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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS CAMINHOS APORÉTICOS DE UMA CIVILIZAÇÃO EM EXTINÇÃO A FILOSOFIA COMO VITA CONTEMPLATIVA E FILOSOFIA COMO TERAPIA RICARDO MANUEL DOS SANTOS CORREIA Tese orientada pelo Prof. Doutor Paulo Borges, especialmente elaborada para obtenção de grau de Mestre em Filosofia 2017

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UNIVERSIDADE DE LISBOAFACULDADE DE LETRAS

CAMINHOS APORÉTICOS DE UMA CIVILIZAÇÃOEM EXTINÇÃO

A FILOSOFIA COMO VITA CONTEMPLATIVA EFILOSOFIA COMO TERAPIA

RICARDO MANUEL DOS SANTOS CORREIA

Tese orientada pelo Prof. Doutor Paulo Borges, especialmente elaboradapara obtenção de grau de Mestre em Filosofia

2017

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Índice

Abstract p.5 Introdução p.9I - Surgimento da filosofia enquanto filosofia p.121.1 - Os três mal-estares da modernidade p.121.2 - "A filosofia antes da filosofia" p.181.3 - O filósofo: aparecimento da definição p.211.4 - Filosofia como modo de vida p.221.5 - Parrêsia, a coragem da verdade p.26 II - Metanóia p.342.1 - Para uma metamorfose espiritual (inspirada) em Agostinho da Silva p.342.2 - Deus para Agostinho da Silva p.392.3 - A cisão p.412.4 - O Cristianismo e o Culto do Espírito Santo p.452.5 - Vislumbre do Mundo a Haver p.502.6 - Economia do decrescimento p.562.6.1 - O decrescimento: uma utopia concreta p.592.7 - Crítica p.642.7.1 - O idealismo de Fichte e Hegel p.672.7.2 - Materialismo e idealismo enquanto concepções opostas p.712.8 – Ética no taoísmo p.80 2.8.1 - Abstinência do espírito p.822.8.2 - Os vícios e abusos perturbadores da virtude p.832.8.3 - Os oito vícios relativos ao homem p.83 2.8.4 - Os quatro abusos relativos aos negócios p.852.9 - Desenlace p.87 III - Esgotamento p.893.1 - Falatório, curiosidade e ambiguidade p.913.2 - A queda p.923.3 - O esgotamento como libertação p.98 Bibliografia p.103

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Abstract

Nossa pesquisa foca a actualidade e a perda de sentido no mundo pós-moderno, a

posição e papel da filosofia neste cenário de vida acelerada resultante da crença

iluminista num progresso contínuo da humanidade que, para nós, levou o humano a

perder o sentido espiritual da vida.

Através dos estudos filosóficos e textos de filósofos pretendemos convidar a uma

reorientação mais prática no uso destes textos, i.e., aplicar na vida comunitária as ideias

neles contidas com a intenção de transformar o humano no seu modo de estar na vida, na

sua relação com os outros e com a Natureza na qual está integrado.

Consideramos a via para um melhor uso da filosofia se faz pela recuperação da filosofia

enquanto modo de vida num sentido de terapia para alma humana, enquadrada num

modo de estar que referimos como vita contemplativa. Isto para devolver ao humano uma

vida espiritual portadora de sentido.

Filosofia académica puramente abstracta aparenta garantir um lugar de honra no quadro

das ciências humanas, mas ao invés deste mero lugar de honra pretendemos a

recuperação da filosofia como modo de vida para evitar a sua própria extinção ou ser

relegada a uma posição museológica separada da vida comunitária.

Notre recherche se concentre sur l'actualité et la perte de sens dans le monde

postmoderne, la position et le rôle de la philosophie dans ce scénario de la vie accélérée

résultant de la croyance des Lumières en une progression continue de l'humanité qui,

pour nous, a conduit l'humain à perdre le sens spirituel de la vie.

A travers les études philosophiques et les textes de philosophes nous avons l'intention

d'inviter vers une réorientation plus pratique dans l'utilisation de ces textes, i.e., appliquer

dans la vie communautaire les idées qui y sont contenues dans la l'intention de

transformer l'humain dans sa manière d'être dans la vie, dans sa relation avec les autres

et avec la Nature dans laquelle il est intégré.

Nous considérons que la voie vers un meilleur usage de la philosophie, cela se fera à

travers, la récuperération de la philosophie comme mode de vie dans uns sens de

théraphie de l'âme humaine, encadrée dans un manière d'être que nous appelons vita

contemplativa. Ceci pour rendre à l'humain une vie spirituelle avec de sens.

La philosophie académique purement abstraite semble garantir une place d'honneur dans

les sciences humaines, mais au lieu de cette simple place d'honneur nous voulons

récupérer la philosophie comme mode de vie pour éviter sa propre extinction ou être

relégué à une position muséologique séparée de la vie communautaire.

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Para Sílvia Botelho, por acreditar e com o seu amor fazerdescongelar uma alma e um coração

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Introdução

O estudo que apresentamos tem como alvo repensar através de exemplos o papel da

filosofia na actualidade. Vivemos uma época que coloca em causa a função e a utilidade

da filosofia, o que no nosso entender torna interessante um revisitar da origem da filosofia

seguido de uma análise ao que denominaremos de mal estar da modernidade.

Escolhemos para o estudo acerca do aparecimento da filosofia, Pierre Hadot. O pensador

francês, especialista da filosofia da antiguidade. O que nos faz escolher este filósofo:

Hadot1, apoiado na sua vasta experiência académica, irá orientar-se para relembrar ao

público contemporâneo uma definição de filosofia que se tornou pouco visível ao longo do

tempo. Portanto, pretendemos realizar um estudo sobre a filosofia a partir da sua origem,

para reflectir o papel da mesma ao longo do tempo. Focando-nos na sua história, no

modo como esta virá a ser parte constituinte de um determinado modo de estar na Vida

dos Homens. Procurando assim dar voz a esta corrente que vê na filosofia uma atitude

indissolúvel da vida do praticante e da relação deste com o mundo em que está inserido.

Nesta viagem pretendemos revisitar o conceito de filosofia. Consideramos que se dá

pouca atenção à reflexão da filosofia enquanto filosofia. Especialmente, no âmbito do

campo do ensino da filosofia.

O ensino da filosofia tem sido feito através da apresentação aos alunos das diferentes

filosofias. Uma vez estabelecido um programa, segue-se esta rotina de colocar os alunos

em contacto com sistemas filosóficos de diferentes autores. Uma vez os alunos tenham

adquirido o conhecimento das mesmas, segue-se a examinação verificativa.

Habitualmente, exige-se aos alunos através de um exame escrever uma dissertação

mostrando saberem as temáticas e problemáticas tratadas e desenvolvidas por cada um

dos diferentes autores. Por fim, o aluno deve ainda mostrar capacidade crítica reflexiva

acerca de um determinado problema filosófico. Contudo, há algo que não é habitual

ensinar aos alunos – o carácter espiritual 2da filosofia.

Este escrito intenciona pensar a filosofia nesta sua vocação espiritual. A nossa

peregrinação começará na Filosofia Antiga, mas não será restrita a nenhuma época

particular.

Na nossa proposta estamos em fase com alguns pensadores, que buscam um retomar

da filosofia num sentido espiritual. Esta busca é mesmo um exercício pouco apreciado

9

1 Hadot P., Qu'est-ce que la philosphie antique?, Saint-Amant, Gallimard, 2011 (doravante PhA)2 A espiritualidade é a propensão humana para uma busca pelo sentido da Vida. Neste quadro entendemos a

espiritualidade como ligado à educação (da pessoa humana). Quando referirmos espiritualidade, estamos ao mesmo tempo a evocar a ideia de uma certa forma de ser e estar advinda da educação orientada para o auto-conhecimento.

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por alguns académicos, os quais limitam a filosofia ao conhecimento das coisas. Isto

significa: descrição dos eventos humanos3. Nós consideramos que a filosofia sendo isso,

não se esgota nesta mera acumulação de erudição4. Há algo mais a ser considerado, este

mais será o objecto da nossa exposição.

Seremos então acompanhados nestaa fase inicial por Pierre Hadot, que serve este nosso

propósito de verificar o modo como a filosofia se desenvolveu. Acerca da compreensão

das coisas: é preciso apreendê-las no momento em que surgem, i.e., aparecimento da

filosofia.

O que nos motiva é o observar do mundo: a filosofia tornou-se numa construção de

erudição e mero acumular de conhecimento. O ensino desta reflecte perfeitamente esta

facto. Os alunos são convidados a decorar os temas tratados pelos filósofos e conhecer

as soluções que estes terão pensado para cada problema. Esta realidade em si não

contém nenhum mal, mas a nosso ver é mais pobre, por ser sem a vertente espiritual.

Ao longo dos séculos, especialmente, na época que nos é mais próxima, a filosofia viu-se

ser separada em vários novos ramos, remetendo esta para um papel cada vez mais

desprovido de conexão com a vida humana comunitária. Entenda-se esta desconexão

como sendo a da filosofia convencional, enquanto uma mera teoria abstracta separada do

mundo prático. Não é nosso objectivo estudar o que terá desviado a filosofia da sua

função espiritual. Quiçá, o surgimento do cristianismo tenha algo a ver com isto5. A

filosofia que seria uma proposta para adoptar uma atitude e postura no ser/estar no

mundo, viu-se relegada a uma mera análise de conceitos6. Isto é, analisar os conceitos no

interior do cristianismo, que assumiu o lugar da filosofia enquanto modo de vida. Não

exploraremos este caminho, só o mostramos para o interessado reflectir nele.

É com esta intenção que iremos recordar um modo de filosofia que consideramos

urgente reavivar. Enquanto método para a filosofia assentar com mais firmeza nessa

antiga função terapêutica.

Também, veremos, a filosofia sempre teve um compromisso com a verdade, será

10

3 Filosofia para nós tem um papel transformador do humano e não fica limitada a uma descrição superficial do humano enquanto ser vivo pensante na sua relação com outros humanos e com o mundo no qual vive.

4 Para nós, Filosofia, não se restringe a uma história do pensamento mostrada através de citações eruditas, nem a uma acumulação de conhecimento sem outro fim que esta acumulação. Aqui, chamamos a atenção para a distinção artificalmente criada no meio académico entre Filosofia puramente especulativa e Filosofia Sapiencial. Nós consideramos a separação uma artificialidade a ser superada através da recuperação da Filosofia como modo de vidaao serviço da comunidade e acessível a todos os humanos. Esta mesma posição tem Mónica Cavallé na sua obra, Arte de Vivir, Arte de Pensar, Iniciación al Asesoramiento Filosófico, Bilbao, Editorial Desclée, 2009.

5 Cristianismo veio substituir-se à filosofia como modo de vida (constituída por uma diversidade de propostas), trornando-se a única orientação tolerada ao longo de muitos séculos.

6 Filosofia torna-se uma ferramenta explicativa de conceitos e da doutrina cristã, por exemplo: Trindade, Deus tronado Homem, natureza dos anjos, etc.

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apoiado neste mesmo compromisso que iremos expor caminhos alternativos a um modelo

dominante. Quer seja no campo espiritual, económico ou em qualquer outra actividade

humana. O nosso foco terá mais incidência na espiritualidade e na economia. Por

considerarmos que o primeiro é o fundamental para qualquer princípio de mudança

interna do humano. No segundo, por verificarmos que a actividade económica não é

separada dos modos de vida doentios em que vivemos.

Para repensarmos um modo espiritual, escolhemos Agostinho da Silva. Este pensador

serve o propósito de pensarmos o mundo como uma unidade. Ao passo que para a

economia teremos em Serge Latouche o nosso centro.

Iniciaremos o estudo com a apresentação dos mal-estares da modernidade, a partir do

filósofo Charles Taylor. Escolhemos este autor por estarmos de acordo com o diagnóstico

proposto. Taylor já indicia o que está em falta na sociedade contemporânea. O mal estar é

em grande medida a falta de sentido. Este ponto acerca do sentido acompanhará o

estudo na sua totalidade. Iremos finalizar este estudo com uma análise a reforçar os

motivos do mal-estar humano, mas já indiciando um caminho mais claro para sair deste

mal-estar. Esta saída virá justificar ainda com mais força a nossa escolha de começar por

lembrar o passado.

O estudo tem entre outras motivações que serão expostas ao longo do mesmo, usar de

uma certa forma de filosofia para fazer o leitor pensar a si mesmo. A partir daqui, fazer

com que todos nós nos questionemos, quer sejamos filósofos ou leigos – a filosofia serve

para alguma coisa na nossa vida?

11

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I - Surgimento da filosofia enquanto filosofia

1.1 – Os três mal-estares da modernidade

Charles Taylor fala-nos de três mal-estares na modernidade. Ele entende este mal-estar

como sendo traços característicos da cultura e da sociedade contemporânea percebidos

como regressivos ou como decadência.7 Precisamente, nós observamos um mundo de

anúncio constante de crise, desde vivermos os finais dos tempos à decadência. Houve

até quem clamasse o fim da história. Decidimos portar um olhar sobre estas

caracteristicas, para verificar se há mesmo uma decadência ou um chamamento de um

devir por realizar. Neste estudo, a nossa posição será a de haver um projectar por um

devir a concretizar. Temos noção da história, na qual sustentamos: sem haver um

passado, não pode haver presente, e muito menos haverá um rumo ao futuro. Mais

adiante, na terceira parte, acerca do esgotamento, verificaremos esta sensação de

aparente desintegração da sociedade contemporânea. A qual classificamos como o

domínio de um reino do que é efémero.

Os três mal-estares na modernidade são então os seguintes:

a) O individualismo8

Este é tido como uma das grandes conquistas da modernidade. Trouxe-nos a

possibilidade de cada pessoa definir como pretende viver a sua própria vida. Liberta-nos

das relações sagradas transcendentais e religiosas, i.e., da ideia de Deus e da religião

como fontes orientadoras de sentido. Esta individualidade é em si protegida pela lei civil.

Ela veio libertar o homem, mas terá sido bem sucedida? Não, se a considerarmos

inacabada.

Taylor diz-nos: alguns pensam que esta liberdade está inacabada. Porque as

necessidades económicas, as estruturas familiares ou as hierarquias tradicionais

restringem em excesso a nossa liberdade.9

Nós concordamos com esta tese. Na parte II iremos desenvolver aspectos acerca das

características essenciais da liberdade, buscando caminhos novos.

Taylor fala-nos ainda do outro lado: a liberdade trouxe-nos um desenraízamento. Os

nossos ancestrais tinham uma ideia de sentido e de pertença a algo que os transcendia.10

Nós consideramos estas duas posições como complementares. No nosso entendimento,

12

7 Taylor C., La malaise de la modernité, Charlotte Melançon (trad.), Cerf, Paris, 2008 (doravante MM). p.98 CF MM p.109 CF Ibidem p.1010 CF Ibidem p.10

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o homem ao adquirir a liberdade individual, inclinou-se mais para um certo estado de

queda. Entende-se por queda uma tendência a afastar-se de um estado mais originário.

Neste estado, o homem estava integrado em si mesmo, na relação de si com o mundo. O

seu mundo, a sua existência, ia além de si mesmo. Portanto, o ganho da liberdade

individual trouxe junto um acentuar maior da desorientação e da perda de sentido. Os

homens quebraram os elos ou deixaram de ver estes elos que os ligam uns aos outros.

No paroxismo desta queda, os homens nem se dão conta da sua própria interioridade na

relação com o mundo exterior. Recortará o mundo em pedaços descontinuados, aos quais

faltará uma certa coesão. Em suma, a liberdade individual, sendo uma boa conquista

humana, trouxe a fragmentação da vida humana. Isto ocorre pela falta de um sentido.

Esta fragmentação e descontinuidade, entendemo-la como a perda de uma certa

alteridade. O homem, desligado de algo superior a si mesmo, é levado a perder um

contacto com o exterior. Este exterior constituído de outros homens diferentes de si. Deixa

de fazer parte de uma comunidade, de uma época, para passar a pertencer só a si

mesmo. Faltará ao homem um destino. Sobrando-lhe excesso de presente. Um presente

sem projecção de sentido. Só sentirá o prazer, numa busca incessante pelo mesmo

(idêntico) e este acabará por saturar a vida do indivíduo. Este homem fechado em si, na

sua individualidade narcisista, desenvolve um eu desmesurado, ao qual tudo e todos se

deverão submeter. Contudo, a realidade não o satisfará, pois os outros agirão do mesmo

modo. Será um choque de homens em relação sem real individualidade. Nisto está o

paradoxo, toda a liberdade acaba sendo nenhuma liberdade.

b) A razão instrumental11

A razão instrumental leva a um desencantamento do mundo.

Sobre o desencantamento do mundo, podemos ler um artigo de Guy de Maupassant,

"Adieu mystères"12, in Le Gaulois, de 8 Novembro de 1881.

Guy de Maupassant é um escritor francês do final do século XIX, ainda época de grande

entusiasmo pela ideia de progresso. Qual progresso podemos perguntar? O do

conhecimento, mais precisamente, o das ciências. Vivia-se na enorme crença desta ideia

de progresso da humanidade. A primeira guerra mundial, de 1914-1918, viria a temperar,

mas não desaminar este entusiasmo. Stefan Zweig escreveria a sua obra, o mundo

deontem. Se esta conturbada de mudança de século mostrou-se ruinosa para a ideia de

13

11 CF MM p.1212 Adieu mystères, in Le Gaulois, de 8 de novembro de 1881. Maupassant.free.fr/chroniq/mysteres.html (doravante

Gaulois).

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progresso, esta ainda iria ter dias de idolatria pela frente13. A crise económica de 1929

constituiu um novo choque anti-entusiasmo progressista. No entanto, viria a ser a

segunda grande guerra mundial a mostrar todo o potencial destruidor do desenvolvimento

tecnológico e científico. O progresso ainda continuaria a fazer-se sentir na sua desmesura

intrínseca. A Europa no pós-guerra teria o chamado período dos trinta anos gloriosos,

durante o qual se assistiu a um enorme desenvolvimento e crescimento económico. A

expansão do capitalismo a todo o globo, após a queda da URSS permitiu persistir na ideia

de progresso ilimitado, quando este já começava a definhar na Europa14. Em 2008, de

novo, a crise, a saber, o colapso do sistema financeiro nos EUA. Este iria atingir o resto

do globo nos anos sequentes. Perante este contínuo aparecer de sinais, proporemos uma

alternativa ao sistema capitalista mais adiante deste estudo. Embora os poderes

instituídos rejeitem haver alternativas, estas existem. Porém, a dificuldade de a

implementar está mais no modo estrutural do nosso pensamento, do que nas ideias em si

mesmas. Isto significa: falta um realizar uma metamorfose espiritual no mundo. Como

levar em frente esta mudança de um modo de pensar, é uma tarefa que aos filósofos se

lhes exige. Nós temos vindo a alertar, apresentar sintomas. Não descuremos de apontar

horizontes de sentido. O interessante é definirmos se queremos agir com consciência ou

deixarmo-nos viver como servos desta realidade actual.

Retornando ao artigo do Maupassant. Este, sendo homem do seu tempo, também foi um

dos entusiastas pela ideia de progresso. Mostrou a admiração pela expansão das

descobertas científicas.

Disse Maupassant: "marchons en avant, toujours en avant, démolissons les croyances

fausses, abattons les traditions encombrantes, renversons les doctrines séculaires sans

nous occuper des ruines"15. Nesta passagem vemos o espírito de uma época, que se irá

enraízar nas modas e costumes das gerações vindouras – o de um cultuar o progresso,

ilimitado e contínuo. Contrapondo a um desligamento do passado. I.e., fazendo tábua

rasa. Havendo uma fé, quase religiosa e inabalável na ciência, ao mesmo tempo

14

13 Em rigor, vivemos ainda num mundo crente do progresso continuado. Apesar de todas as calamidades, não conseguimos sair deste modo de pensar e devoção a um fim vazio como é a própria ideia de progresso. Entendemos vazio, neste caso, como sendo ausência de conteúdos. Aqui jaz o problema: sem nenhuma linha orientadora, os homens sentem-se desorientados.

14 O progresso por nós criticado vai de par com a ideia de crecimento ilimitado inerente ao capitalismo, portanto é a esta ideia de crescimento ilimitado que nos referimos ao falar de progresso. Embora haja sinais a indicar haver mais estaganação que crescimento, ainda se persiste na crença de crescimento constante. O desemprego permanente nas sociedades capitalistas é um destes sinais da incapacidade de prover oferta de trabalho para todos. O desemprego permite entre outras coisas criar ciclos de ilusório crescimento, i.e., quando há umaquebra de produção a posterior recuperação por mais ténue que seja será percepcionada como crescimento ao qual se chama recuperação económica.

15 CF Gaulois.

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menosprezando as tradições, que se viam como obstáculos ao progresso. Continua

Maupassant: "d'autres viendront qui déblaieront; d'autres, ensuite que

reconstruiront; puis d'autres encore qui redémoliront; et d'autres toujours qui rétabliront".16

Guy de Maupassant está a apresentar a cosmovisão de um mundo que se vai criando e

recriando, através de uma construção e desconstrução. Mas, para nós, consideramos

que, sem o passado, esta reconstrução será sem referência, não haverá um farol que

oriente num rumo qualquer. Por este motivo, sustentamos a importância da tradição

cultural. Quando falarmos da nossa primeira proposta para uma mudança de

pensamento, utilizaremos a tradição cultural milenar de que dispomos, o cristianismo. Isto

não significa que nos prendemos a crenças desajustadas e desactualizadas para com a

realidade. Significa sim, um dar continuação, um reescrever da criação actualizando-a.

Este ponto de tentar a permanência de uma continuidade é fulcral na nossa proposta

global deste estudo.

Termina o seu artigo, Maupassant, desta forma: "car la pensée marche, travaille, enfante;

tout s'use, tout passe, tout change, tout se modifie. Les idées ne sont pas de nature

immortelle que les hommes, les bêtes et les plantes. Et, pourtant, comme elle vous tient

souvent, cette tendresse coupable pour les croyances anciennes qu'on sait menteuses et

nuisibles!"17

De facto, esta é também a nossa posição. Crenças que se mostrem prejudiciais devem

ser descartadas do seu uso, mas isto faz-se num quadro de historicidade. Só na história

daremos conta do que é ou não prejudicial. Portanto, o recriar das ideias, é uma

actualização do velho. Há uma fonte, ao passo que os entusiastas do progresso tendem

a esquecer deste detalhe.

É num quadro como o descrito que o mal estar de uma instrumentalização da razão se

nos apresenta. I.e., na crença de um progresso na ciência sem qualquer fim delimitado e

definido. E, acresce, numa busca do maximizar do prazer dos indivíduos para a qual a

razão acaba orientada. A razão tomará a seu cargo, assim, uma função de um princípio

servil do progresso continuo e desligado de um passado.

Deste modo, indica-nos Taylor: a instrumentalização racional ameaça tomar possessão

total das nossas vidas. As decisões que outrora seriam tomadas em referência a outros

critérios18, virão a utilizar-se de critério do eficiência e de relação de custos e benefícios 19.

Para, deste modo, acrescentará Charles: "les fins autonomes qui devraient éclairer nos

15

16 CF Gaulois17 CF Idem18 Exemplo: os valores morais religiosos.19 CF MM p.13

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vies ne soient éclipsées par le désir d'accroîte au maximum la productivité"20. Não

havendo um horizonte de devir clarificado, cai-se neste fim indicado. Progresso pelo

progresso. Num maximizar da produção e eficiência como a finalidade da actividade

humana.

Taylor indicará o campo económico, actividade exemplo claro desta consequente

orientação do uso da razão para a máxima eficiência. Tornando-se necessário um

crescimento constante. A justificar deste modo: as desigualdades económicas e o pouco

cuidado com o meio ambiente.21

Posteriormente, apresentaremos caminhos alternativos a esta necessidade de

crescimento económico. Proporemos reflectir, para o efeito, um novo modo de pensar a

organização social, no qual o homem não será mais medido por um valor monetário.

Este primado da instrumentalização da razão, também se manifesta no modo como se

desenvolve a tecnologia. Em detrimento de um maior contacto humano, será a eficiência

técnica a ditar como se processarão as relações sociais humanas.

Agostinho da Silva acreditava no progresso tecnológico, em como este levaria o homem

a uma maior liberdade. Entendemos que a tecnologia por si só não é suficiente. Isto

porque vivemos numa sociedade da produção e crescimento. O que nos leva a colocar a

questão: quando ou quanto será suficiente? Nunca. Nós caindo na desmesura, advinda

deste modelo da máxima produção e eficiência, ficamos presos a uma engrenagem que

continuará a exigir o sacríficio e destruição humanos e de recursos naturais. Este ponto

levar-nos-á a reflectir a necessidade de haver mais qualquer coisa.

Maupassant, embora entusiasta do progresso, também ele dará conta de um certo mal-

estar daqui resultante. No final do seu artigo apologista da ciência e do progresso, diz-

nos: "quand je sors la nuit comme je voudrais pouvoir frissoner de cette angoisse qui fait

se signer les vieilles femmes le long des murs des cemitières, et se sauver les derniers

superstitieux devant les vapeurs étranges des marais et les fantasques feux follets,

comme je voudrais croire à ce quelque chose de vague et de terrifiant qu'on s'imaginait

sentir passer dans l'ombre! Comme les ténèbres des soirs devaient être plus noires

autrefois, grouillantes de tous ces êtres fabuleux! Et voilà que nous ne pouvons plus

même respecter le tonerre, depuis que nous l'avons vu de si près, si patient et si vaincu."22

O escritor dá conta de um sentimento de perda de algo. Como o título do artigo nos

indica, esta coisa é uma perda do mistério na vida. A ciência ao iluminar o mundo, vai

16

20 MM p.1321 CF MM p.1322 CF Gaulois

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afastando o manto do que era velado ao entendimento racional cientifico. Maupassant

antecipa um mal que nós interpretamos como referente ao desconhecido. Sendo este,

algo a haver no futuro. Só aquilo que está por vir contém em si mistério. A queda do

mundo incerto, transporta-nos a este sentimento de perda do viver para um fim que se

nos escapa. No nosso entender, aqui subjaz uma dose latente de niilismo. Não nos

espanta que, o homem inclinado para a perda de projecção de futuro, caindo no niilismo,

i.e., numa vida sem sentido, em simultâneo se adorne dos prazeres no presente como a

finalidade última. Podendo deste modo ir adiando a consciência da sua própria

mortalidade. A vida humana realiza-se no presente, só que faz-nos humanos este arco

temporal de, surgindo do passado, projectarmos o amanhã.

c) O individualismo e a razão instrumental

O terceiro mal-estar reúne o individualismo e a razão instrumental nas consequências

desta relação entre os dois.23

No ponto dois vimos um tipo de economia a surgir como factor determinante das nossas

vidas. Enquanto no ponto um deu-se a ascensão de um certo narcisismo, i.e., o indivíduo

que se tem a si mesmo como o centro e o fim. O que levará à mencionada busca pelo

prazer como um fim em si.

Outra consequência do individualismo é o divórcio dos cidadãos com a política. Estes

preferem cuidar das suas vidas, ao invés de uma activa participação política. A

consequência é levar o cidadão, perante um político colocado pelo governo e/ou o Estado

a sentir-se impotente face ao poder político e/ou do Estado. Na prática significa a perda

da liberdade.

Tomando a mesma noção de Taylor referente a cada um destes mal-estares, teremos: no

primeiro mal-estar há uma perda de sentido; no segundo mal-estar vemos o eclipar dos

fins; e, no terceiro mal-estar, temos a perda da nossa liberdade.24

O que nos iremos propor desenvolver mais à frente são caminhos de possibilidade

alternativos com vista a enfrentar e quiçá superar o mal-estar resultante da modernidade.

17

23 CF p.1624 CF p.18

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1.1 - "A filosofia antes da filosofia"25.

As palavras da família da filosofia só apareceram no século V a.c. e a sua definição

filosófica só foi feita no século IV a.c. por Platão. Quer este ou Aristóteles, e mesmo toda

uma tradição da história da filosofia, apontam como sendo filósofos os primeiros

pensadores gregos do século VI a.c., na periferia da zona de influência grega. Mais

exactamente, nas colónias da Ásia menor. Sendo na cidade de Mileto onde surgiu Tales

de Mileto, um dos antigos sábios, célebre por ter previsto o eclipse solar. Junto com ele

seguiram-se Anaximandro e Anaxímenes.

Este movimento do pensamento iria estender-se às outras colónias gregas, na Sicília e

no sul de Itália. Através de Xenófanes de Cólofon e Pitágoras da ilha de Samos que

emigraram para Itália. Progressivamente, desenvolve-se na Sicília e no sul de Itália um

pólo de actividade intelectual. Deste surgirão Parménides de Eleia e Empédocles de

Agrigento na Sicília26.

Estes pensadores tinham em comum a proposta de uma explicação racional do mundo, o

que constitui uma viragem decisiva na história do pensamento. Demarcam-se dos

anteriores por apresentarem uma explicação racional do mundo. Anteriormente, as

cosmogonias eram do tipo mítico. Isto significa uma cosmovisão descritiva das forças e

fenómenos da natureza, de um modo personificado. Apresentando uma história do mundo

como luta entre entidades personificadas. A intenção é o de manter uma certa

continuidade e ordem no mundo. Destinava-se, dentro desta continuidade, a manter a

memória dos ancestrais e das origens. Recordar a criação do mundo, a criação do

homem e a criação do povo.

Se pensarmos com atenção, está longe de ser um modo de pensar a menosprezar, como

parece ser hábito no nosso tempo. Falamos do esquecimento do passado, daquilo que é

antigo para só dar lugar ao novo. O que acaba sendo uma renovação sem continuidade.

Estes homens pensaram o haver mundo, seguindo-se do haver homens e por fim o haver

povo. Mostrando não somente um grau elevado de consciência de si mesmo, como da

relação de si mesmo com o mundo e com outros homens. Porém, consistia ainda num

modo limitado de consciência. Em rigor, nesta distância de milénios que nos separa

destes nossos ancestrais não podemos especular certezas.

Serão os gregos já por nós referenciados a apresentar uma teoria racional explicativa

acerca do mundo, substituindo o pensamento mítico. Contudo, verifica-se uma

18

25 CF Hadot P. Qu'est-ce que la philosophie antique, (doravante PhA) pp.27-3426 Em rigor este período caracteriza-se como de transição, i.e., a passagem de uma explicação mítica do mundo a uma

explicação racional do mundo não apaga de imediato traços do pensamento mítico nos pensadores gregos que buscavam por uma explicação racional do mundo,

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determinada continuidade relativa ao modo ancestral mítico de pensar. Chamamos a

atenção do leitor para este detalhe. Não é mero esmiuçar de um pequeno grão de poeira.

Ao longo do nosso estudo iremos lembrar a importância da continuidade no tempo. Isto

em detrimento de uma posição de ruptura com o passado. Entenda-se, mesmo num corte

com o passado há continuidade. A pretensão do contrário ou o esforço de esquecer e

negar o elo com a história passada, dará origem a uma perda de sentido.

Como nos refere Pierre Hadot: os novos pensadores gregos conservarão o esquema

ternário, que estruturava as cosmogonias míticas. Eles propondo uma nova teoria para a

origem do mundo, do homem e da cidade. Verificamos então este paralelo. No

pensamento mítico e no pensamento racional há a preocupação de explicar o haver

mundo e o haver homens. Também há um paralelo entre explicar a origem do povo, isto é,

da comunidade relativo à origem da polis grega.

Esta teoria é racional por ela procurar explicar o mundo como uma luta entre realidades

físicas27 e o predomínio de uma sobre as outras. Esta transformação radical é

manifestada na palavra physis, que significa o começo, o desenvolvimento e o resultado

do processo pelo qual a coisa se constitui. O que os gregos buscam é, portanto, a physis

universal. Compreender o aparecimento das coisas, como estas se desenvolvem. Em

suma, procuram por aquilo que é.

A esta busca intelectual os gregos chamam investigação28. Trata-se de uma busca por

conhecer as causas de cada coisa, a razão de estas surgirem. E as causas porque estas

existem ou perecem.29

A filosofia veio também dar seguimento e resposta a uma preocupação e interesse dos

gregos, a paideia. Os gregos mostravam grande importância no cuidado de formar a sua

juventude. Especialmente, os jovens orientados para um destino de excelência, aretê,

requerida pelo sangue da classe a que pertenciam, a classe dos nobres. Mais tarde, na

filosofia, esta excelência viria a ser chamada de virtude. Designava-se assim o possuir-se

uma alma nobre. Esta educação exercia-se no seio da classe social. Os adultos

transmitiam as qualidades consideradas necessárias à formação dos futuros cidadãos. O

ensino fazia-se através da apresentação de modelos, que personificavam as qualidades

tais como a força física, a coragem e o sentido de dever. Os gregos desenvolviam novas

modalidades de ensino, conforme as necessidades. Uma atitude que no nosso tempo,

mais uniformizado, e ainda, da máxima eficiência tende a evitar cuidar de pesar. Isto é, o

19

27 CF PhA p.2928 CF Idem 29 CF Fédon 96a

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criar novos modos de pensar o mundo, tendo em conta os problemas do momento30.

Os gregos tinham um modo educacional em acordo com a socialização humana. No

nosso tempo, as crianças e jovens continuam a aprender através de modelos. Todavia, na

ausência de bons modelos ou mesmo de quaisquer modelos e de uma ideia de

comunidade, que os gregos possuíam, dá-se uma disrupção da identidade. Nos capítulos

posteriores compreenderemos, indirectamente, o motivo de termos começado com esta

revisitação da história da filosofia. Tal como os gregos, também nós procuramos pelo

princípio das coisas.

Já a partir do século V a.c., com o esplendor da democracia, os gregos irão deparar-se

com a necessidade de desenvolverem o domínio da linguagem. Por este atributo ser

fundamental para o exercício da influência na assembleia durante os debates. Será neste

ambiente social, que surgirá um movimento intelectual especializado, os sofistas, vindo

para responder a esta necessidade específica. Estes viriam a ser mal vistos pelos

restantes filósofos, ainda nos nossos dias, os profissionais da filosofia tendem a detestar

os sofistas. Um russo viria a dizer um dia: acuse os adversários do que você faz e chame-

os do que você é.

Sofista, no dicionário, é aquele que busca fugir à verdade e o que argumenta com

argumentos falsos dando aparente corpo de veracidade ao discurso. Nós, que iremos

apresentar o filósofo de um certo modo, deixamos em aberto a verificação de quem são

os sofistas. Para o mistério não ser total: sendo a filosofia apresentada como um modo de

vida, poderá ser filósofo quem não vive a filosofia?

Mantendo as perguntas abertas, pois são para o leitor responder perante si mesmo.

Importa-nos devolver alguma dignidade aos sofistas, os quais avant la lettre mostraram

os limites humanos. Consideramos o sofismo como um precursor do relativismo. Embora,

seja moda criticar o relativismo como algo de equivocado, nunca a nossa sociedade terá

sido tão relativista. Se há algo de errado no nosso tempo, isto não é o relativismo, pois

diferentes pessoas têm percepções diferentes e por consequência crenças diferentes. O

problema está no oposto, pretender-se universalizar a percepção do mundo numa forma

idealizada. Em suma, a filosofia veio explicar o mundo com racionalidade, encontrando

limites e problemas que nós, humanos, continuaremos a explorar enquanto vivermos no

planeta.

20

30 Tendemos a adoptar modelos menos flexíveis e adaptados às nossas necessidades locais. Exemplo especulativo: adoptar o modelo educativo finalndês no sistema português.

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1.2 - O filósofo: aparecimento da definição31

Não sabemos se Sócrates utilizou as palavras filosofia ou filósofo durante os seus

discursos, porém no Banquete de Platão iria inspirar a definição do que é um filósofo.

Dando origem a um termo definido de um novo modo32. Filósofo é o sábio que suporta

imperturbado as emoções, mais quaisquer eventos da Vida.

A figura de Sócrates é para muitos dos filósofos que se lhe seguiram a referência do que

é um filósofo. Seja para se lhe seguir o exemplo ou para se lhe opor. Nenhum filósofo ou

qualquer pessoa que se interesse por filosofia pode evitar o encontro com este pensador

grego. Ele até na sua condenação à morte serve o exemplo da vida boa. Mantendo-se

firme na verdade de si aceitando o seu destino imposto pelo mundo exterior. Mas, o que

entendemos por filósofo?

Platão em Teeteto33 fala-nos do filósofo como um estrangeiro. Este estranhamento deve-

se ao filósofo que não se reconhece no modo de estar. Há o modo de vida do filósofo e o

modo de vida não filosófico. Este último significa o homem desorientado do modelo de

elevação. Este torna-se orientado para a corrupção e a falsidade. Crescerá num modelo

que busca obtenção de vantagens através do engano e da desonestidade.

Começamos a ver o filósofo como distinto dos homens comuns. Contudo, este passo não

deverá servir para os filósofos ou os que ensinam a filosofia se fecharem à comunidade.

Uma coisa é distinguir-se, tornarem-se em modelos diferenciados, outra é omitirem a

responsabilidade de liderar, sem liderar. O filósofo lidera indicando, sem nunca se deixar ir

na frente de quem quer que seja. Já o famoso oráculo limitava-se a indicar a direcção

sem nada afirmar.

Se começamos a antever o filósofo como aquele que sabe ser ou estar na Vida, falta-nos

comentar um pouco da formação que interessará o desenvolvimento nos capítulos

seguintes. Um dos aspectos do educar consistia em praticar o diálogo, um método tão

bem ilustrado pela figura de Sócrates. Infelizmente, muito esquecido no ensino superior

contemporâneo. O professor fala, os alunos escutam. Um modelo árido e empobrecido,

este. Tende-se a desvalorizar o pensar por si mesmo. Voltaremos a este assunto no

coroar da criança.

21

31 PhA pp. 70-8732 CF PhA p.7033 CF Teeteto 173 – 176

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1.3 - Filosofia como modo de vida

A ideia da filosofia como um modo de estar na vida não é recente, mesmo se Pierre

Hadot nos propõe a expressão – filosofia como modo de vida. Esta busca pela vida boa,

para o qual remete a expressão de filosofia como modo de vida, sem nunca ter

desaparecido tornou-se subalterna a outro modos de filosofia mais abstracta e

desconectada da vida. A filosofia contemporânea não fala aos homens. Se tivermos

dúvidas a respeito deste desvínculo, basta ir na rua e perguntar aos viandantes o que

pensam acerca da filosofia. Esta filosofia contemporânea, é-nos apresentada, ironia do

destino, como filosofia académica. Para nós o modelo actual tornou-se mais pobre, nem

os antigos que considerassem a filosofia só para alguns aprovariam este fechamento da

academia contemporânea face às necessidades da sociedade. Inclusive, consideremos

este modelo de filosofia limitado, mesmo se o julgamos necessário e importante para uma

vida intelectual saudável. Não estamos a opor-nos ao trabalho de pesquisa dos nossos

colegas, só a reclamar mais atenção para outros modos de filosofia esquecidos.

Se voltarmos ao passado, bem nas origens, veremos o fundador da academia admirativo

do filósofo enquanto modo de estar na vida.

Na República, Platão indica-nos: Pitágoras terá sido amado por ter educado os que o

frequentavam. Os seus discípulos reclamaram terem a partir dele criado um modo de

vida. Isto tornava-os diferentes dos outros34.

Platão receberá de Sócrates o método do diálogo, a ironia e o interesse sobre os

problemas de conduta da vida35. De Pitágoras, Platão tomou o ideal de comunidade de

vida entre filósofos36. Portanto, quer Pitágoras, quer Sócrates, terão sido inspiradores

aquando da fundação da academia. Embora, não se saiba em que, no particular 37, o

Pitágoras tenha inspirado Platão38.

A academia é portanto um lugar de formação, mais voltado para o exterior. Isto significa,

para servir a comunidade. A filosofia quer-se viva e não como mera reprodução de si

mesma. Esta é uma ideia a recuperar no nosso tempo. Formar filósofos menos

possuidores de diplomas e mais filósofos habilitados a orientar a comunidade para a vida

boa. A filosofia é para ser vivida enquanto modo de vida, não como uma profissão

22

34 República 606b 35 CF PhA p. 9536 CF Ibidem37 Sabemos pouco acerca da proposta de Pitágoras. Porém, sabemos que Platão encontrou pitagóricos na sua viagem à

Sicília.38 CF PhA p.95

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delimitada por um horário e fora do qual se despe da função. No fundo, nos nossos dias

há poucos filósofos, mesmo se persiste a existência de professores de filosofia.

Na nossa posição, a partir dos antigos, vemos que a filosofia consiste em adoptar um

modo de vida filosófico. Esta posição pode ser verificada na República. Platão indica-nos

ser essencial, pelo estudo, buscar verificar a diferenciação entre a vida boa e a vida má.

Para escolher a vida boa dentre as possíveis39.

Vimos então, a filosofia é adoptar um modo de vida. Mas não um qualquer e sim um que

eleve o homem para uma vida melhor. Será através da prática filosófica que o homem irá

exercitar-se na auto-regulação de si. Por exemplo, aprender a manter-se calmo40. Desde

cedo veremos uma preocupação de o homem preparar-se para a morte.

Podemos recuar de novo no tempo, retornar à era anterior à filosofia, para dizer: algumas

pessoas poderão pensar que a filosofia nasceu num belo dia de inspiração espontânea.

Por assim dizer, um homem inspirado, um dia meteu-se a filosofar. Na nossa posição há

uma continuidade, o fundo humano que compele para agir e buscar algo é o saber-se

mortal. O tal ser para a morte de que falará um filósofo do século XX.

Vejamos mesma numa era era mítica: a consciência da morte preocupava o homem. Na

epopeia de Gilgamesh, dentre outros, a morte é a grande motivação deste para realizar a

sua busca. Gilgamesh desejava ser imortal, vivendo a preparar-se para a morte mesmo

sem o saber. No fim, quando consciente de que morreria, limita-se a olhar do alto das

muralhas a cidade. Ele sabia que iria morrer, mas enquanto esse dia não chegasse teria

que viver. Precisamente, aqui a pertinência da filosofia floresce e ganha toda a força. A

filosofia é um modo de o homem viver bem enquanto espera pela morte.

Teremos que morrer, enquanto a morte não chega há que viver. Epicuro afastou o medo

da morte lembrando não fazer sentido temer o que ainda não é. Assim como uma vez a

morte presente, já não importa mais a questão.

Voltando a Platão, Sócrates é mostrado na hora da sua morte dizendo: a filosofia é a

preparação para a morte41.

Na República vemos o ênfase que pretendemos dar, isto é, enquanto não morremos há

que viver. O que se pretende de uma boa maneira. Não só há esta consciência da morte,

como a intenção de aproveitar a nossa existência da melhor maneira. Deste modo, temos

já na República a orientação adequada: a filosofia visa como que a elevação da alma, na

23

39 República 618 b – c 40 República 604 b – c 41 CF Fédon 64 a

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direcção do pensamento mais elevado e da contemplação42. Acresce a des-pre-ocupação

da alma com a morte. No fundo, já a indicar que mais do que pre-ocupados com a morte,

os homens aprenderão com a filosofia a ocupar-se de viver.

Adiante, quando falarmos no nosso modelo de transformação espiritual, teremos em

conta este sentido de elevação e contemplação.

A filosofia como modo de vida virá a ganhar maior expressão, durante o chamado

período helenístico. Este período é definido como o intervalo entre a governação do

Alexandre, o grande, século IV a.c. até à dominação romana no século I a.c. A expedição

de Alexandre irá estender a influência grega desde do Egipto a Samarcanda e Tachkent

até ao Indus. Dar-se-á o início de uma nova era, a Grécia abre-se ao mundo. O comércio

intensifica-se e com ele o encontro de culturas que se irão misturar. O final deste período

costuma ser apontado pelo evento do suicídio de Cleopatra em 30 a.c. É comum

apresentar-se o período helenístico como de decadência43. Daqui resulta, como aos

sofistas, ainda haver nos dias de hoje uma certa desconsideração pela filosofia

helenística. Todavia, este é o período mais originário e próximo dos problemas do nosso

tempo. Já vimos o mal-estar do individualismo, um problema que não sendo igual, tem

algo de semelhante com a desintegração da Polis grega. A perda de influência política dos

cidadãos, por consequência da liberdade, levou ao acentuar do foco na interioridade do

Homem. A filosofia desenvolverá toda a sua força num sentido de terapia. Será isto o

modo de vida em filosofia, o cuidar de si e por arrasto e contágio dos outros. Neste

contexto surgirão diversas escolas, sendo as mais famosas: estoicismo, epicurismo,

cépticos e cínicos.

Todas elas têm em comum a proposta de filosofia como terapia, oferecendo uma

orientação e um caminho para se ser e estar na Vida. Isto é, adopta-se um modo de vida

sendo na existência segundo uma determinada doutrina.

Para pensarmos caminhos de possibilidade para o mundo moderno, inspiramo-nos

especialmente neste período da filosofia. Olhando um tempo em que os Homens

procuravam viver segundo um modelo filosófico. Deste modo tinham uma orientação de

sentido auto-instituído para as suas vidas. A filosofia adquiriu neste período o destino de

servir a todos ultrapassando o elitismo do platonismo ou do aristotelismo. A filosofia no

seu desenvolvimento destinava-se a todos os Homens: ricos ou pobres; escravos ou

livres; homens ou mulheres. Qualquer pessoa que adopte o modo de vida de Epicuro ou

24

42 CF República 486 a – b 43 CF PhA p.146

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estóico era considerado filósofo44.

A nós interessará o cinismo, também ele destinado à população em geral. Esta escola é,

de entre as mais famosas, a que pior fama terá. Quiçá este seja o motivo para a nossa

escolha.

Se o cinismo terá sido fundado por Antístenes, terá em Diógenes a sua figura mais

marcante.

O nosso interesse particular neste movimento: o cinismo, mesmo se orientador de

sentido, evitava tornar-se numa instituição formal. Isto é, fixar-se formando uma escola

propriamente dita. O que nos interessa é este desapego a uma doutrina formal. Por

estarmos aqui só a mostrar linhas orientadoras de possibilidade. São isto os nossos

caminhos aporéticos a serem percorridos e experimentados em liberdade. Sem

constrangimentos, mas engajados numa busca de verdade para a nossa existência

enquanto Homens e também na nossa relação com o meio ambiente.

Os cínicos servem-nos para voltarmos a pensarmos os nossos hábitos. Tendemos a uma

certa acomodação, i.e., as coisas sempre foram de uma determinada forma, então

cremos que sempre serão assim. Evitamos transgredir e a ruptura, crentes de que as

regras sociais são indispensáveis. No nosso compromisso não seremos tão radicais como

os cínicos foram, mas exigiremos a verdade. Por vezes, as coisas não mudam, porque

nós não queremos mudar as coisas. Isto a começar por nós mesmos. Adormecemo-nos e

entregamo-nos o nosso destino nas mãos invisíveis. É legítimo não querer mudar, desde

que assumido. E isto faz-se no encontro com a verdade. Para consigo mesmo.

Os cínicos e os membros das outras escolas buscaram através de uma ascese e atitude

na vida: ataraxia, a ausência de perturbações; autarkeia, a independência. A ascese

consistia no esforço, na adaptação às circunstâncias tais como a impossibilidade e numa

postura de simplicidade ou ausência de vaidade, impudor – tuphos

Os cínicos escolhiam este seu modo de vida porque consideravam o estado de Natureza,

Phusis, como superior às convenções sociais45. Nós, sendo menos radicais, concordamos

com a ideia subjacente. Os cínicos mantinham espaço e o despojamento mantinha-os

dispostos a encarar a vida como movimento de devir. Esta atitude é superior a uma

atitude estática e cristalizada. Sendo a Vida impermanente, a atitude cristalizada arrisca a

ser-se surpreendido e não estar preparado, criando em si o sofrimento. Possível devido a

uma falsa crença de permanência, o que desde logo a morte contradiz. Impedindo-se de

aproveitar a vida por distracção ou medo do inevitável.

25

44 CF PhA p.16945 CF PhA p.170

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Os cínicos, mostrando o desprezo pelas regras sociais, mostram-nos as nossas

possibilidades de liberdade. Ou seja, temos a capacidade de derrubar convenções para

originar o mundo a haver. Começando com o exercício provocador e insolente de sendo

livre, dizer tudo sem restrição.

1.5 - Parrêsia, a coragem da verdade

Sobre a verdade não falaremos desta num sentido epistemológico. No entanto,

defendemos a mesma num sentido de haver múltiplos modos de atingir a verdade, como

Ibn Rushd demonstrou no seu tratado46. Esta nossa referência a Ibn Rushd é outro modo

de chamar a filosofia para o presente. Neste caso, por se tratar de um texto escrito como

uma fatwa47, incentiva os muçulmanos, igualmente em perturbação da sua identidade e

sentido, a encontrarem um modo de dissiparem os sectarismos resultantes de um estado

de confusão geral da ummah48. Quiçá para deste modo evitarem a bid'a49 e a fitnah50, o

que constitui na tradição islâmica um grave pecado. Acreditamos que o reatar com a

tradição filosófica, no caso dos muçulmanos, a falsafa51, também ajudará a cuidar de uma

comunidade em crise de sentido. Isto porque o tratado de Ibn Rushd visa não só mostrar

a compatibilidade entre a religião islâmica e a filosofia, como tornar carácter obrigatório o

estudo da filosofia. Outro motivo para evocarmos Ibn Rushd é a consideração de que, se

a filosofia é destinada para se viver como um modo de estar/ser na vida, esta não é

destinada a todas as pessoas da mesma forma. Nós temos uma posição muito crítica

relativa aos profissionais da filosofia que não entendem o seu papel de promotores da

filosofia junto do resto da comunidade. Consideramos uma obrigação moral a transmissão

da filosofia a toda a comunidade. Para assim evitar que pessoas desinformadas e sem

estudos apropriados criem a desarmonia no mundo de todos.

Todavia, nós que nos focamos na filosofia antiga, não nos debruçaremos sobre o

problema muçulmano. Iremos seguir acompanhados do pensador francês, Michel

Foucault, para reflectir o falar verdade no discurso filosófico no interior de numa

comunidade viva. E pensarmos internamente o que significa para cada um de nós este

compromisso com a filosofia enquanto busca pela verdade. Se consideramos a filosofia

26

46 Averróis, Discurso decisivo sobre a harmonia entre a religião e a filosofia, Catarina Belo (trad.), Lisboa, INCM,

2006.

47 Decreto religioso, um parecer sem força de lei.48 Comunidade dos crentes muçulmanos.49 Inovação religiosa.50 Dissensão e sectarismo51 Literalmente significa filosofia. Na tradição islâmica também se usa a palavra, kalam, para designar a filosofia. Esta

significa, discurso.

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como modo de vida, não nos parece que seja desadequado pensarmos a nossa vida

como autêntica, assim como o que nos leva a afastar da autenticidade. A esta questão

regressaremos na terceira parte da dissertação.

A verdade que nos importa é a de unificar o discurso e a acção. A filosofia é uma

actividade abstracta junto com uma actividade concreta. Isto significa integrada no

individuo, jamais poderá considerar-se a filosofia como sendo uma actividade parcial,

profissional, limitada por um horário. Estes não são nem filósofos nem vivem a filosofia.

Portanto, a filosofia é uma actividade integral, i.e., a tempo inteiro e como modo de vida.

Neste capítulo usaremos o texto composto pelas últimas aulas de Michel Foucault no

Collège de France, 198452. Pretendemos fazer uma interpretação inspirada da sua lição

de abertura e na lição final, num contexto que é o próprio exemplo da vida de Foucault.

Orientamo-nos para esta ideia da filosofia como modo de vida e na busca da verdade

para consigo e com os outros. No saber governar a si mesmo e aos outros. No cuidar de

si. A relevância é mostrar a vida de um homem que, tendo dedicado o seu tempo à

filosofia, acaba mostrando pelo exemplo a sua preparação para morte53. Sem deixar de

mencionar uma certa degradação deste cuidar de si que, ao longo do tempo, será

substituído por um dever de obediência ao exterior e não já a uma resposta à demanda

interior de verdade sobre si mesmo no sentigo antigo dos gregos.

Este é o contexto a que pretendemos dar ênfase. Foucault durante o seu último ano de

aulas estava consciente da proximidade da morte. Sendo no aproximar da sua morte que

Foucault começa a focar-se na filosofia como um modo de vida. Centra-se nos cínicos

enquanto filosofia prática. Longe das meras cogitações, a filosofia tornava-se numa

atitude que tomava perante si, a comunidade e a própria Vida. A nossa escolha ainda é

justificada, pois aqui antecipamos o que veremos mais adiante acerca das percepções e

crenças. Especialmente, percepções e crenças erradas em oposição a uma filosofia da

verdade. O nosso foco é recordar que a busca da verdade se aplica imediatamente na

vida diária. Corrige-nos, diremos mesmo, cura-nos da doença da má visão. É pela

experiência pessoal que apreendemos a verdade sobre nós mesmos. Nasce desta

experiência o modo como iremos constituir as nossas crenças nucleares e o modo de ser

e estar na vida. Ou seja, sem o exercício da busca pela verdade, tenderemos para nos

constituir com base no que o mundo exterior nos dita. Agravado destino se este mundo

exterior vier a impor uma verdade. A prazo estaremos sendo obedientes, o que numa

27

52 Foucault M., Le courage de la vérité, le gouvernement de soi et des autres II, cours au collège de France, 1984, Paris, Gallimard, 2009 (doravante Le Courage)

53 Foucault irá falecer poucos meses depois de proferir estas lições.

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linguagem corrente se diz: seguir o rebanho no qual nos deixamos incluir sem voz, por

falta de um compromisso filosófico pela busca da verdade54.

Iremos ficar centrados no termo parrêsia, sabendo-nos inspirados pelo espírito cínico,

mas não teremos esta escola filosófica como objecto particular de estudo. A sua presença

deve-se mais ao exemplo de homem que escolhemos para a nossa viagem. Se

consideramos pertinente o estudo do cinismo, esta filosofia mais extrema na sua prática

só nos serviria enquanto ponto de partida. Importa-nos reflectir de um modo limitado em

torno desta ideia de falar verdade. Implicações que possa ter na vida humana,

especialmente, no tempo contemporâneo. O que nos serve no cinismo na disrupção com

as instituições humanas? Se nos alerta contra a conformidade e mostra um modo

anárquico de nos libertarmos das convenções sociais, falta-lhe uma orientação de

sentido. Isto significa, ausência de um modelo para substituir às anteriores convenções

sociais. Em rigor, o cinismo possui um modo de vida a oferecer, não fosse ele uma

filosofia. No entanto, a proposta cínica tende a reduzir o humano à sua mera natureza

mais primária.

Todavia, a nós interessa o conceito parrêsia como Foucault o apresentou nos Cours au

Collège de France.

Previamente, dando seguimento ao estudo de Pierre Hadot, chamamos a atenção para a

originalidade de Foucault. Hadot diria a respeito do modo de filosofar de Foucault que os

métodos de ambos diferiam. Foucault não seria dado à filologia, o que o levaria a ser

pouco rigoroso no uso das traduções e interpretação dos textos antigos. Apontando uma

divergência relativa à ética do mundo grego estar ligada ao prazer que, para Hadot, é um

equívoco de Foucault. Hadot acrescentará quanto muito haverá uma ética do prazer no

epicurismo, mas sobre este Foucault escreveria pouco55. Não estamos aqui para dirimir

esta divergência. O significativo é vermos Foucault, tido mais como um historiador das

ideias, encarnando o papel de filósofo precisamente devido a esta divergência. A

coragem de ousar de Foucault. Este modo de estar na vida é para nós exemplo e

inspiração para esta demonstração numa dissertação de filosofia divergente da

metodologia mais convencional. É um chamar à descoberta de si, do experimentar e

agindo junto com o pensamento. Em simultâneo demonstramos o conceito central da

nossa exposição. Ora vejamos: "Il faut pour qu'il y ait parrêsia que, en disant la vérité, on

28

54 Falamos sobre a nossa verdade verdade interior, o auto-conhecimento que cada humano é chamado a realizar para viver no caminho da virtude. O viver da verdade é o exercício de auto-conhecimento e aplicação em si do conhecimento adquirido.

55 CF Hadot P., La philosophie comme manière de vivre, Paris, Albin Michel, 2015, p.216

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oeuvre, on instaure et on affronte le risque de blesser l'autre, de l'irriter, de le mettre en

colère et de susciter de sa part un certain nombre de conduites qui peuvent aller jusqu'à la

plus extrême violence. C'est donc la vérité, dans le risque de la violence."56

A filosofia como modo de vida comporta um risco, especialmente, se estivermos

comprometidos para com a verdade sobre nós mesmos. Podendo ir, como nos disse

Foucault, até à extrema violência. Mas vejamos mais de perto a lição. Num exercício de

coragem da verdade, podemos começar imediatamente pela reflexão a respeito das aulas

dadas por Foucault. Estamos aqui a pensar no contexto e lugar da realização das aulas.

As aulas, como o próprio indicará, poderão dividir-se entre um carácter exotérico e um

carácter esotérico57. Logo de entrada temos um Foucault em fase como uma certa ideia

de tradição filosófica: há uma filosofia ensinada para a comunidade pública e uma outra

destinada em regime fechado e só ensinada aos especialistas. Estes últimos serão os

investigadores, os professores e mestres que transmitem o ensino da filosofia. No

entanto, só são filósofos os que não só tomam a cargo este trabalho de investigar e do

ensino da filosofia como vivem eles mesmos engajados internamente com a filosofia.

Deixaremos em aberto a pergunta: será que na nossa época, os professores de filosofia

ainda vivem neste compromisso com a verdade?

Suscitamos o questionar: será mais relevante a minha interpretação ou ler o texto de

Foucault? Através desta pergunta promovemos a curiosidade do leitor em ler o original.

Enquanto que aqui está a deparar-se com o olhar a si mesmo e verificar se é um actor na

vida ou um assistente. A filosofia prática quer-se pensada e vivida e transmitida como um

um modelo de vida. Compilar conceitos e amontoar erudição é importante, mas

secundário.

Colocadas todas estas considerações desafiadoras, vejamos o que nos é dito sobre o

conceito parrêsia e a própria constituição do individuo que, acima de qualquer outro

problema, constitui o núcleo da nossa reflexão58.

Omitiremos a posição de que dizer a verdade sobre si sirva para melhor se submeter aos

outros. O individuo por estar em relação precisaria de transmitir o melhor possível a

informação sobre si mesmo, sentindo que, conforme o modo de acolhimento, assim se

constituirá a si mesmo. Isto é uma admissão de que sempre nos construímos

dependentes do exterior. Não é fácil provar o inverso. Excepto se formos únicos e

29

56 Le Courage p.1257 CF Le Courage p.458 Teremos como base de apoio as aulas de Foucault, mas procederemos a uma exposição própria a partir destas. A

nossa reflexão parte de Le Courage pp.4-20 e pp.296-309

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cortados de quaisquer elos com o exterior humano, sempre seremos dependentes deste

mesmo exterior. O que importa então não é admitir se há ou não uma constante relação

de poder entre o sujeito e o poder. Dito de outra forma: o submetido a alguém que manda.

Ou seja, o sujeito precisará do assentimento do outro para se constituir a si mesmo. Nós

admitiremos esta posição como sendo descritiva da realidade. Então, se não depende de

nós haver ou não influência do poder externo na nossa vida, sobra focar-nos no espaço

no qual temos liberdade.

Os estóicos ou os cínicos sabiam que só temos controlo e poder de facto sobre nós

mesmos, portanto, importa sabermos sobre o que não possuímos poder. A coragem da

verdade implica buscar esta diferenciação. Dar-se conta da relação de sujeito e

dominador externo, possibilita uma averiguação por cada uma das partes sobre como a

verdade se manifesta. A esta manifestação da verdade Foucault categoriza como

aleturgia59.

Estamos a suscitar a atenção para o seguinte: uma expansão da consciência implica

Atenção Plena sobre a relação entre as consciências. Especialmente, a dependência. Ou

inter-dependência, que é mais rigoroso. O indivíduo em situação de dominação tenderá a

quebrar o sujeito, i.e., aquele que é o submisso para dele retirar proveito. Ainda seremos

mais finos no foco: sendo a relação inter-humana sempre activa -passiva. Por vezes, um

manda, noutras este obedece. Haverá a tentação do Homem pretender posicionar-se

sempre em situação de mandar no outro. Ou, vice-versa. Não fazemos juízos sobre

posição de uns e de outros.

Nesta manifestação da verdade, deparamo-nos com regras advindas da comunidade.

Sejam regras da cultura ou da religião. Mas, como vimos observando, o olhar mais atento

é sobre si mesmo. A observação de si mesmo, i.e., o auto-conhecimento revela a partir do

abismo da nossa alma quem somos. Ou, se preferirmos, a nossa verdade subjectiva

acerca de nós e do mundo. Por ser relevante o estudo da nossa cultura, especialmente,

da religião, na parte II teremos um olhar mais voltado para o cristianismo. Isto num

sentido de ser a partir dele que pensaremos a transformação de si. Todavia, antes ainda

nos falta reflectir um aspecto sobre a opressão desta manifestação da verdade. Isto neste

sentido que acabamos de referir: um olhar para a nossa interioridade.

No entanto, esta busca interior pela manifestação da verdade iria ganhar má reputação.

Ainda hoje chamamos de insolente qualquer discurso não conforme às regras.

Tentaremos humilhar ou ostracizar quem se desvia das normas, apelidaremos de

30

59 CF Le Courage p.5

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arrogância o desafio de pensar-se e apresentar-se diferente dos outros. Temos também

em Foucault esta clarividência: "La parrêsia apparaît donc maintenant comme un

comportament blâmable, de présomption, de familiarité e de confiance arrogante en soi-

même."60

Pretender autonomia tornou-se mal visto, abrindo-se a porta da submissão voluntária.

Pior, séculos de obscurantismo a que o iluminismo não pôs fim. A modernidade trouxe

excesso de entusiasmo progressista, mas pouco discernimento numa real refundação da

sociedade. Retomar com a tradição da filosofia como modo de vida pode ser a cura desta

doença da desconfiança de si mesmo. Os homens estão doentes, mas não notam.

Trabalham sem finalidade, consomem, deambulam por aí sem se pensarem. Morrem

como se nunca tivessem vivido. Faltou-lhes a filosofia – falta-lhes a filosofia.

Na filosofia procura-se uma arte de vida, um modo de ser e estar consciente que leve à

autonomia. No cristianismo exige-se uma penitência e obediência eterna a Deus. Quando

retomarmos o cristianismo como objecto de estudo, já estaremos afastado deste

enquanto relação de submissão a Deus61. Retiraremos Deus do papel de vigilante eterno,

por consequência, retiramos este papel a quaisquer dos seus representantes ou

discípulos indirectos. O papel de vigilante dos outros assumirá muitas formas, nem

sempre claras numa primeira observação. Servem estas palavras para chamar a atenção

e convidar a uma contemplação da verdade. Deus será novamente o objecto da saudade

humana, para o qual nos inclinamos. Veremos em Agostinho da Silva o que isto significa.

O nosso foco principal não será o realizar boas instituições, mas deixando janelas de

comunicação. Pretendemos relembrar aos Homens a sua história, cultura e religião. Os

conflitos quiçá devam ser inspiradores de uma necessidade de entendimento entre os

Homens. Sobretudo lembrar, a crise poderá não ser só económica nem institucional.

Adiante apontaremos caminhos alternativos neste campo da economia. O problema mais

proeminente é o do individualismo que defendemos resolver-se com a individualidade. O

humano que se descobre a si mesmo e se constitui como único e em alteridade com o

exterior, resolve o problema do excesso de idêntico (ou positividade).

Ao lermos um artigo62, veremos as seguintes expressões de Kant: "conceitos sem

intuições são vazios" e "intuições sem conceitos são cegas". Estas remetem-nos para

uma forma fixa de ver a realidade. Tudo estaria organizado e categorizado segundo uma

31

60 Le courage p.30561 Os muçulmanos de que falamos, têm como ponto fundante da sua religião esta submissão total e voluntária a

Deus/Allah.62 Joana Macedo Luís, "Vida metafísica e sociedade" , Philosophica 42 (2013), pp. 15-19.

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determinada ordem. O que nos incita a procurar o princípio por trás desta ordem, para de

um modo ideal concretizarmos esta organização de modo harmonioso. No entanto, para

nós, a realidade é movimento, alteração constante, o que torna a ideia de progresso

continuado desajustada. Assim como a ideia de crescimento económico constante, um

equívoco. Não exporemos em pormenor, neste estudo, uma das referidas soluções

globais para o problema do esgotamento, o decrescimento económico. Pelo menos

deixamos expressa a ideia. Num modo directo criticamos o esquecimento e a separação

por parte dos filósofos daquela que foi a filosofia viva num passado distante. A filosofia

como modo de vida, o que por si já constitui um princípio de reajuste e reorientador de

uma sociedade em perda de sentido. Indirectamente, o dedo aponta-se aos profissionais

da filosofia, eruditos de saber morto, esquecidos do seu papel de orientadores da

comunidade. Se alguns ainda realizam este papel, intervindo e escrevendo no sentido de

alcançar determinado fim mais elevado, outros tantos, limitam-se a análise de textos e

escrever sobre esta análise. Para entendermos, precisamos recuar: o cristianismo veio

substituir-se à filosofia enquanto modo de vida. Sendo esta relegada ao papel de análise

de conceitos. Porém esta metodologia pós-cristianismo não tem que ser continuada.

Temos, nós, os filósofos, o dever, de relembrar a filosofia como sendo um modo de vida.

Vivemos numa era de super-produção capitalista, sem espaço ao vazio. Este vazio num

sentido de negatividade, um recuo e descanso. A nossa solução vai no sentido da

proposta de Byung-Chul Han, retomar com a tradição da filosofia contemplativa.

Numa forma, verdadeiramente mais elevada, a filosofia como modo de vida, renovada

como uma certa vertente histórica, também soluciona o problema da sociedade do

cansaço. Sem qualquer teleologia, a filosofia como vida contemplativa devolve à

humanidade a sua presença integrante do espaço que lhe é exterior à consciência. O

mundo exterior deixa de ser só uma projecção do próprio indivíduo, mas retorna a uma

forma de o indivíduo se demarcar e diferenciar face ao mesmo63. Sendo esta relação tanto

mais harmoniosa quanto mais o individuo se conhece a si mesmo. Para reorientar o

nosso modo de vida, exige-se um compromisso para com a verdade que vimos já.

Recuperar a ideia de parrêsia, um falar franco no espaço público. Sendo que nos nossos

dias, de extrema falsa tolerância, tornou-se virtualmente impossível falar a verdade. Uma

verdade que não se esgote no senso epistemológico. Que seja uma verdade do

acolhimento da diferença. Seja uma manifestação. A nossa sociedade é extremamente

intolerante perante a diferença, rejeita

32

63 Relação subjectiva – objectiva e relação física – mental no indivíduo na relação consigo mesmo e também na relação que terá com outros indivíduos.

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e não sabe mais lidar com a alteridade. Deste modo, surge o discurso: não há alternativa.

A rejeição do outro, naquela que é uma manifestação doentia do pior narcisismo. Pior,

nem é a rejeição, pois muitas pessoas querem acolher o outro. Tornou-se virtualmente

impossível acolher o outro. Se todos pensarem igual, não há espaço para a diferença.

Nós referimos muito o indivíduo, pois a mudança no todo começa por cada uma das

partes que a constituem. No entanto, consideramos que o que é válido para indivíduos se

aplica a povos inteiros, na relação destes entre si. As diferenças devem ser valorizadas,

por constituírem parte de uma unidade plural64. Todavia, recuperando a diferença entre

Nações e a possibilidade de se aplicarem diferentes modelos filosóficos, mais adequados

a cada pessoa ou a cada povo. Desejamos devolver a filosofia ao debate público. No

comércio de ideias e experiências num mundo vasto plural e não mais limitarmos este

mundo a uma mera análise de conceitos vazios ou sem outras alternativas.

Olhamos o passado para nos inspirarmos. Servimo-nos de um nosso contemporâneo

para rever o conceito da parrêsia. Numa singela homenagem ao pensador fizemos uma

suave história de uma ideia que agora clarificamos um pouco mais: o cristianismo65 abriu

espaço ao desenvolvimento do indivíduo, mas no quadro de uma infantilidade. Em

detrimento de uma vida dirigida para o encontro com a verdade, houve no seio das

sociedades cristãs uma verdade incutida nas consciências. Portanto, a liberdade recém

conquistada acabou criando um enfarte nos humanos. Liberdade sem direcção, eis o

problema da libertação trazida pelo iluminismo. O que faltou fazer? Filosofia. Esta tem o

papel de voltar a fortalecer a busca de auto-conhecimento, condição prévia para uma

transformação de si e por contágio toda a comunidade. Porém, não desejamos ver os

Homens sendo todos iguais, o que sugerimos é cada um descobrir a sua uniicidade.

Evitamos ou desejamos destruir a relação de poder tão bem observada por Foucault em

Vigiar e Punir. Na nossa versão: o padre pastoreia e a ovelha é pastoreada.

33

64 Podemos encontrar esta ideia em Madison na carta nº10 de O federalista.65 Cristianismo institucional.

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II – Metanóia

Nesta segunda parte iremos apresentar caminhos filosóficos, a partir dos quais podemos

exercer a filosofia que nos transforma estruturalmente. Isto quer em indivíduos, quer na

própria comunidade. Nela estamos propomos um modelo inspirado em Agostinho da

Silva. O qual será acompanhado com uma proposta complementar no campo económico.

2.1 – Para uma metamorfose espiritual inspirada em Agostinho da Silva

Mudar o nosso pensamento para recriar um novo encantamento do mundo. Mais

precisamente, proceder a um modo de alterar a percepção do mundo. A nossa posição

inclina-se nesta direcção de que é pelo pensamento que transformamos a nós mesmos. O

pensamento é a base das nossas crenças, sendo estas a definir-nos. Já as crenças são

construídas através das percepções. Quando mudamos o modo de olhar, o próprio mundo

mudará. Isto levanta várias questões: se somos mesmo nós que mudamos ou o mundo

que muda? Nós postulamos que a realidade é aquilo que percepcionamos acerca dela.

Contando que esta está em movimento, num devir constante, porque somos nós quem

estamos a mover-nos. Isto deixa subjacente a ideia de a realidade ser subjectiva. Mas, na

nossa posição, esta subjectividade vem junto com a objectividade. Esta última faz-se no

encontro das diferentes subjectividades. Não iremos desenvolver esta questão. Será

considerado, ao invés de pretender mudar o mundo, que mudemos o modo como este é

apreendido. Para este efeito, tomaremos a ideia como fundamento. Uma ideia é o que

concretiza a realidade ou, dito de outro modo, é a ideia que explica a realidade. No final

desta parte, apresentaremos uma concepção oposta. Nesta concepção, será questionado

se uma boa ideia é suficiente para mudar o mundo.

Esta nossa proposta é inspirada pela visão de Agostinho da Silva. Portanto, a partir das

ideias de Agostinho, apresentaremos a nossa própria ideia. Acresce uma proposta no

campo económico, pensada pelo francês Serge Latouche. Sem ser nossa pretensão

refutar ou aniquilar o capitalismo, teremos em consideração que este é um modelo a

superar. Ao contrário de outras visões, não se pretende aniquilar nem fazer uso de

quaisquer métodos violentos para concretizar esta superação. Simplesmente usando a

observação e a atenção plena sobre nós mesmos. E, sobre a nossa relação interna com

o exterior.

O contexto em que vivemos mostra estarmos num mundo sem espaço para a alteridade.

É a partir desta observação do mundo que iniciamos então esta primeira abordagem

filosófica, que propõe um caminho alternativo. Isto, num mundo sem alteridade evidente.

34

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Esta ausência pode ser traduzida pela expressão dos políticos: não há alternativa.

Nós consideramos haver alternativa, basta pensar. Os tempos urgem a que o façamos.

Vivem-se tempos de incerteza acerca do futuro, embora este sempre tenha sido

encoberto pelo manto de uma incerteza dada a natureza que é a sua. Agora pela força do

poder é incutido com veemência no povo o dever de um destino de penitência colectiva.

Isto não tem que ser assim!

Um professor que tive referiu a filosofia helenística66 como sendo uma filosofia da

conformação, surgida numa era de crise e de muita perturbação. Podemos dizer,

adequada àquela que é declarada uma grande crise, a que vivemos na nossa

contemporaneidade. Para o referido professor as escolas filosóficas, cínicas, epicuristas,

estóicas e cépticas, seriam modos de acomodação à realidade. Não concordamos com

esta visão do referido professor. Há imenso espaço para todos. Ou, se calhar, o problema

é esta falta de espaço. Não haver espaço para a negatividade. Por só haver uma

positividade a ocupar e a saturar todo este espaço. É o crescimento e o progresso a

ocupar este espaço. Nós procuramos recriar mais espaço, buscando pensar as

alternativas. Abrir uma clareira de vazio, para deixar germinar a inovação oriunda do

ocultado. Porém, esta não é necessariamente uma novidade, excepto na sua

reactualização. O rever a filosofia na sua origem, buscando por algo de ainda incerto.

Apoiados nesta tradição, por ser sempre deste que modo que a actualidade se torna

possível. Pensamos este mal-estar, a crise em que vivemos. Vemos: o real não é a causa

das crises, mas sim a visão que portamos perante este mesmo real. As crises não

passam de uma má visão do que é o mundo. Sustentamos: o caminho para evitar a

infelicidade e a perturbação resultante das crises decretadas pelo poder político, ou outro,

implica aprender a ter uma outra e adequada visão da realidade. No entanto, a má visão

do mundo é importante, por ser a partir dela que descobrimos a boa. Há uma tendência

actual em rejeitar partes da realidade. Só que o real não é divisível. O que chamamos de

bom, virá atrelado com o que vemos de mau. Se tivermos isto em mente, torna-se

possível escolher a percepção. Assim, o mundo poderá mudar segundo a percepção

escolhida. Importa aqui a boa percepção, por esta ser o que nos leva a viver felizes.

No mundo contemporâneo, talvez, o mundo de todas as épocas, confundiu-se o bem-

estar material com a felicidade. Isto não significa que nos opomos a um alívio das

necessidades materiais pela mera renúncia. Aliás, assim como Agostinho da Silva,

35

66 A filosofia que mantinha a sua originalidade, que neste estudo nos dispusemos a expor. A filosofia como terapia.

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consideramos essencial para uma realização do homem a liberdade económica67. Porém,

a realização do homem é ir mais além deste estágio de alívio. Se focarmos a posse de

bens materiais como meta para ser feliz, incorremos na infelicidade assim que perdermos

alguns ou todos destes bens materiais. Ou se não obtemos nenhum deles. Gerando uma

frustração. Portanto, estamos a crer, o melhor para nós é encontrar um foco de felicidade

que não esteja sujeito a desaparecer no tempo. Nem esteja dependente da posse

material.

O caminho defendido pelo anónimo professor centra-se no pensar o devir, mas num

sentido de transformação activa pelo homem, materialmente falando. Iremos ver no

capítulo final esta visão inversa à nossa proposta. Consideremos os dois caminhos como

não sendo exclusivos, mas complementares68. Todavia, a proposta do anónimo professor

é insuficiente, por limitar-se a satisfazer a necessidade material.

A partir de Agostinho da Silva, pensaremos o devir num modo não muito diferente da

proposta materialista, pois transformar o mundo ou nele criar, para usar uma terminologia

de Agostinho, é em si algo semelhante. Acompanhados de Agostinho esperamos ver que

mudar a nós mesmos poderá ser um meio e um factor muito forte para o mundo

acompanhar a mudança. Aliás, é mudando a nós, que já estamos em mudança

descontrolada, que o mundo muda junto. O que sugerimos é diferenciação entre o deixar

a mudança ocorrer, sem nela termos plena consciência, ou, por outro lado, respondermos

às interpelações da vida conscientes. É neste sentido que entendemos o homem criador

de Agostinho da Silva, o homem que se cria e ergue no mundo, no qual foi lançado.

Antes de mais, o ponto inicial neste processo para uma metamorfose espiritual em

Agostinho da Silva é pensar a liberdade em Agostinho. Para Agostinho da Silva a

liberdade é o homem ser aquilo que é69.

Já referimos a liberdade económica, pois esta é condição necessária para libertar o

homem de preocupações relativas à sobrevivência imediata e que o impedem de orientar-

se para a vida espiritual. Há no entanto outras duas liberdades essenciais para Agostinho:

a liberdade cultural e a liberdade de organização social. Pela liberdade de

36

67 "Doutrina Cristã", in Textos e ensaios filosóficos I, Paulo Borges ( org.), (doravante TeF I) Lisboa, Editora Âncora, 1999, p.82

68 Teremos uma posição relativa ao idealismo e ao materialismo de o primeiro ser pensamento ( interior da consciência) e o segundo ser a materialidade da realidade (exterior à consciência). Não é rigorosa esta visão, pois poderão haver idealismos mais dados para o exterior e o materialismo voltado para o interior. Para exemplificar, a nosso ver, o budismo é uma forma materialista voltada para o interior. Mas desligado dos bens materiais. Não é nossa intenção esmiuçar estas subtis diferenças conceptuais. É uma função deixada para os profissionais da academia. Uma função útil, mas não é a nossa enquanto fióosofos voltados para a vida concreta. Isto é, a aplicação do abstracto na experiência humana.

69 Sousa A., Diálogos com Agostinho da Silva, (doravante Diálogos) Cruz Quebrada, Casa das Letras, 2006, p. 33

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organização social, o homem lida com a sua relação na sociedade humana. Podendo

intervir no arranjo dos sistemas mais adequados à maximização das suas próprias

potencialidades. Pela liberdade de cultura, o homem terá aberta a possibilidade de

desenvolver ao máximo o seu espírito crítico criador70.

O ponto subtil que pretendemos colocar em foco é que o suprimir das necessidades

básicas não é suficiente para o homem. Agostinho especulou sobre a decadência das

sociedades avançadas. Embora estas tenham adquirido capacidade para garantir as

liberdades essenciais, os homens não souberam retirar o benefício. Esta incapacidade de

libertar o Homem irá levar ao surgir de uma sociedade carregada de doenças neuronais.

Se a inovação técnica trouxe algum alívio ao homem devido ao aumento da capacidade

de produzir os bens básicos, não impediu o homem de mergulhar num vazio, a este vazio

apelidaremos de vazio espiritual. Este vazio resulta da saturação, isto é, não há mais

espaço para uma relação dialógica. Vive-se uma ascensão da sociedade técnica

uniformizada. Já verificámos, por se pretender uma máxima eficiência e produtividade no

gerar do lucro financeiro. Podemos dizer que é um vazio cheio.

Portanto, defendemos: a garantia das três liberdades essenciais, propostas por Agostinho

da Silva, não é suficiente para libertar o homem e para este ser plenamente na vida. Terá

que haver mais alguma coisa para o Homem estar mais disponível e desperto para o

maximizar de todas as suas potencialidades.

Podemos perguntar, desperto para o quê? Para o mundo, para o que lhe é dado. E, mais

disponível para descobrir o oculto, o que é parte humana no buscar no mundo e/ou nele

apresentar. Este sentido que vimos referindo ao longo do estudo.

Sustentamos assim, como Agostinho da Silva, que aquilo que falta ao homem é uma

vertente espiritual71, esquecida ou esmagada pelas circunstâncias da vida. Será então,

este o foco do nosso passeio junto com o pensamento de Agostinho Baptista da Silva.

Afinal de contas, as liberdades essenciais referidas por Agostinho não eram um fim em si,

mas o que permitiria libertar o homem para outras actividades, as do espírito. Romana

Pinho também nos recorda as palavras de Agostinho: "o que me interessa é o espírito!"72

Nisto, lemos Agostinho para abrirmos uma relação dialógica entre o eu e o Agostinho.

Expomos assim a importância da alteridade. Isto é, a presença do outro nas nossas vidas.

Onde o importante não é a imagem que faremos de Agostinho, nem aquilo que pensamos

37

70 "Doutrina Cristã", in, TeF I, p.8271 Aproveitamos para explicar o que entendemos por vertente espiritual: a busca pelo sentido da vida, que não é dado à

partida.72 Cf Pinho R., Religião e metafísica no pensar de Agostinho da Silva, Lisboa, INCM, 2006, p. 16

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que ele terá dito, mas o que apr(e)endemos no processo sobre nós mesmos, neste

encontro com o outro.

Ainda antes de analisarmos a visão que Agostinho da Silva tem de Deus, rememoremos

o contexto que é o da nossa inspiração73.

Assim sendo, que tristeza ver as pessoas num desespero, por quererem trabalhar naquilo

que não gostam, só para o mundo continuar a persistir na senda de uma produtividade

como um fim em si, em detrimento de uma melhoria concreta do bem-estar geral. O choro

perante o desemprego, homens esquecidos que este momento é de facto uma

oportunidade, uma possibilidade para renascerem renovados de um mundo arcaico. Este

mundo da economia, que para Agostinho é imoral, nós também cremos imoral e num

futuro que não se quer distante é para abolir74. Ora, se vemos a economia como uma

mera etapa, quão fútil é colocar a esperança da felicidade humana nesta economia

votada ao esquecimento do homem do futuro. A maioria de nós já possui liberdade

económica, quer possua emprego ou não, a nós de enveredar por novos trilhos para o

nosso bem individual e colectivo. O que nos prende a persistir no esforço de acumulação,

mais do que é nossa capacidade suportar? Para mais impedindo os outros de usufruírem

um pouco do espaço que esta liberdade nos permite. É a falta de imaginar! O

esquecimento que nos inclina para uma queda. Esta é uma tendência humana para a

inércia. A vida exige acção e esforço. Como agir se estivermos cansados?

Nos capítulos que se seguem estudaremos a religião em Agostinho e se, o engenho

estiver do nosso lado, mostrará que um dos grandes problemas é vermos o mundo

dividido em pequenas parcelas. Perdemos a noção holística da vida, daí ficarmos

prisioneiros das situações e acontecimentos contextualizados que uma vida dualista nos

dá. Esta perda da visão unitiva da vida, em que tudo está interligado, leva a uma

saturação de quem se vê separado dos outros. Logo, inexistência da alteridade. Além de

se ver separado do mundo, no qual é parte dele. Isto leva a gerar-se a saturação, que

impede estabelecer-se uma relação dialógica entre os humanos. Ou entre objectos

abstractos. Por exemplo ideias. Veremos no final deste estudo global as implicações nas

relações sociais.

Se a arte não estiver ausente, poderá surgir a visão que o mundo a haver, que muitos

escutamos afirmarem parecer presente aos olhos de Agostinho da Silva, talvez esteja

mesmo presente e no nosso campo de visão. Pelo menos cremos que este mundo é

presente, faltando tão somente no homem uma metamorfose espiritual para o ensinar a

38

73 Sociedade neoliberal trabalhista, onde o trabalho para todos não é garantido. 74 Cf Diálogos pp. 213-214

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apurar a visão, para o poder ver na sua plenitude. Falta destapar o que subjaz velado.

O homem espiritual não toma a parte pelo todo, nem se deixará ser esmagado pelo que

um filósofo francês chamaria de má fé. Isto é, o homem com visão clara não terá uma

percepção rígida e imutável do mundo. Aquilo que o homem é ou pode ser é sempre mais

do que aquilo que foi levado a crer através de uma má educação ou de uma situação de

crer na imutabilidade de si mesmo. Há o problema a entender: será o Homem primeiro no

mundo, para então construir a sua essência livremente (à partida vazio de conteúdo). Ou

se o homem nasceu completo, mas esqueceu que é no mundo completo de

possibilidades; um ser vazio (embora contendo em si o potencial de desenvolvimento)

destinado a perfazer-se através da linguagem que lhe é própria75.

O nosso principal foco nesta segunda parte será o pensarmos juntos com Agostinho,

para realizarmos a nossa própria metamorfose. Esta dá-se sempre a nível de uma

experiência interior individual e não é ela própria transmissível a terceiros. As palavras

que partilhamos uns com os outros quanto muito elucidam-nos sobre nós mesmos.

Também mostrarão haver entre os homens mais o que os une do que aquilo que os

distingue – quem sabe meditando nisto aprendamos a ver o rosto do outro como se fosse

o nosso. Se tivermos amor por nós mesmos, talvez possamos amar a tudo e a todos. Este

meditar que é, talvez, o que nos tem passado despercebido até agora.

2.2 – Deus para Agostinho da Silva

Deus é tudo o que "apercebemos no Universo"76. Deus está contido em tudo quanto

existe e tudo quanto existe é contido por Deus. Portanto, Deus é imanente no mundo e

transcendente ao mundo. Agostinho diz: "pode-se, sem blasfémia, falar não de Deus mas

apenas do Universo, com Espírito e Matéria, formando um todo indissolúvel"77. Assim

sendo, temos o Espírito a representar o aspecto transcendente de Deus e a Matéria a

representar o aspecto imanente de Deus.

Não obstante, é nossa tendência restringir Deus a um punhado de características

limitadoras, e sempre as melhores possíveis. Isto é, a Deus atribuímos "uma infinita

bondade e uma infinita justiça"78. Esta é uma visão infantil do mundo, recusamos olhar a

totalidade da vida. O total requer que nós não façamos distinção entre Deus e o Diabo.

Agostinho da Silva, por querer atingir a totalidade, não abdica de nenhuma das partes. O

39

75 Debate entre se a posição; o conhecimento é inato no homem ou se o homem ao nascer é tábua rasa.76 "Doutrina Cristã", in TeF I, p. 8177 Idem 78 "Quanto a Deus", Considerações, in TeF I p.114

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Diabo é uma parte e, com ele, temos o poder de Deus também "na violência e no terror"79.

Agostinho da Silva advoga que restituamos a Deus as características que nos são

aterrorizadoras, para nos permitir reconhecer no nosso esforço e atribulação o mérito dos

nossos actos, em detrimento de uma visão de conto de fadas. Amputar Deus dos

aspectos que nos assustam ocasiona uma falsa sensação de segurança. Mas o que

ganhamos é a monotonia e o tédio, por nos escondermos por trás de um Deus que nos

retira a margem para noa tornarmos mais perfeitos. "É este o dom que nos oferece um

Deus liberto de cadeias terrestres"80. Ou seja, um Deus total abre ao homem todas as

possibilidades. Esta visão sem a negatividade de Deus gera uma sociedade de cansaço,

castradora do desenvolvimento psíquico do Homem.

Temos que entender, para Agostinho da Silva Deus não é aquilo que é – diremos -

pensando numa linguagem popular infantil. Deus não é um interlocutor a quem pedimos

para gerir a nossa vida. A liberdade é tão relevante para Agostinho, por ser a partir dela

que o homem se constrói e se transformará naquilo que este deverá ser, seja isto o que

for que seja. Deus é potência, ou, diria Agostinho, "um Deus que se esconde"81. Na

ousadia interpretativa, ao não sermos literais e restritos a um texto e englobarmos

pensamentos soltos de Agostinho, podemos concluir a nossa interpretação pessoal: há

um convite ao homem para não prender-se ou limitar-se a uma parcela particular do quer

que seja. O homem deverá sempre estar disponível para a experiência. Todas as

experiências e não só as que julga boas. Assim, Deus é imanente e transcendente, por

ser Uno. Isto é, sem restrição a uma qualquer definição. É negatividade e também

positividade ao mesmo tempo.

Agostinho não esquece os ateus, a quem excluímos se afirmarmos que Deus existe. Isto

por não ser possível pensarmos o teísmo sem pensar o ateísmo. Para o visível há o

invisível, para o Deus que se vê, há o Deus não visto, o Deus escondido. Em suma, há a

união dos contrários, pensados por um famoso cardeal alemão. Podemos confirmar a

nossa interpretação nas palavras de Agostinho: "Partido é uma parte: sê inteiro."82 O

homem deve tornar-se Deus, para não auto-limitar-se nas suas possibilidades. Podendo ir

além de si mesmo, sem que deixe de ser uma expressão de tudo o quanto é a sua

verdadeira natureza. Isto é, o homem deve estar disponível para a vida, como uma

criança. Nós consideramos as crianças esponjas, sempre prontas a sorver o que o mundo

40

79 Idem80 Idem p.11581 "Aqui falta saber, engenho e arte", in, Textos e ensaios filosóficos II, Paulo Borges ( org.), (doravante TeF II) Lisboa,

Âncora, 1999, pp. 210. 82 Espólio

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lhes apresenta. No entanto, através de uma pedagogia equivocada, a criança torna-se

limitada e um adulto esmagado. Para Agostinho, Deus é então uma totalidade, terá que

incluir o todo, mas também o nada. Daí ser imanente e transcendente ao mesmo tempo.

Entendemos o imanente como sendo o todo, o transcendente como sendo o nada. Um e

outro fundem-se numa perfeita unidade, não subsistindo um sem o outro. Aliás, só o

estarmos a falar de Deus em partes, já é em si um erro. O Deus de Agostinho é o que

outros chamarão de Tao, para o qual não há palavras que o definam83.

No próximo capítulo, veremos o que terá levado o homem a esquecer-se do seu elo que

o torna indistinto com o mundo. Há muitos contos, lendas e mitos, todos falam de uma

queda do homem. Agostinho para apresentar uma teoria sobre a origem do teatro, entre

os gregos, escreveu a "A Comédia Latina", obra que especula sobre a cisão do homem da

natureza. Esta cisão estaria na causa do mau funcionamento do mundo. A pergunta que

deixaremos: será possível ao homem religar-se de novo a Deus, se na realidade não está

separado deste?

Tudo o que pensaremos, tentará induzir que a nossa verdadeira natureza é indistinta do

mundo. Isto é, nós e o mundo, eu e o mundo, são meras palavras, linguagem que

constitui uma barreira à nossa metamorfose espiritual. Para nos situarmos próximos

daquilo que Agostinho terá vivido, precisamos ultrapassar esta barreira da linguagem.

Temos que entender que não há diferença entre nós e Deus – nós somos Deus! O mesmo

é dizer – somos possibilidade.

2.3 - A cisão

Habitualmente, as pessoas declaram a sua religião a verdadeira. Agostinho declara-se

possuído pela sua religião, que obviamente também é a verdadeira84. Para Agostinho,

mais do que possuir uma religião é o próprio que está contido nela, assim devemos

entender o ser possuído pela religião. Este pormenor pode parecer pouco relevante,

porém consideramos estar nele a chave para entender o pensamento de Agostinho. A

verdadeira religião é universal e é o Espírito. Isto é, o Espírito é o próprio Uno, através do

qual se abrem todas as possibilidades do ser ou do não ser. Deste modo, segu(i)ndo esta

visão unitária, só podemos estar contidos no Uno.

Este Espírito, que Agostinho da Silva também designa "Deus Espírito Santo"85 é "a fonte

41

83 Cf Tse L., Ideia do Tao Te King ou Guia da Estrada Real para o Viandante Ajuizado, Agostinho da Silva (Trad.), Largebooks, 2013 p. 18

84 Cf "Ecúmena", in, TeF II, p. 19385 Op cit idem

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indefinível de onde a vida pode sob quaisquer formas, aquelas que eu conheço e venero

ou não, e aquelas de que nem sequer posso ter ideia"86. O Espírito é condição necessária

de possibilidade de haver mundo, assim como a fluidez e transformação que neste

acontece. Sendo o Espírito a fonte originária da possibilidade, todas as religiões são

"aceitáveis"87 por todas terem o mesmo ponto que as fundamenta. Também por todas as

religiões participarem da imanência e transcendência do divino. Todavia, "só seja

verdadeiro o cristianismo"88. Por um lado Agostinho diz todas as religiões são aceitáveis,

só o cristianismo é aceitável por outro. Temos que entender, Agostinho está a falar do

cristianismo que interpreta o Espírito enquanto Deus. Deus é o Uno, assim sendo as

outras religiões serão aceitáveis, se forem fiéis ao "culto do Espírito". Dito de outra forma,

as religiões são verdadeiras na medida que reconhecem a unidade.

Antes de continuar a pensar o cristianismo segundo Agostinho da Silva, iremos remontar

ao tempo remoto, anterior à cisão.

No texto Comédia Latina, Agostinho ao especular sobre a origem do teatro na Grécia

providencia-nos com interessantes reflexões sobre a religião.

Agostinho da Silva refere a tradição mitológica grega acerca de uma Idade de Ouro.

Considera-a uma era de "completa comunhão"89 entre homens e natureza, um "estado de

perfeita inocência"90.Nesta época remota os homens teriam sido fraternos, desconheciam

a guerra e alimentavam-se de frutos das árvores. Estes homens poderiam ter vivido deste

modo eternamente, não tivesse ocorrido uma qualquer degeneração dos seus costumes.

Não fossem existir os povos primitivos contemporâneos, poder-se-ia pensar que tal

instante na história da humanidade nunca havia ocorrido.

A pergunta relevante: se houve esse paraíso terreno, o que terá causado a sua

degeneração? Por consequência, a separação do homem da natureza, a cisão. Qual terá

sido então a causa para passarmos de um estado de harmonia do Todo a um estado

caótico de divisão entre sujeito e objecto (homens separados do mundo)?

Para Agostinho é a "fome"91 a causa desta transformação, a fome provocada pela

escassez dos alimentos habituais, os frutos. O homem teria que procurar outra fonte de

alimento, seria nos animais que saciaria a sua fome. Esta mudança nos costumes

desenvolveria a agricultura, as pescas e a pecuária. Assim, o homem passava de um

42

86 Op cit idem87 Op cit idem88 Op cit idem p. 19489 "A Comédia Latina", in, Estudos Sobre a Cultura Clássica, Paulo Borges (org.) (doravante ESCC), Lisboa, editora

Âncora, 2002, p. 30190 "A Comédia Latina", in, ESCC, p. 30191 "A Comédia Latina", in, ESCC, p. 302

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estado de integração e harmonia com a natureza para entrar em guerra com ela92. Esta

nova realidade mudaria as relações inter-humanas e entre humanos e a natureza.

Nesta altura nascem as primeiras sociedades, junto com o "sentido da posse"93. O

desenvolvimento da agricultura "conduzia à escravização da mulher, a pecuária à

escravização dos animais"94. Surgiria a pedagogia, que para Agostinho não passava de

uma submissão das crianças, por lhes inibir os instintos naturais, além da capacidade

destas serem espontâneas e criadoras. Pois estas características das crianças não

podem ter lugar numa via social95. Surgem as "religiões organizadas"96 e tudo aquilo que

vem a ser considerado "natureza humana"97, apesar de isto não passar do resultado da

"pressão e da deformação"98 a que o homem se submeteu pela necessidade de defender

a sua vida humana99. Uma busca pela eficiência que se agudiza na modernidade e

acelera ainda mais na contemporaneidade.

Será nessa altura primitiva quando nascem as primeiras sociedades. Há um primeiro

passo para a distanciação inter-humanos. A fraternidade e uma certa inocência serão as

primeiras vítimas.

Sobre a religião Agostinho refere um pensador que disse: "todas as religiões se tinham

originado do medo"100. Podemos perguntar que medo será? Este medo resulta de uma

cisão, a separação do homem de uma totalidade. O homem passa a entender-se

separado do resto das coisas. Estabelece-se a vida de dualidade. Há uma implementação

de "relações de sujeito e objecto"101. Na era do capitalismo, esta separação não só se

acentua, como se tenta eliminar uma parte da realidade. Já aludismo à rejeição da

negatividade.

Esta separação do homem é então o que provoca a insegurança, a qual provoca o

surgimento da religião. Do que se separa o homem, podemos perguntar?

A resposta de Agostinho é a separação do homem do "anjo de Deus"102. Portanto, o

homem separa-se e distingue-se do divino. No entanto, a religião não surge tanto desta

cisão, mas de "um desejo de unidade"103, sendo a quebra desta unidade que origina o

43

92 Cf "A Comédia Latina", in, ESCC, p. 30293 "A Comédia Latina", in, ESCC, p. 30394 "A Comédia Latina", in, ESCC, p. 30395 Cf "A Comédia Latina", in, ESCC, p. 30396 "A Comédia Latina", in, ESCC, p. 30397 "A Comédia Latina", in, ESCC, p. 30398 "A Comédia Latina", in, ESCC, p. 30399 Cf "A Comédia Latina", in, ESCC, p. 303100 "Ecúmena", in TeF II, p. 191101Op cit ibidem102ibidem103ibid

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medo no Homem. O Homem não é religioso devido ao medo, mas pela reacção e

oposição à divisão. O religioso "expressa o desejo supremo de fusão com o uno"104.

Todavia, pensar o Uno "é já uma limitação"105, pois aquilo que é Uno não podemos

conceber por palavras. O homem que alcançar o Uno estará no "silêncio" 106. Enquanto

estivermos a pensar e a falar de unidade é certo que "estamos longe"107. Nós diremos:

voltar ao uno é fazer coincidir o nosso pensamento e o agir experimental do viver.

Para Agostinho, a religião surge então da cisão e da reacção agente do homem,

referente a um tempo em que estaria unido com o divino. Isto confirma a visão peculiar de

Agostinho a respeito de Deus, para os dias de hoje.

Esta cisão seria também o início da guerra pela sobrevivência. Este processo sacrificou

no homem a espontaneidade do viver. Será a busca de Agostinho pelo reencontrar uma

vida de disponibilidade, de abertura e espontaneidade que o moverá ao longo da vida.

Também é este o caminho que traçamos em paralelo com o do professor Agostinho.

Buscamos melhorar a nossa visão, a nossa prática, para voltarmos a abraçar a vida na

totalidade.

Sobre a "A Comédia latina", resta-nos dar o contexto em que se insere. Através desta

obra, Agostinho procurou, já o dissemos, entender a origem do teatro entre os gregos.

Fazendo desta busca um esforço para entender a espiritualidade do homem. Paulo

Borges diz-nos: "o que aqui particularmente nos interessa, pelo contributo para a

compreensão do tema do Espírito Santo, é a origem do teatro ser a mesma origem de

toda a civilização"108. Isto fala-nos de um momento primordial em que a vida passa de Una

ao dualismo, marcando toda os aspectos do modo do homem lidar com o mundo. Esta é a

principal consequência da cisão do homem com a natureza, do sujeito com o objecto. O

homem passa a ser incompleto, precisando buscar pela parte da qual sente a falta. O

homem procurará retornar ao paraíso. Isto quer o homem seja consciente ou não desta

falta. A visão do mundo pós-cisão é insuficiente para uma vida feliz. O sentido de posse,

a submissão de homens, mulheres, crianças e animais impedirá o homem de reunir-se de

novo numa Unidade. Não sabemos se é possível voltar a um estado de não dualidade,

mas pelo menos estamos convictos que isto não poderá ocorrer sem um caminho que

transforme a vida interior do homem. Então, uma vez um homem mudado,

44

104Op cit p.192105ibid 106ibid107ibid108"Espírito Santo e ecumenismo em Agostinho da silva", in, Tempos de ser Deus, A espiritualidade ecuménica de

Agostinho da Silva, Borges P., Lisboa, Editora Âncora, 2006, p. 115

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por contaminação todo o colectivo poderá seguir-lhe o exemplo. Acreditamos que o

instrumento disponível é o amor fraternal, o amor pelos outros homens, mas também pelo

mundo na sua totalidade. E, ainda, apoiados na filosofia como um exercício espiritual e

um compromisso com um modo de ser/estar na vida.

Agostinho dará conta de uma insuficiência do pensamento grego, em "Conversação com

Diotima" orienta-se numa busca que abarque a totalidade da vida, não só do que é belo e

bom como faziam os gregos. Agostinho virá a admitir o mal como parte integrante da

plena humanidade109. Já havíamos visto esta faceta do professor ao falarmos da visão de

Deus para Agostinho. Veremos mais adiante o motivo de termos passado por esta visão

não-dualista da vida.

2.4 – O Cristianismo e o Culto do Espírito Santo

A compreensão global de todo o texto necessitará não só de uma re-leitura, como de um

preenchimento personalizado pelo leitor, de tudo aquilo que julgue em falta. A vossa

compreensão do mundo não depende da minha explicação, mas da vossa interrogação

sobre o que é dito ou não. Depende da vossa experiência acumulada para através da

imaginação verem que quanto mais rica a experiência, mais rica será a imaginação do

mundo possível.

Posto isto, retomemos o percurso. Primeiramente, faremos uma breve exposição sobre a

visão do professor Agostinho a respeito do cristianismo, para então concluir com uma

interpretação sobre as três divisões do Culto do Espírito Santo: a coroação da criança, a

libertação dos prisioneiros e banquete final.

O cristianismo defendido por Agostinho já o apresentámos parcialmente. Ao referir as

liberdades essenciais, estas são o fundamento da visão de Agostinho daquilo que o

cristianismo deveria ser. Dizemos devia, pois algures no tempo terá deixado de ser. Os

assuntos do Céu e da Terra foram separados. A Igreja afastara-se de um cristianismo que

incitaria os discípulos a irem ao encontro do Reino.

Para manter um verdadeiro diálogo, iremos considerar a obra "O cristianismo" para

apresentarmos a nossa interpretação. Sempre partindo de Agostinho é o nosso

pensamento interpretativo que é exposto. Nesta obra Agostinho veio considerar a

realização do Reino de Deus na Terra. Jesus, na interpetação de Agostinho da Silva, não

distinguiria os ensinamentos que dava, nem a visão deste110 do mundo que devia surgir111.

45

109Cf introdução por Paulo Borges, in TeF I pp. 17-20110 Jesus.111Cf "O cristianismo", in, TeF I pp. 74-75

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Se as liberdades essenciais referidas servem como ponto de partida, o cristianismo

olhado directamente a partir das palavras de Jesus mostra como o mundo deveria ser.

Portanto, Agostinho tinha uma visão clara do mundo a haver. Esta visão é a imagem que

o cristianismo primitivo nos dá: amor e fraternidade entre os humanos112. Esta é uma visão

que apela à recuperação do cristianismo primitivo, para se poder dar a transformação no

mundo, no Reino prometido. Se para Agostinho Deus é imanente e transcendente ao

Homem. Persiste então no homem a capacidade de ser o próprio a consumar na terra o

Reino Divino.

Para nós o Homem é Deus, na medida em que na imanência mostra o divino em si. E só

o transcende o que lhe é ocultado. Tendo a possibilidade de descobrir o ocultado, o

homem é criador tal como Deus. Somos nós que realizamos o Reino na Terra.

Para dar corpo a esta visão, Agostinho irá recuperar o culto do Espírito Santo.

O encontro de Agostinho da Silva com o culto do Espírito Santo surge no Brasil,

certamente através de Jaime Cortesão, com o qual colaborou de uma forma muito

próxima. Se Agostinho deve uma parte importante da sua inspiração a Jaime Cortesão,

seria a Joaquim de Flora, influenciador deste culto na cultura portuguesa na idade

medieval, que iria retirar os conteúdos. A influência de Joaquim de Flora estender-se-ia no

tempo a Padre António Vieira e até mais perto de nós, Natália Correia, António Quadros,

entre outros. Portanto, é também no abade cistersiense Joaquim de Flora que Agostinho

vai encontrar inspiração para construir o seu pensamento, no que respeita ao culto do

Espírito Santo em Portugal113.

O culto do Espírito Santo poderá servir de catalisador para o homem não cair no

desespero niilista da falta de sentido. O homem focado num rumo encontra o resto da

humanidade igualmente focada num desejo incerto. Ou melhor, no desejo inconsciente de

busca pela felicidade, uma felicidade inclusiva de tudo e de todos. Uma felicidade que não

teme a vida na sua totalidade, isto é, incluindo os aspectos negativos: admitindo o mal, a

dor, a tristeza, etc. Este lado negativo é de suma importância, se considerarmos viver na

época da máxima rejeição do que é visto como negativo.

Não nos iremos retardar em considerações históricas, nem avaliar o impacto do Culto do

Espírito Santo ao longo do tempo. Passamos imediatamente aos "três pontos

essenciais"114 do Culto do Espírito Santo. Para nós, estes três pontos essenciais

constituem o caminho para o retorno ao cristianismo que busca realizar o Reino Divino na

46

112Cf "O cristianismo", in, TeF I p. 75113"Espírito Santo e ecumenismo em Agostinho da silva", in, Tempos de ser Deus, A espiritualidade ecuménica de

Agostinho da Silva, Borges P., Lisboa, Editora Âncora, 2006, pp. 110-111114Cf Silva A., Agostinho da Silva – Ele próprio, (doravante AG) Corroios, Zéfiro, 2006 p. 29

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Terra. Neste culto antecipamos a nossa solução final para os problemas do mal-estar na

modernidade. Mas não sejamos apressados.

a) Coroação da criança

Agostinho dá a primazia à criança, para a realização de um projecto de transformação do

mundo, já não tanto numa defesa de uma bondade inata do menino, mas pela capacidade

imaginativa que é suposto a criança possuir115. Nós consideramos que esta primazia

deveria relevar o menino estar mais vazio, para nós é esta disponibilidade a acolher os

estímulos do mundo, que devemos atentar. Se consideramos a criança vazia, estará

disponível para a experiência. A imaginação referida por Agostinho tem o seu papel, só

não pode estar separada de uma pedagogia que a ligue ao mundo. Ou, se falar em

pedagogia ofender os discípulos de Agostinho, diremos estímulos que permitam o

desenvolvimento criativo da criança. É no processo de socialização que a própria

imaginação vai ter o papel importante. Se a nossa leitura de Agostinho tiver sido correcta,

ele crê nas capacidades inatas criadoras da criança através da imaginação. Nós diremos

que esta criatividade da criança dependerá da experiência acumulada e não é inata. Para

sermos justos e reconciliadores, unindo o erro de Agostinho, se o houve, à nossa posição.

Agostinho via nos adultos um esmagamento do seu potencial, por precisamente,

afirmamos nós, terem obtido uma má experiência da vida, ou seja, falta de estímulo. Não

podemos deixar de considerar, talvez, que o que Agostinho pensava ser imaginação é a

espontaneidade do agir. Também neste caso não haverá certezas, afinal o bebé humano

é incapaz de sobreviver sozinho. Independentemente de quaisquer considerações de

certas características humanas serem inatas ou não, já os antigos davam importância a

um método para fazer os homens despertar. Este método é o que consideramos de

socialização. É no contacto comunicativo, pela linguagem específica dos humanos, que

se dá o desenvolvimento da criança. Por outras palavras: diálogo. Recordemos: como é

que Sócrates fazia dar à luz o que jazia adormecido nos homens? Pelo Diálogo.

Recapitulemos o primeiro ponto essencial do Culto do Espírito Santo, a coroação do

menino. Precisamente, devemos desde a infância educar, mas não formatar (para não

ofendermos a Agostinho), a criança. Por educar, entendemos abrir as potencialidades

criadoras da criança. Para nós, isto é feito através de uma relação dialógica entre o

menino e o adulto. Em detrimento do actual sistema repudiado por Agostinho, onde o

adulto fala, a criança cala e consente, matando a sua capacidade de imaginar o futuro.

47

115 Cf AG p.30

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Então para nós a primazia que é dada à criança é a correcta, mas por ser necessário

dirigir a criança para o mundo dos adultos completos, em detrimento do mundo dos

adultos eternamente infantilizados por uma limitada capacidade de criar, devido à falta de

experimentar a vida.

A formação académica antiga consistia no praticar o diálogo. Um método quase

esquecido no ensino superior do nosso tempo. Professores e alunos acomodados ao

método passivo-activo sem dinâmica. Isto é, sem espaço para o diálogo. Significa: o

professor fala, o aluno escuta. Um modelo árido e pobre. Isto acontece por se

desvalorizar a autonomia real do pensar. Por norma, exige-se ao aluno que faça cópias do

que leu (todo o nosso trabalho aqui exposto pode ser desconcertante, por fugir desse

modelo o mais que nos foi possível), ao invés de o aluno pensar a partir do que leu,

podendo fazer relações diversas com outros conteúdos. Inclusive com a sua própria

experiência. Não se entende o que é importante: mais do que uma resposta correcta, o

que importa é o modo de raciocinar. Se o aluno errar, sejam os seus erros. A partir deles

aprenda e se desenvolva. Imagine-se um mundo onde o erro serve o aprendizado e não o

castigo castrador da curiosidade.

Professores humilham os alunos negando-lhes avaliação, se estes não cooperarem com

o método do papagaio. O aluno pede por um esclarecimento e o professor manda-o

estudar. Quiçá, o professor não soubesse a resposta. Seria ele também uma vítima da

culpabilização e do castigo? Nunca saberemos. Embora estejamos a caricaturar, para

chamar a atenção para um grave problema. Em detrimento de praticar o pensamento,

levando o aluno a experimentar por si, exige-se que este tenha boa memória e seja capaz

de repetir o que aprendeu. Para encerrar este pequeno apontamento: há necessidade de

reabrir o espaço para o referido errar. Respeitar o errar, condição necessária para

aprender. O erro manifesta-se no diálogo, por isto, Sócrates utilizava deste método com

os seus interlocutores. O retorno da adopção da filosofia como modo de vida exige a

transgressão do modelo actual de estar na vida. Um retorno ao falar livremente.

A educação tende a valorizar a quantidade sobre a qualidade. Isto traduz-se na avaliação

da capacidade de reproduzir informação em contraponto com a capacidade de pensar e

relacionar esta mesma informação.

Também tornou-se pouco comum explicar-se o contexto e as motivações de um

determinado autor para escrever a sua obra.

O conhecimento que não seja para integrar de modo compreendido e em relação com a

vida é de facto inútil.

48

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A filosofia tem vindo a ser colocada em causa, na sua pertinência, muito por este

esquecimento da sua relação entre o caminho formador e de desenvolvimento pessoal e

ter-se tornado num mero exercício pelo estudante, no qual o professor é averiguador de

capacidade de memorizar conteúdos despojados de vida.

Este é o caminho do ousar a vida activa, em detrimento, da submissão passiva que

remete à inércia e à mediocridade.

No entanto, Agostinho também entendia a imaginação num sentido mais vasto daquele

que começámos por expor116. Nós sem explicitar mostramos. Sem ser repetidores

expressamo-nos.

b) Libertação dos prisioneiros

"Segundo acto da festa era que o menino, coroado imperador, ia à cadeia da terra, à

prisão local, abria as portas e soltava todos os presos que lá estavam" 117. Lembrando das

liberdades essenciais, entendemos este acto como o concretizar destas liberdades

essenciais. O menino na nossa interpretação representa o homem desperto, uma vez

acordado possibilita aos demais homens soltarem-se também das amarras. Este homem

é como um menino, por ter permanecido fiel à sua natureza. Para Agostinho, esta é a

imaginação. Este estado de menino coroado imperador permitirá que este resolva todos

os problemas surgidos da cisão, já mencionados no capítulo correspondente.

A nossa consideração anterior a respeito da imaginação é relevante, para lembrar-nos

que o processo de despertar não é somente confortar-se em ser criança, mas consiste

num esforço de aprender através da experiência da vida. Propositadamente, não

desenvolvemos os aspectos míticos da mensagem do Culto do Espírito Santo. Nem a sua

aplicação no destino colectivo dos portugueses em particular. Na verdade, o colectivo dos

portugueses é simbólico, representam a humanidade inteira.

c) Banquete

No banquete antecipamos uma parte da solução para o mal-estar da modernidade.

Se o homem adulto tende a esquecer a alegria, a curiosidade, a própria imaginação,

fundamental para criar, este pode ser relembrado. Ser chamado à responsabilidade de

cuidar de si, dos outros. Voltar a ser o criador. Criador do quê? Da sua própria existência,

isto é, da sua vida de mortal.

O Banquete é celebração da vida com tudo e com todos, para o bem de tudo e de todos.

49

116Cf Diálogos p.23117AG p. 31

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Este tudo e todos, para nós, ultrapassa os limites geográficos de Portugal ou da sua

língua. Os homens voltarão a reencontrar-se consigo mesmos. Estiveram perdidos e

desfocados da realidade não-dualista. No festejo do banquete celebra-se a fraternidade,

concretiza-se a especulação do sonhador visionário do mundo a haver. Nele nada será

fixo, não haverá limites impostos pela rotina. Muito menos haverá o que adiante

apelidamos de excesso de positividade. Não sejamos acelerados no festejo, no final

relembraremos a libertação e a celebração desta renovada liberdade.

2.5 – Vislumbre do Mundo a Haver

Há na filosofia de Agostinho um primado do agir, só unindo o pensamento ao acto

concreto, podemos ultrapassar as insuficiências para uma vida espiritual plena. Dito de

outra forma, menos descanso sobre a teoria e mais aplicação à experiência prática. Não é

possível realizar o mundo a haver e a nossa plenitude espiritual se ficamos presos no

pensamento deste mundo ilusório, devido à dualidade inerente à cisão entre sujeito e

objecto. Precisamos crer para haver mudança. A via para uma vida espiritual plenamente

realizada não passa por meias medidas, é preciso abraçar a totalidade. Para Agostinho

isto é a vida da santidade. Entendemos, tal como Agostinho, ser um acto de cobardia não

enveredar pelo caminho da santidade só por não sermos santos. Lá por sermos

incompletos, nada nos impede de nos completar, tornando-nos mais perfeitos.

Porém, não faremos homenagem a Agostinho só manifestando uma sintonia e

concordância com Agostinho da Silva. Pretendemos aceitar o que nos parece ser um

convite do professor: experimentar a vida. Assim pretendemos, por introdução da dúvida,

pensar a metamorfose espiritual em Agostinho da Silva, por nós interpretada.

A nossa visão de uma metamorfose espiritual em Agostinho da Silva confunde-se com

aquela nossa interpretação de Agostinho da Silva. Isto é, apresentamos uma

interpretação de Agostinho que a instantes poderá misturar-se com a nossa ideia que

temos do professor. Ou seja, há aquilo que Agostinho pensou e há o que nós pensamos

que Agostinho pensou. Tomando como axioma: pensamentos não são factos. Falta-nos

experimentar o pensamento. Falta-nos ainda dar o passo adicional e afastar-nos o que

nos for possível do pensamento do professor. Afastar-nos também daquilo que pensamos

ser o pensamento do professor. Não pretendemos dar respostas, mas questionar algumas

ideias centrais que apresentamos. Incitamos a cada leitor pensar por si, a fazer as suas

próprias perguntas. Poderá ocorrer Agostinho ter ele próprio apresentado o mesmo

questionamento e o próprio ter previsto as mesmas dúvidas. No entanto, teremos que

50

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ser nós a percorrer também o caminho da dúvida, para nos certificarmos daquilo que

pensamos esteja correcto. Será o modo de percorrermos este caminho que tomaremos

como objecto de análise no final desta dissertação. Justificando todo o papel que

atribuímos à filosofia.

No final, se viermos a concordar, será por termos buscado pensar pela nossa cabeça e

não por termos sido levados a concluir isto ou aquilo.

Sendo assim, começamos por questionar as liberdades essenciais, mais precisamente a

liberdade económica. Agostinho defendeu procurar-se chegar a um estado tal de

organização social que a carência do mais básico para sobreviver seria suprimida.

Consideramos a referência de Kant ao habitar numa mansão o equivalente do viver no

mundo a haver do Agostinho. Este também nos fala de disposições originárias. O mais

interessante na sua reflexão é considerar que o desenvolvimento humano ocorre segundo

leis naturais, mesmo se desconhecidas por nós118. Agostinho referiu a fome, Kant iria

igualmente mostrar haver uma necessidade que se exerce no Homem a enviá-lo para um

determinado fim. Sejam homens singulares ou povos inteiros, ao perseguirem um

qualquer propósito segundo a sua disposição, mesmo se em oposição entre si, estão

sujeitos à mesma intenção da Natureza119. Kant considera haver uma teleologia referente

à Natureza. Buscamos Kant para uma pequena pausa, demonstrando haver em

diferentes pensadores ideias semelhantes. Salvaguardamos: semelhante não significa

igual. Só pretendemos, por este pequeno desvio, indiciar haverem caminhos diferentes

para uma disposição comum nos humanos. Voltamos à companhia de Agostinho para ver

como lidar com as forças em conflito entre si.

Perguntamos: será benéfico suprimir a carência básica, para haver uma metamorfose

espiritual incondicional? Tendemos a defender: a liberdade económica, por si, prejudicará

a mudança espiritual. O Homem é motivado pela necessidade, se a suprimirmos perderá

a motivação. Podemos contrapor: se é uma mudança espiritual que procuramos, devemos

pensar de outra forma. O Homem, sem preocupar-se com o básico, estaria disponível

para desenvolver o seu potencial escondido até aí. Acrescentando também: não seria

nossa intenção levar o Homem a uma finalidade perfeitamente pré-definida. Isto é, aquilo

que um homem faz com a sua liberdade, só diz respeito ao próprio. A liberdade

económica é portanto um ponto de partida. Possibilitar ao Homem estar disponível para

ver o mundo de um modo diferente. Porém, estamos em crer que não pode ser exigido à

comunidade tamanho acto de fé na humanidade. Nós consideramos o Homem vazio,

51

118Kant E., A paz perpétua e outros opúsculos, Artur Mourão (trad.), Edições 70, Lisboa, 2009. p.20119CF ibidem

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somente portador de uma potencialidade neutra. Outros acrescentariam, possuidor de

uma natureza má. Pois este é o pensamento que afirma: o Homem acomoda-se à

situação, que facilitar-lhe a vida é o melhor caminho para ele baixar os braços. Assim

sendo, estaríamos a fazer um mal ao Homem. Contudo, não sabemos, nem podemos

prever com segurança as consequências da liberdade económica. Na dúvida, se houver

meio de permitir ao homem a possibilidade de decidir o seu destino, livre da amarra, que

é o preocupar-se com o básico para sobreviver. Mais, se isto não colocar em causa a

liberdade dos outros. Então, escolhamos esta via sem fazer quaisquer juízos adicionais.

Para mais, consideramos essencial a liberdade económica, para não estarmos submissos

à falsa escassez de recursos. Vivemos num mundo que prefere destruir alimentos a

alimentar as pessoas. Num mundo que prefere destruir abrigos a garantir um tecto a cada

homem, um tecto a cada família. Isto sim, não ajuda a uma evolução espiritual. Se

ficarmos só pela liberdade económica, a nossa metamorfose espiritual seria muito pobre.

Liberdade económica – no limite é para extinguir a economia. A vida não deve restringir-

se ao económico, para mais no mundo de hoje. Se falamos numa época particular que é

aquela em que estamos a habitar neste instante, isto não deve ser visto como limitador no

tempo de uma qualquer renovação desta mensagem – falamos para todos os homens, de

todas as épocas. A história mostra-nos a necessidade desta mensagem ser renovada –

repetimos – renovada, mas não recopiada.

Pretendemos imaginar e ver o futuro consumado de outro modo, por serem estes os

temas da nossa pré-ocupação. Esperamos para os nossos descendentes que somente

venham a ter como pré-ocupação uma plena e completa ocupação com a vida. Não mais

os homens sintam a solidão e o desespero de estarem separados entre si e do mundo

que a todos contém.

Agostinho tinha noção do problema da acomodação, do ócio em que o homem poderia

cair. Todavia, pelo desenvolvimento espiritual e promoção de uma vida de Santidade,

ultrapassaremos as barreiras que nos prendem ao medo da escassez. Outra

consideração a este respeito é-nos apresentada por Renato Epifânio, no livro "Visões de

Agostinho da Silva"120. Renato cita-nos Agostinho: "que vão fazer os homens bem

alimentados, bem vestidos e bem alojados e bem transportados que a técnica nos poderia

apresentar desde já? Nenhuma experiência foi jamais feita em grande escala e, portanto,

nada se pode afirmar de um modo que seja mais ou menos científico; mas há todas as

razões para temer, pelo exemplo de certos países em que se atingiu já um nível de vida

52

120Cf Epifânio R., Visões de Agostinho da Silva, Corroios, Zéfiro, 2006, p. 51

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razoavelmente elevado, que a Humanidade caísse na mais deplorável das

decadências(...)"121. No nosso entender, esta visão de Agostinho clarifica a sua defesa das

três liberdades essenciais. Obter a liberdade económica, por si não mudaria o homem.

Talvez, especulamos sem o provar, mas defendemos: o homem se perderia num

determinado grau de niilismo. O homem ensinado a não viver, somente a sobreviver, teria

dificuldade em lidar com o tempo livre de que disporia. Precisamente, na abertura demos

conta, a modernidade não libertou o Homem.

Será então acrescido das duas outras liberdades, a cultural e a de organização social: o

homem poderá tornar a sua vida disponível para a auto-reforma da sua condição. Isto é,

será na sua relação com a cultura e com o meio social que o homem se descobrirá na sua

totalidade e se construirá na sua unicidade. Fora deste âmbito, afirmamos: o homem não

passaria de um animal sem vocação criadora de si, nem do mundo que o rodeia. O

homem pré-ocupado com o sobreviver, já não o precisando de fazer, mais não é que um

morto ambulante. Cruamente diremos: este homem não passará de uma besta de carga.

Dentre nós, se houver quem tenha despertado para uma visão justa da realidade, há o

dever moral de cuidar daqueles que continuam adormecidos. Este "nós" refere os

filósofos em compromisso com a filosofia enquanto verdade e modo de vida. Cuidaremos

deles, sem lhes impor carga alguma, sendo como um célebre oráculo: indicando

caminhos possíveis. Para evitarmos a desagregação social, temos a cultura: o culto do

Espírito Santo toma-se relevante, para ajudar o homem a não sentir-se vazio, uma vez

satisfeitas as necessidades materiais. O culto do Espírito Santo é de suma importância,

permite a todos encontrar-se, embora sobre modos e formas diversas. A cultura, que não

é baixa nem alta, une os desencontrados, une os opostos mesmo que estes não tenham

consciência disto. Pior, unirá os extremos com tão mais força, quanto repúdio de uns e de

outros na relação entre si. O que estamos a dizer não tem nada de esotérico: a cultura

popular e as elites não estão separadas, excepto na exacta medida do espaço deixado

por vagar na mente de uns e de outros. Ou seja, estão cheio de preconceitos. Esvaziem

então as mentes do lixo que acumularam.

Apresentamos ainda algumas objecções e contraposições às mesmas, ou, se calhar,

nada disto. Por ventura, haveriam outras a ser pensadas, deixamos a vós para as

pensardes. Humildemente, reconheço os meus limites. Faltará alguma divina inspiração,

somente a evoco, para livrar-me da tentação de dizer aos Homens aquilo que eles devem

fazer. Ou cair na tentação de os querer salvar. Acredito, o professor Agostinho não

53

121"Reflexão à margem da literatura portuguesa", in, Ensaios sobre a cultura e literatura portuguesa I, Paulo Borges (org), Lisboa, Editora âncora, 2000, p.84

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discordaria: o homem antes de pretender querer salvar os demais, deverá salvar-se a si

mesmo. Assim, se estivemos atentos, entendemos: não é nossa tarefa julgar o que os

outros fazem da sua vida. Deixemos então, a tarefa de cada um realizar a sua própria

metamorfose. O auto-sacrifício, para mim, é não querer o mal dos outros. Por oposição,

consideramos que este é o caminho de servir os outros e de lhes fazer o bem. Ou seja,

permitir-lhes o pleno desenvolvimento, deixando-os descobrir sozinhos o próprio caminho

que é o deles.

Esta divagação, sempre tem um ponto fundamental. O que é a filosofia no seio disto

tudo?

A filosofia não é sistematizar considerações alheias, a filosofia é uma actividade individual

feita no interior de uma colectividade. Uma mudança no colectivo não pode ocorrer sem o

agir individual. Para agirmos individualmente, sem estarmos desligados do todo, não

podemos apegar-nos a qualquer parcela, nem esquecer as restantes. O que escrevi é de

mim que partiu, não de um outro, mas sem contudo deixar de conter o todo, com esse(s)

outro(s)também presentes. A metamorfose espiritual sou eu que a pensa, sem deixar de

ter presente todas as minhas experiências passadas, Agostinho da Silva foi uma

inspiração para meter-me a caminho, isto sem que eu nunca tenha deixado de estar a

caminho. A caminho de realizar-me, seja lá o que isto signifique. Junto comigo, realizam-

se todos os outros. Ao longo do texto tenho vindo a alertar para este pormenor, o do não

estar aqui para falar em nome de Agostinho. Poderia citar o professor, para sustentar o

quanto ele valorizaria a nossa iniciativa de pensarmos e vivermos a nossa vida. Para

quê? Será que neste estágio ainda precisamos de ser levados pela mão? Quereremos

continuar a ser amebas?

Logo mais, veremos o que nos faltou até agora. Como aplicar a filosofia de modo a

libertar-nos desta sociedade da produção. Enquanto isto, vai sendo tempo de

entendermos que a mudança é interior, não pode ser imposta de fora. Precisamos saber

olhar para o nosso interior, então, descobrir aquilo que pretendemos fazer ou não fazer,

criar ou não criar. Um olhar interior sem esquecer os olhos na contemplação do mundo

externo.

Para a metamorfose ser actual e simultânea ao próprio acto criador, o exercício da leitura

deve imprimir no leitor, inclusive no escrito, a imediata transformação. Serve para assumir

a bem-aventurança de uma aventura, sem quaisquer expectativas. O essencial desta

intenção está na assertividade e no apresentar da nossa criatividade ao mundo, sem

temer o fracasso, nem a rejeição. Como pode o mundo mudar, se nele habitarem homens

54

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sem coragem para serem assertivos perante esta mesma humanidade? Não estamos

sozinhos, vejamos o que nos diz o professor a este respeito: "O que fez a essencial

grandeza de S. Luís, de Lincoln ou de Gandhi. Que se recusaram a separar um plano do

mundo do outro plano do mundo; que se recusaram, com uma exemplaridade humana

pela qual nunca lhes ficaremos suficientemente gratos, porque nada há de mais raro no

Universo do que exemplos de não-especialismo, a ser apenas ou políticos ou santos,

como provavelmente o tiveram em certo momento da carreira ao inteiro dispor; quiseram

ser as duas coisas e o foram; e em resultar daí, como seria de esperar do que em geral

se diz de enciclopedismo e de especialismo, que fossem medíocres num e noutro campo,

o que resultou foi que o serem santos os ajudou a serem políticos e o serem políticos lhes

deu mil ocasiões de se mostrarem santos"122. O professor falava de política e santidade,

mas tanto uma quanto a outra estão presentes em todos os actos da nossa vida. Para

sermos autênticos, não deveremos especializar-nos numa qualquer arte, para em seguida

fechar a porta às restantes. Poderá ocorrer que no, processo de especialização do

homem, estejamos a perder não só a possibilidade da descoberta de novos caminhos,

como a ser piores naquilo que é a nossa suposta especialidade. Para evitarmos a

especialização que nos delimita e limita, basta lembrar nunca deixarmos de estar

disponíveis. Disponíveis para quê, podemos perguntar? Para a "imprevisibilidade"123.

Pretendo terminar resumindo num curto parágrafo o essencial de toda a nossa intenção

na feitoria deste texto: num mundo individualista e em desagregação social, a solução

para travar esta desagregação estará em entender o conceito de um monge budista, o

inter-ser. Tudo está interligado, não é preciso persistir na fuga à realidade, nem inventar

inimigos. Aceitemos renunciar ao domínio, para deixar regenerar a energia que a todos

une. Estejamos simplesmente aqui como disse uma senhora ao poeta. Perguntamos: não

bastará estar vivo? Todavia, saibamos estar aqui inconformados. Talvez assim possamos

resolver o que nos parece o paradoxo do discípulo em Agostinho. Durante todo o nosso

esforço pretendemos estar ao lado e contra Agostinho. Porém, se ele nos convida a ir

contra o seu pensamento, se o fizermos estaremos a seguir o seu pensamento. Se

evitamos o confronto, não seremos também discípulos. A solução parece-nos evidente,

Agostinho convida a que cada um escreva a sua mensagem, eis o que aqui será

consumado. Esta é a mensagem que convida a viver o presente com os olhos postos no

futuro, sem perder a noção de onde viemos.

55

122"Política e Santidade", in, As aproximações, TEF II, p.22123Cf Flórido J., Reencontrar Agostinho da Silva, o poeta e o poema, Corroios, Zéfiro, 2006 pp. 177-192

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2.6 - Economia do decrescimento económico

Se apresentamos um modelo para uma metanóia, não desenvolvemos dois pontos que

consideramos essenciais. O primeiro é o campo da economia, em que nos propomos

apresentar um caminho alternativo ao capitalismo. O segundo é responder a como

restituir negatividade na vida. Numa sociedade adversa à contrariedade e fugidia de tudo

o que seja dor. Viciados em medicamentos, desde os analgésicos às pílulas do bem-estar

milagrosas. Uma sociedade que recusa integrar a tristeza como parte da vida. Neg-ócio é

o imperativo. Tudo é válido para maximizar a nossa produtividade. Exige-se pensar se

podemos dispor-nos a outro modo de viver. Deste modo: o decrescimento económico é a

nossa proposta para retomar um ponto de equílibrio à desmesura trazida pelo sistema

capitalista. Acreditamos viver numa época de despertar da consciência. I.e., maior

maturidade e sensibilidade para as questões ecológicas. Neste contexto, no campo

económico, porque consideramos afectar o modo de se ter uma boa vida, a nossa

proposta a ponderar pelo leitor é o decrescimento sereno. Faremos uso, para a

apresentação central das ideias gerais acerca deste movimento, da obra "Pequeno

Tratado do Decrescimento Sereno"124 do pensador francês Serge Latouche.

O que é o decrescimento? Primeiro de tudo, há a dizer o que não é. O decrescimento

não é a defesa do decrescimento como fim em si mesmo, i.e., o decrescimento pelo

decrescimento.

O decrescimento surge numa importante tomada de posição contra a ideia de

crescimento ilimitado. Como nos diz Latouche: não é este outra coisa que a busca do

lucro pelos detentores do capital. O que tem efeitos gravosos para o sistema ecológico.

Por consequência também para a humanidade125.

À motivação e justificação do nosso interesse nesta temática subjaz o assumir a nossa

posição contra a mera vita activa como finalidade humana. Esta não é má, só que faltará

algo a acrescentar.

Nesta sociedade capitalista atomizada, os homens são meros meios para um fim.

Perdendo um sentido mais vasto da Vida. Este é substituído por uma mera vida de

produção de mercadorias sem descanso. Mais adiante, no capítulo seguinte, veremos as

consequências deste cansaço humano.

O decrescimento, que é um modo de vida, uma proposta a ser pensada e experimentada,

tem sido alvo de crítica especulativa. Assumimos desde já que, embora sendo defensores

56

124Latouche S., Pequeno tratado do decrescimento sereno, Lisboa edições 70, 2011. (Doravante DS)125CF DS p.18

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desta via, convidamos os leitores a reflectirem por si e entrando num processo de

introspecção, ponderar a possibilidade de se juntarem neste caminho. Portanto,

continuamos sem qualquer intenção dogmática de afirmar ser a única via ou converter

alguém a uma ideia se não a pensarem por vós e vendo-a com o tocar nela através do

experimentar.

Uma critica que é feita ao decrescimento: pensa-se que o decrescimento é um

movimento para um recuar da humanidade. Ora,tal como muitos recursos são limitados e

não renováveis, o tempo também não recua. O decrescimento também não é um retorno

a uma era primitiva da história humana. Esta percepção é completamente absurda por si.

Outra critica recorrente é a consideração feita, a nós que defendemos o decrescimento,

de sermos irrealistas. Isto porque uma sociedade sem crescimento geraria miséria, por

deixar de haver receita, consumo. Haveria aumento do desemprego e os diferentes

programas sociais colocados em risco. No entanto, esta crítica mostra-se desfasada da

realidade. Já somos uma sociedade produtivista, do trabalho intenso e da máxima

eficiência, mas sem trabalho ( para todos). Há anos que o crescimento estagnou nas

sociedade capitalistas avançadas. Os governos viciados na ideia de acumulação e

crescimento executam políticas de alavancar a economia. Não obstante, quaisquer

esforços, persiste a estagnação ou ilusão de crescimento decimal. Na prática concreta, o

nosso sistema actual é de sobrevivência económica – consuma hoje e pague amanhã. O

problema é que a dívida, esta, não para de crescer. Já para não referir o custo ecológico.

Em suma, fazemos de tudo para manter a ilusão de expansão económica constante.

Para manter a ilusão gastam-se milhões de euros em publicidade. Só em França, o valor

gasto em publicidade atingiu os 2% do PIB126, três vezes o défice da segurança social127. A

sociedade do crescimento não só esbanja recursos na produção como ainda acresce este

gastar na promoção destes bens. Ainda se agrava com o incentivo ao crédito.128 Se as

pessoas não podem consumir, então emite-se dinheiro. Deste modo, cria-se a sociedade

do consumo dos consumidores endividados. Uma máquina voraz, sempre a necessitar de

cada vez mais dinheiro. Para o efeito, sacrificando as pessoas neste altar do acumular

enquanto fim em si. Acresce, quando as pessoas não consomem, cria-se a necessidade

de consumo através da obsolescência programada. Isto é, mesmo se as pessoas não

colaboram, os bens que estas compram avariam ou deixam de funcionar à luz da

realidade.

57

126Produto interno bruto.127CF DS p.31128CF Ibidem

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Já vimos, no mal-estar da modernidade que, o modo de organização da sociedade

compele os homens a um determinado modo comportamental. O de maximizar a

eficiência e a própria auto-reprodução do modelo económico. Nesta sociedade de

consumo a consequência acabará por ser o esgotamento. Este esgotamento dá-se quer

ao nível dos recursos naturais, como do próprio homem. Fazendo surgir pessoas

cansadas para a vida. Surgem as doenças neuronais.

O que estamos a querer focar: quer os recursos naturais, quer os recursos humanos são

finitos. Os primeiros por motivo óbvio. O planeta é finito. Uma vez os recursos

transformados, não há retrocesso imediato. Em rigor, se mudarmos o nosso modo de

estar, há modos de minimizar este desgaste dos recursos naturais.

No caso dos recursos humanos, é a nossa natureza mortal que está em causa. Quem

deseja esgotar a sua vida em trabalho contínuo? Se os há estão doentes.Para estes

criou-se o termo, workaholics129. Os escravos do trabalho, que irão originar os casos de

síndrome burnout130.

Embora estejamos a apresentar um quadro negativo, ainda consideramos haver tempo

para corrigir o nosso erro mortal ou vital conforme a perspectiva. Este é o que os gregos

chamaram de hubris, esta desmesura e irrespeituosa atitude face à vida de que

dispomos. Possível devido a uma perda do sentido sagrado desta mesma vida.

Quais as soluções? Os conservadores preconizam a redução da população. Deste modo

apareceu um memorando131, no qual se antecipam problemas colocados pelo crescimento

populacional. Surgirão políticas de incentivo a reduzir a natalidade. Pensou-se de modo

racional, a possibilidade de deixar morrer os pobres. Ora, isto é chocante por um lado,

mas prático por outro. Nestes singelos exemplos, podemos dar conta da consequência da

mera instrumentalização da razão, para um fim sem destino. Entenda-se, sem instituição

de sentido acerca do valor da vida humana. Num sistema do maximizar do lucro, tudo é

mercantilizado, porque não o fazer com as vidas humanas? Estas já são pesadas através

de um salário. Obviamente, opomos-nos a este excesso de racionalidade prática.

Certamente, a maioria ficaria horrorizada com a ideia de um extermínio programado da

população. Abstemo-nos de qualquer comentário, de políticos que vociferaram: que bom

seria se os velhos morressem mais depressa.

Porém, vejamos de perto o mundo actual. Quando se nega alimentos às populações, o

58

129Viciados no trabalho.130Esgotamento por excesso de trabalho.131CF DS p.41

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que se está a fazer senão deixar que morram de fome? Quando se nega o acesso aos

medicamentos e/ou a um tratamento médico, o que é isto senão deixar morrer? Na

verdade, que o filósofo busca, existe já esta prática do abandono dos pobres. O

abandonar os mais fracos é uma realidade concreta, de que poucos parecem dar conta.

No entanto, reduzir a população não resolverá o problema por si. O problema é outro, o

de não nos limitarmos a consumir só o necessário. Esta nossa grave deficiência de alocar

os recursos de modo equitável é o foco a resolver e não o de pensar se os pobres devem

morrer. Há uma alternativa à hubris, a de instituir para si uma vida de sobriedade132. Mais

do que persistirmos na destruição para satisfazer as nossas carências psíquicas, que só

tendem a aumentar. O humano tende para a insatisfação, quanto mais adquire mais

deseja. Será sábio colmatar a carência psíquica de modo a não destruir o meio ambiente

e a nós nele contidos. Desenvolvendo uma posição na vida como preconizada pela

filosofia. Um modo de vida, que busca a verdade e transformação de si mesmo através do

auto-conhecimento. Tudo o mais é desperdício e fuga pecaminosa. O pecado humano é o

da queda, esta tendência que relevaremos mais adiante.

2.6.1 - O decrescimento: uma utopia concreta133

Aqui desenvolvemos a ideia central motivadora deste estudo. O repensar como estarmos

na vida. Ao invés de sujeitos, neste sentido de submissos e passivos, tomaremos uma

atitude activa. Um ir além da mera vida de trabalho. Ter na vita activa uma realização de

um interesse que nos transcenda na nossa individualidade. Para o efeito, teremos aue

reaprender a contemplar o mundo no qual vivemos. Assim sendo, tendo esta finalidade de

orientar de modo a aumentar a nossa harmonia, propomos a revolução do decrescimento.

Citando André Garz, Latouche comunica-nos: "a civilização capitalista [...] caminha

inexoravelmente para a sua derrocada catastrófica; já não é necessária uma classe

revolucionária para derrubar o capitalismo, porque ele cava a sua própria sepultura e a

civilização industrial no seu conjunto."134

Esta crença, por mais convictos que dela possamos estar, não assegura o sucesso da

revolução. Pois a mudança estrutural das instituições da sociedade depende do

comportamento ético.

Se procurarmos aplicar as três liberdade essenciais, defendidas por Agostinho, permite-

nos e exige-nos a responsabilidade de agir de acordo com a nossa intenção. Isto é,

59

132Uma ideia defendida pelo franco-argelino Pierre Rabhli.133CF DS p.47134DS p.92

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eliminar a diferença entre o pensado e a acção concreta. A nossa intenção, sem

ingenuidade, visa aumentar a harmonia no mundo. Entenda-se por harmonia um maior

equilibrio. Afirmamos sem ingenuidade, por não ser uma pretensão de fixar um mundo

numa fórmula perfeita ideal, adverso a tensões. Mais equilíbrio significa maior equidade.

O que também é diferente de igualdade. O nosso propósito é tão e somente promover os

instrumentos para as pessoas se realizarem, sem estarem pré-ocupadas pelo sobreviver.

Permitindo aos humanos, então, estarem ocupados a viver.

No decrescimento, o processo passará por uma reorganização dos recursos naturais.

Para deste modo aligeirar a factura imposta à natureza e aos trabalhadores.

Acrescentamos, inclusive o peso que recai sobre os empresários. Neste sistema

capitalista não há leveza na vida para ninguém. Quanto muito existirá, entre alguns, maior

e excessiva liberdade económica. Isto é, possuem mais bens materiais, sem que isto

signifique maior bem-estar. Em rigor, temos que admitir o contrário de igual modo, ou seja,

nem menor bem-estar.

Seja como for, a proposta recai sobre o círculo dos oito "R"135.

a) Reavaliar136

Retomando o mal estar que acarreta a sociedade individualista(egoísmo). É de bom tom,

reavaliar esta nossa inclinação de queda no egoísmo. Segu(i)ndo uma via dos antigos, a

de uma vida perscrutada: reconhecemos o que está em falta nesta nossa sociedade

narcicista, é o oposto. i.e., falta-nos uma valorização e recuperação (se necessário) da

alteridade137. Está em falta maior altruísmo, consequência desta menor valorização do

elemento outro. Consideramos a presença de maior alteridade uma condição para

melhores e mais sãs relações humanas. Mas talvez haja alguma razão para estes

elementos estarem em falta. Trataremos de analisar este tema na última parte do estudo.

Assim, esta reavaliação passa pela recuperação dos valores éticos, especialmente,

retomar o gosto pela parrêsia. Um refundar a ousadia do falar a verdade. Aqui subjaz uma

necessidade de ter atenção ao modo de educar.

Nós, no coroamento da criança, antecipamos o problema educacional: em detrimento de

se educar um cidadão, formamos soldados para a guerra competitiva. Em suma,

pretendemos descolonizar o imaginário que a sociedade do crescimento nos trouxe. Para

o concretizar, além do referido, devemos valorizar a divindade da natureza. Isto por

considerarmos necessário atribuir valor sagrado àquilo que transcende o homem.

60

135CF DS pp.49-63136CF DS pp.50-52137Avaliar a nossa relação com os outros e verificar se é harmoniosa.

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b) Reconceptualizar

Temos vindo a reflectir um pensar, ver e apreender o mundo de um modo diferente.

Serge Latouche refere: re-conceptualizar ou redefinir/redimensionar os conceitos de

riqueza e de pobreza138.

Entendemos o repensar o consumo com maior sobriedade. Para não se cair na hubris,

podemos considerar a garantia essencial pedida por uma real liberdade económica.

Serem satisfeitas as necessidades básicas (alimentação, vestuário e abrigo). Ao garantir a

equidade do acesso às necessidades básicas, conta-se que os recursos se desviem de

quem tem em excesso para os que têm a menos.

c) Reestruturar

Adaptar o modelo de produção aos novos valores reorganizados. Para assim dar-se a

reorientação para a sociedade de decrescimento139.

Dar-se-á a reconversão de todo um aparelho produtivo, que se ajustará a uma melhor

utilização dos recursos. Paradoxalmente, referimos que a modernidade busca a máxima

eficiência e a máxima produtividade, contudo será a sociedade do decrescimento de facto

a maximizar a eficiência. Isto é, num sentido de minimizar o esbanjamento dos recursos

naturais. Porque o sistema capitalista, em rigor, busca o maximizar do lucro, a expensas

do bem-estar humano ou da própria natureza como um todo que nos inclui.

d) Redistribuir

Significa concretizar as três liberdades essenciais. Através da reestruturação da

sociedade contamos garantir a equidade no acesso de todos ao mais básico dos bens.

Esta atitude levará à redução do consumo, por diminuir o poder da classe consumidora

em adquirir bens140.

O motivo principal de diminuir o poder da classe consumidora, está ao redistribuir, haverá

menor concentração de renda. Os bens de primeira necessidade disponíveis primeiro

terão que chegar, somente após se pensará o excedente.

Um efeito fundamental pretendido é buscar reduzir o consumo ostentário. Uma ostensão

61

138CF DS p.53139CF DS p.54140CF DS pp.54-55

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que já era criticada na idade medieval, temos esta crítica em Bernardo de Claraval141.

Este perante uma sociedade em desenvolvimento, criticaria em Apologia 28-29 os

excessos do crescimento ostensivo. Esta crítica repousa sobre o campo da arte, mas que

pode ser estendida aos demais campos. No entanto, mesmo se nos ficarmos pela arte, na

actualidade, há igual excesso. Há um esbanjar de recursos e uma revalorização de

objectos ditos de arte, enquanto continua havendo fome e trabalho social por realizar. Não

nos opomos à arte, nem Bernardo o fez. Só chamamos a atenção, tal como o abade, para

repensarmos as nossas prioridades. Evitando cair no pecado da hubris.

Tantas vezes, também, o consumo é mais um desejo de estatuto do que real

necessidade. Se houver uma metarmorfose espiritual, espera-se que venha junto com

uma reorientação de sentido. Isto é, em lugar de os bens darem sentido à vida, ser o

próprio humano a dar sentido à sua vida sem depender do exterior. Isto exige autonomia.

Somente humanos mais despertos, autónomos, serão capazes de exercer a sua liberdade

em pleno. De resto, viverão vidas condicionadas. Não passarão do estado de animal

laborans.

e) Relocalizar

Limitar a circulação de mercadorias e capitais na escala internacional ao mínimo possível

indispensável. Este primado da economia local devolverá à comunidade um sentido de

pertença. E o reencontrar da sua raiz territorial142. Isto é fundamental para uma vida com

sentido, haver um senso de elo com uma raiz, que interconecta as pessoas na

proximidade, só dado e transmitido pelo estar junto do local. Isto é, há uma continuidade,

uma identidade que se actualiza no tempo. Quando nos deixamos absorver pela

descontinuidade, gera-se um sentimento de desligamento. Uma boa vida clama por

ligação e significado. Por este motivo, vemos no relocalizar esta revisão de prioridades

como condição de transformação para um melhor bem-estar.

62

141 Bernardo de Claraval foi um abade francês, da ordem de Cister. Viveu nos século XI e XII. Conhecido por ter

reformado esta mesma ordem.

Bernardo de Claraval surge na história após a desintegração do império Carolíngio. Na sequência do qual deu-se um

reimplantar das ordens monásticas. O abade francês tem o seu papel numa sociedade em profunda convulsão. As

mudanças davam-se em todos os patamares e sectores da sociedade da época: no social, no religioso, no político, no

económico e na proliferação intelectual.

142CF DS p.56

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f) Reduzir

Este ponto chama a nossa atenção para o reaprender da lentidão. Saborear do instante

presente, sem pressa de chegar algures. Voltarmos a ter vidas que observam a paisagem,

ao invés de termos mentes agitadas pela aceleração de um consumo desenfreado.

Abandonarmos o hábito moderno de andar na rua a olhar para o smartphone.

Conversarmos e partilharmos a vida com os outros e não o estar junto dos outros. Isto é,

a vida actual trouxe hábitos como as pessoas estarem juntas, mas a comunicarem via

smartphone com alguém fisicamente ausente.

Em concreto, valorizar menos a velocidade das deslocações a favor de um fruir destas

mesmas deslocações. Na actualidade, não é raro a indústria do turismo prometer dar a

conhecer um país inteiro numa ou duas semanas. A menos que seja um país muito

pequeno, estamos a deixar-nos levar por um negócio de massas, em detrimento de um

real enriquecimento pessoal. O conhecimento não é adquirido de modo instantâneo.

Exige tempo e paciência, mais ainda atenção, que a velocidade não permite.

Mais do que visitar e ver muitos países, o melhor é permitir-se conhecer alguns. Isto é,

valorizar a qualidade em vez da quantidade. E devermos procurar aplicar esta

revalorização da qualidade sobre a quantidade em todos os campos da vida. Precisamos

mesmo, embora a título caricatural, ter dois televisores por assoalhada? Ou mesmo um?

O leitor pode ver a nossa posição como um moralismo, porém, recordamos que não é

nossa intenção ditar como exercer a sua autonomia. Portanto, pretendemos levar a que

se questione e somente isto. Pergunte a si mesmo, se os seus actos são os seus ou se

resultam de um hábito social que lhe foi incutido?

Seja como for, você pode sempre escolher ser um igual entre todos ou ser a diferença.

g) Reutilizar/ reciclar

Após o reduzir da velocidade, para valorizar a qualidade sobre a quantidade. Um

caminho que se espera leve a uma igual redução do consumo excessivo. Falta-nos

pensar o reaproveitar dos bens produzidos.

Para incentivar ao reutilizar ou à reciclagem temos que assumir, quer se goste ou não

que as pessoas reagem a estímulos. Então deverão ser promovidos os estímulos

benéficos, ao invés dos prejudiciais. Por prejudiciais já vimos a consequência advinda da

publicidade promotora do consumo. Se um caminho não é o bom, mudemos de método.

Tentemos outra via. Neste caso, o promover o hábito de exigência por bens produzidos

numa óptica cotrária à da obsolescência programada. Além de darmos o primado a bens

63

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que possam ser reutilizados para outros fins ou mesmo reciclados para a mesma

finalidade.

Diz-nos Latouche: "tudo isto projecta uma utopia no melhor sentido do termo, ou seja, a

construção intelectual do funcionamento ideal e de evoluções realizáveis – é um outro

mundo, desejável, necessário e possível se assim o quisermos"143.

Para o realizar basta dar-nos a autonomia de o concretizar. Atribuindo-nos as regras de

gerência deste mundo, ao invés de deixar a gerência entregue a si mesma. Isto é, a uma

indeterminada invisibilidade que é suposto regular por nós.

3.5.2 – Crítica

Estabeleceremos uma ponte entre estas três liberdades e uma semelhante visão em

Marx. Especialmente, no que se refere à liberdade económica144. Marx dirá que o humano

nem sequer pode ser livre sem esta liberdade económica. A mesma toma a forma de

garantia dos meios mínimos de sobrevivência. Isto significa os humanos terem o

vestuário, comida e bebida, habitação em qualidade e quantidade adequada145.

A pertinência de escolher Marx, para nós, está neste nosso visar em retomar uma

vertente da filosofia, meio esquecida, a da filosofia contemplativa, é uma chamada de

atenção. Perante uma crise, a tendência humana é o refugiar-se na inactividade. Uma

inacção mais material que ideal. Isto é, pensa-se muito e elaboram-se sistemas

filosóficos, sem concreção na vida real. Sem haver uma transformação efectiva da

realidade. Acreditamos que a filosofia enquanto actividade contemplativa tem em si o que

todos andaram a buscar.

Marx é ainda interessante, vindo na sequência de uma proposta alternativa ao sistema

capitalista. Para levarmos a bom porto a nossa intenção, usaremos os textos A ideologia

alemã e A sagrada família para o nossa chamada de atenção. Lembraremos o idealismo

de Fichte e Hegel de passagem.

O decrescimento económico foi uma continuidade da nossa crítica à modernidade,

especialmente, pós-iluminismo. Mesmo se este período foi importante na história do

pensamento Ocidental e merecendo ser valorizado. Não nos impedimos de criticar a

hubris desta crença quase incondicional de ser possível uma sociedade de progresso

ilimitado. O conhecimento, a técnica, o desenvolvimento, devem servir a humanidade e

64

143 DS p.61144A liberdade económica não é essa liberdade dos mercados, o chamado laissez-faire. Por liberdade económica

entendemos obtenção dos meios mínimos essenciais de subsistência. 145Marx, Engels, obras escolhidas em três tomos, tomo I, Álvaro Pina ( trad.), edições Avante, Lisboa, 2008 (doravante

OE). p.28

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não a humanidade a estes. A fé exacerbada num progresso como finalidade humana está

a causar o mal-estar a que vimos aludindo.

Para inverter a tendência, vimos proclamar uma revolução, num sentido de r-evoluir. Um

retomar o processo de compreensão do mundo, no qual o humano volta a estar presente.

Em detrimento de uma visão antropocêntrica, em que o humano se vê separado do

mundo. Nós precisamos recordar que somos figuras não autónomas, por não existirmos

fora deste. Dependemos do elo com a Natureza. Que, sendo mortais, seria lamentável

termos uma breve passagem no mundo como animal laborans146, ficando aquém da

nossa real potencialidade. Indesejamos estas vidas sacrificadas no altar do mero

produtivismo sem fim nem sentido.

Para encerrar esta segunda parte, focaremos uma proposta ética pronta a aplicar ao

próprio modelo capitalista. Servindo para mostrar duas coisas: primeiro – a perversidade

do sistema capitalista. Este tende a apropriar-se das boas ideias, extirpando-lhes os

elementos críticos ao sistema capitalista. Para esta nossa análise, apresentaremos um

breve estudo acerca da filosofia taoísta, utilizada pelo capitalismo para justificar a

ausência de regras. Segundo, mostramos como, através de uma vida ética, podemos

fazer a diferença necessária para corrigir um mundo defeituoso. Há que criar regras e

nunca deixar o destino ocupar-se daquilo que é a nossa função em criar o sentido.

Como alternativa ao modelo capitalista, apresentamos uma reflexão sobre a real

possibilidade de aplicar uma ideia. Será uma ideia boa suficiente para mudar a realidade?

Com base nesta questão iremos estudar quem procurou responder a esta mesma

pergunta. Será que a vontade junto com uma boa ideia, chega para mudar o humano e/ou

a realidade no seu todo?

A resposta mais simples seria verificar se o modelo proposto responde às nossas

exigências e expectativas. Esta é saber se a liberdade económica é garantida. Se se dá

de facto a liberdade do humano. Posto isto, resta recordar que estamos a contrapor a

visão idealista147 a uma visão materialista. Os dois principais autores que mencionamos,

Charles Taylor e Serge Latouche, consideramos ambos como idealistas.

Urge então aclarar estes dois conceitos fundamentais ao entendimento do que estamos

expondo.

Para termos noção preliminar da diferença, ao primeiro utilizaremos as palavras de

65

146CF Byung-Chul H., A sociedade do cansaço, Gilda Encarnação (trad.), Lisboa, Relógio d'água, 2014, (doravante SC) p.33

147Será através da crítica de Marx e Engels, que faremos a distinção entre o idealismo e materialiasmo. A opinião pessoal do autor, aqui, tem toda a sua importância. Embora seja costume académico dizer o inverso.

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Marx148 para o caracterizar: "pensamento puro"149. Por precisamente neste detalhe residir

o cerne da crítica de Marx ao idealismo.

À segunda concepção da realidade, o materialismo, atribuiu-se-lhe o destino de corrigir

os defeitos da primeira. Considera Marx que, ao longo da história, a filosofia não fez outra

coisa que interpretar o mundo de várias maneiras e feitios. Sem contudo realizar o mais

relevante. Também nas palavras do próprio, na tese onze: "os filósofos têm apenas

interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo"150.

A empreitada tomada a cargo por Marx é esta, a de investigar a realidade para de modo

relevante a transformar efectivamente. Enquanto que a nossa é averiguar se os nossos

caminhos propostos são transformadores da realidade.

Para nos ajudar a clarificar o contexto da expressão do pensamento do Marx acerca

destas duas visões, pretendemos revisitar dois pensadores do idealismo alemão. Sendo

ainda do nosso interesse pensar se as diferenças entre Fiche, Hegel e Marx são assim

tão grandes. Embora seja costume guardar o mistério para o final. Defendemos que, de

algum modo, Marx traz um detalhe em que nos focaremos, por ser o núcleo de todo o

interesse ao realizarmos este estudo. Devido ao formato em que nos movemos, isto é, no

tempo. Não nos debruçaremos em detalhe sobre este mesmo tempo. Nem na história

propriamente dita. Marx é para nós o primeiro grande pensador a ter uma noção de

historicidade aprofundada. O que quer isto dizer? Ao invés de puro pensamento, em

desenvolvimento, a consumar-se, Marx dá-se conta de haver na história algo que dá

forma à realidade concreta. I.e., a realidade é fruto de determinadas condições anteriores.

Encontramos em Marx: os homens ao produzirem os seus meios de vida, indirectamente,

produzem a sua própria vida material151. A nós isto interessa, pelo que vimos dizendo

acerca da importância do passado, enquanto ponto de partida.

Sendo, a nosso ver, a partir desta concepção que Marx afirma e vai conceber a sua

filosofia: mudar as condições materiais, para deste modo transformar efectivamente o

mundo. Isto porque a realidade material está dependente deste modo de produção, o qual

condiciona as próprias relações humanas. Isto é, depende do modo de divisão do

trabalho, e as estruturas resultantes e da relação destas entre si152.

Se queremos mudar o mundo, há então que mudar o modo como nos comportamos

66

148Se os autores dos textos estudados são Marx e Engels, utilizaremos o nome de Marx quando à obra deles nos referirmos.

149 CF OE p.17150OE p.16151CF OE p.21152CF OE p.22

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nele. Mudando o modo como lidamos com a produção das nossas necessidades básicas.

Daí a nossa proposta ser o decrescimento económico. Este implica mudança estrutural na

sociedade. Só que parece não bastar pensar e desejar para acontecer. Deixando de fora

a violência, resta assumir uma atitude comportamental a que vimos aludindo e será o

tema a tratar no encerramento desta dissertação para influir nesta mudança concreta.

3.1 - O idealismo de Fichte e Hegel

Desde logo relembramos a importância da negatividade. Esta alteridade, a diferença a

que vimos fazendo referência. O da vida comportar duas partes, o que é e o que não é.

A própria filosofia segundo Hegel nasce da ruptura, de uma diferença entre o pensado e a

vida. Nas palavras do próprio: "no filosofar confronto-me com a minha vida, comigo

próprio; o filosofar pressupõe que já não estou satisfeito com a minha vida"153.

Fichte é semelhante. O que suscitamos é o foco sobre o que ambos têm em comum e

muitas vezes parece esquecido: a filosofia é um exercício para pensar a condição

humana. Não é um mero jogo de abstracção desconexo da realidade prática e muito

menos separado do concreto agir humano. Se pensarmos a própria actividade de pensar

enquanto acção, veremos ser impossível separar o pensar-se em abstracto da vida com o

que se está a pensar. Este agente pensante está não só vivo como presente numa esfera,

a que chamamos mundo. Embora, iremos ver que esta condição humana em Fichte é

encontrar o princípio fundador da mesma.154

Hegel deu-se conta de uma diferença entre o pensado e a realidade155. Sobre esta

diferença constituirá a sua filosofia. Procurará pensar a realidade de modo a que esta

diferença esteja ela mesma pensada. I.e., pensará o real enquanto processo e movimento

em devir, sendo a diferença a condição necessária para pensar este movimento.

Todos podemos dar-nos conta da realidade estar em movimento. Quem nunca deu conta

de estar a envelhecer? Acreditamos que nem o mais alienado dos homens desconhece o

processo de envelhecimento.

A partir daqui, desta noção simples de a vida, o real, sempre estar em processo de devir

torna-se mais fácil entender a história. É um processo a acontecer no devir, mas que tem

um antes.

Hegel procurou pensar o real total, não fixado. A própria filosofia surge para colmatar ou

67

153Hegel G.W.F., Prefácios. Tradução e notas de Manuel J.Carmo Ferreira, INCM, 1990 (doravante prefácios), p.15 Dif., Ges. Werke, 4, 14.154CF Tathandlung e o Selbstdenken, ensaio sobre o idealismo alemão I, Ricardo Correia, 2015155CF A filosofia em Hegel e a apropriação desta filosofia por um sujeito autor e/ou leitor da mesma, ensaio sobre o

idealismo alemão II, Ricardo Correia, 2015.

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harmonizar a tal diferença entre aquilo que é pensado e a realidade.

De algum modo, suscitamos aqui haver esta diferença entre o pensado e o real. Mesmo

se dentro do próprio real esta diferença existe. O que pretendemos evocar é brecha na

falha no idealismo. Havendo diferendo entre o pensado e o real, no idealismo, faz-se a

adequação do real ao pensamento. Isto é, à ideia. Já se pensarmos na mesma diferença

enquanto contradição dentro do real156, e a partir dela, tentarmos resolver a mesma,

estamos não adequar o real à ideia, mas a tocar na própria realidade. Queremos com isto

dizer, a mexer na materialidade. Ou seja, invés de estarmos a acomodar-nos pelo

pensamento à realidade, passamos a estar em medida de modificar esta mesma

realidade. Isto ocorre por ter-se em conta aquilo que é o concreto do mundo sensível. Em

suma, no idealismo de Hegel há uma descrição, a partir do pensamento, daquilo que é.

No materialismo há descrição daquilo que é dirigido ao pensamento. Não estamos certos

de estar a conseguir demonstrar a nossa tese, de tão complicada. Para num esforço de

simplificar: no materialismo há inversão do primado do conceito relativo ao objecto do

idealismo. Sendo ainda, o real e o pensamento constituem uma unidade a operar em

conjunto.

Olhando Fichte. Este antes de Hegel procurou pensar o fundamento de haver experiência

do real. Fundamentou a possibilidade de experiência no Tathandlung. Segundo Fichte é

esta auto-posição do Eu a condição necessária, para haver experiência no mundo. Ou

seja, parte do pensamento para experimentar o mundo material157.

Mesmo se a Tathandlung é imediata e emerge no e do real, não deixa de ser o

pensamento a ditar e a interpretar a realidade. É um constar de se estar aí. Inclusive em

Hegel, quando descreve o processo de desenvolvimento do espírito. O que temos senão

uma interpretação da realidade? O próprio na citação supra indicada, revela que dá-se

conta da realidade em devir, nesse olhar da sua vida. É perante uma insatisfação, que

surge a diferença. Marx bem o disse, o que tem sido feito é interpretar a realidade. Mas,

será que o Marx consegue fazer outra coisa que interpretar a realidade? Quem sabe

encontraremos a resposta adiante.

Hegel é mais complexo. Afirmar que é um mero interprete da realidade, sendo verdade é

estar a diminuir a sua filosofia. Não é sem razão que este pensa o princípio e o fim como

sendo o mesmo ponto. Especulamos, no sentido que esta palavra tem no pensamento de

Marx. Hegel pensou de modo a conter todas as determinações possíveis. Isto não é só

68

156O real a que aludimos é o que consideramos a percepção materialista deste mesmo real. 157No nosso texto, o real relativo à concepção materialista sempre deve ser entendida como o mundo sensível. Embora,

defendemos, este comporte o próprio pensamento.

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interpretar, pois permite o espaço à transformação do mundo. Sem Hegel, talvez, Marx

não pudesse ter pensado o que pensou. Aliás, será o que Marx confirmará no início de A

Ideologia Alemã 158. Ele toma o pensamento de Hegel e aplica-o, dando-lhe dimensão

concreta incrustada no real. I.e., atribuindo-lhe a vertente da práxis. Ao invés de ficar-se

pela especulação, procura ir mais longe, no intervir nas estruturas sociais, de modo a

mudá-las de facto e não em aparência. É por aqui que Marx se afasta um pouco da mera

interpretação. Se começa por buscar pelo fundamento do real, compreender assim: o que

é aquilo que é. É na sua intenção que Marx traz para nós algo de novo. Esta é a de

pretender, através da compreensão dos fundamentos do real transformar este mesmo

real.

Em suma, as mudanças de si ou do mundo dependem das circunstâncias. Seja na auto-

consciência de si159, que é suposto acontecer, ou através da vontade de agir160. Ora,

levantamos as questões: se não se der esta auto-consciência de si? Ou se a vontade

estiver ausente? Poderão haver mudanças se estas ficarem só dependentes do

pensamento?

Estamos em crer que é esta a crítica que Marx faz ao idealismo161.

Esta crítica é mais apontada aos seguidores de Hegel, ou mesmo detractores deste, que

ao próprio Hegel. Marx mostra respeitar o pensamento do Hegel, a partir do qual vai

construir o seu próprio pensamento. O que ele faz, no nosso entender, é o pensar e ir

além de Hegel. Ao passo que outros ficaram pelo pensar, talvez mal, e ficar-se aquém

daquele. Na prática, houve quem se limitasse a ficar pelo pensamento puro. Quer no

sentido kantiano, do Sollen162, quer na sequência deste na confiança da mera autonomia

da razão. Aqui consideramos Fichte, cuja filosofia assenta na confiança da razão como

capaz de unir a teoria e a prática.

Desconhecendo as causas mais profundas que actuam e limitam o próprio agir humano,

a razão, é por assim dizer, pensamos nós, insuficiente para levar o homem a transformar-

se a si mesmo. Não é suficiente ter vontade, por vezes as condições materiais estão

ausentes. Relembramos, a respeito de Fichte, que teve vida difícil, o que o coloca em

posição de sensibilidade face à miséria humana. Não foi nenhum homem abastado a

debitar facilidades.

69

158CF OE pp.19-20159A auto-posição do Eu do Fichte.160Fichte sugere que esta auto-consciência é necessária e não pode ser de outro modo.161Ao idealismo do Kant, Fichte e do Hegel. Ainda sem esquecer o Feuerbach, de quem não podemos chamar para a

nossa conversa, mas que seria interessante se as condições materiais fossem outras.162Dever ser.

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O dever ser, já nos idealistas Fichte e Hegel seria de algum modo criticado. Fichte

procurou, como referido, unir a teoria à prática. Pretendia ultrapassar este intervalo entre

o pensado e o praticado.

Pois, se pensarmos neste, dever ser: aquilo que deve ser é por ainda não ser.

Precisamente, há uma mera constatação de algo que não é. Supostamente quer-se, mas

defendemos que o querer não basta. Ou seja, a mera vontade não é condição suficiente

para que algo se torne noutra coisa.

Em grande medida, esta é também uma crítica feita por Marx. O transformar do mundo

exige que o pensado se efective visivelmente. Que a realidade não seja só pensamento

descritivo e que se torne resultado do trabalho exercido sobre ela. Marx, procurará dar

sentido ao que está oculto – o modo como a realidade funciona. Para que os eventos

deixem de ser aleatórios. Ou, aparentemente, aleatórios. Ao buscar pelo fundamento do

funcionamento do mundo, Marx, pretende estar em mesura de intervir nele para o

modificar. Isto em detrimento de aceitar que este seja como dizem que ele é.

Para ilustrar de algum modo o que dizemos indirectamente: imagine-se o operário que

depende do magro salário para sobreviver, que liberdade tem ele para de facto mudar a

sua vida? Somente um cínico diria que pode mudar de vida.

A vontade não é suficiente para o operário se mobilizar, pois terá que sujeitar-se à

exploração se quiser evitar morrer de fome. Possivelmente, ainda terá a cargo a sua

família. Mas, se sabendo como se processa a exploração, estaremos em medida de

refazer a realidade se permitirmos ao operário a escolha. Como realizar este processo?

Seria um exercício interessante a perfazer, só que não me pagam para que eu o faça.

Adiante procurarei falar de uma nova ideia que para aí anda, talvez, a solução passe por

ela. No mínimo, deixarei a ideia espalhada. Esperando que esta não fique só dependente

da vontade para se realizar.

Resumo sumário: temos interpretações do observado, além de igualmente interpretações

de reacções comportamentais da relação do homem com o mundo.

No idealismo tem-se então, a observação daquilo que é. A realidade é até certo ponto

apreendida. O ponto levantado por Marx é nos suscitar a pensar o ir além do observar.

Então, Marx, procurará ir além do interpretar a realidade. Veremos mais a este respeito

nos dois capítulos seguintes. Neles veremos as críticas feitas a quem pretende solucionar

os problemas através do pensamento puro. Como se pensar fosse a condição necessária

e suficiente para transformar o mundo.

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3.2 - Materialismo e idealismo enquanto concepções opostas

Neste capítulo pretende-se vincar bem estarmos a falar de duas concepções de pensar o

mundo. Todavia, consideramos que, embora diferentes, Hegel163 e Marx estão de algum

modo próximos. Já aludimos que é a intenção de Marx que o move no seu pensar: se

parte de uma forte influência e respeito por Hegel, afasta-se pela intenção. Ou seja, a de

transformar o mundo.

Na concepção idealista há o primado da ideia164. Se já referimos o problema que a nós

suscita esta concepção, pretendemos de modo crescente ir expondo o problema. Quem

sabe, pelo meio, surjam orientações de pistas solucionadoras do mesmo. O problema a

que nos referimos aqui: a ideia e a vontade. Será a ideia por si suficiente para movimentar

a vontade humana?

É a partir desta ideia que pensaremos o essencial de toda a nossa exposição.

Marx verifica que não basta pensar para que o mundo material se transforme. Nem o

pensar é, necessariamente, seguido do acto.

Então, temos que considerar: quais serão as condições que, de facto, levem uma ideia a

ter resultado material?

Quais serão as condições materiais, para erguer uma ideia que levará ela mesma a

mudar as próprias condições materiais?

De algum modo, a nossa intenção é apresentar caminhos alternativos. Estes foram

pensados por Marx, agora junta-se o próprio autor deste texto. O leitor é chamado a

reflectir em conjunto.

Relembramos a Tathandlung, mesmo no quadro da autonomia do pensar, i.e.,

Selbstdenken165, não é por si suficiente para concretizar de modo prático mudanças no

mundo sensível166. Entenda-se, aqui, que chamamos de mundo sensível ao mundo

material167. O pensamento, se separado do material, não poderá ser operante na

realidade.

71

163Karl Marx é influenciado por Hegel, de notar que esta influência está presente também no autor deste ensaio. Não é sem motivo que o capitulo anterior foi uma curta incursão pelo idealismo alemão. Partiremos do pressuposto que o leitor tem presente este contexto histórico da relação entre os pensadores aqui apresentados. Não será neste exercício, nossa intenção descrever todos os detalhes mais ínfimos. Não há tempo para o perfazer. Assim sendo, resta juntar a manta de retalhos de modo a, sem perder o rigor, conseguirmos transmitir alguma coisa de útil a todos nós. E assumimos que o espírito de Hegel está presente neste nosso modo de pensar os temas aqui propostos.

164Conceito.165 O pensar por si. 166 Estamos a suscitar uma diferença entre mundo sensível e o mundo inteligível. No nosso entender, esta diferença é

meramente formal, para nos ajudar a distinguir dois modelos de pensar. Todavia, um e o outro estão juntos e são inseparáveis. Sucede que é uma questão de qual dos dois tem o primado. Para o idealista é o conceito que vem primeiro. O materialista dá o primado ao sensível, o qual definirá o conceito.

167 Repetimo-lo exaustivamente, para evitar dúvidas no leitor.

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O que pensamos ser a posição de Marx: o mero pensamento especulativo é insuficiente

para suscitar transformação do mundo. Isto é, o pensar não opera, na prática, qualquer

resultado por si só. Para exemplificar, de modo caricatural: imaginar-se rico não nos faz

devidamente num indivíduo rico. Quanto muito seremos ricos de espírito168. Mas, ao que

consta, a mera riqueza de espírito, no abstracto, não coloca o pão na mesa. Ou ainda, o

pensar uma lei que decrete o fim da pobreza, não afasta a pobreza da realidade material.

Para haver uma verdadeira mudança, o pensamento tem que operar junto das instituições

humanas. Tem que atingir o fundamento que as sustenta. Só compreendendo o modo de

funcionar do mundo, se pode então intervir para o transformar. Sendo esta intervenção

sempre de modo prático e activo no sensível. Pois, vimos já, não basta decretar para que

suceda. Não basta dizer que deve ser169.

Em grande medida esta crítica que expressamos por palavras simplificadas é a mesma

que Marx realiza contra Proudhon170. Não é só contra o pensar daqueles que acreditam

que o mero pensamento muda o quer que seja, mas também contra a ilusão do

reformismo. Tantas vezes, expressa-se a mudança do mundo pela reforma. Outras tantas

vezes, senão em todas, muda-se tudo para que tudo fique na mesma. No fundo é um

modo subtil e alternativo de expressar a coincidência dos opostos. Mudar tudo igual a

mudar nada. Ora, o nada e o tudo estão contidos um no outro e expressam-se assim

numa tangente.

Portanto, mais do que desejos e boa-venturança dos beatos. O que o mundo, as

comunidades humanas necessitam é entender como funcionam as instituições. Para quê

isto? Para estar em mesura de intervir de modo tal que a realidade mudará por si. Não

pelo mero pensamento, nem só por manifestação da vontade. Mas por se ter criado as

condições necessárias para que o antigo caia por si e o novo se erga no seu lugar.

Marx171 tecerá críticas a quem se limita e situa só no campo da ideia. Para ele o real é

mais importante que o próprio conceito. Caso contrário, estar-se-ia a adequar o real à

ideia. Seria o idealismo e não o materialismo que transformaria o mundo. Esta situação

impossibilitaria pensar um modo de intervir e mudar a realidade. Isto é, estar-se-ia a

descrever uma parte da realidade. Pois adequar o real à ideia e a ideia ao real não é

menos real. O que sucede, a realidade, não se esgota nesta mera relação de a-perceber

o mundo. Está-se a excluir a concreta mudança interventiva neste real. Ou seja, a

72

168 Um modo subtil de alienar os pobres.169 Sollen é este dever ser, um dever ser que recorda que aquilo que pode ser ainda não é.170 Utilizaremos para a exemplificação: Marx K., A sagrada família ou crítica da crítica crítica contra Bruno Bauer e

Consortes, Fiama Hasse Pais Brandão (trad.), Editorial Presença, Lisboa, 1976 (doravante SF) 171 CF SF pp.35-51

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actualização do mundo seria, segundo o aqui exposto: interpretação que substitui a

interpretação.

A questão de interpretar o mundo tem implicações no modo como este funciona. De

algum modo, suscitamos que mesmo numa concepção dominada pela ideia172. Ou,

especialmente, devido a ser dominado pela ideia. O mundo funcionará de um

determinado modo, o qual tenderá para uma cosmovisão conservadora. Daí termos

referido a falsa vontade de realizar reformas que mudam de modo transformador o

mundo. Pois, perante tendências contrárias, o mais forte tende a prevalecer, mesmo que

isto não seja do interesse da massa. É então necessário pensar o modo de

funcionamento da realidade, como funcionam as instituições humanas, como funcionam

as próprias relações humanas, para entender a fundo o que está aqui em causa. Dito de

outro modo: se o real fosse adequado à ideia, bastaria pensar para tornar algo real. Isto

não acontece. Ao longo deste texto não nos cansaremos de o ir lembrando. Pretendemos

contrariar aqueles que afirmam o primado do conceito sobre o real. Se o mundo assim

fosse, não haveria pobreza. Muito menos necessidade da utopia do dever ser. Contudo,

poderão dizer alguns: se não houvessem coisas más, o bem não poderia ser feito. Este

tipo de crítica costumeira apazigua as mentes dos descansados. Aqueles acomodados,

talvez, numa posição deveras cómoda. Que motivação teriam eles em mudar a sua

situação? Assim, num acto de generosidade inaudita, proclamam a benfeitoria do que é

errado. Para ilustrar o que estamos a referir: sem pobreza, como é que seria possível o

acto de caridade? Nós, junto com outros pensadores do passado, não nos sentimos

apaziguados nem acomodados com o destino dos miseráveis. Indo contra a idealização

do real, daquilo que este é ou daquilo que este deveria ser. Juntamos-nos à concepção

do materialismo dialéctico. Junto ao acto de pensar, sobretudo bem fundamentado,

agimos para o dever ser tornar-se em ser. A vida humana vive-se aqui e agora, não num

futuro distante. Ainda menos, é viver na esperança de uma promessa de eterna beatitude

junto ao senhor de barbas.

Em suma: o idealismo interpreta o mundo. Organiza o mundo de modo a que tudo fique a

funcionar de um modo muito específico. Isto é, de modo a privilegiar o privilegiado.

Irão seguir-se exemplos críticos de Marx ao modo de pensar dos idealistas173

73

172Numa concepção dominada pela ideia dá-se uma adaptação conceptual da realidade e poderá ser negada possibilidade da realidade poder mudar através da intervenção humana. Numa linguagem simples: o mundo sempre foi assim e não muda. Este modo de pensar permitiria que a escravatura perdurassse. A escravatura terá terminado devido a uma nova ideia ou por a realidade material se ter alterado? Esta questão fica em aberto para o debate idealismo vs materialismo que não é o nosso. Aqui, nós só usamos destas concepções para motrar que podemos caminhar por diferentes caminhos e estes avançam em paralelo cruzando-se em certos momentos.

173 As críticas de Marx dirigem-se aos seguidores de Hegel, já deste último Marx reconhece-lhe o mérito de pensar.

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Exemplos concretos: "aos olhos da Beatitude do conhecimento, o amor é uma paixão

abstracta, de acordo com o vocabulário especulativo174que chama abstracto ao concreto e

concreto ao abstracto"175.

No trecho citado, retirado do contexto em que se fala sobre o amor, Marx pretendeu

mostrar que há mundo sensível. Que este actua sobre o ser humano. As relações

humanas são físicas e realizadas através do toque.

Quando alguém sofre na miséria, isto, efectivamente, tem efeitos no corpo. A dor não é,

por assim dizer, psicológica.

Será através da exposição da exploração-modelo de Bouqueval176 , que vemos Marx a

criticar os milagreiros. O que aqui pretendemos evocar, a facilidade com que alguns

ilustres conseguem, aparentemente, resolver os problemas concretos da realidade. Para

eles basta decretar, isto é, pensar a solução para a resolver. Sendo que se abstêm de

verificar a sua aplicabilidade e se esta consiste numa mudança efectiva do mundo em

redor.

Marx e Engels criticam a mera ideia das coisas, por estarem empenhados mais no

propriamente real. Rejeitam a mera teoria177 não incrustada no mundo material. Há,

portanto, o primado da práxis178. Darão uma enorme importância ao trabalho efectivo.

Temos referido ambiguamente a quase indiferença entre as duas concepções179. Sem

querer acabarmos todos confundidos, repetimos o ponto que é o nosso: ambos os

modelos são válidos. Ambos descrevem a realidade. Para nós, ambos são interpretações

do real. O que pretendemos transmitir: no idealismo as mudanças são limitadas, tantas

vezes, meras ilusões. Por não se mudar a fundo o funcionamento das instituições. No

materialismo a mudança é fundante de uma nova realidade, só que lhe falta o sentido.

Neste esforço de pensar os fundamentos do real, a componente económica ganhará uma

capital180 importância no pensamento de Marx.

Pretendemos expor a crítica, a qual é a nossa posição, a uma percepção e respectiva

vivência do mundo delimitada pelo mero pensar. Na sua aplicação, podemos verificar esta

questão no nosso quotidiano, aquando de tantas vezes pensarmos um projecto e este

nunca passar deste mero acto de reflexão interna.

Seja no campo individual, para um despertar mais rico e activo concreto no real, quer no

74

174 Nota nossa – especulativo é o termo usado para idealismo.175CF SF p.33176 CF SF, p. 304177 Contemplação178 Actividade179 Idealismo ou materialismo180 A grande obra de Marx é, precisamente, O Capital.

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campo colectivo, da comunidade, este tema é fundamental para compreender o porquê

das coisas serem deste modo e não daquele outro. Ou o fundamento de não se conseguir

alterar o mundo material. O real pode, esta é a nossa tese, ser alterado a partir do pensar.

Porém, este acto, já o vimos, não é em si suficiente. Necessita de um aprofundar do

entendimento dos efeitos da realidade material no pensamento. Sob pena de estarmos a

crer transformar o real, quando estamos só a dar umas pinceladas. Como se diz por aí:

reformar.

Tornou-se normativo o acto de reformar continuado, ao ponto que se tornou claro que é

um modo de não transformar o mundo. O que o poder instituído pretende é sugerir

movimento, para que as pessoas não abandonem o seu estado de alienação. E, assim,

permitir que o mundo continue a funcionar em benefício continuado dos mesmos.

Podemos até não conseguir transformar de imediato a realidade, ao dar-nos conta das

suas insuficiências e contradições. Todavia, a seu tempo, quando a massa crítica for

abundante, será imparável esta mudança. Ajudará a acelerar o processo que se crê

inevitável, estudando o mundo. Para nele mexer nos alicerces frágeis. Caso contrário,

podemos acabar numa espécie de paralisia crente de movimento. Queremos com isto

dizer: fé na mudança por esta ser possível. Uma espécie do dever ser, mas que nunca se

concretiza.

O modelo da economia do decrescimento181, ele mesmo parece cair neste erro.

Pressupõe a si mesmo como o correcto e que isto bastará para transformar a realidade.

O pensamento de Marx, como o entendemos, esperando que de algum modo o

tenhamos conseguido expor minimamente, será de apoio a um pensar transformador do

real. Isto, independente daquilo que se pense dos conteúdos programáticos da filosofia de

Marx. O relevante é entender: para transformar o mundo, há que saber como ele

funciona. Para, como já aludimos, quebrar com o velho e possibilitar o novo. Para eliminar

o velho, há que entender o motivo deste existir. Só sabendo a finalidade de algo,

podemos orientar ou mudar a necessidade deste algo para outro fim. Alterando as

condições, estaremos em medida de tornar inútil uma qualquer instituição humana.

Outra forma de lidar com quaisquer temas da actualidade, neles incluímos mesmo a crise

existencial de um qualquer indivíduo. Sempre limitados à ideia prévia com que os

encaremos. Escolher imaginar como podia ter sido, em detrimento daquilo que é. Ou,

então, escolher abandonar o porto seguro e navegando em alto mar, procurar saber os

fundamentos de tais eventos. Investigar se a determinada realidade é indiferente ter agido

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181A este podemos juntar toda a panóplia oferecido pelo mercado das ideias da vida mais ecológica, alimentação saudável, etc.

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de determinado modo. Para assim ficar a ter noção se o mundo é consequência

necessária de agentes indeterminados ou consequência de modos de agir e intervenções

particulares nesta realidade. Só investigando compreendemos, só compreendendo

adquirimos o conhecimento fundamentado. Somente a partir dos fundamentos se pode

alterar o mundo.

É isto mesmo, só entendendo o motivo de o real ser de um determinado modo e não de

outro, podemos pensar de modo activo e efectivo na transformação do real. Pois,

sabendo que isto ou aquilo existe por este ou aquele motivo, permite eliminar o motivo

para que isto ou aquilo possa ruir por si só.

Sem compreender a realidade, o ter consciência do funcionamento concreto material,

não se está em medida de transformar esta mesma realidade.

Nisto, para o acto de transformar, não é, já o vimos, suficiente pensar. Isto é, ter a ideia

para a realidade mudar. O mais certo é criarmos um mundo interno, na consciência

humana. Uma ilusão sem concretude, sempre um passo em avanço do real ou

inalcançável.

Para evitar que toda esta exposição seja também ela mera especulação, acresce

recordar: é pelo trabalho que se concretiza a transformação. Não basta o que temos

repetido, conhecer os fundamentos. Se assim fosse, em nada o materialismo seria

diferente do idealismo. Uma mera interpretação daquilo que é.

O trabalho é o esforço efectivo de tornar uma ideia real. A isto chamamos a dialéctica

materialista. O pensamento e o real unidos e em processo de transformação.

A própria elaboração deste texto foi laboriosa do ponto vista idealista. Houve muito

pensamento, enorme grandiosidade no abstracto. Em puro pensamento, idealizado e que

concretiza a genialidade do autor em ritmo apressado. Na prática esta genialidade não se

deparava com os problemas vários de uma vida humana (subjectividade), além de vivida

só no pensamento. Não iremos passar a todos em revista, simplificamos ao excluir da

nossa análise a subjectividade. No concreto o texto teimava em não materializar-se. Por

mais que o autor o pensasse, este esfumava-se tal um pensamento. Então, entendemos o

que significa ir além da vontade. O efectivamente realizar o pensamento no mundo. A

materialização que resulta da transformação. Sabemos de modo caricatural: sem o

trabalho, o esforço e a compreensão do autor e a efectiva materialização do texto sendo

escrito - sem estas condições jamais poderia ter sido feito. E, o todo, juntou o pensamento

e a feitura deste num acto simultâneo. Deste modo transformamos a realidade. No caso,

nasceu este estudo pressionado e preliminar do que Marx pensou.

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Encerramos neste jeito de caricatura para nos felicitar a nós mesmos. Ou melhor, a mim

mesmo, a coragem, de na adversidade persistir. A todos os outros, que do mesmo modo,

através do trabalho prático, do esforço e empenho superam a si mesmos. Umas vezes

melhor e bem, noutras não tão bem. Pouco importa isto, no final, só aquilo que realizamos

fora da nossa mente é importante. O mundo do pensamento puro é pobre. Neste mundo

vive-se preso a um devia ser assim ou devia ser assado. Um devia ser, pois já sabemos,

ainda não é. Se deve ser e ainda não é, então é por poder ser. Se pode ser e ainda não é,

significa que as condições para vencer a vontade intelectual se fazem ausentes. Todavia,

lembra-te, o mundo sensível é superior ao mundo intelectual. Ou, pelo menos, o sensível

é tão relevante como o mundo das ideias. Mesmo se é mais fácil viver sem pensar, do

que sobreviver só pelo pensamento. Temos um corpo a satisfazer.

Encerramos perfazendo um panorama da subjectividade.

Ocorre-nos perguntar: haverá liberdade individual entre forças desiguais de indivíduos?

Será que podemos falar em individualidade de indivíduos fora de um quadro relacional?

Há quem considere a liberdade individual como uma simples manifestação do poder

escolher. Isto ainda fora de qualquer quadro de relação comunitária. Mas, será que é uma

escolha de um indivíduo, quando esta é à partida limitada pelas imposições exteriores da

própria comunidade? Estamos em crer não haver liberdade, concreta e real, se o

indivíduo não possui a capacidade, de pela força de si mesmo, i.e., do seu trabalho,

sobreviver economicamente. Aliás, verificamos não haver sequer liberdade sem haver

acesso ao básico de sobrevivência.

Por vezes, caminhamos vagamente por aí, para retornar ao ponto de partida. É no

prefácio da Sagrada Família que encontramos o nosso final.

O homem individual real em oposição a uma "consciência de si"182. Isto é o espiritualismo

vs o materialismo. Sendo o primeiro o idealismo, obviamente, uma concepção do mundo

encerrada na mente. Daqui resultará o homem adormecido: aquele que se limita a

imaginar, ao ponto de não viver o real, as sensações exteriores. Ou até de as repudiar.

Esse homem que rejeita a paixão, que não se dá conta da importância do sentir o corpo.

Do prazer e a riqueza que daqui advém. Esse homem do Evangelho, que não é deste

mundo. Esse homem que definha em espera de uma abstracção a que chama de paraíso.

Todavia, estamos em crer que este viver, especulativo, é possível. Experimentamo-lo,

certamente, não há quem não tenha estado imobilizado no seu pensamento. O defeito é

trazer consigo a atrofia das sensações e pobreza intersubjectiva. Tanto quanto nos é dado

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182CF SF p.7

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a entender, não há contacto entre pensamentos, fora da materialidade do mundo sensível.

Esse modo de vida, sendo possível, por permanecer intacta a capacidade de gerar vida

interna. Só que esta vida fica enformada num limite estreito e finito. Podendo ser

autrement; numa abertura e intersecção com o real. A realidade é história. Primeiro a

história do indivíduo, dos individuos da comunidade, de toda a comunidade de tudo.

Assim, aos saltos, vamos revendo o que já foi dito.

O mundo está invertido, pois prioriza a idealização. Desde pelo menos Platão que o

mundo tem sido, tendencialmente, interpretado no sentido do primado da ideia. Isto é, do

conceito sobre a realidade. Por realidade, entenda-se o sensível.

Enquanto se pensa no e pelo ideal, a alienação é a consequência.

Em detrimento do estudar e aprofundar do conhecimento do fundamento do mundo ser

como ele se apresenta, imagina-se ou sonha-se com o mundo como esperado que ele

fosse. Assim explicamos a nossa motivação, ao procurar mostrar pelos exemplos de Marx

a diferença entre o pensar o real. O imaginar como é que este devia ser e o pensar e agir

de modo a que o real seja de facto. Só pensando e agindo em simultâneo.

Isto é, actuando na materialidade efectiva há mudança. Muitas vezes, a mudança implica,

isto se não é sempre, demolir o que era antes. Por motivos vários, nem a todos interessa

a mudança. A uns por colocar em causa o poder que lhes foi atribuído. Muitas vezes, tal

poder foi adquirido por usurpação. Enquanto uns dormem, outros aproveitam-se. O bem

de uns não é necessariamente o bem de outros. Porém, há por aí umas ideologias a

pregar o contrário. Isto não constitui surpresa. A religião doutrinária, sempre serviu para

apaziguar as consciências das massas. Para que estas imaginem a vida, ao invés de a

viverem. As pessoas, para que se sintam mais aliviadas, alienam-se de bom grado. A

religião é o ópio do povo. Esta célebre formulação é muito verbalizada, talvez menos

entendida. Mais do que afirmar que a religião é o mal, mesmo se o é, esta análise é em si

pobre e não esgota todas as consequências. A religião é o ópio do povo, pois, como o

ópio, anestesia este povo. Enquanto a dose de mundo infernal for temperada pelo ópio,

mais certo é tudo continuar na mesma. Um mundo dividido entre privilegiados

exploradores e desprovidos explorados. Inclusive, este facto é amenizado com a ideia de

a divisão ser ilusória183. Como se não houvesse diferença entre ser-se rico e ser-se pobre.

Entre o ter que trabalhar para sobreviver (pobre) e o viver sem trabalhar (rico).

Não é excesso repetir: a vida humana é preciosa. Esperar para se realizar é desperdiçar

a sua curta estadia neste planeta. O avançar passo a passo, se for para tudo ficar na

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183A suposta ilusão de não existirem classes sociais.

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mesma, não é menos desperdício. Quando for para caminhar, que seja de cabeça erguida

firme e decidido a destruir, se necessário, os obstáculos. Isto é, mudar na práxis o

fundamento da sua existência. Este escrito é um retomar subjectivo deste esforço de

viver. A cada um o seu destino, se querem viver fechados na mente, seja feita a vossa

vontade. Se escolherem a coragem de serem criadores no mundo, não esqueçam: só se

cria no mundo, se compreenderem como este funciona. Caso contrário estarão só a

sustentar o que já foi criado.

Todo esta azáfama de alimentação biológica, mais uma gama de produtos ditos

ecológicos, são o sistema capitalista a readaptar-se. O decrescimento económico

apresenta-se como ideal, inclusive sustenta a diminuição do consumo. Porém, não há um

modelo que posss substituir-se ao capitalismo sem eliminar o que o sustenta. Na

actualidade, por estranho e contra-intuitivo que pareça, este é sustentado nos ombros de

todos quanto trabalham dentro dele. Os consumidores e o desejo de consumir, mais do

que a necessidade de o fazer, tornará inútil qualquer reforma no sistema. Uma boa ideia

será reorientada e tornada mercadoria.

Marx teria pensado: quanto pior melhor. Esta é a nossa interpretação especulativa sobre

o que Marx teria pensado. Supomos que ele tenha especulado o colapso do sistema

capitalista após determinado estágio de desenvolvimento. Ele era um idealista...A

mudança virá quando se der a metanóia, só dando-nos conta no pensamento e

realizarmos em simultâneo a ligação da nossa prática de vida ao pensamento, estaremos

em medida de transformar-nos.

Uma pessoa solitária não pode fazer grande coisa, mas também não é verdade que nada

possa fazer. Rejeitar o sistema é a via para este se transformar. Pretender reformar pela

força não deu bons resultados.

O que parece ter faltado a Marx: o fundamento real do funcionamento da comunidade

humana é o Homem. Fichte que nos falou na auto-posição do Eu esteve perto de atingir

aquilo que iremos concluir. O que importa mudar não são os modos de produção, nem as

instituições. Ainda menos mudar o quer que seja exterior ao Homem. Nós, ao atribuir o

título "metanóia", nunca escondemos a resposta que sempre esteve aí. O Homem, sendo

o fundamento real da comunidade humana, torna-se a única coisa a mudar. Para o

realizar, aludimos às três liberdades essenciais. Apresentamos um modelo económico.

Todavia, se estamos a falar nestas ideias significa que elas não nos serviram o suficiente

para procederem à mudança. O caminho para mudança é mais simples, por isto, tão difícil

de alcançar. Exige-nos este longo esforço que vimos construindo. Até por, o mais óbvio

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ser o mais complicado para o entendimento. Está a falar uma ética.

1.2.8 – Ética no taoísmo

A ética é o fundamento da mudança espiritual. Nós ainda a consideramos essencial para

desmascarar a visão parcial da vida. Utilizaremos a tradição chinesa para ilustrar o que

vimos falando.

O taoísmo é uma filosofia chinesa que visa harmonizar os contrários. Na prática, eliminar

a pretensa visão correcta dualista. Trata-se de uma proposta para observar o mundo

como uma unidade. A nós interessa, pois consideramos que a sabedoria reside na

vivência no mundo, num estado tal, que haverá harmonia e desapego entre quaisquer

posições. A sua inserção neste estado tem toda a relevância, na medida que responde ao

abuso desta filosofia pela sociedade capitalista. Assim como o chamar a atenção para a

importância da unidade. A sensação de perda de sentido, também advém da perda deste

horizonte de unidade. Dá-se uma descontinuidade no tempo, que nos leva a não ver esta

unidade que está em toda a parte. Quando contemplamos com atenção, daremos conta

da unidade do mundo. Isto é, tudo está interligado numa relação de interdependência.

Não estamos a afirmar que tudo é uno, mas que o mundo funciona de forma tensional

entre dois polos indissociáveis. A unidade ou a percepção desta consiste na compreensão

desta tensão.

Os humanos tendem para o mal estar quando omitem um dos pólos. Isto é o problema do

pensamento dicotómico. Fruto de más percepções acerca do real, assim como tendo

crenças rigidificadas. Isto significa: a má crença, é o tomar uma parte pela verdade (total),

que leva a criar no sujeito uma percepção incorrecta (ou limitada) do mundo. Estando nós

a mostrar caminhos alternativos, de oposição ao modelo único. A pertinência desta

chamada de atenção está no aproveitamento parcial desta filosofia chinesa, por parte do

modelo capitalista. Assim, pretendemos mostrar haver mais do que por vezes nos é

apresentado.

Vejamos então. Há um velho ditado popular que diz: de boas intenções está o inferno

cheio. Aproveitamos assim a sabedoria popular, que é uma sabedoria inteira – dizemos

inteira - isto para aqueles que desvalorizam o termo popular. Quiçá os mesmos pejados

de boas intenções, que irão fornecer combustível eterno ao inferno. Deixemo-nos também

de juízos, para não acabarmos sendo igual alimento para o inferno.

O ditado popular por nós colhido, constitui, no nosso entender, um bom ponto inicial para

olharmos o pensamento chinês. Estamos a pensar mais precisamente nesta filosofia do

80

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Tao184. Utilizaremos o pensamento do filósofo taoista Tchoung-Tseu185, para ficarmos a

conhecer um pouco mais desta filosofia, como a nós próprios.

Sobre Tchoung-Tseu, Liou diz-nos: A vida deste pensador chinês está ligada à época em

que viveu e procurou pensar o problema do mal na sociedade humana. O mal teria como

origem a parcialidade do homem e o esquecimento de uma origem comum a todos 186.

Também aqui, temos esta ideia de origem. Já falámos dela no capítulo, "a cisão".

O que quererá dizer ser parcial e qual é o problema neste modo de ser? O homem, ao

pensar e escolher uma ideia, está a excluir as demais, sendo que o real é uma totalidade

indivisível. Assim também a comunidade humana não é divisível senão através do erro de

percepção e/ou pensamento. Se o homem visse com olhar renovado a unidade que

perfaz o real, não haveria conflitos, nem guerra, pois o conflito e a guerra têm por base a

divisão daquilo que não é suposto ser/estar dividido.

Liou acrescenta: Tchoung-Tseu verá na renúncia ao apego sectário a ideias a solução

para todos os conflitos humanos. Desdenhará cargos públicos, por ver neles um entrave à

sua liberdade187.

Podemos com facilidade prever que esta posição de Tchoung-Tseu implicará uma

disciplina incomum entre os homens. Primeiramente, há uma renúncia às armas, só a via

pacifista poderá garantir ausência de conflitos. Depois, o praticante renuncia a impor a

sua ideia aos outros homens – mais ainda – o praticante não se deixará fixar em

nenhuma ideia, para não cair na parcialidade. Se correctamente vivida, a via do agir puro

(wu-wei188) devolverá a harmonia ao mundo.

Colocada esta apresentação, propomos analisar algumas das palavras deste chinês,

para no final terminar com uma reflexão global ou englobante do real. Isto é, pensarmos

também nós a época em que vivemos.

81

184Escolhemos esta grafia, embora também seja válido escrever Dao.185O nome deste filósofo chinês apresenta-se a nós ocidentais com muitas grafias, escolhemos manter a grafia utilizada

pela obra que utilisaremos na nossa análise. Tchouang-Tseu, Oeuvre complète, Liou Kia-hway (trad.), Barcelone, Gallimard/Unesco, 2011(doravante OC)

186 CF OC p. 187OC pp. 8-9188Wu-wei em tradução livre: agir não agindo.

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2.8.1 - Abstinência do espírito

"Concentre-toi, dit Confucius, n'écoute pas par tes oreilles, mais par ton esprit, n'écoute

pas par ton esprit mais par ton souffle. Les oreilles se bornent à écouter, l'esprit se borne à

se représenter. Le souffle qui est le vide peut se conformer aux objects extérieurs. C'est

sur le vide que se fixe le Tao. Le vide, c'est l'abstinence de l'esprit"189.

Para praticar o princípio da não parcialidade (não dualismo), há que aprender a

abstinência do espírito. No trecho citado, fala-se nas orelhas, mas poderia ser qualquer

outro dos nossos sentidos. O relevante é compreender que os sentidos, no caso a

audição, são um mero instrumento que permitirá ao homem receber a informação, que

são as manifestações dos fenómenos físicos no mundo. Será pelo espírito que

representaremos os fenómenos, mas somente evitaremos a dualidade entre sujeito

(receptor) e objecto (fenómenos representado no espírito), se nos conformarmos ao

sopro, o sopro que é o vazio. Ou seja, só suprimindo o "eu" vemos o que é a realidade

para lá da manifestação dos fenómenos. Não haverá o "eu", nem o objecto, só haverá o

Tao. Reiterando, isto significa: esvaziar a mente do "eu", só o vazio, por ser sem forma,

permitirá a fixação do Tao. Esta consideração é importante: o Tao fixa-se no que é vazio,

naquilo que é sem forma – como é que aquilo que é vazio e não tem forma pode ser o

ponto de fixação do quer que seja? A resposta a esta pergunta não é fácil. Para podermos

responder à pergunta, temos só que saber o que é o Tao. Então, o que é o Tao? O Tao é

tudo aquilo que não podemos definir, assim como tudo aquilo que podemos definir e nada

disto que acabamos de referir. O Tao é tudo, o Tao é nada. Deste Tao que estamos a falar,

certamente que não é o Tao que procuramos encontrar190. Se o procuramos encontrar não

o encontraremos, se o deixamos de procurar talvez o encontremos. Esperamos que

estejam satisfeitos com a resposta, pois não tentaremos responder melhor, por todas as

respostas levarem a afastar-nos do Tao. O Tao é indizível!

Se pretendemos verificar se entendemos a abstinência do espírito este ensaio de sair do

estado de dualidade, basta pensar se cremos que o "eu" existe191. Se nos damos um

nome não atingimos o estado de sabedoria referido no trecho supra citado192.

O importante no Taoismo não é atingir conhecimento algum, mas procurar encontrar uma

forma de agir harmoniosa, um caminho na virtude para o wu-wei. A filosofia não é

acumular conhecimento ,mas tornar-se sábio no uso da mesma.

82

189OC p. 68190Cf Lao Tse, Ideia do Tao Te King, ou Guia da Estrada Real para o Viadante Ajuizado, Agostinho da Silva ( trad.),

Largebooks, 2013 p. 19191OC p.68192Cf Ibid

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2.8.2 - Os vícios e abusos perturbadores da virtude

Vimos no capítulo anterior o quão inútil é procurar o Tao pela via do sensível ou do

espírito. Os sentidos e o espírito são tão somente instrumentos, para viver segu(i)ndo o

wu-wei. Em detrimento de procurar o Tao, pensemos em viver de acordo com o Tao. Para

viver de acordo com o Tao na mais perfeita harmonia, temos que pensar o caminho para o

Tao. Assim, será através da obra de Tchouang-Tseu que propomos pensar o

comportamento humano para percorrer o caminho para o Tao. Analisaremos os oito vícios

referentes ao comportamento dos homens e os quatro abusos no que diz respeito aos

negócios. A nossa análise estará sujeita a uma adaptação à sociedade do nosso tempo.

2.8.3 - Os oito vícios relativos ao homem

a) "Faire ce qu'on n'a pas à faire, c'est le vice consistant à monopoliser"193

Este vício é curioso, por vezes tomará uma forma inesperada para a maioria das

pessoas. Por exemplo, na nossa época há quem possua quase toda a riqueza, enquanto

outros quase nada têm. No entanto, consideramos ir além do evidente fosso entre ricos e

pobres. Pensemos o empregado e o desempregado, o que é isto se não o vício do

monopolizar. Se pretendermos o wu-wei, precisamos pensar seriamente nisto.

Tentemos abster-nos de fazermos o juízo sobre esta situação, para evitarmos cair no vício

que veremos a seguir. Não obstante, pela palavra, esperamos suscitar em todos nós

reflexão a respeito de todos os vícios que estamos a analisar.

b) "Offrir son conseil aux gens qui n'en ont cure, c'est se conduire en rhéteur"194

Este é um vício comum entre nós homens. Sempre temos pronto um conselho para dirigir

a vida dos outros segundo o nosso preceito. Atinge proporções dramáticas entre a classe

governativa e outras figuras públicas., tantos são os ensinamentos que nos sugerem.

Recordamos, em abstracto, o exemplo daquela senhora – a quem ninguém pediu

conselho – o que não a impediu de o dar. Quem fala em senhora, poderá falar naquele

outro senhor. O acto de ambos gerou uma forte indignação na comunidade. Através do

agir compulsivo de ambos, o resultado foi o conflito social. Abstenhamo-nos dar conselhos

a quem não precisa, nem os pediu. Portanto, devemos estar atentos para não dar

conselhos a quem não os pediu, nem deles precisa, para não causar o conflito onde este

83

193OC p. 353194Ibid

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não havia. Escutem se quiserem, não estamos a aconselhar!

c) "Qui va au-devant de l'intention des gens est un flatteur"195.

A justa medida é a harmonia, para lá dela é o conflito. A lisonja é um mal para o

praticante e para quem a recebe, por deturpar a percepção que ambos terão da realidade.

d) "Qui parle sans choisir entre le vrai et le faux est un flagorneur"196

O sicofanta é um perturbador, pois ao falar sem distinguir o verdadeiro do falso, semeia a

discórdia. Também espalha a controvérsia e a dúvida na comunidade. Todos já teremos

sentido o efeito de um caluniador, seja em nós, seja na comunidade.

Imaginemos as promessas que são feitas e depois não são cumpridas: haverá neste acto

um claro afastamento do procurar distinguir o verdadeiro do falso. Um dos resultados é

causar ressentimento na comunidade, o que é contrário ao wu-wei. Se este vício está

ligado à intenção sincera, na dúvida, o melhor é escolher o silêncio. No silêncio não

incorreremos no erro de confundir o verdadeiro e o falso, para deste modo semear a

dúvida e discórdia entre os homens.

e) "Qui aime à souligner les défauts des gens est un dénigreur"197

Este é mais um vício que todos observamos alguma vez na vida. Portanto, se vires

alguém a apontar os defeitos dos outros abstém-te de o alimentares. Se este difamador

fores tu, corrigi-te se queres caminhar na via do Tao – remete-te ao silêncio.

Tão feio: ver as pessoas a dizimarem-se com insultos, espalhando o ódio no seio da

comunidade. Para uma vida segu(i)ndo o wu-wei, o silêncio é apaziguamento.

f) "Qui brouille les amis et divise les familles est un perturbateur"198

Muitas vezes os homens, para obterem favores para si, criam propositadamente a

discórdia entre os amigos ou família. O vício estende-se a todos os meandros da

comunidade dos homens. Onde houver uma associação, haverá agitadores. Se os

encontrarmos, podemos sempre contribuir para a harmonia, através do wu-wei. Se outros

estiverem a agitar a água, deixemo-la pois repousar: uma vez a tempestade passada,

voltaremos à harmonia.

84

195Ibid196Ibid197Ibid198Ibid

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g) "Qui loue et calomnie pour perdre autrui est un corrupteur"199

Este vício também é contrariado através do silêncio. O homem que segue na verdade,

por verdade entendemos a sinceridade de coração, nunca cairá neste vício. Infelizmente,

também é muito visível entre aqueles de maior responsabilidade pública. Sejamos

diferentes, fiquemos pelo referido silêncio, por este não ser calunioso. Se escutarmos um

louvor ou calúnia, não nos fixemos neles para que a harmonia volte.

h) "Qui, sans choisir entre le bien et le mal, s'accommode aux gens avec duplicité

pour leur soutirer ce qu'il désire est un aventurier"200

Podemos ver este vício nos actos sociais, sendo aquelas pessoas que se acomodam às

regras convencionais. Estas pessoas, não raras vezes, nem dão conta da sua

duplicidade, tamanha é a exigência da sociedade para com os portadores da máscara.

Vivem uma vida de instabilidade, sempre a precisar de renovar a máscara a apresentar.

2.8.4 - Os quatro abusos relativos aos negócios

Os abusos serão apresentados em separado, mas deverão ser pensados unidos para

melhor os entender. Propomos a cada fazer o exercício: pensar os abusos que

apresentamos interligados, vendo como se alimentam uns aos outros.

a) "aimer à s'occuper de grandes affaires, profiter des situations anormales pour se

faire un renom par succès, c'est ce qu'on appelle l'ambition"201

Se uns são ricos e outros pobres, a este abuso o devemos. Quantas vezes já

observámos, no decurso de uma tragédia ou de uma festividade, homens dispostos ao

lucro.

O homem com fome sujeita-se à escravização. O rico não é menos escravo, a ambição

impede-o de fruir no Tao, de tão ocupado em amontoar tesouros.

Atenção: a ambição, também pode afectar o pobre. Ninguém está livre do agir

abusivamente.

Aprendamos a afastar-nos da desmesura trazida pela ambição, se na via do Tao

queremos caminhar. Só o wu-wei nos garantirá uma viagem serena. Imaginemos a

liberdade que nos será trazida, sem o fardo da ambição.

85

199Ibid200Ibid201 OC p. 354

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b) "Chercher à accaparer les affaires en se prévalant de son savoir et en empiétant

ainsi sur la tâche des autres, c'est ce qu'on appelle l'avidité"202

Este abuso deverá ser lido e entranhado pelos defensores do laissez-faire na economia.

Porventura crêem que o wu-wei permitiria espezinhar os demais homens, confundido em

acto de liberdade?

Se é fácil ver a avidez em determinados sectores da sociedade, não devemos deixar de

estar atentos - a avidez pode atingir a todos!

O que é a sociedade do consumo? O que é criar mercados? O que é expandir-se

incessantemente? Avidez é aliada da ambição, juntas afastam-nos da harmonia.

Aprendamos então o wu-wei, assim estaremos comprometidos no caminho correcto.

c) "Voir ses fautes sans les corriger, entendre des remontrances et faire plus mal

encore, c'est là être endurci"203

Perante o desespero dos homens, é empedernido o coração daquele que aumenta a

carga do desespero. Se nos dermos conta dos nossos erros, sejamos humildes e

corrijamos o nosso comportamento. Evitemos sobrecarregar o fardo que transportamos -

mais importante - o fardo dos outros homens.

É tirano quem aumenta o fardo dos outros. Devido ao aumento do peso sobre os ombros

dos homens, cresceu entre eles os vícios e abusos. É humilde quem segue o caminho do

wu-wei. Na reconciliação entre o tirano e o humilde criaremos harmonia.

Se soubermos evitar o endurecimento do coração, também teremos evitado o abuso que

veremos a seguir.

d) "N'approuver que ceux qui sont de votre avis et dénigrer ceux qui vous

contredisent en dépit de leur qualité, c'est l'orgueil "204

Este abuso impede aquele, por ele dominado, de fruir das oportunidades da vida. Pior,

este abuso provém e retorna ao empedernido de coração. São estes dois abusos os mais

unidos, auto-alimentam-se um ao outro. Para contrapor o orgulho, sejamos humildes.

Para caminhar na humildade, o wu-wei é o nosso método. O que esperamos para largar

os fardos? Será o orgulho? Ajuizemos cuidadosamente a nossa resposta.

86

202 Ibid203Ibid204Ibid

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2.9 – Desenlace

Enquanto reflectia como e por onde começar este estudo sobre a filosofia do Tao,

observava o mundo dos homens. Também este exercício de observação foi útil para

encontrar o finalizar deste capítulo.

Deste modo temos: de boas intenções está o inferno cheio. Acabamos por onde

começámos, para perfazer o círculo perfeito, por círculo perfeito entendemos não haver

dualidade. Não há princípio, nem fim, somente fluidez do sopro que é vazio. É deste modo

que intentamos olhar o mundo.

Olhando o mundo, o que vemos nós? Neste mundo vemos os homens prisioneiros205 das

suas funções, alguns limitando-se a subviver206 esperando pela morte. Ninguém pense ser

isto somente apanágio de certas carreiras profissionais, nomeadamente, o exercício do

poder da governação de uns sobre os outros homens. Falamos daqueles a que

chamamos políticos. Porém, mesmo entre o mais pequeno grupo de homens, associados

e submetidos a uma hierarquia, há escravizados mentais. Iremos mais longe, um homem

sozinho, se o houver algures, pode ser um escravo se não viver segu(i)ndo o wu-wei.

No entanto, os homens mais visíveis são aqueles que exercem o poder de governação e

os empresários, pois a sua função mostra o dano feito a um maior número de homens.

Muitas vezes estes homens são odiados. Todavia, no lugar destes se colocarem em

causa, mais à sua conduta, consideram-se alvo de injustiça. Para eles o problema é a

estupidez dos outros - não entendem os estúpidos que os rejeitarem – sofrem do abuso

de orgulho. Por vezes estes homens duros de coração e orgulhosos acabam arrastando-

se penosamente pelos púlpitos de onde proferem as palavras conflituosas. Se ao menos

tivessem a sabedoria para retirar-se a tempo, para não prejudicarem a harmonia no

mundo.

Imaginemos o que seria a vida sem sicofantas. Abstenhamo-nos dos vícios e abusos

para evitar falar de patifes. Os vícios e abusos aqui comentados são para ser alvo de

reflexão interior pessoal. Não estamos aqui para denunciar os vícios e abusos alheios,

eles estão em todos nós.

Obviamente, não estaremos entre os sábios, se ainda aqui estamos lendo estas

palavras. O wu-wei ainda nos é desconhecido para nós. Esperemos que ao escrever

estas palavras e vocês lendo-as, se encontre motivação para avançar pela via do wu-wei.

Aos demais seres nada exigimos, nada aconselhamos, ou melhor, nada há a dizer – mas,

há o retornar ao silêncio. Ao escrevermos este texto, não podemos deixar de notar a

87

205 Os prisioneiros a serem libertados como referido na nossa exposição acerca do culto do Espírito Santo.206 Aquém da possibilidade

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manifestação dos vícios e abusos no próprio acto de escrever, quiçá, do ler. Tentei

corrigir-me o mais possível, para impedir-me de causar desarmonia no mundo. No

entanto, a única forma de impedir-me de errar teria sido não escrever nada, sem que isto

fosse garantia de ausência de erro algum.

O erro é necessário para o homem. Seja o errar do errante, o homem que caminha na

vida. Ou erro que lhe indica a orientação ou a necessidade de uma reorientação. Torna

esta nossa passagem pelo pensamento chinês um pouso. Um parar, antes de chegarmos

no nossa finalidade global.

Na derradeira parte também voltaremos ao início. Restabelecer um diagnóstico e

igualmente uma linha de possibilidade.

88

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III - Esgotamento

Nesta última parte voltaremos ao início para novo diagnóstico, respeitante aos males-

estares no nosso tempo. Neste capítulo inicial buscamos analisar o tema da queda207,

apoiados na obra Ser e Tempo do filósofo alemão Heidegger. Esta foi a sua principal e

grande obra, que o levaria a procurar clarificar a mesma o resto da sua vida. Heidegger

partirá de uma posição pessimista acerca da sociedade do seu tempo. Observou como

um mal a ascensão da componente técnica e o domínio desta em detrimento de uma

determinada orientação fundante de sentido. Sem descartar aspectos positivos nas

ciências, irá situá-las num nível mais baixo da vida humana. Heidegger interessou-se pela

problemática do ser. Para ele, na filosofia ocidental esta questão tornou-se esquecida.

Empreendeu o esforço de pensar e clarificar o que é este ser. Mais precisamente,

Heidegger, pergunta-se pelo sentido do ser. Supra indicamos este sentido fundante. Pois,

ele vai procurar o ponto mais inicial e fundador da nossa experiência no mundo. Portanto,

a questão do ser é perguntar pelo sentido deste ser. Do sendo aí no mundo. Pelo sentido

do ser do ente que ele próprio questiona por este sentido. Distancia-se assim do foco: ser

é aquilo que é. Entenda-se num modo mais imediato. I.e., o ente que se apresenta aí

presente no mundo. A questão pelo sentido do ser para Heidegger é então o buscar linhas

orientadoras de sentido. Procede no investigar a estrutura invisível que vai definindo e

orientando o modo como vão sucedendo as transformações no mundo. A poesia terá um

a importante função para Heidegger nesta busca pelo sentido do ser. A peculariedade da

poesia, consiste no modo como faz uso da linguagem. Sendo, esta última, o modo que

torna possível ao perguntador pela questão do sentido do ser, precisamente, descortinar

este sentido. A linguagem é o que torna possível trazer à presença o que era oculto. Nós

vemos este oculto como negatividade que, permite a abertura do espaço vazio para haver

fluidez dos eventos. Como começamos por referir na abertura desta dissertação, o

passado e o futuro têm um importante relevo para uma sociedade sã. Iremos ver agora

como isto acontece.

Expomos o pensar desta questão pelo sentido do ser no tempo. A categoria tempo é

fulcral para pensar o ir sendo. Aliás, será na conjunção de um passado aberto à

possibilidade de futuro que o presente é actualizado a cada instante. A questão da história

é relevante para Heidegger. Nós, enquanto seres lançados no tempo, num movimento em

devir, não estamos desligados das diferentes fases que o compõem: passado, presente e

futuro. Sempre, enquanto entes, temos um ponto inicial que nos é original. Mas a nossa

89

207 Heidegger M., Être et Temps, François Vezin (trad.), Gallimard, Mayenne, 2012. (doravante ET), §38, p.223 Heidegger M., Ser e Tempo, Fausto Castilho (trad.), Editora Unicamp, 2014 (doravante ST), §38, p.493

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estrutura mais profunda começa ainda antes do ente lançado. Há um passado que influi

no ente que aparece no mundo. As comunidades têm história, resultam das tradições e

dos eventos passados. Serão estes eventos a dar sentido ao possível no presente.

Ocorre por o passado e o futuro estarem ligados. O passado é um ponto de orientação

consumado, que abre uma janela para a projecção no futuro de uma possibilidade. O

modo de poder fazer diferente é assim possível. Aliás, sem um referente, não faz sentido

elaborar uma projecção para o futuro. Não haveria fundamentos para o concretizar. Não

nos envolveremos na polémica desses que acreditam que o ente sempre começa do nada

e com ele vem também o nada. O presente é o lugar onde se dá a actualização da ligação

referida entre o passado e futuro. A cada instante está a dar-se a actualidade, assim como

o consumar deste mesmo instante. Isto é, passa a situar-se no passado o que por um

momento foi presente. O sentido do ser não é estudar um ente particular, mas o seu

surgimento no mundo e o deslizar na temporalidade. Se falamos nas comunidades

humanas, podemos falar do ente Homem. Este também é fruto de um passado que o

antecede. Ou seja, de uma cultura, religião, etc. Para evitarmos um retorno a um qualquer

ponto originário da cultura humana, estabeleceremos o limite ao ente Homem, pós

nascimento. Neste ensaio é o Homem singular que focaremos com maior predominância.

Para entender a vida de um Homem, para o próprio indivíduo questionar-se a si sobre a

sua vida. Ou ainda mais preciso: para um Homem questionar pelo sentido do seu ser (aí),

tem que recuar à sua história. O importante de estabelecermos estas primeiras

impressões: pensar como será possível ascender do estado de queda para o qual o

homem tende. Para mais, se o homem tiver recebido uma educação inconveniente, sem

afecto ou amor. Sem instigação ao esforço, nem sabido o que é ser recompensado pelo

trabalho. Acreditamos que a tarefa de elevação deste Homem é uma tarefa ainda mais

complicada. No entanto, por o Dasein ser possibilidade de realização. E, de algum modo

já o explicamos: de um passado, o Homem pode permitir-se projectar um novo rumo

diferente dquele recebido ao nascer. Ou deixar-se afundar pelas circunstâncias. O que se

propõe apresentar: o que Heidegger pensa sobre o estado de queda e a nossa

interpretação. Segue-se a actualização do diagnóstico acerca dos mal-estares da

modernidade. Terminaremos indicando a nossa solução orientadora para os problemas.

Esta solução foi sendo mostrado ao longo de todo o nosso estudo.

90

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3.1 - Falatório, curiosidade e ambiguidade208

Durante a nossa exposição sempre tendemos a centrar o nosso estudo no sujeito

Homem. Não nos limitamos só a referir estruturas, buscando também apontar

consequências das nossas reflexões a partir destas. Há modos do Dasein no seu ser-aí,

que fomentam a nossa propensão à estagnação. Nos modos de possibilidade, estão

contidas as possibilidades não edificadoras de uma vida autêntica. Isto é, há modos que

significam alienação por parte de um sujeito. Adiante falaremos do que significa esta

inclinação do homem para a alienação.

O falatório é desprover-se a si mesmo da responsabilidade de intérprete. O homem,

sendo provido de linguagem, através dela interroga pelo sentido do ser. Tem nesta missão

o seu desígnio de vida. É sempre um acto da sua vontade individual. Portanto, o falatório

é abster-se de buscar pelo sentido do ser, da sua própria vida. Ou da comunidade na qual

está inserido. Assim sendo, deixa nas mãos dos outros a tarefa da decisão a respeito da

sua própria vida. Tornando-se uma ovelha num imenso rebanho de imitadores uns dos

outros. Precisamente, vivemos num mundo acelerado de imitação. Tudo e todos buscam

a sua autenticidade, só que o fazem copiando-se. Gerando um mal-estar que iremos

chamar de excesso de positividade. A vida autêntica exige uma autonomia e o

compromisso nesta tarefa de ser o próprio a investigar a verdade, a sua verdade. É

exigido o buscar pelo sentido do seu ser, no qual depositará o seu projecto de futuro. Na

obra Ser e Tempo há capítulos que irão aprofundar esta questão. Para não nos deixarmos

suspensos no mistério. O Homem vai deparar-se com a finitude da sua vida. I.e., saber-se

mortal, dirigindo-se para a morte. Esta consciência da finitude estará presente quando o

homem se interroga pelo sentido do seu ser-aí no mundo. Surgirá na sua mente o

sentimento de culpa, um sentimento que longe de ser negativo, o incentivará a elevar-se.

Sendo isto obtido através do cuidar de si ou da comunidade na qual está inserido. O

cuidado para consigo mesmo torna-se numa abertura para uma vida autêntica. Outro

modo que nos importa referir: a curiosidade. O homem é dado à preguiça e à

acomodação, não obstante ser interpelado pelo espanto da sua presença no mundo. Não

raras vezes, limita-se a aflorar superficialmente as coisas que lhe chamam a atenção. Isto

é, não aprofunda o estudo das matérias que lhe interessam. Nem consegue fazer de outro

modo, isto se estiver em estado de queda intensa. Por último, o modo da ambiguidade: o

homem, incapaz de decidir, sempre fica a meio caminho entre dois extremos. Deixa a vida

passar sem tomar partido nela. Mesmo se sabe que irá morrer, não consegue decidir-se.

91

208 CF ST pp.471-491

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Desiste de escolher e fica sem nada.

Já vimos a importância da filosofia como espiritualidade, mais precisamente, enquanto

compromisso para com um modo de ser/estar na vida. É a filosofia que ajuda o Homem

no cuidar de si e dos outros. Abre-se o caminho para tornar a sua vida mortal bem vivida.

3.2 - A queda

No capítulo anterior referimos os modos do Dasein no quotidiano no ser aí. Verificamos

que são inclinações ou propensões dos homens a um estado de letargia. Iremos verificar

se Heidegger considera o Dasein como abertura e possibilidade. Para nós o estado de

queda caracteriza-se assim: a queda é uma forma negativa da possibilidade. Não

queremos com isto, tal como Heidegger não o faz, aplicar juízo de valor. Pretende-se

insinuar: o Dasein no estado de queda é como um ponto de partida de todos os

homens209. Aliás, constantemente, estamos a decair. Só através do esforço árduo

podemos agir em contraposição. Isto por o Dasein ser possibilidade. É na abertura do

possível, do movimento em devir no tempo que podemos escapar à inautenticidade e

abraçar a vida autêntica. Sendo através do Dasein que se dá a abertura do ser-no-mundo,

este tem em si algumas características que lhe pertencem. Supra indicámos que estas

mostram uma determinada inclinação do Dasein no seu fundamento: tendência para a

queda. Já afirmámos, esta queda não comporta um juízo de valor. Nós tendemos a

considerar a queda como algo de mau. Quiçá influenciados pela nossa história cultural

que sempre remete a queda para a perda de algo. Ou como sequente de uma cisão

relativa a um determinado lugar superior. Temos em mente a teologia cristã e a história da

queda do Paraíso. O que em si também comporta uma culpa. O tema da culpa acabará

por vir a constituir-se num elemento importante no pensamento de Heidegger, quando

este pensar o cuidar de si. Assim, diz-nos Heidegger: a queda não expressa nenhuma

avaliação negativa210. Consiste no estar perdido na publicidade de "a-gente". Já referimos

anteriormente: o Dasein não obstante poder ser si mesmo no mundo, deserta de si211. Isto

como vimos no capítulo antecedente: falatório, curiosidade e ambiguidade. Este estado de

decair é o que Heidegger denomina como impropriedade. Este estado de impropriedade

não significa já não ser, mas pelo contrário, é ser absorvido pelo mundo 212. Heideigger

afasta-se na suposição que supra indicamos: o estado de queda não tem relação com a

92

209 O estado de queda no ser e tempo não é isto.210CF ST p.493211 CF Ibidem

212 CF Ibidem

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teologia. Não se trata de uma queda de um estado puro e originário. Não tem a ver com a

tradição do paraíso perdido. Pois não temos disso qualquer experiência ôntica213. Significa

que não experimentamos por nós mesmos uma existência nesse suposto estado mais

elevado. O Dasein está sujeito a decair no mundo, devido à sua facticidade no mundo. O

decair do Dasein é uma determinação existenciária deste. Só por este já estar no mundo

sendo, dá-se esta tendência para a perdição. Também não se pode falar na queda,

supondo-lhe um defeito de conduta. Por isto supor uma possibilidade de correcção.

Heidegger diz-nos: a queda é inevitável no Dasein que, sendo no mundo, estará sempre a

ser chamado a decidir-se. Sendo esta decisão, aqui, ausente de juízo moral214. Ou seja,

quer nos orientemos num sentido ou noutro, na realidade estamos sempre entrelaçados

pelas determinações de possibilidade. Na nossa interpretação: não nos é permitido ir num

sentido sem o outro presente. O que sucede é haver uma maior preponderância de um ou

de outro. I.e., mais orientados para o autêntico ou mais propensos215 para o inautêntico.

Em suma, a queda é em si mesma um existênciário do Dasein. A partir desta constatação

Heidegger irá analisar os modos de ser do mesmo. Já os vimos. Recapitulando. O

falatório foi considerado ser o estar submisso a uma opinião pública. Onde o homem

singular não reage por si mesmo. Por outro lado, indica-nos Heidegger: este falatório é

essencial para o Dasein ser entendedor de si mesmo e na sua relação com os outros

Dasein. Dá-se através do falatório a abertura desta relação. A curiosidade é a abertura de

tudo e cada coisa, ao ponto de estar em todo o lado e em parte alguma. O que nos leva à

ambiguidade. O não se fixar em lado nenhum. O desenraizamento do estar em todo o

lado e em lado nenhum216. Como vimos já: o não tomar uma decisão, a não escolha.

Heidegger analiza a estrutura do decair na sua mobilidade: o falatório é o modo-de-ser do

ser-um-com-o-outro. O que aqui está a ser dito: o falatório não existe por si mesmo, surge

da própria constituição do Dasein, que ao relacionar-se no ser-um-com-outro cria esta

dinâmica relacional. A qual leva o Dasein à possibilidade do decair. Dito de outro modo: o

homem, chamado à interpretação do mundo, do qual não é separado, executa esta tarefa

numa situação relacional com os outros homens. Daqui resulta esta possibilidade: "o ser-

no-mundo é em si mesmo

93

213 CF ST pp.493-495

214 CF ST p.495215 A utilização do termo propensão para, advém da nossa leitura kantiana. O homem é propenso para o mal. Embora

Heidegger não utilize de juízos de valor moral. Nós admitimos a seguinte consideração: a propensão para a vida

inautêntica é menos apreciável que a orientação para a vida autêntica.

216 CF ST pp. 495-497 12 ST p.497

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tentador."217 É por o Dasein humano estar no mundo e em relação com os outros Dasein

que se torna possível incorrer nesta queda. A tentação resulta de um sentimento de

tranquilidade. Em detrimento do Dasein orientar-se para a autenticidade, aquele que decai

acomoda-se na indiferença. Sendo-lhe dado tudo através da relação com o mundo no

qual está inserido. Todavia, esta tranquilidade no modo de ser impróprio, diz-nos

Heidegger, não conduz a uma vida sem acção. Antes pelo contrário. O ser que decai

intensifica-se no movimento de queda218. Este é o problema da nossa sociedade

acelerada. Entenda-se, aquele que se deixa decair está em estado de alienação. Quanto

maior for a alienação, menos será difícil lidar com a má consciência. Esquece-se

progressivamente de si, não se permite questionar pelo sentido do ser da vida. Heidegger

usa o termo redemoinho219 para designar este estado continuado de queda.

Precisamente, quando mais esquecido de si e desenraizado do seu ser, mais sugado para

o abismo será. No entanto, esta tendência para o abismo sem fundo, não é em si um

facto consumado. O Dasein, por existir factualmente, não se consuma neste movimento.

I.e., sempre permanece aberta a possibilidade do movimento orientado para a

autenticidade. Há o carácter-de-jacto e o carácter-de-mobilidade de dejecção220, a partir

do qual o Dasein pode dar-se conta do seu estado de queda, precisamente através da

possibilidade da sua natureza ultrapassar esse estado. O Dasein, diz-nos Heidegger,

sendo um ente no que o ser está em jogo, neste seu poder vir a ser, se este se perdeu no

seu quotidiano e na queda, será por viver longe de si?221 Heidegger nesta parte pretende

esclarecer se de facto está presente a possibilidade do Dasein através da sua

existenciariedade poder mesmo vir a ser. Se este é com o mundo ou se começa separado

deste e no contacto com o mundo se perde. O que levaria a considerar o mundo como um

objecto222. Aqui, obviamente, Heidegger volta a postular a dualidade, embora a rejeite.

Outro ponto que esta passagem denota: no considerar o Dasein o ser que pode ser,

mostra-nos Heidegger a sua visão da liberdade. Descarta a ideia de haver níveis de

existência223 do Dasein. Isto é, como se houvesse uma degradação de nível. Ora, não é

de todo isto que pensa Heidegger. Ele demonstra simplesmente: o Dasein pode ser no

mundo quer no modo de propriedade, quer no modo de impropriedade224. Em

94

217 ST p.497 218 Cf ST p.499 219 Cf ST p.501 220 Cf Ibidem 221 Cf Ibidem 222 Cf ST p.501223 Termo nosso.224 Cf ST p.503

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suma, meras possibilidades. Tendemos a olhar só para uma das extremidades, positiva

ou negativa. Heidegger, sem tomar partido, olha para a totalidade. Já observámos algo

semelhante em Agostinho da Silva. Isto é o que podemos apreender do seu §38 a

respeito do estado de queda. Heidegger terminará esta passagem da sua obra

relembrando que não fez um estudo da natureza humana, muito menos de uma qualquer

tendência pecaminosa. Temos que entender este estado de queda enquanto

possibilidade. Referimos e é a nossa posição: o homem é propenso para uma escolha

que o orienta para a queda. Sem com isto, mesmo tentados, significar estarmos a

considerar que há um estado melhor do que outro. A nossa imaginação permite pensar:

da queda no fosso, o homem pode encontrar possibilidades que o elevem a estágios

melhores. Sem com isto estarmos a dizer que o anterior era mau. Mas temos uma visão

hegeliana. O homem parte de um estado de maior pobreza e através do processo de

superação constante atinge um estado mais rico. É neste sentido que vimos a queda

referida por Heidegger. O que nos abre o campo a outras possibilidades é o próprio

carácter estrutural do Dasein, pois ele contém em si as diferentes determinações.

Todavia, para nos orientarmos num ou noutro sentido, exige-se um projecto. Se

apontamos orientações semelhantes à ideia de progresso, não é esta nossa intenção. O

que aqui queremos realçar é que o Homem possui capacidades para desenvolver-se até

ao máximo das suas potencialidades. A entrega a uma vida de produção constitui, na

nossa posição, uma alienação de si. A sociedade do crescimento é a aceleração para o

estado de estagnação espiritual. Toda a aquisição de bens materiais é irrelevante, por não

ser acompanhada de uma compreensão de si mesmo. Por o homem não se permitir

questionar a respeito de si e da sua relação com o mundo no qual está inserido.

Apresentaremos a nossa interpretação consequente de um estudo sobre Heidegger. A

sua aplicação subjectiva através do olhar do seu interprete, que não deixará de ser

objectiva. Assim como a do leitor. O interesse na feitura deste ensaio surge da

observação da indolência humana. E no próximo capítulo veremos as consequências.

Os Homens são os intérpretes do sentido do ser, só que se deixam inclinar para o

esquecimento de si mesmos. Deixam-se cair em rotinas para evitarem o confronto da

inevitável morte. Vivem vidas de fuga de si mesmos, do seu potencial encerrado. Só que

não poderão fugir de si. Ninguém é capaz de evitar o confronto consigo mesmo. A

alienação só agrava a sua condição frágil e precária na vida. A não confrontação e

tomada consciente de decisão amplia a angústia. Esta angústia é resultado da

consciência finita do Homem enquanto Homem. A consciência do ser-se para a morte. Se

95

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nos soubermos finitos e destinados a morrer, ao invés do temor, defendemos que é uma

oportunidade. Por o tempo nos ser limitado, estando sempre a consumar-nos: apresenta-

se-nos a possibilidade de sermos agentes do nosso destino. Sejamos boa consciência,

sem negarmos que nos escolhemos. Sejamos corajosos para saltar, naquele salto de fé

de que nos falou o dinamarquês. Revisemos: anteriormente verificámos ser o passado

que nos funda no presente, mas por intermédio do futuro. O passado vai-se apagando,

servindo-nos como linha orientadora do que fomos. Sem passado não temos pontos de

orientação. I.e., teríamos que nos iniciar todos os dias de um princípio absoluto sem

conteúdo. Este não é o modo como o mundo funciona. Qualquer um de nós recorda-se do

dia de ontem. Todavia, só o futuro abre a janela para a actualização do presente. O

passado orienta a nossa projecção de possibilidade no futuro. Sendo que no presente o

consumamos. Estaremos sempre a deslizar um instante à frente do passado. Enquanto

estivermos vivos, jamais nos poderemos dissociar da possibilidade de ser. Ser o quê? A

nós de o descobrir. Talvez, simplesmente, outra coisa daquilo que já pensamos ser hoje.

A importância da busca pelo sentido do ser, ganha também relevo para o próprio

entendimento do mundo. Para o encontro com a estrutura subterrânea que rege os

eventos. Uma estrutura que não é visível e no entanto, está presente em todo o lado. Ela

é ontológica e entrelaça aquilo que é do plano ôntico. Liga os entes num sentido que nos

escapa inicialmente. Aliás, nunca poderá ser plenamente apreendido este sentido, pois

ele é um desocultamento contínuo. Não obstante, consideramos essencial enveredar por

esta mesma investigação de Heidegger. Compreender o sentido do sendo, é dar-se conta

de um rumo. O compreender de modo fundo os eventos mundanos. Não ver ou

compreender esta estrutura ou não a ter em conta, cria alienação e afastamento de uma

compreensão mais profunda da realidade. Dito de outro modo: não nos permitiremos ver

e muito menos entender a relação de acontecimentos. Uma relação que na superfície,

tantas vezes, parece separada entre si. Se analisada em profundidade não o veríamos do

mesmo modo. De um modo mais prático: quando uma comunidade não tem em conta o

seu passado, na sua especificidade incorre no risco de tomar decisões que a levarão ao

fracasso. Ou não ver que dois acontecimentos distantes entre si poderão possuir uma

origem comum. Ou um acontecimento isolado não ser entendido como a causa de uma

sucessão de eventos consequentes ao primeiro. Assim sucede com o próprio homem

individual. O Homem tem uma história. O modo como este é educado na infância

influencia os seus projectos de futuro, por consequência, o seu agir no presente. Não é o

mesmo nascer numa família rodeado de amor ou numa sem amor. De um amor

96

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abundante em afectos e carinho. Um Homem que foi fortalecido na sua confiança, sempre

terá uma postura diferente daquele a quem isto foi negado. Se o Homem já é propenso

para a queda, tendo que fazer um esforço para rumar a uma vida autêntica, imagine-se se

não nos cuidarmos. Não eduquemos pessoas reduzidas a um espaço reduzido e pobre.

Sejamos criativos e imaginativos para permitir a interpelação da possibilidade nas nossas

vidas

Poderá qualquer Homem ascender à vida autêntica? Sim. O homem é livre, por sempre

livre pode vir a ser (outra coisa). Vejamos: se pensarmos no Sollen, este dever ser, o que

poderemos concluir? Se deve ser é por poder ser. E, se pode ser e não é, então é por não

se querem (ser). Em suma, o homem é no final o responsável por si mesmo. Quem define

o sentido de si é o próprio indivíduo. Já dizia um francês: o homem está condenado a ser

livre. Só que este poder ser tanto pode ser num sentido de vida própria ou de vida

imprópria. No sentido de vida própria: será difícil, terá que se rodear das melhores

pessoas. A sua luta será maior e mais dura do que a luta de outros homens impróprios.

Jamais sentirá culpa, nem angústia. Todo o seu existir é liberdade. Todos os homens

vivem no esforço da liberdade.

O homem é chamado ao cuidar de si. Nenhum Homem está mesmo fechado ao possível.

Então, o grande desafio do Homem pós-moderno actual é vencer a indolência, a

tendência natural para a queda, num ambiente de uma sociedade que prima pela técnica,

esquecida do ser. O esquecimento do sentido do ser, neste estar-aí sem projecto e sem a

comunhão de um destino comum orientador e base de esperança para a humanidade.

Pois o Homem é interprete e quem atribui sentido à realidade. E isto, sendo pela

linguagem que o homem pode realizar este questionar pelo sentido do ser., pode por si

mesmo alterar o rumo da sua vida e da de todos os outros.

Heidegger veio trazer-nos a fenomenologia daquilo que não é ainda presente. Mostra-nos

a possibilidade do "mundo a haver". Disto que nos é ainda oculto. Só se desvela se

questionado, só a investigação traz à claridade o que buscamos. Assim nasceu a filosofia,

na busca questionadora.

Esta dissertação é esta busca, o procurar desvelar o que não estava aí ou está

esquecido, excepto como possibilidade. Um dar conta das estruturas que nos tornaram

doentes, pois nos esquecemos de viver a vida inteira. Deixamos de aprender a ver o

mundo. Iremos encerrar mostrando como vivemos hoje e como é possível ser de outro

modo.

97

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3.3 - O esgotamento como libertação

Neste derradeiro capítulo, em jeito de conclusão, passaremos em revista o todo, ao

mesmo tempo que apresentamos o diagnóstico final, o prognóstico reservado para o

futuro da filosofia. A menos que seja devolvida à sua função enquanto terapia, será

lentamente esvaziada de conteúdos. A filosofia como terapia ajuda a resolver os mal-

estares referentes a uma ruptura entre o nosso mundo interior e o exterior. Já vimos que

esta ruptura causa a diferença que faz surgir a necessidade da filosofia. Alguns poderão

mencionar a psicologia para essa função. Lembramos, não foi numa era muito distante, a

psicologia foi um ramo da filosofia. Entretanto, autonomizou-se, pois sendo

desconsiderada por alguns académicos de carreira, elevou-se na sua descida à

comunidade. Ela mesmaé hoje, uma disciplina académica. Nós vivemos numa era de

repulsa para com a filosofia. Alguns profissionais académicos usam deste fosso para

enaltecerem mais o seu narcisismo estéril. Os alunos de filosofia divertem-se com a

perspectiva do futuro ser o desemprego. Neste exercício de falar francamente, vindo de

um filosófo a quem o exercício de verdade lhe é exigido, não conseguimos impedir-nos de

escrever esta dissertação. Apresentando um panorama geral da filosofia, indicando

aplicações teóricas e práticas na vida. Só tem um fundamento, recordar uma tradição algo

esquecida na filosofia. A sua função de proporcionar ao Homem uma orientação de

sentido. Não é um acaso que os leigos encarem a filosofia como a busca do sentido da

vida. Está implícito na tradição filosófica. Todavia, ilude-se quem considerar a função de

filosofia definir e explicitar este sentido num conceito perfeitamente delimitado. Isto por a

filosofia ser um veículo, uma espécie de jangada para atravessar o rio. Uma vez

atravessado larga-se a jangada. Porém, esta viagem não deve ser entendida como

havendo um princípio e fim definido. Consideramos que a vida é feita de múltiplas

travessias. Isto significa que as crenças e a percepção da realidade se alteram ao longo

do tempo. Assim sendo: esta será aqui a última paragem, mas desejada como sendo um

início a ser seguido pelo leitor, por todos nós os interessados em desvendar os mistérios

da vida. Já Agostinho nos via doentes, ao seu modo deu-nos os seus próprios caminhos,

igualmente, lançando um convite a seguirmos a estrada e nela descobrir os nossos

caminhos. Iremos acompanhar-nos neste acto final pelo filósofo germano-coreano.

Apontamos caminhos para sair do espectro da doença neuronal225, que caracteriza a

nossa sociedade. A causa primeira para a doença é a visão dualista. Isto num sentido de

98

225 É a posição do Byung-Chul Han e a nossa.

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renúncia a reconhecer a realidade na sua ambivalência. Não é o dualismo em si mesmo o

mal. O problema é uma rejeição de parte do que é real. Isto devido a um modo de estar

na vida que nos incita a maximizar o prazer, a eficiência sem tempo para a teoria. Não

temos mais tempo para olhar o mundo. O ócio é tornado um pecado mortal. Vejamos

então como se caracteriza a nossa época. Se consideramos importante a prática, esta

não será separada da teoria.

É comum a cada época a geração do momento criticar rejeitando o passado ou ser

saudosista do mais do mesmo. Esta posição serve interesses particulares do momento. A

uns interessa manter tudo na mesma. Pretendem manter a segurança das suas vidas

eliminando a possibilidade de mudar ou atenuar a mudança. Aos outros interessa um

mudar constante, o progresso que tornará o mundo menos insuportável. Uns e outros

querem tudo menos viver na simplicidade do ser-aí. A nossa intenção ao criar este ensaio

filosófico: reorientar a nossa atenção para a filosofia como exercício espiritual. Não sendo

nossa intenção apresentar uma doutrina, muito menos um modo de vida concreto e

completo. Usamos a filosofia para apresentar problemas inerentes à vida humana. Quer

estes sejam do foro individual ou colectivo. Por este motivo, elaboramos a apresentação

dos mal-estares da modernidade. Seguiu-se o recordar de como nasceu a filosofia, o

propósito que ela servia. Esta finalidade era encontrar um modo de viver bom. Também

como organizar a sociedade da melhor maneira para criar a maior harmonia possível.

O nosso foco em recordar a parrêsia dos cínicos, este falar verdade, serve para mostrar

o nosso próprio compromisso de assumir a filosofia como um modo de estar e ser na vida.

Esta tem como principal função orientar o sentido da nossa vida. Ajudar a transformar-nos

e aperfeiçoarmo-nos enquanto humanos. E, não esquecendo, o dever de intervir no

espaço público. Mesmo um intervir não intervindo poderá ser benéfico, desde que

consciente. Um Homem consciente e bem elucidado pode através da palavra sugerir o

silêncio. O silenciar-se é uma forma de responder à exigência produtiva. Acresce-nos a

exigência ética de cuidar da comunidade na qual estamos inseridos. Dela saímos, o que

somos depende desta relação que mantivemos com a comunidade. Para deste modo

anular os efeitos perversos de um excesso de individualismo.

Ainda durante os capítulos precedentes apresentámos um exemplo da aplicação da

filosofia. Através da visão de Agostinho da Silva, inspiramo-nos a escrever linhas

orientadoras de mundos possíveis. Um mundo possível. Este mundo a haver é uma

exigência e engajamento que fazemos connosco mesmos. Também tecemos críticas à

estagnação, pois a alternativa a um progresso desenfreado não é parar. A metamorfose

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espiritual que se pretende através da filosofia é um acto contínuo ao longo da vida. Esta

crítica focou na ética, isto é, num compromisso perante a vida que altera o modo de

funcionamento da mesma. O capitalismo, que sofre de um vício de desmesura, precisa

ser travado. Só numa atitude ética, que a filosofia permite, se criam limites a esta

desmesura. Pensámos através de Marx a transformação do mundo. Serve-nos para

expandir as possibilidades e pensar a sua aplicabilidade. O caminho largo que

apresentamos, só exige o controlo de cada um sobre si mesmo.

A função que também deixamos irromper para a filosofia é a refundação da modernidade.

Não menos que isto, um imaginar o mundo possível e realizá-lo através de uma mudança

estrutural do pensamento. Chamando para a tarefa os filósofos, a servirem de novo na

comunidade.

Então, o diagnóstico para o século XXI é feito por Byung-Chul Han, que de novo traz à

nossa presença uma sensação de mal-estar. Na terminologia do pensador germano-

coreano, os mal-estares ou doenças da nossa época caracterizam-se pelo princípio

neuronal. Havendo doenças neuronais que descrevem este início do século XXI. Temos a

depressão, o transtorno por défice de atenção e hiperactividade (TDHA), ou ainda certas

perturbações da personalidade Borderline (TPB) ou o síndrome de Burnout (SB)226.

Nós temos vindo a indicar a importância do tempo na sua globalidade. Isto é, passado,

presente e futuro. Na nossa exposição andarmos a olhar o passado, projectar no futuro,

pensando no presente, teve também esta intenção de indicar a importância de haver um

equílibrio na percepção do tempo. A doença que se tornou epidemia, a depressão,

consiste muito num excesso de passado. Uma nostalgia de um outro tempo perdido. Uma

pessoa perde a habilidade de projectar-se no futuro e por consequência de viver

conscientemente no presente. O Homem acaba sentindo estar a correr atrás do tempo.

Dá-se uma sensação de tempo acelerado. Contudo, nós consideramos a tese de Han

mais fidedigna em relação à realidade. Vivemos uma dispersão temporal, isto é, numa

dissincronia227. Também as restantes doenças estão conectadas com esta dispersão

temporal. O Homem, incapaz de concentrar-se dentro dos limites, dispersando-se perdido

de si, sem quaisquer referenciais, é disto que estamos a falar. Há ainda o excesso de

carga laboral, o cansaço de um dever implícito de sempre estar activo e apto a produzir.

Os estados de excesso de ansiedade são outro exemplo, embora, no oposto ao da

depressão. Ansiedade em desmesura é excesso de futuro. O desejo de gratificação ou

100

226 CF SC p.9227 CF Byung-Chul H., O aroma do tempo, Um ensaio filosófico sobre a arte da demora, Miguel Pereira (trad.),

Lisboa, Relógio d'Água, 2016 (doravante Aroma), p.9

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medo estando situado no futuro, sendo intenso, torna insuportável o presente. A todos

estes problemas haveremos de apontar um caminho para os solucionar. Uma pergunta

que podemos colocar – o que Hans nos diz sobre a causa destas doenças neuronais?

Responde-nos que se trata de excesso de positividade e de uma sobrecarga de

idêntico228.

O problema do excesso de positividade é não permitir uma reacção imunológica. A

negatividade actuaria como uma protecção para o Homem. Esta negatividade ausente

elimina a alteridade nas relações. Deixa de haver uma diferença entre o eu e o outro. Dá-

se a incapacidade de defesa daquilo que é externo. O sistema imunológico na falta desta

negatividade origina a violência neuronal229. Falta espaço e vazio para dar-se a ruptura

diferencial. Não nos espanta a filosofia ser rejeitada, esta vive deste diferencial.

Byung-Chul Han afirma ser esta violência neuronal a gerar as doenças que

mencionamos230. Nós acrescentámos a percepção temporal de um excesso, só não o

havíamos definido como excesso de positividade. Han dirá haver um curto-circuito que

gera o excesso de idêntico. Na nossa posição, por exemplo, na depressão há excesso de

passado. Isto é, fixação continuada da atenção num ponto. Podemos entender isto como

excesso de idêntico. Ou seja, não se dá a libertação. O Homem depressivo não consegue

libertar-se do foco no qual centrou a sua atenção.

O Homem doente de que falamos, só se tornará naquilo que é, dando-se a possibilidade

de contemplar-se na sua presença aí no mundo, enquanto portador da capacidade de

atribuir sentido. Só que a dessincronia não lhe permite o sossego, este está saturado

desta positividade. Portanto, o que está em falta é restaurar a negatividade. Isto para

voltar à unidade de que falámos anteriormente. O problema sempre esteve na visão

parcial da realidade. A rejeição de uma parte desta, quer seja consciente ou inconsciente,

é o que leva ao estado de doente. A solução temos vindo a apresentar: implementar a

complementaridade dos diferentes pares, neste caso particular, do positivo junto com o

negativo. É aqui que a filosofia tem uma palavra a dizer: restaurar uma corrente da

filosofia algo esquecida – a filosofia como contemplação. Não é novidade, já temos vindo

a anunciar. Na libertação dos prisioneiros está em causa devolver a visão justa ao

Homem. Um homem que volte a conseguir criar espaço e vazio na sua mente para

observar e contemplar o mundo. O banquete é a celebração do esgotamento da doença.

Pois, para nos curarmos, precisamos atingir o estado de esgotamento, para se dar um

101

228 CF SC pp. 9-11229 CF SC pp. 14-15230 CF SC p.17

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reiniciar mental.

Na proposta de Byung-Chul Han vemos que precisamos recuperar a união da vita activa

com a vita contemplativa. Ao longo dos diferentes capítulos fomos mostrando a solução.

Se anteciparam, falta saber se a aplicam de modo contemplativo. Nós estamos cheios de

informações, mas de tão pouco conhecimento. Antecipamos: quiçá, alguns dos leitores

sentirão o tédio ao ler por não trazer novidade. Descartamos as coisas sem sequer nos

dar conta de que estamos em modo de vita activa automatizado. Já nem observamos com

cuidado o que vemos, lemos, etc.

Até aqui preferimos focar no indivíduo, mas nossas propostas mostram alternativas

destinadas à sociedade no seu todo. Todavia, o nosso foco fundamental é a

transformação do indivíduo, para que este contamine os restantes com a cura. Sem

nenhuma certeza de que a mudança numa pessoa vá originar esta reacção imunológica,

damos preferência a este método para garantir a liberdade a cada um de realizar a sua

própria vida. Os homens são condicionalmente livres, por lhes faltar uma melhor

observação de si mesmos e do mundo. A filosofia aplicada na sua vertente terapêutica, a

qual foi pensada pelos antigos e quase esquecida até mais recentemente, indica-nos o

caminho para a vida contemplativa, capaz de repor a negatividade na vida. Viver num

mundo inteiro e tendo uma vida plena implicará na capacidade de lidar com as duas

partes da vida, a negatividade e a positividade. A filosofia bem exercida consiste em

realizar a harmonia na reconciliação do indivíduo consigo mesmo e na sua relação com o

mundo.

Esta reflexão sobre a filosofia como vida contemplativa e filosofia como terapia abre a

janela a um próximo passo: pensar o futuro da filosofia para lá do mero quadro de honra

histórico que ainda vai ocupando. A sua utilidade, e diria necessidade, dependerá da sua

função e aplicação na vida comunitária. Se continuar a servir, especialmente em Portugal,

para reproduzir professores de filosofia e investigadores separados da vida comunitária,

caminhará para a extinção. Por isto, neste estudo apresentei um problema relativo à falta

de sentido da vida. Seguido de reflexões para suscitar a atenção sobre esta relação da

filosofia com a vida prática. Seja para orientar o indivíduo na sua vida ou os Homens na

sua vivência em conjunto. Apresentamos a ideia de nos transformarmos através do

pensamento, algo dado pela filosofia e que parece esquecido. Ainda apresentamos ideias

para reflectir e aplicar na Vida. Não apresentei uma solução pronta a consumir e que tudo

resolve. A Vida é um caminho aporético que, no caso do Homem, sempre terminará na

morte. Antes a dúvida inconclusiva a uma conclusão sem retorno.

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Artigos:

Joana Macedo Luís, "Vida metafísica e sociedade", Philosophica 42 (2013).