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Universidade de Lisboa
Faculdade de Letras
A Construo do Trgico em A Sereia,
de Camilo Castelo Branco
Jorge Filipe de Arajo da Ressurreio
Dissertao
Mestrado em Estudos Romnicos
Literatura Portuguesa
2014
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Universidade de Lisboa
Faculdade de Letras
A Construo do Trgico em A Sereia,
de Camilo Castelo Branco
Jorge Filipe de Arajo da Ressurreio
Dissertao orientada pela
Professora Doutora Maria Cristina de Castro-Maia de Sousa
Pimentel e pela
Prof. Doutora Serafina Maria Grazina Martins
Mestrado em Estudos Romnicos
2014
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minha av Joaquina,
por tudo e muito mais.
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NDICE
Agradecimentos ........................................................................................................................ 5
Resumo ...................................................................................................................................... 6
Abstract ..................................................................................................................................... 7
Introduo ................................................................................................................................. 9
Captulo I A tragdia e o trgico: alguns aspectos para a sua caracterizao ............ 12
1. A tragdia e o trgico: a tradio grega ............................................................................ 12
2. A tragdia e o trgico: a tradio romntica ..................................................................... 23
Captulo II A Sereia: a construo do trgico ................................................................. 28
1. O autor textual e a construo do trgico ......................................................................... 31
2. Joaquina Eduarda: o canto da Sereia ................................................................................ 38
3. As categorias trgicas na construo dA Sereia .............................................................. 44
3.1 O conflito .................................................................................................................... 44
3.2 A liberdade e a necessidade ........................................................................................ 53
3.3 A culpa ........................................................................................................................ 61
3.4 O conhecimento e a ignorncia ................................................................................... 66
Concluso ................................................................................................................................ 70
Bibliografia ............................................................................................................................. 72
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Agradecimentos
s Professoras Doutoras Maria Cristina Pimentel e Serafina Martins, agradeo no
apenas as discusses de orientao e a inmera bibliografia, mas tambm a pacincia, a fora,
a coragem que me transmitiram ao longo de todo o tempo de trabalho.
s Professoras Doutoras Maria Alzira Seixo, Maria de Lourdes A. Ferraz, Maria Isabel
Rocheta, Irene Fialho e aos Professores Doutores Aires A. Nascimento, Arnaldo do Esprito
Santo, Jos Pedro Serra e Rodrigo Furtado, uma palavra de apreo pelos esclarecimentos de
dvidas sobre pontos concretos do trabalho.
Aos familiares e amigos, devo tambm uma palavra de gratido: aos meus pais, Rosa e
Jorge, e ao meu irmo, Joo, que, mesmo nos momentos mais complicados, partilharam os
meus sorrisos e as minhas lgrimas; minha prima Snia Prata, pela motivao dada nos
momentos de desistncia; Cludia Canastra e Joana Martins pela assdua e incalculvel
amizade; ao David Mota Veiga, Marta Romano e Sara Romano pela vida em comum; ao
Sempre Mais Alto, nomeadamente Catarina Pato, ao Rui Moniz e ao Tiago Santos, pelo
companheirismo, pela amizade e pela orao.
Aos que partiram ao longo desta caminhada: que este trabalho seja tambm deles.
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Resumo
A Sereia uma das vrias novelas passionais escritas por Camilo Castelo Branco. Este
tipo de narrativa camiliana caracterizado pelo conflito entre os protagonistas que pretendem
viver o seu direito a amar e as regras impostas quer pela famlia, quer pela sociedade, quer
mesmo pela religio. Daqui resulta uma narrativa plena de processos que visam demonstrar e
intensificar o sofrimento resultante da situao, que no raro termina com a morte dos heris.
A Sereia tem ainda a caracterstica de ter como fonte um manuscrito do sculo XVIII,
descoberto no princpio do sculo XX. O objectivo do nosso trabalho analisar a construo
do trgico nesta novela, no descurando nem a tradio grega, nem a tradio romntica da
tragdia.
O estudo encontra-se estruturado em dois captulos fundamentais: no primeiro, ter-se-
em conta as questes tericas do estudo da tragdia e do trgico, na tradio grega e na
tradio romntica, separadamente; no segundo captulo, a ateno recair sobre o estudo dA
Sereia. Atentar-se- primeiramente no narrador, bem como na conduo de leitura que este
realiza e os processos utilizados para comprovar a verdade do que narra. Outros elementos
exteriores s categorias trgicas, mas que auxiliam na construo do trgico, sero analisados,
como os paratextos da novela camiliana. Seguidamente, analisaremos quatro categorias
trgicas e a construo destas na novela dada estampa em 1865.
Palavras-chave: Camilo Castelo Branco, trgico, categorias trgicas, Romantismo.
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Abstract
A Sereia is one of the several passion novels written by Camilo Castelo Branco. This
kind of camilian narrative is characterized by the conflict among its characters, wishing to live
their right to love and the rules imposed either by relatives, the society or religion. Based on
this arises a narrative filled with processes which aim to demonstrate and intensify the
suffering of the situation, that most of the times ends with the death of the main characters. A
Sereia has also the peculiar aspect of having as source a manuscript of the 18th century, found
in the beginning of the 20th century. The goal of this essay is to analyse the building of the
tragedy in this novel, without forgetting neither the Greek, nor the Romantic tragedy.
The essay is structured in two main chapters: on the first, we will take into account,
theoretical aspects regarding the study of the tragedy and tragic, both in the Greek and
Romantic tradition separately; on the second chapter, our attention will focus on the study of
A Sereia. We will concentrate our interest on the narrator, as well as on the way he leads the
reading and the processes used to prove that what he says is true. Other unconnected aspects
with the tragic categories, but which help in the construction of tragic, will be taken into
account, as paratexts of the camilian novel. Afterwards, we will analyse four tragic categories
and their construction in Camilos novel.
Keywords: Camilo Castelo Branco, tragic, tragic categories, Romanticism.
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Introduo
No Prlogo que antecede a biografia de Camilo Castelo Branco intitulada O
Penitente, de Teixeira de Pascoaes, o escritor afirma: Se existe em Camilo um escritor
romntico [...], existe nele tambm o ser humano ou metafsico, o interrogador da vida e da
morte, e o terrvel juiz da Providncia (Pascoaes 2002, 26). Podemos alargar a assero de
Pascoaes dizendo que existe um Camilo que espalha pelas pginas das suas obras um
Romantismo em voga, mostrando, a par disso, o mais profundo da alma humana. E foi esta a
base deste estudo. Na verdade, parece-nos que o trgico dos romances camilianos ainda no
est suficientemente estudado. Se esse trgico aproveitado de uma escola literria que o
alimentava, Camilo aproveita-o tambm para colocar nas suas obras os protagonistas perante
sofrimentos que fazem questionar a condio humana, sobre esse martrio que nos parece ser
imerecido, enfim, sobre essa morte que arranca da vida seres de excepo.
A produo camiliana vasta e, tendo em conta a tipologia estabelecida por Jacinto do
Prado Coelho (2001), a novela passional , sem dvida, o tipo de obra que Camilo mais
produziu. Segundo o mesmo autor, a primeira, Carlota ngela, surge poucos anos depois da
sua estreia como romancista. J nela, possvel verificar um aspecto sistemtico da sua
escrita passional: o sofrimento atroz que recai sobre os protagonistas por verem negado o
direito de amar. Os motivos que levaro os protagonistas das vrias novelas a este martrio
podero ser diferentes; no entanto, este sofrimento ser uma constante ao longo de toda a
produo camiliana.
No raro, o sofrimento causado pelos familiares das personagens principais que, por
questes de heranas, patrimnio, numa palavra, dinheiro, lhes negam o amor e a surge o
conflito entre seres de excepo e familiares endinheirados e gananciosos.
Por isto, acreditmos que a melhor maneira de compreender o trgico camiliano era
estudando-o a partir das categorias da tragdia grega. Tivemos sempre presente a distncia
que afasta a poca grega da poca camiliana e, consequentemente, os seus contextos culturais
e religiosos. No entanto, ainda que o trgico possa ser transmitido de formas diversas (na
Grcia antiga atravs do texto dramtico e da sua encenao; no Romantismo,
primordialmente atravs do texto narrativo), cremos, como ser demonstrado no captulo A
tragdia e o trgico: alguns aspectos para a sua caracterizao, que no difere o modo como
o ser humano o vivencia ou o sente, isto , seja qual for a poca histrico-cultural, o cerne do
trgico no muda; aquilo que difere e que tivemos em conta o quadro cultural e religioso em
que o sujeito no qual recai a tragdia se insere.
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Assim, nosso objectivo analisar a construo do trgico nesta novela, no descurando
nem a tradio grega, nem a tradio romntica da tragdia, e fazendo, nas partes que assim o
justificarem, um estudo comparativo entre A Sereia e a narrativa que encontramos no j
referido manuscrito do sculo XVIII.
O estudo encontra-se estruturado em dois captulos. No primeiro, teremos em conta as
questes tericas do estudo da tragdia e do trgico, na tradio grega e na tradio romntica,
separadamente. De facto, para o estudo da construo do trgico na novela camiliana,
interessa-nos perceber a tragdia grega e os conceitos que dela derivam. Assim, centraremos o
nosso estudo em quatro categorias trgicas: o conflito, a liberdade e a necessidade, a culpa, e
o conhecimento e a ignorncia. De seguida, e uma vez que estas categorias trgicas a ele
dizem respeito, atentaremos na figura do heri trgico enquanto sujeito sobre quem recai a
tragdia. Outros elementos, ainda que brevemente, sero tidos em conta neste primeiro
captulo pois nos pareceu serem importantes para o estudo que nos propusemos. Desta feita,
referiremos tambm a importncia do coro trgico, da t e dos elementos que formam
uma aco complexa: peripcia, reconhecimento e sofrimento.
Posto isto, observaremos a importncia do trgico no Romantismo. De facto, ao ter
como caracterstica a afirmao do sujeito enquanto tal, o Romantismo ope o heri
sociedade, na qual ele no se insere. Consequentemente, atentaremos no heri e no narrador
romnticos pois neles, de formas diversas, se exprime o trgico da poca.
No captulo II da dissertao, a nossa ateno recair sobre o estudo dA Sereia.
Atentaremos primeiramente no narrador, bem como na conduo de leitura que este realiza e
nos processos utilizados para comprovar a verdade do que narra. Outros elementos exteriores
s categorias trgicas, mas que auxiliam na sua construo, sero tidos em conta, como os
paratextos da novela camiliana.
Seguidamente, faremos um estudo comparativo entre a obra de Camilo e o manuscrito
do sculo XVIII que lhe serviu de fonte, no que categoria trgica do conflito diz respeito.
Aps isto, analisaremos as restantes categorias do trgico presentes em A Sereia. Na verdade,
ao faz-lo, compreenderemos como Camilo constri o trgico da sua novela a partir das
formas supremas de o dizer.
Para o nosso estudo, utilizaremos a edio da novela A Sereia editada pela Lello &
Irmo Editores. Para limpar o texto de repetidas referncias bibliogrficas a esta obra,
utilizamos apenas a inicial da novela, seguida da pgina em que a citao se encontra
exemplo: (S: 46). Quando tal acontece, referimo-nos sempre a Castelo Branco 1986.
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O mesmo no que diz respeito edio utilizada do manuscrito do sculo XVIII.
Utilizaremos a inicial, seguida da pgina respeitante citao exemplo: (M: 23). Ao faz-
lo, referimo-nos sempre a Costa 1930. Ainda sobre o manuscrito acrescente-se que foi
mantida a ortografia original da edio utilizada.
Importa ainda salientar que optmos por referir sempre a abreviatura e a pgina de onde
retirada a citao, no tendo seguido o critrio usado para as outras obras citadas em que so
empregues as abreviaturas id. e ibid.
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Captulo I A tragdia e o trgico: alguns aspectos para
a sua caracterizao
1. A tragdia e o trgico: a tradio grega
Camilo Castelo Branco, nas suas novelas passionais, pe em evidncia uma mundiviso
que, no raro, se centra no amor. Como prprio do Romantismo literrio1, o sublime e o
grotesco surgem nas suas narrativas, opondo-se e criando, desta maneira, um conflito entre os
que se sentem no direito de amar e os que vem no patrimnio familiar e no dinheiro (que, do
ponto de vista camiliano, so grotescos) as foras que regem a sociedade. Ou seja, um embate
entre almas sublimes e almas vulgares2.
Deparamos ento com o conflito (cujo eixo o amor) que parece ser o tema central das
novelas passionais camilianas. Contudo, o conflito no a nica forma de expressar o trgico,
podendo ser apenas um dos meios para o fazer. Para alm disso, para um conflito ser trgico,
os seus dois plos tm de estar ao mesmo nvel de exequibilidade e no se podem solucionar
um ao outro. Ou seja, no possvel escolher os dois plos, em vez de apenas um. Diz Goethe
que [t]oda a tragdia depende de um conflito insolvel. Assim que a harmonia obtida ou se
torna possvel, a tragdia desaparece (apud Serra 2006: 56).
Como iremos demostrar adiante, no s no conflito se manifesta o trgico dos textos
literrios. Admitimos que ser o seu lado mais visvel; contudo, outros aspectos h a ter em
conta.
O tema central deste estudo a construo trgica realizada por Camilo na novela A
Sereia. Os processos so variados, sendo indispensvel, para posteriormente os analisarmos,
fazermos breves consideraes sobre a tragdia e o trgico.
Para se estudar a tragicidade, temos de recuar, inevitavelmente, tragdia grega.
Contudo, mesmo a leitura das tragdias que chegaram aos nossos dias dos seus trs maiores
autores (squilo, Sfocles e Eurpides) no faculta de modo transparente uma definio de
trgico. Esta dificuldade em definir o trgico advm do facto de cada obra literria (e
centremo-nos apenas na literatura) o exprimir de diferentes maneiras, uma vez que o trgico
nos d a possibilidade desta amplitude. Assim, na trilogia Oresteia, de squilo, o trgico
exprime-se atravs de, pelo menos, quatro modos, que Jos Pedro Serra (2006: 14) denomina
como categorias trgicas: o dilema/conflito de Agammnon, a deciso de Agammnon, o
1 Cf. Rocheta 1987: 25. 2 Cf. Coelho 2001: 239 e Ferraz 2011: 192-193.
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conhecimento de Cassandra e o conflito de Orestes. Se o conflito de Orestes diz respeito
segunda tragdia da trilogia, As Coforas, o conflito e a deciso de Agammnon, bem como o
conhecimento de Cassandra, tm que ver com a primeira, Agammnon. Esta simples
observao permite-nos concluir que o trgico se pode traduzir, no mesmo texto, mediante
mltiplas categorias.
Quando decidimos reflectir sobre a tragdia e o trgico, tnhamos j conscincia do
problema com que amos deparar. De facto, a definio de trgico continua a levantar
questes e a suscitar debates entre os estudiosos. Tragdia, a nosso ver, a corporizao do
trgico. Corporizao que ganhar diferentes contornos dependendo da poca em que se
localiza. Assim, a forma da tragdia grega3 no ser igual da tragdia latina, renascentista ou
romntica. Alis, no perodo romntico, o trgico pode assumir a forma de texto narrativo em
vez do habitual texto dramtico4. Contudo, o maior problema reside na definio desse
trgico. No o facto de uma pea de teatro ter coro, dois ou trs actores, entre outras
caractersticas formais da tragdia grega, que faz com que ela seja uma tragdia. O trgico no
reside na forma mas sim no contedo, que explana uma forma de olhar e ver o mundo: uma
mundividncia trgica. No podemos, porm, negar que h caractersticas formais da tragdia
que, aliando-se s categorias trgicas, traduzem esse modo especfico de ver o mundo.
Recusamo-nos a tentar encontrar uma frmula que defina o trgico. A sua complexidade
e a sua abrangncia impedem-nos de tal. Pretendemos, no entanto, formular um pensamento,
abarcando os tpicos essenciais para a compreenso do trgico. E esse pensamento ter
sempre de comear nos textos da Grcia antiga.
Segundo Albin Lesky (2003: 23), [d]esde que modernamente nos de novo possvel
considerar a Ilada e a Odisseia como aquilo que realmente so, ou seja, como obras de arte,
[...] suscita-se com crescente vivacidade a questo relativa aos germes do trgico nas duas
epopeias. Depois de um captulo significativamente intitulado Homero, precursor dos
trgicos, tambm Antnio Freire, S. J. (1963: 53) coloca nos poemas do pico grego o incio
desse esprito trgico, declarando que, [e]mbora directamente originria de uma das
modalidades do lirismo e ditirambo, sobretudo na estrutura pica dos poemas homricos que
entronca a dramaturgia grega. Jacqueline de Romilly (2008: 22) vai mais longe e afirma o
seguinte:
3 Mesmo na tragdia grega, h diferenas, quanto forma, nos textos dos trs principais tragedigrafos. 4 Devemos tambm admitir, uma vez que o trgico no se identifica com um conjunto de convenes teatrais,
que aquele possa ter uma expresso para alm dos limites restritos da representao dramtica, quer noutros
gneros literrios, como no romance, quer nas artes plsticas ou na msica, quer ainda na filosofia. esta, de
resto, a razo, aliada perda de fulgor do teatro, pela qual, por exemplo, so hoje frequentes os estudos sobre a
viso trgica de certos romancistas ou de certos romances (Serra 2006: 67).
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Apresentar o sentimento da vida, inspirar terror e piedade, obrigar a partilhar um
sofrimento ou uma ansiedade a epopeia fizera-o sempre e ensinou os trgicos a faz-
-lo. Poderamos, ainda, dizer que, se a festa [em honra de Dioniso] criou o gnero trgico,
foi a influncia da epopeia que fez dele um gnero literrio.
De facto, no s na epopeia homrica que tal acontece. Avanando at literatura
latina, vemos na Eneida, de Verglio, em vrios momentos, o trgico a unir-se ao pico.
Mltiplos exemplos h, mas apontemos apenas dois. A histria de amor vivida por Eneias e a
rainha de Cartago, Dido, culminando no suicdio desta, suscita no leitor vrios sentimentos
que so fruto de uma certa ironia trgica: sabemos de antemo que o guerreiro troiano no
pode viver o amor que sente por Dido, uma vez que a sua misso, outorgada pelos deuses,
seguir em busca da terra que lhe tinha sido prometida. Desta forma, levantada tambm a
questo, que retomaremos adiante, da fora do destino em luta com o livre arbtrio do ser
humano. Outro exemplo, na epopeia vergiliana, o da morte de Turno, ou melhor dizendo, o
momento de hesitao por que passa Eneias quando o inimigo j se encontra por terra sua
merc. Vale a pena reler o passo de Verglio (Aen. XII, 938-952):
Eneias, enrgico sob as suas armas, estava imvel, volvendo o olhar para um lado e para
o outro, e susteve a dextra. E j as palavras [de Turno] comeavam a demov-lo e
hesitava cada vez mais, quando o funesto cinturo comeou a despontar no cimo do
ombro e a refulgir com os pregos familiares. Era o cinto do jovem Palante, que Turno
vencera e prostrara com um golpe e que trazia aos ombros como trofu inimigo. Aquele,
ao ver aqueles despojos, que faziam recordar um acerbo desgosto, inflamado pelas Frias
e terrivelmente encolerizado, bradou:
Pois hs-de tu escapar-me, tu que envergas os despojos dos meus? Palante que
com este golpe te imola, Palante quem te faz expiar o teu castigo com o teu criminoso
sangue!
Com estas palavras, frvido de ira, enterra-lhe a espada no peito. O corpo entorpece-lhe
com o frio da morte; a vida, com um gemido, foge indignada para as sombras. (Verglio
2011: 336)
Um dado significativo ainda sobre estes traos da epopeia na tragdia grega tem que ver
com o que contado em ambas. De facto, se a tragdia [se] associou[...] sempre aos mesmos
mitos que a epopeia (Romilly 2008: 20-21), aquela mostrava o que esta apenas contava e a
tragdia podia assim retirar dos factos picos um efeito mais imediato e uma lio mais
solene (ibid.: 23). A autora exemplifica o que afirma com o caso da famlia de Agammnon:
o assassnio do Atrida s mos da mulher ou do amante desta e a vinda de Orestes para vingar
o pai so factos que Homero j narrava na Odisseia5, tema retomado por squilo na trilogia
trgica Oresteia.
5 Hom., Od., I, 29-43: Pois ao corao lhe vinha a memria do irrepreensvel Egisto, / a quem assassinara
Orestes, filho de Agammnon. / A pensar nele se dirigiu assim aos outros imortais: // Vede bem como os
mortais acusam os deuses! / De ns (dizem) provm as desgraas, quando so eles, / pela sua loucura, que
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De facto, a origem da tragdia grega, que teve o seu apogeu no sculo V a. C., ainda
uma incgnita para os estudiosos. No havendo nada de substancial que confirme a teoria da
etimologia, h contudo quem explique a origem desse gnero dramtico atravs dela. Sobre
este assunto, Jacqueline de Romilly (ibid.: 17) informa que primeiro, existe este termo a
trag-dia que significa o canto do bode. (...) A hiptese mais difundida consiste em
aproximar o bode dos stiros, associados normalmente ao culto de Dioniso. A autora
acrescenta, mais adiante, que desde a Antiguidade, alguns preferiram interpretar de outra
forma o nome da tragdia. Pensaram que o bode era ou a recompensa oferecida ao melhor
participante, ou a vtima oferecida em sacrifcio (ibid.: 18).
Jos Pedro Serra (2006: 25), depois de referir esta etimologia e voltando questo da
essncia do trgico, lembra, contudo, que o sentido etimolgico de tragdia no s no
acrescenta qualquer luz aos textos dos tragedigrafos, revelando-se marginal, como tambm
no nos d qualquer indicao para melhor agarrarmos o mago do trgico.
O estilo nobre e grandioso, o final infeliz, a grandeza, a queda, o heri, o sofrimento, a
origem da tragdia, a catarse, as correntes filosficas e morais dos comentadores, bem como
os elementos formais da representao trgica so alguns dos conceitos de que se socorreram
os estudiosos que tentaram definir a tragdia e o trgico.
Como referimos anteriormente, aquilo que diz o trgico so as categorias trgicas.
Definidas por Jos Pedro Serra (ibid.: 191-192), estas so:
formas primeiras de dizer o trgico, gneros supremos, cada um deles englobando vrias
concretizaes, expresses da tragdia, mas eles prprios no subordinados a nenhum
gnero superior. Enquanto gneros supremos, as categorias so irredutveis entre si,
oferecendo focagens diferentes do trgico. Tal facto no significa que as categorias no se
relacionem entre si []
Torna-se necessrio referir de que modo as categorias que mencionmos transmitem o
trgico. Jos Pedro Serra (ibid.: 15), quando se prope caracterizar as categorias, nota que
obrigado a admitir a possibilidade de o estudo exaustivo e pormenorizado de todas as
tragdias gregas exigir a integrao de mais uma ou outra categoria trgica. Deste modo,
torna-se claro que, para o autor, aquilo que realmente diz o trgico no so elementos
sofrem mais do que deviam! / Como agora Egisto, alm do que lhe era permitido, / do Atrida desposou a mulher,
matando Agammnon / sua chegada, sabendo bem da ngreme desgraa / pois lha tnhamos predito ao
mandarmos / Hermes, o vigilante Matador de Argos: / que no matasse Agammnon nem lhe tirasse a esposa, /
pois pela mo de Orestes chegaria a vingana do Atrida, / quando atingisse a idade adulta e saudades da terra
sentisse. / Assim lhe falou Hermes; mas seus bons conselhos o esprito / de Egisto no convenceram. Agora
pagou tudo de uma vez. (Homero 2008: 26). Cf. tambm Hom., Od., III, 193-198 e 254-312; IV, 519-547.
Nestes passos, Homero refere sempre Egisto como o assassino de Agammnon. Contudo, em Hom., Od., XI,
452-453, Agammnon parece afirmar ter sido Clitemnestra a sua matadora: Mas a mulher no me deixou saciar
os olhos / com a vista do meu filho; antes disso me matou (ibid.: 193).
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exteriores a essa maneira prpria de ver o mundo e a vida; as tcnicas do escritor, ao construir
a aco, podem contribu[ir] para a manifestao do trgico (ibid.: 195), mas no devem ser
tomadas por categorias (ibid.: 194) porque esses processos no nos do o cerne do trgico.
Este s est espelhado no contedo da representao do mundo que dessa mesma tragdia
emana (id., ibid.). Jos Pedro Serra (ibid.: 196) acaba por identificar as categorias que dizem
o trgico: o conflito, o destino e a liberdade, a culpa, o conhecimento e a ignorncia.
Tentaremos agora sintetizar de que modo estas quatro categorias transmitem o trgico,
recorrendo ao pormenorizado estudo de Jos Pedro Serra sobre o tema.
O conflito ser, porventura, a categoria que mais correntemente tem sido identificada
com o cerne do trgico. De facto, autores houve que viram nele a principal caracterstica da
tragdia. Contudo, se assim o tomssemos, excluiramos tragdias em que no se apresenta
qualquer conflito. O que est em causa no a importncia do conflito insolvel como forma
de o trgico se expressar; o que interessa salientar que no ser o nico meio para transmitir
a tragicidade de um texto. Jos Pedro Serra (2006: 198) define desta maneira a categoria
trgica do conflito:
Uma oposio torna-se conflituosa quando princpios opostos exigem, simultaneamente
para um mesmo objecto ou situao, determinaes ou solues contraditrias e
inconciliveis. Compreende-se assim que o conflito trgico, em lugar de uma harmoniosa
unidade de contrrios, traga consigo uma perturbao da ordem do real, ou, pelo menos,
uma sria ameaa de desordem. O conflito apresenta-se na tragdia grega como algo
dissonante, como um elemento de fractura na ordenao e estabilidade csmicas,
entrevendo-se neste facto a sua natureza especificamente trgica.
Este conflito, contudo, pode surgir de duas maneiras distintas: seja sob a forma de um
confronto entre personagens, seja como um dilema que se ergue perante uma das
personagens6. Deste modo, somos capazes de perceber a diferena entre o conflito que surge
na tragdia Antgona, de Sfocles, e aquele que aparece em As Suplicantes, de squilo. Se no
primeiro destes textos o que vemos um embate entre Antgona e Creonte pois aquela
sepulta o irmo, contra as ordens do rei da cidade , no texto esquiliano estamos perante um
dilema Pelasgo ou acolhe as suplicantes e, deste modo, se coloca a si e cidade numa
guerra violenta contra os filhos do Egipto ou, ao invs, recusa proteger as Danaides,
esquivando-se guerra mas aceitando o castigo a que a sua cidade ser sujeita por no
cumprir o grande dever religioso de Zeus, Protector dos Suplicantes.
Outro aspecto a que o ensasta d importncia tem que ver com a estrutura da aco. Na
verdade, [a]s tragdias que nos apresentam uma situao conflituosa estruturam-se em volta
6 Cf. Serra 2006: 199.
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do conflito que, desta forma, ocupa o lugar central a partir do qual se pode compreender a
sequncia dos acontecimentos que constituem a aco da tragdia (id., ibid.),
denominando o autor estes textos como tragdias de conflito. No deixa o autor, porm, de
lembrar que importa atentar no conflito central do texto trgico e no nos que surgem como
consequncias daquele7.
Ainda hoje, em pleno sculo XXI, o Homem se questiona sobre a existncia de um
destino que se encontra previamente traado e ao qual ele no pode fugir. Segundo Celeste
Brasil Soares Malpique (2012: 80), o heri muitas vezes uma personagem que, embora
forte e corajosa, no parece usufruir de livre arbtrio; um predestinado a feitos gloriosos,
quantas vezes um predestinado ao sofrimento. Assim, a tragdia diz-se tambm mediante
a liberdade e a fatalidade, da tenso que entre ambas se cria (Serra 2006: 287). Por isto, a
tenso entre a necessidade e a escolha outra das categorias que transmitem o trgico.
Ser o Homem livre o suficiente para escolher os caminhos da sua vida? Ou, pelo
contrrio, apenas uma marioneta nas mos de uma entidade superior? Estas posies so
extremas. De facto, o homem trgico sabe que o lugar da sua habitao ainda o lugar de
habitao dos deuses, terra de cultivo e de culto, e, por isso, sabe tambm que a sua sorte est
nas mos dos deuses (ibid.: 292). Porm, este pensamento ingnuo, s por si, faria com que
os gestos humanos dos mais gloriosos aos mais cobardes se perdessem na bruma do que
emprestado pelas foras superiores que regem o Homem8. Por isso, o Homem trgico no
pode ser simples marioneta, sem alma nem voz. No um ser que sofre passivamente o
destino que lhe est guardado porque, segundo Serra (ibid.: 293), a tragdia introduz um
elemento essencial, a conscincia:
nem no auge da dor, quando a necessidade cumpre implacavelmente os seus austeros
decretos, a tragdia reduz o homem condio de manipulado ttere. Na aparente
desordem de uma sorte funesta, ou na destruio do heri pela fora da incontornvel
necessidade, mesmo a, permanece a conscincia, foco de rebeldia contra um
aniquilamento mudo e informe.
Mais do que isso, o heri trgico sabe-se herdeiro do heri pico, tem conscincia de
que, tal como ele, est sob o olhar atento dos deuses. No entanto, sabe tambm ser diferente
do seu antecessor, na medida em que este no tem noo do que seja reflectir ou pensar sobre
o que fazer. Ele simplesmente faz. No caso do heri trgico, h uma demora perante as
situaes que lhe so postas no seu caminho. Esta demora, porm, no para reflectir ou
7 Na Antgona de Sfocles, a sequncia do prlogo e dos episdios revela vrios conflitos: entre Antgona e
Ismena, entre Hmon e Creonte, entre Creonte e Tirsias; tais conflitos, porm, so adjacentes e derivam do
conflito central que, a propsito da sepultura de Polinices, ope Antgona a Creonte. sobre este ltimo, para
uma compreenso do conflito trgico na Antgona, que nos devemos debruar (id., ibid.). 8 Cf. ibid.: 288-289.
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18
decidir pois o homem trgico continua com a conscincia de que habitado por foras
exteriores a ele e de que o lugar [...] onde a tenso de foras acontece (ibid.: 304). uma
demora por se saber destoante do mundo em que habita. E nisto reside a ambiguidade do
homem trgico: sabe-se subjugado aos deuses mas sente-se diferente da ordem universal.
Outra das categorias trgicas estudada por Jos Pedro Serra a culpa, que est
intimamente ligada falta ou erro trgico. Deste modo, para compreender esta categoria na
sua essncia preciso compreender tambm onde erra e como erra a personagem.
Uma das vertentes que distingue a culpa trgica da culpa no trgica tem que ver com o
alcance que aquela adquire, isto , a culpa, na tragdia, atinge no s o sujeito como aquilo
que o rodeia: A culpa vai muito alm dos limites individuais, envolve a famlia e a , e a
vai muito alm de uma andina e inconsequente desobedincia a uma qualquer
norma (ibid.: 343-344). Na verdade, a hamartia e a consequente culpa adquirem um lugar
central numa cadeia de factos que se inicia no crime que exige um castigo, uma expiao,
nica forma de reposio da ordem; este ciclo de crime e castigo integra, naturalmente, os
sofrimentos e as infelicidades que pesam sobre os mortais (ibid.: 344).
Directamente relacionada com esta, encontra-se a categoria trgica do conhecimento ou
falta dele. De facto, [n]o raras vezes a falta e a culpa aparecem como o resultado de uma
incapacidade de previso, ela prpria derivada de um conhecimento limitado (ibid.: 395).
Mas, mais do que isto, a categoria trgica em apreo ganha autonomia, pois casos h em que o
conhecimento ou a ignorncia, no causando erros, adquirem um grande pendor trgico. Um
dos exemplos o caso de Cassandra da tragdia Agammnon de squilo, pois so dois os
aspectos eminentemente trgicos na [sua] interveno []: um consiste na posse de um
conhecimento certo, mas sem crdito; o outro consiste na irremissibilidade da conscincia,
ainda que impotente (ibid.: 397).
As categorias trgicas, por serem a forma suprema de dizer o trgico, recaem, todavia,
no raro, sobre o heri. A primeira reflexo feita sobre este tipo de personagem foi a de
Aristteles na Potica. De facto, Aristteles afirma: Uma vez que quem imita representa os
homens em aco, foroso que estes sejam bons ou maus [...] e melhores do que ns ou
piores ou tal e qual somos (1448a)9, esclarecendo pouco depois que a tragdia se distingue
da comdia neste aspecto: esta quer representar os homens inferiores, aquela superiores aos da
realidade (1448a). Mais adiante, o filsofo afirma que os heris trgicos so aqueles que
9 As citaes da Potica de Aristteles referem-se a Aristteles 2011.
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19
no se distinguem nem pela sua virtude nem pela justia; to-pouco caem no infortnio
devido sua maldade ou perversidade, mas em consequncia de um qualquer erro (1453a).
Sabendo ento que a tragdia a imitao de uma aco elevada (1449b), que o
homem trgico deve ser superior, mas que tambm no se deve distinguir nem pela sua
virtude nem pela justia (1453a), torna-se fcil concluir que o heri trgico tem de ser uma
personagem que, simultnea e paradoxalmente, seja igual ao espectador da tragdia, de modo
a que aquele consiga suscitar neste os sentimentos de compaixo e temor aquela diz
respeito ao homem que infeliz sem o merecer, e este aos que se mostram semelhantes a ns
(1453a) , mas tambm superior a ele. Assim, a aco elevada que cabe ao homem trgico
deve situar-se acima da vulgaridade, alm do agir comum do homem banal, e as aces
devem ser desenhadas de acordo com o esprito superlativo dos homens que as praticam
(Serra 2006: 156). Importa notar que a superioridade do heri trgico no tem que ver com o
seu estatuto social mas antes com a dimenso tica da sua aco10. Assim:
As personagens da tragdia devem ser superiores quanto grandeza do gesto e
linguagem, porventura quanto prosperidade, como as personagens da epopeia, mas
devem ser como ns quanto compreenso da nossa experincia tica e quanto s
condies de fragilidade e instabilidade em que vivemos. As personagens da tragdia
representam-nos na dimenso mais significativa, e por isso mais grandiosa, de ns
prprios. (ibid.: 157)
Para Maria do Cu Fialho (1977: 381), o heri trgico tambm representa o que de mais
profundo h na humanidade:
A experincia trgica do Homem, dissemos ns, acontece em dor e em tenso: em dor,
uma vez que, levando-o a conhecer-se at aos seus limites, o leva a experimentar a sua
grandeza e a sua limitao por via de uma situao que a isto o apele, isto , uma situao
que o ultrapasse, que ultrapasse a sua capacidade de resposta de modo a provocar a ida
at aos confins de si mesmo. Assim, o trgico pode valer como teste de profundidade das
personagens ou, generalizando, da profundidade humana: quanto mais profundo, mais
trgico.
Numa perspectiva semelhante, encontramos a definio dada por Pedro Balaus Custdio
(1997: 1002; itlico original), afirmando que a tragdia pe em palco o H[eri] no momento
mais pattico da aco, quando sobre ele se abatem os infortnios e os cruis desgnios do
destino, isolando-o e obrigando-o a pesados e insuportveis sacrifcios.
Num estudo que se afasta em parte da literatura para se centrar na psicologia do ser
humano em relao com mitos e heris, Celeste Brasil Soares Malpique (2012: 80) define no
10 O essencial parece estar [...] no valor da aco, no alto significado tico que esta tem de assumir para que o
se torne grave e srio (Serra 2006: 156).
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20
s o conceito de Heri11, como faz a distino entre heri pico e heri trgico. Se quele se
atribuem feitos extraordinrios, coragem e argcia que os torna capazes de vencer obstculos
at ento intransponveis, a este esto reservadas as subtilezas e conflitos da alma humana:
ele vive no seu interior a luta, o conflito, e debate-se com a tragdia da sua condio
humana, isto , entre sentimentos contraditrios, entre o amor e o dio, entre os impulsos de
vingana e a culpa, entre o desejo e a impotncia face aos impulsos (ibid.: 81).
Paralelamente ao heri trgico, outra personagem adquire um especial relevo na
tragdia tica: o coro. No que a este diz respeito, Aristteles, na Potica, chama a ateno
para a sua importncia pois o coro no s deve ser considerado como um dos actores, mas
tambm ser uma parte do todo e participar na aco (1456a).
Mas como participa o coro da aco trgica? Qual a razo para que o coro seja
considerado como um dos actores, tendo assim tanta importncia como as outras
personagens? O coro era o elemento mais importante da tragdia, no seu incio, e como
exemplo para esta relevncia encontramos certas tragdias que eram intituladas com os nomes
dos coros12. Isto acontecia porque, na origem, o coro tinha um papel preponderante no curso
da tragdia (Romilly 2008: 29). O destino dele dependia do destino das outras personagens e,
por isso, compreendemos que ele tenha que intervir, suplicar, esperar, e que, enfim, as suas
emoes marquem o compasso, de um extremo ao outro, das diversas etapas da aco (ibid.:
30).
Contudo, o coro impotente. De facto, s resta, ao coro trgico, esperar sem nada fazer,
lamentando-se apenas, suplicando por vezes. A sua sorte ser decidida pela aco das outras
personagens e nunca pela dele. Por isso, diversas vezes, encontramos um coro constitudo por
mulheres ou ancios que no podem combater ou defender-se13.
Voltemos um pouco atrs e lembremos o que Aristteles disse sobre os heris trgicos:
no se distinguem nem pela sua virtude nem pela justia; to-pouco caem no infortnio
devido sua maldade ou perversidade, mas em consequncia de um qualquer erro (1453a).
A traduo do termo por erro no de todo despropositada. De facto, se o vocbulo
grego poderia ser traduzido tambm por falta ou falha, a opo escolhida mostra a
11 Tem pois coerncia falar aqui de Heris, como figuras arquetpicas dotadas de atributos excepcionais para
confrontar a Natureza e superar a morte (Malpique 2012: 79). 12 Os Persas, As Suplicantes, As Coforas, As Eumnides, incluem-se nestes casos; e tambm, para Eurpides,
As Troianas ou As Bacantes. Acontece mesmo que o ttulo tenha sido dado deste modo, quando a natureza do
coro j no permitia definir o contedo da tragdia como com As Traqunias, de Sfocles, ou As Fencias, de
Eurpides (Romilly 2008: 28). 13 os ancios dos Persas e os do Agammnon so exemplos bem claros; e os do Agammnon at se lamentam,
no incio da pea (ibid.: 30).
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interpretao que de se tem vindo a adoptar14. Jos Pedro Serra (2006: 160) chama a
nossa ateno para o facto de a oscilao entre erro moral e erro intelectual [ser] grande,
dependendo das pocas e dos autores. Entre estes dois plos interpretativos do vocbulo
grego surge outro: defeito de carcter. Deste modo, deparamos com trs interpretaes
possveis: falha moral, defeito de carcter, e erro intelectual15.
A primeira destas interpretaes tem, antes de mais, um fundo lingustico: de facto, o
termo foi traduzido para o latim cristo por peccatum, assumindo na Idade Mdia o
sentido moral que ainda hoje lhe atribudo16. O que de falha moral se conclui tem ento que
ver com um erro cometido em conscincia, ou seja, um pecado, um crime:
Por detrs dessa equivalncia [de hamartia a culpa] est implcita uma moralizao da
arte, nomeadamente dramtica, no sentido de substituir a causalidade de uma cadeia
factual pela de uma cadeia tica, isto , a queda do heri seria o resultado dos seus
peccata, na relao de castigo e culpa, testemunho de uma justia universal e
transcendente (Fialho 1977: 384).
O mesmo, embora de uma outra forma, acontece com a interpretao de por
defeito de carcter. De facto, subjacente a este conceito est o facto de o erro ser cometido em
conscincia tal como na de falha moral. Contudo, aqui, o que leva o heri a cometer a falta
um trao da sua personalidade, seja a raiva ou o cime, entre outros. No entanto, Jos Pedro
Serra (2006: 164-165) adverte: Tornou-se, todavia, comum perguntar aos defensores desta
tese se o que consideram defeito de carcter no apenas o sinal da sua diferena, do estatuto
de seres de excepo, e como tal condio da sua elevao. Na verdade, habitualmente, o
heri excepcional por se revoltar, de alguma maneira, contra uma ordem instituda e nessa
revolta estar sempre uma imperfeio que o excepcionaliza.
No entanto, como referimos anteriormente, a interpretao do termo grego como erro
intelectual tem sido a preferida actualmente. Mesmo Aristteles afirma explicitamente o facto
de os heris no ca[r]em no infortnio devido sua maldade ou perversidade, mas em
consequncia de um qualquer erro (1453a), isto , no resvalam da felicidade para a
infelicidade por culpa de um erro cometido em conscincia, mas sim de um erro cometido em
ignorncia. E esta a interpretao de como erro intelectual: Privado de
conhecimento, tendo dos factos uma viso incompleta, o homem erra e a desgraa acontece
como o prolongamento dos limites humanos (Serra 2006: 165).
14 Cf. Sad 1978: 13 e Serra 2006: 165. 15 Cf. Serra 2006: 165. Suzanne Sad (1978: 11-16), no seu estudo La Faute Tragique, tem um subcaptulo
significativamente intitulado La faute tragique: crime, erreur ou dfaut?. 16 O cristianismo entendeu e usou num sentido vincadamente moral, traduzindo o termo grego por
peccatum, e designando o pecado, no seu sentido mais grave e pleno, a recusa livre, radical e consciente de
seguir a vontade de Deus, especial e gratuitamente revelada na Sua Palavra (Serra 2006: 161).
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Se estas so trs interpretaes que se apartam umas das outras, aparecendo cada uma
delas em textos e autores diferentes, Maria do Cu Fialho (1977: 383-384) interpreta todavia o
termo de uma forma geral e que nos parece ser a mais correcta:
aparece como constante a hamartia que no culpa, nem dor, nem erro, mas incapacidade
de atingir algo, incapacidade do Homem de coincidir com os seus prprios fins, o que o
transformaria de mortal em deus; hamartia a prpria limitao constitucional do
Homem finitude que pode englobar culpa, dor ou erro (ou ser actualizada numa ou
vrias dessas formas) mas que as ultrapassa para significar um dos aspectos da prpria
condio humana.
Outros conceitos tm tambm de ser explicados por terem que ver com o enredo da
tragdia. Aristteles diferencia a aco simples da aco complexa. Para o filsofo, a primeira
aquela que [...] coerente e una e em que a mudana de fortuna se produz sem peripcias
nem reconhecimento (1452a). Logo, a aco complexa acontece quando a mudana for
acompanhada de reconhecimento ou peripcias ou ambas as coisas (id., ibid.).
Interessa-nos ento entender o que so estes elementos e
que tornam uma aco complexa.
Aristteles, ainda no pargrafo antes citado, tambm na Potica, define estas duas
partes do enredo trgico:
Peripcia [...] a mudana dos acontecimentos para o seu reverso, mas isto, como
costumamos dizer, de acordo com o princpio da verosimilhana e da necessidade. [...]
Reconhecimento, como o nome indica, a passagem da ignorncia para o
conhecimento, para a amizade ou para o dio entre aqueles que esto destinados
felicidade ou infelicidade. O reconhecimento mais belo aquele que se opera
juntamente com a peripcia [...].
Dadas as definies aristotlicas, torna-se fcil perceber a importncia destes dois
elementos na aco trgica. Sem eles, no haveria enredo que pudssemos designar como
trgico.
Vejamos ento o que em torno destes conceitos tm dito os estudiosos da tragdia
grega. Segundo Jacqueline de Romilly (cf. 2008: 47), as peripcias e o reconhecimento da
aco surgem como concluso de dois processos usados pelos tragedigrafos para tornar as
situaes patticas. Assim, os dois processos usados com esse fim so: levar uma situao
ameaadora at ao seu limite extremo e at ao momento em que o desastre tem que se
realizar e tornar esta situao particularmente horrvel, supondo na sua origem um erro da
pessoa (id., ibid.). Do primeiro, resultar que a situao termina com aquilo a que
chamamos um golpe de teatro (id., ibid.), ou seja, uma peripcia; no segundo, a situao
termina com um reconhecimento podendo o reconhecimento por vezes, mas nem sempre,
apresentar-se como um golpe de teatro (id., ibid.). Para a autora, estes dois processos, aliados
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s personagens e situaes patticas, aumentam o sofrimento daquelas e o patetismo de toda a
aco17.
Na sua anlise, Jos Pedro Serra (2006: 152-153) vai mais ao fundo do que a essncia
destes elementos da aco trgica. No que peripcia diz respeito, o autor informa:
A peripcia, implicando uma revelao inesperada que altera radicalmente a compreenso
dos acontecimentos, supe um abismo entre as intenes, as convices, as motivaes
que levam o homem a agir e a provisoriamente acolher-se no aparente sentido da aco, e
o sentido real e ltimo, cruel seara de dor que o homem colhe ao tomar conscincia da
amplitude e das consequncias incalculveis, mas irremediveis e irrefutveis, da sua
aco.
Deste modo, percebemos a dimenso trgica que a peripcia acarreta: porque o [...]
olhar [do homem] parcial e o entendimento limitado, ou porque presa s mos do destino e
jogo s mos dos deuses, o fruto da sua aco o reverso do sonhado (ibid.: 153).
Assim, Serra (id., ibid.) chama a ateno para o ntimo relacionamento entre peripcia e
reconhecimento: A inesperada mudana no sentido da aco supe uma ruptura na habitual
compreenso dos factos e a irrupo de uma nova conscincia de onde deriva, impondo-se, o
novo e decisivo sentido dos acontecimentos. Por isso, Aristteles revela a sua predileco
pela aco complexa18 uma vez que s nesta o recndito se mostra patente e o homem ganha
uma conscincia mais funda e completa daquilo que uma ilusria veste cobria (id., ibid.).
Tendo esta conscincia, o autor no hesita em afirmar, sobre o sofrimento, que [d]or,
luto, infelicidade coroam o que nasceu dos melhores propsitos, das mais belas esperanas,
das mais nobres convices (id., ibid.)19.
2. A tragdia e o trgico: a tradio romntica
A complicada definio de Romantismo tem como base as muitas e vincadas diferenas
entre os Romantismos que surgiram na Europa entre finais do sculo XVIII e meados do
sculo XIX. De facto, cada pas, cada cultura, cada literatura apropriou-se dessa nova
concepo de arte, reconfigurando-a em funo do seu contexto sociocultural. Importa,
porm, notar que h caractersticas que, unificando as vrias expresses deste perodo
literrio, fazem com que autores como Oflia Paiva Monteiro (2001: 965) ou Vtor Manuel de
Aguiar e Silva (2010: 542) defendam o uso do termo Romantismo em detrimento do plural
17 Este pattico, preparado deliberadamente por meio de uma aco mais desenvolvida, uma das tendncias
essenciais da tragdia tal como Eurpides a praticou. E ento aparecem um certo nmero de procedimentos que
podiam servir para este fim (Romilly 2008: 46). 18 Dado que a composio da tragdia mais perfeita no deve ser simples, mas complexa (1452b). 19 O sofrimento , segundo Aristteles, a terceira parte do enredo: o sofrimento um acto destruidor ou
doloroso, tal como as mortes em cena, grandes dores e ferimentos e coisas deste gnero (1452b).
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24
Romantismos, vocbulo empregue por Arthur Lovejoy para designar a poca em questo,
dadas as assincronias e disparidades que se verificam, nos vrios espaos culturais europeus,
quanto s manifestaes a ter em conta (Monteiro 2001: 965).
Com efeito, a caracterstica basilar de todo o Romantismo europeu, e da qual todas as
outras derivam, tem que ver, como assinala Aguiar e Silva (2010: 543), com uma nova
concepo do eu, uma forma nova de Weltanschauung, radicalmente diferentes da concepo
do eu e da Weltanschauung tpicas do racionalismo iluminista. Este novo entendimento do
sujeito como ser nico20 acarreta consigo, inevitavelmente, um outro conceito de grande
importncia neste perodo: a conscincia. Desta forma, o indivduo tomar conscincia
daquilo que e, na sua busca pelo infinito, ter a trgica conscincia da sua finitude:
O esprito humano, para os romnticos, constitui uma entidade dotada de uma actividade
que tende para o infinito, que aspira a romper os limites que o constringem, numa busca
incessante do absoluto, embora este permanea sempre como um alvo inatingvel.
Energia infinita do eu e anseio do absoluto, por um lado; impossibilidade de transcender
de modo total o finito e o contingente, por outra banda eis os grandes plos entre os
quais se desdobra a aventura do eu romntico. (ibid.: 544)
No custa assim compreender que o romntico encontre no trgico a melhor forma para
escrever sobre o sujeito que se encontra em permanente conflito.
Maria Isabel Rocheta (1987: 27), numa afirmao muitssimo pertinente, declara que
alguns dos aspectos mais significativos da mundiviso romntica esto prximos de
elementos fundamentais do trgico. Segundo a mesma autora, esta afirmao do eu como
ser nico de que falmos tem o seu aspecto trgico no conflito constante entre a sua vontade,
o [seu] querer [...] e o dever imposto pela sociedade (id., ibid.).
Mas o aspecto que a autora ressalta como o grande tema do Romantismo o amor,
enquanto afirmao do direito a sentir (ibid.: 28). E isto torna-se relevante para o nosso
estudo, principalmente por Camilo ter escrito de facto sobre este tema. Na verdade, os seus
heris passionais lutam e enfrentam as foras que lhes so contrrias, demonstrando assim os
direitos do corao. Veremos adiante como a herona dA Sereia afirma, mesmo pela maneira
como morre, o seu direito de amar.
No Romantismo, vemos, no raro, esta concepo do amor como paixo que implica a
dor e a morte (ibid.: 29). O patetismo que explanado na literatura da poca tem
essencialmente que ver com a atraco pelo sofrimento, a vontade e a capacidade de o
entender e de o exprimir (id., ibid.) que o escritor tem, muitas vezes, como atributos.
20 O ressurgimento do Eu no Romantismo implica, decisivamente, a recuperao da ideia renascentista do
homem como unidade de poder e de impotncia, de conhecimento e de enigma, de subjectividade e de natureza
(Argullol 2009: 25).
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25
As noes expressas anteriormente, no que dizia respeito tragdia grega, de ,
de queda, de e mesmo de culpa tero de ser analisadas luz do contexto histrico-
cultural cristo do Romantismo portugus. Segundo Maria Isabel Rocheta (ibid.) nos informa
e os textos mostram, o sentimento religioso bem caracterstico, como sabido, da literatura
romntica. Se na tragdia grega, como vimos, a a maioria das vezes interpretada
como um erro intelectual, nas obras romnticas, vemo-la, diversas vezes, ser entendida como
falha moral, como pecado. Contudo, a obra camiliana no deixa de plasmar a falta trgica
como defeito de carcter ou como erro intelectual. Exemplos disso so os casos de Simo de
Amor de Perdio21 e de Brs e Josefa de O Olho de Vidro, respectivamente.
Tambm como na tragdia tica, estes conceitos s tero fora e tragicidade, no
Romantismo, ao serem vividos pelos heris romnticos. Se, tal como no heri trgico,
podemos observar, em relao ao espectador/leitor, a igual conscincia da fragilidade
humana, a superioridade no que diz respeito dimenso do seu acto e a profundidade da dor,
no heri romntico h algo a ter em conta que o diferencia daquele: o Absoluto, esse infinito
romntico que o heri tenta alcanar.
O heri romntico tem como principal caracterstica a excepcionalidade, em relao s
restantes personagens do texto. Deste modo, o heri tem ideais que no se coadunam com os
da sociedade em que se insere e, por isso, tenta infringir as regras e/ou leis desta. Diversas
vezes, o amor, enquanto afirmao do direito a sentir (ibid.: 28), o ideal que os heris
tentam em vo enaltecer, facto que no cabe nas regras sociais vigentes22.
Como podemos facilmente verificar, o heri romntico por excelncia aquele que
apresenta sempre em si as caractersticas trgicas que no o deixam viver harmoniosamente
na sociedade em que se insere. De facto, aquilo a que aspira, o Absoluto que pretende, no lhe
dado na vida terrena, encontrando, no raro, apenas na morte a soluo para tal conflito.
Assim, para o romntico, a morte aparece como um horizonte fixo, mas s como culminao
de um processo em que o morrer uma operao lenta e no isenta de gozo (Argullol 2009:
317). E esta mesma morte mais no do que libertao (Ferraz 2011: 193) ou reafirmao
da essncia da vida ante o vazio da existncia, ou seja a angstia do ser-para-a-morte
transforma-se no ambguo gozo de morrer-para-ser (Argullol 2009: 317). Consequentemente,
21 A diegese entra, assim, em nova fase: o protagonista age, agora, sob o poder do temperamento, ainda quando
isso implica renunciar ao seu projecto. Ele poderia, aparentemente, adiar a vingana para no comprometer o seu
futuro com Teresa. Mas no pode faz-lo: a sua personalidade arrasta-o a perder-se (Rocheta 1987: 156; itlicos
originais). 22 Cf. Custdio 1997: 1001 e Reis e Lopes 2007: 194.
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26
perceber-se- que Pedro Balaus Custdio (1997: 1003) afirme que [n]o h um H. onde no
haja tambm enormidade e excesso.
Como veremos, na construo do trgico dA Sereia, h outra instncia narrativa que
preciso ter em conta: o autor textual. Isto porque, sendo parte da diegese, o autor textual
fortalece tambm essa construo trgica da intriga.
O narrador surge, no Romantismo, como autor textual, entidade fictcia a quem, no
cenrio da fico, cabe a tarefa de enunciar o discurso, como protagonista da comunicao
narrativa (Reis e Lopes 2007: 257). Helena Carvalho Buescu, de modo a ter uma
perspectiva lata deste conceito no Romantismo literrio portugus, comea por se ocupar de
dois dos escritores que mais sistematicamente fizeram uso deste processo: Almeida Garrett e
Camilo Castelo Branco. Assim, a autora explicita as estratgias que ambos os escritores
utilizam de maneira a haver uma identificao entre o autor (emprico) e o narrador
(personagem ficcional)23. No que a Camilo diz respeito, Helena Carvalho Buescu (1997: 29)
estrutura a presena deste autor textual em trs grupos:
o primeiro, aquele em que se realiza a figurao de um autor-personagem, cuja
centralidade organizadora para a obra em questo nunca de mais sublinhar; com esta
figurao se articula ainda aquilo a que chamarei a fico do editor [] e tambm a
estratgia preferencial do manuscrito encontrado []. O segundo grupo aquele em
que se manifesta a representao de um autor-carreira []. Finalmente, o terceiro
grupo [] constitudo por sries romanescas que entretecem, no seu interior, relaes
intertextuais cuja consistncia central para o entendimento do universo romanesco nele
proposto.
O narrador-autor, longe de se manter distncia daquilo que narra, surge intimamente
ligado diegese, dando a conhecer, atravs do seu discurso, aquilo que a histria narrada lhe
faz sentir24. No raro, conduz o leitor a juzos de valor que so dele mas que,
consequentemente, passam a ser os de quem l. Maria de Lourdes A. Ferraz (2011: 248)
afirma:
no so nem a sua figura fsica nem os seus traos psicolgicos que as definem [s
personagens camilianas], mas os sentimentos do autor relativamente empatia que revela
na prpria descrio com que as apresenta, no modo mais ou menos directo ou indirecto
que utiliza para as dar a ver.
Deste modo, fica perceptvel que o autor textual auxilia na construo trgica da intriga
pois, sendo um narrador subjectivo, ao dar a conhecer a sua perspectiva de leitura e os seus
23 Cf. Buescu 1997: 28-29. Exemplos destas estratgias garrettianas so as referncias a si prprio como autor de
outros livros (associando-se figura do autor-carreira), as referncias elogiosas annimas, menes de
episdios autobiogrficos e, talvez a mais importante, quando o autor se veste do papel de editor da obra de
outrem (Lrica de Joo Mnimo, a novela inserida nas Viagens na Minha Terra ou O Arco de SantAna, cujo
subttulo , a este respeito, de grande importncia: Crnica Portuense manuscrito achado no convento dos
Grilos, no Porto, por um soldado do Corpo Acadmico). 24 Cf. Coelho 2001: 397.
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juzos de valor, aproxima-se do papel do coro trgico, apesar das particularidades de cada um.
O autor textual, tal como o coro, interfere na intriga mas, tambm como ele, impotente
perante o sofrimento que recai sobre os heris. Resta-lhes, ao coro e ao autor textual, lamentar
a sorte das personagens.
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Captulo II A Sereia: a construo do trgico
Anbal Pinto de Castro (1991: 254), investigador que muito se dedicou passagem da
realidade fico na novela camiliana, afirmava que era chegado o tempo de avaliar as
vrias funes do real na constituio de um universo diegtico de ndole intrinsecamente
romntica, ou, sobretudo, de determinar o papel e a importncia da imaginao na criao
daquele universo fictcio, a partir de uma realidade histrica, porque acontecida. A novela A
Sereia continua a ser a nica da qual se conhece o texto que lhe serviu de base, dando ensejo
ao autor de escrever, aps os tercetos que a abrem: Num livro manuscrito, e datado de 1768,
os encontrei. Em cinquenta pginas de prosa do mesmo manuscrito, descobri o segredo dos
versos (S: 4). Contudo, s no ltimo pargrafo da novela Camilo oferece ao leitor mais
pormenores sobre este manuscrito: Ora, Joo de Melo e Npoles, o salvador do cadver de
Joaquina Eduarda, morreu na flor dos anos, depois de haver escrito os apontamentos
essenciais desta histria, que foram encontrados na livraria do baro de Prime, fidalgo de
Viseu, falecido h poucos anos (S: 159).
De facto, o tpico do manuscrito encontrado regular no s em Camilo, mas no
Romantismo em geral. O que torna notvel o caso d'A Sereia o facto de haver um
manuscrito que acreditamos ser o usado por Camilo como base para a escrita desta novela25.
Dissemos manuscrito usado como base para a escrita da novela. A tradio dos
palimpsestos vem de longe. Sabemos que palimpsesto um manuscrito cujo texto os copistas
medievais eliminavam atravs da lavagem ou, mais tarde, de raspagem com pedra-pomes para
depois o reutilizarem na cpia de um novo texto. Utilizando assim este termo num sentido
figurado, Grard Genette (1982) adoptou-o como ttulo da sua obra sobre as relaes de
hipertextualidade na literatura. Contudo, no podemos afirmar ser a novela camiliana um
hipertexto em relao ao hipotexto, que seria, neste caso, o manuscrito que lhe serviu de base,
sem justificar a nossa posio. Nesse sentido, cabe agora atentar na teoria da hipertextualidade
defendida por Genette e perceber de que modo ela se relaciona com os textos que aqui esto
em causa. E essa relao s se poder perceber demonstrando, numa primeira fase, a nossa
convico de que estamos perante um texto que serviu de base a outro, ou seja, de que
estamos perante um hipertexto e um hipotexto.
Genette (ibid.: 7) define a transtextualidade como tout ce qui le met [o texto] en
relation, manifeste ou secrte, avec dautres textes, afirmando adiante haver cinco tipos de
25 Cf. Martins 2005: 11.
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relaes transtextuais: a intertextualidade, a paratextualidade, a metatextualidade, a
hipertextualidade e a arquitextualidade (ibid.: 8-11).
Para o objectivo do nosso trabalho, importa atentar no quarto tipo, ou seja, na
hipertextualidade. A primeira definio dada pelo autor simples e parece ser a mais
adequada: Jentends par l [hypertextualit] toute relation unissant un texte B (que
jappellerai hypertexte) un texte antrieur A (que jappellerai, bien sr, hypotexte) sur lequel
il se greffe dune manire qui nest pas celle du commentaire (ibid.: 11-12).
Porm, esta relao, segundo Genette (ibid.: 12) pode ser de duas ordens distintas:
lordre, descriptif et intellectuel, o un mtatexte [...] parle dun texte ou de uma outra
ordem:
Elle peut tre dun autre ordre, tel que B ne parle nullement de A, mais ne pourrait
cependant exister tel quel sans A, dont il rsulte au terme dune opration que je
qualifierai, provisoirement encore, de transformation, et quen consquence il voque
plus ou moins manifestement, sans ncessairement parler de lui et le citer.
Como j afirmmos, acreditamos estar perante um hipotexto e um hipertexto. Castelo
Branco Chaves (1968: 16-17), depois de resumir a histria do manuscrito, faz uma breve
comparao entre as personagens, deixando subentendido, na forma como o faz, que acredita
estar perante o texto que serviu de base a Camilo: O leitor da novela entra logo, ao primeiro
cotejo entre a narrativa do manuscrito e a histria contada pelo novelista, a aperceber-se de
que Camilo deu aos seus personagens estatura sentimental, moral e social muito mais
elevadas (ibid.: 16).
Por sua vez, Jacinto do Prado Coelho (2001: 448) levanta a hiptese de Camilo ter tido
acesso histria pelo manuscrito, no deixando por isso de fazer uma breve comparao entre
a aco de ambas as narrativas e mostrando que, na primeira parte da novela, h numerosas e
flagrantes coincidncias com a verso do citado manuscrito. Demonstra tambm, a partir
dessa comparao, que a verso camiliana segue um caminho em grande parte independente,
logo a pouca distncia do comeo (ibid.: 449).
Tambm Serafina Martins (2005: 13) deixa claro na sua comparao o facto de acreditar
ser o manuscrito o hipotexto da novela:
No que respeita meramente intriga, so muitas as semelhanas entre os dois textos;
temos, por exemplo, o nascimento das duas sereias em Viana do Castelo, a composio
do crculo familiar (uma irm e um irmo, ambos mais velhos, com a diferena de que a
protagonista do manuscrito ainda tem me, o que no sucede com a Joaquina Eduarda
camiliana), o papel tutelar do irmo, eclesistico nos dois casos, a residncia em Barcelos,
a ida para o convento (embora por motivos distintos), a ligao amorosa com um
estudante, a fuga de ambos para Sevilha, o abandono/afastamento por parte do amante
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(tambm quanto ao motivo que leva a esse afastamento os textos se apartam), o facto de
em ambas as narrativas a figura masculina seguir vida religiosa.
Num estudo intitulado Retrica da Fico: a construo da narrativa camiliana, Joo
Paulo Braga Correia da Silva (2011: 212), ao analisar a transformao a que Camilo
submeteu essa fonte na construo da diegese apresentada em A Sereia, conclui que,
[a]proveitando as personagens da histria original, o autor enriqueceu e tornou mais
complexa a estrutura dramtica da intriga.
Numa tentativa de organizao das matrias a serem exploradas de modo a perceber a
construo do trgico nA Sereia, faremos uma anlise da obra, estruturando-a a partir dos
conceitos trabalhados no captulo referente ao trgico e tragdia.
Assim, analisaremos, em primeiro lugar, o papel do narrador. O autor textual camiliano
uma entidade que, a vrios nveis, se exibe no discurso e que, por isso, configura, mediante
vrios processos, o trgico presente na obra. Assim, atentaremos na conduo de leitura feita
por esse autor textual que a todo o momento faz ver o seu querer26, bem como nos processos
de comprovao da verdade que usa para dar a sua histria como acontecida.
De seguida, analisaremos de que modo se constroem as categorias trgicas na novela
camiliana, tendo em conta o texto que est na sua base. O conflito, como vimos, acontece
quando duas entidades opostas exigem solues diversas para uma mesma situao,
provocando assim uma ameaa de desordem, uma perturbao. Iremos analisar de que modo
construdo o conflito principal ao longo da narrativa de Camilo.
Embora relacionando-se com a anterior, atentaremos depois na categoria trgica que
tem que ver com o destino em oposio ao livre arbtrio humano. De facto, o destino uma
constante nas obras de Camilo. A fora que rege os Homens e que, de vez em quando, parece
estar associada Divina Providncia trgica por si s, se pensarmos que ela rege as
personagens camilianas sem que estas tenham a liberdade de escolher o caminho a seguir.
Contudo, para melhor entender se, de facto, no h opo de escolha para as personagens de
Camilo e se elas so apenas guiadas por uma fora que as transcende, analisaremos a obra sob
este ponto de vista, realando os passos em que as personagens parecem escolher o caminho
que querem para si.
Apesar de nos encontrarmos perante uma obra em que o trgico se diz mais
profundamente atravs do conflito e do destino, no deixaremos de atentar nas restantes
26 Baseados em Maria Isabel Rocheta (1987), o querer do autor textual tem que ver com a leitura que ele quer
que os leitores faam das suas narrativas, mostrando-o quer no lxico utlizado, quer mediante asseres
opinativas sobre as personagens e as situaes.
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categorias trgicas. Assim, a anlise da culpa enquanto categoria trgica ajudar a entender a
dicotomia destino/escolha, pois, em nosso entender, s quando a entendida como
falha moral se pode considerar que haja culpa; s quando as personagens efectivamente
escolhem que se pode falar numa culpa que lhes possa ser atribuda ou at por elas
percebida. Como tambm j ficou expresso anteriormente, a culpa trgica caracteriza-se pelo
alcance que esta adquire, no recaindo as consequncias apenas sobre o culpado.
Neste seguimento, resta-nos, no que s categorias trgicas diz respeito, a do
conhecimento e ignorncia. Neste caso, analisaremos pressgios, sonhos e outros elementos
que, de alguma maneira, trazem para o presente das personagens o futuro que lhes est
reservado.
1. O autor textual e a construo do trgico
Conhecida a mxima que Camilo Castelo Branco (1959: 7) diz ser a sua logo no incio
da novela Carlota ngela (1858):
VERDADE, NATURALIDADE, E FIDELIDADE
a minha divisa, e s-lo- enquanto este globo se no reconstruir feio do disparate
com que uns o alindam e outros o desfeiam.
De facto, esta vontade de contar a verdade, sendo natural e fiel, ser uma preocupao
que autor demonstrar ao longo da sua produo romanesca. Por isto, Anbal Pinto de Castro
(1976: 18) afirma:
Pela sua permanente preocupao de naturalidade e de verdade ou melhor, de
verosimilhana Camilo capricha em procurar uma ligao to estreita quanto possvel
entre o narrador e a diegese, mesmo quando se serve de um narrador heterodiegtico,
variando embora os subterfgios a que lana mo para estabelecer essa ligao ou
aproximao.
No ser ento de estranhar ver o autor textual camiliano ser personagem, que
testemunha daquilo que conta. As narrativas so validadas por este narrador homodiegtico
que participa da diegese, mantendo com o leitor um pacto de autenticao (Silva 2011: 38),
seja por o narrador ser amigo e confidente de personagens, seja por ter acesso histria
atravs de outras formas27. Disto decorre que as histrias contadas pelos narradores
homodiegticos de Camilo so altamente subjectivizadas porque a construo da narrao
nestes moldes torna [...] o narrador no s num mediador de informao, mas tambm um
mediador de sentimentos (ibid.: 39).
27 Cf. Silva 2011: 32-36.
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No hipotexto e no hipertexto, encontramos, pelo menos, trs estatutos diferentes de
narrador. O manuscrito consiste numa Carta de um amigo a outro escrita do Porto ou istria
da vida de D. Joachina Antonia chamada A Sereia. A primeira parte da carta consiste numa
introduo, tendo por narrador F., assinante da carta, que conta como travou conhecimento
com Joaquina e como esta lhe contou a sua histria (M: 17-21). No entanto, outra voz se
impe. O narrador da primeira parte d voz prpria Joaquina para ser ela a narrar os
sucessos da sua vida: Como era preciso fazer horas para esperar pelos companheiros, pedi-
lhe que, em tanto que eles no vinham, me contasse a sua vida, ao que ela, depois de alguma
repugnancia, satisfez deste modo (M: 21). Podemos ento verificar que existem dois
narradores neste manuscrito e, em nosso entender, com estatutos diferentes: um narrador
homodiegtico (F.) e um narrador autodiegtico (Joaquina).
Por outro lado, na novela A Sereia, o autor textual, mesmo no atribuindo a si prprio o
estatuto de editor do manuscrito encontrado, assume-se como construtor da histria nele
relatada. Ele assume ter encontrado os versos que a abrem e a histria que os acompanham
num livro manuscrito, e datado de 1768, livro com cinquenta pginas de prosa (S: 4). Ora,
se daqui se poderia depreender que a novela seria uma cpia exacta do referido manuscrito,
logo se repara que o nmero de pginas dA Sereia no condiz com o nmero de pginas que
o autor textual diz ter o manuscrito de onde retira a histria. Contudo, s no final da novela o
autor textual se assume como construtor da diegese pois, no manuscrito, no encontrou mais
do que apontamentos essenciais desta histria (S: 159), da autoria de Joo de Melo e
Npoles.
Desde o incio da obra at ao penltimo pargrafo, o leitor tem diante si uma histria
alegadamente verdadeira que Camilo quis dar a conhecer. S no ltimo pargrafo Camilo
parece acrescentado mais informao ao que tinha afirmado anteriormente, dando a entender
que construiu a linha dramtica que une os pontos essenciais da diegese. Assim, ao comparar
os textos do manuscrito e da novela, vemos vrios episdios da vida de Joaquina serem
suprimidos por no se enquadrarem no querer do autor. Neste conjunto, podemos dar os dois
exemplos mais significativos: o caso amoroso entre Joaquina Antnia e outra freira do
convento onde se encontra e a sua vida como prostituta.
No nos parece difcil perceber que o estatuto do narrador camiliano aqui em causa est
intimamente ligado com outros aspectos, como a conduo da leitura, os paratextos, os
processos de veridio sendo os paratextos apenas uma vertente destes ou a ironia trgica.
Para alm disso, como referimos, o narrador camiliano est tambm intimamente
ligado com a diegese, no sendo apenas a entidade que transmite o discurso. Ele sente o que a
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histria lhe d a sentir, transmite esses sentimentos e reflecte sobre eles e sobre o percurso das
personagens. Deste modo, o narrador-autor conduz, inevitavelmente, a uma leitura que a sua
mas que ele quer que seja tambm a de quem l.
A conduo de leitura principia em formas paratextuais da novela. Na verdade, o ttulo
da obra A Sereia pode j dar ao leitor informaes sobre a histria que vai ler. Ao ser
mitolgico associa-se, inevitavelmente, o seu canto: canto que enlouquece, que leva morte.
Curiosamente, Joaquina (a Sereia) lana-se ao mar, onde morre. O canto adquire, assim, um
valor trgico por se relacionar com o ser mitolgico conhecido pelo seu cantar de perdio,
bem como com o elemento da natureza onde as sereias habitam28. Esse elemento natural o
mar est, por sua vez, intimamente ligado morte, uma vez que nele que a protagonista
se suicida depois de um grande perodo de loucura. O canto de Joaquina ser analisado no
terceiro ponto deste captulo. Por agora, interessa-nos apenas compreender aquilo que o ttulo
nos pode informar sobre a protagonista da novela.
A construo de Joaquina Eduarda inicia-se logo no poema que abre a novela camiliana.
Como j foi referido, Camilo diz ter encontrado os tercetos no manuscrito que serve de base
escrita de A Sereia. Quando, em 1925, Jlio Dias da Costa depara com o manuscrito, logo
nota que o poema no consta dele. Deste modo, coloca-se a questo da autoria das estrofes.
J em 1930, quando publicou o texto do manuscrito, Jlio Dias da Costa afirma, tendo
em conta tambm a ausncia da data que Camilo igualmente declara estar no manuscrito, que
a falta de data e a ausncia dos versos nada significam, pois bem podia, uma e outros, a data
e os tercetos, ser produto da fantasia camiliana, que todos sabem como era rica (M: 9-10).
Na Nota Preliminar da edio de 1968 da novela, Castelo Branco Chaves (1968: 8)
interpreta a inveno dos versos, dizendo que os tercetos com que se inicia a novela foram
compostos e ali colocados por Camilo para, desde o incio, dar ao leitor a ambincia
melanclica e fatdica em que vai decorrer a narrativa. Concordando com os dois ensastas
quanto autoria dos versos, resta-nos explorar a afirmao deste ltimo, acrescentando algo a
que no faz meno: porque ter Camilo atribudo a autoria do poema ao autor do manuscrito
e no se assumiu como tal? O objectivo da presena dos tercetos sairia malogrado se assim
tivesse feito? E qual o objectivo concreto da presena do poema? Apenas dar ao leitor a
ambincia melanclica e fatdica em que vai decorrer a narrativa?
Analisemos o ambiente que transparece dos versos. A lua cheia mencionada duas
vezes, sendo logo a primeira no verso inicial do poema e a segunda no primeiro verso do
28 Note-se que as sirenes da Odisseia, de Homero, no so descritas, apresentando-se, contudo, intimamente
ligadas ao mar; j as das Metamorfoses, de Ovdio, apresentam-se como sendo seres voadores.
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penltimo terceto. Significa isto que, pelo menos, at penltima estrofe tudo o que dito
est cercado pela atmosfera que a lua cheia propicia. [M]elanclicos tercetos (S: 4), chama-
lhes o autor. Este ambiente de melancolia facilmente se torna num ambiente soturno pelas
variadas aluses morte. Na verdade, em todos os tercetos referida a morte da Sereia: J se
no ouve o cantar; J sobre ti se fecharam / Os abismos desta vida!; Choras tu na
sepultura / Daquela pobre Sereia?; Em que finar se vo findos; pudeste, / [...] mat-la, /
Matar a pomba celeste!; no voltas / Desses abismos da morte! (S: 3; itlicos originais);
E tu no voltas, Sereia! e Sobre a tua sepultura (S: 4; itlicos originais).
No poema h tambm a construo da personagem feminina, qual Serafina Martins
(2005: 13) faz meno dizendo que os tercetos cantam a beleza sublime de uma figura
feminina, enfatizam o seu destino trgico e antecipam o desenlace. De facto, desde estas
primeiras linhas da novela assoma um ser do sexo feminino a Sereia. O leitor, neste
momento da narrativa, ainda no tem acesso personagem que ser denominada de Sereia,
porm o autor faculta-lhe de imediato uma construo dessa personagem que a construo
que ele quer que acompanhe o leitor. Vislumbramos, no modo como o autor se refere
Sereia, uma caracterizao com grande carga negativa: triste sereia, pobre moa cada,
pobre Sereia e pobre anjo da m sorte (S: 3; itlicos originais). Nesta ltima expresso,
no adjectivo cada no est s patente a carga negativa que referimos. Figuradamente, o
adjectivo poder significar triste. A ns se nos afigura, porm, que o adjectivo ganha uma
dupla significao: alm de triste, cada parece-nos que remete para a queda que se d
aps a , ou seja, a falta trgica.
Resta uma expresso com que o autor se refere figura feminina: pomba celeste.
Aqui no encontramos a carga negativa presente nas outras expresses. Encontramos antes
uma angelizao da Sereia. Informa-nos tambm o poema que a personagem tem Aqueles
cabelos d'ouro / Aqueles olhos to lindos! e logo na estrofe seguinte somos inteirados de que
To linda e nova (S: 3; itlicos originais). No nos descrevendo, na sua totalidade, a
Sereia, chegam-nos estes versos para percebermos a beleza de que ela possuidora. Estamos
tambm conscientes de um atributo que ela detinha, e que dever ter importncia, uma vez
que referido duas vezes: o canto J se no ouve o cantar (S: 3; itlico original); Para
ouvir teus cantares (S: 4; itlico original).
O ambiente trgico, o desenlace desde logo desvendado, a caracterizao negativa e
angelizadora da figura feminina, a sua beleza e o seu cantar, bem como a referncia a uma
queda, so os elementos que o autor quer que acompanhem o leitor desde o primeiro contacto
com o seu texto. A partir da leitura do poema, toda a novela estar sombra destes elementos
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que faro com que o ambiente trgico dos tercetos se estenda pela novela. Assim, caso no
tenha sido compreendida no ttulo a perdio a que as personagens estaro sujeitas, o
narrador, com os tercetos, d logo ao leitor os elementos necessrios para saber mesmo antes
de a novela se iniciar que nada do que a protagonista poder fazer para atingir a liberdade
amorosa resultar. S a liberdade da morte que se enuncia logo no poema colocado antes do
primeiro captulo. A ironia trgica estende-se assim pela novela, fazendo com que o leitor no
tenha a iluso de que o casal poder viver o seu amor.
Tambm a epgrafe, retirada da Elegada de Lus Pereira, apresenta um verso que
poderia conduzir o leitor na sua leitura da novela: Castigos justamente merecidos. Contudo,
este paratexto, mais do que ser um condutor de leitura, serve para autenticar a histria que
ser narrada: Verdades... dinas de memria, / Castigos justamente merecidos, / No fabulosa,
ou sonhada estria / Que engana peitos, e embaraa ouvidos.
De facto, os processos de veridio so uma constante em Camilo. A sua preocupao
em mostrar ao leitor como reais os factos que conta nas suas narrativas faz com que se afirme
que este efeito de verdade seja um dos princpios basilares na inventio camiliana (Silva
2011: 17), bem como que seja um dos tpicos centrais no discurso metanarrativo do
narrador (id., ibid.). No incio deste captulo, transcrevemos o passo mais clebre da obra
camiliana sobre este assunto. Mas, ao longo da sua obra, muitos so os processos de que o
autor se serve para que as fronteiras entre realidade e fico se esfumem.
No caso da novela que aqui nos ocupa e para o objectivo do nosso trabalho, interessa
olhar estes processos do ponto de vista da construo trgica. Na verdade, os processos de
veridio auxiliam nesta construo pois, ao dar a intriga como alegadamente verdadeira,
Camilo pretende que o trgico que nela se diz emocione os seus leitores, tal como na tragdia
grega acontecia com a suscitao dos sentimentos de compaixo e temor.
Vimos j que estes processos se iniciam logo na escolha da epgrafe do livro. Camilo
escolhe um passo da autoria de Lus Pereira em que se fala da veracidade do que se conta em
detrimento do poder da imaginao No fabulosa, ou sonhada estria.
Contudo, no breve texto que se encontra depois dos tercetos que o autor revela a fonte
da diegese da novela: Estes melanclicos tercetos, escritos h cem anos, que significao
tiveram? / Num livro manuscrito, e datado de 1768, os encontrei. Em cinquenta pginas de
prosa do mesmo manuscrito, descobri o segredo dos versos (S: 4). Esta informao
completada no ltimo pargrafo do texto: Ora, Joo de Melo e Npoles, o salvador do
cadver de Joaquina Eduarda, morreu na flor dos anos, depois de haver escrito os
apontamentos essenciais desta histria, que foram encontrados na livraria do baro de Prime,
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fidalgo de Viseu, falecido h poucos anos (S: 159). Assim, o leitor informado no incio e
relembrado no final da novela da veracidade da histria. Notrio se torna o facto de apenas no
incio e no final da obra Camilo fazer referncia ao manuscrito de onde provinha a intriga.
Noutras novelas suas, o autor faz continuamente referncias ao manuscrito onde encontrou a
narrao. No caso de Estrelas Funestas, o narrador, ao finalizar a segunda parte da novela,
exclama:
S nestes conflitos que eu avalio os tesouros da imaginao, e o segundo fiat de
mundos morais que a magnanimidade divina concede aos romancistas.
Nesta histria queria, e no posso. Estou coacto, e manietado s gramalheiras da notcia,
que me foi ministrada por pessoa, que me obrigou a juramento de no falsear a verdade.
(Castelo Branco 1979: 158)
Outro processo que o autor utiliza nA Sereia, para comprovao da verdade, tem que
ver com o primeiro captulo, que serve para inserir a intriga num contexto histrico, sendo
descritos alguns pormenores sobre esse tempo. Como afirma Serafina Martins (2005: 9), este
captulo exibe o gosto camiliano de ancorar os seus textos numa factualidade histrica que
traria crdito fico. Tal acontece pelo facto de Camilo inserir o primeiro encontro entre
Joaquina e Gaspar num momento e num facto histrico precisos a inaugurao do teatro
lrico do Porto a 15 de Maio de 1762.
J no segundo captulo da novela, o narrador interrompe a narrao para nos dar conta
de alguns pormenores da famlia de Antnio de Sousa, cunhado de Joaquina. Um desses
pormenores tem que ver com a genealogia de Joaquina Eduarda:
Ferno Casado Godim [pai de Joaquina], neto do doutor Maral Casado, o qual fora
irmo duma celebrada viva de quem rezam as crnicas dos herosmos de portuguesas.
Costumava Ferno mostrar a quantas pessoas se honravam com a sua amizade um livro
impresso em 1625, e escrito pelo padre Bertolameu Guerreiro, da Companhia de Jesus,
no qual livro vinha contada a faanha de sua tia-av (S: 13; itlico original).
De seguida, transcreve o autor o dito passo. Este processo serve para ancorar a
protagonista e a sua famlia numa genealogia realmente existente e referida no livro
mencionado como comprova a nota de rodap do autor. Mais uma vez, Camilo d ao leitor
uma prova da veracidade da sua histria. H, contudo, que referir que Joo Rosa de Arajo,
investigando sobre esta genealogia de Joaquina, descobre a sua falsidade, concluindo que
Camilo, sabendo da existncia do dr. Casado e da me do capito da nau S. Bom Homem,
forjou, sem peias, o enredo do romance [na parte respeitante genealogia de Joaquina],
ajuntando algumas notas que lera no livro sobre a vida de Frei Bartolomeu dos Mrtires
(Arajo 1947: 2).
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Ainda quanto comprovao da verdade, no captulo X, o autor textual faz a seguinte
interveno: Entre parntesis: a narrativa de Gaspar no era assim minudenciosa; mas o rigor
cronolgico requer que eu, neste lano, adicione as minhas informaes particulares concisa
notcia do acadmico (S: 48). Ora, este excerto parece apenas servir para o autor textual dar a
conhecer ao leitor que teve acesso ao escrito em que se encontrava a narrativa de Gaspar e que
os pormenores foram colhidos em fontes no precisadas pelo narrador. Assim mesmo,
segundo o que aqui dito, haveria fontes que ajudaram o autor na construo da histria
verdica que se prope contar.
Tal como j referimos, o efeito de verdade um dos principais temas dos excursos
metanarrativos do narrador camiliano. Tambm em