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A navegação consulta e descarregamento dos títulos inseridos nas Bibliotecas Digitais UC Digitalis, UC Pombalina e UC Impactum, pressupõem a aceitação plena e sem reservas dos Termos e Condições de Uso destas Bibliotecas Digitais, disponíveis em https://digitalis.uc.pt/pt-pt/termos. Conforme exposto nos referidos Termos e Condições de Uso, o descarregamento de títulos de acesso restrito requer uma licença válida de autorização devendo o utilizador aceder ao(s) documento(s) a partir de um endereço de IP da instituição detentora da supramencionada licença. Ao utilizador é apenas permitido o descarregamento para uso pessoal, pelo que o emprego do(s) título(s) descarregado(s) para outro fim, designadamente comercial, carece de autorização do respetivo autor ou editor da obra. Na medida em que todas as obras da UC Digitalis se encontram protegidas pelo Código do Direito de Autor e Direitos Conexos e demais legislação aplicável, toda a cópia, parcial ou total, deste documento, nos casos em que é legalmente admitida, deverá conter ou fazer-se acompanhar por este aviso. Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal Autor(es): Soares, Torquato de Sousa Publicado por: Imprensa da Universidade de Coimbra URL persistente: http://hdl.handle.net/10316.2/46934 DOI: https://doi.org/10.14195/0870-4147_7_2 Accessed : 7-Sep-2021 06:20:27 digitalis.uc.pt impactum.uc.pt

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal

Autor(es): Soares, Torquato de Sousa

Publicado por: Imprensa da Universidade de Coimbra

URLpersistente: http://hdl.handle.net/10316.2/46934

DOI: https://doi.org/10.14195/0870-4147_7_2

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal

PRIMEIRA REFLEXÃO

SOBRE A LUSITÂNIA PIRÉ-ROMANA

I — A Campanha de Décimo Júnio Bruto:

Informa Apiano iter Décimo Júnio Bruto — que, em 138, suce­dera a Quinto Cepião como pro-consul para a Hispania Ulterior — iniciado uma campanha com o propósito de aniquilar as últimas veleidades de autonomia dos Lusitanos, depois da morte de Viriato (O. E, por sua vez, Estrabão diz que, para garantir a liberdade de trânsito, pelo Tejo, ao abastecimento das suas tropas, começou por fortificar Olisipo (Lisboa), estabelecendo a base de operações em iMóron, cidade bem situada sobre uma elevação junto ao rio, à distância de uns quinhentos estádios do mar (2).

Comentando este trecho, Schulten identifica Móron com Chã Marcos, acima da ilha de Almourol, ma confluência do Zézere com

0) Vide Fontes Hispaniae Antiquae, fase. IV, págs. 332-333.(2) ODII, 3, 1. Estrabão acrescenta que Móron tinha campo9 férteis nos

arredores, e era «bem acessível pela via fluvial, pois as maiores naves podem subir grande parte do rio, e embarcações de tipo fluvial ainda mais longo.

O Prof. Garcia y Bellido, cuja tradução seguimos, atribui a 5'00 estádios a extensão aproximadamente de >100 km., ou sejam 2'00 m. por estadio (España

y los Españoles hace dos mil años según la Geografia de Stràbon, págs. 121-122); mas Mendes Corrêa admite que correspondesse a 185 m. ou mesmo a 100 m. (Moron, in Trabalhos da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnografia,

vol. VI, pág. 252). Vide também, in Fontes Hispaniae Antiquae, Estrabón: Geografía de Iberia, trad. e comentada por A. Schulten, pág. 103.

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o Tejo(3); mas trata-se, evidentemeníte, de uma confusão, pois, ao que parece, nem Almourol deriva de Mórom, como supõe (4), nem se afigura admissível que a cidade, a que se refere Estrabão, ficasse na margem esquerda do Tejo, uma vez que era o país situado ao norte desse rio que Bruto se propunha dominar.

De resto, como Mendes Corrêa observa, a descrição topográfica feita pelo geógrafo grego «aconselha nitidamente que se procure tal localização no escarpado em que está Santarém, ou noutra ele­vação vizinha, na margem direita do Tejo (5). E o certo é que não só «esta cidade fica, como Móron, num alto que domina o Tejo e a sua planície marginal alagadiça, ao morte do segundo estuário de que falava Estrabão», imas também aproximadamente à dis­tância de 500 estádios da foz desse mesmo rio(6).

E quanto à ilha que o geógrafo grego diz ficar em frente — ilha fértil e abundante em vinhas, com trinta estádios de comprimento

(3) «Móron estava acerca de 500 estádios (92 Km.) do mar, junto a uma pequena ilha do Tejo que tinha 30 estádios (5,5 Km.) de comprido e era quase da mesma largura. De facto, encontra-se a cerca de 90 Km. do mar a pequena ilha de (Almourol que corresponde evidentemente à velha Móron (com o artigo áralbe); e, defronte, no monte Ohã Marcos, na margem sul, está um lugar apropriado para a cidade de Móron» (Forschungen in Spanien,

trad. por A. Athayde, in Trabalhos da Sociedade Portuguesa de Etnologia,

vol. WI, pág. 50). Schulten reafirma esta identificação em Fontes Hispaniae

Antiquae, IV, pág. 138.(4) Mendes Corrêa, admitindo poder também haver relação entre Móron

e Almeirim, consultou o grande arabista David Lopes, que se pronunciou assim: «Tentei várias vezes a explicação de Almeirim pelo árabe, mas foi em vão; não deve, todavia, este nome ter nada com Moron, fonéticamente pelo menos. O artigo árabe — ou seja esse prefixo aí — só se aglutina a nomes não árabes quando estes são de significação comum: por exemplo em Alportel

(al + portei) ou Alporão (al + plan). Por isso — conclui — quer se trate de Almourol quer de Almeirim, o a/- supõe um nome comum, árabe ou não, que não sei qual seja» (Trabalhos cit., VI, págs. 25'5-25õ).

(5) Ibidem, ibidem, pág. 257.(6) Ibid., ibid., pág. 256.

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e quase outros tantos de largura (7) — Mendes Corrêa observa não poder sier, por todas as razões expostas, a de Almourol, «mas seria, por certo, um dos mouchões (o de Alfariga ou do Inglês) que há ou havia nio Tejo, nas proximidades de Santarém» (8).

A identificação de Móron com Santarém é, no dizer de Vergilio Correia, «confirmada pela descoberta de um topónimo, Vale de Mou­ron, perto dessa cidade» (9) ; mas Bairrão Oleiro julga tratar-se, mais provavelmente, do acampamento romano dos ChÕes de Alpompé, perto de Vale de Figueira, que «está situado sobre uma posição ele­vada (95 metros), próximo do Tejo, rodeada de campos férteis e com óptimas condições estratégicas» (10), aonde enicontrou «um frag­mento de cerâmica camipaniense do tipo A, atribuível ao século II a. C.» (n). E acrescenta: «Entre o Alviela e o Tejo estende-se uma larga porção de terreno cujas dimensões correspondem sensivel­mente às que Estrabão indica para a ilha fronteira a Móron» (12).

Para a determinação do itinerário seguido por Décimo Júnio Bruto, a localização de Móron reveste particular importância, pois foi por considerá-la junto ao Zézere, que Schulten supôs ter o general romano subido esse rio, que era a via natural de entrada da Serra da Estrela, em cujo lado norte ¡está a chamada Cava de

(7) Considerando a impossibilidade de ajustar as diminutas dimensões da ilha de Almourol com a que Estrabão descreve, Schulten aventa a hipótese de um erro de cifra (Trabalhos cit., VUI, pág. 50). De facto, na tradução da Geografia de Estrabão, corrige para três estádios (Fontes cit., pág. 103). Mas, mesmo assim, 9e nos afigura impossível identificar com Almourol uma ilha onde vicejam oliveiras e vinhas.

(8) Ibid., ibid., pág. 257. Vide também a pág. 255.(9) A Romanização da Lusitânia, in «¡Congresso do Mundo Português»,

I. vol., pág. 5135.(10) Geografia e Campos fortificados Romanos, in «Boletim do Centro

de Estudos Geográficos» da Universidade de Coimbra, n.°* ¡6 e 7, pág. 80. Coimbra, 1953.

(”) Ibidem, n.os 10 e 11 (1955), pág. 120.O2) Ibidem, n.os 6 e 7 (1953), pág. 80.

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Viriato, cuja construção julgava corresponder à sua primeira expe­dição, de 138 a. C. (13).

De facto, ficando Móron bastante mais a juzante, a hipótese de Schuilten perde toda a verosimilhança, considerando, para mais, quão arriscado devia ser o percurso pelo vale do Zêzere entre tribos hostis, e ainda a circunstância de não ser fácil, por aí, o caminho até Viseu.

Já Bairrão Oleiro notou, muito judiciosamente, que Bruto, depois de ter seguido .a linha do Tejo, devia «ter infleotádo para o Norte, sem se intermar muito na zona montanhosa pelas dificul­dades de nela operar e se reabastecer» (14).

Realmente, Apiano, ao descrever esta campanha, observa que o general romano renunciou a perseguir os bandas que percorriam e devastavam a Lusitânia, preferindo tomar as suas cidades situa­das na região compreendida entre os rios Tejo e Nimio ou Minho(15).

(13) Artigo citado, in «Trabalhos da Sociedade Portugugesa de Antropo­logia e Etnologia», vol. VII, pág. 52.

v(14) Subsídios para o Estudo do Acampamento Romano de Antanhol,

pág.(15) Apiano, que parece ter-se baseado em Possidónio, que, por sua vez,

teria copiado Políbio, diz assim, segundo a tradução de Schulten: «O exemplo de Viriato fez com que muitos outros 'bandos percorressem e desvastassem a Lusitânia. Enviado Sexto Júnio Bruto contra eles, renunciou a perse- gui-los naquela vasta região compreendida entre os rios Tejo, Letes, Douro e Betis, todos navegáveis; julgava, com efeito, difícil alcançar tropas que se deslocavam com a rapidez própria dos bandidos; não as alcançar, desonroso; e vencê-las, não muito glorioso. Em vez disso, marchou contra as suas próprias cidades, pensando assim castigá-los ao passo que enriqueceria os seus soldados, e calculando que os bandidos se dispersariam, indo cada um para sua pátria, ao sabê-la ameaçada. Assim pensando, começou por saquear o que encontrava pelo caminho. Para o impedir, as mulheres lutavam ao lado dos homens, manejando como eles as suas armas, sem soltar um só grito nas refregas. Houve-os também que fugiram para as montanhas com o que puderam levar; aos quais Bruto perdoou quando lhe suplicaram clemência, pri- vando-os de uma parte dos seus bens. E, atravessando o Douro, percorreu, combatendo, muitas terras, exigindo muitos refens aos que se submetiam. Deste

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Réflexões sobre a origem e a formação de Portugal

Mas, apesar de referir que Bruto ultrapassou o Douro, nem por isso menciona a Calécia. E, por sua vez, Estrabão, conquanto diga claramente que a expedição romana chegou ao rio Minho (16), limi­ta-se a aludir à campanha contra os Lusitanos (17).

É certo que Tito Livio refere ter Bruto vencido -os Galaicos na Espanha Ulterior (18) ; e, por sua vez, Eutropio informa que triunfou sobre Calaicos e Lusitanos (19). Mas nem por isso é forçoso admitir a sua entrada na Calécia, que Floro e Ampélio parecem ser os únicos a considerar, ao dizer o primeiro que o general romano penetrou mais para o interior dos povos célticos, lusitanos e todos os Calaicos (20), e o segundo que dominou a Calé-

modo, chegou até ao rio Lethes, e foi o primeiro dos Romanos que se propôs atravessá-lo. Partindo daí, chegou até outro rio, o Nimio, e, como os Bráoaros tivessem tomado as suas provisões, dirigiu-se contra eles» (Fontes Hispaniae Antiquae, IV, pág. 33>2).

Esta referência ao rio Letes imediatamente antes do Minho, invalida, certamente, a sua posição entre o Tejo e o Douro, que pouco antes lhe atribui. É certo que Plínio (IV, 115) diz que alguns autores o identificam com o Aemi- nius (Mondego), mas trata-se, evidentemente, de um equívoco.

Quanto à expressão Baetis, está com certeza, como nota Leite d-e Vas- concellos, por Baenis, |3aivt$, forma errónea com que o Minius vem designado em Estrabão» (Religiões da Lusitânia», vol. 1III, pág. 127). Esta correcção já tinha sido proposta por Flórez em España Sagrada, XV, pág. 3'7. Vide tam­bém, a este respeito, Luís Monteagudo: Galicia en Ptoloméo («Cuadernos de Estudios Gallegos», VIII, óll®).

O6) III, 3, 5; IC. 1513.(17) De facto, refere-se apenas às campanhas de Bruto, o Galaico, contra

os Lusitanos (III, 3, 1; C. 162).(18) «Décimo Júnio Bruto lutou com fortuna contra os Calaicos na Espa­

nha Ulterior» (Periochae, 56, transcrito por Schulten: Fontes cit., IV, pág. 334).(19) «Depois, também Décimo Júnio Bruto celebrou com grande esplendor

o seu triunfo sobre os Calaicos e os Lusitanos» (Breviarium ah urbe condita, IV, 19. Ibid., ibid.).

(20) Floro diz ainda que o general romano «passou o rio do Olvido, temido pelos roldados, e percorreu como vencedor o litoral do Oceano, não regres­sando senão quando verificou, não sem certo horror e temor de ter cometido

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cia (21). Trata-se, porém, de alusões esporádicas que, aliás, não são bastante claras.

Já não assim a que Orosio faz a esta campanha, pois observa, sem deixar lugar a dúvidas, que «Bruto, na Espanha Ulterior, desbaratou 60.000 Calaicos que tinham acudido em auxílio dos Lusi­tanos, numa batalha encarniçada e difícil, apesar de os haver envol­vido de surpresa» (22).

Esta parece, pois, ter sido a razão do seu cognome de Callae- cus(23), e não o facto de ter conquistado a Calécia ou país dos Callaeci, onde provàvelmente nem sequer entrou (24).

Oe facto, àparte as alusões um tanto vagas e indecisas de Floro e Ampélio, a que nos referimos, todos os outros escritores citados se limitam a mencionar a Hispânia Ulterior ou a Lusitânia (25),

um sacrilégio, que o sol caía no mar, e os seus fogos 9e apagavam nas águas» (Bellorum omnium annorum DCC: 'I. 33, 12. Ibidem, ibidem).

(21) «Por meio de Décimo Bruto, a Calécia» (Liber memorialis, 47. Ibid.,

ibid., pág. 336).(22) Historiarum adversus paganos, V, 5, 12 {Ibid., ibid., págs. 334-335).

Orósio acrescenta que «morreram nesta batalha 510.000, sendo o número de dativos avaliado em 6.000. Segundo Ovídio {Fasti, '6, 461), esta batalha tra­vou-se a 9 de Junho de 137 ou 13-6 {Ibid., ibid., pág. 140). Bosch-Gimpera e Aguado Bleye corrigem o número de 60.000 soldados atribuído ao exército calaico para 6.000, 'bem mais verosímil; mas não apresentam o fundamento da correcção {Hist. de España, sob a direcção de M. Pidal, Tomo II, pág. 155).

(23) Confirma-o implicitamente o próprio Estrabão, dizendo que os Calaicos, «por haverem sido difíceis de vencer, deram o seu nome ao vencedor dos Lusitanos» {Geografia, III, 3, 2, segundo a trad. de Garcia y Bellido, ia España y los Españoles..., pág. 124).

(24) Já Casimiro Torres, no seu estudo sobre os Limites Geográficos

de Galicia en los siglos IV y V, observou ter sido a tribo dos Callaeci, «tribo valente e decidida, que se adiantou a combater com Bruto na Lusitânia». («Cuadernos de Estiidios Gallegos», XIV, 1949, pág. 307).

(25) Assim, Tito Livio, que, como vimos, se refere à luta contra os Calaicos, diz também: «Décimo Júnio submeteu a Lusitânia até ao Oceano, tomando as suas cidades; e, negando-se os seus soldados a atravessar o rio do

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o que nos leva a supor que esta região se estendia ao norte do Douro, pelo menos «aité ao rio Minho.

Il — A Lusitânia segundo Estrabão:

, IDepois de delimitar a Lusitânia ao sul, pelo Tejo, 'Estrabão diz que, tanto a oeste como ao norte, se estendia até ao Oceano (26), confinando, a leste, com terras de Carpetanos, Vetões e Calaicos (2T).

Esta .delimitação da Lusitânia tem inltrigado arqueólogos e historiadores, que formularaim diversas 'hipóteses para a explicar.

Assim, Leite de Vasconcellos, admitindo que na Lusitânia estra- boniana 'estava compreendida não só «a actual Galiza, o En-tre- -Douro-e-Minho e a região portuguesa de entre Douro e Tejo, mas ainda Trás - os -M on tes » (28), julgava ser esta concepção «mera-

Olvido, arrebatou o estandarte ao que o levava, <e atravessou-o ele mesmo, persuadindo-os assim a passarem-no» (Periochae cit., 5'6, in Fontes oit., IV, pág. 334). E Plutarco diz também: «Era este (Décimo Júnio Bruto) o que, atacando a Lusitânia, 'foi o primeiro a atravessar com um exército o rio Lethes» (Quaest. Rom., 34, Ibid., ibid.).

(26) -MT, 3, 3; G. 15'2. Este mesmo limite setentrional já, ao que parece, lhe fora atribuído pelo mesmo autor, ao dizer que, quem navegasse rumo ao norte, até aos chamados Ártabros, tinha a Lusitânia à mão direita, vol­tando-se depois a costa por completo para o Oriente. i('II, 5, 15; C. 12*0).

(27) III, 3, 3; C. 152. Não obstante, segundo o mapa da Hispania romana publicado por Sánchez-Albornoz no seu estudo sobre El culto al Imperador y la unificación de España, págs. 120-121, só os Vetões lindavam, a oriente, com a Lusitânia, entre o Douro e o Tejo. Mesmo que não se trate de um lapso, como é natural, pois Estrabão podia estabelecer confusão entre os limites da Lusitânia pré-romana e os da Lusitânia romana, a parte da fronteira ocupada tanto pelos Carpetanos como pelos Vaceus devia, realmente ser muito restrita.

(28) Religiões da Lusitânia, vol. I, pág. XXH. Realmente, Leite de Vasconcellos inclui a Galécia na Lusitânia, ao dontrário do que o geógrafo grego afirma. E, por isso, a circunstância de a cidade transmontana de Aquae Flaviae '(Chaves) pertencer à tribo dos Túrodos, que ficava na Callaecia, constitui para ele prova die que a nossa província de Trás-os-Montes se incluía na Lusitânia.

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mente tradicional, e conforme às concepções geográficas e etno­gráficas» (29). Mas o Prof. Paulo Merêa, considerando que esses limites seriam os que constam da «primeira divisão feita por Augusto no ano 27 a. C., ou seja o mapa de Agripa», pensa que a sua ampliação para o norte nada teria que ver com a tradição pre- -romana, resultando antes da atribuição ao governador da Lusitânia, de a cordo com o sistema habitual, do país que fora teatro das suas operações (30). E esclarece: «É hoje, com lelfeito, matéria assente que segundo essa primeira divisão, a Hispania Ulterior se repartia em Bética e Lusitânia, abrangendo esta o território que se estendia entre o Guadiana e a costa caladca- do Mar Cantábrico, ao qual veio juntar-se, após a vitória sobre os Áustures e Cántabros, a região asturiana» (31).

Esta observação contribui certamente para o esclarecimento do texto estraboniano, mas quer-nos parecer que não basta para o explicar cabalmente.

É sabido que o célebre autor grego, que nunca esteve na nossa Península, ultilizou sobretudo, como fontes de informação para o Livro III da sua Geografia, que respeita exclusivamente à Hispania,

(2e) Ibid., ibid. Leite de Vasconcellos considera a existencia de duas regiões secundárias: a domarca de Entre Tejo e Douro e a Callaecia (Ibid.,

vol. II, pág. 25 e segs.).(3°) Do mesmo modo, Schulten observa que «o motivo de juntar a

Callaecia e a Asturia com a Citerior era que na guerra cantábrica também tomaram parte os Calaicos e os Ástures» (Fontes cit., V: Las guerras de 72-19 a. de J. C., pág. 184). Vide também E. Albertini, Les divisions administratives

de l'Espagne romaine, pág. 33*.A dependência em que a organização administrativa estava da organização

militar é também acentuada por Robert Étienne, que, por sua vez, observa que «a mudança de regime administrativo ñas provincias do Noroeste acom­panha a reorganização das forças armadas em Espanha, que se segue ao fim da drise de i68-7,0» (Le cuite imperial dans la Péninsule Ibérique d'Auguste à

Dioclétien, pág. 453), sem que interviessem nela quaisquer razões de ordem étnica.(31) Reflexões àcerca da Lusitânia, in Portucale, vol. XIII, págs. 186-187.

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Possidónio (32) e Artemidoro ("), além de Políbio, de que nem sem­pre parece ter-se servido directamente (34). E daí resulta, como muito judáciosamiente observa Schulten, «que, em geral, Estrabão não descreve a Ibéria 'do seu tempo, quer dizer, do tempo de Augusto e Tiberio, mas a Ibéria do tempo de Possidónio e Arte­midoro, cerca de 100 anos a. C., embora juntando bastantes factos do seu tempo, em parte através de Timagenes (35), em parte segundo os seus próprios conhecimentos» (36), que — pelo menos em relação ao Noroeste da nossa Península — deviam ser bem escassos (37).

Realmente, apesar dos informes fornecidos sobretudo por ele-

(32) É a sua principal fonte. Di-lo Garoia y Bellido, acentuando que «quase tudo o que Estrabão toma <die outros escritores é precisamente de Pos­sidónio» (España,y los Españoles cit., pág. 4'5). E Schulten confirma intei- ramente este juízo, dizendo que, para a Ibéria, Possidónio é a fonte directa principal de Estrabão (Fontes Hispaniae Antiquae, VI, pág. 4). Possidónio visi­tou a Hispânia por volta do ano 90 a. C..

(33) Schulten considera-o «a segunda fonte principal e directa tíje Estrabão para o Oeste»; e acrescenta que o «cotejava continuamente com Possidónio, de modo que, muitas vezes, não se pode assegurar qual dos dois segue» (Ibid., pág. 4). Artemidoro viajou pelas costas da Ibéria por volta do ano 100 a. C., um pouco antes de 'Possidónio, «e descreveu-as em forma de périplo, come­çando pelo oabo de S. Vicente». Vicie também Garcia y Bellido, op cit., pág. 45.

(34) Dí-lo Schulten, que observa também que «Estrabão tirou menos partido dele do que de Possidónio, por este ter reproduzido e completado Políbio» (Ibid., pág. 4). Mas Garcia y ¡Bellido opina que, «se Estrabão prefere, em geral, os informes de Possidónio e Artemidoro aos de Políbio, é, sem dúvida, pela maior proximidade destes do seu tempo, à data em que escreve» (Op. cit., pág. 45).

i(35) Célebre historiador alexandrino, da época de Augusto. «Timágenes só é citado duas vezes (por Estrabão), mas parece que a tele se devem todas as referências sobre as coisas do tempo de César e de Augusto, que denunciam um autor do tempo deste último, como era Timágenes» (Schulten, op. cit., pág. 3).

(36) Ibidem, pág. 4.'(37) Realmente, como acentua Garcia y ¡Bellido, Estrabão pouco podia

saber da região cantábrica e da galaica pelos autores citados, incluindo os mais

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202 Torquato de Sousa Soares

mentos da administração ou da milícia (38), essa região era ainda então, em grande parte, para os conhecimentos geográficos — como nota o Prof. Garcia y Bellido — terra incógnita (39). E foi pre­ciso que, decorridos alguns decénios (40), o chamado Orbis Pictus de Agripa e a Chorographia, que o lacompamhava como texto expli­cativo (41), fossem elaborados, para esta situação se modificar (42).

É certo que Bsfcrabão, que sie julga ter escrito a sua obra entre os anos 27 e 7 a. C. (43), pode, mais tarde, por volta do ano 18 p. C..

modernos, pois só mais tarde — em 19 a. C., quando já redigia ou planeava a sua obra — é que Augusto triunfou dos Cántabros (España y los Españoles

cit., pág. 39).(38) De facto —* observa Bellidot — «os dados que (Estrabão) apresenta

na sua descrição da zona norte e noroeste de Espanha, procedem em grande parte de narrações ouvidas casualmente, e inquiridas tam'bém pelo autor entre os oficiais, altos funcionários e comerciantes, que por essa razão [a guerra pro­movida por Octávio] estiveram em Cantábria e na Gailécia». E conclui: «A suposição, tão versomil e natural, apoia-se também no carácter anedótico que às vezes tomam estes informes, anedotas que dão a sensação de terem sido recolhidas aqui e ali, entre um ajuntamento de soldados que comentavam as campanhas passadas» (Op. cit., pág. 39).

i(39) Ibidem, pág. 13.i(40) Depois da primeira reforma provincial de Augusto, geralmente

atribuída ao ano 2*7 a. C. Vide, a este respeito, E. Albertini: Les divisions

administratives cit., págs. 25 a 33.(41) O mapa de Agripa, que foi elaborado por ordem de Augusto, só

foi concluido por volta do ano 7 a. C., isto é, cerca de cinco anos após amorte de Agripa, segundo as suas notas, por ordem de Augusto (Vide Alber­tini, op. Cit., pág. 28). A Chorographia é obra de autor anónimo (Vide Bellido: España y los Españoles hace dos mil años, pág. 13, e La España del siglo

primero de nuestra era, págs. 22 e 101).(42) Realmente — informa ainda Bellida —esta obra passou a «influir

directa e eficazmente sobre os escritores geográficos do seu tempo, dois dos quais foram Mêla e ¡Plínio o Velho», que, de facto, demonstram conhecermuito melhor do que Estrabão as coisas do norte e do noroeste de Espanha»(España y los Españoles cit., págs. 13* e 14).

(43) Vide 'Garcia y Bellido, ib id., pág. 30.

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retocá-la (44), tendo certamente em vista as alterações de carácter administrativo que o mapa die Agripa consignava, bem oomo as- que tiveram lugar alguns anos depois, isto é, lentre os anos 7 e 2 a. C. (45). Mas esses retoques foram tão superficiais (46) que nem por isso a sua Geografia deixa de reflectir, embora contra­ditoriamente, o estadio de coisas anterior (47).

Realmente, ao apresentar certos quadros geográficos ou étnicos, Estrabão nem sempre se preocupou de prevenir o leitor de que eles tinham sido ultrapassados não só em virtude de disposições toma­das pela administração romana, mas até cm consequência de migra­ções de povos que, à chegada dos romanos, não estavam ainda perfeitamente estabilizados (48). E daí, como veremos, várias con-

(“) Ibid., ibid..(45) vide E. Albertini, op. cit., págs. 33 a 37.(4e) vide Garcia y Bellido: España y los Españoles cit., pág. 30.(47) (Esta observação é particularmente expressiva em relação aos Lusi­

tanos e aos Calaicos, cujos países nem sempre se apresentam no texto estra- boniano com a mesma configuração. 'Assim, por exemplo, depois de dizer que «hoje a maioria dos Lusitanos se chamam Calaicos» (KM, 3, 2), observa logo em seguida, sem explicar a razão, que, «contràriamente ao dito, alguns autores modernos chamam a estes (isto é, aos Calaicos) também Lusitanos» (III, 3, 3). E adiante toma a dizer, referindo-se à zona situada ao norte do Douro, que os seus habitantes «se chamavam antes Lusitanos, mas que hoje se consideram Calaicos (iril, 4, 2'0). Há, realmente, em Estrabão, quatro orde­nações territoriais perfeitamente distintas, que ele aceita sem invocar explíci­tamente: as duas primeiras, pre-romanas— em que a Lusitânia se estende desde o Tejo até ao Cantábrico, e, depois, até ao sul do cabo Nerion, ficando fora dela, ao norte, os Ártabros, e a leste (a norte do Douro) a Calécia; a de 27 a. 1C. (consignada no mapa de Agripa) — em que a Lusitânia, mantendo a fronteira meridional, abrange a Calécia, o país dos Ártabros e as Astúrias; e, finalmente, a última de Augusto — em que a Lusitânia se estende, ao sul, até à costa marítima, recuando, ao norte, até ao Douro.

(48) Queremos, sobretudo, referir-nos às migrações célticas, nomeadamente à dos Calaicos que, como veremos adiante, tão profundas transformações pro­vocou no Noroeste da Hispânia,

203Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal

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204 Torquato ée Sousa Soares

fusões, que muito dificultam uma interpretação consentânea do texto estraboniano.

Vejamos se, não obstante, será possível delimitar a Lusitânia i-mediatamente anterior à dominação romana.

a) Limites setentrionais:

Depois de se referir genéricamente aos rios a partir do Tejo — ao norte do qual se estende a Lusitânia — Estrabão menciona o Munda (Mondego), o Va-oa (Vouga), o Douro e, além de outros que não designa, o Letes (49) e o Bainis, chamado por outros Minho, que diz ser o maior de todos os rios da Lusitânia (50). E informa adianlbe que, «mais além, há outros rios que correm paralelamente aos já nomeados» (51).

Em seguida, o geógrafo grego, que já observara que os Ártabros constituíam a tribo que habitava a região mais longínqua do norte e do ocidente da Lusitânia (52), di-los radicados próximo do cabo Nerion (53), onde se une o lado ocidental com o setentrional, e em

(49) «Chamado por uns Limaia e por outros Belión», acrescenta Estra­bão {iEH, 3, 4; C. 153).

(50) Ibidem, «Este rio — informa ainda Estrabão — foi o limite da expe­dição de Bruto» (Vide, atrás, a nota 15).

(61) Ibidem.

(52) III, 2, 9; C. 147. Seguimos a tradução de Garcia y Bellido. A de Schuten, aliás equivalente, diz: «...os Ártabros, que são os últimos da Lusitânia em direcção ao norte e a oeste» (Fontes cit., VI, pág. 100).

(53) Garcia y Bellido supôs ser este cabo o Finisterra, «situado um pouco antes do lugar ocupado pelos Ártabros» (España y los Españoles cit., pág. 129, nota 133); mas, depois, identificou-o com o Torinhana (La Península Ibérica

cit., pág. 111), de acordo com Luís Monteagudo, que também o assimila ao cabo Céltico (Galicia en Ptolomeo, in «Cuadernos de Estudios Gallegos», VIII, págs. 629 a 632). Vide também a Carta de Coruña romana, do mesmo autor, in «Emérita», tomo XX, págs. 431-4*82. Monteagudo, interpretando Ptolomeu (II, 6, 21), sitúa o Artábrorum portus não na Corunha, como supõe Bellido

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 205

cujas cercanias estão os Célticos, parentes dos que vivem sobre o Guadiana (54).

A exegese corrente deste passo admite que Estrabão incluía os Ártabros na Lusitânia, como sendo o seu último povo (55). Mas o certo é que, logo em seguida, parece contrapô-los às trinta tribos que a constituíam, pois diz — sem se referir aos Célticos seu vizi­nhos— que essas tribos habitavam o país situado entre o Tejo e os Ártabros (56).

A razão de ser desta aparente contradição está certamente na autonomia alcançada por este povo, autonomia essa resultante não tanto do estabelecimento, junto dele, dos elementos célticos vindos do sul, a que nos referimos, como das relações de uma intensidade

(España y los Españoles cit., pág. 129), mas em Duyo, próximo do cabo Torinhana (Ibid., tomo XX, pág. 4711), razão pela qual lArtemídoro o chama Artabrorum. '(Vide Sdhulten: Geo grati a y etnografia antiguas de la Península Ibérica, I, pág. 131).

(54) III, 3, 5; C. 153. Estrabão conta que chegaram aí em virtude de uma campanha que empreenderam com os Túrdulos, como referiremos adiante, na nota 192.

(55) Assim A. Tardieu, na sua tradução de Geografia de Estrabão, escreve: «Les derniers peuples de la Lusitanie son les Artabres...» (tomo I, pág. 251). Por sua vez Garcia y Bellido traduz: «Los últimos son los artabros» (op. cit., pág. 128); e Schulten: «La última tribu de Lusitania hacia el norte son los Artabros» (Op. cit., pág. 205).

É certo que Plínio observa que os Ártabros pertencem à nação céltica (IH, 13); mas nem Estrabão, nem Plínio os apresentam como originàriamente célticos. Sobre a origem do seu nome, as opiniões divergem. Vide Bosch-Gim- pera: Etnologia de la Península Ibérica, págs. 471, n.° 1 e 489; e sobretudo, Luís Monteagudo, in Carta de Coruña romana cit. '(«Emérita», tomo XX, págs. 479 a 481).

(5Ô) III, 3, 5; C. 154. O facto de Estrabão não se referir aqui a esses Cél­ticos, que ocupavam, certamente, áreas bastante limitadas, talvez resulte da circunstancia de constituírem pequenos núcleos dispersos, ou de pretender apenas dar-nos o quadro nas suas linhas gerais, mencionando sòmente os povos dominadores.

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206 Torquato de Sousa Soares

cada vez maior, que manteve com os centros mercantis da costa ocidental da Europa e das ilhas Britânicas (57).

¡De facto, foi sobretudo devido a essas relações que os Ártahros adquiriram não só um considerável poder económico, que lhes permitiria dominar pelo menos desde o rio do Sor, na costa can­tábrica, até à -ria de Arosa, na costa ocidental (58), mas também as suas peculiares características de ordem cultural (59).

Assim se compreende o retrocesso dos Lusitanos, que, imedia- tamenlbe antes da divisão administrativa do ano 27 a. C., já não atingiam o Cantábrico, pois se o atingissem, Pompónio Mela ter- -se-ia referido a eles e não aos Ártabros, ao mencionar os povos que habitavam a costa setentrional, a oeste dos Ástures (60).

(®7) Vide, a este respeito, Bosch Gimpera: Rélations préhistoriques entre Vlrlande et Vouest de la Péninsule Ibérique («'Préhistoire», II, Paris, 1933); H. N. Savory: A Idade do Bronze Atlântico no Sudoeste da Europa («Revista de Guimarães», LXI, 1951); e Mac White: Estudios sobre las relaciones atlânticas de la Península hispânica en la Edad del Bronce; bem como Maluquer de Motes, que se refere a estes trabalhos in Historia de España, sob a direcção de Menéndez Pidal, Tomo I, vol. III, pág. 12 e nota 30, a pág. 33.

(58) Realmente, como observa Luís Monteagudo, «a Arqueologia tende a comprovar esta extensão da tribo (dos Ártabros) desde os Montes de A Bar- bança (S. W. de Noya), até à Serra Faladoira (S. E. de Ortigueira), posto que esta é precisamente a área dos torques áureos com fios de cobre enrolados e terminais periformes, tipo que baptizámos com o nome de ártabro» (Carta de Coruña Romana, in «Emérita», tomo XX, págs. 471-472).

(5s) Vide a este respeito Luís Monteagudo: Carta de Coruña Romana, cit. na nota anterior; MadWhite, que in Estudios cit. na nota 57 se refere a peças de bronze encontradas em mamoas galegas do círculo nórdico que até agora são únicas na Península (pág. 45); e Menéndez Pidal; El elemento -obre en la toponimia gallega, em que põe em relevo o facto de ser essa terminação singularmente delimitada ao extremo noroeste da Galiza (Toponímia prerromânica hispana, pág. 186-187). Está neste caso a ilha de Ocobre (à entrada, do lado meridional da ria de Arosa), depois transformada em península com a designação actual de EI Grove (Veja-se, adiante, a nota 131).

(«o) De faoto, o geógrafo gaditano, depois de se referir ao promontório Céltico e de dizer que «até ao solar dos Cántabros a costa é quase recta, à

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Reflexões sobre a origerr\ e a formação de Portugal 207

Posto isto, atentemos na fronteira oriental.

b) Fronteira oriental:

Considerando que, pelo facto 'de a Lusitânia estraboniana (ou, talvez melhor, possiidoniana ou polibiarua) incluir territórios ao norte do Douro, os Galaicos deveriam, naituralmente, figurar n/ela, Leite de Vasconcellos acha motável que o geógrafo grego diga «que ela tinha a E. os Calaicos». E conclui daí ter havido «'equívoco nas ideias do geógrafo, ou os Calaicos ocupavam a princípio alguma estreita região vizinha dos Ástures ?» (61^.

Por sua vez, o Plrof. Paulo Merêa admite que «a situação que o autor atribui aos primitivos Calaicos, a leste da Lusitânia, pode bem resultar de uma confusão» (62).

Não obstante, se abstrairmos da Calécia romana, que, como veremos, não correspondia, certamenite, à Caléciia do século n a. C., o passo em causa resulta perfeitamente plausível, tanto mais que concorda com o testemunho de Plínio (63) a que nos referiremos adiante.

Mas nem per isso se nos afigura fácil determinar com rigor os limites orientais da Lusitânia, indo além da menção dos povos confinantes, isto é, dos Carpetanos, dos Vetões e dos Vaceus, entre o Tejo e o Douro, e dos Calaicos ao norte deste rio (64).

Realmente, nenhuma indicação rigorosa nos oferece Estrabão

excepção de alguns pequenos cabos e breves enseadas» (III, 12), afirma: «Nela se encontram primeiro os Ártabros, que pertencem todavia à nação Céltica, e logo a seguir os Ástures» (III, 13).

(61) Religiões da Lusitânia, vol. I, pág. XXI, nota 1; e vol. II, págs. 4'6-47, entre as quais está o mapa da Lusitânia proto-histórica.

(62) Reflexão acerca da Lusitânia, in «Portucaie», val. XIII, pág. 187.(63) Referimo-nos aos dois passos em que, segundo cremos, situa a Calécia

a leste dos Brácaros (IV, 112).(64) As dificuldades resultam, em grande parte, da instabilidade destes

mesmos povos, nomeadamente os 'Galaicos, como veremos adiante. Além disso,

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sobre esta fronteira oriental, pois se limita a dizer — depois de observar que a extensão da Lusitânia é de 3.000 estádios (65), sendo a sua largura muito menor — que «a parte oriental é elevada e áspera» (66), o que apenas nos permitirá, quando muito, supor que o extremo leste da Lusitânia pre-romana ficaria um pouco àquem da actual fronteira portuguesa, não só ao norte do Douro, mas também ao sul desse rio, pois para lá da serra da Estrela o território é menos montanhoso.

Temos, assim, que a Lusitânia com que os romanos depararam no século II a. C. corresponderia, segundo o geógrafo grego, ao sul do Douro, ao território onde havia de se constituir o convento Escalabitano (67), e, ao norte, ao que se estende até ao país dos Ártabros (68), sendo limitado a leste talvez ^ pelo

sendo este último povo, ao que parece, de fixação mais recente, podemos até admitir que os Lusitanos tivessem ocupado, antes do seu advento, o terri­tório onde viriam a instalar-se, como referiremos adiante.

>(65) O texto indica 300 estádios; mas, correspondendo esta extensão apenas a 55 Km., é evidente tratar-se de um equívoco. Por isso Schulten, na sua tradução do texto est raboni ano, corrige este passo para S.OOÚ estádios. (Fontes Hispaniae Antiquae, VI, págs. 104 e 202).

(66) lili, 3, 3; IC. 153. Estrabão estabelece o contraste entre esta parte e a ocidental, voltada ao mar, que «é plana, excepto algumas montanhas de pouda altura».

Comentando este passo, Schulten inclue nesta região a serra da Estrela, o que é manifesto equívoco, pois é evidente que esta cordilheira não pode considerar-se de pequena altura. E este erro levou o arqueólogo alemão a atribuir à Lusitânia a largura máxima de 2.000 estádios, o que é tanto mais absurdo quanto é certo que, como vimos, Estrabão põe nitidamente em con­traste as duas dimensões da Lusitânia. (Fontes cit., pág. 202).

(67) Realmente, como veremos na reflexão seguinte, o limite deste con­vento, ficando um pouco a ocidente da actual fronteira portuguesa, poderá corresponder aproximadamente ao que Estrabão atribui à Lusitânia. Vejam-se os mapas que acompanham este estudo.

(68) Acerca deste povo e da sua localização vide o que dissemos atrás, a págs. 45 e 46. Não nos referimos aos povos célticos vindos do sul, que já

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Marao e outras cordilheiras (69) que o dividiam da Calécia pré- -romana (70).

III — Constituição démica dos territórios dominados pelos Lusi­tanos:

Não nos propomos versar o problema da origem dos Lusitanos — problema 'esse que, apestar de 'ter siido muito estudado (71), não foi ainda satisfatòriamente resolvido, em parte, talvez, por se esta­belecer frequentemenite confusão entre o povo lusitano e os povos

mencionámos na pág. 45, porque, ou foram dominados pelos Ártabros, ou ficaram dispersos no país ocupado pelos Gróvios.

i(®9) Esta hipótese baseia-se não só nas características geográficas que Estrabão atribui à fronteira oriental da Lusitânia, mas também na posição que, de acordo como os dados de Plínio, é atribuível à Calécia.

(70) É claro que Estrabão se refiere apenas aos povos dominadores, que ocupavam áreas mais ou menos extensas, onde subsistiam os povos anterior­mente aí fixaldos, por certo muito mais numerosos —o que explica o facto de só mencionar, desse lado, os Galaicos, que já então teriam domi­nado <as tribos que se interpunham entre des e os Ártabros, entre as quais a dos Lémavos, a que se refere Plínio (¡III, 2*8). Sobre a origem deste povo vide Bosch-Gimpera: Infiltrações germânicas entre os Celtas peninsulares '(«Revista de Guimarães», vol. LX, pág. 339 e segs.). Assim, o movimento de povos de ori­gem céltica, entre os quais estavam estes três, explica a instabilidade dos limites da Lusitânia, especialmente a norte do Douro, onde esses movimentos mais se fizeram sentir, pelo menos no período imediatamente anterior à dominação romana, como diremos adiante.

(71) V. gr. por Adolfo Schulten: Hispania (págs. 110-111 da trad. de Bosch-Gimpera e Artigas Ferrando); A. A. Mendes Corrêa: Os povos primi­tivos da Lusitânia e A Lusitânia pré-romana (in História de Portugal sob a direcção de Damião Peres, vol. I, 2.a Parte); e P. Bosch-Gimpera: Etnologia de la Península Ibérica (nomeadamente no capítulo XXV — Eis Lusitans, págs. 598 e segs.); El origen y los movimientos de los Lusitanos, in Los Celtas de Portugal y sus caminos («'Homenagem a Martins Sarmento»), e La forma­ción dé los pueblos de España (págs. 151 a 164); e Luis Pericot Garcia: Los Lusi­tanos, in «Historia de España», tomo I(Épocas primitiva y romana),págs. 442-443.

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radicados no pais que os Lusitanos ocuparam (72). Basta ao nosso propósito indicar e tanto quanto possível caracterizar esses povos para depois expor a situação geral do país que os Lusitanos dominaram.

a) O testemunho de Pompónio Mela:

Vejamos, em primeiro lugar, o que observa Pompónio Mela, que, como dissemos, embora tivesse conhecido a Chorographia que explicava o miapa de Agripa, teria utilizado sobretudo fontes anteriores (73).

Depois de se referir à foz do Tejo — rio que produz ouro e pedras preciosas (74) — Mela, que faz a sua descrição a partir do sul, observa que, na grande flexão que se abre ao norte desse no, isto é, para além do promontório Magno (75), estão os antigos

(72) Assim, depois de se referir às últimas teorias de Schulten e Bosch, o Prof. Pericot Garcia observa «que todas elas produzem uma impressão de interi­nidade inegável, e que, por agora, só é possível afirmar que o problema dos Lusitanos não está resolvido» (História de España, t. I, pág. 443, col. 1.a). E, por sua vez, o Prof. Sánchez-Albomoz, depois de dizer que a última hipótese de Bosch Gimpera «suscita todavia maiores obstáculos do que a anterior», conclui que «o problema etnográfico lusitano está por resolver» (EI culto al Emperador y la unificación de España, separata de «Anales del Instituto de Literaturas Clásicas», de Buenos-Aires, págs. 185-8/6, nota 252). Sobre este problema deve ver-se também J. Caro-Baroja: Los pueblos de España. Ensayo de Etnología; J. Maluquer de Motes: Pueblos celtas, in Historia de España, sob a direcção de Menéndez Pidal, Tomo I, vol. III, págs. 27-28; e ainda Robert Étienne: Le culte imperial dans la Péninsule Ibérique d'Auguste à Dioclétien, págs. 43 e 44. Mas, por agora, basta-nos assinalar o contraste que tanto Estrabão como Pompónio Mela e Plínio estabelecem entre eles e os povos célticos limítrofes.

(73) Vide Garcia y Bellido: La España del siglo primero de nuestra era, págs. 21-22.

(74) Chorographia, III, 8.(75) A identificação do Magnum promontorium com o cabo da Roca,

como propôs o Prof. Garcia y Bellido (op. <?it., pág. 54, nota 99) e Leite de VasconCellos (Religiões da Lusitânia, vol. II, pág. 25), não nos parece defensá-

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Túrdulos e as cidades dos Túrdidos (76) ; e, em seguida, descreve a cosifca ao norte do Douro, dizendo que, depois de seguir em linha recta e infleabir um pouco, avança gradualmente, para tomar a infl ectir, seguindo outra vez em linha reota até ao promontório chamado Céltico (77); e acrescenta: «totam Celtici colunt, sed a Durio ad flexum Grovii» (78) — adversativa com que, evidentemente, se quer ressalvar da afirmação de que os Célticos habitavam toda a costa que se estendie ao norte do Douro, pois assinala, d/esde este rio até à reentrância formadia pelas rias de Vigo, Pontevedra e Arosa, a presença dos Gróvios (79), através dos quais correm

vel. Trata-se, inconfcestàvelmenfce, do Barbarion, de Estrabão (III, 3, 1), «cujo ponto mais saliente constitui o cabo chamado de Espichei», Como observa, desta vez certeiramente, o grande arqueólogo (ibid., ibid., pág. 1'8), pois Pompónio Mela (III, 7 e 8) diz com toda a clareza, que o limitam dois golfos em que estão, no mais próximo, Salácia (Alcácer do Sal), e, no mais longínquo, Ulisippo (Lisboa).

Quanto a Ebora, que Mela situa nele, talvez seja alguma cidade desapa­recida, pois não nos parece forçoso identifica-la com a cidade alentejana desse nome, como quer Bellido {ibid., pág. 54, nota 1'05), tanto mais que o geógrafo gaditano cita mais duas com o mesmo nomie, cuja situação se desco­nhece. {Ibid., nota9 89 e 126).

(76) «Ab his promontoriis in illam partem, quae recessit, ingens flexus aperitum; in eoqite sunt Turduli veteres, Turdulorumque oppida» (IUI, 8).

(77) 'Correspondente ao Torinhana. Vide, atrás, a nota 53.(78) III, 10.(79) Leite de Vasdoncellos não interpreta assim este passo, pois considera

que P. Mela inclui os Grovii, como tribo secundária entre os Celtici, que julga resultarem «especialmente da fusão de Callaeci com Celtas» (Religiões da Lusi­tânia, II, págs. 74 e 77), o que não nos parece defensável.

A confusão do grande arqueólogo resulta, certamente, de atribuir aos Callaeci uma extensão que não tinham. De resto o nome Celtici não se for­mou ao norte do Douro, pois já assim eram designados os Celtas moradores ao sul do Tejo. Contradita-o Félix Alves Pereira, que, embora admita a celtização dos Gróvios, que considera iberos, traduz assim o passo de Mela: «Célticos habi­tam esta frente toda; porém, desde o Durius até àquela pequena volta, os Gró­vios» — observando, com razão, que «a adversativa sed não autoriza a interpre­tação tão decisiva do Sr. Dr. Leite de Vasconcellos» (Um Gróvio autêntico,

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214 Torqua to de Sousa Soares

o Ave, o Cávado (Celadus), o Neiva (Nebis), o Limia (chamado Oblivio) e o Minho (80). E o geógrafo gaditano observa ainda que a parte saliente, ao norte, é habitada pelos Praesamarchi, por entre os quais correm o Tambre e o <Sar (81), mencionando depois os Super tamarici (82) e os Neri (83).

in «O Arqueólogo Português», vol. XI, pág. 2<06). Esta interpretação seria per­feitamente correcta, se, ao que parece, Alves Pereira não admitisse, aliás como Garcia y Bellido (La España cit., pág. 3'6), que ÍMela se refere a toda a costa. Realmente, o geógrafo gaditano só tem em vista a costa que segue em linha recta, isto é, a partir do Douro para o norte, tal como consta da tradução de Huot, publicada na Collection des Auteurs Latins avec la traduction en français sob a direcção de Nisard, no volume relativo a Macróbio, Varrão e Pompónio Mela pág. 465, col. 1.a, que nessa parte, Deite de Vasconcellos parece seguir. (Vide a sua Nota a respeito dos Gróvios e Célticos, in «O Archeólogo Português», vol. XIV, pág. 131). (Mas o sábio arqueólogo insiste em dizer que Mela incluía os Gróvios entre os Célticos, como tribo sua, comparando-os aos Praestamarci e aos Neri que —observa—«estão nas mesmas circunstâncias (ibid., ibid.), o que, se não é absur­do, pois devia ser a mesma a sua origem, '(vide as notas 54 e 125), não é abso­lutamente exacto, visto terem chegado em épocas e em condições muito diferentes.

(8°) Pompónio Mela, ao 'enumerar estes rios, situa o Lima depois do Minho, que, por sua vez, segue i mediatamente depois do Neiva. Porém, como observa Leite de Vasconcellos, «fez isto, não por erro, mas por ter de juntar um epíteto a Limia («cui oblivionis cognomen est»), e ficar pois melhor no fim a menção do rio, para se arredondar oratoriamente o período» («O Archeo- logo Portugués», vol. X, pág. 287, nota 1). Vide também Luís Monteagudo: Galicia en Ptolomico in «Cuadernos de Estudios Gallegos», t. II, págs. 614-616.

(81) O Tamibre desagua perto de Ebora, na ria de Muros, ao norte da qual se encontram os Cileni; e o <Sar entra no Tambre, que desagua na ria

de Airosa, junto à Torre de Augusto, certamen te ñas proximidades de Padrão, como nota Bellido (op. ct., pág. 56, nota 127).

(82) Que viviam certamente ao norte do Tambre, imediatamente a seguir aos Praesamarchi, talvez entre esse rio e o Jalhas.

(83) Situados ñas proximdades do Cabo Nerion, que Mela chama Céltico. Sobre a situação deste promontório, veja-se, atrás, a nota 53. Monteagudo observa que, comparando a situação e o nome do Artabrorum portus, indicados por Ptolo- meu, com o que Mela expõe '(III, 13), temos de concluir que os Ártabros

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 215

b) O testemunho de Plínio:

Com esita descrição não concorda mteiramemte Plínio, que, depois de assinalar o promontório Célitíico e os célticos Neri e Superta- marici (84), os Copori e o oppidum Noega (Noya), sobrie o Tam­bre, sem indicação de proveniência (85), os Célticos cognominados Praestamarci e, a seguir, os C/7eni(86), a cuja origem também

rodeavam os Neri por Este e Sul, se bem que o mais provável seja que os Neri formassem uma sub-tribo incluída nos Ártabros. CCarta de Coruña Romana. II — Costa, in «Emerita», tomo XX, pág. 474).

Trata-se, pois, de uma incorporação levada a efeito pelos Ártabros, que, aliás, se estenderam ainda mais para o sul, visto Ptolomeu considerar Noya como cidade sua (II, 6, 21), e haver vestígios da sua dominação na própria ria de Arosa, como vimos na nota 59.

(84) Esta interpretação do passo de Plínio não concorda perfeitamente com a tradução de Bellido, que parece dar a entender que o naturalista latino só designava célticos os Nérios (op. dit., pág. 140). Seguimos Monteagudo, que considera que Plínio «os inclue dentro dos Célticos, que podem corresponder aos Ártabros». (Ibid., ibid., pág. 486).

(85) É evidente, diz o Prof. Garcia y Bellido, que os povos não citados como célticos eram não-célticos; e que estes não-célticos têm de se considerar autóctones em contraposição Com os Célticos, que são 'forasteiros segundo Estra- bão (III, 3, 5, in La España del siglo primero, pág. 247).

(86) Ptolomeu coloca os Cilenos entre os Cáporos e os Lémavos, e assi- nala-lhes a cidade de Aquae Calidae (II, ó, 24), que se identifica com Caldas de Reis, devendo assim estar fixados na região próxima da costa, entre os rios Ulha e Lérez. (Vide Estudos encol da Edade do Ferro no Noroeste da Penin­sula, por Florentino Cuevillas e Rui de Serpa Pinto, in «Arquivos do Seminario de Estudos Galegos», VI, págs. 267-208).

Luis Monteagudo diz que o limite entre estes povos e os Heleni, ao sul, «era uma linha que, seguindo a direcção do Leres, desde a foz à nascente, continuava até à curva pronunciada que o Minho descreve seis ou oito quiló­metros ao norte da sua confluência Com o Sil». (Galicia en Ptolomeo, in «Cuadernos de Estudios Gallegos», VIII, pág. 623).

Não obstante, quer-nos parecer, como diremos na reflexão seguinte, ao ocupar-nos do limite setentrional do convento Brácaro, que era o próprio rio Leres que delimitava os dois povos.

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se não refere, menciona ainda, além dos Grovii, a quem atribui o cas­telo de Tyde (Tuy), os Helenos, ao norte—aos quais, bem como àque­les, confere origem grega (87)— as ilhas Siccae e o oppidum Abo- brica(88)f a que se segue a descrição do estuário do rio Minho (80),

(87) A atribuição de origem helénica a estas duas tribos, que se julga resultar de uma simples semelhança onomástica, tem sido geralmente considerada

sem fundamento sério, por não terem aparecido neste país quaisquer testemunhos arqueológicos de procedência grega. Admite-se mesmo que o nomie Helleni resulta da helenização, por Asclepiades, de um nome indígena, assim como Grovii, que foi substituído por Graii. Veja-se, a este respeito, o artigo de Martins Sarmento: Os Gregos no Noroeste da Ibéria, publicado primeiro na revista O Instituto, vol. XX1III (págs. 1 a 49*), e depois em Dispersos (págs. 1 a 7); Leite de Vasconcellos: Religiões da Lusitânia, págs. 74 e 76; e Cuevillas e Serpa Pinto: Estudos encol da Edade do Ferro no Noroeste da Peninsula. As tribus e a sua costituzón politica («Arquivos do 'Seminario de Estudos Galegos», VI, pág. 274); A. Schulten: Fontes Hispaniae Antiquae, VI, pág. 226; e Mendes Corrêa, que, depois enumerar os testemunhos da presença dos Gregos nesta região, e de dizer que «não constituem provas científicas de visitas muito remotas dos Gregos ao litoral português», conclui: «Ou se trata de pura fantasia, ou, como no caso dos achados arqueológicos e numismáticos (a que poderíamos juntar alguns outros) eles não correspondem à cronologia provável dessas visitas e podiam interpretar-se pela participação de intermediários que fossem os porta­dores desses documentos» (A Lusitânia pre-romana, in «História de Portugal» sob a direcção de Damião Peres, vol. I, pág. 160, col. l.B). Voltaremos a refe­rir-nos a este assunto adiante, na nota 118.

(88) (Bellido identifica as ilhas Siccae às Cíes, em frente da ria de Vigo; e quanto ao ópido Abóbrica, cuja posição se 'desconhece, nota a cir­cunstância de Mela situar um ópido designado Adróbica na ria Ferrol, admi- tinldo a hipótese de um erro de Plínio —«o que — comenta — bem poderia suceder ao transcrever as listas alfabéticas de nomes que lhe serviram de informação» (La España cit., págs. 24*7-24>8). Parece-nos, no entanto, pos­sível identificar este ópido com o actual Castro de Santa Tecla, pois a sua menção precede imediatamente a do rio Minho.

(89) Plínio diz que tinha 4.000 passos de largura. Certamente por isso, Estrabão considerava o Minho o maior rio da Lusitânia, entusiasmando-se ao descrevê-lo junto à foz (III, 3, 4). Vide, a este respeito, Monteagudo, ibid., ibid., págs. 616-620.

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 217

e, finalmente, sem qualquer referência à respectiva origem, os Leuni, os Seurbi (eo) e o oppidum Augusta, dos Brácaros (91), a montante dos quais fica a Calécia (92).

Tanto os Brácaros como os Galaicos — esclarece adiante Plínio — confinam com o Douro, ficando defronte, na margem sul, a montante, os Lusitanos e, a juzante, os Turduli veteres (93), seguin­do-se a estes os Paesuri, o rio Vouga (Vagia) (94), o oppidum Tala- brica (95), o rio e o oppidum Aeminium (96), os oppida Conim-

(90) A referência de Plínio, que situa estes dois povos entre o rio Minho e os Brácaros, permite-nos supor que os Leimos ficavam entre aquele rio e o Lima, e os 'Seurbos entre este e o Cávado. (ISobre a situação idos Seurbos, cuja identificação com os íSeúrros Leite de Vasconcellos aceita, veja-se a nota deste autor: Os Seúrros (povo prè-romano d’àquem e d'além-Minho) in «Opúsculos», vol. V, págs. 60 a 72. Não nos parece, porém, possível identificar geograficamente os Seurbos de Plínio com os Seúrros de Ptolomeu, mesmo admitindo, como faz Leite de Vasconcellos, que se tivessem estendido para a margem esquerda do Minho).

(91) 'A designação de «Augusta», desacompanhada de qualquer nome pró­prio local, indica-nos que se trata de uma fundação originariamente romana, talvez aproveitando um dos acampamentos de Décimo Júndo Bruto, a julgar pela sua forma e localização, como diremos na «Reflexão» seguinte.

i(92) Assim interpretamos a expressão de Plínio «Bracarum oppidum Augusta, quos supra Cali aeci a» (IV, 112). Justificamos adiante '(págs. 86 e 87), este ponto de vista.

(93) «Durius amnis ex maximis Hispaniae, ortus in Pelendonibus et juxta Numantiam lapsus, dein per Arevacos Vaccaeosque, disterminatis ab Asturia Vettonibus, a Lusitania Callaeois, ibi quoque Turdulos a Bracaris arcens» (Naturalis Historia, IV, 112).

(94) Gaspar Barreiros indica uma versão die Plinio que, a 9eguir a «flu­men Vacca», menciona «oppidum Vacca». (Vide A. de Sousa Baptista: Talábrica. Considerações sobre a cidade luso-romana de Vacca, o Julgado e o Burgo de Vouga, separata dos vols. XilV e XVI do «Arquivo do Distrito de Aveiro»).

i(95) Sobre este oppidum vide o artigo de A. de Sousa Baptista, citado na nota anterior.

(96) Sendo Aeminium a actual Coimbra, o rio desse nome é, como observa Garcia y Bellido, o Mondego (antigo Munda). Assim, segundo o

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briga (97), Collippo (98) ie Eburóbrittium ("), e, finalmente, o pro­montório que muitos designam Olásiponense, por causa do oppidum desse nome (10°).

Assim, ao passo que -Estrabão se limita, como vimos, a dizer que na Lusitânia, isto é, «mtre o Tejo e o país dos Ártabros, habitam umas trinta tribos», cuja origem não especifica, mas que contrapõe aos Célticos instalados na vasta mesopotamia entre o Tejo e o Guadiana (101), e aos que se tinham fixado ao norte, Pompónio Mela adianta que, na região costeira, aio sul do Douro, habitam os Túrdulos e, ao morte, até à reentrância formada pelas três rias

mesmo arqueólogo, «é muito possível que o Munda recebesse também o nome da serra próxima em que nasce, a 'da Estírela, que, como sabemos, na Anti­guidade se chamava Mons Herminius ou, talvez melhor, Aeminius, nome que o rio parece conservar». E assim — comenta o mesmo autor — não existirá o erro que, messe passo, se atribui ao texto pliniano. (La España cit., pág. 249).

(97) Certamente fundada por Cónios celtizados, como parece mostrar o sufixo briga. Vide, adiante, a nota 115.

(e8) Parece corresponder à actual Leiria.(") Presumivelmente Évora de Alcobaça, ao sul de Leiria.

(10°) Plínio diz que uns chamam a este promontório Ártabro, outros Magno, e muitos Olisiponense ; e acrescenta que com ele termina o flanco de Hispânia, iniciando-se, ao dobrado, o lado frontal. (TV, 113). Trata-se, com certeza, do cabo da Roca, que, rigorosamente não se identifica com o Magno de Pompónio Mela, pois, como vimos na nota 75, este promontório corresponde ao cabo Espichei. (A designação de Ártabro, que, segundo Plínio (IV, 113), alguns lhe atribuem, pode não ser erro, como julga Bellido (La España del siglo primero cit., pág. 249, nota 144), visto que, como observa Bosch-JGimpera, esta expressão parece ser constituida pelos elementos célticos ar- ou arc- (extremo) e trab- (habitação), podendo ser, assim, atribuida ao cabo situado mais a ocidente (Etnologia de la Península Ibérica, págs. 471, nota 1 e 489).

i(101) «...cuja população está integrada na sua maior parte por Célticos e algumas tribos de Lusitanos, trasladadas pelos Romanos para a margem oposta ido Tejo» (III, 1, 6; C. 139).

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de Vigo, Pontevedra e Arosa, os Gróvios, a que se seguem os Célticos (102). Por sua vez, Plínio confirma a permanência de Túr- dulos ao sul do Douro, de Gróvios ao norte do Minho, e de tribos célticas mas proximidades dio promontório designado, cortamente por causa delas, Céltico; mas restringe as áreas ocupadas por esses povos, citando ainda outros que, ao que parece, aí se tinham fixado anteriormente (103).

É, portanto, crível que, às tribos radicadas no país que seria mais tarde dominado pelos Lusitanos, se tenham sobreposto, em diferentes 'épocas, povos invasores, que haviam conseguido ocupar uma faixa do litoral mais ou menos larga e extensa (104).

c) Os Túrdulos:

Entre esses povos dominadores estavam certamente os Túr­dulos (105), que se fixaram ma margem esquerda do Douro, num

,(102) é de notar que Mela, que, entre o Tejo e a reentrância das rias, ee limita a mencionar genéricamente os Túrdulos e os Gróvios, cite depois, dis- criminadamente, no país ocupado pelos Célticos, algumas tribos que, de acordo com as informações de Plínio, parecem célticas.

Esta alberação do método seguido até então explicar-se-á, talvez, pelo facto de se tratar de tribos adventícias, isto é, de agrupamentos que, por terem chegado recientemente, não estavam ainda radicados no país, como já observou Garcia y Bellido ao comentar a descrição de ¡Plínio. (Vide La Península Ibérica en los comienzos de su Historia, págs. 62-63).

( 1 0 3 ) Esta conclusão resulta da circunstância de o naturalista latino não mencionar a sua origem, como seria natural se se tratasse de povos de fixação recente, como eram os Célticos.

(104) Só pelas referências de Plínio aos Galaicos, que limitavam, a leste, os Brácaros, que, por sua vez, ocupavam um território dominado pelos Gróvios, e ainda pelo facto de, segundo o mesmo geógrafo, os Túrdulos lindarem tam­bém com os Lusitanos, podemos, de certo modo, avaliar a extensão territorial ocupada por estes povos.

(ios) Originários da Turdetânia ou Bética. Segundo Estrabão, alguns autores distinguem os Túrdulos dos Turdetanos. Assim Políbio, para quem

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 221

território que não só devia atingir o Vouga mas até, provàvelmente, o ultrapassaria (106).

O epíteto veteres, que tanto Mela como Plínio lhes atribuem, talvez resulte da circunstância de terem sido os primeiros a emigrar, pois Mela parece distingui-los dos que tinham cidades ao norte do promontorium Magnum, que designa simplesmente Turduli, pro­vàvelmente por terem chegado depois (107).

— Porque se teriam ¡eles estabelecido aí ?O facto de virem die um país onde o cobre s»e explorava em

larga escala (108), e de estar a região que ocuparam nas proximidades de uma zona estañífera (109), poderá levar-nos a supor que foi

estes tinham por vizinhos, ao norte, os Turdulos. Mas, observa Estrabão: «Hoje em dia não se faz nenhuma distinção entre ambos». E acrescenta: «Têm fama de ser os mais Cultos dos Iberos» (III, 1, 6; C. 139). É este povo que se designa Tartéssio, do nome da sua capital, a famosa Tartessos. Vide, nomeada­mente, Schulben: Tartessos; Bosch-lGimpera: Etnología de la Península Ibérica, págs. 175 e segs. e 334 ie segs., e La formación de los Pueblos de España, págs. 146 e segs.; Pericot Garcia: História de España, Tomo I, pág. 423; Garcia y Bellido: Tartessos, in «Historia de España» sob a direccão de M. Pidal, I, 2.°, págs. 281 e segs.; e Maluquer de Motes: Pueblos ibéricos (ibid., 3.°, págs. 303 e segs).

(106) é certo que Plínio indica os Paesuri entre eles e o Vouga; mas trata-se, certamente de uma tribo anteriormente aí fixada, que os Túrdulos teriam dominado, pois Mela não os menciona.

(107) Schulten (Fontes cit., VI, pág. 206) supõe que a designação de vèteres foi dada por Plínio aos Túrdulos fixados na margem esquerda do Douro para os distinguir dos túrdulos da Andaluzia, o que, evidentemente, não faz sentido.

(108) Embora não saibamos se vieram directamente da Bética ou da meso- potamia transtagana, não podemos pôr em dûvi'da que fossem originários de uma região rica em jazidas cúpricas, a que o seu próprio nome está ligado.

(109) Realmente, há estanho na região compreendida entre o Douro e o Vouga, sendo as suas jazidas estañíferas as que, a sul do Douro, estão mais próximas da costa. (Vide R. de Serpa Pinto: Activité minière et métallurgique pendant Vàge du bronze en Portugal, pág. 5; Cotelo Neiva: Jazigos portugueses

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a necessidade de obter este metal para a preparação do bronze que teria determinado a sua fixação aí (110).

— Mas como se teriam estabelecido?O contraste que Mela estabelece entre eles e os Túrdulos que se

fixaram ao sul — contraste que não é apenas assinalado pelo epíteto de veteri que lhes atribue, mas ainda por os mencionar em bloco, como um povo unido, contrariamente aos outros, como veremos — poderá talvez resultar do facto de terem chegado como conquistadores.

Quanto ao extenso território que se estende ao sul, até ao Tejo, a sua proximidade da mesopdtâmia transtagana — onde os Turde­tanos tinham fundado cidades (m) e onde também -havia jazidas

de casseterite e volframite, in «Comunicações dos Serviços Geológicos de Por­tugal», tomo XXV, entre as págs. 30 e 31; e F. Alves Pereira: Geografia proto- -histórica da Lusitânia: Situação conjèctural de Talàbriga, in «O Arqueólogo Português», vdl. XII, pág. 142). Acresce a circunstância de haver também cobre nas proximidades (Vide R. Serpa Pinto, estudo cit.); e, além disso, não podemos deixar de ter em consideração o excelente abrigo que esse rio oferecia às embarcações que tinham de transportar o minério.

i(110) Há, de facto, como observa Mendes Corrêa, «um impressivo para­lelismo entre as áreas da carta mineira do País e da carta arqueológica dos machados de bronze» (A Lusitânia pré-romana, in «Hist. de Portugal» cit., pág. 152, col. 1.a). Vide também A Geografia da Prehistória, do mesmo autor, pág. 70; e R. de Serpa Pinto, op. cit., pág. 11.

(in) Refere-se-lhes Ptolomeu, que atribue aos Turdetanos não só as cidades de Balsa (perto de Tavira), Ossonoba (perto de Faro), Salada (Alcácer do Sal) e Caetobrix (ISetúbal ?) (II, 5, 2), no litoral, mas também de Pax Julia (Beja) e Julia Myrtilis (Mértola) (II, 5, 4), no interior. (Sobre a localização de iCetóbriga veja-se o estudo de F. Bandeira Ferreira: O problema da loca­lização de Cetóbriga. Seu estado actual, in «Conimbri-ga», vol. I, págs. 41 a 70).

Talvez as quatro primeiras fossem entrepostos mercantis, visto que, como observa Bosch Gimpera, os Tartéssios «utilizavam um caminho comercial que, partindo do Guadalquivir, chegava precisamente até à foz 'do Sado» (La for­mación de los pueblos de España, pág. 175).

Tratava-se, naturalmente, de um caminho comercial marítimo; mas Sán- chez-Albomoz, com base nos versos 178-179 da Ora Marítima, refere-se a «um

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cupríferas em laboração (112) — não podia deixar de propiciar novas migraçbes de que resultaria -a fundação das cidades dos Túrdulos a que se refere Pomponio ¡Mda (113).

Trata-se, afinal, da continuação do mesmo movimento, enrique­cido agora com outros elementos étnicos dessa região, onde, como

caminho terrestre que ia desde Tartessos, na desembocadura do Guadalquivir, até ao golfo do Tejo» (EI culto al Imperador, cit., pág. 81, n.° 246). 'Devemos, no entanto, ter em vista que este percurso por terra, sendo muito mais difícil do que o marítimo, foi seguido pelos Focenses só depois de os Cartagineses lhes terem encerrado o caminho marítimo, pouco tempo antes de Tartessos ter sido destruida por eles. (Vide, in Fontes Hispaniae Antiquae, I, o comentário de Schulten e Bosch-iG'impera às linhas 178-182 do poema de Avieno, a págs. 92-93).

Quanto às cidades de Pax Julia e Myrtilis, apesar de Maluquer de Motes duvidar de que os seus moradores fossem Túrdulos ou Célticos, admitindo que a sua atribuição a esses povos, consignada por Ptolomeu, resultasse apenas «de um facto mramente administrativo imposto pelos Romanos e completamente alheio à verdadeira etnia dos seus moradores» (Pueblos Celtas, in «(Historia de Espana» sob a direcção de M. Pida!, tomo I, vol. III, págs. 26-27), parece-nos mais razoável considerar a fundação dessas cidades como resultado do desvio da rota comercial dos Túrdulos, ou da transferência de povos imposta pelos novos dominadores.

i(ii2) facto, como nota Florentino López Cuievillas, «conta Portugal,sobretudo nas suas comarcas do centro e do sul, com jazidas de minério de cobre, que se relacionam com as de Huelva e se situam nos distritos de Évora e Beja, e, mais abaixo, no Algarve, em S. João do Deserto, Barrancos, S. Domingos, Bugalhos e em outras localidades, havendo também cobre nativo no distrito de Aveiro e nas minas de Palhal e do Vale do Bicho.

«lA exploração pré-histórica de algumas destas jazidas — continua Cue- villas — demonstra-se pelo achado, nas minas alentejanas de Rui Gomes, Monte Judeu e Herdaide do Bugalho, de martelos de pedra com garganta central, do tipo dos usados para macerar o mineral, e de outros instrumentos e armas pétreas que se encontram nas minas de Juliana, no Alentejo, e nas da Atalaia do Alto, Margalho, Penedo Picalto, Santo Estevão e Vendinba do Estoval, no Algarve». (El comienzo de la Edad de los metales en el Noroeste Peninsular, in «Cuadernos de Estudios Gallegos», tomo X, págis. 32-33).

(113) Entre elas estariam as que tinham o nome terminado em ippo, como Ulisippo (Lisboa) e Collippo (Leiria), tal como as de Baesippo e Lacippo,

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é sabido, coexistiam Cónios »e Célticos (114), e cuja presença ao norte do Tejo é atestada pela toponímia, como, por exemplo, nas cidades de Conímbriga e Talábriga (115).

Ora, esta forma de ocupação, não só concorda perfeitamente com o texto de Mela, que parece querer referir-se a núcleos que foram chegando sucessivamente, mas itambém com os achados

na Bétioa (Garcia y Bellido: La España del siglo primero, cit., pág. 54, nota 107).

Bosch-Gimpera, depois de se referir ès cidades túrdulas ao sul do Tejo, alude a «outras entre o Mondego e o Vouga, e ainda do baixo Douro», e observa: «Possivelmente seriam restos de colónias de mineiros e comer­ciantes muito antigas, do tempo da cultura argárica ou do da intensi­ficação das relações comerciais depois das invasões célticas» (La formación de los pueblos de España, pág. 148).

(H4) Dessa coexistência — melhor diria, talvez, confusão —nos dá tes­temunho Estrabão, que, depois de observar que a sua «população está inte­grada, na sua maior parte, por Célticos» (III, 1, 6), diz ser Conistorgis a oidade mais famosa entre os Célticos (III, 2, 2), ao passo que para Apiano é a principal cidade dos Cuneus ou GSnios (Iber., 56-57, cit. in Fontes Hispaniae Antiquae, IV, pág. 308). Vide também Bosch e Aguado in España Romana («Hist. de España» dirigida por M. Pidal, tomo II, pág. 90).

Sánchez-Albomoz chega mesmo a dizer que os Cónios do Algarve foram chamados Turdetanos como os seus vizinhos de Andaluzia, tendo em vista, certamente, o facto de Ptolomeu (II, 5, 4) considerar Turdetanos os moradores das proximidades do Sacro promontório. (EI culto al Emperador cit., pág. 82). É que, como observa Bosch-Gimpera, na Idade do Bronze, elementos da popu­lação almeriana de Andaluzia (iberos) conquistaram o Algarve, matizando os Cónios (Etnologia do la Península Ibérica, pág. 105).

(115) Assim, o Prof. Pericot García diz que «a julgar por alguns indícios, cJomo o nome de Conimbriga, os Cónios, que se consideram idênticos aos Cine- tes, ocuparam uma grande extensão para o Norte, de onde os expulsou o movi­mento eelta, ficando reduzidos às comarcas meridionais, ao Algarve» (História de España, tomo I, pág. 424). E, por sua vez, Bosch-Gimpera diz que «o nome de -Conimbriga (a «fortaleza dos Cónios») mostra-os como tendo chegado até ao Mondego antes das invasões célticas. (Op. cit., pág. 150). Vide também Albornoz, op. cit., pág. 82, nota 248.

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arqueológicos, que excluem a ideia de uma ocupação militar, pelo menos de inicio (116).

Por outro lado, sendo o nivel de vida dos povos invasores muito mais alto do que o da população indígena, cujo trabalho eles não podiam dispensar, não só para a extracção ou simples recolha e con­dução de minério, mas também para outras actividades lucrativas, haviam fatalmente de exercer uma forte atracção sobre ela, favore­cendo o desenvolvimento de uma verdadeira economia de tipo urbano, que tinha Tartessos por modelo, como veremos adiante (117).

d) Os Gróvios:

O próprio 'estabelecimento dos Túrdidos ao sul do Douro e a crescente necessidade de estanho, explicam naturalmente o estabe­lecimento, ao norte desse rio, dos Gróvios. Mas ao passo que o nome daqueles indica a sua proveniência, quanto ao destes — visto a origem helénica, que Plínio, aliás vagamente, lhes atribui, iter sido invalidada pela crítica (118) — apenas podemos presumir ser de

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(116) Que assim devia ter acontecido, parece prová-lo o facto, notado por López Cuevillas, de, nas sepulturas de Palmeia, Cascais, Porto Covo, Casa da Moura e S. Martinho, se verificar a transição de uma Idade para outra, pela mistura, no mesmo espólio funerário, da pedra e do metal» (El comienzo de la Edad de los metales en el Noroeste Peninsular, in «Cuadernos de Estudios Gallegos», tomo X, pág. 6).

<117) A pág. 74.(ns) Vide a nota 87. Não obstante, o problema deve ser cuidadosamente

revisto, como o demonstra o Prof. Garcia y Bellido, que o versa com muita erudição e espírito crítico na sua obra Hispania Graeca, tomo I. De facto, «hoje em dia — observa Bellido — ante a evidencia dos achados não é possível manter o mesmo critério céptico ou negativo (pág. 84); e põe em relevo a extensão de topónimos terminados pelo sufixo grego -oussa, que parece veri­ficar-se pelo menos até ao cabo da Roca (págs. 74 e ?6). Vide também La colonización griega, do mesmo autor, in «Historia de España» dirigda por M. Pidal, tomo I, vol. II, págs. 495 e segs.; e Torres Rodrigues: La venida de los griegos a Galicia, in «Cuadernos de Estudios Gallegos», Tomo II, pág. 19*5

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origem céltica ou pré-céltica (119). De facto, gróvio parece derivar de ¿rova, a que corresponde, certamente, nos vocabulários inglês e neerlandês, ¿roove e groef, com o sentido de veio ou filão de metal, ou ainda de sulco, tal como em alguns lugares da Galiza e do Minho, especialmenite tratando-se de fossos abertos no fundo dos vales (12°).

Não é nosso propósito abordar o problema étnico; mas não pode­mos deixar de dar o devido relevo ao contraste que, como vimos, Fompónio Mela e especialmente Plínio estabelecem entre os Gróvios e os povos célticos vizinhos (121), nem deixar de ter em vista a

e segs.. Por sua vez, Sánchez-Albornoz também versa este tema, considerando indubitável ter sido o Noroeste Peninsular ocupado pelos Ligures ou Ilírios; e aventa a hipótese de Plínio se referir a gentes ilírias ao afirmar a origem helénica destes povos, observando: «Admitida como certa a ausência de uma Coloni­zação grega em tais costas, como explicar, senão assim, as palavras de Plínio, que conhecia muito bem a Espanha ?» (El culto al Imperador cit. «Anales dei Instituto de Literaturas Clássicas», T. III, págs. 88 e 100, nota 256).

(119) Não obstante, Hiibner considera Grovii nome ibérico (Monumenta Linguae Iberícae, prólogo pág. 106, cit. por Felix Pereira, in Um Grôvio autên­tico, publicado em «O Archeólogo Português», vol. XI, pág. 208, nota 2).

(12°) Realmente, ainda se emprega com esse sentido, no concelho de de Póvoa do Lanhoso, segundo me informam.

Já Monteagudo, considerando que o topónimo «Groba» abunda bastante na toponímia das quatro províncias galegas, sobretudo em relação a montes ou a pequenas entidades de povoação em lugaires escarpados, considerou tra­tar-se não de um nome gentílico, mas de um nome comum; e cita a referência que Carré Aldao faz a um terreno muito acidentado, situado em Mellid, ao sul da província da Corunha, cujo nome de «Grobas» parece resultar dos bar­rancos que são, certamente, devidos à mão do homem — o que é confirmado pela lexistência de antigos subterrâneos que podiam ter sido galerias abertas para a «exploração de filões metálicos, que certos indicios fazem crer terem sido de ouro ou estanho» (Galicia en Ptolomeo, in «Cuadernos de Estudios Gallegos», Tomo II, p. 622).

(121) Ê certo que Estrabão acentua, como vimos, que esses povos célticos eram parentes dos que viviam sobre o Guadiana, isto é na região de onde,

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 227

circunstância de o primeiro «habitat» dos Gróvios nesta região ter sido, provalmente, na zona costeira entre o rio Minho e a ria de Vigo (122), onde ainda hoje existe o topónimo «A Groba» (123) — o que parece confirmar a hipótese de se tratar de um povo chegado, por via marítima, de uma região cuprífera, pois viria à procura de estanho — que, realmente, aí podia obter — para o fabrico do bronze (124). E isto conduz-nos ao mesmo país de origem

segundo cremos, provinham os próprios Gróvios. Há, no entanto, a considerar não só terem sido as respectivas migrações levadas a efeito em épocas muito distantes uma da outra, mas também terem esses povos sido dominados pelos Ártabros que exerceram, de facto, sobre eles uma acção cultural muito notável. (Vide as notas 58 e 59).

(122) ¡Não são desta opinião Cuevillas e Serpa Pinto, que, baseando-se em Sílio Itálico e Marcial, supõem que os Gróvios viviam no vale do Lima, estendendo-se pela margem direita do Minho até Tui. E daí concluem «que o território dos Gróvios pode situar-se entre a divisória do Lima e do Cávado, e a linha de montes que 9epara o vale do Minho da Ria de Vigo, linha que serviria de limite aos Elenos» (Estudos encol da Edad do Ferro no Noroeste da Peninsula — As Tribus e a sua costituzón política, in «Arquivos do Semi­nario de Estudos Galegos», VI, pág. 276). Esta localização não nos parece rigorosa, embora admitamos como certa a progressão dos Gróvios para o sul. De facto, depreende-se claramente de Plínio que se estabeleceram entre o estuário do Minho e a ria de Vigo, ficando os Helenos entre essa ria e a de Pontevedra, visto que o naturalista latino não se refere aos povos dominadores, mas às tribos fixadas no país, tanto assim que designa muitas outras na região que os Gróvios tinham dominado.

(123) Monte situado a 7 km. ao sul do cabo Silheiro (Bayona). Vide Luis Monteagudo Galicia en Ptolomeo, in «Cuadernos de Estudios Gallegos», Tomo II, pág. 622.

(124) iReferindo-se a este movimento sul-norte, Cuevillas (artigo cit., in Cuadernos, T. X. pág. 34) diz que «não pode ter outra explicação lógica senão o comércio dos metais, sobretudo se pensarmos que naqueles momentos estava a iniciar-se uma indústria nova, que procurava afanosamente descobrir os lugares de produção das matérias primas que lhe eram indispensáveis», isto é, o estanho.

Ora, como observa ainda Cuevillas, «o Noroeste peninsular achava-se numa posição geográfica que o tomava vizinho imediato das regiões onde o cobre,

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228 Torquato de Sousa Soares

dos Túrdidos estabelecidos na margem esquerda do Douro, ou, mais rigorosamente, à mesopotânia entre o Tejo e o Guadiana onde, como vimos, também se tinham fixado elementos célticos, que certa- mente exerceram sobre a população do país, constituída por Cónios e Túrdulos, uma considerável influência cultural (125).

que nele era muito escasso, abundava; mas, por outro lado, e compen­sando a referida escassez, tinha, nos seus montes e nas aluviões dos rios, ricas jazidas ¡de ouro e cassebérida» (ibid., ibid.). (E assim se compreende — diz ainda o mesmo erudito arqueólogo — «que o impulso que mobiliza a nossa metalurgia tivesse vindo do sul do 'Douro, e que esta metalurgia se expandisse e desenvolvesse com rapidez; e que, assim, passado o seu período inicial, o Noroeste peninsular se convertesse num importante centro de produção, cuja presença se faz sentir no centro e no sul de Portugal e nos finisterras atlânticos da Irlanda e da Bretanha» (ibidpág. 39).

Realmente, o achado no concelho de Barcelos e perto do Porto, de um punhal e pon tas de flecha de cobre, de diademas e braceletes de ouro correspondentes ao tipo de Montilha (iCórdova), assim como o de objectos argáricos achados na Galiza, nomeadamente em Roufeiro (Orense), e em Guimarães, todos de cobre puro, levadnos a considerar a chegada aí de objectos de uma região rica em cobre, mas onde faltava o estanho. E a abundância de achados dos primeiros tempos do metal, bem como o aparecimento súbito de objectos de cobre e de bronze no noroeste da Península leva Cuevillas e Bouza-Brey a suporem que a introdução do metal se fez por via meridional e costeira —não a partir do interior. (Vide Juan de Mata Carriazo: La Edad dal Bronce in Historia de España sob a direcção de R. Menéndez Pidal, Tomo I: España Prehistórica, vol. I, págs. 784 a 788).

Não obstante, MacWhite, in Estudios já cit. nas notas 57 e 59, observa que «os achados geralmente considerados como algáricos não são muito típicos, como, por exemplo, o achado da quinta de Água Branca [perto do Porto], ou o escon­derijo de Roufeiro (Orense), que, se bem que mostrando traços algáricos, tem muito o aspecto do Oeste europeu» (pág. 46).

,(125) Veja-se o que dissemos na nota 114. Ptolomeu menciona aí nove cidades célticas (II, 5, 5). Ao estabelecimento dos celtas nesse país nos referi­remos adiante.

Mas, apesar disso, parece muito duvidoso o celticismo dos Gróvios, como nos mostra Félix Alves Pereira. Realmente, num estudo muito sugestivo, o

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 229

Trata-se certamen'te, de um agrupamento, se não com caracterís­ticas étnicas .comuns, pelo menos, constituindo uma colectividade autónoma, que teria dominado militarmente uma vasta zona, que se estendia desde o Douro até fàs proximidades do Cantá­brico (126), pois de outro modo não se nos afigura possível

erudito arqueólogo, depois de pôr em confronto a carta da área «onde se demonstrou o habitáculo dos Gróvios, com uma parte — «nitidamente con­finada e insulada» — da «que HUbner traçou localizando a distribuição dos monumentos ibéricos na Península», chega à Conclusão de «que na região dos Gróvios, delimitada como está das que a circundam, se acumularam ins­crições de língua ibérica, insulando-se da inteira escassez que, nesta espécie de monumentos, caracteriza as regiões circun jacentes» (Ara celtibérica da época romana: Um novo «Génio», in «O Archeólogo Português», vol. XII, pág. 49). Por sua vez, Savary nota o facto de instrumentos de bronze, de carác­ter nitidamente ibérico, evidenciar maior aglomeração na zona ocidental, nas proximidades dos estuários do Minho, Lima e Douro. (A Idade do Bronze Atlântico no Sudueste da Europa, in «Revista de Guimarães», vol. LXI, pág. 328). Ê que, sendo os Gróvios provenientes dos (Célticos da mesopotâmia entre o Guadiana e o Tejo (que, segundo a nova divisão administrativa romana, passou a fazer parte da Lusitânia), seriam de origem celtibérica, pois é essa a proveniência que Plínio atribui aos Célticos vindos da Lusitânia (III, 13). Eram, portanto, iberos celtizados tal como os Brácaros, cujo nome parece ligado ao apelativo braca, «modelado com o sufixo -ara, de valor colectivo ou plurali­zante, e característico do substracto mediterrâneo», segundo nos informa o Prof. Vincenzo Coceo. Ora os Celtiberos das regiões mais frias da Península Hispânica, da Meseta central, «usavam — como observa o Coronel Mário Car- dozo — calções (bracae), tal como os gauleses e os germanos, uso confirmado nas figuras esculpidas na coluna de Trajano e na de Marco Aurélio» (Die «Cas­aros» im Norden Portugais, in «'Revista de Guimarães», vol. LXIX, pág. 425); e, sendo assim, talvez possamos concluir ter sido o nome de brácaros atribuído pelos iberos aos Celtas que usavam bragas, com os quais se fundiram, sem, no entanto, deixarem de se impor sob o ponto de vista cultural, cíomo elemento predominante.

(126) é o que nos diz López Cuevillas ao observar que no Noroeste da Hispânia não acontece como noutras partes, «em que a transição de uma idade para outra se denuncia pela mistura, no próprio mobiliário fúnebre, da pedra

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230 Torquato de Sousa Soares

explicar porque é que essa designação, que parece relacionar-se com a exploração do estanho (127), só existe no território mais próximo do litoral, que certamente não abrangia toda a área estañífera (128).

Realmente, não pode deixar de ser signáfioativia a circunstância de ser «apenas na região que foi ou podia «ter sido ocupadia pelos Gróvios (129), que ainda hoje há lugares designados Grovas, Groivas,

e do metal». Realmente, continua, «no nosso país o ouro e o cobre surgem de um modo repentino, quase poderia dizer-se violento, e substituem por com­pleto nas sepulturas o material lítico, fazendo o efeito não de uma indústria que vai crescendo no seio de outra anterior, nem de uma cultura nova, que, pouco a pouco, penetra por via comercial <e acaba, passado certo tempo, por substituir a antiga cultura, mas de uma invasão de gentes armadías com armas mais eficazes, que, por sua força e seu poder, chegam a dominar a terra invadida e a impor-lhe as formas que lhe são peculiares». (El comienzo de la Edad de ¡os metales en el Noroeste Peninsular in «Cuadernos de Estudios Gallegos», Tomo X, p. 6).

(127) De facto, se, como observa Estrabão, seguindo Possidónio (III, 2, 9; C. 147), o estanho não se encontrava mais à superfície da terra «em forma de areias negras reconhecíveis pelo seu peso», como diz Plínio (XXXIV, 156), mas escavando, isto é, fazendo sulcos ou grovas. E sendo aqueles que abriam essas grovas naturalmente designados gróvios, afigura-se-nos perfeitamente admissível que os Gróvios fossem os exploradores do estanho.

(í28) Cfr. os mapas das jazidas estañíferas que Serpa Pinto e Cotelo Neiva publicam nos estudos citados na nota 109, com o da região onde aparecem grovas e seus derivados, que publicamos neste trabalho.

(129) Dizemos podia ter sido, porque, além do território que Mela lhes atribui, há a considerar o que eles ocupariam antes de se verificar o estabeleci­mento de elementos célticos vindos do norte e de leste, e talvez também do sul— território este que ultrapassava, ao norte, a linha que havia de constituir o limite setentrional do convento brácaro, como a toponímia parece revelar— se é que o facto de o referido topónimo ultrapassar o território ocupado pelos Gróvios não resulta de uma simples influência cultural exercida por esse povo sobre os vizinhos, ou até a deslocação de pequenos núcleos populacionais em con­sequência da invasão sarracena. Será resultante de alguma destas causas a exis­tência, na toponímia actual, de uma quinta denominada Grova, sita no Concelho

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 231

Grovelas e Groves, como já observou Leite de Vasconcellos (1S0), pois pardee demonstrar que essa expressão era privativa desse povo ou, pelo menos, foi trazida por ele, embora fosse a população pré- -existente no pais onde se fixou que a transformou em nome próprio (131).

Assim, inicialmente, o nome gróvio seria, talvez, simples epi- teto atribuído pela gente da região, aos recem-chegados, por eles designarem grovas os sulcos que rasgavam ou mandavam rasgar

de Sinfães, isto é, na margem esquerda do Douro — fora, portanto, da área que podia ter sido ocupada pelos Gróvios ? Seja, porém, como for, não podemos deixar de ter em vista tratar-se, ao sul, de um caso único que, além disso, é pouco claro, pois pode não ter significado tradicional.

(130) Vide Os Gróvios in «O Arqueólogo Português», vol. X, pág. 2!87 e segs., com dois mapas, e in «Opúsculos», vol. V, págs. 84 a 95.

(1S1) Não obstante, o facto, assinalado por Andrés Martinez Salazar (Antiguallas de Galicia. Apuntes acerca del origen e historia del artículo definido gallego-portugués, págs., 7 e 8), de a península de El Grobe (caste- lhanização do galego Ogrobe), derivar de Ocóbre, ou Ogobre, topónimo que aparece em documentos de 899 (España Sagrada, T. XIX, pág. 341, e López Ferreiro: Historia de S. A. M. Iglesia de Santiago, T. II, ap. XXV), de 911 e 912 (L. Ferreiro, ibid., ap. XXX e XXXII) e ainda de 1019, 1142 e 1165 (ibid., tomo II e IV) e que A. Camoy faz derivar do celta Krovo, que significa corvo (Le Latín d'Espagne d'après fes inscriptions. Étiíde linguistique, pág. 106), levou Leite de Vasconcellos a corrigir o paralelismo que estabelecera entre Grova e Grovii in Religiões da Lusitânia, vol. III, pág. 611. Mais tarde, porém, o insigne arqueólogo volta a admitir esse paralelismo, mas só em relação a Gróvia (Grobia e Grobea) e Groiva. (Vide o artigo Os Gróvios in «Opús­culos», V, cit. na nota anterior). ¡Devemos, no en tanto, ter em conta o facto de o elemento -obre se restringir ao país dos Ártabros, como mostrou Menéndez Pidal (vide, atrás, a nota 59).

Há, pois, que admitir tratar-se, na maior parte dos casos, die simples paroni­mia sem a menor relação de origem ou de sentido. De facto, há a considerar que Ocobre se refere exclusivamente nos documentos mencionados (os únicos, ao que parece, em que figura esse topónimo), à península (ilha, na Idade-Média) que hoje se chama, em castelhano, El Grobe; e, por outro lado, não podemos deixar de ter em vista que a expressão Grova ou Groba ainda hoje existe

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na terra para a exploração do estanho (132) — o que é tanto mais compreensível quanto é certo que »essa actividade devia ter-se tor­nado rápidamente predominante, provocando uma tão grande revo­lução no seu sistema de vida, que não podia deixar de impressionar vivamente a população (133).

não só cm português e em galego, mas também em inglês e neerlandês, domo vimos, com o sentido de sulco.

A etimologia sugerida pelo Prof. J. M. Piei, in Miscelânea de etimologia, portuguesa e galega, 1.* Série, págs. 128-129, embora não seja insólita, não se nos afigura viável. Mais do que cova, grova significa sulco, designando mesmo, pelo menos no concelho de Póvoa de Lanhoso, o rasgo aberto pelo arado, ao lavrar a terra. Sobre Ocobre ou Ogobre e outros topónimos galegos terminados em -obre, veja-se o estudo de Menéndez-Pidal EI elemento -obre en la toponimia gallega (in Toponimia prerromana hispana, pág. 181 e segs.). A terminação -obre, julga Pidal ser «característica da tribo dos Ártabros», pois se delimita singularmente ao extremo noroeste de Galiza (págs. 186-187).

(132) , <n0 artigo Um Gróvio autêntico, já citado, iFidix Pereira revela-nos uma inscrição, certamente mutilada, que se encontrou no concelho de Viana do Castelo e que começa pelas palavras RVFI-ORQVIVS. O autor julga tratar-se de um nome indicativo da origem étnica, e é possível que assim seja; mas pode também ser mera indicação profissional (Vide «O Arqueólogo Português», vol. XI, págs. 202 e segs.).

(133) Observa-o muito bem Cuevillas, dizendo: «'Desde que as primeiras metalurgias alcançaram um certo desenvolvimento, o nosso país devia ser, embora dentro do âmbito proto-histórico e das limitações de recursos que lhe eram próprias, um centro de actividade extractiva e industrial que, de zona afastada e arcaizante que tinha sido durante a maior parte do período mega­lítico, 9e converte numa zona criadora de novos tipos de instrumentos comer­cialmente muito relacionados com o círculo cultural do sul do Douro e dotada de um vigor evidente» (El comienzo de la Edad de los metales en el Noroeste Peninsular, in «Cuadernos de Estudios Gallegos», Tomo X, pág. 35).

Não obstante, como observa Maluquer de Motes, «no Noroeste a actividade minero-metalúrgica nunca esteve organizada como no Sul (até à época romana), pois era uma actividade especializada de certos grupos, talvez étnicamente dis­tintos» (El proceso histórico de las primitivas poblaciones peninsulares, in «Zephyrus», VI, págs. Htt-lt#).

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LUGARES RELACIONADOS COM OS GROVIOS

NOTA: Excluimos deste mapa a indicação de El Grave, na ría de Arosa,e bem assim de Grave, próximo de Pontedeume e Mondonhedo, por terem certa- mente uma origem que nada tem que ver com Grovas ou Gróvios, como obser­vámos na nota 131.

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234 Torquato de Sousa Soares

c) Conclusões:

Assim, a exploração e o comércio dos metais—nomeada- mente o cobre e o estanho — resultantes do estabelecimento das relações regulares entre os Tartéssios e o mundo mediterrânico orien­tal (134), haviam de contribuir, por sua vez, para a extensão «dessas actividades mercantis não só à mesopotâmia entre o Guadiana e o Tejo e ao país que se estende a norte deste rio, onde os Túrdulos fundaram cidades, mas também à região que os antigos Túrdulos ocuparam e, ainda mais ao norte, à que viria a ser dominada pelos Gróvios.

Mas se essas actividades conseguiram, de facto, instaurar ao sul do Vouga um novo tipo de economia capitalista e urbano, e, conse­quentemente, favorecer uma progressiva elevação do nível de vida que não podia deixar de contribuir para a desagregação do espírito tribal (135), na região ao norte desse rio, o seu maior afastamento e a diversidade de condições geográficas não permitiriam que essa desagregação se verificasse (136) a não ser nas zonas mais acessíveis, onde os mercadores do sul tinham criado entrepostos que paulati­namente se foram transformando em verdadeiros centros urba­nos (137). E daí manter-se — como observa o Prof. Maluquer de

(134) Vide, por ex. Schulten: Tartessos, passim; Garcia y Bellido: Tar- tessos, in «Historia de España» sob a direcção de M. Pidal, tomo I, vol. II, págs. 279 e segs.; e Maluquer de Motes: EI processo histórico de las primitivas poblaciones peninsulares, in «Zephyrus», VI, pág. 162.

,(i35) (Esta desagregação explica que Plínio, que indica os nomes das tribos radicadas ao norte do Vouga — a última é a dos Paesuri, que se segue aos Turduli veteres—não mencione, ao sul do Vouga, senão oppida (IV, 113).

(136) Realmente, não só o relevo, mas também a distribuição da água, favorecem, nessa região, o arreigamento à terra de pequenos núcleos que tomam, por isso, a feição arcaizante que ainda hoje os distingue.

(137) É o caso de Abobrica e talvez também do castellum Tyde, dos Gróvios, que são as únicas cidades que Plínio menciona entre o Vouga e a ria

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Reflexões sobre a origen ̂e a formação de Portugal 235

Motes — a actividade minero-metalúrgica desta região na dependên­cia mais ou menos estricta de certos grupos especializados, talvez étnicamente distintos (138).

Fosse, porém, qual fosse a extensão das suas consequências, o certo é que estamos em presença de um vasto movimento, (extrema­mente complexo, que não podia deixar de propiciar conexões que cada vez mais marcariam a «fácies» social, económica e cultural, mesmo daqueles agrupamentos tribais mais fortemente enraizados (130).

Exprime bem este estado de coisas a lista de preços que nos oferece Políbio ao louvar a fertilidade da Lusitânia (14°), lista essa que — como nota Caro Baroja — não só «confirma a existência de um comércio de produtos agrícolas e de gado impossível sem uma base capitalista» (141), mas revela também uma sensível influência helénica, visto ser grega a metrologia adoptada (142).

de Arosa, além de Augusta, correspondente a Braga; mas esta, como o seu nome indica, é de fundação romana (Vide, atrás, a nota 91).

(138) Vide o artigo cit. na nota 134, págs. 163-164.»(139) Revela-o, por exemplo, a toponímia, relacionada com a formação de

novos agrupamentos, como Grovas e seus derivados, e até a epigrafia, como já observámos (vide a nota 132). Maluquer de Motes refere-se mesmo a «uma grande zona cultural da Idade do Bronze, durante a qual (a zona atlântica) constituía uma só unidade do Tejo ao Cantábrico» (Pueblos Celtas, in «Historia de España» dirigida por M. Pidal, T. I, vol. III, pág. 45).

(14°) XXXIV, «8 (in Ateneu, 33»0-l). Publicada no orig nal grego e traduzida por Conceptión iFemandez-Chicarro : Laudes Hispaniae (Alabanzas de España), pág. 42.

(141) Julio Caro Baroja: Regímenes sociales y económicos de la España pre-romana, in «Revista Internacionale de Sociologia», vol I, 1943, pág. 181. Realmente, diz ainda Baroja, «é na Lusitânia, mais do que em qualquer outra da9 zonas estudadas, onde se podem encontrar diferenças muito acentuadas entre as pessoas sob o ponto de vista da fortuna» (Ibid., ibid., pág. 180).

(142) «É curioso notar—diz Caro Baroja — a referência à metrologia grega. Talvez — conclui— nessa época, tivesse chegado à Lusitânia a influência dos comerciantes helenos» (Ibid., ibid., pág. 181).

Para esta influência muito deviam ter contribuído os Tartéssios, aliados

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Isto ié: uma economia agrária alimentada por uma próspera acti- vidade minero-metalúrgica a propiciar relações comerciais terrestres e marítimas a bem dizer constantes com a mesopotâmia transtagana e com Tratessos (143).

Mas da intensificação dessas relações mercantis não resultaria apenas a elevação do nível de vida dos povos fixados na orla cos­teira ao norte do Tejo; resultava também a formação ou revigora - mento de uma verdadeira consciência colectiva (144), que não podia deixar de contribuir para lhes dar carácter, tanto mais que entes­tavam ao norte com os Ártabros, integrados, como vimos, no cír­culo dos Celtas bretões (145), isto é, num mundo perfeitamente diferenciado (146).

Por outro lado, a mesopotânia transtagana, situada entre os Tartéssios, Túrdulos ou Turdetanos e as populações fixadas ao

dos Focenses, pois percorriam normalmente as costas do N.O. da Hispânia, à prooura de estanho. »(Vide Garcia y Bellido: Hispania Graeca, Tomo I, cap. III; e Schulten: Tartessos, pág. 64). iEstrabão refere-se também a usos e costumes gregos em prática entre os povos ido Noroeste da Hispânia '(III, 3», 6 e 7). Sobre o problema da presença dos gregos ao norte do Douro, vide, atrás, as notas 87 e 118.

(143) Vide, por exemplo, Bosch-Gimpera: La tormación de los pueblos de España, pág. 175, já citado na nota 1 1 1 ; Garcia y Bellido: La Peninsula Ibérica dit., pág. 208, e Tartessos, in «Historia de España», cit., Tomo I, vol. III, pág. 288).

(1.44) Mendes Corrêa defende a tese da continuidade étnica e cultural a partir da civilização neo-eneolítica e do bronze inicial que, apesar de profunda­mente decadente, se mantinha ainda. (A Lusitania pre-romana in «Historia de Portugal» cit., vol. I, págs. 1>68-169). E, por sua vez, Bosch-Gimpera supõe que «a raiz indígena de Portugal se encontra na resultante da fusão de elementos indígenas do neo-eneolítico que desenvolveu a cultura megalítica portuguesa, e que devia ter absorvido elementos da cultura das covas» (La formación de los pueblos de España, pág. 350).

{146) Vide a págs. 45-46.(146) Vide a nota 59, a pág. 46.

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 237

norte do Tejo, desempenha um papel relevante, não apenas como via de mercadorias e de ideias, mas também como alfobre de novos agrupamentos étnicos, constituídos por Túrdulos, Cónios e Célticos, intimamente caldeados entre si (147), elementos esses que paulatina­mente se vão fixando ao longo do país, dentro da sua órbita mer­cantil (148).

Esta seria, certamente, a situação da fachada atlântica do Oci­dente hispânico quando entraram em cena os Lusitanos (149).

IV — A dominação lusitana e os Calaioos:

a) A conquista e a crise que lhe sobreveio:

Bosch Gímpera crê que o avanço e fixação dos Lusitanos na vasta zona litoral compreendida entre o Tejo e o Cantábrico só

. foi possível em virtude da decadência do poderio céltico por meados do século ni a. C. (15°).

(147) Vide a nota 114.(148) Vide as notas 115 e 116.(149) (Devemos, no entanto, ter em donta que as informações em que se

baseou Políbio foram-lhe, oertamente, fornecidas por elementos da expedição de Décimo Júnio Bruto (138-137 a. C.). Vide López Cuevillas: Estudos sobre

a Idade do Ferro no N.W. da Peninsula. A vida económica, pág. 1. (Separata de «Anais da Faculdade de Ciências do Porto», Tomo XXIII, 1938).

Certo é, porém, que, como tão justamente observa o Prof. Maluquer de Motes, «o território ocupado pelos Lusitanos, à excepção das regiões monta­nhosas centrais, constitui uma zona muito rica, em que se tinha desenvolvido uma cultura superior muito antiga desde o começo da Idade do Bronze; território que devemos supor, e assim o indica o número de achados, densamente povoado» (Pueblos Celtas, in «Historia de España» dirigida por M. Pidal, Tomo I, vol. III, pág. 28), o que nos leva a crer que a prosperidade que se depreende de Políbio é anterior ao domínio dos Lusitanos.

(i5°) «Os Lusitanos, iberos, — dizem Bosch e Aguado — tiveram de perma­necer acantonados nas suas montanhas, fazendo vida de pastores e influenciados por seus vizinhos, os Celtas, que os mantiveram «dentro dos seus limites até que,

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Quer-nos, no entanto, parecer que ao norte da mesopotâmia transtagana — cuja população Bstrabão considerava integrada na sua maior parte por Célticos (151)— esse «poderio não seria tão apre­ciável que pudesse só por si impedir uma acção militar de enver­gadura, tanto mais que os Calaicos não estavam, certamente, ainda em causa (152).j A razão do triunfo dos Lusitanos deve, pois, ter sido outra: quero referir-me ao aparecimento de novas jazidas de ferro na região mon­tanhosa por eles ocupada.

Diz-se geralmente que essa região se confinava à serra da Estrela, ou antes à zona montanhosa ao sul do Douro, correspondente à

nossa Beira interior. Cremos, no entanto, que se estenderia também ao norte deste rio, pois não seria admissível que os Lusitanos — se, como parece, chegaram ao Ocidente antes dos Calaicos — não tives­sem conseguido atravessar o Douro em face do seu próprio «habitat», quando é certo que o transpuseram mais a jusante. De facto, como veremos na próxima «reflexão», a permanência da tribo lusi­tana dos Banienses, justamente na região de Moncorvo, na mar­gem direita do Douro, mostra que assim era (153).

com a decadência do poderio celta, em meados do século III, se espalharam pelas terras baixas de Portugal, entre o Douro e o Tejo» (La conquista de España

por Roma, in «Hist. de España» dirig. por M. Pidal, T. II, pág. 118).(«i) Hl, 1, 6; C. 139.(íõ2) Realmente, como diz Maluquer de Motes, «os Calaicos em sentido

estricto representam um elemento relativamente moderno no Noroeste, talvez não anterior ao séc. III a. C., pois, «ao entrarem em jogo os Romanos, já avan­çado o séc. II, estavam ainda numa fase de expansão» (Pueblos Celtas, in «His­toria de España» cit., Tomo I, vol. III, pág. 16).

(i53) De facto, a inscrição da ponte de Alcântara menciona os Banienses

entre os municípios lusitanos que contribuiram para a sua Construção (Inscrip-

tionae Hispaniae Latinae, n.° 760); e a sua localização em Moncorvo é indubi­tável (Ibid., ad. n. 2399). Sobre esta inscrição vide ainda Francisco Manuel Alves: Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança, T. IX, págs. 479 a 482.

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 239

Consideramos, por isso, que tinham ao seu dispor não só as reservas de minério de ferro da serra da Estrela, mas também as de Moncorvo e do Marão (154) — reservas essas que lhes permitiriam lançar-se com probabilidades de êxito numa vasta acção ofensiva, de que, como vimos, resultaria o domínio de toda a faixa litoral desde o Tejo ao Cantábrico.

De facto, para este êxito espectacular não deixaria, certamente, de contribuir, além da sua proverbial agilidade (155), o poder agres­sivo das suas armas (158).

(!54) Realmente, os Lusitanos puderam, com certeza, extrair fierro não só nas faldas da serra da Estrela, onde ainda se explorava na Idade-Média (vide o foral de Seia de 1136 in «Port. Mon. Hist. Leges et Consuetudienes, pág. 372), mas também na Torre de Moncorvo (Chancelaria de D. Afonso V, Livro II, fl. 27 v.°), em Hermelo e O velhinha, nas faldas do Marão (vide o foral de 1196, in Maço XII de Forais Antigos, n.° 3, fl. 33* v.°), em S. Martinho de Bornes, na terra de Aguiar de Pena e em S. Pedro das Ferrarias, na Terra de Celorico de Basto (Ibid., Inquisitiones, I, págs. 127 e 142). iConfr. Fr. Joaquim de S. R. de Vifcerbo, Elucidário, I, pág. 446; Gama Barros: História da Administração

Pública em Portugal, tomo VI, pág. 121 a 124; e Virginia Rau: Exploração de

ferro em Rio Maior no século XIII («Revista Portuguesa de História», III, págs. 199 e 200).

(155) Diodoro observa que «são ágeis nos seus movimentos e rápidos na marcha, e por isso fogem velozmente» (cit. por Bellido: Bandas y Guerrillas, in «Hispania» cit., pág. 586). A essa agilidade talvez se refira também a expressão pernix lucis que, segundo Mendes Corrêa (Os povos primitivos da Lusitânia,

págs. 84 a 88, e A Lusitânia pre-romana, in «Hist. de Portugal» cit., vol. I, págs. 162-163); e Bosch Gimpera (Etnologia de la Península Ibérica, pág. 108; Los Celtas en Portugal y sus caminos, in «Homenagem a Martins Sarmento», pág. 61, n.° 1; e La formación de los pueblos de España, pág. 150), deverá ler-se pernix lusis. Mas esta correcção não é admitida por todos os arqueólogos, entre os quais Leite de Vasconcellos, que a considera insustentável (Vide o seu artigo: Da palavra «Lusitano»: discussão de um passo da «Ora marítima», in «Opúsculos», vol. V, págs. 288 a 291).

(ice) Vide PericJot Garcia: Historia de España cit., págs. 327-329. Dio­doro, referindo-se aos Lusitanos, diz que «usavam também lanças compridas

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240 Torquato de Sousa Soaras

Mas é evidente que, ao norte do Douro, não se operou uma ver­dadeira conquista — isto é, a incorporação efectiva das tribos que tinham sido submetidas pelos Gróvios — mas apenas a submissão destes, que os Lusitanos passariam a substituir nas suas redações ¡com a população indígena (157).

Já não assim a população de entre o Tejo e o Douro (ou talvez mais rigorosamente, entre o Tejo e o Vouga), cujas cidades, con­quistadas pelos Lusitanos, não deixariam de sofrer as consequências da guerra e da ocupação. Mas verificando-se a circunstância de os moradores desta zona terem, certamente, uma organização mais evoluída, e serem mais numerosos, o seu sistema de vida havia fatalmente de se impor e prevalecer (158). E assim se explica que, apesar de Estrabão dizer que a Lusitânia era a mais forte das nações ibéricas (159), lhe não correspondesse uma verdadeira orga­nização estatal (16°).

inteira mente de ferro <e com a ponta à maneira de arpão, e capacete e espada muito parecida à dos celtiberos». £ acrescenta: «Arremessam as suas lanças a grande distância, certeiramente, causando ao inimigo feridas muito graves» (V, 34, 4, cit. por Bellido: art. cit. in «Hispania», V, pág. 586). Referindo-se a Viriato, Diodoro apresenta-o «coberto sempre de férrea armadura» (33, 1, 1-3, in Fontes Hisp. Ant, IV, p. 328).

(157) Queremos, naturalmente, referir-nos às actividades minero-meta­lúrgicas e ao comércio com elas relacionado.

'(i®8) Do seu nível de vida nos dá ideia o episódio tão colorido das bodas de Viriato em casa de seu sogro, Astolpa, de que Apiano (33, 7, l) nos transmite uma descrição cheia de cor (Fontes Hispaniae Antiquae, IV, pág. 329). Vide também Garcia y Bellido: La Península Ibérica cit., págs. 688-690; e Bandos

y Guerrillas en las luchas con Roma («Hispania», Tomo V, nota 44 a págs. 575 a 578).

(i®») III, 3, 3; C. 152.(leo) o próprio diálogo de Viriato com o sogro, no dia do seu casamento,

o dá a entender. Mas isto não quer dizer que, com supõe Albertini, não hou­vesse na Hispânia pre-romana estados organizados politicamente, e que os Romanos stó encontraram aí «uma poeira de povos, um mundo inorganizado»

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 241

• Mas não era apenas isso. Há a considerar a deflagração de uma crise que havia de abalar profundamente o equilíbrio econó­mico e social de todo o país, afectando ao mesmo tempo a sua precária estrutura política.

O Prof. Garcia y Bellido, baseado numa passagem de Diodoro, explica-a pelo costume existente entre os Lusitanos, de os jovens carecidos de recursos, que sobressaíam pelo seu vigor e denodo, se retirarem para as montanhas menos acessíveis, onde formavam numerosos bandos que percorriam o país acumulando riquezas por meio de pilhagens, com o mais completo desprezo por tudo. E comenta: «Sem dúvida [Possidónio] alude aos deserdados em virtude de uma instituição similar ao morgadio» (161).

Sem pretendermos, de modo nenhum, invalidar as conclusões do insigne arqueólogo, permitimo-nos, no entanto, apresentar outro factor que, segundo cremos, não foi ainda invocado, e nos parece ser de transcendente importância.. Queremos referir-nos ao estabelecimento de uma fronteira fechada ao longo do Tejo, antes aberto a uma intensa actividade econó­mica, que, como referimos, ligava as suas duas margens.

De facto, apesar de todos os esforços praticados nesse sentido, os Lusitanos nunca conseguiram dominar ao sul desse rio, a não ser, talvez, esporadicamente (162). Mas, lutando por o conseguir.

(Les divisions administratives d*Espagne romaine, págs. 5 a 7). Vide, a este res­peito, Manuel Torres: Lecciones de Historia del Derecho Español, vol. I, lição 14, pág. 191 e segs.; e Garcia Gallo: Historia del Derecho Español, T. I, pág. 6*1 e segs.)-

(161) Bandos y Guerrillas cit. '(«Hispania», T. V., pág. 555). Vide tam­bém, a este respeito, Maluquer de Motes, que acentua que o conflito de classes existente no fundo do bandoleirismo lusitano «poderia talvez, inclusivamente, traduzir-se numa diversidade étnica, embora pudesse também ter uma origem diferente, como o tipo de legislação familiar, por exemplo, o latifundiarismo» («Hist. de España» cit., pág. 28).

(162) É certo que Estrabão fala em algumas tribos de Lusitanos estabele­cidas ao sul do Tejo, mas logo em seguida observa terem sido trasladadas pelos

16

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242 Torquato de Sousa Soares

paralizaram o tráfego tanto terrestre como marítimo, desorgani­zando consequentemente todas as actividades económicas a que se entregavam as populações urbanas da zona litoral, que, assim, seriam arrastadas para uma crise tanto mais grave quanto é certo que era sem remissão (163). E daí, certamente, a formação de bandos de foragidos e de aventureiros que passaram a viver do roubo (164), tendendo a tornar-se cada vez mais numerosos e aguerridos, mediante a adesão de novos elementos (165).

Estaria, talvez, neste caso o próprio Viriato, que «procedia dos Lusitanos que habitavam junto do Oceano» (166), pois Diodoro

Romanos (III, 1, 6; C. 139); e, do mesmo modo, Apiano, pois refere que os Lusitanos, que habitavam mais além do Tejo, se levantaram contra os Romanos e atacaram os Cónios, tomando a sua principal cidade, (Conistorgis» (Iber. 56-57, in Fontes Hisp. Ant., IV, pág. 308). Sanchez-Albomoz atribui-lhes, por limite meridional, o estuário do Sado até mais ao sul de Évora, baseando-se em Ptolo- meu (EI culto al Emperador cit, pág. 85, nota 252), mas reporta-se ao começo -do Império e, portanto, já depois das deslocações a que se refere Estrabão.

(163) Realmente, as consequências da secessão do país ao sul do Tejo, rico em cobre, e que lhe abria o comércio com o Mediterrâneo, que, como vimos (nota 111), fôra Obrigado a seguir pela via terrestre para evitar a interferência cartaginesa, não era fácilmente sanável, tanto mais que, mesmo tomando-se praticável, a via marítima devia ser insuficiente para alimentar um comércio regular, tanto mais que o país vizinho lhe era hostil. Não Obstante, a riqueza da casa de Astolpa (vide a nota 15:8) mostra que, como aliás é natural, essa crise não arrastara o país para uma ruína completa.

(164) As coisas tinham chegado a tal ponto que a própria cultura da terra estava ameaçada. (Vide, adiante, a nota 169).

(íes) Queremos, especialmente, referir-nos à gente vinda do interior, atraída, desde tempos muito remotos, não só pelas condições climatéricas mais favoráveis, mas também pela riqueza da região. (Vide Maluquer de Motes, cap. cit., in «Hist de España», T. I, págs. 28 a 43).

,(166) /Diodoro, 33, 1, 1, in Fontes Hispaniae Antiquae, IV, pág. 328. Inter­pretando este passo, Schulten observa: «Viriato é oriundo da Lusitânia ociden­tal, que confina com o Oceano, e verdadeiramente da montanha». E con­tinua: «A sua pátria era por certo a serra da Estrela» (Viriato, trad. de A. Ataíde,

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 243

observa que, tendo sido pastor desde pequeno, se fez chefe de bando antes de sei* caudilho (167).

b) Intervenção dos Galaicos:

Mas, além destes factores de natureza militar e económica — aos quais, como observa Garcia y Bellido, se juntaram «outros coadju­vantes, como o social, o geográfico, o histórico, o demográfico, o étnico, etc.» (168), que, realmente, não podiam deixar de desempe­nhar também um papel muito importante — julgamos haver neces­sidade de pôr em relevo, como factor de principalíssima importân­cia, aquele a que já Estrabão aludia ao afirmar peremptoria­mente que «a origem de tal anarquia está nas tribos monta­nhesas, pois, habitando um solo pobre e carecido do indispen­sável, desejavam como é natural, os bens dos outros. E como estes, por sua vez, se viam obrigados a abandonar as suas pró­prias actividades para os rechaçar, tiveram de trocar o trabalho dos campos pelo da guerra, e, consequentemente, a terra não só

pág. 3-2). A interpreação do grando arqueólogo alemão é, no entanto, absoluta­mente inverosímil, pois, de modo nenhum, o texto de Diodoro a autoriza. De facto, se o autor grego diz que Viriato era proveniente dos Lusitanos que habitavam junto do Oceano, é evidente que não tinha em vista a serra da Estrela. Pelo contrário: parece querer pôr em evidência a distinção, de facto existente, entre os povos dominados pelos Lusitanos, que habitavam a zona costeira, e os Lusitanos pròpriamente ditos, que tinham o seu «habitat» longe da costa, na região montanhosa dominada pela serra da Estrela.

Por sua vez, Leite de Vasconcellos aventa a hipótese de Viriato ser «talvez oriundo dos Célticos da mesopotamia de entre Tagus e Anas, como do seu nome se pode inferir» (Religiões da Lusitânia, vol. III, pág. 156), o que o simples facto de esse território ficar fora da Lusitânia toma inverosímil.

(16T) Ibidem. Vide a este respeito Bandos y Guerrillas cit., in «Hispa­nia», V, págs. 570 e segs., e Fontes Hispaniae Antiquae, IV, pág. 328. Por sua vez, Floro, depois de se referir à sua «astúcia vivissima», diz que «de Caçador 9e fez bandoleiro, de bandoleiro general e imperator» (ibid., ibid., pág. 327).

(168) La Peninsula Ibérica cit., pág. 656.

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244 Torquato de Sousa Soares

deixou de produzir frutos, mesmo os que se criavam espontánea­mente, mas também se povoou de ladrões» (169).

— Que entenderia o geógrafo grego por «tribos montanhesas» ?— Grupos de Lusitanos ?— Cremos que não.De facto, Estrabão menciona este povo sempre expressamente,

como acontece -logo em seguida, a descrever os seus costumes particula­res (17°) — ao contrário do critério que adopta quando se refere aos de «todos os habitantes da montanha» (171), entre os qiiais não inclui os Lusitanos, pois, ao finalizar a descrição, esclarece: «Tal é a vida dos montanheses, ou seja, como tenho dito, das tribos que ocupam o lado setentrional da Ibéria: os Galaicos, os Ástures e os Cántabros (172).

(169) III, 3, 5; C. 154. Schulten traduz deste modo a última frase: «Assim aconteceu que o país foi abandonado e perdeu o seu bem-estar e se povoou de bandoleiros» (Fontes, VI, pág. 10'5).

Julio Baroja, observa ainda que, segundo o testemunho de Varrão, a desor­dem tinha chegado a tal ponto que «era perigoso inverter capital em propriedades situadas em certas regiões da Lusitânia, pois não havia garantia de se poderem aproveitar convenientemente, em vista das incursões deste tipo de bandos, que tinham os seus refúgios no monte» (De a£r., I, 16, 2), os quais, como observa Diodoro, constituíam verdadeiras guerrilhas que percorriam o país, impondo gabelas aos ricos proprietários (V, 34, 6). E acrescenta que, ainda segundo Varrão, a esses cometimentos, há a somar os levados a efeito pelos povos do Norte: Calaicos, Ástures, etc.». (Regímenes sociales y económicos de la España prer­

romana, in «Revista Internacional de Sociologia», vol. I. pág. 170).O70) III, 3, 6; C. 154.(171) O Prof. Garcia y Bellido, na sua tradução do texto estraboniano,

faz começar o parágrafo, que se segue ao que versa os costumes dos Lusitanos, por esta frase: «Todos estos habitantes de la montaña...» (III, 3-, 7). Não obstante, Schulten traduz assim este mesmo passo de Estrabão: «Todos los ser­ranos...» (Fontes, VI, pág. 10-6), e a Dr.“ D. Maria Helena da Rocha Pereira, que consultámos, informa-nos que, realmente, Estrabão não se reporta a qualquer outro povo anteriormente mencionado.

(!72) ii.if 3? 7; C. 755. Schulten, comentando este passo, observa: Tribos

da serra chama Estrabão aos Calaicos, Ástures, Cántabros, Vascões, isto é,

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 245

Ora, justamente os Calaicos, vindos de leste, talvez pelo vale do» • -* ,

Douro, estavam então em movimento (173), chegando a dominar uma érea relativamente extensa ao norte dessé rio, área essa que procura­vam, com certeza, ampliar até ao litoral (174) — o que se acomoda perfeita-mente aos dizeres não só de Estrabão, que os situa a leste dos Lusitanos, a seguir aos Vaceus ((175), apresentando-os como sendo um dos mais conhecidos povos de montanheses que ocupavam a costa Cantábrica (176 ), mas também de Plínio

a todas as tribos selvagens da costa norte, disttinguindo-as dos Lusitanos» (Fontes, cit., pág. 213); e, mais adiante, diz ainda: «Ê importante que, segundo Estrabão, os Calaicos são mais parecidos com os Ástures e Cántabros, do que com os Lusitanos» (7bid., pág. 218).

(173) Vidie, atrás, a nota 152.(174) O IProf. Maluquer, referindo-se aos Calaicos, constituidos prova­

velmente por grupos de invasores provenientes da Meseta, diz que «na época das fontes utilizadas por Estrabão (séc. II a. C.) não teriam ainda alcançado as costas galegas» (artigo cit., in Zephyrus, V, pág. 2'54). Julgamos, mesmo, que nunca chegaram a atingi-las, por não terem podido vencer a resistência dos Brácaros, como se depreende da posição em que os coloca Plínio — a não ser que os Brácaros subsistissem sob o domínio dos Calaicos, o que não é provável, pois foram os Romanos, segundo parece, que generalizaram o seu nome, apli- cando-o a toda a região. (Vide Pueblos Celtas, do mesmo autor, in «Hist. de España» dirigida por M. Pidal, Tomo I, vol. III, pág. lá).

O7*) UI, 3, 3; C. 152.(17e) Realmente, Estrabão cita apenas, a oeste dos Vascões, os Calaicos,

os Ástures e os Cántabros; mas adverte ter renunciado a mencionar outros nomes de povos menos belos e mais ignorados (III, 3, 7; 155). Não obstante, a circunstância de Pompónio Mela mencionar, em lugar dos Calaicos, os Árta- bros, permite-nos supor que Estrabão, ao indicar a presença dos Calaicos na costa Cantábrica tivesse apenas em vista a nova terminologia romana que, como é sabido, tomou a designação Callaecia extensiva a todo o Noroeste, ao norte do Douro.

Maluquer de Motes, explica essa generalização pela resistência dos Calaicos aos Romanos, resistência essa que teria sido mais tenaz por este povo «con­servar vivo o espírito de migração e conquista, quer dizer, por ser recente a sua

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246 Torquato de Sousa Soareis

que, como já vimos, indica ainda com mais rigor o seu primitivo assento (177).

É certo que a referência que o naturalista latino faz à Callaecia supra Bracarum — expressão que se tem suposto significar ao norte dos Brácaros (178) — levou alguns arqueólogos a considerar que Plínio se referia umas vezes à Calécia lato sensu e outras à Calécia stricto sensu (170).

Não nos parece, porém, aceitável esta interpretação, não só por­que Plínio se refere à Callaecia depois dos Bracari, apesar de des­crever o Ocidente da Hispânia a partir do norte para o sul (18°), mas também porque a expressão supra, que emprega, não significa

presença no território, e pelo facto de a acção romana os surpreender em momento de expansão, organização e domínio do elemento indígena» (Artigo cit. na nota 174).

Sem pretendermos, de modo nenhum, diminuir o valor deste juizo, não dei­xaremos de por em relevo um factor a que Maluquer se não refere, e a que atri­buimos importância capital: terem os Calaicos à sua disposição ricas jazidas de ferro, que lhes permitiram talvez, se não atingir o Atlântico e o Cantábrico, isto é, vencer os Brácaros e os Ártabros, pelo menos dominar outros povos, como os Lémavos, de recente estabilização (vi'de a nota 70).

,(i77) Vide atrás, pág. '57.I(178) Assim, Leite de Vasconcellos, aludindo a esta passagem, diz que Plí­

nio «situa a Callaecia ao N. dos Brácaros» (Religiões da Lusitânia, vol. II, pág. 35, nota 3); e López Cuevillas e Serpa Pinto observam por sua vez: Fixando-nos nas indagações plinianas, podemos colocar este povo ao norte de Braga, quiçá no vale do rio Homem e na serra do Gerez» (Estudos encol da

Edade do Ferro no Noreste da Península — As Tribus e a sua costituzón polí­

tica, in «Arquivos do Seminário de Estudos Galegos», VII, pág. 275).i(179) Assim Cuevillas e Serpa Pinto, que supõem que «Plínio fala dos

Galecos lato sensu quando diz que o Douro os separa dos Lusitanos» (Arquivos

cit., pág. 275).i(i80) De facto, Plínio toma como ponto de partida da sua descrição os

Pirineus, seguindo a costa do Atlântico (Oceanus); e, só depois de se referir aos povos que integravam o convento Lucense, é que menciona os dos convento Brácaro, a que 9e segue a descrição da Lusitania romana (IV, 111, 112 e 113).

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 247

necessàriamente ao norte (181), sendo até, neste caso, o sentido a montante — portanto a leste, sobre ou para além das montanhas —bem mais verosímil (182). De resto, não há qualquer contradição entre este passo e aquele iem que o velho naturalista latino situa a Calécia na margem direita do Douro, imediatamente antes dos Brácaros (183), sem necessidade de recorrer ao expediente da atri­buição de dois sentidos diferentes à expressão Callaecia (184).

É certo que, noutro lugar da sua Naturalis Historia, Plínio men­ciona os Callaeci entre os Celerini e os Equaesi (185) ; mas esta

(181) Já o notou, muito acertadamente, Mendes Corrêa, ao observar que ca expressão acima não teria então o significado actual de a norte, que advem da moderna orientação das cartas geográficas...» (As origens da cidade do

Porto, pág. 3'5); mas enganou-se dizendo que Plínio mencionava o convento dos Brácaros antes de Tui e do Minho, pois que o naturalista latino quer, sem a menor dúvida, dizer é que o conventus Bracarum começa (não esqueçamos que a descrição é feita do norte para o sul) com os Helleni, os Grovii e o cas­telo de Tyde (IV, 112).

(182) Assim o julga, também, Garcia y Bellido, que considera que os Callaeci ficavam no interior do convento BrácJaro, sobre a margem direita do Douro, a seguir aos Brácaros (La España cit., ípág. 248, nota 141); e iFemández- -Guerra, que lhes assinala o mesmo habitat no seu artigo sobre Las diez ciudades

bracarenses nombradas en la inscripción de Chaves, in cRevista Archeologica e Historica», vol. II, pág. 96. '(Vide também o mapa que o acompanha).

(183) Comentando este passo de Plínio, Mendes Corrêa observa: «É inte­ressante que na mesma altura o Douro serve de limite entre os Túrdulos e os Brácaros, entre os Lusitanos e os Gallaeci»; e conclui daí que, neste passo, cas designações étnicas sobrepÕem-se num entrançado complexo» (Ibid., pág. 36). Certo é, porém, que a interpretação deste trecho não oferece a menor dificuldade, desde que se atribua à expressão Callaeci o sentido que realmente tinha à chegada dos Romanos.

O84) Tanto mais que, excluindo os Brácaros da Calécia, Plínio não podia, de modo nenhum, atribuir-lhe o sentido lato que só mais tarde os Romanos lhe deram.

(185) c... Bracarum XXIV civitates CLXXV M. capitum: ex quibus

praeter ipsos Bracaros, Bibali, Coelerni, Callaeci, Equaesi, Limici, Querquerni

citra iastidium nominentur» (III, 28).

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248 Torquato de Sousa Soares

ordem não lhes determina, de modo nenhum, a posição, como se tem julgado (18T), pois, nesse passo, as tribos são enumeradas por ordem alfabética (18T).

» Julgamos, portanto, poder concluir que o assento primitivo dos Galaicos, ou, melhor, a primeira posição que tomaraim ao deslocarem-se para o Ocidente, foi a leste dos Brácaros, natural­mente ao sul da actual província trasmontana, talvez à volta da serra do Marão (188), que lhes proporcionaria o ferro de que care­ciam (189).

— Na própria Lusitânia ?— É muito provável.Realmente, como vimos, os Lusitanos tinham ocupado a região

de Moncorvo ao norte do Douro (19°), e portanto também a região a oeste, onde, mais tarde se estabeleceram os Galaicos, que, como dissemos, procuravam certamente avançar em direcção à costa atlân­tica (191).

(186) (Assim Cuevillas e Serpa Pinto, sobre quem esta razão pesou ao loca­lizarem, sem a menor verosimilhança, a tribo dos Callaeoi no vale do rio Homem e na serra do Gerez, como vimos na nota 178.

(187) iContra a legitimidade deste raciocínio, aliás já feito por Borges de Figueiredo a propósito dos povos enumerados na inscrição da ponte de Chaves (Forum Naebisocum, in «Boletim da (Sociedade de Geografia de Lisboa», 5.a série (1885), págs. 337-347), poderá invocar-se o facto de, na lista de Plínio, os Coelerni precederem os CállaecL (Mas há que admitir a possibilidade de um lapso, tanto mais que a inicial é a mesma; ou ainda a hipótese de, nas listas de que Plínio se serviu, estar Caelerni tem vez de Coelerni.

,(i88) 'Isto é, o limite da actual província de Trás-os-Montes. Leva-nos a admitir esta hipótese não só o relevo do terreno e o número extraordinàriamente avultado de castros e citânias a oeste desse limite, mas também o modo como Plínio se refere à posição ocupada pelos Calaicos.

(is») Vide atrás, a nota 154, onde mencionamos fontes medievais que se referem à extracção de ferro na região do Marão.

(19°) Vide, atrás, pág. 78 e nota 153.(191) Vide a nota 174.

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Por sua vez, os Ártabros progrediam para o sul, atingindo pelo menos a ria de Arosa (192).

% Destas duas grandes ofensivas resultou ficar a Lusitânia reduzida, ao norte do Douro, ao país onde os Brácaros preponderavam (193). E daí o estado de permanente vigilância a que foram obrigados os habitantes do país, que, para poderem enfrentar os agressores, se viram forçados — como refere Estrabão — a abandonar as suas actividades económicas (194), o que havia de provocar a decadência

Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 249

'(i02) Vide a pág. 46 e notas 58 e 59. Talvez chegassem mesmo a atingir a xia de Pontevedra, pois, como se depreende de Plínio, é por aí que segue a fronteira dos celtas, fronteira essa confirmada, segundo parece, pela antropo- pologia. (Realmente é digno de consideração o facto posto em relevo por Mon- teagudo, die ser principalmente no norte de Portugal, em Pontevedra e Orense, quie abunda o tipo mediberrânico (dolicocéfalo moreno) do Bronze I-III, em contraste com o tipo Céltico que predomina ao norte. (Celtoalpinos en el N.W.

hispânico. Etnologia hispânica del Bronce IV, in «Cuadernos de Estudios Gallegos», tomo VIII, pág. 310).

Aí se estabeleceram também as tribos célticas vindas do sul, a que se refere Garcia y Bellido quando diz que «na Galiza, tem meados do século I da nossa era, ainda não se tinham estabilizado os povos célticos, fenómeno que se vê claramente em Plínio (La Península Ibérioa cit., pág. 62). E talvez a elas se refira também Sánchez-Albornoz, ao considerar — baseado em Bosch-iGim- pera — que o facto de persistirem na toponímia actual da Galiza diferentes povoados chamados «iCéltigos», testemunha, nas regiões onde se encontra, um elemento estranho de colonização (EI culto al Emperador cit., pág. 88, nota 25'6). Trata-se, muito provàvelmente dos iCélticos «parentes dos que vivem sobre o Guadiana», que Estrabão diz terem ficado ali (nas proximidades do cabo Nerion) depois de uma revolta ocorrida após a travessia do rio Lima, no decurso de uma expedição constituida por Célticos e Túrdulos (III, 3, 5). Ora, afigura-se-nos possível que esta expedição estivesse integrada na campanha de Décimo Júnio Bruto, durante a qual ocorreu também uma sedição, ao ter de passar o referido rio, segundo Tito Livio (Fontes Hispaniae Antiquae, IV, pág. 334).

(193) Dá-o a entender Plínio, pois só se refere aos Brácaros, entre o Cávado e Douro. (Vide atrás, pág. 57).

(i04) Vide a passagem transcrita atrás, ñas págs. 33 e 84.

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250 Torquento de Sousa Soares

da agricultura (195) e o povoamento ou (em alguns casos) repovoa­mento dos cabeços dos montes, onde mais fácilmente se poderia organizar a resistência (106).

(195) o estado de guerra faria com que as mulheres substituissem os homens no desempenho das actividades económicas domésticas, de onde resul­tariam laivos de matriarcado na sociedade castreja. «De facto, Caro Baroja, citando Justino, no seu resumo das Historiae de Trogo Pompeu, diz que «havia povoações na Península em que as mulheres se dedicavam aos trabalhos agrí­colas e os homens não se ocupavam senão da guerra e de latrocínios» (XLIV, 3, 7). E acrescenta: «O texto não se refere, como pretendeu Schulfcen, aos Iberos em geral, pois está incluido numa passagem que fala da Callaecia

em particular» (Los pueblos del norte de la Península Ibérica, pág. 30).(íes), Maluquer de Motes, no capítulo do seu estudo Pueblos Celtas, que

dedica às citánias galaico-portuguesas («Historia de España» cit., T. I, vol. III, pág. 42 e segs.), depois de se referir às causas de densidade da população (o clima favorável e a riqueza mineral, especialmente de estanho e ouro), observa: «Ambas estas causas explicam satisfatòriamente a grande densidade de castros da Idade do Perro e suas respectivas destruições e reconstruções, visto que motivaram uma contínua insegurança que tomará necessária a aparição de construções defensivas às vezes ingentes para grupos de população muitas vezes relativamente exíguos» (págs. 43 e 44). Mas esta observação, embora perfei­tamente válida, não exclui, cremos nós, a de ser a invasão dos calaicos se não a causa primeira, pelo menos a mais importante do desenvolvimento da vida castreja, visto que só nos seus redutos fortificados podia a poulação resistir ao invasor, certamente mais bem armado.

É certo que — como observa o erudito arqueólogo Mário Cardozo in D te

« Castros » im Norden Portugais ( « Revista de Guimarães », vol. LXIX, págs. 419)—«a origem da maioria dos castros remonta a épocas anteriores à data da l.a invasão celta da Penísula, provindo sem dúvida uma grande parte deles dos tempos neolíticos»; não obstante, nos seus espólios «predominam as influên­cias pre-romanas da época de Hallstatt, ou melhor, célticas, mescladas de sobre­vivências do Bronze final na Península». Trata-se, realmente, como observa ainda Mário Cardozo, de uma «Cultura característica e inconfundível, conside­rada de origem pré-Celta, mas claramente celtizada e romanizada» (Alguns pro­

blemas da Idade do Ferro no Norte de Portugal, in «'Revista de Guimarães», Vol., LXIII, pág. 670), cujas Características peculiares residem, como acentua, por sua vez, Joaquim de Carvalho, «na estabilidade da cultura material,

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 251

É a chamada epopeia dos castros (197), que tanto contribuiria para modificar a «facies» social e económica de uma população que até aí não tinha, em geral, de curar da sua defesa (198).* Há pois, que ter também em consideração a interferência das tribos célticas, para se poder compreender a crise em toda a sua amplitude, isto ié, a transformação de um povo pacífico num povo de bandoleiros, que fazia da guerra a sua principal ocupação, e da pilhagem um modo de vida.

, Surpreenderam-os, porém, os? Romanos, antes que os Galaicos (e certamen te também os Ártabros) tivessem podido realizar a anexação do território que, segundo parece, fora dominado pelos Gróvios (199). E quando Décimo Júnio Bruto, vindo do sul, entrou nesse país, enfrentando a resistência tenaz dos Brácaros, que constituíam o seu povo mais forte e mais representativo (20°),

patente na continuidade das formas ardaicas através da assimilação tardia e fruste de algumas inovações técnicas e utilitárias, como o vaso campaniforme, na coesão ida comunidade e no indomável sentimento torrantes, compenetrado intimamente com a altivez *da independência » '( A Cultura castreja e sua

interpretação sociológica; separata do n.° 99 da revista Ocidente, pág. 9).(197) Creio que a designação é de Mendes Corrêa, que assim intitula

o capítulo que lhe dedica na «História de Portugal» sob a direccão de Damião Peres, vol. I, págs. 173-214.

(198) é o que se depreende especialmente do trecho de Estrabão a que nos referimos atrás (a págs. 83-84).

(199) ix>a extensão desse território podemos fazer ideia relacionando o passo de Pompónio Mela, que se refere aos Gróvios, com a toponímia antiga e moderna, como vimos a pág. 69.

(200) é, realmente, de notar o relevo que assume a posição dos Brácaros na luta contra os Romanos, relevo esse bem patente em Apiano. Realmente, o historiador grego atribue aos Brádaros a reacção contra a ofensiva die Júnio Bruto, referindo-se especialmente ao heroísmo da mulher brácara. (Fontes

Hispaniae Antiquae, IV, pág. 332). Tudo isto nos leva a supor ter sido par­ticularmente importante o papel desempenhado pelos Brácaros na luta contra os Galaicos, de acordo com o número tão avultado de castros existentes no território por eles dominado.

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252 Torquato de Sousa Soares

já não é contra os Calaicos, mas a seu lado, que intervêem na luta (201).

De facto, ou porque pressentissem que a vitória dos Romanos os aifectava especialmente (202), ou porque houvesse já então no país tribos ou povoados que lhes pagavam tributo (203), o certo é que os Calaicos mobilizaram, ao que parece, todos os seus recursos contra o invasor (204).

Por isso, a derrota dos Lusitanos foi a sua própria derrota — uma derrota definitiva, apesar de o seu nome ter sido dado pelos Romanos à província mais tarde constituida pela região onde foram vencidos. V <E assim, o que sobretudo ficou após o triunfo romano foram os agrupamentos de tribos ou cidades que já os Lusitanos e os Calaicos tinham encontrado e, antes deles, os Célticos, de origem celtibérica (205), muito embora estes, nomeadamente ao sul do Tejo, tenham conseguido man ter-se e dar carácter à sua população (20G).

(soi) é o que se depreende, conjugando a descrição de Apiano, a que nos referimos na nota anterior, com a alusão de Orósio ao auxílio prestado pelos Calaicos aos Lusitanos, certamente Brácaros, pois o combate a que este se refere devia ter-se travado ao norte do Douro. (Vide atrás, pág. 37).

i(202) (Realmente, como notam Bosch G impera e Aguado Bleye, os Romanos parece terem seguido, em geral, uma política anti-céltica. (La conquista de

España por Roma, in «Hist. de (España» sob a direoção de Menéndez Pidal, T. II, pág. 267).

j(203) é, de facto, perfeitamente admissível que assim acontecesse, visto que, Como conta Diodoro, os próprios grupos de bandoleiros impunham o paga­mento de tributo (V, 34, 6, cit. por Caro Baroja: Regímenes sociales y econó­

micos, in «Revista Internacional de Sociologia», I, pág. 1(80).1(204) Creio que é Orósio o único historiador que se refere ao número de

soldados que constituíam o exército calaico, que veio em sooorro dos Lusitanos; e embora não seja de crer que fossem tantos (vide, atrás, a nota 22), o faoto de o general romano adoptar o cognomen de Callaècus dá bem a medida da importância deste elemento na luta que travava contra os Lusitanos.

,(205) iDi-lo Plínio na sua Naturalis Historia: 'III, 13.(206) Realmente, como vimos, Estrabão diz que essa população é consti­

tuida, na sua maior parte, por célticos (III, 1, <6).

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 253

Realmente, são os três grandes agrupamentos de povos fixados ao norte do Douro (20T), entre o Douro e o Tejo (208) e ao sul do Tejo(209), que nem os Lusitanos nem, muito menos, os Calaicos conseguiram des cara eterizar, que, afinal, persistem e de certo modo condicionam os quadros administrativos que Roma lhes impôs (21°), como veremos na seguinte «reflexão».

(207) Os Gróvios e os Brácaros, certamente também de origem celtibérica, que tinham dominado e aglutinado as tribos de cultura arcaizante, aí fixadas de longa data.

(208) iCónios e Céltickw, em concorrência com Túrdulos, que constituíam, certamente o elemento mais activo da população.

(209) Os mesmos elementos, isto é, Cdnios, Célticos e Túrdulos, mas caldeados de modo diverso, pois aí, como já vimos, parece terem predominado os Célticos, cujo poder expansivo foi tal, que chegaram mesmo a transpor o Guadiana, fixando-se numa larga zona da sua margem esquerda onde também fundaram algumas cidades que Plínio menciona (III, 14).

i(2i°) (Dizem-no Bosch e Aguado, ao afirmarem que «ressurgem muitos povos indígenas da Hispânia com o favor dos Romanos, que restabelecem fre­quentemente antigos limites» '(«Hist. de España» sob a direcção de M. Pidal, t. II, pág. 267).

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NOTA EXPLICATIVA

Neste mapa quisemos indicar esquemáticamente os movimentos dos povos que, nas idades do Bronze e do Ferro, se sobrepuseram a uma população de tipo arcaizante, agrupada em tribos, em geral ocupando pequenas extensões territo­riais, num país que viria a delimitar-se a noroeste pela ria de Pontevedra, e a sudeste pela foz do Guadiana.

Assim os Túrdulos ou Turdetanos, originários de Tartessos, que, vindos certa- mente por mar, se fixaram na zona litoral, imediatamente ao sul do Douro, pas­sando a designar-se Antigos Túrdulos (Turduli Veteres), ao passo que outros Túrdulos, deslocando-se paulatinamente, talvez por terra, ultrapassaram o Gua­diana e, depois, o Tejo, fundando várias cidades.

Além deste povo, a nossa carta indica os Célticos provenientes da Celtibéria, de onde teriam também chegado, provàvelmente, os Lusitanos.

Os primeiros instalaram-se no país que se estende entre o Douro e o Tejo, e na mesopotâmia transtagana, onde se mesclaram com os Cónios e os Túrdulos. Daí teriam partido por mar os Gróvios, ao que parece Céltiberos ou Iberos celtizados, que se fixaram no tramo costeiro entre a ria de Vigo e o rio Minho, de onde se foram estendendo até ocupar uma extensa faixa, provàvelmente desde o /Douro ao Cantábrico. Mas, idepois de teirern sido dominados pelos Lusitanos, que conseguiram imperar em toda a zona litoral ao norte do Tejo, foram repe­lidos pelos Ártabros, que, intimamente ligados aos Celtas vindos por mar, da Bretanha, se assenhorearam do território que vai até à ria de Pontevedra, onde se constituiu, realmente, uma fronteira.

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SEGUNDA REFLEXÃO

«SOBRE OS CONVENTOS JURÍDICOS (BRÁCARO ESC AL ABITAN O E PACENSE

I — A situação do País e a constituição da Lusitânia e da Calécia como provincias romanas:

Nas várias tentativas feitas para apreender e interpretar o longo processo de formação do espirito de colectividade dos povos fixados no país que se estende da ria de Pontevedra ao Guadiana, tem-se, a nosso ver, exagerado e por vezes até considerado erradamente a intervenção dos Lusitanos, que em geral se apresentam como fau­tores do que, um tanto abusivamente, se diz ser sentimento nacional.

• Mas é inegável que este povo, tendo conseguido impor mais ou menos efectivamente a sua autoridade desde o Tejo ao Leres C1), contribuiu não só para relacionar mais Intimamente entre si os povos submetidos, especialmente os de entre Tejo e Douro (2), mas tam­bém — incorporando no respectivo território uma vasta zona mon-

(1) Realmente, embora o domínio dos Lusitanos tivesse chegado até ao Cantábrico, como vimos, teria sido no país compreenldiido entre o Tejo e a ria de Pontevedra, onde verdadeiramente se manteve a autoridade lusitana até às primeiras incursões romanas.

(2) Julgamos mesmo terem sido os Lusitanos que primeiro conseguiram integrar esses povos numa comunidade que os transcendia. Ê o que parece depreender-se de Ptolomeu que apresenta todas as cidades dessa região como Ópidos Lusitanos, mesmo quando o seu nome revela uma origem diversa.

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 257

tanhosa, rica em jazidas de ferro — para lhes aumentar a capa oi da de de resistência e, por conseguinte, para lhes dar maior estabili­dade (3)'.

» Não obstante, das perturbações a que fizemos referência na «reflexão» anterior haviam de resultar dificuldades tão grandes, que o triunfo dos Romanos, longe de se tornar opressivo, correspon­deria, afinal, à libertação dos habitantes do país, sujeites durante largo período de tempo às pilhagens e aos assaltos sistemáticos de novo® invasores e deles próprios.

Estrabão di-lo claramente, ao observar que os novos domina­dores puseram fim a este estado de coisas, obrigando a maior parte dos agressores a descer das montanhas e a transformar as suas cidades fortificadas em povoações abertas, imielhorando ainda a situação com o estabelecimento de algumas oalónias entre eles (4).

(3) De facto, antes do avanço dos Lusitanos, o país ocidental limi­tar-se-ia, provàvelmenfce, apenas à zona costeira, o que tomava com certeza precária a posição dos povos nele radicados, pois constituíam, assim, presa fácil dos habitantes das montanhas como eram os Célticos, que tinham chegado antes dos Lusitanos, trazidos não só psla espectativa do saque, mas também pela neces­sidade de procurarem condições climáticas mais favoráveis, como sagazmenbe observa Maiuquier de Motes (in Hist, de España dirigida por M. Pi dal, Tomo I, vol. III, pág. 12). É certo que, tanto quanto podemos julgar, os Lusitanos teriam repetido a façanha dos Célticos, mas, em relação aos povos situados ao norte do Tejo, em melhores condições, pois puderam chegar ao Cantábrico, vinculando, ao que parece, mais íntimamente a região montanhosa ao litoral.

(4) III, 3, 5. As codónias romanas fundadas na antiga Lusitânia são Scaîabis, que corresponde ou fica próximo de Móron, onde Júnio Bruto «estabeleceu as suas bases de operações nas campanhas contra os Lusitanos» (Estrabão, III, 3, 1; C. 152), e certamente também Augusta, que teria sido construída num acampamento militar, no país dos Brácaros (vide atrás, a nota 91). Martins Capela põe em dúvida que tenha sido colónia; mas o facto de os seus moradores estarem inscritos na tribo quitina, uma dias trinta e cinco tribos romanas, prova que o era (Vide Miliários do Conventus Bracaraugustanus

em Portugal, págs. 51-52).

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258 Torquato de Sousa Soares

E assim — como observam Bosch-Gimpera e Aguado Bleye — «res­surgem muitos povos indígenas em virtude da acção dos Romanos, que frequentemente restabelecem os seus antigos limites» (5).

Mas a situação era demasiadamente confusa para poder ser resolvida sem hesitações nem dificuldades.

Na verdade, havia posições criadas a marcarem disparidades que era impossível desconhecer. E assim é que, apesar de obtida, final­mente, a paz no Ocidente da Hispânia depois da submissão dos Cántabros (6), nem por isso a sua manutenção deixava de oferecer dificuldades especialmente ao norte do Douro (7).

r De facto, os Celtas invasores, nomeadamente os Calaicos — que, além dos Lusitanos, tinham oferecido uma tão tenaz resistência à conquista romana — não podiam deixar de estar presentes no espírito dos dominadores ao estabelecerem divisões administrativas no país conquistado (8). E, assim, as mesmas razões que levaram os Roma­nos a incluir primeiramente numa única província todo o Ocidente

(5) In Historia de España dirigida por Menéndez iPidal, T. II, pág. 267.

(6) Uma vez terminadas as campanhas dos anos 26 a 25 a. C. contra os Cán­tabros e os Ástures, donsidera-se a Hispânia pacificada; mas alguns anos depois, nos anos 22 e 19 a. C., a guerra reanima-se, só terminando com a definitiva sub­missão dos povos montanheses no ano 16 a. C. (Vide Historia de España, cit., tomo II, pág. 273-274).

(7) Gasta ter em vista a recente chegada de povos célticos e germanos, como os Calaicos e os Lémavos, nomeadamente os primeiros, que, certamente ligados às populações indígenas que antes tanto tinham hostilizado, ofereceram, como tivemos odasião de referir na primeira «observação», tenaz resistência à ocupação romana.

i(8) De facto, todas as legiões da Lusitânia passaram a acampar ao norte do Douro, não só no país dos Ástures, apenas submetido, mas também na região ocidental, onde os Calaicos, unidos às populações indígenas, continuavam a preocupar os Romanos. (Vide Sánchez-Albornoz : Divisiones tribales y admi­

nistrativas del solar del reino de Asturias en la época romana, in «Boletin de la Real Academia de la Historia», tomo XCV, págs. 377-378).

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 259

hispânico (9), fizeram com que o dividissem depois pelo Douro, considerando que o país situado ao norte desse rio, não estando ainda pacificado, exigia uma administração diferente (10). E por isso é que a parte setentrional da Lusitânia, em união com os As tures e os Cántabros, foi incorporada na Citerior, embora con­tinuasse a manter dentro dela uma relativa autonomia (n).

, Deste modo, as províncias' foram constituídas pelos Romanos atendendo, sobretudo, a razões de ordem acidental ou pelo menos sob a pressão de circunstâncias ocasionais, especialmente de carácter militar, do que resultou reunirem-se, por vezes, na mesma província, povos diferentes. Mas nem por isso podemos considerar as divisões provinciais romanas completamente arbitrárias, nem melsmo sob o ponto de vista da sua população (12).

(9) De facto, ao dividir a Hispânia Ulterior ainda antes días guerras can­tábricas, Octávio, prevendo uma resistência encarniçada, determinou que a Lusitânia ficasse sob a sua directa dependência, passando a abranger toda a fachada ocidental hispânica, separada da Bética, que, domo província pacata, atribuiu ao senado.

(10) Efectivamente, algum tempo depois de terminada a guerra, entre os anos 7 e 2 a. C., a Lusitânia, antes acrescida dom as Astúrias, foi consideravel­mente restringida, separando-se dela a Calécia e as Astúrias, que foram incor­poradas à Citerior.

Como diz Sánchez-Albomoz, que vou seguindo, esta mutilação teve por fim «concentrar sob a autoridade do legado consular da Citerior todas as terras inseguras» (Divisiones tribales y administrativas in «Boletín» cit., págs. 375 a 3*77).

O1) Afirma-o, por exemplo, Sánchez-Albomoz, dizendo que, apesar dessa incorporação, «não se desvaneceram todos os vestígios da anterior organização». E depois de observar que, nos primeiros anos do governo de Tibério, a Citerior e9tava submetida à autoridade de três legados, um dos quais tinha a seu cargo a Calécia e as Astúrias, observa que esta separação se perpetuaria, perdurando a distinção entre a Calécia e Astúrias, por um lado, e o resto do país limitado pelo Douro e pelo mar, por outro. (Ibid., págs. 3^7*8 a 381).

(12) Ê o caso do país dos Vetões, incorporado à Lusitânia, como diremos nas notas 19 e 20. De resto, há a considerar que os movimentos de povos e a

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260 Torquato de Sousa Soaras

Assim, a união do território entre o Guadiana e o Tejo (13) à Lusitânia corresponde não só a razões de ordem militar, mas também, talvez, a imperativos de ordem ¡económica, considerando quanto a interrupção de actividades mercantis entre os dois países divididos pelo Tejo afectara o seu equilíbrio económico e social (14), e por seguinte, quanto se impunha a interpenetração das respectivas popu­lações.

Por isso, à decisão tomada pelos novos dominadores se segue uma verdadeira tomada de posições em larga escala pelos Lusi­tanos (isto é, pelos povos da Lusitânia pré-romana) ao sul do Tejo.

É certo que, segundo nos informa Estrabão, a iniciativa desse movimento cabe aos Romanos, que seriam os primeiros a transladar para a margem esquerda do Tejo algumas tribos lusitanas (15) — o que parece relacionar-se com a referência de Tito Livio à con­cessão, feita por Décimo Júnio Bruto aos homens de Viriato, de terras e de uma cidade que recebeu o nome de Valentia (16). Mas,

sua coexistência no mesmo território tomavam pràticamente impossível a consti­tuição de províncias étnicamente homogéneas, não contandio mesmo com as deslocações que os próprios Romanos favoreceram e até impuseram.

(!3) Território esse que, como veremos adiante, englobava uma pequena faixa na margem esquerda do Guadiana.

(14) Vide o que, a este respeito, dissemos na primeira «reflexão», a págs. 81 e 82.

f(15) III, I, 6; C. 139.(16) Periochae, 55, in Fontes Hispaniae Antiquae, IV, págs. 138 e 334.

Muito têm divergido as opiniões dos eruditos àcerca dia situação desta cidade. Schulten identificou-a primeiro com a Valência levantina (Viriato, pág. 58); mas logo corrigiu o seu juízo, considerando que, pelo facto de estar muito longe da Lusitânia (e, além disso, como nota Masdeu, na Citerior e, portanto, fora da jurisdição de Júnio Bruto), não lhe parecia aceitável essa localização, pre­ferindo a de Valença do Minho, já proposta por Miinzer, no próprio teatro da guerra de Bruto (Fontes, cit., IV, pág. 139); e esta localização é também adop­tada por Garcia y Bellido (La Península Ibérica en los comienzos de su His-

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 261

além dessa iniciativa há a considerar outras deslocações de Lusitanos para a mesopotâmia transtagana, onde realmente ocuparam, ainda antes do siée. II, mais algumas posições, como veremos ao comentar Ptolomeu (17).

E assim, eliminando a fronteira do Tejo, os novos dominadores conseguiram restabelecer a ordem que, segundo parece, os Lusitanos tinham destruído em consequência de uma acção militar que, natu­ralmente, como já tivemos ocasião de observar, não chegara ainda ao seu1 termo.

toria, pág. 661). Trata-se, porém, de um equívoco, pois nem essa região estava então sujeita a Roma '(vide Hist. de España, dirigida por M. Pida!, T. II, pág. 134), nem a vila em referência se chamava então Valença, mas Contrasta. De facto, na confirmação do foral que em 1217 lhe outorgara D. Afonso II, confirmação feita por D. Afonso III em 12'62, el-rei diz: «...quando iterum fecimus populari ipsam villam mutavimus sibi nomen de Contrasta et impo­suimus sibi nomen Valentiam» (Port. Mon. Hist, Diplomata et Chartae, vol. I, pág. 572).

Portanto, postas de parte estas duas hipóteses, resta apenas a de Masdeu, que propõe a localização da colónia lusitana em Valência de Alcântara (Historia

de España, IV, pág. 33'6), localização que se nos afigura tanto mais aceitável quanto é certo que se concilia perfeitamente com o informe fornecido por Estrabão sobre o estabelecimento, por iniciativa de Bruto, de Lusitanos ao sul do Tejo, como referimos.

(17) Sánchez-Albomoz assinala uma vasta faixa ao sul do Tejo que se estenderia por um lado até a foz do Sado, e por outro até ao sul de Évora (El culto al Emperador dit., pág. 85, nota 252), mas há que ter em vista que Ptolomeu inclue Salacia e Caetóbrix entre as cidades de Turdetanos; e quanto a Ebura, que considera lusitana, embora seja perfeitamente admissível, e até muito provável a sua identificação com a actual Évora, não podemos deixar de nos lembrar que Pompónio IMela menciona uma cidade, que designa Ebora, nas proximidades do promontório Magnum, que não nos parece possível identificar com a Liber alitas Julia de Plínio, como dissemos a pág. 54, n.° 75. De resto, não considerando Ebura, as posições dos Lusitanos assinaladas por Ptolomeu, ao sul do Tejo, na Estremadura espanhola, não iam além de Augusta Emerita

(Mérida) e Caedlia Metellina (Medellin).

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262 Torquato de Sousa Soares

Mas, por outro lado, tendo vencido os Cartagineses e estabe­lecido novos entrepostos e novas vias para o tráfego, nomeada-mente do cobre e do estanho, os Romanos contribuiram para tomar mais nítida a separação entre os povos da Betúria e da Mesopo­tamia (18).

Assim se ia delineando a Lusitânia romana; mas, para se com­pletar, faltava ainda a incorporação da Vietónia, que, por sua vez, se teria realizado, não apenas em atenção a razões de ordem militar — dada a união dos Vetões aos Lusitanos na luta contra Roma (19) — mas talvez também em virtude de possíveis afinidades étnicas (20), embora continuassem a considerar-se dois povos distintos (21).

(18) Realmente, todo o comércio, sobretudo de metais, que até então tanto beneficiava o país de Tartessos, antes e depois da dominação cartaginesa, devia passar a encaminhar-se directamente para Roma, que fizera do curso terminal do Guadiana a fronteira de duas províncias perfeitamente autónomas. Não obstante, há a considerar a migração de elementos célticos da margem direita ido Guadiana para a outra banda, como referiremos adiante. Trata-se, no entanto, segundo parede, de um simples movimento colonizador, independente de quaisquer relações comerciais porventura existentes. 'De resto devia ter-se verificado quando a dominação romana não estava ainda completa, se é que não a precedeu.

(19) iDe facto, os Vetões estiveram unidos aos Lusitanos desde o prin­cípio da luta, isto é, já em 193 a. C., como observa Sdhulten (Viriato pág. 30). Também Pericot, aludindo à acção de Púnico, primeiro caudilho dos Lusitanos, diz ter-se aliado aos Vetões (Hist. de España, I, pág. 457, nota l).

(20) Referindo-se às características étnicas dos Vetões, Maluquer de Motes observa constituírem «o resto de uma invasão inldo-europeia que não chegou a ser dominada completamente, nem apagada por invasões célticas posteriores, graças à entrada em jogo da política romana, que se apoiou justamente ndles». (Pueblos Celtas, in «Historia de España», cit., Tomo I, vol. III, pág. 25). E acrescenta julgar que «existe uma certa redação entre Lusitanos, Vetões e Carpe­tanos, de grande interesse, cujas raízes remontam ao segundo milénio, em plena Idade do Bronze» (Ibid., pág. 28).

<(21) De facto, pelo menos a partir de Sétimo Severo (193-2*11), o pro­

curator da Lusitânia intitulava-se procurator provinciae Lusitaniae et Vettoniae.

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 263

Finalmente, a constituição da Callaecia e a sua própria designa­ção explicam-se pelo poder combativo do povo calaico, que lhe tinha permitido formar ou incorporar-se activamente nos dois maiores e mais vivos agrupamentos de povos situados ao norte do Douro, como veremos em seguida, guiados pelo testemunho de Ptolomeu.

II —O Ocidente da Hispania segundo Ptolomeu:

Embora já nos tivéssemos apoiado várias vezes na autoridade t de Ptolomeu, ainda não apreciámos, em conjunto, os dados que nos oferece, como fizemos relativamente a Estrabão, Pomponio Mela e Plínio. Mas, uma vez apresentadas, nas suas linhas gerais, as grandes divisões administrativas que os Romanos estabeleceram no Ocidente da Hispânia, cumpre-nos apreciar tanto quanto possível integralmente o depoimento do geógrafo de Alexandria, que reflecte de maneira rigorosamente objectiva a situação tal como se apre­senta logo depois de terminada a ocupação (22).

Realmietnte, há, no seu Indicador Geográfico, a par das longas

E, nessa mesma época, encontra-se também um tabularius Lusitaniae et Vetto-

niae. (Vide J. Marquardit: Organisation de VEmpire Romain, tomo II, pág. 75, nota 5).

(22) O título exacto da sua obra é, como informa Garcia y Bellido, «Oeographiké Hyphègesis, isto é, «Indicador Geográfico», ainda que, pela sua forma d¡e tábuas geográficas, se 1-he chame, muito frequentemente, também Tábuas de Ptolomeu». (La península Ibérica en los comienzos de su H isto-

ría, pág. 7).Chamamos muito propositadamente e atenção para o valor do depoimento

ptolomaico, que é realmente excepcional, porque, dando-nos aparentemente, apenas listas de cidades, fácilmente somos levados a sub-estimá-lo, quando a verdade é que contém dados e referencias relativos a um momento sobre que estamos muito mal informados.

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264 Torquato de Sousa Soares

listas de cidades — cujo interesse aliás, não pode ser posto em dúvida —* inf ormações que em vão procuraríamos em outros autores, apesar do seu excepcional interesse para uma melhor compreensão dos diferentes movimentos de povos durante o longo período de lutas que os Romanos tiveram de 'travar para lhes conseguir impor definitivamente a sua autoridade.

Mas, para se poder interpretar correctamente o testemunho de Ptolomeu, importa começar por inquirir qual era o seu objec- tivo, e, consequentemente, averiguar qual o verdadeiro sentido do seu Indicador Geográfico (23).

Ora, logo à primeira vista nos impressiona o facto de não men­cionar os conventos jurídicos, limitando-se, geralmente, a referir, dentro de cada província, os povos ou as cidades apenas em função de razões de ordem étnica ou de domínio.

'Mas esta orientação, em geral, muito bem definida relativamente à Lusitânia, já não é tão clara quando estão em causa os povos do lado ocidental da Tarraconense, que os Romanos agruparam

nos conventos jurídicos Lucense e Brácaro.É certo que o geógrafo grego parece adoptar aqui um critério

diferente, pois a referência que faz aos Callaioi Bracarii e a'os Callaici Lucens&s é geralmente interpretada como constituindo uma alusão aos dois conventos jurídicos em que se incluiram outros povos, apesar de expressos em rubricas diferentes (24). Mas, como vamos ver, lesta interpretação não resiste a uma análise atenta da parte do capítulo Vil que Ptolomeu dedica ao lado ocidental da Tarra­conense.

(23) Utilizámos a ©dição crítica anotada d© Karl Müller, de que só está publicado o volume I. Müller procura identificar todas as cidades e aciidentes geográficos citados: mas, como é óbvio, nem sempre o consegue; e, por outro lado, algumas das identificações propostas são inadmissíveis.

(24) Assim Rose h-G impera: Etnologia de la Península Ibérica, págs. 497 a 503.

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 265

Começa o autor por se referir à costa dos Galaicos Brácaros voltada para o Oceaino ocidental, desde o Douro até ao Minho (25). E logo em seguida descreve a costa dos Calaicos Lucenses, partindo do Otvium promontorium, .que parece corresponder ao cabo Silheiro (26), devendo a referência à «viae fluvii ostia», que se segue, dizer respeito à ria de Arosa, onde desagua o do Ulha (27).

Finalmente, Ptolomeu refere, até ao extremo norte da costa ocidental, a foz do rio Tambre, o porto dos Ártabros e o pormontório Nério (28).

Esta referencia ao porto Artábrico, entre os Galaicos Lucenses, presta-se a confusão, que o editor procurou remover, abrindo urna

<(25) Diz assim: «O lado ocidental da Tarraconense, que fica junto do Oceano ocidental é como segue, idepois da foz .do rio ¡Douro: Dos Calaicos Brácaros: foz do rio Avíe; promontório Avarum; foz do rio Nebis (Neiva); foz do rio Lima; foz do rio Minho; nascentes do rio» (II, 6, 1). Estas nascentes re'ferem-se, segundo Monte-agudo, ao rio Sil. (Vide Galicia en Ptolomeo, in «.Cuadernos de Estudios Gallegos» Tomo II, págs. 620- -621).

(26) Nao obstante, Monteagudo (ibid., ibid., págs. 621 -623) põe em dúvida esta identificação que, realmente, está longe de ser irrefutável. No entanto, devemos considerar que a principal razão invocada — ser o referido promontório mencionado entre os Calaicos Lucenses — não é bastante para invalidar a identificação proposta. ¡Realmente, sendo a costa descrita a partir do mar, parece que Ptolomeu queria dizer que os Lucenses vinham a seguir aos Gróvios, -tendo, portanto, anexado os Heleni e os Celini, que não menciona — o que é perfeitamente admissível, apesar de o limite meridional do convento lu cense ter sido fixado mais ao norte, certamente por imperativo de ordem étnica.

((27) As próprias coordenadas confirmam esta identificação, que Mon­teagudo segue no seu excelente mapa da Galiza romana («Emerita», Tomo XIX, entre as págs. 202 e 203). Vide também o seu estudo, já mencionado na nota 25 («Cuadernos» cit., págs. 623 e 624).

(28) II, 6, 2.

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266 Torquato de Sousa Soares

nova rubrica— [Artébrorum] (29). Mas que Ptolomeu não subor­dinava, de modo nenhum, estes àqueles?, prova-o o facto de, logo em seguida à referência que faz ao promontório Nério e às cidades dos Ártabros (30), dizer que na sua proximidade, e, portanto, independentemente deles, ficavam1 os 'Galaicos Lucen­ses (31).

Quanto aos Brácaros, a sua distinção de outras tribos, que foram incluídas no convento Bracaraugustano, é feita com a mesma clareza.

(De facto, é depois de dizer que os Callaici Bracarii vivem entre o Minho e o Douro, próximo do mar (32), e de enumerar as suas cidades (33) — Bracaraugusta, Caladunum, Pinetus, Complutica, Tuntobriga e Araducca (34) — que menciona, em rubricas autó-

(29) Não obstante, considerando Novium, na ria de Muros, como oppidum

dos Ártabros (II, 6, 21), a nova rubrica deveria abranger também Tamarae

fluvii ostia, quie deixou entre os Lucenses.(30) II, 6, 21. Sobre a situação de Novium e Claudio Nerium, vide

Monteagudo: Carta de Coruña Romana, in «Emerita», Tomo XIX, pãgs. 203-206.(31) «Proximi ab his Callaici Lucenses», diz realmente Ptolomeu no pará­

grafo seguinte (II, 6, 2'2).(32) «Inter Minium et Dorium fluvios terram prope mare incolunt Callaici

Bracar ri» (II, 6, 38).(33) «... quorum sunt oppida...» (ibid.).

(34) Caladunum fica na via de Brácara a lAstúrica, sendo indicada no Itinerário die Antonino como uma estação situada a 62 milhas de Brácara e a 18 de Áquas Flávias. (Corresponderá hoje a Cala, aldeia próxima de Mon- talegre; Pinetus, por sua vez, corresponderia a Pinheiro, a 20 milhas adiante de Chaves; e Complutica, ainda na mesma via, a 32 milhas de Pinetus, a Saná- bria, no actual distrito de Zamora. Mas quanto a Tuntobriga e a Araducca

nada sabemos dizer.Estas identificações, à primeira vista legítimas, topam no entanto, com

uma grande dificuldade: serem estes oppida atribuídos por Ptolomeu aos Brácaros que vivem junto do mar. E, por outro lado, parece estranhável que sejam indicados Caladunum e Pinetus, de um lado e do outro de Aquae

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 267

nomas, os oppida dos Turodos (Aquae Flaviae), dos Nemetatas (Volobriga), dos Célennos (Coeliòbriga), dos Bibalos (Forum Biba- lorum), dos Límicos (Forum Limioorum), dos Gróvios (Tudae), dos Luancos (Merua), <ios Quacernos (Aquae Quacernorum), dos Lu ben os ( Cambae tum) e dos Nanbas os (Forum Narbaso- rum) (35).

É certo que, contra a não inclusão destes povos entre os Brá- caros, poderia talvez objectar-se estar no espírito de Ptolomeu a distinção entre Calaicos Brácaros strito sensu e lato sensu; mas a verdade é que não o diz nem sequer o dá a entender.

Temos, assim, de considerar infundada a ideia de que enquadrava todos os povos do Noroeste de Hispânia nos dois conventos jurídicos Brácaro e Lucense, tanto mais que nem sequer se lhes refere. Mas nem por isso podemos ckixar de ter em vista que, pelo número de cidades que inclui entre os Calaicos Brácaros e ios Calaicos Lucenses, o nosso geógrafo confere a testes dois povos lugar de especial relevo entre os demais povos da região — lugar esse que certamente alcan­çaram manu militari.

iDe facto, a costa Cantábrica, que fora dominada pelos Ártabros até aos Astures, passou, em parte, para o dominio dos Calaicos Lucenses (36), que certamente bateram também os gróvios, visto

Flaviae, na mesma via, e esta não figure na lista, sendo nomeada em outro parágrafo, como cidade dos Turodos.

Tratar-se-á de cidades conquistadas pelos Brácaros, de parçaria com os Calaicos, depois de suibmetidos por estes ?

'Parece, realmente, ter havido considerável accão expansiva tanto deste grupo como do Lucense antes da pacificação imposta pelos Romanos.

(35) II, 6, 319 a 48. Para a identificação destes povos, bem como de outros citados por Ptolomeu, deve ver-se Bosch-iGimpera, Etnologia, no lugar citado na nota 24.

(36) É, no lenitanto, de notar a Circunstância de Ptolomeu não atribuir aos Lucenses o tramo costeiro desde a ria de Muros (Tamarae tluvii ostia) até ao Proximum promontorium, à entrada do Magnus portus, que, ao que

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268 Torquato de Sousa Soares

terem, talvez, conseguido estender a sua hegemonia até à ria de Vigo(37). E, por sua vez, os Calaicos Brácaros anexaram todos os povos costeiros entre esse rio e o Douro (38). Mas nem por isso a extensão da área que dominava se aproxima sequer da do convento jurídico que teve o seu nome (39).

Esta modificação da carta étnica do Noroeste Hispânico

parece, continuava a ser 'dominado pelos Ártabros, ao passo que dai até ao Nabialavionis ihivii ostia, isto é, a foz do rio Návia, novamente dominam os Calaicos Ludenses (II, 6, 4).

Ainda uma circunstância nos parede digna de nota: Queremos referir-nos ao facto de a cidade de Lucus Augusti não ficar entre os Callaici Lucenses,

mas sim entre os Capororum, pequeno povo costeiro em cujo território estava Iria Flavia.

O caso é insólito, tanto mais que Lugo fica longe la costa.Poderá, porventura, explidar-se por uma confusão do copista com a torre

de Augustus, perto da foz do rio Sars, confusão essa que o levaria a suprimir es9e nome da lista de cidades dos Calaicos Lucenses ?

(37) Se, realmente, o Orvium Promontorium corresponde ao cabo Silheiro. Vide atrás, a nota 26.

(38) Vide a nota 2'5. De facto, entre o rio Douro e o promontório Órvio, Ptolomeu menciona apenas os Brácaros e os Gróvios — estes entre a foz do rio Minho e a ria de Vigo.

(39) Naturalmente, a paz imposta pelos Romanos, surpreendeu tanto os Calaicos Brácaros como os Calaicos Ludenses, que constituiam talvez dois grupos rivais em franca expansão militar. E, assim, a constituição dos dois conventos jurídicos exprime esse duplo movimento, que os Romanos, com o seu espírito tão fortemente realista, procuraram completar e robus­tecer, conformando-o dom profundos imperativos de ordem étnica e cul­tural.

É claro que esta observação não invalida o juízo de Bosdh-Gimpera sobre a política geralmente anti-céltica dos Romanos. Realmente, fazendo parar a sua ofensiva, embora mantendo e completando os quadros em via de se definirem, os Romanos contribuíam sobretudo para que as virtualidades dos povos vencidos ou reduzidos à impotência, longe de se aniquilarem, se impu­sessem, dando carácter às novas divisões administrativas.

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Reflexões aoòre a origem e a formação de Portugal 269

processa-se certamente no período em que se verifica a irrupção dos Calaicos que, como vimos, acompanha de perto a conquista romana (40).

Realmente, não nos pode passar despercebido o facto de os Brácaros, bem como os Lucenses, passarem a ser designados Calaicos.

Ora, se tivermos em vista que, durante a campanha de Décimo Junio Bruto, os Calaicos vieram em socorro dos Brácaros (41), consideramos perfeitamente admissível que, apesar de vencidos, não os tenham abandonado, tanto mais que o domínio romano só muito mais tarde se efectivaria nessa região (42).

E daí, .certa-mente, a referência de Ptolomeu aos Calaicos Brácaros e a sua tomada de posição até ao Minho, onde se encontraram com os Calaicos Lucenses que vinham do Norte. Mas nem por isso teria sido vencida a resistência de muitos povos que, ciosos da sua autonomia, continuaram a mantê-la, defendendo-se nos seus castros, de onde nem todos chegariam a ser desalojados, nem mesmo pelos próprios Romanos (43).

Analisemos agora o testemunho de Ptolomeu em relação à Lusitânia, que abrange todo o capítuilo V do seu Indicador Geo­gráfico.

Depois de fixar os limites da respectiva costa, menciona Balsa e Ossonoba (44) que considera cidades de Turdeta-

(4°) Vide, atrás, o que sobre a intervenção dos (Calaicos dissemos a pág. 83 e segs..

(41) Vide a pág. 3>8, nota 22.(42) Realmente, só no tempo de Octávio, depois da submissão dos

Cántabros, se conseguiu impor a paz romana. (Vide, atrás, a pág. 99, nota 6).'(4S) Os vestígios da civilização romana são realmente abundantes em

alguns castros. Vide a este respeito os estudos de Mário Cardozo citados atrás, a pág. 90, nota 196.

(44) II, 5, 2.

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270 Torquato de Sousa Soares

nos (45) €, em seguida ao Sacro Promontório e è foz do rio Calli- podis (46), as de Salacia e Caetobrix (47), a que confere a mesma origem, bem como a Pax Julia e a Julia Myrtilis (48).

Depois, Ptolomeu refere-se aos Célticos, a quem atribue os seguin­tes oppida: Laccóbriga, Caepiana, Braetolaeum, Mit obriga, Arco- briga, Meribriga, Catraleucus, Turres Albae e Arandis, todos, ao que parece, ao sul do Tejo (49).

Finalmente, o geógrafo grego — que já antes mencionara Olisipo como única cidade lusitana junto à costa — nomeia os seguintes oppida do interior, também de Lusitanos: Lavare, Aritium, Selium, Elbocoris, Araducta, Verurium, Velladis, Aeminium, Chretina, Ara- briga, Scalabis colonia, Tacubis, Concordia, Talabriga, Rusticana, Mendiculeia, C aurium, Turmogum, Burdua, Col ar num, Saliaecus,

(4s) Ptolomeu, que distingue, na Bética, entre Turdetanos e Túrdulos, na meso-potâmia entre o Tejo e o Guadiana só nomeia Turdetanos. E, ao norte do Tejo, só se refere a cidades de Lusitanos, seguindo a norma de nomear apenas os povos dominadores.

Daqui parece poder concluir-se que estas cidades de Turdetanos eram livres, certamente entrepostos mercantis ao longo da costa e de caminhos terrestres, quando as circunstâncias os obrigaram a abandonar o caminho marítimo. (Vide, a págs. 62-63, a nota 111).

(40) Correspondente ao Sado. Vide o comentário de Millier à Geographia de Ptolomeu, vol. I, pág. 131, que chama a atenção para a oirigem tartéssia deste nome, em que figura, como em varias cidades da mesma origem, o elemento /po ou /ppo.

(47) Salacia corresponde a Alcácer do Sal. Sobre a situação de Caeto­brix, veja-se a nota 111, na pág. 62.

r(48) Pax Julia é, incontestàvelmente, Beja. Sobre a confusão entre essa cidade e a Paxaugusta de Estrabão, vide o que 'dizemos adiante, na nota 126.

(49) II, 5, 5. Todas elas resultantes da invasão de Célticos, que os Lusitanos só conseguiram dominar ao norte do Tejo, por isso é que Ptolomeu só se refere a cidades célticas ao sul 'do Tejo. Procurámos identificar algumas no mapa que acompanha este estudo.

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 271

Ammaea, Ebura, Norba Caesarina, Liciniana, Augusta Emerita, Evandria, Geraea, Caecilia Metellina e Capasa (50).

Daqui nos parece poder concluir que o testemunho de Ptolomeu se limita a mostrar o estado do país tal qual como se apresen­tava à chegada dos Romanos, ou melhor, depois de concluída a ocupação.

Realmente, não menciona os Cónios, ao sul, nem os Célticos ao norte do Tejo.

É que, ao passo que aqueles tinham sido desalojados pelos Cél­ticos que conseguiram dominar em quase toda a Mesopotamia (51), estes foram expulsos pelos Lusitanos do território que ocupavam ao norte desse rio(52).

Por outro lado, as posições ocupadas pelos Turdetanos (que Ptolomeu não confunde com os Túrdulos), mostram ter sido pací­fica a sua intervenção, com certeza motivada por razões sobretudo ou mesmo exclusivamente de ordem mercantil.

De facto, contrariamente aos oppida célticos, de carácter acen­tuadamente militar (53), as suas cidades, que Ptolomeu significa­tivamente designa urbes (54), não estavam aglomeradas, mas dis­persas pela costa ou no interior, onde teriam sido fundadas com o

(50) II, 5, 6. Pela razão já apontada, apesar die algumas destas serem nitidamente de raíz céltica, são consideradas de Lusitanos, o que mostra que estavam em território 'dominado por este povo, mesmo as que ficavam ao sul do Tejo.

(51) Di-lo Estrabão, como vimos. (III, 6; C. 139).(52) Só dizemos ao norte do Tejo proposita dam ente, pois, de aoordo com

o testemunho de Estrabão, julgamos, que foram os Romanos que fixaram os Lusitanos ao sul desse rio.

(53) Realmente, todas estas cidades foram conquistadas ou fundadas em atenção a necessidades de ordem predominantemente militar por Célticos ou Lusitanos que entraram no país e nele se mantiveram como conquistadores.

(54) Fundadas certamente apenas por razões de ordem mercantil. (Vide o que a este respeito dissemos na nota 45).

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propósito de evitar a competição cartaginesa, como já tivemos oca­sião de referir (55).

Esta era a situação do País quando os Romanos, depois da submissão dos Cántabros e da obtenção da paz em todo o Ocidente, o dividiram, como vimos, em duas províncias: a Lusitânia e a Calécia.

III — Origem e características dos três conventos jurídicos:

Mas o que ao nosso ponto de vista particularmente interessa, são, sobretudo, aquelas unidades administrativas que mais fielmente reflectem o carácter dos agrupamentos de povos sucessivamente dominados pelos Célticos (Celtiberos) e pelos Lusitanos — ou por uns ou por outros—«e, finalmente, pelos Romanos — isto é, os conventos jurídicos.* Mas, para bem compreender a constituição destas novas divisões

administrativas, temos de ter em conta a presença, ao norte do Douro, dos Gróvios; entre o Douro e o Tejo, dos antigos Túrdulos e das cidades de Túrdulos; e, na mesopotâmia transtagana, de uma população constituída sobretudo por Célticos, de origem celtibérica.

Realmente, apesar da disparidade étnica existente entre estes povos, eles constituiam três grupos relativamente coesos, ou pela sua submissão a um povo dominador, e portanto à mesma autori­dade, ou ainda pela sua dependência de interesses económicos comuns, especialmente de carácter minero-metalúrgico (56).

De faoto, como já tivemos ocasião de observar, foram sobretudo

(85) Parece-nos, <no entanto, digna de nota a circunstância de faltarem no nosso país centros mercantis de Bástulos ou Fenícios, que, na Bética, tinham ocupado posições ao longo da costa atlântica, como refere Ftolomeu (II, 4, 6).

(5e) Já o dissemos a págs. 74 e 75.

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actividades desta ordem que não só favoreceram a constituição de agrupamentos mais amplos, mas até fomentaram relações entre eles — relações essas que, persistindo e intensificando-se, muito haviam de contribuir para a formação de uma certa solidariedade, que cada vez mais imprimiria a toda a região, que se estende desde a ria de Pontevedra até à foz do Guadiana, uma feição peculiar (57). E daí, bem como de outros factores (B8), a pos­sibilidade de esses vínculos persistirem após a conquista romana, mantendo-se com relativa fidelidade através dos conventos jurídicos que Roma instituiu tendo-os em conta (59).

É certo que Albertini, embora considerando que essas circuns­crições constituiam a única sub-divisão provincial de carácter per­manente (60), não crê que esta circunstância resulte de persistirem neles antigas tradições de unidade, pois julga terem sido, de prin-

(57) É possível que essa consciência colectiva (se assim nos é lícito dizer) arranque de factores mais antigos, como querem Mendes Corrêa e Bosch Gímpera (vide, atrás, a nota 144, pág. 76) ; mas talvez se tenha exagerado o vigor dessas raízes longínquas. Trata-se, em todo o caso, de um campo que, por estar inteiramente sob a alçada da Arqueologia, nos é vedado.

(58) Entre os quais, cortamente, o comércio dos metais, que, talvez em consequência da actividade mercantil dos cartagineses, se teria desenvolvido.

(°9) Assim o diz, por exemplo, Sánchez-Albomoz, observando que, «por baixo das divisões e subdivisões que Correspondiam às necessidades políticas e militares de Roma, em mais íntima conexão com as primitivas divisões indígenas, surgiu o conventus» (Divisiones tribales y administrativas, cit., pág. 386). E Menéndez-IPidal, referindo-se ao convento Cesaraugustano, diz que os seus limites «se baseiam tanto em motivos raciais como nas relações de comércio e trato que entre si mantinham as diversas gentes agrupadas nessa circunscrição» (Toponimia prerromana hispana, pág. 149).

\Por sua vez, Garcia Gallo diz que esses distritos judiciais «coincidem oom as regiões naturais e limites 'dos povos indígenas» (Historia del Derecho

Español, tomo I, pág. 222); e bem assim Valdeavellano (Historia de España,

I, pág. 1S5).(c0) Les divisions administratives de VEspagne romaine, pág. 83.

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 275

cípio, simples divisões de carácter judicial (61) criadas pelos Roma­nos (62), tendo apenas em conta os meios de comunicação, para facilitar a deslocação dos interessados (63).

A verdade, porém, é que, embora haja, naturalmente, uma relação

(61) Ibidem, pág. 84, nota 6. Não obstante—observa ainda Albertini — «não eram sòmente os litigantes que iam à capital do conventas nos dias de sessão. Todos aqueles que desejavam ver o governador ou o seu legado para lhe apresentar um requerimento ou um relatório, ou simplesmente para o saudar « assegurar-lhe a sua dedicação, também aí se encontravam». Deste modo, continua o mesmo historiador, «encontravam-se na cidade, nessas ocasiões, gentes vindas de todos os lugares da circunscrição. E assim — observa ainda — as sessões tomavam-se, para todo o convento, verdadeiras panegírias onde se tratava de negócios e se selavam amizades (Ibid., págs. 103-104).

(62) Albertini, considerando essa criação ex mihilo, chega ao absurdo de reputar a gens hispânica mera abstracção sem qualquer base real. De facto, observa que não passa de «um nome cómodo a inscrever no mapa para designar uma regio, isto é o espaço compreendido entre duas balisas físicas, acidentes orográficos ou Cursos de água; uma justaposição de tribos submetidas a condições de clima e de existência sensivelmente idênticos, mas sem unidade política, sem vontade de formar um todo» (ibid, pág. 106). E vai ao ponto de afirmar que depende únicamente do geógrafo que estuda e descreve o país a escolha dos limites, citando contradições entre Estrabão, Plínio e Ptolomeu. Ora, a verdade é que, pelo menos em muitos casos, essas aparentes contradições resultariam apenas da evolução dos acontecimentos decorrentes ou da invasão de novos grupos étnicos, ou da simples deslocação de povos, não só por razões de ordem económica (antes da chegada dos Romanos), mas também por motivos de natureza política (e por vezes também económica) resultantes da ocupação romana. Não devemos esquecer que há uma diferença de séculos entre os dados postos em equação por Estrabão e os que Ptolomeu utiliza.

(63) «A própria noção de conventus — observa Albertini — implica que os Romanos, para os delimitar, tiveram de ter em conta os meios de comuni­cação, de modo que os participantes em qualquer acção judicial pudessem chegar à cidade com o mínimo de dificuldades» (Op. cit, pág. 85). Nem sempre, porém, a situação da capital do convento jurídico era central, como

por exemplo Scalabis.

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muito íntima entre o funcionamento da justiça e da administração do país e as respectivas vias, que, de facto, foram traçadas pelos Romanos com o objectivo de ligar os diversos núcleos populacionais à capital do respectivo convento jurídico (64), também de fundação romana(65), nem por isso julgamos que as vias condicionassem a formação dessas circunscrições. Pelo contrário: entendemos que foram condicionadas por elas ou, talvez melhor, pelos seus protó­tipos, isto é, peilos agrupamentos populacionais pré-existentes (66).

Não obstante, não nos parece inteiramente equivocada a afir­mação, feita pelo mesmo historiador, de que os Romanes apenas encontraram — pelo menos na zona ocidental da nossa Península, isto é, no país que temos em vista—«uma poeira de povos, um mundo inorgânico» (67). Apenas consideramos que este estado de coisas era, em grande parte, o resultado de movimentos de povos, nomieada- mente os Calaicos — movimentos esses que, por serem relativamente recentes, estavam ainda em plena efervescência — como já tivemos ocasião de referir (68).

(64) E, evidentemente, também à capital da província, bem como as capitais dos conventos jurídicos e das províncias limítrofes entre si.

(65) Realmente, as capitais dos três conventos jurídicos em causa neste estudo são todas colónias de fundação romana, pelo menos como tal. Asslim Augusta, que Plínio designa oppidum dos Bracari (IV, 112); Scalabis

(Praesidium Julium) (Plínio, IV, 117), fundada, ao que parece, nas proxi­midades de Móron; Pax Julia, que Plínio designa simplesmente colonia Pacensis

(IV, 117), e que Ptolomeu diz ser urbe de Turdetanos, na Lusitânia mediterrânia (II, 5, 4).

(66) Basta pensar na intensa actividade mercantil, à base das explorações minero-metalúrgicas, em plena laboração muitos séculos antes da chegada dos Romanos, e na existência de tantas Cidades directamente relacionadas com essas actividades, para ter de se admitir a existência de uma rede viária relativamente desenvolvida, que certamente, em muitos casos, os Romanos não deixaram de aproveitar, limitando-se a melhorá-la.

(67) Les divisions administratives cit., pág. 6.

(68) A págs. 83 e segs.

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 277

E assim se compreende que antigos vínculos, sólidamente esta­belecidos, se não tivessem apagado.- Há, por isso, que considerar, à chegada dos Romanos, pelo menos

a existência de vestígios de agrupamentos mais amplos e complexos, resultantes da reunião de tribos ou de meros núcleos populacionais, vestígios esses que, por muito precários que fossem, não deixariam de imprimir carácter à população do país, outorgando-lhe uma relativa homogeneidade (69).

É, pois, a esses agrupamentos que, sobretudo, se deve o facto de os conventos jurídicos, estruturados sobre eles, não serem meras ficções administrativas, muito embora para isso contribuisse tam­bém, como nota Albertini, a afluência dos seus habitantes às res­pectivas capitais em dias de audiência (70)

Não é, por isso, de admirar que, entre os órgãos de administração então criados, sejam os conventos jurídicos que mais se aproximam da população pré-existente, dispersa ou agrupada em cidades ou municípios, servindo melhor as suas necessidades e certamente também interpretando mais fielmente os seus anseios (71). E por isso

(69) O próprio 'Albertini o reconhece implicitamente ao dizer que os Roma­nos tinham conseguido transformar a gens numa realidade nos três conventos jurídicos do Noroeste, isto é, onde a fragmentação tinha ido mais longe e, conse­quentemente, o espírito particularista era .mais tenaz, ¡pois não é, evidentemente, possível admitir que a consecução desse objective se devesse apenas ao recru­tamento de corpos auxiliares nas tribos agrupadas sob a mesma (denominação regional, embora tenha sido facilitado por «semelhanças dialectais, de armamento, de alimentação e de costumes, que existiam inevitàvelmente entre indivíduos pertencentes a 'diversas tribos, originários da mesma região» (Op. cit., pág. 109).

(7°) Vide atrás a nota 29. Por sua vez Castro Nunes conclui, do estudo que fez dos miliários de Nerva na Gallaecia, que «os conventus iuridici, mais que simples divisões judiciais, gozaram de atribuições de carácter político-admi­nistrativo, por enquanto difídeis de determinar» («Cuadernos de Estudios Galegos», Tomo V, pág. 174).

(71) Tanto assim que prevalece, a ponto de — como nota o Prof. Sanchez- - Albornoz, com base em Idácio — «um homem do século V dizer in conventu

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mesmo é que, apesar de todas as perturbações, os vínculos étnicos ou culturais anteriormente estabelecidos, longe de se desvanecerem, sie estreitaram, tornando-se até, em virtude da intensificação de rela­ções não só de carácter administrativo e económico, mas também religioso (72), cada vez mais fortes e expressivos (73).

Importa, pois, ter em conta esses vínculos ao pretender caracte­rizar os conventos jurídicos do nosso país. E por isso os assinalámos antes de reconstituir os limites destas circunscrições territoriais.

IV — Extensão dos três convenios jurídicos:

Já vimos que, como observa Albertini, a área dos conventos jurídicos permanece com notável fixidez enquanto dura a dominação romana (74). E tanto basta para considerarmos não terem sido os seus limites simples resultantes de circunstâncias de momento.

Por isso nos é lícito, ao procurar determiná-los, recorrer não somente aos vestígios da autoridade romana, mas também a razões de ordem geográfica e étnica, que, por vezes, muito contribuem para nos esclarecer, sobretudo quando constituem contra-prova de outros dados só por si insuficientes.

lucense, in conventu asturicense», em vez de in Gallaecia. (Fuentes para el

estudio de las divisiones eclesiásticas visigodas, in «Boletín de la Universidad de Santiago de Compostela», II, pág. 54).

(72) Sobre este aspeoto deve ver-se o monumental estudo de Robert Étienne: Le culte imperial dans la Péninsule Ibérique d'Auguste à Dioclétienf

Cap. II: Le culte de conventus, págs. 177 e 195.(73) Como diz Albertini, «a meia distancia entre a civitas e a província,

que são para Roma as duas realidades essenciais, o conventus tem uma exis­tência própria, que resulta da constância das relações judiciais, económicas e religiosas» (Op. cit., pág. 104).

(74) «Não há razão para crer — diz Albertini — que os limites dos donventos tenham sidio alterados, a não ser em pontos restritos, salvo, bem entendido, no caso de a fronteira provincial ter sido ela própria alterada» (Ibidpág. 83).

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 279

a) Limites do convento jurídico Brácaro:

Já referimos que um povo, designado Gróvio por Mela e por Plínio, se fixara entre a ria de Vigo e o estuário do Minho, esten- dendo-se progressivamente para o sul, até ao Douro, e talvez tam­bém para o norte, provàvelmente até ao Cantábrico (75). Mas os Ártabros, na sua expansão para o sul e para leste, tê-lo-iam obrigado a recuar até à ria de Pontevedra (76).

Ora, é justamente essa ria, bem como o rio Leres que nela desagua, que, como veremos, constitui o limite setentrional do convento Brácaro, junto à costa.

É certo que não são concordes as opiniões dos diversos autores que se têm ocupado do assunto (77), tais como — para só citar os mais recentes — Bosch Gimpera, que julga que esse limite devia seguir pela linha de montanhas entre Vigo e Tui (78), e Sánchez-Albornoz, que, por sua vez, propõe a divisória dos rios Verdugo e Leres (79), ao passo que Monteagudo prefere uma linha ao norte deste rio (80).

(75) Vide, na primeira «reflexão», a pág. 69.(76) Ibidem, pág. 46.(77) Menoiona-os SánOhez-Albomoz in Divisiones tribales ci't., pág. 3<87,

nota 2, e Dulce Estefanía, in Notas para la delimitación de los Conventos Jurídicos en Hispania (Zephyrus f IX, pág. 54).

(78) Vide a sua Etnologia de la Península Ibérica, pág SOO. Do mesmo modo Pericot, que, no entanto, observa tratar-se de limites aproximados. (Historia de España, Tomo I, pág. 500, col. 1.*).

(79) Op. e pág. cit. Albornoz observa que, embora nada garanta que a linha divisória seguisse os limites naturais, «nada contradiz, tão pouco, que, deixando o Suido, buscasse a raia ao Cabo do mar, pela divisória dos rios Verdugo e Leres» (pág. 388, nota).

(80) «Segundo as nossas deduçSes—diz Monteagudo — oremos que a fronteira entre os Cileni (último povo lucense) e os Heleni (primeiro povo brácaro) era uma linha que, segulindo a direcção do Leres (o Laeros de Mela, III, 10) desde a sua desembocadura, até ao seu nascimento, continuava até

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Pondo de parte a opinião de Bosch, que certamente resulta de uma errada interpretação de Ptolomeu (81), restam-nos as de Albornoz e de Monteagudo, que, com fundamento em Plínio, consideram que a separação se fez pelas cumeadas que acom­panham a ria de Pontevedra e o Leres, pelo lado meridional ou pelo setentrional.

Parece-nos, porém, preferível admitir que tenha sido a própria ria, bem como o curso desse rio, o extremo setentrional do convento Brácaro, não só por estar esse limite mais de acordo com o teste­munho de Plínio (82), mas também porque, contrariamente ao parecer de Monteagudo (83), julgamos serem, geralmente, os rios que, de facto, delimitavam então as regiões a que se confinavam os povos que mantinham a sua autonomia (84).

uma curva pronunciada que o Minho descreve seis ou oito quilómetros ao norte da sua confluência com o Gil» (Galicia en Ptolomeo, dn «¡Cuadernos de ¡Estudios Gallegos», Tomo II, pág. 623).

(81) De fadto, Ptolomeu considera o rio Minho como limite setentrional 'dos Calaicos Brácaros (V. 4, 2), incluindo o promontório Orvitim, que parece identificar-se com o cabo Silheiro, ao sul da ria de Vigo, entre os (Calaidos Lucenses; mas o geógrafo grego não tinha em vista os conventos jurí­dicos, como diremos adiante, ao procurar esclarecer a sua ordenação de povos.

(82) Realmente, parece-nos mais conforme com esse testemunho fazer coincidir, nesta região, os limites tribais com as rias. (Vide, atrás, págs. 55 e 56, e, na pág. 59, o mapa em que procurámos interpretar a descrição de Plínio).

(83) «Temos procurado localizar — diz o referido arqueólogo — os nomes de tribos ao longo dos vales, em ambas as margens dos rios, pois temos veri­ficado que geralmente nos assentamentos naturais dos povos, os rios unem, as montanhas separam. Ao contrário, quando a delimitação é artificial, são os rios de mediano caudal que se utilizam como limite» (Carta de Coruña Romana. I — EI interior, in «Emerita», XIX, pág. 194).

(84) Temos apenas em vista, é claro, o caso em referência, considerando que, então, era sobretudo no alto das colinas que a população se fixava. Pelo

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 281

Realmente, algumas inscrições miliarias, estudadas por Dulce Estefanía, veem corroborar este ponto de vista com um elemento que nos parece decisivo: a indicação do ponto de partida para a contagem das milhas que aí corresponde à capital do próprio con­vento jurídico (85). E, assim, a menção de Bracara e de Lucus, feita nos marcos miliários encontrados próximo de Pontevedra (86),

menos, era aí que se radicavam os seus aglomerados urbanos, especialmente desde que surgira a ameaça das invasões célticas, como referimos na «observação» anterior (págs. 90 e 91).

(85) De facto, Dulce Estefânia faz referência à contagem das milhas, observando — de acordo com Castro Nunes e, an bes dele, Blázquez e outros autores —ser sempre feita, dentro de cada convento, a partir da sua capital, uma vez que se trate da via principal. Mas, neste caso, por motivo que indi­caremos em seguida, o que põe em relevo é a mudança do estilo (honorífico ou comemorativo) das inscrições miliárias, seguindo na esteira de Castro Nunes, que, no estudo sobre Os miliários de Nerva na «Gallaecia» («Cuadernos de Estudios Gallegos», tomo V, págs. lól a 174), chama a atenção para «a unifor­midade que na redacção dos textos dos miliários, decretados na mesma data e com os mesmos fins, apresenta cada conventus iuridicus da Gallaecia» (pág. 171). Depois, em novo estudo, intitulado Vias Romanas de Galicia,

Dulce Estefanía esclarece, dizendo supor que os miliários do mesmo imperador só «são iguais, dentro de um convento, para a mesma via», modificando-se, embora na continuação da mesma via, ao mudar o convento («Zephyrus», XI, pág. 8). E acrescenta que «não possuímos um só exemplo de miliários da mesma calçada que apresentem textos diferentes dentro do mesmo convento» (pág. 11), concluindo por «afirmar, como demonstrado, que a redacção determina Vias a que o facto de duas colunas do mesmo César serem diferentes dentro de deter­minado convento, supõe a lexistênoia de dois caminhos diferentes» (ibid.,

ibid.).

;(86) Trata-se de três miliários, dois dos quais encontrados em Almuinha, na paróquia de Salcedo, a uma légua ao sul de Pontevedra, e um junto desta cidade. Ora, todos estes marcos estão redigidos em estilo comemorativo, ao contrário dos de Redondela, em que o nome do imperador está em dativo. Mas, ao passo que, em dois dos primeiros, as milhas são contadas desde Brácara, no outro a contagem é feita a partir de Lugo.

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parece comprovar que por aí passava a linha divisória entre os dois conventos (87).

São as seguintes as inscrições em referência:

(87) É esta a conclusão a que me parece poder chegar depois de fixar a posição originária desses miliários. É certo que o facto de dois defles terem sido encontrados em Almuinha, leva Dulce Estefanía a julgar ser esse o seu primitivo assento. Devemos, no entanto, observar que o primeiro (em que as milhas são contadas a partir de Lugo) foi encontrado num lagar, o que nos permite supor que tivesse sido transportado para aí, talvez de Pontevedra. É que, existindo junto dessa cidade, um mardo em que a contagem de milhas se faz a partir de Brácara, não nos parece possível admitir que Almuinha, miais ao sul, não pertencesse a esse convento jurídico.

É Certo que Dulce Estefanía admite tratar-se apenas de u-ma irregularidade devida à circunstância de não haver perfeita consciência do convento a que o referido lugar devia pertencer; mas não nos parece admissível esta hipótese.

Julgamos, pelo contrário, que os dois miliários, que deviam ter sido colo-

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Já não é tão fácil reconstituir o seu traçado para além do rio Leres, que talvez só tenha servido de limite na parte terminal do seu curso f88).

De facto, à falta de epígrafes milinárias (89), ou quaisquer outras, que nos permitam chegar a uma conclusão (90), afigura-se-nos difícil, se não impossível, chegar a resultados incontestáveis (91).

Não obstante, é digno de especial atenção o ponto de vista de Diez Sanjurjo, que, considerando a serra de S. Mamede como ponto de convergência dos três conventos jurídicos da Calécia (Bracarenise, Lucense e Asturiano), admite «como limite norte do convento Bracarense uma linha recta que unisse o Pico de Nouvelle, ao sul de Ribadávia, com o de S. Mamede, e se prolongasse até à serra de Segundera» (92).

cados junto de Pontevedra, estavam realmente no limite dos dois conventos jurídicos, embora a execução, tanto de um como do outro tivesse sido

promovida pelos magistrados de Brácara, como se infere do seu estilo.(88) Gertamente, constituindo a serra do Suido uma divisão natural, que

ainda hoje separa a província de Pontevedra da de Orense, parece que o Leres só devia servir de limite até às proximidades dessa formação montanhosa.

(89) De facto, as que existem não nos esclarecem a este respeito. Vide o estudo e Martins Capella: Milliarios do Conventus Bracaraugustanus em

Portugal, e o de Dulde Estefanía: Vias Romanas de Galicia, na revista «Zephyrus», XI.

(90) As dúvidas dos arqueólogos e historiadores aumentaram por julgarem que Ptolomeu situava o Forum Narbasorum, que se tem localizado em Orense (vide Bosch-Gímpera: Etnologia de la Península Ibérica, págs. 499 e 502), entre os Callaici Bracarii, o que, como vimos, não é exacto. Mas, mesmo que assim não fosse, essa circunstância, só por si, não obrigaria a incluir esse oppidum no ¡Convento Bracaraugustano.

(91) Já o disse Albornoz in Divisiones tribales y administrativas cit. («Boletín de la Real Academia de la Historia», Tomo XCV, pág. 337, nota 2).

(92) Vide Los caminos antiguos y el Itinerario n.° 18 de Antonino en la

provincia de Orense («Boletín de la Comisión Provincial de Monumentos

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Ficaria, assim, Orense no convento de Lugo, o que — consi­derando não ter s»ido, ao que parece, desintegrada do território da metrópole Bracarense a diocese que aí viria a constituir-se, como veremos na «reflexão» sieguinte — se nos afigura per feita mente vero­símil (93). So nos permitimos objecter que, pelas razões já ex pos­tas (94), nos parece mais aceitável que tenha sido o próprio rio Arnoia a servir de linha fronteiriça entre os dois conventos — linha essa que seguiria, depois de Ribadávia, ao longo da serra do Suido, até encontrar o Leres ou algum afluente.

, Quanto ao traçado da fronteira oriental, vem novamente em nosso auxílio a epigrafia. E é ainda Dulce Estefânia que nos chama a atenção para o facto de um marco miliário de Tibério Cláudio, encontrado na igreja da freguesia de Gostei, próximo de Castro de Avelãs, a ocidente de Bragança (95), ser redigido em estilo diferente

históricos y artísticos de Orense», Tomo III, pág. 12). Sanjurjo acrescenta: «Esta linha não é senão o prolongamento da divisória Minho-Amoia».

Sánchez-Albornoz concorda inteiramente com esta opinião, observando que, embora nada obrigue a acreditar quie a linha divisória seguisse os limites naturais, «nada se opõe a que fosse, com efeito, este o limite, como todavia é hoje fronteira natural entre duas regiões diferentes» (Boletín cit., págs. 387-388 nota).

(93) Não obstante, recientemente, Monteagudo, seguindo de perto o P.e Sar­miento (vide o seu estudo sobre a Via 3.a Militar Romana desde Braga à Astorga

por los pueblos Quarquernos, publicado por Diez Sanjurjo in «Boletín de la Comisión de Monumentos de Orense» cit., tomo III, pág. 152), fixa o limite muito ao norte, pelos montes do Testeiro e pelo rio Sil. (Vide o mapa da Galiza romana, no artigo intitulado Carta de Coruña Romana, in «Emerita», Tomo XIX, entre as págs. 202 e 203).

(94) Vide o que dissemos na pág. 121 e nota 84.(®5) No estudo citado, na revista «Zephyrus», IX, pág. 56. Este miliário

— diz o P.# Francisco Manuel Alves, nas suas Memórias Arqueológico-Histó­

ricas do Distrito de Bragança, Tomo IX, pág. 209 — «apareceu debaixo do altar-mór da igreja de São Cláudio, junto a Castro de Avelãs, freguesia de

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do de outro marco da mesma via, localizado entre Brácara e Áquas Flávias (96), apesar de se referir ao mesmo Imperador—o que mostra pertencer a outro convento jurídico (97).

Ora, segundo Pinheiro, que julgava ver um X a seguir ao L, deviam faltar ao número de milhas dois XX, que teriam sido destruídos pelo orifício per­feitamente visível na gravura que desse marco publica Lereno Barradas, no artigo Vias romanas das regiões de Chaves e Bragança («Revista de Guimarães», vol. LXVI, pág. 203). E assim, o número de milhas expresso na inscrição devia ser cento e oitenta, que, na opinião daquele autor, corresponde à distância de

Gostei e Castanheira, Concelho de Bragança, em 1882, e foi metido na parede da dita igreja, na parte que fida entre o coro e o púlpito, onde se conserva».

(96) Dulce Estefânia cita vários miliários da via de Brácara a Astúrica. Em todos eles, como neste último, o nome do imperador está em nominativo, em contraste com o de S. Cláudio, em que aparece em dativo. São as seguintes as duas inscrições:

(97) Cumpre, porém, assinalar um marco miliário do ano 2 a. C., descoberto por J. H. Pinheiro nas ruínas da Torre Velha, junto a Castro de Avelãs, cuja inscrição reza assim:

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Ora, o facto de ter também aparecido no Castro die Avelãs uma inscrição com um ex voto da «Ordo Zoelarum» ao deus Aerno, reve­lando ser aí o assento dessa gens (98), constitui mais uma prova de que, de acordo com o miliário de Gostei, esse território já não per­tencia ao convento Brácaro, visto que Plínio menciona os Zoelae como sendo um dos vinte e dois povos dos Ástures (").

Braga a Castro de Avelãs. (Vide Memórias Arqueológico-Históricas, cit., pág. 46).

A verdade porém é que a letra que parece estar a seguir a CL não é X, mas sim, como julga Lereno Barradas (vide o n.° D-3 do Quadro V que acompanha o artigo citado), V — o que exclui a hipótese de Pinheiro. Mas, sendo assim, o orifício que mutila a inscrição só podia ter inutilizado I, II ou III; e, por isso, o número de milhas não pode corresponder à distância de Braga, aproximando-se, certamente, mais da de Astorga, que é menor.

É certo que o estilo desta inscrição condiz com o dos miliarios de Tibério Cláudio, do convento Brácaro, o que poderia levar-nos a concluir pertencer a este convento jurídico o lugar onde foi encontrado. Devemos, no entanto, ter em vista que, sendo outro o Imperador, este argumento não infirma a regra enun­ciada por Duloe Estefânlia.

(98) A lápide em referência foi publicada por Ribeiro de Sampaio em 1790, mas, mais tarde, na segunda metade do século XIX, perdeu-se, ou melhor, foi aproveitada, depois de picada a inscrição. Vide Francisco Manuel Alves: Memórias cit., tomo, IX, págs. 160 a 163.

(") Naturalis Historia, III, 2'8. Porém, mais adiante (XIX, 10), o naturalista latino observa tratar-se de uma cidade da Callaecia que se encontra próximo do Oceano («Oceano propinqua») — o que talvez não condiga muito bem Com a posição que lhe confere a lápide do Castro de Avelãs.

Tratar-se-á de dois povos diferentes ?A hipótese não é inverosímil, pois há outros exemplos de divisão de povos,

como os Lancienses, que tinham o seu assento não só próximo de Egitânia, entre os conventos jurídicos Escalabitano e Emeritense (Plínio IV, 118), mas também no convento Asturiano (Ibid., III, 28). Devemos, no entanto ter em vista que a Galécia englobava o convento Asturicense, e que a posição que Plínio confere aos Zelas, em relação ao Oceano, talvez tenha apenas um valor aproximativo, como julga Albertini (op. cit., pág. 96, nota 2).

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 287

— Mas por onde lindariam os dois conventos jurídicos ?Sendo o Castro de Avelãs, que fica na serra da Nogueira, o

centro do território ocupado pelos Zelas, é natural que esse terri­tório se estendesse até ao Tuela, que constituiria, assim, o limite entre os dois conventos — o Bracaraugustano e o Asturicense (10°) — pelo menos até à sua confluência com a ribeira de Rabaçal, ou um pouco mais além. Daí a divisória seguiria em direcção ao Douro até o encontrar talvez nas proximidades da foz do Sabor, onde uma tribo lusitana — a dos Banienses — se tinha estabelecido (101), conseguindo resistir ao avanço dos Calaicos (102).

b) Limite oriental do convento jurídico Escalabitano:

Delimitado aproximadamente, ao norte e ao sul, pelos rios Douro e Tejo(103), importa especialmente fixar os limites orientais deste convento jurídico.

(10°) Não deixa de ser curioso notar o facto de um documento, de 974, da Sé de Astorga, justamente considerado apócrifo, fixar no Tuela o limite ocidental dessa diocese. Vide Sánchez-Albornoz: El Obispado de Simancas, in «Homenage oferecido a Menéndez Pidal», Tomo III, págs. 3'29 e seguintes; e Divisiones tribales y administrativas dit., págs. 322-323, nota 4. Ter-se-ia o fal- sário baseado nos limites dos antigos conventos jurídicos ?

(101) A sua localização pôde ser feita em vista de uma inscrição encon­trada em 1845 nas ruinas da capela românica de S. Mamede, a uma légua de Moncorvo, na margem direita do Sabor. Trata-se de um ex voto dedicado a Júpiter, que se refere a Civitati Baniens(ium). Vide P.e Francisco Manuel Alves: Memórias cit., T. IX, págs. 479 a 483, e 640).

(102) Vide o que dissemos atrás, a pág. 78. A essa resistência não devia ter sido estranho o facto de se tratar de uma região rica em ferro, como refe­rimos a pág. 79.

(103) Não podemos garantir que esta delimitação seja rigorosa, mormente ao sul, pois Plínio, que apresenta o Douro como limite setentrional da Lusitânia (IV, 113)—embora, como veremos, não com absoluto rigor — nada diz sobre

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Albertini, considerando que a ponte de Alcântara, que estabelece ligação com Emérita Augusta pelo norte, só podia ter sido cons­truída a expensas dos municípios que mantivessem com essa cidade «relações particularmente seguidas», e para os quais, portanto, Mérida fosse simultáneamente capital de convento e de provín­cia (104), chega à conclusão de que os quatro topónimos, que foi possível identificar ou pelo menos localizar entre os que figuram na inscrição de uma lápide existente na referida ponte, correspondiam a povos do convento Emeritense (105).

Assim, os Igaeditani, de Idanha-a-Velha(106), os Lancienses Oppi­dani, imediatamente ao norte (107), os Aravi, das proximidades de Marialva (108), e os Bani enses, da região de Moncorvo (109), fariam parte deslse convento jurídico, devendo, por isso, a linha divisória entre os conventos Escalabitano é Emeritense passar sensivelmente

a fronteira meridional do convento Escalabitano. Apenas Estrabão apresenta o Tejo como limite meridional da Lusitânia (III, 3); mas nem por isso, podemos, evidentemente, assegurar que delimitasse pelo sul este convento, tanto mais que sabemos ter havido, depois da dominação romana, migrações de povos do norte para o sul do Tejo, o que toma perfeita mente possível uma alteração do limite tradicional.

(104) Les divisions administratives de VEspagne romaine, pág. '103.(105) A hipótese de Albertini é reforçada pelo facto de alguns diesses

municípios, como os dos Aravi e dos Banienses, ficarem muito afastados, só se justifidando, assim, no entender deste autor, a sua contribuição para a obra, por pertencerem ao mesmo convento jurídico.

i(106) Sobre este povo deve ver-se o estudo de D. Fernando de Almeida: Egitània: História e Arqueologia.

(107) A localização deste povo é revelada por um cipo terminal, situado «inter Lancfienses) Opp(idani) et Igaedit(ani) », encontrado na aldeia de S. Salvador, entre Monsanto e Valverde (Vide Hübner: Notícias Archeológicas

de Portugal, pág. 62).

(108) É o que se depreende de uma inscrição encontrada no pequeno lugar de Deveza, junto a essa vila, na serra dia Estrela ( Jbid., págs. 62 e 63).

(109) Vide o que dissemos atrás, a págs. 78, nota 153, ¡e 128, nota 101.

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 289

essa linha devia seguir pela serra da Lapa, pela extremidade oriental da serra da Estrela, e daí, passando pela serra da Guardunha, até à serra de S. Mamede (110).

Vejamos se o raciocínio do historiador francês é válido, consi­derando, em primeiro lugar, o documento em causa.

Trata-se da única inscrição que resta das que foram gravadas em quatro lápides que figuravam no pórtico que se ergue ainda a meio da ponte de Alcântara (1U), obra vultuosa construída no ano de 104 em honra do imperador Trajano (112).

Hiibner supõe que as inscrições desaparecidas se limitavam a ser a repetição da que chegou até nós (113). Não nos parece, porém, admissível esta hipótese, não só por nela serem apenas mencionados os municípios que contribuiram para o acabamento da ponte (114), mas também porque não parece provável que uma obra tão dis­pendiosa fosse custeada apenas pelos onze povos indicados na ins­crição (lie).

(110) Op. cit., pág. 103. Vide também o mapa que reproduzimos adiante.( 1 1 1 ) Vide Historia de España, dirigida por Menéndez-Pidail, págs. 579 a 583.(112) Ibidem, ibidem. Sobre a bibliografia relativa a esita ponte, veja-se

o folheto de Mesquita de Figueiredo: A ponte romana de Alcántara sobre o Tejo em Espanha, província de Cáceres: Um glorioso episódio da Guerra da

Restauração, págs. 5 a 7. Merece especial menção o trabalho de José Ramón Mélida, in «"Catalogo Monumental de España», vols, relativos à Província de Cáceres, a págs. 118-138.

(113) In «<Annali de '^Instituto di Corrispondenza Arcbeologica», Roma, XXXV, pág. 1*73, cit. por José Ramón Mélida in El Arte en España

durante la Época Romana («Historia de España» cit., tomo II págs. 580 e 658).(114) Realmente, a inscrição limita-se a mencionar «municipia provin­

ciae Lusitaniae stipe conlata quae opus pontis perfecerunt», ou seja, os municípios que por subscrição concluíram a obra da ponte». (Vide a transcrição da epígrafe em Hübner: Inscriptiones Hispaniae Latinae, pág. 91, n.° 760). A não ser que se atribua a perfecerunt o sentido de fizeram inteiramente.

(115) De facto, se a ponte foi constituida apenas a expensas desses povos, não se compreende muito bem que entre eles estejam os Banienses e sobretudo

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290 Torquato Ide Sousa Soares

For outro lado, tratando-se, certamente, da via que estabelecia ligação entre Emérita e Brácara, isto é, entre a capital da (Lusi­tânia e a da Galléela (116), e referindo-se a epígrafe a muni­cípios da província Lusitana sem qualquer restrição, não é muito de acreditar que os contribuintes pertencessem a um só convento.

De resto, os próprios nomes expressos na inscrição nos esclarecem a este respeito, pois o último município indicado — o dos Paesures — é localizado por Plínio entre os Turduli veteres e o rio Vouga, junto à costa, e portanto indubitávelmente no convento jurídico Escala- bitano (11T).

03 Paesures, drizando do figurar outros que certamente teriam mais interesse na utilização da ponte. E se estivesse certa a localização dos Meidubrigenses no lugar de Aramenha, ñas proximidades de Castelo de Vide, isto é, ao sul do Tejo (vide o Supplemento ao Mappa de Portugal do beneficiado João Baptista

de Castro, coordenado por Manuel Bernardos Branco, pág. 150), aumentaria ainda a confusão. Porém Leite de Vasconcellos provou que é Amaia (civitas

Ammaiensis) que se localiza em Aramenha (vide: Localização da cidade de

Ammaia, in «Etihnos», vol. I, págs. 5 a 9); e parece que, realmente, Medobriga se situa na serra da Estrela, ou, antes, na região de Meda, correspondendo, como supõe Russell Cortez, ao castro de Ranhados. (Vide S. Lambrino: Les Lusita­

niens, in «Euphrosyne», vol. I, pág. 137, nota 108 bis). Mas há, sobretudo, que ter em vista, como diremos em seguida, que a inscrição se refere simplesmente a «municipia provinciae Lusitaniae» sem qualquer restrição, o que implica, por certo, a menção de mais municípios dos outros conventos jurídicos dessa pro­víncia.

'(11G) D. Femando de Almeida, depois de se referir à estrada da «Prata», que atravessava Mérida, seguindo para Asturioa (Astorga) por Norba (Cáceres), observa: «Era necessário estabelecer mais uma comunicação entre o ocidente da Lusitânia e a sua capital: foi por isso delineada uma via que saísse de Norba e viesse directa ou indirectamente até Conímbriga, onde iria entroncar na de Olisipo a Bracara». E conclue dizendo: «Não seria caminho militar nem público, mas comunal» (Egitània, pág. 28).

(11T) Vide atrás, pág. 57. É certo que podia haver dois povos com o mesmo nome, çjomo os Lancienses, que, como vimos na nota 9*9, tinham também

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OS CONVENTOS JURIDICOS BRACARENSE,. ESCALABITANO E PACENSE, SEGUNDO ALBERTINI

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292 Torquato de Sousa Soares

(Par outro lado, o aparecimento, na aldeia de S. Salvador, entre Monsanto e Valverde, nas proximidades do rio Torto, de um terminus au¿ustalis a marcar o limite entre os Lancienses Oppidani e os Igaeditani (118) seria na verdade revelador, se servisse simultánea­mente para demarcar a linha divisória dos dois conventos Escala- bitano e Emeritense (lie).

. Mas, não sendo assim, apenas nos é lícito presumir, tendo em vista a localização dos Lancienses Oppidani, que a referida epígrafe determina, que, ao norte, este povo atingia o Coa, visto que a divi­sória entre ele e os Lancienses Transcudani tinha de passar por esse mesmo rio (120).

assento no convento Asturícense. Mas, não se verificando esta hipótese, aliás pouco verosímil, visto que (Plínio «6 menciona um com esse nome, temos forçosamente de admitir que a indicação dos municípios não era feita por ordem geográfica, como se tem dito. Talvez fosse feita pela importância da contribuição de cada um.

(118) Citámo-lo atrás na pág. 129, nota 107. Além de Hübner, vide D. Femando de Almeida: Egitânia, pág. 255. É do ano 2 a. C., e ficava a dez quilómetros ao morbe de Egitânia. «A divisão — informa D. Fernando de Almeida — teria sido feita pouco tempo antes, logo seguida pela colocação do marco, pois a organização romana não se descuidava com estes pormenores die administração» (Ibidem, pág. 27).

(lis) (Embora este termo não tivesse essa finalidade, pois se limita a sepa­rar os Lancienses Oppidani dios Igaeditanienses, nem por isso a hipótese á inverosímil. De facto, sendo os Lancienses Oppidani Vetões, como indlica Ptólomeu (II, 5, 7), bastaria que os Egitanienses fossem Lusitanos, fazendo, por­tanto, parte do convento Ëscalabitano, para se poder admitir que a fronteira entre este Convento e o Emeritense passasse por aí. Infelizmente, porém, como vere­mos a seguir, mão é possível afirmar a que convento jurídico pertencia Egitânia.

(120) o próprio epíteto Transcudani o dá claramente a entender. Assim, a divisória devia ser feita pelo Coa antes de o seu curso infléchir para o norte.

Trata-se, evidentemente, do mesmo povo que, certamente por razões de ordem administrativa, se dividiu em dois municípios. Não admira, por isso, que Plínio, que os indue na lista dos estipendiónos, os designe como um só povo (IV, 118). É certo que ma inscrição da ponte de Alcântara se interpõem — entre

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 293

Ora, sendo os Lancienses vetões, torna-se perfeitamente vero­símil que o Coa passasse a constituir a fronteira entre os dois con­ventos desde que o seu curso inflecte para o norte até atingir o Douro, um pouco a montante de Moncorvo, possivelmente na direc- ção do limite oriental dos Banienses (121).• E, sendo assim, fariam parte do convento jurídico Escalabitano

— contràriamente ao que supõe Albertini — não só os Aravi e os Banienses, mas também os Colarni e os Arabrigenses, que Ptolomeu considera Lusitanos (122).

Não obstante, persiste uma grande dúvida:—Ficaria realmente o município Egitaniense no convento Escalabitano (123)P

Não ousamos pronunciar-nos, apesar do lugar que Egitânia tomará na organização eclesiástica da monarquia sueva, como veremos na «reflexão» seguinte. E, em vista disso, não nos atrevemos a dizer de que convento jurídico fazia parte a zona compreendida entre o rio Ponsul e os rios Elga ou Erjas e Torto (124).

os Oppidani e os Transcudani — outros povos; mas, siendo a ordem estabelecida peda importância da contribuição de cada um, como admitimos que fosse na nota 117, essa circunstância não implica, levidentemente, a sua separação geográfica.

(121) é claro que se trata de uma simples hipótese, baseada na convicção de os Banienses serem lusitanos pròpriamente ditos, isto é, não serem vetões.

(122) II, 5, 6. O comentador de Ptolomeu, C. Millier, identifica este muni­cípio dos Arabrigenses com o de Ierabrica, entre Olisipo e Scalabis, que corres­ponderia a Alenquer (Geografia de Ptolomeu, vol. I, págs. 136-137); mas, segundo nos informa o Dr. Joaquim da Silveira, tal identificação, por razões de ordem filológica, não se justifica.

(123) Assim o crê Leite de Vasconcelos (Religiões da Lusitânia, vol. III, pág. 175) e, certamente no seu encalço, D. Fernando de Almeida (Egitânia,

pág. 26); mas nem um nem o outro fundamentam a sua afirmação.(124) Vide o mapa em que indicamos os limites destes três conventos,

rectificando, sempre que o julgámos necessário ou o pudemos fazer, os que propôs Albertini e os que constam dos mapas publicados na Historia de España

dirigidda por Menéndez Pida!, que reproduzimos na parte relativa ao oci­dente da Península Hispânica.

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Torquato de Sousa Soares294

c) Limite oriental do convento jurídico Pacense:

Não procurando sequer averiguar se, de facto, o Tejo constituía a fronteira setentrional deste convento jurídico (125), restringiremos o nosso inquérito à sua fronteira oriental, naturalmente dividida em dois sectores, sendo um, entre o Tejo e o Guadiana, limítrofe do convento Emeritense, e o outro, a sul, ao longo ou não do Gua­diana, vizinho do Hispalense.

Quanto ao primeiro sector, se, realmente, Valência de Alcân­tara corresponde à colónia de Lusitanos fundada por Júnio Bruto, poderemos admitir que o convento Pacense (ou Escalabitano ?) — se é quie lindava oom a Vetónia —se estendia para leste da actual fronteira portuguesa.

Por outro lado, se Badajoz corresponde, como parece supor Gas­par Barreiros, a Paxaugusta (126) — que Estrabão situa entre os Cél-

(125) Vide o que a este respeito dissiemos na nota 103. Acrescentaremos agora que, tendo em conta os factores de ordem geográfica, teríamos certamente de recuar a linha divisória entre os dois conventos para o sul do Sorraia e da serra de S. Mamede, ficando no convento Escalabitano todo o Ribatejo e o Alto Alentejo.

(126) facto, na Chorographia de alguns lugares que stam em hum

caminho que fez Gaspar Barreiros 6 anno de M.D.XXXXVI. começando na

cidade de Badajoz em Castella, té à de Milam em Italia, o autor manifesta a opinião de «que os geographos nam chámão á Badajoz Paxjulia, senam Paxau­gusta, como elles diziem» (fl. 9), concluindo: «E porqué Beja é nomeada de Ptolomaeo, de Antonino, e assi das pedras antigas per este nome Paxjulia, e nam Paxaugusta, seguese manifestamente serem duas cidades d’este mesmo nome Pax, hua Iulia, e outra Augusta, hua situada nos Turdetanos da Lusitânia, e outra situada nos Célticos de Baeturia: pello que com razam o bispado de Badajoz se chama Pacense, e nam por se mudar a cadeira pontifical de Beja em Badajoz, como alguns te gora cuidaram» (fl. 10 v.°).

Talvez se possa justificar esta hipótese de Barreiros, desde que se não faça derivar o topónimo Badajoz de Pax Augusta, pois, como diremos adiante, na nota 140, uma tal etimologia é inadmissível.

Sendo assim, haverá que corrigir a localização, que, aliás de acordo com

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 295

ticos (127), que integravam a maior parte da população da meso- potânia entre o Tejo e o Guadiana (128)—poderemos talvez con­cluir que esta cidade ficava no convento Pacense. E visto que Emérita, a poucas léguas a leste, é situada pelo mesmo geógrafo entre os Túrdulos (129), não repugna acreditar que a fronteira pas­sasse entre essas duas cidades.

Quanto ao segundo sector, isto é, quanto à fronteira ao sul de Badajoz, parece-nos dever distinguir duas partes: uma ao norte da confluência do Chança com o Guadiana, e outra daí até à foz deste rio. É que é muito provável que fosse só a partir daí que a fron­teira acompanhasse o curso do Guadiana.

Realmente, há a considerar não só o facto de ficarem a leste de Badajoz todos os oppida, que, segundo Plínio, foram fundados na fronteira da Bética (13°) pelos Célticos vindos da Lusitânia, tal como Seria, cognominada Fama Julia, que ficava próximo de Jerez de los Caballeros (131) ; Nertobriga (Concoidia Julia), cerca de Fre- genal de la Sierra (132); Curiga (Contributa Julia Ugultunia), junto de Monasterio, ao sul de Fuente de Cantos (133) ; e Lacimurga (Cons­tantia Julia), a leste de Mérida, talvez nas proximidades da Puebla de Alcoucer (134) — mas também a circunstância, posta em relevo

o mapa publicado na Historia de España, dirigida por Menéndez-Pidal, pro­pusemos para Pax Augusta, identificando-a com Beja (a pág. 49).

<127) III, 2, 15.(128) II, 1, 6.(129) III, 2, 15. Não obstante, Ptolomeu considera esta cidade de Lusi­

tanos (II, 5, 6). A contradição é, porém, mais aparente do que real, pois a ver­dade é que Mérida podia ter sido uma colónia de Lusitanos em país de Túrdulos.

(13°) III, 13. De facto, Plínio diz claramente que os Celtici do Conventus Hispalensis, vindos da Lusitânia, lindam com esta província.

'(131) Segundo uma inscrição encontrada aí. (Vide Garcia y Belido: La España del siglo primero de nuestra era, pág. 227, nota 69).

(is2) Em Valera la Vieja, ao sul da provincia de Badajoz (ibid., ibid.).(133) Segundo o testemunho de várias inscrições (ibid., ibid.).(134) De acordo com a identificação de Bosch-Gimpera, baseado no facto

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por Albertini, de haver, na estrada que liga Serpa a Arucci (Aroche), a umas vinte milhas a leste do Guadiana, uma estação designada Fines, que assinala, evidentemente, o limite das duas províncias (135).** Assim, talvez seja legítimo concluir que em nenhum lugar até

à foz do Chança o Guadiana servia de linha divisória entre os conventos Pacense e Hispalense. Mas daí em diante nada nos auto­riza a supor que não a constituisse, como afirmam as fontes (136).

Ocorre-nos, porém, perguntar: — Desde quando a fronteira das duas regiões deixou de seguir o curso do rio Ana ?

O facto de a progressão de elementos célticos para leste — talvez por iniciativa ou pelo menos durante a permanência de Júlio César na Hispânia Ulterior (137) — não alterar a divisória entre as duas regiões, parece mostrar que, já antes, o limite nessa zona não acom­panhava o curso do Guadiana (138).

d) Conclusões:

Depois de termos percorrido as fronteiras destes três conventos jurí­dicos, que sopamos ligados por vínculos particularmente expressivos, cumpre-nos observar que, em geral, os limites de todos eles se manti­veram, com notável estabilidade, enquanto durou o império romano.

de ter aí aparecido uma inscrição dedicada ao genio Lacimurgae (Etnologia de la Península Ibérica, pág. 504, nota 1).

(130) Les divisions administratives de l'Espagne romaine, págs. 39-40. Este limite corresponde muito aproximadamente à actual fronteira portuguesa.

(130) Refiro-me especialmente a Fompónio Mela (III, 6) e a Plínio (IV, 116).

(13T) De 69 a 68 a. C., como quiestor, às ordens do pretor da Ulterior; e de 61 a 60, como pretor dessa mesma província, onde parece ter realizado uma administração benéfica (Vide Fontes Hispaniae Antiquae, V, pág. 15; e Historia de España dirigida por M. Pidal, Tomo II, págs. 244 a 246).

(138) É mesmo de crer que a distinção entre a região ocidental e a Bética tivesse resultado da ocupação céltica, que logo se estenderia à margem esquerda do Guadiana.

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OS CONVENTOS JURÍDICOS BRACARENSE, ESC ALABI TAÑO E PACENSE, NA «HISTORIA DE ESPAÑA» DIRIGIDA

POR RAMÓN MENÉNDEZ PIDAL

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Realmente, nenhuma indicação chegou até nós de qualquer modi­ficação substancial, nem mesmo quando da reforma de Diocle- ciano (139). 'Não obstante, a não coincidência dos limites da diocese Bracarense com os do convento jurídico, pelo menos a partir da dominação suévica, poderia levar-nos a admitir a hipótese de esse facto resultar de terem sido alterados ainda durante a domina­ção romana. Mas nenhum texto ou simples indício nos autoriza sequer a insinuá-lo.

Iguais dificuldades se nos deparam, como vimos, na região de Egi- tânia e mesmo mais ao norte, ao ¡longo do Coa. Mas é possível que, ou o aparecimento de mais marcos miliários, ou mesmo o de fontes mais recentes, nos venha ainda a oferecer novos dados que nos permitam esclarecer estas dúvidas. O mesmo dizemos quanto às fronteiras entre os três conventos jurídicos, cujo traçado, como vimos, oferece dificuldades, não só ao longo do Tejo, mas também do Douro.

Finalmente, a fronteira ao sul do Tejo, isto é, entre os con­ventos jurídicos Pacense e Hispalense, está longe de ser incon­troversa, tanto mais que houve, certamente, em diferentes épocas, sucessivas migrações de elementos célticos da margem direita do Guadiana para a margem esquerda e, depois, mesmo dos que se tinham fixado na margem esquerda, mais para nascente (14°).

— Por razões de ordem económica ?

(is0) Vide >E. Albertini: Les divisions administratives de VEspagneromaine, cap. VII (Le Bas-Empire), págs. 117 e segs..

,(140) é certo que há um ponto de referência — a estação denominada Fines, justamente posta em relevo por Albertini, como já tivemos ocasião de dizer; mas falta-nos pelo menos mais um, que talvez seja possível situar entre Badajoz e Mérida. Porém, para que esta localização seja viável, será necessário quie a Paxaugusta de Estrabão possa identificar-se com Badajoz. Ora, apesar de não ser admissível uma derivação etimológica, como já mostrou Menéndez Plidal (vide a sua Toponimia prerromana hispana, págs. 102-103), nem por isso é de rejeitar a hipótese da proximidade ou mesmo coincidência entre as duas cidades, se é que Pax Augusta não está em Estrabão por Pax Julia.

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Reflexões sobre a origem e a formaçâo de Portugal 299

— Certamente. Mas nao podemos deixar de considerar tam­bém, a seu lado, razões de ordem militar, que a circunstância de as cidades fundadas pelos Célticos emigrantes serem designadas oppida nos permite entrever.

De resto, parece que as actividades estrictamente mercantis continuavam a ser apanágio dos Turdetanos, que, com certeza, os Célticos não hostilizavam. Mas a posse da terra não podia deixar de lhes interessar, e daí, talvez, essas incursões para leste, cujas consequências Júlio César, na sua qualidade de pretor da Hispânia Ulterior, teria procurado conjurar, fornecendo aos inva­sores novos quadros urbanos, a que, com certeza, não deixaria de dar viabilidade, especialmente sob o ponto de vista económico.

Assim, a dominação romana, uma vez obtida a paz, fez com que todos esses movimentos cessassem e, o que é mais, permitiu que os quadros então definidos continuassem a corresponder aos interesses das colectividades que, por isso, longe de se descaracterizarem, puderam manter a sua feição peculiar, como já tivemos ocasião de dizer.

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TERCEIRA REFLEXÃO

SOBRE O TERRITÓRIO OCUPADO PELOS SUEVOS NO OCIDENTE DA HISPÂNIA E A SUA ORGANIZAÇÃO ECLE­

SIÁSTICA NOS SÉCULOÍS VI E VII

I — O território ocupado pelos Suevos no século V:

a) A ocupação da Galécia e campanhas que se seguiram:

A divisão, em 411, do Ocidenite da Hispânia pélas agrupamentos de povos que cerca de três anos antes tinham transposto os Piri- néuis C1), parece ter sido feita em conformidade com as divisões provinciais romanas. Realmente, o 'bispo Idôcio, depois de observar que os invasores, «resolvidos a fazer a paz, repartem pela sorte os territórios das províncias para se estabelecerem nelas», esclarece: «Os Vândalos (asdingos) e os Suevos ocupam a Galécia, situada no extremo ocidental do mar Oceano; os Alanos, a Lusitânia e os Vândalos chamados silingos, a Bética» (2). Nem se compreenderia

0) Depois de o tentarem em vão durante cerca de três anos (406-409). Vide, a este respeito, as crónicas de Santo Isidoro (Historia Gothorum, Wandalo- rum et Suevorum ad a. 624) e de I dá cio (Continuatio chronicorum Hieronymia- nomm ad a. 468), in Monumenta Germaniae Historica, Auctores Antiquissimi, vol. XI (Chronica minora saec. IV, V, VI, VII, vol. II, cal. Th. Mommsen), e Fontes Hispaniae Antiquae, fase. IX: Las Fuentes de la Época visigoda y Bizantinas, ed. -de Roberto Grosse, páigs. 29 a 35.

(2) Fontes Hisp. Ant., IX, cit., pág. 35; e a tradução castelhana, em Marcelo Macias: Aportaciones a la Historia de Galicia, págs. 87-498. O mesmo diz Santo Isidoro (Fontes, cit., págs. 38 e 39, >e, relativamente aos Suevos, Aportaciones cit., pág. 129). É de notar a afirmação feita por Santo Isidoro de terem os Galegos mantido a sua independência em parte da província.

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 301

que fosse de outro modo, tratando-se oertamente de foedor a impos­tos por cada um dos povos invasores, independentes entre isi(3).

É certo que, relativamente aos Vândalos asdingos e aos Suevos, o cronista refere apenas ter-lhes sido entregue a Galécia, sem dis­criminar os respectivos quinhões (4). Mas, embora a posição destes dois povos entre si não seja muito clara, seremos talvez

(3) De facto, como adverte Manuel Torres, cesta divisão não foi, no primeiro momento, concertada, mas sim imposta a Roma; e, se bem que se tivesse chegado a um pacto de federação, Roma e o seu imperador Honório sempre julgaram passageira a estância desses povos naquelas províncias his­pânicas» (Historia de España, sob a direcção de R. Menéndez Pidal; Tomo III: España Visigoda, págs. 21 e 22).

(4) Desconhecemos as razões que teriam levado o autor do mapa, que figura na Historia de España cit., entre as págs. 24-25, a determinar a linha divisória entre o território ocupado pelos Vândalos e aquele onde os Suevos se estabeleceram, de que resultam duas zonas perfeitamente distintas: uma, ao longo da costa setentrional até à foz do rio Minho, atribuída aos Asdingoa; e a outra, ao sul, aos Suevos.

Por outro lado, a conclusão a que chegou o P.® Luiz Gonzaga de Azevedo (História de Portugal, Tomo I, págs. 170-171) de que o convento jurídico Asturioense foi conferido aos Vândalos asdingos, não me parece aceitável. É certo que Jordanes, que escreveu no século seguinlte, diz in De Getarum

sive Gothorum origine et rebus gestis (cap. XLIV, pág. 464 da ed. Nisard) que os Suevos, que se tinham estendido pelo litoral oceânico, lindavam com a Austrogónia a Orienlte. Mas, mesmo que por e99a designação se devesse entender o convento Asturicense — o que não nos parece admissível — não podemos abstrair da circunstância de Jordanes, apesar de se referir a uma situação anterior ao reinado de Requiário (448-457), não poder de modo nenhum ter em vista a divisão de 411, pois atribui também aos Suevos a parte da Lusitânia entre o Douro e o Tejo. De resto, por Austrogonia

quereria certamente dignificar não o país habitado pelos Astures, mas o que ocupavam os Autrigones, que, segundo Ptolomeu (Geographia, II, 6, 52. Vol. I, pág. 170, col. 2.a), ficavam a oriente dos Cántabros.

(Finalmente, quanto à escritura apócrifa citada na España Sagrada (tomo IV, págs. 216-217), que L. Gonzaga de 'Azevedo também invoca (ibid., ibid.,

pág. 171), mesmo que se admita a validade da sua informação, o certo é que

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302 Torquato de Sousa Soares

levados a concluir que constituiriam ainda então um só agrupa­mento, por muito precário que fosse (6).

Temos, pois, de admitir que, aos Suevos e Vândalos asdingos, foram entregues /em conjunto os três conventos jurídicos — Bra- carense, Lucense e Asturicense — que constituíam a Galécia segundo a reforma de Diodeciano (6).

'Mas, a breve -trecho, esta associação, precária como era, des­fez-se (7) ; e, tendo-se retirado os Vândalos (8), ficaram os Suevos

só refere ter Gunderico, rei dos Vândalos Asdingos, que dominava a Galécia e as Astúrias, fundado Lucus, o que serviria até para confirmar a hipótese, que nós admitimos, de os Suevos estarem então sob o domínio dos Vândalos.

(5) Ê o que se depreende de Idácio, como vimos. De resto, devemos ter em vista que, como observa M. Torres, os Suevos, ao junltarem-se aos Vândalos e aos Alanos, não constituiam uma monarquia, que só a partir de 406 se iria formando e fortalecendo pouco a pouco. Assim, o referido historiador não considera ainda Hermerico, à data do estabelecimento dos Suevos na Galé­cia, como um verdadeiro rei, mas sim como um simples dux (Op. ciit., pág. 27).

(6) iDe facto, Idácio refere-se à cidade Asturicense como incluída na Galécia em 445. Fazendo parte do reino suévico ? A referência, feita mais adiante, à invasão pelos Suevos, em 469, de certos lugares da Lusitânia e do convento Asturicense, poderia levar-nos a crer que o território deste convento não tinha sido incluído no quinhão dos Suevos e Vândalos. Certo é, porém, que, como já tivemos ocasião de observar na nota 2, uma paite da população pré-exiistente no país ocupaido pelos Suevos teria, não obstante, mantido a sua autonomia, assim se explicando estas acções militares.

(7) O rompimento dos Vândalos com os Suevos, que se deu em 419, é assim descrito por Idácio: «Tendo-se travado combate entre Gunderico dos Vândalos e Hermerico dos Suevos, estes foram cercados pelos Vândalos nos montes Nerbasios» (Fontes, cit., pág. 40; e Aportaciones cit., pág. 88), que Grosse julga ficarem próximo da cidade de Orense (Fontes cit., ibid.), certa­mente em correspondência com o Forum Narbasorum de que nos fala Ptolomeu (vide, atrás, págs. 108, 113 (mapa) e 124, nota 90). ¡E Santo Isidoro diz também que, tendo sido roto o tratado de paz, Gunderico cercou a gente dos Suevos nos montes Erbasis (Fontes cit., pág. 39).

(8) A partida dos Vândalos da Galécia, depois do êxito obtido contra os Suevos, explica-se pela perseguição que lhes moveu Asterio, quç Idácio

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senhores de toda a Galiéoia, de que Brácara Augusta era a capi­tal (9).

A extrema mobilidade deste povo não lhe permitiría, porém, manter-se dentro das fronteiras que lhe tinham sido fixadas (10) ; e assim é que, ao passo que ultrapassava, a oriente, os limites do convento Asturi cense (u), o vemos transpor o Douro, ao sul, e ocupar efectivamente os territórios Canknbricen.se, Visiense, Lamecense e Egitaniense, que provàvelmente se estenderia até ao Tejo (12). E se não é certo que permaneceu em Santarém (Scalabis) e em Lisboa (Olmpo) (13), sabemos, pelo menos, que ocupava a primeira destas

Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 303

designa conde das Espanhas (vide Fontes cit., pág. 24), obrigando-os a iretirar-se para a Bética, depois de terem sido mortos alguns dos seus soldados em Braga (Fontes cit., pág. 70; e Aportaciones, págs. 88 e 89).

(9) Não queremos dizer que Brácara fosse a capital do reino suévtico, que talvez nunca chegasse verdadeiramente a ter uma capital, tanto mais que, como vimos (nota 2), os Galegos tinham conseguido manter-se independentes em parte da província, e que, ao descrever a tomada de Braga peio rei visigodo Teodorioo, Idácio só se refere aos cativos romanos. <(Fontes cit., págs. 74 e 75, e Aportaciones, págs. 100 a 101).

(10) É possível que iessa mobilidade tivesse sido iniciada pelos Alanos, que Idácio, referindo-se a acontecimentos de 418, diz que dominavam os Vân­dalos e os Suevos, quando foram, nesse ano, destruídos pelos Visigodos (Aportaciones, pág. 88).

(n) Por isso, Idácio incluiu a cidade de Cauca na Galécia (Aportaciones,

pág. 84).(12) É o que se depreende do Paroquial, que parece ter sido ©laborado

na segunda metade do século seguinte, como referiremos a pág. 156.Pierre David considera que o país representado pelas duas dioceses de

Coimbra e de Idanha (Egitânia), que «constituiriam provàvelmente uma única antes de 570, forma um vasto triângulo cuja base costeira vai aproximadamente da Nazaré a Gaia, e que penetra, ladeando o Tejo, pelo menos até ao seu afluente Erges» (Études historiques sur la Galice et le Portugal du VV au

XIV siècle, pág. 77).(13) O facto de nenhuma dessas cidades figurar no Paroquial suevo

leva-nos a crer que assim era, tanto mais que Olisipo deve ter sido cidade epds-

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duas cidades em 460 (14), e que, tendo conquistado a segunda em 457 (15), a tornou a ocupar em 468 (16), isto é, já depois do ressurgimento da monarquia sueva (17).

O mesmo não se poderá dizer do país ao sul do Tejo, pois, apesar da ofensiva de Réquila, rei dos Suevos, de que resultou a sua entrada em Mérida, em 439, e, nos anos seguintes, em Mér- tdla (Martyli) e em Sevilha (Spaíi), e, finalmente, a submissão da Bética e da Tarraconense (18), estas posições, perdidas em con­sequência da campanha dirigida pelo rei visigodo Teodorico em 456 c 457, não foram, ao que parece, recuperadas (19).

copal já no séc. IV. (Vide Fortunato de (Almeida: História da Igreja em Por­

tugal, tomo I, pág9. 35 e 13'2: e P.® Miguel de Oliveira: História Eclesiástica de

Portugal, pág. 30).(14) Realmente, nesse ano, Scallabis foi acometida e conquistada pelo

conde Simiericus, que comandava um exército godo em luta contra os Suevos. (Vide Fontes cit., pág. 80; e Aportaciones, págs. 107 e 108).

(15) Refere-o Idácio, dizendo que uma parte dos Suevos, «às ordens de Maldras, depreda com a sua costumada perfídia a Lusitânia e, sob a aparência de paz, entra na cidade de Ulixippona, onde leva a efeito uma matança de Romanos, e reúne os roubos praticados» (Fontes cit., pág. 78; e Aportaciones, pág. 105).

>(16) Remismundo, que tinha passado à Lusitânia no terceiro ano do seu reinado, ocupou, no seguinte, Olisiporta, que—como informa Idácio—lhe (foi entre­gue pelo cidadão Lusídio. (Fontes cit., pág. 06; Aportaciones, págs. 114 e 115).

(17) Vide Manuel Torres, in Historia de España, tomo III, pág. 33.(18) Fontes cit., págs. '60 e 61; e Aportaciones, págs. 92 e 93'. Vide também

M. Torres in Historia de España cit., pág. 29.(19) Realmente, a ofensiva do irei suevo Remismundo não parece ter ido

além de Lisboa, que, como vimos, reocupou em 468. E se não é certo que, como quer Dahn, os Suevos perderam, em tempo de Eurioo (466-484), todas as posições que ocupavam além da Galécia, tudo nos leva a crer que não voltaram a transpor o Tejo. (Vide História primitiva dos povos germânicos e romanos,

in «História Universal» dirigida por G. Oncken, tradução portuguesa, vol. VI, págs. 50'5-50'6; e Hl st. de España cit., pág. 3'8).

Não obstante, baseado num passo de Jordanes, o Dr. Francisco Jo9é Vellozo admite que o reino suévico se estendeu com permanência até ao promontório

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 305

b) «Portuca1 e castrum» e «Portucale locus»:

No decorrer das competições e das lutas que $e travaram nos meados do século V, parece que o lugar denominado For- tucale desempenhou um papel de certo relevo *(20), provável- mente em virtude da importância da posição que ocupava na extremidade meridional da Galécia, junto ao rio, em face dos Alanos (21), dominando a vía que ligava Olisipo a Brácara (22).

Muito se tem discutido a sua origem, bem como a sua primi­tiva localização. Certo <é, porém, que, apesar de não se conhecer nenhuma referência a seu respeito, anterior à invasão dos Sue­vos (28), já existia sob a dominação romana, visto que, ao narrar

Sacro. (Vide A Lusitânia suévico-bizantina, in Bracara Augusta, vol. II, pág. 390 e segs.). Mas a referência ao «promontorio sacro Scipionis romani

ducis monumentum» diz apenas respeito ao promontório onde está o monumento consagrado ao chefie iromano Cipião. iDe resto, Jordanes (cit. na n.‘ 4), ao indicar a fronteira meridional, diz ser «Lysitaniam et fluvium Tagum» — o quo não me parece possível interpretar senão por «a Lusitânia pelo rio Tejo».

(20) Luís Gonzaga de Azevedo vai ao ponto de considerar que esse aglomerado se tomou «cabeça do estado» que denomina reino de Portugal (História de Portugal, vol. I, págs. '13i6 a 13'8). Trata-se, porém, fde uma afirmação que não é possível justificar, nem sequer é verosímil.

(21) Só até 418, pois nesse ano, tendo sido vencidos pelos Visigodos, de que resultou a morte de seu rei, os Alanos sobreviventes retiraram-se para a Galédia, onde se acolheram à protecçao dos Vândalos Asdingos, deixando assim de existir como povo independente, como referem fdácio e Santo Isidoro. (Fontes cit., pág. 49; e Aportaciones, pág. 88. Vide também Hist. de España

cit., tomo III, págs. 22).(22) Assinalada no Itinerário de Antonino, edit, por Partey et Pinder

(Berlim, 184i8), e reproduzido, na parte relativa às vias romanas compreendidas entre o Minho e o Guadiana, nas Notícias Archeológicas de Portugal, por E. Híibner, public, na «Historia e Memorias da Academia Real das Serendas» (Lisboa, 1872), págs. 97-9*8.

(23) Realmente, o Itinerário menciona apenas, entre Langobrica e Bra­

cara, a estação que designa Calem, ou seja, como veremos adiante, ad Cate,

isto é, próximo de Cale, que, como diremos também çm seguida, ficava junto ao

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306 Torquato de Sousa Soares

os acontecimentos de 457, Idácio menciona-o como um centro urbano que não parece ser de formação recente (24).

De resto, afigura-se-nos inverosímil que tivesse podido consti­tuir-se aí uma povoação, por insignificante que fosse, sem deífesa militar, em tempos tão calamitosos (25) ; e temos, por isso, de con­cluir que já existia nos últimos tempos da dominação romana.

Com Cia ^Confunde Leite de Vaseoncellos o Portucale castrum — a que Idácio também se refere (26) —partindo da falsa premissa de ser Cale, mencionada no Itinerário de Antonino, a Cales(s) de Salústio, que, de acordo com Vóssio, supunha estar localizada na Galécia (27). E pode, assim, considerar que Portucale, topónimo

Douro, na margem lesquordia. E, uma vez invalidada a interpretação de Vóssio ao passo das Historiae de Salústio, relativo a Cale(s), quie nada tem a ver com a nossa Cale, como referiremos na nota 27, podemos afirmar não existir, anteriormente ao século V, qualquer referência a alguma povoação da margem direita do Douro denominada Cale ou Portucale.

(24) É o que parece depreender-se do facto de servir de refúgio ao rei suevo Requiário. (Vide Fontes cit., pág. 92; e Aportaciones, pág. 101). De resto, sendo aí o rio atravessado pela via romana, o mais natural seria que se tivessem formado povoações tanto numa como na outra margem.

(25) De facto, os centros urbanos atraíam a cobiça dos invasores, que, como refere Idácio, os atacavam e pilhavam frequentemente. De resto, essa posição estava exposta primeiro aos ataques dos Alanos, quando ocupavam a margem esquerda, depois, às diversas colisões que se deram entre os exércitos dos diferentes povos germânicos em luta uns contra os outros.

,(26) Transcrevemos esses passos na página 149.(27) Realmente a cidade de Cale(s), que Salústio menciona nos frag­

mentos das suas Historiae, transmitidos por Sérvio, não podia ficar na Galécia, como demonstraram D. Jerónimo Contador de ’Argote, in Memorias para a

História Eclesiástica do Arcebispado de Braga (tomo I, págs. 171 e segs.) e Sousa Machado, <in As origens da cidade do Porto — O problema de Portucale

(Capítulo II: A Cidade de Cale, segundo Salústio, págs. 17 a 46). Corresponde indubitàvelmente, segundo gentilíssima informação do Dr. Joaquim da Sil­veira, à Cale situada na antiga Úmbria, perto de Sena Gallica, para o interior do Ager Gallicus, que o Itinerário de Antonino menciona.

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 307

correspondente a portus Cale(s)—* «Cales que é um porto», ou «o porto .chamado Cales» — «era uma povoação (locus) fortificada (castrum), com seu porto no estuário do rio (portus)» (28); isto é, constituía um único centro urbano localizado na margem direita do Douro, que, como é sabido, servia de llimite meridional à Galécia (29).

E o grande arqueólogo remata a exposição, reforçando assim o seu juízo:

«Tanto para o espírito de Jdácio as três expressões Portucále locus, Portucále, e Portucále castrum significavam uma só povoa­ção, que cie, adicionando locus a Portucále na primeira expressão, c castrum na segunda, menciona uma vez Portucále sem epíteto nenhum. Que Portucále era pois este? Evidentemente o mesmo que os outros dois: do contrário distingui-lo-ia por locus ou por castrum. Não pode alegar-se — continua — que, vindo Portucále, sem epíteto, depois de Portucále locus, Idácio tivesse este em mente; não porque o andamento da Crónica põe grande distância de permeio» (30).

A verdade, porém, é que só por inadvertência podia Leite de Vasconceillos ter interpretado assim o texto do bispo filaviense, tão

(28) Cale e Portucále, in Opúsculos, vol. V, pág. 32.(29) Assim, para o Dr. José Leite de Vasconcelos, o Portucále castrum

antiquum do Paroquial suevo, que ficava na margem esquerda, é que é de formação secundária. E explica: «Pois que Cales, na margem direita, possuia um porto de certa notoriedade, tomou disso o nome, e ficou-se chamando Portucále. Tendo-se formado depois na margem oposta, e defronte, tem data indeterminada, uma povoação menos importante, esta recebeu o nome daquela». (Ibidem, páigs. 33 e 34).

É claro que Leite de Vasconcellos não considerava o Paroquial como um documento do período suévico — como Sánchez-Albornoz entreviu (Fuentes

para el estudio de las divisiones eclesiásticas visigodas, in «Boletín de la Universidad de Santiago de Compostela», Ano II (1930), pág. 55, nota) e Pierre David provou definitivamente, como veremos adiante, a pág. 156, nota '56 — mas da Reconquista.

(30) Ibidem4 pág. 36,

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308 Torquato tfe Sousa Soares

•clara e concludente é a distinção que aí se estabelece entre o locus e o castrum.

Realmente, ié só depois de referir que Requiário, vencido pelos visigodos, se refugiou na extremidade da Galécia (31), sendo feito prisioneiro no lugar chamado Portucale (32), que Idácio conta ter também Aiulfo, depois de fixar residência na Galécia, morrido em Portucale (33), que certamente não designa locus por não ser necessário, visto ter apenas mencionado, até aí, uma única povoação com esse nome sita na extremidade da Galécia.

Por oultro lado, é como complemento da narrativa da depre­dação da Lusitânia por um bando de Suevos (34), que, em seguida, nos informa ter Maldras, que o comandava, ocupado o castro de Portucale (35).

Este castro ficava, portanto, na Lusitânia, não sendo, assim, possí­vel identificá-lo com o locus do mesmo nome existente na Galécia

(31) De facto, Idácio conta que Requiário, tendo sido vencido pelo irei visigodo Teodorico II, em batalha travada junto ao rio Orbigo, a dozie milhas de Astorga, a 4 de Outubro de 456, conseguiu com diifiouldade refugiar-se na extremidade da Galécia (extremas sede9 Gallaeciae), sempre perseguido pelo vencedor, que se encaminha dom o seu exército a Brácara, última cidade dessa província, que saqueia. (Fontes cdt., pág. 74; e Aportaciones, pág. 100).

(32) «... ad loco, ubi Portugale appellatur.». (Ibid., ibid., págs. 75 e KM).(33) «Aioulfus dum regnum Suevorum sperat, Portuoale moritur mense

Iunio» (ano 457). (Ibid., ibid., págs. 77J78 e 104-195).(34) «Suevi nihilominus Lusitaniae partes cum Maldare, alii cum Rechi-

mundo Gallaeciae depraedantur» (ano 459). {Ibid., ibid., págs. 79 a 106).(35) «Maldras germanum suum iratrem interficit et Portumoale castrum

idem hostis invadit» (Ibid., ibid.).

Marcelo Macias considera que o Portumcale castrum é o ! Castrum Novum

fundado ai durante a dominação dos Alanos. Tratasse de uma afirmação com­pletamente equivocada, visto que o Castrum Novum ficava na Galécia, « parece ter sido fundado sòmiente depois do desaparecimento dos Alanos. Não obstante, Manuel Torres repete inadvertidamente a afirmação, sem indicar a sua origem. (Historia de España cit., tomo III, pág. 34).

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—o que condiz perfeiltamentie com a trelferência do Paroquial suevo (de que falaremos adiante) ao Portucale castrum antiquum, da diocese Conimbricense (36).

Mas é possível determinar ainda mais exactamente a posição ocupada por estas duas povoações.

. Comecemos pela da margem esquerda do Douro, certamente integrada na herdade que um diploma de 1116 designa Sancta Marina de Pur tu gal (37).

Ora, é justamente na freguesia de Santa Marinha que, em outeiro junto ao rio, se situava- o antigo castelo de Gaia (38), cujo nome, apesar do que se tem observado em 'contrário (39), deriva cer­tamente de Cale ou Calis (40) que o Itinerário de Antonino designa

Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 309

(36) Vide Pierre David: L'organisation ecclésiastique du Royaume Suève au temps de Saint Martin de Braga, in Études histôriques sur la Galice et le Portugal du VI9 au XII9 siècle, pág. 37.

(37) Livro Preto da Sé de Coimbra, fl. 124 v.°, já cit. por 'Mons. Miguel de Oliveira in Estudos de História Eclesiástica: 2 —Os Territórios Diocesanos (Como passou para o Porto a Terra de Santa María), publicados na Lusitânia Sacra, tomo I, pág. 37 da separata. Talvez esta herdade de Sancta Marina de Purtugal correspondesse ao couto -do mosteiro de Sancta Marina de Portu Dorii da bula de 1115 (public, no Censual do Cabido da Sé do Porto, págs. 3 a 5). Vide o que a respeito da localização de portus Dorii dissemos in História da Cidade do Porto, pág. 329.

(S8) Ainda hoje designado pelo topónimo Castelo. Mas, embora pareça existirem aí restos de 'antigas muralhas, não foram encontrados quaisquer vestígios pre-romanos, nem mesmo romanos, talvez por não terem sido ainda feitas explorações sistemáticas.

(s») Vide, por exemplo, As origens da cidade do Porto, do Dr. Sousa Machado, pág. 128.

(40) Assim o entende o insigne toponimista Dr. Joaquim da Silveira, considerando que o C inicial podia ter-se transformado em G como em cattus, que deu gato; crassia, que se transformou em graxa; ou Caius, de que resultou Gaius; e ainda Callaecia, a que corresponde Galiza. Quanto ao aparecimento do i, o Dr. Silveira admite que, ou por motivos analógicos, ou por outras razões, Cale, que no nominativo talvez fosse Calis, como pareoe dar a entender

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310 Torquato de Sousa Soares

sob -a forma acusativa de Calem, a denunciar que a estrada pas­sava, não pela povoação, mas próximo dela (41). E esta circuns­tância levar-nos-á a concluir não só que Cale não abrangia o lugar onde a via cruzava com o rio, mas também que então não existia aí qualquer outro povoado, pois, se existisse, a estação teria, certa- mente, tomado o seu nome, não precisando de se referir ao castro vizinho.

Foi, portanto, únicamente em função do próprio tráfico por­tuário que esse lugar se urbanizou. E assim se compreende que tenha adoptado o nome de Portucale, talvez correspondente a Portus Calis, isto é, o porto de Cale ou Calis., Entretanto, à medida que se iam intensificando as actividades mercantis incentivadas e protegidas pela paz imposta pelos Roma­nos, e, consequentemente, se desenvolvia o novo centro urbano, a decadência do velho aglomerado castrejo não podia deixar de se acentuar cada vez mais (42). Mas a sua qualidade de reduto, indispensável, em caso de guerra, à população ribeirinha, trá-lo-ia de novo, por iniciativa dos próprios moradores de Portucale, para o primeiro plano da vida urbana, logo que, por carência de autori-

o diploma de 922, domo diremos adiante (pág. 152 e nota 46), alongar-se-ia em Calta, visto ser feminino. Servem de exemplos: Nebis —► Nebia (Neiva), e Noemi (nome semita), que se transmudou em Noemia, por ser feminino. Assim, de Calis resultaria Galia, que, pela queda do 1 intervocálico (documen­tado, por exemplo, :em Olaia ou Ovaia, de Eulalia, e em Pena joia, de Pena Julia),

daria Gaia. Já Carolina Midhaëilis considerou ser Gaia proveniente de Cale,

«talvez por Calia, plural de Cale» (Lições de Filologia Portuguesa, pág 273).(41) Assim o julga o Dr. Joaquim da Silveira, que considera estar a

preposição ad implícita antes de Calem. (Realmente, é de notar que, no itinerário desta via, cujas estações são geralmente designadas em ablativo, apenas Calem, Soalabin e talvez também Sellium figurem em acusativo.

(42) Foi o que aconteceu a quase todos. Mas, no caso de Cale, a for­mação de Portucale bastaria para explicar a sua decadência, como mais tarde aconteceria a tantas das nossas povoações acasteladas da Reconquista, depois da pacificação do território.

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dade, fi paz passou a estar, a bem dizer, oonstantemjen'te ameaçada. E daí, certameinte, a extensão do topónimo iPortucaile ao próprio castro (43) ¡e a todo o território que já no século VI constituía uma paróquia com esse nome>(44), embora a designação Cale ou Calis continuasse naturalmente a exprimir o ícastro propriamente dito.

De facto, como vimos, pôde perpetuar-se no topónimo Galia, de Galis, a que um diploma de 922 (45) parece referir-se ao men­cionar os antigos limites da villa de Portugal, «quomodo dividit cum illa villa de Mahamudi et inde per montem ia i termino de Colimbriartos usque in Gal(is)» (46).

Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 311

(43) Talvez até a forma Portumcale castrum, que Idácio emprega ao referir os acontecimentos ocorridos nos meados do século V (vide a nota 35), significasse, de certo modo, que o castro ficava próximo de Portucale (ad

Portumcale), marcando, assim, a sua dependência do aglomerado ribeirinho.(44) Portucale castrum antiquum — uma das sete paróquias da diocese

Con imbricen se que o Paroquial suevo menciona. (Vide P. David: Études His­

toriques sur la Galice et le Portugal du VIe au XIV siècle, pág. 37).(45) Livro Preto da Sé de Coimbra, fis. 3'8 v.° a 40; e Diplomata et

Chartae (Port, Mon. Hist.), págs. 16-17 (n.° XXV).Sobre a autenticidade deste diploma pesam graves suspeições. Vide a

este respeito Pierre IDavid: Études cit., págs. 246-247; e Mons. Miguel de Oliveira, artigo cit. na nota 37, págs. 32 a 38. Por outro lado, há a considerar que as transcrições do Livro Preto nem sempre oferecem garantia de exactidão, tanto mais tratando-se da leitura de originais em letra visigótica, que os escribas de letra Carolina liam geralmente com dificuldade, mormente as abre­viaturas.

(46) No apógrafo dio Livro Preto, esta última palavra está abreviada em Gal. Mas, como além dis um traço fino e Oblíquo sobre o a, que pode ser parasitário (pois não atino com o seu sentido), figura sob o 1, um pouco à direita, um traço curvo, que só me parece possível corresponder ao sinal que, na escrita visigótica (que seria, certam ente, a do original), representa o sufixo is — sinal esse que o copista não teria sabido interpretar nem sequer reproduzir correctamente — entendemos que a leitura desta palavra deve ser Galis. Esta conclusão não invalida, no entanto, a crítica, muito pertinente, de Mons. Miguel de Oliveira, que, apesar de considerar não poder o texto

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312 Torquato de Sousa Soares

Mas este diploma revela-nos -também que Galis, de Cale ou Calis (4T), com certeza correspondente ao castelo de Gaia, ficava fora da vila de Portugal (47 47 48), que era provàvelmente a mesima herdade de Santa Marinha de Portuigal, a que se refere o diploma de 1116.

Ora, esta distinção, que nada tem de estranha, é perfeita-mente esclarecida e confirmada pelas cartas de foral concedidas aos mora­dores de Gaia, em 1255 (49), e aos do lugar chamado Burgo Velho (a que D. Din-is impõe o nome de Vila Nova de Rei) em 1238 (50).

em referência «ser aprovei tai do como fonte para a história da® respectivas povoações relativamente ao século X, embora elas se identifiquem e a lista não seja pura ficção, admite tratar-se de duas notas «do tempo em que os bispos do Porto e de Coimbra andavam em litígio pela posse do território enltre o Douro e o Antuã», e que «devem ter sido redigidas pelos anos de 1115 ou 1116» (Os Territórios diocesanos cit., pág. 38). De facto, no cartório da Sé de Coimbra ainda ss escrevia em letra visigótica ou semi- - visigótica peio menos até 1122 ou 1123, figurando o referido sinal (equi­valente a is), por exemplo, num documento de 1109 (maço III, n.° 4), em ouitro de 1111,2 (ibidn.° 14) e ainda noutro de 1114 (ibidn.° 18).

iReproduzimos, em fac-similé, o trecho do documento em causa, para melhor esclarecimento do leitor:

(47) Vide o que ficou dito atrás, na nota 40.(48) Já o observou Sousa Machado, mas para tirar daí conclusões que,

pelas razões expostas, não aceitamos. (Op. cit., pág. 129 e segs.).(40) «... do et concedo vobis omnibus populatoribus de mea villa de

Gaya...» (Corpus 'Codicum latinarum et portuêaliensium, vol. I, págs. 189 a 191).(50) «... damus et concedimus vobis populatoribus de illo nostro loco qui

consuevit vocari Burrum vetus cui imponimus de novo nomen Villa Nova de Rey pro ioro torum de Gaya» — diz D. Dinis. (ibid., ibid., págs. 191 a 199).

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 313

NOTA EXPLICATIVA

Na margem esquerda do Douro, Cale, que ldácio designa Portucale castram, e o Paroquial do século seguinte Portucale castrum antiquum, corresponde ao outeiro ainda hoje designado Castelo de Gaia ou apenas Castelo. 0 ribeiro que desagua junto de Portucale (Burgu9 vetus) era certamente a linha divisória entre as duas herdades do tempo da Reconquista— Gaia e Portucale—que viriam a constituir no séc. Xlll dois concelhos distintos (Na impossibilidade de marcar rigorosamente o percurso da via romana, esboçamos uma faixa que poderá corres­ponder ao seu traçado). Na margem direita, localizamos o Portucale locas um pouco a leste de Miragaia, onde o desembarque seria mais favorável a quem viesse do Portacale da mar­gem esquerda. O lugar designado na carta Castrum novum, corresponde, de acordo com o Paroquial suevo, ao cerro da Penavenlosa onde se fixou a nova Sé.

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314 Torquato de Sousa Soares

Assim, ao passo que o reguengo die Gaia —de que fazia parte o castelo, correspondeinite a Cale — partia com o termo de Coim­brões, Canidelo e Alumiara (51), o Burgo Velho —que correspon­deria ao primitivo Portucale, ou seja, como vimos, ao Portucale marginal — estava incluído na vila que dele reoebeu o nome, e que, por sua vez, lindava com os termos de Mafamude e Coim­brões (62).

Em frente, na margem direita do Douro, o cais que, :em fun­ção das necessidades do tráfego, aí se estabeleceu (53), não tardaria,

(51) Realmente, mo foral de 1255, D. Afonso III assinala «pro termynis

totum meum regalíengum de Gaya... quomodo dividit cum termino de Com-

brianos et de Candeio et de Almeara et deinde quomodo intrat in Dorium...».

(52) Talvez a linha divisória destas duas vilas correspondesse ao ribeiro que ainda hoje marca a separação entre Gaia e Vila-Nova (correspondente ao Burgus vetus), que os moradores do lugar continuam a distinguir. !Aí iria ter a via romana, seguindo talvez um traçado que se aproximava da margem direita do referido ribeiro até atingir o Douro. Armando de Mattos, in As estradas

romanas no Concelho de Gaia (pág. 16), considera que a via, «deixando à direita o castro de Monte Grande, hoje chamado Mowte da Virgem, e que bem podia ter sido o celebrado castro de Mafamude», orientava-se, a partir de Santo Ovídio, onde existe uma capela «conhecida pela designação muito velha de Capela do Padrão», para a esquerda, passando na Rasa e seguindo pela Barrosa, lugar do Marco—o que se nos afigura perfeitamente verosímil. Já não assim o trajecto daí até Coimbrões e Candal, até chegar ao rio, à sombra do Castelo de Gaia, onde «ainda hoje se mantem um velhíssimo oratório da invocação do Senhor da Boa Passagem» (ibid., pág. 22). Realmente, pelas razões expostas, entendemos que a via romana mão podia deixar de atingir o Douro em Vila-Nova, ou seja o Burgus vetus do foral de 1288.

(53) Certamente por alturas de Miragaia, de onde seguiria a via romana para Brácara. Não nos atrevemos, porém, a indicar o seu percurso, visto que, segundo teve a gentileza de nos comunicar o Dr. Eugênio da Cunha Freitas, erudito investigador das vias romanas desta região, nem ao longo do vale do río Frio nem do do rio de Villa, existí qualquer referência, em tempos medievais, a alguma estrada ou caminho. Seguiria a via romana por Entre-Quintas, Vilar e Vilariça, como aventa Armando de Mattos (As estradas romanas cit.,

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cortamente, em consequência dessas mesmas necessidades, a urba­nizar-se; e isso não podia deixar de contribuir para estreitar cada vez mais os vínculos que o uniam ao povoado vizinho (54).

Esta é, segundo cremos, a origem do Portucale locus, de que o bispo Idácio nos dá as primeiras notícias.

II — A organização diocesana sob o domínio dos Suevos e dos Visigodos:

a) A diocese de Braga e a iormação de novos bispados:

Constituem documentos fundamentais para este estudo as actas dos concílios de Rrácara de 561 e 5 7 2 (55) e, sobretudo, as cha­madas actas do pseudo-concílio lucense de 569, de que consta uma lista de paróquias agrupadas pelas respectivas dioceses—lista essa que Pierre David muito justamente julga ter sido elaborada entre 572 e 582 (C6).

Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 315

pág. 22) e o Dr. Cunha Freitas também admite, adiantando que a calçada de Sobre-Douro, que a ligava a Miragaia, pode realmente ter sido um troço de via romana ?

<(54) Dissentimos, assim, de certo modo, da tese de Alberto Sampaio, que considerava ser o Portucale da margem direita o portus da povoação fronteira chamada Cale, q<u'e, por sua vez, viria a adoptar4he o nome. (As póvoas

marítimas, dn Estudos históricos e económicos, vol. I, págs. 2l63-264). 'Real­mente, como vimos, não era Cale que estava em causa relativamente à formação do Portucale loous da margem direita, mas a estação ribeirinha junto de Cale.

(55) Vide Fortunato de Almeida: História da Igreja em Portugal, tomo I, Apend. n.° 2, pág. 663 e segs.; e Apend. n.° 3, pág. 679 e segs.; e Mons. Aug. Ferreira: Fastos episcopais da Igreja Primacial de Braga, tomo I, págs. 65 a 76.

(50) Esta conclusão assenta no falcto de o II concílio de Braga, de 572, não mencionar ainda o bispo Portucalense, mas sim o Magnetemse, o que não se verifica no III concílio de Toledo, dis 5'89, em que já figura o bispo de Portucale, cuja diocese a referida lista menciona.

«Todos os exemplares conhecidos do Parochiale — conclui daí P.® David — remontam a uma redaCção feita entre 572 e 589»; mas, considerando que a

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316 Torquato ide Sousa Soares

Oestes textos se conclui a criação de novos bispados e a alte­ração dos limites diocesanos e provinciais estabelecidos de acordo com a reforma de Diocleciano, que, como é sabido, serviu de base à fixação das antigas circunscrições eclesiásticas (57).

diocese Portucalense devia iter sido criada ainda no tempo dos Suevos, admite a possibilidade de recuar o terminus ad quem para 582, em que termina a monarquia suévica. (Vide Études historiques sur la Galice et le

Portugal du VIe au XIV siècle, págs. 67--6S).A autenticidade do Paroquial baseia-se, sobretudo, na circunstancia de

03 dados dele constantes serem ininteligíveis fora da data que lhe é atribuída. De facto, observa Pierre David, «na época da Reconquista e mais ainda no século XII, o carácter particular das Igrejas célticas era cortamente desco­nhecido; oenhum falsário seria capaz de inventar uma notícia como a que o nosso documento nos fornece sobre a Igreja dos Bretões». E o insigne his­toriador continua: «O caso é do mesmo modo claro em relação à própria substância do Parochiale; no século XII ninguém nas chancelarias episcopais não somante da 'Galiza, mas de todo o Ocidente, tinha a noção do que era no século VI a organização das paróquias rurais», tal como o Paroquial a apresenta; e ninguém suporia que, no tempo de S. Marbinho de Braga, as dioceses melhor organizadas não tinham mais de trinta paróquias, e muitas outras nem aequer dez (págs. 71-7:2).

Pierre David valoriza ainda outro dado: a Comparação entre a lista de paróquias e a lista de lugares onde se cunhava moeda no tempo dos Suevos e idos Visigodos, que 'acusa uns quarenta nomes comuns de localidades que hoje é impossível identificar, e que não eram melhor conhecidas entre o século X e o XII. ImpÕe-se, portanto, a conclusão «que a toponímia das paróquias e a das oficinas monetárias são da mesma época, 'anterior à conquista árabe». E o nosso saudoso Mestre invoca finalmente a circuns­tância, na verdade muito sintomática, de, em geral, a toponímia expressa no Paroquial — que não é fantasista — ser pràticamente desconhecida na época da reconquista. (Ibidem, págs. 73 a 77).

Para a explicação deste facto deve ver-se o notável trabalho do P.e Avelino de Jesus da Cosita: O bispo D. Pedro e a organização da diocese de Braga,

vol. I, págs. 92 a 105, e ainda a addenda suplí amantar.(57) Vi’de, p. ex., E. Albertini: Les divisions administratives de VEspagne

Romainet pág. 119 e segs.

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Trata-se, evidentemente, do próprio desenvolvimento da vida religiosa, tão favorecido pelo zelo apostólico de alguns bispos. Mas há também a considerar a acção militar, a bem dizer constante, dos reis suevos, que havia de provocar profundas alterações na carta administrativa da época anterior (58).

Interessa-nos, porém, apenas, por agora, averiguar quais as modificações relativas à diocese de Braga, que parece ter-se cons­tituído ainda antes da chegada dos Suevos (59), coincidindo certa- mente com o respectivo convento jurídico, que, como vimos na «reflexão» anterior, não devia incluir nem Orense, ao norte, nem a Terra de Bragança, a leste (60).

Seríamos, por isso, tentados a explicar a incorporação do território Brígantino pelas alterações provocadas pela expansão dos Suevos, se o limite oriental do convento Bracarens-e tivesse constituído alguma vez uma fronteira do novo Estado (61). Mas, estendendo-se este muito para oriente, onde abrangia pelo menos a diocese de Astorga, é evidente que qualquer alteração de limites entre as duas dioceses não pode relacionar-se com essa expansão.

Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 317

(58) Vide o que dissemos atrás, <a págs. 144 e 145.(59) Pelo menos havia bispos em Braga desde os fins do séc. IV, por­

tanto anteriormente ao advento deste povo. (Vide F. de Almeida, op. e vol. cit., pág. 122; e A. Ferreira: Fastos cit., pág. 19 e segs.).

(60) Vide atrás, págs. 124 e segs.Dissemos aí que, naturalmente, a diocísse de Orense não foi desintegrada

da de Brácara. Ê a opinião de Pierre David, baseada no conhecimento da própria organização paroquial, que difere não só da desta diocese, mas tam­bém da de Tui e Portucalie, que foram desanexadas da Bracarense. De facto, não só o número de paróquias é consideràvelmente menor em Orense, mas também não existem aí pagi, como nos outros três bispados. Pierre David supõe-a desanexada de Astorga, que tinha idêntico desenvolvimento paroquial. (Études historiques cit., págs. <69 e >81).

(61) Nem mesmo em relação aos Vândalos Asdingos (que, de resto, ao que parece, só estiveram na Galécia durante cerca de nove anos) isso seria admis­sível. Vide o que dissemos atrás, a pág. 143.

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318 Torquato de Sousa Soares

— Tior-se-ia verificado *esite desenvolvimento do bispado de Braga para leste apenas na época seguinte, em virtude da acção repo- voadora dos presores da Reconquista ?

O facto de a lista de paróquias das dioceses do reino Suevo, elaborada ainda na segunda metade do século VI, indluir nessa diocese a região de Bragança, que é aí mencionada entre os seus pági (62), constitui, porém, um óbice à aceitação dessa hipótese, a não ser que se considere apócrifa a sua inclusão aí.* Não o admitiu, porém, Pierre David; e o estudo que fez deste

documento é tão cuidado (63), que não mie atrevo sequer a propor essa solução para o problema, por muito aliciante que seja. Sere­mos, assim, levados a considerar que a diocese Bracarense teria transcendido o limite oriental do respectivo convento romano em virtude da actividade apostólica dos próprios bispos, que o facto de ser designado Pannonias um dos seus pagi, que linda com o de Brigantia ou fica muito próximo dele, poderá talvez denunciar.

Ê que esse nome víncula-o a S. Martinho de Dume, originário de Panónia, que 'certamente 1'ho impôs (64).

O papel desempenhado por este prelado na diocese de Braga, aonde chegou em 550, e de que viria a ser metropolita (65), foi

(62) Vide P. David, Études oit., pág. 32.(63) Realmente, ao preparar ia edição crítica do Paroquial suevo, o

insigne medievista analisou um número considerável de lições, eliminando vári'03 pagi e outras paróquias, que considerou terem sido interpolados. (Op. cit., pág. 19 e segs.).

(64) Esta é a opinião do Dr. Joaquim da Silveira. Igual motivo pode explicar a atribuição desse mesmo nome a uma freguesia do concelho de Braga, mas não assim a outras freguesias dos concelhos da Guarda e alté de Ourique. No entanto, pode admitir-se que estas últimas freguesias tenham sido fundadas por núcleos de emigrantes oriundos das outras duas paróquias, ou de qualquer delas.

(65) Sobre a personalidade de S. Martinho de Dume deve ver-se além de António Caetano do Amaral: Vida e Opúsculos do S. Martinho, e de Mons. J. Augusto Ferreira: Fastos episcopais da Igreja Primacial de Braga, tomo I,

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realmente muito notável, não só criando novos quadros, como se depreende do confronto das aatas dos concílios provinciais de Sói e 572 (66), mas também promovendo o desenvolvimento da vida religiosa rural, bem evidente no avultado número de paró­quias da sua diocese e das que dela proveem: a Portucalense e a Tudense (67). Assim é que, em contraste com o que se passava nos outros quatro bispados da Galécia — Lugo, Ida, Orense e Astorga, onde apenas se tinham ainda constituído quatro, oito, dez e onze paróquias, respectivamente — aquelas dioceses contavam já então com trinta, vinte e cinco, e dezassete freguesias (68).

Ora, uma tão grande expansão da vida religiosa nem sempre

Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 319

págs. 56 e segs., P.e Avelino de Jesus da Costa: S. Martinho de Dume. XTV Centenário da sua chegada à Península, in Braoara Augusta, vol. II, págs. 2#8-3125.

(60) Segundo Mans. Au g. Ferreira, deviam ter sido quatro as dioceses criadas entre os dois concílios: Egitânia, Lamego, Meinedo (Magnetum) e Britónia (Op. cit., págs. 70-71). Destas, a única constituída à custa de Brácara, e portanto directamente por S. Martinho, é Magnetum. Mas o raciocínio deste autor, baseado na ordem das assinaturas, é falível, porque, por exemplo, a diocese Tudense cujo bispo assina antes de Polímio, de Astorioa, podia ter sido, não obstante, criada posteriormente ao l.° concílio bracarense, celebrado onze anos antes do segundo. E como a divisão sinodal reflecte apenas um expediente de ordem administrativa, como observa Pierre David, pode muito bem ter acontecido que a diocese de Tui tivesse sido separada da de Braga, apesar de passar a pertencer ao sínodo Lucense. E assim se poderá atribuir a criação de mais esta diocese ao zelo apostólico de S. Martinho de Dume, como crê Pierre David.

(6T) «A região que corresponde às dioceses de Braga, Porto e Tui — observa Pierre David — distingue-se por um desenvolvimiento muito superior da organização paroquial. São também as únicas dioceses cujas paróquias de pagi se distinguem das outras. Há todo o direito de considerar este estado de coisas — conclui o grande medievista — como sendo devido ao zelo apostólico de S. Martinho de Dume» (Études historiques cit., pág. 80).

(68) Vide o texto do Parochiale, publicado em edição critica por Pierre David. {Ibid,t págs. 31 a 44),

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320 Torquato de Sousa Soares

se teria operado •estrictamente dentro dos quadros administrativos traçados ou mantidos pelo Império. Mas não é apenas na alteração dos antigos limites provinciais, que o estabelecimento dos Suevos tinha favorecido (69), que está a novidade. Há a considerar tam­bém a circunstância de se terem fundado dioceses não só em ter­ritórios que não constituíam antes conventos jurídicos, nem mesmo quaisquer outras circunscrições administrativas (70), mas até com as respeativas sedes em povoações recentes ou mesmo, talvez, em sítios ainda não povoados, em atenção a razões de ordem prática, não tradicional (71).

Deste espírito inovador é exemplo flagrante a constituição do bispado Portucalense, talhado inteiramente de novo no extremo meridional da metrópole Galaica (72), servindo-lhe de sede a colina que o Parochiale designa apenas Castrum novum (73)

(eo) Vide o que dissemos a pág. 144 e nota 11.(T0) Referimo-nos às circunscrições territoriais geralmente designadas

civitates, como Tui, Lamego, Viseu, etc..(71) É o caso de Magnetum (ao que parece) e de Portucale, que lhe

teria sucedido, como veremos.(72) A referência de Idácio a Braga, como sendo a última cidade da

Galéoia — «extremam civitatem Gallaeciae» (Fontes cit., pág. 74; e Aporta­

ciones cit., pág. ÍOO), mostra que assim era. Sobre a data do estabelecimento do novo bispado em Castrum Novum, entre 572 e 585, deve ver-se J. A. Ferreira: Memorias Aroheoîogico-Historicas da Cidade do Porto, Tomo I, págs. 61 a 63; e Magalhães Basto: Portucale. Subsídios para a sua História («Boletim Cultural» da Câmara Municipal do Porto, vol. XI, págs. 169 a 170, Porto, 1948).

(73) Realmente, o Paroquial suevo precede a lista de paróquias desta diocese da seguinte rubrica: «Ad sediem Portugalensem in castro novo ecclesias

que in vicino sunt»; isto é, diz que a Sé Portugalense está situada no castro novo, cujo nome não indica, ao contrário do que faz relativamente às outras dioceses, v. gr.: «Ad Lamecum ipsum Lamecum», ou «Ad Conimbricensem

Conembrica», ou ainda mais claramente: «Ad Asturicensem sedem ipsa Asto-

rica> (Études cit., pág. 34 e segs.). Não nos parece, pois, correcta a inter­pretação que atribui ao autor do Parochiale o propósito de dar ao Castro novo

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 321

—. o que parece demonsifcrar que não constituía então uim aglomerado urbano, pois, se constituísse, não deixada, naturalmente, de ser designado pelo seu próprio nome.

Por outro lado, a circustância de não aparecerem, nem no local onde a nova Sé se radicou, nem no outeiro vizinho, vestígios sufi­cientemente expressivos de povoação anterior, torna ainda mais verosímil esta hipótese (74).

o nome de Portu cale, como faz em relação ao da margem esquerda, que designa «Portucale castrum antiquum».

De resto, não nos pode passar despercebido o facto, muito expressivo, de uma das versões do Paroquial completar a expressão castro novo com a palavra Saevorum, 'em oposição ao Portucale castrum antiquum, que qualifica de Romanorum.

Talvez a construção desse castro novo se relacione com as luibas do século anterior, servindo de refúgio aos dhiefes vencidos, a que, como vimos, se refere Id'ácio, visto o Portuoaíe locus não ter condições para is90.

(74) É certo que é remoto o povoamento da região portuense, comprovado pelos vestígios que nos deixou não só nos espécimes arqueológicos recentemente encontrados in loco, mas também na toponímia (vide Damião Peres: História

da Cidade do Porto, tomo I, pág9. 15 a 24). Mas —pese embora à opinião em contrário de Mendos Corrêa—o aparecimento, em documentos medievais, do topó­nimo Cividade, aplicado a determinada zona urbana, não nos parece suficien­temente expressivo, mesmo que se aplicasse apenas ao outeiro vizinho daquele onde se ergue «a catedral. flÊ que, na Idade-Média, a expressão cividade podia designar qualquer aglomerado urbano constituído oas imediações de uma cate­dral, como se verifica em Braga. De facto há aí, ao lado da freguesia da Sé, uma outra designada Cividade, cuja itopografia não admite sequer o assentamento de uma povoação castreja, de que, de ¡resto, não há o menor vestígio. Mendes Corrêa refere-se-lbe no seu artigo A antiguidade do Porto (publicado in «Tra­balhos da Associação dos Arqueólogos portugueses», vol. II, pág. 42), mas sem reparar que contribui para invalidar a sua tese. (Vem a propósito observar que M. C. não foi exacto ao dizer, no citado artigo, a pág. 3®, que, nos meus Subsídios para o estudo da organização municipal da cidade do Porto durante

a Idade Média, transferi «para o outro morro, para o 'da Sé, ias localizações de Cale ou da Cividade» pelo facto de ser maior a sua proximidade em relação

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322 Torquato ¡de Sousa Soares

Mas, sendo assim, iistío é, estando desabitado o lugar escolhido para o assentamento da nova Catedral, porque razão passada a designar-se Portucalense a respectiva diocese que, segundo parece,

ao Douro, pois o que eu 'disse, a págs. 15-16, nota 2, do próprio estudo <a que M. C. se refere, foi que, «se, como nota o Dr. Leite de Vasconcelios, Portucale corresponde a portus Cales, isto é, Cales que é um aporto, ou o porto chamado Cales, parece que o seu assento deveria antes ser no morro da ©é que domina o Douro e, portanto, o porto, confundindo-se assim mais fácilmente com ele, o qiue não quer dizier, no entanto, que não ocupasse também o outeiro vizinho». Mas é dl aro que esta ilacção, partindo de uma falsa permissa, está intedramente equivocada, pelas razões expostas atrás).

íFor outro lado, é muito de considerar a míngua die aíchadós arqueológicos, apesar de quase toda a área que M. iC. atribui à cividade ter sido profunda­mente revolvida. Realmente, nem os panos de muralha (aliás muros de suporte de terras) parecem ser de aparelho pre-romano (vide História do Porto cit., pág. 24), nem os pequenos fragmentos de cerâmica e os objectos de bronze e ferro — pedaços insignificantes de fíbulas (?) e pregos— parecem ser típica- mente castrejos. (Vide J. lA. Pinto Ferreira: Novos achados arqueológicos na Avenida D. Alonso Henriques («Boletim Cultural» da Câmara do Porto, vol. XXII, págs. 369 a 370).

Já quanto à dominação romana, os achados são mais expressivos, pois, além de vagas referências a algumas lápides (vide Contador de Argote: Memó­rias para a História Eclesiástica do Arcebispado de Braga, tomo I, pág. 361), e de duas inscrições funerárias registadas por Hübner (vide Fontes Antiqui­tatum Portucalensium, coleccionadas por Mendes Correia, n.°“ 5 e 6, in «Boletim Cultural» da Câmara Municipal do Porto, vol. III, págs. 1®6 e 187), apareceram últimamente, em consequência de demolições feitas à volta da Sé, restos de colunas de mármore, uma ara votiva com uma inscrição ainda legível, e uma moeda de Constantino Magno (Vide ¡António 'Cruz: O Porto na génese dos Descobrimentos, págs. 7 a 10). Mas é força confessar que nem mesmo estes documentos epigráficos e arqueológicos bastam para demonstrar a existência de um núcleo urbano no verdadeiro sentido da palavra.

O que nos parece mais provável é que, no alto da colina que dominava o Portucale locus, além de um cemitério, ou apenas algumas sepulturas, se tives­sem construído quaisquer edificações talvez relacionadas com o culto dos Lares marinhos e, possivelmente, de outros deuses, por iniciativa dos portucalenses —

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 323

não resultou de uma verdadeira criação, mas da transferência da sua primitiva sede em Magnetum (75) ?

O facto é, realmente, insólito, pois o que seria natural acontecer, de acordo com casos idêntico® (76), era a conservação do nome originário.

Ocorre-nos uma explicação: ter o nome atribuído à nova Sé resultado da circunstância de esta se ter fixado primeiramente no Portucafe locus —a não ser que a proximidade deste povoado baste para justificar a adopção do seu nome.

De qualquer modo, porém, foi, com certeza, o seu definitivo estabelecimento no Castrum Novum que fez com que este passasse também a designar-se Portucale.

Trata-se, a julgar pela lista de freguesias do Paroquial, de urna extensa diocese que se prolongava ao longo do Douro até às pro-

e a isso se limitaria a presença humana na Penaventosa, antes de se estabelecer aí a nova Sé.

Não pode, por isso, dizer-lhe res(peito a enigmática designação de Festobol, a que se refere Fr. Bernardo de Brito, aliás sem nenhum fundamento sério (Segunda Parte da Monarchia Lusytana, fl. 1(9*6 v.°), nem mesmo a de Cale ou Portucale. E quanlto à de Penaventosa, que, aliás, teria sido atribuídasòmente ao cume rochoso, talvez só o fosse posteriormente.

(75) Trata-se de uma simples ilacção, baseada na circunstância de figurar, no segundo concílio de Braga, de 572, um bispo Magnetense, que o Paroquial já não menciona, apesar de, entre as paróquias da nova diocese Portucalense, figurar a de Magnetum. A escolha desta vila para sede da nova diocese podia ter resultado ;da ciilcunstânoia de existir aí ium mosteiro, como supõe Mons. Augusto Ferreira (Memórias Archeológico-histórioas cit., págs. &0-&1). Mas 6 possível também admitir a hipótese, que Mons. Miguel de Oliveira aventa, de o bispo Magnetense não ter governado «mais que um mosteiro ou igreja, à semelhança do Dumiense» (História eclesiástica de Portugal, pág. ÓO).

(76) Por exemplo, o caso do bispado Conimbrioense, que conservou a sua designação, mesmo depois de se estabelecer em Emínio; e o do bispado Dumiense, que continuou a ser assim designado durante algum tempo, idepois da sua transferéncria para o norte,

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322 Torquato ¡de Sousa Soares

Mas, sendo assiim, isto é, estando desabitado o lugar escolhido para o assentamento da nova Catedral, porque razão passada a designar-se Portucalense a respectiva diocese que, segundo parece,

ao Douro, pois o que eu 'disse, a págs. l'S-ló, nota 2, do próprio estudo <a que M. C. se refere, foi que, «se, como nota o Dr. Leite de Vasconcellos, Portucale corresponde a portus Cales, isto é, Cales que é um porto, ou o porto chamado Cales, parece que o seu assento deveria antes -ser no morro da Sé que domina o Douto e, portanto, o porto, confundindo-se assim mais fácilmente com ele, o

que não quer dizier, no entanto, que não ocupasse também o outeiro vizinho». Mas é daro que esta ilacção, partindo de uma falsa permissa, está dnfcedramente equivocada, pelas razões expostas atrás).

¡For outro lado, é muito de considerar a mingua die aíchadós arqueológicos, apesar de quase toda a área que M. iC. atribui à cividade ter sido profunda­mente revolvida. Realmente, nem os panos de muralha (aliás muros de suporte de terras) parecem ser de aparelho pre-romano (vide História do Porto cit., pág. 24), nem os pequenos fragmentos de cerâmica e os objectos de bronze te ferro — pedaços insignificantes de fíbulas (?) e pregos— parecem ser típica­mente castrejos. (Vide J. lA. Pinito Ferreira: Novos achados arqueológicos na Avenida D. Afonso Henriques («Boletim Cultural» da Câmara do Porto, vol. XXII, págs. 3Ó9 a 370).

Já quanto à dominação romana, os achados são mais expressivos, pois, além de vagas referências a algumas lápides (vide Contador de Argote: Memó- rias para a História Eclesiástica do Aroebispado de Braga, tomo I, pág. 361), e de duas inscrições funerárias registadas por Hübner (vide Fontes Antiqui­tatum Portucalensium, coleccionadas por Mendes Correia, n.0B 5 e <6, in «Boletim Cultural» da Câmara Municipal do Porto, vol. III, págs. 1®6 e 187), apareceram últimamente, em consequência de demolições feitas à volta da Sé, restos de colunas de mármore, uma ara votiva com uma inscrição ainda legível, e uma moeda de Constantino Magno (Vide ¡Antonio Cruz: O Porto na génese dos Descobrimentos, págs. 7 a 10). Mas é força confessar que nem mesmo estes documentos epigráficos e arqueológicos bastam para demonstrar a existência de um núcleo urbano no verdadeiro sentido da palavra.

O que nos parece mais provável é que, no alto da colina que dominava o Portucale locus, além de um cemitério, ou apenas algumas sepulturas, se tives- sem construído quaisquer edificações talvez relacionadas com o culto dos Lares marinhos e, possivelmente, de outros deuses, por iniciativa dos portucalenses—

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Reflexões soòre a origem e a formação de Portugal 323

não resultou de uma verdadeira criação, mas da transferência da sua primitiva sede em Magnetum (75) ?

O facto é, realmente, insólito, pois o que seria natural acontecer, de acordo com casos idênticos (76), era a conservação do nome originário.

Ocorre-nos uma explicação: ter o nome atribuído à nova Sé resultado da circunstância de esta se ter fixado primeiramente no Portuoale locus —a não ser que a proximidade deste povoado baste para justificar a adqpção do seu nome.

(De qualquer modo, porém, foi, com certeza, o seu definitivo estabelecimento no Castrum Novum que fez com que este passasse também a designar-se Portucale.

Trata-se, a julgar pela lista de freguesias do Paroquial, de urna extensa diocese que se prolongava ao longo do Douro até às pro-

e a isso se limitaria a presença humana na Penaventosa, antes de se estabelecer aí a nova Sé.

Não pode, por isso, dizer-lhe res(peifco a enigmática designação de Festobol, a que se refere Fr. Bernardo de Brito, aliás sem nenhum fundamento sério (Segunda Parte da Monarchia Lusytana, fl. 1016 v.°), nem mesmo a de Cale ou Portucale. E quanlto à de Penaventosa, que, aliás, teria siido atribuídasòmenfce ao cume rochoso, talvez só o fosse posteriormente.

(75) Trata-se de uma simples ilacção, baseada na circunstância de figurar, no segundo concílio de Braga, de 572, um bispo Magnetense, que o Paroquial já não menciona, apesar de, entre as paróquias da nova diooese Portucalense, figurar a de Magnetum. A escolha desta vila para sede da nova diooe9e podia ter resultado ;da circunstância de existir aí um mosteiro, como supõe Mons. Augusto Ferreira (Memórias Archeológico-hÍ9tôricas cit., págs. 60-61). Mas é possível também admitir a hipótese, que Mons. Miguel de Oliveira aventa, de o bispo Magnetense não ter governado «mais que um mosteiro ou igreja, à semelhança do Dumiense» (História eclesiástica de Portugal, pág. 60).

(76) por exemplo, o caso do bispado Conimbricense, que conservou a sua designação, mesmo depois de se estabelecer em Emínio; e o do bispado Dumiense, que continuou a ser assim designado durante algum tempo, idepois da sua transferência para o norte,

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324 Torquato de Sousa Soares

ximidades do rio Sabor, visto que incluía, entre si os seus pagi, o die Valle Aritia (Viilariça) (77).

Quanto à diocese Tíldense, fundada por essa mesma ocasião, nem o lugar da sua Sé, nem a sua extensão oferecem dificul­dades (78), tomando-se como base o Paroquial suevo, que parece prolongá-la, ao sul do Minho, até ao curso do Lima (79).

b) As dioceses ao sul do Douro integradas na metrópole Galaica:

Das investidas militares dos Suevos ao sul do Douro, na região primitivamente ocupada pelos Alanos, resultou a incorporação à metrópole Galaica das dioceses aí existentes (80). É este um facto de grande transcendência para o futuro do País, como veremos no tomo seguinte. Realmente, pela primeira vez depois do esta­belecimento dos Romanos, o Douro deixou de ser uma fron­teira.

(7T) Vide P.® David: Études rit., pág. 35.(78) Como é sabido, a primitiva localização de Tui era junto ao rio

Minho, de onde mudou, muito mais tarde, para o lugar que hoje ocupa, e a que fod imposto o nome de Bonaventura, que, no entanto, não prevaleceu sobre o antigo nome da diocese. Não obstante, Pascual Galindo Romeo (Tuy en la baja Edad Media, pág. 25) afirma que a catedral esteve sempre no lugar onde actualmente está, tendo sido apenas trasladada a povoação.

'(70) Assim o dá a entender a inclusão, entre os seus pagi, de Ovinia. Segundo o P.® Avelino de Jiesus da Costa, «deve corresponder à terra de Vinha, que, no Catálogo das igrejas de 1320, abrangia trinta e uma freguesias situadas ao norte do rio Lima, desde Viana até à foz do rio Coura». (O Bispo D. Pedro e a organização da Diocese de Braga, vol. I, pág. 3 do suplemento à Addenda et Corrigenda).

(8°) Segundo o ponto de vista de Mons. A. Ferreira, essas dioceses seriam apenas a Conimbricense ie a Visiense, pois as de Lamego e Egitânia só teriam sido fundadas no terceiro quartel do séc. VI, quando estavam inte­gradas na metrópole Galaica. Mas como vimos atrás, na nota <6*6, não nos parece válido o seu raciocínio. Admitimos por is9o, a possibilidade de existir,

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 325

'Mas se, como vimos, a progressão dos Suevos parece ter alcan­çado, de uma maneira mais ou menos efectiva, o Tejo, não há memória de se terem constituído dioceses, nem em Santarém, apesar de antiga capital de convento jurídico, nem mesmo em Lisboa, onde já tinha havido, no século IV, pelo menos um bispo (81).

De facto, os bispados de que há notícia no século VI, entre o Douro e o Tejo (82) — bispados esses que faziam parte da metró­pole Bracarense— eram apenas: o Conimbricense, que devia esten­der-se, ao sul, pelo menos até à região de Tomar, pois, entre as suas sete paróquias, figura Selio, que o Itinerário de Antonino situa a trinta e duas milhas ao norte de Santarém (83); o Lame- cense, com seis paróquias, entre as quais Aravoca, que pareos corresponder a Arouca (84); o Visiense, em que estava incluída a

antes do primeiro concílio bracarense, de 5'61, mais uma diocese ao sul do Douro, possivelmente a Lamecense.

(81) Potâmio, que era bispo de Lisboa em meados do séc. IV. (Vide Fortunato de Almeida: História da Igreja em Portugal, tomo I, págs. 3’5 e 133; Garcia Villada: Historia Eclesiástica de España, T. I, 2.a Parte, págs. 45 a 52; e Miguel de Oliveira: História eclesiástica cit., págs. 24 e 25).

(82) Já referidos na nota 80. São mencionados, com os respectivos bispos, nas actas do II Concílio Bracarense, de 572, publicadas por Fort. de Almeida: História da Igreja cit., tomo I, pág. ©89.

(8S) Realmente, como observa P. David, ca paróquia mais meridional é Seliurn». E acrescenta: «Todos estão, geralmente, de acordo em colocar esta povoação na margem esquerda do Nabão, nas imediações de Tomar» (Études cit., pág. 78). Assim, a diocese Gonimbridense estendia-se pràticamemte, desde o Douro ao Tejo, que. constituíam os limites do convento Escalabitano, excluindo apenas Lisboa, na zona litoral, segundo parece. Teria Goriimbiiga sucedido a Scalabis, que, realmente, nunca foi sede diocesana ?

(84) Gomo observa P. David, eslte topónimo parece ser o único que, além de Viseu e Lamego se mantém depois da reconquista entre o Douro e o Mondego (Vide Études historiques cit., pág. *74). P. David menciona também Coimbra, mas Certamen te por lapso, pois a cidade d^sse nome ficava, antes da Reconquista, ao sul do Mondego,

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326 Torquato de Sousa Soares

freguesia de Cáliábrica, não longe da margem esquerda do Côa (85), com nove paróquias; e, finalmente, o Egitaniense, constituído apenas por 'três freguesias, entre a® quais a de Francos (8e), com certeza resultante do estabelecimento aí de elementos desse povo, chegados, talvez, ao nosso país com os próprios Suevos (87).

Ora é miuito provável que esta região não fizesse parte do convento jurídico Escalabitano (88), o que, a ser assim, demons­traria a integração, no território dominado efectivamente pelos Suevos, de urna parcela do convento Emeritense (89). <E assim se compreende que a fundação aí de uma diocese, entre 561 e 572,

(85) a freguesia de Caliábrica, que ficava, sem a menor dúvida, na actual freguesia de Gedovim, do concelho de Vila-Nova de (Fozcoa, segundo teve a gentileza de me informar o Dr. Joaquim da Silveira, havia de constituir no séctulo seguinte, sob o domínio dos Visigodos, a sede de um novo bispado.

(86) Este topónimo que, segundo P. David, «se aplica perfeitamente a um grupo étnico», não corresponde, certamente, segundo o mesmo historiador, a «um estabelecimento de emigrados franceses do tempo da Reconquista» (Études cit., pág. 75), não constituindo, por isso, a sua inclusão no Paroquial suevo uma interpolação posterior.

(87) Pierre David, em seguimento da observação que referimos na nota anterior, admite que a fixação de Francos no território de Egitânia resultou da segunda invasão de elementos deste povo na Península Ibérica, em '258, que provocaria a construção apressada de tantas cercas de muralhas das nosssa cidadies, como Conimbriga e Eminium. E P. David conclui: «Este nome de Francos na região da Idainha permite pensar que grupos de invasores se estabele­ceram em certas regiões, ou talvez tivessem sido aí fixados pelas autoridades administrativas quando o Imperador Cláudio, o gótico, restabeleceu, em 269, a sua autoridade sobre a Espanha e a Narbonense» (Ibid., pág. 76).

Não obstante, Luís Monteagudo admite, de preferência, «que os Suevos, na sua peregrinação (melhor do que invasão) até à Galiza arrastaram algumas gentes que habitavam junto deles ou que encontravam no caminho, e os francos podem ter sido algumas dessas gentes». (Carta de Coruña romana, in «Emerita», tomo XIX, pág. 22*2) — hipótese que nos parece muito verosímil.

(88) vide o que dissemos atrás, a pág. 134.(89) é esta a opinião de Albertini, como vimos atrás, a pág. 129 e segs.

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DIOCESES E ALGUMAS PARÓQUIAS DO REINO SUÉVICO NO SÉCULO VI

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328 Torquato de Sousa Soares

fosse da iniciativa do bispo de Coimbra, como a diocese Lame- cense, criada também nessa ocasião, foi certamente do de Viseu (90).

o) Divisão da metrópole Galaica; o sinodo Bracarense:

Do facto de as dioceses atrás mencionadas existirem ou terem sido criadas em território que, embora tivesse feito parte da província de Mérída, estava efectivamente ocupado pelos Suevos, resultou a sua integração nia metrópole Bracarense, que, assim, ficou consideràvel- mente ampliada. E daí, com certeza, a sua divisão, que se teria verificado entre os dois concílios provinciais reunidos em Brácara, isto 'é, entre 561 e 572 (01).

O Plrof. Sánchez-Al'bomoz admite que dessa divisão teria resul­tado a fundação de uma verdadeira metrópole Lucense, desinte­grada da de Braga entre 569 e 572; e abona-se na circuns tância de, no III concílio de Toledo (5*8*9), o prelado Bracarense subs­crever entre os metropolitas «em seu nome e no de seu irmão o bispo de Lugo» (92). Mas Pierre David, inteiramente de acordo com o Cardeal Saraiva (93), rechaça a ideia da formação de uma

(0O) Assim o crê Pierre David. (Vide Études oit., pág. 69).(ei) Realmente, ao passo que, no primeiro, os prelados formam um só

grupo, no segundo, estão divididos em dois sínodos. (Vide Fortunato de Almeida: História da Igreja em Portugal, tomo I, págs. 663-'6 78 e 679-689).

(92) Vide Fuentes para el estudio de las divisiones eclesiásticas visigodas, im «Boletín de la Universidad de Santiago de Compostela» (Ano II, n.° 4, pág. 55, nota 1).

(93) Realmente, ja este historiador notara ser pouco exacta a conclusão de que a metrópole Galaica se dividiu em duas, «ou que, numa só, se estabele­ceram dois metropolitas». Assim, considera que «os Padres nem dividiram a província em duas, nem estabeleceram dois metropolitas em urna só provincia. Aquela divisão (em dois sínodos) teve por único motivo a comodidade dos Prelados na celebração dos Concilios anuais, e só para esse tfim era Lugo o lugar a que deviam concorrer, e o bÍ9po de Lugo o chefe dos concorrentes.

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 329

mova metrópole tendo em vista que o grupo de dioceses, que passa a depender directamente da autoridade do bispo de Lugo, é apenas designado sínodo ñas actas do II concilio de Braga, e concilium numa carta de S. Martinho para o prelado Lucense (94). E concluí: «Não se trata, pois, da criação de urna segunda metrópole, no sen­tido canónico do termo, mas de urna medida de organização administrativa de descentralização, destinada a tornar mais fáceis as rdlaçóes hierárquicas (95).

Realmente, só assim se poderá explicar que a diocese die Tui, que parece ter-se constituído à custa da de Braga (96), fosse, não obstante, incluída no sínodo Lucense.

Mas, por muito pouco que significasse esta nova divisão, que ainda para mais devia ter sido relativamente pouco duradoira (97), não nos pode passar despercebido o paralelismo entre o território português, tal como se constitui nos séculos XI e XII, e o sínodo

Nenhuns ©utro9 direitos metropolífcioos teve, nem lhe foram atribuidos naquele (tempo. (Memória em que se traia da origem do nome de Portugal'e dos seus

limites em diferentes épocas, in «Obras Completas», Tomo II, pág. 105, nota 15).(94) «O título de metrópole — observa — não é conferido a Lugo, nem

o de metropolitano ao seu bispo; nas assinaturas do segundo concílio de Braga — continua — Martinho é o único a tomar esse título: Martinus Bracarensis

metropolitanas ecclesiae episcopus» (Études cit., págs. 65-66).(95) Ibid., pág. 66).(96) Assim o crê Pierre David: Études cit., pág. 69. (Realmente, como

vimos na reflexão anterior, o território Tudense estava incluído no convento jurídico de Brácara, que depois se erigiu em diocese. De resto, não podemos deixar de ter em vista o paralelismo existente entre a organização desta diocese e a >da BraCarense e da Portucalense, como já observámos na nota 67.

(97) De facto, tendo sido as dioceses situadas ao sul do Douro incorporadas na metrópole Emeritense ainda antes de 666, como veremos, é natural que a divisão da província galaica em dois sínodos tivesse caducado imediatamente. Pedo menos não existia em 675, como se depreende das actas do terceiro concílio bracarense desse ano (Fort. de Almeida: op. cit., págs. 690 a 702). Assim, a divisão sinodal teria durado, provavelmente, menos de um século.

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330 Torquato de Sousa Soares

Bracarense (08), que abrangia o território compreendido entre o Lima e o Tejo, sem qualquer relação, portanto, com a divisão administrativa romana, nem quanto às províncias, nem quanto aos conventos.

d) Incorporação das clioceses ao sul do Douro na metrópole Emeritense:

A destruição do reino suévico, em consequência das vitórias alcan­çadas em 585, 'em Brácara e em Portucale, pdlo rei visigodo Leo- vegildo sobre o usurpa dor Andeca ("), não provocaria imediata- mente o restabelecimento da fronteira setentrional da Lusitânia, ou seja o regresso das duas .províncias eclesiásticas do Ocidente aos seus limites tradicionais.

(De facto, só depois de Recesvindo ter subido ao trono em 653, é que o metropolita de Mérida, Orondo, obteve a incorporação, na sua metrópole, das quatro dioceses que, apesar de integradas na província Bracarense, estavam dentro dos seus limites tradicionais, como testemunha o concílio provincial realizado em Mérida em 666, a que compareceram os prelados de Egitânia, Lamego e Coim­bra <100).

Não obstante, os vínculos que uniam essas dioceses à metrópole

(98) Ê cierto que a fronteira setentrional, pedo menos enquanto segue o curso do Minho, não coincide com a do sínodo Bracarense, 'dando-se mesmo a circunstância insólita de dividir a diocese Tu den se. Mas talvez essa anomalia tivesse resultado — se não foi motivada por razões de ordem política ou militar da Reconquista, o que parece mais provável — da circunstância, que se depreende de Ptolomeu, de os Calaicos Brácaros se terem estendido apenas até ao Minho, como vimo3 a págs. 100-110.

(") Vide Manuel Torres, in España Visigoda; tomo III da «¡Historia de España» dirigida por Menéndez Pida!, págs. 40-41.

(10°) Gonfr. Pierre David: Études cit., pág. 20; Mona. Aug. Ferreira: Fastos episcopais cit., págs. 102-103; e Mons. Miguel de Oliveira: Hist. ecle­siástica cit., págs. 50-51.

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DIOCESES DAS METROPOLES GALAICA E LUSITANA NOS ANTIGOS CONVENTOS JURÍDICOS BRACARO, ESCALABITANO E PACENSE

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332 Torquato ¡efe Sousa Soares

Galaica haviam de deixar um profundo sulco nas respectivas popu­lações, cuja distribuição e desenvolvimento tinham de estar intima­mente relacionados com os quadros eclesiásticos então vigentes.

Realmente, a presença constante de um clero unido pela hierar­quia havia forçosamente de contribuir para robustecer as afinidades de ordem moral que estão sempre na base de uma verdadeira comu­nidade humana. E daí perdurarem, de certo modo, traços da uni­dade perdida, tanto mais que, para o seu estabelecimento e perma­nência, não teriam deixado de influir ¡factores económicos estáveis, ligados a uma antiga tradição não completamente interrompida (101).

'Muito diferente seria a situação no vasto território ao sul do Tejo, onde os Suevos não tinham conseguido fixar-se (102). De facto, nem mesmo se teriam fixado em Lisboa, conquanto a tivessem conquistado e reocupado alguns artos depois, como já observá­mos (103). Pelo menos não há memória de ter havido aí bispos sob o seu domínio, apesar de se tratar de uma diocese anteriormente criada (104), assim como Évora ¡e Ossónoba, que já tinham sido residências episcopais no século IV (105).

Mas talvez esta circunstância, bem como o facto de não serem conhecidos bispos de Pax Julia (Beja), antiga capital de convento jurídico, senão a partir dos fins do século VI, se deva ao propósito de apagar todos os vestígios da heresia ariana, que muito contribuiu, certamente, para desorganizar a vida das igrejas submetidas à domi­nação visigótica. E daí, talvez, também, o atrazo da sua organi-

(íoi) Vide o que a este respeito dissemos na pág. 114 e segs.(i02) Vide, atrás, a nota 19.(ios) Vide, altrás, a págs. 144-145.(104) Já o dissemos a pág. 166 e nota ®1.(ios) (Realmente, no princípio desse século, figuram nas actas do concílio

de Elvira (Hiberis) bispos destas duas dioceses. (Vide F. de Almeida: Hist. da Igreja em Portugal, tomo I, págs. 130 e 134; e Miguel de Oliveira: Hist. eclesiástica cit., pág. 18).

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zaçâo relativamente à das dioceses do norte do país, que tinham beneficiado da acção apostólica de S. Martinho de Dume.

e) Conclusões:

iTial era, quando se deu a irrupção dos muçulmanos, o estado em que se encontrava a faixa odidentail da Hispânia, estado esse que — importa desde já acentuar—muito havia de contribuir para a defi­nição não só das ‘circunscrições eclesiásticas da Reconquista, mas até das .próprias fronteiras de Portugal.

De facto, embora os limites dos territórios então organizados ou reorganizados desse motivo—especialmente quando não coincidiam com os das divisões administrativas romanas —■ a controvérsias por vezes muito vivas, o certo é que era a tradição suévica que levava geralmente a melhor — o que demonstra a profundidade e eficácia da sua acção.

Assim, embora seija certo que, para este resultado, muito haviam de ter contribuído os factores que tivemos ocasião de apontar, espe* cialmente na primeira reflexão, não podemos deixar de atribuir um lugar muito importante à influência exercida pela hierarquia eclesiástica, que constituiu os seus próprios quadros em função da9 necessidades, naturalmente coincidentes, da vida religiosa e económica dais populações.

Realmente, foi, sobretudo, devido a essa influência que, em geral, as grandes circunscrições territoriais puderam manter-se, adaptando-se às novas condições de vida resultantes da invasão sarracena e da reconquista cristã, como veremos no tomo seguinte.

Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 333

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334 Torquato de Sousa Soares

ADITAMENTO À PRIMEIRA REFLEXÃO

É tão notável o trabalho do Prof. Scarlat Lambrino sobre os Lusitanos, publicado em 1957 (*), que, não o tendo citado, por lamentável lapso, no devido lugar, nos julgamos obrigados a assi- nalá-lo em aditamento.

(Não que a sua argumentação nos obrigue a alterar os pontos de vista atrás expressos, mas porque nos permite precisar certos conceitos que muito importa esclarecer.

Começaremos por nos referir aos Celtici, chegados por volta dos meados do l.° milénio a. C., por ocasião das grandes inva­sões (2). Aceitando a correcção de Hiibner ao texto pliniano, de que resulta provirem da Celtibéria e da Lusitânia (3), o Prof. Lam­brino objecta, no entanto, não serem assinalados Célticos na Cel­tibéria; e terem os da Lusitânia vindo, muito mais tarde, da Bética.

Pelo que dissemos na primeira «reflexão», já se terá compreen­dido que não consideramos válido este ponto de vista, entendendo não haver nada que justifique a correcção do passo de Plínio, tão claro e lógico ele é.

De facto, o velho naturalista latino, referindo-se aos Célticos do convento Hispalense, que lindam com a Lusitânia, isto é, com a mesopotâmia transitagana, que depois da conquista romana

(*) Les Lusitaniens, publicado no vol. I da revista «Euphrosyne», de págs. 117 a 145.

(2) Ibid., ibid., págs. 132 e 135. Vide também Sánchez-Albornoz : EÎ

culto aî Imperador cit., pág. 78, nota 235.(3) A correcção de Hübner é feita no artigo que sobre os Celtio, publicou

na Paulys Real-Encyclopâdie der Classischen Alter tumwissenschaft, ©ditada por Oeorg Wissowa, vol. III, col. >11893, dit. por Lambrino in art. cit., pág. 13-6, nota 102.

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Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 335

passou a fazer parte dela, diz que vieram daí; e explica que «eram oriundos da Celtibéria —o que *é não só perfeita-mente compreen­sível, mas também rigorosamente exacto.

'Por outro lado, o facto de os designar Célticos permite-nos supor, de acordo com a perspicaz observação de iLambrino (4), não se tratar já de um povo integrado numa organização estatal ou sequer sujeito à autoridade de um só chefe. Isto é, os Cél­ticos, depois de terem ocupado toda a zona litoral, pelo menos ao sul do Douro, teriam entrado, como supõe Bosch-Gimpera, em deca­dência (B), o que explica a sua divisão em pequenos núcleos autó­nomos, cada um dos quais tinha, naturalmente, o seu nome próprio.

É então que os Lusitanos, também de origem celtibérica, e certamente já fixados, de longa data, na margem esquerda do Douro, a montante -dos antigos Túrdulos, surgem como conquis­tadores (6), empurrando para o sul os seus irmãos de raça, que con­seguiram, no entanto, fazer-lhes frente ao longo do Tejo, onde

(4) «Parece, portant», que o termo Celtici — diz o referido Professor — é empregado, oom a sua forma adjectival e o seu valor de epíteto, para designar um ramo dia nação, formado die várias tribos célticas ou celtiz-adas, nenhuma das quais foi bastante forte para dominar as outras. A sua forma adjectival — observa ainda sagazmente — parece indicar, por outro lado, que foi forjado bastante tarde para designar o aspecto que a nação tomou em virtude do seu estabelecimento nas regi5es meridionais, e depois de ter adquirido uma certa homogeneidade relativamente a estas novas terras, mas sem dúvida muito antes dos meados do século II a. C.» (ibidibid., pág. 136).

(5) Vide, atrás, a págs. 77-78, a nota 150, onde transcrevemos o passo em referência. Talvez se possa atribuir a decadência dos Célticos, a uma diminuição -de poder combativo provocada pela falta de ferro para manufactu­rarem as suas armas.

(6) Talvez a ofensiva dos Lusitanos resultasse da descoberta e utili­zação de novas jazidas de ferro, como já observámos a pág. 78.

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356 Torquato de Sousa Soares

parece se «mantiveram até à chegada «dos Romanos (7). E é por isso que —• como, aliás, é perfeitamente compreensível — tanto Estra- bão como Plínio distinguem sempre os Célticos dos Lusitanos.

Sendo «assim, como todos os dados de que dispomos nos permi­tem crer, não consideramos de modo nenhum admissível que os Célticos da Lusitânia tenham vindo muito mais tarde da Bética, como pretende Lambrino, equivocadamente apoiado por Estrabão, que não o diz nem sequer o dá a entender (8). E, por outro lado, passando-se estes acontecimentos por volta do século III, não se nos afigura viável a identificação aos Lusitanos do «pernix Lucis» do périplo massiliota incluído na Ora Marítima de Avieno — iden­tificação essa que o Prof. Lambrino, invocando, no entanto, argu­mentos dignos de ponderação, perfilha em outro estudo igual­mente notável (9).

'(7) É o que se depreende de Estrabão, como já tivemos ocasião de notar a pág. SI e nota 102, muito embora seja provável que, em alguns pontos, os Lusitanos tivessem conseguido manter-se, com certa estabilidade, ao sul deste rio, ainda antes da chegada dos 'Romanos.

(8) De facto, a única passagem da sua Geografia que alude à proveniênoia dos Célticos, respeita aos que se instalaram nas cercanias do cabo Nério, que «diz serem parentes dos Célticos que vivem sobre o Guadiana, que tinham empreen­dido uma campanha em companhia dos Túrdulos (III, 3, 5; C. 1530•

— Teria sido por Estrabão os apresentar assim, unidos aos Túrdulos, que Lambrino julgou que o geógrafo grego os considerava originários da Tur­detania ou ¡Bética ?

Não nos parece, «porém, admissível tal conclusão, mesmo admitindo terem vindo da Betúria, pois sabemos muito bem como chegaram lá. De resto, o facto de aparecerem no norte do país emparceirados com Túrdulos, parece implicar ape­nas uma simples união acidental, tanto mais que o episódio em referência talvez se relacione Com a campanha de Bruto, como já referimos a pág. 89, nota 192.

(9) Les iCeltes dans la Péninsule Ibérique selon Avienus, publicado no «Bulletin des Études Portugaises et de lTnstitut Français «au Portugal», tomo XIX, págs. 5 a 36.

Dç facto, o Autor, «discordando da opinião de Leite e Vasconcellos, a

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Quanto às tribos célticas que se fixaram na Galiza (10), também não temos que rever a nossa interpretação; mas cumpre-nos acentuar certos aspectos, esperando assim contribuir para o esclarecimento de algumas dúvidas do Prof. Lambrino.

De uma maneira geral, julgamos serem as fontes literárias con­cordes não só entre si (n), mas também com os dados que os arqueólogos e os filólogos nos oferecem.

Não obstante, ao passo que Estrabão só fala de Célticos (paren-

Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 337

que nas referimos atrás, a pág. 79, nota 155, procura reabilitar nesse estudo a tese de Mendes Corrêa sobre o «pern/x Lucis» (pág. 2>2 e segs.). Vide também o artigo publicado in «Euphrosyne», a que nos vimos referindo, a pág. 135.

É certo que Bosch-Gimpera, que também aceita a tese de Mendes Corrêa (vide La formación de los pueblos de España, a pág. 150), nem por isso deixa de considerar que a ofensiva dos Lusitanos teve lugar em meados do século III, a partir das montanhas da Beira, onde estariam já nos princípios do séc. VI, isto é, ao serem mencionados no périplo massiliota (vide Historia de España di rigi da por M. Pi dal, tomo II, pág. 118).

Não nos parece, no entanto, admissível que, apesar de se manterem obscuramente acantonados longe do mar, sem poder expansivo que lhes per­mitisse iniciarem uma ofensiva contra 09 Célticos, que só alguns séculos depois puderam atacar, 09 Lusitanos fossem, no entanto, postos em relevo num relato tão pouco minucioso como é o que Avieno inclui na sua Ora maritima. Mais natural seria que se referisse aos Túrdulos, que dominavam a faixa costeira (entre o Tejo e o Douro, ou ao9 Gróvios, que se estendiam >ao norte deste rio até ao Cantábrico. Ora, a origem lígur dos Túrdulos é perfeitamente admissível, pois provinham certamente do sul, talvez mesmo das imediações do «/acus Ligustinus», a que o Périplo se refere. E, como vimo9, também é possível que os gróvios proviessem da mesma região ou de região limítrofe, apesar de ser talvez céltica a origem do seu nome (Vide, atrás, pág. 65 e segs.). E assim a correcção de «pern/x Lucis», em «pern/x Ligus» seria bem mais verosímil.

(10) O Prof. Lam/brino refere-9e, evidentemente, ao território designado Gallaecia a partir da dominação romana, isto é, desde o Douro à cosita Can­tábrica.

(n) Ê certo termos apontado divergências entre Mela e (Plínio (vide atrás, a pág. 55) ; mas trata-se mais de divergências de critério do que própria- mente de Contradições.

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tes dos que vivem sobre o Guadiana) nas cercanias do Cabo Nério, Pompónio Mela parece indicar que habitavam numa extensão de costa muito maior; e, por sua vez, Plínio designa, expressamente, apenas duas ou três tribos como célticas.

Apreciando estes passos, o referido professor, depois de perguntar se será legítimo concluir dos dizeres do naturalista latino serem só esses os povos célticos que habitavam ao norte do Douro, res­ponde negativamente, considerando outros grupos chegados em épocas diferentes (12).

A conclusão é justa, embora passível de certas restrições.Já manifestámos a nossa discordância quanto à forma como o

Prof. Lambrino, aliás de acordo com Leite de Vasconcellos, inter­preta Mela (13) — e mantemos o nosso ponto de vista.

Realmente, julgamos que o geógrafo gaditano só considera como celtas, na costa ocidental, os povos que habitavam ao norte da pri­meira reentrância formada pelas três rias de Vigo, Pontevedra e Arosa. E, quanto à costa setentrional, ao referir-se aos Ártabros como sendo etiamnum Celticae gentis — ou, de acordo com algumas edi­ções, etiam nunc Celticae gentis —• quereria talvez dizer que também (em relação aos célticos da costa ocidental) pertenciam agora à nação céltica, tomando, é claro, este termo, no seu sentido genérico.

(12) Art. oit. in «Euphrosyne», pág. 132.(13) Vide atrás, a págs. 52 e 54, nota 79. Lambrino, depois de depreciai

o testemunho de Mela, censura-o por não empregar uma só vez na sua des­crição o nome dos Celtae ou dos Celtiberi ( ibid.t ibid., págs. 133-134). Jul­gamos, no entanto, que o reparo se não justifica, tendo em vista que não havia razão para nomear os Celtiberos, e que a Celtas se refere, certa mente, ao dizer que os Artabn pertencem à gens Celtica, isto é, são celtas.

Não há, portanto, necessidade de considerar que o geógrafo gaditano «empre­gava este adjectivo com um valor genérico, e não para designar um ramo 'definido dos Celtas» (ibid., ibid.). De resto, nem mesmo assim se poderia admitir que lhes atribuía toda a zona costeira a partir do Douro para o norte, Como dissemos.

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Isto é, Pompónio Mella pretenderia apenas exprimir a recente celtização dos habitantes da costa cantábrica desde o promontório Céltico ao rio Návia (14).

Ora, a este geógrafo interessavam sòmente os povos dominadores ou autónomos. Por isso, ao norte do Douro, só se refere aos Gróvios (que, como vimos, não considera célticos), aos Praesamarchi, aos Super tamarici, aos Neri e aos Ártabros (15).

Pelo contrário, a Plínio interessam sobretudo as tribos, mesmo quando subordinadas a outros povos. E, por isso, diz que no con­vento Lucense, além dos Célticos e dos Lémavos, chegados mais recentemente, existem dezasseis povos de nomes obscuros e bárba­ros (16), entre os quais designa nove(17). E é ainda pela mesma razão que só menciona os Ártabros para dizer que nunca existiu povo com tal nome, que deve ser substituído pelo de Arrotrebae, tribo esta que localiza ante o promontório Céltico.

A observação do velho naturalista é, certamente, aceitável. O nome «ártabro» teria sido, talvez, atribuído pelos Celtas bretões à tribo que habitava a zona onde fundaram cidades e o chamado porto dos Ártabros, a que se refere Esfcrabão (18) ; e só depois se alteraria, passando a ser de Arrotrebae por influência da gente do país, com certeza muito mais numerosa (19). Não obstante, escapando a essa influência local, o nome de Ártabros ter-se-ia mantido para indicar o conjunto das tribos por eles dominadas e celtizadas (20).

0«) III, 13.(1B) III, 10 a 13.(16) III, 28.07) IV, 1*11.08) III, 3, 5; C. 154.(19) Estrabão dá-o a entender, dizendo: «Hoje em dia chama-se Arotrebai

aos Ártabros» (ibidem).(2°) É o que se depreende *de Pompónio Mela, que, referindo-se ao

grupo de tribos fixadas no litoral cantábrico, a oeste dos Ástures, designa-o Art abri, não pondo sequer a questão da legitimidade desse nome (Hl, 13).

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Temos, assim, no território onde havia de se 'constituir o con­vento Lucense, além da população nativa que conseguiu manter a sua autonomia, os Áltateos, fortemente eeltizados por sucessivas migrações de bretões, aí chegados, ao que pareoe, pela via maritima; os Lémavos, celtas mais ou menos germanizados; os Célticos, de origem celtibérica, provenientes das margens do Guadiana; e, final­mente, os Galaicos, que, tendo-se há muito fixado na margem direita do Douro, a montante dos Drácaros, daí teriam irrompido, divi- dindo-se em dois grupos, um dos quais se fixaria em Lugo, de onde havia de irradiar, dominando vários povos (21).

'Quanto ao território que viria a constituir o convento Brácaro, nada nos diz Plínio sobre o carácter étnico das suas vinte e quatro civitates, a não ser relativamente às tribos fixadas na orla marítima, pois, como vimos, considera — embora vagamente — duas de origem grega, querendo assim, talvez, acentuar o contraste exis­tente entre elas e as tribos vizinhas, especialmente as fixadas ao norte, apesar de tanto umas como outras serem provenientes do sul.

E, no entanto, ninguém pode pôr em dúvida o carácter céltico pelo menos dos Callaeci (22).

Ê, pois, evidente que, como justamente observa o prof. Lambrino, o naturalista latino não tem o propósito de indicar a raça a que pertenciam os povos que nomeia, limitando-se a registar os dados que as listas que teve à mão lhe forneciam.

Fosse, porém, como fosse, o certo é que o criticismo é muito mais acentuado no país onde os Romanos estabeleceram o convento Lucense do que no convento Brácaro, onde, por sua vez, a influência ibérica, tendo-se exercido largamente, perduraria (23). Do mesmo

(21) Ê o que se depreende de F.bolomeu, como vimos a pág. 105 e segs.(22) Vide o que a esse respeito ficou dito na primeira «reflexão».{23) Vide, atrás, a págs. 6*8-69, nota 125.

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modo, ao sul do Douro, na zona litoral, apesar da acção dos Célticos ter sido ainda mais considerável, não se apagariam, certamente, os vestígios da civilização ibérica (24).

Não sei se o nível de civilização seria, neste país, superior ao do povo invasor; creio, no entanto, poder afirmar que era relativa­mente elevado (2B). Mas nem por isso a sua população deixaria de sofrer a influência dos vencedores — uma influência mais cultural do que étnica, visto que o seu número, por maior que fosse, seria, provàvelmente, menor do que o dos habitantes do país (26). De resto, é sabido como pequenas minorias de senhores guerreiros con­seguem fácilmente impor o seu onomástico e o culto dos seus deuses às populações vencidas (2T). Não há, pois, razão para admitir o contrário relativamente à invasão céltica. É preciosa — porque é extraordinariamente elucidativa — a contribuição que, a este res-

Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal 341

'(24) Basta ter presente a menção de Pompón!o Mela aos antigos Túrdulos e às cidades dos Túrdulos para o admitir.

(25) Vide o que 'dissemos atrás, a págs. 75-76.(26) É certo que Estrabão diz que a população da mesopotâmia trans-

tagana «está integrada, na sua maior parte, por Célticos» (III, 1, '6; C. 139); mas aí há a considerar a circunstância de os Lusitanos, na sua ofensiva contra os (Célticos, os terem empurrado para o sul do Tejo, como vimos.

(2T) O próprio Prof. Lambrino verifica, ao analisar várias inscrições, que há nomes romanos adoptados por indígenas romanizados (artigo cit., pág. 141). O mesmo podia verificar em relação a Viriato, cujo nome, de origiem céltica, não lhe determina forçosamente a raça, como parece supor o referido Arqueólogo (tbid., ibid., págs. 143-144). É mesmo o caso geral a receptividade dos povos dominados ao onomástico dos dominadores. Realmente, o mesmo se verifica em relação aos povos hispânicos submetidos pelos Visigodos, e até nas comuni­dades cristãs que se sujeitaram ao domínio muçulmano.

Já não assim quanto às formas de culto, pois não pode deixar de ser particularmente significativo o número de divindades Célticas que entraram no Panteão do país. Mas, mesmo nesse campo, não deixaria de se fazer sentir o exemplo e até a pressão dos dominadores, tanto mais que a puderam exercer durante largo prazo de tempo.

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peito, nos oferece o Prof. Lambrino (28), pois, apesar de o seu inqué­rito só abranger algumas zonas (20), demonstra que a influência cél­tica foi, realmente, muito ampla e profunda em todo o país (80).

Mas o interesse, verdadeiramente excepcional, do trabalho do Prof. Lambrino, mais ainda, talvez, do que neste inquérito, que, aliás, bastaria para qualificar o seu alto nível (científico, reside no estudo comparativo, que o completa, dos topónimos e antropónimos do nosso país com outros afins do norte da Europa. É que, com ele, o emi­nente arqueólogo oferece-nos uma contribuição preciosa para o escla­recimento do problema das origens dos elementos célticos aqui radi­cados — contribuição que, certamente, até hoje, ninguém entre nós conseguiu dar nem com mais erudição, nem com melhor espírito crítico.

Torquato de Sousa Soares

( Continua )

(28) Esta contribuição não se limita ao artigo em referência. Entre outros, são ainda dignos de nota os que tem publicado no «Bulletin des Études Portugaises et de l’Institut Français au Portugal». Assim: Les inscriptions de

São Miguel dfOdrinhas (Tomo XVI, pâgs. 134-176); Les divinités orientales en

Lusitanie et le Sanctuaire de Panoias (Tomo XVII, págs. 93-120); Sur quelques

noms de peuples de Lusitanie (Tomo XXI, págs. S3-96) ; e Le nom Aeius et la

Cité d’Avobriga en Lusitanie (Tomo XXII, págs. 5-20).(29) i£>e facto, o Prof. Lambrino, depois de se referir à contribuição de

Schiulten, esclarece : «Por nosso lado, limitamo-nos a pôr em relevo o estado de coisas que se encontram em dois pontos desta região: o território que se estende entre a foz do Tejo e o Oceano (S. Miguel de Odrinhas), e uma porção da Beira-Baixa, no centro da qual se encontra a civitas Lgaeditanorum, e que vai do Tejo à serra da Estrela» (artigo dit., pág. 138).

(30) É muito elucidativo o mapa que o Prof. Lambrino publica a pág. 141 do seu estudo, mapa esse relativo aos Lusitani, Lusones e Celtici na Península Ibérica.