universidade de coimbra enquanto instituiÇÃo do impÉrio ... · do impÉrio portuguÊs no sÉculo...

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Universidade Estadual de Maringá 02 a 04 de Dezembro de 2015 1 UNIVERSIDADE DE COIMBRA ENQUANTO INSTITUIÇÃO DO IMPÉRIO PORTUGUÊS NO SÉCULO XVI: REFLEXÕES SOBRE O SEU PAPEL HISTÓRICO, SOCIAL E POLÍTICO NASCIMENTO-GUARALDO, Luciana de Araújo COSTA, Célio Juvenal Este texto tem por objetivo expor algumas reflexões acerca da Universidade Coimbra enquanto instituição histórica e política do Ocidente, fundamentada em debates propiciados pela disciplina: Universidade, história e política, oferecida pelo programa de Pós-Graduação em Educação. Dessa forma, o que pretendemos apresentar relaciona-se a algumas ponderações sugeridas por meio do conteúdo trabalhado na referida disciplina com nosso objeto de pesquisa: Universidade de Coimbra. A questão central desse artigo se baseia na relação que podemos estabelecer entre autores que tiveram como objeto de suas pesquisas a instituição universitária, nos seus aspectos políticos e sociais, e o papel desempenhado pela instituição portuguesa no século XVI. A delimitação temporal dessa exposição está relacionada a um momento fundamental na vida institucional da Universidade de Coimbra: Reforma de 1523-1559. Dessa forma, pautados nas reflexões sobre a função histórica da instituição universitária no campo da história da educação, pretendemos refletir sobre nosso momento social, especialmente sobre a educação brasileira contemporânea. Não é nosso objetivo cometer anacronismos históricos, julgando o passado com conceitos e valores do presente, mas sim tentar aprender com a História, como expõe Oliveira (2009) ao ponderar sobre Jeronymo Osório (1506-1580), pensador português que escreveu sobre a importância dos conhecimentos históricos para a formação dos homens: Osório afirma que nada é mais proveitoso do que a história para tornar os homens prudentes; nada mais poderoso para despertar as virtudes; nada mais saudável para sanar as feridas da República, leia-se, hoje, sociedade; nem mais aprazível para deleite da vida (OLIVEIRA, 2009, p. 1).

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Universidade Estadual de Maringá 02 a 04 de Dezembro de 2015

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UNIVERSIDADE DE COIMBRA ENQUANTO INSTITUIÇÃO DO IMPÉRIO PORTUGUÊS NO SÉCULO XVI: REFLEXÕES SOBRE O SEU PAPEL HISTÓRICO, SOCIAL E POLÍTICO

NASCIMENTO-GUARALDO, Luciana de Araújo

COSTA, Célio Juvenal

Este texto tem por objetivo expor algumas reflexões acerca da Universidade

Coimbra enquanto instituição histórica e política do Ocidente, fundamentada em

debates propiciados pela disciplina: Universidade, história e política, oferecida pelo

programa de Pós-Graduação em Educação. Dessa forma, o que pretendemos apresentar

relaciona-se a algumas ponderações sugeridas por meio do conteúdo trabalhado na

referida disciplina com nosso objeto de pesquisa: Universidade de Coimbra.

A questão central desse artigo se baseia na relação que podemos estabelecer

entre autores que tiveram como objeto de suas pesquisas a instituição universitária, nos

seus aspectos políticos e sociais, e o papel desempenhado pela instituição portuguesa no

século XVI. A delimitação temporal dessa exposição está relacionada a um momento

fundamental na vida institucional da Universidade de Coimbra: Reforma de 1523-1559.

Dessa forma, pautados nas reflexões sobre a função histórica da instituição

universitária no campo da história da educação, pretendemos refletir sobre nosso

momento social, especialmente sobre a educação brasileira contemporânea. Não é nosso

objetivo cometer anacronismos históricos, julgando o passado com conceitos e valores

do presente, mas sim tentar aprender com a História, como expõe Oliveira (2009) ao

ponderar sobre Jeronymo Osório (1506-1580), pensador português que escreveu sobre a

importância dos conhecimentos históricos para a formação dos homens:

Osório afirma que nada é mais proveitoso do que a história para tornar os homens prudentes; nada mais poderoso para despertar as virtudes; nada mais saudável para sanar as feridas da República, leia-se, hoje, sociedade; nem mais aprazível para deleite da vida (OLIVEIRA, 2009, p. 1).

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É de Marc Bloch (2001, p.75) que podemos tirar uma importante lição acerca do

nosso objeto de pesquisa. O autor nos esclarece que o objeto da investigação histórica

não é o passado, mas sim os homens no tempo. Esse mesmo passado, para o autor, é

definido como algo que nunca se modificará, “o passado é, por definição, um dado que

nada mais o modificará”. Podemos também compreender a história como “experiência

humana” 1, e enquanto passado a experiência humana não pode ser alterada, o que pode

ser modificado são as pesquisas sobre essa experiência humana, realizadas pelos

historiadores situadas em tempos e espaços distintos.

Nessa perspectiva, antes de discorrermos sobre o foco central desse artigo, é

importante esclarecermos qual é nosso entendimento sobre o objeto de estudo da

história, independente, do período ou do tema pesquisado. Acreditamos, assim como

Marc Bloch (2001), que o objeto de pesquisa da história são os homens, e mais

precisamente os homens no tempo:

Há muito tempo, com efeito, os nossos percussores Michetel, Fustel de Caulangens, nos ensinaram a reconhecer: o objeto da história é, por sua natureza, o homem. Digamos melhor os homens [...]. Por detrás dos grandes vestígios sensíveis da paisagem [os artefatos ou as maquinas,] por trás dos escritos aparentemente mais insípidos e as instituições mais aparentemente mais desligadas que as criam, são os homens que a história quer capturar [...]. Já o bom historiador se parece com o ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali está a sua caça (BLOCH, 2001, p. 54).

Para Bloch (2001), o objeto da história são os homens, o historiador deve

procurar como fonte de pesquisa tudo o que diga respeito a estes homens. Da mesma

maneira, deve-se compreender que os agentes construtores dos movimentos sociais, das

instituições e de tudo o que diga respeito à humanidade foi elaborado pelos homens. Por

isso os homens são objetos da pesquisa histórica. Cabe ao historiador perceber-se e

perceber o homem como construtor da história. Assim, quando nos propomos a

discorrer sobre a Universidade de Coimbra, buscamos entender não apenas a instituição

1 De acordo com Vieira; Peixoto e Khoury, (1995, p. 9) “Essas noções de totalidade, de cultura, nos levam a situar a história como um campo de possibilidades. Imaginamos que a história é a experiência humana e que esta experiência, por ser contraditória, não tem um sentido único, homogêneo, linear, nem um único significado.”

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em si, mas sim as problemáticas vivenciadas por aqueles homens, especialmente no

século XVI, que demandaram as diversas ações registradas nas fontes utilizadas.

Paiva (2012, p. 23) ao abordar a religiosidade e cultura brasileira nos séculos

XVI e XVII também apresenta essa premissa que podemos utilizar como base para o

trabalho do historiador da educação “O passado já não se tem: o próprio termo o diz.

[...] Fazer História é interpretar, isto é, dar significado”. Mediante esse artigo

procuramos apresentar algumas de nossas interpretações sobre as fontes documentais e

textos que versam sobre a instituição universitária lusitana que podem colaborar na

compreensão da forma como aqueles homens do século XVI produziram sua

experiência social, histórica e política por meio da Universidade.

Nesse contexto, acreditamos que os apontamentos realizados por Álvaro Vieira

Pinto (1986), quando aborda a necessidade da reforma universitária nos anos 60 pode

colaborar na compreensão do que aqui pretendemos expor:

A pergunta inicial referente a essência da universidade não admite ser respondida de modo geral e abstrato, fora do contexto histórico em que surgiu e se desenvolveu esse instituto [...] No Brasil, a universidade é um órgão social recente, só instalada oficialmente quando sua presença se fez necessária. Nada tem em comum com os similares estrangeiros, cuja fundação se conta por séculos. Dados os caracteres peculiares da colonização portuguesa, o Brasil tinha de atravessar toda a sua fase colonial sem possuir universidades, pois várias razões tornavam-nas não só impossíveis como indesejáveis em nosso meio. [...] Ademais, era convicção dos colonizadores portugueses que obrigando os raros representantes da juventude oriunda das famílias ricas da terra a irem estudar nos centros universitários da metrópole, reforçavam o seu espírito de lusitanidade e os preparavam para, de volta, se comportarem como bons súditos da coroa de Portugal (PINTO, 1986, p. 17).

Nessa passagem, Vieira Pinto, procura esclarecer ao leitor sobre a essência da

universidade brasileira. Aponta que não podemos compreender as universidades

brasileiras e estrangeiras como portadoras da mesma historicidade, se assim fizéssemos

estaríamos contribuindo para a “primeira e mais elementar das alienações, a de natureza

verbal, pois denominam com a mesma palavra realidades completamente diversas”

(PINTO, 1986, p.18).

Dessa forma, a fim de entender a expressão “realidades completamente diversas”

acreditamos ser importante nos atentar para o que foi exposto por Montesquieu em O

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espírito das leis, livro XXX, quando discorre sobre a teoria das leis feudais entre os

francos na relação com o estabelecimento da monarquia: “É um belo espetáculo o das

leis feudais. Um carvalho antigo ergue-se, os olhos vêem de longe sua folhagem; ele se

aproxima, vê-se o tronco, mas não se percebe suas raízes: é preciso cavar a terra para

encontrá-la” (1995, p.443).

Assim, percebemos a história da educação brasileira, representada pelo carvalho,

e nela a história da educação no Brasil Colônia, em seus primórdios. Para

compreendermos a formação do carvalho, é necessário cavar suas raízes, que nada mais

são do que a história da educação colonial. No contexto especifico da temática proposta

para esse artigo, acreditamos ser de suma importância, para entender a instituição

universitária que temos hoje nos seus aspectos políticos e sociais, retornar a instituição

universitária do Brasil em seus primórdios, no caso a Universidade de Coimbra, como

esclarece Anísio Teixeira, ao realizar a análise e interpretação do Ensino Superior no

Brasil até o ano de 1969.

Até os começos do século XIX, a universidade do Brasil foi a Universidade de Coimbra, onde iam estudar os brasileiros depois dos cursos no Brasil nos reais colégios dos jesuítas. [...] Nessa universidade graduaram-se, nos primeiros três séculos, mais de 2.500 jovens nascidos no Brasil [...] O brasileiro da Universidade de Coimbra não era um estrangeiro, mas um português nascido no Brasil, que poderia mesmo se fazer professor da Universidade [...] Torna-se assim difícil, até então, distinguir a filosofia da universidade no Brasil como distinta da filosofia portuguesa. A Universidade de Coimbra era a universidade do império português e a sua grande força unificadora (TEIXEIRA, 1989, p.65).

Anísio Teixeira ao abordar as origens do Ensino Superior no Brasil argumenta

que a Universidade de Coimbra deve ser considerada um centro de formação intelectual

de todo Império lusitano, fato que torna a Universidade portuguesa, especialmente

durante o período colonial, o centro de formação dos quadros dirigentes da Coroa

lusitana.

Além das ponderações do referido autor, acreditamos que as contribuições de

Luiz Antônio Cunha podem esclarecer um pouco mais o papel social, histórico e

político que a Universidade de Coimbra ocupa na história da educação brasileira.

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O autor, ao tratar da Universidade no Brasil, desde a Colônia até a Era Vargas,

afirma que Portugal bloqueava o desenvolvimento do Ensino Superior no Brasil, como

podemos verificar na resposta do requerimento cuja intenção relacionava-se a instalação

do curso de medicina na região das minas. Um argumento frequentemente repetido é o de que Portugal bloqueava o desenvolvimento do ensino superior no Brasil, de modo a manter a colônia incapaz de cultivar e ensinar as ciências, as letras e as artes. De um lado, a coroa concedia bolsas para brasileiros irem estudar em Coimbra, mas não queria que esses estudos fossem feitos aqui. Em 1800, por exemplo, a coroa instituiu, como prêmio quatro bolsas de estudos para jovens brasileiros em Coimbra: duas em matemática, uma em medicina e outra em cirurgia. Por outro lado, em resposta a um requerimento com a pretensão de se instalar um curso de medicina na região das minas, disse o Conselho Ultramarino, em 1768, fundamentando a negativa, que “um dos mais fortes vínculos que sustentava a dependência das colônias, era a necessidade de vir estudar a Portugal” (CUNHA, 1980, p. 12).

Por meio dos apontamentos realizados por Cunha (1980), podemos perceber que

Portugal não intencionava permitir a criação de universidades no Brasil, já que uma das

ligações do reino com a colônia se fazia exatamente por meio do ensino propiciado pela

Universidade de Coimbra.

Diante disso, com o objetivo de compreender um pouco mais o papel dessa

instituição na história da educação brasileira passemos a segunda parte desse artigo que

versa sobre a Reforma do século XVI (1523-1559). Por meio de algumas pesquisas

precedentes2 percebemos que foi por meio desse fato que a Universidade de Coimbra

passou a ser centro de formação dos quadros dirigentes do Estado e da Igreja do Império

português, inclusive do Brasil Colônia, consolidando-se enquanto instituição intelectual

na formação da elite portuguesa.

Universidade de Coimbra reforma institucional

Em pesquisas anteriores tivemos a oportunidade de investigar a Universidade de

Coimbra desde o momento de sua fundação, século XIII, até a reforma institucional que

ocorreu no século XVI, reinado de D. João III (1521-1557). Por meio dessas pesquisas

pudemos perceber que a constituição histórica dessa instituição está profundamente 2 Dissertação de mestrado: Nascimento (2012)

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relacionada ao contexto histórico não apenas do reino lusitano, mas também as

conjunturas históricas da décima terceira a décima sexta centúria.

Se nos atentarmos a alguns documentos relativos a Universidade de Coimbra até

meados do século XVI poderemos perceber que foi nesse momento que o Estudo sofreu

uma profunda reforma que objetiva tornar a Universidade a instituição forte do Império,

na formação dos seus quadros profissionais, já que até esse momento ela era a única

universidade do reino.

A luz da documentação existente sobre esse tema podemos verificar que desde o

período de sua fundação, 1290, até meados do século XVI, a Universidade portuguesa

teve um papel anônimo na história das universidades e até mesmo na história da

educação do reino. De outra forma não podemos entender o que é exposto por diversos

historiadores que abordam esse tema e pelo próprio monarca, D. João III, em 17 de

novembro de 1543, quando escreveu ao seu embaixador em Roma, Baltazar de Farias,

sobre os argumentos que deveria utilizar perante o Papa a fim de obter a anexação das

rendas do priorado-mor do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra para a Universidade.

Para além dessa importante solicitação podemos constatar como se encontrava a

Universidade até a reforma empreendida nesse momento:

[...] E, como sabeis, a dita Universidade é causa muito necessária e muito proveitosa a estes meus reinos e senhorios por o defeito que até agora houve de letrados, maiormente os eclesiásticos; e a dita Universidade não se pode sustentar sem ter renda: pelo o que peço a Sua Santidade que queira anexar os direitos e rendas do dito priorado mor de Santa Cruz à dita Universidade, como largamente vereis pela instrução que sobre isso vos envio. Vos falareis a Sua Santidade tanto que a esta for dada, por que é perigo na tardança, lhe dareis do assim vos escrevo, e muito afincadamente lhe pedireis de minha parte por serviço de Deus e bem da republica assim eclessiastica como secular, destes reinos, queira conceder a dita anexação e união como por minha parte se lhe pede [...]” (DOCUMENTOS DE D. JOÃO III, 1938, vol. II, p. 150, sem grifos no original).

Nessa carta fica explicitada toda a problemática que envolve os objetivos da

Coroa relacionados a solicitação de anexação das rendas do Mosteiro a Universidade de

Coimbra. D. João III, afirma que suas ações estão relacionadas à defasagem na

formação de letrados, que mediante o desempenho de suas funções no reino,

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colaboravam para o seu governo. Essa falha na formação de letrados é relatada pelo

monarca especialmente no tocante aos eclesiásticos. A afirmação do rei pode ser

relacionada aos diversos investimentos realizados no início do seu governo na

concessão de bolsas de estudos aos centros de ensino teológico, em colégios e

universidades francesas e espanholas3.

No tocante a reforma institucional planejada a longo prazo pela Coroa

portuguesa, podemos situar temporalmente esse fato entre os anos de 1523 a 1559.

Durante esse período constatamos diversas iniciativas do poder real lusitano no sentido

de reforma a Universidade do Império.

Além dessa delimitação temporal, mediante analise dos documentos respeitantes

a Universidade no século XVI, podemos também delimitar espacialmente esse

acontecimento entre as cidades de Lisboa e Coimbra. Entre os anos de 1523 a 1536, a

Universidade estava localizada na cidade de Lisboa e sofreu as primeiras ações

reformistas. Entre os anos de 1536 a 1559, com a Universidade já na cidade de

Coimbra, houve a execução e efetivação da reforma joanina.

Em razão das limitações desse texto nossa análise se restringirá ao segundo

momento, entre 1536 a 1559, quando compreendemos que houve a execução e

efetivação da reforma institucional da Universidade de Coimbra. Para uma melhor

exposição do que aqui será tratado dividimos as nossas interpretações sobre esse fato

em três itens, quais sejam: reorganização administrativa; reorganização pedagógica e

reorganização financeira.

Compreendemos que a reforma ocorrida seja no campo administrativo,

pedagógico ou financeiro, está relacionada as intenções da Coroa em fazer da

Universidade de Coimbra o centro de referência na formação de letrados do Império.

Nesse sentido, ao pensarmos a Universidade enquanto instituição social cujo principal

objetivo é o ensino das “sciencias necessárias pera bom governo, e conservação da

Republica Chsiatám”4, compreendemos que todas as atividades relativas à

administração institucional dizem respeito à sua finalidade essencial, que é o ensino.

3 Conferir em Nascimento (2012) 4 Fonseca (1997, p. 501).

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No que se refere a reorganização administrativa, percebemos que as ações da

Coroa perpassaram tanto a organização institucional do Estudo, como a organização da

cidade de Coimbra, a fim de que este local se tornasse propicio ao desempenho das

atividades acadêmicas. Nesse âmbito, constatamos nesse momento diversos alvarás,

cartas e ordens régias que versavam de diferentes assuntos tanto no que se refere ao

espaço citadino como interno da Universidade. Para exemplificar essas duas situações

apresentamos duas cartas sobre esses temas: [...] Bispo Reitor Amigo, eu sou informado que alguns dos conselhos dessa Universidade quando para ele são chamados deixam de ir ao conselho e são nisso [...] negligentes não tendo causa justa para se escusarem de ir o que eu ei por mal feito e vos encomendo e mando que provejas nisso com aquele rigor e maneira que bem parecer [...] além disso escreva-me os que assim não cumprirem e nisso forem negligentes para sobre ele prover como houver por meu serviço. Assim mando que nenhum estudante de qualquer qualidade que seja que não for doutor ou licenciado se assente nos lugares altos em que os doutores e desembargadores da Universidade se assentam [...] E por que sou informado que alguns lentes da dita Universidade procuram e vão as audiências sendo lhes proibidos assim pelos Estatutos como por meus regimentos vos informareis disso e me escrevais quais são, os que fazem e em que maneira, para nisso prouver como houver por bem (DOCUMENTOS DE D. JOÃO III, 1938, vol.II, p.89).

Para além de todas as questões da vida da Universidade tratadas nessa carta,

chamamos a atenção para as determinações reais a respeito dos assuntos expostos.

Observamos que em todos os assuntos indica-se ao reitor o que deve ser feito para que

se resolva determinada situação. Em outras palavras, mediante as diretrizes da Coroa o

Estudo de Coimbra foi reorganizado administrativamente. Semelhante a essa carta,

existem diversos outros documentos em que podemos constatar como a Universidade

deveria ser organizada e dirigida.

No que se refere a organização do espaço citadino temos o seguinte: Juiz vereadores & homens bons da minha cidade de Coimbra eu el Rey vos envio muito saudar. Por eu saber que os estudantes que vão aos Estudos dessa cidade não são bem providos assim de pousadas como de carnes e pescados e doutros mantimento e parece que ao adiante serão mais carecidos das ditas cousas pelos muitos escolares que cada dia vão sem a isto se dar remédio quis dar forma e ordem. Como fossem providos das ditas pousadas e mantimentos segundo veres por uma

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minha provisão e regimento que sobre as ditas coisas passei a o bispo de Angra. Que ora envio por Reitor dos ditos Estudos vos mostrara. Encomendo e mando os que a cumprais no que a vos tocar como nela é contido e lhe des toda a ajuda e aviamento necessário para a dita provisão compra e se dar a execução por que cumpra assim a serviço de Deus e meu e honra e proveito dessa cidade [...] (DOCUMENTOS DE D. JOÃO III, 1937, vol. I, p. 54 e 55).

O rei escreve à Câmara de Coimbra com a intenção de organizar a provisão, aos

membros da Universidade, de bens alimentícios e casas, já que muitos escolares

chegavam à cidade para iniciar os estudos. Além disso, é importante nos atentarmos

para a justificativa do monarca acerca da necessidade de por “foorma e ordem” sobre as

casas e alimentos para serem providos ao Estudo, pois o cumprimento e a execução do

alvará estavam de acordo com o serviço, primeiro de Deus, do rei, e honra da cidade.

Logo após a transferência para a cidade de Coimbra, constatamos a existência de

diversas cartas e alvarás enviados à Universidade acerca do ensino, exames, graus e

organização do regimento interno de algumas faculdades. Percebemos que as ações da

Coroa nesse sentido foram planejadas e replanejadas em conformidade com as

problemáticas que envolviam esses processos. Essas ações da Coroa são interpretadas,

por nos, como parte da reorganização pedagógica da Universidade.

Também percebemos que muitas das ações que foram no início definidas, depois

reformuladas, passaram a fazer parte dos Estatutos de 1559, como encontramos na

introdução de D. Sebastião (1557-1578), neto de D. João III, nos Estatutos da

Universidade de Coimbra (1559), publicados por Leite (1963): Dom Sebastião, per graça de Deos, Rey de Portugal e dos Algarves, daquem e dalem mar em Africa, Senhor da Guiné e da conquista, navegação e comércio de Athipia, Arabia, Persia e India etc. Faço saber a vós Reytor, lentes, deputado, conselheiros, officiais e estudantes da Universidade da cidade de Coimbra [...] que [...] avia algumas cousas que, pelo experiência que se teve do uso delles na dita Universidade, convinha serem mudados e outras declaradas e algumas deminuidas ou acrescentadas; e sendo os ditos Statutos vistos pelo Reytor e pessoas da dita Universidade , envyarão a Sua Alteza pera os tonar a ver e mandar sobre isso o que ouvesse por seu serviço e bem da dita Universidade, e antes de acabar de tomar conclusão nos ditos Statutos foy Nosso Senhor servido de o levar pera sy. Pelo que, vendo eu quanta obrigação tinha de prosseguir essa obra por ser de tanto serviço de Nosso Senhor e bem de meus reynos e senhorios, e assy por ser autor principiador della pelo dito senhor meu Rey meu avô

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mandei que se contiuasse; [...] (ESTATUTOS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1559), LEITE, 1963, p. 10, sem grifos no original).

Como fica explícito no trecho destacado, a outorgação dos Estatutos de 1559

está relacionada à necessidade de rever as leis que regiam internamente a instituição.

Tais leis, que já faziam parte da constituição da Universidade, em razão das

experiências no tempo tiveram a necessidade de serem readequadas segundo as

circunstâncias do Estudo inserido na sociedade portuguesa dos meados do século XVI.

Essas leis que faziam parte dos Estatutos podem também serem compreendidas como a

efetivação oficial da reforma da Universidade de Coimbra no reinado de D. João III.

As diretrizes emanadas da Coroa atingiram de diferentes formas os mais

diversos setores que constituíam o setor pedagógico seja no ensino, professores, alunos,

faculdades, graus e exames e objetivavam naquele contexto fazer com que a

Universidade funcionasse a serviço da renascença católica e do Império lusitano no

Ultramar, em outras palavras a reorganização pedagógica ocorrida no momento de

reforma institucional tinha o objetivo de adequar a formação acadêmica da

Universidade as transformações que se processavam no Império português.

Como procuramos apresentar nos parágrafos precedentes, a Universidade

transferida da cidade de Lisboa sofreu uma profunda e paulatina reorganização nos

diversos setores que a constituem. Além das diretrizes emanadas da Coroa relativas à

reorganização administrativa, tanto internamente quanto com o meio citadino que a

cercava, o Estudo também sofreu diversas modificações pedagógicas que objetivavam

readequar a formação propiciada pela instituição as modificações ocorridas na

sociedade portuguesa. Percebemos que esse mesmo processo de reorganização também

foi o carro-chefe das ações da Coroa no que se refere ao setor financeiro da

Universidade de Coimbra.

É esse objetivo que acreditamos estar presente nas diversas anexações de rendas

das igrejas do reino a Universidade de Coimbra como podemos constatar no seguinte

carta de D. João III de vinte e cinco de novembro de 1542:

Dom João pela graça de Deus Rei de Portugal e do Algarve daquem e além mar em África, de Guine da conquista e navegação comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e da Índia faço saber aos que esta minha carta

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vierem e o pertencimento do caso pertencer que havendo eu respeito ao serviço de Deus e meu e bem da República de meus reinos e senhorios que se segue de em eles haver Estudos Gerais e como os ditos Estudos não podem ter mestres e lentes suficientes para ensinar e ler em eles sem terem renda de que os ditos mestres e lentes ajam suficientes salários, pedi ao Santo padre Paulo III ora na Igreja de Deus presidente, que houvesse por bem de unir e anexar para sempre aos Estudos que novamente ordenei na cidade de Coimbra as igrejas do Salvador do Crucifixo de Bouça bispado do Porto e da Santa Maria de Fonte Arcada e Santa Maria da Sardoeira e de São Martinho de Mouros do bispado de Lamego com suas anexadas; e Sua Santidade a minha instância houve por bem de anexar para sempre as ditas igrejas ao dito Estudo como dito é com tanto que eu desse meu consentimento sendo elas ou algumas delas de meu padroado, eu pelos ditos respeitos ou o meu consentimento e ei por boa e valiosa a dita união per sua Santidade feita das ditas igrejas ao dito Estudo na forma e modo que na dita bula se contém. Quanto com direito devo e posso e enquanto a mim e a Coroa de meus reinos e padroado da ditas igrejas pertence e ei por bem que a dita união se cumpra e guarde e haja cumprimento feito para guarda e conservação dos ditos Estudos [...] (DOCMENTOS DE D. JOÃO III, 1938, vol. II, p. 108, sem grifos no original).

Nos trechos em destaque da carta, chamamos a atenção para as razões expostas

pelo monarca para que ocorresse a anexação das rendas dessas igrejas às finanças da

Universidade. Como fica claro, o monarca justifica a incorporação dessas rendas pela

necessidade de haver no reino uma Universidade com lentes competentes nas ciências

daquela época. Esses mestres, cuja tarefa está relacionada à formação de letrados que

auxiliassem na governança da sociedade, só podem desempenhar com satisfação sua

tarefa se lhes forem concedidos “suficientes salários” para manter sua sobrevivência e

competência acadêmica. Nesse sentido, o rei solicita ao Papa a anexação dessas igrejas

à Universidade, igrejas essas que faziam parte, também, do Padroado Real. Com o

consentimento pontifício, a Coroa repassa ao Estudo essas rendas com a declaração da

ação ser “boa e valiosa” aos seus reinos.

Além dessa incorporação encontramos nos documentos analisado diversas outras

cartas e alvarás que versam sobre essa temática, qual seja conceber a Universidade

meios financeiros para o desempenho de sua função: formar os letrados do Império que

colaborariam mediante desempenho de suas funções com o governo da sociedade.

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Diante dessa exposição gostaríamos de deixar o registro que a reforma

institucional da Universidade só pode ser compreendida se também nos atentarmos para

as problemáticas civis e religiosas presente na sociedade portuguesa nesse momento

histórico. Embora de forma limitada, em razão da delimitação desse texto, objetivamos

apresentar a Universidade de Coimbra enquanto instituição histórica constituída pelos

homens, anseios e ideias presentes no século XVI português.

Nesse sentido, com o objetivo de entender a relação entre as instituições de

ensino e seu tempo histórico, temos as contribuições da obra de Emile Durkheim, A

Evolução Pedagógica, na qual são apresentadas alguns apontamentos nesse sentido:

Como todas as grandes funções sociais, o ensino possui um espírito, expresso nos programas, nas matérias ensinadas, nos métodos, e um corpo, uma estrutura material que expressa, em parte o espírito, mas que também age sobre ele, que lhe imprime, ás vezes, sua marca e impõe temporariamente seus limites. Das escolas episcopais às universidades medievais, dessas aos colégios jesuítas, para chegar aos nossos liceus é claro que foram muitas transformações. É que, em cada época, os órgãos de ensino estão em relação com as demais instituições do corpo social, com os costumes e crenças, com as grandes correntes de idéias (DURKHEIM, 1995, p.4).

Percebemos que a reforma empreendida na Universidade de Coimbra, reinado de

D. João III, estava relacionada a seu tempo histórico, já eu toda a sua estrutura

organizacional, inclusive pedagógica sofreu uma profunda reforma. Compreendemos

que a efetivação dessa reforma pode propiciar a consolidação da Universidade enquanto

instituição do Império português na formação dos letrados. Do mesmo modo,

concordamos com Durkheim (1995) quando discorre sobre a dupla natureza dessas

instituições de ensino, ora ligada a hostilidade, ora a revolução:

[...] Apóiam-se em seu passado para defender-se ocasionalmente contra as influências que recebem de fora. Seria impossível entender, por exemplo, as divisões das Universidades em Faculdades, o sistemas de exames de graus, o internato, as sanções escolares, se não remontássemos muito longe, desde o momento da construção da instituição, cujas formas, uma vez nascidas, tendem a subsistir com o tempo, quer por uma espécie de força inercial, quer porque elas conseguem adaptar-se às novas condições. Sob este ponto de vista, a instituição pedagógica parece-nos ser mais hostil à mudança, talvez mais conservadora e tradicional do que a própria Igreja, pois sua função

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é a transmissão as gerações de uma cultura cujas as raízes vêm de um passado longínquo. Mas, por outro lado, não há uma que não haja sido submetida, em certas épocas, a mudanças radicais, por verdadeiras revoluções que, às vezes, ultrapassaram seus objetivos [...] (DURKHEIM, 1995, p.4).

Constatamos que a reforma da Universidade do século XVI, tinha por objetivo

fazer uma “revolução” no ensino propiciado pela Universidade de Coimbra, pois houve

uma completa transformação no currículo, método de ensino, faculdades ensinadas,

disciplinas, livros utilizados, contratação de professores estrangeiros, entre outros

aspectos. Para compreendermos tal aspecto da reforma da Universidade de Coimbra, é

necessário nos atentarmos para as diversas modificações ocorridas no período, 1523-

1559, nos diversos setores da organização institucional que se relacionam diretamente

com o processo de ensino-aprendizagem.

Nesse contexto, ao discorrermos sobre esse assunto, objetivamos entender os

diferentes momentos pelos quais a instituição passou a fim de adequar a formação

profissional às demandas sociais do Império português.

Percebemos como, ou em que medida, as ações da Coroa portuguesa foram

planejadas e readequadas de acordo com as circunstâncias advindas tanto do corpo

institucional formado por estudantes, lentes, oficiais, bacharéis, mestres, doutores e

reitores, quanto da sociedade, por meio da exigência profissional na ocupação de cargos

no Império.

Compreender o papel histórico, social e político dessa instituição no no referido

período colabora nas reflexões que podemos fazer acerca não apenas da sociedade

portuguesa desse momento, mas também das origens da cultura e educação brasileira, já

que houve a atuação direta e indireta de muitos padres jesuítas e outros dirigentes reais

no período do Brasil Colônia. Dessa forma, acreditamos que compreender a história da

educação portuguesa, especialmente no que se refere a Universidade de Coimbra, é

também compreender uma parte da origem da história da educação brasileira.

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