universidade de lisboa faculdade de letras departamento de história

488
UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA A INSTITUCIONALIZAÇÃO DO ENSINO DA NÁUTICA EM PORTUGAL (1779-1807) Nuno Alexandre Martins Ferreira DOUTORAMENTO EM HISTÓRIA Especialidade História dos Descobrimentos e da Expansão 2013

Upload: lenhi

Post on 07-Jan-2017

229 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

  • UNIVERSIDADE DE LISBOA

    FACULDADE DE LETRAS

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    A INSTITUCIONALIZAO DO ENSINO DA NUTICA

    EM PORTUGAL (1779-1807)

    Nuno Alexandre Martins Ferreira

    DOUTORAMENTO EM HISTRIA

    Especialidade Histria dos Descobrimentos e da Expanso

    2013

  • UNIVERSIDADE DE LISBOA

    FACULDADE DE LETRAS

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    A INSTITUCIONALIZAO DO ENSINO DA NUTICA

    EM PORTUGAL (1779-1807)

    Nuno Alexandre Martins Ferreira

    Tese orientada pelo Professor Doutor Francisco Contente Domingues,

    especialmente elaborada para a obteno do grau de doutor em Histria,

    Especialidade Histria dos Descobrimentos e da Expanso

    2013

  • Solvitur ambulando

    No deixemos que os nossos mortos morram.

    Parece uma frase sem efeito, mas , em rigor, uma condio de vida.

    Porque se deixarmos morrer os mortos a sua contribuio para a vida que estamos

    rejeitando.

    Jos Saramago

  • Para o meu infante Henrique,

    feliz herdeiro do passado, em nome prprio.

  • Agradecimentos

    Tendo sido esta a navegao solitria de um marinheiro de gua doce, foram feitas

    escalas procura de apoio e de conselhos. De entre todos aqueles que fui encontrando

    nos diversos ancoradouros em que fundeei, deixo uma palavra especial para o meu

    orientador, o Professor Doutor Francisco Contente Domingues. O seu saber, suporte e

    compreenso foram determinantes para levar este projeto a bom porto. Agradeo-lhe,

    e muito, por isso.

    tripulao das Cincias Sociais da Escola Superior de Educao de Lisboa um

    reconhecimento especial, sobretudo ao Alfredo Dias e Maria Joo Hortas. Une-nos

    uma amizade que tem sido importante no meu trajeto profissional e acadmico.

    Aos comandantes Antnio Costa Canas e Jos Manuel Malho Pereira, um muito

    obrigado pelas dicas e materiais disponibilizados, bem como ao Carlos Manuel

    Valentim, camarada de Faculdade e de encontros cientficos, pelas frutuosas trocas de

    impresses sobre o ensino nutico.

    Agradeo Marisa Alves, rika Simone Dias e ao Hlder Pinto a descomprometida

    facultao de trabalhos da sua autoria.

    Em termos institucionais, trs agradecimentos: ao Instituto Politcnico de Lisboa,

    pelo apoio dado a este trabalho com a atribuio de uma bolsa PROTEC; Escola

    Superior de Educao de Lisboa, na pessoa da sua presidente, Cristina Loureiro, pelas

    condies que me tem dado para fazer o que mais gosto, ensinar; ao Arquivo

    Histrico da Biblioteca Central da Marinha, na pessoa da Dr. Isabel Beato. Foram

    muitas as horas a passadas mergulhado em documentao. A simpatia e o prstimo

    de todos os seus funcionrios facilitaram o ritmo da singradura.

    Para os meus pais e irmo, primeiros portos de abrigo, um reconhecimento especial.

    O vosso apoio permitiu que o trabalho seguisse de vento em popa.

    Finalmente, a mais importante palavra para a minha mulher, Antnia. Neste ltimo

    ano, o nosso excelso amor foi salpicado pela saudvel competio de se saber quem

    entregaria a tese de doutoramento primeiro. Ganhmos ambos. Este trabalho , pelo

    apoio incondicional e por tudo o que j vivemos na companhia do Henrique, tambm

    teu.

  • A pesquisa e a redao da tese contaram com o contributo do Programa de Apoio

    Formao Avanada de Docentes do Ensino Superior Politcnico PROTEC

    (SFRH/PROTEC/68010/2010)

  • Resumo

    O objetivo desta tese estudar a institucionalizao do ensino da nutica em Portugal

    entre 1779, ano da criao da Academia Real de Marinha, e 1807, ano da partida da

    Corte para o Brasil.

    Na segunda metade do sculo XVIII, as alteraes verificadas no ensino nutico

    enquadraram-se na reforma da educao iniciada por D. Jos I e desenvolvida por D.

    Maria I. A lio dada pelo professor de nutica, o cosmgrafo mor, desapareceu, bem

    como o cargo, para dar lugar a uma instruo mais profissional, ajustada numa

    estrutura potenciada pelo aparecimento de academias especializadas para o efeito e

    que seriam as precursoras do ensino politcnico em Portugal. O primeiro passo para a

    mudana de paradigma no ensino da pilotagem seria dado na cidade do Porto com a

    criao de uma aula de nutica, em 1762, e, mais tarde, surgiam em Lisboa a

    Academia Real de Marinha (1779) e a Academia Real dos Guardas Marinhas (1782)

    e, no Porto, a Academia Real de Comrcio e Marinha (1803). Para alm das cidades

    da Metrpole, nos primeiros anos do sculo XIX, o ensino nutico portugus conhecia

    j uma geografia que se estendia ao Estado da ndia e ao Brasil.

    Na primeira parte, apresentar-se- o contexto das mudanas operadas no ensino

    nutico luz das reformas da segunda metade do sculo XVIII, com destaque para o

    fim da lio do cosmgrafo mor e da Aula da Esfera, e para a reforma da

    Universidade de Coimbra.

    Na segunda parte, abordar-se- a criao das academias, os seus planos de estudos,

    corpo docente e dinmicas de funcionamento. Finalmente, abordar-se- a questo da

    duplicao ou fuso das academias de Lisboa e a transferncia da Corte portuguesa

    para a colnia brasileira, facto que viria a influenciar a estruturao do ensino nutico

    nas primeiras dcadas do sculo XIX.

    Palavras-chave

    Ensino da Nutica

    Sculos XVIII e XIX

    Cosmgrafo Mor

    Academias

  • Abstract

    The aim of this thesis is to study the institutionalization of nautical teaching in

    Portugal between 1779, the year of creation of the Royal Marine Academy, and in

    1807, the transfer of the Court to Brazil.

    In the second half of the 18th

    century, the changes in nautical teaching emerged within

    the education reform initiated by King Joseph I and developed by his daughter, Mary

    I. The ccosmographer-in-chief lesson disappeared to give place to a more professional

    structure enhanced by the emergence of academies, created specifically for this

    purpose, which would be the precursor of polytechnic education in Portugal.

    The first step in pilotage teaching was given in Oporto with the creation of a nautical

    class in 1762 and later on with the appearance in Lisbon of the Royal Marine

    Academy (1779) and the Royal Marine Guards Academy (1782) and, in Oporto, of

    the Royal Academy of Marine and Commerce (1803). In addition to the cities of

    Metropolis, by the early years of the 19th

    century the portuguese nautical teaching

    already knew a geography that extended to the State of India and Brazil.

    The first part will present the context of the changes of nautical teaching according

    with the reforms of the second half of the 18th

    century, especially the end of the

    cosmographer-in-chief lesson and of the Sphere Class, and the reform of the

    University of Coimbra.

    The second part is dedicated to the creation of the academies, their curricula, teachers,

    and dynamic operation. Finally, in this part, we present the issue of duplication or

    fusion of the academies of Lisbon and the transfer of the Portuguese Court to

    brazilian colony, a fact that would influence the structuring of the nautical teaching in

    the early decades of the XIXth

    century.

    Keywords

    Nautical Teaching

    XVIIIth

    and XIXth

    Centuries

    Cosmographer-in-chief

    Academies

  • Siglas

    AHM Arquivo Histrico Militar

    AHMCUL Arquivo Histrico do Museu de Cincia da Universidade de Lisboa

    AHU Arquivo Histrico Ultramarino

    ANTT Arquivo Nacional da Torre do Tombo

    ARM Academia Real de Marinha

    BCM Biblioteca Central de Marinha

    BCM-AH Biblioteca Central de Marinha Arquivo Histrico

    BNP Biblioteca Nacional de Portugal

    CGM Companhia de Guardas Marinhas

    CP Coleco Pombalina

    CU Conselho Ultramarino

    MNE Ministrio dos Negcios Estrangeiros

    ORM Observatrio Real da Marinha

    SRMMG Sociedade Real Martima, Militar e Geogrfica

  • ndice

    Introduo ................................................................................................................ 1

    Objetivo da investigao ........................................................................................ 1

    Metodologia ........................................................................................................... 3

    Estado da arte ......................................................................................................... 6

    Estrutura da tese ................................................................................................... 21

    PARTE I

    A nutica no contexto das reformas da segunda metade do sculo

    XVIII

    1. O tempo da transio entre o fim do cargo de cosmgrafo mor e o

    nascimento das escolas de ensino nutico ....................................................... 27

    1.1 Os espaos tradicionais de ensino da arte de navegar: a lio do cosmgrafo

    mor e a Aula da Esfera ................................................................................... 30

    1.2 O papel do marqus de Pombal na renovao educativa nacional ................ 52

    1.3 Estrangeiros, estrangeirados e academias cientficas: a influncia das prticas

    europeias em Portugal no sculo XVIII ......................................................... 65

    1.4 O fim do modelo pedaggico da Companhia de Jesus e a criao do Colgio

    dos Nobres ..................................................................................................... 85

    2. O ensino nutico luz da reforma da Universidade de Coimbra (1772) .... 103

    2.1 A Faculdade de Matemtica e a incluso da pilotagem como disciplina .... 106

    2.2 A extino do cargo de cosmgrafo mor ..................................................... 117

    3. A arte de navegar ao servio da afirmao dos interesses do Estado ......... 129

    3.1 A criao do Corpo de Guardas Marinhas (1761) ....................................... 132

    3.2 O aparecimento de uma aula de nutica no Porto (1762) ............................ 138

    3.3 Escolas de formao de pilotos no Estado da ndia e no Brasil ................... 143

    3.3.1 Goa e Macau ......................................................................................... 143

    3.3.2 A escola de pilotos prticos de Belm do Par ..................................... 161

    PARTE II

    A nova organizao do ensino da nutica (1779-1807)

    1. Alguns aspetos acerca do ensino nutico europeu ........................................ 177

    1.1 Frana ........................................................................................................... 178

    1.2 Inglaterra ...................................................................................................... 189

    1.3 Espanha ........................................................................................................ 196

  • 2. A criao das academias de Marinha em Portugal....................................... 205

    2.1 A Academia Real de Marinha (1779) .......................................................... 209

    2.1.1 A lei de 5 de agosto: o nascimento de um novo ensino nutico ........... 209

    2.1.2 O ano de 1789: tempo de balano e de reivindicao ........................... 218

    2.1.3 Polmica entre professores e pilotos ..................................................... 227

    2.1.4 O problema da indisciplina ................................................................... 240

    2.2 A Academia Real dos Guardas Marinhas (1782) ........................................ 249

    2.2.1 A herana da viso de D. Joo da Bemposta ........................................ 249

    2.2.2 Do nascimento em 1782 aos estatutos de 1796: as diferentes perspetivas

    em torno do seu funcionamento .............................................................. 257

    2.2.3 A teoria na prtica: a importncia dos embarques ................................ 277

    2.2.4 Nos meandros do funcionamento escolar: dificuldades, indisciplina e

    incumprimento ........................................................................................ 291

    2.3 A Academia Real de Comrcio e Marinha da Cidade do Porto (1803) ....... 309

    3. O corpo docente................................................................................................ 327

    3.1 Caracterizao .............................................................................................. 328

    3.2 Desempenho e seus problemas .................................................................... 353

    3.3 Produo e sociabilidade cientficas ............................................................ 365

    3.4 Manuais de estudo........................................................................................ 384

    4. Duplicao ou fuso? A discusso em torno da reestruturao das

    academias de Lisboa ....................................................................................... 401

    5. A Corte no Brasil e o desmantelamento do ensino nutico em Portugal .... 421

    Notas finais ........................................................................................................... 437

    Fontes e Bibliografia ............................................................................................ 443

    Anexos [CD-ROM]

  • ndice de quadros, figuras e grficos

    Quadro A A matemtica na proposta de Antnio Ribeiro Sanches para o colgio

    militar e para o Colgio dos Nobres ......................................................... 97

    Quadro B Horrio proposto por Bzout para o funcionamento do curso matemtico

    francs ..................................................................................................... 186

    Quadro C Estrutura do curso matemtico da Academia Real de Marinha de acordo

    com a lei de 5 de agosto de 1779 ............................................................ 212

    Quadro D Horrio escolar e disciplinas para instruo da Companhia dos Guardas

    Marinhas do Departamento de Rochefort (Frana) ................................. 251

    Quadro E Comandantes da Companhia dos Guardas Marinhas (1782-1807) ........ 255

    Quadro F Estrutura do curso matemtico da Academia Real dos Guardas Marinhas

    ............................................................................................................................ 270

    Quadro G Corpo docente com atividade letiva nas duas academias de Lisboa ...... 328

    Quadro H Corpo docente da Academia Real de Marinha....................................... 330

    Quadro I Corpo docente da Academia Real dos Guardas Marinhas ...................... 331

    Quadro J Corpo docente da Academia Real de Marinha e Comrcio da Cidade do

    Porto ........................................................................................................ 332

    Quadro K Produo cientfica dos professores das academias nuticas (Lisboa e

    Porto) ....................................................................................................... 369

    Quadro L Professores das academias nuticas de Lisboa e Porto scios da Academia

    Real das Cincias de Lisboa .................................................................... 371

    Quadro M Trabalhos apresentados pelos professores das academias nuticas de

    Lisboa na Sociedade Real Martima ....................................................... 378

    Figura 1 Genealogia dos cosmgrafos mor da famlia Pimentel ............................ 121

    Figura 2 Sociabilidade cientfica entre crculos acadmicos .................................. 381

    Grfico 1 Cartas de piloto emitidas entre 1743 e 1788 ........................................... 126

    Grfico 2 Cartas de piloto emitidas entre 1743 e 1788 (por examinador) .............. 127

  • Introduo

    Objetivo da investigao

    O trabalho aqui apresentado tem como objetivo analisar a organizao do ensino da

    nutica a partir da segunda metade do sculo XVIII, com especial incidncia no seu

    ltimo quartel e na primeira dcada do sculo XIX. A nutica, ou arte de navegar,

    ganhou neste perodo um protagonismo maior luz da profissionalizao das

    atividades ligadas ao mar, e de acordo com as expetativas de um Estado moderno que

    criou condies pedaggicas para o adestramento de um corpo de oficiais para a

    Marinha e para o Exrcito.

    Do ponto de vista do enquadramento da organizao do ensino da nutica, a partir da

    segunda metade do sculo XVIII, com especial incidncia no seu ltimo quartel e na

    primeira dcada do sculo XIX, privilegiaram-se alguns aspetos que, julgamos ns,

    estavam pouco estudados: o estudo do contexto do aparecimento das academias em

    que a nutica ocupou lugar central enquanto disciplina do saber ligada s cincias

    exatas, nomeadamente matemtica, e de acordo com o nascimento do ensino

    politcnico em Portugal; a anlise das mudanas ocorridas no domnio do ensino da

    arte de navegar para o perodo em questo; e a caracterizao das academias, tendo

    em conta as condies da sua criao, a composio do corpo docente, o perfil dos

    alunos e os planos de estudo preconizados.

    A longa histria da arte de navegar tambm a histria da relao entre duas

    dimenses que muitas vezes entraram em confronto direto e at em conflito: o saber

    terico do gabinete e a prtica no mar. So hoje sobejamente conhecidos os contornos

    do relacionamento do grande matemtico Pedro Nunes, primeiro cosmgrafo mor,

    com os homens do mar do seu tempo com as honrosas excees de D. Joo de

    Castro e de Martim Afonso de Sousa , ilustradores de uma dialtica que, desde a

    primeira metade do sculo XVI, manter-se-ia viva nos tempos posteriores.

    Foi este balano entre o conhecimento cientfico, de raiz matemtica, e a experincia

    dos pilotos, que nos aliciou para trabalhar a temtica do ensino da nutica, sobretudo

    no que toca transmisso e aprendizagem de conhecimentos tericos que, uma vez

  • 2

    ministrados em terra, apenas podiam ser validados nos conveses dos navios em pleno

    mar. Do nosso contributo para esta rea de estudo conta-se uma investigao centrada

    na figura e obra do cosmgrafo mor Lus Serro Pimentel (1613-1679) que originou

    uma dissertao de mestrado, defendida na Faculdade de Letras da Universidade de

    Lisboa, em 2009. Contributo, alis, modesto, tendo em conta que est ainda muito por

    fazer no domnio da histria da nutica portuguesa, particularmente no que diz

    respeito transmisso escolar dos fundamentos da navegao.

    Reproduzimos aqui as palavras introdutrias de uma comunicao proferida pelo

    comandante Jos Manuel Malho Pereira (Pereira, 2007), que denunciariam a

    ausncia de trabalhos dedicados ao ensino da nutica nos sculos XVII e XVIII:

    O ensino nutico em Portugal foi uma constante da nossa histria, mesmo

    desde os primrdios da formao da nacionalidade, dada a natural vocao

    martima da nao Portuguesa que mais tarde originou a sua imparvel

    expanso a partir de meados do sculo XV.

    Esse ensino teve enormes flutuaes de eficincia e frequncia, tendo-

    se concretizado principalmente na Metrpole. Contudo, tambm no Ultramar,

    especialmente no Brasil, Macau e Goa, se organizaram escolas de nutica e

    outras matrias que permitissem preparar gente habilitada a guarnecer navios e

    fortificaes em terra.

    Mas os historiadores da nutica, tendo-se essencialmente debruado

    sobre os perodos considerados mais importantes da expanso Portuguesa, os

    sculos XV e XVI, tero aparentemente descurado os sculos seguintes, que

    ultimamente tm felizmente sido mais atentamente analisados, tendo-se

    verificado que a teoria da decadncia Portuguesa face aos outros povos

    europeus que se lhe seguiram na expanso dever ser rectificada.

    De facto, a inexistncia de um trabalho de fundo que aborde o ensino da nutica na

    segunda metade do sculo XVIII1

    , ou mesmo de um trabalho monogrfico

    inteiramente dedicado a uma das academias portuguesas de ensino da arte de

    navegar2, uma lacuna que provocou em ns uma vontade de percorrer esses mares

    por outros j sulcados mas ainda por cartografar. Na sequncia do trabalho acadmico

    dedicado a um dos cosmgrafos mor de Portugal, surgiu a hiptese de investigarmos

    o ensino nutico num perodo posterior, centrando-se a nossa ateno nas dcadas

    1 Apesar de ser uma sntese, mencione-se o texto de Domingues (2011), no qual se apresenta os

    principais aspetos que caracterizaram a evoluo da transmisso de conhecimentos da arte de navegar,

    desde a suposta escola de Sagres at ida da Corte para o Brasil, em 1807. Para qualquer estudioso

    destas matrias torna-se, pela sua amplitude cronolgica, referncia obrigatria. 2 H vinte anos, Brigola (1993) chamava a ateno para a ausncia de estudos sobre a Academia Real

    de Marinha, cujo peso institucional ocupado na histria do ensino cientfico [] valeria, por si s,

    uma extensa monografia (p. 3), situao contrria ao que era observado pela historiografia europeia.

  • 3

    finais de Setecentos e na primeira de Oitocentos, um tempo em que as mudanas no

    ensino da arte de navegar foram influenciadas pela alterao do paradigma educativo,

    na sequncia do longo perodo de domnio da Companhia de Jesus.

    Metodologia

    Em termos cronolgicos, tal como est identificado no ttulo da tese, optamos por

    estudar um perodo que se situa entre 1779 e 1807, isto , que se estende desde a

    constituio da primeira academia fundada em Lisboa em 1779 a Academia Real de

    Marinha at partida da Corte para o Brasil, em 1807. Se, do ponto de vista da

    institucionalizao do ensino nutico, esse ano de 1779 marcou o incio de uma nova

    etapa na aprendizagem da arte de navegar, a verdade que j antes, desde 1762, com

    a abertura de uma aula de nutica na cidade do Porto, apareceram sinais evidentes de

    uma agilizao do processo de transmisso de conhecimentos em novas estruturas

    pedaggicas. Assim sendo, o nosso trabalho ir fazer uma retrospetiva da fundao

    das academias, com especial enfoque, quer na aula do Porto, quer na criao de uma

    companhia de guardas marinhas que mais tarde iria dar corpo a uma academia

    prpria, em 1782, na cidade de Lisboa. A baliza cronolgica final, o ano de 1807,

    aqui admitida pelas alteraes que o ensino nutico sofreria, decorrentes do contexto

    poltico do Reino que motivou a viagem de D. Maria I, do prncipe regente D. Joo e

    respetiva Corte para a colnia brasileira. A partir de 1808, o ensino da arte de navegar

    conheceria um perodo de estagnao, com a Academia Real dos Guardas Marinhas a

    ser transplantada para a cidade do Rio de Janeiro, onde passou a funcionar de

    imediato.

    Se na poca que estudamos, do ponto de vista da arte de navegar, as inovaes

    tcnicas no caracterizaram os avanos dos navios nas suas rotas atlnticas e

    transatlnticas, a verdade que, em terra firme, a nutica conheceu importantes

    avanos no modo como foi pensada em termos pedaggicos nos reinados de Jos

    (1750-1777), e de D. Maria I (1777-1816). Neste sentido, tornou-se imperioso

    apresentar o contexto que preparou a academizao do saber nutico, cujo primeiro

    grande momento se deu com a mudana de paradigma educativo ocorrida com a

    expulso da Companhia de Jesus, em 1759.

  • 4

    A partir de ento, j sem a existncia da Aula da Esfera, a aprendizagem da nutica

    apareceria no plano de estudos do Colgio dos Nobres, fundado em 1761, mas foi na

    sequncia da reforma da Universidade de Coimbra, iniciada em 1772, que surgiria um

    primeiro plano curricular inteiramente dedicado arte de navegar, pela mo do reitor

    D. Francisco Lemos, plano esse que viria a influenciar a formao dos pilotos

    enquadrada em academias.

    Na contextualizao das mudanas operadas no mbito do ensino nutico, abordamos

    ainda a extino do cargo de cosmgrafo mor, at ento o tradicional professor da arte

    de navegar, que cederia o seu protagonismo a uma estrutura escolar mais ampla. Para

    esta transio tivemos em ateno a clarificao dos contornos da extino daquele

    cargo, aspeto este tratado pela historiografia muitas vezes de modo confuso.

    No quadro dos interesses do Estado portugus, faremos um percurso pela geografia

    colonial portuguesa, que conheceu no Estado da ndia, mais especificamente em Goa

    e em Macau, e na cidade colonial brasileira de Belm do Par, lugares onde se

    autorizou o ensino da arte de navegar, ainda que sem a expresso sentida na

    Metrpole.

    Seguir-se- uma panormica dedicada ao ensino nutico em Frana, Inglaterra e

    Espanha, com o intuito de enquadrar no tempo o nascimento e vida das academias

    portuguesas onde a nutica se ensinou. Academia Real de Marinha e Academia

    Real dos Guardas Marinhas, ambas criadas em Lisboa nos anos de 1779 e de 1782,

    respetivamente, juntamos a Academia Real de Comrcio e Marinha da Cidade do

    Porto, fundada em 1803 e herdeira da aula de nutica criada naquela cidade, em 1762.

    No plano da estruturao do ensino nutico, abordaremos o problema da duplicao

    das academias de Lisboa que, na viragem para o sculo XIX, frutificaria numa

    discusso em torno da possibilidade de fuso de ambas as instituies escolares, mas

    que no teria sequncia, por culpa dos acontecimentos de natureza poltica que

    levariam a Corte a instalar-se no Rio de Janeiro, a partir de 1808. Sobre esta

    transplantao do centro do Imprio para a colnia brasileira, optmos por analisar o

    que a historiografia escreveu acerca da preparao da viagem real fuga ou

    transferncia? e seguimos o trajeto da Academia Real dos Guardas Marinhas.

  • 5

    De acordo com as trs grandes competncias da Histria pesquisa, tratamento da

    informao e comunicao3 realizmos uma investigao em diversas bibliotecas e

    arquivos. Em termos de fontes manuscritas, para o perodo anterior

    institucionalizao do ensino nutico, encontrmos na Torre do Tombo documentao

    vria acerca dos ltimos cosmgrafos mor, bem como legislao nas chancelarias de

    D. Jos e de D. Maria I, sobretudo para a instalao das academias. De entre a massa

    documental relativa s academias de Lisboa, destaca-se o acervo existente no Arquivo

    Histrico da Biblioteca Central da Marinha. Neste se conserva um nmero

    considervel de caixas com documentao avulsa contendo informao relativa vida

    das academias e que incluem, por exemplo, vrias representaes sobre o

    funcionamento daquelas escolas, relaes de despesas correntes, processos de

    admisso e at planos semanais de servio e de instruo dos alunos. Na Biblioteca

    Central da Marinha, consultmos livros de registo dirio da Companhia dos Guardas

    Marinhas, assentos de exames dos formandos da Academia Real de Marinha, entre

    outros manuscritos com relevncia para a investigao.

    No Arquivo Histrico Ultramarino foi possvel levantar informao relativa ao ensino

    nutico existente no espao colonial, essencialmente em consultas, pareceres,

    atestados, ofcios, requerimentos e provises. Destacamos ainda, na Biblioteca

    Nacional de Portugal, o fundo dos reservados com diversos livros de registo da

    Academia Real dos Guardas Marinhas e diferentes cdices com matrias relativas

    Marinha portuguesa inclusos na Coleco Pombalina.

    No que toca a fontes impressas, tivemos o cuidado de recorrer Colleco da

    Legislao Portugueza e seus aditamentos, da autoria de Antnio Delgado da Silva4,

    que nos permitiu seguir de perto as principais deliberaes rgias dedicadas arte de

    navegar. Entre outras referncias, que podem ser vistas na bibliografia desta tese,

    destacamos ainda os textos de Jos Maria Dantas Pereira, a grande figura da

    Academia Real dos Guardas Marinhas, e de Francisco de Borja Garo Stockler, que

    esteve ligado atividade letiva da Academia Real de Marinha. As suas vozes

    3 Seguimos de perto Jos Mattoso (1988), A escrita da histria Teoria e mtodos, Lisboa: Editorial

    Estampa, 1988, pp. 15-30. 4 Esta compilao legislativa foi consultada a partir da base de dados Ius Lusitaniae - Fontes Histricas

    do Direito Portugus, um projeto da Universidade Nova de Lisboa que disponibiliza, em linha, mais de

    30.000 pginas digitalizadas e cerca de 17.000 documentos legislativos, sobretudo entre os sculos

    XVI e XVIII (http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/).

    http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/

  • 6

    marcaram a vida de ambas as instituies e por isso foram ouvidas na realizao

    deste trabalho.

    Para a investigao do contexto do aparecimento das academias, consultmos os

    Estatutos da Universidade de Coimbra, de 1772, e a Relao Geral do Estado da

    Universidade de Coimbra, da autoria de D. Francisco de Lemos, obra esta que, ao

    fazer o balano dos primeiros cinco anos da reforma universitria, incluiu algumas

    importantes linhas acerca do estado do ensino nutico portugus.

    Em termos de obras de referncia e de estudos, para alm da pesquisa e leitura de

    ttulos disponveis nas prateleiras de bibliotecas, destacamos o recurso internet5 que

    se revelou precioso, nomeadamente na identificao e recolha de um conjunto de

    textos disponveis sobre a histria da nutica de Espanha, Frana e Inglaterra. Para o

    caso portugus, e aqui inclumos textos de autores brasileiros que se debruaram

    sobre o contexto colonial, pudemos igualmente localizar algumas referncias de livre

    acesso, por exemplo, trabalhos acadmicos.

    Estado da arte

    Na longa histria da Expanso ultramarina portuguesa, construram-se navios para a

    realizao das muitas viagens ocenicas, cujas caractersticas fsicas e aspetos

    tcnicos6 evoluram ao sabor das necessidades que a navegao demandava. Mas no

    foram apenas as naves que sofreram uma evoluo: tambm os homens que as

    compunham foram encontrando novas formas de se adequarem, quer aos mares

    5 Atualmente, os investigadores tm sua disposio diversos repositrios abertos e bibliotecas

    digitais, o que permite uma maior agilizao do processo de recolha de informao bibliogrfica e

    mesmo de obteno do contedo integral das obras pesquisadas, sejam elas estudos mais recentes ou

    fontes. Destacamos o projeto portugus da Biblioteca Nacional de Portugal, Biblioteca Nacional

    Digital (http://purl.pt/index/geral/PT/index.html) e o projeto Gallica da Biblioteca Nacional de Frana

    (http://gallica.bnf.fr/), bem como os repositrios da Universidade de Lisboa (http://repositorio.ul.pt/) e

    o Repositrio Cientfico de Acesso Aberto de Portugal (http://www.rcaap.pt/index.jsp). 6 Sobre a evoluo e tipologia dos navios dos Descobrimentos Portugueses, existem diversos trabalhos

    com importncia reconhecida. Salientamos aqui os de Filipe Castro (2003), A nau de Portugal. Os

    navios da conquista do imprio do Oriente. 1498-1650, Lisboa: Prefcio; e de Francisco Contente

    Domingues (2004), Os navios do mar oceano. Teoria e empria na arquitectura naval dos sculos XVI

    a XVII, Lisboa: Centro de Histria da Universidade de Lisboa (Parte II Os navios no mar, pp. 219-

    286). Veja-se ainda o trabalho acadmico de Carlos Manuel Montalvo de Sousa (2009), O Livro da

    Fabrica das Naos de Fernando Oliveira. Princpios e procedimentos de construo naval

    (Dissertao de mestrado no publicada), Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa. Este

    trabalho, em que se fez uma sntese das tcnicas de construo naval das naus da Carreira da ndia na

    transio do sculo XVI para o sculo XVII, surgiu da colaborao do autor no projeto Reconstruo

    Virtual de uma Nau Quinhentista, desenvolvido no Centro de Engenharia e Tecnologia Naval do

    Instituto Superior Tcnico, em parceria com o Nautical Archaeology Program do Departamento de

    Antropologia da Texas A&M University.

    http://purl.pt/index/geral/PT/index.htmlhttp://gallica.bnf.fr/http://repositorio.ul.pt/http://www.rcaap.pt/index.jsp

  • 7

    percorridos quer s vicissitudes de uma prolongada permanncia no mar. Muitas

    vezes esquecidos no seu papel de condutores de homens, de mercadorias e de

    informao, a verdade que o sucesso da Expanso tambm se ficou a dever aos

    pilotos, cuja formao escolar era diminuta, em muitos casos mesmo nula.

    A equao navios-pilotos-nutica7 foi um dos aspetos mais extraordinrios no que

    toca operacionalizao dos Descobrimentos Portugueses. Para ilustrar essa trindade,

    veja-se o caso da Carreira da ndia, viagem que demorava longos meses8 e em que era

    preciso conhecer com rigor o regime dos ventos e das mars. Naquela que era a mais

    exigente das carreiras, a passagem da linha do Equador alterava o modo como se liam

    as estrelas e se guiavam os navios em alto mar, j sem a referncia vista dos pontos

    litorneos. A aprendizagem da navegao foi feita durante sculos com base na

    prtica a bordo, de resto, na linha da transmisso medieval de saberes de ofcio, entre

    um mestre e um aprendiz. Sabe-se hoje que os pilotos tinham um elevado grau de

    iliteracia, a maioria tinha dificuldades em saber ler ou escrever, o que no obviou

    utilizao de cartas e de roteiros martimos e ao sucesso das rotas entre os pontos de

    partida e de chegada previstos.

    No mbito da historiografia que se dedicou histria das navegaes entre o incio do

    sculo XV e o final do sculo XVII, os aspetos tcnicos da pilotagem foram objeto de

    um importante conjunto de trabalhos que constituem, ainda hoje, uma referncia para

    todos os estudiosos desta temtica9. De entre os muitos nomes que se dedicaram

    investigao da dimenso tcnica da histria das navegaes portuguesas, na qual se

    inclui a sua vertente pedaggica, destacam-se os de Lus de Albuquerque10

    , Abel

    7 Por nutica entende-se a arte de navegar pelo que, amide, usaremos ambas as expresses para nos

    referirmos ao ensino da pilotagem e matrias afins. 8 Sobre as especifidades da navegao desta carreira, leia-se os trabalhos de Charles Ralph Boxer

    (1961), The Carreira da ndia (ships, men, cargoes, voyages), Separata de Centro de Estudos

    Histricos Ultramarinos e as Comemoraes Henriquinas (pp. 33-82), Lisboa: Centro de Estudos

    Histricos Ultramarinos e de Rui Landeiro Godinho (2005), A Carreira da ndia: aspectos e problemas

    da torna-viagem (1550-1649), Lisboa: Fundao Oriente. 9 Em 1968, na cidade de Coimbra, teve lugar a I Reunio Internacional de Histria da Nutica e da

    Hidrografia, coorganizada por Lus de Albuquerque e Armando Corteso. Nascia ento um importante

    espao de divulgao historiogrfica que dinamizou uma comunidade cientfica dedicada a esta

    temtica. Essas reunies vo j na sua 16 edio, a ltima delas aconteceu em 2012 na cidade alem de

    Bremerhaven, e so um sinal evidente do sucesso da Comisso Internacional de Histria da Nutica,

    organismo tutelar daqueles encontros cientficos. 10

    Este eminente matemtico deixou-nos uma vasta bibliografia dedicada s navegaes e ao seu

    contributo para o conhecimento do Mundo. De Lus de Albuquerque veja-se, entre outros: Para a

    histria da cincia em Portugal (1973), Lisboa: Livros Horizonte; Cincia e experincia nos

    Descobrimentos Portugueses (1983), Lisboa: Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa; A nutica e a

    cincia em Portugal. Notas sobre as navegaes (1989), Lisboa: Gradiva; Historia de la navegacin

  • 8

    Fontoura da Costa11

    , Avelino Teixeira da Mota12

    , Armando Corteso13

    , W. G. L.

    Randles14

    , Max Justo Guedes15

    e, mais recentemente, Francisco Contente

    Domingues16

    . De um modo geral, estes autores refletiram acerca do peso da

    experincia dos pilotos no mar em contraponto estruturao mental dos tericos,

    tentando perceber de que forma o desenvolvimento da nutica portuguesa influenciou

    o pensamento moderno europeu.

    No , por certo, nossa inteno historiar os principais feitos tcnicos da navegao

    portuguesa. Contudo, no despiciendo observar uma relao de causa-efeito entre os

    problemas colocados aos pilotos pela navegao e o modo como foram resolvidos. Na

    sua dinmica interna, e pegando nas palavras de Jaime Corteso17

    , a cincia nutica

    portuguesa (1992), Madrid: MAPFRE; As navegaes e a sua projeco na cincia e na cultura

    (1989), Lisboa: Gradiva. Dirigiu o importante Dicionrio de histria dos Descobrimentos Portugueses

    (1994, 2 vols.), Lisboa: Editorial Caminho, edio publicada aps o seu falecimento. Foi presidente, e

    seu grande impulsionador, da Comisso Internacional de Histria da Nutica, a partir da III reunio

    (Greenwich, 1979), at 1988. Sobre esta comisso ver o texto de Francisco Contente Domingues

    (2004), International Commission for the History of Nautical Science and Hydrography, e-JPH (vol. 2,

    n. 1, summer). Disponvel em http://tinyurl.com/dysnghb (consultado a 5 de setembro de 2012). 11

    Bibliografia nutica portuguesa at 1700 (1940), Lisboa: Agncia Geral das Colnias; A marinharia

    dos Descobrimentos (1960, 3 ed.), Lisboa: Agncia Geral do Ultramar. 12

    Veja-se, entre outros: A arte de navegar no Mediterrneo nos sculos XIII-XVII e a criao da

    navegao astronmica no Atlntico e no ndico (1957), Separata dos Anais do Clube Militar Naval;

    Os regimentos do cosmgrafo-mor de 1559 e 1592 e as origens do ensino nutico em Portugal (1969),

    Separata das Memrias da Academia das Cincias de Lisboa - Classe de Cincias (t. 13), Lisboa: Junta

    de Investigaes do Ultramar; Instrues nuticas para os pilotos da Carreira da ndia nos comeos

    do sculo XVII (1974), Separata (XCIII, seco de Lisboa), Lisboa: Junta de Investigaes do

    Ultramar. Juntamente com Armando Corteso, foi autor da Portugaliae monumenta cartographica

    (1960-1962, 6 vols.), Lisboa: Comisso para a Comemorao do V Centenrio da Morte do Infante D.

    Henrique. Sobre a sua produo historiogrfica ver Carlos Valentim (2007), O trabalho de uma vida.

    Biobibliografia de Avelino Teixeira da Mota (1920-1982), Lisboa: Edies Culturais da Marinha. 13

    A ele se deve importantes trabalhos na rea da cartografia histrica. Para o conhecimento da nutica

    portuguesa destaquem-se os seguintes trabalhos: Cartografia e cartgrafos portugueses dos sculos XV

    e XVI (2 vols.), Lisboa: Seara Nova; Histria da cartografia portuguesa (1969-1970, 2 vols.),

    Coimbra: Junta de Investigaes do Ultramar; Nautical science and the renaissance (1974), Coimbra:

    Junta de Investigaes Cientficas do Ultramar (originalmente publicado como separata nos Archives

    Internationales dHistoire des Sciences, em 1949); Contribution of the portuguese to scientifique

    navigation and cartography (1974), Coimbra: Junta de Investigaes Cientficas do Ultramar. 14

    Portuguese and spanish attempts to measure longitude in the 16th century (1985), Coimbra: Instituto

    de Investigao Cientfica Tropical; The alleged nautical school founded in the fifteenth century at

    Sagres by prince Henry of Portugal, called the Navigator (1993), Imago Mundi, 45, 20-28. 15

    Sucedeu a Lus de Albuquerque frente da Comisso Internacional de Histria da Nutica (1988-

    2000). 16

    Navios e viagens. A experincia portuguesa nos sculos XV a XVIII (2008), Lisboa: Tribuna da

    Histria. 17

    Como se difundiu a cincia nutica dos Portugueses na Europa [...]? Pelos dois condutos, o popular

    e o sbio, segundo cremos. Dum lado e do outro, razes semelhantes imperaram. Uns, por ambio

    insatisfeita vendiam seus segredos aos estranhos. [...] Aos outros repugnava em seu foro ntimo a razo

    de Estado que lhes mandava guardar um saber, que desejavam se tornasse patrimnio universal. Duarte

    Pacheco, Pedro Nunes e D. Joo de Castro, isto , as mais altas figuras da cincia nutica e

    cosmografia durante a primeira metade do sculo XVI, assim o proclamaram em suas obras, Jaime

    http://tinyurl.com/dysnghb

  • 9

    portuguesa teve eco no contexto europeu atravs de uma dupla dimenso: a popular,

    com os marinheiros, cuja prtica de navegar era herdeira de uma tradio oral passada

    de gerao em gerao; e a erudita, atravs daqueles que tinham uma formao

    associada ao rigor matemtico, ou seja, os homens de gabinete que concentravam

    conhecimentos tericos, mas que desconheciam as operaes fsicas da conduo de

    um navio.

    Diretamente relacionada com as tcnicas de navegao utilizadas pelos marinheiros

    portugueses esteve, do ponto de vista historiogrfico, a necessidade de se

    compreender qual o real contributo dos Descobrimentos Portugueses para a

    construo da Revoluo Cientfica operada no sculo XVII e, a montante desta

    dimenso, qual a ligao entre a teoria da arte de navegar e o seu exerccio prtico.

    O estudo da relao entre quem conduzia e o modo como conduzia o navio falamos

    aqui da formao dos pilotos ganhou nas ltimas dcadas um novo olhar, decorrente

    de uma investigao que procurou caracterizar o perfil e o modo como os homens do

    mar os prticos aprendiam o seu ofcio, e quais as implicaes que a lecionao da

    nutica enquanto disciplina abrigada no ramo da matemtica teve, ou no, num

    melhor conhecimento das especificidades da pilotagem, do comportamento dos

    navios em diferentes condies fsicas no mar, etc.

    Este confronto entre a teoria e a prtica encontramo-lo na produo historiogrfica

    nacional mais recente, seja na importncia das navegaes portuguesas para a

    Revoluo Cientfica de Seiscentos,18

    seja no nvel de formao dos pilotos e a sua

    relao com os tericos19

    .

    Corteso (1993), Influncia dos Descobrimentos Portugueses na histria da civilizao, Lisboa:

    Imprensa Nacional Casa da Moeda, p. 73. 18

    Veja-se os trabalhos de Onsimo Teotnio de Almeida (1995), Portugal and the dawn of modern

    science, in George D. Winius (ed.), Portugal, the pathfinder. Journeys from the medieval toward the

    modern world 1300-ca.1600 (pp. 341-361), Madison: The Hispanic Seminary of Medieval Studies;

    Jos Sebastio da Silva Dias (1986), Cultura e obstculo epistemolgico do renascimento ao

    iluminismo em Portugal, in Francisco Contente Domingues e Lus Filipe Barreto (orgs.), A abertura do

    mundo: estudos de histria dos descobrimentos europeus: em homenagem a Lus de Albuquerque (pp.

    41-52), Lisboa: Editorial Presena; Henrique Leito (2006), Ars e Ratio. A nutica e a constituio da

    cincia moderna, in Maria Isabel Vicente Maroto e Mariano Esteban Pieiro (eds.), Actas da XII

    Reunio Internacional de Histria da Nutica e da Hidrografia: La ciencia y el mar (pp. 183-207),

    Valladolid: Sever Cuesta. 19

    Sobre o peso que os tericos da navegao tiveram sobre o avano cientfico da nutica e o dilogo

    mantido com os pilotos, veja-se o n. 49 (2002) da revista Oceanos, dedicado figura de Pedro Nunes,

    nomeadamente os seguintes textos: de Onsimo Teotnio de Almeida, fique a dvida para Pedro

    Nunes. Sobre a cooperao entre cientistas e navegadores (pp. 9-17); de Francisco Contente

    Domingues, Ferno de Oliveira crtico de Pedro Nunes (pp. 86-94); e de Lus de Albuquerque, Pedro

    Nunes e os homens do mar do seu tempo (pp. 143-147). Ver ainda de Francisco Contente Domingues

  • 10

    De acordo com as consideraes de Joaquim Barradas de Carvalho, autor de um

    trabalho dedicado ao Esmeraldo de situ orbis de Duarte Pacheco Pereira20

    , homens

    como Duarte Pacheco Pereira, Pedro Nunes e D. Joo de Castro foram os expoentes

    mximos da antecmara da experincia cientfica, reforando a importncia da ideia

    de experincia enquanto critrio de verdade, apoiado sobretudo nos trabalhos de

    Duarte Pacheco Pereira e de D. Joo de Castro.

    Esta tomada de posio no se revelou pacfica no seio da historiografia, como se

    pode observar nos comentrios feitos por Almeida (1986; 1995) obra de Joaquim

    Barradas de Carvalho21

    . Aquele defendeu a no existncia de uma rutura

    epistemolgica decorrente dos Descobrimentos Portugueses porque ela de facto no

    se d (1986, p. 1201) e colocou a tnica na necessidade de se ler o contributo

    portugus como uma etapa da evoluo cientfica operada no sculo XVII. Assim

    sendo, as viagens e os seus problemas de navegao foram solucionados pelos

    marinheiros num plano gradual medida que os seus conhecimentos geogrficos e

    astronmicos aumentavam e essa operao no havia sido revolucionria nem havia

    causado qualquer tipo de rutura ou influenciado decisivamente o pensamento dos

    protagonistas da Revoluo Cientfica22

    .

    Foi este carcter pragmtico da capacidade tcnica dos portugueses que Domingues

    (1996) evidenciou: qualquer que tenha sido a contribuio nacional para uma

    mudana de paradigma, ela foi eminentemente apoiada na experincia e na urgncia

    da soluo de problemas concretos e inadiveis no progresso das navegaes, porque

    (2010), Cincia e tecnologia na navegao portuguesa: a ideia de experincia no sculo XVI, in

    Francisco Bettencourt e Diogo Ramada Curto (dir.), A expanso martima portuguesa, 1400-1800 (pp.

    469-488, Lisboa: Edies 70, que inclui um ensaio bibliogrfico sobre o assunto. 20

    la recherche de la specificit de la renaissance portugaise. L' "Esmeraldo de situ orbis" de Duarte

    Pacheco Pereira et la litterature portugaise de voyages l'poque des grandes decouvertes.

    Contribuition l'tude des origines de la pense moderne (1983, 2 vols.), Paris: Fondation Calouste

    Gulbenkian Centre Culturel Portugais. 21

    Veja-se o j citado Portugal and the dawn of modern science (1995) em que o mesmo autor no

    deixou de elencar os mais importantes aspetos das principais fontes referidas por Joaquim Barradas de

    Carvalho: a rejeio da autoridade dos textos clssicos; a valorizao da experincia como motor da

    aquisio do conhecimento; o desenvolvimento de uma cultura e metodologia cientficas; a promoo

    da comunicao entre a teoria e a prtica dos pilotos; e a projeo das viagens martimas no avano do

    conhecimento. 22

    Num texto em que cartografou as referncias s navegaes portuguesas nas principais obras

    historiogrficas mundiais, Onsimo Teotnio de Almeida afirmou com algum pesar ser estranho que

    Portugal, durante tantos anos embrenhado em comemoraes dos descobrimentos, no se tivesse

    empenhado um pouco mais na divulgao e traduo de obras clssicas desse perodo. Tornadas

    acessveis aos especialistas desconhecedores da lngua portuguesa, ajudariam certamente a colmatar as

    lacunas da historiografia da cincia nesse domnio da aurora da modernidade a emergncia da nova

    mentalidade cientfica. Ver Historiografia da cincia. A recuperao de um lugar para a participao

    portuguesa (2001), Arquiplago Histria, V (2. serie), 681-688.

  • 11

    o avano do conhecimento nutico se fez depender dos prticos, cujas competncias

    tcnicas e cientficas eram limitadas, at porque, de uma maneira geral, existia um

    analfabetismo funcional entre os homens do mar.

    O estudo dos aspetos tcnicos da arte de navegar em Portugal para os sculos XV a

    XVII centrou a sua ateno no domnio da teoria nutica enquanto manancial de

    informao acumulado ao longo das viagens martimas e na forma como o

    conhecimento nutico surgiu: se pura e simplesmente pela experincia vivida pelos

    marinheiros em alto mar, ou atravs da aprendizagem dos principais conceitos ligados

    navegao em escolas prprias. Cabe aqui relembrar, acerca deste ltimo aspeto, a

    mtica construo historiogrfica da famosa Escola de Sagres, fundada pelo Infante

    D. Henrique para lanar o projeto expansionista portugus. A suposta existncia de

    uma universidade de marinharia impulsionou diversos autores para a sustentao da

    ideia de que os Descobrimentos Portugueses haviam tido, por suporte, uma grande

    escola de formao de marinheiros sem paralelo na histria europeia23

    .

    Domingues (2011) sintetizou, da seguinte forma, a inexistncia de uma tal escola em

    Sagres, no negando, contudo, a probabilidade de haver uma dinmica prpria

    decorrente dos problemas que as navegaes no Atlntico Sul apresentavam aos

    navegadores e cientistas:

    Que o Infante estivesse permanentemente rodeado por tcnicos e cientistas

    pertence seguramente muito mais lenda que verdade dos factos. Mas

    cumpre dizer, tambm, que a desmontagem de um mito no tem que pagar

    tributo ereco de outro: deve por isso ser matizada, a meu entender, a

    convico, que faz curso, segundo a qual no houve Escola de Sagres.

    seguro que no, no sentido institucional do termo. [...] Mas houve,

    seguramente, um espao informal de transmisso de conhecimentos e

    experincias: nem de outro modo faria sentido a prpria continuao das

    viagens, capitalizando, uma aps outra, novas tcnicas e procedimentos. (p.

    133)

    23

    pretensa escola de Sagres, Lus de Albuquerque respondeu com a existncia de um alheamento da

    Universidade em relao ao exerccio da cincia nutica. Bastaram 10 pginas para rebater as ideias de

    Artur Moreira de S, vertidas no seu livro O Infante D. Henrique e a universidade, de 1960. Para este,

    a Universidade fora a base do desenvolvimento da nutica em Portugal. Ver Lus de Albuquerque

    (1983), Nutica e Cartografia em Portugal nos Sculos XV e XVI, in A universidade e os

    descobrimentos: colquio promovido pela Universidade de Lisboa (pp. 91-101), Lisboa: Comisso

    Nacional para as Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses, Imprensa Nacional Casa da

    Moeda; e o j citado texto de W.G.L. Randles (1993). Sobre a construo historiogrfica da mtica

    escola de Sagres ver Maria Isabel Joo (2005), Sagres, lugar mtico da memria, in Des(a)fiando

    discursos: homenagem a Maria Emlia Ricardo Marques (pp. 409-422), Lisboa: Universidade Aberta

    (disponvel em http://tinyurl.com/c4kvd8u, consultado a 10 de maio de 2012).

    http://tinyurl.com/c4kvd8u

  • 12

    Deste importante debate ressaltou a tese de que o avano nutico portugus decorreu

    do conjunto de tentativas feitas para suplantar os problemas que a navegao ocenica

    imps a navios e marinheiros, uma nova realidade a que a Universidade no

    conseguiu corresponder com o seu saber. hoje aceite a ideia de que Universidade e

    Descobrimentos andaram de costas voltadas (Domingues, 1996, p. 215), isto , o

    dilogo entre os tericos da nutica e os homens do mar deu-se a ttulo particular,

    pelo menos at ao desempenho de Pedro Nunes como cosmgrafo mor (Albuquerque,

    1972). Neste sentido, a amplitude da aquisio e fundamentao de conhecimentos

    cientficos foi diminuta, existindo um processo cumulativo de novidades cientficas

    relevantes para o processo de aquisio de mecanismos explicativos do mundo fsico

    (Domingues, 1996, p. 216) e no uma alterao significativa, planetria, do

    conhecimento do Mundo.

    Sobre o lugar de Portugal na mudana de abordagem do mundo fsico no sculo XVII

    houve como que uma soluo de compromisso: se, de facto, o desenvolvimento do

    conhecimento cientfico nasceu a bordo dos navios dos Descobrimentos, onde cada

    novidade aguava a vontade de conhecer mais para alm do conhecido, deve-se, no

    entanto, considerar que Portugal, no sculo XV, atravessou um estdio pr-cientfico,

    atravs dos problemas levantados pela navegao martima, que iria preparar os

    europeus para todas as descobertas cientficas emergentes24

    . Foi, portanto, a prtica, e

    no a teoria, no dealbar da cincia nutica portuguesa, que se revelou determinante

    para o seu sucesso, at porque todo o saber derivava dessa experincia do ver/fazer.

    Mas se no houve em Portugal um envolvimento da Universidade com o avano da

    arte de navegao e a formao dos pilotos, importante identificar a existncia de

    espaos de ensino da nutica que, apesar da sua atividade irregular, se mantiveram em

    funcionamento desde o incio do sculo XVI at meados do sculo XVIII: falamos da

    lio do cosmgrafo mor (Mota, 1969) e da Aula da Esfera, aula mantida pela

    Companhia de Jesus no colgio de Santo Anto, em Lisboa (Albuquerque, 1972;

    Baldini, 2004; Leito, 2008). Nestes dois espaos houve lugar para o contacto entre

    tericos e prticos e para o ensino de princpios de nutica ainda que, no caso da lio

    do cosmgrafo mor, a frequncia dos alunos leia-se pilotos tenha sido

    comprometida pelas especificidades de uma vida passada no mar e que, no caso da

    24

    A descoberta de novas terras implicou um esforo desmedido de compreenso fenomenolgica e a

    reorganizao do espao geogrfico exigiu profundas mudanas nas estruturas mentais dos povos

    europeus (Almeida, 1986, p. 82).

  • 13

    aula dos jesutas, a nutica tivesse uma abordagem elementar e fosse lecionada por

    religiosos em trnsito entre a Europa e as restantes provncias da Companhia.

    Sobre a figura do cosmgrafo mor o professor de nutica , diga-se que a sua

    criao esteve, em Portugal, associada a uma figura25

    e no a uma instituio, como

    ocorreu no vizinho ibrico26

    . Desde a primeira dcada do sculo XVI que existia em

    Espanha o cargo de piloto maior que tinha a incumbncia de ensinar a arte de navegar

    aos pilotos27

    . Na segunda metade de sculo XVI, o saber cosmogrfico em Espanha

    estava organizado em trs nveis: na Casa da Contratao de Sevilha, de modelo

    similar ao que j existia em Portugal com a Casa da Mina e da ndia, trabalhavam os

    cosmgrafos que mantinham em permanente atualizao as cartas nuticas da

    Carreira das ndias; no Conselho das ndias estava reunida toda a informao

    respeitante aos territrios ultramarinos espanhis; e na Corte, onde existiam

    cosmgrafos a quem era solicitada a contribuio em diversas matrias relacionadas

    com a nutica, sobretudo assuntos que tinham impacto em decises polticas.

    Em Portugal, as competncias do cosmgrafo mor surgiriam enquadradas num

    regimento de 1592 reformulado a partir do anterior, datado de 1559 , texto

    fundador da primeira organizao pedaggica da nutica nacional e que regulamentou

    a atividade28

    .

    25

    Referimo-nos a Pedro Nunes, cosmgrafo a partir de 1529. 26

    . Sobre a evoluo da nutica espanhola dos sculos XVI e XVII e do seu ensino, existe uma vasta

    bibliografia. Destacamos os trabalhos de Francisco Jos Gonzlez Gonzlez, (1992), Astronoma y

    navegacin en Espaa. Siglos XVI-XVIII, Madrid: MAPFRE e Del Arte de marear a la navegacin

    astronmica. Tcnicas e instrumentos de navegacin en la Espaa de la edad moderna (2006),

    Cuadernos de Historia Moderna: Anejos, V, 135-166 (disponvel em http://tinyurl.com/mq7llk,

    consultado a 2 de fevereiro de 2012); de Mariano Esteban Pieiro (1995), Los cosmgrafos al servicio

    de Felipe II. Formacin cientfica y actividad tcnica, Mare Liberum, 10 (dezembro), 525-539; de

    Mara M. Portuondo (2009), Secret science. Spanish cosmography and the new world, London and

    Chicago: The University of Chicago Press; e o de Antonio Snchez Martnez (2010), Los artficies del

    Plus Ultra: pilotos, cartgrafos y cosmgrafos en la Casa de la Contratacin de Sevilla durante el siglo

    XVI, Hispania. Revista Espaola de Historia, LXX(236) (sept.-dic.), 607-632. 27

    Veja-se o clssico estudo de Jose Pulido Rubio (1950), El piloto mayor de la Casa de la

    Contratacin de Sevilla. Pilotos mayores, catedrticos de cosmografa y cosmgrafos, Sevilla: Escuela

    de Estudios Hispano-Americanos. Acerca da instruo dos homens do mar espanhis, Jos Manuel

    Malho Pereira chamou a ateno para o seguinte: Note-se contudo, que na vizinha Espanha se tratava

    de instruir pilotos da Carreira das Antilhas, navegao que no tinha qualquer comparao com a

    complexidade da Carreira da ndia. Por vezes se esquece que a Carreira do Pacfico que ligava as

    Filipinas Nova Espanha (esta, de alguma complexidade), s foi iniciada em 1565 ou mais de meio

    sculo aps o estabelecimento da perigosa e difcil Carreira da ndia Portuguesa (citao retirada de

    Os cosmgrafos-mores, o ensino da nutica e as cincias matemticas em Portugal, comunicao

    apresentada no simpsio Novos olhares sobre a histria da cincia em Portugal, a 14 de dezembro de

    2009 na Academia das Cincias de Lisboa e gentilmente cedida pelo seu autor). 28

    Falaremos com maior detalhe do Regimento mais frente no contexto da lio dada pelo cosmgrafo

    mor (Parte I, ponto 1.1).

    http://tinyurl.com/mq7llk

  • 14

    No obstante a recente produo historiogrfica que se debruou sobre a organizao

    da aprendizagem da nutica para o perodo que medeia entre o incio do sculo XVI e

    o final do sculo XVII, est ainda por estudar a relao entre o perfil do cosmgrafo

    mor e a prtica da docncia da arte de navegar. Atravs dos dados biogrficos

    disponveis, ainda que dispersos, vemos que alguns cosmgrafos frequentaram nos

    tempos de juventude a Aula da Esfera, o que, por certo, se revelou importante mas

    no decisivo29

    na dedicao dos futuros professores s matrias nuticas.

    Apesar da ausncia de novidades tcnicas ligadas nutica portuguesa no sculo

    XVII, a verdade que, do ponto de vista organizacional, o ensino da arte de navegar

    foi-se consolidando a ponto de, no sculo seguinte, se assistir a uma inovao sem

    precedentes. Como apontou Domingues (2008), no sculo XVIII, as mudanas

    verificadas na transio da sociedade de Antigo Regime para a nova ordem liberal

    fizeram-se sentir na educao, com o fim do paradigma social do bero privilegiado e

    o nascimento de uma promoo individual assente na formao cientfica e

    intelectual. Esta dimenso, agilizada a partir do reinado de D. Jos e protagonizada

    pelo Marqus de Pombal, constituiu um importante campo de trabalho para a

    historiografia da cincia portuguesa, sobretudo na dupla vertente da Marinha e da

    Guerra.

    O discurso historiogrfico sobre o panorama geral portugus, no que diz respeito ao

    desenvolvimento e estudo da matemtica, enfermou, de certa forma, a abordagem que

    foi feita, a posteriori, acerca do quadro geral em que o conhecimento da nutica

    floresceu e foi divulgado em Portugal nos sculos XVII e XVIII. E, neste domnio,

    importante referir o contributo de diversos autores que, desde o sculo XIX, se

    debruaram sobre os principais acontecimentos ocorridos no domnio das cincias

    exatas e refletiram acerca da evoluo da histria da matemtica em Portugal.

    A conjuntura da vigncia da educao jesutica, exercida desde o sculo XVI at

    1759, serviu como referencial a diferentes autores para ilustrar o grau de

    desenvolvimento cientfico em Portugal30

    . Falamos dos trabalhos de Antnio Ribeiro

    29

    Sobre a importncia do ensino dos jesutas na formao dos cosmgrafos mor, ver nesta Parte I, o

    ponto 1.1. 30

    Sobre o olhar da historiografia portuguesa acerca do papel da assistncia da Companhia de Jesus no

    Oriente, no que toca divulgao e ensino da matemtica, ver Lus Saraiva (2008), The jesuit

    mathematicians of the portuguese assistancy ante the portuguese historians of mathematics, in Lus

    Saraiva and Catherine Jani (eds.), The jesuits, the padroado and the east asian science (1552-1773)

  • 15

    dos Santos31

    , Francisco de Borja Garo Stockler32

    , Jos Silvestre Ribeiro33

    , Rodolfo

    Guimares34

    , Francisco Gomes Teixeira35

    , Lus Woodhouse36

    ou de Pedro Jos da

    (History of mathematical sciences: Portugal and East Asia III) (pp. 1-31), Singapore: World Scientifc

    Publishing. 31

    Publicado em 1812, o contexto histrico do texto de Ribeiro dos Santos, Memorias historicas sobre

    alguns mathematicos portuguezes, e estrangeiros domiciliarios em Portugal, ou nas conquistas,

    terminaria no sculo XVIII de D. Joo V, um tempo que conheceu alguns zelosos cultivadores das

    sciencias mathematicas ainda antes da nova Reformao dos Estudos da Universidade de Coimbra (p.

    210). O autor sugeriu que daria continuidade a estas memrias numa outra obra, provavelmente

    ilustrada com os reinados de D. Jos e de D. Maria I, a julgar pela cronologia apresentada, projeto esse

    que no conheceu sequncia. Juntamente com Antnio Pereira de Figueiredo e frei Manuel do

    Cenculo Vilas Boas, foi um dos mais destacados autores da construo terica do Regalismo em

    Portugal, publicando em 1770 a obra De sacerdotio et Imperio. Ver Jos Esteves Pereira (1983), O

    pensamento poltico em Portugal no sculo XVIII: Antnio Ribeiro dos Santos, Lisboa: Imprensa

    Nacional Casa da Moeda. 32

    O Ensaio histrico sobre a origem e progressos das mathematicas em Portugal de Garo Stcokler,

    publicado em 1819, foi pioneiro na compilao de dados relativos ao desenvolvimento da matemtica

    no nosso pas, a que juntou diversas reflexes. Para alm deste aspeto, a sua obra revestiu-se de uma

    importante dimenso, pois foi escrita por algum que conviveu de perto com o processo de

    transformao do ensino nutico entre a segunda metade do sculo XVIII e os primeiros anos do sculo

    seguinte. Para uma biografia sumria ver a entrada com o seu nome em Cincia em Portugal

    Personagens e Episdios (http://cvc.instituto-camoes.pt/ciencia/p49.html). Sobre a sua vida e obra ver

    o importante trabalho de Honrio (2012). 33

    Escrita entre 1871 e 1914, Silvestre Ribeiro foi autor da monumental obra Historia dos

    estabelecimentos scientificos, litterarios e artisticos de Portugal nos successivos reinados da

    Monarchia (19 vols., Lisboa, Academia Real das Cincias). Nela se pode encontrar uma vasta

    informao relativa histria da criao e funcionamento das principais escolas, universidades e

    academias portuguesas, com nota de muitos factos e acontecimentos de natureza cultural, literria e

    cientfica. Apesar de datada no tempo e de ter uma organizao interna algo confusa e dispersa,

    continua hoje a ser uma obra de consulta obrigatria para quem se dedica ao estudo da cultura

    portuguesa. No prlogo, o autor enunciou a principal motivao de tamanha realizao: o que

    possumos ns em materia de noticias legislativas, histricas, estatisticas e criticas, relativas a taes

    estabelecimentos? Da mxima parte delles temos apenas algumas indicaes avulsas, incompletas,

    imperfeitas. [] entendi que temos impretervel necessidade de uma obra, na qual encontrem,

    nacionaes e estrangeiros, uma noticia de todos os estabelecimentos scientificos, litterarios o artsticos

    de Portugal desde a fundao da monarchia (t. I, 1871, pp. VI-VII). 34

    Rodolfo Guimares (1866-1918) foi aluno de Lus Woodhouse e de Francisco Gomes Teixeira na

    Academia Politcnica do Porto. Em 1900, editou Les mathmatiques en Portugal au XIXe sicle

    (Coimbra: Imprimerie de lUniversit), em que apresentou uma resenha da importncia da matemtica

    em Portugal, a partir da atividade de Pedro Nunes, para depois se dedicar inventariao de referncias

    bibliogrficas relativas aos diferentes ramos da matemtica. De referir que este trabalho foi inserido na

    seco portuguesa da Exposio Universal de 1900 que ocorreu em Paris. Sobre a sua obra ver Lus

    Saraiva (1997), Historiography of mathematics in the works of Rodolfo Guimares, Historia

    Mathematica, 24(1) (february), 8697 (disponvel em: http://dx.doi.org/10.1006/hmat.1997.2136) e

    Maria de Ftima Nunes (2011), Memria (e) histria da matemtica em Portugal (1900-1940): a

    construo de uma identidade cientfica europeia, Boletim da Sociedade Portuguesa de Matemtica, 65

    (outubro), 73-87 (disponvel em http://revistas.rcaap.pt/boletimspm/article/view/740). 35

    Autor de uma vasta obra, destaca-se a Histria das matemticas em Portugal, publicada a ttulo

    pstumo pela Academia das Cincias de Lisboa, em 1934. No programa que estabeleceu para o seu

    texto, distinguiu cinco perodos, sendo que o segundo tinha incio no reinado de D. Joo II

    considerado como sendo de brilho e terminava no sculo XVI. Seguia-se o perodo da pobreza que se

    estenderia at meados do sculo XVIII e depois o da reforma da Universidade de Coimbra que incluiu

    a fundao da Academia das Cincias de Lisboa e prolongava-se at meados do sculo XIX. A sua vida

    e obra foram estudadas por Rodolfo Guimares (1914), Biografia de Francisco Gomes Teixeira,

    Lisboa: Imprensa Nacional. Para um resumo biogrfico veja-se o trabalho de Natlia Bebiano (2011),

    Francisco Gomes Teixeira (1851-1933), um sbio portugus, in Congresso Luso-Brasileiro de Histria

    http://cvc.instituto-camoes.pt/ciencia/p49.htmlhttp://dx.doi.org/10.1006/hmat.1997.2136http://revistas.rcaap.pt/boletimspm/article/view/740

  • 16

    Cunha37

    que, de um modo geral, teceram duas grandes ordens de consideraes para

    explicar os avanos e recuos no estudo da matemtica em Portugal: a primeira teve

    que ver com a dimenso tcnica do seu peso na arte de navegar, isto , a partir do

    momento em que a nutica deixou de apresentar novos resultados, em funo de um

    perodo de estagnao de inovaes tcnicas das viagens martimas no sculo XVI, o

    desenvolvimento da matemtica conheceria igualmente um tempo de menor produo

    e de ausncia de novidade; a segunda, cuja explicao centrou a sua abordagem no

    plano poltico-religioso, aliou o tempo de D. Joo III ou o curto reinado de D.

    Sebastio ao incio da decadncia do estudo matemtico, perodo que se estenderia at

    primeira metade do sculo XVIII, e o reinado de D. Jos a um comeo de

    recuperao do esprito cientfico, consumado com o arranque de uma poltica de

    reformas educativas que teve na expulso da Companhia de Jesus, em 1759, um fator

    decisivo de agilizao.

    Curiosamente, o estudo mais recuado cronologicamente o de Santos (1812) no

    alinhou na distino verificada pelos autores posteriores, ao no considerar a

    existncia de um perodo de auge do estudo da matemtica, supostamente ligado

    poca das principais viagens martimas e antecedente da decadncia iniciada no

    das Cincias Livro de Actas (pp. 585-588), Coimbra: Faculdade de Cincias da Universidade de

    Coimbra. 36

    Nascido no Porto em 1858, foi scio correspondente da Academia das Cincias de Lisboa e professor

    de matemtica na Academia Politcnica do Porto e na Faculdade de Cincias da Universidade do Porto

    (seco de matemtica), de que seria seu vice-reitor. Faleceu em 1927. O texto em questo A

    matemtica em Portugal no princpio do sculo XIX reproduziu o discurso inaugural da seco de

    cincias matemticas do Congresso de Coimbra, de 15 de junho de 1925. O exemplar que consultamos

    deve ser uma separata pois comea na pgina 81 e termina na pgina 101. Apesar de a capa do texto

    nada indicar, as pginas so encimadas com a referncia Coimbra T. II: Conferncias. Para um

    apontamento biogrfico veja-se Isabel Hortas e Lurdes Figueiral (2005), O Porto e os seus

    matemticos, Lisboa: Associao de Professores de Matemtica. 37

    Pedro Jos da Cunha (1867-1945) foi aluno e professor da Escola Politcnica de Lisboa. Para alm

    de diversas funes diretivas chegou a reitor da Universidade de Lisboa este matemtico e

    engenheiro foi scio da Academia das Cincias de Lisboa e presidente da Sociedade de Geografia,

    tendo sido ainda o primeiro presidente da Sociedade Portuguesa de Matemtica. Publicou em 1929 o

    Bosquejo histrico das matemticas em Portugal (Lisboa, Imprensa Nacional de Lisboa), trabalho

    editado para o pavilho portugus na Exposio Ibero-Americana de Sevilha, de 1929/30. Aps o

    perodo ureo dos Descobrimentos, em que se destacaram os nomes do Infante D. Henrique e de Pedro

    Nunes, ficara a dever-se, no seu entender, ao rei D. Joo III o incio da decadncia cientfica em

    Portugal, alarmado com a dissoluo dos costumes e com os progressos da Reforma, ps em prtica,

    entre ns, os meios repressivos da livre transmisso das ideas (p. 27). Tratava-se, afinal, da introduo

    da Inquisio e da instalao da Companhia de Jesus, acontecimentos que teriam o condo de isolar

    Portugal do progresso da cincia vivido alm-Pirinus. As justificaes do autor seguiram sempre de

    muito perto o supracitado texto de Garo Stockler, essencialmente na inventariao das causas que

    provocaram o retrocesso dos estudos cientficos aplicados s navegaes. Para alm de Stockler,

    referiu ainda os nomes de Rodolfo Guimares e de Gomes Teixeira para concluir que este, portanto,

    um ponto da histria das matemticas em Portugal que, pelo acordo de todos os que entre ns o tm

    versado, se pode considerar devidamente esclarecido (p. 30).

  • 17

    reinado de D. Joo III. Na verdade, a tese que vingou foi a de Garo Stockler que, no

    seu Ensaio Histrico, de 1819, alvitrava que a decadncia do esprito cientfico

    portugus havia sido iniciada com o desaparecimento de D. Sebastio em 157838

    e s

    no reinado de D. Joo V que comearia a mostrar novos sinais de vitalidade39

    .

    A tradio historiogrfica balizou o dinamismo portugus, quanto ao progresso das

    cincias exatas, precisamente pelas datas de estabelecimento e de expulso dos padres

    inacianos. Neste sentido, os anos de 1540 e de 1759 representariam o princpio e o

    fim de um tempo estrutural de adormecimento do estudo e exerccio da cultura

    cientfica nacional, ainda que com alguns casos de inconformismo40

    , mesmo no seio

    da Companhia de Jesus41

    , recorrentemente apresentados como ilustrativas excees

    regra da ausncia de uma cultura das cincias em Portugal. S mesmo o programa

    poltico de reforma da Universidade de Coimbra, posto em prtica partir de 1772, foi

    assumido no esteio historiogrfico como o momento-chave que viria recolocar

    Portugal no trilho da modernidade42

    .

    38

    O autor omitiu o perodo da Monarquia Dual, saltando do jovem monarca desaparecido em Alccer-

    Quibir diretamente para o reinado de D. Joo IV. Pelo contrrio, Santos (1812) no apagou o perodo

    filipino das suas memrias pois, no obstante a perda da independncia poltica de Portugal, a verdade

    que nem por isso foi estorvo carreira das Mathematicas (p. 187). Para Woodhouse (1925), com o

    desastre de Alccer-Quibir dissolvem-se todas as energias, e com elas a sciencia nascente dissolve-se

    tambm. Inaugura-se ento um perodo tenebroso que lento se ir arrastando at final do sculo XVIII

    (p. 86). No menosprezando a leitura dos Elementos de Euclides na Universidade de Coimbra,

    Woodhouse associaria a pouca profundidade e a escassa importncia dada a tais matrias decadncia

    do estudo universitrio em Portugal. 39

    [] occupados em segurar a monarchia contra os ataques externos, mal podiam atender s

    verdadeiras causas do atrazamento geral das sciencias e artes, nem dar a estas aquella proteco e

    alento de que tanto necessitavam, e que tanto convinha felicidade dos seus povos (Stockler, 1819, p.

    51). 40

    Stockler (1819) no deixou de aludir criao da Aula de Fortificao, em 1647, e s obras de

    Manuel Azevedo Fortes, o Engenheiro Portuguez, escrito entre 1728 e 1729, esse livro magistral, e a

    Logica Racional, Geometrica e Analytica, de 1744. Ressalvou, contudo, que, apesar destes casos

    mritorios, a pontualidade confirmou ser exceo: no foram porem bastantes estes exemplos para

    promover os progressos de uma sciencia que o governo no continuava a animar [...] esta razo era

    mais do que suficiente para que as mathematicas se vissem em Portugal reduzidas ltima decadncia

    (pp. 58-59). Na anlise de Teixeira (1934), a decadncia manter-se-ia de 1600 at 1772 e, apesar da

    publicao de algumas obras com interesse, redigidas pelos cosmgrafos mor Lus Serro Pimentel e

    Manuel Pimentel, pai e filho, aquele perodo continuou a ser um tempo de pobreza, tambm porque a

    Universidade de Coimbra, a que cabia progredir o estudo nesta rea, pouco ou nada produziu. 41

    Acerca do ensino ministrado pela Companhia de Jesus nos seus colgios, Teixeira (1934) sublinhou

    a existncia de bons manuais dedicados ao estudo da aritmtica, geometria ou astronomia, mas que

    eram desprovidos de originalidade de esprito e fundamentalmente conservadores, presos s velhas

    doutrinas dos Peripatticos e dos escolsticos medievais. Por esse motivo, defendia que o avano

    cientfico e as suas novas teorias apenas viriam a ter eco em Portugal com o movimento reformador da

    Universidade de Coimbra. 42

    Nas palavras de Teixeira (1934), aquela reforma universitria provocaria o fim da longa noite que,

    para a matemtica portuguesa, comeara nos fins do sculo XVI e raiou para ela a aurora de um novo

    perodo luminoso. Teixeira viu no marqus de Pombal o apstolo do ressurgimento das cincias em

    Portugal pois revolucionou a estrutura pedaggica nacional e, a partir de ento, comearam os

  • 18

    Como dissemos atrs, apesar de, a partir do sculo XVII, o ritmo das grandes

    novidades geogrficas ou tcnicas ter desacelerado, houve momentos e evolues

    significativas posteriores que no devem ser hoje entendidos como o ocaso da

    empresa ultramarina nacional. O caso que aqui apresentamos o do ensino nutico

    paradigmtico. Foi precisamente no perodo final da expanso ultramarina, mais

    especificamente a partir da segunda metade do sculo XVIII, que o ensino das gentes

    ligadas marinharia se consolidou, atravs da sua institucionalizao.

    Apesar da inexistncia de um corpus bibliogrfico dedicado a este tema que nos

    permita ter uma viso slida de conjunto, nos ltimos anos tem-se dado a conhecer

    diversos trabalhos que procuram colmatar esta ausncia de um olhar mais concreto

    sobre as dinmicas do ensino da arte de navegar em Portugal para um perodo tomado

    muitas vezes como menor no quadro dos Descobrimentos Portugueses,

    nomeadamente na sua vertente tcnica43

    . Alguns desses trabalhos acadmicos44

    mostram um novo olhar sobre a nutica dos sculos XVII e XVIII, o que possibilita a

    (re)construo de um discurso historiogrfico revelador de aspetos ligados

    empregos pblicos a ser dados a quem tinha preparao cientfica para os bem desempenhar. J

    Woodhouse (1925) incluiu uma parte do sculo XVI, todo o sculo XVII e mais de metade do sculo

    XVIII numa poca de saber matemtico estril e insignificante. O papel de Pombal foi salientado no

    levantamento das sciencias exactas em Portugal (p. 87), bem como o dos jesutas Monteiro da Rocha

    e de Anastcio da Cunha. Mas esta foi igualmente a poca da fundao da Academia das Cincias de

    Lisboa, casa de muitas das publicaes que colocaram em destaque a investigao e conhecimento

    matemticos, pelo que fez um resumo do labor scientifico que se encontra disperso pelos volumes das

    Memorias da Academia publicados desde o principio do sculo XIX (p. 88). 43

    Sobre a evoluo da navegao portuguesa, com especial destaque para o conhecimento que os

    portugueses tinham do que se produzia na Europa, ver o texto de Jos Manuel Malho Pereira (2006),

    A evoluo da tcnica nutica portuguesa at ao uso do mtodo das distncias lunares, in Maria Isabel

    Vicente Maroto e Mariano Esteban Pieiro (eds.), Actas da XII Reunio Internacional de Histria da

    Nutica e da Hidrografia: La ciencia y el mar (pp. 125-148), Valladolid: Sever Cuesta (disponvel em

    http://chcul.fc.ul.pt/textos/malhao_pereira_2004b.pdf). Nas suas palavras, Na divulgao das tcnicas

    nuticas e do seu ensino em Portugal parece no termos deixado de acompanhar o que na Europa se

    praticava. Os trabalhos Fernando Oliveira (A Ars Nutica, de c. de 1570, que recentemente

    estudmos), de Manuel de Figueiredo (1603), Antnio de Naiera (1628), Valentim Estancel

    (manuscrito de fins do sculo XVII), Antnio Carvalho da Costa (de 1678 a c. 1690), Lus Serro

    Pimentel (1681), Manuel Pimentel (1712 em diante), e Francisco Xavier do Rego (1740), para s

    referir os que cobrem os sculos XVII e XVIII at ao desenvolvimento dos mtodos das distncias

    lunares, e do cronmetro, so actuais para a poca e mostram conhecer as fontes modernas europeias

    (p. 146). 44

    Referimo-nos aos trabalhos de Ana Mafalda Bastio (2010), Elementos para o estudo da nutica

    portuguesa do sculo XVII. A arte nutica do cdice 11006 da Biblioteca Nacional de Portugal

    (Dissertao de mestrado no publicada), Faculdade de Cincias da Universidade de Lisboa, Lisboa;

    Antnio Costa Canas (2004), A longitude na nutica do sculo XVII: a obra do padre Cristvo Bruno

    (Dissertao de mestrado no publicada), Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa; Jos

    Manuel Malho Pereira (2001), "Norte dos Pilotos Guia dos Curiozos" de Manuel dos Sanctos

    Rapozo: um livro de marinharia do sculo XVIII - Estudo crtico (Dissertao de mestrado),

    Universidade Nova de Lisboa, Lisboa. Foi editada em livro, em 2008 (Ericeira, Mar de Letras).

    http://chcul.fc.ul.pt/textos/malhao_pereira_2004b.pdf

  • 19

    organizao da nutica nacional sobretudo na dupla dimenso administrativa e

    pedaggica.

    O estudo da nutica para o sculo XVIII portugus um campo de abordagem

    historiogrfica que apresenta ainda muitas pistas de investigao. Para alm da sua

    dimenso tcnica, vista e lida nos manuais de navegao e nos diversos roteiros, h

    todo um conhecimento relativo aos aspetos do ensino da nutica que est por

    sistematizar. A centria de Setecentos , para esta ltima via, demasiado importante

    para ser secundarizada ou minimizada na abordagem que se faz no campo da histria

    da educao tcnica ou da histria da cincia em Portugal.

    Se existe uma valiosa bibliografia que abarca o perodo que medeia entre o incio do

    sculo XV e o final do sculo XVII, para o perodo de Setecentos, o conhecimento

    das dinmicas ligadas arte da pilotagem e, mais especificamente, sobre o ensino da

    nutica em Portugal, temos atualmente uma produo historiogrfica dispersa e

    parcelar45

    .

    Nas ltimas dcadas saram alguns trabalhos de investigao, sobretudo de autores

    que foram ou so oficiais da Marinha ou do Exrcito, com um importante contributo

    para o conhecimento do passado nutico portugus setecentista. De entre eles

    destacamos os nomes de Nuno Valdez dos Santos46

    , Henrique Alexandre da

    45

    A este propsito, ver o trabalho de Ney Paes Loureiro Malvasio (2010), A reforma da marinha de

    guerra no perodo pombalino (1761/1777): a criao de uma marinha estritamente militar e profissional

    e as fontes para seu estudo, Navigator. Subsdios para a histria martima do Brasil, 10, 70-82. Ney

    Malvasio apresentou uma discusso bibliogrfica em torno das principais fontes e autores para o estudo

    da marinha no tempo do rei D. Jos. Nesse mbito, dividiu a sua anlise em trs grandes pontos: a

    construo naval e a criao do Arsenal de Marinha de Lisboa, na sequncia da destruio pelo

    terramoto de 1755 da Ribeira das Naus; a militarizao da Marinha de Guerra e a proteo que esta deu

    navegao dos navios de comrcio; a reforma educacional, a partir de 1759, com influncia direta na

    formao de oficiais para a Marinha de Guerra. No final deste guia, elencou-se fontes manuscritas e

    impressas, bem como referncias bibliogrficas com muito interesse para o estudo do contexto

    reformador do reinado josefino. Recupere-se aqui o primeiro trabalho acadmico ligado Marinha do

    sculo XVIII, feito em Portugal: em 1957, Antnio Henriques Cabaa Baptista defendeu uma tese de

    licenciatura em histria e filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa com o ttulo O

    ressurgimento da marinha portuguesa no ltimo quartel do sculo XVIII. Tratou-se, no plano

    acadmico, de um trabalho original, pela profundidade com que se analisaram as reformas na Marinha

    implementadas em Portugal naquele perodo, tendo concentrado a sua investigao numa comparao

    do corpo de oficiais portugus com os seus homlogos estrangeiros. O autor advertia ento, nas

    palavras introdutrias, para a falta de estudos neste campo: embora o tema deste trabalho no seja

    totalmente indito, nunca o vimos tratado com a profundeza que ele requer. Todos o que a ele se

    referiram, fizeram-no em meia dzia de pginas ou menos ainda. 46

    Setecentos anos de estudos navais em Portugal (1985), Lisboa: Academia de Marinha. Sobre esta

    obra, Domingues (2011) chamou a ateno para o facto de ser a nica tentativa de construir um

    quadro global do ensino nutico em Portugal (p. 141).

  • 20

    Fonseca47

    , Jos Antnio Rodrigues Pereira48

    , Ablio Freire da Cruz Jnior49

    , Antnio

    Costa Canas50

    e Jos Manuel Malho Pereira51

    .

    Para se perceber a carncia de trabalhos acadmicos sobre histria da cincia nutica

    portuguesa, releve-se a defesa da primeira tese de doutoramento inteiramente

    dedicada ao seu estudo, datada de abril de 2012. O seu autor foi Antnio Costa Canas

    e o tema centrou-se na obra nutica do cosmgrafo Joo Baptista Lavanha52

    . Contudo,

    o panorama no deixa de ser animador neste campo de trabalho at porque outras

    teses se encontram em elaborao53

    pelo que, nos prximos anos, a historiografia

    portuguesa conhecer evidentes desenvolvimentos no mbito do estudo do ensino da

    cincia nutica.

    Em 2012, foram publicados dois volumes dedicados histria da Marinha portuguesa,

    um projeto editorial patrocinado pela Academia da Marinha de Lisboa. O primeiro

    deles abarca um perodo cronolgico que vai de 1500 a 166854

    e o segundo de 1669 a

    47

    Crnicas de marinha (1999), Lisboa: Edies Culturais da Marinha; A propsito do bicentenrio da

    criao da Companhia de Guarda-Marinhas e da sua academia (1985), Lisboa: Academia de

    Marinha. 48

    Campanhas navais 1807-1823 A marinha portuguesa no tempo de Napoleo (vol. II) (2005),

    Lisboa: Tribuna da Histria; A marinha de guerra portuguesa nos finais do sculo XVIII (2007),

    Separata do XVII Colquio de histria militar nos 200 anos das invases napolenicas em Portugal. A

    guerra peninsular: perspectivas multidisciplinares (pp. 103-119), Lisboa: Comisso Portuguesa de

    Histria Militar. Em 2010 saiu do prelo uma obra profusamente ilustrada da sua autoria com o ttulo

    Marinha portuguesa. Nove sculos de histria, edio da Comisso Cultural da Marinha. Nela se

    compendiou os principais momentos da histria da Marinha portuguesa, desde a presena dos povos

    anteriores formao da nacionalidade at atualidade. de salientar que as referncias relativas ao

    ensino nutico no Portugal Setecentista so diminutas, facto revelador da falta de estudos que abordem

    de um modo mais sistemtico a dimenso pedaggica que a arte de navegar conheceu naquela centria. 49

    O mundo martimo portugus na segunda metade do sculo XVIII (2002), Lisboa: Edies Culturais

    da Marinha. 50

    Os jesutas e o ensino da nutica (2005), Anais do Clube Militar Naval, CXXXV (outubro-dezembro),

    797-822. Publicou, em 2007, em coautoria com Carlos Manuel Valentim, Entre a prtica e a teoria. A

    criao de um ensino naval para oficiais da Marinha de Guerra em Portugal (uma breve nota), Anais do

    Clube Militar Naval, CXXXVII (julho-setembro), 541-551. 51

    Do autor da dissertao de mestrado dedicada ao estudo do livro de Manuel dos Santos Raposo,

    anteriormente citada, destacamos O ensino nutico em Goa sculos XVI a XIX. Comunicao

    apresentada na Academia da Marinha, a 8 de maio de 2007 (disponvel em http://tinyurl.com/67c4hyt). 52

    A tese, inscrita na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, foi defendida em 2012 e tem por

    ttulo A obra nutica de Joo Baptista Lavanha (c. 1550-1624). 53

    Referimo-nos ao trabalho de doutoramento no ramo de histria e filosofia das cincias da Faculdade

    de Cincias da Universidade de Lisboa da autoria de Ana Patrcia Martins, Daniel Augusto da Silva e o

    clculo actuarial (defendido em junho de 2013), sobretudo o captulo I Formao nas escolas da

    Marinha: de 1779 a 1864, e de Jos Manuel Malho Pereira, A Evoluo da nutica e da astronomia

    nutica em Portugal (sculos. XVII a XIX) e a obra do padre Jos Monteiro da Rocha. 54

    Navios, marinheiros e arte de navegar, 1500-1668 (coordenao de Francisco Contente Domingues),

    Lisboa: Academia de Marinha. de notar que esta obra patenteia uma preocupao em articular as

    questes tcnicas da nutica, quer dos navios quer dos mtodos de navegao, com as dimenses

    sociais do microcosmos que uma viagem martima concentrava e ainda com a dimenso pedaggica da

    difcil relao entre professor e aluno/piloto, verificada a partir da primeira metade do sculo XVI.

    http://tinyurl.com/67c4hyt

  • 21

    182355

    . Ambos os volumes contam com um captulo inteiramente dedicado ao ensino

    nutico e neles se abordam, no caso do primeiro volume56

    , a dimenso pedaggica da

    Aula da Esfera do colgio de Santo Anto e da lio do cosmgrafo mor, o

    desempenho profissional dos diferentes cosmgrafos mor de Pedro Nunes at Lus

    Serro Pimentel e a