 Susan Deacy ldquoHerakles and his lsquogirlrsquo Athena heroism and beyondrdquo in Louis Rawlings and Hugh Bowden (ed) Herakles and Hercules Exploring a Graeco-Roman Divinity (Swansea [Paiacutes de Gales] The Classical Press of Wales 2005) 37 4 Walter Burkert Religiatildeo Grega na Eacutepoca Claacutessica e Arcaica (Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1993) 405-406 5 Silk ldquoHeracles and the Greek Tragedyrdquo Greece and Rome 32 nordm 1 (1985) 6

2

Temos apenas o testemunho de Soacutefocles e Euriacutepides que descreveram um

momento especiacutefico da vida deste heroacutei nas trageacutedias Soacutefocles fez representar a

preparaccedilatildeo para a morte nas Trachiniae e Euriacutepides o momento da loucura que vem

depois de finalizado o uacuteltimo trabalho a captura de Ceacuterbero O modo como a figura eacute

apresentada nos dois tragedioacutegrafos difere substancialmente Para Carlos Santos

ldquoEuriacutepides teraacute procurado apresentar um Heacuteracles modernizado pelos valores do homem

do seacuteculo V aC moldado pela virtude e pela razatildeo enquanto que o heroacutei de Soacutefocles

se move num mundo onde domina a forccedila fiacutesica com valores semelhantes aos da

sociedade homeacutericardquo6

Partindo da forma como Euriacutepides criou a personagem no Heracles o presente

estudo tem como objecto a anaacutelise comparativa desta trageacutedia com o Hercules Furens

de Seacuteneca o filoacutesofo estabelecendo pontos de contacto mas essencialmente

apontando as diferenccedilas na construccedilatildeo do protagonista Conscientes de que o tema ndash a

loucura do Alcida ndash e as personagens satildeo as mesmas7 queremos demonstrar que as

caracteriacutesticas que lhes satildeo apontadas as tornam diferentes Esta mudanccedila deve-se

principalmente agrave doutrina que Seacuteneca pretende divulgar nas trageacutedias ao representar as

paixotildees humanas e as consequecircncias destrutivas que esses affectus implicam quando

natildeo satildeo evitados e quando fogem do controlo das personagens Com a sua encenaccedilatildeo8 o

filoacutesofo consegue mostrar por meio de exempla o resultado de algumas passiones que

dominam o homem e que o levam pelo caminho do uitium a trazer a desgraccedila aos

outros e em uacuteltima instacircncia a causar a sua proacutepria ruiacutena

O estudo estaacute dividido em quatro capiacutetulos No primeiro mais teoacuterico eacute feita

uma sinopse da filosofia estoacuteica de Zenatildeo a Seacuteneca passando por Crisipo Epicteto e

Marco Aureacutelio e pelos testemunhos de Ciacutecero de Dioacutegenes Laeacutercio e de Sexto

Empiacuterico Este estudo preliminar eacute uma preparaccedilatildeo para a leitura das peccedilas Hercules

Furens e Hercules Oetaeus que decorreraacute nos capiacutetulos seguintes comprovando que as

trageacutedias satildeo um outro meio de divulgaccedilatildeo desta doutrina filosoacutefica Para esse efeito

6 Carlos Ferreira Santos Euriacutepides Heacuteracles Introduccedilatildeo Traduccedilatildeo e Notas (Coimbra diss de Mestrado em Literaturas Claacutessicas apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 1996) 7 7 Satildeo excepccedilatildeo Iacuteris Lissa Mensageiro e Juno As trecircs primeiras aparecem apenas em Euriacutepides enquanto Juno eacute de Seacuteneca 8 Tendo por base a ideia de que Filosofia do Poacutertico podia ensinar o homem a enveredar pelo caminho da uirtus Seacuteneca procura dar a conhecer esse caminho ao maior nuacutemero de pessoas Essa teraacute sido uma das razotildees que o levou a escrever trageacutedias uma vez que as obras filoacutesoficas em prosa se destinavam a um grupo mais restrito

3

natildeo pudemos deixar de contextualizar ainda que sumariamente a trageacutedia Heracles e

Hercules Furens observando os aspectos semelhantes e divergentes das duas peccedilas

No segundo capiacutetulo analisamos e comparamos as personagens da trageacutedia grega

e da trageacutedia latina Identificamos e reflectimos sobre todas as personagens que entram

em cena nas respectivas peccedilas excepto o protagonista e o Mensageiro ndash o heroacutei

mereceu um estudo mais desenvolvido no capiacutetulo seguinte Comeccedilamos por Anfitriatildeo

por ser a primeira personagem a entrar em cena no Heracles de Euriacutepides mas tambeacutem

por ser a uacutenica a estar presente em todos os episoacutedios (em Seacuteneca entra no Acto II)

Seguimos com Meacutegara Lico e Teseu ndash a ordem respeita novamente a entrada de cada

uma das personagens em cena Depois vemos o comportamento do Coro terminando o

capiacutetulo com a anaacutelise das divindades Iacuteris Lissa e Juno Deixamos estas figuras para o

final deste capiacutetulo porque marcam uma diferenccedila entre as duas trageacutedias as deusas Iacuteris

e Lissa que entram em cena na peccedila de Euriacutepides satildeo ldquosubstituiacutedasrdquo por Juno na de

Seacuteneca

Num primeiro momento apresentamos a descriccedilatildeo que Euriacutepides faz de cada

uma destas personagens observando em seguida como Seacuteneca as representa em

Hercules Furens Nesta perspectiva seraacute possiacutevel estabelecer alguns pontos de contacto

entre as duas trageacutedias bem como identificar as significativas diferenccedilas tentando na

medida do possiacutevel explicaacute-las agrave luz da doutrina estoacuteica Eacute nosso propoacutesito demonstrar

neste capiacutetulo e nos seguintes que os objectivos que norteiam Seacuteneca na elaboraccedilatildeo das

trageacutedias satildeo as mesmas que estatildeo presentes na sua obra em prosa

O terceiro capiacutetulo centra-se nas personagens Heacuteracles e Heacutercules A estrutura

deste capiacutetulo eacute semelhante agrave do anterior comeccedilamos por descrever as caracteriacutesticas de

Heacuteracles passando para as de Heacutercules comparando e mostrando os aspectos

divergentes Optaacutemos por integrar o Mensageiro neste capiacutetulo uma vez que eacute ele quem

descreve as manifestaccedilotildees fiacutesicas e psicoloacutegicas da loucura e as consequecircncias que

decorreram dela Assim poderemos dar uma visatildeo completa do protagonista isto eacute

mostrar a forma como ele eacute apresentado antes durante e depois da loucura avaliando a

transformaccedilatildeo que o acto da demecircncia provocou no heroacutei para depois confrontar com

Heacutercules

Por fim no uacuteltimo capiacutetulo ocupamo-nos da meditatio mortis nas trageacutedias

Hercules Furens e Hercules Oetaeus Ainda que a autoria da uacuteltima trageacutedia seja

4

incerta9 o nosso objectivo ao incluiacute-la neste estudo eacute fazer uma anaacutelise da evoluccedilatildeo da

figura de Heacutercules e da forma como eacute visto o suiciacutedio nas duas peccedilas Nesse sentido

comeccedilamos por fazer uma siacutentese dos trecircs tipos de suiciacutedio segundo Durkheim vendo

qual deles se aproxima melhor dos propoacutesitos estoacuteicos daiacute decorrendo um estudo sobre

o comportamento de Heacutercules no final da trageacutedia Hercules Furens e no de Hercules

Oetaeus nesta se observa a ascese do proficiens que no uacuteltimo momento aceita de

forma impassiacutevel o seu Destino

A ediccedilatildeo adoptada para as trageacutedias de Euriacutepides eacute a da Oxford Classical Texts

preparada por James Diggle para as de Seacuteneca eacute a da Loeb preparada por John Fitch

Seguiram-se os comentaacuterios da Oxford Clarendon Press de Bond para a trageacutedia

Heracles de Euriacutepides e da Cornell University Press de Fitch para Hercules Furens

de Seacuteneca

Para tornar as notas de rodapeacute mais leves e de mais faacutecil leitura algumas obras

de uso mais frequente satildeo citadas em abreviaturas cuja lista apresentamos Foram

adaptadas as grafias σ e ς em vez de с no caso do grego e u em vez de v relativamente

ao latim Apresentamos algumas traduccedilotildees dos textos claacutessicos quando reconhecemos

que satildeo boas e quando natildeo analisamos o passo ou natildeo fazemos paraacutefrase do mesmo Os

tiacutetulos das trageacutedias satildeo apresentados em latim seguindo as normas estabelecidas nos

dicionaacuterios de Liddell-Scott e Glare agrave excepccedilatildeo de Heracles que segue a praacutetica

adoptada nos estudos euripidianos de James Diggle Quanto ao nome do Alcida

achaacutemos conveniente por razotildees de clareza manter Heacuteracles quando se fala da trageacutedia

de Euriacutepides e Heacutercules quando nos referimos agrave de Seacuteneca

9 Para um estudo sobre esta problemaacutetica vejam-se por exemplo Arthur Stanley Pease ldquoOn the Authenticity of the Hercules Oetaeusrdquo Transactions and Proceedings of the American Philological Association 49 (1918) 3-26 Leacuteon Herrmann Le Theacuteacirctre de Seacutenegraveque (Paris Les Belles Lettres 1924) 53-57 Francesco Giancotti Saggio sulle Tragedie di Seneca (Roma Societagrave Editrice Dante Alighieri 1953) 7-16 R G Tanner N S W Newcastle ldquoStoic Philosophy and Roman Tradition in Senecan Tragedyrdquo Aufstieg und Niedergang der Roumlmischen Welt II 322 (Berlim Nova Iorque Walter de Gruyter 1985) 1100-1133 Seneca Tragedies II (Oedipus Agamemnon Thyestes [Seneca] Hercules Oetaeus Octavia) ed e trad John G Fitch (Cambridge Massachusetts Londres Harvard University Press 2004) 332-334

5

Capiacutetulo I

EURIacutePIDES SEacuteNECA E O ESTOICISMO

UM ESTUDO PRELIMINAR 1 Euriacutepides Heracles

EURIPIDESrsquo Heracles is a great play with a serious theme the sudden downfall of the good and glorious (Bond v)

11 Data e estrutura da trageacutedia

A trageacutedia Heracles de Euriacutepides teraacute sido representada entre 416 e 4141 A

acccedilatildeo dramaacutetica comeccedila com Anfitriatildeo Meacutegara e os seus trecircs filhos junto do altar de

Zeus onde se refugiaram como suplicantes para tentar escapar agrave morte (vv 1-106) Sob

a ameaccedila de serem queimados vivos por Lico que viola os direitos dos suplicantes a

famiacutelia heraclida abandona o altar e dirige-se para o palaacutecio de Heacuteracles (vv 140-347)

No momento que antecede a sua morte haacute uma reviravolta da Fortuna (περιπέτεια)

com a chegada de Heacuteracles a Tebas regressado do Hades (vv 451-522) Bond afirma

que ldquoSuch sudden reversals involving an obvious element of chance are an exciting

feature of the later plays of Euripidesrdquo2

Ateacute agrave vinda do protagonista a acccedilatildeo desenrola-se de modo lento (o ritmo estaacute

relacionado com a ansiedade das personagens porque foram condenadas agrave morte e pela

incerteza sobre se Heacuteracles poderaacute ou natildeo sair do Hades) Com a entrada do Alcida em

cena o ritmo da acccedilatildeo acelera Haacute uma raacutepida sucessatildeo de acontecimentos preparaccedilatildeo

da morte de Lico (vv 565-606) morte do tirano (vv 749-754) canto de juacutebilo do Coro

(vv 763-814) entrada das deusas em cena anunciada pelo Coro ndash nova περιπέτεια (vv

1 Sobre a dataccedilatildeo de Heracles ver Bond xxxi-xxxiii O mesmo autor partindo de sete trageacutedias cuja dataccedilatildeo eacute tradicional e comparando o iacutendice de resoluccedilatildeo nos triacutemetros iacircmbicos de cada uma delas ndash Alcestis (438 aC) 62 Medea (431) 66 Hippolytus (428) 43 Troades (415) 212 Helena (412) 275 Orestes (408) 394 Bacchae (406) 376 ndash aproxima a data da trageacutedia Heracles da de Troades ldquoThe figure for Heracles is 215 which indicates a date close to that of Troades (415) 416 and 414 are both possiblerdquo (idem xxxi) 2 Bond xvii

6

815-874) Heacuteracles mata os filhos e Meacutegara (vv 887-909) entrada do Mensageiro (v

910) que narra as mortes (vv 922-1015) lamento do Coro (vv 1016-1041)

A acccedilatildeo volta a ser mais lenta no momento em que Heacuteracles acorda (vv 1088-

1108) e descobre com o auxiacutelio de Anfitriatildeo que foi o autor do morticiacutenio (vv 1111-

1145) O heroacutei deseja suicidar-se (vv 1146-1152) mas a empresa eacute travada com a

chegada de Teseu que por sua vez oferece a cidade de Atenas como lugar de exiacutelio e

de purificaccedilatildeo da maacutecula do Alcida (vv 1163-1426)

Segundo Bond ldquoDuring the past century many critics have complained that the

first part of the play (1-814) the supplication and rescuing of Heraclesrsquo family has no

real connection with what follows his madness and the murdersrdquo3 Entre os que assim

julgam conta-se Ann Norris Michelini Para a autora a trageacutedia tem duas acccedilotildees que

natildeo estatildeo intimamente ligadas e que se contradizem completamente

The first half builds to a happy ending with Herakles triumphantly returning to rescue his family from the usurper Lykos while the second half shows the savior as the murderer of his family While in the other cases it is possible to trace the ways in which two actions have been interlaced in this case we can only point to parallels and analogies between the actions The central feature of the structure must remain the abrupt break that severs the play into two halves4

Na perspectiva de Bond ldquoThe play is written around the contrast at lines 8145

() It is this violent antithesis which holds Heracles together The first part which here

reaches its culmination has been concerned with the threat to the children of Heracles

and their salvation by Heracles They are now to be killed by their saviourrdquo 5 O mesmo

autor considera que os vv 822-873 entrada das deusas Iacuteris e Lissa em cena fazem

parte de um ldquosegundo proacutelogordquo6 Duclos por sua vez apresenta uma visatildeo triacuteptica da

acccedilatildeo dramaacutetica Heacuteracles salvador (vv 1-821) Heacuteracles louco (vv 822-1088)

Heacuteracles triunfante (vv 1089-1428)7 Esta divisatildeo em trecircs partes estaacute igualmente

presente em Parmentier8

3 Bond xviii 4 Ann Norris Michelini Euripides and Tragic Tradition (Londres The University of Wisconsin Press 1987) 232 5 Bond xxi 6 Idem 281 7 Duclos 123 ss 8 Parmentier 7-8

7

No tocante a esta problemaacutetica optaacutemos por seguir Barlow Para a autora a

trageacutedia tem quatro momentos que correspondem a

1 Ausecircncia de Heacuteracles e a espera pelo seu regresso

2 Regresso do heroacutei e morte de Lico

3 Loucura de Heacuteracles filiciacutedio e uxoriciacutedio

4 Recuperaccedilatildeo de Heacuteracles com o auxiacutelio de Teseu e de Anfitriatildeo ndash a amizade

triunfa no final da acccedilatildeo dramaacutetica Estes quatro momentos podem ainda segundo

Barlow agrupar-se em duas acccedilotildees os dois primeiros formam uma acccedilatildeo e os dois

uacuteltimos a segunda acccedilatildeo ldquoeach setting a problem followed by a resolution In the first

the physical danger of Heraclesrsquo family is followed by their rescue In the second their

destruction and the mental danger of Heracles himself is followed by a kind of

restorationrdquo9 Em cada uma destas partes Heacuteracles assume-se como personagem

principal

12 Os deuses

Como nota Ann Norris Michelini10 a trageacutedia de Heracles eacute a que coloca mais

questotildees sobre o papel dos deuses As personagens invocam-nos com alguma

frequecircncia Anfitriatildeo contesta a justiccedila e a (i)moralidade de Zeus (vv 339-347 vv 498-

500) que sabe partilhar o leito dos humanos (vv 344-346) mas eacute indiferente quando

mais precisam dele O Coro considera que os deuses natildeo possuem ξύνεσις nem σοφία

(vv 655-656) Meacutegara sente que a forma como as divindades agem na vida dos homens

nem sempre satildeo claros (v 62)

Depois que Heacuteracles regressa do Hades e castiga Lico o Coro muda de opiniatildeo

relativamente aos deuses (vv 772-814) elogiando-os por reconhecer que eles natildeo

descuram a justiccedila Aparecem entatildeo em cena Iacuteris e Lissa que vecircm mudar o rumo dos

acontecimentos A posiccedilatildeo do Coro volta a ser de censura critica a intervenccedilatildeo dos

deuses na vida dos homens (vv 1087-1088)

A entrada de Atena em cena eacute suacutebita aparece no preciso momento em que

Heacuteracles se prepara para matar Anfitriatildeo (vv 1001-1006) A deusa interfere na acccedilatildeo

9 Barlow 6-7 10 Ann Norris Michelini Euripides and Tragic Tradition 267

8

para travar Heacuteracles lanccedilando-lhe uma rocha contra o peito e adormecendo-o Quanto

ao suacutebito aparecimento desta divindade Emma Griffiths diz

While she may be acting as an agent of Zeus she may also be acting as Heraclesrsquo protector or because of a general concern for the rights and fathers () There are also links between Athena and Zeus and Heracles which suggest a close relationship However her role as patron goddess of Athens gives the episode a more immediate link to the original audience and connects her with Theseus who arrives shortly afterwards As Athena stops the physical harm Theseus provides a solution to the emotional caos which ensues11

A intervenccedilatildeo da deusa poderaacute tambeacutem ter que ver com o proacuteprio excesso do

heroacutei uma vez que Iacuteris (e Hera) pretendia apenas que Heacuteracles matasse os seus filhos

Ora o heroacutei mata Meacutegara e tem que ser impedido para natildeo cometer um uacuteltimo crime o

parriciacutedio ndash esta violecircncia e excesso poderatildeo fazer parte da proacutepria caracteriacutestica do

protagonista (vide vv 565-573)12

Quando Anfitriatildeo conta ao Alcida que foi ele o autor da morte dos filhos e de

Meacutegara o protagonista considera inaceitaacutevel que uma deusa como Hera seja honrada

uma vez que a divindade o perseguiu sempre e acabou por destruiacute-lo quando lhe

suscitou a loucura (vv 1303-1310) Teseu aceita a ideia que os poetas datildeo dos deuses

de que eles satildeo imorais e injustos (vv 1311-1319) e parte deste conceito da divindade

para dissuadir Heacuteracles de se suicidar Teseu lembra-lhe que o ser humano mais natildeo eacute

do que um joguete nas matildeos dos deuses (vv 1314-1339) Apenas Heacuteracles contesta a

imagem antropomorfizada das divindades natildeo acreditando que os deuses possam ter

exactamente as mesmas emoccedilotildees que os homens (vv 1340-1344) Neste sentido

parece-nos justa a afirmaccedilatildeo de Maria de Faacutetima Sousa e Silva relativamente agrave trageacutedia

Heracles ldquoTornam-se inaceitaacuteveis os crimes e desonestidades que o mito atribuiacutea aos

deuses o modelo religioso tradicional eacute a cada momento posto em causardquo13

Este sentimento de descreacutedito pelas divindades levou investigadores a sentir que

a proacutepria trageacutedia natildeo eacute senatildeo uma ficccedilatildeo uma invenccedilatildeo do poeta ldquoWith the overt

reference to the possibility that the logoi of the poets may be false we are forced to

11 Emma Griffiths Euripides Heracles (Londres Duckworth 2006) 98-99 12 Vide o Capiacutetulo III aliacutenea a) 13 Maria de Faacutetima Sousa e Silva Criacutetica Literaacuteria na Comeacutedia Grega Geacutenero Dramaacutetico (Coimbra diss de Doutoramento em Literatura Grega apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 1983) 226

9

consider that Herakles itself the play we are watching is also a mere fiction a tale told

by a poet who may be lyingrdquo explica Ann Norris Michelini14

Bond sugere In exhibiting and emphasizing these successive views about gods Heracles is mainly agnostic and negative in tone But two positive features are brought out which serve as shafts of light in this deeply pessimistic tragedy The first is the strength of human friendship () The second positive feature is the decision of Heracles not to kill himself but to endure life as best he may15

Este afastamento do homem dos deuses tem que ver com o interesse que os

sofistas tinham de estudar o homem por si no sentido pleno Natildeo se pode dizer

contudo que Euriacutepides natildeo acreditasse nas divindades assumiu apenas um juiacutezo

criacutetico que procura ser consciente16

13 Inovaccedilotildees em Euriacutepides

Sendo o seu objectivo representar um heroacutei mais humano Euriacutepides

desenvolveu o mito de Heacuteracles de uma forma peculiar inovando em alguns aspectos

a) A personagem Lico eacute uma inovaccedilatildeo de Euriacutepides17

b) Episoacutedio da loucura de Heacuteracles e consequente morte dos filhos Para Bond

Before Euripides there is little evidence about the stories of the madness of Heracles and the murder of his children The Cypria refer vaguely to τὴν ῾Ηρακλέους μανίαν Stesichorus 230 PMG mentions a memorial to his children by Megara who evidently died in a mad attack by Heracles for our source implies clearly that Stesichorus did not include the attack on Amphitryon nor the stone hurled by Athene to stop Heracles () Pherecydes (F Gr Hist 3 F 14) says simply that Heracles threw his five children into a fire18

14 Ann Norris Michelini Euripides and Tragic Tradition 275 Vide ainda Emma Griffiths Euripides Heracles 96-97 Thalia Papadopoulou Heracles and Euripidean Tragedy (Cambridge Cambridge University Press 2005) 100 ss 15 Bond xxii-xxiii 16 Maria de Faacutetima Sousa e Silva Criacutetica Literaacuteria na Comeacutedia Grega Geacutenero Dramaacutetico 227 17 Voltaremos a focar este aspecto quando analisarmos a personagem (Capiacutetulo II 3a) 18 Idem xxviii-xxix

10

Segundo o mesmo autor haacute trecircs escritores gregos posteriores a Euriacutepides que

trataram o tema da loucura antes do Alcida realizar os trabalhos Satildeo eles Damasco (F

Gr Hist 90 F 13) Diodoro (4106ss) e Apolodoro (Bibl 2412)19 Este por exemplo

conta que a loucura do heroacutei decorreu depois da guerra contra os Miacutenios tendo sido

causada pelos ciuacutemes de Hera por o Alcida ser filho de Zeus Enlouquecido o heroacutei

mata natildeo soacute os filhos como tambeacutem dois dos seus sobrinhos atirando-os ao fogo

Depois de recuperada a razatildeo eacute purificado pelo rei Teacutespio Considerando a purificaccedilatildeo

insuficiente para expiar os seus crimes o Alcida procura o oraacuteculo de Apolo com o

intuito de saber quais satildeo os desiacutegnios dos deuses Do encontro que teve com a Pitonisa

passa a chamar-se Heacuteracles sendo obrigado a submeter-se agraves ordens de Euristeu

durante doze anos Uma vez concluiacutedos os trabalhos Heacuteracles receberia como preacutemio a

imortalidade20

Na perspectiva de Bond natildeo haacute certezas de que a descriccedilatildeo da loucura de

Heacuteracles quando localizada apoacutes a conclusatildeo dos trabalhos seja uma inovaccedilatildeo de

Euriacutepides Sendo ou natildeo inovaccedilatildeo Euriacutepides daacute a imagem de um heroacutei que depois de

ter vencido todos os obstaacuteculos eacute derrotado por completo pelas divindades Como Ann

Norris Michelini sublinha ldquoThe greatest of heroes is being transformed before our eyes

into something very like other Euripidean tragic protagonists helpless and humiliated

perhaps even awkward and ludicrous figures whose endurance and suffering capture

audience sympathy in spite of these negative characteristicsrdquo21

Reverter a ordem dos acontecimentos (vindo o acto da loucura depois dos

trabalhos) significa para David Kovacs

The Labors must be given another motivation Heracles offers to work for Eurystheus so that he and his father Amphitryon may return to Argos from which Amphitryon has been banished In this way the killing of his family can be left as the final reversal of the herorsquos good fortune22

d) O aparecimento de Teseu no final da acccedilatildeo dramaacutetica poderaacute ser outra

inovaccedilatildeo do poeta jaacute que como sugere Bond ldquoif in the pre-Euripidean tradition the

19 Apud Bond xxix 20 Apolodoro Bibliotheca 2412 21 Ann Norris Michelini Euripides and Tragic Tradition 263 22 Euripides Suppliant Women Electra Heracles ed e trad David Kovacs (Cambridge Massachusetts Harvard University Press 1998) 304

11

murderers preceded the labours Theseus cannot have played any part and there is a

strong likelihood of Euripidean invention hererdquo 23

Parece-nos que o aparecimento de Teseu no final da trageacutedia permite a Euriacutepides

elogiar a cidade ateniense em detrimento de Tebas Esta cidade recusou ajudar a famiacutelia

de Heacuteracles no momento em que o heroacutei estava ausente (v 227 v 560) Teseu pelo

contraacuterio assim que soube que a famiacutelia do Alcida estava a ser ameaccedilada por Lico

dirigiu-se para Tebas acompanhado de hoplitas (vv 1164-1171) Heacuteracles eacute obrigado a

abandonar Tebas (governada por tiranos) por ter cometido um crime involuntaacuterio

Atenas (onde a democracia era a poliacutetica vigente) eacute a cidade acolhedora que julgaraacute e

purificaraacute Heacuteracles do filiciacutedio e do uxoriciacutedio

Para Francis M Dunn ldquoWhen he arrives with an army (1165) when he shows

concern for the polluted and exiled Heracles when he offers him a place of refuge and

promises to settle him on Athenian soil Theseus plays a familiar role as the statesman

who embodies Athenian values by protecting suppliantsrdquo24

2 Seacuteneca Hercules Furens

Seacuteneca revela-se o mais laquomodernoraquo dos pensadores e dos escritores antigos

(Padre Manuel Antunes25)

21 Data e Estrutura da Trageacutedia

Pensa-se que a trageacutedia Hercules Furens teraacute sido escrita antes de 54 dC26 A

acccedilatildeo dramaacutetica afasta-se logo no Acto I da de Euriacutepides o seu modelo com a

introduccedilatildeo da personagem Juno que num soliloacutequio prepara a vinganccedila contra 23 Bond xxx 24 Francis M Dunn Tragedyrsquos End Closure and Innovation in Euripidean Drama (Oxford Oxford University Press 1996) 121 25 Padre Manuel Antunes sj Obra Completa tomo I Theoria Cultura e Civilizaccedilatildeo volume I Cultura Claacutessica (Estudos) ed criacutetica coordenaccedilatildeo cientiacutefica Arnaldo do Espiacuterito Santo (Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2007) 192 26 Katharina Volk Gareth D Williams (eds) Seeing Seneca Whole Perspectives on Philosophy Poetry and Politics (Leiden Boston Brill 2006) 199 Fitch (1) 50-53 Estes criacuteticos sugerem que a trageacutedia teraacute sido escrita por volta do ano 54 pelos ecos que encontram da Apocolocyntosis

12

Heacutercules Com a entrada da deusa no iniacutecio da trageacutedia fica-se a conhecer o tema a

loucura e o assassiacutenio dos filhos do Alcida Jaacute na peccedila de Euriacutepides o tema soacute eacute revelado

quando entram em cena Iacuteris e Lissa (vv 821-974)

O Acto II assemelha-se ao Proacutelogo e ao Episoacutedio I de Euriacutepides O cenaacuterio eacute

semelhante Anfitriatildeo e Meacutegara estatildeo junto do altar de Juacutepiter (Zeus na trageacutedia grega)

como suplicantes esperando pelo regresso do Alcida Lico entra em cena natildeo com o

objectivo de matar a famiacutelia heraclida (como em Her) mas de assegurar o seu poder

querendo casar-se com Meacutegara Recusada com violecircncia a proposta Lico ameaccedila

queimaacute-los vivos acendendo uma fogueira ao redor do altar de Juacutepiter Tal como na

trageacutedia de Euriacutepides a famiacutelia heraclida abandona o lugar e dirige-se ao palaacutecio de

Heacutercules

O Acto III inicia-se com o monoacutelogo do Alcida Meacutegara eacute uma personagem

muda ao contraacuterio do que acontece em Euriacutepides Heacutercules vem acompanhado de Teseu

(na trageacutedia grega o soberano de Atenas soacute aparece no episoacutedio V) A permanecircncia do

protagonista em cena eacute curta27 ndash ao saber que Lico pretendia matar a sua famiacutelia deixa

Anfitriatildeo Meacutegara e os filhos com Teseu e vai ao encontro de Lico para mataacute-lo Esta

saiacuteda raacutepida abre espaccedilo para que Teseu descreva as moradas das sombras narrando a

luta de Heacutercules com Ceacuterbero Este Acto eacute substancialmente diferente do Episoacutedio II na

peccedila de Euriacutepides Heacuteracles dialoga ora com Meacutegara ora com Anfitriatildeo dirige-se aos

filhos encaminha-os para o palaacutecio como um navio que conduz os botes para um porto

seguro metaacutefora que o heroacutei usa o Hades nunca eacute descrito Anfitriatildeo e Heacuteracles

preparam o assassiacutenio de Lico

O episoacutedio da loucura no Acto IV decorre agrave frente do leitorespectador A

descriccedilatildeo da alteraccedilatildeo mental do Alcida permite ter uma visatildeo ldquoem tempo realrdquo da

mudanccedila que estaacute a acontecer no protagonista Na peccedila de Euriacutepides eacute o Mensageiro (no

episoacutedio IV) que conta essa transformaccedilatildeo porque tudo se passou dentro do palaacutecio fora

do campo de visatildeo dos espectadores

O uacuteltimo Acto que corresponde ao episoacutedio V do Heracles eacute o despertar de

Heacutercules O protagonista descobre que foi o autor do filiciacutedio e do uxoriciacutedio O

suiciacutedio surge em ambas as trageacutedias como a melhor opccedilatildeo para o Alcida mas haacute uma

personagem que o dissuade Teseu em Euriacutepides e Anfitriatildeo na trageacutedia latina

27 De 237 vv total de versos do Acto III apenas 385 vv dizem respeito agrave fala do heroacutei Deste nuacutemero 115 vv correspondem a Heacutercules no momento em que se dirige a Anfitriatildeo a Meacutegara e a Teseu

13

As inovaccedilotildees mitoloacutegicas que encontramos em Euriacutepides foram ldquorecuperadasrdquo

por Seacuteneca mas com uma visatildeo e objectivos diferentes

22 Deuses

Os deuses natildeo tecircm nas trageacutedias de Seacuteneca o mesmo desenvolvimento e

importacircncia que tecircm nas peccedilas gregas Em Hercules Furens apesar de Juno entrar em

cena deixando expliacutecito o seu oacutedio a Heacutercules e afirmando que tudo faraacute para destruir o

heroacutei perseguindo ad aeternum o fruto do adulteacuterio de Juacutepiter a sua funccedilatildeo e atitude

assemelham-se agrave de uma mulher traiacuteda pelo marido Ela proacutepria diz ter abandonado os

ceacuteus e passado a viver na terra (vv 1-5) logo junto de mortais Mariana Matias afirma

ldquoOs homens fazem uso do livre arbiacutetrio que a proacutepria Divindade lhes concedeu O Mal

ou Bem adviraacute do correcto ou inadequado uso que fizer da Razatildeo e da forccedila de vontade

(uoluntas) que tiver para se afastar das paixotildees e dos conflitos que atraem o

sofrimentordquo28

Num uacuteltimo aspecto a acccedilatildeo de Hercules Furens eacute ldquodesequilibradardquo jaacute que ldquoo

ritmo com que Seacuteneca constroacutei a acccedilatildeo das suas peccedilas se caracteriza pelo desequiliacutebrio

visto que gasta a maior parte do texto em interminaacuteveis monoacutelogos de anaacutelise interior

das personagens enquanto desenvolve os incidentes especiacuteficos da acccedilatildeo em cenas

concentradas de uma rapidez vertiginosardquo29 diz Segurado e Campos Essa falta de

proporccedilatildeo prende-se com o objectivo de Seacuteneca em querer revelar as tendecircncias que as

personagens tecircm para enveredar pelo caminho do uitium Ao fazecirc-las falar expondo as

suas duacutevidas os seus receios ao dar-lhes a capacidade de construiacuterem um raciociacutenio

loacutegico e aparentemente correcto Seacuteneca mostra os erros de raciociacutenio e os resultados

que eles podem trazer

Antes poreacutem de passarmos agrave anaacutelise das personagens sob um ponto de vista

comparativo eacute conveniente fazer um breve estudo sobre a doutrina do Poacutertico

28 Mariana Montalvatildeo Horta e Costa Matias Paisagens Naturais e Paisagens da Alma no Drama Senequiano ndash Troades e Thyestes (Coimbra diss de Mestrado em Literaturas Claacutessicas especialidade de Literatura Latina apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 2007) 32 29 Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos ldquoSeacuteneca Brecht e o Teatro Eacutepicordquo Classica 23 (1999) 13

14

23 Doutrina Estoacuteica

Fundado por Zenatildeo de Ciacutecio que chega a Atenas por volta do ano 313 aC para

abraccedilar o estudo da filosofia heleacutenica o estoicismo30 surge na Greacutecia por volta do ano

300 aC Pretende ser uma resposta ao momento conturbado que as cidades gregas

viviam no fim do seacutec IV Em contraste com a anterior hegemonia e individualismo

caracteriacutesticas do espiacuterito heleno o povo grego confronta-se agora com uma abertura de

horizontes e uma nova cultura a invadir o seu espaccedilo na sequecircncia da expansatildeo de

Alexandre

Zenatildeo procurou ensinar um novo sentimento de comunidade que se opunha por

completo ao individualismo defendido por Epicuro Proferindo os seus discursos na

Στοὰ ποικίλη lugar onde se reunia com um vasto puacuteblico e que acabou por dar nome agrave

Escola Zenatildeo difundiu ainda a sua crenccedila num poder que comanda todo o Universo

Como sublinha Joseph Moreau Zenatildeo propocircs a ideia da existecircncia de uma Razatildeo

Universal (Λόγος) que eacute Destino e Providecircncia31 A partir deste conceito pretende

libertar as almas de todo o tipo de inquietudes medos inseguranccedilas fazendo vingar a

ideia de que tudo o que acontece eacute inevitaacutevel e de acordo com a vontade de um Bem

Supremo de tal modo que cabe ao homem aceitar tudo com resignaccedilatildeo e confianccedila

Assim ao procurar viver bem e de acordo com o que a Natureza lhe enviava uma vez

que provinha de deus o homem conseguia alcanccedilar a sabedoria ldquoo estoicismo

desenvolve-se como um materialismo e como um racionalismo eacuteticordquo32

30 O estoicismo compreende trecircs grandes momentos na sua histoacuteria O primeiro periacuteodo correspondente ao do estoicismo antigo (finais do seacutec IV aC a III aC) eacute inaugurado por Zenatildeo de Ciacutecio e continuado por Cleantes e Crisipo (todos eles assumiram a direcccedilatildeo da Escola) Num segundo momento no periacuteodo meacutedio (seacutecs II-I aC) o estoicismo chega a Roma aiacute tendo como representantes Paneacutecio de Rodes amigo de Cipiatildeo Emiliano e membro do chamado Ciacuterculo de Cipiotildees e Posidoacutenio de Apameia disciacutepulo de Paneacutecio e amigo e mestre de Ciacutecero Por uacuteltimo o terceiro periacuteodo denominado neo-estoicismo estoicismo romano ou estoicismo imperial (I-II dC) tem como protagonistas Seacuteneca Musoacutenio Rufo Epicteto (escravo e depois liberto) e o imperador Marco Aureacutelio 31 Vide Joseph Moreau Stoiumlcisme ndash Eacutepicurisme Tradition Helleacutenique (Paris Librairie Philosophique J Vrin 1979) 9 32 Jean Brun O Estoicismo trad Joatildeo Amado (Lisboa Ediccedilotildees 70 1986) 32

15

231 Os trecircs ramos da Filosofia Fiacutesica Loacutegica e Moral

De modo geral os estoacuteicos dividiam a Filosofia em trecircs ramos33 a Fiacutesica a

Moral e a Loacutegica ndash o primeiro a fazer esta distinccedilatildeo foi Zenatildeo de Ciacutecio34 Apesar desta

triparticcedilatildeo os estoacuteicos consideram que esses trecircs ramos se conjugam num todo e

procuraram demonstraacute-lo por meio de diversas analogias Uma delas eacute entre o

estoicismo e o corpo de um animal em que os ossos e os nervos tecircm como

correspondente a Loacutegica a carne a Moral e a alma representa a Fiacutesica Um outro siacutemile

que os estoacuteicos usam eacute o ovo a casca eacute a Loacutegica a clara a Moral e a gema que estaacute no

centro a Fiacutesica Estabelecem ainda paralelismo entre esta doutrina e um campo feacutertil a

Loacutegica seria a cerca que delimita toda a aacuterea de cultivo a Moral os frutos e a Loacutegica a

terra ou as aacutervores Por uacuteltimo entre o estoicismo e uma cidade bem fortificada e sob o

governo da Razatildeo35 De todos estes exemplos se infere que nenhuma parte eacute

independente mas cada um dos elementos completa os outros formando um todo De

facto como refere Dioacutegenes Laeacutercio se todas as coisas satildeo apreendidas por recurso agrave

loacutegica esta implicaraacute a inclusatildeo de tudo o que entra no domiacutenio da fiacutesica e da eacutetica36

a) A Loacutegica

O estoicismo tal como o aristotelismo parte do empirismo Contudo as

perspectivas que estatildeo na base de cada uma destas doutrinas filosoacuteficas diferem por

completo Para Aristoacuteteles o mundo eacute estaacutetico (porque traduz um movimento

incompleto ou seja ldquoele natildeo eacute mais do que a passagem da potecircncia ao actordquo37) e

obedece a hierarquias (no sentido em que cada indiviacuteduo tem um lugar e funccedilatildeo

proacuteprios no mundo)

33 Segundo Dioacutegenes Laeacutercio haacute estoacuteicos que elaboraram uma divisatildeo mais minuciosa como eacute o caso de Cleantes que dividiu a Filosofia em seis partes Dialeacutectica Retoacuterica Eacutetica Poliacutetica Fiacutesica e Teologia (vide Dioacutegenes Laeacutercio 741) No entanto a triparticcedilatildeo parece ser a mais aceite entre os estoacuteicos 34 Dioacutegenes Laeacutercio 739 35 Vide Dioacutegenes Laeacutercio 740 36 Dioacutegenes Laeacutercio 783 37 Jean Brun O Estoicismo 35

16

Jaacute os estoacuteicos entendiam o mundo como um ser vivo38 Deus Mundo Natureza

todos satildeo seres vivos Como afirma Jean Brun

O empirismo estoacuteico natildeo eacute um empirismo de mensagem qualitativa como em Aristoacuteteles mas um empirismo da compenetraccedilatildeo do homem e do mundo sentir eacute ter os sentidos e a alma modificados pelo que eacute exterior esta modificaccedilatildeo pode ser em harmonia com o que a provoca e neste caso estamos na verdade ou pode estar em desacordo e nesse caso estamos no erro e na paixatildeo39

Assim o homem soacute vive bem quando em plena sintonia com o que faz parte da

natureza

A doutrina do Poacutertico divide o estudo da Loacutegica em duas partes retoacuterica

(ῥητορική) e dialeacutectica (διαλεκτική) ndash esta estrutura da lsquociecircncia de bem falarrsquo eacute herdeira

da sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica A primeira constitui a ciecircncia de bem falar que por sua

vez tem trecircs geacuteneros deliberativo judicial e demonstrativo ou epidiacutectico A retoacuterica

divide-se em inuentio dispositio elocutio e actio correspondendo cada uma dessas

partes agraves fases da elaboraccedilatildeo do discurso (ainda sem a da memoria que soacute mais tarde a

tratadiacutestica retoacuterica integraraacute) A dialeacutectica eacute a ciecircncia que permite o uso correcto da

linguagem quer em perguntas quer nas respostas Esta ciecircncia eacute divisiacutevel em duas

partes uma diz respeito ao discurso (σημαινομένος lsquosignificadorsquo) a outra estaacute

relacionada com a linguagem (φωνή lsquosomrsquo) O discurso compreende a introductio a

narratio a refutatio e a conclusio40

A dialeacutectica eacute necessaacuteria e eacute considerada pelos estoacuteicos como uma virtude que

agrega em si todas as outras Eacute pela dialeacutectica que o saacutebio consegue discernir de modo

pleno a verdade da mentira aleacutem de lhe permitir um bom uso da argumentaccedilatildeo e um

raciociacutenio claro Eacute munido da dialeacutectica que o homem obteacutem a capacidade de colocar

questotildees agraves quais consegue responder41

38 Seacuteneca considera que o mundo tal como qualquer ser vivo possui arteacuterias e veias Explica Pierre Grimal Seacutenegraveque sa Vie son Oeuvre avec un Exposeacute de sa Philosophie (Paris Presses Universitaires de France 1966) 50 que a visatildeo de Seacuteneca de que o mundo eacute um ser vivo natildeo eacute original uma vez que jaacute Empeacutedocles e Posidoacutenio tinham explorado o conceito Contudo diz-nos Grimal que o que se demarca em Seacuteneca eacute o estudo que ele desenvolve sobre o tema ldquoCette doctrine est pousseacute par lui jusque dans le deacutetail agrave la faccedilon drsquoune hypothegravese dont on cherche agrave deacutevelopper les conseacutequences et surtout elle lui permet de concevoir selon un scheacutema quasi meacutecanique la solidariteacute interne du Monde exigeacutee par le postulat de sa rationaliteacute et condition mecircme de toute connaissancerdquo 39 Jean Brun O Estoicismo 36 40 Dioacutegenes Laeacutercio 741-43 41 Dioacutegenes Laeacutercio 746-48

17

b) A Fiacutesica

O termo lsquoFiacutesicarsquo vem do termo grego φύσις (lsquonaturezarsquo) que por sua vez deriva

da forma verbal φύειν cujo sentido eacute lsquocrescerrsquo A Natureza conteacutem em si o mundo e eacute a

fonte directriz de tudo

Na verdade para os estoacuteicos a palavra lsquofiacutesicarsquo tinha um significado mais amplo

do que aquele que comummente lhe atribuiacutemos nos nossos dias Segundo Dioacutegenes

Laeacutercio os Estoacuteicos entendiam a Fiacutesica como aquilo que deteacutem o mundo e que provoca

as estaccedilotildees Definiam a natureza como uma forccedila que se desloca sobre si mesma e que

preserva a descendecircncia dos seres42

A Fiacutesica dividia-se em vaacuterios ramos Um relaciona-se com a divisatildeo por espeacutecies

e compreendia o que trata dos corpos (περὶ σωμάτων) o que trata dos princiacutepios (περὶ

ἀρχῶν) o dos elementos (περὶ στοιχείων) o dos deuses (περὶ θεῶν) o dos limites (περὶ

περάτων) o do lugar (τόπου) e o do vazio (κενοῦ) Um outro ramo liga-se agrave divisatildeo por

geacuteneros do Cosmo dos elementos e da etiologia43

Relativamente aos geacuteneros em particular ao universo este eacute governado por dois

princiacutepios um passivo e um activo O passivo (τὸ πάσχον) eacute identificado com a mateacuteria

(ὕλη) e o activo (τὸ ποιοῦν) que se relaciona com a Razatildeo eacute designado λόγος Este

princiacutepio eacute activo no sentido em que age sobre a mateacuteria moldando-a e fazendo dela

forma Sem este princiacutepio a mateacuteria jaz informe Seacuteneca identifica nas Ad Lucilium

Epistulae Morales estes dois princiacutepios da natureza como causa e mateacuteria Eacute deles que

tudo o resto deriva Explica Seacuteneca que materia iacet iners res ad omnia parata

cessatura si nemo moueat causa autem id est ratio materiam format et quocumque

uult uersat ex illa uaria opera producit44 A causa eacute o agente Em termos praacuteticos o

corpo eacute a mateacuteria e a alma a causa

A mateacuteria eacute por sua vez formada por quatro elementos o fogo (proveniente do

eacuteter) o ar (que estaacute depois do eacuteter) a aacutegua e a terra Destes quatro elementos dois satildeo

42 Dioacutegenes Laeacutercio 7148-149 43 Dioacutegenes Laeacutercio 7132 44 L Annaei Senecae Ad Lucilium Epistulae Morales 652 lsquoA mateacuteria jaz inerte apta a tomar todas as formas mas imoacutevel para sempre se ningueacutem a trabalhar a causa poreacutem que eacute como quem diz a razatildeo daacute forma agrave mateacuteria transforma-a naquilo que quer realiza a partir dela vaacuterios tipos de produtosrsquo As traduccedilotildees do latim seguem a ediccedilatildeo de Luacutecio Aneu Seacuteneca Cartas a Luciacutelio trad Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos (2ordf ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2004)

18

activos (o ar e o fogo) dois passivos (terra e aacutegua) Estes elementos satildeo pereciacuteveis pelo

facto de que estatildeo em interminaacutevel mutaccedilatildeo o que implica um fim e uma renovaccedilatildeo

Haacute dois movimentos naturais que podemos identificar com a proacutepria vida e

morte de todos os que habitam o mundo o primeiro eacute a passagem do fogo para a terra

passando pelo ar e pela aacutegua (traduz-se na vida) o segundo movimento vai da terra para

o fogo passando de novo pelos dois outros elementos aacutegua e ar (representaccedilatildeo da

morte) Esta morte e ressurgimento natural das coisas que os estoacuteicos comummente

designam por palingeacutenese acontece no dizer de Jean Brun ldquopor ocasiatildeo de uma

conflagraccedilatildeo universal durante a qual o mundo se dilata no vazio ilimitado que o

envolve e onde todas as coisas satildeo transformadas em fogo (ἐκπύρωσις)rdquo45 O mesmo

autor explica que esta conflagraccedilatildeo universal natildeo se traduz numa destruiccedilatildeo total do

Universo O que se daacute em concreto eacute uma renovaccedilatildeo dos seres e das coisas Os estoacuteicos

acreditavam que a vida do mundo eacute um ciacuterculo perfeito no sentido em que nasce morre

e volta a nascer

Sendo o κόσμος visto como um ser vivo que possui uma anima e a razatildeo os

estoacuteicos interpretam este lsquoUniversorsquo sob trecircs acepccedilotildees diferentes primeira o Universo eacute

imagem do Deus uacutenico ser que possui qualidades inerentes (ἰδίως ποιόν) este por sua

vez eacute um ser indestrutiacutevel e arquitecto da ordem do Cosmo uma vez que tem a

capacidade de destruir e recriar tudo a partir de si proacuteprio (o que equivale a dizer que

tem mecanismos proacuteprios que lhe permitem eliminar o que quiser e do nada voltar a

engendrar algo novo) segunda o Universo eacute considerado como a ordem dos astros

terceira o Universo eacute visto como um todo do qual Deus e os astros fazem parte46

Consideravam ainda que o mundo eacute constituiacutedo por mateacuteria ou seja por corpos

Esta eacute uma noccedilatildeo panrealista visto que para os estoacuteicos tudo eacute σῶμα desde a noite a

aurora o minuto a palavra o proacuteprio deus ateacute agrave alma e as virtudes e os viacutecios Dada a

visatildeo de que tudo ou quase tudo eacute corpo eacute permitido ao homem uma ligaccedilatildeo estreita

com o Universo do qual eacute originaacuterio e para o qual retorna Diz Seacuteneca bonum agitat

animum et quodam modo format et continet quae [ergo] propria sunt corporis Quae

corporis bona sunt corpora sunt ergo et quae animi sunt nam et hoc corpus est47

45 Jean Brun O Estoicismo 49 46 Dioacutegenes Laeacutercio 7138-139 47 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 1064 lsquoO bem move-nos a alma de certa maneira daacute agrave alma forma e limites acccedilotildees que satildeo especiacuteficas dos corpos Os bens do corpo satildeo corpos logo tambeacutem os bens da alma o satildeo uma vez que a alma eacute um corporsquo

19

Acrescenta tambeacutem que as paixotildees satildeo consideradas como corpos dado que fazem

transparecer expressotildees no rosto do ser humano quando este se deixa levar por elas

non puto te dubitaturum an adfectus corpora sint () tamquam ira amor tristitia nisi dubitas an uultum nobis mutent an frontem adstringant an faciem diffundant an ruborem euocent an fugent sanguinem () corpora ergo sunt quae colorem habitumque corporum mutant quae in illis regnum suum exercent () numquid est dubium an id quo quid tangi potest corpus sit () omnia autem ista quae dixi non mutarent corpus nisi tangerent ergo corpora sunt Etiam nunc cui tanta uis est ut inpellat et cogat et retineat et inhibeat corpus est () denique quidquid facimus aut malitiae aut uirtutis gerimus imperio quod imperat corpori corpus est quod uim corpori adfert corpus48

No entanto alguns filoacutesofos consideram que nem tudo o que existe no cosmo

possui corpo Sexto Empiacuterico aponta quatro geacuteneros de incorpoacutereos o ldquoexprimiacutevelrdquo

(λεκτόν) o espaccedilo (τόπος) o vazio (κενόν) e o tempo (χρόνος)49 ndash este uacuteltimo eacute infinito

nas duas extremidades isto eacute no passado e no futuro mas eacute sempre contiacutenuo No que

diz respeito a este uacuteltimo elemento os estoacuteicos definem-no como um intervalo de

movimento que depende de dois elementos a terra (e o mar por extensatildeo) e o vazio

Os quatro elementos supramencionados satildeo tomados como incorpoacutereos por natildeo

manifestarem qualquer transformaccedilatildeo nos corpos Na verdade natildeo eacute possiacutevel uma

interacccedilatildeo que fundamente uma mutaccedilatildeo entre um incorpoacutereo e um corpo visto que o

primeiro natildeo produz qualquer efeito no segundo50 O mesmo natildeo acontece quando dois

corpos se tocam Haacute uma influecircncia no acto do confronto Este contacto implica sempre

ou quase sempre uma transformaccedilatildeo haacute um agente e um paciente um transformador e

um transformado Ao encontro de corpos de que resulta uma alteraccedilatildeo os estoacuteicos

denominam ldquoamaacutelgama totalrdquo (κρᾶσις δι᾽ ὅλων) Segundo Jean Brun ldquoA continuidade

da natureza esta presenccedila dos corpos num mundo de espaccedilo ocupado que ignora o

48 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 1065 7-10 lsquoAcho que tu natildeo hesitaraacutes em reconhecer como corpos as paixotildees () ndash tais como a coacutelera o amor a tristeza a menos que tu duvides que elas nos alteram o rosto nos enrugam a testa nos alongam a face nos tornam a cara encarniccedilada ou nos fazem ficar sem pinga de sangue () Consequentemente tudo quanto altera a cor e a forma dos corpos eacute igualmente um corpo o qual exerce naqueles a sua acccedilatildeo () E seraacute possiacutevel duvidar que seja corpo tudo aquilo por que um corpo pode ser tocado () Ora tudo quanto referi natildeo poderia alterar o nosso corpo se lhe natildeo tocasse por conseguinte todos satildeo corpos Mais ainda tudo quanto tenha em si forccedila suficiente para nos impelir forccedilar deter ou impedir de nos movermos ndash tem de ser um corpo () Em suma tudo quanto noacutes fazemos fazemo-lo sob ordens ou da maldade ou da virtude e tudo quanto exerce poder sobre um corpo tudo ndash eacute um corporsquo 49 Sexto Empiacuterico Aduersus Mathematicos 10218 50 Vide Ciacutecero Academica Posteriora 239

20

vazio esta assimilaccedilatildeo de Deus e do Cosmo permitem-nos dizer que o todo estaacute em

simpatia consigo mesmo que tudo conspira que existe uma simpatia universal das

coisas e dos seresrdquo51 Esta simpatia (συμπάθεια) eacute universal e conatural (συμφνές)

sendo ainda uma outra forma de ldquodesignar a identidade de Deus e do mundordquo52 Tudo

proveacutem de Deus que representa uma forccedila aniacutemica dotada de inteligecircncia de tal modo

que a infinidade de corpos mais natildeo satildeo que parcelas dessa mesma divindade

Deus e o Destino (εἱμαρμένη53) assumem importacircncia relevante para a

compreensatildeo da vida do homem uma vez que todas as coisas tecircm o seu rumo proacuteprio

ldquoo destino eacute uma realidade natural inscrita na estrutura do mundo no sentido em que o

conjunto a κρᾶσις que liga os seres eacute testemunho de uma disposiccedilatildeo imutaacutevel na

ordem das coisasrdquo54

Este poder conferido ao destino levou alguns filoacutesofos (em especial os

epicuristas) a criticarem a concepccedilatildeo que os estoacuteicos tinham dele e do livre-arbiacutetrio

porque incongruente O problema que se colocava era em que medida ao homem era

dada liberdade de fazer as suas proacuteprias escolhas se o Destino tinha poder absoluto

sobre todos os seres Crisipo contribuiu no acircmbito da reflexatildeo estoacuteica para a

compreensatildeo desta questatildeo para ele o Destino eacute um poder que governa todo o Cosmo

nada acontece sem uma causa precedente Considerando que tudo se rege por uma

causa Crisipo defendia a teoria de que existem duas espeacutecies de causas as causas

perfeitas e principais (αὐτοτελεῖ αἰτίαι ou causae perfectae causae principales) e as

causas adjuvantes e proacuteximas (προκαταρκτικαὶ αἰτίαι ou causae adiuuantes causae

proximae) As primeiras dizem respeito a decisotildees que o ser humano toma e as

segundas agrave forccedila do Destino

Si est motus sine causa non omnis enuntiatio (quod ἀξίωμα dialectici appelant) aut uera aut falsa erit causas enim efficientes quod non habebit id nec uerum nec falsum erit omnis autem enuntiatio aut uera aut falsa est motus ergo sine causa nullus est Quod si ita est omnia quae fiunt causis fiunt antegressis id est omnia fato fiunt efficitur igitur fato fieri quaecumque fiant55

51 Jean Brun O Estoicismo 53 52 Idem Ibidem 54 53 A palavra εἱμαρμένη vem do particiacutepio passado do verbo μείρομαι A raiz μερ usada em palavras como microέρος e Μοῖραι demonstra que o destino a par das Moiras comanda a vida de cada um dos seres O destino eacute estrutura mas tambeacutem uma forccedila Considerado como um sopro natildeo soacute vital como divino o destino em conjunto com a providecircncia eacute a forccedila motora que comanda todas as coisas 54 Idem Ibidem 56 55 Ciacutecero De Fato 1020-21 Ciacutecero cita Crisipo

21

A Providecircncia (πρόνοια) eacute por sua vez a causa que permite concatenar os seres

com a vontade divina Eacute pela Providecircncia que os animais procuram criar relaccedilotildees de

amizade e de interdependecircncia56 Contudo esta concepccedilatildeo que os estoacuteicos tecircm da

Providecircncia (aquilo que Jean Brun designou como ldquofinalismo universalrdquo57) levanta

algumas questotildees sobre a existecircncia do mal De facto estando a Providecircncia em

sintonia com tudo o que existe no mundo implica que haja uma ligaccedilatildeo entre ela e o

bem e entre ela e o mal Este lsquomalrsquo diz respeito ao que a Natureza cria e que eacute nocivo

(como por exemplo as tempestades as epidemias os animais ferozes as plantas

venenosas) mas tambeacutem agraves acccedilotildees do homem (guerras violecircncia) Este aspecto levou os

ceacutepticos a criticarem os estoacuteicos Crisipo contra-argumenta com a ideia de que tudo tem

um contraacuterio (por exemplo a virtude tem como antiacutetese o viacutecio) O mal permite criar

um certo equiliacutebrio58 e em simultacircneo pode ser uacutetil uma vez que pode ser ldquonecessaacuterio

para o aparecimento de um bem maiorrdquo59

Haacute que notar contudo que a Providecircncia o Destino a Natureza a Razatildeo

Universal e Deus mais natildeo satildeo do que sinoacutenimos Deus eacute pensado no superlativo

porquanto eacute um princiacutepio que governa todos os outros A divindade eacute mateacuteria mas natildeo

possui qualquer forma humana Tal como mateacuteria Deus eacute um sopro iacutegneo dotado de

inteligecircncia Difere do homem por ser imortal e ignorar qualquer mal

Quanto agrave alma humana ela eacute segundo Reneacute Hoven60 feita de elementos subtis

em concreto eacute originada a partir do ar e do fogo Zenatildeo de Ciacutecio Antiacutepatro e Posidoacutenio

definem a alma como um sopro quente (πνεῦμα ἔνθερμον) 61 Esta designaccedilatildeo explica-

-se pelo facto de ser por meio deste πνεῦμα que noacutes respiramos e nos movemos

Os filoacutesofos estoacuteicos ao definirem a alma comparam-na a um polvo Apesar de

a tomarem como una dividiram-na em oito partes uma parte matriz (ἡγεμονικόν) que

governa todas as outras partes sendo a mais importante e dela saindo as outras sete

destas cinco dizem respeito aos sentidos naturais a visatildeo o olfacto o tacto a audiccedilatildeo e

o paladar as uacuteltimas duas partes satildeo o aparelho reprodutor e a palavra Esta concepccedilatildeo

56 Marco Aureacutelio Meditationes 440 ss 57 Jean Brun O Estoicismo 60 58 Em Hercules Furens de Seacuteneca estaacute bem delineada a ideia de que o bem e o mal permitem criar um certo equiliacutebrio natural das coisas Soacute o insensato protagonizado por Heacutercules eacute que acredita na possibilidade de destruir todo o mal que existe na terra porque vecirc nele um obstaacuteculo agrave construccedilatildeo da ordem Eacute notoacuterio um erro de avaliaccedilatildeo relativamente agrave noccedilatildeo que o heroacutei tem da natureza 59 Jean Brun O Estoicismo 61 60 Reneacute Hoven Stoiumlcisme et Stoiumlciens face au problegraveme de lrsquoau-delagrave (Paris Les Belles Lettres 1971) 41 61 Cf Dioacutegenes Laeacutercio 7157

22

de um corpo dividido em vaacuterias partes vai ao encontro da concepccedilatildeo que os estoacuteicos

tinham do universo como ser contiacutenuo e em plena harmonia consigo mesmo62

Eacute a partir da alma que o corpo existe visto ser um princiacutepio vital A funccedilatildeo que

desempenha natildeo eacute apenas de ordem bioloacutegica e motora mas representa igualmente

uma funccedilatildeo gnosioloacutegica Eacute por meio da alma que o homem compreende o mundo O

conhecimento e aceitaccedilatildeo deste mesmo mundo permite-lhe viver bem e alcanccedilar a

sabedoria Segundo Jean Brun ldquoa alma tem duas funccedilotildees essenciais a representaccedilatildeo

que nasce duma impressatildeo do objecto exterior na substacircncia da alma e a inclinaccedilatildeo

(ὁρμή) que eacute a faculdade de experimentar o desejo e a aversatildeordquo63

Quando o corpo morre a alma subsiste ainda mas eacute pereciacutevel64 Esta teoria da

sobrevivecircncia da alma depois da morte do corpo eacute complexa entre os estoacuteicos Para

Zenatildeo depois de o corpo perecer a alma humana vivia durante um periacuteodo de tempo

mas acabava por desaparecer Jaacute Cleantes considerava que a alma subsistia ateacute agrave

conflagraccedilatildeo total (ἐκπύρωσις) Para Crisipo apenas a alma dos saacutebios sobreviveria A

dos iacutempios morreria com a destruiccedilatildeo do corpo65

Para Seacuteneca parece natildeo haver uma resposta uacutenica e simples uma vez que nas

suas obras encontramos vaacuterias perspectivas ldquoSes oeuvres nous fournissent en

abondance des reacuteponses mais celles-ci preacutesentent agrave premiegravere vue une telle diversiteacute et

mecircme tant de contradictions que leur simple lecture laisse perplexe quant agrave la penseacutee

reacuteelle de notre philosopherdquo como refere Reneacute Hoven66 Assim Seacuteneca defende por um

lado que a alma subsiste ateacute agrave conflagraccedilatildeo universal67 ou durante um periacuteodo mais

longo do que aquele que viveu na terra (Ep 10223) Identifica ainda a possibilidade de

haver uma vida num mundo supraterrestre68 rejeitando tal como os outros filoacutesofos

estoacuteicos a existecircncia de um mundo inferior (Ep 2418) Seacuteneca potildee a hipoacutetese de que a

morte possa ser um fim absoluto pelo menos quando enuncia alternativas como mors

aut finis aut transitus (Ep 6524 a morte lsquoou eacute termo ou eacute passagemrsquo) ou mors aut

62 Vide Jean Brun O Estoicismo 66 63 Jean Brun O Estoicismo 66 64 Vide Ciacutecero Tusculanae Disputationes 118 e Dioacutegenes Laeacutercio 7157 65 Dioacutegenes Laeacutercio 7157 66 Reneacute Hoven Stoiumlcisme et Stoiumlciens face au problegraveme de lrsquoau-delagrave 109 67 Nos quoque felices animae et aeterna sortitae cum deo uisum erit iterum ista moliri labentibus cunctis et ipsae parua ruinae ingentis accessio in antiqua elementa uertemur (Seacuteneca Consolatio ad Marciam 267) Vide tambeacutem Reneacute Hoven Stoiumlcisme et Stoiumlciens face au problegraveme de lrsquoau-delagrave 109 68 Neste caso Reneacute Hoven op cit 110 comenta que a ideia de que existe uma vida depois da morte natildeo eacute uma concepccedilatildeo exclusivamente estoacuteica Eacute esta vida supraterrestre que vamos encontrar no final de Hercules Oetaeus depois de o seu corpo ter sido consumido pelo fogo Heacutercules aparece a Alcmena para lhe dizer que a sua alma ascendeu agraves moradas celestes (vv 1963-1976)

23

consumit aut exuit (Ep 2418 lsquoa morte ou nos consome totalmente ou nos despoja de

alguma coisarsquo)69

Importa poreacutem ver que em qualquer dos casos o sapiens aceita a morte com

serenidade Afinal a morte eacute como um outro nascimento

Quemadmodum decem mensibus tenet nos maternus uterus et praeparat non sibi sed illi loco in quem uidemur emitti iam idonei spiritum trahere et in aperto durare sic per hoc spatium quod ab infantia patet in senectutem in alium maturescimus partum Alia origo nos expectat alius rerum status70

c) A Moral

Os estoacuteicos dividiam o ramo da filosofia que corresponde agrave moral em vaacuterios

toacutepicos da tendecircncia (ὁρμή) do bem (περὶ ἀγαθῶς) e do mal (περὶ κακῶν) das paixotildees

(περὶ παθῶν) da virtude (περὶ ἀρετῆς) do fim ou do bem supremo (τέλος) do primeiro

valor e das acccedilotildees (περὶ πρώτης ἀξίας καὶ τῶν πράξεων) das condutas convenientes e

dos encorajamentos e dissuasotildees (περὶ τῶν καθηκόντων προτροπῶν τε καὶ

ἀποτροπῶν)71 Segundo testemunha Dioacutegenes Laeacutercio adoptaram esta divisatildeo Crisipo

Arquedemo Zenatildeo de Tarso Apolodoro Dioacutegenes Antiacutepatro Posidoacutenio e os seus

disciacutepulos Jaacute Zenatildeo de Ciacutecio e Cleantes natildeo deram ao ramo da Moral a mesma atenccedilatildeo

e desenvolvimento72

A tendecircncia eacute considerada como o primeiro dado natural do ser ndash o primeiro

impulso espontacircneo (ὁρμή) ndash enquanto o prazer e a dor assumem posiccedilotildees secundaacuterias

O animal tende em primeiro lugar a conservar a sua proacutepria seguranccedila e procura

conhecer-se Como explica Leacuteon Robin 69 Reneacute Hoven op cit 114 considera que esta eacute uma segunda tendecircncia do filoacutesofo e designa-a de ldquoalternativa socraacuteticardquo O mesmo autor identifica ainda mais trecircs perspectivas uma influecircncia epicurista em que Seacuteneca identificaria a morte como o natildeo ser (mors est non esse ndash Ep 544-5) uma corrente ldquomiacutesticardquo ou ldquopitagoacuterico-platoacutenicardquo (o corpo eacute um fardo ndash Ep 2417) e por uacuteltimo uma ldquocorrente mitoloacutegicardquo baseada em crenccedilas populares que diz respeito agrave crenccedila num mundo inferior Sobre esta uacuteltima tendecircncia natildeo nos parece que Seacuteneca acreditasse na sua existecircncia (vide Ep 2418) Ainda que os Infernos apareccedilam com alguma frequecircncia nas trageacutedias do filoacutesofo a referecircncia agraves moradas inferiores eacute a representaccedilatildeo da tradiccedilatildeo mitoloacutegica e tambeacutem das crenccedilas e dos receios do povo relativamente agrave morte e ao que vem depois dela 70 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 10223 lsquoTal como o ventre materno nos guarda por dez meses e nos prepara natildeo para nele permanecer mas sim para sermos como que lanccedilados no mundo assim que estamos aptos a respirar e a aguentar o ar livre tambeacutem ao longo do espaccedilo de tempo que vai da infacircncia agrave velhice noacutes vamos amadurecendo com vista a um novo parto Espera-nos um outro nascimento uma outra ordem das coisasrsquo 71 Dioacutegenes Laeacutercio 784 72 Vide Dioacutegenes Laeacutercio 784

24

A ideia de laquoconstituiccedilatildeoraquo eacute aqui capital desde que o animal nasce estaacute laquooriginariamente apropriadoraquo (conciliatio) a essa constituiccedilatildeo e agrave laquoconsciecircnciaraquo que dela tem estaacute-lhes de algum modo laquoconfiadoraquo (commendatio) Assim velar-se-aacute a si mesmo rejeitaraacute o que possa prejudicar a sua constituiccedilatildeo laquotenderaacuteraquo para o que eacute proacuteprio a favorececirc-la afastar-se-aacute do que a contraria No homem essa tendecircncia do ser para se conservar tem a particularidade de pertencer a uma constituiccedilatildeo do ser racional a espontaneidade original da sua natureza com a consciecircncia que dela tem eacute fundamentalmente laquoconforme agrave Razatildeoraquo73

Assim estabelecem os filoacutesofos uma divisatildeo entre ldquoobjectos de tendecircnciardquo74 os

que podem ser adquiridos porque satildeo bons e estatildeo de acordo com a natureza e os que

devem ser rejeitados porque satildeo maus e opostos agrave natureza

O homem ao conhecer a natureza e obedecer agravequilo que ela dita tem a

capacidade de apreender e compreender as escolhas que ela proporciona e reflectir sobre

tudo o que dela proveacutem Ele deve entatildeo orientar correctamente a sua vida Esta

orientaccedilatildeo passa pela aceitaccedilatildeo da natureza vivendo em harmonia com ela (τὸ

ὁμολογουμένως τῇ φύσει ζῆν75) ou seja estaacute de acordo com tudo o que tem origem na

natureza ndash conuenienter naturae No entanto para viver segundo a virtude as acccedilotildees e

os pensamentos do homem devem ser constantes o que implica uma atitude de

perseveranccedila na construccedilatildeo da uirtus Seacuteneca afirma

Sic maxime coarguitur animus inprudens alius prodit atque alius et quo turpius nihil iudico inpar sibi est Magnam rem puta unum hominem agere Praeter sapientem autem nemo unum agit ceteri multiformes sumus Modo frugi tibi uidebimur et graues modo prodigi et uani mutamus subinde personam et contrariam ei sumimus quam exuimus Hoc ergo a te exige ut qualem institueris praestare te talem usque ad exitum serues effice ut possis laudari si minus ut adgnosci De aliquo quem here uidisti merito dici potest lsquohic qui estrsquo tanta mutatio est76

73 Leacuteon Robin A Moral Antiga trad Joatildeo Morais Barbosa (Ediccedilotildees Despertar sd) 108 74 Vide Leacuteon Robin A Moral Antiga 108 75 Esta afirmaccedilatildeo apresentada por Dioacutegenes Laeacutercio (787) eacute do tratado Περὶ ἀνθρώπου φύσεως (Sobre a natureza do Homem) de Zenatildeo de que apenas nos restam fragmentos 76 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 12022 lsquoNada denuncia melhor a falta de princiacutepios morais do que este assumir alternado de diferentes rostos que para cuacutemulo da desfaccedilatez satildeo cada um deles sempre diversos de si mesmos Deves aceitar como um caso de excepccedilatildeo algueacutem que soacute desempenhe um papel na vida Na realidade para aleacutem do saacutebio ningueacutem se contenta em fazer soacute uma personagem todos estamos em constante mudanccedila Ora nos damos ares de gente frugal e austera ora de dissipadores e libertinos para logo a seguir pormos no rosto a maacutescara oposta agravequela que acabaacutemos de tirar Exige portanto de ti proacuteprio que sejas ateacute ao fim da vida aquilo que decidiste ser e faz com que os outros se natildeo te enaltecerem possam pelo menos reconhecer-te De indiviacuteduos que ainda ontem encontraacutemos jaacute hoje podemos ter o direito de perguntar Quem eacute este ndash tal a mudanccedila que neles se operoursquo

25

Para Seacuteneca o ser humano deve governar a sua vida de modo a tornaacute-la uma

concors uita sibi (Ep 8915) isto eacute a sua vivecircncia tem de estar ateacute ao fim da sua

existecircncia em conformidade com aquilo que escolheu ser O que Seacuteneca pretende

mostrar eacute que quem quer abraccedilar a uirtus natildeo pode andar hesitante e dividido entre o

bem e o mal entre a uirtus e o uitium balanccedilando entre o percurso correcto e o que

conduz ao erro A partir do momento em que o homem faz uma escolha teraacute de ser

constante Deste modo se atinge a felicidade por um lado e a sabedoria por outro

Para os estoacuteicos o mal fazia parte da ordem coacutesmica A noccedilatildeo que eles tinham

de que a par do bem existe o mal (permitindo criar um certo equiliacutebrio natural como jaacute

referimos) levava a ter como objectivo alcanccedilar o Supremo Bem ndash por isso se considera

a doutrina do Poacutertico como uma eacutetica de ascese O caminho que o saacutebio escolhe eacute um

percurso que implica um aperfeiccediloamento interior que natildeo descura uma anaacutelise criacutetica

diaacuteria e ininterrupta Esta passa pela auto-anaacutelise ou exame de consciecircncia dos seus

actos e pensamentos77 para poder alcanccedilar a uirtus Para Seacuteneca a soluccedilatildeo eacute instemus

itaque et perseueremus plus quam profligauimus restat sed magna pars est profectus

uelle proficere78 Este exame criacutetico permite ao homem tomar consciecircncia de si e do que

o rodeia verificando se estaacute a enveredar pelo caminho da uirtus ou pelo do uitium79

Assim o encontro com a virtude passa pelo uso contiacutenuo da Razatildeo que permite ao

saacutebio disciplinar-se e evitar todo o geacutenero de affectus

A virtude por sua vez eacute considerada pelos estoacuteicos como uma perfeiccedilatildeo comum

a todos isto eacute todos a podem alcanccedilar se para isso orientarem a vida e as suas escolhas

Cabe assim ao sapiens ndash uma vez que vive em conformidade com a natureza e tem a

capacidade de usar a Razatildeo com constacircncia e consistecircncia encontrando harmonia e paz

na alma ndash ensinar aos outros o caminho para chegar agrave uirtus orientando-os

aconselhando-os levando-os a compreender as suas limitaccedilotildees e sobretudo a aceitar as

suas fraquezas e a dos outros80 para melhor as poder corrigir

77 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 136 lsquoQuando tiveres agrave tua volta pessoas empenhadas em persuadir-te de que eacutes um desgraccedilado pensa bem natildeo nas palavras que ouves mas sim naquilo que tu proacuteprio sentes analisa a tua capacidade de resistecircncia () pois eacutes o melhor conhecedor de ti mesmorsquo 78 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 7136 lsquoSoacute haacute uma soluccedilatildeo portanto ser firme e avanccedilar sem descanso O caminho que resta percorrer eacute mais longo que o jaacute percorrido mas grande parte do progresso consiste na vontade de progredirrsquo 79 Seacuteneca De Ira 336 vide Maria Cristina Pimentel Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de Seacuteneca (Lisboa Ediccedilotildees Colibri 1993) 12 80 Cf Maria Cristina Pimentel Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de Seacuteneca 13

26

Crisipo entende que o estoicismo eacute uma medicina que permite alcanccedilar a cura da

alma est profecto animi medicina philosophia cuius auxilium non ut in corporis

morbis petendum est foris omnibusque opibus uiribus ut nosmet ipsi nobis mederi

possimus elaborandum est81 Contudo como sugere Seacuteneca a cura soacute eacute possiacutevel quando

qualquer indiacutecio de paixatildeo eacute extraiacutedo por completo Natildeo basta ldquoadormecerrdquo o uitium haacute

que excisaacute-lo optimum est primum irritamentum irae protinus spernere ipsisque

repugnare seminibus et dare operam ne incidamus in iram82

A virtude eacute assim um bem no qual se contemplam em geral dois geacuteneros

Dioacutegenes Laeacutercio considera a virtude natildeo-intelectual (ἀθεώρητος) como eacute o caso da

sauacutede e a intelectual (θεωρηματική) como por exemplo a prudecircncia e a justiccedila83 Esta

diferenccedila entre virtudes intelectuais e natildeo-intelectuais permite distinguir aquelas que satildeo

naturais ndash que os homens insensatos tambeacutem possuem ndash das que satildeo exclusivas dos

saacutebios porque implicam um percurso interior de ascese

Entendendo que as virtudes satildeo bens o nuacutemero total destes bens varia Paneacutecio

considera duas virtudes (teoacuterica e praacutetica) outros estabelecem trecircs (racional natural e

moral) Apoloacutefanes apenas uma (a prudecircncia) Cleantes Crisipo e Antiacutepatro muitas

Apesar desta divergecircncia eacute aceite pela generalidade dos estoacuteicos a divisatildeo de todas as

virtudes em primaacuterias e subordinadas ndash porque estabelecem uma relaccedilatildeo de

subordinaccedilatildeo com as antecedentes

As primaacuterias satildeo seguindo os estoacuteicos neste particular a sistematizaccedilatildeo

platoacutenica quatro a sabedoria (φρόνησις ou σοφία) a coragem (ἀνδρεία) a justiccedila

(δικαιοσύνη) e a prudecircncia (σωφροσύνη) Como virtudes subordinadas da sabedoria

temos a magnanimidade a paciecircncia e a prudecircncia A coragem implica sempre uma

acccedilatildeo que permita um acto de escolha de fuga ou de indiferenccedila84 A justiccedila eacute como

refere Ciacutecero habitus animi communi utilitate conseruata suam cuique tribuens

dignitatem85 A prudecircncia leva ao estudo dos elementos constituintes da natureza

identificando aleacutem das virtudes os indiferentes e as paixotildees Seacuteneca poreacutem divide o

bem em trecircs classes o da primeira diz respeito a manifestaccedilotildees como o gaudium a pax

a salus patriae o da segunda refere-se agrave tormentorum patientia et in morbo graui

temperantia (lsquoresistecircncia agrave tortura ou a firmeza de acircnimo durante uma doenccedila graversquo) o

81 Ciacutecero Tusculanae Disputationes 36 82 Seacuteneca De Ira 181 83 Dioacutegenes Laeacutercio 790 84 Dioacutegenes Laeacutercio 792-93 85 Ciacutecero De Inuentione 2160

27

bem da terceira classe estaacute relacionado com o modestus incessus et compositus ac

probus uultus et conueniens prudenti uiro gestus (lsquomodeacutestia das atitudes a serenidade e

a honestidade do rosto os gestos adequados a uma pessoa de bom sensorsquo)86

Em contraponto a estas quatro virtudes associam-se quatro viacutecios ou quatro

males a insensatez a cobardia a injusticcedila e a imprudecircncia Igualmente a estes quatro

viacutecios se subordinam outros incontinecircncia torpeza relativamente agrave mente e mau

conselho87 Dioacutegenes Laeacutercio identifica o viacutecio como o desconhecimento de tudo o que

eacute virtuoso Este eacute um aspecto que leva os estoacuteicos a afirmarem que as virtudes visto

serem um saber podem ser ensinadas A vantagem daquele que se dedica ao estudo da

virtude eacute uma vez apreendida esta faculdade natildeo mais a perder

Tambeacutem a loacutegica e a fiacutesica fazem parte das virtudes enumeradas pelos filoacutesofos

A fiacutesica eacute vista como uma moral e como um modus uiuendi que tem como princiacutepio

fundamental a Razatildeo Eacute a virtude que conduz o homem agrave sabedoria mas mais do que

isso ela eacute tida como a proacutepria sabedoria

Nem tudo os estoacuteicos consideram como bens e males virtudes e viacutecios

Entendem que haacute os indiferentes (ἀδιάφορα)88 Satildeo indiferentes tudo o que esteja

relacionado com o corpo como por exemplo a vida a morte a sauacutede a doenccedila a

beleza a forccedila a riqueza o prazer a dor a gloacuteria89 ou com aquilo que vem do exterior

visto natildeo causar nem alegria nem tristeza em quem o experimenta Apenas o uso que o

homem faz dos indiferentes permite tornaacute-los uacuteteis ou maleacuteficos Um exemplo

significativo eacute o da forccedila o elemento que melhor caracteriza a personagem Heacutercules O

uso que ele faz da forccedila que passa por ser excessivo e violento revela ser

inconveniente uma vez que ele tanto a utiliza para as boas como para as maacutes acccedilotildees

Os estoacuteicos reconhecem ainda nos indiferentes dois valores convenientes ou

inconvenientes ou na designaccedilatildeo de outros estoacuteicos preferiacuteveis (προηγμένα) ou

rejeitaacuteveis (ἀποπροηγμένα) segundo o nosso proacuteprio impulso (ὁρμή) Avaliando-os o

homem deve aceitar o que for conveniente ou evitaacute-lo caso seja inconveniente os

indiferentes sauacutede doenccedila por exemplo tornam-se assim opostos pois aquela eacute

conveniente preferiacutevel e esta eacute inconveniente rejeitaacutevel

86 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 665 Veja-se tambeacutem Maria Cristina Pimentel Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de Seacuteneca 17 87 Dioacutegenes Laeacutercio 793 88 O termo indiferente eacute usado para identificar trecircs distintos estados de espiacuterito em primeiro lugar designa aquilo que natildeo causa nem desejo nem aversatildeo segundo eacute indiferente o que causa em simultacircneo desejo e aversatildeo por uacuteltimo aquilo que natildeo concorre nem para a felicidade nem para o infortuacutenio 89 Vide Sexto Empiacuterico Aduersus Mathematicos 959 e ss

28

O que importa eacute saber aceitar tudo o que acontece de bom e de mau porque tem

origem na Providecircncia90 Esta tomada de consciecircncia e aceitaccedilatildeo permite-lhe viver em

liberdade porque em harmonia com a Natureza Ciacutecero revela quais satildeo os requisitos

para um sapiens

Ergo hic quisquis est qui moderatione et constantia quietus animo est sibique ipse placatus ut nec tabescat molestiis nec frangatur timore nec sitienter quid expetens ardeat desiderio nec alacritate futili gestiens deliquescat is est sapiens quem quaerimus is est beatus cui nihil humanarum rerum aut intolerabile ad demittendum animum aut nimis laetabile ad ecferendum uideri potest Quid enim uideatur ei magnum in rebus humanis cui aeternitas omnis totiusque mundi nota sit magnitudo Nam quid aut in studiis humanis aut in tam exigua breuitate uitae magnum sapienti uideri potest qui semper animo sic excubat ut ei nihil inprouisum accidere possit nihil inopinatum nihil omnino nouum91

Eacute entatildeo saacutebio todo o homem que eacute moderado que consegue manter uma

tranquilidade de espiacuterito vive em paz consigo mesmo sem se deixar dominar por

qualquer tipo de affectus Como explica Maria Cristina Pimentel ldquoO sapiens eacute assim

aquele que natildeo se deixa atingir pela adversidade que orienta os indiferentes no sentido

do bem que procura as virtudes e afasta os viacuteciosrdquo92 Apenas o insensato se revolta

contra o Destino e todas as acccedilotildees que aquele possa praticar por mais nobres que

aparentem ser natildeo satildeo mais do que falsas virtudes Heacutercules no Hercules Furens

revela ser o modelo de uma personagem insensata que natildeo consegue controlar as suas

emoccedilotildees

As paixotildees (πάθοι affectus) satildeo movimentos desordenados e impetuosos que

ocorrem ao niacutevel da alma satildeo corpos que nela se manifestam e que satildeo contraacuterios agrave

Natureza93 lsquoPaixatildeorsquo eacute definida por Zenatildeo segundo testemunha Dioacutegenes Laeacutercio do

seguinte modo ἔστι δὲ αὐτὸ τὸ πάθος κατὰ Ζήνωνα ἡ ἄλογος καὶ παρὰ φύσιν ψυχῆς

κίνησις ἢ ὁρμὴ πλεονάζουσα94 Ciacutecero adaptou esta definiccedilatildeo para latim ut perturbatio

sit quod πάθος ille dicit auersa a recta ratione contra naturam animi commotio

90 Cf Maria Cristina Pimentel Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de Seacuteneca 18 91 Ciacutecero Tusculanae Disputationes 41737 92 Maria Cristina Pimentel Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de Seacuteneca 19 93 Ciacutecero Tusculanae Disputationes 415 34 94 Dioacutegenes Laeacutercio 7110

29

Quidam breuius perturbationem esse adpetitum uehementiorem sed uehementiorem

eum uolunt esse qui longius discesserit a naturae constantia95

O conceito de paixatildeo assume para os estoacuteicos dois sentidos ou eacute originada por

um movimento contraacuterio agrave razatildeo ou entatildeo eacute uma tendecircncia que natildeo tem controlo (como

acontece com Heacutercules) Em ambos os casos mostra ser um sentimento que se

manifesta na alma e que se opotildee aos princiacutepios da natureza A alteraccedilatildeo que a paixatildeo

provoca na alma eacute determinada por uma perturbatio ou seja por um movimento

ldquodesordenado e doentiordquo96 que vai de encontro agrave Razatildeo

Assim consideram os estoacuteicos que tal como o corpo estaacute exposto a

adversidades exteriores que podem levaacute-lo a adoecer tambeacutem a alma pode ficar doente

e fraca As paixotildees satildeo as doenccedilas da alma e Dioacutegenes Laeacutercio sugere algumas a que a

alma fica sujeita φθονερία (inveja) ἐλεημοσύνη (misericoacuterdia) e ἔριδες (discoacuterdia)97

Entendidas como perturbationes98 elas satildeo provocadas no iacutentimo do homem e

natildeo tecircm como causa uma divindade como os autores gregos claacutessicos acreditavam

Estes julgavam que o ser humano era viacutetima das forccedilas superiores (em particular a

Necessidade99) com as quais ele natildeo poderia combater ou sequer opor-se-lhes porque

eram uma forccedila que tudo controla Assim se explicam a morte dos filhos de Heacuteracles

em Heracles e a sua proacutepria morte nas Trachiniae ou mesmo a morte de Laio e o

incesto de Eacutedipo no Oedipus Tyrannus

Os uitia (κακία) satildeo assim o resultado de uma maacute interpretaccedilatildeo de um juiacutezo

errado por parte do homem causando agitaccedilatildeo e inconstacircncia e acabam por escravizar

o proacuteprio homem Todo aquele que se deixa dominar pela mente sem controlo natildeo

consegue discernir os perigos que se avizinham

Tendo por base a ideia de que as paixotildees satildeo erros de avaliaccedilatildeo os estoacuteicos

enumeram quatro uitia primaacuterios o desgosto (λύπη) o medo (φόβος) o desejo sensual

(ἐπιθυμία) e o prazer (ἡδονή) Cada um deles tem manifestaccedilotildees fiacutesicas no ser

humano100 Na trageacutedia em anaacutelise vemos que Anfitriatildeo se deixa levar pelo medo (pela

ausecircncia do filho pela falta de seguranccedila) e pelo desgosto (sente terror pela morte dos

Heraclidas) Meacutegara pelo medo e pelo desejo Lico pelo prazer e Juno pelo desejo (o

95 Ciacutecero Tusculanae Disputationes 4611 96 Vide Joseacute Pedro Serra Pensar o Traacutegico Categorias da Trageacutedia Grega 80 97 Dioacutegenes Laeacutercio 7115 98 Vide Ciacutecero Tusculanae Disputationes 415 99 Vide G Rodis Lewis La Morale Stoiumlcienne (Paris Presses Universitaires de France 1970) 109 100 Vide Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 1066

30

oacutedio e a ira que nutre por Heacutercules faacute-la procurar incessantemente um modo de destruiacute-

-lo a deusa eacute movida ainda pela dolor por ter sido preterida por Juacutepiter)

Aleacutem disso estes quatro uitia podem ser divisiacuteveis segundo um par de binoacutemios

satildeo erros de juiacutezo em relaccedilatildeo a um tempo presente ou a um tempo futuro satildeo erros de

valor entendendo que algo eacute aparentemente bom ou mau E cada uitium tem vaacuterios

subordinados Do sentimento desgosto101 que provoca na alma uma contracccedilatildeo

irracional (συστολή) vem a piedade a inveja o ciuacuteme a rivalidade a anguacutestia a

perturbaccedilatildeo o desgosto a afliccedilatildeo e a confusatildeo O medo estaacute relacionado com uma

expectativa do mal102 e compreende a hesitaccedilatildeo a vergonha o terror o pacircnico e a

ansiedade O prazer103 que eacute um desejo irracional por algo que parece ser agradaacutevel

compreende a vaidade o regozijo com a desgraccedila alheia a voluptuosidade e a

devassidatildeo O desejo104 tido como um apetite irracional inclui o oacutedio a rivalidade a

coacutelera o amor o desejo de vinganccedila a fuacuteria105

Por oposiccedilatildeo agraves paixotildees106 os estoacuteicos tinham em conta trecircs estados emocionais

que julgavam como bons estados (εὐπάθειαι) e que eram alegria (χαρά) ndash contraacuterio do

prazer implica o contentamento a jovialidade e o bom humor prudecircncia (εὐλάβεια

cautio) ndash oposto ao temor abrange o campo o pudor e a castidade vontade (βούλησις

uoluntas) que se opotildee ao desejo e tem como manifestaccedilotildees a benevolecircncia a calma

doccedilura e afecto107

Estes estados emocionais satildeo do domiacutenio da Razatildeo por isso natildeo satildeo vistos como

uitia A vontade por exemplo contrasta com o θύμος (desejo que tem origem na alma)

e com a ἐπιθυμία (desejo do corpo em relaccedilatildeo agrave comida agrave bebida agrave libido)

Como enunciaacutemos as paixotildees satildeo movimentos irracionais provocados por juiacutezos

de valor errados o que comprova a tese da existecircncia da liberdade humana apesar de

condicionada pela acccedilatildeo do Destino que comanda tudo Na verdade os estoacuteicos

acreditam na forccedila que o Destino exerce sobre o homem mas a forma como este aceita

ou nega esta forccedila implica um acto de liberdade

101 O desgosto eacute um erro de percepccedilatildeo de algo que estaacute a decorrer no presente e eacute tido como algo mau 102 O medo corresponde a um erro de avaliaccedilatildeo que consiste em julgar que algo de futuro aconteceraacute e teraacute consequecircncias funestas 103 O prazer eacute um sentimento que aparenta ser bom e diz respeito ao momento presente 104 O desejo natildeo eacute mais do que uma aparecircncia de algo bom e que entra no domiacutenio do tempo futuro 105 Ver Ciacutecero Tusculanae Disputationes 4716 4922 106 Tendo as paixotildees origem num estado de alma contraacuterio agrave razatildeo num desequiliacutebrio emocional o seu contraacuterio tambeacutem existe isto eacute existem de igual modo affectus entendidos como bons e que pertencem ao foro da Razatildeo 107 Vide Maria Cristina Pimentel Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de Seacuteneca 21-22

31

Seacuteneca lembra a Luciacutelio a possibilidade de continuar livre mesmo quando a

Fortuna entra em guerra com o ser humano

Fortuna mecum bellum gerit non sum imperata facturus iugum non recipio immo quod maiore uirtute faciendum est excutio Non est emolliendus animus si uoluptati cessero cedendum est dolori cedendum est labori cedendum est paupertati idem sibi in me iuris esse uolet et ambitio et ira inter tot affectus distrahar immo discerpar Libertas proposita est ad hoc praemium laboratur Quae sit libertas quaeris Nulli rei seruire nulli necessitati nullis casibus fortunam in aequum deducere Quo die illam intellexero plus posse nil poterit ego illam feram cum in manu mors sit108

Eacute sob a insiacutegnia uiuere Lucili militare est109 que Seacuteneca entende esta

impassibilidade e forccedila que permitem ao saacutebio aceitar o destino mas tambeacutem defrontaacute-

-lo ndash no sentido em que nada do que a Providecircncia lhe daacute o impede de continuar

impassiacutevel de viver de acordo com a Natureza A luta passa pelo caminho da uirtus

segundo e para a qual se vive assim nada de mal poderaacute acontecer-lhe110

Este eacute o caminho que o estoacuteico pretende trilhar procurar estar em sintonia com o

soberano Bem que para Seacuteneca eacute a moral Na carta 71 diz o autor lsquosummum bonum est

quod honestum estrsquo () lsquounum bonum est quod honestum est cetera falsa et adulterina

bona suntrsquo111 O estar de acordo com este Bem implica que o saacutebio consiga suportar o

sofrimento externo sem que essa dor chegue a produzir qualquer alteraccedilatildeo no seu

iacutentimo Por outras palavras tudo o que seja tortura ou enfermidade eacute tolerado pelo

homem porque permanece impertubaacutevel112

A forma como o homem despende o seu tempo tem substancial relevo na

conduccedilatildeo da vida do sapiens e na sua formaccedilatildeo interior para alcanccedilar a uirtus Esta

preocupaccedilatildeo com a forma correcta de usar o tempo mereceu atenccedilatildeo especial por parte

de Seacuteneca natildeo apenas em obras como o De Breuitate Vitae ou o De Otio mas tambeacutem

108 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 518-9 lsquoA fortuna declarou-me guerra Eu natildeo obedeccedilo agraves suas ordens natildeo aceito o seu jugo mais pretendo mantecirc-la agrave distacircncia o que implica ainda maior coragem Natildeo posso deixar que a alma amoleccedila se fizer concessotildees ao prazer terei de fazecirc-las agrave dor ao cansaccedilo agrave pobreza a ambiccedilatildeo e a ira quereratildeo tomar conta de mim ver-me-ei dilacerado despedaccedilado entre inuacutemeras paixotildees A liberdade eacute a nossa meta eacute o preacutemio das nossas canseiras Sabes em que consiste a liberdade Em natildeo ser escravo de nada de nenhuma necessidade de nenhum acaso em lutar de igual para igual com a fortuna Se algum dia eu sentir que ela tem mais forccedila do que eu mesmo assim essa forccedila seraacute inuacutetil Nunca me deixarei vencer a morte seraacute o meu recursorsquo 109 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 965 lsquoEacute que viver Luciacutelio eacute uma miliacuteciarsquo 110 Vide Seacuteneca De Prouidentia 21 e ss 111 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 714 lsquoaquilo que se conforma com a moral () o uacutenico bem eacute aquilo que se conforma com a moral todos os outros bens satildeo falsos e impurosrsquo 112 Vide Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 715 Marco Aureacutelio Meditationes 449

32

na trageacutedia Hercules Furens Como afirma Michel Spanneut ldquoLrsquoattention au temps

constitue peut-ecirctre le point le plus original des preacuteoccupations morales de Seacutenegravequerdquo113

Partindo da ideia de que o tempo eacute um incorpoacutereo o uso que o homem dele faz pode ser

uacutetil ou nefasto Em Hercules Furens a noccedilatildeo de tempo que eacute desperdiccedilado aparece duas

vezes em tom de criacutetica Em ambas o juiacutezo eacute dirigido a Heacutercules directa e

indirectamente Nos vv 175-198 o Coro condena os homens que correm de um lado

para outro em particular os que vivem nas cidades114 partindo da generalidade dos

homens para particularizar as suas observaccedilotildees em Heacutercules Tambeacutem Anfitriatildeo reprova

o modo como o heroacutei faz uso do tempo considerando-o inconveniente Heacutercules ao

entregar-se a tarefas fuacuteteis talvez sobretudo com o desejo de gloacuteria pessoal acaba por

natildeo ter tempo nem dar qualquer atenccedilatildeo aos que efectivamente precisam da sua ajuda

do seu apoio (protinus reduci nouus paratur hostis antequam laetam domum

contingat aliud iussus ad bellum meat nec ulla requies tempus aut ullum uacat nisi

dum iubetur115) Aleacutem disso nem tem tempo para olhar para dentro de si mesmo

Eacute este tempo que eacute desperdiccedilado que Seacuteneca censura Sine proposito uagantur

quaerentes negotia nec quae destinauerunt agunt sed in quae incucurrerunt

Inconsultus illis uanusque cursus est qualis formicis per arbusta repentibus quae in

summum cacumen et inde in imum inanes aguntur His plerique similem uitam agunt

quorum non immerito quis inquietam inertiam dixerit116

Seacuteneca centra as suas criacuteticas na forma como o homem faz uso quer do tempo

presente quer do tempo futuro (ao conceber planos a longo prazo como se tivesse esse

tempo garantido) porque como lembra o filoacutesofo Nec quod futurum est meum est nec

quod fuit in puncto fugientis temporis pendeo et magni est modicum fuisse117 Sendo o

tempo o uacutenico bem que o homem possui e controla eacute seu dever saber usaacute-lo da melhor

forma possiacutevel118 A preocupaccedilatildeo desmesurada com o momento que passa Seacuteneca

rejeita-a uma vez que a considera como paixatildeo impede que o homem viva tranquilo de

113 Michel Spanneut Permanence du Stoiumlcisme de Zeacutenon agrave Malraux (Gembloux Duculot 1973) 64 114 Haacute uma niacutetida oposiccedilatildeo entre cidade e campo em que a primeira representa a confusatildeo o lugar da turba que prejudica o saacutebio e a segunda a forma de viver bem porque se estaacute em sintonia com o que a Natureza proporciona 115 Seacuteneca Hercules Furens vv 209-213 116 Seacuteneca De Tranquillitate animi 123 117 Seacuteneca Quaestiones Naturales 63210 118 Veja-se a primeira Carta de Seacuteneca a Luciacutelio cujo tema eacute o tempo O filoacutesofo exorta o amigo ndash por extensatildeo o Homem ndash a ser consciente do modo como deixa o tempo passar Incita-o a controlar e saber aproveitar cada momento que escorrega por entre os dedos natildeo no sentido epicurista mas no de aceitaccedilatildeo plena dessa passagem procurando aproveitaacute-lo o melhor possiacutevel para que natildeo constitua um obstaacuteculo agrave sua tranquilidade

33

acordo com a Natureza (esta criacutetica estaacute muito presente na primeira fala do Coro do

Hercules Furens) Assim o filoacutesofo incita o ser humano a que se torne senhor do seu

proacuteprio tempo vivendo para si Soacute o tempo eacute nosso ndash eacute a virtude sobre a qual o homem

tem pleno domiacutenio Eacute a consciecircncia viva de que o sapiens eacute dono do seu tempo que lhe

possibilita viver em pleno119 Id agamus ut nostrum omne tempus sit non erit autem

nisi prius nos nostri esse coeperimus120

A noccedilatildeo de tempoduraccedilatildeo concatena-se com a reflexatildeo sobre a meditatio

mortis no sentido de preparaccedilatildeo para a morte Como demonstrou Cristina Pimentel121

os estoacuteicos procuram compreender a morte sob muacuteltiplos aspectos

a) qual o sentido da morte em si porque existe e que sentido tem no desenrolar

da vida

b) a morte eacute um bem ou eacute um mal

c) o homem deve preparar-se para a morte (de que modo poderaacute preparar-se o

melhor possiacutevel) e natildeo temecirc-la

d) em que circunstacircncias a morte pode ser preferiacutevel agrave vida

Considerando que a morte eacute um indiferente porquanto natildeo eacute um bem nem um

mal em si tal como a proacutepria vida os filoacutesofos estoacuteicos procuram inculcar no

pensamento do ser humano a ideia de que em vez de temer a morte ele deve governar

bem a vida que lhe eacute dada Tempo Vida e Morte satildeo indiferentes que se integram na

119 Sobre a ideia de viver cada dia como se ele fosse uma vida inteira v Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 101 Aleacutem do uso de exempla para comprovar a tese de que o homem nada eacute Seacuteneca procura incentivar o homem a que natildeo fique na sombra da vida esperando o futuro para viver mas pelo contraacuterio comece hic et nunc a prestar lsquocontas com a vidarsquo cum uita paria faciamus Pouco interesse haacute em planear todo o futuro quando o homem nem sequer sabe quantas horas dias anos lhe estatildeo reservados A vida eacute insegura por isso o filoacutesofo lembra Ad Lucilium Epistulae Morales 101 4-5 Quam stultum est aetatem disponere ne crastini quidem dominum o quanta dementia est spes longas inchoantium emam aedificabo credam exigam honores geram tum deinde lassam et plenam senectutem in otium referam Omnia mihi crede etiam felicibus dubia sunt nihil sibi quisquam de futuro debet promittere id quoque quod tenetur per manus exit et ipsam quam premimus horam casus incidit Voluitur tempus rata quidem lege sed per obscurum quid autem ad me an naturae certum sit quod mihi incertum est (lsquoComo eacute estuacutepido fazer planos para uma longa vida quando natildeo se eacute sequer senhor do dia seguinte Como satildeo insensatos todos quantos formulam esperanccedilas a longo prazo hei-de comprar hei-de construir hei-de emprestar dinheiro e cobraacute-lo com juros hei-de fazer carreira na poliacutetica ndash e logo me guardarei para a vida privada quando estiver velho mas bem provido de meios Podes crer no que te digo mesmo os favorecidos da fortuna carecem de seguranccedila Ningueacutem deve fazer projectos para o futuro pois mesmo o que noacutes seguramos nos escapa das matildeos mesmo a hora que vivemos qualquer acaso a interrompe O tempo escoa-se segundo uma lei racional mas obscura para noacutes que me adianta saber que tudo se processa segundo a lei da natureza se para mim reina a incertezarsquo) 120 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 7136 lsquoFaccedilamos com que todo o nosso tempo nos pertenccedila o que soacute seraacute possiacutevel se comeccedilarmos por nos tornarmos donos de noacutes proacutepriosrsquo 121 Maria Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo Classica 23 (1999) 29-45 Todo o artigo se centra na problemaacutetica da preparaccedilatildeo para a morte sobre o suiciacutedio abonando com exempla de algumas obras entre as quais as trageacutedias Hercules Furens e Hercules Oetaeus

34

ordem natural e loacutegica do Cosmo O saacutebio porque tem consciecircncia desta inter-relaccedilatildeo

aceita-os e ao aceitaacute-los consegue viver em plena sintonia com a Natureza Mas se o

homem pode e deve ter pleno poder sobre o tempo que gasta o mesmo natildeo acontece

com a morte Ela eacute inevitaacutevel de tal modo que deve ser aceite pois eacute o fim natural da

vida na lei da Natureza tudo o que nasce tem de ter obrigatoriamente um fim A morte

natildeo eacute uma expulsatildeo brusca da vida mas antes uma saiacuteda o fim de uma peregrinaccedilatildeo

pela terra122 A vida eacute sentida natildeo como uma daacutediva permanente mas como um

empreacutestimo que quando deus achar conveniente pede ao homem que o devolva

quisquis ad uitam editur ad mortem destinatur Gaudeamus eo quod dabitur

reddamusque id cum reposcemur123

Um modo de alcanccedilar o dom da vida passa pela meditaccedilatildeo da morte Como

Seacuteneca recorda por mais estranho que pareccedila o acto de meditar em algo que o homem

soacute conheceraacute uma uacutenica vez a morte a verdade eacute que ao aprender que tem de morrer e

como deve morrer o homem liberta-se de todas as cadeias fiacutesicas e psicoloacutegicas124

Eacute poreacutem no momento em que o homem deixa de conseguir continuar a

controlar os acontecimentos segundo a Razatildeo (natildeo lhe permitindo que prossiga a via da

tranquillitas animi pela qual tanto pugna) que o suiciacutedio surge como resposta a esta

dificuldade O suiciacutedio pode tornar-se um meio de libertaccedilatildeo que permite salvaguardar a

liberdade e a dignidade do homem125 Eacute contudo o uso que se faz do suiciacutedio que pode

ser conveniente ou inconveniente De facto considera-se por um lado que soacute o saacutebio

tem direito de tomar uma decisatildeo sobre o suiciacutedio porque apenas ele tem a virtude de

conhecer e dominar o seu corpo ndash eacute um artifex uitae Jaacute o homem comum eacute facilmente

levado por paixotildees O suiciacutedio eacute por outro lado a soluccedilatildeo em momentos especiacuteficos

quando o homem fica sujeito ao poder de outro (como por exemplo quando estaacute

subordinado a um tirano) quando estaacute despojado de recursos de tal modo que natildeo lhe eacute

possiacutevel manter a sua proacutepria dignidade quando a velhice ou a doenccedila incuraacutevel o

deixam inutilizado perdendo todas as qualidades cognitivas126 quando o corpo faz da

alma sua escrava (por meio de uma ou vaacuterias paixotildees) Sendo a alma uma parte da

122 Maria Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo 30 123 Seacuteneca Consolatio ad Polybium 113 124 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 269-10 lsquoTalvez tu julgues supeacuterfluo aprender uma coisa que soacute utilizamos uma vez Mas por isso mesmo eacute que devemos meditar nela temos sempre que estudar uma coisa que natildeo podemos testar se jaacute sabemos ldquoMedita na morterdquo () Um homem que aprendeu a morrer esquece o que seja servidatildeo estaacute acima melhor dizendo estaacute fora do alcance de todo e qualquer poderrsquo 125 Vide Seacuteneca De Prouidentia 210 126 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 5835-36

35

divindade e ateacute ela podendo ascender o homem deve cuidar do corpo como se fosse um

tutor nunca se submetendo agrave vontade daquele Quando o contraacuterio se verifica ndash e a alma

se submete aos deliacuterios do corpo ndash natildeo mais teraacute domiacutenio sobre si e permaneceraacute

escrava deste127

Em todas estas circunstacircncias no entanto o homem soacute poderaacute optar pelo

suiciacutedio apoacutes uma reflexatildeo profunda e depois de ter concluiacutedo natildeo soacute que continuar a

viver eacute um obstaacuteculo agrave manutenccedilatildeo da tranquillitas animi como tambeacutem que jaacute natildeo tem

qualquer papel na vida poliacutetica ou familiar128 Como Seacuteneca sugere

Indulgendum est enim honestis adfectibus et interdum etiam si premunt causae spiritus in honorem suorum uel cum tormento reuocandus et in ipso ore retinendus est cum bono uiro uiuendum sit non quamdiu iuuat sed quamdiu oportet ille qui non uxorem non amicum tanti putat ut diutius in uita commoretur qui perseuerabit mori delicatus est Hoc quoque imperet sibi animus ubi utilitas suorum exigit nec tantum si uult mori sed si coepit intermittat et [se] suis commodet129

127 Sobre as questotildees da alma como parte de deus e para o qual regressa depois de libertada do corpo e do corpo que pode escravizar a alma se esta se deixar levar pelos caprichos corporais vide Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 9230 ss 128 Maria Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo 32-33 129 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 1043-4 lsquoHaacute que respeitar os afectos nobres Por vezes mesmo em circunstacircncias desesperadas a nossa alma prestes a exalar-se deve ser refreada retida mesmo no uacuteltimo instante por muito que isso custe se a honra dos familiares o exigir um homem de bem tem de viver natildeo enquanto lhe apraz mas enquanto a sua vida for necessaacuteria Soacute um obstinado egoiacutesta teima em morrer sem admitir que uma esposa ou um amigo lhe mereccedilam o sacrifiacutecio de prolongar um pouco mais a existecircncia Quando o interesse dos familiares o exige a alma deve impor a si mesma a vida pode ter decidido o suiciacutedio pode mesmo jaacute ter iniciado o processo pois que desista e se ponha agrave disposiccedilatildeo dos que dela precisamrsquo Este passo tem substancial importacircncia para compreensatildeo da trama das trageacutedias em estudo como voltaremos a referir em momento oportuno

36

Capiacutetulo II

HERCULES FURENS ANAacuteLISE DAS PERSONAGENS

NA TRAGEacuteDIA DE EURIacutePIDES E DE SEacuteNECA

1 Anfitriatildeo

11 caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides

Anfitriatildeo entra em cena no Proacutelogo1 comeccedilando por se apresentar como τὸν

Διὸς σύλλεκτρον2 Partindo desta circunstacircncia descreve as personagens que estatildeo

envolvidas na trageacutedia num discurso que se configura tematicamente entre um passado

afortunado e um presente que lhe eacute funesto traduzindo a perseguiccedilatildeo de Lico3

As caracteriacutesticas fiacutesicas e psicoloacutegicas que sobressaem em Anfitriatildeo satildeo

proacuteprias de um anciatildeo (εἴ τι δὴ χρὴ κἄmicrorsquo ἐν ἀνδράσιν λέγειν γέροντrsquo ἀχρεῖον4)

sensato e prudente Esta condiccedilatildeo torna a sua figura e situaccedilatildeo pateacuteticas visto que na

ausecircncia de Heacuteracles Anfitriatildeo teve de assumir o papel de guardiatildeo e protector dos

filhos e da esposa do Alcida λείπει γάρ με τοῖσδrsquo ἐν δώμασιν τροφὸν τέκνων

οἰκουρόν5 Haacute no entanto uma visiacutevel amargura neste discurso uma vez que tanto

τροφόν como οἰκουρόν6 satildeo palavras adequadas ao papel das mulheres no seu serviccedilo

domeacutestico A escolha vocabular permite acentuar a velhice (vv 41-42) e estabelecer um

contraste entre uma destreza passada perdida evocada por Meacutegara (vv 60-61) e a

realidade do presente Anfitriatildeo reconhece a sua incapacidade de defender os filhos do

Alcida vendo-se obrigado a refugiar-se com a famiacutelia heraclida junto do altar de Zeus

A sabedoria e sensatez manifesta-se pelas consideraccedilotildees que faz sobre o valor da

amizade Este eacute um tema de grande relevacircncia para a compreensatildeo da acccedilatildeo dramaacutetica 1 A acccedilatildeo dramaacutetica decorre em Tebas junto do altar de Zeus Σώτηρ e do palaacutecio de Heacuteracles Anfitriatildeo Meacutegara e os seus filhos esperam pela chegada de Heacuteracles que segundo Anfitriatildeο desceu ao Hades para capturar Ceacuterbero Natildeo haacute ainda referecircncia ao tema principal da trageacutedia a loucura de Heacuteracles Wilamowitz poreacutem sugere que o passo ῞Ηρα ὕπο κέντροις (vv 20-21) eacute jaacute um indiacutecio da loucura e dos aguilhotildees de Lissa (apud Bond 68) Em Seacuteneca o tema eacute apresentado no Acto I por Juno 2 lsquoque partilhou o leito conjugal com Zeusrsquo (v 1) Seguiu-se a traduccedilatildeo de Carlos Ferreira Santos Euriacutepides Heacuteracles Introduccedilatildeo Traduccedilatildeo e Notas (Coimbra diss de Mestrado em Literaturas Claacutessicas apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 1996) 3 Lico pretende matar a famiacutelia de Heacuteracles para que natildeo constitua uma ameaccedila ao seu governo 4 lsquoSe ainda eacute possiacutevel considerar entre os homens este velho inuacutetilrsquo (vv 41-42) 5 lsquoinstituiu guardiatildeo e protector dos seus filhosrsquo (vv 44-45) 6 Vide Bond 73

37

pois eacute um elemento que percorre toda a trageacutedia O final da ῥῆσις de Anfitriatildeo eacute um

exemplo

πάντων δὲ χρεῖοι τάσδ᾿ ἕδρας φυλάσσομεν σίτων ποτῶν ἐσθῆτος ἀστρώτῳ πέδῳ πλευρὰς τιθέντες ἐκ γὰρ ἐσφραγισμένοι δόμων καθήμεθ᾿ ἀπορίαι σωτηρίας φίλων δὲ τοὺς μὲν οὐ σαφεῖς ὁρῶ φίλους οἱ δ᾿ ὄντες ὀρθῶς ἀδύνατοι προσωφελεῖν τοιοῦτον ἀνθρώποισιν ἡ δυσπραξία∙ ἧς μήποθ᾿ ὅστις καὶ microέσως εὔνους ἐμοὶ τύχοι φίλων ἔλεγχον ἀψευδέστατον

(vv 51-59)7

Anfitriatildeo discorre sobre a verdadeira amizade que soacute eacute descoberta nas

adversidades Na situaccedilatildeo da famiacutelia heraclida os uacutenicos amigos que natildeo a

abandonaram foram os anciatildeos que constituem o Coro mas estes natildeo podem ajudaacute-la

dada a debilidade fiacutesica que a idade lhes trouxe

Meacutegara quando critica os malefiacutecios do exiacutelio expotildee a ideia de que os amigos

soacute vecircem bem os exilados no primeiro dia jaacute que depois tomam-nos como um fardo (vv

303-306) Tambeacutem Heacuteracles fica impressionado com a inexistecircncia de qualquer tipo de

auxiacutelio por parte dos amigos (vv 558-561) Podemos inferir que a primeira parte da

trageacutedia termina com uma visatildeo pessimista sobre a amizade permitindo assim

estabelecer um contraste com a parte final de Heracles com a chegada de Teseu O

aparecimento desta personagem permite criar um contraste entre Teseu e Lico e os

Tebanos uma vez que segundo Bond ldquohe exemplifies the good effective friendrdquo 8

Aleacutem das consideraccedilotildees que faz sobre a amizade Anfitriatildeo demonstra ser

sensato pelas sententiae9 que pronuncia e pelos conselhos que daacute ao confrontar-se com

Meacutegara Lico e Heacuteracles aconselha Meacutegara a ter esperanccedilas no regresso de Heacuteracles e a

permanecer calma (vv 95-106)10 alerta duas vezes Lico quanto ao uso desmedido do

7 lsquoAcolhemo-nos junto deste altar desprovidos de tudo de alimentos bebidas de vestuaacuterio com os corpos jazendo no solo nu Depois de seladas as entradas do palaacutecio permanecemos aqui sem quaisquer meios de salvaccedilatildeo Muitos dos que se diziam amigos mostram agora que o natildeo satildeo e os outros os verdadeiros amigos natildeo tecircm condiccedilotildees para nos ajudar Estas satildeo para os homens as consequecircncias da adversidade Soacute faccedilo votos para que ningueacutem (mesmo aqueles que pouco se interessam por mim) venha um dia a fazer prova real do valor da amizadersquo 8 Bond 362 9 Exemplos de γνῶμαι vv 57-59 vv 506-507 vv 511-512 10 Deste confronto com Meacutegara salientam-se o seu espiacuterito racional a sua vontade de continuar a viver enquanto lhe for possiacutevel por oposiccedilatildeo a Meacutegara que mostra um lado mais pessimista Para Carlos Santos Euriacutepides Heacuteracles Introduccedilatildeo Traduccedilatildeo e Notas 31 esta diferenccedila explica-se ldquo[por ser] fruto

38

poder lembrando-lhe que natildeo deve ser tatildeo violento para que natildeo venha tambeacutem ele a

suportar a mesma violecircncia agraves matildeos de outrem (vv 215-216 vv 707-711) sugere a

Heacuteracles que natildeo seja precipitado quando pretende vingar-se de Lico e de todos os

Tebanos que natildeo tiveram coragem de ajudar a sua famiacutelia para que natildeo tenha muitos

inimigos (vv 585-586 e vv 588-594) e aconselha-o ainda a dirigir-se ao altar da deusa

Heacutestia11 antes de matar o tirano

Anfitriatildeo tem uma posiccedilatildeo criacutetica em relaccedilatildeo a Zeus uma vez que o deus

supremo natildeo auxilia a famiacutelia de Heacuteracles Invoca-o duas vezes12 na primeira Anfitriatildeo

considera-se mais virtuoso do que Zeus uma vez que ao contraacuterio do deus natildeo

abandonou a famiacutelia na segunda invocaccedilatildeo apercebe-se de que se tornou uma

necessidade que ele proacuteprio Meacutegara e os filhos de Heacuteracles morram

A personagem Anfitriatildeo assume ainda um papel fundamental na preparaccedilatildeo do

assassiacutenio de Lico eacute ele quem prepara dolosamente a lsquoarmadilharsquo em que Lico cairaacute

Sugerindo a Heacuteracles que permaneccedila dentro do palaacutecio ateacute agrave chegada do tirano

Anfitriatildeo incita Lico a entrar no palaacutecio atraindo-o para a morte Do confronto entre os

dois salientam-se a crueldade e a violecircncia do tirano e a ironia (v 717) e ambiguidade

(v 719) do discurso de Anfitriatildeo

Por fim assume a atitude proacutepria de um pai em relaccedilatildeo a Heacuteracles defende a

honra e a heroicidade deste no ἀγών contra Lico (vv 174-205) esforccedila-se por proteger

os filhos dο heroacutei (vv 316-318) e no momento final cabe-lhe a tarefa de cremar os

cadaacuteveres dos filhos e da esposa do Alcida O uacuteltimo momento em que Anfitriatildeo estaacute

com Heacuteracles eacute densamente pateacutetico pai e filho despedem-se com um abraccedilo e com a

promessa do regresso deste para vir buscar Anfitriatildeo e levaacute-lo para Atenas lugar para

onde Heacuteracles se exila

da inexperiecircncia vivencial que reflecte afinal o papel exclusivamente confinado agraves paredes domeacutesticas a que a mulher grega tradicionalmente se encontrava votadardquo 11 Bond 216 explica que esta eacute a primeira deusa a quem Heacuteracles se dirige e honra 12 Na primeira invocaccedilatildeo entre os vv 339-347 Anfitriatildeo contesta a posiccedilatildeo do deus visto que natildeo vem em auxiacutelio da famiacutelia de Heacuteracles Para Anfitriatildeo o deus eacute mais um φίλος que lhes recusa auxiacutelio Na segunda vez em que o invoca (vv 497-513) jaacute em tom de prece pede a Zeus que os salve mas sente de que o deus natildeo os vai auxiliar καίτοι κέκλησαι πολλάκις microάτην πονῶ [lsquoDe resto tu com frequecircncia foste invocado Em vatildeo me esforceirsquo] (v 501) Ele pressente que a necessidade os obriga a morrer

39

12 caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Seacuteneca

O Anfitriatildeo de Seacuteneca eacute substancialmente diferente do de Euriacutepides Desde o

primeiro momento em que entra em cena ateacute agrave chegada de Lico natildeo sabemos que

Anfitriatildeo e a famiacutelia de Heacutercules estatildeo junto do altar de Juacutepiter Quem de tal nos

informa eacute o proacuteprio Lico quando se aproxima de Anfitriatildeo e de Meacutegara (vv 354-355)

A funccedilatildeo de guardiatildeo e protector dos filhos de Heacuteracles natildeo tem expressatildeo em Seacuteneca

assim como natildeo haacute um uacutenico lamento pela falta de amigos que possam auxiliaacute-lo na luta

contra o tirano

O discurso de Anfitriatildeo (vv 205-278)13 comeccedila por uma invocaccedilatildeo a Juacutepiter em

tom de prece Nesta inuocatio e em tom de captatio beneuolentiae roga ao deus que

ponha fim agraves suas afliccedilotildees e desgraccedilas vive atormentado pelos trabalhos a que o filho eacute

constantemente submetido desde o dia em que nasceu As primeiras criacuteticas satildeo

dirigidas principalmente a Juno visto que o oacutedio da deusa natildeo permite que Heacutercules

tenha sequer um breve momento de descanso protinus reduci nouus paratur hostis

antequam laetam domum contingat aliud iussus ad bellum meat nec ulla requies

tempus aut ullum uacat nisi dum iubetur (vv 209-213)

Este lamento inicial serve de pretexto para uma analepse onde eacute descrita a

infacircncia de Heacutercules a qual desde o iniacutecio foi marcada por tribulaccedilotildees Anfitriatildeo

recorda a aversatildeo de Juno desde o momento em que o filho dele nasceu e enumera

onze dos doze trabalhos do heroacutei omitindo o uacuteltimo14

Do nosso ponto de vista a enumeraccedilatildeo tem essencialmente trecircs objectivos

a) revelar a forccedila extraordinaacuteria do Alcida que ainda receacutem-nascido

estrangulou duas serpentes (vv 216-222)

13 Nem todos os editores atribuem estes versos a Anfitriatildeo Herrmann por exemplo atribui-os a Meacutegara (vv 205-308) Viansino Giardina e Fitch (1 e 2) atribuem os vv 205-278 a Anfitriatildeo e os vv 279-308 a Meacutegara Os argumentos que Fitch (1) 186 aponta satildeo ldquoIn 279ff which certainly belong to Megara there is a new and somewhat unbalanced emphasis on uis Herculea This change of tone suggests a change of speaker and the vocative coniunx in 279 is appropriate to such a change () 205-308 is modeled in part on two pairs of speeches by Amphitryon and Megara in Eur[ipides] Heracles As Sen[eneca] combines the Euripidean Amphitryonrsquos prologue speech with the same characterrsquos prayer to Zeus it seems that he intends the result (ie 205 ff) to be spoken by Amphitryon Some elements in 205-78 suit Amphitryon better than Megara The complaint about lack of security and requies (206-13) is repeated in Amphitryonrsquos speeches at 925f and 1252-57rdquo 14 Anfitriatildeo omite a descida aos Infernos Em Euriacutepides no proacutelogo a personagem homoacutenima alude apenas agrave descida ao Hades para explicar a ausecircncia do heroacutei e soacute descreve alguns dos trabalhos do seu filho no ἀγών contra Lico

40

b) sem elogiar as faccedilanhas de Heacutercules Anfitriatildeo critica a falta de descanso a

privaccedilatildeo de secura quies e a ausecircncia de seguranccedila por parte da famiacutelia resultando na

instabilidade emocional de Anfitriatildeo15 de Meacutegara e do proacuteprio heroacutei

c) tornar evidente o contraste entre o que Heacutercules fez e o que acontece no

presente apesar de ter libertado a terra do jugo de monstros ela encontra-se manchada

pelo crime da conquista do poder por meios violentos e iniacutequos Tudo o que Heacutercules

fez foi em vatildeo (vv 249-251)

A referecircncia ao crime da usurpaccedilatildeo do poder eacute uma alusatildeo agrave tirania Partindo do

geral (v 251 prosperum felix scelus) chega-se ao particular ndash Tebas Creonte Lico e as

dificuldades pelas quais Anfitriatildeo estaacute a passar A forma como esta personagem constroacutei

o raciociacutenio descrevendo os malefiacutecios da tirania indo agrave origem da cidade de Tebas

difere do modo como em Euriacutepides Anfitriatildeo discorre sobre os seus infortuacutenios no

proacutelogo a narraccedilatildeo junta elementos de um passado afortunado que contrasta com outros

de um presente odioso uma vez que Heacuteracles estaacute ausente da cidade Em Seacuteneca

Anfitriatildeo ao dar as primeiras impressotildees sobre Lico antecipa a entrada do tirano

permitindo ao leitor ter dele uma primeira imagem

O seu confronto com Lico e a forma como estaacute estruturado o diaacutelogo entre o

tirano e Anfitriatildeo satildeo diferentes nos dois autores bem como o objectivo que os norteia

Seacuteneca recupera o toacutepico da duacutevida de Lico em relaccedilatildeo agrave ascendecircncia divina de

Heacutercules Em ambos os autores o tirano potildee em causa a heroicidade do Alcida e o seu

regresso do mundo inferior Em Seacuteneca estes satildeo os temas-nuacutecleo que geram o conflito

de argumentos entre Lico e Anfitriatildeo Sendo a intenccedilatildeo do tirano a de se casar com

Meacutegara este pretende acabar com qualquer esperanccedila por parte dos Heraclidas no

regresso do heroacutei Jaacute em Euriacutepides o motivo eacute o de provar que Anfitriatildeo Meacutegara e os

filhos desta natildeo seratildeo salvos pelo heroacutei Para Lico Heacutercules eacute cobarde porque usa o

arco como arma A discussatildeo entre o tirano e Anfitriatildeo centra-se na utilizaccedilatildeo desta

arma e nas implicaccedilotildees que o seu uso tem numa batalha16

Diferem ainda as duas trageacutedias na forma como eacute preparada a morte de Lico e

como eacute descrito todo o processo de loucura de Heacutercules bem como no modo como o

15 Vive atormentado por graues aerumnae (cf v 206) de tal modo que nulla lux umquam mihi secura fulsit finis alterius mali gradus est futuri (vv 207-209) 16 Fitch (1) 184 justifica a diferenccedila entre os dois autores ldquothe argument in Euripides is primarily concerned with the rights and wrongs of using a bow as H[ercules] does in preference to a spear ndash a question that would have had little interest for an audience in the first century AD In Seneca the focus is rather on the question of H[ercules]rsquos divine paternity and his prospect of eventual deificationrdquo

41

heroacutei descobre a autoria do morticiacutenio Em Seacuteneca Anfitriatildeo natildeo eacute cuacutemplice no

assassiacutenio de Lico antes fica em palco com Teseu ouvindo as descriccedilotildees que este faz do

mundo inferior e das proezas do filho enquanto Heacutercules sai de cena para matar o

tirano Ao contraacuterio do que acontece na trageacutedia euripidiana Heacutercules dispensa

qualquer auxiacutelio incluindo o de Teseu o que mostra por um lado a obsessatildeo do heroacutei ndash

se ainda existe alguma ameaccedila ou de um tirano ou de um monstro eacute seu dever exclusivo

destruiacute-los ndash por outro a megalomania que adveacutem do seu sentimento de auto-

-suficiecircncia Por este motivo natildeo eacute de estranhar que a funccedilatildeo de conselheiro natildeo resulte

tatildeo bem em Seacuteneca quanto em Euriacutepides

Na trageacutedia grega Heacuteracles ouve os conselhos do pai e procura segui-los

porque os toma como saacutebios (vide supra) enquanto em Seacuteneca Heacutercules responde

sempre aos conselhos de Anfitriatildeo com a demonstraccedilatildeo de excessiva confianccedila que

deposita em si mesmo A sua soberba eacute clara Heacutercules confia apenas no poder da sua

manus julgando natildeo necessitar de conselhos dos outros No IV Acto por exemplo

Anfitriatildeo recomenda ao filho que purifique as matildeos sujas de sangue antes de iniciar as

libaccedilotildees Heacutercules replica com violecircncia e excesso (vv 920-924) demonstrando uma

crescente fuacuteria Em resposta Anfitriatildeo sugere-lhe que dirija preces a Juacutepiter pedindo-lhe

otium quiesque (vv 925-926) para os seus espiacuteritos fatigados (fessi v 926) Eacute manifesta

a necessidade que o anciatildeo sente de ter uma vida mais tranquila uma vez que natildeo

consegue permanecer imperturbaacutevel e de poder gozar da companhia do seu filho

sempre afastado continuamente a lutar contra monstros Esta acircnsia por uma vida mais

serena anuncia um espiacuterito que natildeo eacute impassiacutevel ao sofrimento mas eacute arrastado pelas

emoccedilotildees Mas uma vez mais os seus conselhos satildeo desprezados Heacutercules natildeo quer

esse otium e o seu estado de euforia atinge o limiar da loucura

Anfitriatildeo enumera as transformaccedilotildees fiacutesicas que antecedem17 a loucura de

Heacutercules narrando as suas consequecircncias a morte dos filhos e de Meacutegara18 O anciatildeo

vai ainda acompanhando as falas de Heacutercules isto eacute enquanto este descreve o que vecirc e

o que vai fazer Anfitriatildeo contrapotildee narrando aquilo que estaacute a acontecer na realidade

possibilitando ao leitor a visatildeo de dois mundos diferentes mas que se cruzam19 o

imaginaacuterio e o real Este ldquocruzamentordquo de realidades permite ter uma noccedilatildeo do

17 No final descreve tambeacutem a forma como Heacutercules adormece esgotado 18 Note-se que Anfitriatildeo soacute fala da sua velhice e consequentemente da sua impotecircncia para ajudar a famiacutelia no momento em que Heacutercules matou a mulher e os filhos cernere hoc audes nimis uiuax senectus (vv 1026-1027) 19 Pode-se dizer que eacute do cruzamento dessas duas realidades que resulta a morte das crianccedilas e de Meacutegara

42

desequiliacutebrio mental do protagonista e ter uma perspectiva do que lhe vai no acircnimo (o

que natildeo acontece em Euriacutepides uma vez que eacute o Mensageiro que relata aquilo que

observa de fora)

Em Heracles Anfitriatildeo receia aproximar-se do filho quando este acorda porque

desconhece se o espiacuterito dele ainda estaacute possuiacutedo ou se jaacute voltou ao normal teme que o

filho cometa um crime maior o parriciacutedio (vv 1081-1086) Em Seacuteneca Anfitriatildeo

procura a morte Mal Heacutercules acabara de matar Meacutegara Anfitriatildeo vai ao seu encontro

O terror o luctus (v 1027) e a sensaccedilatildeo de impotecircncia invadem o anciatildeo Anfitriatildeo

assistiu agrave morte cruel de cada um dos filhos do heroacutei e agrave de Meacutegara Julga que nada

mais lhe resta a natildeo ser morrer mors parata (v 1028) A morte surge a Anfitriatildeo como

uma forma de libertaccedilatildeo de um poder mais forte e da anguacutestia a que se vecirc submetido

Contudo eacute-lhe negada essa possibilidade Heacutercules adormece exausto pelos scelera que

cometeu e o seu pai escapa O mesmo eacute dizer que Anfitriatildeo natildeo pode morrer porque se

Heacutercules o matasse seria mais um scelus (v 1034) e quando Anfitriatildeo procura a morte

demonstra estar tomado pelos affectus ndash o Coro20 apercebe-se da sua atitude demente

quando o interpela Quo pergis amens (v 1033) Esta seria uma morte condenaacutevel

pelos estoacuteicos visto que eacute motivada por uma paixatildeo suacutebita e natildeo reflexo de uma

maturada reflexatildeo

No final da trageacutedia vendo que natildeo consegue dissuadir Heacutercules de se suicidar

Anfitriatildeo ameaccedila-o aut uiuis aut occidis (v 1308) Este eacute o uacuteltimo e uacutenico argumento

que trava o iacutempeto de Heacutercules de querer morrer

Note-se finalmente que Seacuteneca recupera alguns traccedilos que Euriacutepides o seu

modelo delineia na personagem o de defensor e conselheiro de Heacutercules Em ambos os

autores as personagens sentem-se oprimidas pela usurpaccedilatildeo do poder de Creonte por

parte de Lico A esperanccedila que em Heracles Anfitriatildeo manifesta no regresso do Alcida

estaacute tambeacutem presente em Hercules Furens e em ambos os casos a personagem

incentiva Meacutegara a acreditar no retorno do marido No entanto no caso de Hercules

Furens a spes do anciatildeo natildeo lhe permite que permaneccedila sereno perante a adversidade

20 Viansino Giardina e Herrmann atribuem estes versos a Teseu Fitch (1) 385 poreacutem remete para o Coro justificando a escolha ldquoThe only satisfactory solution is to give the present lines to the Chorus an attribuition found in M and perhaps in an ancestor of the Etruscus Indeed the timid tone of the lines suits the Chorus better than Theseus As H does not reappear onstage until 1035 () this attribution is consistent with the Senecan practice of occasionally using the Chorus in dialogue when no alternative interlocutor is available ie when there is only one speaking character onstagerdquo

43

antes suplica a Heacutercules que regresse adsis sospes et remees precor tandemque uenias

uictor ad uictam domum (vv 277-278)

A forma como Anfitriatildeo eacute apresentado nos dois tragedioacutegrafos eacute assim diacutespar

Em Euriacutepides ele parece ser mais racional e sensato Em Seacuteneca deparamos com uma

personagem que se deixa levar pelo medo e pela preocupaccedilatildeo com a seguranccedila de

Heacutercules Anfitriatildeo natildeo tem uma vida serena porque semper aut dubium mare aut

monstra timui (vv 1253-1254) Em termos estoacuteicos Anfitriatildeo natildeo se enquadra nas

caracteriacutesticas do sapiens uma vez que eacute movido pelo metus (ausecircncia de Heacutercules)

pela aegritudo (morte da famiacutelia) e pela spes (regresso do filho)

Apesar disso Anfitriatildeo tem poder de reflexatildeo e criacutetica que eacute muito mais

acentuado em Seacuteneca do que em Euriacutepides Dos seus discursos sobressaem censuras agrave

ausecircncia de Heacutercules agrave tirania agrave proacutepria cidade de Tebas que gerou muitos filhos de

origem divina21 Natildeo tem poreacutem um papel tatildeo activo (em Euriacutepides vimos que

Anfitriatildeo auxilia Heacuteracles a preparar o assassiacutenio de Lico em Seacuteneca o seu papel limita-

se agrave observaccedilatildeo e criacutetica) Esta mudanccedila prende-se com o proacuteprio ritmo da acccedilatildeo Ao

dar mais importacircncia aos monoacutelogos e aos debates entre as personagens a acccedilatildeo de

Hercules Furens eacute mais lenta Em compensaccedilatildeo eacute mais rica em auto-anaacutelises reflexotildees

sobre questotildees pertinentes como a concepccedilatildeo da uirtus do protagonista e do tirano

2 Meacutegara

21 caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides

A Meacutegara de Euriacutepides entra em cena no proacutelogo No seu diaacutelogo com Anfitriatildeo

(vv 60-106) daacute sinais de ser uma personagem marcadamente pessimista Transtornada

pela mudanccedila repentina da fortuna ndash Meacutegara a filha do rei de Tebas Creonte e casada

com Heacuteracles o melhor dos heroacuteis perde o pai assassinado por Lico que pretende

igualmente mataacute-la juntamente com os seus filhos e com Anfitriatildeo (vv 38-43) ndash ela

pressente que a morte estaacute proacutexima (vv 69-71) Natildeo acredita na possibilidade de se

salvar nem ela nem a sua famiacutelia porque natildeo tem esperanccedilas no regresso de Heacuteracles

21 Nesta alusatildeo feita por Anfitriatildeo agrave proveniecircncia divina de alguns heroacuteis que habitaram em Tebas pode estar impliacutecita a proveniecircncia divina de Heacutercules

44

(julga que ele ficou preso no mundo subterracircneo ou morreu) nem na ajuda de amigos

(vv 80-86)

O seu discurso eacute intensamente pateacutetico quando fala dos filhos assumindo uma

atitude maternal e protectora demonstra o cuidado em proteger as crianccedilas qual ave

que cobre os filhos com as asas (vv71-72) no iniacutecio do segundo episoacutedio despede-se

de cada um deles lembrando-se dos planos que Heacuteracles e ela haviam feito para o

futuro dos filhos (vv 456-489) procura salvar uma das crianccedilas que Heacuteracles ainda natildeo

assassinara no momento da sua loucura e morre tentando protegecirc-lo (vv 996-1000)

Como explica Bond ldquoshe has more time for pathos and paints an effective little picture

of herself dealing with the childish questions of her sons (71-9)rdquo22

Meacutegara revela poreacutem forccedila de espiacuterito quando defronta Lico mostrando-se

corajosa e audaz perante o tirano Sob a perspectiva de morrer consumida pelo fogo

junto do altar de Zeus e com a sua famiacutelia Meacutegara aconselha Anfitriatildeo a aceitar a

decisatildeo de Lico e a morrerem pelo menos com dignidade prefere deixar de viver com

honra do que ver os seus inimigos a rirem-se do seu infortuacutenio23 A necessidade de

preservar o κλέος da famiacutelia deve-se natildeo soacute agrave antiga reputaccedilatildeo de Anfitriatildeo enquanto

guerreiro mas tambeacutem ao facto de Heacuteracles ser glorioso (vv 288-292) desse modo

poderaacute preservar o seu bom nome de esposa do Alcida Esta honra pela qual pugna

aproxima-a assim dos heroacuteis claacutessicos

Jaacute no segundo episoacutedio no momento em que sai do palaacutecio para se render a

Lico Meacutegara invoca Heacuteracles para que ele apareccedila mesmo como sombra24 para salvar

a sua famiacutelia (vv 490-496) naquele derradeiro momento Ela nunca pede auxiacutelio a um

deus ao contraacuterio de Anfitriatildeo que dirige os seus votos a Zeus (vv 497-500) E quando

Heacuteracles entra em cena e se aproxima deles Meacutegara compara-o a Zeus no sentido em

que o poder de Heacuteracles de salvar os seus amigos vale tanto quanto o do proacuteprio deus

22 Bond 77 23 Esta ideia de ser motivo de riso para os seus inimigos (neste caso para Lico) vem no seguimento da ameaccedila do tirano de queimaacute-la viva juntamente com Anfitriatildeo e os filhos de Heacuteracles 24 Bond 191-192 recorda que a estrutura deste discurso ndash invocando a presenccedila do heroacutei ou pedindo-lhe ajuda ndash eacute comum em algumas trageacutedias em Eacutesquilo Pers 633-680 e 305-509 (dirigido a Dario) Soacutefocles El 1066-1081 Euriacutepides Or 1225-1242 e na El 677-684 (invocaccedilatildeo a Agammeacutemnon) A estrutura eacute declaraccedilatildeo de que vai comunicar algo (dirige as suas suacuteplicas a Heacuteracles vv 490-491) depois a mensagem propriamente dita (explica a situaccedilatildeo presente vv 492-493) de seguida imperativos (ordena-lhe que os salve e que apareccedila mesmo como sombra v 494) finalmente sarcasmo (provoca Heacuteracles vv 495-496)

45

(vv 519-521) Neste caso parece-nos que Meacutegara incorre na ὕβρις25 Assim a morte

desta personagem seria um castigo pelo seu desprezo pelos deuses

Quando Heacuteracles regressa o discurso de Meacutegara eacute novamente pateacutetico Sentindo

uma reviravolta na fortuna da famiacutelia das trevas para a luz ela mal deixa Anfitriatildeo

responder agrave pergunta de Heacuteracles (v 533) sendo ela quem contextualiza a situaccedilatildeo

familiar a morte iminente dos Heraclidas (vv 534 ss) Depois dessa breve informaccedilatildeo

Meacutegara torna-se uma personagem muda e natildeo aparece mais em palco O diaacutelogo

desenrola-se entre Anfitriatildeo e Heacuteracles que planeiam matar Lico Heacuteracles ainda alude

agrave esposa no momento em que vai entrar no palaacutecio dando a indicaccedilatildeo de que ela estaacute a

tremer No entanto como explica Bond ldquoEuripides and the audience have lost interest

in Megara and she has become a conventional timid wife γυνὴ δὲ θῆλυ κἀπὶ δακρύοις

ἔφυrdquo26

22 caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Seacuteneca

Em Seacuteneca a personagem oscila entre o bom senso (procurando manter

fidelidade castidade e liberdade) e estados passionais como o odium (vv 379 e ss) a

ira o furor (vv 495-500) a impotentia (cf vv 350-351) e a dementia (cf v 429)

Na sua fala nos versos 279-308 Meacutegara mostra ter uma atitude excessiva27

revelando um acircnimo perturbado e tomado pelas emoccedilotildees Na invocaccedilatildeo a Heacutercules ao

incitar o heroacutei ausente a quebrar todas as barreiras visiacuteveis e invisiacuteveis para poder

regressar a casa Meacutegara manifesta um estado eufoacuterico que parece acalmar entre os

versos 296-298 No entanto a pergunta retoacuterica (vv 296-298) que exprime uma dor

pela longa ausecircncia de Heacutercules desencadeia um novo impulso Em nove versos ela

volta a ter um discurso pautado por grande densidade emocional A anaacutefora tibi em

gradaccedilatildeo descendente (invoca primeiro Juacutepiter depois Ceres e os ritos misteriosos e

finalmente os misteacuterios de Elecircusis ndash vv 299-302) revela o intenso desejo de Meacutegara de

voltar a ver Heacutercules o que a leva a delirar O seu discurso entra no domiacutenio do

25 Um outro exemplo que evidencia a insolecircncia de Meacutegara eacute quando no monoacutelogo no segundo episoacutedio se queixa deixando transparecer ironia de que vem de Zeus o desejo de oferecer a Morte como noiva para os filhos de Heacuteracles (πατὴρ δὲ πατρὸς ἑστιᾷ γάμους ὅδε ndash lsquoeacute o pai do vosso pai que vos prepara o banquete nupcialrsquo v 483) 26 Bond 221 27 A fala de Meacutegara pauta-se por uma linguagem proacutexima da ὕβρις Como comenta Fitch (1) 205 ldquoThe first half of Megararsquos speech is marked by an ominous violence of language there is hubris in the phrases orbe diducto redi and erumpe rerum terminos tecum efferens and the idea of releasing the dead 291 ffrdquo

46

ἀδύνατος se o Alcida regressar uma nova idade floresceraacute traduzida na restituiccedilatildeo da

vida aos irmatildeos e ao pai rei de Tebas (vv 303-305) O desespero eacute cada vez mais

impetuoso ndash numa intensidade perceptiacutevel no pronome pessoal reflexo da segunda

pessoa do singular em poliptoto aliado agrave anaacutefora aut omnes agrave antiacutetese defende trahe e

agrave estrutura paraleliacutestica (vv 306-307 aut omnes tuo defende reditu sospes aut omnes

trahe)

Meacutegara termina o seu discurso de forma quase abrupta com uma suacutebita tomada

de consciecircncia trahes nec ullus eriget fractos deus (vv 305-308) O poliptoto trahe

trahes imprime agrave fala de Meacutegara um lado marcadamente pessimista e em simultacircneo

um pressaacutegio Heacutercules iraacute realmente arrastaacute-la para a morte

Meacutegara eacute caracterizada directamente por outras personagens28 vindo a primeira

referecircncia da parte do Coro o qual comenta quando a personagem entra em cena com

Anfitriatildeo que ela vem maesta () crine soluto (v 202) Esta indicaccedilatildeo daacute uma primeira

imagem de um animus perturbado Anfitriatildeo a par do elogio inicial (vv 309-310 casta

fide seruans torum natosque magnanimi Herculis) incita-a a abandonar o estado de

prostraccedilatildeo e desacircnimo pelos quais ela se deixou dominar e a confiar no retorno de

Heacutercules meliora mente concipe atque animum excita (v 311) ateacute porque o medo

oprime a alma natildeo permitindo aos que estatildeo submetidos a este affectus viver em

tranquilidade e o receio leva a que pensem sempre no pior afundando-se cada vez mais

no abismo do desespero Immo quod metuunt nimis numquam moueri posse nec tolli

putant prona est timoris semper in peius fides (vv 314-316) Com esta sententia

Anfitriatildeo inclui implicitamente Meacutegara no nuacutemero dos que satildeo levados pelo metus (cf

v 314) e pelo timor (cf v 316)

Lico descreve assim a figura de Meacutegara tristi () obtentu (v 355) O seu

aspecto fiacutesico espelha o seu proacuteprio acircnimo Meacutegara natildeo consegue controlar as emoccedilotildees

de tal forma que elas se tornaram fisicamente visiacuteveis Mas de uma face triste passa a

um estado de espiacuterito violento quando entra em conflito com Lico o qual para

assegurar o seu poder (vv 341-342) pretende obrigar Meacutegara a casar-se com ele

Reconhecendo nela um animus impotens e pertinax (cf v 350) o tirano ameaccedila matar a

famiacutelia de Heacutercules caso ela natildeo o aceite por esposo Meacutegara reage com trux uultus (cf

v 371) e efferata uox e rabida (cf v 397) agraves propostas de Lico Jamais poderia unir-se

28 Carlos Reis e Ana Cristina M Lopes Dicionaacuterio de Narratologia (7ordf ed Coimbra Almedina 2000) sv Caracterizaccedilatildeo Chris Baldick The Concise Oxford Dictionary of Literary Terms (Oxford Oxford University Press 2004) sv characterization

47

a um homem que tem as matildeos maculadas pelo sangue da sua famiacutelia (vv 372-373)

Para tornar claro a Lico a impossibilidade dessa uniatildeo Meacutegara exprime-se por meio de

adynata reforccedilando essa ideia com verbos no futuro do indicativo a aliteraccedilatildeo Scylla

Siculum e a anaacutefora de prius

a) prius extinguet ortus referet occasus diem (vv 373-374)

b) pax ante fida niuibus et flammis erit (v 375)

c) et Scylla Siculum iunget Ausonio latus (v 376)

d) priusque multo uicibus alternis fugax Euripus unda stabit Euboica piger (vv

377-378)

Aleacutem disso Lico tirou-lhe tudo quando usurpou o trono a Creonte Ela perdeu o

pater os regna os germani o lar a patria (cf vv 379-380) A enumeraccedilatildeo acentuada

pelo assiacutendeto pela figura etimoloacutegica e pelo homeoptoto concorre para acentuar a

desgraccedila de Meacutegara e a crueldade do tirano Quid ultra est (v 380) eacute a pergunta que

ela faz a si proacutepria Apenas uma coisa lhe resta e que lhe eacute mais cara do que fratre ac

patre regno ac lare (v 381) o odium Meacutegara quando se apercebe de que ainda lhe

resta algo depois de ter perdido tudo volta a referir-se ao pai aos irmatildeos aos lares e ao

reino Mas agora apresenta-os em pares ligados por uma conjunccedilatildeo coordenativa fratre

ac parente () regno ac lare (v 381) e em estrutura quiaacutestica com os antecedentes (v

379) marcados pela uariatio a) patrem regna germanos larem b) fratre ac parente

regno ac lare O assiacutendeto no v 379 marca a rapidez e a crueldade com que Lico

matou a famiacutelia de Meacutegara acentuando o oacutedio que a move porque una res superest

mihi (v 380) ndash tudo concorre para este affectus que ela sente por Lico mas que ainda

assim tem que dividir com o povo de Tebas restando-lhe uma pequena parte (vv 382-

383)

Lico imoderado volta a insistir na ideia de partilhar com ela o reino

recentemente conquistado unindo assim os leitos nupciais (tori cf v 413) Essa sua

vontade deve-se ao animus magnus de Meacutegara (cf v 412) para suportar ruinae (cf v

412) que o cativa

A insistecircncia de Lico provoca em Meacutegara uma reacccedilatildeo psicossomaacutetica29

Gelidus per artus uadit exsangues tremor (v 414) A semacircntica do verbo uado (aqui

29Eacute frequente nas trageacutedias de Seacuteneca a ocorrecircncia de manifestaccedilotildees psicossomaacuteticas nas personagens Por meio desta teacutecnica o filoacutesofo mostra agrave boa maneira estoacuteica as reacccedilotildees fiacutesicas que as perturbaccedilotildees da alma provocam Na Carta 1065 Seacuteneca lembra a Luciacutelio que as paixotildees tambeacutem satildeo corpos e como tal provocam alteraccedilotildees no rosto lsquoa coacutelera o amor a tristeza () enrugam[-nos] a testa alongam[-nos] a face tornam[-nos] a cara encarniccedilada ou fazem[-nos] ficar sem pinga de sanguerdquo

48

com um sentido de rapidez30) eacute salientada por uma estrutura quiaacutestica (gelidus ndash tremor

per artus ndash exsangues) sublinhando o sentimento de horror que percorre os membros de

Meacutegara Para ela esta proposta natildeo eacute senatildeo uma nova acccedilatildeo iacutempia (facinus v 415) que

lhe provoca terror ao contraacuterio do que sentiu quando a cidade foi tomada pelo fragor

beacutelico (vv 415-417) Se naquele momento permaneceu intrepida (cf v 417) agora

sente que vai perder a sua liberdade Prefere que as cadeias lhe desgastem o corpo ou

que uma fome prolongada a consuma morrendo lentamente do que partilhar o taacutelamo

com o tirano (thalamos tremesco v 418) A morte surge-lhe como o uacutenico meio de

permanecer livre e de manter a sua fides a Heacutercules moriar Alcide tua (v 421)

Nenhuma ameaccedila de Lico a demove porque Cogi qui potest nescit mori (v 426) ndash o

quiasmo da sententia reforccedila o seu desejo violento de deixar de viver Neste sentido a

morte como forma de libertaccedilatildeo de um poder superior ganha expressatildeo nas palavras de

Meacutegara e vai ldquoao encontro da perspectiva estoacuteicardquo31

Em Euriacutepides ao inveacutes natildeo haacute um confronto entre Meacutegara e Lico apenas entre

o tirano e Anfitriatildeo Meacutegara dirige-se ao soberano uma uacutenica vez para lhe pedir que lhe

abra a porta do palaacutecio a fim de ela e os filhos poderem vestir uma roupa fuacutenebre (vv

327-331)

Assim numa perspectiva comparativa vemos que a Meacutegara de Euriacutepides eacute

diferente da de Seacuteneca ateacute pelo nuacutemero de versos a ela dedicados em Heracles o total

de versos correspondentes agrave fala de Meacutegara eacute de 146 vv em Seacuteneca de 90 vv (56 vv)

Aleacutem disso em Euriacutepides Meacutegara entra em cena no proacutelogo e desaparece no terceiro

episoacutedio para natildeo mais regressar em Seacuteneca a personagem surge nos Actos II III e

IV Neste uacuteltimo fala apenas uma vez em dois versos e meio precisamente no

momento que antecede a sua morte tentando fazer-se reconhecer por Heacutercules Esta

diferenccedila eacute significativa indicando que a niacutevel de conteuacutedo os poetas exploraram a

figura feminina de modo desigual

Do ponto de vista estrutural comparando o Proacutelogo do Heracles (vv 1-106)

com os vv 205-331 do Acto II do Hercules Furens vemos que

a) Anfitriatildeo refere a ausecircncia do Alcida e alude agrave situaccedilatildeo de Tebas governada

sob tirania Em Euriacutepides como explica Fitch ldquo[Amphitryonrsquos first speech] is an

30 cf Ernout-Meillet sv uado 31 Vide Maria Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas trageacutedias de Seacutenecardquo Classica Boletim de Pedagogia e Cultura 23 (1999) 37

49

expository prologue speech outside the action of the playrdquo32 Jaacute em Seacuteneca parece

haver um tom que se aproxima mais de uma queixa do que uma contextualizaccedilatildeo da

acccedilatildeo dramaacutetica

b) Em Euriacutepides depois da exposiccedilatildeo de Anfitriatildeo Meacutegara fala num passado

afortunado em contraste com um presente doloroso Em Seacuteneca apesar de Anfitriatildeo e

Meacutegara entrarem ao mesmo tempo em cena33 natildeo estabelecem um diaacutelogo de imediato

cada um dirige as suas preces expondo os seus dramas interiores Natildeo haacute por assim

dizer um elemento que permita ligar a fala de Anfitriatildeo (vv 205-278) ndash iniciada pela

apoacutestrofe a Juacutepiter designado como forma de o engrandecer e de alcanccedilar dele

beneuolentia por pronominaccedilatildeo O magne Olympi rector et mundi arbiter (v 205) ndash agrave

de Meacutegara (vv 279-308) que invoca o marido Emerge coniunx (v 279) Eacute apenas

depois de Meacutegara expor o seu desespero (um uitium que a personagem natildeo consegue

controlar) que se segue o diaacutelogo entre as duas personagens34

A diferenccedila entre as duas trageacutedias tem que ver essencialmente com o objectivo

de Seacuteneca fazer representar a consciecircncia da personagem fazendo antever os affectus a

que as personagens estatildeo submetidas e pelos quais elas se movem Com esta teacutecnica

que tem uma funccedilatildeo propedecircutica o filoacutesofo revela as diversas formas de o homem se

deixar levar pelas passiones demonstrando o resultado catastroacutefico delas

Apesar de haver maioritariamente diferenccedilas no comportamento desta

personagem nas trageacutedias de Euriacutepides e Seacuteneca haacute uma semelhanccedila Meacutegara natildeo

acredita que o Alcida consiga regressar do mundo inferior Em ambas as trageacutedias esta

descrenccedila contrasta com a crenccedila de Anfitriatildeo de que o filho conseguiraacute voltar a Tebas

Em siacutentese a Meacutegara de Euriacutepides eacute uma personagem marcadamente pessimista

que aceita resignada a morte que Lico lhe destina Para esta o que importa eacute manter o

seu bom nome e a honra da famiacutelia (o κλέος proacuteprio dos heroacuteis) Jaacute a Meacutegara de Seacuteneca

eacute activa faz prevalecer a sua vontade mesmo que isso implique morrer ndash prefere a

liberdade ao jugo de um casamento manchado pelo scelus Contesta todos os

argumentos de Lico respondendo ora com a alusatildeo ao destino que o espera ora

prometendo ser a uacuteltima Danaide ndash atinge assim um estado de furor

32 Fitch (1) 183 33 O Coro anuncia a entrada das duas personagens Sed maesta uenit crine soluto Megara paruum comitata gregem tardusque senio graditur Alcidae parens (vv 202-204) 34 Anfitriatildeo dirige-se a Meacutegara por meio de um vocativo e uma periacutefrase O socia nostri sanguinis casta fide seruans torum natosque magnanimi Herculis (vv 309-310)

50

A sua atitude afasta Meacutegara do modelo estoacuteico dada a sua incapacidade de

permanecer imperturbaacutevel perante os avanccedilos de Lico e a sua ausecircncia de serenidade

que a torna demens (v 429)35 Recorde-se que segundo a predicaccedilatildeo estoacuteica a atitude

justa para com os inimigos era ser mitis et facilis36 numa firme contenccedilatildeo bem diferente

da violecircncia com que Meacutegara reage aos desmandos de Lico

3 Lico

31 caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides

A personagem Lico o tirano de Tebas eacute uma criaccedilatildeo de Euriacutepides37 Anfitriatildeo

(vv 26-34) faacute-lo descender de Lico38 (antigo soberano de Tebas) e de Dirce delineando

o caraacutecter do tirano logo no proacutelogo Como deacutespota eacute uma personagem violenta que se

move entre a astuacutecia e o temor Anfitriatildeo explica que Lico aproveitou a guerra civil para

usurpar o reino de Creonte matando-o (cf vv 33-34) O Coro indica que o tirano eacute um

estrangeiro e que conseguiu manter-se no governo porque οὐ γὰρ εὖ φρονεῖ πόλις

στάσει νοσοῦσα καὶ κακοῖς βουλεύμασιν οὐ γάρ ποτ᾿ ἂν σὲ δεσπότην ἐκτήσατο (vv

272-274)39

O tema da πόλις poluiacuteda corrompida pelas guerras civis torna mais legiacutetima a

noccedilatildeo de culpa por parte de Lico Segundo o Coro Lico natildeo respeita os deuses (cf v

255 ἀνόσιος) age com insolecircncia (cf v 261 ὑβρίζω v 741 ὕβρεις ὑβρίζων) e eacute um

assassino (v 755 διώλλυς) Por estes motivos merece ser castigado

35 Demens eacute uma palavra composta por prefixaccedilatildeo A semacircntica do prefixo de eacute de lsquoafastamento separaccedilatildeorsquo Algueacutem demens eacute agrave letra algueacutem que estaacute afastado ou separado da sua mens (logo do seu princiacutepio pensante do seu espiacuterito da inteligecircncia) Vide Ernout-Meillet sv mens 36 Cf Seacuteneca De Vita Beata 20 37 Bond xxviii afirma que natildeo haacute qualquer alusatildeo a esta personagem em outras fontes antes de Euriacutepides Esta personagem aparece em autores como Asclepiacuteades Higino e Seacuteneca porque seguiram o tragedioacutegrafo grego Aleacutem disso como explica Bond ldquoThe elaborate introduction of Lycus at 26 γέρων δὲ δή τις ἔστι Καδμείων λόγος ὡς ἦν πάρος Δίρκης τις εὐνήτωρ Λύκος reinforced by 38 ὁ καινὸς οὗτος τῆσδε γῆς ἄρχων Λύκος points clearly to Euripidean invention as Wilamowitz saw (ii 112) Lycus senior father (or ancestor) of this Lycus did exist independentlyrdquo 38 Lico filho de Hirieu e da ninfa Cloacutenia (numa outra versatildeo do mito tem como progenitor Ctoacutenio um dos guerreiros espartanos nascidos dos dentes de dragatildeo que tinha sido morto por Cadmo) Este Lico teria governado Tebas antes de Laio e fora destituiacutedo por Anfiacuteon e Zeto porque maltratou Antiacuteope matildee deles e sobrinha do soberano (vide Pierre Grimal Dicionaacuterio de Mitologia Grega e Romana coord da ediccedilatildeo portuguesa Victor Jabouille (3ordf ed Algeacutes Difel 1999) 280-81)39 lsquoEacute que a cidade enferma de discoacuterdia civil e maacutes resoluccedilotildees natildeo estaacute no seu perfeito juiacutezo de outro modo nunca te teria aceite como soberanorsquo

51

Nas suas intervenccedilotildees no primeiro e no terceiro episoacutedios Lico revela um

caraacutecter impulsivo40 cobarde e excessivo ndash caracteriacutesticas apontadas directamente pelas

personagens dramaacuteticas e indirectamente pelas suas acccedilotildees e reacccedilotildees Lico manifesta a

sua crueldade no modo como confronta Anfitriatildeo e Meacutegara recordando-lhes o seu

poder absoluto que se traduz na decisatildeo de querer matar a famiacutelia de Heacuteracles Como

assassinou Creonte teme que os filhos de Meacutegara possam constituir perigo para o seu

governo41 Justifica pois o seu acto como uma medida de precauccedilatildeo ἔχει δὲ τοὐmicroὸν

οὐκ ἀναίδειαν γέρον ἀλλ᾿ εὐλάβειαν∙42 (vv 165-166)

Anfitriatildeo interpreta as atitudes do soberano como actos de cobardia (δειλία cf

vv 210 235) e de excesso (vv 215-21643 707-70944 727-728) referindo a

possibilidade de ele vir a ser castigado pela sua insolecircncia Os versos 727-728 aludem

ao castigo que se avizinha Repare-se que a estrutura destes versos eacute semelhante agrave dos

vv 215-216 em ambos os casos haacute uma estrutura quiaacutestica acentuada pelo poliptoto

que converge para as palavras βία e κακός45

- βίᾳ δὲ δράσῃς μηδὲν ἢ πείσῃ βίαν46

- προσδόκα δὲ δρῶν κακῶς κακόν τι πράξειν47

Enquanto no primeiro exemplo Anfitriatildeo parece admitir a possibilidade de

Heacuteracles regressar e castigar o tirano ἀνομία χραίνων (lsquopela desobediecircncia agraves leisrsquo v

757) no segundo exemplo eacute a concretizaccedilatildeo dessa hipoacutetese uma vez que Lico eacute o

40 Lico rege-se por impulsos Natildeo admite que ningueacutem ouse confrontaacute-lo ameaccedilando castigar de modo cruel todos os que natildeo lhe obedecerem (nos vv 247-251 o tirano recorda ao Coro de anciatildeos que eles natildeo satildeo mais do que escravos nas matildeos dele) 41 O discurso de Lico eacute sarcaacutestico e impiedoso Na primeira parte numa foacutermula tiacutepica de uma captatio beneuolentiae numa sucessatildeo de perguntas retoacutericas o tirano pretende lembrar a Anfitriatildeo e a Meacutegara que ele eacute o novo rei e que natildeo haacute quaisquer esperanccedilas no regresso de Heacuteracles 42 lsquoA minha atitude oacute anciatildeo natildeo implica crueldade mas prudecircnciarsquo 43 Nos versos 215-16 Anfitriatildeo poderaacute aludir agrave vinda de Heacuteracles como vingador Esta ideia estaacute impliacutecita na palavra βία acentuada pelo poliptoto e na expressatildeo ὅταν θεῦ σοι πνεῦμα μεταβαλὸν τύχῃ (lsquoquando o sopro da divindade lanccedilar contra ti os ventos da fortunarsquo) ndash uma das caracteriacutesticas do Alcida eacute precisamente a de ser um heroacutei que castiga as acccedilotildees dos iacutempios recorrendo sempre agrave violecircncia Anfitriatildeo (vv 95-97) expressa a sua esperanccedila no regresso do filho 44 No terceiro episoacutedio quando o soberano entra em cena pela segunda e uacuteltima vez Anfitriatildeo censura de novo a forma como Lico se comporta Volta a incitaacute-lo a ser mais moderado ἃ χρῆν σε μετρίως κεἰ κρατεῖς σπουδὴν ἔχειν (v 709 lsquoEra com moderaccedilatildeo que tu sendo embora soberano te deverias preocuparrsquo) 45 Ambas as palavras remetem tambeacutem para a forma como Heacuteracles mataraacute o soberano Esta conexatildeo entre as duas estruturas permite estabelecer uma comparaccedilatildeo entre as duas personagens precisamente no modo como reagem a situaccedilotildees de perigo Ambas assumem um comportamento violento e irracional (como oportunamente veremos) 46 lsquoNatildeo recorras agrave violecircncia ou viraacutes tambeacutem a suportaacute-larsquo (v 215) Relativamente aos problemas que o segmento πείσῃ βίαν levanta vide Bond 121 47 lsquoDepois do mal que fizeste espera que algo de mal te possa acontecerrsquo (vv 727-728)

52

δυσσεβὴς ἀνήρ (v 760 lsquohomem iacutempiorsquo) que abusa do seu poder porque governa

segundo as leis do medo

No entanto aos conselhos de Anfitriatildeo para que modere a sua violecircncia a fim de

natildeo ser submetido por algueacutem igualmente cruel Lico responde com ainda mais oacutedio e

violecircncia ora incitando os seus acompanhantes a irem buscar lenha para queimar vivos

os Heraclidas que estatildeo junto do altar de Zeus ora invadindo o palaacutecio do heroacutei para

arrebatar de laacute Meacutegara e os filhos que segundo a indicaccedilatildeo de Anfitriatildeo se tinham

refugiado junto dos altares familiares Lico incorre na ὕβρις ao desrespeitar os

suplicantes (duas vezes) e por natildeo temer que os deuses o castiguem pela sua insolecircncia

Por esse motivo o tirano seraacute castigado

b) caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Seacuteneca

A origem de Lico natildeo eacute em Seacuteneca tatildeo expliacutecita ignarus exul (cf v 269) exul

Lycus (v 274) e estaacute desligada de Tebas ndash nenhum dos antepassados do tirano tem

qualquer viacutenculo agrave realeza Segundo Anfitriatildeo Lico natildeo eacute mais do que um desterrado

movido pelo desejo de chegar ao poder a qualquer preccedilo Jaacute em Euriacutepides Anfitriatildeo

indica que o tirano descendia de Lico que fora soberano de Tebas Com esta mudanccedila

Seacuteneca apresenta uma personagem voltada para as paixotildees Lico deseja ter poder

conquista-o por meio de scelera e pretende mantecirc-lo de qualquer modo (ou pelo

matrimoacutenio ou pelas armas)

Anfitriatildeo parte da imagem da cidade submetida pelo scelus por arma e pelo

timor que opprimit leges (cf vv 251 e ss) para falar da truculenta manus (cf v 254

metoniacutemia para designar Lico) que manteacutem a cidade sob um jugo infame (v 267

sordido premitur iugo) Estas alusotildees datildeo uma primeira ideia do crime e do caraacutecter

violento de Lico (cuja identificaccedilatildeo nominal soacute eacute feita vinte e trecircs versos depois de a ele

ser feita a primeira alusatildeo dando toda a evidecircncia do seu caraacutecter perverso)

Por oposiccedilatildeo a Lico que representa o protoacutetipo de tirano que usa saeuum

sceptrum (metoniacutemia para designar o poder do soberano cf v 272) Anfitriatildeo apresenta

Heacutercules como o que tem iusta manus (cf v 272) Ao lembrar a ausecircncia do heroacutei que

castiga todos os que governam as cidades de forma cruel Anfitriatildeo prenuncia o castigo

de Lico (vv 271-276)

53

Meacutegara acrescenta no momento em que o tirano entra em cena um conjunto de

caracteriacutesticas fiacutesicas que estatildeo em sintonia com a ψυχή do usurpador

saeuus ac minas uultu gerens et qualis animo est talis incessu uenit aliena dextra sceptra concutiens Lycus

(vv 329-331)

Nesta descriccedilatildeo de Meacutegara vemos que haacute uma relaccedilatildeo entre o interior do tirano

(o seu animus) e o seu aspecto fiacutesico traduzido na comparaccedilatildeo qualis animo est tali

incessu uenit ndash Lico apresenta manifestaccedilotildees visiacuteveis do uitium Ele vem saeuus minas

uultu gerens empunhando aliena sceptra Estas novas impressotildees revelam um caraacutecter

voltado para a crueldade Ateacute o modo como Lico se dirige a Meacutegara e a Anfitriatildeo eacute um

indicador de um acircnimo perturbado pela saeuitia ndash a forma concutiens (agitando) de um

verbo que expressa movimento aliada agrave assonacircncia dextra sceptra sugere a ideia de

que o tirano vem brandindo os aliena sceptra (note-se a metoniacutemia e o adjectivo

aliena que demonstram que Lico governa uma cidade que natildeo lhe pertence por direito)

com o intuito de persegui-los

O monoacutelogo48 de Lico (vv 332-357) vem abonar aquilo que foi dito por

Anfitriatildeo e Meacutegara sobre o perfil do tirano

Vrbis regens opulenta Thebanae loca et omne quidquid uberis cingit soli obliqua Phocis quidquid Ismenos rigat quidquid Cithaeron uertice excelso uidet

(vv 332-335)

Os primeiros versos anunciam o orgulho do rex reforccedilado pela iteraccedilatildeo de

quidquid ndash ele compraz-se em repetir o muito que estaacute sob o seu domiacutenio O tirano tem

de facto consciecircncia da riqueza da terra que usurpou noccedilatildeo essa manifestada nos

adjectivos que escolhe para qualificar Tebas opulenta uberis excelsus

Lico julga-se valoroso porque conquistou o reino de Tebas pelas suas proacuteprias

matildeos e natildeo por herenccedila Neste sentido o tirano ldquopretende desde logo rechaccedilar as

invectivas dos adversaacuterios contra a sua origem humilde (Her F 337-338) e contra a

48 Quando entra em cena Lico vem a falar sozinho e soacute depois de se expressar eacute que se apercebe da presenccedila de Anfitriatildeo e de Meacutegara (vv 354-357) Isto permite ter conhecimento do que vai no acircnimo do tirano e avaliar as suas intenccedilotildees (vide Fitch (1) 214)

54

instabilidade do poder da fortuna e procura a legitimaccedilatildeo para um poder baseado na

forccedila (v 340-342) e na vitoacuteria (v 399-402)rdquo49

[et bina findens Isthmos exilis freta] non uetera patriae iura possideo domus ignauus heres nobiles non sunt mihi aui nec altis inclitum titulis genus sed clara uirtus qui genus iactat suum aliena laudat

(vv 332-341)

Como explica Carla Gonccedilalves o termo nobilis ldquonatildeo tem aqui o valor de elogio

antes eacute utilizado com uma conotaccedilatildeo pejorativa porquanto Lico considera que o

enaltecimento da origem familiar eacute uma apropriaccedilatildeo iliacutecita do meacuterito alheiordquo50 A

oposiccedilatildeo que a personagem faz entre nobiles e sed clara uirtus natildeo deixa poreacutem de ter

um efeito iroacutenico uma vez que o modo como ele conseguiu chegar ao poder foi por

meio de um crime e natildeo do valor pessoal Aleacutem disso contrasta com a fala de Anfitriatildeo

alguns versos antes quando este critica a situaccedilatildeo actual da cidade prosperum ac felix

scelus uirtus uocatur ndash vv 251-252 Esta uirtus que Anfitriatildeo anuncia representa a

inversatildeo de valores que convicta e conscientemente Lico demonstra Os adjectivos

prosperum e felix e a aliteraccedilatildeo sublinham esta subversatildeo dos valores

Lico acha-se contudo no caminho certo e como tal a sua loacutegica eacute irrefragaacutevel

Todo o seu raciociacutenio eacute loacutegico e seria facilmente considerado como justo se estivesse

desligado do seu contexto Lico conclui as suas ideias com uma sententia (vv 340-341)

que mesmo do ponto de vista estoacuteico seria vaacutelida natildeo eacute o valor dos outros que faz o

nosso Deste modo Seacuteneca revela os erros de raciociacutenio a que o stultus estaacute sujeito as

premissas estatildeo erradas e o resultado ainda que seja aparentemente loacutegico natildeo pode ser

correcto

A tirania que exerce sobre a cidade eacute evidente quando diz que

rapta sed trepida manu sceptra obtinentur omnis in ferro est salus quod ciuibus tenere te inuitis scias strictus tuetur ensis

(v 341-344)

49 Francisco de Oliveira ldquoImagem do Poder na Trageacutedia de Seacutenecardquo Humanitas 51 (1999) 59 50 Carla Susana Vieira Gonccedilalves Invectiva na Trageacutedia de Seacuteneca (Coimbra Ediccedilotildees Colibri 2003) 126

55

As aliteraccedilotildees (obtinentur omnis tenere te scias strictus) acentuadas pela

conjunccedilatildeo adversativa que introduz uma correctio concorrem para evidenciar o lado

cruel de Lico que oprime a cidade e os habitantes com o ferrum e o ensis A uacutenica

soluccedilatildeo para tornar legiacutetimo o seu poder eacute unir-se a Meacutegara pelo matrimoacutenio51 ou se ela

negar matar a famiacutelia heraclida52 Nem uma possiacutevel hostilidade do povo caso Lico

opte por destruir a casa de Heacutercules o demove inuidia factum ac sermo popularis

premet ars prima regni est posse in inuidia pati (vv 352-353) O poliptoto de

inuidia reforccedilado pela aliteraccedilatildeo em p e pelo uso lapidar da sententia com que resume o

seu raciociacutenio acentua o menosprezo do tirano pela opiniatildeo do seu povo ldquoe cultiva o

oacutediordquo53

Procura entatildeo convencer Meacutegara tentando acalmar o seu acircnimo Mas se os

argumentos de Lico parecem justos e vaacutelidos visto que pretende restaurar a paz na

cidade (vv 362-369) natildeo deixam de comprovar a sua crueldade e ambiccedilatildeo pelo poder

Na verdade o tirano admite que usurpou o reino (v 399 rapta sceptra) que o seu

poder eacute absoluto (cf v 400) e que governa sine metu legum (cf c 400) porque eacute

mantido pela forccedila (v 401 arma)

A resposta de Meacutegara eacute a rejeiccedilatildeo da proposta do tirano Para ela Lico

representa o exitium (v 358) e a lues (v 358) Estes substantivos demonstram o caraacutecter

implacaacutevel do soberano Tambeacutem os adjectivos que Meacutegara escolhe para qualificar a

personalidade de Lico satildeo igualmente representativos na demonstraccedilatildeo dos seus

affectus ele eacute tumidus e de altus [spiritus] (cf v 384) Meacutegara recorda-lhe o destino

dos reges de Tebas (vv 386-395) destino esse que o espera dominare ut libet dum

solita regni fata te nostri uocent (vv 395-396)

Dado que Meacutegara pretende manter a fidelidade ao marido o tirano potildee em causa

a heroicidade de Heacutercules Em forma de controuersia Lico rebate todos os argumentos

de Anfitriatildeo que entretanto se propocircs defender o heroacutei ausente diminuindo o valor do

Alcida reduzindo-o a tudo menos um heroacutei Neste aspecto vemos a arguacutecia de Lico que

eacute posta ao serviccedilo do mal 51 Em Euriacutepides tivemos a ocasiatildeo de observar que o tirano pretendia matar a famiacutelia de Heacuteracles Se este toacutepico eacute inovaccedilatildeo de Seacuteneca ou se seguiu uma outra tradiccedilatildeo de tragedioacutegrafos poacutes-euripidianos natildeo haacute quaisquer certezas como explica Fitch (1) 184 No entanto como este autor indica ldquoit was particularly attractive to Seneca because it enabled him to show a tyrant being defied to his facerdquo (id) 52 Tal como explora Fitch (1) 216 estaacute impliacutecita a ideia de que os tiranos que governam sob as leis do medo vivem nesse mesmo medo assim como aqueles que governam por meio da forccedila sentem o seu poder instaacutevel (vide De Clem 1252-3) Mas no caso particular de Lico ele procura uma soluccedilatildeo para aplacar o oacutedio do seu povo e soacute em uacuteltimo caso eacute que pensa matar Meacutegara e a famiacutelia 53 Francisco de Oliveira ldquoImagem do Poder na Trageacutedia de Seacutenecardquo 59

56

Uma vez negadas todas as propostas e refutados os argumentos que usa (o

soberano queria Meacutegara iuncta estar sob o jugo do tirano e pretendia tecirc-la coacta ndash v

494) a Lico resta a ameaccedila de mataacute-los diante do altar queimando-os vivos (vv 501-

509) Como afirma Segurado e Campos ldquoa escolha do castigo pelo fogo obedece a um

propoacutesito niacutetido realccedilar a violecircncia e a ferocidade do tirano pela utilizaccedilatildeo do mais

completo e draacutestico meio de destruiccedilatildeordquo54

Se neste passo Seacuteneca retoma a tradiccedilatildeo do mito euripidiano nele encontramos

tambeacutem um aspecto divergente e inovador eacute que o tyrannus de Seacuteneca natildeo concede

sequer um uacuteltimo desejo a Anfitriatildeo o de ser o primeiro a morrer tal eacute a sua impia regis

feri dextra (vv 518-519)

Qui morte cunctos luere supplicium iubet nescit tyrannus esse diuersa irroga miserum ueta perire felicem iube ego dum cremandis trabibus accrescit rogus sacro regentem maria uotiuo colam (vv 511-515)

A inclemecircncia e impiedade de Lico satildeo evidentes nestes versos acentuados pela

antiacutetese miserum ndash felicem (v 513) e pelo substantivo tyrannus Anfitriatildeo acusa Lico de

ser iacutempio impiam regis feri dextram O quiasmo e o homeoptoto concorrem para fazer

sobressair o caraacutecter fero do tirano Na caracterizaccedilatildeo de Lico ao longo da peccedila eacute de

notar com o fim de sublinhar essa mesma ideia a insistecircncia em vocaacutebulos da raiz de

reg-55 que tecircm uma conotaccedilatildeo negativa Rex representava para os Romanos o mesmo

que o tyrannus grego (v 512) Desde a transiccedilatildeo para a Repuacuteblica e a deposiccedilatildeo dos

Tarquiacutenios que a palavra rex assumira implicaccedilotildees negativas56 O uso de regnum e de

todas as palavras que partilham a mesma raiz pode assim traduzir de imediato a ideia

de prepotecircncia abuso de poder regime autocraacutetico e despoacutetico Para o mesmo fim

concorre por exemplo o uso de dominare (v 384 v395) da raiz de dominus que

significa lsquosenhorrsquo por oposiccedilatildeo aos escravos Lico assume o perfil do amo sem piedade

e exige a submissatildeo de todos os seus desiacutegnios 54 J A Segurado e Campos ldquoO Simbolismo do Fogo nas Trageacutedias de Seacutenecardquo Euphrosyne 5 (1972) 191 55 Ao longo da fala de Lico encontramos recorrentes exemplos de rex e de palavras com a mesma raiz regum (v 398) rege (v 414) regi (vv 489-490) regis (v 518) regens (v 332) regnum (v 345 tambeacutem regno v 379 regna v 629) regam (v 400) regnantem (v 411) 56 David Stockton ldquoThe Founding of the Empirerdquo The Oxford History of the Roman World ed John Boardman Jasper Griffin Oswyn Murray (Oxford Oxford University Press 1991 reimpr 2001) 146-179

57

Vemos que Seacuteneca recupera alguns dos traccedilos do Lico de Euriacutepides Procedendo

ao cotejo entre ambas as trageacutedias eacute possiacutevel encontrar toacutepicos comuns Lico pretende

submeter a famiacutelia heraclida aos seus desejos assume uma posiccedilatildeo criacutetica em relaccedilatildeo ao

Alcida procurando eliminar qualquer esperanccedila que a sua famiacutelia possa ter

relativamente ao regresso do heroacutei eacute o estrangeiro que chega agrave cidade e mata o rei e os

seus filhos (agrave excepccedilatildeo de Meacutegara) tem o mesmo fim agraves matildeos de HeacuteraclesHeacutercules

As diferenccedilas existentes entre as duas trageacutedias dizem respeito ao conteuacutedo Em

Seacuteneca Lico aparece uma uacutenica vez no Acto II57 O nuacutemero de versos58 que

correspondem agrave fala desta personagem eacute contudo maior em Seacuteneca do que em

Euriacutepides Esta diferenccedila estaacute relacionada com a psicologia das proacuteprias personagens

Em Seacuteneca haacute mais espaccedilo para exteriorizar as reflexotildees e diaacutelogos Lico eacute exemplum

do tirano que eacute dominado pelo orgulho o excesso a crueldade a impietas e a

prepotecircncia Como observa Francisco de Oliveira ldquoSeacuteneca pretende condenar de forma

clara todo o poder de cariz tiracircnicordquo59

Em jeito de siacutentese vemos que a mesma personagem mereceu um tratamento

diferente nas duas trageacutedias Apesar de Seacuteneca ter retomado alguns aspectos do Lico de

Euriacutepides os quais apontaacutemos no breve estudo desta personagem a forma como

desenvolveu a sua caracterizaccedilatildeo diverge uma vez que norteia um objectivo pareneacutetico

De facto se o Lico de Euriacutepides eacute o διώλλυς (assassino) que procura matar todos os que

constituem um perigo para o seu governo ou ousam enfrentaacute-lo (caso do Coro) o de

Seacuteneca age de modo diferente por um lado parece mais comedido porque natildeo quer

recorrer agrave violecircncia senatildeo em uacuteltimo caso ndash a sua ambiccedilatildeo jaacute foi alcanccedilada necessita

apenas de asseguraacute-la por outro quando opta por agir de modo cruel eacute implacaacutevel natildeo

cede a nenhum pedido nem o trava nenhum escruacutepulo

57 Em Euriacutepides Lico aparece nos episoacutedios I e III 58 Num total de 64 versos em Euriacutepides vs 101 em Seacuteneca 59 Francisco de Oliveira ldquoImagem do Poder na Trageacutedia de Seacutenecardquo Humanitas 51 (1999) 78

58

4 Teseu

a) caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides

Teseu entra em cena no V Episoacutedio depois da ἀναγνώρισις do protagonista O

seu aparecimento permite estabelecer contrastes entre o solitaacuterio Heacuteracles do primeiro

acto e a sua total dependecircncia jaacute no quinto episoacutedio (vv 1397 ss) entre a

individualidade de Heacuteracles e a colectividade de Teseu Heacuteracles eacute um heroacutei auto-

suficiente ao contraacuterio de Teseu que soacute conseguiu sair do Hades com a ajuda do heroacutei

Quando soube que a famiacutelia do amigo estava a ser atormentada Teseu dirigiu-se

imediatamente para Tebas para ajudaacute-los recordando os laccedilos de amizade que os unem

(vv 1169-1171)

Teseu representa por um lado o modelo de amigo que Anfitriatildeo e Meacutegara

esperavam na primeira acccedilatildeo por outro ele eacute o verdadeiro companheiro que partilha a

mancha do crime de Heacuteracles60 ἀλλrsquo εἰ συναλγῶν γrsquo ἦλθον (1202) Teseu faz uma

apologia do valor de amizade

ὡς μὴ microύσος microὲ σῶν βάλῃ προσφθεγμάτων οὐδὲν μέλει μοι σὺν γε σοὶ πράσσειν κακῶς καὶ γάρ ποτrsquo εὐτύχησrsquo ἐκεῖσrsquo ἀνοιστέον ὅτrsquo ἐξέσωσάς μrsquo ἐς φάος νεκρῶν πάρα χάριν δὲ γηράσκουσαν ἐχθαίρω φίλων καὶ τῶν καλῶν microὲν ὅστις ἀπολαύειν θέλει συμπλεῖν δὲ τοῖς φίλοισι δυστυχοῦσιν οὔ ἀνίστασrsquo ἐκκάλυψον ἄθλιον κάρα βλέψον πρὸς ἡmicroᾶς61

(vv 1219-1227)

As aliteraccedilotildees (v 1220 microέλει μοι vv 1221-1222 κακῶς καὶ) o poliptoto (v

1219-1220 σῶν σοὶ v 1223 v 1225 φίλων φίλοισι) concorrem para sublinhar a

importacircncia que a amizade representa para Teseu eacute dever de um amigo auxiliar o outro

principalmente quando esse outro teve um papel fundamental na sua vida Recorda um

passado feliz (εὐτύχη) contrastando com a infelicidade presente (κακός) O que liga

60 Estes laccedilos afectivos recordam a amizade entre Orestes e Piacutelades (vide Euriacutepides Orestes 735) 61 lsquoSeraacute que a mancha das tuas palavras me natildeo possa afectar Natildeo me importo nada de partilhar contigo a tua infelicidade pois foi contigo que outrora fui feliz Eacute preciso remontar agravequele tempo em que tu me retiraste satildeo e salvo de entre os mortos para a luz da vida Abomino os amigos cujo reconhecimento envelhece e aqueles que querem tirar proveito dos momentos felizes mas natildeo querem compartilhar com os amigos o mesmo barco quando sopram os ventos do infortuacutenio Levanta-te descobre o teu desventurado rosto olha para mimrsquo

59

estes dois tempos eacute a amizade entre ambos Heacuteracles contribuiu para a felicidade de

Teseu este tem intenccedilatildeo de acompanhar o protagonista no seu infortuacutenio

Todo o discurso de Teseu fundamenta-se na vontade de convencer Heacuteracles a

salvar a sua vida Primeiro lembra por duas vezes que o crime de Heacuteracles natildeo pode

manchar Teseu

a) οὐ μιαίνεις θνητὸς ὢν τὰ τῶν θεῶν62 (v 1232)

b) οὐδεὶς ἀλάστωρ τοῖς φίλοις ἐκ τῶν φίλων63 (v 1234)

Pretende com estes argumentos levar Heacuteracles a descobrir a sua face e a

suportar a dor causada pelas deusas Recorrendo a perguntas retoacutericas Teseu repreende

o heroacutei por falar como um homem comum (1248) esquecendo-se da anterior coragem

do Heacuteracles que muito labutou (v 1250) e auxiliou a humanidade (v 1252) Termina o

discurso com a sentenccedila οὐκ ἄν ltσrsquogt ἀνάσχοιθrsquo lsquoΕλλὰς ἀμαθίαι θανεῖν (vv 1254)

A funccedilatildeo fundamental de Teseu eacute a de reintegrar Heacuteracles na sociedade64

Consegue resolver todos os dilemas de Heacuteracles agrave excepccedilatildeo do drama interior do

protagonista ele matou os filhos e a mulher domado pela loucura cuja causa natildeo

consegue entender

b) caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Seacuteneca

A personagem Teseu natildeo tem em Seacuteneca qualquer densidade psicoloacutegica ao

contraacuterio das restantes personagens mas estaacute dependente do Alcida Desempenha uma

dupla funccedilatildeo que se restringe no Acto III a ldquonarrador eacutepicordquo65 e no Acto V a dissuadir

Heacutercules de se suicidar Como ldquonarrador eacutepicordquo Teseu descreve as aventuras de

protagonista nos Inferni enquanto este abandona a cena para terminar o seu ldquouacuteltimo

trabalhordquo matar Lico A presenccedila eacute notada no Acto III quando Heacutercules lhe dirige a

62 lsquoSendo tu mortal nada de divino tu podes contaminarrsquo 63 lsquoNenhum geacutenio vingador passa dos amigos para os amigosrsquo 64 Tambeacutem no Orestes haacute uma procura de integraccedilatildeo do protagonista na sociedade Cabe a Apolo essa funccedilatildeo aparecendo no mecanismo deus ex machina para resolver o conflito 65 Seguimos a terminologia usada no artigo de Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos ldquoSur la typologie des personnages dans les trageacutedies de Seacutenegravequerdquo Neronia 1977 Actes du 2e Colloque de la Socieacuteteacute Internationale drsquoEacutetudes Neacuteroniennes (Clermont-Ferrand Adosa 1977) 155-176 Segundo o mesmo autor ldquonarradores eacutepicosrdquo natildeo satildeo mais do que ldquole support drsquoun discours adresseacute aux spectateurs en dehors du texte plutocirct qursquo aux personnages preacutesents agrave la scegravenerdquo (Segurado e Campos 224) Jaacute Heacutercules eacute a tiacutepica personagem-nuacutecleo uma vez que eacute para o Alcida que tudo converge

60

palavra aconselhando-o a permanecer junto da famiacutelia do protagonista enquanto ele

defronta Lico (vv 637-638)

As primeiras palavras de Teseu satildeo de consolo Para incentivar a famiacutelia

heraclida a tranquilizar-se comenta a agilidade e rapidez de Heacutercules em castigar Lico

O jogo do uso de formas do verbo dare em poliptoto apresenta uma sucessatildeo de

tempos verbais futuro (vv 643-644 dabit) presente (v 644 dat) passado (v 644

dedit) em que o futuro logo se torna presente e de imediato se cumpre (o aspecto

pontual do perfeito anula toda a duraccedilatildeo) ndash em sintonia com a repeticcedilatildeo do adjectivo

neutro lentum e com a construccedilatildeo quiaacutestica (v 644 lentum est dabit hoc [dat] est

lentum) ndash que traduzem bem a rapidez e a eficiecircncia da acccedilatildeo do heroacutei

A pedido de Anfitriatildeo (vv 646-649) Teseu segue com a narraccedilatildeo dos feitos de

Heacutercules descrevendo os Infernos Shelton sublinha que esta pausa na acccedilatildeo tem duas

funccedilotildees ldquoIt is a rhetorical showpiece to display Senecarsquos literary talents and more

importantly it provides valuable information about Herculesrsquo characterrdquo66

A descriccedilatildeo dos Inferni tem dois momentos visiacuteveis na primeira parte (vv 662-

759) descreve o espaccedilo os monstros que aiacute habitam e a funccedilatildeo que cada quaesitor

desempenha no tribunal das sombras (vv 731-734)67 Nos vv 735-736 Teseu delineia

os castigos que os criminosos recebem pelos seus crimes quod quisque fecit patitur

auctorem scelus repetit suoque premitur exemplo nocens Nestes versos agrave semelhanccedila

dos indiacutecios que o Coro vai deixando nas Odes poder-se-aacute ver uma alusatildeo ao fruto que

Heacutercules iraacute colher das suas paixotildees e dos seus erros68 Por contraste os vv 739-745

falam da beatitude de todos os que mantiveram as suas matildeos imaculadas (v 740

innocuas manus) Teseu termina estes versos com uma sententia (vv 745-747)

sanguine humano abstine quicumque regnas scelera taxantur modo maiore uestra

mostrando que todo o tirano que reine por meio do terror e do crime acabaraacute por ser

castigado da forma mais severa

66 Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 (Goumlttingen Vandenhoeck and Ruprecht 1978) 50 67 Satildeo notoacuterios ecos vergilianos em particular do Canto VI da Aeneis na forma como Seacuteneca delineia o espaccedilo do sub-mundo como por exemplo a enumeraccedilatildeo dos monstros que habitam nos primeiros corredores do Orco (vv 274-289 da Aeneis vv 689-696 de Her F) a barca mal aguenta o peso dos heroacuteis e tanto numa viagem como noutra enche-se de aacutegua (vv 413-414 da Aeneis vv 775-777 de Her F) referecircncia a Minos como presidente do tribunal das sombras (vv 432-433 da Aeneis vv 731-734 de Her F) 68 Clara-Emmanuelle Auvray Folie et Douleur dans Hercule Furieux et Hercules sur lrsquoOeta Recherches sur lrsquoexpression estheacutetique de lrsquoascegravese stoiumlcienne chez Seacutenegraveque (Frankfurt am Main Bern Nova Iorque Paris Lang 1989) 18

61

No segundo momento (vv 762-827) Teseu conta a luta entre Ceacuterbero e

Heacutercules O poeta demonstra o valor do protagonista que tudo vence primeiro

Caronte69 depois o catildeo triceacutefalo Teseu diz a Anfitriatildeo que os monstros que foram

destruiacutedos pelo heroacutei e que o proacuteprio catildeo dos Infernos sentiram medo da presenccedila do

Alcida (vv 778-793)70 Este receio pode ter duas interpretaccedilotildees a) os monstros

assustam-se com a presenccedila do protagonista porque jaacute o defrontaram Ceacuterbero tem

medo por estar habituado aos passos das sombras que habitam os Inferni ou porque

nunca viu um mortal b) este medo pode ser uma alusatildeo ao caraacutecter monstruoso de

Heacutercules

Na perspectiva de Giancotti esta narrativa perturba a economia da trageacutedia

E forse la cagione prima della disarmonia egrave da scorgere nel realistico pregiudizio che non si potesse non lasciar passare qualche tempo tra lrsquouscita drsquoErcole dalla scena per uccidere Lico e il suo ritorno A tale cagione prima si saragrave aggiunto un eccessivo indulgere di Seneca alla sua vena descrittiva e moralistica71

Para Shelton ldquoThe description of Herculesrsquo victory over Cerberus is the climax

of the scene and a high point in the tragedy because it shows Hercules at his bravest

just before he plunges to his greatest dishonorrdquo72 Jaacute Fitch tem uma interpretaccedilatildeo

diferente Em primeiro lugar compara as formas como Apolodoro e Seacuteneca

interpretaram a descida de Heacutercules aos Infernos e a luta contra Ceacuterbero Enquanto em

Apolodoro o heroacutei se dirige a Plutatildeo e lhe eacute outorgada a autorizaccedilatildeo de levar o catildeo se

conseguir vencecirc-lo (natildeo podendo socorrer-se das suas armas) em Seacuteneca Heacutercules natildeo

pede autorizaccedilatildeo mas passa logo agrave acccedilatildeo deixando os proacuteprios deuses infernais

perplexos e assustados (vv 804-806) Eacute neste sentido que Fitch afirma ldquoThis is in

69 Natildeo eacute sem violecircncia e sem rapidez que Heacutercules consegue entrar na barca de Caronte Agrave questatildeo e ordem do barqueiro ldquoquo pergis audax siste properantem gradumrdquo (v 772) o heroacutei responde com actos non passus ullas natus Alcmena moras ipso coactum nauitam conto domat scanditque puppem (vv 773-775) Em Vergiacutelio Caronte ao dirigir-se a Eneias perguntando-lhe quem eacute recorda o meio que Heacutercules usou para arrastar consigo Ceacuterbero Tartareum ille manu custodem in uincla petiuit ipsius a solio regis traxitque trementem (Aeneis 6395-396) 70 No caso de Ceacuterbero e Heacutercules a reacccedilatildeo que cada um deles provoca no seu adversaacuterio eacute de temor (vv 792-793) Quanto a Heacutercules semelhante sentimento natildeo seria de estranhar pelo modo como Teseu descreve o monstro No que se refere a Ceacuterbero o motivo que o leva a recear Heacutercules eacute incerto se por este ser mortal e estar a pisar o mundo das sombras ou se por temer que Heacutercules o venccedila 71 Francesco Giancotti Saggio sulle Tragedie di Seneca (Roma Societagrave Editrice Dante Alighieri 1953) 138 72 Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 55

62

keeping with Sen[eneca]rsquos general picture of him as a Harrower of Hell and above all

as one who relies to a hubristic degree on his own superhuman stregthrdquo73

A descriccedilatildeo do mundo inferior tem uma funccedilatildeo essencialmente didaacutectica

Seacuteneca usando os traccedilos definidores do mito sugere que nada haacute de grandioso em

infringir as leis do mundo os limites da moderaccedilatildeo as fronteiras do que eacute dado aos

seres humanos O prefaacutecio das Naturales Quaestiones justifica o motivo que leva o

filoacutesofo a condenar todos os homens que se julgam valorosos por lutarem contra feras

Diz Seacuteneca

O quam contempta res est homo nisi supra humana surrexit Quamdiu cum affectibus colluctamur quid magnifici facimus Etiamsi superiores sumus portenta uincimus Quid est cur suspiciamus nosmet ipsi quia dissimiles deterrimis sumus Non uideo quare sibi placeat qui robustior est in ualetudinario74

A descriccedilatildeo dos Infernos e da luta que Heacutercules travou com Ceacuterbero imprime a

ideia de que a gloacuteria de Heacutercules eacute duacutebia ilustrada ao longo da acccedilatildeo O heroacutei eacute o

exemplo maacuteximo de como se desperdiccedila a vida indo agrave procura de um valor que acaba

por ser aparente Ao perseguir tudo o que de cruel existe na terra e debaixo desta

Heacutercules acaba por revelar que ele eacute igualmente um monstro75

Em siacutentese em Euriacutepides e em Seacuteneca Teseu salva o Alcida da morte

reintegrando-o numa nova sociedade a ateniense No entanto o desenvolvimento que

cada um dos poetas daacute da personagem eacute uma vez mais diferente Na trageacutedia Heracles

Teseu aparece em cena no uacuteltimo episoacutedio e a funccedilatildeo desta personagem eacute a de salvar o

heroacutei Como resume Parmentier ldquoUn coup de theacuteacirctre amegravene tout agrave coup Theacutesegravee qui reacutecemment sauveacute des enfers par Heacuteraclegraves arrive en hacircte au secours de la famille de son ami Il emmegravenera lrsquoinfortuneacute agrave Athegravenes le purifiera du sang du meurtre et lui donnera des terres ougrave apregraves sa mort srsquoeacutelegraveveront des autels consacreacutes agrave son culterdquo76

73 Fitch (1) 318 74 Seacuteneca Naturales Quaestiones I Praefatio 5 75 Em Hercules Oetaeus o heroacutei sente que depois de ter pacificado todo o orbe destruindo todos os monstros que nele habitavam ele proacuteprio comeccedila a tomar o lugar deles ferae negantur Hercules monstri loco iam coepit esse (vv 55-56) 76 Parmentier 8

63

Como nota Clara-Emmanuelle Auvray Euriacutepides ao confiar a Teseu a salvaccedilatildeo

do heroacutei permite que haja uma soluccedilatildeo juriacutedica terminando assim a questatildeo da

mancha do crime de Heacutercules A mesma autora diz ldquole leacutegendaire roi drsquoAthegravenes a en

effet acquis sa gloire en eacutetablissant le συνοικισμός qui donne agrave la citeacute son unification

contre les autoriteacutes particuliegraveres et sa base deacutemocratiquerdquo77

Em Seacuteneca Teseu entra no Acto III com Heacutercules vindos dos Inferni sai de

cena no IV e volta a entrar no Acto V Enquanto narrador conta o que viu no mundo

das sombras e ilustra os excessos do protagonista No final da acccedilatildeo dramaacutetica

conforta o amigo aconselhando-o a moderar o seu espiacuterito perturbado pela ira (vv

1272-1277) e oferece-lhe hospitalidade (vv 1341-1344)

5 Coro

a) caracterizaccedilatildeo do Coro na trageacutedia de Euriacutepides

O Coro eacute constituiacutedo por um grupo de anciatildeos de Tebas Como nota Bond ldquoThe

entry of the chorus is neither expected nor announced no is it explicitly motivated

They have apparently come to lament (109f) and to encourage the suppliants (cf 114

πρόθυμ᾿)rdquo78 A entrada do Coro serve de mote para um prolongado lamento sobre a

condiccedilatildeo dos anciatildeos

ὑψόροφα μέλαθρα καὶ γεραι- ὰ δέμνι᾿ ἀμφὶ βάκτροις ἔρεισμα θέμενος ἐστάλην ἰηλέμων γέρων ἀοι- δὸς ὥστε πολιὸς ὄρνις ἔπεα μόνον καὶ δόκημα νυκτερω- πὸν ἐννύχων ὀνείρων τρομερὰ microὲν ἀλλ᾿ ὅμως πρόθυμ᾿79

(vv 107-114)

77 Clara-Emmanuelle Auvray Folie et Douleur dans Hercule Furieux et Hercules sur lrsquoOeta Recherches sur lrsquoexpression estheacutetique de lrsquoascegravese stoiumlcienne chez Seacutenegraveque 124 78 Bond 91 79 lsquoPara o palaacutecio de elevado tecto e veneraacutevel leito apoiando-me no bastatildeo me dirijo entoando tristes gemidos como um cisne jaacute envelhecido Natildeo passo de meras palavras sombria aparecircncia de um sonho nocturno mas apesar de treacutemulo da idade o zelo me daacute forccedilas para avanccedilarrsquo

64

Nestes versos haacute uma hiperbolizaccedilatildeo da sua condiccedilatildeo de fragilidade que

contrasta com a vontade de ajudar os seus amigos os anciatildeos jaacute nem sequer se

consideram verdadeiros seres humanos mas antes uma visatildeo obscurecida pela noite da

vida Esta noite metaacutefora da velhice mais natildeo eacute do que um sonho dominado pelas

trevas O sentido que estes uacuteltimos versos parecem sugerir eacute o de que eles estatildeo no

limiar da morte

O uso de metaacuteforas que expressam a velhice eacute comum nas trageacutedias de

Euriacutepides Para Bond ldquoThese metaphors are usually accumulated with καί (as here) or

ἤv Old men are words dreams shadows phantoms corpses tombs (Med 1209 Hcld

166 Ar Lys 372) δόκημα νυκτερωπὸν offers an additional form of intensification a

dubious appearance of a dream is further from reality than a dreamrdquo 80

Nos versos 119-130 os anciatildeos voltam a reforccedilar esta ideia de caducidade que

se traduz na ausecircncia de forccedilas para se movimentarem com naturalidade

daggermicroὴ προκάμητε πόδαdagger βαρύ τε κῶ- λον ὥστε πρὸς πετραῖον λέπας daggerζυγηφόρον πῶλον ἀνέντες ὡς βάρος φέρον τροχηλάτοιο πώλουdagger λαβοῦ χερῶν καὶ πέπλων ὅτου λέλοι- πε ποδὸς ἀμαυρὸν ἴχνος γέρων γέροντα παρακόμιζ᾿ ᾧ ξύνοπλα δόρατα νέα νέῳ τὸ πάρος ἐν ἡλίκων πόνοις ξυνῆν ποτ᾿ εὐκλεεστάτας πατρίδος οὐκ ὀνείδη81

A imagem eacute pateacutetica o caminhar lento auxiliado por baacuteculos e pela interajuda

que eacute acentuado pelas aliteraccedilotildees em oclusiva (π γ ν v 119 v 120 v 125 v 126 v

128) e pelos poliptotos (πόδα ποδὸς γέρων γέροντα νέα νέῳ v 119 v 125 v 126

v 128) contrasta com a coragem que manifestaram (nos versos supracitados) em querer

auxiliar Anfitriatildeo Meacutegara e os filhos de Heacuteracles Esta oscilaccedilatildeo entre a consciecircncia da

sua debilidade e a vontade de defender os seus amigos eacute constante no decorrer da acccedilatildeo

dramaacutetica

80 Bond 96 81 lsquoNatildeo canseis em vatildeo os peacutes e os pesados membros como se conduziacutesseis para o cimo de um rochedo um potro sob o jugo em acircnsias para se libertar do seu pesado fardo Segurai a matildeo e o peplo de quem atrasado arrasta o traccedilo indistinto do peacute Anciatildeo ajuda o anciatildeo com quem na juventude em combates comuns uniste as tuas agraves suas armas sem macular a honra dos mais ilustres antepassadosrsquo

65

O desenvolvimento de cada um dos momentos da trageacutedia leva a que o espiacuterito

do Coro sofra alteraccedilotildees ora lamenta a situaccedilatildeo da famiacutelia do Alcida porque natildeo a

pode ajudar (vv 115-118 vv 131-137 vv 312-315 vv 436-450) e insurge-se contra o

tirano (vv 252-274) ora entoa um canto fuacutenebre em honra de Heacuteracles porque

considera que este morreu ao tentar concluir o seu uacuteltimo trabalho recordando todas as

provaccedilotildees a que o heroacutei foi submetido (vv 349-435) ora rejubila com o regresso do

Alcida por ele representar uma μεταβολὰ κακῶν (vv 637-700) ora exulta com a morte

de Lico uma vez que eacute restituiacuteda a ordem e o reino anterior (vv 735-821) ora agoniza

perante o novo rumo dos acontecimentos motivados por divindades (vv 875-885 Iacuteris

ordena a Lissa que enlouqueccedila Heacuteracles para que o heroacutei mate a sua famiacutelia sem ter

consciecircncia do seu acto)

Quando Lico entra em cena no primeiro episoacutedio a exigir que os Heraclidas

morram o Coro insurge-se contra ele (nos vv 252-27482) Os anciatildeos manifestam a sua

audaacutecia na viva oposiccedilatildeo ao tirano (vv 252-267) condenam Lico por ser um

estrangeiro usurpador e criminoso ao mesmo tempo que lhe lanccedilam impropeacuterios

ameaccedilando-o de que enquanto eles forem vivos natildeo permitiratildeo que ele cause algum

dano aos filhos de Heacuteracles No entanto nos versos seguintes (vv 268-274) o contraste

entre a vontade que sentem e o poder que tecircm eacute pateacutetico Os anciatildeos tomam consciecircncia

de que natildeo poderatildeo fazer nada porque apesar do desejo de quererem auxiliar os amigos

a fraqueza fiacutesica natildeo lho permite83

Jaacute no primeiro estaacutesimo (vv 348-450) o Coro recorda os vaacuterios πόνοι que o

heroacutei concluiu sob as ordens de Euristeu Segundo Webster ldquoThe chorus sing a

decorated aelo-choriambic account of the labours of Herakles in three pairs of strophes

and antistrophes each with an ephymnion now Herakles is in Hades and they are too

old to helprdquo84

Na primeira estrofe (vv 348-358) o Coro diz que vai entoar um θρῆνος

dedicando-o ao Alcida Compara esse canto ao de Apolo cantando os feitos de Heacuteracles

(vv 359-429) 82 Estes versos eram atribuiacutedos a Anfitriatildeo no ms L (Bond xxxiii) manuscrito do seacutec XIV da Biblioteca Laurentina em Florenccedila Os modernos editores atribuem-nos ao Coro Segundo Bond 128-129 ldquo258-62 are appropriate only to the Chorus so are 266 f and 268-74 Moreover the invocation to strike Lycus (254-7) resembles a military order which comes better from the coryphaeus in command than from Amphitryonrdquo Natildeo eacute usual que a fala do Coro ocupe tantos versos visto que normalmente intervecircm ou nas partes liacutericas ou em esticomitia Segundo Bond 129 tambeacutem em Helena haacute uma fala do Coro extensa (vv 317-329) 83 ἐν δ᾿ ἀσθενείαι τὸν πόθον διώλεσας (lsquomas consomes o profundo desejo na fraquezarsquo) 84 T B L Webster The Tragedies of Euripides (Londres Methuen 1967) 188

66

- matou o Leatildeo de Neacutemea (vv 359-363)

- matou os Centauros da Tessaacutelia como forma de castigo (vv 364-374 este

episoacutedio natildeo faz parte dos trabalhos exigidos ao heroacutei)

- matou o cervo de cornos de ouro (corccedila de Cireneia) e ofereceu-os a Aacutertemis

(vv 375-379)

- capturou os cavalos traacutecios de Diomedes que devoravam carne humana

Heacuteracles castigou o tirano matando-o e fez do corpo deste um repasto para os cavalos

(vv 380-388)

- matou Cicno que assassinava os estrangeiros (vv 389-393 este episoacutedio natildeo

pertence aos doze trabalhos)

- colheu as maccedilatildes das Hespeacuterides mas teve de matar a serpente que as guardava

(vv 394-402 no decorrer deste trabalho Heacuteracles destruiu todos os monstros marinhos

para tornar a travessia menos perigosa aos mortais)

- susteve o mundo nos seus braccedilos substituindo Atlas (vv 403-407)

- matou Hipoacutelita rainha das Amazonas para ficar com o seu cinto (vv 408-

418)

- queimou a Hidra de Lerna serpente de mil cabeccedilas (vv 419-421) e matou o

pastor Geacuterion (vv 422-424)

- uacuteltimo trabalho para capturar Ceacuterbero desceu aos infernos de onde ainda natildeo

regressou (vv 425-429)

Como explica Bond ldquoEuripides has only three Peloponnesian labours where

Olympia has six he does not include Boar Birds or Augean Stables The three he

includes (Lion Hind Hydra) are dispersed among the other labours He does not

include external labour the Cretan Bullrdquo85

Aleacutem disso estes ἔργα estatildeo distribuiacutedos por desigual nuacutemero de versos se por

exemplo a referecircncia agrave morte do leatildeo ocupa cinco versos e a da Hidra trecircs jaacute a

descriccedilatildeo dos Jardins das Hespeacuterides estendeu-se por nove versos o assassiacutenio de

Hipoacutelita a rainha das Amazonas por dez versos assim como a morte dos Centauros

tambeacutem por dez versos Esta diferenccedila pode ter que ver com o querer sublinhar a

imagem de um heroacutei que eacute forte civilizador e protector da humanidade que segura o

ceacuteu (onde moram as divindades) mata os baacuterbaros (os Centauros) e torna os mares

navegaacuteveis No caso das Amazonas a expediccedilatildeo representa a luta entre a civilizaccedilatildeo

85 Vide Bond 154

67

(um grupo de amigos que simbolizam a Heacutelade) e a barbaacuterie (Amazonas) em que a

primeira vence ndash segundo Bond ldquoand Greece gets the girdle as the spoils of war from

the barbarianrdquo86

Este estaacutesimo daacute uma outra tonalidade agrave acccedilatildeo dramaacutetica Segundo Maria de

Faacutetima Sousa e Silva Esta ode eacute sobretudo um grande quadro onde a violecircncia natural nas faccedilanhas de Heacutercules cede lugar agrave fantasia estaacutetica de uma pintura Com o rememorar dos trabalhos lendaacuterios do heroacutei Euriacutepides desanuvia um pouco a cena num momento em que a incoacutegnita da sua ausecircncia entrega ao destino mais cruel os seres desprotegidos que dependem da forccedila do seu braccedilo e antes de o heroacutei mergulhar noutros reveses tatildeo distantes dos encantos da vitoacuteria87

No segundo estaacutesimo (vv 637-700) o Coro discorre sobre a forccedila da juventude

que considera como um Bem acima de todos os outros por oposiccedilatildeo agrave decrepitude da

velhice (γῆρας) Este elogio aos que ainda estatildeo na flor da vida deixa subjacente a ideia

de mudanccedila da Fortuna passagem das Trevas para a Luz traduzida no regresso

iminente do heroacutei

A magnanimidade do filho de Zeus leva o Coro a considerar que deveria ser

concedida a todos os jovens que satildeo conhecidos pela sua ἀρετή uma segunda juventude

καὶ τῷδ᾿ ἂν τούς τε κακοὺς ἦν γνῶμαι καὶ τοὺς ἀγαθούς (vv 665-666)88 Este desejo eacute

acentuado pelo homeoteleuto pela aliteraccedilatildeo (τούς τε) e pela antiacutetese (κακούς ndash

ἀγαθούς) Deste toacutepico o Coro passa para o enaltecimento de Heacuteracles por meio de um

hino Comparando o tema do seu canto (elogio do heroacutei filho de Zeus) ao das virgens

de Delos que honram o deus Apolo com os seus cantos o Coro estabelece um paralelo

entre o filho de Leto e o filho de Zeus Esta comparaccedilatildeo sugere que os anciatildeos

consideram que Heacuteracles eacute uma figura divina Διὸς ὁ παῖς∙ τᾶς δ᾽ εὐγενίας πλέον

86 Bond 170 O mesmo autor sugere alguns motivos que poderiam ter levado Euriacutepides a seleccionar doze dos vaacuterios ἔργα que o Alcida cumpriu ldquoHeracles is much less a Peloponnesian hero he is a pan-Hellenic leader (411 416) who travels far both inside Greece and throughout the world Three of the italicized labours exhibit him as ἀλεξίκακος (369 391 401) he kills monsters and calms the sea for mankind (hellip) He supports even the gods in heaven (406 f) the Hesperides give him his reward (396)rdquo (Bond 154) 87 Maria de Faacutetima Sousa e Silva Ensaios sobre Euriacutepides (Lisboa Livros Cotovia 2005) 387 88 lsquoAssim seria possiacutevel distinguir os homens bons e os homens mausrsquo O toacutepico da inexistecircncia de uma marca que permita reconhecer o homem bom distinguindo-o do mau lembra o ἀγῶν entre Medeia e Jasatildeo (Medea vv 516-519) Nesta contenda a protagonista acusa Jasatildeo de a ter traiacutedo e abandonado Da acusaccedilatildeo parte para a ideia de que se os deuses tivessem cunhado os homens com uma marca distintiva ela natildeo teria suportado tantos males por causa de um homem vil

68

ὑπερβάλλων ltἀρετᾶιgt (vv 696-697)89 ou que pelo menos os seus feitos satildeo dignos de

um deus A reputaccedilatildeo do Alcida como filho de Zeus foi ultrapassada pelas suas

virtudes tornou a vida dos homens mais segura e paciacutefica ao destruir todos os monstros

que os aterrorizavam

Para Hugh Parry esta ode parece ser um epiniacutecio

The Heracles ode would seem basically to be an epinician ode and one particularly reminiscent of Pindarrsquos songs in honour of mortal victors At the same time however Heracles is lauded with an extravagance which suggests a hymn in honour of a god and we note in particular the absence of the frequent Pindaric warning that mortal victors are not gods It is no accident that this epinician ode is invested with a hymnal grandeur more appropriate to divinity For the chorus elevate their hero to so dangerous a height that his fall becomes almost inevitable90

Sob o ponto de vista estrutural o terceiro estaacutesimo91 faz a ponte para a nova

acccedilatildeo iniciada pelo diaacutelogo entre Iacuteris e Lissa Eacute um momento liacuterico de elevada

intensidade dramaacutetica porque passa de um momento de extrema euforia para o

conhecimento de um novo golpe da Fortuna Heacuteracles natildeo salva as crianccedilas da morte

apenas retarda o seu Destino

Nas estrofes β e γ (vv 762-771 vv 781-797) o Coro acompanha o canto com

danccedila O seu entusiasmo eacute crescente acentuado pela repeticcedilatildeo de χοροί (v 763

lsquodanccedilasrsquo) rejubila com a morte do tirano e com a restituiccedilatildeo do antigo poder e convida

o povo de Tebas a danccedilar e a cantar as faccedilanhas de Heacuteracles Um outro motivo de juacutebilo

eacute a vitoacuteria de Heacuteracles sobre a morte Ele desceu aos abismos do Hades e regressou vivo

(vv 769-771) quebrando a barreira existente entre a vida e a morte

Jaacute na antiacutestrofe β e γ (vv 772-780 vv 798-814) o Coro elogia os deuses porque

distinguem os homens maus dos bons ndash sentimento reforccedilado pela repeticcedilatildeo de θεοί (v

772 lsquodeusrsquo) castigam os que satildeo crueacuteis e protegem os virtuosos Segundo Bond os vv

772 ss e os vv 811 ss satildeo uma teodiceia ldquothe return of Heracles and the punishment of

the wicked show that God rewards good and bad appropriatelyrdquo92

89 lsquoEle eacute filho de Zeus Mas ultrapassando com as suas virtudes a sua nobre origemrsquo 90 Hugh Parry ldquoThe Second Stasimon of Euripidesrsquo Heracles (637-700)rdquo American Journal of Philology 864 (1965) 364 91 O terceiro estaacutesimo tem trecircs estrofes e trecircs antiacutestrofes (vv 763-814) Entre os versos 735 e 760 o Coro vai acompanhando o discurso de Lico no momento em que eacute castigado pela sua insolecircncia morrendo agraves matildeos de Heacuteracles 92 Vide Bond 264

69

Ainda na antiacutestrofe γ (vv 798-814) ndash no auge do seu gaacuteudio em que o Coro

volta a enaltecer a dupla paternidade de Heacuteracles que entende como inquestionaacutevel (vv

801-804) e considera que o heroacutei eacute o melhor ἄναξ que Tebas alguma vez poderia ter ndash

entram Iacuteris e Lissa mudando o rumo do destino da famiacutelia de Heacuteracles e do proacuteprio

heroacutei porque uma vez filicida e uxoricida ele eacute obrigado a exilar-se natildeo podendo

governar Tebas

A partir do momento em que as deusas abandonam a cena o Coro volta a entoar

um canto luacutegubre Como nota Bond93 a actuaccedilatildeo do Coro entre os vv 875 e 921 pode

ser dividida em trecircs momentos ora estaacute completamente soacute e lamenta a perda do heroacutei

que vai ser enlouquecido pelos deuses ndash critica a inconstacircncia da fortuna que tatildeo

depressa sopra ventos favoraacuteveis como arruiacutena a vida do homem (vv 875-885) ora

reage aos gritos de desespero de Anfitriatildeo (vv 886-909) ora dialoga com o Mensageiro

(vv 910-921) tomando conhecimento dos antecedentes da loucura e do crime que

Heacuteracles cometeu Como aponta Barlow ldquoThe Chorus reacts to these cries with awed

horror at the effects of madness (hellip) their responses being closely linked to

Amphitryonrsquos utterancesrdquo94

Na Ode Coral95 dos vv 1016-1038 o Coro assume uma posiccedilatildeo criacutetica no que

diz respeito ao crime de Heacuteracles Compara a morte de Meacutegara com a morte dos

esposos das Danaides96 e o filiciacutedio com o assassiacutenio do filho de Procne97 agraves matildeos da

proacutepria matildee Neste exemplo o Coro aproveita o mito de Procne para demonstrar que o

crime de Heacuteracles foi superior uma vez que ela matou apenas um filho e ele trecircs Os

exemplos miacuteticos tecircm o claro propoacutesito de demonstrar que os crimes do heroacutei satildeo

superiores a todos os perpetrados anteriormente ainda os mais odiosos τάδε δ᾽

ὑπερέβαλεν παρέδραμεν τὰ τότε κακὰ τάλανι διογενεῖ κόρῳ (vv 1019-1020)98

93 Bond 295 94 Barlow 164 95 Barlow 168 explica que esta parte eacute uma Ode Coral porque eacute breve e astroacutefica Nestes versos segundo Bond 322 ldquoThere is a dead calm which is well contrasted with the last set of excited lyrics which culminated in the murder and the earthquake (875 ff)rdquo 96 Satildeo cinquenta as filhas de Daacutenao Segundo a tradiccedilatildeo mitoloacutegica Egipto pretendia reconciliar-se com o irmatildeo Daacutenao que fugira do Egipto Com esse propoacutesito o rei envia os seus cinquenta filhos para se unirem em matrimoacutenio com as filhas de Daacutenao Este aceitou a proposta Deu um grande banquete por ocasiatildeo das bodas e como prenda ofereceu a cada uma das filhas uma adaga para que elas matassem os respectivos maridos Apenas Hipermnestra natildeo matou o esposo Vide Pierre Grimal Dicionaacuterio de Mitologia Grega e Romana 110 97 Procne mata o filho para se vingar do marido Tereu por este se ter apaixonado por Filomela irmatilde de Procne e a ter violado cortando-lhe em seguida a liacutengua para que esta natildeo contasse a verdade agrave irmatilde Procne como vinganccedila assassina o seu filho e cozinha-o dando-o como refeiccedilatildeo ao marido 98 lsquoMas este feito do desgraccedilado filho de Zeus ultrapassou e venceu os males de entatildeorsquo

70

b) caracterizaccedilatildeo do Coro na trageacutedia de Seacuteneca

O Coro interveacutem apenas no final dos quatro primeiros Actos Ao contraacuterio do

que acontece em Euriacutepides natildeo sabemos qual a faixa etaacuteria do Coro nem de que cidade

satildeo oriundos99 Nem sequer eacute anunciada a sua entrada em Cena100

Natildeo participa activamente na acccedilatildeo dramaacutetica partilhando dos problemas das

personagens antes tece as suas consideraccedilotildees a partir daquilo que observa A funccedilatildeo eacute a

de criacutetico que comenta o que estaacute a acontecer Diz-nos Fitch a propoacutesito dos vv 125-

204 a primeira intervenccedilatildeo do Coro

The ode is not only integrated into the drama in a technical sense but also indispensable for our understanding of the play It establishes a standard of normality in the conduct of human life and indicates that by the standard Hercules is condemned It was essential for Seneca to formulate these judgments early in the play so that the developing action could be viewed in these terms And only the Chorus could give an objective view of this kind as the other dramatis personae all have a prejudiced view of Hercules101

Em Hercules Furens o Coro assume uma posiccedilatildeo de distanciamento das

personagens procura evitar tudo o que eacute turba Dispensa a Gloacuteria e a Fama e a estas

prefere uma vida pautada pela tranquilidade e seguranccedila

Comeccedila por descrever a noite que abandona lentamente o ceacuteu para dar lugar ao

dia (vv 125-136) Este despertar lento da Aurora intensificado pela assonacircncia em

nasais iam rara micant sidera prono languida mundo permite atenuar a violecircncia do

monoacutelogo inicial de Juno Segundo Fitch ldquoThe ode proceeds through a remarkable

series of shifts in thought and feeling First it engages the audience emotionally through

the lyrical images of light and peace in 125-61 the effect is like that of waking from a

nightmarerdquo102

Esta primeira fala do Coro (vv 125-204) pode ser dividida em quatro momentos

em primeiro lugar descriccedilatildeo do campo da paz e da poesia da natureza ao romper do dia

(vv 125-161) segundo o contraste com a vida apressada e adversa na cidade (vv 161-

99 Vide Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 100 O Coro eacute mencionado uma vez por Teseu (vv 827-829) 101 Fitch (1) 163 102 Fitch (1) 161

71

185)103 terceiro a descida de Heacutercules ao mundo inferior (vv 186-201) quarto a

entrada de Meacutegara e Anfitriatildeo em cena (vv 202-204)

Da evocaccedilatildeo dos primeiros raios de sol o Coro passa agrave enumeraccedilatildeo dos

trabalhos do campo (vv 137-161) louvando a labuta matinal A uma innocua uita a

que se liga uma tranquilla quies (cf vv 159-160) contrapotildeem-se spes immanes104

trepidique metus que definem a vida na cidade (vv 162-180) ndash esta diferenccedila eacute

reforccedilada pelo homeoptoto e pelo quiasmo (spes immanes ndash trepidique metus) A

cidade por oposiccedilatildeo ao campo eacute o lugar de conflitos e discoacuterdias Eacute o lugar de medos e

de falsas esperanccedilas que pouco contribuem para manter a seguranccedila e a liberdade do

homem De facto estes sentimentos natildeo satildeo mais do que paixotildees que prendem o

homem como grilhotildees de modo que satildeo poucos os que conseguem libertar-se de tais

affectus (v 175 nouit paucos secura quies) Pelo contraacuterio o comum dos mortais eacute

devorado pelo passar do tempo porque corre em grande euforia atraacutes de coisas vatildes (vv

183-184 gens hominum fertur rapidis obuia fatis incerta sui) e assim a vida passa por

ele velozmente (vv 173-179)

O Coro acentua aqui um toacutepico estoacuteico o tempo natildeo se recupera e soacute o

momento presente nos pertence (vv 175-176 uelocis memores aeui tempora

numquam reditura tenent) O que o homem natildeo sapiens faz eacute deixar-se levar pelos

dias consumindo a vida ao sabor do curso raacutepido (vv 178-180 properat cursu uita

citato uolucrique die rota praecipitis uertitur anni) sem se preocupar com o que eacute

realmente importante como que ignorando o que eacute inevitaacutevel e sem atender ao fim que

o espera que pode ser jaacute agora Na teoria estoacuteica a necessidade de ldquoaproveitar bem a

103 Fitch (1) 162 sublinha que o contraste entre o campo e a cidade conteacutem alguns elementos anacroacutenicos ldquothe salutatio of 164-66 the lawyerrsquos activity in the forum in 172-74 the triumphal currus of 195 () Here the anachronisms may be seen as related to the strategy of moving through familiar material to an unfamiliar conclusionrdquo O efeito seria o de reconhecer na forma de vida de Heacutercules (exemplo de vida que se afasta da virtude entrando no domiacutenio dos erros e dos viacutecios) os proacuteprios viacutecios de Roma 104 Fitch (1) 174 considera a expressatildeo spes immanes sugerida por Schmidt e adoptada por Miller mais atractiva do que spes iam magnis (Giardina) ou spes in magnis (Viansino) Em relaccedilatildeo agrave expressatildeo spes iam magnis o autor explica 173 ldquoIam having meant ldquoat dawn on this date in the Heroic Agerdquo can scarcely mean ldquoin these degenerate Roman timesrdquo here although the activities listed in 164-174 are clearly Roman in character it would take more than a iam to turn a covert anachronism into an overt onerdquo Jaacute no que diz respeito a spes in magnis Fitch (1) 174 comenta que as conjecturas que Gronovius faz desta expressatildeo satildeo muito vagas Spes immanes (lsquoesperanccedilas colossaisdesmedidasrsquo) tem numa perspectiva estoacuteica uma conotaccedilatildeo mais violenta Todo o homem que viva agarrado agrave spes natildeo consegue viver o momento presente e ateacute o dia seguinte lhe escapa Na Ep 10110 Seacuteneca recorda a Luciacutelio que este tipo de homens natildeo consegue aproveitar a vida em seguranccedila in spem uiuentibus proximum quodque tempus elabitur subitque auiditas et miserrimus ac miserrima omnia efficiens metus mortis (lsquopara quem vive de esperanccedilas pelo contraacuterio mesmo o dia seguinte lhe escapa e depois nem a avidez de viver e o medo de morrer medo desgraccedilado e que mais natildeo faz do que desgraccedilar tudorsquo)

72

vidardquo eacute viver cada dia como se fosse o uacuteltimo para atingir a perfeiccedilatildeo para a construir

segundo a segundo105 ndash soacute assim o sapiens pode sentir seguranccedila

Na cidade o homem tem mais tendecircncia a deixar-se enredar nas malhas da

confusatildeo e da vida supostamente cheia (mas que eacute afinal cheia de nada) Por isso

Seacuteneca escreve por exemplo o De Breuitate Vitae mostrando ao destinataacuterio que natildeo

pode adiar mais o momento de se encontrar consigo mesmo pondo fim agraves muitas

ocupaccedilotildees que lhe atravancam e destroem a vida

Seacuteneca lembra que entre viver (uiuere) e existir (esse) a diferenccedila eacute

avassaladora um homem pode existir durante numerosos anos e nunca ter vivido assim

como um jovem pode ter morrido na flor da idade mas soube viver cada dia que o

destino lhe reservou Natildeo importa viver muito mas sim viver em pleno (Ep 937

Quamdiu sim alienum est quamdiu ero ltueregt ut sim meum est Hoc a me exige ne

uelut per tenebras aeuum ignobile emetiar ut agam uitam non ut praeteruehar106) A

duraccedilatildeo ideal da vida eacute a que permite atingir a sabedoria (Ep 938 ad sapientiam

uiuere) ndash este eacute o uacutenico objectivo que deve nortear o homem

Nos vv 178 ss o toacutepico da sucessatildeo dos dias e da necessidade que o homem

tem de tomar consciecircncia da brevidade da vida e da imutabilidade do seu destino (cf

vv 181-204 as Parcas nunca desfazem a trama que vatildeo tecendo mas vatildeo sempre

desenrolando o fio) vem introduzir um novo aspecto o Alcida O Coro critica o heroacutei

porque ousou descer aos infernos para descobrir o que eacute oculto aos homens107 Censura-

-o igualmente por querer apressar o trabalho das Parcas uma vez que a morte eacute

inevitaacutevel Ningueacutem pode antecipar ou retardar a sua morte certo ueniunt tempore

Parcas nulli iusso cessare licet nulli scriptum proferre diem (vv 188-190)108 ndash a

105 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 1011 Ideo propera Lucili mi uiuere et singulos dies singulas uitas putas (lsquoApressa-te a viver caro Luciacutelio imagina que cada dia eacute uma vida completarsquo) 106 lsquoNatildeo me cabe determinar por quanto tempo vivo estaacute todavia na minha matildeo viver plenamente enquanto existir Exige de mim que eu natildeo percorra como que envolto em trevas uma existecircncia sem sentido mas que realize a minha vida em vez de lhe passar ao ladorsquo 107 Fitch (1) 162 identifica uma outra interpretaccedilatildeo possiacutevel para a descida de Heacutercules ao mundo inferior ldquoHerculesrsquo descent to the underworld is seen as a metaphor for the human tendency to rush deathward in pursuit of ambitious aims rather than savoring each passing momentrdquo Para os estoacuteicos Heacutercules ao descer aos Infernos e de laacute regressar quebrou os limites entre os dois mundos subvertendo a ordem (coacutesmica) O seu acto revelou excesso e desmesura ambiccedilatildeo e orgulho Tambeacutem na Medea o Coro condena Jasatildeo por ter rompido os mares (vv 301-302) Natildeo eacute nesses actos que estaacute o que eacute mais importante na vida humana mas sim em vencer os seus proacuteprios viacutecios Nas Naturales Quaestiones 3 praef 10-17 Seacuteneca recorda Quid praecipuum in rebus humanis est Non classibus maria complesse nec in rubri maris litore signa fixisse nec deficiente ad iniurias terra errasse in oceano ignota quaerentem sed uitia domuisse 108 Vide Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 696 Nemo moritur nisi sua morte () nemo nisi suo die moritur (lsquoNingueacutem morre senatildeo de morte natural () ningueacutem morre senatildeo no seu proacuteprio diarsquo) Note-se o estreito paralelo entre a trageacutedia e o diaacutelogo filosoacutefico

73

construccedilatildeo paraleliacutestica imprime uma ideia de imutabilidade de impossibilidade de

iludir esta lei natural

Por oposiccedilatildeo agrave Gloria e agrave Fama que percorrem as cidades (vv 192-201)

imortalizando os heroacuteis pelos seus feitos neste caso Heacutercules o Coro volta a elogiar a

paz e a tranquilidade de uma existecircncia simples preferindo terminar a velhice humilique

loco sed certa (v 199) e numa sordida fortuna paruae domus (v 200) porque assim se

permanece livre de qualquer sofrimento Esta impassibilidade soacute eacute possiacutevel para as

pessoas que vivem longe de todo o geacutenero de turba Na cidade poreacutem natildeo eacute possiacutevel

encontrar a tranquillitas animi desejada pois o stultus corre como para agarrar a vida

quando o que acontece na realidade eacute que fica acorrentado a todo o tipo de affectus

deixando de ter domiacutenio sobre a sua proacutepria vida

Ao longo das Odes Corais vai sendo manifestada uma posiccedilatildeo negativa

relativamente a Heacutercules O Coro parece anunciar que a ambiccedilatildeo desmedida do heroacutei o

lanccedilaraacute no mais fundo abismo (v 201 alte uirtus animosa cadit) Como sugere Fitch

Their critique of the active life may be summarized as follows first it is dominated by the affectus spes and metus (161ff) second those obsessed by ambition rush towards death in the sense of forgetting the ephemeral nature of human life and neglecting quiet enjoyment of each passing day (174ff) third the lofty positions attained by the ambitious are precarious alte uirtus animosa cadit (201) We can scarcely fail to perceive that Hercules is the outstanding exemplar of uirtus animosa and we know from Junorsquos predictions that he will suffer a great fall109

Na segunda Ode o Coro fala apoacutes o confronto entre Meacutegara Anfitriatildeo e Lico A

estrutura desta Ode assemelha-se ao primeiro Estaacutesimo da trageacutedia de Euriacutepides haacute uma

enumeraccedilatildeo dos trabalhos de Heacutercules Mas ao contraacuterio do que acontece na peccedila

grega o Coro de Seacuteneca natildeo evoca todos porque Anfitriatildeo jaacute o fizera no II Acto O

Coro escolhe alguns deles que melhor ilustrem a vida do protagonista tornando-o

modelo de homem que natildeo vive a vida mas desperdiccedila a sua existecircncia110

O Coro inicia o seu canto com uma criacutetica O Fortuna uiris inuida fortibus (v

524) Contrasta a fortuna de Euristeu com a de Heacutercules o primeiro facili regnet in otio

(v 526) enquanto Alcmena genitus bella per omnia monstris exagitet caeliferam

109 Fitch (1) 22 110 Fitch (1) 253-254

74

manum (vv 527-528) O Coro vai enumerando alguns dos trabalhos de Heacutercules com o

objectivo de demonstrar a sua vida atribulada111

- suportou os ceacuteus (v 528 caeliferam manum)

- matou a Hidra de Lerna (v 529)

- enganou as irmatildes Hespeacuterides para poder arrebatar as maccedilatildes de ouro e matou o

dragatildeo que as guardava (vv 530-532)

- arrancou com violecircncia (v 544 detraxit) o cinto de Hipoacutelita (vv 531-546)

- desceu ao mundo inferior (vv 547-591)

Eacute de notar que os dois uacuteltimos trabalhos mereceram um maior desenvolvimento

do que os primeiros trecircs Naqueles trabalhos a natureza descrita entra no domiacutenio do

locus horrendus (o que contrasta com a descriccedilatildeo campestre da I Ode) Haacute semelhanccedilas

na descriccedilatildeo de cada um dos lugares por onde o heroacutei teve de passar para chegar ao

destino em ambos os percursos ele teve de cruzar mares (v 536 v 551) e terrenos

inoacutespitos e pantanosos (v 540-541 v 554)

A descida ao mundo inferior112 foi poreacutem dos dois o que mereceu um mais

elaborado pormenor Anfitriatildeo contudo omitira este trabalho O motivo pode ter que

ver com o facto de a descida ao mundo inferior estar conotada com o excesso e a

ambiccedilatildeo desmedida do heroacutei Ora Anfitriatildeo ao enumerar todos os trabalhos do filho

pretende sobressair principalmente a uirtus de Heacutercules e o seu lado civilizacional

A questatildeo que o Coro coloca (vv 547-549 qua spe praecipites actus ad inferos

audax ire uias irremeabiles uidisti Siculae regna Proserpinae) recupera o juiacutezo

criacutetico tecido na Ode I a absurdez do homem em querer encontrarantecipar a morte

correndo para ela113 Se o Coro ainda percebe as razotildees que levaram Heacutercules a realizar

os outros trabalhos uma vez que de todos resultou alguma coisa de bom neste caso

poreacutem natildeo encontra o Coro senatildeo perigos e ousadia (v 548 audax) A spes a que o

Coro alude remete para um erro de avaliaccedilatildeo do futuro As descriccedilotildees de viagens aos

Infernos assumem algo mais do que a conquista da morte ou da imortalidade ldquoIn the

first ode H[ercules]rsquos descent to the underworld was seen as symbolic of the tendency

to hasten through life to rush toward death in pursuit of ambition (hellip) Ode II goes

111 Fitch (1) 252 112 Parece-nos que o Coro alude em todas as odes ao tema da viagem de Heacutercules aos infernos para adensar em crescendo o tom da trageacutedia iminente Satildeo vaacuterios os indiacutecios que ocorrem nas suas falas que abonados com exemplos mitoloacutegicos ou natildeo e sempre em crescendo vatildeo culminar na morte inevitaacutevel dos filhos e da mulher do heroacutei 113 Na Ep 2423 ss Seacuteneca recorda o quatildeo ridiacuteculo eacute correr para a morte Um saacutebio nunca foge da vida mas saberaacute sair dela quando alguma circunstacircncia verdadeiramente fundamentada o impelir a abandonaacute-la

75

further by suggesting (hellip) that the experience of H[ercules]rsquos various toils and so of

men who toil like him is that of death-in-liferdquo segundo comenta Fitch114

No entanto apesar de estar subjacente essa criacutetica o Coro deseja que o filho de

Juacutepiter consiga regressar deste trabalho (vv 558-559 euincas utinam iura ferae Stygis

Parcarumque colos non reuocabiles) e acredita que o heroacutei venceraacute essa nova prova

jaacute que outrora ele derrotara o Rei do Inferno (vv 560-565) Exorta entatildeo o Alcida a

quebrar as barreiras dos dois mundos para que possa regressar Note-se a aliteraccedilatildeo em

oclusiva surda bilabial e os homeoptotos tristibus inferis prospectus pateat lucis et

inuius limes det faciles ad superos uias (vv 566-568) que acentuam esta ligaccedilatildeo

pretendida entre os dois mundos ateacute entatildeo separados por um limes

O Coro recorda que Heacutercules natildeo foi o uacutenico que desceu agraves moradas inferiores

Antes dele soacute Orfeu se atrevera a percorrer essa descida com o objectivo de recuperar

Euriacutedice Ele conseguiu persuadir os umbrarum domini (cf v 570) por meio da lira do

canto e de suacuteplicas (v 570 prece supplici) mas acabou por perder a sua amada no

caminho do regresso ao ousar olhar para traacutes Este exemplum estabelece um paralelo

entre Orfeu e Heacutercules Se o primeiro conquistou os deuses pela muacutesica o segundo

poderaacute consegui-lo tambeacutem mas pela forccedila Esta afinidade eacute posta em relevo pela

estrutura paraleliacutestica de quae uinci potuit regia carmine haec uinci poterit regia

uiribus (vv 590-591) Haacute dois elementos que satildeo comuns agraves duas situaccedilotildees (os reinos

dos infernos ndash regia ndash satildeo nos dois casos vencidos ndash uinci) e dois aspectos divergentes

(o aspecto temporal sobressaiacutedo pelo politptoto passado ndash potuit ndash relacionado com

Orfeu e futuro ndash poterit ndash Heacutercules e o meio ndash agente da passiva ndash pelo qual os reis

foram e seratildeo vencidos ndash carmine no caso de Orfeu uiribus no caso de Heacutercules) O

facto de o Coro terminar o seu canto com a palavra uiribus natildeo deixa de corresponder a

um aviso o emprego da uis natildeo eacute prenunciadora de bons resultados Heacutercules quebraraacute

novamente os limites Desta vez poreacutem as consequecircncias do seu acto seratildeo nefastas

para ele e para os que lhe satildeo proacuteximos

Se Orfeu perdeu Euriacutedice por quebrar uma ordem divina tambeacutem Heacutercules

poderaacute ser castigado por ter arrebatado de laacute Ceacuterbero (vv 569-591) Na perspectiva de

Shelton ldquothe chorus is warning Hercules that all men are bound by the iura of the

Underworld and that he may pay dearly for his returnrdquo115 Tambeacutem em Phaedra o Coro

lembra que Teseu ao ser libertado do Hades teraacute de pagar pela sua fuga Pallas 114 Fitch (1) 253 115 Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 45

76

Actaeae ueneranda genti quod tuus caelum superosque Theseus spectat et fugit

Stygias paludes casta nil debes patruo rapaci constat inferno numerus tyranno

(Phaed vv 1149-1153) O preccedilo da sua libertaccedilatildeo teve como castigo a morte de

Hipoacutelito resultando num terriacutevel desgosto e na dor de Teseu (Phaed vv 1143 ss hic

qui clari luget maestos tristis reditus ipsoque magis flebile Auerno) Um castigo

semelhante avizinha-se de Jasatildeo na Medea (vv 301-302) por ter ldquoquebrado os limitesrdquo

dos mares A evocaccedilatildeo destes episoacutedios miacuteticos configura uma associaccedilatildeo terriacutevel a do

destino comum de quatro personagens responsaacuteveis pela perda daqueles que mais

amam jaacute que

a) Orfeu (Her F) perde Euriacutedice

b) Teseu (Phaed) perde Hipoacutelito

c) Jasatildeo (Med) perderaacute os filhos

d) Heacutercules (Her F) perderaacute os filhos e Meacutegara

De facto Heacutercules ilustraraacute com a sua acccedilatildeo criminosa a dupla face que assume

o verbo lsquoperderrsquo ficaraacute sem os que mais ama (castigo e fonte de dor) seraacute para eles

causa de perdiccedilatildeo provando que o excesso o error o uitium as paixotildees soacute podem

trazer o mal e a desgraccedila natildeo soacute a todos os que por ele se deixam dominar mas tambeacutem

agravequeles que quase sempre inocentes os rodeiam Eacute uma cadeia imparaacutevel a que liga o

uitium ao scelus arrastando tudo e todos para a ruiacutena)

Eacute ainda possiacutevel encontrar um outro toacutepico comum agraves trageacutedias Medea e

Hercules Furens Jasatildeo e Heacutercules satildeo audaces nas empresas que ousam realizar Jasatildeo

com a sua primeira embarcaccedilatildeo viola os limites entre a terra e o mar (Med vv 301-

302 Audax nimium qui freta primus rate tam fragili perfida rupit) ou como o Coro

afirma inter uitae mortisque uias (Med v 307) Heacutercules por seu turno transgride os

limites do ser humano ao visitar as moradas de Perseacutefone foi audax (Her F v 548) e

teraacute que lsquoromperrsquo (Her F v 566 rumpe) as barreiras entre os dois mundos para

regressar (cf Her F vv 566-567) O heroacutei tem consciecircncia de que infringiu as regras

Quando entra em cena no terceiro Acto invoca Apolo (o deus da luz) e pede-lhe

perdatildeo por obrigaacute-lo a contemplar aquilo que eacute inlicitum (vv 595-596 da Phoebe si

quid illicitum tui uidere uultus) Em seguida invoca todos os outros deuses para que

natildeo fiquem maculados ante a visatildeo de Ceacuterbero (vv 599-603)

Na Ode III (vv 830-894) satildeo descritas uma vez mais sobre as regiotildees

subterracircneas Parece haver uma continuaccedilatildeo da descriccedilatildeo que Teseu faz dessas moradas

77

mas ao contraacuterio dele que enumera os monstros que aiacute habitam o Coro refere-se agraves

numerosas sombras que percorrem um caminho tristis et nigra metuenda silua (v 836)

Esta Ode comeccedila por falar de Euristeu (vv 830-831) tal como na Ode II

recordando o uacuteltimo trabalho que o soberano impocircs a Heacutercules e que este cumpriu a

descida agraves mansotildees inferiores para de laacute arrebatar Ceacuterbero (vv 830-833) O Coro

critica novamente a ousadia de Heacutercules fez o mesmo percurso que os mortos Haacute

uma insistecircncia no toacutepico da infracccedilatildeo do que natildeo eacute liacutecito acentuada pelo uso de

vocaacutebulos da famiacutelia de audax116 que funciona como ldquoponterdquo entre as vaacuterias odes e

como ligaccedilatildeo entre o que o Coro e as personagens dizem

O Coro parte deste juiacutezo criacutetico para descrever a turba de sombras de diversas

idades que se dirige para o Inferno

Quantus incedit populus per urbes ad noui ludos auidus theatri quantus Eleum ruit ad Tonantem quinta cum sacrum reuocauit aestas quanta cum longae redit hora nocti crescere et somnos cupiens quietos Libra Phoebeos tenet aequa currus turba secretam Cererem frequentat et citi tectis properant relictis Attici noctem celebrare mystae tanta per campos agitur silentes turba (vv 838-849)

O siacutemile ndash reforccedilado pelo poliptoto anafoacuterico (quantus quantus quanta) ndash

que aproxima os povos que afluem a um novo teatro (vv 838-839) agraves festas (vv 840-

841) e aos rituais misteacutericos (vv 842-847) da multidatildeo de mortos imprime agrave cena maior

πάθος a morte natildeo escolhe idades (tanto leva os que estatildeo esgotados pela idade

avanccedilada como aqueles que ainda nem sequer a matildee conheceram)

O adjectivo nouus (v 839 noui theatri) que se liga com o facto de todos se

dirigirem para o teatro como uma vaga aacutevida e impetuosa (v 839 auidus v 838

populus) faz sobressair a imagem da tanta turba (cf vv 848-849) que se encaminha

apressadamente para a mansatildeo dos mortos Esta pressa estaacute igualmente marcada nos

outros membros do siacutemile ruit (v 840) citi properant (cf v 846) e eacute acentuada pela

116 O adjectivo audax eacute atribuiacutedo a Heacutercules trecircs vezes v 247 na fala de Anfitriatildeo (audaces manus) v 538 na Ode Coral (audax) v 772 Caronte interpela Heacutercules (audax) A forma verbal com a mesma raiz audeo aparece uma uacutenica vez v 834 Coro (ausus es) Ainda assim essas quatro ocorrecircncias configuram o desenho da personagem como algueacutem que natildeo aceita limites e quer sempre mais

78

repeticcedilatildeo do vocaacutebulo turba (cf v 837 frequens turba v 845 v 849) Tudo isto

concorre para realccedilar a ideia de inevitabilidade ndash a lei universal da morte ndash todos quase

sempre com escassa consciecircncia disso caminham inexoravelmente para a morte Rata

et fixa sunt et magna atque aeterna necessitate ducuntur eo ibis quo omnia eunt117

Neste sentido recorda Seacuteneca a Luciacutelio Quantus te populus moriturorum

sequetur quantus comitabitur Fortior ut opinor esses si multa milia tibi

commorerentur atqui multa milia et hominum et animalium hoc ipso momento quo tu

mori dubitas animam uariis generibus emittunt118 O paralelo entre a Ep 77 e a fala do

Coro (vv 838 ss) eacute visiacutevel quantus populus (Ep 7713 vs Her F v 838) multa

milia (Ep 77 13) assemelha-se a magna turba (Her F v 837) A proacutepria imagem

dada pelo Coro e intensificada pelo siacutemile da numerosa multidatildeo que caminha para os

abismos do inferno eacute semelhante agrave que Seacuteneca sugere nesta Carta evidenciada pela

anaacutefora (multa milia) pelo polissiacutendeto e pelo poliptoto (tibi tu)

Para Shelton ldquoThe simile of people flocking to the mysteries is particularly

good because it is a comparison not only of number but also of destination They all

living or dead approaching an area which is shrouded in mystery119

O Coro ao enumerar a idade das sombras faacute-lo por meio de uma gradaccedilatildeo

descendente do mais velho para o mais novo

pars tarda graditur senecta tristis et longa satiata uita pars adhuc currit meliores aeui uirgines nondum thalamis iugatae et comis nondum positis ephebi matris et nomen modo doctus infans (vv 849-854)

Esta descriccedilatildeo intensificada pela anaacutefora de pars (v 849 e v 851) e a iteraccedilatildeo

de nondum (v 852 v 853) leva o Coro a reflectir sobre a morte Segundo Shelton

ldquoAfterlife according to the chorus is a dreary no-existence a dark emptiness relieved

by no visions of Tantalus or Ixion Its description thus provides a counter-balance to

117 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 77 12 lsquoOs destinos estatildeo determinados de uma vez por todas e prosseguem a sua marcha em obediecircncia agrave lei eterna do universo tu iraacutes para onde vai tudo o maisrsquo 118 Idem Ibidem 7713 lsquoQue multidatildeo de gente natildeo haacute para te seguir na morte que multidatildeo para nela te acompanhar Creio bem que a tua coragem seria maior se visses muitos milhares de pessoas a morrer ao mesmo tempo que tu pois fica sabendo que no preciso momento em que tu vacilas ante a morte muitos milhares de homens e de animais estatildeo de uma forma ou de outra exalando a almarsquo 119 Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 45-46

79

Theseusrsquo lively narrative and makes us comprehend the real horror of deathrdquo120 A

morte eacute inevitaacutevel quid iuuat durum properare fatum (v 867) Assim a pergunta que

se coloca eacute o que deveraacute entatildeo fazer o homem para aceitar que vida e morte caminham

juntas Reflectindo sobre a brevidade da vida e reconhecendo que todo o ser que nasce

teraacute inevitavelmente de morrer o Coro toma consciecircncia de que deve preparar-se para a

morte (v 872 tibi Mors paramur) De nada adianta revoltarmo-nos contra a morte ou

questionaacute-la Encontramos este mesmo ensinamento no De Prouidentia 58 Accipimus

peritura perituri Quid itaque indignamus Quid querimur Ad hoc parati sumus O

verbo eacute o mesmo paro em ambos os casos na sua forma passiva dando luz agrave estreita

afinidade entre a prosa filosoacutefica e o teatro de Seacuteneca

Afinal a vida natildeo eacute mais que uma contagem decrescente para a morte cada dia

natildeo eacute mais um dia que se tem e que se vive mas sim um dia a menos que nos aproxima

do fim O proacuteprio dia que se vive hoje eacute jaacute uma partilha com a morte ndash ela eacute gradual

Mors non una uenit sed quae rapit ultima mors est121 Em Ad Lucilium Epistulae

Morales 2420 Seacuteneca desenvolve esta ideia Cotidie morimur cotidie enim demitur aliqua pars uitae et tunc quoque cum crescimus uita decrescit Infantiam amisimus deinde pueritiam deinde adulescentiam Usque ad hesternum quidquid transit temporis perit hunc ipsum quem agimus diem cum morte diuidimus Quemadmodum clepsydram non extremum stilicidium exhaurit sed quidquid ante defluxit sic ultima hora qua esse desinimus non sola mortem facit sed sola consummat tunc ad illam peruenimus sed diu uenimus122

Se no v 874 o Coro diz prima quae uitam dedit hora carpit em Ep 12018

afirma-se ad mortem dies extremus peruenit accedit omnis carpit nos illa non

corripit123 Novamente encontramos pontos de contacto entre a trageacutedia e os tratados

filosoacuteficos aleacutem de o sentido ser muito proacuteximo (todos os dias nos aproximamos da

morte) o verbo eacute o mesmo (carpit) sugerindo a rapidez com que o homem eacute colhido

120 Idem Ibidem 46 121 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 2421 lsquoa morte vem gradualmente a que nos leva eacute a morte uacuteltimarsquo 122 lsquoMorremos diariamente jaacute que diariamente ficamos privados de uma parte da vida por isso mesmo agrave medida que noacutes crescemos a nossa vida vai decrescendo Comeccedilamos por perder a infacircncia depois a adolescecircncia depois a juventude Todo o tempo que decorreu ateacute ontem eacute irrecuperaacutevel o proacuteprio dia em que estamos hoje compartilhamo-lo com a morte Natildeo eacute a uacuteltima gota que esvazia a clepsidra mas toda a aacutegua que anteriormente foi escorrendo do mesmo modo natildeo eacute a hora final em que deixamos de existir a uacutenica que constitui a morte mas sim a uacutenica que a consuma Atingimos a morte nessa hora mas jaacute de haacute muito caminhaacutevamos para elarsquo 123 lsquoo uacuteltimo dia empurra-nos para a morte mas em todos os outros nos fomos aproximando dela a morte vai-nos colhendo gradualmente natildeo nos arrebata de repentersquo

80

pela morte qualquer que seja o momento qualquer que seja a sua idade Neste sentido

podemos ver que tambeacutem a trageacutedia assume uma perspectiva estoacuteica A mensagem que

Seacuteneca faz passar eacute a mesma

A reflexatildeo do Coro (vv 838-874) que abarca toacutepicos da meditatio mortis

contrasta poreacutem (e o ritmo dos versos marca essa mudanccedila de tom) com a exaltaccedilatildeo de

Heacutercules a que o Coro procede (vv 875-894) Heacutercules que trouxe aparentemente a

paz ao mundo jaacute que tudo foi domado pela sua matildeo124 inclusive o Taacutertaro por ele foi

pacificado ndash iam nullus superest timor nil ultra iacet inferos (vv 891-892) No

entanto esta paz que o Coro refere vai traduzir-se com alguma ironia no seu oposto ou

seja na desordem total com o castigo de Heacutercules que o proacuteprio Coro tem vindo a

anunciar

A Ode IV (1054-1137) surge imediatamente depois do crime de Heacutercules

quando o heroacutei adormece exausto O tom que o distingue varia ao longo da Ode e

assume uma tonalidade traacutegica de contraste com o juacutebilo perante o regresso do heroacutei

com que fechara o seu anterior canto Eacute significativo que a primeira palavra que o Coro

pronuncia seja agora lugeat (v 1054) num conjuntivo sombrio que desfaz a alegria do

imperativo tege (v 894) com que no uacuteltimo verso da Ode anterior exortava aos ritos de

acccedilatildeo de graccedilas O Coro marca assim magistralmente a commutatio fortunae

A Ode principia com um lamento pela desgraccedila de Heacutercules incentivando os

deuses celestes a auxiliarem o heroacutei para que ele recupere a razatildeo Soluite tantis animum

monstris soluite superi rectam in melius flectite mentem (vv 1063-1065) Este

desejo do Coro de querer que Heacutercules recupere de um estado de loucura para o

domiacutenio da razatildeo eacute expressivo pelo recurso agrave anaacutefora (soluite em imperativo com

sentido de exortaccedilatildeo ou mesmo suacuteplica) e agrave aliteraccedilatildeo da fricativa surda dental A

alusatildeo aos monstra que dominam a mente do heroacutei remete para o soliloacutequio de Juno (v

40 monstra iam desunt mihi) A deusa descobrira entatildeo que a uacutenica forma de lutar

contra Heacutercules seria fazecirc-lo travar uma luta contra ele proacuteprio Esta descoberta deixara

impliacutecito um caraacutecter igualmente selvagem de Heacutercules como diz Shelton ldquoIt is his

mad mind which has become the monstrumrdquo125

124 Pax est Herculea manu (v 882) Esta sineacutedoque remete para o poder e para a forccedila sobrenatural do heroacutei Heacutercules tornou o mundo paciacutefico para a humanidade 125 Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 47

81

Por outra parte o Coro pede ao Sono126 em jeito de captatio beneuolentiae que

mantenha o Alcida adormecido enquanto ele natildeo recuperar a sanidade ateacute que redeat

pietas uirtusque uiro (v 1093) Esta recuperaccedilatildeo que o Coro refere natildeo eacute fiacutesica mas

psicoloacutegica isto eacute natildeo estaacute relacionada com a uirtus animosa a que o Coro alude na

Ode I (v 201) antes remete para a capacidade de agir virtuosamente

Contudo no verso seguinte o Coro muda por completo de opiniatildeo (a mudanccedila eacute

marcada pela conjunccedilatildeo coordenativa disjuntiva uel)

uel sit potius mens uesano concita motu error caecus qua coepit eat solus te iam praestare potest furor insontem proxima puris sors est manibus nescire nefas

(vv 1094-1099)

O Coro considera que eacute preferiacutevel que o heroacutei desconheccedila a realidade

permanecendo assim na sua loucura e ignorando as consequecircncias do seu erro de

avaliaccedilatildeo (cf v 1065 rectam mentem) No ponto de vista de Shelton no que diz

respeito aos versos supracitados ldquoIts statement though true is not the statement of a

noble man because it completely avoids the difficult question of guilt and responsibility

Its suggestion here emphasizes by contrast Herculesrsquo later determination to accept guilt

and punishmentrdquo127

E os versos finais na apoacutestrofe aos cadaacuteveres das crianccedilas que Heacutercules

chacinou satildeo a derradeira criacutetica ao heroacutei que desperdiccedilou parte da sua vida a combater

contra monstros quando ele proacuteprio revelou ser um monstro ao abrir aos filhos e agrave

mulher o caminho para os Infernos local de onde tinha acabado de sair com os despojos

de guerra

Esse movimento de regresso cumprido por inocentes e natildeo por Heacutercules mas

por este aberto agrave proacutepria famiacutelia estaacute significativamente sugerido no v 1136 que

formalmente ldquoenvolverdquo o caminho luacutegubre que os pueri tecircm de percorrer como que

num abraccedilo letal na alusatildeo aos trabalhos de Heacutercules (v 1136 noti per iter triste

laboris) este foi de facto o seu uacuteltimo e traacutegico trabalho

126 Veja-se a longa enumeraccedilatildeo de epiacutetetos que caracterizam o Sono (vv 1066-1077) que estatildeo entre o sujeito (tu[que] ndash v 1066) e o predicado (preme ndash imperativo presente) 127 Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 48

82

Em siacutentese poucas semelhanccedilas haacute entre o Coro da peccedila de Euriacutepides e o do

Hercules Furens de Seacuteneca Enquanto o primeiro elogia Heacuteracles (antes da cena da

loucura) e comunica com as personagens no decorrer da acccedilatildeo dramaacutetica o Coro de

Seacuteneca natildeo apoia Heacutercules e toma uma posiccedilatildeo criacutetica relativamente ao

desenvolvimento da acccedilatildeo No Hercules Furens o Coro comenta faz reflectir propotildee

linhas de anaacutelise das circunstacircncias e do protagonista bem como da condiccedilatildeo humana

em geral sob um ponto de vista que eacute essencialmente o da doutrina estoacuteica Como

explica Shelton ldquoThe choral odes help to establish the theme of the play not through the

development of imagery but through expansion on a moral or philosophical issuerdquo128

A forma como cada um dos tragedioacutegrafos trabalha o Coro eacute completamente

diferente Em Euriacutepides os anciatildeos reagem desfavoravelmente agrave fragilidade que a sua

situaccedilatildeo lhes provoca sentem que natildeo satildeo mais do que palavras (v 112) movimentam-

se com dificuldade necessitando de se apoiarem uns nos outros (vv 124-126) a sua

debilidade natildeo lhes permite ajudar a famiacutelia heraclida (vv 312-314) Por oposiccedilatildeo

elogiam a juventude sinoacutenimo de vigor e de prosperidade considerando-a a mais

valiosa de todas as riquezas (vv 637 ss) Segundo Chalk ldquoThe aged weakness of the

Chorus is the antithesis of strenght and strength is embodied above all in Herakles for

whom it becomes also lsquothe source of his calamityrsquo The relevance of the choral odes is

to be found in their handling of these themes especially that of Heraklesrsquo strengthrdquo129

Em Seacuteneca o Coro entende que a velhice eacute uma recompensa pela forma como

soube aproveitar a sua vida porque se traduziu num humilique loco (v 199) e numa

sordida fortuna paruae domus (v 200) Tambeacutem em Ad Lucilium Epistulae Morales

Seacuteneca recorda que a vida do homem eacute preciosa quando vivida em plenitude natildeo

importa a durabilidade da vida mas sim a qualidade130

No que diz respeito agrave funccedilatildeo do Coro na trageacutedia Hercules Furens podemos

afirmar que natildeo estaacute desvinculada da acccedilatildeo A posiccedilatildeo criacutetica que assume ao

caracterizar o protagonista aproxima-o das demais personagens da trageacutedia Ao

socorrer-se de exemplos miacuteticos (por exemplo a descida de Orfeu ao mundo

subterracircneo para resgatar Euriacutedice ndash vv 569-589) o Coro prenuncia o destino fatal de

Heacutercules situa ldquoo comportamento das principais personagens das peccedilas numa tradiccedilatildeo

128 Idem Ibidem 42 129 H H O Chalk ldquoἀρετή and βία in Euripidesrsquo Heraclesrdquo Journal Hellenic Studies 82 (1962) 8 130 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 93 2 ss

83

criminosa familiar e [fornece] indiacutecios sobre o tipo de nefas que seraacute cometidordquo como

refere Paulo Ferreira131

Discordamos assim da posiccedilatildeo de Mendell quando diz The odes in the Senecan plays have not a natural and necessary function but are used almost exclusively to mark divisions between acts They are not either choral or truly lyric in quality but use lyric meters and would probably have been designated as such if a Roman critic had tried to classify them They develop the themes of current popular wisdom dressing it up with a considerable amount of learning They are rather an accessory to the play than an integral part of it132

Na verdade o Coro anuncia a entrada das personagens em cena como eacute

exemplo a Ode I descrevendo fiacutesica e psicologicamente a forma como Meacutegara os seus

filhos e Anfitriatildeo entram (vv 202-204) daacute indiacutecios daquilo que iraacute acontecer num

futuro breve (Ode I II III) ldquofixa o tempo dramaacutetico (Her F I) e constitui um

intermezzo para superar um intervalo de tempo (Her F II e III)rdquo133 observa e critica as

acccedilotildees das personagens (vv 1032-1034 censura a atitude de Anfitriatildeo que incentiva

Heacutercules a imolaacute-lo como mais uma viacutetima de sacrifiacutecio aos deuses) descreve a figura

do heroacutei enquanto dormia fatigado pela suacutebita demecircncia que o atacou (vv 1053-1137)

delineando o seu estado psicoloacutegico e dando provas de que a perturbaccedilatildeo mental ainda

natildeo abandonou o protagonista

6 Divindades

a) caracterizaccedilatildeo de Iacuteris e Lissa

na trageacutedia de Euriacutepides

Iacuteris e Lissa aparecem no IV Episoacutedio (vv 822-874) Este foi considerado como

um segundo Proacutelogo pela forma como estaacute construiacuteda a ῥῆσις de Iacuteris134 O aparecimento

131 Paulo Seacutergio Margarido Ferreira Seacuteneca em Cena Enquadramento na Tradiccedilatildeo Dramaacutetica Greco--Latina (Coimbra diss de Doutoramento em Letras aacuterea de Estudos Claacutessicos especialidade de Literatura Latina apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 2006) 262 132 Clarence W Mendell Our Seneca (sl Archon Books 1968) 138 133 Paulo Seacutergio Margarido Ferreira Seacuteneca em Cena Enquadramento na Tradiccedilatildeo Dramaacutetica Greco-Latina 266 134 Bond 281 admite que os vv 822-874 se assemelham a um segundo proacutelogo apesar de na sua extensatildeo ser mais pequeno do que um normal monoacutelogo inicial Tambeacutem Shirley 160 sugere o mesmo

84

das deusas vem na sequecircncia do canto do Coro em honra dos deuses por castigarem os

iacutempios e auxiliarem os suplicantes e em louvor de Heacuteracles por ter vindo como

restaurador do poder e por ter provado ser filho de Zeus O contraste entre o juacutebilo do

Coro no terceiro estaacutesimo e o efeito que a entrada de Iacuteris e Lissa tem sobre ele eacute

profundo O Coro fica aterrorizado pois ao ver as deusas aproximarem-se do palaacutecio

antevecirc novas desgraccedilas que se abateratildeo sobre todos (vv 815-821)

Iacuteris acalma o Coro e apresentando-se como mensageira dos deuses e a Lissa

como a filha da Noite revela-lhes a razatildeo que a levou a Tebas enlouquecer Heacuteracles

Os verdadeiros motivos que teratildeo levado Hera a querer enlouquecer o heroacutei natildeo satildeo

abertamente revelados Iacuteris alude vagamente ao oacutedio de Hera acrescentando que o

Alcida deve ser punido para que o valor dos deuses seja mantido ἢ θεοὶ microὲν οὐδαμοῦ

τὰ θνητὰ δ᾿ ἔσται μεγάλα μὴ δόντος δίκην (vv 841-842)135 Informa apenas que

enquanto decorriam os trabalhos do Alcida ele estava protegido pelo destino136

Os motivos que justificam essa vontade de castigaacute-lo poderatildeo ter que ver com a

forma violenta como Heacuteracles resolve as situaccedilotildees137 o ter descido ao Hades e ter tirado

de laacute Ceacuterbero ou ainda porque eacute considerado pelas personagens dramaacuteticas (por

Anfitriatildeo por Meacutegara e pelo Coro) um heroacutei de grande valor e forte ou entatildeo por ser

filho de Zeus138 Para Bond ldquothe conclusion of Irisrsquo speech has been taken to imply

that Heracles must be punished not merely for bastardy but simply for being so

greatrdquo139 Barlow pelo contraacuterio comenta

In spite of the phrase microὴ δόντος δίκην ldquounless he pays the penaltyrdquo at 842 it is impossible to see that Heracles has done anything to deserve

ldquoThe scene has some of the features of a second prologue with its clarity its introduction of a speaker who is a god and its position in begining a new actionrdquo 135 lsquoEacute que os deuses natildeo existem e a raccedila dos mortais seraacute todo poderosa se natildeo houver expiaccedilatildeo das culpasrsquo 136 Esta ideia liga-se agrave de Anfitriatildeo (vv 18-21) καὶ πάτραν οἰκεῖν θέλων καθόδου δίδωσι μισθὸν Εὐρυσθεῖ microέγαν ἐξημερῶσαι γαῖαν εἴθrsquo Ἥρας ὕπο κέντροις δαμασθεὶς εἴτε τοῦ χρεὼν μέτα (lsquoTentando solucionar os meus infortuacutenios e desejando libertar a famiacutelia do exiacutelio oferece-se a Euristeu para purificar a terra dos seus monstros preccedilo alto que paga pelo nosso regresso subjugado pelos aguilhotildees de Hera ou pelo terriacutevel destinorsquo) Note-se que natildeo eacute constante ao longo da trageacutedia a atribuiccedilatildeo da autoria dos trabalhos Se no Proacutelogo Anfitriatildeo remete para Hera ou para o destino neste episoacutedio eacute dito que foi o destino e no uacuteltimo episoacutedio as personagens apontam Hera como forccedila responsaacutevel 137 Quando Meacutegara explica a Heacuteracles a razatildeo que levou Lico a querer matar a famiacutelia do heroacutei este propotildee mataacute-lo e lanccedilar a cabeccedila do tirano aos catildees Aleacutem disso ao saber tambeacutem pela mulher que natildeo tiveram qualquer ajuda por parte dos habitantes de Tebas decide castigar todos os que natildeo auxiliaram a sua famiacutelia Estes satildeo exemplos que demonstram que o caraacutecter de Heacuteracles tende a ser violento 138 O Coro (vv 696-700 vv 798-814) engrandece as faccedilanhas do heroacutei que desceu ao Hades mas regressou para restaurar a ordem e o reino e o seu duplo nascimento de Anfitriatildeo e Zeus 139 Bond xxv-xxvi

85

a punishment except that he is who he is ndash an enemy just by his existence to Hera His killing of Lycus for example was in defence of his closest family There is no evidence in the text to suggest overweening arrogance on this part or any kinf of hubris which might bring down Herarsquos wrath with more reason It is rather her excessive irrational action which is intended to disturb () On the extreme reluctance of Lyssa to perform her task (846 854 858) () Her attitude stresses that Heracles is an innocent victim rather than a wrongdoer to be avenged and he is left after the murders to deal with the chaos of his own mind as best he may140

Concordamos em boa parte com Barlow julgamos contudo que natildeo deve ser

desprezada a forma impetuosa como Heacuteracles age tanto a morte de Lico como a da

famiacutelia do heroacutei denotam um caraacutecter que eacute facilmente possuiacutedo pela violecircncia Se no

primeiro caso o Alcida procede a um castigo ndash o acto feroz eacute justificado pela

necessidade de proteger a famiacutelia e de repor a ordem (Lico eacute um tirano) ndash no segundo

ele age sob o domiacutenio da loucura A crueldade eacute poreacutem a mesma Parece-nos que o

Alcida oscila entre a ἀρετή e a βία

Ora Lissa natildeo partilha dos desiacutegnios das deusas (vv 847-854) Contesta e

procura demovecirc-las do que planeiam Faacute-lo porque as qualidades do heroacutei o tornaram

conhecido ateacute no mundo inferior Argumentando enumera alguns dos seus feitos

a) pacificou a terra inacessiacutevel e os mares (v 851)

b) tornou os homens mais tementes restaurando a honra aos deuses (vv 852-

853)

Sem conseguir fazer valer o seu ponto de vista Lissa dispotildee-se a cometer o acto

que reprova por ser obrigada pelas deusas Bond comenta ldquoThis scene has obvious

similarities with the prologue of Prometheus the contrast between the vindictive Kratos

and Hephaestus the reluctant instrument of punishment is repeated in the contrast

between Iris and Lyssa and Prometheus like Heracles is a benefactor of mankindrdquo141

No entanto Hefesto reconhece o erro de Prometeu sendo castigado por isso Jaacute Lissa

natildeo vecirc qualquer culpa em Heacuteracles

Barlow procura ver nas manifestaccedilotildees das trecircs divindades (Iacuteris ndash Hera Lissa)

uma explicaccedilatildeo ldquoThat Lyssa the representative of wild and irrational forces should

herself appear as sober and moderate (857) but yet be overcome by Herarsquos will serves

140 Barlow 160 141 Bond 281

86

to underline the inexorable power and wanton destructiveness of Herarsquos nature and the

complete innocence in contrast of Heracles himselfrdquo142

b) caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Seacuteneca Juno

Juno eacute a primeira personagem a ser apresentada em cena e a uacutenica do Acto I (vv

1-124) O aparecimento desta divindade no iniacutecio da peccedila permite estabelecer de

imediato um contraste entre a trageacutedia de Seacuteneca e a de Euriacutepides Na peccedila grega

Anfitriatildeo e Meacutegara surgem no Proacutelogo e Iacuteris entra em cena como mensageira de Hera

(esta deusa natildeo interveacutem uma uacutenica vez mas eacute constantemente aludida143) No entanto

haacute alguns pontos em comum em ambas as trageacutedias as deusas celestes Iacuteris e Juno

procuram enlouquecer o Alcida e precisam de um elemento do mundo inferior para

conseguir concretizar o que ambicionam Aparecem uma uacutenica vez no iniacutecio da acccedilatildeo

(no caso de Seacuteneca) ou no lsquosegundo proacutelogorsquo144 Divergem todavia na forma como

cada um dos autores explora a funccedilatildeo das personagens

A funccedilatildeo de Juno no Acto I natildeo eacute a de apresentar a peccedila resumindo a trama

como acontece em algumas trageacutedias de Euriacutepides por exemplo Afrodite no Hipollytus

ou Hermes no Ion145 Seacuteneca pretende exemplificar as manifestaccedilotildees psicoloacutegicas dos

estados passionais que dominam as personagens levando-as a uma espiral incontrolaacutevel

de erros e crimes Isto permite a Seacuteneca segundo Fitch ldquoto create a portrait of violent

uncontrolled emotion and the atmosphere of horror and suspense that naturally

accompanies itrdquo146 Juno eacute mais um exemplum daquilo a que um animus iratus pode

conduzir

Para definir a personagem pois Seacuteneca dota-a de um caraacutecter uitiosus

dominado pelas paixotildees que vai sendo revelado ao longo do seu discurso A fala de

Juno pode ser dividida em trecircs partes que representam o reconhecimento daquilo que

verdadeiramente a perturba (vv 1-18) a procura de uma forma de destruir a pessoa que

a transtorna (vv 19-63a) e a descoberta de um meio de aniquilar essa personagem (vv

63b-124) Esta evoluccedilatildeo traduz-se num crescendo do furor da deusa que atinge a ἀκμή

na terceira parte

142 Barlow 8 143 Vide v 20 v 829 v 831 v 840 v 848 v 855 v 859 v 1127 v 1189 v 1253 v 1264 vv 1307-1309 v 1393 144 Vide aliacutenea 5 subaliacutenea a) 145 Nestas peccedilas os deuses contextualizam a acccedilatildeo e apresentam o tema 146 Fitch 116

87

No primeiro momento (vv 1-18) Juno apresenta-se por meio de uma periacutefrase

Soror Tonantis (v 1) Estas palavras iniciais servem de mote para a deusa expor as

causas do ressentimento (o saeuus dolor que ela proacutepria identifica no v 28) que sente

devido agraves inuacutemeras infidelidades de Juacutepiter e do papel a que ele a reduziu de esposa e

deusa suprema ele remeteu-a ao lugar de irmatilde (vv 1-2 hoc enim solum mihi nomen

relictum est) A palavra Soror no iniacutecio do primeiro verso marca o seu regresso a um

estatuto menor anterior agravequele de que gozou enquanto uxor do Tonante Aleacutem disso a

sua condiccedilatildeo eacute de uidua (v 3 lsquoaquela que tem o marido ausentersquo que estaacute privada do

marido) uma vez que Juacutepiter tornou-se no lsquomaridorsquo sempre alheio (v 2 semper

alienum Iouem) Juno demarca a desconsideraccedilatildeo que a atinge pelo facto de ter sido

obrigada (v 4 pulsa) a abandonar (v 3 deserui) o seu reino celeste e o palaacutecio dos

deuses (vv 3-4 templa summi aetheris locumque caelo) para ceder o seu lugar agraves

paelices (v 5) de Juacutepiter A deusa foi expulsa do ceacuteu ficando confinada agrave terra (v 5

tellus colenda est) enquanto as amantes do deus ocupavam o seu lugar (v 5 caelum

tenent) ndash a antiacutetese terra vs ceacuteu acentuada pelas formas verbais pulsa e colenda est

pelo quiasmo (vv 4-5 caelo paelicibus ndash paelices caelum) datildeo a imagem de uma

deusa derrotada e ressentida

Juno enumera entatildeo (vv 6-18) algumas das paelices de Juacutepiter que foram

transformadas em constelaccedilotildees juntamente com os filhos dessas relaccedilotildees aduacutelteras (v

12 Oriacuteon v 13 Perseu por exemplo) Esse catasterismo eacute visto pois na perspectiva

de Juno como motivo suficiente para as suas maacutegoas passadas (v 19 Sed uetera

querimur) A deusa reconhece que haacute agravos maiores por meio de uma gradaccedilatildeo

ascendente de motivos de queixa Juno concentra-se num uacutenico local Tebas a cidade de

onde vieram mais amantes (vv 19-21) A referecircncia a este espaccedilo daacute-lhe a oportunidade

de ir ao ponto que lhe interessa focar ndash passando para a segunda parte do seu

soliloacutequio147 (vv 19-63a) ndash Alcmena (vv 21-22) a mulher amada de Juacutepiter e o fruto

desse amor Heacutercules (vv 22-26) que sempre superou (cf v 33 superat) os obstaacuteculos

e provaccedilotildees com que Juno pensou destruiacute-lo (vv 27-42)

147 Segundo Fitch (1) 115 a fala de Juno natildeo eacute proferida num monoacutelogo mas num soliloacutequio Comprova este entendimento o facto de ela natildeo se dirigir ao auditoacuterio para explicar o que vai fazer Eacute agrave medida que ela vai cogitando uma forma de se poder vingar que ficamos a conhecer os seus planos como por exemplo quando ela diz natildeo querer dar um uacutenico momento de paz e procura algum meio de derrotar o heroacutei (vv 30-32) Observe-se que soacute reconhecemos que eacute Juno quem estaacute a falar pela forma como se apresenta nos primeiros versos Soror Tonantis ndash hoc enim solum mihi nomen relictum est (vv 1-2) ao contraacuterio do que acontece em Euriacutepides na peccedila homoacutenima Anfitriatildeo identifica-se logo nos dois primeiros versos Τίς τὸ Διὸς σύλλεκτρον οὐκ οἶδεν βροτῶν ᾿Αργεῖον ᾿Αμφιτρύων [lsquoQuem de entre os mortais natildeo conhece aquele que partilhou o leito com Zeus o argivo Anfitriatildeorsquo]

88

Eacute a evocaccedilatildeo deste episoacutedio de infidelidade que mais lhe custa a suportar que

suscita a diferenccedila radical da linguagem que usa dominada pelas paixotildees os termos

satildeo mais violentos revelando um caraacutecter ferus assim que comeccedila a falar de Heacutercules

Juno manifesta o seu oacutedio pelo heroacutei reconhecendo em si um uiolentus animus (v 28)

Consciente do seu estado afectivo a deusa natildeo pretende apaziguaacute-lo non sic abibunt

odia (v 27) antes procura um meio de prejudicar Heacutercules aeterna bella pace sublata

geret (v 29) ndash a estrutura quiaacutestica reforccedilada pela antiacutetese e o emprego do futuro

imperfeito em geret traduzem a intenccedilatildeo de subverter toda a ordem criando uma

situaccedilatildeo que de favoraacutevel para Heacutercules se torne em adversidade pura e constante

Em trecircs versos (vv 27-29) Seacuteneca reuniu concentrando-os um conjunto de

vocaacutebulos especiacuteficos que designam as paixotildees enquanto perturbaccedilotildees da alma Juno eacute

movida por odia (v 27) pela ira (cf v 28) pelo dolor (v 28) Os proacuteprios adjectivos

que qualificam os substantivos que denominam as passiones estatildeo carregados de

significado uiuaces (v 28) aponta para um uitium entranhado arreigado perene

impossiacutevel de dominar uiolentus (v 28) vem de uis que significa em primeiro lugar a

forccedila que se exerce contra algueacutem saeuus (v 28) aproxima a atitude de Juno da

crueldade que eacute proacutepria dos animais selvagens

Do seu estado de ira (v 35) passa a temor (v 61) quando vecirc que Heacutercules

venceu o mundo inferior A anaacutefora (v 50 uidi) realccedilada pela assonacircncia em e (v 48

effregit ecce limen inferni) pela aliteraccedilatildeo (v 51 Dite domito) e pela antiacutetese (v 48

inferni v 49 superos) concorre para acentuar a ousadia e o scelus de Heacutercules ele

quebrou as barreiras existentes entre os dois mundos ao trazer das sombras Ceacuterbero e

derrotou o soberano do mundo subterracircneo (vv 51-52)

A alusatildeo aos Infernos eacute um toacutepico recorrente natildeo soacute nesta trageacutedia como

tambeacutem na homoacutenima de Euriacutepides No tragedioacutegrafo grego a referecircncia ao Hades estaacute

relacionada com a ausecircncia do protagonista A maior parte das personagens natildeo acredita

que o heroacutei consiga regressar das moradas subterracircneas apenas a Anfitriatildeo resta uma

esperanccedila de que o filho regressaraacute (v 97) Em Seacuteneca este tema estaacute mais presente e

mereceu uma reflexatildeo mais ampla do que na trageacutedia homoacutenima148 Os motivos filiam-

-se na perspectiva estoacuteica que se pretende veicular149

148 Em Seacuteneca por exemplo Teseu descreve os Infernos (vv 662-806) e o Coro (vv 835-863) enumera o geacutenero de turba que desce agrave mansatildeo das sombras Em Euriacutepides parece natildeo haver um grande interesse em descrever as moradas de Hades De facto estas satildeo apenas referidas (vv 607-621) e Heacuteracles limita-se a contar a Anfitriatildeo que teve de lutar contra Ceacuterbero (v 613) e que libertou Teseu dos Infernos (v 619) 149 Vide aliacutenea 4 subaliacutenea b)

89

No caso de Juno o espaccedilo infernal provoca-lhe dois sentimentos contraditoacuterios

pavor e juacutebilo Pavor por ter enviado Heacutercules na complexa missatildeo de trazer Ceacuterbero da

mansatildeo de Plutatildeo e ele ter concluiacutedo a tarefa bem como pelo regresso do heroacutei do

mundo infernal que resultou na quebra das barreiras que existiam entre o mundo

subterracircneo e o terrestre pavor tambeacutem por ele ter derrotado o deus dos Infernos

Causa-lhe juacutebilo por ser nesse mesmo local que encontraraacute o δαίμων perfeito que

transtornaraacute Heacutercules e serviraacute a sua vinganccedila

Uma vez que este lugar foi subjugado Heacutercules pode querer vencer o celeste e

destronar o proacuteprio pai Juacutepiter (cf vv 64-65 regna summa sceptra) Isto eacute o que a

deusa afirma temer e o verso 63 permite transitar para a terceira parte do seu discurso

Satildeo visiacuteveis entre a segunda e terceira partes (correspondentes agraves etapas do pensamento

de Juno) algumas semelhanccedilas sed uetera querimur (v 19) vs leuia sed nimium queror

(v 63) Em termos sintaacutecticos satildeo adversativas (sed) o verbo usado eacute o mesmo

(queror) estaacute no mesmo tempo (presente) e modo (indicativo) Isto ilustra o facto de

Juno sentir os agravos como reais e presentes (a mudanccedila de nuacutemero plural singular eacute

irrelevante dado serem ambas formas de primeira pessoa) Os adjectivos uetera e

depois leuia satildeo significativos no sentido em que revelam a progressatildeo do raciociacutenio

da deusa e a intensificaccedilatildeo das suas emoccedilotildees primeiro falou de coisas passadas depois

de coisas que natildeo tecircm tanta importacircncia em relaccedilatildeo ao que vai evocar em seguida

(aquilo que ela vai conceber e decidir)

No entanto como nota Fitch as acusaccedilotildees que Juno faz relativamente agraves acccedilotildees

de Heacutercules satildeo de teor fraacutegil uma vez que ela proacutepria o perseguiu desde a infacircncia sem

qualquer piedade Aleacutem disso foi ela quem lhe deu a ordem de descer ao mundo

subterracircneo O heroacutei limitou-se a cumprir as ordens da deusa ldquoHer allegations appear to

be a trumped-up excuse for continuing or rather intensifying her persecution of the

herordquo150 Juno assume ser a nouerca (v 21 v 112) a figura da madrasta que persegue

com hostilidade o fruto da relaccedilatildeo aduacuteltera Heacutercules Segundo Antonella Borgo

ldquoQuella della nouerca egrave dunque una figura sempre negativa mossa comrsquoegrave naturale da

rancore e da animositagrave nei confronti dei nuovi figli del compagno pronta a macchiarsi

dei piugrave gravi crimini pur di colpirlirdquo151

Na terceira parte (vv 63b-124) Juno evoca uma vez mais a ira (v 75 perge

ira perge et magna meditatem opprime) agora em forma intensificada ndash a iteraccedilatildeo do 150 Fitch (1) 21 151 Antonella Borgo Lessico Parentale in Seneca Tragico (Napoles Loffredo Editore 1993) 73

90

imperativo (perge) a apoacutestrofe a aliteraccedilatildeo em oclusiva nasal bilabial acentuam esse

affectus Aleacutem desta apoacutestrofe contam-se no discurso da deusa mais trecircs

Na segunda apoacutestrofe Juno dirige-se a Heacutercules (vv 89-91) ameaccedilando

mostrar-lhe o mundo infernal

i nunc superbe caelitum sedes pete humana temne Iam Styga et manes feros fugisse credis Hic tibi ostendam inferos reuocabo in alta conditam caligine ultra nocentum exilia discordem deam quam munit ingens montis oppositi latus educam et imo Ditis e regno extraham quidquid relictum est ueniet inuisum Scelus suumque labens sanguinem Impietas ferox Errorque et in se semper armatus Furor ndash Hoc hoc ministro noster utatur dolor

(vv 90-99)

Os imperativos (v 90 i pete v 91 temne) em apoacutestrofe ao heroacutei ausente ndash a

deusa qualifica Heacutercules como superbus (v 90) por ousar praticar acccedilotildees que vatildeo aleacutem

do que eacute permitido ao comum dos mortais (cf vv 90-91) ndash demonstram o rancor de

Juno A aliteraccedilatildeo feros fugisse (vv 91-92) a antiacutetese ceacuteu (v 90 caelitum) versus

inferno (vv 91-92 Styga manes feros inferos) e a pergunta retoacuterica avivam o seu

oacutedio e conduzem-na a encontrar o tipo de bella (v 85) que procura seraacute precisamente

para os inferi (v 93) ndash o adveacuterbio de lugar (v 93 hic) delimita o espaccedilo ndash que ela

proacutepria conduziraacute o acircnimo do Alcida Juno estaacute decidida sabe o que fazer e para onde

se dirigir Manda e comanda O futuro imperfeito (v 91 ostendam v 93 reuocabo v

95 educam extraham v 96 ueniet) e as aliteraccedilotildees (v 92 conditam caligine v 93

discordem deam) condensam o resultado esperado e que ela sabe que iraacute conseguir

Heacutercules enlouqueceraacute Seraacute precisamente do Furor e do Error152 que Heacutercules

chegaraacute ao Scelus e agrave Impietas Os adjectivos que qualificam estes affectus satildeo

simboacutelicos inuisum (v 96) remete para o tipo de crime que o protagonista vai cometer

(filiciacutedio e uxoriciacutedio) ferox da mesma raiz que ferus aponta para um affectus ousado

violento cruel que aproxima a acccedilatildeo de Heacutercules agrave de um animal selvagem o adjectivo

armatus a qualificar o furor indicia que esta passio impulsionaraacute o protagonista ao

crime e agrave impiedade Ele usaraacute para o efeito as suas proacuteprias armas

152 No momento da loucura Heacutercules julga que estaacute a matar os filhos de Lico e que estaacute a castigar Juno quando satildeo os seus filhos e esposa que estatildeo a ser assassinados

91

Tambeacutem as figuras de retoacuterica satildeo significativas nos vv 96-98 a assonacircncia de

nasais suumque lambens sanguinem Impietas a aliteraccedilatildeo Scelus suumque tudo

concorre para intensificar o efeito terriacutevel que tem como causa o seu ressentimento o

dolor que Juno manifesta no v 99

Na terceira apoacutestrofe Juno invoca as Fuacuterias (vv 100-109) identificando-as por

famulae Ditis (v 100) periacutefrase que as torna ainda mais terriacuteveis na sua esfera de acccedilatildeo

e de subordinaccedilatildeo Numa sucessatildeo de verbos de movimento na forma imperativa (v

100 incipite v 101 cuncite v 104 agite petite) e no conjuntivo exortativo (v 102

ducat v 103 corripiat) Juno reuacutene ao serviccedilo do seu dolor as forccedilas nefastas

ordenando-lhes e exortando-as a castigarem e vingarem o crime de Heacutercules E no v

110 a deusa inclui-se no grupo das terriacuteveis fuacuterias quando lhes chama sorores (v 110

me me sorores mente deiectam mea) A assonacircncia nasal reforccedilada pela aliteraccedilatildeo em

oclusiva nasal bilabial a iteraccedilatildeo do pronome pessoal me concorrem para acentuar o

desejo que a deusa tem de enlouquecer Iuno cur nondum furis (cf v 109) Nesta

terceira apoacutestrofe Juno dirige-se a si mesma (v 109) porque ainda natildeo sentiu a

pretendida transformaccedilatildeo em Fuacuteria (vv 109-112) Estas trecircs apoacutestrofes que vatildeo

variando de destinataacuterio traduzem as oscilaccedilotildees das emoccedilotildees de Juno demonstrando as

passiones a que ela estaacute submetida

Um outro aspecto a notar eacute a insistecircncia na palavra bella (v 29 v 30 v 85 v

123) no decorrer do soliloacutequio de Juno que estaacute intimamente vinculada com a evoluccedilatildeo

do raciociacutenio da deusa e contribui para acentuar o tom de suasoria que subjaz ao passo

Admitindo que o o oacutedio a ira e a dor natildeo lhe permitem deixar que Heacutercules tenha pax

Juno vai procurando alternativas para manter bella ad aeternum (cf v 29) Surge-lhe

entatildeo a pergunta Quae bella (v 30) Haacute que definir quais satildeo as guerras que Juno

poderaacute mover contra Heacutercules Depressa ela se apercebe da dificuldade em vencer o

Alcida ou pior ainda apercebe-se de que o heroacutei suberveteu a situaccedilatildeo atingindo-a a

ela proacutepria iraque nostra fruitur in laudes suas mea uertit odia (vv 34-35) Juno vai

analisando o que natildeo vale mais a pena fazer uma vez que tambeacutem jaacute lhe faltam recursos

(v 40 monstra iam desunt mihi) O seu raciociacutenio vai sendo encaminhado para um

ponto em que ela se apercebe de que os bella teratildeo de ser de uma espeacutecie inusitada (v

85 bella iam secum gerat) a guerra seraacute contra ele mesmo

Ao encontrar a soluccedilatildeo que se lhe afigura como a mais adequada e a mais

eficaz Juno passa a acccedilatildeo Mas se no v 109 ela diz pretender enlouquecer primeiro a

92

deusa faz agora um acerto no seu raciociacuteonio uota mutentur mea (v 112) Haacute uma

eficaz correcccedilatildeo no plano ateacute aiacute concebido Juno descobre-o num ponto do seu

raciociacutenio (v 114 inueni aspecto pontual de um perfeito do indicativo) A partir daqui

as relaccedilotildees de causa e efeito satildeo estabelecidas de forma mais linear me uicit et se

uincat et cupiat mori ab inferis reuersus (vv 116-117) O poliptoto aliado ao

conjuntivo optativo e ao homeoptoto acentua a clareza de raciociacutenio e demonstra que a

deusa ajustou a sua mira encontrando o ponto adequado e que serviraacute os seus

interesses hic prosit mihi (v 116) Tambeacutem por isso ela jaacute natildeo necessita de uma forccedila

infernal para a auxiliar ao contraacuterio de Hera e de Iacuteris que chamaram Lissa para instigar

em Heacuteracles a loucura Juno sozinha conduziraacute pela sua matildeo (v 119 librabo manu)

guiaraacute as flechas e os golpes de Heacutercules permanecendo ao lado dele na luta (vv 120-

121) Juno apenas lhe inspiraraacute o furor Depois de o crime estar concluiacutedo (v 121

scelere perfecto) nesse preciso momento Heacutercules poderaacute ascender aos astra promissa

(v 23) e Juacutepiter acolhecirc-lo (v 122 admittat illas genitor in caelum manus) A ironia

acentuada pela antonomaacutesia manifestam a crenccedila de Juno na impossibilidade de Juacutepiter

aceitar Heacutercules inter diuos Ela tem consciecircncia do acto que o Alcida vai realizar

Tomada a decisatildeo completado o raciociacutenio cumpre agora passar agrave acccedilatildeo (v

123 mouenda iam sunt bella) A perifraacutestica passiva traduz a necessidade de pocircr de

imediato e naquele preciso momento (iam) os bella que no seu entender a libertaratildeo do

seu ressentimento por Heacutercules e a compensaratildeo do seu despeito por ter sido preterida

por Juacutepiter e ultrapassada pelo heroacutei pela bravura com que sempre concluiu os seus

trabalhos

A forma como Juno constroacutei o seu raciociacuteno eacute semelhante ao de Medeia (na peccedila

que leva o seu nome) Ambas se sentem traiacutedas pelos maridos por isso satildeo movidas

pelo dolor o ressentimento pelo ciuacuteme pelo despeito e rancor Em ambos os casos as

personagens deixam-se dominar pelo furor esforccedilando-se por encontrar um meio de se

vingarem dos que as oprimem (Heacutercules no caso de Juno Jasatildeo no caso de Medeia)

Os discursos das duas personagens satildeo retoacutericos elas debatem consigo mesmas

os argumentos que as levam a encontrar uma soluccedilatildeo que julgam ser a mais indicada

(segundo a loacutegica pervertida que as domina) Nos dois casos elas pretendem que as suas

viacutetimas permaneccedilam vivas para mais sofrerem com o resultado (Med vv 19-20 Her

F vv 112-117) ndash ambos Heacutercules e Jasatildeo teratildeo de continuar vivos para verem os

mortos os que amam As duas peccedilas diferem poreacutem na forma como o scelus eacute

93

executado Em Medea seraacute a protagonista a cometer o crime no caso do Hercules

Furens Juno agiraacute usando o Alcida mas estaraacute ao lado dele

Em siacutentese ainda que nas trageacutedias de Euriacutepides e Seacuteneca sejam deusas as

forccedilas motoras da loucura do Alcida a forma como cada uma das peccedilas se vai

desonrolar ateacute agrave concretizaccedilatildeo dessa loucura eacute diacutespar Em Euriacutepides Heacuteracles comeccedila a

revelar os primeiros sinais de loucura ainda as deusas natildeo tinham abandonado o palaacutecio

Eacute Lissa quem vai descrevendo as primeiras manifestaccedilotildees fiacutesicas do heroacutei dando ao

espectador uma primeira imagem da demecircncia que atacaraacute o protagonista ndash imagem

essa que o Mensageiro desenvolveraacute narrando ao pormenor as transformaccedilotildees faciais

decorrentes da loucura e contando a forma como os Heraclidas morreram

Em Seacuteneca haacute dois planos que se conjugam Juno e Heacutercules A primeira

desencadeia a situaccedilatildeo da loucura como uma espeacutecie de agressatildeo exterior ndash como

acontece na vida humana quando o homem defronta as adversidades que lhe vatildeo

aparecendo Mas Heacutercules eacute jaacute de si excessivo e com tendecircncia agrave megalomania ndash numa

perspectiva estoacuteica ele natildeo consegue pocircr um travatildeo aos uitia que o caracterizam Nesse

sentido a loucura parece vir dele proacuteprio (estaacute enraizada no caraacutecter do Alcida na

uoluntas obsessiva na ausecircncia de ratio) O protagonista eacute por assim dizer um terreno

feacutertil para que a demecircncia imposta por Juno germine

Como Fitch menciona ldquoIn brief then Herculesrsquo madness has a psychological

origin While sane he is characterized by habitual aggression ambition and

megalomania in other words he is already close to insanity in his daily modus uitae At

this moment when he has reached the highest pitch of megalomania his mind topples

over into madnessrdquo153

153 Fitch 30

94

Capiacutetulo III

Heacuteracles e Heacutercules a (des)construccedilatildeo do heroacutei

1 Caracterizaccedilatildeo de Heacuteracles na trageacutedia de Euriacutepides

Para a caracterizaccedilatildeo de Heacuteracles em Euriacutepides satildeo vaacuterios os toacutepicos de anaacutelise

que contribuem para concatenar as quatro partes em que esta trageacutedia se pode dividir1

sendo assim elementos-chave para a compreensatildeo da trageacutedia em particular para a

identificaccedilatildeo do caraacutecter do heroacutei o toacutepico da dupla paternidade do Alcida que faz dele

um ldquoheroacutei-deusrdquo2 e um ldquoheroacutei-mortalrdquo o toacutepico da luz e das trevas o toacutepico da solidatildeo

e da amizade o toacutepico da individualidade e da colectividade Todos estes τόποι

aparecem interligados nas falas das personagens em especial os dois binoacutemios

individualidade vs colectividade e solidatildeo vs amizade

Em toda a peccedila de Euriacutepides parece expliacutecito o papel de Heacuteracles enquanto heroacutei

virtuoso e heroacutei filho de Zeus Esta funccedilatildeo manifesta-se pela forma como a personagem

actua no desenrolar da acccedilatildeo Ele assume a funccedilatildeo divina diriacuteamos de castigar todos os

que natildeo respeitam a justiccedila e incorrem na ὕβρις Deste modo natildeo eacute de estranhar que ele

mate Lico uma vez que este eacute o tiacutepico tirano sem controle No entanto a forma como eacute

delineado o seu caraacutecter por meio das suas acccedilotildees e das descriccedilotildees que as personagens

dele fazem levanta algumas reservas principalmente depois de ser enlouquecido pelas

deusas

A loucura de Heacuteracles que eacute narrada pelo Mensageiro seraacute analisada neste

capiacutetulo O motivo que nos levou a inserir este tema nesta parte da dissertaccedilatildeo foi

principalmente o poder dar uma imagem completa do protagonista no momento antes e

no momento depois da demecircncia provocada pelas deusas visto que eacute a partir desta que

o Alcida se torna mais humano eacute tambeacutem na sequecircncia da loucura e do acto criminoso

que se percebe a ambivalecircncia do heroacutei isto eacute a virtude vs violecircncia de que o

protagonista usa para destruir os seus ldquoinimigosrdquo

1 Vide Capiacutetulo I aliacutenea 11 (data e estrutura da trageacutedia) 2 Como diria Piacutendaro Nemean 322 Heacuteracles eacute o ἥρως θέος

95

11 Imortalidade e Mortalidade a ambivalecircncia do heroacutei

Este tema eacute apresentado no Proacutelogo Heacuteracles eacute filho de Zeus e de Anfitriatildeo

Apesar de a origem do nascimento de Heacuteracles ser do conhecimento de todos a

indicaccedilatildeo da dupla proveniecircncia do heroacutei logo nos trecircs primeiros versos da trageacutedia natildeo

eacute inocente no sentido em que natildeo eacute uma mera contextualizaccedilatildeo ou apresentaccedilatildeo do

tema da acccedilatildeo dramaacutetica Pelo contraacuterio constitui um traccedilo especiacutefico da sua

personalidade3

Haacute ao longo da acccedilatildeo dramaacutetica um contraste notoacuterio entre imortalidade e

mortalidade entre a divinizaccedilatildeo e a humanizaccedilatildeo do protagonista Esta ambivalecircncia do

heroacutei tem um lugar proeminente na trageacutedia assumindo contornos cada vez mais

definidos agrave medida que se aproxima da cena final

Assim dos versos 1 a 821 Heacuteracles eacute caracterizado pelas outras personagens4

como um guerreiro de insigne valor e filho de Zeus Apenas Lico contesta a heroicidade

e a paternidade do Alcida baseando-se em trecircs argumentos uma divindade nunca teria

relaccedilotildees com um humano (v 149)5 duvida da forccedila pujante de Heacuteracles assim como

natildeo o considera heroacutei porque combate contra animais ferozes com ajuda de armadilhas

(vv 150-155) natildeo eacute um verdadeiro guerreiro porque usa como meio de defesa um arco

e natildeo uma espada e um escudo6

As restantes personagens ao contraacuterio de Lico louvam o caraacutecter do heroacutei

Anfitriatildeo recorda no ἀγών contra Lico que Heacuteracles foi aliado dos deuses quando estes

lutaram contra os gigantes

Διὸς κεραυνὸν ἠρόμην τέθριππά τε ἐν οἷς βεβηκὼς τοῖσι γῆς βλαστήμασιν Γίγασι πλευροῖς πτήν᾿ ἐναρμόσας βέλη τὸν καλλίνικον μετὰ θεῶν ἐκώμασεν∙7

(vv 177-180)

3 Esta dupla natureza de Heacuteracles levou alguns criacuteticos a considerarem complexo o estudo da personagem enquanto protagonista de uma trageacutedia Para Silk ldquoHeracles and Greek Tragedyrdquo Greece and Rome 32 n1 (1985) 1-22 os problemas maiores que se colocam quando se analisa o comportamento do heroacutei satildeo a natureza heroacuteica-divina e o facto de Heacuteracles ser um heroacutei particularmente solitaacuterio Heacuteracles natildeo tem um lugar entre a sociedade humana ou divina mas vive agrave margem de ambas 4 Apesar de Heacuteracles entrar em cena somente a partir do v 523 eacute constantemente evocado pelas outras personagens 5 Tal perspectiva volta a ser posta em causa no uacuteltimo episoacutedio por Heacuteracles 6 Estes uacuteltimos dois pontos voltaratildeo a ser referidos quando analisarmos o toacutepico individualidade e colectividade 7 lsquoComeccedilarei por interrogar o raio e a quadriga de Zeus da qual enviou as setas aladas que se cravaram nos flancos dos Gigantes nascidos da terra glorioso triunfo que celebrou com os deusesrsquo

96

As aliteraccedilotildees (v 177 τέθριππά τε v 179 πλευροῖς πτήν᾿) e o homeoptoto

concorrem para engrandecer o louvor do Coro pelo regresso e a proveniecircncia divina do

heroacutei (vv 696-697) que proporcionou aos mortais uma vida mais tranquila com a

destruiccedilatildeo dos monstros que povoavam a terra (vv 699-700)

Nos vv 821 ss daacute-se a transiccedilatildeo de Heacuteracles referido enquanto heroacutei divino

para uma humanizaccedilatildeo completa da sua personagem O filho de Zeus inicialmente

exaltado passa no epiacutelogo a um mero mortal filho de pais mortais A queda do heroacutei

com a morte dos filhos e da esposa foi dupla fiacutesica e psicoloacutegica No aspecto fiacutesico

verifica-se uma dupla destruiccedilatildeo a ruiacutena do palaacutecio com a queda do telhado e o

desmaio de Heacuteracles provocado por Atena

Sob o ponto de vista psicoloacutegico Heacuteracles eacute enlouquecido pelas divindades

comete os crimes hediondos inconscientemente e quase natildeo consegue recuperar do

desvario de tal modo que precisa do auxiacutelio de Teseu para se levantar O esgotamento

do heroacutei eacute completo8

Quando recupera a razatildeo e toma conhecimento do seu crime o Alcida renega a

paternidade divina Para ele o seu verdadeiro e assumido pai eacute Anfitriatildeo A trageacutedia

termina com o decliacutenio total do heroacutei O uacutenico modo de derrotaacute-lo foi atraveacutes da

loucura Teseu condena o sofrimento exacerbado de Heacuteracles comparando-o a uma

mulher que chora e se lamenta copiosamente pela sua ruiacutena (vv 1412-1417)

No uacuteltimo momento quando Heacuteracles decide abandonar Tebas precisa de ajuda

para se levantar tal a dimensatildeo da sua derrota Como sugere Barlow ldquoThe end of the

play shows a transformation not the glorious invincible hero but a vulnerable human

being struck down by madness This is a disgraced and humiliated Heracles who is

broken and dependentrdquo9

12 Luz e Trevas

A trageacutedia desenrola-se sob a antinomia trevasluz No iniacutecio da trageacutedia

momento mais lento10 o ambiente que envolve as personagens eacute de trevas a famiacutelia de

8 Como veremos em pormenor quando analisarmos as manifestaccedilotildees da loucura 9 Barlow xiv 10 Tanto o iniacutecio como o final da trageacutedia satildeo momentos de grande densidade psicoloacutegica que se traduz numa lenta progressatildeo da acccedilatildeo Anfitriatildeo e Meacutegara esperam suplicantes ou pela morte inevitaacutevel ou pela salvaccedilatildeo O regresso de Heacuteracles permite acelerar o ritmo da acccedilatildeo e haacute uma raacutepida sucessatildeo de

97

Heacuteracles foi condenada agrave morte No proacutelogo no primeiro episoacutedio e no iniacutecio do

segundo as personagens vivem numa atmosfera de agonia entre a esperanccedila e a

descrenccedila total no regresso do heroacutei Hades11 eacute constantemente evocado como o lugar

que reteacutem o filho de Zeus Eacute de facto do Hades que Heacuteracles sai em direcccedilatildeo a Tebas

para chegar agrave cidade de Creonte no momento exacto para salvar a sua famiacutelia e seraacute

para o Hades que o heroacutei conduziraacute a famiacutelia depois de enlouquecido

Esta chegada representa um movimento das trevas para a luz ainda que essa

mudanccedila seja por meros instantes e a luz seja aparente Heacuteracles aparece como salvador

contudo com o desenvolvimento da acccedilatildeo o heroacutei deixa-se tomar pela fuacuteria mata

primeiro Lico e os seus seguidores e de seguida Meacutegara e os filhos Entre os dois

momentos de assassiacutenio haacute apenas uma pausa com a entrada das divindades Iacuteris e Lissa

Todo o momento em que eacute descrito o modo como Heacuteracles mata os filhos e a

esposa estaacute igualmente associado agraves trevas A luz regressa com o aparecimento de Teseu

e a sua promessa de purificaccedilatildeo do acto de Heacuteracles levando-o para Atenas

13 Individualidade e Colectivismo

O tema individualidade em oposiccedilatildeo ao colectivismo eacute frequente na trageacutedia e

serve de mote para caracterizar Heacuteracles que eacute fundamentalmente um heroacutei individual e

solitaacuterio λιπὼν δὲ Θήβας οὗ κατῳκίσθην ἐγώ Μεγάραν τε τήνδε πενθερούς (vv 13-

14)12 Esta caracteriacutestica do heroacutei eacute reforccedilada pelo geacutenero de armas que escolhe usar

para se defender e atacar os inimigos Satildeo elas principalmente o arco e as setas mas

tambeacutem a clava Estas permitem ao heroacutei manter a sua seguranccedila natildeo ficando

dependente de ningueacutem numa batalha

Eacute precisamente na escolha do tipo de armas com que Heacuteracles se defende que

reside a criacutetica de Lico Para o tirano o Alcida eacute cobarde porque luta apenas contra

animais e evita a refrega da batalha ndash a iteraccedilatildeo de οὐδὲν (v 157 v 158 v 160) e de

εὐψυχίας (v 157 v 162) em liacutetotes reforccedila esta ideia de falta de coragem que Lico

pretende provar

acontecimentos morte de Lico juacutebilo do Coro entrada de Iacuteris e Lissa loucura de Heacuteracles chegada do Mensageiro que narra a morte de Meacutegara e dos filhos No final da trageacutedia a acccedilatildeo eacute novamente mais lenta diaacutelogo entre Heacuteracles e Teseu (vide M S Silk ldquoHerakles and Greek Tragedyrdquo 2) 11 Ocorrecircncias vv 22-25 vv 44-46 vv 145-146 vv 296-297 vv 426-434 vv 490-495 12 lsquoabandonou Tebas onde eu me estabelecera deixando Meacutegara e os seus sogrosrsquo

98

ὁ δ᾿ ἔσχε δόξαν οὐδὲν ὢν εὐψυχίας θηρῶν ἐν αἰχμῇ τἄλλα δ᾿ οὐδὲν ἄλκιμος ὃς οὔποτ᾿ ἀσπίδ᾿ ἔσχε πρὸς λαιᾶι χερὶ οὐδ᾿ ἦλθε λόγχης ἐγγὺς ἀλλὰ τόξ᾿ ἔχων κάκιστον ὅπλον τῇ φυγῇ πρόχειρος ἦν ἀνδρὸς δ᾿ ἔλεγχος οὐχὶ τόξ᾿ εὐψυχίας ἀλλ᾿ ὃς μένων βλέπει τε κἀντιδέρκεται δορὸς ταχεῖαν ἄλοκα τάξιν ἐμβεβώς13

(vv 157-164)

Lico faz uma apologia do valor do hoplita porque este enfrenta directamente a

refrega manifestando a sua coragem Anfitriatildeo pelo contraacuterio defende que eacute no arco

que reside a salvaccedilatildeo visto que permite ao heroacutei afastar-se do fragor da guerra dando-

-lhe maior seguranccedila E aduz argumentos com que sustenta a sua tese Heacutercules lutou ao

lado dos deuses manuseando o arco para matar os gigantes o arco permite salvaguardar

a sua vida e a dos companheiros de guerra (vv 195-201) Em relaccedilatildeo ao hoplita

apresenta significativa vantagem pois este eacute um escravo das suas proacuteprias armas e

depende sempre dos que estatildeo com ele sendo-lhe mais difiacutecil evitar a morte se os que o

rodeiam fugirem cobardemente (vv 190-194) No entanto como observa Carlos

Ferreira ldquoNatildeo deixa por isso de existir alguma ironia no facto de Anfitriatildeo o defensor

da solidariedade e paradigma dos valores comunitaacuterios rejeitar o escudo e os hoplitas e

por conseguinte a comunidade como um todo enquanto Lico o usurpador defende o

hoplita e os valores que ele simbolizardquo14

Tambeacutem os trabalhos de Heacuteracles representam a individualidade do heroacutei porque

os concluiu sozinho Natildeo deixa contudo de ser sarcaacutestica a situaccedilatildeo da personagem

apesar de lutar sozinho dedicou-se sempre ao bem da humanidade (reduzida em

Euriacutepides a Tebas e agrave Heacutelade) mas quando a famiacutelia mais precisou de ajuda nenhum

dos povos que por ele foram auxiliados lhe prestou apoio (vv 217-226)

Por oposiccedilatildeo a este individualismo satildeo representaccedilotildees da colectividade o Coro e

Teseu No paacuterodo os anciatildeos do Coro entram apoiando-se mutuamente Caminham em

grupo ajudando-se e recordando os momentos em que combateram juntos (vv 127-

229) O valor que representava a colectividade que se alia ao valor da amizade tem 13 lsquoele apenas mostrou aparecircncia de coragem na luta contra as feras sem se distinguir minimamente nos restantes trabalhos ele nunca transportou um escudo no braccedilo esquerdo nem defrontou a lanccedila mas tendo o arco e flechas a mais fraca das armas estava sempre prestes a fugir A prova da coragem do guerreiro natildeo estaacute no arco mas corajoso eacute aquele que permanecendo de peacute firme aguarda sem desviar os olhos o campo em movimento das lanccedilas marchando ordenadamente com as suas tropasrsquo 14 Carlos Ferreira Santos Euriacutepides Heacuteracles Introduccedilatildeo Traduccedilatildeo e Notas 36

99

nestes versos o seu sentido Os velhos companheiros de armas de Anfitriatildeo aproximam-

-se do palaacutecio de Heacuteracles por amizade para com ele pois o terem combatido juntos

traduz-se agora nos laccedilos fortes com que esse sentimento os une

Teseu representa a expressatildeo maacutexima da noccedilatildeo de colectividade Tomando

conhecimento do perigo em que a famiacutelia de Heacuteracles se encontrava dirige-se a Tebas

com um grupo de hoplitas atenienses para auxiliar o amigo (vv 1164-1172) Este

aspecto contrasta por completo com o que Anfitriatildeo proclamou no Primeiro Episoacutedio

Haacute pois uma nova mutaccedilatildeo do elogio do arco passa-se ao elogio da lanccedila do

individualismo do archeiro passamos para o colectivismo do hoplita Heacuteracles que era a

representaccedilatildeo maacutexima desse individualismo usou o arco e as flechas para matar a sua

famiacutelia Teseu por extensatildeo o hoplita consegue salvar o heroacutei dissuadindo-o de se

suicidar

14 Solidatildeo e Amizade

A antiacutetese solidatildeo vs amizade eacute um τόπος senatildeo o mais importante pelo menos

dos essenciais para a compreensatildeo da trama da trageacutedia Permite constituir dois grupos

de personagens as que estatildeo de algum modo isoladas solitaacuterias e as que simbolizam a

amizade No primeiro grupo incluiacutemos Anfitriatildeo Meacutegara e Heacuteracles no segundo o

Coro e Teseu

Anfitriatildeo e Meacutegara natildeo vecircem na amizade qualquer porto de abrigo que os possa

salvar estatildeo completamente soacutes Natildeo podem contar com o auxiacutelio muacutetuo porque

Anfitriatildeo natildeo passa de um anciatildeo sem forccedilas οὐδὲν ὄντα πλὴν γλώσσης ψόφον (v

229)15 e Meacutegara eacute uma mulher logo eacute um ser indefeso

Heacuteracles eacute protoacutetipo do heroacutei solitaacuterio que natildeo tem um lugar estaacutevel ndash passa

grande parte do seu tempo a deambular pelo orbe Tendo como objectivo das suas

deambulaccedilotildees o pacificar o mundo Heacuteracles estranha a ausecircncia de amigos no

momento da desgraccedila (v 558) principalmente por tudo o que fez por Tebas microάχας δὲ

Μινυῶν ἃς ἔτλην ἀπέπτυσαν (v 560)16 Eacute a revolta resultante do abandono dos amigos

(ou dos falsos amigos) que o leva a pensar numa vinganccedila

15 lsquonada mais sou do que um ruiacutedo de palavrasrsquo 16 lsquoE ateacute as difiacuteceis vitoacuterias sobre os Miacutenios foram capazes de esquecerrsquo

100

ἐγὼ δέ νῦν γὰρ τῆς ἐmicroῆς ἔργον χερός πρῶτον μὲν εἶμι καὶ κατασκάψω δόμους καινῶν τυράννων κρᾶτα δrsquo ἀνόσιον τεμὼν ῥίψω κυνῶν ἕλκημα Καδμείων δrsquo ὅσους κακοὺς ἐφηῦρον εὖ παθόντας ἐξ ἐμοῦ τῷ καλλινίκῷ τῷδrsquo ὅπλῳ χειρώσομαι τοὺς δὲ πτερωτοῖς διαφορῶν τοξεύμασιν νεκρῶν ἅπαντrsquo lsquoΙσμηνὸν ἐμπλήσω φόνου Δίρκης τε νᾶμα λευκὸν αἱμαχθήσεται17 (vv 565-573)

Os adveacuterbios (v 565 νῦν v 566 πρῶτον) e a assonacircncia em e (v 565) denotam

o desejo de vinganccedila imediata que seraacute num futuro breve (v 566 εἶμι κατασκάψω v

568 ῥίψω v 570 χειρώσομαι v 572 ἐμπλήσω v 573 αἱμαχθήσεται) e que promete

ser violenta (vv 572-573)

Os vv 562-582 tecircm merecido diversas criacuteticas Schmid18 por exemplo

considera excessiva a atitude do heroacutei em querer vingar-se de todos os cidadatildeos que se

recusaram a ajudar os Heraclidas Bond entende que satildeo justificadas as acccedilotildees do

protagonista19 Pela nossa parte considerariacuteamos a posiccedilatildeo do heroacutei adequada ao punir

os iacutempios e mesmo ao usar como recurso a violecircncia (caracteriacutestica que lhe eacute inerente)

se essa violecircncia natildeo fosse levada ao extremo manifestando-se no desejo de inundar o

rio de cadaacuteveres e de fazer jorrar da fonte sangue dos Tebanos20 Eacute neste ponto que

entendemos o heroacutei como efectivamente excessivo Aleacutem disso se esta fosse uma

situaccedilatildeo normal e aceitaacutevel Anfitriatildeo natildeo teria apelado para a moderaccedilatildeo do

protagonista (v 586 ἀλλὰ microὴ πείγου λίαν21 nem teria o cuidado de dissuadir o filho

deste intento e muito menos o Alcida aceitaria o conselho paterno (vv 606-609)

A forccedila violenta ndash expressa nestes versos em assonacircncias de oclusivas ndash que

Heacuteracles pretende usar seraacute a mesma que utilizaraacute para matar os filhos Se no primeiro 17 lsquoEacute que eu ndash pois agora chegou a vez de o meu braccedilo actuar ndash antes de mais vou partir e vou devastar completamente o palaacutecio desse novo soberano e depois de degolar a sua iacutempia cabeccedila lanccedilaacute-la-ei como alimento aos catildees E aqueles Cadmeus que tendo recebido de mim benefiacutecios eu considerar ingratos subjugaacute-los-ei com esta arma vencedora e trespassando os outros com as minhas flechas aladas inundarei todo o Ismeno de cadaacuteveres e ensanguentarei as liacutempidas aacuteguas de Dircersquo 18 Apud Bond 206-207 19 Bond 206 ldquoHeraclesrsquo plans are reasonable by fifth-century let alone heroic standardsrdquo O mesmo autor justifica esta ideia com o exemplo de Ulisses no contexto do massacre dos pretendentes de Peneacutelope ldquoThere is a good precedent in the hanging of Odysseusrsquo faithless handmaidens (Od 22 465 ff) and such revenge conforms to the traditions of fifth-century στάσις Platea Corcyra and Melos suffered similar massacres the Athenian decree to kill all adult males in Mytilene was more brutal since it was not selective (Thuc 3 362)rdquo 20 Este episoacutedio lembra a luta entre Aquiles e o rio Escamandro A causa do confronto foi a intoleracircncia do rio em natildeo suportar mais o excesso do heroacutei que estava a encher o caudal com cadaacuteveres de guerreiros troianos (vide Homero Ilias 21214-221) 21 lsquoMas cautela com as precitipaccedilotildeesrsquo

101

caso haacute quem possa consideraacute-la como natildeo excessiva no segundo exemplo eacute criticada

como veremos oportunamente

15 Outras caracteriacutesticas na construccedilatildeo heroacutei

Aleacutem dos toacutepicos que foram sendo apontados haacute outros de natildeo menor

importacircncia que caracterizam directamente Heacuteracles o amor filial e paternal a

excelecircncia do heroacutei que o torna famoso ele eacute ainda visto como o pacificador do orbe o

salvador (chega ao palaacutecio no momento crucial para salvar a famiacutelia) e o civilizador

(castiga os tiranos que natildeo respeitam os deuses)

Quanto ao primeiro ponto Anfitriatildeo eacute a primeira personagem que salienta o

amor de Heacuteracles pela sua famiacutelia pois abandonou Tebas em direcccedilatildeo a Argos para

oferecer os seus serviccedilos a Euristeu em troca do regresso de Anfitriatildeo seu pai agrave terra

natal (vv 18-20) A este altruiacutesmo que parece ser uma caracteriacutestica estruturante do

heroacutei Anfitriatildeo acrescenta em alternativa outras duas razotildees que teratildeo levado Heacuteracles

a oferecer-se a Euristeu ou foi obrigado por Hera ou pela forccedila do Destino

Ao anexar ao toacutepico da ldquodevoccedilatildeo filialrdquo outros dois motivos Anfitriatildeo alude

como indica Carlos Ferreira Santos ldquoagrave tradicional inimizade de Hera e ao terriacutevel

destino (vv 20-21) motivos jaacute associados em Il 18119 o que pode demonstrar que o

motivo do auxiacutelio a Anfitriatildeo como uacutenico justificativo para a execuccedilatildeo dos trabalhos

natildeo era um dos elementos mais difundidos do mitordquo22 Natildeo eacute expliacutecita a intenccedilatildeo do

autor dramaacutetico ao apresentar opccedilotildees que validem a concretizaccedilatildeo dos trabalhos e no

decorrer da acccedilatildeo natildeo haacute uma concreta e definiva resposta

Esta eacute uma questatildeo que persiste e parece que natildeo haacute uma resposta plausiacutevel

Segundo Bond

Of the explanations distinguished by Preller-Robert 428 ff (a) Euripidesrsquos version here perhaps invented to represent Heracles as a dutiful son does not account for those labours which were not civilizing (b) the story implied by Apollod Bibl 2 4 12 that the labours were expiation for Heraclesrsquos killing of his children is clearly not relevant to HF (c) Zeusrsquo oath which established Eurystheus in power (Il 19 100 ff) does not suffice to account for the labours and Heraclesrsquo servitude (d) the hope of immortality (Theocr 24 82) looks

22 Carlos Ferreira Santos Euriacutepides Heacuteracles Introduccedilatildeo Traduccedilatildeo e Notas 24

102

like a post-classical mystic interpretation though Preller-Robert remark that several labours or deeds of Heracles imply the conquest of death Cerberus Alcestis the Golden Apples the marriage with Hebe23

A nosso ver haacute trecircs interpretaccedilotildees possiacuteveis que remetem para trecircs pontos de

vista diferentes

1 Heacuteracles procura Euristeu e oferece-se para libertar a humanidade dos medos

que a perseguem matando os monstros que assolavam a terra para que em troca

Anfitriatildeo pudesse regressar a Argos (vv 13-20)

2 Hera obriga Heacuteracles por meio de aguilhotildees (natildeo sabemos que geacutenero de

aguilhotildees eram esses) a submeter-se agraves ordens de Euristeu (vv 20-21)

3 O Destino ditou que Heacuteracles teria de realizar doze trabalhos por ordem de

Euristeu (v 21)

O primeiro ponto reforccedila a imagem de um heroacutei de excelentes qualidades que o

Coro tanto exalta nos trecircs primeiros estaacutesimos (vv 348-435 vv 639-700 vv 735-814)

e enquadra-se perfeitamente no objectivo das duas primeiras partes da trageacutedia o de

demonstrar que Heacuteracles eacute o pacificador o libertador o protector e o civilizador que

vem repor a ordem em Tebas Jaacute os outros dois pontos natildeo tecircm qualquer relevacircncia

nessas duas primeiras partes da trageacutedia uma vez que natildeo haacute qualquer referecircncia a uma

ligaccedilatildeo entre Hera e Heacuteracles ou entre Destino e Heacuteracles

Eacute na terceira e quarta partes que estes uacuteltimos aspectos ganham importacircncia

Relativamente ao segundo ponto em particular no quinto episoacutedio na cena da loucura

Heacuteracles recorda a ira de Hera que o persegue desde o dia em que nasceu (vv 1262-

1310 1392-1393) O nome da deusa eacute constantemente evocado natildeo soacute pelo heroacutei como

por Teseu (v 1186) No v 1127 Anfitriatildeo acusa Hera de ter enlouquecido o Alcida

mas depois revela natildeo ter tanta certeza na participaccedilatildeo de alguma divindade no crime do

filho (v 1135) Note-se que Anfitriatildeo tem todavia desconhecimento total do

aparecimento das deusas Iacuteris e Lissa sobre o telhado do palaacutecio Logo ele desconhece a

autoria divina da loucura do Alcida

Sob o terceiro ponto de vista as acccedilotildees de Heacuteracles satildeo controladas pelo

Destino Esta eacute a perspectiva da divindade Iacuteris afirma que o Destino e Zeus natildeo

permitiam que ela e Hera causassem algum dano ao heroacutei enquanto este natildeo concluiacutesse

os trabalhos No entanto se foi autoria do Destino o cumprimento desses trabalhos 23 Bond 68

103

continuamos sem saber quais satildeo os antecedentes que levaram o heroacutei a assumir esse

Destino Poderaacute estar subjacente a ideia de que se Heacuteracles cumprisse os trabalhos

receberia como recompensa a imortalidade embora a tal natildeo haja qualquer alusatildeo na

trageacutedia

Cada uma das perspectivas apresentadas conduz o leitor a uma interpretaccedilatildeo

diferente Parece-nos que Euriacutepides tomou as diversas tradiccedilotildees mitoloacutegicas e lhes deu

uma nova perspectiva Para os homens satildeo os deuses a causa de tanto sofrimento de

Heacuteracles Os deuses remetem para a funccedilatildeo do Destino Maria de Faacutetima Sousa e Silva

afirma que ldquoA Euriacutepides pouco importa discernir a origem do sofrimento humano ou

tentar explicaacute-la para ele conta apenas que o homem sofre e por isso eacute digno de

piedaderdquo24

A problemaacutetica da funccedilatildeo que os deuses25 e o Destino desempenham na vida

humana eacute frequente nas peccedilas de Euriacutepides em especial no Heracles No que diz

respeito ao Destino Meacutegara sente que a τύχη obriga a sua famiacutelia a morrer (vv 282-

283 vv 309-311 vv 456-457 vv 480-482)

No jogo entre estas diferentes perspectivas talvez possamos descortinar a um

tempo a concepccedilatildeo que os Gregos tinham dos seus deuses e a concepccedilatildeo dos sofistas

Como sugere Fritz Graf

The Euripidean critique of myths about the gods begins with the same objection the gods as traditionally represented are far too crassly anthropomorphic This objection was not new A century earlier Xenophanes of Colophon had complained that Homer and Hesiod attributed to the gods ldquoall that is shameful and disgraceful among men they steal commit adultery and deceive one anotherrdquo (DK 21 B 11 cf chapter 8)26

Ainda no acircmbito do toacutepico sobre o afecto familiar haacute que lembrar o discurso de

Meacutegara no proacutelogo quando ela descrevendo uma situaccedilatildeo da vida diaacuteria recorda os

laccedilos fortes que unem os filhos ao pai mal ouvem o som de abertura de uma porta

ficam expectantes por julgarem que eacute o pai que estaacute a chegar (τῷ νέῳ δrsquo ἐσφαλμένοι

24 Maria de Faacutetima Sousa e Silva Criacutetica Literaacuteria na Comeacutedia Grega Geacutenero Dramaacutetico 227 25 Sobre este ponto ver Capiacutetulo I aliacutenea 12 26 Fritz Graf Greek Mythology an Introduction trad Thomas Marier (Baltimor Londres Johns Hopkins University Press 1996) 169-170

104

ζητοῦσι τὸν τεκόντrsquo ἐγὼ δὲ διαφέρω λόγοισι μυθεύουσα θαυμάζων δrsquo ὅταν πύλαι

ψοφῶσι πᾶς ἀνίστησιν πόδα ὡς πρὸς πατρῷον προσπεσούμενοι γόνυ27)

O afecto do Alcida pela famiacutelia eacute uma caracteriacutestica fundamental na trageacutedia de

Euriacutepides e natildeo teraacute qualquer repercussatildeo em Seacuteneca O discurso de Meacutegara momento

de elevado teor dramaacutetico em que ela descreve as reacccedilotildees dos filhos agrave ausecircncia do

Alcida revela a estreita relaccedilatildeo entre Heacuteracles e os filhos e a uniatildeo muito proacutexima e

afectiva entre Heacuteracles e Meacutegara28 Eacute o seu zelo pelos que lhe satildeo proacuteximos que leva o

heroacutei antes de entregar Ceacuterbero a Euristeu a regressar a Tebas porque pressente que

Anfitriatildeo Meacutegara e os filhos correm perigo (vv 595-598)

Este sentimento que nutre pelos filhos leva-o a considerar que os trabalhos que

conclui em nada se comparam ao de proteger os seus filhos

χαιρόντων πόνοι microάτην γὰρ αὐτοὺς τῶνδε μᾶλλον ἤνυσα καὶ δεῖ microrsquo ὑπὲρ τῶνδrsquo εἴπερ οἴδrsquo ὑπὲρ πατρός θνῄσκειν ἀmicroύνοντrsquo ἢ τί φήσομεν καλὸν ὕδραι μὲν ἐλθεῖν ἐς μάχην λέοντί τε Εὐρυσθέως πομπαῖσι τῶν δrsquo ἐmicroῶν τέκνων οὐκ ἐκπονήσω θάνατον οὐκ ἄρrsquo lsquoΗρακλῆς ὁ καλλίνικος ὡς πάροιθε λέξομαι29

(vv 575-582)

Nesta cena o protagonista assume-se como o defensor da sua famiacutelia E a sua

gloacuteria jaacute natildeo reside nos feitos passados mas sim em manter a seguranccedila dos seus ndash a

iteraccedilatildeo da preposiccedilatildeo ὑπὲρ (v 577) a estabelecer um paralelo entre os filhos e

Heacuteracles intensifica a necessidade do heroacutei em salvaacute-los Esta eacute a mais dura prova que

teraacute que enfrentar mesmo que essa prova implique perder a vida30 Reconhece a sua

funccedilatildeo comparando-se a um navio que transporta os pequenos barcos consigo para

protegecirc-los (vv 631-633) O siacutemile acentua a ironia traacutegica a protecccedilatildeo que Heacuteracles

27 vv 75-79 lsquoEnquanto na sua acircnsia juvenil procuravam o seu progenitor eu contando-lhes histoacuterias iludia-os com palavras Expectantes quando a porta faz algum ruiacutedo levantam-se como se aos peacutes do proacuteprio pai se fossem prostrarrsquo 28 Um outro exemplo que comprova este aspecto eacute apresentado no terceiro episoacutedio no momento de abertura quando Meacutegara relembra o passado venturoso em que pai e matildee planearam a vida dos trecircs filhos oferecendo a cada um paiacutes para governarem e escolhendo-lhes como esposas princesas oriundas das trecircs principais πόλεις 29 lsquoEsqueccedilo os meus trabalhos Foram pouca coisa quando comparados com as tarefas presentes Eacute meu dever defender estas crianccedilas ainda que agrave custa da minha vida uma vez que elas estavam dispostas a morrer pelo pai Seraacute que me poderei vangloriar de ter combatido a hidra e o leatildeo a pedido de Euristeu se natildeo afastar a ameaccedila de morte dos meus filhos Jamais serei considerado Heacuteracles o vitorioso tal como outrorarsquo 30 Neste passo momento de densidade pateacutetica eacute expressiva a ironia traacutegica

105

pretendia assegurar agrave famiacutelia com a sua chegada tal como um navio que protege os

pequenos botes acabou por revelar ser a sua ruiacutena uma vez que o heroacutei eacute subjugado

pela loucura divina31 O sofrimento que adveacutem da morte dos filhos traduz-se num dos

momentos mais intensos nesta trageacutedia e levou criacuteticos como Andreacute Rivier a

consideraacute-lo como ldquodu type de perfection qui met hors de pair Hippolyte et Meacutedeacuteerdquo32

O filiciacutedio e o uxoriciacutedio atingem deste modo a ἀκμή em termos de ironia traacutegica

principalmente porque Heacuteracles natildeo se considera culpado (v 1310) mas toma o seu

acto como involuntaacuterio sabendo-se domado pelas Eriacutenias (v 1364)

16 Manifestaccedilatildeo da loucura de Heacuteracles

A loucura de Heacuteracles eacute progressiva e tem lugar a partir da segunda parte O

tema33 eacute apresentado pelas deusas Iacuteris e Lissa O diaacutelogo entre elas permite dar uma

primeira imagem da mutaccedilatildeo do estado psicoloacutegico do protagonista que comeccedila a ter os

primeiros sintomas de uma perturbaccedilatildeo mental Numa primeira parte Lissa descreve a

forma como vai provocar-lhe a loucura

οὔτε πόντος οὕτω κύμασι στένων λάβρoς οὔτε γῆς σεισμὸς κεραυνοῦ τ᾽ οἶστρος ὠδῖνας πνέων οἷ᾽ ἐγὼ στάδια δραμοῦμαι στέρνον εἰς Ἡρακλέους∙ καὶ καταρρήξω microέλαθρα καὶ δόμους ἐπεμβαλῶ τέκν᾽ ἀποκτείνασα πρῶτον ὁ δὲ κανὼν οὐκ εἴσεται παῖδας οὓς ἔτικτεν ἐναίρων πρὶν ἂν ἐmicroὰς λύσσας ἀφῇ34 (vv 861-866)

31 Nos versos 1423-1424 o heroacutei καλλίνικος volta a usar metaacuteforas nauacuteticas para representar a sua actual dependecircncia relativamente a Teseu ἡμεῖς δrsquo ἀναλώσαντες αἰσχύναις δόμον Θησεῖ πανώλεις ἑψόμεσθrsquo ἐφολκίδες [lsquoE eu tendo arruinado com actos desonrosos a minha casa completamente destruiacutedo seguirei Teseu qual batel rebocado por uma naursquo] 32 Andreacute Rivier Essai sur le tragique drsquo Euripide 100 33 A questatildeo da loucura de Heacuteracles tem sido motivo de sucessivas discussotildees levando como indica Thalia Papadopoulou Heracles and Euripidean Tragedy (Cambridge Cambridge University Press 2005) 3 a diversas e contraditoacuterias conclusotildees ldquothe Euripidean Heracles has been viewed at one extreme as an essentially flawed figure and at the other as an idealized characterrdquo De facto haacute autores que consideram que a entrada de Heacuteracles em cena indicia desde logo a sua loucura (como eacute o caso de Willamowitz) No entanto pensamos ser objectivo do tragedioacutegrafo o de representar em Heacuteracles uma natureza por si proacutepria excessiva habituado a lutar contra monstros e contra homens crueacuteis dissipa a violecircncia do mundo usando os mesmos meios isto eacute por meio de uma forccedila impetuosa 34 lsquoNem o mar impetuoso gemendo com as suas ondas nem o tremor de terra ou a fuacuteria do relacircmpago soprando agonias seratildeo tatildeo violentos como a corrida que eu vou encetar contra o peito de Heacuteracles Destruirei o tecto e lanccedilarei por terra a sua casa depois de matar os seus filhos Mas o assassino natildeo saberaacute que estaacute a matar os filhos que gerou antes de se libertar dos meus furoresrsquo

106

A actuaccedilatildeo do δαίμων promete ser forte e destruidora tanto sob o ponto de vista

fiacutesico como sob o psicoloacutegico Os elementos da natureza evocados ndash a forccedila do mar o

terramoto e a imagem da forccedila arrasadora de um meteorito acentuados pela iteraccedilatildeo do

adveacuterbio de negaccedilatildeo ndash demonstram a forccedila violenta com que Lissa pretende atacar

Heacuteracles A destruiccedilatildeo da casa do heroacutei seraacute completa com a morte dos filhos35 e com a

queda do telhado36

De um futuro que estaacute prestes a eclodir Lissa passa para o presente Heacuteracles jaacute

eacute viacutetima dos seus aguilhotildees Satildeo delineados os primeiros traccedilos que caracterizam a

loucura do heroacutei

ἢν ἰδού∙ καὶ δὴ τινάσσει κρᾶτα βαλβίδων ἄπο καὶ διαστρόφους ἑλίσσει σῖγα γοργωποὺς κόρας ἀμπνοὰς δ᾽ οὐ σωφρονίζει ταῦρος ὣς ἐς ἐμβολὴν δεινὰ μυκᾶται δέ Κῆρας ἀνακαλῶ τὰς Ταρτάρου τάχα σ᾽ ἐγὼ microᾶλλον χορεύσω καὶ καταυλήσω φόβῳ37

(vv 867-872)

Estes sintomas satildeo apresentados por Lissa a Iacuteris ao Coro e aos espectadores (o

estremecer da cabeccedila38 a alteraccedilatildeo de um olhar que indicia o comeccedilo da demecircncia da

personagem a respiraccedilatildeo desenfreada e semelhante agrave de um touro prestes a atacar

algueacutem) sintomas cuja enumeraccedilatildeo o Mensageiro completaraacute quando entrar em cena39

O Mensageiro recupera as falas de outras personagens que decorreram antes e durante o

acto de loucura de Heacuteracles natildeo soacute no diaacutelogo entre Iacuteris e Lissa (principalmente as do

passo que acabaacutemos de transcrever) mas tambeacutem os lamentos de Anfitriatildeo e do Coro

De facto o diaacutelogo entre as deusas Iacuteris e Lissa permitiu ao Coro e ao puacuteblico

tomar conhecimento de modo preliminar dos acontecimentos que decorreratildeo no quarto

e quinto episoacutedios As deusas Hera e Iacuteris servem-se da loucura para se vingarem de

Heacuteracles e o castigo consiste em matar os seus proacuteprios filhos Por sua vez o Coro vai

entoando um lamento agrave nova mudanccedila da fortuna e em simultacircneo imagina o heroacutei

numa danccedila freneacutetica qual bacante com a diferenccedila de que natildeo estaacute num ritual baacutequico 35 Destruiccedilatildeo da casa sob o ponto de vista psicoloacutegico 36 Destruiccedilatildeo fiacutesica da casa 37 lsquoPrestem atenccedilatildeo Eis que ele agita a cabeccedila no iniacutecio da sua investida em silecircncio revira os olhos retorcidos e terrificantes natildeo controla a respiraccedilatildeo e como um touro pronto para o assalto muge perigosamente invocando as Ceres do Taacutertaro para que de forma raacutepida e com ruidosa fuacuteria o acompanhem como os catildees acampanham o caccediladorrsquo 38 Segundo Bond 292 τινάσσει κρᾶτα eacute por si um sinal de que a loucura estaacute iminente 39 O Mensageiro entra no IV episoacutedio Eacute representado por um dos servos de Heacuteracles que narra com uma certa extensatildeo (cerca de 93 vv) os uacuteltimos acontecimentos ocorridos num espaccedilo extraceacutenico dentro do palaacutecio Todo o discurso desta personagem marca uma pausa no decorrer da acccedilatildeo

107

A metaacutefora torna visiacutevel a imagem do estado psicoloacutegico do Alcida Aos gemidos e

frases soltas que Anfitriatildeo vai proferindo dentro do palaacutecio o Coro responde com aquilo

que supotildee estar a acontecer a perseguiccedilatildeo e a morte das crianccedilas

O aparecimento do Mensageiro (vv 910-1015) retoma os toacutepicos da demecircncia e

do filiciacutedio A personagem narra a morte de cada um dos filhos do protagonista e da sua

mulher Eacute tambeacutem por ele que sabemos que Anfitriatildeo escapa ao massacre mercecirc da

intervenccedilatildeo de Atena que trava o Alcida com uma pedra adormecendo-o O discurso

do Mensageiro termina com a queda fiacutesica do heroacutei queda essa que se traduz na

destruiccedilatildeo da sua casa a niacutevel fiacutesico40 mas igualmente psicoloacutegico Esta narrativa

permite observar dois aspectos uma nova descriccedilatildeo41 dos sintomas da loucura ndash a sua

evoluccedilatildeo e consequecircncias ndash e a representaccedilatildeo do lado mais humano da personagem que

acorda para uma realidade que o deixa vulneraacutevel

No que diz respeito ao primeiro ponto e primeiro estaacutedio de loucura os indiacutecios

satildeo

- uma suacutebita paragem e silecircncio de Heacuteracles assim como a sua hesitaccedilatildeo

contrastam com o olhar expectante dos que o circundam e esperam que o heroacutei

concretize o sacrifiacutecio (vv 929-931)

- reviravolta do olhar (v 932)

- os olhos injectados (v 933)

- espuma que goteja da boca (v 934)

40 Esta ruiacutena tambeacutem apontada por Lissa eacute visualizada pelo Coro e por Anfitriatildeo Este acusa Palas Atena de ser a autora da queda do telhado O Mensageiro tambeacutem recupera a ideia da destruiccedilatildeo do palaacutecio Segundo Bond 320-321 o derrubar fiacutesico do palaacutecio natildeo deve ser considerado como da autoria de Heacuteracles (o heroacutei destroacutei apenas as portas quando persegue Meacutegara e o uacuteltimo filho) nem de Palas Atena que lanccedila uma pedra contra o peito do Alcida adormecendo-o ndash o heroacutei eacute projectado contra o pilar que jaacute tinha caiacutedo quando o telhado desabara O Mensageiro natildeo alude ao terramoto que Lissa tinha prometido desencadear devastando por completo toda a casa heraclida natildeo havendo uma correspondecircncia directa entre os relatos das duas personagens Acrescenta ainda o mesmo autor que todas estas micro-acccedilotildees satildeo sequenciais Acontecem pela seguinte ordem e num curto espaccedilo de tempo derrubar das portas por Heacuteracles derrube do telhado projecccedilatildeo de Heacuteracles contra o pilar 41 No que diz respeito agrave descriccedilatildeo que cada uma das personagens faz da loucura de Heacuteracles podemos distinguir trecircs diferentes formas - vv 867-874 descriccedilatildeo de fora para fora mas com conhecimento pleno do que acontece dentro do palaacutecio o decliacutenio da razatildeo do heroacutei eacute observado de cima do palaacutecio por Lissa que estando no exterior descreve a Iacuteris aquilo que estaacute a acontecer dentro da casa (no momento presente) - vv 886-909 descriccedilatildeo de fora para fora mas sem conhecimento real do que se estaacute a desenrolar dentro do palaacutecio o Coro sabe que Heacuteracles vai enlouquecer e matar os filhos mas natildeo vecirc simplesmente especula sobre o que poderaacute estar a decorrer dentro dos muros - vv 922-1015 descriccedilatildeo de dentro para fora o Mensageiro presenciou toda a cena desde o momento em que Heacuteracles fica transtornado A enumeraccedilatildeo das perturbaccedilotildees fiacutesicas aliadas ao comportamento do protagonista concorre para a isotopia da loucura O discurso desta personagem eacute mais extenso do que o das anteriores e narra acontecimentos que decorreram momentos antes

108

- riso histeacuterico (v 935)

Estas manifestaccedilotildees fiacutesicas os sintomas que o Mensageiro apresenta estatildeo de

algum modo em sintonia com as que Lissa delineou anteriormente e que vimos supra

complementando-se

Numa primeira fase Heacuteracles dirige-se a Anfitriatildeo e reconhece-o como pai Eacute a

este que o heroacutei conta o que pretende fazer antes de terminar o sacrifiacutecio purificando-se

da mancha do crime Heacuteracles quer vingar-se de Euristeu42 talvez por este ter sido o

mandante de tatildeo penosos trabalhos pelo que comeccedila a imaginar a sua viagem em

direcccedilatildeo a Micenas descrevendo as peripeacutecias que visualiza na sua mente perturbada

- sobe para um carro invisiacutevel (vv 947-949)

- afirma que chegou junto de Niso quando natildeo abandonou o interior da sua casa

O percurso imaginaacuterio que fez ateacute chegar agrave cidade concretizou-se num trajecto

percorrido dentro do palaacutecio (vv 953-955)

- prepara um banquete inexistente (vv 955-957)

- luta contra um adversaacuterio apenas visiacutevel para ele proacuteprio e proclama-se

vencedor de ningueacutem (vv 959-963)

- a sua aproximaccedilatildeo imaginaacuteria de Micenas (vv 963 e ss) representa a evoluccedilatildeo

do estaacutedio de loucura ele natildeo reconhece Anfitriatildeo (vv 964-971) quando este lhe toca

e julga ver diante de si o pai de Euristeu (vv 967-969) Este ponto permite a passagem

da revelaccedilatildeo da demecircncia de Heacuteracles para a narraccedilatildeo da perseguiccedilatildeo e morte dos seus

filhos e de Meacutegara julgando estar a arruinar a casa do seu inimigo ao matar os παῖδες

deste

Apenas Atena segundo o Mensageiro consegue parar Heacuteracles

ἀλλ᾽ ἦλθεν εἰκών ὡς ὁρᾶν ἐφαίνετο Παλλάς κραδαίνουσ᾽ ἔγχος dagger ἐπὶ λόφῳ κέαρ dagger κἄρριψε πέτρον στέρνον εἰς Ἡρακλέους ὅς νιν φόνου μαργῶντος ἔσχε κἀς ὕπνον καθῆκε∙ πίτνει δ᾽ ἐς πέδον πρὸς κίονα νῶτον πατάξας ὃς πεσήμασι στέγης διχορραγὴς ἔκειτο κρηπίδων ἔπι43 (vv 1002-1008)

42 Como diz Bond 310 ldquoHeracles suffers from megalomaniac delusions that he can break down the walls of Mycenae (943-6)rdquo 43 lsquoDepois galopa para matar o velho Mas eis que apareceu um fantasma em que se reconhecia Palas que com o seu coraccedilatildeo salviacutefico + brande a lanccedila e contra o peito de Heacuteracles atira uma pedra que o afasta da sua loucura sanguinaacuteria e o lanccedila num sono profundo Ele cai por terra batendo com o dorso numa coluna que com o desabar do tecto jazia partida em dois sobre a sua basersquo

109

A intervenccedilatildeo das deusas nos momentos anterior e posterior agrave loucura de

Heacuteracles deixa algumas reservas relativamente ao protagonista Se antes ele era

considerado um heroacutei de excelentes qualidades agora satildeo os seus defeitos que

sobressaem violecircncia e imoderaccedilatildeo Estas caracteriacutesticas que sempre foram apanaacutegio

da personagem uma vez que teve de lutar contra monstros e contra seres humanos

crueacuteis e que natildeo eram postas em causa por nenhuma das personagens da trageacutedia44 satildeo

agora questionadas pelo facto de terem sido usadas para matar a famiacutelia

A dupla presenccedila de divindades em especial o aparecimento suacutebito de Atena

determina o excesso do protagonista que vai aleacutem da proacutepria vontade das deusas A

morte dos filhos tem efectivamente a autoria de Lissa obrigada por Iacuteris e Hera mas o

assassiacutenio de Meacutegara tem um soacute autor Heacuteracles que ainda prepara uma uacuteltima ofensiva

contra Anfitriatildeo Atena tem de intervir para pocircr um freio ao heroacutei antes que ele cometa

um acto ainda mais reprovaacutevel e por isso o adormece

O discurso do Mensageiro termina com uma uacuteltima descriccedilatildeo do estado de

Heacuteracles tendo ele adormecido os servos e Anfitriatildeo ataram-no a um pilar para que

ele ao acordar natildeo continuasse a sua perseguiccedilatildeo O sono do heroacutei caracteriza-se por

um adormecimento perturbado ὕπνον οὐκ εὐδαίμονα (v 1013)45

O sono aparece em algumas das peccedilas euripidianos como forma de

esquecimento dos actos dos protagonistas como acontece por exemplo em Orestes46

Neste caso o heroacutei sofre de perturbaccedilotildees mais graves em particular de amneacutesia que

decorrem da mutaccedilatildeo entre um estado normal e um estado de demecircncia No Heracles

este toacutepico aparece quando Anfitriatildeo entra em cena Heacuteracles estaacute por um lado sob o

domiacutenio do sono calmo e profundo (vv 1049-1051) mas por outro de um sono funesto

(vv 1061-1062)

O despertar do heroacutei caracteriza-se por ser um acordar lento para a realidade que

o circunda

ἔπνους microέν εἰμι καὶ δέδορχrsquo ἅπερ μὲ δεῖ αἰθέρα τε καὶ γῆν τόξα θrsquo ἡλίου τάδε ὡς ltδrsquogt ἐν κλύδωνι καὶ φρενῶν ταράγματι

44 Grande parte das personagens da trageacutedia (agrave excepccedilatildeo de Lico Iacuteris e indirectamente Hera) tecircm uma admiraccedilatildeo especial por Heacuteracles motivada pelas suas faccedilanhas que tinham como finalidade o bem da humanidade e em particular da sua famiacutelia 45 lsquoum sono que natildeo eacute de felicidadersquo 46 Vide Euriacutepides Orestes 211-306

110

πέπτωκα δεινῷ καὶ πνοὰς θερμὰς πνέω μετάρσιrsquo οὐ βέβαια πλευμόνων ἄπο47

(vv 1089-1093)

O heroacutei vai descrevendo o que vecirc Sentem-se oscilaccedilotildees no seu campo de visatildeo

do ceacuteu passa para a terra voltando a olhar para o eacuteter ndash Heacuteracles procura reconhecer o

espaccedilo que o envolve Num primeiro momento o contacto com o mundo que o rodeia

permite-lhe sentir que ainda respira mas desconhece o lugar onde jaz como tambeacutem

natildeo se recorda do que lhe aconteceu Tem apenas consciecircncia de que sofreu uma

alteraccedilatildeo mental da qual ainda sente vestiacutegios no seu acircnimo ndash esse conhecimento eacute

expresso por recurso ao poliptoto ἔπνους (v 1089) πνοάς (v 1092) πνέω (v 1092) em

consonacircncia com πλευμόνων48 (v 1093)

O Alcida natildeo entende porque estaacute amarrado tal como um barco (v 1094) nem

sequer consegue identificar os corpos que jazem agrave sua volta (vv 1094-1097) Recorda-

-se de que jaacute tinha abandonado o Hades mas natildeo consegue reconhecer o ambiente que o

rodeia (vv 1101-1105) A sensaccedilatildeo de desorientaccedilatildeo eacute completa o que demonstra que a

sua mente ainda natildeo estaacute totalmente liberta dos grilhotildees da loucura

O processo de ἀναγνώρισις eacute lento e o heroacutei precisa do auxiacutelio de Anfitriatildeo

uacutenica personagem que o Alcida reconhece para lhe desvendar tudo o que se passou (vv

1111-1112) Apoacutes ter descoberto a autoria do crime Heacuteracles vecirc num primeiro

momento no suiciacutedio a soluccedilatildeo para enfrentar a mutaccedilatildeo da fortuna (vv 1146-1153) ndash

atitude em que podemos encontrar eco no Ajax de Soacutefocles A intenccedilatildeo de suiciacutedio fica

suspensa com a chegada de Teseu (vv 1153-1154) mas logo eacute retomada quando os dois

dialogam (vv 1247-1310) Os argumentos de Heacuteracles satildeo

a) ele descende de um crime involuntaacuterio49 ndash culpa hereditaacuteria (vv 1258-1261)

b) Hera persegue Heacuteracles por ser descendente directo de Zeus ainda que o

heroacutei considere como pai verdadeiro Anfitriatildeo e negue ascendecircncia divina (vv 1262

ss)

c) filiciacutedio e uxoriciacutedio (vv 1279-1280) Heacuteracles sente que este crime foi o

uacuteltimo trabalho e o mais penoso de todos

47 lsquoAinda estou vivo e vejo como deve ser o ceacuteu a terra e estes raios de sol Senti-me como arrastado por uma vaga dominado por uma terriacutevel inquietaccedilatildeo de espiacuterito e dos meus pulmotildees sai uma respiraccedilatildeo ardente e ofegante a intervalos regularesrsquo 48 Esta forma aparece a par de πνεύμων 49 Haacute nestes versos uma repercussatildeo do que Anfitriatildeo disse no Proacutelogo (vv 16-17) e o Coro volta a lembrar aludindo talvez ao crime de Heacuteracles como expiaccedilatildeo de um outro mais antigo (vv 1078-1080) Anfitriatildeo tinha matado involuntariamente Eleacutectrion pai de Alcmena

111

d) natildeo pode habitar lugar algum nem Tebas nem Argos natildeo poderaacute entrar em

santuaacuterios ou festejar com amigos (vv 1281-1290) O seu discurso entra no domiacutenio da

hipeacuterbole ao considerar que a Terra natildeo lhe permitiraacute que a profane ao pisar o chatildeo

nem os mares ou os rios jamais o deixaratildeo navegar nas suas aacuteguas (vv 1295-1298)

No entanto porque encontra em Teseu um abrigo e a promessa de integraccedilatildeo em

Atenas opta por viver agrave margem do sofrimento tomando o suiciacutedio como atitude

proacutepria de um cobarde (vv 1347-1351) A diferenccedila entre o Aacutejax de Soacutefocles e o

Heacuteracles de Euriacutepides eacute abismal A concepccedilatildeo de vergonha (αἰδώς) estaacute presente nos

dois casos mas a forma como cada um resolve esse problema eacute diferente Para Aacutejax o

seu acto eacute imperdoaacutevel e resta-lhe apenas morrer para apagar a sua vergonha (o coacutedigo

de honra que lembra os Poemas Homeacutericos eacute marcante nesta personagem) Para

Heacuteracles seria motivo de αἰδώς se optasse pelo suiciacutedio uma vez que eacute o heroacutei de

gloriosos feitos

Quanto agraves suas armas que foram usadas para matar a famiacutelia Heacuteracles

questiona se deve abandonaacute-las ou mantecirc-las (vv 1378 ss) Para Papadopoulou ldquothey

are the symbols of his violence which can be beneficent as well as catastrophic

Deciding to keep them is a recognition and a reminder of the ambivalence of his

heroismrdquo50 Mas mais do que isso as armas representam para o heroacutei uma forma de

proteger a cidade que o acolhe e em simultacircneo revelam que mesmo integrado numa

sociedade que preza o colectivismo o Alcida manteacutem a sua individualidade

17 ἀρετή51 e βία Lico e Heacuteracles pontos semelhantes entre um tirano e o heroacutei

O comportamento de Heacuteracles ao longo da trageacutedia deixa algumas reservas no

que diz respeito ao seu caraacutecter Essas questotildees levantam-se no contexto da loucura do

Alcida e consequente morte da sua famiacutelia A forma como os filhos e Meacutegara morrem

permite estabelecer pontos de contacto com a morte de Lico A violecircncia que o heroacutei

usa para matar os iacutempios eacute a mesma que utilizou para com os filhos e a mulher de

modo que essa forccedila violenta parece ser apanaacutegio do heroacutei

50 Thalia Papadopoulou ldquoHerakles and Hercules The Herorsquos Ambivalence in Euripides and Senecardquo Mnemosyne 57 (2004) 267 51 No que diz respeito agrave ἀρετή do heroacutei este tema foi sendo sublinhado ao longo da caracterizaccedilatildeo da personagem pelo que se tornava repetitivo focarmos este aspecto uma vez mais Importa reter eacute que a par desta ἀρετή coexiste uma βία

112

Eacute precisamente devido a este uacuteltimo acto que a forccedila e heroicidade de Heacuteracles

pode ser posta em causa Barlow explica

Heraclesrsquos life before the madness has been taken up with violent deeds against the Giants (177ff) against the Centaurs (181) against the Minyans (220ff) against the monsters while on his labours (the Lion the Centaurs the Stag the Horses of Diomedes Cycnus the robber the Dragon the Amazons the Hydra) and finally against Lycus Over all these he triumphed with his weapons the club and the bow Physical violence is a way of life to him so when the gods come to destroy him by madness they are able to do so through patterns of behaviour which are already characteristic of him52

Esta bipolaridade manifestada na sua virtuosidade vs a forma cruel com que

resolve as situaccedilotildees leva-nos a estabelecer uma comparaccedilatildeo entre Lico e Heacuteracles53

Em primeiro lugar ambas as personagens ousam violar o direito dos suplicantes por

duas vezes Lico no primeiro confronto com Anfitriatildeo (vv 240-246) pretende

sacrificar os suplicantes junto do templo de Zeus queimando-os vivos No terceiro

episoacutedio Lico regressa agrave cena a reclamar a vida de Anfitriatildeo Meacutegara e filhos Agrave

informaccedilatildeo de Anfitriatildeo de que Meacutegara poderia estar dentro do palaacutecio junto do altar

sagrado Lico reclama a sua presenccedila e como Anfitriatildeo se recusasse a trazecirc-la invade o

palaacutecio para de laacute a arrebatar juntamente com os filhos (vv 712-724)

Heacuteracles por seu turno acorrentado pela loucura natildeo reconhece o pai que

suplicante lhe agarra a matildeo ao ver que o filho estava a delirar Anfitriatildeo eacute repelido

porque eacute confundido com o pai de Euristeu e o Alcida prepara-se para matar o primeiro

filho (vv 967-971) Depois de morta a primeira crianccedila vai ao encontro da segunda que

se refugiara junto da base do altar O filho dirige-se para junto do pai como suplicante

ajoelha-se e toca-lhe no pescoccedilo e no queixo com as matildeos (984-994) mas eacute morto pela

matildeo paterna que natildeo o reconhece Em siacutentese Heacuteracles acaba por consumar o que Lico

natildeo conseguiu matar Meacutegara e os filhos54

Em segundo lugar Lico e Heacuteracles atacam pessoas indefesas o primeiro porque

teme que a famiacutelia de Heacuteracles se vingue do seu crime o segundo porque pensava que

estava a atacar o pai a mulher e filhos de Euristeu55 Num terceiro aspecto a violecircncia

52 Barlow 9-10 53 Nesta comparaccedilatildeo servimo-nos do artigo de Thalia Papadopoulou ldquoHerakles and Hercules The Herorsquos Ambivalence in Euripides and Senecardquo 257-283 54 Anfitriatildeo escapa por intervenccedilatildeo divina 55 Haacute um erro de avaliaccedilatildeo suscitado pelos deuses

113

com que Lico se expressa para manifestar o seu desejo de queimar viva a famiacutelia de

Heacuteracles eacute a mesma de que o Alcida usa quando diz pretender destruir todo o palaacutecio

de Lico e mataacute-lo cruelmente (vide vv 247-251 comparando-os com os vv 568-573)

Este caraacutecter impulsivo que caracteriza ambas as personagens contrasta com a

tranquilidade e sensatez de Anfitriatildeo (vv 585-586 vv 707-709)

Num quarto aspecto observamos que o imaginaacuterio sacrificial eacute semelhante Haacute

um paralelismo macabro entre o que Lico pretendia e o que Heacuteracles realiza Este

paralelismo eacute notoacuterio nas falas de Meacutegara e do Mensageiro Meacutegara usa foacutermulas

proacuteprias de um sacrifiacutecio para descrever as intenccedilotildees de Lico Escolhe palavras como

ἱερεύς (sacerdote) σφαγεύς (sacrifiacutecio de animais) θύματα (sacrifiacutecio de viacutetimas) ndash vv

451-453 O Mensageiro quando descreve o crime de Heacuteracles dando uma imagem de

um sacrifiacutecio usa uma linguagem semelhante agrave de Meacutegara θῦμα e ἐπισφάξων (vv 994-

995)

2 Caracterizaccedilatildeo de Heacutercules na trageacutedia de Seacuteneca

Heacutercules eacute em Seacuteneca o centro para o qual tudo converge Apesar de entrar em

cena apenas no Acto III todas as falas das personagens diaacutelogos e odes o focam como

protagonista Podemos mesmo afirmar que a personagem nos vai sendo apresentada sob

os vaacuterios pontos de vista de Juno do Coro de Anfitriatildeo de Meacutegara de Lico e de

Teseu a par daquilo que o proacuteprio heroacutei diz sobre si mesmo completando-se assim um

retrato multiacutemodo que revela o modo como eacute interpretado o valor do Alcida56

Seacuteneca caracteriza o heroacutei por meio de antiacuteteses pelo duplo nascimento pela

uirtus e pelo uitium pelo modo civilizador e pelo selvagem Aleacutem destes aspectos o

Alcida eacute representado metonimicamente como a vida (o salvador a lsquoluzrsquo) e a morte (o

que destroacutei as lsquotrevasrsquo) Se estes binoacutemios permitem pontos de contacto com o seu

modelo Euriacutepides o objectivo de Seacuteneca eacute contudo outro analisar os affectus do

protagonista tomando-o como exemplo de personagem natildeo-estoacuteica Assim por

exemplo o toacutepico da amizade que encontramos bem delineado em Euriacutepides desde a

56 Em Euriacutepides este movimento centriacutepeto natildeo eacute tatildeo marcado No diaacutelogo entre as personagens haacute igualmente vaacuterias referecircncias ao heroacutei contudo natildeo se centram exclusivamente no protagonista Haacute menos monoacutelogos e mais acccedilatildeo

114

primeira cena ateacute ao terminar da acccedilatildeo dramaacutetica eacute omitido por completo No caso de

Heacutercules o filoacutesofo concentrou boa parte da sua anaacutelise numa caracteriacutestica fiacutesica do

Alcida sendo a mais proeminente e que melhor define o heroacutei a forccedila57 fiacutesica Este eacute

um elemento imprescindiacutevel para a compreensatildeo da personagem uma vez que

representa para Seacuteneca um ldquosintomardquo daquilo que Heacutercules eacute e que vai revelando no

decorrer da acccedilatildeo um caraacutecter superbus impius sendo o sustentaacuteculo dos seus excessos

e da sua desmedida confianccedila

Esta forccedila permite agraves personagens reconhecerem-no agnosco toros umerosque

et alto nobilem trunco manum (vv 624-625) Neste passo haacute uma gradaccedilatildeo que parte

do geral para o particular e que revela que Anfitriatildeo focou o seu campo de visatildeo nos

braccedilos e nas matildeos Foi este o primeiro impacte visual que levou ao reconhecimento da

chegada do filho58 Este centrar do campo de visatildeo numa caracteriacutestica especiacutefica do

corpo prova que o aspecto que melhor define Heacutercules eacute a sua forccedila Eacute nela e por ela

que reage agraves situaccedilotildees

Neste sentido haacute que notar que a palavra que eacute sucessivamente evocada pelas

personagens para representar esta caracteriacutestica de Heacutercules eacute manus59 significando por

metoniacutemia o poder mas particularmente a forccedila Assim tendo como ponto de partida

para a anaacutelise do protagonista este elemento que na concepccedilatildeo estoacuteica eacute um

indiferente uma vez que pode ser usada para o bem ou para o mal procuraremos ver

como todos os outros elementos supramencionados se conjugam

Ao contraacuterio do que fizemos para Heracles natildeo vamos estruturar esta aliacutenea em

toacutepicos mas analisaacute-los num todo porque em Hercules Furens todas as caracteriacutesticas

que revelam os affectus do protagonista se ligam de forma a conduzi-lo inevitavelmente

ao furor e consequentemente ao scelus Shelton diz ldquoHerculesrsquo madness is the

dramatic center of this play and Senecarsquos intention is to explore the cause and the

57 Esta forccedila eacute entendida como uma uirtus por uma boa parte das personagens (Heacutercules mas tambeacutem Anfitriatildeo e Meacutegara) enquanto para outras representa o lado excessivo do heroacutei (Juno Lico) 58 Jaacute a forma como Heacuteracles eacute reconhecido quando se aproxima do palaacutecio eacute diferente parece ser um processo natural e gradual Meacutegara e Anfitriatildeo reconhecem o heroacutei quando ele se dirige ao palaacutecio ndash natildeo haacute qualquer referecircncia ao seu aspecto fiacutesico (vv 515-519) 59 A semacircntica da matildeo para identificar o protagonista natildeo eacute tatildeo recorrente na trageacutedia de Euriacutepides A palavra χείρ ocorre quinze vezes representando ou a forccedila do Alcida (v 397 v 404) ou a justiccedila (castiga os tiranos v 565) ou a protecccedilatildeo (v 435 v 631) ou a vinganccedila (v 938) ou a impiedadecrime (v 964 v 968 v 1145 v 1199 v 1208) ou a salvaccedilatildeo apoio (Teseu pede ao heroacutei que lhe estenda a matildeo para poder ser auxiliado v 1398 v 1402) ou a purificaccedilatildeo (v 940 v 1324) Em Seacuteneca o nuacutemero de ocorrecircncias eacute maior tendo o sentido de forccedila poder v 58 v 114 v 122 v 221 v 247 v 272 v 279 v 442 v 469 v 528 v 566 v 614 v 625 v 807 v 882 v 914 v 919 v 998 v 1034 v 1040 v 1044 v 1098 v 1103 v 1192 v 1193 v 1196 v 1211 v 1244 v 1260 v 1297 v 1319 v 1328

115

development of the madnessrdquo60 Seraacute neste sentido que desenvolveremos o estudo da

personagem partindo de uma hetero e auto-caracterizaccedilatildeo e das manifestaccedilotildees do

protagonista perante as adversidades

Da fala de Juno sobressai a indomita uirtus (v 39) de Heacutercules que venceu todos

os obstaacuteculos que a natureza gerou na terra no mar e no ar quidquid horridum tellus

creat inimica quidquid pontus aut aer tulit terribile dirum pestilens atrox ferum

fractum atque domitum est (vv 30-33) A iteraccedilatildeo de quidquid (vv 30-31) que

generaliza tudo o que Heacutercules conseguiu domar o assiacutendeto (cf v 32) que acentua a

acumulaccedilatildeo de adjectivos numa esfera de horror e atrocidade reiteram por um lado o

oacutedio de Juno (v 35) ndash Heacutercules dominou tudo ndash por outro sublinham a forccedila

descomunal do heroacutei e a sua arrogacircncia61 visto que segundo Juno iraque nostra

fruitur in laudes suas mea uertit odia (vv 34-35) A estrutura quiaacutestica vem reforccedilar a

ideia do fracasso total dos objectivos da divindade face a um espiacuterito indomaacutevel Natildeo haacute

nada que consiga controlar Heacutercules e pocircr-lhe um freio pois nada parece saciaacute-lo Pelo

contraacuterio aceita todos os labores que Juno lhe envia laetus imperia excipit (v 42)

Aleacutem disso os monstros que temeu no iniacutecio em particular a Hidra de Lerna e o Leatildeo

de Neacutemea satildeo transportados por ele como armas de defesa (vv 44-46) fez da pele do

leatildeo o seu escudo e embebeu as suas setas com o veneno da serpente62 Devido ao

sucesso motivado pelas consecutivas vitoacuterias Heacutercules eacute conhecido por todo o orbe e

considerado como um deus qua Sol reducens quaque deponens diem binos propinqua

tinguit Aethiopas face indomita uirtus colitur et toto deus narratur orbe (vv 37-40)

Para Fitch a indomita uirtus ldquomay suggest that Hercules is not only spoken as a

god (narrator below) but worshipped as onerdquo63 Segundo este autor a palavra uirtus eacute

por si um argumento que mostra que Heacutercules foi deificado Esta divinizaccedilatildeo pode

representar para Juno um modo de excesso visto que o heroacutei eacute um mortal mas por

60 Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 28 61 Shelton na n 47 do artigo ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 diz que as palavras de Juno revelam elementos estoacuteicos laetus imperia excipit (v 42) Parece natildeo haver contudo qualquer referecircncia agrave impassibilidade estoacuteica de aceitar com alegria o que o Fatum lhe reserva uma vez que a deusa diz de seguida quae fera tyranni iura uiolento queant nocere iuueni (vv 43-44) ndash esta ideia estaacute ainda presente nos versos anteriores superat et crescit malis iraque nostra fruitur in laudes suas mea uertit odia (vv 33-35) A indiferenccedila de um estoacuteico manifesta-se pela ausecircncia de dor ou de prazer em tudo o que o Destino lhe reserva A suprema felicidade estaacute em viver segundo o Bem (vide Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 715 ss) e parece natildeo ser esta a ideia que a personagem Juno quer transmitir Pelo contraacuterio vemos que quando Heacutercules entra em cena revela um certo comprazimento em executar as tarefas impostas ansiando por mais 62 Fitch (1) 133 considera que a sineacutedoque ldquovem armado com o leatildeo e a hidrardquo pretende revelar que as caracteriacutesticas desses monstros natildeo morreram mas coabitam no heroacutei 63Fitch (1) 133

116

outro aludir ao esperado futuro de Heacutercules o de ascender agraves moradas divinas como

ela proacutepria admite pariterque natus astra promissa occupet in cuius ortus mundus

impendit diem tardusque Eoo Phoebus effulsit mari retinere mersum iussus Oceano

iubar (vv 23-26) Depois de uma anterior enumeraccedilatildeo dos vaacuterios filhos e amadas que

Juacutepiter teve e que ascenderam aos astros (cf vv 6-21) a referecircncia a Heacutercules e aos

astra promissa provam que seraacute essa a proacutexima etapa do heroacutei64 A perseguiccedilatildeo de Juno

eacute uma tentativa de evitar que tambeacutem o protagonista venha a morar com os sempiternos

Analisando as palavras de Juno deduz-se que em Heacutercules existe uma uirtus

que adveacutem da vontade do heroacutei em destruir tudo o que de monstruoso e terriacutevel a terra

possui fazendo um bom uso da forccedila que ele deteacutem a par de caracteriacutesticas de excesso

e erro claramente delineadas ele eacute megaloacutemano (v 46 nec satis terrae patent)

arrogante (v 58 superbifica ndash o adjectivo composto por superbus e facio intensifica o

sentido de lsquosoberborsquo que a forma simples jaacute comporta acentuando a ideia de que a forccedila

de Heacutercules inspira orgulho) e violento (vv 43-44 uiolento iuueni) ndash o proacuteprio

vestuaacuterio de Heacutercules contribui para dar a imagem de um ser baacuterbaro (vv 45-46

armatus uenit leone et hydra) Como diz Littlewood ldquoThe lion-skin is one of Herculesrsquo

most distinctive features and this savage lion symbolizes Hercules himselfrdquo65

A violecircncia de Heacutercules depreende-se tambeacutem de algumas formas do particiacutepio e

de verbos domitus (cf v 51) particiacutepio perfeito de domo implica o uso de forccedila na

acccedilatildeo de subjugar iactans (cf v 51) particiacutepio presente de iacto demonstra a

arrogacircncia do heroacutei em ter derrotado Plutatildeo e revela o perigo iminente de que uma vez

vencidos os spolia fraterna (vv 51-52) Heacutercules ambicione conquistar os do pai (v

51) ruptus (cf v 57) particiacutepio perfeito de rumpo acentua a ideia de forccedila violenta no

acto de lsquoromperrsquo lsquoquebrarrsquo o lugar onde se encerram as sombras Juno recorda a

excessiva confianccedila que Heacutercules tem no seu poder robore experto tumet (v 68) ndash a

forma verbal no presente do indicativo sublinhada pela metaacutefora (robur ndash representa a

forccedila a rigidez do heroacutei) sugere a imoderaccedilatildeo do protagonista Com estas

caracteriacutesticas que foi delineando em Heacutercules Juno pretende provar que o heroacutei eacute um

64 De notar o paralelismo entre o nascimento dos geacutemeos Castor e Poacutelux (que resultam da uniatildeo de Juacutepiter e Leda e desta com Tiacutendaro numa mesma noite) para cuja concepccedilatildeo a terra se imobilizou e o de Heacutercules para cuja concepccedilatildeo foram necessaacuterias vinte e quatro horas No primeiro caso os geacutemeos jaacute obtiveram a morada celeste para Heacutercules haacute a promessa de a vir obter 65 Cedric A J Littlewood Self-Representation and Illusion in Senecan Tragedy (Oxford Oxford University Press 2004) 113

117

monstro Nesse sentido diz a deusa quaeris Alcidae parem nemo est nisi ipse (vv

84-85)

A par da criacutetica de Juno vem a perspectiva do Coro que natildeo eacute mais positiva Os

adjectivos e substantivos que usa para qualificar e caracterizar a personagem satildeo

indicadores disso pectore forti (v 186) uiribus (v 591) audax (v 772) Nestes

exemplos satildeo visiacuteveis um conjunto de traccedilos que demonstram que Heacutercules estaacute

afastado do ideal do sapiens Ao mostrar que o protagonista eacute excessivo dominado por

paixotildees o Coro deixa impliacutecito que a sua queda seraacute inevitaacutevel (por exemplo vv 192-

196 v 201 vv 588-589)

Na Ode III depois de descrever a turba que desce aos Infernos e de comentar a

inevitabilidade da morte segue-se um hino (vv 875-892) de louvor ao heroacutei vencedor

que antecede o momento da loucura tal como em Euriacutepides (vv 763-814) Para

Shelton ldquothe chorus for the first time claims that Hercules has brought peace to the

world by descending to the Underworld although we soon find that he has created

disorder and must pay for it Their expression of joy here creates a false mood of relief

before the horror and despair of the rest of the playrdquo Eacute patente a ironia traacutegica que em

termos estoacuteicos se traduz num error de avaliaccedilatildeo da parte do Coro jaacute que Heacutercules natildeo

eacute a lsquoluzrsquo salvadora mas sim as lsquotrevasrsquo destruidoras

Jaacute a perspectiva de Anfitriatildeo difere da de Juno e do Coro Natildeo contesta o valor

de Heacutercules reconhecendo a uirtus do filho na forccedila fiacutesica Esta revelara-se ainda

Heacutercules natildeo tinha discernimento (vv 215 ss)66 Para Anfitriatildeo o filho eacute o libertador da

raccedila humana por ter dominado todos os monstros e a ausecircncia do Alcida resultou no

domiacutenio do scelus que levou a uma mudanccedila na ordem natural das coisas (vv 251-252)

No entanto Anfitriatildeo acredita no regresso do filho e a enumeraccedilatildeo dos trabalhos67 de

66 Na perspectiva de Segurado e Campos a uirtus de Heacutercules eacute essencialmente fiacutesica e compara o heroacutei a Lico Tambeacutem o tirano considera ter uma (clara) uirtus que se baseia principalmente no poder da forccedila ndash foi por meio dela e com a ajuda de armas que conseguiu vencer Tebas e manter o poder ldquosente prazer na violecircncia eacute indiferente agrave justiccedila ou injusticcedila com que se emprega a forccedilardquo diz Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos ldquoSeacuteneca e Heacutercules Observaccedilotildees sobre o Hercules Furensrdquo Euphrosyne 8 (1977) 165 67 A identificaccedilatildeo dos doze trabalhos eacute diferente nas duas trageacutedias Euriacutepides omite a caccedila ao Javali de Erimanto os paacutessaros de Estinfaacutelia os estaacutebulos de Augeu e o touro de Creta Esta diferenccedila deve-se aos objectivos que norteiam cada um dos tragedioacutegrafos em Heracles o Coro daacute uma imagem do heroacutei enquanto civilizador e pacificador que procura auxiliar os humanos contrastando no final da trageacutedia com a posiccedilatildeo dos deuses que natildeo demonstram qualquer consideraccedilatildeo pelos homens Em Hercules Furens o propoacutesito do autor prende-se com a valorizaccedilatildeo da forccedila que o protagonista possui sendo uma forma de demonstrar que nada impede Heacutercules de sair do mundo inferior antes representaraacute mais uma vitoacuteria para ele (v 278) Vemos que filoacutesofo natildeo se limitou a uma imitatio Ao escolher outros trabalhos Seacuteneca distancia-se claramente do seu modelo

118

Heacutercules serve de exemplum68 de tudo o que o Alcida jaacute conseguiu superar justificando

a esperanccedila de que o protagonista encontraraacute uma via para sair do mundo inferior (vv

275-278) Infere-se ainda das falas de Anfitriatildeo que Heacutercules ou eacute um ser divino ou

tornar-se-aacute um deus visto que Tebas eacute conhecida por ter gerado e criado muitos deuses

(vv 265-267)

Haacute contudo no discurso e no diaacutelogo de Anfitriatildeo com as outras personagens

elementos subtis que permitem identificar em Heacutercules uma natureza indomaacutevel que

natildeo descansa mas antes percorre o mundo69 ou em contiacutenua labuta (vv 209-215) ou a

seruire (v 273 derivado da palavra seruus a forma verbal significa lsquoser escravorsquo)

denotando a satisfaccedilatildeo do protagonista em cumprir as tarefas que lhe satildeo impostas e que

tecircm implicaccedilotildees psicoloacutegicas a audaacutecia a megalomania a arrogacircncia e a crueldade

que foram jaacute apresentadas por Juno e pelo Coro A audacia do Alcida eacute evidente na

descriccedilatildeo que Anfitriatildeo faz de um dos trabalhos que o heroacutei concluiu (vv 247-248 nec

ad omne clarum facinus audaces manus stabuli fugauit turpis Augei labor) e quando

Anfitriatildeo comenta com Meacutegara aderit profecto qualis ex omni solet labore maior

(vv 312-314)

No ponto de vista de Segurado e Campos a forma adjectiva no comparativo

tem trecircs interpretaccedilotildees possiacuteveis Heacutercules vem maior porque venceu mais uma tarefa

vem mais forte regressa maior porque traz consigo mais despojos das suas guerras ndash a

forma adjectiva estaacute conotada com a ambiccedilatildeo de mais poder chega maior porque mais

arrogante O mesmo autor conclui ldquoO que maior sem sombra de duacutevida natildeo implica eacute

qualquer progresso de ordem moralrdquo70 Natildeo haacute uma uacutenica alusatildeo ao caraacutecter psicoloacutegico

do Alcida num ponto de vista positivo mas apenas a caracteriacutesticas negativas que tecircm

como causa o uso desmesurado que o heroacutei faz da sua forccedila

68 Seacuteneca socorre-se com frequecircncia de exempla para ilustrar uma ideia por exemplo Juno enumera no iniacutecio do soliloacutequio as paelices que ascenderam aos astros para revelar que Alcmena e o filho poderatildeo vir igualmente a conquistaacute-los (vv 6-26) Meacutegara descreve o destino dos tiranos que governaram Tebas ameaccedilando ser esse o fatum de Lico (vv 384-396) Anfitriatildeo tenta provar que Heacutercules eacute um deus dando como exemplo o nascimento e a vida de Apolo e de Baco (vv 449-476) o Coro recorda a histoacuteria de Orfeu e Euriacutedice para demonstrar que o regresso do Alcida traraacute consequecircncias 69 Para Seacuteneca quando algueacutem passa uma boa parte da vida a deambular revela instabilidade e doenccedila da alma porque foge aos problemas e a si proacuteprio A capacidade do homem de permanecer estaacutevel demonstra que consegue viver consigo (Seacuteneca Ad Lucilium Epistolae Morales 2) 70 Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos ldquoSeacuteneca e Heacutercules Observaccedilotildees sobre o Hercules Furensrdquo Euphrosyne 8 (1977) n 56 (166)

119

Meacutegara reconhece o valor de Heacutercules pectore impulsus tuo huc mons et illuc

cessit et rupto aggere noua cucurrit Thessalus torrens uia (vv 286-288) maximae

uirtutes (cf v 325) Virtutis est domare quae cuncti pauent (v 435) Em todos estes

exemplos a uirtus do Alcida eacute dominantemente fiacutesica sendo possiacutevel encontrar

associados agrave expressatildeo desse valor exemplos que provam que Heacutercules se deixou

corromper pelo poder da sua forccedila

- dispulsas manu abrumpe tenebras (vv 279-280)

- nulla si retro uia iterque clausum est orbe diducto redi (vv 280-281)

- et quidquid atra nocte possessum latet emitte tecum (vv 282-283)

- erumpe rerum terminos tecum efferens et quidquid auida tot per annorum

gradus abscondit aetas redde et oblitos sui lucisque pauidos ante te populos age

(vv 290-293)

- indigna te sunt spolia si tantum refers quantum imperatum est (vv 294-295)

A forccedila impetuosa que Heacutercules poderaacute usar para sair dos Infernos eacute bem

visiacutevel nos exemplos citados Esta violecircncia eacute intensificada pelo vocabulaacuterio conotado

com as trevas dispulsae tenebrae (vv 279-280) atra nox (v 282 o pleonasmo

permite reforccedilar a descriccedilatildeo do locus horrendus) obliti pauidi populi (vv 292-293)

Algumas formas verbais no imperativo satildeo igualmente sugestivas pois permitem

demonstrar a brutalidade do Alcida abrumpe (v 280) erumpe (v 290) ndash note-se a

uariatio a acentuar a forccedila do heroacutei ndash intensificadas pelo particiacutepio diductus (v 281

orbe) e pela iteraccedilatildeo do pronome pessoal com a preposiccedilatildeo posposta tecum (v 283 v

290)

Lico contesta o valor de Heacutercules e boa parte do seu discurso eacute uma alusatildeo agrave

servidatildeo do heroacutei O toacutepico pretende servir de modelo para persuadir Meacutegara a ser

igualmente escrava e a submeter-se agrave vontade dos soberanos (vv 397-398) mas em

simultacircneo enumera uma criacutetica por Meacutegara preferir um famulus a algueacutem que possui o

sceptrum (cf v 430)

Ao contraacuterio de Meacutegara e de Anfitriatildeo o tirano natildeo vecirc em qualquer acccedilatildeo do

Alcida uma demonstraccedilatildeo da sua uirtus pelo contraacuterio potildee em causa a heroicidade de

Heacutercules uma vez que a virtude natildeo estaacute em matar feras e monstros (v 434) e parece

natildeo ficar persuadido pelos argumentos de Meacutegara (v 423 Inferna tetigit posset ut

120

supera assequi v 437 Non est ad astra mollis e terris uia) dado que lhe pergunta Quo

patre genitus caelitum sperat domos (v 438)

Nem quando Anfitriatildeo lembra a ascendecircncia divina do filho resumindo os

seus feitos recordando que lutou ao lado de deuses (vv 444-446) e que Juno o

perseguiu sempre (vv 445-446) Lico lhe reconhece o valor Pelo contraacuterio deixa

subjacente que todo o bem que Heacutercules faz agrave humanidade foi sempre por ordem de

Juno ou de Euristeu Quando age por si o heroacutei revela o seu lado cruel

Hoc Euryti fatetur euersi domus Pecorumque ritu uirginum oppressi greges Hoc nulla Iuno nullus Eurystheus iubet Ipsius haec sunt opera71 (vv 477-480)

Segurado e Campos vecirc nestes versos uma prova de que Heacutercules estaacute

desprovido de ratio deixando evidente um caraacutecter implacaacutevel e que agraves acusaccedilotildees de

Lico Anfitriatildeo responde com argumentos muito fraacutegeis O autor sugere

Anfitriatildeo apenas consegue retorquir post multa uirtus opera laxari solet [v 476] triste justificaccedilatildeo ndash e quatildeo pouco estoacuteica ndash para as fraquezas criticadas por Lico e logo a seguir quando Lico recorda a violecircncia de Heacutercules no assalto a Ecaacutelia [vv 477-480] Anfitriatildeo natildeo soacute o natildeo refuta como cita ainda outros inimigos vencidos pelo heroacutei e prevecirc a breve inclusatildeo de Lico nessa lista [vv 480-489]72

A resposta de Anfitriatildeo natildeo eacute para Segurado e Campos suficientemente

convincente quando enumera personagens mitoloacutegicas (Anteu Eacuterice Busiacuteris Cicno e

Geacuterion73) que foram castigadas por Heacutercules por terem comportamentos crueacuteis

71 O uacuteltimo argumento que Lico utiliza como a derradeira tentativa de provar que Heacutercules natildeo descende de Juacutepiter nem os seus feitos foram heroacuteicos eacute um anacronismo Em Oviacutedio Metamorphoses 9134 ss a destruiccedilatildeo do palaacutecio de Ecircurito e consequente tomada de Ecaacutelia motivadas pela paixatildeo que Heacuteracles tinha por Iacuteole vecircm depois de o Alcida se ter unido a Dejanira a segunda esposa Como nota Fitch (1) 242 ldquoThe reference in 477 to the Iole episode () has been criticized by some commentators as mythologically anachronistic as it occurred at the end of the herorsquos life his death being caused by Dejanirarsquos jealousy of Iole () But the capture of Iole is after all a reasonably self-contained event and one doubts whether ancient audiences deprived of the commentatorsrsquo help would have noticed the anachronism It would be a different matter if Lycus had referred to Deianira herselfrdquo Apesar de este tema voltar a ser focado no Hercules Oetaeus e com maior desenvolvimento o propoacutesito de Seacuteneca eacute comprovar o caraacutecter violento e passional de Heacutercules que destroacutei um palaacutecio movido pelo amor fatal Fitch (1) 24 afirma que a referecircncia ao acto do heroacutei tem um objectivo ldquoThese criticisms remind us of an element of instability in Herculesrsquobehavior which is familiar from the mythological traditionrdquo 72 Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos ldquoSeacuteneca e Heacutercules Observaccedilotildees sobre o Hercules Furensrdquo 165 73 Note-se que os trecircs primeiros ousaram provocar um duelo contra Heacutercules No caso de Anteu e Busiacuteris estes eram conhecidos pela sua impiedade e barbaridade ao matarem todos os estrangeiros que passavam por eles Jaacute Eacuterice quis ficar com o gado que Heacutercules roubara a Geacuterion Quanto a este uacuteltimo natildeo parece

121

Anfitriatildeo poreacutem ao acrescentar outros feitos permite dar pelo menos uma ideia da

ambivalecircncia do heroacutei que ora usa a forccedila para o mal (a imagem da perversidade de

Heacutercules que viola virgens eacute intensificada pela metaacutefora pecorumque greges ndash v

478) ora para o bem (liberta o mundo de homens tiracircnicos) Natildeo parece ser suficiente

restringir o estudo apenas aos argumentos de Lico ainda que possam ser mais vaacutelidos

Segurado e Campos afirma ldquoSe pensarmos que Heacutercules quando agiu em proveito da

humanidade o fez sob as ordens de Euristeu ao passo que entregue a si proacuteprio se

comportou indignamente perante Ocircnfale ou se deixou levar aos excessos de Ecaacutelia

pouca diferenccedila parece existir afinal entre o heroacutei e o tiranordquo74

Thalia Papadopoulou75 compara Heacutercules a Lico identificando em ambos

pontos semelhantes A analogia entre as duas personagens deixa reservas no que diz

respeito agrave concepccedilatildeo que o heroacutei tem da sua uirtus tanto Heacutercules como Lico

pretendem que haja paz (vv 926-937 Heacutercules vv 368-369 Lico) ambos entram em

cena vitoriosos (vv 895-899 Heacutercules vv 332-340) Na Ode I o Coro manifesta a sua

desaprovaccedilatildeo relativamente agraves ambiccedilotildees ilimitadas de poder tomando Heacutercules como

modelo dessa paixatildeo (vv 125-201) No entanto eacute possiacutevel acrescentar Lico ao nuacutemero

dos que merecem tal censura uma vez que o tirano natildeo respeita a justiccedila dominado

pela sede do poder tenta mantecirc-lo a todo o custo (vv 406-407) Heacutercules e Lico satildeo

ambos arrogantes e insolentes No primeiro caso Juno vai registando as caracteriacutesticas

que reconhece no Alcida e parte delas para justificar a sua perseguiccedilatildeo e castigo (vv 47

ss) Lico eacute criticado por Meacutegara por ser insolente e eacute avisado de um possiacutevel castigo

vindo dos deuses (vv 284-286) O tirano pretende matar a famiacutelia do Alcida caso

Meacutegara recuse casar-se com ele (vv 350-352) Heacutercules no momento da sua loucura

toma os seus filhos por descendentes de Lico e assassina-os (vv 987-991)

Tal como em Heracles a questatildeo da violaccedilatildeo dos santuaacuterios sagrados eacute tambeacutem

focada por Seacuteneca Lico ousa tentar matar Anfitriatildeo Meacutegara e os filhos dela que se

tinham refugiado no santuaacuterio de Juacutepiter queimando-os junto do altar (vv 501-508)

Heacutercules por seu turno viola duas vezes um interdito sagrado ao natildeo respeitar os

tatildeo loacutegica a sua referecircncia visto que estaacute relacionado com um dos doze trabalhos Fitch (1) considera ser despropositada a alusatildeo a este monstro apontando dois motivos ldquofirst because H[ercules] encountered him as direct result of orders from Eurystheus and second because Geryon was not generally known for lawlessnessrdquo (Fitch (1) 243) 74 Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos ldquoSeacuteneca e Heacutercules Observaccedilotildees sobre o Hercules Furensrdquo 165-166 75 Thalia Papadopoulou ldquoHerakles and Hercules The Herorsquos Ambivalence in Euripides and Senecardquo 257-283

122

suplicantes Agrave semelhanccedila do que acontece em Heracles (vv 986-994) o segundo filho

em tom e atitude de suplicante roga ao pai que o poupe (vv 1002-1004 En blandas

manus ad genua tendens uoce miseranda rogat) mas acaba por ser projectado e

morrer despedaccedilado contra as paredes (vv 1005-1007) Por uacuteltimo ambos Lico e

Heacutercules pretendem matar a famiacutelia do seu opositor por meio de um sacrifiacutecio humano

Heacutercules entra em cena no Acto III (vv 592 ss) A sua chegada eacute sentida por

Anfitriatildeo no momento em que dirigia as suas preces ao Alcida O anciatildeo reconhece a

chegada proacutexima do filho pela forma como a Natureza reagiu agraves suas suacuteplicas Cur

subito labant agitata motu templa Cur mugit solum infernus imo sonuit e fundo

fragor audimur est est sonitus Herculei gradus (vv 520-523) A iteraccedilatildeo do adveacuterbio

interrogativo denuncia o espanto de Anfitriatildeo Ele sente um suacutebito e violento

movimento proveniente do interior da terra do lugar mais profundo que agita os

templos ameaccedilando-os ruir ndash os verbos que representam sensaccedilotildees auditivas (agitata

mugit sonuit) aliados aos substantivos (sonitus fragor) e ao quiasmo e aliteraccedilatildeo

(infernus imo ndash e fundo fragor) datildeo a imagem de uma forccedila violenta que Heacutercules usaraacute

para sair dos infernos Os passos do heroacutei satildeo ouvidos (v 523 audimur) e reconhecidos

por Anfitriatildeo ndash o vocaacutebulo sonitus que eacute determinado pelo genitivo gradus acentua o

caraacutecter colossal do Alcida assim como a sua forccedila sobre-humana76

O monoacutelogo de Heacutercules atesta alguns dos traccedilos que as personagens foram

apresentando no decorrer da acccedilatildeo dramaacutetica O heroacutei caracteriza-se pois pela

immoderatio natildeo consegue controlar os seus impulsos nem os desejos eacute excessivo na

sua auto-confianccedila revelando um caraacutecter ambicioso e particularmente audaz Na parte

final do monoacutelogo (vv 614-615) o Alcida invoca Juno pedindo-lhe que lhe envie mais

monstros no que manifesta um espiacuterito insaciaacutevel que natildeo se cansa das labutas Este

geacutenero de paralelos entre Juno e Heacutercules eacute visiacutevel noutros passos

a) quando Plutatildeo foi derrotado Juno pergunta por que motivo Heacutercules natildeo quis

governar as moradas das sombras (v 54) ficando no lugar do rei vencido A esta

questatildeo Heacutercules responde et si placerent tertiae sortis loca regnare potui (vv 609-

610)

76 Esta saiacuteda dos Inferni lembra a de Tacircntalo (Thyestes vv 1 ss) e de Aquiles (Troades vv 171 ss) ndash nestes dois exemplos o aparecimento destas sombras criou um ambiente de tensatildeo que exigia um sacrifiacutecio A chegada de Heacutercules tambeacutem se revelaraacute fatal e conduziraacute a uma imolaccedilatildeo

123

b) Juno queixa-se de que jaacute nem a terra eacute suficiente para travar Heacutercules (vv 46-

48 Nec satis terrae patent effregit ecce limen inferni Iouis et opima uicti regis ad

superos refert) O protagonista ao recordar o oacutedio de Juno que natildeo o deixa tranquilo um

uacutenico momento usa as mesmas palavras da deusa In poenas meas atque in labores

non satis terrae patent Iunonis odio (vv 604-606)

O primeiro diaacutelogo de Heacutercules (vv 626-640) com as outras personagens eacute ao

contraacuterio do que acontece na trageacutedia de Euriacutepides (vv 531-636) curto e pouco

afectuoso ele dirige-se uma uacutenica vez a Anfitriatildeo e a Teseu Procura saber junto de

Anfitriatildeo por que motivo estatildeo ele Meacutegara e os filhos vestidos de luto e com aspecto

miseraacutevel (vv 626-628 squalor et lugubribus amicta obsiti paedore) Depois de

tomar conhecimento dos uacuteltimos conflitos provocados por Lico Heacutercules sente que lhe

compete o dever de castigar o tirano

Ingrata tellus nemo ad Herculeae domus auxilia uenit uidit hoc tantum nefas defensus orbis ndash cur diem questu tero mactetur impar hanc ferat uirtus notam fiatque summus hostis Alcidae Lycus ad hauriendum sanguinem inimicum feror Theseu resiste ne qua uis subita ingruat me bella poscunt differ amplexus parens coniuxque differ nuntiet Diti Lycus me iam redisse (vv 631-640)

O protagonista sente-se constrangido por ningueacutem ter auxiliado a casa de

Heacutercules (v 631 Herculeae domus) ele que eacute o defensor do mundo (v 633 defensus

orbis) Mas dos lamentos iniciais passa imediatamente agrave acccedilatildeo cur diem questu tero

(v 633) O seu uacuteltimo trabalho eacute agora matar Lico hanc ferat uirtus notam fiatque

summus hostis Alcidae Lycus (vv 634-635)77 O heroacutei sente que haacute uma forccedila superior

que o impele a querer derramar sangue e sendo essa uma tarefa sua uma vez que as

guerras reclamam apenas a presenccedila dele (v 637) dissuade Teseu de acompanhaacute-lo

Esta forccedila que o Alcida sente dentro de si pode levar a duas interpretaccedilotildees

complementares eacute um sentimento especificamente violento que aflora in se e que o

77 Herrmann atribui os vv 634-636 a Teseu enquanto Fitch (1) Viansino e Giardina a Heacutercules No ponto de vista de Fitch (1) 286 estes versos natildeo dizem respeito agrave fala de Teseu ldquouirtus would be awkward in the sense of uirtus tua 637 wolud be an odd response to Theseusrsquo offer and the bloodthirstiness of 636 suits Hercules better than Theseus Two factors that may have contributed to Arsquos error are the vocative Theseu in 637 and Hrsquos third person reference to himself in 635rdquo

124

leva a derrubar a tirania de Tebas pode ser um auguacuterio de um ataque de loucura

iminente

O heroacutei estaacute tatildeo obcecado pela ideia de se vingar que dispensa qualquer afecto

da famiacutelia (vv 638-639 differ amplexus parens coniuxque differ) remetendo abraccedilos

e demonstraccedilotildees de carinho para depois A estrutura quiaacutestica reforccedilada pela iteraccedilatildeo

do verbo no imperativo presente acentua a ideia de um desejo de aproximaccedilatildeo por parte

da famiacutelia pelo regresso tatildeo esperado de Heacutercules mas que eacute veementemente rechaccedilado

pelo Alcida A uacutenica preocupaccedilatildeo que o move eacute matar Lico e a estrutura quiaacutestica (vv

639-640 nuntiet Diti Lycus me iam redisse) aproxima as duas personagens que teratildeo

inevitavelmente de confrontar-se visto que a Heacutercules cabe a funccedilatildeo de castigar os

iacutempios e Lico eacute a representaccedilatildeo maacutexima do tirano Estaacute tambeacutem em causa a seguranccedila

da famiacutelia

Heacutercules regressa no Acto IV vitorioso (vv 895 ss) Derrotou Lico e a ordem

foi aparentemente estabelecida Assume-se como vingador (v 895 ultrice dextra)

preparando-se para oferecer libaccedilotildees aos deuses nunc sacra patri uictor et superis

feram caesisque meritas uictimis aras colam (vv 898-899) A ironia traacutegica eacute

manifesta nestes versos ele seraacute o sacerdote que vai oferecer viacutetimas humanas aos

deuses

A descriccedilatildeo da demecircncia de Heacutercules eacute gradual Natildeo eacute muito faacutecil identificar em

Heacutercules dois momentos psicoloacutegicos isto eacute um momento em que revele sanidade

mental e um outro que demonstre um estado completamente diferente de insania

Semelhante dificuldade deve-se agrave inexistecircncia de dois extremos Desde o primeiro

momento em que aparece em cena Heacutercules mostra estar muito proacuteximo da loucura natildeo

soacute pela incapacidade de discernimento dos limites existentes entre os deuses e os

humanos e pelo modo impetuoso como reage agraves proacuteprias situaccedilotildees como ainda pela

forma como pretende honrar os altares com oferendas Compara-se com alguma

frequecircncia aos deuses celestes (vv 592-613 vv 900-908) identificando Juacutepiter como

seu pai Juno como madrasta e os deuses como irmatildeos (vv 907-908 fraterque quisquis

incolit caelum meus non ex nouerca frater)

Eacute imoderado ao querer fazer uma libaccedilatildeo aos deuses sem primeiro purificar as

suas matildeos maculadas pelo sangue de Lico natildeo aceitando os conselhos de Anfitriatildeo A

imagem que este daacute das matildeos do filho indica que a morte do tirano teraacute sido violenta

manantes prius manus cruenta caede et hostili expia (vv 918-919) A aliteraccedilatildeo

125

(cruenta caede) a assonacircncia em nasal e a semacircntica do particiacutepio presente de mano

contribuem para a visualizaccedilatildeo do sangue que ainda escorre das matildeos do Alcida O

proacuteprio adjectivo cruenta que remete para cruor (lsquosangue derramadordquo) ilustra a

impiedade do heroacutei A resposta de Heacutercules deixa visiacutevel a sua impietas

utinam cruorem capitis inuisi deis libare possem gratior nullus liquor tinxisset aras uictima haud ulla amplior potest magisque opima mactari Ioui quam rex iniquus

(vv 920-924)

As figuras de retoacuterica permitem dar uma imagem da crueldade da violecircncia e da

ferocidade do protagonista a aliteraccedilatildeo cruorem capitis (v 920) a estrutura quiaacutestica

gratior nullus vs haud ulla amplior (note-se ainda a liacutetotes e a uariatio ndash haud ulla e

nullus) o uso de vocabulaacuterio proacuteprio do sacrifiacutecio (v 921 libare v 922 aras uictima

v 923 mactari) os adjectivos que qualificam o rex (v 920 inuisi v 924 iniquus)

Clara-Emmanuelle Auvray sugere a propoacutesito da vontade de Heacutercules de honrar

os altares divinos com o sangue do tirano

il peut affirmer que le sang drsquoun rex iniquus est une libation agreacuteable aux dieux et neacutegliger du mecircme coup les lois religieuses de la citeacute crsquoest en son seul nom qursquoil sacrifie agrave Jupiter invoqueacute sous son aspect de justicier Tonans enfin en appelant les autres dieux ses fregraveres il confirme sa preacutetention agrave deacutetenir par son rapport privileacutegieacute agrave la nature divine le sens de la loi Ainsi par lrsquointermeacutediaire du support mythologique Seacutenegraveque indique clairement les dangers inheacuterents agrave la notion de ldquoloi incarneacuteerdquo la toute-puissance juridique du Prince recegravele toutes les tentations de la violence arbitraire78

Heacutercules ldquocommet une faute religieuse graverdquo lembra Florence Dupont79 O

error do protagonista vai levaacute-lo a imolar a sua famiacutelia em oferenda aos deuses Como

informa a mesma autora

Hercule comme les autres heacuteros tragiques de Seacutenegraveque commet un crime inexpiable en transgressant un des rituels fondamentaux de la culture il sacrifie agrave Jupiter apregraves avoir tueacute Lycus sans se purifier du sang humain qui souille ses mains il accomplit ainsi explicitement et

78 Clara-Emmanuelle Auvray Folie et Douleur dans Hercule Furieux et Hercule sur lrsquoOeta Recherches sur lrsquoexpression estheacutetique de lrsquoascegravese stoiumlcienne chez Seacutenegraveque 18 79 Vide Florence Dupont Les Monstres de Seacutenegraveque pour une Dramaturgie de la Trageacutedie Romaine (Paris Belin 1995)184

126

volontairement un sacrifice humain qui fait de lui une becircte sauvage et lrsquoamegravene logiquement agrave massacrer sa famille80

A loucura do heroacutei comeccedila a manifestar-se no momento em que se dirige a

Juacutepiter em tom de prece Ipse concipiam preces Ioue meque dignas (vv 926-927)

Nestes versos Heacutercules identifica-se com o pai possivelmente pelo facto de o heroacutei ser

o protector dos homens e civilizador da humanidade81 Pretende uma nova Idade do

Ouro agora que julga que concluiu o seu ldquouacuteltimordquo trabalho

As suas preces reflectem o desejo utoacutepico de uma ordem e paz mundiais que

resvalam para o que eacute humana e naturalmente impossiacutevel Heacutercules falha enquanto heroacutei

pacificador Para Fitch

The impossibility of a Golden Age is relevant not only to our understanding of Herculesrsquo failure in this play but also to Rome herself Vergil had expressed hopes for the establishment of a new Golden Age (Ecl 4 passim Aen 6791-94) and such hopes resurfaced on the accession of Nero (cf Calp Ecl142ff 46ff Einsied Ecl 222ff and Sen himself at Apocol 4 where however the context has a deflationary effect) though HF may have been written before the event In each case these hopes were centered on a saviour figure as Hercules sees himself as the creator and guardian of the new age82

No momento em que os seus desejos entram no domiacutenio dos ἀδύνατα (vv 931-

939) Heacutercules apercebe-se da mutabilidade da natureza A passagem do dia para a noite

(vv 939-944) conotada com a mudanccedila do acircnimo do protagonista para a insanidade

ocorre no momento em que ele profere si quod etiamnum est scelus latura tellus

properet et si quod parat monstrum meum sit (vv 937-939) A palavra-chave destes

versos eacute monstrum que contribui para acentuar um tom de ironia traacutegica presente na

fala do heroacutei O lado pateacutetico deste discurso e que o leva a um error que por sua vez

conduziraacute agrave destruiccedilatildeo fatal eacute que o monstro com o qual vai defrontar-se eacute ele proacuteprio

Daiacute que quando acorda queira suicidar-se para expurgar o mundo desse novo monstro

80 Seacutenegraveque Theacuteacirctre Complet II ed e trad Florence Dupont (Paris Imprimerie Nationale 1992) 93 81 Esta comparaccedilatildeoligaccedilatildeo estreita entre Heacutercules e Juacutepiter eacute evocada no Hercules Oetaeus Hilo considera que a funccedilatildeo de Heacutercules na terra eacute semelhante agrave de Juacutepiter no Olimpo decus illud orbis atque praesidium unicum quem fata terris in locum dederant Iouis (vv 749-751) 82 Fitch (1) 27 Em Hercules Furens haacute semelhanccedilas entre Nero e Heacutercules a ambos parece ser confiada a tarefa de trazer uma nova Idade de Ouro com a sua vinda mas tanto o princeps como o heroacutei falham na sua tarefa Heacutercules erra devido agrave sua personalidade favoraacutevel a atitudes condenadas pelos estoacuteicos A loucura eacute apenas a consequecircncia de um espiacuterito jaacute de si perturbado pela vida activa Tambeacutem em Nero se evidenciam alguns traccedilos de inclemecircncia e violecircncia O princeps deixa-se dominar por todo o geacutenero de paixotildees de que resultaram mortes Britacircnico Agripina o proacuteprio Seacuteneca

127

Papadopoulou sugere ldquoThis moment constitutes an elaborate dramatic climax as the

implication is that the monster that Hercules asks for is no other than Hercules himself

his last toil will be the fight against his own selfrdquo 83

Neste sentido Fitch refere

ldquoThis [powerful dramatic irony] is inseparably combined here with character-revelation for there is arrogance in H assumption immediately disproved that he can deal with any threat sent against him There is also ambition underlying the urgency of etiamnunc and properet H feels that he has completed his labors and is eager to take the promised reward of immortality That this is in the forefront of his thoughts immediately becomes clear in the madness (955 ff)rdquo84

Esta ambiccedilatildeo que Fitch identifica permite compreender por que motivo

Heacutercules estaacute sempre ansioso por concluir as tarefas que lhe apresentam e ainda

entender a ausecircncia de afectividade que revela ser apanaacutegio do protagonista Na

verdade manifesta como desejo uacutenico o ascender agraves moradas celestes e eacute nelas que

reside o seu uacutenico fim (vv 957-973)

Quanto agraves manifestaccedilotildees da natureza elas estatildeo em estreita ligaccedilatildeo com o estado

psicoloacutegico de Heacutercules A sucessatildeo de interrogaccedilotildees (vv 939-944) numa procura de

perceber o que estaacute a acontecer ao seu redor permite fazer a distinccedilatildeo entre um heroacutei

aparentemente sanus e um insanus A evoluccedilatildeo da loucura natildeo eacute descrita ao pormenor

mas haacute uma dupla anotaccedilatildeo da demecircncia da personagem sob o ponto de vista

psicoloacutegico e fiacutesico O Alcida descreve aquilo que a sua vista deturpada contempla O

discurso de Anfitriatildeo permite recuperar a realidade dos factos isto eacute a personagem

revela o estado de alucinaccedilatildeo do heroacutei Na trageacutedia de Euriacutepides Fitch nota ldquoin

Herculesrsquo madness a single impulse and hallucination namely an attack on Mycenae is

replaced by a series of shifting impulses and hallucinations with great richness of

psychological and thematic significancerdquo85 Para aleacutem disso as manifestaccedilotildees da

perturbaccedilatildeo de Heacuteracles satildeo primeiro fiacutesicas depois psicoloacutegicas e descritas pelas

outras personagens

83 Thalia Papadopoulou ldquoHerakles and Hercules The Herorsquos Ambivalence in Euripides and Senecardquo 271 84 Fitch (1) 363 85 Fitch (1) 350

128

A escolha de palavras com que Seacuteneca descreve esta mudanccedila entra no campo

das trevas tenebrae (v 940) obscurus uultus (cf vv 940-941) nox atrum caput (v

942) A loucura vai domando por completo o heroacutei Os primeiros sintomas satildeo

a) visualizaccedilatildeo do Leatildeo de Neacutemea um dos primeiros trabalhos que concluiu (vv

944-952) O olhar do protagonista estaacute completamente concentrado nos astros o uacutenico

lugar que ele ainda natildeo experimentou Perdomita tellus tumida cesserunt freta

inferna nostros regna sensere impetus immune caelum est dignus Alcide labor in

alta mundi spatia sublimis ferar petatur aether astra promittit pater (vv 955-959)

Eacute possiacutevel novamente estabelecer um paralelo entre os discursos de Juno e

Heacutercules Agravequilo que a deusa temia caelo timendum est regna ne summa occupet qui

uicit ima sceptra praeripiet patri (vv 64-65) Heacutercules responde com impetuosidade e

desmesura non capit terra Herculem tandemque superis reddit () bella Titanes

parent me duce furentes () in caelum Olympus tertio positus gradu perueniet aut

mittetur (vv 960-961 vv 967-968 vv 972-973) Eacute sua intenccedilatildeo que esse seja o seu

proacuteximo passo86

b) julga ver os Gigantes libertos dos Inferni e armados para uma nova batalha

(vv 976-981) agora contra ele Estes versos surgem em tom especular relativamente

aos da fala de Juno (vv 79-83) quando diz pretender numa primeira opccedilatildeo libertar

todos os Gigantes para lutarem contra Heacutercules travando a ambiccedilatildeo do heroacutei de

ascender agraves moradas divinas

c) vecirc as Eriacutenias que se vatildeo aproximando dele ndash haacute um outro paralelismo com o

soliloacutequio de Juno (vv 86 ss) O facto de haver tantos pontos de contacto entre o

discurso de Juno e o de Heacutercules leva a concluir que a divindade tem efectiva

participaccedilatildeo na demecircncia do heroacutei como de resto mostrou ser sua intenccedilatildeo no final do

monoacutelogo inicial Como sugere Littlewood ldquoJuno and Hercules are inseparable from

86 No Hercules Oetaeus no monoacutelogo inicial Heacutercules invoca Juacutepiter argumentando que merece os astros prometidos Todo o discurso em 98 versos estaacute centrado no desejo de ascender agraves moradas celestes e no recordar dos ecircxitos dos seus labores Haacute cinco referecircncias aos astros as duas primeiras satildeo introduzidas por uma sucessatildeo de interrogaccedilotildees (vv 7-8 v 13) em que o protagonista procura saber por que motivo Juacutepiter natildeo lhe concede os ceacuteus uma vez que ele provou ser seu filho Nas outras referecircncias a) Heacutercules natildeo pede que o pai lhe indique o caminho mas apenas que lhe permita ascender aos astros (vv 32-33) b) considera que deve habitar nos ceacuteus para proteger os deuses dos monstros que foram anteriormente derrotados por ele e que agora ocupam um lugar entre as estrelas (vv 76-79) c) no final do discurso Heacutercules exige os astros por tudo o que fez pela humanidade (vv 97-98) Enquanto no Furens encontramos um heroacutei desmedido que pretende chegar aos astros seja naturalmente seja por meio da forccedila em Oetaeus o desespero do heroacutei eacute notoacuterio de tal modo que ele procura todos os argumentos possiacuteveis para que Juacutepiter lhe conceda um lugar na morada celeste nec peto ut monstres iter permitte tantum genitor inueniam uiam (vv 32-33) Chega ao cuacutemulo de dizer que pode servir de protector dos deuses

129

each otherrdquo87 Contudo o proacuteprio caraacutecter do Alcida revela estar bem distante de ter

uma mens bona

A repeticcedilatildeo do adveacuterbio propius (v 983) sugere a aproximaccedilatildeo de Tisiacutefone uma

Fuacuteria de que resultaraacute um crime O sentido de rogus (cf v 984) poderaacute ser duplo a

proacutepria loucura ou a morte da famiacutelia Fitch considera que a visatildeo de Tisiacutefone pode ter

duas interpretaccedilotildees ou a sua tarefa estaacute directamente relacionada com a rebeliatildeo dos

Gigantes ou guarda a entrada dos Infernos para que ningueacutem mais escape pela porta

franqueada por Heacutercules88 Nesta fase o protagonista estaacute totalmente dominado pela

Fuacuteria e o seu primeiro acto eacute atacar os filhos que confunde com os do tirano (vv 987

ss)89 seguindo-se a morte de Meacutegara que ele toma por Juno

A par do deliacuterio do heroacutei Anfitriatildeo complementa a descriccedilatildeo da evoluccedilatildeo do

estado psicoloacutegico do Alcida enumerando os primeiros sintomas ndash que satildeo

essencialmente fiacutesicos ndash e a forma como Heacutercules vai matando os filhos

a) o volver dos olhos90 ardentes em todas as direcccedilotildees (v 953 uultus huc et huc

acres refers)

b) a vista perturbada (acieque turbida) em direcccedilatildeo a um ceacuteu imaginaacuterio (v 954

falsum caelum)

c) Anfitriatildeo apercebe-se de que a mente do filho estaacute enlouquecida Infandos

procul auerte sensus pectoris sani parum magni tamen compesce dementem

impetum (vv 973-975) Os adjectivos infandus sanum (parum) demens ilustram um

acircnimo jaacute fora de si e as exortaccedilotildees de Anfitriatildeo (v 974 auerte v 975 compesce) satildeo

inuacuteteis Heacutercules natildeo ouve o pai estaacute cego pelo ardor da loucura

d) Anfitriatildeo pressente que o caecus furor (vv 991-995) do filho levaraacute a um

scelus nefandum triste et aspectu horridum (v 1004) A tripla adjectivaccedilatildeo permite

fazer uma transiccedilatildeo para a descriccedilatildeo da morte do segundo filho (vv 1005-1007) e

preparar o terceiro crime Anfitriatildeo aponta como estado psicoloacutegico do filho a amentia

(v 1021 amens) ndash soacute assim se explica tamanha atrocidade na forma como ele vai

eliminando cada um dos filhos e a esposa O uacuteltimo filho morre assustado com o olhar

inflamado de Heacutercules (v 1021 igneo uultu) ndash a manifestaccedilatildeo do ignis no vulto da

87 Cedric A J Littlewood Self-Representation and Illusion in Senecan Tragedy 117 88 Fitch (1) 373 89 Em Heracles o heroacutei confundiu os seus filhos com os de Euristeu 90 A palavra uultus pode designar lsquosemblantersquo ou lsquoolhosrsquo Fitch (1) 367 aponta as duas hipoacuteteses abonando com exemplos para cada uma delas No presente caso uma vez que eacute acompanhado pelo adjectivo acres optaacutemos por respeitar o plural e traduzir por lsquoolhos ardentesrsquo

130

personagem permite estabelecer uma relaccedilatildeo explorada pelos estoacuteicos entre a forccedila

destruidora do fogo e o efeito semelhante do erro das paixotildees que tudo abrasam e

destroem

e) no momento em que Anfitriatildeo se oferece como viacutetima para ser imolada junto

do altar (vv 1039-1042) Heacutercules adormece

O vocabulaacuterio que eacute usado pelas personagens para descrever os crimes do heroacutei

eacute expressivo para identificar a dimensatildeo da loucura que atacou o Alcida91 caecus furor

(v 991) furens (v 1005 v 1053) Hercules infestus (cf v 1013) amens (v 1021 v

1033) furor (v 1049 v 1098) graui uis uicta morbi pectus oppressum (vv 1051-

1052) tantis (animum) monstris (v 1063) torua pectora (v 1080) ferox cor (cf v

1083) omnes aestus (v 1088) insani fluctus animi (cf v 1092) uesanus motus (cf

v 1095) error caecus (v 1096) nefas (v 1099) ultrix manus (cf v 1103) tanti

dolores (cf v 1121) ulti uulnere (v 1122) scelus patriusque furor (v 1134) Todos

estes traccedilos que caracterizam o protagonista mostram que ele estaacute afastado do ideal

estoacuteico eacute excessivo prepotente estaacute dominado por paixotildees que o conduziram ao crime

De heroacutei virtuoso Heacutercules passa a monstro

Fitch considera que a insanidade de Heacutercules pode ter sido causada pelo excesso

de trabalho ldquoThe explanation may well be reflected in the fact that Senecarsquos Hercules

refuses to take rest between his tasks in which case Seneca has transmuted the idea of

physical exhaustion leading to epilepsy into that of psychological exhaustion leading to

temporary insanityrdquo92 Aliado agrave ausecircncia de qualquer descanso poderaacute subentender-se

um outro factor Como lembra Fitch ldquothat is not the only explanation implied in the

play for the fact that Hercules goes mad just after the end of his labours it is also clear

that his ambition and megalomania have been increased by the supposed conquest of the

underworldrdquo93

Para Shelton a loucura de Heacutercules deve-se ao erro de avaliaccedilatildeo da forccedila do

heroacutei The conflict in this play is the discrepancy between Herculesrsquo illusions about strength (uirtus) and the reality of strength His madness results from his distorted definition of uirtus He imagines that his physical force makes him greater than the gods he discovers that force produces disaster and that true strength is not physical but emotional

91 A ldquolinguagem da emoccedilatildeordquo expressatildeo de Maria Cristina Pimentel Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de Seacuteneca 41 contribui para a identificaccedilatildeo dos estados passionais das personagens em particular de Heacutercules 92 Fitch (1) 31 93 Fitch (1) 31-32

131

As one method of dramatizing this psychological conflict and giving external expression to an internal process Seneca created the dialogue of the supporting characters Their words reflect the conflict in Herculesrsquo mind The final dialogue between Theseus and Hercules for example externalizes Herculesrsquo discovery of the true uirtus94

No entanto julgamos que coexistem dois motivos que teratildeo conduzido agrave

insanidade do heroacutei um motivo humano e um motivo divino Juno tem um papel se natildeo

principal pelo menos fundamental na acccedilatildeo criminosa de Heacutercules No plano humano

como foi apontado pelos dois autores mencionados o Alcida deixa-se dominar por

sentimentos de megalomania violecircncia e ambiccedilatildeo que o levaram a um erro de

interpretaccedilatildeo e consequente furor Littlewood observa

Interpretation of this tragedy hinges on the origin and the nature of its criminal madness it may be seen as an extension of Herculesrsquo uirtus or an alien state of mind imposed upon him by Juno To some extent the nature of tragic madness is bound up with its origin Hercules tends toward the Phaethonic madness is more deliberately anarchic and evil However Seneca is at pains to confuse Juno with Hercules by making them imitate each other and thereby obstructs any simple identification of the tragic madness95

O despertar do heroacutei fiacutesico mas tambeacutem psicoloacutegico eacute igualmente progressivo

Se nos primeiros versos natildeo consegue discernir o local onde se encontra nem

reconhecer os corpos que jazem agrave sua volta mas apenas pressentir que aconteceu um

grande malum (vv 1138-1159) vai depois recuperando a consciecircncia96 comeccedilando por

dar-se conta de que os cadaacuteveres que estatildeo agrave sua volta (vv 1159-1161) satildeo dos seus trecircs

filhos e de Meacutegara O desespero por querer saber quem foi o autor do massacre (vv

1160 ss) leva a um novo acesso de fuacuteria ruat ira in omnes hostis est quisquis mihi

non monstrat hostem (vv 1167-1168) que conduz a uma nova seacuterie de interrogaccedilotildees97

Heacutercules vai descobrindo aos poucos que foi ele o assassino dos filhos e da esposa Eacute o

seu proacuteprio corpo que lhe vai dando as indicaccedilotildees do scelus manus refugit hic errat

94 Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 28-29 Neste sentido Seacuteneca diz a Luciacutelio na Carta 9225 maiestatem enim eius ex nostra inbecillitate metimur et uitiis nostris nomen uirtutis inponimus 95 Cedric A J Littlewood Self-Representation and Illusion in Senecan Tragedy 114 96 Como explicou Carla Susana Vieira Gonccedilalves A Invectiva nas Trageacutedias de Seacuteneca 130 as perguntas retoacutericas tecircm dupla funccedilatildeo na forma como o heroacutei se vai comportando ao longo da acccedilatildeo dramaacutetica Permitem por um lado demonstrar que ele toma consciecircncia de que algo estaacute errado como eacute o caso presente e conduzem agrave descoberta Por outro revelam igualmente uma alma perturbada 97 Vide vv 1173-1176 vv 1179-1186 v 1187 v 1188 vv 1189-1190 vv 1193-1195 vv 1198-1199

132

scelus (v 1193) iam tela uideo nostra Non quaero manum (v 1196) hoc nostrum est

scelus tacuere nostrum est (vv 1199-1200)

Estas caracteriacutesticas que vatildeo assomando no Alcida permitem criar um efeito

especular entre o heroacutei e Juno As paixotildees que afectam a deusa ira (v 28 v 34 v 75)

odia (v 27 v 35 v 77) saeuitia (v 35 saeua) dolor (v 28 v 99) assemelham-se agraves

de Heacutercules A personagem experimenta a ira (v 1167 v 1220 v 1277 irasci) e a

saeuitia (v 1280) depois de ter sido viacutetima da vinganccedila de Juno

Ainda acometido pela ira encontra como soluccedilatildeo para o crime o suiciacutedio98 tal

como em Heracles Contudo tambeacutem sob este aspecto a forma como estaacute construiacuteda a

trama final eacute diferente ateacute mesmo no papel do pai e do amigo do Alcida Em Hercules

Furens Anfitriatildeo e Teseu funcionam como personagens-prolongamento99

Representam no uacuteltimo acto o outro lado da vontade de Heacutercules que consiste em

evitar o suiciacutedio

Em siacutentese a caracterizaccedilatildeo do heroacutei nas peccedilas de Euriacutepides e de Seacuteneca difere

substancialmente Haacute um ponto de contacto entre ambas a ambivalecircncia do heroiacutesmo

do Alcida mas ainda assim sob perspectivas diferentes Euriacutepides estuda Heacuteracles

numa perspectiva inovadora no sentido em que analisa a forccedila psicoloacutegica do

protagonista em detrimento da sua forccedila corpoacuterea A dramatizaccedilatildeo da loucura do heroacutei

leva a questotildees sobre o seu heroiacutesmo altruiacutesmo sobre o seu papel na sociedade uma

vez concluiacutedos os doze trabalhos100 Eacute o heroacutei que natildeo tem um lugar fixo (a natildeo ser no

final da trageacutedia) que faz pouco uso da razatildeo deixando-se levar pelas emoccedilotildees

violentas mas aceita os conselhos que as outras personagens lhe datildeo

Em Heracles haacute uma humanizaccedilatildeo da personagem Eacute o heroacutei que se submete

aos trabalhos porque deseja restituir o pai agrave sua paacutetria natal abandona o espoacutelio do seu

uacuteltimo trabalho para ver a famiacutelia ao pressentir que algo de terriacutevel se passava com ela

natildeo suporta os trabalhos a que foi submetido e eacute o heroacutei que no final precisa de apoio

do amigo para entregar Ceacuterbero a Euristeu (vv 1386-1388) e concluir assim os seus

πόνοι

98 Este tema teraacute desenvolvimento no uacuteltimo capiacutetulo pelo que mereceu aqui tatildeo-soacute uma breve referecircncia 99 Segurado e Campos ldquoSur la typologie des personnages dans les Trageacutedies de Seacutenegravequerdquo 225 chama personagens-prolongamento agravequelas que ldquone disent jamais rien qui ne puisse ecirctre attribueacute au discours du personnage-noyaurdquo Tambeacutem Meacutegara desempenha a funccedilatildeo de uma personagem-prolongamento quando descreve o orgulho e a ambiccedilatildeo desmedidos de Heacutercules (Acto II vv 279-308) 100 Vide Thalia Papadopoulou ldquoHerakles and Hercules The Herorsquos Ambivalence in Euripides and Senecardquo 267

133

Heacuteracles eacute mais afectuoso do que Heacutercules Naquele eacute notoacuteria a afeiccedilatildeo pela

famiacutelia manifestada directa ou indirectamente Heacuteracles eacute agarrado pelos filhos (vv

627-633) eacute ele quem os conduz para o interior do palaacutecio no fim da acccedilatildeo dramaacutetica

abraccedila o pai (vv 1408-1409) e precisa da ajuda de Teseu para se levantar (vv 1395-

1402)

Em Seacuteneca o Alcida eacute o exemplum de uma personagem dominada pelos affectus

Vimos que a caracteriacutestica mais proeminente eacute a forccedila sobre-humana constantemente

evocada pelas personagens e que o aproxima dos deuses Aliada a essa caracteriacutestica

coexiste um lado ambicioso insensiacutevel megaloacutemano e cruel

Eacute impaciente quanto a manifestaccedilotildees de afectos reserva sempre para segundo

plano a afectividade procurando eliminar tudo e todos os que vatildeo contra a ordem

natural das coisas Engradece-se com os feitos realizados e deseja mais trabalhos Um

uacutenico objectivo o move ter direito a habitar nas moradas celestes prometidas Assim

socorre-se da forccedila brutal e desmedida para executar os trabalhos e construir um mundo

paciacutefico para os homens Tudo o que faz estaacute ao serviccedilo da sua honra e virtude e natildeo se

orienta em favor dos homens O egoiacutesmo de Heacutercules contrasta com o altruiacutesmo de

Heacuteracles

Relativamente ao modo como cada um age quando sob o domiacutenio da loucura

vemos que em Heracles haacute claramente uma intervenccedilatildeo divina que provoca o acto As

deusas apenas alteraram o seu campo de visatildeo de modo que ele natildeo consiga reconhecer

aqueles contra os quais luta Foi impiedoso na morte de Lico mas igualmente na da sua

famiacutelia o que leva a algumas reservas no que diz respeito agrave sua virtude No caso de

Seacuteneca se a mesma ambivalecircncia parece existir num primeiro momento a personagem

eacute por natureza e por tendecircncia violenta impiedosa e uma vez completamente

dominada pelas passiones revela o seu lado monstruoso ao matar os filhos e a mulher

Em Hercules Furens vemos que o protagonista estaacute muito longe da sapientia

exigida pelos estoacuteicos dado que se deixa levar pela fuacuteria e pela ira como resposta agraves

adversidades que se lhe deparam natildeo sabe fazer um bom uso daquilo que os filoacutesofos

definem por indiferentes

134

Capiacutetulo IV

HERCULES FURENS E HERCULES OETAEUS

1 Meditatio mortis ndash um estudo preliminar

O suiciacutedio eacute por si soacute um tema complexo e controverso e eacute-o especialmente

quando encarado sob a perspectiva da doutrina estoacuteica Para Arthur Bodson haacute uma

aparente contradiccedilatildeo em relaccedilatildeo a uma possiacutevel incompatibilidade no pensamento

estoacuteico que preceitua aceitar tudo o que vem da Providecircncia mas em simultacircneo pode

recusar ficar-lhe submetido1 escolhendo a via da morte Ora para que se desfaccedilam

equiacutevocos referentes a essa aparente contradiccedilatildeo importa ver em primeiro lugar que os

estoacuteicos natildeo consideram que o suiciacutedio deva ser uma regra geral mas sim que a ele eacute

possiacutevel recorrer em ocasiotildees especiacuteficas Como recomenda Seacuteneca a Luciacutelio

Meditare mortem qui hoc dicit meditari libertatem iubet Qui mori didicit seruire dedidicit supra omnem potentiam est certe extra omnem Quid ad illum carcer et custodia et claustra liberum ostium habet Una est catena quae nos alligatos tenet amor uitae qui ut non est abiciendus ita minuendus est ut si quando res exiget nihil nos detineat nec impediat quominus parati simus quod quandoque faciendum est statim facere2

A morte voluntaacuteria eacute possiacutevel e aceitaacutevel quando o homem procura libertar-se de

qualquer geacutenero de escravidatildeo seja fiacutesica seja moral Na Carta 77 Seacuteneca daacute exemplos

de motivos que justificam o suiciacutedio O primeiro eacute de Tuacutelio Marcelino viacutetima de uma

doenccedila penosa e prolongada que preferiu morrer com gloacuteria a arrastar a vida em

sofrimento (Ep 7710)

O segundo exemplo eacute o de um jovem da Lacoacutenia que se recusou a ser escravo

pelo que quando lhe ordenaram pela primeira vez que fizesse um serviccedilo indigno (ir

1 Arthur Bodson La Morale Sociale des Derniers Stoiumlciens Seacutenegraveque Eacutepictegravete et Marc Auregravele (Paris Les Belles Lettres 1967) 90 2 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 2610 lsquoMedita na morte com estas palavras Epicuro manda-nos meditar na liberdade Um homem que aprendeu a morrer esquece o que seja a servidatildeo estaacute acima melhor dizendo estaacute fora do alcance de todo e qualquer poder Que lhe importam o caacutercere os guardas as cadeias se tem diante de si uma porta sempre aberta Uma uacutenica cadeia nos tem manietados o amor pela vida Natildeo o abafemos de todo mas diminuamo-lo de modo a que se as circunstacircncias o exigirem nada nnos detenha ou impeccedila de estarmos preparados para fazer imediatamente o que mais tarde ou mais cedo teremos mesmo de fazerrsquo

135

buscar um vaso para os excrementos) o jovem esmagou a cabeccedila contra uma parede O

filoacutesofo pretende demonstrar que o que verdadeiramente importa eacute a qualidade da vida

que o estoacuteico tem e nunca a duraccedilatildeo ndash que o homem quando tiver que abandonar a vida

saiba fazecirc-lo da melhor forma Quomodo fabula sic uita non quam diu sed quam bene

acta sit refert Nihil ad rem pertinet quo loco desinas Quocumque uoles desine tantum

bonam clausulam inpone3 Eacute neste sentido que Seacuteneca termina esta carta 77 com esta

sententia

Epicteto por exemplo distingue trecircs formas de suiciacutedio 1) quando a decisatildeo eacute

tomada de acordo com a vontade divina4 e nunca por instinto ou por capricho5 2)

quando eacute uma forma de manter a integridade eou liberdade do homem6 3) quando o

suiciacutedio natildeo eacute um acto pensado mas levado por um pretexto ou entrando no domiacutenio

irracional7 o que faz dele um acto imoral

Durkheim viria posteriormente a denominar trecircs tipos de suiciacutedio o egoiacutesta o

anoacutemico e o altruiacutesta8 No que diz respeito ao primeiro caso cometem suiciacutedios os

homens que se sentem aparentemente desvinculados de uma sociedade o indiviacuteduo natildeo

sente uma ligaccedilatildeo forte com a comunidade natildeo depende de um grupo logo tende a

formar as suas proacuteprias regras e a viver segundo os seus proacuteprios interesses Explica

Durkheim ldquoSi donc on convient drsquoappeler eacutegoiumlsme cet eacutetat ougrave le moi individuel

srsquoaffirme avec excegraves en face du moi social et aux deacutepens de ce dernier nous pourrons

donner le nom drsquoeacutegoiumlste au type particulier de suicide qui reacutesulte drsquoune individuation

deacutemesureacuteerdquo9

Sobre este modo de suiciacutedio Seacuteneca formula um juiacutezo criacutetico desfavoraacutevel Para

Seacuteneca o homem natildeo deve cometer o suiciacutedio se estiver sob o domiacutenio de um ou vaacuterios

affectus Aleacutem disso satildeo estultos todos aqueles que correm para a morte porque vecircem

nela um refuacutegio10 Por fim um homem nunca deve suicidar-se quando algum familiar

ou amigo exigir que ele permaneccedila vivo11 Para os estoacuteicos este eacute um acto imoral

3 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 7720 lsquoNa vida eacute como no teatro natildeo interessa a duraccedilatildeo da peccedila mas a qualidade da representaccedilatildeo Em que ponto tu vais parar eacute questatildeo sem a miacutenima importacircncia Paacutera onde quiseres mas daacute agrave tua vida um fecho condignorsquo 4 Arriano Epicteti Dissertationes 1916 5 Idem Ibidem 12929 6 Idem Ibidem 1226 41150 ss 41172 7 Idem Ibidem 1917 12929 8 Para um estudo mais completo sobre este tema veja-se Eacutemile Durkheim Le Suicide 149-311 9 Eacutemile Durkheim Le Suicide Eacutetude de Sociologie (Paris Presses Universitaires de France 1930 reimpr 1986) 223 10 Ver Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 2422-24 9815-16 11 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 781 e ss1043

136

porque quem o comete natildeo respeita os que lhe estatildeo proacuteximos antes se deixa levar por

uma paixatildeo que o conduz a um acto irracional

O suiciacutedio altruiacutesta eacute segundo Durkheim ldquocelui ougrave le moi ne srsquoappartient pas

ougrave il se confond avec autre chose que lui-mecircme ougrave le pocircle de sa conduite est situeacute en

dehors de lui agrave savoir dans un des groupes dont il fait partierdquo12 Este tipo de suiciacutedio

apresenta uma outra caracteriacutestica que o distinge dos outros ldquoil est accompli comme un

devoirrdquo13 Eacute o que melhor se aproxima dos propoacutesitos estoacuteicos Os exemplos maacuteximos

satildeo Soacutecrates e Catatildeo de Uacutetica O uacuteltimo eacute o modelo do homem que viveu pela (e para) a

paacutetria procurando ser livre entre homens livres Quando se revelou impossiacutevel

continuar a lutar por essa liberdade comum preferiu a morte a viver sob o jugo poliacutetico

de Ceacutesar14 Jaacute Soacutecrates poderia ter escapado da prisatildeo com o auxiacutelio dos amigos mas

escolheu natildeo o fazer e enfrentar a morte obedecendo agraves leis da sua paacutetria15

Eacute por este modo de ldquoabandonarrdquo a vida que os estoacuteicos pugnam quando as

circunstacircncias assim o exigem Partindo da maacutexima Quae [uita] non semper retinenda

est non enim uiuere bonum est sed bene uiuere (Ep 704) ndash e a diferenccedila crucial

reside no saber fazer uso da melhor forma possiacutevel do tempo que a Providecircncia nos

concede recordando que nem sempre a quantidade eacute sinoacutenimo de qualidade ndash Seacuteneca

aconselha o seu leitor a que medite sobre a morte (Ep 7018) aceitando-a como um

percurso natural e inevitaacutevel E o saber viver em harmonia com a Natureza parte disto

mesmo reconhecer que vida e morte formam um ciclo a que ningueacutem pode escapar

A Carta 70 eacute toda ela uma reflexatildeo sobre a vida e a morte partindo em

pormenor desta uacuteltima circunstacircncia para se centrar no tema do suiciacutedio Para o

filoacutesofo apenas o saacutebio possui o discernimento de escolher a forma como pretende sair

da vida uma vez que ele reconhece que a morte e a vida satildeo indiferentes e fazem parte

de um ciclo normal e inevitaacutevel O que importa satildeo as circunstacircncias que levam a

escolher um dos caminhos possiacuteveis para terminar a existecircncia16 Si multa occurrunt

molesta et tranquillitatem turbantia emittit se nec hoc tantum in necessitate ultima

12 Eacutemile Durkheim Le Suicide 238 13 Loc Cit 14 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 246-8 15 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 244 16 Eacute neste aspecto que reside essencialmente a liberdade do estoacuteico se o homem natildeo eacute livre no momento em que nasce a sua liberdade estaacute nas muacuteltiplas formas como poderaacute sair da vida Hoc qui dicit non uidet se libertatis uiam cludere nihil melius aeterna lex fecit quam quod unum introitum nobis ad uitam dedit exitus multos (Seacuteneca Ep 70 14-15) lsquoQuem assim fala natildeo vecirc como estaacute tornando impossiacutevel a liberdade Nada de melhor concebeu a lei eterna do que embora apenas nos dando uma porta de entrada na vida ter-nos proporcionado muacuteltiplas saiacutedasrsquo

137

facit sed cum primum illi coepit suspecta esse fortuna diligenter circumspicit numquid

illic desinendum sit (Ep 705)17 Como explica Cristina Pimentel comentando um passo

de Epicteto18 ldquoEacute que o sapiens sai da vida natildeo eacute expulso e como tudo o que eacute

inevitaacutevel natildeo deixa margem para que se tente modificar ou para provocar medos ou

revoltas entatildeo haacute que entender a morte como o fim natural da vida porque tudo o que

comeccedila tem de acabarrdquo19 Assim eacute possiacutevel o suiciacutedio somente quando

a) situaccedilotildees graves que satildeo um obstaacuteculo agrave tranquilidade da alma nunca sendo

aceitaacutevel nem ir ao encontro da morte por medo nem fugir dela Um exemplo quando eacute

viacutetima de uma doenccedila prolongada e incuraacutevel o homem pode escolher abandonar a

vida natildeo para terminar com o seu sofrimento mas porque a sua doenccedila natildeo lhe permite

viver de acordo com a ordem natural nem manter a sua dignidade nem cumprir os seus

deveres (ciacutevicos por exemplo)20

b) quando haacute um factor externo que obriga o homem a morrer (por exemplo se

vai ser torturado ateacute agrave morte) eacute mais difiacutecil saber qual a decisatildeo mais correcta se

aguardar essa morte ou antecipaacute-la A justificaccedilatildeo de Seacuteneca eacute

Si altera mors cum tormento altera simplex et facilis est quidni huic inicienda sit manus Quemadmodum nauem eligam nauigaturus et domum habitaturus sic mortem exiturus e uita Praeterea quemadmodum non utique melior est longior uita sic peior est utique mors longior In nulla re magis quam in morte morem animo gerere debemus Exeat qua impetum cepit siue ferrum appetit siue laqueum siue aliquam potionem uenas occupantem pergat et uincula seruitutis abrumpat21

E se nesta longa citaccedilatildeo parece haver uma contradiccedilatildeo com o que o filoacutesofo

disse nos paraacutegrafos anteriores ndash onde refere que se um sapiens eacute condenado agrave morte ele

17 lsquoSe se lhe deparam muitas situaccedilotildees graves muitos obstaacuteculos agrave sua tranquilidade o saacutebio retirar-se-aacute E natildeo o faraacute apenas como uacuteltimo recurso mas assim que a fortuna comeccedilar a mostrar-se hostil para com ele deveraacute meditar seriamente se natildeo conveacutem pocircr de imediato termo agrave vidarsquo 18 Arriano Epict 2611 e 12 19 Maria Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo 30 20 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 5836 inbecillus est et ingnauus qui propter dolorem moritur stultus qui doloris causa uiuit (lsquoMorrer para evitar a dor eacute uma atitude de fraqueza e cobardia viver soacute para suportar a dor eacute pura estupidezrsquo) 21 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 7011-12 lsquoSe por exemplo a alternativa for entre uma morte no meio de torturas e uma morte directa e raacutepida como natildeo escolher sem hesitaccedilatildeo esta uacuteltima Se eu escolho o navio em que vou navegar ou a casa em que vou habitar tambeacutem ao deixar esta vida posso escolher a forma como morrer Aleacutem disso se a vida natildeo se torna melhor por ser mais longa a morte pelo contraacuterio quanto mais prolongada for pior Mais do que em qualquer outra situaccedilatildeo devemos obedecer na atitude perante a morte aos ditames da nossa alma E esta que se evole com decisatildeo segundo a forma de morte escolhida quer se eleja o punhal ou a corda ou o veneno que se espalha pelas veias haacute que ser firme na decisatildeo tomada e romper de uma vez os viacutenculos da nossa servidatildeorsquo

138

natildeo a antecipa suicidando-se mas espera pacientemente que chegue esse dia (Ep 70

8) ndash tal contradiccedilatildeo eacute apenas aparente Recordando o exemplo que daacute no paraacutegrafo 9 o

de Soacutecrates Seacuteneca lembra que o filoacutesofo grego poderia ter optado pelo suiciacutedio mas

natildeo o fez natildeo por medo da morte mas por obediecircncia agrave lei Ora a antecipaccedilatildeo da morte

a que o autor alude diz respeito a casos pontuais e que implicam uma forma de

libertaccedilatildeo como eacute o caso paradigmaacutetico de Catatildeo Tomando ainda como exemplos

ilustrativos gladiadores e baacuterbaros (Ep 7020-26) e monstrando que eles estariam

privados da sua liberdade ou acabariam por morrer de forma menos digna e em contexto

de espectaacuteculos puacuteblicos Seacuteneca procura demonstrar que nesta circunstacircncia o

suiciacutedio eacute um acto louvaacutevel

c) quando o homem se vecirc privado de bens imprescindiacuteveis para garantir a sua

sobrevivecircncia ou quando as suas faculdades comeccedilam a falhar dado o avanccedilar da

idade22

d) por uacuteltimo e citando Cristina Pimentel quando ldquodepois de ter lanccedilado matildeo

dos remedia ao seu alcance para combater as paixotildees o homem se vecirc sujeito aos

proacuteprios uitia de modo que escapa jaacute ao seu domiacuteniordquo23

Em todos estes motivos haacute um elemento fundamental que os liga a liberdade do

homem Eacute por ser livre que o ser humano pode escolher a melhor forma de viver ou

optar por sair da vida quando alguma situaccedilatildeo intransponiacutevel assim o exige

Quanto ao terceiro tipo de suiciacutedio considerado por Durkheim o anoacutemico estaacute

relacionado com uma anomalia qualquer sendo essencialmente motivada por uma crise

passional O indiviacuteduo que se sente integrado numa sociedade sofre por alguma razatildeo

algum dano material ou afectivo (por exemplo devido a uma crise econoacutemica ou a

algum processo judicial ou agrave perda de todos bens ou ao divoacutercio) que o leva a decidir-

-se pelo suiciacutedio Durkheim define este uacuteltimo tipo como ldquoil est une troisiegraveme sorte de

suicideacutes qui srsquoopposent et aux premiers en ce que leur acte est essentiellement

passionnel et aux seconds en ce que la passion qui les inspire et qui domine la scegravene

finale est drsquoune tout autre nature Ce nrsquoest pas lrsquoenthousiasme la foi religieuse morale

ou politique ni aucune des vertus militaires crsquoest la colegravere et tout ce qui drsquoordinaire

accompagne la deacuteceptionrdquo24

22 Vide Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales30 23 Maria Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo 32 24 Eacutemile Durkheim Le Suicide 321

139

Relativamente agraves circunstacircncias que neste caso levam ao suiciacutedio Seacuteneca

assume uma vez mais uma firme rejeiccedilatildeo Chama loucos aos que se deixam dominar

por algum medo

Vir fortis ac sapiens non fugere debet e uita sed exire et ante omnia ille quoque uitetur adfectus qui multos occupauit libido moriendi Est enim mi Lucili ut ad alia sic etiam ad moriendum inconsulta animi inclinatio quae saepe generosos atque acerrimae indolis uiros corripit saepe ignauos iacentesque illi contemnunt uitam hi grauantur25

A morte deve ser acolhida nunca desesperadamente procurada ou evitada (Ep

3015) E com este breve estudo preambular pensamos poder agora passar agrave anaacutelise

comparativa dos finais de Hercules Furens e Hercules Oetaeus

2 Heacutercules ndash a ascese do proficiens

21 Heacutercules sob o domiacutenio da ira (estudo sobre o comportamento da personagem

no Hercules Furens e no Hercules Oetaeus)

Como tivemos ocasiatildeo de ver ao longo deste estudo em particular no terceiro

capiacutetulo com a anaacutelise do protagonista em Euriacutepides e Seacuteneca a figura de Heacutercules

causou desde sempre alguma dificuldade de anaacutelise dado ser um heroacutei ambiacuteguo Em

Seacuteneca haacute contudo um reaproveitamento da figura o filoacutesofo pretende estudar o

comportamento de Heacutercules sob o ponto de vista estoacuteico Vimos que ainda que haja

personagens no Hercules Furens26 que consideram Heacutercules virtuoso a sua uirtus eacute

25 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 2425 lsquoUm homem corajoso e saacutebio natildeo deveraacute fugir da vida mas sim sair dela acima de tudo importa evitar uma paixatildeo que tem assaltado muita gente a paixatildeo pela morte Como em relaccedilatildeo a outros assuntos tambeacutem em relaccedilatildeo ao fenoacutemeno da morte existe uma inconsiderada tendecircncia de espiacuterito capaz de dominar frequentemente quer o homens animosos e de caraacutecter firme quer gente sem forccedila e sem coragem soacute que enquanto os primeiros sentem desprezo pela vida os outros natildeo lhe suportam o pesorsquo 26 Tambeacutem no Hercules Oetaeus o heroacutei eacute visto como o protector dos homens porque libertou a humanidade dos seus medos E a sua presenccedila no mundo eacute de tal modo fundamental que a sua morte representa uma desgraccedila para o orbe hunc ecce luctum quem gemis cuncti gemunt commune terris omnibus pateris malum (Hercules Oetaeus vv 761-762) Hilo foca a ideia de que o valor do Alcida eacute inigualaacutevel de tal modo que a proacutepria morte foge do heroacutei os Destinos natildeo ousam cometer o crime de terminar a vida de Heacutercules e Cloto treme ao saber que estaacute a fiar os derradeiros momentos da vida do heroacutei (vv 766-770)

140

essencialmente fiacutesica Na realidade o modo como o heroacutei reage agraves situaccedilotildees revela que

se deixa levar pelos affectus especificamente pela ira

Seacuteneca define ira explicando que esta eacute um uitium diferente dos outros

Ceteri enim adfectus dilationem recipiunt et curari tardius possunt huius incitata et se ipsa rapiens uiolentia non paulatim procedit sed dum incipit tota est nec aliorum more uitiorum sollicitat animos sed abducit et inpotentes sui cupidosque uel communis mali exagitat nec in ea tantum in quae destinauit sed in occurrentia obiter furit Cetera uitia inpellunt animos ira praecipitat Etiam si resistere contra adfectus suos non licet at certe adfectibus ipsis licet stare haec non secus quam fulmina procellaeque et si qua alia inreuocabilia sunt quia non eunt sed cadunt uim suam magis ac magis tendit Alia uitia a ratione hoc a sanitate desciscit alia accessus lenes habent et incrementa fallentia in iram deiectus animorum est Nulla itaque res urget magis attonita et in uires suas prona et siue successit superba siue frustratur insana ne repulsa quidem in taedium acta ubi aduersarium fortuna subduxit in se ipsa morsus suos uertit Nec refert quantum sit ex quo surrexerit ex leuissimis enim in maxima euadit27

Deste extenso passo percebemos que a ira eacute dos uitia mais prejudiciais e que

mais dano causa ao sujeito ou a uma multidatildeo28 porque os precipita num remoinho de

emoccedilotildees e acccedilotildees crueacuteis acabando por arrastar consigo os que estatildeo proacuteximos Uma

vez que algueacutem se deixa levar por semelhante mal difiacutecil eacute paraacute-lo As manifestaccedilotildees

que a ira provoca no seu paciente satildeo visiacuteveis natildeo soacute no olhar como na proacutepria face

como ainda nos movimentos29

O passo citado permite-nos igualmente explicar a psicologia do protagonista no

Hercules Furens e no Hercules Oetaeus Em ambas as trageacutedias o heroacutei apresenta-se

alienado porque movido por sentimentos ora de furor ora de ira E se os resultados na

primeira trageacutedia foram crueacuteis (morte da famiacutelia) ainda que Juno estivesse implicada no

homiciacutedio na segunda todos os actos de Heacutercules satildeo voluntaacuterios o heroacutei tem

consciecircncia de que estaacute a tomar o lugar dos monstros vencidos destruiu Ecaacutelia porque

se apaixou por Iacuteole eacute cruel com Licas e pretende ser violento com Dejanira

Assim no monoacutelogo inicial do Hercules Oetaeus Heacutercules tem noccedilatildeo de que

teminou a sua tarefa terrena dado todos os monstros terem sido jaacute vencidos e nada mais

restar nem na terra nem no mar nem nos ceacuteus para ele derrotar (nec monstra inuenit

27 Seacuteneca De Ira 313-5 28 Segundo Seacuteneca De Ira 321 ss a ira eacute o uacutenico viacutecio que pode atingir um povo uma cidade crianccedilas jovens adultos velhos Natildeo escolhe idades 29 Seacuteneca De Ira 341-3

141

ferae negantur30) de tal modo que conclui que Hercules monstri loco iam coepit esse

(vv 55-56) Do Coro das mulheres de Ecaacutelia sobressai a soberba e a violecircncia do

Alcida Satildeo expressivos os adjectivos que escolhem para identificar o caraacutecter dele

tumidus (v 142) e indomito (v 155) Herculeas minas (v 166) iratum Herculem (v

172) Licas morre assustado com o olhar feroz de Heacutercules31 No entanto o heroacutei uma

vez que natildeo se pocircde vingar em Licas ainda vivo mutila o seu cadaacutever lanccedilando-o aos

astros A forccedila que usou para arremassaacute-lo foi tanta que o corpo deixou rastos de sangue

pelas nuvens desmembrando-se caindo a cabeccedila sobre as rochas e perdendo-se o corpo

nas aacuteguas do mar o que comprova uma vez mais a violecircncia desmedida de Heacutercules

(vv 808-822) O Alcida pretende ser igualmente cruel com Dejanira utinam liceret

stipite ingesto impiam effringere animam quale Amazonium malum circa niualis

Caucasi domui latus o clara Megara tune cum furerem mihi coniunx fuisti Stipitem

atque arcus date dextra inquinetur laudibus maculam imprimam summus legatur

femina Herculeus labor (vv 1449-1455) O recordar a sua loucura e a forma como

matou Meacutegara32 remete para um novo crime que natildeo seraacute menos iacutempio com a diferenccedila

de que o seu uacuteltimo labor (summus labor) seraacute voluntaacuterio ndash a violecircncia do acto eacute

acentuada pelo politpoto de stipes (v 1449 v 1453) e o recurso a formas verbais que

manifestam violecircncia (v 1450 effringere v 1452 furerem v 1454 inquinetur v

1454 imprimam) bem como pelo homeoteleuto (v 1454 maculam imprimam) O

uacutenico objectivo de Heacutercules eacute manter a sua gloacuteria (cf v 1454 laudibus) intacta

Mesmo tomando conhecimento do suiciacutedio da esposa a sua raiva natildeo eacute menor

uma vez que natildeo admite que ningueacutem inferior a si o venccedila Testemunho de um novo

impulso satildeo as palavras que profere em resposta a Hilo 30 Seacuteneca Hercules Oetaeuscedil vv 54-55 31 Eacute Hilo quem descreve a morte de Licas quando anuncia a Dejanira a morte proacutexima de Heacutercules que tem como causa a veste que ela enviou ao marido Enumera as primeiras manifestaccedilotildees fiacutesicas de Heacutercules motivadas pelo fogo que emana da veste que conduzem a ataques de ira contra aqueles que julga culpados Primeiro compara a reacccedilatildeo do Alcida com a de um touro qualis impressa fugax taurus bipenni uulnus et telum ferens delubra uasto trepida mugitu replet aut quale mundo fulmen emissum tonat sic ille gemitu sidera et pontum ferit (vv 798-802) passando para manifestaccedilotildees do olhar uultus ignea torquens face (v 808) A mente de Heacutercules fica tatildeo perturbada pela intensidade das dores que comeccedila a ter alucinaccedilotildees Heacutercules ao ouvir Alcmena identificar a doenccedila dele como o resultado de sucessivas labutas (vv 1396-1398) julga que eacute uma nova guerra que se aproxima e procura-a incessantemente revelando com as suas palavras que a sua mente estaacute perturbada Ubi morbus ubinam est estne adhuc aliquid mali in orbe mecum ueniat huc aliquis mihi intendat arcus ndash nuda sufficient manus Procedat agedum (vv 1399-1402) O paralelismo entre intendat arcus e sufficient manus permite por um lado comprovar o furor do protagonista levando Alcmena a considerar que apenas este affectus consegue controlar o acircnimo de Heacutercules (v 1404 dolor iste furor est Hercules solus domat) por outro ilustra a confianccedila desmedida que Heacutercules tem em relaccedilatildeo ao seu poder 32 Vimos no terceiro capiacutetulo que o corpo dela foi estropiado a cabeccedila foi esmagada devido agrave violecircncia de Heacutercules

142

Caecus dolore es manibus irati Herculis occidere meruit perdidit comitem Lichas saeuire in ipsum corpus exanime impetus atque ira cogit Cur minis nostris caret ipsum cadauer Pabulum accipiant ferae (vv 1459-1463)

O menosprezo de Heacutercules perante o sofrimento do filho (v 1459) eacute notoacuterio

Todos os seus sentimentos estatildeo centrados em si e numa nova forma de vinganccedila natildeo

menos saeua do que as anteriores Lembra o modo como despedaccedilou o corpo de Licas

prometendo natildeo ser menos severo com o corpo de Dejanira Revelador de uma nova

impetuosidade satildeo os vocaacutebulos escolhidos o dolor (cf v 1459) que leva a que a alma

fique cega (v 1459 caecus) a ira cuja forccedila eacute sugerida pelo poliptoto pela metoniacutemia

e pela conjunccedilatildeo copulativa a ligar este affectus a um outro o impetus (v 1459

manibus irati v 1462 ira vv 1461-1462 impetus atque ira) minis (v 1462)

Heacutercules tem consciecircncia de que todas estas passiones estatildeo a afectaacute-lo mas natildeo

procura um meio de paraacute-las antes se sente instigado a cometer mais uma acccedilatildeo iacutempia

Apenas modera o seu furor quando descobre que quem provocou o seu sofrimento natildeo

foi Licas ou Dejanira mas Nesso33 o centauro que ajudou Dejanira a atravessar o rio e

tentou violaacute-la sendo por isso castigado por Heacutercules

Para compreendermos um pouco melhor a proacutepria psicologia da personagem

procurando ver na linguagem e comportamentos do Alcida aspectos que ilustrem os

seus erros enquanto caraacutecter natildeo-estoacuteico apresentamos alguns quadros um primeiro

que diz respeito agrave ldquolinguagem da emoccedilatildeordquo34 em Hercules Furens e Hercules Oetaeus

seguido de um esquema que demonstra as oscilaccedilotildees do protagonista que ora cai em

sucessivos erros dominado pelo furor ou pela ira culminando em scelera ou freia os

sentimentos resignando-se ao destino

33 A partir deste ponto Heacutercules muda completamente de atitude Aceita a morte natildeo soacute porque reconhece o seu destino mas (e essencialmente) porque ne quis superstes Herculis uictor foret (v 1480) O que o preocupava natildeo era tanto o morrer mas ser vencido por algueacutem mais fraco ou que o seu assassino pudesse viver e triunfar sobre o cadaacutever de Heacutercules 34 Designaccedilatildeo que recolhemos da obra de Maria Cristina Pimentel Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de Seacuteneca 41 onde explica o geacutenero de vocabulaacuterio e de recursos que Seacuteneca escolhe para descrever as paixotildees ldquoSeacuteneca como eacute oacutebvio natildeo descurou esse ponto ndash o da linguagem das suas personagens que eacute aquela que figuras anti-estoacuteicas poderiam ou teriam necessariamente de ter A esses aspectos do discurso de Fedra que correspondem agrave funccedilatildeo emotiva da linguagem chamaremos noacutes a linguagem da emoccedilatildeordquo

143

211 Linguagem da emoccedilatildeo

Hercules Furens

Interjeiccedilotildees 987 1226 1334 Exclamaccedilotildees 920-921 977-978 1156-1157 1221-

1223 1226 Repeticcedilotildees 638-640 931-935 937-938 942-943

980-981 983 1138 1139 1147-11481149 1153 1193-1194 1207-1208 1218 1229-1230 1231 1242-1243 1269-1270 1278 1314 1323

Interrogaccedilotildees retoacutericas 613 631-633 960 996 1216-1217 1227-1228 1283-1284

Longas tiradas a) Momentos de intensidade pateacutetica 1138-1186 1192-1200 1202-1218

1221-1236 1277-1294 1295-1296 1314-1319 1321-1341

b) Periacuteodos que revelam violecircncia 636-637 640-644 773-775 797-805 918-919 989-991 996-1002 1010-1011 1018-1020 1221-1236 1279-1282

c) Periacuteodos que revelam o excesso 603-604 606-615 900-908 920-924 926-939 1281-1282 1284-1294

d) Momento de loucura (sintomas e consequecircncia)

939-989 989-1038

Hercules Oetaeus ndash movido por sentimentos de megalomania e ira35

Interjeiccedilotildees 93 1171 1176-1177 1218 1232 1253 1264 1325 1360 1452

Exclamaccedilotildees 51 56-57 61-62 73-74 93-94 95-96 1134 1171 1177-1178 1181 1185-1186 1191-1206 1231-1232 1253 1258 1260-1261 1264 1302 1324 1364-1365 1371-1372 1435 1445-1446 1448 1459

35 Em Hercules Oetaeus haacute claramente uma evoluccedilatildeo na forma como o heroacutei se move na acccedilatildeo dramaacutetica temos um primeiro momento que corresponde aos seus lamentos porque anseia morar com Juacutepiter ou porque eacute viacutetima da vinganccedila de Nesso ndash nesta parte o heroacutei deixa-se levar pelas paixotildees num segundo momento quando descobre a verdade haacute uma mutaccedilatildeo na forma de reacccedilatildeo de Heacutercules ele reconhece o seu fatum e aceita-o Sendo o objectivo deste quadro o de analisar os passos que revelam a violecircncia e a megalomania de Heacutercules restringimos o estudo ao primeiro momento mencionado

144

Repeticcedilotildees 11 13 16-17 53-55 77 87 95-96 1135 1141 1197-1198 1218 1233 1240-1243 1148 1260 1265 1270-1271 1276-1277 1304-1305 1321 1322-1323 1329-1330 1367-1368 1379 1389-1392 1400 1402

Interrogaccedilotildees retoacutericas 63-64 97-98 1234-1247 Longas tiradas a) Momentos de grande emotividade pateacuteticos

7-8 10-13 1131-1150 1161-1206 1218-1278 1290-1336 1345-1349 1359-1373 1377-1395

b) Periacuteodos que revelam violecircncia 813-81636 1459-1464

c) Periacuteodos que revelam o excesso 8-10 13-98 1137-1150

d) Momentos de loucuradeliacuterio 1399-1401 1432-1447

Vemos nas duas tabelas que Heacutercules eacute a tiacutepica personagem que se deixa levar

pelas emoccedilotildees ora por sentimentos de grandeza vendo na forccedila desmedida a sua uirtus

ora pelos uitia mais violentos furor ira impietas Destes quadros se compreende que

ele eacute claramente exemplo de uma personagem anti-estoacuteica

Haacute contudo diferenccedilas entre os dois quadros No segundo haacute mais exemplos de

interjeiccedilotildees de exclamaccedilotildees e de repeticcedilotildees que estatildeo associados ao lamento aos

pedidos constantes de Heacutercules para abandonar a terra que ficou liberta de todos os

monstros Neste caso haacute momentos com grande carga emotiva particularmente no

monoacutelogo que inicia o acto I O desespero do heroacutei que relembra todos os seus

trabalhos todas as vitoacuterias alcanccediladas sobre os iacutempios ansiando por poder fazer parte

dos astros eacute total

No Hercules Furens haacute mais exemplos de periacuteodos que revelam violecircncia por

parte do protagonista Heacutercules eacute violento na forma como castiga os tiranos no modo

como destroacutei a sua casa (por metoniacutemia a famiacutelia) e natildeo eacute menos violento quando

pretende vingar-se de si proacuteprio pelo crime ousado

Uma outra diferenccedila entre as duas trageacutedias estaacute no tratamento da proacutepria

loucura cujos sintomas apesar de semelhantes (Heacutercules tem visotildees nos dois

momentos) natildeo terminam da mesma forma No Furens a loucura tem a duraccedilatildeo

suficiente para matar filhos e esposa No Oetaeus a sua dementia estaacute mais proacutexima do

deliacuterio do que da loucura propriamente dita Tem um curto espaccedilo de tempo motivado

36 Apesar de ser Hilo a falar ele reproduz o discurso de Heacutercules que revela crueldade uma vez que ateacute de um cadaacutever se vinga

145

ou pela exaustatildeo ou por uma nova dor provocada pela veste envenenada que o acorda

para a realidade

Estas diferenccedilas tecircm que ver com a proacutepria evoluccedilatildeo do protagonista e com a

mensagem que se pretende veicular As caracteriacutesticas da personagem satildeo muito

semelhantes se natildeo as mesmas nas duas obras Heacutercules eacute violento tanto no Furens

como no Oetaeus Mas se no primeiro haacute um processo que desancadeia a ruiacutena do

protagonista que vai sendo levado pela ferocidade do seu caraacutecter e nem no momento

final em que se resigna com o permanecer vivo deixa de parte os seus iacutempetos no

segundo haacute uma gradaccedilatildeo ascendente que culmina no perfeito sapiens como podemos

ver a partir dos dois esquemas que se seguem

146

212 Da decadecircncia da uirtus fiacutesica de Heacutercules agrave elevaccedilatildeo agrave categoria de

sapiens

Hercules Furens - Da uirtus fiacutesica agrave decadecircncia de Heacutercules ndash uma nova

concepccedilatildeo de uirtus (moral)

bullChega vitorioso a Tebas (destruiccedilatildeo das barreiras entre a vida e a morte) - vv592-615

bullDescoberta da ameaccedila de Lico e consequente morte do tirano - vv 629-640895-899

bullPrimeiros sintomas de perturbaccedilatildeo - vv 939-952bullLoucura do heroacutei e consequente morte da famiacutelia heraclida - vv 955-1038

bullHeacutercules desmaia exausto depois da chacina e no momento em que Anfitriatildeose preparava para ser viacutetima voluntaacuteria do filho - vv 1039-1049

bullAdormecimento fiacutesico e psicoloacutegico do Alcida - vv 1050-1093

bull Acorda para uma realidade que natildeo compreende imediatamente mas de quevai tendo percepccedilatildeo e reconhecendo por meio de interrogaccedilotildees retoacutericas - vv1138-1159a

bullReconhece os filhos e a mulher toma consciecircncia de que o autor do scelus quetanto procurava eacute ele proacuteprio - vv 1159b-1200

bull Procura natildeo isento de paixotildees eg ira uma forma de punir o seu scelus Vecircno suiciacutedio um modo adequado para pocircr termo agrave vida - vv 1202-1218

bullNatildeo aceita qualquer argumento de Anfitriatildeo ou de Teseu natildeo moderando o seuestado passional - vv 1240-1245

bull Vecirc-se obrigado por Anfitriatildeo a continuar a viver sob a ameaccedila de umanova morte a de Anfitriatildeo ficando Heacutercules responsaacutevel por mais essecrime Apenas esta ameaccedila trava o heroacutei que aceita este novo trabalhoviver depois de cometer filiciacutedio e uxoriciacutedio - 1316-1319a

147

Hercules Oetaeus ndash da ira a sapiens

O sentido que atribuiacutemos agraves setas de esquema visam clarificar a descida contiacutenua

do heroacutei no Hercules Furens que estagna as emoccedilotildees mas natildeo por completo Jaacute no

Hercules Oetaeus podemos verificar que haacute uma gradaccedilatildeo igualmente descendente que

representa tal como no Furens a decadecircncia dos valores do heroacutei porque movido por

sentimentos passionais Contudo nesta trageacutedia daacute-se a jaacute comentada mudanccedila que

ocorre no momento do reconhecimento da verdadeira causa da dor fiacutesica levando a uma

transformaccedilatildeo completa do estado psicoloacutegico do protagonista que passa de lamentoso

bullMonoacutelogo de Heacutercules em que pede com insistecircncia a Juacutepiter que lhe concedaum lugar nas moradas celestes - vv 1-98

bullRecebe a tuacutenica embebida no sangue de Nesso que lhe vai corroendo a pele emuacutesculos - vv 786-805

bullMata Licas apenas com o seu olhar terriacutevel e desfaz-se do corpo com crueldade -vv 810-822

bullTenta arrancar a tuacutenica mas como ela estaacute colada ao corpo ao tirar pedaccedilos daveste a esta vecircm agarrados pedaccedilos da sua proacutepria carne Nem a aacutegua acalma asdores que o sangue do centauro provoca nos membra de Heacutercules - vv 825-835

bullPretende vingar-se do corpo de Dejanira mesmo jaacute exacircnime porque desconhecea verdadeira natureza dos faacutermacos que devoram o seu corpo - vv 1461-1463

bullDescobre a natureza dos filtros que percorrem os seus membra e reconheceo seu destino ao recordar uns antigos oraacuteculos que profetizaram o seuuacuteltimo momento Sabe que desse dia natildeo passaraacute aceitando a morte com aimpassibilidade estoacuteica - vv 1472-1487

bull A forma como o heroacutei morre na pira faz dele um modelo estoacuteico a seguir vv1609-1755

bull Heacutercules entra nas moradas celestes porque lhe foi reconhecido o seu valor -vv 1963-1976

148

a destemido e enfrenta o seu novo trabalho com a impassibilidade proacutepria de um

estoacuteico

22 Hercules Furens e Hercules Oetaeus ndash o suiciacutedio

No terceiro capiacutetulo vimos que tal como em Heracles o heroacutei considera a

possibilidade de se suicidar como forma de purificar a terra da sua mancha monstruosa

(o filiciacutedio e o uxoriciacutedio) Neste primeiro momento poreacutem eacute-lhe impossiacutevel a escolha

de morrer pela necessidade que os outros tecircm dele (caso de Anfitriatildeo) e por estar ainda

dominado pelas suas proacuteprias paixotildees Como explica Cristina Pimentel

O suiciacutedio nestas circunstacircncias seria o resultado da ira contra si mesmo e do tumultus em que se encontra seria consequecircncia de um furor que natildeo o abandonou () Na perspectiva estoacuteica poreacutem as adversidades da vida por exemplo a perda de quem amamos natildeo justificam a morte Todo esse sofrimento faz parte da vida como uma prova que deus destina aos que mais quer aos que mais ama37

Cumpre entatildeo a Heacutercules nas palavras de Anfitriatildeo (Nunc Hercule opus est

perfer hanc molem mali ndash v 1239) e nas de Teseu38 continuar a viver aceitando esse

desafio com a mesma forccedila que teve para enfrentar os trabalhos

Recordando o acto V no momento em que desperta do sono da loucura

acordando para a realidade cruel o heroacutei dominado pela ira procura um caminho

penoso para expiar o seu scelus Na enumeraccedilatildeo de escolhas possiacuteveis que possam

castigaacute-lo pelas suas acccedilotildees demonstra um espiacuterito revoltado contra si mesmo e

desesperado por natildeo encontrar a melhor opccedilatildeo E se o impulso o leva a desejar queimar

as suas armas (porque foram os instrumentos de Juno) ou a indagar um caminho que o

leve agrave morte tal como descobrira um para entrar e sair dos Inferni tais decisotildees devem-

-se a ter perdido tudo a razatildeo as armas a gloacuteria a mulher os filhos e as matildeos (vv

1259-1261 cuncta iam amisi bona mentem arma famam coniugem natos manus

etiam furorem)

37 Maria Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo 39 38 Surge et aduersa impetu perfringe solito nunc tuum nulli imparem animum malo resume nunc magna tibi uirtute agendum est Herculem irasci ueta (vv 1274-1277)

149

Heacutercules reconhece que excedeu todos os limites e deve pagar por esse excesso

uma vez que a tudo levou a perdiccedilatildeo Apesar de reconhecer o seu erro natildeo consegue

moderar o seu espiacuterito (e por isso permanece no error) de tal forma que natildeo aceita

qualquer dos argumentos apresentados por Anfitriatildeo39 nem os de Teseu que o

aconselha a recuperar o seu antigo valor (vv 1276-1277) Heacutercules natildeo descansa

enquanto natildeo se vingar em si proacuteprio de tal forma que em resposta ao amigo tece

consideraccedilotildees sobre si mesmo que satildeo significativamente negativas Ele eacute monstrum

impium saeuumque et immite ac ferum (v 1280)40 e por isso como ele fez com todos

os monstros com os quais se defrontou tem de ser destruiacutedo conare aggredi ingens

opus labore bis seno amplius (vv 1281-128241)

Soacute freia as suas emoccedilotildees ante a ameaccedila paterna de que se Heacutercules se matar

seraacute autor de uma nova morte agora voluntaacuteria e consciente a de Anfitriatildeo Eacute sob esta

ameaccedila que Heacutercules opta por viver considerando essa decisatildeo como uma nova tarefa e

uacuteltima no sentido em que eacute mais exigente succumbe uirtus perfer imperium patris (v

1315) contudo natildeo deixa de vacilar nesta nova empresa porque o scelus eacute para o

Alcida de tal modo hediondo que o Sol prefere olhar para Ceacuterbero do que para o heroacutei

Teseu fecha a acccedilatildeo dramaacutetica integrando o Alcida numa nova comunidade e

purificando-o da sua maacutecula

O mesmo natildeo acontece em Hercules Oetaeus Heacutercules volta a apontar como

soluccedilatildeo o suiciacutedio Uma vez liberto de tudo e de todos Heacutercules acolhe a morte sereno

Eacute neste tracircmite longo e doloroso da sua vida que se vai aproximando do ser estoacuteico

livre dos seus lamentos e choro anteriores (porque desconhecia o seu destino) vemos

um outro Alcida que calcula friamente a melhor maneira de morrer de forma a que seja

a mais digna do seu valor Nunc mors legatur clara memoranda inclita me digna

prorsus nobilem hunc faciam diem (vv 1481-1482) Consegue vencer todas as suas

paixotildees pelas quais se deixou dominar e aceita impassiacutevel o seu destino Jaacute como

sapiens Heacutercules faz uns uacuteltimos preparativos antes do momento final orienta os que

estatildeo proacuteximos indicando-lhes que devem cortar as aacutervores do Eta para acolher o seu 39 Como sugere Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo 38-39 ldquoNatildeo serve como justificaccedilatildeo ou desculpa que [Heacutercules] tenha cometido tais crimes sob o efeito do furor que Juno lhe enviou O heroacutei lembra ao pai que saepe error ingens sceleris obtinuit locum (v 1238)rdquo O heroacutei tem plena consciecircncia de que avaliou mal a sua uirtus resultando desta maacute avaliaccedilatildeo o scelus (vv 1237-1238) 40 Notem-se os adjectivos em cadecircncia reforccedilados pela assonacircncia em nasal e pelo polissiacutendeto que engrandecem o substantivo monstrum caracteriacutestica inerente do Alcida 41 Vejam-se tambeacutem os versos seguintes Neles se observa uma sucessatildeo de imagens crueacuteis que se traduzem numa procura desesperada do protagonista de eliminar a sua existecircncia

150

corpo a Hilo daacute instruccedilotildees para que receba Iacuteole como sua esposa como forma de

compensaacute-la por ter ficado privada da famiacutelia e do seu reino e por ter-lhe reduzido a

vida agrave escravidatildeo agrave sua matildee aconselha-a a evitar lamentar a morte do filho pelo valor

de Heacutercules (vv 1681-1698) por outra parte oferece o seu arco e aljavas a Filoctetes

como recompensa por deitar a uacuteltima tocha que vai consumir o corpo do heroacutei (vv

1648-1659)

A morte de Heacutercules eacute descrita por Filoctetes Este revela que o Alcida

conquistou tudo inclusive o fogo o uacutenico elemento natural que o protagonista ainda

natildeo tinha defrontado (vencera os mares a terra e tudo o que ela esconde ndash os Inferni o

ar restava-lhe o fogo) Esse iam flammas nihil ostendit ille (vv 1610-1611)

Heacutercules acolheu o fogo com tranquilidade e no momento em que Alcmena

desesperada por ver o filho sobre a pira desnuda o peito entoando lamentos e gritando

Heacutercules aconselha-a a refrear o acircnimo42 e a poupar as laacutegrimas para que a sua morte

seja valorosa (vv 1668-1679) O Alcida torna-se exemplo de como se pode enfrentar a

morte acolhendo-a quis sic triumphas laetus in curru stetit uictor (vv 1683-1684) A

metaacutefora dos aurigas que no seu carro visam chegar agrave vitoacuteria simboliza a imagem do

guerreiro que chega agrave meta final Ningueacutem ousou profanar a sua gloacuteria total mas todos

que assistiram agrave morte do protagonista natildeo ousaram derramar uma laacutegrima (vv 1685-

1687)

Eacute o proacuteprio heroacutei quem encoraja os que o acompanharam ateacute ao monte Eta a

lanccedilarem as suas tochas sobre a pira para que o fogo possa consumi-lo Jaacute o acircnimo

valente do Alcida ansiava por abandonar o deacutebil corpo desgastado pela dor (vv 1717-

1726) Quando o fogo hesitante receia enlanccedilar-se sobre o corpo ferido o protagonista

estimula-o perseguindo-o (vv 1728-1730) Como nota Segurado e Campos ldquoO fogo

vem aqui encarado quase como se de um ser vivo se tratasse ele foge diante de

42 Seacuteneca escreveu trecircs Consolationes uma dirigida a Poliacutebio outra a Heacutelvia matildee do filoacutesofo e outra a Maacutercia Nessas trecircs obras Seacuteneca procura aconselhar o seu destinataacuterio a refrear o seu acircnimo pela perda de um familiar (no caso de Poliacutebio do irmatildeo no de Heacutelvia a ausecircncia do filho Seacuteneca no exiacutelio no caso de Maacutercia de um filho) No que respeita a Consolatio ad Marciam 482-3 exorta Maacutercia a abandonar o seu lamento contiacutenuo e excessivo Manet quidem tibi Marcia etiamnunc ingens tristitia et iam uidetur duxisse callum non illa concitata qualis initio fuit sed pertinax et obstinata tamen hanc quoque tibi aetas minutatim eximet quotiens aliud egeris animus relaxabitur Nunc te ipsa custodis multum autem interest utrum tibi permittas maerere an imperes Quanto magis hoc morum tuorum elegantiae conuenit finem luctus potius facere quam expectare nec illum opperiri diem quo te inuita dolor desinat ipsa illi renuntia

151

Heacutercules como que tem medo do heroacutei mas este obriga-o a consumi-lo e vence-o pela

coragem com que o suportardquo 43

Enquanto as chamas destruiacuteam o seu corpo Heacutercules permaneceu immotus

inconcussus (v 1741) Mais do que isso in neutrum latus correpta torquens membra

adhortatur monet gerit aliquid ardens (vv 1741-1743)

Toda a tranquilidade de espiacuterito que demonstra ao aceitar a morte sem a

questionar traduz-se em tanta maiestas uiro (v 1746) Filoctetes natildeo estranha a

coragem revelada pelo Alcida que nem sequer os olhos fecha quando o fogo atinge a

sua face e a devora (vv 1753-1755) E por isso exclama Quo nemo uitam (v 1609) Foi

laetus que Heacutercules acolheu o fogo (v 1609)

A forma como Heacutercules se liberta do seu corpo eacute claramente um modelo que

Seacuteneca sugere Para o filoacutesofo a alma deve abandonar o corpo quando este morre e natildeo

sair abruptamente mas suavemente desprender-se dele

Ab hoc modo aequo animo exit modo magno prosilit nec quis deinde relicti eius futurus sit exitus quaerit sed ut ex barba capilloque tonsa neglegimus ita ille diuinus animus egressurus hominem quo receptaculum suum conferatur ignis illud excludat an terra contegat an ferae distrahant non magis ad se iudicat pertinere quam secundas ad editum infantem44

Pela maneira como morreu completamente indiferente agrave dor Heacutercules alcanccedilou

a aeterna uirtus (v 1835) que Filoctetes louva porque o heroacutei conseguiu alcanccedilar as

moradas celestes (vv 1942-1943) A parte mortal fora consumida pelo fogo restando a

divina (v 1968) que ascendeu agraves moradas celestes Segundo Cristina Pimentel ldquoE eacute

sem duacutevida por isso e natildeo porque o mito assim obriga que Heacutercules eacute recebido entre os

deuses e que Seacuteneca termina a peccedila lembrando que a verdadeira imortalidade eacute a

memoacuteria do que de bem fizemos em vida que eacute o exemplo que aos outros podemos

deixar da nossa uirtus da nossa coragemrdquo45 Na verdade quando caminha para a morte

Heacutercules julga que regressaraacute ao mundo inferior (vv 1512-1517) e eacute soacute no momento

em que dirige as suas uacuteltimas preces a Juacutepiter que volta a pedir-lhe que lhe permita 43 Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos ldquoO Simbolismo do Fogo nas Trageacutedias de Seacutenecardquo 196 44 Seacuteneca Ad Lucilium Epistolae Morales 9234 lsquoA alma desprende-se dele ora com serenidade ora de firme propoacutesito ndash busca a sua saiacuteda sem se importar com a sorte dessa pobre coisa que para aiacute fica Noacutes natildeo ligamos importacircncia aos pecirclos da barba ou aos cabelos que acabaacutemos de cortar do mesmo modo agrave nossa alma divina ao preparar-se para abandonar o corpo de nada importa a sorte dada ao invoacutelucro ndash se o fogo o consome se a terra o cobre ou as feras o despedaccedilam para ela isso tem tanta importacircncia como para o receacutem-nascido a placentarsquo 45 Maria Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo 43

152

entrar nas moradas paternas (vv 1695-1715) Soacute nos versos que antecedem o fecho da

trageacutedia ficamos a saber que Heacutercules ascendeu agraves moradas celestes quando o filho

consola a matildee

Non me gementis stagna Cocyti tenent nec puppis umbras furua transuexit meas iam parce mater questibus manes semel umbrasque uidi quidquid in nobis tui mortale fuerat ignis euictum tulit paterna caelo pars data est flammis tua proinde planctus pone quos nato paret genetrix inerti luctus in turpes eat uirtus in astra tendit in mortem timor (vv 1963-1971)

O heroacutei aconselha a matildee a refrear o seu desespero uma vez que ele venceu a

morte e agora habita junto de Juacutepiter Na Consolatio ad Marciam Seacuteneca exorta Maacutercia

a libertar-se da dor que a consome porque a dor e a agonia constantes natildeo ressuscitaratildeo

os mortos

si fletibus fata uincuntur conferamus eat omnis inter luctus dies noctem sine somno tristitia consumat ingerantur lacerato pectori manus et in ipsam faciem impetus fiat atque omni se genere saeuitiae profecturus maeror exerceat Sed si nullis planctibus defuncta reuocantur si sors inmota et in aeternum fixa nulla miseria mutatur et mors tenuit quidquid abstulit desinat dolor qui perit Quare regamur nec nos ista uis transuersos auferat Turpis est nauigii rector cui gubernacula fluctus eripuit qui fluuitantia uela deseruit permisit tempestati ratem at ille uel in naufragio laudandus quem obruit mare clauum tenentem et obnixum46

A correctio introduzida pela adversativa sed permite acentuar a ideia de que

Maacutercia desperdiccedila a sua vida a lamentar-se desnecessariamente As suas laacutegrimas de

nada lhe poderatildeo valer jaacute que o destino eacute imutaacutevel Eacute de notar ainda as semelhanccedilas

entre os dois textos o recurso aos mesmos vocaacutebulos (luctus turpis eo ndash a forma verbal

estaacute em ambos os casos na terceira pessoa do singular do conjuntivo presente) assim

como a proacutepria semacircntica dos dois passos ndash eacute inuacutetil consumir a vida num pranto

incessante ndash o que permite criar um certo viacutenculo entre esta consolatio e a trageacutedia

46 Seacuteneca Consolatio ad Marciam 662-3

153

Em siacutentese o modo como Filoctetes vai descrevendo a morte do heroacutei sobre a

pira alude a aspectos estoacuteicos em particular pela forma como enfrenta a consumaccedilatildeo do

corpo pelo fogo A palavra ignis assume nesta trageacutedia exemplar importacircncia uma vez

que eacute por meio do fogo que Heacutercules se purifica queimando tudo o que constituiacutea sua

mortalidade e impureza O fogo assume neste contexto particular a funccedilatildeo de elemento

purificador

154

CONCLUSAtildeO

Perhaps Lucius Annaeus Seneca has suffered more than any other ancient figure for utilizing monstrosities and grotesqueries in all of his plays He has been considered unClassical inartistic morbid abominable and mentally unbalanced for creating the kind of drama that he does Only very recently have critics commenced to put aside the habit of treating him as a tasteless aberration or a pathetically incompetent imitator of the Greek tragic tradition and instead attempted to accept his plays and to describe them for what they are1

Com este estudo procuraacutemos demonstrar que a trageacutedia Hercules Furens de

Seacuteneca natildeo eacute uma mera imitaccedilatildeo ou adaptaccedilatildeo do seu modelo o Heracles de Euriacutepides

haacute uma recriaccedilatildeo na forma como as personagens satildeo representadas No decorrer da

anaacutelise ao compararmos cada uma das figuras fomos encontrando mais diferenccedilas do

que semelhanccedilas Podemos mesmo afirmar que satildeo personagens diferentes apenas tecircm

o mesmo nome o Anfitriatildeo de Heracles reconhecido pela sua sensatez e prudecircncia

opotildee-se ao Anfitriatildeo de Seacuteneca que se deixa levar pelo metus pela aegritudo e a spes o

pessimismo da Meacutegara euripidiana contrasta com os sentimentos de metus timor e

odium da Meacutegara de Hercules Furens Lico o διώλλυς e o tirano euripidiano opotildee-se agrave

personagem de Seacuteneca que eacute implacaacutevel e natildeo cede a nenhum pedido (Lico eacute saeuus e

tumidus) o Teseu da peccedila Heracles eacute o modelo da amizade e de governador de Atenas

a cidade da democracia em Seacuteneca eacute-lhe reservada a funccedilatildeo de narrador eacutepico e de

personagem-prolongamento que dissuade Heacutercules de se suicidar Iacuteris e Lissa natildeo

aparecem em Seacuteneca mas satildeo ldquosubstituiacutedasrdquo por Juno que representa a nouerca por um

lado e uma forccedila exterior e destruidora por outro ndash vem armada de odium ira dolor

funcionando como duplo de Heacutercules para o destruir

No caso do protagonista a forma como eacute focada a ambivalecircncia do caraacutecter do

heroacutei em cada peccedila eacute igualmente diacutespar A ἀρετή que caracteriza Heacuteracles eacute posta em

causa quando o heroacutei eacute submetido pela loucura o protagonista mata crianccedilas e uma

mulher seres indefesos julgando que se vingava da famiacutelia de Euristeu A βία eacute aqui

notoacuteria e reprovaacutevel

Heacutercules eacute mais confiante na sua forccedila do que Heacuteracles o protagonista da

trageacutedia de Seacuteneca confia demasiado na sua uirtus Essa confianccedila eacute excessiva e

1 Anna Lydia Motto John R Clark ldquoSenecarsquos visionary dramardquo Classica 21 (1996) 157

155

conduz inevitavelmente agrave desgraccedila (186-187 201)2 De facto o protagonista natildeo tem

qualquer controlo sobre as suas emoccedilotildees eacute insaciaacutevel sanguinaacuterio deseja que Juno lhe

envie mais monstros para ele derrotar Nem no final da trageacutedia depois de ter

enlouquecido e massacrado a mulher e os filhos imolando-os como viacutetimas de um

sacrifiacutecio aos deuses nem mesmo assim consegue moderar o seu acircnimo Eacute tomado pela

ira e pela saeuitia que o conduz a um violento desejo de se suicidar Nada parece

demovecirc-lo suacuteplicas ou conselhos Apenas uma ameaccedila agrave sua uirtus o consegue travar

quando Anfitriatildeo o intimida afirmando que iraacute morrer se Heacutercules natildeo puser um freio ao

seu iacutempeto suicida ndash a morte do pai do heroacutei seria mais um scelus com a diferenccedila de

que agora seria voluntaacuterio Nessa medida o Alcida eacute obrigado a permanecer vivo e a

resistir agrave dor

A descriccedilatildeo da loucura eacute outro toacutepico divergente nas duas peccedilas Lissa conta a

Iacuteris os primeiros sintomas da demecircncia de Heacuteracles e o Mensageiro completa narrando

as manifestaccedilotildees fiacutesicas e psiacutequicas da loucura e as consequecircncias que decorreram da

perturbaccedilatildeo mental Em Hercules Furens ao descrever a loucura do heroacutei e os seus

efeitos o filoacutesofo permite que o espectadorleitor verifique ldquoao vivordquo a relaccedilatildeo

psicossomaacutetica entre as paixotildees (fisionomia e atitude fiacutesica) Por esse motivo o filoacutesofo

natildeo necessita de um Mensageiro Tudo se passa frente aos olhos do espectador agrave

excepccedilatildeo das mortes para que se veja ilustrado o comportamento de um ser humano

dominado pelas paixotildees e as consequecircncias que daiacute resultam

Estas diferenccedilas explicam-se mercecirc de objectivos diversos que moviam cada um

dos tragedioacutegrafos Em Euriacutepides os temas que estatildeo subjacentes na trageacutedia Heracles

satildeo a ausecircncia de amigos vs amizade a loucura a fragilidade humana o destino o

suiciacutedio a forccedila fiacutesica vs a forccedila moral Teseu critica o desejo de Heacuteracles de se

suicidar Para o soberano de Atenas o acto eacute irreflectido Jacqueline de Romilly sugere

que

Heracles could not act like just anybody (1248 ἐπιτυχόντος ἀνθρώπου lsquoa chance-met fellowrsquo) he had to reject a suicide which did not befit a man who had endured so many trials (1250 πολλὰ δὴ τλάς lsquohaving endured muchrsquo) and rendered so many services to

2 Vide Norman T Pratt ldquoThe Stoic Base of Senecan Dramardquo Transactions and Proceedings of the American Philological Association 79 (1948) 8

156

mortals (1252 εὐεργέτης βροτοῖσι lsquoa benefactor for mortalsrsquo) This is making understood that the true hero does not commit suicide3

Surge a Heacuteracles um novo desafio aceitar o seu destino O heroacutei entende que

teraacute que suportar a adversidade evitando que os seus inimigos o considerem cobarde

(vv 1349-1357)4 A forccedila moral ganha expressatildeo no final da trageacutedia por oposiccedilatildeo agrave

forccedila fiacutesica Como nota Andreacute Rivier ldquoLrsquoinflexibiliteacute du heacuteros naicirct de sa force drsquoacircmerdquo5

Em Seacuteneca as trageacutedias tecircm uma funccedilatildeo pareneacutetica Aplicando as palavras de

Francesco Giancotti fabula docet6 Para esse propoacutesito o filoacutesofo toma as personagens

como exempla ou παραδείγματα Os caracteres servem de ilustraccedilatildeo de uma teoria

moral As descriccedilotildees dos vaacuterios uitia permitem ao filoacutesofo reencaminhar o homem para

a procura da uirtus Seacuteneca faz pois do binoacutemio furor mens bona o eixo axial das suas

trageacutedias Francesco Giancotti explica ldquoLrsquoantitesi fra furor passionale e mens bona ()

egrave il leitmotiv lrsquoidea-madre del corpus tragico senechiano La mens bona e il furor

passionale costituiscono rispettivamente il fondamentale valore e il fondamentale

disvalore della concezione immanente alle tragedie di Seacutenecardquo7

Todas as personagens de Seacuteneca satildeo movidas por uma ou vaacuterias passiones O

Heacutercules de Hercules Furens entra no caminho do uitium porque

a) exulta e engrandece-se com os trabalhos que Juno lhe envia ndash um sapiens

permaneceria indiferente

b) entrega-se a tarefas fuacuteteis acabando por natildeo ter tempo nem dar qualquer

atenccedilatildeo aos que efectivamente precisam da sua ajuda do seu apoio (vv 209-213)

c) natildeo sabe fazer um bom uso da forccedila extraordinaacuteria que possui utilizando-a

indiferentemente para bons e maus fins

d) procura natildeo uma via para a uirtus mas para a gloacuteria pessoal

e) consegue vencer quase todos os obstaacuteculos mas eacute vencido pela morte de

Meacutegara e dos filhos natildeo conseguindo ser impassiacutevel agrave dor ndash os estoacuteicos encaram os

males que o Destino envia como uma forma de testar as suas capacidades8

3 Jacqueline de Romilly ldquoThe Rejection of Suicide in Heraclesrdquo in Judith Mossman (ed) Euripides (Oxford Oxford University Press 2003) 290 4 Para T L B Webster The Tragedies of Euripides (Londres Methuen 1967) 192 o tema fundamental que Euriacutepides faz representar nesta trageacutedia eacute a loucura e recuperaccedilatildeo de Heacuteracles depois de ter enlouquecido 5 Andreacute Rivier Essai sur le Tragique drsquoEuripide (Paris Diffusion du Boccard 1975) 106 6 Francesco Giancotti Saggio sulle Tragedie di Seneca 52 7 Francesco Giancotti Saggio sulle Tragedie di Seneca 55 8 Segundo Norman Pratt ldquoThe Stoic Base of Senecan Dramardquo Transactions and Proceedings of the American Philological Association 79 (1948) 9 ldquoThe De Providentia presents the question why good

157

Satildeo ainda sucessivos os seus errores erro na concepccedilatildeo da sua uirtus erro de

avaliaccedilatildeo quando julga que estaacute a matar os filhos de Lico e quando pensa que estaacute a

matar Juno desde o primeiro momento em que entra em cena ele mostra que natildeo

procura um equiliacutebrio emocional mas vai decaindo sucessivamente culminando na

loucura

Em Hercules Oetaeus haacute uma evoluccedilatildeo da personagem No decorrer da acccedilatildeo

desta trageacutedia Heacutercules vai traccedilando o caminho para a virtude no modo como enfrenta a

dor Quando descobre que o Destino marcou para esse dia a sua morte aceita-o

inquestionavelmente Nesse sentido o heroacutei tornou-se no ideal do sapiens ao ver o seu

corpo a ser consumido pelas chamas mantendo a coragem a serenidade a firmeza e a

impassibilidade natildeo fechando os olhos quando as chamas lhe devoravam a face

Por fim pretendemos tornar evidente que as trageacutedias do filoacutesofo tecircm idecircntico

escopo ao das obras em prosa Foi com esse propoacutesito que estabelecemos paralelos entre

alguns exemplos das falas do Coro e passos das outras obras do autor Tivemos

oportunidade de verificar que o vocabulaacuterio e os recursos estiliacutesticos usados satildeo os

mesmos Como afirma Norman Pratt

Such then is the relationship between the essays and the plays analyzed as groundwork for continued study Stoicism shaped the nature of this drama both in superficial and in fundamental ways The influence of philosophy is much deeper than any simple correspondence between the themes of the two genres Stoic dogma concerning evil and the conflict between reason and passion lies beneath the plays in various aspects including choral passages concept of character introspection and tone to a degree which amounts to a distinctive concept of the tragic9

Enquanto as obras em prosa satildeo essencialmente uma reflexatildeo teoacuterica sobre o

Bem e o Mal e procurem desviar o seu leitor do caminho do uitium as trageacutedias satildeo a

ldquopraacuteticardquo dos males que podem atingir o Homem Ao socorrer-se de imagens violentas

de cracircnios a serem esmagados de sangue que mancha as paredes ou que eacute espalhado

pelo eacuteter Seacuteneca permite que o espectadorleitor contemple ou mesmo visualize (por

meio dos recursos estiliacutesticos como a anaacutefora o quiasmo as construccedilotildees paraleliacutesticas

uariatio sententiae iteraccedilotildees) os malefiacutecios dos affectus recordando na voz do Coro men are allowed to suffer and the conventional answer that misfortune is intended to test and develop mans spirit (16) Adversity is merely discipline for virtue pro ipsis esse quibus eveniunt ista quae horremus ac tremimus (32) From this it follows that evil is to be welcomed praebendi fortunae sumus ut contra illam ab ipsa duremur (412)rdquo 9 Norman Pratt ldquoThe Stoic Base of Senecan Dramardquo Transactions and Proceedings of the American Philological Association 79 (1948) 10-11

158

que eacute preferiacutevel viver em secura quies e tranquillitas animi evitando uma vida

desregrada ou movida pela esperanccedila

159

BIBLIOGRAFIA

1 Ediccedilotildees Comentaacuterios e Traduccedilotildees de Euriacutepides e de Seacuteneca

11 Euriacutepides

Euripides Fabulae I-III ed James Diggle (Oxford Oxford University Press

1984-1994)

Euripidesrsquo Heracles intr e comentaacuterio Godfrey W Bond (2ordf Ediccedilatildeo Oxford

Clarendon Press 1988)

Euripides Heracles intr trad e comentaacuterio Shirley Barlow (Warminster Aris

and Philips 1996)

EURIPIDE Theacuteacirctre III trad Henri Berguin Georges Duclos (Paris Garnier

1955)

EURIPIDE Trageacutedies Complegravetes I-II trad Marie Delcourt-Curvers (Paris

Gallimard 2006)

EURIPIDE Heacuteraclegraves ndash Les Suppliants ndash Ion III trad Leacuteon Parmentier Henri

Gregoire (Paris Les Belles Lettres 1976)

EURIPIDES Helena trad Joseacute Ribeiro Ferreira (Coimbra Festival de Teatro de

Tema Claacutessico 2005)

EURIPIDES Iacuteon trad Frederico Lourenccedilo (Lisboa Ediccedilotildees Colibri 2005 2ordf

tiragem)

EURIPIDES Medeia trad Maria Helena da Rocha Pereira (3ordf ed Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2005)

EURIPIDES Orestes trad Augusta Fernanda de Oliveira e Silva (Coimbra

Instituto Nacional de Investigaccedilatildeo Cientiacutefica 1982)

12 Seacuteneca

a) Trageacutedias

L Annaei Senecae Hercules Furens Troades Phoenissae Medea Phaedra

recensuit Ioannes Viansino (Torino Paravia 1968)

160

L Annaei Senecae Oedipus Agamemnon Thyestes Hercules Oetaeus (incerti

poetae) Octavia recensuit Ioannes Viansino (Torino Paravia 1965)

Senecarsquos Hercules Furens a Critical Text with Introduction and Commentary

ed John G Fitch (Ithaca and London Cornell University Press 1987)

SENECA Tragedies I-II ed e trad John G Fitch (Cambridge Massachusetts

Londres Harvard University Press 2002-2004)

SENECA Tragedies I-II ed Frank Justus Miller (Londres Cambridge

Massachusetts Harvard University Press 1917 reimpr 1968)

SENECA Lucio Anneo Tragedie trad G C Giardina Rita Cuccioli Melloni

(Torino Editrice Torinese 1987)

SEacuteNEgraveQUE Trageacutedies I-II ed e trad Leacuteon Herrman (Paris Les Belles Lettres

1961-1968)

SEacuteNEgraveQUE Theacuteacirctre Complet II ed e trad Florence Dupont (Paris Imprimerie

Nationale 1992)

SENECA Fedra trad Ana Alexandra Alves de Sousa (Lisboa Ediccedilotildees 70

2003)

SENECA Tiestes trad Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos (sl Editorial Verbo

1996)

b) obra em prosa

L Annaei Senecae Ad Lucilium Epistulae Morales recognouit et adnotationes

critica instruxit L D Reynolds I-II (Oxford Oxford University Press 1965) Seacuteneca

Cartas a Luciacutelio trad Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos (Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste

Gulbenkian 1991)

L Annaei Senecae Dialogorum Libri Duodecim recognouit breuique

adnotationes critica instruxit L D Reynolds (Oxford Oxford University Press 1977)

SENEQUE Dialogues I De Ira ed e trad Abel Bourgery (Paris Les Belles

Lettres 1951)

SENEQUE Dialogues III De la Cleacutemence ed e trad Franccedilois Preacutechac (Paris

Les Belles Lettres 1961)

161

SENEQUE Dialogues IV De la Providence De la Constance du Sage De la

Tranquilliteacute de lrsquoAcircme De lrsquoOisiveteacute ed e trad Reneacute Waltz (Paris Les Belles Lettres

1965)

SENEQUE Dialogues II De la Vie Heureuse De la Briegraveveteacute de la Vie ed e trad

Abel Bourgery (Paris Les Belles Lettres 1955)

SENEQUE Questions Naturelles I-II ed e trad Paul Oltramare (Paris Les

Belles Lettres 1929)

SENECA Moral Essays I-II trad John W Basore (Cambridge Massachusetts

Harvard University Press 1928-1932 reimpr 1963 1970)

13 Outros autores

APOLLODORUS The Library I-II ed e trad James George Frazer (Cambridge

Massachusetts Harvard University Press 1961)

CICERO De Fato Paradoxa Stoicorum De Partitione Oratoria trad Harris

Rackham M A (Cambridge Massachusetts Harvard University Press 1942 reimpr

1948)

CICERO De Natura Deorum Academica trad Harris Rackham M A

(Cambridge Massachusetts Harvard University Press 1933 reimpr 1972)

CICERO De Optimo Genere Oratorum Topica trad H M Hubbell (Cambridge

Massachusetts Harvard University Press 1968)

CICERO De Senectute De Amicitia De Diuinatione trad William Armistead

Falconer (Cambridge Massachusetts Harvard University Press 1923 reimpr 1971)

CICERON Tusculanes Tome II (III-V) ed Georges Fohlen trad Jules Humbert

(Paris Les Belles Lettres 1931)

DIOGENES LAERTIUS Lives of Eminent Philosophers II trad Robert Drew

Hicks (Cambridge Massachusetts Harvard University Press 1937 reimpr 1991)

DIOGENES LAERCIO Vida de los Filoacutesofos Ilustres trad Carlos Garciacutea Gual

(Madrid Alianza Editorial 2007 reimpr 2008)

EacuteSQUILO Os Persas trad Manuel de Oliveira Pulqueacuterio (Lisboa Ediccedilotildees 70

1998)

162

Epictetus The Discourses as Reported by Arrian The Manual and Fragments

I-II trad William Abbott Oldfather (Cambridge Massachusetts Harvard University

Press 1925-1928 reimpr 1956-1959)

HOMERO Iliacuteada trad Frederico Lourenccedilo (Lisboa Livros Cotovia 2005)

Marcus Aurelius ed e trad Charles Reginald Haines (Cambridge

Massachusetts Londres Harvard University Press 1916 reimpr 2003) MARCO

AURELIO Pensamentos trad Joatildeo Maia (Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2008)

The Odes of Pindar including The Principal Fragments ed e trad Sir John

Sandys London Harvard University Press 1968

Ovide Les Meacutetamorphoses Tome II (VI-X) ed e trad Georges Lafaye (Paris

laquoLes Belles Lettresraquo 1955) Oviacutedio Metamorfoses trad Paulo Farmhouse Alberto

(Lisboa Livros Cotovia 2007)

SEXTUS EMPIRICUS Against the Physicists Against teh Ethicists trad Robert

Gregg Bury (Cambridge Massachusetts Harvard University Press 1953 reimpr

1968)

Sofistas Testemunhos e Fragmentos introd e trad Maria Joseacute Vaz Pinto Ana

Alexandra Alves de Sousa (Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2005)

SOacuteFOCLES Trageacutedias trad Maria Helena da Rocha Pereira et alii (Coimbra

Minerva 2003)

VERGIacuteLIO Eneida trad Luiacutes M G Cerqueira et alii (Lisboa Bertrand 2003)

2 Dicionaacuterios Concordacircncias

21 Dicionaacuterios e Concordacircncias

A Concordance to Euripides ed James T Allen Gabriel Italie (Groningen

Boumarsquos Boekhuis 1970)

BAILLY Anatole Dictionnaire Grec-Franccedilais (Paris Hachette 1999)

CHANTRAINE Pierre Dictionnaire eacutetymologique de la langue grecque Histoire

des mots (Paris Klincksieck 1999 1ordf ed 1968)

Dicionaacuterio de Latim-Portuguecircs (3ordf ed Porto Porto Editora 2008)

163

ERNOUT Alfred MEILLET Antoine Dictionnaire eacutetymologique de la langue

latine histoire des mots (4ordf ed Paris Klincksieck 1959 reimpr 2001)

GAFFIOT Feacutelix Le Grand Gaffiot Dictionnaire LatinndashFranccedilais (Paris

Hachette 2000)

LIDDELL Henry George SCOTT Robert A Greek-English Lexicon (9ordf ed

Oxford Oxford University Press 1995)

Lucius Annaeus Seneca Tragoediae Index verborum Releves Lexicaux et

Grammaticaux ed Joseph Denooz (Hildesheim Zuumlrich Georg Olms Verlag 1994)

GLARE Peter G W (ed) Oxford Latin Dictionary (Oxford Oxford University

Press 1982 reimpr 2006)

GONCcedilALVES Francisco da Luz Rebelo Vocabulaacuterio da Liacutengua Portuguesa

(Coimbra Coimbra Editora 1966)

GRIMAL Pierre Dicionaacuterio da Mitologia Grega e Romana (Algeacutes Difel 1999)

HORNBLOWER Simon e Antony Spawforth (eds) The Oxford Classical

Dictionary (3ordf ed Oxford Oxford University Press 1996 reimpr 2003)

The Oxford Dictionary of Classical Myth and Religion ed Simon Price Emily

Kearns (Oxford Oxford University Press 2003)

22 Outros

ANTUNES Padre Manuel sj Obra Completa Tomo I Theoria Cultura e

Civilizaccedilatildeo Volume I Cultura Claacutessica (Estudos) ed criacutetica coord Arnaldo do

Espiacuterito Santo (Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2007

BAYET J Histoire Politique et Psychologique de la Religion Romaine (Payot

Paris 1957)

BOARDMAN John GRIFFIN Jasper MURRAY Oswyn (eds) The Oxford History

of Roman World (Oxford Oxford University Press 1991 reimpr 2001)

BURKERT Walter Religiatildeo Grega na Eacutepoca Claacutessica e Arcaica trad M J

Simotildees Loureiro (Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1993)

DODDS E R The Greeks and the Irrational (Berkeley Los Angeles University

of California Press 1951)

EASTERLING P E The Cambridge Companion to Greek Tragedy (Cambridge

Cambridge University Press 1997)

164

GREGORY Justina A Companion to Greek Tragedy (Malden Blackwell 2005

reimpr 2008)

GRAF Fritz Greek Mythology an Introduction trad Thomas Marier (Baltimor

Londres Johns Hopkins University Press 1996)

LOURENCcedilO Frederico Greacutecia Revisitada (Lisboa Cotovia 2004)

MOSSEacute Claude SCHNAPP-GOURBEILLON Annie Siacutentese de Histoacuteria Grega

trad Carlos Carreto (Lisboa Ediccedilotildees Asa 1994)

PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de Histoacuteria da Cultura Claacutessica I

Cultura Grega (3ordf ed Lisboa Serviccedilo de Educaccedilatildeo e Bolsas da Fundaccedilatildeo Calouste

Gulbenkian 2002)

PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de Histoacuteria da Cultura Claacutessica II

Cultura Romana Lisboa Serviccedilo de Educaccedilatildeo e Bolsas da Fundaccedilatildeo Calouste

Gulbenkian 1998

RAWLINGS Louis BOWDEN Hugh Herakles and Hercules Exploring a Graeco-

-Roman Divinity (Wales The Classical Press of Wales 2005)

3 Estudos sobre o Estoicismo

BODSON Arthur La Morale Sociale des Derniers Stoiumlciens Seacutenegraveque Eacutepictegravete et

Marc Auregravele (Paris Les Belles Lettres 1967)

BRENNAN Tad The Stoic Life (Oxford Clarendon Press 2005)

BRUN Jean Les Stoiumlciens (Paris Presses Universitaires de France 1968) BRUN

Jean O Estoicismo trad Joatildeo Amado (Lisboa Ediccedilotildees 70 1986)

DURKHEIM Eacutemile Le Suicide Eacutetude de Sociologie (Paris Presses Universitaires

de France 1930 reimpr 1986)

HOVEN Reneacute Stoiumlcisme et Stoiumlciens Face au Problegraveme de lrsquoAu-Delagrave (Paris Les

Belles Lettres 1971)

INWOOD Brad (ed) The Cambridge Companion to the Stoics (Cambridge

Cambridge University Press 2003)

LOND Anthony A (ed) The Cambridge Companion to Early Greek Philosophy

(Cambridge Cambridge University Press 1999)

165

MOREAU Joseph Stoiumlcisme Eacutepicurisme Tradition Helleacutenique (Paris Librairie

Philosophique J Vrin 1979)

RIST J M Stoic Philosophy (Cambridge Cambridge University Press 1969)

ROBIN Leacuteon A Moral Antiga trad Joatildeo Morais Barbosa (Ediccedilotildees Despertar

sd)

RODIS-LEWIS Geneviegraveve La Morale Stoiumlcienne (Paris Presses Universitaires de

France 1970)

SEDLEY David (ed) The Cambridge Companion to Greek and Roman

Philosophy (Cambridge Cambridge University Press 2003)

SPANNEUT Michel Permanence du Stoiumlcisme de Zeacutenon agrave Malraux (Gembloux

Duculot 1973)

STRANGE Steven K ZUPKO Jack Stoicism Traditions and Transformations

(Cambridge Cambridge University Press 2004)

4 Teoria e Histoacuteria da Literatura

BALDICK Chris The Concise Oxford Dictionary of Literary Terms (Oxford

Oxford University Press 2004)

BOYLE Anthony J Roman Tragedy (Londres Nova Iorque Routledge 2006)

Cambridge History of Classical Literature ii Latin Literature ed Edward John

Kenney (Cambridge Cambridge University Press 1996)

CHAMOUX Franccedilois A Civilizaccedilatildeo Grega na Eacutepoca Arcaica e Claacutessica trad

Pedro Eloacutei Duarte (Lisboa Ediccedilotildees 70 2003)

CHEVALIER Jean GHEERBRANT Alain Dictionnaire des Symboles 4 Vols

(Paris Seghers 1973r)

CITRONI Mario CONSOLINO Franca Ela LABATE Mario e NARDUCCI

Emanuele Literatura de Roma Antiga trad Margarida Miranda e Isaiacuteas Hipoacutelito

(Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2006)

CONTE Gian Biagio Latin Literature A History trad Joseph B Solodow Don

P Fowler e Glen W Most (Baltimore Londres Johns Hopkins University Press 1999)

CUDDON J A The Penguin Dictionary of Literary Terms and Literary Theory

(Londres Penguin Books 1999)

166

FEDELI Paolo Storia Letteraria di Roma (Naacutepoles Fratelli Ferraro Editori

2002)

HOWATSON MC CHILVERS Ian The Concise Oxford Companion to Classical

Literature (Oxford Oxford University Press 1996)

KENNEDY George Alexander (ed) The Cambridge History of Literary

Criticism I Classical Criticism (Cambridge Cambridge University Press 1989

reimpr 1999)

KITTO Humphrey Davy Findley Trageacutedia Grega Estudo Literaacuterio II trad

Joseacute Manuel Coutinho e Castro (Coimbra Armeacutenio Amado 1990)

LAUSBERG Heinrich Elementos de Retoacuterica Literaacuteria trad Raul Rosado

Fernandes (5ordf ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2004)

LAUSBERG Heinrich Handbook of Literary Rhetoric A Foundation for Literary

Study trad Matthew T Bliss Annemiek Jansen e David E Orton (Leiden Brill 1998)

LESKY Albin Histoacuteria da Literatura Grega trad Manuel Losa (3ordf ed Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1995)

REIS Carlos LOPES Ana Cristina Macaacuterio Dicionaacuterio de Narratologia (7ordf ed

Coimbra Livraria Almedina 2000)

ROMILLY Jacqueline de A Trageacutedia Grega trad Leonor Santa Baacuterbara (Lisboa

Ediccedilotildees 70 1997)

SEGAL Erich Oxford Readings in Greek Tragedy (Oxford Oxford University

Press 1988)

SILK M S Tragedy and the Tragic Greek Theatre and Beyond (Oxford

Clarendon Press 1996)

SOMMERSTEIN Alan H Greek drama and dramatists (Londres Routledge

2002)

5 Estudos sobre Euriacutepides e a Trageacutedia Heracles

ADKINS Arthur W H ldquoBasic Greek Values in Euripidesrsquo Hecuba and Hercules

Furensrdquo Classical Quarterly 16 nordm 2 (1966) 193-219

BARLOW Shirley A ldquoStructure and Dramatic Realism in Euripidesrsquo Heraclesrdquo

Greece and Rome 29 nordm 2 (1982) 115-125

167

BARLOW Shirley A The Imagery of Euripides (3ordf ed Londres Bristol

Classical Press 2008)

CHALK H H O ᾿Αρετή and Βία in Euripidesrsquo Heraklesrdquo Journal of Hellenic

Studies 82 (1962) 7-18

COLLARD C Euripides (Oxford Oxford University Press 1981)

DIGGLE James Euripidea Collected Essays (Oxford Clarendon Press 1994)

DUNN Francis M Tragedyrsquos End Closure and Innovation in Euripidean

Drama (Oxford Oxford University Press 1996)

GRIFFITHS Emma Euripides Heracles (Londres Duckworth 2006)

JONG Irene J F de Narrative in Drama the Art of the Euripidean Messenger-

Speech (Leiden Nova Iorque E J Brill 1991)

KOVACS David Euripidea (Leiden Nova Iorque Koumlln E J Brill 1994)

LEFKOWITZ Mary R ldquolsquoImpietyrsquo and lsquoAtheismrsquo in Euripidesrsquo Dramasrdquo

Classical Quarterly 39 nordm 1 (1989) 70-82

LEFKOWITZ Mary R ldquoThe Poet as Hero Fifth-Century Autobiographycal and

Subsequent Biographical Fictionrdquo Classical Quarterly 28 nordm 2 (1978) 459-469

McAUSLAN Ian Peter Walcot The Greek Tragedy (Oxford Oxford University

Press 1993)

MICHELINI Ann Norris Euripides and Tragic Tradition (Londres The

University of Wisconsin Press 1987)

MOSSMAN Judith (ed) Euripides (Oxford Oxford University Press 2003)

MURRAY Gilbert Euripides and his Age (Londres Oxford University Press

1965)

PAPADOPOULOU Thalia ldquoHerakles and Hercules The Herorsquos Ambivalence in

Euripides and Senecardquo Mnemosyne 57 (2004) 257-283

PAPADOPOULOU Thalia Heracles and Euripidean Tragedy (Cambridge

Cambridge University Press 2005)

PARRY H The Second Stasimon of Euripidesrsquo Heracles (637-700) American

Journal of Philology 86 nordm 4 (1965) 363-374

PHOUTRIDES Aristides Evangelus ldquoThe Chorus of Euripidesrdquo Harvard Studies

in Classical Philology 27 (1916) pp 77-170

RIDGEWAY William ldquoEuripides in Macedonrdquo Classical Quarterly 20 nordm 1

(1926) 1-19

168

RIVIER Andreacute Essai sur le Tragique drsquoEuripide (Paris Diffusion du Boccard

1975)

SANTOS Carlos Ferreira Euriacutepides Heacuteracles Introduccedilatildeo Traduccedilatildeo e Notas

(Coimbra diss de Mestrado em Literaturas Claacutessicas apresentada agrave Faculdade de Letras

da Universidade de Coimbra 1996)

SILVA Maria de Faacutetima Sousa e Criacutetica Literaacuteria na Comeacutedia Grega Geacutenero

Dramaacutetico (Coimbra diss de Doutoramento em Literatura Grega apresentada agrave

Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 1983)

SILVA Maria de Faacutetima Sousa e Ensaios sobre Euriacutepides (Lisboa Cotovia

2005)

SCULLION Scott ldquoEuripides and Macedon or the Silence of the Frogsrdquo

Classical Quarterly 53 nordm 2 (2003) 389-400

WEBSTER Thomas Bertram Lonsdale The Tragedies of Euripides (Londres

Methuen 1967)

WHITMAN Cedric H Euripides and the Full Circle of Myth (Cambridge

Massachusetts Harvard University Press 1974)

WILLINK C W ldquoSleep after Labour in Euripidesrsquo Heraclesrdquo Classical

Quarterly 38 nordm 1 (1988) 86-97

5 Estudos sobre Seacuteneca e sobre as trageacutedias Hercules Furens e Hercules Oetaeus

AUVRAY Clara-Emmanuelle Folie et Douleur dans Hercule Furieux et Hercule

sur lrsquoOeta Recherches sur lrsquoExpression Estheacutetique de lrsquoAscegravese Stoiumlcienne chez Seacutenegraveque

(Frankfurt am Main Bern Nova Iorque Paris Lang 1989)

BOYLE Anthony J Tragic Seneca an Essay in the Theatrical Tradition

(Londres Nova Iorque Routledge 1997)

BORGO Antonella Lessico Parentale in Seneca Tragico (Naacutepoles Loffredo

Editore 1993)

DUARTE Ricardo De Mater a Monstrum o Abismo dos Affectus Estoacuteicos na

Medea de Seacuteneca (Lisboa diss de Mestrado em Estudos Claacutessicos Literatura Latina

2008)

169

DUPONT Florence Les Monstres de Seacutenegraveque (Paris Belin 995)

FERREIRA Paulo Seacutergio Margarido Seacuteneca em Cena Enquadramento na

Tradiccedilatildeo Dramaacutetica Greco-Latina (Coimbra diss de Doutoramento em Letras aacuterea de

Estudos Claacutessicos especialidade de Literatura Latina apresentada agrave Faculdade de

Letras da Universidade de Coimbra 2006)

FITCH John (ed) Oxford Readings in Classical Studies Seneca (Oxford

Oxford University Press 2008)

GIANCOTTI Francesco Saggio sulle Tragedie di Seneca (Roma Naacutepoles

Societagrave Editrice Dante Alighieri 1953)

GONCcedilALVES Carla Susana Vieira Invectiva na Trageacutedia de Seacuteneca (Coimbra

Ediccedilotildees Colibri 2003)

GRIFFIN Miriam Seneca A Philosopher in Politics (Oxford Clarendon Press

1976 reimpr 1992)

GRIMAL Pierre Seacutenegraveque sa Vie son Oeuvre avec un Exposeacute de sa Philosophie

(3ordf ed Paris Presses Universitaires de France 1966)

HARRISON George W M (ed) Seneca in Performance (Londres The Classical

Press of Wales 2000)

HERRMANN Leacuteon Le Theacuteacirctre de Seacutenegraveque (Paris Les Belles Lettres 1924) 53-

57

INWOOD Brad Reading Seneca Stoic Philosophy at Rome (Oxford Clarendon

Press 2005)

LITTLEWOOD C A J Self-Representation and Illusion in Senecan Tragedy

(Oxford Oxford University Press 2004)

MATIAS Mariana Montalvatildeo Horta e Costa Paisagens Naturais e Paisagens da

Alma no Drama Senequiano ndash Troades e Thyestes (Coimbra diss de Mestrado em

Literaturas Claacutessicas especialidade de Literatura Latina apresentada agrave Faculdade de

Letras da Universidade de Coimbra 2007)

MENDELL Clarence W Our Seneca (Archon Books 1968)

MOTTO Anna Lydia CLARK John R Maxima virtus in Senecarsquos Hercules

Furens CPh 76 (1981) 101-17 [revised version entitled Hercules Furens maximus

virtus in A L Motto amp J R Clark (1988) 261-94]

MOTTO Anna Lydia CLARK John R ldquoThe Monster in Senecarsquos Hercules

Furens 926-939rdquo Classical Philology 89 nordm 3 (1994) 269-272

170

MOTTO Anna Lydia CLARK John R ldquoSenecarsquos visionary dramardquo Classica 21

(1996) 155-163

OLIVEIRA Francisco de ldquoImagem do Poder na Trageacutedia de Seacutenecardquo Humanitas

51 (1999) 49-83

PEASE Arthur Stanley ldquoOn the Authenticity of the Hercules Oetaeusrdquo

Transactions and Proceedings of the American Philological Association 49 (1918) 3-

26

PIMENTEL Maria Cristina ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo

Classica 23 (1999) 27-45

PIMENTEL Maria Cristina Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de

Seacuteneca (Lisboa Ediccedilotildees Colibri 1993)

PIMENTEL Maria Cristina Seacuteneca (Mem Martins Editorial Inqueacuterito 2000)

PRATT Norman T ldquoThe Stoic Base of Senecan Dramardquo Transactions and

Proceedings of the American Philological Association 79 (1948) 1-11

ROSENMEYER Thomas G Senecan Drama and Stoic Cosmology (Berkeley Los

Angeles University of California Press 1989)

SCHIESARO Alessandro The Passions in Play (Cambridge Cambridge

University Press 2003)

SEGURADO E CAMPOS Joseacute Antoacutenio ldquoSeacuteneca Brecht e o Teatro Eacutepicordquo

Classica 23 (1999) 9-26

SEGURADO E CAMPOS Joseacute Antoacutenio ldquoO Simbolismo do Fogo nas Trageacutedias de

Seacutenecardquo Euphrosyne 5 (1972) 185-247

SEGURADO E CAMPOS Joseacute Antoacutenio ldquoSeacuteneca e Heacutercules Observaccedilotildees sobre o

Hercules Furensrdquo Euphrosyne 8 (1977) 161-168

SEGURADO E CAMPOS Joseacute Antoacutenio ldquoSur la Typologie des Personnages dans les

Trageacutedies de Seacutenegravequerdquo Neronia 1977 Actes du 2e Colloque de la Socieacuteteacute

Internationale drsquoEacutetudes Neacuteroniennes (Clermont-Ferrand Adosa 1977) 155-176

SERRA Joseacute Pedro Pensar o Traacutegico (Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian

Fundaccedilatildeo para a Tecnologia e a Tecnologia 2006)

SHELTON Jo-Ann ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo

Hypomnemata 50 (Goumlttingen Vandenhoeck and Ruprecht 1978)

171

TANNER R G N S W Newcastle ldquoStoic Philosophy and Roman Tradition in

Senecan Tragedyrdquo Aufstieg und Niedergang der Roumlmischen Welt II 322 (Berlim

Nova Iorque Walter de Gruyter 1985) 1100-1133

VOLK Katharina Gareth D Williams (eds) Seeing Seneca Whole Perspectives

on Philosophy Poetry and Politics (Leiden Boston Brill 2006)

172

INDEX LOCORVM

Apolodoro

Bibliotheca

2412 10n

Arriano

Epicteti Dissertationes

1916 136n

1917 136n

12929 136n

1226 136n

2611 138n

2612 138n

4172 136n

41150 ss 136n

Ciacutecero

Academica Posteriora

239 19n

De Fato

1020-21 20n

De Inuentione

2160 26n

Tusculanae Disputationes

118 22n

36 26n

4611 29n

4716 30n

4922 30n

415 29n

41534 28n

41737 28n

Dioacutegenes Laeacutercio

Declarorum Philosophorum Vitis

739 15n

740 15n

741 15n

741-43 16n

746-48 16n

783 15n

784 23n

787 24n

790 26n

792-93 26n

793 27n

7110 28n

7115 29n

7132 17n

7138-139 18n

7148-149 17n

7157 21n 22n

Eacutesquilo

Persae

305-309 44n

633-680 44n

Euriacutepides

Electra

677-684 44n

Helena

317-329

Heracles

1 36n

173

1-2 88n

1-106 5

1-821 6

13-14 98

13-20 102

16-17 111n

18-20 102

18-21 84n

20 86n

20-21 36n 101 102

21 102

22-25 98n

26-34 50

33-34 50

38-43 43

41-42 36 36n

44-45 36 36n

44-46 97n

51-59 37

57-59 37n

60-61 36

60-106 43

62 7

69-71 43

71-72 44

75-79 104n

80-86 44

95-97 51n

95-106 37

107-114 63

112 82

115-118 65

119 64

119-130 63

120 64

124-126 82

125 64

126 64

127-229 99

128 64

131-137 65

140-347 5

145-146 97n

149 95

150-155 95

157 98

157-164 98

158 98

160 98

162 98

165-166 51

174-205 38

177 96

177-180 95

179 96

190-194 98

195-201 98

210 51

215 51 51n

215-216 38 51 51n

217-226 99

227 11

229 100

235 51

240-246 112

247-251 51n 113

252-267 65

252-274 65

255 50

261 50

268-274 65

272-274 50 50n

174

282-283 103

288-292 44

296-297 97n

303-306 37

309-311 103

312-314 82

312-315 65

316-318 38

319-329 65n

339-347 7 38n

344-346 7

348-358 65

348-435 102

348-450 65

349-435 65

359-363 66

359-429 65

364-374 66

375-379 66

380-388 66

389-393 66

394-402 66

397 114n

403-407 66

404 114n

408-418 66

419-421 66

422-424 66

425-429 66

426-424 97n

435 114n

436-450 65

451-453 113

451-522 5

456-457 103

456-489 44

480-482 103

483 45n

490-491 44n

490-495 97n

490-496 44

492-493 44n

494 44n

495-496 44n

497-500 44

497-513 38n

498-500 7

501 38n

506-507 37n

511-512 37n

519-521 45

523 95n

531-636 123

533 45

534 ss 45

558 99

558-561 37

560 11 99

562-582 100

565 100 114n

566 100

565-573 8 100

565-606 5

568 100

568-573 113

570 100

572 100

572-573 100

573 100

575-582 104

577 104

585-586 38 113

175

588-594 38

595-598 104

606-609 100

607-621 88n

613 88n

619 88n

627-633 133

631 114n

631-633 104

637-700 65 67

637 ss 82

639-700 102

655-656 7 67

696-697 67 96

696-700 84n 96

707-709 51 113

707-711 38

709 51n

712-724 112

717 38

719 38

727-728 51

735 68n

735-814 102

735-821 65

741 50

749-754 5

755 50

757 50

760 52 68n

762-771 68

763 68

763-814 5 68n 117

769-771 68

772 68

772 ss 68

772-814 7

772-880 68

781-797 68

798-814 68 84n

801-804 69

811 ss 68

815-821 83

815-874 6

821 ss 96

822-1088 6

822-873 6

822-874 83 83n

829 86n

831 86n

840 86n

841-842 84

847-854 85

848 86n

851 85

852-853 85

855 86n

859 86n

861-866 106

867-872 106

867-874 107n

875-821 69

875-885 65 69

886-909 69 107n

887-909 6

910 6

910-921 69

910-1015 107

922-1015 6 107

929-931 107

932 107

933 107

176

934 107

935 108

938 114n

940 114n

947-949 108

953-955 108

955-957 108

959-963 108

963 ss 108

964 114n

964-971 108

967-971 112

967-969 108

968 114n

984-994 112

986-994 122

994-995 113

996-1000 44

1001-1006 7

1002-1008 108

1016-1038 69

1016-1041 6

1019-1020 69

1049-1051 109

1061-1062 109

1078-1080 111

1087-1088 7

1088-1108 6

1089 110

1089-1093 110

1089-1428 6

1092 110

1093 110

1094 110

1094-1097 110

1101-1105 110

1111-1112 110

1111-1145 6

1127 86n 103

1135 102

1145 114n

1146-1152 6

1146-1153 110

1153-1154 110

1163-1426 6

1164-1171 11

1164-1172 99

1169-1171 58

1186 102

1189 86n

1199 114n

1202 58

1208 114n

1219-1220 58

1219-1227 58

1220 58

1221-1222 58

1223 58

1225 58

1232 59

1234 59

1247-1310 110

1248 59

1250 59

1252 59

1253 86n

1254 59

1258-1261 110

1262 ss 110

1262-1310 102-103

1264 86n

1279-1280 110

177

1281-1290 112

1295-1298 111

1303-1310 8

1307-1309 86n

1310 105

1311-1319 8

1314-1339 8

1324 114n

1340-1344 8

1347-1351 111

1349-1357 155

1364 105

1378 ss 111

1386-1388 132

1392-1393 102

1393 86n

1395-1402 133

1397 ss 58

1398 114n

1402 114n

1408-1409 133

1412-1417 96

1423-1424 105n

Medea

516-519 67n

Orestes

211-306 109n

1225-1242 44n

735 58n

Homero

Ilias

5392ndash397 1n

5403-404 1n

18119 101n

21214-212 101n

Marco Aureacutelio

Meditationes

440 ss 21n

449 31n

Oviacutedio

Metamorphoses

9134 ss131n

Piacutendaro

Nemean

322 95n

Seacuteneca

Ad Lucilium Epistolae Morales

2 118n

136 25n

244 136n

246-8 136n

2417 23n

2418 23n

2420 79

2421 79n

242284 135n

2423 ss 74n

2425 139

269-10 34n

2610 134n

30 138n

3015 139

518-9 31n

544-5 23n

5835-36 34n

178

5836 137n

652 17n

655 27n

6524 22

665 27 27n

696 73n

704 136

705 136

7011-12 137n

7014-15 136n

7018 136

7020-26 138

714 31n

715 31n

715 ss 115n

7136 25n 33n

7710 134n

7712 78n

7713 78

7720 135n

781ss 135n

8915 25

9225 131n

9230 ss 35n

9234 150n

937 72

938 72

965 31n

981516 135n

101 33n

1014-5 33n

10110 71n 72n

10223 22 23n

1043 135n

1043-4 35n

1064 18n

1065 47n

1065-10 17n

1066 29n

12018 79

12022 24n

Consolatio ad Marciam

267 22n

482-3 149n

662-3 151n

267 22n

Consolatio ad Polybium

113 34n

De Clementia

1252-3 55n

De Ira

181 26n

313-5 140n

321 ss 140n

341-3 140n

336 25n

De Prouidentia

21 ss 31n

210 34n

58 79

De Tranquillitate Animi

123 32n

De Vita Beata

20 50n

179

Hercules Furens

1 86

1-2 87 87n

1-5 13

1-18 86

1-124 86

2 87

3 87

3-4 87

4 87

4-5 87

5 87

6-18 87

6-21 116

6-26 118n

12 87

13 87

19 87 89

19-21 87

21 89

19-63a 86 87

21-22 87

22-26 87

23 92

23-26 116

27 88 132

27-29 88

27-42 87

28 86 88 132

29 88 91

30 91

30-31 115

30-32 87n

30-33 115

32 115

33 87

33-35 115n

34 132

34-35 91 115

35 88 115 132

37-40 115

39 115

40 80 91

42 115 115n

43-44 115n 116

44-46 115

45-46 116

46 116

46-48 123

47 ss 121

48 88

49 88

50 88

51 88 116

51-52 88 116

54 122

57 116

58 114n 116

61 88

63 89

63b-124 86 89

64-65 89 128

68 116

75 89 132

77 132

79-83 128

84-85 117

85 90 91

86 ss 128

89-91 90

90 90

90-91 90

180

90-99 90

91 90

91-92 90

92 90

93 90

95 90

96 90

96-98 90

98-91 90

97 88

99 91 132

100 91

100-109 91

101 91

102 91

103 91

104 91

109 91

109-112 91

110 91

112 89 91

112-117 92

114 92 114n

116 92

116-117 92

119 92

120-121 92

121 92

122 92 114n

123 91 92

125-136 70

125-161 70

125-201 121

125-204 70

137-161 71

159-160 71

160 ss 131

161-185 70-71

162-180 71

173-179 71

175 71

175-176 71

175-19832

178 ss 72

178-180 71

181-204 72

183-184 71

186 117

186-187 154

186-201 71

188-190 72

192-196 117

192-201 73

199 73 82

200 73 82

201 73 81 117 154

202 46

202-204 49n 71 83

205 49

205-278 39 39n 49

205-308 39n

205-331 48

206 40n

207-209 40n

209-213 32n 39 155

209-215 118

221 114n

215 ss 117

216-222 39

247 77n 114n

247-248 118

249-251 40

181

251 40

251-252 54 117

251 ss 52

254 52

265-267 118

267 52

269 52

271-276 52

272 52 114n

273 118

274 52

275-278 118

277-278 43

278 118n

279 49 114n

279-280 119

279-308 39n 45 49 132n

279 ss 45

280 119

280-281 119

281 119

282 119

282-283 119

283 119

284-286 121

286-288 119

290 119

290-293 119

292-293 119

294-294 119

296-298 45

299-302 45

303-305 46

305-308 46

306-307 46

309-310 46 49n

311 46

312-314 118

314 46

314-316 46

316 46

325 119

327-331 48

329-331 53

332 56n

332-335 53

332-340 121

332-341 54

332-357 53

337-338 53

340-341 54

340-342 54

341-342 46

341-344 54

345 56n

350 46

350-351 45

350-352 121

352-353 55

354-355 39

354-357 53n

354-355 39

355 46

358 55

362-369 55

368-369 121

371 46

372-373 46

373-374 47

375 47

376 47

377-378 47

182

379 47 56n

379-380 47

380 47

381 47

382-383 47

384 55 56

384-396 118n

386-395 55

395 56

395-396 55

397 46

397-398 119

398 56n

399 55

399-402 54

400 55 56n

401 55

406-407 121

411 56n

412 47

413 47

414 47 56

415 48

415-417 48

417 48

418 48

421 48

423 120

426 48

429 45 50

430 119

434 120

435 119

437 120

438 120

442 114n

444-446 120

445-446 120

449-476 118n

469 114n

477-480 120

478 121

489-490 56n

494 56

495-500 45

501-508 121

501-509 56

511-515 56

512 56

513 56

518 56n

518-519 56

520-523 122

523 122

524 73

526 73

527-528 74

528 74 114n

529 74

530-532 74

531-546 74

536 74

538 77n

540-541 74

544 74

547-549 74

547-591 74

548 74 76

551 74

554 74

558-559 75

560-565 75

183

566 114n

566-567 76

566-568 75

569-539 82

569-591 75

570 75

588-589 117

590-591 75

591 117

592 ss 145

592-613 124

592 ss 122

595-596 76

599-603 76

603-604 144

604-606 123

606-615 144

609-610 122

613 144

614 114n

614-615 122

624-625 114

625 114n

626-628 123

626-640 123

629 56n

629 ss 145

631 123

631-633 144

631-640 123

633 123

634-635 123

634-636 123n

636-637 144

637 123

637-638 60

638-639 124

638-640 144

639-640 124

640-644 144

643-644 60

644 60

646-649 60

662-759 60

662-806 88n

689-696 60n

731-734 60 60n

735-736 60

739-745 60

745-747 60

762-827 61

772 61n 77n 117

773-775 61n 144

775-777 60n

778-793 61

792-793 61n

797-805 144

804-806 61

807 114n

821-974 12

827-829 70n

830-831 77

830-833 77

830-894 76

834 77n

835-863 88n

836 77

837 78

838 77 78

838-839 77

838-874 80

838 ss 78

184

839 77

840 77

840-841 77

842-847 77

845 78

846 77

848-849 77

849 78

849-854 78

851 78

852 78

853 78

867 79

872 78 79

874 79

875-892 117

875-894 80

882 79n 114n

891-892 79

894 80

895-899 121

895 ss 124

898-899 124

900-908 124 144

907-908 124

914 114n

918-919 124 144

919 114n

920 125

920-921 144

920-924 41 125 144

921 125

922 125

923 125

924 125

925-926 41

926 41

926-927 126

926-937 121

926-939 144

931-935 144

931-939 126

937-938 144

937-939 126

939 ss 145

939-944 126 127

939-989 144

940 128

940-941 128

942-943 144

944-952 128

953 129

954 129

955 ss 145

955-959 128

957-973 127

960 144

960-961 128

967-968 128

972-973 128

973-975 129

974 129

975 129

976-981 128

977-978 144

980-981 144

983 129 144

984 129

987 144

987-991 121

987 ss 129

989-991 144

185

989-1038 144

991 130

991-995 129

996 144

996-1002 144

998 114n

1002-1004 122

1004 129

1005 130

1005-1007 122 129

1010-1011 144

1013 130

1018-1020 144

1021 129 130

1026-1027 41n

1027 42

1028 42

1032-1034 83

1033 42 130

1034 42 114n

1038 42

1039 ss 145

1039-1042 130

1040 114n

1044 114n

1049 130

1050 ss 145

1051-1052 130

1053 130

1053-1137 83

1054 80

1054-1137 80

1063 130

1063-1065 80

1065 81

1066-1077 81n

1066 81n

1080 130

1081-1086 42

1083 130

1088 130

1092 130

1093 81

1094-1099 81

1095 130

1096 130

1098 114n 130

1099 130

1103 114n 130

1121 130

1122 130

1134 130

1136 81

1138 144

1138 ss 145

1138-1153 131

1138-1186 144

1139 144

1147-1148 144

1149 144

1153 144

1156-1157 144

1159-1161 131

1160 ss 131

1167 132

1167-1168 131

1173-1176 131n

1179-1186 131n

1187 131n

1188 131n

1189-1190 131n

1192 114n

186

1192-1200 144

1193 114n 132

1193-1194 144

1193-1195 131n

1193 ss 145

1196 114n 132

1198-1199 131n

1199-1200 132

1202-1218 144

1202 ss 145

1207-1208 144

1211 114n

1216-1217 144

1218 144

1220 132

1221-1223 144

1221-1236 144

1226 144

1227-1228 144

1229-1230 144

1231 144

1237-1238 148n

1239 147

1240 ss 145

1242-1243 144

1244 114n

1253-1254 43

1259-1261 147

1260 114n

1269-1270 144

1272-1277 63

1274-1277 147n

1276-1277 148

1277 132

1277-1294 144

1279-1282 144

1278 144

1280 132 148

1281-1282 148

1283-1284 144

1281-1282 144

1284-1294

1295-1296 144

1297 114n

1308 42

1314 144

1314-1319 144

1315 148

1316 ss 145

1319 114n

1321-1341 144

1323 144

1328 114n

1334 144

1341-1344 63

Hercules Oetaeus

1-98 146

7-8 128n 145

8-10 145

10-13 145

11 145

13-98 145

13 128n 145

16-17 145

32-33 128n

51 144

53-55 145

54-55 140n

55-56 62n 140

56-57 144

187

61-62 144

63-64 145

73-74 144

76-79 128n

77 145

87 145

93-94 144

93 144

95-96 144 145

97-98 128n 145

142 140

155 140

166 140

172 140

749-751 126n

761-762 139n

766-770 139n

786-805 146

798-802 140n

808 141n

808-822 141

810-822 146

813-816 145

825-835 146

1131-1150 145

1134 144

1135 145

1137-1150 145

1141 145

1148 145

1161-1206 145

1171 144

1176-1177 144

1177-1178 144

1181 144

1185-186 144

1191-1206 144

1197-1198 145

1218-1278 145

1218 144 145

1231-1232 144

1232 144

1233 145

1234-1247 145

1240-1243 145

1253 144

1260-1261 144

1260 145

1264 144

1265 145

1270-1271 145

1276-1277 145

1290-1336 145

1302 144

1304-1305 145

1321 145

1322-1323 145

1324 144

1325 144

1329-1330 145

1345-1349 145

1359-1373 145

1360 144

1364-1365 144

1367-1368 145

1371-1372 144

1377-1395 145

1379 145

1389-1392 145

1396-1398 141n

1399-1402 141n

1399-1401 145

188

1400 145

1402 145

1404 141n

1432-1447 145

1435 144

1445-1446 144

1448 144

1449 141

1449-1450 141

1449-1455 141

1450 141

1452 141 144

1453 141

1454 141

1459-1464 145

1459-1463 141

1459 141 142 144

1461-1462 142

1461-1463 146

1462 142

1472-1487 146

1480 142n

1481-1482 148

1515-1517 150

1609 150

1609-1755 146

1610-1611 149

1668-1679 149

1681-1698 149

1683-1684 149

1685-1687 149

1695-1715 150

1717-1726 149

1728-1730 149

1741 149

1741-1743 149

1746 149

1753-1755 150

1835 150

1942-1943 150

1963-1971 150

1963-1976 22n 146

1968 150

Medea

19-20 92

301-302 72n 76

307 76

Naturales Quaestiones

1praef5 62n

3praef10-17 72n

63210 32n

Phaedra

1143 ss 76

1149-1153 76

Tiestes

1 ss 122n

Troades

171 ss 122n

Sexto Empiacuterico

Aduersus Mathematicos

959 ss 27n

10218 19n

Soacutefocles

Electra

1066-1081

189

Vergiacutelio

Aeneis

6274-289 60n

6395-396 61n

6413-414 60n

6 432-433 60n

190

INDEX NOMINVM

Anfitriatildeo

Heracles

3 5 6 7 8 12 36n 36-38 38n

39n 42 43 44 44n 45 48 49 50

51 51n 52 58 64 65n 69 84

84n 86 87n 88 88n 95 96 97n

99 100 101 102 103 104 107

107n 108 109 110 111 111n

112 113 113n

Hercules Furens

3 12 12n 29 32 39n 39-43 41n

43n 46 49 49n 52 53 53n 54

55 56 60 61 71 73 74 77n 83

98 113 114 114n 117 118 118n

120 121 122 123 124 127 129

130 132 147 148 153 154

Anteu

120 120n

Apolo

Bibliotheca

10

Heracles

65 67

Hercules Furens

76 118

Orestes

59n

Aquiles 100 122n

Atena 7 96 107 107n 108 109

Augeu 117n

Baco 118n

Busiacuteris 120 120n

Castor 116n

Ceres 45

Cicno

Heracles

66

Hercules Furens

120

Cloto 139n

Creonte

Heracles

42 43 50 51 97

Hercules Furens

40 42 47

Coro

Heracles

3 5 7 37 50 51n 57 63-69 65n

68n 82 83 84 84n 96 97n 99 102

106 107 107n 111n 118n

Hercules Furens

191

32 33 42 42n 46 49n 60 70n

70-83 74n 77n 88n 113 117 118

118n 121 156 157

Hercules Oetaeus

140

Medea (Seacuteneca)

72n

Daacutenao 69n

Dario 44n

Eacutedipo 29

Egipto 69 n

Eleacutectrion 110n

Eacuterice 120 120n

Eriacutenias 105 128

Euristeu

Bibliotheca

10

Heracles

65 84n 101 104n 108 112 129n

132 154

Hercules Furens

73 77 120

Ecircurito 120

Filomela 69

Geacuterion

Heracles

66

Hercules Furens

120 120n

Hera 8 10 84 54 84n 86 92 101 102

103 107 109 109n 111

Heacuteracles v 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11

12 29 36n 37 38 38n 39 40 41 43 44

44n 45 45n 51 51n 55n 57 58 59 64

65 66 67 68 68n 69 81 83 84 84n 85

88n 92 93 94n 94-113 95n 97n 104n

105n 106n 107n 109n 111n 114n 120n

128 132 133 153 154 155 155n

Heacutercules v 3 4 12 12n 13 21n 22n 27

28 29 30 32 39 40 41 41n 42 43 43n

45 46 48 52 55 57 59 59n 60 61 61n

62 67 71 71n 72n 73 74 74n 75 76

77 77n 80 80n 82 83 87 88 89 90

90n 91 92 93 94 98 113-133 114n

115n 116n 117n 118n 120n 121n 122n

123n 126n 126n 130n 132n 139 139n

140 141 141n 142 142n 143n 144

144n 145 146 149 149n 150 151 152

153 154 155 156 157

Iacuteole

Hercules Furens

120n

Hercules Oetaeus

140 150

Iacuteris 2n 3 5 6 7 8 12 83-85

192

Juno 2n 3 11 13 29 86-93

Juacutepiter

Hercules Furens

12 13 30 39 41 45 49 75 87

89 92 116 116n 120n 121 124 126

126n 151

Hercules Oetaeus

128n 143n 152

Laio 29

Leda 116

Licas 140 141 141n 142

Lico

Heracles

3 5 6 7 9 11 12 36 36n 37

38 38n 39n 40 42 43 44 44n

45 48 49 50-52 51n 57 57n

65 68n 84n 85 94 95 97 97n

109n 111 112 113 154

Hercules Furens

3 12 29 39 40 41 42 46 47

48 49 50 51n 52-57 53n 55n

56n 59 60 73 90n 98 113

114n 117n 118n 119 120 120n

121 122 123 124 125 133 138

154 157

Lissa 2n 3 6 7 12 36n 65 68 69 83-85

92 93 97 97n 102 105 106 107n 108

109 154 155

Nesso 142 143 143n

Medeia

Hercules Furens

92

Medea (Euriacutepides)

67n

Meacutegara

Heracles

3 5 6 7 8 12 36 36n 37 37n

38 39 43-45 45n 48 49 51 51n

52 57 58 64 69 84 84n 86 96n

97 97n 99 103 104 104n 107n

108 109 111 112 113 154

Hercules Furens

3 12 12n 29 39n 40 41 41n 42

45-50 49n 53 53n 55 55n 56

57 71 73 76 83 114n 118 118n

119 121 123 129 131 132n 141

154 156

Mensageiro iv 2n 3 6 12 42 69 93 94

97n 106 106n 107 107n 108 109 113

155

Ocircnfale 121

Poacutelux 116n

Procne 69n

Tacircntalo 122

Tereu 69n

Teseu

193

Heracles

3 6 7 8 10-11 12 37 58-59 63

75 96 97 97n 98 99 102 105n

110 111 154 155

Hercules Furens

3 12 12n 41 42n 59-63 60 61

61n 62 63 70n 88n 113 114n

123 123n 132 133 148 149 154

Phaedra

76

Teacutespio (rei) 10

Tiacutendaro 116n

Tisiacutefone 129

Zeus 5 7 8 10 12 36 36n 38 38n 39n

44 45n 52 67 68 68n 69n 84 84n 87n

94 95 95n 96 97 102 110 112

Page 2: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES

UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

Departamento de Estudos Claacutessicos

O MITO DE HEacuteRCULES RECRIADO DA LOUCURA TRAacuteGICA DE EURIacutePIDES Agrave SERENIDADE ESTOacuteICA DE SEacuteNECA

Ana Filipa Isidoro da Silva

DISSERTACcedilAtildeO DE MESTRADO EM ESTUDOS CLAacuteSSICOS ndash LITERATURA COMPARADA

orientada pelos Professores Doutores

Maria Cristina de Castro-Maia de Sousa Pimentel

Frederico Maria Bio Lourenccedilo

2008

Para o meu pai jaacute ausente desta jornada que eacute a vida para minha matildee irmatildeo e afilhado

i

IacuteNDICE

AGRADECIMENTOS iii

RESUMO ABSTRACT iv

LISTA DE ABREVIATURAS vi

INTRODUCcedilAtildeO 1

Capiacutetulo I ndash EURIacutePIDES SEacuteNECA E O ESTOICISMO UM ESTUDO PRELIMINAR 5

1 Euriacutepides Heracles 5

11 Data e Estrutura da Trageacutedia 5

12 Os Deuses 7

13 Inovaccedilotildees em Euriacutepides 9

2 Seacuteneca Hercules Furens 11

21 Data e Estrutura da Trageacutedia 11

22 Os Deuses 13

23 Doutrina Estoacuteica 14

231 Os trecircs ramos da Filosofia Fiacutesica Loacutegica e Moral 15

a) A Loacutegica 15

b) A Fiacutesica 17

c) A Moral 23

Capiacutetulo II ndash HERACLES E HERCULES FURENS ANAacuteLISE DAS PERSONAGENS 36

1 Anfitriatildeo 36

11 Caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides 36

12 Caracterizaccedilatildeo da personagem da trageacutedia de Seacuteneca 39

2 Meacutegara 43

21 Caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides 43

22 Caracterizaccedilatildeo da personagem da trageacutedia de Seacuteneca 45

3 Lico 50

31 Caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides 50

32 Caracterizaccedilatildeo da personagem da trageacutedia de Seacuteneca 52

4 Teseu 58

41 Caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides 58

42 Caracterizaccedilatildeo da personagem da trageacutedia de Seacuteneca 59

5 Coro 63

51 Caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides 63

52 Caracterizaccedilatildeo da personagem da trageacutedia de Seacuteneca 70

6 Divindades 84

ii

61 Caracterizaccedilatildeo de Iacuteris e Lissa na trageacutedia de Euriacutepides 84

62 Caracterizaccedilatildeo de Juno na trageacutedia de Seacuteneca 86

Capiacutetulo III ndash HEacuteRACLES E HEacuteRCULES A (DES)CONSTRUCcedilAtildeO DO HEROacuteI 95

1 Caracterizaccedilatildeo de Heacuteracles na trageacutedia de Euriacutepides 95

11 Imortalidade e Mortalidade a ambivalecircncia do heroacutei 96

12 Luz e Trevas 97

13 Individualidade e Colectivismo 98

14 Solidatildeo e Amizade 100

15 Outras caracteriacutesticas na construccedilatildeo do heroacutei 102

16 Manifestaccedilotildees da loucura de Heacuteracles 106

17 ἀρετή e βία Lico e Heacuteracles pontos semelhantes entre um tirano e o

heroacutei

112

2 Caracterizaccedilatildeo de Heacutercules na trageacutedia de Seacuteneca 114

Capiacutetulo IV ndash HERCULES FURENS E HERCULES OEATEUS 135

1 Meditatio Mortis ndash um estudo preliminar 135

2 Heacutercules ndash a ascese do proficiens 140

21 Heacutercules sob o domiacutenio da ira (estudo sobre o seu comportamento da

personagem no Hercules Furens e no Hercules Oetaeus)

140

211 Linguagem da emoccedilatildeo 144

212 Da decadecircncia da uirtus fiacutesica de Heacutercules agrave elevaccedilatildeo agrave

categoria de sapiens

147

22 Hercules Furens e Hercules Oetaeus ndash o suiciacutedio 149

CONCLUSAtildeO 155

BIBLIOGRAFIA 169

INDEX NOMINUM 172

INDEX LOCORUM 190

iii

AGRADECIMENTOS

Chegou o momento de recordar e agradecer a todos que de algum

modo contribuiacuteram para a conclusatildeo deste trabalho Em primeiro lugar

agradeccedilo aos Professores Doutores Maria Cristina de Castro-Maia de Sousa

Pimentel e Frederico Maria Bio Lourenccedilo pelos seus saacutebios conselhos e

pelas sugestotildees que deram A amabilidade e simpatia com que me

acolheram e afortunadamente me orientaram permitiram que esta

dissertaccedilatildeo chegasse a bom porto

Ao Professor Doutor Arnaldo do Espiacuterito Santo que desde sempre

muito admiro e ao Prof Doutor Joseacute Eduardo Franco pela sua amizade e

simpatia

Agrave Profordf Doutora Serafina Martins pelos seus conselhos e algumas

sugestotildees bibliograacuteficas

Agrave Drordf Eduarda Osoacuterio Lopes e Drordf Fernanda Santos pela boa

disposiccedilatildeo que tornaram os dias da redacccedilatildeo da dissertaccedilatildeo mais alegres e

suaves

Umas uacuteltimas palavras restam para a minha famiacutelia que muito amo

em especial para a minha matildee irmatildeo e avoacute e a bons amigos Bruna

Ferreira Gonccedilalo Henriques Helena Sofia Santos Joana Cardoso Dona

Manuela Domingues Marli Vitorino Nuno Carvalho Agrave Patriacutecia Nuno e

Helder Filipe por estarem sempre presentes na minha vida Finalmente agrave

Cristiana Lucas agrave Paula Carreira agrave Susana Alves e em especial agrave Ana

Matafome Heacutelio Vale e Ricardo Nobre por terem estado sempre presentes

e disponiacuteveis e por terem sido incansaacuteveis comigo os meus gratos

agradecimentos

iv

RESUMO ABSTRACT

Este estudo pretende analisar as trageacutedias Heracles de Euriacutepides e Hercules

Furens de Seacuteneca numa perspectiva comparativa Aleacutem de ver as semelhanccedilas

procura-se descrever os aspectos que tornam as duas trageacutedias diferentes e uacutenicas

vendo a forma como satildeo tratadas e desenvolvidas as personagens e o tema da loucura de

Heacuteracles Heacutercules

O primeiro capiacutetulo mais teoacuterico aborda alguns traccedilos gerais que caracterizam

as trageacutedias dos dois autores nele se inclui tambeacutem um estudo que sintetiza a doutrina

estoacuteica com especial incidecircncia nos aspectos que melhor ajudam a compreender a

funccedilatildeo e objectivos pareneacuteticos do corpus traacutegico de Seacuteneca No segundo capiacutetulo satildeo

contempladas as personagens das duas trageacutedias excepto HeacuteraclesHeacutercules e o

Mensageiro que satildeo estudadas no capiacutetulo seguinte No terceiro capiacutetulo o protagonista

eacute analisado em trecircs momentos antes durante e depois da loucura O quarto capiacutetulo

cinge-se ao estudo sobre a ascese de um proficiens e sobre a meditatio mortis nas

trageacutedias Hercules Furens e Hercules Oetaeus

Palavras-chave Trageacutedia de Euriacutepides Trageacutedia de Seacuteneca Estoicismo

HeacuteraclesHeacutercules Literatura Comparada

This study aims to analyse in a comparative perspective Euripidesrsquo Heracles and

Senecarsquos Hercules Furens Besides recognising the similitude between the two

tragedies we describe the aspects that make them different and unique understanding

how the characters and the theme of madness of HeraclesHercules are treated and

developed The first chapter is more theoretic it deals with some general features that

characterise Euripidesrsquo and Senecarsquos tragedies and studies the Stoic philosophy with

special attention to the aspects that enable the understanding of the paraenetic function

and its objectives In the second chapter characters from both plays are covered except

HeraclesHercules and the Messenger that are studied in next chapter In the third

chapter the main character is analysed in three moments before during and after

madness The fourth chapter studies the meditatio mortis in the plays Hercules Furens

and Hercules Oetaeus reasoning on the ascesis of the proficiens

v

Keywords Euripidesrsquo Tragedy Senecarsquos Tragedy Stoicism HeraclesHercules

Comparative Literature

vi

LISTA DE ABREVIATURAS

Barlow = Euripides Heracles intr trad e comentaacuterio Shirley Barlow (Warminster Aris and Philips 1996) Bond = Euripidesrsquo Heracles intr e comentaacuterio Godfrey W Bond (2ordf Ediccedilatildeo Oxford Clarendon Press 1988) Duclos = EURIPIDE Theacuteacirctre III trad Henri Berguin Georges Duclos (Paris Garnier 1955) ErnoutndashMeillet = ERNOUT Alfred e Antoine Meillet Dictionnaire Eacutetymologique de la Langue Latine Histoire des Mots (4ordf ed Paris Klincksieck 1959 reimpr 1967) Fitch (1) = Senecarsquos Hercules Furens a Critical Text with Introduction and Commentary ed John G Fitch (Ithaca and London Cornell University Press 1987) Fitch (2) = SENECA Tragedies I (Hercules Trojan Women Phoenician Women Medea Phaedra) ed e trad John G Fitch (Cambridge Massachusetts Londres Harvard University Press 2002) Giardina = L Anneo Seneca Tragedie trad G C Giardina Rita Cuccioli Melloni (Torino Editrice Torinese 1987) Herrmann = SEacuteNEgraveQUE Trageacutedies I (Hercule Furieux Les Troyennes Les Pheacuteniciennes Meacutedeacutee Phegravedre) ed e trad Leacuteon Herrmann (Paris Les Belles Lettres 1968) Miller = SENECA Tragedies I-II ed Frank Justus Miller (Londres Cambridge Massachusetts Harvard University Press 1917 reimpr 1968) Parmentier = EURIPIDE Heacuteraclegraves ndash Les Suppliants ndash Ion III trad Leacuteon Parmentier Henri Gregoire (Paris Les Belles Lettres 1976) Viansino = L Annaei Senecae Hercules Furens Troades Phoenissae Medea Phaedra recensuit Ioannes Viansino (Torino Paravia 1968)

1

INTRODUCcedilAtildeO

Heacuteracles eacute um dos heroacuteis que mais popularidade teve ao longo da histoacuteria da

humanidade Os trabalhos a que se submeteu fizeram da sua figura um modelo de

civilizador e protector do Homem destruiu todos os monstros que habitavam a terra e

assolavam o mar Poreacutem a megalomania a insolecircncia e a excessiva confianccedila na sua

forccedila fazem dele uma personagem violenta e cruel que chega a desafiar os deuses e a

lutar contra eles1 Segundo Fitch ldquoFrom the earliest times Herculesrsquo heroism is

ambivalent On the one hand he is ldquothe best of menrdquo endowed with invincible strength

and courage On the other hand any strength that goes so far beyond the human norm is

potentially dangerous and unpredictablerdquo2 Como observou Susan Deacy a respeito de

Heacuteracles ele caracteriza-se por ldquohis tendency to move between opposite categories

including mortal and immortal salvation and destruction masculine and feminine and

sanity and madnessrdquo3 Esta confluecircncia de estados psicoloacutegicos permitiu que ao longo

dos tempos esta personagem mitoloacutegica tivesse recebido um tratamento diverso Walter

Burkert refere

A figura de Heacutercules foi moldada primeiramente pelo mito por um conglomerado de contos populares em que a grande poesia soacute interveio de modo secundaacuterio natildeo existe qualquer poesia grega dedicada exclusivamente a Heacutercules Soacute mais tarde os poetas analisaram o fenoacutemeno Heacutercules envolvendo assim o mito numa atmosfera traacutegica heroacuteica e humana em contraste com a sua tendecircncia proacutepria que transcende despreocupadamente o humano4

Foram poucos os autores gregos que fizeram de Heacuteracles o protagonista dos seus

poemas decerto dado o seu caraacutecter atiacutepico e ambivalente entre os heroacuteis miacuteticos Em

toda a sua histoacuteria mitograacutefica Heacuteracles possui uma forccedila invulgar eacute um heroacutei-deus

solitaacuterio que ocupa ldquothe no-manrsquos-land that is also no-godrsquos-land he is a marginal

transitional or better interstitial figurerdquo5 como diz Silk

1 Vide Homero Ilias 5392-397 403-404 2 Fitch (1) 15 3 Susan Deacy ldquoHerakles and his lsquogirlrsquo Athena heroism and beyondrdquo in Louis Rawlings and Hugh Bowden (ed) Herakles and Hercules Exploring a Graeco-Roman Divinity (Swansea [Paiacutes de Gales] The Classical Press of Wales 2005) 37 4 Walter Burkert Religiatildeo Grega na Eacutepoca Claacutessica e Arcaica (Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1993) 405-406 5 Silk ldquoHeracles and the Greek Tragedyrdquo Greece and Rome 32 nordm 1 (1985) 6

2

Temos apenas o testemunho de Soacutefocles e Euriacutepides que descreveram um

momento especiacutefico da vida deste heroacutei nas trageacutedias Soacutefocles fez representar a

preparaccedilatildeo para a morte nas Trachiniae e Euriacutepides o momento da loucura que vem

depois de finalizado o uacuteltimo trabalho a captura de Ceacuterbero O modo como a figura eacute

apresentada nos dois tragedioacutegrafos difere substancialmente Para Carlos Santos

ldquoEuriacutepides teraacute procurado apresentar um Heacuteracles modernizado pelos valores do homem

do seacuteculo V aC moldado pela virtude e pela razatildeo enquanto que o heroacutei de Soacutefocles

se move num mundo onde domina a forccedila fiacutesica com valores semelhantes aos da

sociedade homeacutericardquo6

Partindo da forma como Euriacutepides criou a personagem no Heracles o presente

estudo tem como objecto a anaacutelise comparativa desta trageacutedia com o Hercules Furens

de Seacuteneca o filoacutesofo estabelecendo pontos de contacto mas essencialmente

apontando as diferenccedilas na construccedilatildeo do protagonista Conscientes de que o tema ndash a

loucura do Alcida ndash e as personagens satildeo as mesmas7 queremos demonstrar que as

caracteriacutesticas que lhes satildeo apontadas as tornam diferentes Esta mudanccedila deve-se

principalmente agrave doutrina que Seacuteneca pretende divulgar nas trageacutedias ao representar as

paixotildees humanas e as consequecircncias destrutivas que esses affectus implicam quando

natildeo satildeo evitados e quando fogem do controlo das personagens Com a sua encenaccedilatildeo8 o

filoacutesofo consegue mostrar por meio de exempla o resultado de algumas passiones que

dominam o homem e que o levam pelo caminho do uitium a trazer a desgraccedila aos

outros e em uacuteltima instacircncia a causar a sua proacutepria ruiacutena

O estudo estaacute dividido em quatro capiacutetulos No primeiro mais teoacuterico eacute feita

uma sinopse da filosofia estoacuteica de Zenatildeo a Seacuteneca passando por Crisipo Epicteto e

Marco Aureacutelio e pelos testemunhos de Ciacutecero de Dioacutegenes Laeacutercio e de Sexto

Empiacuterico Este estudo preliminar eacute uma preparaccedilatildeo para a leitura das peccedilas Hercules

Furens e Hercules Oetaeus que decorreraacute nos capiacutetulos seguintes comprovando que as

trageacutedias satildeo um outro meio de divulgaccedilatildeo desta doutrina filosoacutefica Para esse efeito

6 Carlos Ferreira Santos Euriacutepides Heacuteracles Introduccedilatildeo Traduccedilatildeo e Notas (Coimbra diss de Mestrado em Literaturas Claacutessicas apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 1996) 7 7 Satildeo excepccedilatildeo Iacuteris Lissa Mensageiro e Juno As trecircs primeiras aparecem apenas em Euriacutepides enquanto Juno eacute de Seacuteneca 8 Tendo por base a ideia de que Filosofia do Poacutertico podia ensinar o homem a enveredar pelo caminho da uirtus Seacuteneca procura dar a conhecer esse caminho ao maior nuacutemero de pessoas Essa teraacute sido uma das razotildees que o levou a escrever trageacutedias uma vez que as obras filoacutesoficas em prosa se destinavam a um grupo mais restrito

3

natildeo pudemos deixar de contextualizar ainda que sumariamente a trageacutedia Heracles e

Hercules Furens observando os aspectos semelhantes e divergentes das duas peccedilas

No segundo capiacutetulo analisamos e comparamos as personagens da trageacutedia grega

e da trageacutedia latina Identificamos e reflectimos sobre todas as personagens que entram

em cena nas respectivas peccedilas excepto o protagonista e o Mensageiro ndash o heroacutei

mereceu um estudo mais desenvolvido no capiacutetulo seguinte Comeccedilamos por Anfitriatildeo

por ser a primeira personagem a entrar em cena no Heracles de Euriacutepides mas tambeacutem

por ser a uacutenica a estar presente em todos os episoacutedios (em Seacuteneca entra no Acto II)

Seguimos com Meacutegara Lico e Teseu ndash a ordem respeita novamente a entrada de cada

uma das personagens em cena Depois vemos o comportamento do Coro terminando o

capiacutetulo com a anaacutelise das divindades Iacuteris Lissa e Juno Deixamos estas figuras para o

final deste capiacutetulo porque marcam uma diferenccedila entre as duas trageacutedias as deusas Iacuteris

e Lissa que entram em cena na peccedila de Euriacutepides satildeo ldquosubstituiacutedasrdquo por Juno na de

Seacuteneca

Num primeiro momento apresentamos a descriccedilatildeo que Euriacutepides faz de cada

uma destas personagens observando em seguida como Seacuteneca as representa em

Hercules Furens Nesta perspectiva seraacute possiacutevel estabelecer alguns pontos de contacto

entre as duas trageacutedias bem como identificar as significativas diferenccedilas tentando na

medida do possiacutevel explicaacute-las agrave luz da doutrina estoacuteica Eacute nosso propoacutesito demonstrar

neste capiacutetulo e nos seguintes que os objectivos que norteiam Seacuteneca na elaboraccedilatildeo das

trageacutedias satildeo as mesmas que estatildeo presentes na sua obra em prosa

O terceiro capiacutetulo centra-se nas personagens Heacuteracles e Heacutercules A estrutura

deste capiacutetulo eacute semelhante agrave do anterior comeccedilamos por descrever as caracteriacutesticas de

Heacuteracles passando para as de Heacutercules comparando e mostrando os aspectos

divergentes Optaacutemos por integrar o Mensageiro neste capiacutetulo uma vez que eacute ele quem

descreve as manifestaccedilotildees fiacutesicas e psicoloacutegicas da loucura e as consequecircncias que

decorreram dela Assim poderemos dar uma visatildeo completa do protagonista isto eacute

mostrar a forma como ele eacute apresentado antes durante e depois da loucura avaliando a

transformaccedilatildeo que o acto da demecircncia provocou no heroacutei para depois confrontar com

Heacutercules

Por fim no uacuteltimo capiacutetulo ocupamo-nos da meditatio mortis nas trageacutedias

Hercules Furens e Hercules Oetaeus Ainda que a autoria da uacuteltima trageacutedia seja

4

incerta9 o nosso objectivo ao incluiacute-la neste estudo eacute fazer uma anaacutelise da evoluccedilatildeo da

figura de Heacutercules e da forma como eacute visto o suiciacutedio nas duas peccedilas Nesse sentido

comeccedilamos por fazer uma siacutentese dos trecircs tipos de suiciacutedio segundo Durkheim vendo

qual deles se aproxima melhor dos propoacutesitos estoacuteicos daiacute decorrendo um estudo sobre

o comportamento de Heacutercules no final da trageacutedia Hercules Furens e no de Hercules

Oetaeus nesta se observa a ascese do proficiens que no uacuteltimo momento aceita de

forma impassiacutevel o seu Destino

A ediccedilatildeo adoptada para as trageacutedias de Euriacutepides eacute a da Oxford Classical Texts

preparada por James Diggle para as de Seacuteneca eacute a da Loeb preparada por John Fitch

Seguiram-se os comentaacuterios da Oxford Clarendon Press de Bond para a trageacutedia

Heracles de Euriacutepides e da Cornell University Press de Fitch para Hercules Furens

de Seacuteneca

Para tornar as notas de rodapeacute mais leves e de mais faacutecil leitura algumas obras

de uso mais frequente satildeo citadas em abreviaturas cuja lista apresentamos Foram

adaptadas as grafias σ e ς em vez de с no caso do grego e u em vez de v relativamente

ao latim Apresentamos algumas traduccedilotildees dos textos claacutessicos quando reconhecemos

que satildeo boas e quando natildeo analisamos o passo ou natildeo fazemos paraacutefrase do mesmo Os

tiacutetulos das trageacutedias satildeo apresentados em latim seguindo as normas estabelecidas nos

dicionaacuterios de Liddell-Scott e Glare agrave excepccedilatildeo de Heracles que segue a praacutetica

adoptada nos estudos euripidianos de James Diggle Quanto ao nome do Alcida

achaacutemos conveniente por razotildees de clareza manter Heacuteracles quando se fala da trageacutedia

de Euriacutepides e Heacutercules quando nos referimos agrave de Seacuteneca

9 Para um estudo sobre esta problemaacutetica vejam-se por exemplo Arthur Stanley Pease ldquoOn the Authenticity of the Hercules Oetaeusrdquo Transactions and Proceedings of the American Philological Association 49 (1918) 3-26 Leacuteon Herrmann Le Theacuteacirctre de Seacutenegraveque (Paris Les Belles Lettres 1924) 53-57 Francesco Giancotti Saggio sulle Tragedie di Seneca (Roma Societagrave Editrice Dante Alighieri 1953) 7-16 R G Tanner N S W Newcastle ldquoStoic Philosophy and Roman Tradition in Senecan Tragedyrdquo Aufstieg und Niedergang der Roumlmischen Welt II 322 (Berlim Nova Iorque Walter de Gruyter 1985) 1100-1133 Seneca Tragedies II (Oedipus Agamemnon Thyestes [Seneca] Hercules Oetaeus Octavia) ed e trad John G Fitch (Cambridge Massachusetts Londres Harvard University Press 2004) 332-334

5

Capiacutetulo I

EURIacutePIDES SEacuteNECA E O ESTOICISMO

UM ESTUDO PRELIMINAR 1 Euriacutepides Heracles

EURIPIDESrsquo Heracles is a great play with a serious theme the sudden downfall of the good and glorious (Bond v)

11 Data e estrutura da trageacutedia

A trageacutedia Heracles de Euriacutepides teraacute sido representada entre 416 e 4141 A

acccedilatildeo dramaacutetica comeccedila com Anfitriatildeo Meacutegara e os seus trecircs filhos junto do altar de

Zeus onde se refugiaram como suplicantes para tentar escapar agrave morte (vv 1-106) Sob

a ameaccedila de serem queimados vivos por Lico que viola os direitos dos suplicantes a

famiacutelia heraclida abandona o altar e dirige-se para o palaacutecio de Heacuteracles (vv 140-347)

No momento que antecede a sua morte haacute uma reviravolta da Fortuna (περιπέτεια)

com a chegada de Heacuteracles a Tebas regressado do Hades (vv 451-522) Bond afirma

que ldquoSuch sudden reversals involving an obvious element of chance are an exciting

feature of the later plays of Euripidesrdquo2

Ateacute agrave vinda do protagonista a acccedilatildeo desenrola-se de modo lento (o ritmo estaacute

relacionado com a ansiedade das personagens porque foram condenadas agrave morte e pela

incerteza sobre se Heacuteracles poderaacute ou natildeo sair do Hades) Com a entrada do Alcida em

cena o ritmo da acccedilatildeo acelera Haacute uma raacutepida sucessatildeo de acontecimentos preparaccedilatildeo

da morte de Lico (vv 565-606) morte do tirano (vv 749-754) canto de juacutebilo do Coro

(vv 763-814) entrada das deusas em cena anunciada pelo Coro ndash nova περιπέτεια (vv

1 Sobre a dataccedilatildeo de Heracles ver Bond xxxi-xxxiii O mesmo autor partindo de sete trageacutedias cuja dataccedilatildeo eacute tradicional e comparando o iacutendice de resoluccedilatildeo nos triacutemetros iacircmbicos de cada uma delas ndash Alcestis (438 aC) 62 Medea (431) 66 Hippolytus (428) 43 Troades (415) 212 Helena (412) 275 Orestes (408) 394 Bacchae (406) 376 ndash aproxima a data da trageacutedia Heracles da de Troades ldquoThe figure for Heracles is 215 which indicates a date close to that of Troades (415) 416 and 414 are both possiblerdquo (idem xxxi) 2 Bond xvii

6

815-874) Heacuteracles mata os filhos e Meacutegara (vv 887-909) entrada do Mensageiro (v

910) que narra as mortes (vv 922-1015) lamento do Coro (vv 1016-1041)

A acccedilatildeo volta a ser mais lenta no momento em que Heacuteracles acorda (vv 1088-

1108) e descobre com o auxiacutelio de Anfitriatildeo que foi o autor do morticiacutenio (vv 1111-

1145) O heroacutei deseja suicidar-se (vv 1146-1152) mas a empresa eacute travada com a

chegada de Teseu que por sua vez oferece a cidade de Atenas como lugar de exiacutelio e

de purificaccedilatildeo da maacutecula do Alcida (vv 1163-1426)

Segundo Bond ldquoDuring the past century many critics have complained that the

first part of the play (1-814) the supplication and rescuing of Heraclesrsquo family has no

real connection with what follows his madness and the murdersrdquo3 Entre os que assim

julgam conta-se Ann Norris Michelini Para a autora a trageacutedia tem duas acccedilotildees que

natildeo estatildeo intimamente ligadas e que se contradizem completamente

The first half builds to a happy ending with Herakles triumphantly returning to rescue his family from the usurper Lykos while the second half shows the savior as the murderer of his family While in the other cases it is possible to trace the ways in which two actions have been interlaced in this case we can only point to parallels and analogies between the actions The central feature of the structure must remain the abrupt break that severs the play into two halves4

Na perspectiva de Bond ldquoThe play is written around the contrast at lines 8145

() It is this violent antithesis which holds Heracles together The first part which here

reaches its culmination has been concerned with the threat to the children of Heracles

and their salvation by Heracles They are now to be killed by their saviourrdquo 5 O mesmo

autor considera que os vv 822-873 entrada das deusas Iacuteris e Lissa em cena fazem

parte de um ldquosegundo proacutelogordquo6 Duclos por sua vez apresenta uma visatildeo triacuteptica da

acccedilatildeo dramaacutetica Heacuteracles salvador (vv 1-821) Heacuteracles louco (vv 822-1088)

Heacuteracles triunfante (vv 1089-1428)7 Esta divisatildeo em trecircs partes estaacute igualmente

presente em Parmentier8

3 Bond xviii 4 Ann Norris Michelini Euripides and Tragic Tradition (Londres The University of Wisconsin Press 1987) 232 5 Bond xxi 6 Idem 281 7 Duclos 123 ss 8 Parmentier 7-8

7

No tocante a esta problemaacutetica optaacutemos por seguir Barlow Para a autora a

trageacutedia tem quatro momentos que correspondem a

1 Ausecircncia de Heacuteracles e a espera pelo seu regresso

2 Regresso do heroacutei e morte de Lico

3 Loucura de Heacuteracles filiciacutedio e uxoriciacutedio

4 Recuperaccedilatildeo de Heacuteracles com o auxiacutelio de Teseu e de Anfitriatildeo ndash a amizade

triunfa no final da acccedilatildeo dramaacutetica Estes quatro momentos podem ainda segundo

Barlow agrupar-se em duas acccedilotildees os dois primeiros formam uma acccedilatildeo e os dois

uacuteltimos a segunda acccedilatildeo ldquoeach setting a problem followed by a resolution In the first

the physical danger of Heraclesrsquo family is followed by their rescue In the second their

destruction and the mental danger of Heracles himself is followed by a kind of

restorationrdquo9 Em cada uma destas partes Heacuteracles assume-se como personagem

principal

12 Os deuses

Como nota Ann Norris Michelini10 a trageacutedia de Heracles eacute a que coloca mais

questotildees sobre o papel dos deuses As personagens invocam-nos com alguma

frequecircncia Anfitriatildeo contesta a justiccedila e a (i)moralidade de Zeus (vv 339-347 vv 498-

500) que sabe partilhar o leito dos humanos (vv 344-346) mas eacute indiferente quando

mais precisam dele O Coro considera que os deuses natildeo possuem ξύνεσις nem σοφία

(vv 655-656) Meacutegara sente que a forma como as divindades agem na vida dos homens

nem sempre satildeo claros (v 62)

Depois que Heacuteracles regressa do Hades e castiga Lico o Coro muda de opiniatildeo

relativamente aos deuses (vv 772-814) elogiando-os por reconhecer que eles natildeo

descuram a justiccedila Aparecem entatildeo em cena Iacuteris e Lissa que vecircm mudar o rumo dos

acontecimentos A posiccedilatildeo do Coro volta a ser de censura critica a intervenccedilatildeo dos

deuses na vida dos homens (vv 1087-1088)

A entrada de Atena em cena eacute suacutebita aparece no preciso momento em que

Heacuteracles se prepara para matar Anfitriatildeo (vv 1001-1006) A deusa interfere na acccedilatildeo

9 Barlow 6-7 10 Ann Norris Michelini Euripides and Tragic Tradition 267

8

para travar Heacuteracles lanccedilando-lhe uma rocha contra o peito e adormecendo-o Quanto

ao suacutebito aparecimento desta divindade Emma Griffiths diz

While she may be acting as an agent of Zeus she may also be acting as Heraclesrsquo protector or because of a general concern for the rights and fathers () There are also links between Athena and Zeus and Heracles which suggest a close relationship However her role as patron goddess of Athens gives the episode a more immediate link to the original audience and connects her with Theseus who arrives shortly afterwards As Athena stops the physical harm Theseus provides a solution to the emotional caos which ensues11

A intervenccedilatildeo da deusa poderaacute tambeacutem ter que ver com o proacuteprio excesso do

heroacutei uma vez que Iacuteris (e Hera) pretendia apenas que Heacuteracles matasse os seus filhos

Ora o heroacutei mata Meacutegara e tem que ser impedido para natildeo cometer um uacuteltimo crime o

parriciacutedio ndash esta violecircncia e excesso poderatildeo fazer parte da proacutepria caracteriacutestica do

protagonista (vide vv 565-573)12

Quando Anfitriatildeo conta ao Alcida que foi ele o autor da morte dos filhos e de

Meacutegara o protagonista considera inaceitaacutevel que uma deusa como Hera seja honrada

uma vez que a divindade o perseguiu sempre e acabou por destruiacute-lo quando lhe

suscitou a loucura (vv 1303-1310) Teseu aceita a ideia que os poetas datildeo dos deuses

de que eles satildeo imorais e injustos (vv 1311-1319) e parte deste conceito da divindade

para dissuadir Heacuteracles de se suicidar Teseu lembra-lhe que o ser humano mais natildeo eacute

do que um joguete nas matildeos dos deuses (vv 1314-1339) Apenas Heacuteracles contesta a

imagem antropomorfizada das divindades natildeo acreditando que os deuses possam ter

exactamente as mesmas emoccedilotildees que os homens (vv 1340-1344) Neste sentido

parece-nos justa a afirmaccedilatildeo de Maria de Faacutetima Sousa e Silva relativamente agrave trageacutedia

Heracles ldquoTornam-se inaceitaacuteveis os crimes e desonestidades que o mito atribuiacutea aos

deuses o modelo religioso tradicional eacute a cada momento posto em causardquo13

Este sentimento de descreacutedito pelas divindades levou investigadores a sentir que

a proacutepria trageacutedia natildeo eacute senatildeo uma ficccedilatildeo uma invenccedilatildeo do poeta ldquoWith the overt

reference to the possibility that the logoi of the poets may be false we are forced to

11 Emma Griffiths Euripides Heracles (Londres Duckworth 2006) 98-99 12 Vide o Capiacutetulo III aliacutenea a) 13 Maria de Faacutetima Sousa e Silva Criacutetica Literaacuteria na Comeacutedia Grega Geacutenero Dramaacutetico (Coimbra diss de Doutoramento em Literatura Grega apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 1983) 226

9

consider that Herakles itself the play we are watching is also a mere fiction a tale told

by a poet who may be lyingrdquo explica Ann Norris Michelini14

Bond sugere In exhibiting and emphasizing these successive views about gods Heracles is mainly agnostic and negative in tone But two positive features are brought out which serve as shafts of light in this deeply pessimistic tragedy The first is the strength of human friendship () The second positive feature is the decision of Heracles not to kill himself but to endure life as best he may15

Este afastamento do homem dos deuses tem que ver com o interesse que os

sofistas tinham de estudar o homem por si no sentido pleno Natildeo se pode dizer

contudo que Euriacutepides natildeo acreditasse nas divindades assumiu apenas um juiacutezo

criacutetico que procura ser consciente16

13 Inovaccedilotildees em Euriacutepides

Sendo o seu objectivo representar um heroacutei mais humano Euriacutepides

desenvolveu o mito de Heacuteracles de uma forma peculiar inovando em alguns aspectos

a) A personagem Lico eacute uma inovaccedilatildeo de Euriacutepides17

b) Episoacutedio da loucura de Heacuteracles e consequente morte dos filhos Para Bond

Before Euripides there is little evidence about the stories of the madness of Heracles and the murder of his children The Cypria refer vaguely to τὴν ῾Ηρακλέους μανίαν Stesichorus 230 PMG mentions a memorial to his children by Megara who evidently died in a mad attack by Heracles for our source implies clearly that Stesichorus did not include the attack on Amphitryon nor the stone hurled by Athene to stop Heracles () Pherecydes (F Gr Hist 3 F 14) says simply that Heracles threw his five children into a fire18

14 Ann Norris Michelini Euripides and Tragic Tradition 275 Vide ainda Emma Griffiths Euripides Heracles 96-97 Thalia Papadopoulou Heracles and Euripidean Tragedy (Cambridge Cambridge University Press 2005) 100 ss 15 Bond xxii-xxiii 16 Maria de Faacutetima Sousa e Silva Criacutetica Literaacuteria na Comeacutedia Grega Geacutenero Dramaacutetico 227 17 Voltaremos a focar este aspecto quando analisarmos a personagem (Capiacutetulo II 3a) 18 Idem xxviii-xxix

10

Segundo o mesmo autor haacute trecircs escritores gregos posteriores a Euriacutepides que

trataram o tema da loucura antes do Alcida realizar os trabalhos Satildeo eles Damasco (F

Gr Hist 90 F 13) Diodoro (4106ss) e Apolodoro (Bibl 2412)19 Este por exemplo

conta que a loucura do heroacutei decorreu depois da guerra contra os Miacutenios tendo sido

causada pelos ciuacutemes de Hera por o Alcida ser filho de Zeus Enlouquecido o heroacutei

mata natildeo soacute os filhos como tambeacutem dois dos seus sobrinhos atirando-os ao fogo

Depois de recuperada a razatildeo eacute purificado pelo rei Teacutespio Considerando a purificaccedilatildeo

insuficiente para expiar os seus crimes o Alcida procura o oraacuteculo de Apolo com o

intuito de saber quais satildeo os desiacutegnios dos deuses Do encontro que teve com a Pitonisa

passa a chamar-se Heacuteracles sendo obrigado a submeter-se agraves ordens de Euristeu

durante doze anos Uma vez concluiacutedos os trabalhos Heacuteracles receberia como preacutemio a

imortalidade20

Na perspectiva de Bond natildeo haacute certezas de que a descriccedilatildeo da loucura de

Heacuteracles quando localizada apoacutes a conclusatildeo dos trabalhos seja uma inovaccedilatildeo de

Euriacutepides Sendo ou natildeo inovaccedilatildeo Euriacutepides daacute a imagem de um heroacutei que depois de

ter vencido todos os obstaacuteculos eacute derrotado por completo pelas divindades Como Ann

Norris Michelini sublinha ldquoThe greatest of heroes is being transformed before our eyes

into something very like other Euripidean tragic protagonists helpless and humiliated

perhaps even awkward and ludicrous figures whose endurance and suffering capture

audience sympathy in spite of these negative characteristicsrdquo21

Reverter a ordem dos acontecimentos (vindo o acto da loucura depois dos

trabalhos) significa para David Kovacs

The Labors must be given another motivation Heracles offers to work for Eurystheus so that he and his father Amphitryon may return to Argos from which Amphitryon has been banished In this way the killing of his family can be left as the final reversal of the herorsquos good fortune22

d) O aparecimento de Teseu no final da acccedilatildeo dramaacutetica poderaacute ser outra

inovaccedilatildeo do poeta jaacute que como sugere Bond ldquoif in the pre-Euripidean tradition the

19 Apud Bond xxix 20 Apolodoro Bibliotheca 2412 21 Ann Norris Michelini Euripides and Tragic Tradition 263 22 Euripides Suppliant Women Electra Heracles ed e trad David Kovacs (Cambridge Massachusetts Harvard University Press 1998) 304

11

murderers preceded the labours Theseus cannot have played any part and there is a

strong likelihood of Euripidean invention hererdquo 23

Parece-nos que o aparecimento de Teseu no final da trageacutedia permite a Euriacutepides

elogiar a cidade ateniense em detrimento de Tebas Esta cidade recusou ajudar a famiacutelia

de Heacuteracles no momento em que o heroacutei estava ausente (v 227 v 560) Teseu pelo

contraacuterio assim que soube que a famiacutelia do Alcida estava a ser ameaccedilada por Lico

dirigiu-se para Tebas acompanhado de hoplitas (vv 1164-1171) Heacuteracles eacute obrigado a

abandonar Tebas (governada por tiranos) por ter cometido um crime involuntaacuterio

Atenas (onde a democracia era a poliacutetica vigente) eacute a cidade acolhedora que julgaraacute e

purificaraacute Heacuteracles do filiciacutedio e do uxoriciacutedio

Para Francis M Dunn ldquoWhen he arrives with an army (1165) when he shows

concern for the polluted and exiled Heracles when he offers him a place of refuge and

promises to settle him on Athenian soil Theseus plays a familiar role as the statesman

who embodies Athenian values by protecting suppliantsrdquo24

2 Seacuteneca Hercules Furens

Seacuteneca revela-se o mais laquomodernoraquo dos pensadores e dos escritores antigos

(Padre Manuel Antunes25)

21 Data e Estrutura da Trageacutedia

Pensa-se que a trageacutedia Hercules Furens teraacute sido escrita antes de 54 dC26 A

acccedilatildeo dramaacutetica afasta-se logo no Acto I da de Euriacutepides o seu modelo com a

introduccedilatildeo da personagem Juno que num soliloacutequio prepara a vinganccedila contra 23 Bond xxx 24 Francis M Dunn Tragedyrsquos End Closure and Innovation in Euripidean Drama (Oxford Oxford University Press 1996) 121 25 Padre Manuel Antunes sj Obra Completa tomo I Theoria Cultura e Civilizaccedilatildeo volume I Cultura Claacutessica (Estudos) ed criacutetica coordenaccedilatildeo cientiacutefica Arnaldo do Espiacuterito Santo (Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2007) 192 26 Katharina Volk Gareth D Williams (eds) Seeing Seneca Whole Perspectives on Philosophy Poetry and Politics (Leiden Boston Brill 2006) 199 Fitch (1) 50-53 Estes criacuteticos sugerem que a trageacutedia teraacute sido escrita por volta do ano 54 pelos ecos que encontram da Apocolocyntosis

12

Heacutercules Com a entrada da deusa no iniacutecio da trageacutedia fica-se a conhecer o tema a

loucura e o assassiacutenio dos filhos do Alcida Jaacute na peccedila de Euriacutepides o tema soacute eacute revelado

quando entram em cena Iacuteris e Lissa (vv 821-974)

O Acto II assemelha-se ao Proacutelogo e ao Episoacutedio I de Euriacutepides O cenaacuterio eacute

semelhante Anfitriatildeo e Meacutegara estatildeo junto do altar de Juacutepiter (Zeus na trageacutedia grega)

como suplicantes esperando pelo regresso do Alcida Lico entra em cena natildeo com o

objectivo de matar a famiacutelia heraclida (como em Her) mas de assegurar o seu poder

querendo casar-se com Meacutegara Recusada com violecircncia a proposta Lico ameaccedila

queimaacute-los vivos acendendo uma fogueira ao redor do altar de Juacutepiter Tal como na

trageacutedia de Euriacutepides a famiacutelia heraclida abandona o lugar e dirige-se ao palaacutecio de

Heacutercules

O Acto III inicia-se com o monoacutelogo do Alcida Meacutegara eacute uma personagem

muda ao contraacuterio do que acontece em Euriacutepides Heacutercules vem acompanhado de Teseu

(na trageacutedia grega o soberano de Atenas soacute aparece no episoacutedio V) A permanecircncia do

protagonista em cena eacute curta27 ndash ao saber que Lico pretendia matar a sua famiacutelia deixa

Anfitriatildeo Meacutegara e os filhos com Teseu e vai ao encontro de Lico para mataacute-lo Esta

saiacuteda raacutepida abre espaccedilo para que Teseu descreva as moradas das sombras narrando a

luta de Heacutercules com Ceacuterbero Este Acto eacute substancialmente diferente do Episoacutedio II na

peccedila de Euriacutepides Heacuteracles dialoga ora com Meacutegara ora com Anfitriatildeo dirige-se aos

filhos encaminha-os para o palaacutecio como um navio que conduz os botes para um porto

seguro metaacutefora que o heroacutei usa o Hades nunca eacute descrito Anfitriatildeo e Heacuteracles

preparam o assassiacutenio de Lico

O episoacutedio da loucura no Acto IV decorre agrave frente do leitorespectador A

descriccedilatildeo da alteraccedilatildeo mental do Alcida permite ter uma visatildeo ldquoem tempo realrdquo da

mudanccedila que estaacute a acontecer no protagonista Na peccedila de Euriacutepides eacute o Mensageiro (no

episoacutedio IV) que conta essa transformaccedilatildeo porque tudo se passou dentro do palaacutecio fora

do campo de visatildeo dos espectadores

O uacuteltimo Acto que corresponde ao episoacutedio V do Heracles eacute o despertar de

Heacutercules O protagonista descobre que foi o autor do filiciacutedio e do uxoriciacutedio O

suiciacutedio surge em ambas as trageacutedias como a melhor opccedilatildeo para o Alcida mas haacute uma

personagem que o dissuade Teseu em Euriacutepides e Anfitriatildeo na trageacutedia latina

27 De 237 vv total de versos do Acto III apenas 385 vv dizem respeito agrave fala do heroacutei Deste nuacutemero 115 vv correspondem a Heacutercules no momento em que se dirige a Anfitriatildeo a Meacutegara e a Teseu

13

As inovaccedilotildees mitoloacutegicas que encontramos em Euriacutepides foram ldquorecuperadasrdquo

por Seacuteneca mas com uma visatildeo e objectivos diferentes

22 Deuses

Os deuses natildeo tecircm nas trageacutedias de Seacuteneca o mesmo desenvolvimento e

importacircncia que tecircm nas peccedilas gregas Em Hercules Furens apesar de Juno entrar em

cena deixando expliacutecito o seu oacutedio a Heacutercules e afirmando que tudo faraacute para destruir o

heroacutei perseguindo ad aeternum o fruto do adulteacuterio de Juacutepiter a sua funccedilatildeo e atitude

assemelham-se agrave de uma mulher traiacuteda pelo marido Ela proacutepria diz ter abandonado os

ceacuteus e passado a viver na terra (vv 1-5) logo junto de mortais Mariana Matias afirma

ldquoOs homens fazem uso do livre arbiacutetrio que a proacutepria Divindade lhes concedeu O Mal

ou Bem adviraacute do correcto ou inadequado uso que fizer da Razatildeo e da forccedila de vontade

(uoluntas) que tiver para se afastar das paixotildees e dos conflitos que atraem o

sofrimentordquo28

Num uacuteltimo aspecto a acccedilatildeo de Hercules Furens eacute ldquodesequilibradardquo jaacute que ldquoo

ritmo com que Seacuteneca constroacutei a acccedilatildeo das suas peccedilas se caracteriza pelo desequiliacutebrio

visto que gasta a maior parte do texto em interminaacuteveis monoacutelogos de anaacutelise interior

das personagens enquanto desenvolve os incidentes especiacuteficos da acccedilatildeo em cenas

concentradas de uma rapidez vertiginosardquo29 diz Segurado e Campos Essa falta de

proporccedilatildeo prende-se com o objectivo de Seacuteneca em querer revelar as tendecircncias que as

personagens tecircm para enveredar pelo caminho do uitium Ao fazecirc-las falar expondo as

suas duacutevidas os seus receios ao dar-lhes a capacidade de construiacuterem um raciociacutenio

loacutegico e aparentemente correcto Seacuteneca mostra os erros de raciociacutenio e os resultados

que eles podem trazer

Antes poreacutem de passarmos agrave anaacutelise das personagens sob um ponto de vista

comparativo eacute conveniente fazer um breve estudo sobre a doutrina do Poacutertico

28 Mariana Montalvatildeo Horta e Costa Matias Paisagens Naturais e Paisagens da Alma no Drama Senequiano ndash Troades e Thyestes (Coimbra diss de Mestrado em Literaturas Claacutessicas especialidade de Literatura Latina apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 2007) 32 29 Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos ldquoSeacuteneca Brecht e o Teatro Eacutepicordquo Classica 23 (1999) 13

14

23 Doutrina Estoacuteica

Fundado por Zenatildeo de Ciacutecio que chega a Atenas por volta do ano 313 aC para

abraccedilar o estudo da filosofia heleacutenica o estoicismo30 surge na Greacutecia por volta do ano

300 aC Pretende ser uma resposta ao momento conturbado que as cidades gregas

viviam no fim do seacutec IV Em contraste com a anterior hegemonia e individualismo

caracteriacutesticas do espiacuterito heleno o povo grego confronta-se agora com uma abertura de

horizontes e uma nova cultura a invadir o seu espaccedilo na sequecircncia da expansatildeo de

Alexandre

Zenatildeo procurou ensinar um novo sentimento de comunidade que se opunha por

completo ao individualismo defendido por Epicuro Proferindo os seus discursos na

Στοὰ ποικίλη lugar onde se reunia com um vasto puacuteblico e que acabou por dar nome agrave

Escola Zenatildeo difundiu ainda a sua crenccedila num poder que comanda todo o Universo

Como sublinha Joseph Moreau Zenatildeo propocircs a ideia da existecircncia de uma Razatildeo

Universal (Λόγος) que eacute Destino e Providecircncia31 A partir deste conceito pretende

libertar as almas de todo o tipo de inquietudes medos inseguranccedilas fazendo vingar a

ideia de que tudo o que acontece eacute inevitaacutevel e de acordo com a vontade de um Bem

Supremo de tal modo que cabe ao homem aceitar tudo com resignaccedilatildeo e confianccedila

Assim ao procurar viver bem e de acordo com o que a Natureza lhe enviava uma vez

que provinha de deus o homem conseguia alcanccedilar a sabedoria ldquoo estoicismo

desenvolve-se como um materialismo e como um racionalismo eacuteticordquo32

30 O estoicismo compreende trecircs grandes momentos na sua histoacuteria O primeiro periacuteodo correspondente ao do estoicismo antigo (finais do seacutec IV aC a III aC) eacute inaugurado por Zenatildeo de Ciacutecio e continuado por Cleantes e Crisipo (todos eles assumiram a direcccedilatildeo da Escola) Num segundo momento no periacuteodo meacutedio (seacutecs II-I aC) o estoicismo chega a Roma aiacute tendo como representantes Paneacutecio de Rodes amigo de Cipiatildeo Emiliano e membro do chamado Ciacuterculo de Cipiotildees e Posidoacutenio de Apameia disciacutepulo de Paneacutecio e amigo e mestre de Ciacutecero Por uacuteltimo o terceiro periacuteodo denominado neo-estoicismo estoicismo romano ou estoicismo imperial (I-II dC) tem como protagonistas Seacuteneca Musoacutenio Rufo Epicteto (escravo e depois liberto) e o imperador Marco Aureacutelio 31 Vide Joseph Moreau Stoiumlcisme ndash Eacutepicurisme Tradition Helleacutenique (Paris Librairie Philosophique J Vrin 1979) 9 32 Jean Brun O Estoicismo trad Joatildeo Amado (Lisboa Ediccedilotildees 70 1986) 32

15

231 Os trecircs ramos da Filosofia Fiacutesica Loacutegica e Moral

De modo geral os estoacuteicos dividiam a Filosofia em trecircs ramos33 a Fiacutesica a

Moral e a Loacutegica ndash o primeiro a fazer esta distinccedilatildeo foi Zenatildeo de Ciacutecio34 Apesar desta

triparticcedilatildeo os estoacuteicos consideram que esses trecircs ramos se conjugam num todo e

procuraram demonstraacute-lo por meio de diversas analogias Uma delas eacute entre o

estoicismo e o corpo de um animal em que os ossos e os nervos tecircm como

correspondente a Loacutegica a carne a Moral e a alma representa a Fiacutesica Um outro siacutemile

que os estoacuteicos usam eacute o ovo a casca eacute a Loacutegica a clara a Moral e a gema que estaacute no

centro a Fiacutesica Estabelecem ainda paralelismo entre esta doutrina e um campo feacutertil a

Loacutegica seria a cerca que delimita toda a aacuterea de cultivo a Moral os frutos e a Loacutegica a

terra ou as aacutervores Por uacuteltimo entre o estoicismo e uma cidade bem fortificada e sob o

governo da Razatildeo35 De todos estes exemplos se infere que nenhuma parte eacute

independente mas cada um dos elementos completa os outros formando um todo De

facto como refere Dioacutegenes Laeacutercio se todas as coisas satildeo apreendidas por recurso agrave

loacutegica esta implicaraacute a inclusatildeo de tudo o que entra no domiacutenio da fiacutesica e da eacutetica36

a) A Loacutegica

O estoicismo tal como o aristotelismo parte do empirismo Contudo as

perspectivas que estatildeo na base de cada uma destas doutrinas filosoacuteficas diferem por

completo Para Aristoacuteteles o mundo eacute estaacutetico (porque traduz um movimento

incompleto ou seja ldquoele natildeo eacute mais do que a passagem da potecircncia ao actordquo37) e

obedece a hierarquias (no sentido em que cada indiviacuteduo tem um lugar e funccedilatildeo

proacuteprios no mundo)

33 Segundo Dioacutegenes Laeacutercio haacute estoacuteicos que elaboraram uma divisatildeo mais minuciosa como eacute o caso de Cleantes que dividiu a Filosofia em seis partes Dialeacutectica Retoacuterica Eacutetica Poliacutetica Fiacutesica e Teologia (vide Dioacutegenes Laeacutercio 741) No entanto a triparticcedilatildeo parece ser a mais aceite entre os estoacuteicos 34 Dioacutegenes Laeacutercio 739 35 Vide Dioacutegenes Laeacutercio 740 36 Dioacutegenes Laeacutercio 783 37 Jean Brun O Estoicismo 35

16

Jaacute os estoacuteicos entendiam o mundo como um ser vivo38 Deus Mundo Natureza

todos satildeo seres vivos Como afirma Jean Brun

O empirismo estoacuteico natildeo eacute um empirismo de mensagem qualitativa como em Aristoacuteteles mas um empirismo da compenetraccedilatildeo do homem e do mundo sentir eacute ter os sentidos e a alma modificados pelo que eacute exterior esta modificaccedilatildeo pode ser em harmonia com o que a provoca e neste caso estamos na verdade ou pode estar em desacordo e nesse caso estamos no erro e na paixatildeo39

Assim o homem soacute vive bem quando em plena sintonia com o que faz parte da

natureza

A doutrina do Poacutertico divide o estudo da Loacutegica em duas partes retoacuterica

(ῥητορική) e dialeacutectica (διαλεκτική) ndash esta estrutura da lsquociecircncia de bem falarrsquo eacute herdeira

da sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica A primeira constitui a ciecircncia de bem falar que por sua

vez tem trecircs geacuteneros deliberativo judicial e demonstrativo ou epidiacutectico A retoacuterica

divide-se em inuentio dispositio elocutio e actio correspondendo cada uma dessas

partes agraves fases da elaboraccedilatildeo do discurso (ainda sem a da memoria que soacute mais tarde a

tratadiacutestica retoacuterica integraraacute) A dialeacutectica eacute a ciecircncia que permite o uso correcto da

linguagem quer em perguntas quer nas respostas Esta ciecircncia eacute divisiacutevel em duas

partes uma diz respeito ao discurso (σημαινομένος lsquosignificadorsquo) a outra estaacute

relacionada com a linguagem (φωνή lsquosomrsquo) O discurso compreende a introductio a

narratio a refutatio e a conclusio40

A dialeacutectica eacute necessaacuteria e eacute considerada pelos estoacuteicos como uma virtude que

agrega em si todas as outras Eacute pela dialeacutectica que o saacutebio consegue discernir de modo

pleno a verdade da mentira aleacutem de lhe permitir um bom uso da argumentaccedilatildeo e um

raciociacutenio claro Eacute munido da dialeacutectica que o homem obteacutem a capacidade de colocar

questotildees agraves quais consegue responder41

38 Seacuteneca considera que o mundo tal como qualquer ser vivo possui arteacuterias e veias Explica Pierre Grimal Seacutenegraveque sa Vie son Oeuvre avec un Exposeacute de sa Philosophie (Paris Presses Universitaires de France 1966) 50 que a visatildeo de Seacuteneca de que o mundo eacute um ser vivo natildeo eacute original uma vez que jaacute Empeacutedocles e Posidoacutenio tinham explorado o conceito Contudo diz-nos Grimal que o que se demarca em Seacuteneca eacute o estudo que ele desenvolve sobre o tema ldquoCette doctrine est pousseacute par lui jusque dans le deacutetail agrave la faccedilon drsquoune hypothegravese dont on cherche agrave deacutevelopper les conseacutequences et surtout elle lui permet de concevoir selon un scheacutema quasi meacutecanique la solidariteacute interne du Monde exigeacutee par le postulat de sa rationaliteacute et condition mecircme de toute connaissancerdquo 39 Jean Brun O Estoicismo 36 40 Dioacutegenes Laeacutercio 741-43 41 Dioacutegenes Laeacutercio 746-48

17

b) A Fiacutesica

O termo lsquoFiacutesicarsquo vem do termo grego φύσις (lsquonaturezarsquo) que por sua vez deriva

da forma verbal φύειν cujo sentido eacute lsquocrescerrsquo A Natureza conteacutem em si o mundo e eacute a

fonte directriz de tudo

Na verdade para os estoacuteicos a palavra lsquofiacutesicarsquo tinha um significado mais amplo

do que aquele que comummente lhe atribuiacutemos nos nossos dias Segundo Dioacutegenes

Laeacutercio os Estoacuteicos entendiam a Fiacutesica como aquilo que deteacutem o mundo e que provoca

as estaccedilotildees Definiam a natureza como uma forccedila que se desloca sobre si mesma e que

preserva a descendecircncia dos seres42

A Fiacutesica dividia-se em vaacuterios ramos Um relaciona-se com a divisatildeo por espeacutecies

e compreendia o que trata dos corpos (περὶ σωμάτων) o que trata dos princiacutepios (περὶ

ἀρχῶν) o dos elementos (περὶ στοιχείων) o dos deuses (περὶ θεῶν) o dos limites (περὶ

περάτων) o do lugar (τόπου) e o do vazio (κενοῦ) Um outro ramo liga-se agrave divisatildeo por

geacuteneros do Cosmo dos elementos e da etiologia43

Relativamente aos geacuteneros em particular ao universo este eacute governado por dois

princiacutepios um passivo e um activo O passivo (τὸ πάσχον) eacute identificado com a mateacuteria

(ὕλη) e o activo (τὸ ποιοῦν) que se relaciona com a Razatildeo eacute designado λόγος Este

princiacutepio eacute activo no sentido em que age sobre a mateacuteria moldando-a e fazendo dela

forma Sem este princiacutepio a mateacuteria jaz informe Seacuteneca identifica nas Ad Lucilium

Epistulae Morales estes dois princiacutepios da natureza como causa e mateacuteria Eacute deles que

tudo o resto deriva Explica Seacuteneca que materia iacet iners res ad omnia parata

cessatura si nemo moueat causa autem id est ratio materiam format et quocumque

uult uersat ex illa uaria opera producit44 A causa eacute o agente Em termos praacuteticos o

corpo eacute a mateacuteria e a alma a causa

A mateacuteria eacute por sua vez formada por quatro elementos o fogo (proveniente do

eacuteter) o ar (que estaacute depois do eacuteter) a aacutegua e a terra Destes quatro elementos dois satildeo

42 Dioacutegenes Laeacutercio 7148-149 43 Dioacutegenes Laeacutercio 7132 44 L Annaei Senecae Ad Lucilium Epistulae Morales 652 lsquoA mateacuteria jaz inerte apta a tomar todas as formas mas imoacutevel para sempre se ningueacutem a trabalhar a causa poreacutem que eacute como quem diz a razatildeo daacute forma agrave mateacuteria transforma-a naquilo que quer realiza a partir dela vaacuterios tipos de produtosrsquo As traduccedilotildees do latim seguem a ediccedilatildeo de Luacutecio Aneu Seacuteneca Cartas a Luciacutelio trad Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos (2ordf ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2004)

18

activos (o ar e o fogo) dois passivos (terra e aacutegua) Estes elementos satildeo pereciacuteveis pelo

facto de que estatildeo em interminaacutevel mutaccedilatildeo o que implica um fim e uma renovaccedilatildeo

Haacute dois movimentos naturais que podemos identificar com a proacutepria vida e

morte de todos os que habitam o mundo o primeiro eacute a passagem do fogo para a terra

passando pelo ar e pela aacutegua (traduz-se na vida) o segundo movimento vai da terra para

o fogo passando de novo pelos dois outros elementos aacutegua e ar (representaccedilatildeo da

morte) Esta morte e ressurgimento natural das coisas que os estoacuteicos comummente

designam por palingeacutenese acontece no dizer de Jean Brun ldquopor ocasiatildeo de uma

conflagraccedilatildeo universal durante a qual o mundo se dilata no vazio ilimitado que o

envolve e onde todas as coisas satildeo transformadas em fogo (ἐκπύρωσις)rdquo45 O mesmo

autor explica que esta conflagraccedilatildeo universal natildeo se traduz numa destruiccedilatildeo total do

Universo O que se daacute em concreto eacute uma renovaccedilatildeo dos seres e das coisas Os estoacuteicos

acreditavam que a vida do mundo eacute um ciacuterculo perfeito no sentido em que nasce morre

e volta a nascer

Sendo o κόσμος visto como um ser vivo que possui uma anima e a razatildeo os

estoacuteicos interpretam este lsquoUniversorsquo sob trecircs acepccedilotildees diferentes primeira o Universo eacute

imagem do Deus uacutenico ser que possui qualidades inerentes (ἰδίως ποιόν) este por sua

vez eacute um ser indestrutiacutevel e arquitecto da ordem do Cosmo uma vez que tem a

capacidade de destruir e recriar tudo a partir de si proacuteprio (o que equivale a dizer que

tem mecanismos proacuteprios que lhe permitem eliminar o que quiser e do nada voltar a

engendrar algo novo) segunda o Universo eacute considerado como a ordem dos astros

terceira o Universo eacute visto como um todo do qual Deus e os astros fazem parte46

Consideravam ainda que o mundo eacute constituiacutedo por mateacuteria ou seja por corpos

Esta eacute uma noccedilatildeo panrealista visto que para os estoacuteicos tudo eacute σῶμα desde a noite a

aurora o minuto a palavra o proacuteprio deus ateacute agrave alma e as virtudes e os viacutecios Dada a

visatildeo de que tudo ou quase tudo eacute corpo eacute permitido ao homem uma ligaccedilatildeo estreita

com o Universo do qual eacute originaacuterio e para o qual retorna Diz Seacuteneca bonum agitat

animum et quodam modo format et continet quae [ergo] propria sunt corporis Quae

corporis bona sunt corpora sunt ergo et quae animi sunt nam et hoc corpus est47

45 Jean Brun O Estoicismo 49 46 Dioacutegenes Laeacutercio 7138-139 47 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 1064 lsquoO bem move-nos a alma de certa maneira daacute agrave alma forma e limites acccedilotildees que satildeo especiacuteficas dos corpos Os bens do corpo satildeo corpos logo tambeacutem os bens da alma o satildeo uma vez que a alma eacute um corporsquo

19

Acrescenta tambeacutem que as paixotildees satildeo consideradas como corpos dado que fazem

transparecer expressotildees no rosto do ser humano quando este se deixa levar por elas

non puto te dubitaturum an adfectus corpora sint () tamquam ira amor tristitia nisi dubitas an uultum nobis mutent an frontem adstringant an faciem diffundant an ruborem euocent an fugent sanguinem () corpora ergo sunt quae colorem habitumque corporum mutant quae in illis regnum suum exercent () numquid est dubium an id quo quid tangi potest corpus sit () omnia autem ista quae dixi non mutarent corpus nisi tangerent ergo corpora sunt Etiam nunc cui tanta uis est ut inpellat et cogat et retineat et inhibeat corpus est () denique quidquid facimus aut malitiae aut uirtutis gerimus imperio quod imperat corpori corpus est quod uim corpori adfert corpus48

No entanto alguns filoacutesofos consideram que nem tudo o que existe no cosmo

possui corpo Sexto Empiacuterico aponta quatro geacuteneros de incorpoacutereos o ldquoexprimiacutevelrdquo

(λεκτόν) o espaccedilo (τόπος) o vazio (κενόν) e o tempo (χρόνος)49 ndash este uacuteltimo eacute infinito

nas duas extremidades isto eacute no passado e no futuro mas eacute sempre contiacutenuo No que

diz respeito a este uacuteltimo elemento os estoacuteicos definem-no como um intervalo de

movimento que depende de dois elementos a terra (e o mar por extensatildeo) e o vazio

Os quatro elementos supramencionados satildeo tomados como incorpoacutereos por natildeo

manifestarem qualquer transformaccedilatildeo nos corpos Na verdade natildeo eacute possiacutevel uma

interacccedilatildeo que fundamente uma mutaccedilatildeo entre um incorpoacutereo e um corpo visto que o

primeiro natildeo produz qualquer efeito no segundo50 O mesmo natildeo acontece quando dois

corpos se tocam Haacute uma influecircncia no acto do confronto Este contacto implica sempre

ou quase sempre uma transformaccedilatildeo haacute um agente e um paciente um transformador e

um transformado Ao encontro de corpos de que resulta uma alteraccedilatildeo os estoacuteicos

denominam ldquoamaacutelgama totalrdquo (κρᾶσις δι᾽ ὅλων) Segundo Jean Brun ldquoA continuidade

da natureza esta presenccedila dos corpos num mundo de espaccedilo ocupado que ignora o

48 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 1065 7-10 lsquoAcho que tu natildeo hesitaraacutes em reconhecer como corpos as paixotildees () ndash tais como a coacutelera o amor a tristeza a menos que tu duvides que elas nos alteram o rosto nos enrugam a testa nos alongam a face nos tornam a cara encarniccedilada ou nos fazem ficar sem pinga de sangue () Consequentemente tudo quanto altera a cor e a forma dos corpos eacute igualmente um corpo o qual exerce naqueles a sua acccedilatildeo () E seraacute possiacutevel duvidar que seja corpo tudo aquilo por que um corpo pode ser tocado () Ora tudo quanto referi natildeo poderia alterar o nosso corpo se lhe natildeo tocasse por conseguinte todos satildeo corpos Mais ainda tudo quanto tenha em si forccedila suficiente para nos impelir forccedilar deter ou impedir de nos movermos ndash tem de ser um corpo () Em suma tudo quanto noacutes fazemos fazemo-lo sob ordens ou da maldade ou da virtude e tudo quanto exerce poder sobre um corpo tudo ndash eacute um corporsquo 49 Sexto Empiacuterico Aduersus Mathematicos 10218 50 Vide Ciacutecero Academica Posteriora 239

20

vazio esta assimilaccedilatildeo de Deus e do Cosmo permitem-nos dizer que o todo estaacute em

simpatia consigo mesmo que tudo conspira que existe uma simpatia universal das

coisas e dos seresrdquo51 Esta simpatia (συμπάθεια) eacute universal e conatural (συμφνές)

sendo ainda uma outra forma de ldquodesignar a identidade de Deus e do mundordquo52 Tudo

proveacutem de Deus que representa uma forccedila aniacutemica dotada de inteligecircncia de tal modo

que a infinidade de corpos mais natildeo satildeo que parcelas dessa mesma divindade

Deus e o Destino (εἱμαρμένη53) assumem importacircncia relevante para a

compreensatildeo da vida do homem uma vez que todas as coisas tecircm o seu rumo proacuteprio

ldquoo destino eacute uma realidade natural inscrita na estrutura do mundo no sentido em que o

conjunto a κρᾶσις que liga os seres eacute testemunho de uma disposiccedilatildeo imutaacutevel na

ordem das coisasrdquo54

Este poder conferido ao destino levou alguns filoacutesofos (em especial os

epicuristas) a criticarem a concepccedilatildeo que os estoacuteicos tinham dele e do livre-arbiacutetrio

porque incongruente O problema que se colocava era em que medida ao homem era

dada liberdade de fazer as suas proacuteprias escolhas se o Destino tinha poder absoluto

sobre todos os seres Crisipo contribuiu no acircmbito da reflexatildeo estoacuteica para a

compreensatildeo desta questatildeo para ele o Destino eacute um poder que governa todo o Cosmo

nada acontece sem uma causa precedente Considerando que tudo se rege por uma

causa Crisipo defendia a teoria de que existem duas espeacutecies de causas as causas

perfeitas e principais (αὐτοτελεῖ αἰτίαι ou causae perfectae causae principales) e as

causas adjuvantes e proacuteximas (προκαταρκτικαὶ αἰτίαι ou causae adiuuantes causae

proximae) As primeiras dizem respeito a decisotildees que o ser humano toma e as

segundas agrave forccedila do Destino

Si est motus sine causa non omnis enuntiatio (quod ἀξίωμα dialectici appelant) aut uera aut falsa erit causas enim efficientes quod non habebit id nec uerum nec falsum erit omnis autem enuntiatio aut uera aut falsa est motus ergo sine causa nullus est Quod si ita est omnia quae fiunt causis fiunt antegressis id est omnia fato fiunt efficitur igitur fato fieri quaecumque fiant55

51 Jean Brun O Estoicismo 53 52 Idem Ibidem 54 53 A palavra εἱμαρμένη vem do particiacutepio passado do verbo μείρομαι A raiz μερ usada em palavras como microέρος e Μοῖραι demonstra que o destino a par das Moiras comanda a vida de cada um dos seres O destino eacute estrutura mas tambeacutem uma forccedila Considerado como um sopro natildeo soacute vital como divino o destino em conjunto com a providecircncia eacute a forccedila motora que comanda todas as coisas 54 Idem Ibidem 56 55 Ciacutecero De Fato 1020-21 Ciacutecero cita Crisipo

21

A Providecircncia (πρόνοια) eacute por sua vez a causa que permite concatenar os seres

com a vontade divina Eacute pela Providecircncia que os animais procuram criar relaccedilotildees de

amizade e de interdependecircncia56 Contudo esta concepccedilatildeo que os estoacuteicos tecircm da

Providecircncia (aquilo que Jean Brun designou como ldquofinalismo universalrdquo57) levanta

algumas questotildees sobre a existecircncia do mal De facto estando a Providecircncia em

sintonia com tudo o que existe no mundo implica que haja uma ligaccedilatildeo entre ela e o

bem e entre ela e o mal Este lsquomalrsquo diz respeito ao que a Natureza cria e que eacute nocivo

(como por exemplo as tempestades as epidemias os animais ferozes as plantas

venenosas) mas tambeacutem agraves acccedilotildees do homem (guerras violecircncia) Este aspecto levou os

ceacutepticos a criticarem os estoacuteicos Crisipo contra-argumenta com a ideia de que tudo tem

um contraacuterio (por exemplo a virtude tem como antiacutetese o viacutecio) O mal permite criar

um certo equiliacutebrio58 e em simultacircneo pode ser uacutetil uma vez que pode ser ldquonecessaacuterio

para o aparecimento de um bem maiorrdquo59

Haacute que notar contudo que a Providecircncia o Destino a Natureza a Razatildeo

Universal e Deus mais natildeo satildeo do que sinoacutenimos Deus eacute pensado no superlativo

porquanto eacute um princiacutepio que governa todos os outros A divindade eacute mateacuteria mas natildeo

possui qualquer forma humana Tal como mateacuteria Deus eacute um sopro iacutegneo dotado de

inteligecircncia Difere do homem por ser imortal e ignorar qualquer mal

Quanto agrave alma humana ela eacute segundo Reneacute Hoven60 feita de elementos subtis

em concreto eacute originada a partir do ar e do fogo Zenatildeo de Ciacutecio Antiacutepatro e Posidoacutenio

definem a alma como um sopro quente (πνεῦμα ἔνθερμον) 61 Esta designaccedilatildeo explica-

-se pelo facto de ser por meio deste πνεῦμα que noacutes respiramos e nos movemos

Os filoacutesofos estoacuteicos ao definirem a alma comparam-na a um polvo Apesar de

a tomarem como una dividiram-na em oito partes uma parte matriz (ἡγεμονικόν) que

governa todas as outras partes sendo a mais importante e dela saindo as outras sete

destas cinco dizem respeito aos sentidos naturais a visatildeo o olfacto o tacto a audiccedilatildeo e

o paladar as uacuteltimas duas partes satildeo o aparelho reprodutor e a palavra Esta concepccedilatildeo

56 Marco Aureacutelio Meditationes 440 ss 57 Jean Brun O Estoicismo 60 58 Em Hercules Furens de Seacuteneca estaacute bem delineada a ideia de que o bem e o mal permitem criar um certo equiliacutebrio natural das coisas Soacute o insensato protagonizado por Heacutercules eacute que acredita na possibilidade de destruir todo o mal que existe na terra porque vecirc nele um obstaacuteculo agrave construccedilatildeo da ordem Eacute notoacuterio um erro de avaliaccedilatildeo relativamente agrave noccedilatildeo que o heroacutei tem da natureza 59 Jean Brun O Estoicismo 61 60 Reneacute Hoven Stoiumlcisme et Stoiumlciens face au problegraveme de lrsquoau-delagrave (Paris Les Belles Lettres 1971) 41 61 Cf Dioacutegenes Laeacutercio 7157

22

de um corpo dividido em vaacuterias partes vai ao encontro da concepccedilatildeo que os estoacuteicos

tinham do universo como ser contiacutenuo e em plena harmonia consigo mesmo62

Eacute a partir da alma que o corpo existe visto ser um princiacutepio vital A funccedilatildeo que

desempenha natildeo eacute apenas de ordem bioloacutegica e motora mas representa igualmente

uma funccedilatildeo gnosioloacutegica Eacute por meio da alma que o homem compreende o mundo O

conhecimento e aceitaccedilatildeo deste mesmo mundo permite-lhe viver bem e alcanccedilar a

sabedoria Segundo Jean Brun ldquoa alma tem duas funccedilotildees essenciais a representaccedilatildeo

que nasce duma impressatildeo do objecto exterior na substacircncia da alma e a inclinaccedilatildeo

(ὁρμή) que eacute a faculdade de experimentar o desejo e a aversatildeordquo63

Quando o corpo morre a alma subsiste ainda mas eacute pereciacutevel64 Esta teoria da

sobrevivecircncia da alma depois da morte do corpo eacute complexa entre os estoacuteicos Para

Zenatildeo depois de o corpo perecer a alma humana vivia durante um periacuteodo de tempo

mas acabava por desaparecer Jaacute Cleantes considerava que a alma subsistia ateacute agrave

conflagraccedilatildeo total (ἐκπύρωσις) Para Crisipo apenas a alma dos saacutebios sobreviveria A

dos iacutempios morreria com a destruiccedilatildeo do corpo65

Para Seacuteneca parece natildeo haver uma resposta uacutenica e simples uma vez que nas

suas obras encontramos vaacuterias perspectivas ldquoSes oeuvres nous fournissent en

abondance des reacuteponses mais celles-ci preacutesentent agrave premiegravere vue une telle diversiteacute et

mecircme tant de contradictions que leur simple lecture laisse perplexe quant agrave la penseacutee

reacuteelle de notre philosopherdquo como refere Reneacute Hoven66 Assim Seacuteneca defende por um

lado que a alma subsiste ateacute agrave conflagraccedilatildeo universal67 ou durante um periacuteodo mais

longo do que aquele que viveu na terra (Ep 10223) Identifica ainda a possibilidade de

haver uma vida num mundo supraterrestre68 rejeitando tal como os outros filoacutesofos

estoacuteicos a existecircncia de um mundo inferior (Ep 2418) Seacuteneca potildee a hipoacutetese de que a

morte possa ser um fim absoluto pelo menos quando enuncia alternativas como mors

aut finis aut transitus (Ep 6524 a morte lsquoou eacute termo ou eacute passagemrsquo) ou mors aut

62 Vide Jean Brun O Estoicismo 66 63 Jean Brun O Estoicismo 66 64 Vide Ciacutecero Tusculanae Disputationes 118 e Dioacutegenes Laeacutercio 7157 65 Dioacutegenes Laeacutercio 7157 66 Reneacute Hoven Stoiumlcisme et Stoiumlciens face au problegraveme de lrsquoau-delagrave 109 67 Nos quoque felices animae et aeterna sortitae cum deo uisum erit iterum ista moliri labentibus cunctis et ipsae parua ruinae ingentis accessio in antiqua elementa uertemur (Seacuteneca Consolatio ad Marciam 267) Vide tambeacutem Reneacute Hoven Stoiumlcisme et Stoiumlciens face au problegraveme de lrsquoau-delagrave 109 68 Neste caso Reneacute Hoven op cit 110 comenta que a ideia de que existe uma vida depois da morte natildeo eacute uma concepccedilatildeo exclusivamente estoacuteica Eacute esta vida supraterrestre que vamos encontrar no final de Hercules Oetaeus depois de o seu corpo ter sido consumido pelo fogo Heacutercules aparece a Alcmena para lhe dizer que a sua alma ascendeu agraves moradas celestes (vv 1963-1976)

23

consumit aut exuit (Ep 2418 lsquoa morte ou nos consome totalmente ou nos despoja de

alguma coisarsquo)69

Importa poreacutem ver que em qualquer dos casos o sapiens aceita a morte com

serenidade Afinal a morte eacute como um outro nascimento

Quemadmodum decem mensibus tenet nos maternus uterus et praeparat non sibi sed illi loco in quem uidemur emitti iam idonei spiritum trahere et in aperto durare sic per hoc spatium quod ab infantia patet in senectutem in alium maturescimus partum Alia origo nos expectat alius rerum status70

c) A Moral

Os estoacuteicos dividiam o ramo da filosofia que corresponde agrave moral em vaacuterios

toacutepicos da tendecircncia (ὁρμή) do bem (περὶ ἀγαθῶς) e do mal (περὶ κακῶν) das paixotildees

(περὶ παθῶν) da virtude (περὶ ἀρετῆς) do fim ou do bem supremo (τέλος) do primeiro

valor e das acccedilotildees (περὶ πρώτης ἀξίας καὶ τῶν πράξεων) das condutas convenientes e

dos encorajamentos e dissuasotildees (περὶ τῶν καθηκόντων προτροπῶν τε καὶ

ἀποτροπῶν)71 Segundo testemunha Dioacutegenes Laeacutercio adoptaram esta divisatildeo Crisipo

Arquedemo Zenatildeo de Tarso Apolodoro Dioacutegenes Antiacutepatro Posidoacutenio e os seus

disciacutepulos Jaacute Zenatildeo de Ciacutecio e Cleantes natildeo deram ao ramo da Moral a mesma atenccedilatildeo

e desenvolvimento72

A tendecircncia eacute considerada como o primeiro dado natural do ser ndash o primeiro

impulso espontacircneo (ὁρμή) ndash enquanto o prazer e a dor assumem posiccedilotildees secundaacuterias

O animal tende em primeiro lugar a conservar a sua proacutepria seguranccedila e procura

conhecer-se Como explica Leacuteon Robin 69 Reneacute Hoven op cit 114 considera que esta eacute uma segunda tendecircncia do filoacutesofo e designa-a de ldquoalternativa socraacuteticardquo O mesmo autor identifica ainda mais trecircs perspectivas uma influecircncia epicurista em que Seacuteneca identificaria a morte como o natildeo ser (mors est non esse ndash Ep 544-5) uma corrente ldquomiacutesticardquo ou ldquopitagoacuterico-platoacutenicardquo (o corpo eacute um fardo ndash Ep 2417) e por uacuteltimo uma ldquocorrente mitoloacutegicardquo baseada em crenccedilas populares que diz respeito agrave crenccedila num mundo inferior Sobre esta uacuteltima tendecircncia natildeo nos parece que Seacuteneca acreditasse na sua existecircncia (vide Ep 2418) Ainda que os Infernos apareccedilam com alguma frequecircncia nas trageacutedias do filoacutesofo a referecircncia agraves moradas inferiores eacute a representaccedilatildeo da tradiccedilatildeo mitoloacutegica e tambeacutem das crenccedilas e dos receios do povo relativamente agrave morte e ao que vem depois dela 70 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 10223 lsquoTal como o ventre materno nos guarda por dez meses e nos prepara natildeo para nele permanecer mas sim para sermos como que lanccedilados no mundo assim que estamos aptos a respirar e a aguentar o ar livre tambeacutem ao longo do espaccedilo de tempo que vai da infacircncia agrave velhice noacutes vamos amadurecendo com vista a um novo parto Espera-nos um outro nascimento uma outra ordem das coisasrsquo 71 Dioacutegenes Laeacutercio 784 72 Vide Dioacutegenes Laeacutercio 784

24

A ideia de laquoconstituiccedilatildeoraquo eacute aqui capital desde que o animal nasce estaacute laquooriginariamente apropriadoraquo (conciliatio) a essa constituiccedilatildeo e agrave laquoconsciecircnciaraquo que dela tem estaacute-lhes de algum modo laquoconfiadoraquo (commendatio) Assim velar-se-aacute a si mesmo rejeitaraacute o que possa prejudicar a sua constituiccedilatildeo laquotenderaacuteraquo para o que eacute proacuteprio a favorececirc-la afastar-se-aacute do que a contraria No homem essa tendecircncia do ser para se conservar tem a particularidade de pertencer a uma constituiccedilatildeo do ser racional a espontaneidade original da sua natureza com a consciecircncia que dela tem eacute fundamentalmente laquoconforme agrave Razatildeoraquo73

Assim estabelecem os filoacutesofos uma divisatildeo entre ldquoobjectos de tendecircnciardquo74 os

que podem ser adquiridos porque satildeo bons e estatildeo de acordo com a natureza e os que

devem ser rejeitados porque satildeo maus e opostos agrave natureza

O homem ao conhecer a natureza e obedecer agravequilo que ela dita tem a

capacidade de apreender e compreender as escolhas que ela proporciona e reflectir sobre

tudo o que dela proveacutem Ele deve entatildeo orientar correctamente a sua vida Esta

orientaccedilatildeo passa pela aceitaccedilatildeo da natureza vivendo em harmonia com ela (τὸ

ὁμολογουμένως τῇ φύσει ζῆν75) ou seja estaacute de acordo com tudo o que tem origem na

natureza ndash conuenienter naturae No entanto para viver segundo a virtude as acccedilotildees e

os pensamentos do homem devem ser constantes o que implica uma atitude de

perseveranccedila na construccedilatildeo da uirtus Seacuteneca afirma

Sic maxime coarguitur animus inprudens alius prodit atque alius et quo turpius nihil iudico inpar sibi est Magnam rem puta unum hominem agere Praeter sapientem autem nemo unum agit ceteri multiformes sumus Modo frugi tibi uidebimur et graues modo prodigi et uani mutamus subinde personam et contrariam ei sumimus quam exuimus Hoc ergo a te exige ut qualem institueris praestare te talem usque ad exitum serues effice ut possis laudari si minus ut adgnosci De aliquo quem here uidisti merito dici potest lsquohic qui estrsquo tanta mutatio est76

73 Leacuteon Robin A Moral Antiga trad Joatildeo Morais Barbosa (Ediccedilotildees Despertar sd) 108 74 Vide Leacuteon Robin A Moral Antiga 108 75 Esta afirmaccedilatildeo apresentada por Dioacutegenes Laeacutercio (787) eacute do tratado Περὶ ἀνθρώπου φύσεως (Sobre a natureza do Homem) de Zenatildeo de que apenas nos restam fragmentos 76 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 12022 lsquoNada denuncia melhor a falta de princiacutepios morais do que este assumir alternado de diferentes rostos que para cuacutemulo da desfaccedilatez satildeo cada um deles sempre diversos de si mesmos Deves aceitar como um caso de excepccedilatildeo algueacutem que soacute desempenhe um papel na vida Na realidade para aleacutem do saacutebio ningueacutem se contenta em fazer soacute uma personagem todos estamos em constante mudanccedila Ora nos damos ares de gente frugal e austera ora de dissipadores e libertinos para logo a seguir pormos no rosto a maacutescara oposta agravequela que acabaacutemos de tirar Exige portanto de ti proacuteprio que sejas ateacute ao fim da vida aquilo que decidiste ser e faz com que os outros se natildeo te enaltecerem possam pelo menos reconhecer-te De indiviacuteduos que ainda ontem encontraacutemos jaacute hoje podemos ter o direito de perguntar Quem eacute este ndash tal a mudanccedila que neles se operoursquo

25

Para Seacuteneca o ser humano deve governar a sua vida de modo a tornaacute-la uma

concors uita sibi (Ep 8915) isto eacute a sua vivecircncia tem de estar ateacute ao fim da sua

existecircncia em conformidade com aquilo que escolheu ser O que Seacuteneca pretende

mostrar eacute que quem quer abraccedilar a uirtus natildeo pode andar hesitante e dividido entre o

bem e o mal entre a uirtus e o uitium balanccedilando entre o percurso correcto e o que

conduz ao erro A partir do momento em que o homem faz uma escolha teraacute de ser

constante Deste modo se atinge a felicidade por um lado e a sabedoria por outro

Para os estoacuteicos o mal fazia parte da ordem coacutesmica A noccedilatildeo que eles tinham

de que a par do bem existe o mal (permitindo criar um certo equiliacutebrio natural como jaacute

referimos) levava a ter como objectivo alcanccedilar o Supremo Bem ndash por isso se considera

a doutrina do Poacutertico como uma eacutetica de ascese O caminho que o saacutebio escolhe eacute um

percurso que implica um aperfeiccediloamento interior que natildeo descura uma anaacutelise criacutetica

diaacuteria e ininterrupta Esta passa pela auto-anaacutelise ou exame de consciecircncia dos seus

actos e pensamentos77 para poder alcanccedilar a uirtus Para Seacuteneca a soluccedilatildeo eacute instemus

itaque et perseueremus plus quam profligauimus restat sed magna pars est profectus

uelle proficere78 Este exame criacutetico permite ao homem tomar consciecircncia de si e do que

o rodeia verificando se estaacute a enveredar pelo caminho da uirtus ou pelo do uitium79

Assim o encontro com a virtude passa pelo uso contiacutenuo da Razatildeo que permite ao

saacutebio disciplinar-se e evitar todo o geacutenero de affectus

A virtude por sua vez eacute considerada pelos estoacuteicos como uma perfeiccedilatildeo comum

a todos isto eacute todos a podem alcanccedilar se para isso orientarem a vida e as suas escolhas

Cabe assim ao sapiens ndash uma vez que vive em conformidade com a natureza e tem a

capacidade de usar a Razatildeo com constacircncia e consistecircncia encontrando harmonia e paz

na alma ndash ensinar aos outros o caminho para chegar agrave uirtus orientando-os

aconselhando-os levando-os a compreender as suas limitaccedilotildees e sobretudo a aceitar as

suas fraquezas e a dos outros80 para melhor as poder corrigir

77 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 136 lsquoQuando tiveres agrave tua volta pessoas empenhadas em persuadir-te de que eacutes um desgraccedilado pensa bem natildeo nas palavras que ouves mas sim naquilo que tu proacuteprio sentes analisa a tua capacidade de resistecircncia () pois eacutes o melhor conhecedor de ti mesmorsquo 78 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 7136 lsquoSoacute haacute uma soluccedilatildeo portanto ser firme e avanccedilar sem descanso O caminho que resta percorrer eacute mais longo que o jaacute percorrido mas grande parte do progresso consiste na vontade de progredirrsquo 79 Seacuteneca De Ira 336 vide Maria Cristina Pimentel Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de Seacuteneca (Lisboa Ediccedilotildees Colibri 1993) 12 80 Cf Maria Cristina Pimentel Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de Seacuteneca 13

26

Crisipo entende que o estoicismo eacute uma medicina que permite alcanccedilar a cura da

alma est profecto animi medicina philosophia cuius auxilium non ut in corporis

morbis petendum est foris omnibusque opibus uiribus ut nosmet ipsi nobis mederi

possimus elaborandum est81 Contudo como sugere Seacuteneca a cura soacute eacute possiacutevel quando

qualquer indiacutecio de paixatildeo eacute extraiacutedo por completo Natildeo basta ldquoadormecerrdquo o uitium haacute

que excisaacute-lo optimum est primum irritamentum irae protinus spernere ipsisque

repugnare seminibus et dare operam ne incidamus in iram82

A virtude eacute assim um bem no qual se contemplam em geral dois geacuteneros

Dioacutegenes Laeacutercio considera a virtude natildeo-intelectual (ἀθεώρητος) como eacute o caso da

sauacutede e a intelectual (θεωρηματική) como por exemplo a prudecircncia e a justiccedila83 Esta

diferenccedila entre virtudes intelectuais e natildeo-intelectuais permite distinguir aquelas que satildeo

naturais ndash que os homens insensatos tambeacutem possuem ndash das que satildeo exclusivas dos

saacutebios porque implicam um percurso interior de ascese

Entendendo que as virtudes satildeo bens o nuacutemero total destes bens varia Paneacutecio

considera duas virtudes (teoacuterica e praacutetica) outros estabelecem trecircs (racional natural e

moral) Apoloacutefanes apenas uma (a prudecircncia) Cleantes Crisipo e Antiacutepatro muitas

Apesar desta divergecircncia eacute aceite pela generalidade dos estoacuteicos a divisatildeo de todas as

virtudes em primaacuterias e subordinadas ndash porque estabelecem uma relaccedilatildeo de

subordinaccedilatildeo com as antecedentes

As primaacuterias satildeo seguindo os estoacuteicos neste particular a sistematizaccedilatildeo

platoacutenica quatro a sabedoria (φρόνησις ou σοφία) a coragem (ἀνδρεία) a justiccedila

(δικαιοσύνη) e a prudecircncia (σωφροσύνη) Como virtudes subordinadas da sabedoria

temos a magnanimidade a paciecircncia e a prudecircncia A coragem implica sempre uma

acccedilatildeo que permita um acto de escolha de fuga ou de indiferenccedila84 A justiccedila eacute como

refere Ciacutecero habitus animi communi utilitate conseruata suam cuique tribuens

dignitatem85 A prudecircncia leva ao estudo dos elementos constituintes da natureza

identificando aleacutem das virtudes os indiferentes e as paixotildees Seacuteneca poreacutem divide o

bem em trecircs classes o da primeira diz respeito a manifestaccedilotildees como o gaudium a pax

a salus patriae o da segunda refere-se agrave tormentorum patientia et in morbo graui

temperantia (lsquoresistecircncia agrave tortura ou a firmeza de acircnimo durante uma doenccedila graversquo) o

81 Ciacutecero Tusculanae Disputationes 36 82 Seacuteneca De Ira 181 83 Dioacutegenes Laeacutercio 790 84 Dioacutegenes Laeacutercio 792-93 85 Ciacutecero De Inuentione 2160

27

bem da terceira classe estaacute relacionado com o modestus incessus et compositus ac

probus uultus et conueniens prudenti uiro gestus (lsquomodeacutestia das atitudes a serenidade e

a honestidade do rosto os gestos adequados a uma pessoa de bom sensorsquo)86

Em contraponto a estas quatro virtudes associam-se quatro viacutecios ou quatro

males a insensatez a cobardia a injusticcedila e a imprudecircncia Igualmente a estes quatro

viacutecios se subordinam outros incontinecircncia torpeza relativamente agrave mente e mau

conselho87 Dioacutegenes Laeacutercio identifica o viacutecio como o desconhecimento de tudo o que

eacute virtuoso Este eacute um aspecto que leva os estoacuteicos a afirmarem que as virtudes visto

serem um saber podem ser ensinadas A vantagem daquele que se dedica ao estudo da

virtude eacute uma vez apreendida esta faculdade natildeo mais a perder

Tambeacutem a loacutegica e a fiacutesica fazem parte das virtudes enumeradas pelos filoacutesofos

A fiacutesica eacute vista como uma moral e como um modus uiuendi que tem como princiacutepio

fundamental a Razatildeo Eacute a virtude que conduz o homem agrave sabedoria mas mais do que

isso ela eacute tida como a proacutepria sabedoria

Nem tudo os estoacuteicos consideram como bens e males virtudes e viacutecios

Entendem que haacute os indiferentes (ἀδιάφορα)88 Satildeo indiferentes tudo o que esteja

relacionado com o corpo como por exemplo a vida a morte a sauacutede a doenccedila a

beleza a forccedila a riqueza o prazer a dor a gloacuteria89 ou com aquilo que vem do exterior

visto natildeo causar nem alegria nem tristeza em quem o experimenta Apenas o uso que o

homem faz dos indiferentes permite tornaacute-los uacuteteis ou maleacuteficos Um exemplo

significativo eacute o da forccedila o elemento que melhor caracteriza a personagem Heacutercules O

uso que ele faz da forccedila que passa por ser excessivo e violento revela ser

inconveniente uma vez que ele tanto a utiliza para as boas como para as maacutes acccedilotildees

Os estoacuteicos reconhecem ainda nos indiferentes dois valores convenientes ou

inconvenientes ou na designaccedilatildeo de outros estoacuteicos preferiacuteveis (προηγμένα) ou

rejeitaacuteveis (ἀποπροηγμένα) segundo o nosso proacuteprio impulso (ὁρμή) Avaliando-os o

homem deve aceitar o que for conveniente ou evitaacute-lo caso seja inconveniente os

indiferentes sauacutede doenccedila por exemplo tornam-se assim opostos pois aquela eacute

conveniente preferiacutevel e esta eacute inconveniente rejeitaacutevel

86 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 665 Veja-se tambeacutem Maria Cristina Pimentel Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de Seacuteneca 17 87 Dioacutegenes Laeacutercio 793 88 O termo indiferente eacute usado para identificar trecircs distintos estados de espiacuterito em primeiro lugar designa aquilo que natildeo causa nem desejo nem aversatildeo segundo eacute indiferente o que causa em simultacircneo desejo e aversatildeo por uacuteltimo aquilo que natildeo concorre nem para a felicidade nem para o infortuacutenio 89 Vide Sexto Empiacuterico Aduersus Mathematicos 959 e ss

28

O que importa eacute saber aceitar tudo o que acontece de bom e de mau porque tem

origem na Providecircncia90 Esta tomada de consciecircncia e aceitaccedilatildeo permite-lhe viver em

liberdade porque em harmonia com a Natureza Ciacutecero revela quais satildeo os requisitos

para um sapiens

Ergo hic quisquis est qui moderatione et constantia quietus animo est sibique ipse placatus ut nec tabescat molestiis nec frangatur timore nec sitienter quid expetens ardeat desiderio nec alacritate futili gestiens deliquescat is est sapiens quem quaerimus is est beatus cui nihil humanarum rerum aut intolerabile ad demittendum animum aut nimis laetabile ad ecferendum uideri potest Quid enim uideatur ei magnum in rebus humanis cui aeternitas omnis totiusque mundi nota sit magnitudo Nam quid aut in studiis humanis aut in tam exigua breuitate uitae magnum sapienti uideri potest qui semper animo sic excubat ut ei nihil inprouisum accidere possit nihil inopinatum nihil omnino nouum91

Eacute entatildeo saacutebio todo o homem que eacute moderado que consegue manter uma

tranquilidade de espiacuterito vive em paz consigo mesmo sem se deixar dominar por

qualquer tipo de affectus Como explica Maria Cristina Pimentel ldquoO sapiens eacute assim

aquele que natildeo se deixa atingir pela adversidade que orienta os indiferentes no sentido

do bem que procura as virtudes e afasta os viacuteciosrdquo92 Apenas o insensato se revolta

contra o Destino e todas as acccedilotildees que aquele possa praticar por mais nobres que

aparentem ser natildeo satildeo mais do que falsas virtudes Heacutercules no Hercules Furens

revela ser o modelo de uma personagem insensata que natildeo consegue controlar as suas

emoccedilotildees

As paixotildees (πάθοι affectus) satildeo movimentos desordenados e impetuosos que

ocorrem ao niacutevel da alma satildeo corpos que nela se manifestam e que satildeo contraacuterios agrave

Natureza93 lsquoPaixatildeorsquo eacute definida por Zenatildeo segundo testemunha Dioacutegenes Laeacutercio do

seguinte modo ἔστι δὲ αὐτὸ τὸ πάθος κατὰ Ζήνωνα ἡ ἄλογος καὶ παρὰ φύσιν ψυχῆς

κίνησις ἢ ὁρμὴ πλεονάζουσα94 Ciacutecero adaptou esta definiccedilatildeo para latim ut perturbatio

sit quod πάθος ille dicit auersa a recta ratione contra naturam animi commotio

90 Cf Maria Cristina Pimentel Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de Seacuteneca 18 91 Ciacutecero Tusculanae Disputationes 41737 92 Maria Cristina Pimentel Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de Seacuteneca 19 93 Ciacutecero Tusculanae Disputationes 415 34 94 Dioacutegenes Laeacutercio 7110

29

Quidam breuius perturbationem esse adpetitum uehementiorem sed uehementiorem

eum uolunt esse qui longius discesserit a naturae constantia95

O conceito de paixatildeo assume para os estoacuteicos dois sentidos ou eacute originada por

um movimento contraacuterio agrave razatildeo ou entatildeo eacute uma tendecircncia que natildeo tem controlo (como

acontece com Heacutercules) Em ambos os casos mostra ser um sentimento que se

manifesta na alma e que se opotildee aos princiacutepios da natureza A alteraccedilatildeo que a paixatildeo

provoca na alma eacute determinada por uma perturbatio ou seja por um movimento

ldquodesordenado e doentiordquo96 que vai de encontro agrave Razatildeo

Assim consideram os estoacuteicos que tal como o corpo estaacute exposto a

adversidades exteriores que podem levaacute-lo a adoecer tambeacutem a alma pode ficar doente

e fraca As paixotildees satildeo as doenccedilas da alma e Dioacutegenes Laeacutercio sugere algumas a que a

alma fica sujeita φθονερία (inveja) ἐλεημοσύνη (misericoacuterdia) e ἔριδες (discoacuterdia)97

Entendidas como perturbationes98 elas satildeo provocadas no iacutentimo do homem e

natildeo tecircm como causa uma divindade como os autores gregos claacutessicos acreditavam

Estes julgavam que o ser humano era viacutetima das forccedilas superiores (em particular a

Necessidade99) com as quais ele natildeo poderia combater ou sequer opor-se-lhes porque

eram uma forccedila que tudo controla Assim se explicam a morte dos filhos de Heacuteracles

em Heracles e a sua proacutepria morte nas Trachiniae ou mesmo a morte de Laio e o

incesto de Eacutedipo no Oedipus Tyrannus

Os uitia (κακία) satildeo assim o resultado de uma maacute interpretaccedilatildeo de um juiacutezo

errado por parte do homem causando agitaccedilatildeo e inconstacircncia e acabam por escravizar

o proacuteprio homem Todo aquele que se deixa dominar pela mente sem controlo natildeo

consegue discernir os perigos que se avizinham

Tendo por base a ideia de que as paixotildees satildeo erros de avaliaccedilatildeo os estoacuteicos

enumeram quatro uitia primaacuterios o desgosto (λύπη) o medo (φόβος) o desejo sensual

(ἐπιθυμία) e o prazer (ἡδονή) Cada um deles tem manifestaccedilotildees fiacutesicas no ser

humano100 Na trageacutedia em anaacutelise vemos que Anfitriatildeo se deixa levar pelo medo (pela

ausecircncia do filho pela falta de seguranccedila) e pelo desgosto (sente terror pela morte dos

Heraclidas) Meacutegara pelo medo e pelo desejo Lico pelo prazer e Juno pelo desejo (o

95 Ciacutecero Tusculanae Disputationes 4611 96 Vide Joseacute Pedro Serra Pensar o Traacutegico Categorias da Trageacutedia Grega 80 97 Dioacutegenes Laeacutercio 7115 98 Vide Ciacutecero Tusculanae Disputationes 415 99 Vide G Rodis Lewis La Morale Stoiumlcienne (Paris Presses Universitaires de France 1970) 109 100 Vide Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 1066

30

oacutedio e a ira que nutre por Heacutercules faacute-la procurar incessantemente um modo de destruiacute-

-lo a deusa eacute movida ainda pela dolor por ter sido preterida por Juacutepiter)

Aleacutem disso estes quatro uitia podem ser divisiacuteveis segundo um par de binoacutemios

satildeo erros de juiacutezo em relaccedilatildeo a um tempo presente ou a um tempo futuro satildeo erros de

valor entendendo que algo eacute aparentemente bom ou mau E cada uitium tem vaacuterios

subordinados Do sentimento desgosto101 que provoca na alma uma contracccedilatildeo

irracional (συστολή) vem a piedade a inveja o ciuacuteme a rivalidade a anguacutestia a

perturbaccedilatildeo o desgosto a afliccedilatildeo e a confusatildeo O medo estaacute relacionado com uma

expectativa do mal102 e compreende a hesitaccedilatildeo a vergonha o terror o pacircnico e a

ansiedade O prazer103 que eacute um desejo irracional por algo que parece ser agradaacutevel

compreende a vaidade o regozijo com a desgraccedila alheia a voluptuosidade e a

devassidatildeo O desejo104 tido como um apetite irracional inclui o oacutedio a rivalidade a

coacutelera o amor o desejo de vinganccedila a fuacuteria105

Por oposiccedilatildeo agraves paixotildees106 os estoacuteicos tinham em conta trecircs estados emocionais

que julgavam como bons estados (εὐπάθειαι) e que eram alegria (χαρά) ndash contraacuterio do

prazer implica o contentamento a jovialidade e o bom humor prudecircncia (εὐλάβεια

cautio) ndash oposto ao temor abrange o campo o pudor e a castidade vontade (βούλησις

uoluntas) que se opotildee ao desejo e tem como manifestaccedilotildees a benevolecircncia a calma

doccedilura e afecto107

Estes estados emocionais satildeo do domiacutenio da Razatildeo por isso natildeo satildeo vistos como

uitia A vontade por exemplo contrasta com o θύμος (desejo que tem origem na alma)

e com a ἐπιθυμία (desejo do corpo em relaccedilatildeo agrave comida agrave bebida agrave libido)

Como enunciaacutemos as paixotildees satildeo movimentos irracionais provocados por juiacutezos

de valor errados o que comprova a tese da existecircncia da liberdade humana apesar de

condicionada pela acccedilatildeo do Destino que comanda tudo Na verdade os estoacuteicos

acreditam na forccedila que o Destino exerce sobre o homem mas a forma como este aceita

ou nega esta forccedila implica um acto de liberdade

101 O desgosto eacute um erro de percepccedilatildeo de algo que estaacute a decorrer no presente e eacute tido como algo mau 102 O medo corresponde a um erro de avaliaccedilatildeo que consiste em julgar que algo de futuro aconteceraacute e teraacute consequecircncias funestas 103 O prazer eacute um sentimento que aparenta ser bom e diz respeito ao momento presente 104 O desejo natildeo eacute mais do que uma aparecircncia de algo bom e que entra no domiacutenio do tempo futuro 105 Ver Ciacutecero Tusculanae Disputationes 4716 4922 106 Tendo as paixotildees origem num estado de alma contraacuterio agrave razatildeo num desequiliacutebrio emocional o seu contraacuterio tambeacutem existe isto eacute existem de igual modo affectus entendidos como bons e que pertencem ao foro da Razatildeo 107 Vide Maria Cristina Pimentel Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de Seacuteneca 21-22

31

Seacuteneca lembra a Luciacutelio a possibilidade de continuar livre mesmo quando a

Fortuna entra em guerra com o ser humano

Fortuna mecum bellum gerit non sum imperata facturus iugum non recipio immo quod maiore uirtute faciendum est excutio Non est emolliendus animus si uoluptati cessero cedendum est dolori cedendum est labori cedendum est paupertati idem sibi in me iuris esse uolet et ambitio et ira inter tot affectus distrahar immo discerpar Libertas proposita est ad hoc praemium laboratur Quae sit libertas quaeris Nulli rei seruire nulli necessitati nullis casibus fortunam in aequum deducere Quo die illam intellexero plus posse nil poterit ego illam feram cum in manu mors sit108

Eacute sob a insiacutegnia uiuere Lucili militare est109 que Seacuteneca entende esta

impassibilidade e forccedila que permitem ao saacutebio aceitar o destino mas tambeacutem defrontaacute-

-lo ndash no sentido em que nada do que a Providecircncia lhe daacute o impede de continuar

impassiacutevel de viver de acordo com a Natureza A luta passa pelo caminho da uirtus

segundo e para a qual se vive assim nada de mal poderaacute acontecer-lhe110

Este eacute o caminho que o estoacuteico pretende trilhar procurar estar em sintonia com o

soberano Bem que para Seacuteneca eacute a moral Na carta 71 diz o autor lsquosummum bonum est

quod honestum estrsquo () lsquounum bonum est quod honestum est cetera falsa et adulterina

bona suntrsquo111 O estar de acordo com este Bem implica que o saacutebio consiga suportar o

sofrimento externo sem que essa dor chegue a produzir qualquer alteraccedilatildeo no seu

iacutentimo Por outras palavras tudo o que seja tortura ou enfermidade eacute tolerado pelo

homem porque permanece impertubaacutevel112

A forma como o homem despende o seu tempo tem substancial relevo na

conduccedilatildeo da vida do sapiens e na sua formaccedilatildeo interior para alcanccedilar a uirtus Esta

preocupaccedilatildeo com a forma correcta de usar o tempo mereceu atenccedilatildeo especial por parte

de Seacuteneca natildeo apenas em obras como o De Breuitate Vitae ou o De Otio mas tambeacutem

108 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 518-9 lsquoA fortuna declarou-me guerra Eu natildeo obedeccedilo agraves suas ordens natildeo aceito o seu jugo mais pretendo mantecirc-la agrave distacircncia o que implica ainda maior coragem Natildeo posso deixar que a alma amoleccedila se fizer concessotildees ao prazer terei de fazecirc-las agrave dor ao cansaccedilo agrave pobreza a ambiccedilatildeo e a ira quereratildeo tomar conta de mim ver-me-ei dilacerado despedaccedilado entre inuacutemeras paixotildees A liberdade eacute a nossa meta eacute o preacutemio das nossas canseiras Sabes em que consiste a liberdade Em natildeo ser escravo de nada de nenhuma necessidade de nenhum acaso em lutar de igual para igual com a fortuna Se algum dia eu sentir que ela tem mais forccedila do que eu mesmo assim essa forccedila seraacute inuacutetil Nunca me deixarei vencer a morte seraacute o meu recursorsquo 109 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 965 lsquoEacute que viver Luciacutelio eacute uma miliacuteciarsquo 110 Vide Seacuteneca De Prouidentia 21 e ss 111 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 714 lsquoaquilo que se conforma com a moral () o uacutenico bem eacute aquilo que se conforma com a moral todos os outros bens satildeo falsos e impurosrsquo 112 Vide Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 715 Marco Aureacutelio Meditationes 449

32

na trageacutedia Hercules Furens Como afirma Michel Spanneut ldquoLrsquoattention au temps

constitue peut-ecirctre le point le plus original des preacuteoccupations morales de Seacutenegravequerdquo113

Partindo da ideia de que o tempo eacute um incorpoacutereo o uso que o homem dele faz pode ser

uacutetil ou nefasto Em Hercules Furens a noccedilatildeo de tempo que eacute desperdiccedilado aparece duas

vezes em tom de criacutetica Em ambas o juiacutezo eacute dirigido a Heacutercules directa e

indirectamente Nos vv 175-198 o Coro condena os homens que correm de um lado

para outro em particular os que vivem nas cidades114 partindo da generalidade dos

homens para particularizar as suas observaccedilotildees em Heacutercules Tambeacutem Anfitriatildeo reprova

o modo como o heroacutei faz uso do tempo considerando-o inconveniente Heacutercules ao

entregar-se a tarefas fuacuteteis talvez sobretudo com o desejo de gloacuteria pessoal acaba por

natildeo ter tempo nem dar qualquer atenccedilatildeo aos que efectivamente precisam da sua ajuda

do seu apoio (protinus reduci nouus paratur hostis antequam laetam domum

contingat aliud iussus ad bellum meat nec ulla requies tempus aut ullum uacat nisi

dum iubetur115) Aleacutem disso nem tem tempo para olhar para dentro de si mesmo

Eacute este tempo que eacute desperdiccedilado que Seacuteneca censura Sine proposito uagantur

quaerentes negotia nec quae destinauerunt agunt sed in quae incucurrerunt

Inconsultus illis uanusque cursus est qualis formicis per arbusta repentibus quae in

summum cacumen et inde in imum inanes aguntur His plerique similem uitam agunt

quorum non immerito quis inquietam inertiam dixerit116

Seacuteneca centra as suas criacuteticas na forma como o homem faz uso quer do tempo

presente quer do tempo futuro (ao conceber planos a longo prazo como se tivesse esse

tempo garantido) porque como lembra o filoacutesofo Nec quod futurum est meum est nec

quod fuit in puncto fugientis temporis pendeo et magni est modicum fuisse117 Sendo o

tempo o uacutenico bem que o homem possui e controla eacute seu dever saber usaacute-lo da melhor

forma possiacutevel118 A preocupaccedilatildeo desmesurada com o momento que passa Seacuteneca

rejeita-a uma vez que a considera como paixatildeo impede que o homem viva tranquilo de

113 Michel Spanneut Permanence du Stoiumlcisme de Zeacutenon agrave Malraux (Gembloux Duculot 1973) 64 114 Haacute uma niacutetida oposiccedilatildeo entre cidade e campo em que a primeira representa a confusatildeo o lugar da turba que prejudica o saacutebio e a segunda a forma de viver bem porque se estaacute em sintonia com o que a Natureza proporciona 115 Seacuteneca Hercules Furens vv 209-213 116 Seacuteneca De Tranquillitate animi 123 117 Seacuteneca Quaestiones Naturales 63210 118 Veja-se a primeira Carta de Seacuteneca a Luciacutelio cujo tema eacute o tempo O filoacutesofo exorta o amigo ndash por extensatildeo o Homem ndash a ser consciente do modo como deixa o tempo passar Incita-o a controlar e saber aproveitar cada momento que escorrega por entre os dedos natildeo no sentido epicurista mas no de aceitaccedilatildeo plena dessa passagem procurando aproveitaacute-lo o melhor possiacutevel para que natildeo constitua um obstaacuteculo agrave sua tranquilidade

33

acordo com a Natureza (esta criacutetica estaacute muito presente na primeira fala do Coro do

Hercules Furens) Assim o filoacutesofo incita o ser humano a que se torne senhor do seu

proacuteprio tempo vivendo para si Soacute o tempo eacute nosso ndash eacute a virtude sobre a qual o homem

tem pleno domiacutenio Eacute a consciecircncia viva de que o sapiens eacute dono do seu tempo que lhe

possibilita viver em pleno119 Id agamus ut nostrum omne tempus sit non erit autem

nisi prius nos nostri esse coeperimus120

A noccedilatildeo de tempoduraccedilatildeo concatena-se com a reflexatildeo sobre a meditatio

mortis no sentido de preparaccedilatildeo para a morte Como demonstrou Cristina Pimentel121

os estoacuteicos procuram compreender a morte sob muacuteltiplos aspectos

a) qual o sentido da morte em si porque existe e que sentido tem no desenrolar

da vida

b) a morte eacute um bem ou eacute um mal

c) o homem deve preparar-se para a morte (de que modo poderaacute preparar-se o

melhor possiacutevel) e natildeo temecirc-la

d) em que circunstacircncias a morte pode ser preferiacutevel agrave vida

Considerando que a morte eacute um indiferente porquanto natildeo eacute um bem nem um

mal em si tal como a proacutepria vida os filoacutesofos estoacuteicos procuram inculcar no

pensamento do ser humano a ideia de que em vez de temer a morte ele deve governar

bem a vida que lhe eacute dada Tempo Vida e Morte satildeo indiferentes que se integram na

119 Sobre a ideia de viver cada dia como se ele fosse uma vida inteira v Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 101 Aleacutem do uso de exempla para comprovar a tese de que o homem nada eacute Seacuteneca procura incentivar o homem a que natildeo fique na sombra da vida esperando o futuro para viver mas pelo contraacuterio comece hic et nunc a prestar lsquocontas com a vidarsquo cum uita paria faciamus Pouco interesse haacute em planear todo o futuro quando o homem nem sequer sabe quantas horas dias anos lhe estatildeo reservados A vida eacute insegura por isso o filoacutesofo lembra Ad Lucilium Epistulae Morales 101 4-5 Quam stultum est aetatem disponere ne crastini quidem dominum o quanta dementia est spes longas inchoantium emam aedificabo credam exigam honores geram tum deinde lassam et plenam senectutem in otium referam Omnia mihi crede etiam felicibus dubia sunt nihil sibi quisquam de futuro debet promittere id quoque quod tenetur per manus exit et ipsam quam premimus horam casus incidit Voluitur tempus rata quidem lege sed per obscurum quid autem ad me an naturae certum sit quod mihi incertum est (lsquoComo eacute estuacutepido fazer planos para uma longa vida quando natildeo se eacute sequer senhor do dia seguinte Como satildeo insensatos todos quantos formulam esperanccedilas a longo prazo hei-de comprar hei-de construir hei-de emprestar dinheiro e cobraacute-lo com juros hei-de fazer carreira na poliacutetica ndash e logo me guardarei para a vida privada quando estiver velho mas bem provido de meios Podes crer no que te digo mesmo os favorecidos da fortuna carecem de seguranccedila Ningueacutem deve fazer projectos para o futuro pois mesmo o que noacutes seguramos nos escapa das matildeos mesmo a hora que vivemos qualquer acaso a interrompe O tempo escoa-se segundo uma lei racional mas obscura para noacutes que me adianta saber que tudo se processa segundo a lei da natureza se para mim reina a incertezarsquo) 120 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 7136 lsquoFaccedilamos com que todo o nosso tempo nos pertenccedila o que soacute seraacute possiacutevel se comeccedilarmos por nos tornarmos donos de noacutes proacutepriosrsquo 121 Maria Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo Classica 23 (1999) 29-45 Todo o artigo se centra na problemaacutetica da preparaccedilatildeo para a morte sobre o suiciacutedio abonando com exempla de algumas obras entre as quais as trageacutedias Hercules Furens e Hercules Oetaeus

34

ordem natural e loacutegica do Cosmo O saacutebio porque tem consciecircncia desta inter-relaccedilatildeo

aceita-os e ao aceitaacute-los consegue viver em plena sintonia com a Natureza Mas se o

homem pode e deve ter pleno poder sobre o tempo que gasta o mesmo natildeo acontece

com a morte Ela eacute inevitaacutevel de tal modo que deve ser aceite pois eacute o fim natural da

vida na lei da Natureza tudo o que nasce tem de ter obrigatoriamente um fim A morte

natildeo eacute uma expulsatildeo brusca da vida mas antes uma saiacuteda o fim de uma peregrinaccedilatildeo

pela terra122 A vida eacute sentida natildeo como uma daacutediva permanente mas como um

empreacutestimo que quando deus achar conveniente pede ao homem que o devolva

quisquis ad uitam editur ad mortem destinatur Gaudeamus eo quod dabitur

reddamusque id cum reposcemur123

Um modo de alcanccedilar o dom da vida passa pela meditaccedilatildeo da morte Como

Seacuteneca recorda por mais estranho que pareccedila o acto de meditar em algo que o homem

soacute conheceraacute uma uacutenica vez a morte a verdade eacute que ao aprender que tem de morrer e

como deve morrer o homem liberta-se de todas as cadeias fiacutesicas e psicoloacutegicas124

Eacute poreacutem no momento em que o homem deixa de conseguir continuar a

controlar os acontecimentos segundo a Razatildeo (natildeo lhe permitindo que prossiga a via da

tranquillitas animi pela qual tanto pugna) que o suiciacutedio surge como resposta a esta

dificuldade O suiciacutedio pode tornar-se um meio de libertaccedilatildeo que permite salvaguardar a

liberdade e a dignidade do homem125 Eacute contudo o uso que se faz do suiciacutedio que pode

ser conveniente ou inconveniente De facto considera-se por um lado que soacute o saacutebio

tem direito de tomar uma decisatildeo sobre o suiciacutedio porque apenas ele tem a virtude de

conhecer e dominar o seu corpo ndash eacute um artifex uitae Jaacute o homem comum eacute facilmente

levado por paixotildees O suiciacutedio eacute por outro lado a soluccedilatildeo em momentos especiacuteficos

quando o homem fica sujeito ao poder de outro (como por exemplo quando estaacute

subordinado a um tirano) quando estaacute despojado de recursos de tal modo que natildeo lhe eacute

possiacutevel manter a sua proacutepria dignidade quando a velhice ou a doenccedila incuraacutevel o

deixam inutilizado perdendo todas as qualidades cognitivas126 quando o corpo faz da

alma sua escrava (por meio de uma ou vaacuterias paixotildees) Sendo a alma uma parte da

122 Maria Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo 30 123 Seacuteneca Consolatio ad Polybium 113 124 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 269-10 lsquoTalvez tu julgues supeacuterfluo aprender uma coisa que soacute utilizamos uma vez Mas por isso mesmo eacute que devemos meditar nela temos sempre que estudar uma coisa que natildeo podemos testar se jaacute sabemos ldquoMedita na morterdquo () Um homem que aprendeu a morrer esquece o que seja servidatildeo estaacute acima melhor dizendo estaacute fora do alcance de todo e qualquer poderrsquo 125 Vide Seacuteneca De Prouidentia 210 126 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 5835-36

35

divindade e ateacute ela podendo ascender o homem deve cuidar do corpo como se fosse um

tutor nunca se submetendo agrave vontade daquele Quando o contraacuterio se verifica ndash e a alma

se submete aos deliacuterios do corpo ndash natildeo mais teraacute domiacutenio sobre si e permaneceraacute

escrava deste127

Em todas estas circunstacircncias no entanto o homem soacute poderaacute optar pelo

suiciacutedio apoacutes uma reflexatildeo profunda e depois de ter concluiacutedo natildeo soacute que continuar a

viver eacute um obstaacuteculo agrave manutenccedilatildeo da tranquillitas animi como tambeacutem que jaacute natildeo tem

qualquer papel na vida poliacutetica ou familiar128 Como Seacuteneca sugere

Indulgendum est enim honestis adfectibus et interdum etiam si premunt causae spiritus in honorem suorum uel cum tormento reuocandus et in ipso ore retinendus est cum bono uiro uiuendum sit non quamdiu iuuat sed quamdiu oportet ille qui non uxorem non amicum tanti putat ut diutius in uita commoretur qui perseuerabit mori delicatus est Hoc quoque imperet sibi animus ubi utilitas suorum exigit nec tantum si uult mori sed si coepit intermittat et [se] suis commodet129

127 Sobre as questotildees da alma como parte de deus e para o qual regressa depois de libertada do corpo e do corpo que pode escravizar a alma se esta se deixar levar pelos caprichos corporais vide Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 9230 ss 128 Maria Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo 32-33 129 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 1043-4 lsquoHaacute que respeitar os afectos nobres Por vezes mesmo em circunstacircncias desesperadas a nossa alma prestes a exalar-se deve ser refreada retida mesmo no uacuteltimo instante por muito que isso custe se a honra dos familiares o exigir um homem de bem tem de viver natildeo enquanto lhe apraz mas enquanto a sua vida for necessaacuteria Soacute um obstinado egoiacutesta teima em morrer sem admitir que uma esposa ou um amigo lhe mereccedilam o sacrifiacutecio de prolongar um pouco mais a existecircncia Quando o interesse dos familiares o exige a alma deve impor a si mesma a vida pode ter decidido o suiciacutedio pode mesmo jaacute ter iniciado o processo pois que desista e se ponha agrave disposiccedilatildeo dos que dela precisamrsquo Este passo tem substancial importacircncia para compreensatildeo da trama das trageacutedias em estudo como voltaremos a referir em momento oportuno

36

Capiacutetulo II

HERCULES FURENS ANAacuteLISE DAS PERSONAGENS

NA TRAGEacuteDIA DE EURIacutePIDES E DE SEacuteNECA

1 Anfitriatildeo

11 caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides

Anfitriatildeo entra em cena no Proacutelogo1 comeccedilando por se apresentar como τὸν

Διὸς σύλλεκτρον2 Partindo desta circunstacircncia descreve as personagens que estatildeo

envolvidas na trageacutedia num discurso que se configura tematicamente entre um passado

afortunado e um presente que lhe eacute funesto traduzindo a perseguiccedilatildeo de Lico3

As caracteriacutesticas fiacutesicas e psicoloacutegicas que sobressaem em Anfitriatildeo satildeo

proacuteprias de um anciatildeo (εἴ τι δὴ χρὴ κἄmicrorsquo ἐν ἀνδράσιν λέγειν γέροντrsquo ἀχρεῖον4)

sensato e prudente Esta condiccedilatildeo torna a sua figura e situaccedilatildeo pateacuteticas visto que na

ausecircncia de Heacuteracles Anfitriatildeo teve de assumir o papel de guardiatildeo e protector dos

filhos e da esposa do Alcida λείπει γάρ με τοῖσδrsquo ἐν δώμασιν τροφὸν τέκνων

οἰκουρόν5 Haacute no entanto uma visiacutevel amargura neste discurso uma vez que tanto

τροφόν como οἰκουρόν6 satildeo palavras adequadas ao papel das mulheres no seu serviccedilo

domeacutestico A escolha vocabular permite acentuar a velhice (vv 41-42) e estabelecer um

contraste entre uma destreza passada perdida evocada por Meacutegara (vv 60-61) e a

realidade do presente Anfitriatildeo reconhece a sua incapacidade de defender os filhos do

Alcida vendo-se obrigado a refugiar-se com a famiacutelia heraclida junto do altar de Zeus

A sabedoria e sensatez manifesta-se pelas consideraccedilotildees que faz sobre o valor da

amizade Este eacute um tema de grande relevacircncia para a compreensatildeo da acccedilatildeo dramaacutetica 1 A acccedilatildeo dramaacutetica decorre em Tebas junto do altar de Zeus Σώτηρ e do palaacutecio de Heacuteracles Anfitriatildeo Meacutegara e os seus filhos esperam pela chegada de Heacuteracles que segundo Anfitriatildeο desceu ao Hades para capturar Ceacuterbero Natildeo haacute ainda referecircncia ao tema principal da trageacutedia a loucura de Heacuteracles Wilamowitz poreacutem sugere que o passo ῞Ηρα ὕπο κέντροις (vv 20-21) eacute jaacute um indiacutecio da loucura e dos aguilhotildees de Lissa (apud Bond 68) Em Seacuteneca o tema eacute apresentado no Acto I por Juno 2 lsquoque partilhou o leito conjugal com Zeusrsquo (v 1) Seguiu-se a traduccedilatildeo de Carlos Ferreira Santos Euriacutepides Heacuteracles Introduccedilatildeo Traduccedilatildeo e Notas (Coimbra diss de Mestrado em Literaturas Claacutessicas apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 1996) 3 Lico pretende matar a famiacutelia de Heacuteracles para que natildeo constitua uma ameaccedila ao seu governo 4 lsquoSe ainda eacute possiacutevel considerar entre os homens este velho inuacutetilrsquo (vv 41-42) 5 lsquoinstituiu guardiatildeo e protector dos seus filhosrsquo (vv 44-45) 6 Vide Bond 73

37

pois eacute um elemento que percorre toda a trageacutedia O final da ῥῆσις de Anfitriatildeo eacute um

exemplo

πάντων δὲ χρεῖοι τάσδ᾿ ἕδρας φυλάσσομεν σίτων ποτῶν ἐσθῆτος ἀστρώτῳ πέδῳ πλευρὰς τιθέντες ἐκ γὰρ ἐσφραγισμένοι δόμων καθήμεθ᾿ ἀπορίαι σωτηρίας φίλων δὲ τοὺς μὲν οὐ σαφεῖς ὁρῶ φίλους οἱ δ᾿ ὄντες ὀρθῶς ἀδύνατοι προσωφελεῖν τοιοῦτον ἀνθρώποισιν ἡ δυσπραξία∙ ἧς μήποθ᾿ ὅστις καὶ microέσως εὔνους ἐμοὶ τύχοι φίλων ἔλεγχον ἀψευδέστατον

(vv 51-59)7

Anfitriatildeo discorre sobre a verdadeira amizade que soacute eacute descoberta nas

adversidades Na situaccedilatildeo da famiacutelia heraclida os uacutenicos amigos que natildeo a

abandonaram foram os anciatildeos que constituem o Coro mas estes natildeo podem ajudaacute-la

dada a debilidade fiacutesica que a idade lhes trouxe

Meacutegara quando critica os malefiacutecios do exiacutelio expotildee a ideia de que os amigos

soacute vecircem bem os exilados no primeiro dia jaacute que depois tomam-nos como um fardo (vv

303-306) Tambeacutem Heacuteracles fica impressionado com a inexistecircncia de qualquer tipo de

auxiacutelio por parte dos amigos (vv 558-561) Podemos inferir que a primeira parte da

trageacutedia termina com uma visatildeo pessimista sobre a amizade permitindo assim

estabelecer um contraste com a parte final de Heracles com a chegada de Teseu O

aparecimento desta personagem permite criar um contraste entre Teseu e Lico e os

Tebanos uma vez que segundo Bond ldquohe exemplifies the good effective friendrdquo 8

Aleacutem das consideraccedilotildees que faz sobre a amizade Anfitriatildeo demonstra ser

sensato pelas sententiae9 que pronuncia e pelos conselhos que daacute ao confrontar-se com

Meacutegara Lico e Heacuteracles aconselha Meacutegara a ter esperanccedilas no regresso de Heacuteracles e a

permanecer calma (vv 95-106)10 alerta duas vezes Lico quanto ao uso desmedido do

7 lsquoAcolhemo-nos junto deste altar desprovidos de tudo de alimentos bebidas de vestuaacuterio com os corpos jazendo no solo nu Depois de seladas as entradas do palaacutecio permanecemos aqui sem quaisquer meios de salvaccedilatildeo Muitos dos que se diziam amigos mostram agora que o natildeo satildeo e os outros os verdadeiros amigos natildeo tecircm condiccedilotildees para nos ajudar Estas satildeo para os homens as consequecircncias da adversidade Soacute faccedilo votos para que ningueacutem (mesmo aqueles que pouco se interessam por mim) venha um dia a fazer prova real do valor da amizadersquo 8 Bond 362 9 Exemplos de γνῶμαι vv 57-59 vv 506-507 vv 511-512 10 Deste confronto com Meacutegara salientam-se o seu espiacuterito racional a sua vontade de continuar a viver enquanto lhe for possiacutevel por oposiccedilatildeo a Meacutegara que mostra um lado mais pessimista Para Carlos Santos Euriacutepides Heacuteracles Introduccedilatildeo Traduccedilatildeo e Notas 31 esta diferenccedila explica-se ldquo[por ser] fruto

38

poder lembrando-lhe que natildeo deve ser tatildeo violento para que natildeo venha tambeacutem ele a

suportar a mesma violecircncia agraves matildeos de outrem (vv 215-216 vv 707-711) sugere a

Heacuteracles que natildeo seja precipitado quando pretende vingar-se de Lico e de todos os

Tebanos que natildeo tiveram coragem de ajudar a sua famiacutelia para que natildeo tenha muitos

inimigos (vv 585-586 e vv 588-594) e aconselha-o ainda a dirigir-se ao altar da deusa

Heacutestia11 antes de matar o tirano

Anfitriatildeo tem uma posiccedilatildeo criacutetica em relaccedilatildeo a Zeus uma vez que o deus

supremo natildeo auxilia a famiacutelia de Heacuteracles Invoca-o duas vezes12 na primeira Anfitriatildeo

considera-se mais virtuoso do que Zeus uma vez que ao contraacuterio do deus natildeo

abandonou a famiacutelia na segunda invocaccedilatildeo apercebe-se de que se tornou uma

necessidade que ele proacuteprio Meacutegara e os filhos de Heacuteracles morram

A personagem Anfitriatildeo assume ainda um papel fundamental na preparaccedilatildeo do

assassiacutenio de Lico eacute ele quem prepara dolosamente a lsquoarmadilharsquo em que Lico cairaacute

Sugerindo a Heacuteracles que permaneccedila dentro do palaacutecio ateacute agrave chegada do tirano

Anfitriatildeo incita Lico a entrar no palaacutecio atraindo-o para a morte Do confronto entre os

dois salientam-se a crueldade e a violecircncia do tirano e a ironia (v 717) e ambiguidade

(v 719) do discurso de Anfitriatildeo

Por fim assume a atitude proacutepria de um pai em relaccedilatildeo a Heacuteracles defende a

honra e a heroicidade deste no ἀγών contra Lico (vv 174-205) esforccedila-se por proteger

os filhos dο heroacutei (vv 316-318) e no momento final cabe-lhe a tarefa de cremar os

cadaacuteveres dos filhos e da esposa do Alcida O uacuteltimo momento em que Anfitriatildeo estaacute

com Heacuteracles eacute densamente pateacutetico pai e filho despedem-se com um abraccedilo e com a

promessa do regresso deste para vir buscar Anfitriatildeo e levaacute-lo para Atenas lugar para

onde Heacuteracles se exila

da inexperiecircncia vivencial que reflecte afinal o papel exclusivamente confinado agraves paredes domeacutesticas a que a mulher grega tradicionalmente se encontrava votadardquo 11 Bond 216 explica que esta eacute a primeira deusa a quem Heacuteracles se dirige e honra 12 Na primeira invocaccedilatildeo entre os vv 339-347 Anfitriatildeo contesta a posiccedilatildeo do deus visto que natildeo vem em auxiacutelio da famiacutelia de Heacuteracles Para Anfitriatildeo o deus eacute mais um φίλος que lhes recusa auxiacutelio Na segunda vez em que o invoca (vv 497-513) jaacute em tom de prece pede a Zeus que os salve mas sente de que o deus natildeo os vai auxiliar καίτοι κέκλησαι πολλάκις microάτην πονῶ [lsquoDe resto tu com frequecircncia foste invocado Em vatildeo me esforceirsquo] (v 501) Ele pressente que a necessidade os obriga a morrer

39

12 caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Seacuteneca

O Anfitriatildeo de Seacuteneca eacute substancialmente diferente do de Euriacutepides Desde o

primeiro momento em que entra em cena ateacute agrave chegada de Lico natildeo sabemos que

Anfitriatildeo e a famiacutelia de Heacutercules estatildeo junto do altar de Juacutepiter Quem de tal nos

informa eacute o proacuteprio Lico quando se aproxima de Anfitriatildeo e de Meacutegara (vv 354-355)

A funccedilatildeo de guardiatildeo e protector dos filhos de Heacuteracles natildeo tem expressatildeo em Seacuteneca

assim como natildeo haacute um uacutenico lamento pela falta de amigos que possam auxiliaacute-lo na luta

contra o tirano

O discurso de Anfitriatildeo (vv 205-278)13 comeccedila por uma invocaccedilatildeo a Juacutepiter em

tom de prece Nesta inuocatio e em tom de captatio beneuolentiae roga ao deus que

ponha fim agraves suas afliccedilotildees e desgraccedilas vive atormentado pelos trabalhos a que o filho eacute

constantemente submetido desde o dia em que nasceu As primeiras criacuteticas satildeo

dirigidas principalmente a Juno visto que o oacutedio da deusa natildeo permite que Heacutercules

tenha sequer um breve momento de descanso protinus reduci nouus paratur hostis

antequam laetam domum contingat aliud iussus ad bellum meat nec ulla requies

tempus aut ullum uacat nisi dum iubetur (vv 209-213)

Este lamento inicial serve de pretexto para uma analepse onde eacute descrita a

infacircncia de Heacutercules a qual desde o iniacutecio foi marcada por tribulaccedilotildees Anfitriatildeo

recorda a aversatildeo de Juno desde o momento em que o filho dele nasceu e enumera

onze dos doze trabalhos do heroacutei omitindo o uacuteltimo14

Do nosso ponto de vista a enumeraccedilatildeo tem essencialmente trecircs objectivos

a) revelar a forccedila extraordinaacuteria do Alcida que ainda receacutem-nascido

estrangulou duas serpentes (vv 216-222)

13 Nem todos os editores atribuem estes versos a Anfitriatildeo Herrmann por exemplo atribui-os a Meacutegara (vv 205-308) Viansino Giardina e Fitch (1 e 2) atribuem os vv 205-278 a Anfitriatildeo e os vv 279-308 a Meacutegara Os argumentos que Fitch (1) 186 aponta satildeo ldquoIn 279ff which certainly belong to Megara there is a new and somewhat unbalanced emphasis on uis Herculea This change of tone suggests a change of speaker and the vocative coniunx in 279 is appropriate to such a change () 205-308 is modeled in part on two pairs of speeches by Amphitryon and Megara in Eur[ipides] Heracles As Sen[eneca] combines the Euripidean Amphitryonrsquos prologue speech with the same characterrsquos prayer to Zeus it seems that he intends the result (ie 205 ff) to be spoken by Amphitryon Some elements in 205-78 suit Amphitryon better than Megara The complaint about lack of security and requies (206-13) is repeated in Amphitryonrsquos speeches at 925f and 1252-57rdquo 14 Anfitriatildeo omite a descida aos Infernos Em Euriacutepides no proacutelogo a personagem homoacutenima alude apenas agrave descida ao Hades para explicar a ausecircncia do heroacutei e soacute descreve alguns dos trabalhos do seu filho no ἀγών contra Lico

40

b) sem elogiar as faccedilanhas de Heacutercules Anfitriatildeo critica a falta de descanso a

privaccedilatildeo de secura quies e a ausecircncia de seguranccedila por parte da famiacutelia resultando na

instabilidade emocional de Anfitriatildeo15 de Meacutegara e do proacuteprio heroacutei

c) tornar evidente o contraste entre o que Heacutercules fez e o que acontece no

presente apesar de ter libertado a terra do jugo de monstros ela encontra-se manchada

pelo crime da conquista do poder por meios violentos e iniacutequos Tudo o que Heacutercules

fez foi em vatildeo (vv 249-251)

A referecircncia ao crime da usurpaccedilatildeo do poder eacute uma alusatildeo agrave tirania Partindo do

geral (v 251 prosperum felix scelus) chega-se ao particular ndash Tebas Creonte Lico e as

dificuldades pelas quais Anfitriatildeo estaacute a passar A forma como esta personagem constroacutei

o raciociacutenio descrevendo os malefiacutecios da tirania indo agrave origem da cidade de Tebas

difere do modo como em Euriacutepides Anfitriatildeo discorre sobre os seus infortuacutenios no

proacutelogo a narraccedilatildeo junta elementos de um passado afortunado que contrasta com outros

de um presente odioso uma vez que Heacuteracles estaacute ausente da cidade Em Seacuteneca

Anfitriatildeo ao dar as primeiras impressotildees sobre Lico antecipa a entrada do tirano

permitindo ao leitor ter dele uma primeira imagem

O seu confronto com Lico e a forma como estaacute estruturado o diaacutelogo entre o

tirano e Anfitriatildeo satildeo diferentes nos dois autores bem como o objectivo que os norteia

Seacuteneca recupera o toacutepico da duacutevida de Lico em relaccedilatildeo agrave ascendecircncia divina de

Heacutercules Em ambos os autores o tirano potildee em causa a heroicidade do Alcida e o seu

regresso do mundo inferior Em Seacuteneca estes satildeo os temas-nuacutecleo que geram o conflito

de argumentos entre Lico e Anfitriatildeo Sendo a intenccedilatildeo do tirano a de se casar com

Meacutegara este pretende acabar com qualquer esperanccedila por parte dos Heraclidas no

regresso do heroacutei Jaacute em Euriacutepides o motivo eacute o de provar que Anfitriatildeo Meacutegara e os

filhos desta natildeo seratildeo salvos pelo heroacutei Para Lico Heacutercules eacute cobarde porque usa o

arco como arma A discussatildeo entre o tirano e Anfitriatildeo centra-se na utilizaccedilatildeo desta

arma e nas implicaccedilotildees que o seu uso tem numa batalha16

Diferem ainda as duas trageacutedias na forma como eacute preparada a morte de Lico e

como eacute descrito todo o processo de loucura de Heacutercules bem como no modo como o

15 Vive atormentado por graues aerumnae (cf v 206) de tal modo que nulla lux umquam mihi secura fulsit finis alterius mali gradus est futuri (vv 207-209) 16 Fitch (1) 184 justifica a diferenccedila entre os dois autores ldquothe argument in Euripides is primarily concerned with the rights and wrongs of using a bow as H[ercules] does in preference to a spear ndash a question that would have had little interest for an audience in the first century AD In Seneca the focus is rather on the question of H[ercules]rsquos divine paternity and his prospect of eventual deificationrdquo

41

heroacutei descobre a autoria do morticiacutenio Em Seacuteneca Anfitriatildeo natildeo eacute cuacutemplice no

assassiacutenio de Lico antes fica em palco com Teseu ouvindo as descriccedilotildees que este faz do

mundo inferior e das proezas do filho enquanto Heacutercules sai de cena para matar o

tirano Ao contraacuterio do que acontece na trageacutedia euripidiana Heacutercules dispensa

qualquer auxiacutelio incluindo o de Teseu o que mostra por um lado a obsessatildeo do heroacutei ndash

se ainda existe alguma ameaccedila ou de um tirano ou de um monstro eacute seu dever exclusivo

destruiacute-los ndash por outro a megalomania que adveacutem do seu sentimento de auto-

-suficiecircncia Por este motivo natildeo eacute de estranhar que a funccedilatildeo de conselheiro natildeo resulte

tatildeo bem em Seacuteneca quanto em Euriacutepides

Na trageacutedia grega Heacuteracles ouve os conselhos do pai e procura segui-los

porque os toma como saacutebios (vide supra) enquanto em Seacuteneca Heacutercules responde

sempre aos conselhos de Anfitriatildeo com a demonstraccedilatildeo de excessiva confianccedila que

deposita em si mesmo A sua soberba eacute clara Heacutercules confia apenas no poder da sua

manus julgando natildeo necessitar de conselhos dos outros No IV Acto por exemplo

Anfitriatildeo recomenda ao filho que purifique as matildeos sujas de sangue antes de iniciar as

libaccedilotildees Heacutercules replica com violecircncia e excesso (vv 920-924) demonstrando uma

crescente fuacuteria Em resposta Anfitriatildeo sugere-lhe que dirija preces a Juacutepiter pedindo-lhe

otium quiesque (vv 925-926) para os seus espiacuteritos fatigados (fessi v 926) Eacute manifesta

a necessidade que o anciatildeo sente de ter uma vida mais tranquila uma vez que natildeo

consegue permanecer imperturbaacutevel e de poder gozar da companhia do seu filho

sempre afastado continuamente a lutar contra monstros Esta acircnsia por uma vida mais

serena anuncia um espiacuterito que natildeo eacute impassiacutevel ao sofrimento mas eacute arrastado pelas

emoccedilotildees Mas uma vez mais os seus conselhos satildeo desprezados Heacutercules natildeo quer

esse otium e o seu estado de euforia atinge o limiar da loucura

Anfitriatildeo enumera as transformaccedilotildees fiacutesicas que antecedem17 a loucura de

Heacutercules narrando as suas consequecircncias a morte dos filhos e de Meacutegara18 O anciatildeo

vai ainda acompanhando as falas de Heacutercules isto eacute enquanto este descreve o que vecirc e

o que vai fazer Anfitriatildeo contrapotildee narrando aquilo que estaacute a acontecer na realidade

possibilitando ao leitor a visatildeo de dois mundos diferentes mas que se cruzam19 o

imaginaacuterio e o real Este ldquocruzamentordquo de realidades permite ter uma noccedilatildeo do

17 No final descreve tambeacutem a forma como Heacutercules adormece esgotado 18 Note-se que Anfitriatildeo soacute fala da sua velhice e consequentemente da sua impotecircncia para ajudar a famiacutelia no momento em que Heacutercules matou a mulher e os filhos cernere hoc audes nimis uiuax senectus (vv 1026-1027) 19 Pode-se dizer que eacute do cruzamento dessas duas realidades que resulta a morte das crianccedilas e de Meacutegara

42

desequiliacutebrio mental do protagonista e ter uma perspectiva do que lhe vai no acircnimo (o

que natildeo acontece em Euriacutepides uma vez que eacute o Mensageiro que relata aquilo que

observa de fora)

Em Heracles Anfitriatildeo receia aproximar-se do filho quando este acorda porque

desconhece se o espiacuterito dele ainda estaacute possuiacutedo ou se jaacute voltou ao normal teme que o

filho cometa um crime maior o parriciacutedio (vv 1081-1086) Em Seacuteneca Anfitriatildeo

procura a morte Mal Heacutercules acabara de matar Meacutegara Anfitriatildeo vai ao seu encontro

O terror o luctus (v 1027) e a sensaccedilatildeo de impotecircncia invadem o anciatildeo Anfitriatildeo

assistiu agrave morte cruel de cada um dos filhos do heroacutei e agrave de Meacutegara Julga que nada

mais lhe resta a natildeo ser morrer mors parata (v 1028) A morte surge a Anfitriatildeo como

uma forma de libertaccedilatildeo de um poder mais forte e da anguacutestia a que se vecirc submetido

Contudo eacute-lhe negada essa possibilidade Heacutercules adormece exausto pelos scelera que

cometeu e o seu pai escapa O mesmo eacute dizer que Anfitriatildeo natildeo pode morrer porque se

Heacutercules o matasse seria mais um scelus (v 1034) e quando Anfitriatildeo procura a morte

demonstra estar tomado pelos affectus ndash o Coro20 apercebe-se da sua atitude demente

quando o interpela Quo pergis amens (v 1033) Esta seria uma morte condenaacutevel

pelos estoacuteicos visto que eacute motivada por uma paixatildeo suacutebita e natildeo reflexo de uma

maturada reflexatildeo

No final da trageacutedia vendo que natildeo consegue dissuadir Heacutercules de se suicidar

Anfitriatildeo ameaccedila-o aut uiuis aut occidis (v 1308) Este eacute o uacuteltimo e uacutenico argumento

que trava o iacutempeto de Heacutercules de querer morrer

Note-se finalmente que Seacuteneca recupera alguns traccedilos que Euriacutepides o seu

modelo delineia na personagem o de defensor e conselheiro de Heacutercules Em ambos os

autores as personagens sentem-se oprimidas pela usurpaccedilatildeo do poder de Creonte por

parte de Lico A esperanccedila que em Heracles Anfitriatildeo manifesta no regresso do Alcida

estaacute tambeacutem presente em Hercules Furens e em ambos os casos a personagem

incentiva Meacutegara a acreditar no retorno do marido No entanto no caso de Hercules

Furens a spes do anciatildeo natildeo lhe permite que permaneccedila sereno perante a adversidade

20 Viansino Giardina e Herrmann atribuem estes versos a Teseu Fitch (1) 385 poreacutem remete para o Coro justificando a escolha ldquoThe only satisfactory solution is to give the present lines to the Chorus an attribuition found in M and perhaps in an ancestor of the Etruscus Indeed the timid tone of the lines suits the Chorus better than Theseus As H does not reappear onstage until 1035 () this attribution is consistent with the Senecan practice of occasionally using the Chorus in dialogue when no alternative interlocutor is available ie when there is only one speaking character onstagerdquo

43

antes suplica a Heacutercules que regresse adsis sospes et remees precor tandemque uenias

uictor ad uictam domum (vv 277-278)

A forma como Anfitriatildeo eacute apresentado nos dois tragedioacutegrafos eacute assim diacutespar

Em Euriacutepides ele parece ser mais racional e sensato Em Seacuteneca deparamos com uma

personagem que se deixa levar pelo medo e pela preocupaccedilatildeo com a seguranccedila de

Heacutercules Anfitriatildeo natildeo tem uma vida serena porque semper aut dubium mare aut

monstra timui (vv 1253-1254) Em termos estoacuteicos Anfitriatildeo natildeo se enquadra nas

caracteriacutesticas do sapiens uma vez que eacute movido pelo metus (ausecircncia de Heacutercules)

pela aegritudo (morte da famiacutelia) e pela spes (regresso do filho)

Apesar disso Anfitriatildeo tem poder de reflexatildeo e criacutetica que eacute muito mais

acentuado em Seacuteneca do que em Euriacutepides Dos seus discursos sobressaem censuras agrave

ausecircncia de Heacutercules agrave tirania agrave proacutepria cidade de Tebas que gerou muitos filhos de

origem divina21 Natildeo tem poreacutem um papel tatildeo activo (em Euriacutepides vimos que

Anfitriatildeo auxilia Heacuteracles a preparar o assassiacutenio de Lico em Seacuteneca o seu papel limita-

se agrave observaccedilatildeo e criacutetica) Esta mudanccedila prende-se com o proacuteprio ritmo da acccedilatildeo Ao

dar mais importacircncia aos monoacutelogos e aos debates entre as personagens a acccedilatildeo de

Hercules Furens eacute mais lenta Em compensaccedilatildeo eacute mais rica em auto-anaacutelises reflexotildees

sobre questotildees pertinentes como a concepccedilatildeo da uirtus do protagonista e do tirano

2 Meacutegara

21 caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides

A Meacutegara de Euriacutepides entra em cena no proacutelogo No seu diaacutelogo com Anfitriatildeo

(vv 60-106) daacute sinais de ser uma personagem marcadamente pessimista Transtornada

pela mudanccedila repentina da fortuna ndash Meacutegara a filha do rei de Tebas Creonte e casada

com Heacuteracles o melhor dos heroacuteis perde o pai assassinado por Lico que pretende

igualmente mataacute-la juntamente com os seus filhos e com Anfitriatildeo (vv 38-43) ndash ela

pressente que a morte estaacute proacutexima (vv 69-71) Natildeo acredita na possibilidade de se

salvar nem ela nem a sua famiacutelia porque natildeo tem esperanccedilas no regresso de Heacuteracles

21 Nesta alusatildeo feita por Anfitriatildeo agrave proveniecircncia divina de alguns heroacuteis que habitaram em Tebas pode estar impliacutecita a proveniecircncia divina de Heacutercules

44

(julga que ele ficou preso no mundo subterracircneo ou morreu) nem na ajuda de amigos

(vv 80-86)

O seu discurso eacute intensamente pateacutetico quando fala dos filhos assumindo uma

atitude maternal e protectora demonstra o cuidado em proteger as crianccedilas qual ave

que cobre os filhos com as asas (vv71-72) no iniacutecio do segundo episoacutedio despede-se

de cada um deles lembrando-se dos planos que Heacuteracles e ela haviam feito para o

futuro dos filhos (vv 456-489) procura salvar uma das crianccedilas que Heacuteracles ainda natildeo

assassinara no momento da sua loucura e morre tentando protegecirc-lo (vv 996-1000)

Como explica Bond ldquoshe has more time for pathos and paints an effective little picture

of herself dealing with the childish questions of her sons (71-9)rdquo22

Meacutegara revela poreacutem forccedila de espiacuterito quando defronta Lico mostrando-se

corajosa e audaz perante o tirano Sob a perspectiva de morrer consumida pelo fogo

junto do altar de Zeus e com a sua famiacutelia Meacutegara aconselha Anfitriatildeo a aceitar a

decisatildeo de Lico e a morrerem pelo menos com dignidade prefere deixar de viver com

honra do que ver os seus inimigos a rirem-se do seu infortuacutenio23 A necessidade de

preservar o κλέος da famiacutelia deve-se natildeo soacute agrave antiga reputaccedilatildeo de Anfitriatildeo enquanto

guerreiro mas tambeacutem ao facto de Heacuteracles ser glorioso (vv 288-292) desse modo

poderaacute preservar o seu bom nome de esposa do Alcida Esta honra pela qual pugna

aproxima-a assim dos heroacuteis claacutessicos

Jaacute no segundo episoacutedio no momento em que sai do palaacutecio para se render a

Lico Meacutegara invoca Heacuteracles para que ele apareccedila mesmo como sombra24 para salvar

a sua famiacutelia (vv 490-496) naquele derradeiro momento Ela nunca pede auxiacutelio a um

deus ao contraacuterio de Anfitriatildeo que dirige os seus votos a Zeus (vv 497-500) E quando

Heacuteracles entra em cena e se aproxima deles Meacutegara compara-o a Zeus no sentido em

que o poder de Heacuteracles de salvar os seus amigos vale tanto quanto o do proacuteprio deus

22 Bond 77 23 Esta ideia de ser motivo de riso para os seus inimigos (neste caso para Lico) vem no seguimento da ameaccedila do tirano de queimaacute-la viva juntamente com Anfitriatildeo e os filhos de Heacuteracles 24 Bond 191-192 recorda que a estrutura deste discurso ndash invocando a presenccedila do heroacutei ou pedindo-lhe ajuda ndash eacute comum em algumas trageacutedias em Eacutesquilo Pers 633-680 e 305-509 (dirigido a Dario) Soacutefocles El 1066-1081 Euriacutepides Or 1225-1242 e na El 677-684 (invocaccedilatildeo a Agammeacutemnon) A estrutura eacute declaraccedilatildeo de que vai comunicar algo (dirige as suas suacuteplicas a Heacuteracles vv 490-491) depois a mensagem propriamente dita (explica a situaccedilatildeo presente vv 492-493) de seguida imperativos (ordena-lhe que os salve e que apareccedila mesmo como sombra v 494) finalmente sarcasmo (provoca Heacuteracles vv 495-496)

45

(vv 519-521) Neste caso parece-nos que Meacutegara incorre na ὕβρις25 Assim a morte

desta personagem seria um castigo pelo seu desprezo pelos deuses

Quando Heacuteracles regressa o discurso de Meacutegara eacute novamente pateacutetico Sentindo

uma reviravolta na fortuna da famiacutelia das trevas para a luz ela mal deixa Anfitriatildeo

responder agrave pergunta de Heacuteracles (v 533) sendo ela quem contextualiza a situaccedilatildeo

familiar a morte iminente dos Heraclidas (vv 534 ss) Depois dessa breve informaccedilatildeo

Meacutegara torna-se uma personagem muda e natildeo aparece mais em palco O diaacutelogo

desenrola-se entre Anfitriatildeo e Heacuteracles que planeiam matar Lico Heacuteracles ainda alude

agrave esposa no momento em que vai entrar no palaacutecio dando a indicaccedilatildeo de que ela estaacute a

tremer No entanto como explica Bond ldquoEuripides and the audience have lost interest

in Megara and she has become a conventional timid wife γυνὴ δὲ θῆλυ κἀπὶ δακρύοις

ἔφυrdquo26

22 caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Seacuteneca

Em Seacuteneca a personagem oscila entre o bom senso (procurando manter

fidelidade castidade e liberdade) e estados passionais como o odium (vv 379 e ss) a

ira o furor (vv 495-500) a impotentia (cf vv 350-351) e a dementia (cf v 429)

Na sua fala nos versos 279-308 Meacutegara mostra ter uma atitude excessiva27

revelando um acircnimo perturbado e tomado pelas emoccedilotildees Na invocaccedilatildeo a Heacutercules ao

incitar o heroacutei ausente a quebrar todas as barreiras visiacuteveis e invisiacuteveis para poder

regressar a casa Meacutegara manifesta um estado eufoacuterico que parece acalmar entre os

versos 296-298 No entanto a pergunta retoacuterica (vv 296-298) que exprime uma dor

pela longa ausecircncia de Heacutercules desencadeia um novo impulso Em nove versos ela

volta a ter um discurso pautado por grande densidade emocional A anaacutefora tibi em

gradaccedilatildeo descendente (invoca primeiro Juacutepiter depois Ceres e os ritos misteriosos e

finalmente os misteacuterios de Elecircusis ndash vv 299-302) revela o intenso desejo de Meacutegara de

voltar a ver Heacutercules o que a leva a delirar O seu discurso entra no domiacutenio do

25 Um outro exemplo que evidencia a insolecircncia de Meacutegara eacute quando no monoacutelogo no segundo episoacutedio se queixa deixando transparecer ironia de que vem de Zeus o desejo de oferecer a Morte como noiva para os filhos de Heacuteracles (πατὴρ δὲ πατρὸς ἑστιᾷ γάμους ὅδε ndash lsquoeacute o pai do vosso pai que vos prepara o banquete nupcialrsquo v 483) 26 Bond 221 27 A fala de Meacutegara pauta-se por uma linguagem proacutexima da ὕβρις Como comenta Fitch (1) 205 ldquoThe first half of Megararsquos speech is marked by an ominous violence of language there is hubris in the phrases orbe diducto redi and erumpe rerum terminos tecum efferens and the idea of releasing the dead 291 ffrdquo

46

ἀδύνατος se o Alcida regressar uma nova idade floresceraacute traduzida na restituiccedilatildeo da

vida aos irmatildeos e ao pai rei de Tebas (vv 303-305) O desespero eacute cada vez mais

impetuoso ndash numa intensidade perceptiacutevel no pronome pessoal reflexo da segunda

pessoa do singular em poliptoto aliado agrave anaacutefora aut omnes agrave antiacutetese defende trahe e

agrave estrutura paraleliacutestica (vv 306-307 aut omnes tuo defende reditu sospes aut omnes

trahe)

Meacutegara termina o seu discurso de forma quase abrupta com uma suacutebita tomada

de consciecircncia trahes nec ullus eriget fractos deus (vv 305-308) O poliptoto trahe

trahes imprime agrave fala de Meacutegara um lado marcadamente pessimista e em simultacircneo

um pressaacutegio Heacutercules iraacute realmente arrastaacute-la para a morte

Meacutegara eacute caracterizada directamente por outras personagens28 vindo a primeira

referecircncia da parte do Coro o qual comenta quando a personagem entra em cena com

Anfitriatildeo que ela vem maesta () crine soluto (v 202) Esta indicaccedilatildeo daacute uma primeira

imagem de um animus perturbado Anfitriatildeo a par do elogio inicial (vv 309-310 casta

fide seruans torum natosque magnanimi Herculis) incita-a a abandonar o estado de

prostraccedilatildeo e desacircnimo pelos quais ela se deixou dominar e a confiar no retorno de

Heacutercules meliora mente concipe atque animum excita (v 311) ateacute porque o medo

oprime a alma natildeo permitindo aos que estatildeo submetidos a este affectus viver em

tranquilidade e o receio leva a que pensem sempre no pior afundando-se cada vez mais

no abismo do desespero Immo quod metuunt nimis numquam moueri posse nec tolli

putant prona est timoris semper in peius fides (vv 314-316) Com esta sententia

Anfitriatildeo inclui implicitamente Meacutegara no nuacutemero dos que satildeo levados pelo metus (cf

v 314) e pelo timor (cf v 316)

Lico descreve assim a figura de Meacutegara tristi () obtentu (v 355) O seu

aspecto fiacutesico espelha o seu proacuteprio acircnimo Meacutegara natildeo consegue controlar as emoccedilotildees

de tal forma que elas se tornaram fisicamente visiacuteveis Mas de uma face triste passa a

um estado de espiacuterito violento quando entra em conflito com Lico o qual para

assegurar o seu poder (vv 341-342) pretende obrigar Meacutegara a casar-se com ele

Reconhecendo nela um animus impotens e pertinax (cf v 350) o tirano ameaccedila matar a

famiacutelia de Heacutercules caso ela natildeo o aceite por esposo Meacutegara reage com trux uultus (cf

v 371) e efferata uox e rabida (cf v 397) agraves propostas de Lico Jamais poderia unir-se

28 Carlos Reis e Ana Cristina M Lopes Dicionaacuterio de Narratologia (7ordf ed Coimbra Almedina 2000) sv Caracterizaccedilatildeo Chris Baldick The Concise Oxford Dictionary of Literary Terms (Oxford Oxford University Press 2004) sv characterization

47

a um homem que tem as matildeos maculadas pelo sangue da sua famiacutelia (vv 372-373)

Para tornar claro a Lico a impossibilidade dessa uniatildeo Meacutegara exprime-se por meio de

adynata reforccedilando essa ideia com verbos no futuro do indicativo a aliteraccedilatildeo Scylla

Siculum e a anaacutefora de prius

a) prius extinguet ortus referet occasus diem (vv 373-374)

b) pax ante fida niuibus et flammis erit (v 375)

c) et Scylla Siculum iunget Ausonio latus (v 376)

d) priusque multo uicibus alternis fugax Euripus unda stabit Euboica piger (vv

377-378)

Aleacutem disso Lico tirou-lhe tudo quando usurpou o trono a Creonte Ela perdeu o

pater os regna os germani o lar a patria (cf vv 379-380) A enumeraccedilatildeo acentuada

pelo assiacutendeto pela figura etimoloacutegica e pelo homeoptoto concorre para acentuar a

desgraccedila de Meacutegara e a crueldade do tirano Quid ultra est (v 380) eacute a pergunta que

ela faz a si proacutepria Apenas uma coisa lhe resta e que lhe eacute mais cara do que fratre ac

patre regno ac lare (v 381) o odium Meacutegara quando se apercebe de que ainda lhe

resta algo depois de ter perdido tudo volta a referir-se ao pai aos irmatildeos aos lares e ao

reino Mas agora apresenta-os em pares ligados por uma conjunccedilatildeo coordenativa fratre

ac parente () regno ac lare (v 381) e em estrutura quiaacutestica com os antecedentes (v

379) marcados pela uariatio a) patrem regna germanos larem b) fratre ac parente

regno ac lare O assiacutendeto no v 379 marca a rapidez e a crueldade com que Lico

matou a famiacutelia de Meacutegara acentuando o oacutedio que a move porque una res superest

mihi (v 380) ndash tudo concorre para este affectus que ela sente por Lico mas que ainda

assim tem que dividir com o povo de Tebas restando-lhe uma pequena parte (vv 382-

383)

Lico imoderado volta a insistir na ideia de partilhar com ela o reino

recentemente conquistado unindo assim os leitos nupciais (tori cf v 413) Essa sua

vontade deve-se ao animus magnus de Meacutegara (cf v 412) para suportar ruinae (cf v

412) que o cativa

A insistecircncia de Lico provoca em Meacutegara uma reacccedilatildeo psicossomaacutetica29

Gelidus per artus uadit exsangues tremor (v 414) A semacircntica do verbo uado (aqui

29Eacute frequente nas trageacutedias de Seacuteneca a ocorrecircncia de manifestaccedilotildees psicossomaacuteticas nas personagens Por meio desta teacutecnica o filoacutesofo mostra agrave boa maneira estoacuteica as reacccedilotildees fiacutesicas que as perturbaccedilotildees da alma provocam Na Carta 1065 Seacuteneca lembra a Luciacutelio que as paixotildees tambeacutem satildeo corpos e como tal provocam alteraccedilotildees no rosto lsquoa coacutelera o amor a tristeza () enrugam[-nos] a testa alongam[-nos] a face tornam[-nos] a cara encarniccedilada ou fazem[-nos] ficar sem pinga de sanguerdquo

48

com um sentido de rapidez30) eacute salientada por uma estrutura quiaacutestica (gelidus ndash tremor

per artus ndash exsangues) sublinhando o sentimento de horror que percorre os membros de

Meacutegara Para ela esta proposta natildeo eacute senatildeo uma nova acccedilatildeo iacutempia (facinus v 415) que

lhe provoca terror ao contraacuterio do que sentiu quando a cidade foi tomada pelo fragor

beacutelico (vv 415-417) Se naquele momento permaneceu intrepida (cf v 417) agora

sente que vai perder a sua liberdade Prefere que as cadeias lhe desgastem o corpo ou

que uma fome prolongada a consuma morrendo lentamente do que partilhar o taacutelamo

com o tirano (thalamos tremesco v 418) A morte surge-lhe como o uacutenico meio de

permanecer livre e de manter a sua fides a Heacutercules moriar Alcide tua (v 421)

Nenhuma ameaccedila de Lico a demove porque Cogi qui potest nescit mori (v 426) ndash o

quiasmo da sententia reforccedila o seu desejo violento de deixar de viver Neste sentido a

morte como forma de libertaccedilatildeo de um poder superior ganha expressatildeo nas palavras de

Meacutegara e vai ldquoao encontro da perspectiva estoacuteicardquo31

Em Euriacutepides ao inveacutes natildeo haacute um confronto entre Meacutegara e Lico apenas entre

o tirano e Anfitriatildeo Meacutegara dirige-se ao soberano uma uacutenica vez para lhe pedir que lhe

abra a porta do palaacutecio a fim de ela e os filhos poderem vestir uma roupa fuacutenebre (vv

327-331)

Assim numa perspectiva comparativa vemos que a Meacutegara de Euriacutepides eacute

diferente da de Seacuteneca ateacute pelo nuacutemero de versos a ela dedicados em Heracles o total

de versos correspondentes agrave fala de Meacutegara eacute de 146 vv em Seacuteneca de 90 vv (56 vv)

Aleacutem disso em Euriacutepides Meacutegara entra em cena no proacutelogo e desaparece no terceiro

episoacutedio para natildeo mais regressar em Seacuteneca a personagem surge nos Actos II III e

IV Neste uacuteltimo fala apenas uma vez em dois versos e meio precisamente no

momento que antecede a sua morte tentando fazer-se reconhecer por Heacutercules Esta

diferenccedila eacute significativa indicando que a niacutevel de conteuacutedo os poetas exploraram a

figura feminina de modo desigual

Do ponto de vista estrutural comparando o Proacutelogo do Heracles (vv 1-106)

com os vv 205-331 do Acto II do Hercules Furens vemos que

a) Anfitriatildeo refere a ausecircncia do Alcida e alude agrave situaccedilatildeo de Tebas governada

sob tirania Em Euriacutepides como explica Fitch ldquo[Amphitryonrsquos first speech] is an

30 cf Ernout-Meillet sv uado 31 Vide Maria Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas trageacutedias de Seacutenecardquo Classica Boletim de Pedagogia e Cultura 23 (1999) 37

49

expository prologue speech outside the action of the playrdquo32 Jaacute em Seacuteneca parece

haver um tom que se aproxima mais de uma queixa do que uma contextualizaccedilatildeo da

acccedilatildeo dramaacutetica

b) Em Euriacutepides depois da exposiccedilatildeo de Anfitriatildeo Meacutegara fala num passado

afortunado em contraste com um presente doloroso Em Seacuteneca apesar de Anfitriatildeo e

Meacutegara entrarem ao mesmo tempo em cena33 natildeo estabelecem um diaacutelogo de imediato

cada um dirige as suas preces expondo os seus dramas interiores Natildeo haacute por assim

dizer um elemento que permita ligar a fala de Anfitriatildeo (vv 205-278) ndash iniciada pela

apoacutestrofe a Juacutepiter designado como forma de o engrandecer e de alcanccedilar dele

beneuolentia por pronominaccedilatildeo O magne Olympi rector et mundi arbiter (v 205) ndash agrave

de Meacutegara (vv 279-308) que invoca o marido Emerge coniunx (v 279) Eacute apenas

depois de Meacutegara expor o seu desespero (um uitium que a personagem natildeo consegue

controlar) que se segue o diaacutelogo entre as duas personagens34

A diferenccedila entre as duas trageacutedias tem que ver essencialmente com o objectivo

de Seacuteneca fazer representar a consciecircncia da personagem fazendo antever os affectus a

que as personagens estatildeo submetidas e pelos quais elas se movem Com esta teacutecnica

que tem uma funccedilatildeo propedecircutica o filoacutesofo revela as diversas formas de o homem se

deixar levar pelas passiones demonstrando o resultado catastroacutefico delas

Apesar de haver maioritariamente diferenccedilas no comportamento desta

personagem nas trageacutedias de Euriacutepides e Seacuteneca haacute uma semelhanccedila Meacutegara natildeo

acredita que o Alcida consiga regressar do mundo inferior Em ambas as trageacutedias esta

descrenccedila contrasta com a crenccedila de Anfitriatildeo de que o filho conseguiraacute voltar a Tebas

Em siacutentese a Meacutegara de Euriacutepides eacute uma personagem marcadamente pessimista

que aceita resignada a morte que Lico lhe destina Para esta o que importa eacute manter o

seu bom nome e a honra da famiacutelia (o κλέος proacuteprio dos heroacuteis) Jaacute a Meacutegara de Seacuteneca

eacute activa faz prevalecer a sua vontade mesmo que isso implique morrer ndash prefere a

liberdade ao jugo de um casamento manchado pelo scelus Contesta todos os

argumentos de Lico respondendo ora com a alusatildeo ao destino que o espera ora

prometendo ser a uacuteltima Danaide ndash atinge assim um estado de furor

32 Fitch (1) 183 33 O Coro anuncia a entrada das duas personagens Sed maesta uenit crine soluto Megara paruum comitata gregem tardusque senio graditur Alcidae parens (vv 202-204) 34 Anfitriatildeo dirige-se a Meacutegara por meio de um vocativo e uma periacutefrase O socia nostri sanguinis casta fide seruans torum natosque magnanimi Herculis (vv 309-310)

50

A sua atitude afasta Meacutegara do modelo estoacuteico dada a sua incapacidade de

permanecer imperturbaacutevel perante os avanccedilos de Lico e a sua ausecircncia de serenidade

que a torna demens (v 429)35 Recorde-se que segundo a predicaccedilatildeo estoacuteica a atitude

justa para com os inimigos era ser mitis et facilis36 numa firme contenccedilatildeo bem diferente

da violecircncia com que Meacutegara reage aos desmandos de Lico

3 Lico

31 caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides

A personagem Lico o tirano de Tebas eacute uma criaccedilatildeo de Euriacutepides37 Anfitriatildeo

(vv 26-34) faacute-lo descender de Lico38 (antigo soberano de Tebas) e de Dirce delineando

o caraacutecter do tirano logo no proacutelogo Como deacutespota eacute uma personagem violenta que se

move entre a astuacutecia e o temor Anfitriatildeo explica que Lico aproveitou a guerra civil para

usurpar o reino de Creonte matando-o (cf vv 33-34) O Coro indica que o tirano eacute um

estrangeiro e que conseguiu manter-se no governo porque οὐ γὰρ εὖ φρονεῖ πόλις

στάσει νοσοῦσα καὶ κακοῖς βουλεύμασιν οὐ γάρ ποτ᾿ ἂν σὲ δεσπότην ἐκτήσατο (vv

272-274)39

O tema da πόλις poluiacuteda corrompida pelas guerras civis torna mais legiacutetima a

noccedilatildeo de culpa por parte de Lico Segundo o Coro Lico natildeo respeita os deuses (cf v

255 ἀνόσιος) age com insolecircncia (cf v 261 ὑβρίζω v 741 ὕβρεις ὑβρίζων) e eacute um

assassino (v 755 διώλλυς) Por estes motivos merece ser castigado

35 Demens eacute uma palavra composta por prefixaccedilatildeo A semacircntica do prefixo de eacute de lsquoafastamento separaccedilatildeorsquo Algueacutem demens eacute agrave letra algueacutem que estaacute afastado ou separado da sua mens (logo do seu princiacutepio pensante do seu espiacuterito da inteligecircncia) Vide Ernout-Meillet sv mens 36 Cf Seacuteneca De Vita Beata 20 37 Bond xxviii afirma que natildeo haacute qualquer alusatildeo a esta personagem em outras fontes antes de Euriacutepides Esta personagem aparece em autores como Asclepiacuteades Higino e Seacuteneca porque seguiram o tragedioacutegrafo grego Aleacutem disso como explica Bond ldquoThe elaborate introduction of Lycus at 26 γέρων δὲ δή τις ἔστι Καδμείων λόγος ὡς ἦν πάρος Δίρκης τις εὐνήτωρ Λύκος reinforced by 38 ὁ καινὸς οὗτος τῆσδε γῆς ἄρχων Λύκος points clearly to Euripidean invention as Wilamowitz saw (ii 112) Lycus senior father (or ancestor) of this Lycus did exist independentlyrdquo 38 Lico filho de Hirieu e da ninfa Cloacutenia (numa outra versatildeo do mito tem como progenitor Ctoacutenio um dos guerreiros espartanos nascidos dos dentes de dragatildeo que tinha sido morto por Cadmo) Este Lico teria governado Tebas antes de Laio e fora destituiacutedo por Anfiacuteon e Zeto porque maltratou Antiacuteope matildee deles e sobrinha do soberano (vide Pierre Grimal Dicionaacuterio de Mitologia Grega e Romana coord da ediccedilatildeo portuguesa Victor Jabouille (3ordf ed Algeacutes Difel 1999) 280-81)39 lsquoEacute que a cidade enferma de discoacuterdia civil e maacutes resoluccedilotildees natildeo estaacute no seu perfeito juiacutezo de outro modo nunca te teria aceite como soberanorsquo

51

Nas suas intervenccedilotildees no primeiro e no terceiro episoacutedios Lico revela um

caraacutecter impulsivo40 cobarde e excessivo ndash caracteriacutesticas apontadas directamente pelas

personagens dramaacuteticas e indirectamente pelas suas acccedilotildees e reacccedilotildees Lico manifesta a

sua crueldade no modo como confronta Anfitriatildeo e Meacutegara recordando-lhes o seu

poder absoluto que se traduz na decisatildeo de querer matar a famiacutelia de Heacuteracles Como

assassinou Creonte teme que os filhos de Meacutegara possam constituir perigo para o seu

governo41 Justifica pois o seu acto como uma medida de precauccedilatildeo ἔχει δὲ τοὐmicroὸν

οὐκ ἀναίδειαν γέρον ἀλλ᾿ εὐλάβειαν∙42 (vv 165-166)

Anfitriatildeo interpreta as atitudes do soberano como actos de cobardia (δειλία cf

vv 210 235) e de excesso (vv 215-21643 707-70944 727-728) referindo a

possibilidade de ele vir a ser castigado pela sua insolecircncia Os versos 727-728 aludem

ao castigo que se avizinha Repare-se que a estrutura destes versos eacute semelhante agrave dos

vv 215-216 em ambos os casos haacute uma estrutura quiaacutestica acentuada pelo poliptoto

que converge para as palavras βία e κακός45

- βίᾳ δὲ δράσῃς μηδὲν ἢ πείσῃ βίαν46

- προσδόκα δὲ δρῶν κακῶς κακόν τι πράξειν47

Enquanto no primeiro exemplo Anfitriatildeo parece admitir a possibilidade de

Heacuteracles regressar e castigar o tirano ἀνομία χραίνων (lsquopela desobediecircncia agraves leisrsquo v

757) no segundo exemplo eacute a concretizaccedilatildeo dessa hipoacutetese uma vez que Lico eacute o

40 Lico rege-se por impulsos Natildeo admite que ningueacutem ouse confrontaacute-lo ameaccedilando castigar de modo cruel todos os que natildeo lhe obedecerem (nos vv 247-251 o tirano recorda ao Coro de anciatildeos que eles natildeo satildeo mais do que escravos nas matildeos dele) 41 O discurso de Lico eacute sarcaacutestico e impiedoso Na primeira parte numa foacutermula tiacutepica de uma captatio beneuolentiae numa sucessatildeo de perguntas retoacutericas o tirano pretende lembrar a Anfitriatildeo e a Meacutegara que ele eacute o novo rei e que natildeo haacute quaisquer esperanccedilas no regresso de Heacuteracles 42 lsquoA minha atitude oacute anciatildeo natildeo implica crueldade mas prudecircnciarsquo 43 Nos versos 215-16 Anfitriatildeo poderaacute aludir agrave vinda de Heacuteracles como vingador Esta ideia estaacute impliacutecita na palavra βία acentuada pelo poliptoto e na expressatildeo ὅταν θεῦ σοι πνεῦμα μεταβαλὸν τύχῃ (lsquoquando o sopro da divindade lanccedilar contra ti os ventos da fortunarsquo) ndash uma das caracteriacutesticas do Alcida eacute precisamente a de ser um heroacutei que castiga as acccedilotildees dos iacutempios recorrendo sempre agrave violecircncia Anfitriatildeo (vv 95-97) expressa a sua esperanccedila no regresso do filho 44 No terceiro episoacutedio quando o soberano entra em cena pela segunda e uacuteltima vez Anfitriatildeo censura de novo a forma como Lico se comporta Volta a incitaacute-lo a ser mais moderado ἃ χρῆν σε μετρίως κεἰ κρατεῖς σπουδὴν ἔχειν (v 709 lsquoEra com moderaccedilatildeo que tu sendo embora soberano te deverias preocuparrsquo) 45 Ambas as palavras remetem tambeacutem para a forma como Heacuteracles mataraacute o soberano Esta conexatildeo entre as duas estruturas permite estabelecer uma comparaccedilatildeo entre as duas personagens precisamente no modo como reagem a situaccedilotildees de perigo Ambas assumem um comportamento violento e irracional (como oportunamente veremos) 46 lsquoNatildeo recorras agrave violecircncia ou viraacutes tambeacutem a suportaacute-larsquo (v 215) Relativamente aos problemas que o segmento πείσῃ βίαν levanta vide Bond 121 47 lsquoDepois do mal que fizeste espera que algo de mal te possa acontecerrsquo (vv 727-728)

52

δυσσεβὴς ἀνήρ (v 760 lsquohomem iacutempiorsquo) que abusa do seu poder porque governa

segundo as leis do medo

No entanto aos conselhos de Anfitriatildeo para que modere a sua violecircncia a fim de

natildeo ser submetido por algueacutem igualmente cruel Lico responde com ainda mais oacutedio e

violecircncia ora incitando os seus acompanhantes a irem buscar lenha para queimar vivos

os Heraclidas que estatildeo junto do altar de Zeus ora invadindo o palaacutecio do heroacutei para

arrebatar de laacute Meacutegara e os filhos que segundo a indicaccedilatildeo de Anfitriatildeo se tinham

refugiado junto dos altares familiares Lico incorre na ὕβρις ao desrespeitar os

suplicantes (duas vezes) e por natildeo temer que os deuses o castiguem pela sua insolecircncia

Por esse motivo o tirano seraacute castigado

b) caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Seacuteneca

A origem de Lico natildeo eacute em Seacuteneca tatildeo expliacutecita ignarus exul (cf v 269) exul

Lycus (v 274) e estaacute desligada de Tebas ndash nenhum dos antepassados do tirano tem

qualquer viacutenculo agrave realeza Segundo Anfitriatildeo Lico natildeo eacute mais do que um desterrado

movido pelo desejo de chegar ao poder a qualquer preccedilo Jaacute em Euriacutepides Anfitriatildeo

indica que o tirano descendia de Lico que fora soberano de Tebas Com esta mudanccedila

Seacuteneca apresenta uma personagem voltada para as paixotildees Lico deseja ter poder

conquista-o por meio de scelera e pretende mantecirc-lo de qualquer modo (ou pelo

matrimoacutenio ou pelas armas)

Anfitriatildeo parte da imagem da cidade submetida pelo scelus por arma e pelo

timor que opprimit leges (cf vv 251 e ss) para falar da truculenta manus (cf v 254

metoniacutemia para designar Lico) que manteacutem a cidade sob um jugo infame (v 267

sordido premitur iugo) Estas alusotildees datildeo uma primeira ideia do crime e do caraacutecter

violento de Lico (cuja identificaccedilatildeo nominal soacute eacute feita vinte e trecircs versos depois de a ele

ser feita a primeira alusatildeo dando toda a evidecircncia do seu caraacutecter perverso)

Por oposiccedilatildeo a Lico que representa o protoacutetipo de tirano que usa saeuum

sceptrum (metoniacutemia para designar o poder do soberano cf v 272) Anfitriatildeo apresenta

Heacutercules como o que tem iusta manus (cf v 272) Ao lembrar a ausecircncia do heroacutei que

castiga todos os que governam as cidades de forma cruel Anfitriatildeo prenuncia o castigo

de Lico (vv 271-276)

53

Meacutegara acrescenta no momento em que o tirano entra em cena um conjunto de

caracteriacutesticas fiacutesicas que estatildeo em sintonia com a ψυχή do usurpador

saeuus ac minas uultu gerens et qualis animo est talis incessu uenit aliena dextra sceptra concutiens Lycus

(vv 329-331)

Nesta descriccedilatildeo de Meacutegara vemos que haacute uma relaccedilatildeo entre o interior do tirano

(o seu animus) e o seu aspecto fiacutesico traduzido na comparaccedilatildeo qualis animo est tali

incessu uenit ndash Lico apresenta manifestaccedilotildees visiacuteveis do uitium Ele vem saeuus minas

uultu gerens empunhando aliena sceptra Estas novas impressotildees revelam um caraacutecter

voltado para a crueldade Ateacute o modo como Lico se dirige a Meacutegara e a Anfitriatildeo eacute um

indicador de um acircnimo perturbado pela saeuitia ndash a forma concutiens (agitando) de um

verbo que expressa movimento aliada agrave assonacircncia dextra sceptra sugere a ideia de

que o tirano vem brandindo os aliena sceptra (note-se a metoniacutemia e o adjectivo

aliena que demonstram que Lico governa uma cidade que natildeo lhe pertence por direito)

com o intuito de persegui-los

O monoacutelogo48 de Lico (vv 332-357) vem abonar aquilo que foi dito por

Anfitriatildeo e Meacutegara sobre o perfil do tirano

Vrbis regens opulenta Thebanae loca et omne quidquid uberis cingit soli obliqua Phocis quidquid Ismenos rigat quidquid Cithaeron uertice excelso uidet

(vv 332-335)

Os primeiros versos anunciam o orgulho do rex reforccedilado pela iteraccedilatildeo de

quidquid ndash ele compraz-se em repetir o muito que estaacute sob o seu domiacutenio O tirano tem

de facto consciecircncia da riqueza da terra que usurpou noccedilatildeo essa manifestada nos

adjectivos que escolhe para qualificar Tebas opulenta uberis excelsus

Lico julga-se valoroso porque conquistou o reino de Tebas pelas suas proacuteprias

matildeos e natildeo por herenccedila Neste sentido o tirano ldquopretende desde logo rechaccedilar as

invectivas dos adversaacuterios contra a sua origem humilde (Her F 337-338) e contra a

48 Quando entra em cena Lico vem a falar sozinho e soacute depois de se expressar eacute que se apercebe da presenccedila de Anfitriatildeo e de Meacutegara (vv 354-357) Isto permite ter conhecimento do que vai no acircnimo do tirano e avaliar as suas intenccedilotildees (vide Fitch (1) 214)

54

instabilidade do poder da fortuna e procura a legitimaccedilatildeo para um poder baseado na

forccedila (v 340-342) e na vitoacuteria (v 399-402)rdquo49

[et bina findens Isthmos exilis freta] non uetera patriae iura possideo domus ignauus heres nobiles non sunt mihi aui nec altis inclitum titulis genus sed clara uirtus qui genus iactat suum aliena laudat

(vv 332-341)

Como explica Carla Gonccedilalves o termo nobilis ldquonatildeo tem aqui o valor de elogio

antes eacute utilizado com uma conotaccedilatildeo pejorativa porquanto Lico considera que o

enaltecimento da origem familiar eacute uma apropriaccedilatildeo iliacutecita do meacuterito alheiordquo50 A

oposiccedilatildeo que a personagem faz entre nobiles e sed clara uirtus natildeo deixa poreacutem de ter

um efeito iroacutenico uma vez que o modo como ele conseguiu chegar ao poder foi por

meio de um crime e natildeo do valor pessoal Aleacutem disso contrasta com a fala de Anfitriatildeo

alguns versos antes quando este critica a situaccedilatildeo actual da cidade prosperum ac felix

scelus uirtus uocatur ndash vv 251-252 Esta uirtus que Anfitriatildeo anuncia representa a

inversatildeo de valores que convicta e conscientemente Lico demonstra Os adjectivos

prosperum e felix e a aliteraccedilatildeo sublinham esta subversatildeo dos valores

Lico acha-se contudo no caminho certo e como tal a sua loacutegica eacute irrefragaacutevel

Todo o seu raciociacutenio eacute loacutegico e seria facilmente considerado como justo se estivesse

desligado do seu contexto Lico conclui as suas ideias com uma sententia (vv 340-341)

que mesmo do ponto de vista estoacuteico seria vaacutelida natildeo eacute o valor dos outros que faz o

nosso Deste modo Seacuteneca revela os erros de raciociacutenio a que o stultus estaacute sujeito as

premissas estatildeo erradas e o resultado ainda que seja aparentemente loacutegico natildeo pode ser

correcto

A tirania que exerce sobre a cidade eacute evidente quando diz que

rapta sed trepida manu sceptra obtinentur omnis in ferro est salus quod ciuibus tenere te inuitis scias strictus tuetur ensis

(v 341-344)

49 Francisco de Oliveira ldquoImagem do Poder na Trageacutedia de Seacutenecardquo Humanitas 51 (1999) 59 50 Carla Susana Vieira Gonccedilalves Invectiva na Trageacutedia de Seacuteneca (Coimbra Ediccedilotildees Colibri 2003) 126

55

As aliteraccedilotildees (obtinentur omnis tenere te scias strictus) acentuadas pela

conjunccedilatildeo adversativa que introduz uma correctio concorrem para evidenciar o lado

cruel de Lico que oprime a cidade e os habitantes com o ferrum e o ensis A uacutenica

soluccedilatildeo para tornar legiacutetimo o seu poder eacute unir-se a Meacutegara pelo matrimoacutenio51 ou se ela

negar matar a famiacutelia heraclida52 Nem uma possiacutevel hostilidade do povo caso Lico

opte por destruir a casa de Heacutercules o demove inuidia factum ac sermo popularis

premet ars prima regni est posse in inuidia pati (vv 352-353) O poliptoto de

inuidia reforccedilado pela aliteraccedilatildeo em p e pelo uso lapidar da sententia com que resume o

seu raciociacutenio acentua o menosprezo do tirano pela opiniatildeo do seu povo ldquoe cultiva o

oacutediordquo53

Procura entatildeo convencer Meacutegara tentando acalmar o seu acircnimo Mas se os

argumentos de Lico parecem justos e vaacutelidos visto que pretende restaurar a paz na

cidade (vv 362-369) natildeo deixam de comprovar a sua crueldade e ambiccedilatildeo pelo poder

Na verdade o tirano admite que usurpou o reino (v 399 rapta sceptra) que o seu

poder eacute absoluto (cf v 400) e que governa sine metu legum (cf c 400) porque eacute

mantido pela forccedila (v 401 arma)

A resposta de Meacutegara eacute a rejeiccedilatildeo da proposta do tirano Para ela Lico

representa o exitium (v 358) e a lues (v 358) Estes substantivos demonstram o caraacutecter

implacaacutevel do soberano Tambeacutem os adjectivos que Meacutegara escolhe para qualificar a

personalidade de Lico satildeo igualmente representativos na demonstraccedilatildeo dos seus

affectus ele eacute tumidus e de altus [spiritus] (cf v 384) Meacutegara recorda-lhe o destino

dos reges de Tebas (vv 386-395) destino esse que o espera dominare ut libet dum

solita regni fata te nostri uocent (vv 395-396)

Dado que Meacutegara pretende manter a fidelidade ao marido o tirano potildee em causa

a heroicidade de Heacutercules Em forma de controuersia Lico rebate todos os argumentos

de Anfitriatildeo que entretanto se propocircs defender o heroacutei ausente diminuindo o valor do

Alcida reduzindo-o a tudo menos um heroacutei Neste aspecto vemos a arguacutecia de Lico que

eacute posta ao serviccedilo do mal 51 Em Euriacutepides tivemos a ocasiatildeo de observar que o tirano pretendia matar a famiacutelia de Heacuteracles Se este toacutepico eacute inovaccedilatildeo de Seacuteneca ou se seguiu uma outra tradiccedilatildeo de tragedioacutegrafos poacutes-euripidianos natildeo haacute quaisquer certezas como explica Fitch (1) 184 No entanto como este autor indica ldquoit was particularly attractive to Seneca because it enabled him to show a tyrant being defied to his facerdquo (id) 52 Tal como explora Fitch (1) 216 estaacute impliacutecita a ideia de que os tiranos que governam sob as leis do medo vivem nesse mesmo medo assim como aqueles que governam por meio da forccedila sentem o seu poder instaacutevel (vide De Clem 1252-3) Mas no caso particular de Lico ele procura uma soluccedilatildeo para aplacar o oacutedio do seu povo e soacute em uacuteltimo caso eacute que pensa matar Meacutegara e a famiacutelia 53 Francisco de Oliveira ldquoImagem do Poder na Trageacutedia de Seacutenecardquo 59

56

Uma vez negadas todas as propostas e refutados os argumentos que usa (o

soberano queria Meacutegara iuncta estar sob o jugo do tirano e pretendia tecirc-la coacta ndash v

494) a Lico resta a ameaccedila de mataacute-los diante do altar queimando-os vivos (vv 501-

509) Como afirma Segurado e Campos ldquoa escolha do castigo pelo fogo obedece a um

propoacutesito niacutetido realccedilar a violecircncia e a ferocidade do tirano pela utilizaccedilatildeo do mais

completo e draacutestico meio de destruiccedilatildeordquo54

Se neste passo Seacuteneca retoma a tradiccedilatildeo do mito euripidiano nele encontramos

tambeacutem um aspecto divergente e inovador eacute que o tyrannus de Seacuteneca natildeo concede

sequer um uacuteltimo desejo a Anfitriatildeo o de ser o primeiro a morrer tal eacute a sua impia regis

feri dextra (vv 518-519)

Qui morte cunctos luere supplicium iubet nescit tyrannus esse diuersa irroga miserum ueta perire felicem iube ego dum cremandis trabibus accrescit rogus sacro regentem maria uotiuo colam (vv 511-515)

A inclemecircncia e impiedade de Lico satildeo evidentes nestes versos acentuados pela

antiacutetese miserum ndash felicem (v 513) e pelo substantivo tyrannus Anfitriatildeo acusa Lico de

ser iacutempio impiam regis feri dextram O quiasmo e o homeoptoto concorrem para fazer

sobressair o caraacutecter fero do tirano Na caracterizaccedilatildeo de Lico ao longo da peccedila eacute de

notar com o fim de sublinhar essa mesma ideia a insistecircncia em vocaacutebulos da raiz de

reg-55 que tecircm uma conotaccedilatildeo negativa Rex representava para os Romanos o mesmo

que o tyrannus grego (v 512) Desde a transiccedilatildeo para a Repuacuteblica e a deposiccedilatildeo dos

Tarquiacutenios que a palavra rex assumira implicaccedilotildees negativas56 O uso de regnum e de

todas as palavras que partilham a mesma raiz pode assim traduzir de imediato a ideia

de prepotecircncia abuso de poder regime autocraacutetico e despoacutetico Para o mesmo fim

concorre por exemplo o uso de dominare (v 384 v395) da raiz de dominus que

significa lsquosenhorrsquo por oposiccedilatildeo aos escravos Lico assume o perfil do amo sem piedade

e exige a submissatildeo de todos os seus desiacutegnios 54 J A Segurado e Campos ldquoO Simbolismo do Fogo nas Trageacutedias de Seacutenecardquo Euphrosyne 5 (1972) 191 55 Ao longo da fala de Lico encontramos recorrentes exemplos de rex e de palavras com a mesma raiz regum (v 398) rege (v 414) regi (vv 489-490) regis (v 518) regens (v 332) regnum (v 345 tambeacutem regno v 379 regna v 629) regam (v 400) regnantem (v 411) 56 David Stockton ldquoThe Founding of the Empirerdquo The Oxford History of the Roman World ed John Boardman Jasper Griffin Oswyn Murray (Oxford Oxford University Press 1991 reimpr 2001) 146-179

57

Vemos que Seacuteneca recupera alguns dos traccedilos do Lico de Euriacutepides Procedendo

ao cotejo entre ambas as trageacutedias eacute possiacutevel encontrar toacutepicos comuns Lico pretende

submeter a famiacutelia heraclida aos seus desejos assume uma posiccedilatildeo criacutetica em relaccedilatildeo ao

Alcida procurando eliminar qualquer esperanccedila que a sua famiacutelia possa ter

relativamente ao regresso do heroacutei eacute o estrangeiro que chega agrave cidade e mata o rei e os

seus filhos (agrave excepccedilatildeo de Meacutegara) tem o mesmo fim agraves matildeos de HeacuteraclesHeacutercules

As diferenccedilas existentes entre as duas trageacutedias dizem respeito ao conteuacutedo Em

Seacuteneca Lico aparece uma uacutenica vez no Acto II57 O nuacutemero de versos58 que

correspondem agrave fala desta personagem eacute contudo maior em Seacuteneca do que em

Euriacutepides Esta diferenccedila estaacute relacionada com a psicologia das proacuteprias personagens

Em Seacuteneca haacute mais espaccedilo para exteriorizar as reflexotildees e diaacutelogos Lico eacute exemplum

do tirano que eacute dominado pelo orgulho o excesso a crueldade a impietas e a

prepotecircncia Como observa Francisco de Oliveira ldquoSeacuteneca pretende condenar de forma

clara todo o poder de cariz tiracircnicordquo59

Em jeito de siacutentese vemos que a mesma personagem mereceu um tratamento

diferente nas duas trageacutedias Apesar de Seacuteneca ter retomado alguns aspectos do Lico de

Euriacutepides os quais apontaacutemos no breve estudo desta personagem a forma como

desenvolveu a sua caracterizaccedilatildeo diverge uma vez que norteia um objectivo pareneacutetico

De facto se o Lico de Euriacutepides eacute o διώλλυς (assassino) que procura matar todos os que

constituem um perigo para o seu governo ou ousam enfrentaacute-lo (caso do Coro) o de

Seacuteneca age de modo diferente por um lado parece mais comedido porque natildeo quer

recorrer agrave violecircncia senatildeo em uacuteltimo caso ndash a sua ambiccedilatildeo jaacute foi alcanccedilada necessita

apenas de asseguraacute-la por outro quando opta por agir de modo cruel eacute implacaacutevel natildeo

cede a nenhum pedido nem o trava nenhum escruacutepulo

57 Em Euriacutepides Lico aparece nos episoacutedios I e III 58 Num total de 64 versos em Euriacutepides vs 101 em Seacuteneca 59 Francisco de Oliveira ldquoImagem do Poder na Trageacutedia de Seacutenecardquo Humanitas 51 (1999) 78

58

4 Teseu

a) caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides

Teseu entra em cena no V Episoacutedio depois da ἀναγνώρισις do protagonista O

seu aparecimento permite estabelecer contrastes entre o solitaacuterio Heacuteracles do primeiro

acto e a sua total dependecircncia jaacute no quinto episoacutedio (vv 1397 ss) entre a

individualidade de Heacuteracles e a colectividade de Teseu Heacuteracles eacute um heroacutei auto-

suficiente ao contraacuterio de Teseu que soacute conseguiu sair do Hades com a ajuda do heroacutei

Quando soube que a famiacutelia do amigo estava a ser atormentada Teseu dirigiu-se

imediatamente para Tebas para ajudaacute-los recordando os laccedilos de amizade que os unem

(vv 1169-1171)

Teseu representa por um lado o modelo de amigo que Anfitriatildeo e Meacutegara

esperavam na primeira acccedilatildeo por outro ele eacute o verdadeiro companheiro que partilha a

mancha do crime de Heacuteracles60 ἀλλrsquo εἰ συναλγῶν γrsquo ἦλθον (1202) Teseu faz uma

apologia do valor de amizade

ὡς μὴ microύσος microὲ σῶν βάλῃ προσφθεγμάτων οὐδὲν μέλει μοι σὺν γε σοὶ πράσσειν κακῶς καὶ γάρ ποτrsquo εὐτύχησrsquo ἐκεῖσrsquo ἀνοιστέον ὅτrsquo ἐξέσωσάς μrsquo ἐς φάος νεκρῶν πάρα χάριν δὲ γηράσκουσαν ἐχθαίρω φίλων καὶ τῶν καλῶν microὲν ὅστις ἀπολαύειν θέλει συμπλεῖν δὲ τοῖς φίλοισι δυστυχοῦσιν οὔ ἀνίστασrsquo ἐκκάλυψον ἄθλιον κάρα βλέψον πρὸς ἡmicroᾶς61

(vv 1219-1227)

As aliteraccedilotildees (v 1220 microέλει μοι vv 1221-1222 κακῶς καὶ) o poliptoto (v

1219-1220 σῶν σοὶ v 1223 v 1225 φίλων φίλοισι) concorrem para sublinhar a

importacircncia que a amizade representa para Teseu eacute dever de um amigo auxiliar o outro

principalmente quando esse outro teve um papel fundamental na sua vida Recorda um

passado feliz (εὐτύχη) contrastando com a infelicidade presente (κακός) O que liga

60 Estes laccedilos afectivos recordam a amizade entre Orestes e Piacutelades (vide Euriacutepides Orestes 735) 61 lsquoSeraacute que a mancha das tuas palavras me natildeo possa afectar Natildeo me importo nada de partilhar contigo a tua infelicidade pois foi contigo que outrora fui feliz Eacute preciso remontar agravequele tempo em que tu me retiraste satildeo e salvo de entre os mortos para a luz da vida Abomino os amigos cujo reconhecimento envelhece e aqueles que querem tirar proveito dos momentos felizes mas natildeo querem compartilhar com os amigos o mesmo barco quando sopram os ventos do infortuacutenio Levanta-te descobre o teu desventurado rosto olha para mimrsquo

59

estes dois tempos eacute a amizade entre ambos Heacuteracles contribuiu para a felicidade de

Teseu este tem intenccedilatildeo de acompanhar o protagonista no seu infortuacutenio

Todo o discurso de Teseu fundamenta-se na vontade de convencer Heacuteracles a

salvar a sua vida Primeiro lembra por duas vezes que o crime de Heacuteracles natildeo pode

manchar Teseu

a) οὐ μιαίνεις θνητὸς ὢν τὰ τῶν θεῶν62 (v 1232)

b) οὐδεὶς ἀλάστωρ τοῖς φίλοις ἐκ τῶν φίλων63 (v 1234)

Pretende com estes argumentos levar Heacuteracles a descobrir a sua face e a

suportar a dor causada pelas deusas Recorrendo a perguntas retoacutericas Teseu repreende

o heroacutei por falar como um homem comum (1248) esquecendo-se da anterior coragem

do Heacuteracles que muito labutou (v 1250) e auxiliou a humanidade (v 1252) Termina o

discurso com a sentenccedila οὐκ ἄν ltσrsquogt ἀνάσχοιθrsquo lsquoΕλλὰς ἀμαθίαι θανεῖν (vv 1254)

A funccedilatildeo fundamental de Teseu eacute a de reintegrar Heacuteracles na sociedade64

Consegue resolver todos os dilemas de Heacuteracles agrave excepccedilatildeo do drama interior do

protagonista ele matou os filhos e a mulher domado pela loucura cuja causa natildeo

consegue entender

b) caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Seacuteneca

A personagem Teseu natildeo tem em Seacuteneca qualquer densidade psicoloacutegica ao

contraacuterio das restantes personagens mas estaacute dependente do Alcida Desempenha uma

dupla funccedilatildeo que se restringe no Acto III a ldquonarrador eacutepicordquo65 e no Acto V a dissuadir

Heacutercules de se suicidar Como ldquonarrador eacutepicordquo Teseu descreve as aventuras de

protagonista nos Inferni enquanto este abandona a cena para terminar o seu ldquouacuteltimo

trabalhordquo matar Lico A presenccedila eacute notada no Acto III quando Heacutercules lhe dirige a

62 lsquoSendo tu mortal nada de divino tu podes contaminarrsquo 63 lsquoNenhum geacutenio vingador passa dos amigos para os amigosrsquo 64 Tambeacutem no Orestes haacute uma procura de integraccedilatildeo do protagonista na sociedade Cabe a Apolo essa funccedilatildeo aparecendo no mecanismo deus ex machina para resolver o conflito 65 Seguimos a terminologia usada no artigo de Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos ldquoSur la typologie des personnages dans les trageacutedies de Seacutenegravequerdquo Neronia 1977 Actes du 2e Colloque de la Socieacuteteacute Internationale drsquoEacutetudes Neacuteroniennes (Clermont-Ferrand Adosa 1977) 155-176 Segundo o mesmo autor ldquonarradores eacutepicosrdquo natildeo satildeo mais do que ldquole support drsquoun discours adresseacute aux spectateurs en dehors du texte plutocirct qursquo aux personnages preacutesents agrave la scegravenerdquo (Segurado e Campos 224) Jaacute Heacutercules eacute a tiacutepica personagem-nuacutecleo uma vez que eacute para o Alcida que tudo converge

60

palavra aconselhando-o a permanecer junto da famiacutelia do protagonista enquanto ele

defronta Lico (vv 637-638)

As primeiras palavras de Teseu satildeo de consolo Para incentivar a famiacutelia

heraclida a tranquilizar-se comenta a agilidade e rapidez de Heacutercules em castigar Lico

O jogo do uso de formas do verbo dare em poliptoto apresenta uma sucessatildeo de

tempos verbais futuro (vv 643-644 dabit) presente (v 644 dat) passado (v 644

dedit) em que o futuro logo se torna presente e de imediato se cumpre (o aspecto

pontual do perfeito anula toda a duraccedilatildeo) ndash em sintonia com a repeticcedilatildeo do adjectivo

neutro lentum e com a construccedilatildeo quiaacutestica (v 644 lentum est dabit hoc [dat] est

lentum) ndash que traduzem bem a rapidez e a eficiecircncia da acccedilatildeo do heroacutei

A pedido de Anfitriatildeo (vv 646-649) Teseu segue com a narraccedilatildeo dos feitos de

Heacutercules descrevendo os Infernos Shelton sublinha que esta pausa na acccedilatildeo tem duas

funccedilotildees ldquoIt is a rhetorical showpiece to display Senecarsquos literary talents and more

importantly it provides valuable information about Herculesrsquo characterrdquo66

A descriccedilatildeo dos Inferni tem dois momentos visiacuteveis na primeira parte (vv 662-

759) descreve o espaccedilo os monstros que aiacute habitam e a funccedilatildeo que cada quaesitor

desempenha no tribunal das sombras (vv 731-734)67 Nos vv 735-736 Teseu delineia

os castigos que os criminosos recebem pelos seus crimes quod quisque fecit patitur

auctorem scelus repetit suoque premitur exemplo nocens Nestes versos agrave semelhanccedila

dos indiacutecios que o Coro vai deixando nas Odes poder-se-aacute ver uma alusatildeo ao fruto que

Heacutercules iraacute colher das suas paixotildees e dos seus erros68 Por contraste os vv 739-745

falam da beatitude de todos os que mantiveram as suas matildeos imaculadas (v 740

innocuas manus) Teseu termina estes versos com uma sententia (vv 745-747)

sanguine humano abstine quicumque regnas scelera taxantur modo maiore uestra

mostrando que todo o tirano que reine por meio do terror e do crime acabaraacute por ser

castigado da forma mais severa

66 Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 (Goumlttingen Vandenhoeck and Ruprecht 1978) 50 67 Satildeo notoacuterios ecos vergilianos em particular do Canto VI da Aeneis na forma como Seacuteneca delineia o espaccedilo do sub-mundo como por exemplo a enumeraccedilatildeo dos monstros que habitam nos primeiros corredores do Orco (vv 274-289 da Aeneis vv 689-696 de Her F) a barca mal aguenta o peso dos heroacuteis e tanto numa viagem como noutra enche-se de aacutegua (vv 413-414 da Aeneis vv 775-777 de Her F) referecircncia a Minos como presidente do tribunal das sombras (vv 432-433 da Aeneis vv 731-734 de Her F) 68 Clara-Emmanuelle Auvray Folie et Douleur dans Hercule Furieux et Hercules sur lrsquoOeta Recherches sur lrsquoexpression estheacutetique de lrsquoascegravese stoiumlcienne chez Seacutenegraveque (Frankfurt am Main Bern Nova Iorque Paris Lang 1989) 18

61

No segundo momento (vv 762-827) Teseu conta a luta entre Ceacuterbero e

Heacutercules O poeta demonstra o valor do protagonista que tudo vence primeiro

Caronte69 depois o catildeo triceacutefalo Teseu diz a Anfitriatildeo que os monstros que foram

destruiacutedos pelo heroacutei e que o proacuteprio catildeo dos Infernos sentiram medo da presenccedila do

Alcida (vv 778-793)70 Este receio pode ter duas interpretaccedilotildees a) os monstros

assustam-se com a presenccedila do protagonista porque jaacute o defrontaram Ceacuterbero tem

medo por estar habituado aos passos das sombras que habitam os Inferni ou porque

nunca viu um mortal b) este medo pode ser uma alusatildeo ao caraacutecter monstruoso de

Heacutercules

Na perspectiva de Giancotti esta narrativa perturba a economia da trageacutedia

E forse la cagione prima della disarmonia egrave da scorgere nel realistico pregiudizio che non si potesse non lasciar passare qualche tempo tra lrsquouscita drsquoErcole dalla scena per uccidere Lico e il suo ritorno A tale cagione prima si saragrave aggiunto un eccessivo indulgere di Seneca alla sua vena descrittiva e moralistica71

Para Shelton ldquoThe description of Herculesrsquo victory over Cerberus is the climax

of the scene and a high point in the tragedy because it shows Hercules at his bravest

just before he plunges to his greatest dishonorrdquo72 Jaacute Fitch tem uma interpretaccedilatildeo

diferente Em primeiro lugar compara as formas como Apolodoro e Seacuteneca

interpretaram a descida de Heacutercules aos Infernos e a luta contra Ceacuterbero Enquanto em

Apolodoro o heroacutei se dirige a Plutatildeo e lhe eacute outorgada a autorizaccedilatildeo de levar o catildeo se

conseguir vencecirc-lo (natildeo podendo socorrer-se das suas armas) em Seacuteneca Heacutercules natildeo

pede autorizaccedilatildeo mas passa logo agrave acccedilatildeo deixando os proacuteprios deuses infernais

perplexos e assustados (vv 804-806) Eacute neste sentido que Fitch afirma ldquoThis is in

69 Natildeo eacute sem violecircncia e sem rapidez que Heacutercules consegue entrar na barca de Caronte Agrave questatildeo e ordem do barqueiro ldquoquo pergis audax siste properantem gradumrdquo (v 772) o heroacutei responde com actos non passus ullas natus Alcmena moras ipso coactum nauitam conto domat scanditque puppem (vv 773-775) Em Vergiacutelio Caronte ao dirigir-se a Eneias perguntando-lhe quem eacute recorda o meio que Heacutercules usou para arrastar consigo Ceacuterbero Tartareum ille manu custodem in uincla petiuit ipsius a solio regis traxitque trementem (Aeneis 6395-396) 70 No caso de Ceacuterbero e Heacutercules a reacccedilatildeo que cada um deles provoca no seu adversaacuterio eacute de temor (vv 792-793) Quanto a Heacutercules semelhante sentimento natildeo seria de estranhar pelo modo como Teseu descreve o monstro No que se refere a Ceacuterbero o motivo que o leva a recear Heacutercules eacute incerto se por este ser mortal e estar a pisar o mundo das sombras ou se por temer que Heacutercules o venccedila 71 Francesco Giancotti Saggio sulle Tragedie di Seneca (Roma Societagrave Editrice Dante Alighieri 1953) 138 72 Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 55

62

keeping with Sen[eneca]rsquos general picture of him as a Harrower of Hell and above all

as one who relies to a hubristic degree on his own superhuman stregthrdquo73

A descriccedilatildeo do mundo inferior tem uma funccedilatildeo essencialmente didaacutectica

Seacuteneca usando os traccedilos definidores do mito sugere que nada haacute de grandioso em

infringir as leis do mundo os limites da moderaccedilatildeo as fronteiras do que eacute dado aos

seres humanos O prefaacutecio das Naturales Quaestiones justifica o motivo que leva o

filoacutesofo a condenar todos os homens que se julgam valorosos por lutarem contra feras

Diz Seacuteneca

O quam contempta res est homo nisi supra humana surrexit Quamdiu cum affectibus colluctamur quid magnifici facimus Etiamsi superiores sumus portenta uincimus Quid est cur suspiciamus nosmet ipsi quia dissimiles deterrimis sumus Non uideo quare sibi placeat qui robustior est in ualetudinario74

A descriccedilatildeo dos Infernos e da luta que Heacutercules travou com Ceacuterbero imprime a

ideia de que a gloacuteria de Heacutercules eacute duacutebia ilustrada ao longo da acccedilatildeo O heroacutei eacute o

exemplo maacuteximo de como se desperdiccedila a vida indo agrave procura de um valor que acaba

por ser aparente Ao perseguir tudo o que de cruel existe na terra e debaixo desta

Heacutercules acaba por revelar que ele eacute igualmente um monstro75

Em siacutentese em Euriacutepides e em Seacuteneca Teseu salva o Alcida da morte

reintegrando-o numa nova sociedade a ateniense No entanto o desenvolvimento que

cada um dos poetas daacute da personagem eacute uma vez mais diferente Na trageacutedia Heracles

Teseu aparece em cena no uacuteltimo episoacutedio e a funccedilatildeo desta personagem eacute a de salvar o

heroacutei Como resume Parmentier ldquoUn coup de theacuteacirctre amegravene tout agrave coup Theacutesegravee qui reacutecemment sauveacute des enfers par Heacuteraclegraves arrive en hacircte au secours de la famille de son ami Il emmegravenera lrsquoinfortuneacute agrave Athegravenes le purifiera du sang du meurtre et lui donnera des terres ougrave apregraves sa mort srsquoeacutelegraveveront des autels consacreacutes agrave son culterdquo76

73 Fitch (1) 318 74 Seacuteneca Naturales Quaestiones I Praefatio 5 75 Em Hercules Oetaeus o heroacutei sente que depois de ter pacificado todo o orbe destruindo todos os monstros que nele habitavam ele proacuteprio comeccedila a tomar o lugar deles ferae negantur Hercules monstri loco iam coepit esse (vv 55-56) 76 Parmentier 8

63

Como nota Clara-Emmanuelle Auvray Euriacutepides ao confiar a Teseu a salvaccedilatildeo

do heroacutei permite que haja uma soluccedilatildeo juriacutedica terminando assim a questatildeo da

mancha do crime de Heacutercules A mesma autora diz ldquole leacutegendaire roi drsquoAthegravenes a en

effet acquis sa gloire en eacutetablissant le συνοικισμός qui donne agrave la citeacute son unification

contre les autoriteacutes particuliegraveres et sa base deacutemocratiquerdquo77

Em Seacuteneca Teseu entra no Acto III com Heacutercules vindos dos Inferni sai de

cena no IV e volta a entrar no Acto V Enquanto narrador conta o que viu no mundo

das sombras e ilustra os excessos do protagonista No final da acccedilatildeo dramaacutetica

conforta o amigo aconselhando-o a moderar o seu espiacuterito perturbado pela ira (vv

1272-1277) e oferece-lhe hospitalidade (vv 1341-1344)

5 Coro

a) caracterizaccedilatildeo do Coro na trageacutedia de Euriacutepides

O Coro eacute constituiacutedo por um grupo de anciatildeos de Tebas Como nota Bond ldquoThe

entry of the chorus is neither expected nor announced no is it explicitly motivated

They have apparently come to lament (109f) and to encourage the suppliants (cf 114

πρόθυμ᾿)rdquo78 A entrada do Coro serve de mote para um prolongado lamento sobre a

condiccedilatildeo dos anciatildeos

ὑψόροφα μέλαθρα καὶ γεραι- ὰ δέμνι᾿ ἀμφὶ βάκτροις ἔρεισμα θέμενος ἐστάλην ἰηλέμων γέρων ἀοι- δὸς ὥστε πολιὸς ὄρνις ἔπεα μόνον καὶ δόκημα νυκτερω- πὸν ἐννύχων ὀνείρων τρομερὰ microὲν ἀλλ᾿ ὅμως πρόθυμ᾿79

(vv 107-114)

77 Clara-Emmanuelle Auvray Folie et Douleur dans Hercule Furieux et Hercules sur lrsquoOeta Recherches sur lrsquoexpression estheacutetique de lrsquoascegravese stoiumlcienne chez Seacutenegraveque 124 78 Bond 91 79 lsquoPara o palaacutecio de elevado tecto e veneraacutevel leito apoiando-me no bastatildeo me dirijo entoando tristes gemidos como um cisne jaacute envelhecido Natildeo passo de meras palavras sombria aparecircncia de um sonho nocturno mas apesar de treacutemulo da idade o zelo me daacute forccedilas para avanccedilarrsquo

64

Nestes versos haacute uma hiperbolizaccedilatildeo da sua condiccedilatildeo de fragilidade que

contrasta com a vontade de ajudar os seus amigos os anciatildeos jaacute nem sequer se

consideram verdadeiros seres humanos mas antes uma visatildeo obscurecida pela noite da

vida Esta noite metaacutefora da velhice mais natildeo eacute do que um sonho dominado pelas

trevas O sentido que estes uacuteltimos versos parecem sugerir eacute o de que eles estatildeo no

limiar da morte

O uso de metaacuteforas que expressam a velhice eacute comum nas trageacutedias de

Euriacutepides Para Bond ldquoThese metaphors are usually accumulated with καί (as here) or

ἤv Old men are words dreams shadows phantoms corpses tombs (Med 1209 Hcld

166 Ar Lys 372) δόκημα νυκτερωπὸν offers an additional form of intensification a

dubious appearance of a dream is further from reality than a dreamrdquo 80

Nos versos 119-130 os anciatildeos voltam a reforccedilar esta ideia de caducidade que

se traduz na ausecircncia de forccedilas para se movimentarem com naturalidade

daggermicroὴ προκάμητε πόδαdagger βαρύ τε κῶ- λον ὥστε πρὸς πετραῖον λέπας daggerζυγηφόρον πῶλον ἀνέντες ὡς βάρος φέρον τροχηλάτοιο πώλουdagger λαβοῦ χερῶν καὶ πέπλων ὅτου λέλοι- πε ποδὸς ἀμαυρὸν ἴχνος γέρων γέροντα παρακόμιζ᾿ ᾧ ξύνοπλα δόρατα νέα νέῳ τὸ πάρος ἐν ἡλίκων πόνοις ξυνῆν ποτ᾿ εὐκλεεστάτας πατρίδος οὐκ ὀνείδη81

A imagem eacute pateacutetica o caminhar lento auxiliado por baacuteculos e pela interajuda

que eacute acentuado pelas aliteraccedilotildees em oclusiva (π γ ν v 119 v 120 v 125 v 126 v

128) e pelos poliptotos (πόδα ποδὸς γέρων γέροντα νέα νέῳ v 119 v 125 v 126

v 128) contrasta com a coragem que manifestaram (nos versos supracitados) em querer

auxiliar Anfitriatildeo Meacutegara e os filhos de Heacuteracles Esta oscilaccedilatildeo entre a consciecircncia da

sua debilidade e a vontade de defender os seus amigos eacute constante no decorrer da acccedilatildeo

dramaacutetica

80 Bond 96 81 lsquoNatildeo canseis em vatildeo os peacutes e os pesados membros como se conduziacutesseis para o cimo de um rochedo um potro sob o jugo em acircnsias para se libertar do seu pesado fardo Segurai a matildeo e o peplo de quem atrasado arrasta o traccedilo indistinto do peacute Anciatildeo ajuda o anciatildeo com quem na juventude em combates comuns uniste as tuas agraves suas armas sem macular a honra dos mais ilustres antepassadosrsquo

65

O desenvolvimento de cada um dos momentos da trageacutedia leva a que o espiacuterito

do Coro sofra alteraccedilotildees ora lamenta a situaccedilatildeo da famiacutelia do Alcida porque natildeo a

pode ajudar (vv 115-118 vv 131-137 vv 312-315 vv 436-450) e insurge-se contra o

tirano (vv 252-274) ora entoa um canto fuacutenebre em honra de Heacuteracles porque

considera que este morreu ao tentar concluir o seu uacuteltimo trabalho recordando todas as

provaccedilotildees a que o heroacutei foi submetido (vv 349-435) ora rejubila com o regresso do

Alcida por ele representar uma μεταβολὰ κακῶν (vv 637-700) ora exulta com a morte

de Lico uma vez que eacute restituiacuteda a ordem e o reino anterior (vv 735-821) ora agoniza

perante o novo rumo dos acontecimentos motivados por divindades (vv 875-885 Iacuteris

ordena a Lissa que enlouqueccedila Heacuteracles para que o heroacutei mate a sua famiacutelia sem ter

consciecircncia do seu acto)

Quando Lico entra em cena no primeiro episoacutedio a exigir que os Heraclidas

morram o Coro insurge-se contra ele (nos vv 252-27482) Os anciatildeos manifestam a sua

audaacutecia na viva oposiccedilatildeo ao tirano (vv 252-267) condenam Lico por ser um

estrangeiro usurpador e criminoso ao mesmo tempo que lhe lanccedilam impropeacuterios

ameaccedilando-o de que enquanto eles forem vivos natildeo permitiratildeo que ele cause algum

dano aos filhos de Heacuteracles No entanto nos versos seguintes (vv 268-274) o contraste

entre a vontade que sentem e o poder que tecircm eacute pateacutetico Os anciatildeos tomam consciecircncia

de que natildeo poderatildeo fazer nada porque apesar do desejo de quererem auxiliar os amigos

a fraqueza fiacutesica natildeo lho permite83

Jaacute no primeiro estaacutesimo (vv 348-450) o Coro recorda os vaacuterios πόνοι que o

heroacutei concluiu sob as ordens de Euristeu Segundo Webster ldquoThe chorus sing a

decorated aelo-choriambic account of the labours of Herakles in three pairs of strophes

and antistrophes each with an ephymnion now Herakles is in Hades and they are too

old to helprdquo84

Na primeira estrofe (vv 348-358) o Coro diz que vai entoar um θρῆνος

dedicando-o ao Alcida Compara esse canto ao de Apolo cantando os feitos de Heacuteracles

(vv 359-429) 82 Estes versos eram atribuiacutedos a Anfitriatildeo no ms L (Bond xxxiii) manuscrito do seacutec XIV da Biblioteca Laurentina em Florenccedila Os modernos editores atribuem-nos ao Coro Segundo Bond 128-129 ldquo258-62 are appropriate only to the Chorus so are 266 f and 268-74 Moreover the invocation to strike Lycus (254-7) resembles a military order which comes better from the coryphaeus in command than from Amphitryonrdquo Natildeo eacute usual que a fala do Coro ocupe tantos versos visto que normalmente intervecircm ou nas partes liacutericas ou em esticomitia Segundo Bond 129 tambeacutem em Helena haacute uma fala do Coro extensa (vv 317-329) 83 ἐν δ᾿ ἀσθενείαι τὸν πόθον διώλεσας (lsquomas consomes o profundo desejo na fraquezarsquo) 84 T B L Webster The Tragedies of Euripides (Londres Methuen 1967) 188

66

- matou o Leatildeo de Neacutemea (vv 359-363)

- matou os Centauros da Tessaacutelia como forma de castigo (vv 364-374 este

episoacutedio natildeo faz parte dos trabalhos exigidos ao heroacutei)

- matou o cervo de cornos de ouro (corccedila de Cireneia) e ofereceu-os a Aacutertemis

(vv 375-379)

- capturou os cavalos traacutecios de Diomedes que devoravam carne humana

Heacuteracles castigou o tirano matando-o e fez do corpo deste um repasto para os cavalos

(vv 380-388)

- matou Cicno que assassinava os estrangeiros (vv 389-393 este episoacutedio natildeo

pertence aos doze trabalhos)

- colheu as maccedilatildes das Hespeacuterides mas teve de matar a serpente que as guardava

(vv 394-402 no decorrer deste trabalho Heacuteracles destruiu todos os monstros marinhos

para tornar a travessia menos perigosa aos mortais)

- susteve o mundo nos seus braccedilos substituindo Atlas (vv 403-407)

- matou Hipoacutelita rainha das Amazonas para ficar com o seu cinto (vv 408-

418)

- queimou a Hidra de Lerna serpente de mil cabeccedilas (vv 419-421) e matou o

pastor Geacuterion (vv 422-424)

- uacuteltimo trabalho para capturar Ceacuterbero desceu aos infernos de onde ainda natildeo

regressou (vv 425-429)

Como explica Bond ldquoEuripides has only three Peloponnesian labours where

Olympia has six he does not include Boar Birds or Augean Stables The three he

includes (Lion Hind Hydra) are dispersed among the other labours He does not

include external labour the Cretan Bullrdquo85

Aleacutem disso estes ἔργα estatildeo distribuiacutedos por desigual nuacutemero de versos se por

exemplo a referecircncia agrave morte do leatildeo ocupa cinco versos e a da Hidra trecircs jaacute a

descriccedilatildeo dos Jardins das Hespeacuterides estendeu-se por nove versos o assassiacutenio de

Hipoacutelita a rainha das Amazonas por dez versos assim como a morte dos Centauros

tambeacutem por dez versos Esta diferenccedila pode ter que ver com o querer sublinhar a

imagem de um heroacutei que eacute forte civilizador e protector da humanidade que segura o

ceacuteu (onde moram as divindades) mata os baacuterbaros (os Centauros) e torna os mares

navegaacuteveis No caso das Amazonas a expediccedilatildeo representa a luta entre a civilizaccedilatildeo

85 Vide Bond 154

67

(um grupo de amigos que simbolizam a Heacutelade) e a barbaacuterie (Amazonas) em que a

primeira vence ndash segundo Bond ldquoand Greece gets the girdle as the spoils of war from

the barbarianrdquo86

Este estaacutesimo daacute uma outra tonalidade agrave acccedilatildeo dramaacutetica Segundo Maria de

Faacutetima Sousa e Silva Esta ode eacute sobretudo um grande quadro onde a violecircncia natural nas faccedilanhas de Heacutercules cede lugar agrave fantasia estaacutetica de uma pintura Com o rememorar dos trabalhos lendaacuterios do heroacutei Euriacutepides desanuvia um pouco a cena num momento em que a incoacutegnita da sua ausecircncia entrega ao destino mais cruel os seres desprotegidos que dependem da forccedila do seu braccedilo e antes de o heroacutei mergulhar noutros reveses tatildeo distantes dos encantos da vitoacuteria87

No segundo estaacutesimo (vv 637-700) o Coro discorre sobre a forccedila da juventude

que considera como um Bem acima de todos os outros por oposiccedilatildeo agrave decrepitude da

velhice (γῆρας) Este elogio aos que ainda estatildeo na flor da vida deixa subjacente a ideia

de mudanccedila da Fortuna passagem das Trevas para a Luz traduzida no regresso

iminente do heroacutei

A magnanimidade do filho de Zeus leva o Coro a considerar que deveria ser

concedida a todos os jovens que satildeo conhecidos pela sua ἀρετή uma segunda juventude

καὶ τῷδ᾿ ἂν τούς τε κακοὺς ἦν γνῶμαι καὶ τοὺς ἀγαθούς (vv 665-666)88 Este desejo eacute

acentuado pelo homeoteleuto pela aliteraccedilatildeo (τούς τε) e pela antiacutetese (κακούς ndash

ἀγαθούς) Deste toacutepico o Coro passa para o enaltecimento de Heacuteracles por meio de um

hino Comparando o tema do seu canto (elogio do heroacutei filho de Zeus) ao das virgens

de Delos que honram o deus Apolo com os seus cantos o Coro estabelece um paralelo

entre o filho de Leto e o filho de Zeus Esta comparaccedilatildeo sugere que os anciatildeos

consideram que Heacuteracles eacute uma figura divina Διὸς ὁ παῖς∙ τᾶς δ᾽ εὐγενίας πλέον

86 Bond 170 O mesmo autor sugere alguns motivos que poderiam ter levado Euriacutepides a seleccionar doze dos vaacuterios ἔργα que o Alcida cumpriu ldquoHeracles is much less a Peloponnesian hero he is a pan-Hellenic leader (411 416) who travels far both inside Greece and throughout the world Three of the italicized labours exhibit him as ἀλεξίκακος (369 391 401) he kills monsters and calms the sea for mankind (hellip) He supports even the gods in heaven (406 f) the Hesperides give him his reward (396)rdquo (Bond 154) 87 Maria de Faacutetima Sousa e Silva Ensaios sobre Euriacutepides (Lisboa Livros Cotovia 2005) 387 88 lsquoAssim seria possiacutevel distinguir os homens bons e os homens mausrsquo O toacutepico da inexistecircncia de uma marca que permita reconhecer o homem bom distinguindo-o do mau lembra o ἀγῶν entre Medeia e Jasatildeo (Medea vv 516-519) Nesta contenda a protagonista acusa Jasatildeo de a ter traiacutedo e abandonado Da acusaccedilatildeo parte para a ideia de que se os deuses tivessem cunhado os homens com uma marca distintiva ela natildeo teria suportado tantos males por causa de um homem vil

68

ὑπερβάλλων ltἀρετᾶιgt (vv 696-697)89 ou que pelo menos os seus feitos satildeo dignos de

um deus A reputaccedilatildeo do Alcida como filho de Zeus foi ultrapassada pelas suas

virtudes tornou a vida dos homens mais segura e paciacutefica ao destruir todos os monstros

que os aterrorizavam

Para Hugh Parry esta ode parece ser um epiniacutecio

The Heracles ode would seem basically to be an epinician ode and one particularly reminiscent of Pindarrsquos songs in honour of mortal victors At the same time however Heracles is lauded with an extravagance which suggests a hymn in honour of a god and we note in particular the absence of the frequent Pindaric warning that mortal victors are not gods It is no accident that this epinician ode is invested with a hymnal grandeur more appropriate to divinity For the chorus elevate their hero to so dangerous a height that his fall becomes almost inevitable90

Sob o ponto de vista estrutural o terceiro estaacutesimo91 faz a ponte para a nova

acccedilatildeo iniciada pelo diaacutelogo entre Iacuteris e Lissa Eacute um momento liacuterico de elevada

intensidade dramaacutetica porque passa de um momento de extrema euforia para o

conhecimento de um novo golpe da Fortuna Heacuteracles natildeo salva as crianccedilas da morte

apenas retarda o seu Destino

Nas estrofes β e γ (vv 762-771 vv 781-797) o Coro acompanha o canto com

danccedila O seu entusiasmo eacute crescente acentuado pela repeticcedilatildeo de χοροί (v 763

lsquodanccedilasrsquo) rejubila com a morte do tirano e com a restituiccedilatildeo do antigo poder e convida

o povo de Tebas a danccedilar e a cantar as faccedilanhas de Heacuteracles Um outro motivo de juacutebilo

eacute a vitoacuteria de Heacuteracles sobre a morte Ele desceu aos abismos do Hades e regressou vivo

(vv 769-771) quebrando a barreira existente entre a vida e a morte

Jaacute na antiacutestrofe β e γ (vv 772-780 vv 798-814) o Coro elogia os deuses porque

distinguem os homens maus dos bons ndash sentimento reforccedilado pela repeticcedilatildeo de θεοί (v

772 lsquodeusrsquo) castigam os que satildeo crueacuteis e protegem os virtuosos Segundo Bond os vv

772 ss e os vv 811 ss satildeo uma teodiceia ldquothe return of Heracles and the punishment of

the wicked show that God rewards good and bad appropriatelyrdquo92

89 lsquoEle eacute filho de Zeus Mas ultrapassando com as suas virtudes a sua nobre origemrsquo 90 Hugh Parry ldquoThe Second Stasimon of Euripidesrsquo Heracles (637-700)rdquo American Journal of Philology 864 (1965) 364 91 O terceiro estaacutesimo tem trecircs estrofes e trecircs antiacutestrofes (vv 763-814) Entre os versos 735 e 760 o Coro vai acompanhando o discurso de Lico no momento em que eacute castigado pela sua insolecircncia morrendo agraves matildeos de Heacuteracles 92 Vide Bond 264

69

Ainda na antiacutestrofe γ (vv 798-814) ndash no auge do seu gaacuteudio em que o Coro

volta a enaltecer a dupla paternidade de Heacuteracles que entende como inquestionaacutevel (vv

801-804) e considera que o heroacutei eacute o melhor ἄναξ que Tebas alguma vez poderia ter ndash

entram Iacuteris e Lissa mudando o rumo do destino da famiacutelia de Heacuteracles e do proacuteprio

heroacutei porque uma vez filicida e uxoricida ele eacute obrigado a exilar-se natildeo podendo

governar Tebas

A partir do momento em que as deusas abandonam a cena o Coro volta a entoar

um canto luacutegubre Como nota Bond93 a actuaccedilatildeo do Coro entre os vv 875 e 921 pode

ser dividida em trecircs momentos ora estaacute completamente soacute e lamenta a perda do heroacutei

que vai ser enlouquecido pelos deuses ndash critica a inconstacircncia da fortuna que tatildeo

depressa sopra ventos favoraacuteveis como arruiacutena a vida do homem (vv 875-885) ora

reage aos gritos de desespero de Anfitriatildeo (vv 886-909) ora dialoga com o Mensageiro

(vv 910-921) tomando conhecimento dos antecedentes da loucura e do crime que

Heacuteracles cometeu Como aponta Barlow ldquoThe Chorus reacts to these cries with awed

horror at the effects of madness (hellip) their responses being closely linked to

Amphitryonrsquos utterancesrdquo94

Na Ode Coral95 dos vv 1016-1038 o Coro assume uma posiccedilatildeo criacutetica no que

diz respeito ao crime de Heacuteracles Compara a morte de Meacutegara com a morte dos

esposos das Danaides96 e o filiciacutedio com o assassiacutenio do filho de Procne97 agraves matildeos da

proacutepria matildee Neste exemplo o Coro aproveita o mito de Procne para demonstrar que o

crime de Heacuteracles foi superior uma vez que ela matou apenas um filho e ele trecircs Os

exemplos miacuteticos tecircm o claro propoacutesito de demonstrar que os crimes do heroacutei satildeo

superiores a todos os perpetrados anteriormente ainda os mais odiosos τάδε δ᾽

ὑπερέβαλεν παρέδραμεν τὰ τότε κακὰ τάλανι διογενεῖ κόρῳ (vv 1019-1020)98

93 Bond 295 94 Barlow 164 95 Barlow 168 explica que esta parte eacute uma Ode Coral porque eacute breve e astroacutefica Nestes versos segundo Bond 322 ldquoThere is a dead calm which is well contrasted with the last set of excited lyrics which culminated in the murder and the earthquake (875 ff)rdquo 96 Satildeo cinquenta as filhas de Daacutenao Segundo a tradiccedilatildeo mitoloacutegica Egipto pretendia reconciliar-se com o irmatildeo Daacutenao que fugira do Egipto Com esse propoacutesito o rei envia os seus cinquenta filhos para se unirem em matrimoacutenio com as filhas de Daacutenao Este aceitou a proposta Deu um grande banquete por ocasiatildeo das bodas e como prenda ofereceu a cada uma das filhas uma adaga para que elas matassem os respectivos maridos Apenas Hipermnestra natildeo matou o esposo Vide Pierre Grimal Dicionaacuterio de Mitologia Grega e Romana 110 97 Procne mata o filho para se vingar do marido Tereu por este se ter apaixonado por Filomela irmatilde de Procne e a ter violado cortando-lhe em seguida a liacutengua para que esta natildeo contasse a verdade agrave irmatilde Procne como vinganccedila assassina o seu filho e cozinha-o dando-o como refeiccedilatildeo ao marido 98 lsquoMas este feito do desgraccedilado filho de Zeus ultrapassou e venceu os males de entatildeorsquo

70

b) caracterizaccedilatildeo do Coro na trageacutedia de Seacuteneca

O Coro interveacutem apenas no final dos quatro primeiros Actos Ao contraacuterio do

que acontece em Euriacutepides natildeo sabemos qual a faixa etaacuteria do Coro nem de que cidade

satildeo oriundos99 Nem sequer eacute anunciada a sua entrada em Cena100

Natildeo participa activamente na acccedilatildeo dramaacutetica partilhando dos problemas das

personagens antes tece as suas consideraccedilotildees a partir daquilo que observa A funccedilatildeo eacute a

de criacutetico que comenta o que estaacute a acontecer Diz-nos Fitch a propoacutesito dos vv 125-

204 a primeira intervenccedilatildeo do Coro

The ode is not only integrated into the drama in a technical sense but also indispensable for our understanding of the play It establishes a standard of normality in the conduct of human life and indicates that by the standard Hercules is condemned It was essential for Seneca to formulate these judgments early in the play so that the developing action could be viewed in these terms And only the Chorus could give an objective view of this kind as the other dramatis personae all have a prejudiced view of Hercules101

Em Hercules Furens o Coro assume uma posiccedilatildeo de distanciamento das

personagens procura evitar tudo o que eacute turba Dispensa a Gloacuteria e a Fama e a estas

prefere uma vida pautada pela tranquilidade e seguranccedila

Comeccedila por descrever a noite que abandona lentamente o ceacuteu para dar lugar ao

dia (vv 125-136) Este despertar lento da Aurora intensificado pela assonacircncia em

nasais iam rara micant sidera prono languida mundo permite atenuar a violecircncia do

monoacutelogo inicial de Juno Segundo Fitch ldquoThe ode proceeds through a remarkable

series of shifts in thought and feeling First it engages the audience emotionally through

the lyrical images of light and peace in 125-61 the effect is like that of waking from a

nightmarerdquo102

Esta primeira fala do Coro (vv 125-204) pode ser dividida em quatro momentos

em primeiro lugar descriccedilatildeo do campo da paz e da poesia da natureza ao romper do dia

(vv 125-161) segundo o contraste com a vida apressada e adversa na cidade (vv 161-

99 Vide Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 100 O Coro eacute mencionado uma vez por Teseu (vv 827-829) 101 Fitch (1) 163 102 Fitch (1) 161

71

185)103 terceiro a descida de Heacutercules ao mundo inferior (vv 186-201) quarto a

entrada de Meacutegara e Anfitriatildeo em cena (vv 202-204)

Da evocaccedilatildeo dos primeiros raios de sol o Coro passa agrave enumeraccedilatildeo dos

trabalhos do campo (vv 137-161) louvando a labuta matinal A uma innocua uita a

que se liga uma tranquilla quies (cf vv 159-160) contrapotildeem-se spes immanes104

trepidique metus que definem a vida na cidade (vv 162-180) ndash esta diferenccedila eacute

reforccedilada pelo homeoptoto e pelo quiasmo (spes immanes ndash trepidique metus) A

cidade por oposiccedilatildeo ao campo eacute o lugar de conflitos e discoacuterdias Eacute o lugar de medos e

de falsas esperanccedilas que pouco contribuem para manter a seguranccedila e a liberdade do

homem De facto estes sentimentos natildeo satildeo mais do que paixotildees que prendem o

homem como grilhotildees de modo que satildeo poucos os que conseguem libertar-se de tais

affectus (v 175 nouit paucos secura quies) Pelo contraacuterio o comum dos mortais eacute

devorado pelo passar do tempo porque corre em grande euforia atraacutes de coisas vatildes (vv

183-184 gens hominum fertur rapidis obuia fatis incerta sui) e assim a vida passa por

ele velozmente (vv 173-179)

O Coro acentua aqui um toacutepico estoacuteico o tempo natildeo se recupera e soacute o

momento presente nos pertence (vv 175-176 uelocis memores aeui tempora

numquam reditura tenent) O que o homem natildeo sapiens faz eacute deixar-se levar pelos

dias consumindo a vida ao sabor do curso raacutepido (vv 178-180 properat cursu uita

citato uolucrique die rota praecipitis uertitur anni) sem se preocupar com o que eacute

realmente importante como que ignorando o que eacute inevitaacutevel e sem atender ao fim que

o espera que pode ser jaacute agora Na teoria estoacuteica a necessidade de ldquoaproveitar bem a

103 Fitch (1) 162 sublinha que o contraste entre o campo e a cidade conteacutem alguns elementos anacroacutenicos ldquothe salutatio of 164-66 the lawyerrsquos activity in the forum in 172-74 the triumphal currus of 195 () Here the anachronisms may be seen as related to the strategy of moving through familiar material to an unfamiliar conclusionrdquo O efeito seria o de reconhecer na forma de vida de Heacutercules (exemplo de vida que se afasta da virtude entrando no domiacutenio dos erros e dos viacutecios) os proacuteprios viacutecios de Roma 104 Fitch (1) 174 considera a expressatildeo spes immanes sugerida por Schmidt e adoptada por Miller mais atractiva do que spes iam magnis (Giardina) ou spes in magnis (Viansino) Em relaccedilatildeo agrave expressatildeo spes iam magnis o autor explica 173 ldquoIam having meant ldquoat dawn on this date in the Heroic Agerdquo can scarcely mean ldquoin these degenerate Roman timesrdquo here although the activities listed in 164-174 are clearly Roman in character it would take more than a iam to turn a covert anachronism into an overt onerdquo Jaacute no que diz respeito a spes in magnis Fitch (1) 174 comenta que as conjecturas que Gronovius faz desta expressatildeo satildeo muito vagas Spes immanes (lsquoesperanccedilas colossaisdesmedidasrsquo) tem numa perspectiva estoacuteica uma conotaccedilatildeo mais violenta Todo o homem que viva agarrado agrave spes natildeo consegue viver o momento presente e ateacute o dia seguinte lhe escapa Na Ep 10110 Seacuteneca recorda a Luciacutelio que este tipo de homens natildeo consegue aproveitar a vida em seguranccedila in spem uiuentibus proximum quodque tempus elabitur subitque auiditas et miserrimus ac miserrima omnia efficiens metus mortis (lsquopara quem vive de esperanccedilas pelo contraacuterio mesmo o dia seguinte lhe escapa e depois nem a avidez de viver e o medo de morrer medo desgraccedilado e que mais natildeo faz do que desgraccedilar tudorsquo)

72

vidardquo eacute viver cada dia como se fosse o uacuteltimo para atingir a perfeiccedilatildeo para a construir

segundo a segundo105 ndash soacute assim o sapiens pode sentir seguranccedila

Na cidade o homem tem mais tendecircncia a deixar-se enredar nas malhas da

confusatildeo e da vida supostamente cheia (mas que eacute afinal cheia de nada) Por isso

Seacuteneca escreve por exemplo o De Breuitate Vitae mostrando ao destinataacuterio que natildeo

pode adiar mais o momento de se encontrar consigo mesmo pondo fim agraves muitas

ocupaccedilotildees que lhe atravancam e destroem a vida

Seacuteneca lembra que entre viver (uiuere) e existir (esse) a diferenccedila eacute

avassaladora um homem pode existir durante numerosos anos e nunca ter vivido assim

como um jovem pode ter morrido na flor da idade mas soube viver cada dia que o

destino lhe reservou Natildeo importa viver muito mas sim viver em pleno (Ep 937

Quamdiu sim alienum est quamdiu ero ltueregt ut sim meum est Hoc a me exige ne

uelut per tenebras aeuum ignobile emetiar ut agam uitam non ut praeteruehar106) A

duraccedilatildeo ideal da vida eacute a que permite atingir a sabedoria (Ep 938 ad sapientiam

uiuere) ndash este eacute o uacutenico objectivo que deve nortear o homem

Nos vv 178 ss o toacutepico da sucessatildeo dos dias e da necessidade que o homem

tem de tomar consciecircncia da brevidade da vida e da imutabilidade do seu destino (cf

vv 181-204 as Parcas nunca desfazem a trama que vatildeo tecendo mas vatildeo sempre

desenrolando o fio) vem introduzir um novo aspecto o Alcida O Coro critica o heroacutei

porque ousou descer aos infernos para descobrir o que eacute oculto aos homens107 Censura-

-o igualmente por querer apressar o trabalho das Parcas uma vez que a morte eacute

inevitaacutevel Ningueacutem pode antecipar ou retardar a sua morte certo ueniunt tempore

Parcas nulli iusso cessare licet nulli scriptum proferre diem (vv 188-190)108 ndash a

105 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 1011 Ideo propera Lucili mi uiuere et singulos dies singulas uitas putas (lsquoApressa-te a viver caro Luciacutelio imagina que cada dia eacute uma vida completarsquo) 106 lsquoNatildeo me cabe determinar por quanto tempo vivo estaacute todavia na minha matildeo viver plenamente enquanto existir Exige de mim que eu natildeo percorra como que envolto em trevas uma existecircncia sem sentido mas que realize a minha vida em vez de lhe passar ao ladorsquo 107 Fitch (1) 162 identifica uma outra interpretaccedilatildeo possiacutevel para a descida de Heacutercules ao mundo inferior ldquoHerculesrsquo descent to the underworld is seen as a metaphor for the human tendency to rush deathward in pursuit of ambitious aims rather than savoring each passing momentrdquo Para os estoacuteicos Heacutercules ao descer aos Infernos e de laacute regressar quebrou os limites entre os dois mundos subvertendo a ordem (coacutesmica) O seu acto revelou excesso e desmesura ambiccedilatildeo e orgulho Tambeacutem na Medea o Coro condena Jasatildeo por ter rompido os mares (vv 301-302) Natildeo eacute nesses actos que estaacute o que eacute mais importante na vida humana mas sim em vencer os seus proacuteprios viacutecios Nas Naturales Quaestiones 3 praef 10-17 Seacuteneca recorda Quid praecipuum in rebus humanis est Non classibus maria complesse nec in rubri maris litore signa fixisse nec deficiente ad iniurias terra errasse in oceano ignota quaerentem sed uitia domuisse 108 Vide Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 696 Nemo moritur nisi sua morte () nemo nisi suo die moritur (lsquoNingueacutem morre senatildeo de morte natural () ningueacutem morre senatildeo no seu proacuteprio diarsquo) Note-se o estreito paralelo entre a trageacutedia e o diaacutelogo filosoacutefico

73

construccedilatildeo paraleliacutestica imprime uma ideia de imutabilidade de impossibilidade de

iludir esta lei natural

Por oposiccedilatildeo agrave Gloria e agrave Fama que percorrem as cidades (vv 192-201)

imortalizando os heroacuteis pelos seus feitos neste caso Heacutercules o Coro volta a elogiar a

paz e a tranquilidade de uma existecircncia simples preferindo terminar a velhice humilique

loco sed certa (v 199) e numa sordida fortuna paruae domus (v 200) porque assim se

permanece livre de qualquer sofrimento Esta impassibilidade soacute eacute possiacutevel para as

pessoas que vivem longe de todo o geacutenero de turba Na cidade poreacutem natildeo eacute possiacutevel

encontrar a tranquillitas animi desejada pois o stultus corre como para agarrar a vida

quando o que acontece na realidade eacute que fica acorrentado a todo o tipo de affectus

deixando de ter domiacutenio sobre a sua proacutepria vida

Ao longo das Odes Corais vai sendo manifestada uma posiccedilatildeo negativa

relativamente a Heacutercules O Coro parece anunciar que a ambiccedilatildeo desmedida do heroacutei o

lanccedilaraacute no mais fundo abismo (v 201 alte uirtus animosa cadit) Como sugere Fitch

Their critique of the active life may be summarized as follows first it is dominated by the affectus spes and metus (161ff) second those obsessed by ambition rush towards death in the sense of forgetting the ephemeral nature of human life and neglecting quiet enjoyment of each passing day (174ff) third the lofty positions attained by the ambitious are precarious alte uirtus animosa cadit (201) We can scarcely fail to perceive that Hercules is the outstanding exemplar of uirtus animosa and we know from Junorsquos predictions that he will suffer a great fall109

Na segunda Ode o Coro fala apoacutes o confronto entre Meacutegara Anfitriatildeo e Lico A

estrutura desta Ode assemelha-se ao primeiro Estaacutesimo da trageacutedia de Euriacutepides haacute uma

enumeraccedilatildeo dos trabalhos de Heacutercules Mas ao contraacuterio do que acontece na peccedila

grega o Coro de Seacuteneca natildeo evoca todos porque Anfitriatildeo jaacute o fizera no II Acto O

Coro escolhe alguns deles que melhor ilustrem a vida do protagonista tornando-o

modelo de homem que natildeo vive a vida mas desperdiccedila a sua existecircncia110

O Coro inicia o seu canto com uma criacutetica O Fortuna uiris inuida fortibus (v

524) Contrasta a fortuna de Euristeu com a de Heacutercules o primeiro facili regnet in otio

(v 526) enquanto Alcmena genitus bella per omnia monstris exagitet caeliferam

109 Fitch (1) 22 110 Fitch (1) 253-254

74

manum (vv 527-528) O Coro vai enumerando alguns dos trabalhos de Heacutercules com o

objectivo de demonstrar a sua vida atribulada111

- suportou os ceacuteus (v 528 caeliferam manum)

- matou a Hidra de Lerna (v 529)

- enganou as irmatildes Hespeacuterides para poder arrebatar as maccedilatildes de ouro e matou o

dragatildeo que as guardava (vv 530-532)

- arrancou com violecircncia (v 544 detraxit) o cinto de Hipoacutelita (vv 531-546)

- desceu ao mundo inferior (vv 547-591)

Eacute de notar que os dois uacuteltimos trabalhos mereceram um maior desenvolvimento

do que os primeiros trecircs Naqueles trabalhos a natureza descrita entra no domiacutenio do

locus horrendus (o que contrasta com a descriccedilatildeo campestre da I Ode) Haacute semelhanccedilas

na descriccedilatildeo de cada um dos lugares por onde o heroacutei teve de passar para chegar ao

destino em ambos os percursos ele teve de cruzar mares (v 536 v 551) e terrenos

inoacutespitos e pantanosos (v 540-541 v 554)

A descida ao mundo inferior112 foi poreacutem dos dois o que mereceu um mais

elaborado pormenor Anfitriatildeo contudo omitira este trabalho O motivo pode ter que

ver com o facto de a descida ao mundo inferior estar conotada com o excesso e a

ambiccedilatildeo desmedida do heroacutei Ora Anfitriatildeo ao enumerar todos os trabalhos do filho

pretende sobressair principalmente a uirtus de Heacutercules e o seu lado civilizacional

A questatildeo que o Coro coloca (vv 547-549 qua spe praecipites actus ad inferos

audax ire uias irremeabiles uidisti Siculae regna Proserpinae) recupera o juiacutezo

criacutetico tecido na Ode I a absurdez do homem em querer encontrarantecipar a morte

correndo para ela113 Se o Coro ainda percebe as razotildees que levaram Heacutercules a realizar

os outros trabalhos uma vez que de todos resultou alguma coisa de bom neste caso

poreacutem natildeo encontra o Coro senatildeo perigos e ousadia (v 548 audax) A spes a que o

Coro alude remete para um erro de avaliaccedilatildeo do futuro As descriccedilotildees de viagens aos

Infernos assumem algo mais do que a conquista da morte ou da imortalidade ldquoIn the

first ode H[ercules]rsquos descent to the underworld was seen as symbolic of the tendency

to hasten through life to rush toward death in pursuit of ambition (hellip) Ode II goes

111 Fitch (1) 252 112 Parece-nos que o Coro alude em todas as odes ao tema da viagem de Heacutercules aos infernos para adensar em crescendo o tom da trageacutedia iminente Satildeo vaacuterios os indiacutecios que ocorrem nas suas falas que abonados com exemplos mitoloacutegicos ou natildeo e sempre em crescendo vatildeo culminar na morte inevitaacutevel dos filhos e da mulher do heroacutei 113 Na Ep 2423 ss Seacuteneca recorda o quatildeo ridiacuteculo eacute correr para a morte Um saacutebio nunca foge da vida mas saberaacute sair dela quando alguma circunstacircncia verdadeiramente fundamentada o impelir a abandonaacute-la

75

further by suggesting (hellip) that the experience of H[ercules]rsquos various toils and so of

men who toil like him is that of death-in-liferdquo segundo comenta Fitch114

No entanto apesar de estar subjacente essa criacutetica o Coro deseja que o filho de

Juacutepiter consiga regressar deste trabalho (vv 558-559 euincas utinam iura ferae Stygis

Parcarumque colos non reuocabiles) e acredita que o heroacutei venceraacute essa nova prova

jaacute que outrora ele derrotara o Rei do Inferno (vv 560-565) Exorta entatildeo o Alcida a

quebrar as barreiras dos dois mundos para que possa regressar Note-se a aliteraccedilatildeo em

oclusiva surda bilabial e os homeoptotos tristibus inferis prospectus pateat lucis et

inuius limes det faciles ad superos uias (vv 566-568) que acentuam esta ligaccedilatildeo

pretendida entre os dois mundos ateacute entatildeo separados por um limes

O Coro recorda que Heacutercules natildeo foi o uacutenico que desceu agraves moradas inferiores

Antes dele soacute Orfeu se atrevera a percorrer essa descida com o objectivo de recuperar

Euriacutedice Ele conseguiu persuadir os umbrarum domini (cf v 570) por meio da lira do

canto e de suacuteplicas (v 570 prece supplici) mas acabou por perder a sua amada no

caminho do regresso ao ousar olhar para traacutes Este exemplum estabelece um paralelo

entre Orfeu e Heacutercules Se o primeiro conquistou os deuses pela muacutesica o segundo

poderaacute consegui-lo tambeacutem mas pela forccedila Esta afinidade eacute posta em relevo pela

estrutura paraleliacutestica de quae uinci potuit regia carmine haec uinci poterit regia

uiribus (vv 590-591) Haacute dois elementos que satildeo comuns agraves duas situaccedilotildees (os reinos

dos infernos ndash regia ndash satildeo nos dois casos vencidos ndash uinci) e dois aspectos divergentes

(o aspecto temporal sobressaiacutedo pelo politptoto passado ndash potuit ndash relacionado com

Orfeu e futuro ndash poterit ndash Heacutercules e o meio ndash agente da passiva ndash pelo qual os reis

foram e seratildeo vencidos ndash carmine no caso de Orfeu uiribus no caso de Heacutercules) O

facto de o Coro terminar o seu canto com a palavra uiribus natildeo deixa de corresponder a

um aviso o emprego da uis natildeo eacute prenunciadora de bons resultados Heacutercules quebraraacute

novamente os limites Desta vez poreacutem as consequecircncias do seu acto seratildeo nefastas

para ele e para os que lhe satildeo proacuteximos

Se Orfeu perdeu Euriacutedice por quebrar uma ordem divina tambeacutem Heacutercules

poderaacute ser castigado por ter arrebatado de laacute Ceacuterbero (vv 569-591) Na perspectiva de

Shelton ldquothe chorus is warning Hercules that all men are bound by the iura of the

Underworld and that he may pay dearly for his returnrdquo115 Tambeacutem em Phaedra o Coro

lembra que Teseu ao ser libertado do Hades teraacute de pagar pela sua fuga Pallas 114 Fitch (1) 253 115 Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 45

76

Actaeae ueneranda genti quod tuus caelum superosque Theseus spectat et fugit

Stygias paludes casta nil debes patruo rapaci constat inferno numerus tyranno

(Phaed vv 1149-1153) O preccedilo da sua libertaccedilatildeo teve como castigo a morte de

Hipoacutelito resultando num terriacutevel desgosto e na dor de Teseu (Phaed vv 1143 ss hic

qui clari luget maestos tristis reditus ipsoque magis flebile Auerno) Um castigo

semelhante avizinha-se de Jasatildeo na Medea (vv 301-302) por ter ldquoquebrado os limitesrdquo

dos mares A evocaccedilatildeo destes episoacutedios miacuteticos configura uma associaccedilatildeo terriacutevel a do

destino comum de quatro personagens responsaacuteveis pela perda daqueles que mais

amam jaacute que

a) Orfeu (Her F) perde Euriacutedice

b) Teseu (Phaed) perde Hipoacutelito

c) Jasatildeo (Med) perderaacute os filhos

d) Heacutercules (Her F) perderaacute os filhos e Meacutegara

De facto Heacutercules ilustraraacute com a sua acccedilatildeo criminosa a dupla face que assume

o verbo lsquoperderrsquo ficaraacute sem os que mais ama (castigo e fonte de dor) seraacute para eles

causa de perdiccedilatildeo provando que o excesso o error o uitium as paixotildees soacute podem

trazer o mal e a desgraccedila natildeo soacute a todos os que por ele se deixam dominar mas tambeacutem

agravequeles que quase sempre inocentes os rodeiam Eacute uma cadeia imparaacutevel a que liga o

uitium ao scelus arrastando tudo e todos para a ruiacutena)

Eacute ainda possiacutevel encontrar um outro toacutepico comum agraves trageacutedias Medea e

Hercules Furens Jasatildeo e Heacutercules satildeo audaces nas empresas que ousam realizar Jasatildeo

com a sua primeira embarcaccedilatildeo viola os limites entre a terra e o mar (Med vv 301-

302 Audax nimium qui freta primus rate tam fragili perfida rupit) ou como o Coro

afirma inter uitae mortisque uias (Med v 307) Heacutercules por seu turno transgride os

limites do ser humano ao visitar as moradas de Perseacutefone foi audax (Her F v 548) e

teraacute que lsquoromperrsquo (Her F v 566 rumpe) as barreiras entre os dois mundos para

regressar (cf Her F vv 566-567) O heroacutei tem consciecircncia de que infringiu as regras

Quando entra em cena no terceiro Acto invoca Apolo (o deus da luz) e pede-lhe

perdatildeo por obrigaacute-lo a contemplar aquilo que eacute inlicitum (vv 595-596 da Phoebe si

quid illicitum tui uidere uultus) Em seguida invoca todos os outros deuses para que

natildeo fiquem maculados ante a visatildeo de Ceacuterbero (vv 599-603)

Na Ode III (vv 830-894) satildeo descritas uma vez mais sobre as regiotildees

subterracircneas Parece haver uma continuaccedilatildeo da descriccedilatildeo que Teseu faz dessas moradas

77

mas ao contraacuterio dele que enumera os monstros que aiacute habitam o Coro refere-se agraves

numerosas sombras que percorrem um caminho tristis et nigra metuenda silua (v 836)

Esta Ode comeccedila por falar de Euristeu (vv 830-831) tal como na Ode II

recordando o uacuteltimo trabalho que o soberano impocircs a Heacutercules e que este cumpriu a

descida agraves mansotildees inferiores para de laacute arrebatar Ceacuterbero (vv 830-833) O Coro

critica novamente a ousadia de Heacutercules fez o mesmo percurso que os mortos Haacute

uma insistecircncia no toacutepico da infracccedilatildeo do que natildeo eacute liacutecito acentuada pelo uso de

vocaacutebulos da famiacutelia de audax116 que funciona como ldquoponterdquo entre as vaacuterias odes e

como ligaccedilatildeo entre o que o Coro e as personagens dizem

O Coro parte deste juiacutezo criacutetico para descrever a turba de sombras de diversas

idades que se dirige para o Inferno

Quantus incedit populus per urbes ad noui ludos auidus theatri quantus Eleum ruit ad Tonantem quinta cum sacrum reuocauit aestas quanta cum longae redit hora nocti crescere et somnos cupiens quietos Libra Phoebeos tenet aequa currus turba secretam Cererem frequentat et citi tectis properant relictis Attici noctem celebrare mystae tanta per campos agitur silentes turba (vv 838-849)

O siacutemile ndash reforccedilado pelo poliptoto anafoacuterico (quantus quantus quanta) ndash

que aproxima os povos que afluem a um novo teatro (vv 838-839) agraves festas (vv 840-

841) e aos rituais misteacutericos (vv 842-847) da multidatildeo de mortos imprime agrave cena maior

πάθος a morte natildeo escolhe idades (tanto leva os que estatildeo esgotados pela idade

avanccedilada como aqueles que ainda nem sequer a matildee conheceram)

O adjectivo nouus (v 839 noui theatri) que se liga com o facto de todos se

dirigirem para o teatro como uma vaga aacutevida e impetuosa (v 839 auidus v 838

populus) faz sobressair a imagem da tanta turba (cf vv 848-849) que se encaminha

apressadamente para a mansatildeo dos mortos Esta pressa estaacute igualmente marcada nos

outros membros do siacutemile ruit (v 840) citi properant (cf v 846) e eacute acentuada pela

116 O adjectivo audax eacute atribuiacutedo a Heacutercules trecircs vezes v 247 na fala de Anfitriatildeo (audaces manus) v 538 na Ode Coral (audax) v 772 Caronte interpela Heacutercules (audax) A forma verbal com a mesma raiz audeo aparece uma uacutenica vez v 834 Coro (ausus es) Ainda assim essas quatro ocorrecircncias configuram o desenho da personagem como algueacutem que natildeo aceita limites e quer sempre mais

78

repeticcedilatildeo do vocaacutebulo turba (cf v 837 frequens turba v 845 v 849) Tudo isto

concorre para realccedilar a ideia de inevitabilidade ndash a lei universal da morte ndash todos quase

sempre com escassa consciecircncia disso caminham inexoravelmente para a morte Rata

et fixa sunt et magna atque aeterna necessitate ducuntur eo ibis quo omnia eunt117

Neste sentido recorda Seacuteneca a Luciacutelio Quantus te populus moriturorum

sequetur quantus comitabitur Fortior ut opinor esses si multa milia tibi

commorerentur atqui multa milia et hominum et animalium hoc ipso momento quo tu

mori dubitas animam uariis generibus emittunt118 O paralelo entre a Ep 77 e a fala do

Coro (vv 838 ss) eacute visiacutevel quantus populus (Ep 7713 vs Her F v 838) multa

milia (Ep 77 13) assemelha-se a magna turba (Her F v 837) A proacutepria imagem

dada pelo Coro e intensificada pelo siacutemile da numerosa multidatildeo que caminha para os

abismos do inferno eacute semelhante agrave que Seacuteneca sugere nesta Carta evidenciada pela

anaacutefora (multa milia) pelo polissiacutendeto e pelo poliptoto (tibi tu)

Para Shelton ldquoThe simile of people flocking to the mysteries is particularly

good because it is a comparison not only of number but also of destination They all

living or dead approaching an area which is shrouded in mystery119

O Coro ao enumerar a idade das sombras faacute-lo por meio de uma gradaccedilatildeo

descendente do mais velho para o mais novo

pars tarda graditur senecta tristis et longa satiata uita pars adhuc currit meliores aeui uirgines nondum thalamis iugatae et comis nondum positis ephebi matris et nomen modo doctus infans (vv 849-854)

Esta descriccedilatildeo intensificada pela anaacutefora de pars (v 849 e v 851) e a iteraccedilatildeo

de nondum (v 852 v 853) leva o Coro a reflectir sobre a morte Segundo Shelton

ldquoAfterlife according to the chorus is a dreary no-existence a dark emptiness relieved

by no visions of Tantalus or Ixion Its description thus provides a counter-balance to

117 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 77 12 lsquoOs destinos estatildeo determinados de uma vez por todas e prosseguem a sua marcha em obediecircncia agrave lei eterna do universo tu iraacutes para onde vai tudo o maisrsquo 118 Idem Ibidem 7713 lsquoQue multidatildeo de gente natildeo haacute para te seguir na morte que multidatildeo para nela te acompanhar Creio bem que a tua coragem seria maior se visses muitos milhares de pessoas a morrer ao mesmo tempo que tu pois fica sabendo que no preciso momento em que tu vacilas ante a morte muitos milhares de homens e de animais estatildeo de uma forma ou de outra exalando a almarsquo 119 Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 45-46

79

Theseusrsquo lively narrative and makes us comprehend the real horror of deathrdquo120 A

morte eacute inevitaacutevel quid iuuat durum properare fatum (v 867) Assim a pergunta que

se coloca eacute o que deveraacute entatildeo fazer o homem para aceitar que vida e morte caminham

juntas Reflectindo sobre a brevidade da vida e reconhecendo que todo o ser que nasce

teraacute inevitavelmente de morrer o Coro toma consciecircncia de que deve preparar-se para a

morte (v 872 tibi Mors paramur) De nada adianta revoltarmo-nos contra a morte ou

questionaacute-la Encontramos este mesmo ensinamento no De Prouidentia 58 Accipimus

peritura perituri Quid itaque indignamus Quid querimur Ad hoc parati sumus O

verbo eacute o mesmo paro em ambos os casos na sua forma passiva dando luz agrave estreita

afinidade entre a prosa filosoacutefica e o teatro de Seacuteneca

Afinal a vida natildeo eacute mais que uma contagem decrescente para a morte cada dia

natildeo eacute mais um dia que se tem e que se vive mas sim um dia a menos que nos aproxima

do fim O proacuteprio dia que se vive hoje eacute jaacute uma partilha com a morte ndash ela eacute gradual

Mors non una uenit sed quae rapit ultima mors est121 Em Ad Lucilium Epistulae

Morales 2420 Seacuteneca desenvolve esta ideia Cotidie morimur cotidie enim demitur aliqua pars uitae et tunc quoque cum crescimus uita decrescit Infantiam amisimus deinde pueritiam deinde adulescentiam Usque ad hesternum quidquid transit temporis perit hunc ipsum quem agimus diem cum morte diuidimus Quemadmodum clepsydram non extremum stilicidium exhaurit sed quidquid ante defluxit sic ultima hora qua esse desinimus non sola mortem facit sed sola consummat tunc ad illam peruenimus sed diu uenimus122

Se no v 874 o Coro diz prima quae uitam dedit hora carpit em Ep 12018

afirma-se ad mortem dies extremus peruenit accedit omnis carpit nos illa non

corripit123 Novamente encontramos pontos de contacto entre a trageacutedia e os tratados

filosoacuteficos aleacutem de o sentido ser muito proacuteximo (todos os dias nos aproximamos da

morte) o verbo eacute o mesmo (carpit) sugerindo a rapidez com que o homem eacute colhido

120 Idem Ibidem 46 121 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 2421 lsquoa morte vem gradualmente a que nos leva eacute a morte uacuteltimarsquo 122 lsquoMorremos diariamente jaacute que diariamente ficamos privados de uma parte da vida por isso mesmo agrave medida que noacutes crescemos a nossa vida vai decrescendo Comeccedilamos por perder a infacircncia depois a adolescecircncia depois a juventude Todo o tempo que decorreu ateacute ontem eacute irrecuperaacutevel o proacuteprio dia em que estamos hoje compartilhamo-lo com a morte Natildeo eacute a uacuteltima gota que esvazia a clepsidra mas toda a aacutegua que anteriormente foi escorrendo do mesmo modo natildeo eacute a hora final em que deixamos de existir a uacutenica que constitui a morte mas sim a uacutenica que a consuma Atingimos a morte nessa hora mas jaacute de haacute muito caminhaacutevamos para elarsquo 123 lsquoo uacuteltimo dia empurra-nos para a morte mas em todos os outros nos fomos aproximando dela a morte vai-nos colhendo gradualmente natildeo nos arrebata de repentersquo

80

pela morte qualquer que seja o momento qualquer que seja a sua idade Neste sentido

podemos ver que tambeacutem a trageacutedia assume uma perspectiva estoacuteica A mensagem que

Seacuteneca faz passar eacute a mesma

A reflexatildeo do Coro (vv 838-874) que abarca toacutepicos da meditatio mortis

contrasta poreacutem (e o ritmo dos versos marca essa mudanccedila de tom) com a exaltaccedilatildeo de

Heacutercules a que o Coro procede (vv 875-894) Heacutercules que trouxe aparentemente a

paz ao mundo jaacute que tudo foi domado pela sua matildeo124 inclusive o Taacutertaro por ele foi

pacificado ndash iam nullus superest timor nil ultra iacet inferos (vv 891-892) No

entanto esta paz que o Coro refere vai traduzir-se com alguma ironia no seu oposto ou

seja na desordem total com o castigo de Heacutercules que o proacuteprio Coro tem vindo a

anunciar

A Ode IV (1054-1137) surge imediatamente depois do crime de Heacutercules

quando o heroacutei adormece exausto O tom que o distingue varia ao longo da Ode e

assume uma tonalidade traacutegica de contraste com o juacutebilo perante o regresso do heroacutei

com que fechara o seu anterior canto Eacute significativo que a primeira palavra que o Coro

pronuncia seja agora lugeat (v 1054) num conjuntivo sombrio que desfaz a alegria do

imperativo tege (v 894) com que no uacuteltimo verso da Ode anterior exortava aos ritos de

acccedilatildeo de graccedilas O Coro marca assim magistralmente a commutatio fortunae

A Ode principia com um lamento pela desgraccedila de Heacutercules incentivando os

deuses celestes a auxiliarem o heroacutei para que ele recupere a razatildeo Soluite tantis animum

monstris soluite superi rectam in melius flectite mentem (vv 1063-1065) Este

desejo do Coro de querer que Heacutercules recupere de um estado de loucura para o

domiacutenio da razatildeo eacute expressivo pelo recurso agrave anaacutefora (soluite em imperativo com

sentido de exortaccedilatildeo ou mesmo suacuteplica) e agrave aliteraccedilatildeo da fricativa surda dental A

alusatildeo aos monstra que dominam a mente do heroacutei remete para o soliloacutequio de Juno (v

40 monstra iam desunt mihi) A deusa descobrira entatildeo que a uacutenica forma de lutar

contra Heacutercules seria fazecirc-lo travar uma luta contra ele proacuteprio Esta descoberta deixara

impliacutecito um caraacutecter igualmente selvagem de Heacutercules como diz Shelton ldquoIt is his

mad mind which has become the monstrumrdquo125

124 Pax est Herculea manu (v 882) Esta sineacutedoque remete para o poder e para a forccedila sobrenatural do heroacutei Heacutercules tornou o mundo paciacutefico para a humanidade 125 Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 47

81

Por outra parte o Coro pede ao Sono126 em jeito de captatio beneuolentiae que

mantenha o Alcida adormecido enquanto ele natildeo recuperar a sanidade ateacute que redeat

pietas uirtusque uiro (v 1093) Esta recuperaccedilatildeo que o Coro refere natildeo eacute fiacutesica mas

psicoloacutegica isto eacute natildeo estaacute relacionada com a uirtus animosa a que o Coro alude na

Ode I (v 201) antes remete para a capacidade de agir virtuosamente

Contudo no verso seguinte o Coro muda por completo de opiniatildeo (a mudanccedila eacute

marcada pela conjunccedilatildeo coordenativa disjuntiva uel)

uel sit potius mens uesano concita motu error caecus qua coepit eat solus te iam praestare potest furor insontem proxima puris sors est manibus nescire nefas

(vv 1094-1099)

O Coro considera que eacute preferiacutevel que o heroacutei desconheccedila a realidade

permanecendo assim na sua loucura e ignorando as consequecircncias do seu erro de

avaliaccedilatildeo (cf v 1065 rectam mentem) No ponto de vista de Shelton no que diz

respeito aos versos supracitados ldquoIts statement though true is not the statement of a

noble man because it completely avoids the difficult question of guilt and responsibility

Its suggestion here emphasizes by contrast Herculesrsquo later determination to accept guilt

and punishmentrdquo127

E os versos finais na apoacutestrofe aos cadaacuteveres das crianccedilas que Heacutercules

chacinou satildeo a derradeira criacutetica ao heroacutei que desperdiccedilou parte da sua vida a combater

contra monstros quando ele proacuteprio revelou ser um monstro ao abrir aos filhos e agrave

mulher o caminho para os Infernos local de onde tinha acabado de sair com os despojos

de guerra

Esse movimento de regresso cumprido por inocentes e natildeo por Heacutercules mas

por este aberto agrave proacutepria famiacutelia estaacute significativamente sugerido no v 1136 que

formalmente ldquoenvolverdquo o caminho luacutegubre que os pueri tecircm de percorrer como que

num abraccedilo letal na alusatildeo aos trabalhos de Heacutercules (v 1136 noti per iter triste

laboris) este foi de facto o seu uacuteltimo e traacutegico trabalho

126 Veja-se a longa enumeraccedilatildeo de epiacutetetos que caracterizam o Sono (vv 1066-1077) que estatildeo entre o sujeito (tu[que] ndash v 1066) e o predicado (preme ndash imperativo presente) 127 Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 48

82

Em siacutentese poucas semelhanccedilas haacute entre o Coro da peccedila de Euriacutepides e o do

Hercules Furens de Seacuteneca Enquanto o primeiro elogia Heacuteracles (antes da cena da

loucura) e comunica com as personagens no decorrer da acccedilatildeo dramaacutetica o Coro de

Seacuteneca natildeo apoia Heacutercules e toma uma posiccedilatildeo criacutetica relativamente ao

desenvolvimento da acccedilatildeo No Hercules Furens o Coro comenta faz reflectir propotildee

linhas de anaacutelise das circunstacircncias e do protagonista bem como da condiccedilatildeo humana

em geral sob um ponto de vista que eacute essencialmente o da doutrina estoacuteica Como

explica Shelton ldquoThe choral odes help to establish the theme of the play not through the

development of imagery but through expansion on a moral or philosophical issuerdquo128

A forma como cada um dos tragedioacutegrafos trabalha o Coro eacute completamente

diferente Em Euriacutepides os anciatildeos reagem desfavoravelmente agrave fragilidade que a sua

situaccedilatildeo lhes provoca sentem que natildeo satildeo mais do que palavras (v 112) movimentam-

se com dificuldade necessitando de se apoiarem uns nos outros (vv 124-126) a sua

debilidade natildeo lhes permite ajudar a famiacutelia heraclida (vv 312-314) Por oposiccedilatildeo

elogiam a juventude sinoacutenimo de vigor e de prosperidade considerando-a a mais

valiosa de todas as riquezas (vv 637 ss) Segundo Chalk ldquoThe aged weakness of the

Chorus is the antithesis of strenght and strength is embodied above all in Herakles for

whom it becomes also lsquothe source of his calamityrsquo The relevance of the choral odes is

to be found in their handling of these themes especially that of Heraklesrsquo strengthrdquo129

Em Seacuteneca o Coro entende que a velhice eacute uma recompensa pela forma como

soube aproveitar a sua vida porque se traduziu num humilique loco (v 199) e numa

sordida fortuna paruae domus (v 200) Tambeacutem em Ad Lucilium Epistulae Morales

Seacuteneca recorda que a vida do homem eacute preciosa quando vivida em plenitude natildeo

importa a durabilidade da vida mas sim a qualidade130

No que diz respeito agrave funccedilatildeo do Coro na trageacutedia Hercules Furens podemos

afirmar que natildeo estaacute desvinculada da acccedilatildeo A posiccedilatildeo criacutetica que assume ao

caracterizar o protagonista aproxima-o das demais personagens da trageacutedia Ao

socorrer-se de exemplos miacuteticos (por exemplo a descida de Orfeu ao mundo

subterracircneo para resgatar Euriacutedice ndash vv 569-589) o Coro prenuncia o destino fatal de

Heacutercules situa ldquoo comportamento das principais personagens das peccedilas numa tradiccedilatildeo

128 Idem Ibidem 42 129 H H O Chalk ldquoἀρετή and βία in Euripidesrsquo Heraclesrdquo Journal Hellenic Studies 82 (1962) 8 130 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 93 2 ss

83

criminosa familiar e [fornece] indiacutecios sobre o tipo de nefas que seraacute cometidordquo como

refere Paulo Ferreira131

Discordamos assim da posiccedilatildeo de Mendell quando diz The odes in the Senecan plays have not a natural and necessary function but are used almost exclusively to mark divisions between acts They are not either choral or truly lyric in quality but use lyric meters and would probably have been designated as such if a Roman critic had tried to classify them They develop the themes of current popular wisdom dressing it up with a considerable amount of learning They are rather an accessory to the play than an integral part of it132

Na verdade o Coro anuncia a entrada das personagens em cena como eacute

exemplo a Ode I descrevendo fiacutesica e psicologicamente a forma como Meacutegara os seus

filhos e Anfitriatildeo entram (vv 202-204) daacute indiacutecios daquilo que iraacute acontecer num

futuro breve (Ode I II III) ldquofixa o tempo dramaacutetico (Her F I) e constitui um

intermezzo para superar um intervalo de tempo (Her F II e III)rdquo133 observa e critica as

acccedilotildees das personagens (vv 1032-1034 censura a atitude de Anfitriatildeo que incentiva

Heacutercules a imolaacute-lo como mais uma viacutetima de sacrifiacutecio aos deuses) descreve a figura

do heroacutei enquanto dormia fatigado pela suacutebita demecircncia que o atacou (vv 1053-1137)

delineando o seu estado psicoloacutegico e dando provas de que a perturbaccedilatildeo mental ainda

natildeo abandonou o protagonista

6 Divindades

a) caracterizaccedilatildeo de Iacuteris e Lissa

na trageacutedia de Euriacutepides

Iacuteris e Lissa aparecem no IV Episoacutedio (vv 822-874) Este foi considerado como

um segundo Proacutelogo pela forma como estaacute construiacuteda a ῥῆσις de Iacuteris134 O aparecimento

131 Paulo Seacutergio Margarido Ferreira Seacuteneca em Cena Enquadramento na Tradiccedilatildeo Dramaacutetica Greco--Latina (Coimbra diss de Doutoramento em Letras aacuterea de Estudos Claacutessicos especialidade de Literatura Latina apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 2006) 262 132 Clarence W Mendell Our Seneca (sl Archon Books 1968) 138 133 Paulo Seacutergio Margarido Ferreira Seacuteneca em Cena Enquadramento na Tradiccedilatildeo Dramaacutetica Greco-Latina 266 134 Bond 281 admite que os vv 822-874 se assemelham a um segundo proacutelogo apesar de na sua extensatildeo ser mais pequeno do que um normal monoacutelogo inicial Tambeacutem Shirley 160 sugere o mesmo

84

das deusas vem na sequecircncia do canto do Coro em honra dos deuses por castigarem os

iacutempios e auxiliarem os suplicantes e em louvor de Heacuteracles por ter vindo como

restaurador do poder e por ter provado ser filho de Zeus O contraste entre o juacutebilo do

Coro no terceiro estaacutesimo e o efeito que a entrada de Iacuteris e Lissa tem sobre ele eacute

profundo O Coro fica aterrorizado pois ao ver as deusas aproximarem-se do palaacutecio

antevecirc novas desgraccedilas que se abateratildeo sobre todos (vv 815-821)

Iacuteris acalma o Coro e apresentando-se como mensageira dos deuses e a Lissa

como a filha da Noite revela-lhes a razatildeo que a levou a Tebas enlouquecer Heacuteracles

Os verdadeiros motivos que teratildeo levado Hera a querer enlouquecer o heroacutei natildeo satildeo

abertamente revelados Iacuteris alude vagamente ao oacutedio de Hera acrescentando que o

Alcida deve ser punido para que o valor dos deuses seja mantido ἢ θεοὶ microὲν οὐδαμοῦ

τὰ θνητὰ δ᾿ ἔσται μεγάλα μὴ δόντος δίκην (vv 841-842)135 Informa apenas que

enquanto decorriam os trabalhos do Alcida ele estava protegido pelo destino136

Os motivos que justificam essa vontade de castigaacute-lo poderatildeo ter que ver com a

forma violenta como Heacuteracles resolve as situaccedilotildees137 o ter descido ao Hades e ter tirado

de laacute Ceacuterbero ou ainda porque eacute considerado pelas personagens dramaacuteticas (por

Anfitriatildeo por Meacutegara e pelo Coro) um heroacutei de grande valor e forte ou entatildeo por ser

filho de Zeus138 Para Bond ldquothe conclusion of Irisrsquo speech has been taken to imply

that Heracles must be punished not merely for bastardy but simply for being so

greatrdquo139 Barlow pelo contraacuterio comenta

In spite of the phrase microὴ δόντος δίκην ldquounless he pays the penaltyrdquo at 842 it is impossible to see that Heracles has done anything to deserve

ldquoThe scene has some of the features of a second prologue with its clarity its introduction of a speaker who is a god and its position in begining a new actionrdquo 135 lsquoEacute que os deuses natildeo existem e a raccedila dos mortais seraacute todo poderosa se natildeo houver expiaccedilatildeo das culpasrsquo 136 Esta ideia liga-se agrave de Anfitriatildeo (vv 18-21) καὶ πάτραν οἰκεῖν θέλων καθόδου δίδωσι μισθὸν Εὐρυσθεῖ microέγαν ἐξημερῶσαι γαῖαν εἴθrsquo Ἥρας ὕπο κέντροις δαμασθεὶς εἴτε τοῦ χρεὼν μέτα (lsquoTentando solucionar os meus infortuacutenios e desejando libertar a famiacutelia do exiacutelio oferece-se a Euristeu para purificar a terra dos seus monstros preccedilo alto que paga pelo nosso regresso subjugado pelos aguilhotildees de Hera ou pelo terriacutevel destinorsquo) Note-se que natildeo eacute constante ao longo da trageacutedia a atribuiccedilatildeo da autoria dos trabalhos Se no Proacutelogo Anfitriatildeo remete para Hera ou para o destino neste episoacutedio eacute dito que foi o destino e no uacuteltimo episoacutedio as personagens apontam Hera como forccedila responsaacutevel 137 Quando Meacutegara explica a Heacuteracles a razatildeo que levou Lico a querer matar a famiacutelia do heroacutei este propotildee mataacute-lo e lanccedilar a cabeccedila do tirano aos catildees Aleacutem disso ao saber tambeacutem pela mulher que natildeo tiveram qualquer ajuda por parte dos habitantes de Tebas decide castigar todos os que natildeo auxiliaram a sua famiacutelia Estes satildeo exemplos que demonstram que o caraacutecter de Heacuteracles tende a ser violento 138 O Coro (vv 696-700 vv 798-814) engrandece as faccedilanhas do heroacutei que desceu ao Hades mas regressou para restaurar a ordem e o reino e o seu duplo nascimento de Anfitriatildeo e Zeus 139 Bond xxv-xxvi

85

a punishment except that he is who he is ndash an enemy just by his existence to Hera His killing of Lycus for example was in defence of his closest family There is no evidence in the text to suggest overweening arrogance on this part or any kinf of hubris which might bring down Herarsquos wrath with more reason It is rather her excessive irrational action which is intended to disturb () On the extreme reluctance of Lyssa to perform her task (846 854 858) () Her attitude stresses that Heracles is an innocent victim rather than a wrongdoer to be avenged and he is left after the murders to deal with the chaos of his own mind as best he may140

Concordamos em boa parte com Barlow julgamos contudo que natildeo deve ser

desprezada a forma impetuosa como Heacuteracles age tanto a morte de Lico como a da

famiacutelia do heroacutei denotam um caraacutecter que eacute facilmente possuiacutedo pela violecircncia Se no

primeiro caso o Alcida procede a um castigo ndash o acto feroz eacute justificado pela

necessidade de proteger a famiacutelia e de repor a ordem (Lico eacute um tirano) ndash no segundo

ele age sob o domiacutenio da loucura A crueldade eacute poreacutem a mesma Parece-nos que o

Alcida oscila entre a ἀρετή e a βία

Ora Lissa natildeo partilha dos desiacutegnios das deusas (vv 847-854) Contesta e

procura demovecirc-las do que planeiam Faacute-lo porque as qualidades do heroacutei o tornaram

conhecido ateacute no mundo inferior Argumentando enumera alguns dos seus feitos

a) pacificou a terra inacessiacutevel e os mares (v 851)

b) tornou os homens mais tementes restaurando a honra aos deuses (vv 852-

853)

Sem conseguir fazer valer o seu ponto de vista Lissa dispotildee-se a cometer o acto

que reprova por ser obrigada pelas deusas Bond comenta ldquoThis scene has obvious

similarities with the prologue of Prometheus the contrast between the vindictive Kratos

and Hephaestus the reluctant instrument of punishment is repeated in the contrast

between Iris and Lyssa and Prometheus like Heracles is a benefactor of mankindrdquo141

No entanto Hefesto reconhece o erro de Prometeu sendo castigado por isso Jaacute Lissa

natildeo vecirc qualquer culpa em Heacuteracles

Barlow procura ver nas manifestaccedilotildees das trecircs divindades (Iacuteris ndash Hera Lissa)

uma explicaccedilatildeo ldquoThat Lyssa the representative of wild and irrational forces should

herself appear as sober and moderate (857) but yet be overcome by Herarsquos will serves

140 Barlow 160 141 Bond 281

86

to underline the inexorable power and wanton destructiveness of Herarsquos nature and the

complete innocence in contrast of Heracles himselfrdquo142

b) caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Seacuteneca Juno

Juno eacute a primeira personagem a ser apresentada em cena e a uacutenica do Acto I (vv

1-124) O aparecimento desta divindade no iniacutecio da peccedila permite estabelecer de

imediato um contraste entre a trageacutedia de Seacuteneca e a de Euriacutepides Na peccedila grega

Anfitriatildeo e Meacutegara surgem no Proacutelogo e Iacuteris entra em cena como mensageira de Hera

(esta deusa natildeo interveacutem uma uacutenica vez mas eacute constantemente aludida143) No entanto

haacute alguns pontos em comum em ambas as trageacutedias as deusas celestes Iacuteris e Juno

procuram enlouquecer o Alcida e precisam de um elemento do mundo inferior para

conseguir concretizar o que ambicionam Aparecem uma uacutenica vez no iniacutecio da acccedilatildeo

(no caso de Seacuteneca) ou no lsquosegundo proacutelogorsquo144 Divergem todavia na forma como

cada um dos autores explora a funccedilatildeo das personagens

A funccedilatildeo de Juno no Acto I natildeo eacute a de apresentar a peccedila resumindo a trama

como acontece em algumas trageacutedias de Euriacutepides por exemplo Afrodite no Hipollytus

ou Hermes no Ion145 Seacuteneca pretende exemplificar as manifestaccedilotildees psicoloacutegicas dos

estados passionais que dominam as personagens levando-as a uma espiral incontrolaacutevel

de erros e crimes Isto permite a Seacuteneca segundo Fitch ldquoto create a portrait of violent

uncontrolled emotion and the atmosphere of horror and suspense that naturally

accompanies itrdquo146 Juno eacute mais um exemplum daquilo a que um animus iratus pode

conduzir

Para definir a personagem pois Seacuteneca dota-a de um caraacutecter uitiosus

dominado pelas paixotildees que vai sendo revelado ao longo do seu discurso A fala de

Juno pode ser dividida em trecircs partes que representam o reconhecimento daquilo que

verdadeiramente a perturba (vv 1-18) a procura de uma forma de destruir a pessoa que

a transtorna (vv 19-63a) e a descoberta de um meio de aniquilar essa personagem (vv

63b-124) Esta evoluccedilatildeo traduz-se num crescendo do furor da deusa que atinge a ἀκμή

na terceira parte

142 Barlow 8 143 Vide v 20 v 829 v 831 v 840 v 848 v 855 v 859 v 1127 v 1189 v 1253 v 1264 vv 1307-1309 v 1393 144 Vide aliacutenea 5 subaliacutenea a) 145 Nestas peccedilas os deuses contextualizam a acccedilatildeo e apresentam o tema 146 Fitch 116

87

No primeiro momento (vv 1-18) Juno apresenta-se por meio de uma periacutefrase

Soror Tonantis (v 1) Estas palavras iniciais servem de mote para a deusa expor as

causas do ressentimento (o saeuus dolor que ela proacutepria identifica no v 28) que sente

devido agraves inuacutemeras infidelidades de Juacutepiter e do papel a que ele a reduziu de esposa e

deusa suprema ele remeteu-a ao lugar de irmatilde (vv 1-2 hoc enim solum mihi nomen

relictum est) A palavra Soror no iniacutecio do primeiro verso marca o seu regresso a um

estatuto menor anterior agravequele de que gozou enquanto uxor do Tonante Aleacutem disso a

sua condiccedilatildeo eacute de uidua (v 3 lsquoaquela que tem o marido ausentersquo que estaacute privada do

marido) uma vez que Juacutepiter tornou-se no lsquomaridorsquo sempre alheio (v 2 semper

alienum Iouem) Juno demarca a desconsideraccedilatildeo que a atinge pelo facto de ter sido

obrigada (v 4 pulsa) a abandonar (v 3 deserui) o seu reino celeste e o palaacutecio dos

deuses (vv 3-4 templa summi aetheris locumque caelo) para ceder o seu lugar agraves

paelices (v 5) de Juacutepiter A deusa foi expulsa do ceacuteu ficando confinada agrave terra (v 5

tellus colenda est) enquanto as amantes do deus ocupavam o seu lugar (v 5 caelum

tenent) ndash a antiacutetese terra vs ceacuteu acentuada pelas formas verbais pulsa e colenda est

pelo quiasmo (vv 4-5 caelo paelicibus ndash paelices caelum) datildeo a imagem de uma

deusa derrotada e ressentida

Juno enumera entatildeo (vv 6-18) algumas das paelices de Juacutepiter que foram

transformadas em constelaccedilotildees juntamente com os filhos dessas relaccedilotildees aduacutelteras (v

12 Oriacuteon v 13 Perseu por exemplo) Esse catasterismo eacute visto pois na perspectiva

de Juno como motivo suficiente para as suas maacutegoas passadas (v 19 Sed uetera

querimur) A deusa reconhece que haacute agravos maiores por meio de uma gradaccedilatildeo

ascendente de motivos de queixa Juno concentra-se num uacutenico local Tebas a cidade de

onde vieram mais amantes (vv 19-21) A referecircncia a este espaccedilo daacute-lhe a oportunidade

de ir ao ponto que lhe interessa focar ndash passando para a segunda parte do seu

soliloacutequio147 (vv 19-63a) ndash Alcmena (vv 21-22) a mulher amada de Juacutepiter e o fruto

desse amor Heacutercules (vv 22-26) que sempre superou (cf v 33 superat) os obstaacuteculos

e provaccedilotildees com que Juno pensou destruiacute-lo (vv 27-42)

147 Segundo Fitch (1) 115 a fala de Juno natildeo eacute proferida num monoacutelogo mas num soliloacutequio Comprova este entendimento o facto de ela natildeo se dirigir ao auditoacuterio para explicar o que vai fazer Eacute agrave medida que ela vai cogitando uma forma de se poder vingar que ficamos a conhecer os seus planos como por exemplo quando ela diz natildeo querer dar um uacutenico momento de paz e procura algum meio de derrotar o heroacutei (vv 30-32) Observe-se que soacute reconhecemos que eacute Juno quem estaacute a falar pela forma como se apresenta nos primeiros versos Soror Tonantis ndash hoc enim solum mihi nomen relictum est (vv 1-2) ao contraacuterio do que acontece em Euriacutepides na peccedila homoacutenima Anfitriatildeo identifica-se logo nos dois primeiros versos Τίς τὸ Διὸς σύλλεκτρον οὐκ οἶδεν βροτῶν ᾿Αργεῖον ᾿Αμφιτρύων [lsquoQuem de entre os mortais natildeo conhece aquele que partilhou o leito com Zeus o argivo Anfitriatildeorsquo]

88

Eacute a evocaccedilatildeo deste episoacutedio de infidelidade que mais lhe custa a suportar que

suscita a diferenccedila radical da linguagem que usa dominada pelas paixotildees os termos

satildeo mais violentos revelando um caraacutecter ferus assim que comeccedila a falar de Heacutercules

Juno manifesta o seu oacutedio pelo heroacutei reconhecendo em si um uiolentus animus (v 28)

Consciente do seu estado afectivo a deusa natildeo pretende apaziguaacute-lo non sic abibunt

odia (v 27) antes procura um meio de prejudicar Heacutercules aeterna bella pace sublata

geret (v 29) ndash a estrutura quiaacutestica reforccedilada pela antiacutetese e o emprego do futuro

imperfeito em geret traduzem a intenccedilatildeo de subverter toda a ordem criando uma

situaccedilatildeo que de favoraacutevel para Heacutercules se torne em adversidade pura e constante

Em trecircs versos (vv 27-29) Seacuteneca reuniu concentrando-os um conjunto de

vocaacutebulos especiacuteficos que designam as paixotildees enquanto perturbaccedilotildees da alma Juno eacute

movida por odia (v 27) pela ira (cf v 28) pelo dolor (v 28) Os proacuteprios adjectivos

que qualificam os substantivos que denominam as passiones estatildeo carregados de

significado uiuaces (v 28) aponta para um uitium entranhado arreigado perene

impossiacutevel de dominar uiolentus (v 28) vem de uis que significa em primeiro lugar a

forccedila que se exerce contra algueacutem saeuus (v 28) aproxima a atitude de Juno da

crueldade que eacute proacutepria dos animais selvagens

Do seu estado de ira (v 35) passa a temor (v 61) quando vecirc que Heacutercules

venceu o mundo inferior A anaacutefora (v 50 uidi) realccedilada pela assonacircncia em e (v 48

effregit ecce limen inferni) pela aliteraccedilatildeo (v 51 Dite domito) e pela antiacutetese (v 48

inferni v 49 superos) concorre para acentuar a ousadia e o scelus de Heacutercules ele

quebrou as barreiras existentes entre os dois mundos ao trazer das sombras Ceacuterbero e

derrotou o soberano do mundo subterracircneo (vv 51-52)

A alusatildeo aos Infernos eacute um toacutepico recorrente natildeo soacute nesta trageacutedia como

tambeacutem na homoacutenima de Euriacutepides No tragedioacutegrafo grego a referecircncia ao Hades estaacute

relacionada com a ausecircncia do protagonista A maior parte das personagens natildeo acredita

que o heroacutei consiga regressar das moradas subterracircneas apenas a Anfitriatildeo resta uma

esperanccedila de que o filho regressaraacute (v 97) Em Seacuteneca este tema estaacute mais presente e

mereceu uma reflexatildeo mais ampla do que na trageacutedia homoacutenima148 Os motivos filiam-

-se na perspectiva estoacuteica que se pretende veicular149

148 Em Seacuteneca por exemplo Teseu descreve os Infernos (vv 662-806) e o Coro (vv 835-863) enumera o geacutenero de turba que desce agrave mansatildeo das sombras Em Euriacutepides parece natildeo haver um grande interesse em descrever as moradas de Hades De facto estas satildeo apenas referidas (vv 607-621) e Heacuteracles limita-se a contar a Anfitriatildeo que teve de lutar contra Ceacuterbero (v 613) e que libertou Teseu dos Infernos (v 619) 149 Vide aliacutenea 4 subaliacutenea b)

89

No caso de Juno o espaccedilo infernal provoca-lhe dois sentimentos contraditoacuterios

pavor e juacutebilo Pavor por ter enviado Heacutercules na complexa missatildeo de trazer Ceacuterbero da

mansatildeo de Plutatildeo e ele ter concluiacutedo a tarefa bem como pelo regresso do heroacutei do

mundo infernal que resultou na quebra das barreiras que existiam entre o mundo

subterracircneo e o terrestre pavor tambeacutem por ele ter derrotado o deus dos Infernos

Causa-lhe juacutebilo por ser nesse mesmo local que encontraraacute o δαίμων perfeito que

transtornaraacute Heacutercules e serviraacute a sua vinganccedila

Uma vez que este lugar foi subjugado Heacutercules pode querer vencer o celeste e

destronar o proacuteprio pai Juacutepiter (cf vv 64-65 regna summa sceptra) Isto eacute o que a

deusa afirma temer e o verso 63 permite transitar para a terceira parte do seu discurso

Satildeo visiacuteveis entre a segunda e terceira partes (correspondentes agraves etapas do pensamento

de Juno) algumas semelhanccedilas sed uetera querimur (v 19) vs leuia sed nimium queror

(v 63) Em termos sintaacutecticos satildeo adversativas (sed) o verbo usado eacute o mesmo

(queror) estaacute no mesmo tempo (presente) e modo (indicativo) Isto ilustra o facto de

Juno sentir os agravos como reais e presentes (a mudanccedila de nuacutemero plural singular eacute

irrelevante dado serem ambas formas de primeira pessoa) Os adjectivos uetera e

depois leuia satildeo significativos no sentido em que revelam a progressatildeo do raciociacutenio

da deusa e a intensificaccedilatildeo das suas emoccedilotildees primeiro falou de coisas passadas depois

de coisas que natildeo tecircm tanta importacircncia em relaccedilatildeo ao que vai evocar em seguida

(aquilo que ela vai conceber e decidir)

No entanto como nota Fitch as acusaccedilotildees que Juno faz relativamente agraves acccedilotildees

de Heacutercules satildeo de teor fraacutegil uma vez que ela proacutepria o perseguiu desde a infacircncia sem

qualquer piedade Aleacutem disso foi ela quem lhe deu a ordem de descer ao mundo

subterracircneo O heroacutei limitou-se a cumprir as ordens da deusa ldquoHer allegations appear to

be a trumped-up excuse for continuing or rather intensifying her persecution of the

herordquo150 Juno assume ser a nouerca (v 21 v 112) a figura da madrasta que persegue

com hostilidade o fruto da relaccedilatildeo aduacuteltera Heacutercules Segundo Antonella Borgo

ldquoQuella della nouerca egrave dunque una figura sempre negativa mossa comrsquoegrave naturale da

rancore e da animositagrave nei confronti dei nuovi figli del compagno pronta a macchiarsi

dei piugrave gravi crimini pur di colpirlirdquo151

Na terceira parte (vv 63b-124) Juno evoca uma vez mais a ira (v 75 perge

ira perge et magna meditatem opprime) agora em forma intensificada ndash a iteraccedilatildeo do 150 Fitch (1) 21 151 Antonella Borgo Lessico Parentale in Seneca Tragico (Napoles Loffredo Editore 1993) 73

90

imperativo (perge) a apoacutestrofe a aliteraccedilatildeo em oclusiva nasal bilabial acentuam esse

affectus Aleacutem desta apoacutestrofe contam-se no discurso da deusa mais trecircs

Na segunda apoacutestrofe Juno dirige-se a Heacutercules (vv 89-91) ameaccedilando

mostrar-lhe o mundo infernal

i nunc superbe caelitum sedes pete humana temne Iam Styga et manes feros fugisse credis Hic tibi ostendam inferos reuocabo in alta conditam caligine ultra nocentum exilia discordem deam quam munit ingens montis oppositi latus educam et imo Ditis e regno extraham quidquid relictum est ueniet inuisum Scelus suumque labens sanguinem Impietas ferox Errorque et in se semper armatus Furor ndash Hoc hoc ministro noster utatur dolor

(vv 90-99)

Os imperativos (v 90 i pete v 91 temne) em apoacutestrofe ao heroacutei ausente ndash a

deusa qualifica Heacutercules como superbus (v 90) por ousar praticar acccedilotildees que vatildeo aleacutem

do que eacute permitido ao comum dos mortais (cf vv 90-91) ndash demonstram o rancor de

Juno A aliteraccedilatildeo feros fugisse (vv 91-92) a antiacutetese ceacuteu (v 90 caelitum) versus

inferno (vv 91-92 Styga manes feros inferos) e a pergunta retoacuterica avivam o seu

oacutedio e conduzem-na a encontrar o tipo de bella (v 85) que procura seraacute precisamente

para os inferi (v 93) ndash o adveacuterbio de lugar (v 93 hic) delimita o espaccedilo ndash que ela

proacutepria conduziraacute o acircnimo do Alcida Juno estaacute decidida sabe o que fazer e para onde

se dirigir Manda e comanda O futuro imperfeito (v 91 ostendam v 93 reuocabo v

95 educam extraham v 96 ueniet) e as aliteraccedilotildees (v 92 conditam caligine v 93

discordem deam) condensam o resultado esperado e que ela sabe que iraacute conseguir

Heacutercules enlouqueceraacute Seraacute precisamente do Furor e do Error152 que Heacutercules

chegaraacute ao Scelus e agrave Impietas Os adjectivos que qualificam estes affectus satildeo

simboacutelicos inuisum (v 96) remete para o tipo de crime que o protagonista vai cometer

(filiciacutedio e uxoriciacutedio) ferox da mesma raiz que ferus aponta para um affectus ousado

violento cruel que aproxima a acccedilatildeo de Heacutercules agrave de um animal selvagem o adjectivo

armatus a qualificar o furor indicia que esta passio impulsionaraacute o protagonista ao

crime e agrave impiedade Ele usaraacute para o efeito as suas proacuteprias armas

152 No momento da loucura Heacutercules julga que estaacute a matar os filhos de Lico e que estaacute a castigar Juno quando satildeo os seus filhos e esposa que estatildeo a ser assassinados

91

Tambeacutem as figuras de retoacuterica satildeo significativas nos vv 96-98 a assonacircncia de

nasais suumque lambens sanguinem Impietas a aliteraccedilatildeo Scelus suumque tudo

concorre para intensificar o efeito terriacutevel que tem como causa o seu ressentimento o

dolor que Juno manifesta no v 99

Na terceira apoacutestrofe Juno invoca as Fuacuterias (vv 100-109) identificando-as por

famulae Ditis (v 100) periacutefrase que as torna ainda mais terriacuteveis na sua esfera de acccedilatildeo

e de subordinaccedilatildeo Numa sucessatildeo de verbos de movimento na forma imperativa (v

100 incipite v 101 cuncite v 104 agite petite) e no conjuntivo exortativo (v 102

ducat v 103 corripiat) Juno reuacutene ao serviccedilo do seu dolor as forccedilas nefastas

ordenando-lhes e exortando-as a castigarem e vingarem o crime de Heacutercules E no v

110 a deusa inclui-se no grupo das terriacuteveis fuacuterias quando lhes chama sorores (v 110

me me sorores mente deiectam mea) A assonacircncia nasal reforccedilada pela aliteraccedilatildeo em

oclusiva nasal bilabial a iteraccedilatildeo do pronome pessoal me concorrem para acentuar o

desejo que a deusa tem de enlouquecer Iuno cur nondum furis (cf v 109) Nesta

terceira apoacutestrofe Juno dirige-se a si mesma (v 109) porque ainda natildeo sentiu a

pretendida transformaccedilatildeo em Fuacuteria (vv 109-112) Estas trecircs apoacutestrofes que vatildeo

variando de destinataacuterio traduzem as oscilaccedilotildees das emoccedilotildees de Juno demonstrando as

passiones a que ela estaacute submetida

Um outro aspecto a notar eacute a insistecircncia na palavra bella (v 29 v 30 v 85 v

123) no decorrer do soliloacutequio de Juno que estaacute intimamente vinculada com a evoluccedilatildeo

do raciociacutenio da deusa e contribui para acentuar o tom de suasoria que subjaz ao passo

Admitindo que o o oacutedio a ira e a dor natildeo lhe permitem deixar que Heacutercules tenha pax

Juno vai procurando alternativas para manter bella ad aeternum (cf v 29) Surge-lhe

entatildeo a pergunta Quae bella (v 30) Haacute que definir quais satildeo as guerras que Juno

poderaacute mover contra Heacutercules Depressa ela se apercebe da dificuldade em vencer o

Alcida ou pior ainda apercebe-se de que o heroacutei suberveteu a situaccedilatildeo atingindo-a a

ela proacutepria iraque nostra fruitur in laudes suas mea uertit odia (vv 34-35) Juno vai

analisando o que natildeo vale mais a pena fazer uma vez que tambeacutem jaacute lhe faltam recursos

(v 40 monstra iam desunt mihi) O seu raciociacutenio vai sendo encaminhado para um

ponto em que ela se apercebe de que os bella teratildeo de ser de uma espeacutecie inusitada (v

85 bella iam secum gerat) a guerra seraacute contra ele mesmo

Ao encontrar a soluccedilatildeo que se lhe afigura como a mais adequada e a mais

eficaz Juno passa a acccedilatildeo Mas se no v 109 ela diz pretender enlouquecer primeiro a

92

deusa faz agora um acerto no seu raciociacuteonio uota mutentur mea (v 112) Haacute uma

eficaz correcccedilatildeo no plano ateacute aiacute concebido Juno descobre-o num ponto do seu

raciociacutenio (v 114 inueni aspecto pontual de um perfeito do indicativo) A partir daqui

as relaccedilotildees de causa e efeito satildeo estabelecidas de forma mais linear me uicit et se

uincat et cupiat mori ab inferis reuersus (vv 116-117) O poliptoto aliado ao

conjuntivo optativo e ao homeoptoto acentua a clareza de raciociacutenio e demonstra que a

deusa ajustou a sua mira encontrando o ponto adequado e que serviraacute os seus

interesses hic prosit mihi (v 116) Tambeacutem por isso ela jaacute natildeo necessita de uma forccedila

infernal para a auxiliar ao contraacuterio de Hera e de Iacuteris que chamaram Lissa para instigar

em Heacuteracles a loucura Juno sozinha conduziraacute pela sua matildeo (v 119 librabo manu)

guiaraacute as flechas e os golpes de Heacutercules permanecendo ao lado dele na luta (vv 120-

121) Juno apenas lhe inspiraraacute o furor Depois de o crime estar concluiacutedo (v 121

scelere perfecto) nesse preciso momento Heacutercules poderaacute ascender aos astra promissa

(v 23) e Juacutepiter acolhecirc-lo (v 122 admittat illas genitor in caelum manus) A ironia

acentuada pela antonomaacutesia manifestam a crenccedila de Juno na impossibilidade de Juacutepiter

aceitar Heacutercules inter diuos Ela tem consciecircncia do acto que o Alcida vai realizar

Tomada a decisatildeo completado o raciociacutenio cumpre agora passar agrave acccedilatildeo (v

123 mouenda iam sunt bella) A perifraacutestica passiva traduz a necessidade de pocircr de

imediato e naquele preciso momento (iam) os bella que no seu entender a libertaratildeo do

seu ressentimento por Heacutercules e a compensaratildeo do seu despeito por ter sido preterida

por Juacutepiter e ultrapassada pelo heroacutei pela bravura com que sempre concluiu os seus

trabalhos

A forma como Juno constroacutei o seu raciociacuteno eacute semelhante ao de Medeia (na peccedila

que leva o seu nome) Ambas se sentem traiacutedas pelos maridos por isso satildeo movidas

pelo dolor o ressentimento pelo ciuacuteme pelo despeito e rancor Em ambos os casos as

personagens deixam-se dominar pelo furor esforccedilando-se por encontrar um meio de se

vingarem dos que as oprimem (Heacutercules no caso de Juno Jasatildeo no caso de Medeia)

Os discursos das duas personagens satildeo retoacutericos elas debatem consigo mesmas

os argumentos que as levam a encontrar uma soluccedilatildeo que julgam ser a mais indicada

(segundo a loacutegica pervertida que as domina) Nos dois casos elas pretendem que as suas

viacutetimas permaneccedilam vivas para mais sofrerem com o resultado (Med vv 19-20 Her

F vv 112-117) ndash ambos Heacutercules e Jasatildeo teratildeo de continuar vivos para verem os

mortos os que amam As duas peccedilas diferem poreacutem na forma como o scelus eacute

93

executado Em Medea seraacute a protagonista a cometer o crime no caso do Hercules

Furens Juno agiraacute usando o Alcida mas estaraacute ao lado dele

Em siacutentese ainda que nas trageacutedias de Euriacutepides e Seacuteneca sejam deusas as

forccedilas motoras da loucura do Alcida a forma como cada uma das peccedilas se vai

desonrolar ateacute agrave concretizaccedilatildeo dessa loucura eacute diacutespar Em Euriacutepides Heacuteracles comeccedila a

revelar os primeiros sinais de loucura ainda as deusas natildeo tinham abandonado o palaacutecio

Eacute Lissa quem vai descrevendo as primeiras manifestaccedilotildees fiacutesicas do heroacutei dando ao

espectador uma primeira imagem da demecircncia que atacaraacute o protagonista ndash imagem

essa que o Mensageiro desenvolveraacute narrando ao pormenor as transformaccedilotildees faciais

decorrentes da loucura e contando a forma como os Heraclidas morreram

Em Seacuteneca haacute dois planos que se conjugam Juno e Heacutercules A primeira

desencadeia a situaccedilatildeo da loucura como uma espeacutecie de agressatildeo exterior ndash como

acontece na vida humana quando o homem defronta as adversidades que lhe vatildeo

aparecendo Mas Heacutercules eacute jaacute de si excessivo e com tendecircncia agrave megalomania ndash numa

perspectiva estoacuteica ele natildeo consegue pocircr um travatildeo aos uitia que o caracterizam Nesse

sentido a loucura parece vir dele proacuteprio (estaacute enraizada no caraacutecter do Alcida na

uoluntas obsessiva na ausecircncia de ratio) O protagonista eacute por assim dizer um terreno

feacutertil para que a demecircncia imposta por Juno germine

Como Fitch menciona ldquoIn brief then Herculesrsquo madness has a psychological

origin While sane he is characterized by habitual aggression ambition and

megalomania in other words he is already close to insanity in his daily modus uitae At

this moment when he has reached the highest pitch of megalomania his mind topples

over into madnessrdquo153

153 Fitch 30

94

Capiacutetulo III

Heacuteracles e Heacutercules a (des)construccedilatildeo do heroacutei

1 Caracterizaccedilatildeo de Heacuteracles na trageacutedia de Euriacutepides

Para a caracterizaccedilatildeo de Heacuteracles em Euriacutepides satildeo vaacuterios os toacutepicos de anaacutelise

que contribuem para concatenar as quatro partes em que esta trageacutedia se pode dividir1

sendo assim elementos-chave para a compreensatildeo da trageacutedia em particular para a

identificaccedilatildeo do caraacutecter do heroacutei o toacutepico da dupla paternidade do Alcida que faz dele

um ldquoheroacutei-deusrdquo2 e um ldquoheroacutei-mortalrdquo o toacutepico da luz e das trevas o toacutepico da solidatildeo

e da amizade o toacutepico da individualidade e da colectividade Todos estes τόποι

aparecem interligados nas falas das personagens em especial os dois binoacutemios

individualidade vs colectividade e solidatildeo vs amizade

Em toda a peccedila de Euriacutepides parece expliacutecito o papel de Heacuteracles enquanto heroacutei

virtuoso e heroacutei filho de Zeus Esta funccedilatildeo manifesta-se pela forma como a personagem

actua no desenrolar da acccedilatildeo Ele assume a funccedilatildeo divina diriacuteamos de castigar todos os

que natildeo respeitam a justiccedila e incorrem na ὕβρις Deste modo natildeo eacute de estranhar que ele

mate Lico uma vez que este eacute o tiacutepico tirano sem controle No entanto a forma como eacute

delineado o seu caraacutecter por meio das suas acccedilotildees e das descriccedilotildees que as personagens

dele fazem levanta algumas reservas principalmente depois de ser enlouquecido pelas

deusas

A loucura de Heacuteracles que eacute narrada pelo Mensageiro seraacute analisada neste

capiacutetulo O motivo que nos levou a inserir este tema nesta parte da dissertaccedilatildeo foi

principalmente o poder dar uma imagem completa do protagonista no momento antes e

no momento depois da demecircncia provocada pelas deusas visto que eacute a partir desta que

o Alcida se torna mais humano eacute tambeacutem na sequecircncia da loucura e do acto criminoso

que se percebe a ambivalecircncia do heroacutei isto eacute a virtude vs violecircncia de que o

protagonista usa para destruir os seus ldquoinimigosrdquo

1 Vide Capiacutetulo I aliacutenea 11 (data e estrutura da trageacutedia) 2 Como diria Piacutendaro Nemean 322 Heacuteracles eacute o ἥρως θέος

95

11 Imortalidade e Mortalidade a ambivalecircncia do heroacutei

Este tema eacute apresentado no Proacutelogo Heacuteracles eacute filho de Zeus e de Anfitriatildeo

Apesar de a origem do nascimento de Heacuteracles ser do conhecimento de todos a

indicaccedilatildeo da dupla proveniecircncia do heroacutei logo nos trecircs primeiros versos da trageacutedia natildeo

eacute inocente no sentido em que natildeo eacute uma mera contextualizaccedilatildeo ou apresentaccedilatildeo do

tema da acccedilatildeo dramaacutetica Pelo contraacuterio constitui um traccedilo especiacutefico da sua

personalidade3

Haacute ao longo da acccedilatildeo dramaacutetica um contraste notoacuterio entre imortalidade e

mortalidade entre a divinizaccedilatildeo e a humanizaccedilatildeo do protagonista Esta ambivalecircncia do

heroacutei tem um lugar proeminente na trageacutedia assumindo contornos cada vez mais

definidos agrave medida que se aproxima da cena final

Assim dos versos 1 a 821 Heacuteracles eacute caracterizado pelas outras personagens4

como um guerreiro de insigne valor e filho de Zeus Apenas Lico contesta a heroicidade

e a paternidade do Alcida baseando-se em trecircs argumentos uma divindade nunca teria

relaccedilotildees com um humano (v 149)5 duvida da forccedila pujante de Heacuteracles assim como

natildeo o considera heroacutei porque combate contra animais ferozes com ajuda de armadilhas

(vv 150-155) natildeo eacute um verdadeiro guerreiro porque usa como meio de defesa um arco

e natildeo uma espada e um escudo6

As restantes personagens ao contraacuterio de Lico louvam o caraacutecter do heroacutei

Anfitriatildeo recorda no ἀγών contra Lico que Heacuteracles foi aliado dos deuses quando estes

lutaram contra os gigantes

Διὸς κεραυνὸν ἠρόμην τέθριππά τε ἐν οἷς βεβηκὼς τοῖσι γῆς βλαστήμασιν Γίγασι πλευροῖς πτήν᾿ ἐναρμόσας βέλη τὸν καλλίνικον μετὰ θεῶν ἐκώμασεν∙7

(vv 177-180)

3 Esta dupla natureza de Heacuteracles levou alguns criacuteticos a considerarem complexo o estudo da personagem enquanto protagonista de uma trageacutedia Para Silk ldquoHeracles and Greek Tragedyrdquo Greece and Rome 32 n1 (1985) 1-22 os problemas maiores que se colocam quando se analisa o comportamento do heroacutei satildeo a natureza heroacuteica-divina e o facto de Heacuteracles ser um heroacutei particularmente solitaacuterio Heacuteracles natildeo tem um lugar entre a sociedade humana ou divina mas vive agrave margem de ambas 4 Apesar de Heacuteracles entrar em cena somente a partir do v 523 eacute constantemente evocado pelas outras personagens 5 Tal perspectiva volta a ser posta em causa no uacuteltimo episoacutedio por Heacuteracles 6 Estes uacuteltimos dois pontos voltaratildeo a ser referidos quando analisarmos o toacutepico individualidade e colectividade 7 lsquoComeccedilarei por interrogar o raio e a quadriga de Zeus da qual enviou as setas aladas que se cravaram nos flancos dos Gigantes nascidos da terra glorioso triunfo que celebrou com os deusesrsquo

96

As aliteraccedilotildees (v 177 τέθριππά τε v 179 πλευροῖς πτήν᾿) e o homeoptoto

concorrem para engrandecer o louvor do Coro pelo regresso e a proveniecircncia divina do

heroacutei (vv 696-697) que proporcionou aos mortais uma vida mais tranquila com a

destruiccedilatildeo dos monstros que povoavam a terra (vv 699-700)

Nos vv 821 ss daacute-se a transiccedilatildeo de Heacuteracles referido enquanto heroacutei divino

para uma humanizaccedilatildeo completa da sua personagem O filho de Zeus inicialmente

exaltado passa no epiacutelogo a um mero mortal filho de pais mortais A queda do heroacutei

com a morte dos filhos e da esposa foi dupla fiacutesica e psicoloacutegica No aspecto fiacutesico

verifica-se uma dupla destruiccedilatildeo a ruiacutena do palaacutecio com a queda do telhado e o

desmaio de Heacuteracles provocado por Atena

Sob o ponto de vista psicoloacutegico Heacuteracles eacute enlouquecido pelas divindades

comete os crimes hediondos inconscientemente e quase natildeo consegue recuperar do

desvario de tal modo que precisa do auxiacutelio de Teseu para se levantar O esgotamento

do heroacutei eacute completo8

Quando recupera a razatildeo e toma conhecimento do seu crime o Alcida renega a

paternidade divina Para ele o seu verdadeiro e assumido pai eacute Anfitriatildeo A trageacutedia

termina com o decliacutenio total do heroacutei O uacutenico modo de derrotaacute-lo foi atraveacutes da

loucura Teseu condena o sofrimento exacerbado de Heacuteracles comparando-o a uma

mulher que chora e se lamenta copiosamente pela sua ruiacutena (vv 1412-1417)

No uacuteltimo momento quando Heacuteracles decide abandonar Tebas precisa de ajuda

para se levantar tal a dimensatildeo da sua derrota Como sugere Barlow ldquoThe end of the

play shows a transformation not the glorious invincible hero but a vulnerable human

being struck down by madness This is a disgraced and humiliated Heracles who is

broken and dependentrdquo9

12 Luz e Trevas

A trageacutedia desenrola-se sob a antinomia trevasluz No iniacutecio da trageacutedia

momento mais lento10 o ambiente que envolve as personagens eacute de trevas a famiacutelia de

8 Como veremos em pormenor quando analisarmos as manifestaccedilotildees da loucura 9 Barlow xiv 10 Tanto o iniacutecio como o final da trageacutedia satildeo momentos de grande densidade psicoloacutegica que se traduz numa lenta progressatildeo da acccedilatildeo Anfitriatildeo e Meacutegara esperam suplicantes ou pela morte inevitaacutevel ou pela salvaccedilatildeo O regresso de Heacuteracles permite acelerar o ritmo da acccedilatildeo e haacute uma raacutepida sucessatildeo de

97

Heacuteracles foi condenada agrave morte No proacutelogo no primeiro episoacutedio e no iniacutecio do

segundo as personagens vivem numa atmosfera de agonia entre a esperanccedila e a

descrenccedila total no regresso do heroacutei Hades11 eacute constantemente evocado como o lugar

que reteacutem o filho de Zeus Eacute de facto do Hades que Heacuteracles sai em direcccedilatildeo a Tebas

para chegar agrave cidade de Creonte no momento exacto para salvar a sua famiacutelia e seraacute

para o Hades que o heroacutei conduziraacute a famiacutelia depois de enlouquecido

Esta chegada representa um movimento das trevas para a luz ainda que essa

mudanccedila seja por meros instantes e a luz seja aparente Heacuteracles aparece como salvador

contudo com o desenvolvimento da acccedilatildeo o heroacutei deixa-se tomar pela fuacuteria mata

primeiro Lico e os seus seguidores e de seguida Meacutegara e os filhos Entre os dois

momentos de assassiacutenio haacute apenas uma pausa com a entrada das divindades Iacuteris e Lissa

Todo o momento em que eacute descrito o modo como Heacuteracles mata os filhos e a

esposa estaacute igualmente associado agraves trevas A luz regressa com o aparecimento de Teseu

e a sua promessa de purificaccedilatildeo do acto de Heacuteracles levando-o para Atenas

13 Individualidade e Colectivismo

O tema individualidade em oposiccedilatildeo ao colectivismo eacute frequente na trageacutedia e

serve de mote para caracterizar Heacuteracles que eacute fundamentalmente um heroacutei individual e

solitaacuterio λιπὼν δὲ Θήβας οὗ κατῳκίσθην ἐγώ Μεγάραν τε τήνδε πενθερούς (vv 13-

14)12 Esta caracteriacutestica do heroacutei eacute reforccedilada pelo geacutenero de armas que escolhe usar

para se defender e atacar os inimigos Satildeo elas principalmente o arco e as setas mas

tambeacutem a clava Estas permitem ao heroacutei manter a sua seguranccedila natildeo ficando

dependente de ningueacutem numa batalha

Eacute precisamente na escolha do tipo de armas com que Heacuteracles se defende que

reside a criacutetica de Lico Para o tirano o Alcida eacute cobarde porque luta apenas contra

animais e evita a refrega da batalha ndash a iteraccedilatildeo de οὐδὲν (v 157 v 158 v 160) e de

εὐψυχίας (v 157 v 162) em liacutetotes reforccedila esta ideia de falta de coragem que Lico

pretende provar

acontecimentos morte de Lico juacutebilo do Coro entrada de Iacuteris e Lissa loucura de Heacuteracles chegada do Mensageiro que narra a morte de Meacutegara e dos filhos No final da trageacutedia a acccedilatildeo eacute novamente mais lenta diaacutelogo entre Heacuteracles e Teseu (vide M S Silk ldquoHerakles and Greek Tragedyrdquo 2) 11 Ocorrecircncias vv 22-25 vv 44-46 vv 145-146 vv 296-297 vv 426-434 vv 490-495 12 lsquoabandonou Tebas onde eu me estabelecera deixando Meacutegara e os seus sogrosrsquo

98

ὁ δ᾿ ἔσχε δόξαν οὐδὲν ὢν εὐψυχίας θηρῶν ἐν αἰχμῇ τἄλλα δ᾿ οὐδὲν ἄλκιμος ὃς οὔποτ᾿ ἀσπίδ᾿ ἔσχε πρὸς λαιᾶι χερὶ οὐδ᾿ ἦλθε λόγχης ἐγγὺς ἀλλὰ τόξ᾿ ἔχων κάκιστον ὅπλον τῇ φυγῇ πρόχειρος ἦν ἀνδρὸς δ᾿ ἔλεγχος οὐχὶ τόξ᾿ εὐψυχίας ἀλλ᾿ ὃς μένων βλέπει τε κἀντιδέρκεται δορὸς ταχεῖαν ἄλοκα τάξιν ἐμβεβώς13

(vv 157-164)

Lico faz uma apologia do valor do hoplita porque este enfrenta directamente a

refrega manifestando a sua coragem Anfitriatildeo pelo contraacuterio defende que eacute no arco

que reside a salvaccedilatildeo visto que permite ao heroacutei afastar-se do fragor da guerra dando-

-lhe maior seguranccedila E aduz argumentos com que sustenta a sua tese Heacutercules lutou ao

lado dos deuses manuseando o arco para matar os gigantes o arco permite salvaguardar

a sua vida e a dos companheiros de guerra (vv 195-201) Em relaccedilatildeo ao hoplita

apresenta significativa vantagem pois este eacute um escravo das suas proacuteprias armas e

depende sempre dos que estatildeo com ele sendo-lhe mais difiacutecil evitar a morte se os que o

rodeiam fugirem cobardemente (vv 190-194) No entanto como observa Carlos

Ferreira ldquoNatildeo deixa por isso de existir alguma ironia no facto de Anfitriatildeo o defensor

da solidariedade e paradigma dos valores comunitaacuterios rejeitar o escudo e os hoplitas e

por conseguinte a comunidade como um todo enquanto Lico o usurpador defende o

hoplita e os valores que ele simbolizardquo14

Tambeacutem os trabalhos de Heacuteracles representam a individualidade do heroacutei porque

os concluiu sozinho Natildeo deixa contudo de ser sarcaacutestica a situaccedilatildeo da personagem

apesar de lutar sozinho dedicou-se sempre ao bem da humanidade (reduzida em

Euriacutepides a Tebas e agrave Heacutelade) mas quando a famiacutelia mais precisou de ajuda nenhum

dos povos que por ele foram auxiliados lhe prestou apoio (vv 217-226)

Por oposiccedilatildeo a este individualismo satildeo representaccedilotildees da colectividade o Coro e

Teseu No paacuterodo os anciatildeos do Coro entram apoiando-se mutuamente Caminham em

grupo ajudando-se e recordando os momentos em que combateram juntos (vv 127-

229) O valor que representava a colectividade que se alia ao valor da amizade tem 13 lsquoele apenas mostrou aparecircncia de coragem na luta contra as feras sem se distinguir minimamente nos restantes trabalhos ele nunca transportou um escudo no braccedilo esquerdo nem defrontou a lanccedila mas tendo o arco e flechas a mais fraca das armas estava sempre prestes a fugir A prova da coragem do guerreiro natildeo estaacute no arco mas corajoso eacute aquele que permanecendo de peacute firme aguarda sem desviar os olhos o campo em movimento das lanccedilas marchando ordenadamente com as suas tropasrsquo 14 Carlos Ferreira Santos Euriacutepides Heacuteracles Introduccedilatildeo Traduccedilatildeo e Notas 36

99

nestes versos o seu sentido Os velhos companheiros de armas de Anfitriatildeo aproximam-

-se do palaacutecio de Heacuteracles por amizade para com ele pois o terem combatido juntos

traduz-se agora nos laccedilos fortes com que esse sentimento os une

Teseu representa a expressatildeo maacutexima da noccedilatildeo de colectividade Tomando

conhecimento do perigo em que a famiacutelia de Heacuteracles se encontrava dirige-se a Tebas

com um grupo de hoplitas atenienses para auxiliar o amigo (vv 1164-1172) Este

aspecto contrasta por completo com o que Anfitriatildeo proclamou no Primeiro Episoacutedio

Haacute pois uma nova mutaccedilatildeo do elogio do arco passa-se ao elogio da lanccedila do

individualismo do archeiro passamos para o colectivismo do hoplita Heacuteracles que era a

representaccedilatildeo maacutexima desse individualismo usou o arco e as flechas para matar a sua

famiacutelia Teseu por extensatildeo o hoplita consegue salvar o heroacutei dissuadindo-o de se

suicidar

14 Solidatildeo e Amizade

A antiacutetese solidatildeo vs amizade eacute um τόπος senatildeo o mais importante pelo menos

dos essenciais para a compreensatildeo da trama da trageacutedia Permite constituir dois grupos

de personagens as que estatildeo de algum modo isoladas solitaacuterias e as que simbolizam a

amizade No primeiro grupo incluiacutemos Anfitriatildeo Meacutegara e Heacuteracles no segundo o

Coro e Teseu

Anfitriatildeo e Meacutegara natildeo vecircem na amizade qualquer porto de abrigo que os possa

salvar estatildeo completamente soacutes Natildeo podem contar com o auxiacutelio muacutetuo porque

Anfitriatildeo natildeo passa de um anciatildeo sem forccedilas οὐδὲν ὄντα πλὴν γλώσσης ψόφον (v

229)15 e Meacutegara eacute uma mulher logo eacute um ser indefeso

Heacuteracles eacute protoacutetipo do heroacutei solitaacuterio que natildeo tem um lugar estaacutevel ndash passa

grande parte do seu tempo a deambular pelo orbe Tendo como objectivo das suas

deambulaccedilotildees o pacificar o mundo Heacuteracles estranha a ausecircncia de amigos no

momento da desgraccedila (v 558) principalmente por tudo o que fez por Tebas microάχας δὲ

Μινυῶν ἃς ἔτλην ἀπέπτυσαν (v 560)16 Eacute a revolta resultante do abandono dos amigos

(ou dos falsos amigos) que o leva a pensar numa vinganccedila

15 lsquonada mais sou do que um ruiacutedo de palavrasrsquo 16 lsquoE ateacute as difiacuteceis vitoacuterias sobre os Miacutenios foram capazes de esquecerrsquo

100

ἐγὼ δέ νῦν γὰρ τῆς ἐmicroῆς ἔργον χερός πρῶτον μὲν εἶμι καὶ κατασκάψω δόμους καινῶν τυράννων κρᾶτα δrsquo ἀνόσιον τεμὼν ῥίψω κυνῶν ἕλκημα Καδμείων δrsquo ὅσους κακοὺς ἐφηῦρον εὖ παθόντας ἐξ ἐμοῦ τῷ καλλινίκῷ τῷδrsquo ὅπλῳ χειρώσομαι τοὺς δὲ πτερωτοῖς διαφορῶν τοξεύμασιν νεκρῶν ἅπαντrsquo lsquoΙσμηνὸν ἐμπλήσω φόνου Δίρκης τε νᾶμα λευκὸν αἱμαχθήσεται17 (vv 565-573)

Os adveacuterbios (v 565 νῦν v 566 πρῶτον) e a assonacircncia em e (v 565) denotam

o desejo de vinganccedila imediata que seraacute num futuro breve (v 566 εἶμι κατασκάψω v

568 ῥίψω v 570 χειρώσομαι v 572 ἐμπλήσω v 573 αἱμαχθήσεται) e que promete

ser violenta (vv 572-573)

Os vv 562-582 tecircm merecido diversas criacuteticas Schmid18 por exemplo

considera excessiva a atitude do heroacutei em querer vingar-se de todos os cidadatildeos que se

recusaram a ajudar os Heraclidas Bond entende que satildeo justificadas as acccedilotildees do

protagonista19 Pela nossa parte considerariacuteamos a posiccedilatildeo do heroacutei adequada ao punir

os iacutempios e mesmo ao usar como recurso a violecircncia (caracteriacutestica que lhe eacute inerente)

se essa violecircncia natildeo fosse levada ao extremo manifestando-se no desejo de inundar o

rio de cadaacuteveres e de fazer jorrar da fonte sangue dos Tebanos20 Eacute neste ponto que

entendemos o heroacutei como efectivamente excessivo Aleacutem disso se esta fosse uma

situaccedilatildeo normal e aceitaacutevel Anfitriatildeo natildeo teria apelado para a moderaccedilatildeo do

protagonista (v 586 ἀλλὰ microὴ πείγου λίαν21 nem teria o cuidado de dissuadir o filho

deste intento e muito menos o Alcida aceitaria o conselho paterno (vv 606-609)

A forccedila violenta ndash expressa nestes versos em assonacircncias de oclusivas ndash que

Heacuteracles pretende usar seraacute a mesma que utilizaraacute para matar os filhos Se no primeiro 17 lsquoEacute que eu ndash pois agora chegou a vez de o meu braccedilo actuar ndash antes de mais vou partir e vou devastar completamente o palaacutecio desse novo soberano e depois de degolar a sua iacutempia cabeccedila lanccedilaacute-la-ei como alimento aos catildees E aqueles Cadmeus que tendo recebido de mim benefiacutecios eu considerar ingratos subjugaacute-los-ei com esta arma vencedora e trespassando os outros com as minhas flechas aladas inundarei todo o Ismeno de cadaacuteveres e ensanguentarei as liacutempidas aacuteguas de Dircersquo 18 Apud Bond 206-207 19 Bond 206 ldquoHeraclesrsquo plans are reasonable by fifth-century let alone heroic standardsrdquo O mesmo autor justifica esta ideia com o exemplo de Ulisses no contexto do massacre dos pretendentes de Peneacutelope ldquoThere is a good precedent in the hanging of Odysseusrsquo faithless handmaidens (Od 22 465 ff) and such revenge conforms to the traditions of fifth-century στάσις Platea Corcyra and Melos suffered similar massacres the Athenian decree to kill all adult males in Mytilene was more brutal since it was not selective (Thuc 3 362)rdquo 20 Este episoacutedio lembra a luta entre Aquiles e o rio Escamandro A causa do confronto foi a intoleracircncia do rio em natildeo suportar mais o excesso do heroacutei que estava a encher o caudal com cadaacuteveres de guerreiros troianos (vide Homero Ilias 21214-221) 21 lsquoMas cautela com as precitipaccedilotildeesrsquo

101

caso haacute quem possa consideraacute-la como natildeo excessiva no segundo exemplo eacute criticada

como veremos oportunamente

15 Outras caracteriacutesticas na construccedilatildeo heroacutei

Aleacutem dos toacutepicos que foram sendo apontados haacute outros de natildeo menor

importacircncia que caracterizam directamente Heacuteracles o amor filial e paternal a

excelecircncia do heroacutei que o torna famoso ele eacute ainda visto como o pacificador do orbe o

salvador (chega ao palaacutecio no momento crucial para salvar a famiacutelia) e o civilizador

(castiga os tiranos que natildeo respeitam os deuses)

Quanto ao primeiro ponto Anfitriatildeo eacute a primeira personagem que salienta o

amor de Heacuteracles pela sua famiacutelia pois abandonou Tebas em direcccedilatildeo a Argos para

oferecer os seus serviccedilos a Euristeu em troca do regresso de Anfitriatildeo seu pai agrave terra

natal (vv 18-20) A este altruiacutesmo que parece ser uma caracteriacutestica estruturante do

heroacutei Anfitriatildeo acrescenta em alternativa outras duas razotildees que teratildeo levado Heacuteracles

a oferecer-se a Euristeu ou foi obrigado por Hera ou pela forccedila do Destino

Ao anexar ao toacutepico da ldquodevoccedilatildeo filialrdquo outros dois motivos Anfitriatildeo alude

como indica Carlos Ferreira Santos ldquoagrave tradicional inimizade de Hera e ao terriacutevel

destino (vv 20-21) motivos jaacute associados em Il 18119 o que pode demonstrar que o

motivo do auxiacutelio a Anfitriatildeo como uacutenico justificativo para a execuccedilatildeo dos trabalhos

natildeo era um dos elementos mais difundidos do mitordquo22 Natildeo eacute expliacutecita a intenccedilatildeo do

autor dramaacutetico ao apresentar opccedilotildees que validem a concretizaccedilatildeo dos trabalhos e no

decorrer da acccedilatildeo natildeo haacute uma concreta e definiva resposta

Esta eacute uma questatildeo que persiste e parece que natildeo haacute uma resposta plausiacutevel

Segundo Bond

Of the explanations distinguished by Preller-Robert 428 ff (a) Euripidesrsquos version here perhaps invented to represent Heracles as a dutiful son does not account for those labours which were not civilizing (b) the story implied by Apollod Bibl 2 4 12 that the labours were expiation for Heraclesrsquos killing of his children is clearly not relevant to HF (c) Zeusrsquo oath which established Eurystheus in power (Il 19 100 ff) does not suffice to account for the labours and Heraclesrsquo servitude (d) the hope of immortality (Theocr 24 82) looks

22 Carlos Ferreira Santos Euriacutepides Heacuteracles Introduccedilatildeo Traduccedilatildeo e Notas 24

102

like a post-classical mystic interpretation though Preller-Robert remark that several labours or deeds of Heracles imply the conquest of death Cerberus Alcestis the Golden Apples the marriage with Hebe23

A nosso ver haacute trecircs interpretaccedilotildees possiacuteveis que remetem para trecircs pontos de

vista diferentes

1 Heacuteracles procura Euristeu e oferece-se para libertar a humanidade dos medos

que a perseguem matando os monstros que assolavam a terra para que em troca

Anfitriatildeo pudesse regressar a Argos (vv 13-20)

2 Hera obriga Heacuteracles por meio de aguilhotildees (natildeo sabemos que geacutenero de

aguilhotildees eram esses) a submeter-se agraves ordens de Euristeu (vv 20-21)

3 O Destino ditou que Heacuteracles teria de realizar doze trabalhos por ordem de

Euristeu (v 21)

O primeiro ponto reforccedila a imagem de um heroacutei de excelentes qualidades que o

Coro tanto exalta nos trecircs primeiros estaacutesimos (vv 348-435 vv 639-700 vv 735-814)

e enquadra-se perfeitamente no objectivo das duas primeiras partes da trageacutedia o de

demonstrar que Heacuteracles eacute o pacificador o libertador o protector e o civilizador que

vem repor a ordem em Tebas Jaacute os outros dois pontos natildeo tecircm qualquer relevacircncia

nessas duas primeiras partes da trageacutedia uma vez que natildeo haacute qualquer referecircncia a uma

ligaccedilatildeo entre Hera e Heacuteracles ou entre Destino e Heacuteracles

Eacute na terceira e quarta partes que estes uacuteltimos aspectos ganham importacircncia

Relativamente ao segundo ponto em particular no quinto episoacutedio na cena da loucura

Heacuteracles recorda a ira de Hera que o persegue desde o dia em que nasceu (vv 1262-

1310 1392-1393) O nome da deusa eacute constantemente evocado natildeo soacute pelo heroacutei como

por Teseu (v 1186) No v 1127 Anfitriatildeo acusa Hera de ter enlouquecido o Alcida

mas depois revela natildeo ter tanta certeza na participaccedilatildeo de alguma divindade no crime do

filho (v 1135) Note-se que Anfitriatildeo tem todavia desconhecimento total do

aparecimento das deusas Iacuteris e Lissa sobre o telhado do palaacutecio Logo ele desconhece a

autoria divina da loucura do Alcida

Sob o terceiro ponto de vista as acccedilotildees de Heacuteracles satildeo controladas pelo

Destino Esta eacute a perspectiva da divindade Iacuteris afirma que o Destino e Zeus natildeo

permitiam que ela e Hera causassem algum dano ao heroacutei enquanto este natildeo concluiacutesse

os trabalhos No entanto se foi autoria do Destino o cumprimento desses trabalhos 23 Bond 68

103

continuamos sem saber quais satildeo os antecedentes que levaram o heroacutei a assumir esse

Destino Poderaacute estar subjacente a ideia de que se Heacuteracles cumprisse os trabalhos

receberia como recompensa a imortalidade embora a tal natildeo haja qualquer alusatildeo na

trageacutedia

Cada uma das perspectivas apresentadas conduz o leitor a uma interpretaccedilatildeo

diferente Parece-nos que Euriacutepides tomou as diversas tradiccedilotildees mitoloacutegicas e lhes deu

uma nova perspectiva Para os homens satildeo os deuses a causa de tanto sofrimento de

Heacuteracles Os deuses remetem para a funccedilatildeo do Destino Maria de Faacutetima Sousa e Silva

afirma que ldquoA Euriacutepides pouco importa discernir a origem do sofrimento humano ou

tentar explicaacute-la para ele conta apenas que o homem sofre e por isso eacute digno de

piedaderdquo24

A problemaacutetica da funccedilatildeo que os deuses25 e o Destino desempenham na vida

humana eacute frequente nas peccedilas de Euriacutepides em especial no Heracles No que diz

respeito ao Destino Meacutegara sente que a τύχη obriga a sua famiacutelia a morrer (vv 282-

283 vv 309-311 vv 456-457 vv 480-482)

No jogo entre estas diferentes perspectivas talvez possamos descortinar a um

tempo a concepccedilatildeo que os Gregos tinham dos seus deuses e a concepccedilatildeo dos sofistas

Como sugere Fritz Graf

The Euripidean critique of myths about the gods begins with the same objection the gods as traditionally represented are far too crassly anthropomorphic This objection was not new A century earlier Xenophanes of Colophon had complained that Homer and Hesiod attributed to the gods ldquoall that is shameful and disgraceful among men they steal commit adultery and deceive one anotherrdquo (DK 21 B 11 cf chapter 8)26

Ainda no acircmbito do toacutepico sobre o afecto familiar haacute que lembrar o discurso de

Meacutegara no proacutelogo quando ela descrevendo uma situaccedilatildeo da vida diaacuteria recorda os

laccedilos fortes que unem os filhos ao pai mal ouvem o som de abertura de uma porta

ficam expectantes por julgarem que eacute o pai que estaacute a chegar (τῷ νέῳ δrsquo ἐσφαλμένοι

24 Maria de Faacutetima Sousa e Silva Criacutetica Literaacuteria na Comeacutedia Grega Geacutenero Dramaacutetico 227 25 Sobre este ponto ver Capiacutetulo I aliacutenea 12 26 Fritz Graf Greek Mythology an Introduction trad Thomas Marier (Baltimor Londres Johns Hopkins University Press 1996) 169-170

104

ζητοῦσι τὸν τεκόντrsquo ἐγὼ δὲ διαφέρω λόγοισι μυθεύουσα θαυμάζων δrsquo ὅταν πύλαι

ψοφῶσι πᾶς ἀνίστησιν πόδα ὡς πρὸς πατρῷον προσπεσούμενοι γόνυ27)

O afecto do Alcida pela famiacutelia eacute uma caracteriacutestica fundamental na trageacutedia de

Euriacutepides e natildeo teraacute qualquer repercussatildeo em Seacuteneca O discurso de Meacutegara momento

de elevado teor dramaacutetico em que ela descreve as reacccedilotildees dos filhos agrave ausecircncia do

Alcida revela a estreita relaccedilatildeo entre Heacuteracles e os filhos e a uniatildeo muito proacutexima e

afectiva entre Heacuteracles e Meacutegara28 Eacute o seu zelo pelos que lhe satildeo proacuteximos que leva o

heroacutei antes de entregar Ceacuterbero a Euristeu a regressar a Tebas porque pressente que

Anfitriatildeo Meacutegara e os filhos correm perigo (vv 595-598)

Este sentimento que nutre pelos filhos leva-o a considerar que os trabalhos que

conclui em nada se comparam ao de proteger os seus filhos

χαιρόντων πόνοι microάτην γὰρ αὐτοὺς τῶνδε μᾶλλον ἤνυσα καὶ δεῖ microrsquo ὑπὲρ τῶνδrsquo εἴπερ οἴδrsquo ὑπὲρ πατρός θνῄσκειν ἀmicroύνοντrsquo ἢ τί φήσομεν καλὸν ὕδραι μὲν ἐλθεῖν ἐς μάχην λέοντί τε Εὐρυσθέως πομπαῖσι τῶν δrsquo ἐmicroῶν τέκνων οὐκ ἐκπονήσω θάνατον οὐκ ἄρrsquo lsquoΗρακλῆς ὁ καλλίνικος ὡς πάροιθε λέξομαι29

(vv 575-582)

Nesta cena o protagonista assume-se como o defensor da sua famiacutelia E a sua

gloacuteria jaacute natildeo reside nos feitos passados mas sim em manter a seguranccedila dos seus ndash a

iteraccedilatildeo da preposiccedilatildeo ὑπὲρ (v 577) a estabelecer um paralelo entre os filhos e

Heacuteracles intensifica a necessidade do heroacutei em salvaacute-los Esta eacute a mais dura prova que

teraacute que enfrentar mesmo que essa prova implique perder a vida30 Reconhece a sua

funccedilatildeo comparando-se a um navio que transporta os pequenos barcos consigo para

protegecirc-los (vv 631-633) O siacutemile acentua a ironia traacutegica a protecccedilatildeo que Heacuteracles

27 vv 75-79 lsquoEnquanto na sua acircnsia juvenil procuravam o seu progenitor eu contando-lhes histoacuterias iludia-os com palavras Expectantes quando a porta faz algum ruiacutedo levantam-se como se aos peacutes do proacuteprio pai se fossem prostrarrsquo 28 Um outro exemplo que comprova este aspecto eacute apresentado no terceiro episoacutedio no momento de abertura quando Meacutegara relembra o passado venturoso em que pai e matildee planearam a vida dos trecircs filhos oferecendo a cada um paiacutes para governarem e escolhendo-lhes como esposas princesas oriundas das trecircs principais πόλεις 29 lsquoEsqueccedilo os meus trabalhos Foram pouca coisa quando comparados com as tarefas presentes Eacute meu dever defender estas crianccedilas ainda que agrave custa da minha vida uma vez que elas estavam dispostas a morrer pelo pai Seraacute que me poderei vangloriar de ter combatido a hidra e o leatildeo a pedido de Euristeu se natildeo afastar a ameaccedila de morte dos meus filhos Jamais serei considerado Heacuteracles o vitorioso tal como outrorarsquo 30 Neste passo momento de densidade pateacutetica eacute expressiva a ironia traacutegica

105

pretendia assegurar agrave famiacutelia com a sua chegada tal como um navio que protege os

pequenos botes acabou por revelar ser a sua ruiacutena uma vez que o heroacutei eacute subjugado

pela loucura divina31 O sofrimento que adveacutem da morte dos filhos traduz-se num dos

momentos mais intensos nesta trageacutedia e levou criacuteticos como Andreacute Rivier a

consideraacute-lo como ldquodu type de perfection qui met hors de pair Hippolyte et Meacutedeacuteerdquo32

O filiciacutedio e o uxoriciacutedio atingem deste modo a ἀκμή em termos de ironia traacutegica

principalmente porque Heacuteracles natildeo se considera culpado (v 1310) mas toma o seu

acto como involuntaacuterio sabendo-se domado pelas Eriacutenias (v 1364)

16 Manifestaccedilatildeo da loucura de Heacuteracles

A loucura de Heacuteracles eacute progressiva e tem lugar a partir da segunda parte O

tema33 eacute apresentado pelas deusas Iacuteris e Lissa O diaacutelogo entre elas permite dar uma

primeira imagem da mutaccedilatildeo do estado psicoloacutegico do protagonista que comeccedila a ter os

primeiros sintomas de uma perturbaccedilatildeo mental Numa primeira parte Lissa descreve a

forma como vai provocar-lhe a loucura

οὔτε πόντος οὕτω κύμασι στένων λάβρoς οὔτε γῆς σεισμὸς κεραυνοῦ τ᾽ οἶστρος ὠδῖνας πνέων οἷ᾽ ἐγὼ στάδια δραμοῦμαι στέρνον εἰς Ἡρακλέους∙ καὶ καταρρήξω microέλαθρα καὶ δόμους ἐπεμβαλῶ τέκν᾽ ἀποκτείνασα πρῶτον ὁ δὲ κανὼν οὐκ εἴσεται παῖδας οὓς ἔτικτεν ἐναίρων πρὶν ἂν ἐmicroὰς λύσσας ἀφῇ34 (vv 861-866)

31 Nos versos 1423-1424 o heroacutei καλλίνικος volta a usar metaacuteforas nauacuteticas para representar a sua actual dependecircncia relativamente a Teseu ἡμεῖς δrsquo ἀναλώσαντες αἰσχύναις δόμον Θησεῖ πανώλεις ἑψόμεσθrsquo ἐφολκίδες [lsquoE eu tendo arruinado com actos desonrosos a minha casa completamente destruiacutedo seguirei Teseu qual batel rebocado por uma naursquo] 32 Andreacute Rivier Essai sur le tragique drsquo Euripide 100 33 A questatildeo da loucura de Heacuteracles tem sido motivo de sucessivas discussotildees levando como indica Thalia Papadopoulou Heracles and Euripidean Tragedy (Cambridge Cambridge University Press 2005) 3 a diversas e contraditoacuterias conclusotildees ldquothe Euripidean Heracles has been viewed at one extreme as an essentially flawed figure and at the other as an idealized characterrdquo De facto haacute autores que consideram que a entrada de Heacuteracles em cena indicia desde logo a sua loucura (como eacute o caso de Willamowitz) No entanto pensamos ser objectivo do tragedioacutegrafo o de representar em Heacuteracles uma natureza por si proacutepria excessiva habituado a lutar contra monstros e contra homens crueacuteis dissipa a violecircncia do mundo usando os mesmos meios isto eacute por meio de uma forccedila impetuosa 34 lsquoNem o mar impetuoso gemendo com as suas ondas nem o tremor de terra ou a fuacuteria do relacircmpago soprando agonias seratildeo tatildeo violentos como a corrida que eu vou encetar contra o peito de Heacuteracles Destruirei o tecto e lanccedilarei por terra a sua casa depois de matar os seus filhos Mas o assassino natildeo saberaacute que estaacute a matar os filhos que gerou antes de se libertar dos meus furoresrsquo

106

A actuaccedilatildeo do δαίμων promete ser forte e destruidora tanto sob o ponto de vista

fiacutesico como sob o psicoloacutegico Os elementos da natureza evocados ndash a forccedila do mar o

terramoto e a imagem da forccedila arrasadora de um meteorito acentuados pela iteraccedilatildeo do

adveacuterbio de negaccedilatildeo ndash demonstram a forccedila violenta com que Lissa pretende atacar

Heacuteracles A destruiccedilatildeo da casa do heroacutei seraacute completa com a morte dos filhos35 e com a

queda do telhado36

De um futuro que estaacute prestes a eclodir Lissa passa para o presente Heacuteracles jaacute

eacute viacutetima dos seus aguilhotildees Satildeo delineados os primeiros traccedilos que caracterizam a

loucura do heroacutei

ἢν ἰδού∙ καὶ δὴ τινάσσει κρᾶτα βαλβίδων ἄπο καὶ διαστρόφους ἑλίσσει σῖγα γοργωποὺς κόρας ἀμπνοὰς δ᾽ οὐ σωφρονίζει ταῦρος ὣς ἐς ἐμβολὴν δεινὰ μυκᾶται δέ Κῆρας ἀνακαλῶ τὰς Ταρτάρου τάχα σ᾽ ἐγὼ microᾶλλον χορεύσω καὶ καταυλήσω φόβῳ37

(vv 867-872)

Estes sintomas satildeo apresentados por Lissa a Iacuteris ao Coro e aos espectadores (o

estremecer da cabeccedila38 a alteraccedilatildeo de um olhar que indicia o comeccedilo da demecircncia da

personagem a respiraccedilatildeo desenfreada e semelhante agrave de um touro prestes a atacar

algueacutem) sintomas cuja enumeraccedilatildeo o Mensageiro completaraacute quando entrar em cena39

O Mensageiro recupera as falas de outras personagens que decorreram antes e durante o

acto de loucura de Heacuteracles natildeo soacute no diaacutelogo entre Iacuteris e Lissa (principalmente as do

passo que acabaacutemos de transcrever) mas tambeacutem os lamentos de Anfitriatildeo e do Coro

De facto o diaacutelogo entre as deusas Iacuteris e Lissa permitiu ao Coro e ao puacuteblico

tomar conhecimento de modo preliminar dos acontecimentos que decorreratildeo no quarto

e quinto episoacutedios As deusas Hera e Iacuteris servem-se da loucura para se vingarem de

Heacuteracles e o castigo consiste em matar os seus proacuteprios filhos Por sua vez o Coro vai

entoando um lamento agrave nova mudanccedila da fortuna e em simultacircneo imagina o heroacutei

numa danccedila freneacutetica qual bacante com a diferenccedila de que natildeo estaacute num ritual baacutequico 35 Destruiccedilatildeo da casa sob o ponto de vista psicoloacutegico 36 Destruiccedilatildeo fiacutesica da casa 37 lsquoPrestem atenccedilatildeo Eis que ele agita a cabeccedila no iniacutecio da sua investida em silecircncio revira os olhos retorcidos e terrificantes natildeo controla a respiraccedilatildeo e como um touro pronto para o assalto muge perigosamente invocando as Ceres do Taacutertaro para que de forma raacutepida e com ruidosa fuacuteria o acompanhem como os catildees acampanham o caccediladorrsquo 38 Segundo Bond 292 τινάσσει κρᾶτα eacute por si um sinal de que a loucura estaacute iminente 39 O Mensageiro entra no IV episoacutedio Eacute representado por um dos servos de Heacuteracles que narra com uma certa extensatildeo (cerca de 93 vv) os uacuteltimos acontecimentos ocorridos num espaccedilo extraceacutenico dentro do palaacutecio Todo o discurso desta personagem marca uma pausa no decorrer da acccedilatildeo

107

A metaacutefora torna visiacutevel a imagem do estado psicoloacutegico do Alcida Aos gemidos e

frases soltas que Anfitriatildeo vai proferindo dentro do palaacutecio o Coro responde com aquilo

que supotildee estar a acontecer a perseguiccedilatildeo e a morte das crianccedilas

O aparecimento do Mensageiro (vv 910-1015) retoma os toacutepicos da demecircncia e

do filiciacutedio A personagem narra a morte de cada um dos filhos do protagonista e da sua

mulher Eacute tambeacutem por ele que sabemos que Anfitriatildeo escapa ao massacre mercecirc da

intervenccedilatildeo de Atena que trava o Alcida com uma pedra adormecendo-o O discurso

do Mensageiro termina com a queda fiacutesica do heroacutei queda essa que se traduz na

destruiccedilatildeo da sua casa a niacutevel fiacutesico40 mas igualmente psicoloacutegico Esta narrativa

permite observar dois aspectos uma nova descriccedilatildeo41 dos sintomas da loucura ndash a sua

evoluccedilatildeo e consequecircncias ndash e a representaccedilatildeo do lado mais humano da personagem que

acorda para uma realidade que o deixa vulneraacutevel

No que diz respeito ao primeiro ponto e primeiro estaacutedio de loucura os indiacutecios

satildeo

- uma suacutebita paragem e silecircncio de Heacuteracles assim como a sua hesitaccedilatildeo

contrastam com o olhar expectante dos que o circundam e esperam que o heroacutei

concretize o sacrifiacutecio (vv 929-931)

- reviravolta do olhar (v 932)

- os olhos injectados (v 933)

- espuma que goteja da boca (v 934)

40 Esta ruiacutena tambeacutem apontada por Lissa eacute visualizada pelo Coro e por Anfitriatildeo Este acusa Palas Atena de ser a autora da queda do telhado O Mensageiro tambeacutem recupera a ideia da destruiccedilatildeo do palaacutecio Segundo Bond 320-321 o derrubar fiacutesico do palaacutecio natildeo deve ser considerado como da autoria de Heacuteracles (o heroacutei destroacutei apenas as portas quando persegue Meacutegara e o uacuteltimo filho) nem de Palas Atena que lanccedila uma pedra contra o peito do Alcida adormecendo-o ndash o heroacutei eacute projectado contra o pilar que jaacute tinha caiacutedo quando o telhado desabara O Mensageiro natildeo alude ao terramoto que Lissa tinha prometido desencadear devastando por completo toda a casa heraclida natildeo havendo uma correspondecircncia directa entre os relatos das duas personagens Acrescenta ainda o mesmo autor que todas estas micro-acccedilotildees satildeo sequenciais Acontecem pela seguinte ordem e num curto espaccedilo de tempo derrubar das portas por Heacuteracles derrube do telhado projecccedilatildeo de Heacuteracles contra o pilar 41 No que diz respeito agrave descriccedilatildeo que cada uma das personagens faz da loucura de Heacuteracles podemos distinguir trecircs diferentes formas - vv 867-874 descriccedilatildeo de fora para fora mas com conhecimento pleno do que acontece dentro do palaacutecio o decliacutenio da razatildeo do heroacutei eacute observado de cima do palaacutecio por Lissa que estando no exterior descreve a Iacuteris aquilo que estaacute a acontecer dentro da casa (no momento presente) - vv 886-909 descriccedilatildeo de fora para fora mas sem conhecimento real do que se estaacute a desenrolar dentro do palaacutecio o Coro sabe que Heacuteracles vai enlouquecer e matar os filhos mas natildeo vecirc simplesmente especula sobre o que poderaacute estar a decorrer dentro dos muros - vv 922-1015 descriccedilatildeo de dentro para fora o Mensageiro presenciou toda a cena desde o momento em que Heacuteracles fica transtornado A enumeraccedilatildeo das perturbaccedilotildees fiacutesicas aliadas ao comportamento do protagonista concorre para a isotopia da loucura O discurso desta personagem eacute mais extenso do que o das anteriores e narra acontecimentos que decorreram momentos antes

108

- riso histeacuterico (v 935)

Estas manifestaccedilotildees fiacutesicas os sintomas que o Mensageiro apresenta estatildeo de

algum modo em sintonia com as que Lissa delineou anteriormente e que vimos supra

complementando-se

Numa primeira fase Heacuteracles dirige-se a Anfitriatildeo e reconhece-o como pai Eacute a

este que o heroacutei conta o que pretende fazer antes de terminar o sacrifiacutecio purificando-se

da mancha do crime Heacuteracles quer vingar-se de Euristeu42 talvez por este ter sido o

mandante de tatildeo penosos trabalhos pelo que comeccedila a imaginar a sua viagem em

direcccedilatildeo a Micenas descrevendo as peripeacutecias que visualiza na sua mente perturbada

- sobe para um carro invisiacutevel (vv 947-949)

- afirma que chegou junto de Niso quando natildeo abandonou o interior da sua casa

O percurso imaginaacuterio que fez ateacute chegar agrave cidade concretizou-se num trajecto

percorrido dentro do palaacutecio (vv 953-955)

- prepara um banquete inexistente (vv 955-957)

- luta contra um adversaacuterio apenas visiacutevel para ele proacuteprio e proclama-se

vencedor de ningueacutem (vv 959-963)

- a sua aproximaccedilatildeo imaginaacuteria de Micenas (vv 963 e ss) representa a evoluccedilatildeo

do estaacutedio de loucura ele natildeo reconhece Anfitriatildeo (vv 964-971) quando este lhe toca

e julga ver diante de si o pai de Euristeu (vv 967-969) Este ponto permite a passagem

da revelaccedilatildeo da demecircncia de Heacuteracles para a narraccedilatildeo da perseguiccedilatildeo e morte dos seus

filhos e de Meacutegara julgando estar a arruinar a casa do seu inimigo ao matar os παῖδες

deste

Apenas Atena segundo o Mensageiro consegue parar Heacuteracles

ἀλλ᾽ ἦλθεν εἰκών ὡς ὁρᾶν ἐφαίνετο Παλλάς κραδαίνουσ᾽ ἔγχος dagger ἐπὶ λόφῳ κέαρ dagger κἄρριψε πέτρον στέρνον εἰς Ἡρακλέους ὅς νιν φόνου μαργῶντος ἔσχε κἀς ὕπνον καθῆκε∙ πίτνει δ᾽ ἐς πέδον πρὸς κίονα νῶτον πατάξας ὃς πεσήμασι στέγης διχορραγὴς ἔκειτο κρηπίδων ἔπι43 (vv 1002-1008)

42 Como diz Bond 310 ldquoHeracles suffers from megalomaniac delusions that he can break down the walls of Mycenae (943-6)rdquo 43 lsquoDepois galopa para matar o velho Mas eis que apareceu um fantasma em que se reconhecia Palas que com o seu coraccedilatildeo salviacutefico + brande a lanccedila e contra o peito de Heacuteracles atira uma pedra que o afasta da sua loucura sanguinaacuteria e o lanccedila num sono profundo Ele cai por terra batendo com o dorso numa coluna que com o desabar do tecto jazia partida em dois sobre a sua basersquo

109

A intervenccedilatildeo das deusas nos momentos anterior e posterior agrave loucura de

Heacuteracles deixa algumas reservas relativamente ao protagonista Se antes ele era

considerado um heroacutei de excelentes qualidades agora satildeo os seus defeitos que

sobressaem violecircncia e imoderaccedilatildeo Estas caracteriacutesticas que sempre foram apanaacutegio

da personagem uma vez que teve de lutar contra monstros e contra seres humanos

crueacuteis e que natildeo eram postas em causa por nenhuma das personagens da trageacutedia44 satildeo

agora questionadas pelo facto de terem sido usadas para matar a famiacutelia

A dupla presenccedila de divindades em especial o aparecimento suacutebito de Atena

determina o excesso do protagonista que vai aleacutem da proacutepria vontade das deusas A

morte dos filhos tem efectivamente a autoria de Lissa obrigada por Iacuteris e Hera mas o

assassiacutenio de Meacutegara tem um soacute autor Heacuteracles que ainda prepara uma uacuteltima ofensiva

contra Anfitriatildeo Atena tem de intervir para pocircr um freio ao heroacutei antes que ele cometa

um acto ainda mais reprovaacutevel e por isso o adormece

O discurso do Mensageiro termina com uma uacuteltima descriccedilatildeo do estado de

Heacuteracles tendo ele adormecido os servos e Anfitriatildeo ataram-no a um pilar para que

ele ao acordar natildeo continuasse a sua perseguiccedilatildeo O sono do heroacutei caracteriza-se por

um adormecimento perturbado ὕπνον οὐκ εὐδαίμονα (v 1013)45

O sono aparece em algumas das peccedilas euripidianos como forma de

esquecimento dos actos dos protagonistas como acontece por exemplo em Orestes46

Neste caso o heroacutei sofre de perturbaccedilotildees mais graves em particular de amneacutesia que

decorrem da mutaccedilatildeo entre um estado normal e um estado de demecircncia No Heracles

este toacutepico aparece quando Anfitriatildeo entra em cena Heacuteracles estaacute por um lado sob o

domiacutenio do sono calmo e profundo (vv 1049-1051) mas por outro de um sono funesto

(vv 1061-1062)

O despertar do heroacutei caracteriza-se por ser um acordar lento para a realidade que

o circunda

ἔπνους microέν εἰμι καὶ δέδορχrsquo ἅπερ μὲ δεῖ αἰθέρα τε καὶ γῆν τόξα θrsquo ἡλίου τάδε ὡς ltδrsquogt ἐν κλύδωνι καὶ φρενῶν ταράγματι

44 Grande parte das personagens da trageacutedia (agrave excepccedilatildeo de Lico Iacuteris e indirectamente Hera) tecircm uma admiraccedilatildeo especial por Heacuteracles motivada pelas suas faccedilanhas que tinham como finalidade o bem da humanidade e em particular da sua famiacutelia 45 lsquoum sono que natildeo eacute de felicidadersquo 46 Vide Euriacutepides Orestes 211-306

110

πέπτωκα δεινῷ καὶ πνοὰς θερμὰς πνέω μετάρσιrsquo οὐ βέβαια πλευμόνων ἄπο47

(vv 1089-1093)

O heroacutei vai descrevendo o que vecirc Sentem-se oscilaccedilotildees no seu campo de visatildeo

do ceacuteu passa para a terra voltando a olhar para o eacuteter ndash Heacuteracles procura reconhecer o

espaccedilo que o envolve Num primeiro momento o contacto com o mundo que o rodeia

permite-lhe sentir que ainda respira mas desconhece o lugar onde jaz como tambeacutem

natildeo se recorda do que lhe aconteceu Tem apenas consciecircncia de que sofreu uma

alteraccedilatildeo mental da qual ainda sente vestiacutegios no seu acircnimo ndash esse conhecimento eacute

expresso por recurso ao poliptoto ἔπνους (v 1089) πνοάς (v 1092) πνέω (v 1092) em

consonacircncia com πλευμόνων48 (v 1093)

O Alcida natildeo entende porque estaacute amarrado tal como um barco (v 1094) nem

sequer consegue identificar os corpos que jazem agrave sua volta (vv 1094-1097) Recorda-

-se de que jaacute tinha abandonado o Hades mas natildeo consegue reconhecer o ambiente que o

rodeia (vv 1101-1105) A sensaccedilatildeo de desorientaccedilatildeo eacute completa o que demonstra que a

sua mente ainda natildeo estaacute totalmente liberta dos grilhotildees da loucura

O processo de ἀναγνώρισις eacute lento e o heroacutei precisa do auxiacutelio de Anfitriatildeo

uacutenica personagem que o Alcida reconhece para lhe desvendar tudo o que se passou (vv

1111-1112) Apoacutes ter descoberto a autoria do crime Heacuteracles vecirc num primeiro

momento no suiciacutedio a soluccedilatildeo para enfrentar a mutaccedilatildeo da fortuna (vv 1146-1153) ndash

atitude em que podemos encontrar eco no Ajax de Soacutefocles A intenccedilatildeo de suiciacutedio fica

suspensa com a chegada de Teseu (vv 1153-1154) mas logo eacute retomada quando os dois

dialogam (vv 1247-1310) Os argumentos de Heacuteracles satildeo

a) ele descende de um crime involuntaacuterio49 ndash culpa hereditaacuteria (vv 1258-1261)

b) Hera persegue Heacuteracles por ser descendente directo de Zeus ainda que o

heroacutei considere como pai verdadeiro Anfitriatildeo e negue ascendecircncia divina (vv 1262

ss)

c) filiciacutedio e uxoriciacutedio (vv 1279-1280) Heacuteracles sente que este crime foi o

uacuteltimo trabalho e o mais penoso de todos

47 lsquoAinda estou vivo e vejo como deve ser o ceacuteu a terra e estes raios de sol Senti-me como arrastado por uma vaga dominado por uma terriacutevel inquietaccedilatildeo de espiacuterito e dos meus pulmotildees sai uma respiraccedilatildeo ardente e ofegante a intervalos regularesrsquo 48 Esta forma aparece a par de πνεύμων 49 Haacute nestes versos uma repercussatildeo do que Anfitriatildeo disse no Proacutelogo (vv 16-17) e o Coro volta a lembrar aludindo talvez ao crime de Heacuteracles como expiaccedilatildeo de um outro mais antigo (vv 1078-1080) Anfitriatildeo tinha matado involuntariamente Eleacutectrion pai de Alcmena

111

d) natildeo pode habitar lugar algum nem Tebas nem Argos natildeo poderaacute entrar em

santuaacuterios ou festejar com amigos (vv 1281-1290) O seu discurso entra no domiacutenio da

hipeacuterbole ao considerar que a Terra natildeo lhe permitiraacute que a profane ao pisar o chatildeo

nem os mares ou os rios jamais o deixaratildeo navegar nas suas aacuteguas (vv 1295-1298)

No entanto porque encontra em Teseu um abrigo e a promessa de integraccedilatildeo em

Atenas opta por viver agrave margem do sofrimento tomando o suiciacutedio como atitude

proacutepria de um cobarde (vv 1347-1351) A diferenccedila entre o Aacutejax de Soacutefocles e o

Heacuteracles de Euriacutepides eacute abismal A concepccedilatildeo de vergonha (αἰδώς) estaacute presente nos

dois casos mas a forma como cada um resolve esse problema eacute diferente Para Aacutejax o

seu acto eacute imperdoaacutevel e resta-lhe apenas morrer para apagar a sua vergonha (o coacutedigo

de honra que lembra os Poemas Homeacutericos eacute marcante nesta personagem) Para

Heacuteracles seria motivo de αἰδώς se optasse pelo suiciacutedio uma vez que eacute o heroacutei de

gloriosos feitos

Quanto agraves suas armas que foram usadas para matar a famiacutelia Heacuteracles

questiona se deve abandonaacute-las ou mantecirc-las (vv 1378 ss) Para Papadopoulou ldquothey

are the symbols of his violence which can be beneficent as well as catastrophic

Deciding to keep them is a recognition and a reminder of the ambivalence of his

heroismrdquo50 Mas mais do que isso as armas representam para o heroacutei uma forma de

proteger a cidade que o acolhe e em simultacircneo revelam que mesmo integrado numa

sociedade que preza o colectivismo o Alcida manteacutem a sua individualidade

17 ἀρετή51 e βία Lico e Heacuteracles pontos semelhantes entre um tirano e o heroacutei

O comportamento de Heacuteracles ao longo da trageacutedia deixa algumas reservas no

que diz respeito ao seu caraacutecter Essas questotildees levantam-se no contexto da loucura do

Alcida e consequente morte da sua famiacutelia A forma como os filhos e Meacutegara morrem

permite estabelecer pontos de contacto com a morte de Lico A violecircncia que o heroacutei

usa para matar os iacutempios eacute a mesma que utilizou para com os filhos e a mulher de

modo que essa forccedila violenta parece ser apanaacutegio do heroacutei

50 Thalia Papadopoulou ldquoHerakles and Hercules The Herorsquos Ambivalence in Euripides and Senecardquo Mnemosyne 57 (2004) 267 51 No que diz respeito agrave ἀρετή do heroacutei este tema foi sendo sublinhado ao longo da caracterizaccedilatildeo da personagem pelo que se tornava repetitivo focarmos este aspecto uma vez mais Importa reter eacute que a par desta ἀρετή coexiste uma βία

112

Eacute precisamente devido a este uacuteltimo acto que a forccedila e heroicidade de Heacuteracles

pode ser posta em causa Barlow explica

Heraclesrsquos life before the madness has been taken up with violent deeds against the Giants (177ff) against the Centaurs (181) against the Minyans (220ff) against the monsters while on his labours (the Lion the Centaurs the Stag the Horses of Diomedes Cycnus the robber the Dragon the Amazons the Hydra) and finally against Lycus Over all these he triumphed with his weapons the club and the bow Physical violence is a way of life to him so when the gods come to destroy him by madness they are able to do so through patterns of behaviour which are already characteristic of him52

Esta bipolaridade manifestada na sua virtuosidade vs a forma cruel com que

resolve as situaccedilotildees leva-nos a estabelecer uma comparaccedilatildeo entre Lico e Heacuteracles53

Em primeiro lugar ambas as personagens ousam violar o direito dos suplicantes por

duas vezes Lico no primeiro confronto com Anfitriatildeo (vv 240-246) pretende

sacrificar os suplicantes junto do templo de Zeus queimando-os vivos No terceiro

episoacutedio Lico regressa agrave cena a reclamar a vida de Anfitriatildeo Meacutegara e filhos Agrave

informaccedilatildeo de Anfitriatildeo de que Meacutegara poderia estar dentro do palaacutecio junto do altar

sagrado Lico reclama a sua presenccedila e como Anfitriatildeo se recusasse a trazecirc-la invade o

palaacutecio para de laacute a arrebatar juntamente com os filhos (vv 712-724)

Heacuteracles por seu turno acorrentado pela loucura natildeo reconhece o pai que

suplicante lhe agarra a matildeo ao ver que o filho estava a delirar Anfitriatildeo eacute repelido

porque eacute confundido com o pai de Euristeu e o Alcida prepara-se para matar o primeiro

filho (vv 967-971) Depois de morta a primeira crianccedila vai ao encontro da segunda que

se refugiara junto da base do altar O filho dirige-se para junto do pai como suplicante

ajoelha-se e toca-lhe no pescoccedilo e no queixo com as matildeos (984-994) mas eacute morto pela

matildeo paterna que natildeo o reconhece Em siacutentese Heacuteracles acaba por consumar o que Lico

natildeo conseguiu matar Meacutegara e os filhos54

Em segundo lugar Lico e Heacuteracles atacam pessoas indefesas o primeiro porque

teme que a famiacutelia de Heacuteracles se vingue do seu crime o segundo porque pensava que

estava a atacar o pai a mulher e filhos de Euristeu55 Num terceiro aspecto a violecircncia

52 Barlow 9-10 53 Nesta comparaccedilatildeo servimo-nos do artigo de Thalia Papadopoulou ldquoHerakles and Hercules The Herorsquos Ambivalence in Euripides and Senecardquo 257-283 54 Anfitriatildeo escapa por intervenccedilatildeo divina 55 Haacute um erro de avaliaccedilatildeo suscitado pelos deuses

113

com que Lico se expressa para manifestar o seu desejo de queimar viva a famiacutelia de

Heacuteracles eacute a mesma de que o Alcida usa quando diz pretender destruir todo o palaacutecio

de Lico e mataacute-lo cruelmente (vide vv 247-251 comparando-os com os vv 568-573)

Este caraacutecter impulsivo que caracteriza ambas as personagens contrasta com a

tranquilidade e sensatez de Anfitriatildeo (vv 585-586 vv 707-709)

Num quarto aspecto observamos que o imaginaacuterio sacrificial eacute semelhante Haacute

um paralelismo macabro entre o que Lico pretendia e o que Heacuteracles realiza Este

paralelismo eacute notoacuterio nas falas de Meacutegara e do Mensageiro Meacutegara usa foacutermulas

proacuteprias de um sacrifiacutecio para descrever as intenccedilotildees de Lico Escolhe palavras como

ἱερεύς (sacerdote) σφαγεύς (sacrifiacutecio de animais) θύματα (sacrifiacutecio de viacutetimas) ndash vv

451-453 O Mensageiro quando descreve o crime de Heacuteracles dando uma imagem de

um sacrifiacutecio usa uma linguagem semelhante agrave de Meacutegara θῦμα e ἐπισφάξων (vv 994-

995)

2 Caracterizaccedilatildeo de Heacutercules na trageacutedia de Seacuteneca

Heacutercules eacute em Seacuteneca o centro para o qual tudo converge Apesar de entrar em

cena apenas no Acto III todas as falas das personagens diaacutelogos e odes o focam como

protagonista Podemos mesmo afirmar que a personagem nos vai sendo apresentada sob

os vaacuterios pontos de vista de Juno do Coro de Anfitriatildeo de Meacutegara de Lico e de

Teseu a par daquilo que o proacuteprio heroacutei diz sobre si mesmo completando-se assim um

retrato multiacutemodo que revela o modo como eacute interpretado o valor do Alcida56

Seacuteneca caracteriza o heroacutei por meio de antiacuteteses pelo duplo nascimento pela

uirtus e pelo uitium pelo modo civilizador e pelo selvagem Aleacutem destes aspectos o

Alcida eacute representado metonimicamente como a vida (o salvador a lsquoluzrsquo) e a morte (o

que destroacutei as lsquotrevasrsquo) Se estes binoacutemios permitem pontos de contacto com o seu

modelo Euriacutepides o objectivo de Seacuteneca eacute contudo outro analisar os affectus do

protagonista tomando-o como exemplo de personagem natildeo-estoacuteica Assim por

exemplo o toacutepico da amizade que encontramos bem delineado em Euriacutepides desde a

56 Em Euriacutepides este movimento centriacutepeto natildeo eacute tatildeo marcado No diaacutelogo entre as personagens haacute igualmente vaacuterias referecircncias ao heroacutei contudo natildeo se centram exclusivamente no protagonista Haacute menos monoacutelogos e mais acccedilatildeo

114

primeira cena ateacute ao terminar da acccedilatildeo dramaacutetica eacute omitido por completo No caso de

Heacutercules o filoacutesofo concentrou boa parte da sua anaacutelise numa caracteriacutestica fiacutesica do

Alcida sendo a mais proeminente e que melhor define o heroacutei a forccedila57 fiacutesica Este eacute

um elemento imprescindiacutevel para a compreensatildeo da personagem uma vez que

representa para Seacuteneca um ldquosintomardquo daquilo que Heacutercules eacute e que vai revelando no

decorrer da acccedilatildeo um caraacutecter superbus impius sendo o sustentaacuteculo dos seus excessos

e da sua desmedida confianccedila

Esta forccedila permite agraves personagens reconhecerem-no agnosco toros umerosque

et alto nobilem trunco manum (vv 624-625) Neste passo haacute uma gradaccedilatildeo que parte

do geral para o particular e que revela que Anfitriatildeo focou o seu campo de visatildeo nos

braccedilos e nas matildeos Foi este o primeiro impacte visual que levou ao reconhecimento da

chegada do filho58 Este centrar do campo de visatildeo numa caracteriacutestica especiacutefica do

corpo prova que o aspecto que melhor define Heacutercules eacute a sua forccedila Eacute nela e por ela

que reage agraves situaccedilotildees

Neste sentido haacute que notar que a palavra que eacute sucessivamente evocada pelas

personagens para representar esta caracteriacutestica de Heacutercules eacute manus59 significando por

metoniacutemia o poder mas particularmente a forccedila Assim tendo como ponto de partida

para a anaacutelise do protagonista este elemento que na concepccedilatildeo estoacuteica eacute um

indiferente uma vez que pode ser usada para o bem ou para o mal procuraremos ver

como todos os outros elementos supramencionados se conjugam

Ao contraacuterio do que fizemos para Heracles natildeo vamos estruturar esta aliacutenea em

toacutepicos mas analisaacute-los num todo porque em Hercules Furens todas as caracteriacutesticas

que revelam os affectus do protagonista se ligam de forma a conduzi-lo inevitavelmente

ao furor e consequentemente ao scelus Shelton diz ldquoHerculesrsquo madness is the

dramatic center of this play and Senecarsquos intention is to explore the cause and the

57 Esta forccedila eacute entendida como uma uirtus por uma boa parte das personagens (Heacutercules mas tambeacutem Anfitriatildeo e Meacutegara) enquanto para outras representa o lado excessivo do heroacutei (Juno Lico) 58 Jaacute a forma como Heacuteracles eacute reconhecido quando se aproxima do palaacutecio eacute diferente parece ser um processo natural e gradual Meacutegara e Anfitriatildeo reconhecem o heroacutei quando ele se dirige ao palaacutecio ndash natildeo haacute qualquer referecircncia ao seu aspecto fiacutesico (vv 515-519) 59 A semacircntica da matildeo para identificar o protagonista natildeo eacute tatildeo recorrente na trageacutedia de Euriacutepides A palavra χείρ ocorre quinze vezes representando ou a forccedila do Alcida (v 397 v 404) ou a justiccedila (castiga os tiranos v 565) ou a protecccedilatildeo (v 435 v 631) ou a vinganccedila (v 938) ou a impiedadecrime (v 964 v 968 v 1145 v 1199 v 1208) ou a salvaccedilatildeo apoio (Teseu pede ao heroacutei que lhe estenda a matildeo para poder ser auxiliado v 1398 v 1402) ou a purificaccedilatildeo (v 940 v 1324) Em Seacuteneca o nuacutemero de ocorrecircncias eacute maior tendo o sentido de forccedila poder v 58 v 114 v 122 v 221 v 247 v 272 v 279 v 442 v 469 v 528 v 566 v 614 v 625 v 807 v 882 v 914 v 919 v 998 v 1034 v 1040 v 1044 v 1098 v 1103 v 1192 v 1193 v 1196 v 1211 v 1244 v 1260 v 1297 v 1319 v 1328

115

development of the madnessrdquo60 Seraacute neste sentido que desenvolveremos o estudo da

personagem partindo de uma hetero e auto-caracterizaccedilatildeo e das manifestaccedilotildees do

protagonista perante as adversidades

Da fala de Juno sobressai a indomita uirtus (v 39) de Heacutercules que venceu todos

os obstaacuteculos que a natureza gerou na terra no mar e no ar quidquid horridum tellus

creat inimica quidquid pontus aut aer tulit terribile dirum pestilens atrox ferum

fractum atque domitum est (vv 30-33) A iteraccedilatildeo de quidquid (vv 30-31) que

generaliza tudo o que Heacutercules conseguiu domar o assiacutendeto (cf v 32) que acentua a

acumulaccedilatildeo de adjectivos numa esfera de horror e atrocidade reiteram por um lado o

oacutedio de Juno (v 35) ndash Heacutercules dominou tudo ndash por outro sublinham a forccedila

descomunal do heroacutei e a sua arrogacircncia61 visto que segundo Juno iraque nostra

fruitur in laudes suas mea uertit odia (vv 34-35) A estrutura quiaacutestica vem reforccedilar a

ideia do fracasso total dos objectivos da divindade face a um espiacuterito indomaacutevel Natildeo haacute

nada que consiga controlar Heacutercules e pocircr-lhe um freio pois nada parece saciaacute-lo Pelo

contraacuterio aceita todos os labores que Juno lhe envia laetus imperia excipit (v 42)

Aleacutem disso os monstros que temeu no iniacutecio em particular a Hidra de Lerna e o Leatildeo

de Neacutemea satildeo transportados por ele como armas de defesa (vv 44-46) fez da pele do

leatildeo o seu escudo e embebeu as suas setas com o veneno da serpente62 Devido ao

sucesso motivado pelas consecutivas vitoacuterias Heacutercules eacute conhecido por todo o orbe e

considerado como um deus qua Sol reducens quaque deponens diem binos propinqua

tinguit Aethiopas face indomita uirtus colitur et toto deus narratur orbe (vv 37-40)

Para Fitch a indomita uirtus ldquomay suggest that Hercules is not only spoken as a

god (narrator below) but worshipped as onerdquo63 Segundo este autor a palavra uirtus eacute

por si um argumento que mostra que Heacutercules foi deificado Esta divinizaccedilatildeo pode

representar para Juno um modo de excesso visto que o heroacutei eacute um mortal mas por

60 Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 28 61 Shelton na n 47 do artigo ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 diz que as palavras de Juno revelam elementos estoacuteicos laetus imperia excipit (v 42) Parece natildeo haver contudo qualquer referecircncia agrave impassibilidade estoacuteica de aceitar com alegria o que o Fatum lhe reserva uma vez que a deusa diz de seguida quae fera tyranni iura uiolento queant nocere iuueni (vv 43-44) ndash esta ideia estaacute ainda presente nos versos anteriores superat et crescit malis iraque nostra fruitur in laudes suas mea uertit odia (vv 33-35) A indiferenccedila de um estoacuteico manifesta-se pela ausecircncia de dor ou de prazer em tudo o que o Destino lhe reserva A suprema felicidade estaacute em viver segundo o Bem (vide Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 715 ss) e parece natildeo ser esta a ideia que a personagem Juno quer transmitir Pelo contraacuterio vemos que quando Heacutercules entra em cena revela um certo comprazimento em executar as tarefas impostas ansiando por mais 62 Fitch (1) 133 considera que a sineacutedoque ldquovem armado com o leatildeo e a hidrardquo pretende revelar que as caracteriacutesticas desses monstros natildeo morreram mas coabitam no heroacutei 63Fitch (1) 133

116

outro aludir ao esperado futuro de Heacutercules o de ascender agraves moradas divinas como

ela proacutepria admite pariterque natus astra promissa occupet in cuius ortus mundus

impendit diem tardusque Eoo Phoebus effulsit mari retinere mersum iussus Oceano

iubar (vv 23-26) Depois de uma anterior enumeraccedilatildeo dos vaacuterios filhos e amadas que

Juacutepiter teve e que ascenderam aos astros (cf vv 6-21) a referecircncia a Heacutercules e aos

astra promissa provam que seraacute essa a proacutexima etapa do heroacutei64 A perseguiccedilatildeo de Juno

eacute uma tentativa de evitar que tambeacutem o protagonista venha a morar com os sempiternos

Analisando as palavras de Juno deduz-se que em Heacutercules existe uma uirtus

que adveacutem da vontade do heroacutei em destruir tudo o que de monstruoso e terriacutevel a terra

possui fazendo um bom uso da forccedila que ele deteacutem a par de caracteriacutesticas de excesso

e erro claramente delineadas ele eacute megaloacutemano (v 46 nec satis terrae patent)

arrogante (v 58 superbifica ndash o adjectivo composto por superbus e facio intensifica o

sentido de lsquosoberborsquo que a forma simples jaacute comporta acentuando a ideia de que a forccedila

de Heacutercules inspira orgulho) e violento (vv 43-44 uiolento iuueni) ndash o proacuteprio

vestuaacuterio de Heacutercules contribui para dar a imagem de um ser baacuterbaro (vv 45-46

armatus uenit leone et hydra) Como diz Littlewood ldquoThe lion-skin is one of Herculesrsquo

most distinctive features and this savage lion symbolizes Hercules himselfrdquo65

A violecircncia de Heacutercules depreende-se tambeacutem de algumas formas do particiacutepio e

de verbos domitus (cf v 51) particiacutepio perfeito de domo implica o uso de forccedila na

acccedilatildeo de subjugar iactans (cf v 51) particiacutepio presente de iacto demonstra a

arrogacircncia do heroacutei em ter derrotado Plutatildeo e revela o perigo iminente de que uma vez

vencidos os spolia fraterna (vv 51-52) Heacutercules ambicione conquistar os do pai (v

51) ruptus (cf v 57) particiacutepio perfeito de rumpo acentua a ideia de forccedila violenta no

acto de lsquoromperrsquo lsquoquebrarrsquo o lugar onde se encerram as sombras Juno recorda a

excessiva confianccedila que Heacutercules tem no seu poder robore experto tumet (v 68) ndash a

forma verbal no presente do indicativo sublinhada pela metaacutefora (robur ndash representa a

forccedila a rigidez do heroacutei) sugere a imoderaccedilatildeo do protagonista Com estas

caracteriacutesticas que foi delineando em Heacutercules Juno pretende provar que o heroacutei eacute um

64 De notar o paralelismo entre o nascimento dos geacutemeos Castor e Poacutelux (que resultam da uniatildeo de Juacutepiter e Leda e desta com Tiacutendaro numa mesma noite) para cuja concepccedilatildeo a terra se imobilizou e o de Heacutercules para cuja concepccedilatildeo foram necessaacuterias vinte e quatro horas No primeiro caso os geacutemeos jaacute obtiveram a morada celeste para Heacutercules haacute a promessa de a vir obter 65 Cedric A J Littlewood Self-Representation and Illusion in Senecan Tragedy (Oxford Oxford University Press 2004) 113

117

monstro Nesse sentido diz a deusa quaeris Alcidae parem nemo est nisi ipse (vv

84-85)

A par da criacutetica de Juno vem a perspectiva do Coro que natildeo eacute mais positiva Os

adjectivos e substantivos que usa para qualificar e caracterizar a personagem satildeo

indicadores disso pectore forti (v 186) uiribus (v 591) audax (v 772) Nestes

exemplos satildeo visiacuteveis um conjunto de traccedilos que demonstram que Heacutercules estaacute

afastado do ideal do sapiens Ao mostrar que o protagonista eacute excessivo dominado por

paixotildees o Coro deixa impliacutecito que a sua queda seraacute inevitaacutevel (por exemplo vv 192-

196 v 201 vv 588-589)

Na Ode III depois de descrever a turba que desce aos Infernos e de comentar a

inevitabilidade da morte segue-se um hino (vv 875-892) de louvor ao heroacutei vencedor

que antecede o momento da loucura tal como em Euriacutepides (vv 763-814) Para

Shelton ldquothe chorus for the first time claims that Hercules has brought peace to the

world by descending to the Underworld although we soon find that he has created

disorder and must pay for it Their expression of joy here creates a false mood of relief

before the horror and despair of the rest of the playrdquo Eacute patente a ironia traacutegica que em

termos estoacuteicos se traduz num error de avaliaccedilatildeo da parte do Coro jaacute que Heacutercules natildeo

eacute a lsquoluzrsquo salvadora mas sim as lsquotrevasrsquo destruidoras

Jaacute a perspectiva de Anfitriatildeo difere da de Juno e do Coro Natildeo contesta o valor

de Heacutercules reconhecendo a uirtus do filho na forccedila fiacutesica Esta revelara-se ainda

Heacutercules natildeo tinha discernimento (vv 215 ss)66 Para Anfitriatildeo o filho eacute o libertador da

raccedila humana por ter dominado todos os monstros e a ausecircncia do Alcida resultou no

domiacutenio do scelus que levou a uma mudanccedila na ordem natural das coisas (vv 251-252)

No entanto Anfitriatildeo acredita no regresso do filho e a enumeraccedilatildeo dos trabalhos67 de

66 Na perspectiva de Segurado e Campos a uirtus de Heacutercules eacute essencialmente fiacutesica e compara o heroacutei a Lico Tambeacutem o tirano considera ter uma (clara) uirtus que se baseia principalmente no poder da forccedila ndash foi por meio dela e com a ajuda de armas que conseguiu vencer Tebas e manter o poder ldquosente prazer na violecircncia eacute indiferente agrave justiccedila ou injusticcedila com que se emprega a forccedilardquo diz Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos ldquoSeacuteneca e Heacutercules Observaccedilotildees sobre o Hercules Furensrdquo Euphrosyne 8 (1977) 165 67 A identificaccedilatildeo dos doze trabalhos eacute diferente nas duas trageacutedias Euriacutepides omite a caccedila ao Javali de Erimanto os paacutessaros de Estinfaacutelia os estaacutebulos de Augeu e o touro de Creta Esta diferenccedila deve-se aos objectivos que norteiam cada um dos tragedioacutegrafos em Heracles o Coro daacute uma imagem do heroacutei enquanto civilizador e pacificador que procura auxiliar os humanos contrastando no final da trageacutedia com a posiccedilatildeo dos deuses que natildeo demonstram qualquer consideraccedilatildeo pelos homens Em Hercules Furens o propoacutesito do autor prende-se com a valorizaccedilatildeo da forccedila que o protagonista possui sendo uma forma de demonstrar que nada impede Heacutercules de sair do mundo inferior antes representaraacute mais uma vitoacuteria para ele (v 278) Vemos que filoacutesofo natildeo se limitou a uma imitatio Ao escolher outros trabalhos Seacuteneca distancia-se claramente do seu modelo

118

Heacutercules serve de exemplum68 de tudo o que o Alcida jaacute conseguiu superar justificando

a esperanccedila de que o protagonista encontraraacute uma via para sair do mundo inferior (vv

275-278) Infere-se ainda das falas de Anfitriatildeo que Heacutercules ou eacute um ser divino ou

tornar-se-aacute um deus visto que Tebas eacute conhecida por ter gerado e criado muitos deuses

(vv 265-267)

Haacute contudo no discurso e no diaacutelogo de Anfitriatildeo com as outras personagens

elementos subtis que permitem identificar em Heacutercules uma natureza indomaacutevel que

natildeo descansa mas antes percorre o mundo69 ou em contiacutenua labuta (vv 209-215) ou a

seruire (v 273 derivado da palavra seruus a forma verbal significa lsquoser escravorsquo)

denotando a satisfaccedilatildeo do protagonista em cumprir as tarefas que lhe satildeo impostas e que

tecircm implicaccedilotildees psicoloacutegicas a audaacutecia a megalomania a arrogacircncia e a crueldade

que foram jaacute apresentadas por Juno e pelo Coro A audacia do Alcida eacute evidente na

descriccedilatildeo que Anfitriatildeo faz de um dos trabalhos que o heroacutei concluiu (vv 247-248 nec

ad omne clarum facinus audaces manus stabuli fugauit turpis Augei labor) e quando

Anfitriatildeo comenta com Meacutegara aderit profecto qualis ex omni solet labore maior

(vv 312-314)

No ponto de vista de Segurado e Campos a forma adjectiva no comparativo

tem trecircs interpretaccedilotildees possiacuteveis Heacutercules vem maior porque venceu mais uma tarefa

vem mais forte regressa maior porque traz consigo mais despojos das suas guerras ndash a

forma adjectiva estaacute conotada com a ambiccedilatildeo de mais poder chega maior porque mais

arrogante O mesmo autor conclui ldquoO que maior sem sombra de duacutevida natildeo implica eacute

qualquer progresso de ordem moralrdquo70 Natildeo haacute uma uacutenica alusatildeo ao caraacutecter psicoloacutegico

do Alcida num ponto de vista positivo mas apenas a caracteriacutesticas negativas que tecircm

como causa o uso desmesurado que o heroacutei faz da sua forccedila

68 Seacuteneca socorre-se com frequecircncia de exempla para ilustrar uma ideia por exemplo Juno enumera no iniacutecio do soliloacutequio as paelices que ascenderam aos astros para revelar que Alcmena e o filho poderatildeo vir igualmente a conquistaacute-los (vv 6-26) Meacutegara descreve o destino dos tiranos que governaram Tebas ameaccedilando ser esse o fatum de Lico (vv 384-396) Anfitriatildeo tenta provar que Heacutercules eacute um deus dando como exemplo o nascimento e a vida de Apolo e de Baco (vv 449-476) o Coro recorda a histoacuteria de Orfeu e Euriacutedice para demonstrar que o regresso do Alcida traraacute consequecircncias 69 Para Seacuteneca quando algueacutem passa uma boa parte da vida a deambular revela instabilidade e doenccedila da alma porque foge aos problemas e a si proacuteprio A capacidade do homem de permanecer estaacutevel demonstra que consegue viver consigo (Seacuteneca Ad Lucilium Epistolae Morales 2) 70 Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos ldquoSeacuteneca e Heacutercules Observaccedilotildees sobre o Hercules Furensrdquo Euphrosyne 8 (1977) n 56 (166)

119

Meacutegara reconhece o valor de Heacutercules pectore impulsus tuo huc mons et illuc

cessit et rupto aggere noua cucurrit Thessalus torrens uia (vv 286-288) maximae

uirtutes (cf v 325) Virtutis est domare quae cuncti pauent (v 435) Em todos estes

exemplos a uirtus do Alcida eacute dominantemente fiacutesica sendo possiacutevel encontrar

associados agrave expressatildeo desse valor exemplos que provam que Heacutercules se deixou

corromper pelo poder da sua forccedila

- dispulsas manu abrumpe tenebras (vv 279-280)

- nulla si retro uia iterque clausum est orbe diducto redi (vv 280-281)

- et quidquid atra nocte possessum latet emitte tecum (vv 282-283)

- erumpe rerum terminos tecum efferens et quidquid auida tot per annorum

gradus abscondit aetas redde et oblitos sui lucisque pauidos ante te populos age

(vv 290-293)

- indigna te sunt spolia si tantum refers quantum imperatum est (vv 294-295)

A forccedila impetuosa que Heacutercules poderaacute usar para sair dos Infernos eacute bem

visiacutevel nos exemplos citados Esta violecircncia eacute intensificada pelo vocabulaacuterio conotado

com as trevas dispulsae tenebrae (vv 279-280) atra nox (v 282 o pleonasmo

permite reforccedilar a descriccedilatildeo do locus horrendus) obliti pauidi populi (vv 292-293)

Algumas formas verbais no imperativo satildeo igualmente sugestivas pois permitem

demonstrar a brutalidade do Alcida abrumpe (v 280) erumpe (v 290) ndash note-se a

uariatio a acentuar a forccedila do heroacutei ndash intensificadas pelo particiacutepio diductus (v 281

orbe) e pela iteraccedilatildeo do pronome pessoal com a preposiccedilatildeo posposta tecum (v 283 v

290)

Lico contesta o valor de Heacutercules e boa parte do seu discurso eacute uma alusatildeo agrave

servidatildeo do heroacutei O toacutepico pretende servir de modelo para persuadir Meacutegara a ser

igualmente escrava e a submeter-se agrave vontade dos soberanos (vv 397-398) mas em

simultacircneo enumera uma criacutetica por Meacutegara preferir um famulus a algueacutem que possui o

sceptrum (cf v 430)

Ao contraacuterio de Meacutegara e de Anfitriatildeo o tirano natildeo vecirc em qualquer acccedilatildeo do

Alcida uma demonstraccedilatildeo da sua uirtus pelo contraacuterio potildee em causa a heroicidade de

Heacutercules uma vez que a virtude natildeo estaacute em matar feras e monstros (v 434) e parece

natildeo ficar persuadido pelos argumentos de Meacutegara (v 423 Inferna tetigit posset ut

120

supera assequi v 437 Non est ad astra mollis e terris uia) dado que lhe pergunta Quo

patre genitus caelitum sperat domos (v 438)

Nem quando Anfitriatildeo lembra a ascendecircncia divina do filho resumindo os

seus feitos recordando que lutou ao lado de deuses (vv 444-446) e que Juno o

perseguiu sempre (vv 445-446) Lico lhe reconhece o valor Pelo contraacuterio deixa

subjacente que todo o bem que Heacutercules faz agrave humanidade foi sempre por ordem de

Juno ou de Euristeu Quando age por si o heroacutei revela o seu lado cruel

Hoc Euryti fatetur euersi domus Pecorumque ritu uirginum oppressi greges Hoc nulla Iuno nullus Eurystheus iubet Ipsius haec sunt opera71 (vv 477-480)

Segurado e Campos vecirc nestes versos uma prova de que Heacutercules estaacute

desprovido de ratio deixando evidente um caraacutecter implacaacutevel e que agraves acusaccedilotildees de

Lico Anfitriatildeo responde com argumentos muito fraacutegeis O autor sugere

Anfitriatildeo apenas consegue retorquir post multa uirtus opera laxari solet [v 476] triste justificaccedilatildeo ndash e quatildeo pouco estoacuteica ndash para as fraquezas criticadas por Lico e logo a seguir quando Lico recorda a violecircncia de Heacutercules no assalto a Ecaacutelia [vv 477-480] Anfitriatildeo natildeo soacute o natildeo refuta como cita ainda outros inimigos vencidos pelo heroacutei e prevecirc a breve inclusatildeo de Lico nessa lista [vv 480-489]72

A resposta de Anfitriatildeo natildeo eacute para Segurado e Campos suficientemente

convincente quando enumera personagens mitoloacutegicas (Anteu Eacuterice Busiacuteris Cicno e

Geacuterion73) que foram castigadas por Heacutercules por terem comportamentos crueacuteis

71 O uacuteltimo argumento que Lico utiliza como a derradeira tentativa de provar que Heacutercules natildeo descende de Juacutepiter nem os seus feitos foram heroacuteicos eacute um anacronismo Em Oviacutedio Metamorphoses 9134 ss a destruiccedilatildeo do palaacutecio de Ecircurito e consequente tomada de Ecaacutelia motivadas pela paixatildeo que Heacuteracles tinha por Iacuteole vecircm depois de o Alcida se ter unido a Dejanira a segunda esposa Como nota Fitch (1) 242 ldquoThe reference in 477 to the Iole episode () has been criticized by some commentators as mythologically anachronistic as it occurred at the end of the herorsquos life his death being caused by Dejanirarsquos jealousy of Iole () But the capture of Iole is after all a reasonably self-contained event and one doubts whether ancient audiences deprived of the commentatorsrsquo help would have noticed the anachronism It would be a different matter if Lycus had referred to Deianira herselfrdquo Apesar de este tema voltar a ser focado no Hercules Oetaeus e com maior desenvolvimento o propoacutesito de Seacuteneca eacute comprovar o caraacutecter violento e passional de Heacutercules que destroacutei um palaacutecio movido pelo amor fatal Fitch (1) 24 afirma que a referecircncia ao acto do heroacutei tem um objectivo ldquoThese criticisms remind us of an element of instability in Herculesrsquobehavior which is familiar from the mythological traditionrdquo 72 Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos ldquoSeacuteneca e Heacutercules Observaccedilotildees sobre o Hercules Furensrdquo 165 73 Note-se que os trecircs primeiros ousaram provocar um duelo contra Heacutercules No caso de Anteu e Busiacuteris estes eram conhecidos pela sua impiedade e barbaridade ao matarem todos os estrangeiros que passavam por eles Jaacute Eacuterice quis ficar com o gado que Heacutercules roubara a Geacuterion Quanto a este uacuteltimo natildeo parece

121

Anfitriatildeo poreacutem ao acrescentar outros feitos permite dar pelo menos uma ideia da

ambivalecircncia do heroacutei que ora usa a forccedila para o mal (a imagem da perversidade de

Heacutercules que viola virgens eacute intensificada pela metaacutefora pecorumque greges ndash v

478) ora para o bem (liberta o mundo de homens tiracircnicos) Natildeo parece ser suficiente

restringir o estudo apenas aos argumentos de Lico ainda que possam ser mais vaacutelidos

Segurado e Campos afirma ldquoSe pensarmos que Heacutercules quando agiu em proveito da

humanidade o fez sob as ordens de Euristeu ao passo que entregue a si proacuteprio se

comportou indignamente perante Ocircnfale ou se deixou levar aos excessos de Ecaacutelia

pouca diferenccedila parece existir afinal entre o heroacutei e o tiranordquo74

Thalia Papadopoulou75 compara Heacutercules a Lico identificando em ambos

pontos semelhantes A analogia entre as duas personagens deixa reservas no que diz

respeito agrave concepccedilatildeo que o heroacutei tem da sua uirtus tanto Heacutercules como Lico

pretendem que haja paz (vv 926-937 Heacutercules vv 368-369 Lico) ambos entram em

cena vitoriosos (vv 895-899 Heacutercules vv 332-340) Na Ode I o Coro manifesta a sua

desaprovaccedilatildeo relativamente agraves ambiccedilotildees ilimitadas de poder tomando Heacutercules como

modelo dessa paixatildeo (vv 125-201) No entanto eacute possiacutevel acrescentar Lico ao nuacutemero

dos que merecem tal censura uma vez que o tirano natildeo respeita a justiccedila dominado

pela sede do poder tenta mantecirc-lo a todo o custo (vv 406-407) Heacutercules e Lico satildeo

ambos arrogantes e insolentes No primeiro caso Juno vai registando as caracteriacutesticas

que reconhece no Alcida e parte delas para justificar a sua perseguiccedilatildeo e castigo (vv 47

ss) Lico eacute criticado por Meacutegara por ser insolente e eacute avisado de um possiacutevel castigo

vindo dos deuses (vv 284-286) O tirano pretende matar a famiacutelia do Alcida caso

Meacutegara recuse casar-se com ele (vv 350-352) Heacutercules no momento da sua loucura

toma os seus filhos por descendentes de Lico e assassina-os (vv 987-991)

Tal como em Heracles a questatildeo da violaccedilatildeo dos santuaacuterios sagrados eacute tambeacutem

focada por Seacuteneca Lico ousa tentar matar Anfitriatildeo Meacutegara e os filhos dela que se

tinham refugiado no santuaacuterio de Juacutepiter queimando-os junto do altar (vv 501-508)

Heacutercules por seu turno viola duas vezes um interdito sagrado ao natildeo respeitar os

tatildeo loacutegica a sua referecircncia visto que estaacute relacionado com um dos doze trabalhos Fitch (1) considera ser despropositada a alusatildeo a este monstro apontando dois motivos ldquofirst because H[ercules] encountered him as direct result of orders from Eurystheus and second because Geryon was not generally known for lawlessnessrdquo (Fitch (1) 243) 74 Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos ldquoSeacuteneca e Heacutercules Observaccedilotildees sobre o Hercules Furensrdquo 165-166 75 Thalia Papadopoulou ldquoHerakles and Hercules The Herorsquos Ambivalence in Euripides and Senecardquo 257-283

122

suplicantes Agrave semelhanccedila do que acontece em Heracles (vv 986-994) o segundo filho

em tom e atitude de suplicante roga ao pai que o poupe (vv 1002-1004 En blandas

manus ad genua tendens uoce miseranda rogat) mas acaba por ser projectado e

morrer despedaccedilado contra as paredes (vv 1005-1007) Por uacuteltimo ambos Lico e

Heacutercules pretendem matar a famiacutelia do seu opositor por meio de um sacrifiacutecio humano

Heacutercules entra em cena no Acto III (vv 592 ss) A sua chegada eacute sentida por

Anfitriatildeo no momento em que dirigia as suas preces ao Alcida O anciatildeo reconhece a

chegada proacutexima do filho pela forma como a Natureza reagiu agraves suas suacuteplicas Cur

subito labant agitata motu templa Cur mugit solum infernus imo sonuit e fundo

fragor audimur est est sonitus Herculei gradus (vv 520-523) A iteraccedilatildeo do adveacuterbio

interrogativo denuncia o espanto de Anfitriatildeo Ele sente um suacutebito e violento

movimento proveniente do interior da terra do lugar mais profundo que agita os

templos ameaccedilando-os ruir ndash os verbos que representam sensaccedilotildees auditivas (agitata

mugit sonuit) aliados aos substantivos (sonitus fragor) e ao quiasmo e aliteraccedilatildeo

(infernus imo ndash e fundo fragor) datildeo a imagem de uma forccedila violenta que Heacutercules usaraacute

para sair dos infernos Os passos do heroacutei satildeo ouvidos (v 523 audimur) e reconhecidos

por Anfitriatildeo ndash o vocaacutebulo sonitus que eacute determinado pelo genitivo gradus acentua o

caraacutecter colossal do Alcida assim como a sua forccedila sobre-humana76

O monoacutelogo de Heacutercules atesta alguns dos traccedilos que as personagens foram

apresentando no decorrer da acccedilatildeo dramaacutetica O heroacutei caracteriza-se pois pela

immoderatio natildeo consegue controlar os seus impulsos nem os desejos eacute excessivo na

sua auto-confianccedila revelando um caraacutecter ambicioso e particularmente audaz Na parte

final do monoacutelogo (vv 614-615) o Alcida invoca Juno pedindo-lhe que lhe envie mais

monstros no que manifesta um espiacuterito insaciaacutevel que natildeo se cansa das labutas Este

geacutenero de paralelos entre Juno e Heacutercules eacute visiacutevel noutros passos

a) quando Plutatildeo foi derrotado Juno pergunta por que motivo Heacutercules natildeo quis

governar as moradas das sombras (v 54) ficando no lugar do rei vencido A esta

questatildeo Heacutercules responde et si placerent tertiae sortis loca regnare potui (vv 609-

610)

76 Esta saiacuteda dos Inferni lembra a de Tacircntalo (Thyestes vv 1 ss) e de Aquiles (Troades vv 171 ss) ndash nestes dois exemplos o aparecimento destas sombras criou um ambiente de tensatildeo que exigia um sacrifiacutecio A chegada de Heacutercules tambeacutem se revelaraacute fatal e conduziraacute a uma imolaccedilatildeo

123

b) Juno queixa-se de que jaacute nem a terra eacute suficiente para travar Heacutercules (vv 46-

48 Nec satis terrae patent effregit ecce limen inferni Iouis et opima uicti regis ad

superos refert) O protagonista ao recordar o oacutedio de Juno que natildeo o deixa tranquilo um

uacutenico momento usa as mesmas palavras da deusa In poenas meas atque in labores

non satis terrae patent Iunonis odio (vv 604-606)

O primeiro diaacutelogo de Heacutercules (vv 626-640) com as outras personagens eacute ao

contraacuterio do que acontece na trageacutedia de Euriacutepides (vv 531-636) curto e pouco

afectuoso ele dirige-se uma uacutenica vez a Anfitriatildeo e a Teseu Procura saber junto de

Anfitriatildeo por que motivo estatildeo ele Meacutegara e os filhos vestidos de luto e com aspecto

miseraacutevel (vv 626-628 squalor et lugubribus amicta obsiti paedore) Depois de

tomar conhecimento dos uacuteltimos conflitos provocados por Lico Heacutercules sente que lhe

compete o dever de castigar o tirano

Ingrata tellus nemo ad Herculeae domus auxilia uenit uidit hoc tantum nefas defensus orbis ndash cur diem questu tero mactetur impar hanc ferat uirtus notam fiatque summus hostis Alcidae Lycus ad hauriendum sanguinem inimicum feror Theseu resiste ne qua uis subita ingruat me bella poscunt differ amplexus parens coniuxque differ nuntiet Diti Lycus me iam redisse (vv 631-640)

O protagonista sente-se constrangido por ningueacutem ter auxiliado a casa de

Heacutercules (v 631 Herculeae domus) ele que eacute o defensor do mundo (v 633 defensus

orbis) Mas dos lamentos iniciais passa imediatamente agrave acccedilatildeo cur diem questu tero

(v 633) O seu uacuteltimo trabalho eacute agora matar Lico hanc ferat uirtus notam fiatque

summus hostis Alcidae Lycus (vv 634-635)77 O heroacutei sente que haacute uma forccedila superior

que o impele a querer derramar sangue e sendo essa uma tarefa sua uma vez que as

guerras reclamam apenas a presenccedila dele (v 637) dissuade Teseu de acompanhaacute-lo

Esta forccedila que o Alcida sente dentro de si pode levar a duas interpretaccedilotildees

complementares eacute um sentimento especificamente violento que aflora in se e que o

77 Herrmann atribui os vv 634-636 a Teseu enquanto Fitch (1) Viansino e Giardina a Heacutercules No ponto de vista de Fitch (1) 286 estes versos natildeo dizem respeito agrave fala de Teseu ldquouirtus would be awkward in the sense of uirtus tua 637 wolud be an odd response to Theseusrsquo offer and the bloodthirstiness of 636 suits Hercules better than Theseus Two factors that may have contributed to Arsquos error are the vocative Theseu in 637 and Hrsquos third person reference to himself in 635rdquo

124

leva a derrubar a tirania de Tebas pode ser um auguacuterio de um ataque de loucura

iminente

O heroacutei estaacute tatildeo obcecado pela ideia de se vingar que dispensa qualquer afecto

da famiacutelia (vv 638-639 differ amplexus parens coniuxque differ) remetendo abraccedilos

e demonstraccedilotildees de carinho para depois A estrutura quiaacutestica reforccedilada pela iteraccedilatildeo

do verbo no imperativo presente acentua a ideia de um desejo de aproximaccedilatildeo por parte

da famiacutelia pelo regresso tatildeo esperado de Heacutercules mas que eacute veementemente rechaccedilado

pelo Alcida A uacutenica preocupaccedilatildeo que o move eacute matar Lico e a estrutura quiaacutestica (vv

639-640 nuntiet Diti Lycus me iam redisse) aproxima as duas personagens que teratildeo

inevitavelmente de confrontar-se visto que a Heacutercules cabe a funccedilatildeo de castigar os

iacutempios e Lico eacute a representaccedilatildeo maacutexima do tirano Estaacute tambeacutem em causa a seguranccedila

da famiacutelia

Heacutercules regressa no Acto IV vitorioso (vv 895 ss) Derrotou Lico e a ordem

foi aparentemente estabelecida Assume-se como vingador (v 895 ultrice dextra)

preparando-se para oferecer libaccedilotildees aos deuses nunc sacra patri uictor et superis

feram caesisque meritas uictimis aras colam (vv 898-899) A ironia traacutegica eacute

manifesta nestes versos ele seraacute o sacerdote que vai oferecer viacutetimas humanas aos

deuses

A descriccedilatildeo da demecircncia de Heacutercules eacute gradual Natildeo eacute muito faacutecil identificar em

Heacutercules dois momentos psicoloacutegicos isto eacute um momento em que revele sanidade

mental e um outro que demonstre um estado completamente diferente de insania

Semelhante dificuldade deve-se agrave inexistecircncia de dois extremos Desde o primeiro

momento em que aparece em cena Heacutercules mostra estar muito proacuteximo da loucura natildeo

soacute pela incapacidade de discernimento dos limites existentes entre os deuses e os

humanos e pelo modo impetuoso como reage agraves proacuteprias situaccedilotildees como ainda pela

forma como pretende honrar os altares com oferendas Compara-se com alguma

frequecircncia aos deuses celestes (vv 592-613 vv 900-908) identificando Juacutepiter como

seu pai Juno como madrasta e os deuses como irmatildeos (vv 907-908 fraterque quisquis

incolit caelum meus non ex nouerca frater)

Eacute imoderado ao querer fazer uma libaccedilatildeo aos deuses sem primeiro purificar as

suas matildeos maculadas pelo sangue de Lico natildeo aceitando os conselhos de Anfitriatildeo A

imagem que este daacute das matildeos do filho indica que a morte do tirano teraacute sido violenta

manantes prius manus cruenta caede et hostili expia (vv 918-919) A aliteraccedilatildeo

125

(cruenta caede) a assonacircncia em nasal e a semacircntica do particiacutepio presente de mano

contribuem para a visualizaccedilatildeo do sangue que ainda escorre das matildeos do Alcida O

proacuteprio adjectivo cruenta que remete para cruor (lsquosangue derramadordquo) ilustra a

impiedade do heroacutei A resposta de Heacutercules deixa visiacutevel a sua impietas

utinam cruorem capitis inuisi deis libare possem gratior nullus liquor tinxisset aras uictima haud ulla amplior potest magisque opima mactari Ioui quam rex iniquus

(vv 920-924)

As figuras de retoacuterica permitem dar uma imagem da crueldade da violecircncia e da

ferocidade do protagonista a aliteraccedilatildeo cruorem capitis (v 920) a estrutura quiaacutestica

gratior nullus vs haud ulla amplior (note-se ainda a liacutetotes e a uariatio ndash haud ulla e

nullus) o uso de vocabulaacuterio proacuteprio do sacrifiacutecio (v 921 libare v 922 aras uictima

v 923 mactari) os adjectivos que qualificam o rex (v 920 inuisi v 924 iniquus)

Clara-Emmanuelle Auvray sugere a propoacutesito da vontade de Heacutercules de honrar

os altares divinos com o sangue do tirano

il peut affirmer que le sang drsquoun rex iniquus est une libation agreacuteable aux dieux et neacutegliger du mecircme coup les lois religieuses de la citeacute crsquoest en son seul nom qursquoil sacrifie agrave Jupiter invoqueacute sous son aspect de justicier Tonans enfin en appelant les autres dieux ses fregraveres il confirme sa preacutetention agrave deacutetenir par son rapport privileacutegieacute agrave la nature divine le sens de la loi Ainsi par lrsquointermeacutediaire du support mythologique Seacutenegraveque indique clairement les dangers inheacuterents agrave la notion de ldquoloi incarneacuteerdquo la toute-puissance juridique du Prince recegravele toutes les tentations de la violence arbitraire78

Heacutercules ldquocommet une faute religieuse graverdquo lembra Florence Dupont79 O

error do protagonista vai levaacute-lo a imolar a sua famiacutelia em oferenda aos deuses Como

informa a mesma autora

Hercule comme les autres heacuteros tragiques de Seacutenegraveque commet un crime inexpiable en transgressant un des rituels fondamentaux de la culture il sacrifie agrave Jupiter apregraves avoir tueacute Lycus sans se purifier du sang humain qui souille ses mains il accomplit ainsi explicitement et

78 Clara-Emmanuelle Auvray Folie et Douleur dans Hercule Furieux et Hercule sur lrsquoOeta Recherches sur lrsquoexpression estheacutetique de lrsquoascegravese stoiumlcienne chez Seacutenegraveque 18 79 Vide Florence Dupont Les Monstres de Seacutenegraveque pour une Dramaturgie de la Trageacutedie Romaine (Paris Belin 1995)184

126

volontairement un sacrifice humain qui fait de lui une becircte sauvage et lrsquoamegravene logiquement agrave massacrer sa famille80

A loucura do heroacutei comeccedila a manifestar-se no momento em que se dirige a

Juacutepiter em tom de prece Ipse concipiam preces Ioue meque dignas (vv 926-927)

Nestes versos Heacutercules identifica-se com o pai possivelmente pelo facto de o heroacutei ser

o protector dos homens e civilizador da humanidade81 Pretende uma nova Idade do

Ouro agora que julga que concluiu o seu ldquouacuteltimordquo trabalho

As suas preces reflectem o desejo utoacutepico de uma ordem e paz mundiais que

resvalam para o que eacute humana e naturalmente impossiacutevel Heacutercules falha enquanto heroacutei

pacificador Para Fitch

The impossibility of a Golden Age is relevant not only to our understanding of Herculesrsquo failure in this play but also to Rome herself Vergil had expressed hopes for the establishment of a new Golden Age (Ecl 4 passim Aen 6791-94) and such hopes resurfaced on the accession of Nero (cf Calp Ecl142ff 46ff Einsied Ecl 222ff and Sen himself at Apocol 4 where however the context has a deflationary effect) though HF may have been written before the event In each case these hopes were centered on a saviour figure as Hercules sees himself as the creator and guardian of the new age82

No momento em que os seus desejos entram no domiacutenio dos ἀδύνατα (vv 931-

939) Heacutercules apercebe-se da mutabilidade da natureza A passagem do dia para a noite

(vv 939-944) conotada com a mudanccedila do acircnimo do protagonista para a insanidade

ocorre no momento em que ele profere si quod etiamnum est scelus latura tellus

properet et si quod parat monstrum meum sit (vv 937-939) A palavra-chave destes

versos eacute monstrum que contribui para acentuar um tom de ironia traacutegica presente na

fala do heroacutei O lado pateacutetico deste discurso e que o leva a um error que por sua vez

conduziraacute agrave destruiccedilatildeo fatal eacute que o monstro com o qual vai defrontar-se eacute ele proacuteprio

Daiacute que quando acorda queira suicidar-se para expurgar o mundo desse novo monstro

80 Seacutenegraveque Theacuteacirctre Complet II ed e trad Florence Dupont (Paris Imprimerie Nationale 1992) 93 81 Esta comparaccedilatildeoligaccedilatildeo estreita entre Heacutercules e Juacutepiter eacute evocada no Hercules Oetaeus Hilo considera que a funccedilatildeo de Heacutercules na terra eacute semelhante agrave de Juacutepiter no Olimpo decus illud orbis atque praesidium unicum quem fata terris in locum dederant Iouis (vv 749-751) 82 Fitch (1) 27 Em Hercules Furens haacute semelhanccedilas entre Nero e Heacutercules a ambos parece ser confiada a tarefa de trazer uma nova Idade de Ouro com a sua vinda mas tanto o princeps como o heroacutei falham na sua tarefa Heacutercules erra devido agrave sua personalidade favoraacutevel a atitudes condenadas pelos estoacuteicos A loucura eacute apenas a consequecircncia de um espiacuterito jaacute de si perturbado pela vida activa Tambeacutem em Nero se evidenciam alguns traccedilos de inclemecircncia e violecircncia O princeps deixa-se dominar por todo o geacutenero de paixotildees de que resultaram mortes Britacircnico Agripina o proacuteprio Seacuteneca

127

Papadopoulou sugere ldquoThis moment constitutes an elaborate dramatic climax as the

implication is that the monster that Hercules asks for is no other than Hercules himself

his last toil will be the fight against his own selfrdquo 83

Neste sentido Fitch refere

ldquoThis [powerful dramatic irony] is inseparably combined here with character-revelation for there is arrogance in H assumption immediately disproved that he can deal with any threat sent against him There is also ambition underlying the urgency of etiamnunc and properet H feels that he has completed his labors and is eager to take the promised reward of immortality That this is in the forefront of his thoughts immediately becomes clear in the madness (955 ff)rdquo84

Esta ambiccedilatildeo que Fitch identifica permite compreender por que motivo

Heacutercules estaacute sempre ansioso por concluir as tarefas que lhe apresentam e ainda

entender a ausecircncia de afectividade que revela ser apanaacutegio do protagonista Na

verdade manifesta como desejo uacutenico o ascender agraves moradas celestes e eacute nelas que

reside o seu uacutenico fim (vv 957-973)

Quanto agraves manifestaccedilotildees da natureza elas estatildeo em estreita ligaccedilatildeo com o estado

psicoloacutegico de Heacutercules A sucessatildeo de interrogaccedilotildees (vv 939-944) numa procura de

perceber o que estaacute a acontecer ao seu redor permite fazer a distinccedilatildeo entre um heroacutei

aparentemente sanus e um insanus A evoluccedilatildeo da loucura natildeo eacute descrita ao pormenor

mas haacute uma dupla anotaccedilatildeo da demecircncia da personagem sob o ponto de vista

psicoloacutegico e fiacutesico O Alcida descreve aquilo que a sua vista deturpada contempla O

discurso de Anfitriatildeo permite recuperar a realidade dos factos isto eacute a personagem

revela o estado de alucinaccedilatildeo do heroacutei Na trageacutedia de Euriacutepides Fitch nota ldquoin

Herculesrsquo madness a single impulse and hallucination namely an attack on Mycenae is

replaced by a series of shifting impulses and hallucinations with great richness of

psychological and thematic significancerdquo85 Para aleacutem disso as manifestaccedilotildees da

perturbaccedilatildeo de Heacuteracles satildeo primeiro fiacutesicas depois psicoloacutegicas e descritas pelas

outras personagens

83 Thalia Papadopoulou ldquoHerakles and Hercules The Herorsquos Ambivalence in Euripides and Senecardquo 271 84 Fitch (1) 363 85 Fitch (1) 350

128

A escolha de palavras com que Seacuteneca descreve esta mudanccedila entra no campo

das trevas tenebrae (v 940) obscurus uultus (cf vv 940-941) nox atrum caput (v

942) A loucura vai domando por completo o heroacutei Os primeiros sintomas satildeo

a) visualizaccedilatildeo do Leatildeo de Neacutemea um dos primeiros trabalhos que concluiu (vv

944-952) O olhar do protagonista estaacute completamente concentrado nos astros o uacutenico

lugar que ele ainda natildeo experimentou Perdomita tellus tumida cesserunt freta

inferna nostros regna sensere impetus immune caelum est dignus Alcide labor in

alta mundi spatia sublimis ferar petatur aether astra promittit pater (vv 955-959)

Eacute possiacutevel novamente estabelecer um paralelo entre os discursos de Juno e

Heacutercules Agravequilo que a deusa temia caelo timendum est regna ne summa occupet qui

uicit ima sceptra praeripiet patri (vv 64-65) Heacutercules responde com impetuosidade e

desmesura non capit terra Herculem tandemque superis reddit () bella Titanes

parent me duce furentes () in caelum Olympus tertio positus gradu perueniet aut

mittetur (vv 960-961 vv 967-968 vv 972-973) Eacute sua intenccedilatildeo que esse seja o seu

proacuteximo passo86

b) julga ver os Gigantes libertos dos Inferni e armados para uma nova batalha

(vv 976-981) agora contra ele Estes versos surgem em tom especular relativamente

aos da fala de Juno (vv 79-83) quando diz pretender numa primeira opccedilatildeo libertar

todos os Gigantes para lutarem contra Heacutercules travando a ambiccedilatildeo do heroacutei de

ascender agraves moradas divinas

c) vecirc as Eriacutenias que se vatildeo aproximando dele ndash haacute um outro paralelismo com o

soliloacutequio de Juno (vv 86 ss) O facto de haver tantos pontos de contacto entre o

discurso de Juno e o de Heacutercules leva a concluir que a divindade tem efectiva

participaccedilatildeo na demecircncia do heroacutei como de resto mostrou ser sua intenccedilatildeo no final do

monoacutelogo inicial Como sugere Littlewood ldquoJuno and Hercules are inseparable from

86 No Hercules Oetaeus no monoacutelogo inicial Heacutercules invoca Juacutepiter argumentando que merece os astros prometidos Todo o discurso em 98 versos estaacute centrado no desejo de ascender agraves moradas celestes e no recordar dos ecircxitos dos seus labores Haacute cinco referecircncias aos astros as duas primeiras satildeo introduzidas por uma sucessatildeo de interrogaccedilotildees (vv 7-8 v 13) em que o protagonista procura saber por que motivo Juacutepiter natildeo lhe concede os ceacuteus uma vez que ele provou ser seu filho Nas outras referecircncias a) Heacutercules natildeo pede que o pai lhe indique o caminho mas apenas que lhe permita ascender aos astros (vv 32-33) b) considera que deve habitar nos ceacuteus para proteger os deuses dos monstros que foram anteriormente derrotados por ele e que agora ocupam um lugar entre as estrelas (vv 76-79) c) no final do discurso Heacutercules exige os astros por tudo o que fez pela humanidade (vv 97-98) Enquanto no Furens encontramos um heroacutei desmedido que pretende chegar aos astros seja naturalmente seja por meio da forccedila em Oetaeus o desespero do heroacutei eacute notoacuterio de tal modo que ele procura todos os argumentos possiacuteveis para que Juacutepiter lhe conceda um lugar na morada celeste nec peto ut monstres iter permitte tantum genitor inueniam uiam (vv 32-33) Chega ao cuacutemulo de dizer que pode servir de protector dos deuses

129

each otherrdquo87 Contudo o proacuteprio caraacutecter do Alcida revela estar bem distante de ter

uma mens bona

A repeticcedilatildeo do adveacuterbio propius (v 983) sugere a aproximaccedilatildeo de Tisiacutefone uma

Fuacuteria de que resultaraacute um crime O sentido de rogus (cf v 984) poderaacute ser duplo a

proacutepria loucura ou a morte da famiacutelia Fitch considera que a visatildeo de Tisiacutefone pode ter

duas interpretaccedilotildees ou a sua tarefa estaacute directamente relacionada com a rebeliatildeo dos

Gigantes ou guarda a entrada dos Infernos para que ningueacutem mais escape pela porta

franqueada por Heacutercules88 Nesta fase o protagonista estaacute totalmente dominado pela

Fuacuteria e o seu primeiro acto eacute atacar os filhos que confunde com os do tirano (vv 987

ss)89 seguindo-se a morte de Meacutegara que ele toma por Juno

A par do deliacuterio do heroacutei Anfitriatildeo complementa a descriccedilatildeo da evoluccedilatildeo do

estado psicoloacutegico do Alcida enumerando os primeiros sintomas ndash que satildeo

essencialmente fiacutesicos ndash e a forma como Heacutercules vai matando os filhos

a) o volver dos olhos90 ardentes em todas as direcccedilotildees (v 953 uultus huc et huc

acres refers)

b) a vista perturbada (acieque turbida) em direcccedilatildeo a um ceacuteu imaginaacuterio (v 954

falsum caelum)

c) Anfitriatildeo apercebe-se de que a mente do filho estaacute enlouquecida Infandos

procul auerte sensus pectoris sani parum magni tamen compesce dementem

impetum (vv 973-975) Os adjectivos infandus sanum (parum) demens ilustram um

acircnimo jaacute fora de si e as exortaccedilotildees de Anfitriatildeo (v 974 auerte v 975 compesce) satildeo

inuacuteteis Heacutercules natildeo ouve o pai estaacute cego pelo ardor da loucura

d) Anfitriatildeo pressente que o caecus furor (vv 991-995) do filho levaraacute a um

scelus nefandum triste et aspectu horridum (v 1004) A tripla adjectivaccedilatildeo permite

fazer uma transiccedilatildeo para a descriccedilatildeo da morte do segundo filho (vv 1005-1007) e

preparar o terceiro crime Anfitriatildeo aponta como estado psicoloacutegico do filho a amentia

(v 1021 amens) ndash soacute assim se explica tamanha atrocidade na forma como ele vai

eliminando cada um dos filhos e a esposa O uacuteltimo filho morre assustado com o olhar

inflamado de Heacutercules (v 1021 igneo uultu) ndash a manifestaccedilatildeo do ignis no vulto da

87 Cedric A J Littlewood Self-Representation and Illusion in Senecan Tragedy 117 88 Fitch (1) 373 89 Em Heracles o heroacutei confundiu os seus filhos com os de Euristeu 90 A palavra uultus pode designar lsquosemblantersquo ou lsquoolhosrsquo Fitch (1) 367 aponta as duas hipoacuteteses abonando com exemplos para cada uma delas No presente caso uma vez que eacute acompanhado pelo adjectivo acres optaacutemos por respeitar o plural e traduzir por lsquoolhos ardentesrsquo

130

personagem permite estabelecer uma relaccedilatildeo explorada pelos estoacuteicos entre a forccedila

destruidora do fogo e o efeito semelhante do erro das paixotildees que tudo abrasam e

destroem

e) no momento em que Anfitriatildeo se oferece como viacutetima para ser imolada junto

do altar (vv 1039-1042) Heacutercules adormece

O vocabulaacuterio que eacute usado pelas personagens para descrever os crimes do heroacutei

eacute expressivo para identificar a dimensatildeo da loucura que atacou o Alcida91 caecus furor

(v 991) furens (v 1005 v 1053) Hercules infestus (cf v 1013) amens (v 1021 v

1033) furor (v 1049 v 1098) graui uis uicta morbi pectus oppressum (vv 1051-

1052) tantis (animum) monstris (v 1063) torua pectora (v 1080) ferox cor (cf v

1083) omnes aestus (v 1088) insani fluctus animi (cf v 1092) uesanus motus (cf

v 1095) error caecus (v 1096) nefas (v 1099) ultrix manus (cf v 1103) tanti

dolores (cf v 1121) ulti uulnere (v 1122) scelus patriusque furor (v 1134) Todos

estes traccedilos que caracterizam o protagonista mostram que ele estaacute afastado do ideal

estoacuteico eacute excessivo prepotente estaacute dominado por paixotildees que o conduziram ao crime

De heroacutei virtuoso Heacutercules passa a monstro

Fitch considera que a insanidade de Heacutercules pode ter sido causada pelo excesso

de trabalho ldquoThe explanation may well be reflected in the fact that Senecarsquos Hercules

refuses to take rest between his tasks in which case Seneca has transmuted the idea of

physical exhaustion leading to epilepsy into that of psychological exhaustion leading to

temporary insanityrdquo92 Aliado agrave ausecircncia de qualquer descanso poderaacute subentender-se

um outro factor Como lembra Fitch ldquothat is not the only explanation implied in the

play for the fact that Hercules goes mad just after the end of his labours it is also clear

that his ambition and megalomania have been increased by the supposed conquest of the

underworldrdquo93

Para Shelton a loucura de Heacutercules deve-se ao erro de avaliaccedilatildeo da forccedila do

heroacutei The conflict in this play is the discrepancy between Herculesrsquo illusions about strength (uirtus) and the reality of strength His madness results from his distorted definition of uirtus He imagines that his physical force makes him greater than the gods he discovers that force produces disaster and that true strength is not physical but emotional

91 A ldquolinguagem da emoccedilatildeordquo expressatildeo de Maria Cristina Pimentel Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de Seacuteneca 41 contribui para a identificaccedilatildeo dos estados passionais das personagens em particular de Heacutercules 92 Fitch (1) 31 93 Fitch (1) 31-32

131

As one method of dramatizing this psychological conflict and giving external expression to an internal process Seneca created the dialogue of the supporting characters Their words reflect the conflict in Herculesrsquo mind The final dialogue between Theseus and Hercules for example externalizes Herculesrsquo discovery of the true uirtus94

No entanto julgamos que coexistem dois motivos que teratildeo conduzido agrave

insanidade do heroacutei um motivo humano e um motivo divino Juno tem um papel se natildeo

principal pelo menos fundamental na acccedilatildeo criminosa de Heacutercules No plano humano

como foi apontado pelos dois autores mencionados o Alcida deixa-se dominar por

sentimentos de megalomania violecircncia e ambiccedilatildeo que o levaram a um erro de

interpretaccedilatildeo e consequente furor Littlewood observa

Interpretation of this tragedy hinges on the origin and the nature of its criminal madness it may be seen as an extension of Herculesrsquo uirtus or an alien state of mind imposed upon him by Juno To some extent the nature of tragic madness is bound up with its origin Hercules tends toward the Phaethonic madness is more deliberately anarchic and evil However Seneca is at pains to confuse Juno with Hercules by making them imitate each other and thereby obstructs any simple identification of the tragic madness95

O despertar do heroacutei fiacutesico mas tambeacutem psicoloacutegico eacute igualmente progressivo

Se nos primeiros versos natildeo consegue discernir o local onde se encontra nem

reconhecer os corpos que jazem agrave sua volta mas apenas pressentir que aconteceu um

grande malum (vv 1138-1159) vai depois recuperando a consciecircncia96 comeccedilando por

dar-se conta de que os cadaacuteveres que estatildeo agrave sua volta (vv 1159-1161) satildeo dos seus trecircs

filhos e de Meacutegara O desespero por querer saber quem foi o autor do massacre (vv

1160 ss) leva a um novo acesso de fuacuteria ruat ira in omnes hostis est quisquis mihi

non monstrat hostem (vv 1167-1168) que conduz a uma nova seacuterie de interrogaccedilotildees97

Heacutercules vai descobrindo aos poucos que foi ele o assassino dos filhos e da esposa Eacute o

seu proacuteprio corpo que lhe vai dando as indicaccedilotildees do scelus manus refugit hic errat

94 Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 28-29 Neste sentido Seacuteneca diz a Luciacutelio na Carta 9225 maiestatem enim eius ex nostra inbecillitate metimur et uitiis nostris nomen uirtutis inponimus 95 Cedric A J Littlewood Self-Representation and Illusion in Senecan Tragedy 114 96 Como explicou Carla Susana Vieira Gonccedilalves A Invectiva nas Trageacutedias de Seacuteneca 130 as perguntas retoacutericas tecircm dupla funccedilatildeo na forma como o heroacutei se vai comportando ao longo da acccedilatildeo dramaacutetica Permitem por um lado demonstrar que ele toma consciecircncia de que algo estaacute errado como eacute o caso presente e conduzem agrave descoberta Por outro revelam igualmente uma alma perturbada 97 Vide vv 1173-1176 vv 1179-1186 v 1187 v 1188 vv 1189-1190 vv 1193-1195 vv 1198-1199

132

scelus (v 1193) iam tela uideo nostra Non quaero manum (v 1196) hoc nostrum est

scelus tacuere nostrum est (vv 1199-1200)

Estas caracteriacutesticas que vatildeo assomando no Alcida permitem criar um efeito

especular entre o heroacutei e Juno As paixotildees que afectam a deusa ira (v 28 v 34 v 75)

odia (v 27 v 35 v 77) saeuitia (v 35 saeua) dolor (v 28 v 99) assemelham-se agraves

de Heacutercules A personagem experimenta a ira (v 1167 v 1220 v 1277 irasci) e a

saeuitia (v 1280) depois de ter sido viacutetima da vinganccedila de Juno

Ainda acometido pela ira encontra como soluccedilatildeo para o crime o suiciacutedio98 tal

como em Heracles Contudo tambeacutem sob este aspecto a forma como estaacute construiacuteda a

trama final eacute diferente ateacute mesmo no papel do pai e do amigo do Alcida Em Hercules

Furens Anfitriatildeo e Teseu funcionam como personagens-prolongamento99

Representam no uacuteltimo acto o outro lado da vontade de Heacutercules que consiste em

evitar o suiciacutedio

Em siacutentese a caracterizaccedilatildeo do heroacutei nas peccedilas de Euriacutepides e de Seacuteneca difere

substancialmente Haacute um ponto de contacto entre ambas a ambivalecircncia do heroiacutesmo

do Alcida mas ainda assim sob perspectivas diferentes Euriacutepides estuda Heacuteracles

numa perspectiva inovadora no sentido em que analisa a forccedila psicoloacutegica do

protagonista em detrimento da sua forccedila corpoacuterea A dramatizaccedilatildeo da loucura do heroacutei

leva a questotildees sobre o seu heroiacutesmo altruiacutesmo sobre o seu papel na sociedade uma

vez concluiacutedos os doze trabalhos100 Eacute o heroacutei que natildeo tem um lugar fixo (a natildeo ser no

final da trageacutedia) que faz pouco uso da razatildeo deixando-se levar pelas emoccedilotildees

violentas mas aceita os conselhos que as outras personagens lhe datildeo

Em Heracles haacute uma humanizaccedilatildeo da personagem Eacute o heroacutei que se submete

aos trabalhos porque deseja restituir o pai agrave sua paacutetria natal abandona o espoacutelio do seu

uacuteltimo trabalho para ver a famiacutelia ao pressentir que algo de terriacutevel se passava com ela

natildeo suporta os trabalhos a que foi submetido e eacute o heroacutei que no final precisa de apoio

do amigo para entregar Ceacuterbero a Euristeu (vv 1386-1388) e concluir assim os seus

πόνοι

98 Este tema teraacute desenvolvimento no uacuteltimo capiacutetulo pelo que mereceu aqui tatildeo-soacute uma breve referecircncia 99 Segurado e Campos ldquoSur la typologie des personnages dans les Trageacutedies de Seacutenegravequerdquo 225 chama personagens-prolongamento agravequelas que ldquone disent jamais rien qui ne puisse ecirctre attribueacute au discours du personnage-noyaurdquo Tambeacutem Meacutegara desempenha a funccedilatildeo de uma personagem-prolongamento quando descreve o orgulho e a ambiccedilatildeo desmedidos de Heacutercules (Acto II vv 279-308) 100 Vide Thalia Papadopoulou ldquoHerakles and Hercules The Herorsquos Ambivalence in Euripides and Senecardquo 267

133

Heacuteracles eacute mais afectuoso do que Heacutercules Naquele eacute notoacuteria a afeiccedilatildeo pela

famiacutelia manifestada directa ou indirectamente Heacuteracles eacute agarrado pelos filhos (vv

627-633) eacute ele quem os conduz para o interior do palaacutecio no fim da acccedilatildeo dramaacutetica

abraccedila o pai (vv 1408-1409) e precisa da ajuda de Teseu para se levantar (vv 1395-

1402)

Em Seacuteneca o Alcida eacute o exemplum de uma personagem dominada pelos affectus

Vimos que a caracteriacutestica mais proeminente eacute a forccedila sobre-humana constantemente

evocada pelas personagens e que o aproxima dos deuses Aliada a essa caracteriacutestica

coexiste um lado ambicioso insensiacutevel megaloacutemano e cruel

Eacute impaciente quanto a manifestaccedilotildees de afectos reserva sempre para segundo

plano a afectividade procurando eliminar tudo e todos os que vatildeo contra a ordem

natural das coisas Engradece-se com os feitos realizados e deseja mais trabalhos Um

uacutenico objectivo o move ter direito a habitar nas moradas celestes prometidas Assim

socorre-se da forccedila brutal e desmedida para executar os trabalhos e construir um mundo

paciacutefico para os homens Tudo o que faz estaacute ao serviccedilo da sua honra e virtude e natildeo se

orienta em favor dos homens O egoiacutesmo de Heacutercules contrasta com o altruiacutesmo de

Heacuteracles

Relativamente ao modo como cada um age quando sob o domiacutenio da loucura

vemos que em Heracles haacute claramente uma intervenccedilatildeo divina que provoca o acto As

deusas apenas alteraram o seu campo de visatildeo de modo que ele natildeo consiga reconhecer

aqueles contra os quais luta Foi impiedoso na morte de Lico mas igualmente na da sua

famiacutelia o que leva a algumas reservas no que diz respeito agrave sua virtude No caso de

Seacuteneca se a mesma ambivalecircncia parece existir num primeiro momento a personagem

eacute por natureza e por tendecircncia violenta impiedosa e uma vez completamente

dominada pelas passiones revela o seu lado monstruoso ao matar os filhos e a mulher

Em Hercules Furens vemos que o protagonista estaacute muito longe da sapientia

exigida pelos estoacuteicos dado que se deixa levar pela fuacuteria e pela ira como resposta agraves

adversidades que se lhe deparam natildeo sabe fazer um bom uso daquilo que os filoacutesofos

definem por indiferentes

134

Capiacutetulo IV

HERCULES FURENS E HERCULES OETAEUS

1 Meditatio mortis ndash um estudo preliminar

O suiciacutedio eacute por si soacute um tema complexo e controverso e eacute-o especialmente

quando encarado sob a perspectiva da doutrina estoacuteica Para Arthur Bodson haacute uma

aparente contradiccedilatildeo em relaccedilatildeo a uma possiacutevel incompatibilidade no pensamento

estoacuteico que preceitua aceitar tudo o que vem da Providecircncia mas em simultacircneo pode

recusar ficar-lhe submetido1 escolhendo a via da morte Ora para que se desfaccedilam

equiacutevocos referentes a essa aparente contradiccedilatildeo importa ver em primeiro lugar que os

estoacuteicos natildeo consideram que o suiciacutedio deva ser uma regra geral mas sim que a ele eacute

possiacutevel recorrer em ocasiotildees especiacuteficas Como recomenda Seacuteneca a Luciacutelio

Meditare mortem qui hoc dicit meditari libertatem iubet Qui mori didicit seruire dedidicit supra omnem potentiam est certe extra omnem Quid ad illum carcer et custodia et claustra liberum ostium habet Una est catena quae nos alligatos tenet amor uitae qui ut non est abiciendus ita minuendus est ut si quando res exiget nihil nos detineat nec impediat quominus parati simus quod quandoque faciendum est statim facere2

A morte voluntaacuteria eacute possiacutevel e aceitaacutevel quando o homem procura libertar-se de

qualquer geacutenero de escravidatildeo seja fiacutesica seja moral Na Carta 77 Seacuteneca daacute exemplos

de motivos que justificam o suiciacutedio O primeiro eacute de Tuacutelio Marcelino viacutetima de uma

doenccedila penosa e prolongada que preferiu morrer com gloacuteria a arrastar a vida em

sofrimento (Ep 7710)

O segundo exemplo eacute o de um jovem da Lacoacutenia que se recusou a ser escravo

pelo que quando lhe ordenaram pela primeira vez que fizesse um serviccedilo indigno (ir

1 Arthur Bodson La Morale Sociale des Derniers Stoiumlciens Seacutenegraveque Eacutepictegravete et Marc Auregravele (Paris Les Belles Lettres 1967) 90 2 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 2610 lsquoMedita na morte com estas palavras Epicuro manda-nos meditar na liberdade Um homem que aprendeu a morrer esquece o que seja a servidatildeo estaacute acima melhor dizendo estaacute fora do alcance de todo e qualquer poder Que lhe importam o caacutercere os guardas as cadeias se tem diante de si uma porta sempre aberta Uma uacutenica cadeia nos tem manietados o amor pela vida Natildeo o abafemos de todo mas diminuamo-lo de modo a que se as circunstacircncias o exigirem nada nnos detenha ou impeccedila de estarmos preparados para fazer imediatamente o que mais tarde ou mais cedo teremos mesmo de fazerrsquo

135

buscar um vaso para os excrementos) o jovem esmagou a cabeccedila contra uma parede O

filoacutesofo pretende demonstrar que o que verdadeiramente importa eacute a qualidade da vida

que o estoacuteico tem e nunca a duraccedilatildeo ndash que o homem quando tiver que abandonar a vida

saiba fazecirc-lo da melhor forma Quomodo fabula sic uita non quam diu sed quam bene

acta sit refert Nihil ad rem pertinet quo loco desinas Quocumque uoles desine tantum

bonam clausulam inpone3 Eacute neste sentido que Seacuteneca termina esta carta 77 com esta

sententia

Epicteto por exemplo distingue trecircs formas de suiciacutedio 1) quando a decisatildeo eacute

tomada de acordo com a vontade divina4 e nunca por instinto ou por capricho5 2)

quando eacute uma forma de manter a integridade eou liberdade do homem6 3) quando o

suiciacutedio natildeo eacute um acto pensado mas levado por um pretexto ou entrando no domiacutenio

irracional7 o que faz dele um acto imoral

Durkheim viria posteriormente a denominar trecircs tipos de suiciacutedio o egoiacutesta o

anoacutemico e o altruiacutesta8 No que diz respeito ao primeiro caso cometem suiciacutedios os

homens que se sentem aparentemente desvinculados de uma sociedade o indiviacuteduo natildeo

sente uma ligaccedilatildeo forte com a comunidade natildeo depende de um grupo logo tende a

formar as suas proacuteprias regras e a viver segundo os seus proacuteprios interesses Explica

Durkheim ldquoSi donc on convient drsquoappeler eacutegoiumlsme cet eacutetat ougrave le moi individuel

srsquoaffirme avec excegraves en face du moi social et aux deacutepens de ce dernier nous pourrons

donner le nom drsquoeacutegoiumlste au type particulier de suicide qui reacutesulte drsquoune individuation

deacutemesureacuteerdquo9

Sobre este modo de suiciacutedio Seacuteneca formula um juiacutezo criacutetico desfavoraacutevel Para

Seacuteneca o homem natildeo deve cometer o suiciacutedio se estiver sob o domiacutenio de um ou vaacuterios

affectus Aleacutem disso satildeo estultos todos aqueles que correm para a morte porque vecircem

nela um refuacutegio10 Por fim um homem nunca deve suicidar-se quando algum familiar

ou amigo exigir que ele permaneccedila vivo11 Para os estoacuteicos este eacute um acto imoral

3 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 7720 lsquoNa vida eacute como no teatro natildeo interessa a duraccedilatildeo da peccedila mas a qualidade da representaccedilatildeo Em que ponto tu vais parar eacute questatildeo sem a miacutenima importacircncia Paacutera onde quiseres mas daacute agrave tua vida um fecho condignorsquo 4 Arriano Epicteti Dissertationes 1916 5 Idem Ibidem 12929 6 Idem Ibidem 1226 41150 ss 41172 7 Idem Ibidem 1917 12929 8 Para um estudo mais completo sobre este tema veja-se Eacutemile Durkheim Le Suicide 149-311 9 Eacutemile Durkheim Le Suicide Eacutetude de Sociologie (Paris Presses Universitaires de France 1930 reimpr 1986) 223 10 Ver Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 2422-24 9815-16 11 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 781 e ss1043

136

porque quem o comete natildeo respeita os que lhe estatildeo proacuteximos antes se deixa levar por

uma paixatildeo que o conduz a um acto irracional

O suiciacutedio altruiacutesta eacute segundo Durkheim ldquocelui ougrave le moi ne srsquoappartient pas

ougrave il se confond avec autre chose que lui-mecircme ougrave le pocircle de sa conduite est situeacute en

dehors de lui agrave savoir dans un des groupes dont il fait partierdquo12 Este tipo de suiciacutedio

apresenta uma outra caracteriacutestica que o distinge dos outros ldquoil est accompli comme un

devoirrdquo13 Eacute o que melhor se aproxima dos propoacutesitos estoacuteicos Os exemplos maacuteximos

satildeo Soacutecrates e Catatildeo de Uacutetica O uacuteltimo eacute o modelo do homem que viveu pela (e para) a

paacutetria procurando ser livre entre homens livres Quando se revelou impossiacutevel

continuar a lutar por essa liberdade comum preferiu a morte a viver sob o jugo poliacutetico

de Ceacutesar14 Jaacute Soacutecrates poderia ter escapado da prisatildeo com o auxiacutelio dos amigos mas

escolheu natildeo o fazer e enfrentar a morte obedecendo agraves leis da sua paacutetria15

Eacute por este modo de ldquoabandonarrdquo a vida que os estoacuteicos pugnam quando as

circunstacircncias assim o exigem Partindo da maacutexima Quae [uita] non semper retinenda

est non enim uiuere bonum est sed bene uiuere (Ep 704) ndash e a diferenccedila crucial

reside no saber fazer uso da melhor forma possiacutevel do tempo que a Providecircncia nos

concede recordando que nem sempre a quantidade eacute sinoacutenimo de qualidade ndash Seacuteneca

aconselha o seu leitor a que medite sobre a morte (Ep 7018) aceitando-a como um

percurso natural e inevitaacutevel E o saber viver em harmonia com a Natureza parte disto

mesmo reconhecer que vida e morte formam um ciclo a que ningueacutem pode escapar

A Carta 70 eacute toda ela uma reflexatildeo sobre a vida e a morte partindo em

pormenor desta uacuteltima circunstacircncia para se centrar no tema do suiciacutedio Para o

filoacutesofo apenas o saacutebio possui o discernimento de escolher a forma como pretende sair

da vida uma vez que ele reconhece que a morte e a vida satildeo indiferentes e fazem parte

de um ciclo normal e inevitaacutevel O que importa satildeo as circunstacircncias que levam a

escolher um dos caminhos possiacuteveis para terminar a existecircncia16 Si multa occurrunt

molesta et tranquillitatem turbantia emittit se nec hoc tantum in necessitate ultima

12 Eacutemile Durkheim Le Suicide 238 13 Loc Cit 14 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 246-8 15 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 244 16 Eacute neste aspecto que reside essencialmente a liberdade do estoacuteico se o homem natildeo eacute livre no momento em que nasce a sua liberdade estaacute nas muacuteltiplas formas como poderaacute sair da vida Hoc qui dicit non uidet se libertatis uiam cludere nihil melius aeterna lex fecit quam quod unum introitum nobis ad uitam dedit exitus multos (Seacuteneca Ep 70 14-15) lsquoQuem assim fala natildeo vecirc como estaacute tornando impossiacutevel a liberdade Nada de melhor concebeu a lei eterna do que embora apenas nos dando uma porta de entrada na vida ter-nos proporcionado muacuteltiplas saiacutedasrsquo

137

facit sed cum primum illi coepit suspecta esse fortuna diligenter circumspicit numquid

illic desinendum sit (Ep 705)17 Como explica Cristina Pimentel comentando um passo

de Epicteto18 ldquoEacute que o sapiens sai da vida natildeo eacute expulso e como tudo o que eacute

inevitaacutevel natildeo deixa margem para que se tente modificar ou para provocar medos ou

revoltas entatildeo haacute que entender a morte como o fim natural da vida porque tudo o que

comeccedila tem de acabarrdquo19 Assim eacute possiacutevel o suiciacutedio somente quando

a) situaccedilotildees graves que satildeo um obstaacuteculo agrave tranquilidade da alma nunca sendo

aceitaacutevel nem ir ao encontro da morte por medo nem fugir dela Um exemplo quando eacute

viacutetima de uma doenccedila prolongada e incuraacutevel o homem pode escolher abandonar a

vida natildeo para terminar com o seu sofrimento mas porque a sua doenccedila natildeo lhe permite

viver de acordo com a ordem natural nem manter a sua dignidade nem cumprir os seus

deveres (ciacutevicos por exemplo)20

b) quando haacute um factor externo que obriga o homem a morrer (por exemplo se

vai ser torturado ateacute agrave morte) eacute mais difiacutecil saber qual a decisatildeo mais correcta se

aguardar essa morte ou antecipaacute-la A justificaccedilatildeo de Seacuteneca eacute

Si altera mors cum tormento altera simplex et facilis est quidni huic inicienda sit manus Quemadmodum nauem eligam nauigaturus et domum habitaturus sic mortem exiturus e uita Praeterea quemadmodum non utique melior est longior uita sic peior est utique mors longior In nulla re magis quam in morte morem animo gerere debemus Exeat qua impetum cepit siue ferrum appetit siue laqueum siue aliquam potionem uenas occupantem pergat et uincula seruitutis abrumpat21

E se nesta longa citaccedilatildeo parece haver uma contradiccedilatildeo com o que o filoacutesofo

disse nos paraacutegrafos anteriores ndash onde refere que se um sapiens eacute condenado agrave morte ele

17 lsquoSe se lhe deparam muitas situaccedilotildees graves muitos obstaacuteculos agrave sua tranquilidade o saacutebio retirar-se-aacute E natildeo o faraacute apenas como uacuteltimo recurso mas assim que a fortuna comeccedilar a mostrar-se hostil para com ele deveraacute meditar seriamente se natildeo conveacutem pocircr de imediato termo agrave vidarsquo 18 Arriano Epict 2611 e 12 19 Maria Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo 30 20 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 5836 inbecillus est et ingnauus qui propter dolorem moritur stultus qui doloris causa uiuit (lsquoMorrer para evitar a dor eacute uma atitude de fraqueza e cobardia viver soacute para suportar a dor eacute pura estupidezrsquo) 21 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 7011-12 lsquoSe por exemplo a alternativa for entre uma morte no meio de torturas e uma morte directa e raacutepida como natildeo escolher sem hesitaccedilatildeo esta uacuteltima Se eu escolho o navio em que vou navegar ou a casa em que vou habitar tambeacutem ao deixar esta vida posso escolher a forma como morrer Aleacutem disso se a vida natildeo se torna melhor por ser mais longa a morte pelo contraacuterio quanto mais prolongada for pior Mais do que em qualquer outra situaccedilatildeo devemos obedecer na atitude perante a morte aos ditames da nossa alma E esta que se evole com decisatildeo segundo a forma de morte escolhida quer se eleja o punhal ou a corda ou o veneno que se espalha pelas veias haacute que ser firme na decisatildeo tomada e romper de uma vez os viacutenculos da nossa servidatildeorsquo

138

natildeo a antecipa suicidando-se mas espera pacientemente que chegue esse dia (Ep 70

8) ndash tal contradiccedilatildeo eacute apenas aparente Recordando o exemplo que daacute no paraacutegrafo 9 o

de Soacutecrates Seacuteneca lembra que o filoacutesofo grego poderia ter optado pelo suiciacutedio mas

natildeo o fez natildeo por medo da morte mas por obediecircncia agrave lei Ora a antecipaccedilatildeo da morte

a que o autor alude diz respeito a casos pontuais e que implicam uma forma de

libertaccedilatildeo como eacute o caso paradigmaacutetico de Catatildeo Tomando ainda como exemplos

ilustrativos gladiadores e baacuterbaros (Ep 7020-26) e monstrando que eles estariam

privados da sua liberdade ou acabariam por morrer de forma menos digna e em contexto

de espectaacuteculos puacuteblicos Seacuteneca procura demonstrar que nesta circunstacircncia o

suiciacutedio eacute um acto louvaacutevel

c) quando o homem se vecirc privado de bens imprescindiacuteveis para garantir a sua

sobrevivecircncia ou quando as suas faculdades comeccedilam a falhar dado o avanccedilar da

idade22

d) por uacuteltimo e citando Cristina Pimentel quando ldquodepois de ter lanccedilado matildeo

dos remedia ao seu alcance para combater as paixotildees o homem se vecirc sujeito aos

proacuteprios uitia de modo que escapa jaacute ao seu domiacuteniordquo23

Em todos estes motivos haacute um elemento fundamental que os liga a liberdade do

homem Eacute por ser livre que o ser humano pode escolher a melhor forma de viver ou

optar por sair da vida quando alguma situaccedilatildeo intransponiacutevel assim o exige

Quanto ao terceiro tipo de suiciacutedio considerado por Durkheim o anoacutemico estaacute

relacionado com uma anomalia qualquer sendo essencialmente motivada por uma crise

passional O indiviacuteduo que se sente integrado numa sociedade sofre por alguma razatildeo

algum dano material ou afectivo (por exemplo devido a uma crise econoacutemica ou a

algum processo judicial ou agrave perda de todos bens ou ao divoacutercio) que o leva a decidir-

-se pelo suiciacutedio Durkheim define este uacuteltimo tipo como ldquoil est une troisiegraveme sorte de

suicideacutes qui srsquoopposent et aux premiers en ce que leur acte est essentiellement

passionnel et aux seconds en ce que la passion qui les inspire et qui domine la scegravene

finale est drsquoune tout autre nature Ce nrsquoest pas lrsquoenthousiasme la foi religieuse morale

ou politique ni aucune des vertus militaires crsquoest la colegravere et tout ce qui drsquoordinaire

accompagne la deacuteceptionrdquo24

22 Vide Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales30 23 Maria Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo 32 24 Eacutemile Durkheim Le Suicide 321

139

Relativamente agraves circunstacircncias que neste caso levam ao suiciacutedio Seacuteneca

assume uma vez mais uma firme rejeiccedilatildeo Chama loucos aos que se deixam dominar

por algum medo

Vir fortis ac sapiens non fugere debet e uita sed exire et ante omnia ille quoque uitetur adfectus qui multos occupauit libido moriendi Est enim mi Lucili ut ad alia sic etiam ad moriendum inconsulta animi inclinatio quae saepe generosos atque acerrimae indolis uiros corripit saepe ignauos iacentesque illi contemnunt uitam hi grauantur25

A morte deve ser acolhida nunca desesperadamente procurada ou evitada (Ep

3015) E com este breve estudo preambular pensamos poder agora passar agrave anaacutelise

comparativa dos finais de Hercules Furens e Hercules Oetaeus

2 Heacutercules ndash a ascese do proficiens

21 Heacutercules sob o domiacutenio da ira (estudo sobre o comportamento da personagem

no Hercules Furens e no Hercules Oetaeus)

Como tivemos ocasiatildeo de ver ao longo deste estudo em particular no terceiro

capiacutetulo com a anaacutelise do protagonista em Euriacutepides e Seacuteneca a figura de Heacutercules

causou desde sempre alguma dificuldade de anaacutelise dado ser um heroacutei ambiacuteguo Em

Seacuteneca haacute contudo um reaproveitamento da figura o filoacutesofo pretende estudar o

comportamento de Heacutercules sob o ponto de vista estoacuteico Vimos que ainda que haja

personagens no Hercules Furens26 que consideram Heacutercules virtuoso a sua uirtus eacute

25 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 2425 lsquoUm homem corajoso e saacutebio natildeo deveraacute fugir da vida mas sim sair dela acima de tudo importa evitar uma paixatildeo que tem assaltado muita gente a paixatildeo pela morte Como em relaccedilatildeo a outros assuntos tambeacutem em relaccedilatildeo ao fenoacutemeno da morte existe uma inconsiderada tendecircncia de espiacuterito capaz de dominar frequentemente quer o homens animosos e de caraacutecter firme quer gente sem forccedila e sem coragem soacute que enquanto os primeiros sentem desprezo pela vida os outros natildeo lhe suportam o pesorsquo 26 Tambeacutem no Hercules Oetaeus o heroacutei eacute visto como o protector dos homens porque libertou a humanidade dos seus medos E a sua presenccedila no mundo eacute de tal modo fundamental que a sua morte representa uma desgraccedila para o orbe hunc ecce luctum quem gemis cuncti gemunt commune terris omnibus pateris malum (Hercules Oetaeus vv 761-762) Hilo foca a ideia de que o valor do Alcida eacute inigualaacutevel de tal modo que a proacutepria morte foge do heroacutei os Destinos natildeo ousam cometer o crime de terminar a vida de Heacutercules e Cloto treme ao saber que estaacute a fiar os derradeiros momentos da vida do heroacutei (vv 766-770)

140

essencialmente fiacutesica Na realidade o modo como o heroacutei reage agraves situaccedilotildees revela que

se deixa levar pelos affectus especificamente pela ira

Seacuteneca define ira explicando que esta eacute um uitium diferente dos outros

Ceteri enim adfectus dilationem recipiunt et curari tardius possunt huius incitata et se ipsa rapiens uiolentia non paulatim procedit sed dum incipit tota est nec aliorum more uitiorum sollicitat animos sed abducit et inpotentes sui cupidosque uel communis mali exagitat nec in ea tantum in quae destinauit sed in occurrentia obiter furit Cetera uitia inpellunt animos ira praecipitat Etiam si resistere contra adfectus suos non licet at certe adfectibus ipsis licet stare haec non secus quam fulmina procellaeque et si qua alia inreuocabilia sunt quia non eunt sed cadunt uim suam magis ac magis tendit Alia uitia a ratione hoc a sanitate desciscit alia accessus lenes habent et incrementa fallentia in iram deiectus animorum est Nulla itaque res urget magis attonita et in uires suas prona et siue successit superba siue frustratur insana ne repulsa quidem in taedium acta ubi aduersarium fortuna subduxit in se ipsa morsus suos uertit Nec refert quantum sit ex quo surrexerit ex leuissimis enim in maxima euadit27

Deste extenso passo percebemos que a ira eacute dos uitia mais prejudiciais e que

mais dano causa ao sujeito ou a uma multidatildeo28 porque os precipita num remoinho de

emoccedilotildees e acccedilotildees crueacuteis acabando por arrastar consigo os que estatildeo proacuteximos Uma

vez que algueacutem se deixa levar por semelhante mal difiacutecil eacute paraacute-lo As manifestaccedilotildees

que a ira provoca no seu paciente satildeo visiacuteveis natildeo soacute no olhar como na proacutepria face

como ainda nos movimentos29

O passo citado permite-nos igualmente explicar a psicologia do protagonista no

Hercules Furens e no Hercules Oetaeus Em ambas as trageacutedias o heroacutei apresenta-se

alienado porque movido por sentimentos ora de furor ora de ira E se os resultados na

primeira trageacutedia foram crueacuteis (morte da famiacutelia) ainda que Juno estivesse implicada no

homiciacutedio na segunda todos os actos de Heacutercules satildeo voluntaacuterios o heroacutei tem

consciecircncia de que estaacute a tomar o lugar dos monstros vencidos destruiu Ecaacutelia porque

se apaixou por Iacuteole eacute cruel com Licas e pretende ser violento com Dejanira

Assim no monoacutelogo inicial do Hercules Oetaeus Heacutercules tem noccedilatildeo de que

teminou a sua tarefa terrena dado todos os monstros terem sido jaacute vencidos e nada mais

restar nem na terra nem no mar nem nos ceacuteus para ele derrotar (nec monstra inuenit

27 Seacuteneca De Ira 313-5 28 Segundo Seacuteneca De Ira 321 ss a ira eacute o uacutenico viacutecio que pode atingir um povo uma cidade crianccedilas jovens adultos velhos Natildeo escolhe idades 29 Seacuteneca De Ira 341-3

141

ferae negantur30) de tal modo que conclui que Hercules monstri loco iam coepit esse

(vv 55-56) Do Coro das mulheres de Ecaacutelia sobressai a soberba e a violecircncia do

Alcida Satildeo expressivos os adjectivos que escolhem para identificar o caraacutecter dele

tumidus (v 142) e indomito (v 155) Herculeas minas (v 166) iratum Herculem (v

172) Licas morre assustado com o olhar feroz de Heacutercules31 No entanto o heroacutei uma

vez que natildeo se pocircde vingar em Licas ainda vivo mutila o seu cadaacutever lanccedilando-o aos

astros A forccedila que usou para arremassaacute-lo foi tanta que o corpo deixou rastos de sangue

pelas nuvens desmembrando-se caindo a cabeccedila sobre as rochas e perdendo-se o corpo

nas aacuteguas do mar o que comprova uma vez mais a violecircncia desmedida de Heacutercules

(vv 808-822) O Alcida pretende ser igualmente cruel com Dejanira utinam liceret

stipite ingesto impiam effringere animam quale Amazonium malum circa niualis

Caucasi domui latus o clara Megara tune cum furerem mihi coniunx fuisti Stipitem

atque arcus date dextra inquinetur laudibus maculam imprimam summus legatur

femina Herculeus labor (vv 1449-1455) O recordar a sua loucura e a forma como

matou Meacutegara32 remete para um novo crime que natildeo seraacute menos iacutempio com a diferenccedila

de que o seu uacuteltimo labor (summus labor) seraacute voluntaacuterio ndash a violecircncia do acto eacute

acentuada pelo politpoto de stipes (v 1449 v 1453) e o recurso a formas verbais que

manifestam violecircncia (v 1450 effringere v 1452 furerem v 1454 inquinetur v

1454 imprimam) bem como pelo homeoteleuto (v 1454 maculam imprimam) O

uacutenico objectivo de Heacutercules eacute manter a sua gloacuteria (cf v 1454 laudibus) intacta

Mesmo tomando conhecimento do suiciacutedio da esposa a sua raiva natildeo eacute menor

uma vez que natildeo admite que ningueacutem inferior a si o venccedila Testemunho de um novo

impulso satildeo as palavras que profere em resposta a Hilo 30 Seacuteneca Hercules Oetaeuscedil vv 54-55 31 Eacute Hilo quem descreve a morte de Licas quando anuncia a Dejanira a morte proacutexima de Heacutercules que tem como causa a veste que ela enviou ao marido Enumera as primeiras manifestaccedilotildees fiacutesicas de Heacutercules motivadas pelo fogo que emana da veste que conduzem a ataques de ira contra aqueles que julga culpados Primeiro compara a reacccedilatildeo do Alcida com a de um touro qualis impressa fugax taurus bipenni uulnus et telum ferens delubra uasto trepida mugitu replet aut quale mundo fulmen emissum tonat sic ille gemitu sidera et pontum ferit (vv 798-802) passando para manifestaccedilotildees do olhar uultus ignea torquens face (v 808) A mente de Heacutercules fica tatildeo perturbada pela intensidade das dores que comeccedila a ter alucinaccedilotildees Heacutercules ao ouvir Alcmena identificar a doenccedila dele como o resultado de sucessivas labutas (vv 1396-1398) julga que eacute uma nova guerra que se aproxima e procura-a incessantemente revelando com as suas palavras que a sua mente estaacute perturbada Ubi morbus ubinam est estne adhuc aliquid mali in orbe mecum ueniat huc aliquis mihi intendat arcus ndash nuda sufficient manus Procedat agedum (vv 1399-1402) O paralelismo entre intendat arcus e sufficient manus permite por um lado comprovar o furor do protagonista levando Alcmena a considerar que apenas este affectus consegue controlar o acircnimo de Heacutercules (v 1404 dolor iste furor est Hercules solus domat) por outro ilustra a confianccedila desmedida que Heacutercules tem em relaccedilatildeo ao seu poder 32 Vimos no terceiro capiacutetulo que o corpo dela foi estropiado a cabeccedila foi esmagada devido agrave violecircncia de Heacutercules

142

Caecus dolore es manibus irati Herculis occidere meruit perdidit comitem Lichas saeuire in ipsum corpus exanime impetus atque ira cogit Cur minis nostris caret ipsum cadauer Pabulum accipiant ferae (vv 1459-1463)

O menosprezo de Heacutercules perante o sofrimento do filho (v 1459) eacute notoacuterio

Todos os seus sentimentos estatildeo centrados em si e numa nova forma de vinganccedila natildeo

menos saeua do que as anteriores Lembra o modo como despedaccedilou o corpo de Licas

prometendo natildeo ser menos severo com o corpo de Dejanira Revelador de uma nova

impetuosidade satildeo os vocaacutebulos escolhidos o dolor (cf v 1459) que leva a que a alma

fique cega (v 1459 caecus) a ira cuja forccedila eacute sugerida pelo poliptoto pela metoniacutemia

e pela conjunccedilatildeo copulativa a ligar este affectus a um outro o impetus (v 1459

manibus irati v 1462 ira vv 1461-1462 impetus atque ira) minis (v 1462)

Heacutercules tem consciecircncia de que todas estas passiones estatildeo a afectaacute-lo mas natildeo

procura um meio de paraacute-las antes se sente instigado a cometer mais uma acccedilatildeo iacutempia

Apenas modera o seu furor quando descobre que quem provocou o seu sofrimento natildeo

foi Licas ou Dejanira mas Nesso33 o centauro que ajudou Dejanira a atravessar o rio e

tentou violaacute-la sendo por isso castigado por Heacutercules

Para compreendermos um pouco melhor a proacutepria psicologia da personagem

procurando ver na linguagem e comportamentos do Alcida aspectos que ilustrem os

seus erros enquanto caraacutecter natildeo-estoacuteico apresentamos alguns quadros um primeiro

que diz respeito agrave ldquolinguagem da emoccedilatildeordquo34 em Hercules Furens e Hercules Oetaeus

seguido de um esquema que demonstra as oscilaccedilotildees do protagonista que ora cai em

sucessivos erros dominado pelo furor ou pela ira culminando em scelera ou freia os

sentimentos resignando-se ao destino

33 A partir deste ponto Heacutercules muda completamente de atitude Aceita a morte natildeo soacute porque reconhece o seu destino mas (e essencialmente) porque ne quis superstes Herculis uictor foret (v 1480) O que o preocupava natildeo era tanto o morrer mas ser vencido por algueacutem mais fraco ou que o seu assassino pudesse viver e triunfar sobre o cadaacutever de Heacutercules 34 Designaccedilatildeo que recolhemos da obra de Maria Cristina Pimentel Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de Seacuteneca 41 onde explica o geacutenero de vocabulaacuterio e de recursos que Seacuteneca escolhe para descrever as paixotildees ldquoSeacuteneca como eacute oacutebvio natildeo descurou esse ponto ndash o da linguagem das suas personagens que eacute aquela que figuras anti-estoacuteicas poderiam ou teriam necessariamente de ter A esses aspectos do discurso de Fedra que correspondem agrave funccedilatildeo emotiva da linguagem chamaremos noacutes a linguagem da emoccedilatildeordquo

143

211 Linguagem da emoccedilatildeo

Hercules Furens

Interjeiccedilotildees 987 1226 1334 Exclamaccedilotildees 920-921 977-978 1156-1157 1221-

1223 1226 Repeticcedilotildees 638-640 931-935 937-938 942-943

980-981 983 1138 1139 1147-11481149 1153 1193-1194 1207-1208 1218 1229-1230 1231 1242-1243 1269-1270 1278 1314 1323

Interrogaccedilotildees retoacutericas 613 631-633 960 996 1216-1217 1227-1228 1283-1284

Longas tiradas a) Momentos de intensidade pateacutetica 1138-1186 1192-1200 1202-1218

1221-1236 1277-1294 1295-1296 1314-1319 1321-1341

b) Periacuteodos que revelam violecircncia 636-637 640-644 773-775 797-805 918-919 989-991 996-1002 1010-1011 1018-1020 1221-1236 1279-1282

c) Periacuteodos que revelam o excesso 603-604 606-615 900-908 920-924 926-939 1281-1282 1284-1294

d) Momento de loucura (sintomas e consequecircncia)

939-989 989-1038

Hercules Oetaeus ndash movido por sentimentos de megalomania e ira35

Interjeiccedilotildees 93 1171 1176-1177 1218 1232 1253 1264 1325 1360 1452

Exclamaccedilotildees 51 56-57 61-62 73-74 93-94 95-96 1134 1171 1177-1178 1181 1185-1186 1191-1206 1231-1232 1253 1258 1260-1261 1264 1302 1324 1364-1365 1371-1372 1435 1445-1446 1448 1459

35 Em Hercules Oetaeus haacute claramente uma evoluccedilatildeo na forma como o heroacutei se move na acccedilatildeo dramaacutetica temos um primeiro momento que corresponde aos seus lamentos porque anseia morar com Juacutepiter ou porque eacute viacutetima da vinganccedila de Nesso ndash nesta parte o heroacutei deixa-se levar pelas paixotildees num segundo momento quando descobre a verdade haacute uma mutaccedilatildeo na forma de reacccedilatildeo de Heacutercules ele reconhece o seu fatum e aceita-o Sendo o objectivo deste quadro o de analisar os passos que revelam a violecircncia e a megalomania de Heacutercules restringimos o estudo ao primeiro momento mencionado

144

Repeticcedilotildees 11 13 16-17 53-55 77 87 95-96 1135 1141 1197-1198 1218 1233 1240-1243 1148 1260 1265 1270-1271 1276-1277 1304-1305 1321 1322-1323 1329-1330 1367-1368 1379 1389-1392 1400 1402

Interrogaccedilotildees retoacutericas 63-64 97-98 1234-1247 Longas tiradas a) Momentos de grande emotividade pateacuteticos

7-8 10-13 1131-1150 1161-1206 1218-1278 1290-1336 1345-1349 1359-1373 1377-1395

b) Periacuteodos que revelam violecircncia 813-81636 1459-1464

c) Periacuteodos que revelam o excesso 8-10 13-98 1137-1150

d) Momentos de loucuradeliacuterio 1399-1401 1432-1447

Vemos nas duas tabelas que Heacutercules eacute a tiacutepica personagem que se deixa levar

pelas emoccedilotildees ora por sentimentos de grandeza vendo na forccedila desmedida a sua uirtus

ora pelos uitia mais violentos furor ira impietas Destes quadros se compreende que

ele eacute claramente exemplo de uma personagem anti-estoacuteica

Haacute contudo diferenccedilas entre os dois quadros No segundo haacute mais exemplos de

interjeiccedilotildees de exclamaccedilotildees e de repeticcedilotildees que estatildeo associados ao lamento aos

pedidos constantes de Heacutercules para abandonar a terra que ficou liberta de todos os

monstros Neste caso haacute momentos com grande carga emotiva particularmente no

monoacutelogo que inicia o acto I O desespero do heroacutei que relembra todos os seus

trabalhos todas as vitoacuterias alcanccediladas sobre os iacutempios ansiando por poder fazer parte

dos astros eacute total

No Hercules Furens haacute mais exemplos de periacuteodos que revelam violecircncia por

parte do protagonista Heacutercules eacute violento na forma como castiga os tiranos no modo

como destroacutei a sua casa (por metoniacutemia a famiacutelia) e natildeo eacute menos violento quando

pretende vingar-se de si proacuteprio pelo crime ousado

Uma outra diferenccedila entre as duas trageacutedias estaacute no tratamento da proacutepria

loucura cujos sintomas apesar de semelhantes (Heacutercules tem visotildees nos dois

momentos) natildeo terminam da mesma forma No Furens a loucura tem a duraccedilatildeo

suficiente para matar filhos e esposa No Oetaeus a sua dementia estaacute mais proacutexima do

deliacuterio do que da loucura propriamente dita Tem um curto espaccedilo de tempo motivado

36 Apesar de ser Hilo a falar ele reproduz o discurso de Heacutercules que revela crueldade uma vez que ateacute de um cadaacutever se vinga

145

ou pela exaustatildeo ou por uma nova dor provocada pela veste envenenada que o acorda

para a realidade

Estas diferenccedilas tecircm que ver com a proacutepria evoluccedilatildeo do protagonista e com a

mensagem que se pretende veicular As caracteriacutesticas da personagem satildeo muito

semelhantes se natildeo as mesmas nas duas obras Heacutercules eacute violento tanto no Furens

como no Oetaeus Mas se no primeiro haacute um processo que desancadeia a ruiacutena do

protagonista que vai sendo levado pela ferocidade do seu caraacutecter e nem no momento

final em que se resigna com o permanecer vivo deixa de parte os seus iacutempetos no

segundo haacute uma gradaccedilatildeo ascendente que culmina no perfeito sapiens como podemos

ver a partir dos dois esquemas que se seguem

146

212 Da decadecircncia da uirtus fiacutesica de Heacutercules agrave elevaccedilatildeo agrave categoria de

sapiens

Hercules Furens - Da uirtus fiacutesica agrave decadecircncia de Heacutercules ndash uma nova

concepccedilatildeo de uirtus (moral)

bullChega vitorioso a Tebas (destruiccedilatildeo das barreiras entre a vida e a morte) - vv592-615

bullDescoberta da ameaccedila de Lico e consequente morte do tirano - vv 629-640895-899

bullPrimeiros sintomas de perturbaccedilatildeo - vv 939-952bullLoucura do heroacutei e consequente morte da famiacutelia heraclida - vv 955-1038

bullHeacutercules desmaia exausto depois da chacina e no momento em que Anfitriatildeose preparava para ser viacutetima voluntaacuteria do filho - vv 1039-1049

bullAdormecimento fiacutesico e psicoloacutegico do Alcida - vv 1050-1093

bull Acorda para uma realidade que natildeo compreende imediatamente mas de quevai tendo percepccedilatildeo e reconhecendo por meio de interrogaccedilotildees retoacutericas - vv1138-1159a

bullReconhece os filhos e a mulher toma consciecircncia de que o autor do scelus quetanto procurava eacute ele proacuteprio - vv 1159b-1200

bull Procura natildeo isento de paixotildees eg ira uma forma de punir o seu scelus Vecircno suiciacutedio um modo adequado para pocircr termo agrave vida - vv 1202-1218

bullNatildeo aceita qualquer argumento de Anfitriatildeo ou de Teseu natildeo moderando o seuestado passional - vv 1240-1245

bull Vecirc-se obrigado por Anfitriatildeo a continuar a viver sob a ameaccedila de umanova morte a de Anfitriatildeo ficando Heacutercules responsaacutevel por mais essecrime Apenas esta ameaccedila trava o heroacutei que aceita este novo trabalhoviver depois de cometer filiciacutedio e uxoriciacutedio - 1316-1319a

147

Hercules Oetaeus ndash da ira a sapiens

O sentido que atribuiacutemos agraves setas de esquema visam clarificar a descida contiacutenua

do heroacutei no Hercules Furens que estagna as emoccedilotildees mas natildeo por completo Jaacute no

Hercules Oetaeus podemos verificar que haacute uma gradaccedilatildeo igualmente descendente que

representa tal como no Furens a decadecircncia dos valores do heroacutei porque movido por

sentimentos passionais Contudo nesta trageacutedia daacute-se a jaacute comentada mudanccedila que

ocorre no momento do reconhecimento da verdadeira causa da dor fiacutesica levando a uma

transformaccedilatildeo completa do estado psicoloacutegico do protagonista que passa de lamentoso

bullMonoacutelogo de Heacutercules em que pede com insistecircncia a Juacutepiter que lhe concedaum lugar nas moradas celestes - vv 1-98

bullRecebe a tuacutenica embebida no sangue de Nesso que lhe vai corroendo a pele emuacutesculos - vv 786-805

bullMata Licas apenas com o seu olhar terriacutevel e desfaz-se do corpo com crueldade -vv 810-822

bullTenta arrancar a tuacutenica mas como ela estaacute colada ao corpo ao tirar pedaccedilos daveste a esta vecircm agarrados pedaccedilos da sua proacutepria carne Nem a aacutegua acalma asdores que o sangue do centauro provoca nos membra de Heacutercules - vv 825-835

bullPretende vingar-se do corpo de Dejanira mesmo jaacute exacircnime porque desconhecea verdadeira natureza dos faacutermacos que devoram o seu corpo - vv 1461-1463

bullDescobre a natureza dos filtros que percorrem os seus membra e reconheceo seu destino ao recordar uns antigos oraacuteculos que profetizaram o seuuacuteltimo momento Sabe que desse dia natildeo passaraacute aceitando a morte com aimpassibilidade estoacuteica - vv 1472-1487

bull A forma como o heroacutei morre na pira faz dele um modelo estoacuteico a seguir vv1609-1755

bull Heacutercules entra nas moradas celestes porque lhe foi reconhecido o seu valor -vv 1963-1976

148

a destemido e enfrenta o seu novo trabalho com a impassibilidade proacutepria de um

estoacuteico

22 Hercules Furens e Hercules Oetaeus ndash o suiciacutedio

No terceiro capiacutetulo vimos que tal como em Heracles o heroacutei considera a

possibilidade de se suicidar como forma de purificar a terra da sua mancha monstruosa

(o filiciacutedio e o uxoriciacutedio) Neste primeiro momento poreacutem eacute-lhe impossiacutevel a escolha

de morrer pela necessidade que os outros tecircm dele (caso de Anfitriatildeo) e por estar ainda

dominado pelas suas proacuteprias paixotildees Como explica Cristina Pimentel

O suiciacutedio nestas circunstacircncias seria o resultado da ira contra si mesmo e do tumultus em que se encontra seria consequecircncia de um furor que natildeo o abandonou () Na perspectiva estoacuteica poreacutem as adversidades da vida por exemplo a perda de quem amamos natildeo justificam a morte Todo esse sofrimento faz parte da vida como uma prova que deus destina aos que mais quer aos que mais ama37

Cumpre entatildeo a Heacutercules nas palavras de Anfitriatildeo (Nunc Hercule opus est

perfer hanc molem mali ndash v 1239) e nas de Teseu38 continuar a viver aceitando esse

desafio com a mesma forccedila que teve para enfrentar os trabalhos

Recordando o acto V no momento em que desperta do sono da loucura

acordando para a realidade cruel o heroacutei dominado pela ira procura um caminho

penoso para expiar o seu scelus Na enumeraccedilatildeo de escolhas possiacuteveis que possam

castigaacute-lo pelas suas acccedilotildees demonstra um espiacuterito revoltado contra si mesmo e

desesperado por natildeo encontrar a melhor opccedilatildeo E se o impulso o leva a desejar queimar

as suas armas (porque foram os instrumentos de Juno) ou a indagar um caminho que o

leve agrave morte tal como descobrira um para entrar e sair dos Inferni tais decisotildees devem-

-se a ter perdido tudo a razatildeo as armas a gloacuteria a mulher os filhos e as matildeos (vv

1259-1261 cuncta iam amisi bona mentem arma famam coniugem natos manus

etiam furorem)

37 Maria Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo 39 38 Surge et aduersa impetu perfringe solito nunc tuum nulli imparem animum malo resume nunc magna tibi uirtute agendum est Herculem irasci ueta (vv 1274-1277)

149

Heacutercules reconhece que excedeu todos os limites e deve pagar por esse excesso

uma vez que a tudo levou a perdiccedilatildeo Apesar de reconhecer o seu erro natildeo consegue

moderar o seu espiacuterito (e por isso permanece no error) de tal forma que natildeo aceita

qualquer dos argumentos apresentados por Anfitriatildeo39 nem os de Teseu que o

aconselha a recuperar o seu antigo valor (vv 1276-1277) Heacutercules natildeo descansa

enquanto natildeo se vingar em si proacuteprio de tal forma que em resposta ao amigo tece

consideraccedilotildees sobre si mesmo que satildeo significativamente negativas Ele eacute monstrum

impium saeuumque et immite ac ferum (v 1280)40 e por isso como ele fez com todos

os monstros com os quais se defrontou tem de ser destruiacutedo conare aggredi ingens

opus labore bis seno amplius (vv 1281-128241)

Soacute freia as suas emoccedilotildees ante a ameaccedila paterna de que se Heacutercules se matar

seraacute autor de uma nova morte agora voluntaacuteria e consciente a de Anfitriatildeo Eacute sob esta

ameaccedila que Heacutercules opta por viver considerando essa decisatildeo como uma nova tarefa e

uacuteltima no sentido em que eacute mais exigente succumbe uirtus perfer imperium patris (v

1315) contudo natildeo deixa de vacilar nesta nova empresa porque o scelus eacute para o

Alcida de tal modo hediondo que o Sol prefere olhar para Ceacuterbero do que para o heroacutei

Teseu fecha a acccedilatildeo dramaacutetica integrando o Alcida numa nova comunidade e

purificando-o da sua maacutecula

O mesmo natildeo acontece em Hercules Oetaeus Heacutercules volta a apontar como

soluccedilatildeo o suiciacutedio Uma vez liberto de tudo e de todos Heacutercules acolhe a morte sereno

Eacute neste tracircmite longo e doloroso da sua vida que se vai aproximando do ser estoacuteico

livre dos seus lamentos e choro anteriores (porque desconhecia o seu destino) vemos

um outro Alcida que calcula friamente a melhor maneira de morrer de forma a que seja

a mais digna do seu valor Nunc mors legatur clara memoranda inclita me digna

prorsus nobilem hunc faciam diem (vv 1481-1482) Consegue vencer todas as suas

paixotildees pelas quais se deixou dominar e aceita impassiacutevel o seu destino Jaacute como

sapiens Heacutercules faz uns uacuteltimos preparativos antes do momento final orienta os que

estatildeo proacuteximos indicando-lhes que devem cortar as aacutervores do Eta para acolher o seu 39 Como sugere Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo 38-39 ldquoNatildeo serve como justificaccedilatildeo ou desculpa que [Heacutercules] tenha cometido tais crimes sob o efeito do furor que Juno lhe enviou O heroacutei lembra ao pai que saepe error ingens sceleris obtinuit locum (v 1238)rdquo O heroacutei tem plena consciecircncia de que avaliou mal a sua uirtus resultando desta maacute avaliaccedilatildeo o scelus (vv 1237-1238) 40 Notem-se os adjectivos em cadecircncia reforccedilados pela assonacircncia em nasal e pelo polissiacutendeto que engrandecem o substantivo monstrum caracteriacutestica inerente do Alcida 41 Vejam-se tambeacutem os versos seguintes Neles se observa uma sucessatildeo de imagens crueacuteis que se traduzem numa procura desesperada do protagonista de eliminar a sua existecircncia

150

corpo a Hilo daacute instruccedilotildees para que receba Iacuteole como sua esposa como forma de

compensaacute-la por ter ficado privada da famiacutelia e do seu reino e por ter-lhe reduzido a

vida agrave escravidatildeo agrave sua matildee aconselha-a a evitar lamentar a morte do filho pelo valor

de Heacutercules (vv 1681-1698) por outra parte oferece o seu arco e aljavas a Filoctetes

como recompensa por deitar a uacuteltima tocha que vai consumir o corpo do heroacutei (vv

1648-1659)

A morte de Heacutercules eacute descrita por Filoctetes Este revela que o Alcida

conquistou tudo inclusive o fogo o uacutenico elemento natural que o protagonista ainda

natildeo tinha defrontado (vencera os mares a terra e tudo o que ela esconde ndash os Inferni o

ar restava-lhe o fogo) Esse iam flammas nihil ostendit ille (vv 1610-1611)

Heacutercules acolheu o fogo com tranquilidade e no momento em que Alcmena

desesperada por ver o filho sobre a pira desnuda o peito entoando lamentos e gritando

Heacutercules aconselha-a a refrear o acircnimo42 e a poupar as laacutegrimas para que a sua morte

seja valorosa (vv 1668-1679) O Alcida torna-se exemplo de como se pode enfrentar a

morte acolhendo-a quis sic triumphas laetus in curru stetit uictor (vv 1683-1684) A

metaacutefora dos aurigas que no seu carro visam chegar agrave vitoacuteria simboliza a imagem do

guerreiro que chega agrave meta final Ningueacutem ousou profanar a sua gloacuteria total mas todos

que assistiram agrave morte do protagonista natildeo ousaram derramar uma laacutegrima (vv 1685-

1687)

Eacute o proacuteprio heroacutei quem encoraja os que o acompanharam ateacute ao monte Eta a

lanccedilarem as suas tochas sobre a pira para que o fogo possa consumi-lo Jaacute o acircnimo

valente do Alcida ansiava por abandonar o deacutebil corpo desgastado pela dor (vv 1717-

1726) Quando o fogo hesitante receia enlanccedilar-se sobre o corpo ferido o protagonista

estimula-o perseguindo-o (vv 1728-1730) Como nota Segurado e Campos ldquoO fogo

vem aqui encarado quase como se de um ser vivo se tratasse ele foge diante de

42 Seacuteneca escreveu trecircs Consolationes uma dirigida a Poliacutebio outra a Heacutelvia matildee do filoacutesofo e outra a Maacutercia Nessas trecircs obras Seacuteneca procura aconselhar o seu destinataacuterio a refrear o seu acircnimo pela perda de um familiar (no caso de Poliacutebio do irmatildeo no de Heacutelvia a ausecircncia do filho Seacuteneca no exiacutelio no caso de Maacutercia de um filho) No que respeita a Consolatio ad Marciam 482-3 exorta Maacutercia a abandonar o seu lamento contiacutenuo e excessivo Manet quidem tibi Marcia etiamnunc ingens tristitia et iam uidetur duxisse callum non illa concitata qualis initio fuit sed pertinax et obstinata tamen hanc quoque tibi aetas minutatim eximet quotiens aliud egeris animus relaxabitur Nunc te ipsa custodis multum autem interest utrum tibi permittas maerere an imperes Quanto magis hoc morum tuorum elegantiae conuenit finem luctus potius facere quam expectare nec illum opperiri diem quo te inuita dolor desinat ipsa illi renuntia

151

Heacutercules como que tem medo do heroacutei mas este obriga-o a consumi-lo e vence-o pela

coragem com que o suportardquo 43

Enquanto as chamas destruiacuteam o seu corpo Heacutercules permaneceu immotus

inconcussus (v 1741) Mais do que isso in neutrum latus correpta torquens membra

adhortatur monet gerit aliquid ardens (vv 1741-1743)

Toda a tranquilidade de espiacuterito que demonstra ao aceitar a morte sem a

questionar traduz-se em tanta maiestas uiro (v 1746) Filoctetes natildeo estranha a

coragem revelada pelo Alcida que nem sequer os olhos fecha quando o fogo atinge a

sua face e a devora (vv 1753-1755) E por isso exclama Quo nemo uitam (v 1609) Foi

laetus que Heacutercules acolheu o fogo (v 1609)

A forma como Heacutercules se liberta do seu corpo eacute claramente um modelo que

Seacuteneca sugere Para o filoacutesofo a alma deve abandonar o corpo quando este morre e natildeo

sair abruptamente mas suavemente desprender-se dele

Ab hoc modo aequo animo exit modo magno prosilit nec quis deinde relicti eius futurus sit exitus quaerit sed ut ex barba capilloque tonsa neglegimus ita ille diuinus animus egressurus hominem quo receptaculum suum conferatur ignis illud excludat an terra contegat an ferae distrahant non magis ad se iudicat pertinere quam secundas ad editum infantem44

Pela maneira como morreu completamente indiferente agrave dor Heacutercules alcanccedilou

a aeterna uirtus (v 1835) que Filoctetes louva porque o heroacutei conseguiu alcanccedilar as

moradas celestes (vv 1942-1943) A parte mortal fora consumida pelo fogo restando a

divina (v 1968) que ascendeu agraves moradas celestes Segundo Cristina Pimentel ldquoE eacute

sem duacutevida por isso e natildeo porque o mito assim obriga que Heacutercules eacute recebido entre os

deuses e que Seacuteneca termina a peccedila lembrando que a verdadeira imortalidade eacute a

memoacuteria do que de bem fizemos em vida que eacute o exemplo que aos outros podemos

deixar da nossa uirtus da nossa coragemrdquo45 Na verdade quando caminha para a morte

Heacutercules julga que regressaraacute ao mundo inferior (vv 1512-1517) e eacute soacute no momento

em que dirige as suas uacuteltimas preces a Juacutepiter que volta a pedir-lhe que lhe permita 43 Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos ldquoO Simbolismo do Fogo nas Trageacutedias de Seacutenecardquo 196 44 Seacuteneca Ad Lucilium Epistolae Morales 9234 lsquoA alma desprende-se dele ora com serenidade ora de firme propoacutesito ndash busca a sua saiacuteda sem se importar com a sorte dessa pobre coisa que para aiacute fica Noacutes natildeo ligamos importacircncia aos pecirclos da barba ou aos cabelos que acabaacutemos de cortar do mesmo modo agrave nossa alma divina ao preparar-se para abandonar o corpo de nada importa a sorte dada ao invoacutelucro ndash se o fogo o consome se a terra o cobre ou as feras o despedaccedilam para ela isso tem tanta importacircncia como para o receacutem-nascido a placentarsquo 45 Maria Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo 43

152

entrar nas moradas paternas (vv 1695-1715) Soacute nos versos que antecedem o fecho da

trageacutedia ficamos a saber que Heacutercules ascendeu agraves moradas celestes quando o filho

consola a matildee

Non me gementis stagna Cocyti tenent nec puppis umbras furua transuexit meas iam parce mater questibus manes semel umbrasque uidi quidquid in nobis tui mortale fuerat ignis euictum tulit paterna caelo pars data est flammis tua proinde planctus pone quos nato paret genetrix inerti luctus in turpes eat uirtus in astra tendit in mortem timor (vv 1963-1971)

O heroacutei aconselha a matildee a refrear o seu desespero uma vez que ele venceu a

morte e agora habita junto de Juacutepiter Na Consolatio ad Marciam Seacuteneca exorta Maacutercia

a libertar-se da dor que a consome porque a dor e a agonia constantes natildeo ressuscitaratildeo

os mortos

si fletibus fata uincuntur conferamus eat omnis inter luctus dies noctem sine somno tristitia consumat ingerantur lacerato pectori manus et in ipsam faciem impetus fiat atque omni se genere saeuitiae profecturus maeror exerceat Sed si nullis planctibus defuncta reuocantur si sors inmota et in aeternum fixa nulla miseria mutatur et mors tenuit quidquid abstulit desinat dolor qui perit Quare regamur nec nos ista uis transuersos auferat Turpis est nauigii rector cui gubernacula fluctus eripuit qui fluuitantia uela deseruit permisit tempestati ratem at ille uel in naufragio laudandus quem obruit mare clauum tenentem et obnixum46

A correctio introduzida pela adversativa sed permite acentuar a ideia de que

Maacutercia desperdiccedila a sua vida a lamentar-se desnecessariamente As suas laacutegrimas de

nada lhe poderatildeo valer jaacute que o destino eacute imutaacutevel Eacute de notar ainda as semelhanccedilas

entre os dois textos o recurso aos mesmos vocaacutebulos (luctus turpis eo ndash a forma verbal

estaacute em ambos os casos na terceira pessoa do singular do conjuntivo presente) assim

como a proacutepria semacircntica dos dois passos ndash eacute inuacutetil consumir a vida num pranto

incessante ndash o que permite criar um certo viacutenculo entre esta consolatio e a trageacutedia

46 Seacuteneca Consolatio ad Marciam 662-3

153

Em siacutentese o modo como Filoctetes vai descrevendo a morte do heroacutei sobre a

pira alude a aspectos estoacuteicos em particular pela forma como enfrenta a consumaccedilatildeo do

corpo pelo fogo A palavra ignis assume nesta trageacutedia exemplar importacircncia uma vez

que eacute por meio do fogo que Heacutercules se purifica queimando tudo o que constituiacutea sua

mortalidade e impureza O fogo assume neste contexto particular a funccedilatildeo de elemento

purificador

154

CONCLUSAtildeO

Perhaps Lucius Annaeus Seneca has suffered more than any other ancient figure for utilizing monstrosities and grotesqueries in all of his plays He has been considered unClassical inartistic morbid abominable and mentally unbalanced for creating the kind of drama that he does Only very recently have critics commenced to put aside the habit of treating him as a tasteless aberration or a pathetically incompetent imitator of the Greek tragic tradition and instead attempted to accept his plays and to describe them for what they are1

Com este estudo procuraacutemos demonstrar que a trageacutedia Hercules Furens de

Seacuteneca natildeo eacute uma mera imitaccedilatildeo ou adaptaccedilatildeo do seu modelo o Heracles de Euriacutepides

haacute uma recriaccedilatildeo na forma como as personagens satildeo representadas No decorrer da

anaacutelise ao compararmos cada uma das figuras fomos encontrando mais diferenccedilas do

que semelhanccedilas Podemos mesmo afirmar que satildeo personagens diferentes apenas tecircm

o mesmo nome o Anfitriatildeo de Heracles reconhecido pela sua sensatez e prudecircncia

opotildee-se ao Anfitriatildeo de Seacuteneca que se deixa levar pelo metus pela aegritudo e a spes o

pessimismo da Meacutegara euripidiana contrasta com os sentimentos de metus timor e

odium da Meacutegara de Hercules Furens Lico o διώλλυς e o tirano euripidiano opotildee-se agrave

personagem de Seacuteneca que eacute implacaacutevel e natildeo cede a nenhum pedido (Lico eacute saeuus e

tumidus) o Teseu da peccedila Heracles eacute o modelo da amizade e de governador de Atenas

a cidade da democracia em Seacuteneca eacute-lhe reservada a funccedilatildeo de narrador eacutepico e de

personagem-prolongamento que dissuade Heacutercules de se suicidar Iacuteris e Lissa natildeo

aparecem em Seacuteneca mas satildeo ldquosubstituiacutedasrdquo por Juno que representa a nouerca por um

lado e uma forccedila exterior e destruidora por outro ndash vem armada de odium ira dolor

funcionando como duplo de Heacutercules para o destruir

No caso do protagonista a forma como eacute focada a ambivalecircncia do caraacutecter do

heroacutei em cada peccedila eacute igualmente diacutespar A ἀρετή que caracteriza Heacuteracles eacute posta em

causa quando o heroacutei eacute submetido pela loucura o protagonista mata crianccedilas e uma

mulher seres indefesos julgando que se vingava da famiacutelia de Euristeu A βία eacute aqui

notoacuteria e reprovaacutevel

Heacutercules eacute mais confiante na sua forccedila do que Heacuteracles o protagonista da

trageacutedia de Seacuteneca confia demasiado na sua uirtus Essa confianccedila eacute excessiva e

1 Anna Lydia Motto John R Clark ldquoSenecarsquos visionary dramardquo Classica 21 (1996) 157

155

conduz inevitavelmente agrave desgraccedila (186-187 201)2 De facto o protagonista natildeo tem

qualquer controlo sobre as suas emoccedilotildees eacute insaciaacutevel sanguinaacuterio deseja que Juno lhe

envie mais monstros para ele derrotar Nem no final da trageacutedia depois de ter

enlouquecido e massacrado a mulher e os filhos imolando-os como viacutetimas de um

sacrifiacutecio aos deuses nem mesmo assim consegue moderar o seu acircnimo Eacute tomado pela

ira e pela saeuitia que o conduz a um violento desejo de se suicidar Nada parece

demovecirc-lo suacuteplicas ou conselhos Apenas uma ameaccedila agrave sua uirtus o consegue travar

quando Anfitriatildeo o intimida afirmando que iraacute morrer se Heacutercules natildeo puser um freio ao

seu iacutempeto suicida ndash a morte do pai do heroacutei seria mais um scelus com a diferenccedila de

que agora seria voluntaacuterio Nessa medida o Alcida eacute obrigado a permanecer vivo e a

resistir agrave dor

A descriccedilatildeo da loucura eacute outro toacutepico divergente nas duas peccedilas Lissa conta a

Iacuteris os primeiros sintomas da demecircncia de Heacuteracles e o Mensageiro completa narrando

as manifestaccedilotildees fiacutesicas e psiacutequicas da loucura e as consequecircncias que decorreram da

perturbaccedilatildeo mental Em Hercules Furens ao descrever a loucura do heroacutei e os seus

efeitos o filoacutesofo permite que o espectadorleitor verifique ldquoao vivordquo a relaccedilatildeo

psicossomaacutetica entre as paixotildees (fisionomia e atitude fiacutesica) Por esse motivo o filoacutesofo

natildeo necessita de um Mensageiro Tudo se passa frente aos olhos do espectador agrave

excepccedilatildeo das mortes para que se veja ilustrado o comportamento de um ser humano

dominado pelas paixotildees e as consequecircncias que daiacute resultam

Estas diferenccedilas explicam-se mercecirc de objectivos diversos que moviam cada um

dos tragedioacutegrafos Em Euriacutepides os temas que estatildeo subjacentes na trageacutedia Heracles

satildeo a ausecircncia de amigos vs amizade a loucura a fragilidade humana o destino o

suiciacutedio a forccedila fiacutesica vs a forccedila moral Teseu critica o desejo de Heacuteracles de se

suicidar Para o soberano de Atenas o acto eacute irreflectido Jacqueline de Romilly sugere

que

Heracles could not act like just anybody (1248 ἐπιτυχόντος ἀνθρώπου lsquoa chance-met fellowrsquo) he had to reject a suicide which did not befit a man who had endured so many trials (1250 πολλὰ δὴ τλάς lsquohaving endured muchrsquo) and rendered so many services to

2 Vide Norman T Pratt ldquoThe Stoic Base of Senecan Dramardquo Transactions and Proceedings of the American Philological Association 79 (1948) 8

156

mortals (1252 εὐεργέτης βροτοῖσι lsquoa benefactor for mortalsrsquo) This is making understood that the true hero does not commit suicide3

Surge a Heacuteracles um novo desafio aceitar o seu destino O heroacutei entende que

teraacute que suportar a adversidade evitando que os seus inimigos o considerem cobarde

(vv 1349-1357)4 A forccedila moral ganha expressatildeo no final da trageacutedia por oposiccedilatildeo agrave

forccedila fiacutesica Como nota Andreacute Rivier ldquoLrsquoinflexibiliteacute du heacuteros naicirct de sa force drsquoacircmerdquo5

Em Seacuteneca as trageacutedias tecircm uma funccedilatildeo pareneacutetica Aplicando as palavras de

Francesco Giancotti fabula docet6 Para esse propoacutesito o filoacutesofo toma as personagens

como exempla ou παραδείγματα Os caracteres servem de ilustraccedilatildeo de uma teoria

moral As descriccedilotildees dos vaacuterios uitia permitem ao filoacutesofo reencaminhar o homem para

a procura da uirtus Seacuteneca faz pois do binoacutemio furor mens bona o eixo axial das suas

trageacutedias Francesco Giancotti explica ldquoLrsquoantitesi fra furor passionale e mens bona ()

egrave il leitmotiv lrsquoidea-madre del corpus tragico senechiano La mens bona e il furor

passionale costituiscono rispettivamente il fondamentale valore e il fondamentale

disvalore della concezione immanente alle tragedie di Seacutenecardquo7

Todas as personagens de Seacuteneca satildeo movidas por uma ou vaacuterias passiones O

Heacutercules de Hercules Furens entra no caminho do uitium porque

a) exulta e engrandece-se com os trabalhos que Juno lhe envia ndash um sapiens

permaneceria indiferente

b) entrega-se a tarefas fuacuteteis acabando por natildeo ter tempo nem dar qualquer

atenccedilatildeo aos que efectivamente precisam da sua ajuda do seu apoio (vv 209-213)

c) natildeo sabe fazer um bom uso da forccedila extraordinaacuteria que possui utilizando-a

indiferentemente para bons e maus fins

d) procura natildeo uma via para a uirtus mas para a gloacuteria pessoal

e) consegue vencer quase todos os obstaacuteculos mas eacute vencido pela morte de

Meacutegara e dos filhos natildeo conseguindo ser impassiacutevel agrave dor ndash os estoacuteicos encaram os

males que o Destino envia como uma forma de testar as suas capacidades8

3 Jacqueline de Romilly ldquoThe Rejection of Suicide in Heraclesrdquo in Judith Mossman (ed) Euripides (Oxford Oxford University Press 2003) 290 4 Para T L B Webster The Tragedies of Euripides (Londres Methuen 1967) 192 o tema fundamental que Euriacutepides faz representar nesta trageacutedia eacute a loucura e recuperaccedilatildeo de Heacuteracles depois de ter enlouquecido 5 Andreacute Rivier Essai sur le Tragique drsquoEuripide (Paris Diffusion du Boccard 1975) 106 6 Francesco Giancotti Saggio sulle Tragedie di Seneca 52 7 Francesco Giancotti Saggio sulle Tragedie di Seneca 55 8 Segundo Norman Pratt ldquoThe Stoic Base of Senecan Dramardquo Transactions and Proceedings of the American Philological Association 79 (1948) 9 ldquoThe De Providentia presents the question why good

157

Satildeo ainda sucessivos os seus errores erro na concepccedilatildeo da sua uirtus erro de

avaliaccedilatildeo quando julga que estaacute a matar os filhos de Lico e quando pensa que estaacute a

matar Juno desde o primeiro momento em que entra em cena ele mostra que natildeo

procura um equiliacutebrio emocional mas vai decaindo sucessivamente culminando na

loucura

Em Hercules Oetaeus haacute uma evoluccedilatildeo da personagem No decorrer da acccedilatildeo

desta trageacutedia Heacutercules vai traccedilando o caminho para a virtude no modo como enfrenta a

dor Quando descobre que o Destino marcou para esse dia a sua morte aceita-o

inquestionavelmente Nesse sentido o heroacutei tornou-se no ideal do sapiens ao ver o seu

corpo a ser consumido pelas chamas mantendo a coragem a serenidade a firmeza e a

impassibilidade natildeo fechando os olhos quando as chamas lhe devoravam a face

Por fim pretendemos tornar evidente que as trageacutedias do filoacutesofo tecircm idecircntico

escopo ao das obras em prosa Foi com esse propoacutesito que estabelecemos paralelos entre

alguns exemplos das falas do Coro e passos das outras obras do autor Tivemos

oportunidade de verificar que o vocabulaacuterio e os recursos estiliacutesticos usados satildeo os

mesmos Como afirma Norman Pratt

Such then is the relationship between the essays and the plays analyzed as groundwork for continued study Stoicism shaped the nature of this drama both in superficial and in fundamental ways The influence of philosophy is much deeper than any simple correspondence between the themes of the two genres Stoic dogma concerning evil and the conflict between reason and passion lies beneath the plays in various aspects including choral passages concept of character introspection and tone to a degree which amounts to a distinctive concept of the tragic9

Enquanto as obras em prosa satildeo essencialmente uma reflexatildeo teoacuterica sobre o

Bem e o Mal e procurem desviar o seu leitor do caminho do uitium as trageacutedias satildeo a

ldquopraacuteticardquo dos males que podem atingir o Homem Ao socorrer-se de imagens violentas

de cracircnios a serem esmagados de sangue que mancha as paredes ou que eacute espalhado

pelo eacuteter Seacuteneca permite que o espectadorleitor contemple ou mesmo visualize (por

meio dos recursos estiliacutesticos como a anaacutefora o quiasmo as construccedilotildees paraleliacutesticas

uariatio sententiae iteraccedilotildees) os malefiacutecios dos affectus recordando na voz do Coro men are allowed to suffer and the conventional answer that misfortune is intended to test and develop mans spirit (16) Adversity is merely discipline for virtue pro ipsis esse quibus eveniunt ista quae horremus ac tremimus (32) From this it follows that evil is to be welcomed praebendi fortunae sumus ut contra illam ab ipsa duremur (412)rdquo 9 Norman Pratt ldquoThe Stoic Base of Senecan Dramardquo Transactions and Proceedings of the American Philological Association 79 (1948) 10-11

158

que eacute preferiacutevel viver em secura quies e tranquillitas animi evitando uma vida

desregrada ou movida pela esperanccedila

159

BIBLIOGRAFIA

1 Ediccedilotildees Comentaacuterios e Traduccedilotildees de Euriacutepides e de Seacuteneca

11 Euriacutepides

Euripides Fabulae I-III ed James Diggle (Oxford Oxford University Press

1984-1994)

Euripidesrsquo Heracles intr e comentaacuterio Godfrey W Bond (2ordf Ediccedilatildeo Oxford

Clarendon Press 1988)

Euripides Heracles intr trad e comentaacuterio Shirley Barlow (Warminster Aris

and Philips 1996)

EURIPIDE Theacuteacirctre III trad Henri Berguin Georges Duclos (Paris Garnier

1955)

EURIPIDE Trageacutedies Complegravetes I-II trad Marie Delcourt-Curvers (Paris

Gallimard 2006)

EURIPIDE Heacuteraclegraves ndash Les Suppliants ndash Ion III trad Leacuteon Parmentier Henri

Gregoire (Paris Les Belles Lettres 1976)

EURIPIDES Helena trad Joseacute Ribeiro Ferreira (Coimbra Festival de Teatro de

Tema Claacutessico 2005)

EURIPIDES Iacuteon trad Frederico Lourenccedilo (Lisboa Ediccedilotildees Colibri 2005 2ordf

tiragem)

EURIPIDES Medeia trad Maria Helena da Rocha Pereira (3ordf ed Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2005)

EURIPIDES Orestes trad Augusta Fernanda de Oliveira e Silva (Coimbra

Instituto Nacional de Investigaccedilatildeo Cientiacutefica 1982)

12 Seacuteneca

a) Trageacutedias

L Annaei Senecae Hercules Furens Troades Phoenissae Medea Phaedra

recensuit Ioannes Viansino (Torino Paravia 1968)

160

L Annaei Senecae Oedipus Agamemnon Thyestes Hercules Oetaeus (incerti

poetae) Octavia recensuit Ioannes Viansino (Torino Paravia 1965)

Senecarsquos Hercules Furens a Critical Text with Introduction and Commentary

ed John G Fitch (Ithaca and London Cornell University Press 1987)

SENECA Tragedies I-II ed e trad John G Fitch (Cambridge Massachusetts

Londres Harvard University Press 2002-2004)

SENECA Tragedies I-II ed Frank Justus Miller (Londres Cambridge

Massachusetts Harvard University Press 1917 reimpr 1968)

SENECA Lucio Anneo Tragedie trad G C Giardina Rita Cuccioli Melloni

(Torino Editrice Torinese 1987)

SEacuteNEgraveQUE Trageacutedies I-II ed e trad Leacuteon Herrman (Paris Les Belles Lettres

1961-1968)

SEacuteNEgraveQUE Theacuteacirctre Complet II ed e trad Florence Dupont (Paris Imprimerie

Nationale 1992)

SENECA Fedra trad Ana Alexandra Alves de Sousa (Lisboa Ediccedilotildees 70

2003)

SENECA Tiestes trad Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos (sl Editorial Verbo

1996)

b) obra em prosa

L Annaei Senecae Ad Lucilium Epistulae Morales recognouit et adnotationes

critica instruxit L D Reynolds I-II (Oxford Oxford University Press 1965) Seacuteneca

Cartas a Luciacutelio trad Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos (Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste

Gulbenkian 1991)

L Annaei Senecae Dialogorum Libri Duodecim recognouit breuique

adnotationes critica instruxit L D Reynolds (Oxford Oxford University Press 1977)

SENEQUE Dialogues I De Ira ed e trad Abel Bourgery (Paris Les Belles

Lettres 1951)

SENEQUE Dialogues III De la Cleacutemence ed e trad Franccedilois Preacutechac (Paris

Les Belles Lettres 1961)

161

SENEQUE Dialogues IV De la Providence De la Constance du Sage De la

Tranquilliteacute de lrsquoAcircme De lrsquoOisiveteacute ed e trad Reneacute Waltz (Paris Les Belles Lettres

1965)

SENEQUE Dialogues II De la Vie Heureuse De la Briegraveveteacute de la Vie ed e trad

Abel Bourgery (Paris Les Belles Lettres 1955)

SENEQUE Questions Naturelles I-II ed e trad Paul Oltramare (Paris Les

Belles Lettres 1929)

SENECA Moral Essays I-II trad John W Basore (Cambridge Massachusetts

Harvard University Press 1928-1932 reimpr 1963 1970)

13 Outros autores

APOLLODORUS The Library I-II ed e trad James George Frazer (Cambridge

Massachusetts Harvard University Press 1961)

CICERO De Fato Paradoxa Stoicorum De Partitione Oratoria trad Harris

Rackham M A (Cambridge Massachusetts Harvard University Press 1942 reimpr

1948)

CICERO De Natura Deorum Academica trad Harris Rackham M A

(Cambridge Massachusetts Harvard University Press 1933 reimpr 1972)

CICERO De Optimo Genere Oratorum Topica trad H M Hubbell (Cambridge

Massachusetts Harvard University Press 1968)

CICERO De Senectute De Amicitia De Diuinatione trad William Armistead

Falconer (Cambridge Massachusetts Harvard University Press 1923 reimpr 1971)

CICERON Tusculanes Tome II (III-V) ed Georges Fohlen trad Jules Humbert

(Paris Les Belles Lettres 1931)

DIOGENES LAERTIUS Lives of Eminent Philosophers II trad Robert Drew

Hicks (Cambridge Massachusetts Harvard University Press 1937 reimpr 1991)

DIOGENES LAERCIO Vida de los Filoacutesofos Ilustres trad Carlos Garciacutea Gual

(Madrid Alianza Editorial 2007 reimpr 2008)

EacuteSQUILO Os Persas trad Manuel de Oliveira Pulqueacuterio (Lisboa Ediccedilotildees 70

1998)

162

Epictetus The Discourses as Reported by Arrian The Manual and Fragments

I-II trad William Abbott Oldfather (Cambridge Massachusetts Harvard University

Press 1925-1928 reimpr 1956-1959)

HOMERO Iliacuteada trad Frederico Lourenccedilo (Lisboa Livros Cotovia 2005)

Marcus Aurelius ed e trad Charles Reginald Haines (Cambridge

Massachusetts Londres Harvard University Press 1916 reimpr 2003) MARCO

AURELIO Pensamentos trad Joatildeo Maia (Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2008)

The Odes of Pindar including The Principal Fragments ed e trad Sir John

Sandys London Harvard University Press 1968

Ovide Les Meacutetamorphoses Tome II (VI-X) ed e trad Georges Lafaye (Paris

laquoLes Belles Lettresraquo 1955) Oviacutedio Metamorfoses trad Paulo Farmhouse Alberto

(Lisboa Livros Cotovia 2007)

SEXTUS EMPIRICUS Against the Physicists Against teh Ethicists trad Robert

Gregg Bury (Cambridge Massachusetts Harvard University Press 1953 reimpr

1968)

Sofistas Testemunhos e Fragmentos introd e trad Maria Joseacute Vaz Pinto Ana

Alexandra Alves de Sousa (Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2005)

SOacuteFOCLES Trageacutedias trad Maria Helena da Rocha Pereira et alii (Coimbra

Minerva 2003)

VERGIacuteLIO Eneida trad Luiacutes M G Cerqueira et alii (Lisboa Bertrand 2003)

2 Dicionaacuterios Concordacircncias

21 Dicionaacuterios e Concordacircncias

A Concordance to Euripides ed James T Allen Gabriel Italie (Groningen

Boumarsquos Boekhuis 1970)

BAILLY Anatole Dictionnaire Grec-Franccedilais (Paris Hachette 1999)

CHANTRAINE Pierre Dictionnaire eacutetymologique de la langue grecque Histoire

des mots (Paris Klincksieck 1999 1ordf ed 1968)

Dicionaacuterio de Latim-Portuguecircs (3ordf ed Porto Porto Editora 2008)

163

ERNOUT Alfred MEILLET Antoine Dictionnaire eacutetymologique de la langue

latine histoire des mots (4ordf ed Paris Klincksieck 1959 reimpr 2001)

GAFFIOT Feacutelix Le Grand Gaffiot Dictionnaire LatinndashFranccedilais (Paris

Hachette 2000)

LIDDELL Henry George SCOTT Robert A Greek-English Lexicon (9ordf ed

Oxford Oxford University Press 1995)

Lucius Annaeus Seneca Tragoediae Index verborum Releves Lexicaux et

Grammaticaux ed Joseph Denooz (Hildesheim Zuumlrich Georg Olms Verlag 1994)

GLARE Peter G W (ed) Oxford Latin Dictionary (Oxford Oxford University

Press 1982 reimpr 2006)

GONCcedilALVES Francisco da Luz Rebelo Vocabulaacuterio da Liacutengua Portuguesa

(Coimbra Coimbra Editora 1966)

GRIMAL Pierre Dicionaacuterio da Mitologia Grega e Romana (Algeacutes Difel 1999)

HORNBLOWER Simon e Antony Spawforth (eds) The Oxford Classical

Dictionary (3ordf ed Oxford Oxford University Press 1996 reimpr 2003)

The Oxford Dictionary of Classical Myth and Religion ed Simon Price Emily

Kearns (Oxford Oxford University Press 2003)

22 Outros

ANTUNES Padre Manuel sj Obra Completa Tomo I Theoria Cultura e

Civilizaccedilatildeo Volume I Cultura Claacutessica (Estudos) ed criacutetica coord Arnaldo do

Espiacuterito Santo (Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2007

BAYET J Histoire Politique et Psychologique de la Religion Romaine (Payot

Paris 1957)

BOARDMAN John GRIFFIN Jasper MURRAY Oswyn (eds) The Oxford History

of Roman World (Oxford Oxford University Press 1991 reimpr 2001)

BURKERT Walter Religiatildeo Grega na Eacutepoca Claacutessica e Arcaica trad M J

Simotildees Loureiro (Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1993)

DODDS E R The Greeks and the Irrational (Berkeley Los Angeles University

of California Press 1951)

EASTERLING P E The Cambridge Companion to Greek Tragedy (Cambridge

Cambridge University Press 1997)

164

GREGORY Justina A Companion to Greek Tragedy (Malden Blackwell 2005

reimpr 2008)

GRAF Fritz Greek Mythology an Introduction trad Thomas Marier (Baltimor

Londres Johns Hopkins University Press 1996)

LOURENCcedilO Frederico Greacutecia Revisitada (Lisboa Cotovia 2004)

MOSSEacute Claude SCHNAPP-GOURBEILLON Annie Siacutentese de Histoacuteria Grega

trad Carlos Carreto (Lisboa Ediccedilotildees Asa 1994)

PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de Histoacuteria da Cultura Claacutessica I

Cultura Grega (3ordf ed Lisboa Serviccedilo de Educaccedilatildeo e Bolsas da Fundaccedilatildeo Calouste

Gulbenkian 2002)

PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de Histoacuteria da Cultura Claacutessica II

Cultura Romana Lisboa Serviccedilo de Educaccedilatildeo e Bolsas da Fundaccedilatildeo Calouste

Gulbenkian 1998

RAWLINGS Louis BOWDEN Hugh Herakles and Hercules Exploring a Graeco-

-Roman Divinity (Wales The Classical Press of Wales 2005)

3 Estudos sobre o Estoicismo

BODSON Arthur La Morale Sociale des Derniers Stoiumlciens Seacutenegraveque Eacutepictegravete et

Marc Auregravele (Paris Les Belles Lettres 1967)

BRENNAN Tad The Stoic Life (Oxford Clarendon Press 2005)

BRUN Jean Les Stoiumlciens (Paris Presses Universitaires de France 1968) BRUN

Jean O Estoicismo trad Joatildeo Amado (Lisboa Ediccedilotildees 70 1986)

DURKHEIM Eacutemile Le Suicide Eacutetude de Sociologie (Paris Presses Universitaires

de France 1930 reimpr 1986)

HOVEN Reneacute Stoiumlcisme et Stoiumlciens Face au Problegraveme de lrsquoAu-Delagrave (Paris Les

Belles Lettres 1971)

INWOOD Brad (ed) The Cambridge Companion to the Stoics (Cambridge

Cambridge University Press 2003)

LOND Anthony A (ed) The Cambridge Companion to Early Greek Philosophy

(Cambridge Cambridge University Press 1999)

165

MOREAU Joseph Stoiumlcisme Eacutepicurisme Tradition Helleacutenique (Paris Librairie

Philosophique J Vrin 1979)

RIST J M Stoic Philosophy (Cambridge Cambridge University Press 1969)

ROBIN Leacuteon A Moral Antiga trad Joatildeo Morais Barbosa (Ediccedilotildees Despertar

sd)

RODIS-LEWIS Geneviegraveve La Morale Stoiumlcienne (Paris Presses Universitaires de

France 1970)

SEDLEY David (ed) The Cambridge Companion to Greek and Roman

Philosophy (Cambridge Cambridge University Press 2003)

SPANNEUT Michel Permanence du Stoiumlcisme de Zeacutenon agrave Malraux (Gembloux

Duculot 1973)

STRANGE Steven K ZUPKO Jack Stoicism Traditions and Transformations

(Cambridge Cambridge University Press 2004)

4 Teoria e Histoacuteria da Literatura

BALDICK Chris The Concise Oxford Dictionary of Literary Terms (Oxford

Oxford University Press 2004)

BOYLE Anthony J Roman Tragedy (Londres Nova Iorque Routledge 2006)

Cambridge History of Classical Literature ii Latin Literature ed Edward John

Kenney (Cambridge Cambridge University Press 1996)

CHAMOUX Franccedilois A Civilizaccedilatildeo Grega na Eacutepoca Arcaica e Claacutessica trad

Pedro Eloacutei Duarte (Lisboa Ediccedilotildees 70 2003)

CHEVALIER Jean GHEERBRANT Alain Dictionnaire des Symboles 4 Vols

(Paris Seghers 1973r)

CITRONI Mario CONSOLINO Franca Ela LABATE Mario e NARDUCCI

Emanuele Literatura de Roma Antiga trad Margarida Miranda e Isaiacuteas Hipoacutelito

(Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2006)

CONTE Gian Biagio Latin Literature A History trad Joseph B Solodow Don

P Fowler e Glen W Most (Baltimore Londres Johns Hopkins University Press 1999)

CUDDON J A The Penguin Dictionary of Literary Terms and Literary Theory

(Londres Penguin Books 1999)

166

FEDELI Paolo Storia Letteraria di Roma (Naacutepoles Fratelli Ferraro Editori

2002)

HOWATSON MC CHILVERS Ian The Concise Oxford Companion to Classical

Literature (Oxford Oxford University Press 1996)

KENNEDY George Alexander (ed) The Cambridge History of Literary

Criticism I Classical Criticism (Cambridge Cambridge University Press 1989

reimpr 1999)

KITTO Humphrey Davy Findley Trageacutedia Grega Estudo Literaacuterio II trad

Joseacute Manuel Coutinho e Castro (Coimbra Armeacutenio Amado 1990)

LAUSBERG Heinrich Elementos de Retoacuterica Literaacuteria trad Raul Rosado

Fernandes (5ordf ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2004)

LAUSBERG Heinrich Handbook of Literary Rhetoric A Foundation for Literary

Study trad Matthew T Bliss Annemiek Jansen e David E Orton (Leiden Brill 1998)

LESKY Albin Histoacuteria da Literatura Grega trad Manuel Losa (3ordf ed Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1995)

REIS Carlos LOPES Ana Cristina Macaacuterio Dicionaacuterio de Narratologia (7ordf ed

Coimbra Livraria Almedina 2000)

ROMILLY Jacqueline de A Trageacutedia Grega trad Leonor Santa Baacuterbara (Lisboa

Ediccedilotildees 70 1997)

SEGAL Erich Oxford Readings in Greek Tragedy (Oxford Oxford University

Press 1988)

SILK M S Tragedy and the Tragic Greek Theatre and Beyond (Oxford

Clarendon Press 1996)

SOMMERSTEIN Alan H Greek drama and dramatists (Londres Routledge

2002)

5 Estudos sobre Euriacutepides e a Trageacutedia Heracles

ADKINS Arthur W H ldquoBasic Greek Values in Euripidesrsquo Hecuba and Hercules

Furensrdquo Classical Quarterly 16 nordm 2 (1966) 193-219

BARLOW Shirley A ldquoStructure and Dramatic Realism in Euripidesrsquo Heraclesrdquo

Greece and Rome 29 nordm 2 (1982) 115-125

167

BARLOW Shirley A The Imagery of Euripides (3ordf ed Londres Bristol

Classical Press 2008)

CHALK H H O ᾿Αρετή and Βία in Euripidesrsquo Heraklesrdquo Journal of Hellenic

Studies 82 (1962) 7-18

COLLARD C Euripides (Oxford Oxford University Press 1981)

DIGGLE James Euripidea Collected Essays (Oxford Clarendon Press 1994)

DUNN Francis M Tragedyrsquos End Closure and Innovation in Euripidean

Drama (Oxford Oxford University Press 1996)

GRIFFITHS Emma Euripides Heracles (Londres Duckworth 2006)

JONG Irene J F de Narrative in Drama the Art of the Euripidean Messenger-

Speech (Leiden Nova Iorque E J Brill 1991)

KOVACS David Euripidea (Leiden Nova Iorque Koumlln E J Brill 1994)

LEFKOWITZ Mary R ldquolsquoImpietyrsquo and lsquoAtheismrsquo in Euripidesrsquo Dramasrdquo

Classical Quarterly 39 nordm 1 (1989) 70-82

LEFKOWITZ Mary R ldquoThe Poet as Hero Fifth-Century Autobiographycal and

Subsequent Biographical Fictionrdquo Classical Quarterly 28 nordm 2 (1978) 459-469

McAUSLAN Ian Peter Walcot The Greek Tragedy (Oxford Oxford University

Press 1993)

MICHELINI Ann Norris Euripides and Tragic Tradition (Londres The

University of Wisconsin Press 1987)

MOSSMAN Judith (ed) Euripides (Oxford Oxford University Press 2003)

MURRAY Gilbert Euripides and his Age (Londres Oxford University Press

1965)

PAPADOPOULOU Thalia ldquoHerakles and Hercules The Herorsquos Ambivalence in

Euripides and Senecardquo Mnemosyne 57 (2004) 257-283

PAPADOPOULOU Thalia Heracles and Euripidean Tragedy (Cambridge

Cambridge University Press 2005)

PARRY H The Second Stasimon of Euripidesrsquo Heracles (637-700) American

Journal of Philology 86 nordm 4 (1965) 363-374

PHOUTRIDES Aristides Evangelus ldquoThe Chorus of Euripidesrdquo Harvard Studies

in Classical Philology 27 (1916) pp 77-170

RIDGEWAY William ldquoEuripides in Macedonrdquo Classical Quarterly 20 nordm 1

(1926) 1-19

168

RIVIER Andreacute Essai sur le Tragique drsquoEuripide (Paris Diffusion du Boccard

1975)

SANTOS Carlos Ferreira Euriacutepides Heacuteracles Introduccedilatildeo Traduccedilatildeo e Notas

(Coimbra diss de Mestrado em Literaturas Claacutessicas apresentada agrave Faculdade de Letras

da Universidade de Coimbra 1996)

SILVA Maria de Faacutetima Sousa e Criacutetica Literaacuteria na Comeacutedia Grega Geacutenero

Dramaacutetico (Coimbra diss de Doutoramento em Literatura Grega apresentada agrave

Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 1983)

SILVA Maria de Faacutetima Sousa e Ensaios sobre Euriacutepides (Lisboa Cotovia

2005)

SCULLION Scott ldquoEuripides and Macedon or the Silence of the Frogsrdquo

Classical Quarterly 53 nordm 2 (2003) 389-400

WEBSTER Thomas Bertram Lonsdale The Tragedies of Euripides (Londres

Methuen 1967)

WHITMAN Cedric H Euripides and the Full Circle of Myth (Cambridge

Massachusetts Harvard University Press 1974)

WILLINK C W ldquoSleep after Labour in Euripidesrsquo Heraclesrdquo Classical

Quarterly 38 nordm 1 (1988) 86-97

5 Estudos sobre Seacuteneca e sobre as trageacutedias Hercules Furens e Hercules Oetaeus

AUVRAY Clara-Emmanuelle Folie et Douleur dans Hercule Furieux et Hercule

sur lrsquoOeta Recherches sur lrsquoExpression Estheacutetique de lrsquoAscegravese Stoiumlcienne chez Seacutenegraveque

(Frankfurt am Main Bern Nova Iorque Paris Lang 1989)

BOYLE Anthony J Tragic Seneca an Essay in the Theatrical Tradition

(Londres Nova Iorque Routledge 1997)

BORGO Antonella Lessico Parentale in Seneca Tragico (Naacutepoles Loffredo

Editore 1993)

DUARTE Ricardo De Mater a Monstrum o Abismo dos Affectus Estoacuteicos na

Medea de Seacuteneca (Lisboa diss de Mestrado em Estudos Claacutessicos Literatura Latina

2008)

169

DUPONT Florence Les Monstres de Seacutenegraveque (Paris Belin 995)

FERREIRA Paulo Seacutergio Margarido Seacuteneca em Cena Enquadramento na

Tradiccedilatildeo Dramaacutetica Greco-Latina (Coimbra diss de Doutoramento em Letras aacuterea de

Estudos Claacutessicos especialidade de Literatura Latina apresentada agrave Faculdade de

Letras da Universidade de Coimbra 2006)

FITCH John (ed) Oxford Readings in Classical Studies Seneca (Oxford

Oxford University Press 2008)

GIANCOTTI Francesco Saggio sulle Tragedie di Seneca (Roma Naacutepoles

Societagrave Editrice Dante Alighieri 1953)

GONCcedilALVES Carla Susana Vieira Invectiva na Trageacutedia de Seacuteneca (Coimbra

Ediccedilotildees Colibri 2003)

GRIFFIN Miriam Seneca A Philosopher in Politics (Oxford Clarendon Press

1976 reimpr 1992)

GRIMAL Pierre Seacutenegraveque sa Vie son Oeuvre avec un Exposeacute de sa Philosophie

(3ordf ed Paris Presses Universitaires de France 1966)

HARRISON George W M (ed) Seneca in Performance (Londres The Classical

Press of Wales 2000)

HERRMANN Leacuteon Le Theacuteacirctre de Seacutenegraveque (Paris Les Belles Lettres 1924) 53-

57

INWOOD Brad Reading Seneca Stoic Philosophy at Rome (Oxford Clarendon

Press 2005)

LITTLEWOOD C A J Self-Representation and Illusion in Senecan Tragedy

(Oxford Oxford University Press 2004)

MATIAS Mariana Montalvatildeo Horta e Costa Paisagens Naturais e Paisagens da

Alma no Drama Senequiano ndash Troades e Thyestes (Coimbra diss de Mestrado em

Literaturas Claacutessicas especialidade de Literatura Latina apresentada agrave Faculdade de

Letras da Universidade de Coimbra 2007)

MENDELL Clarence W Our Seneca (Archon Books 1968)

MOTTO Anna Lydia CLARK John R Maxima virtus in Senecarsquos Hercules

Furens CPh 76 (1981) 101-17 [revised version entitled Hercules Furens maximus

virtus in A L Motto amp J R Clark (1988) 261-94]

MOTTO Anna Lydia CLARK John R ldquoThe Monster in Senecarsquos Hercules

Furens 926-939rdquo Classical Philology 89 nordm 3 (1994) 269-272

170

MOTTO Anna Lydia CLARK John R ldquoSenecarsquos visionary dramardquo Classica 21

(1996) 155-163

OLIVEIRA Francisco de ldquoImagem do Poder na Trageacutedia de Seacutenecardquo Humanitas

51 (1999) 49-83

PEASE Arthur Stanley ldquoOn the Authenticity of the Hercules Oetaeusrdquo

Transactions and Proceedings of the American Philological Association 49 (1918) 3-

26

PIMENTEL Maria Cristina ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo

Classica 23 (1999) 27-45

PIMENTEL Maria Cristina Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de

Seacuteneca (Lisboa Ediccedilotildees Colibri 1993)

PIMENTEL Maria Cristina Seacuteneca (Mem Martins Editorial Inqueacuterito 2000)

PRATT Norman T ldquoThe Stoic Base of Senecan Dramardquo Transactions and

Proceedings of the American Philological Association 79 (1948) 1-11

ROSENMEYER Thomas G Senecan Drama and Stoic Cosmology (Berkeley Los

Angeles University of California Press 1989)

SCHIESARO Alessandro The Passions in Play (Cambridge Cambridge

University Press 2003)

SEGURADO E CAMPOS Joseacute Antoacutenio ldquoSeacuteneca Brecht e o Teatro Eacutepicordquo

Classica 23 (1999) 9-26

SEGURADO E CAMPOS Joseacute Antoacutenio ldquoO Simbolismo do Fogo nas Trageacutedias de

Seacutenecardquo Euphrosyne 5 (1972) 185-247

SEGURADO E CAMPOS Joseacute Antoacutenio ldquoSeacuteneca e Heacutercules Observaccedilotildees sobre o

Hercules Furensrdquo Euphrosyne 8 (1977) 161-168

SEGURADO E CAMPOS Joseacute Antoacutenio ldquoSur la Typologie des Personnages dans les

Trageacutedies de Seacutenegravequerdquo Neronia 1977 Actes du 2e Colloque de la Socieacuteteacute

Internationale drsquoEacutetudes Neacuteroniennes (Clermont-Ferrand Adosa 1977) 155-176

SERRA Joseacute Pedro Pensar o Traacutegico (Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian

Fundaccedilatildeo para a Tecnologia e a Tecnologia 2006)

SHELTON Jo-Ann ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo

Hypomnemata 50 (Goumlttingen Vandenhoeck and Ruprecht 1978)

171

TANNER R G N S W Newcastle ldquoStoic Philosophy and Roman Tradition in

Senecan Tragedyrdquo Aufstieg und Niedergang der Roumlmischen Welt II 322 (Berlim

Nova Iorque Walter de Gruyter 1985) 1100-1133

VOLK Katharina Gareth D Williams (eds) Seeing Seneca Whole Perspectives

on Philosophy Poetry and Politics (Leiden Boston Brill 2006)

172

INDEX LOCORVM

Apolodoro

Bibliotheca

2412 10n

Arriano

Epicteti Dissertationes

1916 136n

1917 136n

12929 136n

1226 136n

2611 138n

2612 138n

4172 136n

41150 ss 136n

Ciacutecero

Academica Posteriora

239 19n

De Fato

1020-21 20n

De Inuentione

2160 26n

Tusculanae Disputationes

118 22n

36 26n

4611 29n

4716 30n

4922 30n

415 29n

41534 28n

41737 28n

Dioacutegenes Laeacutercio

Declarorum Philosophorum Vitis

739 15n

740 15n

741 15n

741-43 16n

746-48 16n

783 15n

784 23n

787 24n

790 26n

792-93 26n

793 27n

7110 28n

7115 29n

7132 17n

7138-139 18n

7148-149 17n

7157 21n 22n

Eacutesquilo

Persae

305-309 44n

633-680 44n

Euriacutepides

Electra

677-684 44n

Helena

317-329

Heracles

1 36n

173

1-2 88n

1-106 5

1-821 6

13-14 98

13-20 102

16-17 111n

18-20 102

18-21 84n

20 86n

20-21 36n 101 102

21 102

22-25 98n

26-34 50

33-34 50

38-43 43

41-42 36 36n

44-45 36 36n

44-46 97n

51-59 37

57-59 37n

60-61 36

60-106 43

62 7

69-71 43

71-72 44

75-79 104n

80-86 44

95-97 51n

95-106 37

107-114 63

112 82

115-118 65

119 64

119-130 63

120 64

124-126 82

125 64

126 64

127-229 99

128 64

131-137 65

140-347 5

145-146 97n

149 95

150-155 95

157 98

157-164 98

158 98

160 98

162 98

165-166 51

174-205 38

177 96

177-180 95

179 96

190-194 98

195-201 98

210 51

215 51 51n

215-216 38 51 51n

217-226 99

227 11

229 100

235 51

240-246 112

247-251 51n 113

252-267 65

252-274 65

255 50

261 50

268-274 65

272-274 50 50n

174

282-283 103

288-292 44

296-297 97n

303-306 37

309-311 103

312-314 82

312-315 65

316-318 38

319-329 65n

339-347 7 38n

344-346 7

348-358 65

348-435 102

348-450 65

349-435 65

359-363 66

359-429 65

364-374 66

375-379 66

380-388 66

389-393 66

394-402 66

397 114n

403-407 66

404 114n

408-418 66

419-421 66

422-424 66

425-429 66

426-424 97n

435 114n

436-450 65

451-453 113

451-522 5

456-457 103

456-489 44

480-482 103

483 45n

490-491 44n

490-495 97n

490-496 44

492-493 44n

494 44n

495-496 44n

497-500 44

497-513 38n

498-500 7

501 38n

506-507 37n

511-512 37n

519-521 45

523 95n

531-636 123

533 45

534 ss 45

558 99

558-561 37

560 11 99

562-582 100

565 100 114n

566 100

565-573 8 100

565-606 5

568 100

568-573 113

570 100

572 100

572-573 100

573 100

575-582 104

577 104

585-586 38 113

175

588-594 38

595-598 104

606-609 100

607-621 88n

613 88n

619 88n

627-633 133

631 114n

631-633 104

637-700 65 67

637 ss 82

639-700 102

655-656 7 67

696-697 67 96

696-700 84n 96

707-709 51 113

707-711 38

709 51n

712-724 112

717 38

719 38

727-728 51

735 68n

735-814 102

735-821 65

741 50

749-754 5

755 50

757 50

760 52 68n

762-771 68

763 68

763-814 5 68n 117

769-771 68

772 68

772 ss 68

772-814 7

772-880 68

781-797 68

798-814 68 84n

801-804 69

811 ss 68

815-821 83

815-874 6

821 ss 96

822-1088 6

822-873 6

822-874 83 83n

829 86n

831 86n

840 86n

841-842 84

847-854 85

848 86n

851 85

852-853 85

855 86n

859 86n

861-866 106

867-872 106

867-874 107n

875-821 69

875-885 65 69

886-909 69 107n

887-909 6

910 6

910-921 69

910-1015 107

922-1015 6 107

929-931 107

932 107

933 107

176

934 107

935 108

938 114n

940 114n

947-949 108

953-955 108

955-957 108

959-963 108

963 ss 108

964 114n

964-971 108

967-971 112

967-969 108

968 114n

984-994 112

986-994 122

994-995 113

996-1000 44

1001-1006 7

1002-1008 108

1016-1038 69

1016-1041 6

1019-1020 69

1049-1051 109

1061-1062 109

1078-1080 111

1087-1088 7

1088-1108 6

1089 110

1089-1093 110

1089-1428 6

1092 110

1093 110

1094 110

1094-1097 110

1101-1105 110

1111-1112 110

1111-1145 6

1127 86n 103

1135 102

1145 114n

1146-1152 6

1146-1153 110

1153-1154 110

1163-1426 6

1164-1171 11

1164-1172 99

1169-1171 58

1186 102

1189 86n

1199 114n

1202 58

1208 114n

1219-1220 58

1219-1227 58

1220 58

1221-1222 58

1223 58

1225 58

1232 59

1234 59

1247-1310 110

1248 59

1250 59

1252 59

1253 86n

1254 59

1258-1261 110

1262 ss 110

1262-1310 102-103

1264 86n

1279-1280 110

177

1281-1290 112

1295-1298 111

1303-1310 8

1307-1309 86n

1310 105

1311-1319 8

1314-1339 8

1324 114n

1340-1344 8

1347-1351 111

1349-1357 155

1364 105

1378 ss 111

1386-1388 132

1392-1393 102

1393 86n

1395-1402 133

1397 ss 58

1398 114n

1402 114n

1408-1409 133

1412-1417 96

1423-1424 105n

Medea

516-519 67n

Orestes

211-306 109n

1225-1242 44n

735 58n

Homero

Ilias

5392ndash397 1n

5403-404 1n

18119 101n

21214-212 101n

Marco Aureacutelio

Meditationes

440 ss 21n

449 31n

Oviacutedio

Metamorphoses

9134 ss131n

Piacutendaro

Nemean

322 95n

Seacuteneca

Ad Lucilium Epistolae Morales

2 118n

136 25n

244 136n

246-8 136n

2417 23n

2418 23n

2420 79

2421 79n

242284 135n

2423 ss 74n

2425 139

269-10 34n

2610 134n

30 138n

3015 139

518-9 31n

544-5 23n

5835-36 34n

178

5836 137n

652 17n

655 27n

6524 22

665 27 27n

696 73n

704 136

705 136

7011-12 137n

7014-15 136n

7018 136

7020-26 138

714 31n

715 31n

715 ss 115n

7136 25n 33n

7710 134n

7712 78n

7713 78

7720 135n

781ss 135n

8915 25

9225 131n

9230 ss 35n

9234 150n

937 72

938 72

965 31n

981516 135n

101 33n

1014-5 33n

10110 71n 72n

10223 22 23n

1043 135n

1043-4 35n

1064 18n

1065 47n

1065-10 17n

1066 29n

12018 79

12022 24n

Consolatio ad Marciam

267 22n

482-3 149n

662-3 151n

267 22n

Consolatio ad Polybium

113 34n

De Clementia

1252-3 55n

De Ira

181 26n

313-5 140n

321 ss 140n

341-3 140n

336 25n

De Prouidentia

21 ss 31n

210 34n

58 79

De Tranquillitate Animi

123 32n

De Vita Beata

20 50n

179

Hercules Furens

1 86

1-2 87 87n

1-5 13

1-18 86

1-124 86

2 87

3 87

3-4 87

4 87

4-5 87

5 87

6-18 87

6-21 116

6-26 118n

12 87

13 87

19 87 89

19-21 87

21 89

19-63a 86 87

21-22 87

22-26 87

23 92

23-26 116

27 88 132

27-29 88

27-42 87

28 86 88 132

29 88 91

30 91

30-31 115

30-32 87n

30-33 115

32 115

33 87

33-35 115n

34 132

34-35 91 115

35 88 115 132

37-40 115

39 115

40 80 91

42 115 115n

43-44 115n 116

44-46 115

45-46 116

46 116

46-48 123

47 ss 121

48 88

49 88

50 88

51 88 116

51-52 88 116

54 122

57 116

58 114n 116

61 88

63 89

63b-124 86 89

64-65 89 128

68 116

75 89 132

77 132

79-83 128

84-85 117

85 90 91

86 ss 128

89-91 90

90 90

90-91 90

180

90-99 90

91 90

91-92 90

92 90

93 90

95 90

96 90

96-98 90

98-91 90

97 88

99 91 132

100 91

100-109 91

101 91

102 91

103 91

104 91

109 91

109-112 91

110 91

112 89 91

112-117 92

114 92 114n

116 92

116-117 92

119 92

120-121 92

121 92

122 92 114n

123 91 92

125-136 70

125-161 70

125-201 121

125-204 70

137-161 71

159-160 71

160 ss 131

161-185 70-71

162-180 71

173-179 71

175 71

175-176 71

175-19832

178 ss 72

178-180 71

181-204 72

183-184 71

186 117

186-187 154

186-201 71

188-190 72

192-196 117

192-201 73

199 73 82

200 73 82

201 73 81 117 154

202 46

202-204 49n 71 83

205 49

205-278 39 39n 49

205-308 39n

205-331 48

206 40n

207-209 40n

209-213 32n 39 155

209-215 118

221 114n

215 ss 117

216-222 39

247 77n 114n

247-248 118

249-251 40

181

251 40

251-252 54 117

251 ss 52

254 52

265-267 118

267 52

269 52

271-276 52

272 52 114n

273 118

274 52

275-278 118

277-278 43

278 118n

279 49 114n

279-280 119

279-308 39n 45 49 132n

279 ss 45

280 119

280-281 119

281 119

282 119

282-283 119

283 119

284-286 121

286-288 119

290 119

290-293 119

292-293 119

294-294 119

296-298 45

299-302 45

303-305 46

305-308 46

306-307 46

309-310 46 49n

311 46

312-314 118

314 46

314-316 46

316 46

325 119

327-331 48

329-331 53

332 56n

332-335 53

332-340 121

332-341 54

332-357 53

337-338 53

340-341 54

340-342 54

341-342 46

341-344 54

345 56n

350 46

350-351 45

350-352 121

352-353 55

354-355 39

354-357 53n

354-355 39

355 46

358 55

362-369 55

368-369 121

371 46

372-373 46

373-374 47

375 47

376 47

377-378 47

182

379 47 56n

379-380 47

380 47

381 47

382-383 47

384 55 56

384-396 118n

386-395 55

395 56

395-396 55

397 46

397-398 119

398 56n

399 55

399-402 54

400 55 56n

401 55

406-407 121

411 56n

412 47

413 47

414 47 56

415 48

415-417 48

417 48

418 48

421 48

423 120

426 48

429 45 50

430 119

434 120

435 119

437 120

438 120

442 114n

444-446 120

445-446 120

449-476 118n

469 114n

477-480 120

478 121

489-490 56n

494 56

495-500 45

501-508 121

501-509 56

511-515 56

512 56

513 56

518 56n

518-519 56

520-523 122

523 122

524 73

526 73

527-528 74

528 74 114n

529 74

530-532 74

531-546 74

536 74

538 77n

540-541 74

544 74

547-549 74

547-591 74

548 74 76

551 74

554 74

558-559 75

560-565 75

183

566 114n

566-567 76

566-568 75

569-539 82

569-591 75

570 75

588-589 117

590-591 75

591 117

592 ss 145

592-613 124

592 ss 122

595-596 76

599-603 76

603-604 144

604-606 123

606-615 144

609-610 122

613 144

614 114n

614-615 122

624-625 114

625 114n

626-628 123

626-640 123

629 56n

629 ss 145

631 123

631-633 144

631-640 123

633 123

634-635 123

634-636 123n

636-637 144

637 123

637-638 60

638-639 124

638-640 144

639-640 124

640-644 144

643-644 60

644 60

646-649 60

662-759 60

662-806 88n

689-696 60n

731-734 60 60n

735-736 60

739-745 60

745-747 60

762-827 61

772 61n 77n 117

773-775 61n 144

775-777 60n

778-793 61

792-793 61n

797-805 144

804-806 61

807 114n

821-974 12

827-829 70n

830-831 77

830-833 77

830-894 76

834 77n

835-863 88n

836 77

837 78

838 77 78

838-839 77

838-874 80

838 ss 78

184

839 77

840 77

840-841 77

842-847 77

845 78

846 77

848-849 77

849 78

849-854 78

851 78

852 78

853 78

867 79

872 78 79

874 79

875-892 117

875-894 80

882 79n 114n

891-892 79

894 80

895-899 121

895 ss 124

898-899 124

900-908 124 144

907-908 124

914 114n

918-919 124 144

919 114n

920 125

920-921 144

920-924 41 125 144

921 125

922 125

923 125

924 125

925-926 41

926 41

926-927 126

926-937 121

926-939 144

931-935 144

931-939 126

937-938 144

937-939 126

939 ss 145

939-944 126 127

939-989 144

940 128

940-941 128

942-943 144

944-952 128

953 129

954 129

955 ss 145

955-959 128

957-973 127

960 144

960-961 128

967-968 128

972-973 128

973-975 129

974 129

975 129

976-981 128

977-978 144

980-981 144

983 129 144

984 129

987 144

987-991 121

987 ss 129

989-991 144

185

989-1038 144

991 130

991-995 129

996 144

996-1002 144

998 114n

1002-1004 122

1004 129

1005 130

1005-1007 122 129

1010-1011 144

1013 130

1018-1020 144

1021 129 130

1026-1027 41n

1027 42

1028 42

1032-1034 83

1033 42 130

1034 42 114n

1038 42

1039 ss 145

1039-1042 130

1040 114n

1044 114n

1049 130

1050 ss 145

1051-1052 130

1053 130

1053-1137 83

1054 80

1054-1137 80

1063 130

1063-1065 80

1065 81

1066-1077 81n

1066 81n

1080 130

1081-1086 42

1083 130

1088 130

1092 130

1093 81

1094-1099 81

1095 130

1096 130

1098 114n 130

1099 130

1103 114n 130

1121 130

1122 130

1134 130

1136 81

1138 144

1138 ss 145

1138-1153 131

1138-1186 144

1139 144

1147-1148 144

1149 144

1153 144

1156-1157 144

1159-1161 131

1160 ss 131

1167 132

1167-1168 131

1173-1176 131n

1179-1186 131n

1187 131n

1188 131n

1189-1190 131n

1192 114n

186

1192-1200 144

1193 114n 132

1193-1194 144

1193-1195 131n

1193 ss 145

1196 114n 132

1198-1199 131n

1199-1200 132

1202-1218 144

1202 ss 145

1207-1208 144

1211 114n

1216-1217 144

1218 144

1220 132

1221-1223 144

1221-1236 144

1226 144

1227-1228 144

1229-1230 144

1231 144

1237-1238 148n

1239 147

1240 ss 145

1242-1243 144

1244 114n

1253-1254 43

1259-1261 147

1260 114n

1269-1270 144

1272-1277 63

1274-1277 147n

1276-1277 148

1277 132

1277-1294 144

1279-1282 144

1278 144

1280 132 148

1281-1282 148

1283-1284 144

1281-1282 144

1284-1294

1295-1296 144

1297 114n

1308 42

1314 144

1314-1319 144

1315 148

1316 ss 145

1319 114n

1321-1341 144

1323 144

1328 114n

1334 144

1341-1344 63

Hercules Oetaeus

1-98 146

7-8 128n 145

8-10 145

10-13 145

11 145

13-98 145

13 128n 145

16-17 145

32-33 128n

51 144

53-55 145

54-55 140n

55-56 62n 140

56-57 144

187

61-62 144

63-64 145

73-74 144

76-79 128n

77 145

87 145

93-94 144

93 144

95-96 144 145

97-98 128n 145

142 140

155 140

166 140

172 140

749-751 126n

761-762 139n

766-770 139n

786-805 146

798-802 140n

808 141n

808-822 141

810-822 146

813-816 145

825-835 146

1131-1150 145

1134 144

1135 145

1137-1150 145

1141 145

1148 145

1161-1206 145

1171 144

1176-1177 144

1177-1178 144

1181 144

1185-186 144

1191-1206 144

1197-1198 145

1218-1278 145

1218 144 145

1231-1232 144

1232 144

1233 145

1234-1247 145

1240-1243 145

1253 144

1260-1261 144

1260 145

1264 144

1265 145

1270-1271 145

1276-1277 145

1290-1336 145

1302 144

1304-1305 145

1321 145

1322-1323 145

1324 144

1325 144

1329-1330 145

1345-1349 145

1359-1373 145

1360 144

1364-1365 144

1367-1368 145

1371-1372 144

1377-1395 145

1379 145

1389-1392 145

1396-1398 141n

1399-1402 141n

1399-1401 145

188

1400 145

1402 145

1404 141n

1432-1447 145

1435 144

1445-1446 144

1448 144

1449 141

1449-1450 141

1449-1455 141

1450 141

1452 141 144

1453 141

1454 141

1459-1464 145

1459-1463 141

1459 141 142 144

1461-1462 142

1461-1463 146

1462 142

1472-1487 146

1480 142n

1481-1482 148

1515-1517 150

1609 150

1609-1755 146

1610-1611 149

1668-1679 149

1681-1698 149

1683-1684 149

1685-1687 149

1695-1715 150

1717-1726 149

1728-1730 149

1741 149

1741-1743 149

1746 149

1753-1755 150

1835 150

1942-1943 150

1963-1971 150

1963-1976 22n 146

1968 150

Medea

19-20 92

301-302 72n 76

307 76

Naturales Quaestiones

1praef5 62n

3praef10-17 72n

63210 32n

Phaedra

1143 ss 76

1149-1153 76

Tiestes

1 ss 122n

Troades

171 ss 122n

Sexto Empiacuterico

Aduersus Mathematicos

959 ss 27n

10218 19n

Soacutefocles

Electra

1066-1081

189

Vergiacutelio

Aeneis

6274-289 60n

6395-396 61n

6413-414 60n

6 432-433 60n

190

INDEX NOMINVM

Anfitriatildeo

Heracles

3 5 6 7 8 12 36n 36-38 38n

39n 42 43 44 44n 45 48 49 50

51 51n 52 58 64 65n 69 84

84n 86 87n 88 88n 95 96 97n

99 100 101 102 103 104 107

107n 108 109 110 111 111n

112 113 113n

Hercules Furens

3 12 12n 29 32 39n 39-43 41n

43n 46 49 49n 52 53 53n 54

55 56 60 61 71 73 74 77n 83

98 113 114 114n 117 118 118n

120 121 122 123 124 127 129

130 132 147 148 153 154

Anteu

120 120n

Apolo

Bibliotheca

10

Heracles

65 67

Hercules Furens

76 118

Orestes

59n

Aquiles 100 122n

Atena 7 96 107 107n 108 109

Augeu 117n

Baco 118n

Busiacuteris 120 120n

Castor 116n

Ceres 45

Cicno

Heracles

66

Hercules Furens

120

Cloto 139n

Creonte

Heracles

42 43 50 51 97

Hercules Furens

40 42 47

Coro

Heracles

3 5 7 37 50 51n 57 63-69 65n

68n 82 83 84 84n 96 97n 99 102

106 107 107n 111n 118n

Hercules Furens

191

32 33 42 42n 46 49n 60 70n

70-83 74n 77n 88n 113 117 118

118n 121 156 157

Hercules Oetaeus

140

Medea (Seacuteneca)

72n

Daacutenao 69n

Dario 44n

Eacutedipo 29

Egipto 69 n

Eleacutectrion 110n

Eacuterice 120 120n

Eriacutenias 105 128

Euristeu

Bibliotheca

10

Heracles

65 84n 101 104n 108 112 129n

132 154

Hercules Furens

73 77 120

Ecircurito 120

Filomela 69

Geacuterion

Heracles

66

Hercules Furens

120 120n

Hera 8 10 84 54 84n 86 92 101 102

103 107 109 109n 111

Heacuteracles v 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11

12 29 36n 37 38 38n 39 40 41 43 44

44n 45 45n 51 51n 55n 57 58 59 64

65 66 67 68 68n 69 81 83 84 84n 85

88n 92 93 94n 94-113 95n 97n 104n

105n 106n 107n 109n 111n 114n 120n

128 132 133 153 154 155 155n

Heacutercules v 3 4 12 12n 13 21n 22n 27

28 29 30 32 39 40 41 41n 42 43 43n

45 46 48 52 55 57 59 59n 60 61 61n

62 67 71 71n 72n 73 74 74n 75 76

77 77n 80 80n 82 83 87 88 89 90

90n 91 92 93 94 98 113-133 114n

115n 116n 117n 118n 120n 121n 122n

123n 126n 126n 130n 132n 139 139n

140 141 141n 142 142n 143n 144

144n 145 146 149 149n 150 151 152

153 154 155 156 157

Iacuteole

Hercules Furens

120n

Hercules Oetaeus

140 150

Iacuteris 2n 3 5 6 7 8 12 83-85

192

Juno 2n 3 11 13 29 86-93

Juacutepiter

Hercules Furens

12 13 30 39 41 45 49 75 87

89 92 116 116n 120n 121 124 126

126n 151

Hercules Oetaeus

128n 143n 152

Laio 29

Leda 116

Licas 140 141 141n 142

Lico

Heracles

3 5 6 7 9 11 12 36 36n 37

38 38n 39n 40 42 43 44 44n

45 48 49 50-52 51n 57 57n

65 68n 84n 85 94 95 97 97n

109n 111 112 113 154

Hercules Furens

3 12 29 39 40 41 42 46 47

48 49 50 51n 52-57 53n 55n

56n 59 60 73 90n 98 113

114n 117n 118n 119 120 120n

121 122 123 124 125 133 138

154 157

Lissa 2n 3 6 7 12 36n 65 68 69 83-85

92 93 97 97n 102 105 106 107n 108

109 154 155

Nesso 142 143 143n

Medeia

Hercules Furens

92

Medea (Euriacutepides)

67n

Meacutegara

Heracles

3 5 6 7 8 12 36 36n 37 37n

38 39 43-45 45n 48 49 51 51n

52 57 58 64 69 84 84n 86 96n

97 97n 99 103 104 104n 107n

108 109 111 112 113 154

Hercules Furens

3 12 12n 29 39n 40 41 41n 42

45-50 49n 53 53n 55 55n 56

57 71 73 76 83 114n 118 118n

119 121 123 129 131 132n 141

154 156

Mensageiro iv 2n 3 6 12 42 69 93 94

97n 106 106n 107 107n 108 109 113

155

Ocircnfale 121

Poacutelux 116n

Procne 69n

Tacircntalo 122

Tereu 69n

Teseu

193

Heracles

3 6 7 8 10-11 12 37 58-59 63

75 96 97 97n 98 99 102 105n

110 111 154 155

Hercules Furens

3 12 12n 41 42n 59-63 60 61

61n 62 63 70n 88n 113 114n

123 123n 132 133 148 149 154

Phaedra

76

Teacutespio (rei) 10

Tiacutendaro 116n

Tisiacutefone 129

Zeus 5 7 8 10 12 36 36n 38 38n 39n

44 45n 52 67 68 68n 69n 84 84n 87n

94 95 95n 96 97 102 110 112

Page 3: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES

Para o meu pai jaacute ausente desta jornada que eacute a vida para minha matildee irmatildeo e afilhado

i

IacuteNDICE

AGRADECIMENTOS iii

RESUMO ABSTRACT iv

LISTA DE ABREVIATURAS vi

INTRODUCcedilAtildeO 1

Capiacutetulo I ndash EURIacutePIDES SEacuteNECA E O ESTOICISMO UM ESTUDO PRELIMINAR 5

1 Euriacutepides Heracles 5

11 Data e Estrutura da Trageacutedia 5

12 Os Deuses 7

13 Inovaccedilotildees em Euriacutepides 9

2 Seacuteneca Hercules Furens 11

21 Data e Estrutura da Trageacutedia 11

22 Os Deuses 13

23 Doutrina Estoacuteica 14

231 Os trecircs ramos da Filosofia Fiacutesica Loacutegica e Moral 15

a) A Loacutegica 15

b) A Fiacutesica 17

c) A Moral 23

Capiacutetulo II ndash HERACLES E HERCULES FURENS ANAacuteLISE DAS PERSONAGENS 36

1 Anfitriatildeo 36

11 Caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides 36

12 Caracterizaccedilatildeo da personagem da trageacutedia de Seacuteneca 39

2 Meacutegara 43

21 Caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides 43

22 Caracterizaccedilatildeo da personagem da trageacutedia de Seacuteneca 45

3 Lico 50

31 Caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides 50

32 Caracterizaccedilatildeo da personagem da trageacutedia de Seacuteneca 52

4 Teseu 58

41 Caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides 58

42 Caracterizaccedilatildeo da personagem da trageacutedia de Seacuteneca 59

5 Coro 63

51 Caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides 63

52 Caracterizaccedilatildeo da personagem da trageacutedia de Seacuteneca 70

6 Divindades 84

ii

61 Caracterizaccedilatildeo de Iacuteris e Lissa na trageacutedia de Euriacutepides 84

62 Caracterizaccedilatildeo de Juno na trageacutedia de Seacuteneca 86

Capiacutetulo III ndash HEacuteRACLES E HEacuteRCULES A (DES)CONSTRUCcedilAtildeO DO HEROacuteI 95

1 Caracterizaccedilatildeo de Heacuteracles na trageacutedia de Euriacutepides 95

11 Imortalidade e Mortalidade a ambivalecircncia do heroacutei 96

12 Luz e Trevas 97

13 Individualidade e Colectivismo 98

14 Solidatildeo e Amizade 100

15 Outras caracteriacutesticas na construccedilatildeo do heroacutei 102

16 Manifestaccedilotildees da loucura de Heacuteracles 106

17 ἀρετή e βία Lico e Heacuteracles pontos semelhantes entre um tirano e o

heroacutei

112

2 Caracterizaccedilatildeo de Heacutercules na trageacutedia de Seacuteneca 114

Capiacutetulo IV ndash HERCULES FURENS E HERCULES OEATEUS 135

1 Meditatio Mortis ndash um estudo preliminar 135

2 Heacutercules ndash a ascese do proficiens 140

21 Heacutercules sob o domiacutenio da ira (estudo sobre o seu comportamento da

personagem no Hercules Furens e no Hercules Oetaeus)

140

211 Linguagem da emoccedilatildeo 144

212 Da decadecircncia da uirtus fiacutesica de Heacutercules agrave elevaccedilatildeo agrave

categoria de sapiens

147

22 Hercules Furens e Hercules Oetaeus ndash o suiciacutedio 149

CONCLUSAtildeO 155

BIBLIOGRAFIA 169

INDEX NOMINUM 172

INDEX LOCORUM 190

iii

AGRADECIMENTOS

Chegou o momento de recordar e agradecer a todos que de algum

modo contribuiacuteram para a conclusatildeo deste trabalho Em primeiro lugar

agradeccedilo aos Professores Doutores Maria Cristina de Castro-Maia de Sousa

Pimentel e Frederico Maria Bio Lourenccedilo pelos seus saacutebios conselhos e

pelas sugestotildees que deram A amabilidade e simpatia com que me

acolheram e afortunadamente me orientaram permitiram que esta

dissertaccedilatildeo chegasse a bom porto

Ao Professor Doutor Arnaldo do Espiacuterito Santo que desde sempre

muito admiro e ao Prof Doutor Joseacute Eduardo Franco pela sua amizade e

simpatia

Agrave Profordf Doutora Serafina Martins pelos seus conselhos e algumas

sugestotildees bibliograacuteficas

Agrave Drordf Eduarda Osoacuterio Lopes e Drordf Fernanda Santos pela boa

disposiccedilatildeo que tornaram os dias da redacccedilatildeo da dissertaccedilatildeo mais alegres e

suaves

Umas uacuteltimas palavras restam para a minha famiacutelia que muito amo

em especial para a minha matildee irmatildeo e avoacute e a bons amigos Bruna

Ferreira Gonccedilalo Henriques Helena Sofia Santos Joana Cardoso Dona

Manuela Domingues Marli Vitorino Nuno Carvalho Agrave Patriacutecia Nuno e

Helder Filipe por estarem sempre presentes na minha vida Finalmente agrave

Cristiana Lucas agrave Paula Carreira agrave Susana Alves e em especial agrave Ana

Matafome Heacutelio Vale e Ricardo Nobre por terem estado sempre presentes

e disponiacuteveis e por terem sido incansaacuteveis comigo os meus gratos

agradecimentos

iv

RESUMO ABSTRACT

Este estudo pretende analisar as trageacutedias Heracles de Euriacutepides e Hercules

Furens de Seacuteneca numa perspectiva comparativa Aleacutem de ver as semelhanccedilas

procura-se descrever os aspectos que tornam as duas trageacutedias diferentes e uacutenicas

vendo a forma como satildeo tratadas e desenvolvidas as personagens e o tema da loucura de

Heacuteracles Heacutercules

O primeiro capiacutetulo mais teoacuterico aborda alguns traccedilos gerais que caracterizam

as trageacutedias dos dois autores nele se inclui tambeacutem um estudo que sintetiza a doutrina

estoacuteica com especial incidecircncia nos aspectos que melhor ajudam a compreender a

funccedilatildeo e objectivos pareneacuteticos do corpus traacutegico de Seacuteneca No segundo capiacutetulo satildeo

contempladas as personagens das duas trageacutedias excepto HeacuteraclesHeacutercules e o

Mensageiro que satildeo estudadas no capiacutetulo seguinte No terceiro capiacutetulo o protagonista

eacute analisado em trecircs momentos antes durante e depois da loucura O quarto capiacutetulo

cinge-se ao estudo sobre a ascese de um proficiens e sobre a meditatio mortis nas

trageacutedias Hercules Furens e Hercules Oetaeus

Palavras-chave Trageacutedia de Euriacutepides Trageacutedia de Seacuteneca Estoicismo

HeacuteraclesHeacutercules Literatura Comparada

This study aims to analyse in a comparative perspective Euripidesrsquo Heracles and

Senecarsquos Hercules Furens Besides recognising the similitude between the two

tragedies we describe the aspects that make them different and unique understanding

how the characters and the theme of madness of HeraclesHercules are treated and

developed The first chapter is more theoretic it deals with some general features that

characterise Euripidesrsquo and Senecarsquos tragedies and studies the Stoic philosophy with

special attention to the aspects that enable the understanding of the paraenetic function

and its objectives In the second chapter characters from both plays are covered except

HeraclesHercules and the Messenger that are studied in next chapter In the third

chapter the main character is analysed in three moments before during and after

madness The fourth chapter studies the meditatio mortis in the plays Hercules Furens

and Hercules Oetaeus reasoning on the ascesis of the proficiens

v

Keywords Euripidesrsquo Tragedy Senecarsquos Tragedy Stoicism HeraclesHercules

Comparative Literature

vi

LISTA DE ABREVIATURAS

Barlow = Euripides Heracles intr trad e comentaacuterio Shirley Barlow (Warminster Aris and Philips 1996) Bond = Euripidesrsquo Heracles intr e comentaacuterio Godfrey W Bond (2ordf Ediccedilatildeo Oxford Clarendon Press 1988) Duclos = EURIPIDE Theacuteacirctre III trad Henri Berguin Georges Duclos (Paris Garnier 1955) ErnoutndashMeillet = ERNOUT Alfred e Antoine Meillet Dictionnaire Eacutetymologique de la Langue Latine Histoire des Mots (4ordf ed Paris Klincksieck 1959 reimpr 1967) Fitch (1) = Senecarsquos Hercules Furens a Critical Text with Introduction and Commentary ed John G Fitch (Ithaca and London Cornell University Press 1987) Fitch (2) = SENECA Tragedies I (Hercules Trojan Women Phoenician Women Medea Phaedra) ed e trad John G Fitch (Cambridge Massachusetts Londres Harvard University Press 2002) Giardina = L Anneo Seneca Tragedie trad G C Giardina Rita Cuccioli Melloni (Torino Editrice Torinese 1987) Herrmann = SEacuteNEgraveQUE Trageacutedies I (Hercule Furieux Les Troyennes Les Pheacuteniciennes Meacutedeacutee Phegravedre) ed e trad Leacuteon Herrmann (Paris Les Belles Lettres 1968) Miller = SENECA Tragedies I-II ed Frank Justus Miller (Londres Cambridge Massachusetts Harvard University Press 1917 reimpr 1968) Parmentier = EURIPIDE Heacuteraclegraves ndash Les Suppliants ndash Ion III trad Leacuteon Parmentier Henri Gregoire (Paris Les Belles Lettres 1976) Viansino = L Annaei Senecae Hercules Furens Troades Phoenissae Medea Phaedra recensuit Ioannes Viansino (Torino Paravia 1968)

1

INTRODUCcedilAtildeO

Heacuteracles eacute um dos heroacuteis que mais popularidade teve ao longo da histoacuteria da

humanidade Os trabalhos a que se submeteu fizeram da sua figura um modelo de

civilizador e protector do Homem destruiu todos os monstros que habitavam a terra e

assolavam o mar Poreacutem a megalomania a insolecircncia e a excessiva confianccedila na sua

forccedila fazem dele uma personagem violenta e cruel que chega a desafiar os deuses e a

lutar contra eles1 Segundo Fitch ldquoFrom the earliest times Herculesrsquo heroism is

ambivalent On the one hand he is ldquothe best of menrdquo endowed with invincible strength

and courage On the other hand any strength that goes so far beyond the human norm is

potentially dangerous and unpredictablerdquo2 Como observou Susan Deacy a respeito de

Heacuteracles ele caracteriza-se por ldquohis tendency to move between opposite categories

including mortal and immortal salvation and destruction masculine and feminine and

sanity and madnessrdquo3 Esta confluecircncia de estados psicoloacutegicos permitiu que ao longo

dos tempos esta personagem mitoloacutegica tivesse recebido um tratamento diverso Walter

Burkert refere

A figura de Heacutercules foi moldada primeiramente pelo mito por um conglomerado de contos populares em que a grande poesia soacute interveio de modo secundaacuterio natildeo existe qualquer poesia grega dedicada exclusivamente a Heacutercules Soacute mais tarde os poetas analisaram o fenoacutemeno Heacutercules envolvendo assim o mito numa atmosfera traacutegica heroacuteica e humana em contraste com a sua tendecircncia proacutepria que transcende despreocupadamente o humano4

Foram poucos os autores gregos que fizeram de Heacuteracles o protagonista dos seus

poemas decerto dado o seu caraacutecter atiacutepico e ambivalente entre os heroacuteis miacuteticos Em

toda a sua histoacuteria mitograacutefica Heacuteracles possui uma forccedila invulgar eacute um heroacutei-deus

solitaacuterio que ocupa ldquothe no-manrsquos-land that is also no-godrsquos-land he is a marginal

transitional or better interstitial figurerdquo5 como diz Silk

1 Vide Homero Ilias 5392-397 403-404 2 Fitch (1) 15 3 Susan Deacy ldquoHerakles and his lsquogirlrsquo Athena heroism and beyondrdquo in Louis Rawlings and Hugh Bowden (ed) Herakles and Hercules Exploring a Graeco-Roman Divinity (Swansea [Paiacutes de Gales] The Classical Press of Wales 2005) 37 4 Walter Burkert Religiatildeo Grega na Eacutepoca Claacutessica e Arcaica (Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1993) 405-406 5 Silk ldquoHeracles and the Greek Tragedyrdquo Greece and Rome 32 nordm 1 (1985) 6

2

Temos apenas o testemunho de Soacutefocles e Euriacutepides que descreveram um

momento especiacutefico da vida deste heroacutei nas trageacutedias Soacutefocles fez representar a

preparaccedilatildeo para a morte nas Trachiniae e Euriacutepides o momento da loucura que vem

depois de finalizado o uacuteltimo trabalho a captura de Ceacuterbero O modo como a figura eacute

apresentada nos dois tragedioacutegrafos difere substancialmente Para Carlos Santos

ldquoEuriacutepides teraacute procurado apresentar um Heacuteracles modernizado pelos valores do homem

do seacuteculo V aC moldado pela virtude e pela razatildeo enquanto que o heroacutei de Soacutefocles

se move num mundo onde domina a forccedila fiacutesica com valores semelhantes aos da

sociedade homeacutericardquo6

Partindo da forma como Euriacutepides criou a personagem no Heracles o presente

estudo tem como objecto a anaacutelise comparativa desta trageacutedia com o Hercules Furens

de Seacuteneca o filoacutesofo estabelecendo pontos de contacto mas essencialmente

apontando as diferenccedilas na construccedilatildeo do protagonista Conscientes de que o tema ndash a

loucura do Alcida ndash e as personagens satildeo as mesmas7 queremos demonstrar que as

caracteriacutesticas que lhes satildeo apontadas as tornam diferentes Esta mudanccedila deve-se

principalmente agrave doutrina que Seacuteneca pretende divulgar nas trageacutedias ao representar as

paixotildees humanas e as consequecircncias destrutivas que esses affectus implicam quando

natildeo satildeo evitados e quando fogem do controlo das personagens Com a sua encenaccedilatildeo8 o

filoacutesofo consegue mostrar por meio de exempla o resultado de algumas passiones que

dominam o homem e que o levam pelo caminho do uitium a trazer a desgraccedila aos

outros e em uacuteltima instacircncia a causar a sua proacutepria ruiacutena

O estudo estaacute dividido em quatro capiacutetulos No primeiro mais teoacuterico eacute feita

uma sinopse da filosofia estoacuteica de Zenatildeo a Seacuteneca passando por Crisipo Epicteto e

Marco Aureacutelio e pelos testemunhos de Ciacutecero de Dioacutegenes Laeacutercio e de Sexto

Empiacuterico Este estudo preliminar eacute uma preparaccedilatildeo para a leitura das peccedilas Hercules

Furens e Hercules Oetaeus que decorreraacute nos capiacutetulos seguintes comprovando que as

trageacutedias satildeo um outro meio de divulgaccedilatildeo desta doutrina filosoacutefica Para esse efeito

6 Carlos Ferreira Santos Euriacutepides Heacuteracles Introduccedilatildeo Traduccedilatildeo e Notas (Coimbra diss de Mestrado em Literaturas Claacutessicas apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 1996) 7 7 Satildeo excepccedilatildeo Iacuteris Lissa Mensageiro e Juno As trecircs primeiras aparecem apenas em Euriacutepides enquanto Juno eacute de Seacuteneca 8 Tendo por base a ideia de que Filosofia do Poacutertico podia ensinar o homem a enveredar pelo caminho da uirtus Seacuteneca procura dar a conhecer esse caminho ao maior nuacutemero de pessoas Essa teraacute sido uma das razotildees que o levou a escrever trageacutedias uma vez que as obras filoacutesoficas em prosa se destinavam a um grupo mais restrito

3

natildeo pudemos deixar de contextualizar ainda que sumariamente a trageacutedia Heracles e

Hercules Furens observando os aspectos semelhantes e divergentes das duas peccedilas

No segundo capiacutetulo analisamos e comparamos as personagens da trageacutedia grega

e da trageacutedia latina Identificamos e reflectimos sobre todas as personagens que entram

em cena nas respectivas peccedilas excepto o protagonista e o Mensageiro ndash o heroacutei

mereceu um estudo mais desenvolvido no capiacutetulo seguinte Comeccedilamos por Anfitriatildeo

por ser a primeira personagem a entrar em cena no Heracles de Euriacutepides mas tambeacutem

por ser a uacutenica a estar presente em todos os episoacutedios (em Seacuteneca entra no Acto II)

Seguimos com Meacutegara Lico e Teseu ndash a ordem respeita novamente a entrada de cada

uma das personagens em cena Depois vemos o comportamento do Coro terminando o

capiacutetulo com a anaacutelise das divindades Iacuteris Lissa e Juno Deixamos estas figuras para o

final deste capiacutetulo porque marcam uma diferenccedila entre as duas trageacutedias as deusas Iacuteris

e Lissa que entram em cena na peccedila de Euriacutepides satildeo ldquosubstituiacutedasrdquo por Juno na de

Seacuteneca

Num primeiro momento apresentamos a descriccedilatildeo que Euriacutepides faz de cada

uma destas personagens observando em seguida como Seacuteneca as representa em

Hercules Furens Nesta perspectiva seraacute possiacutevel estabelecer alguns pontos de contacto

entre as duas trageacutedias bem como identificar as significativas diferenccedilas tentando na

medida do possiacutevel explicaacute-las agrave luz da doutrina estoacuteica Eacute nosso propoacutesito demonstrar

neste capiacutetulo e nos seguintes que os objectivos que norteiam Seacuteneca na elaboraccedilatildeo das

trageacutedias satildeo as mesmas que estatildeo presentes na sua obra em prosa

O terceiro capiacutetulo centra-se nas personagens Heacuteracles e Heacutercules A estrutura

deste capiacutetulo eacute semelhante agrave do anterior comeccedilamos por descrever as caracteriacutesticas de

Heacuteracles passando para as de Heacutercules comparando e mostrando os aspectos

divergentes Optaacutemos por integrar o Mensageiro neste capiacutetulo uma vez que eacute ele quem

descreve as manifestaccedilotildees fiacutesicas e psicoloacutegicas da loucura e as consequecircncias que

decorreram dela Assim poderemos dar uma visatildeo completa do protagonista isto eacute

mostrar a forma como ele eacute apresentado antes durante e depois da loucura avaliando a

transformaccedilatildeo que o acto da demecircncia provocou no heroacutei para depois confrontar com

Heacutercules

Por fim no uacuteltimo capiacutetulo ocupamo-nos da meditatio mortis nas trageacutedias

Hercules Furens e Hercules Oetaeus Ainda que a autoria da uacuteltima trageacutedia seja

4

incerta9 o nosso objectivo ao incluiacute-la neste estudo eacute fazer uma anaacutelise da evoluccedilatildeo da

figura de Heacutercules e da forma como eacute visto o suiciacutedio nas duas peccedilas Nesse sentido

comeccedilamos por fazer uma siacutentese dos trecircs tipos de suiciacutedio segundo Durkheim vendo

qual deles se aproxima melhor dos propoacutesitos estoacuteicos daiacute decorrendo um estudo sobre

o comportamento de Heacutercules no final da trageacutedia Hercules Furens e no de Hercules

Oetaeus nesta se observa a ascese do proficiens que no uacuteltimo momento aceita de

forma impassiacutevel o seu Destino

A ediccedilatildeo adoptada para as trageacutedias de Euriacutepides eacute a da Oxford Classical Texts

preparada por James Diggle para as de Seacuteneca eacute a da Loeb preparada por John Fitch

Seguiram-se os comentaacuterios da Oxford Clarendon Press de Bond para a trageacutedia

Heracles de Euriacutepides e da Cornell University Press de Fitch para Hercules Furens

de Seacuteneca

Para tornar as notas de rodapeacute mais leves e de mais faacutecil leitura algumas obras

de uso mais frequente satildeo citadas em abreviaturas cuja lista apresentamos Foram

adaptadas as grafias σ e ς em vez de с no caso do grego e u em vez de v relativamente

ao latim Apresentamos algumas traduccedilotildees dos textos claacutessicos quando reconhecemos

que satildeo boas e quando natildeo analisamos o passo ou natildeo fazemos paraacutefrase do mesmo Os

tiacutetulos das trageacutedias satildeo apresentados em latim seguindo as normas estabelecidas nos

dicionaacuterios de Liddell-Scott e Glare agrave excepccedilatildeo de Heracles que segue a praacutetica

adoptada nos estudos euripidianos de James Diggle Quanto ao nome do Alcida

achaacutemos conveniente por razotildees de clareza manter Heacuteracles quando se fala da trageacutedia

de Euriacutepides e Heacutercules quando nos referimos agrave de Seacuteneca

9 Para um estudo sobre esta problemaacutetica vejam-se por exemplo Arthur Stanley Pease ldquoOn the Authenticity of the Hercules Oetaeusrdquo Transactions and Proceedings of the American Philological Association 49 (1918) 3-26 Leacuteon Herrmann Le Theacuteacirctre de Seacutenegraveque (Paris Les Belles Lettres 1924) 53-57 Francesco Giancotti Saggio sulle Tragedie di Seneca (Roma Societagrave Editrice Dante Alighieri 1953) 7-16 R G Tanner N S W Newcastle ldquoStoic Philosophy and Roman Tradition in Senecan Tragedyrdquo Aufstieg und Niedergang der Roumlmischen Welt II 322 (Berlim Nova Iorque Walter de Gruyter 1985) 1100-1133 Seneca Tragedies II (Oedipus Agamemnon Thyestes [Seneca] Hercules Oetaeus Octavia) ed e trad John G Fitch (Cambridge Massachusetts Londres Harvard University Press 2004) 332-334

5

Capiacutetulo I

EURIacutePIDES SEacuteNECA E O ESTOICISMO

UM ESTUDO PRELIMINAR 1 Euriacutepides Heracles

EURIPIDESrsquo Heracles is a great play with a serious theme the sudden downfall of the good and glorious (Bond v)

11 Data e estrutura da trageacutedia

A trageacutedia Heracles de Euriacutepides teraacute sido representada entre 416 e 4141 A

acccedilatildeo dramaacutetica comeccedila com Anfitriatildeo Meacutegara e os seus trecircs filhos junto do altar de

Zeus onde se refugiaram como suplicantes para tentar escapar agrave morte (vv 1-106) Sob

a ameaccedila de serem queimados vivos por Lico que viola os direitos dos suplicantes a

famiacutelia heraclida abandona o altar e dirige-se para o palaacutecio de Heacuteracles (vv 140-347)

No momento que antecede a sua morte haacute uma reviravolta da Fortuna (περιπέτεια)

com a chegada de Heacuteracles a Tebas regressado do Hades (vv 451-522) Bond afirma

que ldquoSuch sudden reversals involving an obvious element of chance are an exciting

feature of the later plays of Euripidesrdquo2

Ateacute agrave vinda do protagonista a acccedilatildeo desenrola-se de modo lento (o ritmo estaacute

relacionado com a ansiedade das personagens porque foram condenadas agrave morte e pela

incerteza sobre se Heacuteracles poderaacute ou natildeo sair do Hades) Com a entrada do Alcida em

cena o ritmo da acccedilatildeo acelera Haacute uma raacutepida sucessatildeo de acontecimentos preparaccedilatildeo

da morte de Lico (vv 565-606) morte do tirano (vv 749-754) canto de juacutebilo do Coro

(vv 763-814) entrada das deusas em cena anunciada pelo Coro ndash nova περιπέτεια (vv

1 Sobre a dataccedilatildeo de Heracles ver Bond xxxi-xxxiii O mesmo autor partindo de sete trageacutedias cuja dataccedilatildeo eacute tradicional e comparando o iacutendice de resoluccedilatildeo nos triacutemetros iacircmbicos de cada uma delas ndash Alcestis (438 aC) 62 Medea (431) 66 Hippolytus (428) 43 Troades (415) 212 Helena (412) 275 Orestes (408) 394 Bacchae (406) 376 ndash aproxima a data da trageacutedia Heracles da de Troades ldquoThe figure for Heracles is 215 which indicates a date close to that of Troades (415) 416 and 414 are both possiblerdquo (idem xxxi) 2 Bond xvii

6

815-874) Heacuteracles mata os filhos e Meacutegara (vv 887-909) entrada do Mensageiro (v

910) que narra as mortes (vv 922-1015) lamento do Coro (vv 1016-1041)

A acccedilatildeo volta a ser mais lenta no momento em que Heacuteracles acorda (vv 1088-

1108) e descobre com o auxiacutelio de Anfitriatildeo que foi o autor do morticiacutenio (vv 1111-

1145) O heroacutei deseja suicidar-se (vv 1146-1152) mas a empresa eacute travada com a

chegada de Teseu que por sua vez oferece a cidade de Atenas como lugar de exiacutelio e

de purificaccedilatildeo da maacutecula do Alcida (vv 1163-1426)

Segundo Bond ldquoDuring the past century many critics have complained that the

first part of the play (1-814) the supplication and rescuing of Heraclesrsquo family has no

real connection with what follows his madness and the murdersrdquo3 Entre os que assim

julgam conta-se Ann Norris Michelini Para a autora a trageacutedia tem duas acccedilotildees que

natildeo estatildeo intimamente ligadas e que se contradizem completamente

The first half builds to a happy ending with Herakles triumphantly returning to rescue his family from the usurper Lykos while the second half shows the savior as the murderer of his family While in the other cases it is possible to trace the ways in which two actions have been interlaced in this case we can only point to parallels and analogies between the actions The central feature of the structure must remain the abrupt break that severs the play into two halves4

Na perspectiva de Bond ldquoThe play is written around the contrast at lines 8145

() It is this violent antithesis which holds Heracles together The first part which here

reaches its culmination has been concerned with the threat to the children of Heracles

and their salvation by Heracles They are now to be killed by their saviourrdquo 5 O mesmo

autor considera que os vv 822-873 entrada das deusas Iacuteris e Lissa em cena fazem

parte de um ldquosegundo proacutelogordquo6 Duclos por sua vez apresenta uma visatildeo triacuteptica da

acccedilatildeo dramaacutetica Heacuteracles salvador (vv 1-821) Heacuteracles louco (vv 822-1088)

Heacuteracles triunfante (vv 1089-1428)7 Esta divisatildeo em trecircs partes estaacute igualmente

presente em Parmentier8

3 Bond xviii 4 Ann Norris Michelini Euripides and Tragic Tradition (Londres The University of Wisconsin Press 1987) 232 5 Bond xxi 6 Idem 281 7 Duclos 123 ss 8 Parmentier 7-8

7

No tocante a esta problemaacutetica optaacutemos por seguir Barlow Para a autora a

trageacutedia tem quatro momentos que correspondem a

1 Ausecircncia de Heacuteracles e a espera pelo seu regresso

2 Regresso do heroacutei e morte de Lico

3 Loucura de Heacuteracles filiciacutedio e uxoriciacutedio

4 Recuperaccedilatildeo de Heacuteracles com o auxiacutelio de Teseu e de Anfitriatildeo ndash a amizade

triunfa no final da acccedilatildeo dramaacutetica Estes quatro momentos podem ainda segundo

Barlow agrupar-se em duas acccedilotildees os dois primeiros formam uma acccedilatildeo e os dois

uacuteltimos a segunda acccedilatildeo ldquoeach setting a problem followed by a resolution In the first

the physical danger of Heraclesrsquo family is followed by their rescue In the second their

destruction and the mental danger of Heracles himself is followed by a kind of

restorationrdquo9 Em cada uma destas partes Heacuteracles assume-se como personagem

principal

12 Os deuses

Como nota Ann Norris Michelini10 a trageacutedia de Heracles eacute a que coloca mais

questotildees sobre o papel dos deuses As personagens invocam-nos com alguma

frequecircncia Anfitriatildeo contesta a justiccedila e a (i)moralidade de Zeus (vv 339-347 vv 498-

500) que sabe partilhar o leito dos humanos (vv 344-346) mas eacute indiferente quando

mais precisam dele O Coro considera que os deuses natildeo possuem ξύνεσις nem σοφία

(vv 655-656) Meacutegara sente que a forma como as divindades agem na vida dos homens

nem sempre satildeo claros (v 62)

Depois que Heacuteracles regressa do Hades e castiga Lico o Coro muda de opiniatildeo

relativamente aos deuses (vv 772-814) elogiando-os por reconhecer que eles natildeo

descuram a justiccedila Aparecem entatildeo em cena Iacuteris e Lissa que vecircm mudar o rumo dos

acontecimentos A posiccedilatildeo do Coro volta a ser de censura critica a intervenccedilatildeo dos

deuses na vida dos homens (vv 1087-1088)

A entrada de Atena em cena eacute suacutebita aparece no preciso momento em que

Heacuteracles se prepara para matar Anfitriatildeo (vv 1001-1006) A deusa interfere na acccedilatildeo

9 Barlow 6-7 10 Ann Norris Michelini Euripides and Tragic Tradition 267

8

para travar Heacuteracles lanccedilando-lhe uma rocha contra o peito e adormecendo-o Quanto

ao suacutebito aparecimento desta divindade Emma Griffiths diz

While she may be acting as an agent of Zeus she may also be acting as Heraclesrsquo protector or because of a general concern for the rights and fathers () There are also links between Athena and Zeus and Heracles which suggest a close relationship However her role as patron goddess of Athens gives the episode a more immediate link to the original audience and connects her with Theseus who arrives shortly afterwards As Athena stops the physical harm Theseus provides a solution to the emotional caos which ensues11

A intervenccedilatildeo da deusa poderaacute tambeacutem ter que ver com o proacuteprio excesso do

heroacutei uma vez que Iacuteris (e Hera) pretendia apenas que Heacuteracles matasse os seus filhos

Ora o heroacutei mata Meacutegara e tem que ser impedido para natildeo cometer um uacuteltimo crime o

parriciacutedio ndash esta violecircncia e excesso poderatildeo fazer parte da proacutepria caracteriacutestica do

protagonista (vide vv 565-573)12

Quando Anfitriatildeo conta ao Alcida que foi ele o autor da morte dos filhos e de

Meacutegara o protagonista considera inaceitaacutevel que uma deusa como Hera seja honrada

uma vez que a divindade o perseguiu sempre e acabou por destruiacute-lo quando lhe

suscitou a loucura (vv 1303-1310) Teseu aceita a ideia que os poetas datildeo dos deuses

de que eles satildeo imorais e injustos (vv 1311-1319) e parte deste conceito da divindade

para dissuadir Heacuteracles de se suicidar Teseu lembra-lhe que o ser humano mais natildeo eacute

do que um joguete nas matildeos dos deuses (vv 1314-1339) Apenas Heacuteracles contesta a

imagem antropomorfizada das divindades natildeo acreditando que os deuses possam ter

exactamente as mesmas emoccedilotildees que os homens (vv 1340-1344) Neste sentido

parece-nos justa a afirmaccedilatildeo de Maria de Faacutetima Sousa e Silva relativamente agrave trageacutedia

Heracles ldquoTornam-se inaceitaacuteveis os crimes e desonestidades que o mito atribuiacutea aos

deuses o modelo religioso tradicional eacute a cada momento posto em causardquo13

Este sentimento de descreacutedito pelas divindades levou investigadores a sentir que

a proacutepria trageacutedia natildeo eacute senatildeo uma ficccedilatildeo uma invenccedilatildeo do poeta ldquoWith the overt

reference to the possibility that the logoi of the poets may be false we are forced to

11 Emma Griffiths Euripides Heracles (Londres Duckworth 2006) 98-99 12 Vide o Capiacutetulo III aliacutenea a) 13 Maria de Faacutetima Sousa e Silva Criacutetica Literaacuteria na Comeacutedia Grega Geacutenero Dramaacutetico (Coimbra diss de Doutoramento em Literatura Grega apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 1983) 226

9

consider that Herakles itself the play we are watching is also a mere fiction a tale told

by a poet who may be lyingrdquo explica Ann Norris Michelini14

Bond sugere In exhibiting and emphasizing these successive views about gods Heracles is mainly agnostic and negative in tone But two positive features are brought out which serve as shafts of light in this deeply pessimistic tragedy The first is the strength of human friendship () The second positive feature is the decision of Heracles not to kill himself but to endure life as best he may15

Este afastamento do homem dos deuses tem que ver com o interesse que os

sofistas tinham de estudar o homem por si no sentido pleno Natildeo se pode dizer

contudo que Euriacutepides natildeo acreditasse nas divindades assumiu apenas um juiacutezo

criacutetico que procura ser consciente16

13 Inovaccedilotildees em Euriacutepides

Sendo o seu objectivo representar um heroacutei mais humano Euriacutepides

desenvolveu o mito de Heacuteracles de uma forma peculiar inovando em alguns aspectos

a) A personagem Lico eacute uma inovaccedilatildeo de Euriacutepides17

b) Episoacutedio da loucura de Heacuteracles e consequente morte dos filhos Para Bond

Before Euripides there is little evidence about the stories of the madness of Heracles and the murder of his children The Cypria refer vaguely to τὴν ῾Ηρακλέους μανίαν Stesichorus 230 PMG mentions a memorial to his children by Megara who evidently died in a mad attack by Heracles for our source implies clearly that Stesichorus did not include the attack on Amphitryon nor the stone hurled by Athene to stop Heracles () Pherecydes (F Gr Hist 3 F 14) says simply that Heracles threw his five children into a fire18

14 Ann Norris Michelini Euripides and Tragic Tradition 275 Vide ainda Emma Griffiths Euripides Heracles 96-97 Thalia Papadopoulou Heracles and Euripidean Tragedy (Cambridge Cambridge University Press 2005) 100 ss 15 Bond xxii-xxiii 16 Maria de Faacutetima Sousa e Silva Criacutetica Literaacuteria na Comeacutedia Grega Geacutenero Dramaacutetico 227 17 Voltaremos a focar este aspecto quando analisarmos a personagem (Capiacutetulo II 3a) 18 Idem xxviii-xxix

10

Segundo o mesmo autor haacute trecircs escritores gregos posteriores a Euriacutepides que

trataram o tema da loucura antes do Alcida realizar os trabalhos Satildeo eles Damasco (F

Gr Hist 90 F 13) Diodoro (4106ss) e Apolodoro (Bibl 2412)19 Este por exemplo

conta que a loucura do heroacutei decorreu depois da guerra contra os Miacutenios tendo sido

causada pelos ciuacutemes de Hera por o Alcida ser filho de Zeus Enlouquecido o heroacutei

mata natildeo soacute os filhos como tambeacutem dois dos seus sobrinhos atirando-os ao fogo

Depois de recuperada a razatildeo eacute purificado pelo rei Teacutespio Considerando a purificaccedilatildeo

insuficiente para expiar os seus crimes o Alcida procura o oraacuteculo de Apolo com o

intuito de saber quais satildeo os desiacutegnios dos deuses Do encontro que teve com a Pitonisa

passa a chamar-se Heacuteracles sendo obrigado a submeter-se agraves ordens de Euristeu

durante doze anos Uma vez concluiacutedos os trabalhos Heacuteracles receberia como preacutemio a

imortalidade20

Na perspectiva de Bond natildeo haacute certezas de que a descriccedilatildeo da loucura de

Heacuteracles quando localizada apoacutes a conclusatildeo dos trabalhos seja uma inovaccedilatildeo de

Euriacutepides Sendo ou natildeo inovaccedilatildeo Euriacutepides daacute a imagem de um heroacutei que depois de

ter vencido todos os obstaacuteculos eacute derrotado por completo pelas divindades Como Ann

Norris Michelini sublinha ldquoThe greatest of heroes is being transformed before our eyes

into something very like other Euripidean tragic protagonists helpless and humiliated

perhaps even awkward and ludicrous figures whose endurance and suffering capture

audience sympathy in spite of these negative characteristicsrdquo21

Reverter a ordem dos acontecimentos (vindo o acto da loucura depois dos

trabalhos) significa para David Kovacs

The Labors must be given another motivation Heracles offers to work for Eurystheus so that he and his father Amphitryon may return to Argos from which Amphitryon has been banished In this way the killing of his family can be left as the final reversal of the herorsquos good fortune22

d) O aparecimento de Teseu no final da acccedilatildeo dramaacutetica poderaacute ser outra

inovaccedilatildeo do poeta jaacute que como sugere Bond ldquoif in the pre-Euripidean tradition the

19 Apud Bond xxix 20 Apolodoro Bibliotheca 2412 21 Ann Norris Michelini Euripides and Tragic Tradition 263 22 Euripides Suppliant Women Electra Heracles ed e trad David Kovacs (Cambridge Massachusetts Harvard University Press 1998) 304

11

murderers preceded the labours Theseus cannot have played any part and there is a

strong likelihood of Euripidean invention hererdquo 23

Parece-nos que o aparecimento de Teseu no final da trageacutedia permite a Euriacutepides

elogiar a cidade ateniense em detrimento de Tebas Esta cidade recusou ajudar a famiacutelia

de Heacuteracles no momento em que o heroacutei estava ausente (v 227 v 560) Teseu pelo

contraacuterio assim que soube que a famiacutelia do Alcida estava a ser ameaccedilada por Lico

dirigiu-se para Tebas acompanhado de hoplitas (vv 1164-1171) Heacuteracles eacute obrigado a

abandonar Tebas (governada por tiranos) por ter cometido um crime involuntaacuterio

Atenas (onde a democracia era a poliacutetica vigente) eacute a cidade acolhedora que julgaraacute e

purificaraacute Heacuteracles do filiciacutedio e do uxoriciacutedio

Para Francis M Dunn ldquoWhen he arrives with an army (1165) when he shows

concern for the polluted and exiled Heracles when he offers him a place of refuge and

promises to settle him on Athenian soil Theseus plays a familiar role as the statesman

who embodies Athenian values by protecting suppliantsrdquo24

2 Seacuteneca Hercules Furens

Seacuteneca revela-se o mais laquomodernoraquo dos pensadores e dos escritores antigos

(Padre Manuel Antunes25)

21 Data e Estrutura da Trageacutedia

Pensa-se que a trageacutedia Hercules Furens teraacute sido escrita antes de 54 dC26 A

acccedilatildeo dramaacutetica afasta-se logo no Acto I da de Euriacutepides o seu modelo com a

introduccedilatildeo da personagem Juno que num soliloacutequio prepara a vinganccedila contra 23 Bond xxx 24 Francis M Dunn Tragedyrsquos End Closure and Innovation in Euripidean Drama (Oxford Oxford University Press 1996) 121 25 Padre Manuel Antunes sj Obra Completa tomo I Theoria Cultura e Civilizaccedilatildeo volume I Cultura Claacutessica (Estudos) ed criacutetica coordenaccedilatildeo cientiacutefica Arnaldo do Espiacuterito Santo (Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2007) 192 26 Katharina Volk Gareth D Williams (eds) Seeing Seneca Whole Perspectives on Philosophy Poetry and Politics (Leiden Boston Brill 2006) 199 Fitch (1) 50-53 Estes criacuteticos sugerem que a trageacutedia teraacute sido escrita por volta do ano 54 pelos ecos que encontram da Apocolocyntosis

12

Heacutercules Com a entrada da deusa no iniacutecio da trageacutedia fica-se a conhecer o tema a

loucura e o assassiacutenio dos filhos do Alcida Jaacute na peccedila de Euriacutepides o tema soacute eacute revelado

quando entram em cena Iacuteris e Lissa (vv 821-974)

O Acto II assemelha-se ao Proacutelogo e ao Episoacutedio I de Euriacutepides O cenaacuterio eacute

semelhante Anfitriatildeo e Meacutegara estatildeo junto do altar de Juacutepiter (Zeus na trageacutedia grega)

como suplicantes esperando pelo regresso do Alcida Lico entra em cena natildeo com o

objectivo de matar a famiacutelia heraclida (como em Her) mas de assegurar o seu poder

querendo casar-se com Meacutegara Recusada com violecircncia a proposta Lico ameaccedila

queimaacute-los vivos acendendo uma fogueira ao redor do altar de Juacutepiter Tal como na

trageacutedia de Euriacutepides a famiacutelia heraclida abandona o lugar e dirige-se ao palaacutecio de

Heacutercules

O Acto III inicia-se com o monoacutelogo do Alcida Meacutegara eacute uma personagem

muda ao contraacuterio do que acontece em Euriacutepides Heacutercules vem acompanhado de Teseu

(na trageacutedia grega o soberano de Atenas soacute aparece no episoacutedio V) A permanecircncia do

protagonista em cena eacute curta27 ndash ao saber que Lico pretendia matar a sua famiacutelia deixa

Anfitriatildeo Meacutegara e os filhos com Teseu e vai ao encontro de Lico para mataacute-lo Esta

saiacuteda raacutepida abre espaccedilo para que Teseu descreva as moradas das sombras narrando a

luta de Heacutercules com Ceacuterbero Este Acto eacute substancialmente diferente do Episoacutedio II na

peccedila de Euriacutepides Heacuteracles dialoga ora com Meacutegara ora com Anfitriatildeo dirige-se aos

filhos encaminha-os para o palaacutecio como um navio que conduz os botes para um porto

seguro metaacutefora que o heroacutei usa o Hades nunca eacute descrito Anfitriatildeo e Heacuteracles

preparam o assassiacutenio de Lico

O episoacutedio da loucura no Acto IV decorre agrave frente do leitorespectador A

descriccedilatildeo da alteraccedilatildeo mental do Alcida permite ter uma visatildeo ldquoem tempo realrdquo da

mudanccedila que estaacute a acontecer no protagonista Na peccedila de Euriacutepides eacute o Mensageiro (no

episoacutedio IV) que conta essa transformaccedilatildeo porque tudo se passou dentro do palaacutecio fora

do campo de visatildeo dos espectadores

O uacuteltimo Acto que corresponde ao episoacutedio V do Heracles eacute o despertar de

Heacutercules O protagonista descobre que foi o autor do filiciacutedio e do uxoriciacutedio O

suiciacutedio surge em ambas as trageacutedias como a melhor opccedilatildeo para o Alcida mas haacute uma

personagem que o dissuade Teseu em Euriacutepides e Anfitriatildeo na trageacutedia latina

27 De 237 vv total de versos do Acto III apenas 385 vv dizem respeito agrave fala do heroacutei Deste nuacutemero 115 vv correspondem a Heacutercules no momento em que se dirige a Anfitriatildeo a Meacutegara e a Teseu

13

As inovaccedilotildees mitoloacutegicas que encontramos em Euriacutepides foram ldquorecuperadasrdquo

por Seacuteneca mas com uma visatildeo e objectivos diferentes

22 Deuses

Os deuses natildeo tecircm nas trageacutedias de Seacuteneca o mesmo desenvolvimento e

importacircncia que tecircm nas peccedilas gregas Em Hercules Furens apesar de Juno entrar em

cena deixando expliacutecito o seu oacutedio a Heacutercules e afirmando que tudo faraacute para destruir o

heroacutei perseguindo ad aeternum o fruto do adulteacuterio de Juacutepiter a sua funccedilatildeo e atitude

assemelham-se agrave de uma mulher traiacuteda pelo marido Ela proacutepria diz ter abandonado os

ceacuteus e passado a viver na terra (vv 1-5) logo junto de mortais Mariana Matias afirma

ldquoOs homens fazem uso do livre arbiacutetrio que a proacutepria Divindade lhes concedeu O Mal

ou Bem adviraacute do correcto ou inadequado uso que fizer da Razatildeo e da forccedila de vontade

(uoluntas) que tiver para se afastar das paixotildees e dos conflitos que atraem o

sofrimentordquo28

Num uacuteltimo aspecto a acccedilatildeo de Hercules Furens eacute ldquodesequilibradardquo jaacute que ldquoo

ritmo com que Seacuteneca constroacutei a acccedilatildeo das suas peccedilas se caracteriza pelo desequiliacutebrio

visto que gasta a maior parte do texto em interminaacuteveis monoacutelogos de anaacutelise interior

das personagens enquanto desenvolve os incidentes especiacuteficos da acccedilatildeo em cenas

concentradas de uma rapidez vertiginosardquo29 diz Segurado e Campos Essa falta de

proporccedilatildeo prende-se com o objectivo de Seacuteneca em querer revelar as tendecircncias que as

personagens tecircm para enveredar pelo caminho do uitium Ao fazecirc-las falar expondo as

suas duacutevidas os seus receios ao dar-lhes a capacidade de construiacuterem um raciociacutenio

loacutegico e aparentemente correcto Seacuteneca mostra os erros de raciociacutenio e os resultados

que eles podem trazer

Antes poreacutem de passarmos agrave anaacutelise das personagens sob um ponto de vista

comparativo eacute conveniente fazer um breve estudo sobre a doutrina do Poacutertico

28 Mariana Montalvatildeo Horta e Costa Matias Paisagens Naturais e Paisagens da Alma no Drama Senequiano ndash Troades e Thyestes (Coimbra diss de Mestrado em Literaturas Claacutessicas especialidade de Literatura Latina apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 2007) 32 29 Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos ldquoSeacuteneca Brecht e o Teatro Eacutepicordquo Classica 23 (1999) 13

14

23 Doutrina Estoacuteica

Fundado por Zenatildeo de Ciacutecio que chega a Atenas por volta do ano 313 aC para

abraccedilar o estudo da filosofia heleacutenica o estoicismo30 surge na Greacutecia por volta do ano

300 aC Pretende ser uma resposta ao momento conturbado que as cidades gregas

viviam no fim do seacutec IV Em contraste com a anterior hegemonia e individualismo

caracteriacutesticas do espiacuterito heleno o povo grego confronta-se agora com uma abertura de

horizontes e uma nova cultura a invadir o seu espaccedilo na sequecircncia da expansatildeo de

Alexandre

Zenatildeo procurou ensinar um novo sentimento de comunidade que se opunha por

completo ao individualismo defendido por Epicuro Proferindo os seus discursos na

Στοὰ ποικίλη lugar onde se reunia com um vasto puacuteblico e que acabou por dar nome agrave

Escola Zenatildeo difundiu ainda a sua crenccedila num poder que comanda todo o Universo

Como sublinha Joseph Moreau Zenatildeo propocircs a ideia da existecircncia de uma Razatildeo

Universal (Λόγος) que eacute Destino e Providecircncia31 A partir deste conceito pretende

libertar as almas de todo o tipo de inquietudes medos inseguranccedilas fazendo vingar a

ideia de que tudo o que acontece eacute inevitaacutevel e de acordo com a vontade de um Bem

Supremo de tal modo que cabe ao homem aceitar tudo com resignaccedilatildeo e confianccedila

Assim ao procurar viver bem e de acordo com o que a Natureza lhe enviava uma vez

que provinha de deus o homem conseguia alcanccedilar a sabedoria ldquoo estoicismo

desenvolve-se como um materialismo e como um racionalismo eacuteticordquo32

30 O estoicismo compreende trecircs grandes momentos na sua histoacuteria O primeiro periacuteodo correspondente ao do estoicismo antigo (finais do seacutec IV aC a III aC) eacute inaugurado por Zenatildeo de Ciacutecio e continuado por Cleantes e Crisipo (todos eles assumiram a direcccedilatildeo da Escola) Num segundo momento no periacuteodo meacutedio (seacutecs II-I aC) o estoicismo chega a Roma aiacute tendo como representantes Paneacutecio de Rodes amigo de Cipiatildeo Emiliano e membro do chamado Ciacuterculo de Cipiotildees e Posidoacutenio de Apameia disciacutepulo de Paneacutecio e amigo e mestre de Ciacutecero Por uacuteltimo o terceiro periacuteodo denominado neo-estoicismo estoicismo romano ou estoicismo imperial (I-II dC) tem como protagonistas Seacuteneca Musoacutenio Rufo Epicteto (escravo e depois liberto) e o imperador Marco Aureacutelio 31 Vide Joseph Moreau Stoiumlcisme ndash Eacutepicurisme Tradition Helleacutenique (Paris Librairie Philosophique J Vrin 1979) 9 32 Jean Brun O Estoicismo trad Joatildeo Amado (Lisboa Ediccedilotildees 70 1986) 32

15

231 Os trecircs ramos da Filosofia Fiacutesica Loacutegica e Moral

De modo geral os estoacuteicos dividiam a Filosofia em trecircs ramos33 a Fiacutesica a

Moral e a Loacutegica ndash o primeiro a fazer esta distinccedilatildeo foi Zenatildeo de Ciacutecio34 Apesar desta

triparticcedilatildeo os estoacuteicos consideram que esses trecircs ramos se conjugam num todo e

procuraram demonstraacute-lo por meio de diversas analogias Uma delas eacute entre o

estoicismo e o corpo de um animal em que os ossos e os nervos tecircm como

correspondente a Loacutegica a carne a Moral e a alma representa a Fiacutesica Um outro siacutemile

que os estoacuteicos usam eacute o ovo a casca eacute a Loacutegica a clara a Moral e a gema que estaacute no

centro a Fiacutesica Estabelecem ainda paralelismo entre esta doutrina e um campo feacutertil a

Loacutegica seria a cerca que delimita toda a aacuterea de cultivo a Moral os frutos e a Loacutegica a

terra ou as aacutervores Por uacuteltimo entre o estoicismo e uma cidade bem fortificada e sob o

governo da Razatildeo35 De todos estes exemplos se infere que nenhuma parte eacute

independente mas cada um dos elementos completa os outros formando um todo De

facto como refere Dioacutegenes Laeacutercio se todas as coisas satildeo apreendidas por recurso agrave

loacutegica esta implicaraacute a inclusatildeo de tudo o que entra no domiacutenio da fiacutesica e da eacutetica36

a) A Loacutegica

O estoicismo tal como o aristotelismo parte do empirismo Contudo as

perspectivas que estatildeo na base de cada uma destas doutrinas filosoacuteficas diferem por

completo Para Aristoacuteteles o mundo eacute estaacutetico (porque traduz um movimento

incompleto ou seja ldquoele natildeo eacute mais do que a passagem da potecircncia ao actordquo37) e

obedece a hierarquias (no sentido em que cada indiviacuteduo tem um lugar e funccedilatildeo

proacuteprios no mundo)

33 Segundo Dioacutegenes Laeacutercio haacute estoacuteicos que elaboraram uma divisatildeo mais minuciosa como eacute o caso de Cleantes que dividiu a Filosofia em seis partes Dialeacutectica Retoacuterica Eacutetica Poliacutetica Fiacutesica e Teologia (vide Dioacutegenes Laeacutercio 741) No entanto a triparticcedilatildeo parece ser a mais aceite entre os estoacuteicos 34 Dioacutegenes Laeacutercio 739 35 Vide Dioacutegenes Laeacutercio 740 36 Dioacutegenes Laeacutercio 783 37 Jean Brun O Estoicismo 35

16

Jaacute os estoacuteicos entendiam o mundo como um ser vivo38 Deus Mundo Natureza

todos satildeo seres vivos Como afirma Jean Brun

O empirismo estoacuteico natildeo eacute um empirismo de mensagem qualitativa como em Aristoacuteteles mas um empirismo da compenetraccedilatildeo do homem e do mundo sentir eacute ter os sentidos e a alma modificados pelo que eacute exterior esta modificaccedilatildeo pode ser em harmonia com o que a provoca e neste caso estamos na verdade ou pode estar em desacordo e nesse caso estamos no erro e na paixatildeo39

Assim o homem soacute vive bem quando em plena sintonia com o que faz parte da

natureza

A doutrina do Poacutertico divide o estudo da Loacutegica em duas partes retoacuterica

(ῥητορική) e dialeacutectica (διαλεκτική) ndash esta estrutura da lsquociecircncia de bem falarrsquo eacute herdeira

da sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica A primeira constitui a ciecircncia de bem falar que por sua

vez tem trecircs geacuteneros deliberativo judicial e demonstrativo ou epidiacutectico A retoacuterica

divide-se em inuentio dispositio elocutio e actio correspondendo cada uma dessas

partes agraves fases da elaboraccedilatildeo do discurso (ainda sem a da memoria que soacute mais tarde a

tratadiacutestica retoacuterica integraraacute) A dialeacutectica eacute a ciecircncia que permite o uso correcto da

linguagem quer em perguntas quer nas respostas Esta ciecircncia eacute divisiacutevel em duas

partes uma diz respeito ao discurso (σημαινομένος lsquosignificadorsquo) a outra estaacute

relacionada com a linguagem (φωνή lsquosomrsquo) O discurso compreende a introductio a

narratio a refutatio e a conclusio40

A dialeacutectica eacute necessaacuteria e eacute considerada pelos estoacuteicos como uma virtude que

agrega em si todas as outras Eacute pela dialeacutectica que o saacutebio consegue discernir de modo

pleno a verdade da mentira aleacutem de lhe permitir um bom uso da argumentaccedilatildeo e um

raciociacutenio claro Eacute munido da dialeacutectica que o homem obteacutem a capacidade de colocar

questotildees agraves quais consegue responder41

38 Seacuteneca considera que o mundo tal como qualquer ser vivo possui arteacuterias e veias Explica Pierre Grimal Seacutenegraveque sa Vie son Oeuvre avec un Exposeacute de sa Philosophie (Paris Presses Universitaires de France 1966) 50 que a visatildeo de Seacuteneca de que o mundo eacute um ser vivo natildeo eacute original uma vez que jaacute Empeacutedocles e Posidoacutenio tinham explorado o conceito Contudo diz-nos Grimal que o que se demarca em Seacuteneca eacute o estudo que ele desenvolve sobre o tema ldquoCette doctrine est pousseacute par lui jusque dans le deacutetail agrave la faccedilon drsquoune hypothegravese dont on cherche agrave deacutevelopper les conseacutequences et surtout elle lui permet de concevoir selon un scheacutema quasi meacutecanique la solidariteacute interne du Monde exigeacutee par le postulat de sa rationaliteacute et condition mecircme de toute connaissancerdquo 39 Jean Brun O Estoicismo 36 40 Dioacutegenes Laeacutercio 741-43 41 Dioacutegenes Laeacutercio 746-48

17

b) A Fiacutesica

O termo lsquoFiacutesicarsquo vem do termo grego φύσις (lsquonaturezarsquo) que por sua vez deriva

da forma verbal φύειν cujo sentido eacute lsquocrescerrsquo A Natureza conteacutem em si o mundo e eacute a

fonte directriz de tudo

Na verdade para os estoacuteicos a palavra lsquofiacutesicarsquo tinha um significado mais amplo

do que aquele que comummente lhe atribuiacutemos nos nossos dias Segundo Dioacutegenes

Laeacutercio os Estoacuteicos entendiam a Fiacutesica como aquilo que deteacutem o mundo e que provoca

as estaccedilotildees Definiam a natureza como uma forccedila que se desloca sobre si mesma e que

preserva a descendecircncia dos seres42

A Fiacutesica dividia-se em vaacuterios ramos Um relaciona-se com a divisatildeo por espeacutecies

e compreendia o que trata dos corpos (περὶ σωμάτων) o que trata dos princiacutepios (περὶ

ἀρχῶν) o dos elementos (περὶ στοιχείων) o dos deuses (περὶ θεῶν) o dos limites (περὶ

περάτων) o do lugar (τόπου) e o do vazio (κενοῦ) Um outro ramo liga-se agrave divisatildeo por

geacuteneros do Cosmo dos elementos e da etiologia43

Relativamente aos geacuteneros em particular ao universo este eacute governado por dois

princiacutepios um passivo e um activo O passivo (τὸ πάσχον) eacute identificado com a mateacuteria

(ὕλη) e o activo (τὸ ποιοῦν) que se relaciona com a Razatildeo eacute designado λόγος Este

princiacutepio eacute activo no sentido em que age sobre a mateacuteria moldando-a e fazendo dela

forma Sem este princiacutepio a mateacuteria jaz informe Seacuteneca identifica nas Ad Lucilium

Epistulae Morales estes dois princiacutepios da natureza como causa e mateacuteria Eacute deles que

tudo o resto deriva Explica Seacuteneca que materia iacet iners res ad omnia parata

cessatura si nemo moueat causa autem id est ratio materiam format et quocumque

uult uersat ex illa uaria opera producit44 A causa eacute o agente Em termos praacuteticos o

corpo eacute a mateacuteria e a alma a causa

A mateacuteria eacute por sua vez formada por quatro elementos o fogo (proveniente do

eacuteter) o ar (que estaacute depois do eacuteter) a aacutegua e a terra Destes quatro elementos dois satildeo

42 Dioacutegenes Laeacutercio 7148-149 43 Dioacutegenes Laeacutercio 7132 44 L Annaei Senecae Ad Lucilium Epistulae Morales 652 lsquoA mateacuteria jaz inerte apta a tomar todas as formas mas imoacutevel para sempre se ningueacutem a trabalhar a causa poreacutem que eacute como quem diz a razatildeo daacute forma agrave mateacuteria transforma-a naquilo que quer realiza a partir dela vaacuterios tipos de produtosrsquo As traduccedilotildees do latim seguem a ediccedilatildeo de Luacutecio Aneu Seacuteneca Cartas a Luciacutelio trad Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos (2ordf ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2004)

18

activos (o ar e o fogo) dois passivos (terra e aacutegua) Estes elementos satildeo pereciacuteveis pelo

facto de que estatildeo em interminaacutevel mutaccedilatildeo o que implica um fim e uma renovaccedilatildeo

Haacute dois movimentos naturais que podemos identificar com a proacutepria vida e

morte de todos os que habitam o mundo o primeiro eacute a passagem do fogo para a terra

passando pelo ar e pela aacutegua (traduz-se na vida) o segundo movimento vai da terra para

o fogo passando de novo pelos dois outros elementos aacutegua e ar (representaccedilatildeo da

morte) Esta morte e ressurgimento natural das coisas que os estoacuteicos comummente

designam por palingeacutenese acontece no dizer de Jean Brun ldquopor ocasiatildeo de uma

conflagraccedilatildeo universal durante a qual o mundo se dilata no vazio ilimitado que o

envolve e onde todas as coisas satildeo transformadas em fogo (ἐκπύρωσις)rdquo45 O mesmo

autor explica que esta conflagraccedilatildeo universal natildeo se traduz numa destruiccedilatildeo total do

Universo O que se daacute em concreto eacute uma renovaccedilatildeo dos seres e das coisas Os estoacuteicos

acreditavam que a vida do mundo eacute um ciacuterculo perfeito no sentido em que nasce morre

e volta a nascer

Sendo o κόσμος visto como um ser vivo que possui uma anima e a razatildeo os

estoacuteicos interpretam este lsquoUniversorsquo sob trecircs acepccedilotildees diferentes primeira o Universo eacute

imagem do Deus uacutenico ser que possui qualidades inerentes (ἰδίως ποιόν) este por sua

vez eacute um ser indestrutiacutevel e arquitecto da ordem do Cosmo uma vez que tem a

capacidade de destruir e recriar tudo a partir de si proacuteprio (o que equivale a dizer que

tem mecanismos proacuteprios que lhe permitem eliminar o que quiser e do nada voltar a

engendrar algo novo) segunda o Universo eacute considerado como a ordem dos astros

terceira o Universo eacute visto como um todo do qual Deus e os astros fazem parte46

Consideravam ainda que o mundo eacute constituiacutedo por mateacuteria ou seja por corpos

Esta eacute uma noccedilatildeo panrealista visto que para os estoacuteicos tudo eacute σῶμα desde a noite a

aurora o minuto a palavra o proacuteprio deus ateacute agrave alma e as virtudes e os viacutecios Dada a

visatildeo de que tudo ou quase tudo eacute corpo eacute permitido ao homem uma ligaccedilatildeo estreita

com o Universo do qual eacute originaacuterio e para o qual retorna Diz Seacuteneca bonum agitat

animum et quodam modo format et continet quae [ergo] propria sunt corporis Quae

corporis bona sunt corpora sunt ergo et quae animi sunt nam et hoc corpus est47

45 Jean Brun O Estoicismo 49 46 Dioacutegenes Laeacutercio 7138-139 47 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 1064 lsquoO bem move-nos a alma de certa maneira daacute agrave alma forma e limites acccedilotildees que satildeo especiacuteficas dos corpos Os bens do corpo satildeo corpos logo tambeacutem os bens da alma o satildeo uma vez que a alma eacute um corporsquo

19

Acrescenta tambeacutem que as paixotildees satildeo consideradas como corpos dado que fazem

transparecer expressotildees no rosto do ser humano quando este se deixa levar por elas

non puto te dubitaturum an adfectus corpora sint () tamquam ira amor tristitia nisi dubitas an uultum nobis mutent an frontem adstringant an faciem diffundant an ruborem euocent an fugent sanguinem () corpora ergo sunt quae colorem habitumque corporum mutant quae in illis regnum suum exercent () numquid est dubium an id quo quid tangi potest corpus sit () omnia autem ista quae dixi non mutarent corpus nisi tangerent ergo corpora sunt Etiam nunc cui tanta uis est ut inpellat et cogat et retineat et inhibeat corpus est () denique quidquid facimus aut malitiae aut uirtutis gerimus imperio quod imperat corpori corpus est quod uim corpori adfert corpus48

No entanto alguns filoacutesofos consideram que nem tudo o que existe no cosmo

possui corpo Sexto Empiacuterico aponta quatro geacuteneros de incorpoacutereos o ldquoexprimiacutevelrdquo

(λεκτόν) o espaccedilo (τόπος) o vazio (κενόν) e o tempo (χρόνος)49 ndash este uacuteltimo eacute infinito

nas duas extremidades isto eacute no passado e no futuro mas eacute sempre contiacutenuo No que

diz respeito a este uacuteltimo elemento os estoacuteicos definem-no como um intervalo de

movimento que depende de dois elementos a terra (e o mar por extensatildeo) e o vazio

Os quatro elementos supramencionados satildeo tomados como incorpoacutereos por natildeo

manifestarem qualquer transformaccedilatildeo nos corpos Na verdade natildeo eacute possiacutevel uma

interacccedilatildeo que fundamente uma mutaccedilatildeo entre um incorpoacutereo e um corpo visto que o

primeiro natildeo produz qualquer efeito no segundo50 O mesmo natildeo acontece quando dois

corpos se tocam Haacute uma influecircncia no acto do confronto Este contacto implica sempre

ou quase sempre uma transformaccedilatildeo haacute um agente e um paciente um transformador e

um transformado Ao encontro de corpos de que resulta uma alteraccedilatildeo os estoacuteicos

denominam ldquoamaacutelgama totalrdquo (κρᾶσις δι᾽ ὅλων) Segundo Jean Brun ldquoA continuidade

da natureza esta presenccedila dos corpos num mundo de espaccedilo ocupado que ignora o

48 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 1065 7-10 lsquoAcho que tu natildeo hesitaraacutes em reconhecer como corpos as paixotildees () ndash tais como a coacutelera o amor a tristeza a menos que tu duvides que elas nos alteram o rosto nos enrugam a testa nos alongam a face nos tornam a cara encarniccedilada ou nos fazem ficar sem pinga de sangue () Consequentemente tudo quanto altera a cor e a forma dos corpos eacute igualmente um corpo o qual exerce naqueles a sua acccedilatildeo () E seraacute possiacutevel duvidar que seja corpo tudo aquilo por que um corpo pode ser tocado () Ora tudo quanto referi natildeo poderia alterar o nosso corpo se lhe natildeo tocasse por conseguinte todos satildeo corpos Mais ainda tudo quanto tenha em si forccedila suficiente para nos impelir forccedilar deter ou impedir de nos movermos ndash tem de ser um corpo () Em suma tudo quanto noacutes fazemos fazemo-lo sob ordens ou da maldade ou da virtude e tudo quanto exerce poder sobre um corpo tudo ndash eacute um corporsquo 49 Sexto Empiacuterico Aduersus Mathematicos 10218 50 Vide Ciacutecero Academica Posteriora 239

20

vazio esta assimilaccedilatildeo de Deus e do Cosmo permitem-nos dizer que o todo estaacute em

simpatia consigo mesmo que tudo conspira que existe uma simpatia universal das

coisas e dos seresrdquo51 Esta simpatia (συμπάθεια) eacute universal e conatural (συμφνές)

sendo ainda uma outra forma de ldquodesignar a identidade de Deus e do mundordquo52 Tudo

proveacutem de Deus que representa uma forccedila aniacutemica dotada de inteligecircncia de tal modo

que a infinidade de corpos mais natildeo satildeo que parcelas dessa mesma divindade

Deus e o Destino (εἱμαρμένη53) assumem importacircncia relevante para a

compreensatildeo da vida do homem uma vez que todas as coisas tecircm o seu rumo proacuteprio

ldquoo destino eacute uma realidade natural inscrita na estrutura do mundo no sentido em que o

conjunto a κρᾶσις que liga os seres eacute testemunho de uma disposiccedilatildeo imutaacutevel na

ordem das coisasrdquo54

Este poder conferido ao destino levou alguns filoacutesofos (em especial os

epicuristas) a criticarem a concepccedilatildeo que os estoacuteicos tinham dele e do livre-arbiacutetrio

porque incongruente O problema que se colocava era em que medida ao homem era

dada liberdade de fazer as suas proacuteprias escolhas se o Destino tinha poder absoluto

sobre todos os seres Crisipo contribuiu no acircmbito da reflexatildeo estoacuteica para a

compreensatildeo desta questatildeo para ele o Destino eacute um poder que governa todo o Cosmo

nada acontece sem uma causa precedente Considerando que tudo se rege por uma

causa Crisipo defendia a teoria de que existem duas espeacutecies de causas as causas

perfeitas e principais (αὐτοτελεῖ αἰτίαι ou causae perfectae causae principales) e as

causas adjuvantes e proacuteximas (προκαταρκτικαὶ αἰτίαι ou causae adiuuantes causae

proximae) As primeiras dizem respeito a decisotildees que o ser humano toma e as

segundas agrave forccedila do Destino

Si est motus sine causa non omnis enuntiatio (quod ἀξίωμα dialectici appelant) aut uera aut falsa erit causas enim efficientes quod non habebit id nec uerum nec falsum erit omnis autem enuntiatio aut uera aut falsa est motus ergo sine causa nullus est Quod si ita est omnia quae fiunt causis fiunt antegressis id est omnia fato fiunt efficitur igitur fato fieri quaecumque fiant55

51 Jean Brun O Estoicismo 53 52 Idem Ibidem 54 53 A palavra εἱμαρμένη vem do particiacutepio passado do verbo μείρομαι A raiz μερ usada em palavras como microέρος e Μοῖραι demonstra que o destino a par das Moiras comanda a vida de cada um dos seres O destino eacute estrutura mas tambeacutem uma forccedila Considerado como um sopro natildeo soacute vital como divino o destino em conjunto com a providecircncia eacute a forccedila motora que comanda todas as coisas 54 Idem Ibidem 56 55 Ciacutecero De Fato 1020-21 Ciacutecero cita Crisipo

21

A Providecircncia (πρόνοια) eacute por sua vez a causa que permite concatenar os seres

com a vontade divina Eacute pela Providecircncia que os animais procuram criar relaccedilotildees de

amizade e de interdependecircncia56 Contudo esta concepccedilatildeo que os estoacuteicos tecircm da

Providecircncia (aquilo que Jean Brun designou como ldquofinalismo universalrdquo57) levanta

algumas questotildees sobre a existecircncia do mal De facto estando a Providecircncia em

sintonia com tudo o que existe no mundo implica que haja uma ligaccedilatildeo entre ela e o

bem e entre ela e o mal Este lsquomalrsquo diz respeito ao que a Natureza cria e que eacute nocivo

(como por exemplo as tempestades as epidemias os animais ferozes as plantas

venenosas) mas tambeacutem agraves acccedilotildees do homem (guerras violecircncia) Este aspecto levou os

ceacutepticos a criticarem os estoacuteicos Crisipo contra-argumenta com a ideia de que tudo tem

um contraacuterio (por exemplo a virtude tem como antiacutetese o viacutecio) O mal permite criar

um certo equiliacutebrio58 e em simultacircneo pode ser uacutetil uma vez que pode ser ldquonecessaacuterio

para o aparecimento de um bem maiorrdquo59

Haacute que notar contudo que a Providecircncia o Destino a Natureza a Razatildeo

Universal e Deus mais natildeo satildeo do que sinoacutenimos Deus eacute pensado no superlativo

porquanto eacute um princiacutepio que governa todos os outros A divindade eacute mateacuteria mas natildeo

possui qualquer forma humana Tal como mateacuteria Deus eacute um sopro iacutegneo dotado de

inteligecircncia Difere do homem por ser imortal e ignorar qualquer mal

Quanto agrave alma humana ela eacute segundo Reneacute Hoven60 feita de elementos subtis

em concreto eacute originada a partir do ar e do fogo Zenatildeo de Ciacutecio Antiacutepatro e Posidoacutenio

definem a alma como um sopro quente (πνεῦμα ἔνθερμον) 61 Esta designaccedilatildeo explica-

-se pelo facto de ser por meio deste πνεῦμα que noacutes respiramos e nos movemos

Os filoacutesofos estoacuteicos ao definirem a alma comparam-na a um polvo Apesar de

a tomarem como una dividiram-na em oito partes uma parte matriz (ἡγεμονικόν) que

governa todas as outras partes sendo a mais importante e dela saindo as outras sete

destas cinco dizem respeito aos sentidos naturais a visatildeo o olfacto o tacto a audiccedilatildeo e

o paladar as uacuteltimas duas partes satildeo o aparelho reprodutor e a palavra Esta concepccedilatildeo

56 Marco Aureacutelio Meditationes 440 ss 57 Jean Brun O Estoicismo 60 58 Em Hercules Furens de Seacuteneca estaacute bem delineada a ideia de que o bem e o mal permitem criar um certo equiliacutebrio natural das coisas Soacute o insensato protagonizado por Heacutercules eacute que acredita na possibilidade de destruir todo o mal que existe na terra porque vecirc nele um obstaacuteculo agrave construccedilatildeo da ordem Eacute notoacuterio um erro de avaliaccedilatildeo relativamente agrave noccedilatildeo que o heroacutei tem da natureza 59 Jean Brun O Estoicismo 61 60 Reneacute Hoven Stoiumlcisme et Stoiumlciens face au problegraveme de lrsquoau-delagrave (Paris Les Belles Lettres 1971) 41 61 Cf Dioacutegenes Laeacutercio 7157

22

de um corpo dividido em vaacuterias partes vai ao encontro da concepccedilatildeo que os estoacuteicos

tinham do universo como ser contiacutenuo e em plena harmonia consigo mesmo62

Eacute a partir da alma que o corpo existe visto ser um princiacutepio vital A funccedilatildeo que

desempenha natildeo eacute apenas de ordem bioloacutegica e motora mas representa igualmente

uma funccedilatildeo gnosioloacutegica Eacute por meio da alma que o homem compreende o mundo O

conhecimento e aceitaccedilatildeo deste mesmo mundo permite-lhe viver bem e alcanccedilar a

sabedoria Segundo Jean Brun ldquoa alma tem duas funccedilotildees essenciais a representaccedilatildeo

que nasce duma impressatildeo do objecto exterior na substacircncia da alma e a inclinaccedilatildeo

(ὁρμή) que eacute a faculdade de experimentar o desejo e a aversatildeordquo63

Quando o corpo morre a alma subsiste ainda mas eacute pereciacutevel64 Esta teoria da

sobrevivecircncia da alma depois da morte do corpo eacute complexa entre os estoacuteicos Para

Zenatildeo depois de o corpo perecer a alma humana vivia durante um periacuteodo de tempo

mas acabava por desaparecer Jaacute Cleantes considerava que a alma subsistia ateacute agrave

conflagraccedilatildeo total (ἐκπύρωσις) Para Crisipo apenas a alma dos saacutebios sobreviveria A

dos iacutempios morreria com a destruiccedilatildeo do corpo65

Para Seacuteneca parece natildeo haver uma resposta uacutenica e simples uma vez que nas

suas obras encontramos vaacuterias perspectivas ldquoSes oeuvres nous fournissent en

abondance des reacuteponses mais celles-ci preacutesentent agrave premiegravere vue une telle diversiteacute et

mecircme tant de contradictions que leur simple lecture laisse perplexe quant agrave la penseacutee

reacuteelle de notre philosopherdquo como refere Reneacute Hoven66 Assim Seacuteneca defende por um

lado que a alma subsiste ateacute agrave conflagraccedilatildeo universal67 ou durante um periacuteodo mais

longo do que aquele que viveu na terra (Ep 10223) Identifica ainda a possibilidade de

haver uma vida num mundo supraterrestre68 rejeitando tal como os outros filoacutesofos

estoacuteicos a existecircncia de um mundo inferior (Ep 2418) Seacuteneca potildee a hipoacutetese de que a

morte possa ser um fim absoluto pelo menos quando enuncia alternativas como mors

aut finis aut transitus (Ep 6524 a morte lsquoou eacute termo ou eacute passagemrsquo) ou mors aut

62 Vide Jean Brun O Estoicismo 66 63 Jean Brun O Estoicismo 66 64 Vide Ciacutecero Tusculanae Disputationes 118 e Dioacutegenes Laeacutercio 7157 65 Dioacutegenes Laeacutercio 7157 66 Reneacute Hoven Stoiumlcisme et Stoiumlciens face au problegraveme de lrsquoau-delagrave 109 67 Nos quoque felices animae et aeterna sortitae cum deo uisum erit iterum ista moliri labentibus cunctis et ipsae parua ruinae ingentis accessio in antiqua elementa uertemur (Seacuteneca Consolatio ad Marciam 267) Vide tambeacutem Reneacute Hoven Stoiumlcisme et Stoiumlciens face au problegraveme de lrsquoau-delagrave 109 68 Neste caso Reneacute Hoven op cit 110 comenta que a ideia de que existe uma vida depois da morte natildeo eacute uma concepccedilatildeo exclusivamente estoacuteica Eacute esta vida supraterrestre que vamos encontrar no final de Hercules Oetaeus depois de o seu corpo ter sido consumido pelo fogo Heacutercules aparece a Alcmena para lhe dizer que a sua alma ascendeu agraves moradas celestes (vv 1963-1976)

23

consumit aut exuit (Ep 2418 lsquoa morte ou nos consome totalmente ou nos despoja de

alguma coisarsquo)69

Importa poreacutem ver que em qualquer dos casos o sapiens aceita a morte com

serenidade Afinal a morte eacute como um outro nascimento

Quemadmodum decem mensibus tenet nos maternus uterus et praeparat non sibi sed illi loco in quem uidemur emitti iam idonei spiritum trahere et in aperto durare sic per hoc spatium quod ab infantia patet in senectutem in alium maturescimus partum Alia origo nos expectat alius rerum status70

c) A Moral

Os estoacuteicos dividiam o ramo da filosofia que corresponde agrave moral em vaacuterios

toacutepicos da tendecircncia (ὁρμή) do bem (περὶ ἀγαθῶς) e do mal (περὶ κακῶν) das paixotildees

(περὶ παθῶν) da virtude (περὶ ἀρετῆς) do fim ou do bem supremo (τέλος) do primeiro

valor e das acccedilotildees (περὶ πρώτης ἀξίας καὶ τῶν πράξεων) das condutas convenientes e

dos encorajamentos e dissuasotildees (περὶ τῶν καθηκόντων προτροπῶν τε καὶ

ἀποτροπῶν)71 Segundo testemunha Dioacutegenes Laeacutercio adoptaram esta divisatildeo Crisipo

Arquedemo Zenatildeo de Tarso Apolodoro Dioacutegenes Antiacutepatro Posidoacutenio e os seus

disciacutepulos Jaacute Zenatildeo de Ciacutecio e Cleantes natildeo deram ao ramo da Moral a mesma atenccedilatildeo

e desenvolvimento72

A tendecircncia eacute considerada como o primeiro dado natural do ser ndash o primeiro

impulso espontacircneo (ὁρμή) ndash enquanto o prazer e a dor assumem posiccedilotildees secundaacuterias

O animal tende em primeiro lugar a conservar a sua proacutepria seguranccedila e procura

conhecer-se Como explica Leacuteon Robin 69 Reneacute Hoven op cit 114 considera que esta eacute uma segunda tendecircncia do filoacutesofo e designa-a de ldquoalternativa socraacuteticardquo O mesmo autor identifica ainda mais trecircs perspectivas uma influecircncia epicurista em que Seacuteneca identificaria a morte como o natildeo ser (mors est non esse ndash Ep 544-5) uma corrente ldquomiacutesticardquo ou ldquopitagoacuterico-platoacutenicardquo (o corpo eacute um fardo ndash Ep 2417) e por uacuteltimo uma ldquocorrente mitoloacutegicardquo baseada em crenccedilas populares que diz respeito agrave crenccedila num mundo inferior Sobre esta uacuteltima tendecircncia natildeo nos parece que Seacuteneca acreditasse na sua existecircncia (vide Ep 2418) Ainda que os Infernos apareccedilam com alguma frequecircncia nas trageacutedias do filoacutesofo a referecircncia agraves moradas inferiores eacute a representaccedilatildeo da tradiccedilatildeo mitoloacutegica e tambeacutem das crenccedilas e dos receios do povo relativamente agrave morte e ao que vem depois dela 70 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 10223 lsquoTal como o ventre materno nos guarda por dez meses e nos prepara natildeo para nele permanecer mas sim para sermos como que lanccedilados no mundo assim que estamos aptos a respirar e a aguentar o ar livre tambeacutem ao longo do espaccedilo de tempo que vai da infacircncia agrave velhice noacutes vamos amadurecendo com vista a um novo parto Espera-nos um outro nascimento uma outra ordem das coisasrsquo 71 Dioacutegenes Laeacutercio 784 72 Vide Dioacutegenes Laeacutercio 784

24

A ideia de laquoconstituiccedilatildeoraquo eacute aqui capital desde que o animal nasce estaacute laquooriginariamente apropriadoraquo (conciliatio) a essa constituiccedilatildeo e agrave laquoconsciecircnciaraquo que dela tem estaacute-lhes de algum modo laquoconfiadoraquo (commendatio) Assim velar-se-aacute a si mesmo rejeitaraacute o que possa prejudicar a sua constituiccedilatildeo laquotenderaacuteraquo para o que eacute proacuteprio a favorececirc-la afastar-se-aacute do que a contraria No homem essa tendecircncia do ser para se conservar tem a particularidade de pertencer a uma constituiccedilatildeo do ser racional a espontaneidade original da sua natureza com a consciecircncia que dela tem eacute fundamentalmente laquoconforme agrave Razatildeoraquo73

Assim estabelecem os filoacutesofos uma divisatildeo entre ldquoobjectos de tendecircnciardquo74 os

que podem ser adquiridos porque satildeo bons e estatildeo de acordo com a natureza e os que

devem ser rejeitados porque satildeo maus e opostos agrave natureza

O homem ao conhecer a natureza e obedecer agravequilo que ela dita tem a

capacidade de apreender e compreender as escolhas que ela proporciona e reflectir sobre

tudo o que dela proveacutem Ele deve entatildeo orientar correctamente a sua vida Esta

orientaccedilatildeo passa pela aceitaccedilatildeo da natureza vivendo em harmonia com ela (τὸ

ὁμολογουμένως τῇ φύσει ζῆν75) ou seja estaacute de acordo com tudo o que tem origem na

natureza ndash conuenienter naturae No entanto para viver segundo a virtude as acccedilotildees e

os pensamentos do homem devem ser constantes o que implica uma atitude de

perseveranccedila na construccedilatildeo da uirtus Seacuteneca afirma

Sic maxime coarguitur animus inprudens alius prodit atque alius et quo turpius nihil iudico inpar sibi est Magnam rem puta unum hominem agere Praeter sapientem autem nemo unum agit ceteri multiformes sumus Modo frugi tibi uidebimur et graues modo prodigi et uani mutamus subinde personam et contrariam ei sumimus quam exuimus Hoc ergo a te exige ut qualem institueris praestare te talem usque ad exitum serues effice ut possis laudari si minus ut adgnosci De aliquo quem here uidisti merito dici potest lsquohic qui estrsquo tanta mutatio est76

73 Leacuteon Robin A Moral Antiga trad Joatildeo Morais Barbosa (Ediccedilotildees Despertar sd) 108 74 Vide Leacuteon Robin A Moral Antiga 108 75 Esta afirmaccedilatildeo apresentada por Dioacutegenes Laeacutercio (787) eacute do tratado Περὶ ἀνθρώπου φύσεως (Sobre a natureza do Homem) de Zenatildeo de que apenas nos restam fragmentos 76 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 12022 lsquoNada denuncia melhor a falta de princiacutepios morais do que este assumir alternado de diferentes rostos que para cuacutemulo da desfaccedilatez satildeo cada um deles sempre diversos de si mesmos Deves aceitar como um caso de excepccedilatildeo algueacutem que soacute desempenhe um papel na vida Na realidade para aleacutem do saacutebio ningueacutem se contenta em fazer soacute uma personagem todos estamos em constante mudanccedila Ora nos damos ares de gente frugal e austera ora de dissipadores e libertinos para logo a seguir pormos no rosto a maacutescara oposta agravequela que acabaacutemos de tirar Exige portanto de ti proacuteprio que sejas ateacute ao fim da vida aquilo que decidiste ser e faz com que os outros se natildeo te enaltecerem possam pelo menos reconhecer-te De indiviacuteduos que ainda ontem encontraacutemos jaacute hoje podemos ter o direito de perguntar Quem eacute este ndash tal a mudanccedila que neles se operoursquo

25

Para Seacuteneca o ser humano deve governar a sua vida de modo a tornaacute-la uma

concors uita sibi (Ep 8915) isto eacute a sua vivecircncia tem de estar ateacute ao fim da sua

existecircncia em conformidade com aquilo que escolheu ser O que Seacuteneca pretende

mostrar eacute que quem quer abraccedilar a uirtus natildeo pode andar hesitante e dividido entre o

bem e o mal entre a uirtus e o uitium balanccedilando entre o percurso correcto e o que

conduz ao erro A partir do momento em que o homem faz uma escolha teraacute de ser

constante Deste modo se atinge a felicidade por um lado e a sabedoria por outro

Para os estoacuteicos o mal fazia parte da ordem coacutesmica A noccedilatildeo que eles tinham

de que a par do bem existe o mal (permitindo criar um certo equiliacutebrio natural como jaacute

referimos) levava a ter como objectivo alcanccedilar o Supremo Bem ndash por isso se considera

a doutrina do Poacutertico como uma eacutetica de ascese O caminho que o saacutebio escolhe eacute um

percurso que implica um aperfeiccediloamento interior que natildeo descura uma anaacutelise criacutetica

diaacuteria e ininterrupta Esta passa pela auto-anaacutelise ou exame de consciecircncia dos seus

actos e pensamentos77 para poder alcanccedilar a uirtus Para Seacuteneca a soluccedilatildeo eacute instemus

itaque et perseueremus plus quam profligauimus restat sed magna pars est profectus

uelle proficere78 Este exame criacutetico permite ao homem tomar consciecircncia de si e do que

o rodeia verificando se estaacute a enveredar pelo caminho da uirtus ou pelo do uitium79

Assim o encontro com a virtude passa pelo uso contiacutenuo da Razatildeo que permite ao

saacutebio disciplinar-se e evitar todo o geacutenero de affectus

A virtude por sua vez eacute considerada pelos estoacuteicos como uma perfeiccedilatildeo comum

a todos isto eacute todos a podem alcanccedilar se para isso orientarem a vida e as suas escolhas

Cabe assim ao sapiens ndash uma vez que vive em conformidade com a natureza e tem a

capacidade de usar a Razatildeo com constacircncia e consistecircncia encontrando harmonia e paz

na alma ndash ensinar aos outros o caminho para chegar agrave uirtus orientando-os

aconselhando-os levando-os a compreender as suas limitaccedilotildees e sobretudo a aceitar as

suas fraquezas e a dos outros80 para melhor as poder corrigir

77 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 136 lsquoQuando tiveres agrave tua volta pessoas empenhadas em persuadir-te de que eacutes um desgraccedilado pensa bem natildeo nas palavras que ouves mas sim naquilo que tu proacuteprio sentes analisa a tua capacidade de resistecircncia () pois eacutes o melhor conhecedor de ti mesmorsquo 78 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 7136 lsquoSoacute haacute uma soluccedilatildeo portanto ser firme e avanccedilar sem descanso O caminho que resta percorrer eacute mais longo que o jaacute percorrido mas grande parte do progresso consiste na vontade de progredirrsquo 79 Seacuteneca De Ira 336 vide Maria Cristina Pimentel Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de Seacuteneca (Lisboa Ediccedilotildees Colibri 1993) 12 80 Cf Maria Cristina Pimentel Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de Seacuteneca 13

26

Crisipo entende que o estoicismo eacute uma medicina que permite alcanccedilar a cura da

alma est profecto animi medicina philosophia cuius auxilium non ut in corporis

morbis petendum est foris omnibusque opibus uiribus ut nosmet ipsi nobis mederi

possimus elaborandum est81 Contudo como sugere Seacuteneca a cura soacute eacute possiacutevel quando

qualquer indiacutecio de paixatildeo eacute extraiacutedo por completo Natildeo basta ldquoadormecerrdquo o uitium haacute

que excisaacute-lo optimum est primum irritamentum irae protinus spernere ipsisque

repugnare seminibus et dare operam ne incidamus in iram82

A virtude eacute assim um bem no qual se contemplam em geral dois geacuteneros

Dioacutegenes Laeacutercio considera a virtude natildeo-intelectual (ἀθεώρητος) como eacute o caso da

sauacutede e a intelectual (θεωρηματική) como por exemplo a prudecircncia e a justiccedila83 Esta

diferenccedila entre virtudes intelectuais e natildeo-intelectuais permite distinguir aquelas que satildeo

naturais ndash que os homens insensatos tambeacutem possuem ndash das que satildeo exclusivas dos

saacutebios porque implicam um percurso interior de ascese

Entendendo que as virtudes satildeo bens o nuacutemero total destes bens varia Paneacutecio

considera duas virtudes (teoacuterica e praacutetica) outros estabelecem trecircs (racional natural e

moral) Apoloacutefanes apenas uma (a prudecircncia) Cleantes Crisipo e Antiacutepatro muitas

Apesar desta divergecircncia eacute aceite pela generalidade dos estoacuteicos a divisatildeo de todas as

virtudes em primaacuterias e subordinadas ndash porque estabelecem uma relaccedilatildeo de

subordinaccedilatildeo com as antecedentes

As primaacuterias satildeo seguindo os estoacuteicos neste particular a sistematizaccedilatildeo

platoacutenica quatro a sabedoria (φρόνησις ou σοφία) a coragem (ἀνδρεία) a justiccedila

(δικαιοσύνη) e a prudecircncia (σωφροσύνη) Como virtudes subordinadas da sabedoria

temos a magnanimidade a paciecircncia e a prudecircncia A coragem implica sempre uma

acccedilatildeo que permita um acto de escolha de fuga ou de indiferenccedila84 A justiccedila eacute como

refere Ciacutecero habitus animi communi utilitate conseruata suam cuique tribuens

dignitatem85 A prudecircncia leva ao estudo dos elementos constituintes da natureza

identificando aleacutem das virtudes os indiferentes e as paixotildees Seacuteneca poreacutem divide o

bem em trecircs classes o da primeira diz respeito a manifestaccedilotildees como o gaudium a pax

a salus patriae o da segunda refere-se agrave tormentorum patientia et in morbo graui

temperantia (lsquoresistecircncia agrave tortura ou a firmeza de acircnimo durante uma doenccedila graversquo) o

81 Ciacutecero Tusculanae Disputationes 36 82 Seacuteneca De Ira 181 83 Dioacutegenes Laeacutercio 790 84 Dioacutegenes Laeacutercio 792-93 85 Ciacutecero De Inuentione 2160

27

bem da terceira classe estaacute relacionado com o modestus incessus et compositus ac

probus uultus et conueniens prudenti uiro gestus (lsquomodeacutestia das atitudes a serenidade e

a honestidade do rosto os gestos adequados a uma pessoa de bom sensorsquo)86

Em contraponto a estas quatro virtudes associam-se quatro viacutecios ou quatro

males a insensatez a cobardia a injusticcedila e a imprudecircncia Igualmente a estes quatro

viacutecios se subordinam outros incontinecircncia torpeza relativamente agrave mente e mau

conselho87 Dioacutegenes Laeacutercio identifica o viacutecio como o desconhecimento de tudo o que

eacute virtuoso Este eacute um aspecto que leva os estoacuteicos a afirmarem que as virtudes visto

serem um saber podem ser ensinadas A vantagem daquele que se dedica ao estudo da

virtude eacute uma vez apreendida esta faculdade natildeo mais a perder

Tambeacutem a loacutegica e a fiacutesica fazem parte das virtudes enumeradas pelos filoacutesofos

A fiacutesica eacute vista como uma moral e como um modus uiuendi que tem como princiacutepio

fundamental a Razatildeo Eacute a virtude que conduz o homem agrave sabedoria mas mais do que

isso ela eacute tida como a proacutepria sabedoria

Nem tudo os estoacuteicos consideram como bens e males virtudes e viacutecios

Entendem que haacute os indiferentes (ἀδιάφορα)88 Satildeo indiferentes tudo o que esteja

relacionado com o corpo como por exemplo a vida a morte a sauacutede a doenccedila a

beleza a forccedila a riqueza o prazer a dor a gloacuteria89 ou com aquilo que vem do exterior

visto natildeo causar nem alegria nem tristeza em quem o experimenta Apenas o uso que o

homem faz dos indiferentes permite tornaacute-los uacuteteis ou maleacuteficos Um exemplo

significativo eacute o da forccedila o elemento que melhor caracteriza a personagem Heacutercules O

uso que ele faz da forccedila que passa por ser excessivo e violento revela ser

inconveniente uma vez que ele tanto a utiliza para as boas como para as maacutes acccedilotildees

Os estoacuteicos reconhecem ainda nos indiferentes dois valores convenientes ou

inconvenientes ou na designaccedilatildeo de outros estoacuteicos preferiacuteveis (προηγμένα) ou

rejeitaacuteveis (ἀποπροηγμένα) segundo o nosso proacuteprio impulso (ὁρμή) Avaliando-os o

homem deve aceitar o que for conveniente ou evitaacute-lo caso seja inconveniente os

indiferentes sauacutede doenccedila por exemplo tornam-se assim opostos pois aquela eacute

conveniente preferiacutevel e esta eacute inconveniente rejeitaacutevel

86 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 665 Veja-se tambeacutem Maria Cristina Pimentel Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de Seacuteneca 17 87 Dioacutegenes Laeacutercio 793 88 O termo indiferente eacute usado para identificar trecircs distintos estados de espiacuterito em primeiro lugar designa aquilo que natildeo causa nem desejo nem aversatildeo segundo eacute indiferente o que causa em simultacircneo desejo e aversatildeo por uacuteltimo aquilo que natildeo concorre nem para a felicidade nem para o infortuacutenio 89 Vide Sexto Empiacuterico Aduersus Mathematicos 959 e ss

28

O que importa eacute saber aceitar tudo o que acontece de bom e de mau porque tem

origem na Providecircncia90 Esta tomada de consciecircncia e aceitaccedilatildeo permite-lhe viver em

liberdade porque em harmonia com a Natureza Ciacutecero revela quais satildeo os requisitos

para um sapiens

Ergo hic quisquis est qui moderatione et constantia quietus animo est sibique ipse placatus ut nec tabescat molestiis nec frangatur timore nec sitienter quid expetens ardeat desiderio nec alacritate futili gestiens deliquescat is est sapiens quem quaerimus is est beatus cui nihil humanarum rerum aut intolerabile ad demittendum animum aut nimis laetabile ad ecferendum uideri potest Quid enim uideatur ei magnum in rebus humanis cui aeternitas omnis totiusque mundi nota sit magnitudo Nam quid aut in studiis humanis aut in tam exigua breuitate uitae magnum sapienti uideri potest qui semper animo sic excubat ut ei nihil inprouisum accidere possit nihil inopinatum nihil omnino nouum91

Eacute entatildeo saacutebio todo o homem que eacute moderado que consegue manter uma

tranquilidade de espiacuterito vive em paz consigo mesmo sem se deixar dominar por

qualquer tipo de affectus Como explica Maria Cristina Pimentel ldquoO sapiens eacute assim

aquele que natildeo se deixa atingir pela adversidade que orienta os indiferentes no sentido

do bem que procura as virtudes e afasta os viacuteciosrdquo92 Apenas o insensato se revolta

contra o Destino e todas as acccedilotildees que aquele possa praticar por mais nobres que

aparentem ser natildeo satildeo mais do que falsas virtudes Heacutercules no Hercules Furens

revela ser o modelo de uma personagem insensata que natildeo consegue controlar as suas

emoccedilotildees

As paixotildees (πάθοι affectus) satildeo movimentos desordenados e impetuosos que

ocorrem ao niacutevel da alma satildeo corpos que nela se manifestam e que satildeo contraacuterios agrave

Natureza93 lsquoPaixatildeorsquo eacute definida por Zenatildeo segundo testemunha Dioacutegenes Laeacutercio do

seguinte modo ἔστι δὲ αὐτὸ τὸ πάθος κατὰ Ζήνωνα ἡ ἄλογος καὶ παρὰ φύσιν ψυχῆς

κίνησις ἢ ὁρμὴ πλεονάζουσα94 Ciacutecero adaptou esta definiccedilatildeo para latim ut perturbatio

sit quod πάθος ille dicit auersa a recta ratione contra naturam animi commotio

90 Cf Maria Cristina Pimentel Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de Seacuteneca 18 91 Ciacutecero Tusculanae Disputationes 41737 92 Maria Cristina Pimentel Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de Seacuteneca 19 93 Ciacutecero Tusculanae Disputationes 415 34 94 Dioacutegenes Laeacutercio 7110

29

Quidam breuius perturbationem esse adpetitum uehementiorem sed uehementiorem

eum uolunt esse qui longius discesserit a naturae constantia95

O conceito de paixatildeo assume para os estoacuteicos dois sentidos ou eacute originada por

um movimento contraacuterio agrave razatildeo ou entatildeo eacute uma tendecircncia que natildeo tem controlo (como

acontece com Heacutercules) Em ambos os casos mostra ser um sentimento que se

manifesta na alma e que se opotildee aos princiacutepios da natureza A alteraccedilatildeo que a paixatildeo

provoca na alma eacute determinada por uma perturbatio ou seja por um movimento

ldquodesordenado e doentiordquo96 que vai de encontro agrave Razatildeo

Assim consideram os estoacuteicos que tal como o corpo estaacute exposto a

adversidades exteriores que podem levaacute-lo a adoecer tambeacutem a alma pode ficar doente

e fraca As paixotildees satildeo as doenccedilas da alma e Dioacutegenes Laeacutercio sugere algumas a que a

alma fica sujeita φθονερία (inveja) ἐλεημοσύνη (misericoacuterdia) e ἔριδες (discoacuterdia)97

Entendidas como perturbationes98 elas satildeo provocadas no iacutentimo do homem e

natildeo tecircm como causa uma divindade como os autores gregos claacutessicos acreditavam

Estes julgavam que o ser humano era viacutetima das forccedilas superiores (em particular a

Necessidade99) com as quais ele natildeo poderia combater ou sequer opor-se-lhes porque

eram uma forccedila que tudo controla Assim se explicam a morte dos filhos de Heacuteracles

em Heracles e a sua proacutepria morte nas Trachiniae ou mesmo a morte de Laio e o

incesto de Eacutedipo no Oedipus Tyrannus

Os uitia (κακία) satildeo assim o resultado de uma maacute interpretaccedilatildeo de um juiacutezo

errado por parte do homem causando agitaccedilatildeo e inconstacircncia e acabam por escravizar

o proacuteprio homem Todo aquele que se deixa dominar pela mente sem controlo natildeo

consegue discernir os perigos que se avizinham

Tendo por base a ideia de que as paixotildees satildeo erros de avaliaccedilatildeo os estoacuteicos

enumeram quatro uitia primaacuterios o desgosto (λύπη) o medo (φόβος) o desejo sensual

(ἐπιθυμία) e o prazer (ἡδονή) Cada um deles tem manifestaccedilotildees fiacutesicas no ser

humano100 Na trageacutedia em anaacutelise vemos que Anfitriatildeo se deixa levar pelo medo (pela

ausecircncia do filho pela falta de seguranccedila) e pelo desgosto (sente terror pela morte dos

Heraclidas) Meacutegara pelo medo e pelo desejo Lico pelo prazer e Juno pelo desejo (o

95 Ciacutecero Tusculanae Disputationes 4611 96 Vide Joseacute Pedro Serra Pensar o Traacutegico Categorias da Trageacutedia Grega 80 97 Dioacutegenes Laeacutercio 7115 98 Vide Ciacutecero Tusculanae Disputationes 415 99 Vide G Rodis Lewis La Morale Stoiumlcienne (Paris Presses Universitaires de France 1970) 109 100 Vide Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 1066

30

oacutedio e a ira que nutre por Heacutercules faacute-la procurar incessantemente um modo de destruiacute-

-lo a deusa eacute movida ainda pela dolor por ter sido preterida por Juacutepiter)

Aleacutem disso estes quatro uitia podem ser divisiacuteveis segundo um par de binoacutemios

satildeo erros de juiacutezo em relaccedilatildeo a um tempo presente ou a um tempo futuro satildeo erros de

valor entendendo que algo eacute aparentemente bom ou mau E cada uitium tem vaacuterios

subordinados Do sentimento desgosto101 que provoca na alma uma contracccedilatildeo

irracional (συστολή) vem a piedade a inveja o ciuacuteme a rivalidade a anguacutestia a

perturbaccedilatildeo o desgosto a afliccedilatildeo e a confusatildeo O medo estaacute relacionado com uma

expectativa do mal102 e compreende a hesitaccedilatildeo a vergonha o terror o pacircnico e a

ansiedade O prazer103 que eacute um desejo irracional por algo que parece ser agradaacutevel

compreende a vaidade o regozijo com a desgraccedila alheia a voluptuosidade e a

devassidatildeo O desejo104 tido como um apetite irracional inclui o oacutedio a rivalidade a

coacutelera o amor o desejo de vinganccedila a fuacuteria105

Por oposiccedilatildeo agraves paixotildees106 os estoacuteicos tinham em conta trecircs estados emocionais

que julgavam como bons estados (εὐπάθειαι) e que eram alegria (χαρά) ndash contraacuterio do

prazer implica o contentamento a jovialidade e o bom humor prudecircncia (εὐλάβεια

cautio) ndash oposto ao temor abrange o campo o pudor e a castidade vontade (βούλησις

uoluntas) que se opotildee ao desejo e tem como manifestaccedilotildees a benevolecircncia a calma

doccedilura e afecto107

Estes estados emocionais satildeo do domiacutenio da Razatildeo por isso natildeo satildeo vistos como

uitia A vontade por exemplo contrasta com o θύμος (desejo que tem origem na alma)

e com a ἐπιθυμία (desejo do corpo em relaccedilatildeo agrave comida agrave bebida agrave libido)

Como enunciaacutemos as paixotildees satildeo movimentos irracionais provocados por juiacutezos

de valor errados o que comprova a tese da existecircncia da liberdade humana apesar de

condicionada pela acccedilatildeo do Destino que comanda tudo Na verdade os estoacuteicos

acreditam na forccedila que o Destino exerce sobre o homem mas a forma como este aceita

ou nega esta forccedila implica um acto de liberdade

101 O desgosto eacute um erro de percepccedilatildeo de algo que estaacute a decorrer no presente e eacute tido como algo mau 102 O medo corresponde a um erro de avaliaccedilatildeo que consiste em julgar que algo de futuro aconteceraacute e teraacute consequecircncias funestas 103 O prazer eacute um sentimento que aparenta ser bom e diz respeito ao momento presente 104 O desejo natildeo eacute mais do que uma aparecircncia de algo bom e que entra no domiacutenio do tempo futuro 105 Ver Ciacutecero Tusculanae Disputationes 4716 4922 106 Tendo as paixotildees origem num estado de alma contraacuterio agrave razatildeo num desequiliacutebrio emocional o seu contraacuterio tambeacutem existe isto eacute existem de igual modo affectus entendidos como bons e que pertencem ao foro da Razatildeo 107 Vide Maria Cristina Pimentel Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de Seacuteneca 21-22

31

Seacuteneca lembra a Luciacutelio a possibilidade de continuar livre mesmo quando a

Fortuna entra em guerra com o ser humano

Fortuna mecum bellum gerit non sum imperata facturus iugum non recipio immo quod maiore uirtute faciendum est excutio Non est emolliendus animus si uoluptati cessero cedendum est dolori cedendum est labori cedendum est paupertati idem sibi in me iuris esse uolet et ambitio et ira inter tot affectus distrahar immo discerpar Libertas proposita est ad hoc praemium laboratur Quae sit libertas quaeris Nulli rei seruire nulli necessitati nullis casibus fortunam in aequum deducere Quo die illam intellexero plus posse nil poterit ego illam feram cum in manu mors sit108

Eacute sob a insiacutegnia uiuere Lucili militare est109 que Seacuteneca entende esta

impassibilidade e forccedila que permitem ao saacutebio aceitar o destino mas tambeacutem defrontaacute-

-lo ndash no sentido em que nada do que a Providecircncia lhe daacute o impede de continuar

impassiacutevel de viver de acordo com a Natureza A luta passa pelo caminho da uirtus

segundo e para a qual se vive assim nada de mal poderaacute acontecer-lhe110

Este eacute o caminho que o estoacuteico pretende trilhar procurar estar em sintonia com o

soberano Bem que para Seacuteneca eacute a moral Na carta 71 diz o autor lsquosummum bonum est

quod honestum estrsquo () lsquounum bonum est quod honestum est cetera falsa et adulterina

bona suntrsquo111 O estar de acordo com este Bem implica que o saacutebio consiga suportar o

sofrimento externo sem que essa dor chegue a produzir qualquer alteraccedilatildeo no seu

iacutentimo Por outras palavras tudo o que seja tortura ou enfermidade eacute tolerado pelo

homem porque permanece impertubaacutevel112

A forma como o homem despende o seu tempo tem substancial relevo na

conduccedilatildeo da vida do sapiens e na sua formaccedilatildeo interior para alcanccedilar a uirtus Esta

preocupaccedilatildeo com a forma correcta de usar o tempo mereceu atenccedilatildeo especial por parte

de Seacuteneca natildeo apenas em obras como o De Breuitate Vitae ou o De Otio mas tambeacutem

108 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 518-9 lsquoA fortuna declarou-me guerra Eu natildeo obedeccedilo agraves suas ordens natildeo aceito o seu jugo mais pretendo mantecirc-la agrave distacircncia o que implica ainda maior coragem Natildeo posso deixar que a alma amoleccedila se fizer concessotildees ao prazer terei de fazecirc-las agrave dor ao cansaccedilo agrave pobreza a ambiccedilatildeo e a ira quereratildeo tomar conta de mim ver-me-ei dilacerado despedaccedilado entre inuacutemeras paixotildees A liberdade eacute a nossa meta eacute o preacutemio das nossas canseiras Sabes em que consiste a liberdade Em natildeo ser escravo de nada de nenhuma necessidade de nenhum acaso em lutar de igual para igual com a fortuna Se algum dia eu sentir que ela tem mais forccedila do que eu mesmo assim essa forccedila seraacute inuacutetil Nunca me deixarei vencer a morte seraacute o meu recursorsquo 109 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 965 lsquoEacute que viver Luciacutelio eacute uma miliacuteciarsquo 110 Vide Seacuteneca De Prouidentia 21 e ss 111 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 714 lsquoaquilo que se conforma com a moral () o uacutenico bem eacute aquilo que se conforma com a moral todos os outros bens satildeo falsos e impurosrsquo 112 Vide Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 715 Marco Aureacutelio Meditationes 449

32

na trageacutedia Hercules Furens Como afirma Michel Spanneut ldquoLrsquoattention au temps

constitue peut-ecirctre le point le plus original des preacuteoccupations morales de Seacutenegravequerdquo113

Partindo da ideia de que o tempo eacute um incorpoacutereo o uso que o homem dele faz pode ser

uacutetil ou nefasto Em Hercules Furens a noccedilatildeo de tempo que eacute desperdiccedilado aparece duas

vezes em tom de criacutetica Em ambas o juiacutezo eacute dirigido a Heacutercules directa e

indirectamente Nos vv 175-198 o Coro condena os homens que correm de um lado

para outro em particular os que vivem nas cidades114 partindo da generalidade dos

homens para particularizar as suas observaccedilotildees em Heacutercules Tambeacutem Anfitriatildeo reprova

o modo como o heroacutei faz uso do tempo considerando-o inconveniente Heacutercules ao

entregar-se a tarefas fuacuteteis talvez sobretudo com o desejo de gloacuteria pessoal acaba por

natildeo ter tempo nem dar qualquer atenccedilatildeo aos que efectivamente precisam da sua ajuda

do seu apoio (protinus reduci nouus paratur hostis antequam laetam domum

contingat aliud iussus ad bellum meat nec ulla requies tempus aut ullum uacat nisi

dum iubetur115) Aleacutem disso nem tem tempo para olhar para dentro de si mesmo

Eacute este tempo que eacute desperdiccedilado que Seacuteneca censura Sine proposito uagantur

quaerentes negotia nec quae destinauerunt agunt sed in quae incucurrerunt

Inconsultus illis uanusque cursus est qualis formicis per arbusta repentibus quae in

summum cacumen et inde in imum inanes aguntur His plerique similem uitam agunt

quorum non immerito quis inquietam inertiam dixerit116

Seacuteneca centra as suas criacuteticas na forma como o homem faz uso quer do tempo

presente quer do tempo futuro (ao conceber planos a longo prazo como se tivesse esse

tempo garantido) porque como lembra o filoacutesofo Nec quod futurum est meum est nec

quod fuit in puncto fugientis temporis pendeo et magni est modicum fuisse117 Sendo o

tempo o uacutenico bem que o homem possui e controla eacute seu dever saber usaacute-lo da melhor

forma possiacutevel118 A preocupaccedilatildeo desmesurada com o momento que passa Seacuteneca

rejeita-a uma vez que a considera como paixatildeo impede que o homem viva tranquilo de

113 Michel Spanneut Permanence du Stoiumlcisme de Zeacutenon agrave Malraux (Gembloux Duculot 1973) 64 114 Haacute uma niacutetida oposiccedilatildeo entre cidade e campo em que a primeira representa a confusatildeo o lugar da turba que prejudica o saacutebio e a segunda a forma de viver bem porque se estaacute em sintonia com o que a Natureza proporciona 115 Seacuteneca Hercules Furens vv 209-213 116 Seacuteneca De Tranquillitate animi 123 117 Seacuteneca Quaestiones Naturales 63210 118 Veja-se a primeira Carta de Seacuteneca a Luciacutelio cujo tema eacute o tempo O filoacutesofo exorta o amigo ndash por extensatildeo o Homem ndash a ser consciente do modo como deixa o tempo passar Incita-o a controlar e saber aproveitar cada momento que escorrega por entre os dedos natildeo no sentido epicurista mas no de aceitaccedilatildeo plena dessa passagem procurando aproveitaacute-lo o melhor possiacutevel para que natildeo constitua um obstaacuteculo agrave sua tranquilidade

33

acordo com a Natureza (esta criacutetica estaacute muito presente na primeira fala do Coro do

Hercules Furens) Assim o filoacutesofo incita o ser humano a que se torne senhor do seu

proacuteprio tempo vivendo para si Soacute o tempo eacute nosso ndash eacute a virtude sobre a qual o homem

tem pleno domiacutenio Eacute a consciecircncia viva de que o sapiens eacute dono do seu tempo que lhe

possibilita viver em pleno119 Id agamus ut nostrum omne tempus sit non erit autem

nisi prius nos nostri esse coeperimus120

A noccedilatildeo de tempoduraccedilatildeo concatena-se com a reflexatildeo sobre a meditatio

mortis no sentido de preparaccedilatildeo para a morte Como demonstrou Cristina Pimentel121

os estoacuteicos procuram compreender a morte sob muacuteltiplos aspectos

a) qual o sentido da morte em si porque existe e que sentido tem no desenrolar

da vida

b) a morte eacute um bem ou eacute um mal

c) o homem deve preparar-se para a morte (de que modo poderaacute preparar-se o

melhor possiacutevel) e natildeo temecirc-la

d) em que circunstacircncias a morte pode ser preferiacutevel agrave vida

Considerando que a morte eacute um indiferente porquanto natildeo eacute um bem nem um

mal em si tal como a proacutepria vida os filoacutesofos estoacuteicos procuram inculcar no

pensamento do ser humano a ideia de que em vez de temer a morte ele deve governar

bem a vida que lhe eacute dada Tempo Vida e Morte satildeo indiferentes que se integram na

119 Sobre a ideia de viver cada dia como se ele fosse uma vida inteira v Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 101 Aleacutem do uso de exempla para comprovar a tese de que o homem nada eacute Seacuteneca procura incentivar o homem a que natildeo fique na sombra da vida esperando o futuro para viver mas pelo contraacuterio comece hic et nunc a prestar lsquocontas com a vidarsquo cum uita paria faciamus Pouco interesse haacute em planear todo o futuro quando o homem nem sequer sabe quantas horas dias anos lhe estatildeo reservados A vida eacute insegura por isso o filoacutesofo lembra Ad Lucilium Epistulae Morales 101 4-5 Quam stultum est aetatem disponere ne crastini quidem dominum o quanta dementia est spes longas inchoantium emam aedificabo credam exigam honores geram tum deinde lassam et plenam senectutem in otium referam Omnia mihi crede etiam felicibus dubia sunt nihil sibi quisquam de futuro debet promittere id quoque quod tenetur per manus exit et ipsam quam premimus horam casus incidit Voluitur tempus rata quidem lege sed per obscurum quid autem ad me an naturae certum sit quod mihi incertum est (lsquoComo eacute estuacutepido fazer planos para uma longa vida quando natildeo se eacute sequer senhor do dia seguinte Como satildeo insensatos todos quantos formulam esperanccedilas a longo prazo hei-de comprar hei-de construir hei-de emprestar dinheiro e cobraacute-lo com juros hei-de fazer carreira na poliacutetica ndash e logo me guardarei para a vida privada quando estiver velho mas bem provido de meios Podes crer no que te digo mesmo os favorecidos da fortuna carecem de seguranccedila Ningueacutem deve fazer projectos para o futuro pois mesmo o que noacutes seguramos nos escapa das matildeos mesmo a hora que vivemos qualquer acaso a interrompe O tempo escoa-se segundo uma lei racional mas obscura para noacutes que me adianta saber que tudo se processa segundo a lei da natureza se para mim reina a incertezarsquo) 120 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 7136 lsquoFaccedilamos com que todo o nosso tempo nos pertenccedila o que soacute seraacute possiacutevel se comeccedilarmos por nos tornarmos donos de noacutes proacutepriosrsquo 121 Maria Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo Classica 23 (1999) 29-45 Todo o artigo se centra na problemaacutetica da preparaccedilatildeo para a morte sobre o suiciacutedio abonando com exempla de algumas obras entre as quais as trageacutedias Hercules Furens e Hercules Oetaeus

34

ordem natural e loacutegica do Cosmo O saacutebio porque tem consciecircncia desta inter-relaccedilatildeo

aceita-os e ao aceitaacute-los consegue viver em plena sintonia com a Natureza Mas se o

homem pode e deve ter pleno poder sobre o tempo que gasta o mesmo natildeo acontece

com a morte Ela eacute inevitaacutevel de tal modo que deve ser aceite pois eacute o fim natural da

vida na lei da Natureza tudo o que nasce tem de ter obrigatoriamente um fim A morte

natildeo eacute uma expulsatildeo brusca da vida mas antes uma saiacuteda o fim de uma peregrinaccedilatildeo

pela terra122 A vida eacute sentida natildeo como uma daacutediva permanente mas como um

empreacutestimo que quando deus achar conveniente pede ao homem que o devolva

quisquis ad uitam editur ad mortem destinatur Gaudeamus eo quod dabitur

reddamusque id cum reposcemur123

Um modo de alcanccedilar o dom da vida passa pela meditaccedilatildeo da morte Como

Seacuteneca recorda por mais estranho que pareccedila o acto de meditar em algo que o homem

soacute conheceraacute uma uacutenica vez a morte a verdade eacute que ao aprender que tem de morrer e

como deve morrer o homem liberta-se de todas as cadeias fiacutesicas e psicoloacutegicas124

Eacute poreacutem no momento em que o homem deixa de conseguir continuar a

controlar os acontecimentos segundo a Razatildeo (natildeo lhe permitindo que prossiga a via da

tranquillitas animi pela qual tanto pugna) que o suiciacutedio surge como resposta a esta

dificuldade O suiciacutedio pode tornar-se um meio de libertaccedilatildeo que permite salvaguardar a

liberdade e a dignidade do homem125 Eacute contudo o uso que se faz do suiciacutedio que pode

ser conveniente ou inconveniente De facto considera-se por um lado que soacute o saacutebio

tem direito de tomar uma decisatildeo sobre o suiciacutedio porque apenas ele tem a virtude de

conhecer e dominar o seu corpo ndash eacute um artifex uitae Jaacute o homem comum eacute facilmente

levado por paixotildees O suiciacutedio eacute por outro lado a soluccedilatildeo em momentos especiacuteficos

quando o homem fica sujeito ao poder de outro (como por exemplo quando estaacute

subordinado a um tirano) quando estaacute despojado de recursos de tal modo que natildeo lhe eacute

possiacutevel manter a sua proacutepria dignidade quando a velhice ou a doenccedila incuraacutevel o

deixam inutilizado perdendo todas as qualidades cognitivas126 quando o corpo faz da

alma sua escrava (por meio de uma ou vaacuterias paixotildees) Sendo a alma uma parte da

122 Maria Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo 30 123 Seacuteneca Consolatio ad Polybium 113 124 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 269-10 lsquoTalvez tu julgues supeacuterfluo aprender uma coisa que soacute utilizamos uma vez Mas por isso mesmo eacute que devemos meditar nela temos sempre que estudar uma coisa que natildeo podemos testar se jaacute sabemos ldquoMedita na morterdquo () Um homem que aprendeu a morrer esquece o que seja servidatildeo estaacute acima melhor dizendo estaacute fora do alcance de todo e qualquer poderrsquo 125 Vide Seacuteneca De Prouidentia 210 126 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 5835-36

35

divindade e ateacute ela podendo ascender o homem deve cuidar do corpo como se fosse um

tutor nunca se submetendo agrave vontade daquele Quando o contraacuterio se verifica ndash e a alma

se submete aos deliacuterios do corpo ndash natildeo mais teraacute domiacutenio sobre si e permaneceraacute

escrava deste127

Em todas estas circunstacircncias no entanto o homem soacute poderaacute optar pelo

suiciacutedio apoacutes uma reflexatildeo profunda e depois de ter concluiacutedo natildeo soacute que continuar a

viver eacute um obstaacuteculo agrave manutenccedilatildeo da tranquillitas animi como tambeacutem que jaacute natildeo tem

qualquer papel na vida poliacutetica ou familiar128 Como Seacuteneca sugere

Indulgendum est enim honestis adfectibus et interdum etiam si premunt causae spiritus in honorem suorum uel cum tormento reuocandus et in ipso ore retinendus est cum bono uiro uiuendum sit non quamdiu iuuat sed quamdiu oportet ille qui non uxorem non amicum tanti putat ut diutius in uita commoretur qui perseuerabit mori delicatus est Hoc quoque imperet sibi animus ubi utilitas suorum exigit nec tantum si uult mori sed si coepit intermittat et [se] suis commodet129

127 Sobre as questotildees da alma como parte de deus e para o qual regressa depois de libertada do corpo e do corpo que pode escravizar a alma se esta se deixar levar pelos caprichos corporais vide Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 9230 ss 128 Maria Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo 32-33 129 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 1043-4 lsquoHaacute que respeitar os afectos nobres Por vezes mesmo em circunstacircncias desesperadas a nossa alma prestes a exalar-se deve ser refreada retida mesmo no uacuteltimo instante por muito que isso custe se a honra dos familiares o exigir um homem de bem tem de viver natildeo enquanto lhe apraz mas enquanto a sua vida for necessaacuteria Soacute um obstinado egoiacutesta teima em morrer sem admitir que uma esposa ou um amigo lhe mereccedilam o sacrifiacutecio de prolongar um pouco mais a existecircncia Quando o interesse dos familiares o exige a alma deve impor a si mesma a vida pode ter decidido o suiciacutedio pode mesmo jaacute ter iniciado o processo pois que desista e se ponha agrave disposiccedilatildeo dos que dela precisamrsquo Este passo tem substancial importacircncia para compreensatildeo da trama das trageacutedias em estudo como voltaremos a referir em momento oportuno

36

Capiacutetulo II

HERCULES FURENS ANAacuteLISE DAS PERSONAGENS

NA TRAGEacuteDIA DE EURIacutePIDES E DE SEacuteNECA

1 Anfitriatildeo

11 caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides

Anfitriatildeo entra em cena no Proacutelogo1 comeccedilando por se apresentar como τὸν

Διὸς σύλλεκτρον2 Partindo desta circunstacircncia descreve as personagens que estatildeo

envolvidas na trageacutedia num discurso que se configura tematicamente entre um passado

afortunado e um presente que lhe eacute funesto traduzindo a perseguiccedilatildeo de Lico3

As caracteriacutesticas fiacutesicas e psicoloacutegicas que sobressaem em Anfitriatildeo satildeo

proacuteprias de um anciatildeo (εἴ τι δὴ χρὴ κἄmicrorsquo ἐν ἀνδράσιν λέγειν γέροντrsquo ἀχρεῖον4)

sensato e prudente Esta condiccedilatildeo torna a sua figura e situaccedilatildeo pateacuteticas visto que na

ausecircncia de Heacuteracles Anfitriatildeo teve de assumir o papel de guardiatildeo e protector dos

filhos e da esposa do Alcida λείπει γάρ με τοῖσδrsquo ἐν δώμασιν τροφὸν τέκνων

οἰκουρόν5 Haacute no entanto uma visiacutevel amargura neste discurso uma vez que tanto

τροφόν como οἰκουρόν6 satildeo palavras adequadas ao papel das mulheres no seu serviccedilo

domeacutestico A escolha vocabular permite acentuar a velhice (vv 41-42) e estabelecer um

contraste entre uma destreza passada perdida evocada por Meacutegara (vv 60-61) e a

realidade do presente Anfitriatildeo reconhece a sua incapacidade de defender os filhos do

Alcida vendo-se obrigado a refugiar-se com a famiacutelia heraclida junto do altar de Zeus

A sabedoria e sensatez manifesta-se pelas consideraccedilotildees que faz sobre o valor da

amizade Este eacute um tema de grande relevacircncia para a compreensatildeo da acccedilatildeo dramaacutetica 1 A acccedilatildeo dramaacutetica decorre em Tebas junto do altar de Zeus Σώτηρ e do palaacutecio de Heacuteracles Anfitriatildeo Meacutegara e os seus filhos esperam pela chegada de Heacuteracles que segundo Anfitriatildeο desceu ao Hades para capturar Ceacuterbero Natildeo haacute ainda referecircncia ao tema principal da trageacutedia a loucura de Heacuteracles Wilamowitz poreacutem sugere que o passo ῞Ηρα ὕπο κέντροις (vv 20-21) eacute jaacute um indiacutecio da loucura e dos aguilhotildees de Lissa (apud Bond 68) Em Seacuteneca o tema eacute apresentado no Acto I por Juno 2 lsquoque partilhou o leito conjugal com Zeusrsquo (v 1) Seguiu-se a traduccedilatildeo de Carlos Ferreira Santos Euriacutepides Heacuteracles Introduccedilatildeo Traduccedilatildeo e Notas (Coimbra diss de Mestrado em Literaturas Claacutessicas apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 1996) 3 Lico pretende matar a famiacutelia de Heacuteracles para que natildeo constitua uma ameaccedila ao seu governo 4 lsquoSe ainda eacute possiacutevel considerar entre os homens este velho inuacutetilrsquo (vv 41-42) 5 lsquoinstituiu guardiatildeo e protector dos seus filhosrsquo (vv 44-45) 6 Vide Bond 73

37

pois eacute um elemento que percorre toda a trageacutedia O final da ῥῆσις de Anfitriatildeo eacute um

exemplo

πάντων δὲ χρεῖοι τάσδ᾿ ἕδρας φυλάσσομεν σίτων ποτῶν ἐσθῆτος ἀστρώτῳ πέδῳ πλευρὰς τιθέντες ἐκ γὰρ ἐσφραγισμένοι δόμων καθήμεθ᾿ ἀπορίαι σωτηρίας φίλων δὲ τοὺς μὲν οὐ σαφεῖς ὁρῶ φίλους οἱ δ᾿ ὄντες ὀρθῶς ἀδύνατοι προσωφελεῖν τοιοῦτον ἀνθρώποισιν ἡ δυσπραξία∙ ἧς μήποθ᾿ ὅστις καὶ microέσως εὔνους ἐμοὶ τύχοι φίλων ἔλεγχον ἀψευδέστατον

(vv 51-59)7

Anfitriatildeo discorre sobre a verdadeira amizade que soacute eacute descoberta nas

adversidades Na situaccedilatildeo da famiacutelia heraclida os uacutenicos amigos que natildeo a

abandonaram foram os anciatildeos que constituem o Coro mas estes natildeo podem ajudaacute-la

dada a debilidade fiacutesica que a idade lhes trouxe

Meacutegara quando critica os malefiacutecios do exiacutelio expotildee a ideia de que os amigos

soacute vecircem bem os exilados no primeiro dia jaacute que depois tomam-nos como um fardo (vv

303-306) Tambeacutem Heacuteracles fica impressionado com a inexistecircncia de qualquer tipo de

auxiacutelio por parte dos amigos (vv 558-561) Podemos inferir que a primeira parte da

trageacutedia termina com uma visatildeo pessimista sobre a amizade permitindo assim

estabelecer um contraste com a parte final de Heracles com a chegada de Teseu O

aparecimento desta personagem permite criar um contraste entre Teseu e Lico e os

Tebanos uma vez que segundo Bond ldquohe exemplifies the good effective friendrdquo 8

Aleacutem das consideraccedilotildees que faz sobre a amizade Anfitriatildeo demonstra ser

sensato pelas sententiae9 que pronuncia e pelos conselhos que daacute ao confrontar-se com

Meacutegara Lico e Heacuteracles aconselha Meacutegara a ter esperanccedilas no regresso de Heacuteracles e a

permanecer calma (vv 95-106)10 alerta duas vezes Lico quanto ao uso desmedido do

7 lsquoAcolhemo-nos junto deste altar desprovidos de tudo de alimentos bebidas de vestuaacuterio com os corpos jazendo no solo nu Depois de seladas as entradas do palaacutecio permanecemos aqui sem quaisquer meios de salvaccedilatildeo Muitos dos que se diziam amigos mostram agora que o natildeo satildeo e os outros os verdadeiros amigos natildeo tecircm condiccedilotildees para nos ajudar Estas satildeo para os homens as consequecircncias da adversidade Soacute faccedilo votos para que ningueacutem (mesmo aqueles que pouco se interessam por mim) venha um dia a fazer prova real do valor da amizadersquo 8 Bond 362 9 Exemplos de γνῶμαι vv 57-59 vv 506-507 vv 511-512 10 Deste confronto com Meacutegara salientam-se o seu espiacuterito racional a sua vontade de continuar a viver enquanto lhe for possiacutevel por oposiccedilatildeo a Meacutegara que mostra um lado mais pessimista Para Carlos Santos Euriacutepides Heacuteracles Introduccedilatildeo Traduccedilatildeo e Notas 31 esta diferenccedila explica-se ldquo[por ser] fruto

38

poder lembrando-lhe que natildeo deve ser tatildeo violento para que natildeo venha tambeacutem ele a

suportar a mesma violecircncia agraves matildeos de outrem (vv 215-216 vv 707-711) sugere a

Heacuteracles que natildeo seja precipitado quando pretende vingar-se de Lico e de todos os

Tebanos que natildeo tiveram coragem de ajudar a sua famiacutelia para que natildeo tenha muitos

inimigos (vv 585-586 e vv 588-594) e aconselha-o ainda a dirigir-se ao altar da deusa

Heacutestia11 antes de matar o tirano

Anfitriatildeo tem uma posiccedilatildeo criacutetica em relaccedilatildeo a Zeus uma vez que o deus

supremo natildeo auxilia a famiacutelia de Heacuteracles Invoca-o duas vezes12 na primeira Anfitriatildeo

considera-se mais virtuoso do que Zeus uma vez que ao contraacuterio do deus natildeo

abandonou a famiacutelia na segunda invocaccedilatildeo apercebe-se de que se tornou uma

necessidade que ele proacuteprio Meacutegara e os filhos de Heacuteracles morram

A personagem Anfitriatildeo assume ainda um papel fundamental na preparaccedilatildeo do

assassiacutenio de Lico eacute ele quem prepara dolosamente a lsquoarmadilharsquo em que Lico cairaacute

Sugerindo a Heacuteracles que permaneccedila dentro do palaacutecio ateacute agrave chegada do tirano

Anfitriatildeo incita Lico a entrar no palaacutecio atraindo-o para a morte Do confronto entre os

dois salientam-se a crueldade e a violecircncia do tirano e a ironia (v 717) e ambiguidade

(v 719) do discurso de Anfitriatildeo

Por fim assume a atitude proacutepria de um pai em relaccedilatildeo a Heacuteracles defende a

honra e a heroicidade deste no ἀγών contra Lico (vv 174-205) esforccedila-se por proteger

os filhos dο heroacutei (vv 316-318) e no momento final cabe-lhe a tarefa de cremar os

cadaacuteveres dos filhos e da esposa do Alcida O uacuteltimo momento em que Anfitriatildeo estaacute

com Heacuteracles eacute densamente pateacutetico pai e filho despedem-se com um abraccedilo e com a

promessa do regresso deste para vir buscar Anfitriatildeo e levaacute-lo para Atenas lugar para

onde Heacuteracles se exila

da inexperiecircncia vivencial que reflecte afinal o papel exclusivamente confinado agraves paredes domeacutesticas a que a mulher grega tradicionalmente se encontrava votadardquo 11 Bond 216 explica que esta eacute a primeira deusa a quem Heacuteracles se dirige e honra 12 Na primeira invocaccedilatildeo entre os vv 339-347 Anfitriatildeo contesta a posiccedilatildeo do deus visto que natildeo vem em auxiacutelio da famiacutelia de Heacuteracles Para Anfitriatildeo o deus eacute mais um φίλος que lhes recusa auxiacutelio Na segunda vez em que o invoca (vv 497-513) jaacute em tom de prece pede a Zeus que os salve mas sente de que o deus natildeo os vai auxiliar καίτοι κέκλησαι πολλάκις microάτην πονῶ [lsquoDe resto tu com frequecircncia foste invocado Em vatildeo me esforceirsquo] (v 501) Ele pressente que a necessidade os obriga a morrer

39

12 caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Seacuteneca

O Anfitriatildeo de Seacuteneca eacute substancialmente diferente do de Euriacutepides Desde o

primeiro momento em que entra em cena ateacute agrave chegada de Lico natildeo sabemos que

Anfitriatildeo e a famiacutelia de Heacutercules estatildeo junto do altar de Juacutepiter Quem de tal nos

informa eacute o proacuteprio Lico quando se aproxima de Anfitriatildeo e de Meacutegara (vv 354-355)

A funccedilatildeo de guardiatildeo e protector dos filhos de Heacuteracles natildeo tem expressatildeo em Seacuteneca

assim como natildeo haacute um uacutenico lamento pela falta de amigos que possam auxiliaacute-lo na luta

contra o tirano

O discurso de Anfitriatildeo (vv 205-278)13 comeccedila por uma invocaccedilatildeo a Juacutepiter em

tom de prece Nesta inuocatio e em tom de captatio beneuolentiae roga ao deus que

ponha fim agraves suas afliccedilotildees e desgraccedilas vive atormentado pelos trabalhos a que o filho eacute

constantemente submetido desde o dia em que nasceu As primeiras criacuteticas satildeo

dirigidas principalmente a Juno visto que o oacutedio da deusa natildeo permite que Heacutercules

tenha sequer um breve momento de descanso protinus reduci nouus paratur hostis

antequam laetam domum contingat aliud iussus ad bellum meat nec ulla requies

tempus aut ullum uacat nisi dum iubetur (vv 209-213)

Este lamento inicial serve de pretexto para uma analepse onde eacute descrita a

infacircncia de Heacutercules a qual desde o iniacutecio foi marcada por tribulaccedilotildees Anfitriatildeo

recorda a aversatildeo de Juno desde o momento em que o filho dele nasceu e enumera

onze dos doze trabalhos do heroacutei omitindo o uacuteltimo14

Do nosso ponto de vista a enumeraccedilatildeo tem essencialmente trecircs objectivos

a) revelar a forccedila extraordinaacuteria do Alcida que ainda receacutem-nascido

estrangulou duas serpentes (vv 216-222)

13 Nem todos os editores atribuem estes versos a Anfitriatildeo Herrmann por exemplo atribui-os a Meacutegara (vv 205-308) Viansino Giardina e Fitch (1 e 2) atribuem os vv 205-278 a Anfitriatildeo e os vv 279-308 a Meacutegara Os argumentos que Fitch (1) 186 aponta satildeo ldquoIn 279ff which certainly belong to Megara there is a new and somewhat unbalanced emphasis on uis Herculea This change of tone suggests a change of speaker and the vocative coniunx in 279 is appropriate to such a change () 205-308 is modeled in part on two pairs of speeches by Amphitryon and Megara in Eur[ipides] Heracles As Sen[eneca] combines the Euripidean Amphitryonrsquos prologue speech with the same characterrsquos prayer to Zeus it seems that he intends the result (ie 205 ff) to be spoken by Amphitryon Some elements in 205-78 suit Amphitryon better than Megara The complaint about lack of security and requies (206-13) is repeated in Amphitryonrsquos speeches at 925f and 1252-57rdquo 14 Anfitriatildeo omite a descida aos Infernos Em Euriacutepides no proacutelogo a personagem homoacutenima alude apenas agrave descida ao Hades para explicar a ausecircncia do heroacutei e soacute descreve alguns dos trabalhos do seu filho no ἀγών contra Lico

40

b) sem elogiar as faccedilanhas de Heacutercules Anfitriatildeo critica a falta de descanso a

privaccedilatildeo de secura quies e a ausecircncia de seguranccedila por parte da famiacutelia resultando na

instabilidade emocional de Anfitriatildeo15 de Meacutegara e do proacuteprio heroacutei

c) tornar evidente o contraste entre o que Heacutercules fez e o que acontece no

presente apesar de ter libertado a terra do jugo de monstros ela encontra-se manchada

pelo crime da conquista do poder por meios violentos e iniacutequos Tudo o que Heacutercules

fez foi em vatildeo (vv 249-251)

A referecircncia ao crime da usurpaccedilatildeo do poder eacute uma alusatildeo agrave tirania Partindo do

geral (v 251 prosperum felix scelus) chega-se ao particular ndash Tebas Creonte Lico e as

dificuldades pelas quais Anfitriatildeo estaacute a passar A forma como esta personagem constroacutei

o raciociacutenio descrevendo os malefiacutecios da tirania indo agrave origem da cidade de Tebas

difere do modo como em Euriacutepides Anfitriatildeo discorre sobre os seus infortuacutenios no

proacutelogo a narraccedilatildeo junta elementos de um passado afortunado que contrasta com outros

de um presente odioso uma vez que Heacuteracles estaacute ausente da cidade Em Seacuteneca

Anfitriatildeo ao dar as primeiras impressotildees sobre Lico antecipa a entrada do tirano

permitindo ao leitor ter dele uma primeira imagem

O seu confronto com Lico e a forma como estaacute estruturado o diaacutelogo entre o

tirano e Anfitriatildeo satildeo diferentes nos dois autores bem como o objectivo que os norteia

Seacuteneca recupera o toacutepico da duacutevida de Lico em relaccedilatildeo agrave ascendecircncia divina de

Heacutercules Em ambos os autores o tirano potildee em causa a heroicidade do Alcida e o seu

regresso do mundo inferior Em Seacuteneca estes satildeo os temas-nuacutecleo que geram o conflito

de argumentos entre Lico e Anfitriatildeo Sendo a intenccedilatildeo do tirano a de se casar com

Meacutegara este pretende acabar com qualquer esperanccedila por parte dos Heraclidas no

regresso do heroacutei Jaacute em Euriacutepides o motivo eacute o de provar que Anfitriatildeo Meacutegara e os

filhos desta natildeo seratildeo salvos pelo heroacutei Para Lico Heacutercules eacute cobarde porque usa o

arco como arma A discussatildeo entre o tirano e Anfitriatildeo centra-se na utilizaccedilatildeo desta

arma e nas implicaccedilotildees que o seu uso tem numa batalha16

Diferem ainda as duas trageacutedias na forma como eacute preparada a morte de Lico e

como eacute descrito todo o processo de loucura de Heacutercules bem como no modo como o

15 Vive atormentado por graues aerumnae (cf v 206) de tal modo que nulla lux umquam mihi secura fulsit finis alterius mali gradus est futuri (vv 207-209) 16 Fitch (1) 184 justifica a diferenccedila entre os dois autores ldquothe argument in Euripides is primarily concerned with the rights and wrongs of using a bow as H[ercules] does in preference to a spear ndash a question that would have had little interest for an audience in the first century AD In Seneca the focus is rather on the question of H[ercules]rsquos divine paternity and his prospect of eventual deificationrdquo

41

heroacutei descobre a autoria do morticiacutenio Em Seacuteneca Anfitriatildeo natildeo eacute cuacutemplice no

assassiacutenio de Lico antes fica em palco com Teseu ouvindo as descriccedilotildees que este faz do

mundo inferior e das proezas do filho enquanto Heacutercules sai de cena para matar o

tirano Ao contraacuterio do que acontece na trageacutedia euripidiana Heacutercules dispensa

qualquer auxiacutelio incluindo o de Teseu o que mostra por um lado a obsessatildeo do heroacutei ndash

se ainda existe alguma ameaccedila ou de um tirano ou de um monstro eacute seu dever exclusivo

destruiacute-los ndash por outro a megalomania que adveacutem do seu sentimento de auto-

-suficiecircncia Por este motivo natildeo eacute de estranhar que a funccedilatildeo de conselheiro natildeo resulte

tatildeo bem em Seacuteneca quanto em Euriacutepides

Na trageacutedia grega Heacuteracles ouve os conselhos do pai e procura segui-los

porque os toma como saacutebios (vide supra) enquanto em Seacuteneca Heacutercules responde

sempre aos conselhos de Anfitriatildeo com a demonstraccedilatildeo de excessiva confianccedila que

deposita em si mesmo A sua soberba eacute clara Heacutercules confia apenas no poder da sua

manus julgando natildeo necessitar de conselhos dos outros No IV Acto por exemplo

Anfitriatildeo recomenda ao filho que purifique as matildeos sujas de sangue antes de iniciar as

libaccedilotildees Heacutercules replica com violecircncia e excesso (vv 920-924) demonstrando uma

crescente fuacuteria Em resposta Anfitriatildeo sugere-lhe que dirija preces a Juacutepiter pedindo-lhe

otium quiesque (vv 925-926) para os seus espiacuteritos fatigados (fessi v 926) Eacute manifesta

a necessidade que o anciatildeo sente de ter uma vida mais tranquila uma vez que natildeo

consegue permanecer imperturbaacutevel e de poder gozar da companhia do seu filho

sempre afastado continuamente a lutar contra monstros Esta acircnsia por uma vida mais

serena anuncia um espiacuterito que natildeo eacute impassiacutevel ao sofrimento mas eacute arrastado pelas

emoccedilotildees Mas uma vez mais os seus conselhos satildeo desprezados Heacutercules natildeo quer

esse otium e o seu estado de euforia atinge o limiar da loucura

Anfitriatildeo enumera as transformaccedilotildees fiacutesicas que antecedem17 a loucura de

Heacutercules narrando as suas consequecircncias a morte dos filhos e de Meacutegara18 O anciatildeo

vai ainda acompanhando as falas de Heacutercules isto eacute enquanto este descreve o que vecirc e

o que vai fazer Anfitriatildeo contrapotildee narrando aquilo que estaacute a acontecer na realidade

possibilitando ao leitor a visatildeo de dois mundos diferentes mas que se cruzam19 o

imaginaacuterio e o real Este ldquocruzamentordquo de realidades permite ter uma noccedilatildeo do

17 No final descreve tambeacutem a forma como Heacutercules adormece esgotado 18 Note-se que Anfitriatildeo soacute fala da sua velhice e consequentemente da sua impotecircncia para ajudar a famiacutelia no momento em que Heacutercules matou a mulher e os filhos cernere hoc audes nimis uiuax senectus (vv 1026-1027) 19 Pode-se dizer que eacute do cruzamento dessas duas realidades que resulta a morte das crianccedilas e de Meacutegara

42

desequiliacutebrio mental do protagonista e ter uma perspectiva do que lhe vai no acircnimo (o

que natildeo acontece em Euriacutepides uma vez que eacute o Mensageiro que relata aquilo que

observa de fora)

Em Heracles Anfitriatildeo receia aproximar-se do filho quando este acorda porque

desconhece se o espiacuterito dele ainda estaacute possuiacutedo ou se jaacute voltou ao normal teme que o

filho cometa um crime maior o parriciacutedio (vv 1081-1086) Em Seacuteneca Anfitriatildeo

procura a morte Mal Heacutercules acabara de matar Meacutegara Anfitriatildeo vai ao seu encontro

O terror o luctus (v 1027) e a sensaccedilatildeo de impotecircncia invadem o anciatildeo Anfitriatildeo

assistiu agrave morte cruel de cada um dos filhos do heroacutei e agrave de Meacutegara Julga que nada

mais lhe resta a natildeo ser morrer mors parata (v 1028) A morte surge a Anfitriatildeo como

uma forma de libertaccedilatildeo de um poder mais forte e da anguacutestia a que se vecirc submetido

Contudo eacute-lhe negada essa possibilidade Heacutercules adormece exausto pelos scelera que

cometeu e o seu pai escapa O mesmo eacute dizer que Anfitriatildeo natildeo pode morrer porque se

Heacutercules o matasse seria mais um scelus (v 1034) e quando Anfitriatildeo procura a morte

demonstra estar tomado pelos affectus ndash o Coro20 apercebe-se da sua atitude demente

quando o interpela Quo pergis amens (v 1033) Esta seria uma morte condenaacutevel

pelos estoacuteicos visto que eacute motivada por uma paixatildeo suacutebita e natildeo reflexo de uma

maturada reflexatildeo

No final da trageacutedia vendo que natildeo consegue dissuadir Heacutercules de se suicidar

Anfitriatildeo ameaccedila-o aut uiuis aut occidis (v 1308) Este eacute o uacuteltimo e uacutenico argumento

que trava o iacutempeto de Heacutercules de querer morrer

Note-se finalmente que Seacuteneca recupera alguns traccedilos que Euriacutepides o seu

modelo delineia na personagem o de defensor e conselheiro de Heacutercules Em ambos os

autores as personagens sentem-se oprimidas pela usurpaccedilatildeo do poder de Creonte por

parte de Lico A esperanccedila que em Heracles Anfitriatildeo manifesta no regresso do Alcida

estaacute tambeacutem presente em Hercules Furens e em ambos os casos a personagem

incentiva Meacutegara a acreditar no retorno do marido No entanto no caso de Hercules

Furens a spes do anciatildeo natildeo lhe permite que permaneccedila sereno perante a adversidade

20 Viansino Giardina e Herrmann atribuem estes versos a Teseu Fitch (1) 385 poreacutem remete para o Coro justificando a escolha ldquoThe only satisfactory solution is to give the present lines to the Chorus an attribuition found in M and perhaps in an ancestor of the Etruscus Indeed the timid tone of the lines suits the Chorus better than Theseus As H does not reappear onstage until 1035 () this attribution is consistent with the Senecan practice of occasionally using the Chorus in dialogue when no alternative interlocutor is available ie when there is only one speaking character onstagerdquo

43

antes suplica a Heacutercules que regresse adsis sospes et remees precor tandemque uenias

uictor ad uictam domum (vv 277-278)

A forma como Anfitriatildeo eacute apresentado nos dois tragedioacutegrafos eacute assim diacutespar

Em Euriacutepides ele parece ser mais racional e sensato Em Seacuteneca deparamos com uma

personagem que se deixa levar pelo medo e pela preocupaccedilatildeo com a seguranccedila de

Heacutercules Anfitriatildeo natildeo tem uma vida serena porque semper aut dubium mare aut

monstra timui (vv 1253-1254) Em termos estoacuteicos Anfitriatildeo natildeo se enquadra nas

caracteriacutesticas do sapiens uma vez que eacute movido pelo metus (ausecircncia de Heacutercules)

pela aegritudo (morte da famiacutelia) e pela spes (regresso do filho)

Apesar disso Anfitriatildeo tem poder de reflexatildeo e criacutetica que eacute muito mais

acentuado em Seacuteneca do que em Euriacutepides Dos seus discursos sobressaem censuras agrave

ausecircncia de Heacutercules agrave tirania agrave proacutepria cidade de Tebas que gerou muitos filhos de

origem divina21 Natildeo tem poreacutem um papel tatildeo activo (em Euriacutepides vimos que

Anfitriatildeo auxilia Heacuteracles a preparar o assassiacutenio de Lico em Seacuteneca o seu papel limita-

se agrave observaccedilatildeo e criacutetica) Esta mudanccedila prende-se com o proacuteprio ritmo da acccedilatildeo Ao

dar mais importacircncia aos monoacutelogos e aos debates entre as personagens a acccedilatildeo de

Hercules Furens eacute mais lenta Em compensaccedilatildeo eacute mais rica em auto-anaacutelises reflexotildees

sobre questotildees pertinentes como a concepccedilatildeo da uirtus do protagonista e do tirano

2 Meacutegara

21 caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides

A Meacutegara de Euriacutepides entra em cena no proacutelogo No seu diaacutelogo com Anfitriatildeo

(vv 60-106) daacute sinais de ser uma personagem marcadamente pessimista Transtornada

pela mudanccedila repentina da fortuna ndash Meacutegara a filha do rei de Tebas Creonte e casada

com Heacuteracles o melhor dos heroacuteis perde o pai assassinado por Lico que pretende

igualmente mataacute-la juntamente com os seus filhos e com Anfitriatildeo (vv 38-43) ndash ela

pressente que a morte estaacute proacutexima (vv 69-71) Natildeo acredita na possibilidade de se

salvar nem ela nem a sua famiacutelia porque natildeo tem esperanccedilas no regresso de Heacuteracles

21 Nesta alusatildeo feita por Anfitriatildeo agrave proveniecircncia divina de alguns heroacuteis que habitaram em Tebas pode estar impliacutecita a proveniecircncia divina de Heacutercules

44

(julga que ele ficou preso no mundo subterracircneo ou morreu) nem na ajuda de amigos

(vv 80-86)

O seu discurso eacute intensamente pateacutetico quando fala dos filhos assumindo uma

atitude maternal e protectora demonstra o cuidado em proteger as crianccedilas qual ave

que cobre os filhos com as asas (vv71-72) no iniacutecio do segundo episoacutedio despede-se

de cada um deles lembrando-se dos planos que Heacuteracles e ela haviam feito para o

futuro dos filhos (vv 456-489) procura salvar uma das crianccedilas que Heacuteracles ainda natildeo

assassinara no momento da sua loucura e morre tentando protegecirc-lo (vv 996-1000)

Como explica Bond ldquoshe has more time for pathos and paints an effective little picture

of herself dealing with the childish questions of her sons (71-9)rdquo22

Meacutegara revela poreacutem forccedila de espiacuterito quando defronta Lico mostrando-se

corajosa e audaz perante o tirano Sob a perspectiva de morrer consumida pelo fogo

junto do altar de Zeus e com a sua famiacutelia Meacutegara aconselha Anfitriatildeo a aceitar a

decisatildeo de Lico e a morrerem pelo menos com dignidade prefere deixar de viver com

honra do que ver os seus inimigos a rirem-se do seu infortuacutenio23 A necessidade de

preservar o κλέος da famiacutelia deve-se natildeo soacute agrave antiga reputaccedilatildeo de Anfitriatildeo enquanto

guerreiro mas tambeacutem ao facto de Heacuteracles ser glorioso (vv 288-292) desse modo

poderaacute preservar o seu bom nome de esposa do Alcida Esta honra pela qual pugna

aproxima-a assim dos heroacuteis claacutessicos

Jaacute no segundo episoacutedio no momento em que sai do palaacutecio para se render a

Lico Meacutegara invoca Heacuteracles para que ele apareccedila mesmo como sombra24 para salvar

a sua famiacutelia (vv 490-496) naquele derradeiro momento Ela nunca pede auxiacutelio a um

deus ao contraacuterio de Anfitriatildeo que dirige os seus votos a Zeus (vv 497-500) E quando

Heacuteracles entra em cena e se aproxima deles Meacutegara compara-o a Zeus no sentido em

que o poder de Heacuteracles de salvar os seus amigos vale tanto quanto o do proacuteprio deus

22 Bond 77 23 Esta ideia de ser motivo de riso para os seus inimigos (neste caso para Lico) vem no seguimento da ameaccedila do tirano de queimaacute-la viva juntamente com Anfitriatildeo e os filhos de Heacuteracles 24 Bond 191-192 recorda que a estrutura deste discurso ndash invocando a presenccedila do heroacutei ou pedindo-lhe ajuda ndash eacute comum em algumas trageacutedias em Eacutesquilo Pers 633-680 e 305-509 (dirigido a Dario) Soacutefocles El 1066-1081 Euriacutepides Or 1225-1242 e na El 677-684 (invocaccedilatildeo a Agammeacutemnon) A estrutura eacute declaraccedilatildeo de que vai comunicar algo (dirige as suas suacuteplicas a Heacuteracles vv 490-491) depois a mensagem propriamente dita (explica a situaccedilatildeo presente vv 492-493) de seguida imperativos (ordena-lhe que os salve e que apareccedila mesmo como sombra v 494) finalmente sarcasmo (provoca Heacuteracles vv 495-496)

45

(vv 519-521) Neste caso parece-nos que Meacutegara incorre na ὕβρις25 Assim a morte

desta personagem seria um castigo pelo seu desprezo pelos deuses

Quando Heacuteracles regressa o discurso de Meacutegara eacute novamente pateacutetico Sentindo

uma reviravolta na fortuna da famiacutelia das trevas para a luz ela mal deixa Anfitriatildeo

responder agrave pergunta de Heacuteracles (v 533) sendo ela quem contextualiza a situaccedilatildeo

familiar a morte iminente dos Heraclidas (vv 534 ss) Depois dessa breve informaccedilatildeo

Meacutegara torna-se uma personagem muda e natildeo aparece mais em palco O diaacutelogo

desenrola-se entre Anfitriatildeo e Heacuteracles que planeiam matar Lico Heacuteracles ainda alude

agrave esposa no momento em que vai entrar no palaacutecio dando a indicaccedilatildeo de que ela estaacute a

tremer No entanto como explica Bond ldquoEuripides and the audience have lost interest

in Megara and she has become a conventional timid wife γυνὴ δὲ θῆλυ κἀπὶ δακρύοις

ἔφυrdquo26

22 caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Seacuteneca

Em Seacuteneca a personagem oscila entre o bom senso (procurando manter

fidelidade castidade e liberdade) e estados passionais como o odium (vv 379 e ss) a

ira o furor (vv 495-500) a impotentia (cf vv 350-351) e a dementia (cf v 429)

Na sua fala nos versos 279-308 Meacutegara mostra ter uma atitude excessiva27

revelando um acircnimo perturbado e tomado pelas emoccedilotildees Na invocaccedilatildeo a Heacutercules ao

incitar o heroacutei ausente a quebrar todas as barreiras visiacuteveis e invisiacuteveis para poder

regressar a casa Meacutegara manifesta um estado eufoacuterico que parece acalmar entre os

versos 296-298 No entanto a pergunta retoacuterica (vv 296-298) que exprime uma dor

pela longa ausecircncia de Heacutercules desencadeia um novo impulso Em nove versos ela

volta a ter um discurso pautado por grande densidade emocional A anaacutefora tibi em

gradaccedilatildeo descendente (invoca primeiro Juacutepiter depois Ceres e os ritos misteriosos e

finalmente os misteacuterios de Elecircusis ndash vv 299-302) revela o intenso desejo de Meacutegara de

voltar a ver Heacutercules o que a leva a delirar O seu discurso entra no domiacutenio do

25 Um outro exemplo que evidencia a insolecircncia de Meacutegara eacute quando no monoacutelogo no segundo episoacutedio se queixa deixando transparecer ironia de que vem de Zeus o desejo de oferecer a Morte como noiva para os filhos de Heacuteracles (πατὴρ δὲ πατρὸς ἑστιᾷ γάμους ὅδε ndash lsquoeacute o pai do vosso pai que vos prepara o banquete nupcialrsquo v 483) 26 Bond 221 27 A fala de Meacutegara pauta-se por uma linguagem proacutexima da ὕβρις Como comenta Fitch (1) 205 ldquoThe first half of Megararsquos speech is marked by an ominous violence of language there is hubris in the phrases orbe diducto redi and erumpe rerum terminos tecum efferens and the idea of releasing the dead 291 ffrdquo

46

ἀδύνατος se o Alcida regressar uma nova idade floresceraacute traduzida na restituiccedilatildeo da

vida aos irmatildeos e ao pai rei de Tebas (vv 303-305) O desespero eacute cada vez mais

impetuoso ndash numa intensidade perceptiacutevel no pronome pessoal reflexo da segunda

pessoa do singular em poliptoto aliado agrave anaacutefora aut omnes agrave antiacutetese defende trahe e

agrave estrutura paraleliacutestica (vv 306-307 aut omnes tuo defende reditu sospes aut omnes

trahe)

Meacutegara termina o seu discurso de forma quase abrupta com uma suacutebita tomada

de consciecircncia trahes nec ullus eriget fractos deus (vv 305-308) O poliptoto trahe

trahes imprime agrave fala de Meacutegara um lado marcadamente pessimista e em simultacircneo

um pressaacutegio Heacutercules iraacute realmente arrastaacute-la para a morte

Meacutegara eacute caracterizada directamente por outras personagens28 vindo a primeira

referecircncia da parte do Coro o qual comenta quando a personagem entra em cena com

Anfitriatildeo que ela vem maesta () crine soluto (v 202) Esta indicaccedilatildeo daacute uma primeira

imagem de um animus perturbado Anfitriatildeo a par do elogio inicial (vv 309-310 casta

fide seruans torum natosque magnanimi Herculis) incita-a a abandonar o estado de

prostraccedilatildeo e desacircnimo pelos quais ela se deixou dominar e a confiar no retorno de

Heacutercules meliora mente concipe atque animum excita (v 311) ateacute porque o medo

oprime a alma natildeo permitindo aos que estatildeo submetidos a este affectus viver em

tranquilidade e o receio leva a que pensem sempre no pior afundando-se cada vez mais

no abismo do desespero Immo quod metuunt nimis numquam moueri posse nec tolli

putant prona est timoris semper in peius fides (vv 314-316) Com esta sententia

Anfitriatildeo inclui implicitamente Meacutegara no nuacutemero dos que satildeo levados pelo metus (cf

v 314) e pelo timor (cf v 316)

Lico descreve assim a figura de Meacutegara tristi () obtentu (v 355) O seu

aspecto fiacutesico espelha o seu proacuteprio acircnimo Meacutegara natildeo consegue controlar as emoccedilotildees

de tal forma que elas se tornaram fisicamente visiacuteveis Mas de uma face triste passa a

um estado de espiacuterito violento quando entra em conflito com Lico o qual para

assegurar o seu poder (vv 341-342) pretende obrigar Meacutegara a casar-se com ele

Reconhecendo nela um animus impotens e pertinax (cf v 350) o tirano ameaccedila matar a

famiacutelia de Heacutercules caso ela natildeo o aceite por esposo Meacutegara reage com trux uultus (cf

v 371) e efferata uox e rabida (cf v 397) agraves propostas de Lico Jamais poderia unir-se

28 Carlos Reis e Ana Cristina M Lopes Dicionaacuterio de Narratologia (7ordf ed Coimbra Almedina 2000) sv Caracterizaccedilatildeo Chris Baldick The Concise Oxford Dictionary of Literary Terms (Oxford Oxford University Press 2004) sv characterization

47

a um homem que tem as matildeos maculadas pelo sangue da sua famiacutelia (vv 372-373)

Para tornar claro a Lico a impossibilidade dessa uniatildeo Meacutegara exprime-se por meio de

adynata reforccedilando essa ideia com verbos no futuro do indicativo a aliteraccedilatildeo Scylla

Siculum e a anaacutefora de prius

a) prius extinguet ortus referet occasus diem (vv 373-374)

b) pax ante fida niuibus et flammis erit (v 375)

c) et Scylla Siculum iunget Ausonio latus (v 376)

d) priusque multo uicibus alternis fugax Euripus unda stabit Euboica piger (vv

377-378)

Aleacutem disso Lico tirou-lhe tudo quando usurpou o trono a Creonte Ela perdeu o

pater os regna os germani o lar a patria (cf vv 379-380) A enumeraccedilatildeo acentuada

pelo assiacutendeto pela figura etimoloacutegica e pelo homeoptoto concorre para acentuar a

desgraccedila de Meacutegara e a crueldade do tirano Quid ultra est (v 380) eacute a pergunta que

ela faz a si proacutepria Apenas uma coisa lhe resta e que lhe eacute mais cara do que fratre ac

patre regno ac lare (v 381) o odium Meacutegara quando se apercebe de que ainda lhe

resta algo depois de ter perdido tudo volta a referir-se ao pai aos irmatildeos aos lares e ao

reino Mas agora apresenta-os em pares ligados por uma conjunccedilatildeo coordenativa fratre

ac parente () regno ac lare (v 381) e em estrutura quiaacutestica com os antecedentes (v

379) marcados pela uariatio a) patrem regna germanos larem b) fratre ac parente

regno ac lare O assiacutendeto no v 379 marca a rapidez e a crueldade com que Lico

matou a famiacutelia de Meacutegara acentuando o oacutedio que a move porque una res superest

mihi (v 380) ndash tudo concorre para este affectus que ela sente por Lico mas que ainda

assim tem que dividir com o povo de Tebas restando-lhe uma pequena parte (vv 382-

383)

Lico imoderado volta a insistir na ideia de partilhar com ela o reino

recentemente conquistado unindo assim os leitos nupciais (tori cf v 413) Essa sua

vontade deve-se ao animus magnus de Meacutegara (cf v 412) para suportar ruinae (cf v

412) que o cativa

A insistecircncia de Lico provoca em Meacutegara uma reacccedilatildeo psicossomaacutetica29

Gelidus per artus uadit exsangues tremor (v 414) A semacircntica do verbo uado (aqui

29Eacute frequente nas trageacutedias de Seacuteneca a ocorrecircncia de manifestaccedilotildees psicossomaacuteticas nas personagens Por meio desta teacutecnica o filoacutesofo mostra agrave boa maneira estoacuteica as reacccedilotildees fiacutesicas que as perturbaccedilotildees da alma provocam Na Carta 1065 Seacuteneca lembra a Luciacutelio que as paixotildees tambeacutem satildeo corpos e como tal provocam alteraccedilotildees no rosto lsquoa coacutelera o amor a tristeza () enrugam[-nos] a testa alongam[-nos] a face tornam[-nos] a cara encarniccedilada ou fazem[-nos] ficar sem pinga de sanguerdquo

48

com um sentido de rapidez30) eacute salientada por uma estrutura quiaacutestica (gelidus ndash tremor

per artus ndash exsangues) sublinhando o sentimento de horror que percorre os membros de

Meacutegara Para ela esta proposta natildeo eacute senatildeo uma nova acccedilatildeo iacutempia (facinus v 415) que

lhe provoca terror ao contraacuterio do que sentiu quando a cidade foi tomada pelo fragor

beacutelico (vv 415-417) Se naquele momento permaneceu intrepida (cf v 417) agora

sente que vai perder a sua liberdade Prefere que as cadeias lhe desgastem o corpo ou

que uma fome prolongada a consuma morrendo lentamente do que partilhar o taacutelamo

com o tirano (thalamos tremesco v 418) A morte surge-lhe como o uacutenico meio de

permanecer livre e de manter a sua fides a Heacutercules moriar Alcide tua (v 421)

Nenhuma ameaccedila de Lico a demove porque Cogi qui potest nescit mori (v 426) ndash o

quiasmo da sententia reforccedila o seu desejo violento de deixar de viver Neste sentido a

morte como forma de libertaccedilatildeo de um poder superior ganha expressatildeo nas palavras de

Meacutegara e vai ldquoao encontro da perspectiva estoacuteicardquo31

Em Euriacutepides ao inveacutes natildeo haacute um confronto entre Meacutegara e Lico apenas entre

o tirano e Anfitriatildeo Meacutegara dirige-se ao soberano uma uacutenica vez para lhe pedir que lhe

abra a porta do palaacutecio a fim de ela e os filhos poderem vestir uma roupa fuacutenebre (vv

327-331)

Assim numa perspectiva comparativa vemos que a Meacutegara de Euriacutepides eacute

diferente da de Seacuteneca ateacute pelo nuacutemero de versos a ela dedicados em Heracles o total

de versos correspondentes agrave fala de Meacutegara eacute de 146 vv em Seacuteneca de 90 vv (56 vv)

Aleacutem disso em Euriacutepides Meacutegara entra em cena no proacutelogo e desaparece no terceiro

episoacutedio para natildeo mais regressar em Seacuteneca a personagem surge nos Actos II III e

IV Neste uacuteltimo fala apenas uma vez em dois versos e meio precisamente no

momento que antecede a sua morte tentando fazer-se reconhecer por Heacutercules Esta

diferenccedila eacute significativa indicando que a niacutevel de conteuacutedo os poetas exploraram a

figura feminina de modo desigual

Do ponto de vista estrutural comparando o Proacutelogo do Heracles (vv 1-106)

com os vv 205-331 do Acto II do Hercules Furens vemos que

a) Anfitriatildeo refere a ausecircncia do Alcida e alude agrave situaccedilatildeo de Tebas governada

sob tirania Em Euriacutepides como explica Fitch ldquo[Amphitryonrsquos first speech] is an

30 cf Ernout-Meillet sv uado 31 Vide Maria Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas trageacutedias de Seacutenecardquo Classica Boletim de Pedagogia e Cultura 23 (1999) 37

49

expository prologue speech outside the action of the playrdquo32 Jaacute em Seacuteneca parece

haver um tom que se aproxima mais de uma queixa do que uma contextualizaccedilatildeo da

acccedilatildeo dramaacutetica

b) Em Euriacutepides depois da exposiccedilatildeo de Anfitriatildeo Meacutegara fala num passado

afortunado em contraste com um presente doloroso Em Seacuteneca apesar de Anfitriatildeo e

Meacutegara entrarem ao mesmo tempo em cena33 natildeo estabelecem um diaacutelogo de imediato

cada um dirige as suas preces expondo os seus dramas interiores Natildeo haacute por assim

dizer um elemento que permita ligar a fala de Anfitriatildeo (vv 205-278) ndash iniciada pela

apoacutestrofe a Juacutepiter designado como forma de o engrandecer e de alcanccedilar dele

beneuolentia por pronominaccedilatildeo O magne Olympi rector et mundi arbiter (v 205) ndash agrave

de Meacutegara (vv 279-308) que invoca o marido Emerge coniunx (v 279) Eacute apenas

depois de Meacutegara expor o seu desespero (um uitium que a personagem natildeo consegue

controlar) que se segue o diaacutelogo entre as duas personagens34

A diferenccedila entre as duas trageacutedias tem que ver essencialmente com o objectivo

de Seacuteneca fazer representar a consciecircncia da personagem fazendo antever os affectus a

que as personagens estatildeo submetidas e pelos quais elas se movem Com esta teacutecnica

que tem uma funccedilatildeo propedecircutica o filoacutesofo revela as diversas formas de o homem se

deixar levar pelas passiones demonstrando o resultado catastroacutefico delas

Apesar de haver maioritariamente diferenccedilas no comportamento desta

personagem nas trageacutedias de Euriacutepides e Seacuteneca haacute uma semelhanccedila Meacutegara natildeo

acredita que o Alcida consiga regressar do mundo inferior Em ambas as trageacutedias esta

descrenccedila contrasta com a crenccedila de Anfitriatildeo de que o filho conseguiraacute voltar a Tebas

Em siacutentese a Meacutegara de Euriacutepides eacute uma personagem marcadamente pessimista

que aceita resignada a morte que Lico lhe destina Para esta o que importa eacute manter o

seu bom nome e a honra da famiacutelia (o κλέος proacuteprio dos heroacuteis) Jaacute a Meacutegara de Seacuteneca

eacute activa faz prevalecer a sua vontade mesmo que isso implique morrer ndash prefere a

liberdade ao jugo de um casamento manchado pelo scelus Contesta todos os

argumentos de Lico respondendo ora com a alusatildeo ao destino que o espera ora

prometendo ser a uacuteltima Danaide ndash atinge assim um estado de furor

32 Fitch (1) 183 33 O Coro anuncia a entrada das duas personagens Sed maesta uenit crine soluto Megara paruum comitata gregem tardusque senio graditur Alcidae parens (vv 202-204) 34 Anfitriatildeo dirige-se a Meacutegara por meio de um vocativo e uma periacutefrase O socia nostri sanguinis casta fide seruans torum natosque magnanimi Herculis (vv 309-310)

50

A sua atitude afasta Meacutegara do modelo estoacuteico dada a sua incapacidade de

permanecer imperturbaacutevel perante os avanccedilos de Lico e a sua ausecircncia de serenidade

que a torna demens (v 429)35 Recorde-se que segundo a predicaccedilatildeo estoacuteica a atitude

justa para com os inimigos era ser mitis et facilis36 numa firme contenccedilatildeo bem diferente

da violecircncia com que Meacutegara reage aos desmandos de Lico

3 Lico

31 caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides

A personagem Lico o tirano de Tebas eacute uma criaccedilatildeo de Euriacutepides37 Anfitriatildeo

(vv 26-34) faacute-lo descender de Lico38 (antigo soberano de Tebas) e de Dirce delineando

o caraacutecter do tirano logo no proacutelogo Como deacutespota eacute uma personagem violenta que se

move entre a astuacutecia e o temor Anfitriatildeo explica que Lico aproveitou a guerra civil para

usurpar o reino de Creonte matando-o (cf vv 33-34) O Coro indica que o tirano eacute um

estrangeiro e que conseguiu manter-se no governo porque οὐ γὰρ εὖ φρονεῖ πόλις

στάσει νοσοῦσα καὶ κακοῖς βουλεύμασιν οὐ γάρ ποτ᾿ ἂν σὲ δεσπότην ἐκτήσατο (vv

272-274)39

O tema da πόλις poluiacuteda corrompida pelas guerras civis torna mais legiacutetima a

noccedilatildeo de culpa por parte de Lico Segundo o Coro Lico natildeo respeita os deuses (cf v

255 ἀνόσιος) age com insolecircncia (cf v 261 ὑβρίζω v 741 ὕβρεις ὑβρίζων) e eacute um

assassino (v 755 διώλλυς) Por estes motivos merece ser castigado

35 Demens eacute uma palavra composta por prefixaccedilatildeo A semacircntica do prefixo de eacute de lsquoafastamento separaccedilatildeorsquo Algueacutem demens eacute agrave letra algueacutem que estaacute afastado ou separado da sua mens (logo do seu princiacutepio pensante do seu espiacuterito da inteligecircncia) Vide Ernout-Meillet sv mens 36 Cf Seacuteneca De Vita Beata 20 37 Bond xxviii afirma que natildeo haacute qualquer alusatildeo a esta personagem em outras fontes antes de Euriacutepides Esta personagem aparece em autores como Asclepiacuteades Higino e Seacuteneca porque seguiram o tragedioacutegrafo grego Aleacutem disso como explica Bond ldquoThe elaborate introduction of Lycus at 26 γέρων δὲ δή τις ἔστι Καδμείων λόγος ὡς ἦν πάρος Δίρκης τις εὐνήτωρ Λύκος reinforced by 38 ὁ καινὸς οὗτος τῆσδε γῆς ἄρχων Λύκος points clearly to Euripidean invention as Wilamowitz saw (ii 112) Lycus senior father (or ancestor) of this Lycus did exist independentlyrdquo 38 Lico filho de Hirieu e da ninfa Cloacutenia (numa outra versatildeo do mito tem como progenitor Ctoacutenio um dos guerreiros espartanos nascidos dos dentes de dragatildeo que tinha sido morto por Cadmo) Este Lico teria governado Tebas antes de Laio e fora destituiacutedo por Anfiacuteon e Zeto porque maltratou Antiacuteope matildee deles e sobrinha do soberano (vide Pierre Grimal Dicionaacuterio de Mitologia Grega e Romana coord da ediccedilatildeo portuguesa Victor Jabouille (3ordf ed Algeacutes Difel 1999) 280-81)39 lsquoEacute que a cidade enferma de discoacuterdia civil e maacutes resoluccedilotildees natildeo estaacute no seu perfeito juiacutezo de outro modo nunca te teria aceite como soberanorsquo

51

Nas suas intervenccedilotildees no primeiro e no terceiro episoacutedios Lico revela um

caraacutecter impulsivo40 cobarde e excessivo ndash caracteriacutesticas apontadas directamente pelas

personagens dramaacuteticas e indirectamente pelas suas acccedilotildees e reacccedilotildees Lico manifesta a

sua crueldade no modo como confronta Anfitriatildeo e Meacutegara recordando-lhes o seu

poder absoluto que se traduz na decisatildeo de querer matar a famiacutelia de Heacuteracles Como

assassinou Creonte teme que os filhos de Meacutegara possam constituir perigo para o seu

governo41 Justifica pois o seu acto como uma medida de precauccedilatildeo ἔχει δὲ τοὐmicroὸν

οὐκ ἀναίδειαν γέρον ἀλλ᾿ εὐλάβειαν∙42 (vv 165-166)

Anfitriatildeo interpreta as atitudes do soberano como actos de cobardia (δειλία cf

vv 210 235) e de excesso (vv 215-21643 707-70944 727-728) referindo a

possibilidade de ele vir a ser castigado pela sua insolecircncia Os versos 727-728 aludem

ao castigo que se avizinha Repare-se que a estrutura destes versos eacute semelhante agrave dos

vv 215-216 em ambos os casos haacute uma estrutura quiaacutestica acentuada pelo poliptoto

que converge para as palavras βία e κακός45

- βίᾳ δὲ δράσῃς μηδὲν ἢ πείσῃ βίαν46

- προσδόκα δὲ δρῶν κακῶς κακόν τι πράξειν47

Enquanto no primeiro exemplo Anfitriatildeo parece admitir a possibilidade de

Heacuteracles regressar e castigar o tirano ἀνομία χραίνων (lsquopela desobediecircncia agraves leisrsquo v

757) no segundo exemplo eacute a concretizaccedilatildeo dessa hipoacutetese uma vez que Lico eacute o

40 Lico rege-se por impulsos Natildeo admite que ningueacutem ouse confrontaacute-lo ameaccedilando castigar de modo cruel todos os que natildeo lhe obedecerem (nos vv 247-251 o tirano recorda ao Coro de anciatildeos que eles natildeo satildeo mais do que escravos nas matildeos dele) 41 O discurso de Lico eacute sarcaacutestico e impiedoso Na primeira parte numa foacutermula tiacutepica de uma captatio beneuolentiae numa sucessatildeo de perguntas retoacutericas o tirano pretende lembrar a Anfitriatildeo e a Meacutegara que ele eacute o novo rei e que natildeo haacute quaisquer esperanccedilas no regresso de Heacuteracles 42 lsquoA minha atitude oacute anciatildeo natildeo implica crueldade mas prudecircnciarsquo 43 Nos versos 215-16 Anfitriatildeo poderaacute aludir agrave vinda de Heacuteracles como vingador Esta ideia estaacute impliacutecita na palavra βία acentuada pelo poliptoto e na expressatildeo ὅταν θεῦ σοι πνεῦμα μεταβαλὸν τύχῃ (lsquoquando o sopro da divindade lanccedilar contra ti os ventos da fortunarsquo) ndash uma das caracteriacutesticas do Alcida eacute precisamente a de ser um heroacutei que castiga as acccedilotildees dos iacutempios recorrendo sempre agrave violecircncia Anfitriatildeo (vv 95-97) expressa a sua esperanccedila no regresso do filho 44 No terceiro episoacutedio quando o soberano entra em cena pela segunda e uacuteltima vez Anfitriatildeo censura de novo a forma como Lico se comporta Volta a incitaacute-lo a ser mais moderado ἃ χρῆν σε μετρίως κεἰ κρατεῖς σπουδὴν ἔχειν (v 709 lsquoEra com moderaccedilatildeo que tu sendo embora soberano te deverias preocuparrsquo) 45 Ambas as palavras remetem tambeacutem para a forma como Heacuteracles mataraacute o soberano Esta conexatildeo entre as duas estruturas permite estabelecer uma comparaccedilatildeo entre as duas personagens precisamente no modo como reagem a situaccedilotildees de perigo Ambas assumem um comportamento violento e irracional (como oportunamente veremos) 46 lsquoNatildeo recorras agrave violecircncia ou viraacutes tambeacutem a suportaacute-larsquo (v 215) Relativamente aos problemas que o segmento πείσῃ βίαν levanta vide Bond 121 47 lsquoDepois do mal que fizeste espera que algo de mal te possa acontecerrsquo (vv 727-728)

52

δυσσεβὴς ἀνήρ (v 760 lsquohomem iacutempiorsquo) que abusa do seu poder porque governa

segundo as leis do medo

No entanto aos conselhos de Anfitriatildeo para que modere a sua violecircncia a fim de

natildeo ser submetido por algueacutem igualmente cruel Lico responde com ainda mais oacutedio e

violecircncia ora incitando os seus acompanhantes a irem buscar lenha para queimar vivos

os Heraclidas que estatildeo junto do altar de Zeus ora invadindo o palaacutecio do heroacutei para

arrebatar de laacute Meacutegara e os filhos que segundo a indicaccedilatildeo de Anfitriatildeo se tinham

refugiado junto dos altares familiares Lico incorre na ὕβρις ao desrespeitar os

suplicantes (duas vezes) e por natildeo temer que os deuses o castiguem pela sua insolecircncia

Por esse motivo o tirano seraacute castigado

b) caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Seacuteneca

A origem de Lico natildeo eacute em Seacuteneca tatildeo expliacutecita ignarus exul (cf v 269) exul

Lycus (v 274) e estaacute desligada de Tebas ndash nenhum dos antepassados do tirano tem

qualquer viacutenculo agrave realeza Segundo Anfitriatildeo Lico natildeo eacute mais do que um desterrado

movido pelo desejo de chegar ao poder a qualquer preccedilo Jaacute em Euriacutepides Anfitriatildeo

indica que o tirano descendia de Lico que fora soberano de Tebas Com esta mudanccedila

Seacuteneca apresenta uma personagem voltada para as paixotildees Lico deseja ter poder

conquista-o por meio de scelera e pretende mantecirc-lo de qualquer modo (ou pelo

matrimoacutenio ou pelas armas)

Anfitriatildeo parte da imagem da cidade submetida pelo scelus por arma e pelo

timor que opprimit leges (cf vv 251 e ss) para falar da truculenta manus (cf v 254

metoniacutemia para designar Lico) que manteacutem a cidade sob um jugo infame (v 267

sordido premitur iugo) Estas alusotildees datildeo uma primeira ideia do crime e do caraacutecter

violento de Lico (cuja identificaccedilatildeo nominal soacute eacute feita vinte e trecircs versos depois de a ele

ser feita a primeira alusatildeo dando toda a evidecircncia do seu caraacutecter perverso)

Por oposiccedilatildeo a Lico que representa o protoacutetipo de tirano que usa saeuum

sceptrum (metoniacutemia para designar o poder do soberano cf v 272) Anfitriatildeo apresenta

Heacutercules como o que tem iusta manus (cf v 272) Ao lembrar a ausecircncia do heroacutei que

castiga todos os que governam as cidades de forma cruel Anfitriatildeo prenuncia o castigo

de Lico (vv 271-276)

53

Meacutegara acrescenta no momento em que o tirano entra em cena um conjunto de

caracteriacutesticas fiacutesicas que estatildeo em sintonia com a ψυχή do usurpador

saeuus ac minas uultu gerens et qualis animo est talis incessu uenit aliena dextra sceptra concutiens Lycus

(vv 329-331)

Nesta descriccedilatildeo de Meacutegara vemos que haacute uma relaccedilatildeo entre o interior do tirano

(o seu animus) e o seu aspecto fiacutesico traduzido na comparaccedilatildeo qualis animo est tali

incessu uenit ndash Lico apresenta manifestaccedilotildees visiacuteveis do uitium Ele vem saeuus minas

uultu gerens empunhando aliena sceptra Estas novas impressotildees revelam um caraacutecter

voltado para a crueldade Ateacute o modo como Lico se dirige a Meacutegara e a Anfitriatildeo eacute um

indicador de um acircnimo perturbado pela saeuitia ndash a forma concutiens (agitando) de um

verbo que expressa movimento aliada agrave assonacircncia dextra sceptra sugere a ideia de

que o tirano vem brandindo os aliena sceptra (note-se a metoniacutemia e o adjectivo

aliena que demonstram que Lico governa uma cidade que natildeo lhe pertence por direito)

com o intuito de persegui-los

O monoacutelogo48 de Lico (vv 332-357) vem abonar aquilo que foi dito por

Anfitriatildeo e Meacutegara sobre o perfil do tirano

Vrbis regens opulenta Thebanae loca et omne quidquid uberis cingit soli obliqua Phocis quidquid Ismenos rigat quidquid Cithaeron uertice excelso uidet

(vv 332-335)

Os primeiros versos anunciam o orgulho do rex reforccedilado pela iteraccedilatildeo de

quidquid ndash ele compraz-se em repetir o muito que estaacute sob o seu domiacutenio O tirano tem

de facto consciecircncia da riqueza da terra que usurpou noccedilatildeo essa manifestada nos

adjectivos que escolhe para qualificar Tebas opulenta uberis excelsus

Lico julga-se valoroso porque conquistou o reino de Tebas pelas suas proacuteprias

matildeos e natildeo por herenccedila Neste sentido o tirano ldquopretende desde logo rechaccedilar as

invectivas dos adversaacuterios contra a sua origem humilde (Her F 337-338) e contra a

48 Quando entra em cena Lico vem a falar sozinho e soacute depois de se expressar eacute que se apercebe da presenccedila de Anfitriatildeo e de Meacutegara (vv 354-357) Isto permite ter conhecimento do que vai no acircnimo do tirano e avaliar as suas intenccedilotildees (vide Fitch (1) 214)

54

instabilidade do poder da fortuna e procura a legitimaccedilatildeo para um poder baseado na

forccedila (v 340-342) e na vitoacuteria (v 399-402)rdquo49

[et bina findens Isthmos exilis freta] non uetera patriae iura possideo domus ignauus heres nobiles non sunt mihi aui nec altis inclitum titulis genus sed clara uirtus qui genus iactat suum aliena laudat

(vv 332-341)

Como explica Carla Gonccedilalves o termo nobilis ldquonatildeo tem aqui o valor de elogio

antes eacute utilizado com uma conotaccedilatildeo pejorativa porquanto Lico considera que o

enaltecimento da origem familiar eacute uma apropriaccedilatildeo iliacutecita do meacuterito alheiordquo50 A

oposiccedilatildeo que a personagem faz entre nobiles e sed clara uirtus natildeo deixa poreacutem de ter

um efeito iroacutenico uma vez que o modo como ele conseguiu chegar ao poder foi por

meio de um crime e natildeo do valor pessoal Aleacutem disso contrasta com a fala de Anfitriatildeo

alguns versos antes quando este critica a situaccedilatildeo actual da cidade prosperum ac felix

scelus uirtus uocatur ndash vv 251-252 Esta uirtus que Anfitriatildeo anuncia representa a

inversatildeo de valores que convicta e conscientemente Lico demonstra Os adjectivos

prosperum e felix e a aliteraccedilatildeo sublinham esta subversatildeo dos valores

Lico acha-se contudo no caminho certo e como tal a sua loacutegica eacute irrefragaacutevel

Todo o seu raciociacutenio eacute loacutegico e seria facilmente considerado como justo se estivesse

desligado do seu contexto Lico conclui as suas ideias com uma sententia (vv 340-341)

que mesmo do ponto de vista estoacuteico seria vaacutelida natildeo eacute o valor dos outros que faz o

nosso Deste modo Seacuteneca revela os erros de raciociacutenio a que o stultus estaacute sujeito as

premissas estatildeo erradas e o resultado ainda que seja aparentemente loacutegico natildeo pode ser

correcto

A tirania que exerce sobre a cidade eacute evidente quando diz que

rapta sed trepida manu sceptra obtinentur omnis in ferro est salus quod ciuibus tenere te inuitis scias strictus tuetur ensis

(v 341-344)

49 Francisco de Oliveira ldquoImagem do Poder na Trageacutedia de Seacutenecardquo Humanitas 51 (1999) 59 50 Carla Susana Vieira Gonccedilalves Invectiva na Trageacutedia de Seacuteneca (Coimbra Ediccedilotildees Colibri 2003) 126

55

As aliteraccedilotildees (obtinentur omnis tenere te scias strictus) acentuadas pela

conjunccedilatildeo adversativa que introduz uma correctio concorrem para evidenciar o lado

cruel de Lico que oprime a cidade e os habitantes com o ferrum e o ensis A uacutenica

soluccedilatildeo para tornar legiacutetimo o seu poder eacute unir-se a Meacutegara pelo matrimoacutenio51 ou se ela

negar matar a famiacutelia heraclida52 Nem uma possiacutevel hostilidade do povo caso Lico

opte por destruir a casa de Heacutercules o demove inuidia factum ac sermo popularis

premet ars prima regni est posse in inuidia pati (vv 352-353) O poliptoto de

inuidia reforccedilado pela aliteraccedilatildeo em p e pelo uso lapidar da sententia com que resume o

seu raciociacutenio acentua o menosprezo do tirano pela opiniatildeo do seu povo ldquoe cultiva o

oacutediordquo53

Procura entatildeo convencer Meacutegara tentando acalmar o seu acircnimo Mas se os

argumentos de Lico parecem justos e vaacutelidos visto que pretende restaurar a paz na

cidade (vv 362-369) natildeo deixam de comprovar a sua crueldade e ambiccedilatildeo pelo poder

Na verdade o tirano admite que usurpou o reino (v 399 rapta sceptra) que o seu

poder eacute absoluto (cf v 400) e que governa sine metu legum (cf c 400) porque eacute

mantido pela forccedila (v 401 arma)

A resposta de Meacutegara eacute a rejeiccedilatildeo da proposta do tirano Para ela Lico

representa o exitium (v 358) e a lues (v 358) Estes substantivos demonstram o caraacutecter

implacaacutevel do soberano Tambeacutem os adjectivos que Meacutegara escolhe para qualificar a

personalidade de Lico satildeo igualmente representativos na demonstraccedilatildeo dos seus

affectus ele eacute tumidus e de altus [spiritus] (cf v 384) Meacutegara recorda-lhe o destino

dos reges de Tebas (vv 386-395) destino esse que o espera dominare ut libet dum

solita regni fata te nostri uocent (vv 395-396)

Dado que Meacutegara pretende manter a fidelidade ao marido o tirano potildee em causa

a heroicidade de Heacutercules Em forma de controuersia Lico rebate todos os argumentos

de Anfitriatildeo que entretanto se propocircs defender o heroacutei ausente diminuindo o valor do

Alcida reduzindo-o a tudo menos um heroacutei Neste aspecto vemos a arguacutecia de Lico que

eacute posta ao serviccedilo do mal 51 Em Euriacutepides tivemos a ocasiatildeo de observar que o tirano pretendia matar a famiacutelia de Heacuteracles Se este toacutepico eacute inovaccedilatildeo de Seacuteneca ou se seguiu uma outra tradiccedilatildeo de tragedioacutegrafos poacutes-euripidianos natildeo haacute quaisquer certezas como explica Fitch (1) 184 No entanto como este autor indica ldquoit was particularly attractive to Seneca because it enabled him to show a tyrant being defied to his facerdquo (id) 52 Tal como explora Fitch (1) 216 estaacute impliacutecita a ideia de que os tiranos que governam sob as leis do medo vivem nesse mesmo medo assim como aqueles que governam por meio da forccedila sentem o seu poder instaacutevel (vide De Clem 1252-3) Mas no caso particular de Lico ele procura uma soluccedilatildeo para aplacar o oacutedio do seu povo e soacute em uacuteltimo caso eacute que pensa matar Meacutegara e a famiacutelia 53 Francisco de Oliveira ldquoImagem do Poder na Trageacutedia de Seacutenecardquo 59

56

Uma vez negadas todas as propostas e refutados os argumentos que usa (o

soberano queria Meacutegara iuncta estar sob o jugo do tirano e pretendia tecirc-la coacta ndash v

494) a Lico resta a ameaccedila de mataacute-los diante do altar queimando-os vivos (vv 501-

509) Como afirma Segurado e Campos ldquoa escolha do castigo pelo fogo obedece a um

propoacutesito niacutetido realccedilar a violecircncia e a ferocidade do tirano pela utilizaccedilatildeo do mais

completo e draacutestico meio de destruiccedilatildeordquo54

Se neste passo Seacuteneca retoma a tradiccedilatildeo do mito euripidiano nele encontramos

tambeacutem um aspecto divergente e inovador eacute que o tyrannus de Seacuteneca natildeo concede

sequer um uacuteltimo desejo a Anfitriatildeo o de ser o primeiro a morrer tal eacute a sua impia regis

feri dextra (vv 518-519)

Qui morte cunctos luere supplicium iubet nescit tyrannus esse diuersa irroga miserum ueta perire felicem iube ego dum cremandis trabibus accrescit rogus sacro regentem maria uotiuo colam (vv 511-515)

A inclemecircncia e impiedade de Lico satildeo evidentes nestes versos acentuados pela

antiacutetese miserum ndash felicem (v 513) e pelo substantivo tyrannus Anfitriatildeo acusa Lico de

ser iacutempio impiam regis feri dextram O quiasmo e o homeoptoto concorrem para fazer

sobressair o caraacutecter fero do tirano Na caracterizaccedilatildeo de Lico ao longo da peccedila eacute de

notar com o fim de sublinhar essa mesma ideia a insistecircncia em vocaacutebulos da raiz de

reg-55 que tecircm uma conotaccedilatildeo negativa Rex representava para os Romanos o mesmo

que o tyrannus grego (v 512) Desde a transiccedilatildeo para a Repuacuteblica e a deposiccedilatildeo dos

Tarquiacutenios que a palavra rex assumira implicaccedilotildees negativas56 O uso de regnum e de

todas as palavras que partilham a mesma raiz pode assim traduzir de imediato a ideia

de prepotecircncia abuso de poder regime autocraacutetico e despoacutetico Para o mesmo fim

concorre por exemplo o uso de dominare (v 384 v395) da raiz de dominus que

significa lsquosenhorrsquo por oposiccedilatildeo aos escravos Lico assume o perfil do amo sem piedade

e exige a submissatildeo de todos os seus desiacutegnios 54 J A Segurado e Campos ldquoO Simbolismo do Fogo nas Trageacutedias de Seacutenecardquo Euphrosyne 5 (1972) 191 55 Ao longo da fala de Lico encontramos recorrentes exemplos de rex e de palavras com a mesma raiz regum (v 398) rege (v 414) regi (vv 489-490) regis (v 518) regens (v 332) regnum (v 345 tambeacutem regno v 379 regna v 629) regam (v 400) regnantem (v 411) 56 David Stockton ldquoThe Founding of the Empirerdquo The Oxford History of the Roman World ed John Boardman Jasper Griffin Oswyn Murray (Oxford Oxford University Press 1991 reimpr 2001) 146-179

57

Vemos que Seacuteneca recupera alguns dos traccedilos do Lico de Euriacutepides Procedendo

ao cotejo entre ambas as trageacutedias eacute possiacutevel encontrar toacutepicos comuns Lico pretende

submeter a famiacutelia heraclida aos seus desejos assume uma posiccedilatildeo criacutetica em relaccedilatildeo ao

Alcida procurando eliminar qualquer esperanccedila que a sua famiacutelia possa ter

relativamente ao regresso do heroacutei eacute o estrangeiro que chega agrave cidade e mata o rei e os

seus filhos (agrave excepccedilatildeo de Meacutegara) tem o mesmo fim agraves matildeos de HeacuteraclesHeacutercules

As diferenccedilas existentes entre as duas trageacutedias dizem respeito ao conteuacutedo Em

Seacuteneca Lico aparece uma uacutenica vez no Acto II57 O nuacutemero de versos58 que

correspondem agrave fala desta personagem eacute contudo maior em Seacuteneca do que em

Euriacutepides Esta diferenccedila estaacute relacionada com a psicologia das proacuteprias personagens

Em Seacuteneca haacute mais espaccedilo para exteriorizar as reflexotildees e diaacutelogos Lico eacute exemplum

do tirano que eacute dominado pelo orgulho o excesso a crueldade a impietas e a

prepotecircncia Como observa Francisco de Oliveira ldquoSeacuteneca pretende condenar de forma

clara todo o poder de cariz tiracircnicordquo59

Em jeito de siacutentese vemos que a mesma personagem mereceu um tratamento

diferente nas duas trageacutedias Apesar de Seacuteneca ter retomado alguns aspectos do Lico de

Euriacutepides os quais apontaacutemos no breve estudo desta personagem a forma como

desenvolveu a sua caracterizaccedilatildeo diverge uma vez que norteia um objectivo pareneacutetico

De facto se o Lico de Euriacutepides eacute o διώλλυς (assassino) que procura matar todos os que

constituem um perigo para o seu governo ou ousam enfrentaacute-lo (caso do Coro) o de

Seacuteneca age de modo diferente por um lado parece mais comedido porque natildeo quer

recorrer agrave violecircncia senatildeo em uacuteltimo caso ndash a sua ambiccedilatildeo jaacute foi alcanccedilada necessita

apenas de asseguraacute-la por outro quando opta por agir de modo cruel eacute implacaacutevel natildeo

cede a nenhum pedido nem o trava nenhum escruacutepulo

57 Em Euriacutepides Lico aparece nos episoacutedios I e III 58 Num total de 64 versos em Euriacutepides vs 101 em Seacuteneca 59 Francisco de Oliveira ldquoImagem do Poder na Trageacutedia de Seacutenecardquo Humanitas 51 (1999) 78

58

4 Teseu

a) caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides

Teseu entra em cena no V Episoacutedio depois da ἀναγνώρισις do protagonista O

seu aparecimento permite estabelecer contrastes entre o solitaacuterio Heacuteracles do primeiro

acto e a sua total dependecircncia jaacute no quinto episoacutedio (vv 1397 ss) entre a

individualidade de Heacuteracles e a colectividade de Teseu Heacuteracles eacute um heroacutei auto-

suficiente ao contraacuterio de Teseu que soacute conseguiu sair do Hades com a ajuda do heroacutei

Quando soube que a famiacutelia do amigo estava a ser atormentada Teseu dirigiu-se

imediatamente para Tebas para ajudaacute-los recordando os laccedilos de amizade que os unem

(vv 1169-1171)

Teseu representa por um lado o modelo de amigo que Anfitriatildeo e Meacutegara

esperavam na primeira acccedilatildeo por outro ele eacute o verdadeiro companheiro que partilha a

mancha do crime de Heacuteracles60 ἀλλrsquo εἰ συναλγῶν γrsquo ἦλθον (1202) Teseu faz uma

apologia do valor de amizade

ὡς μὴ microύσος microὲ σῶν βάλῃ προσφθεγμάτων οὐδὲν μέλει μοι σὺν γε σοὶ πράσσειν κακῶς καὶ γάρ ποτrsquo εὐτύχησrsquo ἐκεῖσrsquo ἀνοιστέον ὅτrsquo ἐξέσωσάς μrsquo ἐς φάος νεκρῶν πάρα χάριν δὲ γηράσκουσαν ἐχθαίρω φίλων καὶ τῶν καλῶν microὲν ὅστις ἀπολαύειν θέλει συμπλεῖν δὲ τοῖς φίλοισι δυστυχοῦσιν οὔ ἀνίστασrsquo ἐκκάλυψον ἄθλιον κάρα βλέψον πρὸς ἡmicroᾶς61

(vv 1219-1227)

As aliteraccedilotildees (v 1220 microέλει μοι vv 1221-1222 κακῶς καὶ) o poliptoto (v

1219-1220 σῶν σοὶ v 1223 v 1225 φίλων φίλοισι) concorrem para sublinhar a

importacircncia que a amizade representa para Teseu eacute dever de um amigo auxiliar o outro

principalmente quando esse outro teve um papel fundamental na sua vida Recorda um

passado feliz (εὐτύχη) contrastando com a infelicidade presente (κακός) O que liga

60 Estes laccedilos afectivos recordam a amizade entre Orestes e Piacutelades (vide Euriacutepides Orestes 735) 61 lsquoSeraacute que a mancha das tuas palavras me natildeo possa afectar Natildeo me importo nada de partilhar contigo a tua infelicidade pois foi contigo que outrora fui feliz Eacute preciso remontar agravequele tempo em que tu me retiraste satildeo e salvo de entre os mortos para a luz da vida Abomino os amigos cujo reconhecimento envelhece e aqueles que querem tirar proveito dos momentos felizes mas natildeo querem compartilhar com os amigos o mesmo barco quando sopram os ventos do infortuacutenio Levanta-te descobre o teu desventurado rosto olha para mimrsquo

59

estes dois tempos eacute a amizade entre ambos Heacuteracles contribuiu para a felicidade de

Teseu este tem intenccedilatildeo de acompanhar o protagonista no seu infortuacutenio

Todo o discurso de Teseu fundamenta-se na vontade de convencer Heacuteracles a

salvar a sua vida Primeiro lembra por duas vezes que o crime de Heacuteracles natildeo pode

manchar Teseu

a) οὐ μιαίνεις θνητὸς ὢν τὰ τῶν θεῶν62 (v 1232)

b) οὐδεὶς ἀλάστωρ τοῖς φίλοις ἐκ τῶν φίλων63 (v 1234)

Pretende com estes argumentos levar Heacuteracles a descobrir a sua face e a

suportar a dor causada pelas deusas Recorrendo a perguntas retoacutericas Teseu repreende

o heroacutei por falar como um homem comum (1248) esquecendo-se da anterior coragem

do Heacuteracles que muito labutou (v 1250) e auxiliou a humanidade (v 1252) Termina o

discurso com a sentenccedila οὐκ ἄν ltσrsquogt ἀνάσχοιθrsquo lsquoΕλλὰς ἀμαθίαι θανεῖν (vv 1254)

A funccedilatildeo fundamental de Teseu eacute a de reintegrar Heacuteracles na sociedade64

Consegue resolver todos os dilemas de Heacuteracles agrave excepccedilatildeo do drama interior do

protagonista ele matou os filhos e a mulher domado pela loucura cuja causa natildeo

consegue entender

b) caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Seacuteneca

A personagem Teseu natildeo tem em Seacuteneca qualquer densidade psicoloacutegica ao

contraacuterio das restantes personagens mas estaacute dependente do Alcida Desempenha uma

dupla funccedilatildeo que se restringe no Acto III a ldquonarrador eacutepicordquo65 e no Acto V a dissuadir

Heacutercules de se suicidar Como ldquonarrador eacutepicordquo Teseu descreve as aventuras de

protagonista nos Inferni enquanto este abandona a cena para terminar o seu ldquouacuteltimo

trabalhordquo matar Lico A presenccedila eacute notada no Acto III quando Heacutercules lhe dirige a

62 lsquoSendo tu mortal nada de divino tu podes contaminarrsquo 63 lsquoNenhum geacutenio vingador passa dos amigos para os amigosrsquo 64 Tambeacutem no Orestes haacute uma procura de integraccedilatildeo do protagonista na sociedade Cabe a Apolo essa funccedilatildeo aparecendo no mecanismo deus ex machina para resolver o conflito 65 Seguimos a terminologia usada no artigo de Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos ldquoSur la typologie des personnages dans les trageacutedies de Seacutenegravequerdquo Neronia 1977 Actes du 2e Colloque de la Socieacuteteacute Internationale drsquoEacutetudes Neacuteroniennes (Clermont-Ferrand Adosa 1977) 155-176 Segundo o mesmo autor ldquonarradores eacutepicosrdquo natildeo satildeo mais do que ldquole support drsquoun discours adresseacute aux spectateurs en dehors du texte plutocirct qursquo aux personnages preacutesents agrave la scegravenerdquo (Segurado e Campos 224) Jaacute Heacutercules eacute a tiacutepica personagem-nuacutecleo uma vez que eacute para o Alcida que tudo converge

60

palavra aconselhando-o a permanecer junto da famiacutelia do protagonista enquanto ele

defronta Lico (vv 637-638)

As primeiras palavras de Teseu satildeo de consolo Para incentivar a famiacutelia

heraclida a tranquilizar-se comenta a agilidade e rapidez de Heacutercules em castigar Lico

O jogo do uso de formas do verbo dare em poliptoto apresenta uma sucessatildeo de

tempos verbais futuro (vv 643-644 dabit) presente (v 644 dat) passado (v 644

dedit) em que o futuro logo se torna presente e de imediato se cumpre (o aspecto

pontual do perfeito anula toda a duraccedilatildeo) ndash em sintonia com a repeticcedilatildeo do adjectivo

neutro lentum e com a construccedilatildeo quiaacutestica (v 644 lentum est dabit hoc [dat] est

lentum) ndash que traduzem bem a rapidez e a eficiecircncia da acccedilatildeo do heroacutei

A pedido de Anfitriatildeo (vv 646-649) Teseu segue com a narraccedilatildeo dos feitos de

Heacutercules descrevendo os Infernos Shelton sublinha que esta pausa na acccedilatildeo tem duas

funccedilotildees ldquoIt is a rhetorical showpiece to display Senecarsquos literary talents and more

importantly it provides valuable information about Herculesrsquo characterrdquo66

A descriccedilatildeo dos Inferni tem dois momentos visiacuteveis na primeira parte (vv 662-

759) descreve o espaccedilo os monstros que aiacute habitam e a funccedilatildeo que cada quaesitor

desempenha no tribunal das sombras (vv 731-734)67 Nos vv 735-736 Teseu delineia

os castigos que os criminosos recebem pelos seus crimes quod quisque fecit patitur

auctorem scelus repetit suoque premitur exemplo nocens Nestes versos agrave semelhanccedila

dos indiacutecios que o Coro vai deixando nas Odes poder-se-aacute ver uma alusatildeo ao fruto que

Heacutercules iraacute colher das suas paixotildees e dos seus erros68 Por contraste os vv 739-745

falam da beatitude de todos os que mantiveram as suas matildeos imaculadas (v 740

innocuas manus) Teseu termina estes versos com uma sententia (vv 745-747)

sanguine humano abstine quicumque regnas scelera taxantur modo maiore uestra

mostrando que todo o tirano que reine por meio do terror e do crime acabaraacute por ser

castigado da forma mais severa

66 Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 (Goumlttingen Vandenhoeck and Ruprecht 1978) 50 67 Satildeo notoacuterios ecos vergilianos em particular do Canto VI da Aeneis na forma como Seacuteneca delineia o espaccedilo do sub-mundo como por exemplo a enumeraccedilatildeo dos monstros que habitam nos primeiros corredores do Orco (vv 274-289 da Aeneis vv 689-696 de Her F) a barca mal aguenta o peso dos heroacuteis e tanto numa viagem como noutra enche-se de aacutegua (vv 413-414 da Aeneis vv 775-777 de Her F) referecircncia a Minos como presidente do tribunal das sombras (vv 432-433 da Aeneis vv 731-734 de Her F) 68 Clara-Emmanuelle Auvray Folie et Douleur dans Hercule Furieux et Hercules sur lrsquoOeta Recherches sur lrsquoexpression estheacutetique de lrsquoascegravese stoiumlcienne chez Seacutenegraveque (Frankfurt am Main Bern Nova Iorque Paris Lang 1989) 18

61

No segundo momento (vv 762-827) Teseu conta a luta entre Ceacuterbero e

Heacutercules O poeta demonstra o valor do protagonista que tudo vence primeiro

Caronte69 depois o catildeo triceacutefalo Teseu diz a Anfitriatildeo que os monstros que foram

destruiacutedos pelo heroacutei e que o proacuteprio catildeo dos Infernos sentiram medo da presenccedila do

Alcida (vv 778-793)70 Este receio pode ter duas interpretaccedilotildees a) os monstros

assustam-se com a presenccedila do protagonista porque jaacute o defrontaram Ceacuterbero tem

medo por estar habituado aos passos das sombras que habitam os Inferni ou porque

nunca viu um mortal b) este medo pode ser uma alusatildeo ao caraacutecter monstruoso de

Heacutercules

Na perspectiva de Giancotti esta narrativa perturba a economia da trageacutedia

E forse la cagione prima della disarmonia egrave da scorgere nel realistico pregiudizio che non si potesse non lasciar passare qualche tempo tra lrsquouscita drsquoErcole dalla scena per uccidere Lico e il suo ritorno A tale cagione prima si saragrave aggiunto un eccessivo indulgere di Seneca alla sua vena descrittiva e moralistica71

Para Shelton ldquoThe description of Herculesrsquo victory over Cerberus is the climax

of the scene and a high point in the tragedy because it shows Hercules at his bravest

just before he plunges to his greatest dishonorrdquo72 Jaacute Fitch tem uma interpretaccedilatildeo

diferente Em primeiro lugar compara as formas como Apolodoro e Seacuteneca

interpretaram a descida de Heacutercules aos Infernos e a luta contra Ceacuterbero Enquanto em

Apolodoro o heroacutei se dirige a Plutatildeo e lhe eacute outorgada a autorizaccedilatildeo de levar o catildeo se

conseguir vencecirc-lo (natildeo podendo socorrer-se das suas armas) em Seacuteneca Heacutercules natildeo

pede autorizaccedilatildeo mas passa logo agrave acccedilatildeo deixando os proacuteprios deuses infernais

perplexos e assustados (vv 804-806) Eacute neste sentido que Fitch afirma ldquoThis is in

69 Natildeo eacute sem violecircncia e sem rapidez que Heacutercules consegue entrar na barca de Caronte Agrave questatildeo e ordem do barqueiro ldquoquo pergis audax siste properantem gradumrdquo (v 772) o heroacutei responde com actos non passus ullas natus Alcmena moras ipso coactum nauitam conto domat scanditque puppem (vv 773-775) Em Vergiacutelio Caronte ao dirigir-se a Eneias perguntando-lhe quem eacute recorda o meio que Heacutercules usou para arrastar consigo Ceacuterbero Tartareum ille manu custodem in uincla petiuit ipsius a solio regis traxitque trementem (Aeneis 6395-396) 70 No caso de Ceacuterbero e Heacutercules a reacccedilatildeo que cada um deles provoca no seu adversaacuterio eacute de temor (vv 792-793) Quanto a Heacutercules semelhante sentimento natildeo seria de estranhar pelo modo como Teseu descreve o monstro No que se refere a Ceacuterbero o motivo que o leva a recear Heacutercules eacute incerto se por este ser mortal e estar a pisar o mundo das sombras ou se por temer que Heacutercules o venccedila 71 Francesco Giancotti Saggio sulle Tragedie di Seneca (Roma Societagrave Editrice Dante Alighieri 1953) 138 72 Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 55

62

keeping with Sen[eneca]rsquos general picture of him as a Harrower of Hell and above all

as one who relies to a hubristic degree on his own superhuman stregthrdquo73

A descriccedilatildeo do mundo inferior tem uma funccedilatildeo essencialmente didaacutectica

Seacuteneca usando os traccedilos definidores do mito sugere que nada haacute de grandioso em

infringir as leis do mundo os limites da moderaccedilatildeo as fronteiras do que eacute dado aos

seres humanos O prefaacutecio das Naturales Quaestiones justifica o motivo que leva o

filoacutesofo a condenar todos os homens que se julgam valorosos por lutarem contra feras

Diz Seacuteneca

O quam contempta res est homo nisi supra humana surrexit Quamdiu cum affectibus colluctamur quid magnifici facimus Etiamsi superiores sumus portenta uincimus Quid est cur suspiciamus nosmet ipsi quia dissimiles deterrimis sumus Non uideo quare sibi placeat qui robustior est in ualetudinario74

A descriccedilatildeo dos Infernos e da luta que Heacutercules travou com Ceacuterbero imprime a

ideia de que a gloacuteria de Heacutercules eacute duacutebia ilustrada ao longo da acccedilatildeo O heroacutei eacute o

exemplo maacuteximo de como se desperdiccedila a vida indo agrave procura de um valor que acaba

por ser aparente Ao perseguir tudo o que de cruel existe na terra e debaixo desta

Heacutercules acaba por revelar que ele eacute igualmente um monstro75

Em siacutentese em Euriacutepides e em Seacuteneca Teseu salva o Alcida da morte

reintegrando-o numa nova sociedade a ateniense No entanto o desenvolvimento que

cada um dos poetas daacute da personagem eacute uma vez mais diferente Na trageacutedia Heracles

Teseu aparece em cena no uacuteltimo episoacutedio e a funccedilatildeo desta personagem eacute a de salvar o

heroacutei Como resume Parmentier ldquoUn coup de theacuteacirctre amegravene tout agrave coup Theacutesegravee qui reacutecemment sauveacute des enfers par Heacuteraclegraves arrive en hacircte au secours de la famille de son ami Il emmegravenera lrsquoinfortuneacute agrave Athegravenes le purifiera du sang du meurtre et lui donnera des terres ougrave apregraves sa mort srsquoeacutelegraveveront des autels consacreacutes agrave son culterdquo76

73 Fitch (1) 318 74 Seacuteneca Naturales Quaestiones I Praefatio 5 75 Em Hercules Oetaeus o heroacutei sente que depois de ter pacificado todo o orbe destruindo todos os monstros que nele habitavam ele proacuteprio comeccedila a tomar o lugar deles ferae negantur Hercules monstri loco iam coepit esse (vv 55-56) 76 Parmentier 8

63

Como nota Clara-Emmanuelle Auvray Euriacutepides ao confiar a Teseu a salvaccedilatildeo

do heroacutei permite que haja uma soluccedilatildeo juriacutedica terminando assim a questatildeo da

mancha do crime de Heacutercules A mesma autora diz ldquole leacutegendaire roi drsquoAthegravenes a en

effet acquis sa gloire en eacutetablissant le συνοικισμός qui donne agrave la citeacute son unification

contre les autoriteacutes particuliegraveres et sa base deacutemocratiquerdquo77

Em Seacuteneca Teseu entra no Acto III com Heacutercules vindos dos Inferni sai de

cena no IV e volta a entrar no Acto V Enquanto narrador conta o que viu no mundo

das sombras e ilustra os excessos do protagonista No final da acccedilatildeo dramaacutetica

conforta o amigo aconselhando-o a moderar o seu espiacuterito perturbado pela ira (vv

1272-1277) e oferece-lhe hospitalidade (vv 1341-1344)

5 Coro

a) caracterizaccedilatildeo do Coro na trageacutedia de Euriacutepides

O Coro eacute constituiacutedo por um grupo de anciatildeos de Tebas Como nota Bond ldquoThe

entry of the chorus is neither expected nor announced no is it explicitly motivated

They have apparently come to lament (109f) and to encourage the suppliants (cf 114

πρόθυμ᾿)rdquo78 A entrada do Coro serve de mote para um prolongado lamento sobre a

condiccedilatildeo dos anciatildeos

ὑψόροφα μέλαθρα καὶ γεραι- ὰ δέμνι᾿ ἀμφὶ βάκτροις ἔρεισμα θέμενος ἐστάλην ἰηλέμων γέρων ἀοι- δὸς ὥστε πολιὸς ὄρνις ἔπεα μόνον καὶ δόκημα νυκτερω- πὸν ἐννύχων ὀνείρων τρομερὰ microὲν ἀλλ᾿ ὅμως πρόθυμ᾿79

(vv 107-114)

77 Clara-Emmanuelle Auvray Folie et Douleur dans Hercule Furieux et Hercules sur lrsquoOeta Recherches sur lrsquoexpression estheacutetique de lrsquoascegravese stoiumlcienne chez Seacutenegraveque 124 78 Bond 91 79 lsquoPara o palaacutecio de elevado tecto e veneraacutevel leito apoiando-me no bastatildeo me dirijo entoando tristes gemidos como um cisne jaacute envelhecido Natildeo passo de meras palavras sombria aparecircncia de um sonho nocturno mas apesar de treacutemulo da idade o zelo me daacute forccedilas para avanccedilarrsquo

64

Nestes versos haacute uma hiperbolizaccedilatildeo da sua condiccedilatildeo de fragilidade que

contrasta com a vontade de ajudar os seus amigos os anciatildeos jaacute nem sequer se

consideram verdadeiros seres humanos mas antes uma visatildeo obscurecida pela noite da

vida Esta noite metaacutefora da velhice mais natildeo eacute do que um sonho dominado pelas

trevas O sentido que estes uacuteltimos versos parecem sugerir eacute o de que eles estatildeo no

limiar da morte

O uso de metaacuteforas que expressam a velhice eacute comum nas trageacutedias de

Euriacutepides Para Bond ldquoThese metaphors are usually accumulated with καί (as here) or

ἤv Old men are words dreams shadows phantoms corpses tombs (Med 1209 Hcld

166 Ar Lys 372) δόκημα νυκτερωπὸν offers an additional form of intensification a

dubious appearance of a dream is further from reality than a dreamrdquo 80

Nos versos 119-130 os anciatildeos voltam a reforccedilar esta ideia de caducidade que

se traduz na ausecircncia de forccedilas para se movimentarem com naturalidade

daggermicroὴ προκάμητε πόδαdagger βαρύ τε κῶ- λον ὥστε πρὸς πετραῖον λέπας daggerζυγηφόρον πῶλον ἀνέντες ὡς βάρος φέρον τροχηλάτοιο πώλουdagger λαβοῦ χερῶν καὶ πέπλων ὅτου λέλοι- πε ποδὸς ἀμαυρὸν ἴχνος γέρων γέροντα παρακόμιζ᾿ ᾧ ξύνοπλα δόρατα νέα νέῳ τὸ πάρος ἐν ἡλίκων πόνοις ξυνῆν ποτ᾿ εὐκλεεστάτας πατρίδος οὐκ ὀνείδη81

A imagem eacute pateacutetica o caminhar lento auxiliado por baacuteculos e pela interajuda

que eacute acentuado pelas aliteraccedilotildees em oclusiva (π γ ν v 119 v 120 v 125 v 126 v

128) e pelos poliptotos (πόδα ποδὸς γέρων γέροντα νέα νέῳ v 119 v 125 v 126

v 128) contrasta com a coragem que manifestaram (nos versos supracitados) em querer

auxiliar Anfitriatildeo Meacutegara e os filhos de Heacuteracles Esta oscilaccedilatildeo entre a consciecircncia da

sua debilidade e a vontade de defender os seus amigos eacute constante no decorrer da acccedilatildeo

dramaacutetica

80 Bond 96 81 lsquoNatildeo canseis em vatildeo os peacutes e os pesados membros como se conduziacutesseis para o cimo de um rochedo um potro sob o jugo em acircnsias para se libertar do seu pesado fardo Segurai a matildeo e o peplo de quem atrasado arrasta o traccedilo indistinto do peacute Anciatildeo ajuda o anciatildeo com quem na juventude em combates comuns uniste as tuas agraves suas armas sem macular a honra dos mais ilustres antepassadosrsquo

65

O desenvolvimento de cada um dos momentos da trageacutedia leva a que o espiacuterito

do Coro sofra alteraccedilotildees ora lamenta a situaccedilatildeo da famiacutelia do Alcida porque natildeo a

pode ajudar (vv 115-118 vv 131-137 vv 312-315 vv 436-450) e insurge-se contra o

tirano (vv 252-274) ora entoa um canto fuacutenebre em honra de Heacuteracles porque

considera que este morreu ao tentar concluir o seu uacuteltimo trabalho recordando todas as

provaccedilotildees a que o heroacutei foi submetido (vv 349-435) ora rejubila com o regresso do

Alcida por ele representar uma μεταβολὰ κακῶν (vv 637-700) ora exulta com a morte

de Lico uma vez que eacute restituiacuteda a ordem e o reino anterior (vv 735-821) ora agoniza

perante o novo rumo dos acontecimentos motivados por divindades (vv 875-885 Iacuteris

ordena a Lissa que enlouqueccedila Heacuteracles para que o heroacutei mate a sua famiacutelia sem ter

consciecircncia do seu acto)

Quando Lico entra em cena no primeiro episoacutedio a exigir que os Heraclidas

morram o Coro insurge-se contra ele (nos vv 252-27482) Os anciatildeos manifestam a sua

audaacutecia na viva oposiccedilatildeo ao tirano (vv 252-267) condenam Lico por ser um

estrangeiro usurpador e criminoso ao mesmo tempo que lhe lanccedilam impropeacuterios

ameaccedilando-o de que enquanto eles forem vivos natildeo permitiratildeo que ele cause algum

dano aos filhos de Heacuteracles No entanto nos versos seguintes (vv 268-274) o contraste

entre a vontade que sentem e o poder que tecircm eacute pateacutetico Os anciatildeos tomam consciecircncia

de que natildeo poderatildeo fazer nada porque apesar do desejo de quererem auxiliar os amigos

a fraqueza fiacutesica natildeo lho permite83

Jaacute no primeiro estaacutesimo (vv 348-450) o Coro recorda os vaacuterios πόνοι que o

heroacutei concluiu sob as ordens de Euristeu Segundo Webster ldquoThe chorus sing a

decorated aelo-choriambic account of the labours of Herakles in three pairs of strophes

and antistrophes each with an ephymnion now Herakles is in Hades and they are too

old to helprdquo84

Na primeira estrofe (vv 348-358) o Coro diz que vai entoar um θρῆνος

dedicando-o ao Alcida Compara esse canto ao de Apolo cantando os feitos de Heacuteracles

(vv 359-429) 82 Estes versos eram atribuiacutedos a Anfitriatildeo no ms L (Bond xxxiii) manuscrito do seacutec XIV da Biblioteca Laurentina em Florenccedila Os modernos editores atribuem-nos ao Coro Segundo Bond 128-129 ldquo258-62 are appropriate only to the Chorus so are 266 f and 268-74 Moreover the invocation to strike Lycus (254-7) resembles a military order which comes better from the coryphaeus in command than from Amphitryonrdquo Natildeo eacute usual que a fala do Coro ocupe tantos versos visto que normalmente intervecircm ou nas partes liacutericas ou em esticomitia Segundo Bond 129 tambeacutem em Helena haacute uma fala do Coro extensa (vv 317-329) 83 ἐν δ᾿ ἀσθενείαι τὸν πόθον διώλεσας (lsquomas consomes o profundo desejo na fraquezarsquo) 84 T B L Webster The Tragedies of Euripides (Londres Methuen 1967) 188

66

- matou o Leatildeo de Neacutemea (vv 359-363)

- matou os Centauros da Tessaacutelia como forma de castigo (vv 364-374 este

episoacutedio natildeo faz parte dos trabalhos exigidos ao heroacutei)

- matou o cervo de cornos de ouro (corccedila de Cireneia) e ofereceu-os a Aacutertemis

(vv 375-379)

- capturou os cavalos traacutecios de Diomedes que devoravam carne humana

Heacuteracles castigou o tirano matando-o e fez do corpo deste um repasto para os cavalos

(vv 380-388)

- matou Cicno que assassinava os estrangeiros (vv 389-393 este episoacutedio natildeo

pertence aos doze trabalhos)

- colheu as maccedilatildes das Hespeacuterides mas teve de matar a serpente que as guardava

(vv 394-402 no decorrer deste trabalho Heacuteracles destruiu todos os monstros marinhos

para tornar a travessia menos perigosa aos mortais)

- susteve o mundo nos seus braccedilos substituindo Atlas (vv 403-407)

- matou Hipoacutelita rainha das Amazonas para ficar com o seu cinto (vv 408-

418)

- queimou a Hidra de Lerna serpente de mil cabeccedilas (vv 419-421) e matou o

pastor Geacuterion (vv 422-424)

- uacuteltimo trabalho para capturar Ceacuterbero desceu aos infernos de onde ainda natildeo

regressou (vv 425-429)

Como explica Bond ldquoEuripides has only three Peloponnesian labours where

Olympia has six he does not include Boar Birds or Augean Stables The three he

includes (Lion Hind Hydra) are dispersed among the other labours He does not

include external labour the Cretan Bullrdquo85

Aleacutem disso estes ἔργα estatildeo distribuiacutedos por desigual nuacutemero de versos se por

exemplo a referecircncia agrave morte do leatildeo ocupa cinco versos e a da Hidra trecircs jaacute a

descriccedilatildeo dos Jardins das Hespeacuterides estendeu-se por nove versos o assassiacutenio de

Hipoacutelita a rainha das Amazonas por dez versos assim como a morte dos Centauros

tambeacutem por dez versos Esta diferenccedila pode ter que ver com o querer sublinhar a

imagem de um heroacutei que eacute forte civilizador e protector da humanidade que segura o

ceacuteu (onde moram as divindades) mata os baacuterbaros (os Centauros) e torna os mares

navegaacuteveis No caso das Amazonas a expediccedilatildeo representa a luta entre a civilizaccedilatildeo

85 Vide Bond 154

67

(um grupo de amigos que simbolizam a Heacutelade) e a barbaacuterie (Amazonas) em que a

primeira vence ndash segundo Bond ldquoand Greece gets the girdle as the spoils of war from

the barbarianrdquo86

Este estaacutesimo daacute uma outra tonalidade agrave acccedilatildeo dramaacutetica Segundo Maria de

Faacutetima Sousa e Silva Esta ode eacute sobretudo um grande quadro onde a violecircncia natural nas faccedilanhas de Heacutercules cede lugar agrave fantasia estaacutetica de uma pintura Com o rememorar dos trabalhos lendaacuterios do heroacutei Euriacutepides desanuvia um pouco a cena num momento em que a incoacutegnita da sua ausecircncia entrega ao destino mais cruel os seres desprotegidos que dependem da forccedila do seu braccedilo e antes de o heroacutei mergulhar noutros reveses tatildeo distantes dos encantos da vitoacuteria87

No segundo estaacutesimo (vv 637-700) o Coro discorre sobre a forccedila da juventude

que considera como um Bem acima de todos os outros por oposiccedilatildeo agrave decrepitude da

velhice (γῆρας) Este elogio aos que ainda estatildeo na flor da vida deixa subjacente a ideia

de mudanccedila da Fortuna passagem das Trevas para a Luz traduzida no regresso

iminente do heroacutei

A magnanimidade do filho de Zeus leva o Coro a considerar que deveria ser

concedida a todos os jovens que satildeo conhecidos pela sua ἀρετή uma segunda juventude

καὶ τῷδ᾿ ἂν τούς τε κακοὺς ἦν γνῶμαι καὶ τοὺς ἀγαθούς (vv 665-666)88 Este desejo eacute

acentuado pelo homeoteleuto pela aliteraccedilatildeo (τούς τε) e pela antiacutetese (κακούς ndash

ἀγαθούς) Deste toacutepico o Coro passa para o enaltecimento de Heacuteracles por meio de um

hino Comparando o tema do seu canto (elogio do heroacutei filho de Zeus) ao das virgens

de Delos que honram o deus Apolo com os seus cantos o Coro estabelece um paralelo

entre o filho de Leto e o filho de Zeus Esta comparaccedilatildeo sugere que os anciatildeos

consideram que Heacuteracles eacute uma figura divina Διὸς ὁ παῖς∙ τᾶς δ᾽ εὐγενίας πλέον

86 Bond 170 O mesmo autor sugere alguns motivos que poderiam ter levado Euriacutepides a seleccionar doze dos vaacuterios ἔργα que o Alcida cumpriu ldquoHeracles is much less a Peloponnesian hero he is a pan-Hellenic leader (411 416) who travels far both inside Greece and throughout the world Three of the italicized labours exhibit him as ἀλεξίκακος (369 391 401) he kills monsters and calms the sea for mankind (hellip) He supports even the gods in heaven (406 f) the Hesperides give him his reward (396)rdquo (Bond 154) 87 Maria de Faacutetima Sousa e Silva Ensaios sobre Euriacutepides (Lisboa Livros Cotovia 2005) 387 88 lsquoAssim seria possiacutevel distinguir os homens bons e os homens mausrsquo O toacutepico da inexistecircncia de uma marca que permita reconhecer o homem bom distinguindo-o do mau lembra o ἀγῶν entre Medeia e Jasatildeo (Medea vv 516-519) Nesta contenda a protagonista acusa Jasatildeo de a ter traiacutedo e abandonado Da acusaccedilatildeo parte para a ideia de que se os deuses tivessem cunhado os homens com uma marca distintiva ela natildeo teria suportado tantos males por causa de um homem vil

68

ὑπερβάλλων ltἀρετᾶιgt (vv 696-697)89 ou que pelo menos os seus feitos satildeo dignos de

um deus A reputaccedilatildeo do Alcida como filho de Zeus foi ultrapassada pelas suas

virtudes tornou a vida dos homens mais segura e paciacutefica ao destruir todos os monstros

que os aterrorizavam

Para Hugh Parry esta ode parece ser um epiniacutecio

The Heracles ode would seem basically to be an epinician ode and one particularly reminiscent of Pindarrsquos songs in honour of mortal victors At the same time however Heracles is lauded with an extravagance which suggests a hymn in honour of a god and we note in particular the absence of the frequent Pindaric warning that mortal victors are not gods It is no accident that this epinician ode is invested with a hymnal grandeur more appropriate to divinity For the chorus elevate their hero to so dangerous a height that his fall becomes almost inevitable90

Sob o ponto de vista estrutural o terceiro estaacutesimo91 faz a ponte para a nova

acccedilatildeo iniciada pelo diaacutelogo entre Iacuteris e Lissa Eacute um momento liacuterico de elevada

intensidade dramaacutetica porque passa de um momento de extrema euforia para o

conhecimento de um novo golpe da Fortuna Heacuteracles natildeo salva as crianccedilas da morte

apenas retarda o seu Destino

Nas estrofes β e γ (vv 762-771 vv 781-797) o Coro acompanha o canto com

danccedila O seu entusiasmo eacute crescente acentuado pela repeticcedilatildeo de χοροί (v 763

lsquodanccedilasrsquo) rejubila com a morte do tirano e com a restituiccedilatildeo do antigo poder e convida

o povo de Tebas a danccedilar e a cantar as faccedilanhas de Heacuteracles Um outro motivo de juacutebilo

eacute a vitoacuteria de Heacuteracles sobre a morte Ele desceu aos abismos do Hades e regressou vivo

(vv 769-771) quebrando a barreira existente entre a vida e a morte

Jaacute na antiacutestrofe β e γ (vv 772-780 vv 798-814) o Coro elogia os deuses porque

distinguem os homens maus dos bons ndash sentimento reforccedilado pela repeticcedilatildeo de θεοί (v

772 lsquodeusrsquo) castigam os que satildeo crueacuteis e protegem os virtuosos Segundo Bond os vv

772 ss e os vv 811 ss satildeo uma teodiceia ldquothe return of Heracles and the punishment of

the wicked show that God rewards good and bad appropriatelyrdquo92

89 lsquoEle eacute filho de Zeus Mas ultrapassando com as suas virtudes a sua nobre origemrsquo 90 Hugh Parry ldquoThe Second Stasimon of Euripidesrsquo Heracles (637-700)rdquo American Journal of Philology 864 (1965) 364 91 O terceiro estaacutesimo tem trecircs estrofes e trecircs antiacutestrofes (vv 763-814) Entre os versos 735 e 760 o Coro vai acompanhando o discurso de Lico no momento em que eacute castigado pela sua insolecircncia morrendo agraves matildeos de Heacuteracles 92 Vide Bond 264

69

Ainda na antiacutestrofe γ (vv 798-814) ndash no auge do seu gaacuteudio em que o Coro

volta a enaltecer a dupla paternidade de Heacuteracles que entende como inquestionaacutevel (vv

801-804) e considera que o heroacutei eacute o melhor ἄναξ que Tebas alguma vez poderia ter ndash

entram Iacuteris e Lissa mudando o rumo do destino da famiacutelia de Heacuteracles e do proacuteprio

heroacutei porque uma vez filicida e uxoricida ele eacute obrigado a exilar-se natildeo podendo

governar Tebas

A partir do momento em que as deusas abandonam a cena o Coro volta a entoar

um canto luacutegubre Como nota Bond93 a actuaccedilatildeo do Coro entre os vv 875 e 921 pode

ser dividida em trecircs momentos ora estaacute completamente soacute e lamenta a perda do heroacutei

que vai ser enlouquecido pelos deuses ndash critica a inconstacircncia da fortuna que tatildeo

depressa sopra ventos favoraacuteveis como arruiacutena a vida do homem (vv 875-885) ora

reage aos gritos de desespero de Anfitriatildeo (vv 886-909) ora dialoga com o Mensageiro

(vv 910-921) tomando conhecimento dos antecedentes da loucura e do crime que

Heacuteracles cometeu Como aponta Barlow ldquoThe Chorus reacts to these cries with awed

horror at the effects of madness (hellip) their responses being closely linked to

Amphitryonrsquos utterancesrdquo94

Na Ode Coral95 dos vv 1016-1038 o Coro assume uma posiccedilatildeo criacutetica no que

diz respeito ao crime de Heacuteracles Compara a morte de Meacutegara com a morte dos

esposos das Danaides96 e o filiciacutedio com o assassiacutenio do filho de Procne97 agraves matildeos da

proacutepria matildee Neste exemplo o Coro aproveita o mito de Procne para demonstrar que o

crime de Heacuteracles foi superior uma vez que ela matou apenas um filho e ele trecircs Os

exemplos miacuteticos tecircm o claro propoacutesito de demonstrar que os crimes do heroacutei satildeo

superiores a todos os perpetrados anteriormente ainda os mais odiosos τάδε δ᾽

ὑπερέβαλεν παρέδραμεν τὰ τότε κακὰ τάλανι διογενεῖ κόρῳ (vv 1019-1020)98

93 Bond 295 94 Barlow 164 95 Barlow 168 explica que esta parte eacute uma Ode Coral porque eacute breve e astroacutefica Nestes versos segundo Bond 322 ldquoThere is a dead calm which is well contrasted with the last set of excited lyrics which culminated in the murder and the earthquake (875 ff)rdquo 96 Satildeo cinquenta as filhas de Daacutenao Segundo a tradiccedilatildeo mitoloacutegica Egipto pretendia reconciliar-se com o irmatildeo Daacutenao que fugira do Egipto Com esse propoacutesito o rei envia os seus cinquenta filhos para se unirem em matrimoacutenio com as filhas de Daacutenao Este aceitou a proposta Deu um grande banquete por ocasiatildeo das bodas e como prenda ofereceu a cada uma das filhas uma adaga para que elas matassem os respectivos maridos Apenas Hipermnestra natildeo matou o esposo Vide Pierre Grimal Dicionaacuterio de Mitologia Grega e Romana 110 97 Procne mata o filho para se vingar do marido Tereu por este se ter apaixonado por Filomela irmatilde de Procne e a ter violado cortando-lhe em seguida a liacutengua para que esta natildeo contasse a verdade agrave irmatilde Procne como vinganccedila assassina o seu filho e cozinha-o dando-o como refeiccedilatildeo ao marido 98 lsquoMas este feito do desgraccedilado filho de Zeus ultrapassou e venceu os males de entatildeorsquo

70

b) caracterizaccedilatildeo do Coro na trageacutedia de Seacuteneca

O Coro interveacutem apenas no final dos quatro primeiros Actos Ao contraacuterio do

que acontece em Euriacutepides natildeo sabemos qual a faixa etaacuteria do Coro nem de que cidade

satildeo oriundos99 Nem sequer eacute anunciada a sua entrada em Cena100

Natildeo participa activamente na acccedilatildeo dramaacutetica partilhando dos problemas das

personagens antes tece as suas consideraccedilotildees a partir daquilo que observa A funccedilatildeo eacute a

de criacutetico que comenta o que estaacute a acontecer Diz-nos Fitch a propoacutesito dos vv 125-

204 a primeira intervenccedilatildeo do Coro

The ode is not only integrated into the drama in a technical sense but also indispensable for our understanding of the play It establishes a standard of normality in the conduct of human life and indicates that by the standard Hercules is condemned It was essential for Seneca to formulate these judgments early in the play so that the developing action could be viewed in these terms And only the Chorus could give an objective view of this kind as the other dramatis personae all have a prejudiced view of Hercules101

Em Hercules Furens o Coro assume uma posiccedilatildeo de distanciamento das

personagens procura evitar tudo o que eacute turba Dispensa a Gloacuteria e a Fama e a estas

prefere uma vida pautada pela tranquilidade e seguranccedila

Comeccedila por descrever a noite que abandona lentamente o ceacuteu para dar lugar ao

dia (vv 125-136) Este despertar lento da Aurora intensificado pela assonacircncia em

nasais iam rara micant sidera prono languida mundo permite atenuar a violecircncia do

monoacutelogo inicial de Juno Segundo Fitch ldquoThe ode proceeds through a remarkable

series of shifts in thought and feeling First it engages the audience emotionally through

the lyrical images of light and peace in 125-61 the effect is like that of waking from a

nightmarerdquo102

Esta primeira fala do Coro (vv 125-204) pode ser dividida em quatro momentos

em primeiro lugar descriccedilatildeo do campo da paz e da poesia da natureza ao romper do dia

(vv 125-161) segundo o contraste com a vida apressada e adversa na cidade (vv 161-

99 Vide Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 100 O Coro eacute mencionado uma vez por Teseu (vv 827-829) 101 Fitch (1) 163 102 Fitch (1) 161

71

185)103 terceiro a descida de Heacutercules ao mundo inferior (vv 186-201) quarto a

entrada de Meacutegara e Anfitriatildeo em cena (vv 202-204)

Da evocaccedilatildeo dos primeiros raios de sol o Coro passa agrave enumeraccedilatildeo dos

trabalhos do campo (vv 137-161) louvando a labuta matinal A uma innocua uita a

que se liga uma tranquilla quies (cf vv 159-160) contrapotildeem-se spes immanes104

trepidique metus que definem a vida na cidade (vv 162-180) ndash esta diferenccedila eacute

reforccedilada pelo homeoptoto e pelo quiasmo (spes immanes ndash trepidique metus) A

cidade por oposiccedilatildeo ao campo eacute o lugar de conflitos e discoacuterdias Eacute o lugar de medos e

de falsas esperanccedilas que pouco contribuem para manter a seguranccedila e a liberdade do

homem De facto estes sentimentos natildeo satildeo mais do que paixotildees que prendem o

homem como grilhotildees de modo que satildeo poucos os que conseguem libertar-se de tais

affectus (v 175 nouit paucos secura quies) Pelo contraacuterio o comum dos mortais eacute

devorado pelo passar do tempo porque corre em grande euforia atraacutes de coisas vatildes (vv

183-184 gens hominum fertur rapidis obuia fatis incerta sui) e assim a vida passa por

ele velozmente (vv 173-179)

O Coro acentua aqui um toacutepico estoacuteico o tempo natildeo se recupera e soacute o

momento presente nos pertence (vv 175-176 uelocis memores aeui tempora

numquam reditura tenent) O que o homem natildeo sapiens faz eacute deixar-se levar pelos

dias consumindo a vida ao sabor do curso raacutepido (vv 178-180 properat cursu uita

citato uolucrique die rota praecipitis uertitur anni) sem se preocupar com o que eacute

realmente importante como que ignorando o que eacute inevitaacutevel e sem atender ao fim que

o espera que pode ser jaacute agora Na teoria estoacuteica a necessidade de ldquoaproveitar bem a

103 Fitch (1) 162 sublinha que o contraste entre o campo e a cidade conteacutem alguns elementos anacroacutenicos ldquothe salutatio of 164-66 the lawyerrsquos activity in the forum in 172-74 the triumphal currus of 195 () Here the anachronisms may be seen as related to the strategy of moving through familiar material to an unfamiliar conclusionrdquo O efeito seria o de reconhecer na forma de vida de Heacutercules (exemplo de vida que se afasta da virtude entrando no domiacutenio dos erros e dos viacutecios) os proacuteprios viacutecios de Roma 104 Fitch (1) 174 considera a expressatildeo spes immanes sugerida por Schmidt e adoptada por Miller mais atractiva do que spes iam magnis (Giardina) ou spes in magnis (Viansino) Em relaccedilatildeo agrave expressatildeo spes iam magnis o autor explica 173 ldquoIam having meant ldquoat dawn on this date in the Heroic Agerdquo can scarcely mean ldquoin these degenerate Roman timesrdquo here although the activities listed in 164-174 are clearly Roman in character it would take more than a iam to turn a covert anachronism into an overt onerdquo Jaacute no que diz respeito a spes in magnis Fitch (1) 174 comenta que as conjecturas que Gronovius faz desta expressatildeo satildeo muito vagas Spes immanes (lsquoesperanccedilas colossaisdesmedidasrsquo) tem numa perspectiva estoacuteica uma conotaccedilatildeo mais violenta Todo o homem que viva agarrado agrave spes natildeo consegue viver o momento presente e ateacute o dia seguinte lhe escapa Na Ep 10110 Seacuteneca recorda a Luciacutelio que este tipo de homens natildeo consegue aproveitar a vida em seguranccedila in spem uiuentibus proximum quodque tempus elabitur subitque auiditas et miserrimus ac miserrima omnia efficiens metus mortis (lsquopara quem vive de esperanccedilas pelo contraacuterio mesmo o dia seguinte lhe escapa e depois nem a avidez de viver e o medo de morrer medo desgraccedilado e que mais natildeo faz do que desgraccedilar tudorsquo)

72

vidardquo eacute viver cada dia como se fosse o uacuteltimo para atingir a perfeiccedilatildeo para a construir

segundo a segundo105 ndash soacute assim o sapiens pode sentir seguranccedila

Na cidade o homem tem mais tendecircncia a deixar-se enredar nas malhas da

confusatildeo e da vida supostamente cheia (mas que eacute afinal cheia de nada) Por isso

Seacuteneca escreve por exemplo o De Breuitate Vitae mostrando ao destinataacuterio que natildeo

pode adiar mais o momento de se encontrar consigo mesmo pondo fim agraves muitas

ocupaccedilotildees que lhe atravancam e destroem a vida

Seacuteneca lembra que entre viver (uiuere) e existir (esse) a diferenccedila eacute

avassaladora um homem pode existir durante numerosos anos e nunca ter vivido assim

como um jovem pode ter morrido na flor da idade mas soube viver cada dia que o

destino lhe reservou Natildeo importa viver muito mas sim viver em pleno (Ep 937

Quamdiu sim alienum est quamdiu ero ltueregt ut sim meum est Hoc a me exige ne

uelut per tenebras aeuum ignobile emetiar ut agam uitam non ut praeteruehar106) A

duraccedilatildeo ideal da vida eacute a que permite atingir a sabedoria (Ep 938 ad sapientiam

uiuere) ndash este eacute o uacutenico objectivo que deve nortear o homem

Nos vv 178 ss o toacutepico da sucessatildeo dos dias e da necessidade que o homem

tem de tomar consciecircncia da brevidade da vida e da imutabilidade do seu destino (cf

vv 181-204 as Parcas nunca desfazem a trama que vatildeo tecendo mas vatildeo sempre

desenrolando o fio) vem introduzir um novo aspecto o Alcida O Coro critica o heroacutei

porque ousou descer aos infernos para descobrir o que eacute oculto aos homens107 Censura-

-o igualmente por querer apressar o trabalho das Parcas uma vez que a morte eacute

inevitaacutevel Ningueacutem pode antecipar ou retardar a sua morte certo ueniunt tempore

Parcas nulli iusso cessare licet nulli scriptum proferre diem (vv 188-190)108 ndash a

105 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 1011 Ideo propera Lucili mi uiuere et singulos dies singulas uitas putas (lsquoApressa-te a viver caro Luciacutelio imagina que cada dia eacute uma vida completarsquo) 106 lsquoNatildeo me cabe determinar por quanto tempo vivo estaacute todavia na minha matildeo viver plenamente enquanto existir Exige de mim que eu natildeo percorra como que envolto em trevas uma existecircncia sem sentido mas que realize a minha vida em vez de lhe passar ao ladorsquo 107 Fitch (1) 162 identifica uma outra interpretaccedilatildeo possiacutevel para a descida de Heacutercules ao mundo inferior ldquoHerculesrsquo descent to the underworld is seen as a metaphor for the human tendency to rush deathward in pursuit of ambitious aims rather than savoring each passing momentrdquo Para os estoacuteicos Heacutercules ao descer aos Infernos e de laacute regressar quebrou os limites entre os dois mundos subvertendo a ordem (coacutesmica) O seu acto revelou excesso e desmesura ambiccedilatildeo e orgulho Tambeacutem na Medea o Coro condena Jasatildeo por ter rompido os mares (vv 301-302) Natildeo eacute nesses actos que estaacute o que eacute mais importante na vida humana mas sim em vencer os seus proacuteprios viacutecios Nas Naturales Quaestiones 3 praef 10-17 Seacuteneca recorda Quid praecipuum in rebus humanis est Non classibus maria complesse nec in rubri maris litore signa fixisse nec deficiente ad iniurias terra errasse in oceano ignota quaerentem sed uitia domuisse 108 Vide Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 696 Nemo moritur nisi sua morte () nemo nisi suo die moritur (lsquoNingueacutem morre senatildeo de morte natural () ningueacutem morre senatildeo no seu proacuteprio diarsquo) Note-se o estreito paralelo entre a trageacutedia e o diaacutelogo filosoacutefico

73

construccedilatildeo paraleliacutestica imprime uma ideia de imutabilidade de impossibilidade de

iludir esta lei natural

Por oposiccedilatildeo agrave Gloria e agrave Fama que percorrem as cidades (vv 192-201)

imortalizando os heroacuteis pelos seus feitos neste caso Heacutercules o Coro volta a elogiar a

paz e a tranquilidade de uma existecircncia simples preferindo terminar a velhice humilique

loco sed certa (v 199) e numa sordida fortuna paruae domus (v 200) porque assim se

permanece livre de qualquer sofrimento Esta impassibilidade soacute eacute possiacutevel para as

pessoas que vivem longe de todo o geacutenero de turba Na cidade poreacutem natildeo eacute possiacutevel

encontrar a tranquillitas animi desejada pois o stultus corre como para agarrar a vida

quando o que acontece na realidade eacute que fica acorrentado a todo o tipo de affectus

deixando de ter domiacutenio sobre a sua proacutepria vida

Ao longo das Odes Corais vai sendo manifestada uma posiccedilatildeo negativa

relativamente a Heacutercules O Coro parece anunciar que a ambiccedilatildeo desmedida do heroacutei o

lanccedilaraacute no mais fundo abismo (v 201 alte uirtus animosa cadit) Como sugere Fitch

Their critique of the active life may be summarized as follows first it is dominated by the affectus spes and metus (161ff) second those obsessed by ambition rush towards death in the sense of forgetting the ephemeral nature of human life and neglecting quiet enjoyment of each passing day (174ff) third the lofty positions attained by the ambitious are precarious alte uirtus animosa cadit (201) We can scarcely fail to perceive that Hercules is the outstanding exemplar of uirtus animosa and we know from Junorsquos predictions that he will suffer a great fall109

Na segunda Ode o Coro fala apoacutes o confronto entre Meacutegara Anfitriatildeo e Lico A

estrutura desta Ode assemelha-se ao primeiro Estaacutesimo da trageacutedia de Euriacutepides haacute uma

enumeraccedilatildeo dos trabalhos de Heacutercules Mas ao contraacuterio do que acontece na peccedila

grega o Coro de Seacuteneca natildeo evoca todos porque Anfitriatildeo jaacute o fizera no II Acto O

Coro escolhe alguns deles que melhor ilustrem a vida do protagonista tornando-o

modelo de homem que natildeo vive a vida mas desperdiccedila a sua existecircncia110

O Coro inicia o seu canto com uma criacutetica O Fortuna uiris inuida fortibus (v

524) Contrasta a fortuna de Euristeu com a de Heacutercules o primeiro facili regnet in otio

(v 526) enquanto Alcmena genitus bella per omnia monstris exagitet caeliferam

109 Fitch (1) 22 110 Fitch (1) 253-254

74

manum (vv 527-528) O Coro vai enumerando alguns dos trabalhos de Heacutercules com o

objectivo de demonstrar a sua vida atribulada111

- suportou os ceacuteus (v 528 caeliferam manum)

- matou a Hidra de Lerna (v 529)

- enganou as irmatildes Hespeacuterides para poder arrebatar as maccedilatildes de ouro e matou o

dragatildeo que as guardava (vv 530-532)

- arrancou com violecircncia (v 544 detraxit) o cinto de Hipoacutelita (vv 531-546)

- desceu ao mundo inferior (vv 547-591)

Eacute de notar que os dois uacuteltimos trabalhos mereceram um maior desenvolvimento

do que os primeiros trecircs Naqueles trabalhos a natureza descrita entra no domiacutenio do

locus horrendus (o que contrasta com a descriccedilatildeo campestre da I Ode) Haacute semelhanccedilas

na descriccedilatildeo de cada um dos lugares por onde o heroacutei teve de passar para chegar ao

destino em ambos os percursos ele teve de cruzar mares (v 536 v 551) e terrenos

inoacutespitos e pantanosos (v 540-541 v 554)

A descida ao mundo inferior112 foi poreacutem dos dois o que mereceu um mais

elaborado pormenor Anfitriatildeo contudo omitira este trabalho O motivo pode ter que

ver com o facto de a descida ao mundo inferior estar conotada com o excesso e a

ambiccedilatildeo desmedida do heroacutei Ora Anfitriatildeo ao enumerar todos os trabalhos do filho

pretende sobressair principalmente a uirtus de Heacutercules e o seu lado civilizacional

A questatildeo que o Coro coloca (vv 547-549 qua spe praecipites actus ad inferos

audax ire uias irremeabiles uidisti Siculae regna Proserpinae) recupera o juiacutezo

criacutetico tecido na Ode I a absurdez do homem em querer encontrarantecipar a morte

correndo para ela113 Se o Coro ainda percebe as razotildees que levaram Heacutercules a realizar

os outros trabalhos uma vez que de todos resultou alguma coisa de bom neste caso

poreacutem natildeo encontra o Coro senatildeo perigos e ousadia (v 548 audax) A spes a que o

Coro alude remete para um erro de avaliaccedilatildeo do futuro As descriccedilotildees de viagens aos

Infernos assumem algo mais do que a conquista da morte ou da imortalidade ldquoIn the

first ode H[ercules]rsquos descent to the underworld was seen as symbolic of the tendency

to hasten through life to rush toward death in pursuit of ambition (hellip) Ode II goes

111 Fitch (1) 252 112 Parece-nos que o Coro alude em todas as odes ao tema da viagem de Heacutercules aos infernos para adensar em crescendo o tom da trageacutedia iminente Satildeo vaacuterios os indiacutecios que ocorrem nas suas falas que abonados com exemplos mitoloacutegicos ou natildeo e sempre em crescendo vatildeo culminar na morte inevitaacutevel dos filhos e da mulher do heroacutei 113 Na Ep 2423 ss Seacuteneca recorda o quatildeo ridiacuteculo eacute correr para a morte Um saacutebio nunca foge da vida mas saberaacute sair dela quando alguma circunstacircncia verdadeiramente fundamentada o impelir a abandonaacute-la

75

further by suggesting (hellip) that the experience of H[ercules]rsquos various toils and so of

men who toil like him is that of death-in-liferdquo segundo comenta Fitch114

No entanto apesar de estar subjacente essa criacutetica o Coro deseja que o filho de

Juacutepiter consiga regressar deste trabalho (vv 558-559 euincas utinam iura ferae Stygis

Parcarumque colos non reuocabiles) e acredita que o heroacutei venceraacute essa nova prova

jaacute que outrora ele derrotara o Rei do Inferno (vv 560-565) Exorta entatildeo o Alcida a

quebrar as barreiras dos dois mundos para que possa regressar Note-se a aliteraccedilatildeo em

oclusiva surda bilabial e os homeoptotos tristibus inferis prospectus pateat lucis et

inuius limes det faciles ad superos uias (vv 566-568) que acentuam esta ligaccedilatildeo

pretendida entre os dois mundos ateacute entatildeo separados por um limes

O Coro recorda que Heacutercules natildeo foi o uacutenico que desceu agraves moradas inferiores

Antes dele soacute Orfeu se atrevera a percorrer essa descida com o objectivo de recuperar

Euriacutedice Ele conseguiu persuadir os umbrarum domini (cf v 570) por meio da lira do

canto e de suacuteplicas (v 570 prece supplici) mas acabou por perder a sua amada no

caminho do regresso ao ousar olhar para traacutes Este exemplum estabelece um paralelo

entre Orfeu e Heacutercules Se o primeiro conquistou os deuses pela muacutesica o segundo

poderaacute consegui-lo tambeacutem mas pela forccedila Esta afinidade eacute posta em relevo pela

estrutura paraleliacutestica de quae uinci potuit regia carmine haec uinci poterit regia

uiribus (vv 590-591) Haacute dois elementos que satildeo comuns agraves duas situaccedilotildees (os reinos

dos infernos ndash regia ndash satildeo nos dois casos vencidos ndash uinci) e dois aspectos divergentes

(o aspecto temporal sobressaiacutedo pelo politptoto passado ndash potuit ndash relacionado com

Orfeu e futuro ndash poterit ndash Heacutercules e o meio ndash agente da passiva ndash pelo qual os reis

foram e seratildeo vencidos ndash carmine no caso de Orfeu uiribus no caso de Heacutercules) O

facto de o Coro terminar o seu canto com a palavra uiribus natildeo deixa de corresponder a

um aviso o emprego da uis natildeo eacute prenunciadora de bons resultados Heacutercules quebraraacute

novamente os limites Desta vez poreacutem as consequecircncias do seu acto seratildeo nefastas

para ele e para os que lhe satildeo proacuteximos

Se Orfeu perdeu Euriacutedice por quebrar uma ordem divina tambeacutem Heacutercules

poderaacute ser castigado por ter arrebatado de laacute Ceacuterbero (vv 569-591) Na perspectiva de

Shelton ldquothe chorus is warning Hercules that all men are bound by the iura of the

Underworld and that he may pay dearly for his returnrdquo115 Tambeacutem em Phaedra o Coro

lembra que Teseu ao ser libertado do Hades teraacute de pagar pela sua fuga Pallas 114 Fitch (1) 253 115 Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 45

76

Actaeae ueneranda genti quod tuus caelum superosque Theseus spectat et fugit

Stygias paludes casta nil debes patruo rapaci constat inferno numerus tyranno

(Phaed vv 1149-1153) O preccedilo da sua libertaccedilatildeo teve como castigo a morte de

Hipoacutelito resultando num terriacutevel desgosto e na dor de Teseu (Phaed vv 1143 ss hic

qui clari luget maestos tristis reditus ipsoque magis flebile Auerno) Um castigo

semelhante avizinha-se de Jasatildeo na Medea (vv 301-302) por ter ldquoquebrado os limitesrdquo

dos mares A evocaccedilatildeo destes episoacutedios miacuteticos configura uma associaccedilatildeo terriacutevel a do

destino comum de quatro personagens responsaacuteveis pela perda daqueles que mais

amam jaacute que

a) Orfeu (Her F) perde Euriacutedice

b) Teseu (Phaed) perde Hipoacutelito

c) Jasatildeo (Med) perderaacute os filhos

d) Heacutercules (Her F) perderaacute os filhos e Meacutegara

De facto Heacutercules ilustraraacute com a sua acccedilatildeo criminosa a dupla face que assume

o verbo lsquoperderrsquo ficaraacute sem os que mais ama (castigo e fonte de dor) seraacute para eles

causa de perdiccedilatildeo provando que o excesso o error o uitium as paixotildees soacute podem

trazer o mal e a desgraccedila natildeo soacute a todos os que por ele se deixam dominar mas tambeacutem

agravequeles que quase sempre inocentes os rodeiam Eacute uma cadeia imparaacutevel a que liga o

uitium ao scelus arrastando tudo e todos para a ruiacutena)

Eacute ainda possiacutevel encontrar um outro toacutepico comum agraves trageacutedias Medea e

Hercules Furens Jasatildeo e Heacutercules satildeo audaces nas empresas que ousam realizar Jasatildeo

com a sua primeira embarcaccedilatildeo viola os limites entre a terra e o mar (Med vv 301-

302 Audax nimium qui freta primus rate tam fragili perfida rupit) ou como o Coro

afirma inter uitae mortisque uias (Med v 307) Heacutercules por seu turno transgride os

limites do ser humano ao visitar as moradas de Perseacutefone foi audax (Her F v 548) e

teraacute que lsquoromperrsquo (Her F v 566 rumpe) as barreiras entre os dois mundos para

regressar (cf Her F vv 566-567) O heroacutei tem consciecircncia de que infringiu as regras

Quando entra em cena no terceiro Acto invoca Apolo (o deus da luz) e pede-lhe

perdatildeo por obrigaacute-lo a contemplar aquilo que eacute inlicitum (vv 595-596 da Phoebe si

quid illicitum tui uidere uultus) Em seguida invoca todos os outros deuses para que

natildeo fiquem maculados ante a visatildeo de Ceacuterbero (vv 599-603)

Na Ode III (vv 830-894) satildeo descritas uma vez mais sobre as regiotildees

subterracircneas Parece haver uma continuaccedilatildeo da descriccedilatildeo que Teseu faz dessas moradas

77

mas ao contraacuterio dele que enumera os monstros que aiacute habitam o Coro refere-se agraves

numerosas sombras que percorrem um caminho tristis et nigra metuenda silua (v 836)

Esta Ode comeccedila por falar de Euristeu (vv 830-831) tal como na Ode II

recordando o uacuteltimo trabalho que o soberano impocircs a Heacutercules e que este cumpriu a

descida agraves mansotildees inferiores para de laacute arrebatar Ceacuterbero (vv 830-833) O Coro

critica novamente a ousadia de Heacutercules fez o mesmo percurso que os mortos Haacute

uma insistecircncia no toacutepico da infracccedilatildeo do que natildeo eacute liacutecito acentuada pelo uso de

vocaacutebulos da famiacutelia de audax116 que funciona como ldquoponterdquo entre as vaacuterias odes e

como ligaccedilatildeo entre o que o Coro e as personagens dizem

O Coro parte deste juiacutezo criacutetico para descrever a turba de sombras de diversas

idades que se dirige para o Inferno

Quantus incedit populus per urbes ad noui ludos auidus theatri quantus Eleum ruit ad Tonantem quinta cum sacrum reuocauit aestas quanta cum longae redit hora nocti crescere et somnos cupiens quietos Libra Phoebeos tenet aequa currus turba secretam Cererem frequentat et citi tectis properant relictis Attici noctem celebrare mystae tanta per campos agitur silentes turba (vv 838-849)

O siacutemile ndash reforccedilado pelo poliptoto anafoacuterico (quantus quantus quanta) ndash

que aproxima os povos que afluem a um novo teatro (vv 838-839) agraves festas (vv 840-

841) e aos rituais misteacutericos (vv 842-847) da multidatildeo de mortos imprime agrave cena maior

πάθος a morte natildeo escolhe idades (tanto leva os que estatildeo esgotados pela idade

avanccedilada como aqueles que ainda nem sequer a matildee conheceram)

O adjectivo nouus (v 839 noui theatri) que se liga com o facto de todos se

dirigirem para o teatro como uma vaga aacutevida e impetuosa (v 839 auidus v 838

populus) faz sobressair a imagem da tanta turba (cf vv 848-849) que se encaminha

apressadamente para a mansatildeo dos mortos Esta pressa estaacute igualmente marcada nos

outros membros do siacutemile ruit (v 840) citi properant (cf v 846) e eacute acentuada pela

116 O adjectivo audax eacute atribuiacutedo a Heacutercules trecircs vezes v 247 na fala de Anfitriatildeo (audaces manus) v 538 na Ode Coral (audax) v 772 Caronte interpela Heacutercules (audax) A forma verbal com a mesma raiz audeo aparece uma uacutenica vez v 834 Coro (ausus es) Ainda assim essas quatro ocorrecircncias configuram o desenho da personagem como algueacutem que natildeo aceita limites e quer sempre mais

78

repeticcedilatildeo do vocaacutebulo turba (cf v 837 frequens turba v 845 v 849) Tudo isto

concorre para realccedilar a ideia de inevitabilidade ndash a lei universal da morte ndash todos quase

sempre com escassa consciecircncia disso caminham inexoravelmente para a morte Rata

et fixa sunt et magna atque aeterna necessitate ducuntur eo ibis quo omnia eunt117

Neste sentido recorda Seacuteneca a Luciacutelio Quantus te populus moriturorum

sequetur quantus comitabitur Fortior ut opinor esses si multa milia tibi

commorerentur atqui multa milia et hominum et animalium hoc ipso momento quo tu

mori dubitas animam uariis generibus emittunt118 O paralelo entre a Ep 77 e a fala do

Coro (vv 838 ss) eacute visiacutevel quantus populus (Ep 7713 vs Her F v 838) multa

milia (Ep 77 13) assemelha-se a magna turba (Her F v 837) A proacutepria imagem

dada pelo Coro e intensificada pelo siacutemile da numerosa multidatildeo que caminha para os

abismos do inferno eacute semelhante agrave que Seacuteneca sugere nesta Carta evidenciada pela

anaacutefora (multa milia) pelo polissiacutendeto e pelo poliptoto (tibi tu)

Para Shelton ldquoThe simile of people flocking to the mysteries is particularly

good because it is a comparison not only of number but also of destination They all

living or dead approaching an area which is shrouded in mystery119

O Coro ao enumerar a idade das sombras faacute-lo por meio de uma gradaccedilatildeo

descendente do mais velho para o mais novo

pars tarda graditur senecta tristis et longa satiata uita pars adhuc currit meliores aeui uirgines nondum thalamis iugatae et comis nondum positis ephebi matris et nomen modo doctus infans (vv 849-854)

Esta descriccedilatildeo intensificada pela anaacutefora de pars (v 849 e v 851) e a iteraccedilatildeo

de nondum (v 852 v 853) leva o Coro a reflectir sobre a morte Segundo Shelton

ldquoAfterlife according to the chorus is a dreary no-existence a dark emptiness relieved

by no visions of Tantalus or Ixion Its description thus provides a counter-balance to

117 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 77 12 lsquoOs destinos estatildeo determinados de uma vez por todas e prosseguem a sua marcha em obediecircncia agrave lei eterna do universo tu iraacutes para onde vai tudo o maisrsquo 118 Idem Ibidem 7713 lsquoQue multidatildeo de gente natildeo haacute para te seguir na morte que multidatildeo para nela te acompanhar Creio bem que a tua coragem seria maior se visses muitos milhares de pessoas a morrer ao mesmo tempo que tu pois fica sabendo que no preciso momento em que tu vacilas ante a morte muitos milhares de homens e de animais estatildeo de uma forma ou de outra exalando a almarsquo 119 Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 45-46

79

Theseusrsquo lively narrative and makes us comprehend the real horror of deathrdquo120 A

morte eacute inevitaacutevel quid iuuat durum properare fatum (v 867) Assim a pergunta que

se coloca eacute o que deveraacute entatildeo fazer o homem para aceitar que vida e morte caminham

juntas Reflectindo sobre a brevidade da vida e reconhecendo que todo o ser que nasce

teraacute inevitavelmente de morrer o Coro toma consciecircncia de que deve preparar-se para a

morte (v 872 tibi Mors paramur) De nada adianta revoltarmo-nos contra a morte ou

questionaacute-la Encontramos este mesmo ensinamento no De Prouidentia 58 Accipimus

peritura perituri Quid itaque indignamus Quid querimur Ad hoc parati sumus O

verbo eacute o mesmo paro em ambos os casos na sua forma passiva dando luz agrave estreita

afinidade entre a prosa filosoacutefica e o teatro de Seacuteneca

Afinal a vida natildeo eacute mais que uma contagem decrescente para a morte cada dia

natildeo eacute mais um dia que se tem e que se vive mas sim um dia a menos que nos aproxima

do fim O proacuteprio dia que se vive hoje eacute jaacute uma partilha com a morte ndash ela eacute gradual

Mors non una uenit sed quae rapit ultima mors est121 Em Ad Lucilium Epistulae

Morales 2420 Seacuteneca desenvolve esta ideia Cotidie morimur cotidie enim demitur aliqua pars uitae et tunc quoque cum crescimus uita decrescit Infantiam amisimus deinde pueritiam deinde adulescentiam Usque ad hesternum quidquid transit temporis perit hunc ipsum quem agimus diem cum morte diuidimus Quemadmodum clepsydram non extremum stilicidium exhaurit sed quidquid ante defluxit sic ultima hora qua esse desinimus non sola mortem facit sed sola consummat tunc ad illam peruenimus sed diu uenimus122

Se no v 874 o Coro diz prima quae uitam dedit hora carpit em Ep 12018

afirma-se ad mortem dies extremus peruenit accedit omnis carpit nos illa non

corripit123 Novamente encontramos pontos de contacto entre a trageacutedia e os tratados

filosoacuteficos aleacutem de o sentido ser muito proacuteximo (todos os dias nos aproximamos da

morte) o verbo eacute o mesmo (carpit) sugerindo a rapidez com que o homem eacute colhido

120 Idem Ibidem 46 121 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 2421 lsquoa morte vem gradualmente a que nos leva eacute a morte uacuteltimarsquo 122 lsquoMorremos diariamente jaacute que diariamente ficamos privados de uma parte da vida por isso mesmo agrave medida que noacutes crescemos a nossa vida vai decrescendo Comeccedilamos por perder a infacircncia depois a adolescecircncia depois a juventude Todo o tempo que decorreu ateacute ontem eacute irrecuperaacutevel o proacuteprio dia em que estamos hoje compartilhamo-lo com a morte Natildeo eacute a uacuteltima gota que esvazia a clepsidra mas toda a aacutegua que anteriormente foi escorrendo do mesmo modo natildeo eacute a hora final em que deixamos de existir a uacutenica que constitui a morte mas sim a uacutenica que a consuma Atingimos a morte nessa hora mas jaacute de haacute muito caminhaacutevamos para elarsquo 123 lsquoo uacuteltimo dia empurra-nos para a morte mas em todos os outros nos fomos aproximando dela a morte vai-nos colhendo gradualmente natildeo nos arrebata de repentersquo

80

pela morte qualquer que seja o momento qualquer que seja a sua idade Neste sentido

podemos ver que tambeacutem a trageacutedia assume uma perspectiva estoacuteica A mensagem que

Seacuteneca faz passar eacute a mesma

A reflexatildeo do Coro (vv 838-874) que abarca toacutepicos da meditatio mortis

contrasta poreacutem (e o ritmo dos versos marca essa mudanccedila de tom) com a exaltaccedilatildeo de

Heacutercules a que o Coro procede (vv 875-894) Heacutercules que trouxe aparentemente a

paz ao mundo jaacute que tudo foi domado pela sua matildeo124 inclusive o Taacutertaro por ele foi

pacificado ndash iam nullus superest timor nil ultra iacet inferos (vv 891-892) No

entanto esta paz que o Coro refere vai traduzir-se com alguma ironia no seu oposto ou

seja na desordem total com o castigo de Heacutercules que o proacuteprio Coro tem vindo a

anunciar

A Ode IV (1054-1137) surge imediatamente depois do crime de Heacutercules

quando o heroacutei adormece exausto O tom que o distingue varia ao longo da Ode e

assume uma tonalidade traacutegica de contraste com o juacutebilo perante o regresso do heroacutei

com que fechara o seu anterior canto Eacute significativo que a primeira palavra que o Coro

pronuncia seja agora lugeat (v 1054) num conjuntivo sombrio que desfaz a alegria do

imperativo tege (v 894) com que no uacuteltimo verso da Ode anterior exortava aos ritos de

acccedilatildeo de graccedilas O Coro marca assim magistralmente a commutatio fortunae

A Ode principia com um lamento pela desgraccedila de Heacutercules incentivando os

deuses celestes a auxiliarem o heroacutei para que ele recupere a razatildeo Soluite tantis animum

monstris soluite superi rectam in melius flectite mentem (vv 1063-1065) Este

desejo do Coro de querer que Heacutercules recupere de um estado de loucura para o

domiacutenio da razatildeo eacute expressivo pelo recurso agrave anaacutefora (soluite em imperativo com

sentido de exortaccedilatildeo ou mesmo suacuteplica) e agrave aliteraccedilatildeo da fricativa surda dental A

alusatildeo aos monstra que dominam a mente do heroacutei remete para o soliloacutequio de Juno (v

40 monstra iam desunt mihi) A deusa descobrira entatildeo que a uacutenica forma de lutar

contra Heacutercules seria fazecirc-lo travar uma luta contra ele proacuteprio Esta descoberta deixara

impliacutecito um caraacutecter igualmente selvagem de Heacutercules como diz Shelton ldquoIt is his

mad mind which has become the monstrumrdquo125

124 Pax est Herculea manu (v 882) Esta sineacutedoque remete para o poder e para a forccedila sobrenatural do heroacutei Heacutercules tornou o mundo paciacutefico para a humanidade 125 Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 47

81

Por outra parte o Coro pede ao Sono126 em jeito de captatio beneuolentiae que

mantenha o Alcida adormecido enquanto ele natildeo recuperar a sanidade ateacute que redeat

pietas uirtusque uiro (v 1093) Esta recuperaccedilatildeo que o Coro refere natildeo eacute fiacutesica mas

psicoloacutegica isto eacute natildeo estaacute relacionada com a uirtus animosa a que o Coro alude na

Ode I (v 201) antes remete para a capacidade de agir virtuosamente

Contudo no verso seguinte o Coro muda por completo de opiniatildeo (a mudanccedila eacute

marcada pela conjunccedilatildeo coordenativa disjuntiva uel)

uel sit potius mens uesano concita motu error caecus qua coepit eat solus te iam praestare potest furor insontem proxima puris sors est manibus nescire nefas

(vv 1094-1099)

O Coro considera que eacute preferiacutevel que o heroacutei desconheccedila a realidade

permanecendo assim na sua loucura e ignorando as consequecircncias do seu erro de

avaliaccedilatildeo (cf v 1065 rectam mentem) No ponto de vista de Shelton no que diz

respeito aos versos supracitados ldquoIts statement though true is not the statement of a

noble man because it completely avoids the difficult question of guilt and responsibility

Its suggestion here emphasizes by contrast Herculesrsquo later determination to accept guilt

and punishmentrdquo127

E os versos finais na apoacutestrofe aos cadaacuteveres das crianccedilas que Heacutercules

chacinou satildeo a derradeira criacutetica ao heroacutei que desperdiccedilou parte da sua vida a combater

contra monstros quando ele proacuteprio revelou ser um monstro ao abrir aos filhos e agrave

mulher o caminho para os Infernos local de onde tinha acabado de sair com os despojos

de guerra

Esse movimento de regresso cumprido por inocentes e natildeo por Heacutercules mas

por este aberto agrave proacutepria famiacutelia estaacute significativamente sugerido no v 1136 que

formalmente ldquoenvolverdquo o caminho luacutegubre que os pueri tecircm de percorrer como que

num abraccedilo letal na alusatildeo aos trabalhos de Heacutercules (v 1136 noti per iter triste

laboris) este foi de facto o seu uacuteltimo e traacutegico trabalho

126 Veja-se a longa enumeraccedilatildeo de epiacutetetos que caracterizam o Sono (vv 1066-1077) que estatildeo entre o sujeito (tu[que] ndash v 1066) e o predicado (preme ndash imperativo presente) 127 Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 48

82

Em siacutentese poucas semelhanccedilas haacute entre o Coro da peccedila de Euriacutepides e o do

Hercules Furens de Seacuteneca Enquanto o primeiro elogia Heacuteracles (antes da cena da

loucura) e comunica com as personagens no decorrer da acccedilatildeo dramaacutetica o Coro de

Seacuteneca natildeo apoia Heacutercules e toma uma posiccedilatildeo criacutetica relativamente ao

desenvolvimento da acccedilatildeo No Hercules Furens o Coro comenta faz reflectir propotildee

linhas de anaacutelise das circunstacircncias e do protagonista bem como da condiccedilatildeo humana

em geral sob um ponto de vista que eacute essencialmente o da doutrina estoacuteica Como

explica Shelton ldquoThe choral odes help to establish the theme of the play not through the

development of imagery but through expansion on a moral or philosophical issuerdquo128

A forma como cada um dos tragedioacutegrafos trabalha o Coro eacute completamente

diferente Em Euriacutepides os anciatildeos reagem desfavoravelmente agrave fragilidade que a sua

situaccedilatildeo lhes provoca sentem que natildeo satildeo mais do que palavras (v 112) movimentam-

se com dificuldade necessitando de se apoiarem uns nos outros (vv 124-126) a sua

debilidade natildeo lhes permite ajudar a famiacutelia heraclida (vv 312-314) Por oposiccedilatildeo

elogiam a juventude sinoacutenimo de vigor e de prosperidade considerando-a a mais

valiosa de todas as riquezas (vv 637 ss) Segundo Chalk ldquoThe aged weakness of the

Chorus is the antithesis of strenght and strength is embodied above all in Herakles for

whom it becomes also lsquothe source of his calamityrsquo The relevance of the choral odes is

to be found in their handling of these themes especially that of Heraklesrsquo strengthrdquo129

Em Seacuteneca o Coro entende que a velhice eacute uma recompensa pela forma como

soube aproveitar a sua vida porque se traduziu num humilique loco (v 199) e numa

sordida fortuna paruae domus (v 200) Tambeacutem em Ad Lucilium Epistulae Morales

Seacuteneca recorda que a vida do homem eacute preciosa quando vivida em plenitude natildeo

importa a durabilidade da vida mas sim a qualidade130

No que diz respeito agrave funccedilatildeo do Coro na trageacutedia Hercules Furens podemos

afirmar que natildeo estaacute desvinculada da acccedilatildeo A posiccedilatildeo criacutetica que assume ao

caracterizar o protagonista aproxima-o das demais personagens da trageacutedia Ao

socorrer-se de exemplos miacuteticos (por exemplo a descida de Orfeu ao mundo

subterracircneo para resgatar Euriacutedice ndash vv 569-589) o Coro prenuncia o destino fatal de

Heacutercules situa ldquoo comportamento das principais personagens das peccedilas numa tradiccedilatildeo

128 Idem Ibidem 42 129 H H O Chalk ldquoἀρετή and βία in Euripidesrsquo Heraclesrdquo Journal Hellenic Studies 82 (1962) 8 130 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 93 2 ss

83

criminosa familiar e [fornece] indiacutecios sobre o tipo de nefas que seraacute cometidordquo como

refere Paulo Ferreira131

Discordamos assim da posiccedilatildeo de Mendell quando diz The odes in the Senecan plays have not a natural and necessary function but are used almost exclusively to mark divisions between acts They are not either choral or truly lyric in quality but use lyric meters and would probably have been designated as such if a Roman critic had tried to classify them They develop the themes of current popular wisdom dressing it up with a considerable amount of learning They are rather an accessory to the play than an integral part of it132

Na verdade o Coro anuncia a entrada das personagens em cena como eacute

exemplo a Ode I descrevendo fiacutesica e psicologicamente a forma como Meacutegara os seus

filhos e Anfitriatildeo entram (vv 202-204) daacute indiacutecios daquilo que iraacute acontecer num

futuro breve (Ode I II III) ldquofixa o tempo dramaacutetico (Her F I) e constitui um

intermezzo para superar um intervalo de tempo (Her F II e III)rdquo133 observa e critica as

acccedilotildees das personagens (vv 1032-1034 censura a atitude de Anfitriatildeo que incentiva

Heacutercules a imolaacute-lo como mais uma viacutetima de sacrifiacutecio aos deuses) descreve a figura

do heroacutei enquanto dormia fatigado pela suacutebita demecircncia que o atacou (vv 1053-1137)

delineando o seu estado psicoloacutegico e dando provas de que a perturbaccedilatildeo mental ainda

natildeo abandonou o protagonista

6 Divindades

a) caracterizaccedilatildeo de Iacuteris e Lissa

na trageacutedia de Euriacutepides

Iacuteris e Lissa aparecem no IV Episoacutedio (vv 822-874) Este foi considerado como

um segundo Proacutelogo pela forma como estaacute construiacuteda a ῥῆσις de Iacuteris134 O aparecimento

131 Paulo Seacutergio Margarido Ferreira Seacuteneca em Cena Enquadramento na Tradiccedilatildeo Dramaacutetica Greco--Latina (Coimbra diss de Doutoramento em Letras aacuterea de Estudos Claacutessicos especialidade de Literatura Latina apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 2006) 262 132 Clarence W Mendell Our Seneca (sl Archon Books 1968) 138 133 Paulo Seacutergio Margarido Ferreira Seacuteneca em Cena Enquadramento na Tradiccedilatildeo Dramaacutetica Greco-Latina 266 134 Bond 281 admite que os vv 822-874 se assemelham a um segundo proacutelogo apesar de na sua extensatildeo ser mais pequeno do que um normal monoacutelogo inicial Tambeacutem Shirley 160 sugere o mesmo

84

das deusas vem na sequecircncia do canto do Coro em honra dos deuses por castigarem os

iacutempios e auxiliarem os suplicantes e em louvor de Heacuteracles por ter vindo como

restaurador do poder e por ter provado ser filho de Zeus O contraste entre o juacutebilo do

Coro no terceiro estaacutesimo e o efeito que a entrada de Iacuteris e Lissa tem sobre ele eacute

profundo O Coro fica aterrorizado pois ao ver as deusas aproximarem-se do palaacutecio

antevecirc novas desgraccedilas que se abateratildeo sobre todos (vv 815-821)

Iacuteris acalma o Coro e apresentando-se como mensageira dos deuses e a Lissa

como a filha da Noite revela-lhes a razatildeo que a levou a Tebas enlouquecer Heacuteracles

Os verdadeiros motivos que teratildeo levado Hera a querer enlouquecer o heroacutei natildeo satildeo

abertamente revelados Iacuteris alude vagamente ao oacutedio de Hera acrescentando que o

Alcida deve ser punido para que o valor dos deuses seja mantido ἢ θεοὶ microὲν οὐδαμοῦ

τὰ θνητὰ δ᾿ ἔσται μεγάλα μὴ δόντος δίκην (vv 841-842)135 Informa apenas que

enquanto decorriam os trabalhos do Alcida ele estava protegido pelo destino136

Os motivos que justificam essa vontade de castigaacute-lo poderatildeo ter que ver com a

forma violenta como Heacuteracles resolve as situaccedilotildees137 o ter descido ao Hades e ter tirado

de laacute Ceacuterbero ou ainda porque eacute considerado pelas personagens dramaacuteticas (por

Anfitriatildeo por Meacutegara e pelo Coro) um heroacutei de grande valor e forte ou entatildeo por ser

filho de Zeus138 Para Bond ldquothe conclusion of Irisrsquo speech has been taken to imply

that Heracles must be punished not merely for bastardy but simply for being so

greatrdquo139 Barlow pelo contraacuterio comenta

In spite of the phrase microὴ δόντος δίκην ldquounless he pays the penaltyrdquo at 842 it is impossible to see that Heracles has done anything to deserve

ldquoThe scene has some of the features of a second prologue with its clarity its introduction of a speaker who is a god and its position in begining a new actionrdquo 135 lsquoEacute que os deuses natildeo existem e a raccedila dos mortais seraacute todo poderosa se natildeo houver expiaccedilatildeo das culpasrsquo 136 Esta ideia liga-se agrave de Anfitriatildeo (vv 18-21) καὶ πάτραν οἰκεῖν θέλων καθόδου δίδωσι μισθὸν Εὐρυσθεῖ microέγαν ἐξημερῶσαι γαῖαν εἴθrsquo Ἥρας ὕπο κέντροις δαμασθεὶς εἴτε τοῦ χρεὼν μέτα (lsquoTentando solucionar os meus infortuacutenios e desejando libertar a famiacutelia do exiacutelio oferece-se a Euristeu para purificar a terra dos seus monstros preccedilo alto que paga pelo nosso regresso subjugado pelos aguilhotildees de Hera ou pelo terriacutevel destinorsquo) Note-se que natildeo eacute constante ao longo da trageacutedia a atribuiccedilatildeo da autoria dos trabalhos Se no Proacutelogo Anfitriatildeo remete para Hera ou para o destino neste episoacutedio eacute dito que foi o destino e no uacuteltimo episoacutedio as personagens apontam Hera como forccedila responsaacutevel 137 Quando Meacutegara explica a Heacuteracles a razatildeo que levou Lico a querer matar a famiacutelia do heroacutei este propotildee mataacute-lo e lanccedilar a cabeccedila do tirano aos catildees Aleacutem disso ao saber tambeacutem pela mulher que natildeo tiveram qualquer ajuda por parte dos habitantes de Tebas decide castigar todos os que natildeo auxiliaram a sua famiacutelia Estes satildeo exemplos que demonstram que o caraacutecter de Heacuteracles tende a ser violento 138 O Coro (vv 696-700 vv 798-814) engrandece as faccedilanhas do heroacutei que desceu ao Hades mas regressou para restaurar a ordem e o reino e o seu duplo nascimento de Anfitriatildeo e Zeus 139 Bond xxv-xxvi

85

a punishment except that he is who he is ndash an enemy just by his existence to Hera His killing of Lycus for example was in defence of his closest family There is no evidence in the text to suggest overweening arrogance on this part or any kinf of hubris which might bring down Herarsquos wrath with more reason It is rather her excessive irrational action which is intended to disturb () On the extreme reluctance of Lyssa to perform her task (846 854 858) () Her attitude stresses that Heracles is an innocent victim rather than a wrongdoer to be avenged and he is left after the murders to deal with the chaos of his own mind as best he may140

Concordamos em boa parte com Barlow julgamos contudo que natildeo deve ser

desprezada a forma impetuosa como Heacuteracles age tanto a morte de Lico como a da

famiacutelia do heroacutei denotam um caraacutecter que eacute facilmente possuiacutedo pela violecircncia Se no

primeiro caso o Alcida procede a um castigo ndash o acto feroz eacute justificado pela

necessidade de proteger a famiacutelia e de repor a ordem (Lico eacute um tirano) ndash no segundo

ele age sob o domiacutenio da loucura A crueldade eacute poreacutem a mesma Parece-nos que o

Alcida oscila entre a ἀρετή e a βία

Ora Lissa natildeo partilha dos desiacutegnios das deusas (vv 847-854) Contesta e

procura demovecirc-las do que planeiam Faacute-lo porque as qualidades do heroacutei o tornaram

conhecido ateacute no mundo inferior Argumentando enumera alguns dos seus feitos

a) pacificou a terra inacessiacutevel e os mares (v 851)

b) tornou os homens mais tementes restaurando a honra aos deuses (vv 852-

853)

Sem conseguir fazer valer o seu ponto de vista Lissa dispotildee-se a cometer o acto

que reprova por ser obrigada pelas deusas Bond comenta ldquoThis scene has obvious

similarities with the prologue of Prometheus the contrast between the vindictive Kratos

and Hephaestus the reluctant instrument of punishment is repeated in the contrast

between Iris and Lyssa and Prometheus like Heracles is a benefactor of mankindrdquo141

No entanto Hefesto reconhece o erro de Prometeu sendo castigado por isso Jaacute Lissa

natildeo vecirc qualquer culpa em Heacuteracles

Barlow procura ver nas manifestaccedilotildees das trecircs divindades (Iacuteris ndash Hera Lissa)

uma explicaccedilatildeo ldquoThat Lyssa the representative of wild and irrational forces should

herself appear as sober and moderate (857) but yet be overcome by Herarsquos will serves

140 Barlow 160 141 Bond 281

86

to underline the inexorable power and wanton destructiveness of Herarsquos nature and the

complete innocence in contrast of Heracles himselfrdquo142

b) caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Seacuteneca Juno

Juno eacute a primeira personagem a ser apresentada em cena e a uacutenica do Acto I (vv

1-124) O aparecimento desta divindade no iniacutecio da peccedila permite estabelecer de

imediato um contraste entre a trageacutedia de Seacuteneca e a de Euriacutepides Na peccedila grega

Anfitriatildeo e Meacutegara surgem no Proacutelogo e Iacuteris entra em cena como mensageira de Hera

(esta deusa natildeo interveacutem uma uacutenica vez mas eacute constantemente aludida143) No entanto

haacute alguns pontos em comum em ambas as trageacutedias as deusas celestes Iacuteris e Juno

procuram enlouquecer o Alcida e precisam de um elemento do mundo inferior para

conseguir concretizar o que ambicionam Aparecem uma uacutenica vez no iniacutecio da acccedilatildeo

(no caso de Seacuteneca) ou no lsquosegundo proacutelogorsquo144 Divergem todavia na forma como

cada um dos autores explora a funccedilatildeo das personagens

A funccedilatildeo de Juno no Acto I natildeo eacute a de apresentar a peccedila resumindo a trama

como acontece em algumas trageacutedias de Euriacutepides por exemplo Afrodite no Hipollytus

ou Hermes no Ion145 Seacuteneca pretende exemplificar as manifestaccedilotildees psicoloacutegicas dos

estados passionais que dominam as personagens levando-as a uma espiral incontrolaacutevel

de erros e crimes Isto permite a Seacuteneca segundo Fitch ldquoto create a portrait of violent

uncontrolled emotion and the atmosphere of horror and suspense that naturally

accompanies itrdquo146 Juno eacute mais um exemplum daquilo a que um animus iratus pode

conduzir

Para definir a personagem pois Seacuteneca dota-a de um caraacutecter uitiosus

dominado pelas paixotildees que vai sendo revelado ao longo do seu discurso A fala de

Juno pode ser dividida em trecircs partes que representam o reconhecimento daquilo que

verdadeiramente a perturba (vv 1-18) a procura de uma forma de destruir a pessoa que

a transtorna (vv 19-63a) e a descoberta de um meio de aniquilar essa personagem (vv

63b-124) Esta evoluccedilatildeo traduz-se num crescendo do furor da deusa que atinge a ἀκμή

na terceira parte

142 Barlow 8 143 Vide v 20 v 829 v 831 v 840 v 848 v 855 v 859 v 1127 v 1189 v 1253 v 1264 vv 1307-1309 v 1393 144 Vide aliacutenea 5 subaliacutenea a) 145 Nestas peccedilas os deuses contextualizam a acccedilatildeo e apresentam o tema 146 Fitch 116

87

No primeiro momento (vv 1-18) Juno apresenta-se por meio de uma periacutefrase

Soror Tonantis (v 1) Estas palavras iniciais servem de mote para a deusa expor as

causas do ressentimento (o saeuus dolor que ela proacutepria identifica no v 28) que sente

devido agraves inuacutemeras infidelidades de Juacutepiter e do papel a que ele a reduziu de esposa e

deusa suprema ele remeteu-a ao lugar de irmatilde (vv 1-2 hoc enim solum mihi nomen

relictum est) A palavra Soror no iniacutecio do primeiro verso marca o seu regresso a um

estatuto menor anterior agravequele de que gozou enquanto uxor do Tonante Aleacutem disso a

sua condiccedilatildeo eacute de uidua (v 3 lsquoaquela que tem o marido ausentersquo que estaacute privada do

marido) uma vez que Juacutepiter tornou-se no lsquomaridorsquo sempre alheio (v 2 semper

alienum Iouem) Juno demarca a desconsideraccedilatildeo que a atinge pelo facto de ter sido

obrigada (v 4 pulsa) a abandonar (v 3 deserui) o seu reino celeste e o palaacutecio dos

deuses (vv 3-4 templa summi aetheris locumque caelo) para ceder o seu lugar agraves

paelices (v 5) de Juacutepiter A deusa foi expulsa do ceacuteu ficando confinada agrave terra (v 5

tellus colenda est) enquanto as amantes do deus ocupavam o seu lugar (v 5 caelum

tenent) ndash a antiacutetese terra vs ceacuteu acentuada pelas formas verbais pulsa e colenda est

pelo quiasmo (vv 4-5 caelo paelicibus ndash paelices caelum) datildeo a imagem de uma

deusa derrotada e ressentida

Juno enumera entatildeo (vv 6-18) algumas das paelices de Juacutepiter que foram

transformadas em constelaccedilotildees juntamente com os filhos dessas relaccedilotildees aduacutelteras (v

12 Oriacuteon v 13 Perseu por exemplo) Esse catasterismo eacute visto pois na perspectiva

de Juno como motivo suficiente para as suas maacutegoas passadas (v 19 Sed uetera

querimur) A deusa reconhece que haacute agravos maiores por meio de uma gradaccedilatildeo

ascendente de motivos de queixa Juno concentra-se num uacutenico local Tebas a cidade de

onde vieram mais amantes (vv 19-21) A referecircncia a este espaccedilo daacute-lhe a oportunidade

de ir ao ponto que lhe interessa focar ndash passando para a segunda parte do seu

soliloacutequio147 (vv 19-63a) ndash Alcmena (vv 21-22) a mulher amada de Juacutepiter e o fruto

desse amor Heacutercules (vv 22-26) que sempre superou (cf v 33 superat) os obstaacuteculos

e provaccedilotildees com que Juno pensou destruiacute-lo (vv 27-42)

147 Segundo Fitch (1) 115 a fala de Juno natildeo eacute proferida num monoacutelogo mas num soliloacutequio Comprova este entendimento o facto de ela natildeo se dirigir ao auditoacuterio para explicar o que vai fazer Eacute agrave medida que ela vai cogitando uma forma de se poder vingar que ficamos a conhecer os seus planos como por exemplo quando ela diz natildeo querer dar um uacutenico momento de paz e procura algum meio de derrotar o heroacutei (vv 30-32) Observe-se que soacute reconhecemos que eacute Juno quem estaacute a falar pela forma como se apresenta nos primeiros versos Soror Tonantis ndash hoc enim solum mihi nomen relictum est (vv 1-2) ao contraacuterio do que acontece em Euriacutepides na peccedila homoacutenima Anfitriatildeo identifica-se logo nos dois primeiros versos Τίς τὸ Διὸς σύλλεκτρον οὐκ οἶδεν βροτῶν ᾿Αργεῖον ᾿Αμφιτρύων [lsquoQuem de entre os mortais natildeo conhece aquele que partilhou o leito com Zeus o argivo Anfitriatildeorsquo]

88

Eacute a evocaccedilatildeo deste episoacutedio de infidelidade que mais lhe custa a suportar que

suscita a diferenccedila radical da linguagem que usa dominada pelas paixotildees os termos

satildeo mais violentos revelando um caraacutecter ferus assim que comeccedila a falar de Heacutercules

Juno manifesta o seu oacutedio pelo heroacutei reconhecendo em si um uiolentus animus (v 28)

Consciente do seu estado afectivo a deusa natildeo pretende apaziguaacute-lo non sic abibunt

odia (v 27) antes procura um meio de prejudicar Heacutercules aeterna bella pace sublata

geret (v 29) ndash a estrutura quiaacutestica reforccedilada pela antiacutetese e o emprego do futuro

imperfeito em geret traduzem a intenccedilatildeo de subverter toda a ordem criando uma

situaccedilatildeo que de favoraacutevel para Heacutercules se torne em adversidade pura e constante

Em trecircs versos (vv 27-29) Seacuteneca reuniu concentrando-os um conjunto de

vocaacutebulos especiacuteficos que designam as paixotildees enquanto perturbaccedilotildees da alma Juno eacute

movida por odia (v 27) pela ira (cf v 28) pelo dolor (v 28) Os proacuteprios adjectivos

que qualificam os substantivos que denominam as passiones estatildeo carregados de

significado uiuaces (v 28) aponta para um uitium entranhado arreigado perene

impossiacutevel de dominar uiolentus (v 28) vem de uis que significa em primeiro lugar a

forccedila que se exerce contra algueacutem saeuus (v 28) aproxima a atitude de Juno da

crueldade que eacute proacutepria dos animais selvagens

Do seu estado de ira (v 35) passa a temor (v 61) quando vecirc que Heacutercules

venceu o mundo inferior A anaacutefora (v 50 uidi) realccedilada pela assonacircncia em e (v 48

effregit ecce limen inferni) pela aliteraccedilatildeo (v 51 Dite domito) e pela antiacutetese (v 48

inferni v 49 superos) concorre para acentuar a ousadia e o scelus de Heacutercules ele

quebrou as barreiras existentes entre os dois mundos ao trazer das sombras Ceacuterbero e

derrotou o soberano do mundo subterracircneo (vv 51-52)

A alusatildeo aos Infernos eacute um toacutepico recorrente natildeo soacute nesta trageacutedia como

tambeacutem na homoacutenima de Euriacutepides No tragedioacutegrafo grego a referecircncia ao Hades estaacute

relacionada com a ausecircncia do protagonista A maior parte das personagens natildeo acredita

que o heroacutei consiga regressar das moradas subterracircneas apenas a Anfitriatildeo resta uma

esperanccedila de que o filho regressaraacute (v 97) Em Seacuteneca este tema estaacute mais presente e

mereceu uma reflexatildeo mais ampla do que na trageacutedia homoacutenima148 Os motivos filiam-

-se na perspectiva estoacuteica que se pretende veicular149

148 Em Seacuteneca por exemplo Teseu descreve os Infernos (vv 662-806) e o Coro (vv 835-863) enumera o geacutenero de turba que desce agrave mansatildeo das sombras Em Euriacutepides parece natildeo haver um grande interesse em descrever as moradas de Hades De facto estas satildeo apenas referidas (vv 607-621) e Heacuteracles limita-se a contar a Anfitriatildeo que teve de lutar contra Ceacuterbero (v 613) e que libertou Teseu dos Infernos (v 619) 149 Vide aliacutenea 4 subaliacutenea b)

89

No caso de Juno o espaccedilo infernal provoca-lhe dois sentimentos contraditoacuterios

pavor e juacutebilo Pavor por ter enviado Heacutercules na complexa missatildeo de trazer Ceacuterbero da

mansatildeo de Plutatildeo e ele ter concluiacutedo a tarefa bem como pelo regresso do heroacutei do

mundo infernal que resultou na quebra das barreiras que existiam entre o mundo

subterracircneo e o terrestre pavor tambeacutem por ele ter derrotado o deus dos Infernos

Causa-lhe juacutebilo por ser nesse mesmo local que encontraraacute o δαίμων perfeito que

transtornaraacute Heacutercules e serviraacute a sua vinganccedila

Uma vez que este lugar foi subjugado Heacutercules pode querer vencer o celeste e

destronar o proacuteprio pai Juacutepiter (cf vv 64-65 regna summa sceptra) Isto eacute o que a

deusa afirma temer e o verso 63 permite transitar para a terceira parte do seu discurso

Satildeo visiacuteveis entre a segunda e terceira partes (correspondentes agraves etapas do pensamento

de Juno) algumas semelhanccedilas sed uetera querimur (v 19) vs leuia sed nimium queror

(v 63) Em termos sintaacutecticos satildeo adversativas (sed) o verbo usado eacute o mesmo

(queror) estaacute no mesmo tempo (presente) e modo (indicativo) Isto ilustra o facto de

Juno sentir os agravos como reais e presentes (a mudanccedila de nuacutemero plural singular eacute

irrelevante dado serem ambas formas de primeira pessoa) Os adjectivos uetera e

depois leuia satildeo significativos no sentido em que revelam a progressatildeo do raciociacutenio

da deusa e a intensificaccedilatildeo das suas emoccedilotildees primeiro falou de coisas passadas depois

de coisas que natildeo tecircm tanta importacircncia em relaccedilatildeo ao que vai evocar em seguida

(aquilo que ela vai conceber e decidir)

No entanto como nota Fitch as acusaccedilotildees que Juno faz relativamente agraves acccedilotildees

de Heacutercules satildeo de teor fraacutegil uma vez que ela proacutepria o perseguiu desde a infacircncia sem

qualquer piedade Aleacutem disso foi ela quem lhe deu a ordem de descer ao mundo

subterracircneo O heroacutei limitou-se a cumprir as ordens da deusa ldquoHer allegations appear to

be a trumped-up excuse for continuing or rather intensifying her persecution of the

herordquo150 Juno assume ser a nouerca (v 21 v 112) a figura da madrasta que persegue

com hostilidade o fruto da relaccedilatildeo aduacuteltera Heacutercules Segundo Antonella Borgo

ldquoQuella della nouerca egrave dunque una figura sempre negativa mossa comrsquoegrave naturale da

rancore e da animositagrave nei confronti dei nuovi figli del compagno pronta a macchiarsi

dei piugrave gravi crimini pur di colpirlirdquo151

Na terceira parte (vv 63b-124) Juno evoca uma vez mais a ira (v 75 perge

ira perge et magna meditatem opprime) agora em forma intensificada ndash a iteraccedilatildeo do 150 Fitch (1) 21 151 Antonella Borgo Lessico Parentale in Seneca Tragico (Napoles Loffredo Editore 1993) 73

90

imperativo (perge) a apoacutestrofe a aliteraccedilatildeo em oclusiva nasal bilabial acentuam esse

affectus Aleacutem desta apoacutestrofe contam-se no discurso da deusa mais trecircs

Na segunda apoacutestrofe Juno dirige-se a Heacutercules (vv 89-91) ameaccedilando

mostrar-lhe o mundo infernal

i nunc superbe caelitum sedes pete humana temne Iam Styga et manes feros fugisse credis Hic tibi ostendam inferos reuocabo in alta conditam caligine ultra nocentum exilia discordem deam quam munit ingens montis oppositi latus educam et imo Ditis e regno extraham quidquid relictum est ueniet inuisum Scelus suumque labens sanguinem Impietas ferox Errorque et in se semper armatus Furor ndash Hoc hoc ministro noster utatur dolor

(vv 90-99)

Os imperativos (v 90 i pete v 91 temne) em apoacutestrofe ao heroacutei ausente ndash a

deusa qualifica Heacutercules como superbus (v 90) por ousar praticar acccedilotildees que vatildeo aleacutem

do que eacute permitido ao comum dos mortais (cf vv 90-91) ndash demonstram o rancor de

Juno A aliteraccedilatildeo feros fugisse (vv 91-92) a antiacutetese ceacuteu (v 90 caelitum) versus

inferno (vv 91-92 Styga manes feros inferos) e a pergunta retoacuterica avivam o seu

oacutedio e conduzem-na a encontrar o tipo de bella (v 85) que procura seraacute precisamente

para os inferi (v 93) ndash o adveacuterbio de lugar (v 93 hic) delimita o espaccedilo ndash que ela

proacutepria conduziraacute o acircnimo do Alcida Juno estaacute decidida sabe o que fazer e para onde

se dirigir Manda e comanda O futuro imperfeito (v 91 ostendam v 93 reuocabo v

95 educam extraham v 96 ueniet) e as aliteraccedilotildees (v 92 conditam caligine v 93

discordem deam) condensam o resultado esperado e que ela sabe que iraacute conseguir

Heacutercules enlouqueceraacute Seraacute precisamente do Furor e do Error152 que Heacutercules

chegaraacute ao Scelus e agrave Impietas Os adjectivos que qualificam estes affectus satildeo

simboacutelicos inuisum (v 96) remete para o tipo de crime que o protagonista vai cometer

(filiciacutedio e uxoriciacutedio) ferox da mesma raiz que ferus aponta para um affectus ousado

violento cruel que aproxima a acccedilatildeo de Heacutercules agrave de um animal selvagem o adjectivo

armatus a qualificar o furor indicia que esta passio impulsionaraacute o protagonista ao

crime e agrave impiedade Ele usaraacute para o efeito as suas proacuteprias armas

152 No momento da loucura Heacutercules julga que estaacute a matar os filhos de Lico e que estaacute a castigar Juno quando satildeo os seus filhos e esposa que estatildeo a ser assassinados

91

Tambeacutem as figuras de retoacuterica satildeo significativas nos vv 96-98 a assonacircncia de

nasais suumque lambens sanguinem Impietas a aliteraccedilatildeo Scelus suumque tudo

concorre para intensificar o efeito terriacutevel que tem como causa o seu ressentimento o

dolor que Juno manifesta no v 99

Na terceira apoacutestrofe Juno invoca as Fuacuterias (vv 100-109) identificando-as por

famulae Ditis (v 100) periacutefrase que as torna ainda mais terriacuteveis na sua esfera de acccedilatildeo

e de subordinaccedilatildeo Numa sucessatildeo de verbos de movimento na forma imperativa (v

100 incipite v 101 cuncite v 104 agite petite) e no conjuntivo exortativo (v 102

ducat v 103 corripiat) Juno reuacutene ao serviccedilo do seu dolor as forccedilas nefastas

ordenando-lhes e exortando-as a castigarem e vingarem o crime de Heacutercules E no v

110 a deusa inclui-se no grupo das terriacuteveis fuacuterias quando lhes chama sorores (v 110

me me sorores mente deiectam mea) A assonacircncia nasal reforccedilada pela aliteraccedilatildeo em

oclusiva nasal bilabial a iteraccedilatildeo do pronome pessoal me concorrem para acentuar o

desejo que a deusa tem de enlouquecer Iuno cur nondum furis (cf v 109) Nesta

terceira apoacutestrofe Juno dirige-se a si mesma (v 109) porque ainda natildeo sentiu a

pretendida transformaccedilatildeo em Fuacuteria (vv 109-112) Estas trecircs apoacutestrofes que vatildeo

variando de destinataacuterio traduzem as oscilaccedilotildees das emoccedilotildees de Juno demonstrando as

passiones a que ela estaacute submetida

Um outro aspecto a notar eacute a insistecircncia na palavra bella (v 29 v 30 v 85 v

123) no decorrer do soliloacutequio de Juno que estaacute intimamente vinculada com a evoluccedilatildeo

do raciociacutenio da deusa e contribui para acentuar o tom de suasoria que subjaz ao passo

Admitindo que o o oacutedio a ira e a dor natildeo lhe permitem deixar que Heacutercules tenha pax

Juno vai procurando alternativas para manter bella ad aeternum (cf v 29) Surge-lhe

entatildeo a pergunta Quae bella (v 30) Haacute que definir quais satildeo as guerras que Juno

poderaacute mover contra Heacutercules Depressa ela se apercebe da dificuldade em vencer o

Alcida ou pior ainda apercebe-se de que o heroacutei suberveteu a situaccedilatildeo atingindo-a a

ela proacutepria iraque nostra fruitur in laudes suas mea uertit odia (vv 34-35) Juno vai

analisando o que natildeo vale mais a pena fazer uma vez que tambeacutem jaacute lhe faltam recursos

(v 40 monstra iam desunt mihi) O seu raciociacutenio vai sendo encaminhado para um

ponto em que ela se apercebe de que os bella teratildeo de ser de uma espeacutecie inusitada (v

85 bella iam secum gerat) a guerra seraacute contra ele mesmo

Ao encontrar a soluccedilatildeo que se lhe afigura como a mais adequada e a mais

eficaz Juno passa a acccedilatildeo Mas se no v 109 ela diz pretender enlouquecer primeiro a

92

deusa faz agora um acerto no seu raciociacuteonio uota mutentur mea (v 112) Haacute uma

eficaz correcccedilatildeo no plano ateacute aiacute concebido Juno descobre-o num ponto do seu

raciociacutenio (v 114 inueni aspecto pontual de um perfeito do indicativo) A partir daqui

as relaccedilotildees de causa e efeito satildeo estabelecidas de forma mais linear me uicit et se

uincat et cupiat mori ab inferis reuersus (vv 116-117) O poliptoto aliado ao

conjuntivo optativo e ao homeoptoto acentua a clareza de raciociacutenio e demonstra que a

deusa ajustou a sua mira encontrando o ponto adequado e que serviraacute os seus

interesses hic prosit mihi (v 116) Tambeacutem por isso ela jaacute natildeo necessita de uma forccedila

infernal para a auxiliar ao contraacuterio de Hera e de Iacuteris que chamaram Lissa para instigar

em Heacuteracles a loucura Juno sozinha conduziraacute pela sua matildeo (v 119 librabo manu)

guiaraacute as flechas e os golpes de Heacutercules permanecendo ao lado dele na luta (vv 120-

121) Juno apenas lhe inspiraraacute o furor Depois de o crime estar concluiacutedo (v 121

scelere perfecto) nesse preciso momento Heacutercules poderaacute ascender aos astra promissa

(v 23) e Juacutepiter acolhecirc-lo (v 122 admittat illas genitor in caelum manus) A ironia

acentuada pela antonomaacutesia manifestam a crenccedila de Juno na impossibilidade de Juacutepiter

aceitar Heacutercules inter diuos Ela tem consciecircncia do acto que o Alcida vai realizar

Tomada a decisatildeo completado o raciociacutenio cumpre agora passar agrave acccedilatildeo (v

123 mouenda iam sunt bella) A perifraacutestica passiva traduz a necessidade de pocircr de

imediato e naquele preciso momento (iam) os bella que no seu entender a libertaratildeo do

seu ressentimento por Heacutercules e a compensaratildeo do seu despeito por ter sido preterida

por Juacutepiter e ultrapassada pelo heroacutei pela bravura com que sempre concluiu os seus

trabalhos

A forma como Juno constroacutei o seu raciociacuteno eacute semelhante ao de Medeia (na peccedila

que leva o seu nome) Ambas se sentem traiacutedas pelos maridos por isso satildeo movidas

pelo dolor o ressentimento pelo ciuacuteme pelo despeito e rancor Em ambos os casos as

personagens deixam-se dominar pelo furor esforccedilando-se por encontrar um meio de se

vingarem dos que as oprimem (Heacutercules no caso de Juno Jasatildeo no caso de Medeia)

Os discursos das duas personagens satildeo retoacutericos elas debatem consigo mesmas

os argumentos que as levam a encontrar uma soluccedilatildeo que julgam ser a mais indicada

(segundo a loacutegica pervertida que as domina) Nos dois casos elas pretendem que as suas

viacutetimas permaneccedilam vivas para mais sofrerem com o resultado (Med vv 19-20 Her

F vv 112-117) ndash ambos Heacutercules e Jasatildeo teratildeo de continuar vivos para verem os

mortos os que amam As duas peccedilas diferem poreacutem na forma como o scelus eacute

93

executado Em Medea seraacute a protagonista a cometer o crime no caso do Hercules

Furens Juno agiraacute usando o Alcida mas estaraacute ao lado dele

Em siacutentese ainda que nas trageacutedias de Euriacutepides e Seacuteneca sejam deusas as

forccedilas motoras da loucura do Alcida a forma como cada uma das peccedilas se vai

desonrolar ateacute agrave concretizaccedilatildeo dessa loucura eacute diacutespar Em Euriacutepides Heacuteracles comeccedila a

revelar os primeiros sinais de loucura ainda as deusas natildeo tinham abandonado o palaacutecio

Eacute Lissa quem vai descrevendo as primeiras manifestaccedilotildees fiacutesicas do heroacutei dando ao

espectador uma primeira imagem da demecircncia que atacaraacute o protagonista ndash imagem

essa que o Mensageiro desenvolveraacute narrando ao pormenor as transformaccedilotildees faciais

decorrentes da loucura e contando a forma como os Heraclidas morreram

Em Seacuteneca haacute dois planos que se conjugam Juno e Heacutercules A primeira

desencadeia a situaccedilatildeo da loucura como uma espeacutecie de agressatildeo exterior ndash como

acontece na vida humana quando o homem defronta as adversidades que lhe vatildeo

aparecendo Mas Heacutercules eacute jaacute de si excessivo e com tendecircncia agrave megalomania ndash numa

perspectiva estoacuteica ele natildeo consegue pocircr um travatildeo aos uitia que o caracterizam Nesse

sentido a loucura parece vir dele proacuteprio (estaacute enraizada no caraacutecter do Alcida na

uoluntas obsessiva na ausecircncia de ratio) O protagonista eacute por assim dizer um terreno

feacutertil para que a demecircncia imposta por Juno germine

Como Fitch menciona ldquoIn brief then Herculesrsquo madness has a psychological

origin While sane he is characterized by habitual aggression ambition and

megalomania in other words he is already close to insanity in his daily modus uitae At

this moment when he has reached the highest pitch of megalomania his mind topples

over into madnessrdquo153

153 Fitch 30

94

Capiacutetulo III

Heacuteracles e Heacutercules a (des)construccedilatildeo do heroacutei

1 Caracterizaccedilatildeo de Heacuteracles na trageacutedia de Euriacutepides

Para a caracterizaccedilatildeo de Heacuteracles em Euriacutepides satildeo vaacuterios os toacutepicos de anaacutelise

que contribuem para concatenar as quatro partes em que esta trageacutedia se pode dividir1

sendo assim elementos-chave para a compreensatildeo da trageacutedia em particular para a

identificaccedilatildeo do caraacutecter do heroacutei o toacutepico da dupla paternidade do Alcida que faz dele

um ldquoheroacutei-deusrdquo2 e um ldquoheroacutei-mortalrdquo o toacutepico da luz e das trevas o toacutepico da solidatildeo

e da amizade o toacutepico da individualidade e da colectividade Todos estes τόποι

aparecem interligados nas falas das personagens em especial os dois binoacutemios

individualidade vs colectividade e solidatildeo vs amizade

Em toda a peccedila de Euriacutepides parece expliacutecito o papel de Heacuteracles enquanto heroacutei

virtuoso e heroacutei filho de Zeus Esta funccedilatildeo manifesta-se pela forma como a personagem

actua no desenrolar da acccedilatildeo Ele assume a funccedilatildeo divina diriacuteamos de castigar todos os

que natildeo respeitam a justiccedila e incorrem na ὕβρις Deste modo natildeo eacute de estranhar que ele

mate Lico uma vez que este eacute o tiacutepico tirano sem controle No entanto a forma como eacute

delineado o seu caraacutecter por meio das suas acccedilotildees e das descriccedilotildees que as personagens

dele fazem levanta algumas reservas principalmente depois de ser enlouquecido pelas

deusas

A loucura de Heacuteracles que eacute narrada pelo Mensageiro seraacute analisada neste

capiacutetulo O motivo que nos levou a inserir este tema nesta parte da dissertaccedilatildeo foi

principalmente o poder dar uma imagem completa do protagonista no momento antes e

no momento depois da demecircncia provocada pelas deusas visto que eacute a partir desta que

o Alcida se torna mais humano eacute tambeacutem na sequecircncia da loucura e do acto criminoso

que se percebe a ambivalecircncia do heroacutei isto eacute a virtude vs violecircncia de que o

protagonista usa para destruir os seus ldquoinimigosrdquo

1 Vide Capiacutetulo I aliacutenea 11 (data e estrutura da trageacutedia) 2 Como diria Piacutendaro Nemean 322 Heacuteracles eacute o ἥρως θέος

95

11 Imortalidade e Mortalidade a ambivalecircncia do heroacutei

Este tema eacute apresentado no Proacutelogo Heacuteracles eacute filho de Zeus e de Anfitriatildeo

Apesar de a origem do nascimento de Heacuteracles ser do conhecimento de todos a

indicaccedilatildeo da dupla proveniecircncia do heroacutei logo nos trecircs primeiros versos da trageacutedia natildeo

eacute inocente no sentido em que natildeo eacute uma mera contextualizaccedilatildeo ou apresentaccedilatildeo do

tema da acccedilatildeo dramaacutetica Pelo contraacuterio constitui um traccedilo especiacutefico da sua

personalidade3

Haacute ao longo da acccedilatildeo dramaacutetica um contraste notoacuterio entre imortalidade e

mortalidade entre a divinizaccedilatildeo e a humanizaccedilatildeo do protagonista Esta ambivalecircncia do

heroacutei tem um lugar proeminente na trageacutedia assumindo contornos cada vez mais

definidos agrave medida que se aproxima da cena final

Assim dos versos 1 a 821 Heacuteracles eacute caracterizado pelas outras personagens4

como um guerreiro de insigne valor e filho de Zeus Apenas Lico contesta a heroicidade

e a paternidade do Alcida baseando-se em trecircs argumentos uma divindade nunca teria

relaccedilotildees com um humano (v 149)5 duvida da forccedila pujante de Heacuteracles assim como

natildeo o considera heroacutei porque combate contra animais ferozes com ajuda de armadilhas

(vv 150-155) natildeo eacute um verdadeiro guerreiro porque usa como meio de defesa um arco

e natildeo uma espada e um escudo6

As restantes personagens ao contraacuterio de Lico louvam o caraacutecter do heroacutei

Anfitriatildeo recorda no ἀγών contra Lico que Heacuteracles foi aliado dos deuses quando estes

lutaram contra os gigantes

Διὸς κεραυνὸν ἠρόμην τέθριππά τε ἐν οἷς βεβηκὼς τοῖσι γῆς βλαστήμασιν Γίγασι πλευροῖς πτήν᾿ ἐναρμόσας βέλη τὸν καλλίνικον μετὰ θεῶν ἐκώμασεν∙7

(vv 177-180)

3 Esta dupla natureza de Heacuteracles levou alguns criacuteticos a considerarem complexo o estudo da personagem enquanto protagonista de uma trageacutedia Para Silk ldquoHeracles and Greek Tragedyrdquo Greece and Rome 32 n1 (1985) 1-22 os problemas maiores que se colocam quando se analisa o comportamento do heroacutei satildeo a natureza heroacuteica-divina e o facto de Heacuteracles ser um heroacutei particularmente solitaacuterio Heacuteracles natildeo tem um lugar entre a sociedade humana ou divina mas vive agrave margem de ambas 4 Apesar de Heacuteracles entrar em cena somente a partir do v 523 eacute constantemente evocado pelas outras personagens 5 Tal perspectiva volta a ser posta em causa no uacuteltimo episoacutedio por Heacuteracles 6 Estes uacuteltimos dois pontos voltaratildeo a ser referidos quando analisarmos o toacutepico individualidade e colectividade 7 lsquoComeccedilarei por interrogar o raio e a quadriga de Zeus da qual enviou as setas aladas que se cravaram nos flancos dos Gigantes nascidos da terra glorioso triunfo que celebrou com os deusesrsquo

96

As aliteraccedilotildees (v 177 τέθριππά τε v 179 πλευροῖς πτήν᾿) e o homeoptoto

concorrem para engrandecer o louvor do Coro pelo regresso e a proveniecircncia divina do

heroacutei (vv 696-697) que proporcionou aos mortais uma vida mais tranquila com a

destruiccedilatildeo dos monstros que povoavam a terra (vv 699-700)

Nos vv 821 ss daacute-se a transiccedilatildeo de Heacuteracles referido enquanto heroacutei divino

para uma humanizaccedilatildeo completa da sua personagem O filho de Zeus inicialmente

exaltado passa no epiacutelogo a um mero mortal filho de pais mortais A queda do heroacutei

com a morte dos filhos e da esposa foi dupla fiacutesica e psicoloacutegica No aspecto fiacutesico

verifica-se uma dupla destruiccedilatildeo a ruiacutena do palaacutecio com a queda do telhado e o

desmaio de Heacuteracles provocado por Atena

Sob o ponto de vista psicoloacutegico Heacuteracles eacute enlouquecido pelas divindades

comete os crimes hediondos inconscientemente e quase natildeo consegue recuperar do

desvario de tal modo que precisa do auxiacutelio de Teseu para se levantar O esgotamento

do heroacutei eacute completo8

Quando recupera a razatildeo e toma conhecimento do seu crime o Alcida renega a

paternidade divina Para ele o seu verdadeiro e assumido pai eacute Anfitriatildeo A trageacutedia

termina com o decliacutenio total do heroacutei O uacutenico modo de derrotaacute-lo foi atraveacutes da

loucura Teseu condena o sofrimento exacerbado de Heacuteracles comparando-o a uma

mulher que chora e se lamenta copiosamente pela sua ruiacutena (vv 1412-1417)

No uacuteltimo momento quando Heacuteracles decide abandonar Tebas precisa de ajuda

para se levantar tal a dimensatildeo da sua derrota Como sugere Barlow ldquoThe end of the

play shows a transformation not the glorious invincible hero but a vulnerable human

being struck down by madness This is a disgraced and humiliated Heracles who is

broken and dependentrdquo9

12 Luz e Trevas

A trageacutedia desenrola-se sob a antinomia trevasluz No iniacutecio da trageacutedia

momento mais lento10 o ambiente que envolve as personagens eacute de trevas a famiacutelia de

8 Como veremos em pormenor quando analisarmos as manifestaccedilotildees da loucura 9 Barlow xiv 10 Tanto o iniacutecio como o final da trageacutedia satildeo momentos de grande densidade psicoloacutegica que se traduz numa lenta progressatildeo da acccedilatildeo Anfitriatildeo e Meacutegara esperam suplicantes ou pela morte inevitaacutevel ou pela salvaccedilatildeo O regresso de Heacuteracles permite acelerar o ritmo da acccedilatildeo e haacute uma raacutepida sucessatildeo de

97

Heacuteracles foi condenada agrave morte No proacutelogo no primeiro episoacutedio e no iniacutecio do

segundo as personagens vivem numa atmosfera de agonia entre a esperanccedila e a

descrenccedila total no regresso do heroacutei Hades11 eacute constantemente evocado como o lugar

que reteacutem o filho de Zeus Eacute de facto do Hades que Heacuteracles sai em direcccedilatildeo a Tebas

para chegar agrave cidade de Creonte no momento exacto para salvar a sua famiacutelia e seraacute

para o Hades que o heroacutei conduziraacute a famiacutelia depois de enlouquecido

Esta chegada representa um movimento das trevas para a luz ainda que essa

mudanccedila seja por meros instantes e a luz seja aparente Heacuteracles aparece como salvador

contudo com o desenvolvimento da acccedilatildeo o heroacutei deixa-se tomar pela fuacuteria mata

primeiro Lico e os seus seguidores e de seguida Meacutegara e os filhos Entre os dois

momentos de assassiacutenio haacute apenas uma pausa com a entrada das divindades Iacuteris e Lissa

Todo o momento em que eacute descrito o modo como Heacuteracles mata os filhos e a

esposa estaacute igualmente associado agraves trevas A luz regressa com o aparecimento de Teseu

e a sua promessa de purificaccedilatildeo do acto de Heacuteracles levando-o para Atenas

13 Individualidade e Colectivismo

O tema individualidade em oposiccedilatildeo ao colectivismo eacute frequente na trageacutedia e

serve de mote para caracterizar Heacuteracles que eacute fundamentalmente um heroacutei individual e

solitaacuterio λιπὼν δὲ Θήβας οὗ κατῳκίσθην ἐγώ Μεγάραν τε τήνδε πενθερούς (vv 13-

14)12 Esta caracteriacutestica do heroacutei eacute reforccedilada pelo geacutenero de armas que escolhe usar

para se defender e atacar os inimigos Satildeo elas principalmente o arco e as setas mas

tambeacutem a clava Estas permitem ao heroacutei manter a sua seguranccedila natildeo ficando

dependente de ningueacutem numa batalha

Eacute precisamente na escolha do tipo de armas com que Heacuteracles se defende que

reside a criacutetica de Lico Para o tirano o Alcida eacute cobarde porque luta apenas contra

animais e evita a refrega da batalha ndash a iteraccedilatildeo de οὐδὲν (v 157 v 158 v 160) e de

εὐψυχίας (v 157 v 162) em liacutetotes reforccedila esta ideia de falta de coragem que Lico

pretende provar

acontecimentos morte de Lico juacutebilo do Coro entrada de Iacuteris e Lissa loucura de Heacuteracles chegada do Mensageiro que narra a morte de Meacutegara e dos filhos No final da trageacutedia a acccedilatildeo eacute novamente mais lenta diaacutelogo entre Heacuteracles e Teseu (vide M S Silk ldquoHerakles and Greek Tragedyrdquo 2) 11 Ocorrecircncias vv 22-25 vv 44-46 vv 145-146 vv 296-297 vv 426-434 vv 490-495 12 lsquoabandonou Tebas onde eu me estabelecera deixando Meacutegara e os seus sogrosrsquo

98

ὁ δ᾿ ἔσχε δόξαν οὐδὲν ὢν εὐψυχίας θηρῶν ἐν αἰχμῇ τἄλλα δ᾿ οὐδὲν ἄλκιμος ὃς οὔποτ᾿ ἀσπίδ᾿ ἔσχε πρὸς λαιᾶι χερὶ οὐδ᾿ ἦλθε λόγχης ἐγγὺς ἀλλὰ τόξ᾿ ἔχων κάκιστον ὅπλον τῇ φυγῇ πρόχειρος ἦν ἀνδρὸς δ᾿ ἔλεγχος οὐχὶ τόξ᾿ εὐψυχίας ἀλλ᾿ ὃς μένων βλέπει τε κἀντιδέρκεται δορὸς ταχεῖαν ἄλοκα τάξιν ἐμβεβώς13

(vv 157-164)

Lico faz uma apologia do valor do hoplita porque este enfrenta directamente a

refrega manifestando a sua coragem Anfitriatildeo pelo contraacuterio defende que eacute no arco

que reside a salvaccedilatildeo visto que permite ao heroacutei afastar-se do fragor da guerra dando-

-lhe maior seguranccedila E aduz argumentos com que sustenta a sua tese Heacutercules lutou ao

lado dos deuses manuseando o arco para matar os gigantes o arco permite salvaguardar

a sua vida e a dos companheiros de guerra (vv 195-201) Em relaccedilatildeo ao hoplita

apresenta significativa vantagem pois este eacute um escravo das suas proacuteprias armas e

depende sempre dos que estatildeo com ele sendo-lhe mais difiacutecil evitar a morte se os que o

rodeiam fugirem cobardemente (vv 190-194) No entanto como observa Carlos

Ferreira ldquoNatildeo deixa por isso de existir alguma ironia no facto de Anfitriatildeo o defensor

da solidariedade e paradigma dos valores comunitaacuterios rejeitar o escudo e os hoplitas e

por conseguinte a comunidade como um todo enquanto Lico o usurpador defende o

hoplita e os valores que ele simbolizardquo14

Tambeacutem os trabalhos de Heacuteracles representam a individualidade do heroacutei porque

os concluiu sozinho Natildeo deixa contudo de ser sarcaacutestica a situaccedilatildeo da personagem

apesar de lutar sozinho dedicou-se sempre ao bem da humanidade (reduzida em

Euriacutepides a Tebas e agrave Heacutelade) mas quando a famiacutelia mais precisou de ajuda nenhum

dos povos que por ele foram auxiliados lhe prestou apoio (vv 217-226)

Por oposiccedilatildeo a este individualismo satildeo representaccedilotildees da colectividade o Coro e

Teseu No paacuterodo os anciatildeos do Coro entram apoiando-se mutuamente Caminham em

grupo ajudando-se e recordando os momentos em que combateram juntos (vv 127-

229) O valor que representava a colectividade que se alia ao valor da amizade tem 13 lsquoele apenas mostrou aparecircncia de coragem na luta contra as feras sem se distinguir minimamente nos restantes trabalhos ele nunca transportou um escudo no braccedilo esquerdo nem defrontou a lanccedila mas tendo o arco e flechas a mais fraca das armas estava sempre prestes a fugir A prova da coragem do guerreiro natildeo estaacute no arco mas corajoso eacute aquele que permanecendo de peacute firme aguarda sem desviar os olhos o campo em movimento das lanccedilas marchando ordenadamente com as suas tropasrsquo 14 Carlos Ferreira Santos Euriacutepides Heacuteracles Introduccedilatildeo Traduccedilatildeo e Notas 36

99

nestes versos o seu sentido Os velhos companheiros de armas de Anfitriatildeo aproximam-

-se do palaacutecio de Heacuteracles por amizade para com ele pois o terem combatido juntos

traduz-se agora nos laccedilos fortes com que esse sentimento os une

Teseu representa a expressatildeo maacutexima da noccedilatildeo de colectividade Tomando

conhecimento do perigo em que a famiacutelia de Heacuteracles se encontrava dirige-se a Tebas

com um grupo de hoplitas atenienses para auxiliar o amigo (vv 1164-1172) Este

aspecto contrasta por completo com o que Anfitriatildeo proclamou no Primeiro Episoacutedio

Haacute pois uma nova mutaccedilatildeo do elogio do arco passa-se ao elogio da lanccedila do

individualismo do archeiro passamos para o colectivismo do hoplita Heacuteracles que era a

representaccedilatildeo maacutexima desse individualismo usou o arco e as flechas para matar a sua

famiacutelia Teseu por extensatildeo o hoplita consegue salvar o heroacutei dissuadindo-o de se

suicidar

14 Solidatildeo e Amizade

A antiacutetese solidatildeo vs amizade eacute um τόπος senatildeo o mais importante pelo menos

dos essenciais para a compreensatildeo da trama da trageacutedia Permite constituir dois grupos

de personagens as que estatildeo de algum modo isoladas solitaacuterias e as que simbolizam a

amizade No primeiro grupo incluiacutemos Anfitriatildeo Meacutegara e Heacuteracles no segundo o

Coro e Teseu

Anfitriatildeo e Meacutegara natildeo vecircem na amizade qualquer porto de abrigo que os possa

salvar estatildeo completamente soacutes Natildeo podem contar com o auxiacutelio muacutetuo porque

Anfitriatildeo natildeo passa de um anciatildeo sem forccedilas οὐδὲν ὄντα πλὴν γλώσσης ψόφον (v

229)15 e Meacutegara eacute uma mulher logo eacute um ser indefeso

Heacuteracles eacute protoacutetipo do heroacutei solitaacuterio que natildeo tem um lugar estaacutevel ndash passa

grande parte do seu tempo a deambular pelo orbe Tendo como objectivo das suas

deambulaccedilotildees o pacificar o mundo Heacuteracles estranha a ausecircncia de amigos no

momento da desgraccedila (v 558) principalmente por tudo o que fez por Tebas microάχας δὲ

Μινυῶν ἃς ἔτλην ἀπέπτυσαν (v 560)16 Eacute a revolta resultante do abandono dos amigos

(ou dos falsos amigos) que o leva a pensar numa vinganccedila

15 lsquonada mais sou do que um ruiacutedo de palavrasrsquo 16 lsquoE ateacute as difiacuteceis vitoacuterias sobre os Miacutenios foram capazes de esquecerrsquo

100

ἐγὼ δέ νῦν γὰρ τῆς ἐmicroῆς ἔργον χερός πρῶτον μὲν εἶμι καὶ κατασκάψω δόμους καινῶν τυράννων κρᾶτα δrsquo ἀνόσιον τεμὼν ῥίψω κυνῶν ἕλκημα Καδμείων δrsquo ὅσους κακοὺς ἐφηῦρον εὖ παθόντας ἐξ ἐμοῦ τῷ καλλινίκῷ τῷδrsquo ὅπλῳ χειρώσομαι τοὺς δὲ πτερωτοῖς διαφορῶν τοξεύμασιν νεκρῶν ἅπαντrsquo lsquoΙσμηνὸν ἐμπλήσω φόνου Δίρκης τε νᾶμα λευκὸν αἱμαχθήσεται17 (vv 565-573)

Os adveacuterbios (v 565 νῦν v 566 πρῶτον) e a assonacircncia em e (v 565) denotam

o desejo de vinganccedila imediata que seraacute num futuro breve (v 566 εἶμι κατασκάψω v

568 ῥίψω v 570 χειρώσομαι v 572 ἐμπλήσω v 573 αἱμαχθήσεται) e que promete

ser violenta (vv 572-573)

Os vv 562-582 tecircm merecido diversas criacuteticas Schmid18 por exemplo

considera excessiva a atitude do heroacutei em querer vingar-se de todos os cidadatildeos que se

recusaram a ajudar os Heraclidas Bond entende que satildeo justificadas as acccedilotildees do

protagonista19 Pela nossa parte considerariacuteamos a posiccedilatildeo do heroacutei adequada ao punir

os iacutempios e mesmo ao usar como recurso a violecircncia (caracteriacutestica que lhe eacute inerente)

se essa violecircncia natildeo fosse levada ao extremo manifestando-se no desejo de inundar o

rio de cadaacuteveres e de fazer jorrar da fonte sangue dos Tebanos20 Eacute neste ponto que

entendemos o heroacutei como efectivamente excessivo Aleacutem disso se esta fosse uma

situaccedilatildeo normal e aceitaacutevel Anfitriatildeo natildeo teria apelado para a moderaccedilatildeo do

protagonista (v 586 ἀλλὰ microὴ πείγου λίαν21 nem teria o cuidado de dissuadir o filho

deste intento e muito menos o Alcida aceitaria o conselho paterno (vv 606-609)

A forccedila violenta ndash expressa nestes versos em assonacircncias de oclusivas ndash que

Heacuteracles pretende usar seraacute a mesma que utilizaraacute para matar os filhos Se no primeiro 17 lsquoEacute que eu ndash pois agora chegou a vez de o meu braccedilo actuar ndash antes de mais vou partir e vou devastar completamente o palaacutecio desse novo soberano e depois de degolar a sua iacutempia cabeccedila lanccedilaacute-la-ei como alimento aos catildees E aqueles Cadmeus que tendo recebido de mim benefiacutecios eu considerar ingratos subjugaacute-los-ei com esta arma vencedora e trespassando os outros com as minhas flechas aladas inundarei todo o Ismeno de cadaacuteveres e ensanguentarei as liacutempidas aacuteguas de Dircersquo 18 Apud Bond 206-207 19 Bond 206 ldquoHeraclesrsquo plans are reasonable by fifth-century let alone heroic standardsrdquo O mesmo autor justifica esta ideia com o exemplo de Ulisses no contexto do massacre dos pretendentes de Peneacutelope ldquoThere is a good precedent in the hanging of Odysseusrsquo faithless handmaidens (Od 22 465 ff) and such revenge conforms to the traditions of fifth-century στάσις Platea Corcyra and Melos suffered similar massacres the Athenian decree to kill all adult males in Mytilene was more brutal since it was not selective (Thuc 3 362)rdquo 20 Este episoacutedio lembra a luta entre Aquiles e o rio Escamandro A causa do confronto foi a intoleracircncia do rio em natildeo suportar mais o excesso do heroacutei que estava a encher o caudal com cadaacuteveres de guerreiros troianos (vide Homero Ilias 21214-221) 21 lsquoMas cautela com as precitipaccedilotildeesrsquo

101

caso haacute quem possa consideraacute-la como natildeo excessiva no segundo exemplo eacute criticada

como veremos oportunamente

15 Outras caracteriacutesticas na construccedilatildeo heroacutei

Aleacutem dos toacutepicos que foram sendo apontados haacute outros de natildeo menor

importacircncia que caracterizam directamente Heacuteracles o amor filial e paternal a

excelecircncia do heroacutei que o torna famoso ele eacute ainda visto como o pacificador do orbe o

salvador (chega ao palaacutecio no momento crucial para salvar a famiacutelia) e o civilizador

(castiga os tiranos que natildeo respeitam os deuses)

Quanto ao primeiro ponto Anfitriatildeo eacute a primeira personagem que salienta o

amor de Heacuteracles pela sua famiacutelia pois abandonou Tebas em direcccedilatildeo a Argos para

oferecer os seus serviccedilos a Euristeu em troca do regresso de Anfitriatildeo seu pai agrave terra

natal (vv 18-20) A este altruiacutesmo que parece ser uma caracteriacutestica estruturante do

heroacutei Anfitriatildeo acrescenta em alternativa outras duas razotildees que teratildeo levado Heacuteracles

a oferecer-se a Euristeu ou foi obrigado por Hera ou pela forccedila do Destino

Ao anexar ao toacutepico da ldquodevoccedilatildeo filialrdquo outros dois motivos Anfitriatildeo alude

como indica Carlos Ferreira Santos ldquoagrave tradicional inimizade de Hera e ao terriacutevel

destino (vv 20-21) motivos jaacute associados em Il 18119 o que pode demonstrar que o

motivo do auxiacutelio a Anfitriatildeo como uacutenico justificativo para a execuccedilatildeo dos trabalhos

natildeo era um dos elementos mais difundidos do mitordquo22 Natildeo eacute expliacutecita a intenccedilatildeo do

autor dramaacutetico ao apresentar opccedilotildees que validem a concretizaccedilatildeo dos trabalhos e no

decorrer da acccedilatildeo natildeo haacute uma concreta e definiva resposta

Esta eacute uma questatildeo que persiste e parece que natildeo haacute uma resposta plausiacutevel

Segundo Bond

Of the explanations distinguished by Preller-Robert 428 ff (a) Euripidesrsquos version here perhaps invented to represent Heracles as a dutiful son does not account for those labours which were not civilizing (b) the story implied by Apollod Bibl 2 4 12 that the labours were expiation for Heraclesrsquos killing of his children is clearly not relevant to HF (c) Zeusrsquo oath which established Eurystheus in power (Il 19 100 ff) does not suffice to account for the labours and Heraclesrsquo servitude (d) the hope of immortality (Theocr 24 82) looks

22 Carlos Ferreira Santos Euriacutepides Heacuteracles Introduccedilatildeo Traduccedilatildeo e Notas 24

102

like a post-classical mystic interpretation though Preller-Robert remark that several labours or deeds of Heracles imply the conquest of death Cerberus Alcestis the Golden Apples the marriage with Hebe23

A nosso ver haacute trecircs interpretaccedilotildees possiacuteveis que remetem para trecircs pontos de

vista diferentes

1 Heacuteracles procura Euristeu e oferece-se para libertar a humanidade dos medos

que a perseguem matando os monstros que assolavam a terra para que em troca

Anfitriatildeo pudesse regressar a Argos (vv 13-20)

2 Hera obriga Heacuteracles por meio de aguilhotildees (natildeo sabemos que geacutenero de

aguilhotildees eram esses) a submeter-se agraves ordens de Euristeu (vv 20-21)

3 O Destino ditou que Heacuteracles teria de realizar doze trabalhos por ordem de

Euristeu (v 21)

O primeiro ponto reforccedila a imagem de um heroacutei de excelentes qualidades que o

Coro tanto exalta nos trecircs primeiros estaacutesimos (vv 348-435 vv 639-700 vv 735-814)

e enquadra-se perfeitamente no objectivo das duas primeiras partes da trageacutedia o de

demonstrar que Heacuteracles eacute o pacificador o libertador o protector e o civilizador que

vem repor a ordem em Tebas Jaacute os outros dois pontos natildeo tecircm qualquer relevacircncia

nessas duas primeiras partes da trageacutedia uma vez que natildeo haacute qualquer referecircncia a uma

ligaccedilatildeo entre Hera e Heacuteracles ou entre Destino e Heacuteracles

Eacute na terceira e quarta partes que estes uacuteltimos aspectos ganham importacircncia

Relativamente ao segundo ponto em particular no quinto episoacutedio na cena da loucura

Heacuteracles recorda a ira de Hera que o persegue desde o dia em que nasceu (vv 1262-

1310 1392-1393) O nome da deusa eacute constantemente evocado natildeo soacute pelo heroacutei como

por Teseu (v 1186) No v 1127 Anfitriatildeo acusa Hera de ter enlouquecido o Alcida

mas depois revela natildeo ter tanta certeza na participaccedilatildeo de alguma divindade no crime do

filho (v 1135) Note-se que Anfitriatildeo tem todavia desconhecimento total do

aparecimento das deusas Iacuteris e Lissa sobre o telhado do palaacutecio Logo ele desconhece a

autoria divina da loucura do Alcida

Sob o terceiro ponto de vista as acccedilotildees de Heacuteracles satildeo controladas pelo

Destino Esta eacute a perspectiva da divindade Iacuteris afirma que o Destino e Zeus natildeo

permitiam que ela e Hera causassem algum dano ao heroacutei enquanto este natildeo concluiacutesse

os trabalhos No entanto se foi autoria do Destino o cumprimento desses trabalhos 23 Bond 68

103

continuamos sem saber quais satildeo os antecedentes que levaram o heroacutei a assumir esse

Destino Poderaacute estar subjacente a ideia de que se Heacuteracles cumprisse os trabalhos

receberia como recompensa a imortalidade embora a tal natildeo haja qualquer alusatildeo na

trageacutedia

Cada uma das perspectivas apresentadas conduz o leitor a uma interpretaccedilatildeo

diferente Parece-nos que Euriacutepides tomou as diversas tradiccedilotildees mitoloacutegicas e lhes deu

uma nova perspectiva Para os homens satildeo os deuses a causa de tanto sofrimento de

Heacuteracles Os deuses remetem para a funccedilatildeo do Destino Maria de Faacutetima Sousa e Silva

afirma que ldquoA Euriacutepides pouco importa discernir a origem do sofrimento humano ou

tentar explicaacute-la para ele conta apenas que o homem sofre e por isso eacute digno de

piedaderdquo24

A problemaacutetica da funccedilatildeo que os deuses25 e o Destino desempenham na vida

humana eacute frequente nas peccedilas de Euriacutepides em especial no Heracles No que diz

respeito ao Destino Meacutegara sente que a τύχη obriga a sua famiacutelia a morrer (vv 282-

283 vv 309-311 vv 456-457 vv 480-482)

No jogo entre estas diferentes perspectivas talvez possamos descortinar a um

tempo a concepccedilatildeo que os Gregos tinham dos seus deuses e a concepccedilatildeo dos sofistas

Como sugere Fritz Graf

The Euripidean critique of myths about the gods begins with the same objection the gods as traditionally represented are far too crassly anthropomorphic This objection was not new A century earlier Xenophanes of Colophon had complained that Homer and Hesiod attributed to the gods ldquoall that is shameful and disgraceful among men they steal commit adultery and deceive one anotherrdquo (DK 21 B 11 cf chapter 8)26

Ainda no acircmbito do toacutepico sobre o afecto familiar haacute que lembrar o discurso de

Meacutegara no proacutelogo quando ela descrevendo uma situaccedilatildeo da vida diaacuteria recorda os

laccedilos fortes que unem os filhos ao pai mal ouvem o som de abertura de uma porta

ficam expectantes por julgarem que eacute o pai que estaacute a chegar (τῷ νέῳ δrsquo ἐσφαλμένοι

24 Maria de Faacutetima Sousa e Silva Criacutetica Literaacuteria na Comeacutedia Grega Geacutenero Dramaacutetico 227 25 Sobre este ponto ver Capiacutetulo I aliacutenea 12 26 Fritz Graf Greek Mythology an Introduction trad Thomas Marier (Baltimor Londres Johns Hopkins University Press 1996) 169-170

104

ζητοῦσι τὸν τεκόντrsquo ἐγὼ δὲ διαφέρω λόγοισι μυθεύουσα θαυμάζων δrsquo ὅταν πύλαι

ψοφῶσι πᾶς ἀνίστησιν πόδα ὡς πρὸς πατρῷον προσπεσούμενοι γόνυ27)

O afecto do Alcida pela famiacutelia eacute uma caracteriacutestica fundamental na trageacutedia de

Euriacutepides e natildeo teraacute qualquer repercussatildeo em Seacuteneca O discurso de Meacutegara momento

de elevado teor dramaacutetico em que ela descreve as reacccedilotildees dos filhos agrave ausecircncia do

Alcida revela a estreita relaccedilatildeo entre Heacuteracles e os filhos e a uniatildeo muito proacutexima e

afectiva entre Heacuteracles e Meacutegara28 Eacute o seu zelo pelos que lhe satildeo proacuteximos que leva o

heroacutei antes de entregar Ceacuterbero a Euristeu a regressar a Tebas porque pressente que

Anfitriatildeo Meacutegara e os filhos correm perigo (vv 595-598)

Este sentimento que nutre pelos filhos leva-o a considerar que os trabalhos que

conclui em nada se comparam ao de proteger os seus filhos

χαιρόντων πόνοι microάτην γὰρ αὐτοὺς τῶνδε μᾶλλον ἤνυσα καὶ δεῖ microrsquo ὑπὲρ τῶνδrsquo εἴπερ οἴδrsquo ὑπὲρ πατρός θνῄσκειν ἀmicroύνοντrsquo ἢ τί φήσομεν καλὸν ὕδραι μὲν ἐλθεῖν ἐς μάχην λέοντί τε Εὐρυσθέως πομπαῖσι τῶν δrsquo ἐmicroῶν τέκνων οὐκ ἐκπονήσω θάνατον οὐκ ἄρrsquo lsquoΗρακλῆς ὁ καλλίνικος ὡς πάροιθε λέξομαι29

(vv 575-582)

Nesta cena o protagonista assume-se como o defensor da sua famiacutelia E a sua

gloacuteria jaacute natildeo reside nos feitos passados mas sim em manter a seguranccedila dos seus ndash a

iteraccedilatildeo da preposiccedilatildeo ὑπὲρ (v 577) a estabelecer um paralelo entre os filhos e

Heacuteracles intensifica a necessidade do heroacutei em salvaacute-los Esta eacute a mais dura prova que

teraacute que enfrentar mesmo que essa prova implique perder a vida30 Reconhece a sua

funccedilatildeo comparando-se a um navio que transporta os pequenos barcos consigo para

protegecirc-los (vv 631-633) O siacutemile acentua a ironia traacutegica a protecccedilatildeo que Heacuteracles

27 vv 75-79 lsquoEnquanto na sua acircnsia juvenil procuravam o seu progenitor eu contando-lhes histoacuterias iludia-os com palavras Expectantes quando a porta faz algum ruiacutedo levantam-se como se aos peacutes do proacuteprio pai se fossem prostrarrsquo 28 Um outro exemplo que comprova este aspecto eacute apresentado no terceiro episoacutedio no momento de abertura quando Meacutegara relembra o passado venturoso em que pai e matildee planearam a vida dos trecircs filhos oferecendo a cada um paiacutes para governarem e escolhendo-lhes como esposas princesas oriundas das trecircs principais πόλεις 29 lsquoEsqueccedilo os meus trabalhos Foram pouca coisa quando comparados com as tarefas presentes Eacute meu dever defender estas crianccedilas ainda que agrave custa da minha vida uma vez que elas estavam dispostas a morrer pelo pai Seraacute que me poderei vangloriar de ter combatido a hidra e o leatildeo a pedido de Euristeu se natildeo afastar a ameaccedila de morte dos meus filhos Jamais serei considerado Heacuteracles o vitorioso tal como outrorarsquo 30 Neste passo momento de densidade pateacutetica eacute expressiva a ironia traacutegica

105

pretendia assegurar agrave famiacutelia com a sua chegada tal como um navio que protege os

pequenos botes acabou por revelar ser a sua ruiacutena uma vez que o heroacutei eacute subjugado

pela loucura divina31 O sofrimento que adveacutem da morte dos filhos traduz-se num dos

momentos mais intensos nesta trageacutedia e levou criacuteticos como Andreacute Rivier a

consideraacute-lo como ldquodu type de perfection qui met hors de pair Hippolyte et Meacutedeacuteerdquo32

O filiciacutedio e o uxoriciacutedio atingem deste modo a ἀκμή em termos de ironia traacutegica

principalmente porque Heacuteracles natildeo se considera culpado (v 1310) mas toma o seu

acto como involuntaacuterio sabendo-se domado pelas Eriacutenias (v 1364)

16 Manifestaccedilatildeo da loucura de Heacuteracles

A loucura de Heacuteracles eacute progressiva e tem lugar a partir da segunda parte O

tema33 eacute apresentado pelas deusas Iacuteris e Lissa O diaacutelogo entre elas permite dar uma

primeira imagem da mutaccedilatildeo do estado psicoloacutegico do protagonista que comeccedila a ter os

primeiros sintomas de uma perturbaccedilatildeo mental Numa primeira parte Lissa descreve a

forma como vai provocar-lhe a loucura

οὔτε πόντος οὕτω κύμασι στένων λάβρoς οὔτε γῆς σεισμὸς κεραυνοῦ τ᾽ οἶστρος ὠδῖνας πνέων οἷ᾽ ἐγὼ στάδια δραμοῦμαι στέρνον εἰς Ἡρακλέους∙ καὶ καταρρήξω microέλαθρα καὶ δόμους ἐπεμβαλῶ τέκν᾽ ἀποκτείνασα πρῶτον ὁ δὲ κανὼν οὐκ εἴσεται παῖδας οὓς ἔτικτεν ἐναίρων πρὶν ἂν ἐmicroὰς λύσσας ἀφῇ34 (vv 861-866)

31 Nos versos 1423-1424 o heroacutei καλλίνικος volta a usar metaacuteforas nauacuteticas para representar a sua actual dependecircncia relativamente a Teseu ἡμεῖς δrsquo ἀναλώσαντες αἰσχύναις δόμον Θησεῖ πανώλεις ἑψόμεσθrsquo ἐφολκίδες [lsquoE eu tendo arruinado com actos desonrosos a minha casa completamente destruiacutedo seguirei Teseu qual batel rebocado por uma naursquo] 32 Andreacute Rivier Essai sur le tragique drsquo Euripide 100 33 A questatildeo da loucura de Heacuteracles tem sido motivo de sucessivas discussotildees levando como indica Thalia Papadopoulou Heracles and Euripidean Tragedy (Cambridge Cambridge University Press 2005) 3 a diversas e contraditoacuterias conclusotildees ldquothe Euripidean Heracles has been viewed at one extreme as an essentially flawed figure and at the other as an idealized characterrdquo De facto haacute autores que consideram que a entrada de Heacuteracles em cena indicia desde logo a sua loucura (como eacute o caso de Willamowitz) No entanto pensamos ser objectivo do tragedioacutegrafo o de representar em Heacuteracles uma natureza por si proacutepria excessiva habituado a lutar contra monstros e contra homens crueacuteis dissipa a violecircncia do mundo usando os mesmos meios isto eacute por meio de uma forccedila impetuosa 34 lsquoNem o mar impetuoso gemendo com as suas ondas nem o tremor de terra ou a fuacuteria do relacircmpago soprando agonias seratildeo tatildeo violentos como a corrida que eu vou encetar contra o peito de Heacuteracles Destruirei o tecto e lanccedilarei por terra a sua casa depois de matar os seus filhos Mas o assassino natildeo saberaacute que estaacute a matar os filhos que gerou antes de se libertar dos meus furoresrsquo

106

A actuaccedilatildeo do δαίμων promete ser forte e destruidora tanto sob o ponto de vista

fiacutesico como sob o psicoloacutegico Os elementos da natureza evocados ndash a forccedila do mar o

terramoto e a imagem da forccedila arrasadora de um meteorito acentuados pela iteraccedilatildeo do

adveacuterbio de negaccedilatildeo ndash demonstram a forccedila violenta com que Lissa pretende atacar

Heacuteracles A destruiccedilatildeo da casa do heroacutei seraacute completa com a morte dos filhos35 e com a

queda do telhado36

De um futuro que estaacute prestes a eclodir Lissa passa para o presente Heacuteracles jaacute

eacute viacutetima dos seus aguilhotildees Satildeo delineados os primeiros traccedilos que caracterizam a

loucura do heroacutei

ἢν ἰδού∙ καὶ δὴ τινάσσει κρᾶτα βαλβίδων ἄπο καὶ διαστρόφους ἑλίσσει σῖγα γοργωποὺς κόρας ἀμπνοὰς δ᾽ οὐ σωφρονίζει ταῦρος ὣς ἐς ἐμβολὴν δεινὰ μυκᾶται δέ Κῆρας ἀνακαλῶ τὰς Ταρτάρου τάχα σ᾽ ἐγὼ microᾶλλον χορεύσω καὶ καταυλήσω φόβῳ37

(vv 867-872)

Estes sintomas satildeo apresentados por Lissa a Iacuteris ao Coro e aos espectadores (o

estremecer da cabeccedila38 a alteraccedilatildeo de um olhar que indicia o comeccedilo da demecircncia da

personagem a respiraccedilatildeo desenfreada e semelhante agrave de um touro prestes a atacar

algueacutem) sintomas cuja enumeraccedilatildeo o Mensageiro completaraacute quando entrar em cena39

O Mensageiro recupera as falas de outras personagens que decorreram antes e durante o

acto de loucura de Heacuteracles natildeo soacute no diaacutelogo entre Iacuteris e Lissa (principalmente as do

passo que acabaacutemos de transcrever) mas tambeacutem os lamentos de Anfitriatildeo e do Coro

De facto o diaacutelogo entre as deusas Iacuteris e Lissa permitiu ao Coro e ao puacuteblico

tomar conhecimento de modo preliminar dos acontecimentos que decorreratildeo no quarto

e quinto episoacutedios As deusas Hera e Iacuteris servem-se da loucura para se vingarem de

Heacuteracles e o castigo consiste em matar os seus proacuteprios filhos Por sua vez o Coro vai

entoando um lamento agrave nova mudanccedila da fortuna e em simultacircneo imagina o heroacutei

numa danccedila freneacutetica qual bacante com a diferenccedila de que natildeo estaacute num ritual baacutequico 35 Destruiccedilatildeo da casa sob o ponto de vista psicoloacutegico 36 Destruiccedilatildeo fiacutesica da casa 37 lsquoPrestem atenccedilatildeo Eis que ele agita a cabeccedila no iniacutecio da sua investida em silecircncio revira os olhos retorcidos e terrificantes natildeo controla a respiraccedilatildeo e como um touro pronto para o assalto muge perigosamente invocando as Ceres do Taacutertaro para que de forma raacutepida e com ruidosa fuacuteria o acompanhem como os catildees acampanham o caccediladorrsquo 38 Segundo Bond 292 τινάσσει κρᾶτα eacute por si um sinal de que a loucura estaacute iminente 39 O Mensageiro entra no IV episoacutedio Eacute representado por um dos servos de Heacuteracles que narra com uma certa extensatildeo (cerca de 93 vv) os uacuteltimos acontecimentos ocorridos num espaccedilo extraceacutenico dentro do palaacutecio Todo o discurso desta personagem marca uma pausa no decorrer da acccedilatildeo

107

A metaacutefora torna visiacutevel a imagem do estado psicoloacutegico do Alcida Aos gemidos e

frases soltas que Anfitriatildeo vai proferindo dentro do palaacutecio o Coro responde com aquilo

que supotildee estar a acontecer a perseguiccedilatildeo e a morte das crianccedilas

O aparecimento do Mensageiro (vv 910-1015) retoma os toacutepicos da demecircncia e

do filiciacutedio A personagem narra a morte de cada um dos filhos do protagonista e da sua

mulher Eacute tambeacutem por ele que sabemos que Anfitriatildeo escapa ao massacre mercecirc da

intervenccedilatildeo de Atena que trava o Alcida com uma pedra adormecendo-o O discurso

do Mensageiro termina com a queda fiacutesica do heroacutei queda essa que se traduz na

destruiccedilatildeo da sua casa a niacutevel fiacutesico40 mas igualmente psicoloacutegico Esta narrativa

permite observar dois aspectos uma nova descriccedilatildeo41 dos sintomas da loucura ndash a sua

evoluccedilatildeo e consequecircncias ndash e a representaccedilatildeo do lado mais humano da personagem que

acorda para uma realidade que o deixa vulneraacutevel

No que diz respeito ao primeiro ponto e primeiro estaacutedio de loucura os indiacutecios

satildeo

- uma suacutebita paragem e silecircncio de Heacuteracles assim como a sua hesitaccedilatildeo

contrastam com o olhar expectante dos que o circundam e esperam que o heroacutei

concretize o sacrifiacutecio (vv 929-931)

- reviravolta do olhar (v 932)

- os olhos injectados (v 933)

- espuma que goteja da boca (v 934)

40 Esta ruiacutena tambeacutem apontada por Lissa eacute visualizada pelo Coro e por Anfitriatildeo Este acusa Palas Atena de ser a autora da queda do telhado O Mensageiro tambeacutem recupera a ideia da destruiccedilatildeo do palaacutecio Segundo Bond 320-321 o derrubar fiacutesico do palaacutecio natildeo deve ser considerado como da autoria de Heacuteracles (o heroacutei destroacutei apenas as portas quando persegue Meacutegara e o uacuteltimo filho) nem de Palas Atena que lanccedila uma pedra contra o peito do Alcida adormecendo-o ndash o heroacutei eacute projectado contra o pilar que jaacute tinha caiacutedo quando o telhado desabara O Mensageiro natildeo alude ao terramoto que Lissa tinha prometido desencadear devastando por completo toda a casa heraclida natildeo havendo uma correspondecircncia directa entre os relatos das duas personagens Acrescenta ainda o mesmo autor que todas estas micro-acccedilotildees satildeo sequenciais Acontecem pela seguinte ordem e num curto espaccedilo de tempo derrubar das portas por Heacuteracles derrube do telhado projecccedilatildeo de Heacuteracles contra o pilar 41 No que diz respeito agrave descriccedilatildeo que cada uma das personagens faz da loucura de Heacuteracles podemos distinguir trecircs diferentes formas - vv 867-874 descriccedilatildeo de fora para fora mas com conhecimento pleno do que acontece dentro do palaacutecio o decliacutenio da razatildeo do heroacutei eacute observado de cima do palaacutecio por Lissa que estando no exterior descreve a Iacuteris aquilo que estaacute a acontecer dentro da casa (no momento presente) - vv 886-909 descriccedilatildeo de fora para fora mas sem conhecimento real do que se estaacute a desenrolar dentro do palaacutecio o Coro sabe que Heacuteracles vai enlouquecer e matar os filhos mas natildeo vecirc simplesmente especula sobre o que poderaacute estar a decorrer dentro dos muros - vv 922-1015 descriccedilatildeo de dentro para fora o Mensageiro presenciou toda a cena desde o momento em que Heacuteracles fica transtornado A enumeraccedilatildeo das perturbaccedilotildees fiacutesicas aliadas ao comportamento do protagonista concorre para a isotopia da loucura O discurso desta personagem eacute mais extenso do que o das anteriores e narra acontecimentos que decorreram momentos antes

108

- riso histeacuterico (v 935)

Estas manifestaccedilotildees fiacutesicas os sintomas que o Mensageiro apresenta estatildeo de

algum modo em sintonia com as que Lissa delineou anteriormente e que vimos supra

complementando-se

Numa primeira fase Heacuteracles dirige-se a Anfitriatildeo e reconhece-o como pai Eacute a

este que o heroacutei conta o que pretende fazer antes de terminar o sacrifiacutecio purificando-se

da mancha do crime Heacuteracles quer vingar-se de Euristeu42 talvez por este ter sido o

mandante de tatildeo penosos trabalhos pelo que comeccedila a imaginar a sua viagem em

direcccedilatildeo a Micenas descrevendo as peripeacutecias que visualiza na sua mente perturbada

- sobe para um carro invisiacutevel (vv 947-949)

- afirma que chegou junto de Niso quando natildeo abandonou o interior da sua casa

O percurso imaginaacuterio que fez ateacute chegar agrave cidade concretizou-se num trajecto

percorrido dentro do palaacutecio (vv 953-955)

- prepara um banquete inexistente (vv 955-957)

- luta contra um adversaacuterio apenas visiacutevel para ele proacuteprio e proclama-se

vencedor de ningueacutem (vv 959-963)

- a sua aproximaccedilatildeo imaginaacuteria de Micenas (vv 963 e ss) representa a evoluccedilatildeo

do estaacutedio de loucura ele natildeo reconhece Anfitriatildeo (vv 964-971) quando este lhe toca

e julga ver diante de si o pai de Euristeu (vv 967-969) Este ponto permite a passagem

da revelaccedilatildeo da demecircncia de Heacuteracles para a narraccedilatildeo da perseguiccedilatildeo e morte dos seus

filhos e de Meacutegara julgando estar a arruinar a casa do seu inimigo ao matar os παῖδες

deste

Apenas Atena segundo o Mensageiro consegue parar Heacuteracles

ἀλλ᾽ ἦλθεν εἰκών ὡς ὁρᾶν ἐφαίνετο Παλλάς κραδαίνουσ᾽ ἔγχος dagger ἐπὶ λόφῳ κέαρ dagger κἄρριψε πέτρον στέρνον εἰς Ἡρακλέους ὅς νιν φόνου μαργῶντος ἔσχε κἀς ὕπνον καθῆκε∙ πίτνει δ᾽ ἐς πέδον πρὸς κίονα νῶτον πατάξας ὃς πεσήμασι στέγης διχορραγὴς ἔκειτο κρηπίδων ἔπι43 (vv 1002-1008)

42 Como diz Bond 310 ldquoHeracles suffers from megalomaniac delusions that he can break down the walls of Mycenae (943-6)rdquo 43 lsquoDepois galopa para matar o velho Mas eis que apareceu um fantasma em que se reconhecia Palas que com o seu coraccedilatildeo salviacutefico + brande a lanccedila e contra o peito de Heacuteracles atira uma pedra que o afasta da sua loucura sanguinaacuteria e o lanccedila num sono profundo Ele cai por terra batendo com o dorso numa coluna que com o desabar do tecto jazia partida em dois sobre a sua basersquo

109

A intervenccedilatildeo das deusas nos momentos anterior e posterior agrave loucura de

Heacuteracles deixa algumas reservas relativamente ao protagonista Se antes ele era

considerado um heroacutei de excelentes qualidades agora satildeo os seus defeitos que

sobressaem violecircncia e imoderaccedilatildeo Estas caracteriacutesticas que sempre foram apanaacutegio

da personagem uma vez que teve de lutar contra monstros e contra seres humanos

crueacuteis e que natildeo eram postas em causa por nenhuma das personagens da trageacutedia44 satildeo

agora questionadas pelo facto de terem sido usadas para matar a famiacutelia

A dupla presenccedila de divindades em especial o aparecimento suacutebito de Atena

determina o excesso do protagonista que vai aleacutem da proacutepria vontade das deusas A

morte dos filhos tem efectivamente a autoria de Lissa obrigada por Iacuteris e Hera mas o

assassiacutenio de Meacutegara tem um soacute autor Heacuteracles que ainda prepara uma uacuteltima ofensiva

contra Anfitriatildeo Atena tem de intervir para pocircr um freio ao heroacutei antes que ele cometa

um acto ainda mais reprovaacutevel e por isso o adormece

O discurso do Mensageiro termina com uma uacuteltima descriccedilatildeo do estado de

Heacuteracles tendo ele adormecido os servos e Anfitriatildeo ataram-no a um pilar para que

ele ao acordar natildeo continuasse a sua perseguiccedilatildeo O sono do heroacutei caracteriza-se por

um adormecimento perturbado ὕπνον οὐκ εὐδαίμονα (v 1013)45

O sono aparece em algumas das peccedilas euripidianos como forma de

esquecimento dos actos dos protagonistas como acontece por exemplo em Orestes46

Neste caso o heroacutei sofre de perturbaccedilotildees mais graves em particular de amneacutesia que

decorrem da mutaccedilatildeo entre um estado normal e um estado de demecircncia No Heracles

este toacutepico aparece quando Anfitriatildeo entra em cena Heacuteracles estaacute por um lado sob o

domiacutenio do sono calmo e profundo (vv 1049-1051) mas por outro de um sono funesto

(vv 1061-1062)

O despertar do heroacutei caracteriza-se por ser um acordar lento para a realidade que

o circunda

ἔπνους microέν εἰμι καὶ δέδορχrsquo ἅπερ μὲ δεῖ αἰθέρα τε καὶ γῆν τόξα θrsquo ἡλίου τάδε ὡς ltδrsquogt ἐν κλύδωνι καὶ φρενῶν ταράγματι

44 Grande parte das personagens da trageacutedia (agrave excepccedilatildeo de Lico Iacuteris e indirectamente Hera) tecircm uma admiraccedilatildeo especial por Heacuteracles motivada pelas suas faccedilanhas que tinham como finalidade o bem da humanidade e em particular da sua famiacutelia 45 lsquoum sono que natildeo eacute de felicidadersquo 46 Vide Euriacutepides Orestes 211-306

110

πέπτωκα δεινῷ καὶ πνοὰς θερμὰς πνέω μετάρσιrsquo οὐ βέβαια πλευμόνων ἄπο47

(vv 1089-1093)

O heroacutei vai descrevendo o que vecirc Sentem-se oscilaccedilotildees no seu campo de visatildeo

do ceacuteu passa para a terra voltando a olhar para o eacuteter ndash Heacuteracles procura reconhecer o

espaccedilo que o envolve Num primeiro momento o contacto com o mundo que o rodeia

permite-lhe sentir que ainda respira mas desconhece o lugar onde jaz como tambeacutem

natildeo se recorda do que lhe aconteceu Tem apenas consciecircncia de que sofreu uma

alteraccedilatildeo mental da qual ainda sente vestiacutegios no seu acircnimo ndash esse conhecimento eacute

expresso por recurso ao poliptoto ἔπνους (v 1089) πνοάς (v 1092) πνέω (v 1092) em

consonacircncia com πλευμόνων48 (v 1093)

O Alcida natildeo entende porque estaacute amarrado tal como um barco (v 1094) nem

sequer consegue identificar os corpos que jazem agrave sua volta (vv 1094-1097) Recorda-

-se de que jaacute tinha abandonado o Hades mas natildeo consegue reconhecer o ambiente que o

rodeia (vv 1101-1105) A sensaccedilatildeo de desorientaccedilatildeo eacute completa o que demonstra que a

sua mente ainda natildeo estaacute totalmente liberta dos grilhotildees da loucura

O processo de ἀναγνώρισις eacute lento e o heroacutei precisa do auxiacutelio de Anfitriatildeo

uacutenica personagem que o Alcida reconhece para lhe desvendar tudo o que se passou (vv

1111-1112) Apoacutes ter descoberto a autoria do crime Heacuteracles vecirc num primeiro

momento no suiciacutedio a soluccedilatildeo para enfrentar a mutaccedilatildeo da fortuna (vv 1146-1153) ndash

atitude em que podemos encontrar eco no Ajax de Soacutefocles A intenccedilatildeo de suiciacutedio fica

suspensa com a chegada de Teseu (vv 1153-1154) mas logo eacute retomada quando os dois

dialogam (vv 1247-1310) Os argumentos de Heacuteracles satildeo

a) ele descende de um crime involuntaacuterio49 ndash culpa hereditaacuteria (vv 1258-1261)

b) Hera persegue Heacuteracles por ser descendente directo de Zeus ainda que o

heroacutei considere como pai verdadeiro Anfitriatildeo e negue ascendecircncia divina (vv 1262

ss)

c) filiciacutedio e uxoriciacutedio (vv 1279-1280) Heacuteracles sente que este crime foi o

uacuteltimo trabalho e o mais penoso de todos

47 lsquoAinda estou vivo e vejo como deve ser o ceacuteu a terra e estes raios de sol Senti-me como arrastado por uma vaga dominado por uma terriacutevel inquietaccedilatildeo de espiacuterito e dos meus pulmotildees sai uma respiraccedilatildeo ardente e ofegante a intervalos regularesrsquo 48 Esta forma aparece a par de πνεύμων 49 Haacute nestes versos uma repercussatildeo do que Anfitriatildeo disse no Proacutelogo (vv 16-17) e o Coro volta a lembrar aludindo talvez ao crime de Heacuteracles como expiaccedilatildeo de um outro mais antigo (vv 1078-1080) Anfitriatildeo tinha matado involuntariamente Eleacutectrion pai de Alcmena

111

d) natildeo pode habitar lugar algum nem Tebas nem Argos natildeo poderaacute entrar em

santuaacuterios ou festejar com amigos (vv 1281-1290) O seu discurso entra no domiacutenio da

hipeacuterbole ao considerar que a Terra natildeo lhe permitiraacute que a profane ao pisar o chatildeo

nem os mares ou os rios jamais o deixaratildeo navegar nas suas aacuteguas (vv 1295-1298)

No entanto porque encontra em Teseu um abrigo e a promessa de integraccedilatildeo em

Atenas opta por viver agrave margem do sofrimento tomando o suiciacutedio como atitude

proacutepria de um cobarde (vv 1347-1351) A diferenccedila entre o Aacutejax de Soacutefocles e o

Heacuteracles de Euriacutepides eacute abismal A concepccedilatildeo de vergonha (αἰδώς) estaacute presente nos

dois casos mas a forma como cada um resolve esse problema eacute diferente Para Aacutejax o

seu acto eacute imperdoaacutevel e resta-lhe apenas morrer para apagar a sua vergonha (o coacutedigo

de honra que lembra os Poemas Homeacutericos eacute marcante nesta personagem) Para

Heacuteracles seria motivo de αἰδώς se optasse pelo suiciacutedio uma vez que eacute o heroacutei de

gloriosos feitos

Quanto agraves suas armas que foram usadas para matar a famiacutelia Heacuteracles

questiona se deve abandonaacute-las ou mantecirc-las (vv 1378 ss) Para Papadopoulou ldquothey

are the symbols of his violence which can be beneficent as well as catastrophic

Deciding to keep them is a recognition and a reminder of the ambivalence of his

heroismrdquo50 Mas mais do que isso as armas representam para o heroacutei uma forma de

proteger a cidade que o acolhe e em simultacircneo revelam que mesmo integrado numa

sociedade que preza o colectivismo o Alcida manteacutem a sua individualidade

17 ἀρετή51 e βία Lico e Heacuteracles pontos semelhantes entre um tirano e o heroacutei

O comportamento de Heacuteracles ao longo da trageacutedia deixa algumas reservas no

que diz respeito ao seu caraacutecter Essas questotildees levantam-se no contexto da loucura do

Alcida e consequente morte da sua famiacutelia A forma como os filhos e Meacutegara morrem

permite estabelecer pontos de contacto com a morte de Lico A violecircncia que o heroacutei

usa para matar os iacutempios eacute a mesma que utilizou para com os filhos e a mulher de

modo que essa forccedila violenta parece ser apanaacutegio do heroacutei

50 Thalia Papadopoulou ldquoHerakles and Hercules The Herorsquos Ambivalence in Euripides and Senecardquo Mnemosyne 57 (2004) 267 51 No que diz respeito agrave ἀρετή do heroacutei este tema foi sendo sublinhado ao longo da caracterizaccedilatildeo da personagem pelo que se tornava repetitivo focarmos este aspecto uma vez mais Importa reter eacute que a par desta ἀρετή coexiste uma βία

112

Eacute precisamente devido a este uacuteltimo acto que a forccedila e heroicidade de Heacuteracles

pode ser posta em causa Barlow explica

Heraclesrsquos life before the madness has been taken up with violent deeds against the Giants (177ff) against the Centaurs (181) against the Minyans (220ff) against the monsters while on his labours (the Lion the Centaurs the Stag the Horses of Diomedes Cycnus the robber the Dragon the Amazons the Hydra) and finally against Lycus Over all these he triumphed with his weapons the club and the bow Physical violence is a way of life to him so when the gods come to destroy him by madness they are able to do so through patterns of behaviour which are already characteristic of him52

Esta bipolaridade manifestada na sua virtuosidade vs a forma cruel com que

resolve as situaccedilotildees leva-nos a estabelecer uma comparaccedilatildeo entre Lico e Heacuteracles53

Em primeiro lugar ambas as personagens ousam violar o direito dos suplicantes por

duas vezes Lico no primeiro confronto com Anfitriatildeo (vv 240-246) pretende

sacrificar os suplicantes junto do templo de Zeus queimando-os vivos No terceiro

episoacutedio Lico regressa agrave cena a reclamar a vida de Anfitriatildeo Meacutegara e filhos Agrave

informaccedilatildeo de Anfitriatildeo de que Meacutegara poderia estar dentro do palaacutecio junto do altar

sagrado Lico reclama a sua presenccedila e como Anfitriatildeo se recusasse a trazecirc-la invade o

palaacutecio para de laacute a arrebatar juntamente com os filhos (vv 712-724)

Heacuteracles por seu turno acorrentado pela loucura natildeo reconhece o pai que

suplicante lhe agarra a matildeo ao ver que o filho estava a delirar Anfitriatildeo eacute repelido

porque eacute confundido com o pai de Euristeu e o Alcida prepara-se para matar o primeiro

filho (vv 967-971) Depois de morta a primeira crianccedila vai ao encontro da segunda que

se refugiara junto da base do altar O filho dirige-se para junto do pai como suplicante

ajoelha-se e toca-lhe no pescoccedilo e no queixo com as matildeos (984-994) mas eacute morto pela

matildeo paterna que natildeo o reconhece Em siacutentese Heacuteracles acaba por consumar o que Lico

natildeo conseguiu matar Meacutegara e os filhos54

Em segundo lugar Lico e Heacuteracles atacam pessoas indefesas o primeiro porque

teme que a famiacutelia de Heacuteracles se vingue do seu crime o segundo porque pensava que

estava a atacar o pai a mulher e filhos de Euristeu55 Num terceiro aspecto a violecircncia

52 Barlow 9-10 53 Nesta comparaccedilatildeo servimo-nos do artigo de Thalia Papadopoulou ldquoHerakles and Hercules The Herorsquos Ambivalence in Euripides and Senecardquo 257-283 54 Anfitriatildeo escapa por intervenccedilatildeo divina 55 Haacute um erro de avaliaccedilatildeo suscitado pelos deuses

113

com que Lico se expressa para manifestar o seu desejo de queimar viva a famiacutelia de

Heacuteracles eacute a mesma de que o Alcida usa quando diz pretender destruir todo o palaacutecio

de Lico e mataacute-lo cruelmente (vide vv 247-251 comparando-os com os vv 568-573)

Este caraacutecter impulsivo que caracteriza ambas as personagens contrasta com a

tranquilidade e sensatez de Anfitriatildeo (vv 585-586 vv 707-709)

Num quarto aspecto observamos que o imaginaacuterio sacrificial eacute semelhante Haacute

um paralelismo macabro entre o que Lico pretendia e o que Heacuteracles realiza Este

paralelismo eacute notoacuterio nas falas de Meacutegara e do Mensageiro Meacutegara usa foacutermulas

proacuteprias de um sacrifiacutecio para descrever as intenccedilotildees de Lico Escolhe palavras como

ἱερεύς (sacerdote) σφαγεύς (sacrifiacutecio de animais) θύματα (sacrifiacutecio de viacutetimas) ndash vv

451-453 O Mensageiro quando descreve o crime de Heacuteracles dando uma imagem de

um sacrifiacutecio usa uma linguagem semelhante agrave de Meacutegara θῦμα e ἐπισφάξων (vv 994-

995)

2 Caracterizaccedilatildeo de Heacutercules na trageacutedia de Seacuteneca

Heacutercules eacute em Seacuteneca o centro para o qual tudo converge Apesar de entrar em

cena apenas no Acto III todas as falas das personagens diaacutelogos e odes o focam como

protagonista Podemos mesmo afirmar que a personagem nos vai sendo apresentada sob

os vaacuterios pontos de vista de Juno do Coro de Anfitriatildeo de Meacutegara de Lico e de

Teseu a par daquilo que o proacuteprio heroacutei diz sobre si mesmo completando-se assim um

retrato multiacutemodo que revela o modo como eacute interpretado o valor do Alcida56

Seacuteneca caracteriza o heroacutei por meio de antiacuteteses pelo duplo nascimento pela

uirtus e pelo uitium pelo modo civilizador e pelo selvagem Aleacutem destes aspectos o

Alcida eacute representado metonimicamente como a vida (o salvador a lsquoluzrsquo) e a morte (o

que destroacutei as lsquotrevasrsquo) Se estes binoacutemios permitem pontos de contacto com o seu

modelo Euriacutepides o objectivo de Seacuteneca eacute contudo outro analisar os affectus do

protagonista tomando-o como exemplo de personagem natildeo-estoacuteica Assim por

exemplo o toacutepico da amizade que encontramos bem delineado em Euriacutepides desde a

56 Em Euriacutepides este movimento centriacutepeto natildeo eacute tatildeo marcado No diaacutelogo entre as personagens haacute igualmente vaacuterias referecircncias ao heroacutei contudo natildeo se centram exclusivamente no protagonista Haacute menos monoacutelogos e mais acccedilatildeo

114

primeira cena ateacute ao terminar da acccedilatildeo dramaacutetica eacute omitido por completo No caso de

Heacutercules o filoacutesofo concentrou boa parte da sua anaacutelise numa caracteriacutestica fiacutesica do

Alcida sendo a mais proeminente e que melhor define o heroacutei a forccedila57 fiacutesica Este eacute

um elemento imprescindiacutevel para a compreensatildeo da personagem uma vez que

representa para Seacuteneca um ldquosintomardquo daquilo que Heacutercules eacute e que vai revelando no

decorrer da acccedilatildeo um caraacutecter superbus impius sendo o sustentaacuteculo dos seus excessos

e da sua desmedida confianccedila

Esta forccedila permite agraves personagens reconhecerem-no agnosco toros umerosque

et alto nobilem trunco manum (vv 624-625) Neste passo haacute uma gradaccedilatildeo que parte

do geral para o particular e que revela que Anfitriatildeo focou o seu campo de visatildeo nos

braccedilos e nas matildeos Foi este o primeiro impacte visual que levou ao reconhecimento da

chegada do filho58 Este centrar do campo de visatildeo numa caracteriacutestica especiacutefica do

corpo prova que o aspecto que melhor define Heacutercules eacute a sua forccedila Eacute nela e por ela

que reage agraves situaccedilotildees

Neste sentido haacute que notar que a palavra que eacute sucessivamente evocada pelas

personagens para representar esta caracteriacutestica de Heacutercules eacute manus59 significando por

metoniacutemia o poder mas particularmente a forccedila Assim tendo como ponto de partida

para a anaacutelise do protagonista este elemento que na concepccedilatildeo estoacuteica eacute um

indiferente uma vez que pode ser usada para o bem ou para o mal procuraremos ver

como todos os outros elementos supramencionados se conjugam

Ao contraacuterio do que fizemos para Heracles natildeo vamos estruturar esta aliacutenea em

toacutepicos mas analisaacute-los num todo porque em Hercules Furens todas as caracteriacutesticas

que revelam os affectus do protagonista se ligam de forma a conduzi-lo inevitavelmente

ao furor e consequentemente ao scelus Shelton diz ldquoHerculesrsquo madness is the

dramatic center of this play and Senecarsquos intention is to explore the cause and the

57 Esta forccedila eacute entendida como uma uirtus por uma boa parte das personagens (Heacutercules mas tambeacutem Anfitriatildeo e Meacutegara) enquanto para outras representa o lado excessivo do heroacutei (Juno Lico) 58 Jaacute a forma como Heacuteracles eacute reconhecido quando se aproxima do palaacutecio eacute diferente parece ser um processo natural e gradual Meacutegara e Anfitriatildeo reconhecem o heroacutei quando ele se dirige ao palaacutecio ndash natildeo haacute qualquer referecircncia ao seu aspecto fiacutesico (vv 515-519) 59 A semacircntica da matildeo para identificar o protagonista natildeo eacute tatildeo recorrente na trageacutedia de Euriacutepides A palavra χείρ ocorre quinze vezes representando ou a forccedila do Alcida (v 397 v 404) ou a justiccedila (castiga os tiranos v 565) ou a protecccedilatildeo (v 435 v 631) ou a vinganccedila (v 938) ou a impiedadecrime (v 964 v 968 v 1145 v 1199 v 1208) ou a salvaccedilatildeo apoio (Teseu pede ao heroacutei que lhe estenda a matildeo para poder ser auxiliado v 1398 v 1402) ou a purificaccedilatildeo (v 940 v 1324) Em Seacuteneca o nuacutemero de ocorrecircncias eacute maior tendo o sentido de forccedila poder v 58 v 114 v 122 v 221 v 247 v 272 v 279 v 442 v 469 v 528 v 566 v 614 v 625 v 807 v 882 v 914 v 919 v 998 v 1034 v 1040 v 1044 v 1098 v 1103 v 1192 v 1193 v 1196 v 1211 v 1244 v 1260 v 1297 v 1319 v 1328

115

development of the madnessrdquo60 Seraacute neste sentido que desenvolveremos o estudo da

personagem partindo de uma hetero e auto-caracterizaccedilatildeo e das manifestaccedilotildees do

protagonista perante as adversidades

Da fala de Juno sobressai a indomita uirtus (v 39) de Heacutercules que venceu todos

os obstaacuteculos que a natureza gerou na terra no mar e no ar quidquid horridum tellus

creat inimica quidquid pontus aut aer tulit terribile dirum pestilens atrox ferum

fractum atque domitum est (vv 30-33) A iteraccedilatildeo de quidquid (vv 30-31) que

generaliza tudo o que Heacutercules conseguiu domar o assiacutendeto (cf v 32) que acentua a

acumulaccedilatildeo de adjectivos numa esfera de horror e atrocidade reiteram por um lado o

oacutedio de Juno (v 35) ndash Heacutercules dominou tudo ndash por outro sublinham a forccedila

descomunal do heroacutei e a sua arrogacircncia61 visto que segundo Juno iraque nostra

fruitur in laudes suas mea uertit odia (vv 34-35) A estrutura quiaacutestica vem reforccedilar a

ideia do fracasso total dos objectivos da divindade face a um espiacuterito indomaacutevel Natildeo haacute

nada que consiga controlar Heacutercules e pocircr-lhe um freio pois nada parece saciaacute-lo Pelo

contraacuterio aceita todos os labores que Juno lhe envia laetus imperia excipit (v 42)

Aleacutem disso os monstros que temeu no iniacutecio em particular a Hidra de Lerna e o Leatildeo

de Neacutemea satildeo transportados por ele como armas de defesa (vv 44-46) fez da pele do

leatildeo o seu escudo e embebeu as suas setas com o veneno da serpente62 Devido ao

sucesso motivado pelas consecutivas vitoacuterias Heacutercules eacute conhecido por todo o orbe e

considerado como um deus qua Sol reducens quaque deponens diem binos propinqua

tinguit Aethiopas face indomita uirtus colitur et toto deus narratur orbe (vv 37-40)

Para Fitch a indomita uirtus ldquomay suggest that Hercules is not only spoken as a

god (narrator below) but worshipped as onerdquo63 Segundo este autor a palavra uirtus eacute

por si um argumento que mostra que Heacutercules foi deificado Esta divinizaccedilatildeo pode

representar para Juno um modo de excesso visto que o heroacutei eacute um mortal mas por

60 Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 28 61 Shelton na n 47 do artigo ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 diz que as palavras de Juno revelam elementos estoacuteicos laetus imperia excipit (v 42) Parece natildeo haver contudo qualquer referecircncia agrave impassibilidade estoacuteica de aceitar com alegria o que o Fatum lhe reserva uma vez que a deusa diz de seguida quae fera tyranni iura uiolento queant nocere iuueni (vv 43-44) ndash esta ideia estaacute ainda presente nos versos anteriores superat et crescit malis iraque nostra fruitur in laudes suas mea uertit odia (vv 33-35) A indiferenccedila de um estoacuteico manifesta-se pela ausecircncia de dor ou de prazer em tudo o que o Destino lhe reserva A suprema felicidade estaacute em viver segundo o Bem (vide Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 715 ss) e parece natildeo ser esta a ideia que a personagem Juno quer transmitir Pelo contraacuterio vemos que quando Heacutercules entra em cena revela um certo comprazimento em executar as tarefas impostas ansiando por mais 62 Fitch (1) 133 considera que a sineacutedoque ldquovem armado com o leatildeo e a hidrardquo pretende revelar que as caracteriacutesticas desses monstros natildeo morreram mas coabitam no heroacutei 63Fitch (1) 133

116

outro aludir ao esperado futuro de Heacutercules o de ascender agraves moradas divinas como

ela proacutepria admite pariterque natus astra promissa occupet in cuius ortus mundus

impendit diem tardusque Eoo Phoebus effulsit mari retinere mersum iussus Oceano

iubar (vv 23-26) Depois de uma anterior enumeraccedilatildeo dos vaacuterios filhos e amadas que

Juacutepiter teve e que ascenderam aos astros (cf vv 6-21) a referecircncia a Heacutercules e aos

astra promissa provam que seraacute essa a proacutexima etapa do heroacutei64 A perseguiccedilatildeo de Juno

eacute uma tentativa de evitar que tambeacutem o protagonista venha a morar com os sempiternos

Analisando as palavras de Juno deduz-se que em Heacutercules existe uma uirtus

que adveacutem da vontade do heroacutei em destruir tudo o que de monstruoso e terriacutevel a terra

possui fazendo um bom uso da forccedila que ele deteacutem a par de caracteriacutesticas de excesso

e erro claramente delineadas ele eacute megaloacutemano (v 46 nec satis terrae patent)

arrogante (v 58 superbifica ndash o adjectivo composto por superbus e facio intensifica o

sentido de lsquosoberborsquo que a forma simples jaacute comporta acentuando a ideia de que a forccedila

de Heacutercules inspira orgulho) e violento (vv 43-44 uiolento iuueni) ndash o proacuteprio

vestuaacuterio de Heacutercules contribui para dar a imagem de um ser baacuterbaro (vv 45-46

armatus uenit leone et hydra) Como diz Littlewood ldquoThe lion-skin is one of Herculesrsquo

most distinctive features and this savage lion symbolizes Hercules himselfrdquo65

A violecircncia de Heacutercules depreende-se tambeacutem de algumas formas do particiacutepio e

de verbos domitus (cf v 51) particiacutepio perfeito de domo implica o uso de forccedila na

acccedilatildeo de subjugar iactans (cf v 51) particiacutepio presente de iacto demonstra a

arrogacircncia do heroacutei em ter derrotado Plutatildeo e revela o perigo iminente de que uma vez

vencidos os spolia fraterna (vv 51-52) Heacutercules ambicione conquistar os do pai (v

51) ruptus (cf v 57) particiacutepio perfeito de rumpo acentua a ideia de forccedila violenta no

acto de lsquoromperrsquo lsquoquebrarrsquo o lugar onde se encerram as sombras Juno recorda a

excessiva confianccedila que Heacutercules tem no seu poder robore experto tumet (v 68) ndash a

forma verbal no presente do indicativo sublinhada pela metaacutefora (robur ndash representa a

forccedila a rigidez do heroacutei) sugere a imoderaccedilatildeo do protagonista Com estas

caracteriacutesticas que foi delineando em Heacutercules Juno pretende provar que o heroacutei eacute um

64 De notar o paralelismo entre o nascimento dos geacutemeos Castor e Poacutelux (que resultam da uniatildeo de Juacutepiter e Leda e desta com Tiacutendaro numa mesma noite) para cuja concepccedilatildeo a terra se imobilizou e o de Heacutercules para cuja concepccedilatildeo foram necessaacuterias vinte e quatro horas No primeiro caso os geacutemeos jaacute obtiveram a morada celeste para Heacutercules haacute a promessa de a vir obter 65 Cedric A J Littlewood Self-Representation and Illusion in Senecan Tragedy (Oxford Oxford University Press 2004) 113

117

monstro Nesse sentido diz a deusa quaeris Alcidae parem nemo est nisi ipse (vv

84-85)

A par da criacutetica de Juno vem a perspectiva do Coro que natildeo eacute mais positiva Os

adjectivos e substantivos que usa para qualificar e caracterizar a personagem satildeo

indicadores disso pectore forti (v 186) uiribus (v 591) audax (v 772) Nestes

exemplos satildeo visiacuteveis um conjunto de traccedilos que demonstram que Heacutercules estaacute

afastado do ideal do sapiens Ao mostrar que o protagonista eacute excessivo dominado por

paixotildees o Coro deixa impliacutecito que a sua queda seraacute inevitaacutevel (por exemplo vv 192-

196 v 201 vv 588-589)

Na Ode III depois de descrever a turba que desce aos Infernos e de comentar a

inevitabilidade da morte segue-se um hino (vv 875-892) de louvor ao heroacutei vencedor

que antecede o momento da loucura tal como em Euriacutepides (vv 763-814) Para

Shelton ldquothe chorus for the first time claims that Hercules has brought peace to the

world by descending to the Underworld although we soon find that he has created

disorder and must pay for it Their expression of joy here creates a false mood of relief

before the horror and despair of the rest of the playrdquo Eacute patente a ironia traacutegica que em

termos estoacuteicos se traduz num error de avaliaccedilatildeo da parte do Coro jaacute que Heacutercules natildeo

eacute a lsquoluzrsquo salvadora mas sim as lsquotrevasrsquo destruidoras

Jaacute a perspectiva de Anfitriatildeo difere da de Juno e do Coro Natildeo contesta o valor

de Heacutercules reconhecendo a uirtus do filho na forccedila fiacutesica Esta revelara-se ainda

Heacutercules natildeo tinha discernimento (vv 215 ss)66 Para Anfitriatildeo o filho eacute o libertador da

raccedila humana por ter dominado todos os monstros e a ausecircncia do Alcida resultou no

domiacutenio do scelus que levou a uma mudanccedila na ordem natural das coisas (vv 251-252)

No entanto Anfitriatildeo acredita no regresso do filho e a enumeraccedilatildeo dos trabalhos67 de

66 Na perspectiva de Segurado e Campos a uirtus de Heacutercules eacute essencialmente fiacutesica e compara o heroacutei a Lico Tambeacutem o tirano considera ter uma (clara) uirtus que se baseia principalmente no poder da forccedila ndash foi por meio dela e com a ajuda de armas que conseguiu vencer Tebas e manter o poder ldquosente prazer na violecircncia eacute indiferente agrave justiccedila ou injusticcedila com que se emprega a forccedilardquo diz Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos ldquoSeacuteneca e Heacutercules Observaccedilotildees sobre o Hercules Furensrdquo Euphrosyne 8 (1977) 165 67 A identificaccedilatildeo dos doze trabalhos eacute diferente nas duas trageacutedias Euriacutepides omite a caccedila ao Javali de Erimanto os paacutessaros de Estinfaacutelia os estaacutebulos de Augeu e o touro de Creta Esta diferenccedila deve-se aos objectivos que norteiam cada um dos tragedioacutegrafos em Heracles o Coro daacute uma imagem do heroacutei enquanto civilizador e pacificador que procura auxiliar os humanos contrastando no final da trageacutedia com a posiccedilatildeo dos deuses que natildeo demonstram qualquer consideraccedilatildeo pelos homens Em Hercules Furens o propoacutesito do autor prende-se com a valorizaccedilatildeo da forccedila que o protagonista possui sendo uma forma de demonstrar que nada impede Heacutercules de sair do mundo inferior antes representaraacute mais uma vitoacuteria para ele (v 278) Vemos que filoacutesofo natildeo se limitou a uma imitatio Ao escolher outros trabalhos Seacuteneca distancia-se claramente do seu modelo

118

Heacutercules serve de exemplum68 de tudo o que o Alcida jaacute conseguiu superar justificando

a esperanccedila de que o protagonista encontraraacute uma via para sair do mundo inferior (vv

275-278) Infere-se ainda das falas de Anfitriatildeo que Heacutercules ou eacute um ser divino ou

tornar-se-aacute um deus visto que Tebas eacute conhecida por ter gerado e criado muitos deuses

(vv 265-267)

Haacute contudo no discurso e no diaacutelogo de Anfitriatildeo com as outras personagens

elementos subtis que permitem identificar em Heacutercules uma natureza indomaacutevel que

natildeo descansa mas antes percorre o mundo69 ou em contiacutenua labuta (vv 209-215) ou a

seruire (v 273 derivado da palavra seruus a forma verbal significa lsquoser escravorsquo)

denotando a satisfaccedilatildeo do protagonista em cumprir as tarefas que lhe satildeo impostas e que

tecircm implicaccedilotildees psicoloacutegicas a audaacutecia a megalomania a arrogacircncia e a crueldade

que foram jaacute apresentadas por Juno e pelo Coro A audacia do Alcida eacute evidente na

descriccedilatildeo que Anfitriatildeo faz de um dos trabalhos que o heroacutei concluiu (vv 247-248 nec

ad omne clarum facinus audaces manus stabuli fugauit turpis Augei labor) e quando

Anfitriatildeo comenta com Meacutegara aderit profecto qualis ex omni solet labore maior

(vv 312-314)

No ponto de vista de Segurado e Campos a forma adjectiva no comparativo

tem trecircs interpretaccedilotildees possiacuteveis Heacutercules vem maior porque venceu mais uma tarefa

vem mais forte regressa maior porque traz consigo mais despojos das suas guerras ndash a

forma adjectiva estaacute conotada com a ambiccedilatildeo de mais poder chega maior porque mais

arrogante O mesmo autor conclui ldquoO que maior sem sombra de duacutevida natildeo implica eacute

qualquer progresso de ordem moralrdquo70 Natildeo haacute uma uacutenica alusatildeo ao caraacutecter psicoloacutegico

do Alcida num ponto de vista positivo mas apenas a caracteriacutesticas negativas que tecircm

como causa o uso desmesurado que o heroacutei faz da sua forccedila

68 Seacuteneca socorre-se com frequecircncia de exempla para ilustrar uma ideia por exemplo Juno enumera no iniacutecio do soliloacutequio as paelices que ascenderam aos astros para revelar que Alcmena e o filho poderatildeo vir igualmente a conquistaacute-los (vv 6-26) Meacutegara descreve o destino dos tiranos que governaram Tebas ameaccedilando ser esse o fatum de Lico (vv 384-396) Anfitriatildeo tenta provar que Heacutercules eacute um deus dando como exemplo o nascimento e a vida de Apolo e de Baco (vv 449-476) o Coro recorda a histoacuteria de Orfeu e Euriacutedice para demonstrar que o regresso do Alcida traraacute consequecircncias 69 Para Seacuteneca quando algueacutem passa uma boa parte da vida a deambular revela instabilidade e doenccedila da alma porque foge aos problemas e a si proacuteprio A capacidade do homem de permanecer estaacutevel demonstra que consegue viver consigo (Seacuteneca Ad Lucilium Epistolae Morales 2) 70 Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos ldquoSeacuteneca e Heacutercules Observaccedilotildees sobre o Hercules Furensrdquo Euphrosyne 8 (1977) n 56 (166)

119

Meacutegara reconhece o valor de Heacutercules pectore impulsus tuo huc mons et illuc

cessit et rupto aggere noua cucurrit Thessalus torrens uia (vv 286-288) maximae

uirtutes (cf v 325) Virtutis est domare quae cuncti pauent (v 435) Em todos estes

exemplos a uirtus do Alcida eacute dominantemente fiacutesica sendo possiacutevel encontrar

associados agrave expressatildeo desse valor exemplos que provam que Heacutercules se deixou

corromper pelo poder da sua forccedila

- dispulsas manu abrumpe tenebras (vv 279-280)

- nulla si retro uia iterque clausum est orbe diducto redi (vv 280-281)

- et quidquid atra nocte possessum latet emitte tecum (vv 282-283)

- erumpe rerum terminos tecum efferens et quidquid auida tot per annorum

gradus abscondit aetas redde et oblitos sui lucisque pauidos ante te populos age

(vv 290-293)

- indigna te sunt spolia si tantum refers quantum imperatum est (vv 294-295)

A forccedila impetuosa que Heacutercules poderaacute usar para sair dos Infernos eacute bem

visiacutevel nos exemplos citados Esta violecircncia eacute intensificada pelo vocabulaacuterio conotado

com as trevas dispulsae tenebrae (vv 279-280) atra nox (v 282 o pleonasmo

permite reforccedilar a descriccedilatildeo do locus horrendus) obliti pauidi populi (vv 292-293)

Algumas formas verbais no imperativo satildeo igualmente sugestivas pois permitem

demonstrar a brutalidade do Alcida abrumpe (v 280) erumpe (v 290) ndash note-se a

uariatio a acentuar a forccedila do heroacutei ndash intensificadas pelo particiacutepio diductus (v 281

orbe) e pela iteraccedilatildeo do pronome pessoal com a preposiccedilatildeo posposta tecum (v 283 v

290)

Lico contesta o valor de Heacutercules e boa parte do seu discurso eacute uma alusatildeo agrave

servidatildeo do heroacutei O toacutepico pretende servir de modelo para persuadir Meacutegara a ser

igualmente escrava e a submeter-se agrave vontade dos soberanos (vv 397-398) mas em

simultacircneo enumera uma criacutetica por Meacutegara preferir um famulus a algueacutem que possui o

sceptrum (cf v 430)

Ao contraacuterio de Meacutegara e de Anfitriatildeo o tirano natildeo vecirc em qualquer acccedilatildeo do

Alcida uma demonstraccedilatildeo da sua uirtus pelo contraacuterio potildee em causa a heroicidade de

Heacutercules uma vez que a virtude natildeo estaacute em matar feras e monstros (v 434) e parece

natildeo ficar persuadido pelos argumentos de Meacutegara (v 423 Inferna tetigit posset ut

120

supera assequi v 437 Non est ad astra mollis e terris uia) dado que lhe pergunta Quo

patre genitus caelitum sperat domos (v 438)

Nem quando Anfitriatildeo lembra a ascendecircncia divina do filho resumindo os

seus feitos recordando que lutou ao lado de deuses (vv 444-446) e que Juno o

perseguiu sempre (vv 445-446) Lico lhe reconhece o valor Pelo contraacuterio deixa

subjacente que todo o bem que Heacutercules faz agrave humanidade foi sempre por ordem de

Juno ou de Euristeu Quando age por si o heroacutei revela o seu lado cruel

Hoc Euryti fatetur euersi domus Pecorumque ritu uirginum oppressi greges Hoc nulla Iuno nullus Eurystheus iubet Ipsius haec sunt opera71 (vv 477-480)

Segurado e Campos vecirc nestes versos uma prova de que Heacutercules estaacute

desprovido de ratio deixando evidente um caraacutecter implacaacutevel e que agraves acusaccedilotildees de

Lico Anfitriatildeo responde com argumentos muito fraacutegeis O autor sugere

Anfitriatildeo apenas consegue retorquir post multa uirtus opera laxari solet [v 476] triste justificaccedilatildeo ndash e quatildeo pouco estoacuteica ndash para as fraquezas criticadas por Lico e logo a seguir quando Lico recorda a violecircncia de Heacutercules no assalto a Ecaacutelia [vv 477-480] Anfitriatildeo natildeo soacute o natildeo refuta como cita ainda outros inimigos vencidos pelo heroacutei e prevecirc a breve inclusatildeo de Lico nessa lista [vv 480-489]72

A resposta de Anfitriatildeo natildeo eacute para Segurado e Campos suficientemente

convincente quando enumera personagens mitoloacutegicas (Anteu Eacuterice Busiacuteris Cicno e

Geacuterion73) que foram castigadas por Heacutercules por terem comportamentos crueacuteis

71 O uacuteltimo argumento que Lico utiliza como a derradeira tentativa de provar que Heacutercules natildeo descende de Juacutepiter nem os seus feitos foram heroacuteicos eacute um anacronismo Em Oviacutedio Metamorphoses 9134 ss a destruiccedilatildeo do palaacutecio de Ecircurito e consequente tomada de Ecaacutelia motivadas pela paixatildeo que Heacuteracles tinha por Iacuteole vecircm depois de o Alcida se ter unido a Dejanira a segunda esposa Como nota Fitch (1) 242 ldquoThe reference in 477 to the Iole episode () has been criticized by some commentators as mythologically anachronistic as it occurred at the end of the herorsquos life his death being caused by Dejanirarsquos jealousy of Iole () But the capture of Iole is after all a reasonably self-contained event and one doubts whether ancient audiences deprived of the commentatorsrsquo help would have noticed the anachronism It would be a different matter if Lycus had referred to Deianira herselfrdquo Apesar de este tema voltar a ser focado no Hercules Oetaeus e com maior desenvolvimento o propoacutesito de Seacuteneca eacute comprovar o caraacutecter violento e passional de Heacutercules que destroacutei um palaacutecio movido pelo amor fatal Fitch (1) 24 afirma que a referecircncia ao acto do heroacutei tem um objectivo ldquoThese criticisms remind us of an element of instability in Herculesrsquobehavior which is familiar from the mythological traditionrdquo 72 Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos ldquoSeacuteneca e Heacutercules Observaccedilotildees sobre o Hercules Furensrdquo 165 73 Note-se que os trecircs primeiros ousaram provocar um duelo contra Heacutercules No caso de Anteu e Busiacuteris estes eram conhecidos pela sua impiedade e barbaridade ao matarem todos os estrangeiros que passavam por eles Jaacute Eacuterice quis ficar com o gado que Heacutercules roubara a Geacuterion Quanto a este uacuteltimo natildeo parece

121

Anfitriatildeo poreacutem ao acrescentar outros feitos permite dar pelo menos uma ideia da

ambivalecircncia do heroacutei que ora usa a forccedila para o mal (a imagem da perversidade de

Heacutercules que viola virgens eacute intensificada pela metaacutefora pecorumque greges ndash v

478) ora para o bem (liberta o mundo de homens tiracircnicos) Natildeo parece ser suficiente

restringir o estudo apenas aos argumentos de Lico ainda que possam ser mais vaacutelidos

Segurado e Campos afirma ldquoSe pensarmos que Heacutercules quando agiu em proveito da

humanidade o fez sob as ordens de Euristeu ao passo que entregue a si proacuteprio se

comportou indignamente perante Ocircnfale ou se deixou levar aos excessos de Ecaacutelia

pouca diferenccedila parece existir afinal entre o heroacutei e o tiranordquo74

Thalia Papadopoulou75 compara Heacutercules a Lico identificando em ambos

pontos semelhantes A analogia entre as duas personagens deixa reservas no que diz

respeito agrave concepccedilatildeo que o heroacutei tem da sua uirtus tanto Heacutercules como Lico

pretendem que haja paz (vv 926-937 Heacutercules vv 368-369 Lico) ambos entram em

cena vitoriosos (vv 895-899 Heacutercules vv 332-340) Na Ode I o Coro manifesta a sua

desaprovaccedilatildeo relativamente agraves ambiccedilotildees ilimitadas de poder tomando Heacutercules como

modelo dessa paixatildeo (vv 125-201) No entanto eacute possiacutevel acrescentar Lico ao nuacutemero

dos que merecem tal censura uma vez que o tirano natildeo respeita a justiccedila dominado

pela sede do poder tenta mantecirc-lo a todo o custo (vv 406-407) Heacutercules e Lico satildeo

ambos arrogantes e insolentes No primeiro caso Juno vai registando as caracteriacutesticas

que reconhece no Alcida e parte delas para justificar a sua perseguiccedilatildeo e castigo (vv 47

ss) Lico eacute criticado por Meacutegara por ser insolente e eacute avisado de um possiacutevel castigo

vindo dos deuses (vv 284-286) O tirano pretende matar a famiacutelia do Alcida caso

Meacutegara recuse casar-se com ele (vv 350-352) Heacutercules no momento da sua loucura

toma os seus filhos por descendentes de Lico e assassina-os (vv 987-991)

Tal como em Heracles a questatildeo da violaccedilatildeo dos santuaacuterios sagrados eacute tambeacutem

focada por Seacuteneca Lico ousa tentar matar Anfitriatildeo Meacutegara e os filhos dela que se

tinham refugiado no santuaacuterio de Juacutepiter queimando-os junto do altar (vv 501-508)

Heacutercules por seu turno viola duas vezes um interdito sagrado ao natildeo respeitar os

tatildeo loacutegica a sua referecircncia visto que estaacute relacionado com um dos doze trabalhos Fitch (1) considera ser despropositada a alusatildeo a este monstro apontando dois motivos ldquofirst because H[ercules] encountered him as direct result of orders from Eurystheus and second because Geryon was not generally known for lawlessnessrdquo (Fitch (1) 243) 74 Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos ldquoSeacuteneca e Heacutercules Observaccedilotildees sobre o Hercules Furensrdquo 165-166 75 Thalia Papadopoulou ldquoHerakles and Hercules The Herorsquos Ambivalence in Euripides and Senecardquo 257-283

122

suplicantes Agrave semelhanccedila do que acontece em Heracles (vv 986-994) o segundo filho

em tom e atitude de suplicante roga ao pai que o poupe (vv 1002-1004 En blandas

manus ad genua tendens uoce miseranda rogat) mas acaba por ser projectado e

morrer despedaccedilado contra as paredes (vv 1005-1007) Por uacuteltimo ambos Lico e

Heacutercules pretendem matar a famiacutelia do seu opositor por meio de um sacrifiacutecio humano

Heacutercules entra em cena no Acto III (vv 592 ss) A sua chegada eacute sentida por

Anfitriatildeo no momento em que dirigia as suas preces ao Alcida O anciatildeo reconhece a

chegada proacutexima do filho pela forma como a Natureza reagiu agraves suas suacuteplicas Cur

subito labant agitata motu templa Cur mugit solum infernus imo sonuit e fundo

fragor audimur est est sonitus Herculei gradus (vv 520-523) A iteraccedilatildeo do adveacuterbio

interrogativo denuncia o espanto de Anfitriatildeo Ele sente um suacutebito e violento

movimento proveniente do interior da terra do lugar mais profundo que agita os

templos ameaccedilando-os ruir ndash os verbos que representam sensaccedilotildees auditivas (agitata

mugit sonuit) aliados aos substantivos (sonitus fragor) e ao quiasmo e aliteraccedilatildeo

(infernus imo ndash e fundo fragor) datildeo a imagem de uma forccedila violenta que Heacutercules usaraacute

para sair dos infernos Os passos do heroacutei satildeo ouvidos (v 523 audimur) e reconhecidos

por Anfitriatildeo ndash o vocaacutebulo sonitus que eacute determinado pelo genitivo gradus acentua o

caraacutecter colossal do Alcida assim como a sua forccedila sobre-humana76

O monoacutelogo de Heacutercules atesta alguns dos traccedilos que as personagens foram

apresentando no decorrer da acccedilatildeo dramaacutetica O heroacutei caracteriza-se pois pela

immoderatio natildeo consegue controlar os seus impulsos nem os desejos eacute excessivo na

sua auto-confianccedila revelando um caraacutecter ambicioso e particularmente audaz Na parte

final do monoacutelogo (vv 614-615) o Alcida invoca Juno pedindo-lhe que lhe envie mais

monstros no que manifesta um espiacuterito insaciaacutevel que natildeo se cansa das labutas Este

geacutenero de paralelos entre Juno e Heacutercules eacute visiacutevel noutros passos

a) quando Plutatildeo foi derrotado Juno pergunta por que motivo Heacutercules natildeo quis

governar as moradas das sombras (v 54) ficando no lugar do rei vencido A esta

questatildeo Heacutercules responde et si placerent tertiae sortis loca regnare potui (vv 609-

610)

76 Esta saiacuteda dos Inferni lembra a de Tacircntalo (Thyestes vv 1 ss) e de Aquiles (Troades vv 171 ss) ndash nestes dois exemplos o aparecimento destas sombras criou um ambiente de tensatildeo que exigia um sacrifiacutecio A chegada de Heacutercules tambeacutem se revelaraacute fatal e conduziraacute a uma imolaccedilatildeo

123

b) Juno queixa-se de que jaacute nem a terra eacute suficiente para travar Heacutercules (vv 46-

48 Nec satis terrae patent effregit ecce limen inferni Iouis et opima uicti regis ad

superos refert) O protagonista ao recordar o oacutedio de Juno que natildeo o deixa tranquilo um

uacutenico momento usa as mesmas palavras da deusa In poenas meas atque in labores

non satis terrae patent Iunonis odio (vv 604-606)

O primeiro diaacutelogo de Heacutercules (vv 626-640) com as outras personagens eacute ao

contraacuterio do que acontece na trageacutedia de Euriacutepides (vv 531-636) curto e pouco

afectuoso ele dirige-se uma uacutenica vez a Anfitriatildeo e a Teseu Procura saber junto de

Anfitriatildeo por que motivo estatildeo ele Meacutegara e os filhos vestidos de luto e com aspecto

miseraacutevel (vv 626-628 squalor et lugubribus amicta obsiti paedore) Depois de

tomar conhecimento dos uacuteltimos conflitos provocados por Lico Heacutercules sente que lhe

compete o dever de castigar o tirano

Ingrata tellus nemo ad Herculeae domus auxilia uenit uidit hoc tantum nefas defensus orbis ndash cur diem questu tero mactetur impar hanc ferat uirtus notam fiatque summus hostis Alcidae Lycus ad hauriendum sanguinem inimicum feror Theseu resiste ne qua uis subita ingruat me bella poscunt differ amplexus parens coniuxque differ nuntiet Diti Lycus me iam redisse (vv 631-640)

O protagonista sente-se constrangido por ningueacutem ter auxiliado a casa de

Heacutercules (v 631 Herculeae domus) ele que eacute o defensor do mundo (v 633 defensus

orbis) Mas dos lamentos iniciais passa imediatamente agrave acccedilatildeo cur diem questu tero

(v 633) O seu uacuteltimo trabalho eacute agora matar Lico hanc ferat uirtus notam fiatque

summus hostis Alcidae Lycus (vv 634-635)77 O heroacutei sente que haacute uma forccedila superior

que o impele a querer derramar sangue e sendo essa uma tarefa sua uma vez que as

guerras reclamam apenas a presenccedila dele (v 637) dissuade Teseu de acompanhaacute-lo

Esta forccedila que o Alcida sente dentro de si pode levar a duas interpretaccedilotildees

complementares eacute um sentimento especificamente violento que aflora in se e que o

77 Herrmann atribui os vv 634-636 a Teseu enquanto Fitch (1) Viansino e Giardina a Heacutercules No ponto de vista de Fitch (1) 286 estes versos natildeo dizem respeito agrave fala de Teseu ldquouirtus would be awkward in the sense of uirtus tua 637 wolud be an odd response to Theseusrsquo offer and the bloodthirstiness of 636 suits Hercules better than Theseus Two factors that may have contributed to Arsquos error are the vocative Theseu in 637 and Hrsquos third person reference to himself in 635rdquo

124

leva a derrubar a tirania de Tebas pode ser um auguacuterio de um ataque de loucura

iminente

O heroacutei estaacute tatildeo obcecado pela ideia de se vingar que dispensa qualquer afecto

da famiacutelia (vv 638-639 differ amplexus parens coniuxque differ) remetendo abraccedilos

e demonstraccedilotildees de carinho para depois A estrutura quiaacutestica reforccedilada pela iteraccedilatildeo

do verbo no imperativo presente acentua a ideia de um desejo de aproximaccedilatildeo por parte

da famiacutelia pelo regresso tatildeo esperado de Heacutercules mas que eacute veementemente rechaccedilado

pelo Alcida A uacutenica preocupaccedilatildeo que o move eacute matar Lico e a estrutura quiaacutestica (vv

639-640 nuntiet Diti Lycus me iam redisse) aproxima as duas personagens que teratildeo

inevitavelmente de confrontar-se visto que a Heacutercules cabe a funccedilatildeo de castigar os

iacutempios e Lico eacute a representaccedilatildeo maacutexima do tirano Estaacute tambeacutem em causa a seguranccedila

da famiacutelia

Heacutercules regressa no Acto IV vitorioso (vv 895 ss) Derrotou Lico e a ordem

foi aparentemente estabelecida Assume-se como vingador (v 895 ultrice dextra)

preparando-se para oferecer libaccedilotildees aos deuses nunc sacra patri uictor et superis

feram caesisque meritas uictimis aras colam (vv 898-899) A ironia traacutegica eacute

manifesta nestes versos ele seraacute o sacerdote que vai oferecer viacutetimas humanas aos

deuses

A descriccedilatildeo da demecircncia de Heacutercules eacute gradual Natildeo eacute muito faacutecil identificar em

Heacutercules dois momentos psicoloacutegicos isto eacute um momento em que revele sanidade

mental e um outro que demonstre um estado completamente diferente de insania

Semelhante dificuldade deve-se agrave inexistecircncia de dois extremos Desde o primeiro

momento em que aparece em cena Heacutercules mostra estar muito proacuteximo da loucura natildeo

soacute pela incapacidade de discernimento dos limites existentes entre os deuses e os

humanos e pelo modo impetuoso como reage agraves proacuteprias situaccedilotildees como ainda pela

forma como pretende honrar os altares com oferendas Compara-se com alguma

frequecircncia aos deuses celestes (vv 592-613 vv 900-908) identificando Juacutepiter como

seu pai Juno como madrasta e os deuses como irmatildeos (vv 907-908 fraterque quisquis

incolit caelum meus non ex nouerca frater)

Eacute imoderado ao querer fazer uma libaccedilatildeo aos deuses sem primeiro purificar as

suas matildeos maculadas pelo sangue de Lico natildeo aceitando os conselhos de Anfitriatildeo A

imagem que este daacute das matildeos do filho indica que a morte do tirano teraacute sido violenta

manantes prius manus cruenta caede et hostili expia (vv 918-919) A aliteraccedilatildeo

125

(cruenta caede) a assonacircncia em nasal e a semacircntica do particiacutepio presente de mano

contribuem para a visualizaccedilatildeo do sangue que ainda escorre das matildeos do Alcida O

proacuteprio adjectivo cruenta que remete para cruor (lsquosangue derramadordquo) ilustra a

impiedade do heroacutei A resposta de Heacutercules deixa visiacutevel a sua impietas

utinam cruorem capitis inuisi deis libare possem gratior nullus liquor tinxisset aras uictima haud ulla amplior potest magisque opima mactari Ioui quam rex iniquus

(vv 920-924)

As figuras de retoacuterica permitem dar uma imagem da crueldade da violecircncia e da

ferocidade do protagonista a aliteraccedilatildeo cruorem capitis (v 920) a estrutura quiaacutestica

gratior nullus vs haud ulla amplior (note-se ainda a liacutetotes e a uariatio ndash haud ulla e

nullus) o uso de vocabulaacuterio proacuteprio do sacrifiacutecio (v 921 libare v 922 aras uictima

v 923 mactari) os adjectivos que qualificam o rex (v 920 inuisi v 924 iniquus)

Clara-Emmanuelle Auvray sugere a propoacutesito da vontade de Heacutercules de honrar

os altares divinos com o sangue do tirano

il peut affirmer que le sang drsquoun rex iniquus est une libation agreacuteable aux dieux et neacutegliger du mecircme coup les lois religieuses de la citeacute crsquoest en son seul nom qursquoil sacrifie agrave Jupiter invoqueacute sous son aspect de justicier Tonans enfin en appelant les autres dieux ses fregraveres il confirme sa preacutetention agrave deacutetenir par son rapport privileacutegieacute agrave la nature divine le sens de la loi Ainsi par lrsquointermeacutediaire du support mythologique Seacutenegraveque indique clairement les dangers inheacuterents agrave la notion de ldquoloi incarneacuteerdquo la toute-puissance juridique du Prince recegravele toutes les tentations de la violence arbitraire78

Heacutercules ldquocommet une faute religieuse graverdquo lembra Florence Dupont79 O

error do protagonista vai levaacute-lo a imolar a sua famiacutelia em oferenda aos deuses Como

informa a mesma autora

Hercule comme les autres heacuteros tragiques de Seacutenegraveque commet un crime inexpiable en transgressant un des rituels fondamentaux de la culture il sacrifie agrave Jupiter apregraves avoir tueacute Lycus sans se purifier du sang humain qui souille ses mains il accomplit ainsi explicitement et

78 Clara-Emmanuelle Auvray Folie et Douleur dans Hercule Furieux et Hercule sur lrsquoOeta Recherches sur lrsquoexpression estheacutetique de lrsquoascegravese stoiumlcienne chez Seacutenegraveque 18 79 Vide Florence Dupont Les Monstres de Seacutenegraveque pour une Dramaturgie de la Trageacutedie Romaine (Paris Belin 1995)184

126

volontairement un sacrifice humain qui fait de lui une becircte sauvage et lrsquoamegravene logiquement agrave massacrer sa famille80

A loucura do heroacutei comeccedila a manifestar-se no momento em que se dirige a

Juacutepiter em tom de prece Ipse concipiam preces Ioue meque dignas (vv 926-927)

Nestes versos Heacutercules identifica-se com o pai possivelmente pelo facto de o heroacutei ser

o protector dos homens e civilizador da humanidade81 Pretende uma nova Idade do

Ouro agora que julga que concluiu o seu ldquouacuteltimordquo trabalho

As suas preces reflectem o desejo utoacutepico de uma ordem e paz mundiais que

resvalam para o que eacute humana e naturalmente impossiacutevel Heacutercules falha enquanto heroacutei

pacificador Para Fitch

The impossibility of a Golden Age is relevant not only to our understanding of Herculesrsquo failure in this play but also to Rome herself Vergil had expressed hopes for the establishment of a new Golden Age (Ecl 4 passim Aen 6791-94) and such hopes resurfaced on the accession of Nero (cf Calp Ecl142ff 46ff Einsied Ecl 222ff and Sen himself at Apocol 4 where however the context has a deflationary effect) though HF may have been written before the event In each case these hopes were centered on a saviour figure as Hercules sees himself as the creator and guardian of the new age82

No momento em que os seus desejos entram no domiacutenio dos ἀδύνατα (vv 931-

939) Heacutercules apercebe-se da mutabilidade da natureza A passagem do dia para a noite

(vv 939-944) conotada com a mudanccedila do acircnimo do protagonista para a insanidade

ocorre no momento em que ele profere si quod etiamnum est scelus latura tellus

properet et si quod parat monstrum meum sit (vv 937-939) A palavra-chave destes

versos eacute monstrum que contribui para acentuar um tom de ironia traacutegica presente na

fala do heroacutei O lado pateacutetico deste discurso e que o leva a um error que por sua vez

conduziraacute agrave destruiccedilatildeo fatal eacute que o monstro com o qual vai defrontar-se eacute ele proacuteprio

Daiacute que quando acorda queira suicidar-se para expurgar o mundo desse novo monstro

80 Seacutenegraveque Theacuteacirctre Complet II ed e trad Florence Dupont (Paris Imprimerie Nationale 1992) 93 81 Esta comparaccedilatildeoligaccedilatildeo estreita entre Heacutercules e Juacutepiter eacute evocada no Hercules Oetaeus Hilo considera que a funccedilatildeo de Heacutercules na terra eacute semelhante agrave de Juacutepiter no Olimpo decus illud orbis atque praesidium unicum quem fata terris in locum dederant Iouis (vv 749-751) 82 Fitch (1) 27 Em Hercules Furens haacute semelhanccedilas entre Nero e Heacutercules a ambos parece ser confiada a tarefa de trazer uma nova Idade de Ouro com a sua vinda mas tanto o princeps como o heroacutei falham na sua tarefa Heacutercules erra devido agrave sua personalidade favoraacutevel a atitudes condenadas pelos estoacuteicos A loucura eacute apenas a consequecircncia de um espiacuterito jaacute de si perturbado pela vida activa Tambeacutem em Nero se evidenciam alguns traccedilos de inclemecircncia e violecircncia O princeps deixa-se dominar por todo o geacutenero de paixotildees de que resultaram mortes Britacircnico Agripina o proacuteprio Seacuteneca

127

Papadopoulou sugere ldquoThis moment constitutes an elaborate dramatic climax as the

implication is that the monster that Hercules asks for is no other than Hercules himself

his last toil will be the fight against his own selfrdquo 83

Neste sentido Fitch refere

ldquoThis [powerful dramatic irony] is inseparably combined here with character-revelation for there is arrogance in H assumption immediately disproved that he can deal with any threat sent against him There is also ambition underlying the urgency of etiamnunc and properet H feels that he has completed his labors and is eager to take the promised reward of immortality That this is in the forefront of his thoughts immediately becomes clear in the madness (955 ff)rdquo84

Esta ambiccedilatildeo que Fitch identifica permite compreender por que motivo

Heacutercules estaacute sempre ansioso por concluir as tarefas que lhe apresentam e ainda

entender a ausecircncia de afectividade que revela ser apanaacutegio do protagonista Na

verdade manifesta como desejo uacutenico o ascender agraves moradas celestes e eacute nelas que

reside o seu uacutenico fim (vv 957-973)

Quanto agraves manifestaccedilotildees da natureza elas estatildeo em estreita ligaccedilatildeo com o estado

psicoloacutegico de Heacutercules A sucessatildeo de interrogaccedilotildees (vv 939-944) numa procura de

perceber o que estaacute a acontecer ao seu redor permite fazer a distinccedilatildeo entre um heroacutei

aparentemente sanus e um insanus A evoluccedilatildeo da loucura natildeo eacute descrita ao pormenor

mas haacute uma dupla anotaccedilatildeo da demecircncia da personagem sob o ponto de vista

psicoloacutegico e fiacutesico O Alcida descreve aquilo que a sua vista deturpada contempla O

discurso de Anfitriatildeo permite recuperar a realidade dos factos isto eacute a personagem

revela o estado de alucinaccedilatildeo do heroacutei Na trageacutedia de Euriacutepides Fitch nota ldquoin

Herculesrsquo madness a single impulse and hallucination namely an attack on Mycenae is

replaced by a series of shifting impulses and hallucinations with great richness of

psychological and thematic significancerdquo85 Para aleacutem disso as manifestaccedilotildees da

perturbaccedilatildeo de Heacuteracles satildeo primeiro fiacutesicas depois psicoloacutegicas e descritas pelas

outras personagens

83 Thalia Papadopoulou ldquoHerakles and Hercules The Herorsquos Ambivalence in Euripides and Senecardquo 271 84 Fitch (1) 363 85 Fitch (1) 350

128

A escolha de palavras com que Seacuteneca descreve esta mudanccedila entra no campo

das trevas tenebrae (v 940) obscurus uultus (cf vv 940-941) nox atrum caput (v

942) A loucura vai domando por completo o heroacutei Os primeiros sintomas satildeo

a) visualizaccedilatildeo do Leatildeo de Neacutemea um dos primeiros trabalhos que concluiu (vv

944-952) O olhar do protagonista estaacute completamente concentrado nos astros o uacutenico

lugar que ele ainda natildeo experimentou Perdomita tellus tumida cesserunt freta

inferna nostros regna sensere impetus immune caelum est dignus Alcide labor in

alta mundi spatia sublimis ferar petatur aether astra promittit pater (vv 955-959)

Eacute possiacutevel novamente estabelecer um paralelo entre os discursos de Juno e

Heacutercules Agravequilo que a deusa temia caelo timendum est regna ne summa occupet qui

uicit ima sceptra praeripiet patri (vv 64-65) Heacutercules responde com impetuosidade e

desmesura non capit terra Herculem tandemque superis reddit () bella Titanes

parent me duce furentes () in caelum Olympus tertio positus gradu perueniet aut

mittetur (vv 960-961 vv 967-968 vv 972-973) Eacute sua intenccedilatildeo que esse seja o seu

proacuteximo passo86

b) julga ver os Gigantes libertos dos Inferni e armados para uma nova batalha

(vv 976-981) agora contra ele Estes versos surgem em tom especular relativamente

aos da fala de Juno (vv 79-83) quando diz pretender numa primeira opccedilatildeo libertar

todos os Gigantes para lutarem contra Heacutercules travando a ambiccedilatildeo do heroacutei de

ascender agraves moradas divinas

c) vecirc as Eriacutenias que se vatildeo aproximando dele ndash haacute um outro paralelismo com o

soliloacutequio de Juno (vv 86 ss) O facto de haver tantos pontos de contacto entre o

discurso de Juno e o de Heacutercules leva a concluir que a divindade tem efectiva

participaccedilatildeo na demecircncia do heroacutei como de resto mostrou ser sua intenccedilatildeo no final do

monoacutelogo inicial Como sugere Littlewood ldquoJuno and Hercules are inseparable from

86 No Hercules Oetaeus no monoacutelogo inicial Heacutercules invoca Juacutepiter argumentando que merece os astros prometidos Todo o discurso em 98 versos estaacute centrado no desejo de ascender agraves moradas celestes e no recordar dos ecircxitos dos seus labores Haacute cinco referecircncias aos astros as duas primeiras satildeo introduzidas por uma sucessatildeo de interrogaccedilotildees (vv 7-8 v 13) em que o protagonista procura saber por que motivo Juacutepiter natildeo lhe concede os ceacuteus uma vez que ele provou ser seu filho Nas outras referecircncias a) Heacutercules natildeo pede que o pai lhe indique o caminho mas apenas que lhe permita ascender aos astros (vv 32-33) b) considera que deve habitar nos ceacuteus para proteger os deuses dos monstros que foram anteriormente derrotados por ele e que agora ocupam um lugar entre as estrelas (vv 76-79) c) no final do discurso Heacutercules exige os astros por tudo o que fez pela humanidade (vv 97-98) Enquanto no Furens encontramos um heroacutei desmedido que pretende chegar aos astros seja naturalmente seja por meio da forccedila em Oetaeus o desespero do heroacutei eacute notoacuterio de tal modo que ele procura todos os argumentos possiacuteveis para que Juacutepiter lhe conceda um lugar na morada celeste nec peto ut monstres iter permitte tantum genitor inueniam uiam (vv 32-33) Chega ao cuacutemulo de dizer que pode servir de protector dos deuses

129

each otherrdquo87 Contudo o proacuteprio caraacutecter do Alcida revela estar bem distante de ter

uma mens bona

A repeticcedilatildeo do adveacuterbio propius (v 983) sugere a aproximaccedilatildeo de Tisiacutefone uma

Fuacuteria de que resultaraacute um crime O sentido de rogus (cf v 984) poderaacute ser duplo a

proacutepria loucura ou a morte da famiacutelia Fitch considera que a visatildeo de Tisiacutefone pode ter

duas interpretaccedilotildees ou a sua tarefa estaacute directamente relacionada com a rebeliatildeo dos

Gigantes ou guarda a entrada dos Infernos para que ningueacutem mais escape pela porta

franqueada por Heacutercules88 Nesta fase o protagonista estaacute totalmente dominado pela

Fuacuteria e o seu primeiro acto eacute atacar os filhos que confunde com os do tirano (vv 987

ss)89 seguindo-se a morte de Meacutegara que ele toma por Juno

A par do deliacuterio do heroacutei Anfitriatildeo complementa a descriccedilatildeo da evoluccedilatildeo do

estado psicoloacutegico do Alcida enumerando os primeiros sintomas ndash que satildeo

essencialmente fiacutesicos ndash e a forma como Heacutercules vai matando os filhos

a) o volver dos olhos90 ardentes em todas as direcccedilotildees (v 953 uultus huc et huc

acres refers)

b) a vista perturbada (acieque turbida) em direcccedilatildeo a um ceacuteu imaginaacuterio (v 954

falsum caelum)

c) Anfitriatildeo apercebe-se de que a mente do filho estaacute enlouquecida Infandos

procul auerte sensus pectoris sani parum magni tamen compesce dementem

impetum (vv 973-975) Os adjectivos infandus sanum (parum) demens ilustram um

acircnimo jaacute fora de si e as exortaccedilotildees de Anfitriatildeo (v 974 auerte v 975 compesce) satildeo

inuacuteteis Heacutercules natildeo ouve o pai estaacute cego pelo ardor da loucura

d) Anfitriatildeo pressente que o caecus furor (vv 991-995) do filho levaraacute a um

scelus nefandum triste et aspectu horridum (v 1004) A tripla adjectivaccedilatildeo permite

fazer uma transiccedilatildeo para a descriccedilatildeo da morte do segundo filho (vv 1005-1007) e

preparar o terceiro crime Anfitriatildeo aponta como estado psicoloacutegico do filho a amentia

(v 1021 amens) ndash soacute assim se explica tamanha atrocidade na forma como ele vai

eliminando cada um dos filhos e a esposa O uacuteltimo filho morre assustado com o olhar

inflamado de Heacutercules (v 1021 igneo uultu) ndash a manifestaccedilatildeo do ignis no vulto da

87 Cedric A J Littlewood Self-Representation and Illusion in Senecan Tragedy 117 88 Fitch (1) 373 89 Em Heracles o heroacutei confundiu os seus filhos com os de Euristeu 90 A palavra uultus pode designar lsquosemblantersquo ou lsquoolhosrsquo Fitch (1) 367 aponta as duas hipoacuteteses abonando com exemplos para cada uma delas No presente caso uma vez que eacute acompanhado pelo adjectivo acres optaacutemos por respeitar o plural e traduzir por lsquoolhos ardentesrsquo

130

personagem permite estabelecer uma relaccedilatildeo explorada pelos estoacuteicos entre a forccedila

destruidora do fogo e o efeito semelhante do erro das paixotildees que tudo abrasam e

destroem

e) no momento em que Anfitriatildeo se oferece como viacutetima para ser imolada junto

do altar (vv 1039-1042) Heacutercules adormece

O vocabulaacuterio que eacute usado pelas personagens para descrever os crimes do heroacutei

eacute expressivo para identificar a dimensatildeo da loucura que atacou o Alcida91 caecus furor

(v 991) furens (v 1005 v 1053) Hercules infestus (cf v 1013) amens (v 1021 v

1033) furor (v 1049 v 1098) graui uis uicta morbi pectus oppressum (vv 1051-

1052) tantis (animum) monstris (v 1063) torua pectora (v 1080) ferox cor (cf v

1083) omnes aestus (v 1088) insani fluctus animi (cf v 1092) uesanus motus (cf

v 1095) error caecus (v 1096) nefas (v 1099) ultrix manus (cf v 1103) tanti

dolores (cf v 1121) ulti uulnere (v 1122) scelus patriusque furor (v 1134) Todos

estes traccedilos que caracterizam o protagonista mostram que ele estaacute afastado do ideal

estoacuteico eacute excessivo prepotente estaacute dominado por paixotildees que o conduziram ao crime

De heroacutei virtuoso Heacutercules passa a monstro

Fitch considera que a insanidade de Heacutercules pode ter sido causada pelo excesso

de trabalho ldquoThe explanation may well be reflected in the fact that Senecarsquos Hercules

refuses to take rest between his tasks in which case Seneca has transmuted the idea of

physical exhaustion leading to epilepsy into that of psychological exhaustion leading to

temporary insanityrdquo92 Aliado agrave ausecircncia de qualquer descanso poderaacute subentender-se

um outro factor Como lembra Fitch ldquothat is not the only explanation implied in the

play for the fact that Hercules goes mad just after the end of his labours it is also clear

that his ambition and megalomania have been increased by the supposed conquest of the

underworldrdquo93

Para Shelton a loucura de Heacutercules deve-se ao erro de avaliaccedilatildeo da forccedila do

heroacutei The conflict in this play is the discrepancy between Herculesrsquo illusions about strength (uirtus) and the reality of strength His madness results from his distorted definition of uirtus He imagines that his physical force makes him greater than the gods he discovers that force produces disaster and that true strength is not physical but emotional

91 A ldquolinguagem da emoccedilatildeordquo expressatildeo de Maria Cristina Pimentel Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de Seacuteneca 41 contribui para a identificaccedilatildeo dos estados passionais das personagens em particular de Heacutercules 92 Fitch (1) 31 93 Fitch (1) 31-32

131

As one method of dramatizing this psychological conflict and giving external expression to an internal process Seneca created the dialogue of the supporting characters Their words reflect the conflict in Herculesrsquo mind The final dialogue between Theseus and Hercules for example externalizes Herculesrsquo discovery of the true uirtus94

No entanto julgamos que coexistem dois motivos que teratildeo conduzido agrave

insanidade do heroacutei um motivo humano e um motivo divino Juno tem um papel se natildeo

principal pelo menos fundamental na acccedilatildeo criminosa de Heacutercules No plano humano

como foi apontado pelos dois autores mencionados o Alcida deixa-se dominar por

sentimentos de megalomania violecircncia e ambiccedilatildeo que o levaram a um erro de

interpretaccedilatildeo e consequente furor Littlewood observa

Interpretation of this tragedy hinges on the origin and the nature of its criminal madness it may be seen as an extension of Herculesrsquo uirtus or an alien state of mind imposed upon him by Juno To some extent the nature of tragic madness is bound up with its origin Hercules tends toward the Phaethonic madness is more deliberately anarchic and evil However Seneca is at pains to confuse Juno with Hercules by making them imitate each other and thereby obstructs any simple identification of the tragic madness95

O despertar do heroacutei fiacutesico mas tambeacutem psicoloacutegico eacute igualmente progressivo

Se nos primeiros versos natildeo consegue discernir o local onde se encontra nem

reconhecer os corpos que jazem agrave sua volta mas apenas pressentir que aconteceu um

grande malum (vv 1138-1159) vai depois recuperando a consciecircncia96 comeccedilando por

dar-se conta de que os cadaacuteveres que estatildeo agrave sua volta (vv 1159-1161) satildeo dos seus trecircs

filhos e de Meacutegara O desespero por querer saber quem foi o autor do massacre (vv

1160 ss) leva a um novo acesso de fuacuteria ruat ira in omnes hostis est quisquis mihi

non monstrat hostem (vv 1167-1168) que conduz a uma nova seacuterie de interrogaccedilotildees97

Heacutercules vai descobrindo aos poucos que foi ele o assassino dos filhos e da esposa Eacute o

seu proacuteprio corpo que lhe vai dando as indicaccedilotildees do scelus manus refugit hic errat

94 Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 28-29 Neste sentido Seacuteneca diz a Luciacutelio na Carta 9225 maiestatem enim eius ex nostra inbecillitate metimur et uitiis nostris nomen uirtutis inponimus 95 Cedric A J Littlewood Self-Representation and Illusion in Senecan Tragedy 114 96 Como explicou Carla Susana Vieira Gonccedilalves A Invectiva nas Trageacutedias de Seacuteneca 130 as perguntas retoacutericas tecircm dupla funccedilatildeo na forma como o heroacutei se vai comportando ao longo da acccedilatildeo dramaacutetica Permitem por um lado demonstrar que ele toma consciecircncia de que algo estaacute errado como eacute o caso presente e conduzem agrave descoberta Por outro revelam igualmente uma alma perturbada 97 Vide vv 1173-1176 vv 1179-1186 v 1187 v 1188 vv 1189-1190 vv 1193-1195 vv 1198-1199

132

scelus (v 1193) iam tela uideo nostra Non quaero manum (v 1196) hoc nostrum est

scelus tacuere nostrum est (vv 1199-1200)

Estas caracteriacutesticas que vatildeo assomando no Alcida permitem criar um efeito

especular entre o heroacutei e Juno As paixotildees que afectam a deusa ira (v 28 v 34 v 75)

odia (v 27 v 35 v 77) saeuitia (v 35 saeua) dolor (v 28 v 99) assemelham-se agraves

de Heacutercules A personagem experimenta a ira (v 1167 v 1220 v 1277 irasci) e a

saeuitia (v 1280) depois de ter sido viacutetima da vinganccedila de Juno

Ainda acometido pela ira encontra como soluccedilatildeo para o crime o suiciacutedio98 tal

como em Heracles Contudo tambeacutem sob este aspecto a forma como estaacute construiacuteda a

trama final eacute diferente ateacute mesmo no papel do pai e do amigo do Alcida Em Hercules

Furens Anfitriatildeo e Teseu funcionam como personagens-prolongamento99

Representam no uacuteltimo acto o outro lado da vontade de Heacutercules que consiste em

evitar o suiciacutedio

Em siacutentese a caracterizaccedilatildeo do heroacutei nas peccedilas de Euriacutepides e de Seacuteneca difere

substancialmente Haacute um ponto de contacto entre ambas a ambivalecircncia do heroiacutesmo

do Alcida mas ainda assim sob perspectivas diferentes Euriacutepides estuda Heacuteracles

numa perspectiva inovadora no sentido em que analisa a forccedila psicoloacutegica do

protagonista em detrimento da sua forccedila corpoacuterea A dramatizaccedilatildeo da loucura do heroacutei

leva a questotildees sobre o seu heroiacutesmo altruiacutesmo sobre o seu papel na sociedade uma

vez concluiacutedos os doze trabalhos100 Eacute o heroacutei que natildeo tem um lugar fixo (a natildeo ser no

final da trageacutedia) que faz pouco uso da razatildeo deixando-se levar pelas emoccedilotildees

violentas mas aceita os conselhos que as outras personagens lhe datildeo

Em Heracles haacute uma humanizaccedilatildeo da personagem Eacute o heroacutei que se submete

aos trabalhos porque deseja restituir o pai agrave sua paacutetria natal abandona o espoacutelio do seu

uacuteltimo trabalho para ver a famiacutelia ao pressentir que algo de terriacutevel se passava com ela

natildeo suporta os trabalhos a que foi submetido e eacute o heroacutei que no final precisa de apoio

do amigo para entregar Ceacuterbero a Euristeu (vv 1386-1388) e concluir assim os seus

πόνοι

98 Este tema teraacute desenvolvimento no uacuteltimo capiacutetulo pelo que mereceu aqui tatildeo-soacute uma breve referecircncia 99 Segurado e Campos ldquoSur la typologie des personnages dans les Trageacutedies de Seacutenegravequerdquo 225 chama personagens-prolongamento agravequelas que ldquone disent jamais rien qui ne puisse ecirctre attribueacute au discours du personnage-noyaurdquo Tambeacutem Meacutegara desempenha a funccedilatildeo de uma personagem-prolongamento quando descreve o orgulho e a ambiccedilatildeo desmedidos de Heacutercules (Acto II vv 279-308) 100 Vide Thalia Papadopoulou ldquoHerakles and Hercules The Herorsquos Ambivalence in Euripides and Senecardquo 267

133

Heacuteracles eacute mais afectuoso do que Heacutercules Naquele eacute notoacuteria a afeiccedilatildeo pela

famiacutelia manifestada directa ou indirectamente Heacuteracles eacute agarrado pelos filhos (vv

627-633) eacute ele quem os conduz para o interior do palaacutecio no fim da acccedilatildeo dramaacutetica

abraccedila o pai (vv 1408-1409) e precisa da ajuda de Teseu para se levantar (vv 1395-

1402)

Em Seacuteneca o Alcida eacute o exemplum de uma personagem dominada pelos affectus

Vimos que a caracteriacutestica mais proeminente eacute a forccedila sobre-humana constantemente

evocada pelas personagens e que o aproxima dos deuses Aliada a essa caracteriacutestica

coexiste um lado ambicioso insensiacutevel megaloacutemano e cruel

Eacute impaciente quanto a manifestaccedilotildees de afectos reserva sempre para segundo

plano a afectividade procurando eliminar tudo e todos os que vatildeo contra a ordem

natural das coisas Engradece-se com os feitos realizados e deseja mais trabalhos Um

uacutenico objectivo o move ter direito a habitar nas moradas celestes prometidas Assim

socorre-se da forccedila brutal e desmedida para executar os trabalhos e construir um mundo

paciacutefico para os homens Tudo o que faz estaacute ao serviccedilo da sua honra e virtude e natildeo se

orienta em favor dos homens O egoiacutesmo de Heacutercules contrasta com o altruiacutesmo de

Heacuteracles

Relativamente ao modo como cada um age quando sob o domiacutenio da loucura

vemos que em Heracles haacute claramente uma intervenccedilatildeo divina que provoca o acto As

deusas apenas alteraram o seu campo de visatildeo de modo que ele natildeo consiga reconhecer

aqueles contra os quais luta Foi impiedoso na morte de Lico mas igualmente na da sua

famiacutelia o que leva a algumas reservas no que diz respeito agrave sua virtude No caso de

Seacuteneca se a mesma ambivalecircncia parece existir num primeiro momento a personagem

eacute por natureza e por tendecircncia violenta impiedosa e uma vez completamente

dominada pelas passiones revela o seu lado monstruoso ao matar os filhos e a mulher

Em Hercules Furens vemos que o protagonista estaacute muito longe da sapientia

exigida pelos estoacuteicos dado que se deixa levar pela fuacuteria e pela ira como resposta agraves

adversidades que se lhe deparam natildeo sabe fazer um bom uso daquilo que os filoacutesofos

definem por indiferentes

134

Capiacutetulo IV

HERCULES FURENS E HERCULES OETAEUS

1 Meditatio mortis ndash um estudo preliminar

O suiciacutedio eacute por si soacute um tema complexo e controverso e eacute-o especialmente

quando encarado sob a perspectiva da doutrina estoacuteica Para Arthur Bodson haacute uma

aparente contradiccedilatildeo em relaccedilatildeo a uma possiacutevel incompatibilidade no pensamento

estoacuteico que preceitua aceitar tudo o que vem da Providecircncia mas em simultacircneo pode

recusar ficar-lhe submetido1 escolhendo a via da morte Ora para que se desfaccedilam

equiacutevocos referentes a essa aparente contradiccedilatildeo importa ver em primeiro lugar que os

estoacuteicos natildeo consideram que o suiciacutedio deva ser uma regra geral mas sim que a ele eacute

possiacutevel recorrer em ocasiotildees especiacuteficas Como recomenda Seacuteneca a Luciacutelio

Meditare mortem qui hoc dicit meditari libertatem iubet Qui mori didicit seruire dedidicit supra omnem potentiam est certe extra omnem Quid ad illum carcer et custodia et claustra liberum ostium habet Una est catena quae nos alligatos tenet amor uitae qui ut non est abiciendus ita minuendus est ut si quando res exiget nihil nos detineat nec impediat quominus parati simus quod quandoque faciendum est statim facere2

A morte voluntaacuteria eacute possiacutevel e aceitaacutevel quando o homem procura libertar-se de

qualquer geacutenero de escravidatildeo seja fiacutesica seja moral Na Carta 77 Seacuteneca daacute exemplos

de motivos que justificam o suiciacutedio O primeiro eacute de Tuacutelio Marcelino viacutetima de uma

doenccedila penosa e prolongada que preferiu morrer com gloacuteria a arrastar a vida em

sofrimento (Ep 7710)

O segundo exemplo eacute o de um jovem da Lacoacutenia que se recusou a ser escravo

pelo que quando lhe ordenaram pela primeira vez que fizesse um serviccedilo indigno (ir

1 Arthur Bodson La Morale Sociale des Derniers Stoiumlciens Seacutenegraveque Eacutepictegravete et Marc Auregravele (Paris Les Belles Lettres 1967) 90 2 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 2610 lsquoMedita na morte com estas palavras Epicuro manda-nos meditar na liberdade Um homem que aprendeu a morrer esquece o que seja a servidatildeo estaacute acima melhor dizendo estaacute fora do alcance de todo e qualquer poder Que lhe importam o caacutercere os guardas as cadeias se tem diante de si uma porta sempre aberta Uma uacutenica cadeia nos tem manietados o amor pela vida Natildeo o abafemos de todo mas diminuamo-lo de modo a que se as circunstacircncias o exigirem nada nnos detenha ou impeccedila de estarmos preparados para fazer imediatamente o que mais tarde ou mais cedo teremos mesmo de fazerrsquo

135

buscar um vaso para os excrementos) o jovem esmagou a cabeccedila contra uma parede O

filoacutesofo pretende demonstrar que o que verdadeiramente importa eacute a qualidade da vida

que o estoacuteico tem e nunca a duraccedilatildeo ndash que o homem quando tiver que abandonar a vida

saiba fazecirc-lo da melhor forma Quomodo fabula sic uita non quam diu sed quam bene

acta sit refert Nihil ad rem pertinet quo loco desinas Quocumque uoles desine tantum

bonam clausulam inpone3 Eacute neste sentido que Seacuteneca termina esta carta 77 com esta

sententia

Epicteto por exemplo distingue trecircs formas de suiciacutedio 1) quando a decisatildeo eacute

tomada de acordo com a vontade divina4 e nunca por instinto ou por capricho5 2)

quando eacute uma forma de manter a integridade eou liberdade do homem6 3) quando o

suiciacutedio natildeo eacute um acto pensado mas levado por um pretexto ou entrando no domiacutenio

irracional7 o que faz dele um acto imoral

Durkheim viria posteriormente a denominar trecircs tipos de suiciacutedio o egoiacutesta o

anoacutemico e o altruiacutesta8 No que diz respeito ao primeiro caso cometem suiciacutedios os

homens que se sentem aparentemente desvinculados de uma sociedade o indiviacuteduo natildeo

sente uma ligaccedilatildeo forte com a comunidade natildeo depende de um grupo logo tende a

formar as suas proacuteprias regras e a viver segundo os seus proacuteprios interesses Explica

Durkheim ldquoSi donc on convient drsquoappeler eacutegoiumlsme cet eacutetat ougrave le moi individuel

srsquoaffirme avec excegraves en face du moi social et aux deacutepens de ce dernier nous pourrons

donner le nom drsquoeacutegoiumlste au type particulier de suicide qui reacutesulte drsquoune individuation

deacutemesureacuteerdquo9

Sobre este modo de suiciacutedio Seacuteneca formula um juiacutezo criacutetico desfavoraacutevel Para

Seacuteneca o homem natildeo deve cometer o suiciacutedio se estiver sob o domiacutenio de um ou vaacuterios

affectus Aleacutem disso satildeo estultos todos aqueles que correm para a morte porque vecircem

nela um refuacutegio10 Por fim um homem nunca deve suicidar-se quando algum familiar

ou amigo exigir que ele permaneccedila vivo11 Para os estoacuteicos este eacute um acto imoral

3 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 7720 lsquoNa vida eacute como no teatro natildeo interessa a duraccedilatildeo da peccedila mas a qualidade da representaccedilatildeo Em que ponto tu vais parar eacute questatildeo sem a miacutenima importacircncia Paacutera onde quiseres mas daacute agrave tua vida um fecho condignorsquo 4 Arriano Epicteti Dissertationes 1916 5 Idem Ibidem 12929 6 Idem Ibidem 1226 41150 ss 41172 7 Idem Ibidem 1917 12929 8 Para um estudo mais completo sobre este tema veja-se Eacutemile Durkheim Le Suicide 149-311 9 Eacutemile Durkheim Le Suicide Eacutetude de Sociologie (Paris Presses Universitaires de France 1930 reimpr 1986) 223 10 Ver Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 2422-24 9815-16 11 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 781 e ss1043

136

porque quem o comete natildeo respeita os que lhe estatildeo proacuteximos antes se deixa levar por

uma paixatildeo que o conduz a um acto irracional

O suiciacutedio altruiacutesta eacute segundo Durkheim ldquocelui ougrave le moi ne srsquoappartient pas

ougrave il se confond avec autre chose que lui-mecircme ougrave le pocircle de sa conduite est situeacute en

dehors de lui agrave savoir dans un des groupes dont il fait partierdquo12 Este tipo de suiciacutedio

apresenta uma outra caracteriacutestica que o distinge dos outros ldquoil est accompli comme un

devoirrdquo13 Eacute o que melhor se aproxima dos propoacutesitos estoacuteicos Os exemplos maacuteximos

satildeo Soacutecrates e Catatildeo de Uacutetica O uacuteltimo eacute o modelo do homem que viveu pela (e para) a

paacutetria procurando ser livre entre homens livres Quando se revelou impossiacutevel

continuar a lutar por essa liberdade comum preferiu a morte a viver sob o jugo poliacutetico

de Ceacutesar14 Jaacute Soacutecrates poderia ter escapado da prisatildeo com o auxiacutelio dos amigos mas

escolheu natildeo o fazer e enfrentar a morte obedecendo agraves leis da sua paacutetria15

Eacute por este modo de ldquoabandonarrdquo a vida que os estoacuteicos pugnam quando as

circunstacircncias assim o exigem Partindo da maacutexima Quae [uita] non semper retinenda

est non enim uiuere bonum est sed bene uiuere (Ep 704) ndash e a diferenccedila crucial

reside no saber fazer uso da melhor forma possiacutevel do tempo que a Providecircncia nos

concede recordando que nem sempre a quantidade eacute sinoacutenimo de qualidade ndash Seacuteneca

aconselha o seu leitor a que medite sobre a morte (Ep 7018) aceitando-a como um

percurso natural e inevitaacutevel E o saber viver em harmonia com a Natureza parte disto

mesmo reconhecer que vida e morte formam um ciclo a que ningueacutem pode escapar

A Carta 70 eacute toda ela uma reflexatildeo sobre a vida e a morte partindo em

pormenor desta uacuteltima circunstacircncia para se centrar no tema do suiciacutedio Para o

filoacutesofo apenas o saacutebio possui o discernimento de escolher a forma como pretende sair

da vida uma vez que ele reconhece que a morte e a vida satildeo indiferentes e fazem parte

de um ciclo normal e inevitaacutevel O que importa satildeo as circunstacircncias que levam a

escolher um dos caminhos possiacuteveis para terminar a existecircncia16 Si multa occurrunt

molesta et tranquillitatem turbantia emittit se nec hoc tantum in necessitate ultima

12 Eacutemile Durkheim Le Suicide 238 13 Loc Cit 14 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 246-8 15 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 244 16 Eacute neste aspecto que reside essencialmente a liberdade do estoacuteico se o homem natildeo eacute livre no momento em que nasce a sua liberdade estaacute nas muacuteltiplas formas como poderaacute sair da vida Hoc qui dicit non uidet se libertatis uiam cludere nihil melius aeterna lex fecit quam quod unum introitum nobis ad uitam dedit exitus multos (Seacuteneca Ep 70 14-15) lsquoQuem assim fala natildeo vecirc como estaacute tornando impossiacutevel a liberdade Nada de melhor concebeu a lei eterna do que embora apenas nos dando uma porta de entrada na vida ter-nos proporcionado muacuteltiplas saiacutedasrsquo

137

facit sed cum primum illi coepit suspecta esse fortuna diligenter circumspicit numquid

illic desinendum sit (Ep 705)17 Como explica Cristina Pimentel comentando um passo

de Epicteto18 ldquoEacute que o sapiens sai da vida natildeo eacute expulso e como tudo o que eacute

inevitaacutevel natildeo deixa margem para que se tente modificar ou para provocar medos ou

revoltas entatildeo haacute que entender a morte como o fim natural da vida porque tudo o que

comeccedila tem de acabarrdquo19 Assim eacute possiacutevel o suiciacutedio somente quando

a) situaccedilotildees graves que satildeo um obstaacuteculo agrave tranquilidade da alma nunca sendo

aceitaacutevel nem ir ao encontro da morte por medo nem fugir dela Um exemplo quando eacute

viacutetima de uma doenccedila prolongada e incuraacutevel o homem pode escolher abandonar a

vida natildeo para terminar com o seu sofrimento mas porque a sua doenccedila natildeo lhe permite

viver de acordo com a ordem natural nem manter a sua dignidade nem cumprir os seus

deveres (ciacutevicos por exemplo)20

b) quando haacute um factor externo que obriga o homem a morrer (por exemplo se

vai ser torturado ateacute agrave morte) eacute mais difiacutecil saber qual a decisatildeo mais correcta se

aguardar essa morte ou antecipaacute-la A justificaccedilatildeo de Seacuteneca eacute

Si altera mors cum tormento altera simplex et facilis est quidni huic inicienda sit manus Quemadmodum nauem eligam nauigaturus et domum habitaturus sic mortem exiturus e uita Praeterea quemadmodum non utique melior est longior uita sic peior est utique mors longior In nulla re magis quam in morte morem animo gerere debemus Exeat qua impetum cepit siue ferrum appetit siue laqueum siue aliquam potionem uenas occupantem pergat et uincula seruitutis abrumpat21

E se nesta longa citaccedilatildeo parece haver uma contradiccedilatildeo com o que o filoacutesofo

disse nos paraacutegrafos anteriores ndash onde refere que se um sapiens eacute condenado agrave morte ele

17 lsquoSe se lhe deparam muitas situaccedilotildees graves muitos obstaacuteculos agrave sua tranquilidade o saacutebio retirar-se-aacute E natildeo o faraacute apenas como uacuteltimo recurso mas assim que a fortuna comeccedilar a mostrar-se hostil para com ele deveraacute meditar seriamente se natildeo conveacutem pocircr de imediato termo agrave vidarsquo 18 Arriano Epict 2611 e 12 19 Maria Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo 30 20 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 5836 inbecillus est et ingnauus qui propter dolorem moritur stultus qui doloris causa uiuit (lsquoMorrer para evitar a dor eacute uma atitude de fraqueza e cobardia viver soacute para suportar a dor eacute pura estupidezrsquo) 21 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 7011-12 lsquoSe por exemplo a alternativa for entre uma morte no meio de torturas e uma morte directa e raacutepida como natildeo escolher sem hesitaccedilatildeo esta uacuteltima Se eu escolho o navio em que vou navegar ou a casa em que vou habitar tambeacutem ao deixar esta vida posso escolher a forma como morrer Aleacutem disso se a vida natildeo se torna melhor por ser mais longa a morte pelo contraacuterio quanto mais prolongada for pior Mais do que em qualquer outra situaccedilatildeo devemos obedecer na atitude perante a morte aos ditames da nossa alma E esta que se evole com decisatildeo segundo a forma de morte escolhida quer se eleja o punhal ou a corda ou o veneno que se espalha pelas veias haacute que ser firme na decisatildeo tomada e romper de uma vez os viacutenculos da nossa servidatildeorsquo

138

natildeo a antecipa suicidando-se mas espera pacientemente que chegue esse dia (Ep 70

8) ndash tal contradiccedilatildeo eacute apenas aparente Recordando o exemplo que daacute no paraacutegrafo 9 o

de Soacutecrates Seacuteneca lembra que o filoacutesofo grego poderia ter optado pelo suiciacutedio mas

natildeo o fez natildeo por medo da morte mas por obediecircncia agrave lei Ora a antecipaccedilatildeo da morte

a que o autor alude diz respeito a casos pontuais e que implicam uma forma de

libertaccedilatildeo como eacute o caso paradigmaacutetico de Catatildeo Tomando ainda como exemplos

ilustrativos gladiadores e baacuterbaros (Ep 7020-26) e monstrando que eles estariam

privados da sua liberdade ou acabariam por morrer de forma menos digna e em contexto

de espectaacuteculos puacuteblicos Seacuteneca procura demonstrar que nesta circunstacircncia o

suiciacutedio eacute um acto louvaacutevel

c) quando o homem se vecirc privado de bens imprescindiacuteveis para garantir a sua

sobrevivecircncia ou quando as suas faculdades comeccedilam a falhar dado o avanccedilar da

idade22

d) por uacuteltimo e citando Cristina Pimentel quando ldquodepois de ter lanccedilado matildeo

dos remedia ao seu alcance para combater as paixotildees o homem se vecirc sujeito aos

proacuteprios uitia de modo que escapa jaacute ao seu domiacuteniordquo23

Em todos estes motivos haacute um elemento fundamental que os liga a liberdade do

homem Eacute por ser livre que o ser humano pode escolher a melhor forma de viver ou

optar por sair da vida quando alguma situaccedilatildeo intransponiacutevel assim o exige

Quanto ao terceiro tipo de suiciacutedio considerado por Durkheim o anoacutemico estaacute

relacionado com uma anomalia qualquer sendo essencialmente motivada por uma crise

passional O indiviacuteduo que se sente integrado numa sociedade sofre por alguma razatildeo

algum dano material ou afectivo (por exemplo devido a uma crise econoacutemica ou a

algum processo judicial ou agrave perda de todos bens ou ao divoacutercio) que o leva a decidir-

-se pelo suiciacutedio Durkheim define este uacuteltimo tipo como ldquoil est une troisiegraveme sorte de

suicideacutes qui srsquoopposent et aux premiers en ce que leur acte est essentiellement

passionnel et aux seconds en ce que la passion qui les inspire et qui domine la scegravene

finale est drsquoune tout autre nature Ce nrsquoest pas lrsquoenthousiasme la foi religieuse morale

ou politique ni aucune des vertus militaires crsquoest la colegravere et tout ce qui drsquoordinaire

accompagne la deacuteceptionrdquo24

22 Vide Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales30 23 Maria Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo 32 24 Eacutemile Durkheim Le Suicide 321

139

Relativamente agraves circunstacircncias que neste caso levam ao suiciacutedio Seacuteneca

assume uma vez mais uma firme rejeiccedilatildeo Chama loucos aos que se deixam dominar

por algum medo

Vir fortis ac sapiens non fugere debet e uita sed exire et ante omnia ille quoque uitetur adfectus qui multos occupauit libido moriendi Est enim mi Lucili ut ad alia sic etiam ad moriendum inconsulta animi inclinatio quae saepe generosos atque acerrimae indolis uiros corripit saepe ignauos iacentesque illi contemnunt uitam hi grauantur25

A morte deve ser acolhida nunca desesperadamente procurada ou evitada (Ep

3015) E com este breve estudo preambular pensamos poder agora passar agrave anaacutelise

comparativa dos finais de Hercules Furens e Hercules Oetaeus

2 Heacutercules ndash a ascese do proficiens

21 Heacutercules sob o domiacutenio da ira (estudo sobre o comportamento da personagem

no Hercules Furens e no Hercules Oetaeus)

Como tivemos ocasiatildeo de ver ao longo deste estudo em particular no terceiro

capiacutetulo com a anaacutelise do protagonista em Euriacutepides e Seacuteneca a figura de Heacutercules

causou desde sempre alguma dificuldade de anaacutelise dado ser um heroacutei ambiacuteguo Em

Seacuteneca haacute contudo um reaproveitamento da figura o filoacutesofo pretende estudar o

comportamento de Heacutercules sob o ponto de vista estoacuteico Vimos que ainda que haja

personagens no Hercules Furens26 que consideram Heacutercules virtuoso a sua uirtus eacute

25 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 2425 lsquoUm homem corajoso e saacutebio natildeo deveraacute fugir da vida mas sim sair dela acima de tudo importa evitar uma paixatildeo que tem assaltado muita gente a paixatildeo pela morte Como em relaccedilatildeo a outros assuntos tambeacutem em relaccedilatildeo ao fenoacutemeno da morte existe uma inconsiderada tendecircncia de espiacuterito capaz de dominar frequentemente quer o homens animosos e de caraacutecter firme quer gente sem forccedila e sem coragem soacute que enquanto os primeiros sentem desprezo pela vida os outros natildeo lhe suportam o pesorsquo 26 Tambeacutem no Hercules Oetaeus o heroacutei eacute visto como o protector dos homens porque libertou a humanidade dos seus medos E a sua presenccedila no mundo eacute de tal modo fundamental que a sua morte representa uma desgraccedila para o orbe hunc ecce luctum quem gemis cuncti gemunt commune terris omnibus pateris malum (Hercules Oetaeus vv 761-762) Hilo foca a ideia de que o valor do Alcida eacute inigualaacutevel de tal modo que a proacutepria morte foge do heroacutei os Destinos natildeo ousam cometer o crime de terminar a vida de Heacutercules e Cloto treme ao saber que estaacute a fiar os derradeiros momentos da vida do heroacutei (vv 766-770)

140

essencialmente fiacutesica Na realidade o modo como o heroacutei reage agraves situaccedilotildees revela que

se deixa levar pelos affectus especificamente pela ira

Seacuteneca define ira explicando que esta eacute um uitium diferente dos outros

Ceteri enim adfectus dilationem recipiunt et curari tardius possunt huius incitata et se ipsa rapiens uiolentia non paulatim procedit sed dum incipit tota est nec aliorum more uitiorum sollicitat animos sed abducit et inpotentes sui cupidosque uel communis mali exagitat nec in ea tantum in quae destinauit sed in occurrentia obiter furit Cetera uitia inpellunt animos ira praecipitat Etiam si resistere contra adfectus suos non licet at certe adfectibus ipsis licet stare haec non secus quam fulmina procellaeque et si qua alia inreuocabilia sunt quia non eunt sed cadunt uim suam magis ac magis tendit Alia uitia a ratione hoc a sanitate desciscit alia accessus lenes habent et incrementa fallentia in iram deiectus animorum est Nulla itaque res urget magis attonita et in uires suas prona et siue successit superba siue frustratur insana ne repulsa quidem in taedium acta ubi aduersarium fortuna subduxit in se ipsa morsus suos uertit Nec refert quantum sit ex quo surrexerit ex leuissimis enim in maxima euadit27

Deste extenso passo percebemos que a ira eacute dos uitia mais prejudiciais e que

mais dano causa ao sujeito ou a uma multidatildeo28 porque os precipita num remoinho de

emoccedilotildees e acccedilotildees crueacuteis acabando por arrastar consigo os que estatildeo proacuteximos Uma

vez que algueacutem se deixa levar por semelhante mal difiacutecil eacute paraacute-lo As manifestaccedilotildees

que a ira provoca no seu paciente satildeo visiacuteveis natildeo soacute no olhar como na proacutepria face

como ainda nos movimentos29

O passo citado permite-nos igualmente explicar a psicologia do protagonista no

Hercules Furens e no Hercules Oetaeus Em ambas as trageacutedias o heroacutei apresenta-se

alienado porque movido por sentimentos ora de furor ora de ira E se os resultados na

primeira trageacutedia foram crueacuteis (morte da famiacutelia) ainda que Juno estivesse implicada no

homiciacutedio na segunda todos os actos de Heacutercules satildeo voluntaacuterios o heroacutei tem

consciecircncia de que estaacute a tomar o lugar dos monstros vencidos destruiu Ecaacutelia porque

se apaixou por Iacuteole eacute cruel com Licas e pretende ser violento com Dejanira

Assim no monoacutelogo inicial do Hercules Oetaeus Heacutercules tem noccedilatildeo de que

teminou a sua tarefa terrena dado todos os monstros terem sido jaacute vencidos e nada mais

restar nem na terra nem no mar nem nos ceacuteus para ele derrotar (nec monstra inuenit

27 Seacuteneca De Ira 313-5 28 Segundo Seacuteneca De Ira 321 ss a ira eacute o uacutenico viacutecio que pode atingir um povo uma cidade crianccedilas jovens adultos velhos Natildeo escolhe idades 29 Seacuteneca De Ira 341-3

141

ferae negantur30) de tal modo que conclui que Hercules monstri loco iam coepit esse

(vv 55-56) Do Coro das mulheres de Ecaacutelia sobressai a soberba e a violecircncia do

Alcida Satildeo expressivos os adjectivos que escolhem para identificar o caraacutecter dele

tumidus (v 142) e indomito (v 155) Herculeas minas (v 166) iratum Herculem (v

172) Licas morre assustado com o olhar feroz de Heacutercules31 No entanto o heroacutei uma

vez que natildeo se pocircde vingar em Licas ainda vivo mutila o seu cadaacutever lanccedilando-o aos

astros A forccedila que usou para arremassaacute-lo foi tanta que o corpo deixou rastos de sangue

pelas nuvens desmembrando-se caindo a cabeccedila sobre as rochas e perdendo-se o corpo

nas aacuteguas do mar o que comprova uma vez mais a violecircncia desmedida de Heacutercules

(vv 808-822) O Alcida pretende ser igualmente cruel com Dejanira utinam liceret

stipite ingesto impiam effringere animam quale Amazonium malum circa niualis

Caucasi domui latus o clara Megara tune cum furerem mihi coniunx fuisti Stipitem

atque arcus date dextra inquinetur laudibus maculam imprimam summus legatur

femina Herculeus labor (vv 1449-1455) O recordar a sua loucura e a forma como

matou Meacutegara32 remete para um novo crime que natildeo seraacute menos iacutempio com a diferenccedila

de que o seu uacuteltimo labor (summus labor) seraacute voluntaacuterio ndash a violecircncia do acto eacute

acentuada pelo politpoto de stipes (v 1449 v 1453) e o recurso a formas verbais que

manifestam violecircncia (v 1450 effringere v 1452 furerem v 1454 inquinetur v

1454 imprimam) bem como pelo homeoteleuto (v 1454 maculam imprimam) O

uacutenico objectivo de Heacutercules eacute manter a sua gloacuteria (cf v 1454 laudibus) intacta

Mesmo tomando conhecimento do suiciacutedio da esposa a sua raiva natildeo eacute menor

uma vez que natildeo admite que ningueacutem inferior a si o venccedila Testemunho de um novo

impulso satildeo as palavras que profere em resposta a Hilo 30 Seacuteneca Hercules Oetaeuscedil vv 54-55 31 Eacute Hilo quem descreve a morte de Licas quando anuncia a Dejanira a morte proacutexima de Heacutercules que tem como causa a veste que ela enviou ao marido Enumera as primeiras manifestaccedilotildees fiacutesicas de Heacutercules motivadas pelo fogo que emana da veste que conduzem a ataques de ira contra aqueles que julga culpados Primeiro compara a reacccedilatildeo do Alcida com a de um touro qualis impressa fugax taurus bipenni uulnus et telum ferens delubra uasto trepida mugitu replet aut quale mundo fulmen emissum tonat sic ille gemitu sidera et pontum ferit (vv 798-802) passando para manifestaccedilotildees do olhar uultus ignea torquens face (v 808) A mente de Heacutercules fica tatildeo perturbada pela intensidade das dores que comeccedila a ter alucinaccedilotildees Heacutercules ao ouvir Alcmena identificar a doenccedila dele como o resultado de sucessivas labutas (vv 1396-1398) julga que eacute uma nova guerra que se aproxima e procura-a incessantemente revelando com as suas palavras que a sua mente estaacute perturbada Ubi morbus ubinam est estne adhuc aliquid mali in orbe mecum ueniat huc aliquis mihi intendat arcus ndash nuda sufficient manus Procedat agedum (vv 1399-1402) O paralelismo entre intendat arcus e sufficient manus permite por um lado comprovar o furor do protagonista levando Alcmena a considerar que apenas este affectus consegue controlar o acircnimo de Heacutercules (v 1404 dolor iste furor est Hercules solus domat) por outro ilustra a confianccedila desmedida que Heacutercules tem em relaccedilatildeo ao seu poder 32 Vimos no terceiro capiacutetulo que o corpo dela foi estropiado a cabeccedila foi esmagada devido agrave violecircncia de Heacutercules

142

Caecus dolore es manibus irati Herculis occidere meruit perdidit comitem Lichas saeuire in ipsum corpus exanime impetus atque ira cogit Cur minis nostris caret ipsum cadauer Pabulum accipiant ferae (vv 1459-1463)

O menosprezo de Heacutercules perante o sofrimento do filho (v 1459) eacute notoacuterio

Todos os seus sentimentos estatildeo centrados em si e numa nova forma de vinganccedila natildeo

menos saeua do que as anteriores Lembra o modo como despedaccedilou o corpo de Licas

prometendo natildeo ser menos severo com o corpo de Dejanira Revelador de uma nova

impetuosidade satildeo os vocaacutebulos escolhidos o dolor (cf v 1459) que leva a que a alma

fique cega (v 1459 caecus) a ira cuja forccedila eacute sugerida pelo poliptoto pela metoniacutemia

e pela conjunccedilatildeo copulativa a ligar este affectus a um outro o impetus (v 1459

manibus irati v 1462 ira vv 1461-1462 impetus atque ira) minis (v 1462)

Heacutercules tem consciecircncia de que todas estas passiones estatildeo a afectaacute-lo mas natildeo

procura um meio de paraacute-las antes se sente instigado a cometer mais uma acccedilatildeo iacutempia

Apenas modera o seu furor quando descobre que quem provocou o seu sofrimento natildeo

foi Licas ou Dejanira mas Nesso33 o centauro que ajudou Dejanira a atravessar o rio e

tentou violaacute-la sendo por isso castigado por Heacutercules

Para compreendermos um pouco melhor a proacutepria psicologia da personagem

procurando ver na linguagem e comportamentos do Alcida aspectos que ilustrem os

seus erros enquanto caraacutecter natildeo-estoacuteico apresentamos alguns quadros um primeiro

que diz respeito agrave ldquolinguagem da emoccedilatildeordquo34 em Hercules Furens e Hercules Oetaeus

seguido de um esquema que demonstra as oscilaccedilotildees do protagonista que ora cai em

sucessivos erros dominado pelo furor ou pela ira culminando em scelera ou freia os

sentimentos resignando-se ao destino

33 A partir deste ponto Heacutercules muda completamente de atitude Aceita a morte natildeo soacute porque reconhece o seu destino mas (e essencialmente) porque ne quis superstes Herculis uictor foret (v 1480) O que o preocupava natildeo era tanto o morrer mas ser vencido por algueacutem mais fraco ou que o seu assassino pudesse viver e triunfar sobre o cadaacutever de Heacutercules 34 Designaccedilatildeo que recolhemos da obra de Maria Cristina Pimentel Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de Seacuteneca 41 onde explica o geacutenero de vocabulaacuterio e de recursos que Seacuteneca escolhe para descrever as paixotildees ldquoSeacuteneca como eacute oacutebvio natildeo descurou esse ponto ndash o da linguagem das suas personagens que eacute aquela que figuras anti-estoacuteicas poderiam ou teriam necessariamente de ter A esses aspectos do discurso de Fedra que correspondem agrave funccedilatildeo emotiva da linguagem chamaremos noacutes a linguagem da emoccedilatildeordquo

143

211 Linguagem da emoccedilatildeo

Hercules Furens

Interjeiccedilotildees 987 1226 1334 Exclamaccedilotildees 920-921 977-978 1156-1157 1221-

1223 1226 Repeticcedilotildees 638-640 931-935 937-938 942-943

980-981 983 1138 1139 1147-11481149 1153 1193-1194 1207-1208 1218 1229-1230 1231 1242-1243 1269-1270 1278 1314 1323

Interrogaccedilotildees retoacutericas 613 631-633 960 996 1216-1217 1227-1228 1283-1284

Longas tiradas a) Momentos de intensidade pateacutetica 1138-1186 1192-1200 1202-1218

1221-1236 1277-1294 1295-1296 1314-1319 1321-1341

b) Periacuteodos que revelam violecircncia 636-637 640-644 773-775 797-805 918-919 989-991 996-1002 1010-1011 1018-1020 1221-1236 1279-1282

c) Periacuteodos que revelam o excesso 603-604 606-615 900-908 920-924 926-939 1281-1282 1284-1294

d) Momento de loucura (sintomas e consequecircncia)

939-989 989-1038

Hercules Oetaeus ndash movido por sentimentos de megalomania e ira35

Interjeiccedilotildees 93 1171 1176-1177 1218 1232 1253 1264 1325 1360 1452

Exclamaccedilotildees 51 56-57 61-62 73-74 93-94 95-96 1134 1171 1177-1178 1181 1185-1186 1191-1206 1231-1232 1253 1258 1260-1261 1264 1302 1324 1364-1365 1371-1372 1435 1445-1446 1448 1459

35 Em Hercules Oetaeus haacute claramente uma evoluccedilatildeo na forma como o heroacutei se move na acccedilatildeo dramaacutetica temos um primeiro momento que corresponde aos seus lamentos porque anseia morar com Juacutepiter ou porque eacute viacutetima da vinganccedila de Nesso ndash nesta parte o heroacutei deixa-se levar pelas paixotildees num segundo momento quando descobre a verdade haacute uma mutaccedilatildeo na forma de reacccedilatildeo de Heacutercules ele reconhece o seu fatum e aceita-o Sendo o objectivo deste quadro o de analisar os passos que revelam a violecircncia e a megalomania de Heacutercules restringimos o estudo ao primeiro momento mencionado

144

Repeticcedilotildees 11 13 16-17 53-55 77 87 95-96 1135 1141 1197-1198 1218 1233 1240-1243 1148 1260 1265 1270-1271 1276-1277 1304-1305 1321 1322-1323 1329-1330 1367-1368 1379 1389-1392 1400 1402

Interrogaccedilotildees retoacutericas 63-64 97-98 1234-1247 Longas tiradas a) Momentos de grande emotividade pateacuteticos

7-8 10-13 1131-1150 1161-1206 1218-1278 1290-1336 1345-1349 1359-1373 1377-1395

b) Periacuteodos que revelam violecircncia 813-81636 1459-1464

c) Periacuteodos que revelam o excesso 8-10 13-98 1137-1150

d) Momentos de loucuradeliacuterio 1399-1401 1432-1447

Vemos nas duas tabelas que Heacutercules eacute a tiacutepica personagem que se deixa levar

pelas emoccedilotildees ora por sentimentos de grandeza vendo na forccedila desmedida a sua uirtus

ora pelos uitia mais violentos furor ira impietas Destes quadros se compreende que

ele eacute claramente exemplo de uma personagem anti-estoacuteica

Haacute contudo diferenccedilas entre os dois quadros No segundo haacute mais exemplos de

interjeiccedilotildees de exclamaccedilotildees e de repeticcedilotildees que estatildeo associados ao lamento aos

pedidos constantes de Heacutercules para abandonar a terra que ficou liberta de todos os

monstros Neste caso haacute momentos com grande carga emotiva particularmente no

monoacutelogo que inicia o acto I O desespero do heroacutei que relembra todos os seus

trabalhos todas as vitoacuterias alcanccediladas sobre os iacutempios ansiando por poder fazer parte

dos astros eacute total

No Hercules Furens haacute mais exemplos de periacuteodos que revelam violecircncia por

parte do protagonista Heacutercules eacute violento na forma como castiga os tiranos no modo

como destroacutei a sua casa (por metoniacutemia a famiacutelia) e natildeo eacute menos violento quando

pretende vingar-se de si proacuteprio pelo crime ousado

Uma outra diferenccedila entre as duas trageacutedias estaacute no tratamento da proacutepria

loucura cujos sintomas apesar de semelhantes (Heacutercules tem visotildees nos dois

momentos) natildeo terminam da mesma forma No Furens a loucura tem a duraccedilatildeo

suficiente para matar filhos e esposa No Oetaeus a sua dementia estaacute mais proacutexima do

deliacuterio do que da loucura propriamente dita Tem um curto espaccedilo de tempo motivado

36 Apesar de ser Hilo a falar ele reproduz o discurso de Heacutercules que revela crueldade uma vez que ateacute de um cadaacutever se vinga

145

ou pela exaustatildeo ou por uma nova dor provocada pela veste envenenada que o acorda

para a realidade

Estas diferenccedilas tecircm que ver com a proacutepria evoluccedilatildeo do protagonista e com a

mensagem que se pretende veicular As caracteriacutesticas da personagem satildeo muito

semelhantes se natildeo as mesmas nas duas obras Heacutercules eacute violento tanto no Furens

como no Oetaeus Mas se no primeiro haacute um processo que desancadeia a ruiacutena do

protagonista que vai sendo levado pela ferocidade do seu caraacutecter e nem no momento

final em que se resigna com o permanecer vivo deixa de parte os seus iacutempetos no

segundo haacute uma gradaccedilatildeo ascendente que culmina no perfeito sapiens como podemos

ver a partir dos dois esquemas que se seguem

146

212 Da decadecircncia da uirtus fiacutesica de Heacutercules agrave elevaccedilatildeo agrave categoria de

sapiens

Hercules Furens - Da uirtus fiacutesica agrave decadecircncia de Heacutercules ndash uma nova

concepccedilatildeo de uirtus (moral)

bullChega vitorioso a Tebas (destruiccedilatildeo das barreiras entre a vida e a morte) - vv592-615

bullDescoberta da ameaccedila de Lico e consequente morte do tirano - vv 629-640895-899

bullPrimeiros sintomas de perturbaccedilatildeo - vv 939-952bullLoucura do heroacutei e consequente morte da famiacutelia heraclida - vv 955-1038

bullHeacutercules desmaia exausto depois da chacina e no momento em que Anfitriatildeose preparava para ser viacutetima voluntaacuteria do filho - vv 1039-1049

bullAdormecimento fiacutesico e psicoloacutegico do Alcida - vv 1050-1093

bull Acorda para uma realidade que natildeo compreende imediatamente mas de quevai tendo percepccedilatildeo e reconhecendo por meio de interrogaccedilotildees retoacutericas - vv1138-1159a

bullReconhece os filhos e a mulher toma consciecircncia de que o autor do scelus quetanto procurava eacute ele proacuteprio - vv 1159b-1200

bull Procura natildeo isento de paixotildees eg ira uma forma de punir o seu scelus Vecircno suiciacutedio um modo adequado para pocircr termo agrave vida - vv 1202-1218

bullNatildeo aceita qualquer argumento de Anfitriatildeo ou de Teseu natildeo moderando o seuestado passional - vv 1240-1245

bull Vecirc-se obrigado por Anfitriatildeo a continuar a viver sob a ameaccedila de umanova morte a de Anfitriatildeo ficando Heacutercules responsaacutevel por mais essecrime Apenas esta ameaccedila trava o heroacutei que aceita este novo trabalhoviver depois de cometer filiciacutedio e uxoriciacutedio - 1316-1319a

147

Hercules Oetaeus ndash da ira a sapiens

O sentido que atribuiacutemos agraves setas de esquema visam clarificar a descida contiacutenua

do heroacutei no Hercules Furens que estagna as emoccedilotildees mas natildeo por completo Jaacute no

Hercules Oetaeus podemos verificar que haacute uma gradaccedilatildeo igualmente descendente que

representa tal como no Furens a decadecircncia dos valores do heroacutei porque movido por

sentimentos passionais Contudo nesta trageacutedia daacute-se a jaacute comentada mudanccedila que

ocorre no momento do reconhecimento da verdadeira causa da dor fiacutesica levando a uma

transformaccedilatildeo completa do estado psicoloacutegico do protagonista que passa de lamentoso

bullMonoacutelogo de Heacutercules em que pede com insistecircncia a Juacutepiter que lhe concedaum lugar nas moradas celestes - vv 1-98

bullRecebe a tuacutenica embebida no sangue de Nesso que lhe vai corroendo a pele emuacutesculos - vv 786-805

bullMata Licas apenas com o seu olhar terriacutevel e desfaz-se do corpo com crueldade -vv 810-822

bullTenta arrancar a tuacutenica mas como ela estaacute colada ao corpo ao tirar pedaccedilos daveste a esta vecircm agarrados pedaccedilos da sua proacutepria carne Nem a aacutegua acalma asdores que o sangue do centauro provoca nos membra de Heacutercules - vv 825-835

bullPretende vingar-se do corpo de Dejanira mesmo jaacute exacircnime porque desconhecea verdadeira natureza dos faacutermacos que devoram o seu corpo - vv 1461-1463

bullDescobre a natureza dos filtros que percorrem os seus membra e reconheceo seu destino ao recordar uns antigos oraacuteculos que profetizaram o seuuacuteltimo momento Sabe que desse dia natildeo passaraacute aceitando a morte com aimpassibilidade estoacuteica - vv 1472-1487

bull A forma como o heroacutei morre na pira faz dele um modelo estoacuteico a seguir vv1609-1755

bull Heacutercules entra nas moradas celestes porque lhe foi reconhecido o seu valor -vv 1963-1976

148

a destemido e enfrenta o seu novo trabalho com a impassibilidade proacutepria de um

estoacuteico

22 Hercules Furens e Hercules Oetaeus ndash o suiciacutedio

No terceiro capiacutetulo vimos que tal como em Heracles o heroacutei considera a

possibilidade de se suicidar como forma de purificar a terra da sua mancha monstruosa

(o filiciacutedio e o uxoriciacutedio) Neste primeiro momento poreacutem eacute-lhe impossiacutevel a escolha

de morrer pela necessidade que os outros tecircm dele (caso de Anfitriatildeo) e por estar ainda

dominado pelas suas proacuteprias paixotildees Como explica Cristina Pimentel

O suiciacutedio nestas circunstacircncias seria o resultado da ira contra si mesmo e do tumultus em que se encontra seria consequecircncia de um furor que natildeo o abandonou () Na perspectiva estoacuteica poreacutem as adversidades da vida por exemplo a perda de quem amamos natildeo justificam a morte Todo esse sofrimento faz parte da vida como uma prova que deus destina aos que mais quer aos que mais ama37

Cumpre entatildeo a Heacutercules nas palavras de Anfitriatildeo (Nunc Hercule opus est

perfer hanc molem mali ndash v 1239) e nas de Teseu38 continuar a viver aceitando esse

desafio com a mesma forccedila que teve para enfrentar os trabalhos

Recordando o acto V no momento em que desperta do sono da loucura

acordando para a realidade cruel o heroacutei dominado pela ira procura um caminho

penoso para expiar o seu scelus Na enumeraccedilatildeo de escolhas possiacuteveis que possam

castigaacute-lo pelas suas acccedilotildees demonstra um espiacuterito revoltado contra si mesmo e

desesperado por natildeo encontrar a melhor opccedilatildeo E se o impulso o leva a desejar queimar

as suas armas (porque foram os instrumentos de Juno) ou a indagar um caminho que o

leve agrave morte tal como descobrira um para entrar e sair dos Inferni tais decisotildees devem-

-se a ter perdido tudo a razatildeo as armas a gloacuteria a mulher os filhos e as matildeos (vv

1259-1261 cuncta iam amisi bona mentem arma famam coniugem natos manus

etiam furorem)

37 Maria Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo 39 38 Surge et aduersa impetu perfringe solito nunc tuum nulli imparem animum malo resume nunc magna tibi uirtute agendum est Herculem irasci ueta (vv 1274-1277)

149

Heacutercules reconhece que excedeu todos os limites e deve pagar por esse excesso

uma vez que a tudo levou a perdiccedilatildeo Apesar de reconhecer o seu erro natildeo consegue

moderar o seu espiacuterito (e por isso permanece no error) de tal forma que natildeo aceita

qualquer dos argumentos apresentados por Anfitriatildeo39 nem os de Teseu que o

aconselha a recuperar o seu antigo valor (vv 1276-1277) Heacutercules natildeo descansa

enquanto natildeo se vingar em si proacuteprio de tal forma que em resposta ao amigo tece

consideraccedilotildees sobre si mesmo que satildeo significativamente negativas Ele eacute monstrum

impium saeuumque et immite ac ferum (v 1280)40 e por isso como ele fez com todos

os monstros com os quais se defrontou tem de ser destruiacutedo conare aggredi ingens

opus labore bis seno amplius (vv 1281-128241)

Soacute freia as suas emoccedilotildees ante a ameaccedila paterna de que se Heacutercules se matar

seraacute autor de uma nova morte agora voluntaacuteria e consciente a de Anfitriatildeo Eacute sob esta

ameaccedila que Heacutercules opta por viver considerando essa decisatildeo como uma nova tarefa e

uacuteltima no sentido em que eacute mais exigente succumbe uirtus perfer imperium patris (v

1315) contudo natildeo deixa de vacilar nesta nova empresa porque o scelus eacute para o

Alcida de tal modo hediondo que o Sol prefere olhar para Ceacuterbero do que para o heroacutei

Teseu fecha a acccedilatildeo dramaacutetica integrando o Alcida numa nova comunidade e

purificando-o da sua maacutecula

O mesmo natildeo acontece em Hercules Oetaeus Heacutercules volta a apontar como

soluccedilatildeo o suiciacutedio Uma vez liberto de tudo e de todos Heacutercules acolhe a morte sereno

Eacute neste tracircmite longo e doloroso da sua vida que se vai aproximando do ser estoacuteico

livre dos seus lamentos e choro anteriores (porque desconhecia o seu destino) vemos

um outro Alcida que calcula friamente a melhor maneira de morrer de forma a que seja

a mais digna do seu valor Nunc mors legatur clara memoranda inclita me digna

prorsus nobilem hunc faciam diem (vv 1481-1482) Consegue vencer todas as suas

paixotildees pelas quais se deixou dominar e aceita impassiacutevel o seu destino Jaacute como

sapiens Heacutercules faz uns uacuteltimos preparativos antes do momento final orienta os que

estatildeo proacuteximos indicando-lhes que devem cortar as aacutervores do Eta para acolher o seu 39 Como sugere Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo 38-39 ldquoNatildeo serve como justificaccedilatildeo ou desculpa que [Heacutercules] tenha cometido tais crimes sob o efeito do furor que Juno lhe enviou O heroacutei lembra ao pai que saepe error ingens sceleris obtinuit locum (v 1238)rdquo O heroacutei tem plena consciecircncia de que avaliou mal a sua uirtus resultando desta maacute avaliaccedilatildeo o scelus (vv 1237-1238) 40 Notem-se os adjectivos em cadecircncia reforccedilados pela assonacircncia em nasal e pelo polissiacutendeto que engrandecem o substantivo monstrum caracteriacutestica inerente do Alcida 41 Vejam-se tambeacutem os versos seguintes Neles se observa uma sucessatildeo de imagens crueacuteis que se traduzem numa procura desesperada do protagonista de eliminar a sua existecircncia

150

corpo a Hilo daacute instruccedilotildees para que receba Iacuteole como sua esposa como forma de

compensaacute-la por ter ficado privada da famiacutelia e do seu reino e por ter-lhe reduzido a

vida agrave escravidatildeo agrave sua matildee aconselha-a a evitar lamentar a morte do filho pelo valor

de Heacutercules (vv 1681-1698) por outra parte oferece o seu arco e aljavas a Filoctetes

como recompensa por deitar a uacuteltima tocha que vai consumir o corpo do heroacutei (vv

1648-1659)

A morte de Heacutercules eacute descrita por Filoctetes Este revela que o Alcida

conquistou tudo inclusive o fogo o uacutenico elemento natural que o protagonista ainda

natildeo tinha defrontado (vencera os mares a terra e tudo o que ela esconde ndash os Inferni o

ar restava-lhe o fogo) Esse iam flammas nihil ostendit ille (vv 1610-1611)

Heacutercules acolheu o fogo com tranquilidade e no momento em que Alcmena

desesperada por ver o filho sobre a pira desnuda o peito entoando lamentos e gritando

Heacutercules aconselha-a a refrear o acircnimo42 e a poupar as laacutegrimas para que a sua morte

seja valorosa (vv 1668-1679) O Alcida torna-se exemplo de como se pode enfrentar a

morte acolhendo-a quis sic triumphas laetus in curru stetit uictor (vv 1683-1684) A

metaacutefora dos aurigas que no seu carro visam chegar agrave vitoacuteria simboliza a imagem do

guerreiro que chega agrave meta final Ningueacutem ousou profanar a sua gloacuteria total mas todos

que assistiram agrave morte do protagonista natildeo ousaram derramar uma laacutegrima (vv 1685-

1687)

Eacute o proacuteprio heroacutei quem encoraja os que o acompanharam ateacute ao monte Eta a

lanccedilarem as suas tochas sobre a pira para que o fogo possa consumi-lo Jaacute o acircnimo

valente do Alcida ansiava por abandonar o deacutebil corpo desgastado pela dor (vv 1717-

1726) Quando o fogo hesitante receia enlanccedilar-se sobre o corpo ferido o protagonista

estimula-o perseguindo-o (vv 1728-1730) Como nota Segurado e Campos ldquoO fogo

vem aqui encarado quase como se de um ser vivo se tratasse ele foge diante de

42 Seacuteneca escreveu trecircs Consolationes uma dirigida a Poliacutebio outra a Heacutelvia matildee do filoacutesofo e outra a Maacutercia Nessas trecircs obras Seacuteneca procura aconselhar o seu destinataacuterio a refrear o seu acircnimo pela perda de um familiar (no caso de Poliacutebio do irmatildeo no de Heacutelvia a ausecircncia do filho Seacuteneca no exiacutelio no caso de Maacutercia de um filho) No que respeita a Consolatio ad Marciam 482-3 exorta Maacutercia a abandonar o seu lamento contiacutenuo e excessivo Manet quidem tibi Marcia etiamnunc ingens tristitia et iam uidetur duxisse callum non illa concitata qualis initio fuit sed pertinax et obstinata tamen hanc quoque tibi aetas minutatim eximet quotiens aliud egeris animus relaxabitur Nunc te ipsa custodis multum autem interest utrum tibi permittas maerere an imperes Quanto magis hoc morum tuorum elegantiae conuenit finem luctus potius facere quam expectare nec illum opperiri diem quo te inuita dolor desinat ipsa illi renuntia

151

Heacutercules como que tem medo do heroacutei mas este obriga-o a consumi-lo e vence-o pela

coragem com que o suportardquo 43

Enquanto as chamas destruiacuteam o seu corpo Heacutercules permaneceu immotus

inconcussus (v 1741) Mais do que isso in neutrum latus correpta torquens membra

adhortatur monet gerit aliquid ardens (vv 1741-1743)

Toda a tranquilidade de espiacuterito que demonstra ao aceitar a morte sem a

questionar traduz-se em tanta maiestas uiro (v 1746) Filoctetes natildeo estranha a

coragem revelada pelo Alcida que nem sequer os olhos fecha quando o fogo atinge a

sua face e a devora (vv 1753-1755) E por isso exclama Quo nemo uitam (v 1609) Foi

laetus que Heacutercules acolheu o fogo (v 1609)

A forma como Heacutercules se liberta do seu corpo eacute claramente um modelo que

Seacuteneca sugere Para o filoacutesofo a alma deve abandonar o corpo quando este morre e natildeo

sair abruptamente mas suavemente desprender-se dele

Ab hoc modo aequo animo exit modo magno prosilit nec quis deinde relicti eius futurus sit exitus quaerit sed ut ex barba capilloque tonsa neglegimus ita ille diuinus animus egressurus hominem quo receptaculum suum conferatur ignis illud excludat an terra contegat an ferae distrahant non magis ad se iudicat pertinere quam secundas ad editum infantem44

Pela maneira como morreu completamente indiferente agrave dor Heacutercules alcanccedilou

a aeterna uirtus (v 1835) que Filoctetes louva porque o heroacutei conseguiu alcanccedilar as

moradas celestes (vv 1942-1943) A parte mortal fora consumida pelo fogo restando a

divina (v 1968) que ascendeu agraves moradas celestes Segundo Cristina Pimentel ldquoE eacute

sem duacutevida por isso e natildeo porque o mito assim obriga que Heacutercules eacute recebido entre os

deuses e que Seacuteneca termina a peccedila lembrando que a verdadeira imortalidade eacute a

memoacuteria do que de bem fizemos em vida que eacute o exemplo que aos outros podemos

deixar da nossa uirtus da nossa coragemrdquo45 Na verdade quando caminha para a morte

Heacutercules julga que regressaraacute ao mundo inferior (vv 1512-1517) e eacute soacute no momento

em que dirige as suas uacuteltimas preces a Juacutepiter que volta a pedir-lhe que lhe permita 43 Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos ldquoO Simbolismo do Fogo nas Trageacutedias de Seacutenecardquo 196 44 Seacuteneca Ad Lucilium Epistolae Morales 9234 lsquoA alma desprende-se dele ora com serenidade ora de firme propoacutesito ndash busca a sua saiacuteda sem se importar com a sorte dessa pobre coisa que para aiacute fica Noacutes natildeo ligamos importacircncia aos pecirclos da barba ou aos cabelos que acabaacutemos de cortar do mesmo modo agrave nossa alma divina ao preparar-se para abandonar o corpo de nada importa a sorte dada ao invoacutelucro ndash se o fogo o consome se a terra o cobre ou as feras o despedaccedilam para ela isso tem tanta importacircncia como para o receacutem-nascido a placentarsquo 45 Maria Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo 43

152

entrar nas moradas paternas (vv 1695-1715) Soacute nos versos que antecedem o fecho da

trageacutedia ficamos a saber que Heacutercules ascendeu agraves moradas celestes quando o filho

consola a matildee

Non me gementis stagna Cocyti tenent nec puppis umbras furua transuexit meas iam parce mater questibus manes semel umbrasque uidi quidquid in nobis tui mortale fuerat ignis euictum tulit paterna caelo pars data est flammis tua proinde planctus pone quos nato paret genetrix inerti luctus in turpes eat uirtus in astra tendit in mortem timor (vv 1963-1971)

O heroacutei aconselha a matildee a refrear o seu desespero uma vez que ele venceu a

morte e agora habita junto de Juacutepiter Na Consolatio ad Marciam Seacuteneca exorta Maacutercia

a libertar-se da dor que a consome porque a dor e a agonia constantes natildeo ressuscitaratildeo

os mortos

si fletibus fata uincuntur conferamus eat omnis inter luctus dies noctem sine somno tristitia consumat ingerantur lacerato pectori manus et in ipsam faciem impetus fiat atque omni se genere saeuitiae profecturus maeror exerceat Sed si nullis planctibus defuncta reuocantur si sors inmota et in aeternum fixa nulla miseria mutatur et mors tenuit quidquid abstulit desinat dolor qui perit Quare regamur nec nos ista uis transuersos auferat Turpis est nauigii rector cui gubernacula fluctus eripuit qui fluuitantia uela deseruit permisit tempestati ratem at ille uel in naufragio laudandus quem obruit mare clauum tenentem et obnixum46

A correctio introduzida pela adversativa sed permite acentuar a ideia de que

Maacutercia desperdiccedila a sua vida a lamentar-se desnecessariamente As suas laacutegrimas de

nada lhe poderatildeo valer jaacute que o destino eacute imutaacutevel Eacute de notar ainda as semelhanccedilas

entre os dois textos o recurso aos mesmos vocaacutebulos (luctus turpis eo ndash a forma verbal

estaacute em ambos os casos na terceira pessoa do singular do conjuntivo presente) assim

como a proacutepria semacircntica dos dois passos ndash eacute inuacutetil consumir a vida num pranto

incessante ndash o que permite criar um certo viacutenculo entre esta consolatio e a trageacutedia

46 Seacuteneca Consolatio ad Marciam 662-3

153

Em siacutentese o modo como Filoctetes vai descrevendo a morte do heroacutei sobre a

pira alude a aspectos estoacuteicos em particular pela forma como enfrenta a consumaccedilatildeo do

corpo pelo fogo A palavra ignis assume nesta trageacutedia exemplar importacircncia uma vez

que eacute por meio do fogo que Heacutercules se purifica queimando tudo o que constituiacutea sua

mortalidade e impureza O fogo assume neste contexto particular a funccedilatildeo de elemento

purificador

154

CONCLUSAtildeO

Perhaps Lucius Annaeus Seneca has suffered more than any other ancient figure for utilizing monstrosities and grotesqueries in all of his plays He has been considered unClassical inartistic morbid abominable and mentally unbalanced for creating the kind of drama that he does Only very recently have critics commenced to put aside the habit of treating him as a tasteless aberration or a pathetically incompetent imitator of the Greek tragic tradition and instead attempted to accept his plays and to describe them for what they are1

Com este estudo procuraacutemos demonstrar que a trageacutedia Hercules Furens de

Seacuteneca natildeo eacute uma mera imitaccedilatildeo ou adaptaccedilatildeo do seu modelo o Heracles de Euriacutepides

haacute uma recriaccedilatildeo na forma como as personagens satildeo representadas No decorrer da

anaacutelise ao compararmos cada uma das figuras fomos encontrando mais diferenccedilas do

que semelhanccedilas Podemos mesmo afirmar que satildeo personagens diferentes apenas tecircm

o mesmo nome o Anfitriatildeo de Heracles reconhecido pela sua sensatez e prudecircncia

opotildee-se ao Anfitriatildeo de Seacuteneca que se deixa levar pelo metus pela aegritudo e a spes o

pessimismo da Meacutegara euripidiana contrasta com os sentimentos de metus timor e

odium da Meacutegara de Hercules Furens Lico o διώλλυς e o tirano euripidiano opotildee-se agrave

personagem de Seacuteneca que eacute implacaacutevel e natildeo cede a nenhum pedido (Lico eacute saeuus e

tumidus) o Teseu da peccedila Heracles eacute o modelo da amizade e de governador de Atenas

a cidade da democracia em Seacuteneca eacute-lhe reservada a funccedilatildeo de narrador eacutepico e de

personagem-prolongamento que dissuade Heacutercules de se suicidar Iacuteris e Lissa natildeo

aparecem em Seacuteneca mas satildeo ldquosubstituiacutedasrdquo por Juno que representa a nouerca por um

lado e uma forccedila exterior e destruidora por outro ndash vem armada de odium ira dolor

funcionando como duplo de Heacutercules para o destruir

No caso do protagonista a forma como eacute focada a ambivalecircncia do caraacutecter do

heroacutei em cada peccedila eacute igualmente diacutespar A ἀρετή que caracteriza Heacuteracles eacute posta em

causa quando o heroacutei eacute submetido pela loucura o protagonista mata crianccedilas e uma

mulher seres indefesos julgando que se vingava da famiacutelia de Euristeu A βία eacute aqui

notoacuteria e reprovaacutevel

Heacutercules eacute mais confiante na sua forccedila do que Heacuteracles o protagonista da

trageacutedia de Seacuteneca confia demasiado na sua uirtus Essa confianccedila eacute excessiva e

1 Anna Lydia Motto John R Clark ldquoSenecarsquos visionary dramardquo Classica 21 (1996) 157

155

conduz inevitavelmente agrave desgraccedila (186-187 201)2 De facto o protagonista natildeo tem

qualquer controlo sobre as suas emoccedilotildees eacute insaciaacutevel sanguinaacuterio deseja que Juno lhe

envie mais monstros para ele derrotar Nem no final da trageacutedia depois de ter

enlouquecido e massacrado a mulher e os filhos imolando-os como viacutetimas de um

sacrifiacutecio aos deuses nem mesmo assim consegue moderar o seu acircnimo Eacute tomado pela

ira e pela saeuitia que o conduz a um violento desejo de se suicidar Nada parece

demovecirc-lo suacuteplicas ou conselhos Apenas uma ameaccedila agrave sua uirtus o consegue travar

quando Anfitriatildeo o intimida afirmando que iraacute morrer se Heacutercules natildeo puser um freio ao

seu iacutempeto suicida ndash a morte do pai do heroacutei seria mais um scelus com a diferenccedila de

que agora seria voluntaacuterio Nessa medida o Alcida eacute obrigado a permanecer vivo e a

resistir agrave dor

A descriccedilatildeo da loucura eacute outro toacutepico divergente nas duas peccedilas Lissa conta a

Iacuteris os primeiros sintomas da demecircncia de Heacuteracles e o Mensageiro completa narrando

as manifestaccedilotildees fiacutesicas e psiacutequicas da loucura e as consequecircncias que decorreram da

perturbaccedilatildeo mental Em Hercules Furens ao descrever a loucura do heroacutei e os seus

efeitos o filoacutesofo permite que o espectadorleitor verifique ldquoao vivordquo a relaccedilatildeo

psicossomaacutetica entre as paixotildees (fisionomia e atitude fiacutesica) Por esse motivo o filoacutesofo

natildeo necessita de um Mensageiro Tudo se passa frente aos olhos do espectador agrave

excepccedilatildeo das mortes para que se veja ilustrado o comportamento de um ser humano

dominado pelas paixotildees e as consequecircncias que daiacute resultam

Estas diferenccedilas explicam-se mercecirc de objectivos diversos que moviam cada um

dos tragedioacutegrafos Em Euriacutepides os temas que estatildeo subjacentes na trageacutedia Heracles

satildeo a ausecircncia de amigos vs amizade a loucura a fragilidade humana o destino o

suiciacutedio a forccedila fiacutesica vs a forccedila moral Teseu critica o desejo de Heacuteracles de se

suicidar Para o soberano de Atenas o acto eacute irreflectido Jacqueline de Romilly sugere

que

Heracles could not act like just anybody (1248 ἐπιτυχόντος ἀνθρώπου lsquoa chance-met fellowrsquo) he had to reject a suicide which did not befit a man who had endured so many trials (1250 πολλὰ δὴ τλάς lsquohaving endured muchrsquo) and rendered so many services to

2 Vide Norman T Pratt ldquoThe Stoic Base of Senecan Dramardquo Transactions and Proceedings of the American Philological Association 79 (1948) 8

156

mortals (1252 εὐεργέτης βροτοῖσι lsquoa benefactor for mortalsrsquo) This is making understood that the true hero does not commit suicide3

Surge a Heacuteracles um novo desafio aceitar o seu destino O heroacutei entende que

teraacute que suportar a adversidade evitando que os seus inimigos o considerem cobarde

(vv 1349-1357)4 A forccedila moral ganha expressatildeo no final da trageacutedia por oposiccedilatildeo agrave

forccedila fiacutesica Como nota Andreacute Rivier ldquoLrsquoinflexibiliteacute du heacuteros naicirct de sa force drsquoacircmerdquo5

Em Seacuteneca as trageacutedias tecircm uma funccedilatildeo pareneacutetica Aplicando as palavras de

Francesco Giancotti fabula docet6 Para esse propoacutesito o filoacutesofo toma as personagens

como exempla ou παραδείγματα Os caracteres servem de ilustraccedilatildeo de uma teoria

moral As descriccedilotildees dos vaacuterios uitia permitem ao filoacutesofo reencaminhar o homem para

a procura da uirtus Seacuteneca faz pois do binoacutemio furor mens bona o eixo axial das suas

trageacutedias Francesco Giancotti explica ldquoLrsquoantitesi fra furor passionale e mens bona ()

egrave il leitmotiv lrsquoidea-madre del corpus tragico senechiano La mens bona e il furor

passionale costituiscono rispettivamente il fondamentale valore e il fondamentale

disvalore della concezione immanente alle tragedie di Seacutenecardquo7

Todas as personagens de Seacuteneca satildeo movidas por uma ou vaacuterias passiones O

Heacutercules de Hercules Furens entra no caminho do uitium porque

a) exulta e engrandece-se com os trabalhos que Juno lhe envia ndash um sapiens

permaneceria indiferente

b) entrega-se a tarefas fuacuteteis acabando por natildeo ter tempo nem dar qualquer

atenccedilatildeo aos que efectivamente precisam da sua ajuda do seu apoio (vv 209-213)

c) natildeo sabe fazer um bom uso da forccedila extraordinaacuteria que possui utilizando-a

indiferentemente para bons e maus fins

d) procura natildeo uma via para a uirtus mas para a gloacuteria pessoal

e) consegue vencer quase todos os obstaacuteculos mas eacute vencido pela morte de

Meacutegara e dos filhos natildeo conseguindo ser impassiacutevel agrave dor ndash os estoacuteicos encaram os

males que o Destino envia como uma forma de testar as suas capacidades8

3 Jacqueline de Romilly ldquoThe Rejection of Suicide in Heraclesrdquo in Judith Mossman (ed) Euripides (Oxford Oxford University Press 2003) 290 4 Para T L B Webster The Tragedies of Euripides (Londres Methuen 1967) 192 o tema fundamental que Euriacutepides faz representar nesta trageacutedia eacute a loucura e recuperaccedilatildeo de Heacuteracles depois de ter enlouquecido 5 Andreacute Rivier Essai sur le Tragique drsquoEuripide (Paris Diffusion du Boccard 1975) 106 6 Francesco Giancotti Saggio sulle Tragedie di Seneca 52 7 Francesco Giancotti Saggio sulle Tragedie di Seneca 55 8 Segundo Norman Pratt ldquoThe Stoic Base of Senecan Dramardquo Transactions and Proceedings of the American Philological Association 79 (1948) 9 ldquoThe De Providentia presents the question why good

157

Satildeo ainda sucessivos os seus errores erro na concepccedilatildeo da sua uirtus erro de

avaliaccedilatildeo quando julga que estaacute a matar os filhos de Lico e quando pensa que estaacute a

matar Juno desde o primeiro momento em que entra em cena ele mostra que natildeo

procura um equiliacutebrio emocional mas vai decaindo sucessivamente culminando na

loucura

Em Hercules Oetaeus haacute uma evoluccedilatildeo da personagem No decorrer da acccedilatildeo

desta trageacutedia Heacutercules vai traccedilando o caminho para a virtude no modo como enfrenta a

dor Quando descobre que o Destino marcou para esse dia a sua morte aceita-o

inquestionavelmente Nesse sentido o heroacutei tornou-se no ideal do sapiens ao ver o seu

corpo a ser consumido pelas chamas mantendo a coragem a serenidade a firmeza e a

impassibilidade natildeo fechando os olhos quando as chamas lhe devoravam a face

Por fim pretendemos tornar evidente que as trageacutedias do filoacutesofo tecircm idecircntico

escopo ao das obras em prosa Foi com esse propoacutesito que estabelecemos paralelos entre

alguns exemplos das falas do Coro e passos das outras obras do autor Tivemos

oportunidade de verificar que o vocabulaacuterio e os recursos estiliacutesticos usados satildeo os

mesmos Como afirma Norman Pratt

Such then is the relationship between the essays and the plays analyzed as groundwork for continued study Stoicism shaped the nature of this drama both in superficial and in fundamental ways The influence of philosophy is much deeper than any simple correspondence between the themes of the two genres Stoic dogma concerning evil and the conflict between reason and passion lies beneath the plays in various aspects including choral passages concept of character introspection and tone to a degree which amounts to a distinctive concept of the tragic9

Enquanto as obras em prosa satildeo essencialmente uma reflexatildeo teoacuterica sobre o

Bem e o Mal e procurem desviar o seu leitor do caminho do uitium as trageacutedias satildeo a

ldquopraacuteticardquo dos males que podem atingir o Homem Ao socorrer-se de imagens violentas

de cracircnios a serem esmagados de sangue que mancha as paredes ou que eacute espalhado

pelo eacuteter Seacuteneca permite que o espectadorleitor contemple ou mesmo visualize (por

meio dos recursos estiliacutesticos como a anaacutefora o quiasmo as construccedilotildees paraleliacutesticas

uariatio sententiae iteraccedilotildees) os malefiacutecios dos affectus recordando na voz do Coro men are allowed to suffer and the conventional answer that misfortune is intended to test and develop mans spirit (16) Adversity is merely discipline for virtue pro ipsis esse quibus eveniunt ista quae horremus ac tremimus (32) From this it follows that evil is to be welcomed praebendi fortunae sumus ut contra illam ab ipsa duremur (412)rdquo 9 Norman Pratt ldquoThe Stoic Base of Senecan Dramardquo Transactions and Proceedings of the American Philological Association 79 (1948) 10-11

158

que eacute preferiacutevel viver em secura quies e tranquillitas animi evitando uma vida

desregrada ou movida pela esperanccedila

159

BIBLIOGRAFIA

1 Ediccedilotildees Comentaacuterios e Traduccedilotildees de Euriacutepides e de Seacuteneca

11 Euriacutepides

Euripides Fabulae I-III ed James Diggle (Oxford Oxford University Press

1984-1994)

Euripidesrsquo Heracles intr e comentaacuterio Godfrey W Bond (2ordf Ediccedilatildeo Oxford

Clarendon Press 1988)

Euripides Heracles intr trad e comentaacuterio Shirley Barlow (Warminster Aris

and Philips 1996)

EURIPIDE Theacuteacirctre III trad Henri Berguin Georges Duclos (Paris Garnier

1955)

EURIPIDE Trageacutedies Complegravetes I-II trad Marie Delcourt-Curvers (Paris

Gallimard 2006)

EURIPIDE Heacuteraclegraves ndash Les Suppliants ndash Ion III trad Leacuteon Parmentier Henri

Gregoire (Paris Les Belles Lettres 1976)

EURIPIDES Helena trad Joseacute Ribeiro Ferreira (Coimbra Festival de Teatro de

Tema Claacutessico 2005)

EURIPIDES Iacuteon trad Frederico Lourenccedilo (Lisboa Ediccedilotildees Colibri 2005 2ordf

tiragem)

EURIPIDES Medeia trad Maria Helena da Rocha Pereira (3ordf ed Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2005)

EURIPIDES Orestes trad Augusta Fernanda de Oliveira e Silva (Coimbra

Instituto Nacional de Investigaccedilatildeo Cientiacutefica 1982)

12 Seacuteneca

a) Trageacutedias

L Annaei Senecae Hercules Furens Troades Phoenissae Medea Phaedra

recensuit Ioannes Viansino (Torino Paravia 1968)

160

L Annaei Senecae Oedipus Agamemnon Thyestes Hercules Oetaeus (incerti

poetae) Octavia recensuit Ioannes Viansino (Torino Paravia 1965)

Senecarsquos Hercules Furens a Critical Text with Introduction and Commentary

ed John G Fitch (Ithaca and London Cornell University Press 1987)

SENECA Tragedies I-II ed e trad John G Fitch (Cambridge Massachusetts

Londres Harvard University Press 2002-2004)

SENECA Tragedies I-II ed Frank Justus Miller (Londres Cambridge

Massachusetts Harvard University Press 1917 reimpr 1968)

SENECA Lucio Anneo Tragedie trad G C Giardina Rita Cuccioli Melloni

(Torino Editrice Torinese 1987)

SEacuteNEgraveQUE Trageacutedies I-II ed e trad Leacuteon Herrman (Paris Les Belles Lettres

1961-1968)

SEacuteNEgraveQUE Theacuteacirctre Complet II ed e trad Florence Dupont (Paris Imprimerie

Nationale 1992)

SENECA Fedra trad Ana Alexandra Alves de Sousa (Lisboa Ediccedilotildees 70

2003)

SENECA Tiestes trad Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos (sl Editorial Verbo

1996)

b) obra em prosa

L Annaei Senecae Ad Lucilium Epistulae Morales recognouit et adnotationes

critica instruxit L D Reynolds I-II (Oxford Oxford University Press 1965) Seacuteneca

Cartas a Luciacutelio trad Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos (Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste

Gulbenkian 1991)

L Annaei Senecae Dialogorum Libri Duodecim recognouit breuique

adnotationes critica instruxit L D Reynolds (Oxford Oxford University Press 1977)

SENEQUE Dialogues I De Ira ed e trad Abel Bourgery (Paris Les Belles

Lettres 1951)

SENEQUE Dialogues III De la Cleacutemence ed e trad Franccedilois Preacutechac (Paris

Les Belles Lettres 1961)

161

SENEQUE Dialogues IV De la Providence De la Constance du Sage De la

Tranquilliteacute de lrsquoAcircme De lrsquoOisiveteacute ed e trad Reneacute Waltz (Paris Les Belles Lettres

1965)

SENEQUE Dialogues II De la Vie Heureuse De la Briegraveveteacute de la Vie ed e trad

Abel Bourgery (Paris Les Belles Lettres 1955)

SENEQUE Questions Naturelles I-II ed e trad Paul Oltramare (Paris Les

Belles Lettres 1929)

SENECA Moral Essays I-II trad John W Basore (Cambridge Massachusetts

Harvard University Press 1928-1932 reimpr 1963 1970)

13 Outros autores

APOLLODORUS The Library I-II ed e trad James George Frazer (Cambridge

Massachusetts Harvard University Press 1961)

CICERO De Fato Paradoxa Stoicorum De Partitione Oratoria trad Harris

Rackham M A (Cambridge Massachusetts Harvard University Press 1942 reimpr

1948)

CICERO De Natura Deorum Academica trad Harris Rackham M A

(Cambridge Massachusetts Harvard University Press 1933 reimpr 1972)

CICERO De Optimo Genere Oratorum Topica trad H M Hubbell (Cambridge

Massachusetts Harvard University Press 1968)

CICERO De Senectute De Amicitia De Diuinatione trad William Armistead

Falconer (Cambridge Massachusetts Harvard University Press 1923 reimpr 1971)

CICERON Tusculanes Tome II (III-V) ed Georges Fohlen trad Jules Humbert

(Paris Les Belles Lettres 1931)

DIOGENES LAERTIUS Lives of Eminent Philosophers II trad Robert Drew

Hicks (Cambridge Massachusetts Harvard University Press 1937 reimpr 1991)

DIOGENES LAERCIO Vida de los Filoacutesofos Ilustres trad Carlos Garciacutea Gual

(Madrid Alianza Editorial 2007 reimpr 2008)

EacuteSQUILO Os Persas trad Manuel de Oliveira Pulqueacuterio (Lisboa Ediccedilotildees 70

1998)

162

Epictetus The Discourses as Reported by Arrian The Manual and Fragments

I-II trad William Abbott Oldfather (Cambridge Massachusetts Harvard University

Press 1925-1928 reimpr 1956-1959)

HOMERO Iliacuteada trad Frederico Lourenccedilo (Lisboa Livros Cotovia 2005)

Marcus Aurelius ed e trad Charles Reginald Haines (Cambridge

Massachusetts Londres Harvard University Press 1916 reimpr 2003) MARCO

AURELIO Pensamentos trad Joatildeo Maia (Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2008)

The Odes of Pindar including The Principal Fragments ed e trad Sir John

Sandys London Harvard University Press 1968

Ovide Les Meacutetamorphoses Tome II (VI-X) ed e trad Georges Lafaye (Paris

laquoLes Belles Lettresraquo 1955) Oviacutedio Metamorfoses trad Paulo Farmhouse Alberto

(Lisboa Livros Cotovia 2007)

SEXTUS EMPIRICUS Against the Physicists Against teh Ethicists trad Robert

Gregg Bury (Cambridge Massachusetts Harvard University Press 1953 reimpr

1968)

Sofistas Testemunhos e Fragmentos introd e trad Maria Joseacute Vaz Pinto Ana

Alexandra Alves de Sousa (Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2005)

SOacuteFOCLES Trageacutedias trad Maria Helena da Rocha Pereira et alii (Coimbra

Minerva 2003)

VERGIacuteLIO Eneida trad Luiacutes M G Cerqueira et alii (Lisboa Bertrand 2003)

2 Dicionaacuterios Concordacircncias

21 Dicionaacuterios e Concordacircncias

A Concordance to Euripides ed James T Allen Gabriel Italie (Groningen

Boumarsquos Boekhuis 1970)

BAILLY Anatole Dictionnaire Grec-Franccedilais (Paris Hachette 1999)

CHANTRAINE Pierre Dictionnaire eacutetymologique de la langue grecque Histoire

des mots (Paris Klincksieck 1999 1ordf ed 1968)

Dicionaacuterio de Latim-Portuguecircs (3ordf ed Porto Porto Editora 2008)

163

ERNOUT Alfred MEILLET Antoine Dictionnaire eacutetymologique de la langue

latine histoire des mots (4ordf ed Paris Klincksieck 1959 reimpr 2001)

GAFFIOT Feacutelix Le Grand Gaffiot Dictionnaire LatinndashFranccedilais (Paris

Hachette 2000)

LIDDELL Henry George SCOTT Robert A Greek-English Lexicon (9ordf ed

Oxford Oxford University Press 1995)

Lucius Annaeus Seneca Tragoediae Index verborum Releves Lexicaux et

Grammaticaux ed Joseph Denooz (Hildesheim Zuumlrich Georg Olms Verlag 1994)

GLARE Peter G W (ed) Oxford Latin Dictionary (Oxford Oxford University

Press 1982 reimpr 2006)

GONCcedilALVES Francisco da Luz Rebelo Vocabulaacuterio da Liacutengua Portuguesa

(Coimbra Coimbra Editora 1966)

GRIMAL Pierre Dicionaacuterio da Mitologia Grega e Romana (Algeacutes Difel 1999)

HORNBLOWER Simon e Antony Spawforth (eds) The Oxford Classical

Dictionary (3ordf ed Oxford Oxford University Press 1996 reimpr 2003)

The Oxford Dictionary of Classical Myth and Religion ed Simon Price Emily

Kearns (Oxford Oxford University Press 2003)

22 Outros

ANTUNES Padre Manuel sj Obra Completa Tomo I Theoria Cultura e

Civilizaccedilatildeo Volume I Cultura Claacutessica (Estudos) ed criacutetica coord Arnaldo do

Espiacuterito Santo (Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2007

BAYET J Histoire Politique et Psychologique de la Religion Romaine (Payot

Paris 1957)

BOARDMAN John GRIFFIN Jasper MURRAY Oswyn (eds) The Oxford History

of Roman World (Oxford Oxford University Press 1991 reimpr 2001)

BURKERT Walter Religiatildeo Grega na Eacutepoca Claacutessica e Arcaica trad M J

Simotildees Loureiro (Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1993)

DODDS E R The Greeks and the Irrational (Berkeley Los Angeles University

of California Press 1951)

EASTERLING P E The Cambridge Companion to Greek Tragedy (Cambridge

Cambridge University Press 1997)

164

GREGORY Justina A Companion to Greek Tragedy (Malden Blackwell 2005

reimpr 2008)

GRAF Fritz Greek Mythology an Introduction trad Thomas Marier (Baltimor

Londres Johns Hopkins University Press 1996)

LOURENCcedilO Frederico Greacutecia Revisitada (Lisboa Cotovia 2004)

MOSSEacute Claude SCHNAPP-GOURBEILLON Annie Siacutentese de Histoacuteria Grega

trad Carlos Carreto (Lisboa Ediccedilotildees Asa 1994)

PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de Histoacuteria da Cultura Claacutessica I

Cultura Grega (3ordf ed Lisboa Serviccedilo de Educaccedilatildeo e Bolsas da Fundaccedilatildeo Calouste

Gulbenkian 2002)

PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de Histoacuteria da Cultura Claacutessica II

Cultura Romana Lisboa Serviccedilo de Educaccedilatildeo e Bolsas da Fundaccedilatildeo Calouste

Gulbenkian 1998

RAWLINGS Louis BOWDEN Hugh Herakles and Hercules Exploring a Graeco-

-Roman Divinity (Wales The Classical Press of Wales 2005)

3 Estudos sobre o Estoicismo

BODSON Arthur La Morale Sociale des Derniers Stoiumlciens Seacutenegraveque Eacutepictegravete et

Marc Auregravele (Paris Les Belles Lettres 1967)

BRENNAN Tad The Stoic Life (Oxford Clarendon Press 2005)

BRUN Jean Les Stoiumlciens (Paris Presses Universitaires de France 1968) BRUN

Jean O Estoicismo trad Joatildeo Amado (Lisboa Ediccedilotildees 70 1986)

DURKHEIM Eacutemile Le Suicide Eacutetude de Sociologie (Paris Presses Universitaires

de France 1930 reimpr 1986)

HOVEN Reneacute Stoiumlcisme et Stoiumlciens Face au Problegraveme de lrsquoAu-Delagrave (Paris Les

Belles Lettres 1971)

INWOOD Brad (ed) The Cambridge Companion to the Stoics (Cambridge

Cambridge University Press 2003)

LOND Anthony A (ed) The Cambridge Companion to Early Greek Philosophy

(Cambridge Cambridge University Press 1999)

165

MOREAU Joseph Stoiumlcisme Eacutepicurisme Tradition Helleacutenique (Paris Librairie

Philosophique J Vrin 1979)

RIST J M Stoic Philosophy (Cambridge Cambridge University Press 1969)

ROBIN Leacuteon A Moral Antiga trad Joatildeo Morais Barbosa (Ediccedilotildees Despertar

sd)

RODIS-LEWIS Geneviegraveve La Morale Stoiumlcienne (Paris Presses Universitaires de

France 1970)

SEDLEY David (ed) The Cambridge Companion to Greek and Roman

Philosophy (Cambridge Cambridge University Press 2003)

SPANNEUT Michel Permanence du Stoiumlcisme de Zeacutenon agrave Malraux (Gembloux

Duculot 1973)

STRANGE Steven K ZUPKO Jack Stoicism Traditions and Transformations

(Cambridge Cambridge University Press 2004)

4 Teoria e Histoacuteria da Literatura

BALDICK Chris The Concise Oxford Dictionary of Literary Terms (Oxford

Oxford University Press 2004)

BOYLE Anthony J Roman Tragedy (Londres Nova Iorque Routledge 2006)

Cambridge History of Classical Literature ii Latin Literature ed Edward John

Kenney (Cambridge Cambridge University Press 1996)

CHAMOUX Franccedilois A Civilizaccedilatildeo Grega na Eacutepoca Arcaica e Claacutessica trad

Pedro Eloacutei Duarte (Lisboa Ediccedilotildees 70 2003)

CHEVALIER Jean GHEERBRANT Alain Dictionnaire des Symboles 4 Vols

(Paris Seghers 1973r)

CITRONI Mario CONSOLINO Franca Ela LABATE Mario e NARDUCCI

Emanuele Literatura de Roma Antiga trad Margarida Miranda e Isaiacuteas Hipoacutelito

(Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2006)

CONTE Gian Biagio Latin Literature A History trad Joseph B Solodow Don

P Fowler e Glen W Most (Baltimore Londres Johns Hopkins University Press 1999)

CUDDON J A The Penguin Dictionary of Literary Terms and Literary Theory

(Londres Penguin Books 1999)

166

FEDELI Paolo Storia Letteraria di Roma (Naacutepoles Fratelli Ferraro Editori

2002)

HOWATSON MC CHILVERS Ian The Concise Oxford Companion to Classical

Literature (Oxford Oxford University Press 1996)

KENNEDY George Alexander (ed) The Cambridge History of Literary

Criticism I Classical Criticism (Cambridge Cambridge University Press 1989

reimpr 1999)

KITTO Humphrey Davy Findley Trageacutedia Grega Estudo Literaacuterio II trad

Joseacute Manuel Coutinho e Castro (Coimbra Armeacutenio Amado 1990)

LAUSBERG Heinrich Elementos de Retoacuterica Literaacuteria trad Raul Rosado

Fernandes (5ordf ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2004)

LAUSBERG Heinrich Handbook of Literary Rhetoric A Foundation for Literary

Study trad Matthew T Bliss Annemiek Jansen e David E Orton (Leiden Brill 1998)

LESKY Albin Histoacuteria da Literatura Grega trad Manuel Losa (3ordf ed Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1995)

REIS Carlos LOPES Ana Cristina Macaacuterio Dicionaacuterio de Narratologia (7ordf ed

Coimbra Livraria Almedina 2000)

ROMILLY Jacqueline de A Trageacutedia Grega trad Leonor Santa Baacuterbara (Lisboa

Ediccedilotildees 70 1997)

SEGAL Erich Oxford Readings in Greek Tragedy (Oxford Oxford University

Press 1988)

SILK M S Tragedy and the Tragic Greek Theatre and Beyond (Oxford

Clarendon Press 1996)

SOMMERSTEIN Alan H Greek drama and dramatists (Londres Routledge

2002)

5 Estudos sobre Euriacutepides e a Trageacutedia Heracles

ADKINS Arthur W H ldquoBasic Greek Values in Euripidesrsquo Hecuba and Hercules

Furensrdquo Classical Quarterly 16 nordm 2 (1966) 193-219

BARLOW Shirley A ldquoStructure and Dramatic Realism in Euripidesrsquo Heraclesrdquo

Greece and Rome 29 nordm 2 (1982) 115-125

167

BARLOW Shirley A The Imagery of Euripides (3ordf ed Londres Bristol

Classical Press 2008)

CHALK H H O ᾿Αρετή and Βία in Euripidesrsquo Heraklesrdquo Journal of Hellenic

Studies 82 (1962) 7-18

COLLARD C Euripides (Oxford Oxford University Press 1981)

DIGGLE James Euripidea Collected Essays (Oxford Clarendon Press 1994)

DUNN Francis M Tragedyrsquos End Closure and Innovation in Euripidean

Drama (Oxford Oxford University Press 1996)

GRIFFITHS Emma Euripides Heracles (Londres Duckworth 2006)

JONG Irene J F de Narrative in Drama the Art of the Euripidean Messenger-

Speech (Leiden Nova Iorque E J Brill 1991)

KOVACS David Euripidea (Leiden Nova Iorque Koumlln E J Brill 1994)

LEFKOWITZ Mary R ldquolsquoImpietyrsquo and lsquoAtheismrsquo in Euripidesrsquo Dramasrdquo

Classical Quarterly 39 nordm 1 (1989) 70-82

LEFKOWITZ Mary R ldquoThe Poet as Hero Fifth-Century Autobiographycal and

Subsequent Biographical Fictionrdquo Classical Quarterly 28 nordm 2 (1978) 459-469

McAUSLAN Ian Peter Walcot The Greek Tragedy (Oxford Oxford University

Press 1993)

MICHELINI Ann Norris Euripides and Tragic Tradition (Londres The

University of Wisconsin Press 1987)

MOSSMAN Judith (ed) Euripides (Oxford Oxford University Press 2003)

MURRAY Gilbert Euripides and his Age (Londres Oxford University Press

1965)

PAPADOPOULOU Thalia ldquoHerakles and Hercules The Herorsquos Ambivalence in

Euripides and Senecardquo Mnemosyne 57 (2004) 257-283

PAPADOPOULOU Thalia Heracles and Euripidean Tragedy (Cambridge

Cambridge University Press 2005)

PARRY H The Second Stasimon of Euripidesrsquo Heracles (637-700) American

Journal of Philology 86 nordm 4 (1965) 363-374

PHOUTRIDES Aristides Evangelus ldquoThe Chorus of Euripidesrdquo Harvard Studies

in Classical Philology 27 (1916) pp 77-170

RIDGEWAY William ldquoEuripides in Macedonrdquo Classical Quarterly 20 nordm 1

(1926) 1-19

168

RIVIER Andreacute Essai sur le Tragique drsquoEuripide (Paris Diffusion du Boccard

1975)

SANTOS Carlos Ferreira Euriacutepides Heacuteracles Introduccedilatildeo Traduccedilatildeo e Notas

(Coimbra diss de Mestrado em Literaturas Claacutessicas apresentada agrave Faculdade de Letras

da Universidade de Coimbra 1996)

SILVA Maria de Faacutetima Sousa e Criacutetica Literaacuteria na Comeacutedia Grega Geacutenero

Dramaacutetico (Coimbra diss de Doutoramento em Literatura Grega apresentada agrave

Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 1983)

SILVA Maria de Faacutetima Sousa e Ensaios sobre Euriacutepides (Lisboa Cotovia

2005)

SCULLION Scott ldquoEuripides and Macedon or the Silence of the Frogsrdquo

Classical Quarterly 53 nordm 2 (2003) 389-400

WEBSTER Thomas Bertram Lonsdale The Tragedies of Euripides (Londres

Methuen 1967)

WHITMAN Cedric H Euripides and the Full Circle of Myth (Cambridge

Massachusetts Harvard University Press 1974)

WILLINK C W ldquoSleep after Labour in Euripidesrsquo Heraclesrdquo Classical

Quarterly 38 nordm 1 (1988) 86-97

5 Estudos sobre Seacuteneca e sobre as trageacutedias Hercules Furens e Hercules Oetaeus

AUVRAY Clara-Emmanuelle Folie et Douleur dans Hercule Furieux et Hercule

sur lrsquoOeta Recherches sur lrsquoExpression Estheacutetique de lrsquoAscegravese Stoiumlcienne chez Seacutenegraveque

(Frankfurt am Main Bern Nova Iorque Paris Lang 1989)

BOYLE Anthony J Tragic Seneca an Essay in the Theatrical Tradition

(Londres Nova Iorque Routledge 1997)

BORGO Antonella Lessico Parentale in Seneca Tragico (Naacutepoles Loffredo

Editore 1993)

DUARTE Ricardo De Mater a Monstrum o Abismo dos Affectus Estoacuteicos na

Medea de Seacuteneca (Lisboa diss de Mestrado em Estudos Claacutessicos Literatura Latina

2008)

169

DUPONT Florence Les Monstres de Seacutenegraveque (Paris Belin 995)

FERREIRA Paulo Seacutergio Margarido Seacuteneca em Cena Enquadramento na

Tradiccedilatildeo Dramaacutetica Greco-Latina (Coimbra diss de Doutoramento em Letras aacuterea de

Estudos Claacutessicos especialidade de Literatura Latina apresentada agrave Faculdade de

Letras da Universidade de Coimbra 2006)

FITCH John (ed) Oxford Readings in Classical Studies Seneca (Oxford

Oxford University Press 2008)

GIANCOTTI Francesco Saggio sulle Tragedie di Seneca (Roma Naacutepoles

Societagrave Editrice Dante Alighieri 1953)

GONCcedilALVES Carla Susana Vieira Invectiva na Trageacutedia de Seacuteneca (Coimbra

Ediccedilotildees Colibri 2003)

GRIFFIN Miriam Seneca A Philosopher in Politics (Oxford Clarendon Press

1976 reimpr 1992)

GRIMAL Pierre Seacutenegraveque sa Vie son Oeuvre avec un Exposeacute de sa Philosophie

(3ordf ed Paris Presses Universitaires de France 1966)

HARRISON George W M (ed) Seneca in Performance (Londres The Classical

Press of Wales 2000)

HERRMANN Leacuteon Le Theacuteacirctre de Seacutenegraveque (Paris Les Belles Lettres 1924) 53-

57

INWOOD Brad Reading Seneca Stoic Philosophy at Rome (Oxford Clarendon

Press 2005)

LITTLEWOOD C A J Self-Representation and Illusion in Senecan Tragedy

(Oxford Oxford University Press 2004)

MATIAS Mariana Montalvatildeo Horta e Costa Paisagens Naturais e Paisagens da

Alma no Drama Senequiano ndash Troades e Thyestes (Coimbra diss de Mestrado em

Literaturas Claacutessicas especialidade de Literatura Latina apresentada agrave Faculdade de

Letras da Universidade de Coimbra 2007)

MENDELL Clarence W Our Seneca (Archon Books 1968)

MOTTO Anna Lydia CLARK John R Maxima virtus in Senecarsquos Hercules

Furens CPh 76 (1981) 101-17 [revised version entitled Hercules Furens maximus

virtus in A L Motto amp J R Clark (1988) 261-94]

MOTTO Anna Lydia CLARK John R ldquoThe Monster in Senecarsquos Hercules

Furens 926-939rdquo Classical Philology 89 nordm 3 (1994) 269-272

170

MOTTO Anna Lydia CLARK John R ldquoSenecarsquos visionary dramardquo Classica 21

(1996) 155-163

OLIVEIRA Francisco de ldquoImagem do Poder na Trageacutedia de Seacutenecardquo Humanitas

51 (1999) 49-83

PEASE Arthur Stanley ldquoOn the Authenticity of the Hercules Oetaeusrdquo

Transactions and Proceedings of the American Philological Association 49 (1918) 3-

26

PIMENTEL Maria Cristina ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo

Classica 23 (1999) 27-45

PIMENTEL Maria Cristina Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de

Seacuteneca (Lisboa Ediccedilotildees Colibri 1993)

PIMENTEL Maria Cristina Seacuteneca (Mem Martins Editorial Inqueacuterito 2000)

PRATT Norman T ldquoThe Stoic Base of Senecan Dramardquo Transactions and

Proceedings of the American Philological Association 79 (1948) 1-11

ROSENMEYER Thomas G Senecan Drama and Stoic Cosmology (Berkeley Los

Angeles University of California Press 1989)

SCHIESARO Alessandro The Passions in Play (Cambridge Cambridge

University Press 2003)

SEGURADO E CAMPOS Joseacute Antoacutenio ldquoSeacuteneca Brecht e o Teatro Eacutepicordquo

Classica 23 (1999) 9-26

SEGURADO E CAMPOS Joseacute Antoacutenio ldquoO Simbolismo do Fogo nas Trageacutedias de

Seacutenecardquo Euphrosyne 5 (1972) 185-247

SEGURADO E CAMPOS Joseacute Antoacutenio ldquoSeacuteneca e Heacutercules Observaccedilotildees sobre o

Hercules Furensrdquo Euphrosyne 8 (1977) 161-168

SEGURADO E CAMPOS Joseacute Antoacutenio ldquoSur la Typologie des Personnages dans les

Trageacutedies de Seacutenegravequerdquo Neronia 1977 Actes du 2e Colloque de la Socieacuteteacute

Internationale drsquoEacutetudes Neacuteroniennes (Clermont-Ferrand Adosa 1977) 155-176

SERRA Joseacute Pedro Pensar o Traacutegico (Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian

Fundaccedilatildeo para a Tecnologia e a Tecnologia 2006)

SHELTON Jo-Ann ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo

Hypomnemata 50 (Goumlttingen Vandenhoeck and Ruprecht 1978)

171

TANNER R G N S W Newcastle ldquoStoic Philosophy and Roman Tradition in

Senecan Tragedyrdquo Aufstieg und Niedergang der Roumlmischen Welt II 322 (Berlim

Nova Iorque Walter de Gruyter 1985) 1100-1133

VOLK Katharina Gareth D Williams (eds) Seeing Seneca Whole Perspectives

on Philosophy Poetry and Politics (Leiden Boston Brill 2006)

172

INDEX LOCORVM

Apolodoro

Bibliotheca

2412 10n

Arriano

Epicteti Dissertationes

1916 136n

1917 136n

12929 136n

1226 136n

2611 138n

2612 138n

4172 136n

41150 ss 136n

Ciacutecero

Academica Posteriora

239 19n

De Fato

1020-21 20n

De Inuentione

2160 26n

Tusculanae Disputationes

118 22n

36 26n

4611 29n

4716 30n

4922 30n

415 29n

41534 28n

41737 28n

Dioacutegenes Laeacutercio

Declarorum Philosophorum Vitis

739 15n

740 15n

741 15n

741-43 16n

746-48 16n

783 15n

784 23n

787 24n

790 26n

792-93 26n

793 27n

7110 28n

7115 29n

7132 17n

7138-139 18n

7148-149 17n

7157 21n 22n

Eacutesquilo

Persae

305-309 44n

633-680 44n

Euriacutepides

Electra

677-684 44n

Helena

317-329

Heracles

1 36n

173

1-2 88n

1-106 5

1-821 6

13-14 98

13-20 102

16-17 111n

18-20 102

18-21 84n

20 86n

20-21 36n 101 102

21 102

22-25 98n

26-34 50

33-34 50

38-43 43

41-42 36 36n

44-45 36 36n

44-46 97n

51-59 37

57-59 37n

60-61 36

60-106 43

62 7

69-71 43

71-72 44

75-79 104n

80-86 44

95-97 51n

95-106 37

107-114 63

112 82

115-118 65

119 64

119-130 63

120 64

124-126 82

125 64

126 64

127-229 99

128 64

131-137 65

140-347 5

145-146 97n

149 95

150-155 95

157 98

157-164 98

158 98

160 98

162 98

165-166 51

174-205 38

177 96

177-180 95

179 96

190-194 98

195-201 98

210 51

215 51 51n

215-216 38 51 51n

217-226 99

227 11

229 100

235 51

240-246 112

247-251 51n 113

252-267 65

252-274 65

255 50

261 50

268-274 65

272-274 50 50n

174

282-283 103

288-292 44

296-297 97n

303-306 37

309-311 103

312-314 82

312-315 65

316-318 38

319-329 65n

339-347 7 38n

344-346 7

348-358 65

348-435 102

348-450 65

349-435 65

359-363 66

359-429 65

364-374 66

375-379 66

380-388 66

389-393 66

394-402 66

397 114n

403-407 66

404 114n

408-418 66

419-421 66

422-424 66

425-429 66

426-424 97n

435 114n

436-450 65

451-453 113

451-522 5

456-457 103

456-489 44

480-482 103

483 45n

490-491 44n

490-495 97n

490-496 44

492-493 44n

494 44n

495-496 44n

497-500 44

497-513 38n

498-500 7

501 38n

506-507 37n

511-512 37n

519-521 45

523 95n

531-636 123

533 45

534 ss 45

558 99

558-561 37

560 11 99

562-582 100

565 100 114n

566 100

565-573 8 100

565-606 5

568 100

568-573 113

570 100

572 100

572-573 100

573 100

575-582 104

577 104

585-586 38 113

175

588-594 38

595-598 104

606-609 100

607-621 88n

613 88n

619 88n

627-633 133

631 114n

631-633 104

637-700 65 67

637 ss 82

639-700 102

655-656 7 67

696-697 67 96

696-700 84n 96

707-709 51 113

707-711 38

709 51n

712-724 112

717 38

719 38

727-728 51

735 68n

735-814 102

735-821 65

741 50

749-754 5

755 50

757 50

760 52 68n

762-771 68

763 68

763-814 5 68n 117

769-771 68

772 68

772 ss 68

772-814 7

772-880 68

781-797 68

798-814 68 84n

801-804 69

811 ss 68

815-821 83

815-874 6

821 ss 96

822-1088 6

822-873 6

822-874 83 83n

829 86n

831 86n

840 86n

841-842 84

847-854 85

848 86n

851 85

852-853 85

855 86n

859 86n

861-866 106

867-872 106

867-874 107n

875-821 69

875-885 65 69

886-909 69 107n

887-909 6

910 6

910-921 69

910-1015 107

922-1015 6 107

929-931 107

932 107

933 107

176

934 107

935 108

938 114n

940 114n

947-949 108

953-955 108

955-957 108

959-963 108

963 ss 108

964 114n

964-971 108

967-971 112

967-969 108

968 114n

984-994 112

986-994 122

994-995 113

996-1000 44

1001-1006 7

1002-1008 108

1016-1038 69

1016-1041 6

1019-1020 69

1049-1051 109

1061-1062 109

1078-1080 111

1087-1088 7

1088-1108 6

1089 110

1089-1093 110

1089-1428 6

1092 110

1093 110

1094 110

1094-1097 110

1101-1105 110

1111-1112 110

1111-1145 6

1127 86n 103

1135 102

1145 114n

1146-1152 6

1146-1153 110

1153-1154 110

1163-1426 6

1164-1171 11

1164-1172 99

1169-1171 58

1186 102

1189 86n

1199 114n

1202 58

1208 114n

1219-1220 58

1219-1227 58

1220 58

1221-1222 58

1223 58

1225 58

1232 59

1234 59

1247-1310 110

1248 59

1250 59

1252 59

1253 86n

1254 59

1258-1261 110

1262 ss 110

1262-1310 102-103

1264 86n

1279-1280 110

177

1281-1290 112

1295-1298 111

1303-1310 8

1307-1309 86n

1310 105

1311-1319 8

1314-1339 8

1324 114n

1340-1344 8

1347-1351 111

1349-1357 155

1364 105

1378 ss 111

1386-1388 132

1392-1393 102

1393 86n

1395-1402 133

1397 ss 58

1398 114n

1402 114n

1408-1409 133

1412-1417 96

1423-1424 105n

Medea

516-519 67n

Orestes

211-306 109n

1225-1242 44n

735 58n

Homero

Ilias

5392ndash397 1n

5403-404 1n

18119 101n

21214-212 101n

Marco Aureacutelio

Meditationes

440 ss 21n

449 31n

Oviacutedio

Metamorphoses

9134 ss131n

Piacutendaro

Nemean

322 95n

Seacuteneca

Ad Lucilium Epistolae Morales

2 118n

136 25n

244 136n

246-8 136n

2417 23n

2418 23n

2420 79

2421 79n

242284 135n

2423 ss 74n

2425 139

269-10 34n

2610 134n

30 138n

3015 139

518-9 31n

544-5 23n

5835-36 34n

178

5836 137n

652 17n

655 27n

6524 22

665 27 27n

696 73n

704 136

705 136

7011-12 137n

7014-15 136n

7018 136

7020-26 138

714 31n

715 31n

715 ss 115n

7136 25n 33n

7710 134n

7712 78n

7713 78

7720 135n

781ss 135n

8915 25

9225 131n

9230 ss 35n

9234 150n

937 72

938 72

965 31n

981516 135n

101 33n

1014-5 33n

10110 71n 72n

10223 22 23n

1043 135n

1043-4 35n

1064 18n

1065 47n

1065-10 17n

1066 29n

12018 79

12022 24n

Consolatio ad Marciam

267 22n

482-3 149n

662-3 151n

267 22n

Consolatio ad Polybium

113 34n

De Clementia

1252-3 55n

De Ira

181 26n

313-5 140n

321 ss 140n

341-3 140n

336 25n

De Prouidentia

21 ss 31n

210 34n

58 79

De Tranquillitate Animi

123 32n

De Vita Beata

20 50n

179

Hercules Furens

1 86

1-2 87 87n

1-5 13

1-18 86

1-124 86

2 87

3 87

3-4 87

4 87

4-5 87

5 87

6-18 87

6-21 116

6-26 118n

12 87

13 87

19 87 89

19-21 87

21 89

19-63a 86 87

21-22 87

22-26 87

23 92

23-26 116

27 88 132

27-29 88

27-42 87

28 86 88 132

29 88 91

30 91

30-31 115

30-32 87n

30-33 115

32 115

33 87

33-35 115n

34 132

34-35 91 115

35 88 115 132

37-40 115

39 115

40 80 91

42 115 115n

43-44 115n 116

44-46 115

45-46 116

46 116

46-48 123

47 ss 121

48 88

49 88

50 88

51 88 116

51-52 88 116

54 122

57 116

58 114n 116

61 88

63 89

63b-124 86 89

64-65 89 128

68 116

75 89 132

77 132

79-83 128

84-85 117

85 90 91

86 ss 128

89-91 90

90 90

90-91 90

180

90-99 90

91 90

91-92 90

92 90

93 90

95 90

96 90

96-98 90

98-91 90

97 88

99 91 132

100 91

100-109 91

101 91

102 91

103 91

104 91

109 91

109-112 91

110 91

112 89 91

112-117 92

114 92 114n

116 92

116-117 92

119 92

120-121 92

121 92

122 92 114n

123 91 92

125-136 70

125-161 70

125-201 121

125-204 70

137-161 71

159-160 71

160 ss 131

161-185 70-71

162-180 71

173-179 71

175 71

175-176 71

175-19832

178 ss 72

178-180 71

181-204 72

183-184 71

186 117

186-187 154

186-201 71

188-190 72

192-196 117

192-201 73

199 73 82

200 73 82

201 73 81 117 154

202 46

202-204 49n 71 83

205 49

205-278 39 39n 49

205-308 39n

205-331 48

206 40n

207-209 40n

209-213 32n 39 155

209-215 118

221 114n

215 ss 117

216-222 39

247 77n 114n

247-248 118

249-251 40

181

251 40

251-252 54 117

251 ss 52

254 52

265-267 118

267 52

269 52

271-276 52

272 52 114n

273 118

274 52

275-278 118

277-278 43

278 118n

279 49 114n

279-280 119

279-308 39n 45 49 132n

279 ss 45

280 119

280-281 119

281 119

282 119

282-283 119

283 119

284-286 121

286-288 119

290 119

290-293 119

292-293 119

294-294 119

296-298 45

299-302 45

303-305 46

305-308 46

306-307 46

309-310 46 49n

311 46

312-314 118

314 46

314-316 46

316 46

325 119

327-331 48

329-331 53

332 56n

332-335 53

332-340 121

332-341 54

332-357 53

337-338 53

340-341 54

340-342 54

341-342 46

341-344 54

345 56n

350 46

350-351 45

350-352 121

352-353 55

354-355 39

354-357 53n

354-355 39

355 46

358 55

362-369 55

368-369 121

371 46

372-373 46

373-374 47

375 47

376 47

377-378 47

182

379 47 56n

379-380 47

380 47

381 47

382-383 47

384 55 56

384-396 118n

386-395 55

395 56

395-396 55

397 46

397-398 119

398 56n

399 55

399-402 54

400 55 56n

401 55

406-407 121

411 56n

412 47

413 47

414 47 56

415 48

415-417 48

417 48

418 48

421 48

423 120

426 48

429 45 50

430 119

434 120

435 119

437 120

438 120

442 114n

444-446 120

445-446 120

449-476 118n

469 114n

477-480 120

478 121

489-490 56n

494 56

495-500 45

501-508 121

501-509 56

511-515 56

512 56

513 56

518 56n

518-519 56

520-523 122

523 122

524 73

526 73

527-528 74

528 74 114n

529 74

530-532 74

531-546 74

536 74

538 77n

540-541 74

544 74

547-549 74

547-591 74

548 74 76

551 74

554 74

558-559 75

560-565 75

183

566 114n

566-567 76

566-568 75

569-539 82

569-591 75

570 75

588-589 117

590-591 75

591 117

592 ss 145

592-613 124

592 ss 122

595-596 76

599-603 76

603-604 144

604-606 123

606-615 144

609-610 122

613 144

614 114n

614-615 122

624-625 114

625 114n

626-628 123

626-640 123

629 56n

629 ss 145

631 123

631-633 144

631-640 123

633 123

634-635 123

634-636 123n

636-637 144

637 123

637-638 60

638-639 124

638-640 144

639-640 124

640-644 144

643-644 60

644 60

646-649 60

662-759 60

662-806 88n

689-696 60n

731-734 60 60n

735-736 60

739-745 60

745-747 60

762-827 61

772 61n 77n 117

773-775 61n 144

775-777 60n

778-793 61

792-793 61n

797-805 144

804-806 61

807 114n

821-974 12

827-829 70n

830-831 77

830-833 77

830-894 76

834 77n

835-863 88n

836 77

837 78

838 77 78

838-839 77

838-874 80

838 ss 78

184

839 77

840 77

840-841 77

842-847 77

845 78

846 77

848-849 77

849 78

849-854 78

851 78

852 78

853 78

867 79

872 78 79

874 79

875-892 117

875-894 80

882 79n 114n

891-892 79

894 80

895-899 121

895 ss 124

898-899 124

900-908 124 144

907-908 124

914 114n

918-919 124 144

919 114n

920 125

920-921 144

920-924 41 125 144

921 125

922 125

923 125

924 125

925-926 41

926 41

926-927 126

926-937 121

926-939 144

931-935 144

931-939 126

937-938 144

937-939 126

939 ss 145

939-944 126 127

939-989 144

940 128

940-941 128

942-943 144

944-952 128

953 129

954 129

955 ss 145

955-959 128

957-973 127

960 144

960-961 128

967-968 128

972-973 128

973-975 129

974 129

975 129

976-981 128

977-978 144

980-981 144

983 129 144

984 129

987 144

987-991 121

987 ss 129

989-991 144

185

989-1038 144

991 130

991-995 129

996 144

996-1002 144

998 114n

1002-1004 122

1004 129

1005 130

1005-1007 122 129

1010-1011 144

1013 130

1018-1020 144

1021 129 130

1026-1027 41n

1027 42

1028 42

1032-1034 83

1033 42 130

1034 42 114n

1038 42

1039 ss 145

1039-1042 130

1040 114n

1044 114n

1049 130

1050 ss 145

1051-1052 130

1053 130

1053-1137 83

1054 80

1054-1137 80

1063 130

1063-1065 80

1065 81

1066-1077 81n

1066 81n

1080 130

1081-1086 42

1083 130

1088 130

1092 130

1093 81

1094-1099 81

1095 130

1096 130

1098 114n 130

1099 130

1103 114n 130

1121 130

1122 130

1134 130

1136 81

1138 144

1138 ss 145

1138-1153 131

1138-1186 144

1139 144

1147-1148 144

1149 144

1153 144

1156-1157 144

1159-1161 131

1160 ss 131

1167 132

1167-1168 131

1173-1176 131n

1179-1186 131n

1187 131n

1188 131n

1189-1190 131n

1192 114n

186

1192-1200 144

1193 114n 132

1193-1194 144

1193-1195 131n

1193 ss 145

1196 114n 132

1198-1199 131n

1199-1200 132

1202-1218 144

1202 ss 145

1207-1208 144

1211 114n

1216-1217 144

1218 144

1220 132

1221-1223 144

1221-1236 144

1226 144

1227-1228 144

1229-1230 144

1231 144

1237-1238 148n

1239 147

1240 ss 145

1242-1243 144

1244 114n

1253-1254 43

1259-1261 147

1260 114n

1269-1270 144

1272-1277 63

1274-1277 147n

1276-1277 148

1277 132

1277-1294 144

1279-1282 144

1278 144

1280 132 148

1281-1282 148

1283-1284 144

1281-1282 144

1284-1294

1295-1296 144

1297 114n

1308 42

1314 144

1314-1319 144

1315 148

1316 ss 145

1319 114n

1321-1341 144

1323 144

1328 114n

1334 144

1341-1344 63

Hercules Oetaeus

1-98 146

7-8 128n 145

8-10 145

10-13 145

11 145

13-98 145

13 128n 145

16-17 145

32-33 128n

51 144

53-55 145

54-55 140n

55-56 62n 140

56-57 144

187

61-62 144

63-64 145

73-74 144

76-79 128n

77 145

87 145

93-94 144

93 144

95-96 144 145

97-98 128n 145

142 140

155 140

166 140

172 140

749-751 126n

761-762 139n

766-770 139n

786-805 146

798-802 140n

808 141n

808-822 141

810-822 146

813-816 145

825-835 146

1131-1150 145

1134 144

1135 145

1137-1150 145

1141 145

1148 145

1161-1206 145

1171 144

1176-1177 144

1177-1178 144

1181 144

1185-186 144

1191-1206 144

1197-1198 145

1218-1278 145

1218 144 145

1231-1232 144

1232 144

1233 145

1234-1247 145

1240-1243 145

1253 144

1260-1261 144

1260 145

1264 144

1265 145

1270-1271 145

1276-1277 145

1290-1336 145

1302 144

1304-1305 145

1321 145

1322-1323 145

1324 144

1325 144

1329-1330 145

1345-1349 145

1359-1373 145

1360 144

1364-1365 144

1367-1368 145

1371-1372 144

1377-1395 145

1379 145

1389-1392 145

1396-1398 141n

1399-1402 141n

1399-1401 145

188

1400 145

1402 145

1404 141n

1432-1447 145

1435 144

1445-1446 144

1448 144

1449 141

1449-1450 141

1449-1455 141

1450 141

1452 141 144

1453 141

1454 141

1459-1464 145

1459-1463 141

1459 141 142 144

1461-1462 142

1461-1463 146

1462 142

1472-1487 146

1480 142n

1481-1482 148

1515-1517 150

1609 150

1609-1755 146

1610-1611 149

1668-1679 149

1681-1698 149

1683-1684 149

1685-1687 149

1695-1715 150

1717-1726 149

1728-1730 149

1741 149

1741-1743 149

1746 149

1753-1755 150

1835 150

1942-1943 150

1963-1971 150

1963-1976 22n 146

1968 150

Medea

19-20 92

301-302 72n 76

307 76

Naturales Quaestiones

1praef5 62n

3praef10-17 72n

63210 32n

Phaedra

1143 ss 76

1149-1153 76

Tiestes

1 ss 122n

Troades

171 ss 122n

Sexto Empiacuterico

Aduersus Mathematicos

959 ss 27n

10218 19n

Soacutefocles

Electra

1066-1081

189

Vergiacutelio

Aeneis

6274-289 60n

6395-396 61n

6413-414 60n

6 432-433 60n

190

INDEX NOMINVM

Anfitriatildeo

Heracles

3 5 6 7 8 12 36n 36-38 38n

39n 42 43 44 44n 45 48 49 50

51 51n 52 58 64 65n 69 84

84n 86 87n 88 88n 95 96 97n

99 100 101 102 103 104 107

107n 108 109 110 111 111n

112 113 113n

Hercules Furens

3 12 12n 29 32 39n 39-43 41n

43n 46 49 49n 52 53 53n 54

55 56 60 61 71 73 74 77n 83

98 113 114 114n 117 118 118n

120 121 122 123 124 127 129

130 132 147 148 153 154

Anteu

120 120n

Apolo

Bibliotheca

10

Heracles

65 67

Hercules Furens

76 118

Orestes

59n

Aquiles 100 122n

Atena 7 96 107 107n 108 109

Augeu 117n

Baco 118n

Busiacuteris 120 120n

Castor 116n

Ceres 45

Cicno

Heracles

66

Hercules Furens

120

Cloto 139n

Creonte

Heracles

42 43 50 51 97

Hercules Furens

40 42 47

Coro

Heracles

3 5 7 37 50 51n 57 63-69 65n

68n 82 83 84 84n 96 97n 99 102

106 107 107n 111n 118n

Hercules Furens

191

32 33 42 42n 46 49n 60 70n

70-83 74n 77n 88n 113 117 118

118n 121 156 157

Hercules Oetaeus

140

Medea (Seacuteneca)

72n

Daacutenao 69n

Dario 44n

Eacutedipo 29

Egipto 69 n

Eleacutectrion 110n

Eacuterice 120 120n

Eriacutenias 105 128

Euristeu

Bibliotheca

10

Heracles

65 84n 101 104n 108 112 129n

132 154

Hercules Furens

73 77 120

Ecircurito 120

Filomela 69

Geacuterion

Heracles

66

Hercules Furens

120 120n

Hera 8 10 84 54 84n 86 92 101 102

103 107 109 109n 111

Heacuteracles v 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11

12 29 36n 37 38 38n 39 40 41 43 44

44n 45 45n 51 51n 55n 57 58 59 64

65 66 67 68 68n 69 81 83 84 84n 85

88n 92 93 94n 94-113 95n 97n 104n

105n 106n 107n 109n 111n 114n 120n

128 132 133 153 154 155 155n

Heacutercules v 3 4 12 12n 13 21n 22n 27

28 29 30 32 39 40 41 41n 42 43 43n

45 46 48 52 55 57 59 59n 60 61 61n

62 67 71 71n 72n 73 74 74n 75 76

77 77n 80 80n 82 83 87 88 89 90

90n 91 92 93 94 98 113-133 114n

115n 116n 117n 118n 120n 121n 122n

123n 126n 126n 130n 132n 139 139n

140 141 141n 142 142n 143n 144

144n 145 146 149 149n 150 151 152

153 154 155 156 157

Iacuteole

Hercules Furens

120n

Hercules Oetaeus

140 150

Iacuteris 2n 3 5 6 7 8 12 83-85

192

Juno 2n 3 11 13 29 86-93

Juacutepiter

Hercules Furens

12 13 30 39 41 45 49 75 87

89 92 116 116n 120n 121 124 126

126n 151

Hercules Oetaeus

128n 143n 152

Laio 29

Leda 116

Licas 140 141 141n 142

Lico

Heracles

3 5 6 7 9 11 12 36 36n 37

38 38n 39n 40 42 43 44 44n

45 48 49 50-52 51n 57 57n

65 68n 84n 85 94 95 97 97n

109n 111 112 113 154

Hercules Furens

3 12 29 39 40 41 42 46 47

48 49 50 51n 52-57 53n 55n

56n 59 60 73 90n 98 113

114n 117n 118n 119 120 120n

121 122 123 124 125 133 138

154 157

Lissa 2n 3 6 7 12 36n 65 68 69 83-85

92 93 97 97n 102 105 106 107n 108

109 154 155

Nesso 142 143 143n

Medeia

Hercules Furens

92

Medea (Euriacutepides)

67n

Meacutegara

Heracles

3 5 6 7 8 12 36 36n 37 37n

38 39 43-45 45n 48 49 51 51n

52 57 58 64 69 84 84n 86 96n

97 97n 99 103 104 104n 107n

108 109 111 112 113 154

Hercules Furens

3 12 12n 29 39n 40 41 41n 42

45-50 49n 53 53n 55 55n 56

57 71 73 76 83 114n 118 118n

119 121 123 129 131 132n 141

154 156

Mensageiro iv 2n 3 6 12 42 69 93 94

97n 106 106n 107 107n 108 109 113

155

Ocircnfale 121

Poacutelux 116n

Procne 69n

Tacircntalo 122

Tereu 69n

Teseu

193

Heracles

3 6 7 8 10-11 12 37 58-59 63

75 96 97 97n 98 99 102 105n

110 111 154 155

Hercules Furens

3 12 12n 41 42n 59-63 60 61

61n 62 63 70n 88n 113 114n

123 123n 132 133 148 149 154

Phaedra

76

Teacutespio (rei) 10

Tiacutendaro 116n

Tisiacutefone 129

Zeus 5 7 8 10 12 36 36n 38 38n 39n

44 45n 52 67 68 68n 69n 84 84n 87n

94 95 95n 96 97 102 110 112

Page 4: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES

i

IacuteNDICE

AGRADECIMENTOS iii

RESUMO ABSTRACT iv

LISTA DE ABREVIATURAS vi

INTRODUCcedilAtildeO 1

Capiacutetulo I ndash EURIacutePIDES SEacuteNECA E O ESTOICISMO UM ESTUDO PRELIMINAR 5

1 Euriacutepides Heracles 5

11 Data e Estrutura da Trageacutedia 5

12 Os Deuses 7

13 Inovaccedilotildees em Euriacutepides 9

2 Seacuteneca Hercules Furens 11

21 Data e Estrutura da Trageacutedia 11

22 Os Deuses 13

23 Doutrina Estoacuteica 14

231 Os trecircs ramos da Filosofia Fiacutesica Loacutegica e Moral 15

a) A Loacutegica 15

b) A Fiacutesica 17

c) A Moral 23

Capiacutetulo II ndash HERACLES E HERCULES FURENS ANAacuteLISE DAS PERSONAGENS 36

1 Anfitriatildeo 36

11 Caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides 36

12 Caracterizaccedilatildeo da personagem da trageacutedia de Seacuteneca 39

2 Meacutegara 43

21 Caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides 43

22 Caracterizaccedilatildeo da personagem da trageacutedia de Seacuteneca 45

3 Lico 50

31 Caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides 50

32 Caracterizaccedilatildeo da personagem da trageacutedia de Seacuteneca 52

4 Teseu 58

41 Caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides 58

42 Caracterizaccedilatildeo da personagem da trageacutedia de Seacuteneca 59

5 Coro 63

51 Caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides 63

52 Caracterizaccedilatildeo da personagem da trageacutedia de Seacuteneca 70

6 Divindades 84

ii

61 Caracterizaccedilatildeo de Iacuteris e Lissa na trageacutedia de Euriacutepides 84

62 Caracterizaccedilatildeo de Juno na trageacutedia de Seacuteneca 86

Capiacutetulo III ndash HEacuteRACLES E HEacuteRCULES A (DES)CONSTRUCcedilAtildeO DO HEROacuteI 95

1 Caracterizaccedilatildeo de Heacuteracles na trageacutedia de Euriacutepides 95

11 Imortalidade e Mortalidade a ambivalecircncia do heroacutei 96

12 Luz e Trevas 97

13 Individualidade e Colectivismo 98

14 Solidatildeo e Amizade 100

15 Outras caracteriacutesticas na construccedilatildeo do heroacutei 102

16 Manifestaccedilotildees da loucura de Heacuteracles 106

17 ἀρετή e βία Lico e Heacuteracles pontos semelhantes entre um tirano e o

heroacutei

112

2 Caracterizaccedilatildeo de Heacutercules na trageacutedia de Seacuteneca 114

Capiacutetulo IV ndash HERCULES FURENS E HERCULES OEATEUS 135

1 Meditatio Mortis ndash um estudo preliminar 135

2 Heacutercules ndash a ascese do proficiens 140

21 Heacutercules sob o domiacutenio da ira (estudo sobre o seu comportamento da

personagem no Hercules Furens e no Hercules Oetaeus)

140

211 Linguagem da emoccedilatildeo 144

212 Da decadecircncia da uirtus fiacutesica de Heacutercules agrave elevaccedilatildeo agrave

categoria de sapiens

147

22 Hercules Furens e Hercules Oetaeus ndash o suiciacutedio 149

CONCLUSAtildeO 155

BIBLIOGRAFIA 169

INDEX NOMINUM 172

INDEX LOCORUM 190

iii

AGRADECIMENTOS

Chegou o momento de recordar e agradecer a todos que de algum

modo contribuiacuteram para a conclusatildeo deste trabalho Em primeiro lugar

agradeccedilo aos Professores Doutores Maria Cristina de Castro-Maia de Sousa

Pimentel e Frederico Maria Bio Lourenccedilo pelos seus saacutebios conselhos e

pelas sugestotildees que deram A amabilidade e simpatia com que me

acolheram e afortunadamente me orientaram permitiram que esta

dissertaccedilatildeo chegasse a bom porto

Ao Professor Doutor Arnaldo do Espiacuterito Santo que desde sempre

muito admiro e ao Prof Doutor Joseacute Eduardo Franco pela sua amizade e

simpatia

Agrave Profordf Doutora Serafina Martins pelos seus conselhos e algumas

sugestotildees bibliograacuteficas

Agrave Drordf Eduarda Osoacuterio Lopes e Drordf Fernanda Santos pela boa

disposiccedilatildeo que tornaram os dias da redacccedilatildeo da dissertaccedilatildeo mais alegres e

suaves

Umas uacuteltimas palavras restam para a minha famiacutelia que muito amo

em especial para a minha matildee irmatildeo e avoacute e a bons amigos Bruna

Ferreira Gonccedilalo Henriques Helena Sofia Santos Joana Cardoso Dona

Manuela Domingues Marli Vitorino Nuno Carvalho Agrave Patriacutecia Nuno e

Helder Filipe por estarem sempre presentes na minha vida Finalmente agrave

Cristiana Lucas agrave Paula Carreira agrave Susana Alves e em especial agrave Ana

Matafome Heacutelio Vale e Ricardo Nobre por terem estado sempre presentes

e disponiacuteveis e por terem sido incansaacuteveis comigo os meus gratos

agradecimentos

iv

RESUMO ABSTRACT

Este estudo pretende analisar as trageacutedias Heracles de Euriacutepides e Hercules

Furens de Seacuteneca numa perspectiva comparativa Aleacutem de ver as semelhanccedilas

procura-se descrever os aspectos que tornam as duas trageacutedias diferentes e uacutenicas

vendo a forma como satildeo tratadas e desenvolvidas as personagens e o tema da loucura de

Heacuteracles Heacutercules

O primeiro capiacutetulo mais teoacuterico aborda alguns traccedilos gerais que caracterizam

as trageacutedias dos dois autores nele se inclui tambeacutem um estudo que sintetiza a doutrina

estoacuteica com especial incidecircncia nos aspectos que melhor ajudam a compreender a

funccedilatildeo e objectivos pareneacuteticos do corpus traacutegico de Seacuteneca No segundo capiacutetulo satildeo

contempladas as personagens das duas trageacutedias excepto HeacuteraclesHeacutercules e o

Mensageiro que satildeo estudadas no capiacutetulo seguinte No terceiro capiacutetulo o protagonista

eacute analisado em trecircs momentos antes durante e depois da loucura O quarto capiacutetulo

cinge-se ao estudo sobre a ascese de um proficiens e sobre a meditatio mortis nas

trageacutedias Hercules Furens e Hercules Oetaeus

Palavras-chave Trageacutedia de Euriacutepides Trageacutedia de Seacuteneca Estoicismo

HeacuteraclesHeacutercules Literatura Comparada

This study aims to analyse in a comparative perspective Euripidesrsquo Heracles and

Senecarsquos Hercules Furens Besides recognising the similitude between the two

tragedies we describe the aspects that make them different and unique understanding

how the characters and the theme of madness of HeraclesHercules are treated and

developed The first chapter is more theoretic it deals with some general features that

characterise Euripidesrsquo and Senecarsquos tragedies and studies the Stoic philosophy with

special attention to the aspects that enable the understanding of the paraenetic function

and its objectives In the second chapter characters from both plays are covered except

HeraclesHercules and the Messenger that are studied in next chapter In the third

chapter the main character is analysed in three moments before during and after

madness The fourth chapter studies the meditatio mortis in the plays Hercules Furens

and Hercules Oetaeus reasoning on the ascesis of the proficiens

v

Keywords Euripidesrsquo Tragedy Senecarsquos Tragedy Stoicism HeraclesHercules

Comparative Literature

vi

LISTA DE ABREVIATURAS

Barlow = Euripides Heracles intr trad e comentaacuterio Shirley Barlow (Warminster Aris and Philips 1996) Bond = Euripidesrsquo Heracles intr e comentaacuterio Godfrey W Bond (2ordf Ediccedilatildeo Oxford Clarendon Press 1988) Duclos = EURIPIDE Theacuteacirctre III trad Henri Berguin Georges Duclos (Paris Garnier 1955) ErnoutndashMeillet = ERNOUT Alfred e Antoine Meillet Dictionnaire Eacutetymologique de la Langue Latine Histoire des Mots (4ordf ed Paris Klincksieck 1959 reimpr 1967) Fitch (1) = Senecarsquos Hercules Furens a Critical Text with Introduction and Commentary ed John G Fitch (Ithaca and London Cornell University Press 1987) Fitch (2) = SENECA Tragedies I (Hercules Trojan Women Phoenician Women Medea Phaedra) ed e trad John G Fitch (Cambridge Massachusetts Londres Harvard University Press 2002) Giardina = L Anneo Seneca Tragedie trad G C Giardina Rita Cuccioli Melloni (Torino Editrice Torinese 1987) Herrmann = SEacuteNEgraveQUE Trageacutedies I (Hercule Furieux Les Troyennes Les Pheacuteniciennes Meacutedeacutee Phegravedre) ed e trad Leacuteon Herrmann (Paris Les Belles Lettres 1968) Miller = SENECA Tragedies I-II ed Frank Justus Miller (Londres Cambridge Massachusetts Harvard University Press 1917 reimpr 1968) Parmentier = EURIPIDE Heacuteraclegraves ndash Les Suppliants ndash Ion III trad Leacuteon Parmentier Henri Gregoire (Paris Les Belles Lettres 1976) Viansino = L Annaei Senecae Hercules Furens Troades Phoenissae Medea Phaedra recensuit Ioannes Viansino (Torino Paravia 1968)

1

INTRODUCcedilAtildeO

Heacuteracles eacute um dos heroacuteis que mais popularidade teve ao longo da histoacuteria da

humanidade Os trabalhos a que se submeteu fizeram da sua figura um modelo de

civilizador e protector do Homem destruiu todos os monstros que habitavam a terra e

assolavam o mar Poreacutem a megalomania a insolecircncia e a excessiva confianccedila na sua

forccedila fazem dele uma personagem violenta e cruel que chega a desafiar os deuses e a

lutar contra eles1 Segundo Fitch ldquoFrom the earliest times Herculesrsquo heroism is

ambivalent On the one hand he is ldquothe best of menrdquo endowed with invincible strength

and courage On the other hand any strength that goes so far beyond the human norm is

potentially dangerous and unpredictablerdquo2 Como observou Susan Deacy a respeito de

Heacuteracles ele caracteriza-se por ldquohis tendency to move between opposite categories

including mortal and immortal salvation and destruction masculine and feminine and

sanity and madnessrdquo3 Esta confluecircncia de estados psicoloacutegicos permitiu que ao longo

dos tempos esta personagem mitoloacutegica tivesse recebido um tratamento diverso Walter

Burkert refere

A figura de Heacutercules foi moldada primeiramente pelo mito por um conglomerado de contos populares em que a grande poesia soacute interveio de modo secundaacuterio natildeo existe qualquer poesia grega dedicada exclusivamente a Heacutercules Soacute mais tarde os poetas analisaram o fenoacutemeno Heacutercules envolvendo assim o mito numa atmosfera traacutegica heroacuteica e humana em contraste com a sua tendecircncia proacutepria que transcende despreocupadamente o humano4

Foram poucos os autores gregos que fizeram de Heacuteracles o protagonista dos seus

poemas decerto dado o seu caraacutecter atiacutepico e ambivalente entre os heroacuteis miacuteticos Em

toda a sua histoacuteria mitograacutefica Heacuteracles possui uma forccedila invulgar eacute um heroacutei-deus

solitaacuterio que ocupa ldquothe no-manrsquos-land that is also no-godrsquos-land he is a marginal

transitional or better interstitial figurerdquo5 como diz Silk

1 Vide Homero Ilias 5392-397 403-404 2 Fitch (1) 15 3 Susan Deacy ldquoHerakles and his lsquogirlrsquo Athena heroism and beyondrdquo in Louis Rawlings and Hugh Bowden (ed) Herakles and Hercules Exploring a Graeco-Roman Divinity (Swansea [Paiacutes de Gales] The Classical Press of Wales 2005) 37 4 Walter Burkert Religiatildeo Grega na Eacutepoca Claacutessica e Arcaica (Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1993) 405-406 5 Silk ldquoHeracles and the Greek Tragedyrdquo Greece and Rome 32 nordm 1 (1985) 6

2

Temos apenas o testemunho de Soacutefocles e Euriacutepides que descreveram um

momento especiacutefico da vida deste heroacutei nas trageacutedias Soacutefocles fez representar a

preparaccedilatildeo para a morte nas Trachiniae e Euriacutepides o momento da loucura que vem

depois de finalizado o uacuteltimo trabalho a captura de Ceacuterbero O modo como a figura eacute

apresentada nos dois tragedioacutegrafos difere substancialmente Para Carlos Santos

ldquoEuriacutepides teraacute procurado apresentar um Heacuteracles modernizado pelos valores do homem

do seacuteculo V aC moldado pela virtude e pela razatildeo enquanto que o heroacutei de Soacutefocles

se move num mundo onde domina a forccedila fiacutesica com valores semelhantes aos da

sociedade homeacutericardquo6

Partindo da forma como Euriacutepides criou a personagem no Heracles o presente

estudo tem como objecto a anaacutelise comparativa desta trageacutedia com o Hercules Furens

de Seacuteneca o filoacutesofo estabelecendo pontos de contacto mas essencialmente

apontando as diferenccedilas na construccedilatildeo do protagonista Conscientes de que o tema ndash a

loucura do Alcida ndash e as personagens satildeo as mesmas7 queremos demonstrar que as

caracteriacutesticas que lhes satildeo apontadas as tornam diferentes Esta mudanccedila deve-se

principalmente agrave doutrina que Seacuteneca pretende divulgar nas trageacutedias ao representar as

paixotildees humanas e as consequecircncias destrutivas que esses affectus implicam quando

natildeo satildeo evitados e quando fogem do controlo das personagens Com a sua encenaccedilatildeo8 o

filoacutesofo consegue mostrar por meio de exempla o resultado de algumas passiones que

dominam o homem e que o levam pelo caminho do uitium a trazer a desgraccedila aos

outros e em uacuteltima instacircncia a causar a sua proacutepria ruiacutena

O estudo estaacute dividido em quatro capiacutetulos No primeiro mais teoacuterico eacute feita

uma sinopse da filosofia estoacuteica de Zenatildeo a Seacuteneca passando por Crisipo Epicteto e

Marco Aureacutelio e pelos testemunhos de Ciacutecero de Dioacutegenes Laeacutercio e de Sexto

Empiacuterico Este estudo preliminar eacute uma preparaccedilatildeo para a leitura das peccedilas Hercules

Furens e Hercules Oetaeus que decorreraacute nos capiacutetulos seguintes comprovando que as

trageacutedias satildeo um outro meio de divulgaccedilatildeo desta doutrina filosoacutefica Para esse efeito

6 Carlos Ferreira Santos Euriacutepides Heacuteracles Introduccedilatildeo Traduccedilatildeo e Notas (Coimbra diss de Mestrado em Literaturas Claacutessicas apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 1996) 7 7 Satildeo excepccedilatildeo Iacuteris Lissa Mensageiro e Juno As trecircs primeiras aparecem apenas em Euriacutepides enquanto Juno eacute de Seacuteneca 8 Tendo por base a ideia de que Filosofia do Poacutertico podia ensinar o homem a enveredar pelo caminho da uirtus Seacuteneca procura dar a conhecer esse caminho ao maior nuacutemero de pessoas Essa teraacute sido uma das razotildees que o levou a escrever trageacutedias uma vez que as obras filoacutesoficas em prosa se destinavam a um grupo mais restrito

3

natildeo pudemos deixar de contextualizar ainda que sumariamente a trageacutedia Heracles e

Hercules Furens observando os aspectos semelhantes e divergentes das duas peccedilas

No segundo capiacutetulo analisamos e comparamos as personagens da trageacutedia grega

e da trageacutedia latina Identificamos e reflectimos sobre todas as personagens que entram

em cena nas respectivas peccedilas excepto o protagonista e o Mensageiro ndash o heroacutei

mereceu um estudo mais desenvolvido no capiacutetulo seguinte Comeccedilamos por Anfitriatildeo

por ser a primeira personagem a entrar em cena no Heracles de Euriacutepides mas tambeacutem

por ser a uacutenica a estar presente em todos os episoacutedios (em Seacuteneca entra no Acto II)

Seguimos com Meacutegara Lico e Teseu ndash a ordem respeita novamente a entrada de cada

uma das personagens em cena Depois vemos o comportamento do Coro terminando o

capiacutetulo com a anaacutelise das divindades Iacuteris Lissa e Juno Deixamos estas figuras para o

final deste capiacutetulo porque marcam uma diferenccedila entre as duas trageacutedias as deusas Iacuteris

e Lissa que entram em cena na peccedila de Euriacutepides satildeo ldquosubstituiacutedasrdquo por Juno na de

Seacuteneca

Num primeiro momento apresentamos a descriccedilatildeo que Euriacutepides faz de cada

uma destas personagens observando em seguida como Seacuteneca as representa em

Hercules Furens Nesta perspectiva seraacute possiacutevel estabelecer alguns pontos de contacto

entre as duas trageacutedias bem como identificar as significativas diferenccedilas tentando na

medida do possiacutevel explicaacute-las agrave luz da doutrina estoacuteica Eacute nosso propoacutesito demonstrar

neste capiacutetulo e nos seguintes que os objectivos que norteiam Seacuteneca na elaboraccedilatildeo das

trageacutedias satildeo as mesmas que estatildeo presentes na sua obra em prosa

O terceiro capiacutetulo centra-se nas personagens Heacuteracles e Heacutercules A estrutura

deste capiacutetulo eacute semelhante agrave do anterior comeccedilamos por descrever as caracteriacutesticas de

Heacuteracles passando para as de Heacutercules comparando e mostrando os aspectos

divergentes Optaacutemos por integrar o Mensageiro neste capiacutetulo uma vez que eacute ele quem

descreve as manifestaccedilotildees fiacutesicas e psicoloacutegicas da loucura e as consequecircncias que

decorreram dela Assim poderemos dar uma visatildeo completa do protagonista isto eacute

mostrar a forma como ele eacute apresentado antes durante e depois da loucura avaliando a

transformaccedilatildeo que o acto da demecircncia provocou no heroacutei para depois confrontar com

Heacutercules

Por fim no uacuteltimo capiacutetulo ocupamo-nos da meditatio mortis nas trageacutedias

Hercules Furens e Hercules Oetaeus Ainda que a autoria da uacuteltima trageacutedia seja

4

incerta9 o nosso objectivo ao incluiacute-la neste estudo eacute fazer uma anaacutelise da evoluccedilatildeo da

figura de Heacutercules e da forma como eacute visto o suiciacutedio nas duas peccedilas Nesse sentido

comeccedilamos por fazer uma siacutentese dos trecircs tipos de suiciacutedio segundo Durkheim vendo

qual deles se aproxima melhor dos propoacutesitos estoacuteicos daiacute decorrendo um estudo sobre

o comportamento de Heacutercules no final da trageacutedia Hercules Furens e no de Hercules

Oetaeus nesta se observa a ascese do proficiens que no uacuteltimo momento aceita de

forma impassiacutevel o seu Destino

A ediccedilatildeo adoptada para as trageacutedias de Euriacutepides eacute a da Oxford Classical Texts

preparada por James Diggle para as de Seacuteneca eacute a da Loeb preparada por John Fitch

Seguiram-se os comentaacuterios da Oxford Clarendon Press de Bond para a trageacutedia

Heracles de Euriacutepides e da Cornell University Press de Fitch para Hercules Furens

de Seacuteneca

Para tornar as notas de rodapeacute mais leves e de mais faacutecil leitura algumas obras

de uso mais frequente satildeo citadas em abreviaturas cuja lista apresentamos Foram

adaptadas as grafias σ e ς em vez de с no caso do grego e u em vez de v relativamente

ao latim Apresentamos algumas traduccedilotildees dos textos claacutessicos quando reconhecemos

que satildeo boas e quando natildeo analisamos o passo ou natildeo fazemos paraacutefrase do mesmo Os

tiacutetulos das trageacutedias satildeo apresentados em latim seguindo as normas estabelecidas nos

dicionaacuterios de Liddell-Scott e Glare agrave excepccedilatildeo de Heracles que segue a praacutetica

adoptada nos estudos euripidianos de James Diggle Quanto ao nome do Alcida

achaacutemos conveniente por razotildees de clareza manter Heacuteracles quando se fala da trageacutedia

de Euriacutepides e Heacutercules quando nos referimos agrave de Seacuteneca

9 Para um estudo sobre esta problemaacutetica vejam-se por exemplo Arthur Stanley Pease ldquoOn the Authenticity of the Hercules Oetaeusrdquo Transactions and Proceedings of the American Philological Association 49 (1918) 3-26 Leacuteon Herrmann Le Theacuteacirctre de Seacutenegraveque (Paris Les Belles Lettres 1924) 53-57 Francesco Giancotti Saggio sulle Tragedie di Seneca (Roma Societagrave Editrice Dante Alighieri 1953) 7-16 R G Tanner N S W Newcastle ldquoStoic Philosophy and Roman Tradition in Senecan Tragedyrdquo Aufstieg und Niedergang der Roumlmischen Welt II 322 (Berlim Nova Iorque Walter de Gruyter 1985) 1100-1133 Seneca Tragedies II (Oedipus Agamemnon Thyestes [Seneca] Hercules Oetaeus Octavia) ed e trad John G Fitch (Cambridge Massachusetts Londres Harvard University Press 2004) 332-334

5

Capiacutetulo I

EURIacutePIDES SEacuteNECA E O ESTOICISMO

UM ESTUDO PRELIMINAR 1 Euriacutepides Heracles

EURIPIDESrsquo Heracles is a great play with a serious theme the sudden downfall of the good and glorious (Bond v)

11 Data e estrutura da trageacutedia

A trageacutedia Heracles de Euriacutepides teraacute sido representada entre 416 e 4141 A

acccedilatildeo dramaacutetica comeccedila com Anfitriatildeo Meacutegara e os seus trecircs filhos junto do altar de

Zeus onde se refugiaram como suplicantes para tentar escapar agrave morte (vv 1-106) Sob

a ameaccedila de serem queimados vivos por Lico que viola os direitos dos suplicantes a

famiacutelia heraclida abandona o altar e dirige-se para o palaacutecio de Heacuteracles (vv 140-347)

No momento que antecede a sua morte haacute uma reviravolta da Fortuna (περιπέτεια)

com a chegada de Heacuteracles a Tebas regressado do Hades (vv 451-522) Bond afirma

que ldquoSuch sudden reversals involving an obvious element of chance are an exciting

feature of the later plays of Euripidesrdquo2

Ateacute agrave vinda do protagonista a acccedilatildeo desenrola-se de modo lento (o ritmo estaacute

relacionado com a ansiedade das personagens porque foram condenadas agrave morte e pela

incerteza sobre se Heacuteracles poderaacute ou natildeo sair do Hades) Com a entrada do Alcida em

cena o ritmo da acccedilatildeo acelera Haacute uma raacutepida sucessatildeo de acontecimentos preparaccedilatildeo

da morte de Lico (vv 565-606) morte do tirano (vv 749-754) canto de juacutebilo do Coro

(vv 763-814) entrada das deusas em cena anunciada pelo Coro ndash nova περιπέτεια (vv

1 Sobre a dataccedilatildeo de Heracles ver Bond xxxi-xxxiii O mesmo autor partindo de sete trageacutedias cuja dataccedilatildeo eacute tradicional e comparando o iacutendice de resoluccedilatildeo nos triacutemetros iacircmbicos de cada uma delas ndash Alcestis (438 aC) 62 Medea (431) 66 Hippolytus (428) 43 Troades (415) 212 Helena (412) 275 Orestes (408) 394 Bacchae (406) 376 ndash aproxima a data da trageacutedia Heracles da de Troades ldquoThe figure for Heracles is 215 which indicates a date close to that of Troades (415) 416 and 414 are both possiblerdquo (idem xxxi) 2 Bond xvii

6

815-874) Heacuteracles mata os filhos e Meacutegara (vv 887-909) entrada do Mensageiro (v

910) que narra as mortes (vv 922-1015) lamento do Coro (vv 1016-1041)

A acccedilatildeo volta a ser mais lenta no momento em que Heacuteracles acorda (vv 1088-

1108) e descobre com o auxiacutelio de Anfitriatildeo que foi o autor do morticiacutenio (vv 1111-

1145) O heroacutei deseja suicidar-se (vv 1146-1152) mas a empresa eacute travada com a

chegada de Teseu que por sua vez oferece a cidade de Atenas como lugar de exiacutelio e

de purificaccedilatildeo da maacutecula do Alcida (vv 1163-1426)

Segundo Bond ldquoDuring the past century many critics have complained that the

first part of the play (1-814) the supplication and rescuing of Heraclesrsquo family has no

real connection with what follows his madness and the murdersrdquo3 Entre os que assim

julgam conta-se Ann Norris Michelini Para a autora a trageacutedia tem duas acccedilotildees que

natildeo estatildeo intimamente ligadas e que se contradizem completamente

The first half builds to a happy ending with Herakles triumphantly returning to rescue his family from the usurper Lykos while the second half shows the savior as the murderer of his family While in the other cases it is possible to trace the ways in which two actions have been interlaced in this case we can only point to parallels and analogies between the actions The central feature of the structure must remain the abrupt break that severs the play into two halves4

Na perspectiva de Bond ldquoThe play is written around the contrast at lines 8145

() It is this violent antithesis which holds Heracles together The first part which here

reaches its culmination has been concerned with the threat to the children of Heracles

and their salvation by Heracles They are now to be killed by their saviourrdquo 5 O mesmo

autor considera que os vv 822-873 entrada das deusas Iacuteris e Lissa em cena fazem

parte de um ldquosegundo proacutelogordquo6 Duclos por sua vez apresenta uma visatildeo triacuteptica da

acccedilatildeo dramaacutetica Heacuteracles salvador (vv 1-821) Heacuteracles louco (vv 822-1088)

Heacuteracles triunfante (vv 1089-1428)7 Esta divisatildeo em trecircs partes estaacute igualmente

presente em Parmentier8

3 Bond xviii 4 Ann Norris Michelini Euripides and Tragic Tradition (Londres The University of Wisconsin Press 1987) 232 5 Bond xxi 6 Idem 281 7 Duclos 123 ss 8 Parmentier 7-8

7

No tocante a esta problemaacutetica optaacutemos por seguir Barlow Para a autora a

trageacutedia tem quatro momentos que correspondem a

1 Ausecircncia de Heacuteracles e a espera pelo seu regresso

2 Regresso do heroacutei e morte de Lico

3 Loucura de Heacuteracles filiciacutedio e uxoriciacutedio

4 Recuperaccedilatildeo de Heacuteracles com o auxiacutelio de Teseu e de Anfitriatildeo ndash a amizade

triunfa no final da acccedilatildeo dramaacutetica Estes quatro momentos podem ainda segundo

Barlow agrupar-se em duas acccedilotildees os dois primeiros formam uma acccedilatildeo e os dois

uacuteltimos a segunda acccedilatildeo ldquoeach setting a problem followed by a resolution In the first

the physical danger of Heraclesrsquo family is followed by their rescue In the second their

destruction and the mental danger of Heracles himself is followed by a kind of

restorationrdquo9 Em cada uma destas partes Heacuteracles assume-se como personagem

principal

12 Os deuses

Como nota Ann Norris Michelini10 a trageacutedia de Heracles eacute a que coloca mais

questotildees sobre o papel dos deuses As personagens invocam-nos com alguma

frequecircncia Anfitriatildeo contesta a justiccedila e a (i)moralidade de Zeus (vv 339-347 vv 498-

500) que sabe partilhar o leito dos humanos (vv 344-346) mas eacute indiferente quando

mais precisam dele O Coro considera que os deuses natildeo possuem ξύνεσις nem σοφία

(vv 655-656) Meacutegara sente que a forma como as divindades agem na vida dos homens

nem sempre satildeo claros (v 62)

Depois que Heacuteracles regressa do Hades e castiga Lico o Coro muda de opiniatildeo

relativamente aos deuses (vv 772-814) elogiando-os por reconhecer que eles natildeo

descuram a justiccedila Aparecem entatildeo em cena Iacuteris e Lissa que vecircm mudar o rumo dos

acontecimentos A posiccedilatildeo do Coro volta a ser de censura critica a intervenccedilatildeo dos

deuses na vida dos homens (vv 1087-1088)

A entrada de Atena em cena eacute suacutebita aparece no preciso momento em que

Heacuteracles se prepara para matar Anfitriatildeo (vv 1001-1006) A deusa interfere na acccedilatildeo

9 Barlow 6-7 10 Ann Norris Michelini Euripides and Tragic Tradition 267

8

para travar Heacuteracles lanccedilando-lhe uma rocha contra o peito e adormecendo-o Quanto

ao suacutebito aparecimento desta divindade Emma Griffiths diz

While she may be acting as an agent of Zeus she may also be acting as Heraclesrsquo protector or because of a general concern for the rights and fathers () There are also links between Athena and Zeus and Heracles which suggest a close relationship However her role as patron goddess of Athens gives the episode a more immediate link to the original audience and connects her with Theseus who arrives shortly afterwards As Athena stops the physical harm Theseus provides a solution to the emotional caos which ensues11

A intervenccedilatildeo da deusa poderaacute tambeacutem ter que ver com o proacuteprio excesso do

heroacutei uma vez que Iacuteris (e Hera) pretendia apenas que Heacuteracles matasse os seus filhos

Ora o heroacutei mata Meacutegara e tem que ser impedido para natildeo cometer um uacuteltimo crime o

parriciacutedio ndash esta violecircncia e excesso poderatildeo fazer parte da proacutepria caracteriacutestica do

protagonista (vide vv 565-573)12

Quando Anfitriatildeo conta ao Alcida que foi ele o autor da morte dos filhos e de

Meacutegara o protagonista considera inaceitaacutevel que uma deusa como Hera seja honrada

uma vez que a divindade o perseguiu sempre e acabou por destruiacute-lo quando lhe

suscitou a loucura (vv 1303-1310) Teseu aceita a ideia que os poetas datildeo dos deuses

de que eles satildeo imorais e injustos (vv 1311-1319) e parte deste conceito da divindade

para dissuadir Heacuteracles de se suicidar Teseu lembra-lhe que o ser humano mais natildeo eacute

do que um joguete nas matildeos dos deuses (vv 1314-1339) Apenas Heacuteracles contesta a

imagem antropomorfizada das divindades natildeo acreditando que os deuses possam ter

exactamente as mesmas emoccedilotildees que os homens (vv 1340-1344) Neste sentido

parece-nos justa a afirmaccedilatildeo de Maria de Faacutetima Sousa e Silva relativamente agrave trageacutedia

Heracles ldquoTornam-se inaceitaacuteveis os crimes e desonestidades que o mito atribuiacutea aos

deuses o modelo religioso tradicional eacute a cada momento posto em causardquo13

Este sentimento de descreacutedito pelas divindades levou investigadores a sentir que

a proacutepria trageacutedia natildeo eacute senatildeo uma ficccedilatildeo uma invenccedilatildeo do poeta ldquoWith the overt

reference to the possibility that the logoi of the poets may be false we are forced to

11 Emma Griffiths Euripides Heracles (Londres Duckworth 2006) 98-99 12 Vide o Capiacutetulo III aliacutenea a) 13 Maria de Faacutetima Sousa e Silva Criacutetica Literaacuteria na Comeacutedia Grega Geacutenero Dramaacutetico (Coimbra diss de Doutoramento em Literatura Grega apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 1983) 226

9

consider that Herakles itself the play we are watching is also a mere fiction a tale told

by a poet who may be lyingrdquo explica Ann Norris Michelini14

Bond sugere In exhibiting and emphasizing these successive views about gods Heracles is mainly agnostic and negative in tone But two positive features are brought out which serve as shafts of light in this deeply pessimistic tragedy The first is the strength of human friendship () The second positive feature is the decision of Heracles not to kill himself but to endure life as best he may15

Este afastamento do homem dos deuses tem que ver com o interesse que os

sofistas tinham de estudar o homem por si no sentido pleno Natildeo se pode dizer

contudo que Euriacutepides natildeo acreditasse nas divindades assumiu apenas um juiacutezo

criacutetico que procura ser consciente16

13 Inovaccedilotildees em Euriacutepides

Sendo o seu objectivo representar um heroacutei mais humano Euriacutepides

desenvolveu o mito de Heacuteracles de uma forma peculiar inovando em alguns aspectos

a) A personagem Lico eacute uma inovaccedilatildeo de Euriacutepides17

b) Episoacutedio da loucura de Heacuteracles e consequente morte dos filhos Para Bond

Before Euripides there is little evidence about the stories of the madness of Heracles and the murder of his children The Cypria refer vaguely to τὴν ῾Ηρακλέους μανίαν Stesichorus 230 PMG mentions a memorial to his children by Megara who evidently died in a mad attack by Heracles for our source implies clearly that Stesichorus did not include the attack on Amphitryon nor the stone hurled by Athene to stop Heracles () Pherecydes (F Gr Hist 3 F 14) says simply that Heracles threw his five children into a fire18

14 Ann Norris Michelini Euripides and Tragic Tradition 275 Vide ainda Emma Griffiths Euripides Heracles 96-97 Thalia Papadopoulou Heracles and Euripidean Tragedy (Cambridge Cambridge University Press 2005) 100 ss 15 Bond xxii-xxiii 16 Maria de Faacutetima Sousa e Silva Criacutetica Literaacuteria na Comeacutedia Grega Geacutenero Dramaacutetico 227 17 Voltaremos a focar este aspecto quando analisarmos a personagem (Capiacutetulo II 3a) 18 Idem xxviii-xxix

10

Segundo o mesmo autor haacute trecircs escritores gregos posteriores a Euriacutepides que

trataram o tema da loucura antes do Alcida realizar os trabalhos Satildeo eles Damasco (F

Gr Hist 90 F 13) Diodoro (4106ss) e Apolodoro (Bibl 2412)19 Este por exemplo

conta que a loucura do heroacutei decorreu depois da guerra contra os Miacutenios tendo sido

causada pelos ciuacutemes de Hera por o Alcida ser filho de Zeus Enlouquecido o heroacutei

mata natildeo soacute os filhos como tambeacutem dois dos seus sobrinhos atirando-os ao fogo

Depois de recuperada a razatildeo eacute purificado pelo rei Teacutespio Considerando a purificaccedilatildeo

insuficiente para expiar os seus crimes o Alcida procura o oraacuteculo de Apolo com o

intuito de saber quais satildeo os desiacutegnios dos deuses Do encontro que teve com a Pitonisa

passa a chamar-se Heacuteracles sendo obrigado a submeter-se agraves ordens de Euristeu

durante doze anos Uma vez concluiacutedos os trabalhos Heacuteracles receberia como preacutemio a

imortalidade20

Na perspectiva de Bond natildeo haacute certezas de que a descriccedilatildeo da loucura de

Heacuteracles quando localizada apoacutes a conclusatildeo dos trabalhos seja uma inovaccedilatildeo de

Euriacutepides Sendo ou natildeo inovaccedilatildeo Euriacutepides daacute a imagem de um heroacutei que depois de

ter vencido todos os obstaacuteculos eacute derrotado por completo pelas divindades Como Ann

Norris Michelini sublinha ldquoThe greatest of heroes is being transformed before our eyes

into something very like other Euripidean tragic protagonists helpless and humiliated

perhaps even awkward and ludicrous figures whose endurance and suffering capture

audience sympathy in spite of these negative characteristicsrdquo21

Reverter a ordem dos acontecimentos (vindo o acto da loucura depois dos

trabalhos) significa para David Kovacs

The Labors must be given another motivation Heracles offers to work for Eurystheus so that he and his father Amphitryon may return to Argos from which Amphitryon has been banished In this way the killing of his family can be left as the final reversal of the herorsquos good fortune22

d) O aparecimento de Teseu no final da acccedilatildeo dramaacutetica poderaacute ser outra

inovaccedilatildeo do poeta jaacute que como sugere Bond ldquoif in the pre-Euripidean tradition the

19 Apud Bond xxix 20 Apolodoro Bibliotheca 2412 21 Ann Norris Michelini Euripides and Tragic Tradition 263 22 Euripides Suppliant Women Electra Heracles ed e trad David Kovacs (Cambridge Massachusetts Harvard University Press 1998) 304

11

murderers preceded the labours Theseus cannot have played any part and there is a

strong likelihood of Euripidean invention hererdquo 23

Parece-nos que o aparecimento de Teseu no final da trageacutedia permite a Euriacutepides

elogiar a cidade ateniense em detrimento de Tebas Esta cidade recusou ajudar a famiacutelia

de Heacuteracles no momento em que o heroacutei estava ausente (v 227 v 560) Teseu pelo

contraacuterio assim que soube que a famiacutelia do Alcida estava a ser ameaccedilada por Lico

dirigiu-se para Tebas acompanhado de hoplitas (vv 1164-1171) Heacuteracles eacute obrigado a

abandonar Tebas (governada por tiranos) por ter cometido um crime involuntaacuterio

Atenas (onde a democracia era a poliacutetica vigente) eacute a cidade acolhedora que julgaraacute e

purificaraacute Heacuteracles do filiciacutedio e do uxoriciacutedio

Para Francis M Dunn ldquoWhen he arrives with an army (1165) when he shows

concern for the polluted and exiled Heracles when he offers him a place of refuge and

promises to settle him on Athenian soil Theseus plays a familiar role as the statesman

who embodies Athenian values by protecting suppliantsrdquo24

2 Seacuteneca Hercules Furens

Seacuteneca revela-se o mais laquomodernoraquo dos pensadores e dos escritores antigos

(Padre Manuel Antunes25)

21 Data e Estrutura da Trageacutedia

Pensa-se que a trageacutedia Hercules Furens teraacute sido escrita antes de 54 dC26 A

acccedilatildeo dramaacutetica afasta-se logo no Acto I da de Euriacutepides o seu modelo com a

introduccedilatildeo da personagem Juno que num soliloacutequio prepara a vinganccedila contra 23 Bond xxx 24 Francis M Dunn Tragedyrsquos End Closure and Innovation in Euripidean Drama (Oxford Oxford University Press 1996) 121 25 Padre Manuel Antunes sj Obra Completa tomo I Theoria Cultura e Civilizaccedilatildeo volume I Cultura Claacutessica (Estudos) ed criacutetica coordenaccedilatildeo cientiacutefica Arnaldo do Espiacuterito Santo (Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2007) 192 26 Katharina Volk Gareth D Williams (eds) Seeing Seneca Whole Perspectives on Philosophy Poetry and Politics (Leiden Boston Brill 2006) 199 Fitch (1) 50-53 Estes criacuteticos sugerem que a trageacutedia teraacute sido escrita por volta do ano 54 pelos ecos que encontram da Apocolocyntosis

12

Heacutercules Com a entrada da deusa no iniacutecio da trageacutedia fica-se a conhecer o tema a

loucura e o assassiacutenio dos filhos do Alcida Jaacute na peccedila de Euriacutepides o tema soacute eacute revelado

quando entram em cena Iacuteris e Lissa (vv 821-974)

O Acto II assemelha-se ao Proacutelogo e ao Episoacutedio I de Euriacutepides O cenaacuterio eacute

semelhante Anfitriatildeo e Meacutegara estatildeo junto do altar de Juacutepiter (Zeus na trageacutedia grega)

como suplicantes esperando pelo regresso do Alcida Lico entra em cena natildeo com o

objectivo de matar a famiacutelia heraclida (como em Her) mas de assegurar o seu poder

querendo casar-se com Meacutegara Recusada com violecircncia a proposta Lico ameaccedila

queimaacute-los vivos acendendo uma fogueira ao redor do altar de Juacutepiter Tal como na

trageacutedia de Euriacutepides a famiacutelia heraclida abandona o lugar e dirige-se ao palaacutecio de

Heacutercules

O Acto III inicia-se com o monoacutelogo do Alcida Meacutegara eacute uma personagem

muda ao contraacuterio do que acontece em Euriacutepides Heacutercules vem acompanhado de Teseu

(na trageacutedia grega o soberano de Atenas soacute aparece no episoacutedio V) A permanecircncia do

protagonista em cena eacute curta27 ndash ao saber que Lico pretendia matar a sua famiacutelia deixa

Anfitriatildeo Meacutegara e os filhos com Teseu e vai ao encontro de Lico para mataacute-lo Esta

saiacuteda raacutepida abre espaccedilo para que Teseu descreva as moradas das sombras narrando a

luta de Heacutercules com Ceacuterbero Este Acto eacute substancialmente diferente do Episoacutedio II na

peccedila de Euriacutepides Heacuteracles dialoga ora com Meacutegara ora com Anfitriatildeo dirige-se aos

filhos encaminha-os para o palaacutecio como um navio que conduz os botes para um porto

seguro metaacutefora que o heroacutei usa o Hades nunca eacute descrito Anfitriatildeo e Heacuteracles

preparam o assassiacutenio de Lico

O episoacutedio da loucura no Acto IV decorre agrave frente do leitorespectador A

descriccedilatildeo da alteraccedilatildeo mental do Alcida permite ter uma visatildeo ldquoem tempo realrdquo da

mudanccedila que estaacute a acontecer no protagonista Na peccedila de Euriacutepides eacute o Mensageiro (no

episoacutedio IV) que conta essa transformaccedilatildeo porque tudo se passou dentro do palaacutecio fora

do campo de visatildeo dos espectadores

O uacuteltimo Acto que corresponde ao episoacutedio V do Heracles eacute o despertar de

Heacutercules O protagonista descobre que foi o autor do filiciacutedio e do uxoriciacutedio O

suiciacutedio surge em ambas as trageacutedias como a melhor opccedilatildeo para o Alcida mas haacute uma

personagem que o dissuade Teseu em Euriacutepides e Anfitriatildeo na trageacutedia latina

27 De 237 vv total de versos do Acto III apenas 385 vv dizem respeito agrave fala do heroacutei Deste nuacutemero 115 vv correspondem a Heacutercules no momento em que se dirige a Anfitriatildeo a Meacutegara e a Teseu

13

As inovaccedilotildees mitoloacutegicas que encontramos em Euriacutepides foram ldquorecuperadasrdquo

por Seacuteneca mas com uma visatildeo e objectivos diferentes

22 Deuses

Os deuses natildeo tecircm nas trageacutedias de Seacuteneca o mesmo desenvolvimento e

importacircncia que tecircm nas peccedilas gregas Em Hercules Furens apesar de Juno entrar em

cena deixando expliacutecito o seu oacutedio a Heacutercules e afirmando que tudo faraacute para destruir o

heroacutei perseguindo ad aeternum o fruto do adulteacuterio de Juacutepiter a sua funccedilatildeo e atitude

assemelham-se agrave de uma mulher traiacuteda pelo marido Ela proacutepria diz ter abandonado os

ceacuteus e passado a viver na terra (vv 1-5) logo junto de mortais Mariana Matias afirma

ldquoOs homens fazem uso do livre arbiacutetrio que a proacutepria Divindade lhes concedeu O Mal

ou Bem adviraacute do correcto ou inadequado uso que fizer da Razatildeo e da forccedila de vontade

(uoluntas) que tiver para se afastar das paixotildees e dos conflitos que atraem o

sofrimentordquo28

Num uacuteltimo aspecto a acccedilatildeo de Hercules Furens eacute ldquodesequilibradardquo jaacute que ldquoo

ritmo com que Seacuteneca constroacutei a acccedilatildeo das suas peccedilas se caracteriza pelo desequiliacutebrio

visto que gasta a maior parte do texto em interminaacuteveis monoacutelogos de anaacutelise interior

das personagens enquanto desenvolve os incidentes especiacuteficos da acccedilatildeo em cenas

concentradas de uma rapidez vertiginosardquo29 diz Segurado e Campos Essa falta de

proporccedilatildeo prende-se com o objectivo de Seacuteneca em querer revelar as tendecircncias que as

personagens tecircm para enveredar pelo caminho do uitium Ao fazecirc-las falar expondo as

suas duacutevidas os seus receios ao dar-lhes a capacidade de construiacuterem um raciociacutenio

loacutegico e aparentemente correcto Seacuteneca mostra os erros de raciociacutenio e os resultados

que eles podem trazer

Antes poreacutem de passarmos agrave anaacutelise das personagens sob um ponto de vista

comparativo eacute conveniente fazer um breve estudo sobre a doutrina do Poacutertico

28 Mariana Montalvatildeo Horta e Costa Matias Paisagens Naturais e Paisagens da Alma no Drama Senequiano ndash Troades e Thyestes (Coimbra diss de Mestrado em Literaturas Claacutessicas especialidade de Literatura Latina apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 2007) 32 29 Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos ldquoSeacuteneca Brecht e o Teatro Eacutepicordquo Classica 23 (1999) 13

14

23 Doutrina Estoacuteica

Fundado por Zenatildeo de Ciacutecio que chega a Atenas por volta do ano 313 aC para

abraccedilar o estudo da filosofia heleacutenica o estoicismo30 surge na Greacutecia por volta do ano

300 aC Pretende ser uma resposta ao momento conturbado que as cidades gregas

viviam no fim do seacutec IV Em contraste com a anterior hegemonia e individualismo

caracteriacutesticas do espiacuterito heleno o povo grego confronta-se agora com uma abertura de

horizontes e uma nova cultura a invadir o seu espaccedilo na sequecircncia da expansatildeo de

Alexandre

Zenatildeo procurou ensinar um novo sentimento de comunidade que se opunha por

completo ao individualismo defendido por Epicuro Proferindo os seus discursos na

Στοὰ ποικίλη lugar onde se reunia com um vasto puacuteblico e que acabou por dar nome agrave

Escola Zenatildeo difundiu ainda a sua crenccedila num poder que comanda todo o Universo

Como sublinha Joseph Moreau Zenatildeo propocircs a ideia da existecircncia de uma Razatildeo

Universal (Λόγος) que eacute Destino e Providecircncia31 A partir deste conceito pretende

libertar as almas de todo o tipo de inquietudes medos inseguranccedilas fazendo vingar a

ideia de que tudo o que acontece eacute inevitaacutevel e de acordo com a vontade de um Bem

Supremo de tal modo que cabe ao homem aceitar tudo com resignaccedilatildeo e confianccedila

Assim ao procurar viver bem e de acordo com o que a Natureza lhe enviava uma vez

que provinha de deus o homem conseguia alcanccedilar a sabedoria ldquoo estoicismo

desenvolve-se como um materialismo e como um racionalismo eacuteticordquo32

30 O estoicismo compreende trecircs grandes momentos na sua histoacuteria O primeiro periacuteodo correspondente ao do estoicismo antigo (finais do seacutec IV aC a III aC) eacute inaugurado por Zenatildeo de Ciacutecio e continuado por Cleantes e Crisipo (todos eles assumiram a direcccedilatildeo da Escola) Num segundo momento no periacuteodo meacutedio (seacutecs II-I aC) o estoicismo chega a Roma aiacute tendo como representantes Paneacutecio de Rodes amigo de Cipiatildeo Emiliano e membro do chamado Ciacuterculo de Cipiotildees e Posidoacutenio de Apameia disciacutepulo de Paneacutecio e amigo e mestre de Ciacutecero Por uacuteltimo o terceiro periacuteodo denominado neo-estoicismo estoicismo romano ou estoicismo imperial (I-II dC) tem como protagonistas Seacuteneca Musoacutenio Rufo Epicteto (escravo e depois liberto) e o imperador Marco Aureacutelio 31 Vide Joseph Moreau Stoiumlcisme ndash Eacutepicurisme Tradition Helleacutenique (Paris Librairie Philosophique J Vrin 1979) 9 32 Jean Brun O Estoicismo trad Joatildeo Amado (Lisboa Ediccedilotildees 70 1986) 32

15

231 Os trecircs ramos da Filosofia Fiacutesica Loacutegica e Moral

De modo geral os estoacuteicos dividiam a Filosofia em trecircs ramos33 a Fiacutesica a

Moral e a Loacutegica ndash o primeiro a fazer esta distinccedilatildeo foi Zenatildeo de Ciacutecio34 Apesar desta

triparticcedilatildeo os estoacuteicos consideram que esses trecircs ramos se conjugam num todo e

procuraram demonstraacute-lo por meio de diversas analogias Uma delas eacute entre o

estoicismo e o corpo de um animal em que os ossos e os nervos tecircm como

correspondente a Loacutegica a carne a Moral e a alma representa a Fiacutesica Um outro siacutemile

que os estoacuteicos usam eacute o ovo a casca eacute a Loacutegica a clara a Moral e a gema que estaacute no

centro a Fiacutesica Estabelecem ainda paralelismo entre esta doutrina e um campo feacutertil a

Loacutegica seria a cerca que delimita toda a aacuterea de cultivo a Moral os frutos e a Loacutegica a

terra ou as aacutervores Por uacuteltimo entre o estoicismo e uma cidade bem fortificada e sob o

governo da Razatildeo35 De todos estes exemplos se infere que nenhuma parte eacute

independente mas cada um dos elementos completa os outros formando um todo De

facto como refere Dioacutegenes Laeacutercio se todas as coisas satildeo apreendidas por recurso agrave

loacutegica esta implicaraacute a inclusatildeo de tudo o que entra no domiacutenio da fiacutesica e da eacutetica36

a) A Loacutegica

O estoicismo tal como o aristotelismo parte do empirismo Contudo as

perspectivas que estatildeo na base de cada uma destas doutrinas filosoacuteficas diferem por

completo Para Aristoacuteteles o mundo eacute estaacutetico (porque traduz um movimento

incompleto ou seja ldquoele natildeo eacute mais do que a passagem da potecircncia ao actordquo37) e

obedece a hierarquias (no sentido em que cada indiviacuteduo tem um lugar e funccedilatildeo

proacuteprios no mundo)

33 Segundo Dioacutegenes Laeacutercio haacute estoacuteicos que elaboraram uma divisatildeo mais minuciosa como eacute o caso de Cleantes que dividiu a Filosofia em seis partes Dialeacutectica Retoacuterica Eacutetica Poliacutetica Fiacutesica e Teologia (vide Dioacutegenes Laeacutercio 741) No entanto a triparticcedilatildeo parece ser a mais aceite entre os estoacuteicos 34 Dioacutegenes Laeacutercio 739 35 Vide Dioacutegenes Laeacutercio 740 36 Dioacutegenes Laeacutercio 783 37 Jean Brun O Estoicismo 35

16

Jaacute os estoacuteicos entendiam o mundo como um ser vivo38 Deus Mundo Natureza

todos satildeo seres vivos Como afirma Jean Brun

O empirismo estoacuteico natildeo eacute um empirismo de mensagem qualitativa como em Aristoacuteteles mas um empirismo da compenetraccedilatildeo do homem e do mundo sentir eacute ter os sentidos e a alma modificados pelo que eacute exterior esta modificaccedilatildeo pode ser em harmonia com o que a provoca e neste caso estamos na verdade ou pode estar em desacordo e nesse caso estamos no erro e na paixatildeo39

Assim o homem soacute vive bem quando em plena sintonia com o que faz parte da

natureza

A doutrina do Poacutertico divide o estudo da Loacutegica em duas partes retoacuterica

(ῥητορική) e dialeacutectica (διαλεκτική) ndash esta estrutura da lsquociecircncia de bem falarrsquo eacute herdeira

da sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica A primeira constitui a ciecircncia de bem falar que por sua

vez tem trecircs geacuteneros deliberativo judicial e demonstrativo ou epidiacutectico A retoacuterica

divide-se em inuentio dispositio elocutio e actio correspondendo cada uma dessas

partes agraves fases da elaboraccedilatildeo do discurso (ainda sem a da memoria que soacute mais tarde a

tratadiacutestica retoacuterica integraraacute) A dialeacutectica eacute a ciecircncia que permite o uso correcto da

linguagem quer em perguntas quer nas respostas Esta ciecircncia eacute divisiacutevel em duas

partes uma diz respeito ao discurso (σημαινομένος lsquosignificadorsquo) a outra estaacute

relacionada com a linguagem (φωνή lsquosomrsquo) O discurso compreende a introductio a

narratio a refutatio e a conclusio40

A dialeacutectica eacute necessaacuteria e eacute considerada pelos estoacuteicos como uma virtude que

agrega em si todas as outras Eacute pela dialeacutectica que o saacutebio consegue discernir de modo

pleno a verdade da mentira aleacutem de lhe permitir um bom uso da argumentaccedilatildeo e um

raciociacutenio claro Eacute munido da dialeacutectica que o homem obteacutem a capacidade de colocar

questotildees agraves quais consegue responder41

38 Seacuteneca considera que o mundo tal como qualquer ser vivo possui arteacuterias e veias Explica Pierre Grimal Seacutenegraveque sa Vie son Oeuvre avec un Exposeacute de sa Philosophie (Paris Presses Universitaires de France 1966) 50 que a visatildeo de Seacuteneca de que o mundo eacute um ser vivo natildeo eacute original uma vez que jaacute Empeacutedocles e Posidoacutenio tinham explorado o conceito Contudo diz-nos Grimal que o que se demarca em Seacuteneca eacute o estudo que ele desenvolve sobre o tema ldquoCette doctrine est pousseacute par lui jusque dans le deacutetail agrave la faccedilon drsquoune hypothegravese dont on cherche agrave deacutevelopper les conseacutequences et surtout elle lui permet de concevoir selon un scheacutema quasi meacutecanique la solidariteacute interne du Monde exigeacutee par le postulat de sa rationaliteacute et condition mecircme de toute connaissancerdquo 39 Jean Brun O Estoicismo 36 40 Dioacutegenes Laeacutercio 741-43 41 Dioacutegenes Laeacutercio 746-48

17

b) A Fiacutesica

O termo lsquoFiacutesicarsquo vem do termo grego φύσις (lsquonaturezarsquo) que por sua vez deriva

da forma verbal φύειν cujo sentido eacute lsquocrescerrsquo A Natureza conteacutem em si o mundo e eacute a

fonte directriz de tudo

Na verdade para os estoacuteicos a palavra lsquofiacutesicarsquo tinha um significado mais amplo

do que aquele que comummente lhe atribuiacutemos nos nossos dias Segundo Dioacutegenes

Laeacutercio os Estoacuteicos entendiam a Fiacutesica como aquilo que deteacutem o mundo e que provoca

as estaccedilotildees Definiam a natureza como uma forccedila que se desloca sobre si mesma e que

preserva a descendecircncia dos seres42

A Fiacutesica dividia-se em vaacuterios ramos Um relaciona-se com a divisatildeo por espeacutecies

e compreendia o que trata dos corpos (περὶ σωμάτων) o que trata dos princiacutepios (περὶ

ἀρχῶν) o dos elementos (περὶ στοιχείων) o dos deuses (περὶ θεῶν) o dos limites (περὶ

περάτων) o do lugar (τόπου) e o do vazio (κενοῦ) Um outro ramo liga-se agrave divisatildeo por

geacuteneros do Cosmo dos elementos e da etiologia43

Relativamente aos geacuteneros em particular ao universo este eacute governado por dois

princiacutepios um passivo e um activo O passivo (τὸ πάσχον) eacute identificado com a mateacuteria

(ὕλη) e o activo (τὸ ποιοῦν) que se relaciona com a Razatildeo eacute designado λόγος Este

princiacutepio eacute activo no sentido em que age sobre a mateacuteria moldando-a e fazendo dela

forma Sem este princiacutepio a mateacuteria jaz informe Seacuteneca identifica nas Ad Lucilium

Epistulae Morales estes dois princiacutepios da natureza como causa e mateacuteria Eacute deles que

tudo o resto deriva Explica Seacuteneca que materia iacet iners res ad omnia parata

cessatura si nemo moueat causa autem id est ratio materiam format et quocumque

uult uersat ex illa uaria opera producit44 A causa eacute o agente Em termos praacuteticos o

corpo eacute a mateacuteria e a alma a causa

A mateacuteria eacute por sua vez formada por quatro elementos o fogo (proveniente do

eacuteter) o ar (que estaacute depois do eacuteter) a aacutegua e a terra Destes quatro elementos dois satildeo

42 Dioacutegenes Laeacutercio 7148-149 43 Dioacutegenes Laeacutercio 7132 44 L Annaei Senecae Ad Lucilium Epistulae Morales 652 lsquoA mateacuteria jaz inerte apta a tomar todas as formas mas imoacutevel para sempre se ningueacutem a trabalhar a causa poreacutem que eacute como quem diz a razatildeo daacute forma agrave mateacuteria transforma-a naquilo que quer realiza a partir dela vaacuterios tipos de produtosrsquo As traduccedilotildees do latim seguem a ediccedilatildeo de Luacutecio Aneu Seacuteneca Cartas a Luciacutelio trad Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos (2ordf ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2004)

18

activos (o ar e o fogo) dois passivos (terra e aacutegua) Estes elementos satildeo pereciacuteveis pelo

facto de que estatildeo em interminaacutevel mutaccedilatildeo o que implica um fim e uma renovaccedilatildeo

Haacute dois movimentos naturais que podemos identificar com a proacutepria vida e

morte de todos os que habitam o mundo o primeiro eacute a passagem do fogo para a terra

passando pelo ar e pela aacutegua (traduz-se na vida) o segundo movimento vai da terra para

o fogo passando de novo pelos dois outros elementos aacutegua e ar (representaccedilatildeo da

morte) Esta morte e ressurgimento natural das coisas que os estoacuteicos comummente

designam por palingeacutenese acontece no dizer de Jean Brun ldquopor ocasiatildeo de uma

conflagraccedilatildeo universal durante a qual o mundo se dilata no vazio ilimitado que o

envolve e onde todas as coisas satildeo transformadas em fogo (ἐκπύρωσις)rdquo45 O mesmo

autor explica que esta conflagraccedilatildeo universal natildeo se traduz numa destruiccedilatildeo total do

Universo O que se daacute em concreto eacute uma renovaccedilatildeo dos seres e das coisas Os estoacuteicos

acreditavam que a vida do mundo eacute um ciacuterculo perfeito no sentido em que nasce morre

e volta a nascer

Sendo o κόσμος visto como um ser vivo que possui uma anima e a razatildeo os

estoacuteicos interpretam este lsquoUniversorsquo sob trecircs acepccedilotildees diferentes primeira o Universo eacute

imagem do Deus uacutenico ser que possui qualidades inerentes (ἰδίως ποιόν) este por sua

vez eacute um ser indestrutiacutevel e arquitecto da ordem do Cosmo uma vez que tem a

capacidade de destruir e recriar tudo a partir de si proacuteprio (o que equivale a dizer que

tem mecanismos proacuteprios que lhe permitem eliminar o que quiser e do nada voltar a

engendrar algo novo) segunda o Universo eacute considerado como a ordem dos astros

terceira o Universo eacute visto como um todo do qual Deus e os astros fazem parte46

Consideravam ainda que o mundo eacute constituiacutedo por mateacuteria ou seja por corpos

Esta eacute uma noccedilatildeo panrealista visto que para os estoacuteicos tudo eacute σῶμα desde a noite a

aurora o minuto a palavra o proacuteprio deus ateacute agrave alma e as virtudes e os viacutecios Dada a

visatildeo de que tudo ou quase tudo eacute corpo eacute permitido ao homem uma ligaccedilatildeo estreita

com o Universo do qual eacute originaacuterio e para o qual retorna Diz Seacuteneca bonum agitat

animum et quodam modo format et continet quae [ergo] propria sunt corporis Quae

corporis bona sunt corpora sunt ergo et quae animi sunt nam et hoc corpus est47

45 Jean Brun O Estoicismo 49 46 Dioacutegenes Laeacutercio 7138-139 47 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 1064 lsquoO bem move-nos a alma de certa maneira daacute agrave alma forma e limites acccedilotildees que satildeo especiacuteficas dos corpos Os bens do corpo satildeo corpos logo tambeacutem os bens da alma o satildeo uma vez que a alma eacute um corporsquo

19

Acrescenta tambeacutem que as paixotildees satildeo consideradas como corpos dado que fazem

transparecer expressotildees no rosto do ser humano quando este se deixa levar por elas

non puto te dubitaturum an adfectus corpora sint () tamquam ira amor tristitia nisi dubitas an uultum nobis mutent an frontem adstringant an faciem diffundant an ruborem euocent an fugent sanguinem () corpora ergo sunt quae colorem habitumque corporum mutant quae in illis regnum suum exercent () numquid est dubium an id quo quid tangi potest corpus sit () omnia autem ista quae dixi non mutarent corpus nisi tangerent ergo corpora sunt Etiam nunc cui tanta uis est ut inpellat et cogat et retineat et inhibeat corpus est () denique quidquid facimus aut malitiae aut uirtutis gerimus imperio quod imperat corpori corpus est quod uim corpori adfert corpus48

No entanto alguns filoacutesofos consideram que nem tudo o que existe no cosmo

possui corpo Sexto Empiacuterico aponta quatro geacuteneros de incorpoacutereos o ldquoexprimiacutevelrdquo

(λεκτόν) o espaccedilo (τόπος) o vazio (κενόν) e o tempo (χρόνος)49 ndash este uacuteltimo eacute infinito

nas duas extremidades isto eacute no passado e no futuro mas eacute sempre contiacutenuo No que

diz respeito a este uacuteltimo elemento os estoacuteicos definem-no como um intervalo de

movimento que depende de dois elementos a terra (e o mar por extensatildeo) e o vazio

Os quatro elementos supramencionados satildeo tomados como incorpoacutereos por natildeo

manifestarem qualquer transformaccedilatildeo nos corpos Na verdade natildeo eacute possiacutevel uma

interacccedilatildeo que fundamente uma mutaccedilatildeo entre um incorpoacutereo e um corpo visto que o

primeiro natildeo produz qualquer efeito no segundo50 O mesmo natildeo acontece quando dois

corpos se tocam Haacute uma influecircncia no acto do confronto Este contacto implica sempre

ou quase sempre uma transformaccedilatildeo haacute um agente e um paciente um transformador e

um transformado Ao encontro de corpos de que resulta uma alteraccedilatildeo os estoacuteicos

denominam ldquoamaacutelgama totalrdquo (κρᾶσις δι᾽ ὅλων) Segundo Jean Brun ldquoA continuidade

da natureza esta presenccedila dos corpos num mundo de espaccedilo ocupado que ignora o

48 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 1065 7-10 lsquoAcho que tu natildeo hesitaraacutes em reconhecer como corpos as paixotildees () ndash tais como a coacutelera o amor a tristeza a menos que tu duvides que elas nos alteram o rosto nos enrugam a testa nos alongam a face nos tornam a cara encarniccedilada ou nos fazem ficar sem pinga de sangue () Consequentemente tudo quanto altera a cor e a forma dos corpos eacute igualmente um corpo o qual exerce naqueles a sua acccedilatildeo () E seraacute possiacutevel duvidar que seja corpo tudo aquilo por que um corpo pode ser tocado () Ora tudo quanto referi natildeo poderia alterar o nosso corpo se lhe natildeo tocasse por conseguinte todos satildeo corpos Mais ainda tudo quanto tenha em si forccedila suficiente para nos impelir forccedilar deter ou impedir de nos movermos ndash tem de ser um corpo () Em suma tudo quanto noacutes fazemos fazemo-lo sob ordens ou da maldade ou da virtude e tudo quanto exerce poder sobre um corpo tudo ndash eacute um corporsquo 49 Sexto Empiacuterico Aduersus Mathematicos 10218 50 Vide Ciacutecero Academica Posteriora 239

20

vazio esta assimilaccedilatildeo de Deus e do Cosmo permitem-nos dizer que o todo estaacute em

simpatia consigo mesmo que tudo conspira que existe uma simpatia universal das

coisas e dos seresrdquo51 Esta simpatia (συμπάθεια) eacute universal e conatural (συμφνές)

sendo ainda uma outra forma de ldquodesignar a identidade de Deus e do mundordquo52 Tudo

proveacutem de Deus que representa uma forccedila aniacutemica dotada de inteligecircncia de tal modo

que a infinidade de corpos mais natildeo satildeo que parcelas dessa mesma divindade

Deus e o Destino (εἱμαρμένη53) assumem importacircncia relevante para a

compreensatildeo da vida do homem uma vez que todas as coisas tecircm o seu rumo proacuteprio

ldquoo destino eacute uma realidade natural inscrita na estrutura do mundo no sentido em que o

conjunto a κρᾶσις que liga os seres eacute testemunho de uma disposiccedilatildeo imutaacutevel na

ordem das coisasrdquo54

Este poder conferido ao destino levou alguns filoacutesofos (em especial os

epicuristas) a criticarem a concepccedilatildeo que os estoacuteicos tinham dele e do livre-arbiacutetrio

porque incongruente O problema que se colocava era em que medida ao homem era

dada liberdade de fazer as suas proacuteprias escolhas se o Destino tinha poder absoluto

sobre todos os seres Crisipo contribuiu no acircmbito da reflexatildeo estoacuteica para a

compreensatildeo desta questatildeo para ele o Destino eacute um poder que governa todo o Cosmo

nada acontece sem uma causa precedente Considerando que tudo se rege por uma

causa Crisipo defendia a teoria de que existem duas espeacutecies de causas as causas

perfeitas e principais (αὐτοτελεῖ αἰτίαι ou causae perfectae causae principales) e as

causas adjuvantes e proacuteximas (προκαταρκτικαὶ αἰτίαι ou causae adiuuantes causae

proximae) As primeiras dizem respeito a decisotildees que o ser humano toma e as

segundas agrave forccedila do Destino

Si est motus sine causa non omnis enuntiatio (quod ἀξίωμα dialectici appelant) aut uera aut falsa erit causas enim efficientes quod non habebit id nec uerum nec falsum erit omnis autem enuntiatio aut uera aut falsa est motus ergo sine causa nullus est Quod si ita est omnia quae fiunt causis fiunt antegressis id est omnia fato fiunt efficitur igitur fato fieri quaecumque fiant55

51 Jean Brun O Estoicismo 53 52 Idem Ibidem 54 53 A palavra εἱμαρμένη vem do particiacutepio passado do verbo μείρομαι A raiz μερ usada em palavras como microέρος e Μοῖραι demonstra que o destino a par das Moiras comanda a vida de cada um dos seres O destino eacute estrutura mas tambeacutem uma forccedila Considerado como um sopro natildeo soacute vital como divino o destino em conjunto com a providecircncia eacute a forccedila motora que comanda todas as coisas 54 Idem Ibidem 56 55 Ciacutecero De Fato 1020-21 Ciacutecero cita Crisipo

21

A Providecircncia (πρόνοια) eacute por sua vez a causa que permite concatenar os seres

com a vontade divina Eacute pela Providecircncia que os animais procuram criar relaccedilotildees de

amizade e de interdependecircncia56 Contudo esta concepccedilatildeo que os estoacuteicos tecircm da

Providecircncia (aquilo que Jean Brun designou como ldquofinalismo universalrdquo57) levanta

algumas questotildees sobre a existecircncia do mal De facto estando a Providecircncia em

sintonia com tudo o que existe no mundo implica que haja uma ligaccedilatildeo entre ela e o

bem e entre ela e o mal Este lsquomalrsquo diz respeito ao que a Natureza cria e que eacute nocivo

(como por exemplo as tempestades as epidemias os animais ferozes as plantas

venenosas) mas tambeacutem agraves acccedilotildees do homem (guerras violecircncia) Este aspecto levou os

ceacutepticos a criticarem os estoacuteicos Crisipo contra-argumenta com a ideia de que tudo tem

um contraacuterio (por exemplo a virtude tem como antiacutetese o viacutecio) O mal permite criar

um certo equiliacutebrio58 e em simultacircneo pode ser uacutetil uma vez que pode ser ldquonecessaacuterio

para o aparecimento de um bem maiorrdquo59

Haacute que notar contudo que a Providecircncia o Destino a Natureza a Razatildeo

Universal e Deus mais natildeo satildeo do que sinoacutenimos Deus eacute pensado no superlativo

porquanto eacute um princiacutepio que governa todos os outros A divindade eacute mateacuteria mas natildeo

possui qualquer forma humana Tal como mateacuteria Deus eacute um sopro iacutegneo dotado de

inteligecircncia Difere do homem por ser imortal e ignorar qualquer mal

Quanto agrave alma humana ela eacute segundo Reneacute Hoven60 feita de elementos subtis

em concreto eacute originada a partir do ar e do fogo Zenatildeo de Ciacutecio Antiacutepatro e Posidoacutenio

definem a alma como um sopro quente (πνεῦμα ἔνθερμον) 61 Esta designaccedilatildeo explica-

-se pelo facto de ser por meio deste πνεῦμα que noacutes respiramos e nos movemos

Os filoacutesofos estoacuteicos ao definirem a alma comparam-na a um polvo Apesar de

a tomarem como una dividiram-na em oito partes uma parte matriz (ἡγεμονικόν) que

governa todas as outras partes sendo a mais importante e dela saindo as outras sete

destas cinco dizem respeito aos sentidos naturais a visatildeo o olfacto o tacto a audiccedilatildeo e

o paladar as uacuteltimas duas partes satildeo o aparelho reprodutor e a palavra Esta concepccedilatildeo

56 Marco Aureacutelio Meditationes 440 ss 57 Jean Brun O Estoicismo 60 58 Em Hercules Furens de Seacuteneca estaacute bem delineada a ideia de que o bem e o mal permitem criar um certo equiliacutebrio natural das coisas Soacute o insensato protagonizado por Heacutercules eacute que acredita na possibilidade de destruir todo o mal que existe na terra porque vecirc nele um obstaacuteculo agrave construccedilatildeo da ordem Eacute notoacuterio um erro de avaliaccedilatildeo relativamente agrave noccedilatildeo que o heroacutei tem da natureza 59 Jean Brun O Estoicismo 61 60 Reneacute Hoven Stoiumlcisme et Stoiumlciens face au problegraveme de lrsquoau-delagrave (Paris Les Belles Lettres 1971) 41 61 Cf Dioacutegenes Laeacutercio 7157

22

de um corpo dividido em vaacuterias partes vai ao encontro da concepccedilatildeo que os estoacuteicos

tinham do universo como ser contiacutenuo e em plena harmonia consigo mesmo62

Eacute a partir da alma que o corpo existe visto ser um princiacutepio vital A funccedilatildeo que

desempenha natildeo eacute apenas de ordem bioloacutegica e motora mas representa igualmente

uma funccedilatildeo gnosioloacutegica Eacute por meio da alma que o homem compreende o mundo O

conhecimento e aceitaccedilatildeo deste mesmo mundo permite-lhe viver bem e alcanccedilar a

sabedoria Segundo Jean Brun ldquoa alma tem duas funccedilotildees essenciais a representaccedilatildeo

que nasce duma impressatildeo do objecto exterior na substacircncia da alma e a inclinaccedilatildeo

(ὁρμή) que eacute a faculdade de experimentar o desejo e a aversatildeordquo63

Quando o corpo morre a alma subsiste ainda mas eacute pereciacutevel64 Esta teoria da

sobrevivecircncia da alma depois da morte do corpo eacute complexa entre os estoacuteicos Para

Zenatildeo depois de o corpo perecer a alma humana vivia durante um periacuteodo de tempo

mas acabava por desaparecer Jaacute Cleantes considerava que a alma subsistia ateacute agrave

conflagraccedilatildeo total (ἐκπύρωσις) Para Crisipo apenas a alma dos saacutebios sobreviveria A

dos iacutempios morreria com a destruiccedilatildeo do corpo65

Para Seacuteneca parece natildeo haver uma resposta uacutenica e simples uma vez que nas

suas obras encontramos vaacuterias perspectivas ldquoSes oeuvres nous fournissent en

abondance des reacuteponses mais celles-ci preacutesentent agrave premiegravere vue une telle diversiteacute et

mecircme tant de contradictions que leur simple lecture laisse perplexe quant agrave la penseacutee

reacuteelle de notre philosopherdquo como refere Reneacute Hoven66 Assim Seacuteneca defende por um

lado que a alma subsiste ateacute agrave conflagraccedilatildeo universal67 ou durante um periacuteodo mais

longo do que aquele que viveu na terra (Ep 10223) Identifica ainda a possibilidade de

haver uma vida num mundo supraterrestre68 rejeitando tal como os outros filoacutesofos

estoacuteicos a existecircncia de um mundo inferior (Ep 2418) Seacuteneca potildee a hipoacutetese de que a

morte possa ser um fim absoluto pelo menos quando enuncia alternativas como mors

aut finis aut transitus (Ep 6524 a morte lsquoou eacute termo ou eacute passagemrsquo) ou mors aut

62 Vide Jean Brun O Estoicismo 66 63 Jean Brun O Estoicismo 66 64 Vide Ciacutecero Tusculanae Disputationes 118 e Dioacutegenes Laeacutercio 7157 65 Dioacutegenes Laeacutercio 7157 66 Reneacute Hoven Stoiumlcisme et Stoiumlciens face au problegraveme de lrsquoau-delagrave 109 67 Nos quoque felices animae et aeterna sortitae cum deo uisum erit iterum ista moliri labentibus cunctis et ipsae parua ruinae ingentis accessio in antiqua elementa uertemur (Seacuteneca Consolatio ad Marciam 267) Vide tambeacutem Reneacute Hoven Stoiumlcisme et Stoiumlciens face au problegraveme de lrsquoau-delagrave 109 68 Neste caso Reneacute Hoven op cit 110 comenta que a ideia de que existe uma vida depois da morte natildeo eacute uma concepccedilatildeo exclusivamente estoacuteica Eacute esta vida supraterrestre que vamos encontrar no final de Hercules Oetaeus depois de o seu corpo ter sido consumido pelo fogo Heacutercules aparece a Alcmena para lhe dizer que a sua alma ascendeu agraves moradas celestes (vv 1963-1976)

23

consumit aut exuit (Ep 2418 lsquoa morte ou nos consome totalmente ou nos despoja de

alguma coisarsquo)69

Importa poreacutem ver que em qualquer dos casos o sapiens aceita a morte com

serenidade Afinal a morte eacute como um outro nascimento

Quemadmodum decem mensibus tenet nos maternus uterus et praeparat non sibi sed illi loco in quem uidemur emitti iam idonei spiritum trahere et in aperto durare sic per hoc spatium quod ab infantia patet in senectutem in alium maturescimus partum Alia origo nos expectat alius rerum status70

c) A Moral

Os estoacuteicos dividiam o ramo da filosofia que corresponde agrave moral em vaacuterios

toacutepicos da tendecircncia (ὁρμή) do bem (περὶ ἀγαθῶς) e do mal (περὶ κακῶν) das paixotildees

(περὶ παθῶν) da virtude (περὶ ἀρετῆς) do fim ou do bem supremo (τέλος) do primeiro

valor e das acccedilotildees (περὶ πρώτης ἀξίας καὶ τῶν πράξεων) das condutas convenientes e

dos encorajamentos e dissuasotildees (περὶ τῶν καθηκόντων προτροπῶν τε καὶ

ἀποτροπῶν)71 Segundo testemunha Dioacutegenes Laeacutercio adoptaram esta divisatildeo Crisipo

Arquedemo Zenatildeo de Tarso Apolodoro Dioacutegenes Antiacutepatro Posidoacutenio e os seus

disciacutepulos Jaacute Zenatildeo de Ciacutecio e Cleantes natildeo deram ao ramo da Moral a mesma atenccedilatildeo

e desenvolvimento72

A tendecircncia eacute considerada como o primeiro dado natural do ser ndash o primeiro

impulso espontacircneo (ὁρμή) ndash enquanto o prazer e a dor assumem posiccedilotildees secundaacuterias

O animal tende em primeiro lugar a conservar a sua proacutepria seguranccedila e procura

conhecer-se Como explica Leacuteon Robin 69 Reneacute Hoven op cit 114 considera que esta eacute uma segunda tendecircncia do filoacutesofo e designa-a de ldquoalternativa socraacuteticardquo O mesmo autor identifica ainda mais trecircs perspectivas uma influecircncia epicurista em que Seacuteneca identificaria a morte como o natildeo ser (mors est non esse ndash Ep 544-5) uma corrente ldquomiacutesticardquo ou ldquopitagoacuterico-platoacutenicardquo (o corpo eacute um fardo ndash Ep 2417) e por uacuteltimo uma ldquocorrente mitoloacutegicardquo baseada em crenccedilas populares que diz respeito agrave crenccedila num mundo inferior Sobre esta uacuteltima tendecircncia natildeo nos parece que Seacuteneca acreditasse na sua existecircncia (vide Ep 2418) Ainda que os Infernos apareccedilam com alguma frequecircncia nas trageacutedias do filoacutesofo a referecircncia agraves moradas inferiores eacute a representaccedilatildeo da tradiccedilatildeo mitoloacutegica e tambeacutem das crenccedilas e dos receios do povo relativamente agrave morte e ao que vem depois dela 70 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 10223 lsquoTal como o ventre materno nos guarda por dez meses e nos prepara natildeo para nele permanecer mas sim para sermos como que lanccedilados no mundo assim que estamos aptos a respirar e a aguentar o ar livre tambeacutem ao longo do espaccedilo de tempo que vai da infacircncia agrave velhice noacutes vamos amadurecendo com vista a um novo parto Espera-nos um outro nascimento uma outra ordem das coisasrsquo 71 Dioacutegenes Laeacutercio 784 72 Vide Dioacutegenes Laeacutercio 784

24

A ideia de laquoconstituiccedilatildeoraquo eacute aqui capital desde que o animal nasce estaacute laquooriginariamente apropriadoraquo (conciliatio) a essa constituiccedilatildeo e agrave laquoconsciecircnciaraquo que dela tem estaacute-lhes de algum modo laquoconfiadoraquo (commendatio) Assim velar-se-aacute a si mesmo rejeitaraacute o que possa prejudicar a sua constituiccedilatildeo laquotenderaacuteraquo para o que eacute proacuteprio a favorececirc-la afastar-se-aacute do que a contraria No homem essa tendecircncia do ser para se conservar tem a particularidade de pertencer a uma constituiccedilatildeo do ser racional a espontaneidade original da sua natureza com a consciecircncia que dela tem eacute fundamentalmente laquoconforme agrave Razatildeoraquo73

Assim estabelecem os filoacutesofos uma divisatildeo entre ldquoobjectos de tendecircnciardquo74 os

que podem ser adquiridos porque satildeo bons e estatildeo de acordo com a natureza e os que

devem ser rejeitados porque satildeo maus e opostos agrave natureza

O homem ao conhecer a natureza e obedecer agravequilo que ela dita tem a

capacidade de apreender e compreender as escolhas que ela proporciona e reflectir sobre

tudo o que dela proveacutem Ele deve entatildeo orientar correctamente a sua vida Esta

orientaccedilatildeo passa pela aceitaccedilatildeo da natureza vivendo em harmonia com ela (τὸ

ὁμολογουμένως τῇ φύσει ζῆν75) ou seja estaacute de acordo com tudo o que tem origem na

natureza ndash conuenienter naturae No entanto para viver segundo a virtude as acccedilotildees e

os pensamentos do homem devem ser constantes o que implica uma atitude de

perseveranccedila na construccedilatildeo da uirtus Seacuteneca afirma

Sic maxime coarguitur animus inprudens alius prodit atque alius et quo turpius nihil iudico inpar sibi est Magnam rem puta unum hominem agere Praeter sapientem autem nemo unum agit ceteri multiformes sumus Modo frugi tibi uidebimur et graues modo prodigi et uani mutamus subinde personam et contrariam ei sumimus quam exuimus Hoc ergo a te exige ut qualem institueris praestare te talem usque ad exitum serues effice ut possis laudari si minus ut adgnosci De aliquo quem here uidisti merito dici potest lsquohic qui estrsquo tanta mutatio est76

73 Leacuteon Robin A Moral Antiga trad Joatildeo Morais Barbosa (Ediccedilotildees Despertar sd) 108 74 Vide Leacuteon Robin A Moral Antiga 108 75 Esta afirmaccedilatildeo apresentada por Dioacutegenes Laeacutercio (787) eacute do tratado Περὶ ἀνθρώπου φύσεως (Sobre a natureza do Homem) de Zenatildeo de que apenas nos restam fragmentos 76 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 12022 lsquoNada denuncia melhor a falta de princiacutepios morais do que este assumir alternado de diferentes rostos que para cuacutemulo da desfaccedilatez satildeo cada um deles sempre diversos de si mesmos Deves aceitar como um caso de excepccedilatildeo algueacutem que soacute desempenhe um papel na vida Na realidade para aleacutem do saacutebio ningueacutem se contenta em fazer soacute uma personagem todos estamos em constante mudanccedila Ora nos damos ares de gente frugal e austera ora de dissipadores e libertinos para logo a seguir pormos no rosto a maacutescara oposta agravequela que acabaacutemos de tirar Exige portanto de ti proacuteprio que sejas ateacute ao fim da vida aquilo que decidiste ser e faz com que os outros se natildeo te enaltecerem possam pelo menos reconhecer-te De indiviacuteduos que ainda ontem encontraacutemos jaacute hoje podemos ter o direito de perguntar Quem eacute este ndash tal a mudanccedila que neles se operoursquo

25

Para Seacuteneca o ser humano deve governar a sua vida de modo a tornaacute-la uma

concors uita sibi (Ep 8915) isto eacute a sua vivecircncia tem de estar ateacute ao fim da sua

existecircncia em conformidade com aquilo que escolheu ser O que Seacuteneca pretende

mostrar eacute que quem quer abraccedilar a uirtus natildeo pode andar hesitante e dividido entre o

bem e o mal entre a uirtus e o uitium balanccedilando entre o percurso correcto e o que

conduz ao erro A partir do momento em que o homem faz uma escolha teraacute de ser

constante Deste modo se atinge a felicidade por um lado e a sabedoria por outro

Para os estoacuteicos o mal fazia parte da ordem coacutesmica A noccedilatildeo que eles tinham

de que a par do bem existe o mal (permitindo criar um certo equiliacutebrio natural como jaacute

referimos) levava a ter como objectivo alcanccedilar o Supremo Bem ndash por isso se considera

a doutrina do Poacutertico como uma eacutetica de ascese O caminho que o saacutebio escolhe eacute um

percurso que implica um aperfeiccediloamento interior que natildeo descura uma anaacutelise criacutetica

diaacuteria e ininterrupta Esta passa pela auto-anaacutelise ou exame de consciecircncia dos seus

actos e pensamentos77 para poder alcanccedilar a uirtus Para Seacuteneca a soluccedilatildeo eacute instemus

itaque et perseueremus plus quam profligauimus restat sed magna pars est profectus

uelle proficere78 Este exame criacutetico permite ao homem tomar consciecircncia de si e do que

o rodeia verificando se estaacute a enveredar pelo caminho da uirtus ou pelo do uitium79

Assim o encontro com a virtude passa pelo uso contiacutenuo da Razatildeo que permite ao

saacutebio disciplinar-se e evitar todo o geacutenero de affectus

A virtude por sua vez eacute considerada pelos estoacuteicos como uma perfeiccedilatildeo comum

a todos isto eacute todos a podem alcanccedilar se para isso orientarem a vida e as suas escolhas

Cabe assim ao sapiens ndash uma vez que vive em conformidade com a natureza e tem a

capacidade de usar a Razatildeo com constacircncia e consistecircncia encontrando harmonia e paz

na alma ndash ensinar aos outros o caminho para chegar agrave uirtus orientando-os

aconselhando-os levando-os a compreender as suas limitaccedilotildees e sobretudo a aceitar as

suas fraquezas e a dos outros80 para melhor as poder corrigir

77 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 136 lsquoQuando tiveres agrave tua volta pessoas empenhadas em persuadir-te de que eacutes um desgraccedilado pensa bem natildeo nas palavras que ouves mas sim naquilo que tu proacuteprio sentes analisa a tua capacidade de resistecircncia () pois eacutes o melhor conhecedor de ti mesmorsquo 78 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 7136 lsquoSoacute haacute uma soluccedilatildeo portanto ser firme e avanccedilar sem descanso O caminho que resta percorrer eacute mais longo que o jaacute percorrido mas grande parte do progresso consiste na vontade de progredirrsquo 79 Seacuteneca De Ira 336 vide Maria Cristina Pimentel Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de Seacuteneca (Lisboa Ediccedilotildees Colibri 1993) 12 80 Cf Maria Cristina Pimentel Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de Seacuteneca 13

26

Crisipo entende que o estoicismo eacute uma medicina que permite alcanccedilar a cura da

alma est profecto animi medicina philosophia cuius auxilium non ut in corporis

morbis petendum est foris omnibusque opibus uiribus ut nosmet ipsi nobis mederi

possimus elaborandum est81 Contudo como sugere Seacuteneca a cura soacute eacute possiacutevel quando

qualquer indiacutecio de paixatildeo eacute extraiacutedo por completo Natildeo basta ldquoadormecerrdquo o uitium haacute

que excisaacute-lo optimum est primum irritamentum irae protinus spernere ipsisque

repugnare seminibus et dare operam ne incidamus in iram82

A virtude eacute assim um bem no qual se contemplam em geral dois geacuteneros

Dioacutegenes Laeacutercio considera a virtude natildeo-intelectual (ἀθεώρητος) como eacute o caso da

sauacutede e a intelectual (θεωρηματική) como por exemplo a prudecircncia e a justiccedila83 Esta

diferenccedila entre virtudes intelectuais e natildeo-intelectuais permite distinguir aquelas que satildeo

naturais ndash que os homens insensatos tambeacutem possuem ndash das que satildeo exclusivas dos

saacutebios porque implicam um percurso interior de ascese

Entendendo que as virtudes satildeo bens o nuacutemero total destes bens varia Paneacutecio

considera duas virtudes (teoacuterica e praacutetica) outros estabelecem trecircs (racional natural e

moral) Apoloacutefanes apenas uma (a prudecircncia) Cleantes Crisipo e Antiacutepatro muitas

Apesar desta divergecircncia eacute aceite pela generalidade dos estoacuteicos a divisatildeo de todas as

virtudes em primaacuterias e subordinadas ndash porque estabelecem uma relaccedilatildeo de

subordinaccedilatildeo com as antecedentes

As primaacuterias satildeo seguindo os estoacuteicos neste particular a sistematizaccedilatildeo

platoacutenica quatro a sabedoria (φρόνησις ou σοφία) a coragem (ἀνδρεία) a justiccedila

(δικαιοσύνη) e a prudecircncia (σωφροσύνη) Como virtudes subordinadas da sabedoria

temos a magnanimidade a paciecircncia e a prudecircncia A coragem implica sempre uma

acccedilatildeo que permita um acto de escolha de fuga ou de indiferenccedila84 A justiccedila eacute como

refere Ciacutecero habitus animi communi utilitate conseruata suam cuique tribuens

dignitatem85 A prudecircncia leva ao estudo dos elementos constituintes da natureza

identificando aleacutem das virtudes os indiferentes e as paixotildees Seacuteneca poreacutem divide o

bem em trecircs classes o da primeira diz respeito a manifestaccedilotildees como o gaudium a pax

a salus patriae o da segunda refere-se agrave tormentorum patientia et in morbo graui

temperantia (lsquoresistecircncia agrave tortura ou a firmeza de acircnimo durante uma doenccedila graversquo) o

81 Ciacutecero Tusculanae Disputationes 36 82 Seacuteneca De Ira 181 83 Dioacutegenes Laeacutercio 790 84 Dioacutegenes Laeacutercio 792-93 85 Ciacutecero De Inuentione 2160

27

bem da terceira classe estaacute relacionado com o modestus incessus et compositus ac

probus uultus et conueniens prudenti uiro gestus (lsquomodeacutestia das atitudes a serenidade e

a honestidade do rosto os gestos adequados a uma pessoa de bom sensorsquo)86

Em contraponto a estas quatro virtudes associam-se quatro viacutecios ou quatro

males a insensatez a cobardia a injusticcedila e a imprudecircncia Igualmente a estes quatro

viacutecios se subordinam outros incontinecircncia torpeza relativamente agrave mente e mau

conselho87 Dioacutegenes Laeacutercio identifica o viacutecio como o desconhecimento de tudo o que

eacute virtuoso Este eacute um aspecto que leva os estoacuteicos a afirmarem que as virtudes visto

serem um saber podem ser ensinadas A vantagem daquele que se dedica ao estudo da

virtude eacute uma vez apreendida esta faculdade natildeo mais a perder

Tambeacutem a loacutegica e a fiacutesica fazem parte das virtudes enumeradas pelos filoacutesofos

A fiacutesica eacute vista como uma moral e como um modus uiuendi que tem como princiacutepio

fundamental a Razatildeo Eacute a virtude que conduz o homem agrave sabedoria mas mais do que

isso ela eacute tida como a proacutepria sabedoria

Nem tudo os estoacuteicos consideram como bens e males virtudes e viacutecios

Entendem que haacute os indiferentes (ἀδιάφορα)88 Satildeo indiferentes tudo o que esteja

relacionado com o corpo como por exemplo a vida a morte a sauacutede a doenccedila a

beleza a forccedila a riqueza o prazer a dor a gloacuteria89 ou com aquilo que vem do exterior

visto natildeo causar nem alegria nem tristeza em quem o experimenta Apenas o uso que o

homem faz dos indiferentes permite tornaacute-los uacuteteis ou maleacuteficos Um exemplo

significativo eacute o da forccedila o elemento que melhor caracteriza a personagem Heacutercules O

uso que ele faz da forccedila que passa por ser excessivo e violento revela ser

inconveniente uma vez que ele tanto a utiliza para as boas como para as maacutes acccedilotildees

Os estoacuteicos reconhecem ainda nos indiferentes dois valores convenientes ou

inconvenientes ou na designaccedilatildeo de outros estoacuteicos preferiacuteveis (προηγμένα) ou

rejeitaacuteveis (ἀποπροηγμένα) segundo o nosso proacuteprio impulso (ὁρμή) Avaliando-os o

homem deve aceitar o que for conveniente ou evitaacute-lo caso seja inconveniente os

indiferentes sauacutede doenccedila por exemplo tornam-se assim opostos pois aquela eacute

conveniente preferiacutevel e esta eacute inconveniente rejeitaacutevel

86 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 665 Veja-se tambeacutem Maria Cristina Pimentel Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de Seacuteneca 17 87 Dioacutegenes Laeacutercio 793 88 O termo indiferente eacute usado para identificar trecircs distintos estados de espiacuterito em primeiro lugar designa aquilo que natildeo causa nem desejo nem aversatildeo segundo eacute indiferente o que causa em simultacircneo desejo e aversatildeo por uacuteltimo aquilo que natildeo concorre nem para a felicidade nem para o infortuacutenio 89 Vide Sexto Empiacuterico Aduersus Mathematicos 959 e ss

28

O que importa eacute saber aceitar tudo o que acontece de bom e de mau porque tem

origem na Providecircncia90 Esta tomada de consciecircncia e aceitaccedilatildeo permite-lhe viver em

liberdade porque em harmonia com a Natureza Ciacutecero revela quais satildeo os requisitos

para um sapiens

Ergo hic quisquis est qui moderatione et constantia quietus animo est sibique ipse placatus ut nec tabescat molestiis nec frangatur timore nec sitienter quid expetens ardeat desiderio nec alacritate futili gestiens deliquescat is est sapiens quem quaerimus is est beatus cui nihil humanarum rerum aut intolerabile ad demittendum animum aut nimis laetabile ad ecferendum uideri potest Quid enim uideatur ei magnum in rebus humanis cui aeternitas omnis totiusque mundi nota sit magnitudo Nam quid aut in studiis humanis aut in tam exigua breuitate uitae magnum sapienti uideri potest qui semper animo sic excubat ut ei nihil inprouisum accidere possit nihil inopinatum nihil omnino nouum91

Eacute entatildeo saacutebio todo o homem que eacute moderado que consegue manter uma

tranquilidade de espiacuterito vive em paz consigo mesmo sem se deixar dominar por

qualquer tipo de affectus Como explica Maria Cristina Pimentel ldquoO sapiens eacute assim

aquele que natildeo se deixa atingir pela adversidade que orienta os indiferentes no sentido

do bem que procura as virtudes e afasta os viacuteciosrdquo92 Apenas o insensato se revolta

contra o Destino e todas as acccedilotildees que aquele possa praticar por mais nobres que

aparentem ser natildeo satildeo mais do que falsas virtudes Heacutercules no Hercules Furens

revela ser o modelo de uma personagem insensata que natildeo consegue controlar as suas

emoccedilotildees

As paixotildees (πάθοι affectus) satildeo movimentos desordenados e impetuosos que

ocorrem ao niacutevel da alma satildeo corpos que nela se manifestam e que satildeo contraacuterios agrave

Natureza93 lsquoPaixatildeorsquo eacute definida por Zenatildeo segundo testemunha Dioacutegenes Laeacutercio do

seguinte modo ἔστι δὲ αὐτὸ τὸ πάθος κατὰ Ζήνωνα ἡ ἄλογος καὶ παρὰ φύσιν ψυχῆς

κίνησις ἢ ὁρμὴ πλεονάζουσα94 Ciacutecero adaptou esta definiccedilatildeo para latim ut perturbatio

sit quod πάθος ille dicit auersa a recta ratione contra naturam animi commotio

90 Cf Maria Cristina Pimentel Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de Seacuteneca 18 91 Ciacutecero Tusculanae Disputationes 41737 92 Maria Cristina Pimentel Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de Seacuteneca 19 93 Ciacutecero Tusculanae Disputationes 415 34 94 Dioacutegenes Laeacutercio 7110

29

Quidam breuius perturbationem esse adpetitum uehementiorem sed uehementiorem

eum uolunt esse qui longius discesserit a naturae constantia95

O conceito de paixatildeo assume para os estoacuteicos dois sentidos ou eacute originada por

um movimento contraacuterio agrave razatildeo ou entatildeo eacute uma tendecircncia que natildeo tem controlo (como

acontece com Heacutercules) Em ambos os casos mostra ser um sentimento que se

manifesta na alma e que se opotildee aos princiacutepios da natureza A alteraccedilatildeo que a paixatildeo

provoca na alma eacute determinada por uma perturbatio ou seja por um movimento

ldquodesordenado e doentiordquo96 que vai de encontro agrave Razatildeo

Assim consideram os estoacuteicos que tal como o corpo estaacute exposto a

adversidades exteriores que podem levaacute-lo a adoecer tambeacutem a alma pode ficar doente

e fraca As paixotildees satildeo as doenccedilas da alma e Dioacutegenes Laeacutercio sugere algumas a que a

alma fica sujeita φθονερία (inveja) ἐλεημοσύνη (misericoacuterdia) e ἔριδες (discoacuterdia)97

Entendidas como perturbationes98 elas satildeo provocadas no iacutentimo do homem e

natildeo tecircm como causa uma divindade como os autores gregos claacutessicos acreditavam

Estes julgavam que o ser humano era viacutetima das forccedilas superiores (em particular a

Necessidade99) com as quais ele natildeo poderia combater ou sequer opor-se-lhes porque

eram uma forccedila que tudo controla Assim se explicam a morte dos filhos de Heacuteracles

em Heracles e a sua proacutepria morte nas Trachiniae ou mesmo a morte de Laio e o

incesto de Eacutedipo no Oedipus Tyrannus

Os uitia (κακία) satildeo assim o resultado de uma maacute interpretaccedilatildeo de um juiacutezo

errado por parte do homem causando agitaccedilatildeo e inconstacircncia e acabam por escravizar

o proacuteprio homem Todo aquele que se deixa dominar pela mente sem controlo natildeo

consegue discernir os perigos que se avizinham

Tendo por base a ideia de que as paixotildees satildeo erros de avaliaccedilatildeo os estoacuteicos

enumeram quatro uitia primaacuterios o desgosto (λύπη) o medo (φόβος) o desejo sensual

(ἐπιθυμία) e o prazer (ἡδονή) Cada um deles tem manifestaccedilotildees fiacutesicas no ser

humano100 Na trageacutedia em anaacutelise vemos que Anfitriatildeo se deixa levar pelo medo (pela

ausecircncia do filho pela falta de seguranccedila) e pelo desgosto (sente terror pela morte dos

Heraclidas) Meacutegara pelo medo e pelo desejo Lico pelo prazer e Juno pelo desejo (o

95 Ciacutecero Tusculanae Disputationes 4611 96 Vide Joseacute Pedro Serra Pensar o Traacutegico Categorias da Trageacutedia Grega 80 97 Dioacutegenes Laeacutercio 7115 98 Vide Ciacutecero Tusculanae Disputationes 415 99 Vide G Rodis Lewis La Morale Stoiumlcienne (Paris Presses Universitaires de France 1970) 109 100 Vide Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 1066

30

oacutedio e a ira que nutre por Heacutercules faacute-la procurar incessantemente um modo de destruiacute-

-lo a deusa eacute movida ainda pela dolor por ter sido preterida por Juacutepiter)

Aleacutem disso estes quatro uitia podem ser divisiacuteveis segundo um par de binoacutemios

satildeo erros de juiacutezo em relaccedilatildeo a um tempo presente ou a um tempo futuro satildeo erros de

valor entendendo que algo eacute aparentemente bom ou mau E cada uitium tem vaacuterios

subordinados Do sentimento desgosto101 que provoca na alma uma contracccedilatildeo

irracional (συστολή) vem a piedade a inveja o ciuacuteme a rivalidade a anguacutestia a

perturbaccedilatildeo o desgosto a afliccedilatildeo e a confusatildeo O medo estaacute relacionado com uma

expectativa do mal102 e compreende a hesitaccedilatildeo a vergonha o terror o pacircnico e a

ansiedade O prazer103 que eacute um desejo irracional por algo que parece ser agradaacutevel

compreende a vaidade o regozijo com a desgraccedila alheia a voluptuosidade e a

devassidatildeo O desejo104 tido como um apetite irracional inclui o oacutedio a rivalidade a

coacutelera o amor o desejo de vinganccedila a fuacuteria105

Por oposiccedilatildeo agraves paixotildees106 os estoacuteicos tinham em conta trecircs estados emocionais

que julgavam como bons estados (εὐπάθειαι) e que eram alegria (χαρά) ndash contraacuterio do

prazer implica o contentamento a jovialidade e o bom humor prudecircncia (εὐλάβεια

cautio) ndash oposto ao temor abrange o campo o pudor e a castidade vontade (βούλησις

uoluntas) que se opotildee ao desejo e tem como manifestaccedilotildees a benevolecircncia a calma

doccedilura e afecto107

Estes estados emocionais satildeo do domiacutenio da Razatildeo por isso natildeo satildeo vistos como

uitia A vontade por exemplo contrasta com o θύμος (desejo que tem origem na alma)

e com a ἐπιθυμία (desejo do corpo em relaccedilatildeo agrave comida agrave bebida agrave libido)

Como enunciaacutemos as paixotildees satildeo movimentos irracionais provocados por juiacutezos

de valor errados o que comprova a tese da existecircncia da liberdade humana apesar de

condicionada pela acccedilatildeo do Destino que comanda tudo Na verdade os estoacuteicos

acreditam na forccedila que o Destino exerce sobre o homem mas a forma como este aceita

ou nega esta forccedila implica um acto de liberdade

101 O desgosto eacute um erro de percepccedilatildeo de algo que estaacute a decorrer no presente e eacute tido como algo mau 102 O medo corresponde a um erro de avaliaccedilatildeo que consiste em julgar que algo de futuro aconteceraacute e teraacute consequecircncias funestas 103 O prazer eacute um sentimento que aparenta ser bom e diz respeito ao momento presente 104 O desejo natildeo eacute mais do que uma aparecircncia de algo bom e que entra no domiacutenio do tempo futuro 105 Ver Ciacutecero Tusculanae Disputationes 4716 4922 106 Tendo as paixotildees origem num estado de alma contraacuterio agrave razatildeo num desequiliacutebrio emocional o seu contraacuterio tambeacutem existe isto eacute existem de igual modo affectus entendidos como bons e que pertencem ao foro da Razatildeo 107 Vide Maria Cristina Pimentel Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de Seacuteneca 21-22

31

Seacuteneca lembra a Luciacutelio a possibilidade de continuar livre mesmo quando a

Fortuna entra em guerra com o ser humano

Fortuna mecum bellum gerit non sum imperata facturus iugum non recipio immo quod maiore uirtute faciendum est excutio Non est emolliendus animus si uoluptati cessero cedendum est dolori cedendum est labori cedendum est paupertati idem sibi in me iuris esse uolet et ambitio et ira inter tot affectus distrahar immo discerpar Libertas proposita est ad hoc praemium laboratur Quae sit libertas quaeris Nulli rei seruire nulli necessitati nullis casibus fortunam in aequum deducere Quo die illam intellexero plus posse nil poterit ego illam feram cum in manu mors sit108

Eacute sob a insiacutegnia uiuere Lucili militare est109 que Seacuteneca entende esta

impassibilidade e forccedila que permitem ao saacutebio aceitar o destino mas tambeacutem defrontaacute-

-lo ndash no sentido em que nada do que a Providecircncia lhe daacute o impede de continuar

impassiacutevel de viver de acordo com a Natureza A luta passa pelo caminho da uirtus

segundo e para a qual se vive assim nada de mal poderaacute acontecer-lhe110

Este eacute o caminho que o estoacuteico pretende trilhar procurar estar em sintonia com o

soberano Bem que para Seacuteneca eacute a moral Na carta 71 diz o autor lsquosummum bonum est

quod honestum estrsquo () lsquounum bonum est quod honestum est cetera falsa et adulterina

bona suntrsquo111 O estar de acordo com este Bem implica que o saacutebio consiga suportar o

sofrimento externo sem que essa dor chegue a produzir qualquer alteraccedilatildeo no seu

iacutentimo Por outras palavras tudo o que seja tortura ou enfermidade eacute tolerado pelo

homem porque permanece impertubaacutevel112

A forma como o homem despende o seu tempo tem substancial relevo na

conduccedilatildeo da vida do sapiens e na sua formaccedilatildeo interior para alcanccedilar a uirtus Esta

preocupaccedilatildeo com a forma correcta de usar o tempo mereceu atenccedilatildeo especial por parte

de Seacuteneca natildeo apenas em obras como o De Breuitate Vitae ou o De Otio mas tambeacutem

108 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 518-9 lsquoA fortuna declarou-me guerra Eu natildeo obedeccedilo agraves suas ordens natildeo aceito o seu jugo mais pretendo mantecirc-la agrave distacircncia o que implica ainda maior coragem Natildeo posso deixar que a alma amoleccedila se fizer concessotildees ao prazer terei de fazecirc-las agrave dor ao cansaccedilo agrave pobreza a ambiccedilatildeo e a ira quereratildeo tomar conta de mim ver-me-ei dilacerado despedaccedilado entre inuacutemeras paixotildees A liberdade eacute a nossa meta eacute o preacutemio das nossas canseiras Sabes em que consiste a liberdade Em natildeo ser escravo de nada de nenhuma necessidade de nenhum acaso em lutar de igual para igual com a fortuna Se algum dia eu sentir que ela tem mais forccedila do que eu mesmo assim essa forccedila seraacute inuacutetil Nunca me deixarei vencer a morte seraacute o meu recursorsquo 109 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 965 lsquoEacute que viver Luciacutelio eacute uma miliacuteciarsquo 110 Vide Seacuteneca De Prouidentia 21 e ss 111 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 714 lsquoaquilo que se conforma com a moral () o uacutenico bem eacute aquilo que se conforma com a moral todos os outros bens satildeo falsos e impurosrsquo 112 Vide Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 715 Marco Aureacutelio Meditationes 449

32

na trageacutedia Hercules Furens Como afirma Michel Spanneut ldquoLrsquoattention au temps

constitue peut-ecirctre le point le plus original des preacuteoccupations morales de Seacutenegravequerdquo113

Partindo da ideia de que o tempo eacute um incorpoacutereo o uso que o homem dele faz pode ser

uacutetil ou nefasto Em Hercules Furens a noccedilatildeo de tempo que eacute desperdiccedilado aparece duas

vezes em tom de criacutetica Em ambas o juiacutezo eacute dirigido a Heacutercules directa e

indirectamente Nos vv 175-198 o Coro condena os homens que correm de um lado

para outro em particular os que vivem nas cidades114 partindo da generalidade dos

homens para particularizar as suas observaccedilotildees em Heacutercules Tambeacutem Anfitriatildeo reprova

o modo como o heroacutei faz uso do tempo considerando-o inconveniente Heacutercules ao

entregar-se a tarefas fuacuteteis talvez sobretudo com o desejo de gloacuteria pessoal acaba por

natildeo ter tempo nem dar qualquer atenccedilatildeo aos que efectivamente precisam da sua ajuda

do seu apoio (protinus reduci nouus paratur hostis antequam laetam domum

contingat aliud iussus ad bellum meat nec ulla requies tempus aut ullum uacat nisi

dum iubetur115) Aleacutem disso nem tem tempo para olhar para dentro de si mesmo

Eacute este tempo que eacute desperdiccedilado que Seacuteneca censura Sine proposito uagantur

quaerentes negotia nec quae destinauerunt agunt sed in quae incucurrerunt

Inconsultus illis uanusque cursus est qualis formicis per arbusta repentibus quae in

summum cacumen et inde in imum inanes aguntur His plerique similem uitam agunt

quorum non immerito quis inquietam inertiam dixerit116

Seacuteneca centra as suas criacuteticas na forma como o homem faz uso quer do tempo

presente quer do tempo futuro (ao conceber planos a longo prazo como se tivesse esse

tempo garantido) porque como lembra o filoacutesofo Nec quod futurum est meum est nec

quod fuit in puncto fugientis temporis pendeo et magni est modicum fuisse117 Sendo o

tempo o uacutenico bem que o homem possui e controla eacute seu dever saber usaacute-lo da melhor

forma possiacutevel118 A preocupaccedilatildeo desmesurada com o momento que passa Seacuteneca

rejeita-a uma vez que a considera como paixatildeo impede que o homem viva tranquilo de

113 Michel Spanneut Permanence du Stoiumlcisme de Zeacutenon agrave Malraux (Gembloux Duculot 1973) 64 114 Haacute uma niacutetida oposiccedilatildeo entre cidade e campo em que a primeira representa a confusatildeo o lugar da turba que prejudica o saacutebio e a segunda a forma de viver bem porque se estaacute em sintonia com o que a Natureza proporciona 115 Seacuteneca Hercules Furens vv 209-213 116 Seacuteneca De Tranquillitate animi 123 117 Seacuteneca Quaestiones Naturales 63210 118 Veja-se a primeira Carta de Seacuteneca a Luciacutelio cujo tema eacute o tempo O filoacutesofo exorta o amigo ndash por extensatildeo o Homem ndash a ser consciente do modo como deixa o tempo passar Incita-o a controlar e saber aproveitar cada momento que escorrega por entre os dedos natildeo no sentido epicurista mas no de aceitaccedilatildeo plena dessa passagem procurando aproveitaacute-lo o melhor possiacutevel para que natildeo constitua um obstaacuteculo agrave sua tranquilidade

33

acordo com a Natureza (esta criacutetica estaacute muito presente na primeira fala do Coro do

Hercules Furens) Assim o filoacutesofo incita o ser humano a que se torne senhor do seu

proacuteprio tempo vivendo para si Soacute o tempo eacute nosso ndash eacute a virtude sobre a qual o homem

tem pleno domiacutenio Eacute a consciecircncia viva de que o sapiens eacute dono do seu tempo que lhe

possibilita viver em pleno119 Id agamus ut nostrum omne tempus sit non erit autem

nisi prius nos nostri esse coeperimus120

A noccedilatildeo de tempoduraccedilatildeo concatena-se com a reflexatildeo sobre a meditatio

mortis no sentido de preparaccedilatildeo para a morte Como demonstrou Cristina Pimentel121

os estoacuteicos procuram compreender a morte sob muacuteltiplos aspectos

a) qual o sentido da morte em si porque existe e que sentido tem no desenrolar

da vida

b) a morte eacute um bem ou eacute um mal

c) o homem deve preparar-se para a morte (de que modo poderaacute preparar-se o

melhor possiacutevel) e natildeo temecirc-la

d) em que circunstacircncias a morte pode ser preferiacutevel agrave vida

Considerando que a morte eacute um indiferente porquanto natildeo eacute um bem nem um

mal em si tal como a proacutepria vida os filoacutesofos estoacuteicos procuram inculcar no

pensamento do ser humano a ideia de que em vez de temer a morte ele deve governar

bem a vida que lhe eacute dada Tempo Vida e Morte satildeo indiferentes que se integram na

119 Sobre a ideia de viver cada dia como se ele fosse uma vida inteira v Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 101 Aleacutem do uso de exempla para comprovar a tese de que o homem nada eacute Seacuteneca procura incentivar o homem a que natildeo fique na sombra da vida esperando o futuro para viver mas pelo contraacuterio comece hic et nunc a prestar lsquocontas com a vidarsquo cum uita paria faciamus Pouco interesse haacute em planear todo o futuro quando o homem nem sequer sabe quantas horas dias anos lhe estatildeo reservados A vida eacute insegura por isso o filoacutesofo lembra Ad Lucilium Epistulae Morales 101 4-5 Quam stultum est aetatem disponere ne crastini quidem dominum o quanta dementia est spes longas inchoantium emam aedificabo credam exigam honores geram tum deinde lassam et plenam senectutem in otium referam Omnia mihi crede etiam felicibus dubia sunt nihil sibi quisquam de futuro debet promittere id quoque quod tenetur per manus exit et ipsam quam premimus horam casus incidit Voluitur tempus rata quidem lege sed per obscurum quid autem ad me an naturae certum sit quod mihi incertum est (lsquoComo eacute estuacutepido fazer planos para uma longa vida quando natildeo se eacute sequer senhor do dia seguinte Como satildeo insensatos todos quantos formulam esperanccedilas a longo prazo hei-de comprar hei-de construir hei-de emprestar dinheiro e cobraacute-lo com juros hei-de fazer carreira na poliacutetica ndash e logo me guardarei para a vida privada quando estiver velho mas bem provido de meios Podes crer no que te digo mesmo os favorecidos da fortuna carecem de seguranccedila Ningueacutem deve fazer projectos para o futuro pois mesmo o que noacutes seguramos nos escapa das matildeos mesmo a hora que vivemos qualquer acaso a interrompe O tempo escoa-se segundo uma lei racional mas obscura para noacutes que me adianta saber que tudo se processa segundo a lei da natureza se para mim reina a incertezarsquo) 120 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 7136 lsquoFaccedilamos com que todo o nosso tempo nos pertenccedila o que soacute seraacute possiacutevel se comeccedilarmos por nos tornarmos donos de noacutes proacutepriosrsquo 121 Maria Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo Classica 23 (1999) 29-45 Todo o artigo se centra na problemaacutetica da preparaccedilatildeo para a morte sobre o suiciacutedio abonando com exempla de algumas obras entre as quais as trageacutedias Hercules Furens e Hercules Oetaeus

34

ordem natural e loacutegica do Cosmo O saacutebio porque tem consciecircncia desta inter-relaccedilatildeo

aceita-os e ao aceitaacute-los consegue viver em plena sintonia com a Natureza Mas se o

homem pode e deve ter pleno poder sobre o tempo que gasta o mesmo natildeo acontece

com a morte Ela eacute inevitaacutevel de tal modo que deve ser aceite pois eacute o fim natural da

vida na lei da Natureza tudo o que nasce tem de ter obrigatoriamente um fim A morte

natildeo eacute uma expulsatildeo brusca da vida mas antes uma saiacuteda o fim de uma peregrinaccedilatildeo

pela terra122 A vida eacute sentida natildeo como uma daacutediva permanente mas como um

empreacutestimo que quando deus achar conveniente pede ao homem que o devolva

quisquis ad uitam editur ad mortem destinatur Gaudeamus eo quod dabitur

reddamusque id cum reposcemur123

Um modo de alcanccedilar o dom da vida passa pela meditaccedilatildeo da morte Como

Seacuteneca recorda por mais estranho que pareccedila o acto de meditar em algo que o homem

soacute conheceraacute uma uacutenica vez a morte a verdade eacute que ao aprender que tem de morrer e

como deve morrer o homem liberta-se de todas as cadeias fiacutesicas e psicoloacutegicas124

Eacute poreacutem no momento em que o homem deixa de conseguir continuar a

controlar os acontecimentos segundo a Razatildeo (natildeo lhe permitindo que prossiga a via da

tranquillitas animi pela qual tanto pugna) que o suiciacutedio surge como resposta a esta

dificuldade O suiciacutedio pode tornar-se um meio de libertaccedilatildeo que permite salvaguardar a

liberdade e a dignidade do homem125 Eacute contudo o uso que se faz do suiciacutedio que pode

ser conveniente ou inconveniente De facto considera-se por um lado que soacute o saacutebio

tem direito de tomar uma decisatildeo sobre o suiciacutedio porque apenas ele tem a virtude de

conhecer e dominar o seu corpo ndash eacute um artifex uitae Jaacute o homem comum eacute facilmente

levado por paixotildees O suiciacutedio eacute por outro lado a soluccedilatildeo em momentos especiacuteficos

quando o homem fica sujeito ao poder de outro (como por exemplo quando estaacute

subordinado a um tirano) quando estaacute despojado de recursos de tal modo que natildeo lhe eacute

possiacutevel manter a sua proacutepria dignidade quando a velhice ou a doenccedila incuraacutevel o

deixam inutilizado perdendo todas as qualidades cognitivas126 quando o corpo faz da

alma sua escrava (por meio de uma ou vaacuterias paixotildees) Sendo a alma uma parte da

122 Maria Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo 30 123 Seacuteneca Consolatio ad Polybium 113 124 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 269-10 lsquoTalvez tu julgues supeacuterfluo aprender uma coisa que soacute utilizamos uma vez Mas por isso mesmo eacute que devemos meditar nela temos sempre que estudar uma coisa que natildeo podemos testar se jaacute sabemos ldquoMedita na morterdquo () Um homem que aprendeu a morrer esquece o que seja servidatildeo estaacute acima melhor dizendo estaacute fora do alcance de todo e qualquer poderrsquo 125 Vide Seacuteneca De Prouidentia 210 126 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 5835-36

35

divindade e ateacute ela podendo ascender o homem deve cuidar do corpo como se fosse um

tutor nunca se submetendo agrave vontade daquele Quando o contraacuterio se verifica ndash e a alma

se submete aos deliacuterios do corpo ndash natildeo mais teraacute domiacutenio sobre si e permaneceraacute

escrava deste127

Em todas estas circunstacircncias no entanto o homem soacute poderaacute optar pelo

suiciacutedio apoacutes uma reflexatildeo profunda e depois de ter concluiacutedo natildeo soacute que continuar a

viver eacute um obstaacuteculo agrave manutenccedilatildeo da tranquillitas animi como tambeacutem que jaacute natildeo tem

qualquer papel na vida poliacutetica ou familiar128 Como Seacuteneca sugere

Indulgendum est enim honestis adfectibus et interdum etiam si premunt causae spiritus in honorem suorum uel cum tormento reuocandus et in ipso ore retinendus est cum bono uiro uiuendum sit non quamdiu iuuat sed quamdiu oportet ille qui non uxorem non amicum tanti putat ut diutius in uita commoretur qui perseuerabit mori delicatus est Hoc quoque imperet sibi animus ubi utilitas suorum exigit nec tantum si uult mori sed si coepit intermittat et [se] suis commodet129

127 Sobre as questotildees da alma como parte de deus e para o qual regressa depois de libertada do corpo e do corpo que pode escravizar a alma se esta se deixar levar pelos caprichos corporais vide Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 9230 ss 128 Maria Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo 32-33 129 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 1043-4 lsquoHaacute que respeitar os afectos nobres Por vezes mesmo em circunstacircncias desesperadas a nossa alma prestes a exalar-se deve ser refreada retida mesmo no uacuteltimo instante por muito que isso custe se a honra dos familiares o exigir um homem de bem tem de viver natildeo enquanto lhe apraz mas enquanto a sua vida for necessaacuteria Soacute um obstinado egoiacutesta teima em morrer sem admitir que uma esposa ou um amigo lhe mereccedilam o sacrifiacutecio de prolongar um pouco mais a existecircncia Quando o interesse dos familiares o exige a alma deve impor a si mesma a vida pode ter decidido o suiciacutedio pode mesmo jaacute ter iniciado o processo pois que desista e se ponha agrave disposiccedilatildeo dos que dela precisamrsquo Este passo tem substancial importacircncia para compreensatildeo da trama das trageacutedias em estudo como voltaremos a referir em momento oportuno

36

Capiacutetulo II

HERCULES FURENS ANAacuteLISE DAS PERSONAGENS

NA TRAGEacuteDIA DE EURIacutePIDES E DE SEacuteNECA

1 Anfitriatildeo

11 caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides

Anfitriatildeo entra em cena no Proacutelogo1 comeccedilando por se apresentar como τὸν

Διὸς σύλλεκτρον2 Partindo desta circunstacircncia descreve as personagens que estatildeo

envolvidas na trageacutedia num discurso que se configura tematicamente entre um passado

afortunado e um presente que lhe eacute funesto traduzindo a perseguiccedilatildeo de Lico3

As caracteriacutesticas fiacutesicas e psicoloacutegicas que sobressaem em Anfitriatildeo satildeo

proacuteprias de um anciatildeo (εἴ τι δὴ χρὴ κἄmicrorsquo ἐν ἀνδράσιν λέγειν γέροντrsquo ἀχρεῖον4)

sensato e prudente Esta condiccedilatildeo torna a sua figura e situaccedilatildeo pateacuteticas visto que na

ausecircncia de Heacuteracles Anfitriatildeo teve de assumir o papel de guardiatildeo e protector dos

filhos e da esposa do Alcida λείπει γάρ με τοῖσδrsquo ἐν δώμασιν τροφὸν τέκνων

οἰκουρόν5 Haacute no entanto uma visiacutevel amargura neste discurso uma vez que tanto

τροφόν como οἰκουρόν6 satildeo palavras adequadas ao papel das mulheres no seu serviccedilo

domeacutestico A escolha vocabular permite acentuar a velhice (vv 41-42) e estabelecer um

contraste entre uma destreza passada perdida evocada por Meacutegara (vv 60-61) e a

realidade do presente Anfitriatildeo reconhece a sua incapacidade de defender os filhos do

Alcida vendo-se obrigado a refugiar-se com a famiacutelia heraclida junto do altar de Zeus

A sabedoria e sensatez manifesta-se pelas consideraccedilotildees que faz sobre o valor da

amizade Este eacute um tema de grande relevacircncia para a compreensatildeo da acccedilatildeo dramaacutetica 1 A acccedilatildeo dramaacutetica decorre em Tebas junto do altar de Zeus Σώτηρ e do palaacutecio de Heacuteracles Anfitriatildeo Meacutegara e os seus filhos esperam pela chegada de Heacuteracles que segundo Anfitriatildeο desceu ao Hades para capturar Ceacuterbero Natildeo haacute ainda referecircncia ao tema principal da trageacutedia a loucura de Heacuteracles Wilamowitz poreacutem sugere que o passo ῞Ηρα ὕπο κέντροις (vv 20-21) eacute jaacute um indiacutecio da loucura e dos aguilhotildees de Lissa (apud Bond 68) Em Seacuteneca o tema eacute apresentado no Acto I por Juno 2 lsquoque partilhou o leito conjugal com Zeusrsquo (v 1) Seguiu-se a traduccedilatildeo de Carlos Ferreira Santos Euriacutepides Heacuteracles Introduccedilatildeo Traduccedilatildeo e Notas (Coimbra diss de Mestrado em Literaturas Claacutessicas apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 1996) 3 Lico pretende matar a famiacutelia de Heacuteracles para que natildeo constitua uma ameaccedila ao seu governo 4 lsquoSe ainda eacute possiacutevel considerar entre os homens este velho inuacutetilrsquo (vv 41-42) 5 lsquoinstituiu guardiatildeo e protector dos seus filhosrsquo (vv 44-45) 6 Vide Bond 73

37

pois eacute um elemento que percorre toda a trageacutedia O final da ῥῆσις de Anfitriatildeo eacute um

exemplo

πάντων δὲ χρεῖοι τάσδ᾿ ἕδρας φυλάσσομεν σίτων ποτῶν ἐσθῆτος ἀστρώτῳ πέδῳ πλευρὰς τιθέντες ἐκ γὰρ ἐσφραγισμένοι δόμων καθήμεθ᾿ ἀπορίαι σωτηρίας φίλων δὲ τοὺς μὲν οὐ σαφεῖς ὁρῶ φίλους οἱ δ᾿ ὄντες ὀρθῶς ἀδύνατοι προσωφελεῖν τοιοῦτον ἀνθρώποισιν ἡ δυσπραξία∙ ἧς μήποθ᾿ ὅστις καὶ microέσως εὔνους ἐμοὶ τύχοι φίλων ἔλεγχον ἀψευδέστατον

(vv 51-59)7

Anfitriatildeo discorre sobre a verdadeira amizade que soacute eacute descoberta nas

adversidades Na situaccedilatildeo da famiacutelia heraclida os uacutenicos amigos que natildeo a

abandonaram foram os anciatildeos que constituem o Coro mas estes natildeo podem ajudaacute-la

dada a debilidade fiacutesica que a idade lhes trouxe

Meacutegara quando critica os malefiacutecios do exiacutelio expotildee a ideia de que os amigos

soacute vecircem bem os exilados no primeiro dia jaacute que depois tomam-nos como um fardo (vv

303-306) Tambeacutem Heacuteracles fica impressionado com a inexistecircncia de qualquer tipo de

auxiacutelio por parte dos amigos (vv 558-561) Podemos inferir que a primeira parte da

trageacutedia termina com uma visatildeo pessimista sobre a amizade permitindo assim

estabelecer um contraste com a parte final de Heracles com a chegada de Teseu O

aparecimento desta personagem permite criar um contraste entre Teseu e Lico e os

Tebanos uma vez que segundo Bond ldquohe exemplifies the good effective friendrdquo 8

Aleacutem das consideraccedilotildees que faz sobre a amizade Anfitriatildeo demonstra ser

sensato pelas sententiae9 que pronuncia e pelos conselhos que daacute ao confrontar-se com

Meacutegara Lico e Heacuteracles aconselha Meacutegara a ter esperanccedilas no regresso de Heacuteracles e a

permanecer calma (vv 95-106)10 alerta duas vezes Lico quanto ao uso desmedido do

7 lsquoAcolhemo-nos junto deste altar desprovidos de tudo de alimentos bebidas de vestuaacuterio com os corpos jazendo no solo nu Depois de seladas as entradas do palaacutecio permanecemos aqui sem quaisquer meios de salvaccedilatildeo Muitos dos que se diziam amigos mostram agora que o natildeo satildeo e os outros os verdadeiros amigos natildeo tecircm condiccedilotildees para nos ajudar Estas satildeo para os homens as consequecircncias da adversidade Soacute faccedilo votos para que ningueacutem (mesmo aqueles que pouco se interessam por mim) venha um dia a fazer prova real do valor da amizadersquo 8 Bond 362 9 Exemplos de γνῶμαι vv 57-59 vv 506-507 vv 511-512 10 Deste confronto com Meacutegara salientam-se o seu espiacuterito racional a sua vontade de continuar a viver enquanto lhe for possiacutevel por oposiccedilatildeo a Meacutegara que mostra um lado mais pessimista Para Carlos Santos Euriacutepides Heacuteracles Introduccedilatildeo Traduccedilatildeo e Notas 31 esta diferenccedila explica-se ldquo[por ser] fruto

38

poder lembrando-lhe que natildeo deve ser tatildeo violento para que natildeo venha tambeacutem ele a

suportar a mesma violecircncia agraves matildeos de outrem (vv 215-216 vv 707-711) sugere a

Heacuteracles que natildeo seja precipitado quando pretende vingar-se de Lico e de todos os

Tebanos que natildeo tiveram coragem de ajudar a sua famiacutelia para que natildeo tenha muitos

inimigos (vv 585-586 e vv 588-594) e aconselha-o ainda a dirigir-se ao altar da deusa

Heacutestia11 antes de matar o tirano

Anfitriatildeo tem uma posiccedilatildeo criacutetica em relaccedilatildeo a Zeus uma vez que o deus

supremo natildeo auxilia a famiacutelia de Heacuteracles Invoca-o duas vezes12 na primeira Anfitriatildeo

considera-se mais virtuoso do que Zeus uma vez que ao contraacuterio do deus natildeo

abandonou a famiacutelia na segunda invocaccedilatildeo apercebe-se de que se tornou uma

necessidade que ele proacuteprio Meacutegara e os filhos de Heacuteracles morram

A personagem Anfitriatildeo assume ainda um papel fundamental na preparaccedilatildeo do

assassiacutenio de Lico eacute ele quem prepara dolosamente a lsquoarmadilharsquo em que Lico cairaacute

Sugerindo a Heacuteracles que permaneccedila dentro do palaacutecio ateacute agrave chegada do tirano

Anfitriatildeo incita Lico a entrar no palaacutecio atraindo-o para a morte Do confronto entre os

dois salientam-se a crueldade e a violecircncia do tirano e a ironia (v 717) e ambiguidade

(v 719) do discurso de Anfitriatildeo

Por fim assume a atitude proacutepria de um pai em relaccedilatildeo a Heacuteracles defende a

honra e a heroicidade deste no ἀγών contra Lico (vv 174-205) esforccedila-se por proteger

os filhos dο heroacutei (vv 316-318) e no momento final cabe-lhe a tarefa de cremar os

cadaacuteveres dos filhos e da esposa do Alcida O uacuteltimo momento em que Anfitriatildeo estaacute

com Heacuteracles eacute densamente pateacutetico pai e filho despedem-se com um abraccedilo e com a

promessa do regresso deste para vir buscar Anfitriatildeo e levaacute-lo para Atenas lugar para

onde Heacuteracles se exila

da inexperiecircncia vivencial que reflecte afinal o papel exclusivamente confinado agraves paredes domeacutesticas a que a mulher grega tradicionalmente se encontrava votadardquo 11 Bond 216 explica que esta eacute a primeira deusa a quem Heacuteracles se dirige e honra 12 Na primeira invocaccedilatildeo entre os vv 339-347 Anfitriatildeo contesta a posiccedilatildeo do deus visto que natildeo vem em auxiacutelio da famiacutelia de Heacuteracles Para Anfitriatildeo o deus eacute mais um φίλος que lhes recusa auxiacutelio Na segunda vez em que o invoca (vv 497-513) jaacute em tom de prece pede a Zeus que os salve mas sente de que o deus natildeo os vai auxiliar καίτοι κέκλησαι πολλάκις microάτην πονῶ [lsquoDe resto tu com frequecircncia foste invocado Em vatildeo me esforceirsquo] (v 501) Ele pressente que a necessidade os obriga a morrer

39

12 caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Seacuteneca

O Anfitriatildeo de Seacuteneca eacute substancialmente diferente do de Euriacutepides Desde o

primeiro momento em que entra em cena ateacute agrave chegada de Lico natildeo sabemos que

Anfitriatildeo e a famiacutelia de Heacutercules estatildeo junto do altar de Juacutepiter Quem de tal nos

informa eacute o proacuteprio Lico quando se aproxima de Anfitriatildeo e de Meacutegara (vv 354-355)

A funccedilatildeo de guardiatildeo e protector dos filhos de Heacuteracles natildeo tem expressatildeo em Seacuteneca

assim como natildeo haacute um uacutenico lamento pela falta de amigos que possam auxiliaacute-lo na luta

contra o tirano

O discurso de Anfitriatildeo (vv 205-278)13 comeccedila por uma invocaccedilatildeo a Juacutepiter em

tom de prece Nesta inuocatio e em tom de captatio beneuolentiae roga ao deus que

ponha fim agraves suas afliccedilotildees e desgraccedilas vive atormentado pelos trabalhos a que o filho eacute

constantemente submetido desde o dia em que nasceu As primeiras criacuteticas satildeo

dirigidas principalmente a Juno visto que o oacutedio da deusa natildeo permite que Heacutercules

tenha sequer um breve momento de descanso protinus reduci nouus paratur hostis

antequam laetam domum contingat aliud iussus ad bellum meat nec ulla requies

tempus aut ullum uacat nisi dum iubetur (vv 209-213)

Este lamento inicial serve de pretexto para uma analepse onde eacute descrita a

infacircncia de Heacutercules a qual desde o iniacutecio foi marcada por tribulaccedilotildees Anfitriatildeo

recorda a aversatildeo de Juno desde o momento em que o filho dele nasceu e enumera

onze dos doze trabalhos do heroacutei omitindo o uacuteltimo14

Do nosso ponto de vista a enumeraccedilatildeo tem essencialmente trecircs objectivos

a) revelar a forccedila extraordinaacuteria do Alcida que ainda receacutem-nascido

estrangulou duas serpentes (vv 216-222)

13 Nem todos os editores atribuem estes versos a Anfitriatildeo Herrmann por exemplo atribui-os a Meacutegara (vv 205-308) Viansino Giardina e Fitch (1 e 2) atribuem os vv 205-278 a Anfitriatildeo e os vv 279-308 a Meacutegara Os argumentos que Fitch (1) 186 aponta satildeo ldquoIn 279ff which certainly belong to Megara there is a new and somewhat unbalanced emphasis on uis Herculea This change of tone suggests a change of speaker and the vocative coniunx in 279 is appropriate to such a change () 205-308 is modeled in part on two pairs of speeches by Amphitryon and Megara in Eur[ipides] Heracles As Sen[eneca] combines the Euripidean Amphitryonrsquos prologue speech with the same characterrsquos prayer to Zeus it seems that he intends the result (ie 205 ff) to be spoken by Amphitryon Some elements in 205-78 suit Amphitryon better than Megara The complaint about lack of security and requies (206-13) is repeated in Amphitryonrsquos speeches at 925f and 1252-57rdquo 14 Anfitriatildeo omite a descida aos Infernos Em Euriacutepides no proacutelogo a personagem homoacutenima alude apenas agrave descida ao Hades para explicar a ausecircncia do heroacutei e soacute descreve alguns dos trabalhos do seu filho no ἀγών contra Lico

40

b) sem elogiar as faccedilanhas de Heacutercules Anfitriatildeo critica a falta de descanso a

privaccedilatildeo de secura quies e a ausecircncia de seguranccedila por parte da famiacutelia resultando na

instabilidade emocional de Anfitriatildeo15 de Meacutegara e do proacuteprio heroacutei

c) tornar evidente o contraste entre o que Heacutercules fez e o que acontece no

presente apesar de ter libertado a terra do jugo de monstros ela encontra-se manchada

pelo crime da conquista do poder por meios violentos e iniacutequos Tudo o que Heacutercules

fez foi em vatildeo (vv 249-251)

A referecircncia ao crime da usurpaccedilatildeo do poder eacute uma alusatildeo agrave tirania Partindo do

geral (v 251 prosperum felix scelus) chega-se ao particular ndash Tebas Creonte Lico e as

dificuldades pelas quais Anfitriatildeo estaacute a passar A forma como esta personagem constroacutei

o raciociacutenio descrevendo os malefiacutecios da tirania indo agrave origem da cidade de Tebas

difere do modo como em Euriacutepides Anfitriatildeo discorre sobre os seus infortuacutenios no

proacutelogo a narraccedilatildeo junta elementos de um passado afortunado que contrasta com outros

de um presente odioso uma vez que Heacuteracles estaacute ausente da cidade Em Seacuteneca

Anfitriatildeo ao dar as primeiras impressotildees sobre Lico antecipa a entrada do tirano

permitindo ao leitor ter dele uma primeira imagem

O seu confronto com Lico e a forma como estaacute estruturado o diaacutelogo entre o

tirano e Anfitriatildeo satildeo diferentes nos dois autores bem como o objectivo que os norteia

Seacuteneca recupera o toacutepico da duacutevida de Lico em relaccedilatildeo agrave ascendecircncia divina de

Heacutercules Em ambos os autores o tirano potildee em causa a heroicidade do Alcida e o seu

regresso do mundo inferior Em Seacuteneca estes satildeo os temas-nuacutecleo que geram o conflito

de argumentos entre Lico e Anfitriatildeo Sendo a intenccedilatildeo do tirano a de se casar com

Meacutegara este pretende acabar com qualquer esperanccedila por parte dos Heraclidas no

regresso do heroacutei Jaacute em Euriacutepides o motivo eacute o de provar que Anfitriatildeo Meacutegara e os

filhos desta natildeo seratildeo salvos pelo heroacutei Para Lico Heacutercules eacute cobarde porque usa o

arco como arma A discussatildeo entre o tirano e Anfitriatildeo centra-se na utilizaccedilatildeo desta

arma e nas implicaccedilotildees que o seu uso tem numa batalha16

Diferem ainda as duas trageacutedias na forma como eacute preparada a morte de Lico e

como eacute descrito todo o processo de loucura de Heacutercules bem como no modo como o

15 Vive atormentado por graues aerumnae (cf v 206) de tal modo que nulla lux umquam mihi secura fulsit finis alterius mali gradus est futuri (vv 207-209) 16 Fitch (1) 184 justifica a diferenccedila entre os dois autores ldquothe argument in Euripides is primarily concerned with the rights and wrongs of using a bow as H[ercules] does in preference to a spear ndash a question that would have had little interest for an audience in the first century AD In Seneca the focus is rather on the question of H[ercules]rsquos divine paternity and his prospect of eventual deificationrdquo

41

heroacutei descobre a autoria do morticiacutenio Em Seacuteneca Anfitriatildeo natildeo eacute cuacutemplice no

assassiacutenio de Lico antes fica em palco com Teseu ouvindo as descriccedilotildees que este faz do

mundo inferior e das proezas do filho enquanto Heacutercules sai de cena para matar o

tirano Ao contraacuterio do que acontece na trageacutedia euripidiana Heacutercules dispensa

qualquer auxiacutelio incluindo o de Teseu o que mostra por um lado a obsessatildeo do heroacutei ndash

se ainda existe alguma ameaccedila ou de um tirano ou de um monstro eacute seu dever exclusivo

destruiacute-los ndash por outro a megalomania que adveacutem do seu sentimento de auto-

-suficiecircncia Por este motivo natildeo eacute de estranhar que a funccedilatildeo de conselheiro natildeo resulte

tatildeo bem em Seacuteneca quanto em Euriacutepides

Na trageacutedia grega Heacuteracles ouve os conselhos do pai e procura segui-los

porque os toma como saacutebios (vide supra) enquanto em Seacuteneca Heacutercules responde

sempre aos conselhos de Anfitriatildeo com a demonstraccedilatildeo de excessiva confianccedila que

deposita em si mesmo A sua soberba eacute clara Heacutercules confia apenas no poder da sua

manus julgando natildeo necessitar de conselhos dos outros No IV Acto por exemplo

Anfitriatildeo recomenda ao filho que purifique as matildeos sujas de sangue antes de iniciar as

libaccedilotildees Heacutercules replica com violecircncia e excesso (vv 920-924) demonstrando uma

crescente fuacuteria Em resposta Anfitriatildeo sugere-lhe que dirija preces a Juacutepiter pedindo-lhe

otium quiesque (vv 925-926) para os seus espiacuteritos fatigados (fessi v 926) Eacute manifesta

a necessidade que o anciatildeo sente de ter uma vida mais tranquila uma vez que natildeo

consegue permanecer imperturbaacutevel e de poder gozar da companhia do seu filho

sempre afastado continuamente a lutar contra monstros Esta acircnsia por uma vida mais

serena anuncia um espiacuterito que natildeo eacute impassiacutevel ao sofrimento mas eacute arrastado pelas

emoccedilotildees Mas uma vez mais os seus conselhos satildeo desprezados Heacutercules natildeo quer

esse otium e o seu estado de euforia atinge o limiar da loucura

Anfitriatildeo enumera as transformaccedilotildees fiacutesicas que antecedem17 a loucura de

Heacutercules narrando as suas consequecircncias a morte dos filhos e de Meacutegara18 O anciatildeo

vai ainda acompanhando as falas de Heacutercules isto eacute enquanto este descreve o que vecirc e

o que vai fazer Anfitriatildeo contrapotildee narrando aquilo que estaacute a acontecer na realidade

possibilitando ao leitor a visatildeo de dois mundos diferentes mas que se cruzam19 o

imaginaacuterio e o real Este ldquocruzamentordquo de realidades permite ter uma noccedilatildeo do

17 No final descreve tambeacutem a forma como Heacutercules adormece esgotado 18 Note-se que Anfitriatildeo soacute fala da sua velhice e consequentemente da sua impotecircncia para ajudar a famiacutelia no momento em que Heacutercules matou a mulher e os filhos cernere hoc audes nimis uiuax senectus (vv 1026-1027) 19 Pode-se dizer que eacute do cruzamento dessas duas realidades que resulta a morte das crianccedilas e de Meacutegara

42

desequiliacutebrio mental do protagonista e ter uma perspectiva do que lhe vai no acircnimo (o

que natildeo acontece em Euriacutepides uma vez que eacute o Mensageiro que relata aquilo que

observa de fora)

Em Heracles Anfitriatildeo receia aproximar-se do filho quando este acorda porque

desconhece se o espiacuterito dele ainda estaacute possuiacutedo ou se jaacute voltou ao normal teme que o

filho cometa um crime maior o parriciacutedio (vv 1081-1086) Em Seacuteneca Anfitriatildeo

procura a morte Mal Heacutercules acabara de matar Meacutegara Anfitriatildeo vai ao seu encontro

O terror o luctus (v 1027) e a sensaccedilatildeo de impotecircncia invadem o anciatildeo Anfitriatildeo

assistiu agrave morte cruel de cada um dos filhos do heroacutei e agrave de Meacutegara Julga que nada

mais lhe resta a natildeo ser morrer mors parata (v 1028) A morte surge a Anfitriatildeo como

uma forma de libertaccedilatildeo de um poder mais forte e da anguacutestia a que se vecirc submetido

Contudo eacute-lhe negada essa possibilidade Heacutercules adormece exausto pelos scelera que

cometeu e o seu pai escapa O mesmo eacute dizer que Anfitriatildeo natildeo pode morrer porque se

Heacutercules o matasse seria mais um scelus (v 1034) e quando Anfitriatildeo procura a morte

demonstra estar tomado pelos affectus ndash o Coro20 apercebe-se da sua atitude demente

quando o interpela Quo pergis amens (v 1033) Esta seria uma morte condenaacutevel

pelos estoacuteicos visto que eacute motivada por uma paixatildeo suacutebita e natildeo reflexo de uma

maturada reflexatildeo

No final da trageacutedia vendo que natildeo consegue dissuadir Heacutercules de se suicidar

Anfitriatildeo ameaccedila-o aut uiuis aut occidis (v 1308) Este eacute o uacuteltimo e uacutenico argumento

que trava o iacutempeto de Heacutercules de querer morrer

Note-se finalmente que Seacuteneca recupera alguns traccedilos que Euriacutepides o seu

modelo delineia na personagem o de defensor e conselheiro de Heacutercules Em ambos os

autores as personagens sentem-se oprimidas pela usurpaccedilatildeo do poder de Creonte por

parte de Lico A esperanccedila que em Heracles Anfitriatildeo manifesta no regresso do Alcida

estaacute tambeacutem presente em Hercules Furens e em ambos os casos a personagem

incentiva Meacutegara a acreditar no retorno do marido No entanto no caso de Hercules

Furens a spes do anciatildeo natildeo lhe permite que permaneccedila sereno perante a adversidade

20 Viansino Giardina e Herrmann atribuem estes versos a Teseu Fitch (1) 385 poreacutem remete para o Coro justificando a escolha ldquoThe only satisfactory solution is to give the present lines to the Chorus an attribuition found in M and perhaps in an ancestor of the Etruscus Indeed the timid tone of the lines suits the Chorus better than Theseus As H does not reappear onstage until 1035 () this attribution is consistent with the Senecan practice of occasionally using the Chorus in dialogue when no alternative interlocutor is available ie when there is only one speaking character onstagerdquo

43

antes suplica a Heacutercules que regresse adsis sospes et remees precor tandemque uenias

uictor ad uictam domum (vv 277-278)

A forma como Anfitriatildeo eacute apresentado nos dois tragedioacutegrafos eacute assim diacutespar

Em Euriacutepides ele parece ser mais racional e sensato Em Seacuteneca deparamos com uma

personagem que se deixa levar pelo medo e pela preocupaccedilatildeo com a seguranccedila de

Heacutercules Anfitriatildeo natildeo tem uma vida serena porque semper aut dubium mare aut

monstra timui (vv 1253-1254) Em termos estoacuteicos Anfitriatildeo natildeo se enquadra nas

caracteriacutesticas do sapiens uma vez que eacute movido pelo metus (ausecircncia de Heacutercules)

pela aegritudo (morte da famiacutelia) e pela spes (regresso do filho)

Apesar disso Anfitriatildeo tem poder de reflexatildeo e criacutetica que eacute muito mais

acentuado em Seacuteneca do que em Euriacutepides Dos seus discursos sobressaem censuras agrave

ausecircncia de Heacutercules agrave tirania agrave proacutepria cidade de Tebas que gerou muitos filhos de

origem divina21 Natildeo tem poreacutem um papel tatildeo activo (em Euriacutepides vimos que

Anfitriatildeo auxilia Heacuteracles a preparar o assassiacutenio de Lico em Seacuteneca o seu papel limita-

se agrave observaccedilatildeo e criacutetica) Esta mudanccedila prende-se com o proacuteprio ritmo da acccedilatildeo Ao

dar mais importacircncia aos monoacutelogos e aos debates entre as personagens a acccedilatildeo de

Hercules Furens eacute mais lenta Em compensaccedilatildeo eacute mais rica em auto-anaacutelises reflexotildees

sobre questotildees pertinentes como a concepccedilatildeo da uirtus do protagonista e do tirano

2 Meacutegara

21 caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides

A Meacutegara de Euriacutepides entra em cena no proacutelogo No seu diaacutelogo com Anfitriatildeo

(vv 60-106) daacute sinais de ser uma personagem marcadamente pessimista Transtornada

pela mudanccedila repentina da fortuna ndash Meacutegara a filha do rei de Tebas Creonte e casada

com Heacuteracles o melhor dos heroacuteis perde o pai assassinado por Lico que pretende

igualmente mataacute-la juntamente com os seus filhos e com Anfitriatildeo (vv 38-43) ndash ela

pressente que a morte estaacute proacutexima (vv 69-71) Natildeo acredita na possibilidade de se

salvar nem ela nem a sua famiacutelia porque natildeo tem esperanccedilas no regresso de Heacuteracles

21 Nesta alusatildeo feita por Anfitriatildeo agrave proveniecircncia divina de alguns heroacuteis que habitaram em Tebas pode estar impliacutecita a proveniecircncia divina de Heacutercules

44

(julga que ele ficou preso no mundo subterracircneo ou morreu) nem na ajuda de amigos

(vv 80-86)

O seu discurso eacute intensamente pateacutetico quando fala dos filhos assumindo uma

atitude maternal e protectora demonstra o cuidado em proteger as crianccedilas qual ave

que cobre os filhos com as asas (vv71-72) no iniacutecio do segundo episoacutedio despede-se

de cada um deles lembrando-se dos planos que Heacuteracles e ela haviam feito para o

futuro dos filhos (vv 456-489) procura salvar uma das crianccedilas que Heacuteracles ainda natildeo

assassinara no momento da sua loucura e morre tentando protegecirc-lo (vv 996-1000)

Como explica Bond ldquoshe has more time for pathos and paints an effective little picture

of herself dealing with the childish questions of her sons (71-9)rdquo22

Meacutegara revela poreacutem forccedila de espiacuterito quando defronta Lico mostrando-se

corajosa e audaz perante o tirano Sob a perspectiva de morrer consumida pelo fogo

junto do altar de Zeus e com a sua famiacutelia Meacutegara aconselha Anfitriatildeo a aceitar a

decisatildeo de Lico e a morrerem pelo menos com dignidade prefere deixar de viver com

honra do que ver os seus inimigos a rirem-se do seu infortuacutenio23 A necessidade de

preservar o κλέος da famiacutelia deve-se natildeo soacute agrave antiga reputaccedilatildeo de Anfitriatildeo enquanto

guerreiro mas tambeacutem ao facto de Heacuteracles ser glorioso (vv 288-292) desse modo

poderaacute preservar o seu bom nome de esposa do Alcida Esta honra pela qual pugna

aproxima-a assim dos heroacuteis claacutessicos

Jaacute no segundo episoacutedio no momento em que sai do palaacutecio para se render a

Lico Meacutegara invoca Heacuteracles para que ele apareccedila mesmo como sombra24 para salvar

a sua famiacutelia (vv 490-496) naquele derradeiro momento Ela nunca pede auxiacutelio a um

deus ao contraacuterio de Anfitriatildeo que dirige os seus votos a Zeus (vv 497-500) E quando

Heacuteracles entra em cena e se aproxima deles Meacutegara compara-o a Zeus no sentido em

que o poder de Heacuteracles de salvar os seus amigos vale tanto quanto o do proacuteprio deus

22 Bond 77 23 Esta ideia de ser motivo de riso para os seus inimigos (neste caso para Lico) vem no seguimento da ameaccedila do tirano de queimaacute-la viva juntamente com Anfitriatildeo e os filhos de Heacuteracles 24 Bond 191-192 recorda que a estrutura deste discurso ndash invocando a presenccedila do heroacutei ou pedindo-lhe ajuda ndash eacute comum em algumas trageacutedias em Eacutesquilo Pers 633-680 e 305-509 (dirigido a Dario) Soacutefocles El 1066-1081 Euriacutepides Or 1225-1242 e na El 677-684 (invocaccedilatildeo a Agammeacutemnon) A estrutura eacute declaraccedilatildeo de que vai comunicar algo (dirige as suas suacuteplicas a Heacuteracles vv 490-491) depois a mensagem propriamente dita (explica a situaccedilatildeo presente vv 492-493) de seguida imperativos (ordena-lhe que os salve e que apareccedila mesmo como sombra v 494) finalmente sarcasmo (provoca Heacuteracles vv 495-496)

45

(vv 519-521) Neste caso parece-nos que Meacutegara incorre na ὕβρις25 Assim a morte

desta personagem seria um castigo pelo seu desprezo pelos deuses

Quando Heacuteracles regressa o discurso de Meacutegara eacute novamente pateacutetico Sentindo

uma reviravolta na fortuna da famiacutelia das trevas para a luz ela mal deixa Anfitriatildeo

responder agrave pergunta de Heacuteracles (v 533) sendo ela quem contextualiza a situaccedilatildeo

familiar a morte iminente dos Heraclidas (vv 534 ss) Depois dessa breve informaccedilatildeo

Meacutegara torna-se uma personagem muda e natildeo aparece mais em palco O diaacutelogo

desenrola-se entre Anfitriatildeo e Heacuteracles que planeiam matar Lico Heacuteracles ainda alude

agrave esposa no momento em que vai entrar no palaacutecio dando a indicaccedilatildeo de que ela estaacute a

tremer No entanto como explica Bond ldquoEuripides and the audience have lost interest

in Megara and she has become a conventional timid wife γυνὴ δὲ θῆλυ κἀπὶ δακρύοις

ἔφυrdquo26

22 caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Seacuteneca

Em Seacuteneca a personagem oscila entre o bom senso (procurando manter

fidelidade castidade e liberdade) e estados passionais como o odium (vv 379 e ss) a

ira o furor (vv 495-500) a impotentia (cf vv 350-351) e a dementia (cf v 429)

Na sua fala nos versos 279-308 Meacutegara mostra ter uma atitude excessiva27

revelando um acircnimo perturbado e tomado pelas emoccedilotildees Na invocaccedilatildeo a Heacutercules ao

incitar o heroacutei ausente a quebrar todas as barreiras visiacuteveis e invisiacuteveis para poder

regressar a casa Meacutegara manifesta um estado eufoacuterico que parece acalmar entre os

versos 296-298 No entanto a pergunta retoacuterica (vv 296-298) que exprime uma dor

pela longa ausecircncia de Heacutercules desencadeia um novo impulso Em nove versos ela

volta a ter um discurso pautado por grande densidade emocional A anaacutefora tibi em

gradaccedilatildeo descendente (invoca primeiro Juacutepiter depois Ceres e os ritos misteriosos e

finalmente os misteacuterios de Elecircusis ndash vv 299-302) revela o intenso desejo de Meacutegara de

voltar a ver Heacutercules o que a leva a delirar O seu discurso entra no domiacutenio do

25 Um outro exemplo que evidencia a insolecircncia de Meacutegara eacute quando no monoacutelogo no segundo episoacutedio se queixa deixando transparecer ironia de que vem de Zeus o desejo de oferecer a Morte como noiva para os filhos de Heacuteracles (πατὴρ δὲ πατρὸς ἑστιᾷ γάμους ὅδε ndash lsquoeacute o pai do vosso pai que vos prepara o banquete nupcialrsquo v 483) 26 Bond 221 27 A fala de Meacutegara pauta-se por uma linguagem proacutexima da ὕβρις Como comenta Fitch (1) 205 ldquoThe first half of Megararsquos speech is marked by an ominous violence of language there is hubris in the phrases orbe diducto redi and erumpe rerum terminos tecum efferens and the idea of releasing the dead 291 ffrdquo

46

ἀδύνατος se o Alcida regressar uma nova idade floresceraacute traduzida na restituiccedilatildeo da

vida aos irmatildeos e ao pai rei de Tebas (vv 303-305) O desespero eacute cada vez mais

impetuoso ndash numa intensidade perceptiacutevel no pronome pessoal reflexo da segunda

pessoa do singular em poliptoto aliado agrave anaacutefora aut omnes agrave antiacutetese defende trahe e

agrave estrutura paraleliacutestica (vv 306-307 aut omnes tuo defende reditu sospes aut omnes

trahe)

Meacutegara termina o seu discurso de forma quase abrupta com uma suacutebita tomada

de consciecircncia trahes nec ullus eriget fractos deus (vv 305-308) O poliptoto trahe

trahes imprime agrave fala de Meacutegara um lado marcadamente pessimista e em simultacircneo

um pressaacutegio Heacutercules iraacute realmente arrastaacute-la para a morte

Meacutegara eacute caracterizada directamente por outras personagens28 vindo a primeira

referecircncia da parte do Coro o qual comenta quando a personagem entra em cena com

Anfitriatildeo que ela vem maesta () crine soluto (v 202) Esta indicaccedilatildeo daacute uma primeira

imagem de um animus perturbado Anfitriatildeo a par do elogio inicial (vv 309-310 casta

fide seruans torum natosque magnanimi Herculis) incita-a a abandonar o estado de

prostraccedilatildeo e desacircnimo pelos quais ela se deixou dominar e a confiar no retorno de

Heacutercules meliora mente concipe atque animum excita (v 311) ateacute porque o medo

oprime a alma natildeo permitindo aos que estatildeo submetidos a este affectus viver em

tranquilidade e o receio leva a que pensem sempre no pior afundando-se cada vez mais

no abismo do desespero Immo quod metuunt nimis numquam moueri posse nec tolli

putant prona est timoris semper in peius fides (vv 314-316) Com esta sententia

Anfitriatildeo inclui implicitamente Meacutegara no nuacutemero dos que satildeo levados pelo metus (cf

v 314) e pelo timor (cf v 316)

Lico descreve assim a figura de Meacutegara tristi () obtentu (v 355) O seu

aspecto fiacutesico espelha o seu proacuteprio acircnimo Meacutegara natildeo consegue controlar as emoccedilotildees

de tal forma que elas se tornaram fisicamente visiacuteveis Mas de uma face triste passa a

um estado de espiacuterito violento quando entra em conflito com Lico o qual para

assegurar o seu poder (vv 341-342) pretende obrigar Meacutegara a casar-se com ele

Reconhecendo nela um animus impotens e pertinax (cf v 350) o tirano ameaccedila matar a

famiacutelia de Heacutercules caso ela natildeo o aceite por esposo Meacutegara reage com trux uultus (cf

v 371) e efferata uox e rabida (cf v 397) agraves propostas de Lico Jamais poderia unir-se

28 Carlos Reis e Ana Cristina M Lopes Dicionaacuterio de Narratologia (7ordf ed Coimbra Almedina 2000) sv Caracterizaccedilatildeo Chris Baldick The Concise Oxford Dictionary of Literary Terms (Oxford Oxford University Press 2004) sv characterization

47

a um homem que tem as matildeos maculadas pelo sangue da sua famiacutelia (vv 372-373)

Para tornar claro a Lico a impossibilidade dessa uniatildeo Meacutegara exprime-se por meio de

adynata reforccedilando essa ideia com verbos no futuro do indicativo a aliteraccedilatildeo Scylla

Siculum e a anaacutefora de prius

a) prius extinguet ortus referet occasus diem (vv 373-374)

b) pax ante fida niuibus et flammis erit (v 375)

c) et Scylla Siculum iunget Ausonio latus (v 376)

d) priusque multo uicibus alternis fugax Euripus unda stabit Euboica piger (vv

377-378)

Aleacutem disso Lico tirou-lhe tudo quando usurpou o trono a Creonte Ela perdeu o

pater os regna os germani o lar a patria (cf vv 379-380) A enumeraccedilatildeo acentuada

pelo assiacutendeto pela figura etimoloacutegica e pelo homeoptoto concorre para acentuar a

desgraccedila de Meacutegara e a crueldade do tirano Quid ultra est (v 380) eacute a pergunta que

ela faz a si proacutepria Apenas uma coisa lhe resta e que lhe eacute mais cara do que fratre ac

patre regno ac lare (v 381) o odium Meacutegara quando se apercebe de que ainda lhe

resta algo depois de ter perdido tudo volta a referir-se ao pai aos irmatildeos aos lares e ao

reino Mas agora apresenta-os em pares ligados por uma conjunccedilatildeo coordenativa fratre

ac parente () regno ac lare (v 381) e em estrutura quiaacutestica com os antecedentes (v

379) marcados pela uariatio a) patrem regna germanos larem b) fratre ac parente

regno ac lare O assiacutendeto no v 379 marca a rapidez e a crueldade com que Lico

matou a famiacutelia de Meacutegara acentuando o oacutedio que a move porque una res superest

mihi (v 380) ndash tudo concorre para este affectus que ela sente por Lico mas que ainda

assim tem que dividir com o povo de Tebas restando-lhe uma pequena parte (vv 382-

383)

Lico imoderado volta a insistir na ideia de partilhar com ela o reino

recentemente conquistado unindo assim os leitos nupciais (tori cf v 413) Essa sua

vontade deve-se ao animus magnus de Meacutegara (cf v 412) para suportar ruinae (cf v

412) que o cativa

A insistecircncia de Lico provoca em Meacutegara uma reacccedilatildeo psicossomaacutetica29

Gelidus per artus uadit exsangues tremor (v 414) A semacircntica do verbo uado (aqui

29Eacute frequente nas trageacutedias de Seacuteneca a ocorrecircncia de manifestaccedilotildees psicossomaacuteticas nas personagens Por meio desta teacutecnica o filoacutesofo mostra agrave boa maneira estoacuteica as reacccedilotildees fiacutesicas que as perturbaccedilotildees da alma provocam Na Carta 1065 Seacuteneca lembra a Luciacutelio que as paixotildees tambeacutem satildeo corpos e como tal provocam alteraccedilotildees no rosto lsquoa coacutelera o amor a tristeza () enrugam[-nos] a testa alongam[-nos] a face tornam[-nos] a cara encarniccedilada ou fazem[-nos] ficar sem pinga de sanguerdquo

48

com um sentido de rapidez30) eacute salientada por uma estrutura quiaacutestica (gelidus ndash tremor

per artus ndash exsangues) sublinhando o sentimento de horror que percorre os membros de

Meacutegara Para ela esta proposta natildeo eacute senatildeo uma nova acccedilatildeo iacutempia (facinus v 415) que

lhe provoca terror ao contraacuterio do que sentiu quando a cidade foi tomada pelo fragor

beacutelico (vv 415-417) Se naquele momento permaneceu intrepida (cf v 417) agora

sente que vai perder a sua liberdade Prefere que as cadeias lhe desgastem o corpo ou

que uma fome prolongada a consuma morrendo lentamente do que partilhar o taacutelamo

com o tirano (thalamos tremesco v 418) A morte surge-lhe como o uacutenico meio de

permanecer livre e de manter a sua fides a Heacutercules moriar Alcide tua (v 421)

Nenhuma ameaccedila de Lico a demove porque Cogi qui potest nescit mori (v 426) ndash o

quiasmo da sententia reforccedila o seu desejo violento de deixar de viver Neste sentido a

morte como forma de libertaccedilatildeo de um poder superior ganha expressatildeo nas palavras de

Meacutegara e vai ldquoao encontro da perspectiva estoacuteicardquo31

Em Euriacutepides ao inveacutes natildeo haacute um confronto entre Meacutegara e Lico apenas entre

o tirano e Anfitriatildeo Meacutegara dirige-se ao soberano uma uacutenica vez para lhe pedir que lhe

abra a porta do palaacutecio a fim de ela e os filhos poderem vestir uma roupa fuacutenebre (vv

327-331)

Assim numa perspectiva comparativa vemos que a Meacutegara de Euriacutepides eacute

diferente da de Seacuteneca ateacute pelo nuacutemero de versos a ela dedicados em Heracles o total

de versos correspondentes agrave fala de Meacutegara eacute de 146 vv em Seacuteneca de 90 vv (56 vv)

Aleacutem disso em Euriacutepides Meacutegara entra em cena no proacutelogo e desaparece no terceiro

episoacutedio para natildeo mais regressar em Seacuteneca a personagem surge nos Actos II III e

IV Neste uacuteltimo fala apenas uma vez em dois versos e meio precisamente no

momento que antecede a sua morte tentando fazer-se reconhecer por Heacutercules Esta

diferenccedila eacute significativa indicando que a niacutevel de conteuacutedo os poetas exploraram a

figura feminina de modo desigual

Do ponto de vista estrutural comparando o Proacutelogo do Heracles (vv 1-106)

com os vv 205-331 do Acto II do Hercules Furens vemos que

a) Anfitriatildeo refere a ausecircncia do Alcida e alude agrave situaccedilatildeo de Tebas governada

sob tirania Em Euriacutepides como explica Fitch ldquo[Amphitryonrsquos first speech] is an

30 cf Ernout-Meillet sv uado 31 Vide Maria Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas trageacutedias de Seacutenecardquo Classica Boletim de Pedagogia e Cultura 23 (1999) 37

49

expository prologue speech outside the action of the playrdquo32 Jaacute em Seacuteneca parece

haver um tom que se aproxima mais de uma queixa do que uma contextualizaccedilatildeo da

acccedilatildeo dramaacutetica

b) Em Euriacutepides depois da exposiccedilatildeo de Anfitriatildeo Meacutegara fala num passado

afortunado em contraste com um presente doloroso Em Seacuteneca apesar de Anfitriatildeo e

Meacutegara entrarem ao mesmo tempo em cena33 natildeo estabelecem um diaacutelogo de imediato

cada um dirige as suas preces expondo os seus dramas interiores Natildeo haacute por assim

dizer um elemento que permita ligar a fala de Anfitriatildeo (vv 205-278) ndash iniciada pela

apoacutestrofe a Juacutepiter designado como forma de o engrandecer e de alcanccedilar dele

beneuolentia por pronominaccedilatildeo O magne Olympi rector et mundi arbiter (v 205) ndash agrave

de Meacutegara (vv 279-308) que invoca o marido Emerge coniunx (v 279) Eacute apenas

depois de Meacutegara expor o seu desespero (um uitium que a personagem natildeo consegue

controlar) que se segue o diaacutelogo entre as duas personagens34

A diferenccedila entre as duas trageacutedias tem que ver essencialmente com o objectivo

de Seacuteneca fazer representar a consciecircncia da personagem fazendo antever os affectus a

que as personagens estatildeo submetidas e pelos quais elas se movem Com esta teacutecnica

que tem uma funccedilatildeo propedecircutica o filoacutesofo revela as diversas formas de o homem se

deixar levar pelas passiones demonstrando o resultado catastroacutefico delas

Apesar de haver maioritariamente diferenccedilas no comportamento desta

personagem nas trageacutedias de Euriacutepides e Seacuteneca haacute uma semelhanccedila Meacutegara natildeo

acredita que o Alcida consiga regressar do mundo inferior Em ambas as trageacutedias esta

descrenccedila contrasta com a crenccedila de Anfitriatildeo de que o filho conseguiraacute voltar a Tebas

Em siacutentese a Meacutegara de Euriacutepides eacute uma personagem marcadamente pessimista

que aceita resignada a morte que Lico lhe destina Para esta o que importa eacute manter o

seu bom nome e a honra da famiacutelia (o κλέος proacuteprio dos heroacuteis) Jaacute a Meacutegara de Seacuteneca

eacute activa faz prevalecer a sua vontade mesmo que isso implique morrer ndash prefere a

liberdade ao jugo de um casamento manchado pelo scelus Contesta todos os

argumentos de Lico respondendo ora com a alusatildeo ao destino que o espera ora

prometendo ser a uacuteltima Danaide ndash atinge assim um estado de furor

32 Fitch (1) 183 33 O Coro anuncia a entrada das duas personagens Sed maesta uenit crine soluto Megara paruum comitata gregem tardusque senio graditur Alcidae parens (vv 202-204) 34 Anfitriatildeo dirige-se a Meacutegara por meio de um vocativo e uma periacutefrase O socia nostri sanguinis casta fide seruans torum natosque magnanimi Herculis (vv 309-310)

50

A sua atitude afasta Meacutegara do modelo estoacuteico dada a sua incapacidade de

permanecer imperturbaacutevel perante os avanccedilos de Lico e a sua ausecircncia de serenidade

que a torna demens (v 429)35 Recorde-se que segundo a predicaccedilatildeo estoacuteica a atitude

justa para com os inimigos era ser mitis et facilis36 numa firme contenccedilatildeo bem diferente

da violecircncia com que Meacutegara reage aos desmandos de Lico

3 Lico

31 caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides

A personagem Lico o tirano de Tebas eacute uma criaccedilatildeo de Euriacutepides37 Anfitriatildeo

(vv 26-34) faacute-lo descender de Lico38 (antigo soberano de Tebas) e de Dirce delineando

o caraacutecter do tirano logo no proacutelogo Como deacutespota eacute uma personagem violenta que se

move entre a astuacutecia e o temor Anfitriatildeo explica que Lico aproveitou a guerra civil para

usurpar o reino de Creonte matando-o (cf vv 33-34) O Coro indica que o tirano eacute um

estrangeiro e que conseguiu manter-se no governo porque οὐ γὰρ εὖ φρονεῖ πόλις

στάσει νοσοῦσα καὶ κακοῖς βουλεύμασιν οὐ γάρ ποτ᾿ ἂν σὲ δεσπότην ἐκτήσατο (vv

272-274)39

O tema da πόλις poluiacuteda corrompida pelas guerras civis torna mais legiacutetima a

noccedilatildeo de culpa por parte de Lico Segundo o Coro Lico natildeo respeita os deuses (cf v

255 ἀνόσιος) age com insolecircncia (cf v 261 ὑβρίζω v 741 ὕβρεις ὑβρίζων) e eacute um

assassino (v 755 διώλλυς) Por estes motivos merece ser castigado

35 Demens eacute uma palavra composta por prefixaccedilatildeo A semacircntica do prefixo de eacute de lsquoafastamento separaccedilatildeorsquo Algueacutem demens eacute agrave letra algueacutem que estaacute afastado ou separado da sua mens (logo do seu princiacutepio pensante do seu espiacuterito da inteligecircncia) Vide Ernout-Meillet sv mens 36 Cf Seacuteneca De Vita Beata 20 37 Bond xxviii afirma que natildeo haacute qualquer alusatildeo a esta personagem em outras fontes antes de Euriacutepides Esta personagem aparece em autores como Asclepiacuteades Higino e Seacuteneca porque seguiram o tragedioacutegrafo grego Aleacutem disso como explica Bond ldquoThe elaborate introduction of Lycus at 26 γέρων δὲ δή τις ἔστι Καδμείων λόγος ὡς ἦν πάρος Δίρκης τις εὐνήτωρ Λύκος reinforced by 38 ὁ καινὸς οὗτος τῆσδε γῆς ἄρχων Λύκος points clearly to Euripidean invention as Wilamowitz saw (ii 112) Lycus senior father (or ancestor) of this Lycus did exist independentlyrdquo 38 Lico filho de Hirieu e da ninfa Cloacutenia (numa outra versatildeo do mito tem como progenitor Ctoacutenio um dos guerreiros espartanos nascidos dos dentes de dragatildeo que tinha sido morto por Cadmo) Este Lico teria governado Tebas antes de Laio e fora destituiacutedo por Anfiacuteon e Zeto porque maltratou Antiacuteope matildee deles e sobrinha do soberano (vide Pierre Grimal Dicionaacuterio de Mitologia Grega e Romana coord da ediccedilatildeo portuguesa Victor Jabouille (3ordf ed Algeacutes Difel 1999) 280-81)39 lsquoEacute que a cidade enferma de discoacuterdia civil e maacutes resoluccedilotildees natildeo estaacute no seu perfeito juiacutezo de outro modo nunca te teria aceite como soberanorsquo

51

Nas suas intervenccedilotildees no primeiro e no terceiro episoacutedios Lico revela um

caraacutecter impulsivo40 cobarde e excessivo ndash caracteriacutesticas apontadas directamente pelas

personagens dramaacuteticas e indirectamente pelas suas acccedilotildees e reacccedilotildees Lico manifesta a

sua crueldade no modo como confronta Anfitriatildeo e Meacutegara recordando-lhes o seu

poder absoluto que se traduz na decisatildeo de querer matar a famiacutelia de Heacuteracles Como

assassinou Creonte teme que os filhos de Meacutegara possam constituir perigo para o seu

governo41 Justifica pois o seu acto como uma medida de precauccedilatildeo ἔχει δὲ τοὐmicroὸν

οὐκ ἀναίδειαν γέρον ἀλλ᾿ εὐλάβειαν∙42 (vv 165-166)

Anfitriatildeo interpreta as atitudes do soberano como actos de cobardia (δειλία cf

vv 210 235) e de excesso (vv 215-21643 707-70944 727-728) referindo a

possibilidade de ele vir a ser castigado pela sua insolecircncia Os versos 727-728 aludem

ao castigo que se avizinha Repare-se que a estrutura destes versos eacute semelhante agrave dos

vv 215-216 em ambos os casos haacute uma estrutura quiaacutestica acentuada pelo poliptoto

que converge para as palavras βία e κακός45

- βίᾳ δὲ δράσῃς μηδὲν ἢ πείσῃ βίαν46

- προσδόκα δὲ δρῶν κακῶς κακόν τι πράξειν47

Enquanto no primeiro exemplo Anfitriatildeo parece admitir a possibilidade de

Heacuteracles regressar e castigar o tirano ἀνομία χραίνων (lsquopela desobediecircncia agraves leisrsquo v

757) no segundo exemplo eacute a concretizaccedilatildeo dessa hipoacutetese uma vez que Lico eacute o

40 Lico rege-se por impulsos Natildeo admite que ningueacutem ouse confrontaacute-lo ameaccedilando castigar de modo cruel todos os que natildeo lhe obedecerem (nos vv 247-251 o tirano recorda ao Coro de anciatildeos que eles natildeo satildeo mais do que escravos nas matildeos dele) 41 O discurso de Lico eacute sarcaacutestico e impiedoso Na primeira parte numa foacutermula tiacutepica de uma captatio beneuolentiae numa sucessatildeo de perguntas retoacutericas o tirano pretende lembrar a Anfitriatildeo e a Meacutegara que ele eacute o novo rei e que natildeo haacute quaisquer esperanccedilas no regresso de Heacuteracles 42 lsquoA minha atitude oacute anciatildeo natildeo implica crueldade mas prudecircnciarsquo 43 Nos versos 215-16 Anfitriatildeo poderaacute aludir agrave vinda de Heacuteracles como vingador Esta ideia estaacute impliacutecita na palavra βία acentuada pelo poliptoto e na expressatildeo ὅταν θεῦ σοι πνεῦμα μεταβαλὸν τύχῃ (lsquoquando o sopro da divindade lanccedilar contra ti os ventos da fortunarsquo) ndash uma das caracteriacutesticas do Alcida eacute precisamente a de ser um heroacutei que castiga as acccedilotildees dos iacutempios recorrendo sempre agrave violecircncia Anfitriatildeo (vv 95-97) expressa a sua esperanccedila no regresso do filho 44 No terceiro episoacutedio quando o soberano entra em cena pela segunda e uacuteltima vez Anfitriatildeo censura de novo a forma como Lico se comporta Volta a incitaacute-lo a ser mais moderado ἃ χρῆν σε μετρίως κεἰ κρατεῖς σπουδὴν ἔχειν (v 709 lsquoEra com moderaccedilatildeo que tu sendo embora soberano te deverias preocuparrsquo) 45 Ambas as palavras remetem tambeacutem para a forma como Heacuteracles mataraacute o soberano Esta conexatildeo entre as duas estruturas permite estabelecer uma comparaccedilatildeo entre as duas personagens precisamente no modo como reagem a situaccedilotildees de perigo Ambas assumem um comportamento violento e irracional (como oportunamente veremos) 46 lsquoNatildeo recorras agrave violecircncia ou viraacutes tambeacutem a suportaacute-larsquo (v 215) Relativamente aos problemas que o segmento πείσῃ βίαν levanta vide Bond 121 47 lsquoDepois do mal que fizeste espera que algo de mal te possa acontecerrsquo (vv 727-728)

52

δυσσεβὴς ἀνήρ (v 760 lsquohomem iacutempiorsquo) que abusa do seu poder porque governa

segundo as leis do medo

No entanto aos conselhos de Anfitriatildeo para que modere a sua violecircncia a fim de

natildeo ser submetido por algueacutem igualmente cruel Lico responde com ainda mais oacutedio e

violecircncia ora incitando os seus acompanhantes a irem buscar lenha para queimar vivos

os Heraclidas que estatildeo junto do altar de Zeus ora invadindo o palaacutecio do heroacutei para

arrebatar de laacute Meacutegara e os filhos que segundo a indicaccedilatildeo de Anfitriatildeo se tinham

refugiado junto dos altares familiares Lico incorre na ὕβρις ao desrespeitar os

suplicantes (duas vezes) e por natildeo temer que os deuses o castiguem pela sua insolecircncia

Por esse motivo o tirano seraacute castigado

b) caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Seacuteneca

A origem de Lico natildeo eacute em Seacuteneca tatildeo expliacutecita ignarus exul (cf v 269) exul

Lycus (v 274) e estaacute desligada de Tebas ndash nenhum dos antepassados do tirano tem

qualquer viacutenculo agrave realeza Segundo Anfitriatildeo Lico natildeo eacute mais do que um desterrado

movido pelo desejo de chegar ao poder a qualquer preccedilo Jaacute em Euriacutepides Anfitriatildeo

indica que o tirano descendia de Lico que fora soberano de Tebas Com esta mudanccedila

Seacuteneca apresenta uma personagem voltada para as paixotildees Lico deseja ter poder

conquista-o por meio de scelera e pretende mantecirc-lo de qualquer modo (ou pelo

matrimoacutenio ou pelas armas)

Anfitriatildeo parte da imagem da cidade submetida pelo scelus por arma e pelo

timor que opprimit leges (cf vv 251 e ss) para falar da truculenta manus (cf v 254

metoniacutemia para designar Lico) que manteacutem a cidade sob um jugo infame (v 267

sordido premitur iugo) Estas alusotildees datildeo uma primeira ideia do crime e do caraacutecter

violento de Lico (cuja identificaccedilatildeo nominal soacute eacute feita vinte e trecircs versos depois de a ele

ser feita a primeira alusatildeo dando toda a evidecircncia do seu caraacutecter perverso)

Por oposiccedilatildeo a Lico que representa o protoacutetipo de tirano que usa saeuum

sceptrum (metoniacutemia para designar o poder do soberano cf v 272) Anfitriatildeo apresenta

Heacutercules como o que tem iusta manus (cf v 272) Ao lembrar a ausecircncia do heroacutei que

castiga todos os que governam as cidades de forma cruel Anfitriatildeo prenuncia o castigo

de Lico (vv 271-276)

53

Meacutegara acrescenta no momento em que o tirano entra em cena um conjunto de

caracteriacutesticas fiacutesicas que estatildeo em sintonia com a ψυχή do usurpador

saeuus ac minas uultu gerens et qualis animo est talis incessu uenit aliena dextra sceptra concutiens Lycus

(vv 329-331)

Nesta descriccedilatildeo de Meacutegara vemos que haacute uma relaccedilatildeo entre o interior do tirano

(o seu animus) e o seu aspecto fiacutesico traduzido na comparaccedilatildeo qualis animo est tali

incessu uenit ndash Lico apresenta manifestaccedilotildees visiacuteveis do uitium Ele vem saeuus minas

uultu gerens empunhando aliena sceptra Estas novas impressotildees revelam um caraacutecter

voltado para a crueldade Ateacute o modo como Lico se dirige a Meacutegara e a Anfitriatildeo eacute um

indicador de um acircnimo perturbado pela saeuitia ndash a forma concutiens (agitando) de um

verbo que expressa movimento aliada agrave assonacircncia dextra sceptra sugere a ideia de

que o tirano vem brandindo os aliena sceptra (note-se a metoniacutemia e o adjectivo

aliena que demonstram que Lico governa uma cidade que natildeo lhe pertence por direito)

com o intuito de persegui-los

O monoacutelogo48 de Lico (vv 332-357) vem abonar aquilo que foi dito por

Anfitriatildeo e Meacutegara sobre o perfil do tirano

Vrbis regens opulenta Thebanae loca et omne quidquid uberis cingit soli obliqua Phocis quidquid Ismenos rigat quidquid Cithaeron uertice excelso uidet

(vv 332-335)

Os primeiros versos anunciam o orgulho do rex reforccedilado pela iteraccedilatildeo de

quidquid ndash ele compraz-se em repetir o muito que estaacute sob o seu domiacutenio O tirano tem

de facto consciecircncia da riqueza da terra que usurpou noccedilatildeo essa manifestada nos

adjectivos que escolhe para qualificar Tebas opulenta uberis excelsus

Lico julga-se valoroso porque conquistou o reino de Tebas pelas suas proacuteprias

matildeos e natildeo por herenccedila Neste sentido o tirano ldquopretende desde logo rechaccedilar as

invectivas dos adversaacuterios contra a sua origem humilde (Her F 337-338) e contra a

48 Quando entra em cena Lico vem a falar sozinho e soacute depois de se expressar eacute que se apercebe da presenccedila de Anfitriatildeo e de Meacutegara (vv 354-357) Isto permite ter conhecimento do que vai no acircnimo do tirano e avaliar as suas intenccedilotildees (vide Fitch (1) 214)

54

instabilidade do poder da fortuna e procura a legitimaccedilatildeo para um poder baseado na

forccedila (v 340-342) e na vitoacuteria (v 399-402)rdquo49

[et bina findens Isthmos exilis freta] non uetera patriae iura possideo domus ignauus heres nobiles non sunt mihi aui nec altis inclitum titulis genus sed clara uirtus qui genus iactat suum aliena laudat

(vv 332-341)

Como explica Carla Gonccedilalves o termo nobilis ldquonatildeo tem aqui o valor de elogio

antes eacute utilizado com uma conotaccedilatildeo pejorativa porquanto Lico considera que o

enaltecimento da origem familiar eacute uma apropriaccedilatildeo iliacutecita do meacuterito alheiordquo50 A

oposiccedilatildeo que a personagem faz entre nobiles e sed clara uirtus natildeo deixa poreacutem de ter

um efeito iroacutenico uma vez que o modo como ele conseguiu chegar ao poder foi por

meio de um crime e natildeo do valor pessoal Aleacutem disso contrasta com a fala de Anfitriatildeo

alguns versos antes quando este critica a situaccedilatildeo actual da cidade prosperum ac felix

scelus uirtus uocatur ndash vv 251-252 Esta uirtus que Anfitriatildeo anuncia representa a

inversatildeo de valores que convicta e conscientemente Lico demonstra Os adjectivos

prosperum e felix e a aliteraccedilatildeo sublinham esta subversatildeo dos valores

Lico acha-se contudo no caminho certo e como tal a sua loacutegica eacute irrefragaacutevel

Todo o seu raciociacutenio eacute loacutegico e seria facilmente considerado como justo se estivesse

desligado do seu contexto Lico conclui as suas ideias com uma sententia (vv 340-341)

que mesmo do ponto de vista estoacuteico seria vaacutelida natildeo eacute o valor dos outros que faz o

nosso Deste modo Seacuteneca revela os erros de raciociacutenio a que o stultus estaacute sujeito as

premissas estatildeo erradas e o resultado ainda que seja aparentemente loacutegico natildeo pode ser

correcto

A tirania que exerce sobre a cidade eacute evidente quando diz que

rapta sed trepida manu sceptra obtinentur omnis in ferro est salus quod ciuibus tenere te inuitis scias strictus tuetur ensis

(v 341-344)

49 Francisco de Oliveira ldquoImagem do Poder na Trageacutedia de Seacutenecardquo Humanitas 51 (1999) 59 50 Carla Susana Vieira Gonccedilalves Invectiva na Trageacutedia de Seacuteneca (Coimbra Ediccedilotildees Colibri 2003) 126

55

As aliteraccedilotildees (obtinentur omnis tenere te scias strictus) acentuadas pela

conjunccedilatildeo adversativa que introduz uma correctio concorrem para evidenciar o lado

cruel de Lico que oprime a cidade e os habitantes com o ferrum e o ensis A uacutenica

soluccedilatildeo para tornar legiacutetimo o seu poder eacute unir-se a Meacutegara pelo matrimoacutenio51 ou se ela

negar matar a famiacutelia heraclida52 Nem uma possiacutevel hostilidade do povo caso Lico

opte por destruir a casa de Heacutercules o demove inuidia factum ac sermo popularis

premet ars prima regni est posse in inuidia pati (vv 352-353) O poliptoto de

inuidia reforccedilado pela aliteraccedilatildeo em p e pelo uso lapidar da sententia com que resume o

seu raciociacutenio acentua o menosprezo do tirano pela opiniatildeo do seu povo ldquoe cultiva o

oacutediordquo53

Procura entatildeo convencer Meacutegara tentando acalmar o seu acircnimo Mas se os

argumentos de Lico parecem justos e vaacutelidos visto que pretende restaurar a paz na

cidade (vv 362-369) natildeo deixam de comprovar a sua crueldade e ambiccedilatildeo pelo poder

Na verdade o tirano admite que usurpou o reino (v 399 rapta sceptra) que o seu

poder eacute absoluto (cf v 400) e que governa sine metu legum (cf c 400) porque eacute

mantido pela forccedila (v 401 arma)

A resposta de Meacutegara eacute a rejeiccedilatildeo da proposta do tirano Para ela Lico

representa o exitium (v 358) e a lues (v 358) Estes substantivos demonstram o caraacutecter

implacaacutevel do soberano Tambeacutem os adjectivos que Meacutegara escolhe para qualificar a

personalidade de Lico satildeo igualmente representativos na demonstraccedilatildeo dos seus

affectus ele eacute tumidus e de altus [spiritus] (cf v 384) Meacutegara recorda-lhe o destino

dos reges de Tebas (vv 386-395) destino esse que o espera dominare ut libet dum

solita regni fata te nostri uocent (vv 395-396)

Dado que Meacutegara pretende manter a fidelidade ao marido o tirano potildee em causa

a heroicidade de Heacutercules Em forma de controuersia Lico rebate todos os argumentos

de Anfitriatildeo que entretanto se propocircs defender o heroacutei ausente diminuindo o valor do

Alcida reduzindo-o a tudo menos um heroacutei Neste aspecto vemos a arguacutecia de Lico que

eacute posta ao serviccedilo do mal 51 Em Euriacutepides tivemos a ocasiatildeo de observar que o tirano pretendia matar a famiacutelia de Heacuteracles Se este toacutepico eacute inovaccedilatildeo de Seacuteneca ou se seguiu uma outra tradiccedilatildeo de tragedioacutegrafos poacutes-euripidianos natildeo haacute quaisquer certezas como explica Fitch (1) 184 No entanto como este autor indica ldquoit was particularly attractive to Seneca because it enabled him to show a tyrant being defied to his facerdquo (id) 52 Tal como explora Fitch (1) 216 estaacute impliacutecita a ideia de que os tiranos que governam sob as leis do medo vivem nesse mesmo medo assim como aqueles que governam por meio da forccedila sentem o seu poder instaacutevel (vide De Clem 1252-3) Mas no caso particular de Lico ele procura uma soluccedilatildeo para aplacar o oacutedio do seu povo e soacute em uacuteltimo caso eacute que pensa matar Meacutegara e a famiacutelia 53 Francisco de Oliveira ldquoImagem do Poder na Trageacutedia de Seacutenecardquo 59

56

Uma vez negadas todas as propostas e refutados os argumentos que usa (o

soberano queria Meacutegara iuncta estar sob o jugo do tirano e pretendia tecirc-la coacta ndash v

494) a Lico resta a ameaccedila de mataacute-los diante do altar queimando-os vivos (vv 501-

509) Como afirma Segurado e Campos ldquoa escolha do castigo pelo fogo obedece a um

propoacutesito niacutetido realccedilar a violecircncia e a ferocidade do tirano pela utilizaccedilatildeo do mais

completo e draacutestico meio de destruiccedilatildeordquo54

Se neste passo Seacuteneca retoma a tradiccedilatildeo do mito euripidiano nele encontramos

tambeacutem um aspecto divergente e inovador eacute que o tyrannus de Seacuteneca natildeo concede

sequer um uacuteltimo desejo a Anfitriatildeo o de ser o primeiro a morrer tal eacute a sua impia regis

feri dextra (vv 518-519)

Qui morte cunctos luere supplicium iubet nescit tyrannus esse diuersa irroga miserum ueta perire felicem iube ego dum cremandis trabibus accrescit rogus sacro regentem maria uotiuo colam (vv 511-515)

A inclemecircncia e impiedade de Lico satildeo evidentes nestes versos acentuados pela

antiacutetese miserum ndash felicem (v 513) e pelo substantivo tyrannus Anfitriatildeo acusa Lico de

ser iacutempio impiam regis feri dextram O quiasmo e o homeoptoto concorrem para fazer

sobressair o caraacutecter fero do tirano Na caracterizaccedilatildeo de Lico ao longo da peccedila eacute de

notar com o fim de sublinhar essa mesma ideia a insistecircncia em vocaacutebulos da raiz de

reg-55 que tecircm uma conotaccedilatildeo negativa Rex representava para os Romanos o mesmo

que o tyrannus grego (v 512) Desde a transiccedilatildeo para a Repuacuteblica e a deposiccedilatildeo dos

Tarquiacutenios que a palavra rex assumira implicaccedilotildees negativas56 O uso de regnum e de

todas as palavras que partilham a mesma raiz pode assim traduzir de imediato a ideia

de prepotecircncia abuso de poder regime autocraacutetico e despoacutetico Para o mesmo fim

concorre por exemplo o uso de dominare (v 384 v395) da raiz de dominus que

significa lsquosenhorrsquo por oposiccedilatildeo aos escravos Lico assume o perfil do amo sem piedade

e exige a submissatildeo de todos os seus desiacutegnios 54 J A Segurado e Campos ldquoO Simbolismo do Fogo nas Trageacutedias de Seacutenecardquo Euphrosyne 5 (1972) 191 55 Ao longo da fala de Lico encontramos recorrentes exemplos de rex e de palavras com a mesma raiz regum (v 398) rege (v 414) regi (vv 489-490) regis (v 518) regens (v 332) regnum (v 345 tambeacutem regno v 379 regna v 629) regam (v 400) regnantem (v 411) 56 David Stockton ldquoThe Founding of the Empirerdquo The Oxford History of the Roman World ed John Boardman Jasper Griffin Oswyn Murray (Oxford Oxford University Press 1991 reimpr 2001) 146-179

57

Vemos que Seacuteneca recupera alguns dos traccedilos do Lico de Euriacutepides Procedendo

ao cotejo entre ambas as trageacutedias eacute possiacutevel encontrar toacutepicos comuns Lico pretende

submeter a famiacutelia heraclida aos seus desejos assume uma posiccedilatildeo criacutetica em relaccedilatildeo ao

Alcida procurando eliminar qualquer esperanccedila que a sua famiacutelia possa ter

relativamente ao regresso do heroacutei eacute o estrangeiro que chega agrave cidade e mata o rei e os

seus filhos (agrave excepccedilatildeo de Meacutegara) tem o mesmo fim agraves matildeos de HeacuteraclesHeacutercules

As diferenccedilas existentes entre as duas trageacutedias dizem respeito ao conteuacutedo Em

Seacuteneca Lico aparece uma uacutenica vez no Acto II57 O nuacutemero de versos58 que

correspondem agrave fala desta personagem eacute contudo maior em Seacuteneca do que em

Euriacutepides Esta diferenccedila estaacute relacionada com a psicologia das proacuteprias personagens

Em Seacuteneca haacute mais espaccedilo para exteriorizar as reflexotildees e diaacutelogos Lico eacute exemplum

do tirano que eacute dominado pelo orgulho o excesso a crueldade a impietas e a

prepotecircncia Como observa Francisco de Oliveira ldquoSeacuteneca pretende condenar de forma

clara todo o poder de cariz tiracircnicordquo59

Em jeito de siacutentese vemos que a mesma personagem mereceu um tratamento

diferente nas duas trageacutedias Apesar de Seacuteneca ter retomado alguns aspectos do Lico de

Euriacutepides os quais apontaacutemos no breve estudo desta personagem a forma como

desenvolveu a sua caracterizaccedilatildeo diverge uma vez que norteia um objectivo pareneacutetico

De facto se o Lico de Euriacutepides eacute o διώλλυς (assassino) que procura matar todos os que

constituem um perigo para o seu governo ou ousam enfrentaacute-lo (caso do Coro) o de

Seacuteneca age de modo diferente por um lado parece mais comedido porque natildeo quer

recorrer agrave violecircncia senatildeo em uacuteltimo caso ndash a sua ambiccedilatildeo jaacute foi alcanccedilada necessita

apenas de asseguraacute-la por outro quando opta por agir de modo cruel eacute implacaacutevel natildeo

cede a nenhum pedido nem o trava nenhum escruacutepulo

57 Em Euriacutepides Lico aparece nos episoacutedios I e III 58 Num total de 64 versos em Euriacutepides vs 101 em Seacuteneca 59 Francisco de Oliveira ldquoImagem do Poder na Trageacutedia de Seacutenecardquo Humanitas 51 (1999) 78

58

4 Teseu

a) caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Euriacutepides

Teseu entra em cena no V Episoacutedio depois da ἀναγνώρισις do protagonista O

seu aparecimento permite estabelecer contrastes entre o solitaacuterio Heacuteracles do primeiro

acto e a sua total dependecircncia jaacute no quinto episoacutedio (vv 1397 ss) entre a

individualidade de Heacuteracles e a colectividade de Teseu Heacuteracles eacute um heroacutei auto-

suficiente ao contraacuterio de Teseu que soacute conseguiu sair do Hades com a ajuda do heroacutei

Quando soube que a famiacutelia do amigo estava a ser atormentada Teseu dirigiu-se

imediatamente para Tebas para ajudaacute-los recordando os laccedilos de amizade que os unem

(vv 1169-1171)

Teseu representa por um lado o modelo de amigo que Anfitriatildeo e Meacutegara

esperavam na primeira acccedilatildeo por outro ele eacute o verdadeiro companheiro que partilha a

mancha do crime de Heacuteracles60 ἀλλrsquo εἰ συναλγῶν γrsquo ἦλθον (1202) Teseu faz uma

apologia do valor de amizade

ὡς μὴ microύσος microὲ σῶν βάλῃ προσφθεγμάτων οὐδὲν μέλει μοι σὺν γε σοὶ πράσσειν κακῶς καὶ γάρ ποτrsquo εὐτύχησrsquo ἐκεῖσrsquo ἀνοιστέον ὅτrsquo ἐξέσωσάς μrsquo ἐς φάος νεκρῶν πάρα χάριν δὲ γηράσκουσαν ἐχθαίρω φίλων καὶ τῶν καλῶν microὲν ὅστις ἀπολαύειν θέλει συμπλεῖν δὲ τοῖς φίλοισι δυστυχοῦσιν οὔ ἀνίστασrsquo ἐκκάλυψον ἄθλιον κάρα βλέψον πρὸς ἡmicroᾶς61

(vv 1219-1227)

As aliteraccedilotildees (v 1220 microέλει μοι vv 1221-1222 κακῶς καὶ) o poliptoto (v

1219-1220 σῶν σοὶ v 1223 v 1225 φίλων φίλοισι) concorrem para sublinhar a

importacircncia que a amizade representa para Teseu eacute dever de um amigo auxiliar o outro

principalmente quando esse outro teve um papel fundamental na sua vida Recorda um

passado feliz (εὐτύχη) contrastando com a infelicidade presente (κακός) O que liga

60 Estes laccedilos afectivos recordam a amizade entre Orestes e Piacutelades (vide Euriacutepides Orestes 735) 61 lsquoSeraacute que a mancha das tuas palavras me natildeo possa afectar Natildeo me importo nada de partilhar contigo a tua infelicidade pois foi contigo que outrora fui feliz Eacute preciso remontar agravequele tempo em que tu me retiraste satildeo e salvo de entre os mortos para a luz da vida Abomino os amigos cujo reconhecimento envelhece e aqueles que querem tirar proveito dos momentos felizes mas natildeo querem compartilhar com os amigos o mesmo barco quando sopram os ventos do infortuacutenio Levanta-te descobre o teu desventurado rosto olha para mimrsquo

59

estes dois tempos eacute a amizade entre ambos Heacuteracles contribuiu para a felicidade de

Teseu este tem intenccedilatildeo de acompanhar o protagonista no seu infortuacutenio

Todo o discurso de Teseu fundamenta-se na vontade de convencer Heacuteracles a

salvar a sua vida Primeiro lembra por duas vezes que o crime de Heacuteracles natildeo pode

manchar Teseu

a) οὐ μιαίνεις θνητὸς ὢν τὰ τῶν θεῶν62 (v 1232)

b) οὐδεὶς ἀλάστωρ τοῖς φίλοις ἐκ τῶν φίλων63 (v 1234)

Pretende com estes argumentos levar Heacuteracles a descobrir a sua face e a

suportar a dor causada pelas deusas Recorrendo a perguntas retoacutericas Teseu repreende

o heroacutei por falar como um homem comum (1248) esquecendo-se da anterior coragem

do Heacuteracles que muito labutou (v 1250) e auxiliou a humanidade (v 1252) Termina o

discurso com a sentenccedila οὐκ ἄν ltσrsquogt ἀνάσχοιθrsquo lsquoΕλλὰς ἀμαθίαι θανεῖν (vv 1254)

A funccedilatildeo fundamental de Teseu eacute a de reintegrar Heacuteracles na sociedade64

Consegue resolver todos os dilemas de Heacuteracles agrave excepccedilatildeo do drama interior do

protagonista ele matou os filhos e a mulher domado pela loucura cuja causa natildeo

consegue entender

b) caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Seacuteneca

A personagem Teseu natildeo tem em Seacuteneca qualquer densidade psicoloacutegica ao

contraacuterio das restantes personagens mas estaacute dependente do Alcida Desempenha uma

dupla funccedilatildeo que se restringe no Acto III a ldquonarrador eacutepicordquo65 e no Acto V a dissuadir

Heacutercules de se suicidar Como ldquonarrador eacutepicordquo Teseu descreve as aventuras de

protagonista nos Inferni enquanto este abandona a cena para terminar o seu ldquouacuteltimo

trabalhordquo matar Lico A presenccedila eacute notada no Acto III quando Heacutercules lhe dirige a

62 lsquoSendo tu mortal nada de divino tu podes contaminarrsquo 63 lsquoNenhum geacutenio vingador passa dos amigos para os amigosrsquo 64 Tambeacutem no Orestes haacute uma procura de integraccedilatildeo do protagonista na sociedade Cabe a Apolo essa funccedilatildeo aparecendo no mecanismo deus ex machina para resolver o conflito 65 Seguimos a terminologia usada no artigo de Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos ldquoSur la typologie des personnages dans les trageacutedies de Seacutenegravequerdquo Neronia 1977 Actes du 2e Colloque de la Socieacuteteacute Internationale drsquoEacutetudes Neacuteroniennes (Clermont-Ferrand Adosa 1977) 155-176 Segundo o mesmo autor ldquonarradores eacutepicosrdquo natildeo satildeo mais do que ldquole support drsquoun discours adresseacute aux spectateurs en dehors du texte plutocirct qursquo aux personnages preacutesents agrave la scegravenerdquo (Segurado e Campos 224) Jaacute Heacutercules eacute a tiacutepica personagem-nuacutecleo uma vez que eacute para o Alcida que tudo converge

60

palavra aconselhando-o a permanecer junto da famiacutelia do protagonista enquanto ele

defronta Lico (vv 637-638)

As primeiras palavras de Teseu satildeo de consolo Para incentivar a famiacutelia

heraclida a tranquilizar-se comenta a agilidade e rapidez de Heacutercules em castigar Lico

O jogo do uso de formas do verbo dare em poliptoto apresenta uma sucessatildeo de

tempos verbais futuro (vv 643-644 dabit) presente (v 644 dat) passado (v 644

dedit) em que o futuro logo se torna presente e de imediato se cumpre (o aspecto

pontual do perfeito anula toda a duraccedilatildeo) ndash em sintonia com a repeticcedilatildeo do adjectivo

neutro lentum e com a construccedilatildeo quiaacutestica (v 644 lentum est dabit hoc [dat] est

lentum) ndash que traduzem bem a rapidez e a eficiecircncia da acccedilatildeo do heroacutei

A pedido de Anfitriatildeo (vv 646-649) Teseu segue com a narraccedilatildeo dos feitos de

Heacutercules descrevendo os Infernos Shelton sublinha que esta pausa na acccedilatildeo tem duas

funccedilotildees ldquoIt is a rhetorical showpiece to display Senecarsquos literary talents and more

importantly it provides valuable information about Herculesrsquo characterrdquo66

A descriccedilatildeo dos Inferni tem dois momentos visiacuteveis na primeira parte (vv 662-

759) descreve o espaccedilo os monstros que aiacute habitam e a funccedilatildeo que cada quaesitor

desempenha no tribunal das sombras (vv 731-734)67 Nos vv 735-736 Teseu delineia

os castigos que os criminosos recebem pelos seus crimes quod quisque fecit patitur

auctorem scelus repetit suoque premitur exemplo nocens Nestes versos agrave semelhanccedila

dos indiacutecios que o Coro vai deixando nas Odes poder-se-aacute ver uma alusatildeo ao fruto que

Heacutercules iraacute colher das suas paixotildees e dos seus erros68 Por contraste os vv 739-745

falam da beatitude de todos os que mantiveram as suas matildeos imaculadas (v 740

innocuas manus) Teseu termina estes versos com uma sententia (vv 745-747)

sanguine humano abstine quicumque regnas scelera taxantur modo maiore uestra

mostrando que todo o tirano que reine por meio do terror e do crime acabaraacute por ser

castigado da forma mais severa

66 Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 (Goumlttingen Vandenhoeck and Ruprecht 1978) 50 67 Satildeo notoacuterios ecos vergilianos em particular do Canto VI da Aeneis na forma como Seacuteneca delineia o espaccedilo do sub-mundo como por exemplo a enumeraccedilatildeo dos monstros que habitam nos primeiros corredores do Orco (vv 274-289 da Aeneis vv 689-696 de Her F) a barca mal aguenta o peso dos heroacuteis e tanto numa viagem como noutra enche-se de aacutegua (vv 413-414 da Aeneis vv 775-777 de Her F) referecircncia a Minos como presidente do tribunal das sombras (vv 432-433 da Aeneis vv 731-734 de Her F) 68 Clara-Emmanuelle Auvray Folie et Douleur dans Hercule Furieux et Hercules sur lrsquoOeta Recherches sur lrsquoexpression estheacutetique de lrsquoascegravese stoiumlcienne chez Seacutenegraveque (Frankfurt am Main Bern Nova Iorque Paris Lang 1989) 18

61

No segundo momento (vv 762-827) Teseu conta a luta entre Ceacuterbero e

Heacutercules O poeta demonstra o valor do protagonista que tudo vence primeiro

Caronte69 depois o catildeo triceacutefalo Teseu diz a Anfitriatildeo que os monstros que foram

destruiacutedos pelo heroacutei e que o proacuteprio catildeo dos Infernos sentiram medo da presenccedila do

Alcida (vv 778-793)70 Este receio pode ter duas interpretaccedilotildees a) os monstros

assustam-se com a presenccedila do protagonista porque jaacute o defrontaram Ceacuterbero tem

medo por estar habituado aos passos das sombras que habitam os Inferni ou porque

nunca viu um mortal b) este medo pode ser uma alusatildeo ao caraacutecter monstruoso de

Heacutercules

Na perspectiva de Giancotti esta narrativa perturba a economia da trageacutedia

E forse la cagione prima della disarmonia egrave da scorgere nel realistico pregiudizio che non si potesse non lasciar passare qualche tempo tra lrsquouscita drsquoErcole dalla scena per uccidere Lico e il suo ritorno A tale cagione prima si saragrave aggiunto un eccessivo indulgere di Seneca alla sua vena descrittiva e moralistica71

Para Shelton ldquoThe description of Herculesrsquo victory over Cerberus is the climax

of the scene and a high point in the tragedy because it shows Hercules at his bravest

just before he plunges to his greatest dishonorrdquo72 Jaacute Fitch tem uma interpretaccedilatildeo

diferente Em primeiro lugar compara as formas como Apolodoro e Seacuteneca

interpretaram a descida de Heacutercules aos Infernos e a luta contra Ceacuterbero Enquanto em

Apolodoro o heroacutei se dirige a Plutatildeo e lhe eacute outorgada a autorizaccedilatildeo de levar o catildeo se

conseguir vencecirc-lo (natildeo podendo socorrer-se das suas armas) em Seacuteneca Heacutercules natildeo

pede autorizaccedilatildeo mas passa logo agrave acccedilatildeo deixando os proacuteprios deuses infernais

perplexos e assustados (vv 804-806) Eacute neste sentido que Fitch afirma ldquoThis is in

69 Natildeo eacute sem violecircncia e sem rapidez que Heacutercules consegue entrar na barca de Caronte Agrave questatildeo e ordem do barqueiro ldquoquo pergis audax siste properantem gradumrdquo (v 772) o heroacutei responde com actos non passus ullas natus Alcmena moras ipso coactum nauitam conto domat scanditque puppem (vv 773-775) Em Vergiacutelio Caronte ao dirigir-se a Eneias perguntando-lhe quem eacute recorda o meio que Heacutercules usou para arrastar consigo Ceacuterbero Tartareum ille manu custodem in uincla petiuit ipsius a solio regis traxitque trementem (Aeneis 6395-396) 70 No caso de Ceacuterbero e Heacutercules a reacccedilatildeo que cada um deles provoca no seu adversaacuterio eacute de temor (vv 792-793) Quanto a Heacutercules semelhante sentimento natildeo seria de estranhar pelo modo como Teseu descreve o monstro No que se refere a Ceacuterbero o motivo que o leva a recear Heacutercules eacute incerto se por este ser mortal e estar a pisar o mundo das sombras ou se por temer que Heacutercules o venccedila 71 Francesco Giancotti Saggio sulle Tragedie di Seneca (Roma Societagrave Editrice Dante Alighieri 1953) 138 72 Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 55

62

keeping with Sen[eneca]rsquos general picture of him as a Harrower of Hell and above all

as one who relies to a hubristic degree on his own superhuman stregthrdquo73

A descriccedilatildeo do mundo inferior tem uma funccedilatildeo essencialmente didaacutectica

Seacuteneca usando os traccedilos definidores do mito sugere que nada haacute de grandioso em

infringir as leis do mundo os limites da moderaccedilatildeo as fronteiras do que eacute dado aos

seres humanos O prefaacutecio das Naturales Quaestiones justifica o motivo que leva o

filoacutesofo a condenar todos os homens que se julgam valorosos por lutarem contra feras

Diz Seacuteneca

O quam contempta res est homo nisi supra humana surrexit Quamdiu cum affectibus colluctamur quid magnifici facimus Etiamsi superiores sumus portenta uincimus Quid est cur suspiciamus nosmet ipsi quia dissimiles deterrimis sumus Non uideo quare sibi placeat qui robustior est in ualetudinario74

A descriccedilatildeo dos Infernos e da luta que Heacutercules travou com Ceacuterbero imprime a

ideia de que a gloacuteria de Heacutercules eacute duacutebia ilustrada ao longo da acccedilatildeo O heroacutei eacute o

exemplo maacuteximo de como se desperdiccedila a vida indo agrave procura de um valor que acaba

por ser aparente Ao perseguir tudo o que de cruel existe na terra e debaixo desta

Heacutercules acaba por revelar que ele eacute igualmente um monstro75

Em siacutentese em Euriacutepides e em Seacuteneca Teseu salva o Alcida da morte

reintegrando-o numa nova sociedade a ateniense No entanto o desenvolvimento que

cada um dos poetas daacute da personagem eacute uma vez mais diferente Na trageacutedia Heracles

Teseu aparece em cena no uacuteltimo episoacutedio e a funccedilatildeo desta personagem eacute a de salvar o

heroacutei Como resume Parmentier ldquoUn coup de theacuteacirctre amegravene tout agrave coup Theacutesegravee qui reacutecemment sauveacute des enfers par Heacuteraclegraves arrive en hacircte au secours de la famille de son ami Il emmegravenera lrsquoinfortuneacute agrave Athegravenes le purifiera du sang du meurtre et lui donnera des terres ougrave apregraves sa mort srsquoeacutelegraveveront des autels consacreacutes agrave son culterdquo76

73 Fitch (1) 318 74 Seacuteneca Naturales Quaestiones I Praefatio 5 75 Em Hercules Oetaeus o heroacutei sente que depois de ter pacificado todo o orbe destruindo todos os monstros que nele habitavam ele proacuteprio comeccedila a tomar o lugar deles ferae negantur Hercules monstri loco iam coepit esse (vv 55-56) 76 Parmentier 8

63

Como nota Clara-Emmanuelle Auvray Euriacutepides ao confiar a Teseu a salvaccedilatildeo

do heroacutei permite que haja uma soluccedilatildeo juriacutedica terminando assim a questatildeo da

mancha do crime de Heacutercules A mesma autora diz ldquole leacutegendaire roi drsquoAthegravenes a en

effet acquis sa gloire en eacutetablissant le συνοικισμός qui donne agrave la citeacute son unification

contre les autoriteacutes particuliegraveres et sa base deacutemocratiquerdquo77

Em Seacuteneca Teseu entra no Acto III com Heacutercules vindos dos Inferni sai de

cena no IV e volta a entrar no Acto V Enquanto narrador conta o que viu no mundo

das sombras e ilustra os excessos do protagonista No final da acccedilatildeo dramaacutetica

conforta o amigo aconselhando-o a moderar o seu espiacuterito perturbado pela ira (vv

1272-1277) e oferece-lhe hospitalidade (vv 1341-1344)

5 Coro

a) caracterizaccedilatildeo do Coro na trageacutedia de Euriacutepides

O Coro eacute constituiacutedo por um grupo de anciatildeos de Tebas Como nota Bond ldquoThe

entry of the chorus is neither expected nor announced no is it explicitly motivated

They have apparently come to lament (109f) and to encourage the suppliants (cf 114

πρόθυμ᾿)rdquo78 A entrada do Coro serve de mote para um prolongado lamento sobre a

condiccedilatildeo dos anciatildeos

ὑψόροφα μέλαθρα καὶ γεραι- ὰ δέμνι᾿ ἀμφὶ βάκτροις ἔρεισμα θέμενος ἐστάλην ἰηλέμων γέρων ἀοι- δὸς ὥστε πολιὸς ὄρνις ἔπεα μόνον καὶ δόκημα νυκτερω- πὸν ἐννύχων ὀνείρων τρομερὰ microὲν ἀλλ᾿ ὅμως πρόθυμ᾿79

(vv 107-114)

77 Clara-Emmanuelle Auvray Folie et Douleur dans Hercule Furieux et Hercules sur lrsquoOeta Recherches sur lrsquoexpression estheacutetique de lrsquoascegravese stoiumlcienne chez Seacutenegraveque 124 78 Bond 91 79 lsquoPara o palaacutecio de elevado tecto e veneraacutevel leito apoiando-me no bastatildeo me dirijo entoando tristes gemidos como um cisne jaacute envelhecido Natildeo passo de meras palavras sombria aparecircncia de um sonho nocturno mas apesar de treacutemulo da idade o zelo me daacute forccedilas para avanccedilarrsquo

64

Nestes versos haacute uma hiperbolizaccedilatildeo da sua condiccedilatildeo de fragilidade que

contrasta com a vontade de ajudar os seus amigos os anciatildeos jaacute nem sequer se

consideram verdadeiros seres humanos mas antes uma visatildeo obscurecida pela noite da

vida Esta noite metaacutefora da velhice mais natildeo eacute do que um sonho dominado pelas

trevas O sentido que estes uacuteltimos versos parecem sugerir eacute o de que eles estatildeo no

limiar da morte

O uso de metaacuteforas que expressam a velhice eacute comum nas trageacutedias de

Euriacutepides Para Bond ldquoThese metaphors are usually accumulated with καί (as here) or

ἤv Old men are words dreams shadows phantoms corpses tombs (Med 1209 Hcld

166 Ar Lys 372) δόκημα νυκτερωπὸν offers an additional form of intensification a

dubious appearance of a dream is further from reality than a dreamrdquo 80

Nos versos 119-130 os anciatildeos voltam a reforccedilar esta ideia de caducidade que

se traduz na ausecircncia de forccedilas para se movimentarem com naturalidade

daggermicroὴ προκάμητε πόδαdagger βαρύ τε κῶ- λον ὥστε πρὸς πετραῖον λέπας daggerζυγηφόρον πῶλον ἀνέντες ὡς βάρος φέρον τροχηλάτοιο πώλουdagger λαβοῦ χερῶν καὶ πέπλων ὅτου λέλοι- πε ποδὸς ἀμαυρὸν ἴχνος γέρων γέροντα παρακόμιζ᾿ ᾧ ξύνοπλα δόρατα νέα νέῳ τὸ πάρος ἐν ἡλίκων πόνοις ξυνῆν ποτ᾿ εὐκλεεστάτας πατρίδος οὐκ ὀνείδη81

A imagem eacute pateacutetica o caminhar lento auxiliado por baacuteculos e pela interajuda

que eacute acentuado pelas aliteraccedilotildees em oclusiva (π γ ν v 119 v 120 v 125 v 126 v

128) e pelos poliptotos (πόδα ποδὸς γέρων γέροντα νέα νέῳ v 119 v 125 v 126

v 128) contrasta com a coragem que manifestaram (nos versos supracitados) em querer

auxiliar Anfitriatildeo Meacutegara e os filhos de Heacuteracles Esta oscilaccedilatildeo entre a consciecircncia da

sua debilidade e a vontade de defender os seus amigos eacute constante no decorrer da acccedilatildeo

dramaacutetica

80 Bond 96 81 lsquoNatildeo canseis em vatildeo os peacutes e os pesados membros como se conduziacutesseis para o cimo de um rochedo um potro sob o jugo em acircnsias para se libertar do seu pesado fardo Segurai a matildeo e o peplo de quem atrasado arrasta o traccedilo indistinto do peacute Anciatildeo ajuda o anciatildeo com quem na juventude em combates comuns uniste as tuas agraves suas armas sem macular a honra dos mais ilustres antepassadosrsquo

65

O desenvolvimento de cada um dos momentos da trageacutedia leva a que o espiacuterito

do Coro sofra alteraccedilotildees ora lamenta a situaccedilatildeo da famiacutelia do Alcida porque natildeo a

pode ajudar (vv 115-118 vv 131-137 vv 312-315 vv 436-450) e insurge-se contra o

tirano (vv 252-274) ora entoa um canto fuacutenebre em honra de Heacuteracles porque

considera que este morreu ao tentar concluir o seu uacuteltimo trabalho recordando todas as

provaccedilotildees a que o heroacutei foi submetido (vv 349-435) ora rejubila com o regresso do

Alcida por ele representar uma μεταβολὰ κακῶν (vv 637-700) ora exulta com a morte

de Lico uma vez que eacute restituiacuteda a ordem e o reino anterior (vv 735-821) ora agoniza

perante o novo rumo dos acontecimentos motivados por divindades (vv 875-885 Iacuteris

ordena a Lissa que enlouqueccedila Heacuteracles para que o heroacutei mate a sua famiacutelia sem ter

consciecircncia do seu acto)

Quando Lico entra em cena no primeiro episoacutedio a exigir que os Heraclidas

morram o Coro insurge-se contra ele (nos vv 252-27482) Os anciatildeos manifestam a sua

audaacutecia na viva oposiccedilatildeo ao tirano (vv 252-267) condenam Lico por ser um

estrangeiro usurpador e criminoso ao mesmo tempo que lhe lanccedilam impropeacuterios

ameaccedilando-o de que enquanto eles forem vivos natildeo permitiratildeo que ele cause algum

dano aos filhos de Heacuteracles No entanto nos versos seguintes (vv 268-274) o contraste

entre a vontade que sentem e o poder que tecircm eacute pateacutetico Os anciatildeos tomam consciecircncia

de que natildeo poderatildeo fazer nada porque apesar do desejo de quererem auxiliar os amigos

a fraqueza fiacutesica natildeo lho permite83

Jaacute no primeiro estaacutesimo (vv 348-450) o Coro recorda os vaacuterios πόνοι que o

heroacutei concluiu sob as ordens de Euristeu Segundo Webster ldquoThe chorus sing a

decorated aelo-choriambic account of the labours of Herakles in three pairs of strophes

and antistrophes each with an ephymnion now Herakles is in Hades and they are too

old to helprdquo84

Na primeira estrofe (vv 348-358) o Coro diz que vai entoar um θρῆνος

dedicando-o ao Alcida Compara esse canto ao de Apolo cantando os feitos de Heacuteracles

(vv 359-429) 82 Estes versos eram atribuiacutedos a Anfitriatildeo no ms L (Bond xxxiii) manuscrito do seacutec XIV da Biblioteca Laurentina em Florenccedila Os modernos editores atribuem-nos ao Coro Segundo Bond 128-129 ldquo258-62 are appropriate only to the Chorus so are 266 f and 268-74 Moreover the invocation to strike Lycus (254-7) resembles a military order which comes better from the coryphaeus in command than from Amphitryonrdquo Natildeo eacute usual que a fala do Coro ocupe tantos versos visto que normalmente intervecircm ou nas partes liacutericas ou em esticomitia Segundo Bond 129 tambeacutem em Helena haacute uma fala do Coro extensa (vv 317-329) 83 ἐν δ᾿ ἀσθενείαι τὸν πόθον διώλεσας (lsquomas consomes o profundo desejo na fraquezarsquo) 84 T B L Webster The Tragedies of Euripides (Londres Methuen 1967) 188

66

- matou o Leatildeo de Neacutemea (vv 359-363)

- matou os Centauros da Tessaacutelia como forma de castigo (vv 364-374 este

episoacutedio natildeo faz parte dos trabalhos exigidos ao heroacutei)

- matou o cervo de cornos de ouro (corccedila de Cireneia) e ofereceu-os a Aacutertemis

(vv 375-379)

- capturou os cavalos traacutecios de Diomedes que devoravam carne humana

Heacuteracles castigou o tirano matando-o e fez do corpo deste um repasto para os cavalos

(vv 380-388)

- matou Cicno que assassinava os estrangeiros (vv 389-393 este episoacutedio natildeo

pertence aos doze trabalhos)

- colheu as maccedilatildes das Hespeacuterides mas teve de matar a serpente que as guardava

(vv 394-402 no decorrer deste trabalho Heacuteracles destruiu todos os monstros marinhos

para tornar a travessia menos perigosa aos mortais)

- susteve o mundo nos seus braccedilos substituindo Atlas (vv 403-407)

- matou Hipoacutelita rainha das Amazonas para ficar com o seu cinto (vv 408-

418)

- queimou a Hidra de Lerna serpente de mil cabeccedilas (vv 419-421) e matou o

pastor Geacuterion (vv 422-424)

- uacuteltimo trabalho para capturar Ceacuterbero desceu aos infernos de onde ainda natildeo

regressou (vv 425-429)

Como explica Bond ldquoEuripides has only three Peloponnesian labours where

Olympia has six he does not include Boar Birds or Augean Stables The three he

includes (Lion Hind Hydra) are dispersed among the other labours He does not

include external labour the Cretan Bullrdquo85

Aleacutem disso estes ἔργα estatildeo distribuiacutedos por desigual nuacutemero de versos se por

exemplo a referecircncia agrave morte do leatildeo ocupa cinco versos e a da Hidra trecircs jaacute a

descriccedilatildeo dos Jardins das Hespeacuterides estendeu-se por nove versos o assassiacutenio de

Hipoacutelita a rainha das Amazonas por dez versos assim como a morte dos Centauros

tambeacutem por dez versos Esta diferenccedila pode ter que ver com o querer sublinhar a

imagem de um heroacutei que eacute forte civilizador e protector da humanidade que segura o

ceacuteu (onde moram as divindades) mata os baacuterbaros (os Centauros) e torna os mares

navegaacuteveis No caso das Amazonas a expediccedilatildeo representa a luta entre a civilizaccedilatildeo

85 Vide Bond 154

67

(um grupo de amigos que simbolizam a Heacutelade) e a barbaacuterie (Amazonas) em que a

primeira vence ndash segundo Bond ldquoand Greece gets the girdle as the spoils of war from

the barbarianrdquo86

Este estaacutesimo daacute uma outra tonalidade agrave acccedilatildeo dramaacutetica Segundo Maria de

Faacutetima Sousa e Silva Esta ode eacute sobretudo um grande quadro onde a violecircncia natural nas faccedilanhas de Heacutercules cede lugar agrave fantasia estaacutetica de uma pintura Com o rememorar dos trabalhos lendaacuterios do heroacutei Euriacutepides desanuvia um pouco a cena num momento em que a incoacutegnita da sua ausecircncia entrega ao destino mais cruel os seres desprotegidos que dependem da forccedila do seu braccedilo e antes de o heroacutei mergulhar noutros reveses tatildeo distantes dos encantos da vitoacuteria87

No segundo estaacutesimo (vv 637-700) o Coro discorre sobre a forccedila da juventude

que considera como um Bem acima de todos os outros por oposiccedilatildeo agrave decrepitude da

velhice (γῆρας) Este elogio aos que ainda estatildeo na flor da vida deixa subjacente a ideia

de mudanccedila da Fortuna passagem das Trevas para a Luz traduzida no regresso

iminente do heroacutei

A magnanimidade do filho de Zeus leva o Coro a considerar que deveria ser

concedida a todos os jovens que satildeo conhecidos pela sua ἀρετή uma segunda juventude

καὶ τῷδ᾿ ἂν τούς τε κακοὺς ἦν γνῶμαι καὶ τοὺς ἀγαθούς (vv 665-666)88 Este desejo eacute

acentuado pelo homeoteleuto pela aliteraccedilatildeo (τούς τε) e pela antiacutetese (κακούς ndash

ἀγαθούς) Deste toacutepico o Coro passa para o enaltecimento de Heacuteracles por meio de um

hino Comparando o tema do seu canto (elogio do heroacutei filho de Zeus) ao das virgens

de Delos que honram o deus Apolo com os seus cantos o Coro estabelece um paralelo

entre o filho de Leto e o filho de Zeus Esta comparaccedilatildeo sugere que os anciatildeos

consideram que Heacuteracles eacute uma figura divina Διὸς ὁ παῖς∙ τᾶς δ᾽ εὐγενίας πλέον

86 Bond 170 O mesmo autor sugere alguns motivos que poderiam ter levado Euriacutepides a seleccionar doze dos vaacuterios ἔργα que o Alcida cumpriu ldquoHeracles is much less a Peloponnesian hero he is a pan-Hellenic leader (411 416) who travels far both inside Greece and throughout the world Three of the italicized labours exhibit him as ἀλεξίκακος (369 391 401) he kills monsters and calms the sea for mankind (hellip) He supports even the gods in heaven (406 f) the Hesperides give him his reward (396)rdquo (Bond 154) 87 Maria de Faacutetima Sousa e Silva Ensaios sobre Euriacutepides (Lisboa Livros Cotovia 2005) 387 88 lsquoAssim seria possiacutevel distinguir os homens bons e os homens mausrsquo O toacutepico da inexistecircncia de uma marca que permita reconhecer o homem bom distinguindo-o do mau lembra o ἀγῶν entre Medeia e Jasatildeo (Medea vv 516-519) Nesta contenda a protagonista acusa Jasatildeo de a ter traiacutedo e abandonado Da acusaccedilatildeo parte para a ideia de que se os deuses tivessem cunhado os homens com uma marca distintiva ela natildeo teria suportado tantos males por causa de um homem vil

68

ὑπερβάλλων ltἀρετᾶιgt (vv 696-697)89 ou que pelo menos os seus feitos satildeo dignos de

um deus A reputaccedilatildeo do Alcida como filho de Zeus foi ultrapassada pelas suas

virtudes tornou a vida dos homens mais segura e paciacutefica ao destruir todos os monstros

que os aterrorizavam

Para Hugh Parry esta ode parece ser um epiniacutecio

The Heracles ode would seem basically to be an epinician ode and one particularly reminiscent of Pindarrsquos songs in honour of mortal victors At the same time however Heracles is lauded with an extravagance which suggests a hymn in honour of a god and we note in particular the absence of the frequent Pindaric warning that mortal victors are not gods It is no accident that this epinician ode is invested with a hymnal grandeur more appropriate to divinity For the chorus elevate their hero to so dangerous a height that his fall becomes almost inevitable90

Sob o ponto de vista estrutural o terceiro estaacutesimo91 faz a ponte para a nova

acccedilatildeo iniciada pelo diaacutelogo entre Iacuteris e Lissa Eacute um momento liacuterico de elevada

intensidade dramaacutetica porque passa de um momento de extrema euforia para o

conhecimento de um novo golpe da Fortuna Heacuteracles natildeo salva as crianccedilas da morte

apenas retarda o seu Destino

Nas estrofes β e γ (vv 762-771 vv 781-797) o Coro acompanha o canto com

danccedila O seu entusiasmo eacute crescente acentuado pela repeticcedilatildeo de χοροί (v 763

lsquodanccedilasrsquo) rejubila com a morte do tirano e com a restituiccedilatildeo do antigo poder e convida

o povo de Tebas a danccedilar e a cantar as faccedilanhas de Heacuteracles Um outro motivo de juacutebilo

eacute a vitoacuteria de Heacuteracles sobre a morte Ele desceu aos abismos do Hades e regressou vivo

(vv 769-771) quebrando a barreira existente entre a vida e a morte

Jaacute na antiacutestrofe β e γ (vv 772-780 vv 798-814) o Coro elogia os deuses porque

distinguem os homens maus dos bons ndash sentimento reforccedilado pela repeticcedilatildeo de θεοί (v

772 lsquodeusrsquo) castigam os que satildeo crueacuteis e protegem os virtuosos Segundo Bond os vv

772 ss e os vv 811 ss satildeo uma teodiceia ldquothe return of Heracles and the punishment of

the wicked show that God rewards good and bad appropriatelyrdquo92

89 lsquoEle eacute filho de Zeus Mas ultrapassando com as suas virtudes a sua nobre origemrsquo 90 Hugh Parry ldquoThe Second Stasimon of Euripidesrsquo Heracles (637-700)rdquo American Journal of Philology 864 (1965) 364 91 O terceiro estaacutesimo tem trecircs estrofes e trecircs antiacutestrofes (vv 763-814) Entre os versos 735 e 760 o Coro vai acompanhando o discurso de Lico no momento em que eacute castigado pela sua insolecircncia morrendo agraves matildeos de Heacuteracles 92 Vide Bond 264

69

Ainda na antiacutestrofe γ (vv 798-814) ndash no auge do seu gaacuteudio em que o Coro

volta a enaltecer a dupla paternidade de Heacuteracles que entende como inquestionaacutevel (vv

801-804) e considera que o heroacutei eacute o melhor ἄναξ que Tebas alguma vez poderia ter ndash

entram Iacuteris e Lissa mudando o rumo do destino da famiacutelia de Heacuteracles e do proacuteprio

heroacutei porque uma vez filicida e uxoricida ele eacute obrigado a exilar-se natildeo podendo

governar Tebas

A partir do momento em que as deusas abandonam a cena o Coro volta a entoar

um canto luacutegubre Como nota Bond93 a actuaccedilatildeo do Coro entre os vv 875 e 921 pode

ser dividida em trecircs momentos ora estaacute completamente soacute e lamenta a perda do heroacutei

que vai ser enlouquecido pelos deuses ndash critica a inconstacircncia da fortuna que tatildeo

depressa sopra ventos favoraacuteveis como arruiacutena a vida do homem (vv 875-885) ora

reage aos gritos de desespero de Anfitriatildeo (vv 886-909) ora dialoga com o Mensageiro

(vv 910-921) tomando conhecimento dos antecedentes da loucura e do crime que

Heacuteracles cometeu Como aponta Barlow ldquoThe Chorus reacts to these cries with awed

horror at the effects of madness (hellip) their responses being closely linked to

Amphitryonrsquos utterancesrdquo94

Na Ode Coral95 dos vv 1016-1038 o Coro assume uma posiccedilatildeo criacutetica no que

diz respeito ao crime de Heacuteracles Compara a morte de Meacutegara com a morte dos

esposos das Danaides96 e o filiciacutedio com o assassiacutenio do filho de Procne97 agraves matildeos da

proacutepria matildee Neste exemplo o Coro aproveita o mito de Procne para demonstrar que o

crime de Heacuteracles foi superior uma vez que ela matou apenas um filho e ele trecircs Os

exemplos miacuteticos tecircm o claro propoacutesito de demonstrar que os crimes do heroacutei satildeo

superiores a todos os perpetrados anteriormente ainda os mais odiosos τάδε δ᾽

ὑπερέβαλεν παρέδραμεν τὰ τότε κακὰ τάλανι διογενεῖ κόρῳ (vv 1019-1020)98

93 Bond 295 94 Barlow 164 95 Barlow 168 explica que esta parte eacute uma Ode Coral porque eacute breve e astroacutefica Nestes versos segundo Bond 322 ldquoThere is a dead calm which is well contrasted with the last set of excited lyrics which culminated in the murder and the earthquake (875 ff)rdquo 96 Satildeo cinquenta as filhas de Daacutenao Segundo a tradiccedilatildeo mitoloacutegica Egipto pretendia reconciliar-se com o irmatildeo Daacutenao que fugira do Egipto Com esse propoacutesito o rei envia os seus cinquenta filhos para se unirem em matrimoacutenio com as filhas de Daacutenao Este aceitou a proposta Deu um grande banquete por ocasiatildeo das bodas e como prenda ofereceu a cada uma das filhas uma adaga para que elas matassem os respectivos maridos Apenas Hipermnestra natildeo matou o esposo Vide Pierre Grimal Dicionaacuterio de Mitologia Grega e Romana 110 97 Procne mata o filho para se vingar do marido Tereu por este se ter apaixonado por Filomela irmatilde de Procne e a ter violado cortando-lhe em seguida a liacutengua para que esta natildeo contasse a verdade agrave irmatilde Procne como vinganccedila assassina o seu filho e cozinha-o dando-o como refeiccedilatildeo ao marido 98 lsquoMas este feito do desgraccedilado filho de Zeus ultrapassou e venceu os males de entatildeorsquo

70

b) caracterizaccedilatildeo do Coro na trageacutedia de Seacuteneca

O Coro interveacutem apenas no final dos quatro primeiros Actos Ao contraacuterio do

que acontece em Euriacutepides natildeo sabemos qual a faixa etaacuteria do Coro nem de que cidade

satildeo oriundos99 Nem sequer eacute anunciada a sua entrada em Cena100

Natildeo participa activamente na acccedilatildeo dramaacutetica partilhando dos problemas das

personagens antes tece as suas consideraccedilotildees a partir daquilo que observa A funccedilatildeo eacute a

de criacutetico que comenta o que estaacute a acontecer Diz-nos Fitch a propoacutesito dos vv 125-

204 a primeira intervenccedilatildeo do Coro

The ode is not only integrated into the drama in a technical sense but also indispensable for our understanding of the play It establishes a standard of normality in the conduct of human life and indicates that by the standard Hercules is condemned It was essential for Seneca to formulate these judgments early in the play so that the developing action could be viewed in these terms And only the Chorus could give an objective view of this kind as the other dramatis personae all have a prejudiced view of Hercules101

Em Hercules Furens o Coro assume uma posiccedilatildeo de distanciamento das

personagens procura evitar tudo o que eacute turba Dispensa a Gloacuteria e a Fama e a estas

prefere uma vida pautada pela tranquilidade e seguranccedila

Comeccedila por descrever a noite que abandona lentamente o ceacuteu para dar lugar ao

dia (vv 125-136) Este despertar lento da Aurora intensificado pela assonacircncia em

nasais iam rara micant sidera prono languida mundo permite atenuar a violecircncia do

monoacutelogo inicial de Juno Segundo Fitch ldquoThe ode proceeds through a remarkable

series of shifts in thought and feeling First it engages the audience emotionally through

the lyrical images of light and peace in 125-61 the effect is like that of waking from a

nightmarerdquo102

Esta primeira fala do Coro (vv 125-204) pode ser dividida em quatro momentos

em primeiro lugar descriccedilatildeo do campo da paz e da poesia da natureza ao romper do dia

(vv 125-161) segundo o contraste com a vida apressada e adversa na cidade (vv 161-

99 Vide Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 100 O Coro eacute mencionado uma vez por Teseu (vv 827-829) 101 Fitch (1) 163 102 Fitch (1) 161

71

185)103 terceiro a descida de Heacutercules ao mundo inferior (vv 186-201) quarto a

entrada de Meacutegara e Anfitriatildeo em cena (vv 202-204)

Da evocaccedilatildeo dos primeiros raios de sol o Coro passa agrave enumeraccedilatildeo dos

trabalhos do campo (vv 137-161) louvando a labuta matinal A uma innocua uita a

que se liga uma tranquilla quies (cf vv 159-160) contrapotildeem-se spes immanes104

trepidique metus que definem a vida na cidade (vv 162-180) ndash esta diferenccedila eacute

reforccedilada pelo homeoptoto e pelo quiasmo (spes immanes ndash trepidique metus) A

cidade por oposiccedilatildeo ao campo eacute o lugar de conflitos e discoacuterdias Eacute o lugar de medos e

de falsas esperanccedilas que pouco contribuem para manter a seguranccedila e a liberdade do

homem De facto estes sentimentos natildeo satildeo mais do que paixotildees que prendem o

homem como grilhotildees de modo que satildeo poucos os que conseguem libertar-se de tais

affectus (v 175 nouit paucos secura quies) Pelo contraacuterio o comum dos mortais eacute

devorado pelo passar do tempo porque corre em grande euforia atraacutes de coisas vatildes (vv

183-184 gens hominum fertur rapidis obuia fatis incerta sui) e assim a vida passa por

ele velozmente (vv 173-179)

O Coro acentua aqui um toacutepico estoacuteico o tempo natildeo se recupera e soacute o

momento presente nos pertence (vv 175-176 uelocis memores aeui tempora

numquam reditura tenent) O que o homem natildeo sapiens faz eacute deixar-se levar pelos

dias consumindo a vida ao sabor do curso raacutepido (vv 178-180 properat cursu uita

citato uolucrique die rota praecipitis uertitur anni) sem se preocupar com o que eacute

realmente importante como que ignorando o que eacute inevitaacutevel e sem atender ao fim que

o espera que pode ser jaacute agora Na teoria estoacuteica a necessidade de ldquoaproveitar bem a

103 Fitch (1) 162 sublinha que o contraste entre o campo e a cidade conteacutem alguns elementos anacroacutenicos ldquothe salutatio of 164-66 the lawyerrsquos activity in the forum in 172-74 the triumphal currus of 195 () Here the anachronisms may be seen as related to the strategy of moving through familiar material to an unfamiliar conclusionrdquo O efeito seria o de reconhecer na forma de vida de Heacutercules (exemplo de vida que se afasta da virtude entrando no domiacutenio dos erros e dos viacutecios) os proacuteprios viacutecios de Roma 104 Fitch (1) 174 considera a expressatildeo spes immanes sugerida por Schmidt e adoptada por Miller mais atractiva do que spes iam magnis (Giardina) ou spes in magnis (Viansino) Em relaccedilatildeo agrave expressatildeo spes iam magnis o autor explica 173 ldquoIam having meant ldquoat dawn on this date in the Heroic Agerdquo can scarcely mean ldquoin these degenerate Roman timesrdquo here although the activities listed in 164-174 are clearly Roman in character it would take more than a iam to turn a covert anachronism into an overt onerdquo Jaacute no que diz respeito a spes in magnis Fitch (1) 174 comenta que as conjecturas que Gronovius faz desta expressatildeo satildeo muito vagas Spes immanes (lsquoesperanccedilas colossaisdesmedidasrsquo) tem numa perspectiva estoacuteica uma conotaccedilatildeo mais violenta Todo o homem que viva agarrado agrave spes natildeo consegue viver o momento presente e ateacute o dia seguinte lhe escapa Na Ep 10110 Seacuteneca recorda a Luciacutelio que este tipo de homens natildeo consegue aproveitar a vida em seguranccedila in spem uiuentibus proximum quodque tempus elabitur subitque auiditas et miserrimus ac miserrima omnia efficiens metus mortis (lsquopara quem vive de esperanccedilas pelo contraacuterio mesmo o dia seguinte lhe escapa e depois nem a avidez de viver e o medo de morrer medo desgraccedilado e que mais natildeo faz do que desgraccedilar tudorsquo)

72

vidardquo eacute viver cada dia como se fosse o uacuteltimo para atingir a perfeiccedilatildeo para a construir

segundo a segundo105 ndash soacute assim o sapiens pode sentir seguranccedila

Na cidade o homem tem mais tendecircncia a deixar-se enredar nas malhas da

confusatildeo e da vida supostamente cheia (mas que eacute afinal cheia de nada) Por isso

Seacuteneca escreve por exemplo o De Breuitate Vitae mostrando ao destinataacuterio que natildeo

pode adiar mais o momento de se encontrar consigo mesmo pondo fim agraves muitas

ocupaccedilotildees que lhe atravancam e destroem a vida

Seacuteneca lembra que entre viver (uiuere) e existir (esse) a diferenccedila eacute

avassaladora um homem pode existir durante numerosos anos e nunca ter vivido assim

como um jovem pode ter morrido na flor da idade mas soube viver cada dia que o

destino lhe reservou Natildeo importa viver muito mas sim viver em pleno (Ep 937

Quamdiu sim alienum est quamdiu ero ltueregt ut sim meum est Hoc a me exige ne

uelut per tenebras aeuum ignobile emetiar ut agam uitam non ut praeteruehar106) A

duraccedilatildeo ideal da vida eacute a que permite atingir a sabedoria (Ep 938 ad sapientiam

uiuere) ndash este eacute o uacutenico objectivo que deve nortear o homem

Nos vv 178 ss o toacutepico da sucessatildeo dos dias e da necessidade que o homem

tem de tomar consciecircncia da brevidade da vida e da imutabilidade do seu destino (cf

vv 181-204 as Parcas nunca desfazem a trama que vatildeo tecendo mas vatildeo sempre

desenrolando o fio) vem introduzir um novo aspecto o Alcida O Coro critica o heroacutei

porque ousou descer aos infernos para descobrir o que eacute oculto aos homens107 Censura-

-o igualmente por querer apressar o trabalho das Parcas uma vez que a morte eacute

inevitaacutevel Ningueacutem pode antecipar ou retardar a sua morte certo ueniunt tempore

Parcas nulli iusso cessare licet nulli scriptum proferre diem (vv 188-190)108 ndash a

105 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 1011 Ideo propera Lucili mi uiuere et singulos dies singulas uitas putas (lsquoApressa-te a viver caro Luciacutelio imagina que cada dia eacute uma vida completarsquo) 106 lsquoNatildeo me cabe determinar por quanto tempo vivo estaacute todavia na minha matildeo viver plenamente enquanto existir Exige de mim que eu natildeo percorra como que envolto em trevas uma existecircncia sem sentido mas que realize a minha vida em vez de lhe passar ao ladorsquo 107 Fitch (1) 162 identifica uma outra interpretaccedilatildeo possiacutevel para a descida de Heacutercules ao mundo inferior ldquoHerculesrsquo descent to the underworld is seen as a metaphor for the human tendency to rush deathward in pursuit of ambitious aims rather than savoring each passing momentrdquo Para os estoacuteicos Heacutercules ao descer aos Infernos e de laacute regressar quebrou os limites entre os dois mundos subvertendo a ordem (coacutesmica) O seu acto revelou excesso e desmesura ambiccedilatildeo e orgulho Tambeacutem na Medea o Coro condena Jasatildeo por ter rompido os mares (vv 301-302) Natildeo eacute nesses actos que estaacute o que eacute mais importante na vida humana mas sim em vencer os seus proacuteprios viacutecios Nas Naturales Quaestiones 3 praef 10-17 Seacuteneca recorda Quid praecipuum in rebus humanis est Non classibus maria complesse nec in rubri maris litore signa fixisse nec deficiente ad iniurias terra errasse in oceano ignota quaerentem sed uitia domuisse 108 Vide Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 696 Nemo moritur nisi sua morte () nemo nisi suo die moritur (lsquoNingueacutem morre senatildeo de morte natural () ningueacutem morre senatildeo no seu proacuteprio diarsquo) Note-se o estreito paralelo entre a trageacutedia e o diaacutelogo filosoacutefico

73

construccedilatildeo paraleliacutestica imprime uma ideia de imutabilidade de impossibilidade de

iludir esta lei natural

Por oposiccedilatildeo agrave Gloria e agrave Fama que percorrem as cidades (vv 192-201)

imortalizando os heroacuteis pelos seus feitos neste caso Heacutercules o Coro volta a elogiar a

paz e a tranquilidade de uma existecircncia simples preferindo terminar a velhice humilique

loco sed certa (v 199) e numa sordida fortuna paruae domus (v 200) porque assim se

permanece livre de qualquer sofrimento Esta impassibilidade soacute eacute possiacutevel para as

pessoas que vivem longe de todo o geacutenero de turba Na cidade poreacutem natildeo eacute possiacutevel

encontrar a tranquillitas animi desejada pois o stultus corre como para agarrar a vida

quando o que acontece na realidade eacute que fica acorrentado a todo o tipo de affectus

deixando de ter domiacutenio sobre a sua proacutepria vida

Ao longo das Odes Corais vai sendo manifestada uma posiccedilatildeo negativa

relativamente a Heacutercules O Coro parece anunciar que a ambiccedilatildeo desmedida do heroacutei o

lanccedilaraacute no mais fundo abismo (v 201 alte uirtus animosa cadit) Como sugere Fitch

Their critique of the active life may be summarized as follows first it is dominated by the affectus spes and metus (161ff) second those obsessed by ambition rush towards death in the sense of forgetting the ephemeral nature of human life and neglecting quiet enjoyment of each passing day (174ff) third the lofty positions attained by the ambitious are precarious alte uirtus animosa cadit (201) We can scarcely fail to perceive that Hercules is the outstanding exemplar of uirtus animosa and we know from Junorsquos predictions that he will suffer a great fall109

Na segunda Ode o Coro fala apoacutes o confronto entre Meacutegara Anfitriatildeo e Lico A

estrutura desta Ode assemelha-se ao primeiro Estaacutesimo da trageacutedia de Euriacutepides haacute uma

enumeraccedilatildeo dos trabalhos de Heacutercules Mas ao contraacuterio do que acontece na peccedila

grega o Coro de Seacuteneca natildeo evoca todos porque Anfitriatildeo jaacute o fizera no II Acto O

Coro escolhe alguns deles que melhor ilustrem a vida do protagonista tornando-o

modelo de homem que natildeo vive a vida mas desperdiccedila a sua existecircncia110

O Coro inicia o seu canto com uma criacutetica O Fortuna uiris inuida fortibus (v

524) Contrasta a fortuna de Euristeu com a de Heacutercules o primeiro facili regnet in otio

(v 526) enquanto Alcmena genitus bella per omnia monstris exagitet caeliferam

109 Fitch (1) 22 110 Fitch (1) 253-254

74

manum (vv 527-528) O Coro vai enumerando alguns dos trabalhos de Heacutercules com o

objectivo de demonstrar a sua vida atribulada111

- suportou os ceacuteus (v 528 caeliferam manum)

- matou a Hidra de Lerna (v 529)

- enganou as irmatildes Hespeacuterides para poder arrebatar as maccedilatildes de ouro e matou o

dragatildeo que as guardava (vv 530-532)

- arrancou com violecircncia (v 544 detraxit) o cinto de Hipoacutelita (vv 531-546)

- desceu ao mundo inferior (vv 547-591)

Eacute de notar que os dois uacuteltimos trabalhos mereceram um maior desenvolvimento

do que os primeiros trecircs Naqueles trabalhos a natureza descrita entra no domiacutenio do

locus horrendus (o que contrasta com a descriccedilatildeo campestre da I Ode) Haacute semelhanccedilas

na descriccedilatildeo de cada um dos lugares por onde o heroacutei teve de passar para chegar ao

destino em ambos os percursos ele teve de cruzar mares (v 536 v 551) e terrenos

inoacutespitos e pantanosos (v 540-541 v 554)

A descida ao mundo inferior112 foi poreacutem dos dois o que mereceu um mais

elaborado pormenor Anfitriatildeo contudo omitira este trabalho O motivo pode ter que

ver com o facto de a descida ao mundo inferior estar conotada com o excesso e a

ambiccedilatildeo desmedida do heroacutei Ora Anfitriatildeo ao enumerar todos os trabalhos do filho

pretende sobressair principalmente a uirtus de Heacutercules e o seu lado civilizacional

A questatildeo que o Coro coloca (vv 547-549 qua spe praecipites actus ad inferos

audax ire uias irremeabiles uidisti Siculae regna Proserpinae) recupera o juiacutezo

criacutetico tecido na Ode I a absurdez do homem em querer encontrarantecipar a morte

correndo para ela113 Se o Coro ainda percebe as razotildees que levaram Heacutercules a realizar

os outros trabalhos uma vez que de todos resultou alguma coisa de bom neste caso

poreacutem natildeo encontra o Coro senatildeo perigos e ousadia (v 548 audax) A spes a que o

Coro alude remete para um erro de avaliaccedilatildeo do futuro As descriccedilotildees de viagens aos

Infernos assumem algo mais do que a conquista da morte ou da imortalidade ldquoIn the

first ode H[ercules]rsquos descent to the underworld was seen as symbolic of the tendency

to hasten through life to rush toward death in pursuit of ambition (hellip) Ode II goes

111 Fitch (1) 252 112 Parece-nos que o Coro alude em todas as odes ao tema da viagem de Heacutercules aos infernos para adensar em crescendo o tom da trageacutedia iminente Satildeo vaacuterios os indiacutecios que ocorrem nas suas falas que abonados com exemplos mitoloacutegicos ou natildeo e sempre em crescendo vatildeo culminar na morte inevitaacutevel dos filhos e da mulher do heroacutei 113 Na Ep 2423 ss Seacuteneca recorda o quatildeo ridiacuteculo eacute correr para a morte Um saacutebio nunca foge da vida mas saberaacute sair dela quando alguma circunstacircncia verdadeiramente fundamentada o impelir a abandonaacute-la

75

further by suggesting (hellip) that the experience of H[ercules]rsquos various toils and so of

men who toil like him is that of death-in-liferdquo segundo comenta Fitch114

No entanto apesar de estar subjacente essa criacutetica o Coro deseja que o filho de

Juacutepiter consiga regressar deste trabalho (vv 558-559 euincas utinam iura ferae Stygis

Parcarumque colos non reuocabiles) e acredita que o heroacutei venceraacute essa nova prova

jaacute que outrora ele derrotara o Rei do Inferno (vv 560-565) Exorta entatildeo o Alcida a

quebrar as barreiras dos dois mundos para que possa regressar Note-se a aliteraccedilatildeo em

oclusiva surda bilabial e os homeoptotos tristibus inferis prospectus pateat lucis et

inuius limes det faciles ad superos uias (vv 566-568) que acentuam esta ligaccedilatildeo

pretendida entre os dois mundos ateacute entatildeo separados por um limes

O Coro recorda que Heacutercules natildeo foi o uacutenico que desceu agraves moradas inferiores

Antes dele soacute Orfeu se atrevera a percorrer essa descida com o objectivo de recuperar

Euriacutedice Ele conseguiu persuadir os umbrarum domini (cf v 570) por meio da lira do

canto e de suacuteplicas (v 570 prece supplici) mas acabou por perder a sua amada no

caminho do regresso ao ousar olhar para traacutes Este exemplum estabelece um paralelo

entre Orfeu e Heacutercules Se o primeiro conquistou os deuses pela muacutesica o segundo

poderaacute consegui-lo tambeacutem mas pela forccedila Esta afinidade eacute posta em relevo pela

estrutura paraleliacutestica de quae uinci potuit regia carmine haec uinci poterit regia

uiribus (vv 590-591) Haacute dois elementos que satildeo comuns agraves duas situaccedilotildees (os reinos

dos infernos ndash regia ndash satildeo nos dois casos vencidos ndash uinci) e dois aspectos divergentes

(o aspecto temporal sobressaiacutedo pelo politptoto passado ndash potuit ndash relacionado com

Orfeu e futuro ndash poterit ndash Heacutercules e o meio ndash agente da passiva ndash pelo qual os reis

foram e seratildeo vencidos ndash carmine no caso de Orfeu uiribus no caso de Heacutercules) O

facto de o Coro terminar o seu canto com a palavra uiribus natildeo deixa de corresponder a

um aviso o emprego da uis natildeo eacute prenunciadora de bons resultados Heacutercules quebraraacute

novamente os limites Desta vez poreacutem as consequecircncias do seu acto seratildeo nefastas

para ele e para os que lhe satildeo proacuteximos

Se Orfeu perdeu Euriacutedice por quebrar uma ordem divina tambeacutem Heacutercules

poderaacute ser castigado por ter arrebatado de laacute Ceacuterbero (vv 569-591) Na perspectiva de

Shelton ldquothe chorus is warning Hercules that all men are bound by the iura of the

Underworld and that he may pay dearly for his returnrdquo115 Tambeacutem em Phaedra o Coro

lembra que Teseu ao ser libertado do Hades teraacute de pagar pela sua fuga Pallas 114 Fitch (1) 253 115 Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 45

76

Actaeae ueneranda genti quod tuus caelum superosque Theseus spectat et fugit

Stygias paludes casta nil debes patruo rapaci constat inferno numerus tyranno

(Phaed vv 1149-1153) O preccedilo da sua libertaccedilatildeo teve como castigo a morte de

Hipoacutelito resultando num terriacutevel desgosto e na dor de Teseu (Phaed vv 1143 ss hic

qui clari luget maestos tristis reditus ipsoque magis flebile Auerno) Um castigo

semelhante avizinha-se de Jasatildeo na Medea (vv 301-302) por ter ldquoquebrado os limitesrdquo

dos mares A evocaccedilatildeo destes episoacutedios miacuteticos configura uma associaccedilatildeo terriacutevel a do

destino comum de quatro personagens responsaacuteveis pela perda daqueles que mais

amam jaacute que

a) Orfeu (Her F) perde Euriacutedice

b) Teseu (Phaed) perde Hipoacutelito

c) Jasatildeo (Med) perderaacute os filhos

d) Heacutercules (Her F) perderaacute os filhos e Meacutegara

De facto Heacutercules ilustraraacute com a sua acccedilatildeo criminosa a dupla face que assume

o verbo lsquoperderrsquo ficaraacute sem os que mais ama (castigo e fonte de dor) seraacute para eles

causa de perdiccedilatildeo provando que o excesso o error o uitium as paixotildees soacute podem

trazer o mal e a desgraccedila natildeo soacute a todos os que por ele se deixam dominar mas tambeacutem

agravequeles que quase sempre inocentes os rodeiam Eacute uma cadeia imparaacutevel a que liga o

uitium ao scelus arrastando tudo e todos para a ruiacutena)

Eacute ainda possiacutevel encontrar um outro toacutepico comum agraves trageacutedias Medea e

Hercules Furens Jasatildeo e Heacutercules satildeo audaces nas empresas que ousam realizar Jasatildeo

com a sua primeira embarcaccedilatildeo viola os limites entre a terra e o mar (Med vv 301-

302 Audax nimium qui freta primus rate tam fragili perfida rupit) ou como o Coro

afirma inter uitae mortisque uias (Med v 307) Heacutercules por seu turno transgride os

limites do ser humano ao visitar as moradas de Perseacutefone foi audax (Her F v 548) e

teraacute que lsquoromperrsquo (Her F v 566 rumpe) as barreiras entre os dois mundos para

regressar (cf Her F vv 566-567) O heroacutei tem consciecircncia de que infringiu as regras

Quando entra em cena no terceiro Acto invoca Apolo (o deus da luz) e pede-lhe

perdatildeo por obrigaacute-lo a contemplar aquilo que eacute inlicitum (vv 595-596 da Phoebe si

quid illicitum tui uidere uultus) Em seguida invoca todos os outros deuses para que

natildeo fiquem maculados ante a visatildeo de Ceacuterbero (vv 599-603)

Na Ode III (vv 830-894) satildeo descritas uma vez mais sobre as regiotildees

subterracircneas Parece haver uma continuaccedilatildeo da descriccedilatildeo que Teseu faz dessas moradas

77

mas ao contraacuterio dele que enumera os monstros que aiacute habitam o Coro refere-se agraves

numerosas sombras que percorrem um caminho tristis et nigra metuenda silua (v 836)

Esta Ode comeccedila por falar de Euristeu (vv 830-831) tal como na Ode II

recordando o uacuteltimo trabalho que o soberano impocircs a Heacutercules e que este cumpriu a

descida agraves mansotildees inferiores para de laacute arrebatar Ceacuterbero (vv 830-833) O Coro

critica novamente a ousadia de Heacutercules fez o mesmo percurso que os mortos Haacute

uma insistecircncia no toacutepico da infracccedilatildeo do que natildeo eacute liacutecito acentuada pelo uso de

vocaacutebulos da famiacutelia de audax116 que funciona como ldquoponterdquo entre as vaacuterias odes e

como ligaccedilatildeo entre o que o Coro e as personagens dizem

O Coro parte deste juiacutezo criacutetico para descrever a turba de sombras de diversas

idades que se dirige para o Inferno

Quantus incedit populus per urbes ad noui ludos auidus theatri quantus Eleum ruit ad Tonantem quinta cum sacrum reuocauit aestas quanta cum longae redit hora nocti crescere et somnos cupiens quietos Libra Phoebeos tenet aequa currus turba secretam Cererem frequentat et citi tectis properant relictis Attici noctem celebrare mystae tanta per campos agitur silentes turba (vv 838-849)

O siacutemile ndash reforccedilado pelo poliptoto anafoacuterico (quantus quantus quanta) ndash

que aproxima os povos que afluem a um novo teatro (vv 838-839) agraves festas (vv 840-

841) e aos rituais misteacutericos (vv 842-847) da multidatildeo de mortos imprime agrave cena maior

πάθος a morte natildeo escolhe idades (tanto leva os que estatildeo esgotados pela idade

avanccedilada como aqueles que ainda nem sequer a matildee conheceram)

O adjectivo nouus (v 839 noui theatri) que se liga com o facto de todos se

dirigirem para o teatro como uma vaga aacutevida e impetuosa (v 839 auidus v 838

populus) faz sobressair a imagem da tanta turba (cf vv 848-849) que se encaminha

apressadamente para a mansatildeo dos mortos Esta pressa estaacute igualmente marcada nos

outros membros do siacutemile ruit (v 840) citi properant (cf v 846) e eacute acentuada pela

116 O adjectivo audax eacute atribuiacutedo a Heacutercules trecircs vezes v 247 na fala de Anfitriatildeo (audaces manus) v 538 na Ode Coral (audax) v 772 Caronte interpela Heacutercules (audax) A forma verbal com a mesma raiz audeo aparece uma uacutenica vez v 834 Coro (ausus es) Ainda assim essas quatro ocorrecircncias configuram o desenho da personagem como algueacutem que natildeo aceita limites e quer sempre mais

78

repeticcedilatildeo do vocaacutebulo turba (cf v 837 frequens turba v 845 v 849) Tudo isto

concorre para realccedilar a ideia de inevitabilidade ndash a lei universal da morte ndash todos quase

sempre com escassa consciecircncia disso caminham inexoravelmente para a morte Rata

et fixa sunt et magna atque aeterna necessitate ducuntur eo ibis quo omnia eunt117

Neste sentido recorda Seacuteneca a Luciacutelio Quantus te populus moriturorum

sequetur quantus comitabitur Fortior ut opinor esses si multa milia tibi

commorerentur atqui multa milia et hominum et animalium hoc ipso momento quo tu

mori dubitas animam uariis generibus emittunt118 O paralelo entre a Ep 77 e a fala do

Coro (vv 838 ss) eacute visiacutevel quantus populus (Ep 7713 vs Her F v 838) multa

milia (Ep 77 13) assemelha-se a magna turba (Her F v 837) A proacutepria imagem

dada pelo Coro e intensificada pelo siacutemile da numerosa multidatildeo que caminha para os

abismos do inferno eacute semelhante agrave que Seacuteneca sugere nesta Carta evidenciada pela

anaacutefora (multa milia) pelo polissiacutendeto e pelo poliptoto (tibi tu)

Para Shelton ldquoThe simile of people flocking to the mysteries is particularly

good because it is a comparison not only of number but also of destination They all

living or dead approaching an area which is shrouded in mystery119

O Coro ao enumerar a idade das sombras faacute-lo por meio de uma gradaccedilatildeo

descendente do mais velho para o mais novo

pars tarda graditur senecta tristis et longa satiata uita pars adhuc currit meliores aeui uirgines nondum thalamis iugatae et comis nondum positis ephebi matris et nomen modo doctus infans (vv 849-854)

Esta descriccedilatildeo intensificada pela anaacutefora de pars (v 849 e v 851) e a iteraccedilatildeo

de nondum (v 852 v 853) leva o Coro a reflectir sobre a morte Segundo Shelton

ldquoAfterlife according to the chorus is a dreary no-existence a dark emptiness relieved

by no visions of Tantalus or Ixion Its description thus provides a counter-balance to

117 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 77 12 lsquoOs destinos estatildeo determinados de uma vez por todas e prosseguem a sua marcha em obediecircncia agrave lei eterna do universo tu iraacutes para onde vai tudo o maisrsquo 118 Idem Ibidem 7713 lsquoQue multidatildeo de gente natildeo haacute para te seguir na morte que multidatildeo para nela te acompanhar Creio bem que a tua coragem seria maior se visses muitos milhares de pessoas a morrer ao mesmo tempo que tu pois fica sabendo que no preciso momento em que tu vacilas ante a morte muitos milhares de homens e de animais estatildeo de uma forma ou de outra exalando a almarsquo 119 Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 45-46

79

Theseusrsquo lively narrative and makes us comprehend the real horror of deathrdquo120 A

morte eacute inevitaacutevel quid iuuat durum properare fatum (v 867) Assim a pergunta que

se coloca eacute o que deveraacute entatildeo fazer o homem para aceitar que vida e morte caminham

juntas Reflectindo sobre a brevidade da vida e reconhecendo que todo o ser que nasce

teraacute inevitavelmente de morrer o Coro toma consciecircncia de que deve preparar-se para a

morte (v 872 tibi Mors paramur) De nada adianta revoltarmo-nos contra a morte ou

questionaacute-la Encontramos este mesmo ensinamento no De Prouidentia 58 Accipimus

peritura perituri Quid itaque indignamus Quid querimur Ad hoc parati sumus O

verbo eacute o mesmo paro em ambos os casos na sua forma passiva dando luz agrave estreita

afinidade entre a prosa filosoacutefica e o teatro de Seacuteneca

Afinal a vida natildeo eacute mais que uma contagem decrescente para a morte cada dia

natildeo eacute mais um dia que se tem e que se vive mas sim um dia a menos que nos aproxima

do fim O proacuteprio dia que se vive hoje eacute jaacute uma partilha com a morte ndash ela eacute gradual

Mors non una uenit sed quae rapit ultima mors est121 Em Ad Lucilium Epistulae

Morales 2420 Seacuteneca desenvolve esta ideia Cotidie morimur cotidie enim demitur aliqua pars uitae et tunc quoque cum crescimus uita decrescit Infantiam amisimus deinde pueritiam deinde adulescentiam Usque ad hesternum quidquid transit temporis perit hunc ipsum quem agimus diem cum morte diuidimus Quemadmodum clepsydram non extremum stilicidium exhaurit sed quidquid ante defluxit sic ultima hora qua esse desinimus non sola mortem facit sed sola consummat tunc ad illam peruenimus sed diu uenimus122

Se no v 874 o Coro diz prima quae uitam dedit hora carpit em Ep 12018

afirma-se ad mortem dies extremus peruenit accedit omnis carpit nos illa non

corripit123 Novamente encontramos pontos de contacto entre a trageacutedia e os tratados

filosoacuteficos aleacutem de o sentido ser muito proacuteximo (todos os dias nos aproximamos da

morte) o verbo eacute o mesmo (carpit) sugerindo a rapidez com que o homem eacute colhido

120 Idem Ibidem 46 121 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 2421 lsquoa morte vem gradualmente a que nos leva eacute a morte uacuteltimarsquo 122 lsquoMorremos diariamente jaacute que diariamente ficamos privados de uma parte da vida por isso mesmo agrave medida que noacutes crescemos a nossa vida vai decrescendo Comeccedilamos por perder a infacircncia depois a adolescecircncia depois a juventude Todo o tempo que decorreu ateacute ontem eacute irrecuperaacutevel o proacuteprio dia em que estamos hoje compartilhamo-lo com a morte Natildeo eacute a uacuteltima gota que esvazia a clepsidra mas toda a aacutegua que anteriormente foi escorrendo do mesmo modo natildeo eacute a hora final em que deixamos de existir a uacutenica que constitui a morte mas sim a uacutenica que a consuma Atingimos a morte nessa hora mas jaacute de haacute muito caminhaacutevamos para elarsquo 123 lsquoo uacuteltimo dia empurra-nos para a morte mas em todos os outros nos fomos aproximando dela a morte vai-nos colhendo gradualmente natildeo nos arrebata de repentersquo

80

pela morte qualquer que seja o momento qualquer que seja a sua idade Neste sentido

podemos ver que tambeacutem a trageacutedia assume uma perspectiva estoacuteica A mensagem que

Seacuteneca faz passar eacute a mesma

A reflexatildeo do Coro (vv 838-874) que abarca toacutepicos da meditatio mortis

contrasta poreacutem (e o ritmo dos versos marca essa mudanccedila de tom) com a exaltaccedilatildeo de

Heacutercules a que o Coro procede (vv 875-894) Heacutercules que trouxe aparentemente a

paz ao mundo jaacute que tudo foi domado pela sua matildeo124 inclusive o Taacutertaro por ele foi

pacificado ndash iam nullus superest timor nil ultra iacet inferos (vv 891-892) No

entanto esta paz que o Coro refere vai traduzir-se com alguma ironia no seu oposto ou

seja na desordem total com o castigo de Heacutercules que o proacuteprio Coro tem vindo a

anunciar

A Ode IV (1054-1137) surge imediatamente depois do crime de Heacutercules

quando o heroacutei adormece exausto O tom que o distingue varia ao longo da Ode e

assume uma tonalidade traacutegica de contraste com o juacutebilo perante o regresso do heroacutei

com que fechara o seu anterior canto Eacute significativo que a primeira palavra que o Coro

pronuncia seja agora lugeat (v 1054) num conjuntivo sombrio que desfaz a alegria do

imperativo tege (v 894) com que no uacuteltimo verso da Ode anterior exortava aos ritos de

acccedilatildeo de graccedilas O Coro marca assim magistralmente a commutatio fortunae

A Ode principia com um lamento pela desgraccedila de Heacutercules incentivando os

deuses celestes a auxiliarem o heroacutei para que ele recupere a razatildeo Soluite tantis animum

monstris soluite superi rectam in melius flectite mentem (vv 1063-1065) Este

desejo do Coro de querer que Heacutercules recupere de um estado de loucura para o

domiacutenio da razatildeo eacute expressivo pelo recurso agrave anaacutefora (soluite em imperativo com

sentido de exortaccedilatildeo ou mesmo suacuteplica) e agrave aliteraccedilatildeo da fricativa surda dental A

alusatildeo aos monstra que dominam a mente do heroacutei remete para o soliloacutequio de Juno (v

40 monstra iam desunt mihi) A deusa descobrira entatildeo que a uacutenica forma de lutar

contra Heacutercules seria fazecirc-lo travar uma luta contra ele proacuteprio Esta descoberta deixara

impliacutecito um caraacutecter igualmente selvagem de Heacutercules como diz Shelton ldquoIt is his

mad mind which has become the monstrumrdquo125

124 Pax est Herculea manu (v 882) Esta sineacutedoque remete para o poder e para a forccedila sobrenatural do heroacutei Heacutercules tornou o mundo paciacutefico para a humanidade 125 Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 47

81

Por outra parte o Coro pede ao Sono126 em jeito de captatio beneuolentiae que

mantenha o Alcida adormecido enquanto ele natildeo recuperar a sanidade ateacute que redeat

pietas uirtusque uiro (v 1093) Esta recuperaccedilatildeo que o Coro refere natildeo eacute fiacutesica mas

psicoloacutegica isto eacute natildeo estaacute relacionada com a uirtus animosa a que o Coro alude na

Ode I (v 201) antes remete para a capacidade de agir virtuosamente

Contudo no verso seguinte o Coro muda por completo de opiniatildeo (a mudanccedila eacute

marcada pela conjunccedilatildeo coordenativa disjuntiva uel)

uel sit potius mens uesano concita motu error caecus qua coepit eat solus te iam praestare potest furor insontem proxima puris sors est manibus nescire nefas

(vv 1094-1099)

O Coro considera que eacute preferiacutevel que o heroacutei desconheccedila a realidade

permanecendo assim na sua loucura e ignorando as consequecircncias do seu erro de

avaliaccedilatildeo (cf v 1065 rectam mentem) No ponto de vista de Shelton no que diz

respeito aos versos supracitados ldquoIts statement though true is not the statement of a

noble man because it completely avoids the difficult question of guilt and responsibility

Its suggestion here emphasizes by contrast Herculesrsquo later determination to accept guilt

and punishmentrdquo127

E os versos finais na apoacutestrofe aos cadaacuteveres das crianccedilas que Heacutercules

chacinou satildeo a derradeira criacutetica ao heroacutei que desperdiccedilou parte da sua vida a combater

contra monstros quando ele proacuteprio revelou ser um monstro ao abrir aos filhos e agrave

mulher o caminho para os Infernos local de onde tinha acabado de sair com os despojos

de guerra

Esse movimento de regresso cumprido por inocentes e natildeo por Heacutercules mas

por este aberto agrave proacutepria famiacutelia estaacute significativamente sugerido no v 1136 que

formalmente ldquoenvolverdquo o caminho luacutegubre que os pueri tecircm de percorrer como que

num abraccedilo letal na alusatildeo aos trabalhos de Heacutercules (v 1136 noti per iter triste

laboris) este foi de facto o seu uacuteltimo e traacutegico trabalho

126 Veja-se a longa enumeraccedilatildeo de epiacutetetos que caracterizam o Sono (vv 1066-1077) que estatildeo entre o sujeito (tu[que] ndash v 1066) e o predicado (preme ndash imperativo presente) 127 Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 48

82

Em siacutentese poucas semelhanccedilas haacute entre o Coro da peccedila de Euriacutepides e o do

Hercules Furens de Seacuteneca Enquanto o primeiro elogia Heacuteracles (antes da cena da

loucura) e comunica com as personagens no decorrer da acccedilatildeo dramaacutetica o Coro de

Seacuteneca natildeo apoia Heacutercules e toma uma posiccedilatildeo criacutetica relativamente ao

desenvolvimento da acccedilatildeo No Hercules Furens o Coro comenta faz reflectir propotildee

linhas de anaacutelise das circunstacircncias e do protagonista bem como da condiccedilatildeo humana

em geral sob um ponto de vista que eacute essencialmente o da doutrina estoacuteica Como

explica Shelton ldquoThe choral odes help to establish the theme of the play not through the

development of imagery but through expansion on a moral or philosophical issuerdquo128

A forma como cada um dos tragedioacutegrafos trabalha o Coro eacute completamente

diferente Em Euriacutepides os anciatildeos reagem desfavoravelmente agrave fragilidade que a sua

situaccedilatildeo lhes provoca sentem que natildeo satildeo mais do que palavras (v 112) movimentam-

se com dificuldade necessitando de se apoiarem uns nos outros (vv 124-126) a sua

debilidade natildeo lhes permite ajudar a famiacutelia heraclida (vv 312-314) Por oposiccedilatildeo

elogiam a juventude sinoacutenimo de vigor e de prosperidade considerando-a a mais

valiosa de todas as riquezas (vv 637 ss) Segundo Chalk ldquoThe aged weakness of the

Chorus is the antithesis of strenght and strength is embodied above all in Herakles for

whom it becomes also lsquothe source of his calamityrsquo The relevance of the choral odes is

to be found in their handling of these themes especially that of Heraklesrsquo strengthrdquo129

Em Seacuteneca o Coro entende que a velhice eacute uma recompensa pela forma como

soube aproveitar a sua vida porque se traduziu num humilique loco (v 199) e numa

sordida fortuna paruae domus (v 200) Tambeacutem em Ad Lucilium Epistulae Morales

Seacuteneca recorda que a vida do homem eacute preciosa quando vivida em plenitude natildeo

importa a durabilidade da vida mas sim a qualidade130

No que diz respeito agrave funccedilatildeo do Coro na trageacutedia Hercules Furens podemos

afirmar que natildeo estaacute desvinculada da acccedilatildeo A posiccedilatildeo criacutetica que assume ao

caracterizar o protagonista aproxima-o das demais personagens da trageacutedia Ao

socorrer-se de exemplos miacuteticos (por exemplo a descida de Orfeu ao mundo

subterracircneo para resgatar Euriacutedice ndash vv 569-589) o Coro prenuncia o destino fatal de

Heacutercules situa ldquoo comportamento das principais personagens das peccedilas numa tradiccedilatildeo

128 Idem Ibidem 42 129 H H O Chalk ldquoἀρετή and βία in Euripidesrsquo Heraclesrdquo Journal Hellenic Studies 82 (1962) 8 130 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 93 2 ss

83

criminosa familiar e [fornece] indiacutecios sobre o tipo de nefas que seraacute cometidordquo como

refere Paulo Ferreira131

Discordamos assim da posiccedilatildeo de Mendell quando diz The odes in the Senecan plays have not a natural and necessary function but are used almost exclusively to mark divisions between acts They are not either choral or truly lyric in quality but use lyric meters and would probably have been designated as such if a Roman critic had tried to classify them They develop the themes of current popular wisdom dressing it up with a considerable amount of learning They are rather an accessory to the play than an integral part of it132

Na verdade o Coro anuncia a entrada das personagens em cena como eacute

exemplo a Ode I descrevendo fiacutesica e psicologicamente a forma como Meacutegara os seus

filhos e Anfitriatildeo entram (vv 202-204) daacute indiacutecios daquilo que iraacute acontecer num

futuro breve (Ode I II III) ldquofixa o tempo dramaacutetico (Her F I) e constitui um

intermezzo para superar um intervalo de tempo (Her F II e III)rdquo133 observa e critica as

acccedilotildees das personagens (vv 1032-1034 censura a atitude de Anfitriatildeo que incentiva

Heacutercules a imolaacute-lo como mais uma viacutetima de sacrifiacutecio aos deuses) descreve a figura

do heroacutei enquanto dormia fatigado pela suacutebita demecircncia que o atacou (vv 1053-1137)

delineando o seu estado psicoloacutegico e dando provas de que a perturbaccedilatildeo mental ainda

natildeo abandonou o protagonista

6 Divindades

a) caracterizaccedilatildeo de Iacuteris e Lissa

na trageacutedia de Euriacutepides

Iacuteris e Lissa aparecem no IV Episoacutedio (vv 822-874) Este foi considerado como

um segundo Proacutelogo pela forma como estaacute construiacuteda a ῥῆσις de Iacuteris134 O aparecimento

131 Paulo Seacutergio Margarido Ferreira Seacuteneca em Cena Enquadramento na Tradiccedilatildeo Dramaacutetica Greco--Latina (Coimbra diss de Doutoramento em Letras aacuterea de Estudos Claacutessicos especialidade de Literatura Latina apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 2006) 262 132 Clarence W Mendell Our Seneca (sl Archon Books 1968) 138 133 Paulo Seacutergio Margarido Ferreira Seacuteneca em Cena Enquadramento na Tradiccedilatildeo Dramaacutetica Greco-Latina 266 134 Bond 281 admite que os vv 822-874 se assemelham a um segundo proacutelogo apesar de na sua extensatildeo ser mais pequeno do que um normal monoacutelogo inicial Tambeacutem Shirley 160 sugere o mesmo

84

das deusas vem na sequecircncia do canto do Coro em honra dos deuses por castigarem os

iacutempios e auxiliarem os suplicantes e em louvor de Heacuteracles por ter vindo como

restaurador do poder e por ter provado ser filho de Zeus O contraste entre o juacutebilo do

Coro no terceiro estaacutesimo e o efeito que a entrada de Iacuteris e Lissa tem sobre ele eacute

profundo O Coro fica aterrorizado pois ao ver as deusas aproximarem-se do palaacutecio

antevecirc novas desgraccedilas que se abateratildeo sobre todos (vv 815-821)

Iacuteris acalma o Coro e apresentando-se como mensageira dos deuses e a Lissa

como a filha da Noite revela-lhes a razatildeo que a levou a Tebas enlouquecer Heacuteracles

Os verdadeiros motivos que teratildeo levado Hera a querer enlouquecer o heroacutei natildeo satildeo

abertamente revelados Iacuteris alude vagamente ao oacutedio de Hera acrescentando que o

Alcida deve ser punido para que o valor dos deuses seja mantido ἢ θεοὶ microὲν οὐδαμοῦ

τὰ θνητὰ δ᾿ ἔσται μεγάλα μὴ δόντος δίκην (vv 841-842)135 Informa apenas que

enquanto decorriam os trabalhos do Alcida ele estava protegido pelo destino136

Os motivos que justificam essa vontade de castigaacute-lo poderatildeo ter que ver com a

forma violenta como Heacuteracles resolve as situaccedilotildees137 o ter descido ao Hades e ter tirado

de laacute Ceacuterbero ou ainda porque eacute considerado pelas personagens dramaacuteticas (por

Anfitriatildeo por Meacutegara e pelo Coro) um heroacutei de grande valor e forte ou entatildeo por ser

filho de Zeus138 Para Bond ldquothe conclusion of Irisrsquo speech has been taken to imply

that Heracles must be punished not merely for bastardy but simply for being so

greatrdquo139 Barlow pelo contraacuterio comenta

In spite of the phrase microὴ δόντος δίκην ldquounless he pays the penaltyrdquo at 842 it is impossible to see that Heracles has done anything to deserve

ldquoThe scene has some of the features of a second prologue with its clarity its introduction of a speaker who is a god and its position in begining a new actionrdquo 135 lsquoEacute que os deuses natildeo existem e a raccedila dos mortais seraacute todo poderosa se natildeo houver expiaccedilatildeo das culpasrsquo 136 Esta ideia liga-se agrave de Anfitriatildeo (vv 18-21) καὶ πάτραν οἰκεῖν θέλων καθόδου δίδωσι μισθὸν Εὐρυσθεῖ microέγαν ἐξημερῶσαι γαῖαν εἴθrsquo Ἥρας ὕπο κέντροις δαμασθεὶς εἴτε τοῦ χρεὼν μέτα (lsquoTentando solucionar os meus infortuacutenios e desejando libertar a famiacutelia do exiacutelio oferece-se a Euristeu para purificar a terra dos seus monstros preccedilo alto que paga pelo nosso regresso subjugado pelos aguilhotildees de Hera ou pelo terriacutevel destinorsquo) Note-se que natildeo eacute constante ao longo da trageacutedia a atribuiccedilatildeo da autoria dos trabalhos Se no Proacutelogo Anfitriatildeo remete para Hera ou para o destino neste episoacutedio eacute dito que foi o destino e no uacuteltimo episoacutedio as personagens apontam Hera como forccedila responsaacutevel 137 Quando Meacutegara explica a Heacuteracles a razatildeo que levou Lico a querer matar a famiacutelia do heroacutei este propotildee mataacute-lo e lanccedilar a cabeccedila do tirano aos catildees Aleacutem disso ao saber tambeacutem pela mulher que natildeo tiveram qualquer ajuda por parte dos habitantes de Tebas decide castigar todos os que natildeo auxiliaram a sua famiacutelia Estes satildeo exemplos que demonstram que o caraacutecter de Heacuteracles tende a ser violento 138 O Coro (vv 696-700 vv 798-814) engrandece as faccedilanhas do heroacutei que desceu ao Hades mas regressou para restaurar a ordem e o reino e o seu duplo nascimento de Anfitriatildeo e Zeus 139 Bond xxv-xxvi

85

a punishment except that he is who he is ndash an enemy just by his existence to Hera His killing of Lycus for example was in defence of his closest family There is no evidence in the text to suggest overweening arrogance on this part or any kinf of hubris which might bring down Herarsquos wrath with more reason It is rather her excessive irrational action which is intended to disturb () On the extreme reluctance of Lyssa to perform her task (846 854 858) () Her attitude stresses that Heracles is an innocent victim rather than a wrongdoer to be avenged and he is left after the murders to deal with the chaos of his own mind as best he may140

Concordamos em boa parte com Barlow julgamos contudo que natildeo deve ser

desprezada a forma impetuosa como Heacuteracles age tanto a morte de Lico como a da

famiacutelia do heroacutei denotam um caraacutecter que eacute facilmente possuiacutedo pela violecircncia Se no

primeiro caso o Alcida procede a um castigo ndash o acto feroz eacute justificado pela

necessidade de proteger a famiacutelia e de repor a ordem (Lico eacute um tirano) ndash no segundo

ele age sob o domiacutenio da loucura A crueldade eacute poreacutem a mesma Parece-nos que o

Alcida oscila entre a ἀρετή e a βία

Ora Lissa natildeo partilha dos desiacutegnios das deusas (vv 847-854) Contesta e

procura demovecirc-las do que planeiam Faacute-lo porque as qualidades do heroacutei o tornaram

conhecido ateacute no mundo inferior Argumentando enumera alguns dos seus feitos

a) pacificou a terra inacessiacutevel e os mares (v 851)

b) tornou os homens mais tementes restaurando a honra aos deuses (vv 852-

853)

Sem conseguir fazer valer o seu ponto de vista Lissa dispotildee-se a cometer o acto

que reprova por ser obrigada pelas deusas Bond comenta ldquoThis scene has obvious

similarities with the prologue of Prometheus the contrast between the vindictive Kratos

and Hephaestus the reluctant instrument of punishment is repeated in the contrast

between Iris and Lyssa and Prometheus like Heracles is a benefactor of mankindrdquo141

No entanto Hefesto reconhece o erro de Prometeu sendo castigado por isso Jaacute Lissa

natildeo vecirc qualquer culpa em Heacuteracles

Barlow procura ver nas manifestaccedilotildees das trecircs divindades (Iacuteris ndash Hera Lissa)

uma explicaccedilatildeo ldquoThat Lyssa the representative of wild and irrational forces should

herself appear as sober and moderate (857) but yet be overcome by Herarsquos will serves

140 Barlow 160 141 Bond 281

86

to underline the inexorable power and wanton destructiveness of Herarsquos nature and the

complete innocence in contrast of Heracles himselfrdquo142

b) caracterizaccedilatildeo da personagem na trageacutedia de Seacuteneca Juno

Juno eacute a primeira personagem a ser apresentada em cena e a uacutenica do Acto I (vv

1-124) O aparecimento desta divindade no iniacutecio da peccedila permite estabelecer de

imediato um contraste entre a trageacutedia de Seacuteneca e a de Euriacutepides Na peccedila grega

Anfitriatildeo e Meacutegara surgem no Proacutelogo e Iacuteris entra em cena como mensageira de Hera

(esta deusa natildeo interveacutem uma uacutenica vez mas eacute constantemente aludida143) No entanto

haacute alguns pontos em comum em ambas as trageacutedias as deusas celestes Iacuteris e Juno

procuram enlouquecer o Alcida e precisam de um elemento do mundo inferior para

conseguir concretizar o que ambicionam Aparecem uma uacutenica vez no iniacutecio da acccedilatildeo

(no caso de Seacuteneca) ou no lsquosegundo proacutelogorsquo144 Divergem todavia na forma como

cada um dos autores explora a funccedilatildeo das personagens

A funccedilatildeo de Juno no Acto I natildeo eacute a de apresentar a peccedila resumindo a trama

como acontece em algumas trageacutedias de Euriacutepides por exemplo Afrodite no Hipollytus

ou Hermes no Ion145 Seacuteneca pretende exemplificar as manifestaccedilotildees psicoloacutegicas dos

estados passionais que dominam as personagens levando-as a uma espiral incontrolaacutevel

de erros e crimes Isto permite a Seacuteneca segundo Fitch ldquoto create a portrait of violent

uncontrolled emotion and the atmosphere of horror and suspense that naturally

accompanies itrdquo146 Juno eacute mais um exemplum daquilo a que um animus iratus pode

conduzir

Para definir a personagem pois Seacuteneca dota-a de um caraacutecter uitiosus

dominado pelas paixotildees que vai sendo revelado ao longo do seu discurso A fala de

Juno pode ser dividida em trecircs partes que representam o reconhecimento daquilo que

verdadeiramente a perturba (vv 1-18) a procura de uma forma de destruir a pessoa que

a transtorna (vv 19-63a) e a descoberta de um meio de aniquilar essa personagem (vv

63b-124) Esta evoluccedilatildeo traduz-se num crescendo do furor da deusa que atinge a ἀκμή

na terceira parte

142 Barlow 8 143 Vide v 20 v 829 v 831 v 840 v 848 v 855 v 859 v 1127 v 1189 v 1253 v 1264 vv 1307-1309 v 1393 144 Vide aliacutenea 5 subaliacutenea a) 145 Nestas peccedilas os deuses contextualizam a acccedilatildeo e apresentam o tema 146 Fitch 116

87

No primeiro momento (vv 1-18) Juno apresenta-se por meio de uma periacutefrase

Soror Tonantis (v 1) Estas palavras iniciais servem de mote para a deusa expor as

causas do ressentimento (o saeuus dolor que ela proacutepria identifica no v 28) que sente

devido agraves inuacutemeras infidelidades de Juacutepiter e do papel a que ele a reduziu de esposa e

deusa suprema ele remeteu-a ao lugar de irmatilde (vv 1-2 hoc enim solum mihi nomen

relictum est) A palavra Soror no iniacutecio do primeiro verso marca o seu regresso a um

estatuto menor anterior agravequele de que gozou enquanto uxor do Tonante Aleacutem disso a

sua condiccedilatildeo eacute de uidua (v 3 lsquoaquela que tem o marido ausentersquo que estaacute privada do

marido) uma vez que Juacutepiter tornou-se no lsquomaridorsquo sempre alheio (v 2 semper

alienum Iouem) Juno demarca a desconsideraccedilatildeo que a atinge pelo facto de ter sido

obrigada (v 4 pulsa) a abandonar (v 3 deserui) o seu reino celeste e o palaacutecio dos

deuses (vv 3-4 templa summi aetheris locumque caelo) para ceder o seu lugar agraves

paelices (v 5) de Juacutepiter A deusa foi expulsa do ceacuteu ficando confinada agrave terra (v 5

tellus colenda est) enquanto as amantes do deus ocupavam o seu lugar (v 5 caelum

tenent) ndash a antiacutetese terra vs ceacuteu acentuada pelas formas verbais pulsa e colenda est

pelo quiasmo (vv 4-5 caelo paelicibus ndash paelices caelum) datildeo a imagem de uma

deusa derrotada e ressentida

Juno enumera entatildeo (vv 6-18) algumas das paelices de Juacutepiter que foram

transformadas em constelaccedilotildees juntamente com os filhos dessas relaccedilotildees aduacutelteras (v

12 Oriacuteon v 13 Perseu por exemplo) Esse catasterismo eacute visto pois na perspectiva

de Juno como motivo suficiente para as suas maacutegoas passadas (v 19 Sed uetera

querimur) A deusa reconhece que haacute agravos maiores por meio de uma gradaccedilatildeo

ascendente de motivos de queixa Juno concentra-se num uacutenico local Tebas a cidade de

onde vieram mais amantes (vv 19-21) A referecircncia a este espaccedilo daacute-lhe a oportunidade

de ir ao ponto que lhe interessa focar ndash passando para a segunda parte do seu

soliloacutequio147 (vv 19-63a) ndash Alcmena (vv 21-22) a mulher amada de Juacutepiter e o fruto

desse amor Heacutercules (vv 22-26) que sempre superou (cf v 33 superat) os obstaacuteculos

e provaccedilotildees com que Juno pensou destruiacute-lo (vv 27-42)

147 Segundo Fitch (1) 115 a fala de Juno natildeo eacute proferida num monoacutelogo mas num soliloacutequio Comprova este entendimento o facto de ela natildeo se dirigir ao auditoacuterio para explicar o que vai fazer Eacute agrave medida que ela vai cogitando uma forma de se poder vingar que ficamos a conhecer os seus planos como por exemplo quando ela diz natildeo querer dar um uacutenico momento de paz e procura algum meio de derrotar o heroacutei (vv 30-32) Observe-se que soacute reconhecemos que eacute Juno quem estaacute a falar pela forma como se apresenta nos primeiros versos Soror Tonantis ndash hoc enim solum mihi nomen relictum est (vv 1-2) ao contraacuterio do que acontece em Euriacutepides na peccedila homoacutenima Anfitriatildeo identifica-se logo nos dois primeiros versos Τίς τὸ Διὸς σύλλεκτρον οὐκ οἶδεν βροτῶν ᾿Αργεῖον ᾿Αμφιτρύων [lsquoQuem de entre os mortais natildeo conhece aquele que partilhou o leito com Zeus o argivo Anfitriatildeorsquo]

88

Eacute a evocaccedilatildeo deste episoacutedio de infidelidade que mais lhe custa a suportar que

suscita a diferenccedila radical da linguagem que usa dominada pelas paixotildees os termos

satildeo mais violentos revelando um caraacutecter ferus assim que comeccedila a falar de Heacutercules

Juno manifesta o seu oacutedio pelo heroacutei reconhecendo em si um uiolentus animus (v 28)

Consciente do seu estado afectivo a deusa natildeo pretende apaziguaacute-lo non sic abibunt

odia (v 27) antes procura um meio de prejudicar Heacutercules aeterna bella pace sublata

geret (v 29) ndash a estrutura quiaacutestica reforccedilada pela antiacutetese e o emprego do futuro

imperfeito em geret traduzem a intenccedilatildeo de subverter toda a ordem criando uma

situaccedilatildeo que de favoraacutevel para Heacutercules se torne em adversidade pura e constante

Em trecircs versos (vv 27-29) Seacuteneca reuniu concentrando-os um conjunto de

vocaacutebulos especiacuteficos que designam as paixotildees enquanto perturbaccedilotildees da alma Juno eacute

movida por odia (v 27) pela ira (cf v 28) pelo dolor (v 28) Os proacuteprios adjectivos

que qualificam os substantivos que denominam as passiones estatildeo carregados de

significado uiuaces (v 28) aponta para um uitium entranhado arreigado perene

impossiacutevel de dominar uiolentus (v 28) vem de uis que significa em primeiro lugar a

forccedila que se exerce contra algueacutem saeuus (v 28) aproxima a atitude de Juno da

crueldade que eacute proacutepria dos animais selvagens

Do seu estado de ira (v 35) passa a temor (v 61) quando vecirc que Heacutercules

venceu o mundo inferior A anaacutefora (v 50 uidi) realccedilada pela assonacircncia em e (v 48

effregit ecce limen inferni) pela aliteraccedilatildeo (v 51 Dite domito) e pela antiacutetese (v 48

inferni v 49 superos) concorre para acentuar a ousadia e o scelus de Heacutercules ele

quebrou as barreiras existentes entre os dois mundos ao trazer das sombras Ceacuterbero e

derrotou o soberano do mundo subterracircneo (vv 51-52)

A alusatildeo aos Infernos eacute um toacutepico recorrente natildeo soacute nesta trageacutedia como

tambeacutem na homoacutenima de Euriacutepides No tragedioacutegrafo grego a referecircncia ao Hades estaacute

relacionada com a ausecircncia do protagonista A maior parte das personagens natildeo acredita

que o heroacutei consiga regressar das moradas subterracircneas apenas a Anfitriatildeo resta uma

esperanccedila de que o filho regressaraacute (v 97) Em Seacuteneca este tema estaacute mais presente e

mereceu uma reflexatildeo mais ampla do que na trageacutedia homoacutenima148 Os motivos filiam-

-se na perspectiva estoacuteica que se pretende veicular149

148 Em Seacuteneca por exemplo Teseu descreve os Infernos (vv 662-806) e o Coro (vv 835-863) enumera o geacutenero de turba que desce agrave mansatildeo das sombras Em Euriacutepides parece natildeo haver um grande interesse em descrever as moradas de Hades De facto estas satildeo apenas referidas (vv 607-621) e Heacuteracles limita-se a contar a Anfitriatildeo que teve de lutar contra Ceacuterbero (v 613) e que libertou Teseu dos Infernos (v 619) 149 Vide aliacutenea 4 subaliacutenea b)

89

No caso de Juno o espaccedilo infernal provoca-lhe dois sentimentos contraditoacuterios

pavor e juacutebilo Pavor por ter enviado Heacutercules na complexa missatildeo de trazer Ceacuterbero da

mansatildeo de Plutatildeo e ele ter concluiacutedo a tarefa bem como pelo regresso do heroacutei do

mundo infernal que resultou na quebra das barreiras que existiam entre o mundo

subterracircneo e o terrestre pavor tambeacutem por ele ter derrotado o deus dos Infernos

Causa-lhe juacutebilo por ser nesse mesmo local que encontraraacute o δαίμων perfeito que

transtornaraacute Heacutercules e serviraacute a sua vinganccedila

Uma vez que este lugar foi subjugado Heacutercules pode querer vencer o celeste e

destronar o proacuteprio pai Juacutepiter (cf vv 64-65 regna summa sceptra) Isto eacute o que a

deusa afirma temer e o verso 63 permite transitar para a terceira parte do seu discurso

Satildeo visiacuteveis entre a segunda e terceira partes (correspondentes agraves etapas do pensamento

de Juno) algumas semelhanccedilas sed uetera querimur (v 19) vs leuia sed nimium queror

(v 63) Em termos sintaacutecticos satildeo adversativas (sed) o verbo usado eacute o mesmo

(queror) estaacute no mesmo tempo (presente) e modo (indicativo) Isto ilustra o facto de

Juno sentir os agravos como reais e presentes (a mudanccedila de nuacutemero plural singular eacute

irrelevante dado serem ambas formas de primeira pessoa) Os adjectivos uetera e

depois leuia satildeo significativos no sentido em que revelam a progressatildeo do raciociacutenio

da deusa e a intensificaccedilatildeo das suas emoccedilotildees primeiro falou de coisas passadas depois

de coisas que natildeo tecircm tanta importacircncia em relaccedilatildeo ao que vai evocar em seguida

(aquilo que ela vai conceber e decidir)

No entanto como nota Fitch as acusaccedilotildees que Juno faz relativamente agraves acccedilotildees

de Heacutercules satildeo de teor fraacutegil uma vez que ela proacutepria o perseguiu desde a infacircncia sem

qualquer piedade Aleacutem disso foi ela quem lhe deu a ordem de descer ao mundo

subterracircneo O heroacutei limitou-se a cumprir as ordens da deusa ldquoHer allegations appear to

be a trumped-up excuse for continuing or rather intensifying her persecution of the

herordquo150 Juno assume ser a nouerca (v 21 v 112) a figura da madrasta que persegue

com hostilidade o fruto da relaccedilatildeo aduacuteltera Heacutercules Segundo Antonella Borgo

ldquoQuella della nouerca egrave dunque una figura sempre negativa mossa comrsquoegrave naturale da

rancore e da animositagrave nei confronti dei nuovi figli del compagno pronta a macchiarsi

dei piugrave gravi crimini pur di colpirlirdquo151

Na terceira parte (vv 63b-124) Juno evoca uma vez mais a ira (v 75 perge

ira perge et magna meditatem opprime) agora em forma intensificada ndash a iteraccedilatildeo do 150 Fitch (1) 21 151 Antonella Borgo Lessico Parentale in Seneca Tragico (Napoles Loffredo Editore 1993) 73

90

imperativo (perge) a apoacutestrofe a aliteraccedilatildeo em oclusiva nasal bilabial acentuam esse

affectus Aleacutem desta apoacutestrofe contam-se no discurso da deusa mais trecircs

Na segunda apoacutestrofe Juno dirige-se a Heacutercules (vv 89-91) ameaccedilando

mostrar-lhe o mundo infernal

i nunc superbe caelitum sedes pete humana temne Iam Styga et manes feros fugisse credis Hic tibi ostendam inferos reuocabo in alta conditam caligine ultra nocentum exilia discordem deam quam munit ingens montis oppositi latus educam et imo Ditis e regno extraham quidquid relictum est ueniet inuisum Scelus suumque labens sanguinem Impietas ferox Errorque et in se semper armatus Furor ndash Hoc hoc ministro noster utatur dolor

(vv 90-99)

Os imperativos (v 90 i pete v 91 temne) em apoacutestrofe ao heroacutei ausente ndash a

deusa qualifica Heacutercules como superbus (v 90) por ousar praticar acccedilotildees que vatildeo aleacutem

do que eacute permitido ao comum dos mortais (cf vv 90-91) ndash demonstram o rancor de

Juno A aliteraccedilatildeo feros fugisse (vv 91-92) a antiacutetese ceacuteu (v 90 caelitum) versus

inferno (vv 91-92 Styga manes feros inferos) e a pergunta retoacuterica avivam o seu

oacutedio e conduzem-na a encontrar o tipo de bella (v 85) que procura seraacute precisamente

para os inferi (v 93) ndash o adveacuterbio de lugar (v 93 hic) delimita o espaccedilo ndash que ela

proacutepria conduziraacute o acircnimo do Alcida Juno estaacute decidida sabe o que fazer e para onde

se dirigir Manda e comanda O futuro imperfeito (v 91 ostendam v 93 reuocabo v

95 educam extraham v 96 ueniet) e as aliteraccedilotildees (v 92 conditam caligine v 93

discordem deam) condensam o resultado esperado e que ela sabe que iraacute conseguir

Heacutercules enlouqueceraacute Seraacute precisamente do Furor e do Error152 que Heacutercules

chegaraacute ao Scelus e agrave Impietas Os adjectivos que qualificam estes affectus satildeo

simboacutelicos inuisum (v 96) remete para o tipo de crime que o protagonista vai cometer

(filiciacutedio e uxoriciacutedio) ferox da mesma raiz que ferus aponta para um affectus ousado

violento cruel que aproxima a acccedilatildeo de Heacutercules agrave de um animal selvagem o adjectivo

armatus a qualificar o furor indicia que esta passio impulsionaraacute o protagonista ao

crime e agrave impiedade Ele usaraacute para o efeito as suas proacuteprias armas

152 No momento da loucura Heacutercules julga que estaacute a matar os filhos de Lico e que estaacute a castigar Juno quando satildeo os seus filhos e esposa que estatildeo a ser assassinados

91

Tambeacutem as figuras de retoacuterica satildeo significativas nos vv 96-98 a assonacircncia de

nasais suumque lambens sanguinem Impietas a aliteraccedilatildeo Scelus suumque tudo

concorre para intensificar o efeito terriacutevel que tem como causa o seu ressentimento o

dolor que Juno manifesta no v 99

Na terceira apoacutestrofe Juno invoca as Fuacuterias (vv 100-109) identificando-as por

famulae Ditis (v 100) periacutefrase que as torna ainda mais terriacuteveis na sua esfera de acccedilatildeo

e de subordinaccedilatildeo Numa sucessatildeo de verbos de movimento na forma imperativa (v

100 incipite v 101 cuncite v 104 agite petite) e no conjuntivo exortativo (v 102

ducat v 103 corripiat) Juno reuacutene ao serviccedilo do seu dolor as forccedilas nefastas

ordenando-lhes e exortando-as a castigarem e vingarem o crime de Heacutercules E no v

110 a deusa inclui-se no grupo das terriacuteveis fuacuterias quando lhes chama sorores (v 110

me me sorores mente deiectam mea) A assonacircncia nasal reforccedilada pela aliteraccedilatildeo em

oclusiva nasal bilabial a iteraccedilatildeo do pronome pessoal me concorrem para acentuar o

desejo que a deusa tem de enlouquecer Iuno cur nondum furis (cf v 109) Nesta

terceira apoacutestrofe Juno dirige-se a si mesma (v 109) porque ainda natildeo sentiu a

pretendida transformaccedilatildeo em Fuacuteria (vv 109-112) Estas trecircs apoacutestrofes que vatildeo

variando de destinataacuterio traduzem as oscilaccedilotildees das emoccedilotildees de Juno demonstrando as

passiones a que ela estaacute submetida

Um outro aspecto a notar eacute a insistecircncia na palavra bella (v 29 v 30 v 85 v

123) no decorrer do soliloacutequio de Juno que estaacute intimamente vinculada com a evoluccedilatildeo

do raciociacutenio da deusa e contribui para acentuar o tom de suasoria que subjaz ao passo

Admitindo que o o oacutedio a ira e a dor natildeo lhe permitem deixar que Heacutercules tenha pax

Juno vai procurando alternativas para manter bella ad aeternum (cf v 29) Surge-lhe

entatildeo a pergunta Quae bella (v 30) Haacute que definir quais satildeo as guerras que Juno

poderaacute mover contra Heacutercules Depressa ela se apercebe da dificuldade em vencer o

Alcida ou pior ainda apercebe-se de que o heroacutei suberveteu a situaccedilatildeo atingindo-a a

ela proacutepria iraque nostra fruitur in laudes suas mea uertit odia (vv 34-35) Juno vai

analisando o que natildeo vale mais a pena fazer uma vez que tambeacutem jaacute lhe faltam recursos

(v 40 monstra iam desunt mihi) O seu raciociacutenio vai sendo encaminhado para um

ponto em que ela se apercebe de que os bella teratildeo de ser de uma espeacutecie inusitada (v

85 bella iam secum gerat) a guerra seraacute contra ele mesmo

Ao encontrar a soluccedilatildeo que se lhe afigura como a mais adequada e a mais

eficaz Juno passa a acccedilatildeo Mas se no v 109 ela diz pretender enlouquecer primeiro a

92

deusa faz agora um acerto no seu raciociacuteonio uota mutentur mea (v 112) Haacute uma

eficaz correcccedilatildeo no plano ateacute aiacute concebido Juno descobre-o num ponto do seu

raciociacutenio (v 114 inueni aspecto pontual de um perfeito do indicativo) A partir daqui

as relaccedilotildees de causa e efeito satildeo estabelecidas de forma mais linear me uicit et se

uincat et cupiat mori ab inferis reuersus (vv 116-117) O poliptoto aliado ao

conjuntivo optativo e ao homeoptoto acentua a clareza de raciociacutenio e demonstra que a

deusa ajustou a sua mira encontrando o ponto adequado e que serviraacute os seus

interesses hic prosit mihi (v 116) Tambeacutem por isso ela jaacute natildeo necessita de uma forccedila

infernal para a auxiliar ao contraacuterio de Hera e de Iacuteris que chamaram Lissa para instigar

em Heacuteracles a loucura Juno sozinha conduziraacute pela sua matildeo (v 119 librabo manu)

guiaraacute as flechas e os golpes de Heacutercules permanecendo ao lado dele na luta (vv 120-

121) Juno apenas lhe inspiraraacute o furor Depois de o crime estar concluiacutedo (v 121

scelere perfecto) nesse preciso momento Heacutercules poderaacute ascender aos astra promissa

(v 23) e Juacutepiter acolhecirc-lo (v 122 admittat illas genitor in caelum manus) A ironia

acentuada pela antonomaacutesia manifestam a crenccedila de Juno na impossibilidade de Juacutepiter

aceitar Heacutercules inter diuos Ela tem consciecircncia do acto que o Alcida vai realizar

Tomada a decisatildeo completado o raciociacutenio cumpre agora passar agrave acccedilatildeo (v

123 mouenda iam sunt bella) A perifraacutestica passiva traduz a necessidade de pocircr de

imediato e naquele preciso momento (iam) os bella que no seu entender a libertaratildeo do

seu ressentimento por Heacutercules e a compensaratildeo do seu despeito por ter sido preterida

por Juacutepiter e ultrapassada pelo heroacutei pela bravura com que sempre concluiu os seus

trabalhos

A forma como Juno constroacutei o seu raciociacuteno eacute semelhante ao de Medeia (na peccedila

que leva o seu nome) Ambas se sentem traiacutedas pelos maridos por isso satildeo movidas

pelo dolor o ressentimento pelo ciuacuteme pelo despeito e rancor Em ambos os casos as

personagens deixam-se dominar pelo furor esforccedilando-se por encontrar um meio de se

vingarem dos que as oprimem (Heacutercules no caso de Juno Jasatildeo no caso de Medeia)

Os discursos das duas personagens satildeo retoacutericos elas debatem consigo mesmas

os argumentos que as levam a encontrar uma soluccedilatildeo que julgam ser a mais indicada

(segundo a loacutegica pervertida que as domina) Nos dois casos elas pretendem que as suas

viacutetimas permaneccedilam vivas para mais sofrerem com o resultado (Med vv 19-20 Her

F vv 112-117) ndash ambos Heacutercules e Jasatildeo teratildeo de continuar vivos para verem os

mortos os que amam As duas peccedilas diferem poreacutem na forma como o scelus eacute

93

executado Em Medea seraacute a protagonista a cometer o crime no caso do Hercules

Furens Juno agiraacute usando o Alcida mas estaraacute ao lado dele

Em siacutentese ainda que nas trageacutedias de Euriacutepides e Seacuteneca sejam deusas as

forccedilas motoras da loucura do Alcida a forma como cada uma das peccedilas se vai

desonrolar ateacute agrave concretizaccedilatildeo dessa loucura eacute diacutespar Em Euriacutepides Heacuteracles comeccedila a

revelar os primeiros sinais de loucura ainda as deusas natildeo tinham abandonado o palaacutecio

Eacute Lissa quem vai descrevendo as primeiras manifestaccedilotildees fiacutesicas do heroacutei dando ao

espectador uma primeira imagem da demecircncia que atacaraacute o protagonista ndash imagem

essa que o Mensageiro desenvolveraacute narrando ao pormenor as transformaccedilotildees faciais

decorrentes da loucura e contando a forma como os Heraclidas morreram

Em Seacuteneca haacute dois planos que se conjugam Juno e Heacutercules A primeira

desencadeia a situaccedilatildeo da loucura como uma espeacutecie de agressatildeo exterior ndash como

acontece na vida humana quando o homem defronta as adversidades que lhe vatildeo

aparecendo Mas Heacutercules eacute jaacute de si excessivo e com tendecircncia agrave megalomania ndash numa

perspectiva estoacuteica ele natildeo consegue pocircr um travatildeo aos uitia que o caracterizam Nesse

sentido a loucura parece vir dele proacuteprio (estaacute enraizada no caraacutecter do Alcida na

uoluntas obsessiva na ausecircncia de ratio) O protagonista eacute por assim dizer um terreno

feacutertil para que a demecircncia imposta por Juno germine

Como Fitch menciona ldquoIn brief then Herculesrsquo madness has a psychological

origin While sane he is characterized by habitual aggression ambition and

megalomania in other words he is already close to insanity in his daily modus uitae At

this moment when he has reached the highest pitch of megalomania his mind topples

over into madnessrdquo153

153 Fitch 30

94

Capiacutetulo III

Heacuteracles e Heacutercules a (des)construccedilatildeo do heroacutei

1 Caracterizaccedilatildeo de Heacuteracles na trageacutedia de Euriacutepides

Para a caracterizaccedilatildeo de Heacuteracles em Euriacutepides satildeo vaacuterios os toacutepicos de anaacutelise

que contribuem para concatenar as quatro partes em que esta trageacutedia se pode dividir1

sendo assim elementos-chave para a compreensatildeo da trageacutedia em particular para a

identificaccedilatildeo do caraacutecter do heroacutei o toacutepico da dupla paternidade do Alcida que faz dele

um ldquoheroacutei-deusrdquo2 e um ldquoheroacutei-mortalrdquo o toacutepico da luz e das trevas o toacutepico da solidatildeo

e da amizade o toacutepico da individualidade e da colectividade Todos estes τόποι

aparecem interligados nas falas das personagens em especial os dois binoacutemios

individualidade vs colectividade e solidatildeo vs amizade

Em toda a peccedila de Euriacutepides parece expliacutecito o papel de Heacuteracles enquanto heroacutei

virtuoso e heroacutei filho de Zeus Esta funccedilatildeo manifesta-se pela forma como a personagem

actua no desenrolar da acccedilatildeo Ele assume a funccedilatildeo divina diriacuteamos de castigar todos os

que natildeo respeitam a justiccedila e incorrem na ὕβρις Deste modo natildeo eacute de estranhar que ele

mate Lico uma vez que este eacute o tiacutepico tirano sem controle No entanto a forma como eacute

delineado o seu caraacutecter por meio das suas acccedilotildees e das descriccedilotildees que as personagens

dele fazem levanta algumas reservas principalmente depois de ser enlouquecido pelas

deusas

A loucura de Heacuteracles que eacute narrada pelo Mensageiro seraacute analisada neste

capiacutetulo O motivo que nos levou a inserir este tema nesta parte da dissertaccedilatildeo foi

principalmente o poder dar uma imagem completa do protagonista no momento antes e

no momento depois da demecircncia provocada pelas deusas visto que eacute a partir desta que

o Alcida se torna mais humano eacute tambeacutem na sequecircncia da loucura e do acto criminoso

que se percebe a ambivalecircncia do heroacutei isto eacute a virtude vs violecircncia de que o

protagonista usa para destruir os seus ldquoinimigosrdquo

1 Vide Capiacutetulo I aliacutenea 11 (data e estrutura da trageacutedia) 2 Como diria Piacutendaro Nemean 322 Heacuteracles eacute o ἥρως θέος

95

11 Imortalidade e Mortalidade a ambivalecircncia do heroacutei

Este tema eacute apresentado no Proacutelogo Heacuteracles eacute filho de Zeus e de Anfitriatildeo

Apesar de a origem do nascimento de Heacuteracles ser do conhecimento de todos a

indicaccedilatildeo da dupla proveniecircncia do heroacutei logo nos trecircs primeiros versos da trageacutedia natildeo

eacute inocente no sentido em que natildeo eacute uma mera contextualizaccedilatildeo ou apresentaccedilatildeo do

tema da acccedilatildeo dramaacutetica Pelo contraacuterio constitui um traccedilo especiacutefico da sua

personalidade3

Haacute ao longo da acccedilatildeo dramaacutetica um contraste notoacuterio entre imortalidade e

mortalidade entre a divinizaccedilatildeo e a humanizaccedilatildeo do protagonista Esta ambivalecircncia do

heroacutei tem um lugar proeminente na trageacutedia assumindo contornos cada vez mais

definidos agrave medida que se aproxima da cena final

Assim dos versos 1 a 821 Heacuteracles eacute caracterizado pelas outras personagens4

como um guerreiro de insigne valor e filho de Zeus Apenas Lico contesta a heroicidade

e a paternidade do Alcida baseando-se em trecircs argumentos uma divindade nunca teria

relaccedilotildees com um humano (v 149)5 duvida da forccedila pujante de Heacuteracles assim como

natildeo o considera heroacutei porque combate contra animais ferozes com ajuda de armadilhas

(vv 150-155) natildeo eacute um verdadeiro guerreiro porque usa como meio de defesa um arco

e natildeo uma espada e um escudo6

As restantes personagens ao contraacuterio de Lico louvam o caraacutecter do heroacutei

Anfitriatildeo recorda no ἀγών contra Lico que Heacuteracles foi aliado dos deuses quando estes

lutaram contra os gigantes

Διὸς κεραυνὸν ἠρόμην τέθριππά τε ἐν οἷς βεβηκὼς τοῖσι γῆς βλαστήμασιν Γίγασι πλευροῖς πτήν᾿ ἐναρμόσας βέλη τὸν καλλίνικον μετὰ θεῶν ἐκώμασεν∙7

(vv 177-180)

3 Esta dupla natureza de Heacuteracles levou alguns criacuteticos a considerarem complexo o estudo da personagem enquanto protagonista de uma trageacutedia Para Silk ldquoHeracles and Greek Tragedyrdquo Greece and Rome 32 n1 (1985) 1-22 os problemas maiores que se colocam quando se analisa o comportamento do heroacutei satildeo a natureza heroacuteica-divina e o facto de Heacuteracles ser um heroacutei particularmente solitaacuterio Heacuteracles natildeo tem um lugar entre a sociedade humana ou divina mas vive agrave margem de ambas 4 Apesar de Heacuteracles entrar em cena somente a partir do v 523 eacute constantemente evocado pelas outras personagens 5 Tal perspectiva volta a ser posta em causa no uacuteltimo episoacutedio por Heacuteracles 6 Estes uacuteltimos dois pontos voltaratildeo a ser referidos quando analisarmos o toacutepico individualidade e colectividade 7 lsquoComeccedilarei por interrogar o raio e a quadriga de Zeus da qual enviou as setas aladas que se cravaram nos flancos dos Gigantes nascidos da terra glorioso triunfo que celebrou com os deusesrsquo

96

As aliteraccedilotildees (v 177 τέθριππά τε v 179 πλευροῖς πτήν᾿) e o homeoptoto

concorrem para engrandecer o louvor do Coro pelo regresso e a proveniecircncia divina do

heroacutei (vv 696-697) que proporcionou aos mortais uma vida mais tranquila com a

destruiccedilatildeo dos monstros que povoavam a terra (vv 699-700)

Nos vv 821 ss daacute-se a transiccedilatildeo de Heacuteracles referido enquanto heroacutei divino

para uma humanizaccedilatildeo completa da sua personagem O filho de Zeus inicialmente

exaltado passa no epiacutelogo a um mero mortal filho de pais mortais A queda do heroacutei

com a morte dos filhos e da esposa foi dupla fiacutesica e psicoloacutegica No aspecto fiacutesico

verifica-se uma dupla destruiccedilatildeo a ruiacutena do palaacutecio com a queda do telhado e o

desmaio de Heacuteracles provocado por Atena

Sob o ponto de vista psicoloacutegico Heacuteracles eacute enlouquecido pelas divindades

comete os crimes hediondos inconscientemente e quase natildeo consegue recuperar do

desvario de tal modo que precisa do auxiacutelio de Teseu para se levantar O esgotamento

do heroacutei eacute completo8

Quando recupera a razatildeo e toma conhecimento do seu crime o Alcida renega a

paternidade divina Para ele o seu verdadeiro e assumido pai eacute Anfitriatildeo A trageacutedia

termina com o decliacutenio total do heroacutei O uacutenico modo de derrotaacute-lo foi atraveacutes da

loucura Teseu condena o sofrimento exacerbado de Heacuteracles comparando-o a uma

mulher que chora e se lamenta copiosamente pela sua ruiacutena (vv 1412-1417)

No uacuteltimo momento quando Heacuteracles decide abandonar Tebas precisa de ajuda

para se levantar tal a dimensatildeo da sua derrota Como sugere Barlow ldquoThe end of the

play shows a transformation not the glorious invincible hero but a vulnerable human

being struck down by madness This is a disgraced and humiliated Heracles who is

broken and dependentrdquo9

12 Luz e Trevas

A trageacutedia desenrola-se sob a antinomia trevasluz No iniacutecio da trageacutedia

momento mais lento10 o ambiente que envolve as personagens eacute de trevas a famiacutelia de

8 Como veremos em pormenor quando analisarmos as manifestaccedilotildees da loucura 9 Barlow xiv 10 Tanto o iniacutecio como o final da trageacutedia satildeo momentos de grande densidade psicoloacutegica que se traduz numa lenta progressatildeo da acccedilatildeo Anfitriatildeo e Meacutegara esperam suplicantes ou pela morte inevitaacutevel ou pela salvaccedilatildeo O regresso de Heacuteracles permite acelerar o ritmo da acccedilatildeo e haacute uma raacutepida sucessatildeo de

97

Heacuteracles foi condenada agrave morte No proacutelogo no primeiro episoacutedio e no iniacutecio do

segundo as personagens vivem numa atmosfera de agonia entre a esperanccedila e a

descrenccedila total no regresso do heroacutei Hades11 eacute constantemente evocado como o lugar

que reteacutem o filho de Zeus Eacute de facto do Hades que Heacuteracles sai em direcccedilatildeo a Tebas

para chegar agrave cidade de Creonte no momento exacto para salvar a sua famiacutelia e seraacute

para o Hades que o heroacutei conduziraacute a famiacutelia depois de enlouquecido

Esta chegada representa um movimento das trevas para a luz ainda que essa

mudanccedila seja por meros instantes e a luz seja aparente Heacuteracles aparece como salvador

contudo com o desenvolvimento da acccedilatildeo o heroacutei deixa-se tomar pela fuacuteria mata

primeiro Lico e os seus seguidores e de seguida Meacutegara e os filhos Entre os dois

momentos de assassiacutenio haacute apenas uma pausa com a entrada das divindades Iacuteris e Lissa

Todo o momento em que eacute descrito o modo como Heacuteracles mata os filhos e a

esposa estaacute igualmente associado agraves trevas A luz regressa com o aparecimento de Teseu

e a sua promessa de purificaccedilatildeo do acto de Heacuteracles levando-o para Atenas

13 Individualidade e Colectivismo

O tema individualidade em oposiccedilatildeo ao colectivismo eacute frequente na trageacutedia e

serve de mote para caracterizar Heacuteracles que eacute fundamentalmente um heroacutei individual e

solitaacuterio λιπὼν δὲ Θήβας οὗ κατῳκίσθην ἐγώ Μεγάραν τε τήνδε πενθερούς (vv 13-

14)12 Esta caracteriacutestica do heroacutei eacute reforccedilada pelo geacutenero de armas que escolhe usar

para se defender e atacar os inimigos Satildeo elas principalmente o arco e as setas mas

tambeacutem a clava Estas permitem ao heroacutei manter a sua seguranccedila natildeo ficando

dependente de ningueacutem numa batalha

Eacute precisamente na escolha do tipo de armas com que Heacuteracles se defende que

reside a criacutetica de Lico Para o tirano o Alcida eacute cobarde porque luta apenas contra

animais e evita a refrega da batalha ndash a iteraccedilatildeo de οὐδὲν (v 157 v 158 v 160) e de

εὐψυχίας (v 157 v 162) em liacutetotes reforccedila esta ideia de falta de coragem que Lico

pretende provar

acontecimentos morte de Lico juacutebilo do Coro entrada de Iacuteris e Lissa loucura de Heacuteracles chegada do Mensageiro que narra a morte de Meacutegara e dos filhos No final da trageacutedia a acccedilatildeo eacute novamente mais lenta diaacutelogo entre Heacuteracles e Teseu (vide M S Silk ldquoHerakles and Greek Tragedyrdquo 2) 11 Ocorrecircncias vv 22-25 vv 44-46 vv 145-146 vv 296-297 vv 426-434 vv 490-495 12 lsquoabandonou Tebas onde eu me estabelecera deixando Meacutegara e os seus sogrosrsquo

98

ὁ δ᾿ ἔσχε δόξαν οὐδὲν ὢν εὐψυχίας θηρῶν ἐν αἰχμῇ τἄλλα δ᾿ οὐδὲν ἄλκιμος ὃς οὔποτ᾿ ἀσπίδ᾿ ἔσχε πρὸς λαιᾶι χερὶ οὐδ᾿ ἦλθε λόγχης ἐγγὺς ἀλλὰ τόξ᾿ ἔχων κάκιστον ὅπλον τῇ φυγῇ πρόχειρος ἦν ἀνδρὸς δ᾿ ἔλεγχος οὐχὶ τόξ᾿ εὐψυχίας ἀλλ᾿ ὃς μένων βλέπει τε κἀντιδέρκεται δορὸς ταχεῖαν ἄλοκα τάξιν ἐμβεβώς13

(vv 157-164)

Lico faz uma apologia do valor do hoplita porque este enfrenta directamente a

refrega manifestando a sua coragem Anfitriatildeo pelo contraacuterio defende que eacute no arco

que reside a salvaccedilatildeo visto que permite ao heroacutei afastar-se do fragor da guerra dando-

-lhe maior seguranccedila E aduz argumentos com que sustenta a sua tese Heacutercules lutou ao

lado dos deuses manuseando o arco para matar os gigantes o arco permite salvaguardar

a sua vida e a dos companheiros de guerra (vv 195-201) Em relaccedilatildeo ao hoplita

apresenta significativa vantagem pois este eacute um escravo das suas proacuteprias armas e

depende sempre dos que estatildeo com ele sendo-lhe mais difiacutecil evitar a morte se os que o

rodeiam fugirem cobardemente (vv 190-194) No entanto como observa Carlos

Ferreira ldquoNatildeo deixa por isso de existir alguma ironia no facto de Anfitriatildeo o defensor

da solidariedade e paradigma dos valores comunitaacuterios rejeitar o escudo e os hoplitas e

por conseguinte a comunidade como um todo enquanto Lico o usurpador defende o

hoplita e os valores que ele simbolizardquo14

Tambeacutem os trabalhos de Heacuteracles representam a individualidade do heroacutei porque

os concluiu sozinho Natildeo deixa contudo de ser sarcaacutestica a situaccedilatildeo da personagem

apesar de lutar sozinho dedicou-se sempre ao bem da humanidade (reduzida em

Euriacutepides a Tebas e agrave Heacutelade) mas quando a famiacutelia mais precisou de ajuda nenhum

dos povos que por ele foram auxiliados lhe prestou apoio (vv 217-226)

Por oposiccedilatildeo a este individualismo satildeo representaccedilotildees da colectividade o Coro e

Teseu No paacuterodo os anciatildeos do Coro entram apoiando-se mutuamente Caminham em

grupo ajudando-se e recordando os momentos em que combateram juntos (vv 127-

229) O valor que representava a colectividade que se alia ao valor da amizade tem 13 lsquoele apenas mostrou aparecircncia de coragem na luta contra as feras sem se distinguir minimamente nos restantes trabalhos ele nunca transportou um escudo no braccedilo esquerdo nem defrontou a lanccedila mas tendo o arco e flechas a mais fraca das armas estava sempre prestes a fugir A prova da coragem do guerreiro natildeo estaacute no arco mas corajoso eacute aquele que permanecendo de peacute firme aguarda sem desviar os olhos o campo em movimento das lanccedilas marchando ordenadamente com as suas tropasrsquo 14 Carlos Ferreira Santos Euriacutepides Heacuteracles Introduccedilatildeo Traduccedilatildeo e Notas 36

99

nestes versos o seu sentido Os velhos companheiros de armas de Anfitriatildeo aproximam-

-se do palaacutecio de Heacuteracles por amizade para com ele pois o terem combatido juntos

traduz-se agora nos laccedilos fortes com que esse sentimento os une

Teseu representa a expressatildeo maacutexima da noccedilatildeo de colectividade Tomando

conhecimento do perigo em que a famiacutelia de Heacuteracles se encontrava dirige-se a Tebas

com um grupo de hoplitas atenienses para auxiliar o amigo (vv 1164-1172) Este

aspecto contrasta por completo com o que Anfitriatildeo proclamou no Primeiro Episoacutedio

Haacute pois uma nova mutaccedilatildeo do elogio do arco passa-se ao elogio da lanccedila do

individualismo do archeiro passamos para o colectivismo do hoplita Heacuteracles que era a

representaccedilatildeo maacutexima desse individualismo usou o arco e as flechas para matar a sua

famiacutelia Teseu por extensatildeo o hoplita consegue salvar o heroacutei dissuadindo-o de se

suicidar

14 Solidatildeo e Amizade

A antiacutetese solidatildeo vs amizade eacute um τόπος senatildeo o mais importante pelo menos

dos essenciais para a compreensatildeo da trama da trageacutedia Permite constituir dois grupos

de personagens as que estatildeo de algum modo isoladas solitaacuterias e as que simbolizam a

amizade No primeiro grupo incluiacutemos Anfitriatildeo Meacutegara e Heacuteracles no segundo o

Coro e Teseu

Anfitriatildeo e Meacutegara natildeo vecircem na amizade qualquer porto de abrigo que os possa

salvar estatildeo completamente soacutes Natildeo podem contar com o auxiacutelio muacutetuo porque

Anfitriatildeo natildeo passa de um anciatildeo sem forccedilas οὐδὲν ὄντα πλὴν γλώσσης ψόφον (v

229)15 e Meacutegara eacute uma mulher logo eacute um ser indefeso

Heacuteracles eacute protoacutetipo do heroacutei solitaacuterio que natildeo tem um lugar estaacutevel ndash passa

grande parte do seu tempo a deambular pelo orbe Tendo como objectivo das suas

deambulaccedilotildees o pacificar o mundo Heacuteracles estranha a ausecircncia de amigos no

momento da desgraccedila (v 558) principalmente por tudo o que fez por Tebas microάχας δὲ

Μινυῶν ἃς ἔτλην ἀπέπτυσαν (v 560)16 Eacute a revolta resultante do abandono dos amigos

(ou dos falsos amigos) que o leva a pensar numa vinganccedila

15 lsquonada mais sou do que um ruiacutedo de palavrasrsquo 16 lsquoE ateacute as difiacuteceis vitoacuterias sobre os Miacutenios foram capazes de esquecerrsquo

100

ἐγὼ δέ νῦν γὰρ τῆς ἐmicroῆς ἔργον χερός πρῶτον μὲν εἶμι καὶ κατασκάψω δόμους καινῶν τυράννων κρᾶτα δrsquo ἀνόσιον τεμὼν ῥίψω κυνῶν ἕλκημα Καδμείων δrsquo ὅσους κακοὺς ἐφηῦρον εὖ παθόντας ἐξ ἐμοῦ τῷ καλλινίκῷ τῷδrsquo ὅπλῳ χειρώσομαι τοὺς δὲ πτερωτοῖς διαφορῶν τοξεύμασιν νεκρῶν ἅπαντrsquo lsquoΙσμηνὸν ἐμπλήσω φόνου Δίρκης τε νᾶμα λευκὸν αἱμαχθήσεται17 (vv 565-573)

Os adveacuterbios (v 565 νῦν v 566 πρῶτον) e a assonacircncia em e (v 565) denotam

o desejo de vinganccedila imediata que seraacute num futuro breve (v 566 εἶμι κατασκάψω v

568 ῥίψω v 570 χειρώσομαι v 572 ἐμπλήσω v 573 αἱμαχθήσεται) e que promete

ser violenta (vv 572-573)

Os vv 562-582 tecircm merecido diversas criacuteticas Schmid18 por exemplo

considera excessiva a atitude do heroacutei em querer vingar-se de todos os cidadatildeos que se

recusaram a ajudar os Heraclidas Bond entende que satildeo justificadas as acccedilotildees do

protagonista19 Pela nossa parte considerariacuteamos a posiccedilatildeo do heroacutei adequada ao punir

os iacutempios e mesmo ao usar como recurso a violecircncia (caracteriacutestica que lhe eacute inerente)

se essa violecircncia natildeo fosse levada ao extremo manifestando-se no desejo de inundar o

rio de cadaacuteveres e de fazer jorrar da fonte sangue dos Tebanos20 Eacute neste ponto que

entendemos o heroacutei como efectivamente excessivo Aleacutem disso se esta fosse uma

situaccedilatildeo normal e aceitaacutevel Anfitriatildeo natildeo teria apelado para a moderaccedilatildeo do

protagonista (v 586 ἀλλὰ microὴ πείγου λίαν21 nem teria o cuidado de dissuadir o filho

deste intento e muito menos o Alcida aceitaria o conselho paterno (vv 606-609)

A forccedila violenta ndash expressa nestes versos em assonacircncias de oclusivas ndash que

Heacuteracles pretende usar seraacute a mesma que utilizaraacute para matar os filhos Se no primeiro 17 lsquoEacute que eu ndash pois agora chegou a vez de o meu braccedilo actuar ndash antes de mais vou partir e vou devastar completamente o palaacutecio desse novo soberano e depois de degolar a sua iacutempia cabeccedila lanccedilaacute-la-ei como alimento aos catildees E aqueles Cadmeus que tendo recebido de mim benefiacutecios eu considerar ingratos subjugaacute-los-ei com esta arma vencedora e trespassando os outros com as minhas flechas aladas inundarei todo o Ismeno de cadaacuteveres e ensanguentarei as liacutempidas aacuteguas de Dircersquo 18 Apud Bond 206-207 19 Bond 206 ldquoHeraclesrsquo plans are reasonable by fifth-century let alone heroic standardsrdquo O mesmo autor justifica esta ideia com o exemplo de Ulisses no contexto do massacre dos pretendentes de Peneacutelope ldquoThere is a good precedent in the hanging of Odysseusrsquo faithless handmaidens (Od 22 465 ff) and such revenge conforms to the traditions of fifth-century στάσις Platea Corcyra and Melos suffered similar massacres the Athenian decree to kill all adult males in Mytilene was more brutal since it was not selective (Thuc 3 362)rdquo 20 Este episoacutedio lembra a luta entre Aquiles e o rio Escamandro A causa do confronto foi a intoleracircncia do rio em natildeo suportar mais o excesso do heroacutei que estava a encher o caudal com cadaacuteveres de guerreiros troianos (vide Homero Ilias 21214-221) 21 lsquoMas cautela com as precitipaccedilotildeesrsquo

101

caso haacute quem possa consideraacute-la como natildeo excessiva no segundo exemplo eacute criticada

como veremos oportunamente

15 Outras caracteriacutesticas na construccedilatildeo heroacutei

Aleacutem dos toacutepicos que foram sendo apontados haacute outros de natildeo menor

importacircncia que caracterizam directamente Heacuteracles o amor filial e paternal a

excelecircncia do heroacutei que o torna famoso ele eacute ainda visto como o pacificador do orbe o

salvador (chega ao palaacutecio no momento crucial para salvar a famiacutelia) e o civilizador

(castiga os tiranos que natildeo respeitam os deuses)

Quanto ao primeiro ponto Anfitriatildeo eacute a primeira personagem que salienta o

amor de Heacuteracles pela sua famiacutelia pois abandonou Tebas em direcccedilatildeo a Argos para

oferecer os seus serviccedilos a Euristeu em troca do regresso de Anfitriatildeo seu pai agrave terra

natal (vv 18-20) A este altruiacutesmo que parece ser uma caracteriacutestica estruturante do

heroacutei Anfitriatildeo acrescenta em alternativa outras duas razotildees que teratildeo levado Heacuteracles

a oferecer-se a Euristeu ou foi obrigado por Hera ou pela forccedila do Destino

Ao anexar ao toacutepico da ldquodevoccedilatildeo filialrdquo outros dois motivos Anfitriatildeo alude

como indica Carlos Ferreira Santos ldquoagrave tradicional inimizade de Hera e ao terriacutevel

destino (vv 20-21) motivos jaacute associados em Il 18119 o que pode demonstrar que o

motivo do auxiacutelio a Anfitriatildeo como uacutenico justificativo para a execuccedilatildeo dos trabalhos

natildeo era um dos elementos mais difundidos do mitordquo22 Natildeo eacute expliacutecita a intenccedilatildeo do

autor dramaacutetico ao apresentar opccedilotildees que validem a concretizaccedilatildeo dos trabalhos e no

decorrer da acccedilatildeo natildeo haacute uma concreta e definiva resposta

Esta eacute uma questatildeo que persiste e parece que natildeo haacute uma resposta plausiacutevel

Segundo Bond

Of the explanations distinguished by Preller-Robert 428 ff (a) Euripidesrsquos version here perhaps invented to represent Heracles as a dutiful son does not account for those labours which were not civilizing (b) the story implied by Apollod Bibl 2 4 12 that the labours were expiation for Heraclesrsquos killing of his children is clearly not relevant to HF (c) Zeusrsquo oath which established Eurystheus in power (Il 19 100 ff) does not suffice to account for the labours and Heraclesrsquo servitude (d) the hope of immortality (Theocr 24 82) looks

22 Carlos Ferreira Santos Euriacutepides Heacuteracles Introduccedilatildeo Traduccedilatildeo e Notas 24

102

like a post-classical mystic interpretation though Preller-Robert remark that several labours or deeds of Heracles imply the conquest of death Cerberus Alcestis the Golden Apples the marriage with Hebe23

A nosso ver haacute trecircs interpretaccedilotildees possiacuteveis que remetem para trecircs pontos de

vista diferentes

1 Heacuteracles procura Euristeu e oferece-se para libertar a humanidade dos medos

que a perseguem matando os monstros que assolavam a terra para que em troca

Anfitriatildeo pudesse regressar a Argos (vv 13-20)

2 Hera obriga Heacuteracles por meio de aguilhotildees (natildeo sabemos que geacutenero de

aguilhotildees eram esses) a submeter-se agraves ordens de Euristeu (vv 20-21)

3 O Destino ditou que Heacuteracles teria de realizar doze trabalhos por ordem de

Euristeu (v 21)

O primeiro ponto reforccedila a imagem de um heroacutei de excelentes qualidades que o

Coro tanto exalta nos trecircs primeiros estaacutesimos (vv 348-435 vv 639-700 vv 735-814)

e enquadra-se perfeitamente no objectivo das duas primeiras partes da trageacutedia o de

demonstrar que Heacuteracles eacute o pacificador o libertador o protector e o civilizador que

vem repor a ordem em Tebas Jaacute os outros dois pontos natildeo tecircm qualquer relevacircncia

nessas duas primeiras partes da trageacutedia uma vez que natildeo haacute qualquer referecircncia a uma

ligaccedilatildeo entre Hera e Heacuteracles ou entre Destino e Heacuteracles

Eacute na terceira e quarta partes que estes uacuteltimos aspectos ganham importacircncia

Relativamente ao segundo ponto em particular no quinto episoacutedio na cena da loucura

Heacuteracles recorda a ira de Hera que o persegue desde o dia em que nasceu (vv 1262-

1310 1392-1393) O nome da deusa eacute constantemente evocado natildeo soacute pelo heroacutei como

por Teseu (v 1186) No v 1127 Anfitriatildeo acusa Hera de ter enlouquecido o Alcida

mas depois revela natildeo ter tanta certeza na participaccedilatildeo de alguma divindade no crime do

filho (v 1135) Note-se que Anfitriatildeo tem todavia desconhecimento total do

aparecimento das deusas Iacuteris e Lissa sobre o telhado do palaacutecio Logo ele desconhece a

autoria divina da loucura do Alcida

Sob o terceiro ponto de vista as acccedilotildees de Heacuteracles satildeo controladas pelo

Destino Esta eacute a perspectiva da divindade Iacuteris afirma que o Destino e Zeus natildeo

permitiam que ela e Hera causassem algum dano ao heroacutei enquanto este natildeo concluiacutesse

os trabalhos No entanto se foi autoria do Destino o cumprimento desses trabalhos 23 Bond 68

103

continuamos sem saber quais satildeo os antecedentes que levaram o heroacutei a assumir esse

Destino Poderaacute estar subjacente a ideia de que se Heacuteracles cumprisse os trabalhos

receberia como recompensa a imortalidade embora a tal natildeo haja qualquer alusatildeo na

trageacutedia

Cada uma das perspectivas apresentadas conduz o leitor a uma interpretaccedilatildeo

diferente Parece-nos que Euriacutepides tomou as diversas tradiccedilotildees mitoloacutegicas e lhes deu

uma nova perspectiva Para os homens satildeo os deuses a causa de tanto sofrimento de

Heacuteracles Os deuses remetem para a funccedilatildeo do Destino Maria de Faacutetima Sousa e Silva

afirma que ldquoA Euriacutepides pouco importa discernir a origem do sofrimento humano ou

tentar explicaacute-la para ele conta apenas que o homem sofre e por isso eacute digno de

piedaderdquo24

A problemaacutetica da funccedilatildeo que os deuses25 e o Destino desempenham na vida

humana eacute frequente nas peccedilas de Euriacutepides em especial no Heracles No que diz

respeito ao Destino Meacutegara sente que a τύχη obriga a sua famiacutelia a morrer (vv 282-

283 vv 309-311 vv 456-457 vv 480-482)

No jogo entre estas diferentes perspectivas talvez possamos descortinar a um

tempo a concepccedilatildeo que os Gregos tinham dos seus deuses e a concepccedilatildeo dos sofistas

Como sugere Fritz Graf

The Euripidean critique of myths about the gods begins with the same objection the gods as traditionally represented are far too crassly anthropomorphic This objection was not new A century earlier Xenophanes of Colophon had complained that Homer and Hesiod attributed to the gods ldquoall that is shameful and disgraceful among men they steal commit adultery and deceive one anotherrdquo (DK 21 B 11 cf chapter 8)26

Ainda no acircmbito do toacutepico sobre o afecto familiar haacute que lembrar o discurso de

Meacutegara no proacutelogo quando ela descrevendo uma situaccedilatildeo da vida diaacuteria recorda os

laccedilos fortes que unem os filhos ao pai mal ouvem o som de abertura de uma porta

ficam expectantes por julgarem que eacute o pai que estaacute a chegar (τῷ νέῳ δrsquo ἐσφαλμένοι

24 Maria de Faacutetima Sousa e Silva Criacutetica Literaacuteria na Comeacutedia Grega Geacutenero Dramaacutetico 227 25 Sobre este ponto ver Capiacutetulo I aliacutenea 12 26 Fritz Graf Greek Mythology an Introduction trad Thomas Marier (Baltimor Londres Johns Hopkins University Press 1996) 169-170

104

ζητοῦσι τὸν τεκόντrsquo ἐγὼ δὲ διαφέρω λόγοισι μυθεύουσα θαυμάζων δrsquo ὅταν πύλαι

ψοφῶσι πᾶς ἀνίστησιν πόδα ὡς πρὸς πατρῷον προσπεσούμενοι γόνυ27)

O afecto do Alcida pela famiacutelia eacute uma caracteriacutestica fundamental na trageacutedia de

Euriacutepides e natildeo teraacute qualquer repercussatildeo em Seacuteneca O discurso de Meacutegara momento

de elevado teor dramaacutetico em que ela descreve as reacccedilotildees dos filhos agrave ausecircncia do

Alcida revela a estreita relaccedilatildeo entre Heacuteracles e os filhos e a uniatildeo muito proacutexima e

afectiva entre Heacuteracles e Meacutegara28 Eacute o seu zelo pelos que lhe satildeo proacuteximos que leva o

heroacutei antes de entregar Ceacuterbero a Euristeu a regressar a Tebas porque pressente que

Anfitriatildeo Meacutegara e os filhos correm perigo (vv 595-598)

Este sentimento que nutre pelos filhos leva-o a considerar que os trabalhos que

conclui em nada se comparam ao de proteger os seus filhos

χαιρόντων πόνοι microάτην γὰρ αὐτοὺς τῶνδε μᾶλλον ἤνυσα καὶ δεῖ microrsquo ὑπὲρ τῶνδrsquo εἴπερ οἴδrsquo ὑπὲρ πατρός θνῄσκειν ἀmicroύνοντrsquo ἢ τί φήσομεν καλὸν ὕδραι μὲν ἐλθεῖν ἐς μάχην λέοντί τε Εὐρυσθέως πομπαῖσι τῶν δrsquo ἐmicroῶν τέκνων οὐκ ἐκπονήσω θάνατον οὐκ ἄρrsquo lsquoΗρακλῆς ὁ καλλίνικος ὡς πάροιθε λέξομαι29

(vv 575-582)

Nesta cena o protagonista assume-se como o defensor da sua famiacutelia E a sua

gloacuteria jaacute natildeo reside nos feitos passados mas sim em manter a seguranccedila dos seus ndash a

iteraccedilatildeo da preposiccedilatildeo ὑπὲρ (v 577) a estabelecer um paralelo entre os filhos e

Heacuteracles intensifica a necessidade do heroacutei em salvaacute-los Esta eacute a mais dura prova que

teraacute que enfrentar mesmo que essa prova implique perder a vida30 Reconhece a sua

funccedilatildeo comparando-se a um navio que transporta os pequenos barcos consigo para

protegecirc-los (vv 631-633) O siacutemile acentua a ironia traacutegica a protecccedilatildeo que Heacuteracles

27 vv 75-79 lsquoEnquanto na sua acircnsia juvenil procuravam o seu progenitor eu contando-lhes histoacuterias iludia-os com palavras Expectantes quando a porta faz algum ruiacutedo levantam-se como se aos peacutes do proacuteprio pai se fossem prostrarrsquo 28 Um outro exemplo que comprova este aspecto eacute apresentado no terceiro episoacutedio no momento de abertura quando Meacutegara relembra o passado venturoso em que pai e matildee planearam a vida dos trecircs filhos oferecendo a cada um paiacutes para governarem e escolhendo-lhes como esposas princesas oriundas das trecircs principais πόλεις 29 lsquoEsqueccedilo os meus trabalhos Foram pouca coisa quando comparados com as tarefas presentes Eacute meu dever defender estas crianccedilas ainda que agrave custa da minha vida uma vez que elas estavam dispostas a morrer pelo pai Seraacute que me poderei vangloriar de ter combatido a hidra e o leatildeo a pedido de Euristeu se natildeo afastar a ameaccedila de morte dos meus filhos Jamais serei considerado Heacuteracles o vitorioso tal como outrorarsquo 30 Neste passo momento de densidade pateacutetica eacute expressiva a ironia traacutegica

105

pretendia assegurar agrave famiacutelia com a sua chegada tal como um navio que protege os

pequenos botes acabou por revelar ser a sua ruiacutena uma vez que o heroacutei eacute subjugado

pela loucura divina31 O sofrimento que adveacutem da morte dos filhos traduz-se num dos

momentos mais intensos nesta trageacutedia e levou criacuteticos como Andreacute Rivier a

consideraacute-lo como ldquodu type de perfection qui met hors de pair Hippolyte et Meacutedeacuteerdquo32

O filiciacutedio e o uxoriciacutedio atingem deste modo a ἀκμή em termos de ironia traacutegica

principalmente porque Heacuteracles natildeo se considera culpado (v 1310) mas toma o seu

acto como involuntaacuterio sabendo-se domado pelas Eriacutenias (v 1364)

16 Manifestaccedilatildeo da loucura de Heacuteracles

A loucura de Heacuteracles eacute progressiva e tem lugar a partir da segunda parte O

tema33 eacute apresentado pelas deusas Iacuteris e Lissa O diaacutelogo entre elas permite dar uma

primeira imagem da mutaccedilatildeo do estado psicoloacutegico do protagonista que comeccedila a ter os

primeiros sintomas de uma perturbaccedilatildeo mental Numa primeira parte Lissa descreve a

forma como vai provocar-lhe a loucura

οὔτε πόντος οὕτω κύμασι στένων λάβρoς οὔτε γῆς σεισμὸς κεραυνοῦ τ᾽ οἶστρος ὠδῖνας πνέων οἷ᾽ ἐγὼ στάδια δραμοῦμαι στέρνον εἰς Ἡρακλέους∙ καὶ καταρρήξω microέλαθρα καὶ δόμους ἐπεμβαλῶ τέκν᾽ ἀποκτείνασα πρῶτον ὁ δὲ κανὼν οὐκ εἴσεται παῖδας οὓς ἔτικτεν ἐναίρων πρὶν ἂν ἐmicroὰς λύσσας ἀφῇ34 (vv 861-866)

31 Nos versos 1423-1424 o heroacutei καλλίνικος volta a usar metaacuteforas nauacuteticas para representar a sua actual dependecircncia relativamente a Teseu ἡμεῖς δrsquo ἀναλώσαντες αἰσχύναις δόμον Θησεῖ πανώλεις ἑψόμεσθrsquo ἐφολκίδες [lsquoE eu tendo arruinado com actos desonrosos a minha casa completamente destruiacutedo seguirei Teseu qual batel rebocado por uma naursquo] 32 Andreacute Rivier Essai sur le tragique drsquo Euripide 100 33 A questatildeo da loucura de Heacuteracles tem sido motivo de sucessivas discussotildees levando como indica Thalia Papadopoulou Heracles and Euripidean Tragedy (Cambridge Cambridge University Press 2005) 3 a diversas e contraditoacuterias conclusotildees ldquothe Euripidean Heracles has been viewed at one extreme as an essentially flawed figure and at the other as an idealized characterrdquo De facto haacute autores que consideram que a entrada de Heacuteracles em cena indicia desde logo a sua loucura (como eacute o caso de Willamowitz) No entanto pensamos ser objectivo do tragedioacutegrafo o de representar em Heacuteracles uma natureza por si proacutepria excessiva habituado a lutar contra monstros e contra homens crueacuteis dissipa a violecircncia do mundo usando os mesmos meios isto eacute por meio de uma forccedila impetuosa 34 lsquoNem o mar impetuoso gemendo com as suas ondas nem o tremor de terra ou a fuacuteria do relacircmpago soprando agonias seratildeo tatildeo violentos como a corrida que eu vou encetar contra o peito de Heacuteracles Destruirei o tecto e lanccedilarei por terra a sua casa depois de matar os seus filhos Mas o assassino natildeo saberaacute que estaacute a matar os filhos que gerou antes de se libertar dos meus furoresrsquo

106

A actuaccedilatildeo do δαίμων promete ser forte e destruidora tanto sob o ponto de vista

fiacutesico como sob o psicoloacutegico Os elementos da natureza evocados ndash a forccedila do mar o

terramoto e a imagem da forccedila arrasadora de um meteorito acentuados pela iteraccedilatildeo do

adveacuterbio de negaccedilatildeo ndash demonstram a forccedila violenta com que Lissa pretende atacar

Heacuteracles A destruiccedilatildeo da casa do heroacutei seraacute completa com a morte dos filhos35 e com a

queda do telhado36

De um futuro que estaacute prestes a eclodir Lissa passa para o presente Heacuteracles jaacute

eacute viacutetima dos seus aguilhotildees Satildeo delineados os primeiros traccedilos que caracterizam a

loucura do heroacutei

ἢν ἰδού∙ καὶ δὴ τινάσσει κρᾶτα βαλβίδων ἄπο καὶ διαστρόφους ἑλίσσει σῖγα γοργωποὺς κόρας ἀμπνοὰς δ᾽ οὐ σωφρονίζει ταῦρος ὣς ἐς ἐμβολὴν δεινὰ μυκᾶται δέ Κῆρας ἀνακαλῶ τὰς Ταρτάρου τάχα σ᾽ ἐγὼ microᾶλλον χορεύσω καὶ καταυλήσω φόβῳ37

(vv 867-872)

Estes sintomas satildeo apresentados por Lissa a Iacuteris ao Coro e aos espectadores (o

estremecer da cabeccedila38 a alteraccedilatildeo de um olhar que indicia o comeccedilo da demecircncia da

personagem a respiraccedilatildeo desenfreada e semelhante agrave de um touro prestes a atacar

algueacutem) sintomas cuja enumeraccedilatildeo o Mensageiro completaraacute quando entrar em cena39

O Mensageiro recupera as falas de outras personagens que decorreram antes e durante o

acto de loucura de Heacuteracles natildeo soacute no diaacutelogo entre Iacuteris e Lissa (principalmente as do

passo que acabaacutemos de transcrever) mas tambeacutem os lamentos de Anfitriatildeo e do Coro

De facto o diaacutelogo entre as deusas Iacuteris e Lissa permitiu ao Coro e ao puacuteblico

tomar conhecimento de modo preliminar dos acontecimentos que decorreratildeo no quarto

e quinto episoacutedios As deusas Hera e Iacuteris servem-se da loucura para se vingarem de

Heacuteracles e o castigo consiste em matar os seus proacuteprios filhos Por sua vez o Coro vai

entoando um lamento agrave nova mudanccedila da fortuna e em simultacircneo imagina o heroacutei

numa danccedila freneacutetica qual bacante com a diferenccedila de que natildeo estaacute num ritual baacutequico 35 Destruiccedilatildeo da casa sob o ponto de vista psicoloacutegico 36 Destruiccedilatildeo fiacutesica da casa 37 lsquoPrestem atenccedilatildeo Eis que ele agita a cabeccedila no iniacutecio da sua investida em silecircncio revira os olhos retorcidos e terrificantes natildeo controla a respiraccedilatildeo e como um touro pronto para o assalto muge perigosamente invocando as Ceres do Taacutertaro para que de forma raacutepida e com ruidosa fuacuteria o acompanhem como os catildees acampanham o caccediladorrsquo 38 Segundo Bond 292 τινάσσει κρᾶτα eacute por si um sinal de que a loucura estaacute iminente 39 O Mensageiro entra no IV episoacutedio Eacute representado por um dos servos de Heacuteracles que narra com uma certa extensatildeo (cerca de 93 vv) os uacuteltimos acontecimentos ocorridos num espaccedilo extraceacutenico dentro do palaacutecio Todo o discurso desta personagem marca uma pausa no decorrer da acccedilatildeo

107

A metaacutefora torna visiacutevel a imagem do estado psicoloacutegico do Alcida Aos gemidos e

frases soltas que Anfitriatildeo vai proferindo dentro do palaacutecio o Coro responde com aquilo

que supotildee estar a acontecer a perseguiccedilatildeo e a morte das crianccedilas

O aparecimento do Mensageiro (vv 910-1015) retoma os toacutepicos da demecircncia e

do filiciacutedio A personagem narra a morte de cada um dos filhos do protagonista e da sua

mulher Eacute tambeacutem por ele que sabemos que Anfitriatildeo escapa ao massacre mercecirc da

intervenccedilatildeo de Atena que trava o Alcida com uma pedra adormecendo-o O discurso

do Mensageiro termina com a queda fiacutesica do heroacutei queda essa que se traduz na

destruiccedilatildeo da sua casa a niacutevel fiacutesico40 mas igualmente psicoloacutegico Esta narrativa

permite observar dois aspectos uma nova descriccedilatildeo41 dos sintomas da loucura ndash a sua

evoluccedilatildeo e consequecircncias ndash e a representaccedilatildeo do lado mais humano da personagem que

acorda para uma realidade que o deixa vulneraacutevel

No que diz respeito ao primeiro ponto e primeiro estaacutedio de loucura os indiacutecios

satildeo

- uma suacutebita paragem e silecircncio de Heacuteracles assim como a sua hesitaccedilatildeo

contrastam com o olhar expectante dos que o circundam e esperam que o heroacutei

concretize o sacrifiacutecio (vv 929-931)

- reviravolta do olhar (v 932)

- os olhos injectados (v 933)

- espuma que goteja da boca (v 934)

40 Esta ruiacutena tambeacutem apontada por Lissa eacute visualizada pelo Coro e por Anfitriatildeo Este acusa Palas Atena de ser a autora da queda do telhado O Mensageiro tambeacutem recupera a ideia da destruiccedilatildeo do palaacutecio Segundo Bond 320-321 o derrubar fiacutesico do palaacutecio natildeo deve ser considerado como da autoria de Heacuteracles (o heroacutei destroacutei apenas as portas quando persegue Meacutegara e o uacuteltimo filho) nem de Palas Atena que lanccedila uma pedra contra o peito do Alcida adormecendo-o ndash o heroacutei eacute projectado contra o pilar que jaacute tinha caiacutedo quando o telhado desabara O Mensageiro natildeo alude ao terramoto que Lissa tinha prometido desencadear devastando por completo toda a casa heraclida natildeo havendo uma correspondecircncia directa entre os relatos das duas personagens Acrescenta ainda o mesmo autor que todas estas micro-acccedilotildees satildeo sequenciais Acontecem pela seguinte ordem e num curto espaccedilo de tempo derrubar das portas por Heacuteracles derrube do telhado projecccedilatildeo de Heacuteracles contra o pilar 41 No que diz respeito agrave descriccedilatildeo que cada uma das personagens faz da loucura de Heacuteracles podemos distinguir trecircs diferentes formas - vv 867-874 descriccedilatildeo de fora para fora mas com conhecimento pleno do que acontece dentro do palaacutecio o decliacutenio da razatildeo do heroacutei eacute observado de cima do palaacutecio por Lissa que estando no exterior descreve a Iacuteris aquilo que estaacute a acontecer dentro da casa (no momento presente) - vv 886-909 descriccedilatildeo de fora para fora mas sem conhecimento real do que se estaacute a desenrolar dentro do palaacutecio o Coro sabe que Heacuteracles vai enlouquecer e matar os filhos mas natildeo vecirc simplesmente especula sobre o que poderaacute estar a decorrer dentro dos muros - vv 922-1015 descriccedilatildeo de dentro para fora o Mensageiro presenciou toda a cena desde o momento em que Heacuteracles fica transtornado A enumeraccedilatildeo das perturbaccedilotildees fiacutesicas aliadas ao comportamento do protagonista concorre para a isotopia da loucura O discurso desta personagem eacute mais extenso do que o das anteriores e narra acontecimentos que decorreram momentos antes

108

- riso histeacuterico (v 935)

Estas manifestaccedilotildees fiacutesicas os sintomas que o Mensageiro apresenta estatildeo de

algum modo em sintonia com as que Lissa delineou anteriormente e que vimos supra

complementando-se

Numa primeira fase Heacuteracles dirige-se a Anfitriatildeo e reconhece-o como pai Eacute a

este que o heroacutei conta o que pretende fazer antes de terminar o sacrifiacutecio purificando-se

da mancha do crime Heacuteracles quer vingar-se de Euristeu42 talvez por este ter sido o

mandante de tatildeo penosos trabalhos pelo que comeccedila a imaginar a sua viagem em

direcccedilatildeo a Micenas descrevendo as peripeacutecias que visualiza na sua mente perturbada

- sobe para um carro invisiacutevel (vv 947-949)

- afirma que chegou junto de Niso quando natildeo abandonou o interior da sua casa

O percurso imaginaacuterio que fez ateacute chegar agrave cidade concretizou-se num trajecto

percorrido dentro do palaacutecio (vv 953-955)

- prepara um banquete inexistente (vv 955-957)

- luta contra um adversaacuterio apenas visiacutevel para ele proacuteprio e proclama-se

vencedor de ningueacutem (vv 959-963)

- a sua aproximaccedilatildeo imaginaacuteria de Micenas (vv 963 e ss) representa a evoluccedilatildeo

do estaacutedio de loucura ele natildeo reconhece Anfitriatildeo (vv 964-971) quando este lhe toca

e julga ver diante de si o pai de Euristeu (vv 967-969) Este ponto permite a passagem

da revelaccedilatildeo da demecircncia de Heacuteracles para a narraccedilatildeo da perseguiccedilatildeo e morte dos seus

filhos e de Meacutegara julgando estar a arruinar a casa do seu inimigo ao matar os παῖδες

deste

Apenas Atena segundo o Mensageiro consegue parar Heacuteracles

ἀλλ᾽ ἦλθεν εἰκών ὡς ὁρᾶν ἐφαίνετο Παλλάς κραδαίνουσ᾽ ἔγχος dagger ἐπὶ λόφῳ κέαρ dagger κἄρριψε πέτρον στέρνον εἰς Ἡρακλέους ὅς νιν φόνου μαργῶντος ἔσχε κἀς ὕπνον καθῆκε∙ πίτνει δ᾽ ἐς πέδον πρὸς κίονα νῶτον πατάξας ὃς πεσήμασι στέγης διχορραγὴς ἔκειτο κρηπίδων ἔπι43 (vv 1002-1008)

42 Como diz Bond 310 ldquoHeracles suffers from megalomaniac delusions that he can break down the walls of Mycenae (943-6)rdquo 43 lsquoDepois galopa para matar o velho Mas eis que apareceu um fantasma em que se reconhecia Palas que com o seu coraccedilatildeo salviacutefico + brande a lanccedila e contra o peito de Heacuteracles atira uma pedra que o afasta da sua loucura sanguinaacuteria e o lanccedila num sono profundo Ele cai por terra batendo com o dorso numa coluna que com o desabar do tecto jazia partida em dois sobre a sua basersquo

109

A intervenccedilatildeo das deusas nos momentos anterior e posterior agrave loucura de

Heacuteracles deixa algumas reservas relativamente ao protagonista Se antes ele era

considerado um heroacutei de excelentes qualidades agora satildeo os seus defeitos que

sobressaem violecircncia e imoderaccedilatildeo Estas caracteriacutesticas que sempre foram apanaacutegio

da personagem uma vez que teve de lutar contra monstros e contra seres humanos

crueacuteis e que natildeo eram postas em causa por nenhuma das personagens da trageacutedia44 satildeo

agora questionadas pelo facto de terem sido usadas para matar a famiacutelia

A dupla presenccedila de divindades em especial o aparecimento suacutebito de Atena

determina o excesso do protagonista que vai aleacutem da proacutepria vontade das deusas A

morte dos filhos tem efectivamente a autoria de Lissa obrigada por Iacuteris e Hera mas o

assassiacutenio de Meacutegara tem um soacute autor Heacuteracles que ainda prepara uma uacuteltima ofensiva

contra Anfitriatildeo Atena tem de intervir para pocircr um freio ao heroacutei antes que ele cometa

um acto ainda mais reprovaacutevel e por isso o adormece

O discurso do Mensageiro termina com uma uacuteltima descriccedilatildeo do estado de

Heacuteracles tendo ele adormecido os servos e Anfitriatildeo ataram-no a um pilar para que

ele ao acordar natildeo continuasse a sua perseguiccedilatildeo O sono do heroacutei caracteriza-se por

um adormecimento perturbado ὕπνον οὐκ εὐδαίμονα (v 1013)45

O sono aparece em algumas das peccedilas euripidianos como forma de

esquecimento dos actos dos protagonistas como acontece por exemplo em Orestes46

Neste caso o heroacutei sofre de perturbaccedilotildees mais graves em particular de amneacutesia que

decorrem da mutaccedilatildeo entre um estado normal e um estado de demecircncia No Heracles

este toacutepico aparece quando Anfitriatildeo entra em cena Heacuteracles estaacute por um lado sob o

domiacutenio do sono calmo e profundo (vv 1049-1051) mas por outro de um sono funesto

(vv 1061-1062)

O despertar do heroacutei caracteriza-se por ser um acordar lento para a realidade que

o circunda

ἔπνους microέν εἰμι καὶ δέδορχrsquo ἅπερ μὲ δεῖ αἰθέρα τε καὶ γῆν τόξα θrsquo ἡλίου τάδε ὡς ltδrsquogt ἐν κλύδωνι καὶ φρενῶν ταράγματι

44 Grande parte das personagens da trageacutedia (agrave excepccedilatildeo de Lico Iacuteris e indirectamente Hera) tecircm uma admiraccedilatildeo especial por Heacuteracles motivada pelas suas faccedilanhas que tinham como finalidade o bem da humanidade e em particular da sua famiacutelia 45 lsquoum sono que natildeo eacute de felicidadersquo 46 Vide Euriacutepides Orestes 211-306

110

πέπτωκα δεινῷ καὶ πνοὰς θερμὰς πνέω μετάρσιrsquo οὐ βέβαια πλευμόνων ἄπο47

(vv 1089-1093)

O heroacutei vai descrevendo o que vecirc Sentem-se oscilaccedilotildees no seu campo de visatildeo

do ceacuteu passa para a terra voltando a olhar para o eacuteter ndash Heacuteracles procura reconhecer o

espaccedilo que o envolve Num primeiro momento o contacto com o mundo que o rodeia

permite-lhe sentir que ainda respira mas desconhece o lugar onde jaz como tambeacutem

natildeo se recorda do que lhe aconteceu Tem apenas consciecircncia de que sofreu uma

alteraccedilatildeo mental da qual ainda sente vestiacutegios no seu acircnimo ndash esse conhecimento eacute

expresso por recurso ao poliptoto ἔπνους (v 1089) πνοάς (v 1092) πνέω (v 1092) em

consonacircncia com πλευμόνων48 (v 1093)

O Alcida natildeo entende porque estaacute amarrado tal como um barco (v 1094) nem

sequer consegue identificar os corpos que jazem agrave sua volta (vv 1094-1097) Recorda-

-se de que jaacute tinha abandonado o Hades mas natildeo consegue reconhecer o ambiente que o

rodeia (vv 1101-1105) A sensaccedilatildeo de desorientaccedilatildeo eacute completa o que demonstra que a

sua mente ainda natildeo estaacute totalmente liberta dos grilhotildees da loucura

O processo de ἀναγνώρισις eacute lento e o heroacutei precisa do auxiacutelio de Anfitriatildeo

uacutenica personagem que o Alcida reconhece para lhe desvendar tudo o que se passou (vv

1111-1112) Apoacutes ter descoberto a autoria do crime Heacuteracles vecirc num primeiro

momento no suiciacutedio a soluccedilatildeo para enfrentar a mutaccedilatildeo da fortuna (vv 1146-1153) ndash

atitude em que podemos encontrar eco no Ajax de Soacutefocles A intenccedilatildeo de suiciacutedio fica

suspensa com a chegada de Teseu (vv 1153-1154) mas logo eacute retomada quando os dois

dialogam (vv 1247-1310) Os argumentos de Heacuteracles satildeo

a) ele descende de um crime involuntaacuterio49 ndash culpa hereditaacuteria (vv 1258-1261)

b) Hera persegue Heacuteracles por ser descendente directo de Zeus ainda que o

heroacutei considere como pai verdadeiro Anfitriatildeo e negue ascendecircncia divina (vv 1262

ss)

c) filiciacutedio e uxoriciacutedio (vv 1279-1280) Heacuteracles sente que este crime foi o

uacuteltimo trabalho e o mais penoso de todos

47 lsquoAinda estou vivo e vejo como deve ser o ceacuteu a terra e estes raios de sol Senti-me como arrastado por uma vaga dominado por uma terriacutevel inquietaccedilatildeo de espiacuterito e dos meus pulmotildees sai uma respiraccedilatildeo ardente e ofegante a intervalos regularesrsquo 48 Esta forma aparece a par de πνεύμων 49 Haacute nestes versos uma repercussatildeo do que Anfitriatildeo disse no Proacutelogo (vv 16-17) e o Coro volta a lembrar aludindo talvez ao crime de Heacuteracles como expiaccedilatildeo de um outro mais antigo (vv 1078-1080) Anfitriatildeo tinha matado involuntariamente Eleacutectrion pai de Alcmena

111

d) natildeo pode habitar lugar algum nem Tebas nem Argos natildeo poderaacute entrar em

santuaacuterios ou festejar com amigos (vv 1281-1290) O seu discurso entra no domiacutenio da

hipeacuterbole ao considerar que a Terra natildeo lhe permitiraacute que a profane ao pisar o chatildeo

nem os mares ou os rios jamais o deixaratildeo navegar nas suas aacuteguas (vv 1295-1298)

No entanto porque encontra em Teseu um abrigo e a promessa de integraccedilatildeo em

Atenas opta por viver agrave margem do sofrimento tomando o suiciacutedio como atitude

proacutepria de um cobarde (vv 1347-1351) A diferenccedila entre o Aacutejax de Soacutefocles e o

Heacuteracles de Euriacutepides eacute abismal A concepccedilatildeo de vergonha (αἰδώς) estaacute presente nos

dois casos mas a forma como cada um resolve esse problema eacute diferente Para Aacutejax o

seu acto eacute imperdoaacutevel e resta-lhe apenas morrer para apagar a sua vergonha (o coacutedigo

de honra que lembra os Poemas Homeacutericos eacute marcante nesta personagem) Para

Heacuteracles seria motivo de αἰδώς se optasse pelo suiciacutedio uma vez que eacute o heroacutei de

gloriosos feitos

Quanto agraves suas armas que foram usadas para matar a famiacutelia Heacuteracles

questiona se deve abandonaacute-las ou mantecirc-las (vv 1378 ss) Para Papadopoulou ldquothey

are the symbols of his violence which can be beneficent as well as catastrophic

Deciding to keep them is a recognition and a reminder of the ambivalence of his

heroismrdquo50 Mas mais do que isso as armas representam para o heroacutei uma forma de

proteger a cidade que o acolhe e em simultacircneo revelam que mesmo integrado numa

sociedade que preza o colectivismo o Alcida manteacutem a sua individualidade

17 ἀρετή51 e βία Lico e Heacuteracles pontos semelhantes entre um tirano e o heroacutei

O comportamento de Heacuteracles ao longo da trageacutedia deixa algumas reservas no

que diz respeito ao seu caraacutecter Essas questotildees levantam-se no contexto da loucura do

Alcida e consequente morte da sua famiacutelia A forma como os filhos e Meacutegara morrem

permite estabelecer pontos de contacto com a morte de Lico A violecircncia que o heroacutei

usa para matar os iacutempios eacute a mesma que utilizou para com os filhos e a mulher de

modo que essa forccedila violenta parece ser apanaacutegio do heroacutei

50 Thalia Papadopoulou ldquoHerakles and Hercules The Herorsquos Ambivalence in Euripides and Senecardquo Mnemosyne 57 (2004) 267 51 No que diz respeito agrave ἀρετή do heroacutei este tema foi sendo sublinhado ao longo da caracterizaccedilatildeo da personagem pelo que se tornava repetitivo focarmos este aspecto uma vez mais Importa reter eacute que a par desta ἀρετή coexiste uma βία

112

Eacute precisamente devido a este uacuteltimo acto que a forccedila e heroicidade de Heacuteracles

pode ser posta em causa Barlow explica

Heraclesrsquos life before the madness has been taken up with violent deeds against the Giants (177ff) against the Centaurs (181) against the Minyans (220ff) against the monsters while on his labours (the Lion the Centaurs the Stag the Horses of Diomedes Cycnus the robber the Dragon the Amazons the Hydra) and finally against Lycus Over all these he triumphed with his weapons the club and the bow Physical violence is a way of life to him so when the gods come to destroy him by madness they are able to do so through patterns of behaviour which are already characteristic of him52

Esta bipolaridade manifestada na sua virtuosidade vs a forma cruel com que

resolve as situaccedilotildees leva-nos a estabelecer uma comparaccedilatildeo entre Lico e Heacuteracles53

Em primeiro lugar ambas as personagens ousam violar o direito dos suplicantes por

duas vezes Lico no primeiro confronto com Anfitriatildeo (vv 240-246) pretende

sacrificar os suplicantes junto do templo de Zeus queimando-os vivos No terceiro

episoacutedio Lico regressa agrave cena a reclamar a vida de Anfitriatildeo Meacutegara e filhos Agrave

informaccedilatildeo de Anfitriatildeo de que Meacutegara poderia estar dentro do palaacutecio junto do altar

sagrado Lico reclama a sua presenccedila e como Anfitriatildeo se recusasse a trazecirc-la invade o

palaacutecio para de laacute a arrebatar juntamente com os filhos (vv 712-724)

Heacuteracles por seu turno acorrentado pela loucura natildeo reconhece o pai que

suplicante lhe agarra a matildeo ao ver que o filho estava a delirar Anfitriatildeo eacute repelido

porque eacute confundido com o pai de Euristeu e o Alcida prepara-se para matar o primeiro

filho (vv 967-971) Depois de morta a primeira crianccedila vai ao encontro da segunda que

se refugiara junto da base do altar O filho dirige-se para junto do pai como suplicante

ajoelha-se e toca-lhe no pescoccedilo e no queixo com as matildeos (984-994) mas eacute morto pela

matildeo paterna que natildeo o reconhece Em siacutentese Heacuteracles acaba por consumar o que Lico

natildeo conseguiu matar Meacutegara e os filhos54

Em segundo lugar Lico e Heacuteracles atacam pessoas indefesas o primeiro porque

teme que a famiacutelia de Heacuteracles se vingue do seu crime o segundo porque pensava que

estava a atacar o pai a mulher e filhos de Euristeu55 Num terceiro aspecto a violecircncia

52 Barlow 9-10 53 Nesta comparaccedilatildeo servimo-nos do artigo de Thalia Papadopoulou ldquoHerakles and Hercules The Herorsquos Ambivalence in Euripides and Senecardquo 257-283 54 Anfitriatildeo escapa por intervenccedilatildeo divina 55 Haacute um erro de avaliaccedilatildeo suscitado pelos deuses

113

com que Lico se expressa para manifestar o seu desejo de queimar viva a famiacutelia de

Heacuteracles eacute a mesma de que o Alcida usa quando diz pretender destruir todo o palaacutecio

de Lico e mataacute-lo cruelmente (vide vv 247-251 comparando-os com os vv 568-573)

Este caraacutecter impulsivo que caracteriza ambas as personagens contrasta com a

tranquilidade e sensatez de Anfitriatildeo (vv 585-586 vv 707-709)

Num quarto aspecto observamos que o imaginaacuterio sacrificial eacute semelhante Haacute

um paralelismo macabro entre o que Lico pretendia e o que Heacuteracles realiza Este

paralelismo eacute notoacuterio nas falas de Meacutegara e do Mensageiro Meacutegara usa foacutermulas

proacuteprias de um sacrifiacutecio para descrever as intenccedilotildees de Lico Escolhe palavras como

ἱερεύς (sacerdote) σφαγεύς (sacrifiacutecio de animais) θύματα (sacrifiacutecio de viacutetimas) ndash vv

451-453 O Mensageiro quando descreve o crime de Heacuteracles dando uma imagem de

um sacrifiacutecio usa uma linguagem semelhante agrave de Meacutegara θῦμα e ἐπισφάξων (vv 994-

995)

2 Caracterizaccedilatildeo de Heacutercules na trageacutedia de Seacuteneca

Heacutercules eacute em Seacuteneca o centro para o qual tudo converge Apesar de entrar em

cena apenas no Acto III todas as falas das personagens diaacutelogos e odes o focam como

protagonista Podemos mesmo afirmar que a personagem nos vai sendo apresentada sob

os vaacuterios pontos de vista de Juno do Coro de Anfitriatildeo de Meacutegara de Lico e de

Teseu a par daquilo que o proacuteprio heroacutei diz sobre si mesmo completando-se assim um

retrato multiacutemodo que revela o modo como eacute interpretado o valor do Alcida56

Seacuteneca caracteriza o heroacutei por meio de antiacuteteses pelo duplo nascimento pela

uirtus e pelo uitium pelo modo civilizador e pelo selvagem Aleacutem destes aspectos o

Alcida eacute representado metonimicamente como a vida (o salvador a lsquoluzrsquo) e a morte (o

que destroacutei as lsquotrevasrsquo) Se estes binoacutemios permitem pontos de contacto com o seu

modelo Euriacutepides o objectivo de Seacuteneca eacute contudo outro analisar os affectus do

protagonista tomando-o como exemplo de personagem natildeo-estoacuteica Assim por

exemplo o toacutepico da amizade que encontramos bem delineado em Euriacutepides desde a

56 Em Euriacutepides este movimento centriacutepeto natildeo eacute tatildeo marcado No diaacutelogo entre as personagens haacute igualmente vaacuterias referecircncias ao heroacutei contudo natildeo se centram exclusivamente no protagonista Haacute menos monoacutelogos e mais acccedilatildeo

114

primeira cena ateacute ao terminar da acccedilatildeo dramaacutetica eacute omitido por completo No caso de

Heacutercules o filoacutesofo concentrou boa parte da sua anaacutelise numa caracteriacutestica fiacutesica do

Alcida sendo a mais proeminente e que melhor define o heroacutei a forccedila57 fiacutesica Este eacute

um elemento imprescindiacutevel para a compreensatildeo da personagem uma vez que

representa para Seacuteneca um ldquosintomardquo daquilo que Heacutercules eacute e que vai revelando no

decorrer da acccedilatildeo um caraacutecter superbus impius sendo o sustentaacuteculo dos seus excessos

e da sua desmedida confianccedila

Esta forccedila permite agraves personagens reconhecerem-no agnosco toros umerosque

et alto nobilem trunco manum (vv 624-625) Neste passo haacute uma gradaccedilatildeo que parte

do geral para o particular e que revela que Anfitriatildeo focou o seu campo de visatildeo nos

braccedilos e nas matildeos Foi este o primeiro impacte visual que levou ao reconhecimento da

chegada do filho58 Este centrar do campo de visatildeo numa caracteriacutestica especiacutefica do

corpo prova que o aspecto que melhor define Heacutercules eacute a sua forccedila Eacute nela e por ela

que reage agraves situaccedilotildees

Neste sentido haacute que notar que a palavra que eacute sucessivamente evocada pelas

personagens para representar esta caracteriacutestica de Heacutercules eacute manus59 significando por

metoniacutemia o poder mas particularmente a forccedila Assim tendo como ponto de partida

para a anaacutelise do protagonista este elemento que na concepccedilatildeo estoacuteica eacute um

indiferente uma vez que pode ser usada para o bem ou para o mal procuraremos ver

como todos os outros elementos supramencionados se conjugam

Ao contraacuterio do que fizemos para Heracles natildeo vamos estruturar esta aliacutenea em

toacutepicos mas analisaacute-los num todo porque em Hercules Furens todas as caracteriacutesticas

que revelam os affectus do protagonista se ligam de forma a conduzi-lo inevitavelmente

ao furor e consequentemente ao scelus Shelton diz ldquoHerculesrsquo madness is the

dramatic center of this play and Senecarsquos intention is to explore the cause and the

57 Esta forccedila eacute entendida como uma uirtus por uma boa parte das personagens (Heacutercules mas tambeacutem Anfitriatildeo e Meacutegara) enquanto para outras representa o lado excessivo do heroacutei (Juno Lico) 58 Jaacute a forma como Heacuteracles eacute reconhecido quando se aproxima do palaacutecio eacute diferente parece ser um processo natural e gradual Meacutegara e Anfitriatildeo reconhecem o heroacutei quando ele se dirige ao palaacutecio ndash natildeo haacute qualquer referecircncia ao seu aspecto fiacutesico (vv 515-519) 59 A semacircntica da matildeo para identificar o protagonista natildeo eacute tatildeo recorrente na trageacutedia de Euriacutepides A palavra χείρ ocorre quinze vezes representando ou a forccedila do Alcida (v 397 v 404) ou a justiccedila (castiga os tiranos v 565) ou a protecccedilatildeo (v 435 v 631) ou a vinganccedila (v 938) ou a impiedadecrime (v 964 v 968 v 1145 v 1199 v 1208) ou a salvaccedilatildeo apoio (Teseu pede ao heroacutei que lhe estenda a matildeo para poder ser auxiliado v 1398 v 1402) ou a purificaccedilatildeo (v 940 v 1324) Em Seacuteneca o nuacutemero de ocorrecircncias eacute maior tendo o sentido de forccedila poder v 58 v 114 v 122 v 221 v 247 v 272 v 279 v 442 v 469 v 528 v 566 v 614 v 625 v 807 v 882 v 914 v 919 v 998 v 1034 v 1040 v 1044 v 1098 v 1103 v 1192 v 1193 v 1196 v 1211 v 1244 v 1260 v 1297 v 1319 v 1328

115

development of the madnessrdquo60 Seraacute neste sentido que desenvolveremos o estudo da

personagem partindo de uma hetero e auto-caracterizaccedilatildeo e das manifestaccedilotildees do

protagonista perante as adversidades

Da fala de Juno sobressai a indomita uirtus (v 39) de Heacutercules que venceu todos

os obstaacuteculos que a natureza gerou na terra no mar e no ar quidquid horridum tellus

creat inimica quidquid pontus aut aer tulit terribile dirum pestilens atrox ferum

fractum atque domitum est (vv 30-33) A iteraccedilatildeo de quidquid (vv 30-31) que

generaliza tudo o que Heacutercules conseguiu domar o assiacutendeto (cf v 32) que acentua a

acumulaccedilatildeo de adjectivos numa esfera de horror e atrocidade reiteram por um lado o

oacutedio de Juno (v 35) ndash Heacutercules dominou tudo ndash por outro sublinham a forccedila

descomunal do heroacutei e a sua arrogacircncia61 visto que segundo Juno iraque nostra

fruitur in laudes suas mea uertit odia (vv 34-35) A estrutura quiaacutestica vem reforccedilar a

ideia do fracasso total dos objectivos da divindade face a um espiacuterito indomaacutevel Natildeo haacute

nada que consiga controlar Heacutercules e pocircr-lhe um freio pois nada parece saciaacute-lo Pelo

contraacuterio aceita todos os labores que Juno lhe envia laetus imperia excipit (v 42)

Aleacutem disso os monstros que temeu no iniacutecio em particular a Hidra de Lerna e o Leatildeo

de Neacutemea satildeo transportados por ele como armas de defesa (vv 44-46) fez da pele do

leatildeo o seu escudo e embebeu as suas setas com o veneno da serpente62 Devido ao

sucesso motivado pelas consecutivas vitoacuterias Heacutercules eacute conhecido por todo o orbe e

considerado como um deus qua Sol reducens quaque deponens diem binos propinqua

tinguit Aethiopas face indomita uirtus colitur et toto deus narratur orbe (vv 37-40)

Para Fitch a indomita uirtus ldquomay suggest that Hercules is not only spoken as a

god (narrator below) but worshipped as onerdquo63 Segundo este autor a palavra uirtus eacute

por si um argumento que mostra que Heacutercules foi deificado Esta divinizaccedilatildeo pode

representar para Juno um modo de excesso visto que o heroacutei eacute um mortal mas por

60 Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 28 61 Shelton na n 47 do artigo ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 diz que as palavras de Juno revelam elementos estoacuteicos laetus imperia excipit (v 42) Parece natildeo haver contudo qualquer referecircncia agrave impassibilidade estoacuteica de aceitar com alegria o que o Fatum lhe reserva uma vez que a deusa diz de seguida quae fera tyranni iura uiolento queant nocere iuueni (vv 43-44) ndash esta ideia estaacute ainda presente nos versos anteriores superat et crescit malis iraque nostra fruitur in laudes suas mea uertit odia (vv 33-35) A indiferenccedila de um estoacuteico manifesta-se pela ausecircncia de dor ou de prazer em tudo o que o Destino lhe reserva A suprema felicidade estaacute em viver segundo o Bem (vide Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 715 ss) e parece natildeo ser esta a ideia que a personagem Juno quer transmitir Pelo contraacuterio vemos que quando Heacutercules entra em cena revela um certo comprazimento em executar as tarefas impostas ansiando por mais 62 Fitch (1) 133 considera que a sineacutedoque ldquovem armado com o leatildeo e a hidrardquo pretende revelar que as caracteriacutesticas desses monstros natildeo morreram mas coabitam no heroacutei 63Fitch (1) 133

116

outro aludir ao esperado futuro de Heacutercules o de ascender agraves moradas divinas como

ela proacutepria admite pariterque natus astra promissa occupet in cuius ortus mundus

impendit diem tardusque Eoo Phoebus effulsit mari retinere mersum iussus Oceano

iubar (vv 23-26) Depois de uma anterior enumeraccedilatildeo dos vaacuterios filhos e amadas que

Juacutepiter teve e que ascenderam aos astros (cf vv 6-21) a referecircncia a Heacutercules e aos

astra promissa provam que seraacute essa a proacutexima etapa do heroacutei64 A perseguiccedilatildeo de Juno

eacute uma tentativa de evitar que tambeacutem o protagonista venha a morar com os sempiternos

Analisando as palavras de Juno deduz-se que em Heacutercules existe uma uirtus

que adveacutem da vontade do heroacutei em destruir tudo o que de monstruoso e terriacutevel a terra

possui fazendo um bom uso da forccedila que ele deteacutem a par de caracteriacutesticas de excesso

e erro claramente delineadas ele eacute megaloacutemano (v 46 nec satis terrae patent)

arrogante (v 58 superbifica ndash o adjectivo composto por superbus e facio intensifica o

sentido de lsquosoberborsquo que a forma simples jaacute comporta acentuando a ideia de que a forccedila

de Heacutercules inspira orgulho) e violento (vv 43-44 uiolento iuueni) ndash o proacuteprio

vestuaacuterio de Heacutercules contribui para dar a imagem de um ser baacuterbaro (vv 45-46

armatus uenit leone et hydra) Como diz Littlewood ldquoThe lion-skin is one of Herculesrsquo

most distinctive features and this savage lion symbolizes Hercules himselfrdquo65

A violecircncia de Heacutercules depreende-se tambeacutem de algumas formas do particiacutepio e

de verbos domitus (cf v 51) particiacutepio perfeito de domo implica o uso de forccedila na

acccedilatildeo de subjugar iactans (cf v 51) particiacutepio presente de iacto demonstra a

arrogacircncia do heroacutei em ter derrotado Plutatildeo e revela o perigo iminente de que uma vez

vencidos os spolia fraterna (vv 51-52) Heacutercules ambicione conquistar os do pai (v

51) ruptus (cf v 57) particiacutepio perfeito de rumpo acentua a ideia de forccedila violenta no

acto de lsquoromperrsquo lsquoquebrarrsquo o lugar onde se encerram as sombras Juno recorda a

excessiva confianccedila que Heacutercules tem no seu poder robore experto tumet (v 68) ndash a

forma verbal no presente do indicativo sublinhada pela metaacutefora (robur ndash representa a

forccedila a rigidez do heroacutei) sugere a imoderaccedilatildeo do protagonista Com estas

caracteriacutesticas que foi delineando em Heacutercules Juno pretende provar que o heroacutei eacute um

64 De notar o paralelismo entre o nascimento dos geacutemeos Castor e Poacutelux (que resultam da uniatildeo de Juacutepiter e Leda e desta com Tiacutendaro numa mesma noite) para cuja concepccedilatildeo a terra se imobilizou e o de Heacutercules para cuja concepccedilatildeo foram necessaacuterias vinte e quatro horas No primeiro caso os geacutemeos jaacute obtiveram a morada celeste para Heacutercules haacute a promessa de a vir obter 65 Cedric A J Littlewood Self-Representation and Illusion in Senecan Tragedy (Oxford Oxford University Press 2004) 113

117

monstro Nesse sentido diz a deusa quaeris Alcidae parem nemo est nisi ipse (vv

84-85)

A par da criacutetica de Juno vem a perspectiva do Coro que natildeo eacute mais positiva Os

adjectivos e substantivos que usa para qualificar e caracterizar a personagem satildeo

indicadores disso pectore forti (v 186) uiribus (v 591) audax (v 772) Nestes

exemplos satildeo visiacuteveis um conjunto de traccedilos que demonstram que Heacutercules estaacute

afastado do ideal do sapiens Ao mostrar que o protagonista eacute excessivo dominado por

paixotildees o Coro deixa impliacutecito que a sua queda seraacute inevitaacutevel (por exemplo vv 192-

196 v 201 vv 588-589)

Na Ode III depois de descrever a turba que desce aos Infernos e de comentar a

inevitabilidade da morte segue-se um hino (vv 875-892) de louvor ao heroacutei vencedor

que antecede o momento da loucura tal como em Euriacutepides (vv 763-814) Para

Shelton ldquothe chorus for the first time claims that Hercules has brought peace to the

world by descending to the Underworld although we soon find that he has created

disorder and must pay for it Their expression of joy here creates a false mood of relief

before the horror and despair of the rest of the playrdquo Eacute patente a ironia traacutegica que em

termos estoacuteicos se traduz num error de avaliaccedilatildeo da parte do Coro jaacute que Heacutercules natildeo

eacute a lsquoluzrsquo salvadora mas sim as lsquotrevasrsquo destruidoras

Jaacute a perspectiva de Anfitriatildeo difere da de Juno e do Coro Natildeo contesta o valor

de Heacutercules reconhecendo a uirtus do filho na forccedila fiacutesica Esta revelara-se ainda

Heacutercules natildeo tinha discernimento (vv 215 ss)66 Para Anfitriatildeo o filho eacute o libertador da

raccedila humana por ter dominado todos os monstros e a ausecircncia do Alcida resultou no

domiacutenio do scelus que levou a uma mudanccedila na ordem natural das coisas (vv 251-252)

No entanto Anfitriatildeo acredita no regresso do filho e a enumeraccedilatildeo dos trabalhos67 de

66 Na perspectiva de Segurado e Campos a uirtus de Heacutercules eacute essencialmente fiacutesica e compara o heroacutei a Lico Tambeacutem o tirano considera ter uma (clara) uirtus que se baseia principalmente no poder da forccedila ndash foi por meio dela e com a ajuda de armas que conseguiu vencer Tebas e manter o poder ldquosente prazer na violecircncia eacute indiferente agrave justiccedila ou injusticcedila com que se emprega a forccedilardquo diz Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos ldquoSeacuteneca e Heacutercules Observaccedilotildees sobre o Hercules Furensrdquo Euphrosyne 8 (1977) 165 67 A identificaccedilatildeo dos doze trabalhos eacute diferente nas duas trageacutedias Euriacutepides omite a caccedila ao Javali de Erimanto os paacutessaros de Estinfaacutelia os estaacutebulos de Augeu e o touro de Creta Esta diferenccedila deve-se aos objectivos que norteiam cada um dos tragedioacutegrafos em Heracles o Coro daacute uma imagem do heroacutei enquanto civilizador e pacificador que procura auxiliar os humanos contrastando no final da trageacutedia com a posiccedilatildeo dos deuses que natildeo demonstram qualquer consideraccedilatildeo pelos homens Em Hercules Furens o propoacutesito do autor prende-se com a valorizaccedilatildeo da forccedila que o protagonista possui sendo uma forma de demonstrar que nada impede Heacutercules de sair do mundo inferior antes representaraacute mais uma vitoacuteria para ele (v 278) Vemos que filoacutesofo natildeo se limitou a uma imitatio Ao escolher outros trabalhos Seacuteneca distancia-se claramente do seu modelo

118

Heacutercules serve de exemplum68 de tudo o que o Alcida jaacute conseguiu superar justificando

a esperanccedila de que o protagonista encontraraacute uma via para sair do mundo inferior (vv

275-278) Infere-se ainda das falas de Anfitriatildeo que Heacutercules ou eacute um ser divino ou

tornar-se-aacute um deus visto que Tebas eacute conhecida por ter gerado e criado muitos deuses

(vv 265-267)

Haacute contudo no discurso e no diaacutelogo de Anfitriatildeo com as outras personagens

elementos subtis que permitem identificar em Heacutercules uma natureza indomaacutevel que

natildeo descansa mas antes percorre o mundo69 ou em contiacutenua labuta (vv 209-215) ou a

seruire (v 273 derivado da palavra seruus a forma verbal significa lsquoser escravorsquo)

denotando a satisfaccedilatildeo do protagonista em cumprir as tarefas que lhe satildeo impostas e que

tecircm implicaccedilotildees psicoloacutegicas a audaacutecia a megalomania a arrogacircncia e a crueldade

que foram jaacute apresentadas por Juno e pelo Coro A audacia do Alcida eacute evidente na

descriccedilatildeo que Anfitriatildeo faz de um dos trabalhos que o heroacutei concluiu (vv 247-248 nec

ad omne clarum facinus audaces manus stabuli fugauit turpis Augei labor) e quando

Anfitriatildeo comenta com Meacutegara aderit profecto qualis ex omni solet labore maior

(vv 312-314)

No ponto de vista de Segurado e Campos a forma adjectiva no comparativo

tem trecircs interpretaccedilotildees possiacuteveis Heacutercules vem maior porque venceu mais uma tarefa

vem mais forte regressa maior porque traz consigo mais despojos das suas guerras ndash a

forma adjectiva estaacute conotada com a ambiccedilatildeo de mais poder chega maior porque mais

arrogante O mesmo autor conclui ldquoO que maior sem sombra de duacutevida natildeo implica eacute

qualquer progresso de ordem moralrdquo70 Natildeo haacute uma uacutenica alusatildeo ao caraacutecter psicoloacutegico

do Alcida num ponto de vista positivo mas apenas a caracteriacutesticas negativas que tecircm

como causa o uso desmesurado que o heroacutei faz da sua forccedila

68 Seacuteneca socorre-se com frequecircncia de exempla para ilustrar uma ideia por exemplo Juno enumera no iniacutecio do soliloacutequio as paelices que ascenderam aos astros para revelar que Alcmena e o filho poderatildeo vir igualmente a conquistaacute-los (vv 6-26) Meacutegara descreve o destino dos tiranos que governaram Tebas ameaccedilando ser esse o fatum de Lico (vv 384-396) Anfitriatildeo tenta provar que Heacutercules eacute um deus dando como exemplo o nascimento e a vida de Apolo e de Baco (vv 449-476) o Coro recorda a histoacuteria de Orfeu e Euriacutedice para demonstrar que o regresso do Alcida traraacute consequecircncias 69 Para Seacuteneca quando algueacutem passa uma boa parte da vida a deambular revela instabilidade e doenccedila da alma porque foge aos problemas e a si proacuteprio A capacidade do homem de permanecer estaacutevel demonstra que consegue viver consigo (Seacuteneca Ad Lucilium Epistolae Morales 2) 70 Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos ldquoSeacuteneca e Heacutercules Observaccedilotildees sobre o Hercules Furensrdquo Euphrosyne 8 (1977) n 56 (166)

119

Meacutegara reconhece o valor de Heacutercules pectore impulsus tuo huc mons et illuc

cessit et rupto aggere noua cucurrit Thessalus torrens uia (vv 286-288) maximae

uirtutes (cf v 325) Virtutis est domare quae cuncti pauent (v 435) Em todos estes

exemplos a uirtus do Alcida eacute dominantemente fiacutesica sendo possiacutevel encontrar

associados agrave expressatildeo desse valor exemplos que provam que Heacutercules se deixou

corromper pelo poder da sua forccedila

- dispulsas manu abrumpe tenebras (vv 279-280)

- nulla si retro uia iterque clausum est orbe diducto redi (vv 280-281)

- et quidquid atra nocte possessum latet emitte tecum (vv 282-283)

- erumpe rerum terminos tecum efferens et quidquid auida tot per annorum

gradus abscondit aetas redde et oblitos sui lucisque pauidos ante te populos age

(vv 290-293)

- indigna te sunt spolia si tantum refers quantum imperatum est (vv 294-295)

A forccedila impetuosa que Heacutercules poderaacute usar para sair dos Infernos eacute bem

visiacutevel nos exemplos citados Esta violecircncia eacute intensificada pelo vocabulaacuterio conotado

com as trevas dispulsae tenebrae (vv 279-280) atra nox (v 282 o pleonasmo

permite reforccedilar a descriccedilatildeo do locus horrendus) obliti pauidi populi (vv 292-293)

Algumas formas verbais no imperativo satildeo igualmente sugestivas pois permitem

demonstrar a brutalidade do Alcida abrumpe (v 280) erumpe (v 290) ndash note-se a

uariatio a acentuar a forccedila do heroacutei ndash intensificadas pelo particiacutepio diductus (v 281

orbe) e pela iteraccedilatildeo do pronome pessoal com a preposiccedilatildeo posposta tecum (v 283 v

290)

Lico contesta o valor de Heacutercules e boa parte do seu discurso eacute uma alusatildeo agrave

servidatildeo do heroacutei O toacutepico pretende servir de modelo para persuadir Meacutegara a ser

igualmente escrava e a submeter-se agrave vontade dos soberanos (vv 397-398) mas em

simultacircneo enumera uma criacutetica por Meacutegara preferir um famulus a algueacutem que possui o

sceptrum (cf v 430)

Ao contraacuterio de Meacutegara e de Anfitriatildeo o tirano natildeo vecirc em qualquer acccedilatildeo do

Alcida uma demonstraccedilatildeo da sua uirtus pelo contraacuterio potildee em causa a heroicidade de

Heacutercules uma vez que a virtude natildeo estaacute em matar feras e monstros (v 434) e parece

natildeo ficar persuadido pelos argumentos de Meacutegara (v 423 Inferna tetigit posset ut

120

supera assequi v 437 Non est ad astra mollis e terris uia) dado que lhe pergunta Quo

patre genitus caelitum sperat domos (v 438)

Nem quando Anfitriatildeo lembra a ascendecircncia divina do filho resumindo os

seus feitos recordando que lutou ao lado de deuses (vv 444-446) e que Juno o

perseguiu sempre (vv 445-446) Lico lhe reconhece o valor Pelo contraacuterio deixa

subjacente que todo o bem que Heacutercules faz agrave humanidade foi sempre por ordem de

Juno ou de Euristeu Quando age por si o heroacutei revela o seu lado cruel

Hoc Euryti fatetur euersi domus Pecorumque ritu uirginum oppressi greges Hoc nulla Iuno nullus Eurystheus iubet Ipsius haec sunt opera71 (vv 477-480)

Segurado e Campos vecirc nestes versos uma prova de que Heacutercules estaacute

desprovido de ratio deixando evidente um caraacutecter implacaacutevel e que agraves acusaccedilotildees de

Lico Anfitriatildeo responde com argumentos muito fraacutegeis O autor sugere

Anfitriatildeo apenas consegue retorquir post multa uirtus opera laxari solet [v 476] triste justificaccedilatildeo ndash e quatildeo pouco estoacuteica ndash para as fraquezas criticadas por Lico e logo a seguir quando Lico recorda a violecircncia de Heacutercules no assalto a Ecaacutelia [vv 477-480] Anfitriatildeo natildeo soacute o natildeo refuta como cita ainda outros inimigos vencidos pelo heroacutei e prevecirc a breve inclusatildeo de Lico nessa lista [vv 480-489]72

A resposta de Anfitriatildeo natildeo eacute para Segurado e Campos suficientemente

convincente quando enumera personagens mitoloacutegicas (Anteu Eacuterice Busiacuteris Cicno e

Geacuterion73) que foram castigadas por Heacutercules por terem comportamentos crueacuteis

71 O uacuteltimo argumento que Lico utiliza como a derradeira tentativa de provar que Heacutercules natildeo descende de Juacutepiter nem os seus feitos foram heroacuteicos eacute um anacronismo Em Oviacutedio Metamorphoses 9134 ss a destruiccedilatildeo do palaacutecio de Ecircurito e consequente tomada de Ecaacutelia motivadas pela paixatildeo que Heacuteracles tinha por Iacuteole vecircm depois de o Alcida se ter unido a Dejanira a segunda esposa Como nota Fitch (1) 242 ldquoThe reference in 477 to the Iole episode () has been criticized by some commentators as mythologically anachronistic as it occurred at the end of the herorsquos life his death being caused by Dejanirarsquos jealousy of Iole () But the capture of Iole is after all a reasonably self-contained event and one doubts whether ancient audiences deprived of the commentatorsrsquo help would have noticed the anachronism It would be a different matter if Lycus had referred to Deianira herselfrdquo Apesar de este tema voltar a ser focado no Hercules Oetaeus e com maior desenvolvimento o propoacutesito de Seacuteneca eacute comprovar o caraacutecter violento e passional de Heacutercules que destroacutei um palaacutecio movido pelo amor fatal Fitch (1) 24 afirma que a referecircncia ao acto do heroacutei tem um objectivo ldquoThese criticisms remind us of an element of instability in Herculesrsquobehavior which is familiar from the mythological traditionrdquo 72 Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos ldquoSeacuteneca e Heacutercules Observaccedilotildees sobre o Hercules Furensrdquo 165 73 Note-se que os trecircs primeiros ousaram provocar um duelo contra Heacutercules No caso de Anteu e Busiacuteris estes eram conhecidos pela sua impiedade e barbaridade ao matarem todos os estrangeiros que passavam por eles Jaacute Eacuterice quis ficar com o gado que Heacutercules roubara a Geacuterion Quanto a este uacuteltimo natildeo parece

121

Anfitriatildeo poreacutem ao acrescentar outros feitos permite dar pelo menos uma ideia da

ambivalecircncia do heroacutei que ora usa a forccedila para o mal (a imagem da perversidade de

Heacutercules que viola virgens eacute intensificada pela metaacutefora pecorumque greges ndash v

478) ora para o bem (liberta o mundo de homens tiracircnicos) Natildeo parece ser suficiente

restringir o estudo apenas aos argumentos de Lico ainda que possam ser mais vaacutelidos

Segurado e Campos afirma ldquoSe pensarmos que Heacutercules quando agiu em proveito da

humanidade o fez sob as ordens de Euristeu ao passo que entregue a si proacuteprio se

comportou indignamente perante Ocircnfale ou se deixou levar aos excessos de Ecaacutelia

pouca diferenccedila parece existir afinal entre o heroacutei e o tiranordquo74

Thalia Papadopoulou75 compara Heacutercules a Lico identificando em ambos

pontos semelhantes A analogia entre as duas personagens deixa reservas no que diz

respeito agrave concepccedilatildeo que o heroacutei tem da sua uirtus tanto Heacutercules como Lico

pretendem que haja paz (vv 926-937 Heacutercules vv 368-369 Lico) ambos entram em

cena vitoriosos (vv 895-899 Heacutercules vv 332-340) Na Ode I o Coro manifesta a sua

desaprovaccedilatildeo relativamente agraves ambiccedilotildees ilimitadas de poder tomando Heacutercules como

modelo dessa paixatildeo (vv 125-201) No entanto eacute possiacutevel acrescentar Lico ao nuacutemero

dos que merecem tal censura uma vez que o tirano natildeo respeita a justiccedila dominado

pela sede do poder tenta mantecirc-lo a todo o custo (vv 406-407) Heacutercules e Lico satildeo

ambos arrogantes e insolentes No primeiro caso Juno vai registando as caracteriacutesticas

que reconhece no Alcida e parte delas para justificar a sua perseguiccedilatildeo e castigo (vv 47

ss) Lico eacute criticado por Meacutegara por ser insolente e eacute avisado de um possiacutevel castigo

vindo dos deuses (vv 284-286) O tirano pretende matar a famiacutelia do Alcida caso

Meacutegara recuse casar-se com ele (vv 350-352) Heacutercules no momento da sua loucura

toma os seus filhos por descendentes de Lico e assassina-os (vv 987-991)

Tal como em Heracles a questatildeo da violaccedilatildeo dos santuaacuterios sagrados eacute tambeacutem

focada por Seacuteneca Lico ousa tentar matar Anfitriatildeo Meacutegara e os filhos dela que se

tinham refugiado no santuaacuterio de Juacutepiter queimando-os junto do altar (vv 501-508)

Heacutercules por seu turno viola duas vezes um interdito sagrado ao natildeo respeitar os

tatildeo loacutegica a sua referecircncia visto que estaacute relacionado com um dos doze trabalhos Fitch (1) considera ser despropositada a alusatildeo a este monstro apontando dois motivos ldquofirst because H[ercules] encountered him as direct result of orders from Eurystheus and second because Geryon was not generally known for lawlessnessrdquo (Fitch (1) 243) 74 Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos ldquoSeacuteneca e Heacutercules Observaccedilotildees sobre o Hercules Furensrdquo 165-166 75 Thalia Papadopoulou ldquoHerakles and Hercules The Herorsquos Ambivalence in Euripides and Senecardquo 257-283

122

suplicantes Agrave semelhanccedila do que acontece em Heracles (vv 986-994) o segundo filho

em tom e atitude de suplicante roga ao pai que o poupe (vv 1002-1004 En blandas

manus ad genua tendens uoce miseranda rogat) mas acaba por ser projectado e

morrer despedaccedilado contra as paredes (vv 1005-1007) Por uacuteltimo ambos Lico e

Heacutercules pretendem matar a famiacutelia do seu opositor por meio de um sacrifiacutecio humano

Heacutercules entra em cena no Acto III (vv 592 ss) A sua chegada eacute sentida por

Anfitriatildeo no momento em que dirigia as suas preces ao Alcida O anciatildeo reconhece a

chegada proacutexima do filho pela forma como a Natureza reagiu agraves suas suacuteplicas Cur

subito labant agitata motu templa Cur mugit solum infernus imo sonuit e fundo

fragor audimur est est sonitus Herculei gradus (vv 520-523) A iteraccedilatildeo do adveacuterbio

interrogativo denuncia o espanto de Anfitriatildeo Ele sente um suacutebito e violento

movimento proveniente do interior da terra do lugar mais profundo que agita os

templos ameaccedilando-os ruir ndash os verbos que representam sensaccedilotildees auditivas (agitata

mugit sonuit) aliados aos substantivos (sonitus fragor) e ao quiasmo e aliteraccedilatildeo

(infernus imo ndash e fundo fragor) datildeo a imagem de uma forccedila violenta que Heacutercules usaraacute

para sair dos infernos Os passos do heroacutei satildeo ouvidos (v 523 audimur) e reconhecidos

por Anfitriatildeo ndash o vocaacutebulo sonitus que eacute determinado pelo genitivo gradus acentua o

caraacutecter colossal do Alcida assim como a sua forccedila sobre-humana76

O monoacutelogo de Heacutercules atesta alguns dos traccedilos que as personagens foram

apresentando no decorrer da acccedilatildeo dramaacutetica O heroacutei caracteriza-se pois pela

immoderatio natildeo consegue controlar os seus impulsos nem os desejos eacute excessivo na

sua auto-confianccedila revelando um caraacutecter ambicioso e particularmente audaz Na parte

final do monoacutelogo (vv 614-615) o Alcida invoca Juno pedindo-lhe que lhe envie mais

monstros no que manifesta um espiacuterito insaciaacutevel que natildeo se cansa das labutas Este

geacutenero de paralelos entre Juno e Heacutercules eacute visiacutevel noutros passos

a) quando Plutatildeo foi derrotado Juno pergunta por que motivo Heacutercules natildeo quis

governar as moradas das sombras (v 54) ficando no lugar do rei vencido A esta

questatildeo Heacutercules responde et si placerent tertiae sortis loca regnare potui (vv 609-

610)

76 Esta saiacuteda dos Inferni lembra a de Tacircntalo (Thyestes vv 1 ss) e de Aquiles (Troades vv 171 ss) ndash nestes dois exemplos o aparecimento destas sombras criou um ambiente de tensatildeo que exigia um sacrifiacutecio A chegada de Heacutercules tambeacutem se revelaraacute fatal e conduziraacute a uma imolaccedilatildeo

123

b) Juno queixa-se de que jaacute nem a terra eacute suficiente para travar Heacutercules (vv 46-

48 Nec satis terrae patent effregit ecce limen inferni Iouis et opima uicti regis ad

superos refert) O protagonista ao recordar o oacutedio de Juno que natildeo o deixa tranquilo um

uacutenico momento usa as mesmas palavras da deusa In poenas meas atque in labores

non satis terrae patent Iunonis odio (vv 604-606)

O primeiro diaacutelogo de Heacutercules (vv 626-640) com as outras personagens eacute ao

contraacuterio do que acontece na trageacutedia de Euriacutepides (vv 531-636) curto e pouco

afectuoso ele dirige-se uma uacutenica vez a Anfitriatildeo e a Teseu Procura saber junto de

Anfitriatildeo por que motivo estatildeo ele Meacutegara e os filhos vestidos de luto e com aspecto

miseraacutevel (vv 626-628 squalor et lugubribus amicta obsiti paedore) Depois de

tomar conhecimento dos uacuteltimos conflitos provocados por Lico Heacutercules sente que lhe

compete o dever de castigar o tirano

Ingrata tellus nemo ad Herculeae domus auxilia uenit uidit hoc tantum nefas defensus orbis ndash cur diem questu tero mactetur impar hanc ferat uirtus notam fiatque summus hostis Alcidae Lycus ad hauriendum sanguinem inimicum feror Theseu resiste ne qua uis subita ingruat me bella poscunt differ amplexus parens coniuxque differ nuntiet Diti Lycus me iam redisse (vv 631-640)

O protagonista sente-se constrangido por ningueacutem ter auxiliado a casa de

Heacutercules (v 631 Herculeae domus) ele que eacute o defensor do mundo (v 633 defensus

orbis) Mas dos lamentos iniciais passa imediatamente agrave acccedilatildeo cur diem questu tero

(v 633) O seu uacuteltimo trabalho eacute agora matar Lico hanc ferat uirtus notam fiatque

summus hostis Alcidae Lycus (vv 634-635)77 O heroacutei sente que haacute uma forccedila superior

que o impele a querer derramar sangue e sendo essa uma tarefa sua uma vez que as

guerras reclamam apenas a presenccedila dele (v 637) dissuade Teseu de acompanhaacute-lo

Esta forccedila que o Alcida sente dentro de si pode levar a duas interpretaccedilotildees

complementares eacute um sentimento especificamente violento que aflora in se e que o

77 Herrmann atribui os vv 634-636 a Teseu enquanto Fitch (1) Viansino e Giardina a Heacutercules No ponto de vista de Fitch (1) 286 estes versos natildeo dizem respeito agrave fala de Teseu ldquouirtus would be awkward in the sense of uirtus tua 637 wolud be an odd response to Theseusrsquo offer and the bloodthirstiness of 636 suits Hercules better than Theseus Two factors that may have contributed to Arsquos error are the vocative Theseu in 637 and Hrsquos third person reference to himself in 635rdquo

124

leva a derrubar a tirania de Tebas pode ser um auguacuterio de um ataque de loucura

iminente

O heroacutei estaacute tatildeo obcecado pela ideia de se vingar que dispensa qualquer afecto

da famiacutelia (vv 638-639 differ amplexus parens coniuxque differ) remetendo abraccedilos

e demonstraccedilotildees de carinho para depois A estrutura quiaacutestica reforccedilada pela iteraccedilatildeo

do verbo no imperativo presente acentua a ideia de um desejo de aproximaccedilatildeo por parte

da famiacutelia pelo regresso tatildeo esperado de Heacutercules mas que eacute veementemente rechaccedilado

pelo Alcida A uacutenica preocupaccedilatildeo que o move eacute matar Lico e a estrutura quiaacutestica (vv

639-640 nuntiet Diti Lycus me iam redisse) aproxima as duas personagens que teratildeo

inevitavelmente de confrontar-se visto que a Heacutercules cabe a funccedilatildeo de castigar os

iacutempios e Lico eacute a representaccedilatildeo maacutexima do tirano Estaacute tambeacutem em causa a seguranccedila

da famiacutelia

Heacutercules regressa no Acto IV vitorioso (vv 895 ss) Derrotou Lico e a ordem

foi aparentemente estabelecida Assume-se como vingador (v 895 ultrice dextra)

preparando-se para oferecer libaccedilotildees aos deuses nunc sacra patri uictor et superis

feram caesisque meritas uictimis aras colam (vv 898-899) A ironia traacutegica eacute

manifesta nestes versos ele seraacute o sacerdote que vai oferecer viacutetimas humanas aos

deuses

A descriccedilatildeo da demecircncia de Heacutercules eacute gradual Natildeo eacute muito faacutecil identificar em

Heacutercules dois momentos psicoloacutegicos isto eacute um momento em que revele sanidade

mental e um outro que demonstre um estado completamente diferente de insania

Semelhante dificuldade deve-se agrave inexistecircncia de dois extremos Desde o primeiro

momento em que aparece em cena Heacutercules mostra estar muito proacuteximo da loucura natildeo

soacute pela incapacidade de discernimento dos limites existentes entre os deuses e os

humanos e pelo modo impetuoso como reage agraves proacuteprias situaccedilotildees como ainda pela

forma como pretende honrar os altares com oferendas Compara-se com alguma

frequecircncia aos deuses celestes (vv 592-613 vv 900-908) identificando Juacutepiter como

seu pai Juno como madrasta e os deuses como irmatildeos (vv 907-908 fraterque quisquis

incolit caelum meus non ex nouerca frater)

Eacute imoderado ao querer fazer uma libaccedilatildeo aos deuses sem primeiro purificar as

suas matildeos maculadas pelo sangue de Lico natildeo aceitando os conselhos de Anfitriatildeo A

imagem que este daacute das matildeos do filho indica que a morte do tirano teraacute sido violenta

manantes prius manus cruenta caede et hostili expia (vv 918-919) A aliteraccedilatildeo

125

(cruenta caede) a assonacircncia em nasal e a semacircntica do particiacutepio presente de mano

contribuem para a visualizaccedilatildeo do sangue que ainda escorre das matildeos do Alcida O

proacuteprio adjectivo cruenta que remete para cruor (lsquosangue derramadordquo) ilustra a

impiedade do heroacutei A resposta de Heacutercules deixa visiacutevel a sua impietas

utinam cruorem capitis inuisi deis libare possem gratior nullus liquor tinxisset aras uictima haud ulla amplior potest magisque opima mactari Ioui quam rex iniquus

(vv 920-924)

As figuras de retoacuterica permitem dar uma imagem da crueldade da violecircncia e da

ferocidade do protagonista a aliteraccedilatildeo cruorem capitis (v 920) a estrutura quiaacutestica

gratior nullus vs haud ulla amplior (note-se ainda a liacutetotes e a uariatio ndash haud ulla e

nullus) o uso de vocabulaacuterio proacuteprio do sacrifiacutecio (v 921 libare v 922 aras uictima

v 923 mactari) os adjectivos que qualificam o rex (v 920 inuisi v 924 iniquus)

Clara-Emmanuelle Auvray sugere a propoacutesito da vontade de Heacutercules de honrar

os altares divinos com o sangue do tirano

il peut affirmer que le sang drsquoun rex iniquus est une libation agreacuteable aux dieux et neacutegliger du mecircme coup les lois religieuses de la citeacute crsquoest en son seul nom qursquoil sacrifie agrave Jupiter invoqueacute sous son aspect de justicier Tonans enfin en appelant les autres dieux ses fregraveres il confirme sa preacutetention agrave deacutetenir par son rapport privileacutegieacute agrave la nature divine le sens de la loi Ainsi par lrsquointermeacutediaire du support mythologique Seacutenegraveque indique clairement les dangers inheacuterents agrave la notion de ldquoloi incarneacuteerdquo la toute-puissance juridique du Prince recegravele toutes les tentations de la violence arbitraire78

Heacutercules ldquocommet une faute religieuse graverdquo lembra Florence Dupont79 O

error do protagonista vai levaacute-lo a imolar a sua famiacutelia em oferenda aos deuses Como

informa a mesma autora

Hercule comme les autres heacuteros tragiques de Seacutenegraveque commet un crime inexpiable en transgressant un des rituels fondamentaux de la culture il sacrifie agrave Jupiter apregraves avoir tueacute Lycus sans se purifier du sang humain qui souille ses mains il accomplit ainsi explicitement et

78 Clara-Emmanuelle Auvray Folie et Douleur dans Hercule Furieux et Hercule sur lrsquoOeta Recherches sur lrsquoexpression estheacutetique de lrsquoascegravese stoiumlcienne chez Seacutenegraveque 18 79 Vide Florence Dupont Les Monstres de Seacutenegraveque pour une Dramaturgie de la Trageacutedie Romaine (Paris Belin 1995)184

126

volontairement un sacrifice humain qui fait de lui une becircte sauvage et lrsquoamegravene logiquement agrave massacrer sa famille80

A loucura do heroacutei comeccedila a manifestar-se no momento em que se dirige a

Juacutepiter em tom de prece Ipse concipiam preces Ioue meque dignas (vv 926-927)

Nestes versos Heacutercules identifica-se com o pai possivelmente pelo facto de o heroacutei ser

o protector dos homens e civilizador da humanidade81 Pretende uma nova Idade do

Ouro agora que julga que concluiu o seu ldquouacuteltimordquo trabalho

As suas preces reflectem o desejo utoacutepico de uma ordem e paz mundiais que

resvalam para o que eacute humana e naturalmente impossiacutevel Heacutercules falha enquanto heroacutei

pacificador Para Fitch

The impossibility of a Golden Age is relevant not only to our understanding of Herculesrsquo failure in this play but also to Rome herself Vergil had expressed hopes for the establishment of a new Golden Age (Ecl 4 passim Aen 6791-94) and such hopes resurfaced on the accession of Nero (cf Calp Ecl142ff 46ff Einsied Ecl 222ff and Sen himself at Apocol 4 where however the context has a deflationary effect) though HF may have been written before the event In each case these hopes were centered on a saviour figure as Hercules sees himself as the creator and guardian of the new age82

No momento em que os seus desejos entram no domiacutenio dos ἀδύνατα (vv 931-

939) Heacutercules apercebe-se da mutabilidade da natureza A passagem do dia para a noite

(vv 939-944) conotada com a mudanccedila do acircnimo do protagonista para a insanidade

ocorre no momento em que ele profere si quod etiamnum est scelus latura tellus

properet et si quod parat monstrum meum sit (vv 937-939) A palavra-chave destes

versos eacute monstrum que contribui para acentuar um tom de ironia traacutegica presente na

fala do heroacutei O lado pateacutetico deste discurso e que o leva a um error que por sua vez

conduziraacute agrave destruiccedilatildeo fatal eacute que o monstro com o qual vai defrontar-se eacute ele proacuteprio

Daiacute que quando acorda queira suicidar-se para expurgar o mundo desse novo monstro

80 Seacutenegraveque Theacuteacirctre Complet II ed e trad Florence Dupont (Paris Imprimerie Nationale 1992) 93 81 Esta comparaccedilatildeoligaccedilatildeo estreita entre Heacutercules e Juacutepiter eacute evocada no Hercules Oetaeus Hilo considera que a funccedilatildeo de Heacutercules na terra eacute semelhante agrave de Juacutepiter no Olimpo decus illud orbis atque praesidium unicum quem fata terris in locum dederant Iouis (vv 749-751) 82 Fitch (1) 27 Em Hercules Furens haacute semelhanccedilas entre Nero e Heacutercules a ambos parece ser confiada a tarefa de trazer uma nova Idade de Ouro com a sua vinda mas tanto o princeps como o heroacutei falham na sua tarefa Heacutercules erra devido agrave sua personalidade favoraacutevel a atitudes condenadas pelos estoacuteicos A loucura eacute apenas a consequecircncia de um espiacuterito jaacute de si perturbado pela vida activa Tambeacutem em Nero se evidenciam alguns traccedilos de inclemecircncia e violecircncia O princeps deixa-se dominar por todo o geacutenero de paixotildees de que resultaram mortes Britacircnico Agripina o proacuteprio Seacuteneca

127

Papadopoulou sugere ldquoThis moment constitutes an elaborate dramatic climax as the

implication is that the monster that Hercules asks for is no other than Hercules himself

his last toil will be the fight against his own selfrdquo 83

Neste sentido Fitch refere

ldquoThis [powerful dramatic irony] is inseparably combined here with character-revelation for there is arrogance in H assumption immediately disproved that he can deal with any threat sent against him There is also ambition underlying the urgency of etiamnunc and properet H feels that he has completed his labors and is eager to take the promised reward of immortality That this is in the forefront of his thoughts immediately becomes clear in the madness (955 ff)rdquo84

Esta ambiccedilatildeo que Fitch identifica permite compreender por que motivo

Heacutercules estaacute sempre ansioso por concluir as tarefas que lhe apresentam e ainda

entender a ausecircncia de afectividade que revela ser apanaacutegio do protagonista Na

verdade manifesta como desejo uacutenico o ascender agraves moradas celestes e eacute nelas que

reside o seu uacutenico fim (vv 957-973)

Quanto agraves manifestaccedilotildees da natureza elas estatildeo em estreita ligaccedilatildeo com o estado

psicoloacutegico de Heacutercules A sucessatildeo de interrogaccedilotildees (vv 939-944) numa procura de

perceber o que estaacute a acontecer ao seu redor permite fazer a distinccedilatildeo entre um heroacutei

aparentemente sanus e um insanus A evoluccedilatildeo da loucura natildeo eacute descrita ao pormenor

mas haacute uma dupla anotaccedilatildeo da demecircncia da personagem sob o ponto de vista

psicoloacutegico e fiacutesico O Alcida descreve aquilo que a sua vista deturpada contempla O

discurso de Anfitriatildeo permite recuperar a realidade dos factos isto eacute a personagem

revela o estado de alucinaccedilatildeo do heroacutei Na trageacutedia de Euriacutepides Fitch nota ldquoin

Herculesrsquo madness a single impulse and hallucination namely an attack on Mycenae is

replaced by a series of shifting impulses and hallucinations with great richness of

psychological and thematic significancerdquo85 Para aleacutem disso as manifestaccedilotildees da

perturbaccedilatildeo de Heacuteracles satildeo primeiro fiacutesicas depois psicoloacutegicas e descritas pelas

outras personagens

83 Thalia Papadopoulou ldquoHerakles and Hercules The Herorsquos Ambivalence in Euripides and Senecardquo 271 84 Fitch (1) 363 85 Fitch (1) 350

128

A escolha de palavras com que Seacuteneca descreve esta mudanccedila entra no campo

das trevas tenebrae (v 940) obscurus uultus (cf vv 940-941) nox atrum caput (v

942) A loucura vai domando por completo o heroacutei Os primeiros sintomas satildeo

a) visualizaccedilatildeo do Leatildeo de Neacutemea um dos primeiros trabalhos que concluiu (vv

944-952) O olhar do protagonista estaacute completamente concentrado nos astros o uacutenico

lugar que ele ainda natildeo experimentou Perdomita tellus tumida cesserunt freta

inferna nostros regna sensere impetus immune caelum est dignus Alcide labor in

alta mundi spatia sublimis ferar petatur aether astra promittit pater (vv 955-959)

Eacute possiacutevel novamente estabelecer um paralelo entre os discursos de Juno e

Heacutercules Agravequilo que a deusa temia caelo timendum est regna ne summa occupet qui

uicit ima sceptra praeripiet patri (vv 64-65) Heacutercules responde com impetuosidade e

desmesura non capit terra Herculem tandemque superis reddit () bella Titanes

parent me duce furentes () in caelum Olympus tertio positus gradu perueniet aut

mittetur (vv 960-961 vv 967-968 vv 972-973) Eacute sua intenccedilatildeo que esse seja o seu

proacuteximo passo86

b) julga ver os Gigantes libertos dos Inferni e armados para uma nova batalha

(vv 976-981) agora contra ele Estes versos surgem em tom especular relativamente

aos da fala de Juno (vv 79-83) quando diz pretender numa primeira opccedilatildeo libertar

todos os Gigantes para lutarem contra Heacutercules travando a ambiccedilatildeo do heroacutei de

ascender agraves moradas divinas

c) vecirc as Eriacutenias que se vatildeo aproximando dele ndash haacute um outro paralelismo com o

soliloacutequio de Juno (vv 86 ss) O facto de haver tantos pontos de contacto entre o

discurso de Juno e o de Heacutercules leva a concluir que a divindade tem efectiva

participaccedilatildeo na demecircncia do heroacutei como de resto mostrou ser sua intenccedilatildeo no final do

monoacutelogo inicial Como sugere Littlewood ldquoJuno and Hercules are inseparable from

86 No Hercules Oetaeus no monoacutelogo inicial Heacutercules invoca Juacutepiter argumentando que merece os astros prometidos Todo o discurso em 98 versos estaacute centrado no desejo de ascender agraves moradas celestes e no recordar dos ecircxitos dos seus labores Haacute cinco referecircncias aos astros as duas primeiras satildeo introduzidas por uma sucessatildeo de interrogaccedilotildees (vv 7-8 v 13) em que o protagonista procura saber por que motivo Juacutepiter natildeo lhe concede os ceacuteus uma vez que ele provou ser seu filho Nas outras referecircncias a) Heacutercules natildeo pede que o pai lhe indique o caminho mas apenas que lhe permita ascender aos astros (vv 32-33) b) considera que deve habitar nos ceacuteus para proteger os deuses dos monstros que foram anteriormente derrotados por ele e que agora ocupam um lugar entre as estrelas (vv 76-79) c) no final do discurso Heacutercules exige os astros por tudo o que fez pela humanidade (vv 97-98) Enquanto no Furens encontramos um heroacutei desmedido que pretende chegar aos astros seja naturalmente seja por meio da forccedila em Oetaeus o desespero do heroacutei eacute notoacuterio de tal modo que ele procura todos os argumentos possiacuteveis para que Juacutepiter lhe conceda um lugar na morada celeste nec peto ut monstres iter permitte tantum genitor inueniam uiam (vv 32-33) Chega ao cuacutemulo de dizer que pode servir de protector dos deuses

129

each otherrdquo87 Contudo o proacuteprio caraacutecter do Alcida revela estar bem distante de ter

uma mens bona

A repeticcedilatildeo do adveacuterbio propius (v 983) sugere a aproximaccedilatildeo de Tisiacutefone uma

Fuacuteria de que resultaraacute um crime O sentido de rogus (cf v 984) poderaacute ser duplo a

proacutepria loucura ou a morte da famiacutelia Fitch considera que a visatildeo de Tisiacutefone pode ter

duas interpretaccedilotildees ou a sua tarefa estaacute directamente relacionada com a rebeliatildeo dos

Gigantes ou guarda a entrada dos Infernos para que ningueacutem mais escape pela porta

franqueada por Heacutercules88 Nesta fase o protagonista estaacute totalmente dominado pela

Fuacuteria e o seu primeiro acto eacute atacar os filhos que confunde com os do tirano (vv 987

ss)89 seguindo-se a morte de Meacutegara que ele toma por Juno

A par do deliacuterio do heroacutei Anfitriatildeo complementa a descriccedilatildeo da evoluccedilatildeo do

estado psicoloacutegico do Alcida enumerando os primeiros sintomas ndash que satildeo

essencialmente fiacutesicos ndash e a forma como Heacutercules vai matando os filhos

a) o volver dos olhos90 ardentes em todas as direcccedilotildees (v 953 uultus huc et huc

acres refers)

b) a vista perturbada (acieque turbida) em direcccedilatildeo a um ceacuteu imaginaacuterio (v 954

falsum caelum)

c) Anfitriatildeo apercebe-se de que a mente do filho estaacute enlouquecida Infandos

procul auerte sensus pectoris sani parum magni tamen compesce dementem

impetum (vv 973-975) Os adjectivos infandus sanum (parum) demens ilustram um

acircnimo jaacute fora de si e as exortaccedilotildees de Anfitriatildeo (v 974 auerte v 975 compesce) satildeo

inuacuteteis Heacutercules natildeo ouve o pai estaacute cego pelo ardor da loucura

d) Anfitriatildeo pressente que o caecus furor (vv 991-995) do filho levaraacute a um

scelus nefandum triste et aspectu horridum (v 1004) A tripla adjectivaccedilatildeo permite

fazer uma transiccedilatildeo para a descriccedilatildeo da morte do segundo filho (vv 1005-1007) e

preparar o terceiro crime Anfitriatildeo aponta como estado psicoloacutegico do filho a amentia

(v 1021 amens) ndash soacute assim se explica tamanha atrocidade na forma como ele vai

eliminando cada um dos filhos e a esposa O uacuteltimo filho morre assustado com o olhar

inflamado de Heacutercules (v 1021 igneo uultu) ndash a manifestaccedilatildeo do ignis no vulto da

87 Cedric A J Littlewood Self-Representation and Illusion in Senecan Tragedy 117 88 Fitch (1) 373 89 Em Heracles o heroacutei confundiu os seus filhos com os de Euristeu 90 A palavra uultus pode designar lsquosemblantersquo ou lsquoolhosrsquo Fitch (1) 367 aponta as duas hipoacuteteses abonando com exemplos para cada uma delas No presente caso uma vez que eacute acompanhado pelo adjectivo acres optaacutemos por respeitar o plural e traduzir por lsquoolhos ardentesrsquo

130

personagem permite estabelecer uma relaccedilatildeo explorada pelos estoacuteicos entre a forccedila

destruidora do fogo e o efeito semelhante do erro das paixotildees que tudo abrasam e

destroem

e) no momento em que Anfitriatildeo se oferece como viacutetima para ser imolada junto

do altar (vv 1039-1042) Heacutercules adormece

O vocabulaacuterio que eacute usado pelas personagens para descrever os crimes do heroacutei

eacute expressivo para identificar a dimensatildeo da loucura que atacou o Alcida91 caecus furor

(v 991) furens (v 1005 v 1053) Hercules infestus (cf v 1013) amens (v 1021 v

1033) furor (v 1049 v 1098) graui uis uicta morbi pectus oppressum (vv 1051-

1052) tantis (animum) monstris (v 1063) torua pectora (v 1080) ferox cor (cf v

1083) omnes aestus (v 1088) insani fluctus animi (cf v 1092) uesanus motus (cf

v 1095) error caecus (v 1096) nefas (v 1099) ultrix manus (cf v 1103) tanti

dolores (cf v 1121) ulti uulnere (v 1122) scelus patriusque furor (v 1134) Todos

estes traccedilos que caracterizam o protagonista mostram que ele estaacute afastado do ideal

estoacuteico eacute excessivo prepotente estaacute dominado por paixotildees que o conduziram ao crime

De heroacutei virtuoso Heacutercules passa a monstro

Fitch considera que a insanidade de Heacutercules pode ter sido causada pelo excesso

de trabalho ldquoThe explanation may well be reflected in the fact that Senecarsquos Hercules

refuses to take rest between his tasks in which case Seneca has transmuted the idea of

physical exhaustion leading to epilepsy into that of psychological exhaustion leading to

temporary insanityrdquo92 Aliado agrave ausecircncia de qualquer descanso poderaacute subentender-se

um outro factor Como lembra Fitch ldquothat is not the only explanation implied in the

play for the fact that Hercules goes mad just after the end of his labours it is also clear

that his ambition and megalomania have been increased by the supposed conquest of the

underworldrdquo93

Para Shelton a loucura de Heacutercules deve-se ao erro de avaliaccedilatildeo da forccedila do

heroacutei The conflict in this play is the discrepancy between Herculesrsquo illusions about strength (uirtus) and the reality of strength His madness results from his distorted definition of uirtus He imagines that his physical force makes him greater than the gods he discovers that force produces disaster and that true strength is not physical but emotional

91 A ldquolinguagem da emoccedilatildeordquo expressatildeo de Maria Cristina Pimentel Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de Seacuteneca 41 contribui para a identificaccedilatildeo dos estados passionais das personagens em particular de Heacutercules 92 Fitch (1) 31 93 Fitch (1) 31-32

131

As one method of dramatizing this psychological conflict and giving external expression to an internal process Seneca created the dialogue of the supporting characters Their words reflect the conflict in Herculesrsquo mind The final dialogue between Theseus and Hercules for example externalizes Herculesrsquo discovery of the true uirtus94

No entanto julgamos que coexistem dois motivos que teratildeo conduzido agrave

insanidade do heroacutei um motivo humano e um motivo divino Juno tem um papel se natildeo

principal pelo menos fundamental na acccedilatildeo criminosa de Heacutercules No plano humano

como foi apontado pelos dois autores mencionados o Alcida deixa-se dominar por

sentimentos de megalomania violecircncia e ambiccedilatildeo que o levaram a um erro de

interpretaccedilatildeo e consequente furor Littlewood observa

Interpretation of this tragedy hinges on the origin and the nature of its criminal madness it may be seen as an extension of Herculesrsquo uirtus or an alien state of mind imposed upon him by Juno To some extent the nature of tragic madness is bound up with its origin Hercules tends toward the Phaethonic madness is more deliberately anarchic and evil However Seneca is at pains to confuse Juno with Hercules by making them imitate each other and thereby obstructs any simple identification of the tragic madness95

O despertar do heroacutei fiacutesico mas tambeacutem psicoloacutegico eacute igualmente progressivo

Se nos primeiros versos natildeo consegue discernir o local onde se encontra nem

reconhecer os corpos que jazem agrave sua volta mas apenas pressentir que aconteceu um

grande malum (vv 1138-1159) vai depois recuperando a consciecircncia96 comeccedilando por

dar-se conta de que os cadaacuteveres que estatildeo agrave sua volta (vv 1159-1161) satildeo dos seus trecircs

filhos e de Meacutegara O desespero por querer saber quem foi o autor do massacre (vv

1160 ss) leva a um novo acesso de fuacuteria ruat ira in omnes hostis est quisquis mihi

non monstrat hostem (vv 1167-1168) que conduz a uma nova seacuterie de interrogaccedilotildees97

Heacutercules vai descobrindo aos poucos que foi ele o assassino dos filhos e da esposa Eacute o

seu proacuteprio corpo que lhe vai dando as indicaccedilotildees do scelus manus refugit hic errat

94 Jo-Ann Shelton ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo Hypomnemata 50 28-29 Neste sentido Seacuteneca diz a Luciacutelio na Carta 9225 maiestatem enim eius ex nostra inbecillitate metimur et uitiis nostris nomen uirtutis inponimus 95 Cedric A J Littlewood Self-Representation and Illusion in Senecan Tragedy 114 96 Como explicou Carla Susana Vieira Gonccedilalves A Invectiva nas Trageacutedias de Seacuteneca 130 as perguntas retoacutericas tecircm dupla funccedilatildeo na forma como o heroacutei se vai comportando ao longo da acccedilatildeo dramaacutetica Permitem por um lado demonstrar que ele toma consciecircncia de que algo estaacute errado como eacute o caso presente e conduzem agrave descoberta Por outro revelam igualmente uma alma perturbada 97 Vide vv 1173-1176 vv 1179-1186 v 1187 v 1188 vv 1189-1190 vv 1193-1195 vv 1198-1199

132

scelus (v 1193) iam tela uideo nostra Non quaero manum (v 1196) hoc nostrum est

scelus tacuere nostrum est (vv 1199-1200)

Estas caracteriacutesticas que vatildeo assomando no Alcida permitem criar um efeito

especular entre o heroacutei e Juno As paixotildees que afectam a deusa ira (v 28 v 34 v 75)

odia (v 27 v 35 v 77) saeuitia (v 35 saeua) dolor (v 28 v 99) assemelham-se agraves

de Heacutercules A personagem experimenta a ira (v 1167 v 1220 v 1277 irasci) e a

saeuitia (v 1280) depois de ter sido viacutetima da vinganccedila de Juno

Ainda acometido pela ira encontra como soluccedilatildeo para o crime o suiciacutedio98 tal

como em Heracles Contudo tambeacutem sob este aspecto a forma como estaacute construiacuteda a

trama final eacute diferente ateacute mesmo no papel do pai e do amigo do Alcida Em Hercules

Furens Anfitriatildeo e Teseu funcionam como personagens-prolongamento99

Representam no uacuteltimo acto o outro lado da vontade de Heacutercules que consiste em

evitar o suiciacutedio

Em siacutentese a caracterizaccedilatildeo do heroacutei nas peccedilas de Euriacutepides e de Seacuteneca difere

substancialmente Haacute um ponto de contacto entre ambas a ambivalecircncia do heroiacutesmo

do Alcida mas ainda assim sob perspectivas diferentes Euriacutepides estuda Heacuteracles

numa perspectiva inovadora no sentido em que analisa a forccedila psicoloacutegica do

protagonista em detrimento da sua forccedila corpoacuterea A dramatizaccedilatildeo da loucura do heroacutei

leva a questotildees sobre o seu heroiacutesmo altruiacutesmo sobre o seu papel na sociedade uma

vez concluiacutedos os doze trabalhos100 Eacute o heroacutei que natildeo tem um lugar fixo (a natildeo ser no

final da trageacutedia) que faz pouco uso da razatildeo deixando-se levar pelas emoccedilotildees

violentas mas aceita os conselhos que as outras personagens lhe datildeo

Em Heracles haacute uma humanizaccedilatildeo da personagem Eacute o heroacutei que se submete

aos trabalhos porque deseja restituir o pai agrave sua paacutetria natal abandona o espoacutelio do seu

uacuteltimo trabalho para ver a famiacutelia ao pressentir que algo de terriacutevel se passava com ela

natildeo suporta os trabalhos a que foi submetido e eacute o heroacutei que no final precisa de apoio

do amigo para entregar Ceacuterbero a Euristeu (vv 1386-1388) e concluir assim os seus

πόνοι

98 Este tema teraacute desenvolvimento no uacuteltimo capiacutetulo pelo que mereceu aqui tatildeo-soacute uma breve referecircncia 99 Segurado e Campos ldquoSur la typologie des personnages dans les Trageacutedies de Seacutenegravequerdquo 225 chama personagens-prolongamento agravequelas que ldquone disent jamais rien qui ne puisse ecirctre attribueacute au discours du personnage-noyaurdquo Tambeacutem Meacutegara desempenha a funccedilatildeo de uma personagem-prolongamento quando descreve o orgulho e a ambiccedilatildeo desmedidos de Heacutercules (Acto II vv 279-308) 100 Vide Thalia Papadopoulou ldquoHerakles and Hercules The Herorsquos Ambivalence in Euripides and Senecardquo 267

133

Heacuteracles eacute mais afectuoso do que Heacutercules Naquele eacute notoacuteria a afeiccedilatildeo pela

famiacutelia manifestada directa ou indirectamente Heacuteracles eacute agarrado pelos filhos (vv

627-633) eacute ele quem os conduz para o interior do palaacutecio no fim da acccedilatildeo dramaacutetica

abraccedila o pai (vv 1408-1409) e precisa da ajuda de Teseu para se levantar (vv 1395-

1402)

Em Seacuteneca o Alcida eacute o exemplum de uma personagem dominada pelos affectus

Vimos que a caracteriacutestica mais proeminente eacute a forccedila sobre-humana constantemente

evocada pelas personagens e que o aproxima dos deuses Aliada a essa caracteriacutestica

coexiste um lado ambicioso insensiacutevel megaloacutemano e cruel

Eacute impaciente quanto a manifestaccedilotildees de afectos reserva sempre para segundo

plano a afectividade procurando eliminar tudo e todos os que vatildeo contra a ordem

natural das coisas Engradece-se com os feitos realizados e deseja mais trabalhos Um

uacutenico objectivo o move ter direito a habitar nas moradas celestes prometidas Assim

socorre-se da forccedila brutal e desmedida para executar os trabalhos e construir um mundo

paciacutefico para os homens Tudo o que faz estaacute ao serviccedilo da sua honra e virtude e natildeo se

orienta em favor dos homens O egoiacutesmo de Heacutercules contrasta com o altruiacutesmo de

Heacuteracles

Relativamente ao modo como cada um age quando sob o domiacutenio da loucura

vemos que em Heracles haacute claramente uma intervenccedilatildeo divina que provoca o acto As

deusas apenas alteraram o seu campo de visatildeo de modo que ele natildeo consiga reconhecer

aqueles contra os quais luta Foi impiedoso na morte de Lico mas igualmente na da sua

famiacutelia o que leva a algumas reservas no que diz respeito agrave sua virtude No caso de

Seacuteneca se a mesma ambivalecircncia parece existir num primeiro momento a personagem

eacute por natureza e por tendecircncia violenta impiedosa e uma vez completamente

dominada pelas passiones revela o seu lado monstruoso ao matar os filhos e a mulher

Em Hercules Furens vemos que o protagonista estaacute muito longe da sapientia

exigida pelos estoacuteicos dado que se deixa levar pela fuacuteria e pela ira como resposta agraves

adversidades que se lhe deparam natildeo sabe fazer um bom uso daquilo que os filoacutesofos

definem por indiferentes

134

Capiacutetulo IV

HERCULES FURENS E HERCULES OETAEUS

1 Meditatio mortis ndash um estudo preliminar

O suiciacutedio eacute por si soacute um tema complexo e controverso e eacute-o especialmente

quando encarado sob a perspectiva da doutrina estoacuteica Para Arthur Bodson haacute uma

aparente contradiccedilatildeo em relaccedilatildeo a uma possiacutevel incompatibilidade no pensamento

estoacuteico que preceitua aceitar tudo o que vem da Providecircncia mas em simultacircneo pode

recusar ficar-lhe submetido1 escolhendo a via da morte Ora para que se desfaccedilam

equiacutevocos referentes a essa aparente contradiccedilatildeo importa ver em primeiro lugar que os

estoacuteicos natildeo consideram que o suiciacutedio deva ser uma regra geral mas sim que a ele eacute

possiacutevel recorrer em ocasiotildees especiacuteficas Como recomenda Seacuteneca a Luciacutelio

Meditare mortem qui hoc dicit meditari libertatem iubet Qui mori didicit seruire dedidicit supra omnem potentiam est certe extra omnem Quid ad illum carcer et custodia et claustra liberum ostium habet Una est catena quae nos alligatos tenet amor uitae qui ut non est abiciendus ita minuendus est ut si quando res exiget nihil nos detineat nec impediat quominus parati simus quod quandoque faciendum est statim facere2

A morte voluntaacuteria eacute possiacutevel e aceitaacutevel quando o homem procura libertar-se de

qualquer geacutenero de escravidatildeo seja fiacutesica seja moral Na Carta 77 Seacuteneca daacute exemplos

de motivos que justificam o suiciacutedio O primeiro eacute de Tuacutelio Marcelino viacutetima de uma

doenccedila penosa e prolongada que preferiu morrer com gloacuteria a arrastar a vida em

sofrimento (Ep 7710)

O segundo exemplo eacute o de um jovem da Lacoacutenia que se recusou a ser escravo

pelo que quando lhe ordenaram pela primeira vez que fizesse um serviccedilo indigno (ir

1 Arthur Bodson La Morale Sociale des Derniers Stoiumlciens Seacutenegraveque Eacutepictegravete et Marc Auregravele (Paris Les Belles Lettres 1967) 90 2 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 2610 lsquoMedita na morte com estas palavras Epicuro manda-nos meditar na liberdade Um homem que aprendeu a morrer esquece o que seja a servidatildeo estaacute acima melhor dizendo estaacute fora do alcance de todo e qualquer poder Que lhe importam o caacutercere os guardas as cadeias se tem diante de si uma porta sempre aberta Uma uacutenica cadeia nos tem manietados o amor pela vida Natildeo o abafemos de todo mas diminuamo-lo de modo a que se as circunstacircncias o exigirem nada nnos detenha ou impeccedila de estarmos preparados para fazer imediatamente o que mais tarde ou mais cedo teremos mesmo de fazerrsquo

135

buscar um vaso para os excrementos) o jovem esmagou a cabeccedila contra uma parede O

filoacutesofo pretende demonstrar que o que verdadeiramente importa eacute a qualidade da vida

que o estoacuteico tem e nunca a duraccedilatildeo ndash que o homem quando tiver que abandonar a vida

saiba fazecirc-lo da melhor forma Quomodo fabula sic uita non quam diu sed quam bene

acta sit refert Nihil ad rem pertinet quo loco desinas Quocumque uoles desine tantum

bonam clausulam inpone3 Eacute neste sentido que Seacuteneca termina esta carta 77 com esta

sententia

Epicteto por exemplo distingue trecircs formas de suiciacutedio 1) quando a decisatildeo eacute

tomada de acordo com a vontade divina4 e nunca por instinto ou por capricho5 2)

quando eacute uma forma de manter a integridade eou liberdade do homem6 3) quando o

suiciacutedio natildeo eacute um acto pensado mas levado por um pretexto ou entrando no domiacutenio

irracional7 o que faz dele um acto imoral

Durkheim viria posteriormente a denominar trecircs tipos de suiciacutedio o egoiacutesta o

anoacutemico e o altruiacutesta8 No que diz respeito ao primeiro caso cometem suiciacutedios os

homens que se sentem aparentemente desvinculados de uma sociedade o indiviacuteduo natildeo

sente uma ligaccedilatildeo forte com a comunidade natildeo depende de um grupo logo tende a

formar as suas proacuteprias regras e a viver segundo os seus proacuteprios interesses Explica

Durkheim ldquoSi donc on convient drsquoappeler eacutegoiumlsme cet eacutetat ougrave le moi individuel

srsquoaffirme avec excegraves en face du moi social et aux deacutepens de ce dernier nous pourrons

donner le nom drsquoeacutegoiumlste au type particulier de suicide qui reacutesulte drsquoune individuation

deacutemesureacuteerdquo9

Sobre este modo de suiciacutedio Seacuteneca formula um juiacutezo criacutetico desfavoraacutevel Para

Seacuteneca o homem natildeo deve cometer o suiciacutedio se estiver sob o domiacutenio de um ou vaacuterios

affectus Aleacutem disso satildeo estultos todos aqueles que correm para a morte porque vecircem

nela um refuacutegio10 Por fim um homem nunca deve suicidar-se quando algum familiar

ou amigo exigir que ele permaneccedila vivo11 Para os estoacuteicos este eacute um acto imoral

3 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 7720 lsquoNa vida eacute como no teatro natildeo interessa a duraccedilatildeo da peccedila mas a qualidade da representaccedilatildeo Em que ponto tu vais parar eacute questatildeo sem a miacutenima importacircncia Paacutera onde quiseres mas daacute agrave tua vida um fecho condignorsquo 4 Arriano Epicteti Dissertationes 1916 5 Idem Ibidem 12929 6 Idem Ibidem 1226 41150 ss 41172 7 Idem Ibidem 1917 12929 8 Para um estudo mais completo sobre este tema veja-se Eacutemile Durkheim Le Suicide 149-311 9 Eacutemile Durkheim Le Suicide Eacutetude de Sociologie (Paris Presses Universitaires de France 1930 reimpr 1986) 223 10 Ver Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 2422-24 9815-16 11 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 781 e ss1043

136

porque quem o comete natildeo respeita os que lhe estatildeo proacuteximos antes se deixa levar por

uma paixatildeo que o conduz a um acto irracional

O suiciacutedio altruiacutesta eacute segundo Durkheim ldquocelui ougrave le moi ne srsquoappartient pas

ougrave il se confond avec autre chose que lui-mecircme ougrave le pocircle de sa conduite est situeacute en

dehors de lui agrave savoir dans un des groupes dont il fait partierdquo12 Este tipo de suiciacutedio

apresenta uma outra caracteriacutestica que o distinge dos outros ldquoil est accompli comme un

devoirrdquo13 Eacute o que melhor se aproxima dos propoacutesitos estoacuteicos Os exemplos maacuteximos

satildeo Soacutecrates e Catatildeo de Uacutetica O uacuteltimo eacute o modelo do homem que viveu pela (e para) a

paacutetria procurando ser livre entre homens livres Quando se revelou impossiacutevel

continuar a lutar por essa liberdade comum preferiu a morte a viver sob o jugo poliacutetico

de Ceacutesar14 Jaacute Soacutecrates poderia ter escapado da prisatildeo com o auxiacutelio dos amigos mas

escolheu natildeo o fazer e enfrentar a morte obedecendo agraves leis da sua paacutetria15

Eacute por este modo de ldquoabandonarrdquo a vida que os estoacuteicos pugnam quando as

circunstacircncias assim o exigem Partindo da maacutexima Quae [uita] non semper retinenda

est non enim uiuere bonum est sed bene uiuere (Ep 704) ndash e a diferenccedila crucial

reside no saber fazer uso da melhor forma possiacutevel do tempo que a Providecircncia nos

concede recordando que nem sempre a quantidade eacute sinoacutenimo de qualidade ndash Seacuteneca

aconselha o seu leitor a que medite sobre a morte (Ep 7018) aceitando-a como um

percurso natural e inevitaacutevel E o saber viver em harmonia com a Natureza parte disto

mesmo reconhecer que vida e morte formam um ciclo a que ningueacutem pode escapar

A Carta 70 eacute toda ela uma reflexatildeo sobre a vida e a morte partindo em

pormenor desta uacuteltima circunstacircncia para se centrar no tema do suiciacutedio Para o

filoacutesofo apenas o saacutebio possui o discernimento de escolher a forma como pretende sair

da vida uma vez que ele reconhece que a morte e a vida satildeo indiferentes e fazem parte

de um ciclo normal e inevitaacutevel O que importa satildeo as circunstacircncias que levam a

escolher um dos caminhos possiacuteveis para terminar a existecircncia16 Si multa occurrunt

molesta et tranquillitatem turbantia emittit se nec hoc tantum in necessitate ultima

12 Eacutemile Durkheim Le Suicide 238 13 Loc Cit 14 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 246-8 15 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 244 16 Eacute neste aspecto que reside essencialmente a liberdade do estoacuteico se o homem natildeo eacute livre no momento em que nasce a sua liberdade estaacute nas muacuteltiplas formas como poderaacute sair da vida Hoc qui dicit non uidet se libertatis uiam cludere nihil melius aeterna lex fecit quam quod unum introitum nobis ad uitam dedit exitus multos (Seacuteneca Ep 70 14-15) lsquoQuem assim fala natildeo vecirc como estaacute tornando impossiacutevel a liberdade Nada de melhor concebeu a lei eterna do que embora apenas nos dando uma porta de entrada na vida ter-nos proporcionado muacuteltiplas saiacutedasrsquo

137

facit sed cum primum illi coepit suspecta esse fortuna diligenter circumspicit numquid

illic desinendum sit (Ep 705)17 Como explica Cristina Pimentel comentando um passo

de Epicteto18 ldquoEacute que o sapiens sai da vida natildeo eacute expulso e como tudo o que eacute

inevitaacutevel natildeo deixa margem para que se tente modificar ou para provocar medos ou

revoltas entatildeo haacute que entender a morte como o fim natural da vida porque tudo o que

comeccedila tem de acabarrdquo19 Assim eacute possiacutevel o suiciacutedio somente quando

a) situaccedilotildees graves que satildeo um obstaacuteculo agrave tranquilidade da alma nunca sendo

aceitaacutevel nem ir ao encontro da morte por medo nem fugir dela Um exemplo quando eacute

viacutetima de uma doenccedila prolongada e incuraacutevel o homem pode escolher abandonar a

vida natildeo para terminar com o seu sofrimento mas porque a sua doenccedila natildeo lhe permite

viver de acordo com a ordem natural nem manter a sua dignidade nem cumprir os seus

deveres (ciacutevicos por exemplo)20

b) quando haacute um factor externo que obriga o homem a morrer (por exemplo se

vai ser torturado ateacute agrave morte) eacute mais difiacutecil saber qual a decisatildeo mais correcta se

aguardar essa morte ou antecipaacute-la A justificaccedilatildeo de Seacuteneca eacute

Si altera mors cum tormento altera simplex et facilis est quidni huic inicienda sit manus Quemadmodum nauem eligam nauigaturus et domum habitaturus sic mortem exiturus e uita Praeterea quemadmodum non utique melior est longior uita sic peior est utique mors longior In nulla re magis quam in morte morem animo gerere debemus Exeat qua impetum cepit siue ferrum appetit siue laqueum siue aliquam potionem uenas occupantem pergat et uincula seruitutis abrumpat21

E se nesta longa citaccedilatildeo parece haver uma contradiccedilatildeo com o que o filoacutesofo

disse nos paraacutegrafos anteriores ndash onde refere que se um sapiens eacute condenado agrave morte ele

17 lsquoSe se lhe deparam muitas situaccedilotildees graves muitos obstaacuteculos agrave sua tranquilidade o saacutebio retirar-se-aacute E natildeo o faraacute apenas como uacuteltimo recurso mas assim que a fortuna comeccedilar a mostrar-se hostil para com ele deveraacute meditar seriamente se natildeo conveacutem pocircr de imediato termo agrave vidarsquo 18 Arriano Epict 2611 e 12 19 Maria Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo 30 20 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 5836 inbecillus est et ingnauus qui propter dolorem moritur stultus qui doloris causa uiuit (lsquoMorrer para evitar a dor eacute uma atitude de fraqueza e cobardia viver soacute para suportar a dor eacute pura estupidezrsquo) 21 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 7011-12 lsquoSe por exemplo a alternativa for entre uma morte no meio de torturas e uma morte directa e raacutepida como natildeo escolher sem hesitaccedilatildeo esta uacuteltima Se eu escolho o navio em que vou navegar ou a casa em que vou habitar tambeacutem ao deixar esta vida posso escolher a forma como morrer Aleacutem disso se a vida natildeo se torna melhor por ser mais longa a morte pelo contraacuterio quanto mais prolongada for pior Mais do que em qualquer outra situaccedilatildeo devemos obedecer na atitude perante a morte aos ditames da nossa alma E esta que se evole com decisatildeo segundo a forma de morte escolhida quer se eleja o punhal ou a corda ou o veneno que se espalha pelas veias haacute que ser firme na decisatildeo tomada e romper de uma vez os viacutenculos da nossa servidatildeorsquo

138

natildeo a antecipa suicidando-se mas espera pacientemente que chegue esse dia (Ep 70

8) ndash tal contradiccedilatildeo eacute apenas aparente Recordando o exemplo que daacute no paraacutegrafo 9 o

de Soacutecrates Seacuteneca lembra que o filoacutesofo grego poderia ter optado pelo suiciacutedio mas

natildeo o fez natildeo por medo da morte mas por obediecircncia agrave lei Ora a antecipaccedilatildeo da morte

a que o autor alude diz respeito a casos pontuais e que implicam uma forma de

libertaccedilatildeo como eacute o caso paradigmaacutetico de Catatildeo Tomando ainda como exemplos

ilustrativos gladiadores e baacuterbaros (Ep 7020-26) e monstrando que eles estariam

privados da sua liberdade ou acabariam por morrer de forma menos digna e em contexto

de espectaacuteculos puacuteblicos Seacuteneca procura demonstrar que nesta circunstacircncia o

suiciacutedio eacute um acto louvaacutevel

c) quando o homem se vecirc privado de bens imprescindiacuteveis para garantir a sua

sobrevivecircncia ou quando as suas faculdades comeccedilam a falhar dado o avanccedilar da

idade22

d) por uacuteltimo e citando Cristina Pimentel quando ldquodepois de ter lanccedilado matildeo

dos remedia ao seu alcance para combater as paixotildees o homem se vecirc sujeito aos

proacuteprios uitia de modo que escapa jaacute ao seu domiacuteniordquo23

Em todos estes motivos haacute um elemento fundamental que os liga a liberdade do

homem Eacute por ser livre que o ser humano pode escolher a melhor forma de viver ou

optar por sair da vida quando alguma situaccedilatildeo intransponiacutevel assim o exige

Quanto ao terceiro tipo de suiciacutedio considerado por Durkheim o anoacutemico estaacute

relacionado com uma anomalia qualquer sendo essencialmente motivada por uma crise

passional O indiviacuteduo que se sente integrado numa sociedade sofre por alguma razatildeo

algum dano material ou afectivo (por exemplo devido a uma crise econoacutemica ou a

algum processo judicial ou agrave perda de todos bens ou ao divoacutercio) que o leva a decidir-

-se pelo suiciacutedio Durkheim define este uacuteltimo tipo como ldquoil est une troisiegraveme sorte de

suicideacutes qui srsquoopposent et aux premiers en ce que leur acte est essentiellement

passionnel et aux seconds en ce que la passion qui les inspire et qui domine la scegravene

finale est drsquoune tout autre nature Ce nrsquoest pas lrsquoenthousiasme la foi religieuse morale

ou politique ni aucune des vertus militaires crsquoest la colegravere et tout ce qui drsquoordinaire

accompagne la deacuteceptionrdquo24

22 Vide Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales30 23 Maria Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo 32 24 Eacutemile Durkheim Le Suicide 321

139

Relativamente agraves circunstacircncias que neste caso levam ao suiciacutedio Seacuteneca

assume uma vez mais uma firme rejeiccedilatildeo Chama loucos aos que se deixam dominar

por algum medo

Vir fortis ac sapiens non fugere debet e uita sed exire et ante omnia ille quoque uitetur adfectus qui multos occupauit libido moriendi Est enim mi Lucili ut ad alia sic etiam ad moriendum inconsulta animi inclinatio quae saepe generosos atque acerrimae indolis uiros corripit saepe ignauos iacentesque illi contemnunt uitam hi grauantur25

A morte deve ser acolhida nunca desesperadamente procurada ou evitada (Ep

3015) E com este breve estudo preambular pensamos poder agora passar agrave anaacutelise

comparativa dos finais de Hercules Furens e Hercules Oetaeus

2 Heacutercules ndash a ascese do proficiens

21 Heacutercules sob o domiacutenio da ira (estudo sobre o comportamento da personagem

no Hercules Furens e no Hercules Oetaeus)

Como tivemos ocasiatildeo de ver ao longo deste estudo em particular no terceiro

capiacutetulo com a anaacutelise do protagonista em Euriacutepides e Seacuteneca a figura de Heacutercules

causou desde sempre alguma dificuldade de anaacutelise dado ser um heroacutei ambiacuteguo Em

Seacuteneca haacute contudo um reaproveitamento da figura o filoacutesofo pretende estudar o

comportamento de Heacutercules sob o ponto de vista estoacuteico Vimos que ainda que haja

personagens no Hercules Furens26 que consideram Heacutercules virtuoso a sua uirtus eacute

25 Seacuteneca Ad Lucilium Epistulae Morales 2425 lsquoUm homem corajoso e saacutebio natildeo deveraacute fugir da vida mas sim sair dela acima de tudo importa evitar uma paixatildeo que tem assaltado muita gente a paixatildeo pela morte Como em relaccedilatildeo a outros assuntos tambeacutem em relaccedilatildeo ao fenoacutemeno da morte existe uma inconsiderada tendecircncia de espiacuterito capaz de dominar frequentemente quer o homens animosos e de caraacutecter firme quer gente sem forccedila e sem coragem soacute que enquanto os primeiros sentem desprezo pela vida os outros natildeo lhe suportam o pesorsquo 26 Tambeacutem no Hercules Oetaeus o heroacutei eacute visto como o protector dos homens porque libertou a humanidade dos seus medos E a sua presenccedila no mundo eacute de tal modo fundamental que a sua morte representa uma desgraccedila para o orbe hunc ecce luctum quem gemis cuncti gemunt commune terris omnibus pateris malum (Hercules Oetaeus vv 761-762) Hilo foca a ideia de que o valor do Alcida eacute inigualaacutevel de tal modo que a proacutepria morte foge do heroacutei os Destinos natildeo ousam cometer o crime de terminar a vida de Heacutercules e Cloto treme ao saber que estaacute a fiar os derradeiros momentos da vida do heroacutei (vv 766-770)

140

essencialmente fiacutesica Na realidade o modo como o heroacutei reage agraves situaccedilotildees revela que

se deixa levar pelos affectus especificamente pela ira

Seacuteneca define ira explicando que esta eacute um uitium diferente dos outros

Ceteri enim adfectus dilationem recipiunt et curari tardius possunt huius incitata et se ipsa rapiens uiolentia non paulatim procedit sed dum incipit tota est nec aliorum more uitiorum sollicitat animos sed abducit et inpotentes sui cupidosque uel communis mali exagitat nec in ea tantum in quae destinauit sed in occurrentia obiter furit Cetera uitia inpellunt animos ira praecipitat Etiam si resistere contra adfectus suos non licet at certe adfectibus ipsis licet stare haec non secus quam fulmina procellaeque et si qua alia inreuocabilia sunt quia non eunt sed cadunt uim suam magis ac magis tendit Alia uitia a ratione hoc a sanitate desciscit alia accessus lenes habent et incrementa fallentia in iram deiectus animorum est Nulla itaque res urget magis attonita et in uires suas prona et siue successit superba siue frustratur insana ne repulsa quidem in taedium acta ubi aduersarium fortuna subduxit in se ipsa morsus suos uertit Nec refert quantum sit ex quo surrexerit ex leuissimis enim in maxima euadit27

Deste extenso passo percebemos que a ira eacute dos uitia mais prejudiciais e que

mais dano causa ao sujeito ou a uma multidatildeo28 porque os precipita num remoinho de

emoccedilotildees e acccedilotildees crueacuteis acabando por arrastar consigo os que estatildeo proacuteximos Uma

vez que algueacutem se deixa levar por semelhante mal difiacutecil eacute paraacute-lo As manifestaccedilotildees

que a ira provoca no seu paciente satildeo visiacuteveis natildeo soacute no olhar como na proacutepria face

como ainda nos movimentos29

O passo citado permite-nos igualmente explicar a psicologia do protagonista no

Hercules Furens e no Hercules Oetaeus Em ambas as trageacutedias o heroacutei apresenta-se

alienado porque movido por sentimentos ora de furor ora de ira E se os resultados na

primeira trageacutedia foram crueacuteis (morte da famiacutelia) ainda que Juno estivesse implicada no

homiciacutedio na segunda todos os actos de Heacutercules satildeo voluntaacuterios o heroacutei tem

consciecircncia de que estaacute a tomar o lugar dos monstros vencidos destruiu Ecaacutelia porque

se apaixou por Iacuteole eacute cruel com Licas e pretende ser violento com Dejanira

Assim no monoacutelogo inicial do Hercules Oetaeus Heacutercules tem noccedilatildeo de que

teminou a sua tarefa terrena dado todos os monstros terem sido jaacute vencidos e nada mais

restar nem na terra nem no mar nem nos ceacuteus para ele derrotar (nec monstra inuenit

27 Seacuteneca De Ira 313-5 28 Segundo Seacuteneca De Ira 321 ss a ira eacute o uacutenico viacutecio que pode atingir um povo uma cidade crianccedilas jovens adultos velhos Natildeo escolhe idades 29 Seacuteneca De Ira 341-3

141

ferae negantur30) de tal modo que conclui que Hercules monstri loco iam coepit esse

(vv 55-56) Do Coro das mulheres de Ecaacutelia sobressai a soberba e a violecircncia do

Alcida Satildeo expressivos os adjectivos que escolhem para identificar o caraacutecter dele

tumidus (v 142) e indomito (v 155) Herculeas minas (v 166) iratum Herculem (v

172) Licas morre assustado com o olhar feroz de Heacutercules31 No entanto o heroacutei uma

vez que natildeo se pocircde vingar em Licas ainda vivo mutila o seu cadaacutever lanccedilando-o aos

astros A forccedila que usou para arremassaacute-lo foi tanta que o corpo deixou rastos de sangue

pelas nuvens desmembrando-se caindo a cabeccedila sobre as rochas e perdendo-se o corpo

nas aacuteguas do mar o que comprova uma vez mais a violecircncia desmedida de Heacutercules

(vv 808-822) O Alcida pretende ser igualmente cruel com Dejanira utinam liceret

stipite ingesto impiam effringere animam quale Amazonium malum circa niualis

Caucasi domui latus o clara Megara tune cum furerem mihi coniunx fuisti Stipitem

atque arcus date dextra inquinetur laudibus maculam imprimam summus legatur

femina Herculeus labor (vv 1449-1455) O recordar a sua loucura e a forma como

matou Meacutegara32 remete para um novo crime que natildeo seraacute menos iacutempio com a diferenccedila

de que o seu uacuteltimo labor (summus labor) seraacute voluntaacuterio ndash a violecircncia do acto eacute

acentuada pelo politpoto de stipes (v 1449 v 1453) e o recurso a formas verbais que

manifestam violecircncia (v 1450 effringere v 1452 furerem v 1454 inquinetur v

1454 imprimam) bem como pelo homeoteleuto (v 1454 maculam imprimam) O

uacutenico objectivo de Heacutercules eacute manter a sua gloacuteria (cf v 1454 laudibus) intacta

Mesmo tomando conhecimento do suiciacutedio da esposa a sua raiva natildeo eacute menor

uma vez que natildeo admite que ningueacutem inferior a si o venccedila Testemunho de um novo

impulso satildeo as palavras que profere em resposta a Hilo 30 Seacuteneca Hercules Oetaeuscedil vv 54-55 31 Eacute Hilo quem descreve a morte de Licas quando anuncia a Dejanira a morte proacutexima de Heacutercules que tem como causa a veste que ela enviou ao marido Enumera as primeiras manifestaccedilotildees fiacutesicas de Heacutercules motivadas pelo fogo que emana da veste que conduzem a ataques de ira contra aqueles que julga culpados Primeiro compara a reacccedilatildeo do Alcida com a de um touro qualis impressa fugax taurus bipenni uulnus et telum ferens delubra uasto trepida mugitu replet aut quale mundo fulmen emissum tonat sic ille gemitu sidera et pontum ferit (vv 798-802) passando para manifestaccedilotildees do olhar uultus ignea torquens face (v 808) A mente de Heacutercules fica tatildeo perturbada pela intensidade das dores que comeccedila a ter alucinaccedilotildees Heacutercules ao ouvir Alcmena identificar a doenccedila dele como o resultado de sucessivas labutas (vv 1396-1398) julga que eacute uma nova guerra que se aproxima e procura-a incessantemente revelando com as suas palavras que a sua mente estaacute perturbada Ubi morbus ubinam est estne adhuc aliquid mali in orbe mecum ueniat huc aliquis mihi intendat arcus ndash nuda sufficient manus Procedat agedum (vv 1399-1402) O paralelismo entre intendat arcus e sufficient manus permite por um lado comprovar o furor do protagonista levando Alcmena a considerar que apenas este affectus consegue controlar o acircnimo de Heacutercules (v 1404 dolor iste furor est Hercules solus domat) por outro ilustra a confianccedila desmedida que Heacutercules tem em relaccedilatildeo ao seu poder 32 Vimos no terceiro capiacutetulo que o corpo dela foi estropiado a cabeccedila foi esmagada devido agrave violecircncia de Heacutercules

142

Caecus dolore es manibus irati Herculis occidere meruit perdidit comitem Lichas saeuire in ipsum corpus exanime impetus atque ira cogit Cur minis nostris caret ipsum cadauer Pabulum accipiant ferae (vv 1459-1463)

O menosprezo de Heacutercules perante o sofrimento do filho (v 1459) eacute notoacuterio

Todos os seus sentimentos estatildeo centrados em si e numa nova forma de vinganccedila natildeo

menos saeua do que as anteriores Lembra o modo como despedaccedilou o corpo de Licas

prometendo natildeo ser menos severo com o corpo de Dejanira Revelador de uma nova

impetuosidade satildeo os vocaacutebulos escolhidos o dolor (cf v 1459) que leva a que a alma

fique cega (v 1459 caecus) a ira cuja forccedila eacute sugerida pelo poliptoto pela metoniacutemia

e pela conjunccedilatildeo copulativa a ligar este affectus a um outro o impetus (v 1459

manibus irati v 1462 ira vv 1461-1462 impetus atque ira) minis (v 1462)

Heacutercules tem consciecircncia de que todas estas passiones estatildeo a afectaacute-lo mas natildeo

procura um meio de paraacute-las antes se sente instigado a cometer mais uma acccedilatildeo iacutempia

Apenas modera o seu furor quando descobre que quem provocou o seu sofrimento natildeo

foi Licas ou Dejanira mas Nesso33 o centauro que ajudou Dejanira a atravessar o rio e

tentou violaacute-la sendo por isso castigado por Heacutercules

Para compreendermos um pouco melhor a proacutepria psicologia da personagem

procurando ver na linguagem e comportamentos do Alcida aspectos que ilustrem os

seus erros enquanto caraacutecter natildeo-estoacuteico apresentamos alguns quadros um primeiro

que diz respeito agrave ldquolinguagem da emoccedilatildeordquo34 em Hercules Furens e Hercules Oetaeus

seguido de um esquema que demonstra as oscilaccedilotildees do protagonista que ora cai em

sucessivos erros dominado pelo furor ou pela ira culminando em scelera ou freia os

sentimentos resignando-se ao destino

33 A partir deste ponto Heacutercules muda completamente de atitude Aceita a morte natildeo soacute porque reconhece o seu destino mas (e essencialmente) porque ne quis superstes Herculis uictor foret (v 1480) O que o preocupava natildeo era tanto o morrer mas ser vencido por algueacutem mais fraco ou que o seu assassino pudesse viver e triunfar sobre o cadaacutever de Heacutercules 34 Designaccedilatildeo que recolhemos da obra de Maria Cristina Pimentel Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de Seacuteneca 41 onde explica o geacutenero de vocabulaacuterio e de recursos que Seacuteneca escolhe para descrever as paixotildees ldquoSeacuteneca como eacute oacutebvio natildeo descurou esse ponto ndash o da linguagem das suas personagens que eacute aquela que figuras anti-estoacuteicas poderiam ou teriam necessariamente de ter A esses aspectos do discurso de Fedra que correspondem agrave funccedilatildeo emotiva da linguagem chamaremos noacutes a linguagem da emoccedilatildeordquo

143

211 Linguagem da emoccedilatildeo

Hercules Furens

Interjeiccedilotildees 987 1226 1334 Exclamaccedilotildees 920-921 977-978 1156-1157 1221-

1223 1226 Repeticcedilotildees 638-640 931-935 937-938 942-943

980-981 983 1138 1139 1147-11481149 1153 1193-1194 1207-1208 1218 1229-1230 1231 1242-1243 1269-1270 1278 1314 1323

Interrogaccedilotildees retoacutericas 613 631-633 960 996 1216-1217 1227-1228 1283-1284

Longas tiradas a) Momentos de intensidade pateacutetica 1138-1186 1192-1200 1202-1218

1221-1236 1277-1294 1295-1296 1314-1319 1321-1341

b) Periacuteodos que revelam violecircncia 636-637 640-644 773-775 797-805 918-919 989-991 996-1002 1010-1011 1018-1020 1221-1236 1279-1282

c) Periacuteodos que revelam o excesso 603-604 606-615 900-908 920-924 926-939 1281-1282 1284-1294

d) Momento de loucura (sintomas e consequecircncia)

939-989 989-1038

Hercules Oetaeus ndash movido por sentimentos de megalomania e ira35

Interjeiccedilotildees 93 1171 1176-1177 1218 1232 1253 1264 1325 1360 1452

Exclamaccedilotildees 51 56-57 61-62 73-74 93-94 95-96 1134 1171 1177-1178 1181 1185-1186 1191-1206 1231-1232 1253 1258 1260-1261 1264 1302 1324 1364-1365 1371-1372 1435 1445-1446 1448 1459

35 Em Hercules Oetaeus haacute claramente uma evoluccedilatildeo na forma como o heroacutei se move na acccedilatildeo dramaacutetica temos um primeiro momento que corresponde aos seus lamentos porque anseia morar com Juacutepiter ou porque eacute viacutetima da vinganccedila de Nesso ndash nesta parte o heroacutei deixa-se levar pelas paixotildees num segundo momento quando descobre a verdade haacute uma mutaccedilatildeo na forma de reacccedilatildeo de Heacutercules ele reconhece o seu fatum e aceita-o Sendo o objectivo deste quadro o de analisar os passos que revelam a violecircncia e a megalomania de Heacutercules restringimos o estudo ao primeiro momento mencionado

144

Repeticcedilotildees 11 13 16-17 53-55 77 87 95-96 1135 1141 1197-1198 1218 1233 1240-1243 1148 1260 1265 1270-1271 1276-1277 1304-1305 1321 1322-1323 1329-1330 1367-1368 1379 1389-1392 1400 1402

Interrogaccedilotildees retoacutericas 63-64 97-98 1234-1247 Longas tiradas a) Momentos de grande emotividade pateacuteticos

7-8 10-13 1131-1150 1161-1206 1218-1278 1290-1336 1345-1349 1359-1373 1377-1395

b) Periacuteodos que revelam violecircncia 813-81636 1459-1464

c) Periacuteodos que revelam o excesso 8-10 13-98 1137-1150

d) Momentos de loucuradeliacuterio 1399-1401 1432-1447

Vemos nas duas tabelas que Heacutercules eacute a tiacutepica personagem que se deixa levar

pelas emoccedilotildees ora por sentimentos de grandeza vendo na forccedila desmedida a sua uirtus

ora pelos uitia mais violentos furor ira impietas Destes quadros se compreende que

ele eacute claramente exemplo de uma personagem anti-estoacuteica

Haacute contudo diferenccedilas entre os dois quadros No segundo haacute mais exemplos de

interjeiccedilotildees de exclamaccedilotildees e de repeticcedilotildees que estatildeo associados ao lamento aos

pedidos constantes de Heacutercules para abandonar a terra que ficou liberta de todos os

monstros Neste caso haacute momentos com grande carga emotiva particularmente no

monoacutelogo que inicia o acto I O desespero do heroacutei que relembra todos os seus

trabalhos todas as vitoacuterias alcanccediladas sobre os iacutempios ansiando por poder fazer parte

dos astros eacute total

No Hercules Furens haacute mais exemplos de periacuteodos que revelam violecircncia por

parte do protagonista Heacutercules eacute violento na forma como castiga os tiranos no modo

como destroacutei a sua casa (por metoniacutemia a famiacutelia) e natildeo eacute menos violento quando

pretende vingar-se de si proacuteprio pelo crime ousado

Uma outra diferenccedila entre as duas trageacutedias estaacute no tratamento da proacutepria

loucura cujos sintomas apesar de semelhantes (Heacutercules tem visotildees nos dois

momentos) natildeo terminam da mesma forma No Furens a loucura tem a duraccedilatildeo

suficiente para matar filhos e esposa No Oetaeus a sua dementia estaacute mais proacutexima do

deliacuterio do que da loucura propriamente dita Tem um curto espaccedilo de tempo motivado

36 Apesar de ser Hilo a falar ele reproduz o discurso de Heacutercules que revela crueldade uma vez que ateacute de um cadaacutever se vinga

145

ou pela exaustatildeo ou por uma nova dor provocada pela veste envenenada que o acorda

para a realidade

Estas diferenccedilas tecircm que ver com a proacutepria evoluccedilatildeo do protagonista e com a

mensagem que se pretende veicular As caracteriacutesticas da personagem satildeo muito

semelhantes se natildeo as mesmas nas duas obras Heacutercules eacute violento tanto no Furens

como no Oetaeus Mas se no primeiro haacute um processo que desancadeia a ruiacutena do

protagonista que vai sendo levado pela ferocidade do seu caraacutecter e nem no momento

final em que se resigna com o permanecer vivo deixa de parte os seus iacutempetos no

segundo haacute uma gradaccedilatildeo ascendente que culmina no perfeito sapiens como podemos

ver a partir dos dois esquemas que se seguem

146

212 Da decadecircncia da uirtus fiacutesica de Heacutercules agrave elevaccedilatildeo agrave categoria de

sapiens

Hercules Furens - Da uirtus fiacutesica agrave decadecircncia de Heacutercules ndash uma nova

concepccedilatildeo de uirtus (moral)

bullChega vitorioso a Tebas (destruiccedilatildeo das barreiras entre a vida e a morte) - vv592-615

bullDescoberta da ameaccedila de Lico e consequente morte do tirano - vv 629-640895-899

bullPrimeiros sintomas de perturbaccedilatildeo - vv 939-952bullLoucura do heroacutei e consequente morte da famiacutelia heraclida - vv 955-1038

bullHeacutercules desmaia exausto depois da chacina e no momento em que Anfitriatildeose preparava para ser viacutetima voluntaacuteria do filho - vv 1039-1049

bullAdormecimento fiacutesico e psicoloacutegico do Alcida - vv 1050-1093

bull Acorda para uma realidade que natildeo compreende imediatamente mas de quevai tendo percepccedilatildeo e reconhecendo por meio de interrogaccedilotildees retoacutericas - vv1138-1159a

bullReconhece os filhos e a mulher toma consciecircncia de que o autor do scelus quetanto procurava eacute ele proacuteprio - vv 1159b-1200

bull Procura natildeo isento de paixotildees eg ira uma forma de punir o seu scelus Vecircno suiciacutedio um modo adequado para pocircr termo agrave vida - vv 1202-1218

bullNatildeo aceita qualquer argumento de Anfitriatildeo ou de Teseu natildeo moderando o seuestado passional - vv 1240-1245

bull Vecirc-se obrigado por Anfitriatildeo a continuar a viver sob a ameaccedila de umanova morte a de Anfitriatildeo ficando Heacutercules responsaacutevel por mais essecrime Apenas esta ameaccedila trava o heroacutei que aceita este novo trabalhoviver depois de cometer filiciacutedio e uxoriciacutedio - 1316-1319a

147

Hercules Oetaeus ndash da ira a sapiens

O sentido que atribuiacutemos agraves setas de esquema visam clarificar a descida contiacutenua

do heroacutei no Hercules Furens que estagna as emoccedilotildees mas natildeo por completo Jaacute no

Hercules Oetaeus podemos verificar que haacute uma gradaccedilatildeo igualmente descendente que

representa tal como no Furens a decadecircncia dos valores do heroacutei porque movido por

sentimentos passionais Contudo nesta trageacutedia daacute-se a jaacute comentada mudanccedila que

ocorre no momento do reconhecimento da verdadeira causa da dor fiacutesica levando a uma

transformaccedilatildeo completa do estado psicoloacutegico do protagonista que passa de lamentoso

bullMonoacutelogo de Heacutercules em que pede com insistecircncia a Juacutepiter que lhe concedaum lugar nas moradas celestes - vv 1-98

bullRecebe a tuacutenica embebida no sangue de Nesso que lhe vai corroendo a pele emuacutesculos - vv 786-805

bullMata Licas apenas com o seu olhar terriacutevel e desfaz-se do corpo com crueldade -vv 810-822

bullTenta arrancar a tuacutenica mas como ela estaacute colada ao corpo ao tirar pedaccedilos daveste a esta vecircm agarrados pedaccedilos da sua proacutepria carne Nem a aacutegua acalma asdores que o sangue do centauro provoca nos membra de Heacutercules - vv 825-835

bullPretende vingar-se do corpo de Dejanira mesmo jaacute exacircnime porque desconhecea verdadeira natureza dos faacutermacos que devoram o seu corpo - vv 1461-1463

bullDescobre a natureza dos filtros que percorrem os seus membra e reconheceo seu destino ao recordar uns antigos oraacuteculos que profetizaram o seuuacuteltimo momento Sabe que desse dia natildeo passaraacute aceitando a morte com aimpassibilidade estoacuteica - vv 1472-1487

bull A forma como o heroacutei morre na pira faz dele um modelo estoacuteico a seguir vv1609-1755

bull Heacutercules entra nas moradas celestes porque lhe foi reconhecido o seu valor -vv 1963-1976

148

a destemido e enfrenta o seu novo trabalho com a impassibilidade proacutepria de um

estoacuteico

22 Hercules Furens e Hercules Oetaeus ndash o suiciacutedio

No terceiro capiacutetulo vimos que tal como em Heracles o heroacutei considera a

possibilidade de se suicidar como forma de purificar a terra da sua mancha monstruosa

(o filiciacutedio e o uxoriciacutedio) Neste primeiro momento poreacutem eacute-lhe impossiacutevel a escolha

de morrer pela necessidade que os outros tecircm dele (caso de Anfitriatildeo) e por estar ainda

dominado pelas suas proacuteprias paixotildees Como explica Cristina Pimentel

O suiciacutedio nestas circunstacircncias seria o resultado da ira contra si mesmo e do tumultus em que se encontra seria consequecircncia de um furor que natildeo o abandonou () Na perspectiva estoacuteica poreacutem as adversidades da vida por exemplo a perda de quem amamos natildeo justificam a morte Todo esse sofrimento faz parte da vida como uma prova que deus destina aos que mais quer aos que mais ama37

Cumpre entatildeo a Heacutercules nas palavras de Anfitriatildeo (Nunc Hercule opus est

perfer hanc molem mali ndash v 1239) e nas de Teseu38 continuar a viver aceitando esse

desafio com a mesma forccedila que teve para enfrentar os trabalhos

Recordando o acto V no momento em que desperta do sono da loucura

acordando para a realidade cruel o heroacutei dominado pela ira procura um caminho

penoso para expiar o seu scelus Na enumeraccedilatildeo de escolhas possiacuteveis que possam

castigaacute-lo pelas suas acccedilotildees demonstra um espiacuterito revoltado contra si mesmo e

desesperado por natildeo encontrar a melhor opccedilatildeo E se o impulso o leva a desejar queimar

as suas armas (porque foram os instrumentos de Juno) ou a indagar um caminho que o

leve agrave morte tal como descobrira um para entrar e sair dos Inferni tais decisotildees devem-

-se a ter perdido tudo a razatildeo as armas a gloacuteria a mulher os filhos e as matildeos (vv

1259-1261 cuncta iam amisi bona mentem arma famam coniugem natos manus

etiam furorem)

37 Maria Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo 39 38 Surge et aduersa impetu perfringe solito nunc tuum nulli imparem animum malo resume nunc magna tibi uirtute agendum est Herculem irasci ueta (vv 1274-1277)

149

Heacutercules reconhece que excedeu todos os limites e deve pagar por esse excesso

uma vez que a tudo levou a perdiccedilatildeo Apesar de reconhecer o seu erro natildeo consegue

moderar o seu espiacuterito (e por isso permanece no error) de tal forma que natildeo aceita

qualquer dos argumentos apresentados por Anfitriatildeo39 nem os de Teseu que o

aconselha a recuperar o seu antigo valor (vv 1276-1277) Heacutercules natildeo descansa

enquanto natildeo se vingar em si proacuteprio de tal forma que em resposta ao amigo tece

consideraccedilotildees sobre si mesmo que satildeo significativamente negativas Ele eacute monstrum

impium saeuumque et immite ac ferum (v 1280)40 e por isso como ele fez com todos

os monstros com os quais se defrontou tem de ser destruiacutedo conare aggredi ingens

opus labore bis seno amplius (vv 1281-128241)

Soacute freia as suas emoccedilotildees ante a ameaccedila paterna de que se Heacutercules se matar

seraacute autor de uma nova morte agora voluntaacuteria e consciente a de Anfitriatildeo Eacute sob esta

ameaccedila que Heacutercules opta por viver considerando essa decisatildeo como uma nova tarefa e

uacuteltima no sentido em que eacute mais exigente succumbe uirtus perfer imperium patris (v

1315) contudo natildeo deixa de vacilar nesta nova empresa porque o scelus eacute para o

Alcida de tal modo hediondo que o Sol prefere olhar para Ceacuterbero do que para o heroacutei

Teseu fecha a acccedilatildeo dramaacutetica integrando o Alcida numa nova comunidade e

purificando-o da sua maacutecula

O mesmo natildeo acontece em Hercules Oetaeus Heacutercules volta a apontar como

soluccedilatildeo o suiciacutedio Uma vez liberto de tudo e de todos Heacutercules acolhe a morte sereno

Eacute neste tracircmite longo e doloroso da sua vida que se vai aproximando do ser estoacuteico

livre dos seus lamentos e choro anteriores (porque desconhecia o seu destino) vemos

um outro Alcida que calcula friamente a melhor maneira de morrer de forma a que seja

a mais digna do seu valor Nunc mors legatur clara memoranda inclita me digna

prorsus nobilem hunc faciam diem (vv 1481-1482) Consegue vencer todas as suas

paixotildees pelas quais se deixou dominar e aceita impassiacutevel o seu destino Jaacute como

sapiens Heacutercules faz uns uacuteltimos preparativos antes do momento final orienta os que

estatildeo proacuteximos indicando-lhes que devem cortar as aacutervores do Eta para acolher o seu 39 Como sugere Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo 38-39 ldquoNatildeo serve como justificaccedilatildeo ou desculpa que [Heacutercules] tenha cometido tais crimes sob o efeito do furor que Juno lhe enviou O heroacutei lembra ao pai que saepe error ingens sceleris obtinuit locum (v 1238)rdquo O heroacutei tem plena consciecircncia de que avaliou mal a sua uirtus resultando desta maacute avaliaccedilatildeo o scelus (vv 1237-1238) 40 Notem-se os adjectivos em cadecircncia reforccedilados pela assonacircncia em nasal e pelo polissiacutendeto que engrandecem o substantivo monstrum caracteriacutestica inerente do Alcida 41 Vejam-se tambeacutem os versos seguintes Neles se observa uma sucessatildeo de imagens crueacuteis que se traduzem numa procura desesperada do protagonista de eliminar a sua existecircncia

150

corpo a Hilo daacute instruccedilotildees para que receba Iacuteole como sua esposa como forma de

compensaacute-la por ter ficado privada da famiacutelia e do seu reino e por ter-lhe reduzido a

vida agrave escravidatildeo agrave sua matildee aconselha-a a evitar lamentar a morte do filho pelo valor

de Heacutercules (vv 1681-1698) por outra parte oferece o seu arco e aljavas a Filoctetes

como recompensa por deitar a uacuteltima tocha que vai consumir o corpo do heroacutei (vv

1648-1659)

A morte de Heacutercules eacute descrita por Filoctetes Este revela que o Alcida

conquistou tudo inclusive o fogo o uacutenico elemento natural que o protagonista ainda

natildeo tinha defrontado (vencera os mares a terra e tudo o que ela esconde ndash os Inferni o

ar restava-lhe o fogo) Esse iam flammas nihil ostendit ille (vv 1610-1611)

Heacutercules acolheu o fogo com tranquilidade e no momento em que Alcmena

desesperada por ver o filho sobre a pira desnuda o peito entoando lamentos e gritando

Heacutercules aconselha-a a refrear o acircnimo42 e a poupar as laacutegrimas para que a sua morte

seja valorosa (vv 1668-1679) O Alcida torna-se exemplo de como se pode enfrentar a

morte acolhendo-a quis sic triumphas laetus in curru stetit uictor (vv 1683-1684) A

metaacutefora dos aurigas que no seu carro visam chegar agrave vitoacuteria simboliza a imagem do

guerreiro que chega agrave meta final Ningueacutem ousou profanar a sua gloacuteria total mas todos

que assistiram agrave morte do protagonista natildeo ousaram derramar uma laacutegrima (vv 1685-

1687)

Eacute o proacuteprio heroacutei quem encoraja os que o acompanharam ateacute ao monte Eta a

lanccedilarem as suas tochas sobre a pira para que o fogo possa consumi-lo Jaacute o acircnimo

valente do Alcida ansiava por abandonar o deacutebil corpo desgastado pela dor (vv 1717-

1726) Quando o fogo hesitante receia enlanccedilar-se sobre o corpo ferido o protagonista

estimula-o perseguindo-o (vv 1728-1730) Como nota Segurado e Campos ldquoO fogo

vem aqui encarado quase como se de um ser vivo se tratasse ele foge diante de

42 Seacuteneca escreveu trecircs Consolationes uma dirigida a Poliacutebio outra a Heacutelvia matildee do filoacutesofo e outra a Maacutercia Nessas trecircs obras Seacuteneca procura aconselhar o seu destinataacuterio a refrear o seu acircnimo pela perda de um familiar (no caso de Poliacutebio do irmatildeo no de Heacutelvia a ausecircncia do filho Seacuteneca no exiacutelio no caso de Maacutercia de um filho) No que respeita a Consolatio ad Marciam 482-3 exorta Maacutercia a abandonar o seu lamento contiacutenuo e excessivo Manet quidem tibi Marcia etiamnunc ingens tristitia et iam uidetur duxisse callum non illa concitata qualis initio fuit sed pertinax et obstinata tamen hanc quoque tibi aetas minutatim eximet quotiens aliud egeris animus relaxabitur Nunc te ipsa custodis multum autem interest utrum tibi permittas maerere an imperes Quanto magis hoc morum tuorum elegantiae conuenit finem luctus potius facere quam expectare nec illum opperiri diem quo te inuita dolor desinat ipsa illi renuntia

151

Heacutercules como que tem medo do heroacutei mas este obriga-o a consumi-lo e vence-o pela

coragem com que o suportardquo 43

Enquanto as chamas destruiacuteam o seu corpo Heacutercules permaneceu immotus

inconcussus (v 1741) Mais do que isso in neutrum latus correpta torquens membra

adhortatur monet gerit aliquid ardens (vv 1741-1743)

Toda a tranquilidade de espiacuterito que demonstra ao aceitar a morte sem a

questionar traduz-se em tanta maiestas uiro (v 1746) Filoctetes natildeo estranha a

coragem revelada pelo Alcida que nem sequer os olhos fecha quando o fogo atinge a

sua face e a devora (vv 1753-1755) E por isso exclama Quo nemo uitam (v 1609) Foi

laetus que Heacutercules acolheu o fogo (v 1609)

A forma como Heacutercules se liberta do seu corpo eacute claramente um modelo que

Seacuteneca sugere Para o filoacutesofo a alma deve abandonar o corpo quando este morre e natildeo

sair abruptamente mas suavemente desprender-se dele

Ab hoc modo aequo animo exit modo magno prosilit nec quis deinde relicti eius futurus sit exitus quaerit sed ut ex barba capilloque tonsa neglegimus ita ille diuinus animus egressurus hominem quo receptaculum suum conferatur ignis illud excludat an terra contegat an ferae distrahant non magis ad se iudicat pertinere quam secundas ad editum infantem44

Pela maneira como morreu completamente indiferente agrave dor Heacutercules alcanccedilou

a aeterna uirtus (v 1835) que Filoctetes louva porque o heroacutei conseguiu alcanccedilar as

moradas celestes (vv 1942-1943) A parte mortal fora consumida pelo fogo restando a

divina (v 1968) que ascendeu agraves moradas celestes Segundo Cristina Pimentel ldquoE eacute

sem duacutevida por isso e natildeo porque o mito assim obriga que Heacutercules eacute recebido entre os

deuses e que Seacuteneca termina a peccedila lembrando que a verdadeira imortalidade eacute a

memoacuteria do que de bem fizemos em vida que eacute o exemplo que aos outros podemos

deixar da nossa uirtus da nossa coragemrdquo45 Na verdade quando caminha para a morte

Heacutercules julga que regressaraacute ao mundo inferior (vv 1512-1517) e eacute soacute no momento

em que dirige as suas uacuteltimas preces a Juacutepiter que volta a pedir-lhe que lhe permita 43 Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos ldquoO Simbolismo do Fogo nas Trageacutedias de Seacutenecardquo 196 44 Seacuteneca Ad Lucilium Epistolae Morales 9234 lsquoA alma desprende-se dele ora com serenidade ora de firme propoacutesito ndash busca a sua saiacuteda sem se importar com a sorte dessa pobre coisa que para aiacute fica Noacutes natildeo ligamos importacircncia aos pecirclos da barba ou aos cabelos que acabaacutemos de cortar do mesmo modo agrave nossa alma divina ao preparar-se para abandonar o corpo de nada importa a sorte dada ao invoacutelucro ndash se o fogo o consome se a terra o cobre ou as feras o despedaccedilam para ela isso tem tanta importacircncia como para o receacutem-nascido a placentarsquo 45 Maria Cristina Pimentel ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo 43

152

entrar nas moradas paternas (vv 1695-1715) Soacute nos versos que antecedem o fecho da

trageacutedia ficamos a saber que Heacutercules ascendeu agraves moradas celestes quando o filho

consola a matildee

Non me gementis stagna Cocyti tenent nec puppis umbras furua transuexit meas iam parce mater questibus manes semel umbrasque uidi quidquid in nobis tui mortale fuerat ignis euictum tulit paterna caelo pars data est flammis tua proinde planctus pone quos nato paret genetrix inerti luctus in turpes eat uirtus in astra tendit in mortem timor (vv 1963-1971)

O heroacutei aconselha a matildee a refrear o seu desespero uma vez que ele venceu a

morte e agora habita junto de Juacutepiter Na Consolatio ad Marciam Seacuteneca exorta Maacutercia

a libertar-se da dor que a consome porque a dor e a agonia constantes natildeo ressuscitaratildeo

os mortos

si fletibus fata uincuntur conferamus eat omnis inter luctus dies noctem sine somno tristitia consumat ingerantur lacerato pectori manus et in ipsam faciem impetus fiat atque omni se genere saeuitiae profecturus maeror exerceat Sed si nullis planctibus defuncta reuocantur si sors inmota et in aeternum fixa nulla miseria mutatur et mors tenuit quidquid abstulit desinat dolor qui perit Quare regamur nec nos ista uis transuersos auferat Turpis est nauigii rector cui gubernacula fluctus eripuit qui fluuitantia uela deseruit permisit tempestati ratem at ille uel in naufragio laudandus quem obruit mare clauum tenentem et obnixum46

A correctio introduzida pela adversativa sed permite acentuar a ideia de que

Maacutercia desperdiccedila a sua vida a lamentar-se desnecessariamente As suas laacutegrimas de

nada lhe poderatildeo valer jaacute que o destino eacute imutaacutevel Eacute de notar ainda as semelhanccedilas

entre os dois textos o recurso aos mesmos vocaacutebulos (luctus turpis eo ndash a forma verbal

estaacute em ambos os casos na terceira pessoa do singular do conjuntivo presente) assim

como a proacutepria semacircntica dos dois passos ndash eacute inuacutetil consumir a vida num pranto

incessante ndash o que permite criar um certo viacutenculo entre esta consolatio e a trageacutedia

46 Seacuteneca Consolatio ad Marciam 662-3

153

Em siacutentese o modo como Filoctetes vai descrevendo a morte do heroacutei sobre a

pira alude a aspectos estoacuteicos em particular pela forma como enfrenta a consumaccedilatildeo do

corpo pelo fogo A palavra ignis assume nesta trageacutedia exemplar importacircncia uma vez

que eacute por meio do fogo que Heacutercules se purifica queimando tudo o que constituiacutea sua

mortalidade e impureza O fogo assume neste contexto particular a funccedilatildeo de elemento

purificador

154

CONCLUSAtildeO

Perhaps Lucius Annaeus Seneca has suffered more than any other ancient figure for utilizing monstrosities and grotesqueries in all of his plays He has been considered unClassical inartistic morbid abominable and mentally unbalanced for creating the kind of drama that he does Only very recently have critics commenced to put aside the habit of treating him as a tasteless aberration or a pathetically incompetent imitator of the Greek tragic tradition and instead attempted to accept his plays and to describe them for what they are1

Com este estudo procuraacutemos demonstrar que a trageacutedia Hercules Furens de

Seacuteneca natildeo eacute uma mera imitaccedilatildeo ou adaptaccedilatildeo do seu modelo o Heracles de Euriacutepides

haacute uma recriaccedilatildeo na forma como as personagens satildeo representadas No decorrer da

anaacutelise ao compararmos cada uma das figuras fomos encontrando mais diferenccedilas do

que semelhanccedilas Podemos mesmo afirmar que satildeo personagens diferentes apenas tecircm

o mesmo nome o Anfitriatildeo de Heracles reconhecido pela sua sensatez e prudecircncia

opotildee-se ao Anfitriatildeo de Seacuteneca que se deixa levar pelo metus pela aegritudo e a spes o

pessimismo da Meacutegara euripidiana contrasta com os sentimentos de metus timor e

odium da Meacutegara de Hercules Furens Lico o διώλλυς e o tirano euripidiano opotildee-se agrave

personagem de Seacuteneca que eacute implacaacutevel e natildeo cede a nenhum pedido (Lico eacute saeuus e

tumidus) o Teseu da peccedila Heracles eacute o modelo da amizade e de governador de Atenas

a cidade da democracia em Seacuteneca eacute-lhe reservada a funccedilatildeo de narrador eacutepico e de

personagem-prolongamento que dissuade Heacutercules de se suicidar Iacuteris e Lissa natildeo

aparecem em Seacuteneca mas satildeo ldquosubstituiacutedasrdquo por Juno que representa a nouerca por um

lado e uma forccedila exterior e destruidora por outro ndash vem armada de odium ira dolor

funcionando como duplo de Heacutercules para o destruir

No caso do protagonista a forma como eacute focada a ambivalecircncia do caraacutecter do

heroacutei em cada peccedila eacute igualmente diacutespar A ἀρετή que caracteriza Heacuteracles eacute posta em

causa quando o heroacutei eacute submetido pela loucura o protagonista mata crianccedilas e uma

mulher seres indefesos julgando que se vingava da famiacutelia de Euristeu A βία eacute aqui

notoacuteria e reprovaacutevel

Heacutercules eacute mais confiante na sua forccedila do que Heacuteracles o protagonista da

trageacutedia de Seacuteneca confia demasiado na sua uirtus Essa confianccedila eacute excessiva e

1 Anna Lydia Motto John R Clark ldquoSenecarsquos visionary dramardquo Classica 21 (1996) 157

155

conduz inevitavelmente agrave desgraccedila (186-187 201)2 De facto o protagonista natildeo tem

qualquer controlo sobre as suas emoccedilotildees eacute insaciaacutevel sanguinaacuterio deseja que Juno lhe

envie mais monstros para ele derrotar Nem no final da trageacutedia depois de ter

enlouquecido e massacrado a mulher e os filhos imolando-os como viacutetimas de um

sacrifiacutecio aos deuses nem mesmo assim consegue moderar o seu acircnimo Eacute tomado pela

ira e pela saeuitia que o conduz a um violento desejo de se suicidar Nada parece

demovecirc-lo suacuteplicas ou conselhos Apenas uma ameaccedila agrave sua uirtus o consegue travar

quando Anfitriatildeo o intimida afirmando que iraacute morrer se Heacutercules natildeo puser um freio ao

seu iacutempeto suicida ndash a morte do pai do heroacutei seria mais um scelus com a diferenccedila de

que agora seria voluntaacuterio Nessa medida o Alcida eacute obrigado a permanecer vivo e a

resistir agrave dor

A descriccedilatildeo da loucura eacute outro toacutepico divergente nas duas peccedilas Lissa conta a

Iacuteris os primeiros sintomas da demecircncia de Heacuteracles e o Mensageiro completa narrando

as manifestaccedilotildees fiacutesicas e psiacutequicas da loucura e as consequecircncias que decorreram da

perturbaccedilatildeo mental Em Hercules Furens ao descrever a loucura do heroacutei e os seus

efeitos o filoacutesofo permite que o espectadorleitor verifique ldquoao vivordquo a relaccedilatildeo

psicossomaacutetica entre as paixotildees (fisionomia e atitude fiacutesica) Por esse motivo o filoacutesofo

natildeo necessita de um Mensageiro Tudo se passa frente aos olhos do espectador agrave

excepccedilatildeo das mortes para que se veja ilustrado o comportamento de um ser humano

dominado pelas paixotildees e as consequecircncias que daiacute resultam

Estas diferenccedilas explicam-se mercecirc de objectivos diversos que moviam cada um

dos tragedioacutegrafos Em Euriacutepides os temas que estatildeo subjacentes na trageacutedia Heracles

satildeo a ausecircncia de amigos vs amizade a loucura a fragilidade humana o destino o

suiciacutedio a forccedila fiacutesica vs a forccedila moral Teseu critica o desejo de Heacuteracles de se

suicidar Para o soberano de Atenas o acto eacute irreflectido Jacqueline de Romilly sugere

que

Heracles could not act like just anybody (1248 ἐπιτυχόντος ἀνθρώπου lsquoa chance-met fellowrsquo) he had to reject a suicide which did not befit a man who had endured so many trials (1250 πολλὰ δὴ τλάς lsquohaving endured muchrsquo) and rendered so many services to

2 Vide Norman T Pratt ldquoThe Stoic Base of Senecan Dramardquo Transactions and Proceedings of the American Philological Association 79 (1948) 8

156

mortals (1252 εὐεργέτης βροτοῖσι lsquoa benefactor for mortalsrsquo) This is making understood that the true hero does not commit suicide3

Surge a Heacuteracles um novo desafio aceitar o seu destino O heroacutei entende que

teraacute que suportar a adversidade evitando que os seus inimigos o considerem cobarde

(vv 1349-1357)4 A forccedila moral ganha expressatildeo no final da trageacutedia por oposiccedilatildeo agrave

forccedila fiacutesica Como nota Andreacute Rivier ldquoLrsquoinflexibiliteacute du heacuteros naicirct de sa force drsquoacircmerdquo5

Em Seacuteneca as trageacutedias tecircm uma funccedilatildeo pareneacutetica Aplicando as palavras de

Francesco Giancotti fabula docet6 Para esse propoacutesito o filoacutesofo toma as personagens

como exempla ou παραδείγματα Os caracteres servem de ilustraccedilatildeo de uma teoria

moral As descriccedilotildees dos vaacuterios uitia permitem ao filoacutesofo reencaminhar o homem para

a procura da uirtus Seacuteneca faz pois do binoacutemio furor mens bona o eixo axial das suas

trageacutedias Francesco Giancotti explica ldquoLrsquoantitesi fra furor passionale e mens bona ()

egrave il leitmotiv lrsquoidea-madre del corpus tragico senechiano La mens bona e il furor

passionale costituiscono rispettivamente il fondamentale valore e il fondamentale

disvalore della concezione immanente alle tragedie di Seacutenecardquo7

Todas as personagens de Seacuteneca satildeo movidas por uma ou vaacuterias passiones O

Heacutercules de Hercules Furens entra no caminho do uitium porque

a) exulta e engrandece-se com os trabalhos que Juno lhe envia ndash um sapiens

permaneceria indiferente

b) entrega-se a tarefas fuacuteteis acabando por natildeo ter tempo nem dar qualquer

atenccedilatildeo aos que efectivamente precisam da sua ajuda do seu apoio (vv 209-213)

c) natildeo sabe fazer um bom uso da forccedila extraordinaacuteria que possui utilizando-a

indiferentemente para bons e maus fins

d) procura natildeo uma via para a uirtus mas para a gloacuteria pessoal

e) consegue vencer quase todos os obstaacuteculos mas eacute vencido pela morte de

Meacutegara e dos filhos natildeo conseguindo ser impassiacutevel agrave dor ndash os estoacuteicos encaram os

males que o Destino envia como uma forma de testar as suas capacidades8

3 Jacqueline de Romilly ldquoThe Rejection of Suicide in Heraclesrdquo in Judith Mossman (ed) Euripides (Oxford Oxford University Press 2003) 290 4 Para T L B Webster The Tragedies of Euripides (Londres Methuen 1967) 192 o tema fundamental que Euriacutepides faz representar nesta trageacutedia eacute a loucura e recuperaccedilatildeo de Heacuteracles depois de ter enlouquecido 5 Andreacute Rivier Essai sur le Tragique drsquoEuripide (Paris Diffusion du Boccard 1975) 106 6 Francesco Giancotti Saggio sulle Tragedie di Seneca 52 7 Francesco Giancotti Saggio sulle Tragedie di Seneca 55 8 Segundo Norman Pratt ldquoThe Stoic Base of Senecan Dramardquo Transactions and Proceedings of the American Philological Association 79 (1948) 9 ldquoThe De Providentia presents the question why good

157

Satildeo ainda sucessivos os seus errores erro na concepccedilatildeo da sua uirtus erro de

avaliaccedilatildeo quando julga que estaacute a matar os filhos de Lico e quando pensa que estaacute a

matar Juno desde o primeiro momento em que entra em cena ele mostra que natildeo

procura um equiliacutebrio emocional mas vai decaindo sucessivamente culminando na

loucura

Em Hercules Oetaeus haacute uma evoluccedilatildeo da personagem No decorrer da acccedilatildeo

desta trageacutedia Heacutercules vai traccedilando o caminho para a virtude no modo como enfrenta a

dor Quando descobre que o Destino marcou para esse dia a sua morte aceita-o

inquestionavelmente Nesse sentido o heroacutei tornou-se no ideal do sapiens ao ver o seu

corpo a ser consumido pelas chamas mantendo a coragem a serenidade a firmeza e a

impassibilidade natildeo fechando os olhos quando as chamas lhe devoravam a face

Por fim pretendemos tornar evidente que as trageacutedias do filoacutesofo tecircm idecircntico

escopo ao das obras em prosa Foi com esse propoacutesito que estabelecemos paralelos entre

alguns exemplos das falas do Coro e passos das outras obras do autor Tivemos

oportunidade de verificar que o vocabulaacuterio e os recursos estiliacutesticos usados satildeo os

mesmos Como afirma Norman Pratt

Such then is the relationship between the essays and the plays analyzed as groundwork for continued study Stoicism shaped the nature of this drama both in superficial and in fundamental ways The influence of philosophy is much deeper than any simple correspondence between the themes of the two genres Stoic dogma concerning evil and the conflict between reason and passion lies beneath the plays in various aspects including choral passages concept of character introspection and tone to a degree which amounts to a distinctive concept of the tragic9

Enquanto as obras em prosa satildeo essencialmente uma reflexatildeo teoacuterica sobre o

Bem e o Mal e procurem desviar o seu leitor do caminho do uitium as trageacutedias satildeo a

ldquopraacuteticardquo dos males que podem atingir o Homem Ao socorrer-se de imagens violentas

de cracircnios a serem esmagados de sangue que mancha as paredes ou que eacute espalhado

pelo eacuteter Seacuteneca permite que o espectadorleitor contemple ou mesmo visualize (por

meio dos recursos estiliacutesticos como a anaacutefora o quiasmo as construccedilotildees paraleliacutesticas

uariatio sententiae iteraccedilotildees) os malefiacutecios dos affectus recordando na voz do Coro men are allowed to suffer and the conventional answer that misfortune is intended to test and develop mans spirit (16) Adversity is merely discipline for virtue pro ipsis esse quibus eveniunt ista quae horremus ac tremimus (32) From this it follows that evil is to be welcomed praebendi fortunae sumus ut contra illam ab ipsa duremur (412)rdquo 9 Norman Pratt ldquoThe Stoic Base of Senecan Dramardquo Transactions and Proceedings of the American Philological Association 79 (1948) 10-11

158

que eacute preferiacutevel viver em secura quies e tranquillitas animi evitando uma vida

desregrada ou movida pela esperanccedila

159

BIBLIOGRAFIA

1 Ediccedilotildees Comentaacuterios e Traduccedilotildees de Euriacutepides e de Seacuteneca

11 Euriacutepides

Euripides Fabulae I-III ed James Diggle (Oxford Oxford University Press

1984-1994)

Euripidesrsquo Heracles intr e comentaacuterio Godfrey W Bond (2ordf Ediccedilatildeo Oxford

Clarendon Press 1988)

Euripides Heracles intr trad e comentaacuterio Shirley Barlow (Warminster Aris

and Philips 1996)

EURIPIDE Theacuteacirctre III trad Henri Berguin Georges Duclos (Paris Garnier

1955)

EURIPIDE Trageacutedies Complegravetes I-II trad Marie Delcourt-Curvers (Paris

Gallimard 2006)

EURIPIDE Heacuteraclegraves ndash Les Suppliants ndash Ion III trad Leacuteon Parmentier Henri

Gregoire (Paris Les Belles Lettres 1976)

EURIPIDES Helena trad Joseacute Ribeiro Ferreira (Coimbra Festival de Teatro de

Tema Claacutessico 2005)

EURIPIDES Iacuteon trad Frederico Lourenccedilo (Lisboa Ediccedilotildees Colibri 2005 2ordf

tiragem)

EURIPIDES Medeia trad Maria Helena da Rocha Pereira (3ordf ed Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2005)

EURIPIDES Orestes trad Augusta Fernanda de Oliveira e Silva (Coimbra

Instituto Nacional de Investigaccedilatildeo Cientiacutefica 1982)

12 Seacuteneca

a) Trageacutedias

L Annaei Senecae Hercules Furens Troades Phoenissae Medea Phaedra

recensuit Ioannes Viansino (Torino Paravia 1968)

160

L Annaei Senecae Oedipus Agamemnon Thyestes Hercules Oetaeus (incerti

poetae) Octavia recensuit Ioannes Viansino (Torino Paravia 1965)

Senecarsquos Hercules Furens a Critical Text with Introduction and Commentary

ed John G Fitch (Ithaca and London Cornell University Press 1987)

SENECA Tragedies I-II ed e trad John G Fitch (Cambridge Massachusetts

Londres Harvard University Press 2002-2004)

SENECA Tragedies I-II ed Frank Justus Miller (Londres Cambridge

Massachusetts Harvard University Press 1917 reimpr 1968)

SENECA Lucio Anneo Tragedie trad G C Giardina Rita Cuccioli Melloni

(Torino Editrice Torinese 1987)

SEacuteNEgraveQUE Trageacutedies I-II ed e trad Leacuteon Herrman (Paris Les Belles Lettres

1961-1968)

SEacuteNEgraveQUE Theacuteacirctre Complet II ed e trad Florence Dupont (Paris Imprimerie

Nationale 1992)

SENECA Fedra trad Ana Alexandra Alves de Sousa (Lisboa Ediccedilotildees 70

2003)

SENECA Tiestes trad Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos (sl Editorial Verbo

1996)

b) obra em prosa

L Annaei Senecae Ad Lucilium Epistulae Morales recognouit et adnotationes

critica instruxit L D Reynolds I-II (Oxford Oxford University Press 1965) Seacuteneca

Cartas a Luciacutelio trad Joseacute Antoacutenio Segurado e Campos (Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste

Gulbenkian 1991)

L Annaei Senecae Dialogorum Libri Duodecim recognouit breuique

adnotationes critica instruxit L D Reynolds (Oxford Oxford University Press 1977)

SENEQUE Dialogues I De Ira ed e trad Abel Bourgery (Paris Les Belles

Lettres 1951)

SENEQUE Dialogues III De la Cleacutemence ed e trad Franccedilois Preacutechac (Paris

Les Belles Lettres 1961)

161

SENEQUE Dialogues IV De la Providence De la Constance du Sage De la

Tranquilliteacute de lrsquoAcircme De lrsquoOisiveteacute ed e trad Reneacute Waltz (Paris Les Belles Lettres

1965)

SENEQUE Dialogues II De la Vie Heureuse De la Briegraveveteacute de la Vie ed e trad

Abel Bourgery (Paris Les Belles Lettres 1955)

SENEQUE Questions Naturelles I-II ed e trad Paul Oltramare (Paris Les

Belles Lettres 1929)

SENECA Moral Essays I-II trad John W Basore (Cambridge Massachusetts

Harvard University Press 1928-1932 reimpr 1963 1970)

13 Outros autores

APOLLODORUS The Library I-II ed e trad James George Frazer (Cambridge

Massachusetts Harvard University Press 1961)

CICERO De Fato Paradoxa Stoicorum De Partitione Oratoria trad Harris

Rackham M A (Cambridge Massachusetts Harvard University Press 1942 reimpr

1948)

CICERO De Natura Deorum Academica trad Harris Rackham M A

(Cambridge Massachusetts Harvard University Press 1933 reimpr 1972)

CICERO De Optimo Genere Oratorum Topica trad H M Hubbell (Cambridge

Massachusetts Harvard University Press 1968)

CICERO De Senectute De Amicitia De Diuinatione trad William Armistead

Falconer (Cambridge Massachusetts Harvard University Press 1923 reimpr 1971)

CICERON Tusculanes Tome II (III-V) ed Georges Fohlen trad Jules Humbert

(Paris Les Belles Lettres 1931)

DIOGENES LAERTIUS Lives of Eminent Philosophers II trad Robert Drew

Hicks (Cambridge Massachusetts Harvard University Press 1937 reimpr 1991)

DIOGENES LAERCIO Vida de los Filoacutesofos Ilustres trad Carlos Garciacutea Gual

(Madrid Alianza Editorial 2007 reimpr 2008)

EacuteSQUILO Os Persas trad Manuel de Oliveira Pulqueacuterio (Lisboa Ediccedilotildees 70

1998)

162

Epictetus The Discourses as Reported by Arrian The Manual and Fragments

I-II trad William Abbott Oldfather (Cambridge Massachusetts Harvard University

Press 1925-1928 reimpr 1956-1959)

HOMERO Iliacuteada trad Frederico Lourenccedilo (Lisboa Livros Cotovia 2005)

Marcus Aurelius ed e trad Charles Reginald Haines (Cambridge

Massachusetts Londres Harvard University Press 1916 reimpr 2003) MARCO

AURELIO Pensamentos trad Joatildeo Maia (Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2008)

The Odes of Pindar including The Principal Fragments ed e trad Sir John

Sandys London Harvard University Press 1968

Ovide Les Meacutetamorphoses Tome II (VI-X) ed e trad Georges Lafaye (Paris

laquoLes Belles Lettresraquo 1955) Oviacutedio Metamorfoses trad Paulo Farmhouse Alberto

(Lisboa Livros Cotovia 2007)

SEXTUS EMPIRICUS Against the Physicists Against teh Ethicists trad Robert

Gregg Bury (Cambridge Massachusetts Harvard University Press 1953 reimpr

1968)

Sofistas Testemunhos e Fragmentos introd e trad Maria Joseacute Vaz Pinto Ana

Alexandra Alves de Sousa (Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2005)

SOacuteFOCLES Trageacutedias trad Maria Helena da Rocha Pereira et alii (Coimbra

Minerva 2003)

VERGIacuteLIO Eneida trad Luiacutes M G Cerqueira et alii (Lisboa Bertrand 2003)

2 Dicionaacuterios Concordacircncias

21 Dicionaacuterios e Concordacircncias

A Concordance to Euripides ed James T Allen Gabriel Italie (Groningen

Boumarsquos Boekhuis 1970)

BAILLY Anatole Dictionnaire Grec-Franccedilais (Paris Hachette 1999)

CHANTRAINE Pierre Dictionnaire eacutetymologique de la langue grecque Histoire

des mots (Paris Klincksieck 1999 1ordf ed 1968)

Dicionaacuterio de Latim-Portuguecircs (3ordf ed Porto Porto Editora 2008)

163

ERNOUT Alfred MEILLET Antoine Dictionnaire eacutetymologique de la langue

latine histoire des mots (4ordf ed Paris Klincksieck 1959 reimpr 2001)

GAFFIOT Feacutelix Le Grand Gaffiot Dictionnaire LatinndashFranccedilais (Paris

Hachette 2000)

LIDDELL Henry George SCOTT Robert A Greek-English Lexicon (9ordf ed

Oxford Oxford University Press 1995)

Lucius Annaeus Seneca Tragoediae Index verborum Releves Lexicaux et

Grammaticaux ed Joseph Denooz (Hildesheim Zuumlrich Georg Olms Verlag 1994)

GLARE Peter G W (ed) Oxford Latin Dictionary (Oxford Oxford University

Press 1982 reimpr 2006)

GONCcedilALVES Francisco da Luz Rebelo Vocabulaacuterio da Liacutengua Portuguesa

(Coimbra Coimbra Editora 1966)

GRIMAL Pierre Dicionaacuterio da Mitologia Grega e Romana (Algeacutes Difel 1999)

HORNBLOWER Simon e Antony Spawforth (eds) The Oxford Classical

Dictionary (3ordf ed Oxford Oxford University Press 1996 reimpr 2003)

The Oxford Dictionary of Classical Myth and Religion ed Simon Price Emily

Kearns (Oxford Oxford University Press 2003)

22 Outros

ANTUNES Padre Manuel sj Obra Completa Tomo I Theoria Cultura e

Civilizaccedilatildeo Volume I Cultura Claacutessica (Estudos) ed criacutetica coord Arnaldo do

Espiacuterito Santo (Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2007

BAYET J Histoire Politique et Psychologique de la Religion Romaine (Payot

Paris 1957)

BOARDMAN John GRIFFIN Jasper MURRAY Oswyn (eds) The Oxford History

of Roman World (Oxford Oxford University Press 1991 reimpr 2001)

BURKERT Walter Religiatildeo Grega na Eacutepoca Claacutessica e Arcaica trad M J

Simotildees Loureiro (Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1993)

DODDS E R The Greeks and the Irrational (Berkeley Los Angeles University

of California Press 1951)

EASTERLING P E The Cambridge Companion to Greek Tragedy (Cambridge

Cambridge University Press 1997)

164

GREGORY Justina A Companion to Greek Tragedy (Malden Blackwell 2005

reimpr 2008)

GRAF Fritz Greek Mythology an Introduction trad Thomas Marier (Baltimor

Londres Johns Hopkins University Press 1996)

LOURENCcedilO Frederico Greacutecia Revisitada (Lisboa Cotovia 2004)

MOSSEacute Claude SCHNAPP-GOURBEILLON Annie Siacutentese de Histoacuteria Grega

trad Carlos Carreto (Lisboa Ediccedilotildees Asa 1994)

PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de Histoacuteria da Cultura Claacutessica I

Cultura Grega (3ordf ed Lisboa Serviccedilo de Educaccedilatildeo e Bolsas da Fundaccedilatildeo Calouste

Gulbenkian 2002)

PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de Histoacuteria da Cultura Claacutessica II

Cultura Romana Lisboa Serviccedilo de Educaccedilatildeo e Bolsas da Fundaccedilatildeo Calouste

Gulbenkian 1998

RAWLINGS Louis BOWDEN Hugh Herakles and Hercules Exploring a Graeco-

-Roman Divinity (Wales The Classical Press of Wales 2005)

3 Estudos sobre o Estoicismo

BODSON Arthur La Morale Sociale des Derniers Stoiumlciens Seacutenegraveque Eacutepictegravete et

Marc Auregravele (Paris Les Belles Lettres 1967)

BRENNAN Tad The Stoic Life (Oxford Clarendon Press 2005)

BRUN Jean Les Stoiumlciens (Paris Presses Universitaires de France 1968) BRUN

Jean O Estoicismo trad Joatildeo Amado (Lisboa Ediccedilotildees 70 1986)

DURKHEIM Eacutemile Le Suicide Eacutetude de Sociologie (Paris Presses Universitaires

de France 1930 reimpr 1986)

HOVEN Reneacute Stoiumlcisme et Stoiumlciens Face au Problegraveme de lrsquoAu-Delagrave (Paris Les

Belles Lettres 1971)

INWOOD Brad (ed) The Cambridge Companion to the Stoics (Cambridge

Cambridge University Press 2003)

LOND Anthony A (ed) The Cambridge Companion to Early Greek Philosophy

(Cambridge Cambridge University Press 1999)

165

MOREAU Joseph Stoiumlcisme Eacutepicurisme Tradition Helleacutenique (Paris Librairie

Philosophique J Vrin 1979)

RIST J M Stoic Philosophy (Cambridge Cambridge University Press 1969)

ROBIN Leacuteon A Moral Antiga trad Joatildeo Morais Barbosa (Ediccedilotildees Despertar

sd)

RODIS-LEWIS Geneviegraveve La Morale Stoiumlcienne (Paris Presses Universitaires de

France 1970)

SEDLEY David (ed) The Cambridge Companion to Greek and Roman

Philosophy (Cambridge Cambridge University Press 2003)

SPANNEUT Michel Permanence du Stoiumlcisme de Zeacutenon agrave Malraux (Gembloux

Duculot 1973)

STRANGE Steven K ZUPKO Jack Stoicism Traditions and Transformations

(Cambridge Cambridge University Press 2004)

4 Teoria e Histoacuteria da Literatura

BALDICK Chris The Concise Oxford Dictionary of Literary Terms (Oxford

Oxford University Press 2004)

BOYLE Anthony J Roman Tragedy (Londres Nova Iorque Routledge 2006)

Cambridge History of Classical Literature ii Latin Literature ed Edward John

Kenney (Cambridge Cambridge University Press 1996)

CHAMOUX Franccedilois A Civilizaccedilatildeo Grega na Eacutepoca Arcaica e Claacutessica trad

Pedro Eloacutei Duarte (Lisboa Ediccedilotildees 70 2003)

CHEVALIER Jean GHEERBRANT Alain Dictionnaire des Symboles 4 Vols

(Paris Seghers 1973r)

CITRONI Mario CONSOLINO Franca Ela LABATE Mario e NARDUCCI

Emanuele Literatura de Roma Antiga trad Margarida Miranda e Isaiacuteas Hipoacutelito

(Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2006)

CONTE Gian Biagio Latin Literature A History trad Joseph B Solodow Don

P Fowler e Glen W Most (Baltimore Londres Johns Hopkins University Press 1999)

CUDDON J A The Penguin Dictionary of Literary Terms and Literary Theory

(Londres Penguin Books 1999)

166

FEDELI Paolo Storia Letteraria di Roma (Naacutepoles Fratelli Ferraro Editori

2002)

HOWATSON MC CHILVERS Ian The Concise Oxford Companion to Classical

Literature (Oxford Oxford University Press 1996)

KENNEDY George Alexander (ed) The Cambridge History of Literary

Criticism I Classical Criticism (Cambridge Cambridge University Press 1989

reimpr 1999)

KITTO Humphrey Davy Findley Trageacutedia Grega Estudo Literaacuterio II trad

Joseacute Manuel Coutinho e Castro (Coimbra Armeacutenio Amado 1990)

LAUSBERG Heinrich Elementos de Retoacuterica Literaacuteria trad Raul Rosado

Fernandes (5ordf ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2004)

LAUSBERG Heinrich Handbook of Literary Rhetoric A Foundation for Literary

Study trad Matthew T Bliss Annemiek Jansen e David E Orton (Leiden Brill 1998)

LESKY Albin Histoacuteria da Literatura Grega trad Manuel Losa (3ordf ed Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1995)

REIS Carlos LOPES Ana Cristina Macaacuterio Dicionaacuterio de Narratologia (7ordf ed

Coimbra Livraria Almedina 2000)

ROMILLY Jacqueline de A Trageacutedia Grega trad Leonor Santa Baacuterbara (Lisboa

Ediccedilotildees 70 1997)

SEGAL Erich Oxford Readings in Greek Tragedy (Oxford Oxford University

Press 1988)

SILK M S Tragedy and the Tragic Greek Theatre and Beyond (Oxford

Clarendon Press 1996)

SOMMERSTEIN Alan H Greek drama and dramatists (Londres Routledge

2002)

5 Estudos sobre Euriacutepides e a Trageacutedia Heracles

ADKINS Arthur W H ldquoBasic Greek Values in Euripidesrsquo Hecuba and Hercules

Furensrdquo Classical Quarterly 16 nordm 2 (1966) 193-219

BARLOW Shirley A ldquoStructure and Dramatic Realism in Euripidesrsquo Heraclesrdquo

Greece and Rome 29 nordm 2 (1982) 115-125

167

BARLOW Shirley A The Imagery of Euripides (3ordf ed Londres Bristol

Classical Press 2008)

CHALK H H O ᾿Αρετή and Βία in Euripidesrsquo Heraklesrdquo Journal of Hellenic

Studies 82 (1962) 7-18

COLLARD C Euripides (Oxford Oxford University Press 1981)

DIGGLE James Euripidea Collected Essays (Oxford Clarendon Press 1994)

DUNN Francis M Tragedyrsquos End Closure and Innovation in Euripidean

Drama (Oxford Oxford University Press 1996)

GRIFFITHS Emma Euripides Heracles (Londres Duckworth 2006)

JONG Irene J F de Narrative in Drama the Art of the Euripidean Messenger-

Speech (Leiden Nova Iorque E J Brill 1991)

KOVACS David Euripidea (Leiden Nova Iorque Koumlln E J Brill 1994)

LEFKOWITZ Mary R ldquolsquoImpietyrsquo and lsquoAtheismrsquo in Euripidesrsquo Dramasrdquo

Classical Quarterly 39 nordm 1 (1989) 70-82

LEFKOWITZ Mary R ldquoThe Poet as Hero Fifth-Century Autobiographycal and

Subsequent Biographical Fictionrdquo Classical Quarterly 28 nordm 2 (1978) 459-469

McAUSLAN Ian Peter Walcot The Greek Tragedy (Oxford Oxford University

Press 1993)

MICHELINI Ann Norris Euripides and Tragic Tradition (Londres The

University of Wisconsin Press 1987)

MOSSMAN Judith (ed) Euripides (Oxford Oxford University Press 2003)

MURRAY Gilbert Euripides and his Age (Londres Oxford University Press

1965)

PAPADOPOULOU Thalia ldquoHerakles and Hercules The Herorsquos Ambivalence in

Euripides and Senecardquo Mnemosyne 57 (2004) 257-283

PAPADOPOULOU Thalia Heracles and Euripidean Tragedy (Cambridge

Cambridge University Press 2005)

PARRY H The Second Stasimon of Euripidesrsquo Heracles (637-700) American

Journal of Philology 86 nordm 4 (1965) 363-374

PHOUTRIDES Aristides Evangelus ldquoThe Chorus of Euripidesrdquo Harvard Studies

in Classical Philology 27 (1916) pp 77-170

RIDGEWAY William ldquoEuripides in Macedonrdquo Classical Quarterly 20 nordm 1

(1926) 1-19

168

RIVIER Andreacute Essai sur le Tragique drsquoEuripide (Paris Diffusion du Boccard

1975)

SANTOS Carlos Ferreira Euriacutepides Heacuteracles Introduccedilatildeo Traduccedilatildeo e Notas

(Coimbra diss de Mestrado em Literaturas Claacutessicas apresentada agrave Faculdade de Letras

da Universidade de Coimbra 1996)

SILVA Maria de Faacutetima Sousa e Criacutetica Literaacuteria na Comeacutedia Grega Geacutenero

Dramaacutetico (Coimbra diss de Doutoramento em Literatura Grega apresentada agrave

Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 1983)

SILVA Maria de Faacutetima Sousa e Ensaios sobre Euriacutepides (Lisboa Cotovia

2005)

SCULLION Scott ldquoEuripides and Macedon or the Silence of the Frogsrdquo

Classical Quarterly 53 nordm 2 (2003) 389-400

WEBSTER Thomas Bertram Lonsdale The Tragedies of Euripides (Londres

Methuen 1967)

WHITMAN Cedric H Euripides and the Full Circle of Myth (Cambridge

Massachusetts Harvard University Press 1974)

WILLINK C W ldquoSleep after Labour in Euripidesrsquo Heraclesrdquo Classical

Quarterly 38 nordm 1 (1988) 86-97

5 Estudos sobre Seacuteneca e sobre as trageacutedias Hercules Furens e Hercules Oetaeus

AUVRAY Clara-Emmanuelle Folie et Douleur dans Hercule Furieux et Hercule

sur lrsquoOeta Recherches sur lrsquoExpression Estheacutetique de lrsquoAscegravese Stoiumlcienne chez Seacutenegraveque

(Frankfurt am Main Bern Nova Iorque Paris Lang 1989)

BOYLE Anthony J Tragic Seneca an Essay in the Theatrical Tradition

(Londres Nova Iorque Routledge 1997)

BORGO Antonella Lessico Parentale in Seneca Tragico (Naacutepoles Loffredo

Editore 1993)

DUARTE Ricardo De Mater a Monstrum o Abismo dos Affectus Estoacuteicos na

Medea de Seacuteneca (Lisboa diss de Mestrado em Estudos Claacutessicos Literatura Latina

2008)

169

DUPONT Florence Les Monstres de Seacutenegraveque (Paris Belin 995)

FERREIRA Paulo Seacutergio Margarido Seacuteneca em Cena Enquadramento na

Tradiccedilatildeo Dramaacutetica Greco-Latina (Coimbra diss de Doutoramento em Letras aacuterea de

Estudos Claacutessicos especialidade de Literatura Latina apresentada agrave Faculdade de

Letras da Universidade de Coimbra 2006)

FITCH John (ed) Oxford Readings in Classical Studies Seneca (Oxford

Oxford University Press 2008)

GIANCOTTI Francesco Saggio sulle Tragedie di Seneca (Roma Naacutepoles

Societagrave Editrice Dante Alighieri 1953)

GONCcedilALVES Carla Susana Vieira Invectiva na Trageacutedia de Seacuteneca (Coimbra

Ediccedilotildees Colibri 2003)

GRIFFIN Miriam Seneca A Philosopher in Politics (Oxford Clarendon Press

1976 reimpr 1992)

GRIMAL Pierre Seacutenegraveque sa Vie son Oeuvre avec un Exposeacute de sa Philosophie

(3ordf ed Paris Presses Universitaires de France 1966)

HARRISON George W M (ed) Seneca in Performance (Londres The Classical

Press of Wales 2000)

HERRMANN Leacuteon Le Theacuteacirctre de Seacutenegraveque (Paris Les Belles Lettres 1924) 53-

57

INWOOD Brad Reading Seneca Stoic Philosophy at Rome (Oxford Clarendon

Press 2005)

LITTLEWOOD C A J Self-Representation and Illusion in Senecan Tragedy

(Oxford Oxford University Press 2004)

MATIAS Mariana Montalvatildeo Horta e Costa Paisagens Naturais e Paisagens da

Alma no Drama Senequiano ndash Troades e Thyestes (Coimbra diss de Mestrado em

Literaturas Claacutessicas especialidade de Literatura Latina apresentada agrave Faculdade de

Letras da Universidade de Coimbra 2007)

MENDELL Clarence W Our Seneca (Archon Books 1968)

MOTTO Anna Lydia CLARK John R Maxima virtus in Senecarsquos Hercules

Furens CPh 76 (1981) 101-17 [revised version entitled Hercules Furens maximus

virtus in A L Motto amp J R Clark (1988) 261-94]

MOTTO Anna Lydia CLARK John R ldquoThe Monster in Senecarsquos Hercules

Furens 926-939rdquo Classical Philology 89 nordm 3 (1994) 269-272

170

MOTTO Anna Lydia CLARK John R ldquoSenecarsquos visionary dramardquo Classica 21

(1996) 155-163

OLIVEIRA Francisco de ldquoImagem do Poder na Trageacutedia de Seacutenecardquo Humanitas

51 (1999) 49-83

PEASE Arthur Stanley ldquoOn the Authenticity of the Hercules Oetaeusrdquo

Transactions and Proceedings of the American Philological Association 49 (1918) 3-

26

PIMENTEL Maria Cristina ldquoA Meditatio Mortis nas Trageacutedias de Seacutenecardquo

Classica 23 (1999) 27-45

PIMENTEL Maria Cristina Quo Verget Furor Aspectos Estoacuteicos na Phaedra de

Seacuteneca (Lisboa Ediccedilotildees Colibri 1993)

PIMENTEL Maria Cristina Seacuteneca (Mem Martins Editorial Inqueacuterito 2000)

PRATT Norman T ldquoThe Stoic Base of Senecan Dramardquo Transactions and

Proceedings of the American Philological Association 79 (1948) 1-11

ROSENMEYER Thomas G Senecan Drama and Stoic Cosmology (Berkeley Los

Angeles University of California Press 1989)

SCHIESARO Alessandro The Passions in Play (Cambridge Cambridge

University Press 2003)

SEGURADO E CAMPOS Joseacute Antoacutenio ldquoSeacuteneca Brecht e o Teatro Eacutepicordquo

Classica 23 (1999) 9-26

SEGURADO E CAMPOS Joseacute Antoacutenio ldquoO Simbolismo do Fogo nas Trageacutedias de

Seacutenecardquo Euphrosyne 5 (1972) 185-247

SEGURADO E CAMPOS Joseacute Antoacutenio ldquoSeacuteneca e Heacutercules Observaccedilotildees sobre o

Hercules Furensrdquo Euphrosyne 8 (1977) 161-168

SEGURADO E CAMPOS Joseacute Antoacutenio ldquoSur la Typologie des Personnages dans les

Trageacutedies de Seacutenegravequerdquo Neronia 1977 Actes du 2e Colloque de la Socieacuteteacute

Internationale drsquoEacutetudes Neacuteroniennes (Clermont-Ferrand Adosa 1977) 155-176

SERRA Joseacute Pedro Pensar o Traacutegico (Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian

Fundaccedilatildeo para a Tecnologia e a Tecnologia 2006)

SHELTON Jo-Ann ldquoSenecarsquos Hercules Furens Theme Structure and Stylerdquo

Hypomnemata 50 (Goumlttingen Vandenhoeck and Ruprecht 1978)

171

TANNER R G N S W Newcastle ldquoStoic Philosophy and Roman Tradition in

Senecan Tragedyrdquo Aufstieg und Niedergang der Roumlmischen Welt II 322 (Berlim

Nova Iorque Walter de Gruyter 1985) 1100-1133

VOLK Katharina Gareth D Williams (eds) Seeing Seneca Whole Perspectives

on Philosophy Poetry and Politics (Leiden Boston Brill 2006)

172

INDEX LOCORVM

Apolodoro

Bibliotheca

2412 10n

Arriano

Epicteti Dissertationes

1916 136n

1917 136n

12929 136n

1226 136n

2611 138n

2612 138n

4172 136n

41150 ss 136n

Ciacutecero

Academica Posteriora

239 19n

De Fato

1020-21 20n

De Inuentione

2160 26n

Tusculanae Disputationes

118 22n

36 26n

4611 29n

4716 30n

4922 30n

415 29n

41534 28n

41737 28n

Dioacutegenes Laeacutercio

Declarorum Philosophorum Vitis

739 15n

740 15n

741 15n

741-43 16n

746-48 16n

783 15n

784 23n

787 24n

790 26n

792-93 26n

793 27n

7110 28n

7115 29n

7132 17n

7138-139 18n

7148-149 17n

7157 21n 22n

Eacutesquilo

Persae

305-309 44n

633-680 44n

Euriacutepides

Electra

677-684 44n

Helena

317-329

Heracles

1 36n

173

1-2 88n

1-106 5

1-821 6

13-14 98

13-20 102

16-17 111n

18-20 102

18-21 84n

20 86n

20-21 36n 101 102

21 102

22-25 98n

26-34 50

33-34 50

38-43 43

41-42 36 36n

44-45 36 36n

44-46 97n

51-59 37

57-59 37n

60-61 36

60-106 43

62 7

69-71 43

71-72 44

75-79 104n

80-86 44

95-97 51n

95-106 37

107-114 63

112 82

115-118 65

119 64

119-130 63

120 64

124-126 82

125 64

126 64

127-229 99

128 64

131-137 65

140-347 5

145-146 97n

149 95

150-155 95

157 98

157-164 98

158 98

160 98

162 98

165-166 51

174-205 38

177 96

177-180 95

179 96

190-194 98

195-201 98

210 51

215 51 51n

215-216 38 51 51n

217-226 99

227 11

229 100

235 51

240-246 112

247-251 51n 113

252-267 65

252-274 65

255 50

261 50

268-274 65

272-274 50 50n

174

282-283 103

288-292 44

296-297 97n

303-306 37

309-311 103

312-314 82

312-315 65

316-318 38

319-329 65n

339-347 7 38n

344-346 7

348-358 65

348-435 102

348-450 65

349-435 65

359-363 66

359-429 65

364-374 66

375-379 66

380-388 66

389-393 66

394-402 66

397 114n

403-407 66

404 114n

408-418 66

419-421 66

422-424 66

425-429 66

426-424 97n

435 114n

436-450 65

451-453 113

451-522 5

456-457 103

456-489 44

480-482 103

483 45n

490-491 44n

490-495 97n

490-496 44

492-493 44n

494 44n

495-496 44n

497-500 44

497-513 38n

498-500 7

501 38n

506-507 37n

511-512 37n

519-521 45

523 95n

531-636 123

533 45

534 ss 45

558 99

558-561 37

560 11 99

562-582 100

565 100 114n

566 100

565-573 8 100

565-606 5

568 100

568-573 113

570 100

572 100

572-573 100

573 100

575-582 104

577 104

585-586 38 113

175

588-594 38

595-598 104

606-609 100

607-621 88n

613 88n

619 88n

627-633 133

631 114n

631-633 104

637-700 65 67

637 ss 82

639-700 102

655-656 7 67

696-697 67 96

696-700 84n 96

707-709 51 113

707-711 38

709 51n

712-724 112

717 38

719 38

727-728 51

735 68n

735-814 102

735-821 65

741 50

749-754 5

755 50

757 50

760 52 68n

762-771 68

763 68

763-814 5 68n 117

769-771 68

772 68

772 ss 68

772-814 7

772-880 68

781-797 68

798-814 68 84n

801-804 69

811 ss 68

815-821 83

815-874 6

821 ss 96

822-1088 6

822-873 6

822-874 83 83n

829 86n

831 86n

840 86n

841-842 84

847-854 85

848 86n

851 85

852-853 85

855 86n

859 86n

861-866 106

867-872 106

867-874 107n

875-821 69

875-885 65 69

886-909 69 107n

887-909 6

910 6

910-921 69

910-1015 107

922-1015 6 107

929-931 107

932 107

933 107

176

934 107

935 108

938 114n

940 114n

947-949 108

953-955 108

955-957 108

959-963 108

963 ss 108

964 114n

964-971 108

967-971 112

967-969 108

968 114n

984-994 112

986-994 122

994-995 113

996-1000 44

1001-1006 7

1002-1008 108

1016-1038 69

1016-1041 6

1019-1020 69

1049-1051 109

1061-1062 109

1078-1080 111

1087-1088 7

1088-1108 6

1089 110

1089-1093 110

1089-1428 6

1092 110

1093 110

1094 110

1094-1097 110

1101-1105 110

1111-1112 110

1111-1145 6

1127 86n 103

1135 102

1145 114n

1146-1152 6

1146-1153 110

1153-1154 110

1163-1426 6

1164-1171 11

1164-1172 99

1169-1171 58

1186 102

1189 86n

1199 114n

1202 58

1208 114n

1219-1220 58

1219-1227 58

1220 58

1221-1222 58

1223 58

1225 58

1232 59

1234 59

1247-1310 110

1248 59

1250 59

1252 59

1253 86n

1254 59

1258-1261 110

1262 ss 110

1262-1310 102-103

1264 86n

1279-1280 110

177

1281-1290 112

1295-1298 111

1303-1310 8

1307-1309 86n

1310 105

1311-1319 8

1314-1339 8

1324 114n

1340-1344 8

1347-1351 111

1349-1357 155

1364 105

1378 ss 111

1386-1388 132

1392-1393 102

1393 86n

1395-1402 133

1397 ss 58

1398 114n

1402 114n

1408-1409 133

1412-1417 96

1423-1424 105n

Medea

516-519 67n

Orestes

211-306 109n

1225-1242 44n

735 58n

Homero

Ilias

5392ndash397 1n

5403-404 1n

18119 101n

21214-212 101n

Marco Aureacutelio

Meditationes

440 ss 21n

449 31n

Oviacutedio

Metamorphoses

9134 ss131n

Piacutendaro

Nemean

322 95n

Seacuteneca

Ad Lucilium Epistolae Morales

2 118n

136 25n

244 136n

246-8 136n

2417 23n

2418 23n

2420 79

2421 79n

242284 135n

2423 ss 74n

2425 139

269-10 34n

2610 134n

30 138n

3015 139

518-9 31n

544-5 23n

5835-36 34n

178

5836 137n

652 17n

655 27n

6524 22

665 27 27n

696 73n

704 136

705 136

7011-12 137n

7014-15 136n

7018 136

7020-26 138

714 31n

715 31n

715 ss 115n

7136 25n 33n

7710 134n

7712 78n

7713 78

7720 135n

781ss 135n

8915 25

9225 131n

9230 ss 35n

9234 150n

937 72

938 72

965 31n

981516 135n

101 33n

1014-5 33n

10110 71n 72n

10223 22 23n

1043 135n

1043-4 35n

1064 18n

1065 47n

1065-10 17n

1066 29n

12018 79

12022 24n

Consolatio ad Marciam

267 22n

482-3 149n

662-3 151n

267 22n

Consolatio ad Polybium

113 34n

De Clementia

1252-3 55n

De Ira

181 26n

313-5 140n

321 ss 140n

341-3 140n

336 25n

De Prouidentia

21 ss 31n

210 34n

58 79

De Tranquillitate Animi

123 32n

De Vita Beata

20 50n

179

Hercules Furens

1 86

1-2 87 87n

1-5 13

1-18 86

1-124 86

2 87

3 87

3-4 87

4 87

4-5 87

5 87

6-18 87

6-21 116

6-26 118n

12 87

13 87

19 87 89

19-21 87

21 89

19-63a 86 87

21-22 87

22-26 87

23 92

23-26 116

27 88 132

27-29 88

27-42 87

28 86 88 132

29 88 91

30 91

30-31 115

30-32 87n

30-33 115

32 115

33 87

33-35 115n

34 132

34-35 91 115

35 88 115 132

37-40 115

39 115

40 80 91

42 115 115n

43-44 115n 116

44-46 115

45-46 116

46 116

46-48 123

47 ss 121

48 88

49 88

50 88

51 88 116

51-52 88 116

54 122

57 116

58 114n 116

61 88

63 89

63b-124 86 89

64-65 89 128

68 116

75 89 132

77 132

79-83 128

84-85 117

85 90 91

86 ss 128

89-91 90

90 90

90-91 90

180

90-99 90

91 90

91-92 90

92 90

93 90

95 90

96 90

96-98 90

98-91 90

97 88

99 91 132

100 91

100-109 91

101 91

102 91

103 91

104 91

109 91

109-112 91

110 91

112 89 91

112-117 92

114 92 114n

116 92

116-117 92

119 92

120-121 92

121 92

122 92 114n

123 91 92

125-136 70

125-161 70

125-201 121

125-204 70

137-161 71

159-160 71

160 ss 131

161-185 70-71

162-180 71

173-179 71

175 71

175-176 71

175-19832

178 ss 72

178-180 71

181-204 72

183-184 71

186 117

186-187 154

186-201 71

188-190 72

192-196 117

192-201 73

199 73 82

200 73 82

201 73 81 117 154

202 46

202-204 49n 71 83

205 49

205-278 39 39n 49

205-308 39n

205-331 48

206 40n

207-209 40n

209-213 32n 39 155

209-215 118

221 114n

215 ss 117

216-222 39

247 77n 114n

247-248 118

249-251 40

181

251 40

251-252 54 117

251 ss 52

254 52

265-267 118

267 52

269 52

271-276 52

272 52 114n

273 118

274 52

275-278 118

277-278 43

278 118n

279 49 114n

279-280 119

279-308 39n 45 49 132n

279 ss 45

280 119

280-281 119

281 119

282 119

282-283 119

283 119

284-286 121

286-288 119

290 119

290-293 119

292-293 119

294-294 119

296-298 45

299-302 45

303-305 46

305-308 46

306-307 46

309-310 46 49n

311 46

312-314 118

314 46

314-316 46

316 46

325 119

327-331 48

329-331 53

332 56n

332-335 53

332-340 121

332-341 54

332-357 53

337-338 53

340-341 54

340-342 54

341-342 46

341-344 54

345 56n

350 46

350-351 45

350-352 121

352-353 55

354-355 39

354-357 53n

354-355 39

355 46

358 55

362-369 55

368-369 121

371 46

372-373 46

373-374 47

375 47

376 47

377-378 47

182

379 47 56n

379-380 47

380 47

381 47

382-383 47

384 55 56

384-396 118n

386-395 55

395 56

395-396 55

397 46

397-398 119

398 56n

399 55

399-402 54

400 55 56n

401 55

406-407 121

411 56n

412 47

413 47

414 47 56

415 48

415-417 48

417 48

418 48

421 48

423 120

426 48

429 45 50

430 119

434 120

435 119

437 120

438 120

442 114n

444-446 120

445-446 120

449-476 118n

469 114n

477-480 120

478 121

489-490 56n

494 56

495-500 45

501-508 121

501-509 56

511-515 56

512 56

513 56

518 56n

518-519 56

520-523 122

523 122

524 73

526 73

527-528 74

528 74 114n

529 74

530-532 74

531-546 74

536 74

538 77n

540-541 74

544 74

547-549 74

547-591 74

548 74 76

551 74

554 74

558-559 75

560-565 75

183

566 114n

566-567 76

566-568 75

569-539 82

569-591 75

570 75

588-589 117

590-591 75

591 117

592 ss 145

592-613 124

592 ss 122

595-596 76

599-603 76

603-604 144

604-606 123

606-615 144

609-610 122

613 144

614 114n

614-615 122

624-625 114

625 114n

626-628 123

626-640 123

629 56n

629 ss 145

631 123

631-633 144

631-640 123

633 123

634-635 123

634-636 123n

636-637 144

637 123

637-638 60

638-639 124

638-640 144

639-640 124

640-644 144

643-644 60

644 60

646-649 60

662-759 60

662-806 88n

689-696 60n

731-734 60 60n

735-736 60

739-745 60

745-747 60

762-827 61

772 61n 77n 117

773-775 61n 144

775-777 60n

778-793 61

792-793 61n

797-805 144

804-806 61

807 114n

821-974 12

827-829 70n

830-831 77

830-833 77

830-894 76

834 77n

835-863 88n

836 77

837 78

838 77 78

838-839 77

838-874 80

838 ss 78

184

839 77

840 77

840-841 77

842-847 77

845 78

846 77

848-849 77

849 78

849-854 78

851 78

852 78

853 78

867 79

872 78 79

874 79

875-892 117

875-894 80

882 79n 114n

891-892 79

894 80

895-899 121

895 ss 124

898-899 124

900-908 124 144

907-908 124

914 114n

918-919 124 144

919 114n

920 125

920-921 144

920-924 41 125 144

921 125

922 125

923 125

924 125

925-926 41

926 41

926-927 126

926-937 121

926-939 144

931-935 144

931-939 126

937-938 144

937-939 126

939 ss 145

939-944 126 127

939-989 144

940 128

940-941 128

942-943 144

944-952 128

953 129

954 129

955 ss 145

955-959 128

957-973 127

960 144

960-961 128

967-968 128

972-973 128

973-975 129

974 129

975 129

976-981 128

977-978 144

980-981 144

983 129 144

984 129

987 144

987-991 121

987 ss 129

989-991 144

185

989-1038 144

991 130

991-995 129

996 144

996-1002 144

998 114n

1002-1004 122

1004 129

1005 130

1005-1007 122 129

1010-1011 144

1013 130

1018-1020 144

1021 129 130

1026-1027 41n

1027 42

1028 42

1032-1034 83

1033 42 130

1034 42 114n

1038 42

1039 ss 145

1039-1042 130

1040 114n

1044 114n

1049 130

1050 ss 145

1051-1052 130

1053 130

1053-1137 83

1054 80

1054-1137 80

1063 130

1063-1065 80

1065 81

1066-1077 81n

1066 81n

1080 130

1081-1086 42

1083 130

1088 130

1092 130

1093 81

1094-1099 81

1095 130

1096 130

1098 114n 130

1099 130

1103 114n 130

1121 130

1122 130

1134 130

1136 81

1138 144

1138 ss 145

1138-1153 131

1138-1186 144

1139 144

1147-1148 144

1149 144

1153 144

1156-1157 144

1159-1161 131

1160 ss 131

1167 132

1167-1168 131

1173-1176 131n

1179-1186 131n

1187 131n

1188 131n

1189-1190 131n

1192 114n

186

1192-1200 144

1193 114n 132

1193-1194 144

1193-1195 131n

1193 ss 145

1196 114n 132

1198-1199 131n

1199-1200 132

1202-1218 144

1202 ss 145

1207-1208 144

1211 114n

1216-1217 144

1218 144

1220 132

1221-1223 144

1221-1236 144

1226 144

1227-1228 144

1229-1230 144

1231 144

1237-1238 148n

1239 147

1240 ss 145

1242-1243 144

1244 114n

1253-1254 43

1259-1261 147

1260 114n

1269-1270 144

1272-1277 63

1274-1277 147n

1276-1277 148

1277 132

1277-1294 144

1279-1282 144

1278 144

1280 132 148

1281-1282 148

1283-1284 144

1281-1282 144

1284-1294

1295-1296 144

1297 114n

1308 42

1314 144

1314-1319 144

1315 148

1316 ss 145

1319 114n

1321-1341 144

1323 144

1328 114n

1334 144

1341-1344 63

Hercules Oetaeus

1-98 146

7-8 128n 145

8-10 145

10-13 145

11 145

13-98 145

13 128n 145

16-17 145

32-33 128n

51 144

53-55 145

54-55 140n

55-56 62n 140

56-57 144

187

61-62 144

63-64 145

73-74 144

76-79 128n

77 145

87 145

93-94 144

93 144

95-96 144 145

97-98 128n 145

142 140

155 140

166 140

172 140

749-751 126n

761-762 139n

766-770 139n

786-805 146

798-802 140n

808 141n

808-822 141

810-822 146

813-816 145

825-835 146

1131-1150 145

1134 144

1135 145

1137-1150 145

1141 145

1148 145

1161-1206 145

1171 144

1176-1177 144

1177-1178 144

1181 144

1185-186 144

1191-1206 144

1197-1198 145

1218-1278 145

1218 144 145

1231-1232 144

1232 144

1233 145

1234-1247 145

1240-1243 145

1253 144

1260-1261 144

1260 145

1264 144

1265 145

1270-1271 145

1276-1277 145

1290-1336 145

1302 144

1304-1305 145

1321 145

1322-1323 145

1324 144

1325 144

1329-1330 145

1345-1349 145

1359-1373 145

1360 144

1364-1365 144

1367-1368 145

1371-1372 144

1377-1395 145

1379 145

1389-1392 145

1396-1398 141n

1399-1402 141n

1399-1401 145

188

1400 145

1402 145

1404 141n

1432-1447 145

1435 144

1445-1446 144

1448 144

1449 141

1449-1450 141

1449-1455 141

1450 141

1452 141 144

1453 141

1454 141

1459-1464 145

1459-1463 141

1459 141 142 144

1461-1462 142

1461-1463 146

1462 142

1472-1487 146

1480 142n

1481-1482 148

1515-1517 150

1609 150

1609-1755 146

1610-1611 149

1668-1679 149

1681-1698 149

1683-1684 149

1685-1687 149

1695-1715 150

1717-1726 149

1728-1730 149

1741 149

1741-1743 149

1746 149

1753-1755 150

1835 150

1942-1943 150

1963-1971 150

1963-1976 22n 146

1968 150

Medea

19-20 92

301-302 72n 76

307 76

Naturales Quaestiones

1praef5 62n

3praef10-17 72n

63210 32n

Phaedra

1143 ss 76

1149-1153 76

Tiestes

1 ss 122n

Troades

171 ss 122n

Sexto Empiacuterico

Aduersus Mathematicos

959 ss 27n

10218 19n

Soacutefocles

Electra

1066-1081

189

Vergiacutelio

Aeneis

6274-289 60n

6395-396 61n

6413-414 60n

6 432-433 60n

190

INDEX NOMINVM

Anfitriatildeo

Heracles

3 5 6 7 8 12 36n 36-38 38n

39n 42 43 44 44n 45 48 49 50

51 51n 52 58 64 65n 69 84

84n 86 87n 88 88n 95 96 97n

99 100 101 102 103 104 107

107n 108 109 110 111 111n

112 113 113n

Hercules Furens

3 12 12n 29 32 39n 39-43 41n

43n 46 49 49n 52 53 53n 54

55 56 60 61 71 73 74 77n 83

98 113 114 114n 117 118 118n

120 121 122 123 124 127 129

130 132 147 148 153 154

Anteu

120 120n

Apolo

Bibliotheca

10

Heracles

65 67

Hercules Furens

76 118

Orestes

59n

Aquiles 100 122n

Atena 7 96 107 107n 108 109

Augeu 117n

Baco 118n

Busiacuteris 120 120n

Castor 116n

Ceres 45

Cicno

Heracles

66

Hercules Furens

120

Cloto 139n

Creonte

Heracles

42 43 50 51 97

Hercules Furens

40 42 47

Coro

Heracles

3 5 7 37 50 51n 57 63-69 65n

68n 82 83 84 84n 96 97n 99 102

106 107 107n 111n 118n

Hercules Furens

191

32 33 42 42n 46 49n 60 70n

70-83 74n 77n 88n 113 117 118

118n 121 156 157

Hercules Oetaeus

140

Medea (Seacuteneca)

72n

Daacutenao 69n

Dario 44n

Eacutedipo 29

Egipto 69 n

Eleacutectrion 110n

Eacuterice 120 120n

Eriacutenias 105 128

Euristeu

Bibliotheca

10

Heracles

65 84n 101 104n 108 112 129n

132 154

Hercules Furens

73 77 120

Ecircurito 120

Filomela 69

Geacuterion

Heracles

66

Hercules Furens

120 120n

Hera 8 10 84 54 84n 86 92 101 102

103 107 109 109n 111

Heacuteracles v 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11

12 29 36n 37 38 38n 39 40 41 43 44

44n 45 45n 51 51n 55n 57 58 59 64

65 66 67 68 68n 69 81 83 84 84n 85

88n 92 93 94n 94-113 95n 97n 104n

105n 106n 107n 109n 111n 114n 120n

128 132 133 153 154 155 155n

Heacutercules v 3 4 12 12n 13 21n 22n 27

28 29 30 32 39 40 41 41n 42 43 43n

45 46 48 52 55 57 59 59n 60 61 61n

62 67 71 71n 72n 73 74 74n 75 76

77 77n 80 80n 82 83 87 88 89 90

90n 91 92 93 94 98 113-133 114n

115n 116n 117n 118n 120n 121n 122n

123n 126n 126n 130n 132n 139 139n

140 141 141n 142 142n 143n 144

144n 145 146 149 149n 150 151 152

153 154 155 156 157

Iacuteole

Hercules Furens

120n

Hercules Oetaeus

140 150

Iacuteris 2n 3 5 6 7 8 12 83-85

192

Juno 2n 3 11 13 29 86-93

Juacutepiter

Hercules Furens

12 13 30 39 41 45 49 75 87

89 92 116 116n 120n 121 124 126

126n 151

Hercules Oetaeus

128n 143n 152

Laio 29

Leda 116

Licas 140 141 141n 142

Lico

Heracles

3 5 6 7 9 11 12 36 36n 37

38 38n 39n 40 42 43 44 44n

45 48 49 50-52 51n 57 57n

65 68n 84n 85 94 95 97 97n

109n 111 112 113 154

Hercules Furens

3 12 29 39 40 41 42 46 47

48 49 50 51n 52-57 53n 55n

56n 59 60 73 90n 98 113

114n 117n 118n 119 120 120n

121 122 123 124 125 133 138

154 157

Lissa 2n 3 6 7 12 36n 65 68 69 83-85

92 93 97 97n 102 105 106 107n 108

109 154 155

Nesso 142 143 143n

Medeia

Hercules Furens

92

Medea (Euriacutepides)

67n

Meacutegara

Heracles

3 5 6 7 8 12 36 36n 37 37n

38 39 43-45 45n 48 49 51 51n

52 57 58 64 69 84 84n 86 96n

97 97n 99 103 104 104n 107n

108 109 111 112 113 154

Hercules Furens

3 12 12n 29 39n 40 41 41n 42

45-50 49n 53 53n 55 55n 56

57 71 73 76 83 114n 118 118n

119 121 123 129 131 132n 141

154 156

Mensageiro iv 2n 3 6 12 42 69 93 94

97n 106 106n 107 107n 108 109 113

155

Ocircnfale 121

Poacutelux 116n

Procne 69n

Tacircntalo 122

Tereu 69n

Teseu

193

Heracles

3 6 7 8 10-11 12 37 58-59 63

75 96 97 97n 98 99 102 105n

110 111 154 155

Hercules Furens

3 12 12n 41 42n 59-63 60 61

61n 62 63 70n 88n 113 114n

123 123n 132 133 148 149 154

Phaedra

76

Teacutespio (rei) 10

Tiacutendaro 116n

Tisiacutefone 129

Zeus 5 7 8 10 12 36 36n 38 38n 39n

44 45n 52 67 68 68n 69n 84 84n 87n

94 95 95n 96 97 102 110 112

Page 5: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 6: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 7: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 8: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 9: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 10: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 11: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 12: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 13: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 14: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 15: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 16: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 17: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 18: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 19: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 20: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 21: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 22: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 23: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 24: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 25: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 26: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 27: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 28: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 29: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 30: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 31: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 32: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 33: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 34: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 35: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 36: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 37: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 38: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 39: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 40: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 41: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 42: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 43: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 44: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 45: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 46: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 47: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 48: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 49: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 50: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 51: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 52: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 53: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 54: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 55: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 56: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 57: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 58: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 59: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 60: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 61: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 62: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 63: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 64: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 65: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 66: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 67: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 68: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 69: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 70: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 71: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 72: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 73: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 74: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 75: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 76: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 77: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 78: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 79: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 80: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 81: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 82: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 83: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 84: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 85: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 86: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 87: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 88: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 89: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 90: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 91: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 92: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 93: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 94: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 95: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 96: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 97: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 98: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 99: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 100: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 101: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 102: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 103: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 104: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 105: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 106: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 107: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 108: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 109: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 110: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 111: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 112: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 113: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 114: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 115: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 116: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 117: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 118: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 119: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 120: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 121: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 122: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 123: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 124: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 125: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 126: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 127: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 128: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 129: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 130: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 131: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 132: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 133: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 134: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 135: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 136: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 137: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 138: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 139: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 140: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 141: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 142: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 143: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 144: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 145: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 146: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 147: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 148: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 149: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 150: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 151: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 152: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 153: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 154: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 155: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 156: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 157: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 158: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 159: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 160: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 161: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 162: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 163: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 164: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 165: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 166: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 167: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 168: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 169: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 170: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 171: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 172: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 173: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 174: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 175: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 176: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 177: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 178: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 179: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 180: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 181: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 182: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 183: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 184: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 185: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 186: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 187: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 188: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 189: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 190: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 191: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 192: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 193: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 194: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 195: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 196: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 197: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 198: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 199: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 200: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 201: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES
Page 202: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de … · 2010. 6. 23. · UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES